o caso mateus ribeiro - Repositório Aberto da Universidade do Porto
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César Augusto Martins Miran<strong>da</strong> de Freitas<br />
A NOVELA PORTUGUESA NO SÉCULO XVII:<br />
O CASO MATEUS RIBEIRO<br />
PORTO<br />
Facul<strong>da</strong>de de Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> <strong>Porto</strong><br />
2006
César Augusto Martins Miran<strong>da</strong> de Freitas<br />
A NOVELA PORTUGUESA NO SÉCULO XVII:<br />
O CASO MATEUS RIBEIRO<br />
mi \\<br />
UNIVERSIDADE DO PORTO<br />
Facul<strong>da</strong>de de Letras<br />
BIBLIOTECA<br />
N.°<br />
Data 20O> /OS/ 1 ><br />
Dissertação de mestra<strong>do</strong> em Literatura<br />
Portuguesa, elabora<strong>da</strong> sob a orientação <strong>da</strong><br />
Professora Doutora Zulmira Santos, e<br />
apresenta<strong>da</strong> à Facul<strong>da</strong>de de Letras <strong>da</strong><br />
Universi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>.<br />
FUNDO GERAL<br />
FLUP-BIBLIOTECAO<br />
Facul<strong>da</strong>de de Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> <strong>Porto</strong><br />
<strong>Porto</strong> - 2006<br />
*904H5*
Entre a moralização e o deleite:<br />
a discreta conversação e a exemplari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s narrativas
I. O autor e a obra<br />
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 3<br />
Apesar <strong>do</strong> sucesso <strong>da</strong>s suas obras, facilmente observável nas numerosas<br />
edições, o padre Mateus Ribeiro, fecun<strong>do</strong> novelista português <strong>do</strong> século XVII,<br />
permanece completamente desconheci<strong>do</strong> no panorama <strong>da</strong> literatura<br />
portuguesa. Da sua vi<strong>da</strong> apenas conhecemos o que os frontispícios <strong>da</strong>s suas<br />
obras enunciam e as escassas informações que Barbosa Macha<strong>do</strong> e, com<br />
mais pormenor, Inocêncio Francisco <strong>da</strong> Silva nos fornecem.<br />
De acor<strong>do</strong> com informações de Inocêncio 1 , o padre Mateus Ribeiro<br />
nasceu por volta de 1618 a 1620, em Lisboa, sen<strong>do</strong> em 1656 sacer<strong>do</strong>te,<br />
teólogo e prega<strong>do</strong>r no arcebispa<strong>do</strong> <strong>da</strong> capital. Desconhecen<strong>do</strong> a <strong>da</strong>ta exacta<br />
<strong>da</strong> sua morte, o mesmo autor supõe que ain<strong>da</strong> seria vivo em 1693, ano <strong>da</strong><br />
publicação <strong>da</strong> terceira parte <strong>da</strong> Ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fortuna, ou Vi<strong>da</strong> de Alexandre e<br />
Jacinta, com o Laus Deo escrito por este pároco a 12 de Julho de 1693.<br />
As obras de Mateus Ribeiro, segun<strong>do</strong> o abade de Sever "versa<strong>do</strong> em<br />
varia erudição, que pudera utilmente empregar, compon<strong>do</strong> mais para<br />
divertimento de ociosos, que instrução de saloios" 2 , mereceram até ao presente<br />
pouca atenção, limitan<strong>do</strong>-se geralmente a abrevia<strong>do</strong>s apontamentos. Uma <strong>da</strong>s<br />
primeiras referências a este autor encontra-se no prólogo "Ao leitor" <strong>do</strong><br />
Compêndio Narrativo <strong>do</strong> Peregrino <strong>da</strong> América: Nuno Marques Pereira, a<br />
propósito <strong>da</strong> oposição entre os livros espirituais e os livros profanos, inclui o<br />
Retiro de Cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s ou Vi<strong>da</strong> de Carlos e Rosaura nos livros que "ensinam a<br />
falar para pecar" 3 . Igualmente com uma apreciação de feição negativa, Cruz e<br />
1 Inocêncio Francisco <strong>da</strong> SILVA, Dicionário Bibliográphico Portuguez, Tomo 6, Lisboa, IN-CM,<br />
1987, pp. 166-7.<br />
2 Diogo Barbosa MACHADO, Bibliotheca Lusitana, Tomo III, Coimbra, Atlânti<strong>da</strong> Editora, 1965,<br />
pp. 450-1.<br />
3 Nuno Marques PEREIRA - "Ao Leytor", Compendio Narrativo <strong>do</strong> Peregrino <strong>da</strong> América,<br />
Lisboa, na Officina de Manoel Fernandes <strong>da</strong> Costa, 1731.
4 A novela portuguesa no século XVII:<br />
Silva, no Canto III <strong>do</strong> Hissope 4 , alude à Ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fortuna como uma obra<br />
aprecia<strong>da</strong> por aqueles que denotam acentua<strong>da</strong> inferiori<strong>da</strong>de cultural 5 .<br />
Igualmente crítico, Verney 6 aponta o Alívio de Tristes como exemplo de defeito<br />
de eloquência e ain<strong>da</strong> pela excessiva preocupação com o título, incluin<strong>do</strong> o<br />
pároco <strong>da</strong> Azoeira no conjunto <strong>do</strong>s "autores tão preocupa<strong>do</strong>s pelas<br />
esquipações, que não se contentam de pôr o título <strong>do</strong> livro claro, mas, ou<br />
inventam um estrambótico, ou acrescentam algum epíteto que obscurece o<br />
negócio".<br />
Incluin<strong>do</strong> o Alívio de Tristes na categoria <strong>da</strong> "novela moral", Teófilo Braga 7<br />
descreve esta obra como um "sucedâneo <strong>da</strong> <strong>do</strong>utrinação teológica, composta<br />
de embrulha<strong>da</strong>s situações de <strong>caso</strong>s narra<strong>do</strong>s como aconteci<strong>do</strong>s, intermináveis<br />
descrições, consideran<strong>do</strong>s e exortações, matiza<strong>do</strong>s de contos ou Exemplos"<br />
que redun<strong>da</strong>m num "género insípi<strong>do</strong>". Mais condescendente para com Mateus<br />
Ribeiro se revelou José Agostinho, ao referenciar a novela Retiro de Cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
entre as obras <strong>do</strong>s "Alegoristas bucólicos", consideran<strong>do</strong> que, em comparação<br />
com as obras publica<strong>da</strong>s por de Elói de Sá Sotomaior, Diogo Ferreira Figueiroa<br />
ou Gerar<strong>do</strong> de Escobar, o padre Mateus Ribeiro publicou "com melhor critério,<br />
embora com excessivo gongorismo," 8 esta obra.<br />
4 António Diniz <strong>da</strong> CRUZ E SILVA, O Hyssope, Poema Heroi-Comico, Nova edição correcta,<br />
com variantes, prefácios e notas, Paris, na officina de A. Bobée, 1817, Canto III, p. 29.<br />
5 Atente-se na nota explicativa <strong>do</strong> verso que refere A Ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fortuna e Cristais <strong>da</strong> Alma, <strong>do</strong><br />
padre António de Escobar, como obras preferenciais para o cónego Bastos colher algumas<br />
citações que ilustrem o seu discurso: "Este Verso alude a <strong>do</strong>us <strong>do</strong>s muitos Livros mystico-<br />
moraes, de que a nossa Literatura nacional é tam sobejamente abun<strong>da</strong>nte, um des<strong>do</strong>uro <strong>da</strong><br />
boa razão, <strong>da</strong> Religião christãa, e <strong>da</strong> boa Moral. Somos deve<strong>do</strong>res d'essa praga, em maior<br />
parte, aos Jesuítas, e á sua Eschola." António Diniz <strong>da</strong> CRUZ E SILVA, O Hyssope, Poema<br />
Heroi-Comico, ed. cit., p. 122.<br />
6 Luís António VERNEY, Ver<strong>da</strong>deiro Méto<strong>do</strong> de Estu<strong>da</strong>r: Estu<strong>do</strong>s Literários, Vol. Il, Ed. António<br />
Salga<strong>do</strong> Júnior, Lisboa, Livraria Sá <strong>da</strong> Costa, 1950, p. 115.<br />
7 Teófilo BRAGA, História <strong>da</strong> Literatura Portuguesa: Os Seiscentistas, Vol. 3, INCM, 1984, p.<br />
418.<br />
8 José AGOSTINHO, História <strong>da</strong> Literatura Portuguesa: Quarta Época - Época <strong>da</strong> Decadência<br />
(Escola Seiscentista ou Gongórica), <strong>Porto</strong>, Casa Editora de A. Figueirinhas, 1927, p. 237.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 5<br />
Celebrizan<strong>do</strong>-se pela escrita de obras de ficção narrativa em prosa, ain<strong>da</strong><br />
que Inocêncio 9 refira que "era também poeta, ou pelo menos fazia versos",<br />
além <strong>do</strong> Alívio de tristes e consolação de queixosos, Mateus Ribeiro publicou<br />
as novelas Retiro de Cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e Vi<strong>da</strong> de Carlos e Rosaura e Ro<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
Fortuna e Vi<strong>da</strong> de Alexandre e Jacinta 11 . Num registo histórico, compôs ain<strong>da</strong> o<br />
Compendio historial <strong>do</strong> principio, progresso e augmento <strong>da</strong> casa <strong>da</strong> Virgem<br />
nossa senhora <strong>do</strong> Livramento, edifica<strong>da</strong> no campo d'Azoeira, freguesia de S.<br />
Pedro <strong>do</strong>s Grilhões, termo <strong>da</strong> villa de Torres-vedras* 2 .<br />
O sucesso editorial que estas obras tiveram nos séculos XVII e XVIII<br />
traduz-se nas numerosas edições que os leitores consumiram, particularmente<br />
no <strong>caso</strong> <strong>da</strong> sua primeira novela. Na ver<strong>da</strong>de, ten<strong>do</strong> em conta que a primeira<br />
parte de Alívio de tristes <strong>da</strong>ta de 1648 13 e a última impressão de 1764, mais de<br />
um século depois, num total de <strong>do</strong>ze impressões, consideran<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> a sua<br />
tradução para castelhano, a sua existência em bibliotecas como a B. Nacional<br />
9 Inocêncio Francisco <strong>da</strong> SILVA, Dicionário Bibliográphico Portuguez. ed. cit., p. 166: "assim o<br />
vemos qualifica<strong>do</strong> em uma Silva panegyríca, que an<strong>da</strong> no principio <strong>do</strong> Corrimento portuguez <strong>da</strong><br />
Instituía de Justiniano por Raphael de Lemos <strong>da</strong> Fonseca, <strong>da</strong> qual se manifesta que alem de<br />
romancista era também poeta, ou pelo menos fazia versos!"<br />
10 Retiro de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, e vi<strong>da</strong> de Carlos e Rosaura. Primeira e segun<strong>da</strong> parte. Lisboa, por<br />
Miguel Deslandes 1681. 8. a - Terceira parte, ibi, pelo mesmo 1685. 8.°- Quarta parte, ibi. por<br />
Manuel Lopes Ferreira 1689. 8.°- E to<strong>da</strong>s juntas ibi, na Offic. Ferreiriana 1750. 4.°. Inocêncio<br />
Francisco <strong>da</strong> SILVA, Dicionário Bibliográphico Portuguez. ed. cit., p. 167.<br />
11 Ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fortuna e vi<strong>da</strong> de Alexandre e Jacinta. Parte primeira. Lisboa, por Miguel Deslandes<br />
1692. 8.° - Parte segun<strong>da</strong>, ibi, pelo mesmo 1693. 8.° - Segun<strong>da</strong> edição, ibi, por Filippe de<br />
Sousa Villela 1724. 8.° 3 tomos. Inocêncio Francisco <strong>da</strong> SILVA, Dicionário Bibliográphico<br />
Portuguez. ed. cit., p. 167.<br />
Compendio historial <strong>do</strong> principio, progresso e augmento <strong>da</strong> casa <strong>da</strong> Virgem nossa senhora<br />
<strong>do</strong> Livramento, edifica<strong>da</strong> no campo d'Azoeira, freguezia de S. Pedro <strong>do</strong>s Grilhões, termo <strong>da</strong><br />
villa de Torres-vedras. Lisboa, por Miguel Manescal 1682. 8.°. Inocêncio Francisco <strong>da</strong> SILVA,<br />
Dicionário Bibliográphico Portuguez. ed. cit., p. 167.<br />
13 Embora Barbosa Macha<strong>do</strong> e Inocêncio Ferreira apontem a edição de 1672 como a primeira<br />
<strong>do</strong> >4//V/o de tristes e consolação de queixosos, a primeira parte desta obra foi impressa pela<br />
primeira vez em 1648, em Lisboa, por Manuel <strong>da</strong> Silva, à custa de Rodrigo Meãs. Dedica<strong>da</strong> a<br />
D. Jerónimo Fernan<strong>do</strong>, Bispo <strong>do</strong> Funchal, a <strong>da</strong>ta indica<strong>da</strong> na folha de rosto (648), é certamente<br />
um erro, denuncia<strong>do</strong> pelas <strong>da</strong>tas <strong>da</strong>s licenças de impressão, assina<strong>da</strong>s em 1647 e 1648, e a<br />
indicação <strong>do</strong> Privilégio concedi<strong>do</strong> por 10 anos a partir de 2 de Dezembro de 1647.
6 A novela portuguesa no século XVII:<br />
de Paris e a B. Nacional de Madrid e a sua presença em catálogos como o<br />
Inventário <strong>da</strong> Livraria de Santo António de Ponte de Lima u , facilmente se<br />
comprova a adesão <strong>do</strong>s leitores seiscentistas e setecentistas à obra de Mateus<br />
Ribeiro.<br />
Apesar de incorrer em sistemáticas críticas desfavoráveis, como<br />
anotámos anteriormente (note-se, a título de exemplo, a apreciação de<br />
Barbosa Macha<strong>do</strong>, que denuncia o seu investimento no divertimento em<br />
desfavor <strong>da</strong> utili<strong>da</strong>de didáctica), pretendemos contribuir para resgatar a novela<br />
Alívio de tristes <strong>do</strong> esquecimento, desejan<strong>do</strong> apontar algumas <strong>da</strong>s razões que<br />
explicam a sua fortuna junto <strong>do</strong>s leitores. Com efeito, além <strong>do</strong> sucesso editorial<br />
já anota<strong>do</strong>, outras razões, como veremos, justificam o nosso intento. Na<br />
ver<strong>da</strong>de, tratan<strong>do</strong>-se de uma obra que recebeu críticas tão duras (muitas delas<br />
desmereci<strong>da</strong>s, se a considerarmos devi<strong>da</strong>mente inseri<strong>da</strong> no contexto de<br />
produção novelística <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> barroco), deixou algumas marcas, ain<strong>da</strong> que<br />
maioritariamente anota<strong>da</strong>s pela negativa, na História <strong>da</strong> Literatura Portuguesa.<br />
Inocêncio, após efectuar uma crítica pouco abonatória ao seu estilo e<br />
composição, não deixa contu<strong>do</strong> de expressar a sua continua<strong>da</strong> leitura:<br />
"Confessarei, ain<strong>da</strong> assim, que apesar de to<strong>do</strong>s os seus defeitos este livro me<br />
deve tal qual predilecção, por ser um <strong>do</strong>s primeiros que me cahiu nas mãos<br />
aos oito, ou nove annos. Li-o e reli-o não sei quantas vezes, de sorte que<br />
cheguei a tomar de cór longuíssimos e estira<strong>do</strong>s trechos!" 15 . Já no século XIX,<br />
Alexandre Herculano, na "Advertência <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Edição" <strong>da</strong>s Len<strong>da</strong>s e<br />
Narrativas, de 1858, afirma que "Quinze a vinte anos são decorri<strong>do</strong>s desde que<br />
se deu um passo, bem que débil, decisivo, para quebrar as tradições <strong>do</strong> Alívio<br />
de Tristes e <strong>do</strong> Feliz Independente, tiranos que reinaram sem émulos e sem<br />
conspiração na província <strong>do</strong> romance português." 16<br />
Apesar <strong>da</strong>s apreciações negativas de que foi alvo, comuns a grande parte<br />
<strong>da</strong> novelística barroca que apontava para o entretenimento, não restam<br />
14 Da Memória <strong>do</strong>s Livros às Bibliotecas <strong>da</strong> Memória. II. Inventário <strong>da</strong> Livraria de Santo António<br />
Ponte de Lima (dir. de José Adriano de Freitas Carvalho), <strong>Porto</strong>, CIUHE, 1998, p.<br />
15 Inocêncio Francisco <strong>da</strong> SILVA, Dicionário Bibliográphico Portuguez, ed. cit., p. 167.<br />
16 Alexandre HERCULANO, "Advertência <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Edição", Len<strong>da</strong>s e Narrativas, Tomo I,<br />
Pref. e revisão de Vitorino Nemésio, Ama<strong>do</strong>ra, Livraria Bertrand, 1980.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 7<br />
dúvi<strong>da</strong>s de que ao longo <strong>do</strong>s séculos XVI e XVII o Alívio de tristes e consolação<br />
de queixosos foi um <strong>do</strong>s livros de ficção narrativa em prosa mais li<strong>do</strong>s e,<br />
certamente, mais aprecia<strong>do</strong>s pelos seus leitores.<br />
Por to<strong>da</strong>s estas razões, julgamos que esta novela de Mateus Ribeiro<br />
merece não apenas uma investigação detalha<strong>da</strong> que a integre nos seus<br />
contextos, mas também uma atenção às diferentes edições - que comportam<br />
erros e variantes - que permita, pelo respectivo confronto e através de uma<br />
modernização modera<strong>da</strong>, chegar a um texto legível para os leitores de hoje.<br />
Edições <strong>do</strong> Alívio de tristes e consolação de queixosos<br />
Alivio de tristes, e consolação de queixosos. Primeira parte I composta pello<br />
Padre Mattheus Rybeiro.... - Em Lisboa, por Manoel <strong>da</strong> Sylva, 648 [i. é. 1648]:<br />
impresso à custa de Rodrigo Meãs, 1648.<br />
Alivio de tristes, e consolaçam [sic] de queixosos I composto pello P. Matheus<br />
Ribeiro... - Em Lisboa: na officina de Joam <strong>da</strong> Costa, 1672.<br />
Alivio de tristes e consolação de queixosos. Parte 2. Lisboa, por Joam <strong>da</strong><br />
Costa, 1674.<br />
Alivio de tristes e consolação de queixosos. Partes 3 e 4. Lisboa, por Joam <strong>da</strong><br />
Costa, 1674.<br />
Alivio de tristes e consolação de queixosos. Parte 1, 2, 3 e 4. Lisboa, por<br />
Miguel Deslandes, 1681.<br />
Alivio de tristes, e consolaçam de queixosos: / Seis Partes em <strong>do</strong>us Volumes,<br />
em q se dá fim a to<strong>da</strong> a Historia / Composto pelo P. Matheus Ribeyro;<br />
Theologo, Prega<strong>do</strong>r deste Arcebispa<strong>do</strong> e natural de Lisboa: / Offereci<strong>do</strong> À<br />
Virgem Santíssima <strong>do</strong> Monte <strong>do</strong> Carmo. / Primeiro volume, nesta terceira<br />
impressão acrecenta<strong>do</strong> com <strong>do</strong>us indices novos muito copiosos, e as quatro<br />
partes primeiras com as annotaçoens âs margens, que nunca tiveraõ. - Lisboa:
8 A novela portuguesa no século XVII:<br />
na officina de Miguel Deslandes: a custa de Manoel Lopes Ferreira, & Antonio<br />
Corrêa <strong>da</strong> Fonseca, Merca<strong>do</strong>res de livros na Rua Nova, 1688.<br />
Alivio de tristes, e consolaçam de queixosos. / Quarta, Quinta e Sexta Parte /<br />
Composto pelo P. Matheus Ribeyro; Theologo, Prega<strong>do</strong>r deste Arcebispa<strong>do</strong> e<br />
natural de Lisboa: / Offereci<strong>do</strong> À Virgem Santíssima <strong>do</strong> Monte <strong>do</strong> Carmo. /<br />
Segun<strong>do</strong> volume. Lisboa: na officina de Miguel Manescal: à custa de Manoel<br />
Lopes Ferreira, & Antonio Corrêa <strong>da</strong> Fonseca, Merca<strong>do</strong>res de livros na Rua<br />
Nova, 1688.<br />
Alivio de tristes e consolação de queixosos I Pe Matheus Ribeiro. - Lisboa, na<br />
Off. que foy de Miguel Lopes Ferreira, 1734. (2 tomos em 1 vol.)<br />
Alivio de tristes e consolação de queixosos I Pe Matheus Ribeiro. Lisboa, na<br />
Officina de Domingos Rodrigues, 1754. (2 tomos em 1 vol.)<br />
Alivio de tristes e consolações de queixosos I Pe Matheus Ribeiro. Lisboa, Luiz<br />
de Moraes e Castro, 1754. (2 vol.)<br />
Alivio de tristes e consolação de queixosos... I Pe Matheus Ribeiro. Lisboa, na<br />
Off. de Miguel Manescal <strong>da</strong> Costa, 1764. (2 tomos em 1 vol.)<br />
No seu Dicionário Bibliográphico, Inocêncio afirma possuir "uma edição de<br />
Lisboa, na Offic. Ferreiriana 1737. 4.° 2 tomos com VIII-444 pag., e<br />
XII-133-136-163 pag.", mas, por não encontrar dela qualquer registo, optámos<br />
por não a incluir nesta lista.<br />
Tradução castelhana:<br />
Alivio de tristes y consuelo de quejosos: expresa<strong>do</strong> en varias historias,<br />
confirma<strong>do</strong> con ejemplares, a<strong>do</strong>rna<strong>do</strong> con autori<strong>da</strong>des de Santos Padres, &c. I<br />
traduc. dei português ai castellano por el Dr. Juan Antonio Mora [S.I. : s.n., s.a.]<br />
(Barcelona : Imp. de Lucas de Bezáres) p. ; 4°
II. Argumento e organização <strong>da</strong> diegese<br />
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 9<br />
Alívio de tristes e consolação de queixosos consiste numa extensa<br />
narrativa organiza<strong>da</strong> em seis partes, de acor<strong>do</strong> com o seguinte esquema: I<br />
Parte - sem qualquer divisão em capítulos; II Parte - 29 capítulos conten<strong>do</strong><br />
sempre de um pequeno resumo introdutório, tal como acontece nas partes que<br />
se seguem; III Parte - 24 capítulos; IV Parte - 23 capítulos; V Parte - 17<br />
capítulos; VI Parte - 21 capítulos.<br />
As seis partes desta novela podem agrupar-se ain<strong>da</strong> em três blocos: na<br />
primeira e segun<strong>da</strong> partes assistimos ao encontro entre o Peregrino Dionísio e<br />
o Ermitão Felisberto e a narração <strong>do</strong>s sucessos passa<strong>do</strong>s que explicam o seu<br />
isolamento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>; a terceira e quarta partes apresentam o relato <strong>da</strong><br />
jorna<strong>da</strong> que os protagonistas fizeram ao templo de Nossa Senhora <strong>do</strong> Loreto;<br />
por fim, nas duas últimas partes, estan<strong>do</strong> os protagonistas de novo na sua<br />
ermi<strong>da</strong>, são procura<strong>do</strong>s por Lisar<strong>do</strong>, personagem que se institui como narra<strong>do</strong>r<br />
<strong>da</strong> sua atribula<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, assumin<strong>do</strong>-se os <strong>do</strong>is protagonistas desta obra como<br />
ouvintes e conselheiros.<br />
Por conseguinte, apresentan<strong>do</strong> uma sintaxe <strong>da</strong> diegese com alguma<br />
complexi<strong>da</strong>de 17 , esta novela estrutura-se em três níveis narrativos que<br />
17 Por entre as narrativas retrospectivas de Dionísio e Felisberto, na primeira Parte, as diversas<br />
histórias que estas duas personagens ouvem contar àqueles com quem se encontram na<br />
peregrinação ao santuário de Nossa Senhora <strong>do</strong> Loreto (terceira e quarta Partes) e a longa<br />
diegese de Lisar<strong>do</strong>, que incorpora igualmente múltiplas metadiegeses, devemos mencionar<br />
ain<strong>da</strong> os frequentes comentários de cariz moral que o narra<strong>do</strong>r heterodiegético vai produzin<strong>do</strong>,<br />
com o intuito de inculcar uma concepção de vi<strong>da</strong> basea<strong>da</strong> no desengano, e também as<br />
constantes reflexões que as personagens vão efectuan<strong>do</strong>, poden<strong>do</strong> mesmo originar desvios <strong>do</strong><br />
fio narrativo: "E suposto que a narração de minha vi<strong>da</strong> me conduziu com esta digressão a vir<br />
tocar em prémios <strong>da</strong><strong>do</strong>s a sábios e <strong>do</strong>utos, me haveis de per<strong>do</strong>ar, senhor, se nesta ocasião me<br />
divertir um pouco <strong>do</strong> fio continua<strong>do</strong> desta história a tratar um sentimento que a muitos hoje no<br />
mun<strong>do</strong> inquieta e lastima de ver quanto são nesta nossa i<strong>da</strong>de em to<strong>da</strong>s as repúblicas <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>, ou na maior parte delas, premia<strong>do</strong>s em pouco os sábios, os beneméritos, os talentos
10 A novela portuguesa no século XVII:<br />
funcionam por encaixe: no primeiro nível, entrecorta<strong>do</strong> por diversas reflexões e<br />
comentários de pen<strong>do</strong>r acentua<strong>da</strong>mente moralizante, o narra<strong>do</strong>r extradiegético<br />
refere o encontro de um Peregrino com um Ermitão; o segun<strong>do</strong> nível consiste<br />
no diálogo estabeleci<strong>do</strong> entre o Peregrino e o Ermitão e a narração<br />
autodiegética <strong>do</strong>s sucessos de ca<strong>da</strong> um; no terceiro nível, durante a longa<br />
jorna<strong>da</strong> que as personagens principais empreendem em peregrinação, as<br />
personagens com as quais se encontram instituem-se como narra<strong>do</strong>res <strong>da</strong>s<br />
suas histórias. Em último <strong>caso</strong>, poderíamos considerar ain<strong>da</strong> um quarto nível,<br />
distinto <strong>do</strong> anterior: nas duas últimas partes <strong>da</strong> obra, ceden<strong>do</strong> o narra<strong>do</strong>r de<br />
primeiro nível a função narrativa a Lisar<strong>do</strong>, personagem que se encontra na<br />
companhia <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is eremitas, este acaba por incluir na sua longa narração um<br />
conjunto de metadiegeses que lhe haviam si<strong>do</strong> apresenta<strong>da</strong>s por outros<br />
narra<strong>do</strong>res.<br />
Assim, a complexi<strong>da</strong>de desta novela resulta <strong>da</strong> multiplicação de narrativas<br />
organiza<strong>da</strong>s preferencialmente por encaixe (com excepção <strong>da</strong> Parte V,<br />
composta pela narração intercala<strong>da</strong> de histórias relaciona<strong>da</strong>s com o percurso<br />
de Lisar<strong>do</strong>) e <strong>da</strong> expansão espacial e temporal provoca<strong>da</strong>s pela deambulação<br />
<strong>da</strong>s personagens e pela referência a factos passa<strong>do</strong>s que concorrem para a<br />
eluci<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> sua situação presente. Por outro la<strong>do</strong>, a acumulação destas<br />
micro-narrativas, histórias de amor e de desengano, fornecen<strong>do</strong> a varie<strong>da</strong>de<br />
estimula<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> deleite, apresenta exemplos de comportamentos que se<br />
reprovam ou, pelo contrário, fornecem modelos susceptíveis de serem<br />
imita<strong>do</strong>s, assim se ilustran<strong>do</strong> os ensinamentos incuti<strong>do</strong>s às personagens<br />
enquanto destinatários e, em última instância, persuadin<strong>do</strong> o próprio leitor.<br />
Para melhor compreender a estrutura organizacional desta novela de<br />
Mateus Ribeiro, e também para mais facilmente determinar a exemplari<strong>da</strong>de de<br />
que se reveste, ain<strong>da</strong> que não preten<strong>da</strong>mos ser exaustivos, interessa expor o<br />
seu argumento e uma síntese <strong>da</strong>s histórias que contribuem para a classificar<br />
como "exemplar".<br />
<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s de partes grandes." Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos,<br />
Parte I, p.136.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 11<br />
Dirigin<strong>do</strong>-se para o templo de S. Miguel, Dionísio encontra-se com um<br />
Ermitão. Observan<strong>do</strong> a melancolia que <strong>do</strong>mina o jovem caminhante, o Ermitão<br />
pede-lhe que refira as causas de tal tristeza. Assim se inicia a detalha<strong>da</strong><br />
relação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de Dionísio, numa longa analepse que ocupa to<strong>da</strong> a primeira<br />
parte, conhecen<strong>do</strong>-se o seu desfecho apenas no fim <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> parte.<br />
Para melhor explicar os motivos que o conduziram ao presente esta<strong>do</strong>, o<br />
desejo de vingança que o leva a procurar Teo<strong>do</strong>ra, sua mulher, que fugira com<br />
o espanhol Maurício, seu falso amigo, Dionísio encaixa na sua narração outras<br />
diegeses, to<strong>da</strong>s elas termina<strong>da</strong>s de mo<strong>do</strong> trágico, assim indician<strong>do</strong> a fatali<strong>da</strong>de<br />
que o persegue 18 : História de João Luiz de Fiesco 19 , tio <strong>do</strong> Peregrino; História<br />
<strong>do</strong> duque Tomás de Norfolc 20 ; História de Maria Estuar<strong>da</strong> 21 , rainha de Escócia<br />
e de França. De resto, aludin<strong>do</strong> a factos históricos reconhecíveis pelo leitor e<br />
sugerin<strong>do</strong> a ligação de Dionísio com personagens reais, o autor fornece à sua<br />
obra a verosimilhança que deve ser característica <strong>da</strong> ficção romanesca.<br />
Referi<strong>do</strong>s os fatídicos acontecimentos que afectaram aqueles com quem<br />
contactou durante a perseguição que moveu a Teo<strong>do</strong>ra e Maurício, Dionísio,<br />
depois de se envolver numa série de peripécias que o levaram a percorrer<br />
grande parte <strong>da</strong> Europa, encontra em Castela um ermitão que lhe refere a<br />
trágica história que o levou ao retiro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, em tu<strong>do</strong> análoga à sua e, por<br />
tal motivo, passível de lhe proporcionar algum ensinamento. Assim, apaixona<strong>do</strong><br />
por Lisar<strong>da</strong>, o ermitão espanhol viu-se preteri<strong>do</strong> por Frederico, seu irmão mais<br />
velho. Socorren<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> auxílio de D. Sancho, seu amigo, para afastar Lisar<strong>da</strong><br />
de Frederico, acabou por provocar um desfecho trágico: durante a noite, ao<br />
impedir a fuga de Lisar<strong>da</strong> com D. Sancho, este foi atingi<strong>do</strong> mortalmente por<br />
Frederico e o ermitão acabou por matar o seu próprio irmão. Para finalizar<br />
estes fatídicos sucessos, Lisar<strong>da</strong> acabou por morrer em segui<strong>da</strong> devi<strong>do</strong> ao<br />
desgosto amoroso.<br />
"Foi meu nacimento festeja<strong>do</strong> como de filho primogénito, suposto que parece que foi para ser<br />
herdeiro de meu pai, não somente na pequena herança de seus bens, mas na de seus grandes<br />
infortúnios e desgraças, como mostrará o discurso de minha história." Mateus RIBEIRO, Alivio<br />
de tristes e consolação de queixosos, 1688, Parte I, p.126.<br />
19 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, pp.122-125.<br />
20<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, pp.126-170<br />
21 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, pp.127-169.
12 A novela portuguesa no século XVII:<br />
Prosseguin<strong>do</strong> a sua busca por terras de Espanha, junto às montanhas de<br />
Serra Morena, Dionísio encontra a chorosa Eugenia, <strong>do</strong>nzela seduzi<strong>da</strong> pelas<br />
promessas de Roberto e posteriormente aban<strong>do</strong>na<strong>da</strong> no meio <strong>da</strong> floresta. De<br />
acor<strong>do</strong> com a função edificante desta novela, a descortesia e o desrespeito de<br />
Roberto acabaram fortemente castiga<strong>do</strong>s, acaban<strong>do</strong> o falso amante morto por<br />
saltea<strong>do</strong>res.<br />
Deixan<strong>do</strong> Eugenia num convento de Grana<strong>da</strong>, Dionísio continuou a<br />
percorrer Espanha e, voltan<strong>do</strong> para Itália, decidiu fazer uma peregrinação ao<br />
templo de S. Miguel, encontran<strong>do</strong> então o Ermitão, responsável pelo completo<br />
alívio <strong>do</strong> seu sofrimento, receben<strong>do</strong>-o na sua ermi<strong>da</strong>:<br />
"Aonde por ora os deixaremos descansar <strong>do</strong> caminho, até que outros diálogos e<br />
vários sucessos, assim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> Ermitão como <strong>do</strong>s ofensores <strong>do</strong> Peregrino, nos<br />
dem matéria à segun<strong>da</strong> parte desta obra que prometo, sen<strong>do</strong> esta aceita com a<br />
benevolência que espero e a vontade de aproveitar e servir a to<strong>do</strong>s merece." 22<br />
De regresso ao tempo narrativo <strong>da</strong> diegese, tal como fora anuncia<strong>do</strong> no<br />
final <strong>da</strong> primeira parte, a pedi<strong>do</strong> <strong>do</strong> Peregrino, o Ermitão procede à narração<br />
<strong>do</strong>s trágicos sucessos que o conduziram ao retiro na ermi<strong>da</strong> 23 .<br />
Felisberto começa por narrar o indecoroso rapto de Lucin<strong>da</strong>, sua irmã, a<br />
man<strong>do</strong> de Juliano, mancebo espanhol que não tolerou o rigoroso desengano<br />
desta discreta <strong>do</strong>nzela que havia anteriormente despedi<strong>do</strong> vários pretendentes<br />
por desejar dedicar-se ao Esposo <strong>da</strong>s Almas. Juliano, não conseguin<strong>do</strong> vencer<br />
com os desvelos amorosos a firme resolução de Lucin<strong>da</strong>, determinou organizar<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.218.<br />
3 A narração de Felisberto, em resposta ao favor que o Peregrino lhe fizera, segue uma<br />
estrutura paralela à de Dionísio: "Assim entre queixoso e diverti<strong>do</strong>, crepúsculos entre a noite <strong>do</strong><br />
sentimento e o dia <strong>do</strong> alívio, entrecadências entre as tempestades <strong>do</strong> agravo e as bonanças <strong>do</strong><br />
alívio, férias entre o estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> <strong>do</strong>r e o ócio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, passava o nosso forasteiro, quan<strong>do</strong> um dia<br />
que entre outros viu ao Ermitão mais livre de ocupações de passageiros que o buscavam ain<strong>da</strong><br />
na sole<strong>da</strong>de em que vivia, lhe pediu encareci<strong>da</strong>mente quisesse satisfazer-lhe a promessa de<br />
lhe contar os discursos de sua vi<strong>da</strong>. O Ermitão, que pela promessa se via obriga<strong>do</strong> e pela<br />
amizade empenha<strong>do</strong> a satisfazer-lhe o desejo, assentan<strong>do</strong>-se com ele sobre a relva de um<br />
ameno pra<strong>do</strong>, a quem formavam pavelhão os frescos ramos de um copa<strong>do</strong> freixo, deu princípio<br />
aos perío<strong>do</strong>s de sua vi<strong>da</strong>, dizen<strong>do</strong>'' Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de<br />
queixosos, Parte II, pp.219-20.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 13<br />
o seu rapto, aproveitan<strong>do</strong> a sua estadia numa quinta fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de<br />
Nápoles, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> um grupo de força<strong>do</strong>s mouros, capitanea<strong>do</strong>s por Zaide,<br />
cometer tal violência. Confia<strong>do</strong> <strong>da</strong> obediência <strong>do</strong>s seus prisioneiros, Juliano<br />
acabou preso pelos mouros, que tomaram a galé, partin<strong>do</strong> cativo em seu poder<br />
juntamente com a inocente <strong>do</strong>nzela.<br />
Entretanto, ignoran<strong>do</strong> o que se passava com a sua irmã, Felisberto<br />
apadrinhou Alexandre, seu particular amigo, num duelo com Dionísio Montal<strong>do</strong>,<br />
apadrinha<strong>do</strong> por D. Sancho de Car<strong>do</strong>na, para restaurar a honra de Anastácia,<br />
irmã de Alexandre, engana<strong>da</strong> por este jovem genovês desterra<strong>do</strong> para Nápoles<br />
que, movi<strong>do</strong> pela ambição, pretendia casar com uma mulher com um <strong>do</strong>te<br />
superior. Feri<strong>do</strong> Dionísio por Alexandre durante o duelo, to<strong>do</strong>s os<br />
intervenientes foram presos a man<strong>do</strong> <strong>do</strong> vice-rei, acaban<strong>do</strong> Alexandre por ferir<br />
um ministro <strong>da</strong> justiça. Preso no Castelo de Santelmo, Felisberto tomou<br />
conhecimento <strong>do</strong> sucedi<strong>do</strong> com Lucin<strong>da</strong>. Anastácia, entretanto casa<strong>da</strong> com<br />
Dionísio, funcionan<strong>do</strong> o casamento como processo de resolução de conflitos,<br />
alertou Felisberto, através de uma carta, <strong>da</strong> morte <strong>do</strong> ministro <strong>da</strong> justiça<br />
anteriormente agredi<strong>do</strong>.<br />
Cientes <strong>do</strong> perigo em que incorriam as suas vi<strong>da</strong>s, preparam uma fuga.<br />
Assim se inicia uma nova narrativa, protagoniza<strong>da</strong> por Alexandre e Eugenia,<br />
filha <strong>do</strong> capitão <strong>do</strong> Castelo. Impeli<strong>da</strong> pela eloquência <strong>do</strong> amor e confia<strong>da</strong> na<br />
palavra de esposo <strong>da</strong><strong>da</strong> por Alexandre, Eugenia roubou as chaves <strong>do</strong> castelo<br />
ao pai e, benefician<strong>do</strong> <strong>do</strong> suborno de uma sentinela, fugiram to<strong>do</strong>s a caminho<br />
<strong>do</strong> reino de Milão, pretexto para o narra<strong>do</strong>r reflectir sobre o amor e o interesse<br />
como principais inimigos <strong>da</strong> razão. Surpreendi<strong>do</strong>s pelo desonra<strong>do</strong> capitão <strong>do</strong><br />
castelo que havia enceta<strong>do</strong> uma perseguição individual, Felisberto tomou a<br />
palavra para justificar o erro de Eugenia, enumeran<strong>do</strong> vários exemplos<br />
históricos de mulheres que libertaram os mari<strong>do</strong>s por amor.<br />
Venci<strong>do</strong> pelas discretas razões apresenta<strong>da</strong>s por Felisberto, o capitão<br />
seguiu na companhia <strong>do</strong>s foragi<strong>do</strong>s. Contu<strong>do</strong>, esta tranquili<strong>da</strong>de é de imediato<br />
quebra<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> os viajantes assalta<strong>do</strong>s por um grupo de ban<strong>do</strong>leiros.<br />
Conduzi<strong>do</strong>s à presença <strong>do</strong> seu chefe, distinto <strong>do</strong>s restantes assaltantes pela<br />
sua cortesia, inicia-se uma <strong>da</strong>s narrativas mais exemplares no que concerne ao<br />
desengano e à reforma de comportamentos indignos. Frederico, filho de pais<br />
lavra<strong>do</strong>res, gradua<strong>do</strong> em leis à custa <strong>do</strong> seu esforço e aspirante a mais altos
14 A novela portuguesa no século XVII:<br />
cargos, apresenta-se aos seus narratários como exemplo <strong>da</strong> inconstante ro<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> fortuna 24 . An<strong>da</strong>n<strong>do</strong> entreti<strong>do</strong> no exercício <strong>da</strong> caça, o conde Roberto viu<br />
Claudiana, irmã de Frederico, entregan<strong>do</strong>-se a partir desse momento a<br />
serviços, desvelos e assistências amorosas, passean<strong>do</strong>-a de dia e oferecen<strong>do</strong>-<br />
Ihe músicas de noite, obten<strong>do</strong> invariavelmente desabri<strong>da</strong>s respostas. Movi<strong>do</strong><br />
pelo desafora<strong>do</strong> interesse, roubou Claudiana de sua casa, fomentan<strong>do</strong> o<br />
desejo de vingança de Frederico, ocupa<strong>do</strong> nos seus estu<strong>do</strong>s. Face à<br />
descortesia e violência de tal acto, justifica<strong>do</strong> pela desigual<strong>da</strong>de no estatuto<br />
social e na riqueza que opunha a sua família ao conde Roberto, o desalenta<strong>do</strong><br />
irmão denuncia a parciali<strong>da</strong>de na aplicação <strong>da</strong> justiça e, como tal, projecta o<br />
seu desagravo.<br />
Dirigin<strong>do</strong>-se à quinta de Roberto, a coberto <strong>da</strong> noite, para concretizar o<br />
seu anseio de vingança, Frederico foi surpreendi<strong>do</strong> por uma mulher que<br />
caminhava na sua direcção com um punhal na mão. Identifican<strong>do</strong>-se<br />
Claudiana, para surpresa e alegria <strong>do</strong> seu irmão, a zelosa <strong>do</strong>nzela contou-lhe o<br />
sucedi<strong>do</strong>, desde o rapto de sua casa até ao momento em que saiu pela janela<br />
que a um jardim caía, de pois de cravar o punhal no peito <strong>do</strong> insolente Roberto,<br />
exemplo <strong>da</strong> soberba <strong>do</strong>s mais poderosos, que tentara alcançar pela força o que<br />
os seus desvelos não conseguiram lograr.<br />
Apesar <strong>do</strong>s públicos louvores <strong>da</strong> defesa <strong>da</strong> sua honra, Claudiana entrou<br />
num convento e Frederico, recean<strong>do</strong> a reacção <strong>do</strong>s poderosos parentes <strong>do</strong><br />
conde, aban<strong>do</strong>nou os estu<strong>do</strong>s e envere<strong>do</strong>u pela carreira militar, assentan<strong>do</strong><br />
praça de sol<strong>da</strong><strong>do</strong> no exército <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r Carlos V, ven<strong>do</strong> premia<strong>do</strong> o seu<br />
valor com dignificantes honras militares. Regressa<strong>do</strong> a Nápoles, durante as<br />
festas populares que se viviam, recebeu uma bofeta<strong>da</strong> de um cria<strong>do</strong> de<br />
Raimun<strong>do</strong>, primo <strong>do</strong> conde Roberto, que circulava entre alguns homens<br />
mascara<strong>do</strong>s. Vingan<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> humilhação pública recebi<strong>da</strong>, não conhecen<strong>do</strong><br />
quem o havia atingi<strong>do</strong>, Felisberto matou três <strong>do</strong>s mascara<strong>do</strong>s e feriu outros <strong>do</strong>s<br />
"Quem diria, senhores, que tal mu<strong>da</strong>nça se desse que <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong>des decesse às<br />
montanhas, de julga<strong>do</strong>r a temer ser julga<strong>do</strong>, de professor <strong>da</strong>s Leis a temer seus rigores e de<br />
aplaudi<strong>do</strong> por letra<strong>do</strong> a ser temi<strong>do</strong> por ban<strong>do</strong>leiro; tal mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> fortuna só em mim pudera<br />
achar-se, porque nasci para exemplo de sua inconstância." Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e<br />
consolação de queixosos, Parte II, p.270.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 15<br />
presentes na praça. Procura<strong>do</strong> pelo auditor e por alguns ministros <strong>da</strong> justiça,<br />
aju<strong>da</strong><strong>do</strong> por sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que haviam milita<strong>do</strong> consigo, feriu alguns <strong>do</strong>s executores<br />
<strong>da</strong> justiça e fugiu para os montes, onde, juntan<strong>do</strong>-se a outros criminosos,<br />
acabou por formar aquele grupo de foragi<strong>do</strong>s.<br />
Termina<strong>da</strong> a relação <strong>do</strong>s sucessos que tornaram Frederico capitão de<br />
ban<strong>do</strong>leiros, Felisberto tenta persuadi-lo a aplacar a sua ira e desistir <strong>da</strong> sua<br />
vingança, incitan<strong>do</strong>-o a aban<strong>do</strong>nar a escan<strong>da</strong>losa activi<strong>da</strong>de de foragi<strong>do</strong> como<br />
forma de salvar a vi<strong>da</strong> e a alma. Aceitan<strong>do</strong> o discreto conselho <strong>do</strong> Ermitão,<br />
Frederico aceita acompanhá-los para Roma, despedin<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s seus<br />
companheiros ban<strong>do</strong>leiros e incitan<strong>do</strong>-os a emen<strong>da</strong>r analogamente a sua<br />
indecorosa ocupação. Passa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is dias depois de se haverem hospe<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
em casa de Octávio Leonino, amigo de Dionísio Montal<strong>do</strong>, foram confronta<strong>do</strong>s<br />
com a inespera<strong>da</strong> morte <strong>da</strong> jovem Felícia, filha de Octávio e Laura. Perante os<br />
intensos lamentos <strong>da</strong> sua mãe, Felisberto tomou uma vez mais a tarefa de<br />
consolar o seu sofrimento, consideran<strong>do</strong> infrutífera a vontade de tentar<br />
compreender os misteriosos desígnios <strong>da</strong> Providência Divina, "juízos <strong>da</strong><br />
sabe<strong>do</strong>ria eterna que nossos discursos investigar não podem" 25 , e apontan<strong>do</strong> a<br />
vi<strong>da</strong> terrena como mera passagem para a morte 26 , concepção barroca<br />
recorrente nesta novela <strong>do</strong> padre Mateus Ribeiro.<br />
Chega<strong>do</strong>s a Roma, enquanto se preparava o recebimento de Alexandre<br />
com Eugenia, Frederico, após confissão, e benefician<strong>do</strong> <strong>da</strong> exemplari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />
histórias que lhe foram referi<strong>da</strong>s pelo confessor, decidiu retirar-se <strong>da</strong>s vai<strong>da</strong>des<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, professan<strong>do</strong> num convento, para contentamento de to<strong>do</strong>s.<br />
Fin<strong>da</strong> a narrativa de Frederico, retoma-se a história <strong>do</strong> rapto de Lucin<strong>da</strong>,<br />
caben<strong>do</strong> a Leonar<strong>do</strong>, primo de Sigismun<strong>da</strong>, mãe de Eugenia, que em<br />
companhia de numerosos parentes se deslocaram a Roma para os festeja<strong>do</strong>s<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.295.<br />
26 O tópico peregrinatio vitae, conforme anotaremos mais à frente, é um <strong>do</strong>s temas <strong>da</strong> <strong>do</strong>utrina<br />
assente no desengano que esta obra propõe: "Porque enfim como to<strong>do</strong>s para lá caminhamos,<br />
com os passos que <strong>da</strong>mos é força que cheguemos; pois onde nunca se pára e sempre se<br />
caminha to<strong>da</strong> a jorna<strong>da</strong> é breve, ain<strong>da</strong> que pareça larga." Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e<br />
consolação de queixosos, Ibidem.
16 A novela portuguesa no século XVII:<br />
desposórios, a narração <strong>do</strong>s acontecimentos, legitiman<strong>do</strong> a sua narração por<br />
ter si<strong>do</strong> interveniente nos acontecimentos 27 .<br />
Movi<strong>da</strong> a perseguição à galé em que os mouros levavam Juliano e a<br />
inocente Lucin<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> alcança<strong>do</strong>s, Zaide, o seu chefe, enviou uma carta em<br />
que revelou to<strong>do</strong>s os factos que envolviam Juliano e propôs a entrega <strong>do</strong><br />
indecoroso cavaleiro e demais sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e Lucin<strong>da</strong> em troca <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de.<br />
Deve-se notar que, sen<strong>do</strong> os mouros continuamente caracteriza<strong>do</strong>s como<br />
assassinos, desprovi<strong>do</strong>s de virtudes, neste <strong>caso</strong> revestem-se, na figura de<br />
Zaide, de assinalável cortesia, facto que acentua ain<strong>da</strong> mais a insolência <strong>do</strong><br />
comportamento de Juliano. Fazen<strong>do</strong> valer a sua posição, Camilo, pai de<br />
Lucin<strong>da</strong>, argumenta em favor <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de de Zaide e de alguns companheiros<br />
escolhi<strong>do</strong>s, obten<strong>do</strong> em troca a galé com os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s espanhóis, Lucin<strong>da</strong> e<br />
Juliano preso em ferros. Recupera<strong>do</strong>s Lucin<strong>da</strong> e Juliano, este, preso e<br />
fragiliza<strong>do</strong> por não se alimentar, culpa o amor (ideia recorrente) pelos funestos<br />
acontecimentos em que se viu envolvi<strong>do</strong>.<br />
Voltan<strong>do</strong>-se novamente a atenção para os acontecimentos que ocorri<strong>do</strong>s<br />
em Roma, artifício narrativo que fornece varie<strong>da</strong>de a esta história, celebraram-<br />
se as bo<strong>da</strong>s de Alexandre e Eugenia, e Felisberto, acompanha<strong>do</strong> de Dom<br />
Sancho, partiu para Liorne em busca <strong>do</strong> pai e <strong>da</strong> irmã. Durante a jorna<strong>da</strong>,<br />
encontraram <strong>do</strong>is mancebos empenha<strong>do</strong>s num duelo. Pretenden<strong>do</strong> saber a<br />
razão desta pendência, ouvem a história de Fábio e Júlio, ambos pretendentes<br />
de Laura, filha de uma nobre viúva. Dissuadi<strong>do</strong>s <strong>da</strong> luta pelos sensatos<br />
pareceres de Dom Sancho, que os aconselhou a conquistar Laura pelo valor e<br />
não pelas armas, prosseguiram a sua viagem, encontran<strong>do</strong> Camilo e Lucin<strong>da</strong><br />
em Pisa.<br />
A convite <strong>do</strong> conde Hipólito, grão-duque de Florença, hospe<strong>da</strong>ram-se em<br />
sua casa, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> satisfação à sua curiosi<strong>da</strong>de com o relato <strong>do</strong> extraordinário<br />
sucesso de Lucin<strong>da</strong>. Responden<strong>do</strong> a um pedi<strong>do</strong> <strong>do</strong> vice-rei, o confessor <strong>do</strong><br />
Note-se a preocupação de Mateus Ribeiro em manter a verosimilhança <strong>do</strong>s sucessos<br />
referi<strong>do</strong>s com a repartição <strong>da</strong> voz narrativa: "Porque <strong>do</strong> sucesso <strong>da</strong>s galés posso eu <strong>da</strong>r inteira<br />
relação como quem foi nelas embarca<strong>do</strong> com alguns amigos meus, por lhes fazer companhia<br />
nesta repentina jorna<strong>da</strong> responderei, senhores, ao desejo que tendes de saber o que neste<br />
negócio e na corte tem sucedi<strong>do</strong> depois de vossa ausência." Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes<br />
e consolação de queixosos, Parte II, p.300.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 17<br />
grão-duque pede clemência para com Juliano, propon<strong>do</strong> o seu casamento com<br />
Lucin<strong>da</strong>, negócio que mereceu a reprovação de Felisberto. No entanto, perante<br />
o poder <strong>da</strong>s pessoas envolvi<strong>da</strong>s nesta petição, Lucin<strong>da</strong> acabou por aceitar este<br />
casamento, obten<strong>do</strong> em troca o perdão <strong>da</strong> fuga de Felisberto.<br />
De regresso a Nápoles, pernoitaram em casa de Vetúria Orsino, mãe de<br />
Laura. Felisberto logo ficou subjuga<strong>do</strong> pela formosura de Laura, visto que<br />
desde o encontro com Fábio e Júlio sentia uma "insaciável curiosi<strong>da</strong>de de<br />
poder ver a Laura, tão hiperboliza<strong>do</strong> prodígio de beleza." 28 Continuan<strong>do</strong> a<br />
viagem, junto a uma fonte, encontram Justino, mancebo de origem pobre e<br />
humilde que pretendia aban<strong>do</strong>nar os estu<strong>do</strong>s devi<strong>do</strong> à oposição que lhe é<br />
movi<strong>da</strong> na Universi<strong>da</strong>de. Proceden<strong>do</strong> à defesa <strong>do</strong> valor <strong>da</strong>s letras, Felisberto<br />
exorta-o a continuar os estu<strong>do</strong>s, discursan<strong>do</strong> sobre os prémios e os<br />
merecimentos que lhe podem advir e mostran<strong>do</strong> exemplos de como a<br />
humil<strong>da</strong>de de nascimento e a pobreza não são inconciliáveis com a ciência e a<br />
fama.<br />
Persuadi<strong>do</strong> pelas razões expostas por Felisberto, resoluto em continuar<br />
os seus estu<strong>do</strong>s, Justino acompanha-os no regresso a Nápoles. Nesta ci<strong>da</strong>de,<br />
sain<strong>do</strong> Juliano <strong>da</strong> prisão, celebraram-se os seus desposórios com Lucin<strong>da</strong>.<br />
Acompanhan<strong>do</strong> Felisberto o conde Hipólito no regresso a Florença, a título de<br />
agradecer a diligência que o grão-duque havia posto na realização deste<br />
casamento, mas leva<strong>do</strong> principalmente pela vontade de ver novamente Laura,<br />
após passagem por Roma, chegaram finalmente ao Castelo de Monte<br />
Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, toman<strong>do</strong> Felisberto conhecimento <strong>da</strong> promessa de casamento de<br />
Laura com Carlos Savello, ilustre e rico cavaleiro. Confessan<strong>do</strong> Felisberto o<br />
seu amor por Laura, interceden<strong>do</strong> o conde neste casamento e demonstran<strong>do</strong><br />
Laura o seu desgosto por casar com Carlos, Vetúria aceitou que Laura case<br />
com Felisberto, o que aconteceu ao seguinte dia em Roma.<br />
Chegan<strong>do</strong> a Carlos as novas <strong>do</strong> recebimento de Laura, desde logo<br />
preparou o seu desforço, sen<strong>do</strong> contu<strong>do</strong> demovi<strong>do</strong> pelo prudente parecer de<br />
Timóteo Savello, fi<strong>da</strong>lgo ancião que o convence a resignar-se e a confiar no<br />
poder <strong>do</strong> tempo para apagar to<strong>da</strong>s as memórias.<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.323.
18 A novela portuguesa no século XVII:<br />
Com Carlos alivia<strong>do</strong> <strong>da</strong> sua tristeza e consola<strong>do</strong> <strong>da</strong> sua mágoa, Felisberto<br />
e Laura viviam tranquilamente numa quinta próxima de Nápoles. Porém,<br />
regressan<strong>do</strong> uma noite à quinta, Felisberto foi confronta<strong>do</strong> com os ciúmes de<br />
Laura, acossa<strong>da</strong> por comentários que insinuavam uma ligação <strong>do</strong> seu mari<strong>do</strong><br />
com Rosaura, "<strong>da</strong>ma cortesã que veio à corte para distraimento <strong>do</strong>s<br />
senti<strong>do</strong>s." 29 Defenden<strong>do</strong>-se <strong>da</strong>s acusações feitas por Laura e preocupa<strong>do</strong> com<br />
a "música que se <strong>da</strong>va com suaves vozes e discretas letras, em que o nome de<br />
Laura algumas vezes se repetia" 30 , Felisberto decidiu partir com Laura e sua<br />
mãe Vetúria para o seu castelo de Monte Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>.<br />
Tal como acontece noutros <strong>caso</strong>s, introduz-se uma narração que,<br />
repetin<strong>do</strong> o tema <strong>da</strong> anterior, torna mais níti<strong>da</strong> a lição a extrair. Assim, ao<br />
chegar a Roma, Felisberto encontra Eugenia gravemente <strong>do</strong>ente em<br />
consequência <strong>da</strong>s desconfianças de Alexandre, seu particular amigo. Com esta<br />
inespera<strong>da</strong> morte, insiste o narra<strong>do</strong>r na ideia barroca <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> como<br />
peregrinação, diminuin<strong>do</strong> o valor <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> mortal para acentuar a vantagem <strong>da</strong><br />
imortal que a <strong>do</strong>nzela alcançara. Após ser alivia<strong>do</strong> no seu sofrimento pelo<br />
discurso <strong>do</strong> catedrático bolonhês (novamente a voz de um homem maduro,<br />
sábio e experimenta<strong>do</strong> como factor de vali<strong>da</strong>de para o discurso ser proveitoso),<br />
Alexandre partiu em companhia de Felisberto e Laura.<br />
Durante esta jorna<strong>da</strong>, Felisberto e Alexandre foram surpreendi<strong>do</strong>s por<br />
uma embosca<strong>da</strong>, acaban<strong>do</strong> com a morte <strong>do</strong>s desconheci<strong>do</strong>s agressores: Fábio<br />
e Júlio, antigos pretendentes de Laura, e um filho <strong>do</strong> marquês Valeriano.<br />
Novamente envolvi<strong>do</strong>s de forma involuntária numa situação de violência, <strong>da</strong><strong>da</strong><br />
a importância <strong>do</strong>s oponentes mortos, aos <strong>do</strong>is amigos não resta outra solução<br />
que a fuga, servin<strong>do</strong> o empera<strong>do</strong>r nas guerras de Alemanha, fican<strong>do</strong> Laura e<br />
sua mãe assegura<strong>da</strong>s num convento de Florença.<br />
Enquanto combatia de forma valorosa na Hungria, particularmente na<br />
empresa militar contra o turco Solimão, chegaram a Felisberto as novas que o<br />
despersuadiram totalmente <strong>da</strong>s lisonjas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>: Laura morreu no convento<br />
de uma tristeza contínua provoca<strong>da</strong> pelo "excesso de amor"; o pai morreu no<br />
Castelo de Santelmo, preso por ser o suposto cabeça de um ban<strong>do</strong> em<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.352.<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.351.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 19<br />
Nápoles; a mãe acabou também por morrer, vitima<strong>da</strong> pelo desgosto. Para<br />
aumentar ain<strong>da</strong> mais a sua <strong>do</strong>r, Alexandre, seu amigo mais próximo e<br />
companhia de muitas aventuras, morreu em Pallota, Hungria, nas guerras<br />
contra os turcos.<br />
Assim desengana<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e <strong>da</strong>s suas vai<strong>da</strong>des, Felisberto<br />
aban<strong>do</strong>nou a activi<strong>da</strong>de bélica e decidiu voltar a Itália, vestin<strong>do</strong> o hábito de<br />
penitência e viven<strong>do</strong> para Deus na sua ermi<strong>da</strong>:<br />
"Enfim deixan<strong>do</strong>-o sepulta<strong>do</strong> com repeti<strong>da</strong>s lágrimas minhas, já desengana<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> e suas vai<strong>da</strong>des, abrin<strong>do</strong> os olhos <strong>da</strong> alma a seus enganos, ven<strong>do</strong> o pouco<br />
que se podia esperar de suas lisonjas tão abrevia<strong>da</strong>s, as que avaliei em algum<br />
tempo alegrias, tão eterniza<strong>da</strong>s as penas, tão insofríveis as mágoas, muitas para<br />
senti<strong>da</strong>s, mas nunca cabalmente declara<strong>da</strong>s; deixan<strong>do</strong> os bélicos estron<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s<br />
caixas, os militares ecos <strong>do</strong>s clarins que segui<strong>do</strong> tinha e em que despendi a<br />
primavera <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de e o tempo irreparável de meus anos, me parti para Itália e<br />
vesti<strong>do</strong> neste hábito de penitência, castigo <strong>da</strong>s galas, desengano <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e<br />
desperta<strong>do</strong>r <strong>da</strong> morte, buscan<strong>do</strong> lugar retira<strong>do</strong> em que viver para Deus, me deparou<br />
ele esta ermi<strong>da</strong> em que há anos assisto, tão contente de deixar o mun<strong>do</strong> como fui<br />
em algum tempo cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so em buscá-lo." 3 ^<br />
Apresar de demora<strong>da</strong>, esta detalha<strong>da</strong> relação <strong>do</strong>s vários sucessos <strong>do</strong><br />
Ermitão Felisberto deve-se ao facto de a sua vi<strong>da</strong> ser apresenta<strong>da</strong> como<br />
exemplo para o Peregrino Dionísio 32 e demais personagens por ele<br />
aconselha<strong>da</strong>s. Além disso, o conhecimento <strong>do</strong>s desenganos <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, a<br />
paciência com que soube combater os seus sentimentos e o alívio que foi<br />
capaz de encontrar para os seus pesares justificam a autori<strong>da</strong>de e a eficácia de<br />
que se revestem seus conselhos:<br />
"Admira<strong>do</strong> igualmente que agradeci<strong>do</strong> ficou o Peregrino Dionísio <strong>da</strong> relação que<br />
o Ermitão Felisberto lhe deu <strong>do</strong>s vários perío<strong>do</strong>s e discursos de sua vi<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> tão<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.368.<br />
32 O próprio ermitão apresenta a sua vi<strong>da</strong> como espelho em que se projecta o caminho para<br />
alcançar a paz e a felici<strong>da</strong>de: "Esta é, discreto Peregrino, a relação de minha história, em que<br />
fui dilata<strong>do</strong> para vos mostrar a varie<strong>da</strong>de que o mun<strong>do</strong> faz com suas mu<strong>da</strong>nças, o pouco<br />
prémio que interessa quem o segue, o como no melhor falta, como só o buscar a Deus é<br />
caminho seguro, estra<strong>da</strong> pratea<strong>da</strong> sem perigos, vi<strong>da</strong> em que só se vive, paz <strong>da</strong>s almas,<br />
descanso <strong>do</strong> coração, alívio <strong>da</strong>s tristezas, consolação <strong>da</strong>s aflições". Mateus RIBEIRO, Alivio de<br />
tristes e consolação de queixosos, Ibidem.
20 A novela portuguesa no século XVII:<br />
intercadente nas venturas como peregrina nos sucessos, de que renden<strong>do</strong>-lhe as<br />
graças pelo fazer participante <strong>da</strong> vária lição de sua vi<strong>da</strong>, em que ele recebia eficaz<br />
exemplo para se saber acautelar de sua". 33<br />
Vivia o Peregrino em companhia <strong>do</strong> Ermitão, "aproveitan<strong>do</strong> sempre com<br />
ouvi-lo e imitá-lo" 34 , quan<strong>do</strong> Rogério, um jovem mancebo de Pavia, forma<strong>do</strong> em<br />
Leis, encontran<strong>do</strong> casualmente abrigo <strong>da</strong> noite na ermi<strong>da</strong>, acabou por revelar o<br />
trágico destino <strong>da</strong> leviana Teo<strong>do</strong>ra, fugitiva esposa de Dionísio: Maurício,<br />
movi<strong>do</strong> por imagina<strong>do</strong>s ciúmes <strong>do</strong> capitão <strong>da</strong> nau que os conduzira <strong>da</strong> Sicília a<br />
Rore, conduziu Teo<strong>do</strong>ra a um bosque e, apesar <strong>da</strong> oposição de Rogério,<br />
atingiu-a com um penetrante golpe no peito. Após vingar mortalmente a ofensa<br />
<strong>da</strong> <strong>do</strong>nzela em Maurício, Rogério deixou a moribun<strong>da</strong> Teo<strong>do</strong>ra em São Victor,<br />
onde Dionísio e Felisberto a encontram já morta.<br />
Assim termina a história de Dionísio, interrompi<strong>da</strong> no final <strong>da</strong> primeira<br />
parte. De regresso à ermi<strong>da</strong>, agora sem qualquer inquietação que perturbe a<br />
sua tranquili<strong>da</strong>de, a segun<strong>da</strong> parte termina com o discurso de Felisberto,<br />
persuadin<strong>do</strong> o Peregrino a afastar-se definitivamente <strong>do</strong>s equívocos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>:<br />
"Desengana<strong>do</strong> estais como no mun<strong>do</strong> o amor é lisonja, pois se converteu em tirania; que<br />
nem soube Maurício enternecer-se às lágrimas, nem demover-se à fermosura, nem per<strong>do</strong>ar à<br />
moci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> malogra<strong>da</strong> Teo<strong>do</strong>ra, objecto hoje de nossa compaixão. À vista pois de espelho<br />
em que tanto ao vivo se representam as ver<strong>da</strong>des, bem fio de vosso juízo perseverareis como<br />
discreto no acerto <strong>do</strong> retiro em que vivemos: que quem escapa <strong>do</strong>s perigos <strong>do</strong> mar<br />
tempestuoso deste mun<strong>do</strong>, erro fora de ajuiza<strong>do</strong> engolfar-se de novo na turbulenta confusão de<br />
seus enganos, sempre arrisca<strong>do</strong>s e tarde conheci<strong>do</strong>s." 35<br />
Dissuadi<strong>do</strong> pelo Ermitão <strong>do</strong>s enganos <strong>do</strong> amor e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, alivia<strong>da</strong>s as<br />
suas tristezas e consola<strong>da</strong>s as suas queixas, Dionísio resolveu seguir o<br />
exemplo de Felisberto e aban<strong>do</strong>nou os bens terrenos, partin<strong>do</strong> ambos em<br />
romaria a Nossa Senhora <strong>do</strong> Loreto. Esta peregrinação, continuamente<br />
anima<strong>da</strong> pela conversação entre os romeiros, em que se inserem comentários<br />
e reflexões sobre as mais varia<strong>da</strong>s matérias, funciona como marco narrativo <strong>do</strong><br />
segun<strong>do</strong> bloco narrativo (terceira e quarta partes), unin<strong>do</strong> as diversas micro-<br />
33 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.369.<br />
34 Ibidem.<br />
35 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, pp.377-8.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 21<br />
narrativas que vão sen<strong>do</strong> encaixa<strong>da</strong>s na narrativa principal. No entanto, além<br />
<strong>da</strong> mera intercalação <strong>da</strong>s histórias independentes, a romaria empreendi<strong>da</strong> por<br />
estas duas personagens proporciona também o pretexto para diversas<br />
referências à peregrinatio vitae, tema constante na literatura barroca, que<br />
reorganiza, em sede <strong>do</strong> "desengano", filões temáticos anteriores, consideran<strong>do</strong><br />
a vi<strong>da</strong> terrena como mera peregrinação <strong>do</strong> homem no mun<strong>do</strong> 36 .<br />
A pia jorna<strong>da</strong> <strong>do</strong>s romeiros é interrompi<strong>da</strong> por diversos encontros com<br />
outras personagens, as quais narram em segui<strong>da</strong> a sua história. A caminho de<br />
Recanate, encontraram um jovem mancebo no parecer excessivamente triste.<br />
Solicita<strong>do</strong> pelos romeiros, Felizar<strong>do</strong>, natural de Ferrara, filho único de uma<br />
família antiga e gradua<strong>do</strong> em Cânones, narra a história que o conduziu a tal<br />
melancolia. Aman<strong>do</strong> Amatilde, filha de lavra<strong>do</strong>res, desde que a vira nas ribeiras<br />
<strong>do</strong> Pó, Felizar<strong>do</strong> foi vítima <strong>da</strong>s suas esquivanças, basea<strong>da</strong>s na desigual<strong>da</strong>de<br />
social e económica entre ambos. Mergulha<strong>do</strong> nesta guerra de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s,<br />
dividi<strong>do</strong> entre o amor e a razão, Felizar<strong>do</strong> foi surpreendi<strong>do</strong> por uma nova<br />
peripécia: Amatilde, cria<strong>da</strong> pelos lavra<strong>do</strong>res Sílvio e Dionísia, é filha <strong>do</strong><br />
marquês Aníbal de Este. Quebra-se assim o disfarce <strong>da</strong> formosa lavra<strong>do</strong>ra<br />
marca<strong>da</strong> pelo seu brio cortesão, num jogo de ilusão e dissimulação <strong>da</strong><br />
reali<strong>da</strong>de tão caro à literatura barroca. Para aumentar a sua desventura,<br />
Alberto, que acolhera Felizar<strong>do</strong>, Amatilde, os seus pais de criação e demais<br />
companheiros de viagem para Ferrara, raptou a formosa <strong>do</strong>nzela que, seduzi<strong>da</strong><br />
pelos faustosos festejos que se celebraram em sua honra, acabou por casar<br />
com o raptor, ocasionan<strong>do</strong> uma senti<strong>da</strong> meditação sobre as invioláveis leis <strong>da</strong><br />
hospitali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> protecção. Felizar<strong>do</strong>, perturba<strong>do</strong> pela ingratidão de<br />
Amatilde, isolou-se numa quinta e mais tarde partiu sozinho até chegar à fonte<br />
em que foi encontra<strong>do</strong> pelos peregrinos.<br />
Face ao sofrimento de Felizar<strong>do</strong>, o Ermitão diligenciou o seu alívio,<br />
acusan<strong>do</strong> a falta de firmeza e a inconstância própria <strong>da</strong>s mulheres,<br />
comprova<strong>da</strong> com a enumeração de exemplos históricos, e referin<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> que<br />
o tosco <strong>da</strong> criação de Amatilde se sobrepôs ao ilustre sangue <strong>do</strong> seu<br />
db S. CHEW, The Pilgrinage of Life, New Haven, 1962; Emília DEFFIS de CALVO, Viajeros,<br />
Peregrinos Y Enamora<strong>do</strong>s: La Novela Espanola De Peregrinación dei Siglo XVII, Pamplona,<br />
Ediciones Universi<strong>da</strong>d de Navarra, 1999.
