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A narrativa na literatura de crianças e jovens - TV Brasil

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A <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> <strong>na</strong><br />

<strong>literatura</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>crianças</strong> e <strong>jovens</strong><br />

BOLETIM 21<br />

OUTUBRO 2005


SUMÁRIO<br />

APRESENTAÇÃO ....................................................................................................................................... 03<br />

Rosa Hele<strong>na</strong> Mendonça<br />

PROPOSTA PEDAGÓGICA<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS ................................................................... 05<br />

Marisa Lajolo<br />

PGM 1<br />

NARRATIVAS CURTAS EM PROSA E VERSO<br />

Nascidos para <strong>na</strong>rrar, <strong>na</strong>rrando para viver ................................................................................................... 09<br />

Marisa Lajolo<br />

PGM 2<br />

A NARRATIVA FANTÁSTICA<br />

O conto fantástico: características e trajetória histórica ............................................................................... 12<br />

Regi<strong>na</strong> Ziberman<br />

PGM 3<br />

A NARRATIVA FABULÍSTICA<br />

A fábula <strong>na</strong> sala <strong>de</strong> aula ............................................................................................................................... 17<br />

Luís Camargo<br />

PGM 4<br />

CONTOS DE ORIGEM<br />

Histórias da tradição oral: os contos etiológicos .................................................................................... 30<br />

Magda Frediani<br />

Rogério Andra<strong>de</strong> Barbosa<br />

PGM 5<br />

HISTÓRIAS EM VERSO<br />

Narrar em verso: o encanto do cor<strong>de</strong>l do Nor<strong>de</strong>ste brasileiro .............................................................. 37<br />

Socorro Acioli<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS.<br />

2


Apresentação<br />

Uma home<strong>na</strong>gem à <strong>literatura</strong><br />

Rosa Hele<strong>na</strong> Mendonça 1<br />

A <strong>literatura</strong> para <strong>crianças</strong> e <strong>jovens</strong> é um tema sempre revisitado no programa Salto para o Futuro.<br />

Nos últimos anos, produzimos diversas séries voltadas para essa temática 2, que foram ao encontro<br />

<strong>de</strong> muitas solicitações feitas pelos professores que participam do programa ao vivo, bem como das<br />

avaliações que nos são encaminhadas.<br />

Consi<strong>de</strong>ramos que a <strong>literatura</strong> – oral e escrita – tem um papel significativo no nosso cotidiano e <strong>na</strong><br />

escola, pois esse universo imaginário, criado e recriado tantas vezes pelos contadores <strong>de</strong> histórias, é<br />

um portal sempre aberto para o sonho, para a fantasia, tão essencial para todos nós, adultos, <strong>jovens</strong><br />

<strong>crianças</strong>. Também acreditamos, como Cecília Meireles, que “A vida só é possível reinventada.” E o<br />

que é a <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>, literária ou não, senão a reinvenção dos fatos da vida?<br />

A idéia inicial que norteou essa série A <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> <strong>na</strong> <strong>literatura</strong> para <strong>crianças</strong> e <strong>jovens</strong> foi ter como<br />

tema central as comemorações dos 200 anos <strong>de</strong> <strong>na</strong>scimento <strong>de</strong> Hans Christian An<strong>de</strong>rsen,<br />

consi<strong>de</strong>rado um dos precursores da <strong>literatura</strong> infantil. A série pretendia ser uma home<strong>na</strong>gem à<br />

própria <strong>literatura</strong>, aos escritores e ilustradores <strong>de</strong> livros para <strong>crianças</strong> e também aos professores,<br />

cujo interesse por esta temática tem sido, para nós, um permanente estímulo.<br />

Na elaboração dos programas, <strong>de</strong>cidimos trabalhar com os diferentes tipos <strong>de</strong> contos. E fizemos um<br />

convite à professora Marisa Lajolo, cuja produção consagrada <strong>na</strong> área da <strong>literatura</strong> para <strong>crianças</strong> e<br />

<strong>jovens</strong>, entre outras pesquisas, tem dado sustentação a muitas <strong>de</strong> nossas reflexões sobre o tema.<br />

E, assim como <strong>na</strong>s histórias “uma idéia puxa outra”, a professora Marisa nos trouxe novas<br />

sugestões, entre elas a <strong>de</strong> que visitássemos a 11ª Jor<strong>na</strong>da Nacio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> Literatura <strong>de</strong> Passo Fundo,<br />

que abrange a 3ª Jor<strong>na</strong>dinha Nacio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> Literatura,que teve como tema, neste ano <strong>de</strong> 2005,<br />

Diversida<strong>de</strong> cultural: o diálogo das diferenças. Além da home<strong>na</strong>gem ao Bicentenário <strong>de</strong> An<strong>de</strong>rsen,<br />

também foram lembrados os 400 anos da edição <strong>de</strong> Dom Quixote, <strong>de</strong> Miguel <strong>de</strong> Cervantes, e os 100<br />

anos <strong>de</strong> <strong>na</strong>scimento <strong>de</strong> Erico Verissimo. E, como programação paralela, foi criado o Prêmio UPF<br />

Hans Christian An<strong>de</strong>rsen, que mobilizou professores e alunos <strong>de</strong> todo o país.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS.<br />

3


Puxando esse fio.... Chegamos a Passo Fundo, acolhidos pela i<strong>de</strong>alizadora da Jor<strong>na</strong>da, a professora<br />

Tânia Rösing, e com o nosso olhar já orientado pela professora Marisa Lajolo, lá entrevistamos<br />

escritores, ilustradores, músicos e conversamos com alunos, professores e com o público em geral.<br />

Cada texto <strong>de</strong>sta série começa com uma <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> curta, em prosa ou em verso. É a partir <strong>de</strong>la que<br />

os textos se <strong>de</strong>senvolvem. Essas <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s são um convite à <strong>literatura</strong> e, mais do que isso, uma<br />

sugestão para o trabalho em sala <strong>de</strong> aula. A professora Marisa Lajolo, além da proposta da série,<br />

elaborou o texto do primeiro programa e nos sugeriu os nomes dos autores dos outros textos: a<br />

professora Regi<strong>na</strong> Zilberman, uma das mais <strong>de</strong>stacadas especialistas em <strong>literatura</strong> para <strong>crianças</strong> e<br />

<strong>jovens</strong>; o professor, ilustrador e editor <strong>de</strong> <strong>literatura</strong> infantil Luís Camargo; a jor<strong>na</strong>lista e escritora<br />

Socorro Acioli e o escritor Rogério Andra<strong>de</strong> Barbosa, que contou em seu texto com a parceria da<br />

professora Magda Frediani.<br />

E então, “era uma vez”... E quem quiser que conte outra!<br />

Nota:<br />

1 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro.<br />

2 Parte <strong>de</strong>sse material está disponível <strong>na</strong> pági<strong>na</strong> do Salto:<br />

www.tvebrasil.com.br/salto.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS.<br />

4


PROPOSTA PROPOSTA PEDAGÓGICA<br />

PEDAGÓGICA<br />

A <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> <strong>na</strong> <strong>literatura</strong> para <strong>crianças</strong> e <strong>jovens</strong><br />

Marisa Lajolo 1<br />

Entre os vários povos da terra, um traço comum é o gosto pelas histórias. Parece que todos gostam<br />

<strong>de</strong> inventar, modificar, contar e ouvir histórias. Talvez seja este gosto que leva todos os povos a<br />

terem explicações para a origem da humanida<strong>de</strong>, para a criação do céu e da terra, para as diferenças<br />

entre homem e mulher... São todas histórias, menos ou mais verda<strong>de</strong>iras, menos ou mais inventadas.<br />

Histórias são <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s, isto é, relato <strong>de</strong> eventos, sucessão <strong>de</strong> ações que se enca<strong>de</strong>iam. Histórias<br />

po<strong>de</strong>m ser classificadas <strong>de</strong> muitas maneiras, mas nenhuma classificação é <strong>de</strong>finitiva, nenhuma<br />

classificação é estanque. Certas <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s são em verso, outras são em prosa. Há <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s longas,<br />

como romances, ou curtinhas, como piadas. Algumas têm muitos diálogos, outras são contadas em<br />

fluxo contínuo, como num diário <strong>de</strong> viagem. Algumas são construídas para parecerem verda<strong>de</strong>iras<br />

como as notícias <strong>de</strong> jor<strong>na</strong>l, outras já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo manifestam seu caráter fantástico, como as que<br />

começam com a fórmula era uma vez num reino muito distante...<br />

Sabe-se, hoje, que o gosto humano pela <strong>na</strong>rração é muito anterior à invenção da escrita. O gosto<br />

pela <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> está presente nos primeiros esforços da humanida<strong>de</strong> para fixar acontecimentos através<br />

<strong>de</strong> traços sobre uma superfície sólida. Os <strong>de</strong>senhos gravados por nossos antepassados no interior <strong>de</strong><br />

caver<strong>na</strong>s são, às vezes, interpretados como relatando episódios <strong>de</strong> caça ou <strong>de</strong> guerra.<br />

Das inscrições rupestres aos blogs <strong>de</strong> hoje, o caso é que – com perdão do trocadilho – histórias têm<br />

uma longa história <strong>na</strong> cultura huma<strong>na</strong>. E exatamente porque são tão importantes chegaram à escola,<br />

e lá convivem com a poesia, com o teatro e com as várias modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> texto – oral e escrito- que<br />

passam pela sala <strong>de</strong> aula.<br />

Olhando mais <strong>de</strong> perto para a constituição <strong>de</strong> <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s, observamos – como já foi dito acima – que<br />

elas se caracterizam por articularem ações, enca<strong>de</strong>arem eventos, relatarem acontecimentos. Ou seja,<br />

<strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s levantam e respon<strong>de</strong>m questões do tipo o que aconteceu?<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS.<br />

5


Como já comentamos, são também inúmeras as formas pelas quais po<strong>de</strong>mos classificar o mar <strong>de</strong><br />

histórias no qual <strong>na</strong>vegamos ao longo <strong>de</strong> toda nossa vida. Nos cinco programas <strong>de</strong>sta série, vamos<br />

trabalhar com alguns <strong>de</strong>stes tipos <strong>de</strong> <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s, sabendo, no entanto, que as classificações são<br />

sempre sujeitas a pequenos ajustes, divergências, ambigüida<strong>de</strong>s. O espaço e o tempo da sala <strong>de</strong> aula<br />

– muito específicos – nos levaram a escolher <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s curtas como recorte do projeto. E <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong>sta perspectiva, escolhemos, como foco da série, os contos fantásticos, as fábulas, os contos <strong>de</strong><br />

origem e as histórias em versos.<br />

O enfoque em cada uma <strong>de</strong>stas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> visa capacitar o educador para que possa<br />

se valer <strong>de</strong>las para melhorar a capacida<strong>de</strong> leitora <strong>de</strong> seus alunos. Daí a liberda<strong>de</strong> com que propomos<br />

diferentes leituras e diferentes ativida<strong>de</strong>s para os textos sugeridos. Pois sabemos que cada<br />

leitor/ouvinte, <strong>na</strong> singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua experiência com diferentes formas <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s, segue um ou<br />

outro caminho, <strong>na</strong> atribuição <strong>de</strong> sentidos às histórias que lê, ouve, conta e escreve, ou reconta e re-<br />

escreve.<br />

Temas que serão <strong>de</strong>batidos <strong>na</strong> série A <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> <strong>na</strong> <strong>literatura</strong> para <strong>crianças</strong> e <strong>jovens</strong>, que será<br />

apresentada no programa Salto para o Futuro/<strong>TV</strong> Escola, <strong>de</strong> 24 a 28 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2005:<br />

PGM 1: Narrativas curtas em prosa e verso<br />

No primeiro programa da série, preten<strong>de</strong>-se mostrar que há diferentes modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> histórias e<br />

que os componentes estruturais das <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s – ação/ perso<strong>na</strong>gem/ espaço/ tempo/ <strong>na</strong>rrador – se<br />

manifestam <strong>de</strong> formas as mais variadas. Procura-se, também, <strong>de</strong>stacar a importância <strong>de</strong> trabalhar<br />

com as <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s curtas – contos fantásticos, fábulas, contos <strong>de</strong> origem e histórias em versos – que<br />

permitem ao professor <strong>de</strong>senvolver projetos a<strong>de</strong>quados ao espaço/tempo da sala <strong>de</strong> aula. A proposta<br />

do programa, que é também a <strong>de</strong> toda a série, é que o professor possa se valer das <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s curtas<br />

para melhorar a capacida<strong>de</strong> leitora <strong>de</strong> seus alunos.<br />

PGM 2: A <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> fantástica<br />

Nos contos fantásticos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aqueles consi<strong>de</strong>rados clássicos, como os dos Irmãos Grimm, os <strong>de</strong><br />

An<strong>de</strong>rsen, até os contos fantásticos da atualida<strong>de</strong>, como a saga <strong>de</strong> Harry Potter, um jovem feiticeiro<br />

criado pela escritora J. K. Rowling, <strong>de</strong>staca-se um ingrediente fundamental: a magia, que é a forma<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS.<br />

6


assumida pela fantasia, <strong>de</strong> que somos dotados, e que nos ajuda a resolver problemas. A fantasia<br />

manifesta-se em todos os gêneros <strong>de</strong> <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>, sejam os populares, como mitos e lendas, sejam os<br />

literários, como as epopéias clássicas e os romances mo<strong>de</strong>rnos. Também está presente em filmes e<br />

peças <strong>de</strong> teatro, em histórias em quadrinhos, novelas <strong>de</strong> televisão ou enredos <strong>de</strong> jogos eletrônicos.<br />

Neste segundo programa da série, preten<strong>de</strong>-se mostrar como trabalhar com os contos fantásticos<br />

consi<strong>de</strong>rados clássicos, que po<strong>de</strong>m colaborar para <strong>de</strong>spertar o interesse pela leitura em <strong>crianças</strong> e<br />

