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o jogo da capoeira em jogo ea construção da práxis capoeirana

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA<br />

FACULDADE DE EDUCAÇÃO – FACED<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO<br />

JOSÉ LUIZ CIRQUEIRA FALCÃO<br />

O JOGO DA CAPOEIRA EM JOGO<br />

E A CONSTRUÇÃO DA PRÁXIS CAPOEIRANA<br />

Salvador<br />

2004


JOSÉ LUIZ CIRQUEIRA FALCÃO<br />

O JOGO DA CAPOEIRA EM JOGO<br />

E A CONSTRUÇÃO DA PRÁXIS CAPOEIRANA<br />

Tese apresenta<strong>da</strong> ao Programa de Pós-<br />

Graduação <strong>em</strong> Educação <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de<br />

Educação, Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia, como<br />

requisito parcial para obtenção do grau de<br />

Doutor <strong>em</strong> Educação.<br />

Orientadora:<br />

Profª. Drª Celi Nelza Zülke Taffarel<br />

Co-Orientador:<br />

Prof. Dr. José Machado Pais<br />

Salvador<br />

2004<br />

ii


TERMO DE AROVAÇÃO<br />

JOSÉ LUIZ CIRQUEIRA FALCÃO<br />

O JOGO DA CAPOEIRA EM JOGO<br />

E A CONSTRUÇÃO DA PRÁXIS CAPOEIRANA<br />

Tese aprova<strong>da</strong> como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor <strong>em</strong><br />

Educação, Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia, pela seguinte banca examinadora:<br />

Celi Nelza Zülke Taffarel (Orientadora) ____________________________________<br />

Doutora <strong>em</strong> Educação, Universi<strong>da</strong>de Estadual de Campinas (Unicamp)<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia<br />

Antônio Câmara ______________________________________________________<br />

Doutor <strong>em</strong> Sociologia, Universi<strong>da</strong>de de Paris, França<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia<br />

Cipriano Carlos Luckesi ________________________________________________<br />

Doutor <strong>em</strong> Educação, Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de São Paulo, São Paulo-SP<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia<br />

Luiz Renato Vieira_____________________________________________________<br />

Doutor <strong>em</strong> Sociologia, Universi<strong>da</strong>de de Brasília<br />

Universi<strong>da</strong>de de Brasília<br />

Silvio Ancizar Sanches Gamboa _________________________________________<br />

Doutor <strong>em</strong> Educação, Universi<strong>da</strong>de Estadual de Campinas (Unicamp)<br />

Universi<strong>da</strong>de Estadual de Campinas (Unicamp)<br />

Salvador, 15 de março de 2004.<br />

iii


AGRADECIMENTOS..., SAUDAÇÕES..., LOUVAÇÕES...<br />

Iê... Viva Dona Chiquinha, mãe (e pai) incansável, dest<strong>em</strong>i<strong>da</strong>, que com as<br />

pelejas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e muita abnegação, seja como faxineira ou quitandeira, nunca<br />

titub<strong>ea</strong>va <strong>em</strong> afirmar, teimosamente, que a educação (escolarização), que ela<br />

praticamente não teve acesso, era a única alternativa para que seus sete filhos não<br />

repetiss<strong>em</strong> a sua “vi<strong>da</strong> severina”;<br />

Iê... Viva Celi Taffarel, mulher guerreira, dest<strong>em</strong>i<strong>da</strong>, trabalhadora<br />

incansável. Orientadora de perto e de longe que não deixa ninguém indiferente ao<br />

seu turbilhão de idéias e às suas lutas combativas e amorosas por uma socie<strong>da</strong>de<br />

justa, igualitária e fraterna. Com ela, aprend<strong>em</strong>os a enfrentar as probl<strong>em</strong>áticas <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> s<strong>em</strong> vacilar.<br />

Iê... Viva Felippe Serpa (in m<strong>em</strong>orian) que, com seu ex<strong>em</strong>plo de vi<strong>da</strong> e<br />

dedicação à universi<strong>da</strong>de pública, será s<strong>em</strong>pre uma referência para todos (de longe<br />

e de perto) que tiveram o privilégio de conviver com esse “pequeno notável”, que<br />

abominava títulos e valorizava a simplici<strong>da</strong>de. Ex<strong>em</strong>plo lapi<strong>da</strong>r de uma vi<strong>da</strong> cheia de<br />

vi<strong>da</strong>, construí<strong>da</strong> coletivamente no cotidiano.<br />

Iê... Viva Machado Pais, laur<strong>ea</strong>do sociólogo português, nosso orientador<br />

no estágio de doutoramento no Instituto de Ciências Sociais <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />

Lisboa, que contribuiu com significativas referências bibliográficas e documentais<br />

qualificando, sobr<strong>em</strong>aneira, as análises r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>s sobre a <strong>capoeira</strong> na Europa.<br />

Iê... Viva Mestre Zulu (nosso mestre de <strong>capoeira</strong>), uma inteligência s<strong>em</strong><br />

medo, s<strong>em</strong> desalento e s<strong>em</strong> orgulho, que singra o tecido social com imensa<br />

curiosi<strong>da</strong>de e com acolhedora ternura para inventar o (im)possível e recomeçar<br />

s<strong>em</strong>pre, com contagiante perseverança.<br />

iv


Iê... Viva Mestre Luiz Renato, intelectual de escol, irmão camara<strong>da</strong>,<br />

incentivador incansável que, com sua afia<strong>da</strong> e afina<strong>da</strong> crítica social, nos legou uma<br />

<strong>da</strong>s mais consistentes e reconheci<strong>da</strong>s obras sobre a <strong>capoeira</strong>.<br />

Iê... Viva Solange Lacks, amiga, companheira, parceira de estudos, artigos<br />

e relatórios que, com sua leve e fraterna companhia, contribuiu com muitas palavras<br />

de incentivo e s<strong>em</strong>pre esteve solidária às nossas angústias, inquietações e<br />

sofrimentos.<br />

Iê... Viva César Leiro, camara<strong>da</strong> brincante, atencioso e entusiasta, cuja<br />

parceria, no estágio de Doutoramento no Instituto de Ciências Sociais <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de de Lisboa e nas viagens pela Europa, suscitou-nos brilhantes idéias e<br />

debates calorosos.<br />

Iê... Vivam os componentes <strong>da</strong> Banca Examinadora: Dr. Antônio Câmara,<br />

Dr. Cipriano Carlos Luckesi, Dr. Luiz Renato Vieira e Dr. Silvio Sanches Gamboa,<br />

que aceitaram o convite para dialogar conosco sobre este complexo t<strong>em</strong>ático de<br />

infinitas possibili<strong>da</strong>des e, ain<strong>da</strong>, tão carente de estudos sist<strong>em</strong>atizados.<br />

Iê... Vivam nossos alunos, hoje professores, ain<strong>da</strong> que a maioria não<br />

tenha freqüentado a universi<strong>da</strong>de, mas que “viv<strong>em</strong>” de <strong>capoeira</strong> e a tratam com a<br />

devi<strong>da</strong> digni<strong>da</strong>de: mestre Maxwel, mestre Nanã, mestrando Assis, mestrando Bill,<br />

mestrando Leo Borges, contramestres Xiquinho e Kiko, instrutor Fabinho e monitores<br />

Lelo e Urso. E, ain<strong>da</strong>, os estagiários (que freqüentaram ou estão freqüentando a<br />

universi<strong>da</strong>de) Muleka, Dêgo, Ricardo, Sandro e Guilherme, que nos escutam e nos<br />

ensinam no calor <strong>da</strong>s contradições.<br />

v


Iê... Viva Roberto Liáo Junior, camara<strong>da</strong> de luta, que contribuiu com<br />

significativas e pondera<strong>da</strong>s argumentações críticas para que este estudo não<br />

escapasse <strong>da</strong> necessária coerência interna. A leitura <strong>da</strong> versão final e os calorosos<br />

debates <strong>em</strong> Florianópolis, durante o carnaval, duas s<strong>em</strong>anas antes <strong>da</strong> apresentação<br />

à banca examinadora, foram imprescindíveis para o amadurecimento de nossas<br />

formulações sobre a <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na.<br />

Iê... Vivam os mestres Umoi, Cota, Bailarino, Jorge, Ulisses, Tucas,<br />

Jerusa, Nilson, Maclau, Pantera, Batata, Barão, Quincas, Al<strong>em</strong>ão, Pinóquio, Jorge,<br />

Sargento, que, de diferentes maneiras e de acordo com as condições disponíveis,<br />

nos acolheram <strong>em</strong> seus eventos na Europa e nos proporcionaram oportuni<strong>da</strong>des<br />

irrepetíveis de aprendizag<strong>em</strong> nas nossas an<strong>da</strong>nças.<br />

Iê... Vivam os professores de <strong>capoeira</strong> Marco Antônio, ET Capoeira,<br />

Aranha, Bugrão, Torcha (Torkjell), Pacheco, Arroz-Doce, Tito, Conde, Birita, Marcha<br />

Lenta, Paulinho, Bolão, Nagô, Jú, Claudinho, Federica, que nos acolheram<br />

fraternalmente <strong>em</strong> seus eventos, prestaram-nos depoimentos, deram-nos atenção,<br />

estimularam-nos e contagiaram-nos com suas trajetórias mescla<strong>da</strong>s de flutuações,<br />

certezas e incertezas, com muita arte, entusiasmo e alegria esfuziante.<br />

Iê... Vivam os soteropolitanos (natos ou adotados) mestres João Pequeno,<br />

Decânio, Xaréu, Boa Gente, Itapoan, Zé Dário, contramestres Bené, J<strong>ea</strong>n, Corcorã,<br />

Zézo, Sol<strong>da</strong>do, professores Humberto, Minhoca, Jegue, Brisa, Cabeça, que, de uma<br />

forma ou de outra, nos apoiaram e nos incentivaram nesta <strong>em</strong>preita<strong>da</strong>.<br />

vi


Iê... Vivam os pesquisadores (acadêmicos ou não) Fred Abreu, Nestor<br />

Capoeira, Antônio Liberac Pires, Amélia Conrado, Carlos Eugênio Líbano Soares,<br />

Pedro Abib, Luiz Vitor de João Pequeno que, com seus olhares clínicos, consegu<strong>em</strong><br />

ver muitas coisas que, para a maioria, passam despercebi<strong>da</strong>s.<br />

Iê... Vivam os meus camara<strong>da</strong>s Edgard Matiello Júnior, Maurício Roberto<br />

<strong>da</strong> Silva, Letícia Reis e Márcio Corte R<strong>ea</strong>l, que, <strong>em</strong> meio à ebulição de atribuições e<br />

responsabili<strong>da</strong>des institucionais, encontraram t<strong>em</strong>po para fazer<strong>em</strong> uma atenta e<br />

perspicaz leitura desta tese e deram significativas contribuições.<br />

Iê... Vivam os companheiros <strong>da</strong> Linha de Estudo e Pesquisa <strong>em</strong> Educação<br />

Física & Esporte (LEPEL) <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia (UFBA) que, com suas<br />

<strong>práxis</strong>, estão contribuindo para a consoli<strong>da</strong>ção de um <strong>em</strong>ergente núcleo de pesquisa<br />

“nordestinense”, e vêm promovendo inquestionável e significativa produção científica<br />

no campo <strong>da</strong> Educação Física brasileira.<br />

Iê... Vivam todos os colegas do Núcleo Pe<strong>da</strong>gógico <strong>em</strong> Educação Física<br />

(NEPEF) do Centro de Desportos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Santa Catarina<br />

(UFSC), que com suas práticas discursivas e discursos praticados, nos acolh<strong>em</strong> e<br />

nos orientam na fatigante lide acadêmica.<br />

Iê... Viva a CAPES, que deu o suporte financeiro para que este estudo se<br />

concretizasse. S<strong>em</strong> esse apoio, ele seria, para nós, terminant<strong>em</strong>ente impossível.<br />

Iê… Vivam os camara<strong>da</strong>s Paulo Vinícius Koerich Borges (Pequeno), de<br />

Floripa, Benedito Libório (Bené), de Salvador e Bruno Emmanuel, de Recife, que, de<br />

forma espontân<strong>ea</strong> e fraterna, colaboraram na <strong>construção</strong> de suportes técnicos para<br />

a apresentação desta tese.<br />

vii


A todos e a to<strong>da</strong>s, os nossos mais efusivos agradecimentos nesse<br />

momento de kizomba (celebração, para os angolanos) por mais essa r<strong>ea</strong>lização que<br />

esperamos não ser a última.<br />

E, com o estímulo de camara<strong>da</strong>s como Petry Lordelo (desordêro), <strong>da</strong><br />

LEPEL que, certa feita, declamou entusiasticamente: “Falcão / Abre tuas asas e voa<br />

/ Não há salto que seja mortal para ti / Abre o teu bico e canta / Pois tal qual<br />

berimbau s<strong>em</strong>pre é bom te ouvir / Abre tuas garras, agarra / Teu coração sabe b<strong>em</strong><br />

definir qual a presa / Abre teus olhos e vê / Que na ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> o teu <strong>jogo</strong> é beleza”,<br />

é impossível parar. A luta continua, camará! Vamos quebrar os grilhões que nos<br />

acorrentam e nos sucumb<strong>em</strong> a uma “vi<strong>da</strong> de gado”, “seca”, “severina” e construir,<br />

coletivamente, uma socie<strong>da</strong>de para além <strong>da</strong> ditadura do capital.<br />

viii


RESUMO<br />

Esta pesquisa teve por objetivo principal criticar e propor el<strong>em</strong>entos teóricometodológicos<br />

para o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo de<br />

formação profissional a partir <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de de experiências com esta<br />

manifestação cultural <strong>em</strong> espaços educacionais formais e não-formais do Brasil e do<br />

Exterior. Esses el<strong>em</strong>entos teórico-metodológicos conceb<strong>em</strong> a <strong>capoeira</strong> como <strong>práxis</strong><br />

qualifica<strong>da</strong> pela noção de complexo t<strong>em</strong>ático e articulam os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong><br />

pesquisa-ação com as possibili<strong>da</strong>des pe<strong>da</strong>gógicas: experimentação,<br />

probl<strong>em</strong>atização, teorização e re<strong>construção</strong> coletiva do conhecimento. Esta<br />

pesquisa integra a Linha de Estudos e Pesquisa <strong>em</strong> Educação Física, Esportes &<br />

Lazer (LEPEL) <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Educação, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia, cujo<br />

campo de interesse envolve probl<strong>em</strong>áticas sobre formação de professores, prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica, trato com o conhecimento e políticas educacionais. Partimos de duas<br />

hipóteses que se articulam entre si. A primeira sustenta que o processo de<br />

internacionalização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong> promovendo expressiva movimentação de<br />

seus praticantes e contribuindo para a ressignificação dos seus códigos e valores. A<br />

segun<strong>da</strong> sustenta que o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, no currículo de<br />

formação profissional, está submetido à lógica de organização do processo de<br />

trabalho pe<strong>da</strong>gógico própria <strong>da</strong> escola capitalista, que assegura a sua reprodução<br />

através <strong>da</strong> formação de competências técnico-instrumentais e mentali<strong>da</strong>des<br />

conforma<strong>da</strong>s. A pesquisa dividiu-se <strong>em</strong> quatro etapas articula<strong>da</strong>s entre si. As<br />

experiências analisa<strong>da</strong>s expressam e muitas, freqüent<strong>em</strong>ente, reproduz<strong>em</strong>, não<br />

mecanicamente, mas por mediações <strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica, as contradições sociais<br />

e a lógica destrutiva do capital evidenciando que, no trato com o conhecimento <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, o significado que os sujeitos apreend<strong>em</strong> de suas práticas,<br />

<strong>em</strong>ocionalmente compartilha<strong>da</strong>s, está vinculado à intensi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s interações e com<br />

a plenitude <strong>da</strong> experiência e, nessas práticas intersecionam, inequivocamente, as<br />

dimensões subjetivas, ético-políticas, históricas, culturais e econômicas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>em</strong><br />

socie<strong>da</strong>de. Com isso, aponta para o desafio de tratar o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong><br />

numa perspectiva auto-determina<strong>da</strong>, autônoma, solidária, reflexiva e crítica, e<br />

contribuir para a <strong>construção</strong> de um outro projeto histórico, para além do capital.<br />

Palavras-chave: 1. Capoeira; 2. Educação; 3. Cultura; 4. Prática Pe<strong>da</strong>gógica; 5.<br />

Trato com o conhecimento.<br />

ix


ABSTRACT<br />

The main objective of this res<strong>ea</strong>rch was to criticize and propose theoretical and<br />

methodological el<strong>em</strong>ents for d<strong>ea</strong>ling with the knowledge of <strong>capoeira</strong> within the<br />

professional curriculum from the analysis of the r<strong>ea</strong>lity of experiences within this<br />

cultural manifestation in formal and non-formal educational environments in Brazil<br />

and abroad. These theoretical and methodological el<strong>em</strong>ents conceive the <strong>capoeira</strong><br />

as praxis, qualified as a th<strong>em</strong>e complex end articulate the fun<strong>da</strong>ments of the<br />

res<strong>ea</strong>rch-action with the pe<strong>da</strong>gogical possibilities of experimentation, probl<strong>em</strong><br />

structuring, theorization and collective reconstruction of knowledge. This res<strong>ea</strong>rch<br />

integrates the Line of Studies and Res<strong>ea</strong>rch in Physical Education, Sports & Leisure<br />

(LEPEL), from the Faculty of Education at the Federal University of Bahia, whose<br />

field of interest involves probl<strong>em</strong>s concerning the qualification of t<strong>ea</strong>chers,<br />

pe<strong>da</strong>gogical practice, and d<strong>ea</strong>ls with knowledge and educational politics. We start<br />

from two inter-articulated hypotheses. First, the process of internationalization of<br />

<strong>capoeira</strong> has promoted significant dislocation of the practitioners, and has<br />

contributed to the r<strong>ea</strong>ssignment of their rituals and values. Secondly, the tr<strong>ea</strong>tment of<br />

the knowledge of <strong>capoeira</strong>, within the professional curriculum, is being submitted to<br />

the organizational logic of the pe<strong>da</strong>gogical work process that belongs to the capitalist<br />

school, which assures its reproduction through the formation of techno-instrumental<br />

competences and resigned mentalities. This res<strong>ea</strong>rch has been divided in four<br />

interrelated stages. The experiments under analysis express, and very frequently<br />

reproduce, though not directly but through the mediation of the pe<strong>da</strong>gogical practice,<br />

the social contradictions and destructive logic of capitalism. They show that in d<strong>ea</strong>ling<br />

with the knowledge of <strong>capoeira</strong>, the m<strong>ea</strong>ning that individuals l<strong>ea</strong>rn out of practice,<br />

<strong>em</strong>otionally shared, is linked with the intensity of interactions and with the plenitude<br />

of experience and in these practices intersect, unmistakably, the subjective<br />

dimensions, ethic-political, historical, cultural and economical, of social life. In this<br />

way, it points out the challenge of d<strong>ea</strong>ling with the knowledge of <strong>capoeira</strong> in a selfdetermined<br />

perspective, autonomous, unified, reflexive and critical, and contributes to<br />

the construction of another historical project, beyond capital.<br />

Key-words: 1. Capoeira; 2. Education; 3. Culture; 4. Pe<strong>da</strong>gogical Practice; 5.<br />

Tr<strong>ea</strong>ting with Knowledge.<br />

x


SUMÁRIO<br />

Página<br />

INTRODUÇÃO ............................................................................................................1<br />

Capítulo<br />

1. “IÊ...VAMOS JOGAR...CAMARÁ” .........................................................................17<br />

1.1. Aspectos do desenvolvimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>:<br />

plurietnia, resistência e transnacionali<strong>da</strong>de.................................................17<br />

1.2. Do “boca-a-boca” à internet: a mobili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e<br />

a ressignificação <strong>da</strong> cultura..........................................................................29<br />

1.3. A Capoeira Angola e a Capoeira Regional e<br />

a afirmação de identi<strong>da</strong>des .........................................................................35<br />

1.4. A <strong>capoeira</strong> no contexto <strong>da</strong> reestruturação produtiva<br />

e <strong>da</strong> mundialização do capital......................................................................48<br />

1.5. A <strong>capoeira</strong> e a contraditória busca <strong>da</strong> essência:<br />

Oi sim, sim, sim... Oi não, não, não..............................................................74<br />

1.6. A <strong>capoeira</strong> como sist<strong>em</strong>a de significação r<strong>ea</strong>lizado<br />

a partir <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> cultural .....................................................................84<br />

1.7. A esportivização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>: a trama do poder <strong>em</strong> <strong>jogo</strong> ...........................94<br />

2. “IÊ... COMO FAZER ... CAMARÁ”.......................................................................110<br />

2.1. Uma necessária articulação: ontologia, projeto histórico<br />

e trabalho pe<strong>da</strong>gógico ...............................................................................110<br />

2.2. Explicitando o método de investigação .....................................................114<br />

2.3. Os caminhos construídos e as etapas <strong>da</strong> pesquisa...................................124<br />

3. “IÊ... TEM FUNDAMENTO... CAMARÁ” .............................................................133<br />

3.1. A filosofia <strong>da</strong> <strong>práxis</strong>: el<strong>em</strong>entos para<br />

a <strong>construção</strong> <strong>da</strong> <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na.............................................................133<br />

3.2. A organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico:<br />

a cultura e/ nos estudos críticos do currículo.............................................137<br />

xi


3.3. Referências significativas <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> ......................................................144<br />

3.3.1. A cosmovisão afro-brasileira...........................................................147<br />

3.3.2. A integração/dissimulação <strong>jogo</strong>-luta-<strong>da</strong>nça na ro<strong>da</strong> .......................154<br />

3.3.3. A cantiga interativa..........................................................................158<br />

3.3.4. O lúdico rebelde...............................................................................169<br />

4. “IÊ ... DÁ VOLTA AO MUNDO... CAMARÁ” .......................................................184<br />

4.1. O percurso investigativo e a busca de subsídios metodológicos:<br />

O projeto-piloto na Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia...................................184<br />

4.2. A inserção <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo universitário brasileiro:<br />

a <strong>capoeira</strong> vestindo beca............................................................................190<br />

4.2.1. O caso <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia:<br />

afirmação <strong>da</strong> baiani<strong>da</strong>de.................................................................197<br />

4.2.2. O caso <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Santa Catarina:<br />

<strong>da</strong> experimentação à re<strong>construção</strong> coletiva <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> ...............206<br />

4.3. A internacionalização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no contexto<br />

<strong>da</strong> mundialização do capital.......................................................................249<br />

4.3.1. A <strong>capoeira</strong> na Europa: o sonho de <strong>em</strong>ancipação ............................258<br />

4.3.2. De uma vi<strong>da</strong> a “pão-com-água” a uma vi<strong>da</strong> a “pão-de-ló”:<br />

o êxodo de professores de <strong>capoeira</strong> do Brasil para a Europa .........268<br />

4.3.3. Os europeus e a <strong>capoeira</strong>............................................................279<br />

4.3.4. A prática pe<strong>da</strong>gógica <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> na Europa ...........................284<br />

5. “IÊ... É MANDINGUEIRO... CAMARÁ” ...............................................................291<br />

5.1. O <strong>jogo</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> <strong>jogo</strong>: ampliação de significados ...........................291<br />

5.2. A crítica ao trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> ..................................303<br />

5.3. Capoeira: um jeito mandingueiro de ser ....................................................316<br />

6. “IÊ...VIVA MEU MESTRE... CAMARÁ” ...............................................................321<br />

6.1. R<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>des e possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no ensino formal e não-formal..321<br />

6.2. A universi<strong>da</strong>de pública brasileira e a <strong>capoeira</strong> ..........................................324<br />

6.3. A <strong>capoeira</strong> no currículo: a perspectiva <strong>da</strong> <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na<br />

e a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como complexo t<strong>em</strong>ático............................328<br />

“IÊ...VAMOS EMBORA...CAMARÁ” Conclusões e Considerações Finais..............336<br />

REFERÊNCIAS........................................................................................................359<br />

ANEXOS..................................................................................................................368<br />

xii


LISTA DE QUADROS<br />

1. Instituições universitárias brasileiras que oferec<strong>em</strong> <strong>capoeira</strong><br />

Página<br />

como disciplina obrigatória ou optativa .............................................................192<br />

2. Instituições universitárias brasileiras que oferec<strong>em</strong><br />

<strong>capoeira</strong> como projeto de extensão ...................................................................194<br />

3. Quadro cronológico-t<strong>em</strong>ático <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des desenvolvi<strong>da</strong>s<br />

na disciplina de <strong>capoeira</strong> UFSC ........................................................................237<br />

4. Instituições visita<strong>da</strong>s durante estágio de doutoramento ....................................257<br />

5. Participação do pesquisador <strong>em</strong> eventos de <strong>capoeira</strong> ......................................259<br />

6. Relação de mestres e professores de <strong>capoeira</strong><br />

entrevistados na Europa.....................................................................................261<br />

xiii


1.<br />

2.<br />

3.<br />

4.<br />

5.<br />

6.<br />

LISTA DE TABELAS<br />

Naturali<strong>da</strong>de dos participantes do s<strong>em</strong>inário<br />

Página<br />

de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC ...............................................................................208<br />

Formação acadêmica dos participantes<br />

do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC .........................................................208<br />

Distribuição dos participantes do s<strong>em</strong>inário<br />

de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC por fase de formação ............................................209<br />

T<strong>em</strong>po de experiência dos participantes<br />

do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC com a <strong>capoeira</strong>................................210<br />

T<strong>em</strong>po de experiência dos participantes<br />

do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC com o ensino <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>................210<br />

Distribuição dos participantes do s<strong>em</strong>inário<br />

de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC por grupo de <strong>capoeira</strong> ..........................................211<br />

xiv


LISTA DE ANEXOS<br />

Página<br />

1. Protocolo de son<strong>da</strong>g<strong>em</strong> do s<strong>em</strong>inário-piloto r<strong>ea</strong>lizado na UFBA .......................369<br />

2. Questionário de avaliação do s<strong>em</strong>inário-piloto <strong>da</strong> UFBA ...................................371<br />

3. Roteiro de entrevista s<strong>em</strong>i-estrutura<strong>da</strong> para professores<br />

de <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> UFBA .........................................................................................373<br />

4. Roteiro de entrevista s<strong>em</strong>i-estrutura<strong>da</strong> para alunos e ex-alunos<br />

de <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> UFBA .........................................................................................376<br />

5. Questionário de avaliação <strong>da</strong> disciplina de <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> UFBA .........................378<br />

6. Primeiro protocolo de son<strong>da</strong>g<strong>em</strong> para os participantes<br />

do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC .........................................................380<br />

7. Quadro <strong>da</strong> produção acadêmica <strong>da</strong> UFSC sobre <strong>capoeira</strong>................................382<br />

8. Manifesto dos <strong>capoeira</strong>s de Santa Catarina:<br />

pela liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> cultura popular........................................................................384<br />

9. Segundo protocolo de son<strong>da</strong>g<strong>em</strong> para os participantes<br />

do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC .........................................................387<br />

10. Protocolo de avaliação geral do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC .........390<br />

11. Protocolo de auto-avaliação dos participantes<br />

do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC..........................................................393<br />

xv


F178 Falcão, José Luiz Cirqueira.<br />

O <strong>jogo</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> <strong>jogo</strong> e a <strong>construção</strong> <strong>da</strong> <strong>práxis</strong><br />

<strong>capoeira</strong>na. José Luiz Cirqueira Falcão. 2004.<br />

393 f.<br />

Tese (doutorado) – Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia,<br />

Facul<strong>da</strong>de de Educação, 2004.<br />

Orientação: Profa. Dra. Celi Nelza Zülke Taffarel.<br />

1. Capoeira. I. Taffarel, Celi Nelza Zülke.<br />

II. Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia. Facul<strong>da</strong>de de Educação.<br />

III Título.<br />

CDD 796.81


INTRODUÇÃO<br />

1<br />

A <strong>capoeira</strong> é mandinga, é manha!<br />

É malícia, é tudo que a boca come...<br />

(Mestre Pastinha)<br />

Esta é a primeira tese de doutorado do programa de pós-graduação <strong>em</strong><br />

Educação <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia que trata a <strong>capoeira</strong> como objeto de<br />

estudo.<br />

Uma tentativa de trabalhar com este t<strong>em</strong>a, <strong>em</strong> tese doutoral, <strong>em</strong>bora <strong>em</strong><br />

conjunto com outras manifestações de orig<strong>em</strong> afro-brasileira, foi feita pela<br />

professora de História <strong>da</strong> África, Eugênia Lúcia Viana Nery, aluna <strong>da</strong> primeira turma<br />

do Curso de Doutorado <strong>em</strong> Educação <strong>da</strong> UFBA, mas que, infelizmente, não se<br />

concretizou, pois, após sua aprovação no exame de qualificação, veio a falecer <strong>em</strong><br />

11 de janeiro de 1995.<br />

Na frase: “a sala de aula é o meu reino”, Nery (1994) explicitava, no<br />

projeto de qualificação, intitulado “Formas Alternativas de Educação <strong>da</strong> Criança <strong>em</strong><br />

Salvador: o Terreiro, a Quadra e a Ro<strong>da</strong>”, sua maestria na mediação do processo<br />

educativo. A probl<strong>em</strong>ática <strong>da</strong> Professora Nery contrastava e até contestava a<br />

educação escolariza<strong>da</strong> nos moldes tradicionais e pretendia propor alternativas mais<br />

a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong>s ao modo de vi<strong>da</strong> e de proceder <strong>da</strong> criança soteropolitana, quer no terreiro<br />

de candomblé, na quadra do bloco, ou na ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>.<br />

Se, para Nery, a sala de aula era o seu reino, poderíamos dizer que a ro<strong>da</strong><br />

de <strong>capoeira</strong> é a nossa sala de aula. Por intermédio dela, pod<strong>em</strong>os verificar as<br />

contradições e os conflitos sociais, a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de dos <strong>capoeira</strong>s, b<strong>em</strong> como<br />

possibili<strong>da</strong>des de <strong>construção</strong> de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e de educação crítico-superadora. A


nossa pesquisa, certamente, não compl<strong>em</strong>enta n<strong>em</strong>, tampouco, é uma continui<strong>da</strong>de<br />

do trabalho, abruptamente interrompido, <strong>da</strong> professora Nery, mas preenche uma<br />

lacuna no campo acadêmico sobre t<strong>em</strong>áticas considera<strong>da</strong>s “rebeldes” pelas classes<br />

dominantes, <strong>em</strong>bora por elas já apropria<strong>da</strong>s e ressignifica<strong>da</strong>s.<br />

Esta pesquisa é o resultado <strong>da</strong> confluência de três <strong>jogo</strong>s. O <strong>jogo</strong> ain<strong>da</strong> não<br />

jogado, ou seja, o que constituiu o percurso investigativo deste estudo; o próprio<br />

<strong>jogo</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, expresso pelo seu controvertido desenvolvimento histórico, como<br />

manifestação (<strong>construção</strong>) cultural 1 ; e o <strong>jogo</strong> social, materializado pelas complexas,<br />

contraditórias e dinâmicas relações trava<strong>da</strong>s no interior <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de capitalista.<br />

Nesse processo (<strong>jogo</strong>) de produção do conhecimento, as ações<br />

estrategicamente desencad<strong>ea</strong><strong>da</strong>s (o <strong>jogo</strong> <strong>em</strong> <strong>jogo</strong>) almejaram a explicitação de<br />

proposições não heg<strong>em</strong>ônicas para a <strong>construção</strong> <strong>da</strong> uma prática pe<strong>da</strong>gógica<br />

reflexiva, crítica, solidária e autodetermina<strong>da</strong> coletivamente.<br />

Postulamos, <strong>em</strong> consonância com as reflexões de Serpa (2000), que a<br />

produção/d<strong>em</strong>ocratização de conhecimento crítico deve subverter as regras do <strong>jogo</strong><br />

já jogado e construir, a partir de um “<strong>jogo</strong> jogante”, um universo de possibili<strong>da</strong>des<br />

que possa contribuir para a implantação e impl<strong>em</strong>entação de perspectivas<br />

superadoras na cultura científica e pe<strong>da</strong>gógica.<br />

Se, no final do século XIX, a <strong>capoeira</strong> “manchava” os pergaminhos <strong>da</strong>s<br />

repartições públicas brasileiras, através <strong>da</strong>s penas dos escrivões de polícia e<br />

povoava, <strong>em</strong> letras garrafais, os romances de costumes dos cronistas e<br />

m<strong>em</strong>orialistas, hoje, ela é escrita, <strong>em</strong> letra de forma, times new roman, courier new,<br />

arial etc., por historiadores, antropólogos, sociólogos e educadores de várias partes<br />

1 Conceb<strong>em</strong>os e tratamos a <strong>capoeira</strong> como uma <strong>construção</strong> (ato, efeito ou arte de construir) cultural<br />

que se manifesta (se expressa) a partir <strong>da</strong>s mais diferentes formas e se revela a partir dos mais<br />

díspares interesses.<br />

2


do mundo, ávidos <strong>em</strong> compreender e explicar as suas mandingas 2 . Acrescentam-se<br />

a esse rol, os próprios <strong>capoeira</strong>s pesquisadores, como é o nosso caso, que, através<br />

de vivências <strong>em</strong> abrangência e profundi<strong>da</strong>de, oferec<strong>em</strong> uma visão de dentro<br />

(endógena) que t<strong>em</strong> contribuído para eluci<strong>da</strong>r aspectos ain<strong>da</strong> pouco explorados<br />

pelos que a olham de fora, atravessado, ou de lado.<br />

Ao longo dos últimos anos, a <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong> se inserindo vertiginosamente<br />

nos mais diferentes espaços institucionais <strong>da</strong>s médias e grandes ci<strong>da</strong>des do Brasil e<br />

<strong>em</strong> vários países do exterior, consoli<strong>da</strong>ndo um avanço histórico controvertido. Se<br />

por um lado, à época <strong>da</strong> escravidão, ela era associa<strong>da</strong> às lutas de negros<br />

escravizados <strong>em</strong> busca <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, por outro, atualmente, ela t<strong>em</strong> sido vincula<strong>da</strong><br />

majoritariamente à lógica do “sist<strong>em</strong>a de sociometabolismo do capital” (MÉSZÁROS,<br />

2002) 3 , <strong>em</strong>bora <strong>em</strong> moldes b<strong>em</strong> diferentes de outras práticas corporais que já<br />

nasceram sob o aporte <strong>da</strong> “tirania <strong>da</strong> informação e do dinheiro” (SANTOS, 2000),<br />

como o bodypump 4 , por ex<strong>em</strong>plo.<br />

2 A palavra mandinga r<strong>em</strong>ete-nos aos “Mandinga”, africanos originários <strong>da</strong> região <strong>da</strong> Senâmbia, na<br />

África Ocidental, que estavam entre os primeiros cativos trazidos para o Brasil. Eram respeitados por<br />

suas fortes habili<strong>da</strong>des como feiticeiros. Esta palavra t<strong>em</strong> importância significativa no imaginário dos<br />

<strong>capoeira</strong>s. Uma <strong>capoeira</strong> s<strong>em</strong> mandinga seria a mesma coisa que uma <strong>capoeira</strong> esteriliza<strong>da</strong>,<br />

formata<strong>da</strong>, mecânica. Para ser mandingueiro, o <strong>capoeira</strong> t<strong>em</strong> que ser imprevisível, astuto e<br />

envolvente. Mandinga, na <strong>capoeira</strong>, refere-se à malícia, à capaci<strong>da</strong>de de improvisar e envolver o<br />

parceiro de <strong>jogo</strong>.<br />

3 - Mészáros (2002) argumenta que o sist<strong>em</strong>a de sociometabolismo do capital é muito poderoso,<br />

abrangente e incontrolável. S<strong>em</strong> a superação do tripé que forma esse sist<strong>em</strong>a articulado, <strong>em</strong>bora<br />

assimétrico, capital, trabalho e Estado, é impossível <strong>em</strong>ancipar o trabalho, e que as experiências<br />

revolucionárias vivencia<strong>da</strong>s no século passado, desde a Revolução Russa até as tentativas mais<br />

recentes de constituição societal socialista, se mostraram incapacita<strong>da</strong>s de superá-lo.<br />

4 Trata-se de um sist<strong>em</strong>a de ginástica desenvolvido <strong>em</strong> forma de franquia (body sist<strong>em</strong>s), com sede<br />

na Nova Zelândia, cuja rede já atingiu, <strong>em</strong> apenas uma déca<strong>da</strong> de existência, na<strong>da</strong> menos que 42<br />

(quarenta e dois) países, quatro mil acad<strong>em</strong>ias, 12 (doze) mil professores que se “movimentam” <strong>em</strong><br />

torno de um meticulosamente padronizado programa de ginástica. Esse “fitness inteligente” coloca<br />

massifica<strong>da</strong>mente o corpo na era globaliza<strong>da</strong> sob ilusórios e perversos mecanismos ideológicos que<br />

contribu<strong>em</strong> para alicerçar “o sist<strong>em</strong>a ideológico que justifica as ações heg<strong>em</strong>ônicas e leva ao império<br />

<strong>da</strong>s fabulações, a percepções fragmenta<strong>da</strong>s e ao discurso único do mundo, base dos novos<br />

totalitarismos – isto é, dos globalitarismos – a que estamos assistindo” (SANTOS, 2000, p. 38). O<br />

mesmo programa é desenvolvido tanto <strong>em</strong> Palmas, no Tocantins, como <strong>em</strong> Kyoto, no Japão,<br />

diss<strong>em</strong>inando os mesmos modelos de exercícios, as mesmas músicas, a mesma estética e<br />

veiculando a ilusória idéia de que todos os seres do planeta apreciam as mesmas “novi<strong>da</strong>des” e que<br />

são portadores <strong>da</strong>s mesmas condições materiais de vi<strong>da</strong>.<br />

3


Convém assinalar, entretanto, que o desenvolvimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong><br />

apresenta contradições importantes que se expressam pela visível expansão e<br />

deslocamentos que ela v<strong>em</strong> operando no contexto nacional e internacional. Nos<br />

últimos anos, constatamos a saí<strong>da</strong> de expressivo número de <strong>capoeira</strong>s para o<br />

exterior <strong>em</strong> busca de melhores condições de sobrevivência que, além de<br />

contribuír<strong>em</strong>, efetivamente, com o seu processo de expansão no mundo,<br />

influenciam também na inversão dos fluxos migratórios 5 . No exterior, ain<strong>da</strong> que<br />

submetidos a normas e padrões estipulados pelos seus respectivos grupos e pelo<br />

que consideram “tradição”, propagam apaixonantes discursos que r<strong>ea</strong>lçam a<br />

<strong>capoeira</strong> à condição de prática “exótica”, “tropical”, “brasileiríssima”. Isto, de certa<br />

forma, serve como contraponto à massificação corporal desenfr<strong>ea</strong><strong>da</strong> leva<strong>da</strong> a efeito<br />

pelos bodies sist<strong>em</strong>s e similares.<br />

No Brasil, a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970, a <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong> sendo diss<strong>em</strong>ina<strong>da</strong><br />

no contexto educacional, desde o ensino fun<strong>da</strong>mental até as universi<strong>da</strong>des. Nesse<br />

complexo movimento, às vezes como disciplina curricular, às vezes como projeto de<br />

extensão, ou simplesmente como ativi<strong>da</strong>de extraclasse, ela v<strong>em</strong> despertando<br />

interesse jamais verificado anteriormente, por parte <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de educacional<br />

institucionaliza<strong>da</strong>. Nos últimos anos, ela t<strong>em</strong> encontrado, nas universi<strong>da</strong>des, um<br />

ambiente fértil para se diss<strong>em</strong>inar e t<strong>em</strong> sido bastante utiliza<strong>da</strong> como objeto de<br />

pesquisa pelas mais diversas ár<strong>ea</strong>s do conhecimento. Ad<strong>em</strong>ais, já se encontra<br />

presente, na condição de componente curricular, <strong>em</strong> cerca de vinte universi<strong>da</strong>des<br />

brasileiras, dentre elas, Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Universi<strong>da</strong>de do Estado do<br />

5 Se, no início do século XX, os fluxos migratórios se <strong>da</strong>vam a partir do Velho Mundo <strong>em</strong> direção ao<br />

Novo Mundo, com pessoas fugindo <strong>da</strong>s difíceis condições de vi<strong>da</strong> de alguns países europeus àquela<br />

época, atualmente, no alvorecer do século XXI, o processo se inverte e presenciamos uma<br />

ver<strong>da</strong>deira massa de imigrantes <strong>em</strong> direção ao Velho Mundo, forçando os países centrais do<br />

capitalismo a adotar<strong>em</strong> medi<strong>da</strong>s drásticas e desumanas de controle imigratório.<br />

4


Rio de Janeiro (UERJ), Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia (UFBA), Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal de Santa Catarina (UFSC), Universi<strong>da</strong>de de São Paulo (USP), Universi<strong>da</strong>de<br />

de Brasília (UnB), Universi<strong>da</strong>de Gama Filho (UGF), Universi<strong>da</strong>de Católica de<br />

Salvador (UCSAL), Universi<strong>da</strong>de Estadual de Feira de Santana (UEFS).<br />

Se, à época <strong>da</strong> escravidão no Brasil, o sangue jorrava <strong>da</strong> caneta do<br />

feitor 6 , <strong>em</strong> sist<strong>em</strong>áticas investi<strong>da</strong>s contra a <strong>capoeira</strong> 7 , já que era considera<strong>da</strong><br />

“doença moral”, “ginástica degenerativa”, “vagabun<strong>da</strong>g<strong>em</strong>”, nos últimos anos, ela<br />

passou a receber, do poder público, um tratamento b<strong>em</strong> diferente, que se expressa<br />

por algumas iniciativas, ain<strong>da</strong> que tími<strong>da</strong>s, de reconhecimento desta manifestação<br />

como importante símbolo <strong>da</strong> cultura brasileira, conforme ver<strong>em</strong>os posteriormente.<br />

Hoje difundi<strong>da</strong> no mundo inteiro, constituiu-se, ao longo de sua trajetória<br />

histórica, num extraordinário campo de possibili<strong>da</strong>des exploratórias e, também, num<br />

<strong>em</strong>bl<strong>em</strong>a de brasili<strong>da</strong>de. No entanto, exist<strong>em</strong> lacunas no que se refere a estudos<br />

sobre o tratamento desta manifestação como prática pe<strong>da</strong>gógica e é neste campo<br />

que esta pesquisa se insere.<br />

A maioria <strong>da</strong>s pesquisas, <strong>em</strong> nível de pós-graduação, foi r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> <strong>em</strong><br />

programas de História (SALVADORI, 1990; SOARES, 1994 e 2001; PIRES, 1996 e<br />

2001), Sociologia (TAVARES, 1984; VIEIRA, 1990) e Antropologia (REGO, 1968;<br />

REIS, 1993). Só recent<strong>em</strong>ente, esta t<strong>em</strong>ática v<strong>em</strong> sendo pesquisa<strong>da</strong> <strong>em</strong> programas<br />

de Pós-Graduação <strong>em</strong> Educação e Educação Física (BRUHNS, 1998; CASTRO<br />

JÚNIOR, 2002; FALCÃO, 1994; SANTOS, 1990, 2002; SILVA, 2002).<br />

6 Em alusão a uma cantiga do Mestre Toni Vargas.<br />

7 De acordo com Rego (1968), a <strong>capoeira</strong> foi trata<strong>da</strong> durante muito t<strong>em</strong>po como caso de polícia, "que<br />

dormia e acor<strong>da</strong>va no calcanhar dos <strong>capoeira</strong>s" (p. 43). Alguns dos mais consistentes estudos sobre<br />

a história <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> foram r<strong>ea</strong>lizados a partir <strong>da</strong> documentação existente nos arquivos <strong>da</strong> polícia<br />

brasileira. Ver Pires (1996) e Soares (1994 e 2001).<br />

5


O que particulariza a probl<strong>em</strong>ática e constitui a questão central desta<br />

pesquisa é a explicitação dos fatores que expressam a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de e possibili<strong>da</strong>des de<br />

tratamento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo de formação profissional.<br />

Partimos de duas hipóteses que se articulam entre si. Primeiro, que o<br />

processo de internacionalização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong> promovendo expressiva<br />

movimentação de seus praticantes e contribuindo para a ressignificação dos seus<br />

códigos e valores e, segundo, que o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no<br />

currículo de formação profissional está submetido a uma <strong>da</strong><strong>da</strong> organização do<br />

processo de trabalho pe<strong>da</strong>gógico próprio <strong>da</strong> escola capitalista, que assegura a sua<br />

reprodução e promove a formação de mentali<strong>da</strong>des conforma<strong>da</strong>s e ajusta<strong>da</strong>s e de<br />

competências técnico-instrumentais que contribu<strong>em</strong> para a sua manutenção.<br />

Considerando que a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social possui nexos que articulam as ações<br />

humanas, a especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> não pode ser vista como uma contingência<br />

singular, mas articula<strong>da</strong> com processos mais amplos que a determinam. Partindo<br />

deste princípio, esta pesquisa teve como objetivo principal criticar e propor<br />

el<strong>em</strong>entos teórico-metodológicos para o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no<br />

currículo de formação profissional, a partir <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de desta<br />

manifestação cultural materializa<strong>da</strong> <strong>em</strong> espaços educacionais formais e não-formais<br />

do Brasil e do exterior.<br />

Para a <strong>construção</strong> do nosso entendimento sobre a <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na 8 ,<br />

esta pesquisa buscou, a partir dos pressupostos do materialismo histórico-dialético,<br />

8 Castro Júnior (2002) utilizou a expressão “<strong>práxis</strong> capoerana” <strong>em</strong> sua dissertação de mestrado<br />

intitula<strong>da</strong>: “a pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>: olhares (ou toques?) cruzados de velhos mestres e de<br />

professores de educação física”. Na sintética formulação sobre esse conceito, o autor apresenta as<br />

estratégias pe<strong>da</strong>gógicas do ensinamento <strong>da</strong> Capoeira Angola, a partir <strong>da</strong> visão do Mestre João<br />

Pequeno. No nosso caso, optamos <strong>em</strong> qualificar a <strong>práxis</strong> como <strong>capoeira</strong>na (com i) e a associamos<br />

ao conceito de <strong>práxis</strong> formulado por Marx, a partir de sua inserção no movimento dos trabalhadores<br />

europeus. A <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na constitui, para nós, numa ativi<strong>da</strong>de de <strong>capoeira</strong> livre e criativa, por<br />

meio <strong>da</strong> qual os sujeitos produz<strong>em</strong> e transformam seu mundo, humano e histórico, e a si mesmos. A<br />

<strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na está, portanto, referencia<strong>da</strong> por um projeto histórico superador do capitalismo.<br />

6


el<strong>em</strong>entos que se configurass<strong>em</strong> como categorias e leis gerais do movimento do<br />

fenômeno investigado, o que implicou <strong>em</strong> identificar, nas ações <strong>da</strong> prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica, as explicações do seu desenvolvimento, transformações e transições<br />

de uma forma para outra e de uma ord<strong>em</strong> de relações para outra e ain<strong>da</strong> formular<br />

algumas previsões. Segundo Marx (1999, p. 28):<br />

(...) A investigação t<strong>em</strong> de apoderar-se <strong>da</strong> matéria, <strong>em</strong> seus<br />

pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento,<br />

e de perquirir a conexão íntima que há entre elas. Só depois de<br />

concluído esse trabalho, é que se pode descrever, adequa<strong>da</strong>mente, o<br />

movimento r<strong>ea</strong>l.<br />

Para atender o objetivo principal desta investigação, analisamos<br />

experiências com <strong>capoeira</strong> nos currículos de duas universi<strong>da</strong>des brasileiras<br />

(Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia - UFBA e Universi<strong>da</strong>de Federal de Santa Catarina)<br />

e também <strong>em</strong> instituições educacionais formais e não-formais de alguns países<br />

europeus (Portugal, Espanha, Itália, Inglaterra, Noruega e Polônia), para, <strong>em</strong><br />

segui<strong>da</strong>, criticar e propor el<strong>em</strong>entos para o trato com este conhecimento, na<br />

perspectiva de poder contribuir para a ampliação <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des no fazer<br />

pe<strong>da</strong>gógico, que incluam diversas formas de expressão num fluxo dinâmico que<br />

supere a simplificação <strong>da</strong>s experiências humanas nos currículos de formação<br />

profissional e que esteja articula<strong>da</strong> com um <strong>da</strong>do projeto político-pe<strong>da</strong>gógico e<br />

histórico socialista radicalmente reconstituído.<br />

Além de permitir um avanço <strong>em</strong> direção a explicação e caracterização do<br />

fenômeno estu<strong>da</strong>do e, com isso, alimentar o debate acadêmico, a partir <strong>da</strong><br />

identificação de contradições e do exercício de superações, este estudo procurou<br />

impl<strong>em</strong>entar uma crítica sobre a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de do próprio fenômeno investigado, com a<br />

finali<strong>da</strong>de de apresentar um diagnóstico descritivo crítico de sua r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de concreta<br />

e subsidiar a formulação de possibili<strong>da</strong>des pe<strong>da</strong>gógicas para a formação humana,<br />

referencia<strong>da</strong>s <strong>em</strong> um projeto de escolarização que tenha, na prática social um<br />

7


princípio educativo. Procuramos, com isso, contribuir criticamente com e no<br />

processo de organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico no âmbito <strong>da</strong> cultura corporal e,<br />

também, com a <strong>construção</strong> e o desenvolvimento <strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica.<br />

Para as nossas formulações, tomamos como ponto de parti<strong>da</strong> o<br />

entendimento de que o conceito mais adequado para tratar pe<strong>da</strong>gogicamente a<br />

<strong>capoeira</strong> como prática de homens e mulheres é o conceito marxiano de <strong>práxis</strong> 9 .<br />

Embora seja proveniente do grego, este termo foi magistralmente reformulado por<br />

Marx e pode ser assim sintetizado: ativi<strong>da</strong>de livre, universal, criativa e autocriativa,<br />

por meio <strong>da</strong> qual o hom<strong>em</strong> e a mulher faz<strong>em</strong>, produz<strong>em</strong> e transformam seu mundo,<br />

humano e histórico, e a si mesmos. Ao fazer menção à relevância desse conceito,<br />

Vázquez (1986, p. 177) advertiu: “Depois que Marx colocou – <strong>em</strong> Teses sobre<br />

Feuerbach – a categoria <strong>da</strong> <strong>práxis</strong> como eixo <strong>da</strong> sua filosofia, já não é possível<br />

voltar, <strong>em</strong> seu nome, a posições filosóficas que ficam supera<strong>da</strong>s precisamente com<br />

essa categoria”.<br />

Segundo Lukács (1979), to<strong>da</strong> <strong>práxis</strong>, mesmo a mais imediata e a mais<br />

cotidiana, contém, <strong>em</strong> si, uma referência teleológica que precede, cronologicamente,<br />

a sua r<strong>ea</strong>lização. S<strong>em</strong> essa antecipação do resultado objetivado, ou seja, do télos (o<br />

ponto onde se quer chegar), o ser humano ficaria “completamente preso a uma<br />

dinâmica objetiva como uma folha seca leva<strong>da</strong> por um rio cau<strong>da</strong>loso” (KONDER,<br />

1992, p. 106). Esse “pôr teleológico” (LUKÁCS, 1979) é, portanto, uma condição<br />

ineliminável <strong>da</strong> <strong>práxis</strong> humana. Entretanto, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre é possível antecipar as suas<br />

conseqüências, à medi<strong>da</strong> que “o agir social abre livre curso para forças, tendências,<br />

objetivi<strong>da</strong>des, estruturas etc., que nasc<strong>em</strong> decerto exclusivamente <strong>da</strong> <strong>práxis</strong><br />

humana, mas cujo caráter resta no todo <strong>em</strong> grande parte incompreensível para<br />

9 Kosik (1976) assegura que a <strong>práxis</strong> é “a descoberta mais importante de Marx”; “o grande conceito<br />

<strong>da</strong> moderna filosofia materialista” e “a revelação do segredo do hom<strong>em</strong> como ser ontocriativo”.<br />

8


qu<strong>em</strong> o produz” (LUKÁCS, 1979, p. 52). É certo que os homens faz<strong>em</strong> sua própria<br />

história, mas não a faz<strong>em</strong> de modo totalmente arbitrário, <strong>em</strong> circunstâncias por eles<br />

escolhi<strong>da</strong>s, como nos dizia Marx (2001), mas nas circunstâncias que encontram<br />

imediatamente diante de si, condiciona<strong>da</strong>s por poderosas forças econômicas,<br />

políticas, morais e sociais.<br />

É <strong>da</strong> <strong>práxis</strong> socialmente organiza<strong>da</strong> do hom<strong>em</strong> que deriva a totali<strong>da</strong>de dos<br />

fenômenos humanos, inclusive a consciência, os processos simbólicos e cognitivos.<br />

Sendo assim, todo ato singular consciente está submetido às determinações sociais<br />

gerais e os seus efeitos ulteriores independ<strong>em</strong> <strong>da</strong>s intenções conscientes. Por isso,<br />

Konder (1992, p. 115) adverte que a <strong>práxis</strong> é a “ação que, para se aprofun<strong>da</strong>r de<br />

maneira mais conseqüente, precisa <strong>da</strong> reflexão, do auto-questionamento, <strong>da</strong> teoria”.<br />

Foi tomando este conceito de <strong>práxis</strong> como ponto de parti<strong>da</strong> que<br />

<strong>em</strong>preend<strong>em</strong>os esta investigação. Não foi nosso objetivo especular, teoricamente, a<br />

<strong>capoeira</strong>, mas sim revolucioná-la praticamente, pois, como afirma Vázquez (1986, p.<br />

210),<br />

Enquanto uma ativi<strong>da</strong>de prática pressupõe uma ação efetiva sobre<br />

o mundo, que t<strong>em</strong> por resultado uma transformação r<strong>ea</strong>l deste, a<br />

ativi<strong>da</strong>de teórica apenas transforma nossa consciência dos fatos,<br />

nossas idéias sobre as coisas, mas não as próprias coisas.<br />

Destacamos ain<strong>da</strong> que os conhecimentos produzidos nesse processo<br />

foram forjados a partir de possibili<strong>da</strong>des que buscavam uma compreensão de como<br />

as experiências são produzi<strong>da</strong>s, legitima<strong>da</strong>s e organiza<strong>da</strong>s por sujeitos individuais e<br />

coletivos <strong>em</strong> processo de interação intencional. Foram resultados, portanto, de um<br />

envolvimento fun<strong>da</strong>mentalmente cultural e interacional e não o produto <strong>da</strong> captura<br />

de algo situado na mente de um teórico qualquer. O desenvolvimento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de,<br />

<strong>em</strong> geral, t<strong>em</strong> d<strong>em</strong>onstrado o vigor <strong>da</strong>s ações coletivas <strong>em</strong> todos os campos do<br />

9


conhecimento e r<strong>ea</strong>firma os argumentos do filósofo italiano Antônio Gramsci,<br />

quando assinala que:<br />

O fato de que uma multidão de homens seja conduzi<strong>da</strong> a pensar<br />

coerent<strong>em</strong>ente e de maneira unitária a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de presente é um fato<br />

‘filosófico’ b<strong>em</strong> mais importante e ‘original’ do que a descoberta, por<br />

parte de um ‘gênio filosófico’, de uma nova ver<strong>da</strong>de que permaneça<br />

como patrimônio de pequenos grupos intelectuais. 10 (GRAMSCI,<br />

1991, p. 13-14).<br />

Além de buscarmos um entendimento <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de investiga<strong>da</strong>, estiv<strong>em</strong>os<br />

atentos aos processos agenciados que objetivavam a superação desta mesma<br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de. A intenção era não ficar apenas na espreita e na denúncia de como a<br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de do fenômeno investigado se expressava, mas preocupados também <strong>em</strong><br />

extrair e anunciar possibili<strong>da</strong>des de superação. Esta postura é resultante de uma<br />

necessi<strong>da</strong>de ético-política que não se conforma apenas com a crítica, mas procura<br />

apontar el<strong>em</strong>entos de superação que tenham como referência um <strong>da</strong>do projeto<br />

histórico, que é definido por Freitas (1987, p. 123) como<br />

O tipo de socie<strong>da</strong>de ou organização social na qual pretend<strong>em</strong>os<br />

transformar a atual socie<strong>da</strong>de e os meios que dever<strong>em</strong>os colocar <strong>em</strong><br />

prática para sua consecução. Implica uma ‘cosmovisão’, mas é mais<br />

que isso. É concreto, está amarrado a condições existentes e, a partir<br />

delas, postula meios e fins.<br />

Por entendermos que os projetos históricos influenciam nossa prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica, política e de pesquisa, adotamos como ponto de parti<strong>da</strong> referencial o<br />

projeto histórico cientificamente formulado por Marx que se expressa pela<br />

superação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de capitalista. Não se trata de um mero capricho, mas de uma<br />

opção resultante de uma criteriosa ação-reflexão sobre a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social <strong>em</strong> que<br />

10 Faz<strong>em</strong>os aqui uma dupla objeção <strong>em</strong> relação ao termo intelectual. Primeiro, porque se apresenta<br />

como arrogante, ao intuir que apenas os intelectuais são inteligentes. Segundo, porque, <strong>em</strong> geral,<br />

sugere uma certa distância ou afastamento dos assuntos relevantes do cotidiano e, via de regra,<br />

vincula-se a abstrações teoréticas que contribu<strong>em</strong> muito pouco para mu<strong>da</strong>nças sociais significativas.<br />

10


viv<strong>em</strong>os que se expressa por preocupantes indicadores sociais fabricados<br />

perversamente pela “tirania do dinheiro e <strong>da</strong> informação totalitária” (SANTOS, 2000).<br />

A partir dessa referência, procuramos fun<strong>da</strong>mentar nossa crítica às<br />

relações sociais próprias do modo de produção capitalista, pois consideramos que<br />

uma <strong>práxis</strong> transformadora somente é possível quando profun<strong>da</strong>mente sintoniza<strong>da</strong> a<br />

um projeto revolucionário societal que reconheça a luta de classes como motor de<br />

superação <strong>da</strong> submissão do trabalho aos ditames do capital, <strong>em</strong> associação com<br />

novas formas criativas, autodetermina<strong>da</strong>s, auto-regula<strong>da</strong>s e autônomas dos<br />

organismos <strong>da</strong> classe trabalhadora – sindicatos, partidos, movimentos sociais, e<br />

com as grandes massas.<br />

A opção de utilizar, como campo <strong>em</strong>pírico, as experiências desenvolvi<strong>da</strong>s<br />

com <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> espaços formais e não-formais de educação deu-se por três<br />

motivos básicos: a) afirmar a responsabili<strong>da</strong>de ético-política <strong>em</strong> relação à produção<br />

do conhecimento <strong>em</strong> <strong>capoeira</strong> com vistas, não a pesquisar por diletantismo, mas<br />

para compreender o fenômeno investigado e colaborar com o processo de<br />

transformação <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social; b) contribuir para a ampliação e d<strong>em</strong>ocratização<br />

do debate teórico relacionado à <strong>capoeira</strong>, à medi<strong>da</strong> que sua vertiginosa inserção<br />

nos currículos de formação profissional (principalmente vincula<strong>da</strong> aos cursos de<br />

Educação Física) representa um fato significativo, <strong>em</strong>bora com visível carência de<br />

estudos sist<strong>em</strong>atizados, e c) d<strong>em</strong>onstrar a importância <strong>da</strong> interlocução dos espaços<br />

formais e não-formais de educação na <strong>construção</strong> de possibili<strong>da</strong>des autônomas,<br />

solidárias, autodetermina<strong>da</strong>s coletivamente no processo de <strong>construção</strong> do trabalho<br />

pe<strong>da</strong>gógico e no trato com o conhecimento de manifestações oriun<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s<br />

chama<strong>da</strong>s “cama<strong>da</strong>s populares”.<br />

11


Na nossa investigação procuramos, ain<strong>da</strong>, extrapolar a análise para além<br />

<strong>da</strong>s relações de ensino-aprendizag<strong>em</strong>, pois reconhec<strong>em</strong>os que o trabalho<br />

pe<strong>da</strong>gógico é mais amplo que o trabalho docente e extrapola as ativi<strong>da</strong>des<br />

desenvolvi<strong>da</strong>s <strong>em</strong> sala de aula.<br />

Reconhec<strong>em</strong>os que a <strong>capoeira</strong> se consolidou fora de instituições formais<br />

de educação, como nos largos, nas ruas, nas maltas e não na escola ou na<br />

universi<strong>da</strong>de. Entretanto, hoje ela está presente nesses espaços e exigindo<br />

reflexões críticas acerca do seu tratamento como conteúdo curricular. Advogamos<br />

que, na condição de espaço privilegiado de produção do conhecimento, <strong>em</strong>bora<br />

reconhecendo não ser o único, a universi<strong>da</strong>de e as escolas, <strong>em</strong> geral, precisam<br />

interagir (gingar) com as manifestações culturais, especialmente àquelas surgi<strong>da</strong>s<br />

no bojo <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des espolia<strong>da</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Propugnamos que esta<br />

interação não deve se <strong>da</strong>r na forma de um transplante cultural, mas na perspectiva<br />

<strong>da</strong> <strong>construção</strong> de sínteses culturais que cont<strong>em</strong>pl<strong>em</strong>, dialeticamente, el<strong>em</strong>entos<br />

estruturantes de ambos os contextos, afinal, como nos apontava Marx, a educação<br />

é um componente inseparável <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> inteira do hom<strong>em</strong>.<br />

É importante salientar, entretanto, que, <strong>em</strong> geral, a universi<strong>da</strong>de, no<br />

Brasil, na condição de espaço privilegiado de produção do saber, reproduz<br />

heg<strong>em</strong>onicamente os valores e códigos do sist<strong>em</strong>a capitalista, ao qual está<br />

vincula<strong>da</strong>. Ela faz parte de um sist<strong>em</strong>a educacional pirami<strong>da</strong>l que privilegia<br />

determina<strong>da</strong>s profissões, determinados saberes e termina por fortalecer o sist<strong>em</strong>a<br />

capitalista, vez que prepara recursos humanos para os vários postos de trabalhos<br />

que legitimarão e fomentarão sua lógica exploradora. Cabe, então, reconstruir a<br />

universi<strong>da</strong>de a partir de outras referências, de outra lógica, pois estamos<br />

12


convencidos, como Santos (2000), que a mu<strong>da</strong>nça histórica, <strong>em</strong> perspectiva, provirá<br />

de<br />

Um movimento de baixo para cima, tendo como atores (sujeitos)<br />

principais os países subdesenvolvidos e não os países ricos; os<br />

deser<strong>da</strong>dos e os pobres e não os opulentos e outras classes obesas;<br />

o indivíduo liberado partícipe <strong>da</strong>s novas massas e não o hom<strong>em</strong><br />

acorrentado; o pensamento livre e não o discurso único (SANTOS,<br />

2000, p. 14).<br />

Convém destacar ain<strong>da</strong> que, para uma efetiva transformação <strong>da</strong><br />

universi<strong>da</strong>de, não basta alterar os conteúdos nela ensinados, é preciso mu<strong>da</strong>r sua<br />

estrutura de organização e de funcionamento.<br />

Estamos convictos que o alcance e os objetivos de uma prática específica,<br />

de um determinado conteúdo tratado isola<strong>da</strong>mente, de forma fragmenta<strong>da</strong>, não<br />

promove mu<strong>da</strong>nças sociais significativas. Além <strong>da</strong> necessária probl<strong>em</strong>atização de<br />

suas contradições internas, ela deve ser pensa<strong>da</strong>, trata<strong>da</strong> e inseri<strong>da</strong> no movimento<br />

mais geral <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, à medi<strong>da</strong> que é limita<strong>da</strong> por uma contradição muito mais<br />

ampla, que se refere ao <strong>em</strong>bate travado entre classes sociais antagônicas, com<br />

expectativas e experiências diferencia<strong>da</strong>s, existentes no interior <strong>da</strong>s instituições<br />

educacionais. Talvez por isso, Freitas (2000), apoiado <strong>em</strong> outros autores, t<strong>em</strong><br />

destacado que é preciso interrogar a posse do conhecimento e, além disso, é<br />

preciso ir mais além, é necessário probl<strong>em</strong>atizar a orig<strong>em</strong> do próprio conhecimento.<br />

Tais questionamentos nos levaram a defender a pertinência de analisar o conteúdo<br />

<strong>capoeira</strong> dentro de espaços educacionais formais e não-formais, tomando por base<br />

o seu movimento histórico, a fim de explicitar as suas peculiari<strong>da</strong>des e<br />

“pormenores”, e também as “conexões íntimas” existentes nas suas diversas formas<br />

de desenvolvimento.<br />

Partimos do princípio de que o trato com o conhecimento deva se <strong>da</strong>r de<br />

forma coletiva, amplia<strong>da</strong>, interdisciplinar, enfocando probl<strong>em</strong>áticas significativas que<br />

13


envolvam processos de vivificante interação social, na busca de soluções que<br />

aten<strong>da</strong>m, não somente às necessi<strong>da</strong>des e interesses particulares, mas que possam<br />

contribuir para soluções de probl<strong>em</strong>as mais gerais que permeiam todo e qualquer<br />

processo de formação humana. Esta, por sua vez, no nosso entendimento, deve<br />

promover a união entre ensino e trabalho produtivo com vista à formação<br />

omnilateral, polivalente, completa, resultado de um contínuo processo de<br />

aperfeiçoamento <strong>da</strong> natureza humana, capaz de denunciar a lógica que separa<br />

sujeito e objeto, pensar e fazer, teoria e prática, estudo e trabalho.<br />

Com isso, tentamos evitar o tratamento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como ativi<strong>da</strong>de<br />

esotérica que condena os seus praticantes à crescente alienação dos probl<strong>em</strong>as do<br />

seu t<strong>em</strong>po/espaço. Dentro desta perspectiva, o próprio processo de <strong>construção</strong><br />

desta pesquisa nunca foi mantido como um “segredo do pesquisador”, pois poderia,<br />

segundo o alerta de Frigotto (1989, p. 89), constituir-se numa dupla sonegação: não<br />

questionaria e n<strong>em</strong> permitiria ser questionado e acabaria por não alcançar os<br />

objetivos inicialmente propostos.<br />

Almejamos que os el<strong>em</strong>entos advindos deste processo possam contribuir<br />

para a formulação de propostas d<strong>em</strong>ocráticas e públicas que integr<strong>em</strong> o econômico,<br />

o político e o cultural e não apenas se preocup<strong>em</strong> com o desenvolvimento de<br />

competências e habili<strong>da</strong>des para atender às d<strong>em</strong>an<strong>da</strong>s do mercado de trabalho<br />

vinculado a esta manifestação cultural. Daí o centramento deste processo<br />

investigativo na <strong>práxis</strong> social, ou seja, nas experiências socialmente úteis que<br />

objetiv<strong>em</strong> a transformação do r<strong>ea</strong>l e a compreensão <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de do social.<br />

É importante salientar que nesta pesquisa evitamos centrar pontualmente<br />

<strong>em</strong> questões muito específicas, pois entend<strong>em</strong>os que, na organização do trabalho<br />

14


pe<strong>da</strong>gógico, permeiam nexos que diz<strong>em</strong> respeito à r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social influenciadora<br />

sobr<strong>em</strong>aneira do processo de formação humana.<br />

Por isso, procuramos evitar apresentar uma visão fragmenta<strong>da</strong> e,<br />

portanto, parcial <strong>da</strong> t<strong>em</strong>ática, atentos às constatações de André (2000) que, <strong>em</strong><br />

pesquisa sobre a produção do conhecimento na ár<strong>ea</strong> <strong>da</strong> Educação entre 1990 e<br />

1998, verificou que<br />

A maioria dos estudos se centra <strong>em</strong> aspectos pontuais, como uma<br />

disciplina, um curso ou uma proposta específica de formação. (...)<br />

Essas questões <strong>em</strong>bora importantes, restring<strong>em</strong> muito o<br />

conhecimento sobre o t<strong>em</strong>a <strong>da</strong> formação docente, porque apresentam<br />

uma visão muito fragmenta<strong>da</strong> e, portanto, parcial <strong>da</strong> t<strong>em</strong>ática<br />

(ANDRÉ, 2000, p. 91).<br />

Na organização dos capítulos desse estudo procuramos valorizar o acervo<br />

cultural <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, articulando-os de forma que expressass<strong>em</strong> o movimento <strong>da</strong><br />

investigação como um todo, s<strong>em</strong> comprometer o rigor científico.<br />

No primeiro capítulo: “Iê... Vamos jogar... camará”, analisamos a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de<br />

do controvertido desenvolvimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, à luz dos nexos e determinantes<br />

históricos que contribuíram para a sua consoli<strong>da</strong>ção como prática social<br />

determina<strong>da</strong>. Ao analisar a <strong>capoeira</strong>, inseri<strong>da</strong> no movimento mais amplo <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de, identificamos os traços de plurietnia, transnacionali<strong>da</strong>de, resistência e<br />

mobili<strong>da</strong>de que grassam essa manifestação cultural, e expressam sua inter-relação<br />

com o movimento mais geral do capital e sua lógica destrutiva.<br />

No segundo capítulo: Iê... Como fazer... camará”, explicitamos o nosso<br />

método de investigação, no qual procuramos evidenciar uma necessária articulação<br />

entre os caminhos construídos, as etapas <strong>da</strong> pesquisa e os pressupostos filosóficos<br />

do materialismo histórico-dialético.<br />

No terceiro capítulo: “Iê... T<strong>em</strong> fun<strong>da</strong>mento... camará”, articulamos o<br />

conceito de <strong>práxis</strong> com a cultura <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, com vistas a construir subsídios para<br />

15


a organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico, no currículo de formação profissional,<br />

utilizando referências significativas que compõ<strong>em</strong> o arcabouço gestual-ritualístico<br />

desta manifestação cultural.<br />

No quarto capítulo: “Iê... Dá volta ao mundo... camará”, r<strong>ea</strong>lizamos uma<br />

série de procedimentos investigativos e analisamos algumas experiências de trato<br />

com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> espaços formais e não-formais de educação,<br />

tanto no Brasil quanto na Europa.<br />

No quinto capítulo, “Iê... É mandingueiro... camará”, elaboramos crítica <strong>em</strong><br />

relação ao trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo de formação<br />

profissional, a partir <strong>da</strong> ampliação tanto dos seus significados, considerando as<br />

construções identitárias, quanto <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des de tratamento com este<br />

conhecimento, considerando a metodologia <strong>da</strong> pesquisa-ação.<br />

No sexto capítulo, “Iê... Viva meu mestre... camará”, probl<strong>em</strong>atizamos a<br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de e as possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> espaços formais e não-formais de<br />

educação, apontando para uma necessária articulação entre formação, cultura e<br />

trabalho pe<strong>da</strong>gógico. A partir <strong>da</strong>í, apresentamos a <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na, trata<strong>da</strong> como<br />

complexo t<strong>em</strong>ático, e orienta<strong>da</strong> por um conjunto de princípios teórico-metodológicos<br />

para o trato <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo de formação profissional.<br />

Finalmente, com a “chama<strong>da</strong>” “Iê...Vamos <strong>em</strong>bora...camará”,<br />

apresentamos nossas considerações finais, conclamando outras pesquisas (outros<br />

<strong>jogo</strong>s) a interagir<strong>em</strong> com esta, através de redes ca<strong>da</strong> vez mais complexas e<br />

jogantes.<br />

16


CAPÍTULO 1<br />

“IÊ... VAMOS JOGAR ... CAMARÁ”<br />

1.1. Aspectos do Desenvolvimento <strong>da</strong> Capoeira: Plurietnia, Resistência e<br />

Transnacionali<strong>da</strong>de<br />

17<br />

A <strong>capoeira</strong> cresceu, ganhou força e girou nesse mundo,<br />

mas me chamam de moleque<br />

e ain<strong>da</strong> me tratam como um vagabundo...”<br />

(Mestre Toni Vargas)<br />

Inicialmente, explicitar<strong>em</strong>os aspectos <strong>da</strong> plurietnia, <strong>da</strong> resistência e <strong>da</strong><br />

transnacionali<strong>da</strong>de presentes no desenvolvimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, evidenciando a<br />

complexi<strong>da</strong>de desta manifestação cultural, b<strong>em</strong> como a fragili<strong>da</strong>de dos discursos<br />

raciais estereotipados, que apregoam que ela teria sido, durante muito t<strong>em</strong>po, uma<br />

prática exclusiva dos negros escravizados no Brasil, e somente nos últimos anos se<br />

inseriu nos fluxos globalizantes.<br />

As pesquisas históricas que versam sobre a orig<strong>em</strong> e o desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> caracterizam-na como uma manifestação pluriétnica e, <strong>em</strong>bora<br />

prevaleça a tese de que, originalmente, tenha sido uma <strong>construção</strong> dos negros<br />

escravizados no Brasil, ela apresenta, desde os seus primeiros registros (final do<br />

século XVIII), um perfil pluriétnico. Graças a sua complexi<strong>da</strong>de, resistiu a déca<strong>da</strong>s<br />

de feroz perseguição por parte do poder constituído, para se tornar, nos últimos<br />

anos, uma <strong>da</strong>s mais dinâmicas manifestações inseri<strong>da</strong>s no chamado mundo<br />

globalizado.<br />

Os registros históricos evidenciam que, quando a <strong>capoeira</strong> ensaiou os<br />

seus “primeiros passos”, no Brasil, o fez através dos corpos de africanos de várias


etnias e reinos, trazidos pelos portugueses para a, então denomina<strong>da</strong>, Terra de<br />

Santa Cruz. É possível afirmar, portanto, que, <strong>em</strong>bora ela tenha sido “engravi<strong>da</strong><strong>da</strong>”<br />

na África, ela já “nasce” no Brasil pluriétnica. Metaforicamente, poderíamos dizer<br />

que seu “berço” é africano, mas sua “cama” é brasileira, <strong>em</strong>bora nela povos de<br />

outros cantos tenham tirado alguns “cochilos”. Ou seja, ela foi “batiza<strong>da</strong>” no Brasil,<br />

como “filha” de uma condição de exploração a que foram submetidos seres<br />

humanos procedentes de diversas etnias africanas <strong>em</strong> terras recém invadi<strong>da</strong>s pelos<br />

portugueses 11 . Esse traço que grassa essa manifestação, desde que começaram os<br />

seus primeiros registros, no século XVIII, pode ser ain<strong>da</strong> verificado no expressivo<br />

número de estrangeiros que engrossaram suas fileiras a partir dos idos de 1850,<br />

quando o Brasil começava a atrair aventureiros de várias partes do mundo,<br />

contagiados pela possibili<strong>da</strong>de de viver<strong>em</strong> num suposto “paraíso tropical”. Segundo<br />

Soares (1997), para adentrar os perigosos e boêmios labirintos <strong>da</strong>, então<br />

<strong>em</strong>ergente, ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro, entre o final do século XIX e começo do<br />

século XX, muitos portugueses, italianos, argentinos, franceses, al<strong>em</strong>ães e<br />

espanhóis juntavam-se aos negros rebeldes e ex-escravos e, nas “sombras <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>g<strong>em</strong>”, construíam, num ambiente extr<strong>em</strong>amente hostil e conflituoso, laços<br />

de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de para enfrentar o infortúnio e a miséria comuns aos forasteiros,<br />

desamparados e estranhos que chegavam ao “Novo Mundo” na expectativa de<br />

encontrar o “paraíso” ao sul do equador. “Os imigrantes portugueses e a população<br />

negra <strong>da</strong> Corte dividiam um mesmo nicho ocupacional e, por vezes, moravam no<br />

mesmo cortiço, assistiam às mesmas festas, usavam as mesmas roupas e morriam<br />

<strong>da</strong>s mesmas epid<strong>em</strong>ias” (SOARES, 1997, p. 688). Esses aspectos explicitam,<br />

11 Segundo Vieira e Assunção (1999), mesmo que seja incontestável a estreita associação dos<br />

negros escravizados e de sua cultura com as origens <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, é impossível delimitar a sua<br />

prática somente a este grupo social ou a um grupo étnico específico através dos t<strong>em</strong>pos.<br />

18


claramente, a condição de classe dos explorados <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> época.<br />

Essa complexa rede, forma<strong>da</strong> por africanos, crioulos e europeus, que<br />

viviam à marg<strong>em</strong> <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, tinha na <strong>capoeira</strong> o elo fun<strong>da</strong>mental de afirmação<br />

identitária, construí<strong>da</strong> a partir de uma tensa simbiose que destruía e reconstruía<br />

valores para além de componentes lingüísticos, étnicos, de território e de nação,<br />

d<strong>em</strong>onstrando o quanto a cultura poderia ser transforma<strong>da</strong> pelos seus praticantes<br />

“menos ilustres”, que, mesmo provenientes de diferentes origens, arregimentavam<br />

poder e reconhecimento e redesenhavam a geografia urbana <strong>da</strong> já cosmopolita<br />

ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro, atropelando a vontade e os projetos <strong>da</strong> sua elite<br />

<strong>em</strong>penha<strong>da</strong> <strong>em</strong> transformá-la numa “Paris dos Trópicos”.<br />

Esse reconhecimento e poder, conquistados a duras penas, pela plêiade<br />

de “marginais” que convergiam para as maltas 12 de <strong>capoeira</strong> e para os cortiços,<br />

desafiavam e resistiam, com suas “práticas ilícitas”, a ord<strong>em</strong> estabeleci<strong>da</strong> e<br />

mol<strong>da</strong>vam processos identitários forjados pelas s<strong>em</strong>elhantes condições de vi<strong>da</strong> e de<br />

trabalho precários, b<strong>em</strong> distintos dos cultivados pelas elites <strong>da</strong> época.<br />

Nesse labirinto, os filhos <strong>da</strong> “marginali<strong>da</strong>de citadina” incorporaram e<br />

construíram seus códigos de conduta, suas gírias, suas armas e seus discursos<br />

12 As maltas eram organizações de <strong>capoeira</strong>s no Rio de Janeiro do final do século XIX, dota<strong>da</strong>s de<br />

corpo autônomo e hierarquizado, forma<strong>da</strong>s de chefias e sub-chefias, tendo, os seus m<strong>em</strong>bros,<br />

deveres e funções perfeitamente codificados, cujos princípios que regiam suas relações internas<br />

estavam galgados na soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, na l<strong>ea</strong>l<strong>da</strong>de, na prudência, na bravura, na valentia, na corag<strong>em</strong> e<br />

no respeito às normas e aos níveis hierárquicos (ARAÚJO, 1997). A disputa de espaços geográficos<br />

era o principal motivo de sua organização. Essas maltas eram rivais e lutavam entre si pelo domínio<br />

político e espacial <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, onde a violência configurava estilos de vi<strong>da</strong> e operava como fator de<br />

organização. Duas grandes maltas de <strong>capoeira</strong>s tornaram-se célebres: a dos Nagoas e a dos<br />

Guaiamuns. Esta conflituosa organização dos <strong>capoeira</strong>s era motivo de preocupação do Estado pela<br />

am<strong>ea</strong>ça <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> social vigente que ela representava. O relatório do Ministro e Secretário dos<br />

Negócios <strong>da</strong> Justiça, referente ao ano de 1878, trata as maltas <strong>da</strong> seguinte forma: “Uma <strong>da</strong>s mais<br />

estranhas enfermi<strong>da</strong>des morais desta grande e civiliza<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de é a associação de <strong>capoeira</strong>s.<br />

Associação regularmente organiza<strong>da</strong>, com seus chefes, sua subdivisão <strong>em</strong> maltas, que denominam<br />

badernas, com sinais e gírias próprias. Grupos de turbulentos, ávidos de assua<strong>da</strong>s, de lutas e de<br />

sangue, concorr<strong>em</strong> à voz de seus chefes nas grandes reuniões populares e festivi<strong>da</strong>des públicas,<br />

para o fim de decidir<strong>em</strong> por meios violentos as suas conten<strong>da</strong>s e rivali<strong>da</strong>des” (FILHO e LIMA<br />

apud ARAÚJO, 1997, p. 175).<br />

19


cifrados que pod<strong>em</strong> ser entendidos como estratégias de resistência aos padrões<br />

culturais dominantes, <strong>em</strong>bora distintas de outras formas mais clássicas de<br />

resistência. É possível afirmar que muitos desses “códigos de conduta” foram,<br />

provavelmente, her<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> “Lisboa boêmia”, do século XIX, onde a figura<br />

sincrética do fadista se destacava.<br />

A “Lisboa boêmia” 13 , habilmente caracteriza<strong>da</strong> por Machado Pais (1985),<br />

<strong>em</strong> estudo sobre o fenômeno <strong>da</strong> prostituição na capital portuguesa, era uma região<br />

marca<strong>da</strong>, essencialmente, pela marginali<strong>da</strong>de e caracterizava-se como espaço de<br />

valorização do “indecente” e do “imoral”, onde se misturavam fadistas, prostitutas,<br />

toureiros, vagabundos, boleeiros, chulos, marialvas e marinheiros que,<br />

independente <strong>da</strong> sua orig<strong>em</strong> social, mantinham uma “convivência entre si, cujas<br />

distinções superorgânicas de significados-valores-normas, aparec<strong>em</strong> socialmente<br />

minimiza<strong>da</strong>s” (MACHADO PAIS, 1985, p. 44).<br />

Segundo o jornalista português, João Pinto Ribeiro de Carvalho,<br />

conhecido como Tinop, a bagag<strong>em</strong> cultural dos <strong>capoeira</strong>s tinha enorme similitude<br />

com a dos fadistas portugueses. Ambos, além de cantar, eram excepcionais<br />

jogadores de navalhas e lutavam habilmente. Essa s<strong>em</strong>elhança levou Tinop a fazer<br />

a categórica afirmação: “Os fadistas do Rio de Janeiro são os <strong>capoeira</strong>s” (TINOP,<br />

1982, p. 50).<br />

O fato é que alguns estudiosos, dentre eles, Bretas (1991), Soares (1997),<br />

Tinop (1982), identificaram <strong>em</strong> suas pesquisas que boa parte dos costumes, <strong>da</strong>s<br />

gírias e dos comportamentos dos <strong>capoeira</strong>s cariocas, <strong>da</strong> passag<strong>em</strong> do século XIX<br />

para o XX, apresentava grande s<strong>em</strong>elhança com o acervo cultural do fadista<br />

13 Para Machado Pais (1985), a expressão “Lisboa Boêmia” não se restringe a um espaço físico<br />

delimitado (Bairro Alto, Alfama, Mouraria…), mas constitui-se num “ambiente” <strong>da</strong> estrutura social<br />

global onde se entrecruzam agentes sociais identificados por determina<strong>da</strong>s práticas sociais, cuja<br />

especifici<strong>da</strong>de se caracteriza pelo tipo de relação que se trava entre eles.<br />

20


português, como o uso <strong>da</strong> navalha, as rixas, a forma de vestir 14 , a bo<strong>em</strong>ia, a<br />

algazarra, a desord<strong>em</strong>, o apego ao lúdico, evidenciando que, apesar de estar<strong>em</strong><br />

separados por milhares de quilômetros de oc<strong>ea</strong>no, faziam parte de um berço cultural<br />

comum. Segundo Soares (1997, p. 689): “tanto o <strong>capoeira</strong> como o fadista eram<br />

produtos de uma incipiente socie<strong>da</strong>de urbana do século XIX e também filhos <strong>da</strong><br />

marginali<strong>da</strong>de citadina”.<br />

Convém destacar, entretanto, que, tal como acontecia na “Lisboa<br />

Boêmia”, onde “marialvas aristocráticos” se misturavam nas tabernas com outros<br />

personagens populares, integrantes <strong>da</strong>s “boas famílias” do Rio de Janeiro, <strong>da</strong><br />

passag<strong>em</strong> do século XX, também se deleitavam com a sedução, a virili<strong>da</strong>de e o<br />

arrojo dos <strong>capoeira</strong>s rebeldes, não só apreciando a sensuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte-luta, mas<br />

exercitando-a, como fez, por ex<strong>em</strong>plo, o famoso e terribilíssimo <strong>capoeira</strong> português<br />

José Elysio dos Reis, um autêntico marialva, conhecido como Juca Reis, filho de um<br />

dos mais ricos representantes <strong>da</strong> colônia lusa no Rio de Janeiro, o Conde de São<br />

Salvador de Matosinhos. Juca Reis, assim como aconteceu com vários outros<br />

portugueses que apreciavam o batuque frenético dos atabaques 15 , foi preso pelo<br />

crime de “<strong>capoeira</strong>”. Essa prisão, aliás, resultou na primeira crise ministerial <strong>da</strong><br />

recém cria<strong>da</strong> República dos Estados Unidos do Brasil.<br />

Poucos meses após proclamar a República, <strong>em</strong> 15 de nov<strong>em</strong>bro de 1889,<br />

o Marechal Deodoro <strong>da</strong> Fonseca atribuiu ao primeiro Chefe de Polícia <strong>da</strong> República,<br />

Joaquim Sampaio Ferraz, a delica<strong>da</strong> missão de exterminar os <strong>capoeira</strong>s na ci<strong>da</strong>de<br />

do Rio de Janeiro. Acontece que, muita gente considera<strong>da</strong> importante e com fortes<br />

14 O fadista lusitano, com sua calça boca-de-sino, os cabelos <strong>em</strong> bandós (soltos desalinhados), o<br />

chapéu desabado, os sapatos de salto de prateleira, apresenta explícita s<strong>em</strong>elhança com a<br />

descrição clássica do <strong>capoeira</strong> carioca, narra<strong>da</strong> por Mello Moraes Filho que, freqüent<strong>em</strong>ente,<br />

perambulava com suas calças largas, paletó-saco desabotoado, camisa de cor e chapéu de feltro<br />

(apud SOARES, 1997, p.689).<br />

15 Instrumentos de percussão que se ass<strong>em</strong>elham a um tambor.<br />

21


elações e influências na elite política, caiu <strong>em</strong> suas garras. Juca Reis foi um deles.<br />

Seu pai, Conde de São Salvador de Matosinhos, era amigo íntimo do General<br />

Quintino Bocaiúva, então ministro <strong>da</strong>s Relações Exteriores, que não concordou com<br />

a prisão do filho de seu amigo e se rebelou contra o governo, causando a primeira<br />

grave crise ministerial <strong>da</strong> República (REGO, 1968, p. 302-303).<br />

O Código Penal <strong>da</strong> República dos Estados Unidos do Brasil, instituído<br />

pelo Decreto nº 487, de outubro de 1890, oficializou a criminalização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong><br />

todo o território nacional, ao estabelecer, <strong>em</strong> seu Capítulo XIII, o seguinte:<br />

Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas, exercício de agili<strong>da</strong>de e<br />

destreza corporal conheci<strong>da</strong> pela denominação <strong>capoeira</strong>g<strong>em</strong> (...)<br />

Pena: de prisão celular por dois a seis meses.<br />

& único: É considera<strong>da</strong> circunstância agravante pertencer o<br />

<strong>capoeira</strong> a alguma ban<strong>da</strong> ou malta.<br />

Art. 404. Se nesses exercícios de <strong>capoeira</strong>g<strong>em</strong> perpetrar<br />

homicídio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor público e<br />

particular, perturbar a ord<strong>em</strong>, a tranqüili<strong>da</strong>de ou segurança pública<br />

ou for encontrado com armas incorrerá cumulativamente nas penas<br />

comina<strong>da</strong>s para tais crimes (REGO, 1968, p. 292).<br />

A <strong>capoeira</strong> sai do Código Penal <strong>em</strong> 1934, por força do Decreto<br />

Presidencial nr. 1.202 (SODRÉ, 2002, p. 67), entretanto, segundo Araújo (1997),<br />

a descriminalização oficial <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> deu-se somente a partir <strong>da</strong> promulgação<br />

do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei <strong>da</strong>s Contravenções Penais<br />

– Parte Especial, Cap. I, “Das Contravenções referentes à pessoa”), à medi<strong>da</strong><br />

que “a mesma já não figurava explicitamente no rol <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des previstas<br />

como contravenção penal” (ARAÚJO, op. cit., p. 216).<br />

Essa criminalização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> t<strong>em</strong> razões históricas. O fato é que as<br />

elites do Brasil Imperial a tratavam como um defeito inerente a certa cama<strong>da</strong> social.<br />

Freqüent<strong>em</strong>ente os homens “<strong>da</strong>s letras” alertavam aos “homens de b<strong>em</strong>” <strong>da</strong> capital<br />

do Império para o perigo que a <strong>capoeira</strong> representava, à medi<strong>da</strong> que,<br />

cotidianamente, no crepúsculo <strong>da</strong> noite, a plêiade de negros dos cantos “imundos”<br />

22


tomava a ci<strong>da</strong>de, saqu<strong>ea</strong>va mercados, instaurando o pânico e invertendo a ord<strong>em</strong><br />

social, fazendo a aristocracia, enclausura<strong>da</strong> <strong>em</strong> seus aconchegantes aposentos,<br />

tr<strong>em</strong>er de medo.<br />

Vários historiadores cont<strong>em</strong>porâneos vêm apresentando, <strong>em</strong> suas<br />

pesquisas, que a <strong>capoeira</strong> não se restringiu a uma prática exclusiva dos negros<br />

escravizados ou forros. Inegavelmente, trata-se de uma manifestação que se<br />

afirmou como um b<strong>em</strong> cultural com nítidos traços culturais africanos, mas jamais se<br />

constituiu numa manifestação homogên<strong>ea</strong>.<br />

Muito do que sab<strong>em</strong>os sobre <strong>capoeira</strong>, chegou até nós pela tradição oral,<br />

entretanto, os estudos históricos afirmam ser a <strong>capoeira</strong> um fenômeno tipicamente<br />

urbano e, desde o início do século XIX, muitos estrangeiros de famílias “boas” e<br />

“más” contribuíram para a sua consoli<strong>da</strong>ção como prática pluriétnica. Antes mesmo<br />

<strong>da</strong> abolição <strong>da</strong> escravatura no Brasil, muitos estrangeiros encontravam na <strong>capoeira</strong><br />

uma “porta de entra<strong>da</strong>” para se inserir nos labirintos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro<br />

que, na passag<strong>em</strong> do século XIX para o XX, já apresentava feições cosmopolitas,<br />

onde uma “babel de nacionali<strong>da</strong>des diversas escondia-se nas sombras <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>g<strong>em</strong>” (SOARES, 1997, p. 710).<br />

Com isso, não estamos afirmando que a <strong>capoeira</strong> não tenha sido, ao<br />

longo de sua história, um exuberante movimento no qual referências <strong>da</strong> cultura<br />

negro-africana imprimiram suas marcas mais profun<strong>da</strong>s, tanto no tocante aos rituais,<br />

instrumentos e cantigas, como nos processos de organização e formas de li<strong>da</strong>r com<br />

esse conhecimento. A questão é que essa manifestação, como pod<strong>em</strong>os constatar<br />

<strong>em</strong> aspectos do seu desenvolvimento histórico, incorporou el<strong>em</strong>entos culturais de<br />

várias procedências e, desde os seus primeiros registros conhecidos, t<strong>em</strong> se<br />

apresentado como uma prática pluriétnica, permitindo, através dos seus rituais,<br />

23


cantos e fun<strong>da</strong>mentos 16 , a materialização dos significados e interesses mais<br />

díspares, ambíguos e contraditórios.<br />

Desde o século XVIII, o seu praticante - o <strong>capoeira</strong> 17 - v<strong>em</strong> sendo<br />

sist<strong>em</strong>aticamente caracterizado por cronistas, m<strong>em</strong>orialistas e romancistas. Quando<br />

o país era governado pelos vice-reis nom<strong>ea</strong>dos de Lisboa, o relato de um cronista<br />

sobre o <strong>capoeira</strong> tornou-se antológico:<br />

À porta do estanco de tabaco está um hom<strong>em</strong> diante de um frade<br />

nédio e rubicundo. Mostra um capote vasto de mil dobras, onde sua<br />

figura escanifra<strong>da</strong> mergulha e desaparece, deixando ver apenas, de<br />

fora além de dois canelos finos de ave pernalta, uma vasta e hirsuta<br />

cabeleira, onde naufraga <strong>em</strong> on<strong>da</strong>s tumultuosas alto feltro espanhol.<br />

Fala forte. Gargalha. Cheira a aguardente e discute. É o <strong>capoeira</strong>.<br />

(EDMUNDO, 1951, p. 40).<br />

Na segun<strong>da</strong> metade do século XIX, ao discorrer<strong>em</strong> sobre as valentias e<br />

façanhas dos <strong>capoeira</strong>s rebeldes, geralmente associa<strong>da</strong>s à “malandrag<strong>em</strong>”, alguns<br />

cronistas reproduziram o olhar dominante de suas gerações e acabaram lhes<br />

<strong>em</strong>prestando notorie<strong>da</strong>de e fama, e contribuíram de forma contundente para<br />

eluci<strong>da</strong>r o conflito travado pela luta de classes. Os <strong>capoeira</strong>s eram <strong>da</strong> “ralé”, mas<br />

eram valentes e corajosos para enfrentar a opressão <strong>da</strong>s elites.<br />

O primeiro esboço de uma imag<strong>em</strong> literária do <strong>capoeira</strong> está contido,<br />

provavelmente, no personag<strong>em</strong> Chico-Juca, <strong>da</strong> obra “M<strong>em</strong>órias de um Sargento de<br />

Milícias”, de Manuel Antônio de Almei<strong>da</strong>, publica<strong>da</strong> <strong>em</strong> 1852. Chico-Juca era um<br />

16 To<strong>da</strong> prática cultural t<strong>em</strong> seus fun<strong>da</strong>mentos. No caso <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> esses “fun<strong>da</strong>mentos” são<br />

construídos e consoli<strong>da</strong>dos por grupos e mestres, mas eles não são unívocos n<strong>em</strong> tampouco,<br />

harmônicos. Consist<strong>em</strong> no conjunto de conhecimentos relativos ao <strong>jogo</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> que pod<strong>em</strong><br />

variar de grupo para grupo, <strong>em</strong>bora existam algumas referências consagra<strong>da</strong>s por todos os seus<br />

praticantes, como por ex<strong>em</strong>plo, o reconhecimento do berimbau como instrumento “mestre” <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> e a utilização <strong>da</strong>s cantigas responsórias (interativas) na ro<strong>da</strong>. Em geral, os fun<strong>da</strong>mentos são<br />

passados de boca-a-boca pelos mestres, <strong>em</strong>bora, atualmente, possamos constatar várias formas de<br />

acessá-los. A um <strong>capoeira</strong> qualificado cabe conhecer esses fun<strong>da</strong>mentos, caso contrário, ele poderá<br />

ser desqualificado perante a comuni<strong>da</strong>de <strong>capoeira</strong>na.<br />

17 Para designar os (as) sujeitos <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> (praticantes, mestres (as), professores (as), militantes<br />

etc.), utilizar<strong>em</strong>os o termo <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> detrimento do termo capoeirista, por entendermos que o<br />

primeiro t<strong>em</strong>, na cultura, o seu campo privilegiado de ação, enquanto que o termo capoeirista nos<br />

sugere uma intervenção mais específica, mais especializa<strong>da</strong>, típica do (a) especialista.<br />

24


profissional <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>, “afamadíssimo e t<strong>em</strong>ível”, um tipo que causava<br />

preocupação por onde an<strong>da</strong>va.<br />

Chico-Juca era um pardo alto, corpulento, de olhos avermelhados,<br />

longa barba, cabelo cortado rente; trajava s<strong>em</strong>pre jaqueta branca,<br />

calça muito larga nas pernas, chinelas pretas e um chapelinho branco<br />

muito à ban<strong>da</strong>; ordinariamente era afável e gracejador, cheio de<br />

ditérios e chalaças, porém nas ocasiões de sarilho, como ele<br />

chamava, era quase feroz. Como outros têm o vício <strong>da</strong> <strong>em</strong>briaguez,<br />

outros o do <strong>jogo</strong>, outros o do deboche, ele tinha o vício <strong>da</strong> valentia;<br />

mesmo quando ninguém lhe pagava, bastava que lhe desse na<br />

cabeça, armava briga, e só depois que <strong>da</strong>va panca<strong>da</strong>s a fartar é que<br />

ficava satisfeito; com isso muito lucrava: não havia taberneiro que lhe<br />

não fiasse e não o tratasse muito b<strong>em</strong> (ALMEIDA, 1997, p. 56-57).<br />

A <strong>capoeira</strong> t<strong>em</strong> sido palco de tensão, resistência e afirmação de indivíduos<br />

e categorias de várias origens, explorados e expropriados <strong>em</strong> sua força de trabalho,<br />

e não, como é bastante difundido pela tradição oral, uma prática de luta cria<strong>da</strong> no<br />

Brasil pelo negro “oprimido”, com o exclusivo objetivo de lutar contra o branco<br />

“opressor”. Discursos como este serv<strong>em</strong> para alimentar o imaginário “mitológico”<br />

dos <strong>capoeira</strong>s. 18<br />

Esse caráter pluriétnico <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> potencializou-se nos últimos anos,<br />

por força <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des humanas de sobrevivência, acompanhando on<strong>da</strong>s de<br />

imigrações inéditas na história, através <strong>da</strong>s quais, <strong>capoeira</strong>s de várias partes do<br />

Brasil buscam, desespera<strong>da</strong>mente, trabalho e digni<strong>da</strong>de no exterior e, com isso,<br />

contribu<strong>em</strong> para a sua transformação numa prática transnacional. Ribeiro (2000, p.<br />

13) destaca que o transnacionalismo refere-se a “um nível de integração de<br />

populações que cria um novo modo de representar pertencimento a uni<strong>da</strong>des<br />

sociopolíticas e culturais”. Para o referido autor, o termo transnacional só pode ser<br />

18 Esse universo mitológico dos <strong>capoeira</strong>s é composto de muitas “ver<strong>da</strong>des” ain<strong>da</strong> não comprova<strong>da</strong>s<br />

cientificamente, como, por ex<strong>em</strong>plo, a alegação de que a <strong>capoeira</strong> teria sido pratica<strong>da</strong> no famoso<br />

Quilombo de Palmares. Embora esse fato não tenha comprovação histórica, faz parte <strong>da</strong> tradição oral<br />

dos <strong>capoeira</strong>s como ver<strong>da</strong>de incontestável. Entretanto, Vieira e Assunção (1999) afirmam que esses<br />

mitos, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que constitu<strong>em</strong> uma visão essencialista de <strong>capoeira</strong>, simplificadora e ahistórica,<br />

permit<strong>em</strong> uma articulação de processos identitários e a legitimação de grupos nesse<br />

contexto e estão relacionados com os conflitos mais abrangentes <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira.<br />

25


epresentado como um eixo transversal que recorta os outros níveis de integração,<br />

como o local, o regional, o nacional. Não possui uma r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de territorial, incr<strong>em</strong>enta<br />

a fragmentação e a ambigüi<strong>da</strong>de identitária, por força <strong>da</strong>s exposições às diferenças<br />

étnicas e culturais e, seus sujeitos e produtos são de “identificação extr<strong>em</strong>amente<br />

difícil, impossível ou irrelevante” (op. cit., p. 15) .<br />

É possível afirmar que a <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong> assumindo, paulatinamente, esse<br />

caráter transnacional, abrindo, com isto, novas frentes de investigação, e acenando<br />

com novos el<strong>em</strong>entos de análise sobre fenômenos culturais aparent<strong>em</strong>ente<br />

“marginais” e particulares, mas que expressam a estrutura social global na qual<br />

estão inseridos.<br />

Convém destacar, entretanto, que, a despeito dos fluxos e dinâmicas<br />

transnacionais perm<strong>ea</strong>ndo as experiências hodiernas com a <strong>capoeira</strong>, são nos<br />

contextos locais que, cotidianamente, as referências globais são apreendi<strong>da</strong>s,<br />

decodifica<strong>da</strong>s e transforma<strong>da</strong>s, a partir dos interesses, necessi<strong>da</strong>des e criativi<strong>da</strong>de<br />

dos sujeitos contextualmente situados. Em outras palavras: ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong><br />

que a <strong>capoeira</strong> incorpora um caráter transnacional, ela encerra um significado<br />

fort<strong>em</strong>ente territorializado, fun<strong>da</strong>mental para o fortalecimento de laços afetivos e<br />

simbólicos entre os seus praticantes, interligados <strong>em</strong>ocionalmente e integrados por<br />

interações significativas.<br />

A <strong>capoeira</strong> constitui-se, portanto, numa manifestação cultural notabiliza<strong>da</strong><br />

pelo seu exuberante campo de possibili<strong>da</strong>des, cuja trajetória histórica reflete<br />

contradições marcantes <strong>da</strong> dinâmica social. É importante frisar que esses traços de<br />

plurietnia, e transnacionali<strong>da</strong>de não exclu<strong>em</strong> aclamados e decantados traços de<br />

resistência, difundidos na literatura afro-brasileira e na tradição oral dos <strong>capoeira</strong>s<br />

<strong>em</strong> geral. Da condição de “luta de escravo <strong>em</strong> ânsia de liber<strong>da</strong>de”, persegui<strong>da</strong> e<br />

26


discrimina<strong>da</strong>, tornou-se símbolo de brasili<strong>da</strong>de e adentrou espaços institucionais<br />

antes impensáveis, seja como prática esportiva, terapêutica, de espetáculo, seja<br />

como conteúdo curricular universitário.<br />

Ao longo de seu desenvolvimento histórico a <strong>capoeira</strong> foi incorporando<br />

valores de ca<strong>da</strong> época e, ao adentrar o currículo de formação universitária, sob a<br />

forma de conteúdo programático, ela passa a congregar códigos e valores diferentes<br />

<strong>da</strong>queles que a caracterizavam no período escravagista, quando ela começou a<br />

incomo<strong>da</strong>r as classes dominantes <strong>da</strong> época. Nos últimos anos, ela v<strong>em</strong> sendo<br />

trata<strong>da</strong> como conteúdo curricular por parte de várias instituições de ensino superior<br />

no Brasil, a partir de inúmeras iniciativas, como, por ex<strong>em</strong>plo, a implantação do<br />

primeiro curso superior de <strong>capoeira</strong>, iniciado <strong>em</strong> agosto de 1999, na Universi<strong>da</strong>de<br />

Gama Filho (UGF), no Rio de Janeiro 19 . Entre 1997 e 1998, por iniciativa do Centro<br />

de Educação Física e Desporto Escolar (CEFDE), divisão vincula<strong>da</strong> ao<br />

Departamento de Pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> então Fun<strong>da</strong>ção Educacional do Distrito Federal<br />

(FEDF), a Facul<strong>da</strong>de de Educação Física <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Brasília (UnB) r<strong>ea</strong>lizou<br />

o primeiro curso de Pós-Graduação <strong>em</strong> Capoeira na Escola, no Brasil. 20 Em 2002 a<br />

Universi<strong>da</strong>de Gama Filho ofereceu um Curso de Especialização de 360 horas, sob a<br />

denominação de Bases Metodológicas e Fisiológicas Aplica<strong>da</strong>s à Capoeira,<br />

r<strong>ea</strong>lizado nos finais de s<strong>em</strong>ana.<br />

Estas iniciativas contribu<strong>em</strong>, certamente, para a consoli<strong>da</strong>ção de novas<br />

visões <strong>em</strong> torno desta manifestação cultural e tend<strong>em</strong> a ampliar as suas bases de<br />

19 O Curso <strong>da</strong> Gama Filho t<strong>em</strong> duração de dois anos e funciona na lógica dos cursos seqüenciais<br />

propostos pela atual Lei de Diretrizes e Bases (LDB). Para fazer o curso, o interessado passa por<br />

uma entrevista e um “teste de aptidão”. Nele são ministra<strong>da</strong>s aulas de anatomia, didática, história,<br />

pe<strong>da</strong>gogia, ritmos e cantos <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e antropologia, com estágio obrigatório (JORNAL ABADA-<br />

CAPOEIRA, 1999).<br />

20 Àquela ocasião, na gestão do Governo D<strong>em</strong>ocrático e Popular, que teve como governador<br />

Cristovam Buarque, o coletivo dirigente <strong>da</strong> então Direção do CEFDE definiu politicamente, <strong>em</strong><br />

conjunto com a Facul<strong>da</strong>de de Educação Física <strong>da</strong> UnB, pela r<strong>ea</strong>lização do referido curso.<br />

27


sustentação no debate teórico. É possível assegurar que já existe um corpo teórico<br />

<strong>em</strong> franca expansão, consubstanciado, principalmente, a partir dos estudos de<br />

História, Sociologia, Antropologia, Educação e Educação Física. 21<br />

Atualmente, a visibili<strong>da</strong>de multifaceta<strong>da</strong> dessa manifestação cultural<br />

evidencia muitas contradições que se expressam nas suas diferentes formas de<br />

tratamento e vários estudos têm sido r<strong>ea</strong>lizados sobre ela, principalmente na ár<strong>ea</strong><br />

<strong>da</strong>s ciências humanas. Frigério (1989) a interpreta como uma manifestação cultural<br />

que teria sido coopta<strong>da</strong> pelas classes dominantes, transmutando “de arte negra a<br />

esporte branco”. Outros autores vê<strong>em</strong> não apenas a cooptação dos brancos, mas<br />

também a confrontação negra, “a resistência”, expressa simultan<strong>ea</strong>mente numa<br />

forma de “rebeldia ativa e passiva”, que pode ser verifica<strong>da</strong> no próprio <strong>jogo</strong> ambíguo<br />

que caracteriza a <strong>capoeira</strong>: “não é um esporte, mas é, não é uma <strong>da</strong>nça, mas é, e<br />

não é uma luta, mas é” (REIS, 1997). E ain<strong>da</strong>, outros faz<strong>em</strong> a leitura <strong>da</strong>s relações<br />

estabeleci<strong>da</strong>s entre a política e o campo <strong>da</strong> cultura, através <strong>da</strong> análise ritual e<br />

gestual dessa manifestação (VIEIRA, 1990). Exist<strong>em</strong>, ain<strong>da</strong>, estudos como o de<br />

Araújo (1997) que, ao abordá-la a partir de pressupostos sócio-antropológicos,<br />

analisa as transformações ocorri<strong>da</strong>s ao longo de sua trajetória histórica, como a<br />

passag<strong>em</strong> de uma ativi<strong>da</strong>de guerreira para uma ativi<strong>da</strong>de de caris lúdico, ou para<br />

uma arte de defesa pessoal.<br />

Em geral, os estudos sobre <strong>capoeira</strong> procuram fazer uma espécie de<br />

revisão histórica <strong>em</strong> torno de algumas “ver<strong>da</strong>des”, muitas delas ain<strong>da</strong> não<br />

suficient<strong>em</strong>ente comprova<strong>da</strong>s pelas pesquisas históricas, mas que faz<strong>em</strong> parte <strong>da</strong><br />

tradição oral dos <strong>capoeira</strong>s. Esses estudos contribu<strong>em</strong> para a edificação de um<br />

21 No XII Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE), r<strong>ea</strong>lizado entre 21 e 27 de Outubro de<br />

2001, <strong>em</strong> Caxambu-MG, foi criado o Grupo de Estudos <strong>da</strong> Capoeira (GECA), que congrega<br />

pesquisadores de diversas regiões do Brasil provenientes de diversas ár<strong>ea</strong>s do conhecimento.<br />

28


corpo teórico expressivo, capaz de despertar grande interesse intelectual e<br />

influenciar projetos e iniciativas de inserção <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> diferentes espaços de<br />

intervenção, dentre estes, a escola.<br />

Por fim, cabe ressaltar que, mesmo tendo a <strong>capoeira</strong> se consoli<strong>da</strong>do como<br />

um b<strong>em</strong> cultural de orig<strong>em</strong> “negra”, esses “negros” que consoli<strong>da</strong>ram a <strong>capoeira</strong><br />

eram de “to<strong>da</strong>s as cores” (TRAVASSOS, 1999), identificavam-se pela mesma<br />

condição de explorados e agregavam-se <strong>em</strong> redes de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, ain<strong>da</strong> que<br />

tensas, para se livrar<strong>em</strong> <strong>da</strong> miséria e do infortúnio a que eram cotidianamente<br />

submetidos. O movimento de seu desenvolvimento d<strong>em</strong>onstra que ela se consolidou<br />

como manifestação cultural cujos traços de plurietnia, resistência e<br />

transnacionali<strong>da</strong>de não se exclu<strong>em</strong> e terminam por caracterizá-la como uma prática<br />

essencialmente ambígua.<br />

1.2. Do “Boca-a-boca” à Internet: a Mobili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Capoeira e a Ressignificação<br />

<strong>da</strong> Cultura<br />

29<br />

“Capoeira antigamente era coisa de marginal<br />

Hoje <strong>em</strong> dia ela é um esporte nacional…” 22<br />

É notório que expressiva gama dos saberes e fun<strong>da</strong>mentos consoli<strong>da</strong>dos<br />

na <strong>capoeira</strong> chegaram até os t<strong>em</strong>pos atuais a partir <strong>da</strong> tradição oral, ou seja, eram<br />

transmitidos de boca-a-boca, e muitos mestres respeitados nesse universo faz<strong>em</strong><br />

questão <strong>da</strong> manutenção desse expediente.<br />

Notáveis <strong>capoeira</strong>s <strong>da</strong> Bahia, do Rio de Janeiro e de Pernambuco ain<strong>da</strong><br />

“viv<strong>em</strong>” nos versos cantados ao pé do berimbau e na boa prosa dos camara<strong>da</strong>s<br />

<strong>capoeira</strong>s. A tradição oral foi, até b<strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po, a principal responsável por<br />

22 Estrofe de uma cantiga de <strong>capoeira</strong> de domínio público.


essa m<strong>em</strong>ória, freqüent<strong>em</strong>ente carrega<strong>da</strong> de ressentimentos negativos, rancores e<br />

desejos de vingança, que evoca e afirma uma positivi<strong>da</strong>de sedimenta<strong>da</strong> <strong>em</strong> nomes<br />

que se tornaram célebres no universo <strong>capoeira</strong>no, como os de Pedro Mineiro, Pedro<br />

Porreta, Samuel Querido de Deus, Alg<strong>em</strong>iro Olho de Pombo, Nascimento Grande,<br />

Manduca <strong>da</strong> Praia, Besouro Mangangá, Feliciano Bigode de Se<strong>da</strong>, Inimigo s<strong>em</strong><br />

Tripa, Sete Mortes, Chico Três Pe<strong>da</strong>ços, Canjiquinha, Aberrê, Cobrinha Verde,<br />

Traíra, Wald<strong>em</strong>ar <strong>da</strong> Paixão, Totonho Maré, Tiburcinho, Bilusca, Noronha, Ma<strong>da</strong>me<br />

Satã, Sete Coroas, Gato Frio, Perna de Pau, Bun<strong>da</strong> de Prata, Zé Porco, Olho de<br />

Gato, Peixe Frito, Bexiga etc. Tidos como personali<strong>da</strong>des híbri<strong>da</strong>s – “marginais”,<br />

para as elites, heróis, para a “ralé” - morreram no ostracismo, <strong>em</strong>bora tenham sido<br />

responsáveis pela perpetuação de uma manifestação que, mais tarde, se<br />

transformaria num dos <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>as <strong>da</strong> cultura brasileira.<br />

No entanto, a veloci<strong>da</strong>de, o volume, a instantanei<strong>da</strong>de e a volatili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

informação que imperam <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as esferas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> na socie<strong>da</strong>de atual, a partir do<br />

advento <strong>da</strong>s transmissões “ao vivo” e via satélite, reconfiguraram o panorama e a<br />

forma de li<strong>da</strong>r com o conhecimento no mundo <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, ressignificando a sua<br />

teia cultural.<br />

Ain<strong>da</strong> que indisponível para grande parcela <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, a internet t<strong>em</strong><br />

contribuído enorm<strong>em</strong>ente para a consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> internacionalização desta<br />

manifestação cultural, à medi<strong>da</strong> que milhares de praticantes de to<strong>da</strong>s as partes do<br />

mundo estão conectados através <strong>da</strong> rede, formando uma espécie de “terreiro<br />

eletrônico”, por meio de várias “ro<strong>da</strong>s virtuais”. Cerca de cinqüenta mil páginas<br />

eletrônicas na internet falam sobre a <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> diversas línguas, e muitas listas<br />

de discussão contribu<strong>em</strong> para inserir, na pauta dos infindáveis debates, um<br />

30


corriqueiro acontecimento materializado numa praça de uma ci<strong>da</strong>de do interior do<br />

Brasil ou de qualquer outro país do mundo.<br />

Embora a <strong>capoeira</strong> tenha se apresentado, ao longo de sua trajetória,<br />

como uma manifestação multifaceta<strong>da</strong>, <strong>em</strong> que aspectos lúdicos, festivos, de luta e<br />

de <strong>da</strong>nça se fund<strong>em</strong> na mesma prática, expressiva parte dos discursos id<strong>ea</strong>lizados<br />

gravita <strong>em</strong> torno dos componentes “guerreiros” e “heróicos” desta manifestação,<br />

com a supervalorização <strong>da</strong> resistência radical e a tendência à <strong>construção</strong> de<br />

mitos e heróis, b<strong>em</strong> ao gosto do imaginário popular. Conforme ver<strong>em</strong>os mais<br />

adiante, esse “bárbaro ballet” 23 se materializou a partir de várias facetas, como o<br />

lúdico, por ex<strong>em</strong>plo, que constitui-se numa de suas referências significativas.<br />

Se, os estudos históricos apontam que, desde os seus primeiros registros,<br />

a <strong>capoeira</strong> já apresentava múltiplas faces, com o advento dos modernos meios de<br />

comunicação, esse processo se ampliou significativamente, incorporando novos<br />

el<strong>em</strong>entos. Nesse movimento, os componentes guerreiros e masculinistas, mesmo<br />

que dominantes na maioria <strong>da</strong>s referências, passam a <strong>da</strong>r lugar a outras formas de<br />

tratamento, com nuanças lúdicas, esportivas, terapêuticas, t<strong>ea</strong>trais, acompanha<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong> forte e ativa participação f<strong>em</strong>inina na ro<strong>da</strong>.<br />

Embora a tradição oral evidencie a participação <strong>da</strong> mulher na<br />

<strong>capoeira</strong>g<strong>em</strong> desde o começo do século XX, expressiva parte de sua história t<strong>em</strong><br />

sido conta<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong>s referências masculinistas, mas, comprova<strong>da</strong>mente, há<br />

registros <strong>da</strong> presença de algumas mulheres guerreiras, dest<strong>em</strong>i<strong>da</strong>s e, não raro,<br />

liga<strong>da</strong>s ao mundo <strong>da</strong> marginali<strong>da</strong>de, que deram suas contribuições no processo de<br />

desenvolvimento desta controverti<strong>da</strong> manifestação cultural. As principais pioneiras<br />

ficaram conheci<strong>da</strong>s apenas pelos apelidos: Rosa Palmeirão, Júlia Fogareira, Maria<br />

23<br />

Segundo Abreu (2003), as elites soteropolitanas chamavam a <strong>capoeira</strong> de “bárbaro ballet” ou de<br />

“ballet de homens”.<br />

31


Pernambucana, Maria Cachoeira, Maria Pé no Mato e Odília (PASTINHA, 1968 e<br />

SANTANA, 2001). É importante frisar que, somente a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980, se<br />

formam, dentro dos padrões estipulados pelos grupos, as primeiras mulheres<br />

mestras de <strong>capoeira</strong> que t<strong>em</strong>os conhecimento, como é o caso <strong>da</strong>s Mestras Edna,<br />

Cigana, Jararaca, Maria Pandeiro, Silvia e Jerusa.<br />

A intensificação <strong>da</strong> participação <strong>da</strong> mulher na <strong>capoeira</strong>, nos últimos anos,<br />

pode ser percebi<strong>da</strong> através <strong>da</strong>s concorri<strong>da</strong>s “ro<strong>da</strong>s f<strong>em</strong>ininas”, promovi<strong>da</strong>s por<br />

diversos grupos <strong>em</strong> eventos de âmbito nacional e internacional, totalmente<br />

produzidos por elas, desde o planejamento até a execução.<br />

Essa participação t<strong>em</strong> se <strong>da</strong>do também a partir de diferentes formas de<br />

tratamento. Se, no subúrbio de Salvador, a Mestra Jararaca (Valdelice Santos de<br />

Jesus), forma<strong>da</strong> pelo Mestre Curió, <strong>da</strong> Escola de Capoeira Angola Irmãos Gêmeos,<br />

dá a receita do seu trabalho social a partir dos “ensinamentos do Mestre Pastinha na<br />

<strong>capoeira</strong> e na vi<strong>da</strong>" (SANTANA, 2001), a Mestra Edna Lima, radica<strong>da</strong> nos EUA,<br />

desde 1988, ensina <strong>capoeira</strong> na Chels<strong>ea</strong> Pier, <strong>em</strong> Nova York, a maior acad<strong>em</strong>ia<br />

do mundo, onde é possível escalar uma montanha fielmente reconstituí<strong>da</strong>.<br />

Responsável pelas aulas de <strong>capoeira</strong> desse espaço, Edna ensina uma espécie<br />

de <strong>capoeira</strong>-ginástica (<strong>capoeira</strong> work-out) 24 para frações economicamente<br />

abasta<strong>da</strong>s <strong>da</strong>quela metrópole. Essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de recebeu, no ano de 2000, o título<br />

de melhor “fitness” de Nova York, e a Mestra Edna já foi motivo de reportag<strong>em</strong><br />

por duas vezes no New York Times e freqüent<strong>em</strong>ente é vista <strong>em</strong> jornais e<br />

revistas de alcance internacional como a revista francesa Vogue (NUNES, 2001).<br />

24 Essa “mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de” segue os princípios básicos de uma sessão de ginástica. “Para se ter uma idéia<br />

do sucesso <strong>da</strong>s aulas de Edna, basta <strong>da</strong>r uma olha<strong>da</strong> na grade de horários <strong>da</strong> New York Sports<br />

Club, uma <strong>da</strong>s maiores redes de acad<strong>em</strong>ias americanas (...). A procura é tão grande que o número<br />

de sessões ofereci<strong>da</strong>s a ca<strong>da</strong> s<strong>em</strong>ana saltou de duas para vinte” (BERGAMO, 2004, p. 58).<br />

32


Esse ex<strong>em</strong>plo evidencia aspectos <strong>da</strong> ressignificação cultural <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> e, <strong>em</strong>bora sejam casos isolados, terminam contribuindo para mobilizar a<br />

imaginação dos <strong>capoeira</strong>s pelo encanto ou desencanto que algumas experiências<br />

b<strong>em</strong> ou mal sucedi<strong>da</strong>s pod<strong>em</strong> exercer. Um outro ex<strong>em</strong>plo que pod<strong>em</strong>os citar se<br />

deu com o processo de inserção de um grupo de <strong>capoeira</strong> na Polônia. Durante<br />

algum t<strong>em</strong>po, um grupo de amigos interessados <strong>em</strong> conhecer melhor essa<br />

manifestação começou a praticá-la a partir de algumas referências consegui<strong>da</strong>s<br />

<strong>em</strong> fitas de vídeo e na internet. Em 1998, um dos integrantes desse grupo<br />

encaminhou mensag<strong>em</strong>, pela rede, para vários professores de <strong>capoeira</strong> na<br />

Europa, solicitando material e son<strong>da</strong>ndo possibili<strong>da</strong>des de r<strong>ea</strong>lização de<br />

“workshops” na ci<strong>da</strong>de de Varsóvia. Um professor, que estava r<strong>ea</strong>lizando curso<br />

de doutoramento na Universi<strong>da</strong>de de Bristol, Inglaterra, respondeu a algumas<br />

mensagens e se colocou à disposição para colaborar com o grupo de<br />

interessados, a partir de oficinas que ocorriam mensalmente. Durante alguns<br />

meses, os contatos foram se intensificando e decidiram então constituir um grupo<br />

de <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> Varsóvia. Em síntese, o resultado é que três anos depois, tiv<strong>em</strong>os<br />

a oportuni<strong>da</strong>de de participar de um evento desse grupo (08 a 12 de maio de 2003) e<br />

pud<strong>em</strong>os constatar o envolvimento de mais de quatrocentos poloneses de diferentes<br />

faixas etárias completamente fascinados pela <strong>capoeira</strong>. Desde o início dos trabalhos<br />

desse grupo, as relações interculturais foram se intensificando, criando novas<br />

necessi<strong>da</strong>des e despertando novos interesses por parte dos envolvidos. Tanto é<br />

que, nesse intervalo de t<strong>em</strong>po, cerca de vinte integrantes já aprenderam a língua<br />

portuguesa, muitos já r<strong>ea</strong>lizaram viagens ao Brasil, e o evento do qual participamos,<br />

pode ser comparado com os melhores festivais de <strong>capoeira</strong> r<strong>ea</strong>lizados no Brasil.<br />

Ativi<strong>da</strong>des como palestras na Universi<strong>da</strong>de de Varsóvia, batismos, graduações,<br />

33


formaturas, ro<strong>da</strong>s, oficinas e a presença de renomados mestres brasileiros fizeram<br />

do mesmo um expressivo festival acadêmico-cultural.<br />

Convém destacar que a materialização desse movimento de inserção <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> na Polônia, não se deu a toque de caixa, n<strong>em</strong> sob a batuta de adequado<br />

suporte financeiro. Isto somente se tornou possível <strong>em</strong> decorrência <strong>da</strong>s inúmeras<br />

articulações e deslocamentos de pessoas que efetivamente “se jogam” <strong>em</strong><br />

aventuras, motiva<strong>da</strong>s por sonhos e esperanças de <strong>construção</strong> de uma vi<strong>da</strong> melhor e<br />

terminam redefinindo e influenciando projetos pessoais e de outr<strong>em</strong>, contribuindo,<br />

com isso, para a <strong>construção</strong> de outras possibili<strong>da</strong>des de existência. Nesse caso, <strong>em</strong><br />

específico, um mestre brasileiro, juntamente com sua esposa, também professora<br />

de <strong>capoeira</strong>, decidiram assumir, há dois anos, a coordenação do referido grupo. Um<br />

detalhe é que seus dois filhos, pelo fato de ter<strong>em</strong> aprendido a língua polonesa <strong>em</strong><br />

curto espaço de t<strong>em</strong>po, atuam como intérpretes <strong>em</strong> ocasiões <strong>em</strong> que é impossível a<br />

comunicação através de uma língua comum aos interlocutores.<br />

Essas experiências d<strong>em</strong>onstram que, se num passado r<strong>em</strong>oto, os códigos<br />

culturais <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> se perpetuavam, singularmente, a partir <strong>da</strong> tradição oral, que<br />

de boca-a-boca consoli<strong>da</strong>va um aprendizado de “oitiva”, <strong>em</strong> rampas de cais e <strong>em</strong><br />

praças públicas de algumas ci<strong>da</strong>des portuárias brasileiras, atualmente seus códigos<br />

também se perpetuam, massifica<strong>da</strong>mente, através dos chips cibernéticos ca<strong>da</strong> vez<br />

mais potentes. Isto v<strong>em</strong> consoli<strong>da</strong>ndo um aprendizado “tecnológico” e atingindo<br />

instituições e povos de diversas origens, ressignificando, assim, essa teia cultural.<br />

Numa conheci<strong>da</strong> cantiga, o já falecido Mestre Ezequiel (ex-discípulo de<br />

Mestre Bimba) versejava que havia aprendido “<strong>capoeira</strong> lá na rampa do cais <strong>da</strong><br />

Bahia”, mas declamava também que: “o gringo filmava, fotografava”, ele pouco<br />

ligava, pois não sabia que sua “foto ia sair no jornal, na França, na Rússia e também<br />

34


na Hungria”. Se, antes, eram os filmes e fotos de <strong>capoeira</strong>s brasileiros que<br />

atravessavam o Atlântico e se espalhavam pelo mundo, hoje, são os próprios<br />

<strong>capoeira</strong>s brasileiros de “carne e osso” que se apresentam nos mais diversos<br />

países, <strong>em</strong> espaços que vão desde a rua e estações de metrô, até nobilíssimos<br />

salões de espetáculos e universi<strong>da</strong>des.<br />

Esses ex<strong>em</strong>plos serv<strong>em</strong> para ilustrar como os deslocamentos <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, expressa pelos contatos via internet, pelos intercâmbios internacionais e<br />

pela ampliação <strong>da</strong> participação f<strong>em</strong>inina, contribu<strong>em</strong> para a ressignificação de seus<br />

traços culturais. Mas cabe, aqui, uma questão de fundo: como esse processo<br />

particular e singular <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, que se verifica na sua internacionalização e no seu<br />

trato <strong>em</strong> espaços formais e não-formais, insere-se e inter-relaciona-se com o<br />

movimento mais geral do capital, estabelecendo nexos e contribuindo para a<br />

manutenção de sua heg<strong>em</strong>onia? Tratar<strong>em</strong>os desta questão posteriormente.<br />

1.3. A Capoeira Angola e a Capoeira Regional e a Afirmação de Identi<strong>da</strong>des<br />

A <strong>capoeira</strong>, <strong>em</strong> seu desenvolvimento no Brasil, consolidou duas vertentes<br />

distintas, mas inter-relaciona<strong>da</strong>s, a Capoeira Angola e a Capoeira Regional. Para<br />

compreendermos a complexi<strong>da</strong>de desse movimento, utilizamo-nos dos conceitos<br />

formulados por Castells (1999) sobre as diferentes formas de <strong>construção</strong> de<br />

processos identitários. A diversi<strong>da</strong>de de construções identitárias não elimina o vigor<br />

<strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de, à medi<strong>da</strong> que essas se desenvolv<strong>em</strong> <strong>em</strong> contextos marcados por<br />

relações de poder, pela história de ca<strong>da</strong> grupo e pela simbologia construí<strong>da</strong> a partir<br />

de suas relações significativas. Castells (1999) distingue três tipos de identi<strong>da</strong>des: a<br />

identi<strong>da</strong>de legitimadora, cujas bases estão vincula<strong>da</strong>s às instituições dominantes; a<br />

identi<strong>da</strong>de de resistência, cujas bases são gera<strong>da</strong>s por sujeitos <strong>em</strong> situações<br />

35


desvaloriza<strong>da</strong>s ou discrimina<strong>da</strong>s, e a identi<strong>da</strong>de de projeto, cujas bases são<br />

produzi<strong>da</strong>s por sujeitos que utilizam-se do capital cultural para construir ou redefinir<br />

posições, conceitos e ações na socie<strong>da</strong>de.<br />

Pod<strong>em</strong>os depreender, a partir dessa classificação formula<strong>da</strong> por Castells<br />

(1999), que os processos identitários construídos no campo <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, <strong>em</strong>bora<br />

fragmentados e circunstanciais, por força do <strong>jogo</strong> político, se materializam,<br />

principalmente, na lógica <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de de projeto, s<strong>em</strong> negar, evident<strong>em</strong>ente, que<br />

<strong>em</strong> suas dinâmicas, acontec<strong>em</strong> interações com os outros tipos de identi<strong>da</strong>des<br />

apontados pelo referido autor.<br />

Os grupos de <strong>capoeira</strong> pod<strong>em</strong> ser caracterizados como “uni<strong>da</strong>des<br />

englobantes” (TRAVASSOS, 1999) e, <strong>em</strong> geral, são construídos e reconstruídos a<br />

partir de alguns “fun<strong>da</strong>mentos” do acervo <strong>capoeira</strong>no que os seus integrantes<br />

eleg<strong>em</strong> e inventam, freqüent<strong>em</strong>ente por contraposição, para legitimar seus projetos<br />

de <strong>capoeira</strong>. Para isso, serv<strong>em</strong>-se <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória biográfica e gen<strong>ea</strong>lógica as quais os<br />

seus líderes (mestre e professores) se diz<strong>em</strong> umbilicalmente vinculados. Com isso,<br />

terminam construindo pequenos mundos irmanados por identi<strong>da</strong>des de projetos que<br />

opõ<strong>em</strong> e contrastam os “nós” <strong>em</strong> relação aos “outros”.<br />

Essas identi<strong>da</strong>des consoli<strong>da</strong><strong>da</strong>s como projetos se alimentam também de<br />

uma certa mitificação de alguns personagens que se tornaram muito mais famosos<br />

após a morte. Trecho de uma nota do livro “a saga de Mestre Bimba”, de autoria de<br />

um dos seus mais conhecidos discípulos, Mestre Itapoan, serve para ilustrar essa<br />