22 A novela portuguesa no século XVII:<br />
progenitor. Sen<strong>do</strong> o comportamento de Amatilde e Alberto censurável, não<br />
deixaram de ter o mereci<strong>do</strong> castigo: ele ficou sem a fazen<strong>da</strong>, ela sem o título<br />
de marquesa.<br />
Desistin<strong>do</strong> de qualquer vingança por acção <strong>da</strong> proveitosa e edificante<br />
conversação <strong>do</strong> Ermitão, Felizar<strong>do</strong> decidiu acompanhar os <strong>do</strong>is romeiros. Face<br />
à excessiva ocupação <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Luceria de Santa Maria, decidiram<br />
prosseguir até à vila de Furunsola, onde encontraram Eugénio, sacer<strong>do</strong>te que<br />
estu<strong>da</strong>ra em Bolonha com Felizar<strong>do</strong>.<br />
Para os divertir <strong>do</strong> molesto <strong>da</strong> viagem, Eugénio expôs a prodigiosa<br />
história de Flora, filha <strong>do</strong> conde Manfre<strong>do</strong>, e Reginal<strong>do</strong>, seu tio, filho de<br />
pesca<strong>do</strong>res. Perante a humil<strong>da</strong>de de nascimento de Reginal<strong>do</strong>, acabaram por<br />
fugir para Veneza. Durante a viagem marítima, Raimun<strong>do</strong>, coman<strong>da</strong>nte <strong>da</strong><br />
embarcação, relatou a Reginal<strong>do</strong> a relação <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, pormenorizan<strong>do</strong> a<br />
desventura que envolveu o amor de Félis, seu particular amigo, e Anar<strong>da</strong>. Com<br />
efeito, ron<strong>da</strong>n<strong>do</strong> de noite a casa de Anar<strong>da</strong>, Raimun<strong>do</strong> e Félis encontraram<br />
Lu<strong>do</strong>vico, anterior pretendente de Anar<strong>da</strong>, acaban<strong>do</strong> o confronto com a morte<br />
<strong>do</strong> terceiro filho <strong>do</strong> conde Octávio. Desengana<strong>da</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, Anar<strong>da</strong> professa<br />
num convento de freiras e Félis, ven<strong>do</strong> louva<strong>da</strong> a escolha de Anar<strong>da</strong>, torna-se<br />
sacer<strong>do</strong>te em Paris.<br />
Termina<strong>da</strong> a narrativa retrospectiva de Raimun<strong>do</strong>, Eugénio finaliza a<br />
diegese de Reginal<strong>do</strong> e Flora. Descobertos pelo conde Manfre<strong>do</strong> na sua<br />
chega<strong>da</strong> a Veneza, a conselho <strong>do</strong> sena<strong>do</strong>r Vespasiano, o conde Manfre<strong>do</strong><br />
aceita que Reginal<strong>do</strong> seja feito capitão de uma nau numa missão de socorro a<br />
Chipre, em guerra com o grão turco Selim, como forma de acrescentar a sua<br />
honra, subin<strong>do</strong> pelas armas ao que lhe negou o nascimento. Morren<strong>do</strong><br />
Reginal<strong>do</strong> de forma honrosa na luta contra os turcos em Nicosia, Flora, à<br />
imagem <strong>do</strong> que fizera Anar<strong>da</strong>, decidiu igualmente entrar num convento,<br />
deixan<strong>do</strong> uma carta ao seu pai em que esclarecia os motivos <strong>da</strong> sua eleição:<br />
na primeira escolha (Reginal<strong>do</strong>) foi guia o amor; na segun<strong>da</strong> (convento) foi o<br />
juízo 37 .<br />
Prosseguin<strong>do</strong> a sua devota jorna<strong>da</strong>, os três romeiros acharam numa<br />
estalagem de Asculi um homem que estava enfermo há alguns dias. Rogério,<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte III, pp.439-504.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 23<br />
venerável ancião, natural de Liorne, que tinha si<strong>do</strong> rico <strong>do</strong>s bens <strong>da</strong> fortuna,<br />
mas que em várias navegações havia perdi<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>, depois de desembarcar em<br />
Ravena, caminhan<strong>do</strong> para a sua pátria, a<strong>do</strong>ecera nesta estalagem e estava<br />
quase desconfia<strong>do</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Comovi<strong>do</strong> pelo desespero deste enfermo ancião,<br />
pensan<strong>do</strong> no mortal que perdia e não no imortal que ganhava, o Ermitão<br />
consolou-o e aliviou-o com discretas palavras, oferecen<strong>do</strong>-lhe, numa cui<strong>da</strong><strong>da</strong><br />
reflexão sobre a morte, ars moriendi ao serviço <strong>do</strong> desengano que esta obra<br />
pretende servir ao seu leitor, o retrato <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Glória.<br />
A passagem pelo templo de S. Leonar<strong>do</strong>, advoga<strong>do</strong> <strong>do</strong>s cativos e<br />
encarcera<strong>do</strong>s, proporcionou a introdução <strong>da</strong> narrativa autodiegética de<br />
Constantino, filho segun<strong>do</strong> de pais ricos e ilustres mas que se viram atingi<strong>do</strong>s<br />
pela mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong>s tempos e varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fortuna. Domina<strong>do</strong> pela beleza de<br />
Jacinta, Constantino envolveu-se numa pendência fatal com Júlio, um primo <strong>do</strong><br />
duque de Urbino. Durante a fuga que se seguiu à confessa<strong>da</strong> ingratidão de<br />
Jacinta, em consequência <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de de riqueza que no presente os<br />
distancia, surpreendi<strong>do</strong> por um ban<strong>do</strong> de foragi<strong>do</strong>s, Constantino integrou-se<br />
neste grupo. Enquanto descansam, Justiniano, elemento principal deste ban<strong>do</strong>,<br />
referiu a Constantino os factos que o conduziram a esta<strong>do</strong> tão odioso: as lutas<br />
entre ban<strong>do</strong>s em que se viu envolvi<strong>do</strong> em Bolonha a propósito <strong>da</strong> oposição na<br />
por uma cadeira universitária; a sua atracção por Diana, marca<strong>da</strong> pela sua<br />
feal<strong>da</strong>de e também pela voz de anjo e rico <strong>do</strong>te. No único processo de<br />
enamoramento referi<strong>do</strong> na obra em que o amor entrou pelos ouvi<strong>do</strong>s no<br />
coração, e não pelos olhos, Justiniano vingou mortalmente uma desonra feita a<br />
Diana, forman<strong>do</strong>, em segui<strong>da</strong>, um ban<strong>do</strong> de foragi<strong>do</strong>s criminosos.<br />
Num universo diegético em que o ouvinte de ca<strong>da</strong> história tem a tarefa de<br />
tentar aliviar o sofrimento de quem a narra, Constantino convenceu Justiniano<br />
a parar com a violência que praticava. Por sua vez, Constantino, ao saber por<br />
uma carta proveniente <strong>do</strong> seu pai que a ingrata Jacinta aceitara o casamento<br />
proposto por Júlio, já recupera<strong>do</strong> <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s, foi alivia<strong>do</strong> por Felisberto com<br />
base na contínua mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e no facto <strong>da</strong> formosura feminina, tal<br />
como a natureza, não ter qualquer perseverança.<br />
Chega<strong>do</strong>s ao santuário de Nossa Senhora <strong>do</strong> Loreto, ouvi<strong>da</strong> a missa,<br />
Felizar<strong>do</strong> regressou com Constantino a Ravena e <strong>da</strong>í a Ferrara, já totalmente<br />
desafoga<strong>do</strong> <strong>da</strong> ingrata ofensa de Amatilde, severamente puni<strong>da</strong> pela morte de
24 A novela portuguesa no século XVII:<br />
Alberto e de novo mora<strong>do</strong>ra em Fossa pelo Sella em companhia <strong>do</strong>s seus pais<br />
lavra<strong>do</strong>res. Os <strong>do</strong>is romeiros, Felisberto e Dionísio, permaneceram no<br />
santuário, onde começa a novena, anuncian<strong>do</strong> o narra<strong>do</strong>r a viagem de<br />
regresso à ermi<strong>da</strong>, matéria <strong>da</strong> quarta parte:<br />
"Sau<strong>do</strong>sos ficaram os nossos <strong>do</strong>us romeiros de sua companhia, discursan<strong>do</strong><br />
sobre os perío<strong>do</strong>s vários de sua história. Onde agora os deixaremos, começan<strong>do</strong> sua<br />
novena e residentes no magnífico hospital <strong>da</strong>quela Santa Casa. E se na jorna<strong>da</strong> que<br />
para a sua ermi<strong>da</strong> fizerem outros novos sucessos derem motivos à história ain<strong>da</strong><br />
comporemos a Quarta Parte." 38<br />
Estan<strong>do</strong> os romeiros hospe<strong>da</strong><strong>do</strong>s no hospital de Recanate, viram<br />
aproximar-se Hortênsio, um mancebo em traje de cativo, que, adivinhan<strong>do</strong> o<br />
desejo <strong>do</strong>s seus hospedeiros, lhes noticiou os acidenta<strong>do</strong>s perío<strong>do</strong>s de sua<br />
vi<strong>da</strong>: Aurora, objecto <strong>do</strong>s desvelos de Hortênsio, era igualmente requesta<strong>da</strong> por<br />
Júlio Galeazzo, visan<strong>do</strong> restabelecer a paz entre ban<strong>do</strong>s contrários através <strong>do</strong><br />
seu casamento; contu<strong>do</strong>, após várias peripécias, ven<strong>do</strong>-se perdi<strong>da</strong> numa fuga<br />
e engana<strong>da</strong> por António, um dissimula<strong>do</strong> sol<strong>da</strong><strong>do</strong>, esta <strong>do</strong>nzela acabou por se<br />
casar com Dom Rodrigo de Tole<strong>do</strong>. Hortênsio, preso por roubo, depois de<br />
liberta<strong>do</strong> partiu acompanhan<strong>do</strong> D. João de Médicis para a Hungria, acaban<strong>do</strong><br />
prisioneiro <strong>do</strong>s turcos e vendi<strong>do</strong> como escravo a Zulema Ferrât. Enamora<strong>do</strong><br />
pela beleza, cortesia e afabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> filha <strong>do</strong> seu amo, Hortênsio fugiu de<br />
forma arrisca<strong>da</strong> com Zelin<strong>da</strong>. Cumprin<strong>do</strong> a promessa feita durante os<br />
momentos de maior aflição, Hortênsio peregrinou em direcção ao santuário <strong>do</strong><br />
Loreto antes de se efectuar o baptismo de Zelin<strong>da</strong> e o seu posterior<br />
recebimento 39 .<br />
Admira<strong>do</strong>s os peregrinos <strong>do</strong>s vários infortúnios de Hortênsio, viram entrar<br />
no santuário um mancebo em traje de força<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s que an<strong>da</strong>m reman<strong>do</strong> nas<br />
galés, mas sem ferros. Desperta<strong>da</strong> a compaixão <strong>do</strong>s peregrinos pelos<br />
38 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte IV, p.559.<br />
39 Hortênsio termina a sua narração afirman<strong>do</strong> o valor exemplar <strong>da</strong> sua história, espelho em<br />
que se pode colher a sua lição: "Esta é, senhores, a peregrina história <strong>do</strong>s vários progressos<br />
de minha vi<strong>da</strong>, em que como em espelho se podem ver suas mu<strong>da</strong>nças, colhen<strong>do</strong> alívios a<br />
aflição e consolação a pena, para que ninguém desanime no magoa<strong>do</strong> <strong>da</strong> <strong>do</strong>r e no rigoroso <strong>do</strong><br />
sentimento, pois pode abonançar a tormenta e melhorar-se a ventura, se não falta à vi<strong>da</strong> a<br />
esperança." Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte IV, pp.678-9.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 25<br />
repeti<strong>do</strong>s suspiros e pesa<strong>da</strong>s queixas, Polinar<strong>do</strong> iniciou a narração <strong>da</strong> história<br />
<strong>do</strong>s seus infortúnios, agradecen<strong>do</strong> deste mo<strong>do</strong> a cortesia <strong>do</strong>s presentes e<br />
descobrin<strong>do</strong> a razão <strong>da</strong> sua tristeza. Nasci<strong>do</strong> de família humilde e pobre na<br />
fortuna, Salviano, mancebo ilustre no sangue e muito rico no morga<strong>do</strong>, serviu<br />
liberalmente Estela, sua única irmã, prometen<strong>do</strong>-se por esposo. Opon<strong>do</strong>-se os<br />
familiares de Salviano ao seu casamento com Estela devi<strong>do</strong> à desigual<strong>da</strong>de de<br />
esta<strong>do</strong>s, este acabou por casar com Finar<strong>da</strong>, igualmente ilustre no sangue mas<br />
sem poder ter competências no parecer com Estela. No entanto, efeito <strong>da</strong><br />
imparável ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> fortuna, Salviano viu-se salvo <strong>da</strong> fúria de Cursieto Sambuco,<br />
terrível ban<strong>do</strong>leiro que assolava to<strong>da</strong> a Itália, ocultan<strong>do</strong>-se precisamente em<br />
casa de Polinar<strong>do</strong>. Com a morte de Finar<strong>da</strong>, em sinal <strong>da</strong> gratidão de Salviano e<br />
seus familiares, este acabou por casar com Estela e o pai de Polinar<strong>do</strong> foi<br />
recompensa<strong>do</strong> com um cargo honroso e ren<strong>do</strong>so.<br />
Recomposta a tranquili<strong>da</strong>de familiar, de novo Polinar<strong>do</strong> foi surpreendi<strong>do</strong><br />
por acontecimentos indeseja<strong>do</strong>s: envolveu-se com uns mascara<strong>do</strong>s e, após a<br />
morte de um deles, filho de um ilustre e poderoso fi<strong>da</strong>lgo, contou com a aju<strong>da</strong><br />
<strong>do</strong> pai e de Salviano para a sua fuga. Morren<strong>do</strong> o pai na prisão e sen<strong>do</strong><br />
Salviano desterra<strong>do</strong> para Toscanela, Polinar<strong>do</strong>, em Pádua, envolveu-se<br />
involuntariamente em nova conten<strong>da</strong>, acaban<strong>do</strong> por ferir mortalmente um nobre<br />
mancebo desta ci<strong>da</strong>de. Socorren<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> casa de Luís Orsino, frequenta<strong>da</strong> por<br />
desonrosos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e por antigos companheiros de Cursieto Sambuco, morto<br />
por se lançar ao mar, preso com ferros, para não ser preso, após a morte <strong>da</strong><br />
duquesa Vitória e <strong>do</strong> seu irmão por mascara<strong>do</strong>s que estavam hospe<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
nesta casa, acabaram sitia<strong>do</strong>s pela justiça. Após uma acesa discussão sobre a<br />
decisão a tomar, acabaram por se render, sen<strong>do</strong> castiga<strong>do</strong>s em função <strong>da</strong> sua<br />
participação nos crimes: entre severas punições, Luís Orsino foi degola<strong>do</strong> e<br />
Polinar<strong>do</strong> condena<strong>do</strong> por oito anos às galés <strong>da</strong> senhoria de Veneza. Mais<br />
tarde, ven<strong>do</strong> diminuí<strong>da</strong> a sua pena em cinco anos por petição de um religioso,<br />
Polinar<strong>do</strong> cumpriu a promessa de visitar o santuário <strong>da</strong> Nossa Senhora <strong>do</strong><br />
Loreto.<br />
Consola<strong>do</strong> o seu sofrimento pelas discretas palavras de Felisberto,<br />
Polinar<strong>do</strong> acompanhou Hortênsio para Tarante Ao regressar à sua ermi<strong>da</strong>,<br />
Felisberto e Dionísio foram surpreendi<strong>do</strong>s por umas senti<strong>da</strong>s queixas, no meio<br />
<strong>do</strong> fecha<strong>do</strong> arvore<strong>do</strong>, <strong>do</strong> feri<strong>do</strong> Aureliano. Grato à cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa atenção <strong>do</strong>s
26 A novela portuguesa no século XVII:<br />
peregrinos, o jovem mancebo deu-lhes pormenoriza<strong>da</strong> notícia <strong>do</strong>s seus<br />
desgostos. Empenhan<strong>do</strong>-se em amar Leonisa, Aureliano acabou preteri<strong>do</strong> nos<br />
seus intentos por Alexandre, seu particular amigo, a quem confessara os seus<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s amorosos. Com os desposórios de Alexandre e Leonisa (servin<strong>do</strong> de<br />
novo o casamento para pacificar antigas desavenças familiares), Aureliano<br />
resolveu partir para Bolonha, com o fim de seguir os estu<strong>do</strong>s e mitigar a <strong>do</strong>r<br />
através <strong>da</strong> distância, sen<strong>do</strong> nesta viagem assalta<strong>do</strong> e feri<strong>do</strong> por três<br />
ban<strong>do</strong>leiros.<br />
Valen<strong>do</strong>-se uma vez mais <strong>da</strong> sua sabe<strong>do</strong>ria, em parte proveniente, como<br />
vimos, <strong>da</strong> sua experiência pessoal de infelizes sucessos, Felisberto pacificou o<br />
sofrimento de Aureliano com sensatas palavras. Livre de qualquer<br />
ressentimento, Aureliano regressou a casa de sua mãe e os romeiros<br />
regressaram à tranquili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua ermi<strong>da</strong>:<br />
"E como a sua ermi<strong>da</strong> distava deste lugar quatro léguas, chegaram a ela antes<br />
que o sol se escondesse; e diante <strong>do</strong> altar ajoelha<strong>do</strong>s, deram a Deus Nosso Senhor e<br />
a sua Santíssima Mãe muitas graças de haverem <strong>da</strong><strong>do</strong> fim tão felizmente à sua devota<br />
romaria. E eu o <strong>do</strong>u também a estes escritos em que compendiei os vários sucessos<br />
dela: A0<br />
Viven<strong>do</strong> tranquilamente na sua ermi<strong>da</strong>, completamente desprendi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s<br />
descontentamentos passa<strong>do</strong>s 41 , no início <strong>da</strong> quinta parte (composta por uma<br />
sucessão de narrativas dispostas de forma intercala<strong>da</strong> entre si e encaixa<strong>da</strong>s na<br />
extensa narração retrospectiva que Lisar<strong>do</strong> Martelino faz <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>),<br />
Felisberto e Dionísio são visita<strong>do</strong>s por Lisar<strong>do</strong>, cujas contínuas desventuras,<br />
narra<strong>da</strong>s pelo próprio e comenta<strong>da</strong>s pelos ermitães, atestam o absoluto acerto<br />
desta opção de vi<strong>da</strong> contemplativa.<br />
Enquanto estu<strong>da</strong>va em Bolonha, Lisar<strong>do</strong> desconhecia tanto a resposta<br />
favorável <strong>da</strong><strong>da</strong> por Ricar<strong>da</strong> sua mãe ao casamento <strong>da</strong> sua irmã Florisela com<br />
40 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte IV, p.737.<br />
41 "No retiro e solidão bonançosa <strong>da</strong> sua ermi<strong>da</strong>, porto seguro <strong>da</strong>s tempestades passa<strong>da</strong>s,<br />
tranquila habitação e discreto refúgio <strong>do</strong>s naufrágios padeci<strong>do</strong>s nas inquietas navegações <strong>da</strong><br />
fortuna, passavam a vi<strong>da</strong> os <strong>do</strong>us ermitões, Felisberto e Dionísio, contentes de verem de longe<br />
o mar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e seus enganos, como quem <strong>do</strong> seguro <strong>da</strong> terra vê o proceloso <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s,<br />
para quem as navega temi<strong>da</strong>s, para quem não as surca agradáveis." Mateus RIBEIRO, Alivio<br />
de tristes e consolação de queixosos, Parte V, p.739.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 27<br />
Silvério, mancebo ilustre e rico de Cesena, como o indecoroso rapto de<br />
Florisela por Feliciano, movi<strong>do</strong> pela isenção desta <strong>do</strong>nzela que não se<br />
mostrava obriga<strong>da</strong> aos seus desvelos.<br />
De regresso a Cesena, sua pátria, Lisar<strong>do</strong> ouviu as senti<strong>da</strong>s queixas de<br />
uma mulher que acompanhava um homem. Intercala-se neste ponto a história<br />
de Roberto Bentivolhe e Lívia: Roberto, <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> por ciúmes, acusou a sua<br />
esposa de se mostrar receptiva aos avanços de Teodósio, segun<strong>do</strong> filho <strong>do</strong><br />
marquês Octávio. Apesar de Lívia se defender desta acusação de levian<strong>da</strong>de,<br />
Lisar<strong>do</strong> foi obriga<strong>do</strong> a sair <strong>do</strong> seu esconderijo e interpor-se entre o casal, pois<br />
Roberto aprontava-se para vingar a sua honra com a morte <strong>da</strong> esposa. Com a<br />
parti<strong>da</strong> de Roberto, Lisar<strong>do</strong> comprometeu-se em proteger Lívia, levan<strong>do</strong>-a<br />
consigo para Cesena, disfarça<strong>da</strong> de lavra<strong>do</strong>ra e com o nome de Jacinta.<br />
Posteriormente, atemoriza<strong>da</strong> com a perseguição <strong>do</strong> seu esposo, acompanha<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s seus poderosos parentes, Lívia fugiu durante a noite, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> início a um<br />
jogo de ocultação, pelo seu disfarce e falso nome, que originou um arrevesa<strong>do</strong><br />
conjunto de peripécias.<br />
Arrependi<strong>do</strong> <strong>da</strong>s suas passa<strong>da</strong>s desconfianças, adverti<strong>do</strong> <strong>da</strong> firmeza <strong>do</strong><br />
amor <strong>da</strong> sua esposa, assisti<strong>do</strong> de parentes e cria<strong>do</strong>s, Roberto principiou a<br />
busca de Lívia em companhia de Lisar<strong>do</strong>. Procuran<strong>do</strong>-a por to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong>, a<br />
caminho de Serafina acudiram às lastimosas queixas de duas pastoras que<br />
seguiam prisioneiras de oito desafora<strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>leiros. Investin<strong>do</strong> contra os<br />
foragi<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> se preparava para vingar a ofensa <strong>da</strong>s <strong>do</strong>nzelas na vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s<br />
ban<strong>do</strong>leiros, Lisar<strong>do</strong> foi surpreendi<strong>do</strong> pelo pedi<strong>do</strong> de clemência de Constantino,<br />
mancebo que estu<strong>da</strong>ra com ele em Bolonha, cursan<strong>do</strong> com sucesso o Direito<br />
Civil. Perante a surpresa que este inespera<strong>do</strong> encontro provocou em Lisar<strong>do</strong> e<br />
Roberto, Constantino referiu-lhes as causas que o conduziram a uma<br />
activi<strong>da</strong>de tão desonrosa.<br />
Diana, única irmã de Constantino, distinta pela sua honesti<strong>da</strong>de e<br />
formosura, acabou por aceder aos insistentes desvelos amorosos de Camilo<br />
Rizar<strong>do</strong>, rico morga<strong>do</strong> de Faença que estu<strong>da</strong>va em Bolonha e se tornara amigo<br />
de Constantino para se aproximar <strong>da</strong> sua irmã. Aproveitan<strong>do</strong> a deslocação de<br />
Constantino e <strong>do</strong> seu pai a Módena, para assistir às festas que se celebravam<br />
em honra <strong>do</strong> nascimento <strong>do</strong> filho <strong>do</strong> duque, Camilo, após subornar as cria<strong>da</strong>s,<br />
entrou durante a noite no quarto de Diana e, prometen<strong>do</strong> desposá-la, logrou
28 A novela portuguesa no século XVII:<br />
concretizar os seus intentos, regressan<strong>do</strong> em segui<strong>da</strong> à sua terra natal.<br />
Desconfia<strong>do</strong> <strong>da</strong> contínua melancolia de Diana e <strong>da</strong> falta de notícias <strong>do</strong> amigo,<br />
após tomar conhecimento <strong>da</strong> desonra <strong>da</strong> irmã, e ofendi<strong>do</strong> pela desleal<strong>da</strong>de e<br />
falsa amizade com que fora trata<strong>do</strong>, Constantino procurou Camilo e feriu-o<br />
mortalmente. Apesar de castigar Camilo pela sua conduta indecorosa,<br />
Constantino foi persegui<strong>do</strong> pela justiça e acabou por se incorporar num ban<strong>do</strong><br />
de ban<strong>do</strong>leiros, até ao momento em que, a pedi<strong>do</strong> de Leopol<strong>do</strong>, capitão <strong>do</strong><br />
grupo, raptaram Jacinta e Doroteia, filha <strong>do</strong> lavra<strong>do</strong>r que recebera Lívia no seu<br />
casal, acaban<strong>do</strong> gravemente feri<strong>do</strong>.<br />
Censura<strong>do</strong> o indigno comportamento de Constantino, desaprova<strong>da</strong> a<br />
desonra que causou aos seus pais e à sua pátria pelo desejo de vingança, em<br />
desfavor de uma resolução pacifica, o jovem foi aconselha<strong>do</strong> por Lisar<strong>do</strong> a<br />
partir para a Flandres e seguir as armas ou continuar os seus estu<strong>do</strong>s em<br />
Lovaina, os <strong>do</strong>is caminhos aponta<strong>do</strong>s para reabilitar a sua honra.<br />
A quinta parte termina com o desenlace <strong>da</strong> história de Roberto e Lívia,<br />
ultrapassa<strong>da</strong>s as desconfianças <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, e o casamento de Feliciano e<br />
Florisela, resolven<strong>do</strong>-se por meio <strong>do</strong> matrimónio (num processo comum a<br />
outras narrativas desta novela) antigas conten<strong>da</strong>s entre famílias ilustres:<br />
"Aqui chegava Lisar<strong>do</strong> com a história <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, de que Felisberto e Dionísio<br />
estavam eleva<strong>do</strong>s na varie<strong>da</strong>de de seus perío<strong>do</strong>s como no agradável <strong>do</strong> estilo com<br />
que os relatava, quan<strong>do</strong> chegaram <strong>do</strong>us cria<strong>do</strong>s de Lisar<strong>do</strong>, a quem ele esperava, com<br />
reca<strong>do</strong> para partir-se; o que Felisberto não consentiu porque o sol se ia já pon<strong>do</strong> no<br />
horizonte, e com corteses rogos o obrigou a ficar essa noite em sua companhia,<br />
acomo<strong>da</strong>n<strong>do</strong> aos cria<strong>do</strong>s e cavalo convenientemente e <strong>da</strong>n<strong>do</strong> ordem a preparar-se a<br />
ceia com o que no hospício tinha, desejoso de ouvir o que de sua história faltava.<br />
Enfim aceitou Lisar<strong>do</strong> o caritativo oferecimento, aonde agora o deixaremos descansar<br />
até nova oportuni<strong>da</strong>de de se referir o que agora não há lugar de relatar." 42<br />
Prosseguin<strong>do</strong> o fio narrativo anuncia<strong>do</strong> no final <strong>da</strong> parte anterior,<br />
hospe<strong>da</strong><strong>do</strong> durante a noite na ermi<strong>da</strong>, Lisar<strong>do</strong> prosseguiu a relação <strong>da</strong> sua<br />
vi<strong>da</strong>. Contrarian<strong>do</strong> os pareceres negativos <strong>do</strong>s seus parentes, resolveu<br />
continuar os seus estu<strong>do</strong>s em Bolonha, ci<strong>da</strong>de para onde se mu<strong>da</strong>ra Frederico<br />
Manfre<strong>do</strong>, ilustre fi<strong>da</strong>lgo mo<strong>do</strong>nês, acompanha<strong>do</strong> <strong>da</strong> sua mulher Aurélia, <strong>do</strong>s<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte V, p.895.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 29<br />
seus filhos Carlos e Constantino e <strong>da</strong> sua filha Fenisa. Aman<strong>do</strong> Fenisa desde a<br />
primeira vez que a vira, Lisar<strong>do</strong> vivia inquieto face à desigual<strong>da</strong>de de fi<strong>da</strong>lguia<br />
e riqueza, mergulhan<strong>do</strong> numa batalha interior trava<strong>da</strong> entre o desejo amoroso e<br />
o juízo <strong>do</strong> discurso. Resolveu então aproximar-se de Constantino, companheiro<br />
de estu<strong>do</strong>s na universi<strong>da</strong>de, poden<strong>do</strong> assim mais facilmente ver Fenisa.<br />
Numa <strong>da</strong>s visitas que fez a casa de Frederico Manfre<strong>do</strong>, Adriano, mestre<br />
de Constantino, a quem repetia as lições, referiu a Lisar<strong>do</strong> a razão <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça<br />
de Frederico e seu séquito para Bolonha. Para expor a diegese desde o seu<br />
início, Adriano apresentou Frederico Manfre<strong>do</strong> como descendente <strong>do</strong><br />
impera<strong>do</strong>r Constâncio, referin<strong>do</strong>-lhe a história de Manfre<strong>do</strong> e Eurides 43 , seus<br />
pais.<br />
Na mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong> império de Itália para Trácia, quan<strong>do</strong> o impera<strong>do</strong>r<br />
Constantino deixou a ci<strong>da</strong>de de Roma ao sumo pontífice S. Silvestre e passou<br />
a corte imperial para Constantinopla, entre os ilustres senhores e cavaleiros<br />
principais que acompanharam o empera<strong>do</strong>r para servi-lo, foi um deles<br />
Manfre<strong>do</strong>, "mancebo bizarro, de flori<strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, invencível valor, grande juízo,<br />
rico no esta<strong>do</strong> e mui aceito ao empera<strong>do</strong>r, que dele em empresas mui<br />
honrosas se servia" 44 , quali<strong>da</strong>des e merecimentos que proporcionaram a<br />
rendição amorosa de Eurides, filha <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r Constâncio. Fugin<strong>do</strong><br />
Manfre<strong>do</strong> e Eurides de Constantinopla, esconden<strong>do</strong>-se sob disfarce de<br />
agricultores num local deserto <strong>da</strong> Lombardia, viveram calmamente na<br />
companhia <strong>do</strong>s seus oito filhos, sen<strong>do</strong> Frederico Manfre<strong>do</strong> o mais velho, até<br />
que obtiveram o perdão <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r Constâncio.<br />
Mais próximo no tempo, ven<strong>do</strong> interrompi<strong>da</strong> a tranquili<strong>da</strong>de em que vivia<br />
com a sua família, fruto <strong>da</strong>s insistentes assistências com que Raimun<strong>do</strong> de<br />
Narrativa incluí<strong>da</strong> na Corte na Aldeia, de RODRIGUES LOBO, no "Diálogo X - Da maneira<br />
de contar histórias na conversação", ed. cit., pp. 205-8. A leitura desta obra de Rodrigues Lobo<br />
parece estar na base <strong>da</strong> defesa <strong>da</strong> conversação como forma de passar honesta e<br />
deleitosamente o tempo, mas também na enunciação <strong>da</strong>s quali<strong>da</strong>des e comportamento por<br />
que se deve reger o discreto cortesão. V. introdução de José Adriano de Freitas CARVALHO a<br />
Francisco RODRIGUES LOBO, Corte na Aldeia, Lisboa, Ed. Presença, 1992, pp.7-42; Isabel<br />
ALMEIDA, «'Em matéria de livros': o Diálogo I de Corte na Aldeia», Românica, 1-2, Lisboa,<br />
Edições Cosmos, 1992-1993, pp.93-106.<br />
44 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte VI, pp.908-9.
30 A novela portuguesa no século XVII:<br />
Este, filho segun<strong>do</strong> <strong>do</strong> duque de Módena, tentava cativar Fenisa, não se<br />
demoven<strong>do</strong> pela natural esquivança <strong>da</strong> formosa <strong>do</strong>nzela, impulsiona<strong>da</strong> pela<br />
desigual<strong>da</strong>de de esta<strong>do</strong> entre ambos, Frederico partiu com a sua família para<br />
Bolonha, colocan<strong>do</strong>-se sob a protecção <strong>do</strong> Cardeal Colalto, seu parente.<br />
Ain<strong>da</strong> que receoso <strong>da</strong> condição esquiva de Fenisa, Lisar<strong>do</strong> confessou-lhe<br />
o seu amor através de uma carta, sen<strong>do</strong> correspondi<strong>do</strong> nos seus sentimentos.<br />
Numa noite em que os <strong>do</strong>is jovens se iriam encontrar, Raimun<strong>do</strong>,<br />
acompanha<strong>do</strong> de Bernardino Marascoto, seu secretário e vali<strong>do</strong>, chegou a<br />
casa de Lisar<strong>do</strong>, revelan<strong>do</strong>-lhe o seu sofrimento amoroso e pedin<strong>do</strong>-lhe<br />
hospe<strong>da</strong>gem, sen<strong>do</strong> este particular amigo de Constantino, irmão <strong>da</strong> sua<br />
ama<strong>da</strong>. Enquanto Lisar<strong>do</strong> se debatia interiormente entre o amor por Fenisa e<br />
as obrigações inerentes à hospitali<strong>da</strong>de devi<strong>da</strong> a pessoa tão ilustre, Raimun<strong>do</strong><br />
empenhou-se em conseguir o casamento com a bela e discreta <strong>do</strong>nzela, ven<strong>do</strong><br />
uma vez mais frustra<strong>do</strong> o seu intento, recusan<strong>do</strong> Fenisa a ascensão<br />
possibilita<strong>da</strong> com este casamento para não ofender o duque e assim colocar o<br />
seu pai e irmãos expostos à sua vingança.<br />
Em segui<strong>da</strong>, após acompanhar Raimun<strong>do</strong> e Bernardino à saí<strong>da</strong> de<br />
Bolonha, regressan<strong>do</strong> o ilustre fi<strong>da</strong>lgo a Módena para tentar obter o<br />
consentimento <strong>do</strong> duque seu pai, Lisar<strong>do</strong> acodiu às queixas de Carlos, irmão<br />
de Fenisa, que acusava Octávio Bentivolhe, seu opositor num duelo, de se<br />
fazer acompanhar traiçoeiramente de um cria<strong>do</strong> e <strong>do</strong>is sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Ten<strong>do</strong> fica<strong>do</strong><br />
com graves feri<strong>da</strong>s, Carlos foi leva<strong>do</strong> para casa por Lisar<strong>do</strong>, receben<strong>do</strong><br />
palavras de agradecimento de Fenisa e <strong>da</strong> restante família. Por extremo alegre<br />
com a vista de Fenisa, Lisar<strong>do</strong> partiu descui<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong> perigo em que incorria.<br />
Petrónio Bentivolhe, fi<strong>da</strong>lgo principal, rico e poderoso, tinha uma filha,<br />
Júlia, e um filho, Octávio, soberbo e arroja<strong>do</strong> mancebo e desabri<strong>do</strong> nas<br />
palavras. Júlia, moça bem pareci<strong>da</strong> e bem <strong>do</strong>ta<strong>da</strong>, pôs diligências na<br />
assistência a Carlos, que passava frequentemente pela sua rua, desvelan<strong>do</strong>-se<br />
para o ter por esposo, sen<strong>do</strong> ilustre, morga<strong>do</strong>, rico e galã, ignoran<strong>do</strong> a<br />
diferença de intentos de Carlos que se movia apenas pela cortesia.<br />
Desconfia<strong>do</strong> <strong>do</strong>s passeios de Carlos e <strong>da</strong>s assistências de Júlia, Octávio<br />
intimou-o a não passar mais por aquela rua ou a pedir a sua irmã por esposa.<br />
Em resposta, Carlos repreendeu a soberba e arrogância de Octávio,
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 31<br />
contradizen<strong>do</strong> tal casamento, combinan<strong>do</strong>-se um duelo para resolver esta<br />
questão que resultou na morte <strong>do</strong> desenfrea<strong>do</strong> Octávio.<br />
Queixan<strong>do</strong>-se Petrónio Bentivolhe <strong>da</strong> morte <strong>do</strong> filho ao auditor geral,<br />
Lisar<strong>do</strong> fugiu atempa<strong>da</strong>mente e Carlos ficou prisioneiro em sua própria casa<br />
devi<strong>do</strong> à sua debili<strong>da</strong>de física. Antes de regressar à sua pátria, Lisar<strong>do</strong> visitou<br />
uma vez mais a casa de Frederico Manfre<strong>do</strong>, propon<strong>do</strong>-lhe a fuga com a sua<br />
família para Cesena, onde ficariam sob a sua protecção. Passan<strong>do</strong> por Imola,<br />
Lisar<strong>do</strong> procurou Bonifácio, seu particular amigo, referin<strong>do</strong>-lhe os trágicos<br />
sucessos que provocaram a sua fuga.<br />
Numa antecipação <strong>do</strong> desfecho <strong>da</strong> história de Lisar<strong>do</strong> e Fenisa, Bonifácio<br />
mencionou ao amigo as causas <strong>da</strong>s suas moléstias: empenhan<strong>do</strong>-se em amar<br />
Doroteia, viu-se <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelos ciúmes e desconfianças por pensar que ela<br />
correspondia aos desvelos de Hortênsio, não sen<strong>do</strong> capaz de a pedir em<br />
casamento por recear a sua condição mudável. Por fim, decidiu acompanhar<br />
Lisar<strong>do</strong> na viagem para Cesena, procuran<strong>do</strong> assim superar o desgosto<br />
provoca<strong>do</strong> pela ingratidão de Doroteia.<br />
Esperan<strong>do</strong> por Frederico Manfre<strong>do</strong> e seus familiares em Cesena, Lisar<strong>do</strong><br />
foi informa<strong>do</strong> <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça de planos que se verificara. Ao tomar conhecimento<br />
<strong>da</strong> situação de perigo em que se viram Carlos e o seu pai, Raimun<strong>do</strong> organizou<br />
e executou a retira<strong>da</strong> de to<strong>da</strong> a família para Módena, valen<strong>do</strong>-lhe os<br />
agradecimentos de Fenisa e a aprovação <strong>do</strong> duque para esta valorosa acção.<br />
Atormenta<strong>do</strong> pelas desconfianças e ciúmes em relação a Fenisa e aos<br />
serviços de Raimun<strong>do</strong>, Lisar<strong>do</strong> partiu para a quinta de Bom <strong>Porto</strong> com o intuito<br />
de pedir Fenisa por esposa. No entanto, pretenden<strong>do</strong> melhores condições <strong>do</strong><br />
que as que Lisar<strong>do</strong> lhe oferecia, Fenisa despediu-o com extrema ingratidão.<br />
Assim desengana<strong>do</strong> na sua pretensão pela mu<strong>da</strong>nça de Fenisa, a que se<br />
juntou a notícia <strong>da</strong> morte <strong>do</strong> príncipe Alexandre, filho primogénito <strong>do</strong> duque de<br />
Módena, e <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de Fenisa se tornar duquesa, visto as anteriores<br />
diligências amorosas de Raimun<strong>do</strong>, Lisar<strong>do</strong> decidiu tomar o esta<strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>tal.<br />
Alguns dias eram passa<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong>, por uma carta de Adriano, Lisar<strong>do</strong><br />
foi informa<strong>do</strong> <strong>da</strong> resolução de Fenisa em se tornar religiosa, entran<strong>do</strong> num<br />
convento após ver nega<strong>da</strong> a sua possibili<strong>da</strong>de de casar com Raimun<strong>do</strong>.<br />
Alivia<strong>do</strong> em parte na sua tristeza por ver que a ingrata Fenisa apenas se uniria<br />
ao Esposo <strong>da</strong>s Virgens e Rei <strong>da</strong> Glória, Lisar<strong>do</strong> partiu para Roma para pedir ao
32 A novela portuguesa no século XVII:<br />
Papa a absolvição <strong>da</strong> morte casual de Octávio, encontran<strong>do</strong> a ermi<strong>da</strong> após<br />
errar o caminho, "o maior acerto <strong>da</strong> ventura, pois a companhia de pessoas na<br />
vi<strong>da</strong> reforma<strong>da</strong>s, na conversação discretas e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> desengana<strong>da</strong>s traz<br />
grandes utili<strong>da</strong>des a quem a logra.' A5<br />
Termina<strong>da</strong> a longa relação <strong>do</strong>s seus sucessos, depois <strong>do</strong> Ermitão louvar<br />
a acerta<strong>da</strong> escolha <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>tal e elogiar a vi<strong>da</strong> religiosa que Fenisa<br />
elegeu, Lisar<strong>do</strong> partiu para Roma, deixan<strong>do</strong> Felisberto e Dionísio, na sua<br />
ermi<strong>da</strong>:<br />
"Assim falou Felisberto, de que Lisar<strong>do</strong> lhe rendeu as graças de haver aprova<strong>do</strong> a<br />
boa sorte <strong>da</strong> escolha que fizera de seu esta<strong>do</strong>, e despedin<strong>do</strong>-se dele e de seu<br />
companheiro com grande alívio na tristeza que trazia, mui agradeci<strong>do</strong>, montan<strong>do</strong> no<br />
cavalo que seus cria<strong>do</strong>s já prepara<strong>do</strong> lhe tinham, bem informa<strong>do</strong> <strong>do</strong> caminho que havia<br />
de seguir para Roma, a quem chamou Cícero luz <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, mestra e arte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
política <strong>da</strong>s gentes, se ausentou <strong>da</strong> ermi<strong>da</strong>, deixan<strong>do</strong> aos ermitães sau<strong>do</strong>sos de sua<br />
discreta conversação e companhia." 46<br />
Reportan<strong>do</strong>-se à estrutura organizacional <strong>do</strong> Alívio de tristes, Inocêncio<br />
refere-se a esta novela como 'serie complexa de diversas novellas reuni<strong>da</strong>s e<br />
presas entre si por uma espécie de laço commum". 47 Trata-se na reali<strong>da</strong>de de<br />
uma multiplicação de narrativas uni<strong>da</strong>s pela sua inserção na conversação <strong>do</strong>s<br />
romeiros e pela sua dimensão moralizante. Devemos ain<strong>da</strong> considerar que<br />
ca<strong>da</strong> história funciona como uma narrativa autónoma, referin<strong>do</strong> a relação <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s seus protagonistas, mas permitin<strong>do</strong>, isola<strong>da</strong>s ou no seu conjunto,<br />
codificar normas de comportamento, seja pela imitação <strong>da</strong>s pie<strong>do</strong>sas acções<br />
<strong>da</strong>s personagens ou pela reprovação <strong>do</strong>s indignos comportamentos que,<br />
usualmente, conduzem a um desfecho trágico.<br />
A esta complexa organização diegética acrescentam-se também os<br />
constantes comentários que se seguem às varia<strong>da</strong>s histórias narra<strong>da</strong>s, uma<br />
profusão de exempla retóricos, quer bíblicos quer históricos, as constantes<br />
citações de autores clássicos, demonstração de erudição <strong>do</strong> autor e sua<br />
autorização, as numerosas reflexões <strong>do</strong>s protagonistas sobre os mais varia<strong>do</strong>s<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte VI, p.1071.<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte VI, p.1073.<br />
Inocêncio Francisco <strong>da</strong> SILVA, Dicionário Bibliográphico Portuguez, ed. cit., p.167.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 33<br />
assuntos, algumas assumin<strong>do</strong> a forma de disputas académicas,<br />
proporcionan<strong>do</strong> ao leitor o prazer inerente ao bom uso <strong>da</strong> palavra e à<br />
ostentação <strong>do</strong> engenho estruturante <strong>da</strong> estética barroca.<br />
Ain<strong>da</strong> que forme um intrinca<strong>do</strong> labirinto, Inocêncio admite que esta novela<br />
"é escripta no gosto próprio d'aquelle século, e accusa fecun<strong>da</strong> imaginação e<br />
vivaci<strong>da</strong>de de ingenho". Mesmo assim, não deixa de denunciar o seu estilo<br />
rebusca<strong>do</strong>, artificioso, "mais que vicioso, não só pela abundância de<br />
metaphoras e antitheses espargi<strong>da</strong>s aflux, mas ain<strong>da</strong> mais por certo ar<br />
pe<strong>da</strong>ntesco, que resulta <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s citações de textos e sentenças<br />
de poetas, historia<strong>do</strong>res e philosophos antigos, gregos e romanos, com que o<br />
auctor alardêa a sua erudição, pon<strong>do</strong>-as na boca <strong>do</strong>s seus interlocutores, que<br />
dissertam e discreteam incessantemente a propósito de tu<strong>do</strong>, e sobre tu<strong>do</strong>!". 48<br />
No entanto, não restam dúvi<strong>da</strong>s de que o argumento e a organização <strong>do</strong> Alívio<br />
de tristes e consolação de queixosos, inteiramente integra<strong>do</strong>s na estética<br />
barroca, eram <strong>do</strong> agra<strong>do</strong> <strong>do</strong>s leitores seiscentistas e setecentistas.<br />
Inocêncio Francisco <strong>da</strong> SILVA, Dicionário Bibliográphico Portuguez, ed. cit., p.167.
34 A novela portuguesa no século XVII:<br />
III. Temas<br />
As diversas narrativas que constituem esta novela, ain<strong>da</strong> que no seu<br />
conjunto procurem representar a inconstância <strong>da</strong>s felici<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, baseiam-<br />
se sempre no amor ou, mais frequentemente, no desamor de que o<br />
protagonista é alvo. São permanentes as referências às características que<br />
devem reger o amor e pelas quais se deve nortear o amante, nomea<strong>da</strong>mente a<br />
necessária discrição e os serviços amorosos desinteressa<strong>do</strong>s e constantes. A<br />
insistência na definição <strong>do</strong> processo amoroso, e seus efeitos contraditórios,<br />
reconhecível tanto nas acções e palavras <strong>da</strong>s personagens como nos extensos<br />
comentários <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, sempre inseri<strong>da</strong> num discurso que se pretende<br />
edificante, alimenta-se, como é típico <strong>do</strong> barroco, <strong>do</strong> recurso a manifestas<br />
antinomias que se materializam numa abundância de antíteses, oxímoros e<br />
para<strong>do</strong>xos, e ain<strong>da</strong> na estruturação bimembre <strong>da</strong>s frases e na proliferação de<br />
engenhosas metáforas e comparações de ín<strong>do</strong>le bélica. 49 Para definir o<br />
comportamento <strong>da</strong>s personagens <strong>do</strong>mina<strong>da</strong>s pelo amor, são também<br />
recorrentes as metáforas em torno <strong>do</strong> girassol, pela analogia com os olhos <strong>da</strong><br />
ama<strong>da</strong> que irradiam a luz que ilumina o cavaleiro, as referências à esquivança<br />
feminina como actualização <strong>do</strong> mítico Narciso, ou ain<strong>da</strong> a alusão mitológica à<br />
Fénix pela capaci<strong>da</strong>de <strong>do</strong> ama<strong>do</strong>r regenerar constantemente o seu sentimento<br />
amoroso, resistin<strong>do</strong> à indiferença <strong>da</strong> <strong>do</strong>nzela.<br />
Resulta<strong>do</strong> de varia<strong>da</strong>s contaminações genológicas, ao nível <strong>da</strong> temática<br />
amorosa nota-se um sincretismo entre o serviço de amor de ín<strong>do</strong>le cortês<br />
(visível no campo <strong>do</strong> vocabulário, com a repeti<strong>da</strong> melancolia que <strong>do</strong>mina o<br />
ama<strong>do</strong>r, os quase desmaios causa<strong>do</strong>s pelo desamor ou pela visão <strong>da</strong> figura<br />
feminina, a beleza <strong>da</strong> <strong>da</strong>ma hiperboliza<strong>da</strong> ou mesmo afirma<strong>da</strong> como impossível<br />
49 Sirva de exemplo esta definição: "É amor to<strong>do</strong> contínua guerra <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, assaltos <strong>do</strong><br />
coração, rebates <strong>da</strong> vontade, combates <strong>do</strong> juízo, resistências <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, batalha <strong>da</strong> razão,<br />
sítio <strong>da</strong>s esperanças e triunfos <strong>da</strong> fermosura." Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação<br />
de queixosos, Parte IV, p.594.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 35<br />
de ser descrita, o amar de ouvi<strong>do</strong>...) e a influência petrarquista (os olhos <strong>da</strong><br />
mulher ama<strong>da</strong> são invariavelmente compara<strong>do</strong>s ao sol, o cabelo é<br />
normalmente louro, a pele alva, a boca de coral é composta de pérolas, ou<br />
ain<strong>da</strong> os seus olhos apresenta<strong>do</strong>s como causa <strong>do</strong> enamoramento ou <strong>do</strong> súbito<br />
nascimento <strong>da</strong> paixão).<br />
O amor, móbil condutor <strong>do</strong>s protagonistas e desencadea<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s intrigas<br />
que conferem a varie<strong>da</strong>de e a novi<strong>da</strong>de capazes de surpreender e seduzir o<br />
leitor destas novelas, é frequentemente aponta<strong>do</strong> como impulsiona<strong>do</strong>r de actos<br />
desacerta<strong>do</strong>s:<br />
"Primeiramente não intento aprovar a escolha <strong>da</strong> senhora Flora por acerta<strong>da</strong>, pois<br />
assim no essencial como no mo<strong>do</strong> leva consigo tanto desacerto: só procuro consolar<br />
vossa mágoa e aplicar-lhe o remédio que o esta<strong>do</strong> presente admitir pode. Entre os<br />
naturais bens que Deus Senhor nosso concedeu aos homens me parecem <strong>do</strong>us os<br />
principais, quais são a vi<strong>da</strong> e a liber<strong>da</strong>de. Da vi<strong>da</strong> quis ele só ser senhor, <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de<br />
quis que o fosse o homem. A senhora Flora era livre para eleger esta<strong>do</strong>, usou <strong>do</strong>s<br />
privilégios <strong>da</strong> vontade, guian<strong>do</strong>-se somente pelos ditames <strong>do</strong> amor." 50<br />
Ain<strong>da</strong> que <strong>do</strong>mina<strong>da</strong>s pelo amor, nestas novelas prevalece a ingratidão<br />
feminina como resposta aos contínuos desvelos <strong>do</strong> amante, ain<strong>da</strong> que as<br />
finezas amorosas possam ser aceites e mesmo louva<strong>da</strong>s quan<strong>do</strong> as intenções<br />
<strong>do</strong> nobre mancebo são honrosas. Preceitua-se a discrição, a isenção e a<br />
modéstia como quali<strong>da</strong>des fun<strong>da</strong>mentais para a manutenção <strong>da</strong> honra<br />
feminina: atributos morais que, coliga<strong>do</strong>s com a singular formosura <strong>da</strong>s jovens<br />
<strong>do</strong>nzelas, se apresentam como marca distintiva <strong>da</strong>s mulheres nobres:<br />
"Era Jacinta a pedra preciosa <strong>da</strong> beleza, com quem compara<strong>da</strong>s as jacintas mais ricas,<br />
fican<strong>do</strong> na estimação de seu luzimento pobres, perdiam o valor que de antes tinham. (...) A<br />
i<strong>da</strong>de mal chegava aos vinte anos, que na fermosura é o flori<strong>do</strong> <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de. Se o ouro nas minas<br />
se perdera, só em seus cabelos restaurar-se pudera, que como lograva tantos privilégios <strong>do</strong><br />
sol, nunca podia faltar em seus cabelos o ouro. Os montes Rhiseos pouca neve encerram se<br />
se comparam com seu rosto. Porque quan<strong>do</strong> aparecem mais neva<strong>do</strong>s, na presença de Jacinta<br />
ficariam escuros. Pois se a neve com o sol se derrete, só em Jacinta há sol que resplandece e<br />
neve que dura. Competiu a púrpura emulações com os can<strong>do</strong>res e ficou em seu rosto a<br />
competência sem decidir-se. Porque os alvores purpurizavam e a púrpura nevava tanto que,<br />
suspensos os olhos que a viam, não determinavam se vencia a rosa ou açucena. Seus olhos<br />
tinham tanto de negros como de belos, toman<strong>do</strong> <strong>da</strong> Etiópia juntamente a cor e as setas, para<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte III, p.485.
36 A novela portuguesa no século XVII:<br />
rebuça<strong>do</strong>s com o escuro <strong>da</strong> cor não errarem o tiro, que se ao claro talvez se escu<strong>da</strong>m os<br />
golpes, no escuro ninguém se acautela <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s. Era a boca alcaide de rubi que em cárcere<br />
breve aprisionava muitos diamantes, não poderosa só quan<strong>do</strong> falava, mas igualmente<br />
poderosa se se ria, porque ou falan<strong>do</strong> de veras ou de burlas era o triunfo <strong>do</strong>s corações e o<br />
encanto amoroso <strong>da</strong>s vontades. Era sua fermosura arrisca<strong>da</strong> para vista e ingrata para ama<strong>da</strong>:<br />
que sempre a ingratidão se põe <strong>da</strong> parte <strong>da</strong> beleza, avalian<strong>do</strong> o rendimento por dívi<strong>da</strong> e as<br />
finezas por tributo. Era finalmente Jacinta o assunto <strong>da</strong>s maravilhas <strong>da</strong> corte pelo belo e o<br />
objecto <strong>do</strong>s sentimentos pelo ingrato." 5 ^<br />
No início de ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s narrativas inseri<strong>da</strong>s no Alívio de tristes, o<br />
narra<strong>do</strong>r, na maior parte <strong>da</strong>s vezes vítima <strong>da</strong> esquivança feminina, começa por<br />
tentar debuxar a peregrina beleza <strong>da</strong> <strong>do</strong>nzela por quem se apaixonou logo na<br />
primeira visão: avista<strong>da</strong> normalmente numa <strong>da</strong>s janelas <strong>da</strong> casa que cai sobre<br />
o agradável jardim, recrean<strong>do</strong>-se despreveni<strong>da</strong> junto de uma fresca fonte<br />
quan<strong>do</strong> o mancebo se diverte no exercício <strong>da</strong> caça ou, mais raramente, quan<strong>do</strong><br />
acompanha a sua mãe para ouvir missa.<br />
Além <strong>da</strong> artificiali<strong>da</strong>de de muitos <strong>do</strong>s encontros <strong>do</strong>s intervenientes nas<br />
diversas histórias narra<strong>da</strong>s, a belezas <strong>da</strong>s figuras femininas revela-se<br />
inteiramente convencional, investin<strong>do</strong> o narra<strong>do</strong>r num retórico acumular de<br />
enumerações <strong>da</strong>s suas quali<strong>da</strong>des, de numerosas metáforas florais,<br />
comparações com as pedras preciosas e os astros, copiosas antíteses e jogos<br />
de palavras que aproveitam o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu nome.<br />
Esta composição <strong>do</strong> retrato feminino, marca<strong>da</strong>mente petrarquista 52 ,<br />
admite pequenas variantes, pois que, num episódio que evidencia a<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos,Parte III, p.523.<br />
52 Retrato de matriz petrarquista presente, de resto, em numerosos textos <strong>da</strong> nossa literatura.<br />
Veja-se, entre outros exemplos, os encarecimentos <strong>da</strong> beleza <strong>da</strong> Peregrina, personagem <strong>da</strong><br />
história narra<strong>da</strong> por D. Júlio, no "Diálogo V - Dos encarecimentos", de Corte na aldeia (1619),<br />
de Rodrigues Lobo. Estas descrições <strong>da</strong> beleza feminina, assentes em hipérboles,<br />
comparações e metáforas que se socorrem <strong>do</strong>s astros, <strong>do</strong> zodíaco ou <strong>da</strong>s quali<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s<br />
pedras preciosas, levam o Doutor a sentenciar que "em matérias de amor tu<strong>do</strong> o que reluz é<br />
ouro e tu<strong>do</strong> e tu<strong>do</strong> o que assombra é sol" e Solino, crítico destes excessos de linguagem,<br />
refere que "os amantes para encarecer, se não contentam tão pouco, to<strong>do</strong>s chegam ao que<br />
pode ser: to<strong>do</strong> o branco é cristal e diamantes; o cora<strong>do</strong>, rosas e rubis; o verde, esmeral<strong>da</strong>s; o<br />
azul, safiras, e o amarelo, ouro e jacintos." Francisco Rodrigues LOBO, Corte na aldeia, ed. cit.,<br />
pp.126, 128.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 37<br />
superiori<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s valores cristãos face ao mun<strong>do</strong> muçulmano, fornecen<strong>do</strong> um<br />
exemplo de conversão religiosa, retira-se à mulher europeia o privilégio <strong>da</strong><br />
beleza para elogiar a turca Zelin<strong>da</strong>, por quem Hortênsio, seu cativo, se<br />
apaixonou e com quem <strong>caso</strong>u depois de se baptizar:<br />
"Sobre<strong>do</strong>uravam as madeixas de seu cabelos a brunhi<strong>da</strong> prata de seu rosto, cujos<br />
can<strong>do</strong>res <strong>da</strong>vam temor às açucenas de poderem parecer escuras à sua vista, sen<strong>do</strong> anima<strong>da</strong><br />
neve sem derreter-se; porque os montes Alpes não eram mais eminentes na presunção, nem<br />
mais altivos e neva<strong>do</strong>s na isenção e na dureza. Eram os olhos de Zelin<strong>da</strong> negros como a noite<br />
mais escura. (...)<br />
Sangria de coral parecia a boca pelo breve <strong>do</strong> rasgo, que sempre parecia na<strong>da</strong>r em<br />
sangue, sem vertê-lo, e em concha tão sucinta <strong>da</strong> púrpura mais fina aprisionava pérolas por<br />
dentes. E quan<strong>do</strong> nas lágrimas <strong>da</strong> aurora se não vissem congela<strong>da</strong>s, sempre em sua boca se<br />
viam as mais finas. Competia o <strong>do</strong>nairoso <strong>do</strong> talhe consigo mesma; porque tanto nela se<br />
apurou a natureza com os poli<strong>do</strong>s rasgos <strong>do</strong> pincel que quis fosse modelo para o brioso, de<br />
nenhuma imita<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong>s apeteci<strong>do</strong>. Era tão discreta como fermosa; e não encareci pouco<br />
seu juízo! Pois se com Zelin<strong>da</strong> ninguém correu parelhas na beleza, ninguém presumiu<br />
igual<strong>da</strong>de na discrição, sen<strong>do</strong> ela só em Constantinopla racional triunfo na beleza e aplaudi<strong>do</strong><br />
vencimento na discrição. Era este anima<strong>do</strong> prodígio a mais celebra<strong>da</strong> maravilha pela fama que<br />
pela vista; porque não costumam as turcas saírem em público sem irem mascara<strong>da</strong>s. Porém<br />
que nunca seria bastante para esconder tanto sol? Nem que máscara para encobrir tanta<br />
neve? Pois ao Olimpo superior não se atrevem as novenas. Era Zelin<strong>da</strong> de sua própria<br />
estimação tão altiva e tão despreza<strong>do</strong>ra de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s que era a desestimação que de tu<strong>do</strong> fazia<br />
igual à fermosura com que sujeitava. É a fermosura (como diz Ovídio) sempre soberba por<br />
desvaneci<strong>da</strong>: entende que os desvelos se lhe devem por tributo e os cortejos mais<br />
obsequiosos como rendimentos de obrigação; quer vencer ao mun<strong>do</strong> sem armas, aprisionar<br />
sem cadeias e premiar serviços com desprezos, fazen<strong>do</strong> <strong>da</strong> mesma ingratidão que costuma<br />
defender, nova razão de esta<strong>do</strong> para se conservar." 53<br />
Apesar de inteiramente convencionais, os encarecimentos <strong>da</strong> formosura<br />
<strong>da</strong> jovem <strong>do</strong>nzela, escora<strong>do</strong>s por uma longa tradição literária, não submetem o<br />
escritor barroco ao rígi<strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> verosimilhança, antes oferecem o deleite<br />
e a consequente instrução <strong>do</strong> leitor 54 . A este propósito, salienta-se o privilégio<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, pp.654-5.<br />
54 Ain<strong>da</strong> que convencionais e recorrentes, a consciência de que os hiperboliza<strong>do</strong>s traços <strong>da</strong><br />
beleza feminina propiciam a deleitação <strong>do</strong> leitor é, entre outros, claramente afirma<strong>da</strong> por<br />
Manuel Bernardes: "Não há mais fino mentir..., mas como os poetas o professam e não<br />
ignoram que os seus leitores o não ignoramos, passam estes encarecimentos, não porque lhe
38 A novela portuguesa no século XVII:<br />
<strong>da</strong> visão entre os senti<strong>do</strong>s e, em menor escala, a importância <strong>da</strong> audição,<br />
concretiza<strong>da</strong> nas esporádicas alusões ao prazer provoca<strong>do</strong> pela voz feminina<br />
ou pela música 55 .<br />
Curiosamente, num contexto distinto, e porque as lições ministra<strong>da</strong>s são<br />
de varia<strong>da</strong> ín<strong>do</strong>le, o narra<strong>do</strong>r alerta para o perigo de que se pode revestir a<br />
música quan<strong>do</strong> utiliza<strong>da</strong> de forma desadequa<strong>da</strong>:<br />
"Isto de <strong>da</strong>r músicas de noite é um desacerto que o mun<strong>do</strong> intitula serviço e fineza de<br />
quem ama erra<strong>da</strong>mente; porque não serve de mais que de romper o nome ao segre<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
sujeito a quem se dá, pôr em risco ao amante e <strong>da</strong>r que murmurar aos vizinhos, queren<strong>do</strong> ca<strong>da</strong><br />
qual investigar com os discursos aonde se dirige a harmonia e talvez culpan<strong>do</strong> a quem vive<br />
inocente.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> em vista a sua dimensão moralizante assente nos<br />
valores cortesãos e na ideologia cristã, nesta obra apenas se vislumbra uma<br />
sensuali<strong>da</strong>de muito conti<strong>da</strong>: no que concerne ao corpo feminino, conforme se<br />
observa nos numerosos retratos <strong>da</strong>s formosas <strong>do</strong>nzelas, encontramos apenas<br />
a enumeração de lugares-comuns que se prendem sobretu<strong>do</strong> com o rosto; por<br />
outro la<strong>do</strong>, a entrega <strong>da</strong> <strong>do</strong>nzela ao jovem mancebo é sempre referi<strong>da</strong> de<br />
forma parcimoniosa - efeito também <strong>do</strong> decoro característico <strong>do</strong> género.<br />
O reduzi<strong>do</strong> sensualismo presente no Alívio de tristes provém ain<strong>da</strong> de<br />
uma insistente codificação <strong>da</strong>s quali<strong>da</strong>des morais que norteiam o<br />
comportamento <strong>da</strong>s protagonistas <strong>da</strong> maior parte destas narrativas. A<br />
preocupação com o recato, o pu<strong>do</strong>r e a defesa <strong>da</strong> honra <strong>da</strong>s <strong>do</strong>nzelas assume-<br />
se como um aspecto fun<strong>da</strong>mental para os seus familiares, normalmente na<br />
figura <strong>do</strong> irmão mais velho, mas também emerge nos comentários <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r.<br />
demos crédito, senão porque nos dão deleite." Nova Floresta, Tomo I, Título IV, Lisboa, por<br />
Valentim <strong>da</strong> Costa Deslandes, 1706, p.271.<br />
55 É o <strong>caso</strong> de Justiniano que se apaixona por Diana, <strong>da</strong>ma que "de muitos era pertendi<strong>da</strong> pela<br />
voz e não se resolvia a tomar esta<strong>do</strong> de casa<strong>da</strong>, por ser feia", ao ouvir "cantar uma voz de<br />
mulher com tão suave harmonia, ao som de uma harpa que tocava, que parámos a ouvi-la; e<br />
se o amor costuma a entrar ao coração pelos olhos, posso dizer com razão que entrou no meu<br />
pelos ouvi<strong>do</strong>s. É a música de si amável, que ain<strong>da</strong> nos brutos irracionais costuma ser poderosa<br />
para demover e atrair os senti<strong>do</strong>s." Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de<br />
queixosos, Parte III, pp.535-6.<br />
56 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte IV, pp.699-700.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 39<br />
Na ver<strong>da</strong>de, quan<strong>do</strong> as jovens <strong>do</strong>nzelas aliam a beleza à discrição e ao juízo<br />
são geralmente premia<strong>da</strong>s com o casamento com o mancebo ama<strong>do</strong>; pelo<br />
contrário, nos <strong>caso</strong>s em que é a própria <strong>do</strong>nzela que toma a iniciativa de<br />
agra<strong>da</strong>r e serve amorosamente o homem que pretende desposar, o seu intento<br />
acaba inevitavelmente por fracassar: segue o intuito moralizante desta obra -<br />
para procedimentos correctos estão reserva<strong>do</strong>s os prémios e para condutas<br />
desviantes <strong>da</strong> norma comportamental (assente nos valores <strong>da</strong> nobreza)<br />
destinam-se as punições, frequentemente trágicas.<br />
Assim acontece com Júlia, filha de Petrónio Bentivolhe, que pretendia<br />
atrair os serviços amorosos de Carlos Manfre<strong>do</strong> com as suas cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sas<br />
assistências, ain<strong>da</strong> que o jovem fi<strong>da</strong>lgo tivesse diferentes intenções, visto "que<br />
em Carlos não excediam <strong>da</strong> cortesia e em Júlia de procurar casamento" 57 . Este<br />
censurável acto de Júlia acabou por originar uma pendência fatal entre <strong>do</strong>is<br />
nobres principais de Bolonha, terminan<strong>do</strong> com a morte <strong>do</strong> seu irmão Octávio,<br />
castigo pela sua "petulante condição e costuma<strong>da</strong> soberba" 58 , após Lisar<strong>do</strong><br />
socorrer o amigo Carlos <strong>da</strong> embosca<strong>da</strong> que o oponente lhe preparara, fazen<strong>do</strong>-<br />
se acompanhar de sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s para o auxiliarem no duelo. 59<br />
No entanto, como forma de justificar estes comportamentos inadequa<strong>do</strong>s<br />
à nobreza feminina, apresenta-se nalguns <strong>caso</strong>s a sua ingenui<strong>da</strong>de e pouca<br />
experiência no contacto com os cavaleiros 60 . É o <strong>caso</strong> de Eugenia, seduzi<strong>da</strong> e<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte VI, p.1010.<br />
58 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte VI, p.1011.<br />
59 A cedência de Diana aos desejos de Camilo Rizar<strong>do</strong> e sua consequente desonra,<br />
aban<strong>do</strong>na<strong>da</strong> após fraudulenta promessa de ser seu esposo, é apresenta<strong>da</strong> como exemplo <strong>do</strong><br />
engano de inocentes <strong>do</strong>nzelas, e comenta<strong>da</strong> pelo seu irmão Constantino, após executar a sua<br />
vingança: "para que a outros sejas memorável exemplo de não enganarem as <strong>do</strong>nzelas castas<br />
e honra<strong>da</strong>s, nem ofenderem aos amigos tão ver<strong>da</strong>deiros, como eu fui, com escan<strong>da</strong>losos<br />
insultos com capa de amizade tão perjura." Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de<br />
queixosos, Parte V, p.867.<br />
60 Convém notar que a inexperiência amorosa é também apresenta<strong>da</strong> como fonte de perigos<br />
para os cavaleiros, como é o <strong>caso</strong> de Bonifácio, alvo <strong>da</strong> ingratidão de Doroteia: "Fui eu o<br />
primeiro que na vista de Doroteia experimentei o veneno, porque não devia desenganos às<br />
lições <strong>da</strong> experiência em que pudesse aprender cautelas minha ignorância." Mateus RIBEIRO,<br />
Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte VI, p.1029.
40 A novela portuguesa no século XVII:<br />
posteriormente aban<strong>do</strong>na<strong>da</strong> por Roberto, apresenta<strong>da</strong> como exemplo <strong>do</strong><br />
castigo correspondente à levian<strong>da</strong>de feminina:<br />
"Deu crédito a suas palavras a pouco experimenta<strong>da</strong> Eugenia (que assim se<br />
chamava) e sain<strong>do</strong> de casa de sua mãe, que o amor lhe fazia deixar, ausentan<strong>do</strong>-se<br />
de sua vista e companhia segura, que pela duvi<strong>do</strong>sa de seu amante trocava,<br />
caminhan<strong>do</strong> com ele alguma jorna<strong>da</strong>, desvian<strong>do</strong>-se sempre <strong>da</strong>s estra<strong>da</strong>s e<br />
emboscan<strong>do</strong>-se a maior parte <strong>do</strong> dia no oculto <strong>do</strong>s bosques e silvas mais espessas,<br />
chegaram a Serra Morena, cujas montanhas parece que dão atrevimento aos maiores<br />
insultos; ele, que já sobre o título de esposo, que cautelosamente tomava, tinha<br />
logra<strong>do</strong> as pren<strong>da</strong>s de sua fermosura, com ânimo bárbaro, acção indigna de peito<br />
humano quan<strong>do</strong> mais bem nasci<strong>do</strong>, despojou-a de seus ricos vesti<strong>do</strong>s e jóias, e<br />
deixan<strong>do</strong>-a naquele solitário ermo se ausentou de sua vista; castigo mereci<strong>do</strong> de sua<br />
livian<strong>da</strong>de, pois deixava a casa de sua mãe indiscretamente para seguir a um<br />
forasteiro, a quem amor a inclinou, para percter-se." 61<br />
Se a inexperiência nos assuntos de amor ocasiona a desonra <strong>da</strong>s<br />
<strong>do</strong>nzelas mais incautas, outro factor que pode igualmente condicionar o<br />
sucesso <strong>do</strong> galanteio é a desigual<strong>da</strong>de de esta<strong>do</strong> entre os amantes, constante<br />
preocupação <strong>da</strong>s <strong>do</strong>nzelas:<br />
" Vós mesmo, que hoje me lisonjeais de fermosa, amanhã arrependi<strong>do</strong> me aborreceis<br />
desengana<strong>do</strong>, ven<strong>do</strong> que comigo cortastes as melhoras que pudéreis conseguir, se<br />
prudente escolhêsseis o que precipita<strong>do</strong> seguis. Atendei mais considera<strong>do</strong> que para<br />
vós solicitais arrependimento sem fruto, para mim moléstias sem remédio, para vossos<br />
pais eterno sentimento e para os meus inquietações sem reparo; porque de um<br />
casamento desigual to<strong>do</strong>s ficam descontentes, to<strong>do</strong>s pesarosos e to<strong>do</strong>s<br />
desterra<strong>do</strong>s." 62<br />
Os casamentos desiguais 63 , ocasiona<strong>do</strong>s muitas vezes pela bizarra<br />
formosura feminina que cativa o jovem fi<strong>da</strong>lgo, são aponta<strong>do</strong>s como causa de<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.197.<br />
62 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte III, p.406.<br />
63 A insistente preocupação com a igual<strong>da</strong>de de riqueza <strong>do</strong>s amantes como condição<br />
necessária para o casamento (ain<strong>da</strong> que se apresentem exemplos em contrário quan<strong>do</strong> a<br />
situação inferior de um <strong>do</strong>s elementos o solicite), está patente em muitos <strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>s sobre<br />
esta matéria. Veja-se a este propósito, O casamento perfeito, de Diogo de Paiva de<br />
ANDRADA, notas de Fidelino de Figueire<strong>do</strong>, Lisboa, Livraria Sá <strong>da</strong> Costa, 1944, max. cap. Il -<br />
"Que sejam os casa<strong>do</strong>s de igual quali<strong>da</strong>de", pp.4-10; V. D. Francisco Manuel de MELO, Carta
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 41<br />
futuras adversi<strong>da</strong>des, visto que beleza humana não se isenta <strong>da</strong> sua condição<br />
efémera e as afrontas feitas aos familiares se perpetuam. Assim se<br />
compreende o desengano ministra<strong>do</strong> por Constantino a Felizar<strong>do</strong> acerca de<br />
Amatilde, cria<strong>da</strong> humildemente por um casal de lavra<strong>do</strong>res, mas que na<br />
ver<strong>da</strong>de é filha de um nobre principal:<br />
"Se pois tão desiguais casamentos nem acham desculpas no amor, nem escusas<br />
na fermosura, porque os juízos como livres julgam desapaixona<strong>do</strong>s, como vos livrareis<br />
<strong>da</strong> censura <strong>do</strong>s discretos se, despois de tantos anos de estu<strong>do</strong> em que despendestes<br />
o mais flori<strong>do</strong> tempo <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, quan<strong>do</strong> pudéreis justamente aspirar aos cargos que<br />
mereceis, vos vissem emprega<strong>do</strong> em ser esposo de uma moça, se bem fermosa no<br />
parecer, tão desigual no esta<strong>do</strong> e tão humilde no nascimento? Considerai os<br />
desgostos de vossos pais, as iras de vossos parentes e o sentimento de vossos<br />
amigos, pois não poden<strong>do</strong> viver em vossa pátria, vos seria forçoso peregrinar terras<br />
estranhas, e isso com pouco cabe<strong>da</strong>l e com uma moça fermosa em companhia, que<br />
nem é a pensão menor, nem a menos arrisca<strong>da</strong>, ocasionan<strong>do</strong> perigos o parecer em<br />
tantos olhos que forçosamente a devem encontrar." 64<br />
Relacionan<strong>do</strong>-se ain<strong>da</strong> com o universo amoroso e com a beleza feminina,<br />
algumas destas narrativas apresentam incidentes ocasiona<strong>do</strong>s pelos ciúmes 65 ,<br />
sempre motiva<strong>do</strong>s por infun<strong>da</strong><strong>da</strong>s suspeitas. Estas suspeições, tal como a<br />
sau<strong>da</strong>de provoca<strong>da</strong> pela separação <strong>do</strong>s amantes, contribuem para um certo<br />
convencionalismo nas acções <strong>do</strong>s amantes, personagens invariavelmente<br />
persegui<strong>da</strong>s por um agu<strong>do</strong> sofrimento. Por outro la<strong>do</strong>, as suspeitas e o<br />
consequente desejo de vingança, sen<strong>do</strong> sempre desaprova<strong>do</strong>s pelo narra<strong>do</strong>r<br />
ou pelos interlocutores, servem não só de veículo para a lição moraliza<strong>do</strong>ra,<br />
de Guia de Casa<strong>do</strong>s, Ed. Maria de Lurdes Correia FERNANDES, <strong>Porto</strong>, Campo <strong>da</strong>s Letras,<br />
2003; Maria de Lurdes Correia FERNANDES, Espelhos, cartas e guias: casamento e<br />
espirituali<strong>da</strong>de na Península Ibérica: 1450-1700, <strong>Porto</strong>, [Edição <strong>do</strong> Autor], 1992.<br />
64 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte III, pp.408-9.<br />
65 É o <strong>caso</strong> <strong>da</strong> extensa narrativa de Roberto e de Lívia: movi<strong>do</strong> por infun<strong>da</strong><strong>do</strong>s ciúmes <strong>da</strong> sua<br />
esposa, Roberto conduz Lívia a uma retira<strong>da</strong> floresta com o intuito de a matar. É contu<strong>do</strong><br />
impedi<strong>do</strong> por Lisar<strong>do</strong>, fugin<strong>do</strong> a <strong>do</strong>nzela sob disfarce de camponesa e com o nome de Jacinta.<br />
Chama<strong>do</strong> à razão por Lisar<strong>do</strong> e pela sabe<strong>do</strong>ria <strong>do</strong> seu tio Mário, personagem mais experiente<br />
e avisa<strong>do</strong>, após vários sucessos e com a intercalação de outras narrativas, os <strong>do</strong>is acabam por<br />
se reconciliarem. Parte V, cap. VI - VII.