<strong>jovens</strong> e, ainda, para incentivá-los a recriar estas histórias, com novos componentes, pois a<br />

imagi<strong>na</strong>ção é um limite nunca ultrapassado.<br />

PGM 3: A <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> fabulística<br />

As fábulas são <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s – em prosa ou em verso – que geralmente apresentam animais como<br />

perso<strong>na</strong>gens. Animais que pensam, sentem, agem e falam como se fossem pessoas. Mas as fábulas<br />

não apresentam só animais como perso<strong>na</strong>gens. Há fábulas sobre objetos, sobre plantas, sobre<br />

estações do ano, sobre a morte, sobre pessoas. As fábulas mostram pontos <strong>de</strong> vista sobre<br />

comportamentos humanos. Ou seja, recomendam certos comportamentos e censuram outros, que<br />

<strong>de</strong>vem ser evitados. Esse ponto <strong>de</strong> vista – ou opinião – costuma ser explicitado(a) no início ou no<br />

fim das fábulas e é chamado lição ou moral. Esta modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> curta, a fábula, é<br />

a<strong>na</strong>lisada e discutida neste terceiro programa da série. No texto/ base <strong>de</strong>ste programa, o professor<br />

irá encontrar diversas sugestões para trabalhar com as fábulas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Educação Infantil até os<br />

ciclos fi<strong>na</strong>is do Ensino Fundamental.<br />

PGM 4: A <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> etiológica<br />

Contos, fábulas, lendas, mitos, adivinhas, provérbios, histórias <strong>de</strong> assombração povoaram e povoam<br />

o universo imaginário dos brasileiros, trazendo as múltiplas visões <strong>de</strong> mundo dos povos que<br />

formam a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural <strong>de</strong> nosso país. Como parte <strong>de</strong>ste rico ma<strong>na</strong>ncial, procurou-se <strong>de</strong>stacar,<br />

neste quarto programa da série, os contos <strong>de</strong> origem, ou etiológicos, pelas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho<br />

que eles oferecem no cotidiano da sala <strong>de</strong> aula. Essas histórias, que buscam explicar a origem <strong>de</strong><br />

fatos e fenômenos, quase sempre iniciadas com uma pergunta (Por quê....?), estão presentes no<br />

repertório ficcio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> todos os povos, que, cada um à sua maneira, procurou tecer suas explicações<br />

para os mistérios da vida.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS.<br />

7


PGM 5: A <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> poética<br />

As <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s em versos, em especial a <strong>literatura</strong> <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l, são o foco dos <strong>de</strong>bates do quinto<br />

programa da série. Como utilizar a <strong>literatura</strong> <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l em sala <strong>de</strong> aula, como trabalhar as <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s<br />

populares em versos? As diferentes formas <strong>de</strong> apresentação, <strong>de</strong> métrica e <strong>de</strong> temáticas da <strong>literatura</strong><br />

<strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l serão a<strong>na</strong>lisadas. Usando diversos exemplos, o programa irá apresentar sugestões para que<br />

o professor possa incentivar os alunos a conhecerem a <strong>literatura</strong> <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l e a criarem novos textos,<br />

a partir dos mo<strong>de</strong>los comentados no texto/base <strong>de</strong>ste programa, ou inventando novas métricas e<br />

temáticas.<br />

Nota:<br />

1 Professora titular no Departamento <strong>de</strong> Teoria Literária da UNICAMP e consultora<br />

<strong>de</strong>ssa série.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS.<br />

8


PROGRAMA 1<br />

NARRATIVAS CURTAS EM PROSA E VERSO<br />

Nascidos para <strong>na</strong>rrar, <strong>na</strong>rrando para viver<br />

Poema tirado <strong>de</strong> uma notícia <strong>de</strong> jor<strong>na</strong>l<br />

Marisa Lajolo 1<br />

João Gostoso era carregador <strong>de</strong> feira-livre e morava no morro da Babilônia num<br />

barracão sem número<br />

Uma noite ele chegou no bar Vinte <strong>de</strong> Novembro<br />

Bebeu<br />

Cantou<br />

Dançou<br />

Depois se jogou <strong>na</strong> Lagoa Rodrigo <strong>de</strong> Freitas e morreu afogado (p.117)<br />

O Poema tirado <strong>de</strong> uma notícia <strong>de</strong> jor<strong>na</strong>l, <strong>de</strong> Manuel Ban<strong>de</strong>ira, é um texto que po<strong>de</strong> nos<br />

encaminhar para uma reflexão sobre os modos <strong>de</strong> <strong>na</strong>rrar.<br />

Publicado em Liberti<strong>na</strong>gem, livro que Ban<strong>de</strong>ira lançou em 1930, o texto acima é um poema<br />

<strong>na</strong>rrativo. E, com a sutileza dos bons textos, po<strong>de</strong> nos sugerir algumas reflexões sobre modos <strong>de</strong> ser<br />

da <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>. Vê-se logo que o texto <strong>de</strong> Ban<strong>de</strong>ira satisfaz ao requisito <strong>de</strong> levantar/respon<strong>de</strong>r à<br />

pergunta o que aconteceu?, mencio<strong>na</strong>da no texto da Proposta da série. Já numa primeira leitura,<br />

ficamos sabendo: um homem entrou num bar, bebeu, cantou, dançou e matou-se.<br />

O título do texto estabelece seu parentesco com o jor<strong>na</strong>l: o leitor/ouvinte do poema já entra nele<br />

meio preparado para encontrar uma notícia e, ao longo da leitura/audição, talvez vá refi<strong>na</strong>ndo suas<br />

expectativas: algumas seções <strong>de</strong> jor<strong>na</strong>l costumam noticiar histórias <strong>de</strong> pessoas comuns. O <strong>de</strong>sfecho<br />

da história – a morte <strong>de</strong> João – também é ingrediente comum do jor<strong>na</strong>lismo. E o leitor/ouvinte <strong>de</strong><br />

Ban<strong>de</strong>ira talvez experimente uma leve perplexida<strong>de</strong> pelo choque resultante da enumeração seca e<br />

seqüenciada <strong>de</strong> ações <strong>de</strong> celebração, acompanhadas subitamente <strong>de</strong> um gesto <strong>de</strong> morte.<br />

Mergulhados no poema <strong>de</strong> Ban<strong>de</strong>ira, vemos que uma <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> – geralmente – não se constitui <strong>de</strong><br />

segmentos que exprimem exclusivamente ações. E nem po<strong>de</strong>ria, pois ações ocorrem, <strong>na</strong> história,<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS.<br />

9


num <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>do espaço, num <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>do tempo e envolvem perso<strong>na</strong>gens.<br />

Em Poema tirado <strong>de</strong> uma notícia <strong>de</strong> jor<strong>na</strong>l, a perso<strong>na</strong>gem é João Gostoso, o espaço é o Bar Vinte <strong>de</strong><br />

Novembro e a Lagoa Rodrigo <strong>de</strong> Freitas e o tempo é <strong>de</strong> – digamos – uma noite. Mas po<strong>de</strong>ríamos<br />

a<strong>na</strong>lisar <strong>de</strong> outra forma os componentes da <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> e chegarmos a outras conclusões: po<strong>de</strong>ríamos,<br />

por exemplo, dizer que o espaço da <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> é o Rio <strong>de</strong> Janeiro (on<strong>de</strong> existem, efetivamente, um<br />

morro chamado Babilônia e uma lagoa chamada Rodrigo <strong>de</strong> Freitas) e que o tempo <strong>de</strong>la é<br />

contemporâneo nosso (quando existem carregadores <strong>de</strong> feira e moradores <strong>de</strong> barracos).<br />

Mas, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente das concepções <strong>de</strong> espaço e <strong>de</strong> tempo assumidas por diferentes leitores,<br />

talvez todos sejam unânimes <strong>na</strong> constatação <strong>de</strong> que João Gostoso é a perso<strong>na</strong>gem da história<br />

<strong>na</strong>rrada por este poema. E talvez todos sejam também unânimes <strong>na</strong> observação <strong>de</strong> que a história<br />

<strong>de</strong>ste poema é <strong>na</strong>rrada por alguém que não participa <strong>de</strong>la, que a observa “<strong>de</strong> fora” e faz o relato em<br />

terceira pessoa. Este alguém é o <strong>na</strong>rrador, componente essencial <strong>na</strong> construção dos sentidos que as<br />

<strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s ganham para seus diferentes leitores. No caso <strong>de</strong>ste poema, a secura afetiva e a contenção<br />

com que o <strong>na</strong>rrador relata o acontecimento funcio<strong>na</strong>m, para alguns leitores, como forma <strong>de</strong><br />

intensificar o envolvimento com o texto.<br />

Outro texto <strong>de</strong> Ban<strong>de</strong>ira, agora do livro Belo Belo (acrescentado <strong>na</strong> edição <strong>de</strong> 1948 das Poesias<br />

completas), nos apresenta a um outro tipo <strong>de</strong> <strong>na</strong>rrador: um <strong>na</strong>rrador participante da ce<strong>na</strong>, que <strong>na</strong>rra<br />

em primeira pessoa:<br />

Poema só para Jaime Ovalle<br />

Quando hoje acor<strong>de</strong>i, ainda fazia escuro<br />

(Embora a manhã já estivesse avançada).<br />

Chovia.<br />

Chovia uma triste chuva <strong>de</strong> resig<strong>na</strong>ção<br />

Como contraste ao calor tempestuoso da noite.<br />

Então me levantei,<br />

Bebi o café que eu mesmo preparei,<br />

Depois me <strong>de</strong>itei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...<br />

- Humil<strong>de</strong>mente pensando <strong>na</strong> vida e <strong>na</strong>s mulheres que amei. (p. 183)<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 10


Da mesma forma que Poema tirado <strong>de</strong> uma notícia <strong>de</strong> Jor<strong>na</strong>l, este texto também levanta/respon<strong>de</strong> à<br />

questão o que aconteceu? Trata-se <strong>de</strong> um quase relatório <strong>de</strong> afazeres cotidianos e prosaicos:<br />

acordar, levantar, preparar e beber café, voltar a <strong>de</strong>itar-se, acen<strong>de</strong>r um cigarro e pensar. Tudo se<br />

passa no espaço doméstico, e a hora é <strong>de</strong> manhã cedo. A perso<strong>na</strong>gem não é um ele, porém um eu. O<br />

leitor/ouvinte do texto, a partir do título – que parece <strong>de</strong>dicar o poema só (= ape<strong>na</strong>s) para alguém<br />

chamado Jaime Ovalle – começa a entrar no clima <strong>de</strong> confidência, conduzido por uma voz que lhe<br />

<strong>de</strong>vassa – em primeira pessoa – intimida<strong>de</strong>s domésticas. Ao longo do poema, através <strong>de</strong> expressões<br />

como “então” e “<strong>de</strong>pois”, o leitor po<strong>de</strong> imagi<strong>na</strong>r o ritmo <strong>de</strong> sucessão <strong>de</strong> ações, ao mesmo tempo que<br />

as repetições <strong>de</strong> “chovia” e “pensando” po<strong>de</strong>m lhe reforçar a impressão <strong>de</strong> mesmice, <strong>de</strong> isolamento.<br />

Comparando os dois poemas, o leitor experimenta duas formas canônicas <strong>de</strong> apresentar histórias.<br />

Em Poema tirado <strong>de</strong> uma notícia <strong>de</strong> jor<strong>na</strong>l, a <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> é rápida, suportada por verbos <strong>de</strong> ação,<br />

apresentada <strong>de</strong> forma impessoal. Em Poema só para Jaime Ovalle, a <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> é lenta, centrada no<br />

“eu” que a relata, pontuada <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>.<br />

Estas reflexões sobre duas obras-primas <strong>de</strong> um dos maiores poetas brasileiros encerram esta<br />

primeira conversa sobre <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s em geral. Mostram que histórias se <strong>na</strong>rram através <strong>de</strong> diferentes<br />

formatos, inclusive <strong>de</strong> poemas; e que seus componentes estruturais<br />

(ação/perso<strong>na</strong>gem/espaço/tempo/<strong>na</strong>rrador) se manifestam <strong>de</strong> formas variadas, não havendo<br />

portanto, forma preestabelecida <strong>de</strong> percebê-los.<br />

Nos outros textos da série,vamos abordar quatro tipos <strong>de</strong> <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s curtas: os contos fantásticos,as<br />

fábulas,os contos <strong>de</strong> origem e as histórias em versos.<br />

Nota:<br />

1- Professora titular no Departamento <strong>de</strong> Teoria Literária da UNICAMP e consultora<br />

<strong>de</strong>ssa série.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 11


PROGRAMA 2<br />

A NARRATIVA FANTÁSTICA<br />

O conto fantástico: características e trajetória histórica<br />

Regi<strong>na</strong> Zilberman 1<br />

Feliz com o <strong>na</strong>scimento <strong>de</strong> sua filha, um casal resolve promover uma gran<strong>de</strong> festa <strong>de</strong> batizado. Convida<br />

todos seus conhecidos, mas se esquece <strong>de</strong> um <strong>de</strong>les que, com gran<strong>de</strong> indig<strong>na</strong>ção, aparece em meio às<br />

comemorações e amaldiçoa a meni<strong>na</strong> recém-<strong>na</strong>scida: quando atingir quinze anos, ela morrerá. Um dos<br />

convidados, que chegara atrasado, consegue reverter a maldição, atenuando seus efeitos: a garota não<br />

morrerá, mas adormecerá por longo tempo, até ser <strong>de</strong>spertada por seu salvador. O tempo passa, a profecia<br />

se cumpre: a jovem, quando completa 15 anos, cai em sono profundo, permanecendo nesse estado até ser<br />

libertada pelo rapaz que será, mais adiante, seu marido.<br />

A história, resumida acima, é bastante conhecida <strong>de</strong>s<strong>de</strong>, pelo menos, o século XVII, popularizando-<br />

se, sobretudo, <strong>de</strong>pois do século XIX, sendo i<strong>de</strong>ntificada pelo nome adotado por sua perso<strong>na</strong>gem<br />

principal, “A Bela Adormecida no Bosque”. Consi<strong>de</strong>rado um conto <strong>de</strong> fadas clássico, apresenta os<br />

elementos básicos da <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> chamada fantástica, po<strong>de</strong>ndo ajudar a compreen<strong>de</strong>r esse gênero <strong>de</strong><br />

ficção. Vejam-se seus traços mais constantes:<br />

a) O começo mostra uma situação não muito diversa da vida ordinária das pessoas, como é, <strong>na</strong><br />

história em questão, a comemoração do <strong>na</strong>scimento da criança. Nesse contexto relativamente<br />

comum, irrompe um fato extraordinário, fruto da ação <strong>de</strong> uma perso<strong>na</strong>gem dotada <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res<br />

mágicos.<br />

b) A presença <strong>de</strong>ssa perso<strong>na</strong>gem não provoca nenhum estranhamento, nem sua ação é percebida<br />

como incomum. A magia está presente no universo das figuras ficcio<strong>na</strong>is como se fosse normal e<br />