<strong>construção</strong>:<br />

De vez <strong>em</strong> quando Deus olha aqui pra baixo e diz: “hoje vou<br />

exagerar, vou colocar na Terra mais um Grande Hom<strong>em</strong>”. E isso<br />

aconteceu, desta vez, <strong>em</strong> 23 de nov<strong>em</strong>bro de 1900, <strong>em</strong> Salvador,<br />

Bahia, Brasil: Nasceu MANOEL DOS REIS MACHADO, o MESTRE<br />

BIMBA, e a Capoeira nunca mais foi a mesma!... (ALMEIDA, 1994, p.<br />

9).<br />

36


Mestre Bimba levou a <strong>capoeira</strong> para recintos fechados. Primeiramente<br />

ministrou aulas no então chamado Clube União <strong>em</strong> Apuros. Isso ocorreu <strong>em</strong> 1918.<br />

Depois passou pela Roça do Lobo, na rua Bananal, nr. 4, no Tororó. Após passar<br />

por alguns outros locais de Salvador, estabeleceu-se no Terreiro de Jesus, rua <strong>da</strong>s<br />

Laranjeiras (Almei<strong>da</strong>, 1994). Nestes espaços Bimba metodizou um sist<strong>em</strong>a de<br />

seqüências de movimentos de <strong>capoeira</strong> e criou uma série de procedimentos<br />

didáticos, dentre eles, exame de admissão 25 , curso de especialização, <strong>em</strong>bosca<strong>da</strong>s,<br />

o “esquenta banho” 26 , a “cintura despreza<strong>da</strong>” 27 , cerimônias de batismo e graduação,<br />

sist<strong>em</strong>a de hierarquia com graduações, formaturas, que caracterizaram o que se<br />

tornou mundialmente conhecido como Capoeira Regional. A maior parte dos<br />

discípulos era constituí<strong>da</strong> de acadêmicos dos cursos de Medicina, Direito e<br />

Engenharia, <strong>da</strong> antiga Universi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Bahia 28 . Segundo Vieira (1995) a Capoeira<br />

Regional insere-se numa lógica metódica e racional do mundo com vistas ao<br />

25 Segundo Almei<strong>da</strong> (1982), inicialmente, o exame de admissão de Mestre Bimba consistia no “teste<br />

<strong>da</strong> gravata” que exigia do candi<strong>da</strong>to à <strong>capoeira</strong>, resistir por três minutos, “s<strong>em</strong> chiar”, a uma gravata<br />

aplica<strong>da</strong> no seu pescoço pelo próprio Mestre, que era “pra ver se o cabra era hom<strong>em</strong>”. Se<br />

agüentasse, estaria aprovado, poderia matricular-se no “Centro de Cultura Física e Regional” e<br />

começar os treinamentos. Posteriormente, Mestre Bimba passou a utilizar uma seleção biotipológica<br />

que exigia resistência física e flexibili<strong>da</strong>de, ou “junta mole”, como ele dizia. O pretendente teria que<br />

d<strong>em</strong>onstrar alguns movimentos como a “cocorinha” (esquiva que consiste num agachamento com<br />

uma <strong>da</strong>s mãos no chão), a “que<strong>da</strong> de rins” (exercício de equilíbrio de cabeça para baixo, <strong>em</strong> que o<br />

<strong>capoeira</strong> se apóia nos cotovelos e coloca a cabeça no chão) e a “ponte”, que é conheci<strong>da</strong> como<br />

reversão na ginástica olímpica.<br />

26 O “Esquenta Banho” consistia num <strong>jogo</strong> mais duro, que ocorria após os treinamentos formais,<br />

quando os alunos se preparavam para tomar banho. Para não esfriar o corpo, os alunos mais velhos,<br />

normalmente os formados, tomavam a iniciativa e começavam o "Esquenta Banho", desafiando dois<br />

ou três adversários ao mesmo t<strong>em</strong>po. Segundo Mestre Decanio, “este era um momento fértil <strong>da</strong> aula,<br />

pois se tratava do espaço do aluno, também chamado de ‘Bumba Meu Boi’ ou ‘Arranca Rabo’, devido<br />

aos freqüentes desafios para o acerto de contas, como ex<strong>em</strong>plo, descontar um golpe tomado durante<br />

a ro<strong>da</strong>” (DECANIO FILHO, 2002). Esse nome é decorrente do fato de que a acad<strong>em</strong>ia do Mestre<br />

possuía apenas um banheiro e, por isso, os alunos ficavam jogando para se manter<strong>em</strong> aquecidos,<br />

“esquentando para o banho” (ALMEIDA, 1994, p. 79).<br />

27 A “cintura despreza<strong>da</strong>” consiste numa série de projeções (golpes ligados <strong>em</strong> que se procura<br />

agarrar o adversário e projetá-lo ao chão, geralmente por cima do próprio corpo) e também é<br />

chama<strong>da</strong> de “balões cinturados”.<br />

28 Alguns dos integrantes <strong>da</strong> atual elite política baiana tiveram aula com Mestre Bimba, como por<br />

ex<strong>em</strong>plo, o ex-vice-governador do estado, Otto Alencar, e o ex-secretário do Planejamento, Luís<br />

Carreira. A presença de integrantes <strong>da</strong> elite baiana nos espaços <strong>capoeira</strong>nos contribuiu, de certa<br />

maneira, para minimizar o preconceito social que as classes dominantes de Salvador tinham <strong>em</strong><br />

relação à maioria <strong>da</strong>s manifestações vincula<strong>da</strong>s à chama<strong>da</strong> “cultura negra”.<br />

37


incr<strong>em</strong>ento <strong>da</strong> eficiência, <strong>em</strong> oposição ao que ele chamou de “ética <strong>da</strong><br />

malandrag<strong>em</strong>”, subjacente à Capoeira Angola.<br />

Mestre Bimba (Manoel dos Reis Machado) nasceu <strong>em</strong> 23 de nov<strong>em</strong>bro de<br />

1899, <strong>em</strong> Salvador, era filho de Maria Martinho do Bonfim e Luiz Cândido Machado.<br />

Foi iniciado na <strong>capoeira</strong> aos doze anos, pelo africano Bentinho, capitão <strong>da</strong><br />

Companhia de Navegação Baiana. Foi exímio praticante de batuque, uma luta<br />

conheci<strong>da</strong> do seu pai (hoje inexistente como tradição isola<strong>da</strong>), que consistia <strong>em</strong><br />

derrubar o adversário com o uso de golpes de perna, como rasteiras e joelha<strong>da</strong>s.<br />

Segundo Rego (1968), Bimba criou a Regional sob o argumento de que a <strong>capoeira</strong><br />

dos “outros” estava muito fraca e se restringindo a apenas uma brincadeira. “Em<br />

1928 eu criei, completa, a Regional, que é o batuque misturado com a Angola, com<br />

mais golpes, uma ver<strong>da</strong>deira luta, boa para o físico e para a mente” (MESTRE<br />

BIMBA apud ALMEIDA, 1994, p. 17).<br />

A terminologia acadêmica, que inclui vocábulos como formatura, diploma,<br />

paraninfo e padrinho, é uma <strong>da</strong>s principais características <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> de Mestre<br />

Bimba. Segundo Ângelo Decanio, médico e ex-discípulo de Bimba, a Regional teve<br />

influência "decisiva e de primeira mão" do também médico baiano, José Sirnando<br />

Lima. Para ele, Bimba “era um ver<strong>da</strong>deiro Jesus", um líder que aglutinava as<br />

vontades coletivas e propagava seus ensinamentos através de parábolas. Com seus<br />

provérbios, rech<strong>ea</strong>dos de sabedoria popular - "valente burro morre antes <strong>da</strong> hora",<br />

"qu<strong>em</strong> fica parado <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pestade é rochedo" - propagava uma ética <strong>da</strong><br />

conveniência, s<strong>em</strong> códigos preestabelecidos (SANTANA, 2001).<br />

A Capoeira Angola, tal como a Regional, também foi construí<strong>da</strong> como<br />

identi<strong>da</strong>de de projeto, a partir de um movimento de ruptura entre praticantes de<br />

<strong>capoeira</strong>, na ci<strong>da</strong>de de Salvador. Embora eles não formass<strong>em</strong> um grupo coeso e<br />

38


homogêneo, ela teve, na figura do Mestre Pastinha, um respeitável agregador de<br />

“angoleiros” de várias tendências, como Onça Preta, Bigode de Se<strong>da</strong>, Bom Nome,<br />

Juvenal Engraxate, dentre outros, que, de uma forma ou de outra, “atacaram” a<br />

Capoeira Regional acusando-a de ser “descaracteriza<strong>da</strong>” e elegeram os rituais<br />

religiosos dos caboclos e do candomblé como a “fonte” <strong>em</strong> que deveriam beber os<br />

angoleiros. Ela foi “escolhi<strong>da</strong>” pela intelectuali<strong>da</strong>de baiana, como foi o caso de Jorge<br />

Amado e Edson Carneiro, como a <strong>capoeira</strong> ver<strong>da</strong>deira, a pura, a de raiz, <strong>em</strong>bora<br />

boa parte de seus “fun<strong>da</strong>mentos” práticos tenha sido cria<strong>da</strong> por mestres<br />

cont<strong>em</strong>porâneos de Pastinha, como Mestre Wald<strong>em</strong>ar e Mestre Canjiquinha.<br />

Mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha) nasceu a 5 de abril de 1889,<br />

<strong>em</strong> Salvador, era filho de José Pastinhã, um mascate espanhol, e Raimun<strong>da</strong> dos<br />

Santos, uma negra. Foi iniciado na <strong>capoeira</strong> aos dez anos de i<strong>da</strong>de pelo africano<br />

Benedito, natural de Angola. Aos doze anos de i<strong>da</strong>de, entrou para a Escola de<br />

aprendizes de Marinheiro onde permaneceu até os vinte anos. Ficou “afastado” <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> de 1920 a 1940, quando retomou a sua prática e foi convi<strong>da</strong>do pelo Mestre<br />

Amorzinho para assumir o Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA) 29 , <strong>em</strong><br />

1941, e tomando para si o papel de representante máximo <strong>da</strong> Capoeira Angola.<br />

Nas suas ações de “organizador” desta nova vertente, Pastinha buscou<br />

seletivamente, na tradição antiga, alguns conceitos que a <strong>em</strong>olduraram, como os de<br />

mandinga, malícia, brincadeira, religiosi<strong>da</strong>de, que passaram a ser assumidos como<br />

componentes <strong>da</strong> tradição <strong>da</strong> Angola. Rompeu com as ro<strong>da</strong>s violentas do passado<br />

29 Segundo Mestre Noronha, o CECA foi fun<strong>da</strong>do na Ladeira de Pedra, bairro <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong>de, sendo<br />

seus “proprietários” Amorzinho, Totonho de Maré, Livino e ele próprio. Com a morte de Amorzinho, a<br />

direção do Centro foi entregue a Mestre Pastinha (COUTINHO, 1993). Esse fato ocorreu <strong>em</strong> 23 de<br />

fevereiro de 1941, segundo os manuscritos de Mestre Pastinha que, a propósito, escreveu: “Fui a<br />

esse locar como prometera a Aberrêr, e com suspresa o Snr. Armósinho dono <strong>da</strong> quela <strong>capoeira</strong>,<br />

apertando-me a mão disse-me: Há muito que o esperava para lhe entregar esta <strong>capoeira</strong> para o<br />

senhor: mestrar. Eu ain<strong>da</strong> tentei me esquivar disculpando, porém, toumando a palavra o Snr. Antonio<br />

Maré: disse-me; não há jeito, não Pastinha, é você mesmo qu<strong>em</strong> vai mestrar isso a qui. Como os<br />

camara<strong>da</strong>s dero-me o seu apoio, aceito” (sic) (apud DECANIO FILHO, 1996, p. 15).<br />

39


que, para ele, serviam para a “promoção do horror”. Chamou a atenção para a<br />

importância do ritmo, do ritual e do lúdico. Sist<strong>em</strong>atizou expedientes para entra<strong>da</strong> e<br />

saí<strong>da</strong> de <strong>jogo</strong>, “chama<strong>da</strong>s” 30 e organizações de ro<strong>da</strong>. “Para ele, a <strong>capoeira</strong> teria que<br />

ser dosa<strong>da</strong>, d<strong>em</strong>onstra<strong>da</strong>, manti<strong>da</strong> <strong>em</strong> seus segredos” (PIRES, 2002, p. 84).<br />

É fato que exist<strong>em</strong> opiniões que colocam a Capoeira Angola e a Regional<br />

<strong>em</strong> pólos diametralmente opostos, como pod<strong>em</strong>os verificar na análise do historiador<br />

Edison Carneiro, quando, <strong>em</strong> 1937, disse que<br />

O <strong>capoeira</strong> Bimba, virtuoso do berimbau, tornou-se famoso dede que,<br />

nos anos 30, criou uma escola <strong>em</strong> que t<strong>em</strong> treinado atletas no que<br />

apelidou de luta regional baiana, mistura de <strong>capoeira</strong> com jiu-jitsu, box e<br />

catch. A <strong>capoeira</strong> popular, folclórica, legado de Angola, pouco, quase<br />

na<strong>da</strong> t<strong>em</strong> a ver com a escola de Bimba (CARNEIRO, 1977, p. 14).<br />

Se para Mestre Bimba, a <strong>capoeira</strong> surgiu na região do Recôncavo Baiano,<br />

<strong>da</strong>í Regional, portanto, brasileira, para Mestre Pastinha, ela teria sua orig<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

Angola, a partir de uma <strong>da</strong>nça-luta de iniciação sexual chama<strong>da</strong> N’golo, portanto,<br />

africana. A partir dessas diferentes visões de seus principais líderes acerca <strong>da</strong><br />

orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, perfilam outras tantas tentativas de cisão que d<strong>em</strong>arcaram<br />

profun<strong>da</strong>mente os códigos simbólicos de uma e de outra.<br />

Para Mestre Decanio, entretanto, os dois estilos mais consagrados <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> se compl<strong>em</strong>entam. Para ele, a Capoeira Angola (a dos outros) pode ter um<br />

apelo forte à tradição, que se traduz <strong>em</strong> africani<strong>da</strong>de, religiosi<strong>da</strong>de, mandinga etc,<br />

mas a Regional (a dele) t<strong>em</strong> um apelo maior à eficiência corporal, que se traduz <strong>em</strong><br />

performance, racionali<strong>da</strong>de, marciali<strong>da</strong>de. Para suavizar a oposição que engendra<br />

essas construções, principalmente <strong>em</strong> Salvador, Mestre Decanio certa feita afirmou,<br />

30 A chama<strong>da</strong> é um dos rituais mais característicos <strong>da</strong> Capoeira Angola e consiste, sinteticamente,<br />

<strong>em</strong> um momento do <strong>jogo</strong> <strong>em</strong> que um <strong>capoeira</strong> pára <strong>em</strong> pé, de frente ou de costas para o outro<br />

jogador, com os braços abertos. O outro jogador deve “responder” à chama<strong>da</strong> aproximando-se,<br />

cui<strong>da</strong>dosamente, para não ser surpreendido porque o <strong>capoeira</strong> que chama poderá aplicar o golpe<br />

que desejar, caso o outro se aproxime s<strong>em</strong> o devido cui<strong>da</strong>do. Ao se encontrar<strong>em</strong>, ambos faz<strong>em</strong><br />

deslocamentos sinuosos e matreiros para frente e para trás.<br />

40


numa entrevista, <strong>em</strong> tom de conciliação que: “As duas isola<strong>da</strong>s não prestam. Uma<br />

completa a outra" (apud SANTANA, 2001, p. 5).<br />

O debate/<strong>em</strong>bate Capoeira Angola/Capoeira Regional t<strong>em</strong> contribuído<br />

significativamente para a afirmação de processos identitários no contexto<br />

<strong>capoeira</strong>no. Esse <strong>em</strong>bate se deu, inclusive, com os “angoleiros” disputando com os<br />

“regionais” o lugar de representantes <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> nos ringues, como aconteceu <strong>em</strong><br />

25 de março de 1936, no Stadium do Parque Odeon, <strong>em</strong> Salvador. De um lado,<br />

Juvenal Nascimento x Francisco Salles representaram a Capoeira Angola e, de<br />

outro, Manoel Rosendo x Delfino Telles, a Regional (PIRES, 2002).<br />

O processo de afirmação identitária <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> s<strong>em</strong>pre envolveu<br />

disputas internas no contexto tanto de “angoleiros” como de “regionais”, b<strong>em</strong> como<br />

entre essas duas consagra<strong>da</strong>s vertentes, d<strong>em</strong>onstrando a complexi<strong>da</strong>de e as<br />

contradições <strong>da</strong>s relações sociais, mesmo no âmbito de uma única manifestação<br />

cultural.<br />

O que alimenta esse debate são questões de natureza estética,<br />

ritualística, simbólica e, a depender <strong>da</strong> região ele se torna mais ou menos aguerrido.<br />

Muito raramente, ele gravita <strong>em</strong> torno de discussões e/ou ações volta<strong>da</strong>s para as<br />

condições materiais de vi<strong>da</strong>, processos de dominação cultural, ou aspectos<br />

marca<strong>da</strong>mente políticos, como a clássica luta de classes.<br />

Atualmente, vêm surgindo outros que ampliam os processos de<br />

construções identitárias, mas é ver<strong>da</strong>de que ele <strong>em</strong>placou uma distinção marcante<br />

no movimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>. Os seguidores <strong>da</strong> Angola relutam <strong>em</strong> defender seu estilo<br />

de <strong>capoeira</strong> como o mais “tradicional”, desvinculado dos códigos “esportivizantes” e<br />

“hierarquizantes” que caracterizariam a Capoeira Regional. Contraditoriamente, <strong>em</strong><br />

uma <strong>da</strong>s obras deixa<strong>da</strong> pelo Mestre Pastinha, produzi<strong>da</strong> <strong>em</strong> 1964, pod<strong>em</strong>os<br />

41


encontrar diversas expressões que r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> a Capoeira Angola para uma<br />

configuração esportiva como, por ex<strong>em</strong>plo, na passag<strong>em</strong> a seguir: “a tendência<br />

atual é considerar a Capoeira Angola como a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de nacional de luta o que,<br />

honrosamente, a coloca <strong>em</strong> posição privilegia<strong>da</strong>, valendo como uma consagração<br />

definitiva desta mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de esportiva” (PASTINHA, 1968, p. 30). Noutra passag<strong>em</strong><br />

identificamos: “É bastante elevado o número de pessoas cuja i<strong>da</strong>de ultrapassa os 60<br />

anos, que praticam desde a juventude êste admirável esporte, possuindo uma<br />

agili<strong>da</strong>de e flexibili<strong>da</strong>de de articulações que impressionam (sic)” (ibid., p. 33). Mestre<br />

Pastinha uniformizou 31 e estruturou hierarquicamente o seu Centro Esportivo de<br />

Capoeira Angola ao adotar a figura do mestre de campo, mestre de canto, mestre<br />

de bateria, mestre de treinos, arquivista, mestre fiscal, contramestre e a do juiz<br />

(DECANIO FILHO, 1996). Evident<strong>em</strong>ente, pelas suas ações concretas, Pastinha<br />

tinha uma noção de “esporte” b<strong>em</strong> original, contrastante com os códigos que<br />

caracterizam o esporte de rendimento, que se tornou heg<strong>em</strong>ônico no mundo inteiro.<br />

O fato é que as disputas por espaços e poder levam os praticantes <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> a d<strong>em</strong>arcar<strong>em</strong> uma oposição nesse “pequeno mundo”. Freqüent<strong>em</strong>ente,<br />

os opositores <strong>da</strong> Capoeira Angola (os <strong>da</strong> Regional e outras correntes) identificam-na<br />

com um <strong>jogo</strong> de chão, muito devagar e pouco eficaz para a luta. Alegam que os<br />

angoleiros, ao fun<strong>da</strong>r<strong>em</strong> suas acad<strong>em</strong>ias, copiaram o Mestre Bimba, mas jamais<br />

conseguiram angariar o prestígio dele. Há pouco t<strong>em</strong>po atrás se dizia até que a<br />

Capoeira Angola estaria <strong>em</strong> franca decadência, tendendo à extinção. Os angoleiros,<br />

ao contrário, geralmente argumentam que a Capoeira Angola seria a "autêntica"<br />

<strong>capoeira</strong>, ou seja, a “<strong>capoeira</strong> mãe”, porque ela seria a continuação <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong><br />

baiana tradicional, e que não teria sofrido transformações significativas. Talvez, por<br />

31 As cores do uniforme <strong>da</strong> acad<strong>em</strong>ia de Pastinha, que consistia <strong>em</strong> calça preta e camisa amarela,<br />

foram inspira<strong>da</strong>s no seu time de Futebol – O Ypiranga Futebol Clube.<br />

42


isso, muitos mestres se arvoram <strong>em</strong> afirmar que a ensinam exatamente como<br />

Mestre Pastinha, “s<strong>em</strong> tirar, n<strong>em</strong> pôr” na<strong>da</strong> que descaracterize sua "essência".<br />

Essência essa que, para alguns, significa também a sua negritude, contrariamente à<br />

<strong>capoeira</strong> Regional que teria sido “branqu<strong>ea</strong><strong>da</strong>" por Mestre Bimba. Essas<br />

constatações contraditórias evidenciam claramente a manipulação do discurso e<br />

serv<strong>em</strong> para explicitar as possibili<strong>da</strong>des de legitimação <strong>da</strong>s ações culturais a partir<br />

de visões maniqueístas. Se a Capoeira Angola é a “<strong>capoeira</strong>-mãe”, ela é filha de<br />

muitos pais, e t<strong>em</strong> muitos tios, como já destacamos no primeiro it<strong>em</strong> deste<br />

capítulo. 32<br />

Da mesma forma que se pode afirmar que entre os diversos<br />

angoleiros havia algo <strong>em</strong> comum que os identificavam como angolas,<br />

também se pode falar na angola de Wald<strong>em</strong>ar, de Cobrinha Verde, de<br />

Onça Preta, ou de outros que possuíam particulari<strong>da</strong>des por eles<br />

acrescenta<strong>da</strong>s, ou incorpora<strong>da</strong>s <strong>da</strong> cultura local/regional onde<br />

funcionavam. Aqui vale l<strong>em</strong>brar que João Grande ain<strong>da</strong> é hoje um<br />

mestre de inventos dentro <strong>da</strong> angola (ABREU, 2003, p. 59).<br />

As diferenças políticas e de ritos entre os próprios angoleiros s<strong>em</strong>pre se<br />

evidenciam, <strong>em</strong>bora haja uma heg<strong>em</strong>onia <strong>da</strong> “matriz ritual e doutrinária” <strong>da</strong><br />

acad<strong>em</strong>ia de Mestre Pastinha que, segundo Abreu (2003, p. 59), “passou a ser<br />

considera<strong>da</strong> o centro <strong>da</strong> angola e as d<strong>em</strong>ais e os outros mestres, a periferia”.<br />

A questão é muito mais complexa do que os discursos aparentam e é<br />

provável que, no concreto vivido, outros aspectos despert<strong>em</strong> mais interesses nos<br />

<strong>capoeira</strong>s do que procurar ser fiel a um ou a outro estilo. O recente livro “Bimba,<br />

Pastinha e Besouro de Mangangá”, publicado por Pires (2002), revela, de forma<br />

brilhante e esclarecedora, as contradições e os <strong>em</strong>bates presentes nas propostas<br />

de “invenção” <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong>, e nos alerta, referenciando Jorge<br />

Amado, para a importância de “l<strong>em</strong>brarmos dos nossos líderes com alegria, pois<br />

32 Análises desse debate já estão fartamente disponíveis na literatura acadêmica e não acadêmica.<br />

Para ver mais: Abreu (1999, 2003); Pires (2001, 2002); Rego (1968); Vieira (1995, 1999); Reis<br />

(1993); Moura (1993).<br />

43


seus legados culturais representam a felici<strong>da</strong>de de milhares de pessoas, que nos<br />

dias de hoje, buscam na prática <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> a tranqüili<strong>da</strong>de para enfrentar as<br />

dificul<strong>da</strong>des cotidianas” (PIRES, 2002, p.95-96).<br />

Talvez, pela dificul<strong>da</strong>de de cultivar fielmente os códigos e preceitos<br />

“ver<strong>da</strong>deiros” de uma e/ou de outra vertente de <strong>capoeira</strong>, expressiva leva de líderes<br />

de grupos v<strong>em</strong> se autodenominando praticante de “<strong>capoeira</strong> cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong>” -<br />

expressão que incorpora referências <strong>da</strong>s duas escolas clássicas e ain<strong>da</strong> permite<br />

uma abertura às novas possibili<strong>da</strong>des. O segmento praticante <strong>da</strong> Capoeira<br />

Cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong>, convém esclarecer, já se tornou predominante no contexto <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> mundial. 33<br />

Muitas polêmicas gravitam <strong>em</strong> torno desse conceito, “<strong>capoeira</strong><br />

cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong>”. Será que é mesmo possível falar de uma <strong>capoeira</strong><br />

cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong>, ou de aspectos <strong>da</strong> cont<strong>em</strong>poranei<strong>da</strong>de na <strong>capoeira</strong>?<br />

É importante considerar que os discursos e teorias s<strong>em</strong>pre estão situados<br />

no âmbito de um <strong>jogo</strong> político que v<strong>em</strong> mostrando claramente a insustentabili<strong>da</strong>de<br />

de posturas puristas, classificatórias, no contexto <strong>da</strong>s manifestações culturais. É<br />

preciso compreender que os cruzamentos sócio-culturais, <strong>em</strong> que o tradicional, o<br />

moderno, o popular e o erudito, muitas vezes vistos de forma hierarquiza<strong>da</strong> e<br />

compartimentaliza<strong>da</strong>, se misturam e consoli<strong>da</strong>m um complexo processo que v<strong>em</strong><br />

sendo chamado de “hibri<strong>da</strong>ção cultural”.<br />

O antropólogo mexicano, Néstor García Canclini, chama a atenção para<br />

a preferência deste termo (hibri<strong>da</strong>ção) <strong>em</strong> detrimento de sincretismo, mestiçag<strong>em</strong><br />

e outros, pelo fato de ele abranger<br />

33 Uma interessante cantiga, que v<strong>em</strong> sendo canta<strong>da</strong> nas ro<strong>da</strong>s atualmente, constitui uma diverti<strong>da</strong><br />

resposta dos <strong>capoeira</strong>s “cont<strong>em</strong>porâneos” aos mestres angoleiros que defend<strong>em</strong> a Angola somente<br />

para os angoleiros. “Eu <strong>jogo</strong>, mas eu não sou /Angoleiro; Eu toco, mas eu não sou/Angoleiro; Pratico,<br />

mas não sou / Angoleiro; eu brinco, mas não sou / Angoleiro; Sou lúdico, mas não sou / Angoleiro...”.<br />

44


diversas mesclas interculturais não apenas as raciais, às quais<br />

costuma limitar-se o termo ‘mestiçag<strong>em</strong>’ – e porque permite incluir<br />

as formas modernas de hibri<strong>da</strong>ção melhor do que ‘sincretismo’,<br />

fórmula que se refere quase s<strong>em</strong>pre a fusões religiosas ou de<br />

movimentos simbólicos tradicionais (CANCLINI, 1997, p 19).<br />

O movimento concreto de desenvolvimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong><br />

d<strong>em</strong>onstrando que, a despeito de barreiras políticas e econômicas, seus praticantes,<br />

através de suas práticas significativas, destro<strong>em</strong> fronteiras simbólicas e identitárias<br />

e edificam um mundo onde, simbolicamente, tudo são margens, no qual não há<br />

centro, n<strong>em</strong> apenas duas referências.<br />

A pesquisa de mestrado r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> por Castro Júnior <strong>em</strong> 2002, que trata do<br />

cruzamento de olhares de velhos mestres e de professores de Educação Física <strong>em</strong><br />

relação à <strong>capoeira</strong>, explicita esse processo de hibri<strong>da</strong>ção, quando nos diz que:<br />

A <strong>capoeira</strong> é uma célula cultural presente num contexto histórico e<br />

social e no “<strong>jogo</strong> de dentro e de fora” são visualizados os el<strong>em</strong>entos<br />

<strong>da</strong> historici<strong>da</strong>de, culminando <strong>em</strong> uma visão de totali<strong>da</strong>de, e os<br />

el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong> ancestrali<strong>da</strong>de, culminando <strong>em</strong> uma cosmovisão. É na<br />

ro<strong>da</strong>, portanto, que se descobre a hibri<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s duas. Embora se<br />

reconheça que ca<strong>da</strong> uma delas trabalha com lógicas diferentes, por<br />

outro lado, não se pode valorizar a primazia de uma <strong>em</strong> detrimento <strong>da</strong><br />

outra, pois foram os sujeitos <strong>da</strong> pesquisa que revelaram o<br />

entendimento <strong>da</strong> relação entre elas (CASTRO JÚNIOR, 2004, p. 144).<br />

Esta r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de aponta que a <strong>capoeira</strong>, na cont<strong>em</strong>poranei<strong>da</strong>de, incorpora<br />

diversos fluxos, e esses deslocamentos obrigam a um respeito mútuo diante <strong>da</strong>s<br />

ver<strong>da</strong>des igualmente váli<strong>da</strong>s dos professores, mestres e grupos <strong>em</strong> relação, e nos<br />

leva a considerar que eles promov<strong>em</strong> re-significações culturais que fog<strong>em</strong> ao<br />

controle dos indivíduos, <strong>em</strong> particular, e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, os força a se inserir<strong>em</strong><br />

<strong>em</strong> suas redes.<br />

Em geral, o mestre exerce influência notável nesse processo à medi<strong>da</strong><br />

que agrega seguidores a partir de sua biografia própria e <strong>da</strong> “linhag<strong>em</strong>” a qual se diz<br />

fielmente vinculado. Com isso, ele contribui para a <strong>construção</strong> de redes de amizades<br />

e também de inimizades, muitas vezes difíceis de ser<strong>em</strong> decifra<strong>da</strong>s. Algumas<br />

45


gen<strong>ea</strong>logias (linhagens) consegu<strong>em</strong> maior prestígio na mídia e terminam<br />

conquistando números ca<strong>da</strong> vez mais expressivos de adeptos.<br />

A <strong>capoeira</strong>, na cont<strong>em</strong>poranei<strong>da</strong>de, v<strong>em</strong> adquirindo/conquistando novas<br />

roupagens, incr<strong>em</strong>enta<strong>da</strong>s pelo consumo e pelos diversos mecanismos de<br />

divulgação e circulação de mercadorias. Esse trânsito do nativo ao metropolitano,<br />

e vice-versa, transforma ca<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> praticante <strong>em</strong> um mosaico de códigos<br />

indecifráveis, dissolvendo identi<strong>da</strong>des estáveis e criando produtores de<br />

identi<strong>da</strong>des múltiplas. Isso pode ser facilmente verificado no próprio movimento<br />

dos grupos de <strong>capoeira</strong>. Estes vêm d<strong>em</strong>onstrando que, a despeito de cultivar<strong>em</strong><br />

a “mesma” <strong>capoeira</strong>, produz<strong>em</strong> “múltiplas” <strong>capoeira</strong>s, evidenciando, assim, que<br />

identi<strong>da</strong>de não é uma enti<strong>da</strong>de absoluta, uma essência que faça sentido <strong>em</strong> si<br />

mesma de forma isola<strong>da</strong>. A chama<strong>da</strong> “crise de identi<strong>da</strong>de”, presente também nos<br />

grupos de <strong>capoeira</strong>, está abalando os quadros de referência que <strong>da</strong>vam uma<br />

ancorag<strong>em</strong> estável no mundo social. “Há s<strong>em</strong>pre uma quali<strong>da</strong>de fugidia e<br />

contingente na identi<strong>da</strong>de” (MCLAREN, 2000, p. 22). As velhas identi<strong>da</strong>des, com<br />

relações compactas, “que por tanto t<strong>em</strong>po estabilizaram o mundo social, estão <strong>em</strong><br />

declínio, fazendo surgir novas identi<strong>da</strong>des e fragmentando o ser humano<br />

cont<strong>em</strong>porâneo até aqui visto como um sujeito unificado” (HALL, 2001, p. 7).<br />

O conjunto de características que define a identi<strong>da</strong>de de um grupo social é<br />

inseparável <strong>da</strong>quelas características que o faz diferente dos outros grupos. Portanto,<br />

aquilo que um grupo efetivamente é está irr<strong>em</strong>ediavelmente vinculado àquilo que ele<br />

não é. Ou seja, identi<strong>da</strong>de e diferença são processos inseparáveis. Silva (1999, p.<br />

47) destaca que “aquilo que um grupo t<strong>em</strong> <strong>em</strong> comum é resultado de um processo<br />

de criação de símbolos, de imagens, de m<strong>em</strong>órias, de narrativas, de mitos que<br />

‘cimentam’ a uni<strong>da</strong>de de um grupo, que defin<strong>em</strong> sua identi<strong>da</strong>de”. Portanto, esta<br />

46


identi<strong>da</strong>de não existe naturalmente. Ela não está impressa <strong>em</strong> nossos genes, não é<br />

fixa e n<strong>em</strong> é estável; ela é construí<strong>da</strong> pelo próprio grupo e também por outros, e são<br />

as relações de poder que lhes confer<strong>em</strong> um caráter ativo e produtivo. Sendo assim,<br />

a <strong>construção</strong> de identi<strong>da</strong>des se efetiva através de um <strong>jogo</strong> político complexo que vai<br />

hierarquizando e definindo processos identitários abertos, contraditórios,<br />

fragmentados e inacabados. O processo de mundialização <strong>da</strong> cultura v<strong>em</strong><br />

contribuindo para um certo descentramento <strong>da</strong>s identi<strong>da</strong>des modernas, seja<br />

deslocando-as, seja fragmentando-as. A identi<strong>da</strong>de dominante opera como uma<br />

norma invisível que regula to<strong>da</strong>s as outras, d<strong>em</strong>arcando-as como desvios <strong>da</strong><br />

normali<strong>da</strong>de. Segundo Silva (1999, p. 49):<br />

numa socie<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que o regime dominante de representação<br />

privilegia a cor branca, a desonesti<strong>da</strong>de de uma pessoa branca é<br />

apenas isso: a desonesti<strong>da</strong>de de uma pessoa ‘normal’. Em troca, a<br />

desonesti<strong>da</strong>de de uma pessoa negra só pode representar a inclinação<br />

natural de to<strong>da</strong>s as pessoas negras à desonesti<strong>da</strong>de.<br />

A <strong>capoeira</strong> na cont<strong>em</strong>poranei<strong>da</strong>de se caracteriza pelo complexo processo<br />

de criação de símbolos, de imagens, de m<strong>em</strong>órias, de narrativas, de mitos,<br />

seguramente contraditórios, fragmentados e inacabados. Se for possível falar de<br />

uma “<strong>capoeira</strong> cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong>”, seriam esses os traços desta. Os seus significados<br />

são tantos quanto as experiências contextuais vivi<strong>da</strong>s cotidianamente pelos<br />

diferentes grupos a partir do mais diferentes objetivos. Por isso, ela é múltipla e é<br />

nessa multiplici<strong>da</strong>de que vamos encontrar a força dos seus “fun<strong>da</strong>mentos”.<br />

A “<strong>capoeira</strong> cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong>”, se é que é possível falar dessa forma,<br />

constitui-se num amálgama que mistura o formal e o informal, o sagrado e o<br />

profano, o científico e o senso comum, o erudito e o popular, o coletivo e o<br />

individual, a tradição e a moderni<strong>da</strong>de. Não porque se trata de um novo “estilo” de<br />

<strong>capoeira</strong>. Trata-se de uma nova forma de conceber e r<strong>ea</strong>lizar os seus fun<strong>da</strong>mentos.<br />

47


E essa nova forma está amarra<strong>da</strong> às condições materiais existentes e é<br />

condiciona<strong>da</strong> pelo tipo de socie<strong>da</strong>de na qual está inseri<strong>da</strong> e pelas normas <strong>da</strong><br />

organização social a qual pertence.<br />

É possível, sim, falar de uma “<strong>capoeira</strong> cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong>” e esta não se<br />

constitui numa oposição à Capoeira Angola ou à Capoeira Regional, n<strong>em</strong> tampouco<br />

numa negação ou superação de ambas, ou de outros supostos estilos. É possível<br />

dizer que a Regional e a Angola também se inser<strong>em</strong>, irr<strong>em</strong>ediavelmente, nessa<br />

trama cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong>. Seus adeptos selecionam e eleg<strong>em</strong>, não de forma<br />

harmônica, mas s<strong>em</strong>pre conflituosa, alguns fragmentos e não outros e, como<br />

assevera Travassos (1999, p. 264), “numa espécie de ‘bricolage mn<strong>em</strong>ônica’,<br />

inventam, ca<strong>da</strong> qual, a sua <strong>capoeira</strong>”.<br />

O fato é que exist<strong>em</strong>, indistintamente, grupos de Capoeira Angola,<br />

Capoeira Regional e ain<strong>da</strong> outros que não se filiam a essas escolas de forma<br />

unívoca, cultivando diferentes políticas e ritos entre si, e o reconhecimento dessas<br />

diferenças constitui uma forma de valorização desses diferentes patrimônios<br />

culturais que enriquec<strong>em</strong> e dão “vi<strong>da</strong>” ao cotidiano de muitas pessoas e instituições.<br />

Nesse <strong>em</strong>aranhado, alguns conceitos como “cultura popular” e “cultura de<br />

resistência” são insuficientes para explicar suas complexas materiali<strong>da</strong>des.<br />

1.4. A Capoeira no Contexto <strong>da</strong> Reestruturação Produtiva e <strong>da</strong> Mundialização<br />

do Capital<br />

48<br />

Sou negro forte, <strong>da</strong> periferia<br />

meu tataravô foi escravo<br />

e eu sou escravo hoje <strong>em</strong> dia...<br />

(Mestre Toni Vargas)<br />

Convictos <strong>da</strong> inextrincável articulação <strong>da</strong>s ações dos sujeitos com a<br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social <strong>em</strong> que estão inseridos, consideramos imprescindível probl<strong>em</strong>atizar,


neste estudo, um <strong>jogo</strong> b<strong>em</strong> mais amplo que o <strong>jogo</strong> efetuado numa ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>,<br />

mas que nele imprime subliminarmente seus mais poderosos códigos. Trata-se <strong>da</strong><br />

inserção <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no processo de reestruturação do capitalismo e mundialização<br />

do capital. Como irmãos siameses, esses processos (<strong>jogo</strong>s) sintonizam a redução <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> útil <strong>da</strong>s mercadorias com o dramático descarte de milhões de seres humanos. A<br />

crise estrutural que assola esses processos (capitalismo transnacional e seu braço<br />

operacional – o neoliberalismo) v<strong>em</strong> <strong>em</strong>placando irreversível destrutivi<strong>da</strong>de, como<br />

d<strong>em</strong>onstram as condições de vi<strong>da</strong> ca<strong>da</strong> vez mais deteriora<strong>da</strong>s de significativa<br />

parcela <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, com tendência já visível a uma total destruição, apesar de<br />

convivermos com uma minoria com níveis altíssimos de b<strong>em</strong>-estar e transformações<br />

jamais vistas anteriormente. Segundo Hobsbawm (1995, p. 19):<br />

Na déca<strong>da</strong> de 1980 e início <strong>da</strong> de 1990, o mundo capitalista viu-se<br />

novamente às voltas com probl<strong>em</strong>as <strong>da</strong> época do entreguerras que a<br />

Era do Ouro parecia ter eliminado: des<strong>em</strong>prego <strong>em</strong> massa,<br />

depressões cíclicas severas, contraposição ca<strong>da</strong> vez mais espetacular<br />

de mendigos s<strong>em</strong> teto a luxo abun<strong>da</strong>nte, <strong>em</strong> meio a ren<strong>da</strong>s limita<strong>da</strong>s<br />

de Estado e despesas ilimita<strong>da</strong>s de Estado.<br />

Os reflexos desses processos incid<strong>em</strong> diretamente na formação humana<br />

no interior <strong>da</strong>s instituições educacionais e também fora delas. O enfrentamento<br />

dessa r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de exige articula<strong>da</strong>s ações que sejam capazes de reorientar o<br />

processo civilizatório e evitar, assim, um colapso mundial, à medi<strong>da</strong> que, mais do<br />

que nunca, viv<strong>em</strong>os sob o império do sist<strong>em</strong>a financeiro e <strong>da</strong> informação, que v<strong>em</strong><br />

contribuindo para o <strong>em</strong>pobrecimento crescente <strong>da</strong>s massas e para a esterilização e<br />

destruição de vi<strong>da</strong>s.<br />

O tão decantado processo de “globalização”, centrado no consumo e na<br />

reprodutibili<strong>da</strong>de técnica, contém, <strong>em</strong> seu movimento, duas tendências<br />

contraditórias. De um lado, o capitalismo transnacional (e não genuinamente<br />

multinacional) que não reconhece fronteiras nacionais e, de outro, a luta dos<br />

49


estados-nação pela soberania e a autonomia. Nesse enfrentamento, o capitalismo<br />

t<strong>em</strong> se mostrado muito mais poderoso do que qualquer projeto de estado-nação<br />

moderno. Segundo Hobsbawm (1995, p. 20), os estados-nação viram-se<br />

“esfacelados pelas forças de uma economia supranacional ou transnacional e pelas<br />

forças infranacionais de regiões e grupos étnicos secessionistas”. Aliás, hoje é<br />

impossível imaginar o Estado moderno incólume às forças do capital e este, por sua<br />

vez, se utiliza simbioticamente do Estado para se reproduzir e alastrar. De acordo<br />

com Mészáros (2002, p. 29), “o sist<strong>em</strong>a do capital é formado por el<strong>em</strong>entos<br />

inevitavelmente centrífugos (<strong>em</strong> conflito ou <strong>em</strong> oposição), compl<strong>em</strong>entados não<br />

somente pelo poder controlador <strong>da</strong> ‘mão invisível’, mas também pelas funções legais<br />

e políticas do Estado moderno”.<br />

Os estados nacionais vêm se apresentando ca<strong>da</strong> vez mais entravados,<br />

controlados, contestados, desprovidos e colocados na berlin<strong>da</strong> pelas poderosas<br />

agências priva<strong>da</strong>s, que, muito longe de ser<strong>em</strong> controla<strong>da</strong>s por eles, avançam “mais<br />

livres, mais motiva<strong>da</strong>s, mais móveis, infinitamente mais influentes (…) s<strong>em</strong><br />

preocupações eleitorais, s<strong>em</strong> responsabili<strong>da</strong>des políticas, s<strong>em</strong> controles e, b<strong>em</strong><br />

entendido, s<strong>em</strong> sentimentos ligados àqueles que elas esmagam” (FORRESTER,<br />

1997, p. 29-30).<br />

Se, antes, as <strong>em</strong>presas capitalistas tinham uma razão social e funções<br />

conheci<strong>da</strong>s, de fácil verificação, cujos proprietários, competentes ou não, tirânicos<br />

ou não, eram identificáveis, pois tudo ocorria dentro de uma mesma geografia, <strong>em</strong><br />

ritmos familiares, com claras, ain<strong>da</strong> que desastrosas, distribuições de papéis, hoje,<br />

sob o cajado <strong>da</strong> virtuali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> desregulamentação, <strong>da</strong> automação, <strong>da</strong> cibernética,<br />

<strong>da</strong>s tecnologias de ponta, elas se agrupam <strong>em</strong> redes entrelaça<strong>da</strong>s, inextrincáveis,<br />

50


extr<strong>em</strong>amente móveis, que escapam a tudo o que poderia pressioná-las, vigiá-las ou<br />

mesmo observá-las (FORRESTER, 1997).<br />

Esse movimento, jamais verificado, jamais formulado, ain<strong>da</strong> que<br />

subliminarmente construído ao longo dos anos pela terrivelmente longa tradição de<br />

eficaz opressão, apesar <strong>da</strong> resistência de alguns movimentos de massa,<br />

escamoteou o sentido de trabalho de outrora, sob a cantilena <strong>da</strong> flexibilização e v<strong>em</strong><br />

diss<strong>em</strong>inando, por to<strong>da</strong> parte, o ideário neoliberal que absorve quase tudo o que<br />

ain<strong>da</strong> não pertence a sua esfera, subtraindo direitos historicamente conquistados,<br />

espoliando vi<strong>da</strong>s, massacrando sonhos e promovendo insanas formas de alienação<br />

que perduram desde o berço até a sepultura, sendo a mais gritante e de efeitos mais<br />

nefastos, a alienação do trabalho.<br />

Diante <strong>da</strong>s diversas formas de alienação do trabalho impostas por essa<br />

reestruturação produtiva, leva<strong>da</strong> a efeito pelo “sist<strong>em</strong>a de sociometabolismo do<br />

capital”, advogamos, como imperativo ético-político, que não dev<strong>em</strong>os nos omitir <strong>da</strong><br />

luta contra as barbáries provoca<strong>da</strong>s por esse sist<strong>em</strong>a de uma ubiqüi<strong>da</strong>de tal que<br />

subsume to<strong>da</strong>s as forças vitais ao capital. Por isso é que as nossas próprias opções<br />

teóricas, <strong>em</strong> não sendo neutras, não dev<strong>em</strong> e não pod<strong>em</strong> ser também arbitrárias.<br />

Nesse sentido, buscamos uma sintonia com o que assevera Frigotto (1998, p. 26),<br />

quando diz que<br />

por trás <strong>da</strong>s disputas teóricas que se travam no espaço acadêmico,<br />

situa-se um <strong>em</strong>bate mais fun<strong>da</strong>mental, de caráter ético-político, que<br />

diz respeito ao papel <strong>da</strong> teoria na compreensão e transformação do<br />

modo social mediante o qual os seres humanos produz<strong>em</strong> sua<br />

existência, neste fim de século, ain<strong>da</strong> sob a égide de uma socie<strong>da</strong>de<br />

classista, vale dizer, estrutura<strong>da</strong> na extração combina<strong>da</strong> de mais-valia<br />

absoluta, relativa e extra.<br />

A compreensão clara desse processo é uma exigência fun<strong>da</strong>mental que<br />

se coloca na ord<strong>em</strong> do dia de todos aqueles que auspiciam mu<strong>da</strong>nças r<strong>ea</strong>lmente<br />

significativas para a humani<strong>da</strong>de, à medi<strong>da</strong> que o capitalismo, <strong>em</strong>bora poderoso e<br />

51


incontrolável, não é um <strong>da</strong>do eternizado, mas um processo/produto histórico<br />

desencad<strong>ea</strong>dor de uma determina<strong>da</strong> lógica (destrutiva) que, dialeticamente, gera<br />

resistências de parcelas crescentes <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, a partir dos seus distintos<br />

sujeitos e lugares, como é o caso <strong>da</strong> experiência do Movimento dos Trabalhadores<br />

S<strong>em</strong> Terra (MST), no Brasil.<br />

Viv<strong>em</strong>os sufocados por uma avalanche de postulados pós-modernos<br />

extravagantes, marca<strong>da</strong>mente fragmentados, que advoga uma naturalização<br />

fatalista do modo de produção capitalista e apregoa o “fim <strong>da</strong> história”, <strong>da</strong>s<br />

ideologias, <strong>da</strong>s utopias e <strong>da</strong> luta de classes, chegando a propagar que, conforme<br />

relata Jameson (1997, p. 11): “hoje é mais fácil imaginar a deterioração total <strong>da</strong> terra<br />

e <strong>da</strong> natureza do que o colapso do capitalismo tardio (…)”. Subliminarmente, essas<br />

construções, essencialmente ideológicas, contribu<strong>em</strong>, segundo Santos (2000), para<br />

agravar a sensação de que não nos resta um outro futuro, senão aquele que nos<br />

virá como um presente ampliado e não como outra coisa.<br />

Sab<strong>em</strong>os, entretanto, que to<strong>da</strong> ação humana institucionaliza<strong>da</strong>, ou não, é<br />

gesta<strong>da</strong> e desenvolve-se numa socie<strong>da</strong>de eiva<strong>da</strong> de contradições, conflitos e<br />

<strong>em</strong>bates divergentes que expressam o dinamismo e a atuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> luta de classes,<br />

apesar de muitos “intelectuais <strong>em</strong> retira<strong>da</strong>” apregoar<strong>em</strong> o consenso como nova<br />

ord<strong>em</strong>. Talvez pudéss<strong>em</strong>os retomar e atualizar a XI tese de Marx sobre Feuerbach,<br />

quando ele alerta que os filósofos só fizeram interpretar o mundo de diferentes<br />

maneiras, trata-se, porém, de transformá-lo (MARX e ENGELS, 1989, p. 97). Se,<br />

para Marx, to<strong>da</strong> a história t<strong>em</strong> sido uma história <strong>da</strong> luta de classes, necessário se faz<br />

um entendimento profícuo de um dos princípios angulares do seu pensamento,<br />

expresso pelo fato de que a produção econômica e a estrutura social dela<br />

decorrente constitu<strong>em</strong>, <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> época, a base <strong>da</strong> história política e intelectual dessa<br />

52


época, e que a libertação dos explorados somente é possível a partir <strong>da</strong> extinção <strong>da</strong><br />

condição de exploração e de opressão que se verifica na luta de classes 34 . E, como<br />

b<strong>em</strong> probl<strong>em</strong>atiza Taffarel (1997, p. 30):<br />

Luta de classes é uma categoria explicativa histórica que nos permite<br />

reconhecer não somente uma confrontação exclusiva entre burguesia<br />

e proletariado, entre capital e trabalho, mas fun<strong>da</strong>mentalmente as<br />

alianças de grupos sociais, segmentos, coletivos políticos que, de um<br />

lado, dominam e dirig<strong>em</strong> a vi<strong>da</strong> econômica e social e, de outro, são<br />

subordinados, dirigidos, alienados social, econômica e<br />

intelectualmente.<br />

Os paladinos <strong>da</strong> “neutrali<strong>da</strong>de científica” omit<strong>em</strong> as polarizações<br />

ideológicas subjacentes às suas análises e descrições <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, entretanto, elas<br />

não são neutras, senão na aparência. O que tais análises faz<strong>em</strong>, efetivamente, é<br />

“confundir a ver<strong>da</strong>de e os critérios de ver<strong>da</strong>de do pensamento científico com o que<br />

parece ser ‘certo’ e ‘necessário’ <strong>em</strong> termos de interesses e dos valores sociais <strong>da</strong>s<br />

classes dominantes e <strong>da</strong>s elites no poder” (FERNANDES, 1968, p. 13).<br />

As rápi<strong>da</strong>s transformações que começaram a ocorrer na esfera do<br />

capitalismo cont<strong>em</strong>porâneo contribuíram para o aprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> separação entre<br />

a produção destina<strong>da</strong> ao atendimento <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des e as necessi<strong>da</strong>des de sua<br />

auto-reprodução, causando nefastas conseqüências e, quanto maior é o aumento <strong>da</strong><br />

concorrência e <strong>da</strong> competitivi<strong>da</strong>de, maiores são as degra<strong>da</strong>ções. No prefácio à<br />

edição brasileira do livro “Para além do capital”, de István Mészáros, Ricardo<br />

Antunes argumenta que duas são particularmente graves: a destruição e/ou<br />

precarização <strong>da</strong> força humana que trabalha e a destruição crescente do meio<br />

ambiente.<br />

34 As classes sociais, nas socie<strong>da</strong>des cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong>s, não são imediatamente visíveis, verificáveis.<br />

As rivali<strong>da</strong>des entre os indivíduos e a superficiali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s aparências apenas dissimulam a classe <strong>da</strong><br />

qual eles faz<strong>em</strong> parte e contribu<strong>em</strong> para paralisar a consciência de classe. Para Marx, os indivíduos<br />

apenas constitu<strong>em</strong> uma classe na sua luta comum contra outra. Esse luta lhes é imposta pelas suas<br />

condições de existência e contribui para o reconhecimento e a consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> classe <strong>em</strong> si. Ver<br />

Marx e Engels (1989).<br />

53


A assertiva de Marx (1983), bas<strong>ea</strong><strong>da</strong> no fato de que é pelo trabalho que a<br />

espécie humana se produz, v<strong>em</strong> sendo assustadoramente ressignifica<strong>da</strong> pelo<br />

ideário neoliberal. Neste início do terceiro milênio, a categoria trabalho, “deformado<br />

sob a forma perversa de <strong>em</strong>prego” (FORRESTER, 1997, p. 7), passa a assumir<br />

características completamente diferentes <strong>da</strong>quelas defendi<strong>da</strong>s por Marx, para qu<strong>em</strong><br />

o trabalho correspondia ao fazer do artífice e servia para atender às suas<br />

necessi<strong>da</strong>des humanas. O fazer era, portanto, para Marx, uma arte (tecné) e<br />

dependia do artífice. Hoje, a tecné é reconfigura<strong>da</strong> e deixa de ser arte, para ser<br />

tecnologia e a quali<strong>da</strong>de do trabalho já não mais depende do hom<strong>em</strong>, mas sim de<br />

um processo que o aliena.<br />

A primazia <strong>da</strong> tecnologia sobre o trabalho é tão marcante que ela incide<br />

sobre a própria razão operatória, desencad<strong>ea</strong>ndo um processo que v<strong>em</strong> sendo<br />

chamado de “inteligência tecnológica”, ou seja, uma razão tecnológica que passa a<br />

operar sobre o próprio pensamento, estruturando-o. Não se trata de uma relação do<br />

hom<strong>em</strong> com a máquina, ele é a própria máquina (SERPA, 2000). Segundo esse<br />

autor, trata-se de um fenômeno que está apenas começando, e as contribuições <strong>da</strong><br />

Biologia Molecular e <strong>da</strong> Física Quântica desencad<strong>ea</strong>rão processos muitos mais<br />

avançados na consoli<strong>da</strong>ção desta “tecnologia intelectual”, que, por sua vez, “não se<br />

constitui mais no locus do fazer, ela é interna ao pensar e transforma o<br />

conhecimento numa mercadoria” (SERPA, 2000).<br />

A modernização tecnológica, associa<strong>da</strong> à informatização no<br />

processamento e transmissão do conhecimento, t<strong>em</strong> exercido efeito imediato sobre<br />

a vi<strong>da</strong> social. A tecnologia, ao possibilitar o processo de reprodutibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte e<br />

<strong>da</strong> cultura, permitiu a maximização do processo de alienação, identificado por Marx<br />

desde o século XIX, que se escan<strong>da</strong>lizava com o fato de que a “paixão” que movia o<br />

54


ser humano e se exteriorizava pelo trabalho (sua força de trabalho) estava sendo<br />

negocia<strong>da</strong> no balcão como uma mercadoria ordinária (MARX, 1999).<br />

As novas tecnologias, articula<strong>da</strong>s entre si, formam ver<strong>da</strong>deiros sist<strong>em</strong>as e,<br />

segundo Santos (2000, p. 25), exerc<strong>em</strong> “um papel determinante sobre o uso do<br />

t<strong>em</strong>po, permitindo, <strong>em</strong> todos os lugares, a convergência dos momentos,<br />

assegurando a simultanei<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s ações e, por conseguinte, acelerando o processo<br />

histórico”.<br />

Embora consideramos que é a luta de classes o “motor <strong>da</strong> história”,<br />

estamos diante de uma nova condição. É a primeira vez na história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de,<br />

que o conjunto de técnicas envolve, direta ou indiretamente, o planeta, influenciando<br />

marca<strong>da</strong>mente a vi<strong>da</strong> de todos os seres humanos. “É a partir <strong>da</strong> unici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

técnicas, <strong>da</strong> qual o computador é a peça central, que surge a possibili<strong>da</strong>de de existir<br />

uma finança universal, principal responsável pela imposição a todo o globo de uma<br />

mais-valia mundial” (SANTOS, 2000, p. 27).<br />

Essa convergência dos momentos, torna<strong>da</strong> possível pelo desenvolvimento<br />

tecnológico, diga-se, subordinado ao poder econômico, v<strong>em</strong> revelando, segundo o<br />

referido autor, três tendências: “1. Uma produção acelera<strong>da</strong> e artificial de<br />

necessi<strong>da</strong>des; 2. Uma incorporação limita<strong>da</strong> de modos de vi<strong>da</strong> ditos racionais; 3.<br />

Uma produção ilimita<strong>da</strong> de carência e escassez” (op. cit. p. 129).<br />

Essa escassez t<strong>em</strong> aumentado assustadoramente e, nesse início do<br />

terceiro milênio, cerca de 3 bilhões de seres humanos viv<strong>em</strong> no planeta Terra com<br />

menos de US$ 2,00 (dois dólares) por dia. E o legado desta exploração recai de<br />

forma dramática sobre os países pobres, que têm de pagar juros altíssimos de suas<br />

intermináveis e cumulativas dívi<strong>da</strong>s. Essa relação de exploração pode ser figurativa<br />

e ironicamente compara<strong>da</strong> com uma transfusão de sangue do doente para o<br />

55


saudável. Segundo McLaren (2000, p. 14) “o capitalismo tornou a ética obsoleta (...)<br />

a guerra contra a pobreza deu lugar à guerra contra suas vítimas”.<br />

O sist<strong>em</strong>a capitalista t<strong>em</strong> uma lógica de expansão que se consoli<strong>da</strong> pela<br />

tendência à destruição violenta de grande quanti<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s forças produtivas. Essa<br />

lógica já foi claramente anuncia<strong>da</strong> há 150 anos, por Marx e Engels, no “Manifesto<br />

Comunista”: “A necessi<strong>da</strong>de de um mercado <strong>em</strong> expansão constante persegue a<br />

burguesia por to<strong>da</strong> a superfície do globo. Precisa instalar-se <strong>em</strong> todos os lugares,<br />

acomo<strong>da</strong>r-se <strong>em</strong> todos os lugares, estabelecer conexões <strong>em</strong> todos os lugares”<br />

(MARX e ENGELS, 1998, p. 14).<br />

Nesse movimento, os seus arautos defensores tentam fals<strong>ea</strong>r e<br />

escamot<strong>ea</strong>r o potencial destruidor inserido <strong>em</strong> suas próprias entranhas. O<br />

capitalismo expansionista e destrutivo visa não apenas dominar a natureza, mas<br />

explorar exaustivamente todos os seus recursos. Nesse sentido, ele é claramente<br />

incompatível com a vi<strong>da</strong>. Ele é o arquiinimigo <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, do futuro,<br />

juntamente com a cultura que o acompanha, e esta t<strong>em</strong>, como mola de seu<br />

dinamismo, a concorrência de todos contra todos. Efetivamente, a humani<strong>da</strong>de se<br />

encontra diante de uma situação inédita. Deve decidir se quer continuar a viver ou<br />

se escolhe sua própria destruição. O risco não v<strong>em</strong> de alguma am<strong>ea</strong>ça cósmica,<br />

mas <strong>da</strong> própria ativi<strong>da</strong>de humana. Pela primeira vez, o hom<strong>em</strong> se deu os<br />

instrumentos de sua própria destruição.<br />

Um grupo de analistas, <strong>em</strong> livro organizado por Sader (2000), explicitou,<br />

de forma dramática, os “sete pecados do capital”. A exploração, bas<strong>ea</strong><strong>da</strong> no fato de<br />

nos valermos <strong>da</strong> ação de outra pessoa para benefício próprio, constitui-se num<br />

desses grandes “pecados capitais” do sist<strong>em</strong>a <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong>os. Através <strong>da</strong><br />

exploração estamos não apenas nos beneficiando, mas também oprimindo outro ser<br />

56


humano, fazendo dele um objeto para nossa satisfação, quando não o descartamos<br />

completamente. Um outro pecado do capital é a fome, que age, não apenas sobre<br />

os corpos <strong>da</strong>s vítimas, mas, também, sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta<br />

moral. Nenhuma calami<strong>da</strong>de pode desagregar a personali<strong>da</strong>de humana tão<br />

profun<strong>da</strong>mente e num sentido tão perverso quanto a fome.<br />

Dentre tantos outros pecados do capital, um se destaca no Brasil - o<br />

latifúndio. Segundo Stédile (2000), o grau de concentração de terras no Brasil é uma<br />

afronta a qualquer d<strong>em</strong>ocracia, pois apenas 1% dos 4,8 milhões de<br />

estabelecimentos rurais detém quase a metade de to<strong>da</strong>s a terras legaliza<strong>da</strong>s no<br />

Brasil. Trocando <strong>em</strong> miúdos, apenas 40 mil grandes proprietários controlam mais de<br />

400 milhões de hectares, o que significa uma média de 10 mil hectares por família.<br />

Diante desse quadro, fica impossível não reconhecer tendências<br />

destrutivas que se acentuam não só no campo econômico, mas, também, no plano<br />

do pensamento, <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> cultura, <strong>da</strong> ética e <strong>da</strong> política. Essa crise não é<br />

cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong>, ela se instaura desde o surgimento do processo civilizatório<br />

europeu, que reluta <strong>em</strong> ser heg<strong>em</strong>ônico, cujas bases estão centra<strong>da</strong>s num id<strong>ea</strong>l<br />

burguês de hom<strong>em</strong> só, aventureiro, guerreiro, egocentrado, acumulador de dinheiro<br />

(self made man), que ignora o valor <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> comunal, que não cultiva referências de<br />

sua ancestrali<strong>da</strong>de e procura ignorar a sua morte, projetando-a no outro, matando-o<br />

(LUZ, 2000).<br />

Nos últimos anos, verifica-se o desencad<strong>ea</strong>mento de uma crise de<br />

paradigmas, onde as tentativas de solução se fragmentam <strong>da</strong>ndo lugar a uma série<br />

de modismos teóricos ecléticos e estéreis que tentam explicar a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>r<br />

respostas aos desafios colocados pela manutenção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, s<strong>em</strong> se levar <strong>em</strong> conta<br />

seus nexos e seus determinantes históricos. A esse respeito, Kopnin (1978) destaca<br />

57


que “explicação” é o descobrimento não só <strong>da</strong>s causas - pois a causali<strong>da</strong>de é<br />

apenas uma partícula <strong>da</strong> conexão universal, mas também <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong>s relações <strong>em</strong><br />

geral. Em outras palavras:<br />

Inser<strong>em</strong>-se na teoria várias teses que expressam relações de lei.<br />

Além do mais, essas teses estão unifica<strong>da</strong>s por um princípio geral,<br />

que reflete a lei fun<strong>da</strong>mental de um <strong>da</strong>do objeto (ou conjunto de<br />

fenômenos). Não havendo princípio geral unificador, então, por maior<br />

que seja, nenhum conjunto de teses científicas que reflet<strong>em</strong> as<br />

relações de lei constitui uma teoria científica. É esse princípio que<br />

des<strong>em</strong>penha a função sintetizante fun<strong>da</strong>mental na teoria, que<br />

relaciona num todo único to<strong>da</strong>s as teses que a integram (descrev<strong>em</strong> e<br />

explicam) (KOPNIN, 1978, p. 238).<br />

Urge, portanto, a necessi<strong>da</strong>de de entendermos a cultura que permeia e<br />

envolve o processo de formação humana no contexto <strong>da</strong> reestruturação produtiva e<br />

<strong>da</strong> mundialização do capital, que beneficia majoritariamente os países ricos, de<br />

modo a buscarmos alternativas de superação desta r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de dramática, pois,<br />

segundo Hobsbawm (1995, p 24), “talvez a característica mais impressionante do<br />

fim do século XX seja a tensão entre esse processo de globalização ca<strong>da</strong> vez mais<br />

acelerado e a incapaci<strong>da</strong>de conjunta <strong>da</strong>s instituições públicas e do comportamento<br />

coletivo dos seres humanos de se acomo<strong>da</strong>r<strong>em</strong> a ele”.<br />

Nessa busca de entendimentos, se instaura um intenso debate teórico, a<br />

partir de diferentes perspectivas que provocam tensão, resultando <strong>em</strong><br />

conseqüências n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre alvissareiras. Dentre os argumentos que propagam a<br />

morte do sujeito até os que se apresentam incrédulos <strong>em</strong> relação as metanarrativas,<br />

pod<strong>em</strong>os verificar um certo colapso (crise) de paradigmas, pautado pela<br />

fragmentação teórica, cujo relativismo absoluto impossibilita qualquer pretensão de<br />

consenso.<br />

Diante desse labirinto epist<strong>em</strong>ológico, talvez seria mais fecundo, conforme<br />

sugere Gramsci (1991), incorporar à “Filosofia <strong>da</strong> Práxis”, de forma subordina<strong>da</strong>, as<br />

formulações mais elabora<strong>da</strong>s de autores que adotam diferentes perspectivas de<br />

58


análise. Afinal, a crise de paradigmas não significa o fim <strong>da</strong>s teorias, n<strong>em</strong>,<br />

tampouco, a substituição de umas por outras. A r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de concreta atual v<strong>em</strong><br />

d<strong>em</strong>onstrando claramente que a perspectiva do conflito no interior <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

capitalista continua atual. Daí a pertinência <strong>da</strong> obra de Marx para a explicação <strong>da</strong><br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, uma vez que, como destaca Hobsbawm (1995, p. 22):<br />

Se você r<strong>ea</strong>lmente lê o manifesto comunista de 1848, ficará surpreso<br />

com o fato de que o mundo, hoje, é muito mais parecido do que<br />

aquele que Marx predisse <strong>em</strong> 1848. A idéia do poder capitalista<br />

dominando o mundo inteiro, como também uma socie<strong>da</strong>de burguesa<br />

destruindo todos os velhos valores tradicionais, parece ser muito mais<br />

váli<strong>da</strong> hoje do que quando Marx morreu.<br />

A dominação e a exploração de que Marx falava há mais de 150 anos<br />

adquiriram dimensões s<strong>em</strong> precedentes. Ao querer dominar tudo, o imperialismo<br />

americano v<strong>em</strong> massacrando parcela significativa <strong>da</strong>s populações dos países do<br />

capitalismo periférico, vergastando-os a uma vi<strong>da</strong> sobre-determina<strong>da</strong>. As recentes<br />

ações de guerras “preventivas” contra o terrorismo, dentre elas, a do Afeganistão e<br />

a do Iraque, patrocina<strong>da</strong>s pelo big império e a conivência subserviente <strong>da</strong> Inglaterra<br />

e de outros paises europeus é, no final <strong>da</strong>s contas, a d<strong>em</strong>onstração de uma clara<br />

intenção de alargar esse domínio.<br />

Esse quadro configurado pelo sist<strong>em</strong>a capitalista e construído a reboque<br />

de maciça ideologização está se impondo como “uma fábrica de perversi<strong>da</strong>des” e<br />

exige, para se manter, o “exercício de fabulações” (SANTOS, 2000). Mas, a<br />

globalização, nos moldes como se configura na atuali<strong>da</strong>de, não é um fenômeno<br />

irreversível. Cabe edificar, como nos aponta Santos (2000), um mundo como<br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de histórica unitária, ain<strong>da</strong> que extr<strong>em</strong>amente diversifica<strong>da</strong>. Para construir um<br />

novo sentido de felici<strong>da</strong>de individual e coletiva, a humani<strong>da</strong>de deve considerar as<br />

possibili<strong>da</strong>des efetivamente cria<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong>s disponibili<strong>da</strong>des postas pelas<br />

condições materiais concretas, onde a política t<strong>em</strong> papel preponderante na relação<br />

59


disponibili<strong>da</strong>de/possibili<strong>da</strong>de. Numa perspectiva otimista, o referido autor advoga a<br />

necessi<strong>da</strong>de de integração de duas grandes mutações que ora se encontram <strong>em</strong><br />

gestação - “a mutação tecnológica e a mutação filosófica <strong>da</strong> espécie humana”<br />

(SANTOS, 2000, p. 174).<br />

Do ponto de vista filosófico, essas mutações são influencia<strong>da</strong>s pela<br />

experiência de movimentos sociais organizados de baixo para cima, como o MST,<br />

no Brasil, a luta contra a ALCA, na América Latina, o movimento <strong>da</strong>s “Mães <strong>da</strong><br />

Praça de Maio”, na Argentina, que acenam para a imperiosa necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

<strong>construção</strong>, produção e reprodução <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> material/espiritual a partir de outras<br />

relações sociais que valoriz<strong>em</strong> o ser humano <strong>em</strong> sua plenitude.<br />

A despeito de to<strong>da</strong> a exploração, Santos (2000) enumera alguns <strong>da</strong>dos<br />

que vêm se apresentando nos últimos anos e que possibilitam vislumbrar mu<strong>da</strong>nças<br />

revolucionárias na perspectiva de <strong>construção</strong> de um futuro diferente: “a tendência à<br />

mistura generaliza<strong>da</strong> entre os povos; a vocação para uma urbanização concentra<strong>da</strong>;<br />

o peso <strong>da</strong> ideologia nas construções históricas atuais; (…) a politização<br />

generaliza<strong>da</strong> permiti<strong>da</strong> pelo excesso de normas” (SANTOS, 2000, p. 161).<br />

Entretanto, essas mu<strong>da</strong>nças dependerão <strong>da</strong> necessária clareza e articulação do<br />

projeto de socie<strong>da</strong>de que se pretende consoli<strong>da</strong>r com as ações dos sujeitos<br />

imbuídos <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de de contribuir para mu<strong>da</strong>r os destinos <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de.<br />

Nesse <strong>jogo</strong> de r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de e possibili<strong>da</strong>des, retomamos a nossa questão<br />

científica de base: Qual a relação do <strong>jogo</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> com esse <strong>jogo</strong> mais amplo,<br />

consubstanciado pelo processo de reestruturação e reforma do Estado que se<br />

expressa pela franca destruição <strong>da</strong>s forças produtivas – trabalho e trabalhador?<br />

A <strong>capoeira</strong> não está incólume a to<strong>da</strong> essa avalanche destrutiva e, mesmo<br />

que suas influências não se verifiqu<strong>em</strong> de forma imediata nas experiências<br />

60


concretas dos <strong>capoeira</strong>s na ro<strong>da</strong>, elas incid<strong>em</strong>, de forma mediata, determinando<br />

suas condições de vi<strong>da</strong>, sua prática social, seus desejos e necessi<strong>da</strong>des. Daí a<br />

exigência de tratá-la pe<strong>da</strong>gogicamente <strong>em</strong> sintonia com o conjunto de forças<br />

confrontacionais que possam resistir e transformar essa perversa r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de leva<strong>da</strong> a<br />

cabo pelo processo de reestruturação capitalista e de mundialização do capital.<br />

Caso contrário, as iniciativas particulares, ou de pequenos grupos, mesmo que<br />

“inovadoras”, serão meras ilusões, facilmente diluí<strong>da</strong>s e coopta<strong>da</strong>s pela poderosa<br />

manipulação do sist<strong>em</strong>a heg<strong>em</strong>ônico.<br />

Em comparação com os dias atuais, os <strong>capoeira</strong>s de outrora tinham uma<br />

relação b<strong>em</strong> diferente com sua prática, conforme já pud<strong>em</strong>os constatar. Porém,<br />

assim como hoje, não constituíam um bloco monolítico e não a cultivavam com a<br />

mesma finali<strong>da</strong>de. Se, no Rio de Janeiro, ela teve uma vinculação forte com as<br />

maltas, as brigas de rua e a política do Segundo Reinado, <strong>em</strong> Salvador, ela tinha<br />

uma relação amistosa com os botecos, com as quitan<strong>da</strong>s, que, por sua vez,<br />

beneficiavam-se de suas artísticas manobras para atrair fregueses. Segundo Abreu<br />

(2003, p. 18), “nesses ambientes populares piscava a tendência de se misturar<br />

comi<strong>da</strong> baiana com manifestações <strong>da</strong> cultura popular de orig<strong>em</strong> afro-brasileira para<br />

se ganhar dinheiro”.<br />

Antigamente, eram os trapicheiros, carroceiros, estivadores, carregadores,<br />

vendedores ambulantes e também desocupados de to<strong>da</strong>s as estirpes, que se<br />

reuniam próximo aos botecos, às praças, os largos e cais a tagarelar<strong>em</strong>, a<br />

brincar<strong>em</strong>, a beber<strong>em</strong> e a jogar<strong>em</strong>, utilizando-se <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como ativi<strong>da</strong>de de<br />

lazer 35 ou de disputa de espaço 36 , hoje, é comum se ver ex-bancários, ex-<br />

35 Recentes estudos na ár<strong>ea</strong> do lazer vêm apontando que na socie<strong>da</strong>de capitalista, este se expressa<br />

como alienado. A necessi<strong>da</strong>de de lazer está clara, mas a sua r<strong>ea</strong>lização para os trabalhadores se<br />

configura apenas como promessa de felici<strong>da</strong>de. Ver mais <strong>em</strong> Sá (2003) e Sousa (2002).<br />

61


metalúrgicos, ex-representantes de ven<strong>da</strong>s etc., d<strong>em</strong>itidos de suas <strong>em</strong>presas,<br />

utilizando a <strong>capoeira</strong> como trabalho, como uma opção profissional, como um modo<br />

de sobreviver. Somado a esse contingente, encontra-se, expressivo segmento de<br />

jovens que vislumbra, na <strong>capoeira</strong>, um filão de “<strong>em</strong>prego” n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre possível nas<br />

instituições e <strong>em</strong>presas convencionais, afinal, como constata Forrester (1997), esta<br />

fonte está secando e <strong>em</strong> vias de desaparecimento. É nessa metamorfos<strong>ea</strong>nte<br />

dinâmica, no carente mundo do <strong>em</strong>prego, que surg<strong>em</strong> os “profissionais” <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, diferent<strong>em</strong>ente dos trabalhadores que a praticavam durante o século<br />

XIX 37 .<br />

Se a fonte de trabalho, desfigura<strong>da</strong> sob a forma de <strong>em</strong>prego, está<br />

secando nos países que segu<strong>em</strong> o ideário capitalista, e o des<strong>em</strong>prego não para de<br />

aumentar, muitos <strong>capoeira</strong>s lutam para fugir <strong>da</strong> humilhação e <strong>da</strong> vergonha a que<br />

são submetidos por esse sist<strong>em</strong>a destruidor <strong>da</strong>s forças produtivas. Eles ousam<br />

correr riscos, como aventureiros impacientes a encarar a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de brutal, e<br />

transformam suas filosofias de vi<strong>da</strong>, seus lazeres, suas habili<strong>da</strong>des, <strong>em</strong><br />

possibili<strong>da</strong>des de sobrevivência para enfrentar o mal-estar e o infortúnio gerado pela<br />

curva s<strong>em</strong>pre crescente de des<strong>em</strong>prego. Esse novo “trabalhador <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>” é o<br />

responsável pela edificação de uma diferente roupag<strong>em</strong> para esta manifestação a<br />

partir de sua inserção no labiríntico mundo <strong>da</strong>s ocupações que compõ<strong>em</strong> o<br />

36 A vi<strong>da</strong> de Daniel Coutinho, o Mestre Noronha, sintetiza, de forma <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ática, as primeiras<br />

relações <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> com o mundo do trabalho: “Fui engraxate para poder viver A minha vi<strong>da</strong> como<br />

mestre de <strong>capoeira</strong> Angolla foi muito boua por<strong>em</strong> não adiciri na<strong>da</strong> na vi<strong>da</strong>. Lecionei e na<strong>da</strong> tenho. Fui<br />

trabalhar na estiva -abondonei fui cer doqueiro - fui trapicheiro - andei <strong>em</strong>barcado - fui aju<strong>da</strong>nte de<br />

caminhão - carregador do canto trabalhei no petroleo -, sou concertador de carga - estou apuzentado<br />

- pello meu sindicato.Tenho 65 anos nunca dispreizei meu man<strong>da</strong>to de mestre s<strong>em</strong>pre firme na luta<br />

porque tenho amor a minha patria (sic). Mestre Noronha tenta fazer, neste esclarecedor e autêntico<br />

depoimento, uma distinção entre o mundo <strong>da</strong> marginali<strong>da</strong>de e o mundo do trabalho. (COUTINHO,<br />

1993, p. 34).<br />

37 Pires (1996) argumenta que, desde o século XIX, a <strong>capoeira</strong> é parte integrante <strong>da</strong> cultura <strong>da</strong> classe<br />

trabalhadora, <strong>da</strong> “cultura operária”, contrapondo-se à idéia <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> existindo à marg<strong>em</strong> do mundo<br />

do trabalho. Segundo o autor, para as classes dominantes, na República Velha, a socie<strong>da</strong>de estava<br />

dividi<strong>da</strong> entre o mundo do trabalho e o mundo do crime. Nessa visão, que orientou as medi<strong>da</strong>s de<br />

controle social, os <strong>capoeira</strong>s estariam do lado do crime, <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>. No entanto, este autor<br />

constatou, ao contrário, que eles se encontravam integrados ao mundo do trabalho e <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>.<br />

62


chamado mercado não-formal. Na luta pela sobrevivência, se submete a múltiplas<br />

formas de trabalho, de caráter freqüent<strong>em</strong>ente eventual, t<strong>em</strong>porário e até mesmo<br />

ilegal. Os “bicos” contingenciais que surg<strong>em</strong> para incr<strong>em</strong>entar o orçamento familiar<br />

se transformam, freqüent<strong>em</strong>ente, na principal fonte de ren<strong>da</strong>. Seja como biscateiro<br />

ou muambeiro, seja como ministrante de “workshops”, esses novos trabalhadores<br />

<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> engrossam o mundo do trabalho precarizado que se amplia a ca<strong>da</strong><br />

momento pelo mundo todo. Eventualmente, através de vínculos com “pessoas<br />

importantes”, alguns consegu<strong>em</strong> angariar distinções, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre b<strong>em</strong> vistas pelos<br />

d<strong>em</strong>ais integrantes <strong>da</strong> “categoria”.<br />

É certo, portanto, que a instabili<strong>da</strong>de e a incerteza perpassam a maioria<br />

dos projetos pessoais desses profissionais que buscam, além de ganhar dinheiro,<br />

um certo reconhecimento no mundo <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>g<strong>em</strong>. Essa vulnerabili<strong>da</strong>de faz com<br />

que muitos projetos sejam alongados, adiados, quando não frustrados.<br />

Mesmo de forma precariza<strong>da</strong>, mas com grandes pita<strong>da</strong>s de criativi<strong>da</strong>de,<br />

esses “profissionais” se utilizam desta manifestação cultural para manter<strong>em</strong>-se vivos<br />

e buscam as mais inusita<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des para escapar <strong>da</strong> sina <strong>da</strong>queles que,<br />

considerados pela maioria como os grandes mestres <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, morreram <strong>em</strong><br />

situação de miséria absoluta. Mestres como Pastinha, Bimba, Vald<strong>em</strong>ar <strong>da</strong><br />

Liber<strong>da</strong>de e outros, 38 que “experimentaram a encruzilha<strong>da</strong> <strong>da</strong> fome com a fama”<br />

(ABREU, 2003, p. 14), apesar de se tornar<strong>em</strong> os grandes referenciais <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>g<strong>em</strong> no século XX são, para as novas gerações de <strong>capoeira</strong>s, produtos de<br />

uma condição de exploração <strong>da</strong> qual estas tentam se esquivar.<br />

38 Mestre Pastinha (1889-1981), principal guardião <strong>da</strong> Capoeira Angola, faleceu cego e esquecido.<br />

Mestre Bimba (1899 – 1974), criador <strong>da</strong> Capoeira Regional, faleceu pobre, lutando por melhores<br />

condições de vi<strong>da</strong>, <strong>em</strong> Goiânia-GO. Mestre Wald<strong>em</strong>ar <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong>de – conduziu nas déca<strong>da</strong>s de 40 e<br />

50, aos domingos, a ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong> que se tornou o mais importante ponto de encontro dos<br />

<strong>capoeira</strong>s de Salvador, onde o escritor Jorge Amado e o fotógrafo Pierre Verger “se alimentavam<br />

culturalmente” (ABREU, 2003, p. 43). Morreu, <strong>em</strong> 1990, na pobreza, como tantos outros <strong>capoeira</strong>s.<br />

63


As possibili<strong>da</strong>des de trabalho dos <strong>capoeira</strong>s situam-se, grosso modo, nas<br />

estruturas do Mercado Formal (MF) e do Mercado Não-Formal (MNF) <strong>da</strong> economia,<br />

assim como nas instituições vincula<strong>da</strong>s ao poder público, principalmente nas<br />

escolas. No MF, pod<strong>em</strong>os verificar os trabalhadores <strong>em</strong> <strong>capoeira</strong> vinculados a<br />

clubes, acad<strong>em</strong>ias e instituições comunitárias (associação de bairros, enti<strong>da</strong>des<br />

assistenciais etc.). No MNF, estão vinculados à “<strong>capoeira</strong> de rua” ou aos chamados<br />

“shows folclóricos”, r<strong>ea</strong>lizados nos palcos de hotéis e restaurantes de luxo. A partir<br />

dessa geografia social, eles acabam situados, segundo Goto (1988), no bojo de um<br />

processo de “integração duvidosa com a vi<strong>da</strong> oficial”, acrescentando novas<br />

configurações à indústria do turismo, do espetáculo e do lazer.<br />

Esse tratamento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como ativi<strong>da</strong>de laboral v<strong>em</strong> contribuindo<br />

para uma ressignificação de suas características originárias e incidindo, direta ou<br />

indiretamente, nas suas d<strong>em</strong>ais formas de tratamento, evidenciando a centrali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> categoria trabalho para a explicação <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, e como el<strong>em</strong>ento fun<strong>da</strong>nte no<br />

processo de organização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social, <strong>em</strong>bora alguns autores, como De Masi<br />

(2000), Dumazedier (1980) e Offe (1994), desconsider<strong>em</strong> a centrali<strong>da</strong>de dessa<br />

categoria. Por intermédio deste tratamento, centenas de grupos e acad<strong>em</strong>ias, <strong>em</strong><br />

praticamente todos os centros urbanos brasileiros e também pelo mundo afora,<br />

oferec<strong>em</strong> formas específicas e alternativas de subsistência para o novo<br />

“profissional” <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>. No entanto, essas alternativas se apresentam afina<strong>da</strong>s<br />

com a lógica do sist<strong>em</strong>a capitalista e, apesar de aparentar uma inclusão, não passa<br />

de uma inclusão de caráter excludente, à medi<strong>da</strong> que essas experiências ain<strong>da</strong> são<br />

exceções e freqüent<strong>em</strong>ente são destituí<strong>da</strong>s dos mais el<strong>em</strong>entares direitos sociais,<br />

conforme ver<strong>em</strong>os posteriormente.<br />

64


Mas é fato que as experiências dos <strong>capoeira</strong>s indicam algumas mu<strong>da</strong>nças<br />

de enfoque do sentido do trabalho. Será que o trabalho com <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong><br />

contribuindo para uma ressignificação do sentido do próprio trabalho? Embora neste<br />

esteja implícito o sentido de obrigação, de esforço e até de sofrimento, o que se<br />

verifica, nos últimos anos, é uma certa ruptura com as clássicas divisões do trabalho<br />

e a pro<strong>em</strong>inência de novas formas de gestão mais autônomas, capazes de<br />

promover uma certa afini<strong>da</strong>de com a esfera do lazer.<br />

À medi<strong>da</strong> que as opções convencionais de <strong>em</strong>prego vão se limitando,<br />

surg<strong>em</strong> alternativas, principalmente na esfera do entretenimento, que se constitu<strong>em</strong><br />

<strong>em</strong> espaços de aproximação constitutivos do lazer e do trabalho, pelo fato de um<br />

expressivo número de pessoas que faz<strong>em</strong> do oferecimento de serviços de lazer sua<br />

ocupação profissional e <strong>da</strong>queles que, ao usufruír<strong>em</strong> tais serviços, contribu<strong>em</strong> para<br />

uma influência recíproca dos el<strong>em</strong>entos constitutivos dessas categorias, pois o ser<br />

que brinca é o mesmo que produz, <strong>em</strong>bora isso não represente uma interpenetração<br />

<strong>da</strong>s mesmas. Ad<strong>em</strong>ais, não se pode perder de vista, também, que o t<strong>em</strong>po livre na<br />

socie<strong>da</strong>de cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong> é carregado de conotação produtiva, à medi<strong>da</strong> que se<br />

destina, na maioria <strong>da</strong>s vezes, ao consumo de bens e serviços que garant<strong>em</strong> o<br />

fomento <strong>da</strong> economia de mercado.<br />

To<strong>da</strong>via, o t<strong>em</strong>po e sua administração parec<strong>em</strong> permanecer como<br />

principais el<strong>em</strong>entos na distinção que é feita entre trabalho e lazer. Enquanto no<br />

trabalho a gestão do t<strong>em</strong>po é determina<strong>da</strong> por um conjunto de interesses<br />

relacionados à produtivi<strong>da</strong>de, no lazer o t<strong>em</strong>po é auto-administrado, com o privilégio<br />

de aspectos que diz<strong>em</strong> respeito à liber<strong>da</strong>de de escolha e à busca de prazer.<br />

Este tangenciar de polari<strong>da</strong>des (trabalho-lazer) implica numa relação de<br />

influência recíproca, <strong>em</strong> que os valores culturais de um e de outro terminam<br />

65


contaminando ambos, <strong>em</strong>bora, na lógica produtivista que o trabalho assume no<br />

capitalismo, esta influência acabe fomentando a produtivi<strong>da</strong>de e o lazer efetivo<br />

praticamente inexiste.<br />

Embora alguns autores, como o sociólogo francês Dumazedier (1980) e o<br />

filósofo italiano De Masi (2000), tenham proclamado que estamos passando por<br />

uma revolução cultural do t<strong>em</strong>po livre, as ativi<strong>da</strong>des propala<strong>da</strong>s como do campo do<br />

lazer têm sido trata<strong>da</strong>s na lógica <strong>da</strong>s “tecnologias de organização do trabalho”,<br />

como é o caso <strong>da</strong> hoje ba<strong>da</strong>la<strong>da</strong> “ginástica laboral”, que, segundo Sousa (2002),<br />

são direciona<strong>da</strong>s para o aumento <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de no trabalho.<br />

do capital?<br />

Como o movimento dos <strong>capoeira</strong>s se afina com o movimento mais geral<br />

Pod<strong>em</strong>os dizer que o próprio processo de organização desta<br />

manifestação encarna a lógica onipresente do sist<strong>em</strong>a que se instalou <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as<br />

esferas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social.<br />

Atualmente, significativa parcela dos grupos de <strong>capoeira</strong> do Brasil está<br />

organiza<strong>da</strong> e estrutura<strong>da</strong> na lógica <strong>em</strong>presarial. Em geral, esses grupos invest<strong>em</strong><br />

significativamente na formação dos futuros quadros que atenderão uma d<strong>em</strong>an<strong>da</strong><br />

s<strong>em</strong>pre crescente de interessados por esta manifestação. O que se verifica,<br />

portanto, é a transformação dos grandes grupos <strong>em</strong> <strong>em</strong>presas, no estilo de<br />

franquias, para atender as “exigências” do mercado e terminam transformando-se<br />

<strong>em</strong> grandes corporações, constituí<strong>da</strong>s como instituições jurídicas, que aglutinam<br />

expressivo número de integrantes (alguns chegam a ter mais de dez mil filiados).<br />

Alia<strong>da</strong> a esses esqu<strong>em</strong>as, verifica-se uma expressiva e crescente<br />

produção e comercialização de instrumentos e indumentárias específicos para sua<br />

prática como uniformes, malhas, bonés, bermu<strong>da</strong>s, artesanatos, berimbaus,<br />

66


atabaques, pandeiros etc., 39 além de outros produtos que incr<strong>em</strong>entam o acervo<br />

profissional dos <strong>capoeira</strong>s, como livros, revistas, vídeos, compact disc etc. 40 Trata-<br />

se de uma significativa indústria cultural <strong>capoeira</strong>na.<br />

A atual lógica de organização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, que transforma muitos grupos<br />

<strong>em</strong> grandes franquias, é, certamente, um reflexo do reordenamento do sist<strong>em</strong>a<br />

capitalista que v<strong>em</strong> plasmando sua configuração na mesma lógica <strong>da</strong> organização<br />

<strong>em</strong>presarial. Resguar<strong>da</strong>ndo as diferenças de concepções filosóficas e de métodos<br />

de ensino-aprendizag<strong>em</strong>, boa parte desses grupos v<strong>em</strong> pautando sua organização<br />

sob os ditames <strong>da</strong> lógica que enfatiza a formação de “profissionais” para atender os<br />

quesitos desta nova (des)<strong>em</strong>pregabili<strong>da</strong>de, definidos pelas exigências de uma<br />

d<strong>em</strong>an<strong>da</strong> extr<strong>em</strong>amente crescente, verifica<strong>da</strong>, principalmente, entre as classes mais<br />

abasta<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s médias e grandes ci<strong>da</strong>des, <strong>em</strong> especial, do “sul maravilha” e dos<br />

países integrantes do chamado “capitalismo central”.<br />

Pod<strong>em</strong>os observar que todos os grandes grupos têm representações nas<br />

principais capitais brasileiras, inclusive <strong>em</strong> Salvador, considera<strong>da</strong> a “Meca <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>”, que se destaca pela expressiva oferta de petrechos e adereços de<br />

<strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> seus mercados e feiras que, de certa forma, contribu<strong>em</strong> não só para<br />

minimizar o estigma <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como ativi<strong>da</strong>de de sucata, mas, também, para que<br />

alguns instrumentos desta arte-luta, como o berimbau, se transform<strong>em</strong> <strong>em</strong> símbolos<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

39 Para atender a essa d<strong>em</strong>an<strong>da</strong> ca<strong>da</strong> vez mais crescente <strong>em</strong> nível mundial já exist<strong>em</strong> lojas virtuais<br />

de artigos de <strong>capoeira</strong>, com preços <strong>em</strong> dólar e eficiente serviço de entrega a domicílio (delivery<br />

service) <strong>em</strong> qualquer lugar do planeta, como os prestados por www.rabod<strong>ea</strong>rraia.com.br/english.<br />

40 A produção de compact disc de <strong>capoeira</strong> é um dos grandes filões utilizados por muitos <strong>capoeira</strong>s e<br />

grupos para, além de divulgar sua produção musical, angariar bons dividendos num curto espaço de<br />

t<strong>em</strong>po. A maioria dos grandes grupos já produziram os seus cd’s e, hoje, qualquer professor que<br />

tenha acesso às facili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> informática produz ou almeja lançar o seu cd. Alguns grupos<br />

produz<strong>em</strong> <strong>em</strong> série, um a ca<strong>da</strong> ano. Criticados pelos defensores <strong>da</strong> “manutenção <strong>da</strong>s tradições” e<br />

pela “quali<strong>da</strong>de discutível”, os cds são, atualmente, a coqueluche <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>.<br />

67


Os grupos de <strong>capoeira</strong> vêm contribuindo para a consoli<strong>da</strong>ção de um<br />

“<strong>em</strong>ergente” mercado <strong>capoeira</strong>no, seja através de aulas <strong>em</strong> acad<strong>em</strong>ias de ginástica,<br />

seja através de oficinas, cursos e “workshops” ministrados por mestres e<br />

professores, inserindo, ca<strong>da</strong> vez mais, essa manifestação na lógica do mercado,<br />

que constitui a principal esfera de divulgação <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> geral 41 .<br />

Se, antes, a acad<strong>em</strong>ia, geralmente coordena<strong>da</strong> por um mestre, era a<br />

referência fun<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, onde se podia exercitar e assistir as d<strong>em</strong>ora<strong>da</strong>s<br />

ro<strong>da</strong>s, hoje, é o grupo que determina a organização <strong>da</strong> maioria dos <strong>capoeira</strong>s. O<br />

grupo, que antes era restrito a uma acad<strong>em</strong>ia, se amplificou. Mesmo que os núcleos<br />

que compõ<strong>em</strong> ca<strong>da</strong> grupo tenham sede material (uma acad<strong>em</strong>ia, uma associação<br />

etc.), <strong>em</strong>bora com características nômades, vez que estão sujeitos aos despejos e<br />

rescisões de contratos, caso não aten<strong>da</strong>m as exigências do mercado imobiliário ou<br />

<strong>da</strong>s instituições que os acolh<strong>em</strong>, eles não expressam as características gerais dos<br />

grupos. Pod<strong>em</strong>os afirmar que os grupos de <strong>capoeira</strong> hoje formam redes que se<br />

ampliam e se desmoronam a ca<strong>da</strong> dia.<br />

Muitos grupos assum<strong>em</strong> características de franquias, cujo produto<br />

simbólico transita por diversos canais, entre os núcleos que os compõ<strong>em</strong>, de forma<br />

mais ou menos homogên<strong>ea</strong>, garantindo assim, não só a identi<strong>da</strong>de deles, mas a<br />

possibili<strong>da</strong>de de diss<strong>em</strong>inar uma idéia, um produto, uma grife, enfim, novos atributos<br />

que os mantenham importantes. Os novos adeptos, antes de aderir<strong>em</strong> à filosofia<br />

própria do grupo, quer<strong>em</strong> participar, <strong>em</strong> princípio, do sist<strong>em</strong>a de forças coletivas que<br />

ele representa. Essa adesão t<strong>em</strong> sido feita, inclusive, via internet, <strong>em</strong> que<br />

constatamos que professores e até mesmo pequenos grupos se filiam aos grandes,<br />

s<strong>em</strong> nunca ter<strong>em</strong> feito qualquer contato pessoal com o seu futuro mestre.<br />

41 Alguns eventos de <strong>capoeira</strong> se transformam <strong>em</strong> grandes feiras, onde a concentração de pessoas é<br />

maior <strong>em</strong> torno <strong>da</strong>s barracas do que <strong>da</strong>s próprias ativi<strong>da</strong>des programa<strong>da</strong>s pela sua organização.<br />

68


A possibili<strong>da</strong>de de estar <strong>em</strong> vários lugares talvez seja a principal meta dos<br />

grupos e dos <strong>capoeira</strong>s, <strong>em</strong> geral. Para atender a essas “exigências”, muitos<br />

dissidentes não faz<strong>em</strong> mesmo questão de ser<strong>em</strong> fiéis aos seus mestres e grupos de<br />

orig<strong>em</strong>. Como argumentos para justificar esse “espírito nômade”, surg<strong>em</strong> as mais<br />

inusita<strong>da</strong>s explicações que também alimentam e dão um t<strong>em</strong>pero especial ao<br />

repertório musical <strong>da</strong>s ro<strong>da</strong>s.<br />

O fato é que, a depender <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de penetração nos diversos<br />

instrumentos <strong>da</strong> mídia, determinados grupos conquistam projeções que extrapolam<br />

âmbitos municipais e regionais. Hoje, já exist<strong>em</strong> mega-grupos, com mais de 10 mil<br />

integrantes e com filiais <strong>em</strong> vários países do mundo. Em decorrência disso, alguns<br />

mega-grupos vêm r<strong>ea</strong>lizando mega-eventos (alguns <strong>em</strong> forma de competição) b<strong>em</strong><br />

parecidos com os grandes “ultimate fights”, onde os holofotes expõ<strong>em</strong><br />

impavi<strong>da</strong>mente o culto à força e à arrogância. São espetáculos concorridos que têm<br />

granj<strong>ea</strong>do, inclusive, a atenção de agências promotoras de eventos culturais. Não é<br />

difícil de prever que desse processo, surjam, também, a ca<strong>da</strong> dia, mega-mestres e<br />

mega-ídolos, talvez qu<strong>em</strong> sabe, giga-mestres e giga-ídolos, tal como no glamouroso<br />

mundo do espetáculo, do esporte e <strong>da</strong> passarela.<br />

S<strong>em</strong> negar algumas contribuições de outras ordens (divulgação e<br />

intercâmbio cultural, reconhecimento e valorização do trabalho dedicado de muitos<br />

mestres e grupos), assim como a possibili<strong>da</strong>de efetiva de trabalho, mesmo que<br />

precário, muitas dessas ativi<strong>da</strong>des e muitos desses grupos têm o lucro como<br />

objetivo principal.<br />

Além dos grupos, começam a se expandir, no âmbito <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, as<br />

enti<strong>da</strong>des corporativas, como é o caso <strong>da</strong>s federações e ligas, que, <strong>em</strong> maior ou<br />

menor grau, também operam com essa manifestação sob a batuta financeira. A<br />

69


Confederação Brasileira de Capoeira (CBC) 42 , a Associação Brasileira de<br />

Professores de Capoeira (ABPC) 43 , a Associação Brasileira de Capoeira Angola<br />

(ABCA) e a Federação Internacional de Capoeira (FICA) são as principais<br />

representantes desse esqu<strong>em</strong>a organizativo. Isto t<strong>em</strong> se incorporado tanto no<br />

âmbito <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> que alguns grupos já formaram suas próprias federações, como<br />

é o caso <strong>da</strong> Federação ABADA.<br />

Nessa lógica de organização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> (grupos, federações, ligas etc.),<br />

pod<strong>em</strong>os identificar, portanto, a pro<strong>em</strong>inência de dois fenômenos inerentes à<br />

socie<strong>da</strong>de capitalista já verificados <strong>em</strong> outras manifestações <strong>da</strong> cultura corporal<br />

como, por ex<strong>em</strong>plo, a ginástica, a <strong>da</strong>nça e algumas lutas orientais, quais sejam: a<br />

mercadorização e a esportivização que, por sua vez, apresentam como<br />

características intrínsecas a racionalização, a cientifização e a competição.<br />

Convém destacar ain<strong>da</strong> que a inserção vertiginosa <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> nos<br />

estratos sociais privilegiados, nos últimos t<strong>em</strong>pos, representa um fato novo. Por uma<br />

expressiva cifra é possível assistir a uma requinta<strong>da</strong> exibição desta manifestação<br />

<strong>em</strong> espaços nobilíssimos como o Solar do Unhão, <strong>em</strong> Salvador, e <strong>em</strong> várias casas<br />

de espetáculo esparrama<strong>da</strong>s pelo Brasil e mundo afora. Ela é ofereci<strong>da</strong> na maior e<br />

mais equipa<strong>da</strong> acad<strong>em</strong>ia de ativi<strong>da</strong>de física especializa<strong>da</strong> <strong>da</strong> América Latina,<br />

situa<strong>da</strong> <strong>em</strong> São Paulo, cuja mensali<strong>da</strong>de ultrapassa o valor de um salário mínimo<br />

brasileiro (R$ 240,00 – duzentos e quarenta r<strong>ea</strong>is) <strong>em</strong> 2003. A aceitação <strong>da</strong><br />

42 A CBC foi fun<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>em</strong> 23 de outubro de 1992. T<strong>em</strong> sede fixa<strong>da</strong> <strong>em</strong> Guarulhos-SP e t<strong>em</strong> como<br />

objetivo a padronização, normatização e unificação de procedimentos <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>. Apesar <strong>da</strong><br />

resistência de muitos grupos e lideranças, a CBC v<strong>em</strong> conseguindo certa representativi<strong>da</strong>de junto a<br />

outros órgãos dirigentes do esporte nacional, como é o caso do Comitê Olímpico Brasileiro, que a<br />

reconhece como única enti<strong>da</strong>de representativa <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no Brasil.<br />

43 A Associação Brasileira de Professores de Capoeira (ABPC) foi fun<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>em</strong> Salvador-BA, <strong>em</strong> 13<br />

de Agosto de 1980; aglutina parte <strong>da</strong>s principais lideranças <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> do Brasil e t<strong>em</strong>, como<br />

objetivo, preservar os aspectos culturais, científicos e sociais que envolv<strong>em</strong> a <strong>capoeira</strong>, seus<br />

professores, mestres e praticantes.<br />

70


<strong>capoeira</strong> pelas cama<strong>da</strong>s mais abasta<strong>da</strong>s <strong>da</strong> população t<strong>em</strong> contribuído para o<br />

alavancar de algumas medi<strong>da</strong>s oficiais 44 que se confrontam com questionáveis<br />

ingerências durante longo período de sua história.<br />

O vertiginoso crescimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> t<strong>em</strong> desencad<strong>ea</strong>do ações que<br />

garant<strong>em</strong> a sua dinamização e acomo<strong>da</strong>ção na lógica <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de de consumo.<br />

Constata-se que, entre os anos de 1998 e 2001, pelo menos, quatro revistas de<br />

banca de tiragens expressivas (entre 20 e 40 mil ex<strong>em</strong>plares por edição)<br />

proporcionaram um boom de divulgação <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> jamais visto anteriormente.<br />

Inicialmente, essas revistas, a despeito de pesa<strong>da</strong>s críticas pelos seus interesses<br />

essencialmente comerciais e pela superficiali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s informações divulga<strong>da</strong>s,<br />

causaram um certo frisson no meio <strong>capoeira</strong>no, pois muitos viam nelas um meio de<br />

reconhecimento e projeção <strong>da</strong> arte-luta. Entretanto, muitas faliram, certamente pela<br />

falta de consumidores suficientes que pudess<strong>em</strong> adquiri-las sist<strong>em</strong>aticamente.<br />

Como as publicações de pesquisas sobre <strong>capoeira</strong> ain<strong>da</strong> são muito<br />

restritas, as revistas de banca terminam des<strong>em</strong>penhando o papel de “referencial<br />

teórico” <strong>da</strong> esmagadora maioria dos seus praticantes.<br />

Algumas dessas revistas, ain<strong>da</strong> que explicit<strong>em</strong> minimamente informações<br />

gerais de interesse <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de <strong>capoeira</strong>na, terminam propagando e difundido<br />

uma <strong>capoeira</strong> “stan<strong>da</strong>rtiza<strong>da</strong>” e altamente propagandística. Geralmente, são<br />

patrocina<strong>da</strong>s por marcas e grifes famosas vincula<strong>da</strong>s ao universo <strong>da</strong>s lutas e que,<br />

como é do conhecimento geral, divulgam um estereótipo agressivo, am<strong>ea</strong>çador,<br />

44 Em 1995 começou a tramitar na Câmara de Deputados o Projeto de Lei nº 85/95, de autoria do<br />

Deputado José Coimbra, que apontava para o reconhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como um esporte<br />

genuinamente brasileiro. Após ter sido aprovado <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as comissões <strong>da</strong> Câmara, com algumas<br />

<strong>em</strong>en<strong>da</strong>s, o projeto, após receber parecer favorável do relator, Senador Abdias do Nascimento, foi<br />

aprovado pelo Senado Federal, mas foi vetado pelo Presidente <strong>da</strong> República. (BRASIL, 1997). Entre<br />

os dias 15 e 17 de agosto de 2003 ocorreu o 1º Congresso Nacional de Capoeira, com a participação<br />

de mais de quinhentos delegados de praticamente todos os estados brasileiros. Um evento<br />

grandioso, apoiado pelo Estado Brasileiro que tinha por objetivo inicial traçar metas estruturais para a<br />

manifestação no Brasil. Os desdobramentos desse Congresso ain<strong>da</strong> estão por se concretizar.<br />

71


como é o caso <strong>da</strong> Bad Boy que, numa tradução literal para o português,<br />

corresponde a garoto mau, e <strong>da</strong> Red Nose. As propagan<strong>da</strong>s de <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> Bad<br />

Boy apresentam lutadores com aspectos agressivos e t<strong>em</strong>erosos.<br />

A veiculação <strong>da</strong>s informações sobre a <strong>capoeira</strong> são potencializa<strong>da</strong>s pela<br />

internet. São várias listas de discussão on line com expressivo volume de<br />

mensagens veicula<strong>da</strong>s diariamente. Em set<strong>em</strong>bro de 1999, surgiu, no mercado<br />

editorial brasileiro, a primeira revista de <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> quadrinho. Tratava-se <strong>da</strong><br />

Revista Kápu & Maninho, publica<strong>da</strong> pela Aú Editorial, de Curitiba-PR, que lançou<br />

apenas dois números. Com quadrinhos <strong>em</strong> preto e branco, as estórias do primeiro<br />

número <strong>da</strong> revista retratam o aspecto performático e competitivo <strong>da</strong> manifestação.<br />

Uma <strong>da</strong>s estórias explicita uma disputa por uma loira e escultural praticante <strong>da</strong> arte.<br />

Em junho de 2000, foi lança<strong>da</strong>, pela editora “Toque de My<strong>da</strong>s”, de São Paulo, outra<br />

revista <strong>em</strong> quadrinho, “Luana e sua Turma”, com uma heroína que é praticante de<br />

<strong>capoeira</strong> e negra. Essa revista apresenta uma clara intenção de afirmar a<br />

positivi<strong>da</strong>de desta manifestação, como herança <strong>da</strong> cultura afro-brasileira 45 .<br />

Esse intenso movimento de grupos, aliado às possibili<strong>da</strong>des de marketing,<br />

verifica<strong>da</strong>s nas revistas específicas e na internet, está, preponderant<strong>em</strong>ente,<br />

vinculado à lógica do mercado, que define, desde o comércio puro e simples de<br />

todos os apetrechos utilizados na prática <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, até o gesto corporal.<br />

No mundo ocidental, o capitalismo v<strong>em</strong> atingindo to<strong>da</strong>s as esferas de<br />

atuação do hom<strong>em</strong>, assumindo, ca<strong>da</strong> vez mais, a forma de uma crise endêmica, e o<br />

movimento corporal não escapou dessa voraci<strong>da</strong>de destrutiva <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de.<br />

“Viv<strong>em</strong>os hoje <strong>em</strong> um mundo firm<strong>em</strong>ente mantido sob as réd<strong>ea</strong>s do capital”<br />

45 Outras publicações sobre a <strong>capoeira</strong>, destina<strong>da</strong>s ao público infantil, estão disponíveis no mercado,<br />

<strong>em</strong>bora com limita<strong>da</strong> distribuição, como, por ex<strong>em</strong>plo: Len<strong>da</strong>s de um Capoerê, de Carolina<br />

Magalhães (Brisa), de Salvador-BA. Capoeira para Crianças, de Ricardo Augusto Leoni de Sousa<br />

(Minhoca), de Salvador. Brincando de Capoeira, de André Luiz Teixeira Reis, de Brasília. Capoeira<br />

Infantil, de Jorge Luiz de Freitas (Piriquito Verde), de Curitiba–PR. Berimbau, de Raquel Coelho.<br />

72


(MÉSZÁROS, 2002, p. 37). Hoje, <strong>em</strong> praticamente to<strong>da</strong>s as expressões <strong>da</strong> cultura<br />

corporal, o movimento humano se transformou <strong>em</strong> mercadoria, por força <strong>da</strong> mídia,<br />

que determina o seu consumo à revelia, estimulando a sua auto-reprodução.<br />

Entretanto, um <strong>jogo</strong>, uma <strong>da</strong>nça, uma luta etc., são situações históricas onde<br />

transcorr<strong>em</strong> subjetivi<strong>da</strong>des e relações objetivas particulares que lhes dão sentido. O<br />

movimento corporal humano é uma ativi<strong>da</strong>de inseri<strong>da</strong> no mundo <strong>da</strong> cultura e se<br />

constitui num conjunto de el<strong>em</strong>entos objetivos (ato motor, estilo, técnica, tática etc.)<br />

e subjetivos (sensações, <strong>em</strong>oção, representação intelectual, imaginação etc.) que,<br />

para se encaixar nos cânones <strong>da</strong> reprodutibili<strong>da</strong>de técnica e <strong>da</strong> produção seria<strong>da</strong>,<br />

típica do modo de produção capitalista, precisa ser alterado na sua essência.<br />

O movimento corporal humano é essencialmente consumido no ato <strong>da</strong><br />

produção. Nós não produzimos movimentos para consumi-los posteriormente. Não<br />

se trata de um produto que se compra para ser consumido depois, como uma lata<br />

de doces, por ex<strong>em</strong>plo. Daí a dificul<strong>da</strong>de de ele se adequar ao processo de<br />

mercadorização. Para que isso se torne possível, suas quali<strong>da</strong>des mais íntimas são<br />

profun<strong>da</strong>mente altera<strong>da</strong>s para se ajustar<strong>em</strong> às exigências do mercado.<br />

Para colocar <strong>em</strong> <strong>jogo</strong> essa lógica que opera como uma espécie de<br />

“segun<strong>da</strong> natureza”, necessária atenção deve ser despendi<strong>da</strong> àqueles que tentam<br />

tirar proveito <strong>da</strong>s promessas que ela, invariavelmente, diss<strong>em</strong>ina. Seus defensores<br />

e aproveitadores oportunistas encontram-se, geralmente, preocupados <strong>em</strong> granj<strong>ea</strong>r<br />

os benefícios diretos e indiretos <strong>da</strong> notorie<strong>da</strong>de e do prestígio na mídia, condições<br />

imprescindíveis para a manutenção desta lógica.<br />

Pud<strong>em</strong>os verificar, ao longo desse it<strong>em</strong>, que a manifestação cultural<br />

<strong>capoeira</strong> se insere de forma conflituosa e contraditória no contexto <strong>da</strong> reestruturação<br />

do capitalismo e <strong>da</strong> mundialização do capital, a partir de várias possibili<strong>da</strong>des de<br />

73


“inclusão” <strong>em</strong> suas “sedutoras” esferas, ressignificando e sendo ressignifica<strong>da</strong> a<br />

partir de experiências concretas. Entretanto, convém aqui retomar a nossa pergunta<br />

de fundo. Será esse movimento resultante e/ou propulsor de alternativas<br />

superadoras ou o reflexo <strong>da</strong> profun<strong>da</strong> crise que se engendra no sist<strong>em</strong>a capitalista,<br />

gerando mentali<strong>da</strong>des conforma<strong>da</strong>s?<br />

Convictos de que a explicação do nosso objeto transcende o imediato, e<br />

que a particulari<strong>da</strong>de e universali<strong>da</strong>de se articulam <strong>em</strong> relações mediatas e<br />

contraditórias, determinando o agir humano, portanto, histórico, consideramos<br />

oportuno colocar esses aspectos <strong>em</strong> <strong>jogo</strong>, a fim de buscarmos el<strong>em</strong>entos<br />

significativos para pensarmos o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo<br />

de formação profissional a partir de uma visão de totali<strong>da</strong>de, radicali<strong>da</strong>de e de<br />

conjunto, e através de proposições coletivas, solidárias, alternativas e superadoras.<br />

1.5. A Capoeira e a Contraditória Busca <strong>da</strong> Essência: oi sim, sim, sim… oi não,<br />

não, não...<br />

74<br />

Nessa vi<strong>da</strong> tudo passa,<br />

qu<strong>em</strong> passa aqui lá não passa,<br />

tudo na vi<strong>da</strong> é um passar...<br />

(Azul)<br />

A probl<strong>em</strong>atização do conflito tradição x moderni<strong>da</strong>de é aqui também<br />

coloca<strong>da</strong> <strong>em</strong> <strong>jogo</strong> e se torna oportuna para explicitar a tensão existente nos<br />

discursos dos <strong>capoeira</strong>s <strong>em</strong> geral. Convém acentuar que este conflito não está<br />

imune às relações de produção, e a configuração <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> atual não deve ser<br />

analisa<strong>da</strong> à revelia <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças históricas <strong>da</strong> própria r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social. Em relação<br />

à tão propaga<strong>da</strong> “essência” <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, é interessante notar que esta categoria não<br />

é “natural”, impermeável ao t<strong>em</strong>po e às relações de poder estabeleci<strong>da</strong>s no campo<br />

cultural. A <strong>capoeira</strong> contém uma lógica específica que se expressa pelas suas<br />

singulari<strong>da</strong>des, o que a faz diferente de outras manifestações culturais, entretanto,


esta lógica não é cristaliza<strong>da</strong>, essencialista. Aliás, é importante destacar que a<br />

própria essência humana situa-se nas relações sociais e não nos indivíduos, n<strong>em</strong>,<br />

tampouco, <strong>em</strong> alguns modelos de comportamentos. Nesse sentido, a<br />

d<strong>em</strong>ocratização do seu trato implica na superação de certos traços supostamente<br />

identificadores de sua “essência”, como, por ex<strong>em</strong>plo, o discurso infun<strong>da</strong>do de que a<br />

<strong>capoeira</strong> não t<strong>em</strong> regras. Consideramos que na<strong>da</strong> de relevante na socie<strong>da</strong>de é feito<br />

s<strong>em</strong> regras e que a essência <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> certamente não está <strong>em</strong> um determinado<br />

t<strong>em</strong>po/lugar do passado, n<strong>em</strong> tampouco nas entranhas dos seus rituais, gestos e<br />

músicas, mas situa-se no movimento do seu desenvolvimento e é fruto de<br />

determinações múltiplas e diversas (n<strong>em</strong> to<strong>da</strong>s igualmente importantes) que se<br />

expressam, s<strong>em</strong>pre contraditoriamente, nas relações concretas dos sujeitos <strong>em</strong><br />

ação. L<strong>em</strong>br<strong>em</strong>o-nos, oportunamente, <strong>da</strong> sexta tese sobre Feuerbach, redigi<strong>da</strong> por<br />

Marx, <strong>em</strong> 1845, quando àquela época já anunciava: “Mas a essência humana não é<br />

uma abstração inerente ao indivíduo isolado. Na sua r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de ela é o conjunto <strong>da</strong>s<br />

relações sociais” (MARX e ENGELS, 1989, p. 95). Se a essência humana não se<br />

encontra nos indivíduos, tampouco a essência de uma manifestação pode ser<br />

encontra<strong>da</strong> <strong>em</strong> um determinado t<strong>em</strong>po ou lugar. Daí ser impossível “resgatar” a<br />

essência <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> a partir de uma determina<strong>da</strong> época ou lugar ou a partir <strong>da</strong>s<br />

ações ou discursos de um determinado “mestre”, mesmo que dotado de<br />

reconheci<strong>da</strong> experiência. A busca <strong>da</strong> essência <strong>em</strong> uma determina<strong>da</strong> época, lugar ou<br />

sujeito é, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, uma aventura ingênua e romântica. Mais significativo seria<br />

procurar identificar os traços filosóficos definidores do seu movimento histórico e<br />

político no contexto de relações sociais determina<strong>da</strong>s. Entretanto, o que acontece<br />

freqüent<strong>em</strong>ente é uma ingênua busca por gestos mais “autênticos” e corretos, por<br />

toques de berimbau mais corretos, por músicas mais tradicionais, por métodos mais<br />

75


fiéis aos seus mentores e outras superflui<strong>da</strong>des que supostamente se perderam nas<br />

brumas do t<strong>em</strong>po, não de um t<strong>em</strong>po r<strong>ea</strong>l, mas de um t<strong>em</strong>po fictício, id<strong>ea</strong>lizado,<br />

concebido na perspectiva <strong>da</strong> lin<strong>ea</strong>ri<strong>da</strong>de. Entretanto, sab<strong>em</strong>os, alicerçados pelos<br />

estudos filosóficos e culturais, que to<strong>da</strong> e qualquer manifestação cultural contém <strong>em</strong><br />

seu bojo o incomensurável, o incontrolável, o imponderável, e qualquer tentativa que<br />

negue essas quali<strong>da</strong>des pode des<strong>em</strong>bocar <strong>em</strong> atitudes conservadoras, autoritárias<br />

e antid<strong>em</strong>ocráticas.<br />

Se to<strong>da</strong> tentativa de resgate v<strong>em</strong> carrega<strong>da</strong> de uma vontade de poder, a<br />

pergunta que deveríamos colocar primeiro, <strong>em</strong> relação ao resgate <strong>da</strong> essência e a<br />

defesa de uma autêntica <strong>capoeira</strong>, caso isso fosse possível, seria identificar os<br />

artífices defensores desta pretensa essência e dessa pretensa autentici<strong>da</strong>de que se<br />

quer preservar. A que grupos sociais eles se vinculam e a que interesses eles<br />

serv<strong>em</strong>? Todo o esforço de <strong>construção</strong> de identi<strong>da</strong>de cultural t<strong>em</strong> como pano de<br />

fundo um universo de envolvimentos políticos, sendo, portanto, fruto de relações de<br />

poder que se estabelec<strong>em</strong> no campo cultural.<br />

Nesse sentido, o discurso que defende o resgate e a preservação de uma<br />

“autêntica” <strong>capoeira</strong> que ficou no passado, parte de três pr<strong>em</strong>issas que, segundo<br />

Vieira (1989), e também para nós, parec<strong>em</strong> equivoca<strong>da</strong>s: a) de que seria possível<br />

recuperar um passado que teria permanecido intacto e que estaria adormecido <strong>em</strong><br />

algum lugar, à espera de um dia ser redescoberto; b) de que se tirando ou<br />

subtraindo aspectos descaracterizadores <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> atual, iríamos chegar na<br />

autêntica <strong>capoeira</strong> e, finalmente, c) a de que os praticantes do passado sabiam<br />

exercitar a <strong>capoeira</strong> de forma correta enquanto os do presente não sab<strong>em</strong> praticá-la<br />

correta e autenticamente que precisam “resgatar” um passado cristalizado.<br />

76


Poderíamos acrescentar ain<strong>da</strong> que as boas intenções são insuficientes para<br />

restaurar e também para reparar o passado.<br />

É claro que, ao tentar jogar, hoje, a <strong>capoeira</strong> do passado, o <strong>capoeira</strong> não<br />

está jogando a “ver<strong>da</strong>deira” <strong>capoeira</strong> do passado, mas tentando jogá-la a partir <strong>da</strong>s<br />

referências de uma determina<strong>da</strong> época, vista aos olhos de hoje. Nesse sentido, o<br />

passado perpassa o presente, é tensionado por este e é reconstruído <strong>em</strong> articulação<br />

com a perspectiva de futuro. Essa articulação forma o “elo” que, por força <strong>da</strong><br />

m<strong>em</strong>ória, nos lega tradições. Questionamos aqui, ain<strong>da</strong>, qual o passado que se quer<br />

preservar. Muitas referências individuais e coletivas no contexto <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> são<br />

dignas de valorização e enaltecimento, mas a história está farta de episódios<br />

levados a cabo pelos <strong>capoeira</strong>s que, certamente, causariam t<strong>em</strong>or pela beligerância<br />

a que foram submetidos por ocasião de períodos conturbados <strong>da</strong> história política<br />

brasileira, como, por ex<strong>em</strong>plo, as guerrilhas urbanas promovi<strong>da</strong>s pelas maltas de<br />

<strong>capoeira</strong>s no Rio de Janeiro, ou as ações <strong>da</strong> t<strong>em</strong>ível “Guar<strong>da</strong> Negra”, uma<br />

associação de <strong>capoeira</strong>s, cria<strong>da</strong> <strong>em</strong> 1888 para defender o Trono <strong>da</strong> Princesa Isabel.<br />

Sob os auspícios de um juramento de morte, <strong>em</strong> defesa <strong>da</strong> Redentora, os<br />

<strong>capoeira</strong>s, que eram convencidos (forçados ou não) a apoiar a monarquia,<br />

dissolviam comícios públicos e faziam miséria nos combates que travavam com os<br />

apoiadores do regime republicano, ocasiões <strong>em</strong> que deixavam como saldo<br />

expressivo número de mortos e feridos. 46<br />

Vez por outra, somos surpreendidos por atitudes nas ro<strong>da</strong>s de <strong>capoeira</strong><br />

que procuram resgatar os gestos (às vezes até cacoetes) e expedientes típicos de<br />

46 A Guar<strong>da</strong> Negra era uma associação de negros livres e <strong>capoeira</strong>s que apoiavam a monarquia e se<br />

contrapunham, fun<strong>da</strong>mentalmente, aos republicanos. Defendiam, ferrenhamente, o Trono <strong>da</strong><br />

Princesa Isabel. Ajoelhados, com a mão direita sob o evangelho e olhos fixos na imag<strong>em</strong> de Cristo,<br />

os <strong>capoeira</strong>s prestavam o seguinte juramento: “Pelo sangue de minhas veias, pela felici<strong>da</strong>de de<br />

meus filhos, pela honra de minha mãe e pela pureza de minhas irmãs e, sobretudo por este Cristo<br />

que t<strong>em</strong> séculos, juro defender o trono de Isabel, a Redentora”.Ver mais a respeito <strong>em</strong> Rego (1968,<br />

p. 313-317); Ricci (1990).<br />

77


determinados padrões e contextos particulares. Muitas vezes, esse “resgate” se dá<br />

por uma tentativa de reprodução e imitação carrega<strong>da</strong> de forte apelo à preservação<br />

de determina<strong>da</strong>s tradições. Neste caso, estamos diante de clichês que não passam<br />

de caricaturas de aspectos <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de. Vieira (1989) destaca que um clichê é,<br />

grosso modo, uma imag<strong>em</strong> visual ou sonora estereotipa<strong>da</strong> que condensa um<br />

conjunto de características valorativas e substitui a crítica por frases e atitudes<br />

prontas e feitas. Em outras palavras, ao imitarmos gestos e procedimentos que se<br />

padronizaram e se consoli<strong>da</strong>ram <strong>em</strong> nosso repertório, tend<strong>em</strong>os a aceitá-los como<br />

inquestionáveis. Embora possamos reconstruí-los, ressignificá-los, <strong>em</strong> geral,<br />

acreditamos que eles já foram pensados e resolvidos por alguém mais capaz do que<br />

nós. Portanto, não nos cabe discutir, apenas repetir os clichês. Reforçamos o<br />

sentimento de s<strong>em</strong>pre estarmos distante do lugar onde se produz<strong>em</strong> idéias,<br />

culturas, gestos e valores, e, além disso, acreditamos que s<strong>em</strong>pre teve ou t<strong>em</strong> um<br />

outro ser mais capaz que deve ser copiado, imitado, reproduzido. Este sentimento<br />

de inferiori<strong>da</strong>de não é individual, mas coletivo, muito <strong>em</strong>bora se materialize nas<br />

ações individuais. A opção por negar este ou aquele clichê envolve complexos<br />

mecanismos psicológicos e sociais. “N<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre se reproduz um comportamento<br />

delibera<strong>da</strong>mente” (VIEIRA, 1989, p. 60). Muitas vezes, a reprodução de clichês se<br />

dá pela via inconsciente, o que fortalece a sua ação.<br />

A tentativa de preservar uma suposta essência <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> requer,<br />

necessariamente, um conjunto de normas, leis, valores, regras necessárias para a<br />

sua autopreservação, autolibertação e auto-afirmação. As suas possibili<strong>da</strong>des são,<br />

ao mesmo t<strong>em</strong>po, gloriosas e deploráveis. Sendo assim, ela se apresenta como<br />

uma “luta” que pode se voltar também contra si mesma. Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

propaga, através dos seus rituais e cânticos, os clamores e a luta pela liber<strong>da</strong>de,<br />

78


carrega, <strong>em</strong> seus m<strong>ea</strong>ndros, a potência negadora de to<strong>da</strong> a sua mensag<strong>em</strong> de<br />

libertação.<br />

A <strong>capoeira</strong> nos dias de hoje, pela sua própria dinâmica, pode ser defini<strong>da</strong><br />

como algo que defende e denuncia, ao mesmo t<strong>em</strong>po, a imposição, a libertação e a<br />

preservação de seus códigos e valores. Ela propaga, dialeticamente, a paz e o<br />

terror, o prazer e a revolta, a harmonia e a dissonância. A <strong>capoeira</strong>, ao longo de sua<br />

história, t<strong>em</strong> se mostrado imponderável, incomensurável, imprevisível, cujos<br />

conflitos tanto geram quanto ceifam vi<strong>da</strong>s nas relações do dia-a-dia.<br />

Ao tentar buscar uma tradição que teria ficado <strong>em</strong> um passado “glorioso”,<br />

o <strong>capoeira</strong> de hoje pode estar rompendo a conexão entre a cultura e a própria vi<strong>da</strong>,<br />

pelo fato de esquecer de pôr-se a si mesmo, reconhecendo-se como participante e<br />

protagonista do que fazer nos dias de hoje. Segundo Canclini (1997, p. 166),<br />

Nos processos sociais, as relações altamente ritualiza<strong>da</strong>s com um<br />

único e excludente patrimônio histórico – nacional ou regional –<br />

dificultam o des<strong>em</strong>penho <strong>em</strong> situações mutáveis, as aprendizagens<br />

autônomas e a produção de inovações. Em outras palavras, o<br />

tradicionalismo substancialista incapacita para viver no mundo<br />

cont<strong>em</strong>porâneo, que se caracteriza (...) por uma heterogenei<strong>da</strong>de,<br />

mobili<strong>da</strong>de e desterritorialização (CANCLINI, 1997, p.166).<br />

Não estamos defendendo, aqui, que não dev<strong>em</strong>os considerar a m<strong>em</strong>ória<br />

do passado, mas que os fatos sejam historicamente analisados a partir <strong>da</strong>s relações<br />

sociais concretamente trava<strong>da</strong>s na atuali<strong>da</strong>de. Além disso, conceb<strong>em</strong>os a noção de<br />

t<strong>em</strong>po a partir <strong>da</strong> perspectiva <strong>da</strong> circulari<strong>da</strong>de, cuja articulação de suas instâncias –<br />

passado, presente e futuro – se contrapõe à lógica <strong>da</strong> lin<strong>ea</strong>ri<strong>da</strong>de t<strong>em</strong>poral. Com<br />

efeito, o princípio <strong>da</strong> irreversibili<strong>da</strong>de do t<strong>em</strong>po, <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>aticamente enunciado já há<br />

tanto t<strong>em</strong>po pelo filósofo grego Heráclito, segundo o qual, ninguém pode se banhar<br />

duas vezes no mesmo rio, refuta a possibili<strong>da</strong>de de se imitar um passado,<br />

concebido a partir <strong>da</strong> perspectiva lin<strong>ea</strong>r de t<strong>em</strong>po.<br />

79


Perceb<strong>em</strong>os freqüent<strong>em</strong>ente, nos discursos de muitos <strong>capoeira</strong>s, um<br />

apelo à manutenção <strong>da</strong> tradição, via frases de efeito, entretanto, muitos deles são<br />

impregnados de contradições, e terminam por propagar uma <strong>capoeira</strong> prescritiva,<br />

normativa, enfim, coagula<strong>da</strong> <strong>em</strong> abstrações e id<strong>ea</strong>lismos cheios de ilusões e<br />

diss<strong>em</strong>ina<strong>da</strong> hipocritamente com o objetivo de atender interesses pessoais.<br />

Sendo assim, não dev<strong>em</strong>os falar de tradição como um imperativo absoluto<br />

e inalterável, mas como um movimento dialético <strong>em</strong> que a manutenção e a<br />

superação encontram-se <strong>em</strong> tensão permanente, formando um complexo circuito de<br />

continui<strong>da</strong>de e ruptura que se retroalimentam. Esse movimento dialético <strong>da</strong> tradição<br />

muitas vezes angustia aqueles que nostalgicamente buscam os traços cristalizados<br />

de determina<strong>da</strong>s manifestações culturais e não consegu<strong>em</strong> compreender a<br />

permanência do que mu<strong>da</strong> e a mu<strong>da</strong>nça do que permanece. Ad<strong>em</strong>ais, resta saber<br />

se algumas tradições requisita<strong>da</strong>s <strong>em</strong> alguns discursos ufanistas r<strong>ea</strong>lmente são<br />

resultado de ações coletivas sist<strong>em</strong>aticamente exercita<strong>da</strong>s ou se existiram <strong>em</strong><br />

determinados momentos “áureos” que muitos quer<strong>em</strong> resgatar. É corrente se ouvir<br />

nos “papoeiras”, que animam os bastidores de eventos, que Mestre Pastinha,<br />

considerado o maior guardião <strong>da</strong>s “tradições” <strong>da</strong> Capoeira Angola, utilizou<br />

castanholas e viola <strong>em</strong> ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong> (ver, também, PIRES, 2002, p. 79).<br />

Para clar<strong>ea</strong>r essas questões, Pereira e Gomes (2000) apresentam os<br />

conceitos de tradição nostálgica e tradição princípio. A tradição nostálgica se<br />

caracteriza pelo desejo de restaurar os eventos que marcam a vi<strong>da</strong> dos grupos,<br />

entra <strong>em</strong> choque com o novo e se aparta dele. A tradição princípio procura<br />

encontrar sentido nas interferências externas. Admite o conflito como alimento de<br />

sua ativi<strong>da</strong>de, não elegendo um t<strong>em</strong>po áureo ou de decadência, mas ativando a<br />

necessi<strong>da</strong>de de ficarmos atentos a um mecanismo que preserva e mu<strong>da</strong> o t<strong>em</strong>po e<br />