42 A novela portuguesa no século XVII:<br />
mas também para desencadear as peripécias que fornecem a novi<strong>da</strong>de<br />
diegética tão cara ao leitor.<br />
Ain<strong>da</strong> em relação com o universo amoroso, e servin<strong>do</strong> de lição para o<br />
leitor, as diversas novelas incorpora<strong>da</strong>s nesta obra apresentam personagens<br />
queixosas <strong>da</strong>s suas desventuras amorosas ou pesarosas <strong>da</strong> efemeri<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s<br />
bens terrenos que possuem, ou possuíram. Perante estes enganos, preconiza-<br />
se o isolamento e a apologia <strong>do</strong> retiro para o campo, livre <strong>da</strong>s murmurações e<br />
<strong>do</strong>s atractivos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> na ci<strong>da</strong>de ou na corte, como forma de repelir os<br />
equívocos <strong>do</strong> amor e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>:<br />
"Com quanta razão, senhor, se podem chamar felices uma e muitas vezes aqueles<br />
que isentos <strong>do</strong>s tumultos <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des, <strong>da</strong> confusão <strong>da</strong>s cortes, nesta aprazível solidão<br />
passam a vi<strong>da</strong>, aonde nem pertensões os inquietam, nem cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s os ofendem? Não<br />
se teme a falsi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> amigo, nem a murmuração <strong>do</strong> contrário aonde nem a ousadia<br />
os arrisca, nem o temor os perturba; as aves os saú<strong>da</strong>m e com seu canto alegram, as<br />
flores os recreiam, as selvas os abrigam, os bosques os hospe<strong>da</strong>m. " 66<br />
Ain<strong>da</strong> no que concerne ao desengano, ao salientar de forma persistente a<br />
transitorie<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s bens terrenos e as aparentes lisonjas <strong>do</strong> amor, denuncia-se<br />
a fugaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> terrena, limitan<strong>do</strong>-se o ser humano a uma contínua<br />
peregrinação que culminará na pátria celeste. De acor<strong>do</strong> com o Ermitão,<br />
ampara<strong>do</strong> na lição de Santo Agostinho, a vi<strong>da</strong> não passa "uma perpétua<br />
peregrinação e uma repeti<strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> em que an<strong>da</strong>mos sobre a terra, sem ter<br />
<strong>do</strong>micílio seguro quem só no céu tem seu próprio descanso, e assim não é<br />
novi<strong>da</strong>de o peregrinar quem sempre an<strong>da</strong> no mun<strong>do</strong> peregrino." 67<br />
O tópico homo via<strong>do</strong>r surge sempre que há necessi<strong>da</strong>de de atenuar o<br />
intenso sofrimento resultante <strong>da</strong> inespera<strong>da</strong> morte de um ente queri<strong>do</strong>, <strong>caso</strong> de<br />
Laura, mãe <strong>da</strong> malogra<strong>da</strong> Felícia, consola<strong>da</strong> por Felisberto:<br />
"Chorais porque morreu quem nasceu mortal; se nascera imortal, justamente tivéreis<br />
que sentir; mas nascen<strong>do</strong> obriga<strong>da</strong> a pagar à morte os foros <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, nem é admiração<br />
quan<strong>do</strong> os paga, sen<strong>do</strong> maior espanto quan<strong>do</strong> vive. (...) Porque enfim como to<strong>do</strong>s<br />
para lá caminhamos, com os passos que <strong>da</strong>mos é força que cheguemos; pois onde<br />
nunca se pára e sempre se caminha to<strong>da</strong> a jorna<strong>da</strong> é breve, ain<strong>da</strong> que pareça larga." ee<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.214.<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte III, p.383.<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.295.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 43<br />
Numa obra <strong>do</strong>mina<strong>da</strong> pela moral cristã , o caminho mais seguro para a<br />
união com Deus, partin<strong>do</strong> <strong>da</strong> experiência pessoal de Felisberto e, por acção<br />
deste, segui<strong>da</strong> por Dionísio (ou ain<strong>da</strong> por Frederico, antigo ban<strong>do</strong>leiro, ou<br />
Lisar<strong>do</strong>, duas <strong>da</strong>s personagens com maior destaque nas narrativas<br />
secundárias) parece ser a eleição <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> religiosa. Para consolar Lisar<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
ingratidão de Fenisa, o Ermitão elogia a sua recolha num convento, pois "quem<br />
se dedica a Deus a to<strong>do</strong>s agra<strong>da</strong> e a ninguém ofende. (...) É o esta<strong>do</strong> de<br />
religiosa para as mulheres o mais honroso, como se tem visto em o grande<br />
número de rainhas, princesas e infantes de duquesas, marquesas e senhoras<br />
que voluntariamente em várias religiões o tem toma<strong>do</strong>, que poden<strong>do</strong> ser no<br />
mun<strong>do</strong> grandes, em escolherem a Deus por seu esposo ficaram sen<strong>do</strong><br />
maiores." 70 De igual mo<strong>do</strong>, a discreta eleição <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>tal por Lisar<strong>do</strong><br />
é também louva<strong>da</strong>: "Tu<strong>do</strong> o que podia <strong>da</strong>r-vos moléstias evitastes e o que pode<br />
assegurar-vos escolhestes, sen<strong>do</strong> abono de vosso juízo o discreto acerto de<br />
vossa eleição." 7 ^<br />
Apontan<strong>do</strong> as boas práticas religiosas e morais como único caminho para<br />
a salvação, são inseri<strong>do</strong>s na narrativa inúmeros <strong>caso</strong>s de devoção, sobretu<strong>do</strong><br />
nos aflitos, nos cativos, nos persegui<strong>do</strong>s, nos desiludi<strong>do</strong>s. Para manifestar os<br />
riscos <strong>da</strong> alma e os perigos evidentes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, o narra<strong>do</strong>r socorre-se <strong>da</strong>s<br />
contínuas reflexões, nalguns <strong>caso</strong>s quase catequéticas, formula<strong>da</strong>s pelos<br />
romeiros durante a sua peregrinação, e <strong>da</strong> exemplari<strong>da</strong>de que se pode extrair<br />
de ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s narrativas encaixa<strong>da</strong>s nesta obra.<br />
Atente-se, por exemplo, no discurso de Polinar<strong>do</strong>, um <strong>do</strong>s elementos sitia<strong>do</strong>s pela justiça<br />
após o violento homicídio de uma nobre senhora: "Se Cursieto Sambuco quis na desesperação<br />
acabar a vi<strong>da</strong> como bárbaro, haven<strong>do</strong> como tal sempre vivi<strong>do</strong>, não é exemplo para haver de<br />
imitar-se nem o desaforo de sua vi<strong>da</strong>, nem o desespera<strong>do</strong> de sua morte. Somos cristãos,<br />
morramos como tais, quan<strong>do</strong> hajamos de morrer; e quan<strong>do</strong> em rigor não possamos salvar as<br />
vi<strong>da</strong>s, trabalhemos por salvarmos as almas." Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação<br />
de queixosos, Parte IV, p.716.<br />
70 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte VI, p.1072.<br />
71 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte VI, p.1073.
44 A novela portuguesa no século XVII:<br />
Mas a conversação entre os <strong>do</strong>is protagonistas não se limita apenas às<br />
extensas observações de carácter moralizante. Este diálogo evidencia<br />
igualmente o valor <strong>da</strong> sociabili<strong>da</strong>de, o prazer que resulta <strong>do</strong> convívio e <strong>da</strong><br />
conversação, sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> se alicerça na experiência e no conhecimento<br />
proveniente <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de. Por isso Dionísio se confessa livre <strong>da</strong>s passa<strong>da</strong>s<br />
inquietações devi<strong>do</strong> aos sábios conselhos transmiti<strong>do</strong>s pelo Ermitão, ancião<br />
experimenta<strong>do</strong> nos infortúnios <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> terrena:<br />
"E pois em vossa conversação alcancei sossego a minhas maiores inquietações, não<br />
me encontreis o alívio de ficar em vossa companhia, pois a de tão prudente e sábio<br />
sujeito pode e deve com to<strong>do</strong>s os extremos procurar-se para remédio; que quan<strong>do</strong><br />
com a anciani<strong>da</strong>de reveren<strong>da</strong> de vossa i<strong>da</strong>de se dá a madureza de juízo, o acerto <strong>da</strong><br />
prudência, a sabe<strong>do</strong>ria <strong>do</strong>s conselhos, a discrição <strong>da</strong>s palavras e a vi<strong>da</strong> tão exemplar<br />
e reforma<strong>da</strong> nas acções, como [em] vós se manifesta, não há dúvi<strong>da</strong> que está nos<br />
anciãos a prudência". 72<br />
Convém notar, no entanto, que Dionísio apenas foi capaz de receber os<br />
ensinamentos <strong>do</strong> Ermitão porque, apesar <strong>da</strong> sua juventude, possui já a<br />
experiência necessária para alcançar esta lição:<br />
"porém porque vos considero hoje com a experiência de vossos passa<strong>do</strong>s infortúnios,<br />
ain<strong>da</strong> que nos anos moço, nos desenganos velho, principiarei a história de minha vi<strong>da</strong>,<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.210.<br />
Insiste-se ao longo <strong>da</strong> obra nas vantagens que advêm <strong>do</strong> convívio com os anciãos mais<br />
experimenta<strong>do</strong>s e com os sábios: "Esta é a utili<strong>da</strong>de que a companhia <strong>do</strong>s sábios granjeia a<br />
quem assistem, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhes conselhos nos perigos, advertências nas empresas, consolação<br />
nos desgostos, alívio nas queixas, remédio nos males." Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e<br />
consolação de queixosos, Parte I, p.141.<br />
A acção reconfortante e edificante <strong>do</strong>s conselhos <strong>do</strong> Ermitão surge claramente anuncia<strong>da</strong> nas<br />
palavras de Dionísio: "Tanto tem vossos acerta<strong>do</strong>s discursos (disse o Peregrino) alivia<strong>do</strong> meu<br />
sentimento, que vos afirmo me sinto consola<strong>do</strong> de sorte que já me não inquietam vinganças,<br />
nem desvelam castigos. E pois que o amor <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> me tem desengana<strong>do</strong> no melhor <strong>do</strong>s<br />
anos, <strong>do</strong> pouco que deve ser busca<strong>do</strong> de quem seus enganos conhece, tratarei de hoje em<br />
diante de empregar meu amor em Deus, a quem to<strong>da</strong>s as finezas se devem e com tanta<br />
vantagem as paga. Neste santo monte, a quem angélicos favores ilustram e com tão insigne<br />
santuário se enobrece, aonde minhas tristezas acharam consolação e meus sentimentos alívio,<br />
quero passar o restante <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em vossa companhia, se este favor não encontrar meu pouco<br />
merecimento." Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.209.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 45<br />
sem ocultar os discursos e varie<strong>da</strong>des dela, para que vos consoleis em vossas<br />
tristezas, ven<strong>do</strong> que não sois singular nos desgostos padeci<strong>do</strong>s." 73<br />
Por último, entre os principais temas de Alívio de tristes e consolação de<br />
queixosos, registe-se ain<strong>da</strong>, tópico comum na literatura barroca, a persistente<br />
defesa <strong>do</strong> valor <strong>da</strong>s armas e <strong>da</strong>s letras 74 como mo<strong>do</strong> de alcançar um estatuto<br />
social superior, aspecto relaciona<strong>do</strong> também com a concentração <strong>da</strong> riqueza<br />
familiar nos morga<strong>do</strong>s e consequente desfavorecimento <strong>do</strong>s filhos segun<strong>do</strong>s.<br />
Por este motivo, ain<strong>da</strong> que motiva<strong>da</strong>s sobretu<strong>do</strong> pelo galanteio <strong>da</strong> mesma<br />
<strong>do</strong>nzela por parte <strong>do</strong> filho primogénito e <strong>do</strong> filho segun<strong>do</strong> de nobres famílias, e<br />
em menor grau pela disputa de heranças, as acesas discussões entre irmãos<br />
conduzem o mais novo ao exercício militar ou aos estu<strong>do</strong>s como forma de<br />
ascensão social, conforme confessa Constantino:<br />
"lnclinei-me às letras e juntamente às armas, que são os <strong>do</strong>us caminhos que os<br />
filhos segun<strong>do</strong>s pela maior parte seguem, que não impede o exercício escolástico o<br />
uso <strong>da</strong>s armas." 75<br />
73 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.220.<br />
74 Numa novela em que o alívio <strong>da</strong>s queixosas personagens se opera sobretu<strong>do</strong> pelo discreto<br />
discurso de quem vivera situações igualmente desafortuna<strong>da</strong>s, destaca-se também o consolo<br />
que pode ser forneci<strong>do</strong> pelos livros, tal como refere Lisar<strong>do</strong>: "Em meus desgostos acho alívios,<br />
em meus pesares nos livros consolação, porque tu<strong>do</strong> quem estu<strong>do</strong>u achou nos livros, ou o<br />
remédio contra os dissabores <strong>da</strong> fortuna, ou nos discretos o conselho que é grande ventura."<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte VI, pp.1071-2.<br />
75 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte III, p.522.
46 A novela portuguesa no século XVII:<br />
IV. Personagens, espaço e tempo<br />
Na novela Alívio de tristes e consolação de queixosos constata-se que<br />
to<strong>da</strong>s as categorias narrativas concorrem para a enunciação <strong>da</strong>s temáticas que<br />
<strong>do</strong>minam a obra: o amor, núcleo de to<strong>da</strong>s as intrigas, e o desengano que se<br />
pretende incutir, tanto nas personagens que dele carecem como no próprio<br />
leitor.<br />
No que concerne às personagens, a estratificação que <strong>do</strong>mina a<br />
socie<strong>da</strong>de seiscentista é amplamente visível no diferencia<strong>do</strong> tratamento<br />
dispensa<strong>do</strong> aos protagonistas, maioritariamente nobres, em comparação com<br />
as personagens secundárias. Ten<strong>do</strong> em consideração o público leitor deste tipo<br />
de novelas de entretenimento cortês, compreende-se que esta obra se baseie<br />
numa ideologia acentua<strong>da</strong>mente aristocrática: estamos perante narrativas<br />
escritas sobre nobres e para os nobres. 76<br />
Conforme foi já referi<strong>do</strong>, o retrato <strong>da</strong>s personagens femininas assenta<br />
num conjunto de tópicos petrarquistas, valorizan<strong>do</strong> sobretu<strong>do</strong> pormenores<br />
físicos como o rosto, os olhos, a boca, o cabelo, apresentan<strong>do</strong> apenas<br />
pequenas anotações psicológicas, igualmente convencionais na sua maioria.<br />
Como consequência, investe-se principalmente no comportamento <strong>da</strong>s<br />
personagens como forma de facultar ao leitor a lição moral e contribuin<strong>do</strong> para<br />
a delineação de um código de procedimento cortesão.<br />
Veja-se sobre este assunto o estu<strong>do</strong> de Maxime Chevalier sobre a leitura e os leitores<br />
seiscentistas: "De lo poço que sabemos podemos concluir que los mercaderes, comerciantes y<br />
artesanos no forman, en Espana por lo menos, buena clientela de la literatura de ficción.<br />
Tampoco compran muchos libros de entretenimiento los clérigos. Los que compran estos libros<br />
son letra<strong>do</strong>s y, sobreto<strong>do</strong>, caballeros e hi<strong>da</strong>lgos - aunque una porción de estos no demuestra<br />
marca<strong>da</strong> afición a las activi<strong>da</strong>des intelectuales. Es este hecho fun<strong>da</strong>mental que hemos de tener<br />
en cuenta si queremos entender la pre<strong>do</strong>minância de la ideologia aristocrática en la forma<br />
primitiva de literatura de consumo que representa la novela cortesana dei siglo XVII." Maxime<br />
CHEVALIER, tectum y lectores en la Espana de los siglos XVI y XVII, Madrid, Ed. Turner,<br />
1976, pp.28-9.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 47<br />
Tal como exemplificámos anteriormente, as <strong>do</strong>nzelas são na sua maioria<br />
fi<strong>da</strong>lgas, <strong>do</strong>ta<strong>da</strong>s de uma beleza sem par, discretas, briosas, recata<strong>da</strong>s,<br />
honestas: em suma, personificam em pleno o ideal de mulher que se pretende<br />
transmitir às nobres leitoras. Na ver<strong>da</strong>de, a associação entre a formosura e a<br />
ingratidão destas <strong>do</strong>nzelas é uma condição fun<strong>da</strong>mental para a conservação<br />
<strong>da</strong> sua honra:<br />
"Quem nasce só para ser ama<strong>da</strong> não ame, que em tanto conservará os aplausos de<br />
queri<strong>da</strong> enquanto não humilhar a bizarria de retira<strong>da</strong>. Presume um coração rendi<strong>do</strong><br />
que é invencível o valor de quem a vence e venera com respeitos de querer-lhe mais a<br />
quem sempre presume de pagar-lhe menos. É razão de esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> fermosura o ser<br />
ingrata, que se a ingratidão em outros é vício, na beleza é conservação." 17<br />
Insistin<strong>do</strong> no seu propósito moraliza<strong>do</strong>r, num estilo sentencioso, o<br />
narra<strong>do</strong>r censura abertamente as mulheres que confiam apenas na sua beleza,<br />
aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> o recolhimento e a isenção. É o <strong>caso</strong> de Eugenia, formosa e<br />
inexperiente <strong>do</strong>nzela persegui<strong>da</strong> por inúmeras desventuras depois de abrir as<br />
portas <strong>da</strong> prisão guar<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo seu pai e fugir com o prisioneiro Alexandre:<br />
"Nunca mostrara que tinha peito de humana quem tinha a beleza superior; vivera<br />
sempre nos retiros de ingrata e não experimentara os infortúnios de compassiva;<br />
deixara só amar-se e não amara, deixara só querer-se e não quisera, não decera <strong>da</strong><br />
eminência de admira<strong>da</strong> ao baixo de querer ser pie<strong>do</strong>sa, que quan<strong>do</strong> os elementos<br />
mu<strong>da</strong>m de sítio sempre é para ruína. Dece o fogo no raio e sobe a água na inun<strong>da</strong>ção<br />
<strong>do</strong> dilúvio e tu<strong>do</strong> é confusão, porque tu<strong>do</strong> an<strong>da</strong> fora de sua natural harmonia, o fogo<br />
decen<strong>do</strong> e a água subin<strong>do</strong>." 78<br />
Com efeito, mesmo quan<strong>do</strong> disfarça<strong>da</strong> de lavra<strong>do</strong>ra ou de pastora, a<br />
condição nobre <strong>da</strong>s figuras femininas acaba por se evidenciar: é o <strong>caso</strong> <strong>da</strong><br />
referi<strong>da</strong> Eugenia, ''pobremente vesti<strong>da</strong>, porém de presença e aspecto tão grave<br />
que juntamente com sua grande fermosura, ain<strong>da</strong> em esta<strong>do</strong> tão humilde e em<br />
lugar tão indecente a seu decoro, manifestava um espírito nobre e <strong>da</strong>va<br />
indícios de um ânimo generoso." 79 ou de Amatilde, em quem "Não acrecentou o<br />
traje cortesão sua beleza, mas realçou tanto seu garbo que parece que no<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.244.<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.245.<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.196.
48 A novela portuguesa no século XVII:<br />
monte representava papel de lavra<strong>do</strong>ra mas que havia naci<strong>do</strong> cortesã, que era<br />
disfarce o camponês e natural o poli<strong>do</strong>, que se ensaiara de pastora mas que<br />
jubilara de senhora, que vivera sempre no paço e que se divertira no campo." 80<br />
Contrariamente às pormenoriza<strong>da</strong>s descrições <strong>da</strong>s formosas <strong>do</strong>nzelas, o<br />
retrato <strong>do</strong>s jovens fi<strong>da</strong>lgos é habitualmente genérico e sóbrio, resultante <strong>do</strong><br />
facto de to<strong>da</strong>s as narrativas serem relata<strong>da</strong>s por elementos masculinos, mais<br />
atentos à beleza feminina que conduz às intrigas amorosas que ocupam lugar<br />
de destaque nas diversas diegeses. Na ver<strong>da</strong>de, Dionísio é apenas descrito<br />
pelo narra<strong>do</strong>r como "um mancebo em traje de peregrino, de agradável<br />
presença e disposição aprazível' 8 '* e o Ermitão Felisberto como um "ancião de<br />
venerável presença" 82 . Comprovan<strong>do</strong> o convencionalismo <strong>da</strong> composição <strong>do</strong><br />
retrato masculino, Silvério, tal como Feliciano afeiçoa<strong>do</strong> por Florisela, reúne as<br />
quali<strong>da</strong>des essenciais a um nobre mancebo: "bastantemente rico, ilustre no<br />
sangue e <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de muitas partes que o faziam amável: cortês, liberal,<br />
ajuiza<strong>do</strong>, alenta<strong>do</strong>, comedi<strong>do</strong>, pacífico no trato, discreto na conversação". 83<br />
De um mo<strong>do</strong> significativo para alcançar a exemplari<strong>da</strong>de que se advoga<br />
para esta obra, uma <strong>da</strong>s personagens masculinas mais pormenoriza<strong>da</strong>mente<br />
descritas é Frederico, capitão de ban<strong>do</strong>leiros, opon<strong>do</strong>-se as suas vestimentas,<br />
comuns aos seus companheiros, aos traços físicos e à cortesia no trato que o<br />
diferenciam <strong>do</strong>s restantes foragi<strong>do</strong>s:<br />
"Era Frederico, ao que parecia, homem de até quarenta anos de i<strong>da</strong>de, rosto grave,<br />
mas não desabri<strong>do</strong> nem severo à vista, antes no proporciona<strong>do</strong> <strong>da</strong>s feições e<br />
agradável <strong>da</strong> presença <strong>da</strong>va indícios de ânimo não cruel nem desumano, antes<br />
generoso e cortês; vestia como os outros, calçava botas de cavalgar, aperta<strong>da</strong>s com<br />
<strong>do</strong>ura<strong>da</strong>s esporas e trazia atravessa<strong>da</strong> uma ban<strong>da</strong> azul com ren<strong>da</strong>s de ouro, espa<strong>da</strong><br />
com adereços <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s, pistolas na cinta e uma carapuça de campanha na cabeça.<br />
Apenas nos advertiram que era ele, quan<strong>do</strong> nos inclinámos com uma profun<strong>da</strong><br />
cortesia, que sabe o temor ser mui cortês; ele nos respondeu à submissão,<br />
descobrin<strong>do</strong> a cabeça." 84<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte III, p.409.<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.115.<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.116.<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte V, p.751.<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.267.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 49<br />
Por entre as considerações elogiosas que são feitas aos elementos<br />
principais <strong>da</strong>s famílias nobres, de ilustre origem italiana, nomea<strong>da</strong>s através de<br />
nomes que se ligam a factos históricos reconhecíveis, proporcionan<strong>do</strong> assim<br />
uma certa verosimilhança à narrativa verosimilhança, destaca-se uma enorme<br />
preocupação com a honra pessoal e familiar e o gosto pelo sumptuoso, pela<br />
abundância, pelas largas descrições <strong>da</strong>s riquezas, <strong>da</strong>s jóias. No entanto, estes<br />
nobres amplamente elogia<strong>do</strong>s são também alvo de críticas, tanto <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r<br />
<strong>da</strong> diegese de primeiro nível como nas observações <strong>do</strong> Ermitão e <strong>do</strong> Peregrino,<br />
quan<strong>do</strong> desrespeitam os papéis que lhes são tradicionalmente atribuí<strong>do</strong>s.<br />
Num patamar de menor relevo narrativo, encontra-se um reduzi<strong>do</strong> painel<br />
de personagens secundárias, existentes apenas na dependência <strong>da</strong>s<br />
principais: ministros <strong>da</strong> justiça, cirurgiões, lavra<strong>do</strong>res e, com maior relevo, os<br />
numerosos cria<strong>do</strong>s, quase sempre sem identificação própria e por vezes<br />
desprovi<strong>do</strong>s de valores morais, movi<strong>do</strong>s pela ambição material.<br />
Num universo diegético violento, onde se multiplicam as mortes, os<br />
duelos, os roubos, os raptos, as tentativas de violação, entre os marginaliza<strong>do</strong>s<br />
desta socie<strong>da</strong>de destacam-se de um mo<strong>do</strong> importante os ban<strong>do</strong>leiros, figuras<br />
lendárias que aterrorizaram os habitantes de to<strong>da</strong> a Itália, não respeitan<strong>do</strong> a<br />
autori<strong>da</strong>de <strong>do</strong> governo nem sequer a própria Igreja. Se alguns destes foragi<strong>do</strong>s<br />
são apresenta<strong>do</strong>s como imorais e sem salvação possível, restan<strong>do</strong> apenas a<br />
sua perseguição e morte, outros revestem-se de grande utili<strong>da</strong>de para a<br />
dimensão moralizante desta obra: fornecem, através <strong>da</strong> sua história, preciosos<br />
exemplos <strong>do</strong> aban<strong>do</strong>no de actuações odiosas e <strong>da</strong> sua maravilhosa conversão.<br />
São, neste <strong>caso</strong>, sempre apresenta<strong>do</strong>s como vítimas de uma involuntária<br />
sucessão de acontecimentos que os conduziu a tal esta<strong>do</strong> e, benefician<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
lição de proveitosos conselhos, reformam a sua vi<strong>da</strong> e aban<strong>do</strong>nam a sua<br />
activi<strong>da</strong>de criminosa, revestin<strong>do</strong>-se a sua história <strong>da</strong> exemplari<strong>da</strong>de que subjaz<br />
à intenção didáctica esta novela.<br />
Numa obra que pretende orientar os comportamentos humanos no plano<br />
religioso, moral e social, são também frequentes as acusações feitas aos<br />
mouros, qualifica<strong>do</strong>s como ladrões, ambiciosos, assassinos, particularmente<br />
visíveis na narrativa de Hortênsio que caiu em poder de Zulema, pai de<br />
Zelin<strong>da</strong>, com quem veio a casar depois <strong>da</strong> sua conversão ao catolicismo.
50 A novela portuguesa no século XVII:<br />
A<strong>do</strong>ptan<strong>do</strong> a forma discursiva de prosa em ficção, estas narrativas não se<br />
podem 1er como um <strong>do</strong>cumento preciso, um fiel decalcar <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Podem,<br />
ain<strong>da</strong> assim, reflectir ficcionalmente as tensões sociais e morais <strong>do</strong>minantes<br />
neste perío<strong>do</strong>. São relevantes os exemplos de lutas entre classes e mesmo<br />
discussões familiares relaciona<strong>da</strong>s com questões que se prendem com o<br />
dinheiro ou com o poder, com repeti<strong>da</strong>s referências à disputa pelo governo de<br />
ban<strong>do</strong>s forma<strong>do</strong>s por facções contrárias que envolvem os elementos principais<br />
<strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des italianas. Ain<strong>da</strong> que ficciona<strong>do</strong>s, os problemas levanta<strong>do</strong>s pela<br />
disputa de heranças são por vezes apresenta<strong>do</strong>s sob a forma de intrigas<br />
amorosas, centra<strong>da</strong>s na ambição <strong>do</strong> <strong>do</strong>te <strong>da</strong> <strong>da</strong>ma, apresentan<strong>do</strong> a rivali<strong>da</strong>de<br />
entre irmãos pela mesma mulher como forma de aludir à oposição ente<br />
primogénitos e segun<strong>do</strong>s.<br />
Constituí<strong>da</strong> maioritariamente por personagens nobres e por um universo<br />
narrativo <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelos valores <strong>da</strong> honra, <strong>da</strong> cortesia e <strong>da</strong> faustosa<br />
aparência, a acção <strong>da</strong> maior parte <strong>da</strong>s narrativas que compõem o Alívio de<br />
tristes decorre pre<strong>do</strong>minantemente numa ambientação urbana. Situan<strong>do</strong>-se as<br />
intrigas mais relevantes na ci<strong>da</strong>de, em menor número numa quinta familiar<br />
próxima, ou, mais esporadicamente, no interior <strong>da</strong> própria corte, ain<strong>da</strong> que por<br />
vezes se aponte para um particular conhecimento destes espaços, as longas<br />
descrições, inicia<strong>da</strong>s normalmente com uma longa explanação <strong>da</strong> sua origem<br />
toponímica e com um compêndio <strong>da</strong> sua fun<strong>da</strong>ção, mais parecem, <strong>da</strong><strong>do</strong> a sua<br />
acumulação de tópicos, ser o resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong>s múltiplas leituras <strong>do</strong> autor.<br />
Dentro <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des, as casas são o lugar privilegia<strong>do</strong>, com especial<br />
destaque para a janela e para o jardim, locais propícios ao encontro entre os<br />
<strong>do</strong>is amantes 85 . Apesar de grande parte <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> narrativo se localizar dentro<br />
O encontro <strong>do</strong>s amantes junto a uma janela é um <strong>do</strong>s tópicos recorrentes nas histórias que<br />
compõe esta novela de Mateus Ribeiro: "Já o relógio <strong>da</strong>s estrelas <strong>da</strong> meia-noite passava<br />
quan<strong>do</strong> senti que a janela se abria. Cheguei o mais vizinho à fonte que então de espelho<br />
servia, se para tal beleza podia achar-se espelho, e <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe as graças <strong>do</strong> favor que me fazia,<br />
me lembra que prossegui, dizen<strong>do</strong>'. De igual mo<strong>do</strong> recorrente, quan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>nzela não se<br />
mostra agradeci<strong>da</strong> ao insatisfeito amante, este fica subitamente priva<strong>do</strong> <strong>da</strong> luz: "Com esta<br />
resolução se ausentou <strong>da</strong> janela, que a cria<strong>da</strong> fechou, e eu fiquei como às escuras, a quem
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 51<br />
<strong>da</strong>s habitações, a sua descrição, em geral parcimoniosa e muito genérica,<br />
dificilmente se distinguin<strong>do</strong> de uma família para outra, assenta num conjunto de<br />
lugares-comuns que insistem sistematicamente no luxo e na abundância que<br />
caracterizam a nobreza. 86<br />
Fornecen<strong>do</strong> uma certa verosimilhança a estas narrativas, há a referência<br />
a algumas ci<strong>da</strong>des que são anima<strong>da</strong>s por grandes festejos, ocasião para o<br />
narra<strong>do</strong>r salientar uma vez mais a importância <strong>da</strong>s personagens envolvi<strong>da</strong>s<br />
através <strong>da</strong> sua luxuosa ostentação: "Celebravam-se em Nápoles umas festas<br />
grandes, cousa mui ordinária naquela corte, e an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> eu na praça a pé ven<strong>do</strong><br />
as armações custosas de que estava a<strong>do</strong>rna<strong>da</strong> e festejos que nela havia, vin<strong>do</strong><br />
passan<strong>do</strong> uma <strong>da</strong>nça de mascara<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>s de uma cor vesti<strong>do</strong>s" 87 . Com<br />
efeito, para conquistar a <strong>da</strong>ma ama<strong>da</strong>, os nobres mancebos usam<br />
generosamente os seus recursos 88 e, como seria de esperar, a celebração <strong>da</strong>s<br />
bo<strong>da</strong>s apresenta-se como momento primordial para a manifestação <strong>da</strong>s<br />
riquezas <strong>do</strong>s intervenientes. A referência aos festejos matrimoniais pode, no<br />
entanto, ser feita de um mo<strong>do</strong> abrevia<strong>do</strong> (como é o <strong>caso</strong> <strong>da</strong>s bo<strong>da</strong>s de Juliano<br />
entre as trevas <strong>da</strong> noite de repente a luz se apaga." Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e<br />
consolação de queixosos, Parte VI, pp.1065-7.<br />
86 A casa <strong>do</strong> grão-duque de Florença é descrita simplesmente como "sumptuoso alcáçar,<br />
condigna habitação de tal príncipe' (Parte II, p.326), insistin<strong>do</strong>-se na liberali<strong>da</strong>de com que se<br />
serviam os hóspedes, agra<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-os tanto com divertimentos como com grande diversi<strong>da</strong>de de<br />
manjares: "Man<strong>do</strong>u ele representar comédias para alegrar a Lucin<strong>da</strong> e músicas de escolhi<strong>da</strong>s<br />
vozes que em casa <strong>do</strong> conde se <strong>da</strong>vam; os pratos que enviava <strong>da</strong> sua mesa eram sem<br />
número" (Parte II, p.332); "Eram as nossas casas sumptuosas, solar antigo de meus<br />
antepassa<strong>do</strong>s; nelas se preparou um quarto bem adereça<strong>do</strong> para Amatilde assistir com sua<br />
mãe Dionísia." (Parte III, p.404)<br />
87 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.280.<br />
88 É o <strong>caso</strong> de Alberto para conquistar a vontade de Amatilde: "Solenizou Alberto o dia com<br />
músicas, esplêndi<strong>do</strong> banquete em que bem mostrava sua grandeza, e quis na tarde que<br />
houvesse comédia, representa<strong>da</strong> com admirável perfeição, a que se acharam presentes as<br />
principais pessoas <strong>da</strong> vila, que to<strong>do</strong>s <strong>da</strong>vam a Amatilde os parabéns de sua venturosa sorte. À<br />
noite houve máscara de cavalo com tochas, ricas galas e muitas gentilezas de cavalo". Mateus<br />
RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte III, pp.422-3.
52 A novela portuguesa no século XVII:<br />
e Lucin<strong>da</strong> 89 ), ou merecer maior atenção por parte <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r (como acontece<br />
nos desposórios de Feliciano e Florisela 90 ).<br />
Além <strong>do</strong> destaque conferi<strong>do</strong> ao ambiente urbano, há outros cenários<br />
frequenta<strong>do</strong>s pelas personagens que se revestem de igual interesse diegético.<br />
Os espaços naturais ora aparecem como lugares idealiza<strong>do</strong>s, de ín<strong>do</strong>le<br />
pastoril, com extensas descrições <strong>da</strong>s fontes isola<strong>da</strong>s, <strong>da</strong>s caça<strong>da</strong>s, <strong>da</strong>s<br />
sau<strong>do</strong>sas ribeiras, ora surge sob a forma de agrestes montanhas onde<br />
acontecem normalmente as acções violentas (raptos, assassínios, tentativas de<br />
violação...), servin<strong>do</strong> também de refúgio aos persegui<strong>do</strong>s pela justiça.<br />
Com importância narrativa encontramos ain<strong>da</strong> as quintas para onde se<br />
deslocam as famílias nobres para lograrem os prazeres provenientes <strong>do</strong><br />
contacto com a natureza, as <strong>do</strong>nzelas importuna<strong>da</strong>s pelos incómo<strong>do</strong>s desvelos<br />
amorosos <strong>do</strong> pretendente, ou ain<strong>da</strong> os amantes que buscam o seu isolamento<br />
desencanta<strong>do</strong>s com a ingratidão <strong>da</strong> sua ama<strong>da</strong>.<br />
No âmbito <strong>da</strong>s referências espaciais, níti<strong>da</strong> influência <strong>da</strong>s aprecia<strong>da</strong>s<br />
novelas bizantinas, o mar, elemento usualmente apresenta<strong>do</strong> como instável e<br />
perigoso, constitui-se como um espaço dinamiza<strong>do</strong>r <strong>da</strong> intriga, palco de<br />
tempestades e naufrágios que originam a separação <strong>do</strong>s amantes e as<br />
peripécias que se seguem até ao aguar<strong>da</strong><strong>do</strong> desenlace.<br />
"Celebraram-se, como digo, as bo<strong>da</strong>s com to<strong>da</strong> a grandeza, muitos parabéns e não menos<br />
invejas; que limita<strong>da</strong> seria a sorte, quan<strong>do</strong> não fosse inveja<strong>da</strong>." Mateus RIBEIRO, Alivio de<br />
tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.343.<br />
90 "Chegou enfim o dia de seus desposórios e prepararam-se para acompanhá-los os parentes<br />
de ambos, to<strong>do</strong>s a cavalo, vesti<strong>do</strong>s de gala que de quantas vezes antiguamente montavam nos<br />
cavalos para as guerras civis destes ban<strong>do</strong>s contrários, neste dia se viram to<strong>do</strong>s juntos, uni<strong>do</strong>s<br />
e conformes os Tibertos e os Manuelinos para a paz. Iam em coche a noiva e a madrinha com<br />
tanto a<strong>do</strong>rno e riqueza que se duvi<strong>da</strong>va qual delas era a que a receber-se com Feliciano ia,<br />
equivocan<strong>do</strong>-se os olhos na suspensão de vê-las e <strong>da</strong>n<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s mil festivos parabéns a tão<br />
acerta<strong>do</strong> casamento, pois com ele se viam uni<strong>do</strong>s corações que nestas famílias viveram tão<br />
antárcticos, vontades tão antípo<strong>da</strong>s e afectos tão distantes. Foi este dia de geral alegria para<br />
Cesena, que não é pouca ventura quan<strong>do</strong> o contentamento é geral. Depois de recebi<strong>do</strong>s foram<br />
para as nobres casas de Feliciano, aonde estava prepara<strong>do</strong> um esplêndi<strong>do</strong> banquete em que<br />
to<strong>do</strong>s os seus e nossos parentes assistiram; não faltou boa música que fizesse os manjares<br />
mais saborosos com o suave <strong>da</strong> harmonia, iguaria sobre to<strong>da</strong>s a mais deliciosa." Mateus<br />
RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, pp.893-4.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 53<br />
Decorren<strong>do</strong> a acção narrativa sobretu<strong>do</strong> em terras de Itália, com uma<br />
incursão por terras de Espanha, na narrativa <strong>do</strong> Peregrino Dionísio, e noutras<br />
histórias por terras muçulmanas, a eleição <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des nomea<strong>da</strong>s parece ser<br />
arbitrária em muitas <strong>da</strong>s narrativas, pois as suas descrições não variam muito,<br />
insistin<strong>do</strong> habitualmente na sua origem remota, na presença de um rio<br />
concreto, nas suas torres ou castelos e nos seus habitantes mais ilustres. A<br />
escolha de Itália para palco <strong>da</strong>s principais narrativas compreende-se por ser<br />
um país tradicionalmente frequenta<strong>do</strong> nestes textos de ficção em prosa, tal<br />
como as incursões pela Flandres para narrar as guerras nela verifica<strong>da</strong>s, ou<br />
ain<strong>da</strong> a procura de um certo exotismo na localização de sequências narrativas<br />
em Constantinopla ou a referência à Trácia ou à Hungria, tão ao gosto <strong>do</strong><br />
imaginário <strong>do</strong>s leitores.<br />
Deixamos proposita<strong>da</strong>mente para o fim a referência aos espaços<br />
sagra<strong>do</strong>s que, retira<strong>do</strong>s <strong>do</strong> espaço citadino, assumem uma importância<br />
fun<strong>da</strong>mental na concretização de um ideal de vi<strong>da</strong> que se pretende incutir nos<br />
leitores, alicerça<strong>do</strong> no desengano e na união com Deus. Com efeito, o encontro<br />
entre o Ermitão e o Peregrino Dionísio dá-se num local próximo <strong>da</strong> ermi<strong>da</strong> em<br />
que Felisberto se retirara <strong>da</strong>s lisonjas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>:<br />
"ermi<strong>da</strong> dedica<strong>da</strong> à Virgem Santíssima, mora<strong>da</strong> e lugar próprio para sujeitos<br />
desengana<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s vai<strong>da</strong>des <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, onde o penitente Ermitão hospe<strong>do</strong>u ao<br />
desengana<strong>do</strong> Peregrino, além <strong>do</strong> pobre agasalho e sustento limita<strong>do</strong> que lhe deu com<br />
uma grande vontade, mostran<strong>do</strong> quanto esta, sen<strong>do</strong> boa e perfeita, excede a to<strong>da</strong>s as<br />
iguarias e dádivas. E aí ficou de assento, abraçan<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> eremítica e solitária,<br />
servin<strong>do</strong>-lhe esta com aspereza de desengano à passa<strong>da</strong> licenciosa com o<br />
distraimento, sem que o desvelassem ambições, nem o ofendessem cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s." 9 ^<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I., "Abreviação", p.106.<br />
Mais tarde insiste-se na acerta<strong>da</strong> escolha <strong>da</strong>queles que decidem viver isola<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />
entregan<strong>do</strong>-se à contemplação divina: "Era dedica<strong>da</strong> à Virgem Santíssima Mãe de Deus, cuja<br />
devota imagem no altar estava e a ermi<strong>da</strong> a<strong>do</strong>rna<strong>da</strong> de muitas flores que a abundância <strong>do</strong>s<br />
pra<strong>do</strong>s vezinhos e a devoção curiosa <strong>do</strong> Ermitão lhe ofereciam. Era o sítio solitário e próprio<br />
para uma vi<strong>da</strong> contemplativa; que a solidão é de quem se fiam os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong> alma e a<br />
conversação que mais contenta a quem bem a conhece. Era o lugar próprio para sujeitos<br />
desengana<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s afeições e <strong>do</strong> pouco fun<strong>da</strong>mento que nas esperanças <strong>da</strong> terra deve fazer-<br />
se, pouco preço e cabe<strong>da</strong>l em que as promessas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e suas lisonjas devem estimar-se."<br />
Partell, p.217.
54 A novela portuguesa no século XVII:<br />
Entre os espaços nomea<strong>do</strong>s nesta novela, pelo visualismo resultante <strong>da</strong><br />
abundância de pormenores, destaca-se a descrição <strong>do</strong> milagroso santuário e<br />
devota cova e templo dedica<strong>do</strong> ao glorioso arcanjo São Miguel:<br />
"É este devoto santuário uma grande cova ou lapa aberta em uma viva rocha deste<br />
monte por obra <strong>do</strong>s anjos, como piamente se crê. Entra-se nela por uma porta grande de<br />
mármore bem lavra<strong>do</strong>, que fica à parte <strong>do</strong> meio-dia, a qual lhe man<strong>da</strong>ra fazer os senhores <strong>do</strong><br />
reino de Nápoles e Apulha. Desta entra<strong>da</strong> se vai descen<strong>do</strong> por cinquenta e cinco degraus<br />
continua<strong>do</strong>s para a parte <strong>do</strong> norte, que se lhe não comunicassem luz as frestas que na viva<br />
pedra como arte se fizeram, não poderiam sem luz artificial como<strong>da</strong>mente decer os peregrinos<br />
por eles. No fim desta esca<strong>da</strong> se vê um cemitério grande em campo plano, no qual há muitas<br />
capelas e sepulturas de várias pessoas. Passa<strong>do</strong> este campo e cemitério, por uma porta de<br />
metal obra<strong>da</strong> de curioso artifício se entra na santa cova, na qual se não concede entra<strong>da</strong><br />
alguma antes de nacer o sol. Esta porta, pela qual se entra neste santo lugar, está direita ao<br />
poente; e à mão direita dela se vê aquele santuário e templo dedica<strong>do</strong> ao S. Arcanjo, to<strong>do</strong> feito<br />
de viva pedra milagrosamente. É esta lapa ou cova baixa, sombria e pouco clara: em meio dela<br />
está um coro pequeno a que se sobe por quatro degraus, sobre os quais está o altar dedica<strong>do</strong><br />
ao S. Arcanjo, tão eficaz com sua presença a ser respeita<strong>do</strong> e venera<strong>do</strong> que não há ânimo, por<br />
mais distraí<strong>do</strong> e indevoto que seja, que não mostre temor e reverência grande, movi<strong>do</strong><br />
interiormente de força superior quan<strong>do</strong> a tão santo altar se avezinha. Está este altar que o S.<br />
Arcanjo consagrou a sua memória coberto de ouro, feito por arte, aonde de ordinário as missas<br />
se celebram. Não muito distante se mostra uma fonte de licor precioso e sempre manancial, <strong>da</strong><br />
qual to<strong>do</strong>s se aproveitam em suas necessi<strong>da</strong>des, aflições e enfermi<strong>da</strong>des por remédio certo e<br />
proveitoso para conseguir saúde nelas. À mão esquer<strong>da</strong> ficam outras capelas e altares em que<br />
também se celebram missas, entre os quais há <strong>do</strong>us que também é tradição de serem feitos<br />
milagrosamente. É o pavimento deste milagroso templo de mármores brancos e vermelhos: há<br />
nele uma fermosa cruz de transparente cristal, <strong>da</strong> qual é tradição ser juntamente acha<strong>da</strong> nesse<br />
milagroso santuário em sua invenção e aparecimento.<br />
Numa obra defensora de uma moral cristã, compreende-se a insistente<br />
referência a espaços sagra<strong>do</strong>s. O templo de S. Leonar<strong>do</strong>, além <strong>da</strong> devoção<br />
que move os peregrinos a visitá-lo, proporciona o encontro com personagens<br />
detentoras de histórias capazes de maravilhar o ouvinte/ leitor, veiculan<strong>do</strong>-se<br />
por entre a novi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> intriga a moralização <strong>do</strong>s comportamentos:<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.212.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 55<br />
"É templo de grande romagem e veneração, em que se vem pendura<strong>do</strong>s muitos<br />
grilhões e cadeias, algemas e colares de ferro de quem muitos cativos e presos<br />
milagrosamente se viram livres por intercessão <strong>do</strong> glorioso S. Leonar<strong>do</strong>' 9Z<br />
Por fim, registe-se ain<strong>da</strong> a entusiástica descrição <strong>da</strong> Santa Casa de<br />
Nossa Senhora <strong>do</strong> Loreto:<br />
"Ali se suspenderam to<strong>do</strong>s os discursos à vista <strong>da</strong>s maravilhas, ven<strong>do</strong> no cruzeiro <strong>do</strong><br />
grande templo, que se edificou engasta<strong>do</strong> este preciosíssimo diamante, a casa própria<br />
em que tantos tempos a Virgem Santíssima Mãe de Deus morou com o menino Jesus<br />
e o Santo José em Nazaré de Galileia. Ali viram insígnias de milagres sem número que<br />
a Senhora com sua intercessão tem obra<strong>do</strong> em seus devotos, de que an<strong>da</strong>m<br />
impressos dilata<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>utos livros, aonde remeto aos curiosos. A frequência <strong>do</strong>s<br />
romeiros que ca<strong>da</strong> hora entravam, por excessiva, não é capaz de escrever-se. Porque<br />
tu<strong>do</strong> neste inefável santuário é objecto mais <strong>da</strong>s admirações que <strong>da</strong> pena." 94<br />
Assinala<strong>da</strong> pela sua complexi<strong>da</strong>de por alguns <strong>do</strong>s estudiosos que sobre<br />
esta obra se debruçaram, para tal concorre em muito o tratamento <strong>do</strong> tempo<br />
narrativo. Por ente uma progressão diegética que por vezes se revela<br />
intrinca<strong>da</strong> pela inserção de múltiplas narrativas e pelos comentários <strong>do</strong><br />
narra<strong>do</strong>r e reflexões <strong>da</strong>s personagens, são comuns as anacronias. Para aclarar<br />
a situação de sofrimento que <strong>do</strong>mina uma personagem, o narra<strong>do</strong>r<br />
autodiegético recorre a frequentes analepses (coincidentes com algumas <strong>da</strong>s<br />
narrativas encaixa<strong>da</strong>s) ou, em alternativa, vale-se de sumários que<br />
compendiam largos perío<strong>do</strong>s de tempo (por exemplo, para resumir a activi<strong>da</strong>de<br />
militar de uma personagem, referin<strong>do</strong>-se a sua coragem e valor militar e as<br />
remunerações adquiri<strong>da</strong>s). Convém ain<strong>da</strong> notar que estas elipses, quan<strong>do</strong> a<br />
compreensão <strong>da</strong> narrativa o exige, são muitas vezes completa<strong>da</strong>s pelo recurso<br />
a cartas que referem os acontecimentos ignora<strong>do</strong>s pelas personagens<br />
ausentes.<br />
Se no <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> tratamento <strong>do</strong> espaço já acentuámos que a descrição<br />
<strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des e <strong>da</strong>s paisagens rústicas se baseia na apresentação de lugares-<br />
comuns colhi<strong>do</strong>s em diversos autores, no que concerne à notação temporal<br />
<strong>da</strong>s diversas narrativas observa-se também um sistemático uso de<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte III, pp.518-9.<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte III, pp.555-6.
56 A novela portuguesa no século XVII:<br />
convencionalismos retóricos. Com efeito, to<strong>da</strong>s as histórias narra<strong>da</strong>s se<br />
sucedem na Primavera ou no Verão, constituin<strong>do</strong>-se como um locus amoenus<br />
capaz de proporcionar alguma diversão de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s às sofre<strong>do</strong>ras<br />
personagens que povoam esta novela:<br />
"Era o tempo <strong>da</strong> Primavera entre Abril e Maio, coroa flori<strong>da</strong> <strong>do</strong> ano, quan<strong>do</strong> este<br />
se mostra mais alegre para desterrar as tristezas <strong>do</strong> Inverno, que até os campos<br />
sentiram, sen<strong>do</strong> incapazes <strong>do</strong> sentimento. Vestia o sol com seus benignos raios os<br />
campos <strong>da</strong> verde e vistosa libré de sua relva, de quem aprendiam as esmeral<strong>da</strong>s as<br />
agradáveis lições de seus luzi<strong>do</strong>s ver<strong>do</strong>res e os pra<strong>do</strong>s trajan<strong>do</strong>-se de gala natural de<br />
suas flores eram lisonja apeteci<strong>da</strong> <strong>do</strong>s olhos e recreio aplaudi<strong>do</strong> <strong>da</strong> vista. Ouvia-se a<br />
suave melodia <strong>da</strong>s músicas aves que, entre o delicioso <strong>do</strong> bosques, cantan<strong>do</strong> sem<br />
solfa se mostravam tão destras nos assentos de sua harmonia, que lhe tinha passa<strong>do</strong><br />
a natureza carta de exame para cantarem não menos seguras que confia<strong>da</strong>s,<br />
alegran<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s os passageiros que as ouviam para que <strong>da</strong> moléstia <strong>do</strong> caminho<br />
descansassem." 95<br />
Em relação ao tempo <strong>da</strong> história, são recorrentes as referências a <strong>da</strong>tas<br />
concretas que permitem identificar a época de ca<strong>da</strong> narrativa. Escolhen<strong>do</strong><br />
perío<strong>do</strong>s históricos familiares ao leitor, ain<strong>da</strong> que eventualmente por intermédio<br />
de outros textos de ficção e não <strong>do</strong>s registos históricos, salientam-se as<br />
múltiplas referências a episódios históricos concretos, bélicos sobretu<strong>do</strong>, ou a<br />
nomeação <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r ou papa vigente 96 em muitas <strong>da</strong>s histórias encaixa<strong>da</strong>s.<br />
São assim indica<strong>da</strong>s algumas batalhas europeias, com destaque para as<br />
guerras na Flandres e na Saxónia e, mais remotas, as lutas trava<strong>da</strong>s pelos<br />
romanos, ou ain<strong>da</strong> lutas contra os turcos, na esteira <strong>da</strong>s novelas bizantinas,<br />
tanto como forma de apropriação ficcional de acontecimentos históricos como<br />
para delas se extrair algum valor didáctico, insistin<strong>do</strong>-se fortemente no valor<br />
<strong>da</strong>s armas como forma de ascensão social, na honra que se deve nortear os<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte III, p.381.<br />
96 São vários os impera<strong>do</strong>res e papas utiliza<strong>do</strong>s como referência temporal <strong>da</strong>s narrativas<br />
incluí<strong>da</strong>s nesta novela. Por exemplo, o início <strong>do</strong>s infortúnios de Dionísio, o Peregrino, ocorre no<br />
tempo <strong>do</strong> "sumo pontífice Pio V que então governava a igreja católica como juntamente el-rei o<br />
segun<strong>do</strong> Filipe de Castela" (Parte I, p.168); Frederico, odioso ban<strong>do</strong>leiro que por intercessão<br />
<strong>do</strong>s peregrinos se converte em religioso, fá-lo depois de se confessar e ouvir conselhos de um<br />
"<strong>do</strong>uto e exemplar religioso penitenciário de sua santi<strong>da</strong>de o Papa Paulo Terceiro, que neste<br />
tempo governava a católica igreja" (Parte II, p.297).
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 57<br />
nobres, no valor <strong>da</strong> experiência e <strong>do</strong> conhecimento que resulta <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de. A<br />
ficcionalização de personagens ou de acontecimentos históricos 97 , unin<strong>do</strong><br />
ficção e história, contribuem ain<strong>da</strong> para alcançar um efeito verosimilhança que<br />
o estilo artificial e a acumulação de exempla e citações parecem por vezes<br />
colocar em risco.<br />
Além destas alusões a factos históricos, o autor tem a preocupação de<br />
assinalar a passagem <strong>do</strong> tempo com anotações temporais amiu<strong>da</strong><strong>da</strong>s,<br />
pontuan<strong>do</strong> mesmo algumas narrativas com <strong>da</strong>tas concretas, sobretu<strong>do</strong> aquelas<br />
em que se verifica a participação <strong>do</strong>s protagonistas, ou de personagens a ele<br />
liga<strong>da</strong>s, em acontecimentos bélicos 98 ou em situações históricas reconhecíveis<br />
pelo leitor 99 . Como seria de esperar numa novela barroca, marca-se<br />
frequentemente o tempo diegético através de comparações, perífrases ou<br />
metáforas mitológicas e de tópicas descrições <strong>do</strong> nascer <strong>da</strong> aurora ou <strong>do</strong> pôr-<br />
<strong>do</strong>-sol 100 . Ain<strong>da</strong> assim, sen<strong>do</strong> o amor o elemento central <strong>do</strong> conjunto <strong>da</strong>s<br />
Veja-se narração <strong>da</strong> trágica história de Maria Estuar<strong>da</strong>, Rainha de Escócia e França,<br />
apresenta<strong>da</strong> como exemplo <strong>da</strong>s adversi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> fortuna e <strong>do</strong> amor humano. Mateus RIBEIRO,<br />
Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, pp.127-169.<br />
98 O Peregrino Dionísio, na sua narrativa retrospectiva, afirma ter si<strong>do</strong> a primeira de suas<br />
desgraças "o ficar órfão de pai nos tenros anos de minha infância, que em defensão <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />
de Metz, que estava em poder <strong>do</strong>s Franceses, perdeu honrosamente a vi<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> General <strong>da</strong><br />
praça o duque de Guisa, que no ano de mil e quinhentos cinquenta e três, com notável valor<br />
digno de perpétua memória a defendeu a to<strong>do</strong> o poder <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Carlos V com tanta<br />
mortan<strong>da</strong>de <strong>do</strong> exército <strong>do</strong> César, que foi uma <strong>da</strong>s grandes calami<strong>da</strong>des que recebeu em sua<br />
vi<strong>da</strong>." Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.126<br />
99 É o <strong>caso</strong> <strong>da</strong> morte <strong>do</strong> duque de Norfolc, apoiante <strong>da</strong> rainha Maria Eduar<strong>da</strong>: "Nesta mais<br />
propriamente prisão que retiro viveu a rainha alguns anos sem liber<strong>da</strong>de, até que no ano de mil<br />
e quinhentos e setenta e um, que é o tempo em que eu cheguei a Inglaterra ao serviço <strong>do</strong><br />
duque de Norfolc, sen<strong>do</strong> de vinte anos de i<strong>da</strong>de, se ocasionou a ruína deste senhor" (Parte I,<br />
p.166); "Eu que me vi desfavoreci<strong>do</strong> e sem pessoa alguma que me amparasse, me retirei <strong>da</strong><br />
corte ao campo alguns dias, té que o malogra<strong>do</strong> duque Tomás de Norfolc foi condena<strong>do</strong> à<br />
morte, sen<strong>do</strong>-lhe corta<strong>da</strong> a cabeça em Londres aos <strong>do</strong>us dias de Junho de mil e quinhentos e<br />
setenta e <strong>do</strong>us" (Parte I, p.172).<br />
100 "Já o sol queria ocultar a radiante me<strong>da</strong>lha de seus cabelos, ou os vivos raios de sua<br />
<strong>do</strong>ura<strong>da</strong> madeixa' (Parte I, p.198); "E porque ao vento, já quan<strong>do</strong> o sol em sepulcro de<br />
topázios páli<strong>do</strong> se encobria, largámos as velas" (Parte II, p.300); "saímos de Nápoles quan<strong>do</strong> o<br />
morga<strong>do</strong> <strong>da</strong>s luzes na espaçosa estra<strong>da</strong> de safiras vinha restituin<strong>do</strong> aos pra<strong>do</strong>s as cores e
58 A novela portuguesa no século XVII:<br />
narrativas que compõe o Alívio de tristes, a noite aparece como perío<strong>do</strong><br />
temporal decisivo no desenlace de muitas destas histórias, ou porque se<br />
reveste de inúmeros perigos, povoan<strong>do</strong>-se as narrativas de homens<br />
mascara<strong>do</strong>s e arma<strong>do</strong>s de espa<strong>da</strong>s e pistolas, prontos para um duelo pela<br />
honra ou pela <strong>do</strong>nzela ama<strong>da</strong>, ou porque se adequa ao encontro amoroso<br />
entre os amantes. Motivo de varia<strong>do</strong>s equívocos, a noite é também propícia às<br />
atormenta<strong>da</strong>s reflexões <strong>da</strong>s personagens masculinas, sau<strong>do</strong>sos <strong>da</strong> <strong>do</strong>nzela<br />
ama<strong>da</strong> ou inquieta<strong>do</strong>s pelos ciúmes.<br />
Se em Alívio de tristes se multiplicam as anotações temporais, seja por<br />
referências a episódios históricos, seja pela nomeação <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r ou rei<br />
vigente aquan<strong>do</strong> de determina<strong>do</strong> acontecimento, seja pela informação exacta<br />
<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> dia em que ocorre alguma acção, seja pela sua indicação<br />
metafórica ou perifrástica com base na mitologia e na astrologia, estas<br />
repeti<strong>da</strong>s indicações temporais prendem-se igualmente com a obsessiva<br />
vivência <strong>do</strong> tempo pelo escritor barroco, a plena consciência <strong>da</strong> transitorie<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana, "el agu<strong>do</strong> sentimiento de la incontenible fuerza dei tiempo" 101 ,<br />
nas palavras de Orozco Díaz. To<strong>do</strong>s os recursos narrativos e retóricos,<br />
incluin<strong>do</strong> o tratamento <strong>da</strong> categoria temporal, se orientam para proporcionar o<br />
desengano <strong>do</strong>s prazeres terrenos: "To<strong>da</strong> la riqueza y minuciosi<strong>da</strong>d descriptiva;<br />
to<strong>do</strong>s los valores plásticos, recursos dei poeta dei barroco que se expresan en<br />
la nueva temática, cobran su plena emoción con este agudizarse el sentimiento<br />
de lo temporal. Y, precisamente en lo espahol, ese general sentimiento de lo<br />
desengano, con la derrota y caí<strong>da</strong> de su poder, se extrema, y caldea aún con<br />
más vívi<strong>da</strong> emoción la conciencia de la fugaci<strong>da</strong>d dei tiempo." 102<br />
Nesta novela <strong>do</strong> padre Mateus Ribeiro, as personagens que vivem<br />
plenamente tranquilas, isentas de quaisquer cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, são precisamente<br />
fermosura que lhe roubara a noite com os assombros <strong>do</strong> escuro pavelhão com que os cobrira."<br />
(Parte II, pp.343-4); "quan<strong>do</strong> a horas que o sol, Fénix de raios, com as confianças de renascer<br />
de novo, pouco sentia o morrer de velho, purpurizan<strong>do</strong> as nuvens <strong>do</strong> Ocidente para vestirem<br />
gala em lugar de luto" (Parte II, p.370); "Já a este tempo vinha preparan<strong>do</strong> a aurora a luzi<strong>da</strong><br />
estra<strong>da</strong> <strong>do</strong> horizonte para o triunfo <strong>do</strong> sol, que vence<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s escuras sombras <strong>da</strong> noite,<br />
arvoran<strong>do</strong> seus resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> troféu no brilhante carro, se avizinhava" (Parte III, p.480).<br />
101 Emilio OROZCO DIAZ, Manierismo y Barroco, Salamanca, Ediciones Anaya, 1970, p. 57.<br />
102 Emilio OROZCO DIAZ, Manierismo y Barroco, Salamanca, Ediciones Anaya, 1970, p. 59.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 59<br />
Felisberto e Dionísio, conscientes de que a vi<strong>da</strong> humana é somente um<br />
caminho para a eterna:<br />
"Consideran<strong>do</strong> discretamente na recor<strong>da</strong>ção de seus passa<strong>do</strong>s desgostos como tu<strong>do</strong> na<br />
vi<strong>da</strong> era aparente, breve na duração, frágil na posse, fugitivo no ser, sombra na ventura,<br />
relâmpago no altivo, obelisco que arruina, on<strong>da</strong> que impeli<strong>da</strong> <strong>do</strong> vento nas areias espumosa<br />
quebra. (...) Umas vezes discursavam na diferença que vai <strong>do</strong> temporal ao eterno, <strong>do</strong><br />
transitório ao permanente, <strong>do</strong> mortal ao imortal, <strong>do</strong> caduco ao perdurável', 103<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte V, p. 741.
60 A novela portuguesa no século XVII:<br />
V. Classificação<br />
A inclusão de Alívio de tristes e consolação de queixosos, como de uma<br />
parte significativa <strong>da</strong> ficção narrativa em prosa de seiscentos, num género<br />
literário preciso levanta algumas questões que devem ser pondera<strong>da</strong>s. Desde<br />
logo, devemos notar que este título não insere a obra em qualquer género <strong>do</strong><br />
mo<strong>do</strong> narrativo, ao contrário <strong>do</strong> que sucede com as outras duas novelas de<br />
Mateus Ribeiro, designa<strong>da</strong>s por Vi<strong>da</strong>. Remeten<strong>do</strong> o leitor para o objectivo<br />
moraliza<strong>do</strong>r destas obras {Retiro de Cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e Ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fortuna), a segun<strong>da</strong><br />
parte <strong>do</strong> título dá conta <strong>da</strong>s vivências amorosas que formam o tema destas<br />
novelas de entretenimento (Vi<strong>da</strong> de Carlos e Rosaura e Vi<strong>da</strong> de Alexandre e<br />
Jacinta). Com efeito, muitas <strong>da</strong>s obras contemporâneas <strong>da</strong> novela inaugural<br />
deste padre são designa<strong>da</strong>s, ain<strong>da</strong> que por vezes a sua denominação pareça<br />
algo arbitrária, por Livro, História, Vi<strong>da</strong> ou Trata<strong>do</strong>. 4<br />
Ain<strong>da</strong> assim, porque neste ponto existe um alarga<strong>do</strong> consenso entre os<br />
autores que de algum mo<strong>do</strong> se debruçaram sobre esta obra, Alívio de tristes e<br />
consolação de queixosos pode incluir-se no género narrativo designa<strong>do</strong> por<br />
novela, consideran<strong>do</strong> a sua extensão, situa<strong>da</strong> entre o conto e o romance, e o<br />
seu investimento no deleite, através <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> narração de<br />
acontecimentos surpreendentes, capazes de captar a atenção <strong>do</strong> leitor e<br />
veicular a sua dimensão moralizante. Uma novela composta por um enlaça<strong>do</strong><br />
de várias novelas encaixa<strong>da</strong>s na diegese principal: a história de um encontro<br />
Acerca <strong>da</strong>s oscilantes terminologias a<strong>do</strong>pta<strong>da</strong>s para denominar as narrativas de ficção<br />
barrocas, veja-se o estu<strong>do</strong> de Victor Infantes: "Tipologias de la enunciación literária en la prosa<br />
áurea. Seis títulos (y algunos más) en busca de un género: obra, libro, trata<strong>do</strong>, crónica, historia,<br />
cuento, etc.", I, Studia Áurea, Actas dei III Congreso de AISO (Toulouse, 1993), ed. de I.<br />
Arellano, M. C. Pinillos, F. Serralta e M. Vitse, Pamplona, GRISO-LEMSO, 1996, vol. Ill, 265-<br />
272; e "Tipologias de la enunciación literária en la prosa áurea. Seis títulos (y algunos más) en<br />
busca de un género: obra, libro, trata<strong>do</strong>, crónica, historia, cuento, etc.", II, Actas dei XII<br />
Congreso de la AIH, ed de Jules Whicker, Birmingham, Univ. of Birmingham, 1998, vol. II,<br />
Estúdios Áureos I, 310-318.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 61<br />
entre o Peregrino Dionísio e o Ermitão Felisberto e a conversação que<br />
estabelecem enquanto caminham em peregrinação a conheci<strong>do</strong>s locais<br />
sagra<strong>do</strong>s.<br />
Admitin<strong>do</strong> sem reservas a sua filiação no género novelesco, mais<br />
problemática se apresenta a sua inserção num subgenera, ten<strong>do</strong> em conta as<br />
varia<strong>da</strong>s influências detectáveis nesta obra. Desde logo, o emaranha<strong>do</strong> de<br />
aventuras vivi<strong>da</strong>s pelos protagonistas de algumas narrativas ou a referência a<br />
naufrágios de nobres mancebos e seu aprisionamento pelos turcos são níti<strong>do</strong>s<br />
ecos <strong>do</strong>s romances bizantinos; a própria estrutura organizacional <strong>do</strong> Alívio de<br />
tristes denota a influência <strong>da</strong>s novelas gregas, mesmo que difundi<strong>da</strong> por obras<br />
suas coetâneas, como As aventuras de Persiles e Sigismun<strong>da</strong>, de Cervantes,<br />
assente na deambulação <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is namora<strong>do</strong>s e na intercalação de narrativas<br />
<strong>da</strong>s personagens que com eles se vão encontran<strong>do</strong>. Evidenciam-se também as<br />
influências <strong>da</strong>s novelas sentimentais, visíveis ao nível de alguns <strong>do</strong>s temas<br />
abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s, nomea<strong>da</strong>mente o destaque conferi<strong>do</strong> ao amor. Igualmente níti<strong>da</strong>s<br />
são as marcas <strong>do</strong>s livros de cavalaria, com a apropriação <strong>do</strong> serviço de amor e<br />
de to<strong>do</strong> o léxico a ele associa<strong>do</strong> na delineação <strong>do</strong> processo amoroso que se<br />
assume como núcleo <strong>da</strong> grande maioria <strong>da</strong>s narrativas. Por fim, os cenários<br />
bucólicos, a melancolia que <strong>do</strong>mina as personagens vítimas de enganos e <strong>da</strong><br />
esquivança feminina e a procura <strong>do</strong> isolamento no campo, principalmente junto<br />
a um <strong>ribeiro</strong>, para proferir pungentes monólogos relativos à sua malogra<strong>da</strong><br />
pretensão amorosa, evocam prontamente os livros de pastores.<br />
Não ten<strong>do</strong> mereci<strong>do</strong> a obra novelística de Mateus Ribeiro até ao presente<br />
qualquer estu<strong>do</strong> mais aprofun<strong>da</strong><strong>do</strong>, como se pode constatar numa rápi<strong>da</strong><br />
leitura <strong>da</strong>s escassas anotações que se debruçam sobre este pároco, parece-<br />
nos pertinente considerar a sua inclusão num subgenera novelístico por parte<br />
de alguns críticos. Desde logo, convém referir que, por entre apreciações<br />
genéricas e nalguns <strong>caso</strong>s inexactas, a maior parte <strong>do</strong>s estudiosos inclui a<br />
novela inaugural de Mateus Ribeiro no grupo alegórico.<br />
Teófilo Braga 105 , com algum fun<strong>da</strong>mento, ain<strong>da</strong> que não forneça qualquer<br />
sustentação teórica, classifica o Alívio de tristes como "novela moral",<br />
Teófilo BRAGA, História <strong>da</strong> Literatura Portuguesa: Os Seiscentistas, ed. cit., p. 418.
62 A novela portuguesa no século XVII:<br />
apresenta<strong>da</strong> como um "sucedâneo <strong>da</strong> <strong>do</strong>utrinação teológica". Já José<br />
Agostinho 106 , referin<strong>do</strong>-se ao Retiro de Cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, insere sem qualquer<br />
justificação este autor no grupo <strong>do</strong>s "Alegoristas bucólicos".<br />
João Gaspar Simões, francamente adverso à prosa de ficção portuguesa<br />
de Seiscentos e Setecentos 107 , revelan<strong>do</strong> contu<strong>do</strong> alguma consideração pela<br />
primeira novela <strong>do</strong> pároco <strong>da</strong> Azoeira, ain<strong>da</strong> que erroneamente a situe no<br />
século XVIII, inclui o Alívio de tristes no <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> novela alegórica: "A um<br />
género alegórico muito mais racional e didáctico pertencem as obras <strong>do</strong> padre<br />
Teo<strong>do</strong>ro de Almei<strong>da</strong>, O Feliz Independente, e <strong>do</strong> padre Mateus Ribeiro, Alívio<br />
de Tristes. Com estas duas obras, já <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade <strong>do</strong> século XVIII, se<br />
extingue, aliás, o ramo <strong>da</strong> nossa novelística alegórica, em ver<strong>da</strong>de derradeira<br />
manifestação de uma tendência de fonte erudita." 108 Também Palma Ferreira,<br />
apoian<strong>do</strong>-se nas designações propostas por Fidelino de Figueire<strong>do</strong> 109 para a<br />
literatura de ficção narrativa, se refere ao padre Mateus Ribeiro como autor de<br />
novelas alegóricas. No entanto, se considerarmos a utilização <strong>da</strong> alegoria<br />
continua<strong>da</strong> como recurso central na organização diegética <strong>da</strong> novela alegórica,<br />
e não pelo uso pontual de episódios de ín<strong>do</strong>le simbólica, não nos parece que<br />
esta designação possa aceitar-se para o Alívio de tristes, e menos ain<strong>da</strong> para<br />
as restantes novelas deste autor.<br />
Para Pai ma-Ferre ira, as novelas de Mateus Ribeiro são obras que<br />
"imbricam umas nas outras através de nexos que lhes são comuns e,<br />
engenhosíssimas e imaginosas, são obras de acção, de entretenimento e de<br />
sentimentalismos consegui<strong>do</strong>s através <strong>do</strong> constante jogo de metáforas,<br />
José Agostinho, História <strong>da</strong> Literatura Portuguesa: Quarta Época - Época <strong>da</strong> Decadência<br />
(Escola Seiscentista ou Gongórica), ed. cit., p.237.<br />
107 "Quer seja sentimental, quer seja alegórica, quer seja exemplar (e to<strong>da</strong>s as novelas deste<br />
longo purgatório são 'exemplares'), a novela portuguesa de Seiscentos e Setecentos não vale<br />
o papel em que está impressa." João Gaspar SIMÕES, História <strong>do</strong> Romance Português,<br />
Lisboa, Estúdios Cor, 1967, p.195.<br />
108 Ibidem, p.209.<br />
109 Fidelino Figueire<strong>do</strong> agrupa os textos de ficção narrativa em novelas de cavalarias, novelas<br />
pastorais, novelas alegóricas, novelas sentimentais e novelas picarescas. Fidelino de<br />
FIGUEIREDO, Historia <strong>da</strong> Litteratura Clássica, 2. a Época: 1580-1756, Lisboa, Livraria Clássica<br />
Editora, 1921, cap. VII -"Novelística", p.263.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 63<br />
antíteses, citações e alusões eruditas e retóricas" 110 . Acentuan<strong>do</strong> a sua<br />
vertente recreativa, Palma Ferreira afirma também que, apesar de os temas<br />
principais serem de ín<strong>do</strong>le profana, as suas novelas são "obras eiva<strong>da</strong>s de<br />
comentários de pen<strong>do</strong>r moralizante que reflectem o intuito <strong>do</strong> exemplo cristão"<br />
111 . Sen<strong>do</strong> assim, não desprezan<strong>do</strong> inteiramente o propósito edificante que a<br />
sua obra mais conheci<strong>da</strong> manifesta, este crítico não releva no entanto o<br />
carácter exemplar que subjaz a esta obra, fornecen<strong>do</strong> um modelo de conduta<br />
moral e social para os seus leitores.<br />
Debruçan<strong>do</strong>-se sobre a novela breve portuguesa de Seiscentos, Anabela<br />
Mimoso propôs a classificação de Alívio de tristes como uma "'novela de<br />
peregrinação', <strong>da</strong><strong>do</strong> que as suas personagens, para esquecer ou para se<br />
reabilitarem <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, fogem <strong>do</strong> convívio com os seus pares, deambulam<br />
por montes e vales, isolam-se em agrestes fragas" 112 . Contu<strong>do</strong>, se a<br />
peregrinação <strong>do</strong> Ermitão Felisberto e <strong>do</strong> Peregrino Dionísio se apresenta como<br />
marco narrativo que une as novelas encaixa<strong>da</strong>s na narrativa de primeiro nível,<br />
não é menos ver<strong>da</strong>de que o aspecto mais foca<strong>do</strong> durante a longa jorna<strong>da</strong> que<br />
os protagonista empreendem acaba por ser o valor <strong>da</strong> discreta conversação<br />
que proporciona o alívio <strong>do</strong>s tristes e a consolação <strong>do</strong>s queixosos que com<br />
estes se cruzam. A peregrinação, ou as várias peregrinações que as<br />
personagens realizam, não se reveste de qualquer valor alegórico, nem se<br />
apresenta como meio de purificação espiritual ou de depuração pelos delitos<br />
cometi<strong>do</strong>s, grande parte deles de forma involuntária ou em legítima defesa. De<br />
resto, a sua justificação prende-se nalgumas ocasiões com a simples<br />
curiosi<strong>da</strong>de que os leva a visitar os lugares sagra<strong>do</strong>s ou com o cumprimento de<br />
promessas <strong>da</strong>queles que anteriormente se viram na situação de cativos ou de<br />
aflitos.<br />
Mais recentemente, Sara Augusto, conceden<strong>do</strong> maior atenção à<br />
novelística de Mateus Ribeiro, aponta nestas narrativas de entretenimento um<br />
110 João Palma FERREIRA, Novelistas e Contistas Portugueses <strong>do</strong>s Séculos XVII e XVIII,<br />
Lisboa, INCM, 1981,p.225.<br />
111 Ibidem, p.226.<br />
112 Anabela Brito Correia de Freitas MIMOSO, A Novela Breve Portuguesa <strong>do</strong> Século XVII,<br />
<strong>Porto</strong>, Facul<strong>da</strong>de de Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>, 2005, p.39 (Dissertação de<br />
Doutoramento policopia<strong>da</strong>).