<strong>na</strong>tural, embora nem sempre <strong>de</strong>sejada. O que espanta, no caso, não é a circunstância <strong>de</strong> uma figura<br />

<strong>de</strong>ter um po<strong>de</strong>r sobre<strong>na</strong>tural, mas a extensão da malda<strong>de</strong> cometida por ela, pois <strong>de</strong>seja a morte da<br />

criança inocente.<br />

c) Portanto, os seres munidos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res mágicos po<strong>de</strong>m ser bons ou maus, <strong>de</strong>vendo-se a diferença<br />

ao modo como se comportam perante o protagonista da história. Em “A Bela Adormecida”, a fada<br />

má é aquela que ambicio<strong>na</strong> prejudicar a heroí<strong>na</strong>, enquanto que a fada boa po<strong>de</strong> socorrê-la.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 12


d) Há, pois, uma nítida divisão entre bons e maus, que se complementa <strong>na</strong> <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong>ção<br />

seguidamente diferenciada que recebem. Em “A Bela Adormecida”, são fadas que protagonizam as<br />

ações positivas e negativas; essas últimas, porém, po<strong>de</strong>m resultar <strong>de</strong> seres também bastante<br />

conhecidos, nomeados <strong>de</strong> maneira mais específica, como as bruxas ou feiticeiras.<br />

e) Às vezes, porém, outras figuras po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sempenhar o papel do malvado, como um animal<br />

selvagem (o lobo, em “Chapeuzinho Vermelho”) ou um gigante (em “O Gato <strong>de</strong> Botas”). De todo<br />

modo, predomi<strong>na</strong>m seres pertencentes ao sexo feminino, mas nem todas essas figuras estão<br />

capacitadas a “performar” ações mágicas; é o caso <strong>de</strong> algumas madrastras, como a <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela,<br />

heroí<strong>na</strong> <strong>de</strong> “A Gata Borralheira”.<br />

f) Na história da Bela Adormecida, as perso<strong>na</strong>gens principais pertencem aos segmentos superiores<br />

da socieda<strong>de</strong>: a jovem é filha <strong>de</strong> um rei, e seu salvador, é um príncipe. Nem sempre é assim, porém:<br />

a “Chapeuzinho Vermelho” leva uma existência mo<strong>de</strong>sta <strong>na</strong> companhia <strong>de</strong> sua mãe; “João e Maria”<br />

são <strong>crianças</strong> bastante pobres, situação compartilhada por Cin<strong>de</strong>rela, até a garota encontrar seu<br />

príncipe encantado. De todo modo, as perso<strong>na</strong>gens melhoram <strong>de</strong> situação: livram-se dos perigos,<br />

como ocorre à Branca <strong>de</strong> Neve, perseguida pela madrasta; enriquecem, como suce<strong>de</strong> aos irmãos<br />

João e Maria; ou fazem um bom casamento, como Cin<strong>de</strong>rela. O progresso experimentado pela<br />

perso<strong>na</strong>gem principal <strong>de</strong>ve-se a seus méritos – a beleza da Branca <strong>de</strong> Neve, a coragem <strong>de</strong> João e<br />

Maria, a humilda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela – mas, com poucas exceções, o fator que garante a mudança para<br />

melhor é a ajuda oferecida por aquela perso<strong>na</strong>gem citada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo, a que <strong>de</strong>tém po<strong>de</strong>res<br />

mágicos e sobre<strong>na</strong>turais.<br />

No conto fantástico, a magia <strong>de</strong>sempenha um papel fundamental, estando sua presença associada a<br />

uma perso<strong>na</strong>gem que dificilmente ocupa o lugar principal. Eis uma característica <strong>de</strong>cisiva <strong>de</strong>sse tipo<br />

<strong>de</strong> história: o herói sofre o antagonismo <strong>de</strong> seres mais fortes que ele, carecendo do auxílio <strong>de</strong> uma<br />

figura que usufrui <strong>de</strong> algum po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza extraordinária. Para fazer jus a essa ajuda, porém, o<br />

herói precisa mostrar alguma virtu<strong>de</strong> positiva, que é, seguidamente, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m moral, não <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m<br />

física ou sobre<strong>na</strong>tural.<br />

A presença da magia, enquanto um elemento capaz <strong>de</strong> modificar os acontecimentos, é o que<br />

distingue o conto fantástico. Esse elemento, porém, raramente é manipulado pelo herói, e sim por<br />

seu auxiliar ou por seu antagonista, pois a perso<strong>na</strong>gem principal, aquela que dá nome à <strong><strong>na</strong>rrativa</strong><br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 13


(Branca <strong>de</strong> Neve, Bela Adormecida, Cin<strong>de</strong>rela, João e sua irmã, Maria), é uma pessoa comum,<br />

<strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> qualquer po<strong>de</strong>r. Por essa razão, o leitor po<strong>de</strong> se i<strong>de</strong>ntificar com ela, vivenciando, a<br />

seu lado, os perigos por que passa e almejando uma solução para os problemas que enfrenta.<br />

É possível, pois, enten<strong>de</strong>r o que significa a magia nos contos fantásticos: é a forma assumida pela<br />

fantasia, <strong>de</strong> que somos dotados, e que nos ajuda a resolver problemas. Não significa que a fantasia<br />

está presente ape<strong>na</strong>s nos contos fantásticos. Como <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong>la a criação <strong>de</strong> histórias e <strong>de</strong><br />

perso<strong>na</strong>gens para protagonizá-las, a fantasia manifesta-se em todos os gêneros <strong>de</strong> <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>, sejam<br />

os populares, como mitos e lendas, sejam os literárias, como epopéias clássicas e romances<br />

mo<strong>de</strong>rnos. Po<strong>de</strong> aparecer igualmente em outras expressões artísticas, como em filmes e peças <strong>de</strong><br />

teatro, em histórias em quadrinhos, novelas <strong>de</strong> televisão ou enredos <strong>de</strong> jogos eletrônicos. Acontece<br />

que, nos contos <strong>de</strong> fadas, os seres da fantasia adotaram uma aparência facilmente reconhecível: os<br />

medos corporificaram-se em bruxas ou gigantes, e a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> superá-los, em benfeitores amáveis<br />

e solidários, como as fadas, que colaboram sempre, sem fazerem perguntas, nem cobrarem um<br />

preço.<br />

Por essa razão, os contos fantásticos foram bem acolhidos, quando adaptados para o público<br />

infantil. Elaborados origi<strong>na</strong>lmente pelos camponeses do centro da Europa, foram recolhidos pelos<br />

irmãos Grimm e editados para a leitura das <strong>crianças</strong>, obtendo tanto sucesso que se tor<strong>na</strong>ram o<br />

mo<strong>de</strong>lo seguido pelos escritores que <strong>de</strong>sejaram se comunicar com o mesmo público. O mais<br />

conhecido e mais bem sucedido foi o di<strong>na</strong>marquês Hans Christian An<strong>de</strong>rsen, que soube extrair as<br />

lições contidas <strong>na</strong>quelas histórias tradicio<strong>na</strong>is, tratando, por sua vez, <strong>de</strong> aperfeiçoá-las.<br />

An<strong>de</strong>rsen sabia que o ingrediente principal das histórias era a magia, elemento indispensável, sem o<br />

que a <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> per<strong>de</strong>ria interesse. Porém, evitou atribuí-la a uma perso<strong>na</strong>gem secundária, o auxiliar<br />

mágico, responsável, no conto <strong>de</strong> fadas tradicio<strong>na</strong>l, pela segurança do herói e pelo sucesso <strong>de</strong> suas<br />

ações. Por isso, colocou a magia <strong>na</strong> interiorida<strong>de</strong> do protagonista, tor<strong>na</strong>ndo-a um ser fantástico,<br />

mas, mesmo assim, problemático. É o caso <strong>de</strong> sua criação mais conhecida, o patinho feio. Porque<br />

possui proprieda<strong>de</strong>s huma<strong>na</strong>s – fala, tem sentimentos, sofre com a rejeição –, ele se mostra mágico,<br />

isto é, incomum; além disso, experimenta uma metamorfose, passando do estado <strong>de</strong> “pato” (feio e<br />

i<strong>na</strong><strong>de</strong>quado) para o <strong>de</strong> “cisne” (belo e atraente). Contudo, sua vida é marcada pela mesma<br />

fragilida<strong>de</strong> experimentada pelos figurantes do conto <strong>de</strong> fadas; e, como eles, vai em busca da auto-<br />

afirmação, para po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>scobrir seu lugar no mundo.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 14


A expressão da fragilida<strong>de</strong> do ser humano encontra sua melhor expressão <strong>na</strong>s <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s <strong>de</strong><br />

An<strong>de</strong>rsen, que a corporificou em seres especiais, como a peque<strong>na</strong> sereia e o soldadinho <strong>de</strong> chumbo,<br />

apaixo<strong>na</strong>dos ambos por figuras i<strong>na</strong>cessíveis, distância que se amplia à medida que a <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> se<br />

<strong>de</strong>senvolve. An<strong>de</strong>rsen <strong>de</strong>u novo alcance à fantasia, indicando que, às vezes, ape<strong>na</strong>s pela imagi<strong>na</strong>ção<br />

e criativida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos encontrar uma saída para nossas dificulda<strong>de</strong>s.<br />

Graças a Hans Christian An<strong>de</strong>rsen, o conto fantástico encontrou a rota da renovação permanente,<br />

<strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r do aproveitamento <strong>de</strong> histórias provenientes da cultura popular. Para tanto,<br />

foi preciso proce<strong>de</strong>r a uma supressão, fazendo <strong>de</strong>saparecer, como se observou, o auxiliar dotado <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>res sobre<strong>na</strong>turais; o resultado foi uma espécie <strong>de</strong> cirurgia, que retirou da fantasia o componente<br />

mágico que a acompanhava. A fantasia permaneceu, sem que precisasse recorrer às proprieda<strong>de</strong>s<br />

mágicas das perso<strong>na</strong>gens. Resultou daí uma separação entre dois mundos: num <strong>de</strong>les, rei<strong>na</strong> a<br />

fantasia; no outro, ela está ausente.<br />

É o que se verifica <strong>na</strong>s <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s criadas a partir do legado <strong>de</strong> An<strong>de</strong>rsen, <strong>de</strong> que são exemplos as<br />

obras <strong>de</strong>, pelo menos, três gran<strong>de</strong>s escritores, dois dos quais nem pensavam, prelimi<strong>na</strong>rmente, estar<br />

redigindo para o público infantil: Lewis Carroll, em Alice no País das Maravilhas; James M. Barrie,<br />

em Peter Pan; Monteiro Lobato, no ciclo do Picapau Amarelo. Em qualquer livro <strong>de</strong>sses autores,<br />

mostram-se dois mundos bem distintos: aquele em que a perso<strong>na</strong>gem, via <strong>de</strong> regra uma criança,<br />

vive no início do relato, é rotineiro e sem graça, domi<strong>na</strong>do por adultos acomodados ao cotidiano do<br />

trabalho e da família. Tal como ocorre no conto <strong>de</strong> fadas origi<strong>na</strong>l, uma ruptura ocorre, facultando a<br />

irrupção do sobre<strong>na</strong>tural: Alice persegue o coelho e chega ao País das Maravilhas (Won<strong>de</strong>rland);<br />

Wendy e seus irmãos, li<strong>de</strong>rados por Peter Pan, alcançam a Terra do Nunca (Neverland); Pedrinho<br />

vem da cida<strong>de</strong> para as terras <strong>de</strong> Do<strong>na</strong> Benta, on<strong>de</strong> encontra a boneca falante Emília e todos os seres<br />

fantásticos que habitam o sítio do Picapau Amarelo. Só que as duas realida<strong>de</strong>s – a domi<strong>na</strong>da pela<br />

fantasia, <strong>de</strong> um lado, e a rotineira, <strong>de</strong> outro – não mais se comunicam, mantendo-se separadas para<br />

sempre.<br />

Eis o conto fantástico mo<strong>de</strong>rno, <strong>de</strong> que é exemplo a saga <strong>de</strong> Harry Potter: também o jovem<br />

feiticeiro vive o contraponto entre dois mundos, sendo o da fantasia mais atraente, embora mais<br />

perigoso. Nesse universo sobre<strong>na</strong>tural, porém, ele po<strong>de</strong> se revelar herói, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r valores positivos,<br />

vivenciar a amiza<strong>de</strong> e o amor. A fantasia não ape<strong>na</strong>s ajuda a solucio<strong>na</strong>r problemas, ela é superior ao<br />

contexto cinzento da roti<strong>na</strong> e da experiência doméstica.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 15


Este último é, porém, o mundo do leitor, seja ele adulto ou criança. É a leitura do conto fantástico,<br />

seja o conto <strong>de</strong> fadas tradicio<strong>na</strong>l ou as <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s criadas por An<strong>de</strong>rsen, Lewis Carroll, James M.<br />