80


no t<strong>em</strong>po. Advert<strong>em</strong> que, freqüent<strong>em</strong>ente, esses conceitos são operados<br />

simultan<strong>ea</strong>mente e que precisamos de cautela no <strong>em</strong>prego do termo tradicional <strong>em</strong><br />

relação à cultura afro-brasileira, já que ela engloba, simultan<strong>ea</strong>mente, as noções de<br />

conservadorismo e dinamismo. “A observação deve estar atenta ao evento e ao<br />

princípio que o estrutura, pois <strong>em</strong> ambos a tradição se apresenta com sentidos<br />

diferentes. Ela, de múltiplas cabeças, sugere que também sejamos múltiplos na hora<br />

de apreendê-la” (op. cit, p. 49-50).<br />

Freqüent<strong>em</strong>ente, ouve-se <strong>da</strong> boca dos <strong>capoeira</strong>s mais nostálgicos: “a<br />

<strong>capoeira</strong> está perdendo a tradição!”, “já não se joga mais <strong>capoeira</strong> como<br />

antigamente!”. Os anseios destes discursos consideram tradição um estágio anterior<br />

ou uma produção intelectual id<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> imposta aos fenômenos culturais de fora<br />

para dentro, como uma projeção de desejos <strong>em</strong> se retornar a um paraíso perdido.<br />

Entretanto, um dos requisitos básicos para a existência <strong>da</strong> própria tradição situa-se<br />

na interlocução dialética entre preservação e mu<strong>da</strong>nça. Segundo Aguessy (apud<br />

PEREIRA e GOMES, 2000, p. 47),<br />

(...) a tradição, contrariamente à idéia fixista que se t<strong>em</strong> dela, não<br />

poderia ser a repetição <strong>da</strong>s mesmas seqüências; não poderia traduzir<br />

um estado imóvel <strong>da</strong> cultura que se transmite de uma geração para<br />

outra. A activi<strong>da</strong>de e a mu<strong>da</strong>nça estão na base do conceito de<br />

tradição (sic).<br />

Dev<strong>em</strong>os considerar que o eixo que identifica determina<strong>da</strong> tradição é plural.<br />

Essa mutiplici<strong>da</strong>de é determinante e não pode ser reduzi<strong>da</strong> a um olhar unitário de<br />

um observador à distância. Visto desta forma, a tradição é uma traição a si mesma,<br />

ou seja, evidencia apenas uma parte de todo um complexo <strong>jogo</strong>.<br />

Para Pereira e Gomes (2000), a tradição sustenta a elaboração de eventos<br />

culturais, mas não se limita a ser um deles. Vive neles e os supera. Afirma-os e os<br />

nega. Ela não está subordina<strong>da</strong> ao t<strong>em</strong>po lin<strong>ea</strong>r.<br />

81


Subordina<strong>da</strong> ao t<strong>em</strong>po lin<strong>ea</strong>r, a tradição passa a ser compreendi<strong>da</strong><br />

como sucessão de eventos regi<strong>da</strong> por uma norma que traça um<br />

caminho do período áureo para a decadência. Por isso, tradicionais e<br />

melhores eram as festas do passado, mais honestas e confiáveis<br />

eram as pessoas do passado e assim por diante (ibid., p. 49).<br />

Até b<strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po, o único meio de perpetuar determina<strong>da</strong>s<br />

manifestações culturais, dentre elas a <strong>capoeira</strong>, era a orali<strong>da</strong>de, ou seja, as<br />

tradições eram passa<strong>da</strong>s de boca a ouvido. A <strong>capoeira</strong>, já há algum t<strong>em</strong>po, v<strong>em</strong><br />

lançando mão de instituições formais que, de certa forma, garant<strong>em</strong> o importante<br />

papel de divulgação cultural. S<strong>em</strong> elas, esta manifestação teria se tornado apenas<br />

uma l<strong>em</strong>brança de um passado longínquo, uma vez que os seus mecanismos<br />

originais de transmissão se tornaram muito frágeis diante dos novos aparatos <strong>da</strong>s<br />

tecnologias de comunicação e informação.<br />

Destacamos que os olhares para as referências <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, originárias<br />

ou incorpora<strong>da</strong>s, dev<strong>em</strong> ser colocados <strong>em</strong> <strong>jogo</strong>. Em outras palavras, dev<strong>em</strong> ser<br />

probl<strong>em</strong>atizados, questionados, criticados, sob pena de cultivarmos posturas<br />

estereotipa<strong>da</strong>s, normatizadoras, alienantes. Daí que, para atender objetivos<br />

educacionais críticos, não basta exercitá-la, tomando como referência um aspecto<br />

que se pretende cultivar, n<strong>em</strong>, tampouco, ao sabor do momento. Para que o <strong>jogo</strong> se<br />

torne profícuo, torna-se necessário buscar um entendimento dos nexos e<br />

determinantes históricos que plasmaram suas configurações ao longo do seu<br />

desenvolvimento histórico para que possamos identificar el<strong>em</strong>entos, simbólicos e<br />

r<strong>ea</strong>is, de luta e resistência que a alçaram à condição de prática libertadora <strong>da</strong>s<br />

amarras impostas pela opressão dos dominantes e pelas amarras auto-impostas por<br />

força <strong>da</strong> ideologia, também dominante, que sutilmente amor<strong>da</strong>ça a sensibili<strong>da</strong>de e o<br />

espírito criativo.<br />

82


É no movimento do desenvolvimento desta manifestação cultural que<br />

vamos encontrar os el<strong>em</strong>entos estruturantes que contribuíram para a sua<br />

consoli<strong>da</strong>ção como prática que conserva ou se liberta do status quo. Por isso, se a<br />

resistência, que pressupõe ritmo próprio, modo peculiar de existir no t<strong>em</strong>po<br />

histórico, constitui-se num traço que povoou o discurso e as ações de <strong>capoeira</strong>s do<br />

passado, que esta possa ser potencializa<strong>da</strong> e amplia<strong>da</strong>, no discurso e nas ações, no<br />

sentido de incr<strong>em</strong>entar e articular lutas contra diferentes formas de opressão <strong>da</strong><br />

heg<strong>em</strong>onia capitalista <strong>em</strong> suas existências concretas.<br />

Se a orali<strong>da</strong>de também foi e continua sendo uma <strong>da</strong>s principais formas de<br />

acessar o conhecimento produzido e produzir novos conhecimentos no âmbito <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> e <strong>da</strong>s mais diferentes manifestações originárias <strong>da</strong> cultura afro-brasileira,<br />

por que não tratá-la pe<strong>da</strong>gogicamente, como uma <strong>da</strong>s mais importantes formas de<br />

comunicação humana que v<strong>em</strong> sendo despreza<strong>da</strong> <strong>em</strong> detrimento de outras formas<br />

tecnologiza<strong>da</strong>s de expressão e comunicação?<br />

Um brasileiro que soube muito b<strong>em</strong> utilizar a orali<strong>da</strong>de como possibili<strong>da</strong>de<br />

pe<strong>da</strong>gógica foi Paulo Freire. Ao sugerir a dialogici<strong>da</strong>de como uma possibili<strong>da</strong>de<br />

essencial <strong>da</strong> educação como prática de liber<strong>da</strong>de, Paulo Freire r<strong>ea</strong>firma, sob os<br />

auspícios de um meticuloso e mundialmente reconhecido trabalho, o poder e o valor<br />

pe<strong>da</strong>gógico <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de. Não uma orali<strong>da</strong>de (dialogici<strong>da</strong>de) como um meio, mas<br />

como um fenômeno humano, “uma interação tão radical que, sacrifica<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong> que<br />

<strong>em</strong> parte, uma delas se ressente, imediatamente, a outra” (FREIRE, 1987, p. 77).<br />

As contribuições de Paulo Freire, sintoniza<strong>da</strong>s com o seu t<strong>em</strong>po, além de<br />

contribuír<strong>em</strong> teórica e pe<strong>da</strong>gogicamente para uma utilização qualitativa <strong>da</strong><br />

orali<strong>da</strong>de, através do diálogo humanizador, afirmam o compromisso com os<br />

oprimidos no processo inarredável de luta pela libertação de todos, reconhecendo,<br />

83


entretanto, que é praticamente impossível fazer um diálogo amigável num contexto<br />

de extr<strong>em</strong>a desigual<strong>da</strong>de.<br />

1.6. A Capoeira Como Sist<strong>em</strong>a de Significação R<strong>ea</strong>lizado a Partir <strong>da</strong><br />

Abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> Cultural<br />

A probl<strong>em</strong>atização do conceito de cultura 47 t<strong>em</strong> contribuído para<br />

alavancar intensos debates teóricos no âmbito <strong>da</strong>s ciências sociais. Os discursos<br />

maniqueístas instaurados <strong>em</strong> relação a esse conceito não são suficientes para<br />

compreender a sua dinâmica na cont<strong>em</strong>poranei<strong>da</strong>de. Para Williams (1992), a busca<br />

de um conceito de cultura é eiva<strong>da</strong> de dificul<strong>da</strong>des e complexi<strong>da</strong>des, <strong>em</strong>bora<br />

devamos examinar a possibili<strong>da</strong>de de construir um conceito que seja capaz de<br />

indicar to<strong>da</strong>s as suas complexas inter-relações. O vigor desse conceito, expresso<br />

pela ampla gama de sentidos que ele abarca, indo desde “modos de vi<strong>da</strong> globais”<br />

até “estados de espírito” e “obras de arte”, constitui-se, muitas vezes, para Williams<br />

(1992), na sua fragili<strong>da</strong>de, à medi<strong>da</strong> que sua insistência nas inter-relações pode<br />

tornar-se passiva, ou inteiramente desconcertante, devido às possibili<strong>da</strong>des<br />

simultân<strong>ea</strong>s que apresenta de uma generali<strong>da</strong>de por d<strong>em</strong>ais ampla e de uma<br />

especiali<strong>da</strong>de por d<strong>em</strong>ais estreita. Para evitar essas discrepâncias, sugere que o<br />

conceito de cultura deva ser especificado e fortalecido como um “sist<strong>em</strong>a de<br />

significações r<strong>ea</strong>lizado” (WILLIAMS, 1992, p. 206).<br />

Para o referido autor, é possível distinguir e discutir, <strong>em</strong> seus próprios<br />

termos, sist<strong>em</strong>as econômicos, políticos, e geracionais (de parentesco e de família),<br />

mas quando tentamos inter-relacioná-los, descobrimos que, apesar de ca<strong>da</strong> um<br />

deles possuir seu próprio sist<strong>em</strong>a de significações, são “el<strong>em</strong>entos de um sist<strong>em</strong>a<br />

47 - O conceito de cultura é bastante polêmico e apresenta diferentes significados na literatura<br />

acadêmica. Ver, por ex<strong>em</strong>plo, Chaui (1989), Laraia (1986), Santos (1983) e Williams (1992).<br />

84


de significação mais amplo e mais geral, na ver<strong>da</strong>de, um sist<strong>em</strong>a social”<br />

(WILLIAMS, op. cit., p. 206).<br />

Nesse sentido, a distinção <strong>da</strong> cultura, no sentido mais amplo ou mais<br />

restrito, como um “sist<strong>em</strong>a de significações r<strong>ea</strong>lizado”, possibilita, não somente o<br />

estudo de instituições, práticas e obras manifestamente significativas, mas permite e<br />

estimula também, o estudo <strong>da</strong>s inter-relações entre essas e outras instituições,<br />

práticas e obras.<br />

Esse uso prático operacional do conceito de cultura, utilizado por Williams<br />

(1992), evita um tratamento muito generalizado e impede que aspectos significativos<br />

de manifestações específicas sejam negligenciados. Essa conceituação de cultura<br />

formula<strong>da</strong> por Williams e entendi<strong>da</strong> como um “sist<strong>em</strong>a de significação r<strong>ea</strong>lizado” não<br />

se ajusta a análises isola<strong>da</strong>s desenvolvi<strong>da</strong>s na ord<strong>em</strong> social capitalista, que<br />

fragmenta e/ou isola as dimensões <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social <strong>em</strong> fatores políticos, econômicos,<br />

privados, espirituais etc., como se eles não se inter-relacionass<strong>em</strong>.<br />

Dois ex<strong>em</strong>plos citados por Williams (1992) ilustram essa probl<strong>em</strong>ática: a<br />

moe<strong>da</strong> e a moradia. Embora a moe<strong>da</strong> possa ser analisa<strong>da</strong> sob diversos pontos de<br />

vista, como o estético, o ético, o histórico etc., não há dúvi<strong>da</strong> alguma que o seu fator<br />

significativo é atender as necessi<strong>da</strong>des de trocas comerciais e de pagamento. No<br />

caso <strong>da</strong> moradia, cujo fator significativo é a necessi<strong>da</strong>de fun<strong>da</strong>mental de abrigo, ela<br />

pode ser analisa<strong>da</strong> sob diversos prismas vinculados às questões de natureza<br />

estética, de segurança, de estilo de vi<strong>da</strong>, de conforto etc. Os fatores significativos<br />

que determinam esses bens culturais, ain<strong>da</strong> que implícitos, são freqüent<strong>em</strong>ente<br />

negligenciados nas análises fragmenta<strong>da</strong>s.<br />

Os recentes estudos <strong>da</strong> Antropologia Social vêm contribuindo para o<br />

questionamento de visões fragmentárias que tentam explicar a complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

85


experiência humana, muitas vezes reduzi<strong>da</strong>s ao que Geertz (1989) denominou de<br />

uma “concepção estratigráfica” de hom<strong>em</strong>, que parte do princípio que o mesmo é<br />

envolto <strong>em</strong> várias cama<strong>da</strong>s justapostas, indo <strong>da</strong> mais interior, a biológica, passando<br />

pela psicológica, a social e, finalmente, a cultural.<br />

Essa visão fragmentária de hom<strong>em</strong> foi que fun<strong>da</strong>mentou as bases<br />

originais de várias ár<strong>ea</strong>s do conhecimento, como a Medicina e a Educação Física,<br />

por ex<strong>em</strong>plo. Durante muito t<strong>em</strong>po, advogou-se a existência de uma natureza<br />

humana, essencialmente centra<strong>da</strong> no biológico. Mas, desde princípios do século XX,<br />

as contribuições <strong>da</strong> Antropologia Social, <strong>da</strong> Psicologia Social e <strong>da</strong> Arqueologia vêm<br />

esclarecendo e ampliando o entendimento do ser humano. O antropólogo francês<br />

Marcel Mauss, <strong>em</strong> conferência r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> <strong>em</strong> 1935, já questionava esse<br />

reducionismo. Ele definia as “técnicas corporais” como “(...) as maneiras como os<br />

homens, socie<strong>da</strong>de por socie<strong>da</strong>de, e de maneira tradicional, sab<strong>em</strong> servir-se de<br />

seus corpos” (MAUSS, 1974, p. 211). Em outras palavras, ele se arvorou <strong>em</strong> afirmar<br />

que um gesto corporal (humano) intencional é, essencialmente, um gesto cultural.<br />

Para ele, o corpo (o ser humano) aprende, e é a socie<strong>da</strong>de específica, com sua<br />

experiência acumula<strong>da</strong> <strong>em</strong> seus diferentes momentos históricos, que o ensina<br />

(MAUSS, 1974). Esse pressuposto ratifica a indissociabili<strong>da</strong>de entre corpo e mente<br />

e delega à cultura, como um sist<strong>em</strong>a de significação r<strong>ea</strong>lizado, a condição de fator<br />

estruturante desse aprendizado. Sendo assim, não faz sentido falar de uma técnica<br />

considera<strong>da</strong> perfeita ou correta, tão cara à Educação Física Tecnicista, senão num<br />

contexto e numa situação devi<strong>da</strong>mente delimitados. O primado <strong>da</strong> eficiência do<br />

gesto corporal, seja do ponto de vista biomecânico, fisiológico ou de rendimento,<br />

v<strong>em</strong> impulsionando a indústria esportiva mundial e contribuindo para a consoli<strong>da</strong>ção<br />

de uma biologização <strong>da</strong>s técnicas corporais e para uma naturalização e<br />

86


universalização do corpo humano s<strong>em</strong> precedente na história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de.<br />

Parte-se do princípio de que se o corpo é o conjunto de ossos, músculos e<br />

articulações, todos os corpos são iguais, por possuír<strong>em</strong> essa composição.<br />

Desconsidera-se a eficácia simbólica, ou seja a maneira como as pessoas li<strong>da</strong>m,<br />

culturalmente, com os gestos corporais.<br />

Outra questão recorrente, diz respeito à ain<strong>da</strong> difundi<strong>da</strong> idéia de<br />

desenvolvimento evolutivo do ser humano. Com o advento do culturalismo no<br />

pensamento antropológico, a idéia de hierarquização do desenvolvimento humano<br />

cai por terra. O cérebro não se desenvolve primeiro para depois produzir cultura. Na<br />

ver<strong>da</strong>de o que acontece é uma simultanei<strong>da</strong>de entre o desenvolvimento biológico e<br />

o cultural, com influências mútuas (GEERTZ, 1989). É humanamente impossível<br />

“descascar” o hom<strong>em</strong> e retirar uma a uma ca<strong>da</strong> cama<strong>da</strong>, até chegar numa suposta<br />

base comum - a sua orig<strong>em</strong> biológica. A natureza e a cultura humanas são<br />

compl<strong>em</strong>entares e indissociáveis. Kosik (1976, p. 246-147) nos diz que:<br />

O hom<strong>em</strong> não vive <strong>em</strong> duas esferas diferentes, não habita, por uma<br />

parte do seu ser, na história, e pela outra, na natureza. Como hom<strong>em</strong><br />

ele está junta e concomitant<strong>em</strong>ente na natureza e na história. Como<br />

ser histórico e, portanto social, ele humaniza a natureza, mas também<br />

a conhece e reconhece como totali<strong>da</strong>de absoluta, como causa sui<br />

suficiente a si mesma, como condição e pressuposto <strong>da</strong><br />

humanização.<br />

Concor<strong>da</strong>ndo com as afirmações de Marcel Mauss, Daolio (1997, p. 75)<br />

assevera que “a natureza do hom<strong>em</strong> é ser um ser cultural. Esta natureza cultural<br />

não exclui o desenvolvimento biológico, mas o engloba, já que não existe cultura<br />

s<strong>em</strong> um sist<strong>em</strong>a nervoso humano e não existiria sist<strong>em</strong>a nervoso humano s<strong>em</strong><br />

cultura”.<br />

Uma prática pe<strong>da</strong>gógica trata<strong>da</strong> sob o enfoque cultural supera a falsa<br />

oposição existente entre a natureza e a cultura humanas, responsável por uma série<br />

de abusos e absurdos pe<strong>da</strong>gógicos, como por ex<strong>em</strong>plo, a biologização <strong>da</strong> Educação<br />

87


Física, que trata as diferenças entre os estu<strong>da</strong>ntes a partir <strong>da</strong> natureza anatômica<br />

dos seus corpos; “uns são naturalmente melhores, mais fortes, mais capazes e<br />

outros são naturalmente piores, mais fracos, menos capazes” (DAOLIO, 1993).<br />

Ár<strong>ea</strong>s de conhecimento específicas dão ênfase a diferentes aspectos <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de<br />

social concretamente vivi<strong>da</strong> pelo ser humano, no entanto, essas especifici<strong>da</strong>des<br />

jamais dev<strong>em</strong> negar a complexa e indissociável integração entre aspectos<br />

biológicos e culturais <strong>em</strong> suas experiências concretas. Nesse sentido, Daolio (1997,<br />

p. 76) destaca que “a biologia compreende o hom<strong>em</strong> a partir de suas s<strong>em</strong>elhanças e<br />

apesar de suas diferenças, enquanto a antropologia compreende o hom<strong>em</strong> a partir<br />

de suas diferenças e apesar de suas s<strong>em</strong>elhanças”.<br />

As controvérsias entre natureza e cultura são r<strong>em</strong>iniscências do dualismo<br />

cartesiano que, <strong>em</strong> síntese, cinde o “Hom<strong>em</strong>” <strong>em</strong> duas substâncias distintas, a res<br />

cogitans, substância não extensa e pensante e res extensa ou corpo. Dualismo este<br />

que, mesmo sendo uma abstração, resiste às mais avança<strong>da</strong>s descobertas<br />

arqueológicas e reflexões filosóficas, que tratam essas duas substâncias como<br />

reciprocamente dependentes e irredutíveis.<br />

Freqüent<strong>em</strong>ente deparamo-nos com uma avalanche de “conceitos” de<br />

cultura que não levam <strong>em</strong> consideração a complexi<strong>da</strong>de dos fenômenos humanos.<br />

Muitas vezes, eles são formulados a partir de lógicas equivoca<strong>da</strong>mente<br />

classificatórias que procuram explicar, s<strong>em</strong> compreender o sentido essencialmente<br />

complexo e contraditório <strong>da</strong>s ações humanas. Compreender a cultura é<br />

dialeticamente apreender o seu substrato, através <strong>da</strong> interpretação ou vivência,<br />

assim como o seu sentido, por meio <strong>da</strong> percepção <strong>em</strong>ocional. É essa operação<br />

dialética que consegue apreender uma “ver<strong>da</strong>de cultural”. Talvez, para isso, seja<br />

mais coerente situar a compreensão <strong>da</strong> dinâmica cultural na incerteza <strong>em</strong> relação<br />

88


ao seu sentido, com a necessária d<strong>em</strong>olição de oposições abruptas que reduz<strong>em</strong> e<br />

limitam suas interpretações. Convém destacar que os discursos e as teorias s<strong>em</strong>pre<br />

estão situados no âmbito de um <strong>jogo</strong> político que v<strong>em</strong> mostrando claramente a<br />

insustentabili<strong>da</strong>de de posturas puristas, seja do ponto de vista étnico, de classe ou<br />

de nação.<br />

Mais do que incorporar a diversi<strong>da</strong>de, McLaren (2000) propõe que se vá<br />

além. Muitas vezes, os discursos que tratam <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de serv<strong>em</strong> como apoio aos<br />

modelos d<strong>em</strong>ocráticos neoliberais de identi<strong>da</strong>de galgados nos pressupostos <strong>da</strong><br />

assimilação e do consenso. Diversi<strong>da</strong>de não é algo que se reduz a proclamações<br />

básicas, regras, comando e leis. Ela é s<strong>em</strong>pre contingente e relacional. Nesse<br />

sentido, o referido autor sugere, para ser incorporado ao conceito de hibridismo, um<br />

“qualificador nominal ideológico tácito”, e propõe hibridismo pós-colonial que, ao<br />

contrário do hibridismo metropolitano, que para ele constitui uma “forma lúdica de<br />

autoproclamação extravagante”, é capaz de “constituir um modo crítico identitário”.<br />

Diante dessas considerações, propugnamos um entendimento de cultura<br />

como a produção material e espiritual <strong>da</strong> existência humana, num sentido amplo que<br />

engloba aspectos fisiológicos, psicológicos, filosóficos, antropológicos, políticos e<br />

sociais, significando, portanto, compreendê-la como um conjunto de mecanismos de<br />

controle do comportamento e modeladores de subjetivi<strong>da</strong>de.<br />

Consideramos que a análise de um fenômeno a partir do enfoque cultural<br />

(inter, multi, trans) pode ter conseqüências que extrapolam o próprio âmbito <strong>da</strong><br />

investigação. Pode contribuir para a <strong>construção</strong> de processos políticos e<br />

pe<strong>da</strong>gógicos mais sintonizados com a cont<strong>em</strong>poranei<strong>da</strong>de e, com isso, entender<br />

melhor as razões pelas quais tanto as cama<strong>da</strong>s populares quanto as elites<br />

combinam a d<strong>em</strong>ocracia moderna com relações arcaicas de poder. Ou então, pode<br />

89


levar ao entendimento de como alguns “educadores populares” reproduz<strong>em</strong>,<br />

arbitrária e autoritariamente, determina<strong>da</strong>s tradições culturais, evidenciando que o<br />

que fica <strong>da</strong>s gerações que passam é a cultura <strong>em</strong> suas diferentes dimensões,<br />

mesmo que seja perversa e desestruturante.<br />

No bojo desta reflexão, Canclini (1997) questiona: “como entender o<br />

encontro do artesanato indígena com catálogos de arte de vanguar<strong>da</strong> sobre a mesa<br />

<strong>da</strong> televisão?” “O que buscam os pintores quando citam no mesmo quadro imagens<br />

pré-colombianas, coloniais e <strong>da</strong> indústria cultural; quando as reelaboram usando<br />

computadores e laser?” Poderíamos perguntar também: Como compreender a<br />

coexistência de equipamentos eletrônicos sofisticadíssimos de um estúdio de<br />

gravação com berimbaus e atabaques de fabricação artesanal, de cuja hibri<strong>da</strong>ção<br />

resultam compact discs que, posteriormente, servirão como instrumento pe<strong>da</strong>gógico<br />

nas aulas de <strong>capoeira</strong>, tanto <strong>da</strong>s acad<strong>em</strong>ias <strong>da</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des como nas de<br />

fundo de quintal? Como compreender a música nativa se cruzando, sincreticamente,<br />

com as novas tecnologias oferecendo panoramas sonoros totalmente<br />

surpreendentes e sedutores?<br />

A partir desta perspectiva torna-se necessário colocar <strong>em</strong> <strong>jogo</strong> não só os<br />

conceitos cristalizados, “in vitro”, mas também as estruturas de poder sob as quais<br />

eles foram impl<strong>em</strong>entados e defendidos como ver<strong>da</strong>des absolutas. É impossível<br />

defender que existam conceitos imunes ao tecido social. Afinal, a base <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong> globaliza<strong>da</strong> é, segundo Canevacci (2000), a “metropolização” plural,<br />

descentraliza<strong>da</strong> e conflituosa. Nenhuma cultura pode declarar-se fora desta nova<br />

lógica, à medi<strong>da</strong> que “não possui os muros limites para constituir a sua identi<strong>da</strong>de<br />

fixa no espaço, mas caracteriza-se por um mutante fluxo comunicativo”<br />

(CANEVACCI, 2000, p. 122).<br />

90


Esta r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de influencia fort<strong>em</strong>ente as filosofias pós-modernas que, ao<br />

desacreditar<strong>em</strong> nos movimentos culturais que auspiciam utopias, se caracterizam<br />

pela increduli<strong>da</strong>de <strong>em</strong> relação às metanarrativas. Propagam um apreço pelo<br />

instantâneo <strong>da</strong>s alteri<strong>da</strong>des, pelo aqui e o agora, por um “insuportável presentismo”<br />

(HOBSBAWM, 1995), onde ca<strong>da</strong> um, no seu limite, t<strong>em</strong> sua ver<strong>da</strong>de igualmente<br />

váli<strong>da</strong>. Segundo Frigotto (1998, p. 32),<br />

Isto, de imediato, nos indica que o caminho de colocar-se a favor ou<br />

contra, pura e simplesmente, desta perspectiva, é um caminho estéril.<br />

Mais fecundo é o caminho que busca compreender historicamente e,<br />

portanto, criticamente, as diferentes manifestações, no plano<br />

epist<strong>em</strong>ológico e político, <strong>da</strong> pós-moderni<strong>da</strong>de.<br />

As argumentações teóricas, no campo dos estudos culturais, por mais que<br />

explicit<strong>em</strong> determina<strong>da</strong>s facetas dos fenômenos, suas inquietudes dificilmente serão<br />

apreendi<strong>da</strong>s <strong>em</strong> sua totali<strong>da</strong>de por três motivos básicos: a) seu caráter<br />

essencialmente aberto e <strong>em</strong> permanente modificação, b) a incerteza e incompletude<br />

que caracteriza to<strong>da</strong> ação cultural, e c) a liber<strong>da</strong>de de acrescentar ou retirar<br />

aspectos que não quer<strong>em</strong>os carregar.<br />

Considerando a complexi<strong>da</strong>de e a abrangência do conceito de cultura,<br />

convém situá-lo no bojo do processo civilizatório procurando entender a cultura<br />

como a rede teci<strong>da</strong> pela ativi<strong>da</strong>de humana <strong>em</strong> suas complexas e imbrica<strong>da</strong>s<br />

relações. Sendo assim, na<strong>da</strong> mais oportuno do que decifrar os mecanismos que<br />

engendram a lógica do capital que se tornou mundialmente heg<strong>em</strong>ônica e a sua<br />

cultura, a capitalista, que a alicerça e sustenta.<br />

O movimento do desenvolvimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> nos mostra a fragili<strong>da</strong>de de<br />

tratá-la pe<strong>da</strong>gógica e culturalmente a partir de visões classificatórias, essencialistas,<br />

puristas, normatizantes e exotizantes, típicas do começo do século XX, quando a<br />

ideologia <strong>da</strong> purificação <strong>da</strong> raça e <strong>da</strong> cultura, a partir de uma referência européia,<br />

91


era fun<strong>da</strong>nte. Se, àquela época, a elite brasileira queria transformar o Rio de Janeiro<br />

numa “Paris dos Trópicos”, desalojando as cama<strong>da</strong>s populares do centro para a<br />

periferia, promovendo uma espécie de assepsia cultural, hoje essa mesma elite se<br />

deleita com as diversas manifestações culturais anteriormente reprimi<strong>da</strong>s, como o<br />

samba e a <strong>capoeira</strong>.<br />

Talvez, por isso, o conceito de cultura popular, tal como é<br />

heg<strong>em</strong>onicamente difundido no mundo acadêmico, não seja apropriado para<br />

explicar uma manifestação tão complexa como a <strong>capoeira</strong>. Cert<strong>ea</strong>u (1995) destaca<br />

que a “chama<strong>da</strong> cultura popular” é um crivo dos ilustrados do final do século XVIII<br />

que, a partir de procedimentos “científicos”, tentavam, com um certo entusiasmo,<br />

caracterizar e restaurar o suposto exotismo e o purismo original que fluía nos<br />

campos desde os t<strong>em</strong>pos mais antigos, com pessoas simples, laboriosas, castas,<br />

singelas, felizes, doces, cândi<strong>da</strong>s, espontân<strong>ea</strong>s, ingênuas, honra<strong>da</strong>s e pacíficas,<br />

onde o prêmio mais singelo era concedido à inocência mais pura.<br />

Para Cert<strong>ea</strong>u (1995), essa id<strong>ea</strong>lização do popular é tanto mais fácil<br />

quando se efetua sob a forma do monólogo. “Se o povo não fala, pelo menos pode<br />

cantar”. Suas melodias “ingênuas” fun<strong>da</strong>m uma concepção elitista <strong>da</strong> cultura.<br />

A <strong>capoeira</strong>, assim como outras manifestações considera<strong>da</strong>s oriun<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s<br />

“classes populares”, evidenciou a improprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> categoria “cultura popular” para<br />

explicar o seu complexo desenvolvimento.<br />

Se, por um lado, muitos mestres ain<strong>da</strong> insist<strong>em</strong> <strong>em</strong> preservá-la como uma<br />

criança, <strong>em</strong> sua pureza original, livre dos valores perniciosos <strong>da</strong> cultura erudita, por<br />

outro lado, as evidências apontam que ela se regenerou ao olhar <strong>da</strong> classe<br />

dominante, se metropolizou, na visão dos culturalistas, dilatou-se, descartando<br />

92


categorias harmônicas, conciliadoras, compatibilizadoras para a análise do seu<br />

trato.<br />

No seu desenvolvimento, ela incorporou hibridismos, estranhas conexões<br />

e diálogos dissonantes. A <strong>capoeira</strong> é hoje, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, policêntrica e polifônica e<br />

não se acomo<strong>da</strong> às formas de pensamentos maniqueístas (natureza - cultura, o<br />

b<strong>em</strong> – o mal etc.). Nesse fluxo plural de hibridismos e dissonâncias, ela escamoteia<br />

el<strong>em</strong>entos “originários” ou “nativos” que muitos quer<strong>em</strong> capturar. Ela se manifesta<br />

obscura, incerta, opaca, ambígua e contraditória; encaixando-se e desencaixando-<br />

se <strong>da</strong>s fronteiras identitárias, sejam elas raciais, étnicas ou de nação.<br />

Por isso, a perspectiva de análise cartesiana que simplifica, decompõe,<br />

desmonta o todo <strong>em</strong> partes el<strong>em</strong>entares, na tentativa de encontrar nela uma<br />

transparência não consegue explicitar a sua complexi<strong>da</strong>de. Talvez seja mais<br />

oportuno probl<strong>em</strong>atizar e verificar o alcance dos agenciamentos protagonizados<br />

pelos <strong>capoeira</strong>s, para compreendermos como se opera a <strong>construção</strong> e a destruição<br />

<strong>da</strong>s fronteiras e limites engendrados nos seus discursos e nas suas práticas, enfim,<br />

na <strong>práxis</strong>.<br />

Segundo Canclini (1997, p. 19): “assim como não funciona a oposição<br />

abrupta entre o tradicional e o moderno, o culto, o popular e o massivo não estão<br />

onde estamos habituados a encontrá-los”. O fato é que os seres humanos vão<br />

fazendo e refazendo coisas, criando e recriando formas de ser e estar no mundo e<br />

tudo isso faz parte deste grande <strong>jogo</strong> que é a vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> socie<strong>da</strong>de. Neste <strong>jogo</strong>, o<br />

<strong>em</strong>bate entre tradição e moderni<strong>da</strong>de, entre o velho e o novo, constitui-se <strong>em</strong> uma<br />

tática de difícil entendimento, <strong>da</strong><strong>da</strong> a conflituosi<strong>da</strong>de com a qual ela opera. Tradição<br />

e moderni<strong>da</strong>de compõ<strong>em</strong> um denso tecido de discursos e, freqüent<strong>em</strong>ente, se<br />

verifica nestes uma tensão eiva<strong>da</strong> de simbologia e poder.<br />

93


Colocar <strong>em</strong> <strong>jogo</strong> essas questões sobre cultura, tradição e moderni<strong>da</strong>de<br />

contribui para um maior entendimento do significado <strong>da</strong>s manifestações culturais e a<br />

influência delas <strong>em</strong> nossas vi<strong>da</strong>s, e t<strong>em</strong> servido para explicitar, também, as<br />

contradições que permeiam a aventura humana.<br />

1.7. A Esportivização <strong>da</strong> Capoeira: A Trama do Poder <strong>em</strong> Jogo<br />

O tratamento esportivo dispensado à <strong>capoeira</strong> foi, ao longo dos t<strong>em</strong>pos,<br />

incr<strong>em</strong>entado por algumas ações institucionais, como, por ex<strong>em</strong>plo, os<br />

campeonatos organizados pela Confederação Brasileira de Pugilismo (CBP), pela<br />

Confederação Brasileira de Capoeira (CBC) 48 e pelos Jogos Escolares Brasileiros<br />

(JEB’s).<br />

A Confederação Brasileira de Capoeira (CBC) apresenta-se como a<br />

principal enti<strong>da</strong>de nesse processo ao incorporar institucionalmente os princípios do<br />

esporte de rendimento (a competição, o recorde, a racionalização e a cientifização<br />

do treinamento) no seio <strong>da</strong> manifestação.<br />

Ao analisar as relações <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> com os códigos do esporte<br />

institucionalizado, pod<strong>em</strong>os afirmar que, ao contrário do esporte, cuja mensag<strong>em</strong><br />

principal está centra<strong>da</strong> nos princípios básicos <strong>da</strong> sobrepujança e <strong>da</strong>s comparações<br />

objetivas, que têm como conseqüência imediata o selecionamento, a especialização<br />

e a instrumentalização (Kunz, 1991), algumas referências históricas <strong>em</strong>buti<strong>da</strong>s nos<br />

gestos, rituais e cânticos <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> suger<strong>em</strong> indeterminação, ruptura e<br />

ambigüi<strong>da</strong>de, onde a arte e a improvisação, ao refletir<strong>em</strong> uma visão própria de<br />

mundo, incompatibilizam a padronização e o regramento, dificultando a comparação<br />

objetiva e outros aspectos tão caros à lógica <strong>da</strong> esportivização.<br />

48 Entre 1º de janeiro de 1973 e 23 de outubro de 1992, a <strong>capoeira</strong> esteve vincula<strong>da</strong> à Confederação<br />

Brasileira de Pugilismo (CBP). Em 1992, foi fun<strong>da</strong><strong>da</strong> a Confederação Brasileira de Capoeira (CBC).<br />

94


Não obstante, esse processo v<strong>em</strong> sendo incr<strong>em</strong>entado no âmbito <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, tanto no Brasil, quanto no mundo afora, evidenciando a influência e o<br />

poder que o esporte institucionalizado opera <strong>em</strong> vários campos <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des<br />

humanas. A intensificação do mesmo no contexto <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> deu-se a partir <strong>da</strong><br />

déca<strong>da</strong> de 1970, por ocasião <strong>da</strong> vinculação dessa manifestação à Confederação<br />

Brasileira de Pugilismo (CBP). Nesse sentido, ela v<strong>em</strong> paulatinamente se<br />

incorporando ao rol <strong>da</strong>s mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des esportivas pratica<strong>da</strong>s nas escolas, clubes e<br />

acad<strong>em</strong>ias do Brasil e do mundo.<br />

Algumas questões pr<strong>em</strong>entes se colocam diante desse processo, dentre<br />

elas: Como v<strong>em</strong> se operando a crítica ao fenômeno esportivo, na condição de<br />

expressão heg<strong>em</strong>ônica <strong>da</strong> cultura corporal? Quando e como se deram os primeiros<br />

contatos <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> com as instituições esportivas brasileiras? Quais e como se<br />

desenvolveram os mecanismos de institucionalização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como prática<br />

esportiva? Como se caracterizam as relações entre <strong>capoeira</strong> e as instituições<br />

responsáveis por sua normatização esportiva?<br />

O esporte é um dos mais expressivos fenômenos deste século. Na esteira<br />

do capitalismo, expandiu-se a partir <strong>da</strong> Europa para todo o mundo e se transformou<br />

<strong>em</strong> expressão heg<strong>em</strong>ônica no âmbito <strong>da</strong> cultura corporal. O montante de dinheiro<br />

que circula <strong>em</strong> torno do esporte só é menor do que o que gira <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> indústria<br />

bélica. Para se ter uma noção <strong>da</strong> magnitude desse fenômeno pod<strong>em</strong>os destacar,<br />

por ex<strong>em</strong>plo, o fato de que a FIFA (Federation International Football Association)<br />

t<strong>em</strong> mais representações filia<strong>da</strong>s (duzentos e três, no total) do que a ONU<br />

(Organização <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s) (cento e oitenta e cinco, no total). A FIFA<br />

conseguiu incorporar a China, s<strong>em</strong> expulsar Taiwan dos seus quadros. A Palestina,<br />

95


que não existe na condição de estado-nação e não t<strong>em</strong> um território de contornos<br />

universalmente aceitos, associou-se à FIFA durante a Copa <strong>da</strong> França de 1998.<br />

A magnitude e expansão do fenômeno esportivo na Europa, do século<br />

XVIII, foi tamanha que praticamente todos os países foram forçados a introduzir o<br />

termo “sport” <strong>em</strong> suas línguas nativas. Provavelmente, um dos poucos fenômenos,<br />

àquela época, que migrou com tão poucas mu<strong>da</strong>nças de um país para outro. Com<br />

seus signos, linguagens e símbolos que encantam multidões, já serviu e ain<strong>da</strong> serve<br />

às mais díspares ideologias.<br />

Numa visão menos elabora<strong>da</strong>, esporte significa qualquer forma de<br />

exercitação física (<strong>jogo</strong>s, lutas, <strong>da</strong>nças e ginástica) cujo objetivo, para muitos, está<br />

associado a uma compensação do desgaste sofrido <strong>em</strong> decorrência do trabalho; ou<br />

então, a uma forma de canalizar o comportamento agressivo, ou ain<strong>da</strong>, a uma forma<br />

de satisfazer a necessi<strong>da</strong>de de pertencimento a um coletivo.<br />

No sentido de entender melhor esse fenômeno, convém destacar que o<br />

esporte, tal como conhec<strong>em</strong>os nos dias de hoje, é resultado de um complexo<br />

processo de modificação de <strong>jogo</strong>s <strong>da</strong> cultura corporal, que teve orig<strong>em</strong> na Inglaterra,<br />

no século XVIII, <strong>em</strong> decorrência <strong>da</strong> industrialização e <strong>da</strong> urbanização que levaram a<br />

novos padrões de vi<strong>da</strong>. (DUNNING apud BRACHT, 1997, p. 10).<br />

Assim como aconteceu com a <strong>capoeira</strong> no Brasil, os <strong>jogo</strong>s populares, na<br />

Inglaterra, foram alvos de repressão política, uma vez que eram percebidos como<br />

am<strong>ea</strong>ça à proprie<strong>da</strong>de e à ord<strong>em</strong> pública. Tais <strong>jogo</strong>s expressavam a filosofia e a<br />

cultura de seus criadores e estavam intimamente ligados a festas (de colheitas,<br />

religiosas etc.) e a outras instâncias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social, como ao trabalho e ao lazer.<br />

Estas características destoavam do modo de ser e de viver <strong>da</strong> burguesia inglesa, fiel<br />

ao cumprimento de regras sociais, morais e físicas.<br />

96


Nas escolas públicas (public schools), que não representavam uma<br />

am<strong>ea</strong>ça à proprie<strong>da</strong>de e à ord<strong>em</strong> pública, esses <strong>jogo</strong>s foram regulamentados<br />

(principalmente o futebol) e, paulatinamente, foram constituindo as características<br />

do esporte moderno.<br />

A transformação dos polimorfos <strong>jogo</strong>s populares ingleses <strong>em</strong> futebol<br />

ou soccer assume o caráter de um desenvolvimento bastante<br />

vincado no sentido de maior regulamentação e uniformi<strong>da</strong>de. Esta<br />

culminou na codificação do <strong>jogo</strong>, a um nível nacional, mais ou menos<br />

<strong>em</strong> 1863 (ELIAS, 1985, p. 189).<br />

As organizações que administram o esporte <strong>em</strong> âmbito mundial são, hoje,<br />

grandes parceiras dos governos federais e ag<strong>em</strong> como ver<strong>da</strong>deiras agências<br />

internacionais que utilizam o capital simbólico (prestígio e reconhecimento)<br />

proporcionado pelo esporte para angariar poder e dinheiro público.<br />

As características básicas que corporificam o que poderíamos chamar de<br />

“planeta esporte” são: competição, rendimento físico-técnico, recorde,<br />

racionalização e cientifização do treinamento. É importante observar que tais<br />

características estão intimamente sintoniza<strong>da</strong>s com os princípios que reg<strong>em</strong> a<br />

socie<strong>da</strong>de capitalista.<br />

No bojo desse heg<strong>em</strong>ônico fenômeno <strong>da</strong> cultura corporal, algumas críticas<br />

são levanta<strong>da</strong>s, principalmente, no contexto acadêmico, no que diz respeito aos<br />

seus valores humanos e sociais. É interessante destacar que tais críticas, mesmo<br />

que esporádicas e assist<strong>em</strong>áticas, r<strong>em</strong>ontam o início do século XX. Algumas delas<br />

estiveram associa<strong>da</strong>s a movimentos sociais b<strong>em</strong> definidos, como, por ex<strong>em</strong>plo, o<br />

movimento ginástico e esportivo organizado a partir de 1913, pelos trabalhadores <strong>da</strong><br />

Bélgica, <strong>da</strong> Tchecoslováquia, <strong>da</strong> França, <strong>da</strong> Inglaterra e <strong>da</strong> Al<strong>em</strong>anha, a partir de<br />

uma “Internacional Esportiva”. Os eventos esportivos e as olimpía<strong>da</strong>s dos<br />

trabalhadores aconteciam s<strong>em</strong> o uso do cronômetro, de fitas métricas e tabelas de<br />

resultados, exploravam exercícios lúdicos, as ativi<strong>da</strong>des coletivas e cultuavam<br />

97


gestos simbólicos de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de. Esse movimento r<strong>ea</strong>lizou três grandes<br />

olimpía<strong>da</strong>s de trabalhadores e produziu grande quanti<strong>da</strong>de de documentos que<br />

expressavam várias críticas ao esporte “burguês”.<br />

Bernett (apud BRACHT, 1997, p. 22-23) sist<strong>em</strong>atizou <strong>em</strong> cinco pontos as<br />

críticas advin<strong>da</strong>s deste movimento:<br />

a) necessi<strong>da</strong>de de quebrar a exclusivi<strong>da</strong>de dos esportes dos<br />

dominantes; b) a negação do princípio <strong>da</strong> competição como ponto<br />

decisivo para a cultura corporal proletária. O esporte competitivo<br />

burguês é atacado genericamente como um espelho e instrumento <strong>da</strong><br />

economia capitalista; c) distanciamento <strong>da</strong> mentali<strong>da</strong>de esportiva<br />

burguesa, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que colocavam como princípio orientador <strong>da</strong><br />

soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de de todos os trabalhadores; d) alerta contra a introdução<br />

de uma nova ‘arma’ para a disciplinação dos trabalhadores, na<br />

medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que o esporte, como arma dos dominantes, é utilizado<br />

como meio para desviar a atenção <strong>da</strong>s massas <strong>da</strong> luta de classes e<br />

como fuga <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de política; e e) o esporte burguês é dominado<br />

pelo capitalismo que fomenta o militarismo e o fascismo.<br />

Bracht (1997, p. 26-27), apoiado <strong>em</strong> Salamun, sumariza duas teses <strong>da</strong><br />

Escola de Frankfurt que transpareceram na crítica ao esporte de forma mais<br />

pronuncia<strong>da</strong>: a) a tese <strong>da</strong> coisificação ou alienação, segundo a qual nas socie<strong>da</strong>des<br />

industrializa<strong>da</strong>s e no mundo do trabalho, a socie<strong>da</strong>de e os homens não são aquilo<br />

que, <strong>em</strong> função de suas possibili<strong>da</strong>des e sua natureza, poderiam ser. Neste caso,<br />

as relações se efetivam a partir de uma razão instrumental ou racionaliza<strong>da</strong>,<br />

coisificando-as; b) a tese <strong>da</strong> repressão e manipulação, defendi<strong>da</strong> principalmente por<br />

Marcuse, na qual a socie<strong>da</strong>de moderna, altamente tecnologiza<strong>da</strong>, industrializa<strong>da</strong> e<br />

desenvolvi<strong>da</strong>, representa um sist<strong>em</strong>a de repressão, dominação e manipulação.<br />

Segundo Marcuse (1978, p. 50), “sob o domínio do princípio do rendimento corpo e<br />

alma tornam-se instrumentos de rendimento do trabalho alienado”.<br />

A partir dessa leitura, é possível afirmar que o esporte assume a função<br />

de estabilizador do sist<strong>em</strong>a social e, pelo fascínio que exerce, muito b<strong>em</strong><br />

monitorado pela mídia eletrônica, atua como um desvio <strong>da</strong> atenção e como um<br />

98


atenuador <strong>da</strong>s tensões sociais que permitiria uma compensação para as<br />

insuportáveis condições de vi<strong>da</strong>.<br />

Tanto o esporte de rendimento quanto o esporte de lazer desviam a<br />

agressivi<strong>da</strong>de potencial de suas origens sociais para as ações<br />

esportivas. Frustrações que resultariam do trabalho alienado e <strong>da</strong>s<br />

condições de moradia, dirig<strong>em</strong>-se assim, não contra as ver<strong>da</strong>deiras<br />

causas, e sim, são transforma<strong>da</strong>s <strong>em</strong> agir agressivo no contexto <strong>da</strong>s<br />

competições esportivas. Assim, dilu<strong>em</strong>-se as energias necessárias<br />

para uma transformação <strong>da</strong>s condições societárias, que são assim<br />

inibi<strong>da</strong>s e não acontec<strong>em</strong>. Todo gol com<strong>em</strong>orado no esporte é, na<br />

ver<strong>da</strong>de, um gol contra a classe trabalhadora (BRACHT, 1997, p.28).<br />

Um outro aspecto destacado por Bracht (1997), refere-se à função<br />

ideológica do postulado <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de de chances no esporte. “A igual<strong>da</strong>de formal de<br />

chances no esporte pressupõe uma correspondente forma de socie<strong>da</strong>de. Tal idéia<br />

nega a fun<strong>da</strong>mental desigual<strong>da</strong>de de chances inerente à socie<strong>da</strong>de capitalista e<br />

eleva o princípio esportivo <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de de chances a um princípio geral <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de” (ibid., p. 29).<br />

O tipo de socialização promovi<strong>da</strong> pelo esporte é critica<strong>da</strong> à medi<strong>da</strong> que o<br />

intensivo engajamento no esporte provocaria um desinteresse político. O interesse<br />

nas tabelas dos campeonatos, nos ídolos esportivos etc., impediria a formação <strong>da</strong><br />

consciência política e o conseqüente engajamento político. Além disso, a prática do<br />

esporte levaria à a<strong>da</strong>ptação às normas e ao comportamento competitivo, bases para<br />

a estabili<strong>da</strong>de e/ou reprodução do sist<strong>em</strong>a capitalista.<br />

O esporte de alto rendimento desenvolveu um ritual que reforça o<br />

comportamento e pensamento nacionalista exacerbado. Assim, as injustiças sociais<br />

pod<strong>em</strong> ser compensa<strong>da</strong>s por uma identificação com a nação no contexto do<br />

confronto esportivo internacional.<br />

Essas críticas endereça<strong>da</strong>s ao esporte de rendimento parec<strong>em</strong> não abalar<br />

a trajetória desse fenômeno. Ele se tornou unanimi<strong>da</strong>de mundial, conquistou poder<br />

e é capaz de criar eventos que mobilizam praticamente todo o globo, como a Copa<br />

99


do Mundo e as Olimpía<strong>da</strong>s, por ex<strong>em</strong>plo. Juntamente com a mídia, divulga padrões<br />

de comportamento de alto poder de contágio, provoca histerias coletivas e, no caso<br />

do futebol, no Brasil, é capaz de desencad<strong>ea</strong>r comoção nacional e fazer com que<br />

todos (ou quase todos) seus habitantes se orgulh<strong>em</strong> de ser brasileiros, apesar <strong>da</strong>s<br />

precárias condições sociais do país. Mas, por mais contundentes que sejam as<br />

críticas, por mais que tantos já tenham desaconselhado a sua prática, Kunz (1994,<br />

p. 44) destaca que “ninguém conseguiu abalar ou am<strong>ea</strong>çar, este tipo de esporte,<br />

mais do que ele próprio, nos últimos t<strong>em</strong>pos”, e apresenta dois probl<strong>em</strong>as muito<br />

sérios no mundo inteiro que pod<strong>em</strong> levar à sua autodestruição: “o treinamento<br />

especializado precoce e o uso do doping” (ibid., p. 45).<br />

Em relação ao processo de esportivização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, pod<strong>em</strong>os<br />

considerar que ele está situado num processo histórico cuja orig<strong>em</strong> r<strong>em</strong>onta o início<br />

do século XX. Algumas iniciativas, mesmo que inconsistentes do ponto de vista<br />

organizacional, contribuíram para o fomento desse viés esportivo, dentre elas, o<br />

discurso que defendia sua transformação <strong>em</strong> ginástica nacional.<br />

As possibili<strong>da</strong>des de utilização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como “ginástica brasileira” se<br />

deram a partir dos pressupostos teóricos do determinismo racial, sob a égide de um<br />

discurso médico-higienista, pautado por uma visão eugênica de regeneração e<br />

purificação de uma suposta “raça” brasileira.<br />

O pioneiro nesse campo foi Mello Moraes Filho (1979) que, na déca<strong>da</strong> de<br />

1890, já sinalizava com a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> se transformar <strong>em</strong> “esporte<br />

nacional”.<br />

Outra contribuição v<strong>em</strong> aparece <strong>em</strong> 1906 com L. C. que publicou na<br />

Revista Kosmos o artigo “A Capoeira”, onde destaca a excelência desta como luta<br />

<strong>em</strong> defesa <strong>da</strong> soberania nacional (apud REIS, 1997, p. 86).<br />

100


O opúsculo intitulado: “Guia do Capoeira ou Gymnastica Brazileira”,<br />

publicado <strong>em</strong> 1907, por O.D.C., também defendia a sist<strong>em</strong>atização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong><br />

como um método nacional de ginástica.<br />

O escritor Coelho Neto publicou, <strong>em</strong> 1928, o artigo “Nosso Jogo”, que<br />

continha proposta pe<strong>da</strong>gógica de inclusão <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> nas escolas civis e militares<br />

e defendia a “excelência” <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como ginástica e estratégia de defesa<br />

individual (Coelho Neto, 1928). O livro: Ginástica Nacional (Capoeirag<strong>em</strong>)<br />

Metodiza<strong>da</strong> e Regra<strong>da</strong>, também publicado no mesmo ano pelo oficial <strong>da</strong> Marinha do<br />

Rio de Janeiro, Aníbal Burlamaqui, também apresenta regras para o <strong>jogo</strong> esportivo<br />

<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>.<br />

Outra iniciativa que colocou a <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> evidência no contexto esportivo<br />

foi, certamente, a do Professor Inezil Penna Marinho. Marinho (1982) faz referência<br />

a um estudo que elaborou, <strong>em</strong> 1945, intitulado: "Subsídios para o Estudo <strong>da</strong><br />

Metodologia do Treinamento <strong>da</strong> Capoeirag<strong>em</strong>", no qual já alimentava o sonho de<br />

criar um método nacional de ginástica que tivesse por base a <strong>capoeira</strong>. Esta idéia<br />

perdurou por muito t<strong>em</strong>po e veio ressurgir, com mais vigor, <strong>em</strong> 4 de Dez<strong>em</strong>bro de<br />

1980, quando ele participou, como jurado, <strong>da</strong> "V Grande Ro<strong>da</strong> Brasileira de<br />

Capoeira" r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> <strong>em</strong> Brasília, pelo Grupo de Capoeira Beribazu, patrocina<strong>da</strong> pela<br />

Secretaria de Educação e Cultura e pela Fun<strong>da</strong>ção Cultural do Distrito Federal.<br />

Participaram do referido evento 22 associações de <strong>capoeira</strong> dos Estados do<br />

Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro,<br />

São Paulo, e Distrito Federal. Marinho ficou bastante entusiasmado com o<br />

"belíssimo espetáculo de coreografia, destreza e eficiência técnica”. Ressurgiu,<br />

então, no autor, “a antiga idéia de um método nacional de Educação Física"<br />

(Marinho, 1982, p. 14).<br />

101


Este autor almejava elaborar a "ginástica brasileira", a ex<strong>em</strong>plo <strong>da</strong><br />

ginástica sueca, <strong>da</strong> ginástica francesa, <strong>da</strong> ginástica al<strong>em</strong>ã, com fun<strong>da</strong>mentos<br />

arraigados nas características do povo brasileiro, que falasse <strong>da</strong> “alma nacional” e<br />

que fosse “impregna<strong>da</strong> de brasili<strong>da</strong>de” (ibid., p.16 e 49).<br />

É interessante observar que to<strong>da</strong>s essas iniciativas não se consoli<strong>da</strong>ram<br />

e, como vimos anteriormente, elas se pautaram num ideário de higienização e<br />

eugenização de uma suposta “raça” brasileira, <strong>em</strong> períodos b<strong>em</strong> peculiares <strong>da</strong><br />

nossa história.<br />

A inserção <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> nos Jogos Escolares Brasileiros (JEB's), a partir<br />

de 1985, foi também um dos grandes motivos para que esta se tornasse mais<br />

discuti<strong>da</strong> nos contextos esportivo e educacional. Tal inserção concretizou-se a partir<br />

<strong>da</strong> intermediação do, então, Diretor de Educação Física e Desportos Estu<strong>da</strong>ntis <strong>da</strong><br />

Fun<strong>da</strong>ção Educacional do Distrito Federal (FEDF), por ocasião <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>lização de<br />

uma reunião, <strong>em</strong> abril de 1985, com os dirigentes <strong>da</strong>, hoje extinta, SEED (FEDF,<br />

1985). Empolgado com a evidência dos trabalhos r<strong>ea</strong>lizados pelo programa de<br />

<strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> FEDF, que começavam a despertar interesse na comuni<strong>da</strong>de escolar, o<br />

então diretor foi incentivado a sugerir que a <strong>capoeira</strong> fizesse parte <strong>da</strong> mais<br />

representativa festa dos desportos estu<strong>da</strong>ntis no Brasil.<br />

A competição se deu <strong>em</strong> duas fases, a primeira no âmbito regional e a<br />

fase final foi r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> <strong>em</strong> São Paulo, coordena<strong>da</strong> pela Confederação Brasileira de<br />

Pugilismo e seguindo as normas do regulamento editado <strong>em</strong> 1973.<br />

Em 1986, os <strong>jogo</strong>s foram r<strong>ea</strong>lizados <strong>em</strong> Vitória-ES, com mu<strong>da</strong>nças<br />

significativas no regulamento e na coordenação <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> competição. Em 1987,<br />

nos JEB’s de Campo Grande - MS, a figura do árbitro é substituí<strong>da</strong> pela figura do<br />

jurado. Atuam como jurados os chamados “Velhos Mestres” <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> baiana, e a<br />

102


competição se desdobra <strong>em</strong> cinco momentos: ro<strong>da</strong>, coreografia, concurso de<br />

la<strong>da</strong>inha, s<strong>em</strong>inário e conferência dos mestres. Em 1988 os JEB’s foram r<strong>ea</strong>lizados<br />

<strong>em</strong> São Luiz – MA, nos moldes do ano anterior, com a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

apresentação, por parte dos atletas participantes de ca<strong>da</strong> equipe, dos principais<br />

toques de berimbau. Em 1989, Brasília foi sede dos JEB’s, ocasião <strong>em</strong> que foi<br />

r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> a primeira “Conferência Brasileira de Esporte na Escola”. Além <strong>da</strong><br />

competição <strong>em</strong> si, ca<strong>da</strong> um dos “velhos mestres” r<strong>ea</strong>lizava uma oficina para os<br />

estu<strong>da</strong>ntes-atletas.<br />

No ano de 1991, a <strong>capoeira</strong> foi excluí<strong>da</strong> dos JEB’S sob a alegação de que<br />

somente as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des que integrariam os Jogos do Cone Sul participariam<br />

<strong>da</strong>queles <strong>jogo</strong>s. Estes, por sua vez, reduzidos a algumas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des coletivas <strong>em</strong><br />

1992, não foram r<strong>ea</strong>lizados <strong>em</strong> 1993. Em 1994, a <strong>capoeira</strong> retornou aos JEB’s e, <strong>em</strong><br />

1995, estes passaram a ser denominados Jogos <strong>da</strong> Juventude, onde a <strong>capoeira</strong><br />

esteve também presente. A partir de 1996 a <strong>capoeira</strong> deixou novamente de integrar<br />

as competições dos referidos <strong>jogo</strong>s.<br />

Voltando à questão <strong>da</strong> esportivização, consideramos que a ação<br />

institucional que efetivamente carimbou o passaporte <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> para o contexto<br />

esportivo foi o seu reconhecimento como mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de esportiva pela Confederação<br />

Brasileira de Pugilismo (CBP), <strong>em</strong> 1º de Janeiro de 1973. É importante notar que tal<br />

reconhecimento e conseqüente regulamentação não seduziu expressivo número de<br />

líderes <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> nacional. O que pode ser observado é que o vínculo com a CBP<br />

pouco contribuiu para o crescimento e organização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> geral. Para<br />

Mestre Zulu, o sist<strong>em</strong>a confederado, ao qual a <strong>capoeira</strong> se vinculou, é "um sist<strong>em</strong>a<br />

unidimensional, alienador, descaracterizado e discriminador" (Zulu, 1988, p.11), que<br />

s<strong>em</strong>pre abrigou percentual muito pequeno de <strong>capoeira</strong>s.<br />

103


A regulamentação <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> pela CBP reflete as influências do sist<strong>em</strong>a<br />

sócio-político vigente na época. Convém l<strong>em</strong>brar que, nesse período, o Brasil vivia<br />

sob os auspícios <strong>da</strong> ditadura militar, e os códigos dominantes <strong>da</strong> Educação Física<br />

apregoavam o rendimento como mola mestra <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des corporais. Neste<br />

sentido, a <strong>capoeira</strong>, como esporte, contribuiria para o fortalecimento <strong>da</strong> mentali<strong>da</strong>de<br />

competitivista, um dos suportes ideológicos desse período. A CBP, como instituição<br />

corporativa controla<strong>da</strong> pelo Estado autoritário, através do Conselho Nacional de<br />

Desportos (CND), tratava a <strong>capoeira</strong> como um desporto do ramo pugilístico,<br />

adotando boa parte <strong>da</strong>s normatizações verifica<strong>da</strong>s <strong>em</strong> outras mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de luta<br />

oficialmente pratica<strong>da</strong>s no Brasil.<br />

O Regulamento de Capoeira, editado pelo Departamento de Capoeira <strong>da</strong><br />

CBP, <strong>em</strong> dez<strong>em</strong>bro de 1972, passou a vigorar a partir de 1º de Janeiro de 1973, foi<br />

revisto e atualizado pela Assessoria de Capoeira <strong>em</strong> set<strong>em</strong>bro de 1986 (CBP,<br />

1987). Este Regulamento deixa evidente a pretensão dos seus executores,<br />

investidos de autori<strong>da</strong>de delega<strong>da</strong> pelo Estado, de querer organizar e padronizar,<br />

através de normas e regras e segundo critérios próprios, to<strong>da</strong> a prática <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong><br />

no território nacional.<br />

Tal Regulamento exigia dos “capoeiristas” prática "limpa e l<strong>ea</strong>l", <strong>em</strong> que<br />

todos os preceitos técnicos exarados nele, foss<strong>em</strong> rigorosamente cumpridos e ain<strong>da</strong><br />

afirmava que a competição de <strong>capoeira</strong> deveria consistir "num confronto de<br />

destreza entre dois oponentes, através do desenvolvimento de situações e golpes<br />

aplicados com os pés" (CBP, 1987, p. 4).<br />

Para participar de campeonatos e torneios oficiais, o <strong>capoeira</strong> teria que<br />

ser vinculado a um clube ou associação filia<strong>da</strong> a uma <strong>da</strong>s federações vincula<strong>da</strong>s à<br />

104


CBP. Para isso, as federações estaduais forneceriam as "carteiras de ativi<strong>da</strong>des" a<br />

todos os filiados.<br />

O Regulamento tratava a <strong>capoeira</strong> de forma essencialmente esportiviza<strong>da</strong><br />

com regras e procedimentos típicos <strong>da</strong>s lutas de ringue. Designava a ro<strong>da</strong> de "ár<strong>ea</strong><br />

de combate" e deixava transparecer a idéia de que a <strong>capoeira</strong> não passava de<br />

combate corporal.<br />

As competições constituíam-se <strong>em</strong> combates entre dois adversários,<br />

obedecendo determinados critérios de pontuação. As lutas eram acompanha<strong>da</strong>s por<br />

um árbitro central, conforme acontece com os confrontos de boxe.<br />

Com a criação <strong>da</strong> Confederação Brasileira de Capoeira (CBC), <strong>em</strong> 23 de<br />

outubro de 1992, a <strong>capoeira</strong> se desvincula oficialmente <strong>da</strong> CBP. Vislumbra-se, a<br />

partir <strong>da</strong>í, um maior fomento a ela pelo viés esportivo. A clara intenção de<br />

padronização, normatização e unificação de procedimentos dão a tônica dos<br />

discursos exarados <strong>em</strong> nome <strong>da</strong> CBC.<br />

É fato que essas tentativas de padronização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, dentro dos<br />

contornos do esporte de rendimento, negam a plurari<strong>da</strong>de dessa manifestação<br />

cultural, b<strong>em</strong> como os seus valores sócio-históricos e culturais arquivados <strong>em</strong> seus<br />

rituais, cantos e gestos. Com uma boa dose de irreverência e fértil imaginação, os<br />

<strong>capoeira</strong>s que discor<strong>da</strong>m dessas possibili<strong>da</strong>des vêm chamando essa <strong>capoeira</strong><br />

padroniza<strong>da</strong> de “<strong>capoeira</strong> shopping center”.<br />

Diferent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> CBP, que estava atrela<strong>da</strong> e era controla<strong>da</strong> pelo<br />

Estado, portanto, uma organização corporativa, a CBC situa-se dentro <strong>da</strong> lógica do<br />

conceito de neocorporativismo, que, segundo Regini, “difundiu-se recent<strong>em</strong>ente na<br />

literatura política internacional, como instrumento para analisar um conjunto de<br />

mu<strong>da</strong>nças ocorri<strong>da</strong>s nas relações entre Estado e organizações representativas dos<br />

105


interesses particulares nos países capitalistas com regimes d<strong>em</strong>ocráticos” (REGINI,<br />

apud BRACHT, 1997, p. 73). O neocorporativismo se diferencia do corporativismo<br />

pelo princípio do voluntarismo, ou seja, no corporativismo o Estado controla as<br />

instituições a partir <strong>da</strong> imposição de regras autoritárias, já no neocorporativismo, a<br />

interação com o Estado é voluntária, ou seja, as instituições têm autonomia, porém<br />

“funcional” e “controla<strong>da</strong>”, à medi<strong>da</strong> que elas cumpr<strong>em</strong> funções públicas nas quais o<br />

Estado t<strong>em</strong> interesse.<br />

Se por um lado há uma preocupação no sentido de se organizar a<br />

<strong>capoeira</strong> via estruturas neocorporativas, por outro, pod<strong>em</strong>os observar que ela ora<br />

resiste, ora se conforma com os mecanismos de ajustamento social impetrados por<br />

alguns segmentos dominantes nesse universo. Este misto de conformismo e<br />

resistência verificado na <strong>capoeira</strong> endossa as conclusões de Chauí (1989), a<br />

respeito <strong>da</strong>s culturas populares no Brasil, quando ela mostra que essas práticas,<br />

apesar de conter<strong>em</strong> lógica própria, se articulam com os códigos <strong>da</strong>s culturas<br />

dominantes, recusando-os, aceitando-os ou conformando-se a eles. No caso <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, esta aparente oposição entre a acomo<strong>da</strong>ção e a resistência é que<br />

determina sua ambigüi<strong>da</strong>de.<br />

As tentativas de se organizar e normatizar a <strong>capoeira</strong> vêm contribuindo<br />

para a sua evidência no contexto esportivo brasileiro. Entretanto, muitas dessas<br />

possibili<strong>da</strong>des esbarram, na maioria <strong>da</strong>s vezes, <strong>em</strong> diversos impasses e conflitos de<br />

lideranças ávi<strong>da</strong>s <strong>em</strong> ver<strong>em</strong> seus projetos pessoais ser<strong>em</strong> cont<strong>em</strong>plados pelas<br />

políticas públicas de fomento ao esporte.<br />

Levando-se <strong>em</strong> consideração os desdobramentos do processo de<br />

esportivização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, o Estado, e a socie<strong>da</strong>de, não pod<strong>em</strong> ignorar os conflitos<br />

e desconsiderar as diversas concepções e vertentes existentes no interior desta<br />

106


manifestação cultural que, <strong>em</strong> vários sentidos, extrapolam a conotação<br />

predominant<strong>em</strong>ente esportiva que lhe quer<strong>em</strong> imputar.<br />

Cabe aqui chamar a atenção para os valores inerentes ao esporte<br />

institucionalizado nos dias de hoje. Seus princípios estão consubstanciados na<br />

lógica do mercado que, sob discursos ufanistas, camufla e escamoteia os conflitos<br />

sociais gerados no interior <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Nesse sentido, as conquistas adquiri<strong>da</strong>s<br />

por aqueles que “consegu<strong>em</strong> chegar lá” são supervaloriza<strong>da</strong>s e terminam por<br />

mascarar a dominação mediante o ofuscamento <strong>da</strong>s contradições sociais.<br />

Nesse conflituoso movimento, o processo de esportivização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong><br />

não é heg<strong>em</strong>ônico, n<strong>em</strong> tampouco, t<strong>em</strong> conseguido delimitar os contornos desta<br />

manifestação. Exist<strong>em</strong> muitas experiências de <strong>capoeira</strong> que trabalham com outras<br />

referências.<br />

Muitas críticas contribu<strong>em</strong> para ampliar o campo de análise desse<br />

fenômeno tão complexo. A esportivização é, para muitos, o prenúncio do<br />

aparecimento de uma “<strong>capoeira</strong> espetáculo”, b<strong>em</strong> ao gosto e dentro <strong>da</strong> lógica <strong>da</strong><br />

mercadoria. “E o mundo <strong>da</strong> mercadoria é assim mostrado como ele é, pois seu<br />

movimento é idêntico ao afastamento dos homens entre si e <strong>em</strong> relação a tudo que<br />

produz<strong>em</strong>” (DEBORD, 1997, p. 28). Nessa perspectiva, a <strong>capoeira</strong> se a<strong>da</strong>ptaria para<br />

atender as exigências do consumo rápido e se transformaria numa “mercadoria<br />

como espetáculo”, ou seja, <strong>em</strong> vez de uma <strong>capoeira</strong> fluí<strong>da</strong>, uma <strong>capoeira</strong><br />

“coagula<strong>da</strong>”, espr<strong>em</strong>i<strong>da</strong> nos “schedules” <strong>da</strong>queles que a procuram para atender as<br />

necessi<strong>da</strong>des humanas de movimento ou outras discutíveis necessi<strong>da</strong>des.<br />

As possibili<strong>da</strong>des impl<strong>em</strong>enta<strong>da</strong>s <strong>em</strong> relação à competição <strong>em</strong> <strong>capoeira</strong><br />

têm evidenciado a dificul<strong>da</strong>de de acomodá-la às exigências <strong>da</strong> padronização. Como<br />

107


definir qu<strong>em</strong> é o melhor <strong>capoeira</strong>: o que canta melhor? O que joga melhor? Ou o<br />

que luta melhor?<br />

Pud<strong>em</strong>os verificar a partir dessas probl<strong>em</strong>atizações <strong>em</strong> torno dos<br />

conceitos de transnacionali<strong>da</strong>de, deslocamentos, processos identitários, tradição,<br />

moderni<strong>da</strong>de e esportivização que a <strong>capoeira</strong> não está isenta a esses códigos,<br />

jogando com eles de forma ambígua e contraditória. Ela se desenvolve<br />

profusamente <strong>em</strong> um cotidiano <strong>em</strong> que veloci<strong>da</strong>de, volatili<strong>da</strong>de, instabili<strong>da</strong>de<br />

transformaram-se <strong>em</strong> regras do onipresente sist<strong>em</strong>a metabólico do capital que<br />

terminam incidindo e determinando os seus códigos e valores, enquanto prática<br />

social determina<strong>da</strong>.<br />

Esses el<strong>em</strong>entos colocados na ro<strong>da</strong> (<strong>em</strong> <strong>jogo</strong>) constituíram as referências<br />

teóricas e as probl<strong>em</strong>atizações preliminares e serviram de balizas para continuar o<br />

desafiante <strong>jogo</strong> que nos permitiu a materialização <strong>da</strong>s análises explicita<strong>da</strong>s nos<br />

capítulos seguintes sobre o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e a conseqüente<br />

qualificação <strong>da</strong> <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na.<br />

108


CAPÍTULO 2<br />

“IÊ... COMO FAZER ... CAMARÁ”<br />

Convencidos <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de <strong>em</strong>pregar um método de análise que não<br />

desprezasse as complexas, dinâmicas e contraditórias relações que caracterizam a<br />

vi<strong>da</strong> social, explicitar<strong>em</strong>os, neste capítulo, nosso método de investigação<br />

procurando articular os conceitos teóricos mais gerais que orientaram esta pesquisa<br />

(projeto histórico, trabalho, cultura e <strong>práxis</strong>). Estes conceitos foram probl<strong>em</strong>atizados<br />

à luz <strong>da</strong> filosofia, pois partimos do pressuposto de que, no âmbito do ser social, é<br />

ontologicamente impossível isolar os procedimentos singulares <strong>da</strong>s determinações e<br />

estruturas sob as quais os mesmos estão inseridos.<br />

2.1. Uma Necessária Articulação: Ontologia, Projeto Histórico e Trabalho<br />

Pe<strong>da</strong>gógico<br />

A ontologia do ser humano, como ser social que constrói sua humani<strong>da</strong>de<br />

a partir <strong>da</strong>s relações com seus s<strong>em</strong>elhantes e com a natureza, constituiu o pano de<br />

fundo <strong>da</strong>s preocupações desta pesquisa. A partir desse pressuposto, procuramos<br />

escapar de construções abstratas, id<strong>ea</strong>lísticas, bastante presentes nas noções de<br />

“ser humano universal” ou de humani<strong>da</strong>de, orquestra<strong>da</strong>s pela filosofia id<strong>ea</strong>lista, pelo<br />

cristianismo e por alguns ideários moralistas e eugenistas do início do século XX<br />

que, <strong>em</strong> suas fun<strong>da</strong>mentações, não levaram <strong>em</strong> consideração aspectos políticos,<br />

filosóficos e antropológicos do ser humano, e consoli<strong>da</strong>ram uma ética universalista<br />

de sujeito a partir de uma injunção moral, onde a figura id<strong>ea</strong>l de hom<strong>em</strong> se revela<br />

como um construto ilusório cheio de boas intenções. L<strong>em</strong>br<strong>em</strong>o-nos, estarrecidos,<br />

109


do id<strong>ea</strong>l “belo” e “nobre” do nazismo. Para Frigotto (1998, p. 30): “pensar um sujeito<br />

humano fora <strong>da</strong>s relações sociais ou separar o mundo <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de do mundo <strong>da</strong><br />

liber<strong>da</strong>de, do trabalho e do não-trabalho, é inscrever-se numa compreensão<br />

id<strong>ea</strong>lista de sujeito humano”. A humani<strong>da</strong>de dos humanos, ou seja, sua essência,<br />

encontra-se, conforme já mencionamos anteriormente, nas relações sociais e não<br />

nos indivíduos. Como afirma Vázquez (1986), nenhum indivíduo é depositário <strong>da</strong><br />

essência humana. Essa essência é social, prática e histórica. Lukács (1979, p. 97)<br />

assevera que<br />

a socie<strong>da</strong>de não t<strong>em</strong> entre os seus ‘el<strong>em</strong>entos’ apenas o hom<strong>em</strong>,<br />

enquanto complexo peculiarmente determinado, mas é feita também<br />

de complexos parciais que se cruzam, se articulam, se combat<strong>em</strong> etc.<br />

reciprocamente, como é o caso <strong>da</strong>s instituições, <strong>da</strong>s uniões de<br />

homens socialmente determina<strong>da</strong>s (classes), que – precisamente por<br />

causa de suas dimensões existenciais diversas e heterogên<strong>ea</strong>s –<br />

pod<strong>em</strong> exercer, <strong>em</strong> suas inter-relações r<strong>ea</strong>is, uma influência<br />

determinante sobre o processo de conjunto.<br />

Foi nesse movimento de relações que procuramos, de forma crítica e<br />

autocrítica, tendo a filosofia como princípio diretivo, explicitar que, <strong>em</strong> última<br />

instância, o nosso processo de investigação científica insere-se num plano<br />

ontológico. Quando Engels, no discurso junto à tumba de Marx, pronunciou que “os<br />

homens dev<strong>em</strong> primeiro de tudo comer, beber, ter um teto e vestir-se, antes de<br />

ocupar-se de política, de ciência, de arte, de religião etc.” (apud Lukács, 1979, p.<br />

41), estava falando precisamente de uma relação de priori<strong>da</strong>de ontológica.<br />

Não foi por acaso que Marx, <strong>em</strong> O Capital, examinou, como el<strong>em</strong>ento<br />

primário, o valor. A centrali<strong>da</strong>de dessa categoria, para Marx, é fecun<strong>da</strong> à medi<strong>da</strong><br />

que ela “ilumina plenamente o que de mais importante existe na estrutura do ser<br />

social, ou seja, o caráter social <strong>da</strong> produção” (Lukács, 1979, p. 46).<br />

Uma ontologia do ser social deve s<strong>em</strong>pre levar <strong>em</strong> conta a<br />

inseparabili<strong>da</strong>de entre natureza e socie<strong>da</strong>de, as contraditórias relações e conexões<br />

110


entre essência e aparência leva<strong>da</strong>s a efeito pela <strong>práxis</strong>, pois, no âmbito do ser<br />

social, é ontologicamente impossível isolar os processos singulares <strong>da</strong>s<br />

determinações e estruturas nas quais eles estão inseridos.<br />

Sab<strong>em</strong>os que diferentes concepções de socie<strong>da</strong>de e de educação são<br />

orienta<strong>da</strong>s por projetos históricos distintos. É o projeto histórico que determina o tipo<br />

e a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s interações entre os fenômenos educativos e os processos sociais<br />

desenvolvidos na socie<strong>da</strong>de <strong>em</strong> geral. Por isso, não somos indiferentes à r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de<br />

que a ca<strong>da</strong> dia se mostra mais assustadora, fruto do projeto histórico capitalista,<br />

expansionista, destrutivo e, no limite, incontrolável, cuja estruturação, hierárquica e<br />

contraditória, dificulta e, por vezes, inviabiliza os movimentos de contraposição.<br />

MÉSZÁROS (2002) l<strong>em</strong>bra que, nos últimos cento e cinqüenta anos, foram<br />

fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s na<strong>da</strong> menos que quatro internacionais socialistas com a finali<strong>da</strong>de de criar<br />

a necessária uni<strong>da</strong>de internacional do movimento operário que pudesse se<br />

contrapor a um capital unificado ou <strong>em</strong> condições de se unificar. Entretanto, estas<br />

não lograram êxitos certamente porque, ao longo de to<strong>da</strong> a sua história, o<br />

movimento operário s<strong>em</strong>pre foi setorial, defensivo e “intimamente ligado à<br />

plurali<strong>da</strong>de contraditória hierarquicamente estrutura<strong>da</strong> dos capitais, seja <strong>em</strong> ca<strong>da</strong><br />

país, seja <strong>em</strong> escala mundial“ (MÉSZÁROS, 2002, p. 27).<br />

Por to<strong>da</strong> essa crise de legitimi<strong>da</strong>de do projeto capitalista é que a<br />

necessária “ofensiva socialista” não pode ser retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> agen<strong>da</strong> histórica do<br />

movimento dos trabalhadores, pois, como já alertava Lênin, no século XIX, “a<br />

indiferença é o apoio tático ao forte, ao que domina” (Lênin, 1975, p. 187).<br />

O conhecimento produzido pela ciência na universi<strong>da</strong>de capitalista t<strong>em</strong>,<br />

freqüent<strong>em</strong>ente, se caracterizado como fragmentado e reflete os interesses<br />

heg<strong>em</strong>ônicos <strong>da</strong> classe dominante. Sob o falso discurso <strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong>de, a ciência<br />

111


eforça a vocação elitista <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de que privilegia determina<strong>da</strong> classe. Via de<br />

regra, ela trata o conhecimento também de forma fragmenta<strong>da</strong> e, ain<strong>da</strong>, desvincula<br />

a vi<strong>da</strong> universitária do trabalho material e do cotidiano <strong>da</strong>s classes menos<br />

favoreci<strong>da</strong>s. Freitas (2000, p. 100) deixa claro que é o trabalho material “o el<strong>em</strong>ento<br />

que garante a indissociabili<strong>da</strong>de entre teoria e prática social” e exige<br />

interdisciplinari<strong>da</strong>de.<br />

Pistrak (1981, p. 38-39), <strong>em</strong> sua obra Fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> Escola do<br />

Trabalho, publica<strong>da</strong> <strong>em</strong> 1924, destaca que<br />

O trabalho na escola, enquanto base <strong>da</strong> educação, deve estar ligado<br />

ao trabalho social, à produção r<strong>ea</strong>l, a uma ativi<strong>da</strong>de concreta<br />

socialmente útil, s<strong>em</strong> o que perderia seu valor essencial, seu aspecto<br />

social, reduzindo-se, de um lado, à aquisição de algumas normas<br />

técnicas, e, de outro a procedimentos metodológicos capazes de<br />

ilustrar este ou aquele detalhe de um curso sist<strong>em</strong>ático. Assim o<br />

trabalho se tornaria anêmico, perderia sua base ideológica.<br />

É o trabalho material, o ver<strong>da</strong>deiro mediador do processo pe<strong>da</strong>gógico.<br />

Segundo Freitas (2000, p. 104), “uma relação d<strong>em</strong>ocrática no interior <strong>da</strong> escola só é<br />

possível quando professor e estu<strong>da</strong>nte não estiver<strong>em</strong> <strong>em</strong> relação antagônica,<br />

incorporando interesses de classes sociais diferencia<strong>da</strong>s”. Nessa perspectiva,<br />

professores e estu<strong>da</strong>ntes, mediados pelo trabalho útil, produzirão saberes e<br />

acessarão conhecimentos produzidos historicamente, ambos movidos pela<br />

contradição básica entre o que sab<strong>em</strong> e o que pod<strong>em</strong> saber ao final do processo.<br />

Para isso, é necessário a identificação dos limites impostos pelos fatores<br />

determinantes <strong>da</strong> organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico, o que não significa<br />

concor<strong>da</strong>r com eles. Aliás, segundo Freitas (2000, p. 99), “entender os limites<br />

existentes para a organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico aju<strong>da</strong>-nos a lutar contra eles;<br />

desconsiderá-los conduz à ingenui<strong>da</strong>de e ao romantismo”.<br />

É importante considerar que as metodologias específicas, destina<strong>da</strong>s ao<br />

ensino dos conteúdos, dev<strong>em</strong> articular a prática pe<strong>da</strong>gógica com os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong><br />

112


teoria educacional que a orienta, de modo a possibilitar a identificação <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s conexões entre os aspectos didático-pe<strong>da</strong>gógicos gerais e os<br />

aspectos metodológicos próprios <strong>da</strong> disciplina, o que permite identificar el<strong>em</strong>entos<br />

que reflet<strong>em</strong> a uni<strong>da</strong>de do geral e do particular, do conteúdo e <strong>da</strong> forma, e,<br />

conseqüent<strong>em</strong>ente, as contradições instala<strong>da</strong>s no interior <strong>da</strong> própria prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica.<br />

2.2. Explicitando o Método de Investigação<br />

Ao levar <strong>em</strong> consideração a totali<strong>da</strong>de do ser social no processo de<br />

investigação científica desse fato singular – o movimento de desenvolvimento <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, procuramos explicitar criticamente e autocriticamente, no nível <strong>da</strong><br />

consciência, os seus nexos e determinantes históricos que constitu<strong>em</strong> to<strong>da</strong> a sua<br />

concretici<strong>da</strong>de específica.<br />

Ao explicitar as contradições existentes no movimento de<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e suas possibili<strong>da</strong>des de superação a partir de ações<br />

interessa<strong>da</strong>s, o fiz<strong>em</strong>os balizados pelos argumentos de Freitas (2000, p. 71), que<br />

nos diz: “o cerne do procedimento metodológico diz respeito à <strong>construção</strong>, no<br />

pensamento, do desenvolvimento <strong>da</strong>s contradições presentes na prática, incluindo<br />

suas possibili<strong>da</strong>des de superação”.<br />

Este estudo teve, portanto, uma dupla objetivação. Além <strong>da</strong> análise do<br />

fenômeno investigado, contém uma possibili<strong>da</strong>de de ação na r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de a partir <strong>da</strong>s<br />

contradições presentes na <strong>capoeira</strong> que se expressam no seu processo de<br />

internacionalização e na sua inserção no contexto educacional formal e não-formal.<br />

Tentando escapar <strong>da</strong>s pretensões de neutrali<strong>da</strong>de na investigação<br />

científica, ele está sintonizado com o que afirma Minayo (2000, p. 93), quando diz<br />

que “ninguém coloca uma pergunta se na<strong>da</strong> sabe <strong>da</strong> resposta, pois então não<br />

113


haveria o que perguntar. Todo saber está bas<strong>ea</strong>do <strong>em</strong> pré - conhecimento, todo fato<br />

e todo <strong>da</strong>do já são interpretações, são maneiras de construirmos e de<br />

selecionarmos a relevância <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de”.<br />

Isto não significa que já sab<strong>em</strong>os, de ant<strong>em</strong>ão, a resposta definitiva do<br />

que perguntamos. Se assim fosse, uma investigação científica não teria sentido<br />

algum. Um método eficaz deve conter <strong>em</strong> si a proprie<strong>da</strong>de de encontrar o que,<br />

hipoteticamente, não se procura. É por isso que as perguntas científicas dev<strong>em</strong><br />

partir de uma r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de concreta, à medi<strong>da</strong> que, segundo Kosik (1976, p. 13), para<br />

se compreender a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de deve-se começar pelo concreto, pela “coisa <strong>em</strong> si”, mas<br />

ela se manifesta imediatamente ao hom<strong>em</strong>. “Todo agir é unilateral, já que visa a um<br />

fim determinado e, portanto, isola alguns momentos <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de como essenciais<br />

àquela ação, desprezando outros, t<strong>em</strong>porariamente” (Kosik, 1976, p. 19). Assim, um<br />

inventário não rigoroso pode des<strong>em</strong>bocar <strong>em</strong> análises positivistas que confund<strong>em</strong><br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de com coisali<strong>da</strong>de. Por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> economia política, para analisar uma<br />

determina<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, começa-se pela população que é a base e o sujeito do ato<br />

social de produção de um todo. Mas a população, segundo Marx, é uma abstração<br />

caso não se leve <strong>em</strong> consideração as classes sociais de que se compõe, e “essas<br />

classes serão ‘ocas’, se ignorarmos os el<strong>em</strong>entos <strong>em</strong> que repousam, por ex<strong>em</strong>plo, o<br />

trabalho assalariado, o capital etc.” (Marx, 1983, p. 218). Para a compreensão <strong>da</strong><br />

“coisa <strong>em</strong> si”, torna-se necessário fazer, portanto, um détour, ou seja, um desvio<br />

para entender que “a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob<br />

o aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente”<br />

(KOSIK, 1976, p. 13), mas como o campo “<strong>em</strong> que se exercita a sua ativi<strong>da</strong>de<br />

prático-sensível, sobre cujo fun<strong>da</strong>mento surgirá a imediata intuição prática <strong>da</strong><br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de” (op.cit., p. 14). A compreensão <strong>da</strong>s coisas e <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de implica <strong>em</strong><br />

114


assumir a consciência do fato de que existe algo susceptível de ser definido como<br />

estrutura <strong>da</strong> coisa, essência <strong>da</strong> coisa, “coisa <strong>em</strong> si”, e de que existe uma oculta<br />

ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> coisa, distinta dos fenômenos que se manifestam imediatamente. O<br />

fenômeno é um <strong>da</strong>do que existe tanto na r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de quanto no cérebro, portanto, é<br />

preciso, a partir de um desvio que alie ciência e filosofia, desmoronar o mundo <strong>da</strong><br />

aparência, o mundo <strong>da</strong> “pseudoconcretici<strong>da</strong>de”, já que este, por sua vez:<br />

é um claro-escuro de ver<strong>da</strong>de e engano. O seu el<strong>em</strong>ento próprio é o<br />

duplo sentido. O fenômeno indica a essência e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, a<br />

esconde. (...) O fenômeno indica algo que não é ele mesmo e vive<br />

apenas graças ao seu contrário. (...) Captar o fenômeno de<br />

determina<strong>da</strong> coisa significa in<strong>da</strong>gar e descrever como a “coisa <strong>em</strong> si”<br />

se manifesta naquele fenômeno, e como ao mesmo t<strong>em</strong>po nele se<br />

esconde (...). Se a aparência fenomênica e a essência <strong>da</strong>s coisas<br />

coincidiss<strong>em</strong> diretamente, a ciência e a filosofia seriam inúteis (Kosik,<br />

1976, p. 15-17).<br />

O pensamento dialético não nega a existência ou a objetivi<strong>da</strong>de dos<br />

fenômenos, mas questiona a sua pretensa independência, fixidez e naturali<strong>da</strong>de.<br />

Entretanto, a destruição <strong>da</strong> pseudoconcretici<strong>da</strong>de é apenas uma faceta <strong>da</strong> dialética<br />

materialista histórica. “Para que o mundo possa ser explicado criticamente, cumpre<br />

que a explicação mesma se coloque no terreno <strong>da</strong> <strong>práxis</strong> revolucionária” (Kosik,<br />

1976, p. 22). Ao contrário <strong>da</strong> pseudoconcretici<strong>da</strong>de, o mundo <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de é<br />

o mundo <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>lização <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, é o mundo <strong>em</strong> que a ver<strong>da</strong>de não<br />

é <strong>da</strong><strong>da</strong> e predestina<strong>da</strong>, não está pronta e acaba<strong>da</strong>, impressa de forma<br />

imutável na consciência humana: é o mundo <strong>em</strong> que a ver<strong>da</strong>de<br />

devém. (...) A destruição <strong>da</strong> pseudoconcretici<strong>da</strong>de significa que a<br />

ver<strong>da</strong>de não é n<strong>em</strong> inatingível, n<strong>em</strong> alcançável de uma vez para<br />

s<strong>em</strong>pre, mas que ela se faz; logo, se desenvolve e se r<strong>ea</strong>liza (Kosik,<br />

1976, p. 23).<br />

Para desmontar o mundo <strong>da</strong> pseudoconcretici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, trata<strong>da</strong><br />

aqui como uma <strong>construção</strong> cultural, procuramos ir para além <strong>da</strong>s aparências que os<br />

<strong>da</strong>dos <strong>em</strong>píricos d<strong>em</strong>onstram. Aliás, convém destacar que o <strong>em</strong>pirismo, via de<br />

regra, contém um ontologismo ingênuo por esboçar apenas uma visão periférica do<br />

fenômeno investigado e, quando r<strong>ea</strong>lçado por preciosismos intelectuais, pode<br />

resultar <strong>em</strong> armadilhas <strong>da</strong>s mais fantasiosas aventuras livrescas.<br />

115


É por isso que, para atingir os nossos objetivos formulados inicialmente, o<br />

materialismo histórico e dialético constituiu-se numa abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> teórico-<br />

metodológica adequa<strong>da</strong> para a nossa <strong>em</strong>preita<strong>da</strong> de investigação. Primeiro, por<br />

permitir a identificação de nexos internos entre o particular e o universal, a partir do<br />

seu movimento histórico, ou seja, entre a prática pe<strong>da</strong>gógica e o projeto histórico.<br />

Segundo, pelas aspirações de futuro que ele advoga, a partir <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des de<br />

transformações no/do modo de produção e controle social a ser<strong>em</strong> impl<strong>em</strong>enta<strong>da</strong>s<br />

por um vasto e criativo movimento de massas articulado, intimamente, com to<strong>da</strong>s as<br />

lutas sociais que auspiciam um futuro melhor para além <strong>da</strong> ditadura do capital.<br />

O materialismo histórico-dialético, para ser compreendido <strong>em</strong> sua<br />

globali<strong>da</strong>de, precisa ser concebido como uni<strong>da</strong>de entre ontologia, gnosiologia e<br />

lógica, ou seja, como uni<strong>da</strong>de entre a dialética objetiva do processo histórico de<br />

desenvolvimento do gênero humano, fruto do trabalho, a dialética histórica dos<br />

processos de conhecimento <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de pelo ser humano e, finalmente, a dialética<br />

também histórica dos processos de pensamento humano. Segundo Minayo (2000,<br />

p. 65),<br />

enquanto o materialismo histórico representa o caminho teórico que<br />

aponta a dinâmica do r<strong>ea</strong>l na r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, a dialética refere-se ao<br />

método de abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> deste r<strong>ea</strong>l. Esforça-se para entender o<br />

processo histórico <strong>em</strong> seu dinamismo, provisorie<strong>da</strong>de e<br />

transformação.<br />

Embora estivéss<strong>em</strong>os interessados, de imediato, na descrição e na<br />

explicação de processos que ocorr<strong>em</strong> na prática pe<strong>da</strong>gógica com a <strong>capoeira</strong>,<br />

tínhamos a consciência de que eles teriam que ser vistos a partir de uma<br />

perspectiva mais ampla. Nesse sentido, vozes foram dilata<strong>da</strong>s, sobretudo as<br />

dissonantes, conflitos foram estimulados <strong>em</strong> vez de ser<strong>em</strong> r<strong>em</strong>ovidos ou<br />

pacificados, fragmentos multivocais foram considerados na dinâmica <strong>da</strong> ação<br />

comunicativa que procurou dilatar o local e reduzir o global. Procurando interagir o<br />

116


político, o econômico, o social e o ideológico, conceitos foram articulados,<br />

desarticulados e r<strong>ea</strong>rticulados, levando-se <strong>em</strong> consideração tanto a conjuntura<br />

quanto as contingências.<br />

Nesse <strong>jogo</strong> investigativo, procuramos incorporar, <strong>em</strong> nossas<br />

possibili<strong>da</strong>des de análise, a polifonia tanto do objeto quanto do método,<br />

proporcionando à pesquisa uma abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> policêntrica e polifônica, que relega as<br />

formas dualistas do pensamento binário (natureza - cultura, corpo – mente etc.) e se<br />

recusa, ve<strong>em</strong>ent<strong>em</strong>ente, a colher el<strong>em</strong>entos denominados “originários” ou “nativos”<br />

no fluxo plural de sincretismos e dissonâncias.<br />

Não foi nosso objetivo investigar a orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>. Essa investi<strong>da</strong> já<br />

foi r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> por outros autores como Soares (2001) e Pires (2001), dentre outros.<br />

Ao explicitar as leis que determinam a transformação, ou seja, o desenvolvimento do<br />

fenômeno investigado, procuramos fugir de perspectivas essencialistas, puristas,<br />

nacionalistas, normatizantes e exotizantes. Percebíamos, no desenrolar do processo<br />

investigativo, que essas leis não dependiam <strong>da</strong> nossa vontade, <strong>da</strong> nossa<br />

consciência e <strong>da</strong>s nossas intenções, <strong>em</strong> particular, entretanto, contraditoriamente,<br />

influenciavam nossa vontade, nossa consciência e nossas intenções.<br />

Por mais complexos que foss<strong>em</strong> os nossos esqu<strong>em</strong>as de investigação,<br />

eles não conseguiriam explicar o fenômeno <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as suas particulari<strong>da</strong>des.<br />

Mas isso não nos afligiu, à medi<strong>da</strong> que já havíamos aprendido que todo e<br />

qualquer fenômeno constitui-se numa síntese de múltiplas determinações. Por<br />

isso, através <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des metodológicas utiliza<strong>da</strong>s nesta investigação,<br />

procuramos explicitar as regulari<strong>da</strong>des do mesmo, ou seja, as leis responsáveis<br />

pelo seu desenvolvimento histórico.<br />

117


Aprend<strong>em</strong>os, com essa vivificante experiência, que a perspectiva de<br />

análise cartesiana simplifica, decompõe, desmonta o todo <strong>em</strong> partes<br />

el<strong>em</strong>entares, presumindo existir uma transparência nos fenômenos sociais, mas<br />

não consegue explicar o complexo dos mesmos. A aderência pragmática aos<br />

fatos imediatamente <strong>da</strong>dos, exclui <strong>da</strong> concepção de conjunto certas conexões<br />

efetivamente existentes, sendo que uma pretensa fideli<strong>da</strong>de aos fatos conduz a<br />

reedições vulgares de <strong>em</strong>pirismo (Lukács, 1979).<br />

Nessas “vere<strong>da</strong>s abruptas”, encontramos <strong>em</strong>pecilhos para elaborar o<br />

nosso método de exposição, apesar de alertas sobre a dificul<strong>da</strong>de de se abor<strong>da</strong>r<br />

a dialética como método de pensamento, à medi<strong>da</strong> que ela rejeita qualquer<br />

formalismo <strong>em</strong> sua própria exposição. Para Freitas (2000, p. 74), “a dialética<br />

parece algo que só pode ser vivenciado, <strong>da</strong>í a dificul<strong>da</strong>de de uma apresentação<br />

formal sobre ela e, também, a dificul<strong>da</strong>de para apreendê-la”.<br />

Tentando escapar de id<strong>ea</strong>lizações, não abdicamos, durante todo o<br />

processo de investigação, de um conteúdo concreto (o movimento histórico <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>), tal como sugere o método dialético. Considerando que existe uma<br />

distinção entre a matéria e a consciência, no sentido de que a primeira t<strong>em</strong><br />

existência independente <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> e constitui a base do conhecimento humano, o<br />

nosso método de investigação consistiu, primeiramente, na representação do<br />

<strong>em</strong>pírico. Representação não é o conhecimento do <strong>em</strong>pírico, é apenas o primeiro<br />

passo para a sua apreensão <strong>em</strong> forma de conceito. Trata-se, para Marx (1983), de<br />

um ato cognitivo inicial, confuso e caótico, mas que já permite a formulação de<br />

conceitos simples. Esse processo de abstração analítica vai progressivamente<br />

assimilando conceitos simples e determinações abstratas e, provisoriamente,<br />

destaca a parte do todo. Para o materialismo histórico dialético, as representações,<br />

118


mesmo que permitam conhecer determinados atributos do objeto, não consegu<strong>em</strong><br />

captar os nexos internos, o movimento do r<strong>ea</strong>l, o geral e o singular. Os traços<br />

essenciais captados pod<strong>em</strong> ser confundidos com os individuais e aparecer <strong>em</strong><br />

forma casual e particular.<br />

A investigação iniciou, portanto, a partir do concreto vivido, pois o id<strong>ea</strong>l,<br />

para Marx (1999, p. 28), “não é mais do que o material transposto para a cabeça do<br />

ser humano e por ela interpretado". Em outras palavras, o materialismo histórico não<br />

nega o id<strong>ea</strong>l, pelo contrário, toma-o como um fato r<strong>ea</strong>l (material) e tenta<br />

compreendê-lo a partir <strong>da</strong>s suas condições de existência.<br />

O passo seguinte do método de investigação foi a passag<strong>em</strong> do<br />

abstrato à totali<strong>da</strong>de concreta geral – o concreto pensado, que consistiu na<br />

ênfase <strong>da</strong>s relações <strong>da</strong> parte com o todo, num caminho inverso ao r<strong>ea</strong>lizado pela<br />

abstração. Esse movimento é um processo permanente com continui<strong>da</strong>des e<br />

rupturas. Segundo Wachowicz (2001, p. 37):<br />

o processo científico do pensamento, no método dialético, começa<br />

na abstração que resultou <strong>da</strong> busca <strong>da</strong>s determinações do r<strong>ea</strong>l.<br />

Embora essa busca tenha iniciado pela observação imediata e a<br />

representação do r<strong>ea</strong>l, este não é tomado como ponto de parti<strong>da</strong>,<br />

mas apenas de referência para a abstração. (...) O pensamento<br />

parte não de um imediato unilateral, mas de uma síntese de<br />

determinações encontra<strong>da</strong>s na representação do r<strong>ea</strong>l, como uma<br />

totali<strong>da</strong>de r<strong>ea</strong>l. Ou seja: o pensamento começa sobre um todo, a<br />

que Marx chama de abstrato, constituído de relações gerais e<br />

determinações simples e parte para o concreto, constituído de<br />

relações múltiplas e determinações complexas. A totali<strong>da</strong>de<br />

permanece durante todo o processo como categoria metodológica.<br />

O concreto é mais complexo que o abstrato, por isso o método<br />

começa no abstrato e eleva-se até o concreto (...).<br />

Esse processo de <strong>construção</strong> <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de concreta implica eliminar, via<br />

abstrações e generalizações, aspectos particulares do fenômeno para “ver” o<br />

essencial, o fun<strong>da</strong>mental, que agrega dialeticamente o lógico e o histórico. “A<br />

investigação lógica mostra onde começa o histórico, e o histórico completa e<br />

pressupõe o lógico” (Kosik, 1976, p. 60). A totali<strong>da</strong>de é, portanto, a essência, porque<br />

119


deixou de lado aspectos específicos, factuais, s<strong>em</strong> desprezar a riqueza do r<strong>ea</strong>l, isto<br />

é, sua contraditorie<strong>da</strong>de e multiplici<strong>da</strong>de de significados. Compreender e explicar a<br />

totali<strong>da</strong>de implica numa in<strong>da</strong>gação sobre a sua gênese e as “fontes internas do seu<br />

desenvolvimento e movimento” (Kosik, 1976). Essa concepção “genético-dinâmica”<br />

de totali<strong>da</strong>de foi destaca<strong>da</strong> por Marx <strong>em</strong> suas análises sobre o capitalismo.<br />

Segundo Kosik (1976, p. 58-59):<br />

O ponto de vista <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de concreta na<strong>da</strong> t<strong>em</strong> de comum com a<br />

totali<strong>da</strong>de holística, organicista ou neo-romântica, que hipostasia o<br />

todo antes <strong>da</strong>s partes e efetua a mitologização do todo. A dialética<br />

não pode entender a totali<strong>da</strong>de como um todo já feito e formalizado,<br />

que determina as partes (...). A totali<strong>da</strong>de não é um todo já pronto que<br />

se recheia de um conteúdo, com as quali<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s partes ou com as<br />

suas relações; a própria totali<strong>da</strong>de é que se concretiza e esta<br />

concretização não é apenas criação no conteúdo, mas também<br />

criação do todo.<br />

Assim, para que atingíss<strong>em</strong>os o conhecimento concreto <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de do<br />

fenômeno investigado, foi preciso fazer o “caminho de retorno” (Marx) <strong>em</strong> direção à<br />

totali<strong>da</strong>de. Entretanto, desta vez, o mesmo já não consistia numa representação<br />

caótica do todo, mas sim, numa rica totali<strong>da</strong>de de determinações e relações<br />

diversas. Ou seja, numa totali<strong>da</strong>de histórica, perm<strong>ea</strong><strong>da</strong> de contradições, pois<br />

“totali<strong>da</strong>de s<strong>em</strong> contradição é vazia e inerte, as contradições fora <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de são<br />

formais e arbitrárias” (Kosik, 1976, p. 60).<br />

Enfim, a totali<strong>da</strong>de do fenômeno investigado somente pode ser entendi<strong>da</strong><br />

como movimento e desenvolvimento <strong>da</strong>s relações recíprocas entre o particular e o<br />

geral, materializados pelas ações de sujeitos históricos r<strong>ea</strong>is que, no processo social<br />

de produção e reprodução <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, concretizam o infinito processo de “humanização<br />

do hom<strong>em</strong>”.<br />

Diferente <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de estruturalista, que resulta <strong>da</strong> combinação de<br />

estruturas autônomas, cujos frutos <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de humana são desligados <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

120


<strong>em</strong> si, manifestando uma “falsa totali<strong>da</strong>de”, a totali<strong>da</strong>de materialista constitui a<br />

criação <strong>da</strong> produção social do hom<strong>em</strong>, ou seja, a <strong>práxis</strong> humana objetiva.<br />

Como pontos de apoio do conhecimento, as categorias, mo materialismo<br />

histórico-dialético, são resultado <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de criadora do investigador, e seus<br />

conteúdos dev<strong>em</strong> coincidir com a essência <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de investiga<strong>da</strong>, sensivelmente<br />

distinta dos fenômenos, “chegando mesmo a contradizê-los, já que eles não<br />

coincid<strong>em</strong> com sua essência” (Cheptulin, 1982, p. 18).<br />

Minayo (2000) distingue as categorias <strong>em</strong> “analíticas”, “<strong>em</strong>píricas” e<br />

“operacionais”. As analíticas operam como ferramentas no processo de<br />

desven<strong>da</strong>mento <strong>da</strong>s relações essenciais e “pod<strong>em</strong> ser considera<strong>da</strong>s balizas para o<br />

conhecimento do fenômeno nos seus aspectos gerais. Elas mesmas comportam<br />

vários graus de abstração, generalização e de aproximação” (ibid., p. 94). As<br />

categorias <strong>em</strong>píricas e operacionais operam como ferramentas para captação <strong>da</strong>s<br />

contradições no nível <strong>em</strong>pírico do fenômeno.<br />

Nesse sentido, neste estudo, foram toma<strong>da</strong>s como categorias analíticas<br />

os processos de organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico, a <strong>práxis</strong> pe<strong>da</strong>gógica e o trato<br />

com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> na perspectiva <strong>da</strong> <strong>construção</strong> do projeto histórico<br />

para além do capital.<br />

Como categorias <strong>em</strong>píricas e operacionais, trabalhamos com o que<br />

denominamos de referências significativas, extraí<strong>da</strong>s <strong>da</strong> “r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de” do movimento<br />

histórico-cultural <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e <strong>da</strong>s experiências desenvolvi<strong>da</strong>s <strong>em</strong> instituições<br />

formais e não-formais de ensino e a “possibili<strong>da</strong>de” dessas experiências se<br />

r<strong>ea</strong>lizar<strong>em</strong> quando as condições materiais se tornar<strong>em</strong> propícias.<br />

Ao recorrermos as categorias "r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de" e "possibili<strong>da</strong>de", que desde a<br />

antigui<strong>da</strong>de são alvos de preocupação dos filósofos, tomamos como referências os<br />

121


pressupostos de Cheptulin, que as abor<strong>da</strong> a partir de uma concepção dialética e<br />

materialista. O referido autor argumenta que:<br />

se conhec<strong>em</strong>os a essência de uma formação material, conhec<strong>em</strong>os<br />

tanto seus estados r<strong>ea</strong>is, como seus estados possíveis, os que ain<strong>da</strong><br />

não exist<strong>em</strong>, mas que surgirão necessariamente <strong>em</strong> certas condições<br />

(CHEPTULIN, 1982, p.335).<br />

O que nos interessou foi analisar a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de e as possibili<strong>da</strong>des de trato<br />

com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo de formação profissional, por meio do<br />

processo de organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico e <strong>da</strong> produção e apropriação do<br />

conhecimento, para reconhecer o que isso representa neste momento histórico.<br />

Cheptulin (1982) considera a categoria “r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de” como aquilo que existe<br />

r<strong>ea</strong>lmente, ou seja, “a uni<strong>da</strong>de r<strong>ea</strong>lmente existente do necessário e do contingente, do<br />

interior e do exterior, <strong>da</strong> essência e do fenômeno” (ibid., p. 340). A categoria<br />

“possibili<strong>da</strong>de” diz respeito às formações materiais, proprie<strong>da</strong>des, estados, que não<br />

exist<strong>em</strong> na r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, mas que pod<strong>em</strong> se manifestar, <strong>em</strong> decorrência <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de<br />

que as coisas materiais têm de se transformar. R<strong>ea</strong>lizando-se, a possibili<strong>da</strong>de<br />

transforma-se <strong>em</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, sendo esta, portanto, uma possibili<strong>da</strong>de já r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> e a<br />

possibili<strong>da</strong>de, uma r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de <strong>em</strong> potencial.<br />

Ao reconhecermos as possibili<strong>da</strong>des e ao admitirmos que elas se<br />

transformam <strong>em</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, <strong>em</strong> condições determina<strong>da</strong>s, pod<strong>em</strong>os interferir no curso<br />

objetivo dos acontecimentos e, mediante condições requeri<strong>da</strong>s, acelerar ou refr<strong>ea</strong>r a<br />

transformação de possibili<strong>da</strong>des <strong>em</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de.<br />

Uma <strong>da</strong><strong>da</strong> formação material possui uma quanti<strong>da</strong>de infinita de diferentes<br />

possibili<strong>da</strong>des (formais e r<strong>ea</strong>is) e, de acordo com as condições necessárias para a sua<br />

r<strong>ea</strong>lização, elas pod<strong>em</strong> ser concretas e abstratas.<br />

Uma possibili<strong>da</strong>de concreta é a possibili<strong>da</strong>de para cuja r<strong>ea</strong>lização<br />

pod<strong>em</strong> ser reuni<strong>da</strong>s, no momento presente, as condições<br />

correspondentes; a possibili<strong>da</strong>de abstrata é uma possibili<strong>da</strong>de para cuja<br />

r<strong>ea</strong>lização não há, no momento presente, condições necessárias. Para<br />

122


que esta última se r<strong>ea</strong>lize, a formação material que a contém deve<br />

transpor vários estágios de desenvolvimento (CHEPTULIN, 1982, p.<br />

342).<br />

Enfim, na passag<strong>em</strong> de um estado qualitativo a outro, a formação material<br />

jamais esgota suas possibili<strong>da</strong>des. Nesse sentido, Cheptulin (1982) faz ain<strong>da</strong> uma<br />

outra distinção a respeito <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>lização <strong>da</strong>s diferentes possibili<strong>da</strong>des próprias a uma<br />

formação material, pois elas não ag<strong>em</strong> <strong>da</strong> mesma forma sobre a essência de uma<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong> formação material:<br />

A possibili<strong>da</strong>de cuja r<strong>ea</strong>lização não modifica a essência <strong>da</strong> coisa é<br />

denomina<strong>da</strong> de possibili<strong>da</strong>de de fenômeno; a possibili<strong>da</strong>de cuja<br />

r<strong>ea</strong>lização está liga<strong>da</strong> à modificação <strong>da</strong> essência <strong>da</strong> coisa, com a sua<br />

transformação <strong>em</strong> uma outra coisa, é denomina<strong>da</strong> de possibili<strong>da</strong>de de<br />

essência (op. cit., p. 344)<br />

2.3. Os Caminhos Construídos e as Etapas <strong>da</strong> Pesquisa<br />

Após essas considerações teórico-filosóficas adstritas ao método de<br />

pesquisa, consideramos oportuno destacar algumas questões objetivas que<br />

constituíram o processo de <strong>construção</strong> desta investigação, quais sejam: a) as quatro<br />

etapas <strong>da</strong> investigação foram sendo, paulatinamente, socializa<strong>da</strong>s no seu processo<br />

de <strong>construção</strong> tanto com os próprios sujeitos, quanto com as instâncias<br />

acadêmicas 49 ; b) a probl<strong>em</strong>ática desta pesquisa, <strong>da</strong><strong>da</strong> a complexi<strong>da</strong>de e inserção<br />

conflituosa <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no contexto educacional, exigiu-nos uma densa imersão no<br />

49 - Comunicação: Crítica <strong>da</strong> organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico no campo <strong>da</strong> cultura corporal: as<br />

referências para o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo de formação profissional. Anais<br />

do XV Encontro de Pesquisa Educacional <strong>da</strong>s Regiões Norte e Nordeste – EPENN, Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal do Maranhão, São Luiz-MA, 19 a 22 jun. 2001. GT 12, p. 380-381; Poster: Crítica do Trabalho<br />

Pe<strong>da</strong>gógico no Campo <strong>da</strong> Cultura Corporal: As Referências para o Trato com o Conhecimento <strong>da</strong><br />

Capoeira no Currículo de Formação Profissional. Anais <strong>da</strong> 53ª Reunião Anual <strong>da</strong> SBPC, Salvador-BA,<br />

13 a 18 jul. 2001; Comunicação: A pesquisa-ação no campo <strong>da</strong> cultura corporal/de movimento: crítica<br />

ao trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo de formação profissional. Resumo nos Anais do<br />

9º Simpósio de Pesquisa do CDS-UFSC; 2º Congresso Regional Sul do CBCE; Encontro Nacional<br />

dos Grupos PET’s de Educação Física. T<strong>em</strong>a: Atitude Investigativa e Formação Profissional na<br />

Educação Física. Florianópolis-SC, 22 nov. 2002, p. 17. Artigo: Aspectos do desenvolvimento <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>: transnacionali<strong>da</strong>de, resistência e mobili<strong>da</strong>de. Apresentado no II S<strong>em</strong>inário de Investigação<br />

do Instituto de Ciências Sociais <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Lisboa, <strong>em</strong> 09 de março de 2003 (FALCÃO,<br />

2003).<br />

123


meio <strong>capoeira</strong>no, aspecto que não foi negligenciado, pois o que acontece com a<br />

<strong>capoeira</strong> nos ambientes educacionais formais é também influenciado pelas<br />

experiências forja<strong>da</strong>s <strong>em</strong> ambientes não-formais de educação; c) a abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong><br />

interdisciplinar (Educação, Sociologia, História, Comunicação, Antropologia,<br />

Educação Física) e intercultural (região nordeste, sudeste, sul e o exterior – África e<br />

Europa) nos exigiram uma habilidosa capaci<strong>da</strong>de de negociação com autores e<br />

sujeitos históricos de referência <strong>da</strong> pesquisa; d) o método, compreendido como<br />

<strong>construção</strong> do caminho e não como camisa de força, captou os nexos e<br />

determinantes históricos (essência) do fenômeno investigado e não se restringiu a<br />

descrever aspectos <strong>da</strong> <strong>em</strong>piria; e) os instrumentos de coleta de <strong>da</strong>dos não foram<br />

reduzidos a meras técnicas, mas tratados como “teorias <strong>em</strong> ato” (THIOLLENT,<br />

2000); f) a nossa inserção no mundo <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>g<strong>em</strong> por mais de vinte e cinco<br />

anos, alia<strong>da</strong> a nossa atuação pe<strong>da</strong>gógica, preponderant<strong>em</strong>ente volta<strong>da</strong> para esta<br />

t<strong>em</strong>ática contribuíram sobr<strong>em</strong>aneira para a formulação <strong>da</strong>s categorias, t<strong>em</strong>as e<br />

subt<strong>em</strong>as desta tese.<br />

Diante destas considerações e convictos <strong>da</strong> importância de uma<br />

necessária e rigorosa crítica epist<strong>em</strong>ológica no que concerne à concepção de<br />

socie<strong>da</strong>de, de hom<strong>em</strong> e de ciência subjacente a to<strong>da</strong> prática investigativa, essa<br />

pesquisa foi r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong>s seguintes etapas articula<strong>da</strong>s entre si.<br />

Primeiramente, foi r<strong>ea</strong>lizado um projeto-piloto com o objetivo de<br />

probl<strong>em</strong>atizar as diversas possibili<strong>da</strong>des de pesquisa, tendo a <strong>capoeira</strong> como objeto<br />

de estudo. Este projeto-piloto foi desenvolvido entre Set<strong>em</strong>bro de 2000 e Julho de<br />

2001, na Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia, através de projeto de extensão,<br />

formalmente construído para atender aos objetivos inicialmente propostos para esta<br />

pesquisa, cujos aspectos relevantes serão apresentados no capítulo IV.<br />

124


A etapa seguinte (segun<strong>da</strong>) consistiu <strong>em</strong> analisar o programa de <strong>capoeira</strong><br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia (UFBA), a fim de identificar e compreender o<br />

movimento de inserção <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong>des brasileiras e<br />

verificar como se efetiva a organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico no âmbito do<br />

referido programa.<br />

Optamos pelo programa dessa universi<strong>da</strong>de pela sua inserção num<br />

contexto <strong>em</strong> que a <strong>capoeira</strong> se diss<strong>em</strong>inou e se consolidou, firmando-se como forte<br />

expressão cultural, além do fato de ter sido uma <strong>da</strong>s pioneiras no processo de<br />

implantação desta manifestação no currículo acadêmico, vinculando-a, por sua vez,<br />

ao curso de graduação <strong>em</strong> Educação Física.<br />

Nessa etapa <strong>da</strong> pesquisa foram adotados alguns procedimentos<br />

investigativos típicos <strong>da</strong>s pesquisas de orientação naturalista (observação,<br />

entrevistas etc.), muitas vezes, quando tratados isola<strong>da</strong>mente, são vistos com<br />

reservas pela teoria marxista pois se limitam à captação e à explicação dos<br />

fenômenos por intermédio <strong>da</strong>s impressões subjetivas dos participantes. Entretanto,<br />

consideramos que eles não podiam ser negligenciados, e para superar possíveis<br />

limitações, coletamos <strong>da</strong>dos através de outras fontes, como indicadores sociais,<br />

documentos institucionais, matérias de jornais e revistas.<br />

Um dos principais procedimentos metodológicos adotados nesta fase foi a<br />

observação participante, através <strong>da</strong> qual procuramos interagir e compartilhar com o<br />

cotidiano dos sujeitos, observando e registrando suas ações. Spradley (1980)<br />

classifica a observação participante, no âmbito <strong>da</strong>s pesquisas educacionais, <strong>em</strong><br />

passiva, modera<strong>da</strong>, ativa e completa, to<strong>da</strong>s podendo ser revela<strong>da</strong>s ou não<br />

explicita<strong>da</strong>s.<br />

125


Ao assumirmos o papel de observador ativo, não nos contentávamos com<br />

a descrição pura e simples de como as coisas aparent<strong>em</strong>ente se apresentavam.<br />

Como é de praxe nas pesquisas qualitativas, nas quais o pesquisador é o principal e<br />

mais confiável instrumento de observação, <strong>em</strong> decorrência de sua extr<strong>em</strong>a<br />

a<strong>da</strong>ptabili<strong>da</strong>de e, partindo do pressuposto de que não há separação entre as<br />

relações sociais presentes no campo específico <strong>da</strong> pesquisa e as existentes na<br />

socie<strong>da</strong>de mais ampla, procuramos não nos afastar <strong>da</strong> ética rigorosa <strong>em</strong> relação<br />

aos sujeitos e ao objeto desta investigação.<br />

As observações seguiram uma seqüência dinâmica, nas quais<br />

procuramos efetuar ora mergulho, ora <strong>em</strong>ersão na r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, tentando decifrar o que<br />

parecia incompreensível e procurando estranhar aquilo que, à primeira vista, parecia<br />

conhecido. Dessa forma, elas se caracterizaram como do tipo não-estrutura<strong>da</strong>s, ou<br />

seja, os comportamentos observados não foram predeterminados. Tais observações<br />

permitiram uma confirmação <strong>da</strong> sinceri<strong>da</strong>de de certas respostas a entrevistas que,<br />

possivelmente, foram <strong>da</strong><strong>da</strong>s só para “causar boa impressão” além de ter<strong>em</strong><br />

possibilitado a “identificação de comportamentos não-intencionais ou inconscientes<br />

e explorar tópicos que os informantes não se sent<strong>em</strong> à vontade para discutir”<br />

(ALVES-MAZZOTTI, 1998, p. 164).<br />

Durante esta fase, foram observa<strong>da</strong>s aulas práticas e teóricas,<br />

intercâmbios, com<strong>em</strong>orações, exibições e confraternizações.<br />

Mesmo que a observação participante seja propala<strong>da</strong> como parte<br />

importante de to<strong>da</strong> investigação social, chegando a ser trata<strong>da</strong>, por alguns<br />

estudiosos, como um método <strong>em</strong> si, reconhec<strong>em</strong>os os seus limites, já que ela é<br />

seletiva. Segundo Freitas (2000, p. 68), “o pesquisador s<strong>em</strong>pre seleciona <strong>em</strong> função<br />

de categorias prévias – sociais e teóricas – a respeito <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de de que se<br />

126


aproxima. A tendência normal é a de retirar <strong>da</strong> frente tudo aquilo que é irrelevante”.<br />

Esses limites nos levaram a optar por outros procedimentos investigativos<br />

compl<strong>em</strong>entares a fim de evitarmos explicações ingênuas <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de investiga<strong>da</strong><br />

“que tend<strong>em</strong> a ficar restritas à descrição e à interpretação do micro-universo dos<br />

envolvidos” (FREITAS, 2000, p. 69).<br />

Além <strong>da</strong>s observações participantes, foram r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>s entrevistas s<strong>em</strong>i-<br />

estrutura<strong>da</strong>s, por parecer<strong>em</strong> mais adequa<strong>da</strong>s para atender às especifici<strong>da</strong>des desta<br />

etapa <strong>da</strong> investigação. No início, elas tinham um caráter inteiramente informal,<br />

sendo solicitado ao informante que falasse sobre ele, suas preocupações, sobre o<br />

que nós deveríamos saber a respeito <strong>da</strong> instituição e <strong>da</strong> disciplina que coordenava<br />

ou fazia parte. Questionamos, também, sobre o que deveria ser mu<strong>da</strong>do <strong>em</strong> relação<br />

a determinados aspectos. Posteriormente, procuramos aprofun<strong>da</strong>r questões<br />

t<strong>em</strong>áticas, evitando, com isso, que elas não se reduziss<strong>em</strong> a simples conversações<br />

ou interrogatórios.<br />

Inicialmente, foram entrevistados alguns dos ministrantes <strong>da</strong> disciplina.<br />

Optamos por estes sujeitos porque eles se constituíam <strong>em</strong> valiosas fontes que, <strong>em</strong><br />

tese, vivenciaram o cotidiano <strong>da</strong> disciplina por longo t<strong>em</strong>po e, por isso, tinham<br />

muitas informações a prestar. À medi<strong>da</strong> que novos aspectos relevantes iam sendo<br />

revelados, novos informantes, dentre os quais, alguns estu<strong>da</strong>ntes, foram<br />

entrevistados para ampliar o leque de informações sobre o programa. A fim de<br />

cont<strong>em</strong>plar uma variação amplia<strong>da</strong> de informantes, recorr<strong>em</strong>os não apenas ao<br />

sujeitos históricos protagonistas, mas, também, a ex-estu<strong>da</strong>ntes que contribuíram<br />

com informações relevantes.<br />

Quando perceb<strong>em</strong>os que os <strong>da</strong>dos reunidos cont<strong>em</strong>plavam os objetivos<br />

propostos para esta etapa, d<strong>em</strong>os por encerrado este procedimento investigativo, à<br />

127


medi<strong>da</strong> que não se justificava mais a inclusão de novos <strong>da</strong>dos (LINCOLN e GUBA,<br />

1985). 50<br />

Em segui<strong>da</strong>, foi r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> uma catalogação dos documentos disponíveis já<br />

existentes sobre o programa de <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> respectiva universi<strong>da</strong>de. Este<br />

levantamento extrapolou a dimensão dos documentos escritos e buscamos<br />

informações <strong>em</strong> fitas de vídeo. D<strong>em</strong>os preferência aos documentos normatizadores<br />

e legisladores, que, por sua vez, foram catalogados para posterior análise, dentre<br />

eles, programas <strong>da</strong> disciplina, planejamentos, planos, regulamentos, textos<br />

elaborados pelos professores, artigos elaborados pelos estu<strong>da</strong>ntes, relatórios,<br />

orientações pe<strong>da</strong>gógicas e outros documentos relacionados à disciplina. Foram<br />

analisa<strong>da</strong>s ain<strong>da</strong> outras fontes, como reportagens de jornais e revistas sobre o<br />

programa investigado.<br />

Foram levantados e catalogados os seguintes documentos:<br />

� Plano de Curso <strong>da</strong> Disciplina Capoeira <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia;<br />

� Programa Curricular do Curso de Educação Física <strong>da</strong> UFBA;<br />

� Fluxograma do Currículo do Curso de Educação Física <strong>da</strong> UFBA;<br />

� Dados do S<strong>em</strong>inário sobre Reestruturação Curricular do Curso de<br />

Educação Física <strong>da</strong> UFBA, r<strong>ea</strong>lizado no primeiro s<strong>em</strong>estre de 2001.<br />

A análise dos <strong>da</strong>dos desta etapa, tanto dos já existentes, quanto dos<br />

produzidos para esse fim, não seguiu uma ord<strong>em</strong> cronológica especificamente<br />

preestabeleci<strong>da</strong>. No entanto, alguns princípios gerais foram levados <strong>em</strong><br />

consideração. Assim, os <strong>da</strong>dos <strong>da</strong>s entrevistas e os conteúdos dos documentos<br />

foram organizados e analisados segundo tópicos comuns, compondo assim,<br />

50 - Lincoln e Guba (1985) suger<strong>em</strong> a técnica de “bola de neve” para a seleção dos sujeitos<br />

informantes. Esta técnica consiste <strong>em</strong> identificar uns poucos sujeitos e pedir-lhes que indiqu<strong>em</strong><br />

outros, os quais, por sua vez, indicarão outros e assim sucessivamente, até que se atinja o ponto de<br />

redundância.<br />

128


categorias de análise formula<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> aglutinação de <strong>da</strong>dos convergentes<br />

com certa homogenei<strong>da</strong>de e coerência.<br />

Ciente <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de do processo de análise de <strong>da</strong>dos qualitativos e<br />

<strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des que acometeram esta pesquisa, convém destacar que proced<strong>em</strong>os<br />

a análise e a interpretação dos <strong>da</strong>dos numa perspectiva não-lin<strong>ea</strong>r, atentando para<br />

os critérios relativos à credibili<strong>da</strong>de, transferibili<strong>da</strong>de, consistência e<br />

confirmabili<strong>da</strong>de, durante to<strong>da</strong> a investigação, através de teorizações progressivas<br />

<strong>em</strong> um processo interativo com a coleta de <strong>da</strong>dos, numa espécie de “sintonia fina”<br />

que foi até a análise final (ALVES-MAZZOTTI, 1998, p. 172-174).<br />

Para a formulação <strong>da</strong>s categorias de análise, suposições foram gera<strong>da</strong>s e<br />

testa<strong>da</strong>s de modo que os <strong>da</strong>dos pudess<strong>em</strong> ser confirmados e categorizados a partir<br />

de suas evidências, tanto no que diz respeito à freqüência quanto à ênfase com que<br />

os mesmos foram evidenciados.<br />

A etapa seguinte desta pesquisa (a terceira) se efetivou através de<br />

Pesquisa-ação (BARBIER, 1985; THIOLLENT, 2000), r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> na Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal de Santa Catarina (UFSC), por meio <strong>da</strong> disciplina (s<strong>em</strong>inário) optativa de<br />

<strong>capoeira</strong> com vistas à elaboração de el<strong>em</strong>entos que pudess<strong>em</strong> efetivamente<br />

contribuir para o seu entendimento como <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na e a possibili<strong>da</strong>de dela<br />

ser trata<strong>da</strong> na condição de um complexo t<strong>em</strong>ático.<br />

A idéia de tratarmos a <strong>capoeira</strong> como complexo t<strong>em</strong>ático provém <strong>da</strong>s<br />

contribuições teóricas <strong>da</strong> obra “Fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> Escola do Trabalho”, de autoria de<br />

um dos maiores pe<strong>da</strong>gogos russos, M. Pistrak (1888 – 1940), escrita <strong>em</strong> 1924.<br />

Pistrak (1981) defendia dois grandes fun<strong>da</strong>mentos para a pe<strong>da</strong>gogia socialista<br />

soviética: as relações <strong>da</strong> escola com a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de atual e a auto-organização dos<br />

estu<strong>da</strong>ntes. Ao criar o “sist<strong>em</strong>a dos complexos”, Pistrak (1981) propugnava a<br />

129


organização do ensino através de t<strong>em</strong>as socialmente significativos, por meio dos<br />

quais, os estu<strong>da</strong>ntes compreendiam a dinâmica e as relações existentes entre<br />

aspectos diferentes de uma mesma r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de.<br />

Por último, fiz<strong>em</strong>os uma análise do processo de internacionalização <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, torna<strong>da</strong> possível a partir <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>lização de estágio de doutoramento<br />

(apoiado pela CAPES), por cinco meses, entre 05 de abril e 31 de agosto de 2003,<br />

no Instituto de Ciências Sociais (ICS), <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Lisboa, quando nos foi<br />

possível conhecer e analisar algumas experiências com <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> seis países <strong>da</strong><br />

Europa (Portugal, Itália, Espanha, Inglaterra, Polônia e Noruega). Desse trabalho,<br />

resultaram 08 (oito) fitas cassetes grava<strong>da</strong>s com entrevistas com mestres,<br />

professores e estu<strong>da</strong>ntes, 06 (seis) fitas de vídeo grava<strong>da</strong>s com imagens de<br />

eventos, oficinas, aulas e situações de <strong>capoeira</strong>, inúmeras anotações pessoais,<br />

decorrentes de observações e reflexões.<br />

Esta etapa foi importantíssima para o aprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> análise do<br />

objeto, à medi<strong>da</strong> que nos foi possível ampliar os <strong>da</strong>dos <strong>em</strong>píricos e rever<br />

(pre)conceitos e posicionamentos reducionistas que, certamente, comprometeriam a<br />

rigorosi<strong>da</strong>de, a consistência e coerência <strong>da</strong>s proposições formula<strong>da</strong>s no final desta<br />

tese.<br />

A opção de articular possibili<strong>da</strong>des metodológicas diversas não implicou<br />

<strong>em</strong> negligenciar o método de análise privilegiado, pois, conforme destaca Freitas<br />

(2000, p. 73), “(...) na definição de uma determina<strong>da</strong> forma de trabalho, t<strong>em</strong><br />

precedência a teoria do conhecimento <strong>em</strong>prega<strong>da</strong> e não suas técnicas particulares<br />

de coleta de <strong>da</strong>dos”.<br />

Os expedientes utilizados, na condição de observador participante, ora<br />

assistindo eventos, ora participando de ro<strong>da</strong>s de rua, ora apenas assistindo (com<br />

130


“espírito” científico) exibições, ou então, na convivência do dia-a-dia, possibilitaram-<br />

nos perceber a pujante capaci<strong>da</strong>de dos <strong>capoeira</strong>s imigrantes de metamorfos<strong>ea</strong>r o<br />

cotidiano a partir de ricas possibili<strong>da</strong>des e experiências vivencia<strong>da</strong>s nas relações de<br />

trabalho e lazer com esta manifestação cultural, fora do seu berço gerador.<br />