64 A novela portuguesa no século XVII:<br />
"processo de alegorização temática, que provém <strong>da</strong> procura de um senti<strong>do</strong><br />
espiritual para as narrativas centra<strong>da</strong>s no sentimento amoroso." 113 Acrescenta<br />
ain<strong>da</strong> que, "Sem episódios alegóricos, o Alívio de tristes e consolação de<br />
queixosos alia de forma segura o entretenimento à vali<strong>da</strong>de moral e<br />
exemplar." 114<br />
Apresenta<strong>da</strong>s as diferentes classificações propostas por estes autores<br />
para a novela inaugural de Mateus Ribeiro, parece-nos que a designação mais<br />
apropria<strong>da</strong> para Alívio de tristes será a de "novela exemplar", proposta na<br />
História Crítica <strong>da</strong> Literatura Portuguesa, Vol. Ill - Maneirismo e Barroco, com<br />
base num "critério de natureza funcional: estas obras reivindicam uma função<br />
exemplar, pretendem funcionar como orienta<strong>do</strong>ras de comportamentos a seguir<br />
ou a evitar." 115<br />
A eficácia <strong>do</strong>s ensinamentos aventa<strong>do</strong>s por Mateus Ribeiro no Alívio de<br />
tristes e consolação de queixosos resulta em grande medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> conjugação <strong>do</strong><br />
binómio horaciano prodesse ac delectare. Ao investir na honesta recreação<br />
proveniente <strong>da</strong> varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s histórias narra<strong>da</strong>s e <strong>do</strong> engenhoso estilo em que<br />
são escritas, o autor pretende tornar a lição que desta novela se pode extrair<br />
ain<strong>da</strong> mais proveitosa: "a consolação para ser bem recebi<strong>da</strong>, há-de incluir<br />
suavi<strong>da</strong>de que divirta e não severi<strong>da</strong>de ou aspereza que magoe." 116 Note-se<br />
113 Sara Manuela Ribeiro Martins AUGUSTO, A Alegoria na Ficção Romanesca: Do Maneirismo<br />
ao Barroco, Viseu, Facul<strong>da</strong>de de Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Católica Portuguesa, 2004, p.418<br />
(Dissertação de Doutoramento policopia<strong>da</strong>).<br />
u * Ibidem, p.433.<br />
115 História Crítica <strong>da</strong> Literatura Portuguesa, dir. Carlos Reis, Lisboa, Ed. Verbo, 2001, Vol. Ill -<br />
Maneirismo e Barroco, p.345.<br />
116 Mateus RIBEIRO, "Prólogo ao leitor", Alivio de tristes e consolação de queixosos, Lisboa, na<br />
Oficina de João <strong>da</strong> Costa, 1672.<br />
Esta insistência no deleite como forma de atingir a utilitas está, de resto, expressa em vários<br />
prólogos <strong>do</strong> autor: "Plínio diz que os livros para serem agradáveis aos Leitores hão-de ser de<br />
assunto em que o áspero se una com o compassivo, o rigoroso com o benévolo e o infelice<br />
com o venturoso." ("Prólogo", Ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fortuna e Vi<strong>da</strong> de Alexandre e Jacinta, II Parte, Lisboa,<br />
na Oficina de Filipe de Sousa Vilela, 1724); "Infelice e desabri<strong>da</strong>, diz Cícero, é a lição <strong>do</strong>s livros<br />
quan<strong>do</strong> de recreio carece' ("Prólogo ao leitor", Retiro de Cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e Vi<strong>da</strong> de Carlos e Rosaura,<br />
III Parte, Lisboa, na Oficina de Manuel Lopes Ferreira, 1697); "em sua lição acharás o útil e o
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 65<br />
também que a junção entre o idóneo entretenimento que estas narrativas<br />
proporcionam e a finali<strong>da</strong>de edificante que caracteriza a obra <strong>do</strong> pároco <strong>da</strong><br />
Azoeira não é somente afirma<strong>da</strong> pelo próprio autor, ou pelo editor, mas<br />
igualmente aponta<strong>da</strong> num <strong>do</strong>s pareceres que fun<strong>da</strong>menta a licença de<br />
impressão <strong>do</strong> Retiro de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s: "É obra curiosa e em que to<strong>do</strong>s podem<br />
empregar as horas de recreação em um lícito divertimento"^ 7 .<br />
Contribuin<strong>do</strong> para que as suas novelas sejam recebi<strong>da</strong>s como um lícito<br />
divertimento, o autor declara o seu propósito moralizante logo no "Prólogo ao<br />
leitor", apontan<strong>do</strong> as normas de conduta que conduzem à salvação eterna:<br />
"Meu intento é aproveitar com este piqueno volume a to<strong>do</strong>s os que no mar<br />
deste mun<strong>do</strong> navegam derrota<strong>do</strong>s de sentimentos, molesta<strong>do</strong>s de tristezas,<br />
queixan<strong>do</strong>-se continuamente <strong>da</strong>s que se chamam erra<strong>da</strong>mente desgraças e<br />
infortúnios. O maior prémio para mi deste trabalho será que to<strong>do</strong>s com ele suas<br />
aflições aliviem e suas queixas consolem, advertin<strong>do</strong> juntamente aos<br />
descui<strong>da</strong><strong>do</strong>s para que não se fiem <strong>da</strong>s bonanças, encaminhan<strong>do</strong> aos<br />
queixosos para que não desanimem com as tormentas desta peregrinação,<br />
enquanto não chegamos à tranquili<strong>da</strong>de e consolação ver<strong>da</strong>deira <strong>da</strong>s alegrias<br />
<strong>da</strong> glória a que Deus nos leve por sua infinita bon<strong>da</strong>de." 118<br />
agradável; o útil para a cautela de viveres e o agradável para o molesto divertires." ("Prólogo ao<br />
leitor", Ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fortuna e Vi<strong>da</strong> de Alexandre e Jacinta, I Parte, Lisboa, na Oficina de Filipe de<br />
Sousa Vilela, 1724).<br />
117 Mateus RIBEIRO, "Licenças", Retiro de Cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e Vi<strong>da</strong> de Carlos e Rosaura, II Parte,<br />
Lisboa, na Oficina de Miguel Manescal, 1681.<br />
118 Mateus RIBEIRO, "Prólogo ao leitor", Alivio de tristes e consolação de queixosos, Lisboa, na<br />
Oficina de João <strong>da</strong> Costa, 1672.<br />
A sua intenção didáctica prende-se sobretu<strong>do</strong> com o seu desejo de avisar os leitores para os<br />
enganos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, confessan<strong>do</strong> que "se assim se terminassem as aparentes lisonjas <strong>da</strong><br />
humana vi<strong>da</strong>, eu estimara o desvelo desta obra por proveitoso." ("Prólogo ao leitor", Alivio de<br />
tristes e consolação de queixosos, Tomo II, Lisboa, na Oficina Ferreiriana, 1737). Para a<br />
concretização desta vertente moralizante que perpassa a obra deste pároco em muito contribui,<br />
como foi já anota<strong>do</strong>, a recreação ofereci<strong>da</strong> ao leitor: "não há divertimento mais idóneo para<br />
suspender a contínua moléstia com que desvelam <strong>do</strong> que a lição <strong>do</strong>s livros. Com esta faz<br />
tréguas o penoso, pára o molesto, diverte-se o aflito, retira-se o oneroso e não se move a<br />
perpétua ro<strong>da</strong> em que a memória combate aos discursos na batalha interior <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s."<br />
("Prólogo ao leitor", Retiro de Cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e Vi<strong>da</strong> de Carlos e Rosaura, I Parte, Lisboa, na Oficina<br />
de Miguel Deslandes, 1681).
66 A novela portuguesa no século XVII:<br />
Não obstante esta insistente afirmação <strong>da</strong> função didáctica de que a sua<br />
obra se reveste, "não faltam censores presumi<strong>do</strong>s de austeros que condenem<br />
a um Eclesiástico compor Novelas."" 9 A escritas novelas, ain<strong>da</strong> que estas<br />
possam aproveitar aos leitores que imitem as virtudes e desaprovem os erros<br />
cometi<strong>do</strong>s pelos protagonistas <strong>da</strong>s diversas narrativas, não livrou Mateus<br />
Ribeiro <strong>da</strong> censura <strong>da</strong>queles que reprovam a escrita de ficção a partir de temas<br />
profanos por um religioso. A este propósito, atente-se na apreciação feita por<br />
Barbosa Macha<strong>do</strong> a este pároco, consideran<strong>do</strong>-o "versa<strong>do</strong> em varia erudição,<br />
que pudera utilmente empregar, compon<strong>do</strong> mais para divertimento de ociosos,<br />
que instrução de saloios" 120 .<br />
Daí que o autor <strong>do</strong> prólogo <strong>da</strong> edição de 1734 tenha senti<strong>do</strong><br />
necessi<strong>da</strong>de de fazer uma "breve defensa para os que censuram as suas<br />
obras, mostran<strong>do</strong> que muitos Eclesiásticos se empregaram neste honesto<br />
divertimento". Para legitimar a escrita de novelas de entretenimento, enumera<br />
exemplos de eclesiásticos que se ocuparam de matérias profanas, indican<strong>do</strong><br />
Helio<strong>do</strong>ro, Bispo de Trica, autor de As Etiópicas ou Teagenes e Cariclea,<br />
"modelo que as Histórias fabulosas deste género depois imitaram"^ 21 , Nónio, ou<br />
Nonnus Panopolitanus, que escreveu o poema Dionisíaca, ou ain<strong>da</strong> autores<br />
mais recentes como D. Pedro Calderón, D. Antonio de Solís e D. Agustín<br />
Moreto, referencia<strong>do</strong>s pelas suas comédias, finalizan<strong>do</strong> com a referência uma<br />
a Fénelon, insigne autor <strong>da</strong>s Aventuras de Telémaco.<br />
Para assegurar a legitimi<strong>da</strong>de desta ficção romanesca, o autor <strong>do</strong><br />
prólogo fun<strong>da</strong>menta-se ain<strong>da</strong> na teorização proposta por Pierre-Daniel Huet no<br />
Lettre-traité sur l'origine des romans (1670): "O eruditíssimo Pedro Daniel Huet,<br />
Bispo de Abranches e segun<strong>do</strong> Mestre <strong>do</strong> Delfim escreveu em Latim e em<br />
Francês um <strong>do</strong>utíssimo Trata<strong>do</strong> <strong>da</strong> origem e bom uso <strong>da</strong>s Novelas, e quan<strong>do</strong><br />
estas são como devem ser exemplares pouco importa que um Eclesiástico<br />
debaixo de uma ficção engenhosa mostre o prémio e estimação <strong>da</strong> virtude, o<br />
Mateus RIBEIRO, "Prólogo", Alivio de tristes e consolação de queixosos, Tomo I, Lisboa, na<br />
Oficina Ferreiriana, 1734.<br />
120 Diogo Barbosa MACHADO, Bibliotheca Lusitana, ed. cit., p.450.<br />
121 Mateus RIBEIRO, "Prólogo", Alivio de tristes e consolação de queixosos, Tomo I, Lisboa, na<br />
Oficina Ferreiriana, 1734.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 67<br />
castigo e abominação <strong>do</strong> viciou 22 Com efeito, para Huet, o divertimento<br />
proporciona<strong>do</strong> pela leitura <strong>da</strong>s novelas de amor deve estar subordina<strong>do</strong> a um<br />
propósito didáctico, visan<strong>do</strong> sobretu<strong>do</strong> a instrução e a orientação <strong>do</strong>s<br />
comportamentos humanos 123 : "La fin principale des Romans, ou du moins celle<br />
qui <strong>do</strong>it l'être, et que se <strong>do</strong>ivent proposer ceux qui les composent, est<br />
l'instruction des lecteurs, à qui il faut toujours faire voir la vertu couronnée et le<br />
vice châtié. Mais comme l'esprit de l'homme est naturellement ennemi des<br />
enseignemens, et que son amour-propre le révolte contre les instructions, il le<br />
faut tromper par l'appas du plaisir, et a<strong>do</strong>ucir la sévérité des precepts, par<br />
l'agrément des exemples, et corriger ses défauts en les con<strong>da</strong>mnant <strong>da</strong>ns un<br />
autre. Ainsi le divertissement du lecteur, que le Romancier habile semble se<br />
proposer pour but, n'est qu'une fin subor<strong>do</strong>nnée à la principale, qui est<br />
l'instruction de l'esprit, et la correction des moeurs". 124<br />
Ain<strong>da</strong> que se trate de um lugar-comum recorrente nos paratextos de<br />
diversos autores seiscentistas, pois a anuncia<strong>da</strong> exemplari<strong>da</strong>de destas ficções<br />
narrativas nem sempre se expõe de uma forma inequívoca nalgumas novelas<br />
que reclamam esta característica, conforme notou Maria Lucília Gonçalves<br />
Pires 125 , neste prólogo apresenta-se ain<strong>da</strong> a eutrapelia, virtude modera<strong>do</strong>ra <strong>da</strong><br />
recreação <strong>do</strong> espírito, anuncia<strong>da</strong> por São Tomás de Aquino na Suma<br />
Teológica, como forma de mais eficazmente servir a <strong>do</strong>utrina, mas também<br />
Mateus RIBEIRO, "Prólogo", Alivio de tristes e consolação de queixosos, Tomo I, Lisboa, na<br />
Oficina Ferreiriana, 1734.<br />
123 O Alívio de tristes encaixa perfeitamente na definição que Huet irá posteriormente propor<br />
para as novelas: o tema central <strong>da</strong>s narrativas é o amor, visan<strong>do</strong>, através <strong>do</strong> deleite, facultar ao<br />
leitor o ensinamento - "Romans sont des fictions d'aventures amoureuses, écrites en prose<br />
avec art, pour le plaisir et l'instruction des lecteurs." Pierre-Daniel HUET, Lettre-traité de<br />
l'origine des romans, Genève, Slaktine Reprints, 1970, p.3.<br />
124 Pierre-Daniel HUET - Lettre-traité de l'origine des romans, Genève, Slaktine Reprints, 1970,<br />
pp.4-5.<br />
125 Segun<strong>do</strong> a autora, "as chama<strong>da</strong>s 'novelas exemplares', apresenta<strong>da</strong>s sempre como<br />
passatempo honesto e deleitoso, não estão geralmente, apesar <strong>da</strong> sua designação, vincula<strong>da</strong>s<br />
à função retórica <strong>do</strong> exemplum, e o carácter edificante que parece enunciar-se com tal<br />
designação está com frequência ausente." Maria Lucília Gonçalves PIRES, "Acerca duma<br />
novela barroca 'Os Irmãos Penitentes' de Frei Lucas de Santa Catarina". Xadrez de Palavras.<br />
Estu<strong>do</strong>s de Literatura Barroca, Lisboa, Ed. Cosmos, 1996, p.148.
68 A novela portuguesa no século XVII:<br />
para vali<strong>da</strong>r esta obra junto <strong>do</strong>s seus críticos, pois que "a virtude <strong>da</strong> Eutrapelia,<br />
que o Doutor Angélico louva e a Filosofia aprova, é precisa para que os tristes<br />
tenham algum alívio, os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s algum retiro e a desigual<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
fortuna alguma consolação de que tanto necessitam os beneméritos e<br />
fe//ces." 126<br />
Estamos pois perante uma obra de ficção narrativa que pretende conciliar<br />
o deleite proveniente <strong>da</strong> suavi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong>s suas múltiplas histórias com<br />
um reitera<strong>do</strong> pen<strong>do</strong>r edificante. No entanto, porque o carácter "exemplar"<br />
destas novelas acaba por se tornar num tópico que ecoa nos diversos<br />
paratextos deste género narrativo, seja para legitimarem a sua obra e assim se<br />
porem a coberto de censuras, seja para estabelecer horizontes de expectativa<br />
que cativem os seus leitores, consequência <strong>do</strong> êxito <strong>da</strong>s Novelas ejemplares<br />
de Cervantes (1613) 127 , importa ressalvar, antes de mais, que esta função<br />
exemplar, "que seria o denomina<strong>do</strong>r comum <strong>da</strong>s obras incluí<strong>da</strong>s nesta<br />
categoria, nem sempre é evidente para o leitor." Ain<strong>da</strong> segun<strong>do</strong> as palavras de<br />
Maria Lucília Pires e de José Adriano de Carvalho, "Teremos assim que<br />
distinguir entre uma exemplari<strong>da</strong>de claramente aprendi<strong>da</strong> como tal pelo leitor e<br />
uma exemplari<strong>da</strong>de que, corresponden<strong>do</strong> embora a uma intencionali<strong>da</strong>de<br />
explicita<strong>da</strong> pelo autor, não deixa de constituir motivo de dúvi<strong>da</strong>s e<br />
interrogações para o leitor." 728<br />
Se o carácter exemplar destas novelas nem sempre é fácil de definir,<br />
importa então ponderar quais os recursos e as estratégias utiliza<strong>do</strong>s por<br />
Mateus Ribeiro para concretizar a exemplari<strong>da</strong>de que reivindica para a sua<br />
novela inaugural. Além <strong>da</strong>s referências conti<strong>da</strong>s nos prólogos <strong>da</strong>s diversas<br />
edições desta obra, tanto a cargo <strong>do</strong> autor como <strong>do</strong> editor, e <strong>do</strong>s pareceres que<br />
fun<strong>da</strong>mentam as licenças de impressão, a morali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> Alívio de tristes<br />
Mateus RIBEIRO, "Prólogo", Alivio de tristes e consolação de queixosos, Tomo I, Lisboa, na<br />
Oficina Ferreiriana, 1734.<br />
127 Visível de resto na explícita influência que exerceu ao nível <strong>do</strong>s próprios títulos de novelas<br />
de autores portugueses, veja-se o <strong>caso</strong> evidente <strong>da</strong>s Novelas Exemplares de Gaspar Pires<br />
Rebelo (1650).<br />
128 História Crítica <strong>da</strong> Literatura Portuguesa, dir. Carlos Reis, Lisboa, Ed. Verbo, 2001, Vol. Ill -<br />
Maneirismo e Barroco, p.345.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 69<br />
encontra-se sobretu<strong>do</strong> nos principais temas que compõem as suas diversas<br />
narrativas e nos sistemáticos comentários <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, que ora censura as<br />
acções incorrectas ora louva os virtuosos comportamentos <strong>do</strong>s protagonistas.<br />
Para os seus discursos "colherem o fruto de aliviar sentimentos" 9 , uma<br />
estratégia fun<strong>da</strong>mental consiste na inserção de exempla retóricos, retira<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
história profana ou <strong>do</strong>s livros <strong>do</strong>s Santos Padres. Inseri<strong>do</strong>s de forma<br />
continua<strong>da</strong> na conversação 130 , os exempla, sejam de ín<strong>do</strong>le religiosa ou<br />
secular, apresentam-se com uma dupla função: se por um la<strong>do</strong> são<br />
aproveita<strong>do</strong>s para a exposição de <strong>do</strong>utrinas morais e religiosas e consequente<br />
apelo à conversão, na tradição <strong>do</strong> exemplum medieval, por outro facultam a<br />
novi<strong>da</strong>de e a varie<strong>da</strong>de que tornam a conversação mais agradável. Além <strong>da</strong><br />
mera demonstração de ideias, cujo senti<strong>do</strong> se encontra claramente explicita<strong>do</strong><br />
pelo contexto e pelos comentários teci<strong>do</strong>s no final, o divertimento que advém<br />
destas pequenas narrativas facilita a persuasão <strong>do</strong> destinatário, normalmente<br />
um mancebo que busca alívio e consolação, poden<strong>do</strong> em última instância, pela<br />
imitatio vitae, ser proveitoso para o próprio leitor 131 .<br />
São numerosas as narrativas que pretendem captar a atenção e o<br />
interesse <strong>do</strong> leitor para, em segui<strong>da</strong>, o levar a modificar os seus<br />
comportamentos desacerta<strong>do</strong>s. Para materializar este propósito, de um mo<strong>do</strong><br />
frequente, a seguir a ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s narrativas encaixa<strong>da</strong>s na diegese principal<br />
enumeram-se <strong>caso</strong>s históricos que evidenciam as possíveis consequências de<br />
uma conduta, seja ela adequa<strong>da</strong> ou condenável. Assim, depois de referir a<br />
história de Maria Estuar<strong>da</strong>, que, logo após enviuvar <strong>do</strong> rei D. Francisco II de<br />
França, <strong>caso</strong>u com D. Henrique, senhor de Arli, o narra<strong>do</strong>r (Dionísio) convoca<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.378.<br />
130 A forma como se introduzem as narrativas no diálogo trava<strong>do</strong> entre as personagens <strong>do</strong><br />
Alívio de tristes, e o constante encarecimento <strong>do</strong> estilo e <strong>da</strong>s discretas palavras <strong>da</strong>s mesmas,<br />
lembra a teoria proposta por Rodrigues Lobo na Corte na Aldeia, em concreto no "Diálogo X -<br />
Da maneira de contar histórias na conversação", pp.198-210.<br />
131 A capaci<strong>da</strong>de de moralizar através <strong>da</strong> narração de histórias exemplares é afirma<strong>da</strong> de forma<br />
insistente, tal menciona o Ermitão antes de referir os sucessos <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> a Dionísio: "São os<br />
exemplos, como disse Cícero, motivos grandes para persuadir". Mateus RIBEIRO, Alivio de<br />
tristes e consolação de queixosos, Parte II p.220.
70 A novela portuguesa no século XVII:<br />
as narrativas mitológicas de Teseu e Ariadne e de Jasão e Medeia para ilustrar<br />
a ingratidão de Henrique.<br />
A propósito <strong>da</strong> adulação e <strong>da</strong> lisonja tão frequentemente galar<strong>do</strong>a<strong>da</strong>s, em<br />
desfavor <strong>do</strong> papel que aos sábios, discretos e prudentes deve caber na<br />
governação, após arrolar vários <strong>caso</strong>s notáveis colhi<strong>do</strong>s nos livros de História,<br />
Dionísio apresenta a narrativa de Avenir, rei <strong>da</strong> índia, e <strong>do</strong> seu priva<strong>do</strong>,<br />
inveja<strong>do</strong> pelos cortesãos e por tal acusa<strong>do</strong> perante o rei de ser cristão e de<br />
pretender usurpar-lhe o reino. Fin<strong>da</strong> a narração, o próprio Peregrino anuncia o<br />
proveito moral que se pode retirar desta história: "Esta é a utili<strong>da</strong>de que a<br />
companhia <strong>do</strong>s sábios granjeia a quem assistem, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhes conselhos nos<br />
perigos, advertências nas empresas, consolação nos desgostos, alívio nas<br />
queixas, remédio nos males." 2<br />
Face aos sucessivos infortúnios que o perseguem, não alcançan<strong>do</strong><br />
justificação para as tragédias que o envolvem a si e à sua família, causas<br />
ocultas ao entendimento humano, o Peregrino solicita ao Ermitão Felisberto<br />
uma explicação para a varie<strong>da</strong>de de esta<strong>do</strong>s, a desigual<strong>da</strong>de de prémios e a<br />
diversi<strong>da</strong>de de fortunas que no mun<strong>do</strong> proliferam. Remeten<strong>do</strong> a sua explicação<br />
para os secretos juízos <strong>da</strong> Divina Providência, Felisberto narra-lhe então a<br />
história de um ermitão que, apesar <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> de retiro, de virtude e<br />
mortificação <strong>da</strong> vontade, "foi grandemente tenta<strong>do</strong> algumas vezes de um<br />
espírito de blasfémia, não lhe parecen<strong>do</strong> justos os juízos de Deus a ele ocultos<br />
e não entendi<strong>do</strong>s"^ 33 . Guia<strong>do</strong> por um anjo, o ermitão assistiu incrédulo a um<br />
conjunto de actos incompreensíveis que o envia<strong>do</strong> <strong>do</strong> senhor executava contra<br />
aqueles que os hospe<strong>da</strong>vam, até que lhe foram explica<strong>da</strong>s as acções<br />
aparentemente demoníacas: roubou uma taça de prata a um cari<strong>do</strong>so homem<br />
que os agasalhou, porque a sua incessante recreação em contemplá-la fazia<br />
com que a sua devoção diminuísse; deu a mesma taça a um homem rico e<br />
sem bon<strong>da</strong>de, para que nesta vi<strong>da</strong> receba o prémio de alguma obra boa natural<br />
que tenha feito, pois o não há-de receber na outra; precipitou no rio o cria<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
terceiro hóspede que com tanta cari<strong>da</strong>de os recebeu, porque tinha firme<br />
propósito de matar a seu amo na noite seguinte; por fim, afogou no berço o<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.141.<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.153.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 71<br />
filho <strong>do</strong> caritativo senhor que os hospe<strong>do</strong>u hóspede porque, sen<strong>do</strong> antes por<br />
extremo liberal para com os pobres, depois lhe nascer o filho descui<strong>do</strong>u-se por<br />
completo <strong>da</strong> aju<strong>da</strong> que prestava, oferecen<strong>do</strong> deste mo<strong>do</strong> tão cruel ao pai<br />
ocasião de continuar as obras cari<strong>do</strong>sas.<br />
Felisberto, após enunciar esta narrativa, refere também a sua lição:<br />
"Desta história podemos inferir algumas razões e conjecturas <strong>da</strong> causa porque<br />
Deus senhor nosso permite que no mun<strong>do</strong> haja tantos viciosos favoreci<strong>do</strong>s e<br />
estima<strong>do</strong>s, e pelo contrário tantos virtuosos desestima<strong>do</strong>s e persegui<strong>do</strong>s; (...)<br />
por ocultos juízos de sua eterna Providência, que com sabe<strong>do</strong>ria infinita assim<br />
o dispõe para os fins que nós não alcançamos, nem nesta mortal vi<strong>da</strong> os<br />
conhecemos." 134<br />
Continuan<strong>do</strong> a justificar as ocultas disposições <strong>da</strong> Providência Divina,<br />
Felisberto refere a Dionísio a história de Eulógio 135 , um pobre cavouqueiro que<br />
de repente se tornou por extremo rico ao encontrar um tesouro, logo<br />
esquecen<strong>do</strong> a hospitali<strong>da</strong>de e a cari<strong>da</strong>de de que usava anteriormente,<br />
chegan<strong>do</strong> a privar na companhia <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r Justino, em Constantinopla.<br />
Com a morte deste, confisca<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as suas riquezas e priva<strong>do</strong> <strong>do</strong>s cargos<br />
que tinha, viu-se novamente na pobreza. Fin<strong>da</strong> a narrativa, o Ermitão explica<br />
que "Desta história se pode inferir o como são disposições <strong>da</strong> Divina<br />
Providência que muitos justos e beneméritos não subam à digni<strong>da</strong>de, nem<br />
possuam riquezas, para que elas os não pervertam, queren<strong>do</strong> que humildes se<br />
assegurem e não que autoriza<strong>do</strong>s se arrisquem; e querer compreender seus<br />
juízos é querer encerrar em breve concha o oceano mais dilata<strong>do</strong>." 6<br />
Podemos ain<strong>da</strong> apontar outro exemplum inseri<strong>do</strong> na narrativa como forma<br />
de deleitar e simultaneamente incitar à modificação de procedimentos<br />
desacerta<strong>do</strong>s. Narran<strong>do</strong> ao Peregrino Dionísio os sucessos que o conduziram<br />
à fuga <strong>da</strong> corte e ao retiro na sua ermi<strong>da</strong>, Felisberto refere a história de<br />
Frederico, um filho de pobres pesca<strong>do</strong>res que se graduou em Leis. Sen<strong>do</strong><br />
134 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, p.156.<br />
135 Estas pequenas narrativas, inseri<strong>da</strong>s na obra de Mateus Ribeiro com função marca<strong>da</strong>mente<br />
exemplar, ocorrem também nas obras de autores com iguais intuitos didácticos. É o <strong>caso</strong> de<br />
Manuel BERNARDES, que apresenta a narrativa de Eulógio como "Exemplo notável <strong>da</strong><br />
incerteza <strong>da</strong>s honras e riquezas mun<strong>da</strong>nas", in Nova Floresta, ed. cit.<br />
136 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.159.
72 A novela portuguesa no século XVII:<br />
Claudiana, sua irmã, rapta<strong>da</strong> pelo conde Roberto enquanto Frederico seguia as<br />
letras, a briosa <strong>do</strong>nzela acabou por conseguir resistir à violência que o conde<br />
intentava perpetrar e matou-o a punhala<strong>da</strong>s. Estes acontecimentos acabam por<br />
ser o mote para mais uma reflexão <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r sobre a desigual<strong>da</strong>de na<br />
aplicação <strong>da</strong> justiça com base na diferença de estatuto social e riqueza <strong>do</strong>s<br />
intervenientes.<br />
Mas os infortúnios continuaram a marcar a atribula<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de Frederico.<br />
Depois de Claudiana entrar num convento, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> os estu<strong>do</strong>s por recear<br />
a vingança <strong>do</strong>s parentes <strong>do</strong> conde Roberto, Frederico envere<strong>do</strong>u pela carreira<br />
militar, servin<strong>do</strong> no exército de Carlos V, chegan<strong>do</strong> a capitão de cavalos. De<br />
regresso a Nápoles, sua pátria, enquanto assistia às festas que na ci<strong>da</strong>de se<br />
celebravam, sofreu uma ofensa de um cria<strong>do</strong> de Raimun<strong>do</strong>, primo <strong>do</strong> defunto<br />
conde Roberto, e em resposta matou três <strong>do</strong>s mascara<strong>do</strong>s que o<br />
acompanhavam no cortejo. Fugin<strong>do</strong> ao auditor <strong>da</strong> justiça, acabou por se juntar<br />
a um grupo de criminosos foragi<strong>do</strong>s.<br />
Depois de Frederico narrar a sua admirável história, exemplo <strong>da</strong> "mudável<br />
ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> fortuna", o Ermitão Felisberto aplaca a sua ira e persuade-o a desistir<br />
<strong>da</strong> sua vingança, incitan<strong>do</strong>-o a salvar a vi<strong>da</strong> e a honra. O antigo capitão de<br />
ban<strong>do</strong>leiros aban<strong>do</strong>nou então os seus companheiros e seguiu viagem com os<br />
peregrinos para Roma, onde os seus pais se tinham refugia<strong>do</strong>. Alivia<strong>do</strong> e<br />
consola<strong>do</strong> por Felisberto, Frederico confessa-se com um religioso penitenciário<br />
<strong>do</strong> Papa Paulo III, "de cujos santos conselhos e admoestações veio tão troca<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> que antes fora, como costuma mu<strong>da</strong>r a divina graça os corações em que<br />
entra." 7<br />
Justifican<strong>do</strong> a Felisberto a sua maravilhosa mu<strong>da</strong>nça e o retiro que fazia<br />
às vai<strong>da</strong>des <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, experimenta<strong>do</strong> que tinha o lisonjeiro de seus enganos,<br />
Frederico referiu como tal se devia à conversação que tivera com o religioso, e<br />
em particular a exemplari<strong>da</strong>de de uma narrativa colhi<strong>da</strong> na Vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> abade São<br />
Pafúncio, relato <strong>da</strong>s obras de cari<strong>da</strong>de efectua<strong>da</strong>s por um ban<strong>do</strong>leiro que se<br />
converteu depois em tange<strong>do</strong>r de viola, e na Vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> abade David, referin<strong>do</strong> a<br />
história de conversão de um capitão de uma quadrilha de ban<strong>do</strong>leiros que, já<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.297.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 73<br />
ancião, tomou o hábito num mosteiro de monges e nele viveu em áspera<br />
penitência.<br />
Mais uma vez, no fim destas narrativas, o narra<strong>do</strong>r (Felisberto) aponta a<br />
lição moral que estas narrativas fornecem para a concepção de vi<strong>da</strong> que se<br />
pretende inculcar: o desengano <strong>da</strong>s vai<strong>da</strong>des <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e a consciência <strong>da</strong><br />
inconstância <strong>da</strong> fortuna. Tal como o ban<strong>do</strong>leiro Frederico aban<strong>do</strong>nou a sua<br />
indecorosa vi<strong>da</strong>, também o leitor pode retirar desta obra os ensinamentos<br />
necessários para efectuar venturosos acertos nos seus procedimentos: "Com a<br />
eficácia destes exemplos de sorte se demoveu o coração de Frederico (...) que<br />
ele enfim, como bem entendi<strong>do</strong>, de to<strong>do</strong> caiu na conta para fazer contas com<br />
sua alma, e mediante a graça divina que com sua eficácia obra suave e<br />
poderosamente, se mu<strong>do</strong>u de maneira que a to<strong>do</strong>s nos deixou alegres e<br />
invejosos de o imitar."^ 38<br />
O carácter edificante desta novela de Mateus Ribeiro resulta, além <strong>da</strong><br />
insistente utilização de exempla, <strong>do</strong>s sucessivos comentários teci<strong>do</strong>s pelo<br />
narra<strong>do</strong>r <strong>da</strong> diegese de primeiro nível e pelos <strong>do</strong>is protagonistas, o Peregrino e<br />
o Ermitão, no final <strong>da</strong>s numerosas histórias que compõem esta obra. Com<br />
efeito, as duas personagens principais, enquanto receptores <strong>da</strong>s histórias<br />
<strong>da</strong>queles com quem se cruzam, tecem dilata<strong>do</strong>s comentários sobre o<br />
comportamento <strong>do</strong>s intervenientes de ca<strong>da</strong> narrativa.<br />
Nestas novelas que visam o entretenimento, centra<strong>da</strong>s na sua maioria no<br />
sentimento amoroso, o narra<strong>do</strong>r, ou as próprias personagens, apuram-se em<br />
eruditas considerações, ilustra<strong>da</strong>s por numerosas citações, que alertam o leitor<br />
para os perigos resultantes <strong>da</strong> erra<strong>da</strong> conduta de personagens nobres, sejam<br />
masculinas ou femininas. Neste senti<strong>do</strong> salientam-se, entre outras, a história<br />
<strong>do</strong> conde Roberto que raptou a discreta e modesta Claudiana, irmã de<br />
Frederico, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> origem a contínuos episódios de violência e à irreflecti<strong>da</strong><br />
busca de vingança, e a história de Juliano, mancebo que man<strong>do</strong>u um grupo de<br />
mouros, em troca <strong>da</strong> sua liber<strong>da</strong>de, raptar Lucin<strong>da</strong>, irmã de Felisberto, por não<br />
ver os seus desvelos amorosos aceites. Ain<strong>da</strong> que pertencentes à nobreza,<br />
grupo habitualmente caracteriza<strong>do</strong> por traços positivos, Roberto e Juliano não<br />
138 Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.299.
74 A novela portuguesa no século XVII:<br />
se livram de fortes censuras à descortesia, desmesura<strong>da</strong> ambição e violência<br />
de que usaram, caben<strong>do</strong> ao primeiro a morte perpetra<strong>da</strong> pela resistente<br />
<strong>do</strong>nzela e o segun<strong>do</strong>, fruto <strong>da</strong> intersecção de figuras poderosas, acaba por<br />
casar com a jovem, resolven<strong>do</strong>-se pelo matrimónio, tal como noutras<br />
narrativas, as desavenças familiares e o desejo de vingança. Em virtude <strong>da</strong><br />
divergência que marca o fim destas personagens, estes episódios servem<br />
ain<strong>da</strong> de motivo para uma extensa digressão sobre a desacerta<strong>da</strong> aplicação <strong>da</strong><br />
justiça que se fun<strong>da</strong>menta na desigual<strong>da</strong>de de estatuto e na diferença de<br />
riqueza <strong>do</strong>s intervenientes: "Mas como hoje, com o discurso <strong>do</strong>s anos,<br />
mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong>s monarquias e varie<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s tempos, vem a estar tão destemi<strong>do</strong><br />
o poder e tão acovar<strong>da</strong><strong>da</strong> a razão, ten<strong>do</strong> poucos que a amparem e o valimento<br />
tantos que o apadrinhem, quem confiará seus agravos <strong>da</strong> justiça contra o poder<br />
e <strong>da</strong> razão contra o valimento? ,nQ<br />
Sen<strong>do</strong> o amor o centro temático de to<strong>da</strong>s as narrativas, são frequentes os<br />
comentários relativos aos perigos que resultam <strong>da</strong>s loucuras cometi<strong>da</strong>s em<br />
nome <strong>do</strong> amor. Ao iniciar o relato <strong>da</strong> sua atribula<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, constituí<strong>da</strong> por<br />
sucessivos incidentes trágicos, Dionísio refere a Felisberto a origem de to<strong>do</strong>s<br />
os seus males: a sua paixão por Teo<strong>do</strong>ra. Após vinte dias <strong>do</strong> seu festeja<strong>do</strong><br />
casamento, Teo<strong>do</strong>ra foge com Maurício, falso amigo <strong>do</strong> Peregrino. Segue-se<br />
então uma longa reflexão sobre a traição efectua<strong>da</strong> por amigos, agravo <strong>do</strong>s<br />
mais senti<strong>do</strong>s, nomean<strong>do</strong> <strong>caso</strong>s históricos exemplifica<strong>do</strong>res <strong>da</strong> desleal<strong>da</strong>de e<br />
<strong>da</strong> falsa correspondência entre amigos.<br />
Com vista à vingança <strong>da</strong> sua desonra, Dionísio encetou uma longa<br />
perseguição ao par fugitivo, calcorrean<strong>do</strong> inúmeras terras entre Bruxelas e<br />
Castela, até encontrar junto ao rio Tormes um ermitão espanhol. Depois <strong>do</strong><br />
temor deriva<strong>do</strong> de tão inespera<strong>do</strong> encontro, o ermitão historiou os seus<br />
desaires, motiva<strong>do</strong>s igualmente pelo amor e pela traição de um amigo.<br />
Apaixona<strong>do</strong> por Lisar<strong>da</strong>, alvo também <strong>do</strong> cortejo amoroso de Frederico, seu<br />
irmão primogénito, o ermitão espanhol socorreu-se <strong>da</strong> aju<strong>da</strong> de D. Sancho, seu<br />
amigo e companheiro de estu<strong>do</strong>s. Numa rocambolesca série de<br />
acontecimentos, D. Sancho e Lisar<strong>da</strong> tentam uma fuga nocturna, mas são<br />
impedi<strong>do</strong>s pelo ermitão. Desta traição de D. Sancho sobreveio o trágico<br />
139<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte II, p.274.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 75<br />
desfecho: na escuridão <strong>da</strong> noite, Frederico matou D. Sancho, pensan<strong>do</strong> que<br />
era o seu irmão, e o ermitão acabou por cometer fratricídio. Para intensificar<br />
estes fatídicos sucessos, Lisar<strong>da</strong> morreu de desgosto amoroso pela morte <strong>do</strong><br />
seu ama<strong>do</strong>.<br />
Numa história que adverte para as perniciosas consequências <strong>da</strong> quebra<br />
<strong>do</strong>s laços <strong>da</strong> amizade e <strong>do</strong>s desvarios amorosos, malogra<strong>da</strong>s as suas<br />
esperanças, atormenta<strong>do</strong> por ser o causa<strong>do</strong>r destes funestos acontecimentos e<br />
persegui<strong>do</strong> pela justiça, o ermitão espanhol fugiu <strong>da</strong> corte e isolou-se na<br />
solidão <strong>do</strong>s montes, escolha louva<strong>da</strong> por Felisberto para aqueles que se<br />
arrependem <strong>do</strong>s seus delitos: "Notável sucesso foi esse (disse o Ermitão), que<br />
se to<strong>do</strong>s os desengana<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s vai<strong>da</strong>des <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> lhe voltassem as costas,<br />
como esse discreto espanhol tinha feito, mais ocupa<strong>da</strong>s estariam as serras e<br />
mais acompanha<strong>do</strong>s os bosques de arrependi<strong>do</strong>s que as ci<strong>da</strong>des povoa<strong>da</strong>s de<br />
engana<strong>do</strong>s." 140<br />
Livre <strong>da</strong>s passa<strong>da</strong>s inquietações pela acção <strong>do</strong>s avisa<strong>do</strong>s conselhos <strong>do</strong><br />
Ermitão, Dionísio acabará por acompanhá-lo na vi<strong>da</strong> solitária e contemplativa,<br />
escolhen<strong>do</strong> o isolamento <strong>da</strong> ermi<strong>da</strong>, "lugar próprio para sujeitos desengana<strong>do</strong>s<br />
<strong>da</strong>s afeições e <strong>do</strong> pouco fun<strong>da</strong>mento que nas esperanças <strong>da</strong> terra deve fazer-<br />
se, pouco preço e cabe<strong>da</strong>l em que as promessas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e suas lisonjas<br />
devem estimar-se." u:<br />
Ain<strong>da</strong> no campo <strong>do</strong> amor e <strong>do</strong>s seus perigos, serve de modelo a história<br />
de Eugenia, formosa <strong>do</strong>nzela que Dionísio encontra cantan<strong>do</strong> senti<strong>da</strong>mente<br />
junto a uma fonte. Seduzi<strong>da</strong> por Roberto, resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong> promessa de ser seu<br />
esposo, levan<strong>do</strong> as suas jóias e os ricos vesti<strong>do</strong>s, fugiu com o seu fingi<strong>do</strong><br />
amante. Engana<strong>da</strong> e rouba<strong>da</strong>, "castigo mereci<strong>do</strong> de sua livian<strong>da</strong>de, pois<br />
deixava a casa de sua mãe indiscretamente para seguir a um forasteiro, a<br />
quem amor a inclinou para perder-se" U2 , a desacautela<strong>da</strong> <strong>do</strong>nzela foi<br />
aban<strong>do</strong>na<strong>da</strong> nas montanhas pelo insolente mancebo, que a justiça divina<br />
castigou ao ser assassina<strong>do</strong> por saltea<strong>do</strong>res. Eugenia, paradigma <strong>da</strong>s<br />
inexperientes <strong>do</strong>nzelas que se deixam seduzir pelas promessas <strong>do</strong>s cavaleiros,<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.193.<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.217.<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.197.
76 A novela portuguesa no século XVII:<br />
tal como outras personagens femininas vítimas <strong>da</strong> desonra, entrou num<br />
convento em Grana<strong>da</strong>.<br />
Para além <strong>do</strong>s comentários que se prendem com o âmbito amoroso, e<br />
seus perigos, são inúmeras as observações feitas a propósito <strong>da</strong> inconstância<br />
feminina. De resto, a mulher, frequentemente qualifica<strong>da</strong> como mudável, ain<strong>da</strong><br />
que esta acusação surja normalmente como consequência <strong>do</strong> desencanto<br />
amoroso <strong>do</strong> pretendente, apresenta-se como causa de violentos ciúmes. As<br />
desconfianças, ain<strong>da</strong> que infun<strong>da</strong><strong>da</strong>s, motivam precipita<strong>da</strong>s acções <strong>da</strong> parte<br />
<strong>do</strong>s supostos ofendi<strong>do</strong>s, originan<strong>do</strong> repeti<strong>da</strong>s considerações <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r sobre<br />
os irreflecti<strong>do</strong>s desejos de vingança.<br />
Tratan<strong>do</strong> maioritariamente de infortúnios amorosos, mas também de<br />
questões que se prendem com a honra, a amizade e a desigual<strong>da</strong>de, os<br />
sofrimentos que estão na origem <strong>da</strong> tristeza e <strong>da</strong>s queixas destas personagens<br />
são alivia<strong>do</strong>s por meio <strong>da</strong> discreta conversação, alimenta<strong>da</strong> por citações de<br />
inúmeros autores autoriza<strong>do</strong>s, por longas digressões <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, ou <strong>da</strong>s<br />
próprias personagens, pela inserção moralizante, mas também atractiva, de<br />
pequenas narrativas exemplares. São, pois, varia<strong>do</strong>s os recursos utiliza<strong>do</strong>s<br />
pelo autor com vista à captação <strong>do</strong> interesse <strong>do</strong>s leitores, visan<strong>do</strong> em última<br />
instância facultar o proveito moral, pois "Grandes poderes são os <strong>da</strong> eloquência<br />
em persuadir, notáveis forças adquire para excitai" U3 , advogan<strong>do</strong> o desengano<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e <strong>da</strong>s suas vai<strong>da</strong>des como forma de viver em comunhão com Deus.<br />
A preocupação com uma postura que conduza a Deus, a ideia de que o<br />
Céu é a nossa pátria natural e a Terra simples desterro, é recorrente ao longo<br />
<strong>da</strong> obra. Durante a peregrinação ao Santuário <strong>do</strong> Loreto, os <strong>do</strong>is romeiros, na<br />
companhia de Lisar<strong>do</strong>, instalam-se numa hospe<strong>da</strong>gem, onde encontram o<br />
ancião Rogério, bastante enfermo e queixoso <strong>da</strong> inconstância <strong>da</strong> fortuna, pois<br />
havia si<strong>do</strong> um rico merca<strong>do</strong>r, mas perdeu tu<strong>do</strong> em arrisca<strong>da</strong>s navegações.<br />
Desespera<strong>do</strong> face à sua morte eminente, Rogério é dissuadi<strong>do</strong> pelo Ermitão <strong>da</strong><br />
valia <strong>do</strong>s bens terrenos, consideran<strong>do</strong> a morte como libertação <strong>do</strong>s tormentos<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Já alivia<strong>do</strong> pela discreta e proveitosa conversação <strong>do</strong> Ermitão, Rogério<br />
pede-lhe ain<strong>da</strong> que lhe retrate a Ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Glória. Felisberto, apoia<strong>do</strong> nos<br />
ensinamentos de Aristóteles e de S. Agostinho, começa por definir a Ci<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte I, p.215.
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 77<br />
Mun<strong>do</strong> para passar depois à Ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Glória: habitação <strong>do</strong>s Anjos, Santos e<br />
escolhi<strong>do</strong>s de Deus. Ain<strong>da</strong> que se resguarde <strong>da</strong> insuficiência <strong>da</strong>s palavras e <strong>da</strong><br />
eloquência para descrever a Ci<strong>da</strong>de de Deus, vale-se de to<strong>do</strong>s os recursos<br />
retóricos que trespassam a obra para possibilitar ao moribun<strong>do</strong> a sua<br />
"contemplação", num acumular de enumerações, metáforas, comparações,<br />
antíteses..., ancoran<strong>do</strong> a sua exposição nos livros sagra<strong>do</strong>s que versam este<br />
assunto como forma de revestir o seu relato de maior autori<strong>da</strong>de.<br />
Benefician<strong>do</strong> <strong>da</strong> sabe<strong>do</strong>ria proveniente <strong>da</strong> experiência de vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> Ermitão,<br />
suposto que "a conversação de um discreto era guia <strong>do</strong>s passos que <strong>da</strong>va em<br />
seu <strong>da</strong>no um aflito para reduzi-los. Donde veio a dizer Santo Isi<strong>do</strong>ro que a<br />
conversação <strong>do</strong>s bons e virtuosos juntamente aproveita e edifica" 4 , Rogério,<br />
após receber os Sacramentos, já persuadi<strong>do</strong> <strong>da</strong> efemeri<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> terrena,<br />
acabou por receber a morte com notável tranquili<strong>da</strong>de.<br />
A discreta conversação que os <strong>do</strong>is protagonistas mantêm ao longo <strong>da</strong><br />
sua peregrinação, marco narrativo desta obra, sustenta<strong>da</strong> por uma<br />
grandiloquência que pode parecer artificial e desajusta<strong>da</strong>, mas que<br />
corresponde ao "gosto <strong>da</strong> época" 145 , apresenta-se assim como um meio eficaz<br />
de surpreender e captar a atenção <strong>do</strong> leitor para, através <strong>do</strong> deleite inerente ao<br />
seu discurso engenhoso e à varie<strong>da</strong>de e novi<strong>da</strong>de inerente às histórias<br />
acumula<strong>da</strong>s, lhe proporcionar o necessário proveito: a toma<strong>da</strong> de consciência<br />
<strong>da</strong> efemeri<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s bens terrenos, em particular <strong>da</strong>s lisonjas amorosas, tema<br />
central <strong>da</strong>s diversas metadiegeses, e reorientar a sua conduta, ven<strong>do</strong> puni<strong>do</strong>s<br />
os vícios e encareci<strong>da</strong> a virtude como forma de alcançar a deseja<strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
Glória.<br />
Mateus RIBEIRO, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Parte III, p.437.<br />
145 O sucesso deste tipo de literatura de entretenimento, de aventuras e de amor, de acor<strong>do</strong><br />
com Bergona Ripoll, residiria precisamente na recreação proporciona<strong>da</strong> por estas narrativas,<br />
fortemente alicerça<strong>da</strong> na própria estrutura narrativa que se vai amplian<strong>do</strong>: "la gran relación que<br />
existe, conforme transcurre el siglo, entre el creciente auge dei género de entretenimiento y la<br />
solución estructural a<strong>do</strong>pta<strong>da</strong> por los escritores que intentan moralizar mas explicitamente con<br />
estas obras, que no es sino intensificar los elementos argumentales, retóricos y estilísticos que<br />
pueblan las novelas para aumentar el número de páginas y, así, <strong>da</strong>r satisfacción a la deman<strong>da</strong><br />
dei público lector." Bergona RIPOLL, La novela barroca: catálogo bio-bibliográfico (1620 -<br />
1700), Salamanca, Ediciones Universi<strong>da</strong>d de Salamanca, 1991, p. 18-9
78 A novela portuguesa no século XVII:<br />
VI. Conclusão<br />
Ignora<strong>do</strong> pela História <strong>da</strong> Literatura, não obstante a sua ficção romanesca<br />
ter si<strong>do</strong> amplamente consumi<strong>da</strong> pelos leitores seiscentistas e setecentistas,<br />
conforme atestam as suas numerosas reedições e as referências à sua leitura<br />
por autores como Inocêncio Francisco <strong>da</strong> Silva ou, mais tarde, Alexandre<br />
Herculano, Mateus Ribeiro, com to<strong>do</strong>s os artificialismos e convencionalismos<br />
retóricos que lhe possam ser atribuíveis (e o facto de escrever novelas de<br />
entretenimento centra<strong>da</strong>s no amor em muito contribuiu para as mais varia<strong>da</strong>s<br />
censuras - recorde-se a parciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> apreciação de Barbosa Macha<strong>do</strong>), é<br />
antes de mais um digno representante <strong>da</strong> prosa barroca portuguesa, tanto na<br />
temática como nos exuberantes recursos estilísticos.<br />
Assinala<strong>do</strong> sobretu<strong>do</strong> pela escrita de ficção narrativa em prosa, o pároco<br />
<strong>da</strong> Azoeira, sobre o qual desconhecemos parte significativa <strong>da</strong> sua bibliografia,<br />
publicou o Alívio de tristes e consolação de queixosos em 1648, <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> edição<br />
<strong>da</strong> primeira parte <strong>da</strong> novela que lhe proporcionou maior sucesso (e não em<br />
1672, conforme anuncia Barbosa Macha<strong>do</strong> e repete Inocêncio).<br />
No que concerne à filiação desta obra num subgenera novelesco, ain<strong>da</strong><br />
que os escassos estu<strong>do</strong>s que consideram esta novela (ou conjunto de novelas<br />
encaixa<strong>da</strong>s na narração que se inicia com o encontro <strong>do</strong> Ermitão Felisberto e<br />
<strong>do</strong> Peregrino Dionísio) a classifiquem como alegórica, a alegoria, enquanto<br />
processo central <strong>da</strong> organização diegética, comparece nesta obra apenas sob<br />
a forma de episódios isola<strong>do</strong>s. As romarias empreendi<strong>da</strong>s pelos <strong>do</strong>is<br />
protagonistas ao templo de S. Miguel e, posteriormente, ao templo <strong>da</strong> Nossa<br />
Senhora <strong>do</strong> Loreto, motiva<strong>da</strong>s pela curiosi<strong>da</strong>de no primeiro <strong>caso</strong> e pela<br />
devoção no segun<strong>do</strong>, não se anunciam como uma purificação espiritual destas<br />
personagens, já desengana<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s bens <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e <strong>da</strong> inconstância <strong>da</strong><br />
fortuna antes <strong>da</strong> peregrinação.<br />
Posta de parte esta classificação, e admitin<strong>do</strong> uma clara contaminação<br />
com os livros de cavalaria, os romances sentimentais ou as novelas bizantinas,
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 79<br />
tanto nos temas como na organização diegética, consideran<strong>do</strong> a intenção <strong>do</strong><br />
autor, expressa em vários prólogos, e atenden<strong>do</strong> à função de que se revestem<br />
as suas narrativas, julgamos que esta novela deve ser designa<strong>da</strong> por exemplar.<br />
A exemplari<strong>da</strong>de de Alívio de tristes resulta de uma acumulação de<br />
estratégias que visam servir ao leitor uma lição moral e <strong>do</strong>utrinária, assente na<br />
ideologia cristã e nos valores <strong>da</strong> nobreza, afinal o público-alvo destas<br />
narrativas. Seguin<strong>do</strong> a lição condensa<strong>da</strong> por Horácio no binómio prodesse ac<br />
delectare, para mais eficazmente persuadir os leitores <strong>do</strong>s ensinamentos<br />
veicula<strong>do</strong>s nesta obra, o autor socorreu-se de vários artifícios narrativos<br />
apropria<strong>do</strong>s para facultar a modera<strong>da</strong> recreação <strong>do</strong> espírito que facilita a<br />
apreensão <strong>da</strong> deseja<strong>da</strong> moralização.<br />
As narrativas que compõe esta novela, com estruturas algo narrativas<br />
repetitivas, mas que pretendem explicitar, pela amplificatio, um código de<br />
conduta <strong>da</strong>s personagens nobres ao serviço <strong>da</strong> temática <strong>do</strong> desengano (assim<br />
se explican<strong>do</strong> o convencionalismo <strong>da</strong> sua descrição física e as escassas<br />
anotações psicológicas, assim como a nota artificial e previsível <strong>do</strong> seu<br />
comportamento), investin<strong>do</strong> sobretu<strong>do</strong> no deleite, tentan<strong>do</strong> agra<strong>da</strong>r,<br />
surpreender e captar a atenção <strong>do</strong> leitor pela varie<strong>da</strong>de e vivaci<strong>da</strong>de destas<br />
diegeses, procuram alcançar a utilitas como forma de legitimação <strong>do</strong> seu<br />
conteú<strong>do</strong>.<br />
Num universo diegético <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pela vivência amorosa, para dissuadir o<br />
leitor <strong>do</strong> equívoco <strong>da</strong> efemeri<strong>da</strong>de <strong>da</strong> beleza e <strong>da</strong> fugaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> terrena,<br />
desterro em que vive o ser humano, são arrola<strong>do</strong>s numerosos exempla<br />
retóricos que servem de lição para os leitores que se identifiquem com as<br />
situações vivi<strong>da</strong>s pelos protagonistas. Usualmente segui<strong>do</strong>s de comentários<br />
ilustra<strong>do</strong>s com a enumeração de <strong>caso</strong>s históricos que espelhem situações em<br />
tu<strong>do</strong> idênticas, estas histórias apresentam a condenação <strong>do</strong>s comportamentos<br />
inadequa<strong>do</strong>s e, pelo contrário, mostram a recompensa devi<strong>da</strong> àqueles que<br />
actuam de forma virtuosa: são premia<strong>do</strong>s os cavaleiros nobres, briosos e<br />
firmes no seu amor e as <strong>do</strong>nzelas honestas, discretas, recata<strong>da</strong>s e constantes<br />
nos seus sentimentos; são puni<strong>do</strong>s os mancebos indecorosos, atrevi<strong>do</strong>s e<br />
movi<strong>do</strong>s pela violência <strong>da</strong> vontade intolerante a uma esquivança e as figuras<br />
femininas que se deixam seduzir pelas falsas promessas <strong>do</strong>s jovens,
80 A novela portuguesa no século XVII:<br />
permitin<strong>do</strong> os seus avanços devi<strong>do</strong> à sua inexperiência, ingenui<strong>da</strong>de e<br />
indiscrição.<br />
Fazen<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> eco <strong>da</strong>s determinações contra-reformistas, numa obra que<br />
divulga e exemplifica a utili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> discreta conversação como forma de<br />
proporcionar o honesto entretenimento, através de um estilo engenhoso, como<br />
é característico <strong>da</strong> estética barroca, comprazen<strong>do</strong>-se na acumulação de<br />
máximas e sentenças, no recurso a abun<strong>da</strong>ntes citações de autores<br />
autoriza<strong>do</strong>s nas matérias aporta<strong>da</strong>s, de múltiplos comentários de ín<strong>do</strong>le<br />
moralizante, de reflexões sobre os mais varia<strong>do</strong>s assuntos e <strong>da</strong> justaposição<br />
de histórias apresenta<strong>da</strong>s pelos seus narra<strong>do</strong>res como exemplares e<br />
edificantes para os seus destinatários, Mateus Ribeiro serve de forma deleitosa<br />
uma concepção de vi<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> no desengano <strong>do</strong> amor e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />
propon<strong>do</strong> o exemplo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> contemplativa ao serviço de Deus que o Ermitão<br />
Felisberto a<strong>do</strong>ptou e ao longo <strong>da</strong> obra aconselha aos seus tristes e queixosos<br />
interlocutores como forma de obter o alívio e a consolação.
Fontes directas<br />
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 81<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
RIBEIRO, Mateus, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Lisboa, na<br />
Oficina de João <strong>da</strong> Costa, 1672.<br />
RIBEIRO, Mateus, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Vol. I, Lisboa,<br />
na Oficina de Miguel Deslandes, 1688.<br />
RIBEIRO, Mateus, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Vol. II, Lisboa,<br />
na Oficina de Miguel Manescal, 1688.<br />
RIBEIRO, Mateus, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Tomo I, Lisboa,<br />
na Oficina Ferreiriana, 1734.<br />
RIBEIRO, Mateus, Alivio de tristes e consolação de queixosos, Tomo II, Lisboa,<br />
na Oficina Ferreiriana, 1737.<br />
Fontes complementares<br />
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Oficina de Miguel Deslandes, 1681.<br />
RIBEIRO, Mateus, Retiro de Cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e Vi<strong>da</strong> de Carlos e Rosaura, II Parte,<br />
Lisboa, na Oficina de Miguel Manescal, 1681.<br />
RIBEIRO, Mateus, Retiro de Cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e Vi<strong>da</strong> de Carlos e Rosaura, III Parte,<br />
Lisboa, na Oficina de Manuel Lopes Ferreira, 1697.
82 A novela portuguesa no século XVII:<br />
RIBEIRO, Mateus, Retiro de Cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e Vi<strong>da</strong> de Carlos e Rosaura, IV Parte,<br />
Lisboa, na Oficina de Manuel Lopes Ferreira, 1689.<br />
RIBEIRO, Mateus, Retiro de Cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e Vi<strong>da</strong> de Carlos e Rosaura, Lisboa, na<br />
Oficina Ferreiriana, 1750.<br />
RIBEIRO, Mateus, Ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fortuna e Vi<strong>da</strong> de Alexandre e Jacinta, I Parte,<br />
Lisboa, na Oficina de Filipe de Sousa Vilela, 1724.<br />
RIBEIRO, Mateus, Ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fortuna e Vi<strong>da</strong> de Alexandre e Jacinta, II Parte,<br />
Lisboa, na Oficina de Filipe de Sousa Vilela, 1724.<br />
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muitas advertências, e <strong>do</strong>cumentos / contra os abusos, que se achaõ<br />
introduzi<strong>do</strong>s pela melicia/ diabólica no Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil. Dedica<strong>do</strong> à Virgem <strong>da</strong><br />
VITORIA, Emperatriz <strong>do</strong> Ceo, Rainha <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, e Senhora <strong>da</strong> Pie<strong>da</strong>de, Mãe
86 A novela portuguesa no século XVII:<br />
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88 A novela portuguesa no século XVII:
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 89<br />
CRITÉRIOS DE EDIÇÃO DO TEXTO<br />
Para a fixação <strong>do</strong> texto de Alívio de tristes e consolação de queixosos<br />
tomámos como texto-base o <strong>da</strong> edição de 1688 (estabeleci<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong><br />
exemplar <strong>da</strong> Biblioteca Nacional de Lisboa - R. 3913-14v), a última publica<strong>da</strong><br />
em vi<strong>da</strong> de Mateus Ribeiro e a primeira que reúne as seis partes <strong>da</strong> obra. O<br />
cotejo com a edição de 1734 (pelo exemplar <strong>da</strong> Biblioteca Pública Municipal <strong>do</strong><br />
<strong>Porto</strong> - L-12-26), menos cui<strong>da</strong><strong>da</strong> que a anterior, não revelan<strong>do</strong> alterações<br />
significativas, serviu-nos para corrigir alguns erros detecta<strong>do</strong>s na edição<br />
segui<strong>da</strong>.<br />
A transcrição <strong>do</strong> texto, com o intuito de modernizar a sua apresentação<br />
sem, na medi<strong>da</strong> <strong>do</strong> possível, desvirtuar as características <strong>da</strong> língua <strong>da</strong> época,<br />
foi feita de acor<strong>do</strong> com os seguintes critérios:<br />
I. Aspectos gerais: apresentação <strong>do</strong> texto e <strong>do</strong> aparato crítico<br />
1. Corrigiram-se, sem se assinalar, as gralhas tipográficas encontra<strong>da</strong>s na<br />
edição de 1688 e que, num número significativo, foram repeti<strong>da</strong>s na edição<br />
de 1734;<br />
2. des<strong>do</strong>braram-se, sem se assinalar, algumas abreviaturas;<br />
3. grafámos em itálico as citações de ditos ou sentenças e o título <strong>da</strong>s obras<br />
nomea<strong>da</strong>s no interior <strong>do</strong> texto;<br />
4. não se referiram as pequenas variações ortográficas sem pertinência<br />
linguística, nem oscilações de pontuação;<br />
5. as numerosas citações anota<strong>da</strong>s à margem na impressão seiscentista foram<br />
coloca<strong>da</strong>s em nota de ro<strong>da</strong>pé (1) ;<br />
6. foram introduzi<strong>da</strong>s notas de ro<strong>da</strong>pé, assinala<strong>da</strong>s com letras minúsculas (a) ,<br />
para as explicações de ordem filológica ou semântica e para expor as<br />
diferentes lições <strong>da</strong>s edições coteja<strong>da</strong>s e a justificação <strong>da</strong> nossa escolha;
90 A novela portuguesa no século XVII:<br />
7. entre parêntesis rectos [/] acrescentamos algumas palavras, geralmente de<br />
ín<strong>do</strong>le gramatical, de forma a clarificar o discurso, ou que, por gralha <strong>da</strong>s<br />
edições, não constam <strong>do</strong> texto.<br />
II. Vogais<br />
8. Normalizámos as grafias alternantes <strong>da</strong>s vogais nasais: segui<strong>da</strong>s de m ou n<br />
antes de consoante; segui<strong>da</strong>s de m em final de vocábulo; com til antes de<br />
vogal;<br />
9. substituímos o u consonântico intervocálico por v, <strong>do</strong> y por / e <strong>do</strong> / por y em<br />
palavras como pay, foy, alheyo...;<br />
10. substituímos o o pelo u em palavras como sogeitos e, pelo contrário, o u<br />
pelo o em <strong>caso</strong>s como descubrir,<br />
11. actualizámos a grafia <strong>do</strong> diton<strong>do</strong> crescente depois de q ou g, para a actual<br />
qu- ou gu-, como em agoa que passou a água;<br />
12. actualizámos formas como manhãa ou irmãa que passaram a manhã e<br />
irmã;<br />
13. normalizámos a representação <strong>do</strong>s ditongos nasais, de acor<strong>do</strong> com a<br />
norma actual: vogal segui<strong>da</strong> de e ou de o, com til sobre a primeira, ou vogal<br />
segui<strong>da</strong> de m ou n. Assim, grafámos discrição em vez de discriçam, mãe<br />
em vez de mãi e nuvem em vez de nuvë. De igual mo<strong>do</strong>, regularizámos as<br />
formas de 3. a pessoa <strong>do</strong> plural <strong>do</strong> perfeito, imperfeito e condicional (foram<br />
em vez de forão; eram em vez de erão) e a 3. a pessoa <strong>do</strong> plural <strong>do</strong> presente<br />
<strong>do</strong> indicativo <strong>do</strong>s verbos <strong>da</strong> 1 . a conjugação {estam > estão; sam > são);<br />
14. modernizámos a grafia <strong>do</strong>s ditongos orais, representan<strong>do</strong> com /' e u as<br />
semivogais. Assim, taes > tais; Heróe > Herói; Ceo > Céu; nao > nau; tea ><br />
teia. Foram igualmente altera<strong>da</strong>s as formas verbais <strong>da</strong> 3. a pessoa <strong>do</strong><br />
singular <strong>do</strong> perfeito <strong>da</strong> 2. a conjugação, como vio > viu; escreveo ><br />
escreveu..., e <strong>da</strong> forma <strong>do</strong> verbo <strong>da</strong>r (deo > deu) e <strong>do</strong> presente <strong>do</strong> verbo<br />
crer(creo> creio);<br />
III. Consoantes<br />
15. Substituímos o sigma pelo S: \er> Ser, \oberano > soberano;
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 91<br />
16. <strong>da</strong><strong>do</strong> tratar-se de um mero diacrítico sem valor fonético, regularizámos o<br />
emprego <strong>do</strong> h de acor<strong>do</strong> com a norma actual. Eliminámo-lo em posição<br />
inicial (como na 3. a pessoa <strong>do</strong> singular <strong>do</strong> presente <strong>do</strong> indicativo <strong>do</strong> verbo<br />
ser - he > é - ou no artigo indefini<strong>do</strong>: hum > um e huma > uma), em<br />
posição intervocálica (como em sahir > sail) e nos chama<strong>do</strong>s dígrafos<br />
helenizantes, como th (theologia > teologia); acrescentámo-lo contu<strong>do</strong> em<br />
posição inicial nalgumas formas <strong>do</strong> verbo haver,<br />
17. por não serem reflexo <strong>da</strong> pronúncia, simplificámos formas ortográficas<br />
latinizantes, como as consoantes <strong>do</strong>bra<strong>da</strong>s, exceptuan<strong>do</strong> resem posição<br />
intervocálica e com valor, respectivamente, de vibrante múltipla e sibilante<br />
sur<strong>da</strong>:<br />
CC > C {successos > sucessos...);<br />
CÇ > Ç (afflicção > aflição...);<br />
CH > C (chari<strong>da</strong>de > cari<strong>da</strong>de);<br />
CT > T (victoria > vitória);<br />
FF > F (offender > ofender);<br />
G G > G (aggravo > agravo);<br />
LL > L (illustre > ilustre);<br />
MM > M (immenso > imenso);<br />
NN > N (annais > anais);<br />
PP > P (apprehensão > apreensão);<br />
SC > C (sciencia > ciência);<br />
TT > T (setta > seta);<br />
18.uniformizámos o uso <strong>da</strong>s sibilantes:<br />
C > SS (socego > sossego);<br />
Ç > S (detença > defensa);<br />
S > SS (resuscitar> ressuscitar);<br />
19. regularizámos também a representação <strong>da</strong>s fricativas. Assim:<br />
- as fricativas alveolares foram grafa<strong>da</strong>s segun<strong>do</strong> as normas actuais, pelo<br />
que empreza passa a empresa; mez passa a mês; pezares passa a<br />
pesares;<br />
- a fricativa palatal sonora virá transcrita como g ou /, de acor<strong>do</strong> com as<br />
regras de hoje, pelo que Magestade passará a Majestade;
92 A novela portuguesa no século XVII:<br />
IV. Aspectos morfológicos<br />
20. Unimos e separámos as palavras de acor<strong>do</strong> com o uso moderno (por<br />
ventura >porventura; a penas > apenas; em fim > enfim; com tu<strong>do</strong> ><br />
contu<strong>do</strong>...), manten<strong>do</strong> a forma tal vez com o significa<strong>do</strong> de "alguma vez";<br />
21. preservámos formas arcaicas como defensa; fermosa; quasi; valerosa;<br />
pronóstico; felice...;<br />
22. mantivemos formas alternantes que possam traduzir alguns aspectos <strong>do</strong><br />
esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> língua na época: nacerl nascer, <strong>do</strong>usl<strong>do</strong>is; assilassim;<br />
emprendelempreende; mui/muito; meninice/mininice; depois/despois... ;<br />
V. Diacríticos<br />
23. Regularizámos o uso <strong>do</strong>s acentos: acrescentámos os acentos agu<strong>do</strong> e<br />
circunflexo às palavras esdrúxulas e graves como memoria, alivio, sábio,<br />
historia, inutil, clemência...; substituímos o acento agu<strong>do</strong> pelo grave nos<br />
<strong>caso</strong>s de contracção <strong>da</strong> preposição A (ás > às; àqueles > àqueles);<br />
retirámos o acento agu<strong>do</strong> às palavras como decoro, falarão, véllas...<br />
24. conservámos a 3. a pessoa <strong>do</strong> plural <strong>do</strong> presente <strong>do</strong> indicativo de verbos<br />
como ter, vere vir, na época monossilábicas, manten<strong>do</strong>-se as grafias teme<br />
vem;<br />
25. introduzimos o hífen para separar os pronomes enclíticos e mesoclíticos,<br />
substituin<strong>do</strong> há de por há-de; vella por vê-la;<br />
26. separámos com hífen os nomes compostos por justaposição, como meia<br />
noite por meia-noite, ou aparentes <strong>caso</strong>s de aglutinação, como<br />
bemaventura<strong>do</strong>s por bem-aventura<strong>do</strong>s;<br />
27. separámos alguns <strong>caso</strong>s em que o se condicional segui<strong>do</strong> <strong>da</strong> negativa não<br />
aparece grafa<strong>do</strong> num só vocábulo: senão > se não;<br />
VI. Maiúsculas e pontuação<br />
28. Uniformizámos o uso de maiúsculas, proceden<strong>do</strong> de uma forma geral à sua<br />
simplificação (Reino > reino; Ci<strong>da</strong>de > ci<strong>da</strong>de; Herói > herói...), mesmo no<br />
<strong>caso</strong> <strong>do</strong> nome <strong>do</strong>s povos (Tebanos > tebanos; Franceses > franceses...) e
O <strong>caso</strong> Mateus Ribeiro 93<br />
na inicial <strong>do</strong> nome de cargos ou profissões (Rei > rei; Príncipe > príncipe;<br />
Governa<strong>do</strong>r > governa<strong>do</strong>r, Cardeal > cardeal; Auditor > auditor...).<br />
Mantivemos contu<strong>do</strong> as formas Ermitão e Peregrino, quan<strong>do</strong> relativas a<br />
Felisberto e a Dionísio, que muitas vezes substituem os nomes próprios <strong>do</strong>s<br />
protagonistas. Conservámos ain<strong>da</strong> a maiúscula inicial nas palavras que se<br />
revestem de evidente valor expressivo ou possuem visível função simbólica<br />
[Cristan<strong>da</strong>de, Fama, Amor, Justiça...);<br />
29. procurámos intervir o mínimo possível no <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> pontuação, evitan<strong>do</strong><br />
descaracterizar o texto. No entanto, visan<strong>do</strong> facilitar a compreensão <strong>do</strong><br />
texto, substituímos os <strong>do</strong>is pontos pelo ponto e vírgula nos <strong>caso</strong>s em que o<br />
primeiro sinal de pontuação desempenha uma função hoje atribuí<strong>da</strong> ao<br />
segun<strong>do</strong>; trocámos o ponto e vírgula pelos <strong>do</strong>is pontos, o ponto de<br />
interrogação ou o ponto final; suprimimos a vírgula quan<strong>do</strong> separava o<br />
sujeito <strong>da</strong> forma verbal que se lhe seguia imediatamente ou antes <strong>da</strong>s<br />
conjunções e, ou, nem e que, à excepção <strong>do</strong>s <strong>caso</strong>s previstos na norma<br />
actual e ain<strong>da</strong> nos momentos em que um critério rítmico parece impor esse<br />
sinal de pontuação;<br />
30. abrimos parágrafo para indicar o início <strong>da</strong>s falas <strong>da</strong>s personagens<br />
dialogantes, assinala<strong>do</strong> com o travessão inicial, ou quan<strong>do</strong> justifica<strong>do</strong> pela<br />
sequência discursiva <strong>do</strong> texto.
94 Padre Mateus Ribeiro
PADRE MATEUS RIBEIRO<br />
ALÍVIO DE TRISTES E CONSOLAÇÃO DE QUEIXOSOS
96 Padre Mateus Ribeiro
~<br />
I<br />
A LI V<br />
/ . PEN<br />
T R m T ES<br />
E CONSOLAÇAM DE QUEIXOSOS :<br />
Seis Partes em <strong>do</strong>us Voiumes,em q fe dá fim a to<strong>da</strong> a Hiftoria: '<br />
C O M P O S T O<br />
Pelo P. MATHEVS RIBEYRO,<br />
Theologo Prega<strong>do</strong>r defte Arcebifpa<strong>do</strong> , & naturai\<br />
de Lisboa: *<br />
V OFFERECIDO<br />
A VIRÔEM SANTÍSSIMA DO MONTE<br />
DO CARMO-<br />
PRIMEIRO VOLVME,<br />
Nefta terceira impreíTaóacrecenta<strong>do</strong> com <strong>do</strong>us Indices novos<br />
to copiofos, & as quatro Partes primeiras com as annot, *<br />
çoens âs margens ,jque nunca tiveraó. f<br />
/Í 74917<br />
L I S B O-A,<br />
NaOfficina de MIGUEL DESLANDES.,<br />
IaiprefTor de Sua Mageftade.<br />
Acuftade Manoel Lopes Ferreira, & Antonio Corrêa <strong>da</strong> FonfeSf*.<br />
Merca<strong>do</strong>res de Uyros na Rua Nova. < ..ágj: 'Vtf<br />
OMt9dM&.li£WëutttcJ[arw,àPrivilegeRcaLj^o delóSSpsM<br />
£'áfv,<br />
Folha de rosto <strong>da</strong> edição de 1688.<br />
Exemplar <strong>da</strong> Biblioteca Nacional de Lisboa.<br />
^fcr<br />
HÊBF»
98 Padre Mateus Ribeiro
ALIVIO DE TRISTES<br />
E<br />
CONSOLAÇÃO DE QUEIXOSOS<br />
Seis Partes em <strong>do</strong>us Volumes em que se dá fim a to<strong>da</strong> a História<br />
COMPOSTO<br />
Pelo P. MATEUS RIBEIRO<br />
Teólogo Prega<strong>do</strong>r deste Arcebispa<strong>do</strong> e natural de Lisboa<br />
OFERECIDO À VIRGEM SANTÍSSIMA DO MONTE<br />
DO CARMO<br />
PRIMEIRO VOLUME<br />
Nesta terceira impressão acrecenta<strong>do</strong> com <strong>do</strong>us índices novos muito copiosos<br />
e as quatro partes primeiras com as anotações às margens que nunca tiveram.<br />
LISBOA,<br />
Na oficina MIGUEL DESLANDES,<br />
Impressor de Sua Majestade.<br />
À custa de Manuel Lopes Ferreira e António Correia <strong>da</strong> Fonseca,<br />
Merca<strong>do</strong>res de Livros na Rua Nova,<br />
Com to<strong>da</strong>s as licenças necessárias e Privilégio Real. Ano de 1688.