Barrie, Monteiro Lobato, J. K. Rowling, que o conduz a outros universos, mais apetecíveis. Por<br />

isso, é preciso nunca abando<strong>na</strong>r essas leituras, em casa ou <strong>na</strong> sala <strong>de</strong> aula. Os professores po<strong>de</strong>m<br />

ajudar as <strong>crianças</strong> não ape<strong>na</strong>s a apreciá-las, mas a enten<strong>de</strong>r porque admiram tanto os heróis que,<br />

valendo-se <strong>de</strong> sua fantasia e imagi<strong>na</strong>ção, sabem resolver seus problemas e, ainda por cima,<br />

colaborar para a felicida<strong>de</strong> dos outros.<br />

Aliás, há muito a fazer em sala <strong>de</strong> aula, até porque algumas histórias são muito conhecidas. Po<strong>de</strong>-se,<br />

por exemplo, rever a história da Bela Adormecida, apresentada no começo, excluindo a<br />

interferência <strong>de</strong> um dos auxiliares mágicos (ou introduzindo outros, extraídos <strong>de</strong> <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s<br />

similares). Ou, então, pensar o que teria acontecido ao patinho feio, se ele tivesse se conformado,<br />

permanecendo com uma família que o rejeitava. Po<strong>de</strong>-se, enfim, <strong>de</strong>scobrir outros países das<br />

maravilhas encravados em nosso cotidiano.<br />

No conto fantástico, a imagi<strong>na</strong>ção é o limite nunca ultrapassado. Em sala <strong>de</strong> aula, po<strong>de</strong> colaborar <strong>na</strong><br />

condução do gosto pela leitura, que levará certamente ao conhecimento <strong>de</strong> novos horizontes<br />

fantásticos.<br />

Nota:<br />

1- Professora titular no Departamento <strong>de</strong> Pós-Graduação em Letras da PUC/RS e<br />

diretora do IEL.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 16


A fábula <strong>na</strong> sala <strong>de</strong> aula<br />

PROGRAMA 3<br />

A NARRATIVA FABULÍSTICA<br />

Luís Camargo 1<br />

Um burro e um cachorro iam andando por uma estrada, quando encontraram uma<br />

carta. Curioso, o burro abriu a carta e começou a lê-la em voz alta. Ela falava<br />

sobre comida boa pra burro, isto é, milho e capim.<br />

– Essa parte você po<strong>de</strong> pular, disse o cachorro. Veja se a carta fala sobre algo<br />

mais útil, como carne, ossos, costela, rabada, essas coisas...<br />

O burro <strong>de</strong>u uma olhada no resto da carta e respon<strong>de</strong>u que nela não havia <strong>na</strong>da<br />

sobre comida para cachorro.<br />

– Então jogue essa carta fora, disse o cachorro, aborrecido. – Ela não presta para<br />

<strong>na</strong>da!<br />

Dizem que essa história mostra que cada um vê as coisas segundo seus próprios<br />

interesses2.<br />

E nós po<strong>de</strong>mos dizer que cada leitor procura em um texto algo que atenda a seus interesses. Ao<br />

contrapor perso<strong>na</strong>gens com interesses diferentes – um herbívoro e um carnívoro –, essa história<br />

mostra também que diferentes leitores po<strong>de</strong>m saborear um texto <strong>de</strong> maneiras diferentes.<br />

Essa história é uma fábula. Pelo menos eu a encontrei em um site que reúne 600 fábulas <strong>de</strong> Esopo,<br />

ou melhor, atribuídas a Esopo. No século I da nossa era, o termo fábula esópica era utilizado não<br />

porque a fábula fosse realmente <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Esopo, mas em sentido geral, como home<strong>na</strong>gem a<br />

Esopo, por sua <strong>de</strong>dicação ao gênero e sua maestria. É importante lembrar que Esopo <strong>de</strong>ve ter vivido<br />

no século VI a.C. e que não conhecemos nenhum texto autógrafo <strong>de</strong>le, ou, como dizem os<br />

advogados, “escrito <strong>de</strong> próprio punho”. As cópias mais antigas das fábulas esópicas são do século X<br />

d.C.<br />

O que realmente Esopo contou e escreveu? Não sabemos. Mas isso não tem importância. O que<br />

importa é que “fábula <strong>de</strong> Esopo” ou “fábula esópica” é um tipo <strong>de</strong> texto <strong>de</strong> origem provavelmente<br />

oriental, que se <strong>de</strong>senvolveu <strong>na</strong> Grécia, passou ao mundo latino e <strong>de</strong>pois às línguas neolati<strong>na</strong>s.<br />

Fedro (15 a.C.), La Fontaine (1621-1695), Monteiro Lobato (1882-1948) e Millôr Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s (1924)<br />

são her<strong>de</strong>iros e recriadores <strong>de</strong>ssa tradição3.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 17


O que é uma fábula? Os antigos diziam que fábula é uma história mentirosa que mostra uma<br />

verda<strong>de</strong>4. Se essa <strong>de</strong>finição tem uma pitada <strong>de</strong> razão, essa história parece ser uma fábula. Pelo<br />

menos por duas razões. Em primeiro lugar, é uma história mentirosa, pois burro e cachorro não<br />

falam nem sabem ler; em segundo lugar, a história mostra uma verda<strong>de</strong>, explicitada <strong>na</strong> penúltima<br />

frase do texto: “cada um vê as coisas segundo seus próprios interesses”.<br />

Aposto que você tem uma idéia sobre o que seja fábula. E arrisco a dizer que seu conceito <strong>de</strong> fábula<br />

é diferente <strong>de</strong>sse que acabei <strong>de</strong> apresentar. Foi <strong>de</strong> propósito, justamente para sugerir que os<br />

conceitos variam ao longo do tempo.<br />

Imagine que estamos sentados em círculo e que um <strong>de</strong> nós proponha um “jogo rápido”: “diga uma<br />

característica da fábula”. Você po<strong>de</strong>ria respon<strong>de</strong>r, por exemplo, “concisão”. De fato, fábulas são<br />

<strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s curtas.<br />

Por serem curtas, as fábulas po<strong>de</strong>m ser facilmente memorizadas e se prestam a exercícios <strong>de</strong><br />

reescrita. Desenhar ajuda a criança a lembrar a história. Em alguns casos, a criança <strong>de</strong>senha o trecho<br />

que mais chamou sua atenção, por exemplo, o clímax da história. Em outros casos, a criança po<strong>de</strong><br />

transformar a história em uma história em quadrinhos. Especialmente no caso <strong>de</strong> <strong>crianças</strong> menores,<br />

<strong>de</strong>senhar <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ler ou ouvir uma história parece favorecer a sua reescrita.<br />

Aliás, parece que – pelo menos <strong>na</strong>s quatro primeiras séries do Ensino Fundamental – a reescrita<br />

<strong>de</strong>pois da audição <strong>de</strong> um texto funcio<strong>na</strong> melhor do que a reescrita <strong>de</strong>pois da leitura. Por quê?<br />

Porque, <strong>de</strong>pois da leitura, muitas vezes a criança continua tendo acesso ao texto, o que po<strong>de</strong> levá-la<br />

a consultá-lo, a relê-lo. Assim, em lugar <strong>de</strong> reconstruir mentalmente o texto e reescrevê-lo “com<br />

suas palavras” – como se costuma dizer –, a criança po<strong>de</strong> se sentir atraída a copiar o texto ou, pelo<br />

menos, alguns <strong>de</strong> seus trechos.<br />

A reescrita permite avaliar a compreensão do texto e, ao mesmo tempo, serve para a criança<br />

exercitar e flexibilizar sua escrita, apren<strong>de</strong>ndo que um mesmo conteúdo po<strong>de</strong> ser expresso <strong>de</strong><br />

maneiras diferentes. (É verda<strong>de</strong> que mudanças <strong>na</strong> forma provocam mudanças no sentido, mas essa é<br />

uma sutileza <strong>de</strong> difícil compreensão para <strong>crianças</strong> em fases iniciais <strong>de</strong> leitura e escrita.)<br />

Há procedimentos que nós po<strong>de</strong>mos perceber facilmente <strong>na</strong>s reescritas infantis (e não só infantis):<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 18


1) substituição <strong>de</strong> palavra por sinônimo ou <strong>de</strong> uma expressão por outra, equivalente;<br />

2) adição <strong>de</strong> palavras ou <strong>de</strong> informações relevantes;<br />

3) subtração <strong>de</strong> palavras;<br />

4) mudança <strong>na</strong> or<strong>de</strong>m das palavras ou das frases.<br />

Depois da reescrita, os alunos po<strong>de</strong>m trocar seus textos, <strong>de</strong> maneira que cada um conheça e<br />

aproveite o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> pelo menos um outro colega. O colega, por sua vez, po<strong>de</strong>ria fazer uma<br />

releitura prestando atenção, por exemplo, <strong>na</strong> ortografia, <strong>na</strong> acentuação ou <strong>na</strong> pontuação. Ou tudo<br />

junto. Cabe a você dosar a dificulda<strong>de</strong> da ativida<strong>de</strong>. Dessa maneira, o colega po<strong>de</strong> funcio<strong>na</strong>r como<br />

revisor.<br />

Vale a pe<strong>na</strong>, em seguida, que o aluno releia o texto origi<strong>na</strong>l, cotejando com sua reescrita e marcando<br />

as alterações que fez. Em grupos, os alunos po<strong>de</strong>riam procurar sintetizar essas diferenças. Como já<br />

vimos: substituição, adição, subtração e mudança <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m. Antes <strong>de</strong> propor esse exercício aos<br />

alunos, você mesmo po<strong>de</strong>ria escolher um ou mais trechos e mostrar os vários tipos <strong>de</strong> recursos <strong>de</strong><br />

reescrita utilizados pelos seus alunos. Há vários outros recursos, que os alunos po<strong>de</strong>m apren<strong>de</strong>r<br />

gradativamente, como a mudança <strong>de</strong> tempo verbal, por exemplo, do passado para o presente;<br />

mudança do discurso direto (– Essa parte você po<strong>de</strong> pular, disse o cachorro.) para o discurso<br />

indireto (O cachorro disse que essa parte ele podia pular.) etc.<br />

As fábulas são <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s – em prosa ou em verso – que geralmente apresentam animais como<br />

perso<strong>na</strong>gens. Animais que pensam, sentem, agem e falam como se fossem pessoas. Esse recurso <strong>de</strong><br />

atribuir características huma<strong>na</strong>s a outros seres – animais, plantas, objetos, conceitos como morte ou<br />

justiça etc. – é conhecido como personificação.<br />

O termo personificação po<strong>de</strong> parecer complicado, mas as <strong>crianças</strong> usam bastante esse recurso em<br />

seus <strong>de</strong>senhos. Por exemplo, Eduarda, 9 anos:<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 19


Figura 1: Desenho <strong>de</strong> Eduarda, 9 anos.<br />

Eduarda escreveu a seguinte legenda para seu <strong>de</strong>senho: “Eu imaginei um sol sorrindo, nuvens<br />

brancas, flores no jardim, uma árvore cheia <strong>de</strong> frutos e a grama ver<strong>de</strong> verdinha”. Note a expressão<br />

sol sorrindo, personificação que aparece tanto no <strong>de</strong>senho como <strong>na</strong> legenda.<br />

Quando trabalhei com Educação Infantil, notei que as <strong>crianças</strong> gostavam <strong>de</strong> ouvir histórias <strong>de</strong><br />

animais e, ao brincar com teatro <strong>de</strong> bonecos, preferiam animais para expressar seus sentimentos. É<br />

mais fácil para a criança expressar raiva brincando <strong>de</strong> ser um jacaré raivoso do que brincar <strong>de</strong><br />

criança raivosa e, mais ainda, admitir que ela mesma tem sentimentos negativos. Por falar em<br />

jacaré, lembro <strong>de</strong> uma fórmula-<strong>de</strong>-escolha que gerou várias brinca<strong>de</strong>iras com um fantoche<br />

representando um jacaré: “Fui andando num caminho, encontrei um jacaré, eu pisei no rabo <strong>de</strong>le,<br />

me mandou tomar café”.<br />

Levei bonecos representando alguns animais brasileiros como jabuti, arara e tucano. Mas, <strong>na</strong> falta<br />

<strong>de</strong> histórias sobre esses animais, as <strong>crianças</strong> não relacio<strong>na</strong>vam os animais com sentimentos ou<br />

comportamentos específicos (por exemplo, o lobo mau...) e esses bonecos eram pouco utilizados.<br />

Isso sugere que a criação infantil <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los adultos. Ao contrário da i<strong>de</strong>alização da<br />

criança como ser espontâneo e criativo, percebemos que a criança cria segundo mo<strong>de</strong>los cognitivos<br />

herdados geneticamente (por exemplo, toda criança, antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar figuras, rabisca sem intenção<br />

figurativa) e recria a partir <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los herdados culturalmente, isto é, apropriados graças à<br />

mediação do adulto ou <strong>de</strong> outras <strong>crianças</strong>.<br />

Talvez muito professor se frustre com as produções infantis (<strong>de</strong>senho, escrita etc.) por conta <strong>de</strong>ssa<br />

i<strong>de</strong>alização da criativida<strong>de</strong> infantil. É preciso fornecer mo<strong>de</strong>los. Antes <strong>de</strong> ser capaz <strong>de</strong> inventar uma<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 20


fábula, a criança precisará ter lido, ouvido e assistido (no teatro, no cinema, <strong>na</strong> <strong>TV</strong>) muitas fábulas...<br />

Uma prática muito comum é pedir para a criança escrever um texto logo <strong>de</strong>pois do primeiro contato<br />

com um <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>do tipo <strong>de</strong> texto, por exemplo, ler um poema e imediatamente ser solicitado a<br />

escrever um poema. Por falta <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los suficientes a criança acaba repetindo o mo<strong>de</strong>lo com<br />

pouquíssimas alterações.<br />

Algo semelhante ocorre com escritores iniciantes que repetem mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong>sgastados, por falta <strong>de</strong><br />

contato com mo<strong>de</strong>los variados. É verda<strong>de</strong> que não se apren<strong>de</strong> a escrever só lendo, mas a leitura e a<br />

reflexão sobre a leitura são fundamentais para o <strong>de</strong>senvolvimento da escrita. A reescrita também é<br />

outro procedimento fundamental. As <strong>crianças</strong> muitas vezes conotam a reescrita como algo negativo,<br />

porque “ainda não sabem escrever”. Na verda<strong>de</strong>, a reescrita é procedimento comum <strong>de</strong> muito<br />

escritor reconhecido. Raramente o escritor escreve <strong>de</strong> uma vez, sem alterações.<br />