O título do Projeto de Pesquisa que motivou a r<strong>ea</strong>lização desse estágio:<br />

“Capoeira s<strong>em</strong> fronteiras!? - o processo de internacionalização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e suas<br />

contribuições para a teoria pe<strong>da</strong>gógica”, suscitava e requeria, de ant<strong>em</strong>ão, uma<br />

imersão nas experiências desenvolvi<strong>da</strong>s com essa manifestação cultural, fora do<br />

Brasil, por duas razões básicas: a) pelo interesse que a <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong> despertando<br />

nos mais diferentes rincões do planeta e b) pela curiosi<strong>da</strong>de intelectual que esse<br />

fenômeno v<strong>em</strong> provocando no contexto acadêmico.<br />

Quatro questões de estudo nos instigavam, no início do estágio, e<br />

tornaram-se recorrentes durante todo o processo. Será que é possível falar<br />

r<strong>ea</strong>lmente de uma <strong>capoeira</strong> s<strong>em</strong> fronteiras? Se entendermos essas fronteiras como<br />

barreiras a ser<strong>em</strong> enfrenta<strong>da</strong>s pelos <strong>capoeira</strong>s na busca de maior reconhecimento e<br />

digni<strong>da</strong>de, que fronteiras são essas? Será que, desse movimento de enfrentamento<br />

e desmoronamento de fronteiras que a <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong> materializando, pod<strong>em</strong> <strong>em</strong>ergir<br />

novos el<strong>em</strong>entos teórico-metodológicos capazes de contribuir significativamente<br />

para o desenvolvimento <strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica?<br />

131


CAPÍTULO 3<br />

“IÊ... TEM FUNDAMENTO ... CAMARÁ”<br />

Neste capítulo apresentar<strong>em</strong>os os fun<strong>da</strong>mentos teórico-filosóficos que<br />

orientaram as nossas investigações, com especial atenção para o conceito de<br />

<strong>práxis</strong>, na concepção do materialismo histórico-dialético, sua atuali<strong>da</strong>de e vitali<strong>da</strong>de<br />

para subsidiar projetos de educação com vista à transformação social. Discorr<strong>em</strong>os<br />

também sobre o processo de organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico e sua articulação<br />

com o conceito de cultura a partir de estudos críticos sobre o currículo. Por fim,<br />

apresentamos algumas referências que consideramos significativas do contexto <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, <strong>em</strong>ergi<strong>da</strong>s do seu próprio desenvolvimento histórico.<br />

3.1. A Filosofia <strong>da</strong> Práxis: El<strong>em</strong>entos para a Construção <strong>da</strong> Práxis Capoeirana<br />

A palavra <strong>práxis</strong> provém do grego ������. Na Grécia, não era um termo<br />

muito preciso e servia para designar a ação que se r<strong>ea</strong>lizava no âmbito <strong>da</strong>s relações<br />

entre as pessoas. Diferent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> poiésis, que era produção material, produção<br />

de objetos, a <strong>práxis</strong> denotava a ação intersubjetiva, a ação moral, a ação do ci<strong>da</strong>dão<br />

(KONDER, 1992). Aristóteles foi o filósofo antigo que mais se utilizou desse termo,<br />

mas n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre lhe conferia um sentido nítido, unívoco. De maneira geral,<br />

encarava a <strong>práxis</strong> como ativi<strong>da</strong>de ética e política, distinta <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de produtiva, que<br />

era a poiésis. Tanto a <strong>práxis</strong> quanto a poiésis exigiam conhecimentos especiais,<br />

entretanto, pelo caráter rud<strong>em</strong>ente pragmático e estreitamente utilitário de ambas,<br />

esses conhecimentos ficavam sendo, de algum modo, limitados. Foi então que<br />

132


Aristóteles concebeu um terceiro tipo de ativi<strong>da</strong>de, cujo objetivo era exclusivamente<br />

a busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de: a theoria. Os gregos cultivavam, portanto, três ativi<strong>da</strong>des<br />

humanas fun<strong>da</strong>mentais: a <strong>práxis</strong>, a poiésis e a theoria.<br />

Essa sintética formulação influenciou sobr<strong>em</strong>aneira o ocidente, mas<br />

inúmeras controvérsias e divergências se insurgiram <strong>em</strong> torno delas, ora<br />

confrontando-as, ora articulando-as. Muitos renascentistas contribuíram para<br />

articulá-las, como o fez Leonardo <strong>da</strong> Vinci, através de uma metáfora militar: “a<br />

ciência é o capitão, a prática são os sol<strong>da</strong>dos”. Ou seja, “s<strong>em</strong> o capitão (a teoria), os<br />

sol<strong>da</strong>dos ficariam desorientados, não poderiam travar eficazmente os combates; e<br />

s<strong>em</strong> os sol<strong>da</strong>dos (a prática), o capitão ficaria isolado, reduzido à impotência, à<br />

inoperância” (KONDER, 1992, p. 99-100).<br />

Com o desenvolvimento industrial, a burguesia <strong>em</strong> ascensão, interessa<strong>da</strong><br />

<strong>em</strong> aumentar as forças produtivas através <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de de produção material, a que<br />

os gregos chamavam de poiésis, impingiu nova escala de valores à socie<strong>da</strong>de,<br />

centra<strong>da</strong> na torpe avareza e na rapinag<strong>em</strong> egoística <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de comum, que<br />

subestimava a ação intersubjetiva, política e moral dos ci<strong>da</strong>dãos (a <strong>práxis</strong> <strong>da</strong> Grécia<br />

Antiga).<br />

Foi Marx, um pensador do século XIX, qu<strong>em</strong> promoveu uma modificação<br />

decisiva nessa perspectiva e desenvolveu uma concepção original de <strong>práxis</strong> a partir<br />

do seu contato com o movimento operário. Suas formulações iniciais sobre <strong>práxis</strong><br />

(As teses sobre Feuerbach 51 , redigi<strong>da</strong>s na primavera de 1845) constitu<strong>em</strong> a síntese<br />

mais vigorosa de sua filosofia.<br />

51 As Teses sobre Feuerbach foram publica<strong>da</strong>s pela primeira vez por Engels, <strong>em</strong> 1888, como<br />

apêndice a seu livro “Ludwig Feuerbach e o fim <strong>da</strong> filosofia clássica al<strong>em</strong>ã”. Engels fez menção ao<br />

“valor inestimável” delas, entretanto, elas viriam a ser publica<strong>da</strong>s, <strong>em</strong> sua forma original e nos<br />

precisos termos redigidos por Marx, somente <strong>em</strong> 1932. Elas continuam dramaticamente atuais e<br />

váli<strong>da</strong>s para analisar os probl<strong>em</strong>as fun<strong>da</strong>mentais que os homens do século XXI enfrentam.<br />

133


Ao repensar a relação entre <strong>práxis</strong> e poiésis, Marx o fez a partir <strong>da</strong><br />

distinção entre produção humana e produção animal. Embora o animal também<br />

produza algo, essa produção é guia<strong>da</strong> pelos seus instintos e serve para atender<br />

suas necessi<strong>da</strong>des imediatas ou de suas crias. No caso do ser humano, a produção<br />

vai para além <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des físicas imediatas. Ela é fruto de escolhas e de<br />

decisões livr<strong>em</strong>ente toma<strong>da</strong>s por si ou exigi<strong>da</strong>s por outr<strong>em</strong>. Se a ativi<strong>da</strong>de do animal<br />

é ativi<strong>da</strong>de de sua espécie, portanto unilateral, a ativi<strong>da</strong>de humana, fruto do<br />

trabalho, é livre, portanto, universal. “A totali<strong>da</strong>de do que se chama história mundial”,<br />

afirmou Marx (2001, p. 148) “é apenas a criação do hom<strong>em</strong> por meio do trabalho<br />

humano”.<br />

Nesse sentido, para conhecer o hom<strong>em</strong>, torna-se imprescindível a análise<br />

do que ele faz, diz e pensa de si mesmo. Afinal, a palavra hom<strong>em</strong> deriva de humus,<br />

chão fértil, cultivável. Não pod<strong>em</strong>os entender o que ele sente e pensa s<strong>em</strong> saber<br />

como ele vive e o que ele faz. “A maneira como os indivíduos manifestam sua vi<strong>da</strong>”<br />

– diziam Marx e Engels, <strong>em</strong> A Ideologia Al<strong>em</strong>ã – “reflete exatamente o que eles são”<br />

(MARX e ENGELS, 1989, p. 13).<br />

Dentre as ativi<strong>da</strong>des que os seres humanos r<strong>ea</strong>lizam, historicamente, <strong>em</strong><br />

socie<strong>da</strong>de, nenhuma angariou prestígio tão grande e ao longo de tanto t<strong>em</strong>po como<br />

a <strong>práxis</strong>. Convém salientar que, <strong>em</strong>bora o trabalho, na concepção de Marx, tenha<br />

assumido a forma de <strong>práxis</strong> <strong>em</strong> sua orig<strong>em</strong>, esta se distingue do trabalho e cria<br />

valores que ele, por si só, não pode criar 52 . Segundo Kosik (1976, p. 204):<br />

A <strong>práxis</strong> compreende, além do momento laborativo, também o<br />

momento existencial (...) Ela se manifesta tanto na ativi<strong>da</strong>de objetiva<br />

do hom<strong>em</strong>, que transforma a natureza e marca com sentido humano<br />

52 Aspecto que muitos marxistas não aprofun<strong>da</strong>ram suficient<strong>em</strong>ente, tornando-se vulneráveis a<br />

críticas como as formula<strong>da</strong>s pelo filósofo al<strong>em</strong>ão Jürgen Habermas, a partir <strong>da</strong>s obras<br />

“Conhecimento e Interesse” e “Teoria <strong>da</strong> Razão Comunicativa”.<br />

134


os materiais naturais, como na formação <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de humana, na<br />

qual os momentos existenciais, como a angústia, a náus<strong>ea</strong>, o medo, a<br />

alegria, o riso, a esperança etc., não se apresentam como experiência<br />

passiva, mas como parte <strong>da</strong> luta pelo reconhecimento, isto é, do<br />

processo <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>lização <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de humana.<br />

Foi a partir <strong>da</strong>s formulações de Marx sobre o conceito de <strong>práxis</strong>, que<br />

buscamos os fun<strong>da</strong>mentos para sist<strong>em</strong>atizar o nosso entendimento de <strong>práxis</strong><br />

<strong>capoeira</strong>na. Através desse conceito, a teoria passa a se articular visceralmente com<br />

a prática. Ela deve estar efetivamente “aterra<strong>da</strong>” e vincula<strong>da</strong> às necessi<strong>da</strong>des<br />

práticas dos homens, ou seja, àquelas que correspond<strong>em</strong> a interesses sociais<br />

coletivos. Teoria fora <strong>da</strong> <strong>práxis</strong> constitui uma teorética escolástica meramente<br />

especulativa. A ativi<strong>da</strong>de teórica só pode ser fecun<strong>da</strong> se não perder seus laços com<br />

a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de objetiva e com a ativi<strong>da</strong>de prática que é sua fonte inesgotável. A teoria<br />

se torna útil quando ilumina e esclarece os acertos e desacertos <strong>da</strong> prática social, e<br />

esta, por sua vez, a fun<strong>da</strong>menta e a enriquece. Se, numa concepção marxiana, a<br />

prática não deve se reduzir ao utilitário, a teoria também não deve se dissolver no<br />

útil, numa perspectiva de eficácia estritamente egoísta. Teoria e <strong>práxis</strong> são<br />

interdependentes. “A teoria é um momento necessário <strong>da</strong> <strong>práxis</strong>; e essa<br />

necessi<strong>da</strong>de não é um luxo; é uma característica que distingue a <strong>práxis</strong> <strong>da</strong>s<br />

ativi<strong>da</strong>des meramente repetitivas, cegas, mecânicas, abstratas” (KONDER, 1992, p.<br />

116). Teoria e <strong>práxis</strong> dev<strong>em</strong> compor uma uni<strong>da</strong>de dialética <strong>em</strong> prol <strong>da</strong><br />

transformação social, pois, como destaca Vázquez (1986, p. 206-207):<br />

A teoria <strong>em</strong> si (...) não transforma o mundo. Pode contribuir para sua<br />

transformação, mas para isso t<strong>em</strong> que sair de si mesmo, e, <strong>em</strong><br />

primeiro lugar, t<strong>em</strong> que ser assimila<strong>da</strong> pelos que vão ocasionar, com<br />

seus atos r<strong>ea</strong>is, efetivos, tal transformação. Entre a teoria e a<br />

ativi<strong>da</strong>de prática transformadora se insere um trabalho de educação<br />

<strong>da</strong>s consciências, de organização dos meios materiais e planos<br />

concretos de ação; tudo isso como passag<strong>em</strong> indispensável para<br />

desenvolver ações r<strong>ea</strong>is, efetivas. Nesse sentido, uma teoria é prática<br />

na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que materializa, através de uma série de mediações, o<br />

que antes só existia id<strong>ea</strong>lmente, como conhecimento <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de ou<br />

antecipação id<strong>ea</strong>l de sua transformação.<br />

135


Se a teoria especulativa, por si só, não transforma a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, e<br />

interpretar não é transformar, necessárias se faz<strong>em</strong> mediações adequa<strong>da</strong>s para que<br />

ela seja arranca<strong>da</strong> de seu estado meramente teórico para ser r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>, coteja<strong>da</strong><br />

com a prática e, com isso, efetivamente, produzir transformação social. Segundo<br />

Konder (1992, p. 115-116): “os probl<strong>em</strong>as cruciais <strong>da</strong> teoria se complicam<br />

interminável e insuportavelmente quando a teoria se autonomiza d<strong>em</strong>ais e se<br />

distancia excessivamente <strong>da</strong> ação”. A busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, um probl<strong>em</strong>a que<br />

atravessa to<strong>da</strong> a história <strong>da</strong> Filosofia não é, para Marx, uma questão <strong>da</strong> teoria, e sim<br />

uma questão prática. Afinal, “para produzir mu<strong>da</strong>nça não basta desenvolver uma<br />

ativi<strong>da</strong>de teórica; é preciso atuar praticamente” (VÁZQUEZ, 1986, p. 209). Na<br />

esteira do pensamento de Lênin (1988), que declarou: “s<strong>em</strong> teoria revolucionária<br />

não há movimento revolucionário” (um princípio desprezado por Stalin), Pistrak<br />

(1981, p. 29) argumentou: “S<strong>em</strong> teoria pe<strong>da</strong>gógica revolucionária, não poderá haver<br />

prática pe<strong>da</strong>gógica revolucionária. S<strong>em</strong> uma teoria de pe<strong>da</strong>gogia social, nossa<br />

prática levará a uma acrobacia s<strong>em</strong> finali<strong>da</strong>de social”.<br />

As transformações sociais significativas, densamente analisa<strong>da</strong>s e<br />

reivindica<strong>da</strong>s por Marx, somente seriam possíveis através <strong>da</strong> “<strong>práxis</strong> revolucionária”,<br />

ou seja, de uma <strong>práxis</strong> que transformasse as condições práticas de vi<strong>da</strong> e que, ao<br />

fazê-la, promovesse a transformação <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de humana.<br />

3.2. A Organização do Trabalho Pe<strong>da</strong>gógico: A Cultura e/nos Estudos Críticos<br />

do Currículo<br />

A organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico, cuja função preponderante é<br />

concretizar o processo educativo com vistas à reprodução ou à transformação do<br />

modo de produção <strong>da</strong>s condições materiais, constitui-se num campo de luta no<br />

136


interior <strong>da</strong>s diversas concepções político-ideológicas presentes no contexto<br />

educacional. Dentro desse raciocínio, é possível afirmar que uma educação crítica<br />

e superadora requer uma estratégica e criteriosa organização do trabalho<br />

pe<strong>da</strong>gógico referencia<strong>da</strong> por um projeto histórico superador <strong>da</strong>s condições de<br />

exploração. Se tomarmos como referência a experiência <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civil<br />

brasileira, pod<strong>em</strong>os verificar que a partir <strong>da</strong> sua organização d<strong>em</strong>ocrática foi<br />

possível a conquista de avanços sociais. A trajetória dos partidos políticos pode<br />

servir de ex<strong>em</strong>plo. Inicialmente, “não eram partidos de massa, mas simples<br />

apêndices do Estado” (COUTINHO, 2000, p. 23). Hoje, frutos de processos<br />

d<strong>em</strong>ocráticos de organização, representam forças importantíssimas nas mu<strong>da</strong>nças<br />

sociais.<br />

No campo educacional, a discussão sobre currículo v<strong>em</strong> sendo<br />

intensamente r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>, também, <strong>em</strong> decorrência <strong>da</strong> imposição de reformas do<br />

sist<strong>em</strong>a educacional brasileiro, por exigência de organismos internacionais, como<br />

Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI), contudo, as políticas<br />

educacionais ain<strong>da</strong> dão pouca atenção às mais recentes pesquisas que colocam as<br />

questões culturais no âmago <strong>da</strong> discussão.<br />

Historicamente, o currículo t<strong>em</strong> sido um campo conflituoso, cuja<br />

organização está estritamente vincula<strong>da</strong>s às estruturas de poder e de dominação<br />

presentes não só no espaço educacional escolarizado, mas <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de.<br />

Os <strong>em</strong>bates travados, <strong>em</strong>bora com diferentes objetivos e ênfases,<br />

explicitam muitas incertezas e perplexi<strong>da</strong>des, desafiando to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de a<br />

compreender a forma como opera o processo de escolarização num mundo que se<br />

torna uma “província global, uma fábrica global, um shopping center global” (IANNI,<br />

1995), um mundo onde se agravam as desigual<strong>da</strong>des sociais, persist<strong>em</strong> a pobreza<br />

137


e a miséria, degra<strong>da</strong>-se o meio ambiente, e o des<strong>em</strong>prego estrutural transforma-se<br />

numa am<strong>ea</strong>ça s<strong>em</strong> precedentes. O livre comércio, bandeira do neoliberalismo, não<br />

t<strong>em</strong> resolvido os probl<strong>em</strong>as dos países <strong>em</strong> geral e t<strong>em</strong> influenciado o contexto<br />

educacional no mundo inteiro. Nesse movimento, crenças são abala<strong>da</strong>s, destro<strong>em</strong>-<br />

se certezas, questionam-se valores, dúvi<strong>da</strong>s se acumulam, controvérsias e<br />

ambigüi<strong>da</strong>des se exacerbam, caminhos se multiplicam, saberes, teorias e métodos<br />

tradicionalmente aceitos são radicalmente questionados. Tudo isso provoca tensão<br />

e, conseqüent<strong>em</strong>ente, se reflete nas teorias que enfocam as questões curriculares.<br />

Como pod<strong>em</strong>os, então, elaborar uma crítica <strong>da</strong> organização do trabalho<br />

pe<strong>da</strong>gógico no campo curricular, tendo como referência o trato com o conhecimento<br />

<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> orientado por um outro projeto histórico que se contraponha à lógica<br />

destrutiva <strong>da</strong> capital?<br />

Conforme assevera Williams (1992), cultura é uma <strong>da</strong>s duas ou três<br />

palavras mais complica<strong>da</strong>s <strong>da</strong> língua inglesa. Ao longo do t<strong>em</strong>po foi adquirindo<br />

várias acepções. Muitas vezes é entendi<strong>da</strong> como to<strong>da</strong>s as r<strong>ea</strong>lizações <strong>da</strong><br />

civilização, abrange ativi<strong>da</strong>de simbólica ou esforço ativo de cui<strong>da</strong>do e preservação.<br />

Nesse sentido, para Williams, a cultura jamais pode ser entendi<strong>da</strong> de forma isola<strong>da</strong><br />

do resto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social. Enfim, cultura é a materialização <strong>da</strong>s práticas, <strong>da</strong>s<br />

representações, <strong>da</strong>s línguas e costumes de qualquer socie<strong>da</strong>de específica. Mas<br />

Jameson (1994) assegura que cultura é a versão mais fraca e secular <strong>da</strong>quilo que<br />

se chama religião – não é <strong>em</strong> si uma “substância” ou um “fenômeno”, é a mirag<strong>em</strong><br />

objetiva que surge do relacionamento de, pelo menos, dois grupos. Isso significa<br />

que nenhum grupo “possui” uma cultura sozinho: a cultura é o nimbo percebido por<br />

um grupo quando entra <strong>em</strong> contato com e observa outro grupo. É a objetivação de<br />

tudo que é alheio e estranho no grupo contatado.<br />

138


Uma desatenção a essa categoria de base compromete o entendimento<br />

<strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de humana e t<strong>em</strong> contribuído para o aflorar de<br />

crises nos mais diversos espaços sociais. No campo educacional, essas crises se<br />

acirram por força do leque de disputas teóricas e epist<strong>em</strong>ológicas resultantes do<br />

ecletismo de discursos com díspares interesses.<br />

A ausência de sugestões para uma prática docente crítica, e a sofisticação<br />

teórica pauta<strong>da</strong> pela utilização de discursos altamente complexos e abstratos,<br />

dificilmente entendidos pelos professores, contribu<strong>em</strong> para acentuar a crise, à<br />

medi<strong>da</strong> que se instaura um fosso entre a produção teórica e a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de vivi<strong>da</strong> no<br />

cotidiano <strong>da</strong>s escolas. Segundo Cunha (1997) e Moreira (1999) existe uma crise de<br />

legitimação <strong>da</strong> concepção crítica de currículo por não conseguir, na prática,<br />

impl<strong>em</strong>entar seus princípios teóricos. Embora os avanços teóricos detenham maior<br />

prestígio no meio acadêmico, as discussões trava<strong>da</strong>s dificilmente chegam à escola.<br />

As agu<strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças políticas, econômicas, culturais, geográficas<br />

verifica<strong>da</strong>s na atuali<strong>da</strong>de sinalizam para a necessi<strong>da</strong>de de se rever, renovar, ampliar<br />

e flexibilizar argumentos, entretanto, torna-se imprescindível identificar as forças<br />

poderosas, visíveis e nomeáveis, centrais e localizáveis, que mol<strong>da</strong>m e modelam a<br />

economia, a política e a cultura, ressignificando conceitos e contextos.<br />

Se, por um lado, qualquer projeto educativo materializa-se <strong>em</strong> ativi<strong>da</strong>des<br />

localiza<strong>da</strong>s, vivencia<strong>da</strong>s por sujeitos espacial e t<strong>em</strong>poralmente situados e, por esta<br />

razão, o encontro pe<strong>da</strong>gógico afina-se melhor com as análises pós-estruturais, por<br />

outro, as abor<strong>da</strong>gens marxistas e neomarxistas tornam-se imprescindíveis à medi<strong>da</strong><br />

que explicitam uma compreensão mais ampla <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e do sist<strong>em</strong>a capitalista,<br />

além de orientar a formação de subjetivi<strong>da</strong>des inconformistas e rebeldes.<br />

139


É com ênfase na “centrali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> prática”, conforme aponta Moreira<br />

(1999, p. 30), e <strong>em</strong> comunhão “com os que nela atuam”, s<strong>em</strong> perder de vista a idéia<br />

do todo, que é possível promover avanços <strong>da</strong> e na teoria. Ad<strong>em</strong>ais, a legitimação<br />

<strong>da</strong> teoria t<strong>em</strong> sido busca<strong>da</strong> a partir do recurso a autores de destaque de países do<br />

capitalismo central. Isso não basta! É necessário deixar-se tocar pelo cotidiano, a<br />

partir de um intenso diálogo com aqueles que são os principais sujeitos <strong>da</strong> prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica, professores e estu<strong>da</strong>ntes. E, como b<strong>em</strong> diz Giroux (1995, p. 97): “a<br />

teoria t<strong>em</strong> que ser feita, t<strong>em</strong> que tornar uma forma de produção cultural, ela não é<br />

um mero armazém de insights extraídos dos livros dos grandes teóricos”.<br />

Assim, a organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico, centra<strong>da</strong> na prática,<br />

procura superar procedimentos autoritários, fragmentados, verticalizados,<br />

cartesianos e acolher a horizontali<strong>da</strong>de, a plurali<strong>da</strong>de, o contexto. Segundo Serpa<br />

(2000), não há mais lugar para as pe<strong>da</strong>gogias prescritivas e de assimilação, através<br />

<strong>da</strong>s quais o estu<strong>da</strong>nte vai à escola ou à universi<strong>da</strong>de aprender representações,<br />

conceitos e conteúdos previamente determinados pelo professor. Ao professor cabe<br />

fazer uma análise crítica <strong>da</strong> informação e orientar os estu<strong>da</strong>ntes a an<strong>da</strong>r<strong>em</strong> num<br />

contexto de infinitas possibili<strong>da</strong>des gera<strong>da</strong>s pelo avanço <strong>da</strong> automação e pelas<br />

novas redes de comunicação. Por mais que tente, não há professor capaz de<br />

repassar ao estu<strong>da</strong>nte todo o conteúdo divulgado atualmente, no âmbito de uma<br />

determina<strong>da</strong> disciplina. Introduzindo o estu<strong>da</strong>nte numa espécie de labirinto<br />

pe<strong>da</strong>gógico, o professor ressalta as singulari<strong>da</strong>des e possibilita, num espaço de<br />

diferenças, a experiência com as multiplici<strong>da</strong>des históricas, coletivas e individuais.<br />

Para Serpa (2000), o labirinto é “um <strong>jogo</strong> que não foi jogado e suas regras são<br />

cria<strong>da</strong>s durante o <strong>jogo</strong>”. Dentro desse enfoque, não há caminho, este se faz ao<br />

caminhar.<br />

140


A organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico, centra<strong>da</strong> <strong>em</strong> experiências que<br />

efetivamente privilegi<strong>em</strong> o contexto cultural do educando, deve estar sintoniza<strong>da</strong><br />

com a historici<strong>da</strong>de, a cotidiani<strong>da</strong>de, a interativi<strong>da</strong>de e os movimentos sociais do<br />

seu contexto. Além disso, deve ser probl<strong>em</strong>atizadora, crítica e operar com múltiplas<br />

linguagens que sejam capazes de questionar a intolerância e o etnocentrismo.<br />

A importância <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> reside, segundo McLaren (2000, p.34), “no<br />

fato de que é por meio dela que nom<strong>ea</strong>mos a experiência quando agimos, como<br />

resultado de nossa interpretação dessa experiência”. E ain<strong>da</strong> destaca: “A luta <strong>em</strong><br />

torno <strong>da</strong> forma pela qual nom<strong>ea</strong>mos e transformamos a experiência é uma <strong>da</strong>s<br />

questões mais cruciais na pe<strong>da</strong>gogia crítica e na luta pela mu<strong>da</strong>nça social” (ibid., p.<br />

35).<br />

Apenas quando formos capazes de nom<strong>ea</strong>r nossas experiências –<br />

<strong>da</strong>ndo voz a nosso próprio mundo e afirmando-nos como agentes<br />

sociais com vontade e propósito – poder<strong>em</strong>os começar a transformar<br />

o sentido <strong>da</strong>quelas experiências por meio do exame crítico de<br />

suposições sobre as quais tais experiências são construí<strong>da</strong>s<br />

(Mclaren, 2000, p. 35).<br />

É a linguag<strong>em</strong> que dá sentido à nossa experiência, é ela que mol<strong>da</strong> a<br />

forma como v<strong>em</strong>os e agimos no, com e sobre o mundo, capacitando-nos a<br />

interpretar nossas ações. Nesse sentido, a experiência por si só não garante a<br />

ver<strong>da</strong>de. Ela não é uma essência fixa ou fluí<strong>da</strong>, que acontece fora dos limites <strong>da</strong><br />

linguag<strong>em</strong>. A experiência, como fonte primária de conhecimento, é compreendi<strong>da</strong><br />

principalmente por meio <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>. Esta composição (experiência e linguag<strong>em</strong>)<br />

é constitutiva <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de, um repositório de conflitantes e contraditórios<br />

significados. Se a subjetivi<strong>da</strong>de é estrutura<strong>da</strong> pela linguag<strong>em</strong>, depreend<strong>em</strong>os que o<br />

desafio situa-se no desenvolvimento de novas formas de subjetivi<strong>da</strong>de e de<br />

linguag<strong>em</strong>.<br />

141


Na <strong>construção</strong> de novas formas de linguag<strong>em</strong>, a viabili<strong>da</strong>de teórica e<br />

política do projeto que as articulam é mais importante do que sua complexi<strong>da</strong>de ou<br />

seu pragmatismo. Segundo McLaren (2000, p. 39): “Privilegiar a prática s<strong>em</strong> a<br />

devi<strong>da</strong> consideração <strong>da</strong>s interações complexas que marcam a totali<strong>da</strong>de dos<br />

relacionamentos teoria/prática e linguag<strong>em</strong>/significado não é apenas reducionista,<br />

mas também uma forma de tirania”. Para esse autor, o valor político do “discurso<br />

teórico” é incomensurável e não pode ser negligenciado, pois é ele que dá sentido<br />

às experiências históricas específicas e torna possível políticas e práticas de<br />

engajamento com vistas à solução de probl<strong>em</strong>as de um <strong>da</strong>do t<strong>em</strong>po ou lugar.<br />

Ocorre que o discurso, caso não <strong>em</strong>ane <strong>da</strong> prática concreta, pode se<br />

transformar <strong>em</strong> armadilha. Embora através dele seja possível acessar a voz do<br />

sujeito histórico, e isso é salutar, corre-se o risco de considerarmos os sujeitos<br />

acima <strong>da</strong> história.<br />

Uma outra questão centra-se no fato de que a análise deve ser<br />

endereça<strong>da</strong> muito mais ao sujeito e ao contexto do que ao texto, à medi<strong>da</strong> que<br />

linguag<strong>em</strong> não é uma abstração solta, pura. To<strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong>ana de um sujeito<br />

situado no t<strong>em</strong>po e no espaço. McLaren sugere, então, uma pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong><br />

linguag<strong>em</strong> e <strong>da</strong> experiência que o leve a uma leitura crítica <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, que o<br />

capacite a apreender o movimento e os nexos implicados nas interseções entre<br />

linguag<strong>em</strong>, cultura, poder e história e, nestes nexos, por meio de incorporação,<br />

acomo<strong>da</strong>ção e contestação, possa compreender de forma crítica a sua<br />

subjetivi<strong>da</strong>de. Uma pe<strong>da</strong>gogia que o capacite a ler, interpretar e criticar; de forma<br />

que, “ao ler, possa produzir um texto dentro de um texto, ao interpretar, possa criar<br />

um texto sobre um texto, e ao criticar, possa ser capaz de construir um texto contra<br />

o texto” (MCLAREN, 2000, p. 45).<br />

142


Essas considerações teóricas se colocaram como oportunas para<br />

analisarmos algumas referências significativas <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, extraí<strong>da</strong>s do seu<br />

movimento histórico, e, com isso, foi-nos possível identificar, <strong>em</strong> cotejo com a<br />

pesquisa <strong>em</strong>pírica, suas contribuições para a <strong>práxis</strong> pe<strong>da</strong>gógica.<br />

3.3. Referências Significativas <strong>da</strong> Capoeira<br />

143<br />

A <strong>capoeira</strong> é mandinga, é manha!<br />

É malícia, é tudo que a boca come...<br />

(Mestre Pastinha)<br />

A partir destas considerações relaciona<strong>da</strong>s ao conceito de <strong>práxis</strong> e<br />

organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico, com ênfase no enfoque cultural, explicitar<strong>em</strong>os<br />

as referências que consideramos como as mais significativas do arcabouço <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> e que pod<strong>em</strong> contribuir para a probl<strong>em</strong>atização <strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica <strong>em</strong><br />

permanente <strong>construção</strong>.<br />

Essas referências, extraí<strong>da</strong>s do movimento histórico-cultural <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>,<br />

pod<strong>em</strong> contribuir para a aproximação e o incr<strong>em</strong>ento <strong>da</strong>s discussões e relações<br />

entre prática cultural e prática pe<strong>da</strong>gógica, mostrando que to<strong>da</strong> prática cultural t<strong>em</strong><br />

sua pe<strong>da</strong>gogia e que to<strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica é cultural. O desafio mais importante<br />

foi buscar uma aproximação efetiva desses contextos, apenas aparent<strong>em</strong>ente<br />

distintos, mas que se encontram interligados e, com isso, aproximar a discussão<br />

pe<strong>da</strong>gógica (altamente complexa e abstrata) com a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de vivi<strong>da</strong> no cotidiano <strong>da</strong>s<br />

cama<strong>da</strong>s populares, onde a <strong>capoeira</strong> se coloca como campo <strong>em</strong>pírico de relevante<br />

contribuição.<br />

Cabe aqui expressar uma questão aparent<strong>em</strong>ente banal, mas que se<br />

torna importante para qualificar as nossas considerações. Afinal: o que é <strong>capoeira</strong>?<br />

Ao buscarmos uma superação de posturas puristas e vitimistas que,<br />

romanticamente, negam o inquestionável e conflituoso movimento cultural e ficam,


incansável e inutilmente, tentando explicar o que é (e de qu<strong>em</strong> é) a <strong>capoeira</strong>,<br />

procuramos analisar o processo civilizatório afro-brasileiro e sua inquestionável<br />

influência na consoli<strong>da</strong>ção do arcabouço técnico-gestual-ritualístico desta<br />

manifestação cultural. A <strong>capoeira</strong> t<strong>em</strong> orig<strong>em</strong> bastante diferente dos d<strong>em</strong>ais<br />

componentes <strong>da</strong> cultura corporal hoje consoli<strong>da</strong>dos no campo <strong>da</strong> Educação Física e<br />

<strong>da</strong>s mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des esportivas, como por ex<strong>em</strong>plo, o voleibol, o basquete, o handebol,<br />

a ginástica olímpica. A <strong>capoeira</strong> foi cria<strong>da</strong> e se desenvolveu como conflituosa<br />

possibili<strong>da</strong>de de afirmação <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des espolia<strong>da</strong>s <strong>da</strong> população (a maioria<br />

negra) diante dos mecanismos de segregação econômica, cultural e social. Seu<br />

referencial cultural <strong>em</strong>brionário é africano, ao passo que os d<strong>em</strong>ais componentes <strong>da</strong><br />

cultura corporal, tratados sob a lógica heg<strong>em</strong>ônica do esporte, são contribuições<br />

lega<strong>da</strong>s <strong>da</strong> cultura européia ou norte-americana. Compreender e explorar<br />

pe<strong>da</strong>gogicamente esta distinção é, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, contribuir para a ampliação de<br />

possibili<strong>da</strong>des e para a d<strong>em</strong>ocratização do acervo <strong>da</strong>s práticas culturais no espaço<br />

educacional escolar e não-escolar. É importante observar ain<strong>da</strong>, que alguns desses<br />

componentes <strong>da</strong> cultura corporal, hoje transformados <strong>em</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des esportivas,<br />

s<strong>em</strong>pre estiveram vinculados aos segmentos dominantes <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, ao contrário<br />

<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, uma manifestação, originalmente e durante muito t<strong>em</strong>po, vincula<strong>da</strong> aos<br />

estratos segregados <strong>da</strong> população.<br />

Chamamos a atenção, neste momento, para os equívocos que uma<br />

interpretação aligeira<strong>da</strong> dessas referências pode acarretar. Não se trata de uma<br />

visão essencialista <strong>em</strong> relação à <strong>capoeira</strong>, pois não a conceb<strong>em</strong>os como portadora<br />

imanente de certos atributos técnicos, estéticos, valorativos ou ritualísticos. Trata-se,<br />

sim, de explicitar os traços que consideramos como os mais significativos que<br />

144


consoli<strong>da</strong>ram essa complexa manifestação e a transformaram naquilo que, <strong>em</strong><br />

trabalho anterior, chamamos de “trailer <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social” (FALCÃO, 1999).<br />

É importante ressaltar que, <strong>em</strong>bora apresenta<strong>da</strong>s separa<strong>da</strong>mente, essas<br />

referências não dev<strong>em</strong> ser considera<strong>da</strong>s de forma isola<strong>da</strong> e definitiva. Destacamos<br />

que a apresentação delas, <strong>em</strong> separado, se dá tão simplesmente por uma questão<br />

didática. Nas ações concretas dos sujeitos, elas se integram como uma espécie de<br />

amálgama, e as tentativas de fragmentação compromet<strong>em</strong> sua plena apreensão. O<br />

importante é articular essas diferentes referências significativas e não tornar<br />

exclusiva qualquer uma delas e considerar, também, que se trata de uma<br />

sist<strong>em</strong>atização resultante de análises e estudos efetuados ao longo de nossa<br />

inserção nos m<strong>ea</strong>ndros desta manifestação cultural. São, portanto, construções<br />

significativas que, para nós, <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> do movimento histórico de desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e se consoli<strong>da</strong>ram na cont<strong>em</strong>poranei<strong>da</strong>de.<br />

Essas referências significativas, extraí<strong>da</strong>s do arcabouço histórico, gestual<br />

e ritualístico <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, somente poderão ser adequa<strong>da</strong>mente explora<strong>da</strong>s a partir<br />

<strong>da</strong> articulação de, pelo menos, três dimensões estruturantes do processo didático-<br />

pe<strong>da</strong>gógico: a institucional/organizacional, a institucional/pe<strong>da</strong>gógica e a<br />

filosófica/epist<strong>em</strong>ológica, conforme sugere André (apud OLIVEIRA, 1993, p. 111-<br />

112), <strong>em</strong> seus estudos sobre a didática.<br />

Tais referências foram coteja<strong>da</strong>s com os <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> pesquisa de campo,<br />

extraídos <strong>da</strong> investigação <strong>em</strong>pírica, r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> na Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia e<br />

contribuíram para subsidiar a etapa seguinte <strong>da</strong> pesquisa que objetivou a<br />

<strong>construção</strong> de possibili<strong>da</strong>des pe<strong>da</strong>gógicas para o trato com esse conhecimento (a<br />

<strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na trata<strong>da</strong> como complexo t<strong>em</strong>ático), a partir do s<strong>em</strong>inário de<br />

pesquisa-ação, r<strong>ea</strong>lizado na Universi<strong>da</strong>de Federal de Santa Catarina.<br />

145


Passar<strong>em</strong>os, agora, a expor, de forma probl<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong>, as referências que<br />

consideramos significativas <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>: a cosmovisão afro-brasileira, a<br />

integração/dissimulação <strong>jogo</strong>-luta-<strong>da</strong>nça, a cantiga interativa e o lúdico rebelde.<br />

3.2.1. A cosmovisão afro-brasileira<br />

146<br />

“Depois de não ter mais n<strong>em</strong> direito a si<br />

Penar tanto faz, se a África implodir...<br />

O mundo não se importa! Já te sugou todo porvir”<br />

Gilson Nascimento (Ilê Aiyê)<br />

Inicialmente, gostaríamos de destacar que a explicitação de uma<br />

cosmovisão afro-brasileira, perm<strong>ea</strong>ndo as experiências concretas dos <strong>capoeira</strong>s,<br />

não implica, necessariamente, numa tentativa de extrair uma essência que estaria<br />

latente <strong>em</strong> suas entranhas. Trata-se, na ver<strong>da</strong>de, de identificarmos no movimento<br />

do processo civilizatório afro-brasileiro, referências simbólicas que entr<strong>em</strong>eiam a<br />

cultura <strong>capoeira</strong>na.<br />

A explicitação dessa cosmovisão afro-brasileira na <strong>capoeira</strong>, concebi<strong>da</strong><br />

por nós como uma de suas referências significativas, não está relaciona<strong>da</strong> com a<br />

intenção de voltar a um determinado t<strong>em</strong>po/espaço áureo de determinados reinos<br />

africanos, de onde foram trazidos os primeiros responsáveis pela criação e<br />

consoli<strong>da</strong>ção desta manifestação. Essa explicitação se refere à identificação de<br />

“traços culturais” do processo civilizatório afro-brasileiro no bojo <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>,<br />

evidenciando, ain<strong>da</strong>, que t<strong>em</strong>os, no cotidiano do Brasil, valores culturais gestados<br />

<strong>em</strong> determina<strong>da</strong>s regiões <strong>da</strong> África – o berço civilizatório <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, mas que<br />

são relegados, escondidos e menosprezados <strong>em</strong> praticamente to<strong>da</strong>s as esferas <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> social.<br />

Mesmo que os estudos históricos evidenci<strong>em</strong> que a <strong>capoeira</strong>, desde o<br />

século XVIII, tenha aglutinado praticantes de várias nacionali<strong>da</strong>des, ela agrega


expressivos traços <strong>da</strong> cultura afro-brasileira <strong>em</strong> seu acervo gestual, ritualístico e<br />

musical que se expressam pelo pluralismo e se vinculam a aspectos religiosos,<br />

míticos, totêmicos e ancestrais, e são afirmados e expandidos nas experiências<br />

diárias dos <strong>capoeira</strong>s, seja através dos cantos, dos rituais ou de suas próprias<br />

condutas.<br />

A explicitação dessa cosmovisão afro-brasileira na <strong>capoeira</strong>, além de se<br />

apresentar como possibili<strong>da</strong>de de contraponto simbólico à dominação heg<strong>em</strong>ônica<br />

<strong>da</strong>s referências simbólicas européias e norte-americanas, procura fazer coro com<br />

algumas bandeiras de lutas defendi<strong>da</strong>s por lideranças respeita<strong>da</strong>s de alguns setores<br />

do movimento negro brasileiro, ideologicamente engajados na afirmação <strong>da</strong>s<br />

tradições de matriz negro-africana, que buscam possibili<strong>da</strong>des de fortalecimento dos<br />

afro-descendentes cont<strong>em</strong>porâneos no mundo inteiro. Essa afirmação <strong>da</strong><br />

positivi<strong>da</strong>de do processo civilizatório negro-africano pode ser visivelmente<br />

constata<strong>da</strong>, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> vários setores <strong>da</strong> cultura baiana a partir de processos<br />

de afirmação política, via r<strong>ea</strong>fricanização, de várias práticas culturais. Esse<br />

movimento é visivelmente forte, muito <strong>em</strong>bora essas tentativas, muitas vezes<br />

rotula<strong>da</strong>s de “depuração”, venham sendo questiona<strong>da</strong>s a partir do argumento de<br />

que muitas práticas afro-brasileiras já nasceram transmu<strong>da</strong><strong>da</strong>s <strong>em</strong> relação às suas<br />

matrizes e num contexto altamente adverso que exigia negociações e/ou<br />

camuflagens. Além disso, como nos alerta o etnomusicólogo congolês, Kazadei wa<br />

Mukuna:<br />

a literatura que atualmente v<strong>em</strong> sendo publica<strong>da</strong> sobre a<br />

sobrevivência de traços culturais africanos nas Américas parece estar<br />

repleta de estudos que alardeiam esses el<strong>em</strong>entos, mas s<strong>em</strong><br />

apresentar nenhuma tentativa de determinar ou identificar suas<br />

origens africanas específicas (MUKUNA, 2000, p. 85).<br />

Entretanto, é importante destacar que, nos interstícios de um estado<br />

eurocêntrico e colonial instalado no Brasil, afirmaram-se valores culturais e sócio-<br />

147


existenciais negro-africanos, especialmente os do povo Yorubá e dos Fon,<br />

conhecidos como nagô 53 e jêje, respectivamente, e se consoli<strong>da</strong>ram, principalmente,<br />

a partir de instituições religiosas. 54 Esses valores marcaram significativamente a<br />

identi<strong>da</strong>de de expressiva parcela do povo baiano, <strong>em</strong> especial o de Salvador e do<br />

Recôncavo Baiano.<br />

Numa constante tensão entre o imanente e o transcendente e de uma<br />

forma b<strong>em</strong> peculiar, cultuando ancestrais, sacralizando o cotidiano, organizando-se<br />

<strong>em</strong> comuni<strong>da</strong>des e linhagens, determinados segmentos negro-africanos<br />

consoli<strong>da</strong>ram lógicas b<strong>em</strong> distintas <strong>da</strong>quelas referencia<strong>da</strong>s pela cultura européia.<br />

Essas lógicas n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre têm sido compreendi<strong>da</strong>s pelos pesquisadores ocidentais<br />

que, segundo Luz (2000, p. 92), “visualizam o processo social africano através dos<br />

cânones positivistas <strong>da</strong> ciência européia, sobredetermina<strong>da</strong> pelos enquadramentos<br />

evolucionistas e etnocêntricos do contexto histórico colonial ou neo-colonial”.<br />

É importante levar <strong>em</strong> consideração que a exuberância do processo<br />

civilizatório africano foi praticamente devasta<strong>da</strong> pelo espírito colonizador europeu<br />

que, numa investi<strong>da</strong> atroz, engendrou, ao longo dos t<strong>em</strong>pos, uma imag<strong>em</strong> sombria e<br />

desfavorável do negro-africano. Essa imag<strong>em</strong> negativa se incorporou às<br />

representações intelectualiza<strong>da</strong>s e foram retoma<strong>da</strong>s e reproduzi<strong>da</strong>s por instituições<br />

de regulação ética <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social, como foi o caso <strong>da</strong> Igreja e <strong>da</strong> Escola, no Brasil.<br />

Segundo Sodré (1999, p. 149):<br />

Em 1894, quando a c<strong>ea</strong>rense Maria de Araújo, a “B<strong>ea</strong>ta Mocinha”<br />

dos sertões nordestinos, foi condena<strong>da</strong> pelo Vaticano por seus<br />

53 A expressão nagô é um carimbo que os portugueses utilizavam para classificar determinados<br />

povos africanos. Na língua yorubá muitas palavras terminam <strong>em</strong> “gô”, <strong>da</strong>í a expressão nagô,<br />

designação dos europeus para tratar os povos do Reino de Ioió.<br />

54 Convém destacar que o conceito de instituição religiosa nos países de onde foram trazidos os<br />

africanos é diferente e extrapola a noção ocidental b<strong>em</strong> mais difundi<strong>da</strong>. Naqueles países, a religião<br />

permeia to<strong>da</strong> a organização social e “ocupa um lugar de irradiação de valores que sedimentam a<br />

coesão e a harmonia social, abrangendo, portanto, relações do hom<strong>em</strong> com o mundo natural (LUZ,<br />

2000, p. 32).<br />

148


fenômenos místicos (<strong>em</strong> transe, vertia sangue <strong>da</strong> boca sobre a<br />

hóstia), o argumento <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong> Congregação <strong>da</strong> Inquisição<br />

Universal era de que a religiosa, parceira do legendário Padre Cícero,<br />

provinha do cruzamento de duas raças desprezíveis (o negro e o<br />

índio). Por isso, tinha alma execrável.<br />

Essas construções ideológicas marcaram profun<strong>da</strong> e negativamente a<br />

imag<strong>em</strong> <strong>da</strong>s populações negro-africanas <strong>em</strong> todo o ocidente. Atualmente, por mais<br />

complicado que seja manejar a idéia de uma identi<strong>da</strong>de cultural fun<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>em</strong> critérios<br />

de raça, a socie<strong>da</strong>de ocidental é esteticamente regi<strong>da</strong> por um paradigma branco e,<br />

segundo Sodré (1999, p. 234):<br />

a clareza ou a brancura <strong>da</strong> pele, mesmo s<strong>em</strong> as barreiras<br />

guetificantes do multiculturalismo primeiro-mundista, persiste como<br />

marca simbólica de uma superiori<strong>da</strong>de imaginária atuante <strong>em</strong><br />

estratégias de distinção social ou de defesa contra as perspectivas<br />

‘colorizadoras’ <strong>da</strong> miscigenação, <strong>da</strong> coexistência com imigrantes ca<strong>da</strong><br />

vez mais numerosos nos fluxos <strong>da</strong> globalização.<br />

O conceito de raça, contrariamente à crença generaliza<strong>da</strong>, além de não<br />

ter vali<strong>da</strong>de científica, está atravessado por profun<strong>da</strong>s divisões e diferenças<br />

internas. A raça não é uma categoria biológica ou genética, que nos permite<br />

distinguir um povo de outro. Se o rap é ideologicamente difundido como “prática de<br />

negros” e o golfe, como “prática de brancos”, como poderíamos explicar, pelo<br />

critério de raça, que o maior cantor de rap, <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de, é branco, e o maior<br />

golfista, negro? No entanto, grandes absurdos já foram ditos e feitos pelos<br />

partidários <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong>s raças, principalmente durante as grandes guerras mundiais.<br />

Ao concor<strong>da</strong>mos que não exist<strong>em</strong> raças, não estamos dizendo que não<br />

existe preconceito <strong>em</strong> relação às populações negras no Brasil. Ele existe e é<br />

dissimulado e competente para manter tudo como se o probl<strong>em</strong>a não fosse de qu<strong>em</strong><br />

discrimina, mas, sobretudo, de qu<strong>em</strong> é discriminado. Trata-se de uma situação<br />

complexa porque, de um lado, há grupos que fing<strong>em</strong> que não discriminam e, de<br />

outro, t<strong>em</strong>os grupos negros que fing<strong>em</strong> que não são discriminados, talvez por já<br />

149


ter<strong>em</strong> internalizado os valores culturais dominantes (brancos), a ponto de não<br />

identificar<strong>em</strong> as sutilezas <strong>da</strong>s formas pelas quais esse processo se manifesta.<br />

No Brasil, onde a cultura do privilégio se espraia vergonhosamente,<br />

muitas políticas que surg<strong>em</strong> para minimizar o fosso social proveniente <strong>da</strong><br />

discriminação, como a política de cotas para negros, por ex<strong>em</strong>plo, pod<strong>em</strong> contribuir<br />

ain<strong>da</strong> mais para o processo de segregação e marginalização, pois suger<strong>em</strong><br />

incapaci<strong>da</strong>de. Sendo assim, como, então, reparar essa dívi<strong>da</strong> histórica? Muitos<br />

alegam que as cotas já estão b<strong>em</strong> enraiza<strong>da</strong>s na cultura brasileira, ou seja, c<strong>em</strong> por<br />

cento de cotas para os brancos, s<strong>em</strong> que ninguém tenha criado uma lei para elas.<br />

Se o privilégio é uma <strong>da</strong>s bases <strong>da</strong> cultura brasileira, como então colocar<br />

<strong>em</strong> pé de igual<strong>da</strong>de uma pessoa que teve todos os privilégios desde que nasceu <strong>em</strong><br />

relação a qu<strong>em</strong> não teve privilégio algum?<br />

Segundo o militante do Movimento Negro Hélio Santos, a carga mais difícil<br />

de superar é o “estigma de ser negro” (SANTOS, 2002, p. 34). Numa socie<strong>da</strong>de de<br />

matiz branca, uma disputa entre um negro e um branco no mercado de trabalho, <strong>em</strong><br />

condições normais, tende a favorecer mais o branco. As estatísticas comprovam<br />

esse favorecimento.<br />

Consideramos que o cerne do probl<strong>em</strong>a do preconceito está muito mais<br />

na negação ou no mascaramento do processo civilizatório africano. Por isso, na<strong>da</strong><br />

mais oportuno do que compreender e explicitar o movimento de desenvolvimento<br />

desse processo civilizatório, seus nexos e seus determinantes históricos,<br />

praticamente desconhecidos no ocidente e modestamente diss<strong>em</strong>inados nas<br />

instituições escolares. Que isso seja efetivado a partir de uma ampla política de<br />

150


formação e informação, tão necessária ao processo de d<strong>em</strong>ocratização <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de brasileira. 55<br />

Estamos de acordo com muitos autores que defend<strong>em</strong> que o processo<br />

civilizatório africano t<strong>em</strong> sido negligenciado pela tradição acadêmica ocidental, no<br />

entanto, é possível depreender dele, uma teoria geral <strong>da</strong> africani<strong>da</strong>de que foi<br />

sordi<strong>da</strong>mente ofusca<strong>da</strong>. A teoria que consolidou o que se conhece por História<br />

Universal, difundi<strong>da</strong> heg<strong>em</strong>onicamente, foi fruto de uma visão arrogante e<br />

etnocêntrica de determinados países ou continentes que tratavam os outros como<br />

bárbaros ou mesmo como desprovidos de história.<br />

Na incansável batalha contra o tráfico de drogas, o representante mais<br />

“próspero” do processo civilizatório ocidental, os Estados Unidos, parece declarar<br />

guerra também aos afro-descendentes. Segundo Connel (apud McLaren, 2000, p.<br />

15): “O fato de um número desproporcional de afro-americanos estar na prisão cria<br />

um cenário que sugere mais uma guerra contra as comuni<strong>da</strong>des negras do que uma<br />

guerra contra as drogas”. Como explicar a gritante estatística bas<strong>ea</strong><strong>da</strong> no fato de<br />

que mais <strong>da</strong> metade <strong>da</strong> população carcerária norte-americana é composta de<br />

negros, apesar de eles constituír<strong>em</strong> apenas 12% <strong>da</strong> população total? Certamente<br />

não se trata de uma aberração ou de uma mera coincidência.<br />

O probl<strong>em</strong>a é r<strong>ea</strong>lmente complexo, mas é importante sublinhar que essas<br />

estatísticas têm razões e explicações históricas. Talvez os ocidentais esqueçam que<br />

foram eles os principais responsáveis pelos saques <strong>da</strong>s riquezas e pela devastação<br />

55 A segun<strong>da</strong> lei sanciona<strong>da</strong> pelo governo de Luiz Inácio Lula <strong>da</strong> Silva foi a de n. 10.639, de 9 de<br />

janeiro de 2003. Ela altera a Lei n. 9.394, de 20 de dez<strong>em</strong>bro de 1996, que estabelece as diretrizes e<br />

bases <strong>da</strong> educação nacional, para incluir no currículo oficial <strong>da</strong> Rede de Ensino a obrigatorie<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

t<strong>em</strong>ática "História e Cultura Afro-Brasileira", e indica outras providências. Segundo o Art. 26-A: nos<br />

estabelecimentos de ensino fun<strong>da</strong>mental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino<br />

sobre História e Cultura Afro-Brasileira. O Art. 79-B estipula que o calendário escolar deve incluir o dia<br />

20 de nov<strong>em</strong>bro como 'Dia Nacional <strong>da</strong> Consciência Negra' (BRASIL, 2003).<br />

151


africana que desencad<strong>ea</strong>ram as barbáries que assolaram e continuam assolando a<br />

África e transformaram-na num ver<strong>da</strong>deiro campo de extermínio <strong>da</strong> raça humana. 56<br />

O poder heg<strong>em</strong>ônico ocidental, consubstanciado sob a égide do<br />

capitalismo, apregoa e diss<strong>em</strong>ina um afro-pessimismo, sob alegação de que as<br />

barbáries africanas são decorrências do seu próprio processo civilizatório. O<br />

continente <strong>da</strong>s guerras étnicas, <strong>da</strong>s pestes, <strong>da</strong> subnutrição, <strong>da</strong> pobreza estrutural é,<br />

certamente, a maior prova <strong>da</strong> lógica destrutiva leva<strong>da</strong> a cabo pelo sist<strong>em</strong>a<br />

capitalista.<br />

Não se trata de uma defesa ingênua de r<strong>ea</strong>fricanização do ocidente, via<br />

depuração de práticas que supostamente foram ocidentaliza<strong>da</strong>s. Estamos convictos<br />

de que muitas dessas práticas sincretiza<strong>da</strong>s se tornaram tradição e, como se sabe,<br />

tradições não cessam por manifestos, carta de intenções ou moções de repúdio.<br />

Tentamos expor, aqui, aspectos <strong>da</strong> barbárie que assola grande parte do<br />

continente africano e a maioria dos seus descendentes diretos, que foram<br />

transportados, contra sua vontade, para diversas partes do mundo,<br />

preponderant<strong>em</strong>ente, para o Brasil. É preciso considerar que o processo de<br />

mestiçag<strong>em</strong> e suas decorrências é resultante de trezentos anos de escravidão e não<br />

de um processo de integração amigável e fraterna.<br />

Desse processo resultaram conseqüências negativas (e também<br />

positivas) que, por mais chocantes que sejam, precisam ser explicita<strong>da</strong>s, veicula<strong>da</strong>s,<br />

discuti<strong>da</strong>s no trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, pois esta, inegavelmente,<br />

56 O campo de extermínio <strong>da</strong> raça humana na África pode ser visualizado a partir de algumas<br />

estatísticas. Entre 10 pessoas contamina<strong>da</strong>s pelo vírus <strong>da</strong> Aids no mundo, sete são africanas. Apesar<br />

de possuir 70% de portadores do vírus <strong>da</strong> Aids, a África só consome 1% dos r<strong>em</strong>édios destinados ao<br />

seu tratamento, evidenciando, claramente, o descaso dos países ricos com essa faceta <strong>da</strong> barbárie.<br />

Neste contexto trrágico, a indústria farmacêutica, através <strong>da</strong> lei de patentes, não abre mão de seus<br />

exorbitantes lucros. Em torno de 36% <strong>da</strong> população de Botsuana e 25% <strong>da</strong> de Zimbábue estão<br />

contamina<strong>da</strong>s com o vírus <strong>da</strong> Aids (MARTINS, 2001).<br />

152


contém raízes africanas e se apresenta como um legítimo veículo propagador de<br />

sua cultura, de seus valores.<br />

A ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>, onde o imprevisível, o lúdico, a descontração se<br />

explicitam por força de sua própria dinâmica e de seus componentes, t<strong>em</strong> muito de<br />

simbolismo africano, que se expressa pela plurali<strong>da</strong>de, pela ambigüi<strong>da</strong>de, pela<br />

irreverência, pela informali<strong>da</strong>de. Enfim, ela t<strong>em</strong> muito de Exu 57 , aspecto que hoje<br />

v<strong>em</strong> sendo negligenciado nas ações <strong>da</strong> maioria dos <strong>capoeira</strong>s.<br />

3.2.2. A integração/dissimulação <strong>jogo</strong>-luta-<strong>da</strong>nça na ro<strong>da</strong><br />

A <strong>capoeira</strong> constitui-se numa ativi<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que o <strong>jogo</strong>, a luta e a <strong>da</strong>nça se<br />

interpenetram, numa intrinca<strong>da</strong> relação recíproca. Ela é, ao mesmo t<strong>em</strong>po, luta,<br />

<strong>da</strong>nça e <strong>jogo</strong>, <strong>em</strong>bora seu praticante seja definido como um jogador e não como um<br />

lutador ou <strong>da</strong>nçarino. Entre os <strong>capoeira</strong>s, fala-se <strong>em</strong> jogar <strong>capoeira</strong> e, muito<br />

raramente, ouve-se falar <strong>em</strong> lutar ou <strong>da</strong>nçar <strong>capoeira</strong>. Esta é uma constatação que<br />

diferencia a <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong>s outras mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de luta, à medi<strong>da</strong> que o componente<br />

<strong>jogo</strong> redimensiona o conceito dessa manifestação cultural. Segundo a ótica de<br />

Huizinga, o <strong>jogo</strong> é uma ativi<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que predomina a alegria, não precisa ser<br />

justificado e n<strong>em</strong> precisa de um objetivo para ocorrer. O <strong>jogo</strong> "promove a formação<br />

de grupos sociais com tendência a rod<strong>ea</strong>r<strong>em</strong>-se de segredo e a sublinhar<strong>em</strong> sua<br />

diferença <strong>em</strong> relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios<br />

57 Aliás, há de se considerar que, no panteão dos orixás, Exu significa esfera. Exu é o orixá <strong>da</strong>s<br />

encruzilha<strong>da</strong>s, <strong>da</strong> bifurcação, do labirinto. Ele é “(...) ambivalente, dicotômico, ambíguo e, por isso,<br />

<strong>em</strong>bl<strong>em</strong>atiza um espaço cultural de múltiplos significados e identi<strong>da</strong>des” (BARBOSA, 2000, p. 156).<br />

O seu caráter irreverente é um dos seus aspectos contraditórios. Sendo tanto luz, quanto sombra, é<br />

“o deus que introduz o ocaso e a desord<strong>em</strong> no universo. Daí seu aspecto ambíguo, mas não<br />

necessariamente maligno” (MAGNANI, 1986, p. 46). Poderíamos aventar que, numa interpretação<br />

religiosa africana, Exu é o orixá dominante <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, ou melhor, que a <strong>capoeira</strong> é a própria<br />

personificação de Exu. Na mitologia grega, Exu corresponde a Hermes, que também se fez<br />

mensageiro e intérprete dos deuses, e cujo nome deu orig<strong>em</strong> à hermenêutica, interpretação do<br />

sentido <strong>da</strong>s palavras e dos textos sagrados.<br />

153


s<strong>em</strong>elhantes" (HUIZINGA, 1990, p. 16). Esta concepção de <strong>jogo</strong> s<strong>em</strong> finali<strong>da</strong>de<br />

aparente que não necessita de justificativa para ocorrer e, ain<strong>da</strong> por cima,<br />

predomina a alegria, é uma possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>. Nessa perspectiva, o<br />

<strong>capoeira</strong> é livre para jogar como quiser, s<strong>em</strong> a exigência formal de obtenção de<br />

bonificação. Vista sob o enfoque de <strong>jogo</strong>, ela consegue atender a necessi<strong>da</strong>de de<br />

fantasia, utopia, justiça, estética e, ain<strong>da</strong>, o gosto pelo inesperado, pelo imprevisível.<br />

O <strong>jogo</strong> na <strong>capoeira</strong> requer uma constante negociação gestual, <strong>em</strong> que<br />

ca<strong>da</strong> jogador é desafiado pela imprevisibili<strong>da</strong>de dos golpes mediados pela ginga.<br />

Por mais que se preten<strong>da</strong> minuciosa, a descrição dos expedientes gerados num<br />

<strong>jogo</strong> de <strong>capoeira</strong> jamais refletirá a riqueza dos fatos <strong>em</strong> si. Num <strong>jogo</strong> “malicioso e<br />

mandingueiro”, os movimentos corporais parec<strong>em</strong> indecifráveis aos próprios<br />

executores que, muitas vezes, não se dão conta do expediente que improvisaram.<br />

A <strong>da</strong>nça na <strong>capoeira</strong>, imbrica<strong>da</strong> no <strong>jogo</strong>, expressa-se no gingado <strong>em</strong> que<br />

o corpo todo se <strong>em</strong>bala ao som de berimbaus, pandeiros, atabaque, cantos e<br />

palmas, descrevendo círculos no espaço <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> e fazendo com que o sujeito lute<br />

<strong>da</strong>nçando e <strong>da</strong>nce lutando, r<strong>em</strong>etendo a <strong>capoeira</strong> “a uma zona imaginária e<br />

ambígua situa<strong>da</strong> entre o lúdico e o combativo”, conforme nos aponta Reis (1997, p.<br />

215).<br />

O componente luta, na <strong>capoeira</strong>, r<strong>em</strong>onta as origens desta manifestação e<br />

se expressa através de golpes desequilibrantes, traumáticos, acrobáticos etc., numa<br />

alternância constante de ataques, defesas, ataques que se convert<strong>em</strong> <strong>em</strong> defesas e<br />

defesas que se convert<strong>em</strong> <strong>em</strong> ataques. Convém observar que o <strong>jogo</strong> e a <strong>da</strong>nça<br />

contribu<strong>em</strong> para uma dissimulação do componente luta, à medi<strong>da</strong> que, via de regra,<br />

não se efetiva um confronto direto, mas uma constante simulação de ações e<br />

r<strong>ea</strong>ções, media<strong>da</strong>s pela ginga, fazendo com que o <strong>jogo</strong>, a <strong>da</strong>nça e a luta se<br />

154


interpenetr<strong>em</strong>. "Através do <strong>jogo</strong> de <strong>capoeira</strong>, os corpos negociam e a ginga significa<br />

a possibili<strong>da</strong>de de barganha, atuando no sentido de impedir o conflito" (REIS, 1997,<br />

p. 220). Nessa luta dissimula<strong>da</strong> e disfarça<strong>da</strong>, o <strong>capoeira</strong> mais habilidoso é aquele<br />

que mostra que pode acertar um golpe mais não o faz, e com isso, possibilita a<br />

continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> própria luta-<strong>jogo</strong>-<strong>da</strong>nça.<br />

Os <strong>capoeira</strong>s que formam a ro<strong>da</strong> são potenciais jogadores,<br />

instrumentistas e cantadores, e se revezam nessas três ocupações durante o seu<br />

desenrolar. É importante notar que, na ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>, a orali<strong>da</strong>de e a<br />

corporei<strong>da</strong>de interag<strong>em</strong>, resultando numa riquíssima relação. Cabe l<strong>em</strong>brar, aqui,<br />

que as ocupações dos <strong>capoeira</strong>s na ro<strong>da</strong> resultam <strong>em</strong> trabalho vivo, a base do<br />

processo pe<strong>da</strong>gógico (PISTRAK, 1981), à medi<strong>da</strong> que se materializa como ativi<strong>da</strong>de<br />

socialmente útil, cuja produção e consumo se dá de forma simultân<strong>ea</strong>.<br />

A ro<strong>da</strong> constitui-se no momento mais importante <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>. Trata-se de uma festa que os <strong>capoeira</strong>s dão a si mesmos. Nela, eles<br />

brincam, jogam, lutam e <strong>da</strong>nçam. Esta particulari<strong>da</strong>de faz <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong> um<br />

universo <strong>em</strong>polgante e <strong>em</strong>polgador, capaz de fazer <strong>em</strong>ergir as mais diferencia<strong>da</strong>s<br />

<strong>em</strong>oções. As ro<strong>da</strong>s que acontec<strong>em</strong> s<strong>em</strong> uma finali<strong>da</strong>de aparente, aquelas<br />

improvisa<strong>da</strong>s, onde se joga s<strong>em</strong> preocupação com o t<strong>em</strong>po ou com a aparência,<br />

parec<strong>em</strong> ser as mais deseja<strong>da</strong>s por muitos <strong>capoeira</strong>s ain<strong>da</strong> não preocupados <strong>em</strong><br />

ser<strong>em</strong> venerados ou reconhecidos e ain<strong>da</strong> não contaminados pela lógica <strong>da</strong><br />

espetacularização que, a despeito de contundentes críticas, v<strong>em</strong> ressignficando<br />

técnica e esteticamente a <strong>capoeira</strong> e transformando-a <strong>em</strong> mais um produto <strong>da</strong><br />

chama<strong>da</strong> “socie<strong>da</strong>de do espetáculo” (Debord, 1997).<br />

A improvisação é, indubitavelmente, uma <strong>da</strong>s razões que faz muitas<br />

pessoas ficar<strong>em</strong> horas a fio assistindo, meio “hipnotiza<strong>da</strong>s”, uma ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong><br />

155


na expectativa de que, a qualquer momento, todo o quadro se altere. A observação<br />

apura<strong>da</strong> de uma ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong> não garante, com segurança, uma transcrição ao<br />

pé <strong>da</strong> letra do que acontece <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> <strong>jogo</strong>. São momentos especiais que, apesar de<br />

seguir<strong>em</strong> o mesmo ritual, reflet<strong>em</strong> aspectos muito particulares <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> compartilha<strong>da</strong><br />

coletivamente. Ca<strong>da</strong> ro<strong>da</strong> t<strong>em</strong> suas peculiari<strong>da</strong>des, sua própria energia, mesmo que<br />

seja protagoniza<strong>da</strong> pelos mesmos jogadores. O quesito imprevisibili<strong>da</strong>de, além de<br />

causar apreensão, geralmente provoca dissabores aos menos precavidos.<br />

Na ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>, todos os golpes e contragolpes part<strong>em</strong> <strong>da</strong> ginga - a<br />

movimentação “básica” do <strong>capoeira</strong>. É ela que impede o confronto direto entre os<br />

jogadores. Portanto, como o enfrentamento é indireto, <strong>em</strong> geral, não se bloqueia o<br />

golpe do outro jogador. No <strong>jogo</strong>, esses golpes são mesclados com um número<br />

indefinido de negaças, esquivas e fintas que ca<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> improvisa a partir de<br />

suas possibili<strong>da</strong>des, numa espécie de dramatização ou tap<strong>ea</strong>ção do confronto<br />

direto. Tudo isso, vale dizer, completa-se com a mandinga, que significa para o<br />

<strong>capoeira</strong>, saber ler as intenções do outro, fazendo-o "entrar na sua", antecipando-se<br />

para que o outro jogue o seu <strong>jogo</strong> e não o dele. Essas improvisações, alia<strong>da</strong>s aos<br />

rituais de ro<strong>da</strong> que envolv<strong>em</strong> o <strong>capoeira</strong>, impregna<strong>da</strong>s de um "t<strong>em</strong>pero<br />

aparent<strong>em</strong>ente simples, o humor", é que o faz "<strong>da</strong>nçar dentro <strong>da</strong> briga”, como diria o<br />

Mestre Nestor Capoeira.<br />

Não obstante a eficiência dos próprios golpes de <strong>capoeira</strong>, o principal<br />

recurso tático desta <strong>da</strong>nça-luta-<strong>jogo</strong> é, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, a surpresa, que deve vir<br />

acompanha<strong>da</strong> de "mandingas" e "malícias" 58 . Essas quali<strong>da</strong>des se sobrepõ<strong>em</strong> à<br />

58 Mestre Pastinha d<strong>em</strong>onstrou, <strong>em</strong> diversas ocasiões, a eficácia desses componentes na ro<strong>da</strong> de<br />

<strong>capoeira</strong>. Às vezes, fingia-se de bêbado e jogava meio cambal<strong>ea</strong>ndo para iludir o companheiro de <strong>jogo</strong>.<br />

O escritor Jorge Amado fez elogios à Pastinha, ao descrevê-lo como "um mulato pequeno, de<br />

assombrosa agili<strong>da</strong>de, de resistência incomum. (...) Os adversários suced<strong>em</strong>-se, um jov<strong>em</strong>, outro<br />

jov<strong>em</strong>, mais outro jov<strong>em</strong>, discípulos ou colegas de Pastinha, e ele os vence a todos e jamais se cansa,<br />

jamais perde o fôlego" (AMADO, 1966, p. 209).<br />

156


força física e são bastante explora<strong>da</strong>s na tentativa de levar o companheiro de <strong>jogo</strong> a<br />

cometer um "vacilo" para poder atacar.<br />

Muitas vezes, alguns <strong>capoeira</strong>s, ávidos por desferir golpes perfeitos e<br />

objetivos, desconsideram a mandinga, a malícia, a surpresa e o ritmo musical,<br />

fazendo com que o <strong>jogo</strong> se torne muito "mecânico", s<strong>em</strong> "molejo" de corpo. Essa<br />

supervalorização <strong>da</strong> técnica 59 , <strong>em</strong> detrimento de outros componentes, maximiza os<br />

pequenos atritos comuns de uma ro<strong>da</strong> e, não raro, acontec<strong>em</strong> conten<strong>da</strong>s violentas.<br />

A articulação do ritmo musical com a expressão gestual, media<strong>da</strong> pela<br />

orquestra composta de instrumentos percussivos, r<strong>em</strong>ete a <strong>capoeira</strong> à condição de<br />

uma <strong>da</strong>s raras manifestações culturais com esta característica no mundo todo. O<br />

berimbau é qu<strong>em</strong> dita o ritmo do <strong>jogo</strong>. A música canta<strong>da</strong> (cantiga), muitas vezes de<br />

improviso, alimenta a imaginação e as palmas <strong>em</strong>polgam o diálogo corporal. Esta<br />

integração, que potencializa e agrega o desafio, a atenção, o medo, a alegria, a<br />

corag<strong>em</strong>, enfim, vários componentes essenciais <strong>da</strong> condição humana, colocados <strong>em</strong><br />

<strong>jogo</strong> e <strong>em</strong>balados pelos sons <strong>da</strong>s cantigas, dos instrumentos musicais e <strong>da</strong>s palmas<br />

dos d<strong>em</strong>ais participantes <strong>da</strong> ro<strong>da</strong>, se explora<strong>da</strong> pe<strong>da</strong>gogicamente, constitui-se num<br />

exuberante e fértil campo de investigação e aprendizag<strong>em</strong>, além de possibilitar<br />

singular permuta afetiva e exercícios de catarses.<br />

3.2.3. A cantiga interativa<br />

A sensação resultante <strong>da</strong> cantiga construí<strong>da</strong>, ao vivo, pelas vozes dos<br />

<strong>capoeira</strong>s presentes numa ro<strong>da</strong> é b<strong>em</strong> diferente de uma música que se ouve através<br />

59 Não raro, os <strong>capoeira</strong>s substitu<strong>em</strong> a malícia por saltos acrobáticos e circenses que, de certa forma,<br />

ilud<strong>em</strong> o companheiro de <strong>jogo</strong> e <strong>em</strong>polgam os assistentes, à medi<strong>da</strong> que expressam uma idéia de<br />

eficiência técnica, mas que, na maioria <strong>da</strong>s vezes, serve apenas como apelo estético, s<strong>em</strong> nenhuma<br />

contribuição para o <strong>jogo</strong> <strong>em</strong> si. A exacerbação dessas estratégias transformam, o <strong>jogo</strong> de <strong>capoeira</strong><br />

entre duas pessoas, numa exibição individual s<strong>em</strong> qualquer interação.<br />

157


de um aparelho estereofônico. Na ro<strong>da</strong>, o canto <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> é invariavelmente<br />

interativo. Por ser um canto responsório, essa interativi<strong>da</strong>de está garanti<strong>da</strong> s<strong>em</strong><br />

maiores formali<strong>da</strong>des. Via de regra, há um grande diálogo ritualizado entre o<br />

“puxador” <strong>da</strong> cantiga e os d<strong>em</strong>ais integrantes <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> que, por sua vez, formam o<br />

“coro”. Neste melódico diálogo, as mensagens <strong>da</strong>s cantigas requer<strong>em</strong> atenção dos<br />

participantes <strong>da</strong> ro<strong>da</strong>. É isso que faz com que tais cantigas tenham tamanha<br />

abrangência social, cujos “recados” não são assimilados apenas por especialistas,<br />

mas por pessoas comuns, inclusive, pelos analfabetos <strong>em</strong> teoria musical. A sua<br />

relevância não está apenas nas mensagens <strong>em</strong>buti<strong>da</strong>s <strong>em</strong> seus versos, mas na<br />

forma <strong>em</strong> que elas são canta<strong>da</strong>s. Em outras palavras, o sentido de uma cantiga<br />

passa muito mais pelas sensações que proporciona ao ser canta<strong>da</strong> e ouvi<strong>da</strong> do que<br />

pela análise <strong>da</strong>s mensagens de seus versos. A sonori<strong>da</strong>de é, portanto, fun<strong>da</strong>mental.<br />

As letras serão “degusta<strong>da</strong>s”, <strong>em</strong> maior ou menor grau, de acordo com a sonori<strong>da</strong>de<br />

que as acompanha, e um documento cantado é b<strong>em</strong> diferente de um documento<br />

escrito que <strong>em</strong>erge silenciosamente de uma folha de papel. Ao cantar, o sujeito está<br />

também praticando uma ação comunicativa interativa que, certamente, é<br />

responsável pelo frenesi que, freqüent<strong>em</strong>ente, toma conta dos <strong>capoeira</strong>s na ro<strong>da</strong>,<br />

independente de seu estilo, vertente ou “linhag<strong>em</strong>”. A depender do ritmo dos<br />

instrumentos musicais de percussão (berimbau 60 , pandeiro, atabaque, agogô e reco-<br />

60 O enigma <strong>da</strong> associação do berimbau ao <strong>jogo</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> ain<strong>da</strong> está por ser desven<strong>da</strong>do por<br />

etnólogos e antropólogos, entretanto, a sua orig<strong>em</strong> r<strong>em</strong>onta à África. Embora exista registro <strong>da</strong><br />

palavra berimbau no Brasil, desde 1584 (CARDIN, 1925), não se sabe, ao certo, se este instrumento<br />

é o mesmo que se associou à <strong>capoeira</strong> possivelmente no final do século XIX. Provavelmente, trata-se<br />

do berimbau-de-boca, definido por Antônio Moraes Silva, <strong>em</strong> seu Dicionário <strong>da</strong> Língua Portuguesa,<br />

como “instrumento sonoro do tamanho apenas de cinco a seis centímetros, de forma quase circular,<br />

com duas hastes prolonga<strong>da</strong>s, e sendo atravessado por uma palheta de aço; aplica-se à boca,<br />

encostando-o aos dentes e, com o dedo, vibra-se a palheta, produzindo um som de que o nome do<br />

instrumento é imitativo” (SILVA, 1877, p. 341). O berimbau que se associou ao <strong>jogo</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> foi o<br />

antiqüíssimo berimbau-de-barriga, que foi trazido para o Brasil pelos negros escravizados e consiste<br />

num arco musical com uma cabaça acopla<strong>da</strong> e toca-se percutindo o arame com uma vareta,<br />

encostando e afastando a cabaça <strong>da</strong> barriga. Cascudo (1972), <strong>em</strong> seu “Dicionário Folclórico<br />

Brasileiro”, enumera uma série de outros nomes para designar esse instrumento percursivo – gunga,<br />

urucungo, rucumbo, uricumgo.<br />

158


eco) 61 que, atualmente, pod<strong>em</strong> ser encontrados na bateria, também conheci<strong>da</strong> por<br />

“charanga” ou “orquestra”, as cantigas vão de muito lentas a muito rápi<strong>da</strong>s e levam<br />

os integrantes <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> a uma certa melancolia ou exaltação. Ou seja, elas obrigam<br />

os participantes a uma r<strong>ea</strong>ção, estimulam comportamentos, difund<strong>em</strong> mensagens e<br />

valores e possibilitam a criação de novas situações. Canto e gesto corporal<br />

aparec<strong>em</strong>, na <strong>capoeira</strong>, indissociavelmente unidos, um regulando e sendo regulado<br />

pelo outro. Quando existe uma sintonia, ou seja, uma afinação entre o puxador, o<br />

coro, a orquestra e o <strong>jogo</strong>, diz-se que a ro<strong>da</strong> t<strong>em</strong> axé. Nesse espaço-t<strong>em</strong>po<br />

privilegiado, quando esse conjunto todo se afina, integrando interativamente o<br />

campo vocal, o instrumental e o <strong>em</strong>ocional, levando os componentes <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> à<br />

euforia ou à melancolia, conforme a mensag<strong>em</strong> <strong>em</strong>buti<strong>da</strong> nos versos <strong>da</strong>s cantigas,<br />

resultando numa ver<strong>da</strong>deira sinfonia, <strong>em</strong>bora s<strong>em</strong> regente, acontece o que Mestre<br />

Decanio chama de “o transe <strong>capoeira</strong>no”.<br />

Não se sabe, ao certo, quando as cantigas passaram a fazer parte do<br />

universo <strong>capoeira</strong>no, mas sua estrutura melódica t<strong>em</strong> orig<strong>em</strong> entre os povos bantus<br />

<strong>da</strong> África Setentrional e foram influencia<strong>da</strong>s pelos cantos eclesiásticos <strong>da</strong> Igreja<br />

católica. O mais importante é que elas representam o alimento para o “espírito”<br />

(axé) <strong>da</strong> ro<strong>da</strong>. É o canto que anima o <strong>capoeira</strong>, no sentido de vigorar-lhe o espírito,<br />

seja ele propagador <strong>da</strong> paz ou <strong>da</strong> guerra. Como dizia Mestre Pastinha: “o bom<br />

<strong>capoeira</strong> é aquele que se movimenta pela alma”.<br />

Além do <strong>jogo</strong> corporal materializado na ro<strong>da</strong>, as mensagens <strong>da</strong>s cantigas<br />

contribu<strong>em</strong> para a efetivação de um <strong>jogo</strong> verbal, muitas vezes, imperceptível por<br />

neófitos. As cantigas operam como ver<strong>da</strong>deiras místicas que exercitam a utopia<br />

61 A orquestra de <strong>capoeira</strong> n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre t<strong>em</strong> a mesma composição de instrumentos. Embora se<br />

verifique uma tendência à padronização, existe variações entre os grupos. Há registros <strong>da</strong> presença<br />

de outros instrumentos na ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong> de outrora, como a viola e o xequerê. Mestre Pastinha<br />

faz referência à utilização <strong>da</strong> viola na bateria de sua acad<strong>em</strong>ia (DECANIO FILHO, 1996, p. 10).<br />

159


como possibili<strong>da</strong>de de superação dos fracassos históricos e questionamento dos<br />

processos de alienação a que foram submeti<strong>da</strong>s várias gerações de <strong>capoeira</strong>s.<br />

Entretanto, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre, essas mensagens estão relaciona<strong>da</strong>s com uma postura<br />

política explícita. Na maioria <strong>da</strong>s vezes, as cantigas retratam questões el<strong>em</strong>entares<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> comuni<strong>da</strong>de. De um modo geral, referenciam as bravuras dos heróis do<br />

passado, fatos do cotidiano, costumes, episódios históricos e outros s<strong>em</strong> qualquer<br />

importância, muitas <strong>da</strong>s vezes com a utilização de metáforas. Muitas cantigas<br />

reflet<strong>em</strong> um desejo ou um desgosto do <strong>capoeira</strong> compositor <strong>em</strong> relação a algum<br />

procedimento ou fato do cotidiano. Tais cantigas constitu<strong>em</strong>-se <strong>em</strong> instrumentos<br />

valiosos para uma análise mais pormenoriza<strong>da</strong> desta manifestação cultural.<br />

Cantigas de <strong>capoeira</strong> antigas, ain<strong>da</strong> hoje, são canta<strong>da</strong>s <strong>em</strong> ro<strong>da</strong>s e<br />

contribu<strong>em</strong> para recor<strong>da</strong>r fatos, episódios, nomes representativos desse universo,<br />

ressaltando não só atitudes ordeiras, mas, também, desordeiras.<br />

Algumas <strong>da</strong>s cantigas traz<strong>em</strong> uma linguag<strong>em</strong> não usual, com palavras de<br />

orig<strong>em</strong> africana, muitas vezes, canta<strong>da</strong>s <strong>em</strong> língua arrevesa<strong>da</strong>, como por ex<strong>em</strong>plo:<br />

“coma lá mi como gê, macá!” que, numa tradução para um português inteligível,<br />

corresponde a “come milho como gente, macaco!” Antigamente, essas cantigas,<br />

perm<strong>ea</strong><strong>da</strong>s de corruptelas de palavras de dialetos africanos, eram mais freqüentes,<br />

como por ex<strong>em</strong>plo:<br />

Acabe co’êste Santo<br />

Pedrito v<strong>em</strong> aí<br />

Lá v<strong>em</strong> cantando ca ô cabieci<br />

Lá v<strong>em</strong> cantando ca ô cabieci (apud REGO, 1968, p. 157)<br />

Segundo Abraham (apud REGO, 1968, p. 157), ca ô cabieci é uma<br />

corruptela de Ka wo ká biyè sì, “expressão com a qual os povos nagôs saú<strong>da</strong>m<br />

Xangô, deus do fogo e do trovão”.<br />

160


Um dos aspectos de especial interesse nas cantigas de <strong>capoeira</strong> é o diálogo,<br />

não entre duas pessoas presentes na ro<strong>da</strong>, mas entre uma presente e outra<br />

ausente, tal como acontece nos “sambas-de-breque” 62 , no qual as in<strong>da</strong>gações são<br />

feitas e respondi<strong>da</strong>s por um mesmo cantador, como na la<strong>da</strong>inha abaixo:<br />

Certa vez perguntaram ao seu Pastinha<br />

o que era <strong>capoeira</strong><br />

E ele, mestre velho respeitado<br />

Ficou um t<strong>em</strong>po parado<br />

Revirando sua alma,<br />

Depois, ele respondeu com calma<br />

Em forma de la<strong>da</strong>inha:<br />

- A <strong>capoeira</strong> é um <strong>jogo</strong>,<br />

É um brinquedo<br />

E se respeitar o medo<br />

E dosar b<strong>em</strong> a corag<strong>em</strong><br />

É uma luta<br />

É manhã de mandingueiro<br />

É o vento no veleiro<br />

O lamento na senzala<br />

É o corpo arrepiado<br />

Um berimbau b<strong>em</strong> tocado<br />

O riso de um menininho (...)<br />

(Autor: Mestre Tony Vargas)<br />

Muitas vezes esses diálogos são ver<strong>da</strong>deiros desafios que atiçam os<br />

participantes <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> com suas mensagens de provocação. Antigamente, as<br />

cantigas de desafio eram mais comuns e freqüent<strong>em</strong>ente se via mestres, ao pé do<br />

berimbau, improvisando desafios, como acontece nas tradicionais <strong>em</strong>bola<strong>da</strong>s<br />

pernambucanas. Uma cantiga de desafio, que retrata a disputa <strong>da</strong>s maltas do Rio de<br />

Janeiro, tornou-se bastante conheci<strong>da</strong>:<br />

Olha lá siri de mangue 63<br />

Todo t<strong>em</strong>po não é um<br />

Quero ver se você agüenta<br />

Com a presa do Guaiamum 64<br />

Quando eu entro você sai<br />

62<br />

O samba-de-breque é uma <strong>construção</strong> sonora que t<strong>em</strong> s<strong>em</strong>elhança com uma conversa cotidiana.<br />

Geralmente é cantado na primeira pessoa do singular, e o cantador expressa o que vive e o que<br />

pensa s<strong>em</strong> maiores requintes lingüísticos.<br />

63<br />

Siri de mangue é o maior representante <strong>da</strong> família dos siris. Era também o apelido de um <strong>capoeira</strong><br />

famoso de Santo Amaro <strong>da</strong> Purificação - BA.<br />

64<br />

Guaiamum é um grande caranguejo de coloração azul. O nome de uma famosa malta do Rio de<br />

Janeiro, do final do século XIX.<br />

161


Quando eu saio você entra<br />

Nunca vi mulher casa<strong>da</strong><br />

Que não fosse ciumenta<br />

Iê viva meu Deus...<br />

Iê viva meu Deus... camará<br />

(autor desconhecido)<br />

Vieira (1995) identifica três funções básicas nos cânticos de <strong>capoeira</strong>: (a)<br />

uma função ritual, que fornece à ro<strong>da</strong> o ritmo e animação; (b) uma função<br />

mantenedora <strong>da</strong>s tradições, que r<strong>ea</strong>viva a m<strong>em</strong>ória <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de <strong>capoeira</strong>na<br />

acerca dos acontecimentos importantes <strong>em</strong> sua história, e (c) uma função ética, que<br />

promove um constante repensar dessa mesma história e dos princípios éticos nas<br />

ro<strong>da</strong>s de <strong>capoeira</strong>. Consideramos que, para além dessas funções assinala<strong>da</strong>s por<br />

Vieira (1995), a postura e a forma como os <strong>capoeira</strong>s cantam acabam determinando<br />

o desenrolar <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>.<br />

Em um levantamento abrangente, Rego (1968) classificou os cânticos de<br />

<strong>capoeira</strong> <strong>em</strong>: cantigas geográficas, agiológicas, de louvação, de sotaque e desafio,<br />

de ro<strong>da</strong>, de peditório, de escárnio e mal-dizer, de berço e de devoção. Entretanto, o<br />

referido autor acha difícil estabelecer um marco divisor entre as cantigas antigas e<br />

as atuais. Para esse autor, muitas quadras antiqüíssimas são constant<strong>em</strong>ente<br />

resgata<strong>da</strong>s para a atuali<strong>da</strong>de. Além disso, também acha difícil distinguir as cantigas<br />

de <strong>capoeira</strong> propriamente ditas de cânticos de outra proveniência. Um bom ex<strong>em</strong>plo<br />

pode ser verificado na ingênua transposição de um jingle de uma campanha política<br />

de um senador baiano 65 , para a ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>. Esse jingle é cantado (e muito)<br />

apenas com a troca <strong>da</strong> palavra Bahia pela palavra <strong>capoeira</strong>.<br />

Você se l<strong>em</strong>bra de mim,<br />

Eu nunca vi você tão só,<br />

Oh meu amor o meu xodó, minha rainha<br />

Oh Bahia meu amor (na ro<strong>da</strong> canta-se: Oh, <strong>capoeira</strong> meu amor)<br />

Oh Bahia meu amor<br />

65 O Senador Antônio Carlos Magalhães, <strong>da</strong> Bahia, renunciou ao man<strong>da</strong>do, <strong>em</strong> 2002, para que não<br />

fosse aberto processo de cassação contra ele, acusado de ter violado o painel de votação do Senado<br />

Federal.<br />

162


Apesar <strong>da</strong>s cantigas de <strong>capoeira</strong> retratar<strong>em</strong> fatos cotidianos particulares<br />

de determinados grupos e contextos, com o desenvolvimento <strong>da</strong> indústria<br />

fonográfica e a facili<strong>da</strong>de e ampliação dos canais de divulgação, estas se<br />

desterritorializaram, provocando, muitas vezes, confusões na interpretação de suas<br />

letras, principalmente, quando conquistam públicos internacionais.<br />

Freqüent<strong>em</strong>ente, os grupos de <strong>capoeira</strong> promov<strong>em</strong>, s<strong>em</strong>estral ou<br />

anualmente, seus festivais de cantigas. As letras que se destacam passam<br />

rapi<strong>da</strong>mente para o domínio do público <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> geral. Há um enorme<br />

interesse por parte dos <strong>capoeira</strong>s <strong>em</strong> aprender cantigas novas, entretanto, o que<br />

pod<strong>em</strong>os verificar é o cultivo de determinados hit-parades, que terminam<br />

consagrando e alçando o autor/compositor a um reconhecimento no contexto<br />

<strong>capoeira</strong>no, <strong>em</strong> nível nacional e internacional.<br />

Em geral, as cantigas de <strong>capoeira</strong> classificam-se <strong>em</strong> la<strong>da</strong>inhas, chulas 66 e<br />

corridos. Está convencionado por boa parte dos <strong>capoeira</strong>s que durante a la<strong>da</strong>inha<br />

não se deve jogar. Esta é canta<strong>da</strong> ao toque de Angola 67 . As chulas também são<br />

conheci<strong>da</strong>s como quadras e os corridos são cantos curtos, geralmente formados<br />

com um verso apenas, <strong>em</strong> que o coro deve repetir a frase do puxador.<br />

As cantigas de <strong>capoeira</strong> vêm influenciando outros segmentos culturais<br />

como ban<strong>da</strong>s de pagode, de axé, de hip hop, de samba etc., e têm inspirado<br />

compositores famosos como Caetano Veloso que compôs a consagra<strong>da</strong> “meia-lua<br />

inteira”. Outro ex<strong>em</strong>plo é a cantiga “<strong>capoeira</strong>”, do Grupo Sensação, que conquistou<br />

66 Chula é também uma <strong>da</strong>nça popular portuguesa, com cantos curtos e improvisados.<br />

67 Os toques de berimbau receb<strong>em</strong> denominações distintas no mundo <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, como, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, toque de angola, são bento pequeno, são bento grande, cavalaria, iúna, santa maria,<br />

amazonas etc. Uns são mais usados por determina<strong>da</strong>s correntes que outros. A ca<strong>da</strong> toque<br />

corresponde uma forma de jogar. Não existe uma padronização <strong>em</strong> relação a esses procedimentos,<br />

que pod<strong>em</strong> variar de grupo para grupo e de estilo para estilo. Ver mais <strong>em</strong> Pires (1996 e 2001), Reis<br />

(1997), Vieira (1995).<br />

163


grande espaço na mídia brasileira por um longo período e agradou o público não<br />

<strong>capoeira</strong>no, pela sua cadência essencialmente <strong>da</strong>nçante.<br />

As cantigas de <strong>capoeira</strong> vêm adentrando o mercado musical <strong>em</strong> geral e<br />

extrapolando os contornos <strong>da</strong>s ro<strong>da</strong>s. Mas, mesmo no contexto interno <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>,<br />

a produção de compact disc v<strong>em</strong> alimentando um mercado ca<strong>da</strong> vez mais<br />

“promissor”, que t<strong>em</strong> contribuído para uma alteração na forma e nas mensagens <strong>da</strong>s<br />

cantigas a partir de algumas exigências de requintes questionáveis.<br />

Convém destacar, ain<strong>da</strong>, que a cantiga de <strong>capoeira</strong> não serve apenas<br />

para animar as ro<strong>da</strong>s, mas, freqüent<strong>em</strong>ente, expressa um significado mais amplo e<br />

reflete uma postura, uma distinção, uma filosofia de vi<strong>da</strong>, como pod<strong>em</strong>os perceber<br />

na estrofe abaixo:<br />

O cristão quando reza é baixinho<br />

Muçulmano só reza gritando<br />

O Bu<strong>da</strong> pra rezar é agachadinho<br />

Capoeira só reza cantando<br />

Para cantar sua reza ele chora<br />

Vai l<strong>em</strong>brando de qu<strong>em</strong> o deixou<br />

Berimbau vai tocando Angola<br />

E o meu peito se enche de dor<br />

Mas eu sou <strong>capoeira</strong> eu sou do Brasil<br />

Aqui <strong>capoeira</strong> surgiu.<br />

(Mestre Aranha, Cd Capoeira Gerais)<br />

É possível afirmar que o canto está para a <strong>capoeira</strong> assim como a<br />

meditação está para a Yoga. Pod<strong>em</strong>os perceber, inclusive, que os coros cantados<br />

nas ro<strong>da</strong>s funcionam como uma espécie de mantra, sendo que, para os não<br />

iniciados pode parecer algo monótono e enfadonho.<br />

Um <strong>da</strong>do interessante baseia-se no fato de que, apesar de a <strong>capoeira</strong><br />

estar presente <strong>em</strong> vários países de idiomas diferentes, suas cantigas são canta<strong>da</strong>s<br />

<strong>em</strong> português do Brasil, aspecto que denota sua forte relação com aspectos <strong>da</strong><br />

cultura brasileira. Se tomarmos outros movimentos <strong>em</strong> que a música é componente<br />

164


forte, como os movimentos “hip-hop” e “RAP”, por ex<strong>em</strong>plo, perceb<strong>em</strong>os que, <strong>em</strong><br />

ca<strong>da</strong> país, ela v<strong>em</strong> assumindo não só o idioma, mas el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong> sua cultura.<br />

Desde “paranauê” - criação de Mestre Genaro, <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> ao Mestre<br />

Paraná - a mais conheci<strong>da</strong> e a mais canta<strong>da</strong> cantiga de <strong>capoeira</strong> nas ro<strong>da</strong>s, até<br />

consideráveis produções atuais, perceb<strong>em</strong>os que as cantigas de <strong>capoeira</strong> não<br />

expressam uma coerência relaciona<strong>da</strong> com o discurso de muitos que tratam essa<br />

manifestação como uma bandeira de resistência cultural, ou como um campo de<br />

lutas <strong>em</strong> prol de uma socie<strong>da</strong>de fraterna, justa e solidária. Um Cd produzido <strong>em</strong><br />

Brasília, <strong>em</strong> 1998, pelo Grupo de Capoeira Meia Lua, intitulado “Capoeira na<br />

Escola”, contém uma música com a seguinte estrofe:<br />

“Meu pai s<strong>em</strong>pre me dizia/ Que um dia eu ia saber/ Quando é hora<br />

de matar/ Quando é hora de morrer/ Ont<strong>em</strong> eu matei um hom<strong>em</strong>/<br />

Hoje vou matar você/ É noite de lua cheia/ É noite de assombração/<br />

Você vai sair <strong>da</strong> ro<strong>da</strong>/ Mas é dentro de um caixão... camaradinha...”<br />

(canta<strong>da</strong> por Mestre Pombo de Ouro).<br />

Em abril de 2002, foi lançado um Cd de Capoeira na Europa intitulado<br />

“Capoeira mata um”, com participação de músicos do Brasil, do Haiti, África e<br />

Europa. A mensag<strong>em</strong> do título do Cd nos leva a refletir sobre a ambigüi<strong>da</strong>de desta<br />

manifestação.<br />

Da mesma forma que verificamos essas apologias à violência,<br />

perceb<strong>em</strong>os que muitas cantigas animadoras de ro<strong>da</strong>s pelo mundo afora são<br />

ver<strong>da</strong>deiras parábolas e metáforas que expressam certas “filosofias” de homens e<br />

mulheres simples do povo exaltando fatos imaginários e celebrando a vi<strong>da</strong>. A<br />

maioria delas, porém, expressa os sentimentos, as convicções, as <strong>em</strong>oções, os<br />

sofrimentos r<strong>ea</strong>is que grassam a cotidiani<strong>da</strong>de dos <strong>capoeira</strong>s e a condição dos<br />

oprimidos <strong>em</strong> geral, b<strong>em</strong> como as alternativas de superação dessa mesma<br />

condição, como pod<strong>em</strong>os verificar nas seguintes estrofes:<br />

165


Baraúna caiu quanto mais eu,<br />

Quanto mais eu quanto mais eu... (Domínio Público)<br />

Escorregar não é cair,<br />

É um jeito que o corpo dá... (Domínio Público)<br />

O gavião não pousa <strong>em</strong> arapuca<br />

Macaco velho não põe a mão na cumbuca (Domínio Público)<br />

Passarinho que come pedra<br />

Sabe o estômago que t<strong>em</strong><br />

Ca<strong>da</strong> macaco no seu galho<br />

É um ditado que convém (Domínio Público)<br />

Outro aspecto que chama a atenção <strong>em</strong> relação às cantigas de <strong>capoeira</strong><br />

diz respeito à participação <strong>da</strong> mulher nesse contexto (ain<strong>da</strong>) marca<strong>da</strong>mente<br />

masculino. Conforme preceitua a cantiga, <strong>capoeira</strong> é pra “home, minino e mulé”, o<br />

que pod<strong>em</strong>os verificar concretamente ain<strong>da</strong> é uma predominância maciça de<br />

indivíduos do sexo masculino nesse campo. Isso pode ser confirmado pelo irrisório<br />

número de mulheres que conquistaram o grau de mestre. Esta supr<strong>em</strong>acia dos<br />

homens é, dentre outras possibili<strong>da</strong>des, fruto <strong>da</strong> divisão social do trabalho no Brasil<br />

que, ao longo de séculos tratou a mulher de forma discrimina<strong>da</strong>. Tal discriminação<br />

reflete-se, também, nas cantigas canta<strong>da</strong>s na ro<strong>da</strong>. Muitas expressam conotações<br />

machistas e sexistas, sendo que, via de regra, quando a mulher é retrata<strong>da</strong>, quase<br />

s<strong>em</strong>pre é de forma estereotipa<strong>da</strong> ou pejorativa, como nas cantigas a seguir,<br />

freqüent<strong>em</strong>ente canta<strong>da</strong>s <strong>em</strong> ro<strong>da</strong>s pelo Brasil afora:<br />

Mulher pra mim t<strong>em</strong> que manter a estiva<br />

T<strong>em</strong> que jogar <strong>capoeira</strong>, ser boa, gostosa e bonita<br />

Bicho bom o que é... É mulher.<br />

(Domínio Público)<br />

Se essa mulher fosse minha, eu tirava <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> já, já<br />

Dava uma surra nela que ela gritava… chega! (Domínio Público)<br />

A mulher e a galinha são dois bichos interesseiros<br />

A galinha pelo milho e a mulher pelo dinheiro (Domínio Público)<br />

Mulher cabeça de vento, juízo mal governado<br />

Assim como Deus não mente, mulher não fala a ver<strong>da</strong>de<br />

(Mestre Caiçara)<br />

166


Recent<strong>em</strong>ente, <strong>em</strong> 2003, foi apresentado ao público o primeiro Cd de<br />

<strong>capoeira</strong> cantado exclusivamente por uma mulher. Trata-se de uma iniciativa original<br />

que adquiriu grande repercussão na mídia, para além do universo <strong>capoeira</strong>no 68 .<br />

Por fim, cabe ressaltar que a abrangência conquista<strong>da</strong> pelas cantigas de<br />

<strong>capoeira</strong> extrapolou o seu próprio universo e não nos permite fazer hoje uma<br />

categorização como fez Rego (1968), por ex<strong>em</strong>plo, à época <strong>em</strong> que a <strong>capoeira</strong><br />

ain<strong>da</strong> não era tão diss<strong>em</strong>ina<strong>da</strong>/pratica<strong>da</strong>. Hoje, já se fala <strong>em</strong> música gospel de<br />

<strong>capoeira</strong> 69 . Além disso, os cantos improvisados que animavam as ro<strong>da</strong>s de outrora<br />

estão <strong>em</strong> desuso, mas sab<strong>em</strong>os que eles envolviam os <strong>capoeira</strong>s numa plenitude<br />

de êxtase, levando o corpo todo a “fazer miserê”, como dizia Mestre Pastinha. “O<br />

corpo todo faz miserê, cabeça, mão, pernas, e só consegue com manhas” (apud<br />

DECANIO FILHO, 1996, p. 43).<br />

O fato de o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho (GCAP), de Salvador,<br />

ter concorrido com um CD, gravado pelo Mestre Moraes, na categoria de melhor<br />

álbum de World Music Cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong> do Grammy 2004, <strong>em</strong> sua 46ª edição (o<br />

maior prêmio <strong>da</strong> indústria fonográfica mundial), d<strong>em</strong>onstra o alcance que as<br />

cantigas de <strong>capoeira</strong> vêm tendo.<br />

Consideramos que o valor educativo dessas cantigas é incomensurável,<br />

tanto pela interativi<strong>da</strong>de que proporcionam ao ser<strong>em</strong> ecoa<strong>da</strong>s nas ro<strong>da</strong>s de<br />

<strong>capoeira</strong>, quanto pelas mensagens subliminares <strong>em</strong>buti<strong>da</strong>s nos seus versos.<br />

68<br />

Cd “Músicas de Capoeira”, de Carolina Soares, produção de Alexandre Chediak, Estúdio Alabama<br />

–SP, 2003.<br />

69<br />

Como é o caso de um grupo de <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> Florianópolis, cujos participantes são estimulados a<br />

cantar<strong>em</strong> cantigas com mensagens religiosas.<br />

167


3.2.4. O lúdico rebelde<br />

A busca de uma definição precisa para o lúdico é uma tarefa difícil, <strong>da</strong>do o<br />

seu caráter extr<strong>em</strong>amente subjetivo, tão íntimo, que se torna impossível uma<br />

explicação racional <strong>da</strong>s suas formas de expressão, seja de alegria, de prazer, de<br />

divertimento, de agrado. Entretanto, pod<strong>em</strong>os considerar que <strong>em</strong>bora se constitua<br />

num atributo subjetivo, ele é uma <strong>construção</strong> que se efetiva a partir <strong>da</strong>s interações<br />

sociais. Pod<strong>em</strong>os afirmar, ain<strong>da</strong>, que o lúdico pertence a mesma categoria <strong>da</strong><br />

alegria, <strong>da</strong> corag<strong>em</strong>, <strong>da</strong> ternura, do prazer, enfim, trata-se de uma potência criadora,<br />

que se materializa essencial e efetivamente através do brincar. Apesar de Huizinga<br />

(1990) considerar que o lúdico se comporta nas subjetivi<strong>da</strong>des como um segredo<br />

que só é desven<strong>da</strong>do no campo <strong>da</strong>s sutilezas de qu<strong>em</strong> vive esse estado,<br />

consideramos que a sua efetivação é resultado de relações intersubjetivas.<br />

O lúdico é, portanto, fruto de interações sociais que nos possibilita<br />

estarmos de b<strong>em</strong> com a vi<strong>da</strong>, com os outros e com o mundo que nos cerca. Ele é<br />

centrado na alegria que a vi<strong>da</strong> (às vezes) irradia. O lúdico abarca o entusiasmo, a<br />

motivação, o prazer e desencadeia processos de harmonia, de divertimento, de paz,<br />

de liber<strong>da</strong>de e de amor.<br />

Convém destacar que a manifestação do lúdico só se torna possível a<br />

partir <strong>da</strong> “plenitude <strong>da</strong> experiência” (LUCKESI, 1998). Em sua função essencial, ele<br />

é integrador e acolhedor. Aliás, ele só se torna possível num estado de acolhimento<br />

e integração, onde sujeitos históricos se entregam a experiência de forma plena e<br />

total, s<strong>em</strong> julgamentos, s<strong>em</strong> coerções e dispostos a sentir prazer. Luckesi (1998, p.<br />

22) assevera que muitas ativi<strong>da</strong>des traz<strong>em</strong> <strong>em</strong> si a plenitude <strong>da</strong> experiência, mas,<br />

n<strong>em</strong> por isso, são necessariamente lúdicas, como, por ex<strong>em</strong>plo: “produzir um bom<br />

168


texto com tudo que ele t<strong>em</strong> de direito, de metáforas, alegorias, poesia,<br />

argumentação clara etc.”<br />

Conforme já foi dito, o fator desencad<strong>ea</strong>dor do lúdico é o livre brincar, s<strong>em</strong><br />

coerções externas e auto-impostas, livre de manipulações, obrigações, controles e<br />

culpabili<strong>da</strong>des. A forma de brincar vai depender dos interesses e também do<br />

espaço/t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se encontra ca<strong>da</strong> sujeito. Aquilo que é de grande interesse<br />

para uma criança de cinco anos pode não ser importante para uma mais idosa.<br />

Convém r<strong>ea</strong>firmar, entretanto, que n<strong>em</strong> to<strong>da</strong> brincadeira é diverti<strong>da</strong>. Por ex<strong>em</strong>plo: a<br />

prática de “tirar sarro” dos colegas pode até ser diverti<strong>da</strong> para qu<strong>em</strong> tira, mas o<br />

sujeito alvo do sarro, certamente, não acha a menor graça. Luckesi (1998, p. 22)<br />

afirma que nessas ativi<strong>da</strong>des não existe na<strong>da</strong> de lúdico à medi<strong>da</strong> que “se manifesta<br />

o poder de uns sobre os outros e, pior, um poder desqualificador”.<br />

O lúdico não se situa numa determina<strong>da</strong> dimensão do nosso ser, mas<br />

constitui-se numa síntese integradora. Ele se materializa no todo, no integral <strong>da</strong><br />

existência humana. É impossível que a dimensão lúdica se manifeste num sujeito<br />

“travado”.<br />

Da mesma forma que não existe uma essência humana divorcia<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

existência, também não existe um lúdico descolado <strong>da</strong>s relações sociais. Com isso<br />

quer<strong>em</strong>os dizer que não existe uma essência lúdica, centra<strong>da</strong> no sujeito, pronta a<br />

desabrochar ao seu bel-prazer. Bas<strong>ea</strong>ndo-se <strong>em</strong> Marx, Vázquez destaca que a<br />

essência humana centra<strong>da</strong> no indivíduo não passa de uma abstração, pois ignora<br />

que o próprio indivíduo é um produto social, isto é, “ele é determinado pelas<br />

relações sociais e, <strong>em</strong> primeiro lugar, pelas relações de produção que determinam<br />

sua própria individuali<strong>da</strong>de <strong>em</strong> determina<strong>da</strong>s condições” (VÁZQUEZ, 1986, p. 422).<br />

169


É praxe associar <strong>jogo</strong>, brinquedo, brincadeira à infância, contudo, esses<br />

el<strong>em</strong>entos não são exclusivos dessa fase. Ao longo de to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>, o ser humano<br />

sente vontade de brincar e, às vezes, brinca, mas alienado à lógica racionalizante,<br />

perdeu o sentido desse brincar e <strong>da</strong> energia primordial que o conduz à experiência<br />

lúdica.<br />

Segundo Kishimoto (1997 e 1998), o brincar é uma ativi<strong>da</strong>de dota<strong>da</strong> de<br />

significação social que, como outras, necessita de aprendizag<strong>em</strong>. São nas situações<br />

de frivoli<strong>da</strong>de, distante <strong>da</strong>s obrigações de rotina que encontramos as condições<br />

mais favoráveis para brincar. São nesses momentos, livres de pressões funcionais,<br />

que a dimensão lúdica se evidencia plenamente. Daí pode-se depreender que os<br />

processos criativos expressos pelo hom<strong>em</strong>, e somente pelo hom<strong>em</strong>, constitu<strong>em</strong> um<br />

<strong>jogo</strong>, uma brincadeira, diferent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> funcionali<strong>da</strong>de que caracteriza o brincar<br />

dos animais, conforme afirma Lorenz (1986, p. 63).<br />

O lúdico é virtude presente, atual. O presente é sua eterni<strong>da</strong>de e a<br />

satisfaz. Ele requer um despojamento <strong>em</strong> relação ao passado e um não<br />

envolvimento com o futuro. Sua base r<strong>ea</strong>l é o agora.<br />

O lúdico se parece a uma sinfonia: ela precisa ser executa<strong>da</strong> para ser<br />

vivi<strong>da</strong>. Não é uma idéia intelectualiza<strong>da</strong> que nos dá a compreensão<br />

<strong>da</strong> sinfonia. Ela não foi cria<strong>da</strong> para se tornar conceito, mas para ser<br />

vivencia<strong>da</strong> mediante sua execução. O ato lúdico coloca-se na mesma<br />

esteira e, ain<strong>da</strong> com uma grande diferença. Ele não precisa de<br />

partitura. Ca<strong>da</strong> ato lúdico é novo e original, jamais repetido (SANTIN,<br />

1996, p. 87).<br />

Na experiência lúdica, passado e futuro atuam como perspectivas<br />

referenciais abstratas e imaginárias, o que nos coloca <strong>em</strong> íntima relação com o<br />

processo criativo. Entretanto, convém destacar, estas possibili<strong>da</strong>des implicam num<br />

encontro com o “aqui e o agora”. O r<strong>ea</strong>l e o imaginário são, portanto, dialetizados e<br />

incitam e excitam processos no sujeito que ampliam a linguag<strong>em</strong> e a ação,<br />

170


favorecendo o desenvolvimento de diversas funções, dentre elas, a cognição, a<br />

capaci<strong>da</strong>de teleológica e a <strong>construção</strong> simbólica.<br />

Ao analisar o desenvolvimento histórico <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, pud<strong>em</strong>os identificar<br />

que o lúdico se constitui numa de suas referências significativas. Essa constatação<br />

r<strong>em</strong>onta ao seu surgimento. “A <strong>capoeira</strong> s<strong>em</strong>pre teve ambiente festeiro” (TAVARES,<br />

1964, p. 25). Afinal, os negros de Angola - os primeiros a ser<strong>em</strong> trazidos para o<br />

Brasil como escravos - eram propensos aos folguedos e diversões. Querino (1922,<br />

p. 61) destaca que: “o Angola era, <strong>em</strong> geral, pernóstico, excessivamente loquaz, de<br />

gestos amaneirados, typo completo e acabado do capadócio” (sic).<br />

Para Braz do Amaral (apud REGO 1968), os negros de Angola - os mais<br />

numerosos dentre os escravos trazidos para o Brasil - eram insolentes, loquazes e<br />

imaginosos, não tinham persistência para o trabalho 70 , porém eram férteis <strong>em</strong><br />

recursos e manhas. Tinham mania por festa, pelo reluzente e pelo ornamental.<br />

Mesmo na época <strong>da</strong> escravidão, diante <strong>da</strong>s desumanas condições <strong>em</strong> que<br />

viviam, os africanos reivindicavam o exercício do lúdico, como componente de sua<br />

identi<strong>da</strong>de cultural. No final do século XVIII, escravos fugidos de uma fazen<strong>da</strong><br />

baiana reivindicavam, além de terras e melhores condições de trabalho, o direito de<br />

poder “brincar, folgar, e cantar <strong>em</strong> todos os t<strong>em</strong>pos que quisermos s<strong>em</strong> que nos<br />

<strong>em</strong>peça e n<strong>em</strong> seja preciso licença (sic)” (REIS e SILVA, 1989, p. 124) 71 .<br />

Rego compartilha <strong>da</strong> idéia de que luta e brincadeira são componentes <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>: “primitivamente a <strong>capoeira</strong> era o folguedo que os negros inventaram, para<br />

os instantes de folga e divertir<strong>em</strong> a si e aos d<strong>em</strong>ais nas festas de largo, s<strong>em</strong>,<br />

70 Esta visão de que os negros não eram propensos ao trabalho, certamente, é fruto de uma<br />

concepção elitista do sentido do trabalho. Está comprovado, por várias fontes, que os negros s<strong>em</strong>pre<br />

foram trabalhadores. A questão fun<strong>da</strong>mental é explicitar as diferentes leituras de trabalho. Se, por um<br />

lado, para os proprietários dos meios de produção, o trabalho estava irr<strong>em</strong>ediavelmente ligado à<br />

submissão e à obediência, por outro, poderia estar vinculado à busca <strong>da</strong> autonomia do indivíduo<br />

sobre si mesmo. Ver mais <strong>em</strong> Pires (1996).<br />

71 Trecho do tratado proposto a Manuel <strong>da</strong> Silva Ferreira pelos seus escravos durante o t<strong>em</strong>po <strong>em</strong><br />

que se conservaram levantados, <strong>em</strong> 1789, na Bahia (apud REIS e SILVA, 1989, p. 124).<br />

171


contudo, deixar de utilizá-la como luta, no momento preciso para sua defesa”<br />

(REGO, 1968, p. 359).<br />

Rugen<strong>da</strong>s, ao discorrer sobre “usos e costumes dos negros” no Brasil,<br />

menciona a <strong>capoeira</strong> como “folguedo guerreiro”, <strong>em</strong> que um lutador evita o ataque<br />

do outro com “saltos de lado e para<strong>da</strong>s hábeis” (RUGENDAS, 1979, p. 241) 72 .<br />

Frede Abreu, um reconhecido pesquisador que se regozija ao se intitular<br />

de “não acadêmico”, argumenta que<br />

durante as déca<strong>da</strong>s de 40, 50 e 60 do século anterior, no domingo, o<br />

mais alegre dos dias, um rito profano se tornou um vício sagrado para<br />

muitos capoeiristas baianos: vadiar na Liber<strong>da</strong>de, no Barracão, no<br />

terreiro, na ro<strong>da</strong> de Wald<strong>em</strong>ar. Era a “vadiação”, palavra maldita pela<br />

crônica policial, sinônimo de contravenção, que se tornou predileta e<br />

significativa para os capoeiristas e sambistas denominar as ‘funções’<br />

de sambar e <strong>capoeira</strong>r. (ABREU, 2003, p. 34).<br />

A experiência lúdica, além de se fazer historicamente presente no <strong>jogo</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> de forma destaca<strong>da</strong>, constitui-se numa referência significativa que pode<br />

contribuir para a <strong>construção</strong> de possibili<strong>da</strong>des pe<strong>da</strong>gógicas <strong>em</strong>ancipatórias pela sua<br />

característica fun<strong>da</strong>mental de resistência à produção material de lucro, de mais<br />

valia, de acúmulo. Na plenitude lúdica, não há lugar para a exploração, para o<br />

acúmulo, para o desperdício. Tudo é aproveitado, porque lúdico é totali<strong>da</strong>de, é<br />

integração. O lúdico é contestador <strong>da</strong> exploração, ele r<strong>ea</strong>ge aos ímpetos do poder<br />

explorador. O espírito lúdico basta a si mesmo. Numa dinâmica lúdica a produção<br />

cultural se confunde com a distribuição e o consumo dos bens produzidos. Não se<br />

acumula lúdico para usufruí-lo depois. Ninguém t<strong>em</strong> um lúdico latente para ser<br />

usufruído <strong>em</strong> momentos oportunos; ele é construído no puro presente. Aliás, as<br />

experiências pauta<strong>da</strong>s no lúdico contribuíram para que a <strong>capoeira</strong> se diferenciasse,<br />

no seu movimento histórico, de inúmeras outras artes de luta corporal, que, por sua<br />

72 Rugen<strong>da</strong>s (1979, p. 241) retratou a <strong>capoeira</strong>, <strong>em</strong> 1834, numa gravura intitula<strong>da</strong> “Jogar <strong>capoeira</strong> ou<br />

Dança <strong>da</strong> Guerra”. Nela, dois negros gingam ao som de um atabaque - tocado por um outro sentado<br />

- diante de uma assistência composta por nove negros (dentre os quais três mulheres).<br />

172


vez, privilegiaram outros el<strong>em</strong>entos considerados mais “sisudos” e mais<br />

“produtivos”, tão caros à socie<strong>da</strong>de capitalista ocidental, como a disciplina, a<br />

hierarquia, a uniformização, a competição e a padronização.<br />

Algumas experiências <strong>capoeira</strong>nas sintoniza<strong>da</strong>s com a valorização do<br />

lúdico, freqüent<strong>em</strong>ente, questionam a supr<strong>em</strong>acia desses quesitos, ain<strong>da</strong> que eles<br />

sejam minimizados por força <strong>da</strong> própria ginga, dos cânticos, <strong>da</strong> mandinga, que<br />

operam como el<strong>em</strong>entos dissimuladores <strong>da</strong> disputa. Não que na ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong><br />

não se exercit<strong>em</strong> e não se exijam esses quesitos, o fato é que os mesmos são, pela<br />

própria dinâmica <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, diluídos por força do <strong>jogo</strong>, dos cânticos, <strong>da</strong> surpresa,<br />

<strong>da</strong> mandinga. Afinal <strong>capoeira</strong> é (foi) pura dissimulação.<br />

Com a heg<strong>em</strong>onia do ideário capitalista infiltrando <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as esferas <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, a aventura do brincar pleno (a “vadiação”, no caso <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>) v<strong>em</strong> sendo<br />

seriamente manipula<strong>da</strong> pelos mecanismos <strong>da</strong> produção/produtivi<strong>da</strong>de. Daí o fato de<br />

que n<strong>em</strong> todo <strong>jogo</strong>, brinquedo ou brincadeira se configura <strong>em</strong> possibili<strong>da</strong>des lúdicas<br />

ou proporciona prazer. Os valores do lúdico vão sendo substituídos pelos valores de<br />

uma racionali<strong>da</strong>de tosca, subjugante e doutrinante. As crianças, considera<strong>da</strong>s as<br />

mestras do lúdico, vão, paulatinamente, sendo inicia<strong>da</strong>s nas práticas do trabalho<br />

produtivo e do raciocínio lógico. São arranca<strong>da</strong>s do mundo “inútil” do brinquedo e<br />

inseri<strong>da</strong>s na vi<strong>da</strong> “útil”, produtiva. Isso implica numa negação do lúdico.<br />

Na socie<strong>da</strong>de capitalista, onde prevalece a lógica <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de<br />

cumulativa, o lúdico v<strong>em</strong> se reduzindo a “objetos lúdicos”. Produzidos <strong>em</strong> série,<br />

passam a idéia de conter<strong>em</strong> um significado lúdico na sua essência, mas sabe-se<br />

perfeitamente que o lúdico implica <strong>em</strong> relação.<br />

Encarar o mundo ludicamente é resistir à lógica desenfr<strong>ea</strong><strong>da</strong> <strong>da</strong> produção<br />

capitalista, produção esta que v<strong>em</strong>, a passos largos, gerando exploração e<br />

173


destruição. Contrapor-se a esta lógica heg<strong>em</strong>ônica significa lutar por uma socie<strong>da</strong>de<br />

mais justa e fraterna, à medi<strong>da</strong> que, conforme assinala Vigotski (1989), a<br />

internalização dos valores sociais mol<strong>da</strong>m a nossa personali<strong>da</strong>de e a nossa visão<br />

de mundo, e é na infância que eles se consoli<strong>da</strong>m. O conteúdo desses valores<br />

depende completamente dos fenômenos exteriores <strong>da</strong> existência e, antes de tudo,<br />

dos que resultam <strong>da</strong>s relações sociais estabeleci<strong>da</strong>s entre os homens. Dentro deste<br />

enfoque, Marcellino (1990) adverte que está se evidenciando, ca<strong>da</strong> vez mais, o furto<br />

<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vivência lúdica na infância, seja pela negação t<strong>em</strong>poral e<br />

espacial do <strong>jogo</strong>, do brinquedo, <strong>da</strong> festa, seja pela lógica do consumo de bens e<br />

serviços. Estão “<strong>em</strong>pacotando a infância” como se esta fosse uma mercadoria e<br />

desprezando a criança como produtora de cultura. Na melhor <strong>da</strong>s hipóteses, estão<br />

“adulterando” as crianças com a negação de suas possibili<strong>da</strong>de lúdicas de conviver<br />

livre e experimentalmente com outras crianças e de vivenciar experimental e<br />

livr<strong>em</strong>ente contextos diversos.<br />

Os resultados desses processos de manipulação/alienação pod<strong>em</strong> ser<br />

verificados nas estatísticas dos últimos anos sobre a depressão e a incidência ca<strong>da</strong><br />

vez mais amplifica<strong>da</strong> de estafas inexplicáveis, estresses patológicos, patologias<br />

psicossomáticas e neuroses “pós-modernas”, que nos dão algumas pistas do que<br />

representa um descuido com estas questões essenciais <strong>da</strong> existência humana. Um<br />

el<strong>em</strong>ento complicador desse processo consiste no fato de que to<strong>da</strong>s essas<br />

anomalias desencad<strong>ea</strong>doras <strong>da</strong> infelici<strong>da</strong>de são retoma<strong>da</strong>s pelo próprio sist<strong>em</strong>a<br />

como objetos de manipulação mercantil, que negocia e lucra com os próprios males<br />

que diss<strong>em</strong>ina. Não é por acaso, que os tranquilizantes químicos são, de longe, os<br />

medicamentos mais consumidos. A pornografia tornou-se grande negócio para<br />

aliviar as multidões solitárias. A multiplicação de seitas religiosas oferec<strong>em</strong>, a preços<br />

174


módicos, a salvação <strong>em</strong> outro mundo. Os livros de “auto-aju<strong>da</strong>” e as drogas<br />

compl<strong>em</strong>entam esse aparato de paliativos que se destinam à busca de uma<br />

pretensa felici<strong>da</strong>de.<br />

A crise que insurge por dentro do próprio sist<strong>em</strong>a capitalista, seja de<br />

forma degenera<strong>da</strong>, através <strong>da</strong> violência, seja de forma organiza<strong>da</strong>, através dos<br />

movimentos sociais, instaura a necessi<strong>da</strong>de de uma nova ord<strong>em</strong>, de uma outra<br />

perspectiva, para além do capital.<br />

Mesmo reconhecendo a importância do brincar, como <strong>construção</strong> humana<br />

singular, t<strong>em</strong> sido muito complicado para o adulto manifestar-se através de<br />

vivências lúdicas plenas. Em geral, a subjetivi<strong>da</strong>de humana encontra-se mol<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

pelos cânones <strong>da</strong> produção, está disciplina<strong>da</strong> por uma educação opressora, está,<br />

portanto, “trava<strong>da</strong>”, fragmenta<strong>da</strong>, vigia<strong>da</strong>, inibi<strong>da</strong>, com medo <strong>da</strong> punição, com medo<br />

do “ridículo”. Mas, que “ridículo” é esse?<br />

Envolvido com “outras priori<strong>da</strong>des”, o hom<strong>em</strong> cont<strong>em</strong>porâneo vai aos<br />

poucos se definhando. Seduzido por um <strong>em</strong>aranhado de infindáveis promessas de<br />

felici<strong>da</strong>de que o coisificam, à medi<strong>da</strong> que se torna escravo delas, ele não pára, vive<br />

como se o mundo fosse acabar no dia seguinte e precisa ain<strong>da</strong> acumular muitas<br />

conquistas materiais. Esquecendo de <strong>da</strong>r um t<strong>em</strong>po para si, torna-se vulnerável, à<br />

mercê <strong>da</strong>s mais extravagantes on<strong>da</strong>s de novi<strong>da</strong>des tecnológicas. Ao subestimar a<br />

simplici<strong>da</strong>de, a espirituali<strong>da</strong>de, o lúdico, o hom<strong>em</strong> se nega, deixa-se escravizar,<br />

coisifica-se.<br />

A plenitude do lúdico não se dá a partir de uma perspectiva meramente<br />

psicológica, mas primordialmente cultural, enfim, relacional. A partir de um conjunto<br />

de referências intersubjetivas, a instauração de uma cultura lúdica permite inversões<br />

e rupturas com as formali<strong>da</strong>des e significações <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana, fazendo com que<br />

175


ativi<strong>da</strong>des considera<strong>da</strong>s “de ver<strong>da</strong>de” se transform<strong>em</strong> <strong>em</strong> ativi<strong>da</strong>des “de<br />

brincadeira”. No <strong>jogo</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> este aspecto pode ser efetivamente construído.<br />

Em geral, os <strong>capoeira</strong>s, na ro<strong>da</strong>, romp<strong>em</strong> com as formali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> luta, ou seja,<br />

fing<strong>em</strong> lutar, dissimulam o componente luta na <strong>da</strong>nça e no <strong>jogo</strong>, por meio <strong>da</strong> malícia<br />

e <strong>da</strong> surpresa.<br />

Convém destacar, ain<strong>da</strong>, conforme nos aponta Brougère (1998), que a<br />

cultura lúdica não é um bloco monolítico. Ela se particulariza, individualiza-se,<br />

dependendo <strong>da</strong>s características dos grupos, dos indivíduos, de seus hábitos e<br />

costumes, do ambiente e <strong>da</strong>s condições materiais.<br />

Enfim, o lúdico não pode ser entendido como um substrato natural,<br />

biológico, à medi<strong>da</strong> que ele só se torna possível e se desenvolve plenamente, assim<br />

como qualquer ativi<strong>da</strong>de humana, num processo de interação social. É no coletivo<br />

que ele encontra o campo apropriado para ser vivenciado, exercitado, sentido.<br />

É interessante notar que o lúdico nunca esteve tão <strong>em</strong> voga. No entanto,<br />

ele se apresenta travestido, um lúdico sincopado, ou seja, desprovido de seus<br />

componentes essenciais e, na maioria <strong>da</strong>s vezes, se concretiza como arr<strong>em</strong>edo,<br />

caricatura, uma mercadoria a ser consumi<strong>da</strong> pelos mais abastados. Esse tratamento<br />

instrumental do lúdico desencadeia uma polarização <strong>em</strong> relação ao trabalho,<br />

extr<strong>em</strong>amente vantajosa para o sist<strong>em</strong>a capitalista que, ao colocar <strong>em</strong> oposição<br />

esses dois setores básicos <strong>da</strong> existência humana, provoca fragmentação e<br />

alienação.<br />

Se Marx considerava o trabalho como o motor do desenvolvimento<br />

humano, ativi<strong>da</strong>de intrinsecamente criativa <strong>em</strong> sua orig<strong>em</strong>, e que possibilitava ao<br />

hom<strong>em</strong> tornar-se hom<strong>em</strong>, por que ele se transformou num cúmplice dócil do capital?<br />

Marx, mesmo, assegurava que essa alienação, esse estranhamento derivava <strong>da</strong><br />

176


divisão hierárquica do trabalho. Ou seja, alguns homens passaram a impor aos<br />

outros as condições <strong>em</strong> que deveriam trabalhar, resultando numa degra<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s<br />

mais diversas esferas <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de humana, por força de uma desmesura<strong>da</strong> busca<br />

de produtivi<strong>da</strong>de.<br />

Entretanto, essa produtivi<strong>da</strong>de, como recorrência do modo de produção<br />

capitalista, estimula a competição entre pessoas e grupos particulares, privilegiando<br />

o melhor produto e não aquele que sabe produzir as condições essenciais e<br />

necessárias para uma vi<strong>da</strong> digna. Com isso, v<strong>em</strong> degra<strong>da</strong>ndo a humani<strong>da</strong>de e<br />

acarretando graves <strong>da</strong>nos à dimensão comunitária <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, gerando, como<br />

subproduto, o estresse, doença que pode até matar, e a culpa geralmente é dirigi<strong>da</strong><br />

à vitima e não ao modelo de socie<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que ela está inclusa.<br />

Assim, uma discussão rigorosa a respeito do lúdico implica <strong>em</strong> situá-lo<br />

dentro do modo de produção capitalista. Deve-se ter claro que uma mu<strong>da</strong>nça de<br />

perspectiva exige como ponto de parti<strong>da</strong> e de chega<strong>da</strong> a transformação desta<br />

ord<strong>em</strong> social. Entretanto, a maioria <strong>da</strong>s reflexões não questiona os nexos e as<br />

razões históricas que delineiam e determinam a ética e a lógica do sist<strong>em</strong>a<br />

capitalista e termina explicando a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social superficialmente, pela aparência e<br />

pelo utilitarismo dos fenômenos e objetos produzidos na dinâmica cultural.<br />

Não dá para experienciar plenamente o lúdico quando não se t<strong>em</strong> uma<br />

educação, uma saúde, um lazer dignos, que sejam capazes de manter a<br />

humani<strong>da</strong>de dos humanos. Sendo assim, é necessário redimensionar o alcance do<br />

lúdico para além <strong>da</strong> produção, diversão e do entretenimento. Ele faz parte do<br />

desenvolvimento humano, portanto, não pode ser diluído como uma panacéia<br />

utilitarista. O lúdico t<strong>em</strong> sua especifici<strong>da</strong>de e requer o seu espaço na vi<strong>da</strong> dos<br />

sujeitos. Nesse sentido, é importante compreendê-lo como algo que t<strong>em</strong> sua própria<br />