100 Padre Mateus Ribeiro
Alívio de tristes e consolação de queixosos 101<br />
DEDICATÓRIA<br />
À Mãe de Deus, a Soberana Rainha <strong>do</strong>s Anjos e Senhora <strong>do</strong>s<br />
Homens, a maior honra <strong>do</strong> Carmo<br />
MARIA<br />
Puríssima e Santíssima<br />
Se buscar alívio em os trabalhos, consolação em as penali<strong>da</strong>des e<br />
amparo em to<strong>da</strong>s as acções <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é tão natural aos Homens, a quem com<br />
maior razão devíamos invocar, procuran<strong>do</strong> vossa assistência nessas aflições e<br />
moléstias que a Vós, Divina Maria, Mãe de misericórdia, consolação <strong>do</strong>s aflitos,<br />
único amparo e alívio <strong>do</strong>s Homens e a maior Protectora de to<strong>do</strong> o Monte <strong>do</strong><br />
Carmo? Pois o título deste Livro que vos oferecemos nos traz à memória que<br />
Vós sois o maior alívio em as tristezas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e a mais eficaz consolação a<br />
nossas queixas. Pelo que, Divina Senhora, prostra<strong>do</strong>s a vossos pés,<br />
humildemente vos pedimos queirais aceitar debaixo de vossa protecção esta<br />
ain<strong>da</strong> que limita<strong>da</strong> oferta, contu<strong>do</strong> demonstra<strong>do</strong>ra de nosso agradecimento,<br />
pois com ela imos tanto a ganhar, que não é menos que vosso agra<strong>do</strong>,<br />
protecção e amparo. E sen<strong>do</strong> tão extraordinários os vossos favores para com<br />
to<strong>do</strong>s, são mui particulares os que comunicais aos que militamos debaixo de<br />
vosso patrocínio. E para que nos ampareis, humildemente vos oferecemos os<br />
nossos corações, que são as maiores dádivas que de nós quereis, e tu<strong>do</strong> vos<br />
rendemos em obséquio de nosso amor e em satisfação de nosso<br />
agradecimento.<br />
Indignos Escravos vossos,<br />
A.C.F. M.LF
102 Padre Mateus Ribeiro
Alívio de tristes e consolação de queixosos 103<br />
PROLOGO<br />
AO LEITOR<br />
Discreto leitor, são tão conheci<strong>do</strong>s e celebra<strong>do</strong>s por únicos os Alívios de<br />
Tristes <strong>do</strong> Revren<strong>do</strong> Padre Mateus Ribeiro que julgamos ser escusa<strong>do</strong> o<br />
encarecê-los, nem louvá-los, assim por não terem necessi<strong>da</strong>de de louvores,<br />
pois a si próprios com sua elegância e engenho se estão louvan<strong>do</strong>, como<br />
porque a contínua lição deles e experiência será a mais abona<strong>da</strong> testemunha<br />
de seu crédito; e só queremos e esperamos que para to<strong>do</strong>s sejam de grande<br />
alívio e consolação como em o título prometem. E se quan<strong>do</strong> dividi<strong>do</strong>s em<br />
volumes em a primeira e segun<strong>da</strong> impressão te foram mui agradáveis, agora o<br />
não serão menos, pois saem a público to<strong>da</strong>s as seis partes, dividi<strong>da</strong>s a <strong>do</strong>us<br />
volumes, em que se dá fim a to<strong>da</strong> a história, e acrecenta<strong>do</strong>s com <strong>do</strong>us<br />
copiosos índices de novo. Neles buscamos mais o teu cómo<strong>do</strong> e a facili<strong>da</strong>de<br />
de achares com to<strong>da</strong> a pressa as muitas descrições e definições de que<br />
abun<strong>da</strong> esta história, em que é muito singular. E assim mais saem de novo as<br />
quatro partes primeiras com as anotações às margens que nunca tiveram. E a<br />
quarta parte de Retiro de Cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s se fica imprimin<strong>do</strong> em que se dá também<br />
fim à história. Como tão discreto aceita de nós o zelo e vontade com que nesta<br />
obra te servimos, imitan<strong>do</strong> ao Céu que costuma sempre pagar-se mais de uma<br />
oferta de ânimo que de grandes riquezas.<br />
VALE.
104 Padre Mateus Ribeiro<br />
j
Alívio de tristes e consolação de queixosos 105<br />
INDEX<br />
DOS CAPÍTULOS DE TODAS AS TRES PARTES DESTE LIVRO<br />
I. PARTE<br />
Esta Primeira Parte, por não ir dividi<strong>da</strong> em Capítulos, se abreviou neste<br />
Sumário.<br />
ABREVIAÇÃO<br />
Ao tempo que um mancebo em traje de peregrino subia pelo fragoso <strong>do</strong><br />
Monte Gargano, hoje comummente chama<strong>do</strong> de Santo Ângelo, encontrou um<br />
venerável Ermitão que sain<strong>do</strong> de uma devesa vinha a prosseguir o mesmo<br />
caminho. E conhecen<strong>do</strong> este em o discurso <strong>da</strong> prática que com ele travou,<br />
sau<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se primeiro um ao outro, que o Peregrino dirigia seus passos a<br />
visitar o santuário <strong>do</strong> glorioso arcanjo S. Miguel, célebre em to<strong>da</strong> a<br />
Cristan<strong>da</strong>de, para onde ele também caminhava, humilde lhe pediu,<br />
consideran<strong>do</strong>-o triste e melancólico, quisesse referir-lhe de sua peregrinação a<br />
causa e de sua tristeza a ocasião. A cujos rogos urbanamente cortês obedeceu<br />
o Peregrino, satisfazen<strong>do</strong> a seus desejos com a narração que lhe pedia. E<br />
referin<strong>do</strong> de sua vi<strong>da</strong> os vários perío<strong>do</strong>s, de seus pais a antiga nobreza e de<br />
sua pátria as cruéis e civis guerras, achou nas discretas respostas <strong>do</strong><br />
entendi<strong>do</strong> Ermitão sossego a suas maiores inquietações, alívio a suas<br />
moléstias e consolação a seus pesares. E desengana<strong>do</strong> já <strong>do</strong>s enganos <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>, resolutamente se ofereceu a que o admitisse à sua companhia. A quem o<br />
Ermitão responden<strong>do</strong> disse:<br />
- Se este pobre <strong>do</strong>micílio vos contenta, eu sou o que na vossa<br />
companhia muito ganho.
106 Padre Mateus Ribeiro<br />
Agradeci<strong>do</strong> o Peregrino lhe tornou as graças e com corteses palavras<br />
aceitou ficar com ele. E depois de visitarem o prodigioso santuário <strong>do</strong> arcanjo<br />
S. Miguel, louvan<strong>do</strong> o Peregrino a vi<strong>da</strong> solitária, chegaram à ermi<strong>da</strong> dedica<strong>da</strong> à<br />
Virgem Santíssima, mora<strong>da</strong> e lugar próprio para sujeitos desengana<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s<br />
vai<strong>da</strong>des <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, onde o penitente Ermitão hospe<strong>do</strong>u ao desengana<strong>do</strong><br />
Peregrino, além <strong>do</strong> pobre agasalho e sustento limita<strong>do</strong> que lhe deu com uma<br />
grande vontade, mostran<strong>do</strong> quanto esta, sen<strong>do</strong> boa e perfeita, excede a to<strong>da</strong>s<br />
as iguarias e dádivas. E aí ficou de assento, abraçan<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> eremítica e<br />
solitária, servin<strong>do</strong>-lhe esta com aspereza de desengano à passa<strong>da</strong> licenciosa<br />
com o distraimento, sem que o desvelassem ambições, nem o ofendessem<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Desde pag. 115 até pag. 218.<br />
II. PARTE<br />
Cap. I. Em que o Ermitão dá princípio à relação de sua vi<strong>da</strong>. p. 219.<br />
Cap. II. Em que prossegue o Ermitão a sua história, p. 223.<br />
Cap. III. Em que o Ermitão refere o que lhe sucedeu na noite <strong>do</strong> roubo de<br />
Lucin<strong>da</strong>, p. 228.<br />
Cap. IV. Do que sucedeu em Nápoles e a notícia que se teve <strong>do</strong> roubo de<br />
Lucin<strong>da</strong>, p. 233.<br />
Cap. V. Em que o Ermitão prossegue os sucessos de sua prisão e a<br />
deliberação de Anastácia, p. 239.<br />
Cap. VI. Em que Felisberto refere a história de Eugenia, p. 245.<br />
Cap. VII. Em que se conta a fugi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s três prisioneiros <strong>do</strong> Castelo, p. 150.<br />
Cap. VIII. Em que prossegue o Ermitão os sucessos vários desta fugi<strong>da</strong>, p.<br />
255.<br />
Cap. IX. Em que se prossegue o que mais sucedeu com o capitão, p. 258.<br />
Cap. X. Da prática que teve Alexandre com seus companheiros e como foram<br />
neste sítio assaltea<strong>do</strong>s por ban<strong>do</strong>leiros, p. 262.
Alívio de tristes e consolação de queixosos 107<br />
Cap. XI. Em que se trata de quem era Frederico e o que com ele passámos.<br />
p. 267.<br />
Cap. XII. Em que Frederico relata seus sucessos, p. 269.<br />
Cap. XIII. Em que Frederico prossegue a história de Claudiana. p. 274.<br />
Cap. XIV. Em que Frederico prossegue a história de Claudiana. p. 278.<br />
Cap. XV. Do que mais passou Frederico com os passageiros, p. 282.<br />
Cap. XVI. Do que passámos até chegar a Roma. p. 291.<br />
Cap. XVII. Em que prossegue o Ermitão o que lhe sucedeu em Roma. p. 296.<br />
Cap. XVIII. De como foi a galé entregue e entrou Juliano preso em Nápoles.<br />
p. 303.<br />
Cap. XIX. Em que se prossegue o sucesso de Juliano, p. 314.<br />
Cap. XX. Da jorna<strong>da</strong> que fizemos a Liorne e <strong>do</strong> que nos sucedeu, p. 318.<br />
Cap. XXI. Do que se tratou sobre Juliano, p. 327.<br />
Cap. XXII. Do encontro <strong>do</strong> jurista Justino, p. 331.<br />
Cap. XXIII. Como chegámos a Nápoles e <strong>do</strong> casamento de Juliano e Lucin<strong>da</strong>.<br />
p. 342.<br />
Cap. XXIV. Em que se prossegue o que nisto passou até me partir a Nápoles.<br />
p. 346.<br />
Cap. XXV. Do que sucedeu a Felisberto e como se ausentou de Nápoles, p.<br />
351.<br />
Cap. XXVI. Do que sucedeu nos Castelo de Monte Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong> e como eu e<br />
Alexandre nos ausentámos, p. 359.<br />
Cap. XXVII. Como partimos de Florença e <strong>do</strong> sucesso que tivemos, p. 364.<br />
Cap. XXVIII. Em que o Peregrino Dionísio teve notícia <strong>do</strong> sucesso de seus<br />
ofensores. p. 369.<br />
Cap. Último. Em que se refere o que Dionísio e o Ermitão com Teo<strong>do</strong>ro<br />
passaram e se dá fim à história, p. 374.<br />
III. PARTE
108 Padre Mateus Ribeiro<br />
Cap. I. Da jorna<strong>da</strong> que Dionísio e Felisberto fizeram à casa de N. Senhora <strong>do</strong><br />
Loreto. p. 379.<br />
Cap. II. Como os nossos romeiros partiram <strong>da</strong> ermi<strong>da</strong> e <strong>do</strong> encontro que no<br />
caminho tiveram, p. 383.<br />
Cap. III. Em que Felizar<strong>do</strong> dá princípio a seus discursos, p. 387.<br />
Cap. IV. Em que Felizar<strong>do</strong> prossegue sua vi<strong>da</strong>. p. 392.<br />
Cap. V. Como Felizar<strong>do</strong> foi recolhi<strong>do</strong> em casa de Amatilde e <strong>do</strong> que lhe<br />
sucedeu, p. 395.<br />
Cap. VI. Como Felizar<strong>do</strong> com seus pais e Amatilde com os seus partiram para<br />
Ferrara, p. 400.<br />
Cap. VII. De como se descobriu quem era Amatilde e como se partiu de<br />
Ferrara, p. 410.<br />
Cap. VIII. Do roubo violento de Amatilde e <strong>do</strong> que nisto passou, p. 419.<br />
Cap. IX. Do que os peregrinos passaram com Felizar<strong>do</strong>, p. 428.<br />
Cap. X. Como Felizar<strong>do</strong> foi em companhia <strong>do</strong>s romeiros e <strong>do</strong> que sucedeu, p.<br />
433.<br />
Cap. XI. Em que Eugénio dá princípio à prodigiosa história de Reginal<strong>do</strong>. p.<br />
439.<br />
Cap. XII. Como Flora fez prender a Reginal<strong>do</strong> e como depois se ausentou de<br />
casa de seu pai com ele. p. 445.<br />
Cap. XIII. Em que se prossegue a história de Reginal<strong>do</strong>. p. 451.<br />
Cap. XIV. Da prática que teve Raimun<strong>do</strong> com Felis e como se ausentaram de<br />
Paris. p. 464.<br />
Cap. XV. Em que Raimun<strong>do</strong> prossegue seus discursos, p. 470.<br />
Cap. XVI. Do que sucedeu a Reginal<strong>do</strong> e como foi preso em Veneza, e o que<br />
nisso passou, p. 478.<br />
Cap. XVII. Do que Vespasiano fez neste negócio, até Reginal<strong>do</strong> se embarcar<br />
por capitão para Chipre, p. 492.<br />
Cap. XVIII. Das novas que chegaram a Flora <strong>da</strong> morte de Reginal<strong>do</strong> e <strong>do</strong> que<br />
fez. p. 502.
Alívio de tristes e consolação de queixosos 109<br />
Cap. XIX. Em que se trata <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Glória, p. 510.<br />
Cap. XX. Como os romeiros partiram <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e <strong>do</strong> que lhes sucedeu na<br />
pousa<strong>da</strong>, p. 518.<br />
Cap. XXI. Em que Constantino prossegue os discursos de sua vi<strong>da</strong>. p. 524.<br />
Cap. XXII. Em que Justiniano refere sua vi<strong>da</strong>. p. 532.<br />
Cap. XXIII. Em que Constantino refere a prática que teve com Justiniano e o<br />
que nisto mais sucedeu, p.540.<br />
Cap. XXIV. Como os romeiros partiram de Campo Martino e chegaram ao<br />
Loreto. p. 548.
110 Padre Mateus Ribeiro
Alívio de tristes e consolação de queixosos 111<br />
LICENÇAS<br />
Podem-se tornar a imprimir os cinco livros de que esta petição faz<br />
menção, e depois de impressos tornarão para se conferir e <strong>da</strong>r licença que<br />
corram, e sem ela não correrão. Lisboa, 15 de Junho de 1688.<br />
Jerónimo Soares. João <strong>da</strong> Costa Pimenta.<br />
Bento de Beja de Noronha. Pedro de Ataíde de Castro<br />
Fr. Vicente de Santo Tomás Estevão de Brito Foios<br />
João de Azeve<strong>do</strong><br />
Podem-se tornar a imprimir os livros de que a petição faz menção, e<br />
depois tornarão para se conferir e se <strong>da</strong>r licença para correrem, e sem ela não<br />
correrão. Lisboa, 21 de Agosto de 1688.<br />
Serrão.<br />
Que se possa imprimir, vistas as licenças <strong>do</strong> Santo Ofício e Ordinário, e<br />
depois de impresso tornará à mesa para se taxar e conferir, e sem isso não<br />
correrá. Lisboa, e de Setembro de 1688.<br />
Melo P. Roxas. Lampreia. Marchão. Azeve<strong>do</strong>. Ribeiro<br />
Visto constar estar conforme com o seu original, pode correr. Lisboa, 8<br />
de Março de 1689.<br />
Soares. Pimenta. Noronha. Castro. Fr. Vicente de S. Tomás. Foios. Azeve<strong>do</strong>.<br />
Serrão.<br />
Pode correr. Lisboa, 9 de Março de 1689.<br />
Taxam estas primeiras cinco partes em quinhentos e cinquenta reis e a<br />
sexta parte em cento e cinquenta reis. Lisboa, 1o de Março de 1689.<br />
Melo P. Roxas. Lampreia. Marchão. Ribeiro.
112 Padre Mateus Ribeiro
Alívio de tristes e consolação de queixosos 113<br />
ALIVIO DE TRISTES<br />
CONSOLAÇÃO DE QUEIXOSOS
114 Padre Mateus Ribeiro
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 115<br />
ALIVIO DE TRISTES<br />
E<br />
CONSOLAÇÃO DE QUEIXOSOS<br />
I. PARTE<br />
Subia pelo fragoso <strong>do</strong> antigo monte Gargano, hoje vulgarmente<br />
chama<strong>do</strong> de santo Ângelo, na Apulha, um mancebo em traje de peregrino, de<br />
agradável presença e disposição aprazível, quan<strong>do</strong> apenas a vanguar<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />
luzes <strong>da</strong> aurora tinha posto em fugi<strong>da</strong> a retaguar<strong>da</strong> <strong>da</strong>s escuras sombras <strong>da</strong><br />
noite e o sol, como monarca <strong>do</strong>s astros, começava a manifestar a fermosura de<br />
seus raios entre as cristalinas on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mar Adriático, que como espelhos<br />
reverbera<strong>do</strong>s com tantas luzes resplandeciam. Já os penhascosos outeiros iam<br />
<strong>do</strong>uran<strong>do</strong> seus mais levanta<strong>do</strong>s riscos com a presença <strong>do</strong> rutilante planeta, a<br />
quem faziam salva as músicas aves com seu canto e os pra<strong>do</strong>s ofereciam<br />
ramalhetes <strong>da</strong>s flores mais vistosas de que os tinha enriqueci<strong>do</strong> a Primavera.<br />
Tem o monte as subi<strong>da</strong>s vagarosas por sua grande eminência em que se<br />
mostra sobranceiro juntamente ao mar que suas raízes venera e a diversas<br />
povoações <strong>da</strong> terra que à vista e sombra de obelisco tão milagroso se<br />
asseguram.<br />
la o peregrino varian<strong>do</strong> horizontes com os diferentes perío<strong>do</strong>s de sua<br />
jorna<strong>da</strong>, contemplan<strong>do</strong> os vários lugares e povoações diferentes que deste<br />
grande monte se descobriam. Via-se a insigne ci<strong>da</strong>de de Manfredónia, situa<strong>da</strong><br />
nas firmes bases de seus roche<strong>do</strong>s, junto às ribeiras <strong>do</strong> mar, por Manfre<strong>do</strong>, rei<br />
de Nápoles, no ano de mil e duzentos <strong>do</strong> nascimento de nosso Salva<strong>do</strong>r Jesus<br />
Cristo, como escreve Pan<strong>do</strong>lfo Collenucio nas histórias <strong>do</strong> reino. É esta ci<strong>da</strong>de
116 Padre Mateus Ribeiro<br />
forte de sítio e populosa de gente, que com notável valor se defendeu de<br />
Lautreco, capitão de Francisco, rei de França, na conquista que intentou <strong>do</strong><br />
reino de Nápoles, sem jamais poder render esta nobre ci<strong>da</strong>de, uma <strong>da</strong>s mais<br />
ilustres de Apulha. Daqui juntamente se divisam as ruínas <strong>da</strong> antigua ci<strong>da</strong>de de<br />
Siponto que edifica<strong>da</strong> nas raízes deste grande monte foi célebre empório de<br />
Itália, a qual dizem fun<strong>do</strong>u Diomedes, e dela faz menção Tito Lívio 146 em<br />
alguns lugares. Foi povoação mui rica e populosa até que a conquistaram os<br />
mouros, juntamente com o restante de Apulha, e nela habitaram até o tempo<br />
<strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Carlos Magno que dela os lançou; os quais como bárbaros,<br />
antes de saírem, executaram em seus mora<strong>do</strong>res notáveis cruel<strong>da</strong>des,<br />
deixan<strong>do</strong>-a quasi assola<strong>da</strong>, e servin<strong>do</strong> de último complemento à sua ruína civis<br />
discórdias de seus naturais e grandes terremotos que lhe sucederam; porém<br />
que edifícios por mais fortes (como diz Cícero 147 ) podem isentar-se <strong>do</strong>s<br />
poderes <strong>do</strong> tempo para que seu discurso os não acabe?<br />
Assim nesta consideração diverti<strong>do</strong> (para divertir seu sentimento) com a<br />
memória destas antigui<strong>da</strong>des e com a vista de tão alegres horizontes que à<br />
parte <strong>da</strong> terra se descobriam, ia o nosso Peregrino entreten<strong>do</strong> a moléstia <strong>da</strong><br />
subi<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> chegou a emparelhar com ele, sain<strong>do</strong> de uma devesa que à<br />
mão direita ficava, um Ermitão, ancião de venerável presença, que de outra<br />
devesa, como disse, vinha a prosseguir o mesmo caminho que o Peregrino<br />
levava. Sau<strong>do</strong>u o Ermitão com discretas palavras e conhecen<strong>do</strong> em o discurso<br />
<strong>da</strong> prática que o Peregrino subia o monte leva<strong>do</strong> <strong>da</strong> devoção de visitar aquele<br />
insigne santuário que, dedica<strong>do</strong> à memória <strong>do</strong> príncipe <strong>do</strong>s exércitos <strong>da</strong> Glória,<br />
o arcanjo S. Miguel, a devoção <strong>do</strong>s fiéis por milagrosas admoestações<br />
frequentava, conhecen<strong>do</strong> no peregrino em evidências de discreto, aparências<br />
de <strong>do</strong>uto, lhe disse assim:<br />
- Se, como disse o grande Agostinho 148 , a moci<strong>da</strong>de e velhice, que não<br />
podem <strong>da</strong>r-se juntamente no corpo, podem bem achar-se juntas na alma, com<br />
razão posso persuadir-me, discreto mancebo, que se acha em vós na flor <strong>do</strong>s<br />
anos, na primavera <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de que vossa presença confirma, a discrição e<br />
Tit. Liv., Lib. 8 & 35.<br />
Cicer., Pro Marcelo.<br />
Aug., Lib. 1. Retrac.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 117<br />
prudência que minha anciani<strong>da</strong>de representa. Não duvi<strong>do</strong>u Aristóteles 149 que<br />
pudessem ser sábios, porque como a maior parte <strong>da</strong> sabe<strong>do</strong>ria pen<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
experiência e esta <strong>da</strong> madureza <strong>do</strong>s anos, parece que implicava <strong>da</strong>r-se ou<br />
sabe<strong>do</strong>ria sem experiência ou experiência sem o discurso de larga i<strong>da</strong>de:<br />
porém estão no tempo presente as letras tão apura<strong>da</strong>s e os engenhos tão<br />
vivos, e vejo os anais e crónicas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tão copiosas <strong>do</strong>s sucessos e<br />
experiências dele, que sem dúvi<strong>da</strong> podem os mancebos alcançar estu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> os<br />
avisos <strong>da</strong> experiência que conseguiam os anciãos viven<strong>do</strong>. E porque em<br />
vossas palavras descobri indícios juntamente de vosso aviso e sentimento, que<br />
tristezas e alegria com dificul<strong>da</strong>de se dissimulam, vos peço, pois ain<strong>da</strong> agora o<br />
sol nace (se causa não há que a maior pressa vos obrigue), descansemos um<br />
pouco e me digais a causa de vossa peregrinação, a ocasião de vossas<br />
tristezas, se elas o permitem, que achareis em mim senão remédio porventura<br />
alívio, que os males comunica<strong>do</strong>s muitas vezes se diminuem e as ânsias<br />
reconcentra<strong>da</strong>s crescem, prometen<strong>do</strong> compensar-vos a narração com a de<br />
minha vi<strong>da</strong>, que porventura vos servirá em parte de roteiro com que caminhais<br />
mais seguro pelos enganos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que eu alcancei com a experiência que,<br />
como ensina Demóstenes 150 , é mestra de acautelar descui<strong>da</strong><strong>do</strong>s que sem ela<br />
muitas vezes sucederam.<br />
- São tantos os interesses (disse o Peregrino) que me resultam de<br />
vossa discreta companhia que em parte me pesa por me haverdes ganha<strong>do</strong><br />
por mão com pedir-me vos conte o que eu para alívio de minhas penas<br />
houvera de rogar-vos me ouvísseis. Descansemos aonde quiserdes e vos <strong>da</strong>rei<br />
notícia de minha vi<strong>da</strong> e infortúnios, para que de vós receba neles consolação,<br />
pois não espero achar remédio e ain<strong>da</strong> <strong>do</strong> alívio duvi<strong>do</strong>.<br />
Deu-lhe o Ermitão as graças de sua cortesia e desvian<strong>do</strong>-se ambos <strong>do</strong><br />
caminho e subi<strong>da</strong> <strong>do</strong> monte por algum espaço, assenta<strong>do</strong>s na verde relva,<br />
junto a uma selva de algumas que o monte em algumas partes ocupam, o<br />
Peregrino começou sua história dizen<strong>do</strong>:<br />
- Suposto que meu nacimento foi em Paris, a principal ci<strong>da</strong>de, metrópoli<br />
e real corte <strong>do</strong> reino de França, aquele mun<strong>do</strong> abrevia<strong>do</strong> em quem parece se<br />
Arist., Ethic. 6.<br />
Demosth., in Arg. lib.
118 Padre Mateus Ribeiro<br />
recompilou sua grandeza, meu pai foi natural <strong>da</strong> soberba Génova, aquele<br />
célebre empório <strong>do</strong> mar Tirreno que, como dizem vários autores que de sua<br />
grandeza tratam, parece se lhe deu o nome de Génova por ser a porta <strong>do</strong><br />
comércio <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>, ou já fosse edifica<strong>da</strong> por Jano, rei de Itália, a quem a<br />
antigui<strong>da</strong>de pintava com <strong>do</strong>us rostos e nesta ci<strong>da</strong>de, dizem, foi primeiro que em<br />
to<strong>da</strong>s venera<strong>do</strong>, ou fosse fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por Genuo Prisco, primeiro rei de Itália, ou<br />
por Genuíno, companheiro de Faetonte, como quer o historia<strong>do</strong>r Paulo<br />
Perugino 151 . Nesta ci<strong>da</strong>de naceu e se criou meu pai que se chamava Anastácio<br />
de Fiesco, família <strong>da</strong>s mais antigas e ilustres desta senhoria, de antes nela tão<br />
aplaudi<strong>da</strong> e hoje tão pouco venturosa desde aquele infeliz sucesso <strong>do</strong> conde<br />
João Luís de Fiesco, meu tio, de que enten<strong>do</strong> já tereis notícia, pois tanto em<br />
Europa o divulgou a fama.<br />
- Antes (disse o Ermitão) estimarei muito me queirais referir essa trágica<br />
história, porque ain<strong>da</strong> que algumas vezes ouvi tratar a narração desse<br />
sucesso, foi com tanta varie<strong>da</strong>de que antes me deixou duvi<strong>do</strong>so que<br />
certifica<strong>do</strong>.<br />
- Seja como ordenais (respondeu o Peregrino) que de hoje em diante é<br />
lei em mim vosso gosto para obedecer-vos.<br />
Para tomar a história mais de seu princípio, haven<strong>do</strong> de ser dela cronista<br />
não apaixona<strong>do</strong> mas ver<strong>da</strong>deiro, pressuponho que, se como disse Euripides,<br />
ordinariamente to<strong>da</strong>s as cousas <strong>da</strong> terra an<strong>da</strong>m em contínua mu<strong>da</strong>nça, antes<br />
sen<strong>do</strong> esta, como escreve Marco Túlio 152 , proprie<strong>da</strong>de que segue as criaturas<br />
sublunares, em nenhuma mais se manifesta que nos governos e<br />
administrações públicas <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des e magistra<strong>do</strong>s delas. E porventura seria<br />
essa a razão de dizer Aristóteles 153 que a arte de governar ci<strong>da</strong>des e repúblicas<br />
era a primeira entre to<strong>da</strong>s as artes; porque, como ensina Plutarco na Política,<br />
tem dificul<strong>da</strong>de grande o haver de governar multidão, talvez com mu<strong>da</strong>nça de<br />
leis e estatutos encontra<strong>do</strong>s a seus costumes e licencioso viver; sen<strong>do</strong> muitas<br />
vezes necessário mu<strong>da</strong>r de estilo e parecer, como diz Cícero 154 , quem<br />
151 Perugin.<br />
152 Cícero, Pro Mur. & Offic.<br />
153 Arist., Ethic. 1.<br />
154 Cícero.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 119<br />
governa, para se acomo<strong>da</strong>r à disposição <strong>do</strong>s tempos que com sua varie<strong>da</strong>de<br />
muitas cousas inovam. E com ser esta regra universal em to<strong>do</strong>s os impérios,<br />
monarquias e reinos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, se considerarmos bem as mu<strong>da</strong>nças que em<br />
seus governos houve, em a soberba Génova acharemos na reali<strong>da</strong>de<br />
exemplifica<strong>do</strong> um modelo <strong>da</strong> própria mu<strong>da</strong>nça, um geroglífico <strong>da</strong> mesma<br />
inconstância e varie<strong>da</strong>de. E pon<strong>do</strong> de parte suas antigas calami<strong>da</strong>des, sen<strong>do</strong><br />
presa, assola<strong>da</strong> e saquea<strong>da</strong> <strong>do</strong>s cartagineses no ano <strong>da</strong> criação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> de<br />
três mil setecentos e cinquenta e sete, no consula<strong>do</strong> em Roma de Públio<br />
Cornélio Cipião e Licínio Crasto, como se colige de Tito Lívio 155 , o qual<br />
juntamente no livro trigésimo refere como foi restaura<strong>da</strong> por Lucrécio,<br />
aumentan<strong>do</strong>-se <strong>da</strong>í em diante com manifesta grandeza sua opulência, té que<br />
foi outra vez saquea<strong>da</strong> por Lotário, rei <strong>do</strong>s longobar<strong>do</strong>s, no ano de nossa<br />
redenção de seiscentos e sessenta, sen<strong>do</strong> senhor de to<strong>da</strong> a Lombardia,<br />
fican<strong>do</strong>-lhe juntamente Génova sujeita e a seus sucessores que lhe<br />
concederam licença que de seus mesmos ci<strong>da</strong>dãos elegesse alguns capitães<br />
que a governassem como lugar-tenentes <strong>do</strong> império, com que se conservou e<br />
aumentou sua grandeza, té que no ano de novecentos e trinta e cinco foi<br />
saquea<strong>da</strong> pelos mouros que, usan<strong>do</strong> bárbaras cruel<strong>da</strong>des em seus mora<strong>do</strong>res<br />
e levan<strong>do</strong> cativos os meninos que colher puderam, deixaram a ci<strong>da</strong>de deserta<br />
e quasi de to<strong>do</strong> assola<strong>da</strong>.<br />
Porém, como seu sítio era tão próprio para ser escala <strong>do</strong> maior<br />
comércio, brevemente se tornou a restaurar sua ruína, resgatan<strong>do</strong>-se a maior<br />
parte <strong>do</strong>s meninos genoveses que os bárbaros cativos tinham e aumentan<strong>do</strong>-<br />
se <strong>da</strong>í em diante tanto suas riquezas e felici<strong>da</strong>des que, engrandeci<strong>da</strong> com<br />
tantas prosperi<strong>da</strong>des, adquiriu o título de soberba Génova que com a fama de<br />
suas conquistas e vitórias entre to<strong>da</strong>s as nações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> a enobrece e a faz<br />
conheci<strong>da</strong>.<br />
O governo e administração dela entre tantas mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong> ventura bem<br />
se mostra que não podia ser muito permanente, antes um geroglífico <strong>da</strong><br />
mesma inconstância, porque té o ano de mil duzentos e dezassete sempre se<br />
governou por seus mesmos ci<strong>da</strong>dãos, chaman<strong>do</strong> porém algumas vezes algum<br />
estrangeiro que no governo de maioral servisse para evitar discórdias e<br />
Tir. Liv., Lib. 28.
120 Padre Mateus Ribeiro<br />
parciali<strong>da</strong>des; estas, porém, não poden<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> escusar-se, fizeram que o<br />
povo se entregasse a Roberto, rei de Nápoles, em cujo <strong>do</strong>mínio esteve<br />
dezassete anos, tempo em que as intestinas discórdias nas mais antiguas e<br />
ilustres famílias foram varian<strong>do</strong> magistra<strong>do</strong>s, elegen<strong>do</strong> duques já de uma<br />
família, já de outra, té se sujeitarem ao duque de Milão, tempo em que em Itália<br />
começaram aqueles escan<strong>da</strong>losos ban<strong>do</strong>s de Guelfos e Gibelinos que como<br />
mal contagioso foram inficionan<strong>do</strong> a maior parte dela e toman<strong>do</strong> força em<br />
Génova como ci<strong>da</strong>de idónea a admitir to<strong>da</strong>s as novi<strong>da</strong>des e mu<strong>da</strong>nças, de<br />
mo<strong>do</strong> se arreigaram tão cruentas parciali<strong>da</strong>des que o povo se pôs na protecção<br />
de Carlos VII, rei de França. Este é que man<strong>do</strong>u governa<strong>do</strong>res franceses;<br />
passa<strong>do</strong>s treze anos, foram <strong>do</strong>s genoveses rejeita<strong>do</strong>s, tornan<strong>do</strong> à obediência<br />
<strong>do</strong>s duques de Milão. Nem aqui parou ou fez assento firme a contínua<br />
mu<strong>da</strong>nça de seu governo, antes dentro em pouco tempo tornaram os<br />
genoveses a eleger governa<strong>do</strong>r ou duque de seus mesmos ci<strong>da</strong>dãos, em que<br />
entraram as inimizades de A<strong>do</strong>rnos e Fregosos com as muitas discórdias que<br />
seus anais referem. Finalmente, por abreviar tantas varie<strong>da</strong>des e mu<strong>da</strong>nças,<br />
depois de serem por diversas vezes sujeitos d'el-rei de França e se haverem (a)<br />
isenta<strong>do</strong> de seu <strong>do</strong>mínio, arruinan<strong>do</strong> aquela insigne fortaleza chama<strong>da</strong> a Bri<strong>da</strong>,<br />
que Luís XII de França edificou junto ao porto de Génova para os ter sujeitos,<br />
deram ultimamente (b) obediência ao empera<strong>do</strong>r Carlos V em tempo de André<br />
Dória, seu almirante, que absolutamente como superintendente <strong>do</strong> governo<br />
administrava tu<strong>do</strong> neste tempo.<br />
Sucedeu que o conde João Luís de Fiesco, meu tio, mancebo de florente<br />
i<strong>da</strong>de, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de grande e rico esta<strong>do</strong>, em extremo aceito ao povo de Génova<br />
pelas muitas partes que o enobreciam, assim de valor como de descrição e<br />
nobreza, não poden<strong>do</strong> sofrer o absoluto <strong>do</strong>mínio que o príncipe Dória na<br />
república tinha como almirante e lugar-tenente <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r que a<br />
senhoreava, tratou de se apoderar <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, toman<strong>do</strong> a voz d'el-rei de França,<br />
a quem se sentia obriga<strong>do</strong> por favores que os Fiescos dele receberam quan<strong>do</strong><br />
a senhoria de Génova tinha. Não era esta mu<strong>da</strong>nça de governo que o conde<br />
afectava causa<strong>da</strong> de algum ódio que ao príncipe Dória tivesse, pois lhe era<br />
Manteremos as formas <strong>do</strong> verbo Haver no plural, com o senti<strong>do</strong> de Ter ou Existir.<br />
Equivalente a por último, finalmente.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 121<br />
muito aceito e particular amigo seu se mostrava; porém um ânimo ambicioso e<br />
arrogante qual o <strong>do</strong> conde era nem sabe consentir igual<strong>da</strong>des, quanto mais<br />
sofrer maiorias. Lá disse o príncipe <strong>da</strong> eloquência latina 156 que não havia meio<br />
mais eficaz para romper amizades, por mais íntimas que parecessem, que<br />
presumir ser superior quem conciliou as vontades com parecer igual entre<br />
iguais; disse Quintiliano 157 que não havia competências porquanto ninguém<br />
inveja senão o que lhe falta e nos outros mais lustra; porém somente a<br />
ambição, como cega, que assim lhe chamou a boca de ouro de S. João<br />
Crisóstomo 158 , não se contentan<strong>do</strong> com rejeitar e encontrar maiorias, não sabe<br />
nem pode sofrer igual<strong>da</strong>des.<br />
Era o conde ambicioso com excesso, como mancebo tão ilustre e rico, e<br />
os desejos de livrar Génova sua pátria <strong>do</strong> absoluto poder que o príncipe Dória<br />
nela tinha e juntamente demonstrar-se agradeci<strong>do</strong> a França, de quem esperava<br />
ter o supremo governo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, e sobre tu<strong>do</strong> afectos de adquirir no mun<strong>do</strong><br />
fama e nome, o persuadirão a empreender a morte <strong>do</strong> príncipe Dória e as<br />
mu<strong>da</strong>nças <strong>do</strong> governo e magistra<strong>do</strong>s de sua pátria; porém, desejos de<br />
imortalizar seu nome, de eternizar sua fama em epitáfios permanentes contra a<br />
duração <strong>do</strong>s tempos, a que empresas não incitaram, a que temeri<strong>da</strong>des não<br />
induziram juvenis pensamentos! Heróstrato não por outra causa (como refere<br />
Estrabão) abrasou aquele famoso templo de Diana em Éfeso, que foi um <strong>da</strong>s<br />
sete maravilhas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, senão para deixar de si memória perdurável. De<br />
Fídias, aquele insigne escultor ateniense, se conta que em aquela admirável<br />
imagem de Minerva que fez, obra mais para ser admira<strong>da</strong> de to<strong>do</strong>s que imita<strong>da</strong><br />
de nenhum artífice pela singular perfeição que continha, ven<strong>do</strong> que não lhe era<br />
permiti<strong>do</strong> gravar nela o nome <strong>do</strong> autor que a fizera, debuxou e retratou com o<br />
ferro no escu<strong>do</strong> <strong>da</strong> deusa seu rosto, tanto ao natural e com tal artificio que não<br />
podia a imagem ser vista sem se conhecer o autor que tão admirável obra<br />
fizera, para que assim ficasse seu nome eterniza<strong>do</strong> nas memórias <strong>da</strong>s gentes.<br />
Cie, in Lai.<br />
Quintil., Declam. 8.<br />
Chrisist., Horn. 28 in Act. Apost.
122 Padre Mateus Ribeiro<br />
Do valeroso mancebo Pausânias Macedónio, referem Dio<strong>do</strong>ro Sículo,<br />
Plutarco e Justino 159 , que perguntan<strong>do</strong> a Hermocles que faria para de repente<br />
ficar no mun<strong>do</strong> célebre e conheci<strong>do</strong>, ele lhe respondera que matasse a algum<br />
poderoso príncipe ou monarca <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>; e Pausânias, leva<strong>do</strong> de desejos de<br />
imortalizar seu nome, matou a Filipe, rei de Macedónia, pai <strong>do</strong> grande<br />
Alexandre, para que na morte de tal monarca juntamente ficasse corren<strong>do</strong><br />
parelhas sua fama com a memória dela.<br />
Se de semelhantes efeitos estão cheias as histórias, não é muito de<br />
admirar que sen<strong>do</strong> o conde meu tio mancebo, ilustre, valeroso, tão próspero<br />
nas riquezas e sobretu<strong>do</strong> tão desejoso de ganhar fama, e não poden<strong>do</strong> sofrer<br />
seu ânimo ambicioso e inquieto tão soberanos poderes, quais o príncipe Dória<br />
em Génova mostrava, intentasse com tirar-lhe a vi<strong>da</strong> e, mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o governo,<br />
adquirir o supremo magistra<strong>do</strong> dela, debaixo <strong>da</strong> protecção de França, de quem<br />
se sentia obriga<strong>do</strong> e esperava ser mais favoreci<strong>do</strong>. E como nele não se <strong>da</strong>va<br />
menos valor para empreender que engenho para com astúcia traçar os meios<br />
mais convenientes e menos suspeitosos para conseguir seu intento, porque<br />
muitas vezes não é bastante somente o valor, mas juntamente a dissimulação<br />
e fingimento, como costumava dizer aquele astuto capitão <strong>do</strong>s lacedemónios,<br />
Lisandro, que lançan<strong>do</strong>-se-lhe algumas vezes em rosto que pois dizia<br />
descender de Hércules, qual era razão por que não conseguia sempre suas<br />
empresas com o valor <strong>da</strong>s batalhas, senão com o fingimento <strong>da</strong>s astúcias, dizia<br />
que o que a pele <strong>do</strong> leão de Hércules não podia levar ao fim, era necessário<br />
que o disfarce <strong>da</strong> pele de raposa o conseguisse. Assim o conde João Luís de<br />
Fiesco primeiro traçou com a subtileza de seu engenho, o que ao depois<br />
intentou executar com a grandeza de seu valor.<br />
Era ele muito aceito ao príncipe André Dória, e dele mui cortesmente<br />
recebi<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> o visitava, e assim um dia sobre prática lhe disse o conde,<br />
como desejoso de saber algumas empresas contra os mouros e turcos,<br />
determinava armar quatro galés à sua custa, bem equipa<strong>da</strong>s de sol<strong>da</strong>desca<br />
escolhi<strong>da</strong>, e com elas sair a correr a costa de Itália, procuran<strong>do</strong> ocasiões de<br />
executar algumas facções ilustres em crédito de sua pátria e de seu nome.<br />
Aprovou-lhe o príncipe Dória a honrosa intenção, ignorante <strong>do</strong> fim cauteloso a<br />
Dio<strong>do</strong>r. e Plut., in Alex. Justin, lib. 9.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 123<br />
que se dirigia, com o qual beneplácito apoia<strong>da</strong> sua intenção e assegura<strong>do</strong>s<br />
seus desejos, convocou de seus castelos e lugares muitos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s seus<br />
vassalos e amigos, gente escolhi<strong>da</strong> para desempenhar-se de qualquer<br />
empresa, não declaran<strong>do</strong> porém a algum deles sua dissimula<strong>da</strong> vontade, mas<br />
dizen<strong>do</strong>-lhes o mesmo que ao príncipe Dória tinha dito. E não se confian<strong>do</strong> de<br />
fazer em Génova alarde manifesto de to<strong>da</strong> a sol<strong>da</strong>desca que convocara, por<br />
não <strong>da</strong>r suspeitas <strong>do</strong> que na reali<strong>da</strong>de empreendia, muita parte dela tinha<br />
oculta em sua casa e em outras partes convenientes para que não fosse vista;<br />
porém talvez se a muitos podem algumas cousas encobrir-se, não podem a<br />
to<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong> ocultar-se, como sucedeu a Joanetino Dória, sobrinho <strong>do</strong><br />
príncipe, o qual com maduro discurso, reparan<strong>do</strong> nesta preparação desusa<strong>da</strong> e<br />
militar que o conde fazia, e parecen<strong>do</strong>-lhe o número de sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s demasia<strong>do</strong> e<br />
excessivo para guarnição somente de quatro galés, conhecen<strong>do</strong> juntamente a<br />
inquieta condição <strong>do</strong> Fiesco e seu ânimo ambicioso que em juvenis anos ain<strong>da</strong><br />
mais suspeitosa a faziam, sen<strong>do</strong> o coração como presságio de seus<br />
infortúnios, não deixou de advertir ao príncipe seu tio estas suspeitas que <strong>da</strong>s<br />
preparações e aprestos <strong>do</strong> conde tinha; porém o príncipe Dória, que seu<br />
particular amigo era e lhe estava afeiçoa<strong>do</strong> por suas partes, não se chegou<br />
jamais a persuadir de que houvesse no conde diferente intento <strong>do</strong> que dito lhe<br />
tinha.<br />
Ou fosse que o conde tivesse já alguma notícia de haver já de seus<br />
militares aprestos tal suspeita, ou que tivesse já tu<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong> para pôr em<br />
execução o que intentava, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> ordem a seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>do</strong> que havia de se<br />
fazer, arman<strong>do</strong>-se ele, seus irmãos e obriga<strong>do</strong>s, uma noite saiu no maior<br />
silêncio dela com sua sol<strong>da</strong>desca e, ocupan<strong>do</strong> a porta que ao paço <strong>do</strong> príncipe<br />
Dória encaminhava com grosso presídio em as ruas e lugares mais vizinhos e<br />
principais, saiu com sua esquadra ao porto em que estavam as galés <strong>do</strong><br />
príncipe com pouca guar<strong>da</strong> e muito descui<strong>do</strong>, e começou a senhorear-se delas,<br />
ferin<strong>do</strong> e matan<strong>do</strong> quantos se lhe opunham e resistiam. O rumor deste<br />
levantamento soou logo na ci<strong>da</strong>de, o qual suceden<strong>do</strong> de noite que, como diz<br />
Quintiliano 160 , não somente com a confusão <strong>da</strong>s vozes, porém muitas vezes<br />
com o mesmo silêncio, costuma acrescentar o pavor a ânimos descui<strong>da</strong><strong>do</strong>s; e<br />
Quintil., Declam. 2.
124 Padre Mateus Ribeiro<br />
sen<strong>do</strong> ordinariamente a fama maior que os sucessos que a causam, como<br />
Ovídio 161 e Virgílio 162 disseram, não era maravilha que em tão repentino<br />
tumulto, e não espera<strong>do</strong>, à igual<strong>da</strong>de <strong>da</strong> confusão se aumentasse o temor.<br />
Joanetino Dória, sobrinho <strong>do</strong> príncipe, que a este alvoroço saiu<br />
acelera<strong>da</strong>mente, foi logo morto pelos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>do</strong> conde, que ocupa<strong>da</strong>s tinham<br />
as praças e lugares mais importantes.<br />
Chegou logo ao príncipe Dória a nova de sua morte, juntamente com as<br />
de tão belicoso levantamento e estron<strong>do</strong> <strong>da</strong>s armas que entre confusas vozes<br />
aclamavam o nome de Fiesco e liber<strong>da</strong>de; e intimi<strong>da</strong><strong>do</strong> o príncipe de tão<br />
evidente perigo, saiu por uma porta <strong>do</strong> paço que junto ao mar havia e,<br />
servin<strong>do</strong>-lhe de escu<strong>do</strong> o grande escuro <strong>da</strong> noite, em uma fragata, a to<strong>do</strong> o<br />
impulso <strong>do</strong>s remos, se retirou <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, costean<strong>do</strong> as ribeiras marítimas <strong>do</strong><br />
Poente. Já neste tempo estavam ocupa<strong>do</strong>s os principais lugares pelos<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>do</strong> conde, com tanto acerto e ordem em to<strong>da</strong>s as cousas, que sem<br />
dúvi<strong>da</strong> a não suceder neste tempo sua repentina e não espera<strong>da</strong> morte ficava<br />
Génova nesta ocasião em poder <strong>do</strong> conde, por el-rei de França. To<strong>da</strong>s as<br />
galés <strong>do</strong> príncipe e as <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r estavam já rendi<strong>da</strong>s pelos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
conde, sem haver quem já nem resistisse, nem as defendesse; porém como a<br />
fortuna que até esse tempo e hora tinha favoreci<strong>do</strong> seus intentos quisesse <strong>da</strong>r-<br />
Ihe fim trágico e lamentável, sen<strong>do</strong> sua condição (como disse o Séneca) não<br />
patrocinar com perseverança a quem mostrou risonho aspecto por lisonja,<br />
sucedeu que estan<strong>do</strong> o conde arma<strong>do</strong> com a espa<strong>da</strong> na mão entre duas galés,<br />
quan<strong>do</strong> as rendia, meten<strong>do</strong> nelas a guarnição de seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, em lugar <strong>do</strong>s<br />
outros que fugin<strong>do</strong> à fúria de seus golpes ao mar se arrojavam, queren<strong>do</strong><br />
passar de uma galé a outra, uma tábua, que de ponte servia, desvian<strong>do</strong>-se<br />
com o movimento, o despenhou ao mar sem ser <strong>do</strong>s seus senti<strong>do</strong>, nem visto,<br />
assim pelo escuro grande <strong>da</strong> noite, como pelo alari<strong>do</strong> <strong>da</strong>s vozes que se<br />
ouviam, aonde o peso <strong>da</strong>s armas que vestia o submergiu, sem poder ser<br />
socorri<strong>do</strong>, junto ao porto de Génova, na sua pátria, servin<strong>do</strong>-lhe de sepulcro tão<br />
breve espaço de mar, para cujo ânimo era pequena to<strong>da</strong> a re<strong>do</strong>ndeza <strong>da</strong> terra.<br />
Da maneira que Ptolomeu, rei <strong>do</strong> Egipto, morreu afoga<strong>do</strong> na corrente <strong>do</strong> rio<br />
Ovid., in Metam.<br />
Virg., /En. 4.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 125<br />
Nilo, fugin<strong>do</strong> <strong>da</strong> rota e batalha que lhe tinha <strong>da</strong><strong>do</strong> Mitri<strong>da</strong>tes por man<strong>da</strong><strong>do</strong> de<br />
César, soçobran<strong>do</strong>-se o navio de remo em que fugia; e quasi em nossos<br />
tempos Luís, rei de Hungria, valeroso sol<strong>da</strong><strong>do</strong>, morreu afoga<strong>do</strong> em uma lagoa,<br />
fugin<strong>do</strong> <strong>da</strong> rota que lhe tinham <strong>da</strong><strong>do</strong> os Turcos junto às ribeiras <strong>do</strong> Danúbio,<br />
entre as ci<strong>da</strong>des de Bu<strong>da</strong> e Belgra<strong>do</strong>, que nem o maior valor, nem as<br />
digni<strong>da</strong>des mais soberanas podem isentar-se de serem muitas vezes ludíbrio<br />
<strong>da</strong> fortuna com trágicos sucessos e lamentáveis: com sua morte perderam os<br />
genoveses a liber<strong>da</strong>de e se evitaram os grandes tumultos que houveram de<br />
inquietar e perturbar a Itália, sen<strong>do</strong> Génova governa<strong>da</strong> debaixo <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio de<br />
França. To<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de estava posta em armas e confusão grande, até que<br />
aparecen<strong>do</strong> o dia não tratavam os genoveses de fazer resistência alguma, por<br />
ser o conde deles com excesso ama<strong>do</strong> e juntamente saben<strong>do</strong> como era morto<br />
o sobrinho <strong>do</strong> príncipe Dória, a quem com excesso aborreciam. Porém<br />
certifican<strong>do</strong>-se a nova de ser morto o conde tão desestra<strong>da</strong>mente, logo seus<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s como membros sem cabeça se desordenaram, tratan<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> qual de<br />
fugir aos perigos que antevia e procuran<strong>do</strong> asilo em que se assegurasse <strong>do</strong><br />
castigo que lhe ameaçava seu tumulto. Os irmãos <strong>do</strong> conde se retiraram a um<br />
castelo seu, situa<strong>do</strong> nas montanhas que servem de muro contra as contínuas<br />
inclemências <strong>do</strong> norte e ci<strong>da</strong>de; e to<strong>da</strong> a família <strong>do</strong>s Fiescos se ausentou e<br />
foram bandi<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> ao depois pelo governa<strong>do</strong>r de Milão degola<strong>do</strong> Jerónimo<br />
de Fiesco, irmão <strong>do</strong> conde, e seus bens confisca<strong>do</strong>s; e juntamente Júlio Cibo,<br />
cunha<strong>do</strong> <strong>do</strong> conde, mancebo de grandes pren<strong>da</strong>s e valor, que em Milão<br />
também foi degola<strong>do</strong> por man<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r que contra os Fiescos se<br />
mostrou notavelmente senti<strong>do</strong> e apaixona<strong>do</strong>.<br />
Esta foi a ver<strong>da</strong>deira história trágica <strong>do</strong> conde João Luís de Fiesco, meu<br />
tio, em cujas calami<strong>da</strong>des começaram meus infortúnios, desterran<strong>do</strong>-se meu<br />
pai, Anastácio de Fiesco, que era primeiro irmão <strong>do</strong> conde, nesta ocasião a<br />
França, sen<strong>do</strong> d'el-rei com afabili<strong>da</strong>de recebi<strong>do</strong>, obriga<strong>do</strong> à memória <strong>do</strong> conde,<br />
e ven<strong>do</strong> que to<strong>da</strong> a nossa família por sua causa padecia os desterros e<br />
desgraças em que se via. Em Paris fez meu pai sua habitação, e com pouco<br />
tempo de <strong>do</strong>micílio <strong>caso</strong>u com uma senhora Francesa de sangue ilustre, porém<br />
com limita<strong>do</strong> <strong>do</strong>te, <strong>da</strong> qual em os primeiros anos de seu casamento naci eu em<br />
dia de S. Dionísio, protector e padroeiro <strong>do</strong> reino de França, que juntamente<br />
me deu o nome.
126 Padre Mateus Ribeiro<br />
Foi meu nacimento festeja<strong>do</strong> como de filho primogénito, suposto que<br />
parece que foi para ser herdeiro de meu pai, não somente na pequena herança<br />
de seus bens, mas na de seus grandes infortúnios e desgraças, como mostrará<br />
o discurso de minha história. A primeira delas foi o ficar órfão de pai nos tenros<br />
anos de minha infância, que em defensão <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Metz, que estava em<br />
poder <strong>do</strong>s Franceses, perdeu honrosamente a vi<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> General <strong>da</strong> praça o<br />
duque de Guisa, que no ano de mil e quinhentos cinquenta e três, com notável<br />
valor digno de perpétua memória a defendeu a to<strong>do</strong> o poder <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r<br />
Carlos V com tanta mortan<strong>da</strong>de <strong>do</strong> exército <strong>do</strong> César, que foi uma <strong>da</strong>s grandes<br />
calami<strong>da</strong>des que recebeu em sua vi<strong>da</strong>. Nesta honrosa empresa e defensão de<br />
Metz, ganhan<strong>do</strong> imortal fama, perdeu meu pai Anastácio a vi<strong>da</strong> em presença<br />
<strong>do</strong> mesmo duque de Guisa, a quem assistia, fican<strong>do</strong> minha mãe viúva na flor<br />
<strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, e com pouco remédio, que vem a ser prelúdio <strong>do</strong>s disfavores que<br />
costumam experimentar os sujeitos pouco mimosos <strong>da</strong> ventura.<br />
Cheguei à i<strong>da</strong>de de entrar no estu<strong>do</strong> <strong>da</strong>s letras e na insigne<br />
Universi<strong>da</strong>de de Paris, Atenas com razão de nossa i<strong>da</strong>de, principiei e continuei<br />
meus estu<strong>do</strong>s até finalmente o curso de Filosofia, em que me mostrei com<br />
grande satisfação instruí<strong>do</strong>, por ser meu natural antes inclina<strong>do</strong> às letras que<br />
às armas, e ten<strong>do</strong> principia<strong>do</strong> o primeiro ano de Teologia, como rainha <strong>da</strong>s<br />
ciências to<strong>da</strong>s, sen<strong>do</strong> a este tempo de vinte anos de i<strong>da</strong>de, sucedeu que um<br />
parente de minha mãe, que me <strong>da</strong>va título de sobrinho e assistia em Inglaterra<br />
por mor<strong>do</strong>mo <strong>do</strong> duque de Norfolc, grande senhor naquele reino, e mui<br />
católico, me man<strong>do</strong>u chamar com desejos de aproveitar-me em o serviço <strong>do</strong><br />
duque, com quem tinha adquiri<strong>do</strong> privança por suas muitas partes. Foi<br />
necessário obedecer a seu gosto, visto o grande que mostrava de procurar<br />
meu acrescentamento, e assim me parti a Inglaterra, ilha a maior <strong>da</strong>s<br />
descobertas de Europa, e na corte de Londres, em que o duque Tomás de<br />
Norfolc residia, fiz assento em sua casa, que com grande benevolência me<br />
aceitou a seu serviço por respeito de meu tio, seu mor<strong>do</strong>mo, mostran<strong>do</strong> boa<br />
vontade de favorecer-me.<br />
Era o duque discreto e <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de muitas artes liberais, e assim se<br />
entretinha muitas vezes em práticas comigo, assim <strong>da</strong>s grandezas de Paris,<br />
como em senhorias de Itália, e juntamente <strong>da</strong>s histórias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em que eu<br />
me mostrava visto, alcançan<strong>do</strong> em pouco tempo grande parte em sua privança,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 127<br />
grandes favores em sua graça, com esperanças de ver-me com honroso<br />
esta<strong>do</strong>; porém como a fortuna em lugar de favorecer-me ao melhor tempo me<br />
encontrasse, ocasionou a minha ruína na <strong>do</strong> duque de Noríolc, cujo fim<br />
lamentável e trágico sucesso agora ouvireis. E para tomar a história mais de<br />
seu princípio, referirei a <strong>da</strong> rainha de Escócia e França, Maria Estuar<strong>da</strong>, de<br />
quem se originaram.<br />
É a Escócia parte de Grã-Bretanha, ou Inglaterra, de quem se divide<br />
com um pequeno braço de mar <strong>da</strong> parte Ocidental, e <strong>da</strong> parte Oriental com o<br />
cau<strong>da</strong>loso rio Tue<strong>da</strong> e uns ásperos e fragosos montes que de muralha e raia<br />
servem a estes <strong>do</strong>us reinos, pela maior parte entre si pouco conformes e muito<br />
desuni<strong>do</strong>s. Neste de Escócia, entre diversos reis que a possuíram, foi o último<br />
Jacobo Estuar<strong>do</strong>, pai de Maria Estuar<strong>da</strong>, rainha que foi de França, casa<strong>da</strong> em<br />
tenra i<strong>da</strong>de com Francisco segun<strong>do</strong> deste nome, rei de França; o qual sucedeu<br />
no reino, de i<strong>da</strong>de de quinze anos, a el-rei seu pai, Henrique II, morto<br />
desestra<strong>da</strong>mente nas infelices justas e torneios que celebrava em Paris aos<br />
desposórios <strong>da</strong> princesa Isabel, sua filha, com el-rei Filipe de Castela; gozou<br />
pouco tempo a coroa, falecen<strong>do</strong> de um mortal apostema antes de passarem<br />
seis meses de sua coroação. E como Maria Estuar<strong>da</strong>, sua esposa, estava<br />
reserva<strong>da</strong> para ser ao mun<strong>do</strong> um vivo espelho e retrato <strong>do</strong>s disfavores <strong>da</strong><br />
ventura, apenas chegou a possuir seis meses o título de rainha de França,<br />
quem já de antes era rainha de Escócia, como única herdeira d'el-rei Jacobo<br />
Estuar<strong>do</strong>, seu pai defunto, a quem sucedeu. Era Maria Estuar<strong>da</strong> <strong>do</strong>ta<strong>da</strong> de tão<br />
rara e singular fermosura, que ficava sen<strong>do</strong> admiração de nossa i<strong>da</strong>de a quem<br />
apenas poderiam retratar os pincéis mais delica<strong>do</strong>s de Apeles, de Zeuxís, de<br />
Páusias, de Parrásio e Timantes, a quem por únicos celebrou a antigui<strong>da</strong>de;<br />
em quem compendiou a natureza to<strong>da</strong> a fermosura e garbo que nas Helenas,<br />
nas Lucrécias, nas Cleópatras e Zenóbias aplaudiu a fama. Digna de amor<br />
chamou Platão 163 à fermosura; bem alheio a descreveu o sábio Bias; tirania de<br />
breve tempo a intitulou Sócrates; Carnéades 164 , referi<strong>do</strong> por Diógenes, a definiu<br />
reino solitário; Euripides 165 a avaliou infelici<strong>da</strong>des; e o príncipe <strong>da</strong> Filosofia,<br />
Plato, De Pulchrit.<br />
Apud Diog., Lib. 1.<br />
Eurip., in Helen.
128 Padre Mateus Ribeiro<br />
Aristóteles 166 , disse que era carta eficaz de recomen<strong>da</strong>ção para alcançar<br />
favores; soberba lhe chamou Ovídio 167 ; arrisca<strong>da</strong>, Públio Mimo. E sen<strong>do</strong> tão<br />
diversos os epítetos e tão várias as proprie<strong>da</strong>des que os autores lhe atribuem,<br />
enten<strong>do</strong> que nenhum título com mais razão lhe convém que o de infelice e<br />
pouco venturosa, pois os exemplos <strong>da</strong>s histórias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> nos manifestam<br />
que os maiores portentos de gentileza foram os menos favoreci<strong>do</strong>s <strong>da</strong> ventura.<br />
Exemplo seja Helena, rainha de Esparta; Policena, filha d'el-rei de Tróia;<br />
Lucrécia e Virgínia romanas; Zenóbia persiana; e Florin<strong>da</strong> espanhola, as quais<br />
to<strong>da</strong>s deram matéria às historias, não menos de sua rara fermosura, que de<br />
sua infelici<strong>da</strong>de e pouca dita. E assim não é maravilha que sen<strong>do</strong> Maria<br />
Estuar<strong>da</strong> <strong>do</strong>ta<strong>da</strong> de tão rara gentileza, começasse logo <strong>da</strong> primavera de seus<br />
anos, na i<strong>da</strong>de mais juvenil, a sentir disfavores <strong>da</strong> fortuna que no discurso <strong>do</strong><br />
tempo haviam de <strong>da</strong>r motivo às trágicas narrações de seus infortúnios.<br />
Partiu-se outra vez para Escócia, depois <strong>da</strong> morte d'el-rei de França, seu<br />
malogra<strong>do</strong> esposo, por não lhe ficarem filhos, que a pouca i<strong>da</strong>de de ambos e a<br />
breve duração <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> d'el-rei não permitiram. Passa<strong>do</strong>s alguns anos que<br />
governava Escócia, ama<strong>da</strong> por extremo de seus vassalos, por seu grande<br />
valor, prudência e fermosura, que a faziam merece<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> maior esta<strong>do</strong>,<br />
sucedeu, ou fosse por eleição a seu parecer acerta<strong>da</strong> para o bom governo de<br />
seu reino, ou por afeição que em ausências a fama persuadisse, que ela<br />
intentasse casamento com Henrique, senhor de Arli, filho único <strong>do</strong> conde de<br />
Lines, em Escócia, e principal pessoa no reino, o qual se tinha havia anos<br />
ausenta<strong>do</strong> dele, por el-rei Jacobo Estuar<strong>do</strong> dele presumir suspeitas de afectar<br />
ambições à coroa, por ser <strong>do</strong> sangue real de Escócia e nela de tanto poder e<br />
tanta autori<strong>da</strong>de. Nesta ausência se valeu o conde de Lines de Henrique VIII,<br />
rei de Inglaterra, o cismático, que em sua corte o recebeu benignamente e o<br />
<strong>caso</strong>u com ma<strong>da</strong>ma Margari<strong>da</strong> de Doglez, filha <strong>da</strong> rainha viúva que fora de<br />
Escócia, sua irmã, <strong>da</strong> qual o conde de Lines, seu esposo, houve a este<br />
Henrique, senhor de Arli, mancebo de rara disposição, gentileza e partes pelas<br />
quais era justamente de to<strong>do</strong>s ama<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> juntamente nas armas e letras<br />
com grande cui<strong>da</strong><strong>do</strong> instruí<strong>do</strong> e com grande satisfação exercita<strong>do</strong>.<br />
Arist., apud Stob.<br />
Ovid., Fast. 1.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 129<br />
A fama de tantas partes em ausências lhe adquiriu aplausos no ânimo<br />
<strong>da</strong> rainha Maria Estuar<strong>da</strong>, que a ser possível causar-se amor ver<strong>da</strong>deiro em<br />
peitos humanos sem vista de olhos <strong>do</strong> sujeito que há-de ser ama<strong>do</strong>, se podiam<br />
os aplausos que digo avaliar por amores; mas, como diz Santo Agostinho 168 ,<br />
que não podem amar-se sujeitos que não se conhecem, e sen<strong>do</strong> os olhos entre<br />
to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s as principais portas <strong>da</strong> alma para o conhecimento, como diz<br />
o mesmo Santo, antes quero <strong>da</strong>r-lhe título de aplausos que lhe granjeou a fama<br />
de suas partes, disposição e gentileza, que avaliar os efeitos desta<br />
benevolência por amores. Era a este tempo este senhor de Arli de vinte anos<br />
de i<strong>da</strong>de, que igualava quasi a <strong>da</strong> rainha Maria Estuar<strong>da</strong>, e sen<strong>do</strong> (como disse<br />
Platão) a conformi<strong>da</strong>de e proporção <strong>do</strong>s anos causa eficaz para conciliar e unir<br />
vontades, facilmente veio a conseguir efeito este casamento, que se tratou com<br />
o conde de Lines, pai <strong>do</strong> senhor de Arli, que sen<strong>do</strong> dele chama<strong>do</strong> a Escócia, se<br />
concluiu o casamento com a rainha, com universal contentamento de seus<br />
vassalos.<br />
Celebraram-se as bo<strong>da</strong>s com grandes festas, que an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o tempo se<br />
renovaram com o nacimento de um filho que a rainha pariu, e o reino o festejou<br />
como seu rei futuro. Tinha a rainha a seu serviço por camareiro-mor um senhor<br />
piemontês, que de França trouxe, aonde a tinha servi<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> mais próspera<br />
sua felici<strong>da</strong>de se mostrava. Chamava-se este priva<strong>do</strong> David: era de gentil<br />
disposição e presença, mui visto nas ciências e artes liberais, e <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de<br />
tantas partes e cortesãos costumes que o faziam ama<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s e digno <strong>da</strong><br />
privança <strong>da</strong> rainha, que muito o favorecia. Teve este David amores com uma<br />
senhora <strong>da</strong> família de Doglez, ain<strong>da</strong> parenta d'el-rei por parte <strong>da</strong> mãe; porém<br />
vin<strong>do</strong> a manifestar-se os ocultos favores que dela diziam havia recebi<strong>do</strong>, com<br />
dispêndios de seu crédito e reputação, o pai desta <strong>do</strong>nzela o injuriou de<br />
palavras descompostas, em presença <strong>da</strong> rainha, e ven<strong>do</strong> que ele recusava o<br />
receber a sua filha por esposa, como dizem tinha prometi<strong>do</strong>, ou fosse por não<br />
se sentir culpa<strong>do</strong>, ou por avaliar a livian<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>da</strong>ma por incapaz de recebê-<br />
la, o pai, leva<strong>do</strong> de um furor e zelo vingativo, o matou às punhala<strong>da</strong>s em<br />
presença <strong>da</strong> rainha, que não foi bastante a impedir semelhante atrevimento,<br />
para o qual dizem dera el-rei tácito consentimento, que dizem ao morto odiava<br />
D. Aug., Lib. 3. De Trinit.
130 Padre Mateus Ribeiro<br />
por se haver persuadi<strong>do</strong> ser ele quem aconselhara a rainha o não consentisse<br />
coroar como pretendia.<br />
Ressentiu-se a rainha grandemente <strong>do</strong> desaforo, julgan<strong>do</strong>-o executa<strong>do</strong><br />
só a fim de molestá-la, perden<strong>do</strong>-lhe o respeito à sua grandeza devi<strong>do</strong>, tiran<strong>do</strong>-<br />
se a vi<strong>da</strong> em sua presença violentamente a um seu priva<strong>do</strong>, sem se tratar <strong>da</strong><br />
sua morte para efeito <strong>do</strong> castigo. Ajuntou-se a este sentimento a <strong>do</strong>r rigorosa<br />
<strong>do</strong>s ciúmes que teve de que el-rei seu esposo tratava secretos amores com<br />
uma <strong>da</strong>ma de quem se mostrava amante; e foram bastantes estas causas para<br />
que ela em quarto <strong>do</strong> paço separa<strong>da</strong> vivesse, não queren<strong>do</strong> admitir comércio<br />
algum de familiari<strong>da</strong>de sua, como quem tão justamente se sentia agrava<strong>da</strong> de<br />
pessoa a quem ela levantara à coroa <strong>do</strong> seu reino.<br />
Ingrato com extremos se mostrou Teseu com a fermosa Ariadne, filha de<br />
Minos, rei de Creta, pois sen<strong>do</strong> ela a ocasião de sua vi<strong>da</strong>, evitan<strong>do</strong> por seu<br />
meio a morte e deixan<strong>do</strong> por seu respeito as delícias <strong>do</strong> reino e casa de seu<br />
pai, seguin<strong>do</strong>-o em suas peregrinações, ele a deixou na ilha de Nasso, exposta<br />
aos maiores perigos, em prémio e galardão <strong>da</strong>s finezas que obrou por ele. Não<br />
menos se mostrou desconheci<strong>do</strong> Jasão, capitão <strong>do</strong>s argonautas, com Medeia,<br />
sua esposa, filha d'el-rei de Colcos, que por ela tinha executa<strong>do</strong> os maiores<br />
extremos, deixan<strong>do</strong>-a ao depois pelos novos amores de Creusa, filha de<br />
Creonte, rei de Corinto. Porém assim um como o outro pagaram a pena de sua<br />
ingratidão: Teseu sen<strong>do</strong> morto e despenha<strong>do</strong> de um precipício por Licomedes,<br />
rei de Ciro, a quem ele tinha i<strong>do</strong> pedir socorro contra os atenienses, e Jasão<br />
chegan<strong>do</strong> com suas próprias mãos a privar-se <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, com desgosto e<br />
sentimento. Notável vício é o <strong>da</strong> ingratidão, e tão detestável que com haver<br />
nações bárbaras no mun<strong>do</strong> que se prezavam de vícios e se jactavam deles,<br />
não houve jamais, nem há quem de ingrato se jacte, nem desconheci<strong>do</strong> se<br />
confesse. Quintiliano 169 lhe chamou o maior de to<strong>do</strong>s os vícios; Erasmo 170 , o<br />
mais rigoroso <strong>do</strong>s agravos; homicídio <strong>do</strong>s benefícios a descreveu S.<br />
Ambrósio 171 ; e é vício sem escusa e delito sem desculpa de sua malícia.<br />
Quintil., Declam. 9.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 131<br />
Porém tornan<strong>do</strong> à história, com justa causa se mostrou a rainha<br />
ressenti<strong>da</strong> <strong>do</strong>s presumi<strong>do</strong>s desprezos e averigua<strong>do</strong>s ciúmes de seu esposo,<br />
culpan<strong>do</strong>-o de ingrato às finezas que por ele fizera; mas ele ain<strong>da</strong> que avalia<strong>do</strong><br />
fosse por esqueci<strong>do</strong> nas obrigações em que estava, contu<strong>do</strong> não consentiu<br />
ficar de ingrato vitupera<strong>do</strong>, pois arrependi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s desgostos que à rainha<br />
causa<strong>do</strong> tinha, tratou por to<strong>da</strong>s as vias de tornar à sua graça, e ven<strong>do</strong> que o<br />
sentimento grande que ela mostrava não <strong>da</strong>va lugar a querer ouvir, nem admitir<br />
suas desculpas, chegou a enfermar, ou fosse <strong>do</strong>ença ver<strong>da</strong>deira, ou<br />
indisposição fingi<strong>da</strong>, a qual mostran<strong>do</strong> ir em crescimento, a rainha por razão de<br />
esta<strong>do</strong> foi visitá-lo, ocasião que ele não deixou passar, como oportuna; na qual<br />
visita lhe deu tantas desculpas e manifestou tantos desvelos de arrependi<strong>do</strong>,<br />
atribuin<strong>do</strong> sua enfermi<strong>da</strong>de ao sentimento grande que tinha de a ver queixosa,<br />
que ultimamente a rainha se deu por satisfeita e por obriga<strong>da</strong> a admiti-lo à sua<br />
graça, pon<strong>do</strong> em esquecimento os agravos de antes recebi<strong>do</strong>s, que enquanto<br />
estes lembram, dificultosamente podem conservar-se amizades reconcilia<strong>da</strong>s.<br />
Uma <strong>da</strong>s leis atenienses, de que eles muito <strong>caso</strong> faziam, era a que chamavam<br />
amnestria, que em Grego é o mesmo que esquecimento, a qual fez o ilustre<br />
ateniense Trasibulo quan<strong>do</strong> libertan<strong>do</strong> sua pátria <strong>da</strong> severa administração <strong>do</strong>s<br />
injustos governa<strong>do</strong>res que a tiranizavam, para que a memória <strong>da</strong>s inimizades<br />
passa<strong>da</strong>s e agravos recebi<strong>do</strong>s não perturbasse a concórdia em que a<br />
estabelecia, ordenou que to<strong>do</strong>s os insultos, tumultos e ofensas passa<strong>da</strong>s té<br />
aquele dia se esquecessem, sob graves penas a quem mais sua lembrança<br />
recor<strong>da</strong>sse, ou vingança nem satisfação delas repetisse. Assim tratou a rainha<br />
de pôr em esquecimento seus agravos, se porventura agravos naturalmente<br />
podem de to<strong>do</strong> esquecer-se. Esta reconciliação <strong>da</strong> rainha com seu esposo não<br />
agra<strong>do</strong>u a to<strong>do</strong>s os grandes <strong>da</strong> corte, indigna<strong>do</strong>s de considerarem sua senhora<br />
ofendi<strong>da</strong> e agrava<strong>da</strong>, e ain<strong>da</strong> despreza<strong>da</strong> de pessoa a quem ela de senhor<br />
particular e vassalo levantara a tal digni<strong>da</strong>de; e ou fosse a causa este<br />
indiscreto zelo de vingança, ou inveja de o verem em tanta grandeza, trataram<br />
de tirar-lhe a vi<strong>da</strong>, antes que <strong>da</strong> enfermi<strong>da</strong>de melhorasse. Eu me persua<strong>do</strong> que<br />
os incentivos de resolução tão desumana, antes foi a inveja que lhe tinham,<br />
que o zelo nem desejos de vingarem alheios agravos, antes que averigua<strong>do</strong>s,<br />
presumi<strong>do</strong>s.