As fábulas não apresentam só animais como perso<strong>na</strong>gens. Há fábulas sobre objetos, sobre plantas,<br />

sobre estações do ano, sobre a morte, sobre pessoas, inclusive pessoas conhecidas, como Esopo ou<br />

poeta grego Simôni<strong>de</strong>s.<br />

Ao ilustrar a fábula A cigarra e a formiga, <strong>de</strong> La Fontaine, Marcelo Pacheco <strong>de</strong>senhou uma cigarra<br />

sentada em um banquinho, com um violão, com os olhos fechados, como se cantasse para si mesma.<br />

Essas referências po<strong>de</strong>m ser interpretadas como alusões a João Gilberto e à bossa nova. De um lado,<br />

o texto é uma tradução do francês para o português; <strong>de</strong> outro, a ilustração parece ter traduzido a<br />

fábula para o universo cultural brasileiro5.<br />

Figura 2: A cigarra e a formiga<br />

Essa ilustração me sugeriu a idéia <strong>de</strong> adaptar fábulas tradicio<strong>na</strong>is para o cenário brasileiro, ou<br />

melhor, para diferentes cenários brasileiros. Foi o que procurei fazer com a fábula abaixo.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 21


A onça e o cabrito<br />

Foi um dia, apareceu uma onça no sertão. Depois <strong>de</strong> urrar pela caatinga, sem<br />

nenhuma barraquinha <strong>de</strong> água-<strong>de</strong>-coco ou cachorro-quente, a onça estava com<br />

se<strong>de</strong> e com fome. E pensou: “quem não tem cachorro-quente, come cabrito”.<br />

Num lugar alto e pedrento, cheio <strong>de</strong> cactos – mandacarus, palmas e xiquexiques –<br />

pastava um cabrito. A onça resolveu almoçar o cabrito.<br />

– Seu cabrito, o senhor não <strong>de</strong>via se arriscar nesse monte pedregoso! Veja como o<br />

campo aqui embaixo é mais ver<strong>de</strong>!<br />

– Do<strong>na</strong> onça, a senhora me <strong>de</strong>sculpe, mas não vou cair nessa conversa mole para<br />

boi dormir: eu sei bem que a senhora está mais interessada no seu almoço do que<br />

no meu.<br />

E saiu cabriolando monte acima.<br />

Sem água-<strong>de</strong>-coco, sem cachorro-quente nem cabrito, a onça pegou umas palmas,<br />

tirou os espinhos, fez uma salada e comeu.<br />

As fábulas mais antigas foram inventadas <strong>na</strong> Grécia e <strong>na</strong> Índia. Por isso elas fazem referência a<br />

animais, plantas e costumes <strong>de</strong>ssas regiões. A fábula acima é uma adaptação <strong>de</strong> uma fábula grega<br />

em que um bo<strong>de</strong> (ou uma cabra) se <strong>de</strong>fronta com um leão (ou um lobo, e no <strong>Brasil</strong>, adaptou-se para<br />

uma onça). Como as fábulas são muito antigas, há muitas e muitas versões, sendo difícil <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>r<br />

qual é a versão origi<strong>na</strong>l. Na adaptação, acima o cenário é brasileiro: a ação se passa no Nor<strong>de</strong>ste<br />

brasileiro.<br />

No livro didático em que essa fábula foi publicada aparece a seguinte proposta: “Reescreva essa –<br />

ou outra fábula – incluindo plantas, animais e outros elementos da sua região”6.<br />

Por falar em ilustração, <strong>na</strong> internet você po<strong>de</strong> encontrar muitas ilustrações <strong>de</strong> fábulas. Algumas das<br />

mais curiosas são a que ilustram o livro O labirinto <strong>de</strong> Versalhes. Esse labirinto era uma parte dos<br />

jardins do Palácio <strong>de</strong> Versalhes, com fontes inspiradas <strong>na</strong>s fábulas <strong>de</strong> Esopo.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 22


Figura 3: Ilustração para o livro O labirinto <strong>de</strong> Versalhes, <strong>de</strong> Charles Perrault7.<br />

Figura 4: Ilustração <strong>de</strong> Gustave Doré para a fábula A cigarra e a formiga, <strong>de</strong> La Fontaine8.<br />

Note que os animais personificados da fábula aparecem aqui como figuras huma<strong>na</strong>s: a cigarra,<br />

como violonista; a formiga, como do<strong>na</strong>-<strong>de</strong>-casa.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 23


Figura 5: Xilogravura que ilustra a fábula O leão e a cabra em um livro em latim, publicado <strong>na</strong> Alemanha<br />

em 15019.<br />

Figura 6: Gravura <strong>de</strong> A. Delierre para a fábula A tartaruga e os dois patos, <strong>de</strong> La Fontaine, inspirada <strong>na</strong><br />

tradição hindu10.<br />

As fábulas mostram pontos <strong>de</strong> vista sobre comportamentos humanos. Ou seja, recomendam certos<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 24


comportamentos e censuram outros, que <strong>de</strong>vem ser evitados. Esse ponto <strong>de</strong> vista – ou opinião –<br />

costuma ser explicitado(a) no início ou no fim das fábulas e é chamado lição ou moral. Na fábula<br />

que inicia este texto, a moral aparece ao fi<strong>na</strong>l, <strong>de</strong>stacada da história: “Dizem que essa história<br />

mostra que cada um vê as coisas segundo seus próprios interesses”. Já <strong>na</strong> segunda fábula, a moral<br />

aparece propositalmente disfarçada no interior do texto: “a senhora está mais interessada no seu<br />

almoço do que no meu”, forma indireta <strong>de</strong> recomendar cautela face aos conselhos <strong>de</strong> um inimigo,<br />

cuja hipocrisia é <strong>de</strong>smascarada como “conversa mole para boi dormir”. Essa adaptação não <strong>de</strong>ixou<br />

a onça a ver <strong>na</strong>vios, sugerindo a importância <strong>de</strong> saber improvisar, saber adaptar-se às situações. A<br />

moral “quem não tem cachorro-quente, come cabrito”, explicitada no início da fábula, transforma-<br />

se em “quem não tem cabrito, come palma”, tanto uma como a outra, brinca<strong>de</strong>iras com o provérbio<br />

popular “quem não tem cão caça com gato”.<br />

Nem toda fábula tem uma moral explícita e, em diferentes versões, a moral po<strong>de</strong> variar, mesmo<br />

quando os perso<strong>na</strong>gens e os acontecimentos são os mesmos. Isso mostra que diferentes leitores<br />

po<strong>de</strong>m tirar diferentes lições <strong>de</strong> uma mesma fábula. O que, aliás, já dizia a fábula que escolhi para<br />

iniciar este texto... Não parece fazer muito sentido, assim, cobrar que todos os alunos dêem a<br />

mesma resposta sobre a lição <strong>de</strong> uma fábula. A não ser que nosso objetivo seja ape<strong>na</strong>s que os alunos<br />

<strong>de</strong>corem as respostas que nos agradam mais.<br />

Escrevi propositalmente “respostas que nos agradam mais” pois uma mesma fábula po<strong>de</strong> permitir<br />

diferentes interpretações. Experimente, por exemplo, reunir seus colegas e dar a cada um três<br />

fábulas para ler, tomando o cuidado <strong>de</strong> antes elimi<strong>na</strong>r a moral (se houver moral explícita). Em<br />

seguida, peça que cada um escreva “o que você acha que essa fábula mostra” ou “para você, qual a<br />

lição <strong>de</strong>ssa fábula” ou ainda “<strong>na</strong> sua opinião, qual a moral <strong>de</strong>ssa fábula”. Claro que haverá<br />

convergências e até mesmo semelhanças muito gran<strong>de</strong>s, mas nunca uma uniformida<strong>de</strong> completa.<br />

Use essa experiência com seus alunos: se você quiser discutir a moral <strong>de</strong> uma fábula, incentive a<br />

diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretações. Mais importante do que a resposta é a justificativa para a resposta.<br />

Justificar uma resposta significa apren<strong>de</strong>r a argumentar; ouvir argumentações, apren<strong>de</strong>r a contra-<br />

argumentar e a respeitar diferenças, pois nem sempre é possível (ou até mesmo <strong>de</strong>sejável) a<br />

uniformida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento.<br />

Vale a pe<strong>na</strong> falar um pouco sobre a tradição hindu, mencio<strong>na</strong>da <strong>de</strong> passagem, pois só muito<br />

recentemente é que essa tradição começou a circular no <strong>Brasil</strong>, em português11.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 25


Na tradição hindu, as fábulas são entrelaçadas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> maior; os perso<strong>na</strong>gens<br />

geralmente têm nomes que se referem a alguma característica do perso<strong>na</strong>gem. Por exemplo, a<br />

tartaruga Kambugriva, cujo nome em sânscrito quer dizer pescoço enrugado como uma concha. Ao<br />

adaptar essa fábula, troquei o nome Kambugriva por Casca-Dura, que me pareceu uma<br />

característica que po<strong>de</strong>ria ser mais facilmente reconhecida pelas <strong>crianças</strong> do que pescoço enrugado.<br />

A tartaruga Casca-Dura<br />

Em um lago, viviam três amigos: uma tartaruga chamada Casca-Dura e dois<br />

cisnes, Miúdo e Graúdo. Casca-Dura encontrava Miúdo e Graúdo <strong>na</strong>s margens do<br />

lago. Eles ficavam contando histórias o dia inteiro e os dois cisnes só voltavam ao<br />

ninho <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>zinha, quando o sol se punha.<br />

Houve um tempo sem chuvas e o lago foi secando. Miúdo e Graúdo começaram a<br />

se preocupar. Miúdo disse:<br />

– Casquinha (esse era o apelido carinhoso com que os cisnes chamavam sua<br />

amiga), o lago está secando.<br />

Graúdo completou:<br />

– Como é que você vai sobreviver?<br />

Casca-Dura respon<strong>de</strong>u:<br />

– Vocês têm razão! Logo, logo não vamos ter água para viver. Por isso, <strong>de</strong>vemos<br />

pensar no que fazer, pois “quem quer água limpa, busca <strong>na</strong> fonte”. Como o povo<br />

diz, “a necessida<strong>de</strong> é a mãe das invenções.”<br />

Miúdo perguntou:<br />

– O que você sugere?<br />

Casca-Dura propôs:<br />

– Primeiro, procurem uma lagoa com bastante água.<br />

Nos dias seguintes, Miúdo e Graúdo procuraram uma lagoa.<br />

Ao fi<strong>na</strong>l <strong>de</strong> uma sema<strong>na</strong>, Graúdo <strong>de</strong>u a notícia:<br />

– Casquinha, nós encontramos uma lagoa, mas é muito longe. Como você vai<br />

chegar lá?<br />

Casca-Dura então propôs:<br />

–Tragam um galho leve. Eu vou agarrar com os <strong>de</strong>ntes no meio do galho e vocês,<br />

<strong>na</strong>s pontas. Depois <strong>de</strong> agarrarmos todos juntos, vocês me levarão até a lagoa.<br />

Miúdo disse:<br />

– O povo costuma dizer que “<strong>na</strong> necessida<strong>de</strong> se prova a amiza<strong>de</strong>”.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 26


Graúdo completou:<br />

– Casquinha, vamos fazer direitinho como você propôs, mas você precisa ficar <strong>de</strong><br />

bico calado. “Boca <strong>de</strong> siri”, como se diz por aí, senão você cairá do galho.<br />

E assim fizeram.<br />

Na viagem, os três sobrevoaram uma cida<strong>de</strong>zinha. Os habitantes, surpresos,<br />

disseram:<br />

– Nossa! Os cisnes estão levando uma tartaruga!<br />

Ouvindo o burburinho, Casca-Dura respon<strong>de</strong>u:<br />

– O que é que há? Nunca viu, cara <strong>de</strong> pavio?<br />

Na verda<strong>de</strong>, era o que Casca-Dura queria dizer, mas ela caiu <strong>na</strong> meta<strong>de</strong> da frase.<br />

E – como você po<strong>de</strong> imagi<strong>na</strong>r – a tartaruga foi feita em pedacinhos. Por isso, eu<br />

digo:<br />

“Quem não consegue ficar <strong>de</strong> bico calado quando é preciso morre como a<br />

tartaruga que caiu do galho.”12<br />

Como você po<strong>de</strong> perceber, uma característica da fábula hindu é a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> provérbios incluída<br />

no corpo da fábula, ao contrário da tradição esópica, em que a moral aparece no começo ou no fim<br />

da fábula. Aqui não é possível mostrar o entrelaçamento das fábulas, que é talvez a característica<br />

que mais distingue a tradição hindu da tradição esópica.<br />

Para fi<strong>na</strong>lizar esses apontamentos, vale a pe<strong>na</strong> <strong>de</strong>stacar que nós não precisamos “trabalhar” com<br />

todos os textos. Precisamos acreditar <strong>na</strong> força dos próprios textos, <strong>na</strong> força educativa da leitura.<br />

Sugestões <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s<br />

Po<strong>de</strong>-se incentivar os alunos a mudar o gênero do texto, por exemplo, passar do texto <strong>na</strong>rrativo para<br />

o texto dramático. Para isso, é necessário ir do mais simples ao mais complexo, como confeccio<strong>na</strong>r<br />

bonecos com cartoli<strong>na</strong> <strong>de</strong>senhada e recortada, presa em lápis ou canetas; improvisar diálogos e<br />