177


azão de ser e contém, <strong>em</strong> si mesmo, o seu objetivo. Ele é, simultan<strong>ea</strong>mente,<br />

produzido, distribuído e consumido. Pode-se afirmar que com e através do lúdico é<br />

possível exercitar a humani<strong>da</strong>de, seja no trabalho, no ócio, no <strong>jogo</strong>, ou no lazer. O<br />

lúdico é vi<strong>da</strong> cheia de vi<strong>da</strong>.<br />

Até b<strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po, essas discussões sobre o lúdico não seduziam o<br />

espaço dos adultos <strong>da</strong><strong>da</strong> a característica “não séria” dos fenômenos relacionados<br />

com o brincar. No entanto, com a ânsia e a ganância do sist<strong>em</strong>a capitalista, que<br />

tudo mercadoriza, a exploração do brincar se transformou numa <strong>da</strong>s maiores fontes<br />

de ren<strong>da</strong>. Assim, a brincadeira r<strong>ea</strong>parece mol<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>em</strong> novos cânones e disponível<br />

nos grandes parques t<strong>em</strong>áticos.<br />

Mas brincar, a partir de um referencial essencialmente lúdico (não<br />

utilitarista), significa interagir com o meio e com os outros, como um holograma,<br />

cujas quali<strong>da</strong>des de relevo inclu<strong>em</strong> e expressam quase to<strong>da</strong> a informação do<br />

conjunto que ele representa. Brincar, nesta perspectiva, constitui um ato de resistir à<br />

lógica burocrático-racional do adulto, não sucumbindo à lógica do rendimento, <strong>da</strong><br />

competição, típica do trabalho mecânico e alienante, bastante presente no campo<br />

esportivo hodierno, por ex<strong>em</strong>plo.<br />

Convém destacar que o lúdico não é uma ativi<strong>da</strong>de programável, artificial,<br />

utilitarista, mas uma dimensão <strong>da</strong> condição humana que a Pe<strong>da</strong>gogia t<strong>em</strong> relegado<br />

a segundo plano. Lúdico é sinônimo de alegria, divertimento, t<strong>em</strong> uma relação<br />

estreita com a arte e o humor. Através do lúdico encontramos espaços para a<br />

liber<strong>da</strong>de, para a criativi<strong>da</strong>de e para o prazer. No lúdico prevalec<strong>em</strong> o riso, o cômico,<br />

a ironia, enfim, a diversão, a brincadeira. E isso não é típico apenas <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de infantil.<br />

A criança brinca porque é criança, mas o adulto brinca não porque ain<strong>da</strong> é criança,<br />

178


mas porque é um adulto que não perdeu a capaci<strong>da</strong>de de brincar, que se faz<br />

criança nas metamorfoses <strong>da</strong> imaginação.<br />

Freqüent<strong>em</strong>ente, o lúdico é ingenuamente criticado pelo fato de promover<br />

uma suposta “fuga” do mundo <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des materiais, entretanto, ele jamais<br />

pode ser confundido com uma pândega extravagante e desinteressa<strong>da</strong>, ou com uma<br />

algazarra desenfr<strong>ea</strong><strong>da</strong> s<strong>em</strong> nenhuma vinculação com o processo de formação<br />

humana, à medi<strong>da</strong> que ele não é e n<strong>em</strong> deve ser tratado como uma panacéia<br />

instrumentalista ou funcionalista programável para atender a lógica <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de<br />

capitalista. É importante r<strong>ea</strong>firmar que o lúdico é uma dimensão <strong>da</strong> condição<br />

humana, é um componente <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana, decifrável apenas por qu<strong>em</strong> o vive<br />

plenamente.<br />

O <strong>jogo</strong> de <strong>capoeira</strong> pode contribuir para uma significativa materialização<br />

do lúdico, <strong>da</strong><strong>da</strong> as suas características históricas, filosóficas e ritualísticas. Aliás, ao<br />

fazer uma análise do movimento histórico desta manifestação cultural, percebe-se,<br />

niti<strong>da</strong>mente, que ela se constituiu, <strong>em</strong> sua trajetória, numa aventura epicurista por<br />

excelência, ou seja, vincula<strong>da</strong> à busca do prazer. Talvez, por isso, as elites<br />

dominantes tenham, freqüent<strong>em</strong>ente, associado, de forma negativa, o <strong>capoeira</strong> à<br />

figura do “malandro” 73 . Mas cumpre ressaltar que esta “malandrag<strong>em</strong>” representa<br />

muito mais um atributo <strong>da</strong> imaginação do que uma irresponsabili<strong>da</strong>de diante <strong>da</strong>s<br />

necessi<strong>da</strong>des de trabalho. É nesse sentido que o lúdico verificado, nas experiências<br />

dos <strong>capoeira</strong>s, pode ser adjetivado de rebelde. Ou seja, ele t<strong>em</strong> se mostrado avesso<br />

aos códigos e padrões dominantes de comportamento tão caros às elites.<br />

73 Salvadori (1990) destaca que a figura do malandro é um estereótipo construído por critérios de<br />

avaliação exclusivamente externos que não levavam <strong>em</strong> consideração uma série de tradições e<br />

experiências populares. Essa autora procura evidenciar que há algo mais que a violência no seio <strong>da</strong><br />

“malandrag<strong>em</strong>”. Para ela, os <strong>capoeira</strong>s e os malandros cariocas divulgavam, através de suas<br />

músicas, suas críticas ao horror do trabalho disciplinado e acenavam para formas mais autônomas e<br />

menos disciplina<strong>da</strong>s de sobrevivência, <strong>em</strong> que se louvava a bo<strong>em</strong>ia, a festa e o ócio.<br />

179


É interessante observar ain<strong>da</strong> que, <strong>em</strong> boa parte dos “espaços”<br />

<strong>capoeira</strong>nos, a miséria e a violência conviv<strong>em</strong> com o exercício do lúdico. Esse fato<br />

denota que o lúdico não se constitui numa exclusivi<strong>da</strong>de de determina<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s<br />

ou grupos específicos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

Pela força dos seus componentes e rituais, a <strong>capoeira</strong> constitui-se numa<br />

ativi<strong>da</strong>de potencializadora do <strong>jogo</strong> lúdico. Apesar de ser, também, uma espécie de<br />

luta, seu praticante é, geralmente, definido como um jogador e não como um<br />

lutador, conforme já foi colocado. Ad<strong>em</strong>ais, não se guar<strong>da</strong> uma ro<strong>da</strong> para usufruí-la<br />

posteriormente. Ela é essencialmente movimento. Sendo assim, a ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>,<br />

para ser considera<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de de alguém, passa por modificações profun<strong>da</strong>s<br />

que retiram ou deturpam os componentes mais íntimos <strong>da</strong> condição humana.<br />

Mesmo que muitas ro<strong>da</strong>s tenham se tornado “proprie<strong>da</strong>de” de alguns mestres ou<br />

instituições, como a ro<strong>da</strong> do Mestre Vald<strong>em</strong>ar, a ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> Praça <strong>da</strong> República, a ro<strong>da</strong><br />

do Mercado Modelo, além de se constituír<strong>em</strong> <strong>em</strong> espaços de afirmação e<br />

legitimação de poder, elas serv<strong>em</strong> para atender as necessi<strong>da</strong>des brincantes<br />

<strong>da</strong>queles que estão dispostos a jogar naquele t<strong>em</strong>po/espaço.<br />

Como a ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong> é um fato social objetivo, singular, nunca mais<br />

volta a se repetir <strong>da</strong> mesma forma, pois sofre a ação <strong>da</strong>s subjetivi<strong>da</strong>des humanas,<br />

<strong>da</strong>s <strong>em</strong>oções e dos sentimentos momentâneos e circunstanciais que não mais se<br />

repetirão. O conjunto de el<strong>em</strong>entos objetivos (ato motor, estilo, técnica, tática etc.) e<br />

subjetivos (sensações, <strong>em</strong>oção, representação intelectual, imaginação etc.),<br />

naquela configuração alcança<strong>da</strong>, se esgota ali. É como se a produção e o consumo<br />

de uma ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong> acontecess<strong>em</strong> simultan<strong>ea</strong>mente. Por isso, ca<strong>da</strong> ro<strong>da</strong> t<strong>em</strong><br />

seu axé, sua história. Percebe-se, assim, que a plenitude de uma ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong><br />

180


se consoli<strong>da</strong> no presencial, no atual, <strong>da</strong> mesma forma que a materialização do<br />

lúdico, pois, conforme foi visto, ela t<strong>em</strong> sua base r<strong>ea</strong>l no “aqui e no agora” .<br />

Entretanto, <strong>da</strong> mesma forma como v<strong>em</strong> acontecendo com os <strong>jogo</strong>s, <strong>em</strong><br />

geral, pode-se afirmar que, com a busca <strong>da</strong> eficiência, do rendimento, o lúdico, que<br />

na <strong>capoeira</strong> pod<strong>em</strong>os chamar de "vadiação", v<strong>em</strong> perdendo prestígio. O aspecto<br />

marcial se sobrepõe aos d<strong>em</strong>ais, e a <strong>capoeira</strong> adquire/conquista conotação<br />

produtiva bastante enalteci<strong>da</strong> por muitos <strong>capoeira</strong>s e grupos.<br />

Urge repensar to<strong>da</strong>s estas questões. Assis (2001), ao propor uma<br />

“reinvenção do esporte”, destaca que um projeto <strong>em</strong>ancipatório de esporte somente<br />

se tornará possível a partir de sua ampla oferta, b<strong>em</strong> como a partir <strong>da</strong> transformação<br />

de sua dinâmica “essencialmente competitiva e aparent<strong>em</strong>ente lúdica, para outra,<br />

qualitativamente distinta, essencialmente lúdica e aparent<strong>em</strong>ente competitiva”<br />

(ASSIS, op. cit., p. 199).<br />

Seguindo esse raciocínio, poderíamos dizer que, de uma prática<br />

essencialmente lúdica e aparent<strong>em</strong>ente competitiva, a <strong>capoeira</strong> está adquirindo a<br />

conotação de uma ativi<strong>da</strong>de essencialmente competitiva e aparent<strong>em</strong>ente lúdica. O<br />

cântico do Mestre Tony Vargas, do Rio de Janeiro, denuncia as conseqüências <strong>da</strong><br />

exacerbação destas dimensões.<br />

(...) Não se vê mais negativa<br />

Onde é que an<strong>da</strong> a rasteira<br />

Nunca mais vi meia-lua<br />

Inventaram a tal ponteira<br />

Não se vê um cabra leve<br />

Brincando na bananeira<br />

Isso me deixa confuso<br />

Será que isso aí é <strong>capoeira</strong>(...)<br />

(...) Todo mundo de cara amarra<strong>da</strong><br />

Oh meu Deus, todo mundo querendo brigar<br />

Só na boca de espera<br />

Mas s<strong>em</strong> saber como esperar<br />

A <strong>capoeira</strong> era do povo<br />

Foi parar <strong>em</strong> outro lugar (...)<br />

181


Neste capítulo explicitamos os referenciais teórico-filosóficos que<br />

orientaram as nossas investigações, centrando a atenção para o conceito de <strong>práxis</strong>,<br />

na concepção do materialismo histórico-dialético, e sua vitali<strong>da</strong>de para orientar as<br />

nossas reflexões acerca do trabalho pe<strong>da</strong>gógico na perspectiva <strong>da</strong> transformação<br />

social. Ao procurarmos articular, a partir dos estudos críticos sobre o currículo, o<br />

conceito de <strong>práxis</strong> com o de cultura, identificamos seus estreitos liames como<br />

fatores de promoção humana. Por fim, apresentamos as referências que<br />

consideramos significativas do contexto <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> hodierna, <strong>em</strong>ergi<strong>da</strong>s do seu<br />

próprio desenvolvimento histórico, com o intuito de contribuir para um melhor<br />

entendimento de suas principais características, como prática social determina<strong>da</strong>.<br />

182


CAPÍTULO 4<br />

“IÊ... DÁ VOLTA AO MUNDO... CAMARÁ”<br />

183<br />

Caminante, no hay camino, se hace camino al an<strong>da</strong>r.<br />

Al an<strong>da</strong>r se hace camino<br />

y al volver la vista atrás<br />

se ve lá sen<strong>da</strong> que nunca se de volver a pisar.<br />

(Antônio Machado, Provérbios y cantares)<br />

Neste capítulo explicitar<strong>em</strong>os o percurso investigativo que se iniciou por<br />

meio de um projeto-piloto r<strong>ea</strong>lizado na UFBA e serviu como ponto de parti<strong>da</strong> para<br />

uma série de reflexões <strong>em</strong> relação ao trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>.<br />

Traz<strong>em</strong>os à baila, também, a análise que r<strong>ea</strong>lizamos sobre disciplina de <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong><br />

UFBA e sobre o s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação que desenvolv<strong>em</strong>os na UFSC. Por fim,<br />

apresentar<strong>em</strong>os a análise do processo de internacionalização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, a partir<br />

<strong>da</strong>s diversas experiências que tiv<strong>em</strong>os oportuni<strong>da</strong>de de acompanhar <strong>em</strong> seis países<br />

<strong>da</strong> Europa (Espanha, Inglaterra, Itália, Noruega, Polônia e Portugal). Convém<br />

destacar que to<strong>da</strong>s essas experiências foram analisa<strong>da</strong>s a partir de um eixo<br />

articulador comum, o conceito de trabalho, materializado como prática pe<strong>da</strong>gógica.<br />

4.1. O Percurso Investigativo e a Busca de Subsídios Metodológicos: O<br />

Projeto-Piloto na Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia<br />

Com a finali<strong>da</strong>de de buscar subsídios para a sist<strong>em</strong>atização <strong>da</strong>s<br />

possibili<strong>da</strong>des metodológicas que orientariam esta pesquisa, foi r<strong>ea</strong>lizado, entre<br />

set<strong>em</strong>bro de 2000 e julho de 2001, na Facul<strong>da</strong>de de Educação <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal <strong>da</strong> Bahia (UFBA), um projeto-piloto, <strong>em</strong> forma de s<strong>em</strong>inário, de caráter<br />

experimental, intitulado: “Construindo uma metodologia para o ensino <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>”,


aprovado pelo Colegiado do Departamento de Educação Física, que funcionou<br />

como Projeto de Extensão e integrou as ações desenvolvi<strong>da</strong>s pela LEPEL, <strong>da</strong><br />

Facul<strong>da</strong>de de Educação, <strong>da</strong> UFBA.<br />

Este projeto-piloto constituiu o primeiro lance do <strong>jogo</strong> investigativo que<br />

caracterizou esta pesquisa. Muitas reflexões que subsidiaram as formulações desta<br />

tese tiveram início durante a sua r<strong>ea</strong>lização, estimula<strong>da</strong>s pelas inquietações e<br />

probl<strong>em</strong>atizações dos seus participantes.<br />

Após julho de 2001, o projeto continuou a ser desenvolvido, <strong>em</strong><br />

decorrência <strong>da</strong>s reivindicações feitas pelos participantes para que ele não fosse<br />

interrompido. Na continui<strong>da</strong>de do projeto (2002–2004), o trabalho passa a localizar-<br />

se no programa institucional <strong>da</strong> Pró-Reitoria de Extensão <strong>da</strong> UFBA, intitulado: Ação<br />

Curricular <strong>em</strong> Comuni<strong>da</strong>de (ACC) 74 . Atualmente, a ACC 464 - “O ensino e a<br />

pesquisa na ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>” v<strong>em</strong> identificando possibili<strong>da</strong>des pe<strong>da</strong>gógicas de<br />

organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico, como é o caso do complexo t<strong>em</strong>ático <strong>capoeira</strong><br />

nos currículos, experiência <strong>em</strong> curso na UFBA.<br />

Como uma <strong>da</strong>s etapas principais dessa ação investigativa seria a<br />

r<strong>ea</strong>lização de uma pesquisa-ação na disciplina <strong>capoeira</strong>, ofereci<strong>da</strong> no currículo do<br />

curso de Educação Física <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Santa Catarina, e<br />

considerando se tratar de uma possibili<strong>da</strong>de metodológica com base <strong>em</strong>pírica que<br />

requer domínio e preparo para a produção/d<strong>em</strong>ocratização de novos conhecimentos<br />

74 O Projeto ACC funciona como projeto de extensão na forma de componente curricular de natureza<br />

compl<strong>em</strong>entar, inseri<strong>da</strong> nos currículos dos cursos de graduação <strong>da</strong> UFBA, com 60 (sessenta) horas e<br />

4 (quatro) créditos. Os estu<strong>da</strong>ntes, sob a orientação de um professor e o auxílio de um monitor que<br />

recebe uma bolsa mensal no valor de R$ 240,00 (o equivalente a um salário mínimo, <strong>em</strong> 2003, ou<br />

oitenta dólares), desenvolv<strong>em</strong> ações que buscam a integração universi<strong>da</strong>de – comuni<strong>da</strong>de. São<br />

várias as ár<strong>ea</strong>s e os conteúdos de abrangência desse programa, que cont<strong>em</strong>pla, dentre outros, a<br />

melhoria <strong>da</strong> saúde, <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> população e o combate à violência. A ACC de Capoeira<br />

(464) inicialmente foi coordena<strong>da</strong> pela Professora Celi Nelza Zülke Taffarel, e teve a monitoria do<br />

então acadêmico de Educação Física Benedito Carlos Libório Araújo, integrantes <strong>da</strong> LEPEL.<br />

Atualmente, o agora professor Benedito atua como tutor. Já atuaram como monitores, além do<br />

professor Benedito, David Romão Teixeira e Márcio Barbosa.<br />

184


ou para avançar <strong>em</strong> questões já abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s, consideramos que foi oportuna e<br />

imprescindível a r<strong>ea</strong>lização deste S<strong>em</strong>inário-Piloto, como uma possibili<strong>da</strong>de<br />

significativa para o bom desenvolvimento <strong>da</strong> pesquisa e para a conseqüente<br />

<strong>construção</strong> do nosso entendimento de <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na.<br />

O objetivo do s<strong>em</strong>inário-piloto foi estimular os participantes ao contato<br />

com os fun<strong>da</strong>mentos teórico-filosóficos e epist<strong>em</strong>ológicos <strong>da</strong> pesquisa científica <strong>em</strong><br />

Ciências Humanas a partir <strong>da</strong> pesquisa-ação, tendo como referência o trato com o<br />

conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>. Objetivou também produzir e avançar no conhecimento<br />

relacionado a esta manifestação cultural, <strong>em</strong> especial no que diz respeito às<br />

metodologias adota<strong>da</strong>s para o seu ensino, procurando reconhecer as diferentes<br />

fases de desenvolvimento <strong>da</strong> pesquisa-ação, b<strong>em</strong> como, vivenciar, discutir e refletir<br />

a natureza e a especifici<strong>da</strong>de do objeto de pesquisa <strong>em</strong> questão (a <strong>capoeira</strong>).<br />

Participaram desse projeto-piloto estu<strong>da</strong>ntes interessados de vários<br />

cursos de graduação <strong>da</strong> UFBA e pessoas <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de (número que oscilou <strong>em</strong><br />

torno de trinta pessoas), s<strong>em</strong> restrição de fase acadêmica, n<strong>em</strong> tampouco a<br />

exigência de pré-requisitos.<br />

No início dos trabalhos foi distribuído aos participantes um texto que<br />

explicitava os objetivos, a justificativa e a metodologia do s<strong>em</strong>inário. Foi distribuído,<br />

também, um protocolo para son<strong>da</strong>r os objetivos e a expectativa dos participantes <strong>em</strong><br />

relação ao s<strong>em</strong>inário (anexo 1) e, também, uma ficha ca<strong>da</strong>stral que objetivava<br />

conhecer as experiências que eles já tinham <strong>em</strong> relação à <strong>capoeira</strong>.<br />

Duas vezes por s<strong>em</strong>ana, foram desenvolvi<strong>da</strong>s experiências que<br />

cont<strong>em</strong>plaram diversas formas de linguagens (gestual, verbal, pictórica, escrita). As<br />

dinâmicas, centra<strong>da</strong>s no lúdico e na expressivi<strong>da</strong>de, possibilitaram e favoreceram<br />

experiências sensoriais, <strong>em</strong>ocionais e valorativas, que permitiram uma boa<br />

185


integração entre os participantes. Esse aspecto foi visto como extr<strong>em</strong>amente<br />

relevante no processo de entendimento e explicação do próprio fenômeno<br />

vivenciado/investigado.<br />

Em relação às expectativas dos participantes, constatamos que estas<br />

eram as mais diversas possíveis. Uns queriam fazer “ativi<strong>da</strong>des físicas varia<strong>da</strong>s,<br />

mas firmes”, que consumiss<strong>em</strong> energia e permitiss<strong>em</strong>, com isso, “<strong>em</strong>agrecer”.<br />

Outros queriam “conhecer pessoas e fazer amizades”. Um queria aprender <strong>capoeira</strong><br />

de forma mais “livre”, outro argumentava que detinha “algumas poucas conexões<br />

entre corpo e mente” e “precisava de mais”. O fato é que a maioria já tinha algum<br />

contato com a <strong>capoeira</strong>, mas, diante <strong>da</strong> proposta do s<strong>em</strong>inário, muitos ficaram<br />

curiosos e apreensivos <strong>em</strong> relação à “tal metodologia” que pretendíamos construir<br />

juntos.<br />

No final, foi distribuído um questionário de avaliação do s<strong>em</strong>inário com a<br />

finali<strong>da</strong>de de avaliar se os objetivos anteriormente propostos foram atendidos. Este<br />

serviu, também, para son<strong>da</strong>r alguns aspectos sobre o trato com o conhecimento <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> no currículo de formação profissional (anexo 2).<br />

Embora, no início, a maioria estivesse interessa<strong>da</strong> <strong>em</strong> “malhar” <strong>capoeira</strong>,<br />

um participante respondeu que os conteúdos que mais lhe agra<strong>da</strong>vam eram “os<br />

debates e a des<strong>construção</strong> dos padrões estabelecidos e a re<strong>construção</strong> dos<br />

mesmos”.<br />

Em depoimento registrado <strong>em</strong> diário, um dos participantes expressou sua<br />

opinião sobre o trabalho <strong>da</strong> seguinte forma:<br />

Nessa vivência-pesquisa-participativa estamos todos como num<br />

agradável quilombo onde nos habilitamos, a ca<strong>da</strong> dia, mais e mais, a<br />

lutar pela liber<strong>da</strong>de de viver a vi<strong>da</strong> prazerosamente, enfrentando com<br />

criativi<strong>da</strong>de e muito gingado tanto os probl<strong>em</strong>as complicados quanto<br />

os momentos de lazer e de harmonia; a fazer <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> um <strong>jogo</strong><br />

intermitente onde se alternam momentos de elegante plastici<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

186


<strong>capoeira</strong> e o ritmo agressivamente excitante e alegre dos bastões que<br />

se tocam na ro<strong>da</strong> do maculelê.<br />

As dinâmicas possibilitaram ricas discussões sobre o acervo motriz<br />

africano, muitas vezes negado pelas instituições educacionais, mas que representa<br />

possibili<strong>da</strong>des de efetiva integração e descontração, além de permitir um “passeio”<br />

pelas <strong>em</strong>polgantes formas de expressão her<strong>da</strong><strong>da</strong>s desses povos.<br />

Dentre as ativi<strong>da</strong>des significativas, foi r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> uma oficina de confecção de<br />

berimbaus, <strong>em</strong> que ca<strong>da</strong> integrante confeccionou o seu, desde o descascar <strong>da</strong><br />

madeira, passando pela retira<strong>da</strong> do fio de aço de pneu de carro, até a sua<br />

montag<strong>em</strong>. No final do s<strong>em</strong>estre (2000.2), foi r<strong>ea</strong>lizado um “festival pe<strong>da</strong>gógico”,<br />

ocasião <strong>em</strong> que houve confraternização com <strong>capoeira</strong>s <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de,<br />

apresentações artísticas, debates, ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>, avaliação dos trabalhos<br />

desenvolvidos, revelação de “amigo oculto”, coquitel de frutas e muita descontração.<br />

O festival serviu para estreitar, ain<strong>da</strong> mais, os laços entre os diversos participantes<br />

do projeto-piloto e serviu de motivação para que o mesmo tivesse continui<strong>da</strong>de no<br />

s<strong>em</strong>estre seguinte. No encerramento <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des integrantes do grupo<br />

compuseram uma orquestra de berimbaus que foi apresenta<strong>da</strong> para a comuni<strong>da</strong>de<br />

universitária e professores visitantes de outros estados e de outros países.<br />

Um aspecto a destacar nesta ação investigativa, centrou-se no processo<br />

de integração universi<strong>da</strong>de – comuni<strong>da</strong>de. Além <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des internas, foram<br />

r<strong>ea</strong>lizados intercâmbios com grupos de <strong>capoeira</strong> de Salvador. Mestres e professores<br />

de <strong>capoeira</strong> foram convi<strong>da</strong>dos para socializar suas experiências junto ao grupo.<br />

Foram r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>s visitas dos integrantes do projeto a algumas acad<strong>em</strong>ias, e muitos<br />

professores de <strong>capoeira</strong>, juntamente com seus discípulos, participaram <strong>da</strong>s<br />

ativi<strong>da</strong>des propostas. Nesses intercâmbios, foi possível r<strong>ea</strong>firmar a importância<br />

desta integração. Muitos m<strong>em</strong>bros <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, pelas suas precárias condições<br />

187


sócio-econômicas e escassez de informações, viam e tratavam a universi<strong>da</strong>de como<br />

algo muito distante e de difícil acesso. Na condição de centro de formação, a<br />

universi<strong>da</strong>de jamais deveria se furtar de uma integração com a comuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> qual<br />

faz parte e, no caso dos países do capitalismo periférico, como o Brasil, ela deve se<br />

orientar, principalmente, na direção do estudo <strong>da</strong>s r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>des sociais e não apenas<br />

deve servir para atender ao deleite de alguns privilegiados.<br />

Durante a r<strong>ea</strong>lização do s<strong>em</strong>inário-piloto, foi-nos possível estabelecer uma<br />

aproximação com a estrutura do curso de graduação <strong>em</strong> Educação Física <strong>da</strong><br />

Facul<strong>da</strong>de de Educação <strong>da</strong> UFBA. A busca de articulações com o ensino e com a<br />

pesquisa através do projeto de extensão não foi b<strong>em</strong> sucedi<strong>da</strong>, evidenciando por um<br />

lado, no campo micro, a escassez dos equipamentos e recursos didático-<br />

pe<strong>da</strong>gógicos, pois as condições materiais eram precárias, com sala esburaca<strong>da</strong>,<br />

mal ventila<strong>da</strong> e mal ilumina<strong>da</strong>; instrumentos didáticos utilizados na <strong>capoeira</strong><br />

(berimbaus, pandeiro, atabaque, agogô etc.) inexistentes ou <strong>em</strong> péssimas<br />

condições; e, por outro, no campo macro, a constatação de total desarticulação <strong>da</strong>s<br />

ações específicas com a estrutura organizacional <strong>da</strong> instituição.<br />

Ao final desta etapa preliminar de investigação, que teve como objetivo<br />

principal verificar a viabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> metodologia pesquisa-ação para a <strong>construção</strong> de<br />

possibili<strong>da</strong>des para tratar com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo de formação<br />

profissional, foi-nos permitido reconhecer que: a) essa metodologia se mostrou<br />

viável para atender esse fim, pois permitiu uma probl<strong>em</strong>atização <strong>da</strong>s formas como<br />

essa manifestação v<strong>em</strong> sendo trata<strong>da</strong> nos currículos universitários, freqüent<strong>em</strong>ente<br />

pauta<strong>da</strong>s por pe<strong>da</strong>gogias de assimilação, com repasses de “saberes”<br />

inquestionáveis que dev<strong>em</strong> ser “copiados” pelos estu<strong>da</strong>ntes; b) exist<strong>em</strong> indicadores<br />

de novos espaços, conteúdos, t<strong>em</strong>pos pe<strong>da</strong>gógicos e sujeitos do ato educativo,<br />

188


destacando-se: processos identitários, intensi<strong>da</strong>de, ressonância, auto-organização<br />

dos participantes, abertura à experiência cultural, perspectiva interdisciplinar e<br />

interface entre o pe<strong>da</strong>gógico, o cultural e o científico.<br />

4.2. A Inserção <strong>da</strong> Capoeira no Currículo Universitário Brasileiro: A Capoeira<br />

Vestindo Beca<br />

Consideramos oportuno analisar inicialmente como se deram os primeiros<br />

contatos desta manifestação cultural com o contexto acadêmico.<br />

Em 1934, na vigência do Estado Novo no Brasil, Mestre Bimba foi<br />

convi<strong>da</strong>do para ensinar <strong>capoeira</strong> na pensão onde residiam alguns estu<strong>da</strong>ntes dos<br />

cursos de Medicina e Engenharia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia 75 . Esse contato<br />

de Mestre Bimba com os estu<strong>da</strong>ntes universitários favoreceu a incorporação de<br />

alguns procedimentos tipicamente acadêmicos ao universo <strong>capoeira</strong>no baiano. O<br />

“curso de Capoeira Regional”, ministrado pelo Mestre, incluía aspectos e<br />

procedimentos típicos do figurino universitário, como as cerimônias de “formatura”<br />

com a presença de patrono, paraninfo, oradores e diplomas. Vieira (1990) destaca<br />

que esse contato serviu para que a <strong>capoeira</strong> baiana estreitasse seus vínculos com<br />

setores sociais dominantes, contribuindo para uma certa “ascensão social” <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>.<br />

Segundo Mestre Itapoan, ex-discípulo de Mestre Bimba, o Dr. Rui<br />

Gouveia lhe afirmou que Bimba gostava de ficar conversando com os acadêmicos e<br />

“queria aprender o significado <strong>da</strong>s palavras que eles diziam” para utilizá-las nos<br />

treinamentos (apud VIEIRA, 1990, p. 123). Os estu<strong>da</strong>ntes explicavam a ele o<br />

probl<strong>em</strong>a <strong>da</strong> marginali<strong>da</strong>de. “Então ele resolveu, quando abriu a acad<strong>em</strong>ia, que lá<br />

não ia ter vagabundo. Só podia ter trabalhador e estu<strong>da</strong>nte” (ibid., p. 123).<br />

75 Ver Vieira (1990), Almei<strong>da</strong> (1982 e 1994).<br />

189


Esta questão é r<strong>ea</strong>lmente complexa e polêmica. Se, nas interpretações de<br />

Rego (1968), Mestre Bimba contribuiu para uma certa "prostituição" <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>,<br />

pois os que quisess<strong>em</strong> se adequar à nova visão teriam de se enquadrar <strong>em</strong> um<br />

novo estilo de comportamento, ao mesmo t<strong>em</strong>po ele pode ser considerado um<br />

divisor de águas na história desta manifestação cultural. Para muitos mestres<br />

angoleiros, Bimba foi um grande deturpador <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>; no entanto, para seus<br />

seguidores, "um dos herdeiros diretos de Zumbi" (SODRÉ, 1991, p. 18).<br />

Para Vieira (1990), ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que Mestre Bimba elaborou uma<br />

reinterpretação <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, incorporando os el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong>s ideologias dominantes,<br />

favoreceu a abertura de canais até então fechados, permitindo a penetração de uma<br />

prática essencialmente popular nas instituições. Sodré (1991) chega a afirmar que<br />

ele era <strong>da</strong>queles que enxergavam as sete portas invisíveis <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador.<br />

"Uma espécie de Lutero <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>" (ibid., p. 18).<br />

Estes agenciamentos contribuíram para que opositores às estratégias de<br />

Mestre Bimba proclamass<strong>em</strong> que ele teria "branqu<strong>ea</strong>do" a <strong>capoeira</strong>, somente<br />

aceitando como seus discípulos pessoas <strong>da</strong>s classes médias. Mestre Bimba é<br />

criticado por ter transferido a <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> rua para a acad<strong>em</strong>ia, por ter se aliado ao<br />

poder na busca de vantagens materiais e, também, por ser responsável pela sua<br />

militarização ao ensiná-la a militares. 76<br />

Seus defensores, ao contrário, sustentam que Bimba, com a Regional,<br />

salvou a <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> extinção, tirando-a de “baixo <strong>da</strong> pata do boi” e adequando-a às<br />

exigências do mundo moderno. A criação de um método de ensino para o ensino <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, por Mestre Bimba, é vista como ponto positivo pelos seus discípulos,<br />

<strong>em</strong>bora haja teses polêmicas que contest<strong>em</strong> a originali<strong>da</strong>de desta criação. Para<br />

76 Um estudo sobre o surgimento <strong>da</strong> Capoeira Regional “vis-à-vis” o momento histórico do Brasil <strong>da</strong><br />

déca<strong>da</strong> de 1930 pode ser encontrado <strong>em</strong> Vieira (1995).<br />

190


alguns opositores mais radicais, se Mestre Bimba tirou a <strong>capoeira</strong> de baixo <strong>da</strong> pata<br />

do boi foi para colocá-la <strong>em</strong>baixo de seus excr<strong>em</strong>entos.<br />

Pod<strong>em</strong>os ver, a partir desta probl<strong>em</strong>atização, que o processo de inserção<br />

<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> espaços institucionais formais <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de foi e t<strong>em</strong> sido tenso.<br />

Perceb<strong>em</strong>os que os primeiros contatos <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> com o meio acadêmico se<br />

deram a partir de iniciativas de integrantes <strong>da</strong>s classes mais favoreci<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />

população e não por desejo e necessi<strong>da</strong>de de seus praticantes majoritários, n<strong>em</strong>,<br />

tampouco, por intermédio de políticas públicas de afirmação cultural.<br />

No entanto, na atuali<strong>da</strong>de, tal como v<strong>em</strong> acontecendo no âmbito do<br />

Ensino Fun<strong>da</strong>mental 77 , a introdução <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong>des<br />

brasileiras v<strong>em</strong> se <strong>da</strong>ndo, preponderant<strong>em</strong>ente, a partir de iniciativas de professores<br />

e mestres de <strong>capoeira</strong> que se inser<strong>em</strong> nesses espaços por outros motivos e<br />

terminam vislumbrando a possibili<strong>da</strong>de de trabalhar com essa manifestação cultural.<br />

Segundo Campos (2001), as primeiras manifestações <strong>em</strong> prol <strong>da</strong> inserção<br />

<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo dos cursos universitários aconteceram na Bahia. Em 1971,<br />

através do Programa de Melhoria do Ensino Nacional (PREMEM), desenvolvido pela<br />

Facul<strong>da</strong>de de Educação <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia, a <strong>capoeira</strong> é t<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong><br />

de forma mais sist<strong>em</strong>ática. No ano seguinte, ela foi oferta<strong>da</strong>, pela primeira vez, na<br />

então Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Guanabara (UEG), atualmente Universi<strong>da</strong>de do<br />

Estado do Rio de Janeiro (UERJ), na condição de disciplina vincula<strong>da</strong> às chama<strong>da</strong>s<br />

“práticas desportivas”, por reivindicação de estu<strong>da</strong>ntes do curso de Direito <strong>da</strong><br />

referi<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de. As aulas eram ministra<strong>da</strong>s pelo Mestre Baiano Anzol, ex-<br />

discípulo de Mestre Bimba e, atualmente, professor de Capoeira <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).<br />

77 Em 1994 apresentamos dissertação de mestrado sobre o processo de “escolarização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>”,<br />

posteriormente transforma<strong>da</strong> <strong>em</strong> livro, no qual analisamos o programa de inserção <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no<br />

currículo <strong>da</strong>s escolas públicas do Distrito Federal. Para ver mais (FALCÃO, 1994 e 1996).<br />

191


Em 1982, A Universi<strong>da</strong>de Católica de Salvador introduziu a <strong>capoeira</strong> como<br />

disciplina obrigatória no currículo do Curso de Educação Física, com carga horária<br />

de 60 (sessenta) horas. O primeiro professor foi Josevaldo Lima de Jesus (Mestre<br />

Sacy), também formado por Mestre Bimba.<br />

Atualmente, dentre as instituições de ensino superior que oferec<strong>em</strong> a<br />

<strong>capoeira</strong> como disciplina obrigatória ou optativa, t<strong>em</strong>os 15 (quinze) que a ofertam<br />

como disciplina obrigatória, sendo 07 (sete) públicas e 08 (oito) priva<strong>da</strong>s. Na forma<br />

de disciplina optativa, t<strong>em</strong>os 10 (dez) instituições, sendo 08 (oito) públicas e 02<br />

(duas) priva<strong>da</strong>s. O quadro que apresentamos, a seguir, foi r<strong>ea</strong>lizado a partir de um<br />

levantamento, via internet, que fiz<strong>em</strong>os durante o segundo s<strong>em</strong>estre do ano de<br />

2003, <strong>em</strong> que professores e pesquisadores colaboraram com as informações. Ele<br />

expressa uma r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de que pode não ser definitiva, já que, às vezes, as disciplinas<br />

são oferta<strong>da</strong>s de acordo com a disponibili<strong>da</strong>de de professores.<br />

Quadro 1 - Instituições universitárias brasileiras que oferec<strong>em</strong> <strong>capoeira</strong> como<br />

disciplina obrigatória ou optativa<br />

Forma de Oferta Universi<strong>da</strong>des/Facul<strong>da</strong>des Total<br />

Disciplina UFBA, UFRJ, UEFS, UESC, UNEB, UESB,<br />

15<br />

Obrigatória UNICAMP, UCSAL, Estácio de Sá – MG, FATEC – Conselheiro<br />

Lafaiete – MG, UniBH, UNICASTELO, UNIMOVE, IPA,<br />

Facul<strong>da</strong>de Salesiana de Vitória<br />

Disciplina Optativa UFSC, UnB, UFRRJ, Unisinos (São Leopoldo), USP, UFS, UGF,<br />

UFMG, Metodista de São Bernardo, Facul<strong>da</strong>de Integra<strong>da</strong> de<br />

Amparo - FIA/SP<br />

10<br />

Total 25<br />

Em algumas instituições, a disciplina é ofereci<strong>da</strong> <strong>em</strong> dois s<strong>em</strong>estres,<br />

sendo o primeiro obrigatório e o segundo, optativo, como é o caso <strong>da</strong> UFBA. Em<br />

outros casos, a disciplina é ofereci<strong>da</strong> como “prática desportiva” ou como “Educação<br />

Física Curricular”, que atende aos estu<strong>da</strong>ntes dos diversos cursos de graduação<br />

universitária, como é o caso <strong>da</strong> UFSC.<br />

192


Com exceção <strong>da</strong> UNICAMP, que oferece a disciplina <strong>capoeira</strong> no curso de<br />

Graduação <strong>em</strong> Dança, <strong>em</strong> todos os outros casos, ela é ofereci<strong>da</strong> pelo curso de<br />

Educação Física. Essa vinculação institucionaliza<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> à ár<strong>ea</strong> de<br />

Educação Física t<strong>em</strong> suscitado debates polêmicos entre a comuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong><br />

e o Conselho Federal de Educação Física (CONFEF), que determinou, através de<br />

resolução interna, a exigência <strong>da</strong> formação <strong>em</strong> Educação Física, e a devi<strong>da</strong> filiação<br />

ao Conselho, de todos aqueles que pretend<strong>em</strong> ministrar aulas de <strong>capoeira</strong>. Análises<br />

desses conflitos estão sendo sist<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong>s <strong>em</strong> pesquisas ain<strong>da</strong> não publica<strong>da</strong>s.<br />

Dentre as universi<strong>da</strong>des públicas federais, com exceção <strong>da</strong> UFRJ, que<br />

r<strong>ea</strong>lizou concurso para professor efetivo de <strong>capoeira</strong> ain<strong>da</strong> na déca<strong>da</strong> de 1980,<br />

somente a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1990 é que começaram a<br />

aparecer os primeiros concursos para professor <strong>da</strong> disciplina <strong>capoeira</strong>, como foi o<br />

caso <strong>da</strong> UFBA, <strong>em</strong> 1996, e <strong>da</strong> UFSCar, <strong>em</strong> 2003. Ad<strong>em</strong>ais, mesmo que ela tenha<br />

se inserido <strong>em</strong> número razoável de universi<strong>da</strong>des, a grande maioria delas não<br />

cont<strong>em</strong>pla a <strong>capoeira</strong> nos seus currículos.<br />

Em 1998, surgiu o primeiro curso superior de <strong>capoeira</strong> que t<strong>em</strong>os<br />

conhecimento. Foi ofertado no esqu<strong>em</strong>a de curso seqüencial pela Universi<strong>da</strong>de<br />

Gama Filho (UGF). A duração do mesmo foi de dois anos e apenas duas turmas o<br />

concluíram.<br />

Em nível de especialização, algumas iniciativas já se concretizaram, como<br />

foi o caso <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Brasília (UnB), que r<strong>ea</strong>lizou o primeiro curso de<br />

especialização de <strong>capoeira</strong> na escola, no Brasil, conforme já mencionado<br />

anteriormente.<br />

193


A Universi<strong>da</strong>de Gama Filho também passou a oferecer, a partir do<br />

segundo s<strong>em</strong>estre de 2002, um curso de especialização, de 360 horas, intitulado:<br />

“Bases Metodológicas e Fisiológicas Aplica<strong>da</strong>s à Capoeira”. 78<br />

Na maioria <strong>da</strong>s vezes, a inserção <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no contexto universitário se<br />

dá através de projetos de extensão ou ativi<strong>da</strong>de extra-classe. Dentro desses<br />

moldes, t<strong>em</strong>os um número expressivo de instituições de ensino superior que a<br />

oferec<strong>em</strong>. Em levantamento que r<strong>ea</strong>lizamos <strong>em</strong> 2003, constatamos que 12 (doze)<br />

universi<strong>da</strong>des públicas e 29 (vinte e nove) particulares tratavam a <strong>capoeira</strong> como<br />

projeto de extensão. O quadro, a seguir, expressa essa r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de:<br />

Quadro 2 - Instituições universitárias brasileiras que oferec<strong>em</strong> <strong>capoeira</strong> como projeto<br />

de extensão<br />

Uni<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

Federação<br />

Universi<strong>da</strong>des<br />

Públicas<br />

São Paulo USP, UNESP<br />

(Rio Claro)<br />

UNICAMP<br />

Universi<strong>da</strong>des e Facul<strong>da</strong>des Priva<strong>da</strong>s<br />

Mackenzie, São Ju<strong>da</strong>s Tadeu, Unicastelo,<br />

Mogi <strong>da</strong>s Cruzes, Santo André, San R<strong>em</strong>o,<br />

Engenharia Mauá, Anh<strong>em</strong>bi, Pirassununga,<br />

Unisantana (São Paulo), FEFISA (Santo<br />

André), UNIABC, IMES (São Caetano do<br />

Sul), Metodista de São Bernardo<br />

Castelo Branco, Estácio de Sá, Gama Filho,<br />

Total<br />

Públicas Priva<strong>da</strong>s<br />

3 14<br />

Rio de Janeiro UFRJ,<br />

2 4<br />

UFRRJ, Bennett<br />

Rio Grande - IPA, Escola Superior de Educação Física de - 7<br />

do Sul<br />

Santa Cruz do Sul, ULBRA (Canoas),<br />

UNISALLE (Canoas), PUC-RS (Porto<br />

Pernambuco -<br />

Alegre), FEEVALE (Novo Hamburgo), (UCS)<br />

Universi<strong>da</strong>de de Caxias do Sul<br />

Unicap, UPE - 2<br />

Santa Catarina UFSC 1 -<br />

Distrito Federal UnB UniCEUB, Católica 1 2<br />

Minas Gerais UFJF, UEMG 2 -<br />

Espírito Santo UFES 1 -<br />

Bahia UFBA, UEFS 2 -<br />

TOTAL 12 29<br />

Na maioria <strong>da</strong>s vezes, a inserção <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no contexto universitário se<br />

dá através de projetos de extensão freqüent<strong>em</strong>ente vinculados a grupos já<br />

78 As disciplinas ministra<strong>da</strong>s no Curso de Especialização <strong>em</strong> Capoeira <strong>da</strong> UGF são: História <strong>da</strong><br />

Capoeira I e II, Capoeira Angola e Regional, Capoeira na Atuali<strong>da</strong>de, Didática, Psicologia Aplica<strong>da</strong>,<br />

Traumas e Lesões, Preparação Física Aplica<strong>da</strong>, Folclore, Didática Aplica<strong>da</strong> e Capoeira Infantil.<br />

194


consoli<strong>da</strong>dos na comuni<strong>da</strong>de <strong>capoeira</strong>na, como é o caso, dentre outros, do Grupo<br />

Beribazu na UnB, na UFES e na UFSC, do Grupo Palmares na UFSC, do Grupo<br />

Chapéu de Couro na UPE, que se utilizam <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de como um braço<br />

institucional e operacional para diss<strong>em</strong>inar sua “marca” e ampliar o seu campo de<br />

atuação. Com isso, terminam contribuindo para uma maior divulgação desta<br />

manifestação no contexto universitário, e acabam ampliando seu poder de inserção<br />

na socie<strong>da</strong>de <strong>em</strong> geral.<br />

Via de regra, essa vinculação dos grupos aos projetos de extensão<br />

universitária é conflituosa e controverti<strong>da</strong>, à medi<strong>da</strong> que se verifica uma<br />

desarticulação <strong>da</strong>s experiências desenvolvi<strong>da</strong>s por eles <strong>em</strong> relação ao projeto<br />

político-pe<strong>da</strong>gógicos <strong>da</strong>s instituições <strong>em</strong> que se inser<strong>em</strong>. Não se trata de negar a<br />

inserção dos grupos de <strong>capoeira</strong> nos espaços acadêmicos, mas questionar a<br />

inobservância dos princípios que reg<strong>em</strong> uma instituição universitária que, <strong>em</strong> geral,<br />

se pautam pela universalização e d<strong>em</strong>ocratização de idéias, valores e referências.<br />

A universi<strong>da</strong>de deve incorporar as d<strong>em</strong>an<strong>da</strong>s gesta<strong>da</strong>s na socie<strong>da</strong>de,<br />

atenta aos critérios de universalização e d<strong>em</strong>ocratização, de modo a evitar a<br />

<strong>construção</strong> de “igrejinhas” doutrinárias, de nichos, de guetos, que não se<br />

questionam e n<strong>em</strong> permit<strong>em</strong> ser questionados.<br />

Em geral, as aulas de <strong>capoeira</strong> nos projetos de extensão universitária são<br />

ministra<strong>da</strong>s por acadêmicos vinculados a um determinado grupo, que acaba<br />

deixando a sua marca e contribuindo para a idéia difundi<strong>da</strong> de que não existe uma<br />

<strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de, mas a <strong>capoeira</strong> de um determinado grupo funcionando<br />

dentro <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de. Esta questão é polêmica e t<strong>em</strong> gerado muitos conflitos.<br />

Seria possível construir uma proposta de <strong>capoeira</strong> desvincula<strong>da</strong> do esqu<strong>em</strong>a de<br />

grupos, ou seja, “desrotula<strong>da</strong>”, na universi<strong>da</strong>de? Em outras palavras, é possível<br />

195


construir uma <strong>capoeira</strong> na universi<strong>da</strong>de numa perspectiva para além de grupos?<br />

Como?<br />

Respostas para essas questões poderão ser retira<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s considerações<br />

desenvolvi<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong>s experiências analisa<strong>da</strong>s nesta pesquisa. Sendo assim,<br />

apresentar<strong>em</strong>os, a seguir, algumas experiências de trato com o conhecimento <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> duas instituições universitárias brasileiras, b<strong>em</strong> como <strong>em</strong> algumas<br />

instituições européias.<br />

4.2.1. O Caso <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia: Afirmação <strong>da</strong> Baiani<strong>da</strong>de<br />

196<br />

A Bahia t<strong>em</strong> uma coisa mágica.<br />

O diferencial é o ethos <strong>da</strong> cultura negra.<br />

Independente de ser negro ou não,<br />

se vive a coisa dos tambores, corpo, alimentação do negro.<br />

Há a ambiência, as belezas naturais (...)<br />

Felippe Serpa<br />

Não é possível compreender o processo de inserção <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> na<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia (UFBA) s<strong>em</strong> entender o movimento do seu<br />

desenvolvimento na urbe soteropolitana. E, para complicar ain<strong>da</strong> mais, adentrar o<br />

universo <strong>capoeira</strong>no de Salvador não é uma tarefa muito fácil. Muitas vezes, para<br />

conhecer e ter acesso aos protagonistas desta manifestação cultural, <strong>em</strong> Salvador,<br />

é necessário muita “mandinga”. Para conseguir determina<strong>da</strong>s informações, seja<br />

através de entrevistas, seja através de documentos, a aventura se torna ain<strong>da</strong> mais<br />

complica<strong>da</strong>. A maneira como expressivo número de <strong>capoeira</strong>s de Salvador li<strong>da</strong> com<br />

a informação desperta muita curiosi<strong>da</strong>de. Falar sobre <strong>capoeira</strong> é como jogar na<br />

ro<strong>da</strong>. As conversas são rech<strong>ea</strong><strong>da</strong>s de malícias, de evasivas e de muita <strong>em</strong>oção. O<br />

apelo às tradições, a maneira respeitosa e até passional de falar <strong>da</strong>/sobre a<br />

<strong>capoeira</strong> também desperta muita curiosi<strong>da</strong>de.


A permanência, por dois anos ininterruptos, dentro do labirinto <strong>capoeira</strong>no<br />

soteropolitano, participando de eventos, batismos, shows, ro<strong>da</strong>s, s<strong>em</strong>inários e,<br />

principalmente, “papoeirando” de ro<strong>da</strong> <strong>em</strong> ro<strong>da</strong> e nos bastidores de eventos,<br />

possibilitou-nos uma leitura muito especial do que representa a <strong>capoeira</strong> para essa<br />

terra e para essa gente, e suas relações conflituosas com o espaço acadêmico.<br />

A <strong>capoeira</strong> desenvolvi<strong>da</strong> na Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia está articula<strong>da</strong><br />

com os protagonistas <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, à medi<strong>da</strong> que todos os professores<br />

que nela atuaram ou atuam até agora, são dirigentes de grupos ou são a eles<br />

vinculados. Essa articulação n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre se apresenta de forma harmoniosa. Via-<br />

de-regra, surg<strong>em</strong> conflitos b<strong>em</strong> típicos do mundo <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>g<strong>em</strong> no espaço<br />

acadêmico.<br />

Como o objetivo principal desta etapa <strong>da</strong> pesquisa não é analisar os<br />

conflitos dessa relação, mas o processo de organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico e o<br />

trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo de Educação Física <strong>da</strong> UFBA,<br />

passar<strong>em</strong>os, a seguir, a r<strong>ea</strong>lizá-la a partir <strong>da</strong>s seguintes questões fun<strong>da</strong>mentais:<br />

- comportamento do corpo discente perante a disciplina;<br />

- comportamento do corpo docente perante a disciplina;<br />

- adequação do conteúdo - se foi coerente com a <strong>em</strong>enta, se<br />

houve coerência com o currículo;<br />

- carga horária - se foi adequa<strong>da</strong> com relação aos conteúdos e ao<br />

currículo;<br />

- integração de conteúdos - se foram integrados com os de outras<br />

disciplinas, se houve repetição de conteúdos;<br />

- procedimentos <strong>em</strong> relação à avaliação do conteúdo - se o<br />

programa foi entregue, se ele foi cumprido, se os alunos<br />

assimilaram o conteúdo e como se deram as formas de<br />

avaliação.<br />

197


Para a análise desse processo, utilizamos documentos, <strong>da</strong>dos de<br />

entrevistas, questionários e observações de aulas ministra<strong>da</strong>s na disciplina, que nos<br />

permitiram delin<strong>ea</strong>r e reconhecer sua r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de e suas possibili<strong>da</strong>des.<br />

Dos seis professores que já ministraram a disciplina <strong>capoeira</strong> na UFBA,<br />

foi-nos possível r<strong>ea</strong>lizar entrevistas com dois deles. Para efeito deste estudo, eles<br />

foram retratados a partir <strong>da</strong>s seguintes convenções: C1 e C2. As entrevistas<br />

r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>s foram orienta<strong>da</strong>s por um roteiro (anexo 3) que procurou evidenciar, <strong>em</strong><br />

especial, suas principais preocupações, os r<strong>ea</strong>is objetivos <strong>da</strong> disciplina e os<br />

aspectos relacionados à organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico, aos conteúdos, à<br />

metodologia e avaliação. Por questões que fugiram ao nosso controle, não foi<br />

possível entrevistar a atual professora <strong>da</strong> disciplina.<br />

Entrevistamos, também, alunos e ex-alunos do curso de Educação Física<br />

que concluíram as disciplinas de <strong>capoeira</strong> oferta<strong>da</strong>s no currículo, sendo que, para<br />

isso, servimo-nos de um roteiro (anexo 4). Seus depoimentos foram referenciados<br />

apenas como “comunicação de aluno (A1, A2, A3...) ou ex-aluno (E1, E2, E3...)”.<br />

Um questionário (anexo 5) também foi distribuído aos alunos <strong>da</strong>s disciplinas,<br />

<strong>em</strong>bora apenas 05 (cinco), de um total de 32 (trinta e dois), tenham respondido.<br />

Para compl<strong>em</strong>entar o conjunto de <strong>da</strong>dos para a análise, levamos <strong>em</strong><br />

consideração também os programas <strong>da</strong>s disciplinas: Capoeira I EDC 238, com carga<br />

horária de 60 (sessenta horas), e Capoeira II, com suas respectivas <strong>em</strong>entas.<br />

Passar<strong>em</strong>os a analisar esses <strong>da</strong>dos que traz<strong>em</strong>, <strong>em</strong> si, el<strong>em</strong>entos sobre o<br />

trato com esse conhecimento no currículo de formação profissional do Curso de<br />

Educação Física <strong>da</strong> UFBA.<br />

A <strong>em</strong>enta, os objetivos, conteúdos programáticos e a bibliografia do<br />

programa, apresentaram-nos os seguintes el<strong>em</strong>entos:<br />

198


a) a <strong>em</strong>enta cont<strong>em</strong>pla aspectos relacionados com abor<strong>da</strong>gens<br />

históricas e seus vínculos com a identi<strong>da</strong>de étnica e cultural afro-brasileira.<br />

Referencia os fun<strong>da</strong>mentos históricos, filosóficos e técnicos <strong>da</strong> Capoeira<br />

Angola e <strong>da</strong> Regional;<br />

b) os objetivos do programa inser<strong>em</strong> a análise <strong>da</strong> probl<strong>em</strong>ática <strong>da</strong><br />

discriminação social e étnica na cultura brasileira através do processo de<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no Brasil; buscam reconhecer a importância<br />

<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como conteúdo de identi<strong>da</strong>de afro-brasileira e referência para a<br />

<strong>construção</strong> de novas abor<strong>da</strong>gens epist<strong>em</strong>ológicas na Educação Física;<br />

c) os objetivos também evidenciam o estudo <strong>da</strong> biografia dos principais<br />

representantes <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e de t<strong>em</strong>as <strong>em</strong>ergentes sobre a probl<strong>em</strong>ática <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> na Bahia e as relações com a Educação Física;<br />

d) nas referências bibliográficas constam vinte e sete títulos, entre os<br />

quais, seis livros são considerados clássicos 79 sobre o t<strong>em</strong>a;<br />

e) não se enfatiza o paradigma <strong>da</strong> aptidão física, o que, de certa forma,<br />

desvia o eixo comum a maior parte dos programas, que tend<strong>em</strong> a destacar<br />

esta questão.<br />

As possibili<strong>da</strong>des e a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> disciplina <strong>capoeira</strong> no curso de<br />

Educação Física <strong>da</strong> UFBA são limita<strong>da</strong>s pela carência de material didático<br />

específico e outras carências mais gerais que acomet<strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as outras disciplinas.<br />

O material disponível era de quali<strong>da</strong>de duvidosa, muitos deteriorados. Nas aulas que<br />

observamos, os instrumentos eram, freqüent<strong>em</strong>ente, levados pela própria<br />

professora.<br />

Identificamos a predominância de uma perspectiva de trato com o<br />

conhecimento <strong>em</strong> que a reflexão pe<strong>da</strong>gógica gravitava <strong>em</strong> torno de questões<br />

relaciona<strong>da</strong>s com a situação <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> baiana e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> “difícil” de determinados<br />

79 Consideramos livros “clássicos” de <strong>capoeira</strong>, as obras mais divulga<strong>da</strong>s e discuti<strong>da</strong>s nos trabalhos<br />

que já tiv<strong>em</strong>os oportuni<strong>da</strong>de de ler e orientar. Algumas delas, com edições já esgota<strong>da</strong>s e outras já<br />

com várias edições publica<strong>da</strong>s. Dentre esses clássicos, consideramos as obras de Rego (1968),<br />

Soares (1996 e 2001), Pires (1996), Vieira (1995) e Reis (1997).<br />

199


mestres representativos desta manifestação. As ativi<strong>da</strong>des “práticas”, <strong>em</strong> geral,<br />

giravam <strong>em</strong> torno de d<strong>em</strong>onstração de técnicas e habili<strong>da</strong>des, com ênfase na lógica<br />

formal, que eram repeti<strong>da</strong>s pelos estu<strong>da</strong>ntes.<br />

Os estu<strong>da</strong>ntes d<strong>em</strong>onstravam desmotivações freqüentes, sendo que<br />

alguns chegavam depois do início <strong>da</strong> aula ou então pediam para sair mais cedo.<br />

As ativi<strong>da</strong>des e os conteúdos aparentavam estar desarticulados entre si,<br />

com níveis de abor<strong>da</strong>gens, às vezes, simplistas, próprios do senso-comum e não<br />

estruturados cientificamente, de forma espirala<strong>da</strong> e integra<strong>da</strong>. Observamos, ain<strong>da</strong>,<br />

uma insignificante utilização de trabalhos <strong>em</strong> grupos na sala de aula.<br />

A carga horária total <strong>da</strong> disciplina estava <strong>em</strong> consonância com a maioria<br />

<strong>da</strong>s outras, e se mostrou adequa<strong>da</strong>, <strong>em</strong>bora ouvíss<strong>em</strong>os reclamações freqüentes,<br />

por parte dos estu<strong>da</strong>ntes, de que não tinham muito t<strong>em</strong>po.<br />

O uso do espaço físico disponível era condicionado à forma arquitetônica<br />

<strong>da</strong> sala que, por sua vez, não atendia à necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> disciplina. O piso<br />

encontrava-se cheio de irregulari<strong>da</strong>des.<br />

Em relação à avaliação do ensino, <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong> e <strong>da</strong> disciplina,<br />

verificamos que não houve uma uni<strong>da</strong>de e organici<strong>da</strong>de no processo avaliativo. Ela<br />

se restringiu a um s<strong>em</strong>inário apresentado pelos estu<strong>da</strong>ntes.<br />

Os conteúdos ministrados não garantiam que os estu<strong>da</strong>ntes se sentiss<strong>em</strong><br />

seguros para ministrar <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> suas aulas. Um depoimento de um estu<strong>da</strong>nte<br />

sobre a possibili<strong>da</strong>de do mesmo trabalhar com esse conteúdo reforça esta<br />

afirmação: “Para uma aula de <strong>capoeira</strong>, não!!! Porém, para utilizar el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong><br />

mesma na minha aula, de certa forma, eu conseguiria” (depoimento de aluno – A1).<br />

Já, o depoimento de um ex-aluno amplia essa percepção quando diz que:<br />

depende <strong>em</strong> que âmbito ele vai trabalhar e como ele vai trabalhar.<br />

Isso é muito relativo. Se ele for trabalhar no colégio abor<strong>da</strong>ndo<br />

200


aspectos <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> é uma coisa. Outra coisa é ele <strong>da</strong>r aula de<br />

<strong>capoeira</strong>. Não t<strong>em</strong> condições nenhuma, nenhuma (E2).<br />

Em relação ao que é privilegiado nos conteúdos, pud<strong>em</strong>os constatar que, a<br />

depender <strong>da</strong> “linhag<strong>em</strong>” a qual pertence o professor, alguns conteúdos são mais<br />

privilegiados do que outros, tendendo a ser<strong>em</strong> enfatizados os conhecimentos com os<br />

quais ele se sente mais identificado. O depoimento de um dos professores <strong>da</strong><br />

disciplina probl<strong>em</strong>atiza esta questão:<br />

Nós fiz<strong>em</strong>os uma crítica de como esta disciplina estava sendo <strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />

Essa disciplina tinha um enfoque muito tendencioso <strong>da</strong> Capoeira<br />

Regional. E quando tinha uma Capoeira Angola, era o Mestre Paulo<br />

dos Anjos que vinha e <strong>da</strong>va uma aula. No final do curso, tinha um<br />

s<strong>em</strong>inário e qu<strong>em</strong> coordenava a disciplina colocava alguns mestres e<br />

aí a gente tinha a possibili<strong>da</strong>de de debater e fazer perguntas etc. Mas<br />

como a disciplina estava articula<strong>da</strong> ficava uma coisa muito<br />

desproporcional. Eu sentia um peso diferenciado no que dizia respeito<br />

ao tratamento dessas linhas. E a gente sabe, por outro lado, que a<br />

questão principal não era essa. A questão principal dessa disciplina é<br />

o processo de ensino-aprendizag<strong>em</strong>. No que a <strong>capoeira</strong> vai servir na<br />

ár<strong>ea</strong> profissional dele, tanto na acad<strong>em</strong>ia como na escola. No que<br />

essa disciplina vai contribuir para ele (C2).<br />

Este questionamento evidencia alguns conflitos relacionados com a seleção<br />

dos conteúdos a ser<strong>em</strong> ministrados na disciplina. O consenso <strong>em</strong> relação a um<br />

possível “currículo mínimo” ain<strong>da</strong> está para ser construído, <strong>em</strong>bora isso não garanta<br />

que os conteúdos nele referenciados sejam efetivamente tratados.<br />

A discussão sobre a uni<strong>da</strong>de teoria-prática, que perpassa todo debate<br />

pe<strong>da</strong>gógico, parece ser minimamente equaciona<strong>da</strong> a partir do conceito de <strong>jogo</strong>. O<br />

depoimento de um ex-professor tenta explicar esta articulação a partir deste conceito:<br />

Eu ain<strong>da</strong> parto do princípio que a <strong>capoeira</strong> é uma coisa que t<strong>em</strong> que<br />

ser joga<strong>da</strong>. Digamos assim, é a <strong>práxis</strong>, é o <strong>jogo</strong>. Porque se não, eles<br />

ficam muito na discussão e tal, mas não conhec<strong>em</strong> a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de. E<br />

conhecer a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> é conviver com os caras. Você que<br />

é capoeirista sabe melhor que eu. Esse <strong>jogo</strong> de picuinha, que é uma<br />

coisa normal, que são as contradições <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, que também<br />

acontec<strong>em</strong> aqui na universi<strong>da</strong>de. A gente pode até fechar os olhos<br />

para essas coisas, mas acontec<strong>em</strong> (C2).<br />

201


Um aluno <strong>da</strong> disciplina Capoeira II deu o seguinte depoimento: “Observo<br />

uma mu<strong>da</strong>nça na forma de discriminar (a <strong>capoeira</strong>). Antigamente não se praticava<br />

porque era coisa de vagabundo, hoje não se pratica porque é coisa de rico”<br />

(depoimento de aluno, A3).<br />

Na ver<strong>da</strong>de, ain<strong>da</strong> exist<strong>em</strong> muitos conflitos <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como<br />

disciplina curricular. Se uns prefer<strong>em</strong> apenas acompanhar as discussões e faz<strong>em</strong><br />

“corpo mole” na hora de fazer as ativi<strong>da</strong>des, outros reclamam que as aulas são muito<br />

“teóricas”, o que significa dizer, para eles, muito monótonas. Por outro lado, surg<strong>em</strong><br />

críticas <strong>em</strong> relação à excessiva padronização, como pod<strong>em</strong>os verificar a partir do<br />

depoimento de um aluno que afirmou: “se antes era uma ativi<strong>da</strong>de muito espontân<strong>ea</strong>,<br />

a <strong>capoeira</strong> hoje está sendo uma coisa muito ensaia<strong>da</strong>” (A 4).<br />

Em geral, com exceção dos que já são <strong>capoeira</strong>s, os estu<strong>da</strong>ntes não<br />

consegu<strong>em</strong> vislumbrar uma contribuição direta deste conteúdo na sua futura atuação<br />

profissional. Entend<strong>em</strong>os que uma disciplina é legítima ou relevante quando a<br />

presença de seu objeto de estudo é fun<strong>da</strong>mental para a reflexão pe<strong>da</strong>gógica do<br />

estu<strong>da</strong>nte, e a sua ausência compromete a perspectiva de totali<strong>da</strong>de dessa reflexão. O<br />

que se verifica é que, freqüent<strong>em</strong>ente, a <strong>capoeira</strong> se coloca como disciplina importante<br />

para discutir questões mais amplas, como preconceito, racismo, discriminação,<br />

constituindo possibili<strong>da</strong>de de ser trata<strong>da</strong> como um complexo t<strong>em</strong>ático capaz de<br />

contribuir no processo de <strong>construção</strong> de uma escola revolucionária. Talvez esteja aí a<br />

sua maior contribuição. O depoimento de um aluno corrobora essa possibili<strong>da</strong>de: “(...)<br />

porém quando analisamos a filosofia <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, esta sim pode contribuir não só para<br />

a minha prática profissional, mas também para a minha vi<strong>da</strong>” (depoimento de aluno,<br />

A5).<br />

202


A Capoeira I é obrigatória e a Capoeira II é optativa. Em geral, a turma de<br />

Capoeira I (obrigatória) era bastante freqüenta<strong>da</strong>, com cerca de vinte integrantes. Já a<br />

turma de Capoeira II (optativa) era b<strong>em</strong> menor, girando <strong>em</strong> torno de oito estu<strong>da</strong>ntes e,<br />

habitualmente, muitos faltavam às aulas. Dev<strong>em</strong> existir muitas razões, mas pud<strong>em</strong>os<br />

verificar que os estu<strong>da</strong>ntes, <strong>em</strong> geral, não d<strong>em</strong>onstravam muito interesse pela<br />

<strong>capoeira</strong>. A disciplina Capoeira II, que é optativa, confirma este diagnóstico. Houve<br />

aulas <strong>em</strong> que apareciam poucos estu<strong>da</strong>ntes. Em uma delas estiveram presentes<br />

apenas dois (17 de abril de 2001).<br />

Tiv<strong>em</strong>os a oportuni<strong>da</strong>de de acompanhar uma visita <strong>da</strong> turma de Capoeira I à<br />

Associação Brasileira de Capoeira Angola (ABCA), a qual era presidi<strong>da</strong>, na ocasião,<br />

pelo Mestre Curió, que, prontamente, recebeu a turma e, durante um longo t<strong>em</strong>po,<br />

explanou sobre a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Associação e os dil<strong>em</strong>as que a <strong>capoeira</strong> passava<br />

naquela circunstância. Os estu<strong>da</strong>ntes fizeram perguntas sobre diversos t<strong>em</strong>as, as<br />

quais foram respondi<strong>da</strong>s pelo Mestre.<br />

Iniciativas como essas contribu<strong>em</strong> para a aproximação e interlocução<br />

dessas instâncias que li<strong>da</strong>m, de forma diferencia<strong>da</strong> e com objetivos distintos e até<br />

conflitantes, com esse conhecimento. Para que elas sirvam, efetivamente, no processo<br />

de formação crítica dos novos educadores, elas precisam ser probl<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong>s,<br />

amplia<strong>da</strong>s e diversifica<strong>da</strong>s, de modo a cont<strong>em</strong>plar<strong>em</strong> as múltiplas faces dessa<br />

manifestação, evitando, com isso, uma adesão ingênua, por parte dos educandos, a<br />

qualquer que seja a referência a eles apresenta<strong>da</strong>.<br />

Em 2001.1, a <strong>capoeira</strong> começou a ser oferta<strong>da</strong> no Programa de Pós-<br />

Graduação (Mestrado e Doutorado), <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Educação, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal <strong>da</strong> Bahia, a partir <strong>da</strong> disciplina optativa Educação, Cultura e Capoeira,<br />

ministra<strong>da</strong> pelos professores Edvaldo Boaventura e Hélio Campos, com carga<br />

203


horária de 60 (sessenta) horas e 3 (três) créditos, <strong>da</strong> qual participamos na condição<br />

de estu<strong>da</strong>nte do Curso de Doutorado. De acordo com nossas investigações, foi a<br />

primeira vez que a <strong>capoeira</strong> passou a ser trata<strong>da</strong> como disciplina <strong>em</strong> um programa<br />

de Pós-Graduação Strito Sensu no Brasil.<br />

A <strong>em</strong>enta <strong>da</strong> disciplina continha os seguintes tópicos: Orig<strong>em</strong> e Evolução<br />

<strong>da</strong> Capoeira; Capoeira: uma Trajetória de Resistência, Capoeira Angola, Capoeira<br />

Regional, Capoeira Esporte Brasileiro, Capoeira e a Educação Física, Capoeira na<br />

Escola, Capoeira na Universi<strong>da</strong>de, Mestres de Capoeira, Gerenciamento de Grupos<br />

de Capoeira, Capoeira uma Manifestação Cultural e Capoeira Ferramenta para a<br />

Educação.<br />

Ao oferecer a disciplina <strong>capoeira</strong> na pós-graduação, o programa <strong>da</strong> UFBA<br />

dá um salto qualitativo e cumpre uma dívi<strong>da</strong> social para com a comuni<strong>da</strong>de<br />

<strong>capoeira</strong>na de Salvador. Ao interagir com as manifestações produzi<strong>da</strong>s pelas<br />

cama<strong>da</strong>s desfavoreci<strong>da</strong>s, a UFBA entra na ro<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong> que meio desajeita<strong>da</strong> e<br />

responde simbolicamente ao coro <strong>da</strong>s la<strong>da</strong>inhas dos grandes mestres que nunca<br />

puseram seus pés na acad<strong>em</strong>ia. Isso pode ser considerado um avanço<br />

incomensurável, a despeito dos probl<strong>em</strong>as inerentes à estrutura <strong>da</strong> própria<br />

disciplina, que não articulou de forma consistente as teorias educacionais com a<br />

cultura <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e, também, não buscou articulação com as disciplinas ofereci<strong>da</strong>s<br />

na graduação.<br />

Alguns objetivos expressos no programa não foram cumpridos, como, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, “identificar os fun<strong>da</strong>mentos e rituais <strong>da</strong> Capoeira Regional e Capoeira<br />

Angola”, “vivenciar aulas práticas de <strong>capoeira</strong>, maculelê e outras manifestações<br />

folclóricas <strong>da</strong> Bahia”, “analisar os processos de gerenciamento dos grupos e<br />

acad<strong>em</strong>ias de <strong>capoeira</strong>”.<br />

204


A turma era bastante heterogên<strong>ea</strong>, com estu<strong>da</strong>ntes provenientes dos mais<br />

diversos campos de formação, desde Agronomia à Educação Física, sendo que boa<br />

parte freqüentou a disciplina na condição de “aluno especial”. Por ter ocorrido num<br />

s<strong>em</strong>estre “atípico” (interrompido por uma longa greve dos professores e servidores),<br />

alguns dos alunos desistiram, e os 12 (doze) que continuaram até o final<br />

apresentaram um “paper” sobre uma t<strong>em</strong>ática de sua escolha. A apresentação e<br />

discussão desses “papers” foi o ponto alto <strong>da</strong> disciplina. A presença de convi<strong>da</strong>dos<br />

para ministrar<strong>em</strong> palestras e a visita a um renomado espaço de <strong>capoeira</strong> também<br />

contribuíram para enriquecê-la.<br />

Salvador, mundialmente considera<strong>da</strong> “a Meca <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>”, para onde<br />

aflu<strong>em</strong> contingentes ca<strong>da</strong> vez mais expressivos do mundo inteiro <strong>em</strong> busca dos<br />

“segredos desta arte-luta”, pode se regozijar dessa iniciativa. Entretanto, muitos<br />

aspectos relevantes <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> ain<strong>da</strong> estão por ser aprofun<strong>da</strong>dos nas diversas<br />

iniciativas de transformá-la <strong>em</strong> uma disciplina acadêmica de reconhecido valor<br />

pe<strong>da</strong>gógico.<br />

4.2.2. O Caso <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Santa Catarina – Da Experimentação<br />

à Re<strong>construção</strong> Coletiva <strong>da</strong> Capoeira<br />

Esta etapa <strong>da</strong> pesquisa deu-se sob a forma de um s<strong>em</strong>inário de pesquisa-<br />

ação 80 que foi desenvolvido durante todo primeiro s<strong>em</strong>estre letivo de 2002, o qual,<br />

<strong>em</strong> decorrência <strong>da</strong> greve dos professores universitários, <strong>em</strong> 2001, teve início <strong>em</strong> 23<br />

de maio e final, <strong>em</strong> 05 de set<strong>em</strong>bro de 2002. A intenção de r<strong>ea</strong>lizar um s<strong>em</strong>inário de<br />

pesquisa-ação dentro <strong>da</strong> disciplina optativa de <strong>capoeira</strong> do Curso de Educação<br />

80 Sobre a pesquisa-ação, foi utilizado o conceito produzido por Thiollent (2000, p. 14): “é um tipo de<br />

pesquisa social participante com base <strong>em</strong>pírica que é concebi<strong>da</strong> e r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> <strong>em</strong> estreita associação<br />

com uma ação ou com a resolução de um probl<strong>em</strong>a coletivo, no qual pesquisadores e participantes<br />

representativos <strong>da</strong> situação ou do probl<strong>em</strong>a estão envolvidos de modo cooperativo”.<br />

205


Física <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Santa Catarina 81 era uma possibili<strong>da</strong>de<br />

explicita<strong>da</strong> desde a formulação do projeto inicial de pesquisa para a r<strong>ea</strong>lização desta<br />

tese, aprovado no exame de seleção do Programa de Pós-Graduação <strong>da</strong> UFBA, <strong>em</strong><br />

1999.<br />

Caracterização <strong>da</strong> turma<br />

A turma do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação foi constituí<strong>da</strong> por 22 (vinte e<br />

dois) participantes, sendo 14 (quatorze) do sexo masculino e 8 (oito) do sexo<br />

f<strong>em</strong>inino. A média de i<strong>da</strong>de foi de 23 anos. O participante mais novo tinha 18<br />

(dezoito) e o mais velho, 32 (trinta e dois) anos.<br />

No que diz respeito à naturali<strong>da</strong>de, pud<strong>em</strong>os constatar que a maioria era<br />

de Florianópolis, <strong>em</strong>bora houvesse uma participação significativa de estu<strong>da</strong>ntes<br />

provenientes do interior do Estado de Santa Catarina, alguns naturais de outros<br />

estados brasileiros, de um africano do Congo e de uma sul-americana, do Chile,<br />

conforme está d<strong>em</strong>onstrado na tabela 1:<br />

81 A disciplina optativa de <strong>capoeira</strong> foi ofereci<strong>da</strong>, pela primeira vez, <strong>em</strong> 1993, no currículo do Curso de<br />

Graduação <strong>em</strong> Educação Física, ministra<strong>da</strong> pelo prof. Nelson <strong>da</strong> Silva Aguiar, mas foi oferta<strong>da</strong><br />

somente um s<strong>em</strong>estre, retornando apenas <strong>em</strong> 1997. A partir de então, v<strong>em</strong> sendo ofereci<strong>da</strong><br />

sist<strong>em</strong>aticamente e t<strong>em</strong> sido bastante procura<strong>da</strong> não apenas pelos alunos <strong>da</strong> graduação <strong>em</strong><br />

Educação Física, mas por estu<strong>da</strong>ntes dos mais diferentes cursos. Após o ano 2000, com o nosso<br />

afastamento para formação <strong>em</strong> pós-graduação (Doutorado), a disciplina passou a ser ministra<strong>da</strong> pelo<br />

professor Fábio Machado Pinto, do Departamento de Metodologia do Ensino, do Centro de<br />

Educação, que gentilmente se prontificou a oferecer a disciplina para a r<strong>ea</strong>lização deste s<strong>em</strong>inário de<br />

pesquisa-ação. De acordo com a <strong>em</strong>enta, a disciplina é trabalha<strong>da</strong> a partir dos seguintes tópicos:<br />

trajetória histórica <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, seus principais condicionantes, o surgimento, a sua inserção na<br />

socie<strong>da</strong>de brasileira, a sua ascensão social, as principais escolas, os seus principais representantes,<br />

a relação com o poder constituído, a atuali<strong>da</strong>de e as perspectivas. O processo de escolarização <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, sua inserção no contexto educacional, as principais iniciativas, os principais estudos, os<br />

programas de implantação <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> nos currículos <strong>da</strong>s escolas públicas de alguns estados <strong>da</strong><br />

federação. As cerimônias, rituais e tradições <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>. O processo histórico de organização e<br />

normatização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no Brasil, as diversas iniciativas, as atuais estruturas organizacionais. Os<br />

pressupostos didático-pe<strong>da</strong>gógicos na prática <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, a relação professor-aluno, o papel do<br />

professor, o material didático-pe<strong>da</strong>gógico, os conteúdos, os procedimentos, o planejamento e a<br />

avaliação <strong>em</strong> <strong>capoeira</strong>. Os movimentos e golpes de <strong>capoeira</strong>, seqüências de treinamento, formas de<br />

<strong>jogo</strong>s, estilos de ensino, a caracterização <strong>da</strong> ro<strong>da</strong>. Os instrumentos musicais utilizados na <strong>capoeira</strong>.<br />

Os cânticos, sua classificação e função.<br />

206


Tabela 1 - Naturali<strong>da</strong>de dos participantes do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC<br />

País/Estado/Ci<strong>da</strong>de<br />

Freqüência<br />

Absoluta Relativa (%)<br />

Florianópolis -SC 7 31,8<br />

Interior de Santa Catarina 5 22,7<br />

Paraná 3 13,6<br />

Minas Gerais 2 9,0<br />

São Paulo 1 4,5<br />

Distrito Federal 1 4,5<br />

Rio Grande do Sul 1 4,5<br />

Congo - África 1 4,5<br />

Chile – América do Sul 1 4,5<br />

Total 22 100<br />

Dos integrantes, 3 (três) já haviam concluído o curso de graduação; 2<br />

(dois) <strong>em</strong> Educação Física e 1 (um) <strong>em</strong> Pe<strong>da</strong>gogia. Um dos integrantes do<br />

s<strong>em</strong>inário já havia concluído curso de Pós-Graduação <strong>em</strong> nível de especialização<br />

<strong>em</strong> Capoeira na Escola, na Universi<strong>da</strong>de de Brasília. Dos 18 integrantes que<br />

cursavam a graduação, apenas 1 (um) não era estu<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> UFSC. Veja a tabela<br />

2, a seguir:<br />

Tabela 2 - Formação acadêmica dos participantes do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação<br />

<strong>da</strong> UFSC<br />

Curso<br />

Freqüência<br />

Absoluta Relativa (%)<br />

Educação Física 12 54,5<br />

Letras 2 9,0<br />

Arquitetura 1 4,5<br />

Engenharia Sanitária 1 4,5<br />

Farmácia 1 4,5<br />

Mat<strong>em</strong>ática 1 4,5<br />

Nutrição 1 4,5<br />

Odontologia 1 4,5<br />

Pe<strong>da</strong>gogia 1 4,5<br />

2º Grau Completo 1 4,5<br />

Total 22 100<br />

Pud<strong>em</strong>os constatar que havia estu<strong>da</strong>ntes de graduação desde a primeira<br />

fase até a última, prevalecendo um número maior entre a 3ª e a 4ª fases e entre a 7ª<br />

e a 8ª. Estes <strong>da</strong>dos d<strong>em</strong>onstram que a grande maioria já conhecia a estrutura<br />

207


curricular <strong>da</strong> UFSC e, portanto, já tinham noções básicas do funcionamento de uma<br />

disciplina acadêmica.<br />

Tabela 3 - Distribuição dos participantes do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC,<br />

por fase de formação<br />

Fase do Curso<br />

Freqüência<br />

Absoluta Relativa (%)<br />

Da 3ª a 4ª 7 31,8<br />

Da 7ª a 8ª 6 27,2<br />

Da 5ª a 6ª 3 13,6<br />

Formados 3 13,6<br />

Da 1ª a 2ª 1 4,5<br />

Da 9ª a 10ª 1 4,5<br />

Ensino Médio concluído 1 4,5<br />

Total 22 100<br />

O s<strong>em</strong>inário contou, também, com eventuais participações de mestres,<br />

professores e discípulos de <strong>capoeira</strong> de alguns grupos de Florianópolis que foram<br />

convi<strong>da</strong>dos para determina<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des. Tiv<strong>em</strong>os também a participação de duas<br />

historiadoras <strong>da</strong> UFSC, que deram suas contribuições por ocasião <strong>da</strong>s discussões<br />

relaciona<strong>da</strong>s com a t<strong>em</strong>ática “história <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>”. Uma aluna do curso de<br />

Mestrado <strong>em</strong> Educação Física <strong>da</strong> UFSC, que desenvolvia dissertação sobre a<br />

<strong>capoeira</strong>, participou sist<strong>em</strong>aticamente <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des do s<strong>em</strong>inário, <strong>em</strong>bora não<br />

estivesse matricula<strong>da</strong> na disciplina. Tal aconteceu também com um estu<strong>da</strong>nte do<br />

curso de Educação Física <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Estadual de Pernambuco, que se<br />

encontrava r<strong>ea</strong>lizando intercâmbio com a UFSC, durante o período do s<strong>em</strong>inário.<br />

Ambos deram significativas contribuições aos debates t<strong>em</strong>áticos.<br />

Dos 22 (vinte e dois) participantes, apenas 5 (cinco) não detinham<br />

qualquer experiência com <strong>capoeira</strong>, apenas a conheciam através <strong>da</strong> mídia ou de<br />

exibições <strong>em</strong> eventos com<strong>em</strong>orativos ou <strong>em</strong> ro<strong>da</strong>s de rua. Um dos participantes<br />

tinha cerca de 10 (dez) anos de experiência, e um outro já havia acumulado mais de<br />

15 (quinze) anos de experiência sist<strong>em</strong>ática. Conforme pode ser visualizado na<br />

208


tabela 4, a maioria tinha entre 01 (um) e 05 (cinco) anos de prática sist<strong>em</strong>ática com<br />

essa manifestação cultural. Foi possível observar que a turma, apesar de ser<br />

heterogên<strong>ea</strong>, tinha uma inserção significativa no universo <strong>capoeira</strong>no, e isso<br />

contribuiu para que algumas t<strong>em</strong>áticas foss<strong>em</strong> rigorosamente aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>s.<br />

Tabela 4 - T<strong>em</strong>po de experiência dos participantes do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação<br />

<strong>da</strong> UFSC com a <strong>capoeira</strong><br />

T<strong>em</strong>po de Experiência com Capoeira<br />

Freqüência<br />

Absoluta Relativa (%)<br />

S<strong>em</strong> experiência 5 22,7<br />

0 a 1 ano 5 22,7<br />

4 a 5 anos 4 18,1<br />

2 a 3 anos 3 13,6<br />

6 a 10 anos 3 13,6<br />

10 a 15 anos 1 4,5<br />

Acima de 15 anos 1 4,5<br />

Total 22 100<br />

Em relação à experiência com o ensino <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, pud<strong>em</strong>os verificar<br />

que poucos a haviam tratado na condição de professor, como pod<strong>em</strong>os observar na<br />

tabela a seguir.<br />

Tabela 5 - T<strong>em</strong>po de experiência dos participantes do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação<br />

<strong>da</strong> UFSC com o ensino <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong><br />

Experiência com o Ensino <strong>da</strong> Capoeira<br />

Freqüência<br />

Absoluta Relativa (%)<br />

S<strong>em</strong> experiência 16 72,7<br />

1 a 5 anos 5 22,7<br />

6 a 10 anos 1 4,5<br />

Total 22 100<br />

Dos participantes do s<strong>em</strong>inário, 11 (onze) não faziam parte de nenhum<br />

grupo de <strong>capoeira</strong> organicamente constituído, 01 (um) era integrante do Grupo<br />

Angola-Mãe, 01 (um) era integrante do Grupo Ilha de Palmares e 9 (nove)<br />

integravam o Grupo Beribazu, conforme pod<strong>em</strong>os observar na tabela 6.<br />

209


Tabela 6 - Distribuição dos participantes do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC<br />

por grupo de <strong>capoeira</strong><br />

Nome do Grupo<br />

Freqüência<br />

Absoluta Relativa (%)<br />

Não integrante de Grupo 11 50,0<br />

Beribazu 9 41,0<br />

Angola - Mãe 1 4,5<br />

Ilha de Palmares 1 4,5<br />

Total 22 100<br />

Esta caracterização do perfil <strong>da</strong> turma serviu para explicitar que uma ação<br />

educativa intencional institucionaliza<strong>da</strong> se dá entre pessoas com graus diferentes de<br />

maturação humana, de valores, de expectativas e de experiências acumula<strong>da</strong>s,<br />

necessitando, portanto, de organização e sist<strong>em</strong>atização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico<br />

que exige, necessariamente, conhecimento <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, adequa<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mentação<br />

teórica e satisfatória instrumentalização técnica, de forma a criar as condições<br />

apropria<strong>da</strong>s para o desenvolvimento <strong>da</strong>s novas gerações.<br />

Todos os 17 (dezessete) encontros <strong>em</strong> sala de aula foram filmados. O<br />

material foi gravado <strong>em</strong> 19 (dezenove) fitas VHS, perfazendo um total de 38 (trinta e<br />

oito) horas de ativi<strong>da</strong>des filma<strong>da</strong>s. Este importante material foi transcrito e<br />

analisado, servindo de subsídio para as formulações e argumentações finais desta<br />

tese.<br />

Alguns diálogos que ocorreram durante esse s<strong>em</strong>inário serão destacados<br />

nos capítulos seguintes para ilustrar e esclarecer reflexões desenvolvi<strong>da</strong>s sobre<br />

t<strong>em</strong>áticas específicas do objeto de estudo. Estes estarão referenciados a partir <strong>da</strong>s<br />

seguintes convenções: PO (fala do pesquisador orientador), CO (comentários do<br />

pesquisador), P1, P2, P3... P22 (participantes do s<strong>em</strong>inário), to<strong>da</strong>s acompanha<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong> <strong>da</strong>ta <strong>em</strong> que o diálogo ocorreu.<br />

210


To<strong>da</strong>s as quintas-feiras do referido s<strong>em</strong>estre letivo (2002.1), <strong>da</strong>s 18:30 às<br />

21:10 h, os participantes reuniam-se para desenvolver as ações <strong>da</strong> disciplina-<br />

campo. Além <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des na sala de aula, os participantes foram incentivados a<br />

participar <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des dos projetos de extensão <strong>em</strong> desenvolvimento no Centro<br />

de Desportos <strong>da</strong> UFSC e de outras experiências de natureza similar.<br />

Da mesma forma como aconteceu no s<strong>em</strong>inário-piloto, no início <strong>da</strong><br />

disciplina, junto com o programa, foi distribuído um texto base de orientação que<br />

expressava as principais características <strong>da</strong> metodologia <strong>da</strong> pesquisa-ação. Ele foi<br />

debatido e probl<strong>em</strong>atizado, permitindo que os participantes obtivess<strong>em</strong> as noções<br />

mínimas sobre esta prática investigativa.<br />

Foi entregue, também, aos participantes, um primeiro protocolo de<br />

son<strong>da</strong>g<strong>em</strong> que foi respondido por todos e teve por finali<strong>da</strong>de avaliar o nível de<br />

conhecimento <strong>da</strong> turma sobre a t<strong>em</strong>ática de estudo (anexo 6).<br />

A seguir, explicitar<strong>em</strong>os a metodologia utiliza<strong>da</strong> durante a disciplina de<br />

<strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> UFSC, suas características, limites e possibili<strong>da</strong>des.<br />

A experiência <strong>da</strong> pesquisa-ação<br />

Esta possibili<strong>da</strong>de de pesquisa encontra ressonância entre aqueles que<br />

não quer<strong>em</strong> limitar suas investigações aos aspectos acadêmicos e burocráticos que<br />

caracterizam a maioria <strong>da</strong>s pesquisas convencionais. Algumas experiências<br />

similares neste sentido já foram coloca<strong>da</strong>s <strong>em</strong> prática com êxito no campo <strong>da</strong><br />

Educação Física, evidenciando a importância desta possibili<strong>da</strong>de de pesquisa na<br />

produção/d<strong>em</strong>ocratização do saber nas mais diversas ár<strong>ea</strong>s. Ad<strong>em</strong>ais, a adoção <strong>da</strong><br />

pesquisa como princípio educativo na própria sala de aula t<strong>em</strong> sido bastante<br />

incentiva<strong>da</strong> pelos estudos <strong>da</strong> pe<strong>da</strong>gogia crítica. A figura do professor-pesquisador<br />

211


serve para se contrapor a uma velha prática presente no sist<strong>em</strong>a educacional<br />

brasileiro que apregoa que qu<strong>em</strong> faz ou deveria fazer pesquisas seriam os<br />

especialistas 82 . Aos professores (práticos) cabe apenas executar e reproduzir os<br />

conhecimentos gerados por àqueles. Essa integração resulta <strong>da</strong> constatação de que<br />

a elaboração teórica e a prática curricular se desenvolv<strong>em</strong> interativamente. E a<br />

pesquisa-ação t<strong>em</strong> sido uma eficiente possibili<strong>da</strong>de para consoli<strong>da</strong>r esta maneira de<br />

qualificar o trabalho pe<strong>da</strong>gógico. Ad<strong>em</strong>ais, não há desenvolvimento do trabalho<br />

pe<strong>da</strong>gógico s<strong>em</strong> uma necessária capacitação permanente de professores.<br />

Foi então que, a partir destes pressupostos, eleg<strong>em</strong>os esta possibili<strong>da</strong>de<br />

de pesquisa, desenvolvi<strong>da</strong> dentro de uma disciplina curricular, assumindo todos os<br />

ônus que essa <strong>em</strong>preita<strong>da</strong> pode acarretar. A idéia inicial era, portanto, utilizar uma<br />

experiência concreta de disciplina acadêmica, como campo <strong>em</strong>pírico, ou seja, uma<br />

“disciplina-campo”, que nos possibilitasse analisar o seu movimento e o seu<br />

contexto.<br />

A inserção <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo do curso de Educação Física <strong>da</strong><br />

UFSC 83 t<strong>em</strong> fomentado a produção científica sobre essa t<strong>em</strong>ática. Duas pesquisas,<br />

financia<strong>da</strong>s pelo FUNPESQUISA, foram r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>s 84 e também mais de dez estudos<br />

82 O professor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Santa Catarina, Giovani de Lorenzi Pires, utilizou-se <strong>da</strong><br />

metodologia <strong>da</strong> pesquisa-ação para a <strong>construção</strong> de sua tese de doutoramento sobre o discurso<br />

midiático e a Educação Física, defendi<strong>da</strong> na Facul<strong>da</strong>de de Educação Física <strong>da</strong> UNICAMP, no ano de<br />

2000. Ver mais <strong>em</strong> Pires (2000). Bracht et al. (2002) também utilizaram a metodologia <strong>da</strong> pesquisaação<br />

por ocasião <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>lização de curso de especialização <strong>em</strong> Educação Física, na Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal do Espírito Santo, cujo objetivo era verificar <strong>em</strong> que medi<strong>da</strong> ela se apresenta como estratégia<br />

adequa<strong>da</strong> à formação continua<strong>da</strong> de professores.<br />

83 A UFSC passou, também, a oferecer a disciplina <strong>capoeira</strong>, na forma de Educação Física Curricular,<br />

a partir do primeiro s<strong>em</strong>estre de 1997. São oferta<strong>da</strong>s duas opções: Capoeira I (EFC 5520) e Capoeira<br />

II (EFC 5620), com 54 (cinqüenta e quatro) horas-aula ca<strong>da</strong> uma. Elas foram cria<strong>da</strong>s pela Portaria nr.<br />

305/PREG, de 15 de outubro de 1996, <strong>da</strong> Pró-Reitoria de Ensino, e Graduação e são destina<strong>da</strong>s aos<br />

interessados de qualquer curso <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de.<br />

84 As pesquisas são as seguintes: “Instituições e Agentes <strong>da</strong> Capoeira de Florianópolis”, r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> <strong>em</strong><br />

1997. Coordenador: José Luiz Cirqueira Falcão. Esta pesquisa teve por objetivo caracterizar as<br />

instituições (grupos) e os agentes (professores e alunos) de <strong>capoeira</strong> no município de Florianópolis-<br />

SC. A outra pesquisa r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> intitulou-se: “Análise Etnográfica de um Grupo de Capoeira de<br />

Florianópolis-SC” e teve por objetivo analisar como um grupo de <strong>capoeira</strong> de Florianópolis trata esse<br />

conhecimento a partir de diversos procedimentos didático-pe<strong>da</strong>gógicos adotados.<br />

212


científicos sobre a t<strong>em</strong>ática, entre Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e<br />

monografias de especialização, foram r<strong>ea</strong>lizados por estu<strong>da</strong>ntes (anexo 7).<br />

O s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação foi balizado por duas preocupações<br />

centrais e articuláveis entre si: i) necessi<strong>da</strong>de de instrumentalização dos<br />

profissionais <strong>em</strong> formação para tratar o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> numa perspectiva<br />

crítico-superadora e ii) possibili<strong>da</strong>des de <strong>construção</strong> de competências conceituais e<br />

teóricas que garantiss<strong>em</strong> quali<strong>da</strong>de no trato com o conhecimento relacionado a esta<br />

manifestação cultural <strong>em</strong> suas mais diversas formas de abor<strong>da</strong>gens.<br />

A opção pela pesquisa-ação deu-se, também, porque ela, diferent<strong>em</strong>ente<br />

<strong>da</strong>s d<strong>em</strong>ais investigações participantes, possibilita um melhor equacionamento de<br />

probl<strong>em</strong>as significativos <strong>da</strong> prática social, b<strong>em</strong> como, permite uma toma<strong>da</strong> de<br />

consciência, por parte dos sujeitos históricos envolvidos, com vistas à transformação<br />

<strong>da</strong> própria r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de pesquisa<strong>da</strong>. Thiollent (2000) afirma que, além <strong>da</strong> interação<br />

entre os diversos sujeitos históricos envolvidos na pesquisa, a pesquisa-ação prevê<br />

o conhecimento explícito dos diferentes papéis exercidos por eles e a<br />

intencionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s ações impl<strong>em</strong>enta<strong>da</strong>s, isto é, <strong>em</strong>bora não se recorra à<br />

imposição unilateral, os sujeitos envolvidos reconhec<strong>em</strong> a identi<strong>da</strong>de e os objetivos<br />

do pesquisador.<br />

Alguns cui<strong>da</strong>dos foram tomados para que a ação investigativa não se<br />

transformasse numa simples vivência (desejo inicial de muitos participantes,<br />

expresso no primeiro protocolo de son<strong>da</strong>g<strong>em</strong>) ou numa ação de militância política<br />

(receio inicial de muitos participantes). Nesse sentido, as argumentações presumiam<br />

a existência de um “auditório r<strong>ea</strong>l ou figurado” (THIOLLENT, 2000), cuja finali<strong>da</strong>de<br />

era estimular a objetivi<strong>da</strong>de e a racionali<strong>da</strong>de dos argumentos, evitando, dessa<br />

forma, comentários eivados de parciali<strong>da</strong>de e engano.<br />

213


Durante a disciplina-campo, estiv<strong>em</strong>os atentos à simultanei<strong>da</strong>de do duplo<br />

objetivo que, segundo Thiollent (2000, p.16), caracteriza a pesquisa-ação: ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que, através dela, pretende-se aumentar o conhecimento <strong>da</strong> ár<strong>ea</strong><br />

de pesquisa, visa-se, também, o conhecimento ou o “nível de consciência” <strong>da</strong>s<br />

pessoas e grupos considerados. No transcorrer <strong>da</strong> disciplina, nos foi possível<br />

constatar que a pesquisa-ação nos permite, ao mesmo t<strong>em</strong>po, conhecer e atuar<br />

sobre a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, constituindo-se numa pesquisa prática que implica <strong>em</strong> trabalhar<br />

com sujeitos <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça, <strong>em</strong> vez de trabalhar sobre eles. Com essas<br />

características, ela cont<strong>em</strong>pla um dos gêneros <strong>da</strong> pesquisa educacional, destacados<br />

por D<strong>em</strong>o (1994, p. 38), o qual assegura que a pesquisa prática deve ser “destina<strong>da</strong><br />

a intervir diretamente na r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, a praticar teorias e teorizar práticas, a produzir<br />

alternativas concretas, a comprometer-se com soluções”.<br />

Ao longo dos últimos anos, t<strong>em</strong>os constatado e test<strong>em</strong>unhado que o trato<br />

com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong> se <strong>da</strong>ndo, principalmente, dentro dos<br />

contornos <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de técnica, <strong>em</strong> que a busca <strong>da</strong> performance gestual e do<br />

rendimento físico se destacam, <strong>em</strong> detrimento de outros componentes importantes<br />

que consoli<strong>da</strong>m a cultura <strong>capoeira</strong>na, como pod<strong>em</strong>os verificar nos chamados<br />

“aulões”, nos quais centenas, às vezes milhares, de <strong>capoeira</strong>s disputam espaços<br />

nas praças e praias para participar de uma espécie de “ord<strong>em</strong> uni<strong>da</strong>” de <strong>capoeira</strong>,<br />

sob o comando de um mestre “famoso” que, de cima de um palanque estampado de<br />

propagan<strong>da</strong>s, executa os movimentos a ser<strong>em</strong> copiados pelos participantes.<br />

Para confrontar com essa perspectiva, a disciplina-campo, alvo desta<br />

etapa <strong>da</strong> pesquisa, não teve como preocupação o aperfeiçoamento de técnicas <strong>em</strong><br />

relação a um padrão pré-estabelecido, mas pretendeu probl<strong>em</strong>atizar a ativi<strong>da</strong>de<br />

educativa, de modo que, tanto os sujeitos como a situação, se modificass<strong>em</strong> num<br />

214


processo sist<strong>em</strong>ático de aprendizag<strong>em</strong> que se convertia <strong>em</strong> ação criticamente<br />

engaja<strong>da</strong>. O objetivo fun<strong>da</strong>mental era, além de melhorar a prática pe<strong>da</strong>gógica, gerar<br />

conhecimento. Segundo Elliott (apud PEREIRA, 1998, p. 164): “a produção e<br />

utilização do conhecimento se subordina a este objetivo fun<strong>da</strong>mental e está<br />

condicionado por ele”.<br />

Mesmo considerando que, na pesquisa-ação, os probl<strong>em</strong>as dev<strong>em</strong><br />

<strong>em</strong>ergir <strong>da</strong> prática concreta, referências do programa de <strong>capoeira</strong> anteriormente<br />

investigado foram coloca<strong>da</strong>s <strong>em</strong> discussão. A partir de uma perspectiva crítica,<br />

pesquisador e d<strong>em</strong>ais participantes do grupo foram reconhecendo, coletivamente,<br />

os el<strong>em</strong>entos significativos dos programas <strong>da</strong>s disciplinas de <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong><br />

universi<strong>da</strong>de previamente investigados. Uma vez identificados, através <strong>da</strong><br />

experiência, <strong>da</strong> apropriação, do estudo, <strong>da</strong> reflexão e do diálogo, foram<br />

probl<strong>em</strong>atizados até que se alcançasse um nível comum de entendimento sobre<br />

eles. Aspectos e el<strong>em</strong>entos não explorados pelos programas supracitados, mas<br />

que, no entendimento do coletivo de pesquisa, faziam-se necessários, foram<br />

levados <strong>em</strong> consideração.<br />

No decorrer do processo de investigação, conteúdos foram apresentados,<br />

discutidos, analisados e probl<strong>em</strong>atizados com vistas a uma reflexão <strong>em</strong> torno <strong>da</strong><br />

equação de probl<strong>em</strong>as práticos no que diz respeito ao trato<br />

(produção/d<strong>em</strong>ocratização) do conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo de formação<br />

profissional para, a partir <strong>da</strong>í, contribuir com a crítica ao processo de organização do<br />

trabalho pe<strong>da</strong>gógico no campo <strong>da</strong> cultura corporal.<br />

Em princípio, a idéia era transformar a disciplina numa grande “ro<strong>da</strong> de<br />

papoeira”, onde especialistas de diversas ár<strong>ea</strong>s foss<strong>em</strong> convi<strong>da</strong>dos a “jogar” com<br />

“teorias <strong>em</strong> ato” (THIOLLENT, 2000), na busca de articulações de particulari<strong>da</strong>des e<br />

215


de generali<strong>da</strong>des desta manifestação, mas esta intenção não foi totalmente<br />

concretiza<strong>da</strong> tendo <strong>em</strong> vista a exigüi<strong>da</strong>de de t<strong>em</strong>po dos especialistas, que, na<br />

maioria <strong>da</strong>s vezes, encontravam-se visceralmente envolvidos com o seu métier.<br />

Muitos convi<strong>da</strong>dos não compareceram.<br />

A despeito desse contrat<strong>em</strong>po, esta opção de pesquisa possibilitou uma<br />

imersão riquíssima na r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de concreta e nos despojou de possíveis “inclinações<br />

missionárias” (Thiollent, 2000), quando, sist<strong>em</strong>aticamente, dialogávamos com os<br />

d<strong>em</strong>ais integrantes do grupo pontos de conflito e de tensão que requeriam<br />

mediações atentas e evitavam manipulações por parte de qu<strong>em</strong>, freqüent<strong>em</strong>ente, se<br />

acha no direito de falar mais alto.<br />

Os sujeitos envolvidos foram convi<strong>da</strong>dos a des<strong>em</strong>penhar um papel ativo<br />

na própria r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de pesquisa<strong>da</strong>. Em outras palavras, não nos restringíamos a<br />

descrever o fenômeno investigado, mas operávamos estrategicamente no sentido<br />

de probl<strong>em</strong>atizar a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de estu<strong>da</strong><strong>da</strong>. Entretanto, a probl<strong>em</strong>atização só era efetiva<br />

quando os participantes se sentiam envolvidos, valorativa e afetivamente, com as<br />

t<strong>em</strong>áticas debati<strong>da</strong>s.<br />

Quando os t<strong>em</strong>as eram desprovidos de sentido/significado para a maioria<br />

<strong>da</strong> turma ou quando os conceitos não faziam parte dos seus vocabulários, as<br />

análises pareciam desinteressa<strong>da</strong>s, neutras ou desprovi<strong>da</strong>s de crítica social. Como<br />

o objetivo era trabalhar com os sujeitos <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça, <strong>em</strong> vez de trabalhar sobre<br />

eles, a crítica exigia uma postura de coerente autocrítica, que nos d<strong>em</strong>ovesse de<br />

possíveis e destrutivas inclinações missionárias eiva<strong>da</strong>s de críticas evasivas e<br />

vazias. Para D<strong>em</strong>o (1989), a <strong>construção</strong> <strong>da</strong> crítica teórica s<strong>em</strong> uma prática coerente<br />

produz dois ardis: não mu<strong>da</strong> na<strong>da</strong>; e atribui ao sist<strong>em</strong>a criticado a aura de<br />

d<strong>em</strong>ocrático, como se fosse o único lugar possível <strong>da</strong> crítica. Nesse sentido,<br />

216


procuramos evitar uma adesão teórica cega às propostas pe<strong>da</strong>gógicas críticas,<br />

envolvendo os sujeitos, não como meros informantes, mas como pesquisadores de<br />

sua própria prática, <strong>em</strong> busca de uma possibili<strong>da</strong>de destina<strong>da</strong> a intervir diretamente<br />

na r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, pois uma crítica, mesmo que brilhante na forma, mas s<strong>em</strong> efetivi<strong>da</strong>de<br />

prática, relega a segundo plano as vicissitudes históricas e pretende colocar-se<br />

acima de qualquer suspeita. E, como adverte D<strong>em</strong>o (1989, p. 129), “não há na<strong>da</strong><br />

mais conservador do que uma crítica radical s<strong>em</strong> prática”.<br />

Em decorrência desses fatores, a disciplina não teve, como já foi dito, uma<br />

preocupação com o aperfeiçoamento de técnicas <strong>em</strong> relação a um padrão<br />

preestabelecido no campo do fenômeno investigado, mas possibilitou uma<br />

probl<strong>em</strong>atização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico, tendo como referência probl<strong>em</strong>áticas<br />

significativas que envolviam o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo de<br />

formação profissional.<br />

Uma vez identifica<strong>da</strong>s através <strong>da</strong> experiência, <strong>da</strong> apropriação, do estudo,<br />

<strong>da</strong> reflexão e do diálogo, essas probl<strong>em</strong>áticas foram exaustivamente discuti<strong>da</strong>s e<br />

analisa<strong>da</strong>s com vistas a se alcançar um consenso <strong>em</strong> torno delas. A partir <strong>da</strong>í,<br />

foram elaborados, coletivamente, planos de entendimentos, através dos quais foram<br />

decidi<strong>da</strong>s as ações a ser<strong>em</strong> executa<strong>da</strong>s.<br />

O t<strong>em</strong>po de um s<strong>em</strong>estre para a r<strong>ea</strong>lização desse s<strong>em</strong>inário de pesquisa-<br />

ação possibilitou um acompanhamento mais efetivo dos sujeitos <strong>em</strong> ação durante<br />

todo o processo educativo e permitiu uma leitura mais sist<strong>em</strong>ática e abrangente <strong>da</strong><br />

sua dinâmica. Isso foi fun<strong>da</strong>mental para identificarmos probl<strong>em</strong>as/questões n<strong>em</strong><br />

s<strong>em</strong>pre obtidos através de técnicas convencionais de pesquisa, como questionários<br />

e entrevistas. Aliás, essas técnicas têm alcance limitado, pois não permit<strong>em</strong> que se<br />

tenha uma visão dinâmica <strong>da</strong> situação investiga<strong>da</strong>. Segundo Thiollent (2000), se<br />

217


usa<strong>da</strong>s indevi<strong>da</strong>mente, s<strong>em</strong> um conhecimento <strong>da</strong> natureza discursiva, pod<strong>em</strong><br />

contribuir para “psicologizar” a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social ou cultural observa<strong>da</strong> e terminam por<br />

iludir o pesquisador com joga<strong>da</strong>s argumentativas, como se estas foss<strong>em</strong> fiéis<br />

expressões <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de ou <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de do fenômeno investigado. Mas, como b<strong>em</strong><br />

disse o filósofo italiano Antônio Gramsci, o hom<strong>em</strong> comum possui dois tipos de<br />

consciência teórica dos quais um é implícito à sua ação e o une efetivamente a<br />

todos os seus colaboradores na transformação prática <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, enquanto o<br />

outro, superficialmente explícito ou verbal, foi her<strong>da</strong>do do passado e recebido<br />

acriticamente. Ora, diz ele, “estas duas consciências pod<strong>em</strong> entrar <strong>em</strong> contradição e<br />

se opor<strong>em</strong> no sentido de que a ação não reflete a crença. Nesse caso, a concepção<br />

de mundo que t<strong>em</strong> o hom<strong>em</strong> comum é a que está implícita na sua ação. É essa que<br />

deve ser revela<strong>da</strong>” (GRAMSCI apud BARBIER, 1985, p. 52).<br />

No decorrer desta etapa, procuramos extrapolar a reprodução do senso<br />

comum e, com isso, nos sentíamos mais confortáveis diante <strong>da</strong>queles que, via de<br />

regra, se arvoravam <strong>em</strong> manipular situações pelo fato de se reconhecer<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

possíveis condições privilegia<strong>da</strong>s. O senso comum expressa um conhecimento<br />

parcial <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, é filosofia, mas filosofia s<strong>em</strong> metodologia, s<strong>em</strong> união dialética<br />

entre teoria e prática; uma espécie de mosaico fragmentado, incoerente,<br />

inconseqüente, resultante <strong>da</strong> situação social e cultural <strong>da</strong>s massas cuja filosofia<br />

representa. A pesquisa-ação objetiva uma intervenção prática e de conhecimento<br />

diante <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de do senso comum, pois se considera que, com melhor<br />

conhecimento, a ação é conduzi<strong>da</strong> de forma mais qualifica<strong>da</strong>.<br />

Com esta possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pesquisa-ação, procuramos, então, entrar <strong>em</strong><br />

sintonia com o bom senso, o núcleo sadio do senso comum, aquele que convém<br />

desenvolver, tornar unitário e coerente, principalmente porque o senso comum é um<br />

218


produto histórico, evolui com a estrutura social que o modela, não sendo, portanto,<br />

imutável, n<strong>em</strong> permanente, n<strong>em</strong> monolítico. Por entender que o senso comum é um<br />

produto <strong>da</strong> história dos homens, Gramsci (1968) alude para a necessi<strong>da</strong>de de se<br />

criar um novo senso comum, uma nova cultura e, portanto, uma nova filosofia<br />

(ord<strong>em</strong> intelectual) que se enraíze na consciência popular com a mesma solidez e<br />

imperativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s crenças tradicionais.<br />

Procuramos, também, não confundir o nosso desejo de pesquisador com<br />

a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de que se apresentava freqüent<strong>em</strong>ente conflituosa e contraditória. Vez por<br />

outra, levantávamos dúvi<strong>da</strong>s diante <strong>da</strong>s evidências reitera<strong>da</strong>s e <strong>da</strong>s certezas b<strong>em</strong><br />

assenta<strong>da</strong>s do senso comum. Nesse movimento investigativo, percebíamos que era<br />

possível identificar, com astúcia, tensões acirra<strong>da</strong>s na mais tenra relação social e a<br />

rachadura invisível <strong>da</strong>s contradições na mais sóli<strong>da</strong> instituição.<br />

Durante todo o trabalho de investigação, procuramos manter o processo<br />

s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> aberto, devido à convicção de que nenhuma proposta poderia ser<br />

considera<strong>da</strong> "modelo", pois sabíamos que nenhuma <strong>da</strong>va conta <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de<br />

do fenômeno investigado e do caráter multidimensional <strong>da</strong> experiência humana. O<br />

ser humano possui uma mescla inextricável de pensamento racional, <strong>em</strong>pírico,<br />

técnico, simbólico, mitológico, mágico. Se viv<strong>em</strong>os permanent<strong>em</strong>ente interagindo<br />

com todos esses registros, não pod<strong>em</strong>os suprimir a parte dos mitos, as<br />

aspirações, os sonhos, as fantasias, assim como não pod<strong>em</strong>os suprimir as<br />

instituições, as línguas, as técnicas de comunicação e de representação.<br />

Segundo Serpa (2000), é preciso superar os dualismos -<br />

ver<strong>da</strong>de/falsi<strong>da</strong>de, identi<strong>da</strong>de/contradição - estabelecidos a priori e tratar essas<br />

oposições como extr<strong>em</strong>os de uma coexistência de diferenças, <strong>em</strong> estado de<br />

potência, por isso indizíveis, que forma um fundo, um "caldo efervescente", de<br />

219


onde <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> fatos/acontecimentos. O importante não é verificar se as coisas<br />

são ver<strong>da</strong>deiras ou falsas e sim considerar que pod<strong>em</strong> ser ver<strong>da</strong>deiras e falsas,<br />

ou então, n<strong>em</strong> ver<strong>da</strong>deiras n<strong>em</strong> falsas. Não é o fato localizado, o fenômeno, que<br />

deve ser considerado, mas o todo, os nexos, de onde <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> os<br />

acontecimentos num movimento histórico de aparecer e desaparecer constantes,<br />

numa aparência instável e provisória.<br />

Sob essa perspectiva, a análise do fenômeno não foi r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> a partir<br />

de um recorte, de uma decomposição, de uma divisão-redução <strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos<br />

mais simples e, sim, como compreensão, acompanhamento dos acontecimentos<br />

dinâmicos que apareciam e desapareciam no contexto.<br />

Essa possibili<strong>da</strong>de de pesquisa situa-se na perspectiva de integrar<br />

professor e pesquisador no mesmo profissional, com vistas a produzir<br />

conhecimentos sobre os probl<strong>em</strong>as vividos por este e pelo coletivo envolvido, ou<br />

seja, a partir de uma perspectiva prática e, com isso, atingir uma melhora <strong>da</strong><br />

situação, de si mesmo e <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong>de, na busca <strong>da</strong> superação <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de do<br />

professor como simples reprodutor e repassador de conhecimentos. Estudos<br />

doutorais comprovaram, <strong>em</strong> várias ár<strong>ea</strong>s, este fato, como foi o caso <strong>da</strong> pesquisa<br />

r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> por Taffarel (1993), sobre o currículo do curso de Educação Física <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de Estadual de Campinas, cuja análise aponta que:<br />

uma <strong>da</strong>s explicações possíveis para estes fatos fun<strong>da</strong>menta-se na<br />

separação do trabalho intelectual e manual (entre "cientista" e<br />

"professor", "técnico" e "professor"), entre o que produz o conhecimento<br />

e aquele que o utiliza. Separam-se e justificam-se por esse argumento<br />

as pessoas, as disciplinas, matérias e conteúdos. A umas caberá o<br />

exercício <strong>da</strong>s funções intelectuais (bacharel) e às outras caberá o<br />

exercício <strong>da</strong>s tarefas (professor). Aos primeiros a escola oferecerá o<br />

conhecimento sobre o trabalho sob a forma de princípios teóricos e<br />

metodológicos, necessários às funções intelectuais; aos segundos o<br />

conhecimento será oferecido na própria prática do trabalho - são<br />

valorizados pelo conhecimento desenvolvido na prática profissional.<br />

Encontramos aí a separação entre os bacharéis (produtores do<br />

220


conhecimento) e os licenciados (distribuidores do conhecimento)<br />

(TAFFAREL, 1993, p. 137-138).<br />

A pesquisa-ação, apesar de não ser um método novo de investigação 85 , v<strong>em</strong><br />

se consoli<strong>da</strong>ndo, nos últimos anos, como uma possibili<strong>da</strong>de que reconhece<br />

professor e estu<strong>da</strong>ntes como produtores de conhecimentos e não apenas meros<br />

executores ou reprodutores de teorias. Além disso, ela se opõe aos moldes de um<br />

currículo bas<strong>ea</strong>do na racionali<strong>da</strong>de técnica (na poiésis) e busca referências no<br />

currículo concebido como processo (na <strong>práxis</strong>). Se a poiésis, na clássica distinção<br />

aristotélica, constitui-se num conjunto de procedimentos operativos para produzir<br />

resultados quantificáveis e especificados previamente, a <strong>práxis</strong> refere-se à<br />

r<strong>ea</strong>lização de um id<strong>ea</strong>l de vi<strong>da</strong> e à atualização de valores éticos, e isso só é possível<br />

numa prática reflexiva, compartilha<strong>da</strong> e contextualiza<strong>da</strong>.<br />

A pesquisa-ação não pode ser confundi<strong>da</strong> com um processo solitário de<br />

auto-avaliação, portanto, os sujeitos históricos envolvidos são convi<strong>da</strong>dos não só a<br />

abstrair sobre algo, numa atitude cont<strong>em</strong>plativa, mas também a fazer algo, numa<br />

atitude proativa, des<strong>em</strong>penhando, desta forma, um papel efetivo na própria<br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de pesquisa<strong>da</strong>. Em outras palavras, não se trata apenas de descrever a<br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de pesquisa<strong>da</strong>, mas operar estrategicamente no sentido de mu<strong>da</strong>r a própria<br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de pesquisa<strong>da</strong>. Segundo McLaren (2000, p. 35):<br />

pesquisadores educacionais, capazes de nom<strong>ea</strong>r a injustiça social,<br />

freqüent<strong>em</strong>ente estend<strong>em</strong> seu papel para o de ativistas sociais. Mas<br />

se os conceitos de opressão e dominação não fizer<strong>em</strong> parte do<br />

85 O pe<strong>da</strong>gogo e psicólogo al<strong>em</strong>ão naturalizado norte-americano Kurt Lewin (1890-1947) foi o criador<br />

<strong>da</strong> Action-res<strong>ea</strong>rch (pesquisa-ação). Ele concebia a pesquisa-ação como um posicionamento<br />

r<strong>ea</strong>lista <strong>da</strong> ação, s<strong>em</strong>pre segui<strong>da</strong> por uma reflexão autocrítica objetiva e uma avaliação de<br />

resultados. Os princípios estabelecidos por ele, para esta estratégia de pesquisa, foram: o caráter<br />

participativo, o impulso d<strong>em</strong>ocrático e a contribuição para mu<strong>da</strong>nças de ord<strong>em</strong> psicossocial <strong>em</strong><br />

grupos específicos com probl<strong>em</strong>as práticos, s<strong>em</strong>, contudo, visar intervir na estrutura <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de de<br />

classes. Defendia que não deveria haver “ação s<strong>em</strong> pesquisa e n<strong>em</strong> pesquisa s<strong>em</strong> ação” (BARBIER,<br />

1985; PEREIRA, 1998). No Brasil, os pressupostos <strong>da</strong> “pe<strong>da</strong>gogia do oprimido”, de Paulo Freire,<br />

ressignificaram essa prática de pesquisa, voltando-a, prioritariamente, para a intervenção libertadora<br />

<strong>em</strong> movimentos sociais e <strong>em</strong> categorias “marginaliza<strong>da</strong>s” <strong>da</strong> população, a partir de “investigações<br />

t<strong>em</strong>áticas”.<br />

221


vocabulário de um pesquisador, é b<strong>em</strong> provável que sua análise<br />

permaneça desinteressa<strong>da</strong>, neutra e desprovi<strong>da</strong> de crítica social.<br />

Os pressupostos <strong>da</strong> pesquisa-ação delineiam que cabe ao pesquisador<br />

des<strong>em</strong>penhar um papel ativo – participante engajado – no equacionamento dos<br />

probl<strong>em</strong>as encontrados, no acompanhamento e na avaliação <strong>da</strong>s ações<br />

desencad<strong>ea</strong><strong>da</strong>s, assumindo os objetivos definidos, orientando a investigação <strong>em</strong><br />

função dos meios disponíveis, adotando atitude de “escuta” e de eluci<strong>da</strong>ção dos<br />

vários aspectos <strong>da</strong> situação. Ele pode interpretar probl<strong>em</strong>as, esclarecer questões e<br />

atitudes, assinalar contradições, explorar mal-entendidos s<strong>em</strong>, no entanto, impor<br />

suas concepções próprias. É papel do pesquisador, também, permitir aos<br />

participantes expressar<strong>em</strong> a percepção que têm do fenômeno <strong>em</strong> estudo,<br />

colocando, à disposição deles, os conhecimentos de ord<strong>em</strong> teórica e prática para<br />

facilitar a discussão dos probl<strong>em</strong>as. É sua função, ain<strong>da</strong>, elaborar atas, registros de<br />

informações e relatórios de síntese, concebendo e aplicando, <strong>em</strong> conjunto com os<br />

participantes, as possibili<strong>da</strong>des de ação, participando <strong>da</strong>s reflexões globais para<br />

chegar a generalizações e discussão dos resultados.<br />

Cabe, ao d<strong>em</strong>ais participantes <strong>da</strong> pesquisa-ação, des<strong>em</strong>penhar um<br />

papel ativo na própria r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, pois são eles os responsáveis pelo<br />

desenvolvimento <strong>da</strong>s ações, podendo, portanto, apontar os limites e as<br />

possibili<strong>da</strong>des delas, para que, <strong>em</strong> conjunto, possam ser planeja<strong>da</strong>s, executa<strong>da</strong>s,<br />

avalia<strong>da</strong>s, reorganiza<strong>da</strong>s, redimensiona<strong>da</strong>s, com vistas a atender os objetivos<br />

propostos. Como não há pesquisa-ação s<strong>em</strong> participação coletiva, é fun<strong>da</strong>mental o<br />

envolvimento de todos os m<strong>em</strong>bros <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as toma<strong>da</strong>s de decisões, de modo que<br />

“possam planejar, organizar e r<strong>ea</strong>lizar eles mesmos suas mu<strong>da</strong>nças de um modo<br />

consciente, livre e inteligente, com o máximo possível de reflexão” Barbier (1985, p.<br />

222


46). Como conseqüência, a interpretação e análise dos <strong>da</strong>dos serão o produto <strong>da</strong>s<br />

discussões do grupo.<br />

Foi assim que, com o s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação, procuramos delin<strong>ea</strong>r<br />

uma linha geral de ação que, a rigor, não sufocava as inquietações <strong>da</strong> <strong>em</strong>piria,<br />

não engessava o fenômeno, n<strong>em</strong> tampouco o contexto investigado.<br />

Sob essa perspectiva, a análise do fenômeno não foi r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> a partir<br />

de um recorte, de uma decomposição, de uma divisão-redução <strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos<br />

mais simples e, sim, como compreensão, acompanhamento dos acontecimentos<br />

dinâmicos que iam aparecendo e desaparecendo no contexto.<br />

Estávamos convictos que, para fazer uma análise correta <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de<br />

com vistas a transformá-la, deveríamos articular relações entre o fenômeno<br />

investigado e a totali<strong>da</strong>de, assim como, articular referências distintas, irredutíveis<br />

umas às outras, s<strong>em</strong> homogeneizá-las e s<strong>em</strong> o compromisso de fazer síntese<br />

unifica<strong>da</strong> de diferentes pontos de vistas. O nosso papel, como pesquisador, era<br />

compreender a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de concreta do fenômeno a partir <strong>da</strong>s interações concretas<br />

entre os sujeitos envolvidos, e a partir <strong>da</strong>í, propor mu<strong>da</strong>nças.<br />

Para compreender os sentidos e significados que os sujeitos <strong>da</strong><br />

pesquisa <strong>da</strong>vam ao fenômeno pesquisado, procuramos efetuar, como ponto de<br />

parti<strong>da</strong>, uma discussão probl<strong>em</strong>atizadora que identificasse suas principais<br />

características como prática social determina<strong>da</strong>. Tomando como base a<br />

totali<strong>da</strong>de, a radicali<strong>da</strong>de e o conjunto <strong>da</strong>s interações que envolviam o fenômeno<br />

investigado, procurávamos compreender seus nexos e determinantes históricos.<br />

Essa discussão probl<strong>em</strong>atizadora resultou numa necessária interação<br />

com os d<strong>em</strong>ais participantes do s<strong>em</strong>inário, que ora implicava numa imersão no<br />

223


grupo, ora implicava num estranhamento <strong>da</strong>s coisas e acontecimentos, tentando<br />

desvencilhar-nos de uma suposta “atitude natural”.<br />

Conforme o próprio nome diz, a pesquisa-ação se concretiza através de<br />

alguma forma de ação planeja<strong>da</strong>, com as definições claras dos papéis dos<br />

sujeitos envolvidos, e as possibili<strong>da</strong>des que assegurarão a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ação<br />

e a incorporação <strong>da</strong>s sugestões deriva<strong>da</strong>s do processo investigativo, com o<br />

objetivo de aperfeiçoar a prática e o desenvolvimento <strong>da</strong>s pessoas <strong>em</strong> seu<br />

exercício profissional. Nela, a relação teoria-prática dá-se <strong>da</strong> seguinte forma: “a<br />

abstração teórica des<strong>em</strong>penha um papel subordinado no desenvolvimento de<br />

uma sabedoria prática sobre como r<strong>ea</strong>lizar valores educacionais <strong>em</strong> ação”<br />

(PEREIRA, 1998, p. 167).<br />

Foram propostas, no processo de investigação, t<strong>em</strong>atizações que<br />

buscass<strong>em</strong> uma articulação entre conhecimento e ação propriamente dita. Isso<br />

implicou na identificação de proposições indicativas ou descritivas, ou seja, como a<br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de do fenômeno se apresentava para, <strong>em</strong> segui<strong>da</strong>, probl<strong>em</strong>atizá-la, com o<br />

objetivo de manter ou alterar a concepção sobre esta mesma r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de.<br />

Como ex<strong>em</strong>plo, pod<strong>em</strong>os citar as experiências com a gestuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>s nos encontros. Essas ativi<strong>da</strong>des eram desenvolvi<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong><br />

idéia de uma espiral ascendente, cujos anéis contínuos iam se ampliando ca<strong>da</strong> vez<br />

mais. Assim, a experiência começava com os participantes movimentando-se<br />

individualmente, s<strong>em</strong> a preocupação de seguir qualquer referência externa, a não<br />

ser o seu próprio conhecimento acumulado. Em segui<strong>da</strong>, eram propostos desafios<br />

que probl<strong>em</strong>atizass<strong>em</strong> alguns componentes do repertório gestual <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, como<br />

a circulari<strong>da</strong>de, a inversão corporal, o desafio, a agonística, a descontração etc.<br />

Posteriormente, os participantes eram convocados a desafiar as noções de espaço<br />

224


e t<strong>em</strong>po a partir de ativi<strong>da</strong>des <strong>em</strong> duplas, trincas e quadras. Por fim, coletivamente e<br />

<strong>em</strong> ro<strong>da</strong>, todos eram convi<strong>da</strong>dos a relatar suas experiências.<br />

A idéia fun<strong>da</strong>nte, presente no transcorrer desta etapa <strong>da</strong> pesquisa, era<br />

construir formas diferencia<strong>da</strong>s que evitass<strong>em</strong> a lógica <strong>da</strong> reprodução de modelos e<br />

padrões, bastante difundidos pelas chama<strong>da</strong>s metodologias de treinamento <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>. Estávamos <strong>em</strong> busca de novos el<strong>em</strong>entos que objetivass<strong>em</strong> a formulação<br />

de possibili<strong>da</strong>des pe<strong>da</strong>gógicas que probl<strong>em</strong>atizass<strong>em</strong> e ampliass<strong>em</strong> o entendimento<br />

<strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de objetiva, pois, como já vimos, a despeito <strong>da</strong> consciência de ca<strong>da</strong> sujeito<br />

histórico sobre ela, contém nexos e determinações históricas que independ<strong>em</strong> <strong>da</strong>s<br />

consciências individuais.<br />

A necessi<strong>da</strong>de de aprofun<strong>da</strong>r a reflexão sobre o objeto investigado exigiu<br />

que recorrêss<strong>em</strong>os a algumas possibili<strong>da</strong>des didáticas que nos permitiss<strong>em</strong><br />

entendê-lo melhor. Foi então que, inspirados nas contribuições teóricas<br />

apresenta<strong>da</strong>s por Saviani (2000) e Berbel (1995), sobre a organização do trabalho<br />

escolar e o trato com o conhecimento, propus<strong>em</strong>os ao coletivo <strong>da</strong> pesquisa, através<br />

de texto introdutório, as seguintes possibili<strong>da</strong>des pe<strong>da</strong>gógicas para tratar o<br />

conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>: Experimentação, Probl<strong>em</strong>atização, Teorização e<br />

Re<strong>construção</strong> Coletiva do Conhecimento. 86<br />

A experimentação consistiu <strong>em</strong> formular e explorar possibili<strong>da</strong>des de<br />

ação, <strong>em</strong> que os sujeitos deveriam se mostrar, tomando como ponto de parti<strong>da</strong> a<br />

prática social, ou seja, os probl<strong>em</strong>as e as necessi<strong>da</strong>des práticas surgi<strong>da</strong>s no<br />

cotidiano, considerando que, a partir do fazer se gera, dialeticamente, um saber<br />

fazer e um saber sobre esse saber fazer que se apresenta, num primeiro momento,<br />

de forma fragmenta<strong>da</strong> e desarticula<strong>da</strong>. É importante frisar que não existe uma<br />

86 Saviani (2000), <strong>em</strong> sua proposta para a organização do trabalho escolar, adota como princípio geral<br />

partir <strong>da</strong> prática social para retornar à prática social <strong>em</strong> um outro nível de compreensão.<br />