132 Padre Mateus Ribeiro<br />
Grande vício é o <strong>da</strong> inveja: princípio <strong>da</strong>s discórdias lhe chamou<br />
Demócrito 172 ; enfermi<strong>da</strong>de causa<strong>da</strong> de bens alheios, Cícero 173 ; ocasiona<strong>do</strong> de<br />
opulências estranhas, Salústio 174 ; tormento <strong>da</strong>s virtudes a descreveu Quinto<br />
Cúrsio 175 ; castigo de si mesma a intitulou Ovídio 176 ; raiz <strong>do</strong>s homicídios lhe<br />
chamou S. João Crisóstomo 177 ; porque, na ver<strong>da</strong>de, de um ânimo invejoso bem<br />
se pode presumir to<strong>da</strong> a cruel<strong>da</strong>de e tirania. Exemplo seja o famoso poeta<br />
trágico Euripides ateniense, cujos poemas em seu tempo foram tão aplaudi<strong>do</strong>s<br />
e celebra<strong>do</strong>s que puseram em dúvi<strong>da</strong> os de Sófocles, a quem Cícero dá título<br />
de divino, pela admirável erudição de suas obras, não se saben<strong>do</strong> determinar a<br />
república de Atenas a qual destes poemas laureasse. Este Euripides, vin<strong>do</strong><br />
uma noite recolhen<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> paço d'el-rei Arquelau, com quem em Macedónia<br />
privava e com quem tinha cea<strong>do</strong> à própria mesa, favor que lhe granjeou a fama<br />
de seus versos, foi morto cruelmente por ordem de um priva<strong>do</strong> d'el-rei que,<br />
invejoso <strong>do</strong>s louvores que à sua vista lhe fazia, quis satisfazer com a morte <strong>do</strong><br />
descui<strong>da</strong><strong>do</strong> Euripides os temores que tinha de recear se diminuísse sua<br />
privança, que de ordinário não descansa a inveja em poderosos menos que<br />
com fins tão lamentáveis. Assim estes conjura<strong>do</strong>s contra a vi<strong>da</strong> de Henrique<br />
trataram de o abrasarem no mesmo leito em que estava com quanti<strong>da</strong>de de<br />
pólvora, que em outro an<strong>da</strong>r inferior <strong>do</strong> paço que à camera de Henrique<br />
correspondia, ocultamente puseram; porém descobrin<strong>do</strong>-se o cruel intento,<br />
quasi ao mesmo tempo em que havia de executar-se, sentin<strong>do</strong> el-rei já o rumor<br />
<strong>da</strong> gente arma<strong>da</strong> <strong>da</strong> conjuração, se levantou <strong>da</strong> cama assim despi<strong>do</strong> como<br />
estava e em companhia de um pajem seu confidente procurou esconder-se a<br />
este repentino furor em um lugar <strong>do</strong> paço escuro e pouco sabi<strong>do</strong>. Oculto nele<br />
esteve por muito espaço de tempo, e parecen<strong>do</strong>-lhe que já os <strong>da</strong> conjuração<br />
seriam i<strong>do</strong>s, visto que o não achavam, man<strong>do</strong>u o pajem a ver se estava segura<br />
a saí<strong>da</strong>, mas sen<strong>do</strong> visto deles (que to<strong>da</strong>via estavam em guar<strong>da</strong> e sentinela<br />
para que não lhe escapasse, ten<strong>do</strong> cerca<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> em ro<strong>da</strong>) foi logo o pajem<br />
172 Apud Stob.<br />
173 Cicer., Conjur. Catil.<br />
174 Salust.<br />
175 Quint. Curt.<br />
176 Ovid., Lib. 8. 2. Metam.<br />
177 Chrisost., Homil. 14. sup. Genes.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 133<br />
preso para que manifestasse o lugar aonde el-rei estava; ele que ao estron<strong>do</strong> e<br />
rumor <strong>da</strong> prisão <strong>do</strong> pajem, com o sobressalto intimi<strong>da</strong><strong>do</strong>, saiu imaginan<strong>do</strong><br />
poder evitar o perigo, foi logo <strong>do</strong>s conjura<strong>do</strong>s preso e com as mangas <strong>da</strong><br />
própria camisa que vestia afoga<strong>do</strong>, juntamente com o pajem, antes que<br />
pudessem ser socorri<strong>do</strong>s.<br />
Este fim lamentável teve Henrique, rei de Escócia, tão malogra<strong>do</strong> na<br />
primavera mais flori<strong>da</strong> de seus anos, a quem fora melhor não haver subi<strong>do</strong> a tal<br />
grandeza, pois ela foi a ocasião de sua maior ruína. E quanto mais proveitoso<br />
lhe fora ser senhor de Arli e perseverar vivo que esposo <strong>da</strong> rainha de Escócia<br />
para ser tão cruelmente morto. Enquanto Henrique senhor de Arli de quasi<br />
to<strong>do</strong>s foi ama<strong>do</strong>, enquanto Henrique rei de Escócia foi inveja<strong>do</strong> e aborreci<strong>do</strong>.<br />
Pouca duração e breve perseverança tem (a) as digni<strong>da</strong>des e grandezas <strong>da</strong><br />
humana vi<strong>da</strong>: com perigos e temores se possuem, com grande facili<strong>da</strong>de e<br />
talvez com dispêndio <strong>da</strong> própria vi<strong>da</strong> se perdem. Bem experimentou Dâmocles<br />
seus temores, aquele grande amigo de Dionísio, tirano de Sicília, a quem para<br />
desenganar <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que tanto louvava, e antes de a experimentar engrandecia,<br />
man<strong>do</strong>u o tirano assentar em cadeira de ouro, sobre tapeçarias mui ricas de<br />
que estava to<strong>da</strong> a sala paramenta<strong>da</strong>, fragrancian<strong>do</strong> suavi<strong>da</strong>des de aromas,<br />
caçoulas e perfumes o<strong>do</strong>ríferos; sen<strong>do</strong>-lhe juntamente ofereci<strong>do</strong>s na mesa os<br />
manjares mais delica<strong>do</strong>s, as iguarias mais saborosas, a quem faziam salva<br />
músicas aves que ao descante de acor<strong>da</strong><strong>do</strong>s instrumentos respondiam; porém<br />
de tal mo<strong>do</strong> em meio de tantas delícias o perturbou e inquietou a corta<strong>do</strong>ra<br />
espa<strong>da</strong> pendente de frágil fio que a sua vi<strong>da</strong> ameaçava que, como se fora raio<br />
que qual aborto de escura nuvem estivera para despenhar-se, lhe embargou<br />
to<strong>do</strong> o gosto e lhe impediu o logro de to<strong>da</strong>s as recreações que tinha presentes,<br />
obrigan<strong>do</strong>-o a julgar por penosas na reali<strong>da</strong>de as que de antes avaliava por tão<br />
felizes nas aparências. Lá disse discretamente o Séneca 178 que o mais firme e<br />
seguro presídio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s príncipes era o amor <strong>do</strong>s vassalos. Sempre pela<br />
maior parte ao maior poder e mais soberano acompanharam os maiores<br />
(a ' Como foi referi<strong>do</strong> nos critérios de edição <strong>do</strong> texto, as formas <strong>da</strong> terceira pessoa <strong>do</strong> plural <strong>do</strong><br />
indicativo de verbos como ter, ver e vir, na época monossilábicas, são transcritas como a<br />
terceira pessoa <strong>do</strong> singular.<br />
178 Senec, De clement.
134 Padre Mateus Ribeiro<br />
desvelos, como escreve Salústio 179 . Sentença e parecer foi de Tito Lívio 180 que<br />
as ruínas <strong>do</strong>s príncipes e monarcas dificultosamente tinham meio, porque <strong>do</strong><br />
maior excesso de misérias nem de ordinário admitem remédio, pois apenas se<br />
divisa o ameaço, que os edifícios grandes não costumam ladear antes de<br />
arruinarem, igualmente se manifesta o abalo e o precipício.<br />
Não foi a morte <strong>do</strong> malogra<strong>do</strong> príncipe aceita ao povo, nem bem<br />
recebi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s grandes <strong>do</strong> reino que contra sua vi<strong>da</strong> não conspiraram,<br />
principalmente quan<strong>do</strong> se soube que o conde Boduel, um <strong>do</strong>s priva<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
rainha, tinha si<strong>do</strong> o autor principal desta conjuração, suspeitan<strong>do</strong> que<br />
porventura não seria sem seu consentimento executa<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> não se<br />
averiguasse ser por seu próprio man<strong>da</strong><strong>do</strong>, ao que eu não posso persuadir-me,<br />
assim por ser a morte de Henrique executa<strong>da</strong> estan<strong>do</strong> ele já reconcilia<strong>do</strong> em<br />
amizade com a rainha sua esposa, como juntamente porque não é de presumir<br />
que uma senhora tão católica como Maria Estuar<strong>da</strong> tivesse tão desumano<br />
intento e quisesse ver morto violentamente a seu esposo, na flor <strong>do</strong>s anos, com<br />
quem voluntariamente casara persuadi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s muitas partes e gentileza que<br />
nele havia, dignas na ver<strong>da</strong>de de melhor ventura. Porém contra os golpes <strong>da</strong><br />
fortuna, que partes podem defender-se, que merecimento basta para<br />
assegurar-se? Lançaram mão <strong>do</strong> príncipe menino de tenra i<strong>da</strong>de tanto que se<br />
soube a lastimosa nova desta tirana morte os senhores e varões <strong>do</strong> reino de<br />
maior esta<strong>do</strong>, quais eram entre outros Jacobo Estuar<strong>do</strong>, seu tio, filho natural <strong>do</strong><br />
último rei, Jacobo Estuar<strong>do</strong>, e meio irmão <strong>da</strong> rainha, e juntamente o duque de<br />
Schiatel e o conde de More, senhores principais de Escócia, sen<strong>do</strong> este conde<br />
de More a quem se encarregou o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>da</strong> criação <strong>do</strong> príncipe, e não<br />
consentin<strong>do</strong> mais <strong>da</strong>í em diante que a rainha em seu poder o tivesse, de que<br />
ela se deu por muito ofendi<strong>da</strong>; e para que tivesse sua ruína maior fun<strong>da</strong>mento<br />
sucedeu passar em pouco tempo a terceiro casamento com o mesmo conde<br />
Boduel, que de to<strong>do</strong> estava odia<strong>do</strong> como autor <strong>da</strong> conjuração e morte d'el-rei,<br />
com o que to<strong>do</strong>s se persuadiram que a rainha havia si<strong>do</strong> a consenti<strong>do</strong>ra e<br />
cúmplice nela. E suposto que eu totalmente me não persua<strong>do</strong> a que o fosse,<br />
contu<strong>do</strong> não deixam de ser indícios e conjecturas muito eficazes para<br />
Salust., Pro Cot. ad pop.<br />
Tit. Liv., Lib. 7. Dec. 4.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 135<br />
admitirem probabili<strong>da</strong>de grande a este pensamento com os grandes <strong>do</strong> reino<br />
que assim o julgavam, pois mostrava a rainha sentir tão pouco a morte de<br />
Henrique, seu esposo, que com o principal autor dela se casava.<br />
Das amazonas referem Orósio 181 , Justino 182 , Plutarco 183 e outros<br />
autores, que sen<strong>do</strong> de nação citas, e vin<strong>do</strong> a Capadócia com seus mari<strong>do</strong>s em<br />
exército numeroso, estas que viram a aleivosia e traição com que foram mortos<br />
pelos naturais, e consideran<strong>do</strong>-se viúvas e em região tão remota como<br />
desterra<strong>da</strong>s e sem remédio, de tal sorte se resolveram a vingarem suas mortes<br />
que, com um valor como desespera<strong>do</strong>, acometen<strong>do</strong> aos homici<strong>da</strong>s e to<strong>do</strong>s os<br />
povos vizinhos, não somente os venceram e assolaram sem <strong>da</strong>rem vi<strong>da</strong> a<br />
homem algum que suas armas rendessem, em vingança <strong>da</strong>s mortes de seus<br />
esposos que satisfizeram com rio de sangue de seus contrários; porém<br />
juntamente, como quer Estrabão 184 , edificaram as ci<strong>da</strong>des de Éfeso e Esmirna<br />
na Ásia, aonde principiaram seu império que por muitos anos com gloriosas<br />
conquistas dilataram. Célebre é nas histórias o grande amor que Artemisa,<br />
rainha de Caria, manifestou a Mausolo rei, seu defunto esposo, pois como<br />
contam S. Jerónimo 185 , Aulo Gélio 186 , Marco Túlio 187 , e outros muitos autores,<br />
lhe edificou na Ásia, em seu reino de Caria, aquele sumptuosíssimo sepulcro<br />
que foi avalia<strong>do</strong> por uma <strong>da</strong>s sete maravilhas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. E ain<strong>da</strong> se conta que,<br />
não satisfeita a amante rainha de recolher em tão ilustre sepulcro as cinzas de<br />
seu queri<strong>do</strong> esposo, lhe quis <strong>da</strong>r lugar em seu mesmo peito beben<strong>do</strong>-as,<br />
porque para amor tão grande to<strong>do</strong> o lugar lhe parecia limita<strong>do</strong> fora de seu<br />
próprio coração, em que tão vivo seu amor vivia. Nem se satisfez com deixar<br />
em obra tão maravilhosa sua memória permanente na duração <strong>do</strong>s tempos,<br />
senão que para pôr à tal sepultura um epitáfio admirável, e contra o próprio<br />
tempo de maior perseverança, convocou os poetas e ora<strong>do</strong>res mais insignes<br />
<strong>da</strong> Jónia e Grécia, aonde então as letras como em centro e origem <strong>da</strong>s<br />
181 Orosius, De Orchest. mund. lib. 1. cap. 5.<br />
182 Justin., Lib. 2.<br />
183 Plutarc, in Thes.<br />
184 Strab., Lib. 11.<br />
185 D. Hieron., Adversus Sovin. lib. 1. cap. 27.<br />
186 Aul. Gel., Lib. 10.<br />
187 Cicer., Tusc.
136 Padre Mateus Ribeiro<br />
academias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> floreciam, constituin<strong>do</strong> grandiosos prémios a quem<br />
melhor celebrasse, assim na prosa, como no verso, a memória de seu defunto<br />
esposo, na qual oposição dizem que se achou presente o insigne ora<strong>do</strong>r<br />
Isócrates, com seu discípulo Teopompo, que alcançou um <strong>do</strong>s prémios mais<br />
ricos <strong>da</strong> eloquência.<br />
E suposto que a narração de minha vi<strong>da</strong> me conduziu com esta<br />
digressão a vir tocar em prémios <strong>da</strong><strong>do</strong>s a sábios e <strong>do</strong>utos, me haveis de<br />
per<strong>do</strong>ar, senhor, se nesta ocasião me divertir um pouco <strong>do</strong> fio continua<strong>do</strong> desta<br />
história a tratar um sentimento que a muitos hoje no mun<strong>do</strong> inquieta e lastima<br />
de ver quanto são nesta nossa i<strong>da</strong>de em to<strong>da</strong>s as repúblicas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ou na<br />
maior parte delas, premia<strong>do</strong>s em pouco os sábios, os beneméritos, os talentos<br />
<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s de partes grandes. E na ver<strong>da</strong>de, que ou parece ser desgraça própria<br />
de nossos tempos, ou descui<strong>do</strong> <strong>do</strong>s príncipes que governam as monarquias e<br />
reinos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, que seja tão pouco estima<strong>da</strong> a sabe<strong>do</strong>ria, tão pouco<br />
premia<strong>do</strong> o merecimento e que muitas vezes ande tão favoreci<strong>da</strong> a lisonja.<br />
Lembra-me a mim que em tanta estimação foi ti<strong>do</strong> Euripides<br />
antiguamente <strong>do</strong>s sicilianos, pela grande afeição que tinham à erudição de<br />
seus trágicos poemas, que a muitos <strong>do</strong>s atenienses cativos que pela ilha de<br />
Sicília se vendiam por escravos, sen<strong>do</strong> presos na infelice batalha que na ilha<br />
deram, sen<strong>do</strong> seu capitão Demóstenes, em que se perderam, deram os<br />
sicilianos liber<strong>da</strong>de em graça <strong>da</strong> memória de tão insigne poeta seu natural. Não<br />
menos foi estima<strong>da</strong> <strong>do</strong> grande Alexandre a memória <strong>do</strong> tebano Pín<strong>da</strong>ro,<br />
excelentíssimo poeta, porque destruin<strong>do</strong> o grande monarca a ci<strong>da</strong>de de Tebas,<br />
somente deixan<strong>do</strong> em pé e intacta a casa em que Pín<strong>da</strong>ro vivera, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
juntamente que a nenhum seu parente fosse feito agravo, quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os<br />
tebanos ou eram mortos, ou por escravos vendi<strong>do</strong>s. Nem parece menor<br />
estimação a que fez de Homero, príncipe <strong>do</strong>s poetas gregos, pois o cofre mais<br />
rico de ouro e pedraria de inestimável valor que se achou na ten<strong>da</strong> e despojos<br />
d'el-rei Dário dedicou para guar<strong>da</strong>r nele a Ilía<strong>da</strong> de Homero, que sempre<br />
consigo trazia, para recrear-se com sua lição e história. Tais foram os aplausos<br />
que à memória de Homero dedicaram os antigos, que sete ci<strong>da</strong>des populosas<br />
tiveram conten<strong>da</strong> sobre qual delas era a pátria que se honrava de ter tal sábio<br />
por filho seu, como foram Esmirna, Atenas, Colofónia, Salamina, Argos, Rodes<br />
e Jó. Que direi <strong>da</strong> grande privança que com Ciro, supremo vice-rei e
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 137<br />
governa<strong>do</strong>r de Lídia, teve Xenofonte, que foi o primeiro que escreveu crónicas<br />
e histórias, o qual não somente foi em extremo de Ciro estima<strong>do</strong>, mas<br />
juntamente muito favoreci<strong>do</strong> de Agesilau, rei de Esparta, com quem teve<br />
particular privança, e com razão, porque foi de tanta erudição e eloquência que<br />
lhe chamaram por admiração a musa ática, dizen<strong>do</strong> que se as próprias musas<br />
falaram, somente com a voz de Xenofonte o fizeram. Não menor foi a<br />
estimação em que o filósofo Aristipo foi ti<strong>do</strong> de Dionísio II, tirano de Sicília, que<br />
com ser perverso não deixava de estimar e reverenciar nele o muito que<br />
merecia sua sabe<strong>do</strong>ria e erudição. Eram antigamente busca<strong>do</strong>s com<br />
admiração, ouvi<strong>do</strong>s como oráculos, respeita<strong>do</strong>s como se divinos fossem. De<br />
Anacarsis se escreve que <strong>da</strong> Sicília veio à Grécia somente a contemplar as<br />
maravilhas que de seus sábios publicava a fama; e se mais breve jorna<strong>da</strong>, qual<br />
era a de Mégara a Atenas, que continha poucas milhas, com grandes riscos até<br />
<strong>da</strong> própria vi<strong>da</strong> vinha Euclides em traje de mulher, de noite, de Mégara a<br />
Atenas, por não ser conheci<strong>do</strong>, a ouvir <strong>do</strong>utrina de Sócrates com notável perigo<br />
de ser morto; porque como estas duas ci<strong>da</strong>des estavam em contínuas e<br />
obstina<strong>da</strong>s guerras uma com outra, tinham feito os atenienses uma lei que<br />
qualquer ci<strong>da</strong>dão de Mégara que em Atenas se achasse fosse sem remissão<br />
logo morto; e por to<strong>do</strong>s estes temores e perigos rompia Euclides, a troco de<br />
ouvir a Sócrates. Que direi de Platão, a quem sua grande sabe<strong>do</strong>ria deu título<br />
de divino, que a flor de seus anos gastou em peregrinar muitas partes <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>, pois depois de ouvir a Sócrates em Atenas e a Euclides em Mégara,<br />
navegou a Cirene a fim de ouvir ao matemático Teo<strong>do</strong>ro, tornan<strong>do</strong> <strong>da</strong>í a Itália a<br />
ouvir Pitágoras na ci<strong>da</strong>de de Crotona, em Calábria, aonde tinha situa<strong>da</strong> a<br />
escola de sua Filosofia; de Itália peregrinou ao Egipto para e aprender as<br />
ocultas ciências e secretos <strong>do</strong>gmas de seus sacer<strong>do</strong>tes; e <strong>do</strong> Egipto intentou<br />
passar à índia a tratar com os brâmanes gimno-sofistas e magos que em tão<br />
dilata<strong>do</strong>s reinos floreciam, e por estar a este tempo em guerra to<strong>da</strong> Ásia não<br />
pôde conseguir o intento?<br />
E sen<strong>do</strong> assim, que somente para ouvir sábios e tratar com eles, a troco<br />
de conversar com <strong>do</strong>utos se faziam ain<strong>da</strong> os mesmos sábios peregrinos, vejo<br />
que no tempo de hoje pela maior parte são no mun<strong>do</strong> pouco busca<strong>do</strong>s e<br />
menos premia<strong>do</strong>s, ou porque não usam <strong>da</strong> adulação lisonjeira, ou porque o<br />
respeito e a valia se lhes adianta. Em qual <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, assim <strong>da</strong>s
138 Padre Mateus Ribeiro<br />
armas como <strong>da</strong>s letras, secular e eclesiástico, não se ouvem queixas e<br />
clamores de se adiantar o favor ao merecimento, de se antepor a valia aos<br />
serviços? Da igual<strong>da</strong>de e justiça com que os lacedemónios governavam sua<br />
república se conta por encarecimento que pertenden<strong>do</strong> o nobre lacedemónio<br />
Parídetes ser eleito e admiti<strong>do</strong> em um conselho e magistra<strong>do</strong> de trezentos<br />
sena<strong>do</strong>res, que em certa ocasião haviam de escolher-se <strong>do</strong>s ci<strong>da</strong>dãos de<br />
Esparta, e não sen<strong>do</strong> então grande número admiti<strong>do</strong>, ele se tornou a sua casa<br />
mui contente e satisfeito de que estivesse a sua república tão florente de<br />
sujeitos beneméritos que trezentos lhe fossem antepostos e avantaja<strong>do</strong>s. Não<br />
sentiu queixas o discreto mancebo, porque viu a justiça <strong>da</strong> eleição, e mais se<br />
alegrava <strong>do</strong> bem <strong>da</strong> sua república, em que tanta justiça e igual<strong>da</strong>de via, <strong>do</strong> que<br />
o entristecia a repulsa que de não ser eleito sentir pudera.<br />
Porém se no tempo presente vemos tantos beneméritos sem prémio,<br />
sem favor, desestima<strong>do</strong>s assim nas armas como nas letras, e vemos<br />
galar<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s e com cargos e postos honrosos a muitos que menos<br />
merecimentos e fun<strong>da</strong>mento tinham, somente porque a lisonja ou respeito lhe<br />
deu confianças para pertenderem, como pode justamente faltar queixas, nem<br />
como podem as repúblicas serem bem governa<strong>da</strong>s, nem permanentes? Sen<strong>do</strong><br />
assim que um sábio ain<strong>da</strong> pobre e abati<strong>do</strong> pode ser muitas vezes de proveito a<br />
quem dele necessitar menos imagina. Queixa é esta que com razão se pode<br />
ter de muitos senhores e poderosos <strong>da</strong> terra que se sirvam de ignorantes, com<br />
que muitas vezes se arruínam, e que deixem de ocupar a sábios, a discretos e<br />
prudentes, com que ordinariamente se asseguram.<br />
Lembra-me ao intento aquela história referi<strong>da</strong> pelo Beluacense 188 no<br />
espelho historial, e é que reinan<strong>do</strong> na índia Avenir, rei poderoso e soberano,<br />
havia entre os grandes de seu reino um senhor que tinha maior parte que to<strong>do</strong>s<br />
em sua privança. Era este cristão, ain<strong>da</strong> que oculto, por ser o rei com quem<br />
privava idólatra; era juntamente <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de grandes partes e de uma condição<br />
mui benévola e pie<strong>do</strong>sa. A este priva<strong>do</strong> sucedeu um dia, an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> à caça,<br />
encontrar a um pobre homem enfermo <strong>do</strong>s pés, em traje humilde, pobre e<br />
abati<strong>do</strong>, o qual lhe rogou e pediu muito o quisesse man<strong>da</strong>r levar a sua casa<br />
para ser nela cura<strong>do</strong>, porventura ain<strong>da</strong> lhe poderia servir de alguma utili<strong>da</strong>de; e<br />
Beluac, Lib. 16. cap. 4&5.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 139<br />
perguntan<strong>do</strong>-lhe o priva<strong>do</strong> de que lhe poderia servir, porque sua disposição,<br />
enfermi<strong>da</strong>de e pobreza <strong>da</strong>vam indícios de que poderia aproveitar-lhe pouco, o<br />
enfermo lhe respondeu que ele era sábio e médico de curar e remediar<br />
palavras ignorantes.<br />
Pouco <strong>caso</strong> fez o priva<strong>do</strong> <strong>da</strong> profissão <strong>do</strong> enfermo, avalian<strong>do</strong> a cura por<br />
ridícula e escusa<strong>da</strong>, por lhe parecer não incorria em tal enfermi<strong>da</strong>de de<br />
ignorâncias, que, como disse discretamente Euripides, os que menos sabem<br />
imaginam que é engano a <strong>do</strong>utrina de quem encaminhá-los procura; e ain<strong>da</strong><br />
Cícero que a causa porque a ignorância tem dificultoso o remédio é porque<br />
ninguém chega a confessar-se enfermo dela. Contu<strong>do</strong> o priva<strong>do</strong>, leva<strong>do</strong> de<br />
cari<strong>da</strong>de pelo amor de Deus, man<strong>do</strong>u levar o enfermo a sua casa, ordenan<strong>do</strong><br />
fosse cura<strong>do</strong> e sustenta<strong>do</strong> nela. Passa<strong>do</strong>s alguns dias, sucedeu que, invejan<strong>do</strong><br />
outros senhores <strong>da</strong> corte a privança deste caritativo que com el-rei tinha, o<br />
acusaram secretamente, não só de que era cristão, porém juntamente de que<br />
intentava usurpar-lhe o reino, tratan<strong>do</strong> para isso de ter o povo de sua parte,<br />
obrigan<strong>do</strong>-o com os benefícios que lhe fazia.<br />
Notáveis riscos são os <strong>da</strong> privança com os príncipes <strong>da</strong> terra, porque<br />
apenas se achará lugar mais arrisca<strong>do</strong> na vi<strong>da</strong>, fronteira mais perigosa, nem<br />
ro<strong>da</strong> menos constante na sua terra. Jamais edifícios pequenos ameaçam<br />
grande ruína; os obeliscos mais soberbos e eminentes são primeiro feri<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s<br />
raios de sol e <strong>do</strong>s que arrojam as nuvens que as cabanas pastoris e humildes;<br />
não são as plantas rasteiras persegui<strong>da</strong>s com tanta violência <strong>do</strong>s ventos como<br />
as árvores mais copa<strong>da</strong>s e alterosas; pouco se levantam as on<strong>da</strong>s nos lagos e<br />
tanques pequenos, nos mares dilata<strong>do</strong>s se embravecem as tempestades<br />
arrisca<strong>da</strong>s e furiosas. Honroso esta<strong>do</strong> é o <strong>da</strong> privança se não fora inveja<strong>do</strong> e<br />
uma vez que foi inveja<strong>do</strong> jamais ficou seguro. Exemplo seja Díon, grande<br />
priva<strong>do</strong> de Dionísio, tirano de Sicília, com quem invejosos o malquistaram de<br />
mo<strong>do</strong> que não se deu por pouco favoreci<strong>do</strong> <strong>da</strong> ventura em escapar com vi<strong>da</strong><br />
desterra<strong>do</strong> de sua tirania, que os la<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s príncipes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> poucas vezes<br />
concedem a vi<strong>da</strong> a quem de si apartam. Quem mais aceito ao grande<br />
Alexandre que Parmenião e Filotas seu filho, que eram os <strong>da</strong> chave <strong>do</strong>ura<strong>da</strong> de<br />
seu peito, os tesoureiros de seus mais íntimos segre<strong>do</strong>s, os segun<strong>do</strong>s nas<br />
digni<strong>da</strong>des e grandeza? Quem mais favoreci<strong>do</strong> dele que Clito, a quem a<br />
anciani<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s anos, e o ser irmão <strong>da</strong> ama que a Alexandre criara, <strong>da</strong>vam
140 Padre Mateus Ribeiro<br />
tanta parte na privança <strong>do</strong> monarca que to<strong>do</strong>s o admiravam e invejavam e<br />
to<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> mais segura parecia sua privança, foram mortos e em seu<br />
próprio sangue banha<strong>do</strong>s? Quem mais priva<strong>do</strong> <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Tibério que Élio<br />
Sejano? Quem mais aceito a Cómo<strong>do</strong> que Cleandro? E to<strong>do</strong>s por man<strong>da</strong><strong>do</strong> de<br />
seus príncipes foram violentamente mortos, quan<strong>do</strong> mais poderosos se<br />
julgavam, quan<strong>do</strong> maior duração se prometiam. Não há privança sem inveja,<br />
nem se dá inveja sem perigo, e sen<strong>do</strong> as vontades <strong>do</strong>s príncipes mudáveis,<br />
como humanas, engano manifesto é querer estabelecer e perpetuar edifício<br />
seguro, quan<strong>do</strong> é tão sujeito a mu<strong>da</strong>r-se o fun<strong>da</strong>mento.<br />
Enfim tornan<strong>do</strong> à história, o nosso priva<strong>do</strong> foi falsamente por invejosos<br />
acusa<strong>do</strong> ao rei que o favorecia de que com ambições <strong>da</strong> coroa e ceptro<br />
maquinava desleal<strong>da</strong>des contra sua vi<strong>da</strong>, acrescentan<strong>do</strong> que se queria com<br />
facili<strong>da</strong>de alcançar manifesto conhecimento de seus intentos, lhe dissesse<br />
fingi<strong>da</strong>mente que determinava renunciar os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e contínuos desvelos <strong>do</strong><br />
governo <strong>do</strong> reino e retirar-se a viver solitário em o deserto, ao mo<strong>do</strong> que os<br />
monges cristãos, a quem ele persegui<strong>do</strong> tinha, viviam com hábito humilde e<br />
pobre em vi<strong>da</strong> abstinente e solitária; e que notasse a resposta que ele lhe<br />
<strong>da</strong>va, que logo suas palavras mostrariam seus interiores pensamentos. Assim<br />
o fez el-rei desejoso de inteirar-se se esta acusação era ver<strong>da</strong>deira ou<br />
fingimento; e como o priva<strong>do</strong> estava ignorante <strong>do</strong> engano, com lágrimas de<br />
alegria que chorava, lhe aprovou a resolução por acerta<strong>da</strong> e louvou o intento<br />
por justo. Indignou-se el-rei, não com palavras, mas com a mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong><br />
aspecto: que sen<strong>do</strong> o rosto, como disse Plínio 189 , mostra<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s afectos <strong>da</strong><br />
alma e janela de seus mais íntimos movimentos, como lhe chamou Marco<br />
Túlio 190 , não é maravilha que, sen<strong>do</strong> o priva<strong>do</strong> discreto, logo de sua vista<br />
viesse no conhecimento <strong>da</strong> grande ira e paixão que no peito encerrava, que<br />
muitas vezes o silêncio <strong>do</strong>s príncipes é voz que fala, e não língua que<br />
emudece.<br />
Ausentou-se o rei de sua presença, deixan<strong>do</strong>-o intimi<strong>da</strong><strong>do</strong>, consideran<strong>do</strong><br />
as tempestades que lhe pronosticava o pesa<strong>do</strong> e melancólico aspecto de seu<br />
reconcentra<strong>do</strong> furor; e assim triste e pensativo foi a tomar conselho com o<br />
Sen., Lib. 11.<br />
Cicer., De petit Cons.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 141<br />
sábio enfermo que em sua casa tinha, como médico que professava curar e<br />
remediar palavras ignorantes ou inconsidera<strong>da</strong>s, e assim lhe deu particular<br />
notícia <strong>do</strong> seu desgosto.<br />
- Sem dúvi<strong>da</strong>, senhor, (lhe respondeu o enfermo como prudente) que<br />
inimigos vos tem malquista<strong>do</strong> com el-rei, dizen<strong>do</strong>-lhe que intentais usurpar-lhe<br />
o reino, e assim enten<strong>do</strong> que somente a fim de vos experimentar propôs esta<br />
fingi<strong>da</strong> renunciação de seu império, de que ele deve de estar bem alheio;<br />
portanto ide logo de madruga<strong>da</strong> e, corta<strong>do</strong>s os cabelos, vesti<strong>do</strong> juntamente em<br />
hábito humilde e pobre, vos présentai diante dele, e quan<strong>do</strong> vos perguntar a<br />
causa de tal mu<strong>da</strong>nça, lhe respondei:<br />
- São, senhor, desejos de imitar-vos e seguir-vos nesta mu<strong>da</strong>nça de<br />
vi<strong>da</strong> que intentais, que ain<strong>da</strong> que pareça dificultosa, levan<strong>do</strong>-a em vossa<br />
companhia, me será mui fácil e suave; e assim, senhor, não vos detenhais à<br />
falta de quem vos siga, pois quem vos acompanhou nas grandezas é justo que<br />
igualmente vos faça companhia na pobreza e humil<strong>da</strong>de.<br />
Executou o priva<strong>do</strong> o prudente conselho e admira<strong>do</strong> o rei de ver tão<br />
ver<strong>da</strong>deiro testemunho de leal<strong>da</strong>de, e conhecen<strong>do</strong> a inocência de um peito tão<br />
sincero, não somente repreendeu aos inimigos que falsamente o acusaram,<br />
porém ao priva<strong>do</strong> acrecentou na digni<strong>da</strong>de e privança.<br />
Esta é a utili<strong>da</strong>de que a companhia <strong>do</strong>s sábios granjeia a quem<br />
assistem, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhes conselhos nos perigos, advertências nas empresas,<br />
consolação nos desgostos, alívio nas queixas, remédio nos males. E com muita<br />
razão chamou S. Bernar<strong>do</strong> à sabe<strong>do</strong>ria governo e moderação <strong>da</strong>s tristezas.<br />
Dela disse Euripides que era o báculo <strong>da</strong> humana vi<strong>da</strong> em que se sustinham os<br />
que muitas vezes a cair se precipitavam. Saúde <strong>da</strong>s enfermi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> alma, lhe<br />
chamou Cícero; porque ain<strong>da</strong> os costumes mais bárbaros e as inclinações<br />
mais austeras sabe emen<strong>da</strong>r e moderar, como disse Ovídio. Que bem<br />
conheceu o sábio Filipe macedónico o grande proveito que <strong>da</strong> assistência <strong>do</strong>s<br />
sábios resulta, quan<strong>do</strong> no nacimento de seu filho, o grande Alexandre,<br />
escreveu uma carta a Aristóteles, como referem Laércio 191 , Justino 192 e Aulo<br />
Laert., in Arist. & 4. Apoph. n. 22.<br />
Justin., Hist. lib. 12.
142 Padre Mateus Ribeiro<br />
Gélio 193 : Que não <strong>da</strong>va tantas graças aos deuses por lhe haverem <strong>da</strong><strong>do</strong> a<br />
Alexandre por filho, quanto os gratificava por lho haverem <strong>da</strong><strong>do</strong> em tempo que<br />
pudesse ser discípulo de tal mestre! Felices foram sem dúvi<strong>da</strong> os tempos <strong>do</strong><br />
império de Marco Aurélio em que os sábios e <strong>do</strong>utos tão estima<strong>do</strong>s foram e<br />
tanto floreceram; porque conhecia muito bem o prudente monarca que em<br />
tanto a glória e aumento de seu império durariam enquanto a sabe<strong>do</strong>ria <strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>utos os lugares de seu governo ocupasse e como Atlante sustentasse o<br />
peso de tão agiganta<strong>da</strong> monarquia; pois não somente no governo político <strong>da</strong><br />
paz, mas juntamente no militar <strong>da</strong> guerra, mais obra um só sábio e prudente <strong>do</strong><br />
que muitos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s ou capitães valentes se forem ignorantes. Bastante foi<br />
somente a sabe<strong>do</strong>ria e prudente juízo de Marco Túlio para livrar Roma, sua<br />
pátria, <strong>da</strong> conjuração de Catilina, castigan<strong>do</strong> a sua temeri<strong>da</strong>de a que<br />
porventura não <strong>da</strong>riam fim tão venturoso muitos <strong>do</strong>s esforça<strong>do</strong>s capitães <strong>do</strong><br />
império. Maior guerra fazia o insigne ora<strong>do</strong>r Demóstenes com sua eloquência<br />
contra Filipe, rei de Macedónia, em defensão de Atenas, que os muitos<br />
exércitos arma<strong>do</strong>s que em Grécia contra sua ambição combatiam. E com ser<br />
isto assim, não sei a que atribua que no século presente haven<strong>do</strong> de ser os<br />
sábios e <strong>do</strong>utos a to<strong>do</strong>s preferi<strong>do</strong>s e aventaja<strong>do</strong>s, de ordinariamente sejam os<br />
menos premia<strong>do</strong>s e favoreci<strong>do</strong>s. Já algumas vezes me pareceu que seria a<br />
causa o não saberem ser adula<strong>do</strong>res, pensão mui ordinária de pertendentes e<br />
ambiciosos que lhes impôs a soberba <strong>do</strong>s priva<strong>do</strong>s ou a tibieza <strong>do</strong>s príncipes<br />
que muitas vezes governam. Lá se conta de Aristipo que ven<strong>do</strong> uma hora ao<br />
sábio Diógenes levan<strong>do</strong> umas ervas para sustentar-se lhe disse que se ele<br />
quisera adular a Dionísio, tirano de Sicília, não passara a vi<strong>da</strong> com iguaria tão<br />
tosca e grosseira; ao que Diógenes lhe respondeu que se Aristipo com ela<br />
quisera sustentar-se, como ele fazia, não lisonjeara ao tirano, contra o que<br />
convinha ao seu decoro. Bem pudera Platão privar com ele, se o adulara;<br />
porém esteve em risco de perder a vi<strong>da</strong>, porque lhe tratou desenganos.<br />
Demóstenes e Cícero voluntariamente se desterraram, um de Atenas, outro de<br />
Roma, sen<strong>do</strong> falsamente acusa<strong>do</strong>s por invejosos, por não serem constrangi<strong>do</strong>s<br />
a orar em sua defesa, como tinham feito defenden<strong>do</strong> a tantos, julgan<strong>do</strong> por<br />
indecência serem ora<strong>do</strong>res <strong>da</strong> própria vi<strong>da</strong>; e antes se quiseram desterrar que<br />
Aul. Gel., Lib. 9. cap.3.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 143<br />
cometer ain<strong>da</strong> tão leve indecência contra seu decoro. Tão severos foram os<br />
atenienses em castigar adulações que condenaram à morte ao capitão<br />
Timágoras porque em a Pérsia sau<strong>do</strong>u e fez inclinação a el-rei Dário ao mo<strong>do</strong><br />
pérsico, adulan<strong>do</strong>-o com submissões indecentes à grandeza e isenção que sua<br />
república professava.<br />
Mais gratas são ordinariamente a sujeitos ou muito soberbos ou pouco<br />
entendi<strong>do</strong>s as adulações e lisonjas que os avisos e desenganos, como disse<br />
Demóstenes, sen<strong>do</strong> assim que, conforme o parecer de Quinto Cúrsio 194 , fica<br />
sen<strong>do</strong> aos príncipes e poderosos mais perniciosa a adulação que a guerra de<br />
seus contrários. Cruel chamou à adulação o grande padre Santo Agostinho 195 ,<br />
porque avaliou por mais cruel e tirana a língua <strong>do</strong>s adula<strong>do</strong>res que descui<strong>da</strong>,<br />
que o braço <strong>do</strong> inimigo que acautela. Porém está hoje no mun<strong>do</strong> a lisonja tão<br />
introduzi<strong>da</strong> que o desengano se julga por agravo, porque a adulação se avalia<br />
por serviço. E pon<strong>do</strong> isto de parte como mal sem remédio, não deixarei de<br />
comunicar um pensamento que me ocorre sobre a pouca ventura com que<br />
muitas vezes considero no mun<strong>do</strong> os talentos grandes, os sujeitos orna<strong>do</strong>s de<br />
muitos merecimentos e partes que os fazem dignos de honroso esta<strong>do</strong>; e pelo<br />
contrário, ven<strong>do</strong> os que menos merecem, e talvez que pareciam não somente<br />
pouco idóneos, mas ain<strong>da</strong> de to<strong>do</strong> incapazes, assim nas armas como nas<br />
letras ocuparem postos grandes, lugares eminentes, cargos honrosos; e é o<br />
imaginar se por ventura nacerá isto <strong>da</strong> disposição, aspectos benignos e<br />
influências favoráveis com que naceram uns, e <strong>do</strong>s adversos influxos de<br />
contrários planetas e infortúnios com que naceram outros. E o que me dá maior<br />
motivo a imaginar isto é considerar que uns com merecerem e pertenderem e<br />
ain<strong>da</strong> com de contínuo trabalharem na<strong>da</strong> alcançam, em na<strong>da</strong> melhoram, antes<br />
parece que tu<strong>do</strong> ao contrário de seus intentos lhes sucede; e ver que outros<br />
sem merecimentos que tenham, nem pertensões em que se desvelem, tu<strong>do</strong><br />
lhes sucede à medi<strong>da</strong> <strong>do</strong> desejo, pois apenas intentam quan<strong>do</strong> alcançam, e<br />
ain<strong>da</strong> muitas vezes com não procurarem as venturas, parece que os rogam<br />
para que as aceitem. Quantos vemos no mun<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> dia, quan<strong>do</strong> menos o<br />
esperavam, de repente honra<strong>do</strong>s e ricos? E quantos, pelo contrário, passan<strong>do</strong><br />
Quint. Curt., Lib. 8.<br />
D. Aug., Sup. Psalm. 69.
144 Padre Mateus Ribeiro<br />
frios e sofren<strong>do</strong> calmas, já navegan<strong>do</strong> o mar, já peregrinan<strong>do</strong> a terra, viverem<br />
sempre pobres? Donde nacerá que haja tantos virtuosos abati<strong>do</strong>s e tantos<br />
viciosos entroniza<strong>do</strong>s? Tantos <strong>do</strong>utos desestima<strong>do</strong>s e tantos ignorantes<br />
favoreci<strong>do</strong>s? Tantos sábios persegui<strong>do</strong>s e tantos nécios ampara<strong>do</strong>s? Que o<br />
que merece alcance, que o que tem talento se honre e o discreto se prefira não<br />
era causa de admiração, antes divi<strong>da</strong> <strong>da</strong> razão e justiça; porém que ao<br />
contrário o inábil alcance, o incapaz possua, o nécio se galar<strong>do</strong>e, o ignorante<br />
se autorize, o inútil se ampare e favoreça, que discurso não suspende, que<br />
entendimento não perturba? E assim me ocorre muitas vezes o imaginar se<br />
serão porventura algumas ocultas influências, já favoráveis, já adversas, que a<br />
seus nacimentos patrocinem ou contrariem?<br />
- Conforme a isso (disse então o Ermitão) <strong>da</strong>is, senhor, a entender que<br />
as estrelas e planetas podem ser causa de nossas felici<strong>da</strong>des ou desditas?<br />
- Não o afirmo por cousa certa (disse o Peregrino), porém muitas vezes<br />
me veio ao pensamento imaginar se porventura de semelhante causa<br />
procederiam tão vários efeitos, não porém que nisso me resolvesse; e pois em<br />
vós, senhor, assim o discurso de larga i<strong>da</strong>de, como juntamente a erudição que<br />
em vossa presença descubro, me estão dizen<strong>do</strong> quanto nesta matéria podeis<br />
instruir-me, vos peço me tireis desta suspensão, dizen<strong>do</strong>-me o parecer <strong>do</strong> que<br />
nisto sentis, para que eu saia <strong>da</strong>s dúvi<strong>da</strong>s em que o discurso tantas vezes me<br />
tem enlea<strong>do</strong>.<br />
- Estimarei acertar a satisfazer-vos (disse o Ermitão), ain<strong>da</strong> que vossa<br />
discrição e o conhecimento que mostrais ter assim <strong>da</strong>s ciências, como <strong>da</strong>s<br />
histórias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, como vossa pátria tem manifesta<strong>do</strong> em outras dificul<strong>da</strong>des<br />
maiores, podiam <strong>da</strong>r luz à suspensão que mostrais nesta matéria. E assim por<br />
obedecer-vos e proceder com maior clareza, toman<strong>do</strong> esta proposta mais de<br />
seus princípios, pressuporei que:<br />
Os antigos erra<strong>da</strong>mente pressupunham haver Fa<strong>do</strong>, erro que se atribui à<br />
seita <strong>do</strong>s estóicos, os quais afirmavam ser o fa<strong>do</strong> uma fatal necessi<strong>da</strong>de<br />
causa<strong>da</strong> <strong>da</strong>s influências celestes com que no mun<strong>do</strong> necessariamente<br />
sucediam to<strong>da</strong>s as cousas: necessi<strong>da</strong>de que alguns <strong>do</strong>s astrólogos judiciários<br />
antigamente seguiam, como refere o grande padre Santo Agostinho 196 . A esta<br />
Div. Aug., Lib. 5. De Civil Dei. & lib. 4. Confess.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 145<br />
fatal disposição sujeitavam não somente os sujeitos que não tinham liber<strong>da</strong>de<br />
em suas operações, porém juntamente as causas livres, queren<strong>do</strong> também que<br />
to<strong>do</strong>s os actos humanos, ou de virtudes ou de vícios, como necessários, com<br />
fatal necessi<strong>da</strong>de e não livremente desta disposição <strong>do</strong>s astros e suas<br />
influências procedessem. Este erro impugna S. Gregório Papa 197 com muitas<br />
razões e fun<strong>da</strong>mentos e o condena S. Leão Papa, e foi já condena<strong>do</strong> no<br />
primeiro Concílio Bracharense, porque necessitava a liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade<br />
humana e o livre alvedrio <strong>do</strong>s homens.<br />
Pon<strong>do</strong> este erro de parte, começaram alguns astrólogos a vaticinar<br />
vários efeitos de venturas ou infelici<strong>da</strong>des, dizen<strong>do</strong> que <strong>do</strong>s aspectos benignos<br />
ou adversos, favoráveis ou contrários <strong>da</strong>s estrelas e planetas, em os<br />
nacimentos <strong>da</strong>s pessoas, <strong>da</strong>s causas celestes, ou disposições em que se<br />
achavam, naciam os impérios, digni<strong>da</strong>des, honras, riquezas, prosperi<strong>da</strong>des e<br />
bons sucessos; e ao contrário, as ruínas, opróbrios, pobrezas, infortúnios e<br />
desditas que no mun<strong>do</strong> vemos, engano com que tem enlea<strong>do</strong>s e suspensos os<br />
juízos e esperanças <strong>do</strong>s que dão crédito a suas fábulas, que tais<br />
continuamente se manifestam seus vaticínios, não somente nos pronósticos de<br />
pessoas particulares, mas ain<strong>da</strong> nos <strong>da</strong> generali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, como<br />
sucedeu no ano de mil cento quarenta e sete de nossa redenção, no qual os<br />
astrólogos assim <strong>do</strong> Oriente, como <strong>da</strong> nossa Europa, pronosticaram em<br />
Setembro notáveis tempestades no mar, terremotos e mortan<strong>da</strong>des na terra,<br />
grandes discórdias e guerras, com assolação de reinos e mu<strong>da</strong>nças de<br />
impérios, e no fim tu<strong>do</strong> se resolveu em na<strong>da</strong>, como refere e Espelho<br />
espiritual*. Porém que muito se ain<strong>da</strong> nos ordinários efeitos <strong>da</strong>s causas<br />
naturais, como são sereni<strong>da</strong>des ou tempestades, chuvas ou securas, tempo<br />
nuvoso ou claro, e outras cousas semelhantes, tão poucas vezes acertam;<br />
como puderam com certeza pronosticar os sucessos que pendem de causas<br />
livres, que em nenhum mo<strong>do</strong> as estrelas se sujeitam, antes as vencem? A<br />
Pompeu Magno, César e Crasso prometeram os astrólogos caldeus, a ca<strong>da</strong> um<br />
deles em particular, entre ouros vaticínios, que com felice e tranquilo fim<br />
haviam de acabar em Roma sua pátria; e o que sucedeu foi que Pompeu<br />
D. Greg., Horn il. in Epiphan. Epist. 91. cap. 9 & 10.<br />
Specul. hist, lib. 3. cap. 43.
146 Padre Mateus Ribeiro<br />
morreu violentamente no Egipto, Crasso foi morto miseravelmente na guerra<br />
<strong>do</strong>s Partos e César no sena<strong>do</strong> de Roma com vinte e três punhala<strong>da</strong>s; e estas<br />
são ordinariamente as profecias astrológicas a quem se devia <strong>da</strong>r a pena que<br />
os índios <strong>da</strong>vam aos seus astrólogos mentirosos, cujos pronósticos<br />
discor<strong>da</strong>vam <strong>do</strong>s efeitos, e eram condena<strong>do</strong>s a que to<strong>do</strong> o restante de sua vi<strong>da</strong><br />
não pronosticassem.<br />
Não nego eu que a astrologia seja ciência e tenha seus princípios<br />
ver<strong>da</strong>deiros de que proce<strong>da</strong>, a qual o patriarca Abraão ensinou aos egípcios,<br />
como se refere na História Escolástica 199 , e <strong>do</strong> Egipto se divulgou à Ásia e<br />
Europa; porém não são suas regras tocantes aos actos livres, que as estrelas e<br />
planetas pronosticar não podem; mas no tocante à medicina, agricultura e<br />
navegatória, aonde os diversos aspectos <strong>da</strong>s estrelas e planetas, alteran<strong>do</strong> os<br />
elementos e as quali<strong>da</strong>des e humores <strong>do</strong> corpo humano, vários efeitos obram.<br />
Assim refere Aristóteles 200 que conheceu Tales Milésio no Inverno pelas regras<br />
e observações de sua astrologia a grande abundância de azeite que havia de<br />
haver no Outono seguinte e, compran<strong>do</strong> no território e campos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de<br />
Mileto aos lavra<strong>do</strong>res por preço limita<strong>do</strong> a novi<strong>da</strong>de futura, mostrou que pudera<br />
ser rico se quisera com sua astrologia, quan<strong>do</strong> ao depois se manifestou a<br />
abundância de fruto que comprara antes de aparecer.<br />
Ser necessária aos médicos a astrologia e seu conhecimento ensina<br />
Galeno, avalian<strong>do</strong> ao médico ignorante de seu conhecimento por imperito e<br />
que não acertará o méto<strong>do</strong> <strong>da</strong> cura, haven<strong>do</strong> e deven<strong>do</strong> de observar na<br />
aplicação <strong>do</strong>s medicamentos as conjunções ou oposições <strong>do</strong>s planetas e as<br />
quali<strong>da</strong>des <strong>do</strong>s signos em que sucedem, que como tenham tanto <strong>do</strong>mínio no<br />
corpo humano para perturbar ou moderar seus humores e quali<strong>da</strong>des, não há<br />
dúvi<strong>da</strong> que no aplicar os remédios, assim como o conhecimento destes<br />
tempos, é de muita importância para a boa disposição e eficácia <strong>do</strong>s<br />
medicamentos; assim a ignorância ficará sen<strong>do</strong> muitas vezes causa de muito<br />
<strong>da</strong>no e prejuízo quan<strong>do</strong> as conveniências <strong>do</strong>s tempos se não observam. Pois<br />
no tocante à arte de navegar, quem duvi<strong>da</strong> que as tempestades ou bonanças,<br />
assim <strong>do</strong>s tempos como <strong>do</strong>s mares, <strong>da</strong>s conjunções ou oposições <strong>do</strong>s planetas<br />
Hist. Schol. Super Genes.<br />
Arist., Politic, cor. cap. 14.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 147<br />
e estrelas se conhecem? Que a astrologia pronostique as mu<strong>da</strong>nças <strong>do</strong>s<br />
tempos, pureza ou corrupção <strong>do</strong>s ares, tranquili<strong>da</strong>de ou tempestade <strong>do</strong>s<br />
mares, abundância ou carestia <strong>do</strong>s frutos, perigos ou convalecença <strong>da</strong>s<br />
enfermi<strong>da</strong>des e causas semelhantes, suas regras tem que segue, princípios<br />
que observa, aforismos e proposições que regula. Porém que se esten<strong>da</strong> e<br />
passe a vaticinar venturas ou desditas, riquezas ou pobrezas, honras ou<br />
vitupérios, prosperi<strong>da</strong>des ou infortúnios, mortes violentas ou pacificas, duração<br />
de vi<strong>da</strong> dilata<strong>da</strong> ou breve, e finalmente virtudes ou vícios <strong>da</strong>s criaturas<br />
humanas e causas livres, mais é temeri<strong>da</strong>de que arte, antes é imprudência e<br />
desacerto que discrição nem aviso.<br />
Naquele livro universal, que como eles lhe chamam, de estrelas e não<br />
letras se forma, não estão historia<strong>da</strong>s as vi<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s que nacem para com tanta<br />
confiança os astrólogos quererem ler nos astros to<strong>da</strong>s as acções de suas<br />
vi<strong>da</strong>s, como se crónica delas fossem, sen<strong>do</strong> o conhecimento <strong>do</strong>s futuros<br />
contingentes e que pendem de causas livres, somente reserva<strong>do</strong> à sabe<strong>do</strong>ria<br />
eterna de Deus Senhor nosso, que a to<strong>da</strong>s as diferenças de tempos alcança e<br />
compreende. Ignoram os astrólogos o que se faz não somente em terras<br />
distantes, porém ain<strong>da</strong> na própria em que assistem, cujos sucessos muitas<br />
vezes não alcançam, e querem <strong>da</strong>r alcance ao que o Céu decreta, que nem as<br />
estrelas mostram, nem os planetas manifestam? Não sabem as virtudes e<br />
proprie<strong>da</strong>des de to<strong>da</strong>s as plantas e ervas que <strong>da</strong> terra entre nós se criam e<br />
presumem de compreender as inumeráveis influências e vários atributos <strong>da</strong>s<br />
estrelas no firmamento que distantes assistem? E ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> consideramos<br />
que to<strong>da</strong>s suas ocultas virtudes e proprie<strong>da</strong>des conheciam e to<strong>do</strong>s seus<br />
movimentos observavam com calculação e cômputo infalível, não se colhia <strong>da</strong>í<br />
que pudessem conhecer futuros contingentes <strong>da</strong>s cousas livres; porque sen<strong>do</strong><br />
as estrelas matérias, não podem imprimir suas quali<strong>da</strong>des no entendimento,<br />
nem vontade humana, que são espirituais e incapazes de recebê-las, como<br />
prova o angélico <strong>do</strong>utor Santo Tomás com eficazes razões, mostran<strong>do</strong> como as<br />
estrelas e planetas nem com a diversi<strong>da</strong>de de seus aspectos podem ser causa<br />
de nossas eleições, nem acções, porque somente imprimin<strong>do</strong> suas quali<strong>da</strong>des<br />
no corpo, indirectamente inclinam a alma, em cujo alvedrio livre está rejeitar<br />
suas tácitas persuasões ou incitamentos, <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> (como diz o prolóquio)<br />
sobre os astros, que ain<strong>da</strong> que alteran<strong>do</strong> os humores e temperamento <strong>do</strong> corpo
148 Padre Mateus Ribeiro<br />
humano, ao entendimento e vontade indirectamente inclinem em nenhum mo<strong>do</strong><br />
necessitam, nem obrigam; porque não há bem finito que possa necessitar<br />
nossa vontade, a quem somente Deus Senhor nosso claramente visto na pátria<br />
celestial necessita como bem infinito, que é para quem o ama. Além <strong>do</strong> que<br />
sen<strong>do</strong> as estrelas, planetas e disposições <strong>do</strong> céu na opinião <strong>do</strong>s mesmos<br />
astrólogos causas universais, não podiam mostrar efeitos tão singulares como<br />
as acções deste ou <strong>da</strong>quele sujeito, que ain<strong>da</strong> no mesmo instante em que<br />
obra, livremente obra.<br />
E como estes efeitos não possam conhecer-se nas causas universais,<br />
pela generali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s influências, nem nas causas particulares, antes de<br />
produzi<strong>do</strong>s, pela indiferença que tem como causas livres, pois por muito<br />
conhecimento que um amigo tenha <strong>da</strong> condição <strong>do</strong> outro, não poderá com<br />
certeza afirmar se amanhã terá amor ou ódio pela indiferença <strong>da</strong> vontade livre,<br />
que ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> mais parece que obrará um acto desta espécie, pode sair<br />
com outro mui diferente; bem se segue que os futuros contingentes <strong>da</strong> vontade<br />
livre, nem os sucessos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana antes de efectua<strong>do</strong>s, nem podem pelas<br />
estrelas pronosticar-se, nem com certeza predizer-se <strong>do</strong>s homens. E somente<br />
Deus Senhor nosso os conhece, a quem em sua eterni<strong>da</strong>de presentes existem,<br />
quan<strong>do</strong> a nós são futuros; porque sen<strong>do</strong> a eterni<strong>da</strong>de uma possessão to<strong>da</strong><br />
junta de uma vi<strong>da</strong> interminável, como a definiu Boécio, a qual compreende<br />
to<strong>da</strong>s as diferenças de tempo, como diz o grande padre Santo Agostinho 201 ,<br />
nem para a eterni<strong>da</strong>de há tempo passa<strong>do</strong>, nem futuro, porque tu<strong>do</strong> lhe está<br />
presente; somente a Deus Senhor nosso convém a saber com sua eterna<br />
sabe<strong>do</strong>ria os actos livres de nossa vontade e ain<strong>da</strong> as acções mais limita<strong>da</strong>s<br />
de to<strong>da</strong> nossa vi<strong>da</strong>; não porém aos astrólogos, que ain<strong>da</strong> nos efeitos naturais<br />
muitas vezes erram, como a experiência de seus pronósticos mostra, que<br />
prometen<strong>do</strong> dias serenos os há tempestuosos e pronostican<strong>do</strong> chuvas há<br />
tempo seco, ameaçan<strong>do</strong> tempestades há bonança; e se as mesmas influências<br />
<strong>do</strong> sol, <strong>da</strong> lua e <strong>do</strong>s mais planetas e estrelas costumam ain<strong>da</strong> nas causas<br />
naturais e necessárias produzir tão vários efeitos, que em umas distâncias <strong>da</strong><br />
terra produzem metais e na superfície dela flores, endurecem o barro e<br />
abran<strong>da</strong>m a cera, convertem os vapores em nuvens e as nuvens em água, na<br />
D. Aug., Lib. 1. Qœst. sup. Genes.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 149<br />
terra produzem animais e aves e no mar peixes, na terra ouro e no mar<br />
pérolas, sen<strong>do</strong> um mesmo seu movimento, sua luz a própria, como não<br />
chamarei ousadia a quererem vaticinar de causas tão universais, efeitos tão<br />
particulares, ain<strong>da</strong> nas causas livres que a suas influências não são sujeitas?<br />
Refere o grande padre Santo Agostinho 202 que <strong>do</strong>us famosos matemáticos e<br />
astrólogos observaram os nacimentos de Firmino, seu grande amigo, que era<br />
filho de um deles, e o outro astrólogo o nacimento <strong>do</strong> filho de uma escrava sua:<br />
os quais <strong>do</strong>us nacimentos, observa<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as circunstâncias <strong>do</strong> tempo,<br />
horas, minutos, aspectos, horóscopos e mais observações que a astrologia<br />
ordena, foram em tu<strong>do</strong> iguais, não menos no tempo que na disposição <strong>do</strong>s<br />
planetas, estrelas e seus aspectos que a astrologia regula; e com serem os<br />
nacimentos tão iguais na disposição <strong>da</strong>s estrelas, foram tão desiguais os<br />
naci<strong>do</strong>s na ventura que Firmino ca<strong>da</strong> vez mais prospero[u] em riquezas, honras<br />
e digni<strong>da</strong>des e o filho <strong>da</strong> escrava <strong>do</strong> outro astrólogo ficou sempre tão cativo<br />
como nacera.<br />
Além disto, que bom juízo não alcança como é impossível que nas<br />
grandes batalhas que no mun<strong>do</strong> ouve, qual foi a <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Ciro com<br />
Tómiris, rainha <strong>do</strong>s massagetas, em que Ciro perdeu a vi<strong>da</strong> juntamente com<br />
duzentos mil persianos; a de Alexandre Magno com Dário, em que matou ao<br />
persa cem mil infantes e dez mil cavalos; a de Mário com os teutónicos, em<br />
que morreram duzentos mil deles com seu rei Teutoboco; a de Aníbal com os<br />
romanos, junto a Canas, em que morreram quarenta mil cavaleiros romanos<br />
com seu cônsul Paulo Emílio; a de César com os alemães, junto às ribeiras <strong>do</strong>s<br />
rios Moza e Reno, em que deles morreram, ou à espa<strong>da</strong>, ou afoga<strong>do</strong>s nas<br />
águas, quatrocentos e trinta mil alemães; e outras muitas batalhas, que por<br />
brevi<strong>da</strong>de deixo, de que estão cheias as histórias antigas e modernas; como é<br />
impossível, digo, to<strong>do</strong>s os mortos nacessem em aspectos e infortunas para<br />
serem mortos violentamente à espa<strong>da</strong>, com tanta diversi<strong>da</strong>de de mortes; e que<br />
sen<strong>do</strong> de i<strong>da</strong>des tão diferentes, tão diversas pátrias e tão várias terras, as<br />
estrelas os ajuntassem para tirar tantas vi<strong>da</strong>s em um só dia?<br />
Quantos milhares de pessoas perderam juntamente as vi<strong>da</strong>s nos<br />
grandes naufrágios <strong>do</strong> mar e inun<strong>da</strong>ções <strong>do</strong>s rios; ou quan<strong>do</strong> sobre o caramelo<br />
D. Aug., Lib. 7. Contes, cap. 6.
150 Padre Mateus Ribeiro<br />
que aboba<strong>da</strong>va e cobria a corrente de um cau<strong>da</strong>loso rio se deram batalha <strong>do</strong>us<br />
poderosos exércitos <strong>do</strong>s tártaros, que com o ímpeto de seu movimento e<br />
armas, resolven<strong>do</strong>-se a gea<strong>da</strong> e caramelo que os sustentava, se afogaram<br />
trinta mil tártaros nas on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> rio, como escreve Marco António Sabélico?<br />
Quem não considera os lamentáveis incêndios que no mun<strong>do</strong> houve e os<br />
muitos homens que neles pereceram, como foi aquele <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Vicência,<br />
em Itália, em que duas mil almas pereceram? Nos grandes terremotos que<br />
houve que ci<strong>da</strong>des inteiras arruinaram, em que tantos mortais pereceram,<br />
como foi aquele que houve em Sicília, na ci<strong>da</strong>de de Catania, no pontifica<strong>do</strong> de<br />
Urbano III, em que morreram vinte cinco mil pessoas precipita<strong>da</strong>s e oprimi<strong>da</strong>s<br />
de suas ruínas? Dous mil ci<strong>da</strong>dãos de Tiro, marítima ci<strong>da</strong>de de Fenícia,<br />
man<strong>do</strong>u o grande Alexandre crucificar em um dia, junto às ribeiras <strong>do</strong> mar<br />
Mediterrâneo, como refere Quinto Cúrcio 203 .<br />
Sen<strong>do</strong> pois isto assim, que bom juízo dirá que ocultas influências <strong>do</strong>s<br />
astros insensíveis os ajuntassem tão diferentes nas i<strong>da</strong>des, e pelo conseguinte<br />
nos nacimentos, tão diversos nas inclinações, e a muitos nas regiões e pátrias,<br />
para executarem neles o mesmo género de mortes em um próprio dia, sen<strong>do</strong><br />
que, como os mesmos astrólogos querem, nem podiam ser as mesmas as<br />
durações de tantas vi<strong>da</strong>s pelas estrelas, nem para o mesmo tempo infalível as<br />
execuções de tantas mortes a que <strong>do</strong>s planetas (como eles dizem)<br />
sentencia<strong>do</strong>s nacessem. Sem dúvi<strong>da</strong> que quem bem semelhantes efeitos<br />
considera não deixará de avaliar estes astrológicos juízos e figuras destes<br />
nacimentos em o pouco crédito que merecem. E se me disserem que muitas<br />
cousas disseram que ver<strong>da</strong>deiras saíram, responde a isto o grande padre<br />
Santo Agostinho 204 que se atribuirá isso mais a pacto de espíritos malignos que<br />
o dissessem, que à disposição <strong>do</strong>s astros que o pronosticassem; porque<br />
suposto que os demónios não tenham certo conhecimento <strong>do</strong>s futuros<br />
contingentes <strong>da</strong>s causas livres mais que por indícios e conjecturas, contu<strong>do</strong><br />
sen<strong>do</strong> tão vivos e subtis de natureza, e ten<strong>do</strong> as ciências naturais que não<br />
perderam em grau tão excelente, podem destas conjecturas formar juízos<br />
prováveis, os quais suposto que não careçam de poderem ter suas falências,<br />
Q. Curt., Lib. 4.<br />
Lib. 5. De civ. Dei. cap. 7.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 151<br />
como de ordinário tem e as mais <strong>da</strong>s vezes sucede, contu<strong>do</strong> combinan<strong>do</strong> eles<br />
as inclinações <strong>da</strong>s pessoas, seus costumes, exercícios, ambições,<br />
companhias, pertensões, indústrias, e outras muitas circunstâncias que<br />
conhecem, com as ocasiões e disposições <strong>do</strong>s tempos, esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s reinos,<br />
impérios, privanças, alterações, e finalmente paixões naturais <strong>do</strong>s príncipes ou<br />
vassalos, ajuntan<strong>do</strong>-se a isto a larga experiência que desde tantos mil anos de<br />
sua criação tem alcança<strong>do</strong> nos sucessos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, não duvi<strong>do</strong> que possam<br />
formar juízos com que algumas vezes acertassem no que disseram, e bastam<br />
quatro vaticínios que sucedessem para que acreditem duzentos enganos em<br />
que faltaram e ver<strong>da</strong>de não disseram. Quanto mais que pela maior parte<br />
sempre semelhantes pronósticos levam equivocações que servem de desculpa<br />
a seus erros, quais eram antigamente as <strong>do</strong>s oráculos de Delfos, <strong>da</strong><strong>do</strong>s a<br />
Cresso poderoso, rei de Lídia, ao qual consultan<strong>do</strong> o oráculo sobre a guerra<br />
que intentava mover aos persianos, se lhe deu em resposta que se passasse o<br />
rio Halis, que dividia o seu reino <strong>do</strong> <strong>do</strong>s me<strong>do</strong>s, um grande império destruiria.<br />
Cresso entendeu o oráculo <strong>do</strong> império <strong>do</strong>s persas que conquistar intentava,<br />
porém perdeu sua própria monarquia, sen<strong>do</strong> venci<strong>do</strong> e preso deles.<br />
Semelhante equivocação foi a <strong>do</strong> oráculo com que os lacedemónios se<br />
moveram a fazer guerra aos povos de Tegeia, em Arcádia; porque dizia o<br />
vaticínio <strong>do</strong> oráculo que, se os guerreassem, mediriam com uma cor<strong>da</strong> em um<br />
dia to<strong>do</strong> o território de seus contrários; porém o sucesso foi que sen<strong>do</strong> os<br />
lacedemónios venci<strong>do</strong>s e cativos <strong>do</strong>s de Tegeia, presos e ata<strong>do</strong>s com cor<strong>da</strong>s<br />
quan<strong>do</strong> os levavam cativos, mediram a terra de seus inimigos com os passos<br />
que por ela deram, não livres e senhores, como eles imaginavam, mas<br />
venci<strong>do</strong>s e sem liber<strong>da</strong>de, como menos temiam; os quais oráculos parece que<br />
mais era ludíbrio com que o demónio os enganava, que certeza ou ver<strong>da</strong>de<br />
com que os persuadia. Porém quan<strong>do</strong> sem equivocações falam, é com a<br />
probabili<strong>da</strong>de, que tenho dito, de tantas circunstâncias bem deduzi<strong>da</strong>s com a<br />
larga experiência e viveza própria <strong>da</strong> natureza angélica, cujas naturais<br />
perfeições e ciências não perderam; e deste parecer é S. João Damasceno 205 .<br />
Ou diremos também que quan<strong>do</strong> acertam no que vaticinam é por revelações,<br />
ordenan<strong>do</strong>-o assim Deus Senhor nosso por ocultos juízos de sua Divina<br />
Damasc, Lib. 2. De fide orthod. cap. 4.