<strong>de</strong>pois escrevê-los; escrever diálogos a partir <strong>de</strong> ilustrações mostrando dois ou mais perso<strong>na</strong>gens<br />

etc. Para a escrita <strong>de</strong> textos dramáticos é importante também ter contato com textos dramáticos<br />

curtos, por exemplo, para teatro <strong>de</strong> bonecos, tanto pela leitura silenciosa como pela leitura em voz<br />

alta.<br />

As ilustrações <strong>de</strong> fábulas po<strong>de</strong>m servir como matéria-prima para várias ativida<strong>de</strong>s em sala <strong>de</strong> aula:<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 27


1) imagi<strong>na</strong>r e escrever um diálogo entre os animais que aparecem <strong>na</strong> ilustração;<br />

2) em dupla, fazer uma leitura em voz alta do diálogo;<br />

3) com bonecos <strong>de</strong> papel recortado, dramatizar o diálogo;<br />

4) imagi<strong>na</strong>r o que aconteceu antes e o que vai acontecer <strong>de</strong>pois da ce<strong>na</strong> representada;<br />

5) <strong>de</strong>senhar a ce<strong>na</strong> anterior e a ce<strong>na</strong> posterior;<br />

6) escrever o que aconteceu nessas ce<strong>na</strong>s.<br />

Se você quiser, durante um mês, <strong>de</strong>senvolver uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura sobre fábula, você po<strong>de</strong>ria<br />

selecio<strong>na</strong>r vinte fábulas13. Quatro <strong>de</strong>ssas fábulas po<strong>de</strong>riam ser objeto <strong>de</strong> alguma das várias<br />

ativida<strong>de</strong>s sugeridas neste texto. As outras <strong>de</strong>zesseis fábulas po<strong>de</strong>riam simplesmente ser lidas em<br />

voz alta. Nos outros dias da sema<strong>na</strong>, você po<strong>de</strong>ria ler uma fábula por dia para os alunos. Po<strong>de</strong>ria<br />

fazer um comentário, incentivar os alunos a comentarem, mas sem “cobranças”: comenta quem<br />

quiser comentar. Ninguém <strong>de</strong>ve ser pe<strong>na</strong>lizado por não falar. Por outro lado, é preciso colocar um<br />

pouco <strong>de</strong> limites em quem não permite que os outros falem, mesmo sem querer, até mesmo por<br />

excesso <strong>de</strong> extroversão... Depois <strong>de</strong> uma sema<strong>na</strong> você po<strong>de</strong>ria ir alter<strong>na</strong>ndo uma fábula lida por<br />

você com uma fábula lida por um aluno. Conforme o <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> leitura dos alunos, <strong>na</strong> última<br />

sema<strong>na</strong> só os alunos leriam. Eventualmente, um grupo <strong>de</strong> alunos po<strong>de</strong>ria fazer a leitura em voz alta<br />

<strong>de</strong> uma fábula, distribuindo as falas entre o <strong>na</strong>rrador e os perso<strong>na</strong>gens.<br />

Livros artesa<strong>na</strong>is confeccio<strong>na</strong>dos pelos alunos, com reescritas <strong>de</strong> fábulas, ilustradas; exposição <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senhos; apresentações <strong>de</strong> teatro <strong>de</strong> bonecos – tudo isso po<strong>de</strong>m ser formas <strong>de</strong> mostrar o trabalho<br />

dos alunos para a escola e para a comunida<strong>de</strong> escolar.<br />

Notas:<br />

1- Editor assistente <strong>de</strong> <strong>literatura</strong> infantil e juvenil da Editora FTD, escritor e ilustrador<br />

<strong>de</strong> livros infantis. Formado em artes plásticas, mestre em letras pela Unicamp, está<br />

concluindo o doutorado <strong>na</strong> mesma área, <strong>na</strong> mesma universida<strong>de</strong>, sob orientação <strong>de</strong><br />

Marisa Lajolo, consultora <strong>de</strong>sta série. Vem estudando o gênero fábula <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1998.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 28


Lecionou cursos sobre o tema para professores e realizou (a distância) ativida<strong>de</strong>s<br />

com alunos do ensino fundamental, além traduzir e adaptar algumas fábulas.<br />

Site: http://caracol.imagi<strong>na</strong>rio.com/autografos/luiscamargo/in<strong>de</strong>x.html<br />

2- Essa é uma adaptação, <strong>de</strong> minha autoria, da fábula The Donkey, the Dog and the<br />

Letter, tirada <strong>de</strong> Aesop’s Fables, translated by Laura Gibbs. Disponível em:<br />

http://www.mythfolklore.net/aesopica/oxford/in<strong>de</strong>x.htm; acesso em 25 set. 2005.<br />

3- Ver, por exemplo:<br />

DEZOTTI, Maria Celeste Consolin (Org.). A tradição da fábula: <strong>de</strong> Esopo a La<br />

Fontaine. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial, 2003.<br />

LOBATO, Monteiro. Fábulas. 50. ed. São Paulo: <strong>Brasil</strong>iense, 2001.<br />

FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. 15. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nórdica, 1999.<br />

4- Essa é a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Aelius Theon, retórico do primeiro século da nossa era. Ver:<br />

PROGYMNASMATA: Greek textbooks of prose composition and rhetoric. Translated<br />

with introductions and notes by George A. Kennedy. Atlanta, GA: Society of Biblical<br />

Literature, 2003. (Writings from the Greco-Roman World, 10).<br />

5- Ilustração publicada no livro (hoje fora <strong>de</strong> catálogo): GOLDSTEIN, Norma; DIAS,<br />

Marinez. Linguagem e vida: 5a. série. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993.<br />

6- VIVA VIDA: livro integrado. Nova ed. São Paulo: FTD, 2004. v. 4, p. 191-192.<br />

7- Livro online, no site Gallica, disponível em: http://gallica.bnf.fr/; para acessar o<br />

livro, clique em “Recherche” e digite, em “Mots du titre”, “labyrinthe <strong>de</strong> versailles”. Vá<br />

folheando o livro até aparecerem as ilustrações.<br />

8- Ilustração disponível em: http://gallica.bnf.fr/; para acessá-la, clique em<br />

“Recherche” e digite, em “Mots du titre”, “fables” e, em “Auteur”, “doré”. Clique em<br />

“Illustrations <strong>de</strong>s Fables”. Esta é a imagem 7. Clique <strong>na</strong> imagem para ampliá-la.<br />

9- Livro online, no site da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mannheim, disponível em: http://www.unimannheim.<strong>de</strong>/mateo/<strong>de</strong>sbillons/esop.html;<br />

para acessar as imagens, clique nos links<br />

em azul. Se você não sabe alemão nem latim (como eu), <strong>na</strong>vegue por tentativas,<br />

erros e acertos. Esta imagem é a S. 208.<br />

10- Ilustração disponível em: http://gallica.bnf.fr/; para acessá-la, clique em<br />

“Recherche” e digite, em “Auteur”, “<strong>de</strong>lierre”. Clique em “Illustrations <strong>de</strong> Les Fables”.<br />

Esta é a imagem 59.<br />

11- Graças, por exemplo, a: PAÑCATANTRA: fábulas india<strong>na</strong>s – livro 1. Traduzido do<br />

sânscrito para o português por Maria da Graça Tesheiner, Marianne Erps Fleming,<br />

Maria Valíria A<strong>de</strong>rson <strong>de</strong> Mello Vargas. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 2003.<br />

12- Adaptação minha a partir <strong>de</strong>: PAÑCATANTRA: fábulas india<strong>na</strong>s – livro 1. p. 171-<br />

174. Extraí alguns provérbios <strong>de</strong>: PINTO, Ciça Alves. Livro dos provérbios, ditados,<br />

ditos populares e anexins. 3. ed. São Paulo: Se<strong>na</strong>c São Paulo, 2002.<br />

13- Unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura é um termo proposto por Ezequiel Theodoro da Silva para se<br />

referir a um tema gerador abordado por meio <strong>de</strong> textos variados. Ver: SILVA,<br />

Ezequiel Theodoro da. Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura: trilogia pedagógica. Campi<strong>na</strong>s: Autores<br />

Associados, 2003. (Coleção Linguagem e Socieda<strong>de</strong>).<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 29


Histórias da tradição oral: os contos etiológicos<br />

Por que os cães se cheiram uns aos outros?<br />

PROGRAMA 4<br />

CONTOS DE ORIGEM<br />

Magda Frediani 1<br />

Rogério Andra<strong>de</strong> Barbosa 2<br />

Quando os cães gover<strong>na</strong>vam-se a si mesmos, havia dois gran<strong>de</strong>s reinos chefiados<br />

por po<strong>de</strong>rosos cães. Cada um <strong>de</strong>les gabava-se <strong>de</strong> ter mais súditos e riquezas do<br />

que o outro. Embora fossem adversários, viviam em paz, e essa trégua só foi<br />

quebrada no dia em que um <strong>de</strong>les se apaixonou pela irmã do outro chefe. Perdido<br />

<strong>de</strong> amores, ele se dirigiu pessoalmente aos domínios do rival:<br />

– Meu nobre amigo – disse o cão apaixo<strong>na</strong>do -, fiz essa longa e cansativa viagem<br />

até o teu reino para pedir a mão da tua irmã em casamento.<br />

– Com a minha irmã! – respon<strong>de</strong>u aos gritos o outro cão –, não quero que você<br />

case com ela <strong>de</strong> jeito nenhum.<br />

Humilhado com a resposta, o cão <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhado voltou furioso para sua corte. Assim<br />

que chegou, reuniu o Conselho <strong>de</strong> Guerra e mandou chamar um fiel servidor para<br />

que levasse a seguinte mensagem ao seu inimigo:<br />

– Diga-lhe que como me recusou a mão da irmã, que se prepare para lutar, pois<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> poucos dias irei marchar com meu exército para <strong>de</strong>struí-lo.<br />

O mensageiro ouviu tudo bem direitinho e já ia partindo quando um dos<br />

conselheiros reais o chamou:<br />

– Você não po<strong>de</strong> sair assim todo sujo – disse o conselheiro real. – A sua cara e a<br />

cauda estão imundas.<br />

Os criados <strong>de</strong>ram um longo banho no mensageiro e perfumaram a cauda <strong>de</strong>le com<br />

os melhores perfumes do reino, pois <strong>de</strong> acordo com os costumes daquele tempo,<br />

um mensageiro tinha que se preparar a<strong>de</strong>quadamente para executar uma tarefa.<br />

No caminho, o mensageiro achou-se tão cheiroso e galante que começou a<br />

procurar esposas para ele mesmo, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> lado a missão que o chefe havia<br />

lhe confiado.<br />

É por isso que os cães andam sempre atrás uns dos outros, cheirando as suas<br />

caudas, para verem se acham o mensageiro perdido3.<br />

Um país pluriétnico e multicultural como o <strong>Brasil</strong> possui, como não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, uma<br />

riquíssima <strong>literatura</strong> oral, transmitida <strong>de</strong> geração a geração, formando um repertório lúdico e<br />

mágico. São contos, fábulas, lendas, mitos, adivinhas, provérbios, histórias <strong>de</strong> assombração que<br />

povoaram e povoam o universo imaginário dos brasileiros, trazendo as múltiplas visões <strong>de</strong> mundo<br />

dos povos que formam a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural <strong>de</strong> nosso país.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 30


Estas histórias, oriundas da tradição indíge<strong>na</strong>, africa<strong>na</strong> e européia, conquistaram novos espaços,<br />

sendo recontadas por diversos escritores e ilustradores nos livros <strong>de</strong> <strong>literatura</strong> para <strong>crianças</strong> e<br />

<strong>jovens</strong>. São “contos <strong>de</strong> fadas”, que têm como perso<strong>na</strong>gens reis e rainhas, príncipes e princesas,<br />

vivendo em épocas remotas e em reinos longínquos e <strong>de</strong>sconhecidos... São lendas <strong>de</strong> criaturas<br />

encantadas, que habitam as matas, ou se escon<strong>de</strong>m <strong>na</strong>s profun<strong>de</strong>zas das águas dos rios e dos mares.<br />

São fábulas, que mostram animais que falam como nós e se <strong>de</strong>param com situações semelhantes às<br />

que vivemos em nosso dia-a-dia. São mitos <strong>de</strong> heróis que enfrentam <strong>de</strong>safios e se envolvem em<br />

aventuras fantásticas, buscando um objeto que po<strong>de</strong> trazer a salvação para uma comunida<strong>de</strong> em<br />

perigo... São contos que tentam explicar a origem <strong>de</strong> fatos e fenômenos, para satisfazer a eter<strong>na</strong><br />

curiosida<strong>de</strong> huma<strong>na</strong> sobre os mistérios da vida...<br />

Entre esse textos, vamos <strong>de</strong>stacar, nesta série A <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> <strong>na</strong> <strong>literatura</strong> para <strong>crianças</strong> e <strong>jovens</strong>, estes<br />

últimos, os chamados contos <strong>de</strong> origem, ou etiológicos, pelas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho que eles<br />

oferecem no cotidiano da sala <strong>de</strong> aula.<br />

Segundo Câmara Cascudo, em seu Dicionário do Folclore <strong>Brasil</strong>eiro4, “os contos etiológicos<br />

explicam a origem <strong>de</strong> aspecto, forma, hábito, disposição <strong>de</strong> um animal, vegetal, ou mineral”.<br />

Os contos <strong>de</strong> animais, como o <strong>de</strong>sta história africa<strong>na</strong>, geralmente, explicam a origem do<br />

comportamento da fau<strong>na</strong> que habita as florestas, rios e sava<strong>na</strong>s do imenso continente. Os contos<br />

etiológicos mostram, também, como <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>dos bichos têm a sua aparência atual5.<br />

“Por que os cães se cheiram uns aos outros” é um conto curto, o que favorece a sua abordagem no<br />

tempo/espaço da sala <strong>de</strong> aula. Apesar do tamanho, ele apresenta as características essenciais dos<br />

textos <strong>na</strong>rrativos: uma abertura – estado inicial <strong>de</strong> harmonia ou equilíbrio –, seguida <strong>de</strong> um fato<br />