225


seqüência cronológica entre o fazer e o saber. Trata-se de um processo <strong>em</strong> que<br />

esses momentos se interpenetram. Diferent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> vivência, <strong>em</strong> que os<br />

indivíduos r<strong>ea</strong>g<strong>em</strong> a estímulos, passam pela vi<strong>da</strong> como um espectador, como<br />

objeto; na experiência, ag<strong>em</strong> de forma consciente, pensa<strong>da</strong>, refleti<strong>da</strong>,<br />

compartilha<strong>da</strong>, ag<strong>em</strong> como sujeitos de uma comuni<strong>da</strong>de humana. Na vivência, a<br />

vi<strong>da</strong> é reflexo e se dissipa; na experiência a vi<strong>da</strong> é reflexão, é vivi<strong>da</strong> de fato, <strong>em</strong><br />

extensão e profundi<strong>da</strong>de, com melhor detalhamento. Os interesses e as <strong>em</strong>oções<br />

individuais transformam-se <strong>em</strong> fatos sociais. É desse mergulho que <strong>em</strong>erge a<br />

tradição, retoma<strong>da</strong> e transforma<strong>da</strong>, como algo que engloba e transcende as<br />

pequenas experiências individuais particulares e que passa de geração para<br />

geração. Uma dimensão, portanto, que transcende e, dialeticamente, comporta a<br />

simples existência de ca<strong>da</strong> sujeito.<br />

A experimentação implica <strong>em</strong> extrair, pela ação, uma compreensão que<br />

enriquece a vi<strong>da</strong> do sujeito e por ele é enriqueci<strong>da</strong>. Não se trata de verbalizar sobre,<br />

mas de experimentar refletindo com, na e sobre a própria ação. Não se trata de<br />

encenar situações fictícias, de forjar ativi<strong>da</strong>des pareci<strong>da</strong>s com o trabalho material,<br />

mas de exercitar uma articulação direta com o trabalho material e, também, com os<br />

outros sujeitos. Esta possibili<strong>da</strong>de consistia na manipulação e exploração direta <strong>da</strong>s<br />

proprie<strong>da</strong>des dos recursos didáticos, b<strong>em</strong> como <strong>da</strong>s próprias capaci<strong>da</strong>des dos<br />

d<strong>em</strong>ais integrantes do grupo de pesquisa, como “descobridores” e “inventores” de<br />

diferentes possibili<strong>da</strong>des. Destinava-se a uma melhor compreensão <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> a<br />

partir de suas mu<strong>da</strong>nças históricas, através <strong>da</strong> experimentação <strong>da</strong>s diferentes<br />

formas que esta se apresentou, apresenta ou pode apresentar. Foram propostos,<br />

com ênfase na experimentação, a exercitação de formas de <strong>jogo</strong>s, de rituais já<br />

consagrados ou não, no contexto <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, como, por ex<strong>em</strong>plo, jogar levando <strong>em</strong><br />

226


consideração referências <strong>da</strong> Angola ou <strong>da</strong> Regional; jogar no ritmo dos diferentes<br />

toques do berimbau etc. A experimentação possibilitou ain<strong>da</strong> ações sócio-<br />

<strong>em</strong>ocionais de forma comunicativa e a interpretação de diferentes papéis,<br />

concepções e interesses vinculados ao contexto sócio-político dessa manifestação<br />

<strong>em</strong> interação com probl<strong>em</strong>áticas significativas <strong>da</strong> convivência social. A<br />

experimentação englobou também a encenação. Segundo Augusto Boal, autor do,<br />

mundialmente reconhecido, “T<strong>ea</strong>tro do Oprimido”, a encenação permite a liberação<br />

<strong>da</strong> “pessoa” que existe dentro de ca<strong>da</strong> um.<br />

Esta pessoa é a panela de pressão, todos os diabos estão lá dentro, e<br />

todos os santos estão lá dentro, ca<strong>da</strong> um de nós t<strong>em</strong> lá dentro todos<br />

os vícios possíveis ao ser humano. E to<strong>da</strong>s as virtudes também. (...) o<br />

que sai para fora é a personali<strong>da</strong>de, a personali<strong>da</strong>de é o resultado <strong>da</strong><br />

fervura interna e aquilo que a gente permita que saia (BOAL, 2001, p.<br />

30).<br />

O que caracteriza, basicamente, o T<strong>ea</strong>tro do Oprimido de Boal é que ele<br />

não é mensageiro de uma r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de. Ele é a própria r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, que mostra sua cara,<br />

seus vícios e suas virtudes. Os protagonistas, além de encenar<strong>em</strong> a sua r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de,<br />

buscam dentro de si aquilo que gostariam de ser.<br />

Contando com o auxílio de algumas possibili<strong>da</strong>des cênicas <strong>em</strong>prega<strong>da</strong>s<br />

por esse autor, foi possível envolver intensamente os sujeitos <strong>da</strong> pesquisa, como,<br />

por ex<strong>em</strong>plo, através <strong>da</strong> experiência do “t<strong>ea</strong>tro fórum”, <strong>em</strong> que um protagonista<br />

apresenta uma cena com um probl<strong>em</strong>a, depois esta mesma cena é r<strong>ea</strong>presenta<strong>da</strong><br />

por outros que improvisam soluções. A encenação compreende, portanto, as<br />

diversas formas de exposição e dramatização de linguagens, a gestual, a musical<br />

etc., juntas ou separa<strong>da</strong>s, como, por ex<strong>em</strong>plo, cantar para um ou mais colegas etc.<br />

Não se trata de observar o meio circun<strong>da</strong>nte, mas encenar e, com isso, evidenciar<br />

os probl<strong>em</strong>as <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social.<br />

227


As místicas pod<strong>em</strong>, também, ser utiliza<strong>da</strong>s na experimentação com o<br />

objetivo de exercitar a utopia, no intuito de explorar as possibili<strong>da</strong>des de superação<br />

dos fracassos históricos e questionar os processos de alienação que, <strong>em</strong> todo<br />

momento, incid<strong>em</strong> sobre a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social. Enfim, a experimentação compreende<br />

uma imersão na prática social concreta s<strong>em</strong>, no entanto, se preocupar com níveis<br />

elaborados de compreensão dessa mesma prática social. Até porque n<strong>em</strong> tudo que<br />

se experimenta é possível ser assimilado por palavras. A idéia é, então, articular<br />

experiências, interagir, integrar.<br />

A probl<strong>em</strong>atização baseou-se no confronto e na discussão dos<br />

conteúdos e <strong>da</strong>s diversas situações de ensino, leva<strong>da</strong>s a efeito pela<br />

experimentação. É a possibili<strong>da</strong>de de detecção <strong>da</strong>s questões que precisam ser<br />

resolvi<strong>da</strong>s num plano racional de entendimento, no âmbito <strong>da</strong> prática social e<br />

identificação de qual conhecimento é necessário dominar. A probl<strong>em</strong>atização<br />

instaura a dúvi<strong>da</strong> e a pergunta como princípios e como métodos de conhecimento, e<br />

contrapõe-se à “pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> transmissão”, muito presente no trato com o<br />

conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>. Ela se opõe, também, a uma estética <strong>da</strong> interiori<strong>da</strong>de,<br />

<strong>da</strong> harmonia, <strong>da</strong> consolação. Sua base é inspira<strong>da</strong> na maiêutica socrática, <strong>em</strong> que<br />

se multiplicam as perguntas a fim de obter, por indução dos casos particulares e<br />

concretos, um conceito geral do objeto <strong>em</strong> questão. Nesse sentido, ela é, na<br />

essência, provocação. A partir de questões pertinentes (uma afirmação e/ou uma<br />

negação), diante de ilusórias ver<strong>da</strong>des b<strong>em</strong> estabeleci<strong>da</strong>s, pesquisador e d<strong>em</strong>ais<br />

integrantes do grupo de pesquisa foram probl<strong>em</strong>atizando a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de vivi<strong>da</strong>,<br />

distinguindo o que é significativo do que é puramente superficial e contingente.<br />

Foram levantados, então, pontos chaves que serviam como el<strong>em</strong>entos balizadores<br />

<strong>em</strong> torno dos quais aconteciam as argumentações, com a finali<strong>da</strong>de de não<br />

228


transformar essa possibili<strong>da</strong>de num simples bate-boca. Segundo Berbel (1995, p.<br />

15), “a dinâmica de interações que se estabelece entre alunos e professor(es), entre<br />

esses e a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de e com o conhecimento, é um processo construtivo irreversível”.<br />

O fato é que o confronto de visões mobilizou o potencial político, social e ético dos<br />

envolvidos no processo. Com a probl<strong>em</strong>atização, as percepções primeiras,<br />

extraí<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s aparências ou mesmo do senso comum, deram lugar às inquietações<br />

e contribuíram para mobilizar o grupo <strong>em</strong> busca de explicações convincentes e mais<br />

elabora<strong>da</strong>s, entretanto, ela não se limitou a denunciar as contradições e os conflitos<br />

inerentes à r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, mas buscou também possibili<strong>da</strong>des de entendimentos e<br />

consensos.<br />

A teorização buscou a <strong>construção</strong> de respostas mais elabora<strong>da</strong>s para os<br />

probl<strong>em</strong>as identificados a partir <strong>da</strong> apresentação, por este pesquisador, e pelos<br />

d<strong>em</strong>ais integrantes do grupo de pesquisa, de subsídios diversos que mobilizaram e<br />

ampliaram o entendimento <strong>da</strong>s questões levanta<strong>da</strong>s.<br />

Apesar de muitos aspectos teóricos perpassar<strong>em</strong> as etapas anteriores, a<br />

teorização constituiu a possibili<strong>da</strong>de de <strong>construção</strong> de respostas mais elabora<strong>da</strong>s<br />

para os probl<strong>em</strong>as, e isso implicou na instrumentalização dos sujeitos, ou seja, na<br />

apropriação de referenciais teóricos necessários ao equacionamento <strong>da</strong>s dúvi<strong>da</strong>s.<br />

Nessa perspectiva, a teorização foi pratica<strong>da</strong>, a fim de produzir mu<strong>da</strong>nças r<strong>ea</strong>is.<br />

Não se tratava de interpretar determinados fatos, idéias e mitos relacionados ao<br />

campo investigado, mas questioná-los, superá-los ou, até mesmo, negá-los. Enfim,<br />

a teoria deveria também ser probl<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong> para que não engessasse a prática. Se<br />

ela (a prática) t<strong>em</strong> um sentido estritamente utilitário, a teoria faz-se absolutamente<br />

desnecessária, perturbadora ou nociva àquela. Nessas práticas essencialmente<br />

utilitaristas t<strong>em</strong>os, <strong>em</strong> vez de formulações teóricas, uma rede, construí<strong>da</strong> pelo senso<br />

229


comum, impregna<strong>da</strong> de “preconceitos, ver<strong>da</strong>des estereotipa<strong>da</strong>s e, <strong>em</strong> alguns casos,<br />

superstições de uma concepção irracional (mágica ou religiosa) do mundo”<br />

(VÁZQUEZ, 1986, p. 210).<br />

A teorização inseriu-se como uma possibili<strong>da</strong>de de ampliação, <strong>em</strong><br />

extensão e profundi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica, evitando o pragmatismo, que reduz<br />

o ver<strong>da</strong>deiro ao útil. Imerso na r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de prática e sucumbido às necessi<strong>da</strong>des<br />

imediatas, o hom<strong>em</strong>, geralmente, não t<strong>em</strong> clara consciência teórica de sua ação. Ao<br />

confrontar suas percepções primeiras, dispersas e confusas, com o conhecimento já<br />

sist<strong>em</strong>atizado, o sujeito vai adquirindo uma compreensão mais amplia<strong>da</strong>, mais<br />

profícua, por que não dizer, científica, <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social. As fontes para a<br />

teorização foram busca<strong>da</strong>s <strong>em</strong> livros, revistas, jornais, internet, relatos de<br />

experiência, especialistas, visitas, intercâmbios, dentre outras.<br />

Os “pontos-chave” levantados pela probl<strong>em</strong>atização serviram, também,<br />

para orientar a teorização a fim de evitar que o grupo se perdesse num labirinto<br />

teorético, pois a teoria é ampla e fértil e, caso não seja pratica<strong>da</strong>, ela não t<strong>em</strong><br />

compromisso com a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de.<br />

Na teorização, a reflexão radical, rigorosa e de conjunto torna-se<br />

imperiosa à medi<strong>da</strong> que exige uma “viag<strong>em</strong>” metódica e contextualiza<strong>da</strong> às raízes<br />

<strong>da</strong>s questões significativas que caracterizam o fenômeno<br />

praticado/investigado/construído. Para que a teorização não se transformasse num<br />

“opiniário”, os d<strong>em</strong>ais participantes foram estimulados a r<strong>ea</strong>lizar leituras, pois<br />

entendíamos que a tarefa de teorizar é s<strong>em</strong>pre difícil, principalmente quando não se<br />

t<strong>em</strong> o hábito de fazê-la.<br />

A re<strong>construção</strong> coletiva do conhecimento consistiu na ressignificação<br />

do sentido/significado do fenômeno abor<strong>da</strong>do a partir de análises e discussões<br />

230


coletivas <strong>da</strong>s etapas anteriores. Destinava-se, <strong>em</strong> especial, à sist<strong>em</strong>atização<br />

coletiva do conhecimento e sua apropriação crítica por parte de todos os envolvidos<br />

no processo. Era importante levar a todos a compreender e ratificar, na experiência<br />

concreta, que as teorias pe<strong>da</strong>gógicas são gera<strong>da</strong>s na prática. A re<strong>construção</strong><br />

coletiva do conhecimento correspondia, portanto, ao retorno à prática social, <strong>em</strong> um<br />

outro nível de compreensão. Constituía-se num momento de “efetiva incorporação<br />

dos instrumentos culturais, transformados agora <strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos ativos de<br />

transformação social” (SAVIANI, 1984, p. 75). Na re<strong>construção</strong> coletiva do<br />

conhecimento é preciso pensar e agir de modo inovador para provocar a superação<br />

e/ou a solução dos probl<strong>em</strong>as levantados, considerando-se a viabili<strong>da</strong>de e a<br />

factibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas hipóteses de solução, b<strong>em</strong> como as características<br />

específicas, os condicionamentos, as possibili<strong>da</strong>des e as limitações identifica<strong>da</strong>s na<br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de concreta vivi<strong>da</strong>.<br />

Essas possibili<strong>da</strong>des didáticas não estiveram adstritas às aulas<br />

convencionais, mas perm<strong>ea</strong>ram to<strong>da</strong> a organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico no<br />

sentido de permitir aos participantes do s<strong>em</strong>inário a passag<strong>em</strong> de uma visão<br />

sincrética, geral e precária, para uma visão sintética e mais elabora<strong>da</strong> do objeto<br />

investigado e também <strong>da</strong> prática social. Elas não foram trata<strong>da</strong>s de forma<br />

justaposta, mas relacionavam-se dialeticamente, com rigorosi<strong>da</strong>de, radicali<strong>da</strong>de e<br />

universali<strong>da</strong>de. Nesse movimento, o confronto <strong>da</strong>s idéias era com o r<strong>ea</strong>l<br />

acontecendo, <strong>em</strong> situação prática, dinâmica, interativa, onde “o pensado se<br />

transforma <strong>em</strong> prática, onde se aprende a adequar a relação teoria-prática; onde a<br />

dialética <strong>da</strong> ação-reflexão é possibilita<strong>da</strong> e exercita<strong>da</strong>” (BERBEL, 1995, p. 16).<br />

Reconhec<strong>em</strong>os que a educação é uma ativi<strong>da</strong>de mediadora entre o<br />

sujeito e a socie<strong>da</strong>de. Ela não transforma a prática social de modo direto e imediato,<br />

231


mas de modo indireto e mediato, à medi<strong>da</strong> que age sobre os sujeitos <strong>da</strong> prática. O<br />

importante foi observar e constatar que o sujeito se insere na r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de e aprende<br />

com ela e, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se prepara para transformá-la, transforma-se a<br />

si próprio.<br />

Um outro aspecto observado nesta etapa <strong>da</strong> pesquisa, constituiu-se no<br />

fato de não ser ela, fruto de uma ação especializa<strong>da</strong> de um pesquisador, mas de um<br />

professor, situado na perspectiva do professor–pesquisador, que reconhece a<br />

pesquisa científica como constitutiva <strong>da</strong>s próprias ativi<strong>da</strong>des docentes e como<br />

importante fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica.<br />

Por fim, é importante levar <strong>em</strong> consideração que a metodologia adota<strong>da</strong><br />

nesta etapa <strong>da</strong> pesquisa não deve ser vista como uma técnica qualquer, avulsa,<br />

neutra, mas que t<strong>em</strong> razões históricas e princípios fun<strong>da</strong>mentais que requer<strong>em</strong> um<br />

aprofun<strong>da</strong>mento <strong>em</strong> relação aos seus pressupostos teóricos. Em última instância, o<br />

que se almeja é a transformação <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, e esta não se reduz a um trabalho<br />

isolado e individualizado. Ela só é possível de forma coletiva e, como disse Pistrak<br />

(1981, p. 41), <strong>em</strong> relação a auto-organização dos estu<strong>da</strong>ntes: “a aptidão para<br />

trabalhar coletivamente só se adquire no trabalho coletivo”. Por isso, ela não deve<br />

ser aplica<strong>da</strong> apenas uma vez, por um só professor, <strong>em</strong> uma única disciplina. É<br />

necessário que haja sensibilização, ressonância, enfim, que seja multiplica<strong>da</strong> no<br />

t<strong>em</strong>po e no espaço.<br />

Essas ações pe<strong>da</strong>gógicas (experimentação, probl<strong>em</strong>atização, teorização<br />

e re<strong>construção</strong> coletiva do conhecimento) foram fun<strong>da</strong>mentais nessa etapa de<br />

pesquisa e, ao ser<strong>em</strong> articula<strong>da</strong>s com os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> pesquisa-ação,<br />

d<strong>em</strong>onstraram a sua pertinência e exeqüibili<strong>da</strong>de no processo de organização do<br />

trabalho pe<strong>da</strong>gógico e no trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo de<br />

232


formação profissional, dentro de uma perspectiva crítica. Elas, por sua vez, foram<br />

também experimenta<strong>da</strong>s, probl<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong>s, teoriza<strong>da</strong>s e reconstruí<strong>da</strong>s nesse<br />

percurso investigativo. Tais possibili<strong>da</strong>des compõ<strong>em</strong>, portanto, as nossas<br />

“mandingas pe<strong>da</strong>gógicas” para a formulação <strong>da</strong> <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na trata<strong>da</strong> como um<br />

complexo t<strong>em</strong>ático, que apresentar<strong>em</strong>os no sexto capítulo.<br />

Foi a partir desses pressupostos e após alguns ajustes organizativos <strong>da</strong><br />

pesquisa que começamos a coletar <strong>da</strong>dos através de questionários, entrevistas,<br />

documentos, observações participantes, textos produzidos pelos participantes do<br />

s<strong>em</strong>inário e diários de campo. Para a coleta dos <strong>da</strong>dos, foi necessária uma divisão<br />

de trabalho. As informações reuni<strong>da</strong>s pelos diversos grupos de trabalho foram<br />

interpreta<strong>da</strong>s, analisa<strong>da</strong>s e debati<strong>da</strong>s e serviram de subsídios para a formulação<br />

<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des pe<strong>da</strong>gógicas para o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no<br />

currículo de formação profissional.<br />

O início de ca<strong>da</strong> encontro era destinado aos informes, mediante os quais,<br />

os integrantes divulgavam / recebiam notícias sobre eventos, sobre fatos<br />

importantes vivenciados por eles.<br />

Foi cria<strong>da</strong> uma lista de discussão na internet com os endereços<br />

eletrônicos dos participantes, mas esta não surtiu o efeito desejado, pois a grande<br />

maioria não encaminhou mensagens e n<strong>em</strong> participou <strong>da</strong>s discussões.<br />

Foi solicitado que ca<strong>da</strong> integrante confeccionasse um diário de campo e<br />

que nesse diário foss<strong>em</strong> assinala<strong>da</strong>s as experiências mais significativas. Entretanto,<br />

no final, apenas um integrante apresentou o diário de campo.<br />

Elaboramos também um diário de campo, no qual pud<strong>em</strong>os registrar as<br />

principais ativi<strong>da</strong>des dos encontros e os fatos mais significativos que despertavam<br />

interesse <strong>da</strong> maioria.<br />

233


Em geral, as dinâmicas possibilitaram discussões ricas sobre o trato com<br />

o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, e o enfoque lúdico s<strong>em</strong>pre era visto como um modo de<br />

efetiva integração e descontração, além de tornar os encontros mais descontraídos<br />

e prazerosos.<br />

Dentre as ativi<strong>da</strong>des significativas, foi apresentado e discutido o vídeo-<br />

documentário intitulado “A Capoeirag<strong>em</strong> na Bahia”, produzido pelo Instituto de<br />

Radiodifusão Educativa <strong>da</strong> Bahia (UMBERTO, 2000). Esse documentário contribuiu<br />

para o entendimento do processo de desenvolvimento histórico <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> à<br />

medi<strong>da</strong> que discorre sobre os principais protagonistas e contextos <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong><br />

baiana, com riqueza de detalhes e uma brilhante reconstituição de imagens de<br />

personali<strong>da</strong>des que já faleceram e que se transformaram, post-mort<strong>em</strong>, <strong>em</strong><br />

ver<strong>da</strong>deiros ícones, como é o caso dos Mestres Bimba e Pastinha.<br />

Os participantes do s<strong>em</strong>inário tiveram oportuni<strong>da</strong>de de experienciar<br />

minimamente o repertório gestual <strong>capoeira</strong>no, com destaque para a ginga, os golpes<br />

e as negaças, o canto improvisado e a ro<strong>da</strong> lúdica. Tudo isso ocorreu por meio de<br />

experiências individuais, <strong>em</strong> dupla e coletivamente, com ênfase na circulari<strong>da</strong>de, na<br />

descontração e na atenção.<br />

No que diz respeito às experiências com os golpes de <strong>capoeira</strong>, elas não<br />

se restringiram à pura execução biomecânica, mas foram acompanha<strong>da</strong>s de<br />

discussões sobre as diferentes nomenclaturas, a etimologia, a aplicação, as<br />

possibili<strong>da</strong>des de sist<strong>em</strong>atização, os significados e as suas representações, os<br />

detalhes técnicos e de segurança.<br />

Foram r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>s discussões sobre a história <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, suas principais<br />

vertentes (Capoeira Angola e Regional) suas origens, seus precursores e<br />

sist<strong>em</strong>atizadores, a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de atual e as suas possibili<strong>da</strong>des.<br />

234


Foi também r<strong>ea</strong>lizado importante debate sobre a relação <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> com<br />

a Educação Física, a partir do processo de regulamentação desta última. Isto<br />

ocorreu <strong>em</strong> conjunto com uma reunião do Fórum dos Capoeiras de Santa Catarina,<br />

que produziu importante documento sobre o debate político <strong>em</strong> torno <strong>da</strong><br />

“profissionalização” <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, intitulado: “Manifesto dos <strong>capoeira</strong>s de Santa<br />

Catarina: pela liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> cultura popular!” (anexo 8).<br />

Foram r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>s exposições e discussões sobre metodologias de ensino,<br />

desenvolvimento de métodos e técnicas, competências básicas para o ensino <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>. Uma pergunta importante se colocava freqüent<strong>em</strong>ente no debate: Qu<strong>em</strong><br />

deve ensinar <strong>capoeira</strong> na escola e na universi<strong>da</strong>de?<br />

Foram r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>s, ain<strong>da</strong>, discussões sobre o processo de escolarização<br />

<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, as experiências dos projetos de extensão <strong>da</strong> UFSC 87 , com<br />

apresentação de painéis sobre a formação de “educadores populares”.<br />

Nas quatro últimas s<strong>em</strong>anas do s<strong>em</strong>inário, foram apresenta<strong>da</strong>s as<br />

contribuições dos participantes, que se dividiram <strong>em</strong> quatro grupos t<strong>em</strong>áticos, a<br />

saber: Grupo T<strong>em</strong>ático 1 - História <strong>da</strong> Capoeira, com 5 (cinco) responsáveis; Grupo<br />

T<strong>em</strong>ático 2 - Instrumentação e Cantigas <strong>da</strong>/na Capoeira, com 7 (sete) responsáveis;<br />

Grupo T<strong>em</strong>ático 3 - Esportivização <strong>da</strong> Capoeira, com 3 (três) responsáveis; Grupo<br />

T<strong>em</strong>ático 4 - Gestuali<strong>da</strong>de (<strong>jogo</strong> & luta & <strong>da</strong>nça), com 7 (sete) responsáveis.<br />

No final do processo, foi r<strong>ea</strong>lizado um levantamento do aproveitamento do<br />

s<strong>em</strong>inário, sendo que, segundo os registros, no dia de maior freqüência<br />

compareceram 26 (vinte e seis) pessoas, no dia de menor freqüência<br />

87 Como projeto de extensão, a <strong>capoeira</strong> passou a ser ofereci<strong>da</strong>, na UFSC, a partir de 1987, por<br />

intermédio do Grupo Ajagunã de Palmares que desenvolveu o projeto intitulado: “Ginga UFSC:<br />

Capoeira numa Perspectiva Cultural do Ilhéu”. Atualmente, exist<strong>em</strong> outros projetos de extensão além<br />

do já citado, dentre eles, o <strong>da</strong> Escola Infantil de Desportos (ESINDE), e Capoeira Beribazu, este<br />

funcionando desde 1997.<br />

235


compareceram 9 (nove). A média de participação <strong>em</strong> todos os encontros foi de 17<br />

(dezessete) estu<strong>da</strong>ntes por encontro. Houve dias <strong>em</strong> que a freqüência extrapolou o<br />

número de inscritos no s<strong>em</strong>inário <strong>em</strong> decorrência <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>s <strong>em</strong><br />

conjunto com o Fórum Catarinense de Capoeira e, também, devido à presença de<br />

convi<strong>da</strong>dos especiais.<br />

Como ativi<strong>da</strong>de de avaliação, além <strong>da</strong> apresentação dos grupos<br />

t<strong>em</strong>áticos, os estu<strong>da</strong>ntes responderam um segundo protocolo de son<strong>da</strong>g<strong>em</strong> (anexo<br />

9), um protocolo de avaliação geral do s<strong>em</strong>inário (anexo 10) e um protocolo de auto-<br />

avaliação (anexo 11).<br />

Dos 22 (vinte e dois) participantes, foram aprovados 16 (dezesseis), 2<br />

(dois) foram reprovados por freqüência insuficiente e os outros 4 (quatro)<br />

freqüentaram a disciplina como alunos especiais.<br />

A intensi<strong>da</strong>de, o envolvimento, a ressonância que marcaram o<br />

desenvolvimento desse s<strong>em</strong>inário nos permit<strong>em</strong> asseverar que a prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica com <strong>capoeira</strong> reveste-se de situações complexas e muitos desafios.<br />

Os sujeitos envolvidos apresentaram níveis de aproximação e apreensão distintos,<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong> a ain<strong>da</strong> escassa produção teórica sobre ela, ratificando uma r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de <strong>em</strong><br />

que muito do que se aprende e ensina no mundo <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> é resultado de<br />

“intuições” e de observações <strong>em</strong>píricas, e esse conhecimento é, na maioria dos<br />

casos, transmitido de boca-a-boca.<br />

Esses fatores nos levam a conceber que a materialização de uma<br />

disciplina de <strong>capoeira</strong> no currículo de formação profissional ain<strong>da</strong> carece de uma<br />

formulação consistente, no que diz respeito aos conteúdos, procedimentos<br />

didáticos, objetivos, à avaliação etc., e, apesar de já conhecermos algumas<br />

contribuições, este trabalho ain<strong>da</strong> está por ser melhor sist<strong>em</strong>atizado.<br />

236


O fato é que esse s<strong>em</strong>inário despertou nos participantes grande<br />

curiosi<strong>da</strong>de <strong>em</strong> relação às formas como a <strong>capoeira</strong> poderia ser trata<strong>da</strong> como<br />

conteúdo curricular. Como o objetivo principal era levantar subsídios para a<br />

<strong>construção</strong>/criação de el<strong>em</strong>entos teórico-metodológicos para o trato com o<br />

conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo de formação profissional, procuramos<br />

cont<strong>em</strong>plar o maior número de informações possíveis, de modo que a<br />

sist<strong>em</strong>atização abrangesse um leque expressivo de <strong>da</strong>dos que, <strong>em</strong> conjunto com os<br />

subsídios <strong>da</strong>s etapas anteriores desta pesquisa e <strong>em</strong> cotejo com a teoria revisita<strong>da</strong>,<br />

possibilitass<strong>em</strong> a concretização do nosso intento.<br />

A seguir apresentar<strong>em</strong>os o quadro cronológico-t<strong>em</strong>ático <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des de<br />

ensino desenvolvi<strong>da</strong>s durante o s<strong>em</strong>estre letivo. Muitas t<strong>em</strong>áticas específicas <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, como a questão dos rituais e a instrumentação, deixaram de ser<br />

abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s, <strong>em</strong> profundi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>do o caráter essencialmente exploratório <strong>da</strong><br />

disciplina. A idéia foi arrolar alguns t<strong>em</strong>as recorrentes, sugeridos pelo pesquisador e<br />

pelos integrantes do grupo que se sentiram confortáveis <strong>em</strong> opinar sobre as<br />

propostas. As t<strong>em</strong>áticas centrais <strong>da</strong>s aulas foram seleciona<strong>da</strong>s com base no atual<br />

programa <strong>da</strong> disciplina <strong>capoeira</strong>, e os procedimentos didático-pe<strong>da</strong>gógicos foram<br />

decididos com os participantes do referido s<strong>em</strong>inário.<br />

Quadro 3 - Quadro cronológico-t<strong>em</strong>ático <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des desenvolvi<strong>da</strong>s na disciplina<br />

de <strong>capoeira</strong> - UFSC<br />

Aula Data T<strong>em</strong>ática central <strong>da</strong> aula<br />

01 23/05/02 Apresentação <strong>da</strong> proposta e do programa <strong>da</strong> disciplina, discussão <strong>da</strong><br />

bibliografia básica, apresentação, leitura e discussão do texto de orientação do<br />

s<strong>em</strong>inário; ativi<strong>da</strong>de de integração e conhecimento <strong>da</strong> turma.<br />

02 06/06/02 Ativi<strong>da</strong>de de interação <strong>da</strong> turma com a dinâmica “ditados populares” . Entrega<br />

do primeiro protocolo de son<strong>da</strong>g<strong>em</strong>.<br />

03 13/06/02 Exposição do vídeo documentário: “A <strong>capoeira</strong>g<strong>em</strong> na Bahia”, acompanha<strong>da</strong><br />

de debate.<br />

04 20/06/02 Palestra e debate com as professoras de História <strong>da</strong> UFSC, Maria de Fátima<br />

Sabino Dias e Marise <strong>da</strong> Silveira. Discussões sobre como tratar a história <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>: a história oral, a autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s fontes.<br />

237


05 27/06/02 Exposição e discussão do movimento de desenvolvimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, a partir<br />

de transparências e <strong>da</strong>dos históricos e <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de atual; o processo de<br />

organização dos <strong>capoeira</strong>s no Brasil, a formação <strong>da</strong>s maltas, a formação dos<br />

grupos, a formação de enti<strong>da</strong>des corporativas.<br />

07 04/07/02 Experiências com o repertório gestual <strong>capoeira</strong>no: a ginga, os golpes e as<br />

negaças; a experiência individual, <strong>em</strong> dupla e coletiva <strong>da</strong> circulari<strong>da</strong>de, <strong>da</strong><br />

des<strong>construção</strong> e <strong>da</strong> atenção; o canto improvisado e a ro<strong>da</strong> lúdica.<br />

08 11/07/02 Experiências com os golpes de <strong>capoeira</strong>: nomenclatura, aplicação,<br />

sist<strong>em</strong>atização, significação e representação, aspectos técnicos, estéticos e de<br />

segurança.<br />

09 18/07/02 Discussão sobre as vertentes <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>; r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>des e possibili<strong>da</strong>des: a<br />

Capoeira Angola, a Capoeira Regional e outras vertentes de <strong>capoeira</strong>.<br />

10 25/07/02 A relação Capoeira x Educação Física. A questão <strong>da</strong> regulamentação <strong>da</strong><br />

profissão de Educação Física e a <strong>capoeira</strong>. Ativi<strong>da</strong>de articula<strong>da</strong> com a reunião<br />

do Fórum dos Capoeiras de Santa Catarina.<br />

11 01/08/02 Exposição e discussão sobre metodologias de ensino <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>: o<br />

desenvolvimento de métodos e técnicas de ensino. A contribuição <strong>da</strong><br />

Educação Física. Discussão/reflexão sobre competências básicas para o<br />

ensino <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, qu<strong>em</strong> deve ensinar <strong>capoeira</strong> na escola e na universi<strong>da</strong>de.<br />

12 08/08/02 Discussão sobre o processo de escolarização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>. As experiências<br />

dos projetos de extensão <strong>da</strong> UFSC. Apresentação de painel e discussão sobre<br />

a formação de “educadores populares”.<br />

13 15/08/02 S<strong>em</strong>inário apresentado pelos alunos sobre os instrumentos musicais e as<br />

cantigas de <strong>capoeira</strong>, com dinâmicas coletivas de manuseio de instrumento e<br />

elaboração de cantigas.<br />

14 22/08/02 S<strong>em</strong>inário apresentado pelos alunos sobre a história <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> desde a<br />

orig<strong>em</strong> até os dias atuais. Apresentação por etapas e discussão posterior.<br />

15 29/08/02 S<strong>em</strong>inário apresentado pelos alunos sobre o processo de esportivização <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>: r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>des e possibili<strong>da</strong>des.<br />

17 05/09/02 S<strong>em</strong>inário apresentado pelos alunos sobre a gestuali<strong>da</strong>de e o <strong>jogo</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>. Os fun<strong>da</strong>mentos e os significados dos gestos <strong>capoeira</strong>nos. Entrega<br />

do segundo protocolo de son<strong>da</strong>g<strong>em</strong>. Avaliação final do S<strong>em</strong>inário.<br />

Esse s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação contribuiu efetivamente para<br />

aprofun<strong>da</strong>rmos as discussões sobre a questão <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> suas mais diversas<br />

abor<strong>da</strong>gens e interfaces. Através dele foi possível levantar e acessar vasta literatura<br />

disponível sobre a t<strong>em</strong>ática. Foi também possível fazer um levantamento <strong>da</strong> já<br />

expressiva produção sobre <strong>capoeira</strong> no âmbito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Santa<br />

Catarina (Ver anexo 7). O s<strong>em</strong>inário permitiu, ain<strong>da</strong>, a r<strong>ea</strong>lização de algumas<br />

discussões sobre a organização do V Simpósio Nacional Universitário de Capoeira<br />

(V SNUC), que r<strong>ea</strong>lizamos na UFSC, entre os dias 14 e 16 de nov<strong>em</strong>bro de 2002, e<br />

que contou com a presença de alguns dos principais investigadores <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no<br />

Brasil (cujas obras são referencia<strong>da</strong>s no corpo desta tese), Dr. Carlos Eugênio<br />

238


Líbano Soares, Dra. Letícia Vidor de Souza Reis, Dr. Luiz Renato Vieira, Mestre<br />

Zulu, Mestre Suíno, dentre outros.<br />

Em 1997, foi r<strong>ea</strong>lizado o primeiro Simpósio Nacional Universitário de<br />

Capoeira (SNUC), na UFSC. Os SNUCs são simpósios t<strong>em</strong>áticos que vêm<br />

permitindo a participação ca<strong>da</strong> vez maior de pesquisadores e praticantes de<br />

<strong>capoeira</strong>, independente de ár<strong>ea</strong> de formação, grupo ou estilo. A partir desses<br />

encontros, que, geralmente, acontec<strong>em</strong> <strong>em</strong> nov<strong>em</strong>bro, muitas discussões<br />

importantes já foram trava<strong>da</strong>s, com a participação de vários de seus mais<br />

representativos estudiosos no Brasil. Foram r<strong>ea</strong>lizados cinco simpósios nacionais na<br />

UFSC. É um evento r<strong>ea</strong>lizado pelo Projeto de Extensão “Capoeira Beribazu”. Os<br />

SNUCs já r<strong>ea</strong>lizados tiveram as seguintes t<strong>em</strong>áticas: I SNUC – (14 a 16/11, 1997)<br />

Homenag<strong>em</strong> a Caribé – o pintor dos <strong>capoeira</strong>s; II SNUC – (30/10 a 01/11, 1998) Um<br />

elogio ao Lúdico; III SNUC – (12 a 14/11, 1999) Rituais e Tradições; IV SNUC – (17<br />

a 19/11, 2000) Perspectivas <strong>da</strong> Capoeira para o século XXI; V SNUC – (14 a 16/11,<br />

2002) Sons, Ritmos e Imagens. A partir do ano de 2000, o SNUC passou a ser<br />

bienal e, a ca<strong>da</strong> edição, v<strong>em</strong> despertando interesse <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de <strong>capoeira</strong>na<br />

vincula<strong>da</strong> aos contextos acadêmicos e se apresentando como espaço<br />

interdisciplinar de intercâmbio de <strong>capoeira</strong>s e estudiosos de diversas partes do<br />

Brasil e do mundo.<br />

A seguir, passar<strong>em</strong>os a relatar, de forma sintética, alguns encontros e<br />

analisar<strong>em</strong>os os seus traços principais, no que diz respeito ao trato com o<br />

conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>.<br />

Aula do dia 23 de maio de 2002 (primeiro encontro)<br />

Local: Sala 302 do Bloco VI – do Centro de Desportos <strong>da</strong> UFSC.<br />

Horário: 18:30 h às 21:15 h<br />

239


(CO) - O encontro foi iniciado com uma dinâmica de integração, <strong>em</strong> que os participantes,<br />

<strong>em</strong> duplas, conversavam sobre suas vi<strong>da</strong>s, seus objetivos com relação à disciplina e<br />

sobre sua experiência com a <strong>capoeira</strong>.<br />

Em segui<strong>da</strong>, um apresentava o outro para o restante <strong>da</strong> turma, levantando aspectos<br />

relevantes <strong>da</strong> conversa.<br />

Após a apresentação sucinta dos presentes, foram feitos os seguintes comentários:<br />

PO - A disciplina começa de forma especial. Não é possível dizer como ela vai ser. Ela<br />

vai ser sendo. Estamos um pouco diluídos nessas experiências. A gente é um pouco de<br />

ca<strong>da</strong> um dos quais a gente convive. Tenho expectativa muito grande <strong>em</strong> relação ao<br />

trabalho. Estamos aqui para fazer uma ativi<strong>da</strong>de muito especial. Vou ser mediador do<br />

processo e a sist<strong>em</strong>ática que vamos utilizar não permite que alguém seja reconhecido<br />

como detentor do saber que vai depositá-lo na cabeça dos outros. Nós vamos construir<br />

saberes, vamos nos apropriar coletivamente dos saberes construídos historicamente no<br />

contexto <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de como um todo e aí a gente vai probl<strong>em</strong>atizá-los,<br />

significá-los, ressignificá-los para nós, se for o caso. Entendendo que a vi<strong>da</strong> é assim, um<br />

eterno começar e acabar... começar e acabar, como disse o poeta português, José<br />

Saramago. Nós vamos fazer uma ativi<strong>da</strong>de, dentre tantas outras, que tenho certeza, vai<br />

ser muito boa, pois vamos tratar de questões que são fun<strong>da</strong>mentais para nossas vi<strong>da</strong>s,<br />

para o contexto <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, e nós estamos aqui para construir uma história significativa,<br />

tanto do ponto de vista <strong>da</strong> instituição universitária, do curso de Educação Física e <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> como instituição cultural. Estou agradecido pela recepção de todos <strong>em</strong> relação<br />

à proposta que foi encaminha<strong>da</strong>. Agradeço ao prof. Bagé, por ter se prontificado a<br />

colaborar, cedendo o espaço <strong>da</strong> disciplina para podermos desenvolver esse s<strong>em</strong>inário de<br />

pesquisa-ação. Gostaria de reconhecer que o <strong>em</strong>penho que todos vamos fazer não será<br />

<strong>em</strong> vão. Passar<strong>em</strong>os, agora, aos procedimentos formais para <strong>da</strong>r uma cara para a<br />

disciplina. Eu n<strong>em</strong> gosto muito desse nome, mas é importante para sist<strong>em</strong>atizarmos as<br />

experiências que ca<strong>da</strong> um traz e que vai produzir, para não ficarmos num bate-boca,<br />

num lero-lero. A idéia é sist<strong>em</strong>atizar experiências a partir de nossas r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>des.<br />

Identificar o que é possível e o que é estratégico. As possibili<strong>da</strong>des são infinitas. Hoje,<br />

vamos montar o calendário de trabalho, apresentar o programa, esclarecer como o<br />

programa vai ser desenvolvido e vamos apresentar o método e as referências e vamos<br />

nos conhecer mais.<br />

CO – Fala interrompi<strong>da</strong> com a chega<strong>da</strong> de mais um participante (P26), que faz Direito e é<br />

professor de <strong>capoeira</strong>.<br />

CO – Pedimos para todos se cumprimentar<strong>em</strong> e sau<strong>da</strong>r<strong>em</strong> o máximo de colegas que<br />

estão na sala.<br />

CO - Fiz<strong>em</strong>os um alerta sobre a filmag<strong>em</strong> de to<strong>da</strong>s as aulas, sob a alegação de que a<br />

disciplina iria servir como subsídio para a nossa tese de doutorado. Perguntamos à turma<br />

se o s<strong>em</strong>inário poderia ser gravado, se alguém teria alguma restrição. Ninguém fez<br />

objeção.<br />

PO - Vamos fazer um s<strong>em</strong>inário aberto <strong>em</strong> que a gente possa fazer interlocução.<br />

Universi<strong>da</strong>de é comuni<strong>da</strong>de e comuni<strong>da</strong>de deve se apropriar <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de, como<br />

instância pública. Dev<strong>em</strong>os fazer contatos com os projetos de extensão de <strong>capoeira</strong><br />

desenvolvidos na universi<strong>da</strong>de. Dev<strong>em</strong>os r<strong>ea</strong>lizar um trabalho interativo <strong>em</strong> que o<br />

ensino, a pesquisa e a extensão estejam mais interligados, conectados, para permitir<br />

mais visibili<strong>da</strong>de, para operar melhor na universi<strong>da</strong>de, no trato com o conhecimento. Os<br />

três pilares que sustentam a universi<strong>da</strong>de precisam an<strong>da</strong>r juntos. A gente não vai<br />

primeiro aprender uma coisa, para depois pesquisar, para depois aplicar. A gente faz<br />

essas coisas <strong>em</strong> movimento. Então a proposta desta disciplina é uma pesquisa e ensino<br />

<strong>em</strong> contato com a extensão.<br />

CO - Foi feita uma proposta de visita a trabalhos de <strong>capoeira</strong> r<strong>ea</strong>lizados na ci<strong>da</strong>de de<br />

Florianópolis. Em segui<strong>da</strong>, foi r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> a apresentação e distribuição do plano <strong>da</strong><br />

disciplina.<br />

CO – Alertamos que a participação é o primeiro e mais importante requisito, critério para<br />

uma boa <strong>construção</strong>. Fiz<strong>em</strong>os a leitura <strong>da</strong> <strong>em</strong>enta e dos objetivos do s<strong>em</strong>inário. Em<br />

segui<strong>da</strong>, abrimos a palavra para sugestões de nomes de especialistas para <strong>da</strong>r<strong>em</strong> suas<br />

contribuições: historiadores, filósofos, sociólogos.<br />

CO - Um participante (P7) fez uma menção ao termo cultura corporal, explicitado na<br />

<strong>em</strong>enta. Começamos uma discussão sobre cultura corporal e cultura de movimento – o<br />

240


primeiro nó apareceu. Probl<strong>em</strong>atizamos, perguntando o que a <strong>capoeira</strong> era: Cultura<br />

corporal ou cultura de movimento?<br />

CO- Na discussão, P27 argumentou que não existe uma cultura que não seja corporal. É<br />

uma redundância. O termo implica numa duali<strong>da</strong>de. Afirmamos que se trata de um<br />

debate antigo e polêmico e que esse nó constitui uma probl<strong>em</strong>ática epist<strong>em</strong>ológica e<br />

sugerimos que alguém aprofun<strong>da</strong>sse nessas discussões. Argumentamos que todo<br />

movimento cultural é uma contribuição resultante de várias contribuições. Alegamos que<br />

estávamos ali para especular como se deve <strong>da</strong>r o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong><br />

no currículo de formação profissional.<br />

CO - Fiz<strong>em</strong>os, a seguir, uma discussão sobre o conceito de pesquisa-ação.<br />

CO - De pronto, colocamos a necessi<strong>da</strong>de de uma interação, de uma integração para o<br />

êxito <strong>da</strong> disciplina. Foi distribuído um texto introdutório para orientar a pesquisa.<br />

CO – Um dos participantes (P11) argumentou que seria interessante trazer integrantes<br />

<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, ligados à cultura popular para se inserir<strong>em</strong> no debate, à medi<strong>da</strong> que o<br />

que se verifica é uma discussão na universi<strong>da</strong>de sobre o que faz<strong>em</strong> os integrantes <strong>da</strong>s<br />

chama<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s populares, s<strong>em</strong> ouvi-los e s<strong>em</strong> interagir com eles.<br />

PO - As ativi<strong>da</strong>des serão entendi<strong>da</strong>s como movimento que constituirão procedimentos<br />

que vão se encad<strong>ea</strong>ndo e não etapas estanques. Do ponto de vista <strong>da</strong> aula e no projeto<br />

como um todo, t<strong>em</strong>os que ter s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> mente o que t<strong>em</strong>os que fazer. O que o pessoal<br />

acha? (...)<br />

PO - Como vamos operacionalizar? Vamos só discutir? Começamos discutindo ou<br />

vamos para a prática. Vamos teorizar a prática ou praticar a teoria?<br />

P16 - Qual o objetivo <strong>da</strong> prática?<br />

P 20 – Vamos fazer uma prática conheci<strong>da</strong> convencionalmente, seja o estilo que for, ou<br />

vamos utilizar de algumas práticas inspira<strong>da</strong>s na <strong>capoeira</strong> para ser utiliza<strong>da</strong> na escola, se<br />

o objetivo <strong>da</strong> escola não é formar o capoeirista?<br />

P11 - Na prática deveríamos estar experimentando as diversas possibili<strong>da</strong>des e <strong>da</strong>í<br />

buscar a superação. Mas a superação não se torna necessária porque ca<strong>da</strong> um privilegia<br />

a sua priori<strong>da</strong>de como prática.<br />

PO - Questão <strong>da</strong> superação. Não se trata de buscar a superação a partir <strong>da</strong> negação, a<br />

quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> superação está liga<strong>da</strong> com o nível de consciência, ou seja, a capaci<strong>da</strong>de de<br />

ampliar o seu conhecimento, o seu modo de ver a sua prática e o fenômeno que você<br />

participa, transita. Negar o que está <strong>da</strong>do é praticamente impossível quando se pretende<br />

criar algo essencialmente novo.<br />

As características básicas deste encontro foram as seguintes:<br />

Foi o primeiro encontro do grupo. Os participantes se acomo<strong>da</strong>ram <strong>em</strong><br />

círculo. Ficou evidente a diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> turma. Houve uma preocupação <strong>em</strong> fugir do<br />

modelo de aula expositiva. A expectativa <strong>da</strong> turma era grande <strong>em</strong> relação à forma<br />

como a disciplina seria trata<strong>da</strong>.<br />

Encontro do dia 11 de julho de 2002.<br />

T<strong>em</strong>ática do encontro: gestuali<strong>da</strong>de na <strong>capoeira</strong>.<br />

(CO) Ao notar que estávamos levando instrumentos percussivos (atabaques e berimbaus)<br />

para a sala de aula, a servidora logo perguntou se iríamos fazer batuca<strong>da</strong> na sala de aula.<br />

Argumentou que aquela sala de <strong>capoeira</strong> era para aulas teóricas. Reclamou pelo fato de os<br />

alunos ter<strong>em</strong> tirado as cadeiras <strong>da</strong> sala de aula. Imediatamente fez uma ligação para o<br />

diretor do Centro para que tomasse providências para que aquele “batuque” não<br />

acontecesse <strong>em</strong> sala de aula.<br />

(CO) Apesar dos entreveros, o encontro foi r<strong>ea</strong>lizado e gerou uma discussão <strong>em</strong> torno dos<br />

espaços/t<strong>em</strong>pos para a r<strong>ea</strong>lização de ativi<strong>da</strong>des que inclu<strong>em</strong> movimentos corporais. A idéia<br />

241


é fugir do modelo clássico de aulas de Educação Física <strong>em</strong> que o professor é o responsável<br />

pelas decisões quanto a objetivos, conteúdos, meios e avaliação na aula, b<strong>em</strong> como pelo<br />

início e término <strong>da</strong>s exercitações. Estávamos interessados <strong>em</strong> envolver os alunos para<br />

fazer<strong>em</strong> os movimentos que eles se sentiss<strong>em</strong> à vontade e que as exercitações fugiss<strong>em</strong><br />

<strong>da</strong>s padronizações. A idéia era questionar a padronização, a regulação do professor e o<br />

autoritarismo que provém <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de do professor. Que to<strong>da</strong>s as etapas foss<strong>em</strong><br />

probl<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong>s. Que a seleção e transmissão dos conteúdos não ficass<strong>em</strong> sobre a inteira<br />

responsabili<strong>da</strong>de do professor. Que superasse as clássicas e equivoca<strong>da</strong>s distinções parte<br />

prática X parte teórica.<br />

Embora “o que” se ensina e se aprende tenha muito a ver com o “como”<br />

se ensina e se aprende, a nossa maior ênfase centrava-se no “como” se ensina e se<br />

aprende. Nesse sentido, os possíveis conteúdos de uma disciplina de <strong>capoeira</strong> no<br />

currículo de formação profissional não receberam aqui uma atenção especial,<br />

<strong>em</strong>bora eles se explicit<strong>em</strong> <strong>em</strong> diversos trechos desta pesquisa.<br />

O nosso interesse maior foi, portanto, probl<strong>em</strong>atizar os aspectos<br />

metodológicos para o trato com esse conhecimento, e as reflexões que ocorreram<br />

nesse s<strong>em</strong>inário contribuíram de forma oportuna para o atendimento desse objetivo,<br />

conforme destacar<strong>em</strong>os a seguir.<br />

O s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação, para ser materializado, teve que atender<br />

as três dimensões estruturantes do processo didático-pe<strong>da</strong>gógico já mencionados<br />

anteriormente: a institucional/organizacional, a institucional/pe<strong>da</strong>gógica e a<br />

filosófica/epist<strong>em</strong>ológica. Isso quer dizer que o trato com o conhecimento de<br />

determinado conteúdo, no currículo de formação acadêmica, está sujeito aos<br />

mecanismos que reg<strong>em</strong> a organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico e esta, por sua vez,<br />

é influencia<strong>da</strong> por estruturas mais amplas e complexas, que estão para além <strong>da</strong> sala<br />

de aula.<br />

Pud<strong>em</strong>os verificar que as aprendizagens significativas acontec<strong>em</strong> quando<br />

são atendi<strong>da</strong>s as necessi<strong>da</strong>des básicas do processo pe<strong>da</strong>gógico. Assim, a<br />

integração <strong>da</strong> informação com a formação, a busca <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de metodológica e <strong>da</strong><br />

242


interdisciplinari<strong>da</strong>de são requisitos fun<strong>da</strong>mentais para que as ativi<strong>da</strong>des não sejam<br />

reduzi<strong>da</strong>s a repetições de tarefas orienta<strong>da</strong>s pelo plano afetivo-<strong>em</strong>ocional.<br />

O planejamento e a organici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s ações, <strong>em</strong> consonância com a<br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> turma, são fun<strong>da</strong>mentais para que o trato com o conhecimento não se dê<br />

na lógica <strong>da</strong> transmissão de saberes, geralmente inócuos e descontextualizados, que<br />

não contribu<strong>em</strong> para uma formação crítica.<br />

As características <strong>da</strong> turma apontaram para uma <strong>capoeira</strong> que atrai<br />

estu<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong>s ár<strong>ea</strong>s acadêmicas mais díspares, e essa multiplici<strong>da</strong>de e diversi<strong>da</strong>de<br />

nos levaram a pensar os conteúdos, os processos avaliativos e os procedimentos<br />

metodológicos a partir de referências amplia<strong>da</strong>s que cont<strong>em</strong>plass<strong>em</strong> essa diversi<strong>da</strong>de.<br />

Para a grande maioria dos participantes, o s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação<br />

atendeu aos objetivos inicialmente propostos, e o número de encontros também foi<br />

suficiente.<br />

Embora a grande maioria nunca tivesse participado de uma experiência<br />

similar, o s<strong>em</strong>inário despertou muita atenção pela forma como foi organizado. O<br />

depoimento de um estu<strong>da</strong>nte expressa essa constatação:<br />

Não foi apenas um s<strong>em</strong>inário sobre <strong>capoeira</strong>, foi sobre como ensinar e<br />

como debater. É muito bom saber a história do que gostamos e isso foi<br />

interessante, pois, através do estudo <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, conhec<strong>em</strong>os mais a<br />

história <strong>da</strong> nossa cultura e de nós mesmos.<br />

Dentre os participantes, alguns não concor<strong>da</strong>vam que a <strong>capoeira</strong> fosse<br />

trata<strong>da</strong> como disciplina curricular, outros esperavam que ela fosse de caráter mais<br />

“prático”. Alguns dominavam muitos conhecimentos e outros não tinham tido contato<br />

com essa manifestação. O fato é que os interesses e as necessi<strong>da</strong>des do grupo eram<br />

muito heterogêneos.<br />

explicitam que:<br />

Entretanto, os <strong>da</strong>dos dos protocolos de son<strong>da</strong>g<strong>em</strong> I e II e de auto-avaliação<br />

243


1. a maioria concor<strong>da</strong> que a <strong>capoeira</strong> deve ser trata<strong>da</strong> na universi<strong>da</strong>de<br />

como disciplina optativa, com abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> interdisciplinar, <strong>em</strong>bora muitos<br />

consider<strong>em</strong> que ela se adequaria melhor no currículo do Curso de Educação<br />

Física;<br />

2. a maioria considera que o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> deve se<br />

<strong>da</strong>r a partir <strong>da</strong>s diversas referências e vertentes que se consoli<strong>da</strong>ram no seu<br />

desenvolvimento histórico e não apenas a partir de um determinado estilo<br />

ou vertente;<br />

3. <strong>em</strong> relação à violência na <strong>capoeira</strong>, muitos consideram que a sua maior<br />

causa está associa<strong>da</strong> ao método adotado pelo mestre ou professor;<br />

4. a maioria não se sente prepara<strong>da</strong> para ministrar aulas de <strong>capoeira</strong> a<br />

partir dos conhecimentos adquiridos <strong>em</strong> uma disciplina de um s<strong>em</strong>estre<br />

letivo.<br />

As possibili<strong>da</strong>des metodológicas utiliza<strong>da</strong>s (experimentação,<br />

probl<strong>em</strong>atização, teorização e re<strong>construção</strong> coletiva do conhecimento) foram<br />

fun<strong>da</strong>mentais para tratar esse conteúdo levando <strong>em</strong> consideração a sua complexi<strong>da</strong>de<br />

e dinamici<strong>da</strong>de. S<strong>em</strong> uma devi<strong>da</strong> probl<strong>em</strong>atização, certamente, não teríamos<br />

oportuni<strong>da</strong>de de experimentar um diálogo como o transcrito abaixo que ocorreu <strong>em</strong> um<br />

dos encontros:<br />

P0 – Quando colocamos a pergunta: o que é a Capoeira, estamos perguntando o que é o<br />

ser humano?<br />

P0 – O meu papel aqui agora é de probl<strong>em</strong>atizador. Se a gente achar que a <strong>capoeira</strong> é<br />

tudo que a boca come e, na ver<strong>da</strong>de, até termina sendo, a gente também pode se perder<br />

nesse <strong>em</strong>aranhado e não conseguir entender o próprio fenômeno. Existe, nesse<br />

movimento, a questão <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de, o que faz com que a <strong>capoeira</strong><br />

seja <strong>capoeira</strong> e não karatê, boxe etc. Pode até ser que ela seja confundi<strong>da</strong>, mas alguns<br />

traços determinam a <strong>capoeira</strong> e quais são esses traços? Quais são esses el<strong>em</strong>entos?<br />

P0 – Você que chegou aqui hoje e disse que nunca teve contato com a <strong>capoeira</strong>. Quais<br />

são os traços que você considera que faz<strong>em</strong> parte <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>? O que define a<br />

<strong>capoeira</strong>? O que t<strong>em</strong> na <strong>capoeira</strong> que faz a <strong>capoeira</strong> ser <strong>capoeira</strong>?<br />

P I - A primeira coisa que a gente nota é a ginga. Sei não... é uma luta, um <strong>jogo</strong>, uma<br />

<strong>da</strong>nça.<br />

P 19 - A alegria... Foi a alegria que eu vi uma vez na <strong>capoeira</strong>. Eu busquei a <strong>capoeira</strong><br />

pela forma alegre que ela apresentava.<br />

P14 – Da mesma forma, eu também. Eu fiz karatê três anos, depois eu fiz seis meses de<br />

<strong>capoeira</strong> e não queria mais fazer karatê que era aquela coisa séria, que não pode rir<br />

durante a aula, t<strong>em</strong> que ficar s<strong>em</strong>pre quieto e enquanto na <strong>capoeira</strong> não, quanto mais<br />

você convive com a pessoa, melhor.<br />

P 19 –. Pela liber<strong>da</strong>de de movimentação que o próprio <strong>jogo</strong> te dá.<br />

244


P6 – Depende também do professor, eu fiz dois meses de <strong>capoeira</strong>, depois fiz karatê, aí<br />

não voltei mais para <strong>capoeira</strong>. Eu voltei para <strong>capoeira</strong> agora para entender a importância<br />

<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> para o Brasil. (Diálogo r<strong>ea</strong>lizado no encontro do dia 06 de junho de 2002)<br />

Esse diálogo serve para ilustrar a importância <strong>da</strong> probl<strong>em</strong>atização no<br />

processo de <strong>construção</strong> e trato com o conhecimento no campo <strong>da</strong> cultura corporal.<br />

Se por um lado, P14 argumenta a sua opção pela <strong>capoeira</strong> por ser menos “séria”<br />

que o karatê, por outro, P6 contra-argumenta que desistiu dela ao ter contato com o<br />

karatê, e a opção de permanecer numa ou noutra, dependeu de vários fatores,<br />

inclusive, do professor. Serve para ilustrar ain<strong>da</strong> que uma cultura corporal não<br />

contém uma essência, a priori. Suas características são construí<strong>da</strong>s nas<br />

experiências dos sujeitos <strong>em</strong> ação e, para ser<strong>em</strong> compreendi<strong>da</strong>s, dev<strong>em</strong> ser<br />

probl<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong>s para não se tornar<strong>em</strong> reifica<strong>da</strong>s, ou seja, desliga<strong>da</strong>s de sua estrita<br />

vinculação com a existência humana.<br />

Já o diálogo transcrito abaixo, evidencia a importância <strong>da</strong> teorização sobre<br />

o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>:<br />

P19 –(...) A minha opinião é a seguinte. A educação bancária é o que a gente vê muito<br />

hoje <strong>em</strong> dia no ensino médio, primeira, segun<strong>da</strong> e terceira séries. Muitas vezes, o aluno<br />

pergunta: professor pra que eu estou estu<strong>da</strong>ndo isso? O professor responde: porque vai<br />

cair no vestibular. Quer dizer, não t<strong>em</strong> uma ligação direta com a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> pessoa. Ela é<br />

importante porque cai no vestibular. Antigamente, a gente estu<strong>da</strong>va física para aprender<br />

a trabalhar com ferragens, com madeira, no barco. Hoje <strong>em</strong> dia gente aprende física pra<br />

quê? Porque cai no vestibular. Quer dizer, não se faz uma relação direta com a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

pessoa. Ou seja, né, é a educação bancária. O aluno senta, absorve o maior número de<br />

conteúdo possível e vai para o vestibular e qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> a maior quanti<strong>da</strong>de de informação,<br />

que não t<strong>em</strong> na<strong>da</strong> a ver com educação, é o melhor aluno, entre aspas. Foi isso, mais ou<br />

menos, o que a gente conversou.<br />

P9 – Paulo Freire fala sobre alguns estilos de educação e esse é o estilo <strong>da</strong> vasilha, que<br />

o aluno não traz na<strong>da</strong> de conteúdo, ele é uma vasilha vazia. Então o professor é o dono<br />

do saber e ele desconsidera qualquer saber que este aluno traga. E isso fica ruim porque<br />

ele acaba fazendo um monólogo e desconsidera a comunicação que o que está colocado<br />

aqui, (...) que é narrativa, a dialética de Paulo Freire, é a conversa. Então não há uma<br />

relação dos conhecimentos, não se raciocina <strong>em</strong> cima, apenas se aceita.<br />

P0 – Que relação essas formulações de Paulo Freire têm com a <strong>capoeira</strong>? Outras<br />

pessoas pod<strong>em</strong> comentar. Vocês perceb<strong>em</strong> esse tipo de educação bancária no mundo<br />

<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> de uma forma heg<strong>em</strong>ônica?<br />

P9 – Eu acho que sim. Quando o professor chega na frente e começa: todo mundo<br />

gingando assim (faz gestos mecanizados com as mãos) “vamo lá” “vamo lá”, não deixa<br />

de ser a mesma coisa. O raciocínio é o mesmo, só que é com o movimento humano. Eu<br />

acho muito difícil a gente ensinar alguma coisa diferente <strong>da</strong>quilo que a gente aprendeu.<br />

Ninguém dá o que não t<strong>em</strong>, né. A gente aprendeu muito a mecanizar as coisas. Você<br />

pode não concor<strong>da</strong>r muito com as coisas, mas você acaba fazendo isso nas suas aulas.<br />

245


P19 – Eu acho que o conteúdo é o conteúdo. Ele está ali. O conteúdo técnico, o<br />

conteúdo livresco, o conteúdo de movimento. O conteúdo de uma escolinha de futebol,<br />

por ex<strong>em</strong>plo, a técnica está ali. Agora, como o professor vai mediar, vai trabalhar essa<br />

técnica, esse conteúdo, aí entra nesse conceito aqui <strong>da</strong> educação bancária. Ele pode<br />

trabalhar de uma forma onde ele se julga o dono <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e o aluno seja um mero<br />

vasilhame, conforme (P9) falou. E que, simplesmente, tenha que <strong>em</strong>purrar o conteúdo<br />

por cima dele. Eu não vejo assim não. Eu acho que o professor t<strong>em</strong> que ser mediador<br />

desse conteúdo.<br />

P9 – Em nenhum momento eu falei que sou contra a técnica.<br />

P19 – Ah, então eu entendi errado (risos). Mas eu acho isso, o conteúdo está ali. Eu<br />

acho que a gente t<strong>em</strong> que ter um conteúdo. Agora como vai trabalhar esse conteúdo. Aí<br />

sim... a gente t<strong>em</strong> que repensar <strong>da</strong> melhor forma possível no aluno, na situação, no local<br />

<strong>em</strong> que ele se encontra. Eu não concordo com a educação bancária que o Paulo Freire<br />

também critica.<br />

P16 – Será que a gente podia mu<strong>da</strong>r essa visão de bancário, no sentido não de<br />

depositar, mas no sentido de sacar? De repente, no passado, a <strong>capoeira</strong> era uma on<strong>da</strong><br />

de sacar. Você ia pra ro<strong>da</strong> ver, vivenciar. O seu aprendizado se <strong>da</strong>va no momento <strong>em</strong><br />

que você ia sacar. Então ali não havia depósito, havia o saque, né. E aí, o que acontece<br />

hoje, dentro dessa visão mercadológica que você estava colocando. De repente, para <strong>da</strong>r<br />

aula num espaço, a gente t<strong>em</strong> que pensar no grupo. Se eu vou trabalhar com qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong><br />

um tipo de probl<strong>em</strong>a ou não. Você vai passar um movimento para estimular, eu vou ter<br />

que mostrar alguma coisa. Eu vou ter que, <strong>em</strong> algum momento, depositar. Aí a gente vai<br />

ter que depositar, aí a gente t<strong>em</strong> que depositar, para que aquele depósito ren<strong>da</strong> juros<br />

através de uma vivência no decorrer dos anos, e que essa pessoa consiga fazer o saque<br />

na ro<strong>da</strong>, na vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> diversas situações. Então, essa dialética de Paulo Freire, <strong>em</strong> cima<br />

<strong>da</strong> educação bancária, a gente t<strong>em</strong> que avaliar <strong>em</strong> diversos sentidos também. (Diálogo<br />

r<strong>ea</strong>lizado no encontro do dia 20 de junho de 2002)<br />

De modo geral, o s<strong>em</strong>inário serviu como contraponto às pe<strong>da</strong>gogias de<br />

assimilação, que ain<strong>da</strong> se sobressa<strong>em</strong> no trato com o conhecimento <strong>em</strong> geral. O<br />

depoimento de uma participante ratifica essa afirmação:<br />

Acho que eu nunca tinha pensado tanto a <strong>capoeira</strong> e tão profun<strong>da</strong>mente<br />

como tenho feito ultimamente. (...) Pude ressignificar certos conceitos,<br />

aguçar o meu senso crítico, conhecer novas pessoas. E tive duas<br />

experiências muito legais e marcantes que foram: aprender de uma<br />

forma completamente diferente <strong>da</strong> que eu estava acostuma<strong>da</strong> e<br />

consegui também apresentar um trabalho de uma maneira que eu<br />

nunca apresentei. (P21)<br />

Como o objetivo principal desta etapa <strong>da</strong> pesquisa era levantar subsídios<br />

para a <strong>construção</strong>/criação de el<strong>em</strong>entos teórico-metodológicos para o trato com o<br />

conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo de formação profissional, consideramos que<br />

a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pesquisa-ação, pela sua dupla função de atender a resolução de<br />

probl<strong>em</strong>as imediatos e também desenvolver a consciência <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong>de a respeito<br />

dos probl<strong>em</strong>as importantes que enfrenta, foi suficient<strong>em</strong>ente pertinente para eluci<strong>da</strong>r<br />

reflexões estratégicas para atingir os objetivos previamente propostos, à medi<strong>da</strong><br />

246


que, segundo Thiollent (2000, p. 24), “quando as pessoas estão fazendo alguma<br />

coisa relaciona<strong>da</strong> com um probl<strong>em</strong>a seu, há condição de estu<strong>da</strong>r este probl<strong>em</strong>a<br />

num nível mais profundo e r<strong>ea</strong>lista do que no nível opinativo ou representativo no<br />

qual reproduz<strong>em</strong> apenas imagens individuais e estereotipa<strong>da</strong>s”.<br />

Após a sist<strong>em</strong>atização dos <strong>da</strong>dos deste s<strong>em</strong>inário, sentimos a<br />

necessi<strong>da</strong>de de conhecer um pouco mais sobre a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> outros<br />

contextos, inclusive no exterior, aonde ela v<strong>em</strong> despertando visível interesse por<br />

parte de instituições acadêmicas.<br />

Estávamos convictos de que tínhamos que ampliar um pouco mais os<br />

nossos referenciais de análise sobre essa manifestação, de modo que eles<br />

pudess<strong>em</strong> <strong>da</strong>r melhor sustentação teórica às nossas formulações sobre o trato com<br />

esse conhecimento no currículo de formação profissional.<br />

Foi então que submet<strong>em</strong>os à CAPES um projeto de pesquisa sobre o<br />

processo de internacionalização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> que, por sua vez, foi aprovado e se<br />

materializou na forma de estágio de doutoramento “sanduíche”, r<strong>ea</strong>lizado no<br />

Instituto de Ciências Sociais <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Lisboa, através do qual, foi possível<br />

sist<strong>em</strong>atizar melhor os <strong>da</strong>dos e as análises que foram desenvolvi<strong>da</strong>s desde o início<br />

do ano de 2000, quando ingressamos no programa de Pós-Graduação <strong>em</strong><br />

Educação <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia.<br />

A análise dessas experiências com a <strong>capoeira</strong>, <strong>em</strong> instituições formais de<br />

educação, nos levaram a identificar uma r<strong>ea</strong>l necessi<strong>da</strong>de de articulações ca<strong>da</strong> vez<br />

mais fortaleci<strong>da</strong>s com os espaços não-formais, uma vez que o “t<strong>em</strong>pero” para<br />

conteúdos de traços niti<strong>da</strong>mente culturais são, geralmente, produzidos s<strong>em</strong> o crivo<br />

<strong>da</strong>s exigências burocráticas e <strong>em</strong> espaços não-formais, aonde a relação com o<br />

t<strong>em</strong>po se dá numa lógica diferencia<strong>da</strong> dos espaços formais.<br />

247


4.3. A Internacionalização <strong>da</strong> Capoeira no Contexto <strong>da</strong> Mundialização do<br />

Capital<br />

248<br />

“Antes mundo era pequeno<br />

Porque Terra era grande<br />

Hoje mundo é muito grande<br />

Porque Terra é pequena<br />

Do tamanho <strong>da</strong> antena parabolicamará<br />

Ê, volta do mundo camará<br />

Ê, mundo dá volta camará...”<br />

(Gilberto Gil)<br />

Quando muitos <strong>capoeira</strong>s brasileiros começaram a sair do país, a partir do<br />

início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970, para “ganhar o mundo” e trabalhar <strong>em</strong> grupos folclóricos<br />

no exterior, <strong>em</strong> busca de apoio e reconhecimento, não tinham idéia <strong>da</strong> magnitude<br />

que esse fenômeno viria a ter três déca<strong>da</strong>s mais tarde. No início, tudo era muito<br />

difícil e a rua era, freqüent<strong>em</strong>ente, o único espaço que eles encontravam para<br />

expressar sua arte ou para manter contatos com outros artistas do cotidiano, como<br />

palhaços e malabaristas <strong>da</strong>s mais diversas origens. Nas grandes ci<strong>da</strong>des dos<br />

Estados Unidos e <strong>da</strong> Europa, eles começaram a <strong>da</strong>r visibili<strong>da</strong>de a esta “arte<br />

tropical”, influenciando outros movimentos <strong>da</strong> cultura de rua, como o br<strong>ea</strong>k, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, que surgiu nos Estados Unidos, na déca<strong>da</strong> de 1980 e, logo depois,<br />

espalhou-se pelo mundo. Certamente, nesta <strong>da</strong>nça de passos interrompidos e<br />

acrobacias desconcertantes exist<strong>em</strong> muitos movimentos her<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>,<br />

como o giro de ponta-cabeça (pião de cabeça). Segundo Mestre Cobra Mansa,<br />

Sinézio Feliciano Peçanha, presidente <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Internacional de Capoeira<br />

Angola (FICA), alguns <strong>capoeira</strong>s “até eram convi<strong>da</strong>dos pelos grupos de br<strong>ea</strong>k para<br />

<strong>da</strong>r aulas" (SANTANA, 2001, p. 7). Em Nova York, a esquina do mundo, os<br />

<strong>capoeira</strong>s brasileiros costumam se reunir <strong>em</strong> praças e aveni<strong>da</strong>s e, freqüent<strong>em</strong>ente,<br />

são vistos <strong>em</strong> documentários de televisão e espetáculos culturais. Em 1989, o


Jornal do Brasil, <strong>em</strong> matéria intitula<strong>da</strong> “Capoeira para americano jogar”, já revelava<br />

os primeiros sintomas desse processo.<br />

Transplanta<strong>da</strong> para os EUA pelos brasileiros, a <strong>capoeira</strong> está<br />

crescendo <strong>em</strong> populari<strong>da</strong>de e pode ser vista <strong>em</strong> casas noturnas,<br />

exibições, competições, escolas, e até <strong>em</strong> filmes (...) A <strong>capoeira</strong> é<br />

como o jazz americano <strong>em</strong> seu início (...) é um b<strong>ea</strong>t, um swing, uma<br />

pulsação, um movimento. E a maneira como as pessoas se<br />

movimentam, pensam e se comportam na <strong>capoeira</strong> é a maneira como<br />

se movimentam, pensam e se comportam <strong>em</strong> suas vi<strong>da</strong>s (WEELOCK,<br />

1989, p. 8).<br />

Uma questão importante se coloca neste aspecto. Quais as principais<br />

características e contribuições desse movimento de internacionalização para o<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e suas contribuições para a prática pe<strong>da</strong>gógica?<br />

O principal motivo <strong>da</strong> saí<strong>da</strong> de uma avalanche de mestres, professores e<br />

iniciados <strong>em</strong> <strong>capoeira</strong> para o exterior é determinado por fatores econômicos e está<br />

relacionado com a busca de melhores opções de trabalho, reconhecimento e<br />

prestígio. Se, no Brasil, a mensali<strong>da</strong>de para se fazer aulas de <strong>capoeira</strong> três vezes<br />

por s<strong>em</strong>ana gira <strong>em</strong> torno de R$ 30,00 (trinta r<strong>ea</strong>is, o equivalente a US$ 10 – dez<br />

dólares), nas principais ci<strong>da</strong>des americanas e européias este valor corresponde a<br />

apenas uma hora de ativi<strong>da</strong>de. Para fazer uma aula de <strong>capoeira</strong> na Acad<strong>em</strong>ia Alvin<br />

Alley Ballet, <strong>em</strong> Nova York, com a Mestra brasileira Edna Lima, o interessado t<strong>em</strong><br />

que des<strong>em</strong>bolsar US$ 20 (vinte dólares) (SANTANA, 2001, p. 7). Esta diferença<br />

expressa, sintomaticamente, o principal motivo <strong>da</strong> “fuga” dos mestres e professores<br />

de <strong>capoeira</strong> do Brasil para o exterior. O fato é que viv<strong>em</strong>os um expressivo processo<br />

de <strong>em</strong>igração de brasileiros decorrente do esgotamento do modo de produção<br />

capitalista que leva expressiva quanti<strong>da</strong>de de pessoas a se jogar<strong>em</strong>, a esmo, <strong>em</strong><br />

aventuras arrisca<strong>da</strong>s.<br />

Esse movimento de expansão (ou expulsão) traz conseqüências<br />

inusita<strong>da</strong>s para a <strong>capoeira</strong> e é visto, por muitos, como algo sedutor, <strong>em</strong>bora venha<br />

249


causando inquietações por parte de alguns preocupados com a “manutenção” <strong>da</strong>s<br />

suas tradições. Se, por um lado, muitos alegam que isso v<strong>em</strong> contribuindo para um<br />

certo distanciamento dos princípios e valores que delegaram à <strong>capoeira</strong> um<br />

<strong>em</strong>bl<strong>em</strong>a de “luta de resistência” contra a exploração, por outro, muitos consideram<br />

que esse processo está contribuindo para a valorização <strong>da</strong>s referências culturais<br />

africanas e para despertar um interesse maior pelo Brasil e pela cultura brasileira,<br />

como é o caso, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>da</strong> estu<strong>da</strong>nte norte-americana, Kátia Wasolowisd<br />

(apelido “Camarão”), que aprendeu <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> São Francisco, EUA, com o Mestre<br />

Beiçola. A <strong>em</strong>polgação pela <strong>capoeira</strong> despertou nela o desejo de conhecer o Brasil<br />

e aprofun<strong>da</strong>r os conhecimentos sobre a cultura brasileira, fato que se concretizará<br />

por intermédio de estudo de mestrado (NUNES, 2001).<br />

Muitos analistas apregoam que, nos EUA, a <strong>capoeira</strong> t<strong>em</strong> contribuído,<br />

também, para revitalizar o elo entre os negros americanos e a África, cuja relação foi<br />

abala<strong>da</strong> pelo processo violento de segregação desencad<strong>ea</strong>do <strong>em</strong> séculos<br />

passados. Na busca desse “elo perdido”, muitos americanos vêm para o Brasil com<br />

o objetivo de “beber na fonte” e procuram conhecer os mestres mais representativos<br />

desta arte-luta. Muitos espaços de Salvador-BA, considera<strong>da</strong> a “Meca <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>”,<br />

transformaram-se <strong>em</strong> ver<strong>da</strong>deiros t<strong>em</strong>plos de peregrinação dos <strong>capoeira</strong>s<br />

“globalizados”, como a Acad<strong>em</strong>ia de João Pequeno 88 , no Forte Santo Antônio, ou a<br />

Fun<strong>da</strong>ção Mestre Bimba, no Pelourinho.<br />

Influencia<strong>da</strong>s por outras perspectivas, expressivas levas de <strong>capoeira</strong>s<br />

estrangeiros des<strong>em</strong>barcam nos aeroportos brasileiros para competir nos diversos<br />

campeonatos organizados por grupos com sede no Brasil e que possu<strong>em</strong> filiais <strong>em</strong><br />

88 O Mestre João Pequeno é o professor de <strong>capoeira</strong> mais antigo do Brasil <strong>em</strong> ativi<strong>da</strong>de, atualmente<br />

(2003), está com 85 anos. No dia 18 de dez<strong>em</strong>bro de 2003, recebeu o título de Doutor Honoris<br />

Causa pela Universi<strong>da</strong>de Federal de Uberlândia-MG.<br />

250


outros países 89 . A despeito <strong>da</strong>s freqüentes críticas a esta forma de tratamento,<br />

esses campeonatos têm contribuído bastante para a divulgação <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no<br />

exterior.<br />

Convém destacar que o grande interesse dos estrangeiros pela <strong>capoeira</strong><br />

se desdobra imediatamente <strong>em</strong> dois desejos, conhecer o Brasil e falar o português.<br />

Muitos mestres e professores que ministram aulas no exterior, <strong>em</strong> busca de um<br />

apelo ao mais “tradicional”, faz<strong>em</strong> questão de se expressar<strong>em</strong> no idioma português.<br />

Na luta por uma defesa identitária galga<strong>da</strong> na tradição afro-brasileira, muitos<br />

professores chegam a proibir nos seus trabalhos que se façam traduções de nomes<br />

de golpes, de movimentos, de cantigas e de instrumentos de <strong>capoeira</strong>. O americano<br />

Freddy Corr<strong>ea</strong> (apeli<strong>da</strong>do de “Furacão”), que ministra aulas no The Armory NYC, no<br />

Harl<strong>em</strong> – Nova York, também faz questão de usar <strong>em</strong> suas aulas, para crianças e<br />

jovens de até 25 anos, o português que aprendeu quando morou no Brasil (NUNES,<br />

2001, p. 1). Falar português nas aulas de <strong>capoeira</strong> é um requisito que opera como<br />

uma espécie de selo de quali<strong>da</strong>de e v<strong>em</strong> contribuindo para abrir campos de<br />

trabalhos antes impensáveis. O Hunter College, uma <strong>da</strong>s mais tradicionais<br />

facul<strong>da</strong>des de Nova York, já oferece cursos regulares de português, <strong>em</strong> decorrência<br />

<strong>da</strong> d<strong>em</strong>an<strong>da</strong> provoca<strong>da</strong> pela <strong>capoeira</strong> (NUNES, 2001, p. 3).<br />

Entretanto, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que o ex-frentista de posto de gasolina, o<br />

brasileiro João Grande, radicado <strong>em</strong> Nova York há mais de dez anos e ganhador do<br />

título de Doutor Honoris Causa do Upsala College, de Nova Jersey, <strong>em</strong> 1996,<br />

ministra aulas <strong>em</strong> sua Acad<strong>em</strong>ia no West Village, num autêntico português <strong>da</strong><br />

Bahia, por outro lado, muitos workshops são traduzidos para outras línguas (inglês<br />

89 Grandes Grupos de <strong>capoeira</strong> r<strong>ea</strong>lizam, atualmente, encontros internacionais, com a presença de<br />

mestres e discípulos de vários países, como é o caso <strong>da</strong> Associação Brasileira de Apoio e<br />

Desenvolvimento <strong>da</strong> Arte Capoeira (Aba<strong>da</strong>-Capoeira), que é uma enti<strong>da</strong>de que congrega mais de 30<br />

mil <strong>capoeira</strong>s <strong>em</strong> 26 países.<br />

251


principalmente), aqui mesmo no Brasil, como é o caso do “Capoeirando”, evento<br />

organizado por renomados mestres e r<strong>ea</strong>lizado durante o verão, <strong>em</strong> pontos<br />

turísticos estratégicos do território brasileiro, para onde aflui expressiva massa de<br />

“gringos” <strong>em</strong> busca <strong>da</strong> “autêntica” <strong>capoeira</strong>.<br />

Nesse complexo movimento, a <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong> conquistando e construindo<br />

espaços de interlocução nos mais diversos rincões do planeta. A internet t<strong>em</strong><br />

contribuído enorm<strong>em</strong>ente para esse processo de internacionalização <strong>da</strong> arte-luta<br />

brasileira. Os filmes também têm contribuído para esse processo, sendo o primeiro<br />

deles, o brasileiro, “O Pagador de Promessas”, que ganhou prêmios internacionais.<br />

Entretanto, foram as produções americanas, Only the Strong Survive (no Brasil<br />

recebeu o título agressivo de Esporte Sangrento) e Roof Tops, que conseguiram<br />

<strong>em</strong>placar uma maior difusão <strong>da</strong> arte-luta.<br />

É importante destacar que a parte retrata<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> ambas as<br />

produções americanas foi coreografa<strong>da</strong> pelo brasileiro Jelon Vieira, o precursor <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> nos Estados Unidos. Radicado naquele país, desde 1975, Jelon Vieira<br />

criou a Capoeira Foun<strong>da</strong>tion, e notabilizou-se ao entrar para o corredor <strong>da</strong> fama<br />

(Hall of Fame International), <strong>em</strong> 1990. Suas aulas já foram freqüenta<strong>da</strong>s por<br />

celebri<strong>da</strong>des como Pelé, Wesley Snipes e Eddie Murphy (SANTANA, 2001, p. 7).<br />

O movimento de difusão <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no contexto mundial é mais visível e<br />

intenso <strong>em</strong> direção aos Estados Unidos e à Europa. Com raras exceções,<br />

comprometi<strong>da</strong>s politicamente <strong>em</strong> desenvolver trabalhos de “retorno” dessa arte-luta<br />

à África, a maioria <strong>da</strong>s iniciativas se destina aos países centrais do capitalismo.<br />

Essa exportação não convencional (na forma de um símbolo étnico), que<br />

se expressa pelo movimento de saí<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>s do Brasil para trabalhar<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

outros países, assume dimensões complexas e controverti<strong>da</strong>s. Um aspecto muito<br />

252


evidente está relacionado com o processo de formação do profissional (n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre<br />

qalificado para tal ofício) que irá atuar <strong>em</strong> terras longínquas. Ironicamente, propaga-<br />

se no meio <strong>capoeira</strong>no, que os aviões <strong>da</strong> VARIG e <strong>da</strong> TAP (companhias aér<strong>ea</strong>s) se<br />

tornaram ver<strong>da</strong>deiras acad<strong>em</strong>ias de <strong>capoeira</strong>. Muitos <strong>em</strong>barcam discípulos e, após<br />

algumas horas de vôo, des<strong>em</strong>barcam “mestres” com uma bagag<strong>em</strong> de fazer inveja<br />

a qualquer estrangeiro.<br />

A despeito desses arranjos inevitáveis, é importante reconhecer que a<br />

<strong>capoeira</strong> ganhou o mundo e se transformou num dos veículos mais significativos de<br />

inserção <strong>da</strong> cultura brasileira no exterior, uma exuberante “<strong>em</strong>baixatriz” do Brasil.<br />

Em 2003 existiam escolas de <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> todos os 50 estados norte-americanos.<br />

Somente <strong>em</strong> Nova York, são 15 escolas. O surpreendente é que a d<strong>em</strong>an<strong>da</strong> por<br />

aulas de <strong>capoeira</strong> naquele país está concentra<strong>da</strong>, principalmente, nas escolas<br />

públicas. Essa prática t<strong>em</strong> sido b<strong>em</strong> cota<strong>da</strong> como ativi<strong>da</strong>de capaz de atuar na<br />

recuperação <strong>da</strong> auto-estima e <strong>da</strong> confiança de jovens com probl<strong>em</strong>as de<br />

aprendizado e de relacionamento, constituindo-se assim, numa “porta de salvação”<br />

para jovens vítimas de violência ou envolvidos com drogas ou álcool (NUNES,<br />

2001). O filme Only the Strong Survive, a despeito dos clichês e <strong>da</strong>s caricaturas de<br />

determinados valores culturais norte-americanos que propaga, explora essa<br />

probl<strong>em</strong>ática.<br />

Entretanto, não é somente através <strong>da</strong>s escolas públicas que a <strong>capoeira</strong><br />

v<strong>em</strong> conquistando os norte-americanos. Ela v<strong>em</strong> sendo usa<strong>da</strong> também para “treinar”<br />

atores e atrizes de filmes de ação, como é o caso de Halle Berry, atriz principal do<br />

filme Catwoman (Mulher-Gato). Para o diretor do filme a <strong>capoeira</strong> contém<br />

movimentos vigorosos, mas com suingue. “Para os americanos, a <strong>capoeira</strong> t<strong>em</strong> um<br />

atrativo forte, para além do fato de funcionar como arma de defesa pessoal e fazer<br />

253


<strong>em</strong> à saúde. Ela é exótica, o que confere um certo charme a qu<strong>em</strong> a pratica”<br />

(BERGAMO, 2004, p. 58).<br />

O videogame Tekken 3, lançado nos EUA <strong>em</strong> 1998, que mostra um herói<br />

de <strong>capoeira</strong>, chamado Eddy Gordo, t<strong>em</strong> contribuído sobr<strong>em</strong>aneira para a<br />

popularização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> entre os jovens americanos.<br />

Em evento r<strong>ea</strong>lizado <strong>em</strong> Salvador, no final de janeiro de 2001, o Mestre<br />

Geni afirmou, <strong>em</strong> tom crítico: "até o pessoal <strong>da</strong>qui só valoriza as pessoas quando<br />

sa<strong>em</strong>" (SANTANA, 2001, p. 7). Essa visão expressa uma r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de bastante<br />

presente não só <strong>em</strong> relação à <strong>capoeira</strong>, mas <strong>em</strong> praticamente todos os setores <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de brasileira.<br />

Neste movimento complexo, a <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong> se inserindo de forma ca<strong>da</strong><br />

vez mais abrangente <strong>em</strong> vários setores <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de internacional. Como<br />

conseqüência, algumas bandeiras cultiva<strong>da</strong>s e defendi<strong>da</strong>s por seus precursores,<br />

como a orali<strong>da</strong>de, o improviso, a mandinga, a resistência cultural, são<br />

subestima<strong>da</strong>s, para <strong>da</strong>r<strong>em</strong> lugar a outras categorias considera<strong>da</strong>s mais sintoniza<strong>da</strong>s<br />

com o momento atual, tais como: “mercadoria étnica”, “folia de espírito”, “malhação”<br />

e “espetacularização” etc. (VASSALLO, 2003b).<br />

O abandono de determinados rituais considerados tradicionais é outro<br />

aspecto que intriga experimentados <strong>capoeira</strong>s incomo<strong>da</strong>dos com os lampejos de<br />

moderni<strong>da</strong>de que, freqüent<strong>em</strong>ente, desconstro<strong>em</strong> procedimentos rudimentares, mas<br />

que, para muitos, exerc<strong>em</strong> um poder simbólico muito eficiente no universo<br />

<strong>capoeira</strong>no.<br />

Diante dessas considerações, pod<strong>em</strong>os constatar uma certa inquietação<br />

no que diz respeito à diversificação de tratos com este conhecimento, que t<strong>em</strong> se<br />

prestado a interesses bastante díspares. Segundo Mestre Cobra Mansa, essa<br />

254


proliferação de métodos está causando uma "per<strong>da</strong> <strong>da</strong> essência e <strong>da</strong> malícia <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>g<strong>em</strong>" (SANTANA, 2001).<br />

Na mesma linha, Mestre Moraes, que ensina <strong>capoeira</strong> no Forte Santo<br />

Antônio, <strong>em</strong> Salvador, argumenta que “o mercado e a profissionalização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong><br />

não pod<strong>em</strong> passar por cima <strong>da</strong> tradição e <strong>da</strong> cultura. Muito do que a gente vê hoje,<br />

principalmente na Capoeira Regional, é a preocupação com o físico, com acrobacia"<br />

(apud SANTANA, 2001, p. 7).<br />

Convém destacar, outrossim, que o movimento concreto dos <strong>capoeira</strong>s<br />

está longe de atender aos apelos “utópicos” desses mestres e é certo que a<br />

<strong>capoeira</strong> caminha para uma espécie de profissionalização, muito questiona<strong>da</strong> por<br />

eles. No entanto, pod<strong>em</strong>os perceber que aqueles que evocam a preservação <strong>da</strong>s<br />

tradições, geralmente o faz<strong>em</strong> por intermédio de workshops, cursos, oficinas e<br />

conferências de natureza essencialmente comercial. O preço cobrado por uma<br />

oficina ou palestra de um mestre “tradicional”, <strong>em</strong> um evento representativo, gravita<br />

<strong>em</strong> torno de mil r<strong>ea</strong>is (cerca de US$ 300,00).<br />

Por outro lado, muitos vê<strong>em</strong> na profissionalização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> uma<br />

alternativa para a sua valorização. Não é por acaso que expressivo número de<br />

<strong>capoeira</strong>s, na expectativa de se tornar<strong>em</strong> futuros professores, aceleram o seu<br />

processo de formação e chegam muito cedo ao grau de mestre (chamados,<br />

ironicamente, de “mestres miojo”, pela sua preparação aligeira<strong>da</strong>), <strong>em</strong>bora isso não<br />

seja garantia de sucesso profissional.<br />

Estamos presenciando a <strong>construção</strong> de uma diáspora brasileira, e a<br />

<strong>capoeira</strong> insere-se, indubitavelmente, como um dos carros chefes desse processo.<br />

O fato é que ela v<strong>em</strong> se expandindo <strong>em</strong> escala geométrica por todo o globo, e o<br />

incr<strong>em</strong>ento desse movimento de internacionalização t<strong>em</strong> ocorrido <strong>em</strong> comunhão<br />

255


com outros símbolos <strong>da</strong> cultura brasileira, como o carnaval, o samba e o pagode. É<br />

possível afirmar que essa diáspora brasileira se constrói sob os ditames <strong>da</strong><br />

globalização econômica que produz uma brasili<strong>da</strong>de id<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>, construí<strong>da</strong> por cima<br />

e ao largo <strong>da</strong>s gritantes diferenças culturais e econômicas que mol<strong>da</strong>m a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de<br />

concreta do povo brasileiro.<br />

Três questões de estudo nos instigavam <strong>em</strong> relação a esse fenômeno de<br />

internacionalização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>: a) será que é possível falar de uma<br />

internacionalização s<strong>em</strong> fronteiras para a <strong>capoeira</strong>? Se entendermos essas<br />

fronteiras como barreiras a ser<strong>em</strong> enfrenta<strong>da</strong>s pelos <strong>capoeira</strong>s na busca de maior<br />

reconhecimento e digni<strong>da</strong>de, que fronteiras são essas? Será que desse movimento<br />

de enfrentamento e desmoronamento de fronteiras, que a <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong><br />

materializando, pod<strong>em</strong> <strong>em</strong>ergir novos el<strong>em</strong>entos teórico-metodológicos capazes de<br />

contribuir significativamente para o desenvolvimento <strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica?<br />

É fato que esse processo de internacionalização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> se reveste<br />

de uma aparência sedutora, à medi<strong>da</strong> que exige desprendimento e “espírito de<br />

aventura”, tão caros aos jovens que entram no mercado de trabalho, mas é<br />

importante enfatizar que ele se dá, na essência, dentro <strong>da</strong> lógica de uma<br />

globalização perversa que, <strong>em</strong> geral, expõe os sujeitos a situações de exploração.<br />

A explicitação de el<strong>em</strong>entos teórico-metodológicos estratégicos, que<br />

possam contribuir para a <strong>construção</strong> <strong>da</strong> <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na deve levar <strong>em</strong><br />

consideração também esse rico e complexo processo e internacionalização, de<br />

modo a contribuir efetivamente com a formação humana que tenha como referência<br />

ontológica e gnosiológica um projeto histórico superador <strong>da</strong>s relações sociais de<br />

exploração.<br />

4.3.1. A Capoeira na Europa: O Sonho de Emancipação<br />

256


Durante a r<strong>ea</strong>lização do estágio de doutoramento, r<strong>ea</strong>lizado entre 04 de<br />

abril e 30 de agosto de 2003, visitamos importantes instituições de ensino e<br />

pesquisa, <strong>em</strong> especial, facul<strong>da</strong>des de Educação Física <strong>em</strong> diferentes países<br />

europeus. Em algumas delas, exist<strong>em</strong> trabalhos sist<strong>em</strong>atizados de <strong>capoeira</strong> que<br />

funcionam como projetos de extensão ou como ativi<strong>da</strong>des extracurriculares, <strong>em</strong> que<br />

professores brasileiros são contratados por t<strong>em</strong>po determinado para ministrar<strong>em</strong><br />

ativi<strong>da</strong>des aos que se interessar<strong>em</strong>. Geralmente, os discípulos pagam taxas que<br />

oscilam entre vinte e cinqüenta euros por mês (que corresponde entre sessenta e<br />

cento e cinqüenta r<strong>ea</strong>is) e é do montante dessas taxas que provém o pagamento do<br />

professor de <strong>capoeira</strong>, como é o caso dos projetos do Estádio Universitário <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de de Lisboa, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Varsóvia e <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Oslo.<br />

No quadro abaixo, estão relaciona<strong>da</strong>s outras instituições que nos foi possível visitar.<br />

Quadro 4 – Instituições visita<strong>da</strong>s durante estágio de doutoramento<br />

INSTITUIÇÃO DATA DA VISITA CIDADE PAÍS<br />

Universi<strong>da</strong>de Técnica de Lisboa 15/04/03 Cruz Quebra<strong>da</strong> Portugal<br />

Universi<strong>da</strong>de de Vigo 21/04/03 Vigo Espanha<br />

Biblioteca Nacional de Lisboa 23/04/03 Lisboa Portugal<br />

Universi<strong>da</strong>de de Roma 29/04/03 Roma Itália<br />

Universi<strong>da</strong>de de Varsóvia 09/05/03 Varsóvia Polônia<br />

Instituto Gramsci 23/07/03 Roma Itália<br />

Universi<strong>da</strong>de de Oslo 15/08/03 Oslo Noruega<br />

Na Europa, foi-nos possível participar de eventos de <strong>capoeira</strong> de diversos<br />

grupos, muitos deles r<strong>ea</strong>lizados <strong>em</strong> universi<strong>da</strong>des importantes, como os<br />

desenvolvidos na Universi<strong>da</strong>de de Varsóvia, Universi<strong>da</strong>de de Bristol, Universi<strong>da</strong>de<br />

de Oslo, Universi<strong>da</strong>de Técnica de Lisboa e Universi<strong>da</strong>de de Lisboa.<br />

Embora esses eventos possam ser caracterizados como particulares do<br />

“campo” <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, participamos deles providos de uma visão amplia<strong>da</strong> do<br />

conceito de “campo”, que se estendia para além de análises pormenoriza<strong>da</strong>s de<br />

<strong>em</strong>polgantes <strong>jogo</strong>s de <strong>capoeira</strong> na ro<strong>da</strong>. A nossa presença física estava<br />

257


irr<strong>em</strong>ediavelmente atrela<strong>da</strong> às concepções de ciência, de socie<strong>da</strong>de e de prática<br />

investigativa comprometi<strong>da</strong>s com a transformação social. Esses “eventos-campos” 90<br />

(Silva, 2003) serviram, portanto, para buscar, na medi<strong>da</strong> do possível, a totali<strong>da</strong>de,<br />

ou seja, os nexos e determinantes históricos, enfim, as particulari<strong>da</strong>des e as<br />

generali<strong>da</strong>des do cotidiano dos <strong>capoeira</strong>s na Europa. Através desses eventos,<br />

fomos intensificando o contato com a riqueza e a miséria <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e dos<br />

<strong>capoeira</strong>s, com os conformismos e resistências, com as contradições e saltos<br />

qualitativos que se ocultam por trás <strong>da</strong>s aparências e dos discursos arr<strong>em</strong>atados.<br />

Apesar de os eventos de <strong>capoeira</strong>, <strong>em</strong> geral, evidenciar<strong>em</strong> facetas que<br />

seus organizadores pretend<strong>em</strong> difundir a respeito dos princípios que reg<strong>em</strong> seus<br />

trabalhos, é possível entrever contradições freqüentes que <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> durante a<br />

r<strong>ea</strong>lização deles, vez que tais eventos são perm<strong>ea</strong>dos de imprevistos pela presença<br />

sist<strong>em</strong>ática de integrantes de outros grupos com ideologias diferentes, e até rivais,<br />

que acabam refletindo nas relações e redirecionando objetivos previstos<br />

antecipa<strong>da</strong>mente pelos seus organizadores.<br />

No quadro 5, estão relacionados os diferentes “eventos-campos” dos<br />

quais participamos com o intuito de presenciarmos, “in loco”, os esforços, as<br />

dificul<strong>da</strong>des, as contradições e os imprevistos que perm<strong>ea</strong>vam suas execuções. A<br />

nossa participação nesses eventos somente foi possível mediante negociações com<br />

os seus organizadores, que contribuíram, sobr<strong>em</strong>aneira, inclusive, com passagens,<br />

para que pudéss<strong>em</strong>os acompanhar experiências tão singulares.<br />

90 Em pesquisa r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> sobre a exploração do trabalho infantil e cultura lúdica, Silva (2003) cunhou<br />

o termo “evento-campo” para designar o “campo <strong>em</strong> movimento no r<strong>ea</strong>l” que caracterizou os eventos<br />

que constituíram o objeto <strong>em</strong>pírico de suas análises.<br />

258


Quadro 5 – Participação do pesquisador <strong>em</strong> eventos de <strong>capoeira</strong><br />

NOME DO EVENTO DATA COORDENAÇÃO LOCAL CIDADE/<br />

DO EVENTO<br />

PAIS<br />

2º International 11 a 13/04/03 Mestre Batata – Pavilhão Escola Faro<br />

Capoeira Meeting<br />

Cia de Capoeira<br />

Cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong><br />

Básica Afonso III Portugal<br />

Mesa Redon<strong>da</strong> com 22/04/03 Grupo Alto Astral Instituto de Ciências Lisboa<br />

mestres brasileiros<br />

Professor Marco Sociais <strong>da</strong> Portugal<br />

Mintirinha, Artur Emídio,<br />

Antônio Universi<strong>da</strong>de de<br />

Elcion e Marinaldo.<br />

Lisboa - ICS<br />

Oficina de Capoeira 23/04/03 Grupo Alto Astral<br />

ICS Lisboa<br />

com Mestres Brasileiros<br />

Professor Marco<br />

Antônio<br />

Portugal<br />

Batismo e Graduação 25/04/03 Prof. Aranha Palasport di Gar<strong>da</strong> Pesquera<br />

do Grupo Beribazu<br />

Del Gar<strong>da</strong> –<br />

Itália<br />

IV Festiwal Kultury 04 a 12/05/03 Mestre Jorge Universi<strong>da</strong>de de Varsóvia<br />

Afrobrazylijskiej<br />

Varsóvia Polônia<br />

Oficina sobre a História 18/05/03 Grupo de Capoeira Escola de Telheiras Lisboa<br />

<strong>da</strong> Capoeira e Maculelê<br />

Alto Astral<br />

Portugal<br />

com o Dr. Liberac Pires<br />

Prof. Marco Antônio<br />

Batismo e Graduação 25/05/03 Professor ET Instituto Politécnico Tomar<br />

do Grupo Beribazu<br />

de Tomar Portugal<br />

Batismo do Grupo 01/06/03 Grupo Ginga Legal Escola Fernando de Loures<br />

Ginga Legal<br />

Instrutor Bugrão Bulhões Portugal<br />

Aniversário de 20 anos 08 e 09/06/03 Mestres Umoi, Escola de Lisboa<br />

do Grupo União –<br />

Ulisses, Tucas e Alfornelos - Portugal<br />

Jerusa<br />

Amadora<br />

II Encontro Internacional 14 e 15/06/03 Grupo União Tuna Operária de Sintra<br />

F<strong>em</strong>inino de Capoeira<br />

Mestra Jerusa<br />

Sintra Portugal<br />

IX Baptizado de<br />

19/06/03<br />

Pavilhão do Futebol Porto<br />

Capoeira do Grupo<br />

Lagoa <strong>da</strong> Sau<strong>da</strong>de<br />

Mestre Barão Clube de Gaia Portugal<br />

Circuito Português de 21 e 22/06/03 Mestre Sargento Campo <strong>da</strong> Pólvora Massamá<br />

Capoeira<br />

Portugal<br />

Batismo e Graduação 25/06/03 Mestre Bailarino Ginásio do Corpo Setúbal<br />

Grupo Muzenza<br />

de Bombeiros Portugal<br />

Competição<br />

28 a 29/06/03 Mestre Pantera Casa do Brasil Madrid<br />

Internacional <strong>da</strong> ACDP<br />

Espanha<br />

Encontro de Sesimbra 04 a 06/07/03 Professor Marco<br />

Meco Sesimbra<br />

Antônio<br />

Portugal<br />

Festival F<strong>em</strong>inino de 12 e 13/07/03 Grupo de Capoeira Estádio Lisboa<br />

Capoeira: A mulher e a<br />

Alto Astral Universitário de Portugal<br />

Capoeira<br />

Lisboa<br />

Stage di Capoeira 18 a 20/07/03 Gp. São Salomão Parque Municipal Carmingnan<br />

Contramestre Cobra<br />

o de Brenta<br />

- Itália<br />

1st. Beribazu Birth<strong>da</strong>y 06 a 10/08/03 Mestre Maxwel Window Arts Centre Bath<br />

Week<br />

Inglaterra<br />

VIII Batismo e Troca de 13 a 17/08/03 Mestre Umoi Universi<strong>da</strong>de de Oslo<br />

Graduação do Grupo<br />

Capoeira na Neve<br />

Prof. Torcha<br />

Oslo<br />

Noruega<br />

259


Além desses eventos formais, tiv<strong>em</strong>os a oportuni<strong>da</strong>de de participar de<br />

inúmeras ro<strong>da</strong>s e ativi<strong>da</strong>des informais, ocasiões <strong>em</strong> que mantínhamos contatos<br />

mais prolongados com os diversos segmentos de <strong>capoeira</strong>.<br />

Considerando que os cantos, rituais e códigos de uma ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong><br />

promov<strong>em</strong> r<strong>ea</strong>tualizações sist<strong>em</strong>áticas de fatos e episódios <strong>da</strong> história e colocam<br />

<strong>em</strong> evidência aspectos relevantes do cotidiano, a participação <strong>em</strong> diferentes ro<strong>da</strong>s<br />

contribuiu para incr<strong>em</strong>entar as nossas análises sobre o movimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> na<br />

Europa. Procurávamos participar delas interagindo com o maior número possível de<br />

participantes. Ocasionalmente, r<strong>ea</strong>lizávamos alguns <strong>jogo</strong>s, <strong>em</strong>bora o objetivo<br />

principal dessas participações fosse perceber as intenções e os objetivos dos<br />

participantes.<br />

Com essas experiências, ratificávamos que a ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>, como fato<br />

social, condensa, além do <strong>jogo</strong> corpóreo-gestual, um intenso <strong>jogo</strong> não-verbal, muitas<br />

vezes indecifrável ao próprio praticante. Ca<strong>da</strong> ro<strong>da</strong> t<strong>em</strong> sua particulari<strong>da</strong>de, mesmo<br />

que seja protagoniza<strong>da</strong> pelos mesmos jogadores.<br />

Durante esse estágio, r<strong>ea</strong>lizamos entrevistas com os responsáveis por<br />

trabalhos de <strong>capoeira</strong> e, também, com alguns <strong>capoeira</strong>s de todos os países que<br />

visitamos. Essas entrevistas foram do tipo s<strong>em</strong>i-estrutura<strong>da</strong>, por parecer<strong>em</strong> mais<br />

adequa<strong>da</strong>s para atender às especifici<strong>da</strong>des dessa etapa de investigação. As<br />

entrevistas com os mestres e professores foram mais longas e aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>s. Em<br />

relação aos estu<strong>da</strong>ntes, fazíamos algumas perguntas básicas relaciona<strong>da</strong>s com o<br />

motivo <strong>da</strong> opção pela prática <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>.<br />

Foi r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong>, uma entrevista coletiva com o objetivo de promover<br />

confronto de idéias, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre possível nas entrevistas individuais. Em nov<strong>em</strong>bro<br />

de 2003, já de volta ao Brasil, r<strong>ea</strong>lizamos também uma entrevista com o professor<br />

260


português Arroz Doce, que ministra aula de <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> um projeto de extensão <strong>da</strong><br />

Facul<strong>da</strong>de de Motrici<strong>da</strong>de Humana <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Técnica de Lisboa e veio<br />

participar de um evento na UFSC.<br />

No quadro, a seguir, estão relacionados os mestres, professores e<br />

discípulos graduados que entrevistamos. Algumas dessas entrevistas foram<br />

r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>s <strong>em</strong> câmara de filmag<strong>em</strong> VHS, outras <strong>em</strong> gravador de fita cassete. Os<br />

<strong>da</strong>dos foram transcritos e serviram de subsídios para as análises do movimento <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> na Europa.<br />

Quadro 6 – Relação de mestres e professores de <strong>capoeira</strong> entrevistados na Europa<br />

Nome Data <strong>da</strong><br />

Entrevista<br />

Grupo Local <strong>da</strong> Entrevista<br />

Mestre Barão 08/06/03 Lagoa <strong>da</strong> Sau<strong>da</strong>de Lisboa - Portugal<br />

Mestre Umoi 27/06/03 União Lisboa - Portugal<br />

Mestre Quincas 28/06/03 Fúria de Zumbi Madrid – Espanha<br />

Mestre Matias 29/06/03 Brasil Capoeira Madrid - Espanha<br />

Mestre Nestor Capoeira 05/07/03 S<strong>em</strong> Grupo Sesimbra – Portugal<br />

Federica 19/07/03 s<strong>em</strong> grupo Vicensa – Itália<br />

Mestre Borracha 19/07/03 Mangangá Vicensa – Itália<br />

Contramestre Toni Santos 20/07/03 Bandu d’Arte Vicensa - Itália<br />

Mestre Pastel 09/08/03 Capoeira de Rua Bath – Inglaterra<br />

Mestre Maxwel 11/08/03 Beribazu Bristol – Inglaterra<br />

Professor Marco Antônio 13/08/03 Alto Astral Lisboa – Portugal<br />

Professor Torcha 18/08/03 Capoeira na Neve Oslo – Noruega<br />

Mestre Maclau 18/08/03 União Oslo - Noruega<br />

Professor Bugrão 24/08/03 Grupo Ginga Legal Lisboa – Portugal<br />

Instrutor ET 25/08/03 Grupo Beribazu Tomar - Portugal<br />

Entrevista Coletiva<br />

Mestres Umoi, Mestre<br />

Ulisses, Mestre Tucas,<br />

Mestra Jerusa,<br />

Contramestre Nagô<br />

18/08/03 União Amsterdã - Holan<strong>da</strong><br />

Em relação aos documentos catalogados para análise, foi-nos possível<br />

acessar alguns documentários sobre os grupos freqüentados, acervos de fotos,<br />

programas e calendários de ativi<strong>da</strong>des, planejamentos, páginas eletrônicas,<br />

reportagens de jornais e revistas, regulamentos, textos elaborados pelos integrantes<br />

dos grupos, panfletos e outros materiais de divulgação.<br />

261


O primeiro trabalho de ensino sist<strong>em</strong>atizado de <strong>capoeira</strong> na Europa foi<br />

<strong>em</strong>preendido pelo reconhecido Mestre Nestor Capoeira 91 . Embora alguns <strong>capoeira</strong>s<br />

brasileiros tenham r<strong>ea</strong>lizado espetáculos pela Europa desde 1951, foi Nestor<br />

Capoeira qu<strong>em</strong> iniciou o processo de ensino sist<strong>em</strong>atizado desta manifestação na<br />

Europa, na London School of Cont<strong>em</strong>porary Dance.<br />

A partir do Mestre Nestor Capoeira, que foi discípulo do Mestre<br />

Leopoldina 92 , milhares de workshops e oficinas pipocaram por to<strong>da</strong> a Europa. Em<br />

entrevista, o referido mestre declarou que, <strong>em</strong>bora tenha sabido <strong>da</strong> passag<strong>em</strong> de<br />

Mestre Artur Emídio pela Europa, para participar de shows e ministrar oficinas, foi<br />

ele que, <strong>em</strong> 1971, começou a ministrar aulas sist<strong>em</strong>áticas de <strong>capoeira</strong> no Velho<br />

Continente.<br />

Ao longo dos últimos trinta anos, o movimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> na Europa<br />

intensificou-se, fazendo com que ela adquirisse expressiva densi<strong>da</strong>de. No entanto,<br />

no começo, tudo era muito difícil pela falta de informação sobre o que r<strong>ea</strong>lmente<br />

significava esse misto de <strong>da</strong>nça-luta-<strong>jogo</strong>.<br />

O depoimento do Mestre Barão, que desenvolve um conhecido trabalho<br />

de <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> Porto, ao norte de Portugal, serve para ilustrar esse complexo e<br />

conflituoso movimento:<br />

Eu nasci perto de Aracaju (capital do estado de Sergipe-Brasil), <strong>em</strong><br />

Itaporanga <strong>da</strong> Ju<strong>da</strong>, lá no meio do mato, numa família humilde, mas<br />

91 Nestor Capoeira foi iniciado por Mestre Leopoldina e graduou-se cor<strong>da</strong> vermelha pelo Grupo<br />

Senzala <strong>em</strong> 1969. É autor de vários livros e artigos de <strong>capoeira</strong>. É mestre e doutor <strong>em</strong> Comunicação<br />

e Cultura pela Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio de Janeiro. Foi ator principal do filme “Cordão de Ouro”,<br />

produzido pela Embrafilme (hoje disponível <strong>em</strong> vídeo pela Globovídeo), sob a direção de A. C.<br />

Fontoura, <strong>em</strong> 1978.<br />

92 Mestre Leopoldina, uma <strong>da</strong>s maiores expressões <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> carioca, começou a aprender a arteluta<br />

aos 18 anos, com um jov<strong>em</strong> malandro carioca conhecido como Quinzinho. Sua valentia era<br />

t<strong>em</strong>i<strong>da</strong> e respeita<strong>da</strong> na região <strong>da</strong> Central do Brasil, no Rio de Janeiro. A partir de contatos com um<br />

lutador bastante conhecido na época – Vald<strong>em</strong>ar Santana (o Pantera Negra), Leopoldina conheceu o<br />

<strong>capoeira</strong> baiano Artur Emídio, recém chegado de Itabuna - Bahia, com qu<strong>em</strong> continuou aprendendo a<br />

arte <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>g<strong>em</strong>. Leopoldina é portador de grande carisma e já cunhou frases pitorescas que<br />

alimentam a bagag<strong>em</strong> cultural dos praticantes dessa arte, como: “a <strong>capoeira</strong> é a maçonaria <strong>da</strong><br />

malandrag<strong>em</strong>”. Para maiores informações sobre o Mestre Leopoldina ver:<br />

www.<strong>capoeira</strong>dobrasil.com.br.<br />

262


honesta também. Depois fomos para Santos-SP, morar lá no Nova<br />

Sintra, no morro. A gente morava numa casinha humilde, morava num<br />

quarto onde todo mundo dormia junto. Depois eu ia estu<strong>da</strong>r, depois<br />

<strong>da</strong>s aulas eu ia vender doce no ponto final dos ônibus, <strong>em</strong> Santos.<br />

Vender bananinha para aju<strong>da</strong>r minha família, né. Depois eu parei de<br />

vender doce e fui trabalhar com um português, carregando lavag<strong>em</strong><br />

nas costas de domingo a domingo. Depois fui trabalhar na oficina,<br />

aprender a função de mecânico. Aí, estudei. Depois fiz um concurso,<br />

entrei nas docas. Aí, ganhei uma passag<strong>em</strong> e vim cair aqui <strong>em</strong><br />

Portugal. Cheguei aqui <strong>em</strong> 1994. Tenho nove anos aqui. E faço<br />

também um trabalho social porque eu gosto de aju<strong>da</strong>r as crianças<br />

mais carentes porque é importante você fazer uma criança sorrir, não<br />

só no Natal, mas também no ano todo (...) (Mestre Barão,<br />

comunicação pessoal, 8 de junho de 2003).<br />

Mestre Umoi 93 , que há treze anos reside <strong>em</strong> Portugal, destacou que, no<br />

início, teve que <strong>da</strong>r aula na rua para convencer as crianças a fazer<strong>em</strong> <strong>capoeira</strong>.<br />

Dizia que iria ensiná-las a “<strong>da</strong>r perna<strong>da</strong>s”. Segundo ele, precisou utilizar dessa<br />

possibili<strong>da</strong>de para levar os “miúdos” a se interessar<strong>em</strong> pelas “perna<strong>da</strong>s do Brasil”.<br />

Quando eu cheguei aqui, <strong>em</strong> agosto de 1990, pelo menos na região<br />

<strong>da</strong> Grande Lisboa, onde eu me instalei, não tinha <strong>capoeira</strong>. Ninguém<br />

tinha conhecimento do que era <strong>capoeira</strong> e, claro, eu vim pra cá na<br />

tentativa mesmo de ensinar a <strong>capoeira</strong>. Comecei a procurar as<br />

acad<strong>em</strong>ias aqui e a primeira r<strong>ea</strong>ção dos donos <strong>da</strong>s acad<strong>em</strong>ias<br />

geralmente era que não queriam na<strong>da</strong> com galinheiros aqui <strong>em</strong><br />

Portugal, porque <strong>capoeira</strong> aqui <strong>em</strong> Portugal significa galinheiro. Então<br />

isso dificultou muito o início do trabalho aqui (Mestre Umoi,<br />

comunicação pessoal, 27 de junho de 2003).<br />

Os trabalhos dedicados e ininterruptos de muitos mestres e professores<br />

deram continui<strong>da</strong>de à iniciativa impl<strong>em</strong>enta<strong>da</strong> por Nestor Capoeira e contribuíram<br />

para que essa manifestação adquirisse grande densi<strong>da</strong>de, diversi<strong>da</strong>de, visibili<strong>da</strong>de e<br />

prestígio social.<br />

93 Mestre Umoi começou <strong>capoeira</strong> aos 11 anos de i<strong>da</strong>de. Seu primeiro mestre foi Cordeiro e o atual é<br />

Cícero. Atualmente, trabalha no Colégio Padre António de Oliveira, <strong>em</strong> Caxias, nos arredores de<br />

Lisboa – Portugal. Nesse Colégio, t<strong>em</strong> um Informativo chamado Rambóia que é elaborado pelos<br />

próprios alunos e, de um deles, extraímos alguns versos elaborados por um interno, de 16 anos, com<br />

o seguinte teor: “Capoeira é um sport praticado/ Pelos alunos do Mestre Umoi adorado/ O Mestre<br />

Umoi é o professor/ E Mohammed faz beija-flor” (...) Na <strong>capoeira</strong> t<strong>em</strong>os um sol que no alumia/ As<br />

nossas gingas do dia-a-dia/ Capoeira é uma coisa queri<strong>da</strong>/ Para o mestre Umoi é uma coisa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>/<br />

Capoeira v<strong>em</strong> do Brasil/ Mas o Atlântico é pequeno para nos separar/ Porque o sangue é mais forte/<br />

Do que a água do mar (...) (in: MOHAMMED, 2002).<br />

263


Na Europa, essa densi<strong>da</strong>de expressa-se pelo rico acervo cultural<br />

<strong>em</strong>butido nos seus gestos, cantos e história, que extrapolam as referências de sua<br />

baiani<strong>da</strong>de e edificam uma brasili<strong>da</strong>de, <strong>em</strong>bora id<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>, à medi<strong>da</strong> que não leva<br />

<strong>em</strong> consideração as evidentes diferenças culturais (e econômicas) presentes neste<br />

país de dimensões continentais. Essa “desbaianização” e “brasilização”<br />

concomitante <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> é resultado dessa mobili<strong>da</strong>de visível que se expressa pela<br />

saí<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>s <strong>da</strong>s mais diferentes ci<strong>da</strong>des brasileiras, <strong>em</strong> direção ao Velho<br />

Mundo e à América do Norte. Esse movimento, além de abalar a heg<strong>em</strong>onia do Eixo<br />

Bahia – São Paulo – Rio de Janeiro, contribui para ampliar as referências culturais<br />

dessa manifestação e ornamentar esse carimbo de brasili<strong>da</strong>de. Um professor<br />

norueguês nos afirmou: “hoje <strong>em</strong> dia, as pessoas já conhec<strong>em</strong> b<strong>em</strong> o que é a<br />

<strong>capoeira</strong> e quer<strong>em</strong> a <strong>capoeira</strong> (...). Qu<strong>em</strong> procura a <strong>capoeira</strong> já t<strong>em</strong> uma idéia que é<br />

uma coisa brasileira e quer<strong>em</strong> isso!” (Professor Torcha, comunicação pessoal, Oslo,<br />

Noruega, 18 de agosto de 2003).<br />

O fato é que a <strong>capoeira</strong>, com esse “carimbo” de Brasil <strong>em</strong>butido <strong>em</strong> suas<br />

cantigas, comportamentos, ramificou-se e expandiu-se significativamente e t<strong>em</strong><br />

servido, atualmente, como veículo de agregação (às vezes, de desagregação) de<br />

povos de vários cantos do mundo, adquirindo, assim, uma identi<strong>da</strong>de supra-<br />

nacional. O Mestre Umoi, já citado, nos afirmou:<br />

A <strong>capoeira</strong> está quebrando a barreira do oc<strong>ea</strong>no que divide o Brasil, a<br />

África, a Europa, a América do Norte. A <strong>capoeira</strong> é do capoeirista. E a<br />

gente já t<strong>em</strong> muitos bons capoeiristas aqui na Europa. Você vê muito<br />

angoleiro al<strong>em</strong>ão jogando uma Angola tão boa e até melhor do que<br />

muito capoeirista que nunca saiu de Salvador, que nunca saiu do<br />

Brasil. Aí você fala. Ah! é porque é al<strong>em</strong>ão? Não, é porque é<br />

capoeirista (Mestre Umoi, comunicação pessoal, Amsterdã, 18 de<br />

agosto de 2003).<br />

Um dos momentos mais radiantes que tiv<strong>em</strong>os a oportuni<strong>da</strong>de de usufruir<br />

nesta etapa <strong>da</strong> pesquisa, na Europa, aconteceu quando, <strong>em</strong> um evento <strong>em</strong> Oslo, na<br />

264


Noruega, jogamos <strong>capoeira</strong> com um africano <strong>da</strong> Somália, enquanto um jov<strong>em</strong> russo<br />

filmava o <strong>jogo</strong>, numa ro<strong>da</strong> <strong>em</strong> que participavam <strong>capoeira</strong>s de vários países, <strong>em</strong><br />

especial, <strong>da</strong> Noruega e de Portugal. Nessa ocasião, nos veio à m<strong>em</strong>ória a<br />

mensag<strong>em</strong> <strong>da</strong> cantiga consagra<strong>da</strong>, já menciona<strong>da</strong> neste estudo, do falecido Mestre<br />

Ezequiel, que retratava a época <strong>em</strong> que ele jogava, no cais <strong>da</strong> Bahia e, enquanto<br />

isso, o gringo fotografava e filmava, mas ele n<strong>em</strong> ligava, pois não sabia que sua<br />

“foto ia sair no jornal, na França, na Rússia e também na Hungria” (verso <strong>da</strong><br />

cantiga). Aquele momento foi especial porque experienciamos o conceito de<br />

internacionalização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> que nos provocava desde o início de nossas<br />

investigações. Em segui<strong>da</strong>, foi-nos possível r<strong>ea</strong>lizar, também, um <strong>em</strong>polgante <strong>jogo</strong><br />

com o <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> Rússia, morador de São Petersburgo, que anteriormente atuava<br />

como filmador.<br />

Esse episódio serve para ex<strong>em</strong>plificar que ali, naquela ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong><br />

setentrional, construíram-se elos identitários, ain<strong>da</strong> pouco eluci<strong>da</strong>dos. Certamente,<br />

através <strong>da</strong>queles <strong>jogo</strong>s, eles foram construídos para além de componentes<br />

lingüísticos, étnicos, de território e de nação, evidenciando, inclusive, para nós<br />

mesmos, o poder de uma ativi<strong>da</strong>de cultural no processo de (re)criação de novas<br />

formas de vivenciar e compartilhar experiências significativas.<br />

Certamente, estávamos juntos naquela ro<strong>da</strong> porque nos identificávamos<br />

com uma prática impregna<strong>da</strong> de significado simbólico que fazia muito sentido para<br />

os que ali estavam. A bagag<strong>em</strong> cultural acumula<strong>da</strong> pela experiência, ao ser<br />

compartilha<strong>da</strong> com sujeitos de origens tão díspares, adquiria nova roupag<strong>em</strong> e,<br />

simultan<strong>ea</strong>mente, transformava as nossas consciências e percepções <strong>em</strong> relação<br />

ao “outro”.<br />

265


O que nos agregava, o que nos aglutinava, o que nos tornava tão<br />

familiares, naquela ocasião, era a simbologia <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>. Outros aspectos,<br />

como território, língua, religião, crendices, não preponderavam naquele processo de<br />

interação intensa, <strong>em</strong>bora eles jamais pudess<strong>em</strong> ser ignorados.<br />

Essa experiência, bastante particular, evidencia que, nos episódios do<br />

cotidiano, carregamos dimensões ético-políticas, históricas, culturais e econômicas<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> socie<strong>da</strong>de, e o significado que os sujeitos apreend<strong>em</strong> <strong>da</strong>s práticas<br />

culturais significativas, <strong>em</strong>ocionalmente compartilha<strong>da</strong>s, pode contribuir para<br />

redefinir projetos de vi<strong>da</strong>, trajetos e sonhos, muitas vezes mais susceptíveis à<br />

intensi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s interações e à plenitude <strong>da</strong> experiência, do que a configurações<br />

macro-estruturais.<br />

O que movimenta milhares de europeus nas ro<strong>da</strong>s de <strong>capoeira</strong>, <strong>em</strong><br />

suas mais diversas formas, são os sist<strong>em</strong>as de representações significativas,<br />

construídos e usufruídos coletivamente <strong>em</strong> relação ao que se convencionou<br />

chamar de “fun<strong>da</strong>mento” <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>. O alimento para esses sist<strong>em</strong>as de<br />

representações pode ser encontrado nos uniformes, nas estampas <strong>da</strong>s<br />

camisetas, nos sítios <strong>da</strong> internet e nas cantigas ecoa<strong>da</strong>s nas ro<strong>da</strong>s.<br />

Ao fazer análise <strong>da</strong>s experiências dos <strong>capoeira</strong>s <strong>em</strong> Paris, Vassallo<br />

(2003b) afirma que esse fun<strong>da</strong>mento está articulado com o que consideram ser a<br />

cultura brasileira. Essa articulação incluiria “o domínio <strong>da</strong> língua portuguesa, b<strong>em</strong><br />

como as <strong>da</strong>nças, o ritmo e, sobretudo, a visão de mundo característicos <strong>da</strong>qui”<br />

(VASSALLO, op. cit., p. 8 e 9). Os <strong>capoeira</strong>s franceses desprovidos desses<br />

fun<strong>da</strong>mentos, “são acusados de reproduzir mecanicamente a <strong>capoeira</strong>, s<strong>em</strong><br />

conhecer os seus ver<strong>da</strong>deiros significados. Assim, são comparados ao bambu<br />

que é belo por fora, mas oco por dentro” (ibid., p. 9).<br />

266


Interessante notar que esse “fun<strong>da</strong>mento” é uma <strong>construção</strong> discursiva,<br />

portanto, simbólica, perm<strong>ea</strong><strong>da</strong> de relações de poder e constitui-se num amálgama<br />

que mistura o formal e o informal, o sagrado e o profano, o científico e o senso<br />

comum, o erudito e o popular, o coletivo e o individual, a tradição e a moderni<strong>da</strong>de e<br />

consoli<strong>da</strong> processos identitários para além de componentes lingüísticos, étnicos, de<br />

território e de nação.<br />

Daí a necessi<strong>da</strong>de de articular o particular com o geral, ou seja, entender<br />

que o concreto vivido, <strong>em</strong>bora esteja amarrado às condições materiais existentes e<br />

ser condicionado pelo tipo de socie<strong>da</strong>de na qual está inserido e pelas normas <strong>da</strong><br />

organização social a qual pertence, é possível de ser reconstruído, ressignificado e,<br />

com isso, capaz de redefinir sonhos e trajetórias pessoais.<br />

4.3.2. De uma Vi<strong>da</strong> a “Pão-com-Água” a uma Vi<strong>da</strong> a “Pão-de-Ló”: O Êxodo de<br />

Professores de Capoeira do Brasil para a Europa<br />

É fato que, nos últimos anos, a <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong> se inserindo, de forma<br />

vertiginosa, <strong>em</strong> todo o Velho Continente. S<strong>em</strong> levar <strong>em</strong> conta que a maioria dos<br />

professores é leva<strong>da</strong> a mu<strong>da</strong>r de país com certa freqüência, contabilizamos, <strong>em</strong><br />

levantamento, a presença, no primeiro s<strong>em</strong>estre de 2003, de 35 (trinta e cinco)<br />

professores, entre mestres, contramestres e instrutores de <strong>capoeira</strong>, <strong>em</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

sist<strong>em</strong>ática, somente <strong>em</strong> Portugal.<br />

A maioria dos mestres e professores de <strong>capoeira</strong> que atua na Europa é<br />

proveniente do Nordeste Brasileiro, <strong>em</strong> especial, <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des de Recife e Salvador,<br />

mas exist<strong>em</strong> professores de praticamente todos os estados brasileiros trabalhando<br />

com <strong>capoeira</strong> no Velho Continente.<br />

267


Desde o início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970, Paris, a “ci<strong>da</strong>de luz”, v<strong>em</strong> recebendo<br />

muitos <strong>capoeira</strong>s de diversos grupos brasileiros. A professora Úrsula, há mais de<br />

dez anos radica<strong>da</strong> na França, argumenta que, quando lá chegou, poucas pessoas<br />

conheciam a <strong>capoeira</strong>. Atualmente, apesar de muitos “caloteiros” que chegam lá<br />

dizendo que são mestres, s<strong>em</strong> nunca ter<strong>em</strong> passado por uma acad<strong>em</strong>ia, a <strong>capoeira</strong><br />

já é bastante difundi<strong>da</strong> e, freqüent<strong>em</strong>ente, as mulheres são maioria nas aulas<br />

(CARVALHO, 2002, p. 17).<br />

É fato inconteste também, que os <strong>capoeira</strong>s, na Europa, caminham para<br />

uma espécie de “profissionalização” mol<strong>da</strong><strong>da</strong> por trabalhos freqüent<strong>em</strong>ente<br />

desregulamentados, instáveis, dispersos e ocasionais, b<strong>em</strong> similar à lógica dos<br />

“ganchos, tachos e biscates”, retrata<strong>da</strong> por Machado Pais (2001), que caracteriza os<br />

“curtos e repetidos sobrevôos pelo mundo do trabalho” (p. 15), <strong>em</strong>preendidos pelos<br />

jovens cont<strong>em</strong>porâneos <strong>em</strong> suas passagens para a vi<strong>da</strong> ativa e produtiva.<br />

Essa condição laboral precária, freqüent<strong>em</strong>ente clandestina, <strong>em</strong> que se<br />

inser<strong>em</strong> os brasileiros responsáveis pela diss<strong>em</strong>inação <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no exterior,<br />

diferencia-se, frontalmente, <strong>da</strong>s carreiras previsíveis, de rotinas estáveis que, até<br />

pouco t<strong>em</strong>po, caracterizavam os postos convencionais de trabalho.<br />

No entanto, são essas as possibili<strong>da</strong>des concretas que se apresentam e<br />

elas são agarra<strong>da</strong>s com “unhas e dentes”, na forma de ver<strong>da</strong>deiras aventuras (ou<br />

desventuras) pelos jovens “profissionais <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>”. Por mais precárias que<br />

possam se apresentar, essas opções concretizam-se efetivamente e terminam por<br />

garantir a manutenção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> maioria desses “profissionais” que viv<strong>em</strong> distantes<br />

de sua terra natal, contribuindo, direta ou indiretamente, para substancializar a<br />