152 Padre Mateus Ribeiro<br />
Providência, a que nosso limita<strong>do</strong> entendimento não pode <strong>da</strong>r alcance. Esta<br />
opinião me parece muito provável; porquanto o conhecimento certo <strong>do</strong>s futuros<br />
livres e contingentes é argumento próprio de Divin<strong>da</strong>de, como se prova <strong>do</strong><br />
capítulo quarenta e um <strong>do</strong> profeta Isaías 206 , aonde se diz às criaturas que, se<br />
querem que as avaliem por Divin<strong>da</strong>des, anunciem e pronostiquem os futuros<br />
contingentes e livres; que assim expõem as palavras Santo Agostinho 207 , S.<br />
João Crisóstomo 208 , Origene^ 09 e ordinariamente os Expositore^ 0 . E assim<br />
mais me persua<strong>do</strong> que se os demónios alguns tais vaticínios disseram, e assim<br />
sucederam, foram revelações que os santos anjos lhe[s] comunicaram por<br />
ordem <strong>da</strong> Providência Divina, que por seus ocultos juízos assim o ordena e<br />
permite; os quais futuros os anjos na visão beatífica de Deus Senhor nosso<br />
estão ven<strong>do</strong> e alcançan<strong>do</strong>, como em espelho e livro eterno em que se<br />
encerram e conhecem.<br />
Assim que nem as estrelas sen<strong>do</strong> cria<strong>da</strong>s para servirem ao homem tem<br />
<strong>do</strong>mínio algum em suas acções, nem delas se podem saber futuras<br />
prosperi<strong>da</strong>des, ou bonanças suas, nem os horóscopos <strong>do</strong>s astros sentenceiam<br />
a alguém em seu nacimento a risco, mortes, perigos, felici<strong>da</strong>des, infortúnios,<br />
riquezas ou pobrezas, que os judiciários astrólogos fabulizam, como se fosse a<br />
figura que levantam ao naci<strong>do</strong> crónica de to<strong>da</strong>s as acções já passa<strong>da</strong>s de sua<br />
vi<strong>da</strong>.<br />
- Conce<strong>do</strong> (disse o Peregrino) que já as venturas ou adversi<strong>da</strong>des <strong>do</strong>s<br />
homens não nascem, nem procedem, <strong>do</strong>s aspectos e influências <strong>da</strong>s estrelas,<br />
por me deixarem satisfeito as razões e argumentos com que provais conclusão<br />
tão posta em termo de ver<strong>da</strong>de. Porém estimara me dissésseis a que podemos<br />
atribuir esta varie<strong>da</strong>de de esta<strong>do</strong>s, esta desigual<strong>da</strong>de de prémios, esta<br />
diversi<strong>da</strong>de de fortunas que no mun<strong>do</strong> vemos? Donde nacerá haver tantos<br />
<strong>do</strong>utos despreza<strong>do</strong>s, tantos nécios ricos, tantos descui<strong>da</strong><strong>do</strong>s venturosos? E<br />
pois <strong>da</strong>s estrelas não procede, que causa há para esta improporção tão grande<br />
^ Ub Isai., cap. 41.<br />
207 D. Aug., Lib. 5. De civil cap. 9.<br />
208 Chrisost., Horn. 18. sup. 1. c. Joan.<br />
209 Origen., Lib. 8.<br />
210 Periarch., c. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 153<br />
à nossa vista, em quem os discursos tropeçam, os juízos se enleiam e<br />
suspendem?<br />
- Dificultosa cousa me pedis (respondeu o Ermitão), por serem estas<br />
causas ocultas a nosso entendimento nesta mortal vi<strong>da</strong>; sen<strong>do</strong> secretos juízos<br />
<strong>da</strong> Divina Providência, justíssima em to<strong>da</strong>s suas obras, que com sabe<strong>do</strong>ria<br />
eterna governa nossas vi<strong>da</strong>s: porém de uma história admirável que referirei,<br />
viremos a rastejar e investigar alguma notícia <strong>do</strong> que desejais tanto saber.<br />
- Em extremo (disse o Peregrino) estimarei ouvi-la, e grande foi minha<br />
ventura neste encontro, porque com vossa prudência e bom discurso principiais<br />
a abrir algum caminho de alívio a minhas tristezas.<br />
- Desejava eu (respondeu o Ermitão) ser poderoso a fazer-vos tão feliz<br />
e alegre, como vossa presença e partes merecem. A história refere o cardeal<br />
Jacobo de Vitriaco, e é a seguinte 211 :<br />
Houve um ermitão antigamente que haven<strong>do</strong> gasta<strong>do</strong> alguns anos nesta<br />
solitária vi<strong>da</strong> retira<strong>do</strong> no ermo, exercitan<strong>do</strong>-se em obras de virtude e<br />
mortificação grande <strong>da</strong> própria vontade, foi grandemente tenta<strong>do</strong> algumas<br />
vezes de um espírito de blasfémia, não lhe parecen<strong>do</strong> justos os juízos de Deus<br />
a ele ocultos e não entendi<strong>do</strong>s. Este pensamento o atormentava, este cui<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
o entristecia, esta tentação o molestava de maneira que nem de dia, nem de<br />
noite lhe deixava livre hora de descanso, haven<strong>do</strong> uma perpétua guerra em<br />
resistir a vontade o <strong>da</strong>r consentimento aos desacertos que lhe representava o<br />
entendimento. E como Deus Senhor nosso nunca se descui<strong>da</strong> <strong>da</strong>s aflições de<br />
seus servos, que se (como diz o P. S. Gregório Papa 212 ) ninguém escapa nesta<br />
vi<strong>da</strong> de ser tenta<strong>do</strong> <strong>do</strong> inimigo, contu<strong>do</strong> não lhe concede Deus os poderes de<br />
vencer-nos, diz o grande Agostinho 213 , conforme tem a vontade de precipitar-<br />
nos; um dia, quan<strong>do</strong> mais descui<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong> socorro e mais molesta<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
tentação o ermitão estava, lhe apareceu um anjo em figura de homem<br />
mancebo e bem disposto e lhe disse:<br />
- Segue-me, se queres considerar e conhecer os ocultos juízos de Deus<br />
que tanto saber desejas.<br />
211 In Vitis Patrum, Lib. 5 et in Magno Speculo Verb Juditium Dei.<br />
212 D. Greg., 17. Moralium.<br />
213 D. Aug., in Psal. 16.
154 Padre Mateus Ribeiro<br />
Alegre em extremo o pensativo ermitão aceitou sua companhia com os<br />
grandes desejos de aclarar suas dúvi<strong>da</strong>s, de sossegar seus desvelos;<br />
caminharam ambos larga jorna<strong>da</strong> aquele dia e já no crepúsculo <strong>da</strong> noite<br />
chegaram à casa de um homem não rico, porém muito virtuoso e caritativo, que<br />
os agasalhou mui urbanamente com o sustento que tinha, e à ceia lhe pôs na<br />
mesa uma taça ou copo de prata para beberem, de debuxo e lavor mui curioso,<br />
que ele muito estimava e em cuja vista se revia.<br />
Porém o anjo subtilmente naquela noite lha furtou sem que ele o<br />
sentisse e a levou consigo. Despediram-se pela manhã <strong>do</strong> hóspede, e<br />
continuan<strong>do</strong> sua jorna<strong>da</strong> o anjo mostrou ao ermitão a taça que furtara, de que o<br />
ermitão muito se escan<strong>da</strong>lizou, estranhan<strong>do</strong>-lhe o desprimor e vilania de roubar<br />
a pren<strong>da</strong> de mais estima que tinha aquele pobre homem que em sua casa com<br />
tanta cari<strong>da</strong>de os hospe<strong>da</strong>ra.<br />
Pouco <strong>caso</strong> fez o anjo <strong>da</strong>s queixas e sentimento <strong>do</strong> companheiro; foram<br />
continuan<strong>do</strong> o seu caminho e se agasalharam a seguinte noite em outra casa<br />
de um homem rico <strong>do</strong>s bens <strong>da</strong> terra, porém mau e perverso, de pouca<br />
cari<strong>da</strong>de, nem cortesia, que sem alguma os recebeu, e pesa<strong>da</strong>mente os<br />
agasalhou com tão pouca urbani<strong>da</strong>de que mais tinham motivo de queixas, que<br />
de agradecimento. Pela manhã, despedin<strong>do</strong>-se o anjo e companheiro dele, lhe<br />
ofereceu o anjo a taça curiosa que ao outro hóspede caritativo furtara; acção<br />
que ao ermitão de novo acrecentou o sentimento em ver que a pren<strong>da</strong> de<br />
estima que a um pobre primoroso e tão cari<strong>do</strong>so furtara, a um rico sem<br />
cari<strong>da</strong>de nem primores dera; tu<strong>do</strong> lhe parecia desacertos e acções alheias de<br />
to<strong>do</strong> bom juízo.<br />
Nestas queixas e debates, de que ao anjo se lhe <strong>da</strong>va pouco, foram<br />
continuamente seu caminho, vin<strong>do</strong> na terceira noite de sua peregrinação<br />
agasalhar-se em casa de um homem afável, benévolo e cari<strong>do</strong>so, que os<br />
hospe<strong>do</strong>u com grande benigni<strong>da</strong>de e largueza; e vin<strong>da</strong> a manhã, despedi<strong>do</strong>s<br />
dele, o anjo lhe despenhou no rio, de uma ponte alta, um cria<strong>do</strong> seu que nela<br />
estava, de quem o hóspede muito fiava, e lho afogou no rio.<br />
Admirou-se o ermitão de tal cruel<strong>da</strong>de, repreenden<strong>do</strong>-lhe o homicídio e<br />
mau galardão que dera a quem com tanta liberali<strong>da</strong>de e amor os tratara; porém<br />
como o anjo de sua admiração e repreensão pouco <strong>caso</strong> fazia, foi continuan<strong>do</strong><br />
sua jorna<strong>da</strong>, e chega<strong>da</strong> a quarta noite dela se hospe<strong>da</strong>ram em casa de um
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 155<br />
honra<strong>do</strong> e cari<strong>do</strong>so homem que os recebeu com grande cortesia. Tinha este<br />
um menino de pouca i<strong>da</strong>de que de noite com o seu choro não deixava repousar<br />
a quem na casa estava, o que visto pelo anjo, sem ser <strong>do</strong> pai senti<strong>do</strong>, se<br />
levantou e o afogou no berço, acção que vista <strong>do</strong> ermitão, sem poder remediá-<br />
la, além <strong>do</strong> grande sentimento e pena que dela recebeu, parecen<strong>do</strong>-lhe que<br />
obras tão desordena<strong>da</strong>s e tiranas não podiam preceder senão de algum<br />
espírito maligno, qual ser o anjo imaginava, se resolveu de não continuar mais<br />
tal jorna<strong>da</strong>, nem ir em sua companhia a parte alguma, e assim sain<strong>do</strong> de casa<br />
deste cari<strong>do</strong>so homem, que ficava com tal sentimento lamentan<strong>do</strong> a morte de<br />
seu defunto filho, que era o espelho em que se reviam suas esperanças, o<br />
ermitão, arman<strong>do</strong>-se com o sinal <strong>da</strong> cruz, conjurou ao anjo que ser demoníaco<br />
imaginava que o deixasse e em sua companhia não fosse; porém o anjo lhe<br />
disse:<br />
- Eu não sou demónio, como imaginas, senão anjo <strong>do</strong> senhor que me<br />
man<strong>do</strong>u para que manifestasse os ocultos juízos de sua eterna Providência<br />
que tanto alcançar procuras: e assim saberás que tirei a curiosa taça de prata<br />
àquele cari<strong>do</strong>so homem, que nos agasalhou a primeira noite tão afavelmente,<br />
porque com o muito que em vê-la se desvelava e recreava se esquecia e<br />
mostrava tíbio nas contínuas orações que antes de tê-la fazia, de que já o<br />
divertiam assim o gosto de possuí-la, como o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> de guardá-la: privei-o<br />
dela para que sua antiga devoção na<strong>da</strong> se diminua, mas antes se afervore e<br />
creça. Dei a mesma taça àquele homem rico descari<strong>do</strong>so para que nesta vi<strong>da</strong><br />
receba o prémio de alguma obra boa natural que tem feito, pois o não há-de<br />
receber na outra; que como Deus é sumamente justo, nem deixa obra má sem<br />
castigo, nem obra boa sem galardão. Precipitei no rio ao cria<strong>do</strong> <strong>do</strong> terceiro<br />
hóspede, que com tanta cari<strong>da</strong>de nos recebeu, porque tinha firme propósito de<br />
matar a seu amo na noite seguinte, e assim, afogan<strong>do</strong> eu ao trai<strong>do</strong>r cria<strong>do</strong>,<br />
livrou Deus <strong>da</strong> morte aquele que nos agasalhou tão cari<strong>do</strong>samente por seu<br />
amor, sen<strong>do</strong> particular benefício o que quem não alcança a razão dele pudera<br />
avaliar por agravo. Ultimamente afoguei no berço ao menino filho <strong>do</strong> nosso<br />
último hóspede caritativo porque, sen<strong>do</strong> de antes de extremo liberal para com<br />
os pobres, de lhe nacer este filho apertou a mão no bem fazer, in<strong>do</strong> de ca<strong>da</strong><br />
vez diminuin<strong>do</strong> as esmolas com os desejos de conservar e adquirir fazen<strong>da</strong><br />
para o filho, e assim tirei a vi<strong>da</strong> ao menino inocente em i<strong>da</strong>de tão venturosa
156 Padre Mateus Ribeiro<br />
para que fosse gozar <strong>da</strong> glória e ficasse ocasião ao pai para continuar na<br />
eficácia <strong>da</strong>s obras de cari<strong>da</strong>de, de que já se descui<strong>da</strong>va. Estes são os juízos<br />
de Deus em tu<strong>do</strong> justos e acerta<strong>do</strong>s que, a quem os ignora, parecer podiam<br />
desordens ou injustiças. Com isto desapareceu o anjo e ficou o ermitão fora <strong>da</strong><br />
tentação que o molestava e consola<strong>do</strong> nas aflições que sentia.<br />
Desta história podemos inferir algumas razões e conjecturas <strong>da</strong> causa<br />
porque Deus Senhor nosso permite que no mun<strong>do</strong> haja tantos viciosos<br />
favoreci<strong>do</strong>s e estima<strong>do</strong>s, e pelo contrário tantos virtuosos desestima<strong>do</strong>s e<br />
persegui<strong>do</strong>s; tantos sábios pobres e desvali<strong>do</strong>s; tantos descui<strong>da</strong><strong>do</strong>s venturosos<br />
e tantos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sos infelices em to<strong>do</strong>s os esta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana, não por<br />
causa de estrelas ou planetas, em cujos aspectos benévolos ou adversos<br />
nacem, mas por ocultos juízos de sua eterna Providência, que com sabe<strong>do</strong>ria<br />
infinita assim o dispõe para os fins que nós não alcançamos, nem nesta mortal<br />
vi<strong>da</strong> os conhecemos. Quantas vezes não permite Deus Senhor nosso que os<br />
pobres cheguem a ser ricos por não arriscarem suas virtudes a arruinarem-se?<br />
Quantas vezes permite que os sábios e beneméritos não ocupem os postos,<br />
cargos e digni<strong>da</strong>des maiores, por não os pôr a perigo de se esvaecerem ou<br />
ensoberbecerem desconhecen<strong>do</strong>-se neles? Quantas vezes permite sua<br />
Providência que os justos sejam persegui<strong>do</strong>s para que juntamente a nós nos<br />
dêem exemplo de tolerância e constante sofrimento, e a si próprios aumentem<br />
a coroa de seus merecimentos? Quantas vezes leva para si aos mancebos na<br />
flor <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de para assegurar-lhes a salvação que porventura em mais dilata<strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> se arriscará? E quantas vezes sustenta os velhos em i<strong>da</strong>de já decrépita<br />
para esperar-lhes horas de arrependimento ver<strong>da</strong>deiro, que se antes os<br />
chamara se condenariam? A quantos perversos e desumanos consente<br />
possuírem riquezas e grandes esta<strong>do</strong>s, ou para mostrar o pouco <strong>caso</strong> e<br />
estimação que se deve fazer de semelhantes bens e prosperi<strong>da</strong>des, pois os<br />
concede de sujeitos deles à nossa vista tão pouco dignos, ou para lhes pagar<br />
nesta algumas boas obras naturais que fizeram, pois na outra vi<strong>da</strong> delas não<br />
hão-de receber prémio, antes o castigo que seus vícios e culpas merecem:<br />
como <strong>do</strong> rico avarento, diz o padre S. João Crisóstomo 214 , que lhe pagou Deus<br />
214 Super Luc. col. 1.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 157<br />
nas abundância e felici<strong>da</strong>des que neste mun<strong>do</strong> teve, algumas naturais obras<br />
que feito tivesse.<br />
Ocultos juízos são to<strong>do</strong>s de seu saber; secretas disposições de sua<br />
Providência eterna, ao limita<strong>do</strong> capto de nosso entendimento nem manifestas,<br />
nem conheci<strong>da</strong>s. A quantos se concedem riquezas para que não se percam,<br />
ven<strong>do</strong> que se fossem pobres não teriam valor para sofrerem a pobreza sem<br />
cometerem vilezas, roubos, latrocínios? E a quantos as nega, que se fossem<br />
ricos executariam com as riquezas que possuíssem mil insolências e peca<strong>do</strong>s?<br />
Quantos não se aplicariam às letras nacen<strong>do</strong> ricos, que estu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> por se<br />
verem pobres serão admirações de sabe<strong>do</strong>ria e erudição? Tal foi Demóstenes,<br />
príncipe <strong>do</strong>s ora<strong>do</strong>res gregos, cujo pai era tão pobre que vendia facas e cutelos<br />
para sustentar-se. O insigne poeta trágico Euripides era filho de pais tão<br />
pobres que sua mãe vendia hortaliça para granjear a vi<strong>da</strong>: e ambos foram<br />
admiração, um na prosa e outro no metro. Do filósofo Zeno se conta que<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe uma vez novas de que to<strong>do</strong>s seus bens se perderam em um<br />
naufrágio grande, respondeu com grande valor que fora ordem <strong>da</strong> fortuna para<br />
que com mais cui<strong>da</strong><strong>do</strong> se aplicasse às letras, assim o conta Séneca; e<br />
porventura que essa foi a razão porque Diógenes 215 chamou à pobreza<br />
subsídio <strong>da</strong> Filosofia; e o grande P. S. Basílio a intitulou ama<strong>do</strong> saber. Quantos<br />
se se vissem entroniza<strong>do</strong>s nos governos e favoreci<strong>do</strong>s <strong>da</strong> ventura se<br />
perverteriam, que consideran<strong>do</strong>-se humildes e desvali<strong>do</strong>s na boa vi<strong>da</strong> e<br />
costumes se conservaram?<br />
Na vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> abade Daniel Egípcio, que an<strong>da</strong> na Vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s Padres, se<br />
conta que em uma vila <strong>do</strong> Egipto vivia um pobre homem cavouqueiro, porém<br />
tão rico de cari<strong>da</strong>de que a to<strong>do</strong>s os peregrinos que por ali passavam<br />
agasalhava em casa e sustentava enquanto nela estavam com o que granjeava<br />
<strong>do</strong> trabalho de suas mãos. Sucedeu que hospe<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se um dia em sua casa<br />
ao abade Daniel, servin<strong>do</strong>-o com grande fervor e cari<strong>da</strong>de, ven<strong>do</strong> o venerável<br />
abade sua muita pobreza e que com o desejo de esmolar e hospe<strong>da</strong>r apenas<br />
lhe ficava para poder sustentar sua família, fez oração a Deus Senhor nosso<br />
que lhe quisesse acrecentar os bens temporais, para que sua cari<strong>da</strong>de tivesse<br />
mais que distribuir e melhor comodi<strong>da</strong>de para passar a vi<strong>da</strong>; e estan<strong>do</strong> assim<br />
215 Diogen., apud Stob. in Epist.
158 Padre Mateus Ribeiro<br />
oran<strong>do</strong> lhe apareceu um ancião veneran<strong>do</strong>, o qual lhe perguntou se ficava por<br />
fia<strong>do</strong>r de aquele pobre homem, ven<strong>do</strong> se em melhora<strong>da</strong> fortuna perseveraria<br />
nas obras de cari<strong>da</strong>de que então exercitava; e responden<strong>do</strong> o abade Daniel<br />
que sim, desapareceu a visão.<br />
Passa<strong>do</strong>s que foram alguns dias, an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> este cari<strong>do</strong>so homem<br />
ocupa<strong>do</strong> conforme seu ofício em umas pedreiras, queren<strong>do</strong> delas tirar uma<br />
pedra grande, descobriu debaixo dela um rico tesouro que ali oculto estava, o<br />
qual sem que alguém o visse recolheu com muita alegria; porém desvelan<strong>do</strong>-o<br />
os receios de que não chegasse a notícia dele por alguma via ao senhor <strong>da</strong><br />
terra e quisesse tomá-lo, se embarcou com ele secretamente para<br />
Constantinopla, levan<strong>do</strong> sua família, aonde por meio e inteligência <strong>da</strong>s suas<br />
grandes riquezas e jóias, chegou a ter privança com o empera<strong>do</strong>r Justino, que<br />
então imperava, que em pouco tempo o fez ve<strong>do</strong>r <strong>do</strong> paço e superintendente<br />
de muita parte <strong>do</strong> governo.<br />
Ven<strong>do</strong>-se ele levanta<strong>do</strong> a tão grande esta<strong>do</strong> e privança, pôs em<br />
esquecimento sua antiga hospitali<strong>da</strong>de e obras cari<strong>do</strong>sas, entregan<strong>do</strong>-se to<strong>do</strong><br />
a razões de esta<strong>do</strong>, às privanças <strong>do</strong> monarca e lisonjas <strong>da</strong> corte em que<br />
assistia. As novas desta mu<strong>da</strong>nça de vi<strong>da</strong> e costumes chegaram ao abade<br />
Daniel, o qual como fia<strong>do</strong>r, ven<strong>do</strong>-se obriga<strong>do</strong> a <strong>da</strong>r conta de sua vi<strong>da</strong>, mui<br />
pesaroso de considerar tão repentina mu<strong>da</strong>nça, se partiu para Constantinopla<br />
com intento de falar-lhe e repreendê-lo; porém foi <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s que lhe assistiam<br />
impedi<strong>do</strong>, e não somente desacata<strong>do</strong> de palavras, porém ain<strong>da</strong> mal trata<strong>do</strong> de<br />
obras se partiu outra vez sem lhe aproveitar cousa alguma sua peregrinação.<br />
Assim aflito e triste se pôs em oração diante <strong>da</strong> devota imagem de Cristo<br />
crucifica<strong>do</strong>, pedin<strong>do</strong>-lhe houvesse por bem livrá-lo <strong>da</strong> fiança a que se obrigara<br />
por Eulógio (que assim se chamava este priva<strong>do</strong>), e toman<strong>do</strong> a Virgem<br />
sacratíssima por sua advoga<strong>da</strong> e medianeira.<br />
Chegan<strong>do</strong> a Alexandria lhe apareceu Cristo redentor nosso e disse que<br />
ele o livraria <strong>da</strong> fiança que fizera, e que <strong>da</strong>í em diante se acautelasse de se não<br />
obrigar a outra. Sucedeu, continuan<strong>do</strong> o tempo, morrer o empera<strong>do</strong>r Justino, e<br />
suceden<strong>do</strong>-lhe <strong>do</strong> império seu filho Justiniano, o qual não era afeiçoa<strong>do</strong> a<br />
Eulógio, antes contrário, o depôs logo <strong>do</strong> cargo e administração que tinha,<br />
man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> dele sindicar com muito rigor: achou-se culpa<strong>do</strong> em muitas faltas e<br />
erros de sua administração, pelo que lhe foram confisca<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os seus bens
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 159<br />
e riquezas que possuía, e despoja<strong>do</strong> delas e cargos que tivera o man<strong>do</strong>u<br />
desterrar para sempre <strong>da</strong> corte; o qual ven<strong>do</strong>-se tão abati<strong>do</strong> e em extremo<br />
pobre, e não queren<strong>do</strong> que servisse de teatro a suas misérias o que já o fora<br />
<strong>da</strong>s maiores felici<strong>da</strong>des de sua ventura, se partiu para o Egipto, a sua antiga<br />
pátria, e nela começou a exercitar o ofício que de antes tinha, e com ele as<br />
obras de cari<strong>do</strong>sa hospitali<strong>da</strong>de que de antes sen<strong>do</strong> pobre e humilde, como<br />
agora se via, usava.<br />
Desta história se pode inferir o como são disposições <strong>da</strong> Divina<br />
Providência que muitos justos e beneméritos não subam à digni<strong>da</strong>de, nem<br />
possuam riquezas, para que elas os não pervertam, queren<strong>do</strong> que humildes se<br />
assegurem e não que autoriza<strong>do</strong>s se arrisquem; e querer compreender seus<br />
juízos é querer encerrar em breve concha o oceano mais dilata<strong>do</strong>. E toma<br />
Deus Senhor nosso as criaturas por instrumentos e executores <strong>do</strong>s decretos de<br />
sua eterna Providência, como diz o angélico <strong>do</strong>utor S. Tomás 216 ; sen<strong>do</strong> muitas<br />
vezes o negar o que desejamos favor grande que nos fez (como ensina o<br />
grande P. S. Agostinho), para nos conceder o que nós mais houvéramos de<br />
pedir e desejar se sua previdência manifesta nos fora; sen<strong>do</strong> (como diz S.<br />
Jerónimo 217 ) benefícios os que talvez imaginamos castigos ou disfavores.<br />
A quantos fora melhor não haverem subi<strong>do</strong> a digni<strong>da</strong>des grandes de que<br />
ao depois miseravelmente caíram! Que aproveitou a Sérvio Túlio, VI rei de<br />
Roma, alcançar dela o ceptro, sen<strong>do</strong> tão humilde por seu nascimento, senão o<br />
ser cruelmente morto e por Roma arrasta<strong>do</strong> com grande vitupério? Que<br />
granjeou Élio Pertinaz de subir ao império senão o ser aleivosamente morto de<br />
seus próprios sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que lhe faziam guar<strong>da</strong>? E quanto melhor lhe fora viver<br />
em Roma pobre e quieto, como vivia, que morrer violentamente empera<strong>do</strong>r,<br />
como receava? Que melhora<strong>da</strong> sorte adquiriu imperial digni<strong>da</strong>de a Maximino, a<br />
quem de pastor de ga<strong>do</strong> subiu a fortuna ao império <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, para ser ao<br />
depois em Aquileia morto de seus mesmos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, e sua cabeça corta<strong>da</strong> e<br />
posta em Roma à vista de to<strong>do</strong>s por ludíbrio? Que avanteja<strong>da</strong> ventura teve o<br />
romano Átalo em ser constituí<strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r romano por Ataulfo, rei <strong>do</strong>s go<strong>do</strong>s,<br />
em ódio de Honório; pois chegou depois a tanta miséria que sen<strong>do</strong> em<br />
216 D. Thomas, Contra gent.<br />
217 D. Hieron., Super Ezech.
160 Padre Mateus Ribeiro<br />
Constância presenta<strong>do</strong>, ata<strong>do</strong> e preso, a Constâncio e Placídia lhe man<strong>da</strong>ram<br />
cortar ambas as mãos e que em ferros fosse leva<strong>do</strong> a Constantinopla, para que<br />
o restante <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> fosse a to<strong>do</strong>s um espectáculo <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong> humana<br />
fortuna? Inumeráveis são os exemplos que pudera trazer nesta matéria <strong>da</strong>s<br />
histórias antigas e modernas que por brevi<strong>da</strong>de deixo. Nem é maravilha que<br />
muitos beneméritos em to<strong>do</strong>s os esta<strong>do</strong>s não alcancem o que talvez a muitos<br />
sem merecimentos se concede, sen<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> estilo tão usa<strong>do</strong> e tão antigo,<br />
que sen<strong>do</strong> Catão tão digno <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s que em Roma pedia, que diz o<br />
padre S. Agostinho 218 que ele os não havia de pedir, senão que o sena<strong>do</strong> lhos<br />
havia muito antes de oferecer e com eles o rogar, lhos negaram, antepon<strong>do</strong>-lhe<br />
Vatínio, a quem os deram, pessoa sem algum merecimento. A Cipião Mastica,<br />
insigne capitão romano e de raras partes, foi preferi<strong>do</strong> Lúcio Flamínio, a quem<br />
em breve tempo antes de tempo seus maus procedimentos <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong><br />
depuseram: causa que muitas vezes sucede nos governos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ou<br />
porque os príncipes e monarcas como homens se enganam, ou porque a<br />
afeição os incita: permitin<strong>do</strong>-o Deus Nosso senhor muitas vezes assim para<br />
que se veja que só seu governo no que ordena é justíssimo e to<strong>do</strong>s os mais <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> podem ter suas falências e desacertos, como juntamente para castigo <strong>do</strong>s<br />
maus, a quem seus vícios e obras perversas fazem que com ignomínia muitas<br />
vezes sejam (para maior pena sua) depostos <strong>do</strong>s cargos e digni<strong>da</strong>des a que<br />
injustamente subiram: ou também para que, ven<strong>do</strong>-se neles, emendem sua<br />
vi<strong>da</strong> e costumes, consideran<strong>do</strong> que hão-de ser com mais cui<strong>da</strong><strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s<br />
julga<strong>do</strong>s seus procedimentos e censura<strong>da</strong>s suas acções.<br />
Distraí<strong>do</strong> com extremo foi na moci<strong>da</strong>de Temístocles Ateniense, como<br />
refere Plutarco, até entrar nos magistra<strong>do</strong>s <strong>da</strong> república de Atenas, em que ao<br />
depois obrou tantas proezas, como as histórias relatam. Nem menos licenciosa<br />
que inquieta foi a juvenil i<strong>da</strong>de de Valério Flaco, como escreve Tito Lívio 219 ;<br />
porém tanto que o Pontífice Licínio o fez flamen, ou sacer<strong>do</strong>te <strong>do</strong>s deuses, de<br />
tal mo<strong>do</strong> a digni<strong>da</strong>de lhe mu<strong>do</strong>u a vi<strong>da</strong> e costumes que, sen<strong>do</strong> antes um<br />
epílogo de vícios e livian<strong>da</strong>des, foi depois um espelho de modéstia e prudência,<br />
que muitas vezes cargos honrosos e as digni<strong>da</strong>des mu<strong>da</strong>m as condições e<br />
^ D. Aug., Lib. 5. De Civil Dei. cap. 12.<br />
219 Tit. Liv., Lib. 7.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 161<br />
moderam os costumes: e o que antigamente na gentili<strong>da</strong>de se viu, como nos<br />
exemplos referi<strong>do</strong>s e outros muitos que trazer pudera, com maior razão deve<br />
suceder na cristan<strong>da</strong>de, na qual a gravi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s cargos e digni<strong>da</strong>des, assim no<br />
eclesiástico, como no secular, serve de freio aos vícios e licencioso viver que<br />
antes havia, pela indecência que serviria de nota grande a quem não<br />
acomo<strong>da</strong>sse as obras com o ofício, os costumes com o cargo. Muitos com os<br />
cargos e digni<strong>da</strong>des se pervertem, muitos com elas se melhoram: permissões<br />
são tu<strong>do</strong> <strong>da</strong> eterna Providência que os humanos discursos não alcançam. E<br />
assim não deve queixar-se o sábio porque não alcança, o pobre porque não<br />
enriquece, o benemérito porque o não galar<strong>do</strong>am, o prudente porque o não<br />
estimam, o virtuoso porque o perseguem, o industrioso porque não melhora, à<br />
vista <strong>do</strong> nécio que sobe, <strong>do</strong> rico que se distrai, <strong>do</strong> inábil que alcança, <strong>do</strong><br />
ignorante que se estima, <strong>do</strong> vicioso que se respeita, <strong>do</strong> descui<strong>da</strong><strong>do</strong> que<br />
prospera e felicita; porque nem as estrelas e planetas com seus aspectos e<br />
influências a uns favorecem e a outros encontram, a uns amparam e a outros<br />
contradizem: disposições são tu<strong>do</strong> <strong>da</strong> Divina Providência, que a ca<strong>da</strong> qual<br />
ordena ou permite o que com sua eterna sabe<strong>do</strong>ria ele só sabe,<br />
compreenden<strong>do</strong> os fins, que nós ignoramos, a que semelhantes meios se<br />
dirigem. Ele muitas vezes permite as injustiças e desacertos para deles tirar<br />
bens, outras para <strong>da</strong>r castigo. E assim nem os que se tem por infelices devem<br />
queixar-se, nem os que se avaliam por venturosos ensoberbecer-se, pois<br />
talvez estes alcançam para seu castigo e outros não melhoram para mais<br />
ventura. Quantas árvores ou quebraram, ou arrancaram os ventos com sua<br />
violência por alterosas que puderam escapar ao rigor de suas forças se fossem<br />
humildes plantas? Na lua nunca se notariam tantas faltas e diminuições de luz<br />
se nela tantos crecimentos de antes não manifestara. Quantos edifícios<br />
arruinaram os raios nos cumes <strong>do</strong>s levanta<strong>do</strong>s montes que deles estariam<br />
seguros a serem edifica<strong>do</strong>s e situa<strong>do</strong>s nos vales? Quantas vezes se permitiu o<br />
subir para castigo? Quantas vezes se negou para favor e ventura? Trate quem<br />
se julga por venturoso de proceder com satisfação, pois ignora o fim para que<br />
se lhe concedeu a felici<strong>da</strong>de; e não se desconsole o que se queixa de infelice,<br />
pois não alcança o fim porque se lhe negou a subi<strong>da</strong>. Lá refere Boécio 220 que<br />
Boec, Lib. 2. De consolât.
162 Padre Mateus Ribeiro<br />
antigamente punham os atenienses diante <strong>do</strong> templo de Júpiter <strong>do</strong>us grandes<br />
vasos, um de bebi<strong>da</strong> <strong>do</strong>ce e outro de amargosa, <strong>do</strong>s quais os que no templo<br />
entravam igualmente bebiam, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a entender que nesta mortal vi<strong>da</strong> nem<br />
havia ventura tão firme que isentar-se pudesse de alguma infelici<strong>da</strong>de, nem<br />
esta tão vigorosa que deixasse de gostar alguma ventura. Quanto mais que<br />
haven<strong>do</strong> nas prosperi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana tão pouca segurança, quem com<br />
razão se pode gloriar nelas por venturoso? Que áspero e desabri<strong>do</strong> se mostrou<br />
Cresso, rei de Lídia, com Sólon, aquele grande sábio que deu leis aos<br />
atenienses, porque à vista <strong>da</strong>s grandes riquezas, tesouros, jóias de inestimável<br />
valor e poderosos exércitos que lhe mostrara, lhe não deu título de bem-<br />
aventura<strong>do</strong> como ele desejava, dizen<strong>do</strong> que enquanto durava o curso <strong>da</strong> nossa<br />
mortal vi<strong>da</strong> ninguém se podia avaliar por venturoso com firmeza; ver<strong>da</strong>de que<br />
ao diante lhe mostrou a experiência, e ele mesmo confessou chaman<strong>do</strong> Sólon<br />
com grandes vozes, estan<strong>do</strong> já por man<strong>da</strong><strong>do</strong> de Ciro, monarca <strong>da</strong> Pérsia,<br />
posto sobre a pira em que havia de ser abrasa<strong>do</strong> com suas chamas: <strong>da</strong> qual<br />
morte o livrou a compaixão que o vence<strong>do</strong>r Ciro teve <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça grande de<br />
sua fortuna, recean<strong>do</strong> o poder experimentar semelhantes adversi<strong>da</strong>des na sua<br />
própria, como refere Justino.<br />
Notável foi a felici<strong>da</strong>de de Policrates, tirano de Sarno, que ocupou esta<br />
ilha com as armas repentinamente, crecen<strong>do</strong> em pouco tempo tanto em poder<br />
e grandeza que era o alvo a que os olhos e os discursos de to<strong>da</strong> a Grécia se<br />
encaminhavam. Jamais cousa intentou que não conseguisse: nunca intento<br />
emprendeu que não alcançasse. Era temi<strong>do</strong> com armas no mar e vitorioso com<br />
exércitos na terra, corren<strong>do</strong> tanto sem encontro nem embaraço sua ventura,<br />
subin<strong>do</strong> tanto ao auge sua muita felici<strong>da</strong>de, que Amasis, rei <strong>do</strong> Egipto, seu<br />
grande amigo, lhe aconselhou que voluntariamente tomasse algum desgosto,<br />
pois a fortuna lho não <strong>da</strong>va, porque não lhe parecia possível durar tanta<br />
felici<strong>da</strong>de sem infortúnios. Aceitou Policrates o conselho e lançou no mar uma<br />
esmeral<strong>da</strong> que estimava em muito por ser de excessivo preço e valia; porém<br />
não queren<strong>do</strong> a fortuna que sentisse ele ain<strong>da</strong> este voluntário desgosto,<br />
sucedeu que a<strong>caso</strong> <strong>da</strong>í a cinco dias um pesca<strong>do</strong>r colhen<strong>do</strong> nas redes um<br />
grande peixe lho présentasse e no ventre dele se achasse a rica pedra que no<br />
mar arroja<strong>do</strong> tinha. Mas como tanta ventura ameaçasse já, sen<strong>do</strong> na terra<br />
declinação apressa<strong>da</strong>, sucedeu que sen<strong>do</strong> preso à traição de Orestes,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 163<br />
governa<strong>do</strong>r <strong>da</strong> Lídia, por Dário, rei de Pérsia, o man<strong>do</strong>u crucificar na eminência<br />
de um levanta<strong>do</strong> monte, aonde acabou a vi<strong>da</strong> miseravelmente, como referem<br />
Estrabão 221 , Cícero 222 , Plínio 223 e outros autores; sen<strong>do</strong> espectáculo <strong>da</strong> mais<br />
lastimosa compaixão e miséria a quantos de antes o admiravam por tão<br />
favoreci<strong>do</strong> <strong>da</strong> ventura.<br />
Bem se receava e temia de suas carícias Teramenes, um <strong>do</strong>s trinta<br />
governa<strong>do</strong>res ou tiranos de Atenas, porque escapan<strong>do</strong> com vi<strong>da</strong> e sem perigo<br />
de ruína repentina de uma casa grande em que estava à mesa com muitas<br />
pessoas, as quais to<strong>da</strong>s morreram, escapan<strong>do</strong> ele somente, suspirou<br />
senti<strong>da</strong>mente dizen<strong>do</strong>:<br />
- E bem, fortuna, que favor é este com que me lisonjeias senão para<br />
alguma adversi<strong>da</strong>de mais rigorosa?<br />
E assim sucedeu que os outros vinte e nove governa<strong>do</strong>res ou tiranos,<br />
ven<strong>do</strong> que não consentia as suas cruel<strong>da</strong>des, o man<strong>da</strong>ram prender e que no<br />
cárcere bebesse o veneno com que acabou a vi<strong>da</strong>. Que diremos de Perseu, rei<br />
de Macedónia poderoso, de quem referem Orósio 224 , Dio<strong>do</strong>ro Sículo 225 e outros<br />
que sen<strong>do</strong> cativo <strong>do</strong>s romanos e trazi<strong>do</strong> a Roma em triunfo, morreu<br />
encarcera<strong>do</strong> em extrema pobreza? De Dionísio II, tirano de Sicília, escrevem<br />
Cícero 226 e Justino 227 que, despoja<strong>do</strong> <strong>da</strong> opulência e grandeza <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> que<br />
de seu pai her<strong>da</strong>ra, chegou a viver tão pobremente em Corinto que ensinava<br />
meninos a ler e escrever para sustentar a vi<strong>da</strong>. Do famoso empera<strong>do</strong>r<br />
Valeriano conta Paulo Orósio que sen<strong>do</strong> cativo de Sapor, rei <strong>do</strong>s persas, serviu<br />
enquanto viveu de pôr o bárbaro rei os pés sobre ele, quan<strong>do</strong> cavalgava, até<br />
que em tanta miséria e abatimento acabou a vi<strong>da</strong>. E agora enten<strong>do</strong> eu a razão<br />
porque Anaxágoras (como refere Valério Máximo 228 ) respondeu a um que lhe<br />
perguntava quem <strong>do</strong>s viventes lhe parecia poder-se chamar bem-aventura<strong>do</strong>; o<br />
221 Strab, Lib. 11.<br />
22 Cicer., De finibus.<br />
223 Plin., Lib. 37. c. 1.<br />
224 Orosius, De Orchesta mundi. lib. 4.<br />
225 Dio<strong>do</strong>rSic, Lib. 31.<br />
226 Cie, 3. Tusculan.<br />
227 Justin., Lib. 4 & 5.<br />
228 Orosius, Lib. 7. c. 22.
164 Padre Mateus Ribeiro<br />
sábio lhe disse que nenhum <strong>do</strong>s que ele por tais no mun<strong>do</strong> julgava; sen<strong>do</strong> de<br />
tão pouca duração as felici<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que talvez <strong>do</strong> mais altivo <strong>da</strong>s honras e<br />
digni<strong>da</strong>des costumam despenhar quem nelas se fia ao centro mais humilde <strong>da</strong>s<br />
misérias: o que é permissão <strong>da</strong> Divina Providência para que os homens antes<br />
achem motivos de desenganos em sua inconstância, <strong>do</strong> que ocasião de se<br />
afeiçoarem de suas lisonjas. Não é justo se queixe quem as não alcança, pois<br />
não sabe se as possuirá para maior ruína. Disposições são <strong>da</strong> Divina<br />
Providência; e querer <strong>da</strong>r alcance a seus juízos, intentar compreender seus<br />
segre<strong>do</strong>s, é nece<strong>da</strong>de manifesta, será ignorância desconheci<strong>da</strong>; e calan<strong>do</strong>,<br />
disse o Peregrino:<br />
- Satisfeito me deixam, senhor, vossos prudentes discursos, <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
alívio a meus sentimentos e consolação em parte a minhas tristezas, suposto<br />
que são elas tais que não sei como admitirão alívio. E quan<strong>do</strong> de minha<br />
peregrinação não colhera outro fruto mais que a luz destes desenganos que<br />
tanto tempo me trouxe inquieto e cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so, era mais que bastante a ventura<br />
de encontrar-vos, o gosto que recebi com ouvir-vos, para julgar meus caminhos<br />
por felices e minha jorna<strong>da</strong> por venturosa, que não tem pouca ventura achar<br />
um sábio, pois Platão lhe deu título de venturosos.<br />
- Não mereço eu título tão honroso (respondeu o Ermitão) e ain<strong>da</strong> na<br />
antigui<strong>da</strong>de poucos foram os que tal título admitiram.<br />
Tales Milésio foi o primeiro a quem se deu o título de sábio. Depois<br />
houve alguns em Grécia a quem tal nome atribuíram, como Sólon, Chilon,<br />
Pítaco, Bias, Cleóbulo, Anacarsis, Epimenides e alguns outros que sábios se<br />
chamaram, e a nenhum destes faltaram suas ignorâncias.<br />
Não admitiu tal nome Pitágoras, antes se chamou filósofo, que significa<br />
não sábio absolutamente, mas amigo <strong>da</strong> sabe<strong>do</strong>ria, <strong>do</strong> qual, como escreve S.<br />
Agostinho, os filósofos se derivaram e dele procedeu a Filosofia itálica, assim<br />
como de Anaximandro a jónica, academias uma e outra tão célebres no<br />
mun<strong>do</strong>, e contu<strong>do</strong> não se isentaram de erros e descui<strong>do</strong>s, porque, como diz S.<br />
Bernar<strong>do</strong> 229 , somente aquele se pôde chamar sábio, que é virtuoso; que (como<br />
diz o grande padre S. Agostinho 230 ) sabe<strong>do</strong>ria sem obras é abuso; e à<br />
D. Bern., in Serm.<br />
D. Aug., De duodecim abus.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 165<br />
inteligência sem perfeita cari<strong>da</strong>de dá título São João Crisóstomo 231 de<br />
ignorância. Em mim faltam virtudes e sobejam faltas, e assim não mereço o<br />
título que vossa cortesia me atribui e somente o acertar em servir-vos serão<br />
para mim os títulos de maior estima. E porque a digressão que fizemos <strong>da</strong><br />
história de Maria Estuar<strong>da</strong> foi dilata<strong>da</strong>, vos peço continueis sua narração,<br />
porque a varie<strong>da</strong>de de seus sucessos e vosso agradável estilo em referi-la me<br />
satisfazem muito.<br />
- Agradeci<strong>do</strong> e cortês é (respondeu o Peregrino).<br />
E foi continuan<strong>do</strong> sua história dizen<strong>do</strong>:<br />
- Em extremo se mostraram os povos e senhores <strong>do</strong> reino de Escócia<br />
agrava<strong>do</strong>s e ressenti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> novo casamento que a rainha Maria Estuar<strong>da</strong><br />
contraiu com o conde Boduel, ten<strong>do</strong> por sem dúvi<strong>da</strong> que haven<strong>do</strong> ele si<strong>do</strong> o<br />
principal autor <strong>da</strong> conjuração e morte d'el-rei, a rainha fora nela consenti<strong>do</strong>ra,<br />
pois com seu próprio homici<strong>da</strong> se casava. Não aprovo este parecer por<br />
infalível, mas não deixo de julgar o casamento por suspeitoso e desacerta<strong>do</strong>,<br />
<strong>do</strong> qual mostran<strong>do</strong>-se os grandes <strong>do</strong> reino notavelmente descontentes,<br />
ajuntaram contra o conde um exército de seis mil infantes e mil cavalos, sen<strong>do</strong><br />
juntamente favoreci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> povo que desejava ver ao conde destruí<strong>do</strong> e<br />
desterra<strong>do</strong> <strong>da</strong> real ci<strong>da</strong>de de Edimburgo, corte e cabeça <strong>do</strong> reino de Escócia.<br />
Prepara<strong>do</strong> e exército, man<strong>da</strong>ram diante <strong>do</strong>us embaixa<strong>do</strong>res à rainha, na qual<br />
lhe diziam que ten<strong>do</strong> eles sabi<strong>do</strong> com evidência como o conde Boduel fora o<br />
que trai<strong>do</strong>ramente matara a el-rei, conspiran<strong>do</strong> contra sua vi<strong>da</strong>, e não sen<strong>do</strong><br />
justo que uma tal mal<strong>da</strong>de ficasse sem castigo, lhe pediam que assim ao conde<br />
como aos mais complices <strong>da</strong> conjuração lhes entregasse para serem<br />
castiga<strong>do</strong>s como mereciam. Isto continha a embaixa<strong>da</strong>, <strong>da</strong> qual ten<strong>do</strong> o conde<br />
notícia ajuntou logo perto de três mil infantes e trezentos cavalos, com os quais<br />
se pôs em campanha contra os barões e senhores <strong>do</strong> reino; porém como era<br />
inferior de forças e de justiça, vin<strong>do</strong> à batalha com os contrários, ficou o conde<br />
desbarata<strong>do</strong> e venci<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> no melhor <strong>do</strong> combate <strong>do</strong>s seus próprios<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s desampara<strong>do</strong>, que se passaram aos barões e grandes <strong>do</strong> reino.<br />
Chrysost., Horn. 20. in Epist. Ad Corint.
166 Padre Mateus Ribeiro<br />
Lá disse Tito Lívicr^ que o sucesso <strong>da</strong> guerra era o juiz justo dela;<br />
parecer que aprovou S. Bernar<strong>do</strong> 233 , que de guerra justa e bem ordena<strong>da</strong> não<br />
podia ser o fim calamitoso; o que se viu nesta ocasião: porém não sempre é<br />
infalível esta regra quan<strong>do</strong> Deus Senhor nosso por seus ocultos juízos permite<br />
muitas vezes o contrário, como se tem visto em muitas batalhas entre cristãos<br />
e turcos, entre católicos e hereges, assim nos tempos passa<strong>do</strong>s, como em<br />
nossa i<strong>da</strong>de, aonde Deus permitiu que os inimigos de seu nome ficassem<br />
vence<strong>do</strong>res: segre<strong>do</strong>s são que nosso discurso não alcança, porém nossa fé<br />
por justos e acerta<strong>do</strong>s venera.<br />
Ven<strong>do</strong>-se o conde perdi<strong>do</strong>, se retirou o melhor que pôde à fortaleza de<br />
Dombar e <strong>da</strong>í se embarcou em alguns navios, com os quais começan<strong>do</strong> a<br />
piratear os mares, infestan<strong>do</strong> como cossário não somente aos navegantes,<br />
mas também as costas marítimas de Escócia, foi preso e cativo <strong>da</strong>s arma<strong>da</strong>s<br />
d'el-rei de Dinamarca, aonde foi leva<strong>do</strong> prisioneiro e dizem acabou a vi<strong>da</strong>. Os<br />
senhores <strong>do</strong> reino que vitoriosos ficaram prenderam a rainha Maria Estuar<strong>da</strong><br />
fazen<strong>do</strong>-lhe renunciar to<strong>do</strong> o direito que ao reino tivesse e à coroa dele, ao rei<br />
menino seu filho solenemente o coroarão por rei de Escócia e à rainha<br />
desterraram para Lochlivin, ilha quatro milhas distante <strong>da</strong> terra firme e quarenta<br />
<strong>da</strong> corte de Edimburgo: no qual desterro e solidão viveu Maria Estuar<strong>da</strong> algum<br />
tempo triste e desgostosa, sen<strong>do</strong> guar<strong>da</strong><strong>da</strong> com notável cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e vigilância<br />
grande para que dessa ilha não saísse.<br />
Porém an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> tempo e sen<strong>do</strong> secretamente favoreci<strong>da</strong> de alguns<br />
senhores <strong>do</strong> reino, teve mo<strong>do</strong> com que fugiu <strong>da</strong> prisão em que na dita ilha a<br />
tinham e se embarcou para França; mas como seus infortúnios iam em<br />
crecimento, persegui<strong>da</strong> de um temporal forte, deu na costa de Inglaterra, aonde<br />
<strong>da</strong> rainha Isabel foi feita prisioneira, que a man<strong>do</strong>u a uma fortaleza chama<strong>da</strong><br />
Ponfre que fica situa<strong>da</strong> à parte setentrional de Inglaterra, para ser notável<br />
exemplo <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong> fortuna e prosperi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana, como<br />
veremos. Nesta mais propriamente prisão que retiro viveu a rainha alguns anos<br />
sem liber<strong>da</strong>de, até que no ano de mil e quinhentos e setenta e um, que é o<br />
Tit. Liv., Lib. 1. Decad. 3.<br />
Bernard, De nova milit.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 167<br />
tempo em que eu cheguei a Inglaterra ao serviço <strong>do</strong> duque de Norfolc, sen<strong>do</strong><br />
de vinte anos de i<strong>da</strong>de, se ocasionou a ruína deste senhor no mo<strong>do</strong> seguinte:<br />
Era este príncipe católico, mancebo de grande valor e mui zeloso de ver<br />
outra vez o reino de Inglaterra reduzi<strong>do</strong> ao grémio <strong>da</strong> igreja católica romana, de<br />
cuja obediência e união o tinha aparta<strong>do</strong> e desuni<strong>do</strong> a cismática rainha Isabel,<br />
que então reinava: desejo era este que tinha a maior parte <strong>da</strong>quela de antes<br />
tão próspera e observante monarquia e particularmente o povo que<br />
eficazmente sua redução afectava. Estava o ilustre duque Tomás, de que vou<br />
tratan<strong>do</strong>, afeiçoa<strong>do</strong> por extremo ao que <strong>da</strong> rara fermosura <strong>da</strong> prisioneira rainha<br />
de Escócia aplaudia a fama e desejan<strong>do</strong> afectuosamente de ser seu esposo,<br />
ou que ela fosse sabe<strong>do</strong>ra de seus intentos, como se dizia, ou que algumas<br />
circunstâncias deles ignorasse, como depois se afirmava, ele se resolveu em<br />
privar <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e reino à cismática Isabel, como indigna <strong>da</strong> coroa e ceptro que<br />
usava, sen<strong>do</strong> herege cismática e por tal declara<strong>da</strong> pelo sumo pontífice que a<br />
privava de to<strong>do</strong> o direito que ao reino ter pudesse, absolven<strong>do</strong> aos vassalos de<br />
to<strong>da</strong> a homenagem e obediência que por alguma via dever-lhe antes de tal<br />
sentença podiam; e assim tratava o duque Tomás de coroar a Maria Estuar<strong>da</strong><br />
em Inglaterra, a quem de direito o reino pertencia, e ele juntamente casan<strong>do</strong>-se<br />
com ela, tornar o reino no esta<strong>do</strong> de religião e cristan<strong>da</strong>de em que <strong>da</strong>ntes tanto<br />
florecera.<br />
Lá disse Platão 234 que o amor tu<strong>do</strong> facilitava, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> confianças ao maior<br />
atrevimento, ou seja por subornar aos senti<strong>do</strong>s, como diz Quintiliano 235 , ou por<br />
não saber afectar menos que extremos e empresas grandiosas, como escreve<br />
Propércio 236 , sen<strong>do</strong> proprie<strong>da</strong>de de quem ama muito, temer pouco. Porém o<br />
duque com ser tão amante não secegou de mo<strong>do</strong> que avaliasse a empresa que<br />
cometia por tão fácil, como o amor grande que o senhoreava representar<br />
pudera; e suposto que a empreendia como quem amava, julgava-a por<br />
dificultosa, como de discreto presumia. Mu<strong>da</strong>nças de reinos jamais custam tão<br />
baratas que permitam descui<strong>do</strong>s: mortes de príncipes nunca se executaram tão<br />
facilmente que permitam seguranças. Como amante <strong>da</strong> rainha Maria Estuar<strong>da</strong><br />
Plato, in Timeum.<br />
Quintil., Lib. 6.<br />
Propert., Lib. 2.
168 Padre Mateus Ribeiro<br />
empreendia o duque a invasão <strong>do</strong> ceptro, porém como discreto não avaliou por<br />
tão fácil a posse <strong>da</strong> coroa que se fiasse para tal empresa somente em seu<br />
grande valor e limita<strong>do</strong> poder. E assim, se bem suborna<strong>do</strong> <strong>da</strong> rara fermosura<br />
que com extremos amava, contu<strong>do</strong> provi<strong>do</strong> e acautela<strong>do</strong> <strong>do</strong> dificultoso<br />
empenho a que aspirava, tratou esta conjuração com o bispo de Roz, que por<br />
embaixa<strong>do</strong>r de Escócia assistia à rainha Isabel em Inglaterra, e juntamente<br />
com outros senhores e pessoas principais em quem achou disposição para seu<br />
intento.<br />
Nisto se não mostrou o duque muito prudente, pois comunicava esta<br />
conjuração a tantos e tão principais senhores, notifican<strong>do</strong>-lhes o fim dela, que<br />
era o casamento com a prisioneira rainha de Escócia, que o havia de ser de<br />
Inglaterra juntamente, com o pretexto de reduzir o reino à pureza <strong>da</strong> fé em que<br />
de antes estava, quan<strong>do</strong> mais florecia. E digo que não se mostrou muito<br />
prudente, pois manifestava os amantes intentos de casar-se e coroar-se a<br />
quem pudera invejar esta imagina<strong>da</strong> ventura e descobrir a conjuração, somente<br />
por não verem entroniza<strong>do</strong> a quem por igual reconheciam; exemplo que no<br />
senhor de Arli, esposo <strong>da</strong> mesma rainha, como temos visto, manifestou o rigor<br />
<strong>da</strong> morte que lhe deram invejosos de sua ventura, que (como escreve Plínio)<br />
nunca a inveja se dá, senão nos que inferiores se consideram. De Platão refere<br />
Pedro Blesense que perguntan<strong>do</strong> um dia a Sócrates, seu mestre, que faria<br />
para não ser inveja<strong>do</strong>, ele lhe respondera, não por conselho, mas por<br />
sentença, que o remédio era ser semelhante a Tersites, um homem sem fama<br />
alguma, nem obra louvável ou generosa de que ocasionar-se inveja pudesse;<br />
sen<strong>do</strong> esta (como disse Eusébio, referi<strong>do</strong> por Stobeo) sombra que<br />
perpetuamente segue o corpo, a quem a luz de alguma maioria ou melhora<strong>da</strong><br />
sorte acompanha: e deu disto a entender o sábio mestre que era impossível<br />
escapar de inveja<strong>do</strong> neste mun<strong>do</strong> quem ou fizesse obras de valeroso, ou<br />
alcançasse felici<strong>da</strong>des de venturoso.<br />
Porém os sabe<strong>do</strong>res <strong>da</strong> conjuração, leva<strong>do</strong>s <strong>do</strong> bem comum que<br />
pretendiam e juntamente de seus particulares intentos, quais eram as melhoras<br />
e acrecentamentos de esta<strong>do</strong>s que lhes prometiam, consentiram nela<br />
sustentan<strong>do</strong> o segre<strong>do</strong> e palavra mais <strong>do</strong> que prometer-se podia. Determinava<br />
o duque ajuntar a gente de seus esta<strong>do</strong>s com a de Escócia e de outros<br />
senhores católicos <strong>da</strong>quele reino, ten<strong>do</strong> por certo que assim o sumo pontífice
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 169<br />
Pio V que então governava a igreja católica como juntamente el-rei o segun<strong>do</strong><br />
Filipe de Castela não deixariam de aprovar e favorecer seu intento, pelo muito<br />
que a Isabel aborreciam e o muito que a pureza <strong>da</strong> fé zelavam.<br />
Resoluto neste pensamento, fez que o embaixa<strong>do</strong>r de Espanha que em<br />
Inglaterra assistia enviasse no seu maço cartas suas dirigi<strong>da</strong>s ao duque de<br />
Alva, que então governava os esta<strong>do</strong>s de Flandres, as quais lhe presentou um<br />
senhor escocês que se encarregou de pessoalmente vir a procurar os favores<br />
necessários para esta empresa. Estimou muito o duque de Alva a notícia <strong>do</strong>s<br />
intentos <strong>do</strong> de Norfolc, prometen<strong>do</strong> favorecê-los com seu rei para que lhe<br />
desse os socorros convenientes, como em efeito alcançou promessas de pôr<br />
em Inglaterra para esse efeito dez mil sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s pagos à sua custa.<br />
Passou <strong>da</strong>í o escocês a Roma e foi recebi<strong>do</strong> e ouvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> Papa<br />
benevolamente, prometen<strong>do</strong>-lhe outros dez mil sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s pagos e <strong>do</strong>ze mil<br />
cruza<strong>do</strong>s <strong>da</strong><strong>do</strong>s logo para as despesas <strong>do</strong> apresto. Assim estava prepara<strong>do</strong> o<br />
alevantamento, ordenan<strong>do</strong> que os dez mil espanhóis desembarcan<strong>do</strong> na ilha<br />
de Arviche fossem juntamente com a gente <strong>do</strong> duque ocupar a torre de<br />
Londres e que no mesmo tempo duque de Pemborch, que um <strong>do</strong>s principais <strong>da</strong><br />
conjuração era, fosse com a gente <strong>do</strong> duque Tomás a libertar a rainha<br />
prisioneira <strong>do</strong> poder <strong>do</strong> conde Salusben que a guar<strong>da</strong>va. Estes foram os<br />
aprestos <strong>da</strong> prudência humana; porém mui diferentes foram as disposições <strong>da</strong><br />
Providência Divina, cujos ocultos juízos o humano discurso não compreende;<br />
pois to<strong>da</strong> esta conjuração, quan<strong>do</strong> mais secreta se avaliava, foi descoberta por<br />
ocasião de um mensageiro dela não sabe<strong>do</strong>r, nem confidente, ao qual se tinha<br />
entregue muita parte <strong>do</strong> dinheiro que o Papa dera para as despesas deste<br />
negócio, o qual mensageiro o levava para se entregar a quem o enviasse aos<br />
condes Nortumberlano e Vuesmerlano, por via de um feitor <strong>da</strong> rainha<br />
prisioneira. Deteve-se este porta<strong>do</strong>r na corte de Londres por alguns respeitos<br />
seus particulares tanto tempo que, vin<strong>do</strong> a entender-se que levava tantas<br />
quantias de dinheiro em ouro, suspeitan<strong>do</strong>-se não fosse algum furto grande<br />
que feito houvesse, foi pela justiça inquiri<strong>do</strong>; e ele, que <strong>da</strong> conjuração estava<br />
ignorante, manifestou por livrar-se as cartas que levava, <strong>da</strong>s quais coligin<strong>do</strong>-se<br />
alguns graves indícios e apuran<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> vez mais as suspeitas, ultimamente se<br />
descobriu to<strong>da</strong> a conjuração e autores dela, pela qual foi preso o duque Tomás
170 Padre Mateus Ribeiro<br />
de Norfolc, que era a cabeça, e muitos outros <strong>do</strong>s conjura<strong>do</strong>s que fugir não<br />
puderam.<br />
Este fim trágico e lamentável tiveram as esperanças <strong>do</strong> malogra<strong>do</strong><br />
duque; mas quan<strong>do</strong> temeri<strong>da</strong>des de amor conseguiram efeitos mais<br />
venturosos? Poden<strong>do</strong> servir de exemplo de seus infortúnios os de Paris com<br />
Helena, os de Leandro com Hero, os de Aquiles com Polixena, os de Marco<br />
António com Cleópatra, os <strong>do</strong> go<strong>do</strong> Rodrigo com Florin<strong>da</strong>, que foram elogios e<br />
testemunhos de infelici<strong>da</strong>des e trágicas desgraças; sen<strong>do</strong> com razão Amor<br />
veneno <strong>do</strong>ce, enfermi<strong>da</strong>de agradável, tirania apeteci<strong>da</strong> e morte deseja<strong>da</strong>:<br />
costuman<strong>do</strong> aventurar-se a muito, porque como cego teme pouco. Tal o nosso<br />
duque, em que o amor que à rainha prisioneira tinha chegou em pouco tempo<br />
aos maiores extremos, nem temen<strong>do</strong> aventurar-se, nem acovar<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o risco<br />
de perder-se, que o Amor lhe deu valor para empreender e a ventura lhe negou<br />
favor para alcançar. A rainha de Escócia julga<strong>da</strong> de Isabel por sabe<strong>do</strong>ra desta<br />
conjuração, ou que na ver<strong>da</strong>de o fosse, ou que tal se presumisse, foi <strong>da</strong>í em<br />
diante posta em maior guar<strong>da</strong> e resguar<strong>do</strong>, apertan<strong>do</strong>-se-lhe a prisão, até que<br />
passa<strong>do</strong>s alguns anos, mais em ódio <strong>da</strong> grande constância e pureza <strong>da</strong> fé<br />
católica que nela se via, que por razão de esta<strong>do</strong> de querer assegurar o<br />
parlamento a vi<strong>da</strong> de Isabel (como conselheiros calvinistas manifestavam),<br />
dizen<strong>do</strong> que não estava segura de ser morta enquanto Maria Estuar<strong>da</strong> fosse<br />
viva; foi condena<strong>da</strong> à morte, tiranamente executa<strong>da</strong> nela em nossos dias, cuja<br />
lamentável memória fica sen<strong>do</strong> um vivo retrato <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça e inconstância<br />
grande <strong>da</strong>s prosperi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, um evidente testemunho <strong>da</strong> pouca duração<br />
e firmeza <strong>da</strong>s coroas e digni<strong>da</strong>des <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, pois sen<strong>do</strong> Maria Estuar<strong>da</strong><br />
rainha de Escócia por nacimento e rainha de França por casamento, <strong>do</strong>ta<strong>da</strong> de<br />
rara fermosura, singular aviso e valor, partes que a faziam merece<strong>do</strong>ra <strong>da</strong><br />
maior ventura, vimos em breves dias tão multiplica<strong>do</strong>s seus infortúnios, que<br />
apenas em França foi casa<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> ficou viúva; e tornan<strong>do</strong> à Escócia em<br />
seu segun<strong>do</strong> casamento, não somente perdeu apressa<strong>da</strong>mente seu malogra<strong>do</strong><br />
esposo, mas granjean<strong>do</strong> o ódio <strong>do</strong>s grandes com suspeitas de haver si<strong>do</strong><br />
culpa<strong>da</strong> em sua morte, foi despoja<strong>da</strong> <strong>do</strong> reino e retira<strong>da</strong> em uma ilha solitária<br />
por ordem <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s dele; chegou a ser livre deste cativeiro, para ficar<br />
prisioneira <strong>da</strong> cismática Isabel, sua prima, e passa<strong>do</strong> muitos anos em prisão<br />
indecente à sua pessoa, ultimamente não como rainha de <strong>do</strong>us reinos, mas
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 171<br />
como se fosse pessoa particular e súbdita, foi condena<strong>da</strong> à morte e degola<strong>da</strong>,<br />
como se princesa soberana no fora, que superior na terra a nenhum monarca<br />
reconhecia.<br />
- Notável e por extremo lastimosa (disse então o Ermitão) foi a tragédia<br />
desta senhora, e exemplo raro <strong>da</strong>s adversi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> fortuna, que desde os<br />
anos juvenis de sua i<strong>da</strong>de se lhe mostrou contrária. Muitos reis e monarcas<br />
poderosos foram despoja<strong>do</strong>s de seus reinos; como Mitri<strong>da</strong>tes, rei de Ponto e<br />
grão monarca de Ásia, Dário, rei de Pérsia, Jugurta, rei de Numídia, Rogério de<br />
Apulha e Calábria, e ultimamente Frederico, rei de Nápoles, por el-rei Fernan<strong>do</strong><br />
de Castela e Luís, rei de França, chegan<strong>do</strong> ao depois a viver nela como<br />
particular, quem se viu rei coroa<strong>do</strong> de tanta opulência e majestade. Muitos reis<br />
e monarcas foram cativos e prisioneiros, como os reis Perseu e Scipas <strong>do</strong>s<br />
romanos, o empera<strong>do</strong>r Valeriano <strong>do</strong>s persas, Bajazeto <strong>do</strong> Tamorlão, rei <strong>do</strong>s<br />
tártaros, e em nosso tempo Francisco, rei de França, <strong>do</strong>s espanhóis. Muitos<br />
reis e príncipes padeceram mortes violentas por man<strong>da</strong><strong>do</strong> de outros monarcas.<br />
Demétrio, príncipe de Macedónia, foi morto por man<strong>da</strong><strong>do</strong> de seu pai Filipe; o<br />
empera<strong>do</strong>r Alexandre, por man<strong>da</strong><strong>do</strong> de Maximino; o príncipe <strong>do</strong> Egipto, por<br />
man<strong>da</strong><strong>do</strong> de Cambizes, na presença de Samniético, seu pai; o grande<br />
Pompeu, por man<strong>da</strong><strong>do</strong> de Ptolomeu, rei <strong>do</strong> Egipto, e outros muitos de que<br />
estão cheias as histórias: porém em Maria Estuar<strong>da</strong>, rainha de Escócia e<br />
França, se viram juntas as calami<strong>da</strong>des, assim <strong>da</strong> per<strong>da</strong> <strong>do</strong>s reinos, como <strong>do</strong><br />
dilata<strong>do</strong> cativeiro e ultimamente violenta morte, sem que fosse bastante sua<br />
rara fermosura para embotar os fios <strong>da</strong> tirana espa<strong>da</strong> que lhe tirou a vi<strong>da</strong>.<br />
Chorou o insigne capitão Marco Marcelo sobre a ci<strong>da</strong>de de Saragoça (como diz<br />
S. Agostinho 237 ) enterneci<strong>do</strong> <strong>do</strong> muito sangue <strong>do</strong>s seus ci<strong>da</strong>dãos que nela se<br />
havia de derramar em o dia que a tomou por assalto; ordenan<strong>do</strong> porém com<br />
graves penas a seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s romanos que a nenhuma mulher se fizesse<br />
agravo nem violência, movi<strong>do</strong> a tanto sentimento e lástima que diz Valério<br />
Máximo que mais representava venci<strong>do</strong>, que capitão vence<strong>do</strong>r. Da clemência<br />
d'el-rei Antígono, refere Justino, que sen<strong>do</strong>-lhe presenta<strong>da</strong> pelo príncipe seu<br />
filho a cabeça d'el-rei Pirro, seu inimigo, ele se compadeceu de tal mo<strong>do</strong> <strong>da</strong>s<br />
adversi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> humana vi<strong>da</strong> que, além de repreender asperamente o filho <strong>da</strong><br />
D. Aug., Lib. 1. De civil Dei. cap. 6.
172 Padre Mateus Ribeiro<br />
alegria que mostrava, tratou a cabeça com tanto respeito, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-a unir ao<br />
corpo, que man<strong>do</strong>u ao depois, an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o tempo, seus ossos ao irmão de Pirro,<br />
Alexandre, meti<strong>do</strong>s em uma urna de ouro, para serem sepulta<strong>do</strong>s em sua<br />
pátria.<br />
Chorou Alexandre Magno a morte de Dário, Júlio César a de Pompeu,<br />
Octaviano Augusto a de Marco António, sen<strong>do</strong> seus inimigos, compadeci<strong>do</strong>s de<br />
suas adversi<strong>da</strong>des; e vejo que sen<strong>do</strong> as mulheres, como disse Euripides 238 ,<br />
mais eficazes para moverem os peitos humanos a to<strong>da</strong> a compaixão e<br />
brandura, foram tão pouco venturosas as adversi<strong>da</strong>des de Maria Estuar<strong>da</strong> que<br />
não obrigaram à pie<strong>da</strong>de a quem mais razão tinha de compadecer-se delas,<br />
assim por ser igualmente mulher, em quem, como diz Aristóteles 239 , a pie<strong>da</strong>de<br />
tem mais próprio seu <strong>do</strong>micilio, como juntamente por ser rainha, a cuja<br />
digni<strong>da</strong>de disse o Séneca que a clemência mais competia: porém ocultos<br />
juízos <strong>da</strong> Divina Providência outra cousa permitiram. Continuai, senhor, vossa<br />
história que o sentimento desta assaz me lastima.<br />
- Nesta prisão <strong>do</strong> duque de Norfolc (disse o Peregrino) se ausentou meu<br />
tio, que não foi pequena ventura escapar <strong>da</strong>s muitas diligências com que o<br />
buscavam, como tanto seu priva<strong>do</strong>, que se o prendessem a bom livrar não<br />
deixara de ser asperamente atormenta<strong>do</strong>, para que manifestasse o que <strong>da</strong><br />
conjuração sabia (se porventura o duque lho tinha manifesta<strong>do</strong>, que eu não<br />
sei); ele enfim desapareceu, sem dele se ter notícia alguma até este tempo. Eu<br />
que me vi desfavoreci<strong>do</strong> e sem pessoa alguma que me amparasse, me retirei<br />
<strong>da</strong> corte ao campo alguns dias, té que o malogra<strong>do</strong> duque Tomás de Norfolc foi<br />
condena<strong>do</strong> à morte, sen<strong>do</strong>-lhe corta<strong>da</strong> a cabeça em Londres aos <strong>do</strong>us dias de<br />
Junho de mil e quinhentos e setenta e <strong>do</strong>us, mostran<strong>do</strong> esta lamentável<br />
tragédia ser ofício mais próprio <strong>da</strong> fortuna antes derribar grandes que levantar<br />
pequenos, e que só a morte é quem costuma igualar a to<strong>do</strong>s na natureza e<br />
quem (como disse Juvenal) desengana <strong>da</strong> pouca terra que ocupam tantas<br />
soberanias e majestades <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
À vista de representação tão trágica e atemoriza<strong>da</strong> <strong>do</strong>s rigores com que<br />
ca<strong>da</strong> dia via castigar a outro <strong>do</strong>s conjura<strong>do</strong>s e suspeitosos, me embarquei<br />
Eurip., in Taur.<br />
Arist., Lib. 8. De anima.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 173<br />
ocultamente em uma nau hamburguesa, que no porto estava já para largar as<br />
velas e, sem procurar a derrota que levava, que a nenhum parti<strong>do</strong> se nega<br />
quem an<strong>da</strong> batalhan<strong>do</strong> nas mãos <strong>da</strong> ventura, com desejos de ver-me<br />
distancia<strong>do</strong> de Londres, me entreguei à inconstância <strong>do</strong>s mares.<br />
Com vento bonançoso partiu a nau (se no mar pudera haver bonança<br />
segura) navegan<strong>do</strong> os primeiros dias à igual<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s desejos; porém<br />
repentinamente uma noite começou um nubla<strong>do</strong> escuro a servir de pavelhão (a)<br />
triste a tantas luminárias de estrelas que com trémulas luzes se descobriam. A<br />
fúria grande de contrários ventos desfiou as on<strong>da</strong>s que para se<br />
desempenharem, desprezan<strong>do</strong> serem campos e paramos de cristal, se<br />
quiseram transformar em serra de neve. Pouca distância, disse o sábio<br />
Anecarsis (é referi<strong>do</strong> por Diógenes 240 ), que havia entre a vi<strong>da</strong> e morte <strong>do</strong>s<br />
navegantes, sen<strong>do</strong> a navegação causa <strong>da</strong> morte, como lhe chamou Plínio<br />
Sénior; porque sen<strong>do</strong> o mar tão inconstante e pouco seguro à custa de<br />
contínuos recessos e à vista de evidentes perigos, aprende a temer seu rigor,<br />
como disse Propércio, que a ele se aventura quem de sua aparente sereni<strong>da</strong>de<br />
se confia. Ficou a noite escura, cujas sombras se em qualquer outra ocasião<br />
são bastantes a causar temor, como diz o padre S. Agostinho 241 , nesta podiam<br />
intimi<strong>da</strong>r os ânimos mais intrépi<strong>do</strong>s e valerosos. Eram implacáveis em seu<br />
desafio os brami<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s e <strong>do</strong>s ventos, de cuja violência a nau impeli<strong>da</strong><br />
ameaçava a ca<strong>da</strong> instante lamentável sepulcro no mais profun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mares.<br />
Fuzilavam os relâmpagos entre continua<strong>do</strong>s chuveiros, crecen<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> vez<br />
mais a tormenta, e desmaian<strong>do</strong> o piloto com ignorar a derrota em que se<br />
achava nem rumo que seguia: acrecentava a noite a confusão de to<strong>do</strong>s de tal<br />
mo<strong>do</strong> que com poucas esperanças <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> não víamos mais que prováveis<br />
indícios <strong>da</strong> avizinha<strong>da</strong> morte. E suposto que Plutarco 242 disse que o varão<br />
sábio nem mu<strong>da</strong>va cores, nem temia muito, não me maravilho de que o filósofo<br />
Aristipo perdesse as cores <strong>do</strong> rosto naquela grande tempestade que teve<br />
navegan<strong>do</strong> para Corinto, ven<strong>do</strong> arrisca<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> ao rigor <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s e ao furor<br />
Árvores que formam uma aboba<strong>da</strong>.<br />
' Diog., Lib. 1.<br />
D. Aug., Lib. Queest. Evang.<br />
' Plutara, Dejustit. moral, in fine.