<strong>na</strong>rrativo propriamente dito – a <strong>de</strong>sarmonia, quando este equilíbrio inicial é rompido –, e encerrada<br />

por um fechamento – estado fi<strong>na</strong>l, que tanto po<strong>de</strong> ser a volta ao equilíbrio inicial como o<br />

aparecimento <strong>de</strong> uma nova situação <strong>de</strong> equilíbrio6. Entre a abertura e o fechamento, acontecem os<br />

conflitos, as ações dos perso<strong>na</strong>gens, as transformações...<br />

Na abertura, vemos que o autor nos mostra um fato distanciado no tempo, numa época em que os<br />

cães eram seus próprios gover<strong>na</strong>ntes. Já se instaura, neste início, uma oposição a tudo que<br />

conhecemos sobre esses animais, em geral tão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes dos seres humanos, seus “donos”, que<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 31


lhes oferecem comida e moradia, em troca da tão famosa “amiza<strong>de</strong>”, proteção, etc.<br />

Quem diria que esses bichos po<strong>de</strong>riam ter sido reis, soldados, mensageiros? Que se envolveriam em<br />

aventuras galantes <strong>de</strong> amor e sedução? Que se <strong>de</strong>ixariam levar pelas paixões, como os seres<br />

humanos? Que saberiam valorizar a aparência física, se enfeitando para cumprir uma missão? Por<br />

meio das histórias, <strong>na</strong>rradas ao redor <strong>de</strong> uma fogueira, como <strong>na</strong>s al<strong>de</strong>ias africa<strong>na</strong>s, ou escritas nos<br />

livros, é possível recriar, com muita fantasia, tudo o que existe neste nosso mundo, tor<strong>na</strong>ndo-o mais<br />

suportável, mais belo.<br />

Os contos etiológicos também estão presentes <strong>na</strong> tradição oral dos diferentes grupos indíge<strong>na</strong>s que<br />

existem atualmente no <strong>Brasil</strong> – cerca <strong>de</strong> 206 etnias, espalhadas em al<strong>de</strong>ias em todo o território<br />

<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Histórias cheias <strong>de</strong> encantamento e poesia, que falam sobre esta integração entre tudo o<br />

que existe: as plantas, os animais, os seres humanos, os rios e mares, o vento, as estrelas, os seres<br />

encantados que habitam as florestas. Nestes contos e lendas, tudo está entrelaçado. E esta invisível<br />

corrente que une o Céu e a Terra nunca po<strong>de</strong> ser rompida. Entre os contos <strong>de</strong> origem dos povos<br />

indíge<strong>na</strong>s, po<strong>de</strong>mos citar este, recontado por Leo<strong>na</strong>rdo Boff7:“Por que no céu há tantas estrelas?”,<br />

em seu livro O casamento entre o céu e a terra – contos dos povos indíge<strong>na</strong>s do <strong>Brasil</strong>:<br />

Para os Karajá, do Tocantins-Xingu, o firmamento estava vazio, sem nenhum<br />

brilho, porque o urubu-rei havia roubado as estrelas para enfeitar o pe<strong>na</strong>cho em<br />

sua cabeça. Indig<strong>na</strong>do com isto, o índio Karajá enfrentou o urubu-rei e conseguiu<br />

imobilizá-lo. Tentou então, convencer o rei das alturas a <strong>de</strong>volver os astros<br />

luminosos, mas, mesmo vencido, o urubu-rei não ce<strong>de</strong>u. Foi preciso que o Karajá<br />

arrancasse, uma a uma, as pe<strong>na</strong>s da cabeça da criatura. Cada pe<strong>na</strong> arrancada era<br />

lançada no ar a se transformava numa estrela do firmamento. Apressado, o índio<br />

arrancou um monte <strong>de</strong> pe<strong>na</strong>s <strong>de</strong> atirou-as <strong>de</strong> uma só vez... E assim se formou o<br />

“caminho das estrelas”: a Via-Láctea. (adaptação)<br />

O antropólogo e indianista Nunes Pereira, que viveu parte <strong>de</strong> sua vida <strong>na</strong> Amazônia, recolheu<br />

cente<strong>na</strong>s <strong>de</strong> contos, lendas e mitos dos índios <strong>de</strong>sta região. Uma <strong>de</strong> suas obras antológicas é<br />

Moronguétá8. Dos índios Cauaiua-Parintintim, do Vale do Rio Ma<strong>de</strong>ira, no estado do Amazo<strong>na</strong>s,<br />

Nunes Pereira ouviu várias histórias <strong>de</strong> um “herói <strong>de</strong> cultura”, o sábio Baíra, que teria conseguido<br />

roubar o fogo do Urubu, trazendo-o para sua al<strong>de</strong>ia. Com este “presente” <strong>de</strong> Baíra, seu povo pô<strong>de</strong><br />

preparar o moquém e assar a carne dos peixes e das caças. Este conto <strong>de</strong> “origem do fogo” lembra o<br />

mito <strong>de</strong> Prometeu, um herói dos antigos gregos, que teria roubado o fogo dos <strong>de</strong>uses, trazendo-o<br />

para os homens, e que foi severamente castigado por Zeus.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 32


O antropólogo Nunes Pereira <strong>de</strong>staca o fato <strong>de</strong> que os <strong>na</strong>rradores das histórias <strong>de</strong> Baíra –<br />

Inhambutê, Iguá, Paquiri, Paririmã, e outros – sentiam gran<strong>de</strong> admiração pelo herói, e falavam <strong>de</strong><br />

seus feitos e proezas como se eles mesmos também tivessem compartilhado <strong>de</strong> suas aventuras.<br />

Em outro conto recolhido pelo autor, vamos encontrar a explicação da origem do Sol e da Lua. É<br />

uma peque<strong>na</strong> <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>, que mostra, numa visão poética e mágica, o po<strong>de</strong>r divino <strong>de</strong>ste herói, cujas<br />

façanhas são motivo <strong>de</strong> orgulho para os remanescentes dos povos indíge<strong>na</strong>s daquela região, que já<br />

foram gran<strong>de</strong>s guerreiros, antes <strong>de</strong> serem quase extintos pelos chamados “colonizadores”.<br />

Origem do Sol e da Lua<br />

Baíra foi quem criou o Sol e a Lua.<br />

O Sol é homem. A Lua é mulher.<br />

Baíra fez o Sol da raiz da paxiúba (...).<br />

E fez da raiz do apuízeiro uma veia que pôs <strong>na</strong> Lua (...). Dessa veia sai sangue.<br />

O Sol, porque é homem, sai <strong>de</strong> dia.<br />

A Lua, porque é mulher, sai <strong>de</strong> noite.<br />

Os homens, <strong>na</strong> Terra, são como o Sol.<br />

As mulheres são como a Lua.<br />

São inúmeras as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho com os contos <strong>de</strong> origem <strong>na</strong> sala <strong>de</strong> aula. Professor, você<br />

po<strong>de</strong> propor que os alunos comparem estas explicações tão poéticas sobre os mistérios da vida com<br />

as explicações ditas “científicas”, que quase sempre procuram apresentar os fatos como verda<strong>de</strong>s<br />

inquestionáveis. Haveria uma explicação “científica” para estes hábitos tão pouco convencio<strong>na</strong>is<br />

dos cães? Como a ciência explica o “surgimento” das estrelas, do Sol, da Lua? Será que as<br />

explicações para estes fenômenos, que hoje nos parecem tão <strong>de</strong>finitivas, também po<strong>de</strong>rão mudar, no<br />

futuro, com as novas <strong>de</strong>scobertas possibilitadas pela tecnologia?<br />

Ao trabalhar com os contos etiológicos dos indíge<strong>na</strong>s e dos povos africanos, estaremos trazendo<br />

para a sala <strong>de</strong> aula diferentes visões <strong>de</strong> mundo, que vão enriquecer o universo cultural <strong>de</strong> nossos<br />

alunos, instigando-lhes a curiosida<strong>de</strong> e ampliando seu espaço <strong>de</strong> ação/reflexão sobre a vida, sobre a<br />

<strong>na</strong>tureza, sobre nosso ser/estar no mundo.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 33


Para concluir, apresentaremos uma história-mito do repertório afro-brasileiro, a<strong>na</strong>lisada pela<br />

professora e pesquisadora Azoilda Loretto9, “cuja estrutura, dinâmica, perspectiva e forma<br />

insinuam, anunciam uma diferença, ou diferenças <strong>de</strong> visão <strong>de</strong> mundo, <strong>de</strong> modo <strong>de</strong> expressão do<br />

mundo, <strong>de</strong> coerência. E o mais interessante é que coexistem com a visão domi<strong>na</strong>nte, com a lógica<br />

domi<strong>na</strong>nte. Assim como essa, outras histórias, outros mundos possíveis existem.”<br />

Exu ajuda Olofim <strong>na</strong> criação do mundo:<br />

Bem no princípio, durante a criação do universo, Olofim-Olodumare reuniu os<br />

sábios do Orum para que ajudassem no surgimento da vida e no <strong>na</strong>scimento dos<br />

povos sobre a face da Terra.<br />

Entretanto, cada um tinha uma idéia diferente para a criação e todos encontravam<br />

algum inconveniente <strong>na</strong>s idéias dos outros, nunca entrando em acordo.<br />

Assim, surgiram muitos obstáculos e problemas para executar a boa obra a que<br />

Olofim se propunha.<br />

Então, quando os sábios e o próprio Olofim já acreditavam que era impossível<br />

realizar tal tarefa, Exu veio em auxílio <strong>de</strong> Olofim-Olodumare.<br />

Exu disse a Olofim que, para obter sucesso em tão grandiosa obra, era necessário<br />

sacrificar cento e um pombos como ebó. Com o sangue dos pombos, se<br />

purificariam as diversas anormalida<strong>de</strong>s que perturbam a vonta<strong>de</strong> dos bons<br />

espíritos.<br />

Ao ouvi-lo, Olofim estremeceu, porque a vida dos pombos está muito ligada à<br />

própria vida. Mesmo assim, pouco <strong>de</strong>pois sentenciou: “Assim seja, pelo bem <strong>de</strong><br />

meus filhos”. E pela primeira vez se sacrificaram pombos.<br />

Exu foi guiando Olofim por todos os lugares on<strong>de</strong> <strong>de</strong>veria verter o sangue dos<br />

pombos, para que tudo fosse purificado e para que seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> criar o mundo<br />

fosse cumprido. Quando Olofim realizou tudo o que pretendia, convocou Exu e lhe<br />

disse: ”Muito me ajudaste e eu bendigo teus atos por toda a eternida<strong>de</strong>. Sempre<br />

serás reconhecido, Exu, serás louvado sempre antes do começo <strong>de</strong> qualquer<br />

empreitada”10.<br />

Como assi<strong>na</strong>la a pesquisadora, nessa história encontramos “uma apresentação <strong>de</strong> outras<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> viver o mundo, para além da i<strong>de</strong>ologia, para além da racio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>, para além da<br />

ciência”. Essa e outras histórias “são histórias vivas, que habitam o cotidiano e o imaginário <strong>de</strong><br />

muitos brasileiros. São histórias, <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s, fragmentos culturais que si<strong>na</strong>lizam outras<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> apresentação, <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> sentir, agir, pensar, saber...”<br />

Professor, os contos <strong>de</strong> origem po<strong>de</strong>m ser um ponto <strong>de</strong> partida para o trabalho em todas as áreas do<br />

conhecimento. Você po<strong>de</strong> solicitar que os alunos pesquisem as histórias da comunida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> fica a<br />

escola: Qual a origem dos nomes do bairro, da escola, das ruas? Quais são as “histórias <strong>de</strong> vida” dos<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 34


moradores? Como as <strong>crianças</strong> “explicam” os fatos <strong>de</strong> seu cotidiano?<br />

Ao ouvir, recolher e recontar essas histórias, trazendo-os para o universo da sala <strong>de</strong> aula, você e<br />

seus alunos também farão parte <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> “re<strong>de</strong>”, que alimenta o nosso imaginário e que<br />

entrelaça nossas vidas, dando um sentido à tão difícil e complexa aventura do dia-a-dia.<br />

Referências bibliográficas:<br />

Barbosa, Rogério Andra<strong>de</strong>. Histórias africa<strong>na</strong>s para contar e recontar. São Paulo,<br />

Editora do <strong>Brasil</strong>, 2001.<br />

Barbosa, Rogério Andra<strong>de</strong>. Contos Africanos para Crianças <strong>Brasil</strong>eiras. São Paulo,<br />

Editora Pauli<strong>na</strong>s, 2004.<br />

Boff, Leo<strong>na</strong>rdo. O casamento entre o céu e a terra – contos dos povos indíge<strong>na</strong>s do<br />

<strong>Brasil</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Salamandra, 2001.<br />

Câmara Cascudo, Luís <strong>de</strong>. Dicionário do Folclore <strong>Brasil</strong>eiro. 9a edição. Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

Ediouro, 1998.<br />

Lajolo. M. & Zilberman. R. Um <strong>Brasil</strong> para <strong>crianças</strong>. São Paulo, Global, 1989.<br />

Lajolo M. & Zilberman R Literatura infantil brasileira: histórias e histórias. São Paulo,<br />

Editora Ática, 1984.<br />

Nunes Pereira. Moronguétá – um Decameron indíge<strong>na</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Editora<br />

Civilização <strong>Brasil</strong>eira, 1967. (Coleção Retratos do <strong>Brasil</strong>, vol. 50-a)<br />

Notas:<br />

1- Professora <strong>de</strong> Língua Portuguesa e Literatura <strong>Brasil</strong>eira. Autora <strong>de</strong> livros didáticos<br />

e <strong>literatura</strong> infantil. Membro da equipe do programa Salto para o Futuro/<strong>TV</strong> Escola.<br />

2- Escritor, professor e arte-educador. Autor <strong>de</strong> diversos livros <strong>de</strong> <strong>literatura</strong> para<br />

<strong>crianças</strong> e <strong>jovens</strong>. Diretor Executivo da Associação <strong>de</strong> Escritores e Ilustradores <strong>de</strong><br />

Literatura Infantil e Juvenil – AEI-LIJ. Membro do Conselho Consultivo da Fundação<br />