<strong>capoeira</strong> com fortes doses de al<strong>ea</strong>torie<strong>da</strong>de e de improvisação.<br />

268


A luta pela sobrevivência e o desejo de reconhecimento a partir de novas<br />

experiências são os principais motivos que levam tantos professores de <strong>capoeira</strong> a<br />

deixar o Brasil e a se “jogar” <strong>em</strong> promessas incertas de “vi<strong>da</strong> boa” no exterior.<br />

Entretanto, o que eles freqüent<strong>em</strong>ente encontram são opções de trabalhos<br />

dispersos, desregularizados, fluídos e “invisíveis”, tal como os fiddly jobs (expressão<br />

de MACDONALD apud MACHADO PAIS, 2001, p. 21), ou como free lancer, que se<br />

caracterizam como vias alternativas para “ganhar a vi<strong>da</strong>”.<br />

A chega<strong>da</strong> dos professores de <strong>capoeira</strong> na Europa, geralmente, é<br />

marca<strong>da</strong> por muita frustração e dificul<strong>da</strong>de. O depoimento do Mestre Matias,<br />

mineiro, que se mudou para a Suíça <strong>em</strong> 1989 e, atualmente, desenvolve trabalhos<br />

<strong>em</strong> várias ci<strong>da</strong>des <strong>da</strong>quele país, faz coro com muitas outras experiências de<br />

mestres e professores que se “jogaram” <strong>em</strong> busca de melhores horizontes.<br />

Foi muito dura a chega<strong>da</strong> na Suíça, ralei muito, toquei berimbau na<br />

neve, nas estações de tr<strong>em</strong>, entendeu, porque os capoeiristas que<br />

tinham lá não faziam ro<strong>da</strong> de rua. Eu ia para a rua sozinho, às vezes<br />

tocava o meu berimbau, tentava saltar, às vezes fazia coisas malucas<br />

e também era um modo de me libertar. O berimbau era o meu<br />

companheiro. Era o modo de eu me livrar <strong>da</strong>quela angústia, <strong>da</strong>quela<br />

sau<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>quela vontade de estar no Brasil, no meio dos alunos, dos<br />

colegas. Aquele país frio, você chega e toma aquele choque, não<br />

conhece ninguém, porque a língua é outra. Então foi uma barra<br />

enorme que eu enfrentei, mas, graças a Deus, eu superei tudo isso e<br />

hoje eu não vou dizer que falo perfeito o al<strong>em</strong>ão, porque eu moro na<br />

parte al<strong>em</strong>ã, mas falo b<strong>em</strong> (Mestre Matias, comunicação pessoal,<br />

Madrid – Espanha, 29 de junho de 2003).<br />

Com as novas e severas leis de controle imigratório, passar pela<br />

alfândega é uma vitória aclama<strong>da</strong> <strong>em</strong> conversas de bastidores de eventos.<br />

Geralmente, os professores imigrantes chegam nos aeroportos com vistos de<br />

turistas e muitos petrechos de <strong>capoeira</strong> (berimbau, pandeiros, uniformes etc.) que,<br />

via de regra, causam desconfiança na polícia alfandegária.<br />

269


Para aqueles que consegu<strong>em</strong> passar por essa primeira barreira, se<br />

deparam com outras dificul<strong>da</strong>des que pod<strong>em</strong> ser mais ou menos compara<strong>da</strong>s com o<br />

depoimento de um, hoje, reconhecido mestre de <strong>capoeira</strong> de Portugal.<br />

Então, foi assim. No início foi uma fase muito negativa que eu tive<br />

aqui <strong>em</strong> Portugal. Porque juntou tudo. O meu pai morrendo lá no<br />

Brasil, eu aqui des<strong>em</strong>pregado, vivendo s<strong>em</strong> dinheiro e veio aquela<br />

fase que eu já te contei ont<strong>em</strong> – a do pãozinho com água. Que foi<br />

uma fase que hoje <strong>em</strong> dia eu conto isso com pia<strong>da</strong>, com graça,<br />

porque, r<strong>ea</strong>lmente, é uma escola, é um exercício de humil<strong>da</strong>de. Mas,<br />

aqui <strong>em</strong> Portugal, eu comi pão-com-água! Não era água com açúcar<br />

porque não tinha açúcar. Era pão-com-água mesmo. Mas, assim...<br />

acreditando que essa bodega podia um dia <strong>da</strong>r certo (Mestre Umoi,<br />

comunicação pessoal, Lisboa – Portugal, 27 de junho de 2003).<br />

O fato é que, a despeito de freqüentes desesperos e até deportações,<br />

muitos professores de <strong>capoeira</strong> vislumbram a possibili<strong>da</strong>de de conquistar, no<br />

exterior, o status e o reconhecimento que provavelmente jamais conseguiriam no<br />

Brasil. “Eu sou um pássaro”, “ninguém me segura”, “já me sinto lá”, eram frases<br />

prontas, freqüent<strong>em</strong>ente proferi<strong>da</strong>s por um dinâmico professor recifense, que,<br />

apesar de ter sido deportado pelo serviço alfandegário de Portugal, retornou, via<br />

Espanha, para as terras lusitanas, e v<strong>em</strong> levando a vi<strong>da</strong> como uma grande aventura<br />

mescla<strong>da</strong> de flutuações e incertezas nebulosas, mas com muita arte e alegria<br />

contagiante.<br />

O que me tirou do Brasil foi a violência, não foi a falta de dinheiro. A violência<br />

<strong>da</strong> política, a violência <strong>da</strong> televisão, a violência <strong>da</strong>s drogas, a violência <strong>da</strong> rua.<br />

Foi isso que me afastou do meu país. Não foi pra buscar dinheiro aqui na<br />

Europa não, porque o dinheiro você ganha lá também. T<strong>em</strong> pessoas<br />

superfelizes com <strong>capoeira</strong> no Brasil <strong>da</strong>ndo aula que não precisaram sair do<br />

Brasil para ir a lugar nenhum. Hoje eu estou aqui, ando para todos os lados,<br />

não tenho preocupação com na<strong>da</strong>. Se eu vou acor<strong>da</strong>r amanhã b<strong>em</strong> ou mal.<br />

Mas é isso ai... O que me fez vir para a Europa foi justamente isso. No Brasil,<br />

a gente an<strong>da</strong> muito inseguro, dentro do ônibus, dentro do cin<strong>em</strong>a, dentro do<br />

shopping, numa praia. Aonde você vai, você t<strong>em</strong> insegurança. E aqui na<br />

Europa você t<strong>em</strong> total segurança e liber<strong>da</strong>de. É só isso. (Instrutor ET,<br />

comunicação pessoal, Lisboa – Portugal, 25 de agosto de 2003).<br />

270


Para garantir a subsistência, muitos jovens professores de <strong>capoeira</strong>, com<br />

pouca prudência e muita audácia, rodopiam <strong>em</strong> busca de trabalho e se “jogam” com<br />

esperteza <strong>em</strong> experiências, as mais inusita<strong>da</strong>s possíveis, r<strong>ea</strong>lizando exibições <strong>em</strong><br />

praças e estações de metrô, assim como <strong>em</strong> espetáculos culturais diss<strong>em</strong>inados<br />

nos grandes centros turísticos. Inser<strong>em</strong>-se, dessa forma, no reino <strong>da</strong> mercadoria <strong>em</strong><br />

que poucos têm a sorte de encontrar um comprador. Aliás, muitos deles são as<br />

próprias mercadorias a ser<strong>em</strong> mol<strong>da</strong><strong>da</strong>s pelos caprichos dos abastados.<br />

Na Europa, os <strong>capoeira</strong>s brasileiros “quer<strong>em</strong> ser mais brasileiros do que<br />

são”. Assim afirmou uma <strong>capoeira</strong> italiana que fez intercâmbio no Brasil, “apaixonou-<br />

se” pela arte e está, atualmente, fazendo uma tese no campo <strong>da</strong> Antropologia, sobre<br />

o “espírito” <strong>da</strong> Capoeira Angola. É b<strong>em</strong> ver<strong>da</strong>de que no exterior, os professores<br />

brasileiros terminam essencializando o Brasil a partir <strong>da</strong> supervalorização de<br />

“fun<strong>da</strong>mentos brasileiros” <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, contribuindo, dessa forma, para promover,<br />

além <strong>da</strong>s clássicas hierarquias já presentes no universo <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> (graduações),<br />

uma hierarquia entre os praticantes não brasileiros, bas<strong>ea</strong><strong>da</strong> no domínio dos nossos<br />

símbolos. Em busca desses fun<strong>da</strong>mentos, alguns são criticados por se arvorar<strong>em</strong> a<br />

falar sua língua nativa com sotaque abrasileirado.<br />

Para Vassallo (2003b), essa naturalização <strong>da</strong> brasili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> é<br />

discriminatória, e o aprender <strong>capoeira</strong> se transforma num id<strong>ea</strong>l inatingível, já que os<br />

brasileiros conteriam os seus “fun<strong>da</strong>mentos” no sangue. A <strong>capoeira</strong> não seria,<br />

portanto, uma <strong>construção</strong> social, mas uma substância naturaliza<strong>da</strong> nos corpos e no<br />

sangue dos brasileiros.<br />

Esta perspectiva essencialista de tratar as identi<strong>da</strong>des étnicas faz parte do<br />

<strong>jogo</strong> de poder travado nas relações sociais e diss<strong>em</strong>ina idéias essencialistas que<br />

compromet<strong>em</strong> o exercício <strong>da</strong> d<strong>em</strong>ocracia e <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de.<br />

271


Um fato que despertou curiosi<strong>da</strong>de durante a r<strong>ea</strong>lização dessa etapa <strong>da</strong><br />

pesquisa foi a constatação <strong>da</strong> presença, <strong>em</strong> diversos países <strong>da</strong> Europa, de vários<br />

mestres “representativos” dos grandes grupos com sede no Brasil, ministrando<br />

oficinas, palestras, workshops etc., como foi o caso dos mestres Camisa, Burguês,<br />

Itapoan, Suassuna, Artur Emídio, Luiz Renato, dentre outros. Esse deslocamento<br />

espacial, muito comum entre os professores de <strong>capoeira</strong>, é visto como “fonte de<br />

prestígio” (VASSALLO, 2003b) e alça os que consegu<strong>em</strong> r<strong>ea</strong>lizar viagens ao<br />

exterior, à condição de legítimos mediadores entre a “ver<strong>da</strong>deira tradição” <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> e a moderni<strong>da</strong>de. Freqüent<strong>em</strong>ente, são recebidos com muita dose de<br />

veneração e nostalgia.<br />

Entretanto, a maciça presença de mestres “considerados” do Brasil para<br />

ministrar<strong>em</strong> workshops e palestras, apesar de servir como “chamariz” para novos<br />

adeptos, não contribui muito para mu<strong>da</strong>r a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong>queles que já lá se<br />

encontram tentando se firmar <strong>em</strong> <strong>em</strong>pregos reconheci<strong>da</strong>mente instáveis. Os gastos<br />

são enormes e apenas os grupos mais estruturados consegu<strong>em</strong> receber, <strong>em</strong><br />

condições razoáveis, os seus líderes brasileiros e aproveitar os dividendos que suas<br />

presenças proporcionam.<br />

As dificul<strong>da</strong>des para encontrar <strong>em</strong>prego com estabili<strong>da</strong>de garanti<strong>da</strong> por<br />

benefícios assistenciais faz<strong>em</strong> com que os professores de <strong>capoeira</strong>, na Europa,<br />

rotulados pela, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre confortável, condição de imigrante, se “desenrasqu<strong>em</strong>”<br />

recorrendo a expedientes e trabalhos precários e termin<strong>em</strong> por arranjar dinheiro nos<br />

limites do legal e do ilegal, do legítimo e do ilegítimo, do formal e do informal e, com<br />

isso, vão construindo trajetórias não-lin<strong>ea</strong>res e imprevisíveis <strong>em</strong> busca de ascensão<br />

e prestígio social.<br />

272


Misturando sonhos e desejos com inquietações e t<strong>em</strong>ores, estes<br />

professores vêm tecendo novos horizontes para o campo conhecido como educação<br />

não-formal, que está ganhando espaço na socie<strong>da</strong>de <strong>em</strong> geral, principalmente <strong>em</strong><br />

relação às cama<strong>da</strong>s sociais com menor poder aquisitivo. A experiência do Mestre<br />

Umoi ratifica essa afirmação.<br />

A idéia do trabalho social é uma idéia que me apaixona. S<strong>em</strong>pre me<br />

apaixonou. Lá no Brasil também. Meu trabalho s<strong>em</strong>pre foi vinculado<br />

com a periferia de Sobradinho, <strong>em</strong> Brasília, e aqui não foi diferente.<br />

(...) eu entrei como estagiário nesse reformatório <strong>em</strong> Caxias, na Linha<br />

de Cascais, aqui. Que é um centro de correção. É como se fosse um<br />

presídio de menores, entende. Tinha lá uma grande probl<strong>em</strong>ática,<br />

com muito aluno africano, com muito aluno português, mas tinha até<br />

rivali<strong>da</strong>des raciais mesmo. Eu apresentei lá o projeto como estagiário.<br />

Felizmente a diretora já tinha passado vinte anos no Brasil.<br />

Conseqüent<strong>em</strong>ente, conhecia <strong>capoeira</strong> e quando leu meu projeto, não<br />

associou a galinheiro, a galinha, n<strong>em</strong> na<strong>da</strong>, e isso foi uma coisa muito<br />

boa. Ela me aceitou como estagiário. De estagiário me contratou e no<br />

final do meu curso eu já fui contratado pelo Ministério <strong>da</strong> Justiça,<br />

(ligado ao IRS que é o Instituto de Reinserção Social) onde estou até<br />

hoje lá (Mestre Umoi, comunicação pessoal, Lisboa – Portugal, 27 de<br />

junho de 2003).<br />

É importante destacar que os professores de <strong>capoeira</strong> que saíram do<br />

Brasil para trabalhar na Europa encontram-se numa condição menos desconfortável<br />

<strong>em</strong> relação aos d<strong>em</strong>ais imigrantes, vez que não disputam com os “nativos” um posto<br />

de trabalho. Terminam gozando de reconhecido prestígio, à medi<strong>da</strong> que são<br />

possuidores de uma habili<strong>da</strong>de, de uma especiali<strong>da</strong>de “made in brazil”, que funciona<br />

como um selo de quali<strong>da</strong>de muito requisitado pelos jovens europeus, <strong>em</strong> geral. São<br />

portadores, portanto, de saberes “exóticos” e “culturais” que, de certa forma,<br />

desafiam os modos tradicionais de entra<strong>da</strong> no campo produtivo e terminam<br />

redefinindo o sentido do trabalho, atualmente caracterizado por turbulência,<br />

flexibili<strong>da</strong>de e impermanência.<br />

Na luta pela sobrevivência, inventam formas atípicas de ganhar dinheiro e<br />

terminam d<strong>em</strong>onstrando uma notável capaci<strong>da</strong>de de improvisação, que se<br />

273


enriquece na pobreza aparente dos detalhes. Muitos se articulam <strong>em</strong> intrinca<strong>da</strong>s<br />

redes de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, através de densa convivência que se materializa <strong>em</strong><br />

eventos, workshops, festas, ou simples visitas aos “trabalhos” dos seus<br />

conterrâneos irmanados pela dupla condição de <strong>capoeira</strong>-imigrante. Muitos grupos<br />

considerados rivais no Brasil, ao se instalar<strong>em</strong> na Europa, terminam por minimizar e<br />

relativizar essa rivali<strong>da</strong>de para enfrentar os dissabores que a condição de imigrante<br />

freqüent<strong>em</strong>ente impõe a todos os portadores do passaporte verde, indistintamente.<br />

Com isso, livram-se do fatalismo e <strong>da</strong> inércia, a partir de formas próprias e originais<br />

de “ganhar a vi<strong>da</strong>”, ain<strong>da</strong> que <strong>em</strong> terrenos <strong>da</strong> marginali<strong>da</strong>de, ou na chama<strong>da</strong><br />

“economia subterrân<strong>ea</strong>”, <strong>em</strong> que se pode trabalhar e ganhar dinheiro s<strong>em</strong> o declarar<br />

para efeitos de impostos. É importante destacar que essas redes de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de,<br />

forma<strong>da</strong>s pelos <strong>capoeira</strong>s no exterior, são tênues e, freqüent<strong>em</strong>ente, se<br />

estraçalham, transformando-se <strong>em</strong> redes de intriga quando um de seus integrantes<br />

beneficia-se de privilégios que, de alguma forma, não são ou não pod<strong>em</strong> ser<br />

compartilhados.<br />

Essas múltiplas alternativas de trabalho com <strong>capoeira</strong> materializam-se na<br />

forma de shows <strong>em</strong> casas de espetáculos, de oficinas <strong>em</strong> instituições educacionais,<br />

de orientação de jovens <strong>em</strong> situação de risco social. Freqüent<strong>em</strong>ente, o trabalho do<br />

profissional de <strong>capoeira</strong>, na Europa, apresenta-se de forma eventual, t<strong>em</strong>porária,<br />

al<strong>ea</strong>tória, parcial e até ilegal. O comércio de petrechos e adereços de <strong>capoeira</strong> serve<br />

para incr<strong>em</strong>entar o orçamento desses aventureiros abnegados, isso quando não<br />

constitui ativi<strong>da</strong>de principal de muitos.<br />

Eventualmente, os contatos com pessoas importantes facilitam a<br />

conquista de melhores postos e melhores condições de trabalho, mas, <strong>em</strong> geral,<br />

274


esses estão vinculados a pequenas <strong>em</strong>presas ou instituições que militam <strong>em</strong><br />

programas de reinserção social.<br />

É fato que os sonhos e os projetos pessoais traçados, ain<strong>da</strong> no Brasil,<br />

dificilmente coincid<strong>em</strong> com os trajetos pessoais deflagrados pelas dificul<strong>da</strong>des<br />

geradoras de instabili<strong>da</strong>de e incerteza. Muitos professores chegam na Europa com<br />

projetos b<strong>em</strong> esqu<strong>em</strong>atizados, entretanto, diante <strong>da</strong>s vulnerabili<strong>da</strong>des e<br />

imprevisibili<strong>da</strong>des que os acomet<strong>em</strong> no cotidiano, muitos são alongados, fraturados,<br />

adiados, ou mesmo, frustrados, evidenciando, conforme destaca Machado Pais<br />

(2001, p. 9), que “entre qualquer antes e depois dá-se um entretanto de imprevistos,<br />

de acontecimentos, de sucessos e insucessos à marg<strong>em</strong> <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de t<strong>em</strong>poral<br />

<strong>da</strong>s sucessões previstas”. O depoimento do professor Bugrão, do grupo Ginga<br />

Legal, de Portugal, é lapi<strong>da</strong>r para analisarmos esses “entretantos” colocados entre o<br />

sonho e a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de:<br />

Eu s<strong>em</strong>pre tive uma vontade de sair do país para divulgar o esporte.<br />

Eu não tinha idéia de como era isso e tal, mas eu tinha isso <strong>em</strong> mente<br />

e vontade de poder fazer isso. Europa ou outro lugar. No Brasil tive<br />

oportuni<strong>da</strong>de de ir para outros lugares. Fui para a Argentina fazer<br />

shows e tal. Em 1997, participei de um torneio nacional <strong>em</strong><br />

homenag<strong>em</strong> ao Mestre Joel, tive a felici<strong>da</strong>de de ganhar na categoria<br />

de professor. Em 98 participei novamente. Em 2000, eu parti para<br />

Portugal. Vim aqui para aventurar e tentar um trabalho com a<br />

<strong>capoeira</strong> – meu objetivo, meu sonho. (...) no início foi muito difícil,<br />

porque as coisas não são fáceis. Se eu não tivesse uma persistência,<br />

eu teria voltado na primeira dificul<strong>da</strong>de. A gente teve que trabalhar<br />

muito. Teve o fato <strong>da</strong> moradia, uma série de coisas que nós<br />

precisamos ir à luta. Como eu tinha persistência, vim pra cá trabalhar.<br />

Trabalhei nas obras, que é muito duro, difícil, é muito puxado.<br />

Trabalhei muito, lutei muito (Professor Bugrão, comunicação pessoal,<br />

Lisboa – Portugal, 24 de agosto de 2003).<br />

Muitos projetos cruzam-se <strong>em</strong> “becos s<strong>em</strong> saí<strong>da</strong>”, e ass<strong>em</strong>elham-se nas<br />

encruzilha<strong>da</strong>s. Os dil<strong>em</strong>as iguais e os futuros imaginados também se entrecruzam,<br />

na possibili<strong>da</strong>de de uma ascensão social, de um futuro a pão-de-ló que, na<br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, é incerto.<br />

275


Ain<strong>da</strong> assim, a grande maioria dos professores brasileiros sente-se<br />

valoriza<strong>da</strong> <strong>em</strong> trabalhar com <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> terras estrangeiras. Afinal, esses<br />

aventureiros dest<strong>em</strong>idos consideram-se portadores legítimos de uma cultura<br />

“exótica” como a nossa, e o estrangeiro s<strong>em</strong>pre se mostrou fascinado por ela.<br />

Alguns poucos conquistam certa segurança, a partir de contratos com<br />

instituições públicas e priva<strong>da</strong>s sóli<strong>da</strong>s. Um mestre que trabalha <strong>em</strong> Portugal<br />

relatou-nos que se sente muito valorizado como “professor de <strong>capoeira</strong>” de uma<br />

instituição pública. Na oportuni<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que ele d<strong>em</strong>onstrava o seu orgulho,<br />

mostrando a carteira que lhe concedia essa habilitação, ele questionava: “Será que<br />

no Brasil eu teria condições de ter uma carteira dessas?” Ele mesmo responde:<br />

“Jamais!”. E compl<strong>em</strong>enta: “no nosso país, a ca<strong>da</strong> esquina, t<strong>em</strong> uma ro<strong>da</strong> de<br />

<strong>capoeira</strong>, <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> esquina t<strong>em</strong> um mestre de <strong>capoeira</strong>, mas que, infelizmente, não<br />

têm valor. Morr<strong>em</strong> de fome, morr<strong>em</strong> na pobreza e são esquecidos”. (Mestre Ulisses,<br />

comunicação pessoal, Oslo, Noruega, 17 de Agosto de 2003).<br />

O mestre Barão transita, com suas aulas de <strong>capoeira</strong>, <strong>em</strong> universos<br />

aparent<strong>em</strong>ente inconciliáveis <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de do Porto, no norte de Portugal.<br />

Eu dou aula no bairro Lagarteiro, um bairro b<strong>em</strong> complicado. É um<br />

bairro social que o pessoal chama aquilo lá de inferno. Dou aula<br />

também para ciganos num outro bairro também complicado do Porto.<br />

Eu estou lá fazendo um trabalho social com eles. Saio desse bairro<br />

social e vou para um ginásio que treina só ricos, que é só <strong>em</strong>presários<br />

(Mestre Barão, Comunicação pessoal, 08 de junho de 2003).<br />

Enfim, pud<strong>em</strong>os constatar, <strong>em</strong> relação aos professores de <strong>capoeira</strong> na<br />

Europa, que a passag<strong>em</strong> de uma (sobre)vi<strong>da</strong> a “pão-com-água”, a uma vi<strong>da</strong> a “pão-<br />

de-ló”, não ocorre na lógica de uma transição lin<strong>ea</strong>r. Ao contrário, suas trajetórias<br />

são essencialmente labirínticas e oscilatórias e, nas urdiduras <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, eles são<br />

expostos a constrangimentos e barreiras abruptas, numa espaciali<strong>da</strong>de<br />

antropológica que é fragmenta<strong>da</strong> por natureza, tal como ocorre com a transição dos<br />

276


jovens para a vi<strong>da</strong> adulta, que, segundo Machado Pais (2001, p. 11), se processa<br />

“<strong>da</strong>ndo guari<strong>da</strong> ao mítico, ao sonho, ao desejo, à ilusão, ao inesperado, ao<br />

indefinido, ao enigmático, ao especulativo, à indeterminação”.<br />

Essa arte de viver e, <strong>em</strong> muitos casos, de sobreviver com e para a<br />

<strong>capoeira</strong> na condição de imigrante n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre é b<strong>em</strong> sucedi<strong>da</strong>, entretanto, ela nos<br />

chama a atenção para experiências pe<strong>da</strong>gógicas produtivas no campo <strong>da</strong> educação<br />

não-formal, que se intersecionam e, muitas vezes, compl<strong>em</strong>entam o processo de<br />

educação formal.<br />

Enfim, a condição de muitos professores brasileiros que se jogaram (ou<br />

foram expulsos pela recessão econômica) é visivelmente b<strong>em</strong> melhor do que se<br />

estivess<strong>em</strong> trabalhando com <strong>capoeira</strong> no Brasil. O depoimento de um mestre, que<br />

vive na Suíça, ilustra sua condição de privilegiado:<br />

Se eu tivesse no Brasil, como eu conheço muita gente até hoje do<br />

t<strong>em</strong>po que eu saí, eles estão do mesmo jeito ou às vezes até pior.<br />

Então eu não tenho ressentimento do que eu fiz. Quer dizer,<br />

financeiramente, eu já consegui algumas coisas no Brasil, algumas<br />

proprie<strong>da</strong>des, entendeu? Caso fosse para eu voltar hoje ou amanhã<br />

pro Brasil. eu já tenho o meu pezinho de meia (Mestre Matias,<br />

comunicação pessoal, Madrid – Espanha, 29 de junho de 2003).<br />

As experiências b<strong>em</strong> sucedi<strong>da</strong>s responsáveis por esse “pezinho de meia”,<br />

inspiram os compositores <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, como retrata, por ex<strong>em</strong>plo, o refrão de uma<br />

cantiga do Mestre Barrão (natural de Pernambuco), que, atualmente, coordena, a<br />

partir do Canadá, um enorme grupo de Capoeira com filiais <strong>em</strong> vários países do<br />

mundo.<br />

Capoeira é uma arte<br />

Que mexe com o corpo e com a cabeça<br />

Faz o pobre virar nobre<br />

Faz com que seu mundo cresça...<br />

(Mestre Barrão, Vol. IV, Grupo Axé Capoeira)<br />

277


Cantigas como esta terminam por propagar “ideologicamente” um sucesso<br />

que, a rigor, parece alimentar o imaginário de boa parte dos <strong>capoeira</strong>s, mas que se<br />

concretiza para uma minoria que, após exaustivas jorna<strong>da</strong>s nos mais inusitados<br />

campos de trabalho, consegue passar de uma “vi<strong>da</strong> a pão-com-água” a uma “vi<strong>da</strong> a<br />

pão-de-ló”.<br />

Capoeira s<strong>em</strong> fronteiras não existe! Se as fronteiras exist<strong>em</strong>, isto não quer<br />

dizer que elas não possam ser conquista<strong>da</strong>s ou transpassa<strong>da</strong>s. Num complexo<br />

movimento, os seus praticantes no exterior gingam com notável mobili<strong>da</strong>de e,<br />

mesmo que consigam atravessar algumas fronteiras, deparam-se com inúmeras<br />

outras, conforme foi possível destacar.<br />

Constatamos que o processo de mundialização do capital não elimina<br />

“símbolos tradicionais”, mas incide sob suas formas de tratamento e explicita a<br />

heterogenei<strong>da</strong>de e a diversi<strong>da</strong>de cultural que caracterizam as socie<strong>da</strong>des<br />

complexas.<br />

O fato é que nesse movimento, a <strong>capoeira</strong>, com to<strong>da</strong>s as implicações que<br />

uma manifestação cultural engendra, afirma-se como prática pe<strong>da</strong>gógica de<br />

expressiva densi<strong>da</strong>de à medi<strong>da</strong> que, mestres e professores “ensinam” os seus<br />

“fun<strong>da</strong>mentos” para pessoas provenientes <strong>da</strong>s mais diferentes origens e culturas e,<br />

com isso, vêm contribuindo para a quebra de tabus e estereótipos construídos no<br />

interior do seu próprio movimento histórico. Se a <strong>capoeira</strong> “é brasileira”, se “está no<br />

nosso sangue”, como ela pode ser ensina<strong>da</strong> a pessoas que não têm o sangue<br />

brasileiro nas veias? Travassos (1999, p. 266) questiona: “Como se poderia ensinar<br />

algo que está inscrito no sangue, nos corpos e nas mentes de uns e não de outros?”<br />

278


As experiências materializa<strong>da</strong>s por esses professores que se “jogaram<br />

pelo mundo”, além de outras contribuições, têm servido para desmistificar algumas<br />

dessas representações id<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong>s no próprio meio <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>.<br />

Se, <strong>em</strong> alguns discursos construídos, ficam evidentes a vinculação <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> com os códigos mercadorizantes e esportivizantes, como constatamos <strong>em</strong><br />

alguns eventos, por outro, encontramos discursos e estratégias que se contrapõ<strong>em</strong><br />

a essas lógicas, como pud<strong>em</strong>os verificar numa cantiga estampa<strong>da</strong> nas camisetas de<br />

um evento r<strong>ea</strong>lizado <strong>em</strong> Porto, Portugal, <strong>em</strong> que uma <strong>da</strong>s estrofes exalta:<br />

4.3.2. Os Europeus e a Capoeira<br />

Herança nobre / legado <strong>da</strong> escravidão / era luta de oprimidos / e<br />

excluídos <strong>da</strong> nação / hoje é desporto de regra e competição / eu não<br />

concordo com to<strong>da</strong> essa inversão / a <strong>capoeira</strong> tá do lado do patrão / a<br />

escravidão hoje é feita s<strong>em</strong> grilhão / não t<strong>em</strong>os escola, n<strong>em</strong> dentista<br />

ou educação / nos dão a marg<strong>em</strong> e muita televisão (...) (Mestre<br />

Pinóquio – de Florianópolis, radicado <strong>em</strong> Porto - Portugal desde<br />

2002).<br />

Nas nossas investigações, pud<strong>em</strong>os perceber que muitos praticantes de<br />

<strong>capoeira</strong> europeus, além de se dedicar<strong>em</strong> exaustivamente a esta prática,<br />

interessam-se por outras manifestações que faz<strong>em</strong> parte do “acervo cultural”<br />

brasileiro, como é o caso do frevo, do samba, do maculelê e do maracatu. Isto nos<br />

leva a afirmar que, simbolicamente, eles terminam sendo “mais brasileiros que os<br />

próprios brasileiros”, à medi<strong>da</strong> que exercitam e li<strong>da</strong>m com uma gama varia<strong>da</strong> de<br />

símbolos culturais selecionados, muitas vezes arbitrariamente, como legítimos<br />

representantes <strong>da</strong> cultura brasileira e, com isso, diss<strong>em</strong>inam uma idéia de Brasil<br />

com uma identi<strong>da</strong>de cultural homogên<strong>ea</strong>, que vai desde o Oiapoque ao Chuí. Isto<br />

pode ser ratificado pelo depoimento de um professor que ministra aulas <strong>em</strong> Lisboa,<br />

quando nos diz: “muitos europeus viv<strong>em</strong> a <strong>capoeira</strong> mais que muitos brasileiros e<br />

279


têm, r<strong>ea</strong>lmente, o Brasil no coração” (Professor Marco Antônio, comunicação<br />

pessoal, Lisboa – Portugal, 13 de agosto de 2003).<br />

Com a formação de inúmeros professores de nacionali<strong>da</strong>de não brasileira,<br />

a <strong>capoeira</strong> certamente passa a li<strong>da</strong>r e incorporar novos el<strong>em</strong>entos nos seus<br />

“fun<strong>da</strong>mentos”. Neste movimento, esses fun<strong>da</strong>mentos são reelaborados a partir de<br />

<strong>em</strong>bates permanentes, cujos aspectos de natureza econômica, cultural, subjetiva,<br />

se intersecionam.<br />

Em entrevista concedi<strong>da</strong> pelo Mestre Borracha, que está na Europa desde<br />

1985, fomos informados que já existe, pelo menos, um mestre de <strong>capoeira</strong> de<br />

nacionali<strong>da</strong>de não brasileira. Trata-se do Mestre Coruja, italiano, com cerca de vinte<br />

anos de dedicação a essa arte, formado pelo Mestre Canela. Este, por sua vez, é<br />

procedente do Grupo Mangagá, do Rio de Janeiro, e considerado o mestre de<br />

<strong>capoeira</strong> mais antigo na Itália (Mestre Borracha, comunicação pessoal, Vicensa -<br />

Itália, 19 de julho de 2003). Este <strong>da</strong>do nos aponta para a necessi<strong>da</strong>de de<br />

investigações sobre essa nova r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de que, certamente, trará enormes<br />

contribuições para pensarmos o fenômeno <strong>capoeira</strong> a partir de uma visão mais<br />

amplia<strong>da</strong> e complexa.<br />

É certo que existe uma (pré) cobrança por parte dos mestres e<br />

professores brasileiros e até mesmo dos discípulos <strong>em</strong> relação aos professores não<br />

brasileiros que, de uma forma ou de outra, se sent<strong>em</strong> com mais responsabili<strong>da</strong>de<br />

<strong>em</strong> dominar os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>. O depoimento de um professor, que<br />

ministra aulas na Facul<strong>da</strong>de de Motrici<strong>da</strong>de Humana <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Lisboa,<br />

ilustra esses dil<strong>em</strong>as:<br />

Eu acho que, pelo fato de não ser brasileiro, eu tenho s<strong>em</strong>pre algo<br />

mais a provar. Antes de ver<strong>em</strong>-me jogar ou de me ver<strong>em</strong> cantar,<br />

pensam que eu vou cantar ora pois, pois...Que eu vou jogar uma<br />

<strong>capoeira</strong> s<strong>em</strong> quali<strong>da</strong>de. Eu já andei <strong>em</strong> alguns sítios que n<strong>em</strong> sequer<br />

280


me dignaram apresentar como professor, apenas como Arroz Doce,<br />

de Portugal. Mas penso que o que diz respeito a mim <strong>em</strong> relação às<br />

outras pessoas, mal começa a ro<strong>da</strong>, esquec<strong>em</strong> tudo isso. São<br />

brasileiros, são europeus. Capoeira é <strong>capoeira</strong>. Uma ro<strong>da</strong> é uma<br />

ro<strong>da</strong>. Eu vibro isso, se calhar, mais que muitos brasileiros. Isso t<strong>em</strong><br />

uma importância muito grande na minha vi<strong>da</strong> (Professor Arroz Doce,<br />

comunicação pessoal, Florianópolis-SC, 26 de nov<strong>em</strong>bro de 2003).<br />

Se a <strong>capoeira</strong> no Brasil consolidou-se como um universo essencialmente<br />

hierarquizado, esta hierarquia potencializa-se de forma diversifica<strong>da</strong> <strong>em</strong> várias<br />

experiências com a <strong>capoeira</strong> na Europa. Em geral, nos workshops ministrados por<br />

mestres e professores brasileiros, os participantes são classificados e divididos<br />

entre iniciantes (beginning), intermediários (middle) e avançados (advanced). Os<br />

workshops, geralmente, começam com os <strong>capoeira</strong>s perfilados, onde os mais<br />

graduados e os mais habilidosos portam-se ou são convi<strong>da</strong>dos a tomar<strong>em</strong> as<br />

posições na frente <strong>da</strong> turma. As ativi<strong>da</strong>des desenvolv<strong>em</strong>-se nos moldes de uma<br />

incr<strong>em</strong>enta<strong>da</strong> “ord<strong>em</strong> uni<strong>da</strong>”, <strong>em</strong> que a turma des<strong>em</strong>penha o papel de um grande<br />

espelho do mestre ou professor ministrante do workshop que, com suas vozes de<br />

comando, consegue envolver os participantes. Após essa parte inicial, <strong>em</strong> geral, os<br />

<strong>capoeira</strong>s repet<strong>em</strong> “dois a dois” as seqüências determina<strong>da</strong>s pelo ministrante. No<br />

final do workshop, acontece uma ro<strong>da</strong> que, <strong>em</strong> tese, serve para a aplicação do que<br />

foi ensinado durante as outras etapas, mas o que se verifica, freqüent<strong>em</strong>ente, é uma<br />

grande disputa para ver qu<strong>em</strong> consegue mostrar mais suas habili<strong>da</strong>des pessoais,<br />

independente do que foi ministrado no workshop. Dificilmente sobra um t<strong>em</strong>po para<br />

uma discussão ou probl<strong>em</strong>atização do que foi ensinado pelo ministrante.<br />

Geralmente, os workshops terminam com discursos que r<strong>ea</strong>lçam a eficiência dos<br />

fun<strong>da</strong>mentos ministrados ou com a apresentação de mestres e professores<br />

presentes, geralmente aclamados com calorosos aplausos. Essa sist<strong>em</strong>ática foi<br />

freqüent<strong>em</strong>ente verifica<strong>da</strong> nos workshops que tiv<strong>em</strong>os a oportuni<strong>da</strong>de de observar.<br />

281


Esta lógica, entretanto, não se diss<strong>em</strong>ina s<strong>em</strong> algumas contraposições. A<br />

padronização, o autoritarismo e a formali<strong>da</strong>de vêm sendo questionados por alguns<br />

praticantes que tentam abordá-la a partir de outras referências, como é o caso<br />

<strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ático <strong>da</strong> Associação Maíra 94 , de Paris, França, analisado por Vassalo<br />

(2003a).<br />

Segundo Vassallo (2003a), a Associação Maíra foi cria<strong>da</strong> <strong>em</strong> 1989, é<br />

forma<strong>da</strong> por <strong>capoeira</strong>s franceses e de outras nacionali<strong>da</strong>des, “descontentes com<br />

seus mestres brasileiros, considerados excessivamente autoritários” (ibid., p. 2). Ela<br />

nasceu de um “desejo de <strong>em</strong>ancipação” <strong>em</strong> relação à <strong>capoeira</strong> brasileira, e os seus<br />

dirigentes, provenientes dos subúrbios situados ao sul de Paris, consideram-se<br />

dissidentes <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> “à brasileira” e procuram desenvolver o que chamam de<br />

“trocas horizontais de saber”, <strong>em</strong> que ca<strong>da</strong> um transmite seus conhecimentos aos<br />

d<strong>em</strong>ais, s<strong>em</strong> hierarquia e s<strong>em</strong> seguir padrão algum. Acusam os professores e<br />

mestres brasileiros de impor<strong>em</strong> um modelo de organização social extr<strong>em</strong>amente<br />

rígido e hierarquizado, no qual o discípulo teria que se submeter cegamente aos<br />

desejos e imposições do seu professor.<br />

As críticas dos integrantes do Maíra não são, segundo Vassallo (2003a),<br />

endereça<strong>da</strong>s apenas aos mestres e professores brasileiros, mas se estend<strong>em</strong> a<br />

to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de capitalista neoliberal. A organização do espaço e <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des<br />

expressam o id<strong>ea</strong>l de “liber<strong>da</strong>de” individual que eles tentam cultivar. “As duchas e os<br />

vestiários são mistos, misturando corpos nus de homens e mulheres” (ibid., p. 3).<br />

Não usam uniforme, participam <strong>da</strong>s ro<strong>da</strong>s quando quer<strong>em</strong>, não são obrigados a<br />

usar “graduações”, não se “deixam contaminar pela mídia”, e “os papéis de<br />

94 Maíra era um nome atribuído pelos nativos brasileiros aos franceses que residiam na costa do<br />

Brasil, durante o século XVI, com o objetivo de criar, aqui, a França Antártica (VASSALLO, 2003a).<br />

282


professor e aluno são minimizados e este último não é obrigado a r<strong>ea</strong>lizar aquilo que<br />

o primeiro sugere” (ibid., p. 3).<br />

Para Vassalo (2003a), a experiência do Maíra explicita uma contradição:<br />

os capoeiristas brasileiros, geralmente negros ou mulatos e<br />

originários <strong>da</strong>s classes populares, sa<strong>em</strong> de sua posição de oprimidos<br />

e se tornam opressores. Os franceses, na condição de alunos de<br />

mestres brasileiros, ocupariam o lugar dos oprimidos, invertendo as<br />

relações de dominação. Mais do que isso, a <strong>capoeira</strong> como um todo<br />

deixa de ser uma luta de libertação para encarnar um modo de<br />

exploração e dominação (VASSALLO, op. cit. p. 8).<br />

É importante considerar que a condição social, tanto dos mestres e<br />

professores brasileiros que eram “oprimidos” e se tornaram “opressores”, quanto<br />

dos franceses, supostamente “opressores” que se tornaram “oprimidos”, não implica<br />

numa mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> condição de classe social <strong>da</strong> qual eles faz<strong>em</strong> parte. Todos estão<br />

inseridos numa dinâmica social mais ampla, e os seus discursos situam-se na rede<br />

de contradições que permeia as representações que os sujeitos engendram nesse<br />

processo conflituoso de <strong>construção</strong> dos discursos e dos processos identitários.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que perceb<strong>em</strong>os que exist<strong>em</strong> “estrangeiros”<br />

afinados com o movimento “brasileiro” <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, verificamos que alguns<br />

reinterpretam esta manifestação a partir de outras lógicas, como pod<strong>em</strong>os verificar,<br />

por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> um comercial, patrocinado pela Nike, que circula na Internet,<br />

protagonizado pela Instrutora baiana Cristina Becquet, devi<strong>da</strong>mente paramenta<strong>da</strong><br />

por essa <strong>em</strong>presa, radica<strong>da</strong> na França há dez anos. Ela defende uma <strong>capoeira</strong> s<strong>em</strong><br />

berimbau, s<strong>em</strong> pandeiro, s<strong>em</strong> aba<strong>da</strong>s e de sapatilhas. O nome do estilo é Capoeira<br />

Hi tech. A protagonista diz tratar-se de uma <strong>da</strong>nça-luta africana e que foi leva<strong>da</strong><br />

para a França pelos brasileiros. Sugere que os africanos não teriam competência<br />

para divulgá-la pelo mundo (BECQUET, 2003). Nesse caso, a <strong>capoeira</strong> se insere na<br />

lógica dos “enlatados”, uma <strong>capoeira</strong> pronta, codifica<strong>da</strong>, postiça, descartável, que se<br />

283


presta ao consumo rápido, imposto pelo “t<strong>em</strong>po cultural acelerado” (BOSI, 1987) <strong>em</strong><br />

que viv<strong>em</strong>os – uma <strong>capoeira</strong> enlata<strong>da</strong>!<br />

Da análise desse intrincado e rico movimento de internacionalização <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, é possível formular três considerações fun<strong>da</strong>mentais: a) a <strong>capoeira</strong><br />

adquiriu, nos últimos dez anos, grande densi<strong>da</strong>de, visibili<strong>da</strong>de e poder simbólico, e<br />

se transformou <strong>em</strong> um dos principais cartões postais do Brasil no exterior; b) o<br />

significado que os sujeitos apreend<strong>em</strong> de suas práticas, <strong>em</strong>ocionalmente<br />

compartilha<strong>da</strong>s, está vinculado com a intensi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s interações e com a plenitude<br />

<strong>da</strong> experiência. Nessas práticas intersecionam as dimensões ético-políticas,<br />

históricas, culturais e econômicas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> socie<strong>da</strong>de, e c) a <strong>capoeira</strong> insere-se<br />

no modelo cultural capitalista e está sujeita, portanto, a estratificação social própria<br />

de uma socie<strong>da</strong>de dividi<strong>da</strong> <strong>em</strong> classes, expressando-se <strong>em</strong> possibili<strong>da</strong>des<br />

diversifica<strong>da</strong>s de acordo com as classes sociais onde está inclusa.<br />

4.3.4. A Prática Pe<strong>da</strong>gógica <strong>da</strong> Capoeira na Europa<br />

É fato que estamos assistindo a um crescente movimento de<br />

pe<strong>da</strong>gogização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social e, nesse complexo fenômeno, inser<strong>em</strong>-se as práticas<br />

oriun<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s “cama<strong>da</strong>s populares”, como é o caso <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>. Aliás,<br />

estamos verificando, também, um certo acolhimento dessas práticas por parte <strong>da</strong>s<br />

instituições formais de ensino, <strong>em</strong> especial, as universi<strong>da</strong>des, como forma de<br />

conquistar legitimi<strong>da</strong>de junto às comuni<strong>da</strong>des. No entanto, essas práticas aparec<strong>em</strong><br />

geralmente como projetos de extensão de duração determina<strong>da</strong> e s<strong>em</strong> maiores<br />

vínculos com os projetos pe<strong>da</strong>gógicos <strong>da</strong>s respectivas instituições.<br />

Na Europa, conforme já relatamos, foi-nos possível visitar e conhecer<br />

alguns projetos de extensão de <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> universi<strong>da</strong>des européias, como os <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de de Varsóvia, Universi<strong>da</strong>de de Bristol, Universi<strong>da</strong>de de Oslo e<br />

284


Universi<strong>da</strong>de de Lisboa. Nesses casos, a <strong>capoeira</strong> é ofereci<strong>da</strong> a estu<strong>da</strong>ntes de<br />

várias ár<strong>ea</strong>s do conhecimento, que se agregam <strong>em</strong> torno de suas possibili<strong>da</strong>des,<br />

b<strong>em</strong> como aos interessados <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de <strong>em</strong> geral.<br />

No caso <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Lisboa, a <strong>capoeira</strong> é ofereci<strong>da</strong> pela Escola de<br />

Desportos de Combate do Estádio Universitário, <strong>em</strong> conjunto com outras práticas<br />

vincula<strong>da</strong>s ao chamado “desporto de combate”, como o judô, o karatê, a esgrima, o<br />

aikidô e o kickboxing. Neste caso, a <strong>capoeira</strong> é oferta<strong>da</strong> aos interessados, mediante<br />

pagamento que oscila entre E$ 13,00 (treze euros) e E$ 43,00 (quarenta e três<br />

euros).<br />

O fato de a <strong>capoeira</strong> estar inseri<strong>da</strong> numa escola de desportos de<br />

“combate” não significa que ela incorpore os princípios que geralmente reg<strong>em</strong> essas<br />

práticas. Pud<strong>em</strong>os constatar que, nesse caso, o professor responsável, um<br />

pernambucano que vive há oito anos <strong>em</strong> Lisboa, procura explorar os aspectos<br />

culturais e lúdicos <strong>em</strong> suas aulas de <strong>capoeira</strong>, freqüent<strong>em</strong>ente t<strong>em</strong>pera<strong>da</strong>s com<br />

pita<strong>da</strong>s de frevo, ciran<strong>da</strong> e coco, que pouco têm a ver com desporto de “combate”.<br />

Talvez esses ingredientes sejam responsáveis pela alta cotação <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e pela<br />

expressiva d<strong>em</strong>an<strong>da</strong> que ela apresenta <strong>em</strong> relação a outras mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des lá<br />

ofereci<strong>da</strong>s.<br />

No caso <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Varsóvia, <strong>em</strong>bora a <strong>capoeira</strong> tenha<br />

começado de forma muito tími<strong>da</strong>, atualmente, ela t<strong>em</strong> despertado muita atenção <strong>da</strong><br />

comuni<strong>da</strong>de universitária. O entusiasmo gerado pela força dos tambores<br />

percussivos e pelo som melancólico do berimbau t<strong>em</strong> seduzido expressivo número<br />

de estu<strong>da</strong>ntes.<br />

Ao que parece, a condensação de várias ativi<strong>da</strong>des (<strong>da</strong>nçar, lutar, brincar,<br />

jogar) numa só manifestação (<strong>capoeira</strong>) t<strong>em</strong> conquistado muitos adeptos <strong>da</strong>s mais<br />

285


díspares culturas. Essa mistura, quando b<strong>em</strong> dosa<strong>da</strong> e quando atendi<strong>da</strong>s as<br />

condições exeqüíveis para a sua materialização, como instalações, equipamentos,<br />

recursos didáticos, transformam a <strong>capoeira</strong> numa ativi<strong>da</strong>de efetivamente intensa.<br />

É interessante observar que, a depender <strong>da</strong>s condições materiais<br />

(econômicas) de vi<strong>da</strong> dos sujeitos, as práticas culturais sist<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong>s são vistas<br />

como mais “pe<strong>da</strong>gógicas” <strong>em</strong> determina<strong>da</strong>s regiões do que <strong>em</strong> outras. O<br />

depoimento de um professor de <strong>capoeira</strong> norueguês, que já morou no Brasil e foi um<br />

dos primeiros responsáveis pela inserção dessa manifestação na Noruega, explicita<br />

esta constatação.<br />

Eu, pessoalmente, observo que uma aula de <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong> no Brasil<br />

é menos pe<strong>da</strong>gógica do que uma aula de <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong> na Europa.<br />

Eu acho que isso é um reflexo do sist<strong>em</strong>a educacional como um todo,<br />

né? Que no Brasil, infelizmente, deixa muito a desejar. Eu tive uma<br />

experiência no Recife agora com um grupo de noruegueses que não<br />

tinha na<strong>da</strong> a ver com a <strong>capoeira</strong>. Eu levei eles para uma aula de<br />

percussão e o professor ficou impressionado com a facili<strong>da</strong>de de a<br />

gente pegar os ritmos nordestinos, de maracatu etc., mesmo não<br />

conhecendo na<strong>da</strong>. Mas acho que isso é resultado de anos e anos de<br />

educação de música dentro <strong>da</strong>s escolas e fora <strong>da</strong>s escolas, e um<br />

interesse muito grande <strong>em</strong> aprender. As coisas não estão lá s<strong>em</strong>pre.<br />

Se eu quero aprender t<strong>em</strong> que ser agora. Então vou ter que prestar<br />

muita atenção (...) Eu acho que qu<strong>em</strong> ensina <strong>capoeira</strong> na Europa (...)<br />

os europeus, talvez tenham uma certa vantag<strong>em</strong> nesses aspectos<br />

pe<strong>da</strong>gógicos (Professor Torcha, comunicação pessoal, Oslo –<br />

Noruega, 18 de agosto de 2003).<br />

Esse “pe<strong>da</strong>gógico” está relacionado, na ver<strong>da</strong>de, com as heranças do<br />

sist<strong>em</strong>a social <strong>em</strong> que estão inseridos os sujeitos, e é esse sist<strong>em</strong>a social, expresso<br />

pelo conjunto de relações sociais e econômicas que estrutura e condiciona a vi<strong>da</strong><br />

social no seu conjunto, que abarca a esfera educativa institucional formal ou não-<br />

formal. Daí que, uma prática <strong>capoeira</strong>na materializa<strong>da</strong> por um grupo de<br />

noruegueses pode até ser mais incr<strong>em</strong>enta<strong>da</strong> “pe<strong>da</strong>gogicamente” do que uma<br />

prática <strong>capoeira</strong>na materializa<strong>da</strong> por jovens do “sertão baiano”, mas ambas serão<br />

essencialmente pe<strong>da</strong>gógicas e seus alcances são limitados e condicionados pela<br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de sócio-econômica <strong>em</strong> que estão inseri<strong>da</strong>s.<br />

286


Na maioria dos casos, a prática pe<strong>da</strong>gógica com a <strong>capoeira</strong>, <strong>em</strong> projetos de<br />

extensão de universi<strong>da</strong>des européias, é desenvolvi<strong>da</strong> s<strong>em</strong> critérios científicos, na qual<br />

ca<strong>da</strong> professor ensina o que sabe e como aprendeu, com a utilização, muitas vezes,<br />

al<strong>ea</strong>tória, de determina<strong>da</strong>s correntes teóricas que enfatizam os processos psicológicos<br />

de apreensão do conhecimento, mais do que o conhecimento <strong>em</strong> si.<br />

Constatamos que a preocupação central no trato com o conhecimento <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> reside nas relações interpessoais mestre-discípulo, discípulo-discípulo,<br />

através de "vivências corporais" fragmenta<strong>da</strong>s, desarticula<strong>da</strong>s, repetitivas,<br />

freqüent<strong>em</strong>ente extenuantes, com ênfase na dimensão biológica (profiláxica ou<br />

terapêutica) do ser humano, seleciona<strong>da</strong>s e organiza<strong>da</strong>s de forma arbitrária <strong>em</strong><br />

relação ao t<strong>em</strong>po pe<strong>da</strong>gogicamente aceitável para que o discípulo apreen<strong>da</strong> o<br />

conteúdo a contento.<br />

Freqüent<strong>em</strong>ente, as barreiras lingüísticas e culturais distintas forçam os<br />

professores brasileiros a uma criteriosa revisita sobre a forma de ministrar os<br />

conteúdos. A maior dificul<strong>da</strong>de centra-se na apreensão, por parte dos europeus, dos<br />

conceitos de ginga, malícia, malandrag<strong>em</strong>, mal<strong>em</strong>olência, mandinga e outros do<br />

gênero que, <strong>em</strong> geral, são incompreensíveis, <strong>em</strong>bora consider<strong>em</strong> fascinantes.<br />

Se, numa aula de <strong>capoeira</strong> no Brasil, freqüent<strong>em</strong>ente, nos deparamos<br />

com enunciados pe<strong>da</strong>gógicos enigmáticos do tipo: “bota dendê, meu rei”, “quebra o<br />

corpo”, solta a mandinga”, “dá uma peneira<strong>da</strong>”, "dá uma beliscadinha", proferidos<br />

por mestres e professores <strong>da</strong>s mais diferentes escolas, e estes são facilmente<br />

entendidos pelos discípulos, nas aulas de <strong>capoeira</strong> no continente europeu, esses<br />

expedientes são de difícil entendimento, quando, não raro, absolutamente<br />

incompreendidos.<br />

287


O que se verifica, comumente, é uma lógica padroniza<strong>da</strong> e influencia<strong>da</strong><br />

pelos workshops ministrados por mestres e professores. As aulas, <strong>em</strong> geral,<br />

começam com os <strong>capoeira</strong>s mais graduados disputando os espaços mais nobres <strong>da</strong><br />

sala, que se situam nas primeiras filas mais próximas do professor.<br />

Um mestre brasileiro, que atualmente ensina <strong>capoeira</strong> numa ci<strong>da</strong>de do sul<br />

<strong>da</strong> Inglaterra, informou-nos que a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de dos seus discípulos o está levando a<br />

rever totalmente os seus métodos de ensino.<br />

Em relação aos conteúdos, não se t<strong>em</strong> controle sobre o que se ensina e o<br />

que se aprende, e alguns até se sent<strong>em</strong> incomo<strong>da</strong>dos com as tão propala<strong>da</strong>s<br />

“descaracterizações” <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>. No entanto, pud<strong>em</strong>os verificar que lá isso é<br />

absolutamente incontrolável. Fomos informados que, no ano de 2002, foi lançado<br />

um CD de <strong>capoeira</strong>, <strong>em</strong> que a famosa cantiga “paranauê” foi grava<strong>da</strong> <strong>em</strong> língua<br />

francesa (PERNALONGA, 2002).<br />

Essas etapas <strong>da</strong> pesquisa, que envolveram desde o projeto-piloto na<br />

UFBA até a experiência dos <strong>capoeira</strong>s na Europa, continham um nexo articulador<br />

que se materializava como prática pe<strong>da</strong>gógica, e se constituiu, ao longo <strong>da</strong><br />

investigação, no nosso principal construto t<strong>em</strong>ático. Ao tratar a <strong>capoeira</strong> como<br />

prática pe<strong>da</strong>gógica, transformamos o nosso percurso investigativo num <strong>jogo</strong><br />

desafiador e <strong>em</strong>polgante. Se to<strong>da</strong> ação coletiva significativa com <strong>capoeira</strong><br />

corresponde a uma prática pe<strong>da</strong>gógica significativa, torna-se imprescindível a<br />

probl<strong>em</strong>atização e a <strong>construção</strong> de el<strong>em</strong>entos crítico-superadores que qualifiqu<strong>em</strong><br />

essa mesma prática, sob risco de incorrermos <strong>em</strong> espontaneísmos ou “reedições<br />

vulgares de <strong>em</strong>pirismo”.<br />

Pud<strong>em</strong>os observar, no caso <strong>da</strong>s experiências com <strong>capoeira</strong> na Europa,<br />

que a educação se dá de forma não intencional, assist<strong>em</strong>ática. Os <strong>capoeira</strong>s,<br />

288


apesar de não explicitar<strong>em</strong> uma clara finali<strong>da</strong>de objetiva de se educar<strong>em</strong>, educam e<br />

se educam. São ex<strong>em</strong>plos de educação não-formal. Nesse caso, ocorre uma<br />

ativi<strong>da</strong>de educacional não intencional, freqüent<strong>em</strong>ente, paralela ou concomitante a<br />

uma ativi<strong>da</strong>de educacional desenvolvi<strong>da</strong> de modo intencional.<br />

Se a nossa intenção de pesquisa foi propor el<strong>em</strong>entos para subsidiar<br />

possibili<strong>da</strong>des de educação intencional com a <strong>capoeira</strong>, portanto, sist<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong>, <strong>em</strong><br />

função de objetivos previamente definidos, a análise dessas experiências foram<br />

significativas e contribuíram para que buscáss<strong>em</strong>os uma articulação do processo de<br />

educação formal (alça<strong>da</strong> ao nível <strong>da</strong> consciência filosófica) com experiências no<br />

âmbito <strong>da</strong> educação não-formal, pois reconhec<strong>em</strong>os que, no caso <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, foi<br />

nessa s<strong>ea</strong>ra onde se construíram e se consoli<strong>da</strong>ram os seus “fun<strong>da</strong>mentos”.<br />

Para r<strong>ea</strong>lizar essa interlocução, procuramos fazer uma análise radical,<br />

rigorosa e de conjunto dessa manifestação cultural, explicitando seus amplos<br />

sentidos e significados, e evitando, dessa forma, tratá-la de forma mecânica,<br />

espontaneísta e descontextualiza<strong>da</strong>.<br />

A r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s experiências analisa<strong>da</strong>s nesse capítulo serviu como<br />

referência para refletirmos filosoficamente as possibili<strong>da</strong>des de trato com esse<br />

conhecimento no currículo de formação profissional na perspectiva <strong>da</strong><br />

transformação. Tais experiências, <strong>em</strong>bora díspares e aparent<strong>em</strong>ente desarticula<strong>da</strong>s,<br />

foram analisa<strong>da</strong>s a partir de um eixo articulador comum que se materializou pela<br />

noção de trabalho pe<strong>da</strong>gógico. Enfim, to<strong>da</strong>s experiências se manifestavam como<br />

práticas pe<strong>da</strong>gógicas e, como tais, foram analisa<strong>da</strong>s.<br />

289


CAPÍTULO 5<br />

“IÊ... É MANDINGUEIRO... CAMARÁ”<br />

290<br />

VIVERDEAR-TE<br />

A ARTE é para ser viVIDA<br />

E não VendIDA por qualquer vintém<br />

pARTE de mim, nunca vai ser VendIDA<br />

N<strong>em</strong> comprarei a VIDA de ninguém<br />

ARTE é mulher quando se engraVIDA<br />

É peito aberto <strong>em</strong> boca de neném<br />

É fina flor que abre atreVIDA<br />

Quando percebe que o inseto v<strong>em</strong><br />

Entrar na ro<strong>da</strong> quando me conVIDAs<br />

Para aprender como saber cair<br />

É dAR-TE um beijo, limpar tuas feri<strong>da</strong>s<br />

CurAR TEus males, te fazer sorrir<br />

É <strong>em</strong>prestAR-TE quando te endiVIDAs<br />

Um ombro amigo para tu dormir<br />

AmAR-TE mesmo quando tu duVIDAs<br />

S<strong>em</strong> obrigAR-TE a contribuir<br />

(PeTry Desordêro)<br />

Neste capítulo apresentar<strong>em</strong>os as nossas “mandigas” d<strong>em</strong>onstrando a<br />

necessi<strong>da</strong>de de ampliarmos os nossos entendimentos sobre o <strong>jogo</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>,<br />

como prática pe<strong>da</strong>gógica, <strong>em</strong> suas inter-relações com o movimento mais geral <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de. Para isso, elaboramos uma crítica <strong>em</strong> relação às propostas de trato com<br />

o conhecimento desta manifestação e apontamos as “mandingas” que<br />

consideramos necessárias para os atuais professores e estu<strong>da</strong>ntes que li<strong>da</strong>m com<br />

esse conhecimento.<br />

5.1. O Jogo <strong>da</strong> Capoeira <strong>em</strong> Jogo: Ampliação de Significados<br />

Na condição de herdeiros de uma compulsão para definir, conceituar,<br />

classificar, rotular, distinguir, muitas vezes, corr<strong>em</strong>os riscos múltiplos ao tentar<br />

responder uma pergunta controverti<strong>da</strong> e insistente, <strong>em</strong>bora trivial: o que é <strong>capoeira</strong>?


Ao procurarmos defini-la, somos movidos por uma vontade de pureza e,<br />

então, a recortamos para extrair dela aquilo que ela não é. Com isso, ced<strong>em</strong>os à<br />

perspectiva de separação e classificação, muitas vezes, de forma arbitrária. Nessa<br />

tentativa, procuramos identificar o que é autêntico e legítimo, o que é digno de ser<br />

chamado <strong>capoeira</strong>, e o que é inautêntico e ilegítimo, o que não pode ser definido<br />

como <strong>capoeira</strong>. Mas, quando Mestre Pastinha, um dos grandes pensadores dessa<br />

prática, disse: “Capoeira é tudo que a boca come” (apud UMBERTO, 2000), estava,<br />

na<strong>da</strong> mais na<strong>da</strong> menos, evidenciando, mesmo s<strong>em</strong> respaldo científico, mas com<br />

grande saber <strong>em</strong>pírico, a sua articulação com os aspectos mais gerais que a<br />

determinam e a configuram.<br />

Definir, de per se, <strong>capoeira</strong>, implica <strong>em</strong> recorrer aos seus limites e<br />

contornos e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, cont<strong>em</strong>plar a sua multiplici<strong>da</strong>de e a diversi<strong>da</strong>de dos<br />

trânsitos nos quais ela se insere. Ou seja, a <strong>capoeira</strong> não é uma ilha cultural.<br />

Exist<strong>em</strong> determinações estruturais que influenciam suas configurações <strong>em</strong><br />

contextos diversos. Como produção cultural, imbrica referências africanas, ibéricas,<br />

indígenas, to<strong>da</strong>s elas polimorfas e jamais pode ser compreendi<strong>da</strong> e explica<strong>da</strong><br />

separa<strong>da</strong>mente <strong>da</strong> produção e reprodução geral <strong>da</strong> qual participam todos os<br />

m<strong>em</strong>bros <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

Como tratar pe<strong>da</strong>gogicamente uma manifestação complexa como a<br />

<strong>capoeira</strong> nos sist<strong>em</strong>as formais e não-formais de ensino?<br />

Pistrak (1981), ao probl<strong>em</strong>atizar o “sist<strong>em</strong>a dos complexos”,<br />

impl<strong>em</strong>entado no sist<strong>em</strong>a educacional soviético, no começo do século XX, propôs<br />

que tais “complexos” deveriam aju<strong>da</strong>r ao estu<strong>da</strong>nte a compreender a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de<br />

social. No processo de organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico, os “complexos” de<br />

Pistrak deveriam levar <strong>em</strong> consideração as condições fun<strong>da</strong>mentais relativas à<br />

291


seleção dos t<strong>em</strong>as, à sua continui<strong>da</strong>de, à preocupação social e o trabalho de<br />

generalizações (op. cit., p. 110).<br />

As considerações de Pistrak nos levam a perceber a importância de tratar<br />

a <strong>capoeira</strong> como um complexo t<strong>em</strong>ático que seja capaz de justificar a sua<br />

pertinência no sist<strong>em</strong>a educacional formal, como possibili<strong>da</strong>de concreta de trato<br />

com esse conhecimento numa perspectiva r<strong>ea</strong>lmente crítica. Para que essa<br />

pertinência se torne admissível e aceitável torna-se fun<strong>da</strong>mental a ampliação dos<br />

seus significados, como prática cultural de efetivo valor, e sua devi<strong>da</strong> articulação<br />

com um projeto político-pe<strong>da</strong>gógico e de socie<strong>da</strong>de pautado na superação <strong>da</strong> lógica<br />

destrutiva do capital. Segundo Pistrak (1981, p. 110), “o complexo t<strong>em</strong> uma periferia<br />

que nos possibilita escapar aos limites do objeto preciso <strong>da</strong>do e que o liga a<br />

fenômenos mais gerais”. O conceito de <strong>práxis</strong> pode contribuir sobr<strong>em</strong>aneira para<br />

orientar essa possibili<strong>da</strong>de.<br />

Nesse sentido, as construções forja<strong>da</strong>s <strong>em</strong> torno de sua aplicação como<br />

prática pe<strong>da</strong>gógica, desde sua definição até sua efetiva materialização, dev<strong>em</strong> levar<br />

<strong>em</strong> consideração que no particular intersecionam o geral e o particular,<br />

dialeticamente. Ad<strong>em</strong>ais, esse particular assume, <strong>em</strong> grande medi<strong>da</strong>, variações<br />

sociais e históricas. Assim, seja lá o que ela for, a <strong>capoeira</strong> é, sendo. Ou seja, ela é,<br />

irr<strong>em</strong>ediavelmente, movimento, uma uni<strong>da</strong>de de complexi<strong>da</strong>de e processuali<strong>da</strong>de.<br />

No desenrolar <strong>da</strong>s etapas <strong>da</strong>s pesquisas que r<strong>ea</strong>lizamos, íamos<br />

percebendo que por traz, <strong>em</strong> cima, <strong>em</strong>baixo, ao lado, enfim, <strong>em</strong> volta e por dentro<br />

<strong>da</strong>quele <strong>jogo</strong> aparent<strong>em</strong>ente inofensivo que, freqüent<strong>em</strong>ente, acontecia nos clubes,<br />

escolas, ruas, praças, palcos, existiam outros <strong>jogo</strong>s, existia, na ver<strong>da</strong>de, um grande<br />

<strong>jogo</strong>. Ou seja, decisivamente, existe um <strong>jogo</strong> <strong>em</strong> <strong>jogo</strong>. A probl<strong>em</strong>atização desse<br />

292


<strong>jogo</strong>, que não se explicita num primeiro momento, foi, na ver<strong>da</strong>de, a mola propulsora<br />

desta pesquisa.<br />

Nessa probl<strong>em</strong>atização (joga<strong>da</strong>), procuramos analisar a <strong>capoeira</strong> como<br />

uma prática social, especialmente como uma prática pe<strong>da</strong>gógica, r<strong>ea</strong>liza<strong>da</strong> por<br />

homens e mulheres com objetivos diversos. Não foi intenção deste estudo buscar a<br />

caracterização de um perfil do <strong>capoeira</strong> cont<strong>em</strong>porâneo. As análises centra<strong>da</strong>s no<br />

indivíduo negligenciam o fato de que os homens se faz<strong>em</strong> homens <strong>em</strong> relações<br />

sociais historicamente determina<strong>da</strong>s. Sab<strong>em</strong>os que a complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong> ampliou os campos <strong>da</strong> ação cultural, e por mais que um <strong>capoeira</strong><br />

que siga esta arte como uma “filosofia de vi<strong>da</strong>” 95 , esta filosofia não escapa <strong>da</strong>s<br />

determinações históricas de seu t<strong>em</strong>po. Ad<strong>em</strong>ais, o próprio movimento de<br />

desenvolvimento desta manifestação não nos permite mais tratá-la como um mero<br />

folclore, descola<strong>da</strong> <strong>da</strong>s relações estabeleci<strong>da</strong>s entre o Estado e a socie<strong>da</strong>de civil.<br />

Nesta vira<strong>da</strong> de século, o Estado brasileiro apresenta características<br />

bastante diferentes <strong>da</strong> época <strong>em</strong> que reprimia violentamente a <strong>capoeira</strong>, tratando-a<br />

como um estorvo social. No final do século XIX, o Estado brasileiro tinha como<br />

principais características a repressão e o paternalismo. Nesta passag<strong>em</strong> para o<br />

século XXI, ele passa por um processo de mercantilização <strong>em</strong> decorrência de sua<br />

relação dinâmica com o mercado capitalista, que dificulta uma distinção precisa<br />

entre a esfera estatal e a não-estatal. Hoje, o Estado brasileiro é agenciado pelo<br />

neoliberalismo – “manifestação <strong>da</strong> crise estrutural do capital” (Mészáros) - e propaga<br />

a d<strong>em</strong>ocracia como sua forma de representação. D<strong>em</strong>ocracia esta que, segundo<br />

Therbom (1999), é de alcance limitado e t<strong>em</strong> traços e aspectos niti<strong>da</strong>mente<br />

publicitários, onde os meios de comunicações exerc<strong>em</strong> papel estratégico<br />

95 A <strong>capoeira</strong> como ”filosofia de vi<strong>da</strong>” é fruto de uma vivência contínua, íntima e prolonga<strong>da</strong> dos seus<br />

rituais e fun<strong>da</strong>mentos, nos mesmos moldes <strong>da</strong>s práticas religiosas.<br />

293


fun<strong>da</strong>mental. Por força <strong>da</strong>s privatizações e pela debili<strong>da</strong>de no processo de<br />

fiscalização dos lucros do capital, o Estado neoliberal brasileiro apresenta eficiência<br />

extr<strong>em</strong>amente limita<strong>da</strong>. A sacralização do mercado e o surgimento de bancos<br />

centrais independentes contribu<strong>em</strong> para incr<strong>em</strong>entar essa deficiência. Certamente<br />

por isso, o papel regulador do Estado brasileiro t<strong>em</strong> alcance limitado <strong>em</strong> relação aos<br />

conflitos inerentes às manifestações culturais e também não consegue cumprir as<br />

prerrogativas constitucionais que o reconhece como defensor do patrimônio cultural<br />

<strong>da</strong> nação. Sendo assim, as relações entre o Estado e a socie<strong>da</strong>de civil dev<strong>em</strong> ser<br />

analisa<strong>da</strong>s dialeticamente de modo que possamos reconhecer que os direitos<br />

humanos e sociais conquistados pela socie<strong>da</strong>de civil pod<strong>em</strong> ser reconhecidos e<br />

garantidos, mas, também, pod<strong>em</strong> ser anulados pelo Estado, como v<strong>em</strong><br />

acontecendo, atualmente, com a Reforma <strong>da</strong> Previdência <strong>em</strong> relação aos direitos<br />

efetivados pela Consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s Leis do Trabalho (CLT).<br />

Convém destacar também que, ao tomarmos a decisão de tratar a<br />

<strong>capoeira</strong> como prática pe<strong>da</strong>gógica, não negamos as especifici<strong>da</strong>des que esse<br />

fenômeno assumiu <strong>em</strong> seu movimento histórico. Reconhec<strong>em</strong>os que as duas<br />

vertentes mais “consagra<strong>da</strong>s” (Angola e Regional) e to<strong>da</strong>s as suas derivações<br />

(cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong>, moderna, acrobática, capotudo, capoboxe, capojitsu, aero-<br />

<strong>capoeira</strong>, hidro-<strong>capoeira</strong>, <strong>capoeira</strong>-barravento, soma-<strong>capoeira</strong>, <strong>capoeira</strong>-b<strong>ea</strong>ch,<br />

<strong>capoeira</strong> de Cristo, zen-<strong>capoeira</strong>, <strong>capoeira</strong>-miudinha, <strong>capoeira</strong>-<strong>da</strong>ncing, <strong>capoeira</strong><br />

gospel, capo-step, <strong>capoeira</strong> arte-luta, <strong>capoeira</strong> work-out, carateira, <strong>capoeira</strong> de faixa,<br />

aero-ginga, <strong>capoeira</strong> hi tech, capoterapia, bio<strong>capoeira</strong> etc, etc, etc.), materializam-<br />

se, concretamente, como práticas pe<strong>da</strong>gógicas. Por isso, não nos fixamos <strong>em</strong> um<br />

determinado estilo, seja ele consagrado, ou não, pois perceb<strong>em</strong>os que a prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica que envolve ca<strong>da</strong> experiência com <strong>capoeira</strong> (o concreto vivido)<br />

294


proporciona materiali<strong>da</strong>de e identi<strong>da</strong>de a essas mesmas experiências. O leque de<br />

opções nesse caso é infinito.<br />

Essas referências, muitas vezes, se misturam e, freqüent<strong>em</strong>ente, os<br />

grupos utilizam-se <strong>da</strong>s mais díspares ativi<strong>da</strong>des para envolver e despertar a atenção<br />

dos seus integrantes.<br />

Se considerarmos o desenvolvimento de outras manifestações <strong>da</strong> cultura<br />

corporal, vamos observar que o que aconteceu com as artes marciais, por ex<strong>em</strong>plo,<br />

provavelmente vai acontecer com a <strong>capoeira</strong>. O <strong>em</strong>bate entre moderni<strong>da</strong>de e<br />

tradição alimenta efetivamente o processo de busca de legitimação de ca<strong>da</strong> estilo.<br />

Se tomarmos o Karatê como referência, vamos perceber que exist<strong>em</strong> centenas de<br />

estilos disputando prestígio e reconhecimento sob os ditames de um tenso discurso<br />

que confronta tradição e moderni<strong>da</strong>de.<br />

Se a <strong>capoeira</strong> é movimento cultural, social e político, certamente, ela não<br />

está imune às determinações que configuram outros fenômenos culturais, como a<br />

<strong>da</strong>nça e a música. Provavelmente, ter<strong>em</strong>os, num futuro não muito distante, a<br />

existência de uma <strong>capoeira</strong> clássica (Angola e Regional, talvez) e diversos outros<br />

estilos <strong>da</strong>í derivados que comporão o espectro do que já v<strong>em</strong> sendo denominado de<br />

“<strong>capoeira</strong> cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong>”.<br />

É importante considerar que a <strong>construção</strong> infindável de estilos faz parte <strong>da</strong><br />

incontrolável dinâmica cultural e é resultado de objetivos, desejos e necessi<strong>da</strong>des<br />

que surg<strong>em</strong> a esmo no cotidiano <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> coletiva. Assim, uma iniciativa que tenta<br />

tirar os jovens <strong>da</strong> marginali<strong>da</strong>de através <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, pode resultar numa <strong>construção</strong><br />

simbólica que contribuirá para redesenhar novos horizontes para essa manifestação<br />

cultural. Uma experiência que intensifica uma intervenção <strong>em</strong> aspectos voltados<br />

para o rendimento atlético t<strong>em</strong> possibili<strong>da</strong>des de contribuir para fortalecer padrões<br />

295


de condutas que acabam, também, se transformando <strong>em</strong> novas propostas de trato<br />

com esse conhecimento.<br />

Em relação às leituras sobre o passado desta manifestação, procuramos<br />

escapar dos cânones <strong>da</strong> historiografia conservadora do começo do século que, via<br />

de regra, tratava os <strong>capoeira</strong>s como selvagens, inimigos <strong>da</strong> civilização, e almejamos<br />

evidenciar as contradições mais recorrentes que nos permit<strong>em</strong> vê-los como sujeitos<br />

históricos encantadores e contraditórios, capazes de causar uma certa admiração<br />

aos cronistas e analistas sociais pelas façanhas <strong>em</strong>preendi<strong>da</strong>s diante <strong>da</strong> brutali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s elites contra os integrantes <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> “arraia-miú<strong>da</strong>”.<br />

Como ex<strong>em</strong>plo, pod<strong>em</strong>os citar o fato de que, apesar <strong>da</strong> violenta repressão<br />

aos <strong>capoeira</strong>s pela polícia institucionaliza<strong>da</strong> do Império, muitos deles,<br />

voluntariamente, ou não, sentavam praça na própria polícia, instaurando uma<br />

estranha simbiose entre os supostos defensores <strong>da</strong> ord<strong>em</strong> pública e os prováveis<br />

promotores <strong>da</strong> desord<strong>em</strong>. Segundo Soares (2001), os policiais aprendiam as<br />

acrobacias <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> para enfrentar seus rivais. Até mesmo o lendário major<br />

Vidigal, inimigo mortal dos <strong>capoeira</strong>s do t<strong>em</strong>po de Dom João VI, era também um<br />

habilidoso praticante desta arte-luta. Segundo um articulista anônimo de uma revista<br />

especializa<strong>da</strong> <strong>em</strong> assuntos de criminalística, chama<strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> Policial, na edição de<br />

março de 1925, o referido major<br />

enfrentava os cultores desse “sport” com desassombro e corag<strong>em</strong>,<br />

surgindo diabolicamente nos batuques, onde eles se ocultavam, entre<br />

bafora<strong>da</strong>s de fumo e vapores de álcool. Com seus granadeiros e de<br />

chibata <strong>em</strong> riste tirava com eles renhi<strong>da</strong> luta, prendendo-os <strong>em</strong><br />

segui<strong>da</strong>” (apud SOARES, 2001, p. 44).<br />

É possível assegurar que nas tensas relações trava<strong>da</strong>s no contexto <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, a dominação não era exerci<strong>da</strong> unicamente pelos integrantes <strong>da</strong>s elites,<br />

entretanto, o fato de o Major Vidigal, um exímio <strong>capoeira</strong>, ter se consagrado como o<br />

296


inimigo mortal dos <strong>capoeira</strong>s do t<strong>em</strong>po de Dom João VI, não elimina a sua condição<br />

de classe. Ao enfrentá-los, utilizando as mesmas técnicas, o dest<strong>em</strong>ido Major<br />

estava, na<strong>da</strong> mais, na<strong>da</strong> menos, sendo um bom estrategista. A pergunta que<br />

deveríamos fazer seria a seguinte: a que grupo social ele se vinculava e a quais<br />

interesses ele servia? Certamente não eram os mesmos dos <strong>capoeira</strong>s<br />

escravizados.<br />

Pod<strong>em</strong>os perceber, a partir deste e de outros fatos, que a <strong>capoeira</strong>, na<br />

socie<strong>da</strong>de cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong>, muito mais do que sujeito, é um instrumento a ser<br />

utilizado para atender interesses díspares, do ponto de vista individual. Entretanto,<br />

convém ressaltar que, na socie<strong>da</strong>de capitalista, esses interesses individuais estão<br />

submetidos aos valores <strong>da</strong>s classes dominantes disfarçados de valores gerais. O<br />

ideário burguês capitalista, que se baseia no fato de que to<strong>da</strong>s as necessi<strong>da</strong>des e<br />

interesses humanos são estritamente individuais, só mascara que os mesmos são<br />

condicionados pelos interesses <strong>da</strong>s classes dominantes. Mesmo que os indivíduos<br />

possam ser desinteressados, e freqüent<strong>em</strong>ente o são, os grupos sociais e as<br />

classes não o são, n<strong>em</strong> poderiam ser, pois eles se encontram diante de probl<strong>em</strong>as<br />

(interesses) que são questões de vi<strong>da</strong> ou de morte. As guerras entre nações, de<br />

caráter imperialista, são ex<strong>em</strong>plos clássicos.<br />

Estudos históricos evidenciam que os primeiros passos <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, no<br />

Brasil, foram estruturados a partir de perversa relação de injustiça social,<br />

caracteriza<strong>da</strong> por um convívio que integrava a “estupidez do mando e o afago<br />

grotesco”, a “violência gratuita e a malandrag<strong>em</strong>” (UMBERTO, 2000). Nesse<br />

contexto, ela foi se consoli<strong>da</strong>ndo, de forma escorregadia, disfarça<strong>da</strong>, quase invisível,<br />

subterrân<strong>ea</strong>, essencialmente ambígua, como uma <strong>da</strong>s mais controverti<strong>da</strong>s<br />

manifestações culturais.<br />

297


Quando o Professor Felipe Serpa, por ocasião do nosso exame de<br />

qualificação, r<strong>ea</strong>lizado <strong>em</strong> treze de março de 2002, argumentou sabiamente que “a<br />

<strong>capoeira</strong> havia mu<strong>da</strong>do de status social, mas o <strong>capoeira</strong> não”, colocava <strong>em</strong><br />

evidência o recorte de classe determinando a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> maioria dos <strong>capoeira</strong>s. Mesmo<br />

constatando uma visível ampliação no processo de usufruto desta manifestação<br />

cultural, ela não está imune aos interesses de classes e tampouco constitui uma<br />

prática individual e desinteressa<strong>da</strong>. Os indivíduos, mesmo os que se julgam isolados<br />

e egoisticamente desprendidos, continuam a ser m<strong>em</strong>bros de grupos sociais, de<br />

comuni<strong>da</strong>des, de classes e de nações, e estes nunca são desinteressados.<br />

A <strong>capoeira</strong>, <strong>em</strong> épocas passa<strong>da</strong>s, era uma prática predominant<strong>em</strong>ente<br />

vincula<strong>da</strong> às cama<strong>da</strong>s menos favoreci<strong>da</strong>s <strong>da</strong> população e, por esse motivo, foi<br />

preconceituosamente classifica<strong>da</strong> como uma “doença moral”. Entretanto,<br />

verificamos que ela não ficou por muito t<strong>em</strong>po restrita a essas cama<strong>da</strong>s.<br />

Atualmente, já é possível falar <strong>da</strong> existência de <strong>capoeira</strong>s “<strong>em</strong>ergentes”, que se<br />

encaixam na mesma lógica dos “novos ricos”, tão propalados pelo ideário neoliberal<br />

e paparicados pelos colunistas sociais. Ain<strong>da</strong> assim, constata-se que as relações e<br />

conexões trava<strong>da</strong>s no interior desta prática social são, freqüent<strong>em</strong>ente, mitifica<strong>da</strong>s e<br />

terminam sendo coagula<strong>da</strong>s no campo <strong>da</strong> ciência, <strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong> filosofia.<br />

Procuramos, portanto, ampliar o entendimento sobre a <strong>capoeira</strong> para além<br />

de determina<strong>da</strong>s visões: a personalística, que centra a sua valoração nos feitos<br />

(gloriosos e/ou deploráveis) de alguns heróis; a performática, que centra a sua<br />

valoração no des<strong>em</strong>penho físico de atletas ensandecidos; e a midiática, que centra<br />

a sua valoração nos inesgotáveis reclames de sucesso imediato. Consideramos ser<br />

mais recorrente entendê-la a partir de algumas referências significativas, que<br />

permeiam, indistintamente, as experiências concretas dos seus praticantes e<br />

298


contribu<strong>em</strong> para a consoli<strong>da</strong>ção de um arcabouço técnico-ritualístico-histórico<br />

definidor de suas principais características na cont<strong>em</strong>poranei<strong>da</strong>de.<br />

To<strong>da</strong> manifestação cultural t<strong>em</strong> dupla composição: um substrato e um<br />

sentido. Assim, o substrato é a expressão do objeto cultural e o sentido é o<br />

expressado pelo sujeito <strong>da</strong> ação. Convém destacar que, quando falamos de<br />

substrato, estamos falando de proprie<strong>da</strong>des que d<strong>em</strong>arcam, fun<strong>da</strong>m, diferenciam e,<br />

ao mesmo t<strong>em</strong>po, identificam, historicamente, a especifici<strong>da</strong>de de um fenômeno<br />

cultural. Sendo assim, o próprio agir humano (substrato) somente poderá ser<br />

compreendido adequa<strong>da</strong>mente se analisado <strong>em</strong> conjunto com o sentido desse<br />

mesmo agir. Ao substrato vincula-se um sentido que lhe garante uma determina<strong>da</strong><br />

configuração. Este sentido atrela-se à noção dinâmica e t<strong>em</strong>poral de utili<strong>da</strong>de, de<br />

finali<strong>da</strong>de, de valor, que se consoli<strong>da</strong> a partir de experiências concretas dos seres<br />

humanos.<br />

Segundo Costa (1973), para compreendermos a “ver<strong>da</strong>de cultural” de uma<br />

manifestação, torna-se necessário fazer, dialeticamente, tanto uma apreensão<br />

sensível do substrato, através <strong>da</strong> <strong>em</strong>piria, quanto uma interpretação do seu sentido,<br />

por meio de uma percepção interior que revele a utili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quela manifestação.<br />

Somente depois desta operação dialética de i<strong>da</strong> e volta do substrato perceptível ao<br />

sentido interiormente vivenciado, chegamos à apreensão do objeto cultural, <strong>da</strong><br />

“cultura viva”. Diferent<strong>em</strong>ente de um objeto natural, cuja ver<strong>da</strong>de é explica<strong>da</strong> por<br />

uma razão <strong>em</strong>pírico-indutiva, a ver<strong>da</strong>de de um objeto cultural é compreendi<strong>da</strong> por<br />

meio de uma percepção sensível do sentido interiormente vivenciado. Nessa<br />

perspectiva, concor<strong>da</strong>mos com o l<strong>em</strong>a de Dilthey que defende que explicamos a<br />

natureza e compreend<strong>em</strong>os a cultura.<br />

299


À composição substrato - sentido é o que corresponderia, no linguajar dos<br />

<strong>capoeira</strong>s, ao “fun<strong>da</strong>mento”. Acontece que muitos “fun<strong>da</strong>mentos” propalados por<br />

eles são recortes, geralmente superficiais, at<strong>em</strong>porais, de ord<strong>em</strong> técnica, estética ou<br />

ritualística, dissociados, muitas vezes, do movimento histórico <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e apenas<br />

atend<strong>em</strong> a interesses particulares de determinados indivíduos ou segmentos.<br />

Tornam-se mitificados pelo poder que deles <strong>em</strong>ana. Por estratégias complexas de<br />

poder, muitos chegam a se consoli<strong>da</strong>r definitivamente e passam a incorporar o<br />

arcabouço técnico-gestual-ritualístico <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, mistificando-a. Por ex<strong>em</strong>plo, a<br />

cerimônia de batismo foi uma estratégia que se consolidou a partir dos trabalhos de<br />

Mestre Bimba, na Capoeira Regional, para atender a objetivos particulares. O<br />

batismo utilizado por muitos grupos de <strong>capoeira</strong> consiste numa cerimônia <strong>em</strong> que o<br />

discípulo iniciante, após cumprir um período de ativi<strong>da</strong>des sist<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong>s, recebe a<br />

primeira graduação (geralmente representa<strong>da</strong> por uma cor<strong>da</strong> amarra<strong>da</strong> à cintura). O<br />

período de ativi<strong>da</strong>des sist<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong>s para o discípulo ser batizado pode variar de<br />

grupo para grupo. Em geral, é praxe que, para o discípulo ser batizado, ele deve<br />

jogar com um mestre ou um professor convi<strong>da</strong>do. Na ocasião, ele deve mostrar ao<br />

público presente os seus avanços na <strong>capoeira</strong>. Segundo Silva (1979), o batismo é<br />

uma herança do juramento que os <strong>capoeira</strong>s cariocas prestavam antigamente aos<br />

seus líderes <strong>em</strong> frente às igrejas. Este ritual, já consagrado na Capoeira Regional e<br />

também por alguns grupos que se intitulam praticantes <strong>da</strong> Capoeira Angola, é<br />

“criticado” pela sua estreita vinculação com os dogmas <strong>da</strong> religião católica,<br />

responsável inicialmente por uma violento processo de repressão às manifestações<br />

religiosas africanas. Se aos africanos era proibido o exercício de suas religiões, por<br />

que então, adotar o nome de batismo para uma <strong>da</strong>s mais importantes cerimônias <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, que é a incorporação “oficial” do novo integrante ao grupo? Muitos grupos<br />

300


de <strong>capoeira</strong>, principalmente do segmento Angola, não adotam esta cerimônia e,<br />

quando a adotam, a faz<strong>em</strong> com outra conotação. Aliás, o batismo t<strong>em</strong> se tornado,<br />

nos últimos anos, uma <strong>da</strong>s mais importantes estratégias para se ganhar dinheiro.<br />

Talvez, por isso, muitos grupos organiz<strong>em</strong> várias dessas cerimônias durante o ano,<br />

não atentando, na maioria <strong>da</strong>s vezes, para o nível de conhecimento adquirido e<br />

apresentado pelo neófito <strong>capoeira</strong>. As taxas de batismo, no Brasil, chegam muitas<br />

vezes a R$ 100,00 (c<strong>em</strong> r<strong>ea</strong>is, o equivalente a US$ 40,00 - quarenta dólares).<br />

Uma outra questão crucial diz respeito ao impacto <strong>da</strong> reestruturação<br />

produtiva no campo cultural a partir <strong>da</strong>s descentralizações, ressignificações,<br />

fragmentações, acelerações, hibri<strong>da</strong>ções, fomenta<strong>da</strong>s pelas chama<strong>da</strong>s “novas<br />

tecnologias recr<strong>ea</strong>tivas” (Sousa, 2002). É possível dizer que o processo de<br />

reestruturação econômica desencadeia também um processo de reestruturação<br />

cultural, <strong>em</strong> que tradição e moderni<strong>da</strong>de serv<strong>em</strong> apenas como referências para<br />

estimular uma participação plena, <strong>em</strong>bora fugaz, instantân<strong>ea</strong>, dos sujeitos nas<br />

diversas práticas culturais disponíveis.<br />

Essas probl<strong>em</strong>atizações induz<strong>em</strong> a buscarmos referências pertinentes<br />

para tratarmos a <strong>capoeira</strong> a partir de uma visão amplia<strong>da</strong>, complexifica<strong>da</strong>, levando<br />

<strong>em</strong> consideração o agir humano, que transforma a natureza e nela inscreve<br />

significados, como um processo único no qual intersecionam as dimensões subjetiva<br />

(produção de subjetivi<strong>da</strong>des), política (produção e distribuição de poder), cultural<br />

(produção e distribuição de símbolos) e econômica (produção e distribuição de<br />

utili<strong>da</strong>des) <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> socie<strong>da</strong>de. O processo de desenvolvimento dessas<br />

dimensões configura a dimensão histórica.<br />

Daí surge a necessi<strong>da</strong>de de questionarmos a respeito dos objetivos de se<br />

educar com e através <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e os meios adequados para concretizá-los. Se<br />

301


tomarmos como referência os objetivos apontados por Saviani (2000, p. 40) para a<br />

educação brasileira: “educação para subsistência, educação para libertação e<br />

educação para transformação”, poderíamos vislumbrar que, <strong>em</strong> última instância, a<br />

<strong>capoeira</strong> deve ser trata<strong>da</strong> pe<strong>da</strong>gogicamente na perspectiva <strong>da</strong> transformação.<br />

5.2. A Crítica ao Trato com o Conhecimento <strong>da</strong> Capoeira<br />

Para que a <strong>capoeira</strong> seja trata<strong>da</strong> na perspectiva <strong>da</strong> transformação,<br />

consideramos oportuna uma análise crítica <strong>da</strong>s principais “propostas” de<br />

sist<strong>em</strong>atização deste conhecimento.<br />

No final do século XIX, começaram a aparecer as primeiras iniciativas<br />

de sist<strong>em</strong>atização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>. Antes, aprendia-se “de oitiva”, como dizia Mestre<br />

Bimba. Ou seja, os <strong>capoeira</strong>s encontravam-se e jogavam <strong>capoeira</strong> s<strong>em</strong> a<br />

preocupação de ensinar ou aprender, <strong>em</strong>bora aprendiam e ensinavam, educavam e<br />

educavam-se, mas de forma assist<strong>em</strong>ática, não intencional (guia<strong>da</strong> pelo senso<br />

comum). Sobre esse aspecto, não vamos aprofun<strong>da</strong>r o estudo, porque o que nos<br />

interessa, aqui, é analisar criticamente as metodologias sist<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong>s utiliza<strong>da</strong>s<br />

para o ensino <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>.<br />

O pioneiro nesse campo foi Mello Moraes Filho (1979), que na déca<strong>da</strong> de<br />

1890, já sinalizava com a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> se transformar <strong>em</strong> “esporte<br />

nacional”. Como integrante <strong>da</strong>s elites brancas <strong>da</strong> vira<strong>da</strong> do século XX, Mello Moraes<br />

utilizou-se de alguns argumentos r<strong>ea</strong>lçados de positivi<strong>da</strong>de: a <strong>capoeira</strong> era esporte,<br />

era mestiça e era nacional. Para justificar seus postulados, distorceu praticamente<br />

todos os el<strong>em</strong>entos dessa manifestação. Construiu um “passado glorioso” para a<br />

mesma, e destituiu o que ela tinha de “mal e bárbaro” (MORAES FILHO, 1979, p.<br />

257). Ao fazer uma espécie de “assepsia” <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, camuflando suas<br />

contradições históricas, o referido autor acena com metodologias prescritivas e dá<br />

302


os primeiros passos no lento processo de sist<strong>em</strong>atização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e de<br />

transformação desse símbolo étnico <strong>em</strong> símbolo nacional.<br />

Dentre outras contribuições relaciona<strong>da</strong>s à sist<strong>em</strong>atização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong><br />

t<strong>em</strong>os o artigo “A Capoeira”, publicado <strong>em</strong> 1906, na revista Kosmos, cujo autor<br />

assina apenas com as iniciais L.C. O referido artigo destaca a “mestiçag<strong>em</strong>” e a<br />

excelência desta como luta <strong>em</strong> defesa <strong>da</strong> soberania nacional<br />

A <strong>capoeira</strong> não é portugueza, n<strong>em</strong> é negra, é mulata, é cafuza, e é<br />

mameluca, isto é, é cruza<strong>da</strong>; é mestiça, tendo-lhe o mestiço<br />

annexado, por princípios atávicos e com a<strong>da</strong>ptação intelligente, a<br />

navalha do fadista <strong>da</strong> moraria lisboeta, alguns movimentos sambados<br />

e simiescos do africano, e, sobretudo, a agili<strong>da</strong>de, a levipedez felina e<br />

pasmosa do índio nos saltos rápidos, leves e imprevistos para um<br />

lado e outro, para vante e, surprehendent<strong>em</strong>ente, como um tigrino<br />

r<strong>ea</strong>l, para traz, <strong>da</strong>ndo s<strong>em</strong>pre a frente ao inimigo (sic) (Revista<br />

Kosmos, 1906, apud REIS, 1997, p. 86-87).<br />

Em 1907, apareceu o opúsculo intitulado: “Guia do Capoeira ou<br />

Gymnastica Brazileira”, cujo autor teria julgado prudente não revelar seu nome,<br />

pelos preconceitos existentes <strong>em</strong> relação a <strong>capoeira</strong>g<strong>em</strong>, mencionando apenas a<br />

sigla O.D.C, que significava Ofereço, Dedico e Consagro à distinta moci<strong>da</strong>de. Esse<br />

opúsculo defendia a sist<strong>em</strong>atização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como um método nacional de<br />

ginástica. Na apresentação do mesmo, o editor se referiu ao autor como “um<br />

distincto official do exército brazileiro, mestre <strong>em</strong> tô<strong>da</strong>s as armas, professor de<br />

militares e habilíssimo na gymnastica deffensiva ou ver<strong>da</strong>deira arte do <strong>capoeira</strong><br />

(sic)” (ODC, 1907, p. 1). O opúsculo enaltecia os <strong>capoeira</strong>s de outrora pela riqueza<br />

de seus variados movimentos, pela prudência, e por ser<strong>em</strong> “amigos <strong>da</strong> ord<strong>em</strong>”.<br />

Alertava, ain<strong>da</strong>, que a “degeneração lenta e succesiva” começava a destruir “as<br />

bellezas desta gymnastica pátria pela ausência dos últimos notáveis mestres (sic)”<br />

(ibid., p. 2). Em decorrência desse processo degenerativo, o autor destacou que “o<br />

maior insulto para inutilizar a um jov<strong>em</strong> é chamal-o – <strong>capoeira</strong>! (sic)” (ibid., p. 3).<br />

303


Em 1928, o escritor Coelho Neto publicou o artigo “Nosso Jogo”, no qual<br />

apresentou uma proposta pe<strong>da</strong>gógica de inclusão <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> nas escolas civis e<br />

militares, chamando a atenção para a excelência desta como ginástica e estratégia<br />

de defesa individual (COELHO NETO, 1928). No mesmo ano, Aníbal Burlamaqui,<br />

um oficial <strong>da</strong> Marinha do Rio de Janeiro, publicou o livro: Ginástica Nacional<br />

(Capoeirag<strong>em</strong>) Metodiza<strong>da</strong> e Regra<strong>da</strong>, onde apresentou regras para o <strong>jogo</strong><br />

esportivo <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>. Esta obra foi apresenta<strong>da</strong> com um certo ufanismo à<br />

socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> época, como um “grito de brasili<strong>da</strong>de”, como possibili<strong>da</strong>de de<br />

libertação <strong>da</strong> influência dos “sports estrangeiros” e para destruir o “archaico e tolo<br />

preconceito de que a ‘GYMNASTICA BRASILEIRA’ – a <strong>capoeira</strong>g<strong>em</strong> – desdoura a<br />

qu<strong>em</strong> a pratica” (sic) (BURLAMAQUI, 1928, 9). Segundo o prefaciador <strong>da</strong> obra,<br />

Mario Santos, tratava-se de um livro “modesto, prático e útil”, que apresentava<br />

regras esportivas para tornar um “gymnasta brasileiro” capaz de vencer os de outras<br />

lutas estrangeiras. Ao sugerir a adoção <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>g<strong>em</strong>, o fazia sob o argumento de<br />

que ela era superior ao boxe, à luta romana e à luta japonesa, pois reunia el<strong>em</strong>entos<br />

de to<strong>da</strong>s elas e ain<strong>da</strong> estava associa<strong>da</strong> à “inteligência e à vivaci<strong>da</strong>de peculiares ao<br />

tropicalismo dos nossos sentimentos” (ibid., p. 5).<br />

Posteriormente, entre 1932 e 1937, Mestre Bimba sist<strong>em</strong>atizou, a partir de<br />

um método organizado <strong>em</strong> seqüências e de vários outros procedimentos, o que ele<br />

chamou de Luta Regional Baiana. Segundo Vieira (1995), Bimba elaborou uma<br />

reinterpretação <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, incorporando os el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong>s ideologias dominantes<br />

e favorecendo a abertura de canais até então fechados, permitindo, assim, a<br />

penetração de uma prática essencialmente popular nas instituições formais <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de soteropolitana.<br />

304


Mestre Bimba é criticado por alguns estudiosos, dentre eles, Rego (1968),<br />

e por muitos praticantes desafetos, por ter transferido a <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> rua para a<br />

acad<strong>em</strong>ia, aliando-se ao poder na busca de vantagens materiais e, também, por ter<br />

sido responsável pela militarização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, ensinando-a a militares.<br />

Seus defensores e seguidores, ao contrário, sustentam que Mestre Bimba,<br />

com a Regional, salvou a <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> extinção, adequando-a às exigências do<br />

mundo moderno. A criação <strong>da</strong> primeira acad<strong>em</strong>ia de <strong>capoeira</strong> por Mestre Bimba é<br />

vista por eles como ponto positivo. Foi Bimba qu<strong>em</strong> estruturou a <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong><br />

hierarquias, ao criar um sist<strong>em</strong>a de graduação, e isto é propagado como fator<br />

positivo. A difusão <strong>da</strong> Capoeira Regional por todo o Brasil teria contribuído para<br />

popularizar, pela mesma via, a cultura negra baiana no país, até entre as classes<br />

médias brancas que costumavam encarar esta cultura de forma preconceituosa.<br />

Como contraponto à Regional, Mestre Pastinha contribui, eficazmente,<br />

para a sist<strong>em</strong>atização <strong>da</strong> Capoeira Angola, elegendo como seus principais<br />

fun<strong>da</strong>mentos rituais religiosos dos caboclos e do candomblé. Com o prestígio<br />

conquistado junto à intelectuali<strong>da</strong>de baiana, a Angola se consoli<strong>da</strong> como estratégia<br />

sist<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong> de afirmação <strong>da</strong> cultura africana, <strong>em</strong> Salvador.<br />

Outra iniciativa, que procurou tratar a <strong>capoeira</strong> de forma sist<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong>, foi<br />

a de Inezil Penna Marinho que publicou, <strong>em</strong> 1945, um trabalho relacionado com o<br />

trato metodológico <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, intitulado: “Subsídios para o estudo <strong>da</strong> Metodologia<br />

do Treinamento <strong>da</strong> Capoeirag<strong>em</strong>” (MARINHO, 1945), através do qual tentava<br />

consoli<strong>da</strong>r o projeto de criação de um método nacional de ginástica que tivesse por<br />

base a <strong>capoeira</strong>, seguindo a trilha de Burlamaqui. Esse autor almejava sist<strong>em</strong>atizar<br />

a <strong>capoeira</strong> como uma “ginástica brasileira”, a ex<strong>em</strong>plo <strong>da</strong> Ginástica Sueca, <strong>da</strong><br />

Ginástica Francesa e <strong>da</strong> Ginástica Al<strong>em</strong>ã.<br />

305


A partir de uma visão que restringia a concepção de ser humano a uma<br />

dimensão meramente biológica, que se aproximava <strong>da</strong> doutrina fascista, Marinho<br />

(1945) buscou fun<strong>da</strong>mentar o seu trabalho nas características fenotípicas do povo<br />

brasileiro e elegeu o “mulato” como o tipo id<strong>ea</strong>l para a <strong>capoeira</strong>, pois considerava<br />

que ele era mais inteligente e menos bruto que o negro e teria mais destreza que o<br />

branco.<br />

Os mulatos, geralmente menos corpulentos que os negros, menos<br />

sobrecarregados de músculos de força que o trabalho pesado<br />

desenvolvia, mais ágeis, mais flexíveis, mais elásticos, mais nervos<br />

do que músculos, representavam o tipo id<strong>ea</strong>l do <strong>capoeira</strong>, pois a tais<br />

quali<strong>da</strong>des físicas somavam maior corag<strong>em</strong>, maior audácia, libertos<br />

que se encontravam do espírito de submissão arraigado à raça negra<br />

(MARINHO, 1945, p. 7).<br />

O trabalho de Marinho foi dedicado aos <strong>capoeira</strong>s do Brasil, <strong>em</strong> especial,<br />

a Aníbal Burlamaqui e Mestre Sinhozinho, os quais, segundo ele, tanto tinham<br />

trabalhado para que a <strong>capoeira</strong> não desaparecesse.<br />

Essas referências concretas dão o passo inicial e uma maior visibili<strong>da</strong>de<br />

ao processo de pe<strong>da</strong>gogização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>. Se, por um lado, as propostas Mello<br />

Moraes, Coelho Neto, L.C., O.D.C., Aníbal Burlamaqui e de Inezil Penna Marinho<br />

não adquiriram ressonância no meio <strong>capoeira</strong>no, a famosa metodologia de Bimba e<br />

a “engaja<strong>da</strong>” proposta de Pastinha ganharam os quatro cantos do mundo, <strong>em</strong>bora<br />

<strong>em</strong> níveis distintos de inserção e divulgação.<br />

Com o advento do processo de “escolarização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>”, por nós<br />

analisado <strong>em</strong> estudo anterior (FALCÃO, 1996), essa manifestação adquire novos<br />

contornos pe<strong>da</strong>gógicos e novos tratamentos metodológicos. Nesse movimento, ela<br />

incorpora el<strong>em</strong>entos de diversas ár<strong>ea</strong>s do conhecimento, b<strong>em</strong> como de outras<br />

manifestações <strong>da</strong> cultural corporal. Dentre as contribuições, nesse processo de<br />

ampliação <strong>da</strong>s formas e de métodos de tratamento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, destacamos as<br />

306


formulações sist<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong>s por Mestre Zulu, o responsável pela introdução <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> no currículo <strong>da</strong>s escolas públicas do Distrito Federal. Para Mestre Zulu, a<br />

<strong>capoeira</strong> deve ser trata<strong>da</strong> a partir de oito dimensões: ”antropológica, sociológica,<br />

filosófica, educativa, pe<strong>da</strong>gógica, preparativa, estética e lúdica” (ZULU, 1995, p. 22-<br />

24). Embora admita que, na sua “totali<strong>da</strong>de”, a <strong>capoeira</strong> engloba oito dimensões, o<br />

referido Mestre não apresenta, nessa obra, uma sist<strong>em</strong>atização articula<strong>da</strong> dessas<br />

formas de tratamento, deixando transparecer uma compreensão fragmenta<strong>da</strong> de<br />

trato com o conhecimento <strong>em</strong> relação a essa manifestação.<br />

Se antes as propostas de pe<strong>da</strong>gogização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> eram fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

referências nacionalistas, chauvinistas, higienistas, ufanistas, etnicistas<br />

essencialistas e esportivizantes, geralmente vincula<strong>da</strong>s a projetos pessoais de<br />

alguns expoentes dessa manifestação, nos últimos anos surg<strong>em</strong> novas<br />

possibili<strong>da</strong>des ampliando o seu espectro de tratamento pe<strong>da</strong>gógico.<br />

A despeito dessas novas possibili<strong>da</strong>des, respal<strong>da</strong><strong>da</strong>s pelo estatuto<br />

científico, ela é heg<strong>em</strong>onicamente trata<strong>da</strong> na lógica do treinamento esportivo, nos<br />

mesmos moldes <strong>da</strong>s diversas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des presentes na socie<strong>da</strong>de. Os chamados<br />

“treinos” cont<strong>em</strong>plam, <strong>em</strong> geral, procedimentos extr<strong>em</strong>amente simplistas, nos quais<br />

prevalec<strong>em</strong> o comando e a ênfase na performance, e, <strong>em</strong> muitos casos, com a<br />

aplicação <strong>em</strong>baralha<strong>da</strong> de alguns princípios “científicos” her<strong>da</strong>dos do chamado<br />

“treinamento desportivo”, que t<strong>em</strong> como objetivo precípuo treinar seres humanos<br />

com vistas a produzir<strong>em</strong> resultados ca<strong>da</strong> vez mais apurados.<br />

Nesta lógica, que privilegia o rendimento corporal, mol<strong>da</strong> e r<strong>em</strong>odela o<br />

sujeito com vista ao “aprimoramento individual”, a disciplina é, freqüent<strong>em</strong>ente,<br />

construí<strong>da</strong> a partir de referenciais sedutores e vencedores, muito b<strong>em</strong> monitorados<br />

pela mídia.<br />

307


O rendimento físico é garantido por séries extenuantes de exercícios<br />

aplicados com finali<strong>da</strong>des específicas, <strong>em</strong> que tudo pode (e deve) ser medido,<br />

classificado, comparado, definido. Essa exaustiva exploração <strong>da</strong> aptidão física<br />

subestima outras possibili<strong>da</strong>des para o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>,<br />

dentre elas, o componente lúdico, a diversão, enfim, os conhecimentos produzidos a<br />

partir de suas ricas referências culturais e históricas.<br />

Além disso, o treinamento físico, com seu caráter metódico, ordenativo e<br />

disciplinador, que glorifica as endorfinas e o sacrifício, termina por descui<strong>da</strong>r de<br />

questões fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, como organização social, luta política e outros<br />

fatores que alteram as condições de vi<strong>da</strong> e de trabalho de amplas parcelas <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de.<br />

Para Kunz (1996), os princípios do rendimento são a concorrência e a<br />

competição, que pressupõ<strong>em</strong> a superação/exploração do hom<strong>em</strong> pelo hom<strong>em</strong> e<br />

acarreta injustiça social e humana. Entretanto, o mesmo autor afirma que não há<br />

socie<strong>da</strong>de s<strong>em</strong> rendimento e propõe um “rendimento como algo necessário, mas<br />

não obrigatório” (op. cit., p. 98). Destaca, porém, que o sentido negativo do<br />

rendimento é o seu atrelamento ao conceito de progresso e desenvolvimento<br />

defendido pelos experts e pela ciência que detêm o poder de dizer “o que é ou não é<br />

ver<strong>da</strong>de, o que pode ou não pode ser consumido, percebido, desejado,<br />

compreendido, e assim por diante” (ibid., p.98).<br />

O fato é que o treinamento físico prepondera no trato com esse<br />

conhecimento, e essa tirania do rendimento v<strong>em</strong> mol<strong>da</strong>ndo a <strong>capoeira</strong> hodierna e<br />

transforma os sujeitos <strong>em</strong> máquinas de fazer gestos ca<strong>da</strong> vez mais padronizados e<br />

vincados pelo “espírito competitivo”.<br />

É fun<strong>da</strong>mental compreender que, no trato com o conhecimento <strong>da</strong><br />

308


<strong>capoeira</strong>, como no trato com qualquer outra cultura corporal, o sujeito deve ser<br />

concebido como uma uni<strong>da</strong>de indivisível, que se expressa pela existência cultural,<br />

política, social, afetiva, <strong>em</strong>ocional etc. Da<strong>da</strong> a impossibili<strong>da</strong>de concreta de uma<br />

divisão, pensar o sujeito é pensá-lo <strong>em</strong> sua totali<strong>da</strong>de. Daí não ser possível falar de<br />

rendimento corporal s<strong>em</strong> envolver outras dimensões <strong>da</strong> existência humana. To<strong>da</strong>s<br />

essas categorias faz<strong>em</strong> parte de um complexo amálgama que é a vi<strong>da</strong> humana, una<br />

e plural, dialética, jamais fragmenta<strong>da</strong> ou dividi<strong>da</strong>, como pretend<strong>em</strong> tratá-la algumas<br />

correntes pe<strong>da</strong>gógicas, inclusive, como possibili<strong>da</strong>de de manipulação e dominação.<br />

Além dessas considerações, pod<strong>em</strong>os dizer ain<strong>da</strong> que a pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> teve início <strong>em</strong> espaços educativos não-formais. O depoimento do Mestre<br />

Wald<strong>em</strong>ar, a seguir, explicita o caráter informal dessa pe<strong>da</strong>gogia, evidenciando que<br />

ela estava indissociavelmente vincula<strong>da</strong> às condições materiais e ao contexto <strong>em</strong><br />

que vivia.<br />

Eu chegava lá, <strong>da</strong>va minha ord<strong>em</strong> e ía tomar minha cerveja” (...)<br />

ensinava na ro<strong>da</strong>, mas tinha os dias de treino. Eles estavam jogando<br />

e eu fazia sinal para fazer tesoura, fazia sinal para chibat<strong>ea</strong>r, fazia<br />

sinal para o outro se abaixar” (...) Eu fazia o ringue na sombra (de um<br />

arvoredo) e botava a rapazia<strong>da</strong> para jogar. Depois eu fiz um barracão<br />

de palha grande” (MESTRE WALDEMAR apud ABREU, p. 20-21).<br />

No calor <strong>da</strong>s contradições, o movimento concreto <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong><br />

d<strong>em</strong>onstrando e acenando que é possível construir referências mais sintoniza<strong>da</strong>s<br />

com o desenvolvimento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de atual na perspectiva de sua transformação. A<br />

despeito de barreiras políticas e econômicas, os seres humanos, através de suas<br />

práticas significativas, destro<strong>em</strong> fronteiras e edificam um mundo onde,<br />

simbolicamente, tudo são margens, onde não há centro, onde não há outros. Com<br />

isso, ela aponta novas perspectivas pe<strong>da</strong>gógicas, <strong>em</strong> que os educadores são<br />

chamados a criar pe<strong>da</strong>gogias s<strong>em</strong> fronteiras, capazes de incorporar os<br />

deslocamentos que aproximam os povos <strong>em</strong> torno de projetos solidários de<br />

309


<strong>construção</strong> <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de humana.<br />

A partir <strong>da</strong> constatação <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, como prática cultural,<br />

pud<strong>em</strong>os extrair el<strong>em</strong>entos para entender melhor as razões pelas quais tanto as<br />

chama<strong>da</strong>s “cama<strong>da</strong>s populares” quanto as elites combinam a d<strong>em</strong>ocracia moderna<br />

com relações arcaicas de poder. Pud<strong>em</strong>os compreender, também, os motivos que<br />

levam alguns “educadores populares” a reproduzir<strong>em</strong>, com arbitrarie<strong>da</strong>de e<br />

autoritariamente, os “consagrados fun<strong>da</strong>mentos” <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>.<br />

Diante dessa complexi<strong>da</strong>de, propugnamos que o trato com o<br />

conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, no currículo de formação profissional, s<strong>em</strong> desprezar<br />

outras possibili<strong>da</strong>des, deve estar amparado por um estatuto científico que seja<br />

capaz de explicitar os avanços e os retrocessos de uma prática cultural complexa. E<br />

que esse trato não seja operado na forma de repasse, mas, principalmente, como<br />

produção e divulgação dos saberes construídos a partir de diferentes experiências.<br />

Consideramos que o trato com esse conhecimento deve cont<strong>em</strong>plar o seu<br />

“acervo histórico-cultural” e não apenas se reduzir a “seqüências de treinamento<br />

físico”. Nesse sentido, torna-se pr<strong>em</strong>ente “não desencarná-la do movimento cultural<br />

e político que a gerou” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 76), e isto implica <strong>em</strong><br />

cont<strong>em</strong>plar a cosmovisão afro-brasileira como uma de suas referências<br />

significativas, com to<strong>da</strong>s as suas contribuições e contradições. Implica, também, <strong>em</strong><br />

cont<strong>em</strong>plar o lúdico e a interativi<strong>da</strong>de e não dissociar a tríade <strong>jogo</strong>&luta&<strong>da</strong>nça.<br />

É comum verificar que muitos praticantes dessa arte-luta delegam-na a<br />

condição de “elixir pe<strong>da</strong>gógico”, ou seja, ela é um “santo r<strong>em</strong>édio” para tudo. Mas, é<br />

bom l<strong>em</strong>brar que esses discursos, muitas vezes, são carregados de retóricas e<br />

romantismos, e se apresentam de forma reducionista. Para que a <strong>capoeira</strong><br />

contribua, efetivamente, com o processo de formação humana, sua prática deve se<br />

310


articular com probl<strong>em</strong>áticas significativas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, sob pena de se transformar <strong>em</strong><br />

uma ativi<strong>da</strong>de inútil. Se não pod<strong>em</strong>os entender o que o ser humano sente e pensa,<br />

s<strong>em</strong> saber como ele vive e o que ele faz, quer<strong>em</strong>os dizer que, o trato com o<br />

conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, numa perspectiva transformadora, deve abranger, além<br />

<strong>da</strong>s experiências laborativas, as existenciais e formativas.<br />

Com isso, não pretend<strong>em</strong>os propor, aqui, uma pe<strong>da</strong>gogização caricata <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, mas objetivamos construir uma articulação de suas referências<br />

significativas com os postulados <strong>da</strong> pe<strong>da</strong>gogia crítica e, a partir <strong>da</strong>í, extrair<br />

el<strong>em</strong>entos estratégicos que possam ser probl<strong>em</strong>atizados, enfim, que possam ser<br />

colocados <strong>em</strong> <strong>jogo</strong>, na ro<strong>da</strong>, de forma que eles explicit<strong>em</strong>, dialeticamente, aspectos<br />

não percebidos e não identificados na ação concreta dos sujeitos.<br />

Uma possível pe<strong>da</strong>gogização crítica <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> começaria com uma<br />

ampla e irrestrita probl<strong>em</strong>atização <strong>da</strong>s bases que gestaram o processo civilizatório<br />

mundial iniciado na África. Não se trata de defender a idéia ingênua e romântica de<br />

um possível resgate de um socialismo primitivo africano para se contrapor ao<br />

moderno capitalismo. Trata-se de buscar, também, no desenvolvimento histórico do<br />

processo civilizatório africano, recalcado e discriminado por boa parte <strong>da</strong><br />

intelligentsia ocidental, referências significativas para ampliarmos e<br />

probl<strong>em</strong>atizarmos a prática pe<strong>da</strong>gógica.<br />

Propugnamos que o trato com qualquer conhecimento deve ser<br />

probl<strong>em</strong>atizado na sua relação orgânica com o movimento histórico que o fomentou,<br />

a fim de evitarmos que os nossos jovens se desenvolvam numa espécie de<br />

“presente contínuo” (HOBSBAWM, 1995), alheios ao passado que os gerou, pois,<br />

independente de origens e histórias pessoais, são todos herdeiros de experiências e<br />

311


fatos históricos decisivos que consoli<strong>da</strong>ram o presente exatamente como ele se<br />

apresenta.<br />

Segundo Hobsbawm (1995, p. 13), “a destruição do passado – ou melhor,<br />

dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal a <strong>da</strong>s gerações<br />

passa<strong>da</strong>s – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século<br />

XX”. Sendo assim, para que a nossa experiência seja compreendi<strong>da</strong> e explica<strong>da</strong><br />

com radicali<strong>da</strong>de, rigorosi<strong>da</strong>de e <strong>em</strong> sua totali<strong>da</strong>de, dev<strong>em</strong>os levar <strong>em</strong> consideração<br />

os fatos históricos cruciais que contribuíram para o seu desenvolvimento e como<br />

eles se relacionam entre si para materializar a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de tal como ela é.<br />

No Brasil, períodos e fatos históricos como a escravidão, os regimes<br />

autoritários de Getúlio Vargas e dos militares, influenciaram, sobr<strong>em</strong>aneira, os<br />

códigos <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, outorgando-lhe características multifaceta<strong>da</strong>s. Essa<br />

manifestação s<strong>em</strong>pre representou um palco de tensões <strong>em</strong> que forças<br />

conservadoras e revolucionárias incidiram sobre ela. Este aspecto é de especial<br />

interesse pe<strong>da</strong>gógico à medi<strong>da</strong> que a relação <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> com esses fatos,<br />

revitalizados através de rituais e de cantigas, ao ser<strong>em</strong> tratados pe<strong>da</strong>gogicamente,<br />

pod<strong>em</strong> configurar-se como importantíssimos el<strong>em</strong>entos de explicação de sua<br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de concreta.<br />

Um dos caminhos para exercitar esta revitalização histórica é, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>,<br />

uma análise consistente do movimento do seu desenvolvimento no sentido de<br />

compreendê-la melhor, não com o propósito de perdoar inúmeras atroci<strong>da</strong>des<br />

gera<strong>da</strong>s no seio de suas manobras, mas com o objetivo de buscar el<strong>em</strong>entos para<br />

nela impl<strong>em</strong>entar novos horizontes. Não se trata de tudo compreender para tudo<br />

perdoar, trata-se, sim, de compreender o seu movimento, suas contradições, seus<br />

limites e suas possibili<strong>da</strong>des, no mesmo sentido pontuado por Hobsbawm (1995, p.<br />

312


15), quando afirma que “compreender a era nazista na história al<strong>em</strong>ã e enquadrá-la<br />

<strong>em</strong> seu contexto histórico não é perdoar o genocídio”. Trata-se, pois, de superar<br />

contradições que levam os seres humanos a explorar<strong>em</strong> ao máximo os seus<br />

s<strong>em</strong>elhantes e construir possibili<strong>da</strong>des de essência para o processo civilizatório<br />

para além do capital.<br />

A <strong>capoeira</strong> constitui-se num universo de signos, símbolos e linguagens<br />

que, simultan<strong>ea</strong>mente, intrigam e encantam; “um trailer <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social”, por<br />

onde transitam os mais díspares interesses que, reunidos a esmo e s<strong>em</strong> os rigores<br />

<strong>da</strong> lógica racionalista, consoli<strong>da</strong>m um mosaico capaz de fascinar, pela riqueza<br />

gestual e ritualística, e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, provocar t<strong>em</strong>or, pela imponência e<br />

imprevisibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s manobras de seus praticantes.<br />

Estas considerações pod<strong>em</strong> contribuir para um tratamento pe<strong>da</strong>gógico<br />

rigoroso, radical e de conjunto <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, à medi<strong>da</strong> que esta não deve ser<br />

interpreta<strong>da</strong> como uma prática puramente mecânica, desconecta<strong>da</strong> <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de<br />

social, mas como um processo onde se interpenetram dimensões históricas,<br />

afetivas, sociais e motoras, que jamais se tornam rotina. A <strong>capoeira</strong> pode contribuir,<br />

sobr<strong>em</strong>aneira, para a consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>quilo que Santos (2002) chama de “pe<strong>da</strong>gogia<br />

reversiva”, cujo eixo central sugere que, para reverter uma r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de perversa,<br />

t<strong>em</strong>os que reverter, via processo educativo, os valores que fomentaram tal<br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de. Em termos práticos, pod<strong>em</strong>os considerar o seguinte ex<strong>em</strong>plo: nenhuma<br />

pessoa nasce preconceituosa; ela se torna preconceituosa. Um processo educativo<br />

só se torna eficaz quando se consegue mu<strong>da</strong>r esta condição. Enfim, o trato com o<br />

conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> deve se articular com as “probl<strong>em</strong>áticas significativas”,<br />

socialmente referencia<strong>da</strong>s, que estruturam seu arcabouço. Nesse sentido, ele não<br />

deve se acomo<strong>da</strong>r à lógica <strong>da</strong> assimilação, <strong>da</strong> transmissão, <strong>da</strong> prescrição, mas ser<br />

313


trata<strong>da</strong> pe<strong>da</strong>gogicamente na perspectiva <strong>da</strong> reversão, <strong>da</strong> contraposição, <strong>da</strong> crítica,<br />

enfim, <strong>da</strong> transformação.<br />

Sendo assim, o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> deve buscar a<br />

superação de análises mecânicas impregna<strong>da</strong>s de visões ingênuas, metafísicas e<br />

acríticas. Esse trato deve levar <strong>em</strong> consideração a concretici<strong>da</strong>de - que pressupõe<br />

analisá-la a partir de sua relação com a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social; a critici<strong>da</strong>de - que subentende<br />

a radicali<strong>da</strong>de, a rigorosi<strong>da</strong>de e a reflexão de conjunto; a objetivi<strong>da</strong>de - que requer a<br />

explicitação dos fun<strong>da</strong>mentos do modo científico de encarar os fenômenos, como<br />

condição para a <strong>construção</strong> do conhecimento; a especifici<strong>da</strong>de - que envolve o<br />

domínio, <strong>em</strong> amplitude e profundi<strong>da</strong>de do conteúdo <strong>em</strong> todo o seu conjunto; a<br />

flexibili<strong>da</strong>de - que exige aberturas às contribuições compl<strong>em</strong>entares (COLETIVO DE<br />

AUTORES, 1992).<br />

Que o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> cont<strong>em</strong>ple os princípios<br />

apresentados pelo Coletivo de Autores (1992, p. 30-34) para os conteúdos <strong>da</strong> cultura<br />

corporal, na forma como se expressam a seguir:<br />

a) relevância social dos conteúdos – que implica na importância do sentido e<br />

significado do conhecimento para a reflexão pe<strong>da</strong>gógica e que deve estar<br />

vinculado à explicação <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social concreta e oferecer subsídios para a<br />

compreensão dos determinantes sócio-históricos do educando, particularmente a<br />

sua condição de classe social;<br />

b) a cont<strong>em</strong>poranei<strong>da</strong>de do conteúdo – que implica na garantia aos educandos o<br />

conhecimento do que de mais moderno existe no mundo cont<strong>em</strong>porâneo,<br />

articulando o saber clássico com os saberes advindos <strong>da</strong> lide cotidiana;<br />

c) a adequação às possibili<strong>da</strong>des sócio-cognocitivas dos educandos – que implica<br />

na adequação do conteúdo à capaci<strong>da</strong>de cognitiva e à prática social do educando,<br />

ao seu próprio conhecimento e às suas possibili<strong>da</strong>des como sujeito histórico;<br />

d) a simultanei<strong>da</strong>de dos conteúdos enquanto <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de – que implica no<br />

entendimento de que os <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de não são possíveis de fragmentações a<br />

não ser, quando arbitrariamente fragmentados, apresentados <strong>em</strong> etapas e de<br />

forma lin<strong>ea</strong>r dificultando, dessa forma, o desenvolvimento <strong>da</strong> visão de totali<strong>da</strong>de;<br />

e) a espirali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s referências do pensamento – que implica <strong>em</strong> compreender<br />

as diferentes maneiras de organizar as referências do pensamento de forma a<br />

ampliá-las infinitamente;<br />

314


f) a provisorie<strong>da</strong>de do conhecimento – Que implica <strong>em</strong> romper com a idéia de<br />

terminali<strong>da</strong>de, significando, portanto, historicizar conteúdos, probl<strong>em</strong>atizar sua<br />

gênese para que o educando se perceba como sujeito histórico.<br />

No trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, torna imprescindível que os<br />

objetivos gerais <strong>da</strong> educação (que lev<strong>em</strong> a promoção do hom<strong>em</strong>) se traduzam <strong>em</strong><br />

termos de objetivos específicos, nos seguintes níveis, sugeridos por Saviani (2000):<br />

atitudinal (o que o educador precisa viver), crítico-contextual (o que o educador<br />

precisa compreender), cognitivo (o que o educador precisa saber) e instrumental (o<br />

que o educador precisa fazer).<br />

Os procedimentos com os saberes <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> dev<strong>em</strong> incluir, ain<strong>da</strong>, a<br />

probl<strong>em</strong>atização <strong>da</strong>s condições de exploração <strong>em</strong> que a maior parte dos mestres,<br />

mantenedores dessa tradição, foi submeti<strong>da</strong>, como Bimba, Pastinha e Wald<strong>em</strong>ar.<br />

Quando Mestre Pastinha, um ano antes de sua morte, desabafou: “a <strong>capoeira</strong> de<br />

na<strong>da</strong> precisa, qu<strong>em</strong> precisa sou eu” (apud ABREU, 2003, p. 15), ele estava<br />

acenando, de forma dramática, a dimensão ontológica do ser social, e com alguns<br />

el<strong>em</strong>entos que deveriam orientar o trato com esse conhecimento.<br />

5.3. Capoeira: um Jeito Mandingueiro de Ser<br />

315<br />

Não mande <strong>em</strong> mim, sinhá dona,<br />

Que eu já sou alforriado...<br />

(Mestre Toni Vargas)<br />

No primeiro parágrafo <strong>da</strong> introdução do nosso projeto de qualificação que<br />

orientou a r<strong>ea</strong>lização desta pesquisa, colocamos que, para elaborar uma tese de<br />

doutorado tendo a <strong>capoeira</strong> como o principal campo <strong>em</strong>pírico, precisávamos de<br />

muita “mandinga” para gingar com a estrutura de tendência conservadora <strong>da</strong><br />

universi<strong>da</strong>de brasileira que, <strong>em</strong> geral, apresenta vocação elitista e ain<strong>da</strong> continua


tão alheia às pesquisas sobre t<strong>em</strong>áticas vistas, preconceituosamente, como<br />

“rebeldes” e “marginais”.<br />

A <strong>capoeira</strong> está atrela<strong>da</strong> aos mecanismos que reg<strong>em</strong> a socie<strong>da</strong>de <strong>em</strong><br />

geral, e a mandinga pode até contribuir para se compreender os seus probl<strong>em</strong>as,<br />

decifrar as falcatruas que se inser<strong>em</strong> <strong>em</strong> suas redes, ca<strong>da</strong> vez mais intrinca<strong>da</strong>s.<br />

Entretanto, o que se apresenta como fun<strong>da</strong>mental no campo acadêmico está<br />

condicionado ao seu trato como prática pe<strong>da</strong>gógica, e isto está relacionado<br />

concretamente com as condições objetivas para sua materialização.<br />

Se o termo "mandinga", que nos r<strong>em</strong>ete aos povos originários <strong>da</strong> região<br />

<strong>da</strong> Senâmbia, na África Ocidental, como frisamos anteriormente, guar<strong>da</strong>va relação<br />

com os feiticeiros, a mandinga necessária, à qual nos referíamos estava vincula<strong>da</strong> à<br />

capaci<strong>da</strong>de de analisar o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> na estrutura<br />

complexa, dinâmica e contraditória de tendência conservadora <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de<br />

brasileira.<br />

Como a prática pe<strong>da</strong>gógica materializa-se entre professor e estu<strong>da</strong>nte <strong>em</strong><br />

determina<strong>da</strong>s condições materiais de espaço e t<strong>em</strong>po e deve se articular com os<br />

fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> teoria educacional que a orienta, com vista à identificação <strong>da</strong>s<br />

conexões entre os aspectos didático-pe<strong>da</strong>gógicos gerais e os metodológicos<br />

próprios <strong>da</strong> disciplina, refletindo assim, a uni<strong>da</strong>de do geral e do particular, do<br />

conteúdo e <strong>da</strong> forma, b<strong>em</strong> como suas contradições, consideramos que ser<br />

mandingueiro implica <strong>em</strong> reconhecer que as novas exigências coloca<strong>da</strong>s no campo<br />

educacional requer<strong>em</strong> uma “mandinga” b<strong>em</strong> diferente <strong>da</strong>quelas com as quais<br />

operavam nossos habilidosos mágicos e feiticeiros ancestrais africanos ou nossos<br />

afamados <strong>capoeira</strong>s <strong>da</strong>s maltas. Se, na época <strong>da</strong> escravidão oficial, o capitão-do-<br />

mato era de carne e osso, e atuava com o chicote <strong>em</strong> punho, imprimindo marcas<br />