Nacio<strong>na</strong>l do Livro Infantil e Juvenil.<br />

3- O conto “Por que os cães se cheiram uns aos outros?” – faz parte do livro Bichos<br />

da África (Lendas e Fábulas), <strong>de</strong> Rogério Andra<strong>de</strong> Barbosa. O escritor, que é coautor<br />

<strong>de</strong>ste texto, viveu <strong>na</strong> África, trabalhando como voluntário das Nações Unidas<br />

<strong>na</strong> Guiné-Bissau. Nas diversas al<strong>de</strong>ias e cida<strong>de</strong>s que percorreu, no imenso<br />

continente africano, conheceu os “contadores <strong>de</strong> histórias” – griots – que transmitem<br />

oralmente, para uma platéia atenta e fasci<strong>na</strong>da, contos, lendas, mitos, fábulas...<br />

Suas <strong>na</strong>rrações são acompanhadas <strong>de</strong> mímicas, danças, cantigas e outros efeitos<br />

cênicos, como a imitação das “vozes” dos animais, do barulho da chuva e do<br />

zumbido do vento.<br />

4- Câmara Cascudo, Luís <strong>de</strong>. Dicionário do Folclore <strong>Brasil</strong>eiro. 9a edição. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, Ediouro, 1998.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 35


5- Em Histórias africa<strong>na</strong>s para contar e recontar (São Paulo, Editora do <strong>Brasil</strong>, 2001)<br />

e, em Contos Africanos para Crianças <strong>Brasil</strong>eiras” (São Paulo, Editora Pauli<strong>na</strong>s,<br />

2004), po<strong>de</strong>m ser encontrados outros contos semelhantes, pesquisados e<br />

recontados pelo autor, pertencentes ao universo da <strong>literatura</strong> tradicio<strong>na</strong>l africa<strong>na</strong>.<br />

6- Agostinho Dias Carneiro. Redação em construção - a escritura do texto. São<br />

Paulo, Ed. Mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong>, 1997.<br />

7- Leo<strong>na</strong>rdo Boff. O casamento entre o céu e a terra – contos dos povos indíge<strong>na</strong>s<br />

do <strong>Brasil</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Salamandra, 2001.<br />

8- Nunes Pereira. Moronguétá – um Decameron indíge<strong>na</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Editora<br />

Civilização <strong>Brasil</strong>eira, 1967. (Coleção Retratos do <strong>Brasil</strong>, vol. 50-a)<br />

9- Azoilda Loretto. A imagem da mulher negra <strong>na</strong> mídia. Tese <strong>de</strong> doutorado. Escola<br />

<strong>de</strong> Comunicação da UFRJ. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2005.<br />

10- Prandi, Regi<strong>na</strong>ldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 36


PROGRAMA 5<br />

HISTÓRIAS EM VERSO<br />

Narrar em verso: o encanto do cor<strong>de</strong>l do Nor<strong>de</strong>ste brasileiro<br />

Socorro Acioli 1<br />

Pra gente aqui sê poeta,<br />

E fazê rima compreta,<br />

Não precisa professô.<br />

Basta vê, no mês <strong>de</strong> maio,<br />

Um poema em cada gaio,<br />

E um verso em cada fulô.<br />

Patativa do Assaré<br />

Cante lá que eu canto cá<br />

Uma análise cuidadosa da forma e conteúdo do verso acima, <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Patativa do Assaré, já é<br />

um bom mote para compreen<strong>de</strong>r muito do que po<strong>de</strong> ser dito sobre a <strong><strong>na</strong>rrativa</strong> em versos que<br />

compõe a <strong>literatura</strong> <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l. O poema Cante lá que eu canto cá é uma conversa entre Patativa e<br />

um poeta cantô <strong>de</strong> rua/que <strong>na</strong> cida<strong>de</strong> <strong>na</strong>sceu. Nesta conversa rimada, Patativa explica que só po<strong>de</strong><br />

cantar o sertão quem nele mora e pa<strong>de</strong>ce. Seu interlocutor no poema, um perso<strong>na</strong>gem que o leitor<br />

não tem o prazer <strong>de</strong> conhecer, é um sujeito <strong>de</strong> muita educação e conhecimento da ciência, mas não<br />

sabe <strong>na</strong>da <strong>de</strong> fome, vida no campo, apragata, unha-<strong>de</strong>-gato. Portanto, está <strong>de</strong>sautorizado a falar <strong>de</strong><br />

tais assuntos. Que fique cantando as belezas <strong>de</strong> sua terra. Cante lá que eu canto cá, mais que uma<br />

rima, é um pedido <strong>de</strong> um artista para outro.<br />

A partir disso, ele <strong>de</strong>senvolve uma série <strong>de</strong> argumentos sobre a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer bem a<br />

realida<strong>de</strong> sobre a qual o poeta está escrevendo. Este talvez seja o motivo principal do surgimento e<br />

da existência da <strong>literatura</strong> <strong>de</strong> Cor<strong>de</strong>l: o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> expressar as alegrias e tristezas do homem<br />

nor<strong>de</strong>stino, mesmo quando esse homem, em geral, é pouco letrado e, sendo agricultor e poeta,<br />

contraria todas as perspectivas imagináveis para sua vida.<br />

O cor<strong>de</strong>l não <strong>na</strong>sceu no <strong>Brasil</strong>. Foi trazido para cá pelos colonizadores portugueses, tem raízes<br />

francesas, espanholas, recebendo ainda influências da poesia árabe, mediterrânea, hindu e persa. Ao<br />

chegar ao <strong>Brasil</strong>, recebeu uma acolhida especial no Nor<strong>de</strong>ste <strong>Brasil</strong>eiro, que até hoje é o berço<br />

principal <strong>de</strong>ssa manifestação artística.<br />

Para o pesquisador Eduardo Diatahy Bezerra <strong>de</strong> Menezes, o cor<strong>de</strong>lista po<strong>de</strong> trabalhar por três<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 37


caminhos: a oralida<strong>de</strong>, a cantoria e a bancada.<br />

O caminho da oralida<strong>de</strong> é o dos poetas que <strong>de</strong>ixam seus versos voando pelo vento, que não guardam<br />

registros, nem se preocupam com isso. Vêem <strong>na</strong> poesia o prazer da composição <strong>na</strong>quele momento,<br />

sem interesse <strong>de</strong> comercialização ou <strong>de</strong> registro para a posterida<strong>de</strong>.<br />

A cantoria, também conhecida como repente, é o verso cantado. Se você estiver andando em alguma<br />

praça <strong>de</strong> uma peque<strong>na</strong> cida<strong>de</strong> do Nor<strong>de</strong>ste brasileiro e avistar um grupo <strong>de</strong> pessoas prestando muita<br />

atenção em dois homens que conversam, po<strong>de</strong> ter certeza: é briga. Ali, a arma é a palavra rimada e<br />

cantada no tempo certo, com o argumento pronto para <strong>de</strong>rrubar a provocação do adversário. O<br />

objetivo da guerra é a diversão, é arte louvando a vida. O repentista precisa ser rápido, pensar <strong>de</strong><br />

repente – daí o nome – para não <strong>de</strong>morar ao <strong>de</strong>volver os insultos com a resposta a<strong>de</strong>quada.<br />

No princípio era a voz, a disputa cantada. Depois, bendito seja Gutenberg, os repentistas pu<strong>de</strong>ram<br />

passar a registrar seus versos nos folhetos que conhecemos e associamos imediatamente. O próprio<br />

nome, Cor<strong>de</strong>l, vem da palavra corda, on<strong>de</strong> se penduram os folhetos abertos, uma livraria <strong>de</strong> cordéis<br />

que po<strong>de</strong> ser armada, com toda facilida<strong>de</strong>, à frente <strong>de</strong> uma bancada. É ali mesmo, no seu ponto <strong>de</strong><br />

venda, que o poeta cria os seus novos versos, apoiado <strong>na</strong> bancada. Daí o nome, Poeta <strong>de</strong> Bancada,<br />

associado àquele que publica e comercializa os seus folhetos.<br />

Das formas <strong>de</strong> apresentação do Cor<strong>de</strong>l, passemos às temáticas. Ariano Suassu<strong>na</strong>, escritor e<br />

pesquisador apaixo<strong>na</strong>do pela <strong>literatura</strong> <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l, nos dá uma aula <strong>de</strong> classificação <strong>de</strong> temas no<br />

trecho do seu Romance da Pedra do Reino:<br />

“O velho João Melchía<strong>de</strong>s ensinou-nos, ainda, que, entre os romances versados,<br />

havia sete tipos principais: os romances <strong>de</strong> amor; os <strong>de</strong> safa<strong>de</strong>za; os cangaceiros e<br />

cavalarianos; os <strong>de</strong> exemplo; os <strong>de</strong> espertezas, estra<strong>de</strong>irices e quengadas; os<br />

jor<strong>na</strong>leiros; e os da profecia e assombração.” (...)<br />

Sobre a forma, é riquíssima a gama <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s métricas <strong>na</strong> <strong>literatura</strong> <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l. Como os<br />

poemas são cantados ou lidos em voz alta, a exigência da perfeição métrica é muito gran<strong>de</strong>. A<br />

Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Cor<strong>de</strong>listas do <strong>Brasil</strong> apresenta a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> onze métricas principais: O início,<br />

Parcela ou verso <strong>de</strong> quatro sílabas, Verso <strong>de</strong> cinco sílabas, Estrofes <strong>de</strong> quatro versos <strong>de</strong> sete sílabas,<br />

Sextilhas, Setinhas, Oito pés <strong>de</strong> quadrão ou oitavas, Décimas, Martelo Agalopado, Galope à beira-<br />

mar, Meia-quadra.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 38


Chegando ao que interessa, professor, como é possível utilizar a <strong>literatura</strong> <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l em sala <strong>de</strong> aula,<br />

como trabalhar as <strong><strong>na</strong>rrativa</strong>s populares? Vimos que existem três formas <strong>de</strong> apresentação, onze<br />

formas <strong>de</strong> métrica e sete temáticas principais. A partir <strong>de</strong>sse universo <strong>de</strong> exemplos, o professor po<strong>de</strong><br />

provocar seus alunos a exercitarem a criativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sses mo<strong>de</strong>los, ou criando novas métricas<br />

e temas.<br />

Claro, antes <strong>de</strong> praticar, é preciso conhecer. Assistir repentes, cantorias, conhecer <strong>de</strong> perto poetas <strong>de</strong><br />

cor<strong>de</strong>l, são experiências interessantes. Recomendar a leitura <strong>de</strong> cordéis em voz alta, em sala <strong>de</strong> aula,<br />

é outra forma divertida <strong>de</strong> trabalhar esse tema, saboreando a sua rima. Para quem não tem facilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> comprar os folhetos <strong>na</strong> sua cida<strong>de</strong>, o site da Aca<strong>de</strong>mia <strong>Brasil</strong>eira <strong>de</strong> Literatura <strong>de</strong> Cor<strong>de</strong>l ven<strong>de</strong><br />

conjuntos <strong>de</strong> folhetos <strong>de</strong> diversos autores pela Internet.<br />

A obra <strong>de</strong> Patativa do Assaré é uma fonte indispensável para trabalhar o Cor<strong>de</strong>l com os alunos <strong>de</strong><br />

todo <strong>Brasil</strong>. A Antologia Poética, publicada pelas Edições Demócrito Rocha, traz poemas<br />

cuidadosamente selecio<strong>na</strong>dos por Gilmar <strong>de</strong> Carvalho, um dos maiores pesquisadores da vida e obra<br />

<strong>de</strong> Patativa do Assaré no <strong>Brasil</strong>.<br />

Neste livro, Gilmar <strong>de</strong> Carvalho selecionou poemas que falam sobre Luís Gonzaga, Beato José<br />

Lourenço e Antônio Conselheiro, entre outros temas. Estes textos po<strong>de</strong>m ser usados pelo professor<br />

<strong>de</strong> História, como um complemento <strong>de</strong> aula, apresentando outro olhar sobre o assunto estudado.<br />

Já que falamos sobre Patativa, é com ele que termino o presente texto. Aqui, pretendi apresentar<br />

pinceladas para que o professor <strong>de</strong>sperte o interesse pela <strong>literatura</strong> <strong>de</strong> Cor<strong>de</strong>l <strong>na</strong> sua sala <strong>de</strong> aula.<br />

Mais <strong>de</strong>talhes estão nos livros e sites relacio<strong>na</strong>dos logo abaixo.<br />

Se nós vivemos por fora<br />

Das coisas que o mundo adora<br />

Da gran<strong>de</strong> ambição que explora,<br />

Ouro, prata e posição,<br />

Temos, em nosso caminho,<br />

Da mansa brisa, o carinho,<br />

E <strong>de</strong> cada passarinho,<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 39


Referências Bibliográficas:<br />

A mais sonora canção.<br />

Minha Viola, Patativa do Assaré<br />

Aca<strong>de</strong>mia <strong>Brasil</strong>eira <strong>de</strong> Cor<strong>de</strong>l. http://www.ablc.com.br/<br />

Jor<strong>na</strong>l da Poesia. http://www.secrel.com.br/jpoesia/cor<strong>de</strong>l.html<br />

CARVALHO, GIlmar (org.). Patativa do Assaré: Antologia Poética. Fortaleza: Edições<br />

Demócrito Rocha, 2002.<br />

CARVALHO, Gilmar. Ma<strong>de</strong>ira Matriz: cultura e memória. São Paulo: An<strong>na</strong> Blume, 1998.<br />

SUASSUNA, Ariano. O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta<br />

- romance armorial-popular brasileiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio, 1971, pp. 58 e 68, e<br />

183-184, para cada uma das tipologias mencio<strong>na</strong>das<br />

Nota:<br />

1- Jor<strong>na</strong>lista,escritora e mestre em <strong>literatura</strong> <strong>Brasil</strong>eira pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do<br />

Ceará.É autora dos livros infantis Bia que tanto lia, É pra ler ou comer? e Como é<br />

que existe, se não tem nome?.<br />

A NARRATIVA NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. 40

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