316


nos corpos dos negros, hoje, com a escravidão disfarça<strong>da</strong>, ele é invisível, atua<br />

virtualmente e nos escraviza imprimindo ilusões <strong>em</strong> nossas mentes.<br />

Ser mandingueiro, na condição de professor, é exigir que as condições<br />

objetivas necessárias ao bom desenvolvimento <strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica sejam<br />

efetivamente <strong>da</strong><strong>da</strong>s, desde as instalações, até o t<strong>em</strong>po pe<strong>da</strong>gogicamente<br />

necessário à apropriação e produção do conhecimento. O que pud<strong>em</strong>os verificar é<br />

que, no caso <strong>da</strong> UFBA, e também <strong>da</strong> UFSC, os ambientes são inadequados para o<br />

desenvolvimento de ativi<strong>da</strong>des específicas como a <strong>capoeira</strong> e outras manifestações<br />

“barulhentas” que, para seus desafetos, só serv<strong>em</strong> para atrapalhar o aprendizado de<br />

outras disciplinas. Em geral, os espaços utilizados para a <strong>capoeira</strong>, quando não são<br />

minúsculos e apertados, são “<strong>em</strong>prestados" de outras mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des (no caso,<br />

esportivas) com maior “prestígio acadêmico”. Freqüent<strong>em</strong>ente, para cumprir o<br />

programa <strong>da</strong> disciplina, a alternativa é r<strong>ea</strong>lizar to<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong>des ao ar livre,<br />

independent<strong>em</strong>ente do frio cortante ou do calor escal<strong>da</strong>nte.<br />

Cabe ao professor mandingueiro, promover ações compl<strong>em</strong>entares, extras,<br />

paralelas, de forma a ampliar o leque de possibili<strong>da</strong>des dos estu<strong>da</strong>ntes, contanto, que<br />

estas sejam responsavelmente acompanha<strong>da</strong>s e que não sirvam como desculpa para<br />

escapar dos seus compromissos, contribuindo, dessa forma, para despertar neles, o<br />

espírito científico, através <strong>da</strong> sugestão de referências consistentes, <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>lização de<br />

resenhas de livros, elaboração de entrevistas, visitas institucionais com relatórios e<br />

observações de ativi<strong>da</strong>des <strong>em</strong> outros espaços congêneres. Cabe, ain<strong>da</strong>, ao professor<br />

mandingueiro, utilizar várias formas de comunicação que se materializam desde o<br />

boca-a-boca, passando pela linguag<strong>em</strong> poética, musical, cin<strong>em</strong>atográfica e televisiva,<br />

até a linguag<strong>em</strong> computacional. Um professor mandingueiro deve discutir com os<br />

estu<strong>da</strong>ntes os probl<strong>em</strong>as <strong>da</strong> disciplina e as dificul<strong>da</strong>des que eles estão enfrentando<br />

317


para li<strong>da</strong>r com ela. Deve cultivar a radicali<strong>da</strong>de, a rigorosi<strong>da</strong>de e a totali<strong>da</strong>de,<br />

decidindo, com eles, os critérios de seleção dos conteúdos, os procedimentos<br />

pe<strong>da</strong>gógicos e os critérios de avaliação a ser<strong>em</strong> adotados no ato educativo. Deve<br />

sist<strong>em</strong>atizar os conteúdos a ser<strong>em</strong> tratados nas aulas (articulação entre o ponto de<br />

parti<strong>da</strong> e o ponto de chega<strong>da</strong>) a partir <strong>da</strong> probl<strong>em</strong>atização de referências teóricas<br />

consistentes e utilização de conceitos chaves, evitando discussões esparsas,<br />

bas<strong>ea</strong><strong>da</strong>s apenas nas experiências do senso comum ou <strong>em</strong> relatos meramente<br />

biográficos de determina<strong>da</strong>s personali<strong>da</strong>des construí<strong>da</strong>s do universo <strong>capoeira</strong>no. O<br />

professor mandingueiro deve informar, no início <strong>da</strong> aula, os seus objetivos, conteúdos<br />

e procedimentos de ensino a ser<strong>em</strong> utilizados. Deve tratar o conhecimento como uma<br />

<strong>construção</strong> histórica e contextualiza<strong>da</strong>, respal<strong>da</strong><strong>da</strong> cientificamente e não como opinião<br />

pessoal, delimita<strong>da</strong> e esvazia<strong>da</strong> de conteúdo. Deve estar aberto a experimentação<br />

participativa e d<strong>em</strong>ocrática, estimulando os estu<strong>da</strong>ntes a falar<strong>em</strong> de suas experiências.<br />

É tarefa do professor mandingueiro, buscar a uni<strong>da</strong>de metodológica na apreensão <strong>da</strong><br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as suas relações e interconexões e, conseqüent<strong>em</strong>ente, a uni<strong>da</strong>de<br />

na concepção de hom<strong>em</strong> e de profissional que se pretende formar, evitando tratar o<br />

conteúdo de acordo com o enfoque que melhor lhe convém.<br />

Ser mandingueiro, na condição de estu<strong>da</strong>nte, é exigir que o professor<br />

organize sist<strong>em</strong>aticamente o conteúdo a ser trabalhado, que utilize, de forma<br />

criteriosa, os equipamentos e materiais didáticos. No caso <strong>da</strong> UFBA, constatamos que<br />

os materiais didáticos específicos <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> eram precários, e muitos professores<br />

transportavam o seu no porta-mala do carro para não passar<strong>em</strong> “vexame” quando<br />

recebess<strong>em</strong> visitas de outros professores ou mestres <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de. Ser estu<strong>da</strong>nte<br />

mandingueiro implica <strong>em</strong> se esquivar <strong>da</strong> passivi<strong>da</strong>de, gingando com argumentações e<br />

intervenções pertinentes aos seus principais anseios como ser <strong>em</strong> formação. É não<br />

318


endeusar o professor ou mestre, através de disputas aguerri<strong>da</strong>s de “espaços nobres”<br />

de aprendizag<strong>em</strong> com os d<strong>em</strong>ais colegas e, sim, compartilhar efetivamente o processo<br />

educativo, pois a joga<strong>da</strong> mais envolvente é (deve ser) a coletiva. É evitar a cisão<br />

(teoria-prática) e a compartimentalização do saber, onde ca<strong>da</strong> um trata <strong>da</strong> parte que<br />

lhe cabe. É não considerar o conhecimento como algo pronto, acabado, (“s<strong>em</strong> tirar<br />

n<strong>em</strong> pôr”).<br />

Ficam assim, sendo mandingueiros, professores e estu<strong>da</strong>ntes,<br />

conscientes <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que vão atuar, fun<strong>da</strong>mentados teoricamente,<br />

instrumentalizados tecnicamente e comprometidos com um conhecimento <strong>em</strong><br />

permanente transformação.<br />

Nesse capítulo <strong>em</strong>penhamo-nos na busca de el<strong>em</strong>entos que pudess<strong>em</strong><br />

ampliar o significado <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como prática social determina<strong>da</strong>, abdicando de<br />

conceitos reducionistas. Efetuamos, também, crítica sobre o trato com este<br />

conhecimento tomando como base algumas propostas apresenta<strong>da</strong>s ao longo de<br />

seu desenvolvimento histórico e <strong>da</strong>dos do campo <strong>em</strong>pírico investigado. Por fim,<br />

explicitamos o nosso conceito de “mandingueiro”, como possibili<strong>da</strong>de de superação<br />

de visões id<strong>ea</strong>listas e essencialistas comumente verifica<strong>da</strong>s no contexto <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, situando-o na perspectiva <strong>da</strong> transformação.<br />

319


CAPÍTULO 6<br />

“IÊ... VIVA MEU MESTRE... CAMARÁ”<br />

320<br />

(...) O el<strong>em</strong>ento intelectual ‘sabe’,<br />

mas n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre compreende e especialmente ‘sente’(...).<br />

O erro do intelectual consiste <strong>em</strong> acreditar<br />

que se possa saber s<strong>em</strong> compreender<br />

e especialmente s<strong>em</strong> sentir e ser apaixonado (...)<br />

Antônio Gramsci<br />

Neste capítulo apresentar<strong>em</strong>os considerações acerca <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de e<br />

possibili<strong>da</strong>des de trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> a partir <strong>da</strong>s contradições<br />

verifica<strong>da</strong>s nos espaços formais e não-formais de educação e suas possíveis<br />

articulações. Para isso, abor<strong>da</strong>r<strong>em</strong>os sucintamente a relação <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de<br />

pública brasileira com as manifestações culturais, <strong>em</strong> especial, a <strong>capoeira</strong>. Por fim,<br />

apresentar<strong>em</strong>os o nosso entendimento de <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na, qualifica<strong>da</strong> pela noção<br />

de complexo t<strong>em</strong>ático e sua pertinência como fonte de inspiração para o trato com<br />

conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo de formação profissional.<br />

6.1. R<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>des e Possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Capoeira no Ensino Formal e Não-<br />

Formal<br />

A análise dos fatores internos e externos que produz<strong>em</strong> e asseguram uma<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong> organização do processo de trabalho pe<strong>da</strong>gógico e de trato (produção e<br />

apropriação) com o conhecimento, nos permitiu “ver” o essencial, o fun<strong>da</strong>mental, que<br />

agrega dialeticamente o lógico e o histórico, sua contraditorie<strong>da</strong>de e multiplici<strong>da</strong>de<br />

de significados, enfim, a totali<strong>da</strong>de, ou seja, a essência do fenômeno estu<strong>da</strong>do que<br />

representa, para Cheptulin (1982, p. 276), “o conjunto de todos os aspectos e


ligações necessários e internos (leis), próprios dos objetos, tomados <strong>em</strong> sua<br />

interdependência natural”.<br />

Pod<strong>em</strong>os assegurar que as dinâmicas e experiências construí<strong>da</strong>s com<br />

<strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> espaços não-formais de educação romp<strong>em</strong> com a tradição educacional<br />

que confunde educação com escola e sugere uma compreensão política <strong>da</strong> “prática<br />

social como princípio educativo” (FRIGOTTO, 1989). Constatamos que as<br />

experiências com <strong>capoeira</strong>, <strong>em</strong> espaços não-formais de educação, materializam a<br />

denomina<strong>da</strong> “socie<strong>da</strong>de pe<strong>da</strong>gógica” prevista por Marx (1989), e hoje chama<strong>da</strong> de<br />

socie<strong>da</strong>de cognitiva (ou socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong>) que, ao imprimir certo valor à<br />

educação, como processo de formação ao longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, pretende, <strong>em</strong> última<br />

instância, responsabilizar todos os indivíduos por essa mesma formação.<br />

O fato é que a <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong> se consoli<strong>da</strong>ndo, a partir de ações e eventos,<br />

nos quais participam representantes <strong>da</strong> “acad<strong>em</strong>ia”, de grupos organizados e de<br />

várias organizações institucionaliza<strong>da</strong>s, ou não, escolariza<strong>da</strong>s, ou não, que<br />

adquir<strong>em</strong>/constro<strong>em</strong> competências e redes necessárias para se inserir<strong>em</strong> nas novas<br />

dimensões estruturantes do sist<strong>em</strong>a capitalista.<br />

Esta popularização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> leva-nos a questionar seu próprio<br />

“sucesso”. Será a sua vitali<strong>da</strong>de fruto de um esforço coletivo <strong>em</strong> busca <strong>da</strong><br />

valorização social de práticas considera<strong>da</strong>s “marginais”? E nos espaços<br />

educacionais institucionalizados, como ela deve se comportar? Será necessário<br />

amansá-la e amaciá-la para facilitar sua a<strong>da</strong>ptação às fronteiras disciplinares<br />

convencionais? Que tipo de trabalho é exigido para que ela se legitime nos espaços<br />

acadêmicos? O que deve ser apreendido de outros campos que possa contribuir<br />

para sua legitimação?<br />

321


Estas questões acompanham os pesquisadores desde a déca<strong>da</strong> de 1940,<br />

quando a <strong>capoeira</strong> começou a se propagar pelo Brasil inteiro. Entretanto, elas<br />

continuam bastante atuais. Seguramente, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que procuramos<br />

definir sua especifici<strong>da</strong>de, estar<strong>em</strong>os perguntando por que ela é importante. Quais<br />

são os desafios colocados para uma compreensão adequa<strong>da</strong> dessa importância?<br />

A partir <strong>da</strong> articulação entre formação, cultura, trabalho e pe<strong>da</strong>gogia, e<br />

tendo como referência a teoria revisita<strong>da</strong>/probl<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong> e a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de investiga<strong>da</strong>,<br />

consideramos que o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> espaços formais e<br />

não-formais de educação deve cont<strong>em</strong>plar aspectos significativos que estão para<br />

além de suas singulari<strong>da</strong>des, e <strong>em</strong> permanente articulação com os projetos político-<br />

pe<strong>da</strong>gógicos <strong>da</strong>s instituições educacionais <strong>em</strong> que estas experiências estão<br />

inseri<strong>da</strong>s.<br />

Mesmo que a <strong>capoeira</strong> venha se apresentando, <strong>em</strong> alguns casos, como<br />

“exuberante” conteúdo capaz de se contrapor às pe<strong>da</strong>gogias prescritivas e de<br />

assimilação, ela t<strong>em</strong> alcance reduzido quando a situamos no âmbito de uma<br />

disciplina acadêmica. É preciso ter <strong>em</strong> vista que o tratamento acadêmico <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> requer, necessariamente, uma ação pe<strong>da</strong>gógica fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> <strong>em</strong> teorias<br />

educacionais, de forma que o ensino não seja confundido com treinamento de<br />

acad<strong>em</strong>ias ou de grupos organizados, a pesquisa não seja confundi<strong>da</strong> com<br />

levantamento de opiniões e a extensão, com prestação de serviços. E que estes três<br />

pilares sejam indissociáveis entre si (conforme prescreve o Artigo 207 <strong>da</strong><br />

Constituição Federal do Brasil) e iluminados pelos projetos político-pe<strong>da</strong>gógicos <strong>da</strong>s<br />

instituições <strong>em</strong> que esta prática se insere.<br />

As referências de trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> ambientes<br />

não-formais de educação, por nós analisados, evidenciam que ela já não precisa<br />

322


mais de argumentos convincentes sobre suas possibili<strong>da</strong>des no campo educacional<br />

e não deve ser, pejorativamente, trata<strong>da</strong> como ativi<strong>da</strong>de de fundo de quintal.<br />

A questão pr<strong>em</strong>ente que se coloca neste estudo é como tratá-la no<br />

currículo acadêmico. De fato, as primeiras experiências de inserção dessa<br />

“disciplina” nesse contexto foram perm<strong>ea</strong><strong>da</strong>s de conflitos, no entanto, hoje já existe<br />

expressivo material teórico resultado de pesquisas, <strong>em</strong> vários campos do saber,<br />

capaz de <strong>da</strong>r quali<strong>da</strong>de ao trato com este conhecimento no currículo de formação<br />

profissional.<br />

Embora algumas iniciativas, r<strong>ea</strong>lmente sóli<strong>da</strong>s e comprometi<strong>da</strong>s, estejam<br />

<strong>em</strong> gestação no contexto <strong>da</strong> educação não-formal, e considerando a riqueza<br />

pe<strong>da</strong>gógica que o trato com esta manifestação cultural pode proporcionar, estas<br />

iniciativas ain<strong>da</strong> são bastante humildes no contexto de educação formal.<br />

6.2. A Universi<strong>da</strong>de Pública Brasileira e a Capoeira<br />

É fato que a Universi<strong>da</strong>de Pública Brasileira ain<strong>da</strong> continua, via de regra,<br />

desvincula<strong>da</strong> <strong>da</strong>s lutas sociais <strong>em</strong> geral e dos movimentos sociais, <strong>em</strong> particular,<br />

fechando-se <strong>em</strong> sua própria "excelência", deixando para segundo plano sua efetiva<br />

articulação com a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social dos menos favorecidos (a maioria <strong>da</strong> população<br />

brasileira). Entretanto, são os movimentos sociais engendrados por essa imensa<br />

massa que v<strong>em</strong> acenando, de forma dramática, com as suas mais imperiosas<br />

necessi<strong>da</strong>des. Por isso, a universi<strong>da</strong>de não deve se furtar a esse desafio, ela deve<br />

recuperar seu movimento milenar, como espaço privilegiado do exercício <strong>da</strong><br />

divergência, <strong>da</strong> diferença, do conflito, no processo de <strong>construção</strong> de conhecimento<br />

útil à maioria <strong>da</strong> população. Ao procurar manter uma sintonia fina com o movimento<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, a universi<strong>da</strong>de pública deve impl<strong>em</strong>entar ininterrupta crítica aos<br />

323


ditames e às pressões de grupos poderosos que, <strong>em</strong> nome do progresso, apostam<br />

no seu declínio. 96<br />

Além disso, o modelo de universi<strong>da</strong>de integra<strong>da</strong> e multifuncional, instituído<br />

por força <strong>da</strong> última reforma universitária (Lei 5.540, de 28 de nov<strong>em</strong>bro de 1968),<br />

não deixou de ser centralizador, sendo que muitas instituições <strong>em</strong>pregam o<br />

parâmetro <strong>em</strong>presarial de organização para justificar uma suposta modernização de<br />

conformação pirami<strong>da</strong>l que privilegia determina<strong>da</strong>s ár<strong>ea</strong>s e profissões. O<br />

depoimento de um ex-estu<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> disciplina de <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> UFBA serve para<br />

ilustrar essa r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de:<br />

Eu costumava dizer para os meus colegas que eu estava, desculpe a<br />

palavra, no (...) <strong>da</strong> cobra. Porque quando você está dentro <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia e você diz que faz ár<strong>ea</strong> três, as<br />

pessoas diz<strong>em</strong> logo: ou você pode fazer Direito, Comunicação ou<br />

Administração. Aí você diz: não, eu estou na Facul<strong>da</strong>de de Educação.<br />

Já começa a primeira discriminação. Dentro <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de<br />

Educação, você faz que curso? Educação Física. Outra<br />

discriminação, porque geralmente as pessoas enquadram as pessoas<br />

<strong>da</strong> Educação Física como aquele cara que é forte, burro e só faz<br />

malhar. A terceira discriminação é que dentro <strong>da</strong> Educação Física,<br />

você faz o quê? Os outros diz<strong>em</strong> personal trainer, essas coisas<br />

to<strong>da</strong>s, ativi<strong>da</strong>de física. E eu digo: eu faço <strong>capoeira</strong> e busco na<br />

Antropologia e na Educação as bases para o meu trabalho. Aí pronto;<br />

eu estou discriminado na enésima potência (Ex 2).<br />

Como não foi objetivo deste estudo r<strong>ea</strong>lizar uma análise pormenoriza<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de brasileira, cumpre aqui chamar a atenção para alguns aspectos<br />

fun<strong>da</strong>mentais que diz<strong>em</strong> respeito à organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico e ao trato<br />

com o conhecimento no campo <strong>da</strong> cultura corporal.<br />

96 No Brasil, havia 6.950 cursos <strong>em</strong> 1998, e <strong>em</strong> 2002, já somavam 14.399, um crescimento de 107%.<br />

Nesse período, foram abertos, <strong>em</strong> média, 1.490 cursos por ano, 124 ao mês ou quatro a ca<strong>da</strong> dia. A<br />

expansão ocorreu, principalmente, na rede priva<strong>da</strong>, que passou de 3.980 para 9.147 cursos e, agora,<br />

concentra 63,5% do total. Em 2002, estavam matriculados, nos cursos de graduação presenciais,<br />

3.479.913 alunos, cerca de 450 mil a mais que <strong>em</strong> 1998. Os <strong>da</strong>dos do Censo mostram que a rede<br />

priva<strong>da</strong> ampliou sua representativi<strong>da</strong>de <strong>em</strong> relação ao número de estu<strong>da</strong>ntes. Em 1998, as<br />

instituições particulares detinham 62% <strong>da</strong> matrícula, índice que subiu para 70%. Em cinco anos, o<br />

número de alunos cresceu 84% na rede priva<strong>da</strong> e 31% nas instituições públicas, mas apenas 9% <strong>da</strong><br />

população de 18 a 24 anos estão matriculados (INEP, 2003).<br />

324


A universi<strong>da</strong>de precisa “matricular” a cultura, a sensibili<strong>da</strong>de, nos seus<br />

programas, vez que ela se encontra bastante “sedentária”. A ela cabe, também,<br />

restabelecer o humano, destroçado pelas fragmentações de to<strong>da</strong>s as ordens que ela<br />

também contribuiu para consoli<strong>da</strong>r. É necessário que se liberte dos parâmetros<br />

cartesianos de produção do conhecimento. Ela precisa cont<strong>em</strong>plar, <strong>em</strong> seu bojo,<br />

to<strong>da</strong>s as formas de linguag<strong>em</strong> e não apenas a verbal e a escrita. E, ain<strong>da</strong>, deve<br />

tratar o ser humano <strong>em</strong> sua plenitude, e isso implica <strong>em</strong> questionar o “reducionismo<br />

economicista” a que ela se submeteu ao privilegiar a preparação de recursos<br />

humanos para o processo de produção. O depoimento de um dos professores de<br />

<strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> UFBA r<strong>em</strong>ete-nos para a importância dessa inserção:<br />

A gente t<strong>em</strong> que pensar que a universi<strong>da</strong>de t<strong>em</strong> que ser boa para o<br />

indivíduo, para formá-lo enquanto sujeito, ser humano, independente<br />

de sua vi<strong>da</strong> profissional. Eu acho que a <strong>capoeira</strong>, ela pode trabalhar<br />

com essa auto<strong>construção</strong> do sujeito. Uma <strong>construção</strong> dentro dele<br />

mesmo, pessoal, né, que vai interagir nesse mundo de contradições e<br />

também como el<strong>em</strong>ento de formação do futuro profissional. E aí eu<br />

vejo que a <strong>capoeira</strong> é rica de possibili<strong>da</strong>des, o que a gente está<br />

chamando hoje de interferências (C2).<br />

O ser humano desenvolve-se de forma integra<strong>da</strong>. Ele não desenvolve o<br />

corpo para depois desenvolver a cabeça. O desenvolvimento humano é<br />

concomitante e está imerso na cultura que lhe dá sentido e significado. N<strong>em</strong> o<br />

intelecto, n<strong>em</strong> o corpo pod<strong>em</strong> estar à frente do humano. O hom<strong>em</strong> deve ser<br />

educado na sua inteireza, ele é cultura, é sentimento, é <strong>em</strong>oção. Ele não é uma<br />

“grandeza físico-mat<strong>em</strong>ática” (Pistrak, 1976, p. 245), e uma dinâmica que mexe com<br />

o intelecto, mexe com o corpo, mexe com o indivíduo, mexe com a socie<strong>da</strong>de e<br />

mexe com to<strong>da</strong> a espécie.<br />

Os desafios colocados pelo movimento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de atual requer<strong>em</strong> <strong>da</strong><br />

universi<strong>da</strong>de a incorporação de dinâmicas que lev<strong>em</strong> <strong>em</strong> consideração os motivos<br />

pelos quais a maioria <strong>da</strong> população não se beneficia de seus programas. A inserção<br />

325


<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> nos currículos universitários representa um fato novo que pode<br />

contribuir para uma reflexão <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> necessária superação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de de<br />

classe. Entretanto, como argumentou o professor de <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> UFBA, citado há<br />

pouco, “botar a <strong>capoeira</strong> para dizer que vai ser o resgate <strong>da</strong> cultura, não é muito por<br />

ai. T<strong>em</strong> que ter uma certa contextualização” (C2). É certo que a simples inserção <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> nos currículos universitários não implica numa suposta d<strong>em</strong>ocratização do<br />

currículo. É preciso compreender que, a depender <strong>da</strong> sua forma de tratamento<br />

(desarticulação entre ensino, pesquisa e extensão), ela pode representar um celeiro<br />

onde os códigos e valores mais autoritários e arbitrários presentes na socie<strong>da</strong>de se<br />

prolifer<strong>em</strong>.<br />

A universi<strong>da</strong>de deve se preocupar <strong>em</strong> integrar os conhecimentos nela<br />

produzidos, respeitando suas especifici<strong>da</strong>des, a partir <strong>da</strong> criação de um sist<strong>em</strong>a<br />

mais d<strong>em</strong>ocrático e menos burocrático, que conceba o currículo como um campo<br />

s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> aberto.<br />

Saviani (2000) distingue duas possibili<strong>da</strong>des de relação <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de<br />

com a cultura. Uma relação reifica<strong>da</strong>, que privilegia a “cultura erudita” e vira as costas<br />

para a “cultura popular”, e uma relação humaniza<strong>da</strong>, que reconhece as complexas<br />

relações que essas “culturas” mantêm entre si. Nessa perspectiva, a universi<strong>da</strong>de<br />

deve “examinar como, num processo contraditório, elas se entrelaçam constituindo o<br />

todo social e apontando para um fundo comum onde se pode captar a essência do<br />

processo cultural enquanto modo historicamente determinado de produção <strong>da</strong><br />

existência concreta dos homens” (ibid., p. 83).<br />

Numa relação humaniza<strong>da</strong>, ao identificar que a própria oposição entre<br />

“cultura erudita” e “cultura popular” expressa a reificação <strong>da</strong> cultura, a universi<strong>da</strong>de<br />

percebe um fundo cultural comum que constitui o modo historicamente determinado de<br />

326


produção <strong>da</strong> existência humana. Numa relação reifica<strong>da</strong>, a universi<strong>da</strong>de não consegue<br />

fazer a distinção entre a forma e o conteúdo <strong>da</strong> cultura, uma vez que, como sab<strong>em</strong>os,<br />

um conteúdo erudito pode se expressar de forma popular e vice-versa.<br />

Ao considerar a possibili<strong>da</strong>de humanizadora na sua relação com a cultura, a<br />

universi<strong>da</strong>de brasileira se desencarna do modelo tecnocrático que a gerou e passa a<br />

ser um instrumento de r<strong>ea</strong>lização <strong>da</strong>s aspirações populares. Nessa perspectiva,<br />

conteúdos culturais “populares” e “eruditos” encontrariam espaço para ser<strong>em</strong><br />

exercitados d<strong>em</strong>ocraticamente.<br />

A partir dessas considerações, pod<strong>em</strong>os afirmar que a relação <strong>da</strong><br />

universi<strong>da</strong>de com a <strong>capoeira</strong> deve ser <strong>da</strong>r na perspectiva humanizadora, integrando-a<br />

a tantas outras manifestações culturais, e considerando que o mais importante é a<br />

identificação <strong>da</strong> essência cultural, ou seja, do “fundo cultural comum”, que constitui a<br />

produção <strong>da</strong> existência concreta dos homens. Para chegar a essência <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>,<br />

teríamos que analisar como ela é produzi<strong>da</strong>. Certamente, teríamos, a partir <strong>da</strong>í, a<br />

possibili<strong>da</strong>de de identificar esse fundo cultural comum (a produção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>). A não<br />

observância do mesmo tende a ofuscar as visões mais atentas na aparência do que na<br />

essência dessa manifestação.<br />

6.3. A Capoeira no Currículo: A Perspectiva <strong>da</strong> Práxis Capoeirana e a<br />

Possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Capoeira como Complexo T<strong>em</strong>ático<br />

É possível afirmar que o tratamento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como disciplina curricular<br />

surge como uma possibili<strong>da</strong>de de aproximação <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de com as chama<strong>da</strong>s<br />

manifestações culturais.<br />

Ao se inserir no currículo, como disciplina aplica<strong>da</strong>, propugnamos que a<br />

<strong>capoeira</strong> deva ser concebi<strong>da</strong> como <strong>práxis</strong> (<strong>capoeira</strong>na) e trata<strong>da</strong> como um complexo<br />

t<strong>em</strong>ático essencialmente interdisciplinar <strong>em</strong> coerência com o seu próprio movimento<br />

327


histórico, uma vez que, ao longo de seu desenvolvimento, ela v<strong>em</strong> se consoli<strong>da</strong>ndo<br />

como um amálgama onde se entrecruzam pressupostos de várias ár<strong>ea</strong>s do<br />

conhecimento, como História, Antropologia, Sociologia, Psicologia, Filosofia e<br />

Educação Física. Por isso, ela deve assumir a condição de um “complexo” (Pistrak,<br />

1981) s<strong>em</strong> uma especifici<strong>da</strong>de epist<strong>em</strong>ológica.<br />

A disciplina <strong>capoeira</strong>, trata<strong>da</strong> como complexo t<strong>em</strong>ático, na perspectiva <strong>da</strong><br />

<strong>práxis</strong>, não deve se materializar como uma simples soma dos aportes teóricos de<br />

várias ár<strong>ea</strong>s do conhecimento. Ela deve ser dota<strong>da</strong> de uma totali<strong>da</strong>de e de uma<br />

particulari<strong>da</strong>de e operar <strong>em</strong> um nível qualitativo diferente <strong>da</strong>quele <strong>da</strong>s ár<strong>ea</strong>s que lhe<br />

dão suporte. A teoria <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> deve articular as experiências práticas e concretas<br />

dos próprios <strong>capoeira</strong>s com os aportes teóricos mais gerais que explicam a<br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social. Ou seja, ela não será formula<strong>da</strong> pelo psicólogo, sociólogo ou<br />

pe<strong>da</strong>gogo <strong>da</strong> vez, mas se consoli<strong>da</strong>rá a partir de uma articulação interdisciplinar <strong>da</strong>s<br />

diversas referências teóricas <strong>em</strong> relação dialética com a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de concreta.<br />

Pod<strong>em</strong>os afirmar, bas<strong>ea</strong>ndo-nos <strong>em</strong> Freitas (2000) e Pistrak (1981), que a<br />

<strong>capoeira</strong> inseri<strong>da</strong> no currículo de formação profissional como um complexo t<strong>em</strong>ático<br />

se impregna de responsabili<strong>da</strong>de social, ou seja, se vincula à solução de probl<strong>em</strong>as<br />

concretos sob o marco de uma instituição social. Não se trata, portanto, apenas de<br />

um conteúdo meramente técnico e específico desarticulado <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social.<br />

Para que isso se materializa efetivamente, dev<strong>em</strong>os levar <strong>em</strong><br />

consideração a necessária articulação de sua “didática” específica com a “didática”<br />

geral. A negação de estreitas relações entre conteúdos específicos e processos<br />

metodológicos e organizacionais mais amplos contribui para a desarticulação <strong>da</strong><br />

teoria pe<strong>da</strong>gógica geral. Segundo Saviani (2000, p. 61),<br />

Ao invés de ‘especialistas’ <strong>em</strong> determina<strong>da</strong> habilitação restrita, aquilo<br />

de que r<strong>ea</strong>lmente estamos necessitando é de educadores com uma<br />

328


sóli<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mentação teórica desenvolvi<strong>da</strong> a partir e <strong>em</strong> função <strong>da</strong>s<br />

exigências <strong>da</strong> ação educativa nas condições brasileiras.<br />

Nesse sentido, os aspectos específicos (oriundos do conteúdo que está<br />

sendo ensinado) e os aspectos gerais ou princípios nort<strong>ea</strong>dores <strong>da</strong> teoria<br />

pe<strong>da</strong>gógica dev<strong>em</strong> estar s<strong>em</strong>pre articulados, à medi<strong>da</strong> que, segundo Freitas (2000),<br />

é possível identificar, <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> “didática específica”, el<strong>em</strong>entos comuns os quais<br />

seriam objeto <strong>da</strong> “didática geral”, ou seja, <strong>da</strong> teoria pe<strong>da</strong>gógica.<br />

Sendo assim, o complexo t<strong>em</strong>ático <strong>capoeira</strong>no trata o conhecimento <strong>em</strong><br />

sua estreita vinculação com a prática social. Este conhecimento se torna útil à<br />

medi<strong>da</strong> que, com base nele, o hom<strong>em</strong> pode transformar a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de. Ele é útil<br />

porque é ver<strong>da</strong>deiro e não inversamente, ver<strong>da</strong>deiro porque é útil, como defende o<br />

pragmatismo.<br />

Segundo Vázquez (1986, p. 213):<br />

Enquanto para o marxismo a utili<strong>da</strong>de é conseqüência <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e<br />

não o seu fun<strong>da</strong>mento ou essência, para o pragmatismo a ver<strong>da</strong>de fica<br />

subordina<strong>da</strong> à utili<strong>da</strong>de, entendi<strong>da</strong> esta como eficácia ou êxito <strong>da</strong> ação<br />

do hom<strong>em</strong>, concebi<strong>da</strong> esta última, por sua vez, como ação subjetiva,<br />

individual e não como ativi<strong>da</strong>de material, objetiva, transformadora.<br />

Diante destas argumentações, procuramos conceber a disciplina <strong>capoeira</strong><br />

como um complexo t<strong>em</strong>ático articulado com o conceito de <strong>práxis</strong> e mediado por<br />

conhecimento útil, construído <strong>em</strong> função <strong>da</strong> transformação <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social, com<br />

vistas à promoção do hom<strong>em</strong>. Esta disciplina somente será útil, se for capaz de<br />

contribuir para a formação de profissionais com agu<strong>da</strong> consciência <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de <strong>em</strong><br />

que vão atuar, com adequa<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mentação teórica que lhes permitirão ações<br />

coerentes e consistentes, e com uma satisfatória instrumentalização técnica que<br />

lhes possibilitarão ações eficazes.<br />

Em contraposição às pe<strong>da</strong>gogias prescritivas e de assimilação, <strong>em</strong> que o<br />

estu<strong>da</strong>nte vai à escola ou universi<strong>da</strong>de aprender representações, conceitos e<br />

329


conteúdos previamente determinados pelo professor, a pe<strong>da</strong>gogia fun<strong>da</strong>menta na<br />

<strong>práxis</strong> e materializa<strong>da</strong> como complexo t<strong>em</strong>ático, sob o aporte <strong>da</strong> experimentação, <strong>da</strong><br />

probl<strong>em</strong>atização, <strong>da</strong> teorização e <strong>da</strong> re<strong>construção</strong> coletiva do conhecimento,<br />

constitui-se numa possibili<strong>da</strong>de de crítica social sobre a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de destrutiva do<br />

sist<strong>em</strong>a capitalista que incide sobre o geral e o particular, o coletivo e o individual.<br />

Por meio dessa <strong>práxis</strong>, qualifica<strong>da</strong> pela noção de complexo t<strong>em</strong>ático, os sujeitos,<br />

referenciados por outro projeto histórico, são levados a experimentar, probl<strong>em</strong>atizar,<br />

teorizar e reconstruir coletivamente essa mesma r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de e, ao fazê-la,<br />

reconstro<strong>em</strong> a si mesmos.<br />

Consideramos que a ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>, por si só, não garante o<br />

esclarecimento e a superação <strong>da</strong>s condições de alienação <strong>em</strong> que se insere<br />

expressivo número de praticantes, evidenciando, desta forma, os limites<br />

<strong>em</strong>ancipatórios de uma ativi<strong>da</strong>de trata<strong>da</strong> de forma imediatista, utilitarista, s<strong>em</strong> uma<br />

relação dialética com a totali<strong>da</strong>de. Saviani (2000, p. 20) nos alerta que n<strong>em</strong> to<strong>da</strong><br />

ação pressupõe necessariamente uma reflexão. “Pod<strong>em</strong>os agir s<strong>em</strong> refletir (<strong>em</strong>bora<br />

não nos seja possível agir s<strong>em</strong> pensar)”. Daí a necessi<strong>da</strong>de de desenvolvermos a<br />

consciência histórica e a reflexão filosófica para percebermos as necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, pois “quanto mais adequado for o nosso conhecimento <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, tanto<br />

mais adequados serão os meios de que dispomos para agir sobre ela” (ibid., p. 58).<br />

Destacar<strong>em</strong>os, a seguir, os el<strong>em</strong>entos que consubstanciam o conceito de<br />

<strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na, qualificado pela noção de complexo t<strong>em</strong>ático, como possibili<strong>da</strong>de<br />

pe<strong>da</strong>gógica para o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo de formação<br />

profissional.<br />

1. A <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na trata a <strong>capoeira</strong> como um “complexo” (PISTRAK,<br />

1981) que, ao se articular com outros “complexos”, como elos de uma mesma<br />

330


corrente, revela as relações r<strong>ea</strong>is fun<strong>da</strong>mentais do processo de produção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e<br />

conduz à compreensão <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social. Se, na prática concreta <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong><br />

intersecionam aspectos psicológicos, políticos, culturais, econômicos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>em</strong><br />

socie<strong>da</strong>de, ela deve ser experimenta<strong>da</strong>, probl<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong>, teoriza<strong>da</strong> e reconstruí<strong>da</strong><br />

coletivamente, a partir <strong>da</strong> análise <strong>da</strong>s condições objetivas de vi<strong>da</strong> dos sujeitos<br />

envolvidos, do tipo de trabalho que eles r<strong>ea</strong>lizam, do que eles se alimentam, como<br />

eles cui<strong>da</strong>m <strong>da</strong> saúde individual e coletiva, como eles se relacionam com os seus<br />

familiares e amigos, o que eles faz<strong>em</strong> durante o t<strong>em</strong>po livre e como eles lutam<br />

contra a exploração de sua força de trabalho.<br />

2. A <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na, ao adotar como pressuposto a totali<strong>da</strong>de concreta<br />

(KOSIK, 1976), quebra, efetivamente, com as pseudo-hierarquias e estabelece uma<br />

relação de ensino-aprendizag<strong>em</strong> centra<strong>da</strong> na ação dialógica e não na lógica <strong>da</strong><br />

ord<strong>em</strong>, do comando, <strong>da</strong> prescrição, do autoritarismo, muitas vezes velados e sutis,<br />

mas, n<strong>em</strong> por isso, menos perversos. A negação de pseudo-hierarquias (típicas do<br />

mundo <strong>da</strong> pseudoconcretici<strong>da</strong>de), implica no fato de que o mestre (o professor) não<br />

precisa de discípulos fiéis e seguidores, mas <strong>da</strong> inserção fraterna de todos <strong>em</strong><br />

articula<strong>da</strong>s redes de intercâmbios <strong>em</strong> torno de probl<strong>em</strong>áticas significativas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

respeitando as características, os acúmulos, as virtudes e limitações de ca<strong>da</strong><br />

integrante do processo educativo, exigindo assim, interativi<strong>da</strong>des múltiplas. É<br />

preciso escapar <strong>da</strong> lógica <strong>em</strong> que o mestre (o professor) expõe, explica e interroga,<br />

e os discípulos escutam, compreend<strong>em</strong> e respond<strong>em</strong>, e trabalhar na lógica <strong>da</strong> auto-<br />

organização <strong>em</strong> que, organicamente, os envolvidos no processo educativo tenham<br />

experiências <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des do trabalho pe<strong>da</strong>gógico.<br />

331


3. A <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na reconhece a autori<strong>da</strong>de do coletivo, pois na ro<strong>da</strong><br />

de <strong>capoeira</strong>, “ca<strong>da</strong> um t<strong>em</strong> o seu <strong>jogo</strong>, mas a joga<strong>da</strong> é coletiva” 97 . Ela refuta<br />

esqu<strong>em</strong>atismos abstratos e opera na lógica <strong>da</strong> dinamici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> organici<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

cultura que, por sua vez, pressupõe o exame rigoroso <strong>da</strong>s determinações sócio-<br />

econômicas sobre os saberes/fazeres desta cultura e a articulação de<br />

procedimentos pe<strong>da</strong>gógicos, para a superação de estágios de compreensão do<br />

senso comum, a partir de aportes teóricos explicativos, articulados entre si, e<br />

construídos a partir de reflexões dialogicamente media<strong>da</strong>s sobre o cotidiano <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong> e intermedia<strong>da</strong>s por formas ativas e criativas de produção de<br />

conhecimento sobre a t<strong>em</strong>ática.<br />

4. Por via <strong>da</strong> <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na a história <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> é trata<strong>da</strong> na sua<br />

essência dinâmica, evitando, assim, a sua id<strong>ea</strong>lização e a sua mitificação e<br />

contribuindo para que seus praticantes não se sintam alheios ao passado ao qual<br />

estão inextricavelmente vinculados, mas sim, como partícipes de um presente<br />

histórico e não imersos numa espécie de “presente contínuo” (HOBSBAWM, 1995).<br />

Esta questão é de importância crucial à medi<strong>da</strong> que, via de regra, se verifica uma<br />

compreensão reduzi<strong>da</strong> <strong>da</strong> história <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, expressa por uma preocupação<br />

meramente biográfica, <strong>em</strong> que muitos acreditam que conhecer a história <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong><br />

é saber o nome de alguns mestres consagrados e os seus <strong>da</strong>dos cronológicos.<br />

Nesses termos, terminam por tratar a história <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> de forma mitifica<strong>da</strong>,<br />

descontextualiza<strong>da</strong>, enviesa<strong>da</strong>, s<strong>em</strong> a necessária acui<strong>da</strong>de política, cujos fatos<br />

sociais e a conjuntura são abafados, entorpecidos ou inseridos no mesmo plano dos<br />

miúdos acontecimentos e casos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong>.<br />

97<br />

Como apontou um dos integrantes do Projeto ACC, <strong>em</strong> mensag<strong>em</strong> encaminha<strong>da</strong> ao grupo de<br />

discussão “Pé de Berimbau”.<br />

332


5. Por intermédio <strong>da</strong> <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na, t<strong>em</strong>as sobre tradição, cultura e<br />

política são probl<strong>em</strong>atizados, a fim de permitir o acesso dos envolvidos no processo<br />

pe<strong>da</strong>gógico aos conceitos e técnicas que favoreçam a leitura crítica <strong>da</strong>s mensagens<br />

subliminares dos discursos, como forma de buscar<strong>em</strong>, através do diálogo, o<br />

esclarecimento frente a uma r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de complexa, dinâmica e contraditória.<br />

6. Por meio <strong>da</strong> <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na, as diferentes possibili<strong>da</strong>des<br />

metodológicas são articula<strong>da</strong>s, de forma equilibra<strong>da</strong>, para fazer frente ao alto grau<br />

de complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> cultura <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, <strong>em</strong> busca de fun<strong>da</strong>mentações conceituais<br />

e instrumentais que possibilit<strong>em</strong> uma leitura/análise s<strong>em</strong> sectarismos <strong>em</strong> relação a<br />

esta manifestação, e que seja capaz de fazer com que, dialeticamente, a teoria<br />

aponte caminhos e seja, igualmente, reconstruí<strong>da</strong> pela prática, alça<strong>da</strong> ao nível <strong>da</strong><br />

consciência filosófica.<br />

7. Através <strong>da</strong> <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na o “saber fazer” do mestre (ou professor) é<br />

valorizado e consubstanciado na lógica do artífice, do artesão, que utiliza as mais<br />

varia<strong>da</strong>s opções disponíveis no seu cotidiano para atender suas necessi<strong>da</strong>des<br />

humanas e as <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que ele está inserido. Com isso, evita que sua<br />

força de trabalho se transforme, pelo estranhamento, <strong>em</strong> “mercadoria” que o aliena e<br />

o escraviza.<br />

8. A <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na reconhece que to<strong>da</strong> prática cultural é dota<strong>da</strong> de<br />

sentido/significado para qu<strong>em</strong> a r<strong>ea</strong>liza. Não se trata de uma doação ou um<br />

recebimento, mas de uma <strong>construção</strong> <strong>da</strong> qual ca<strong>da</strong> um se apropria de forma distinta<br />

e na qual imprime a sua marca, a partir <strong>da</strong> intensi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> relação que mantém com<br />

ela. Daí, que a mediação para essa <strong>construção</strong> requer, necessariamente,<br />

intersubjetivi<strong>da</strong>de.<br />

333


9. Ao ser trata<strong>da</strong> na perspectiva <strong>da</strong> <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na, a <strong>capoeira</strong> jamais<br />

pode ser admiti<strong>da</strong> como um “pacote” de enunciados e fun<strong>da</strong>mentos a ser<strong>em</strong><br />

defendidos e domesticados, n<strong>em</strong> tampouco, como um tesouro a ser protegido dos<br />

<strong>da</strong>nos do t<strong>em</strong>po, mas como um complexo t<strong>em</strong>ático que não começa e n<strong>em</strong> termina<br />

nele mesmo e que, ao transformar os interesses, <strong>em</strong>oções individuais e<br />

particulari<strong>da</strong>des psicológicas <strong>em</strong> fatos sociais comprometidos com a transformação<br />

<strong>da</strong>s condições de produção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, promove alterações significativas.<br />

10. Media<strong>da</strong> pelo conceito de <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na, a <strong>capoeira</strong> passa a ser<br />

trata<strong>da</strong> como uma ação cultural cuja totali<strong>da</strong>de concreta constitui uma síntese de<br />

múltiplas determinações <strong>em</strong> <strong>jogo</strong>. Este tratamento exige intercâmbio, participação<br />

ativa e diálogo constante para se atingir não um conhecimento qualquer, imaginado<br />

pelo mestre ou professor, mas um conhecimento extraído <strong>da</strong> prática social,<br />

necessário à transformação <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de e à superação do modelo societal<br />

heg<strong>em</strong>ônico.<br />

Em síntese, mesmo que o conceito de <strong>práxis</strong> possa sugerir um campo<br />

infinito de possibili<strong>da</strong>des, a <strong>capoeira</strong> concebi<strong>da</strong> como tal e trata<strong>da</strong> como complexo<br />

t<strong>em</strong>ático, não deve ser confundi<strong>da</strong> com um ecletismo cômodo ou um hibridismo<br />

conciliador. Ela deve “jogar” com conceitos mais elásticos, s<strong>em</strong>, no entanto, perder-<br />

se <strong>em</strong> generalizações vagas e apressa<strong>da</strong>s, ou lugares-comuns, que apenas serv<strong>em</strong><br />

para legitimar doutrinas heg<strong>em</strong>ônicas.<br />

Por fim, cumpre aqui destacar que as experiências analisa<strong>da</strong>s, <strong>em</strong> cotejo<br />

com a teoria, pod<strong>em</strong> contribuir para o desenvolvimento qualitativo <strong>da</strong> prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica, não só para pensá-la, mas, fun<strong>da</strong>mentalmente, para transformá-la por<br />

meio de ações coletivas auto-determina<strong>da</strong>s e auto-organiza<strong>da</strong>s, <strong>em</strong> sintonia com o<br />

projeto histórico superador do sist<strong>em</strong>a do sociometabolismo do capital.<br />

334


“IÊ...VAMOS EMBORA... CAMARÁ”<br />

CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES<br />

Este estudo foi r<strong>ea</strong>lizado <strong>em</strong> meio a uma grande ebulição social que<br />

marcou o início de novo século e novo milênio, com um mundo ca<strong>da</strong> vez mais<br />

sujeito à ditadura do capital e sua tendência a destruir forças produtivas. Se o<br />

passado era retomado e probl<strong>em</strong>atizado como referência para pensar um futuro<br />

melhor, o presente ia se desdobrando, muitas vezes, de forma muito assustadora.<br />

Mas, como o presente (r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de) é s<strong>em</strong>pre contraditório, está s<strong>em</strong>pre<br />

sobrecarregado de passado e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, s<strong>em</strong>pre grávido de futuro<br />

(possibili<strong>da</strong>des), não nos limitamos a interpretar passivamente o que se apresentava<br />

diante de nós, de maneira imediata. Este procedimento não nos capacitaria a fazer<br />

uma distinção crítica e conseqüente, entre os el<strong>em</strong>entos de manutenção, que<br />

“amarram” os fatos e as coisas, e os el<strong>em</strong>entos de superação, que os impulsionam<br />

<strong>em</strong> direção à <strong>construção</strong> do novo. Aprend<strong>em</strong>os, neste percurso investigativo, que o<br />

ser humano só pode se libertar <strong>da</strong>s armadilhas de uma “continui<strong>da</strong>de hipostasia<strong>da</strong>”<br />

(KONDER, 1992) se assumir uma postura “prático-crítica”, que lhe permita<br />

identificar, nas frestas <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, as possibili<strong>da</strong>des de concretização do novo.<br />

À medi<strong>da</strong> que assumíamos uma postura prático-crítica diante <strong>da</strong><br />

r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de, comprometíamo-nos com o que estava sendo construído e nos<br />

engajávamos na luta, que faz parte do <strong>jogo</strong> (que a vi<strong>da</strong> é), <strong>em</strong> busca <strong>da</strong><br />

concretização do porvir, que faz parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> (que também é <strong>jogo</strong>). Parodiando<br />

Marx, gostaríamos de destacar que, além de interpretar a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de de diferentes<br />

maneiras, íamos agindo e interagindo, organicamente, com vistas a transformar<br />

essa mesma r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de.<br />

335


As posições teóricas aqui assumi<strong>da</strong>s, assim como as ações<br />

impl<strong>em</strong>enta<strong>da</strong>s e as reflexões por elas suscita<strong>da</strong>s, são impregna<strong>da</strong>s de uma mesma<br />

convicção – a irrenunciável e impostergável necessi<strong>da</strong>de de superação <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de de classes. A experiência histórica <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> explicita,<br />

concomitant<strong>em</strong>ente, as perversi<strong>da</strong>des que uma socie<strong>da</strong>de de classes é capaz de<br />

produzir e o engajamento político de muitos dos seus sujeitos na luta pela sua<br />

superação. Com isso, ela aponta para uma necessária perspectiva que procure<br />

igualar os homens a partir do combate aos mecanismos utilizados pela socie<strong>da</strong>de<br />

de classes para diferenciá-los e, simultan<strong>ea</strong>mente, diferenciar os homens,<br />

contestando os mecanismos utilizados pela socie<strong>da</strong>de de massas para igualá-los.<br />

Após este labiríntico percurso científico, através do qual, nos foi possível<br />

explicitar a complexi<strong>da</strong>de deste fenômeno <strong>da</strong> cultura corporal, pod<strong>em</strong>os afirmar que<br />

a, outrora, “ginástica degenerativa”, exercita<strong>da</strong> por seres humanos que na<strong>da</strong> tinham<br />

(ou eram) a não ser o seu corpo, ultrapassou barreiras (geográficas) e fronteiras<br />

(identitárias), e v<strong>em</strong> se apresentando, à luz de pesquisas sociológicas,<br />

antropológicas, históricas e educacionais, como uma exuberante prática significativa<br />

para “home, minino e mulé” (estrofe de cantiga de <strong>capoeira</strong> de domínio público) do<br />

século XXI.<br />

O fato é que, hoje <strong>em</strong> dia, ela se configura como manifestação de grande<br />

densi<strong>da</strong>de, diversi<strong>da</strong>de, visibili<strong>da</strong>de e poder simbólico, o que, de certa forma, lhe<br />

garante uma certa autonomia, à medi<strong>da</strong> que, no seu desenvolvimento histórico, ela<br />

consolidou uma cultura <strong>capoeira</strong>na capaz de seduzir povos de diversas origens e<br />

hábitos distintos.<br />

Pud<strong>em</strong>os verificar que, tal como outras práticas significativas, a <strong>capoeira</strong> é<br />

condiciona<strong>da</strong> por valores e regras sociais que pod<strong>em</strong> transformá-la <strong>em</strong> heroína ou<br />

336


vilã. Como <strong>construção</strong> social, que permanent<strong>em</strong>ente se manifesta, e como<br />

manifestação cultural que permanent<strong>em</strong>ente se constrói, ela é influencia<strong>da</strong> pelo<br />

t<strong>em</strong>po histórico <strong>em</strong> que se situa, mas também, edifica<strong>da</strong> a partir dos interesses e<br />

<strong>da</strong>s ações dos sujeitos que, através dela, atuam e disputam poder na socie<strong>da</strong>de.<br />

Embora uma parcela significativa <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> a trate como símbolo étnico<br />

(<strong>capoeira</strong> é brasileira! <strong>capoeira</strong> é africana! <strong>capoeira</strong> é afro-brasileira!), este estudo<br />

nos leva a pensá-la como uma prática social com status de patrimônio cultural <strong>da</strong><br />

humani<strong>da</strong>de e, por esse motivo, um direito social inalienável de qualquer ser<br />

humano que se sinta atraído pelo seu “axé”. Nesse sentido, ela não t<strong>em</strong> pátria, nos<br />

mesmos termos <strong>em</strong> que aludia Marx sobre os trabalhadores do mundo inteiro: “os<br />

operários não t<strong>em</strong> pátria”. Ad<strong>em</strong>ais, o próprio conceito de <strong>práxis</strong>, exaustivamente<br />

retratado neste estudo, não se coaduna com a perspectiva privatista dos bens<br />

culturais construídos pela humani<strong>da</strong>de. E, ain<strong>da</strong>, o conceito de cultura, aqui também<br />

tratado, não concebe a <strong>capoeira</strong> como fenômeno reificado, ou seja, uma coisa<br />

existente <strong>em</strong> si e por si, que pode estar <strong>em</strong> qualquer lugar s<strong>em</strong> ser de algum lugar.<br />

A <strong>capoeira</strong> é pratica<strong>da</strong> (<strong>em</strong> ação e reflexão) por homens e mulheres, e aí<br />

está um princípio ontológico, cultural. E a essência <strong>da</strong> cultura consiste no processo<br />

de produção, conservação e reprodução de instrumentos, idéias e técnicas. As<br />

diferenciações culturais se dão pelas características que revert<strong>em</strong> os fenômenos e<br />

pelo sentido que os sujeitos apreend<strong>em</strong> dele.<br />

A <strong>capoeira</strong> perdeu, portanto a marca de cultura local. Ela não é uma “ilha<br />

cultural” que se explica por si e para si. Ela somente poderá ser compreendi<strong>da</strong> <strong>em</strong><br />

sua totali<strong>da</strong>de a partir <strong>da</strong> noção de uni<strong>da</strong>de cultural, ou seja, de um fundo cultural<br />

comum, através do qual pode-se captar a essência <strong>da</strong> produção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de homens<br />

e mulheres concretos.<br />

337


Os <strong>da</strong>dos deste estudo nos levam a depreender que os dil<strong>em</strong>as<br />

particulares (o particular) engendrados numa determina<strong>da</strong> prática relacionam-se<br />

com os dil<strong>em</strong>as mais amplos presentes na socie<strong>da</strong>de (o geral), por isso, a nossa<br />

utopia pe<strong>da</strong>gógica centra-se na possibili<strong>da</strong>de de <strong>construção</strong> de uma <strong>práxis</strong><br />

<strong>capoeira</strong>na na perspectiva dos direitos sociais, que cultive o interculturalismo<br />

planetário a partir de protagonismos ativos, com vistas à superação <strong>da</strong> contradição<br />

fun<strong>da</strong>mental entre trabalho e capital.<br />

A principal luta do <strong>capoeira</strong>, nos dias de hoje não deve ser contra um<br />

determinado feitor, individualmente, como acontecia antigamente, n<strong>em</strong> tampouco,<br />

contra outros praticantes de <strong>capoeira</strong>; a luta <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> deve ser contra todo e<br />

qualquer tipo de opressão, discriminação e pela <strong>construção</strong> de uma socie<strong>da</strong>de<br />

universal efetivamente justa, livre e d<strong>em</strong>ocrática.<br />

A integração/dissimulação <strong>jogo</strong>-luta-<strong>da</strong>nça deve se encarregar de atender,<br />

na ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>, as necessi<strong>da</strong>des de interação, fantasia, estética, e, na ro<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, as necessi<strong>da</strong>des de justiça, cooperação, soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, digni<strong>da</strong>de e paz.<br />

No primeiro capítulo, ao discorrermos sobre aspectos do desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, procuramos explicitar, no seu complexo movimento, os nexos e os<br />

determinantes históricos que a consoli<strong>da</strong>ram como uma prática inseri<strong>da</strong> no chamado<br />

“mundo globalizado”. Em relação a esse capítulo, pod<strong>em</strong>os fazer as seguintes<br />

considerações:<br />

1. A <strong>capoeira</strong> consolidou-se como manifestação interétnica e o seu processo<br />

de internacionalização verificado a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970, não<br />

aniquilou a participação de sujeitos políticos no campo cultural, mas, sim,<br />

criou para eles novos desafios. As redes forma<strong>da</strong>s por alguns grupos vêm<br />

d<strong>em</strong>onstrando que é possível se contrapor “de baixo para cima”, mesmo<br />

338


que de forma heterogên<strong>ea</strong> e <strong>em</strong> contextos restritos, à lógica destrutiva <strong>da</strong><br />

dominação cultural.<br />

2. Os grandes grupos responsáveis pelo atual processo de expansão <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, apesar de promover<strong>em</strong> uma intensa dinamização dessa<br />

manifestação cultural, têm diss<strong>em</strong>inado uma estética crescent<strong>em</strong>ente<br />

performática, alimenta<strong>da</strong> pelos veículos de comunicação que reproduz<strong>em</strong><br />

os interesses do capital e pod<strong>em</strong> ser inseridos no rol <strong>da</strong>s corporações<br />

transnacionais que se afinam, técnica e operacionalmente, com os<br />

preceitos comerciais que orientam as grandes <strong>em</strong>presas (franquias,<br />

merchandising, monopólios, oligopólios).<br />

3. Embora a <strong>capoeira</strong> venha sendo efetivamente ressignifica<strong>da</strong> por força <strong>da</strong><br />

tendência à destruição, que incita a ganância, induz à pobreza e instila o<br />

desespero, contraditoriamente, ela v<strong>em</strong> operando uma espécie de<br />

“revolução silenciosa” à medi<strong>da</strong> que significativa parte de seus sujeitos<br />

históricos insere-se <strong>em</strong> redes e ações de intervenção social que se<br />

confronta, através de programas de “contrapontos”, com a lógica de<br />

marcado que se diss<strong>em</strong>inou no mundo cont<strong>em</strong>porâneo. É possível<br />

afirmar que são construídos, no interior do seu movimento, processos<br />

identitários a partir de singulari<strong>da</strong>des culturais, com sujeitos controlando<br />

suas próprias vi<strong>da</strong>s e ambientes.<br />

4. A partir <strong>da</strong> análise do seu desenvolvimento histórico, pod<strong>em</strong>os confirmar<br />

que não existe uma finali<strong>da</strong>de essencial <strong>em</strong>buti<strong>da</strong> nas entranhas dos seus<br />

fun<strong>da</strong>mentos. Nos dias de hoje, ela t<strong>em</strong> sido trata<strong>da</strong>, institucionalmente, a<br />

partir dos mais variados objetivos como, por ex<strong>em</strong>plo, para tirar os jovens<br />

<strong>da</strong> marginali<strong>da</strong>de, para promover integração social e para deixar o corpo<br />

339


sarado e malhado. As formas de tratamento, não necessariamente<br />

excludentes, também são as mais diversas. É trata<strong>da</strong> como luta de<br />

combate, como terapia e como diversão. Pud<strong>em</strong>os constatar que essa<br />

multiplici<strong>da</strong>de de tratamentos t<strong>em</strong> sido responsável pela sua consoli<strong>da</strong>ção<br />

na socie<strong>da</strong>de, <strong>da</strong><strong>da</strong> às condições extr<strong>em</strong>amente desfavoráveis que ela<br />

enfrentou no seu processo de desenvolvimento.<br />

5. Se for possível falar de uma “essência” <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, esta, certamente, não<br />

é impermeável ao t<strong>em</strong>po histórico e não se aloja <strong>em</strong> um determinado<br />

indivíduo ou lugar. Em suas múltiplas e irreversíveis faces permeiam o<br />

incomensurável, o incontrolável e o imponderável. Nesse sentido, o<br />

discurso defensor do resgate e <strong>da</strong> preservação de uma “autêntica”<br />

<strong>capoeira</strong>, que teria ficado intacta no passado, mostra-se ingênuo, não<br />

passando de uma abstração declamatória, à medi<strong>da</strong> que é impossível<br />

recuperar enti<strong>da</strong>des independentes e desconecta<strong>da</strong>s do fluxo contextual e<br />

t<strong>em</strong>poral que caracteriza a dinâmica cultural. A ambigüi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong><br />

ratifica uma de suas mais tradicionais cantigas: “oi, sim, sim, sim... oi, não,<br />

não, não...” Isto não significa dizer que não devamos fazer opções <strong>em</strong><br />

relação ao seu tratamento pe<strong>da</strong>gógico.<br />

6. Tratar a <strong>capoeira</strong> como um sist<strong>em</strong>a de significação r<strong>ea</strong>lizado, através do<br />

enfoque cultural, implica <strong>em</strong> não fragmentá-la ou negligenciar seus<br />

aspectos particulares e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, compreendê-la <strong>em</strong> suas inter-<br />

relações com outras práticas e instituições. Este enfoque cultural refuta<br />

concepções iluministas, evolucionistas e psicologizantes de trato com este<br />

conhecimento, superando, assim, a falsa e irredutível oposição existente<br />

entre a natureza e a cultura humana, e privilegiando a totali<strong>da</strong>de concreta.<br />

340


7. A esportivização <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong> contribuindo para sua ressignificação.<br />

Se os princípios <strong>da</strong> sobrepujança e <strong>da</strong>s comparações objetivas, que<br />

traz<strong>em</strong> como conseqüência imediata o selecionamento, a especialização e<br />

a instrumentalização, caracterizam a lógica esportiva, a <strong>capoeira</strong>, para se<br />

ajustar a essa lógica esportivizante, terá que alterar suas quali<strong>da</strong>des mais<br />

significativas, já que a improvisação, a t<strong>ea</strong>tralização e a “mandinga”<br />

passam a ser domina<strong>da</strong>s pelo espetáculo, e este, como vimos, é a<br />

expressão mais visível do “reino <strong>da</strong> mercadoria”.<br />

Diante destas considerações, reconhec<strong>em</strong>os a necessi<strong>da</strong>de de<br />

probl<strong>em</strong>atização <strong>em</strong> relação aos discursos id<strong>ea</strong>lizados que gravitam <strong>em</strong> torno dos<br />

componentes “guerreiro” e “heróico” desta manifestação que, freqüent<strong>em</strong>ente,<br />

supervalorizam personali<strong>da</strong>des e terminam contribuindo para a <strong>construção</strong> de<br />

mitos e heróis. É importante ressaltar que esta postura pode contribuir para o<br />

rompimento <strong>da</strong> conexão entre a cultura e a própria vi<strong>da</strong>, pelo fato <strong>da</strong>s pessoas se<br />

esquecer<strong>em</strong> de por<strong>em</strong>-se a si mesmas, a partir <strong>da</strong>s relações sociais concretamente<br />

trava<strong>da</strong>s na atuali<strong>da</strong>de, reconhecendo-se como participantes e protagonistas do<br />

“que fazer” <strong>em</strong> seus contextos particulares nos dias de hoje.<br />

No segundo capítulo, ao explicitarmos o método de investigação, os<br />

percursos e as possibili<strong>da</strong>des metodológicas, estávamos convencidos de que, s<strong>em</strong><br />

um “berimbau gunga” 98 para ditar o ritmo e nos orientar nesse <strong>jogo</strong>, e s<strong>em</strong> os<br />

d<strong>em</strong>ais instrumentos <strong>da</strong> “bateria metodológica” para analisar este fenômeno, seria<br />

impossível chegar até onde chegamos. Em relação a esse capítulo, pud<strong>em</strong>os fazer<br />

as seguintes considerações finais:<br />

98 O berimbau que, na ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong>, coman<strong>da</strong> todo o ritual.<br />

341


1. A necessi<strong>da</strong>de de <strong>em</strong>pregar um método de análise que não desprezasse<br />

as complexas, dinâmicas e contraditórias relações que caracterizam a<br />

vi<strong>da</strong> social, levou-nos a tratar os aspectos metodológicos desta pesquisa<br />

de forma articula<strong>da</strong> com os conceitos teóricos mais gerais que a<br />

orientaram (projeto histórico, trabalho, <strong>práxis</strong>). Estes foram<br />

probl<strong>em</strong>atizados à luz <strong>da</strong> filosofia, como princípio diretivo, pois, no âmbito<br />

do ser social, é ontologicamente impossível isolar os procedimentos<br />

singulares <strong>da</strong>s determinações e estruturas sob as quais os mesmos estão<br />

inseridos.<br />

2. A conjugação equilibra<strong>da</strong> de diferentes possibili<strong>da</strong>des metodológicas<br />

pareceu ser apropria<strong>da</strong> para fazer frente ao alto grau de complexi<strong>da</strong>de<br />

que esta manifestação engendra. Entretanto, este procedimento não<br />

comprometeu, n<strong>em</strong> tampouco negligenciou o método de análise que,<br />

durante todo o estudo, serviu de baliza para as diferentes técnicas<br />

particulares de coleta de <strong>da</strong>dos.<br />

No terceiro capítulo, ao retomarmos e probl<strong>em</strong>atizarmos o conceito de<br />

<strong>práxis</strong>, a fim de compreender melhor o que o ser humano faz, diz e pensa de si<br />

mesmo, manifestando sua vi<strong>da</strong> não só através de momentos laborativos, mas de<br />

momentos existenciais, estávamos buscando referenciais teóricos que melhor<br />

explicass<strong>em</strong> a <strong>capoeira</strong> como <strong>práxis</strong> humana, ou seja, uma ativi<strong>da</strong>de que, ao ser<br />

pratica<strong>da</strong>, se transforma e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, contribui para a transformação do seu<br />

praticante.<br />

Através do conceito de <strong>práxis</strong> procuramos uma articulação permanente <strong>da</strong><br />

teoria com a prática. Uma teoria fecun<strong>da</strong> e útil que jamais perde seus vínculos e o<br />

seu cotejo com a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de objetiva e com a ativi<strong>da</strong>de prática que é sua fonte<br />

342


inesgotável. Teoria e <strong>práxis</strong>, como construções interdependentes, formaram uma<br />

uni<strong>da</strong>de dialética e nos permitiram avanços e saltos qualitativos.<br />

A partir <strong>da</strong>s formulações teóricas desse capítulo, coteja<strong>da</strong>s com o campo<br />

<strong>em</strong>pírico, pod<strong>em</strong>os fazer as seguintes considerações:<br />

1. To<strong>da</strong>s as formas de tratamento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> são pe<strong>da</strong>gógicas. Nesse<br />

sentido, qualquer que seja o espaço/t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que a <strong>capoeira</strong> seja<br />

trata<strong>da</strong>, como prática com vistas à transformação social, deve levar <strong>em</strong><br />

consideração que, nos processos de intervenção pe<strong>da</strong>gógica<br />

intersecionam aspectos políticos, sociais e econômicos, e a não<br />

observância desse complexo pode reduzir um “revolucionário e brilhante”<br />

projeto numa prática espontaneísta.<br />

2. Para propiciar el<strong>em</strong>entos de superação, a teoria que <strong>em</strong>erge de uma<br />

prática pe<strong>da</strong>gógica deve ser impregna<strong>da</strong> de conceitos oriundos <strong>da</strong> própria<br />

prática, e não se diluir <strong>em</strong> discursos sofisticados, id<strong>ea</strong>listas e abstratos<br />

que dificilmente contribu<strong>em</strong> para a explicação <strong>da</strong> r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de concreta.<br />

3. Uma prática pe<strong>da</strong>gógica, sintoniza<strong>da</strong> com as necessi<strong>da</strong>des do sujeito<br />

cont<strong>em</strong>porâneo, deve incorporar probl<strong>em</strong>áticas significativas relaciona<strong>da</strong>s<br />

ao meio ambiente, às questões de gênero, às diferenças, às narrativas<br />

locais, à produção simbólica e aos processos identitários locais. Em<br />

outras palavras, uma prática pe<strong>da</strong>gógica deve estar sintoniza<strong>da</strong> com as<br />

necessi<strong>da</strong>des vitais do ser humano e não ser cont<strong>em</strong>plativa, <strong>em</strong>oldura<strong>da</strong><br />

por narrativas com bases <strong>em</strong> epist<strong>em</strong>ologias id<strong>ea</strong>listas que encobr<strong>em</strong> e<br />

fantasiam a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de e <strong>em</strong> na<strong>da</strong> contribu<strong>em</strong> no processo de <strong>construção</strong><br />

de uma outra humani<strong>da</strong>de.<br />

343


4. As referências significativas <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> (cosmovisão africana,<br />

integração/dissimulação <strong>jogo</strong>-luta-<strong>da</strong>nça, cantiga interativa e o lúdico<br />

rebelde), ao ser<strong>em</strong> trata<strong>da</strong>s de forma articula<strong>da</strong> a partir do conceito de<br />

<strong>práxis</strong> e sintoniza<strong>da</strong>s com o processo de organização do trabalho<br />

pe<strong>da</strong>gógico, com ênfase no enfoque cultural, contribuíram sobr<strong>em</strong>aneira<br />

para a aproximação e o incr<strong>em</strong>ento <strong>da</strong>s discussões e relações entre<br />

prática cultural e prática pe<strong>da</strong>gógica, e evidenciaram que, <strong>em</strong>bora<br />

aparent<strong>em</strong>ente distintas, to<strong>da</strong> prática cultural t<strong>em</strong> sua pe<strong>da</strong>gogia e que<br />

to<strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica é cultural. Desta forma, enriqueceram, com<br />

el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong> cultura <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, a probl<strong>em</strong>atização <strong>da</strong> <strong>práxis</strong><br />

pe<strong>da</strong>gógica <strong>em</strong> permanente <strong>construção</strong>.<br />

No quarto capítulo, através do qual traçamos o nosso percurso<br />

investigativo, cont<strong>em</strong>plando diferentes procedimentos <strong>em</strong> varia<strong>da</strong>s experiências<br />

contextuais, foi-nos possível reconhecer que fazer ciência e produzir conhecimento<br />

não implica, necessariamente, <strong>em</strong> conformarmos, n<strong>em</strong> tampouco, <strong>em</strong> seguir<br />

normas predetermina<strong>da</strong>s, mas construir caminhos metodológicos que possam<br />

responder aos nossos objetivos. A partir <strong>da</strong> articulação tensa e conflituosa<br />

desses caminhos, pud<strong>em</strong>os fazer as seguintes considerações:<br />

1. A r<strong>ea</strong>lização de um s<strong>em</strong>inário-piloto, fun<strong>da</strong>mentado na filosofia <strong>da</strong> <strong>práxis</strong>,<br />

além de permitir uma probl<strong>em</strong>atização <strong>em</strong> relação às possibili<strong>da</strong>des<br />

metodológicas que seriam utiliza<strong>da</strong>s nas etapas <strong>da</strong> pesquisa, contribuiu<br />

também como espaço de reflexão importante sobre o objeto de estudo e<br />

para um contato mais efetivo com sujeitos representativos dessa<br />

manifestação cultural <strong>em</strong> Salvador, com inúmeras iniciativas e propostas<br />

344


de trato com esse conhecimento no campo formal e não-formal de<br />

educação.<br />

2. O processo de inserção <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo <strong>da</strong>s instituições<br />

universitárias foi e t<strong>em</strong> sido extr<strong>em</strong>amente tenso. Ele se deu a partir de<br />

iniciativas pessoais e não por desejo e necessi<strong>da</strong>de de seus praticantes<br />

majoritários, n<strong>em</strong> tampouco, por intermédio de políticas públicas de<br />

afirmação cultural.<br />

3. Na maioria dos casos, a <strong>capoeira</strong> insere-se nas instituições universitárias<br />

através de projetos de extensão, geralmente vinculados a grupos já<br />

consoli<strong>da</strong>dos na comuni<strong>da</strong>de <strong>capoeira</strong>na. Freqüent<strong>em</strong>ente, esses projetos<br />

são desvinculados <strong>da</strong>s propostas pe<strong>da</strong>gógicas dos departamentos onde<br />

se inser<strong>em</strong> e terminam servindo apenas como uma agência de prestação<br />

de serviços à comuni<strong>da</strong>de. Via de regra, as ações dos projetos de<br />

extensão terminam influenciando a criação <strong>da</strong> disciplina <strong>capoeira</strong>, sendo<br />

que, atualmente (2004), cerca de vinte instituições de ensino superior no<br />

Brasil já a oferec<strong>em</strong> <strong>em</strong> seus programas curriculares, seja como disciplina<br />

obrigatória, seja como optativa.<br />

4. O s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação, desenvolvido na UFSC, evidenciou a<br />

importância dessa possibili<strong>da</strong>de metodológica no processo de<br />

produção/d<strong>em</strong>ocratização do conhecimento, à medi<strong>da</strong> que adota a<br />

pesquisa como princípio educativo na própria sala de aula. O professor<br />

assume a função de professor-pesquisador, questionando, dessa forma, a<br />

velha prática presente no sist<strong>em</strong>a educacional brasileiro que apregoa que<br />

qu<strong>em</strong> faz ou deve fazer pesquisas é o especialista. A pesquisa-ação,<br />

estrategicamente utiliza<strong>da</strong> nesta pesquisa como possibili<strong>da</strong>de de<br />

345


qualificação do trabalho pe<strong>da</strong>gógico com a <strong>capoeira</strong>, constitui-se numa<br />

relevante opção de trato com esse conhecimento à medi<strong>da</strong> que se<br />

materializa como pesquisa coletiva prática que nos despoja de possíveis<br />

“inclinações missionárias”, e implica na materialização de um trabalho<br />

com sujeitos <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça, <strong>em</strong> vez de se constituir num trabalho sobre<br />

eles. No caso desta pesquisa, os participantes atuaram, não como meros<br />

informantes, mas como pesquisadores de sua própria prática. Nesse<br />

sentido, ela se caracterizou como um contraponto à lógica de trato com o<br />

conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> que enfatiza a racionali<strong>da</strong>de instrumental, <strong>em</strong><br />

que as buscas <strong>da</strong> performance gestuais e do rendimento físicas se<br />

destacam, <strong>em</strong> detrimento de outros componentes importantes dessa<br />

cultura corporal.<br />

5. As experiências desenvolvi<strong>da</strong>s com a <strong>capoeira</strong> no exterior (na Europa)<br />

vêm confirmando e ampliando os traços de transnacionali<strong>da</strong>de que<br />

contribuíram com seu movimento de desenvolvimento e, apesar de eles<br />

se configurar<strong>em</strong> como exceções decorrentes do processo de<br />

reestruturação do sist<strong>em</strong>a capitalista, desafiam a fragili<strong>da</strong>de dos discursos<br />

que, ingenuamente, a tratam como uma prática apropria<strong>da</strong> a<br />

determina<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> população e vincula<strong>da</strong> a grupos étnicos<br />

específicos.<br />

6. A complexi<strong>da</strong>de e a dinamici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> se evidencia na<br />

intensificação do seu processo de internacionalização, cuja mobili<strong>da</strong>de se<br />

expressa, horizontalmente, pelos trânsitos e fluxos dos <strong>capoeira</strong>s <strong>em</strong> todo<br />

o mundo e, verticalmente, pela possibili<strong>da</strong>de concreta de ascensão na,<br />

ain<strong>da</strong>, estratifica<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, inseridos na lógica <strong>da</strong> “educação para<br />

346


subsistência e libertação” (Saviani, 2000). Apesar de constatarmos uma<br />

sist<strong>em</strong>ática r<strong>ea</strong>firmação de que ela é “coisa nossa”, o que, <strong>em</strong> tese,<br />

conferiria a todos os brasileiros o direito de exclusivi<strong>da</strong>de sobre a sua<br />

“mandinga”, as experiências que analisamos d<strong>em</strong>onstraram que esse<br />

discurso se constrói sob a égide do conflito e <strong>da</strong> ambigüi<strong>da</strong>de. A <strong>capoeira</strong><br />

pode até ser “coisa nossa”, mas também é de todo o mundo, à medi<strong>da</strong><br />

que, para ser ensina<strong>da</strong>, pratica<strong>da</strong>, transmiti<strong>da</strong>, construí<strong>da</strong>, ela precisa ser<br />

compartilha<strong>da</strong>, dividi<strong>da</strong>, multiplica<strong>da</strong>, e isto se materializa como prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica.<br />

No quinto capítulo procuramos ser “mandingueiro” ao probl<strong>em</strong>atizar e<br />

ampliar os significados desta manifestação, ao fazer uma crítica <strong>em</strong> relação às<br />

formas de tratamento com este conhecimento e, ao propor el<strong>em</strong>entos que<br />

ressignificass<strong>em</strong> o sentido de ser mandingueiro. A partir dessas “mandingas”,<br />

pod<strong>em</strong>os fazer as seguintes considerações:<br />

1. Ao procurarmos ampliar o entendimento sobre <strong>capoeira</strong>, para além de<br />

visões personalísticas, performáticas e midiáticas, o fiz<strong>em</strong>os levando <strong>em</strong><br />

consideração alguns substratos significativos que permeiam,<br />

heg<strong>em</strong>onicamente, as experiências concretas dos seus praticantes,<br />

levando <strong>em</strong> conta que to<strong>da</strong> manifestação cultural t<strong>em</strong> dupla composição:<br />

um substrato, que é a expressão do objeto cultural, e um sentido, que é<br />

expresso pelo sujeito <strong>da</strong> ação. A <strong>capoeira</strong> configura-se como um substrato<br />

cultural e a este se vinculam sentidos ligados à utili<strong>da</strong>de, finali<strong>da</strong>de,<br />

valoração e t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de, que imprim<strong>em</strong> configurações distintas a esse<br />

mesmo substrato.<br />

347


2. Para entendermos a <strong>construção</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como uma “ver<strong>da</strong>de cultural”<br />

torna-se necessário fazer, dialeticamente, a partir <strong>da</strong> consciência histórica<br />

e <strong>da</strong> reflexão filosófica, tanto uma análise crítica do seu substrato, quanto<br />

uma análise dos múltiplos sentidos que os sujeitos constro<strong>em</strong> <strong>em</strong> relação<br />

a esta manifestação.<br />

3. Ser um professor ou um estu<strong>da</strong>nte mandingueiro é exigir as condições<br />

materiais necessárias para que o trato com os saberes <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong><br />

expresse sua totali<strong>da</strong>de, complexi<strong>da</strong>de e radicali<strong>da</strong>de com vistas à auto-<br />

organização, à autonomia, à responsabili<strong>da</strong>de social interna e externa à<br />

<strong>capoeira</strong>.<br />

No sexto capítulo, analisamos a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de e apontamos possibili<strong>da</strong>des de<br />

trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no ensino formal e não-formal, discutimos a<br />

sua relação com a universi<strong>da</strong>de, suas possibili<strong>da</strong>des de tratamento como disciplina<br />

curricular, e apresentamos o nosso entendimento de <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na,<br />

materializa<strong>da</strong> pelo conceito de complexo t<strong>em</strong>ático. Dessas construções e análises,<br />

foi-nos possível fazer as seguintes considerações.<br />

1. A articulação de dinâmicas e experiências construí<strong>da</strong>s com <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong><br />

espaços não-formais de educação com os chamados espaços formais<br />

torna-se pr<strong>em</strong>ente, pois rompe com duas velhas tradições equivoca<strong>da</strong>s: a)<br />

a de que educação só acontece na escola; b) as ativi<strong>da</strong>des desenvolvi<strong>da</strong>s<br />

“fora <strong>da</strong> escola” não educam o sujeito e serv<strong>em</strong> apenas para descontrair,<br />

relaxar e curtir. A chama<strong>da</strong> educação não-formal revigora uma<br />

compreensão política de “prática social como princípio educativo” e<br />

contribui efetivamente para a materialização <strong>da</strong> denomina<strong>da</strong> “socie<strong>da</strong>de<br />

348


pe<strong>da</strong>gógica” a partir <strong>da</strong> articulação entre formação, cultura, trabalho e<br />

pe<strong>da</strong>gogia.<br />

2. A universi<strong>da</strong>de pública brasileira não deve se furtar ao desafio de se<br />

articular, ca<strong>da</strong> vez mais, com os movimentos sociais e culturais,<br />

“matriculando” a cultura e a sensibili<strong>da</strong>de nos seus programas e, com isto,<br />

recuperar seu movimento milenar, como espaço privilegiado do exercício<br />

<strong>da</strong> divergência, <strong>da</strong> diferença, do conflito, no processo de <strong>construção</strong> de<br />

conhecimento útil e socialmente referenciado para atender a maioria <strong>da</strong><br />

população.<br />

3. O tratamento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como disciplina curricular constitui-se numa<br />

possibili<strong>da</strong>de concreta de aproximação <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de com as chama<strong>da</strong>s<br />

manifestações culturais. Entretanto, se a forma “disciplinar” para a<br />

abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> desta cultura corporal parece bastante oportuna, isto não quer<br />

dizer que outras possibili<strong>da</strong>des sejam menos significativas. Aliás, o seu<br />

movimento histórico d<strong>em</strong>onstra que ela é uma dessas práticas capaz de<br />

se adequar aos mais díspares espaços e atender aos mais inusitados<br />

interesses. L<strong>em</strong>br<strong>em</strong>o-nos do Mestre Pastinha: “a <strong>capoeira</strong> é tudo que a<br />

boca come”.<br />

4. Uma vez inseri<strong>da</strong> no ambiente educacional formal como conteúdo<br />

disciplinar, que esse tratamento cont<strong>em</strong>ple a diversi<strong>da</strong>de e a imbricação<br />

de seus “fun<strong>da</strong>mentos” históricos, culturais, musicais e ritualísticos, que se<br />

transformam e se complexificam quase cotidianamente.<br />

5. Que esse tratamento “disciplinar” seja, por princípio, interdisciplinar, <strong>em</strong><br />

coerência com o seu próprio movimento histórico, vez que, ela se<br />

consolidou como um amálgama onde se entrecruzam, <strong>em</strong> movimento,<br />

349


pressupostos de várias ár<strong>ea</strong>s do conhecimento, como História,<br />

Antropologia, Sociologia, Psicologia, Filosofia e Educação Física. Que não<br />

abdique <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de inserir a experiência corporal, com to<strong>da</strong>s as<br />

suas implicações, no processo de aprendizag<strong>em</strong> social, freqüent<strong>em</strong>ente<br />

ignora<strong>da</strong> ou subestima<strong>da</strong> por boa parte dos programas curriculares.<br />

6. Conceb<strong>em</strong>os a <strong>capoeira</strong> como <strong>práxis</strong> (<strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na) capaz de<br />

promover uma “educação para a transformação”. Que essa <strong>práxis</strong><br />

<strong>capoeira</strong>na, ao ser trata<strong>da</strong> como complexo t<strong>em</strong>ático, possa servir de<br />

contraponto às pe<strong>da</strong>gogias prescritivas e de assimilação e contribuir para<br />

orientar (“sul<strong>ea</strong>r”) o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> nos espaços<br />

formais de educação, sob o aporte <strong>da</strong> experimentação, <strong>da</strong><br />

probl<strong>em</strong>atização, <strong>da</strong> teorização e <strong>da</strong> re<strong>construção</strong> coletiva do<br />

conhecimento.<br />

Nesse <strong>jogo</strong> entre a teoria e a r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de investiga<strong>da</strong>, o nosso estudo<br />

gingou predominant<strong>em</strong>ente com o contexto universitário, s<strong>em</strong>, entretanto,<br />

negligenciar os d<strong>em</strong>ais, pois pretendíamos elaborar possibili<strong>da</strong>des para tratar com<br />

esse conhecimento no currículo de formação profissional. Sendo assim,<br />

apresentar<strong>em</strong>os, a seguir, nossas considerações finais:<br />

1. Consideramos que a disciplina de <strong>capoeira</strong>, na universi<strong>da</strong>de, deve se <strong>da</strong>r<br />

na forma de disciplina optativa, com a abertura para diferentes<br />

possibili<strong>da</strong>des interdisciplinares, pois reconhec<strong>em</strong>os que esta forma<br />

(disciplinar) de tratamento (ain<strong>da</strong> heg<strong>em</strong>ônica nos programas de formação<br />

profissional) apresenta limites para apreender a diversi<strong>da</strong>de e a<br />

complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s manifestações culturais.<br />

350


2. Consideramos que a <strong>capoeira</strong>, como patrimônio histórico <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de,<br />

não deve ser trata<strong>da</strong> com exclusivi<strong>da</strong>de por determinados nichos que, de<br />

forma corporativa, se autoproclamam detentores dos seus “fun<strong>da</strong>mentos”.<br />

Ao adentrar as instituições educacionais ela deve “jogar” com os<br />

conhecimentos sist<strong>em</strong>atizados pelas diversas ár<strong>ea</strong>s do conhecimento no<br />

sentido de consoli<strong>da</strong>r sua inserção como prática pe<strong>da</strong>gógica<br />

comprometi<strong>da</strong> com transformação social.<br />

3. Consideramos, ain<strong>da</strong>, que o espaço/t<strong>em</strong>po curricular de uma disciplina<br />

(de periodici<strong>da</strong>de geralmente s<strong>em</strong>estral) é insuficiente para consoli<strong>da</strong>r as<br />

estruturas de mediação necessárias para uma posterior intervenção<br />

profissional autônoma no âmbito <strong>da</strong> educação formal e não-formal,<br />

necessitando, desta forma, de uma capacitação continua<strong>da</strong> e articula<strong>da</strong><br />

com o movimento cultural <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>.<br />

4. As contradições do desenvolvimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> apontam-nos para a<br />

necessi<strong>da</strong>de de superação de formações imediatistas, limita<strong>da</strong>s a<br />

instrumentalização de competências técnico-funcionais para o acesso<br />

submisso ao mercado. A luta <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> deve ser muito mais ampla.<br />

Deve se articular, de forma crítica e criativa, com outras lutas sociais<br />

engendra<strong>da</strong>s pela classe trabalhadora, pelos movimentos sociais e pelas<br />

grandes massas.<br />

5. A <strong>capoeira</strong> é um <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>a ambíguo revelador de conflitos sociais que<br />

provoca, simultan<strong>ea</strong>mente, admiração e t<strong>em</strong>or. Conforme já havíamos<br />

anunciado <strong>em</strong> nossa dissertação de mestrado, intitula<strong>da</strong>: A Escolarização<br />

<strong>da</strong> “Vadiação”, analisar o contexto histórico <strong>em</strong> que ela surgiu e se<br />

sedimentou é a possibili<strong>da</strong>de de se fazer uma leitura histórico-crítica desta<br />

351


manifestação e, conseqüent<strong>em</strong>ente, identificar princípios relevantes que<br />

fizeram dela um instrumento de libertação, <strong>em</strong>ancipação e opressão ao<br />

longo de sua trajetória (FALCÃO, 1994). Se naquele estudo<br />

objetivávamos analisar a relevância do processo de escolarização <strong>da</strong><br />

<strong>capoeira</strong>, essa análise já apontava para uma também necessária<br />

“capoeirização <strong>da</strong> escola”. Com isso, estamos nos filiando as propostas<br />

engaja<strong>da</strong>s que vislumbram a formação de uma “socie<strong>da</strong>de pe<strong>da</strong>gógica”,<br />

sintoniza<strong>da</strong> com suas práticas culturais que auspiciam mu<strong>da</strong>nças<br />

significativas, <strong>em</strong> prol <strong>da</strong> <strong>construção</strong> de uma humani<strong>da</strong>de s<strong>em</strong><br />

exploradores n<strong>em</strong> explorados. Acrescentamos, ain<strong>da</strong>, que não é possível<br />

retornar aos "velhos e bons t<strong>em</strong>pos", pois qualquer tentativa neste sentido<br />

seria um "retorno transformado". Trata-se de construir, a partir do<br />

presente, uma nova socie<strong>da</strong>de. Em outras palavras, trata-se de<br />

transformar essa r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de perversa e com tendência à destruição <strong>em</strong> que<br />

a maior parte dos seres humanos (e, conseqüent<strong>em</strong>ente, dos <strong>capoeira</strong>s)<br />

dramaticamente se insere. E essa revolução, ao invés de utilizar a luta<br />

arma<strong>da</strong>, deve utilizar as manifestações culturais como possibili<strong>da</strong>des de<br />

luta, <strong>em</strong> prol <strong>da</strong> libertação de to<strong>da</strong> a humani<strong>da</strong>de. Enfim, a humani<strong>da</strong>de<br />

deve <strong>em</strong>placar uma luta cultural, com a utilização <strong>da</strong>s ricas manifestações<br />

que ela própria gerou.<br />

6. Propugnamos que a <strong>capoeira</strong> deva ser trata<strong>da</strong>, pe<strong>da</strong>gogicamente, como<br />

<strong>práxis</strong> indissociável do conceito original de cultura, proveniente do latim<br />

colere, que significa cultivar, trabalhar a terra, s<strong>em</strong><strong>ea</strong>r, colher (<strong>da</strong>í<br />

agricultura). Uma cultura <strong>capoeira</strong>na que nasça onde os seres humanos<br />

produz<strong>em</strong> a base de sua vi<strong>da</strong>. Nessa perspectiva, a <strong>capoeira</strong> constituir-se-<br />

352


á numa extensão <strong>da</strong> própria vi<strong>da</strong>, uma arte enraiza<strong>da</strong> <strong>em</strong> si e para si, que<br />

não deve ser “vendi<strong>da</strong> por qualquer vintém”.<br />

7. Do ponto de vista <strong>da</strong> experiência corporal, propugnamos uma <strong>capoeira</strong><br />

mais “jogante” do que “lutante” que, ao probl<strong>em</strong>atizar a competição, o<br />

recorde, a racionalização, a hierarquização e a cientifização do<br />

treinamento, incorpore o acontecimento, a surpresa, o lúdico, a<br />

intensi<strong>da</strong>de, o acaso, a instabili<strong>da</strong>de, enfim, as infinitas possibili<strong>da</strong>des do<br />

<strong>jogo</strong>.<br />

8. Como <strong>construção</strong> cultural, a <strong>capoeira</strong> constrói-se s<strong>em</strong> cessar. Ou seja, <strong>em</strong><br />

movimento dinâmico e complexo, ela se auto-reproduz, pois sua ecologia<br />

é a cultura, é a socie<strong>da</strong>de, é o mundo. Ela traz <strong>em</strong>buti<strong>da</strong> a idéia de um<br />

processo cujos efeitos ou produtos se tornam produtores ou causas. A<br />

<strong>capoeira</strong> é produzi<strong>da</strong> como expressão do grau de desenvolvimento <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de <strong>em</strong> seu conjunto, sendo, portanto, síntese de múltiplas<br />

determinações. To<strong>da</strong>s as suas formas acaba<strong>da</strong>s são apenas<br />

configurações transitórias, porque, <strong>em</strong> essência, ela é movimento prenhe<br />

de contradição, de conflito, de negação de si mesma.<br />

9. As possibili<strong>da</strong>des de trato com esse conhecimento não pod<strong>em</strong> ignorar<br />

que, na socie<strong>da</strong>de capitalista cont<strong>em</strong>porân<strong>ea</strong>, o movimento corporal é<br />

influenciado por poderosas e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, sutis estratégias que<br />

“escravizam” até os gestos corporais e transformam quase tudo <strong>em</strong><br />

mercadoria. Daí a necessi<strong>da</strong>de de se libertar desses “grilhões<br />

ideológicos”, contrapondo-se a essa lógica a partir de possibili<strong>da</strong>des que,<br />

<strong>em</strong> última instância, não separ<strong>em</strong> o <strong>jogo</strong> do jogador, que não separ<strong>em</strong> o<br />

353


<strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, que promovam uma <strong>capoeira</strong> para seres humanos,<br />

e não seres humanos para uma (determina<strong>da</strong>) <strong>capoeira</strong>.<br />

10. Se a <strong>capoeira</strong> é aclama<strong>da</strong>, <strong>em</strong> coro, como “luta de escravo <strong>em</strong> ânsia de<br />

liber<strong>da</strong>de”, que <strong>em</strong> sua materialização predomine uma “luta” que a liberte<br />

de uma escravização fomenta<strong>da</strong> por uma hiper-especialização técnica,<br />

produtora de uma <strong>capoeira</strong> desencarna<strong>da</strong> e desenraiza<strong>da</strong>, pois separa o<br />

<strong>jogo</strong> do jogador, o <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>. Que essa “luta” promova a<br />

abolição dessa escravidão <strong>em</strong> que ela própria, <strong>em</strong> determina<strong>da</strong>s<br />

circunstâncias, v<strong>em</strong> sendo submeti<strong>da</strong>, desvirtuando, assim, sua tão<br />

decanta<strong>da</strong> mensag<strong>em</strong> de “luta pela libertação”. Libertação que virá não<br />

como fato intelectual ou proclamação d<strong>em</strong>agógica, mas como fato<br />

histórico, decorrente <strong>da</strong>s transformações <strong>da</strong>s condições materiais de vi<strong>da</strong>.<br />

Se antes, a maior am<strong>ea</strong>ça à <strong>capoeira</strong> era externa e se materializava<br />

através dos açoites dos capitães-do-mato e <strong>da</strong>s prisões determina<strong>da</strong>s<br />

pelo Código Penal <strong>da</strong> República, hoje, essa am<strong>ea</strong>ça é interna e se<br />

materializa pelo desenraizamento que condena o <strong>capoeira</strong> à ignorância<br />

<strong>em</strong> relação ao que ele próprio produz.<br />

Por fim, convém destacar que as possíveis contribuições explicita<strong>da</strong>s<br />

nesse estudo não dev<strong>em</strong> ser entendi<strong>da</strong>s como um infalível receituário, mas como<br />

referência para a <strong>construção</strong> de possibili<strong>da</strong>des político-pe<strong>da</strong>gógicas que<br />

materializ<strong>em</strong> e objetiv<strong>em</strong> intencionali<strong>da</strong>de educacional no trato com o conhecimento<br />

<strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> e valoriz<strong>em</strong> o que é essencial nesse processo: a prática pe<strong>da</strong>gógica.<br />

Conforme pud<strong>em</strong>os constatar, a partir dos <strong>da</strong>dos levantados, um dos<br />

caminhos para qualificar as possibili<strong>da</strong>des pe<strong>da</strong>gógicas com a <strong>capoeira</strong> <strong>em</strong> espaços<br />

formais de educação não recai unicamente <strong>em</strong> “disciplinar” esta manifestação<br />

354


cultural, inserindo-a nos currículos de to<strong>da</strong>s as escolas e universi<strong>da</strong>des. É<br />

importante considerar que <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s essas ações existe um processo de trabalho<br />

pe<strong>da</strong>gógico determinando as formas e o conteúdo do ensino. Tal processo<br />

condiciona a produção e a apropriação do conhecimento (FREITAS, 2000). Nesse<br />

sentido, a organização desse processo deve estar sintoniza<strong>da</strong> com o projeto<br />

histórico de socie<strong>da</strong>de que se pretende construir, e ser pauta<strong>da</strong> pela auto-<br />

organização, autodeterminação, autonomia dos sujeitos envolvidos no trabalho<br />

pe<strong>da</strong>gógico.<br />

O trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> não deve se limitar ao “controle<br />

de quali<strong>da</strong>de total”, bas<strong>ea</strong>do na racionali<strong>da</strong>de técnica punitiva e regido pela ética do<br />

mercado de trabalho que responde aos interesses do capital, mas materializado a<br />

partir de uma visão de quali<strong>da</strong>de social para todos, bas<strong>ea</strong><strong>da</strong> na racionali<strong>da</strong>de<br />

dialógica, regi<strong>da</strong> pela ética de um projeto histórico de <strong>em</strong>ancipação humana e de<br />

socie<strong>da</strong>de que busque a superação <strong>da</strong>s estruturas capitalistas.<br />

Para além de uma perspectiva produtivista, propugnamos uma <strong>capoeira</strong><br />

<strong>em</strong> permanente <strong>construção</strong>, cuja “produção”, “distribuição” e “consumo” se dê<strong>em</strong><br />

simultan<strong>ea</strong>mente, s<strong>em</strong> intermediários. Não dev<strong>em</strong>os produzir <strong>capoeira</strong> hoje para<br />

consumi-la amanhã. Ela não deve ser “enlata<strong>da</strong>” para consumo posterior. Sua base<br />

r<strong>ea</strong>l e sua maior virtude é o presente, não um presente contínuo, mas um presente<br />

histórico, livre de coerções e obrigações funcionalistas.<br />

Para além de uma perspectiva competitivista, lutamos por uma <strong>capoeira</strong><br />

despretensiosa <strong>em</strong> relação a prêmios, vantagens e vitórias; uma <strong>capoeira</strong> solidária,<br />

que acolhe e adere a causa de outr<strong>em</strong>, pois ela não pretende se comparar.<br />

Para além de uma perspectiva meritocrática, defend<strong>em</strong>os uma <strong>capoeira</strong><br />

s<strong>em</strong> pompas e ostentações, que rompa com as pseudo-hierarquias. Uma prática<br />

355


cuja transparência e simplici<strong>da</strong>de constitu<strong>em</strong> o seu r<strong>ea</strong>lce e sua moldura, pois ela<br />

não se submete a cultura belicista ain<strong>da</strong> heg<strong>em</strong>ônica neste início do século XXI.<br />

Para além de uma perspectiva comparativista, propugnamos uma<br />

<strong>capoeira</strong> desprovi<strong>da</strong> de “porquês”, <strong>em</strong>bora dota<strong>da</strong> de sentido, pois “ca<strong>da</strong> um é ca<strong>da</strong><br />

um” (Mestre Pastinha). Uma <strong>capoeira</strong> que não se (pré) ocupa e n<strong>em</strong> deseja ser<br />

vista, pois ela não quer ser compara<strong>da</strong>.<br />

Se não existe <strong>capoeira</strong> (<strong>jogo</strong>) s<strong>em</strong> <strong>capoeira</strong>s (jogadores), a luta por<br />

transformações sociais, através desta <strong>práxis</strong>, deve levar <strong>em</strong> consideração os<br />

estreitos liames que inter-relacionam componentes econômicos, políticos, sociais e<br />

culturais <strong>em</strong> suas ações concretas. Sendo assim, as inovações pe<strong>da</strong>gógicas<br />

forja<strong>da</strong>s, s<strong>em</strong> a observância do contexto sócio-econômico <strong>em</strong> que essas ações se<br />

inser<strong>em</strong> e s<strong>em</strong> a devi<strong>da</strong> articulação com os movimentos sociais que combat<strong>em</strong> a<br />

lógica destrutiva do capital, são facilmente modela<strong>da</strong>s, coopta<strong>da</strong>s, ou mesmo<br />

aniquila<strong>da</strong>s pelas sutis e poderosas forças heg<strong>em</strong>ônicas, a saber, as forças <strong>da</strong>s<br />

classes dominantes.<br />

A <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na, referencia<strong>da</strong> pelos pressupostos do materialismo<br />

histórico-dialético, recupera e atualiza o conceito grego de <strong>práxis</strong> e consiste,<br />

sinteticamente, na articulação vigorosa <strong>da</strong> theoria com a poiésis que, por sua vez,<br />

orienta a ativi<strong>da</strong>de política dos sujeitos <strong>em</strong> suas ações na polis. Através dela, os<br />

<strong>capoeira</strong>s, articulados com as lutas pela superação <strong>da</strong> tirania do capital, pod<strong>em</strong><br />

contribuir significativamente para a <strong>construção</strong> de uma outra socie<strong>da</strong>de.<br />

Conforme foi visto, a experiência histórica <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> é conflituosa,<br />

densa, dinâmica e contraditória. Embora tenha se torna<strong>da</strong> refém, como mercadoria,<br />

dos interesses do capital, consolidou, no calor <strong>da</strong>s contradições do seu<br />

desenvolvimento histórico, saberes significativos que, se for<strong>em</strong> tratados<br />

356


pe<strong>da</strong>gogicamente com os subsídios teórico-metodológicos referenciados pelo<br />

entendimento exposto nesta tese sobre <strong>práxis</strong> <strong>capoeira</strong>na e complexo t<strong>em</strong>ático,<br />

pod<strong>em</strong> contribuir efetivamente com o desenvolvimento <strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica numa<br />

perspectiva autodetermina<strong>da</strong>, autônoma, solidária, reflexiva e crítica.<br />

E, aqui, finalizamos este <strong>jogo</strong> (o científico que se caracterizou pela<br />

<strong>construção</strong> desta pesquisa), levantando a possibili<strong>da</strong>de de que outros <strong>jogo</strong>s<br />

possam com ele interagir, a partir de outras abor<strong>da</strong>gens e de outros contextos, e<br />

com a certeza de que, com e através dele, aprend<strong>em</strong>os a entrar e a sair de <strong>jogo</strong>s<br />

coletivos ca<strong>da</strong> vez mais complexos. Este <strong>jogo</strong> científico ratifica a complexi<strong>da</strong>de e<br />

as contradições dos outros dois <strong>jogo</strong>s, arrolados na introdução desta pesquisa e<br />

que se materializam pela r<strong>ea</strong>li<strong>da</strong>de social e pelo próprio <strong>jogo</strong> <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>, ca<strong>da</strong><br />

vez mais inquietantes, ca<strong>da</strong> vez mais jogantes, e nos impele a contribuir, nas<br />

nossas ações pe<strong>da</strong>gógicas, com a <strong>construção</strong> de uma humani<strong>da</strong>de s<strong>em</strong> o jugo<br />

do capital.<br />

357


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366


ANEXOS<br />

367


ANEXO 1<br />

Protocolo de son<strong>da</strong>g<strong>em</strong> do s<strong>em</strong>inário-piloto r<strong>ea</strong>lizado na UFBA<br />

368


QUESTÕES<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia<br />

Facul<strong>da</strong>de de Educação<br />

Coordenação de Pós-Graduação<br />

Protocolo de Son<strong>da</strong>g<strong>em</strong> do S<strong>em</strong>inário-Piloto<br />

369<br />

Salvador-BA, 02 de set<strong>em</strong>bro de 2000.<br />

“Construindo uma Metodologia para o Ensino <strong>da</strong> Capoeira”<br />

1. O que você entende por <strong>capoeira</strong>?<br />

2. O que levou você a participar desse S<strong>em</strong>inário-Piloto?<br />

3. Quais os conteúdos de <strong>capoeira</strong> que você mais gostaria de tratar neste<br />

S<strong>em</strong>inário-Piloto?<br />

4. Como você acha que deveria ser uma aula de <strong>capoeira</strong>?<br />

5. Você considera que após freqüentar um s<strong>em</strong>estre de <strong>capoeira</strong> você se sentirá<br />

preparado para ministrar aulas de <strong>capoeira</strong>? Justifique?


ANEXO 2<br />

Questionário de avaliação do s<strong>em</strong>inário-piloto <strong>da</strong> UFBA<br />

370


Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia<br />

Facul<strong>da</strong>de de Educação<br />

Coordenação de Pós-Graduação<br />

Questionário de Avaliação do S<strong>em</strong>inário-Piloto<br />

371<br />

Salvador-BA, 20 de julho de 2001.<br />

“Construindo uma Metodologia para o Ensino <strong>da</strong> Capoeira”<br />

Prezado(a) participante<br />

Este questionário de avaliação t<strong>em</strong> por objetivo levantar subsídios para a tese<br />

de doutoramento, <strong>em</strong> <strong>construção</strong>, sobre o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no<br />

currículo de formação profissional.<br />

Solicito ao informante que o devolva respondido até o dia 31 de julho de<br />

2001, na LEPEL. Não é necessário se identificar.<br />

Questões<br />

Na certeza de sua colaboração, agradeço antecipa<strong>da</strong>mente.<br />

José Luiz Cirqueira Falcão<br />

Doutorando <strong>em</strong> Educação – UFBA<br />

1. Por quanto t<strong>em</strong>po você freqüentou o S<strong>em</strong>inário-Piloto?<br />

2. Qual a sua opinião geral sobre a experiência?<br />

3. Qual a contribuição que a <strong>capoeira</strong> pode proporcionar para a sua formação?<br />

4. Qual a sua opinião <strong>em</strong> relação à atuação do coordenador?<br />

5. Qual a sua opinião <strong>em</strong> relação à presença <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> na universi<strong>da</strong>de?<br />

6. Quais os conteúdos que mais lhe agra<strong>da</strong>ram?<br />

7. Qual a sua opinião <strong>em</strong> relação à discriminação <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>?<br />

8. Como você vê a relação mestre de <strong>capoeira</strong> x professor de Educação Física?<br />

9. A disciplina <strong>capoeira</strong> na universi<strong>da</strong>de deve ser optativa ou obrigatória? Por<br />

quê?


ANEXO 3<br />

Roteiro de entrevista s<strong>em</strong>i-estrutura<strong>da</strong> para professores de <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> UFBA<br />

372


Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia<br />

Facul<strong>da</strong>de de Educação<br />

Coordenação de Pós-Graduação<br />

Roteiro para entrevista s<strong>em</strong>i-estrutura<strong>da</strong><br />

com os professores de <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> UFBA<br />

Dados Pessoais e de Formação Profissional<br />

a. Nome<br />

b. Ano e local de conclusão do curso de graduação <strong>em</strong> nível superior<br />

c. Cursos de pós-graduação<br />

d. Eventos dos quais participou nos últimos anos e considera importantes para a<br />

atuação profissional<br />

Dados sobre a atuação na disciplina <strong>capoeira</strong><br />

a. Quando e por quanto t<strong>em</strong>po ministrou a disciplina <strong>capoeira</strong> na UFBA<br />

b. Opinião sobre a presença <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> na universi<strong>da</strong>de<br />

c. Opinião sobre o programa de <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> UFBA<br />

d. Apoio que recebeu do Departamento de Educação Física para desenvolver as<br />

ativi<strong>da</strong>des<br />

e. Análise <strong>da</strong> participação na disciplina<br />

Dados sobre a organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico<br />

a. Planejamento s<strong>em</strong>estral ou anual <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des desenvolvi<strong>da</strong>s com a<br />

<strong>capoeira</strong>; qu<strong>em</strong> participava <strong>da</strong> elaboração?<br />

b. As condições de trabalho na universi<strong>da</strong>de <strong>em</strong> relação a local e material<br />

didático.<br />

c. Recursos didáticos utilizados nas aulas de <strong>capoeira</strong><br />

d. O projeto político-pe<strong>da</strong>gógico do curso de Educação Física e a relação com a<br />

<strong>capoeira</strong><br />

Dados sobre o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo<br />

a. Contribuições que a <strong>capoeira</strong> pode oferecer no processo de formação<br />

profissional<br />

b. O cumprimento <strong>da</strong> disciplina <strong>capoeira</strong> no curso de graduação garante ao<br />

futuro profissional conhecimentos mínimos para ministrar esta disciplina <strong>em</strong><br />

instituições formais e não-formais de educação<br />

c. Principais conteúdos ensinados, processo de seleção e organização dos<br />

mesmos<br />

d. A relação com os pressupostos teóricos, a metodologia utiliza<strong>da</strong> e os<br />

procedimentos de avaliação (O que é? Para que serve? Como fazer?)<br />

373


Dados sobre a clientela<br />

a. Critérios que orientam a entra<strong>da</strong> de alunos para freqüentar a disciplina<br />

b. Caracterização geral dos alunos <strong>em</strong> relação ao nível sócio-econômico<br />

c. Motivos que levam os alunos a optar<strong>em</strong> pela disciplina <strong>capoeira</strong><br />

Comentários adicionais<br />

374


ANEXO 4<br />

Roteiro de entrevista s<strong>em</strong>i-estrutura<strong>da</strong><br />

para alunos e ex-alunos de <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> UFBA<br />

375


Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia<br />

Facul<strong>da</strong>de de Educação<br />

Coordenação de Pós-Graduação<br />

Roteiro para entrevista s<strong>em</strong>i-estrutura<strong>da</strong> com alunos e ex-alunos de<br />

<strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> UFBA<br />

Dados Pessoais e de Formação Profissional<br />

e. Nome<br />

f. Período <strong>em</strong> que freqüenta ou freqüentou a disciplina <strong>capoeira</strong><br />

g. Opinião sobre a disciplina que cursa ou cursou<br />

h. Contribuições que a <strong>capoeira</strong> pode proporcionar para a formação profissional<br />

i. As condições de trabalho na universi<strong>da</strong>de <strong>em</strong> relação a local e material<br />

didático.<br />

j. Recursos didáticos utilizados nas aulas de <strong>capoeira</strong><br />

Dados sobre o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo<br />

e. Contribuições que a <strong>capoeira</strong> pode oferecer no processo de formação<br />

profissional<br />

f. Principais conteúdos apreendidos, processo de seleção e organização dos<br />

mesmos<br />

g. Considerações acerca dos pressupostos teóricos, a metodologia utiliza<strong>da</strong> e<br />

os procedimentos de avaliação (O que é? Para que serve? Como fazer?)<br />

Comentários adicionais<br />

376


ANEXO 5<br />

Questionário de avaliação <strong>da</strong> disciplina de <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> UFBA<br />

377


Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia<br />

Facul<strong>da</strong>de de Educação<br />

Coordenação de Pós-Graduação<br />

378<br />

Salvador- BA, 07 de agosto de 2001<br />

Questionário de Avaliação <strong>da</strong> Disciplina de Capoeira <strong>da</strong> UFBA<br />

Prezado(a) aluno(a)<br />

Este questionário t<strong>em</strong> por objetivo subsidiar uma <strong>da</strong>s etapas do Projeto de<br />

Pesquisa de Doutorado sobre o trato com o conhecimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> no currículo<br />

de formação profissional.<br />

Solicito ao informante que o devolva respondido até o dia 13 de agosto de<br />

2001, na LEPEL. Não é necessário se identificar.<br />

Na certeza de sua colaboração, agradeço antecipa<strong>da</strong>mente.<br />

José Luiz Cirqueira Falcão<br />

Doutorando <strong>em</strong> Educação – UFBA<br />

Questões<br />

1. Qual a sua opinião sobre a disciplina de <strong>capoeira</strong> que você cursou?<br />

2. Qual a contribuição <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> para a sua formação profissional?<br />

3. Como você vê a relação <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> com a Educação Física?<br />

4. Qual a sua opinião <strong>em</strong> relação à presença <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> na universi<strong>da</strong>de?<br />

5. Você se considera preparado para ministrar aulas de <strong>capoeira</strong>?<br />

6. Qual o conteúdo de <strong>capoeira</strong> que mais lhe atrai?<br />

7. Qual a sua opinião <strong>em</strong> relação à discriminação <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>?<br />

8. Como foi a avaliação do seu des<strong>em</strong>penho na disciplina?<br />

9. Como você vê a relação mestre de <strong>capoeira</strong> x professor de Educação Física?<br />

10. A disciplina <strong>capoeira</strong> na universi<strong>da</strong>de deve ser optativa ou obrigatória? Por<br />

quê?


ANEXO 6<br />

Primeiro protocolo de son<strong>da</strong>g<strong>em</strong> para os participantes<br />

do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC<br />

379


Disciplina: Capoeira Mista<br />

S<strong>em</strong>estre: 2002.1<br />

QUESTÕES<br />

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA<br />

CENTRO DE DESPORTOS<br />

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO FÍSICA<br />

a. O que você entende por <strong>capoeira</strong>?<br />

PROTOCOLO DE SONDAGEM 1<br />

SEMINÁRIO DE PESQUISA-AÇÃO<br />

CAPOEIRA<br />

b. Por quê você optou por esta disciplina?<br />

380<br />

Florianópolis-SC 23 de maio de 2002<br />

c. Quais os conteúdos de <strong>capoeira</strong> que você mais gostaria de tratar nesta<br />

disciplina?<br />

d. Como você acha que deveria ser uma aula de <strong>capoeira</strong>?<br />

e. Você considera que após freqüentar um s<strong>em</strong>estre de <strong>capoeira</strong> você se sentirá<br />

preparado para ministrar aulas de <strong>capoeira</strong>? Justifique?


ANEXO 7<br />

Quadro <strong>da</strong> produção científica dos acadêmicos de<br />

Educação Física <strong>da</strong> UFSC sobre <strong>capoeira</strong><br />

381


382


ANEXO 8<br />

Manifesto dos <strong>capoeira</strong>s de Santa Catarina: pela liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> cultura popular<br />

383


MANIFESTO DOS CAPOEIRAS DE SANTA CATARINA:<br />

PELA LIBERDADE DA CULTURA POPULAR!<br />

Em set<strong>em</strong>bro de 1998 foi aprova<strong>da</strong> a lei 9696/98, que regulamentou o<br />

exercício profissional <strong>da</strong> Educação Física e criou o Conselho Federal de Educação<br />

Física (SISTEMA CONFEF/CREF's). Com esta lei, um grupo de profissionais<br />

pretendia, inicialmente, proteger a socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> atuação dos "leigos" e outras<br />

profissões (fisioterapia e nutrição), garantindo reserva de mercado aos graduados<br />

<strong>em</strong> Educação Física. Posteriormente, os mesmos flexibilizaram a sua atuação<br />

estendendo este direito aos "Práticos" que comprovass<strong>em</strong> exercer, até 01/09/1995,<br />

o ensino <strong>da</strong>s práticas corporais, como a <strong>da</strong>nça, yoga, esportes, <strong>capoeira</strong>, etc.<br />

Assim, o SISTEMA criou a obrigatorie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> formação universitária para<br />

qualquer <strong>capoeira</strong> que preten<strong>da</strong> seguir os passos de seu velho Mestre. Abrindo-se<br />

exceção apenas para os que ensinam a pelo menos sete anos, desde que estes<br />

r<strong>ea</strong>liz<strong>em</strong> um curso de capacitação de 200 horas, com um custo que varia entre<br />

400,00 e 2000,00 r<strong>ea</strong>is. Além disto, são obrigatórias as taxas de filiação (R$ 60,00) e<br />

anui<strong>da</strong>de (R$120,00). Isto evidencia o interesse principal do SISTEMA: captar<br />

recursos financeiros para o seu funcionamento e a consoli<strong>da</strong>ção do seu projeto<br />

político.<br />

Ao defender a reserva de mercado aos profissionais <strong>da</strong> Educação Física, a<br />

Lei 9696/98 estimula o corporativismo e compromete a uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> classe<br />

trabalhadora, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que concede privilégios aos que pagam e exclui os que<br />

não pagam o SISTEMA, contrariando os dispositivos constitucionais de liber<strong>da</strong>de de<br />

filiação (artigo 5 0 <strong>da</strong> Constituição Federal). Além disso, o SISTEMA utiliza uma<br />

prática antid<strong>em</strong>ocrática, constituindo-se numa organização burocratiza<strong>da</strong> que se<br />

nega ao debate e desconsidera a representativi<strong>da</strong>de e legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s principais<br />

enti<strong>da</strong>des científicas <strong>da</strong> Educação Física (CBCE), <strong>da</strong>s enti<strong>da</strong>des de Classe<br />

(sindicatos), b<strong>em</strong> como <strong>da</strong>s organizações dos Capoeiras.<br />

A partir disto, diversos setores vinculados às práticas corporais iniciaram<br />

movimentos contrários aos desenvolvidos pelos defensores do SISTEMA. A<br />

<strong>capoeira</strong> se inclui neste movimento de resistência aos Conselhos por ser uma<br />

manifestação cultural afro-brasileira, cria<strong>da</strong> pelos escravos (classes populares) como<br />

instrumento de luta contra a opressão, a exploração, a discriminação e o controle<br />

que as instituições coloniais exerciam sobre os escravos no Brasil, não podendo ser<br />

reduzi<strong>da</strong> na forma <strong>da</strong> Lei 9696/98 a uma simples ativi<strong>da</strong>de física.<br />

Ao longo <strong>da</strong> história a <strong>capoeira</strong> v<strong>em</strong> desenvolvendo formas de linguagens que<br />

ultrapassam o domínio <strong>da</strong> Educação Física - como a musicali<strong>da</strong>de, a t<strong>ea</strong>trali<strong>da</strong>de, a<br />

<strong>da</strong>nça, e <strong>em</strong> alguns casos, a religiosi<strong>da</strong>de - o que a torna uma manifestação cultural<br />

multidisciplinar. Portanto, jamais pode ser considera<strong>da</strong> como patrimônio <strong>da</strong><br />

Educação Física. Desta forma, esta v<strong>em</strong> sendo vivi<strong>da</strong> por mestres e discípulos, nos<br />

fundos de quintais, nos centros comunitários, <strong>em</strong> acad<strong>em</strong>ias, nas ruas, entre outros,<br />

durante séculos utilizando a tradição oral como principal instrumento de mediação<br />

cultural. Além disso, os mais representativos nomes <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> brasileira jamais<br />

estiveram nos bancos <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong>des!<br />

A formação continua<strong>da</strong> dos professores e mestres de <strong>capoeira</strong> é fun<strong>da</strong>mental.<br />

Este processo já acontece de forma autônoma e independente <strong>da</strong> existência do<br />

SISTEMA CREF/CONFEF, fruto <strong>da</strong> organização dos grupos e associações.<br />

Contudo, cabe ao Estado, e não ao CONFEF, garantir que esta formação seja<br />

gratuita, pública e de quali<strong>da</strong>de, desvincula<strong>da</strong> de qualquer obrigatorie<strong>da</strong>de para o<br />

exercício do ensino <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong>.<br />

384


Convi<strong>da</strong>mos os/as Camara<strong>da</strong>s Capoeiras a participar deste movimento de<br />

luta pela liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> como manifestação <strong>da</strong> cultura popular afro-brasileira.<br />

Vários processos judiciais, <strong>em</strong> todo o Brasil, estão sendo favoráveis à <strong>capoeira</strong>.<br />

Como Mestre Pintor de Belo Horizonte, que ao entrar com ação na justiça recebeu<br />

ganho de causa com a seguinte declaração inexistência de relação jurídica que<br />

obrigue o autor - Mestre Pintor – a inscrever-se nos quadros do CREF6, por não ser<br />

a <strong>capoeira</strong> ativi<strong>da</strong>de cuja prática se constitua <strong>em</strong> prerrogativa dos profissionais <strong>da</strong><br />

Educação Física.<br />

Vamos desencad<strong>ea</strong>r um amplo processo de esclarecimento e debate sobre<br />

os direitos dos <strong>capoeira</strong>s e de como proceder <strong>em</strong> caso de abuso do SISTEMA.<br />

Vamos ampliar o movimento <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> - cultura popular afro brasileira.<br />

SERÁ QUE OS CAPITÃES DO MATO SÃO COISAS DO PASSADO OU<br />

AINDA VIVEM ENTRE NÓS MASCARADOS DE CONSELHEIROS ?????<br />

Assinam: Jô <strong>da</strong> <strong>capoeira</strong> <strong>da</strong> Central Catarinense de Capoeira Angola; Khorvo, Bagé,<br />

Joyce e Iaiá do Grupo de Capoeira Angola Ajagunã de Palmares; Mestre Falcão,<br />

Muleka, Maxwel e Maumau do Grupo de Capoeira Beribazu; L<strong>ea</strong>ndro Desenho e<br />

Igor do Grupo de Capoeira Angola Ilha de Palmares; Dimy Wal e Sapo do Grupo<br />

Palmares; Madeira do Grupo Maculelê; Chita do Grupo de Capoeira Regional Stylo;<br />

Emerson Brasil, Luis Cronos Franco, Habibis do Grupo Cordão de Ouro, e<br />

Movimento Nacional Contra a Regulamentação <strong>da</strong> Profissão (Ed. Física)<br />

CONTATOS: Bagé: fabiobage@terra.com.br, Mestre Falcão: falcaox@cds.ufsc.br<br />

(2373736) e Desenho: le-desenho@zipmail.com.br<br />

385


ANEXO 9<br />

Segundo protocolo de son<strong>da</strong>g<strong>em</strong> para<br />

os participantes do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC<br />

386


Disciplina: Capoeira Mista<br />

S<strong>em</strong>estre: 2002.1<br />

Questões<br />

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA<br />

CENTRO DE DESPORTOS<br />

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO FÍSICA<br />

S<strong>em</strong>inário de Pesquisa-ação<br />

Capoeira<br />

PROTOCOLO DE SONDAGEM 2<br />

387<br />

Florianópolis-SC 05 de set<strong>em</strong>bro de 2002<br />

1. A <strong>capoeira</strong> deve ser inseri<strong>da</strong> na universi<strong>da</strong>de enquanto disciplina acadêmica?<br />

( ) Concordo (no todo <strong>em</strong> ou parte)<br />

( ) Discordo (no todo ou <strong>em</strong> parte)<br />

( ) Não sei ou não tenho opinião forma<strong>da</strong><br />

Justifique:<br />

2. A <strong>capoeira</strong> deve ser trata<strong>da</strong> acad<strong>em</strong>icamente a partir de uma ár<strong>ea</strong> específica do conhecimento,<br />

como por ex<strong>em</strong>plo, a Educação Física, a História, a Antropologia, etc.?<br />

( ) Concordo (no todo <strong>em</strong> ou parte)<br />

( ) Discordo (no todo ou <strong>em</strong> parte)<br />

( ) Não sei ou não tenho opinião forma<strong>da</strong><br />

Justifique:<br />

3. Se você considera que a <strong>capoeira</strong> deve trata<strong>da</strong> por apenas uma ár<strong>ea</strong> de formação, Qual a ár<strong>ea</strong> que<br />

você defende?<br />

( ) Educação Física<br />

( ) História<br />

( ) Antropologia<br />

( ) Outras - Especificar____________________________________________________________<br />

4. A disciplina <strong>capoeira</strong> na universi<strong>da</strong>de deve ser optativa ou obrigatória?<br />

( ) Optativa ( ) Obrigatória<br />

Justifique:<br />

5. A <strong>capoeira</strong> deve ser trata<strong>da</strong> no currículo a partir <strong>da</strong> referência de um estilo apenas?<br />

( ) Concordo (no todo <strong>em</strong> ou parte)<br />

( ) Discordo (no todo ou <strong>em</strong> parte)<br />

( ) Não sei ou não tenho opinião forma<strong>da</strong>


Justifique:<br />

6. Se você concor<strong>da</strong> que ela deve ser ensina<strong>da</strong> apenas a partir de um estilo, qual o que você<br />

considera mais apropriado para ser tratado no currículo universitário?<br />

( ) Angola<br />

( ) Regional<br />

( ) Outros - Especificar____________________________________________________________<br />

7. Em relação aos conteúdos práticos desenvolvidos numa aula de <strong>capoeira</strong>, qual a ord<strong>em</strong> de sua<br />

preferência? (Respon<strong>da</strong>, enumerando <strong>em</strong> ord<strong>em</strong> crescente a sua preferência. Ex. (1) para o que você<br />

mais gosta).<br />

( ) Os Golpes<br />

( ) Os Cantos<br />

( ) A Instrumentação<br />

8. Em relação aos movimentos, enumere a ord<strong>em</strong> de sua preferência?<br />

( ) Executar os movimentos individualmente<br />

( ) Executar os movimentos <strong>em</strong> duplas<br />

( ) Executar os movimentos na ro<strong>da</strong><br />

9. Na sua opinião, o <strong>jogo</strong> de <strong>capoeira</strong> deve ter: (Assinale com um “x”).<br />

( )Muito contato físico<br />

( )Pouco contato físico<br />

( )Nenhum contato físico<br />

Justifique:<br />

10. A violência na ro<strong>da</strong> de <strong>capoeira</strong> está condiciona<strong>da</strong> principalmente a/ao:<br />

( ) Método adotado pelo professor<br />

( ) Reflexo <strong>da</strong> violência social<br />

( ) Auto-afirmação dos <strong>capoeira</strong>s<br />

( ) Divergências entre grupos<br />

( ) Não tenho uma opinião forma<strong>da</strong><br />

11. Você se considera apto a ministrar o conteúdo <strong>capoeira</strong> na sua ativi<strong>da</strong>de profissional?<br />

( ) Sim<br />

( ) Não<br />

( ) Em parte<br />

Justifique:<br />

388


ANEXO 10<br />

Protocolo de avaliação geral do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC<br />

389


Disciplina: Capoeira Mista<br />

S<strong>em</strong>estre: 2002.1<br />

Questões<br />

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA<br />

CENTRO DE DESPORTOS<br />

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO FÍSICA<br />

390<br />

Florianópolis-SC 05 de set<strong>em</strong>bro de 2002<br />

PROTOCOLO DE AVALIAÇÃO DO SEMINÁRIO DE PESQUISA-AÇÃO EM CAPOEIRA<br />

SOBRE O SEMINÁRIO DE PESQUISA-AÇÃO<br />

1. O s<strong>em</strong>inário atendeu aos seus objetivos iniciais?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

2. Ficaram claros para você os objetivos desse s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

3. Você já tinha participado de uma disciplina com essa estratégia metodológica?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

4. As t<strong>em</strong>áticas do s<strong>em</strong>inário foram interessantes e despertaram <strong>em</strong> você a vontade de conhecer<br />

mais?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

5. O número de encontros foi suficiente para o cumprimento dos objetivos previstos inicialmente?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

6. A bibliografia indica<strong>da</strong> era de fácil acesso e facilitou a compreensão do conteúdo?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

SOBRE O DESEMPENHO DO PROFESSOR/PESQUISADOR<br />

1. O Professor/pesquisador foi claro na apresentação <strong>da</strong> proposta?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

2. O professor mostrou segurança nas suas formulações?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

3. O Professor conseguiu criar um clima favorável a sua participação nas ativi<strong>da</strong>des?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

4. A atitude do professor encorajou os alunos a fazer questionamentos durante as ativi<strong>da</strong>des?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

5. O Professor estimulou a integração dos alunos?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

6. Houve <strong>em</strong>penho do professor <strong>em</strong> relacionar os conteúdos do s<strong>em</strong>inário com o contexto mais<br />

amplo (histórico, social, político, científico)?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

7. As ativi<strong>da</strong>des ministra<strong>da</strong>s pelo professor lhes pareceram b<strong>em</strong> prepara<strong>da</strong>s?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

8. O Professor utilizou recursos didáticos diversificados para atender aos objetivos do s<strong>em</strong>inário?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

9. Você considera que o professor estava preocupado com a boa formação dos alunos?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

10. Você considera que o professor interagiu com a turma de forma d<strong>em</strong>ocrática?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

11. O Professor foi assíduo?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

12. O Professor foi pontual?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

13. Você gostaria de participar de um s<strong>em</strong>inário s<strong>em</strong>elhante, <strong>em</strong> uma outra disciplina ?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não


Sobre as instalações/ recursos materiais<br />

1. O ambiente físico <strong>em</strong> que este s<strong>em</strong>inário foi desenvolvido estava adequado (iluminação, piso,<br />

acomo<strong>da</strong>ção) ao desenvolvimento <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

2. Os recursos didáticos foram satisfatórios para atender as necessi<strong>da</strong>des do s<strong>em</strong>inário e tornaram<br />

mais dinâmicas as ativi<strong>da</strong>des?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

3. A biblioteca (central ou setorial) atendeu as suas necessi<strong>da</strong>des face a esse s<strong>em</strong>inário?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

Sobre a avaliação<br />

1. O nível de exigência <strong>da</strong>s avaliações foi compatível com o nível de exigências <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des<br />

desenvolvi<strong>da</strong>s no decorrer do s<strong>em</strong>inário?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

2. Estavam claras para você as “regras do <strong>jogo</strong>” com relação à avaliação neste s<strong>em</strong>inário?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

3. Em poucas palavras, descreva a sua impressão sobre esse s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação<br />

relacionado com a <strong>capoeira</strong>.<br />

Florianópolis-SC, _________de _________________ de 2002<br />

391


ANEXO 11<br />

Protocolo de auto-avaliação dos participantes<br />

do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação <strong>da</strong> UFSC<br />

392


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA<br />

CENTRO DE DESPORTOS<br />

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO FÍSICA<br />

PROTOCOLO DE AUTO-AVALIAÇÃO NO SEMINÁRIO DE PESQUISA-AÇÃO<br />

393<br />

Florianópolis-SC 05 de set<strong>em</strong>bro de 2002<br />

Disciplina: Capoeira Mista<br />

S<strong>em</strong>estre: 2002.1<br />

Nome do aluno (a)___________________________________________________________<br />

1. Os ensinamentos do s<strong>em</strong>inário de pesquisa-ação <strong>em</strong> <strong>capoeira</strong> ofereceram contribuições<br />

significativas no seu processo de formação geral?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

2. Você procurou se integrar com o resto <strong>da</strong> turma?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

3. Você contribuiu com as ativi<strong>da</strong>des, <strong>da</strong>ndo sugestões?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

4. Você participou de to<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong>des desenvolvi<strong>da</strong>s no s<strong>em</strong>inário?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

5. Você participou <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des extraclasses promovi<strong>da</strong> pelo s<strong>em</strong>inário?<br />

( ) Sim ( ) Praticamente Sim ( ) Praticamente Não ( )Não<br />

6. Em poucas palavras, descreva a sua impressão sobre o a sua participação nesse s<strong>em</strong>inário de<br />

pesquisa-ação <strong>em</strong> <strong>capoeira</strong>. Se achar conveniente, aponte uma nota de 1 a 10 que correspon<strong>da</strong> à<br />

sua participação no referido s<strong>em</strong>inário.<br />

Florianópolis-SC, _________de _________________ de 2002

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