174 Padre Mateus Ribeiro<br />
<strong>do</strong>s ventos: que como enfim é o mar elemento estranho aos homens, trás<br />
consigo proprie<strong>da</strong>des de atormentar com temores, enquanto com rigorosa<br />
morte não castiga humanos atrevimentos. Pouco deviam de considerar os seus<br />
perigos os feníces, a que a origem <strong>da</strong> navegação se atribui, porque, como diz o<br />
Séneca 243 , a maior parte <strong>do</strong>s navegantes ou totalmente ignoram, ou não<br />
discursam o rigor <strong>da</strong>s tempestades futuras à vista <strong>da</strong> bonança e tranquili<strong>da</strong>de<br />
presente. Disfarce <strong>do</strong>s naufrágios se pode chamar com razão a sereni<strong>da</strong>de;<br />
porque se o mar sempre an<strong>da</strong>ra tempestuoso, ninguém navegara, e se sempre<br />
bonançoso estivera, ninguém o temera. Não há monstro mais cruel, ou que em<br />
mais figuras se transforme, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se apenas duração em o teatro de cristal<br />
que tão contínuas tragédias representa a breves intervalos de aparente<br />
sereni<strong>da</strong>de.<br />
Assim aflitos <strong>da</strong> temerosa borrasca, desvela<strong>do</strong>s <strong>da</strong> rigorosa e horren<strong>da</strong><br />
tormenta, passámos aquela penosa e triste noite, parecen<strong>do</strong> a nossos desejos<br />
em extremo vagarosa a luz <strong>do</strong> dia; que a um sau<strong>do</strong>so sempre anoitece mais<br />
ce<strong>do</strong> e a um atribula<strong>do</strong> sempre amanhece mais tarde. Rompeu a luz <strong>do</strong> sol à<br />
força de raios as trevas <strong>da</strong> escura noite, mais para manifestar à nossa vista o<br />
perigo, que para mitigar o rigor <strong>da</strong> tormenta que nos ameaçava: não se<br />
descobria terra alguma a que dirigir pudéssemos a derrota, somente se viam as<br />
serras <strong>da</strong>s implacáveis on<strong>da</strong>s que de to<strong>da</strong> parte nos cercavam. Rasgaram-se<br />
as velas com a violência <strong>do</strong>s ventos: a nau obedecia pouco ao leme, mais<br />
caminhan<strong>do</strong> violenta<strong>da</strong> <strong>do</strong>s mares e não governa<strong>da</strong> <strong>da</strong> arte; a agulha obrava<br />
pouco, o piloto acertava menos; que um temor grande (como disse Cícero 244 )<br />
to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s perturba, e ain<strong>da</strong>, como quer Ovídio, to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s<br />
embarga, to<strong>do</strong> o valor suspende. Sen<strong>do</strong> já passa<strong>da</strong> grande parte <strong>do</strong> dia se<br />
descobriu terra, com alegria grande <strong>do</strong>s que a ca<strong>da</strong> instante víamos presente a<br />
morte, e levan<strong>do</strong>-nos a ela mais os desejos e o impulso <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> que as<br />
velas, que em muitas partes rasga<strong>da</strong>s antes como bandeiras tremulavam, <strong>do</strong><br />
que aos ventos resistiam; não nos sen<strong>do</strong> possível repugnar tanta violência, deu<br />
já quan<strong>do</strong> o sol se punha à costa a derrota<strong>da</strong> nau em Noruega, província<br />
frigidíssima <strong>do</strong> norte, naufrágio em que muitas pessoas miseravelmente<br />
De tranquil, animi.<br />
Cícer., Lib. 5. Epist. 3.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 175<br />
pereceram; e entre os que a na<strong>do</strong>, resistin<strong>do</strong> à força <strong>do</strong>s mares, puderam<br />
salvar a sua vi<strong>da</strong>, fui eu um deles, pelo que <strong>do</strong>u muitas graças à Divina<br />
clemência. Saímos a terra molesta<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s, cansa<strong>do</strong>s de mover os<br />
braços contra seu furor, maltrata<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s penhascos e roche<strong>do</strong>s <strong>da</strong> costa. Era a<br />
[costa] em que saímos deserta, e assim juntamente por buscarmos abrigo e<br />
nos ausentarmos <strong>do</strong>s brami<strong>do</strong>s temerosos <strong>do</strong> mar que ain<strong>da</strong> nos entristeciam,<br />
fomos caminhan<strong>do</strong> pela terra dentro algumas milhas sem descobrirmos<br />
povoação alguma. É a Noruega província de costa por extremo áspera,<br />
infesta<strong>da</strong> quasi continuamente <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s e de grandes baleias, que a vista<br />
delas causam naufrágios miseráveis aos navegantes com seus encontros.<br />
Divide-se <strong>da</strong> parte oriental de Suécia com asperíssimos montes que, como<br />
balizas de perpétua neve que to<strong>do</strong> o ano os veste por esta parte, qualquer<br />
comércio com este reino impedem. É terra frigidíssima em grande extremo e de<br />
pouca comodi<strong>da</strong>de à vi<strong>da</strong> humana, por ser o frio tão grande inimigo dela.<br />
Assim os poucos que <strong>do</strong> naufrágio com vi<strong>da</strong> ficámos, caminhámos<br />
alguns dias molesta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> fome e frio, agasalhan<strong>do</strong>-nos de noite em algumas<br />
pequenas aldeias que descobríamos, até chegarmos à Dinamarca, península<br />
grande que antigamente se chamou Címbrica e hoje é reino poderoso e<br />
dilata<strong>do</strong>, com o senhorio de muitas ilhas que possui, como as Órcades, llhandia<br />
e outras muitas <strong>da</strong>quele setentrional oceano. Chegámos finalmente a<br />
Hamburgo, ci<strong>da</strong>de imperial situa<strong>da</strong> na costa marítima de Saxónia, junto às<br />
ribeiras <strong>do</strong> famoso rio Albis que, sen<strong>do</strong> seu nacimento em Boémia, em um <strong>do</strong>s<br />
ásperos montes que como muros a cercam, depois de atravessar com sua<br />
cau<strong>da</strong>losa corrente grande parte <strong>da</strong> Alemanha, vem ultimamente a pagar<br />
tributo de suas cristalinas águas ao oceano setentrional em que se sepulta, não<br />
muito distante desta ci<strong>da</strong>de de Hamburgo que em suas águas, como em<br />
cristalino espelho, se retrata. Aqui me detive alguns dias hospe<strong>da</strong><strong>do</strong> de um <strong>do</strong>s<br />
naufragantes que meu particular amigo na nau se tinha mostra<strong>do</strong>, mancebo<br />
<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de boas partes e natural desta ci<strong>da</strong>de de Hamburgo, aonde sua mãe e<br />
<strong>do</strong>micílio tinha. Porém eu com os desejos de chegar a Paris, minha pátria, para<br />
continuar os estu<strong>do</strong>s que com ambições de mais valer deixa<strong>do</strong> tinha, e não<br />
aceitan<strong>do</strong> o cortês e primoroso agasalho de sua casa quanto tempo ele<br />
desejava que me detivesse, passa<strong>do</strong>s alguns dias que nela estive, e proven<strong>do</strong>-<br />
me de algum dinheiro para o discurso <strong>do</strong> caminho, me despedi dele obriga<strong>do</strong> e
176 Padre Mateus Ribeiro<br />
agradeci<strong>do</strong>: que é a satisfação de quem ao presente desempenhar-se não<br />
podia <strong>do</strong>s recebi<strong>do</strong>s benefícios, que são prisões para ânimos primorosos.<br />
Atravessei Frigia, passei a Vestefália e o celebra<strong>do</strong> rio Rin: entrei em o<br />
tempo de suas maiores guerras e rebeliões, nas quais o duque de Alva, que<br />
por supremo governa<strong>do</strong>r assistia, tinha executa<strong>do</strong> rigorosos castigos, assim<br />
nos senhores grandes, como os condes de Egmont e Homes, como em outras<br />
pessoas de inferior quali<strong>da</strong>de, sen<strong>do</strong> tão grande a severi<strong>da</strong>de de sua justiça<br />
que tu<strong>do</strong> estava ocupa<strong>do</strong> de temor e assombra<strong>do</strong> de espanto, com que<br />
porventura em lugar de remediar o mal, acrecentou o <strong>da</strong>no. Discretamente<br />
disse Salústio 245 que os rigores grandes antes destruíam as ci<strong>da</strong>des e<br />
repúblicas <strong>do</strong> que as emen<strong>da</strong>vam. Parecer foi de S. Cipriano 246 que o rigor se<br />
havia de temperar com a brandura para que os males não fossem em aumento;<br />
que porventura esta seria a razão de S. Agostinho 247 interpretar a etimologia <strong>da</strong><br />
severi<strong>da</strong>de, dizen<strong>do</strong> que significava ver<strong>da</strong>de severa ou cruel, com que muitas<br />
vezes mais se arruina <strong>do</strong> que remedeia. Tal me parece foi o duque de Alva em<br />
Flandres com o rigor de seus castigos, que arruinou com severi<strong>da</strong>de odiosa o<br />
que porventura pudera melhorar e reformar com brandura. Enfim to<strong>do</strong>s os<br />
esta<strong>do</strong>s de Flandres estavam ressenti<strong>do</strong>s e temerosos, com a fresca memória<br />
de tantas mortes e ódio que aos castelhanos tinham, pelas insolências<br />
demasia<strong>da</strong>s de que usavam.<br />
Eu, com desejos de ver a presença <strong>do</strong> duque de Alva, que tanto se <strong>da</strong>va<br />
a conhecer nas províncias <strong>do</strong> norte com a fama juntamente de seu valor e sua<br />
severi<strong>da</strong>de, me parti a Bruxelas, aonde então assistia, e ao segun<strong>do</strong> dia de<br />
minha chega<strong>da</strong> vi, por meu mal, a causa de to<strong>do</strong>s meus desgostos, a ocasião<br />
total de meus desvelos, disfarça<strong>da</strong> no rosto <strong>da</strong> mais galhar<strong>da</strong> espanhola que<br />
jamais meus olhos viram. Sem encarecimento pudera nesse tempo afirmar que<br />
os pincéis mais primorosos de Zêuxis, Timantes, Pânfilo e Apeles, os pintores<br />
mais famosos que celebrou a antigui<strong>da</strong>de, eram toscos para ao vivo retratarem<br />
tal fermosura. Quantas vezes no saboroso <strong>da</strong> iguaria se disfarça o veneno, e<br />
nos <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s matizes <strong>da</strong> curiosa aljava se esconde o erva<strong>do</strong> <strong>da</strong> seta? O maior<br />
Salust., Ad Caesar de Reg. ord.<br />
D. Ciprian., Lib. 4. Epist.<br />
D. Aug., Serm. 29. De verbis Domini.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 177<br />
rebuço muitas vezes <strong>do</strong>s vícios é a beleza, que, como tem por crédito ser<br />
ama<strong>da</strong>, não se sabe <strong>da</strong>r por satisfeita com uma só vitória. Era esta espanhola<br />
de que vou falan<strong>do</strong>, rara na fermosura, moça na i<strong>da</strong>de, nobre no sangue, rica<br />
no <strong>do</strong>te, nas palavras discreta, no falar eloquente; considerai que partes para<br />
não ser ama<strong>da</strong> e pertendi<strong>da</strong> de avanteja<strong>do</strong>s empenhos, quanto mais de mim,<br />
mancebo com pouca experiência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, forasteiro em terra alheia e<br />
desfavoreci<strong>do</strong> <strong>da</strong> ventura: condições que antes me podiam culpar de atrevi<strong>do</strong>,<br />
que condenar-me em amá-la por disparata<strong>do</strong> ou indiscreto.<br />
Era Teo<strong>do</strong>ra (que assim se chamava) órfã de pai e mãe, que em<br />
companhia <strong>do</strong> duque de Alva tinham de Espanha passa<strong>do</strong> a Flandres e havia<br />
<strong>do</strong>us anos que eram mortos, fican<strong>do</strong> ela em a tutela e companhia de uma tia<br />
sua de anciã i<strong>da</strong>de, irmã de seu pai, que em sua guar<strong>da</strong> tinha. Ficou-lhe<br />
bastante <strong>do</strong>te em dinheiro e jóias de ouro e prata; sen<strong>do</strong> assim que sua grande<br />
fermosura e partes a faziam digna de maior ventura, isentan<strong>do</strong>-a de haver de<br />
tributar <strong>do</strong>te em casamento quem merecia ser <strong>do</strong>ta<strong>da</strong> em arras: finalmente eu a<br />
vi por meu mal, e sen<strong>do</strong> os olhos correctores <strong>do</strong> amor, fiquei tão perdi<strong>do</strong> de sua<br />
vista que desse dia avaliei sua janela por horizonte <strong>do</strong> sol de meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s.<br />
Esqueci a pátria; porém que muito, quem se não lembrou de si mesmo? Dei em<br />
ser pertendente de seus favores, que amor a tu<strong>do</strong> dá confianças; senti<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, sofri desvelos; que quem se empenha a amar, a sentir e sofrer se<br />
obriga. Teve Teo<strong>do</strong>ra notícia <strong>do</strong>s extremos com que a amava: achou-me<br />
muitas noites o sol, por mais que a sair madrugasse, velan<strong>do</strong>; deixou-me a lua,<br />
por mais tarde que recolhesse, desvela<strong>do</strong>r; porque cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s amantes são<br />
sentinelas <strong>do</strong> amor e homici<strong>da</strong>s tiranos de quem os sustenta.<br />
Continuou o tempo; fui lisonjea<strong>do</strong> com o título de favoreci<strong>do</strong>; e foi pouco<br />
não passar a excesso de louco, pela alegria, se porventura está isento de<br />
loucura quem deveras ama: ofereci-me por seu escravo, quanto mais por<br />
esposo, e não faltan<strong>do</strong> em Bruxelas quem desse notícia de quem era, cheguei<br />
finalmente a ser de Teo<strong>do</strong>ra admiti<strong>do</strong> por esposo, e de sua tia aceito e<br />
aprova<strong>do</strong> o casamento, e não perder nesse dia a vi<strong>da</strong> ao rigor <strong>da</strong>s alegrias que<br />
senti me pareceu maravilha. De Diágoras Rodiano se conta que perdeu a vi<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> grande alegria que recebeu, ven<strong>do</strong> em um dia a três filhos seus vence<strong>do</strong>res<br />
nos jogos olímpicos, e à vista <strong>do</strong>s aplausos com que o povo derraman<strong>do</strong> flores<br />
celebrava seu vencimento perdeu a vi<strong>da</strong> em os braços <strong>do</strong>s mesmos filhos.
178 Padre Mateus Ribeiro<br />
Semelhante foi a morte <strong>do</strong> insigne poeta Sófocles Ateniense que morreu de<br />
alegria ven<strong>do</strong> a última tragédia que compôs julga<strong>da</strong> na opinião <strong>do</strong>s sábios por<br />
mais excelente que to<strong>do</strong>s os poemas <strong>do</strong>s famosos poetas de seu tempo, com<br />
quem <strong>da</strong> primazia e laureamento competia. Porém agora conheço que muitas<br />
vezes as que se avaliam felici<strong>da</strong>des se permitem por castigos e os que se<br />
julgam por infortúnios são muitas vezes benefícios.<br />
Chegou-se o dia <strong>do</strong>s desposórios de mim tão deseja<strong>do</strong>: vi-me possui<strong>do</strong>r<br />
<strong>da</strong> pren<strong>da</strong> que com tantos extremos queria, bens enfim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, sempre<br />
maiores nas esperanças que na posse: imaginava-me o mais venturoso <strong>do</strong>s<br />
homens, ven<strong>do</strong>-me em tão breve tempo casa<strong>do</strong> tanto a meu gosto, com mulher<br />
de tantas pren<strong>da</strong>s e com <strong>do</strong>te conveniente para sustentar o esta<strong>do</strong> que à sua<br />
quali<strong>da</strong>de não desdissesse. Porém apenas seriam passa<strong>do</strong>s vinte dias de<br />
minhas imagina<strong>da</strong>s venturas, quan<strong>do</strong> em um instante me vi conduzi<strong>do</strong> ao maior<br />
extremo de misérias e cerca<strong>do</strong> de to<strong>da</strong>s as ânsias e desgostos que sentir pode<br />
um coração que padecer pode um sentimento grande; sen<strong>do</strong> de tal quali<strong>da</strong>de<br />
meus infortúnios que nem consolação admitem, nem remédio esperam. Com<br />
dificul<strong>da</strong>de se guar<strong>da</strong> o que de muitos se deseja: pensão grande <strong>da</strong> humana<br />
fermosura, que na mulher própria vem a ser muitas vezes veneno <strong>do</strong>ce,<br />
cativeiro deseja<strong>do</strong>, desvelos pertendi<strong>do</strong>s.<br />
Havia em Bruxelas um mancebo espanhol de agradável presença, o<br />
qual se tinha <strong>da</strong><strong>do</strong> por meu amigo nesses dias em que as pertensões de<br />
Teo<strong>do</strong>ra me desvelavam; e como alegrias grandes, conforme disse<br />
Quintiliano 248 , sejam dificultosas de encobrir-se, lhe manifestei as que em meu<br />
peito caber não podiam, fia<strong>do</strong> na amizade que me mostrava. Aprovou-me a<br />
pertensão, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me título de venturoso, pois aspiran<strong>do</strong> a tal empenho me via<br />
favoreci<strong>do</strong> e com esperanças de alcançá-lo: ofereceu-se a aju<strong>da</strong>r-me (se<br />
necessário fosse), sen<strong>do</strong> <strong>da</strong>í em diante sabe<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s secretos mais ocultos de<br />
meu peito, parecen<strong>do</strong>-me que o fruto de uma amizade ver<strong>da</strong>deira era achar<br />
alívio nos males, glória nos bens e consolação deles sem inveja; sen<strong>do</strong><br />
obrigação própria <strong>do</strong> amigo, como diz Aristóteles 249 , sentir em igual grau os<br />
Quintil., Dec. 2.<br />
Arist., Rhetor. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 179<br />
contentamentos ou tristezas de seu amigo; sen<strong>do</strong> parecer de Marco Túlio<br />
que não havia cousa alguma mais acomo<strong>da</strong><strong>da</strong> aos bens e males que a<br />
amizade. Daquele famoso Samniético, rei <strong>do</strong> Egipto, se conta que sen<strong>do</strong><br />
venci<strong>do</strong> por Cambises, rei de Pérsia, e despoja<strong>do</strong> <strong>do</strong> reino, como fosse trazi<strong>do</strong><br />
diante dele, o man<strong>do</strong>u que com alguns <strong>do</strong>s principais senhores que cativos o<br />
acompanhavam fosse posto junto aos muros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Mênfis para que<br />
visse a princesa, sua filha, que em traje de cativo ia em companhia de outros<br />
buscar água com seus cântaros à fonte, para que a vista desse infortúnio<br />
acrescentasse o sentimento ao aflito pai: porém suposto que os senhores<br />
egípcios, cativos que com ele estavam, lamentassem com copiosas lágrimas<br />
tal mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> fortuna, Samniético não mostrou mais sentimento que se fosse<br />
uma estátua insensível, e com a mesma constância de ânimo e olhos enxutos<br />
viu passar diante dele o príncipe, seu filho menino, para ser morto, sem que<br />
desse sinal algum de maior sentimento. Contu<strong>do</strong> não pôde reter as lágrimas,<br />
sem que chorassem, ven<strong>do</strong> a um seu grande amigo rico e poderoso an<strong>da</strong>r<br />
pobre e mal vesti<strong>do</strong> entre os inimigos pedin<strong>do</strong> esmola para sustentar-se: e<br />
sen<strong>do</strong> pergunta<strong>do</strong> <strong>do</strong> monarca persiano a causa desta acção lastimosa, a qual<br />
aos infortúnios de seus filhos negara; respondeu o generoso príncipe que as<br />
adversi<strong>da</strong>des de seus filhos como incluí<strong>da</strong>s nas suas próprias corriam por um<br />
mesmo sentimento <strong>da</strong> alma; porém que a pobreza e desgraça de seu amigo<br />
não pudera deixar de fazer abalo em seus olhos, pois <strong>da</strong>r-lhe outro socorro que<br />
o de suas lágrimas não podia.<br />
Que admirações não engrandece a fama <strong>do</strong>s extremos <strong>da</strong> amizade de<br />
Zópiro para com Dário, rei <strong>da</strong> Pérsia, na conquista de ci<strong>da</strong>de de Babilónia?<br />
Que finezas não contam as histórias de Dámon e Pítias, discípulos de<br />
Pitágoras, até se expor um pelo outro à própria morte, como refere S.<br />
Ambrósio 251 ; de Pílades e Orestes; de Heféstion e Alexandre; de Niso e<br />
Euríalo; e de outros muitos. E assim não era maravilha que, julgan<strong>do</strong> eu a<br />
amizade <strong>do</strong> espanhol por ver<strong>da</strong>deira, lhe desse notícia de to<strong>da</strong>s as minhas<br />
pertensões, té que ultimamente me viu casa<strong>do</strong>: porém ou fosse que já antes de<br />
meu casamento ele o pretendesse, ou que a fermosura grande de Teo<strong>do</strong>ra o<br />
Cicer., in Kael.<br />
D. Ambr., Lib. 2. De Virg.
180 Padre Mateus Ribeiro<br />
cegasse, ele finalmente foi seu amante de tal mo<strong>do</strong> que um dia desapareceu<br />
minha esposa em sua companhia, estan<strong>do</strong> ausente <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de algumas milhas,<br />
levan<strong>do</strong> juntamente to<strong>do</strong> o <strong>do</strong>te e jóias de valor que recebi<strong>do</strong> tinha, ven<strong>do</strong>-me<br />
em um instante sem honra, sem amigo e sem fazen<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> mais venturoso<br />
me julgava, aprovan<strong>do</strong> por ver<strong>da</strong>deiro aquele dito de Euripides 252 : que a causa<br />
mais agradável vinha a ser a mais penosa e triste. Se somente me vira pobre e<br />
sem remédio por me ser rouba<strong>da</strong> a fazen<strong>da</strong>, não desanimara meu valor, que<br />
muitos pobres houve no mun<strong>do</strong> que na pobreza sua constância imortalizaram.<br />
De Agesilau, um pobre velho de arcádia, disse o oráculo a Giges, poderoso rei<br />
de Lídia, que era muito mais feliz que ele porque se contentava de uma<br />
pequena casa que tinha, em que vivia e com que sua família sustentava.<br />
De Gelipo, insigne capitão lacedemónio, se escreve viver tão pobre que<br />
não menos causava admiração com suas vitórias <strong>do</strong> que com a pobreza de<br />
seus vesti<strong>do</strong>s, muitas vezes rotos e maltrata<strong>do</strong>s. Tão pobre morreu o insigne<br />
capito romano Menénio Agripa que se o povo romano com expensas públicas<br />
lhe não fizera as funerais exéquias em sua morte, de que romanos ilustres<br />
usavam, sem elas seria sepulta<strong>do</strong>. A Ab<strong>do</strong>lomino deu o grande Alexandre o<br />
ceptro de Sidónia sen<strong>do</strong> tão pobre que, com ser descendente <strong>do</strong>s reis <strong>da</strong>quela<br />
ci<strong>da</strong>de, cultivava com suas próprias mãos uma pequena horta para sustentar-<br />
se, pela qual constância e valor que na pobreza mostrara o avaliou o grande<br />
monarca por digno <strong>da</strong> cora que lhe oferecia. À vista <strong>da</strong> grande pobreza de<br />
Diógenes, e desprezo que fez <strong>da</strong>s grandes ofertas de Alexandre, disse ele que<br />
se possível lhe fora deixar de ser Alexandre, escolhera somente ser Diógenes.<br />
Se o considerar-me agrava<strong>do</strong> de um amigo fora só a queixa e<br />
sentimento de minha ofensa, ain<strong>da</strong> achara consolação em o grande Dário, rei<br />
de Pérsia, traí<strong>do</strong> e morto por Besso e Nabarzanes, seus amigos e mais<br />
favoreci<strong>do</strong>s. Igualmente foi Júlio César morto por Bruto e Cássio, de quem<br />
mais se fiava. Cícero, aquele assombro <strong>da</strong> eloquência latina, foi morto<br />
tiranamente por Pompílio Lenas, a quem ele oran<strong>do</strong> em seu favor tinha livra<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong> morte, e ain<strong>da</strong> em nossos tempos o duque de Florença, Alexandre de<br />
Médices, foi morto trai<strong>do</strong>ramente por Lourenço de Médices, não somente seu<br />
parente, mas seu priva<strong>do</strong> e maior amigo. Porém que houvesse eu de ser<br />
Eurip., in Hyp.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 181<br />
ofendi<strong>do</strong> de minha própria esposa, a quem mais que a mim queria, a quem<br />
mais que a própria vi<strong>da</strong> amava, para não somente ficar ofendi<strong>do</strong>, mas abati<strong>do</strong> e<br />
afronta<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> alvo de quantos olhos e discursos me conhecem, nem lhe<br />
acho consolação, nem lhe espero remédio. Do insigne escultor Praxiteles se<br />
conta que aman<strong>do</strong> com extremos grandes a Frine, fermosíssima <strong>da</strong>ma <strong>da</strong>quela<br />
i<strong>da</strong>de, lhe prometeu, importuna<strong>do</strong> de seus rogos, <strong>da</strong>r a mais perfeita e<br />
excelente imagem que em casa tivesse: ela, como discreta, queren<strong>do</strong> inteirar-<br />
se com indústria <strong>da</strong> imagem que ele tinha em maior estima, deu traça a que um<br />
escravo de Praxiteles, suborna<strong>do</strong> dela, viesse corren<strong>do</strong> e alvoroça<strong>do</strong> dizer ao<br />
senhor que repentinamente se lhe tinha atea<strong>do</strong> o fogo em sua casa e havia<br />
consumi<strong>do</strong> e desfeito a maior parte <strong>da</strong>s imagens que nela estavam; ao que<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong> ele crédito começou a correr perturba<strong>do</strong> e sem alento, dizen<strong>do</strong> que se o<br />
Cupi<strong>do</strong> e o Sátiro se perderam, não lhe ficava em tu<strong>do</strong> o mais cousa que de<br />
valor algum fosse. Então o deteve Frine, manifestan<strong>do</strong>-lhe a indústria, e assim<br />
alcançou dele Cupi<strong>do</strong>, que foi obra de rara admiração naqueles tempos. Tal<br />
ponderei eu com razão dizer que pois Teo<strong>do</strong>ra, a cousa que eu mais amava,<br />
não somente perdi, mais juntamente com ela a honra, pren<strong>da</strong> <strong>da</strong> maior estima;<br />
não me fica cousa alguma que possa nem desejar, nem pertender,<br />
desestiman<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> a mesma vi<strong>da</strong>, que sempre a um desgosto fica sen<strong>do</strong> mais<br />
dilata<strong>da</strong> <strong>do</strong> que a deseja.<br />
Apenas tive notícia <strong>do</strong> trágico sucesso, ven<strong>do</strong>-me em um instante,<br />
quan<strong>do</strong> menos o temia, tão cerca<strong>do</strong> de penas e sentimentos, quan<strong>do</strong> leva<strong>do</strong> de<br />
desejos de vingança fui em seguimento de quem tão mereci<strong>do</strong> me tinha o<br />
castigo, suposto que por mais que o amor tratava de transformar-se em ódio,<br />
contu<strong>do</strong> sempre <strong>da</strong>va indícios de haver si<strong>do</strong> amor; que quem deveras ama,<br />
com dificul<strong>da</strong>de os aborrece. Tempo há mister o corvo quan<strong>do</strong> nasce para tingir<br />
a candura <strong>da</strong>s penas com que no tosco berço de seu ninho o enfaixou a<br />
natureza: artifícios e discurso de tempo são necessários para que a cera que<br />
<strong>do</strong> favo páli<strong>do</strong> sai converta a desmaia<strong>da</strong> cor na semelhança <strong>da</strong> neve em que a<br />
vemos; não repentinamente, mas com vagares, o orvalho que bebeu a concha<br />
se reconverte em perla, o azougue em ouro. Com demoras se mu<strong>da</strong> o Estio em<br />
Inverno, o agro em <strong>do</strong>ce com espaço de dias se transforma, e se nas cousas<br />
materiais requer tempo a mu<strong>da</strong>nça, não deixarei de admirar-me de que possa<br />
em um instante em furor converter-se, em ódio trocar-se, um ver<strong>da</strong>deiro amor,
182 Padre Mateus Ribeiro<br />
e quasi estou para afirmar que nunca chegou a possuir reali<strong>da</strong>des de amor<br />
ver<strong>da</strong>deiro aquele que repentinamente em ódio mais intenso se mu<strong>da</strong>: isto digo<br />
porque se a paixão movia os passos com vingativos desejos, o amor parece<br />
que os retar<strong>da</strong>va, quasi desejan<strong>do</strong> não encontrar o mesmo que desvela<strong>do</strong><br />
buscava e pertendia, e em meio <strong>do</strong>s maiores sentimentos quanto o agravo me<br />
incitava, tanto a afeição me divertia.<br />
Enfim em seu seguimento passei to<strong>do</strong> Flandres, entrei por França e<br />
cheguei a Paris, minha pátria, e achei, para aumentar meu sentimento, a minha<br />
mãe defunta, que isso tem os males de covardes acometerem tantos juntos a<br />
um aflito peito. Celebrei suas exéquias o melhor que me deu lugar o sentimento<br />
e, cobran<strong>do</strong> algum dinheiro dessa pouca fazen<strong>da</strong> que lhe ficara, passei a<br />
Espanha, discorri maior parte dela sem descobrir notícias de minha fugitiva<br />
esposa e falso amigo. Assim peregrinei muitos meses por várias ci<strong>da</strong>des,<br />
diversas vilas e povoações que a esfera de tantos reinos encerra, e<br />
caminhan<strong>do</strong> um dia junto a umas serras que há entre Colmenar e Vila Franca,<br />
povoações de Castela a velha, entre as quais o rio Tormes de limita<strong>da</strong> fonte<br />
nace e com fugitiva e sau<strong>do</strong>sa corrente, deixan<strong>do</strong> o berço de seu nascimento,<br />
busca avanteja<strong>do</strong> sepulcro nas cristalinas águas <strong>do</strong> cau<strong>da</strong>loso Douro, em cuja<br />
grandeza perde o nome; sucedeu que, queren<strong>do</strong> atravessar a eminência de um<br />
monte <strong>do</strong>s muitos que senhoreiam o campo em que o Tormes sua veloci<strong>da</strong>de<br />
exercita, visse não muito distante passar a um homem ao parecer mancebo,<br />
vesti<strong>do</strong> de um tosco saco, traje que representava ser ermitão de solitária vi<strong>da</strong>,<br />
o qual apenas me viu quan<strong>do</strong>, aligeiran<strong>do</strong> os passos mais <strong>do</strong> costuma<strong>do</strong>, tratou<br />
se ausentar-se de minha vista e desaparecer a meus olhos. Lá disse S.<br />
Agostinho que pela maior parte ca<strong>da</strong> qual avalia suas suspeitas por<br />
conhecimentos, e como a mim tanto os desejos <strong>da</strong> vingança inquietavam, e um<br />
ânimo suspeitoso entre suspeitas mal descanse, como disse o Séneca, o ver<br />
que se ausentava de minha vista me fez avaliar por mais que provável ser este<br />
fugitivo mancebo meu ofensor.<br />
Incita<strong>do</strong> deste pensamento, esporei o cavalo para <strong>da</strong>r-lhe alcance, e<br />
ven<strong>do</strong> que o fragoso <strong>do</strong> monte não <strong>da</strong>va lugar, por causa de alguns arrisca<strong>do</strong>s<br />
precipícios, para que o cavalo o seguisse, me apeei dele e, atan<strong>do</strong>-lhe as<br />
rédeas ao tronco de um copa<strong>do</strong> freixo, o fui seguin<strong>do</strong> com tantos desejos de<br />
segui-lo que em breve espaço lhe dei alcance; e ven<strong>do</strong> ao perto não ser quem
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 183<br />
ofendi<strong>do</strong> me tinha, antes conhecen<strong>do</strong> em sua presença um gesto grave e<br />
airoso, suposto que em extremo triste, e notan<strong>do</strong> juntamente o sobressalto que<br />
lhe ocasionou meu seguimento, lhe disse desta sorte:<br />
- O imaginar, senhor, que éreis outra pessoa que vou buscan<strong>do</strong>, que<br />
distâncias grandes servem de enganos aos olhos, foi causa de seguir-vos para<br />
desenganar-me: per<strong>do</strong>ai-me a moléstia que vos causaria a veloci<strong>da</strong>de que me<br />
chegou a alcançar-vos, que meu intento não era <strong>da</strong>r-vos pena, quan<strong>do</strong> de hoje<br />
em diante serão meus desejos de servir-vos.<br />
- Não há culpa, senhor, em vossa diligência (respondeu ele) porque não<br />
houve temor algum que vosso seguimento me não causasse, pois a tal extremo<br />
me tem conduzi<strong>do</strong> tristezas que me acompanham, sentimentos que me<br />
lastimam, que nem a morte me atemoriza, nem a vi<strong>da</strong> me alegra, e an<strong>do</strong><br />
fugin<strong>do</strong> de to<strong>da</strong> a companhia porque tu<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> me aborrece.<br />
- De Timon Ateniense (lhe disse eu) se conta ser tão inimigo de to<strong>do</strong>s os<br />
homens e fugir tanto [<strong>da</strong>] sua conversação e companhia que cean<strong>do</strong> uma vez<br />
com ele Apamanto e louvan<strong>do</strong>-lhe o saboroso <strong>da</strong>s iguarias e perfeição <strong>do</strong>s<br />
guisa<strong>do</strong>s de seu convite, Timon lhe respondeu que mais de louvar fora se<br />
Apamanto nele não estivera; e não contente de fugir à companhia <strong>do</strong>s homens<br />
em vi<strong>da</strong> a quis juntamente evitar na morte, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se sepultar junto às<br />
on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mar no areal deserto, com epitáfio que bem manifestava o quanto<br />
to<strong>da</strong> a conversação humana lhe aborrecia. Porém vós, senhor, que logo em<br />
vosso aspecto manifestais não serdes rústico no nacimento, nem como Timon<br />
desabri<strong>do</strong> na conversação, por que causa com tanto excesso vos deixais<br />
vencer <strong>da</strong>s tristezas que fujais à vista de quem se não for poderoso a remediá-<br />
las, ao menos não deixará de procurar-vos to<strong>do</strong> alívio? E se este desejo é<br />
bastante a obrigar vossa cortesia, vos peço pelo que vossa prudência descobre<br />
me comuniqueis a causa de vossos sentimentos, fian<strong>do</strong> de mim que saberei<br />
senti-los, quan<strong>do</strong> não possam minhas razões avaliá-los.<br />
- O alívio é impossível (respondeu o desconheci<strong>do</strong> mancebo) porque<br />
igualmente o é o remédio, ten<strong>do</strong> por certo que somente a morte com abreviar-<br />
me a vi<strong>da</strong> poderá finalizar minhas ânsias; mas pois com tanta cortesia me<br />
obrigais a que refira a história que há-de acrecentar meu sentimento, assim por<br />
obedecer-vos como juntamente para desenganar-vos de que são meus males
184 Padre Mateus Ribeiro<br />
sem remédio e meu tormento sem alívio, ouvi a trágica narração de minha<br />
história e avaliareis ain<strong>da</strong> por limita<strong>da</strong>s minhas tristezas.<br />
E assentan<strong>do</strong>-se comigo entre os sombrios álamos que de pavelhão<br />
serviam à espessura de um solitário bosque, arrancan<strong>do</strong> <strong>do</strong> peito um senti<strong>do</strong><br />
suspiro, prelúdio de seu trágico sentimento, disse desta sorte:<br />
- A ilustre vila de Madrid, breve mapa <strong>da</strong> maior parte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, corte de<br />
tão agiganta<strong>da</strong> monarquia que recompila em grandezas de reinos e províncias<br />
as Babilónias <strong>do</strong>s assírios, as Persopolis <strong>do</strong>s persas, a quem a Macedónia de<br />
Grécia e a Roma de Itália no império <strong>do</strong>s Alexandres e Césares devem a<br />
representação de sua opulência hoje tão viva, quan<strong>do</strong> apenas de tantas<br />
monarquias já passa<strong>da</strong>s perseveram as sombras <strong>da</strong> majestade que como<br />
impérios tiveram, foi pátria de quem cronista de seus infortúnios refere, por<br />
contentar-vos, suas tristezas. Que importa ser ilustre a pátria a quem com suas<br />
obras a envilece? Ou que des<strong>do</strong>ura ser humilde a quem a engrandece com<br />
obras e com merecimentos a autoriza? Ao sábio Crates Tebano perguntou o<br />
grande Alexandre se queria que Tebas, sua pátria, em graça de tal filho de<br />
novo refizesse; ao que ele respondeu que era obra escusa<strong>da</strong> sequer para<br />
escusar o sentimento se a<strong>caso</strong> outro Alexandre de novo a arruinasse, como<br />
antes fizera.<br />
Por merecimentos de um tal filho queria o invicto monarca restaurar-lhe<br />
a pátria, e por culpas minhas confesso que foi desditosa a minha em ter tal<br />
filho, segun<strong>do</strong> de um pai titular e rico, me criou Madrid alguns anos, em que a<br />
tenra i<strong>da</strong>de as lisonjas <strong>da</strong> corte não entendia; porém chegan<strong>do</strong> a tempo de<br />
poder-me aplicar às letras, meu pai me man<strong>do</strong>u a Salamanca, ci<strong>da</strong>de não mui<br />
distante deste lugar em que agora estamos, a quem a fama <strong>da</strong> insigne<br />
universi<strong>da</strong>de que a enobrece faz conheci<strong>da</strong> em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> não menos que<br />
antigamente a Jónia em Ásia com Anaximandro, Atenas em Grécia com<br />
Aristóteles e Cortona em Itália com Pitágoras. Vivia nela um fi<strong>da</strong>lgo primo com<br />
irmão de meu pai, casa<strong>do</strong> havia anos, a quem vim dirigi<strong>do</strong> para que juntamente<br />
com seu filho continuasse as escolas <strong>do</strong> estu<strong>do</strong>; favor que ele estimou por<br />
grande, tratan<strong>do</strong>-me com o mesmo amor que se seu filho próprio fora. Assim<br />
em companhia <strong>do</strong> seu, que Dom Sancho se chamava, cursei os estu<strong>do</strong>s alguns<br />
anos em que, sen<strong>do</strong> bem instruí<strong>do</strong> nas humani<strong>da</strong>des <strong>do</strong>s livros históricos,<br />
passei à Filosofia com progressos que em as lisonjas de afeiçoa<strong>do</strong> ou primores
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 185<br />
de bem entendi<strong>do</strong> aplaudiam, porventura para obrigar-me a maiores<br />
empenhos, que a virtude louva<strong>da</strong> crece ordinariamente. Dei fim ao último ano<br />
desta ciência; apliquei-me aos sagra<strong>do</strong>s Cânones e no segun<strong>do</strong> ano em que<br />
seu estu<strong>do</strong> com maiores cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s me entretinha, não porém na companhia de<br />
Dom Sancho que as leis que quis estu<strong>da</strong>r seguia não com menores desvelos,<br />
ou fosse a causa emulação contenciosa de lhe não ser preferi<strong>do</strong>, ou seu<br />
próprio natural que às letras com tanta aplicação o incitasse, sucedeu, para<br />
desgraça de um e outro, que meu pai me chamasse para que em Madrid,<br />
minha pátria, entretivesse as férias que se chegavam. Obedeci a seu gosto, e<br />
pelo muito que Dom Sancho manifestava de querer ver a corte, e juntamente<br />
pela particular amizade e parentesco que entre nós havia, nos partimos a<br />
Madrid, sen<strong>do</strong> de meu pai e irmão mais velho com grandes extremos<br />
festeja<strong>do</strong>s, com mostras de amor recebi<strong>do</strong>s.<br />
Passaram alguns dias em admirar as grandezas <strong>da</strong> corte, que ain<strong>da</strong><br />
para quem continuamente a vê sempre tem novi<strong>da</strong>des que notar, quanto mais<br />
para Dom Sancho que jamais a tinha visto e para mim que tantos anos estive<br />
ausente dela. Um dia que ele em minha companhia foi a Aranjués, corte <strong>da</strong><br />
mais airosa Primavera em que parece depositaram os pra<strong>do</strong>s to<strong>da</strong> a louçania e<br />
tesouro mais aprazível de suas flores, sucedeu que no caminho víssemos<br />
passar em um coche a uma <strong>da</strong>ma, moça <strong>do</strong>nzela, que com sua mãe viúva ia<br />
assistir alguns dias em uma quinta poucas milhas distante de Madrid, que em<br />
sítio acomo<strong>da</strong><strong>do</strong> para passar o Verão sem muito enfa<strong>do</strong> possuía.<br />
Era tal a fermosura de Lisar<strong>da</strong> (que assim se chamava) que quan<strong>do</strong> o<br />
amor não tivera maior senhorio que sua vista era esta poderosa para lhes<br />
granjear mais triunfos <strong>do</strong>s corações humanos que adquiriam a Roma os<br />
vence<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s exércitos que tanto a engrandeceram.<br />
Enfim deste dia em diante servi com perseverança a bandeira <strong>da</strong> milícia<br />
<strong>do</strong> amor em que me fizeram alistar desejos inadverti<strong>do</strong>s que são conselheiros<br />
cegos: parecia-me que sen<strong>do</strong> Lisar<strong>da</strong> ilustre no sangue, como era herdeira de<br />
um bastante morga<strong>do</strong> que de seu pai ficara, tão rara na gentileza, tão singular<br />
no aviso, como a fama dizia, era para mim favor <strong>da</strong> maior ventura que<br />
conseguisse o fim de ser seu esposo. Assim tratei de obrigá-la com publicar-<br />
me amante, sentin<strong>do</strong> os grandes desvelos com que [o] amor atormenta aos<br />
que o seguem; porém achei tão isenta resistência em ser admiti<strong>da</strong> minha
186 Padre Mateus Ribeiro<br />
pertensão que me fez imaginar se interviria maior causa de permeio para<br />
repulsa tão isenta, ou para manifestar a condição de Lisar<strong>da</strong> comigo tão<br />
soberana e desconheci<strong>da</strong>. E como amor é algoz nas sentinelas e à viveza de<br />
seus olhos não há músicas que a<strong>do</strong>rmeçam para se descui<strong>da</strong>r de velar e<br />
inquirir quem deveras ama, vim a saber em como Frederico, meu irmão mais<br />
velho, era seu amante havia já algum tempo, e dela não mal correspondi<strong>do</strong>,<br />
enfim como morga<strong>do</strong> e que havia de her<strong>da</strong>r o título que meu pai tinha, com que<br />
porventura Lisar<strong>da</strong> mais bem emprega<strong>da</strong> se julgava quan<strong>do</strong> se lhe dedicasse<br />
por esposo; e em mim, como filho segun<strong>do</strong>, menos interessava, assim em não<br />
admitir-me menos perdia.<br />
Senti<strong>do</strong> ouvi o desengano, que desenganos para corações apaixona<strong>do</strong>s,<br />
ain<strong>da</strong> que bem pertendi<strong>do</strong>s, são de ordinário mal aceitos: avaliei por desprezo<br />
o que na reali<strong>da</strong>de não era agravo, pois não estava Lisar<strong>da</strong> obriga<strong>da</strong> a premiar<br />
meus desvelos quan<strong>do</strong> os não admitia, nem galar<strong>do</strong>ar minhas finezas quan<strong>do</strong><br />
as não aprovava; nem meu irmão me ofendia em ser correspondi<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong><br />
tanto antes a meus intentos seu amor antecipa<strong>do</strong>. Agora por meu mal<br />
considero o que então não ponderei apaixona<strong>do</strong>, e hoje sinto e choro sem<br />
remédio o que não discursei inadverti<strong>do</strong>. Bem pudera desengana<strong>do</strong> vencer<br />
meu sentimento com retirar-me outra vez a meus estu<strong>do</strong>s, conhecen<strong>do</strong> que<br />
quem faz emprego em coração afeiçoa<strong>do</strong> não somente lhe é necessário<br />
conquistar a vontade, mas juntamente desapossá-la <strong>do</strong> primeiro amor;<br />
dificul<strong>da</strong>des que nem to<strong>da</strong>s as vezes se facilitam, antes empenhos que mui<br />
dificilmente se alcançam; porém estimula<strong>do</strong> <strong>do</strong> amor e incita<strong>do</strong> <strong>da</strong> inveja de<br />
que houvesse outrem nos olhos de Lisar<strong>da</strong> mais venturoso, me resolvi a<br />
prosseguir a empresa até morrer na conquista. E como meu irmão tivesse já<br />
manifesta notícia de meus intentos, um dia em particular se declarou comigo,<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-ma de seus amores (como se eu os ignorasse) pedin<strong>do</strong>-me não tratasse<br />
mais de prosseguir tal empenho; porém eu, que já de antes estava resoluto<br />
neste desacerta<strong>do</strong> pensamento, lhe respondi mui livremente o contrário <strong>do</strong> que<br />
ele imaginava, e entre outras palavras lhe disse desta sorte:<br />
- Que importa, Frederico, que Lisar<strong>da</strong> primeiro vos vencesse, se um só<br />
vencimento é limita<strong>do</strong> triunfo para tal fermosura? Não embota a corta<strong>do</strong>ra<br />
espa<strong>da</strong> os fios ao golpe primeiro para que mais não corte, quanto mais as<br />
invencíveis armas de seus olhos para quem são pequeno sacrifício as vi<strong>da</strong>s
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 187<br />
que encerra Espanha: se antes de a ver me avisáreis, evitara o perigo, mas<br />
hoje prisioneiro como não procurarei o remédio? Se vos confiais em mais<br />
venturoso, deixai-me penar infelice. Que importa que meu coração se abrase,<br />
se <strong>da</strong> Tarpeia vedes seguro seu incêndio? Que tendes que temer favoreci<strong>do</strong> de<br />
quem, como eu, pena despreza<strong>do</strong>? E agradecei ao amor, que fazeis<br />
experiência <strong>da</strong> fé, que Lisar<strong>da</strong> vos guar<strong>da</strong> com um desditoso, que bem pudera<br />
suceder sair-vos mais custoso se fora o competi<strong>do</strong>r mais bem-afortuna<strong>do</strong>.<br />
Com isto me despedi dele, que ficou por extremos apaixona<strong>do</strong> de ver<br />
minha resolução tão delibera<strong>da</strong>, tratan<strong>do</strong>-me <strong>da</strong>í em diante com desabrimento<br />
e aspecto colérico e vingativo, que em mim igual correspondência achava,<br />
como em peito invejoso de sua felici<strong>da</strong>de, opositor manifesto de sua ventura.<br />
A principal causa que dão os historia<strong>do</strong>res à contínua discórdia e<br />
repugnância que houve entre os <strong>do</strong>us famosos atenienses Temístocles e<br />
Aristides foi haverem si<strong>do</strong> ambos juntamente opositores na pertensão de amor<br />
de uma fermosa <strong>do</strong>nzela <strong>da</strong> ilha de Seio, por quem igualmente se desvelaram;<br />
e assim não é muito que haven<strong>do</strong> desse dia em diante tão manifesta oposição<br />
entre mim e Frederico na pertensão de Lisar<strong>da</strong>, conseguintemente houvesse<br />
tanta desunião nas vontades, que depois ocasionou os infortúnios que ouvireis.<br />
Perseverei na empresa, porém sem esperança; arrisquei-me aos<br />
maiores perigos, porém sem proveito; apurei-me nas finezas mais amantes,<br />
mas sem galardão: pensão <strong>do</strong>s pouco mimosos <strong>da</strong> ventura que com obrarem<br />
tanto, na<strong>da</strong> se lhe agradece; e ven<strong>do</strong> que nem finezas nem desvelos eram<br />
bastantes a conseguir melhora<strong>da</strong> sorte em ser favoreci<strong>do</strong>, como se alguma<br />
antipatia ou contrarie<strong>da</strong>de natural entre mim e Lisar<strong>da</strong> se desse, determinei de<br />
experimentar se era bastante a astúcia para achar nela melhor patrocínio.<br />
Era D. Sancho meu particular amigo, haven<strong>do</strong>-nos cria<strong>do</strong> ambos em<br />
Salamanca e cursa<strong>do</strong> seus estu<strong>do</strong>s (como já ouvistes), e como nele tinha tanta<br />
confiança, leva<strong>do</strong> <strong>do</strong>s desejos grandes de ver a Frederico deste trono, em que<br />
tão seguro seu amor estava, despoja<strong>do</strong>, pedi a D. Sancho quisesse ser fingi<strong>do</strong><br />
amante de Lisar<strong>da</strong>, para ver se a<strong>caso</strong> achan<strong>do</strong> nela, por forasteiro, mais<br />
venturoso abrigo, podia desapossar de seu coração o amor que para com<br />
Frederico mostrava viver tão firme.<br />
- Porventura (lhe disse eu) o amor não é batalha, a afeição não é<br />
perpétua guerra? E na milícia os enganos se chamam astúcias, e não somente
188 Padre Mateus Ribeiro<br />
são usa<strong>do</strong>s, mas para vencer aos inimigos permiti<strong>do</strong>s. Se as fraudes na guerra<br />
se intitulam estratagemas e os enganos cila<strong>da</strong>s, de que usaram tantos famosos<br />
capitães que teve o mun<strong>do</strong>, que maravilha é que nos combates de amor deles<br />
use um desgraça<strong>do</strong> para arruinar a segurança de um venturoso?<br />
Assim persuadia, não a razão que faltava, mas desejos que, cegos como<br />
amantes, o mesmo perigo a que se expunham não viam. Escusava-se D.<br />
Sancho, ou fosse a escusa cautela, ou já receio; porém tanto o importunou<br />
meu sentimento que tomou a seu cargo to<strong>da</strong> a ocasião que originou meu <strong>da</strong>no.<br />
Quantas vezes com rogos traz um desditoso a casa seus infortúnios! Dito foi <strong>do</strong><br />
sábio Péricles Ateniense que os amigos não haviam de exceder os limites <strong>da</strong>s<br />
aras, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a entender que não haviam de condecender senão a petições<br />
justas: isto digo porque se D. Sancho não admitira minhas persuasões<br />
apaixona<strong>da</strong>s, não me vira agora em tantas calami<strong>da</strong>des ver<strong>da</strong>deiras.<br />
Tratou ele enfim à minha instância de solicitar e pertender Lisar<strong>da</strong> com<br />
to<strong>da</strong>s as veras e com segre<strong>do</strong> possível; e como era de gentil presença, aviso<br />
grande, não menos na prosa que no verso, com outras muitas partes, e<br />
sobretu<strong>do</strong> forasteiro, em to<strong>da</strong>s as partes e esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> mais bem vistos que<br />
os naturais, ele em pouco adquiriu tanta privança no amor de Lisar<strong>da</strong> que<br />
excedeu os limites <strong>do</strong> que eu pertendia, chegan<strong>do</strong> a tantos extremos por amá-<br />
lo que Frederico se viu sem alcançar a causa (tal era o segre<strong>do</strong>) quasi de to<strong>do</strong><br />
desfavoreci<strong>do</strong> e de sua firmeza despoja<strong>do</strong>.<br />
Perigo foi sempre de quem faz firmeza segura em coração humano, e<br />
mais de mulher, experimentar mu<strong>da</strong>nças no tempo em que lhe sejam mais<br />
custosas, como sucedeu a Frederico que ten<strong>do</strong>-me a mim por ocasião<br />
manifesta <strong>do</strong>s disfavores com que Lisar<strong>da</strong> o amava e <strong>da</strong>s ânsias que de novo<br />
sentia, com os ciúmes que o atormentavam tratou de tomar vingança cruel de<br />
mim, que imaginava era a total causa <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça que via. A que tiranias não<br />
obrigaram excessos de amor! Do romano Catilina se conta que o chegaram os<br />
amores de Aurélia Orestilla, fermosa romana, a tal engano que ven<strong>do</strong> o muito<br />
que ela escusava ser sua esposa, por causa de um filho pequeno que Catilina<br />
tinha, ele o matou com suas próprias mãos para conseguir o casamento que<br />
apetecia. Se a tal cruel<strong>da</strong>de incitam desvelos de amor a quem deles se cativa,<br />
se não faz discursos mais pia<strong>do</strong>sos um coração de amor senhorea<strong>do</strong> e<br />
estimula<strong>do</strong> <strong>do</strong> veneno de ciúmes, não será difícil de crer que intentasse
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 189<br />
Frederico, sen<strong>do</strong> meu irmão, tirar-me a vi<strong>da</strong>, precipita<strong>do</strong> a acção mais<br />
desumana.<br />
Jamais em navegações de amor há bonança de to<strong>do</strong> segura para quem<br />
navega contra a ventura, como eu antes derrota<strong>do</strong> que navegante me via: pois<br />
se o ser Frederico favoreci<strong>do</strong> me desgostava, agora o conhecer em Dom<br />
Sancho tanta felici<strong>da</strong>de me entristecia; ver a meu irmão despoja<strong>do</strong> <strong>do</strong>s favores<br />
como a invejoso alegrava; considerar Dom Sancho tão bonançoso como cioso<br />
sentia; e assim por procurar tirar <strong>da</strong> posse um, me molestava já <strong>da</strong> ventura o<br />
outro. E assim pedi encareci<strong>da</strong>mente a Dom Sancho que como amigo<br />
desistisse de mais solicitar a Lisar<strong>da</strong>, pois o intento que pertendi estava<br />
consegui<strong>do</strong>. Tinha ele o ânimo cauteloso, sabia dissimular nos exteriores os<br />
afectos <strong>da</strong> alma, e assim com muita facili<strong>da</strong>de respondeu que obedeceria a<br />
meu gosto. Porém secretamente tinha já trata<strong>do</strong> com Lisar<strong>da</strong>, com palavra de<br />
esposo, de a levar a Salamanca à casa de seu pai; e ela, que antes o a<strong>do</strong>rava<br />
que queria (encarecimento com que o amor se exagera), a maiores perigos se<br />
expusera por segui-lo: à Cítia mais fria, à Líbia mais ardente enten<strong>do</strong> se<br />
desterrara por acompanhá-lo.<br />
Procurava secretamente Frederico ocasião oportuna para de mim<br />
vingar-se; buscava Dom Sancho o silêncio mais oculto para partir-se; eu, que<br />
nenhum destes intentos alcançava, descui<strong>da</strong><strong>do</strong> de temores as mais <strong>da</strong>s noites<br />
saía até à quinta de Lisar<strong>da</strong>, que duas milhas distante de Madrid estava. Em<br />
uma destas noites a que o maior escuro de rebuço servia, quan<strong>do</strong> as<br />
sentinelas de tantos exércitos de estrelas velavam com meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s,<br />
descobri que de uma porta que no muro havia vultos saíam a tempo que o<br />
maior silêncio ocasionava atrevimentos semelhantes; é muitas vezes o coração<br />
presságio <strong>do</strong> que teme, talvez adivinha o que receia, como nesta ocasião se<br />
viu, porque queren<strong>do</strong> reconhecer quem eram os que com o manto <strong>da</strong> noite<br />
queriam assegurar esta amorosa fugi<strong>da</strong>, a poucos passos, que aligeirei em seu<br />
seguimento, ouvi a voz de Lisar<strong>da</strong>, cujos ecos de sorte suspenderam meus<br />
senti<strong>do</strong>s que ou ilusão de fantasia, ou engano <strong>do</strong> próprio conhecimento se me<br />
representava. Porém se amor e sem-razões obrigam a falar os mu<strong>do</strong>s, como<br />
<strong>do</strong> amor se viu em Achis, filho d'el-rei de Lídia, Cresso, como referem Solino e<br />
Aulo Gélio, o qual ven<strong>do</strong> seu pai sentencia<strong>do</strong> à morte por man<strong>da</strong><strong>do</strong> de Ciro,<br />
monarca de Ásia, sen<strong>do</strong> até esse tempo mu<strong>do</strong> de nacimento, a força <strong>do</strong> amor
190 Padre Mateus Ribeiro<br />
lhe rompeu o impedimento <strong>da</strong> voz para pedir-lhe a vi<strong>da</strong>. Da sem-razão se<br />
manifestou a força em Egles, famoso luta<strong>do</strong>r de Samo, que, negan<strong>do</strong>-se-lhe<br />
em uma luta a coroa e prémio que ganha<strong>do</strong> justamente tinha, o sentimento<br />
grande <strong>da</strong> injustiça e sem-razão que com ele usavam lhe facilitou a voz para<br />
queixar-se, sen<strong>do</strong> de nacimento mu<strong>do</strong>, como refere Valério Máximo. Se pois<br />
sem-razões e amor rompem o silêncio aos próprios mu<strong>do</strong>s, não era maravilha<br />
que, suposto que a admiração <strong>do</strong>s ecos <strong>da</strong> voz de Lisar<strong>da</strong> em tal esta<strong>do</strong> me<br />
emudecesse, a força <strong>do</strong> amor e sem-razão que igualmente via rompesse o<br />
silêncio para queixar-me. Assim rebentan<strong>do</strong> em meu peito o coração de pena,<br />
turban<strong>do</strong>-me a cólera, não sei se em parte a voz, se o movimento,<br />
atravessan<strong>do</strong> o caminho a minha fugitiva ingrata, arrancan<strong>do</strong> a espa<strong>da</strong> disse<br />
desta sorte:<br />
- Aonde, desconheci<strong>da</strong> Lisar<strong>da</strong>, te leva esse inimigo de meu descanso?<br />
Que afeição te obriga, que paixão te incita, que amor te move a com tanto<br />
discrédito de tua fama, dispêndio de tua honra e dislustre de teu sangue,<br />
seguires a quem porventura te engana, fugin<strong>do</strong> a quem melhor te merece?<br />
Desmaiou Lisar<strong>da</strong> com o sobressalto e caiu desanima<strong>da</strong> em terra. Viu-se Dom<br />
Sancho suspenso, que um não imagina<strong>do</strong> sucesso não deixa de to<strong>do</strong> o<br />
discurso livre para repentinamente deliberar-se: querer encobrir-se não era<br />
possível, manifestar-se em tal ocasião, arrisca<strong>do</strong>; importava-lhe defender-se de<br />
mim, que o acometia, desamparar a Lisar<strong>da</strong> lhe parecia rigoroso. A que<br />
inconvenientes se aventura um desejo? E quantas vezes discursos mal<br />
afortuna<strong>do</strong>s aprovam resoluções temerárias que o tempo e a fortuna<br />
disfavorecem? Enfim, de tantos perigos o menor escolhen<strong>do</strong>, se descobriu e<br />
me disse lhe aju<strong>da</strong>sse a socorrer Lisar<strong>da</strong> naquele paracismo, e que logo me<br />
diria a causa desta saí<strong>da</strong>, com que porventura teria mais razão de<br />
corresponder-lhe agradeci<strong>do</strong>, que mostrar-me sem razão antes de ouvi-lo<br />
agrava<strong>do</strong>. Suspendi com estas palavras o furor, que uma resposta bran<strong>da</strong> e<br />
primorosa é freio <strong>da</strong> ira, por ser a afabili<strong>da</strong>de e cortesia her<strong>da</strong>de que sem custo<br />
nem dispêndio rende muito. E como a quem muito deseja uma cousa é fácil de<br />
persuadir possíveis to<strong>do</strong>s os meios de consegui-la, o dizer-me Dom Sancho<br />
que tinha que agradecer-lhe neste que à primeira vista avaliava engano, me<br />
deu novas esperanças de poder conseguir algum fim venturoso. Acudimos a<br />
Lisar<strong>da</strong> que desmaia<strong>da</strong> estava e tornan<strong>do</strong> em seu acor<strong>do</strong> nos pediu
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 191<br />
encareci<strong>da</strong>mente a deixássemos tornar a sua casa, antes que sua falta se<br />
achasse menos; e parecen<strong>do</strong> acerta<strong>do</strong> o conselho, pela mesma porta por onde<br />
saí<strong>do</strong> tinha, entrou nela com tanto sobressalto que apenas falar podia. Eu, que<br />
em companhia de Dom Sancho dela nos ausentávamos, com notáveis desejos<br />
de saber os segre<strong>do</strong>s desta fugi<strong>da</strong>, senti entre o escuro alguns passos não em<br />
muita distância, e queren<strong>do</strong> conhecer Dom Sancho a causa o derribaram em<br />
terra as balas de uma reforça<strong>da</strong> clavina que disparan<strong>do</strong> lhe abriu no peito tão<br />
dilata<strong>da</strong>s portas que em um instante por elas saiu a vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> malogra<strong>do</strong> moço,<br />
que em agraço cortou a morte quan<strong>do</strong> a primavera de seus anos florecer<br />
queria.<br />
Tal foi meu sentimento que a poder encarecê-lo com palavras não seria<br />
sua eficácia tão grande como mostra o silêncio. Porém leva<strong>do</strong> <strong>da</strong> <strong>do</strong>r e paixão<br />
de tal sucesso, tirei uma pistola, que por desdita levava, e não sen<strong>do</strong> bastante<br />
o escuro para errar o ponto, porque o dirigia sua desgraça e a minha,<br />
dispon<strong>do</strong>-a, caiu em terra o sem ventura Frederico, meu irmão, que sem o<br />
conhecer perdeu às mãos de seu mesmo irmão a vi<strong>da</strong>, que quan<strong>do</strong> as<br />
desgraças se avezinham não sabem vir desacompanha<strong>da</strong>s, mas to<strong>da</strong>s juntas.<br />
Conheci que era ele pelas vozes com que pedia confissão; porém era o sítio<br />
tão deserto, as horas tão mu<strong>da</strong>s e chegava-se-lhe a morte com passos tão<br />
ligeiros que não pôde conseguir efeito seu desejo. Cheguei-me a ele<br />
desalenta<strong>do</strong>, e toman<strong>do</strong>-o em meus braços, absorto no sentimento, foram as<br />
lágrimas muitas prelúdio <strong>da</strong>s palavras que eram poucas; ele que me conheceu,<br />
não somente por irmão, mas por homici<strong>da</strong>, e saben<strong>do</strong> como Dom Sancho<br />
ficava morto, me pediu perdão <strong>do</strong> intento que teve de <strong>da</strong>r-me a morte cui<strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
que a mim atirava, e conhecen<strong>do</strong> ser castigo de sua desumani<strong>da</strong>de a morte<br />
com que já lutava nos últimos arrancos, espirou em meus braços.<br />
Já a este tempo alguma gente assim <strong>da</strong> quinta de Lisar<strong>da</strong>, como de<br />
outro casal que distante estava, vinha acudin<strong>do</strong>, e eu que não ousava achar-<br />
me presente, por não ser avalia<strong>do</strong> por fratrici<strong>da</strong>, tratei de ausentar-me antes<br />
que conheci<strong>do</strong> fosse. Porém que importa o rebuço <strong>da</strong> noite escura quan<strong>do</strong><br />
estavam velan<strong>do</strong> os olhos de tantas estrelas testemunhan<strong>do</strong> meu delito? Isto<br />
digo porque não faltou quem me conhecesse e de minha fugi<strong>da</strong> em tal tragédia<br />
ser eu o mata<strong>do</strong>r certificasse. Foram logo os mortos conheci<strong>do</strong>s, levan<strong>do</strong>-se a<br />
meu pai a lastimosa nova, que acudin<strong>do</strong> com um alcaide de corte ao lugar <strong>do</strong>
192 Padre Mateus Ribeiro<br />
delito, como já tivesse notícia <strong>da</strong>s pretensões de Frederico para com Lisar<strong>da</strong>,<br />
fez que ela e sua mãe viessem presas a Madrid com boa guar<strong>da</strong>, por ser o<br />
<strong>caso</strong> tão grave e de pessoa poderosa. Vieram os mortos para serem<br />
sepulta<strong>do</strong>s na corte, aonde o <strong>caso</strong> começou a <strong>da</strong>r matéria à varie<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s<br />
juízos que sobre ele ca<strong>da</strong> um formava; porém então esteve a admiração mais<br />
no auge de seus espantos, quan<strong>do</strong> tiran<strong>do</strong>-se a devassa me acharam culpa<strong>do</strong><br />
por homici<strong>da</strong> nela, atribuin<strong>do</strong>-se-me uma e outra morte.<br />
Qual me avaliava com Rómulo quan<strong>do</strong> matou a Remo; qual com o tirano<br />
António quan<strong>do</strong> deu a aleivosa morte a seu irmão Geras por ficar só com o<br />
romano império; quem me fazia digno <strong>do</strong> maior castigo; quem me julgava<br />
merece<strong>do</strong>r <strong>da</strong> mais rigorosa pena; finalmente o <strong>caso</strong> parecia tão atroz a quem<br />
os segre<strong>do</strong>s dele não alcançava que por muito que dissessem, tu<strong>do</strong> era pouco.<br />
Tal foi em meu pai a eficácia <strong>da</strong> <strong>do</strong>r e sentimento, ven<strong>do</strong> não somente ao filho<br />
morga<strong>do</strong> e sucessor de seu esta<strong>do</strong> de tal sorte morto, mas juntamente pela<br />
devassa que se continuava entenden<strong>do</strong> haver eu si<strong>do</strong> o fratrici<strong>da</strong>, que cain<strong>do</strong><br />
em cama com um letargo profun<strong>do</strong>, ao rigor de tristezas em breves dias<br />
acabou a vi<strong>da</strong>. An<strong>da</strong>va eu a este tempo, desde a noite <strong>do</strong> sucesso, na própria<br />
vila de Madrid homizia<strong>do</strong>, que as cortes populosas são algumas vezes retiro<br />
seguro a quem sabe acautelar-se, como então fazia, não tanto por recear a<br />
morte, que as ânsias que sentia eram tais que em parte ficaria sen<strong>do</strong> limite de<br />
minhas penas, fim de meus males; mas estava tão vivo em mim o amor de<br />
Lisar<strong>da</strong>, aquela inocente prisioneira que tinha cativa minha liber<strong>da</strong>de, que<br />
desejos de poder remediá-la e as esperanças de ain<strong>da</strong> algum dia ser possível<br />
chegar a merecê-la, serviam de consolação às tristezas que me combatiam.<br />
Esta esperança aliviava meu grande sentimento, que por isso o sábio Bias<br />
chamou à esperança <strong>do</strong>ce, como refere Diógenes, e o poeta Euripides lhe dá o<br />
título de manjar de desterra<strong>do</strong>s.<br />
Neste desejo se entretinha minha tristeza; porém como era chega<strong>do</strong> o<br />
tempo de não me ficar nem esse refúgio, que entre tantas calami<strong>da</strong>des divertia<br />
as estimações em que vivia, sucedeu que Lisar<strong>da</strong> atormenta<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />
imaginações contínuas de se ver em tal esta<strong>do</strong>, morto tão desestra<strong>da</strong>mente<br />
Dom Sancho, que lhe tinha <strong>da</strong><strong>do</strong> palavra de esposo, e por cujo amor ela se<br />
arriscara a tantos perigos, sen<strong>do</strong> verdugo de sua vi<strong>da</strong> a perpétua lembrança de<br />
sua morte, e juntamente ven<strong>do</strong>-se aprisiona<strong>da</strong> sem culpa, infama<strong>da</strong> sem
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causa, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> sua infelici<strong>da</strong>de matéria ao vulgo para historiarem seus discursos<br />
razões de seu discrédito, veio a cair em tão mortal enfermi<strong>da</strong>de que morreu em<br />
pouco tempo, desaniman<strong>do</strong> a gala <strong>da</strong> maior fermosura que possuía Madrid em<br />
tão breves dias.<br />
A trágica nova de sua morte deu último fim a minhas malogra<strong>da</strong>s<br />
esperanças, abriu os olhos a meu a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong> sentimento, deu vivas cores às<br />
mortas sombras de meu delito. Aqui foi maravilha não me despenhar a <strong>do</strong>r a<br />
algum desespera<strong>do</strong> intento, consideran<strong>do</strong>-me causa de tantos males: pois de<br />
meu inconsidera<strong>do</strong> amor, que quis fazer violência à ventura e contrastar a<br />
sorte, naceu tão lamentável tragédia, tão irreparável <strong>da</strong>no. Eu fui a ocasião de<br />
tantas mortes, o fabrica<strong>do</strong>r de tantos infortúnios, deixan<strong>do</strong>-me aconselhar de<br />
meus próprios apetites à vista de tão manifestos desenganos; agora conheço o<br />
mal, quan<strong>do</strong> não tem reparo; enten<strong>do</strong> os perigos, quan<strong>do</strong> não admitem<br />
remédio; alcanço os desvios, quan<strong>do</strong> não há lugar de evitar os <strong>da</strong>nos.<br />
Ultimamente, por <strong>da</strong>r fim à narração que tanto me atormenta, saí <strong>da</strong><br />
corte sem temer encontros que, como já a vi<strong>da</strong> me aborrecia, não me<br />
acovar<strong>da</strong>vam temores, nem receios <strong>da</strong> morte; e deixan<strong>do</strong> as galas que trajava,<br />
vesti<strong>do</strong> neste saco pobre em que me vedes, me dispus a acabar o restante <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> em abstinência e solidão, não queren<strong>do</strong> admitir companhia, nem ser visto<br />
de quem possa conhecer-me; tal é a confusão em que me pôs o sentimento de<br />
minhas culpas que deram ocasião a tantos males. Minha habitação é aonde a<br />
noite me encontra, <strong>do</strong>micílio as covas <strong>do</strong>s montes ou a espessura <strong>do</strong>s vales,<br />
companhia o sentimento que jamais me deixa, alívio as lágrimas, que outro não<br />
procuro. Nem espereis, senhor, que vos ouça, por mais que intenteis consolar-<br />
me; que quem já como eu vivo tão desengana<strong>do</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, tão costuma<strong>do</strong> às<br />
tristezas, tão escan<strong>da</strong>liza<strong>do</strong> <strong>da</strong>s loucuras <strong>do</strong> amor, <strong>da</strong>s fermosuras <strong>da</strong> terra, é<br />
perder tempo querer <strong>da</strong>r-lhe alívio em males que não podem admitir remédio.<br />
E dizen<strong>do</strong> estas ou semelhantes palavras, se ausentou de mim com tal<br />
ligeireza que ain<strong>da</strong> que quisera <strong>da</strong>r-lhe alcance, me parece ficaria bal<strong>da</strong><strong>do</strong> o<br />
seguimento.<br />
- Notável sucesso foi esse (disse o Ermitão), que se to<strong>do</strong>s os<br />
desengana<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s vai<strong>da</strong>des <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> lhe voltassem as costas, como esse<br />
discreto espanhol tinha feito, mais ocupa<strong>da</strong>s estariam as serras e mais<br />
acompanha<strong>do</strong>s os bosques de arrependi<strong>do</strong>s que as ci<strong>da</strong>des povoa<strong>da</strong>s de
194 Padre Mateus Ribeiro<br />
engana<strong>do</strong>s. Que bem ria Demócrito <strong>do</strong>s que an<strong>da</strong>vam anhelan<strong>do</strong> suas lisonjas!<br />
E com quanta razão chorava Heraclito suas misérias, ven<strong>do</strong> tantas tragédias<br />
ver<strong>da</strong>deiras sucedi<strong>da</strong>s no mun<strong>do</strong> nas pertensões de tantas venturas e glórias<br />
imagina<strong>da</strong>s! Desenganou-se Diógenes de seu pouco fun<strong>da</strong>mento quan<strong>do</strong>, não<br />
queren<strong>do</strong> cousa alguma <strong>do</strong>s príncipes <strong>da</strong> terra, louvava a tina que de mora<strong>da</strong><br />
lhe servia, dizen<strong>do</strong> que nem os monarcas mais poderosos tinham habitação<br />
mais acomo<strong>da</strong><strong>da</strong> a to<strong>do</strong>s os tempos <strong>do</strong> ano, pois no Verão a virava para o<br />
norte e no Inverno para o sul; a voltava contra os ventos nas tempestades e<br />
para o sol no tempo mais desabri<strong>do</strong> e frio; e com não desejar na<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> se<br />
tinha por mais feliz que o grande Alexandre.<br />
- Bem pudera eu (respondeu o Peregrino), à vista de meu sentimento<br />
viver igualmente desengana<strong>do</strong> e ter a solidão por companhia mais segura que<br />
as amizades <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em que experimentei tantos enganos: não porque<br />
careça o mun<strong>do</strong> de amigos ver<strong>da</strong>deiros, mas porque há hoje no mun<strong>do</strong> tantos<br />
fingi<strong>do</strong>s. Lá conta Marco Túlio que o soberbo Tarquino, ven<strong>do</strong>-se desterra<strong>do</strong> de<br />
Roma, dissera que então conhecera os amigos ver<strong>da</strong>deiros, quan<strong>do</strong> estava em<br />
esta<strong>do</strong> que não podia gratificar-lhes sua leal<strong>da</strong>de. Muitos teria enquanto rei e<br />
poderoso, mas a mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> sua ventura lhe manifestou quais eram os<br />
ver<strong>da</strong>deiros.<br />
Enfim, tornan<strong>do</strong> a continuar minha história, senti<strong>do</strong> <strong>da</strong> que o espanhol<br />
referi<strong>do</strong> tinha, mas julgan<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> por maiores meus infortúnios, ou julgasse<br />
suborna<strong>da</strong> <strong>do</strong>s sentimentos, ou seja natural avaliar ca<strong>da</strong> qual sua pena por<br />
mais insofrível, pensativo saí <strong>da</strong> espessura <strong>do</strong> bosque a prosseguir meu<br />
caminho, não distraí<strong>do</strong> <strong>do</strong>s desejos <strong>da</strong> vingança que antes me derrotava que<br />
guiava. A ca<strong>da</strong> pessoa a imaginação me enganava: especulava os bosques,<br />
subia os montes, atravessava serras, imaginan<strong>do</strong> que mais propriamente se<br />
fiariam meus ofensores de lugares solitários. E como meu falso amigo era<br />
natural de Espanha, e a lembrança <strong>da</strong> pátria (como diz Tito 253 ) é <strong>do</strong>ce a quem<br />
an<strong>da</strong> ausente, atrain<strong>do</strong> com sua memória aos que desterra<strong>do</strong>s dela em reinos<br />
distantes vivem, como a pequena ilha de ítaca, pátria <strong>do</strong> grego Ulisses, tão<br />
afectuosamente por ele chamava que lhe fazia avaliar em pouco os muitos<br />
reinos e províncias por onde navegava e as ci<strong>da</strong>des que edificava, não se<br />
Livius, Lib. 5. Decad. 1.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 195<br />
satisfazen<strong>do</strong> de ficar de mora<strong>da</strong> em parte alguma, parecia-me que sem dúvi<strong>da</strong><br />
em Espanha havia de encontrar os objectos de minha vingança, não <strong>da</strong>quela<br />
mais generosa de que fala Diógenes, qual é per<strong>do</strong>ar aos inimigos, mas <strong>da</strong>quela<br />
vingança que serve a culpa, como diz S. Cipriano, qual então minha paixão<br />
procurava.<br />
Assim discorri muito tempo as principais ci<strong>da</strong>des, vilas e lugares <strong>da</strong>quela<br />
monarquia, e sucedeu que um dia passan<strong>do</strong> de Cui<strong>da</strong>d-Real para Cór<strong>do</strong>va,<br />
junto às fragosas serranias e montanhas ásperas de Serra Morena, a tempo<br />
que o sol subia ao ponto mais levanta<strong>do</strong> <strong>do</strong> hemisférico, sen<strong>do</strong> o tempo no<br />
coração <strong>do</strong> Estio, ouvi uma voz de mulher que cantava tão sau<strong>do</strong>sa e<br />
senti<strong>da</strong>mente que pudera não digo eu obrigar-me a suspender o caminho que<br />
levava, como fiz, porém persuadir pudera a suavi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> voz, a <strong>do</strong>çura <strong>do</strong><br />
canto, discrição e sentimento <strong>da</strong> letra aos maiores excessos.<br />
Notáveis são, sem dúvi<strong>da</strong>, os poderes <strong>da</strong> música: dela disse<br />
Aristóteles 254 que aliviava as paixões, que suavizava as penas, parecer que<br />
aprovou o grande P. S. Agostinho 255 , chaman<strong>do</strong>-lhe sossego <strong>da</strong> alma.<br />
Homero 256 disse que Júpiter assistia aos que cantavam com lhes comunicar a<br />
suavi<strong>da</strong>de e a poesia. Nem me admiro o que de Arion escrevem muitos<br />
autores, que lhe granjeou a suavi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> voz com que na nau cantava, qual<br />
cisne as exéquias de sua vezinha morte, ao som <strong>da</strong> cítara: lhe granjeou, digo, a<br />
pie<strong>da</strong>de nos peixes, que lhe negavam os homens, trazen<strong>do</strong>-o um golfinho salvo<br />
a terra na liteira de suas escamosas espal<strong>da</strong>s, quan<strong>do</strong> os navegantes coríntios<br />
queriam sepultá-lo no profun<strong>do</strong> <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s.<br />
Foi antigamente em Grécia a música tão preza<strong>da</strong> que Sócrates começou<br />
a aprendê-la sen<strong>do</strong> já ancião, como referem Platão 257 e Cícero 258 , tratan<strong>do</strong><br />
porventura Sócrates com isto de evitar a censura que se deu ao insigne<br />
Temístocles por não tocar a lira em um convite em que se achara. Do<br />
empera<strong>do</strong>r Nero se conta ser à música tão afeiçoa<strong>do</strong> e prezar-se tanto <strong>da</strong><br />
Arist., Politic. 8.<br />
D. Aug., Lib. 1. Contra Julian.<br />
Homer., Odiss. Lib. 1.<br />
Plato, in Enchir.<br />
Cic, Epist. ad Last. Iib.9. tamil.
196 Padre Mateus Ribeiro<br />
suavi<strong>da</strong>de de sua voz que na noite antecedente à sua morte, entre as queixas<br />
que <strong>da</strong> fortuna <strong>da</strong>va era a principal que houvesse de morrer tão malogra<strong>do</strong>,<br />
não tão soberano monarca, porém tão insigne cantor. E admira-me considerar<br />
o pouco que a música moderou suas tiranias, sen<strong>do</strong> que Platão e Aristóteles 259<br />
tiveram para si que a música era reforma<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s costumes; opinião que<br />
seguiram Macróbio e Galeno, referin<strong>do</strong> a facili<strong>da</strong>de com que um famoso<br />
músico curava os desordena<strong>do</strong>s apetites e furores de um mancebo pouco<br />
modesto em seus costumes. De Agamemnon contam Ateneu e Homero que<br />
partin<strong>do</strong>-se para a guerra de Tróia deixara em guar<strong>da</strong> <strong>da</strong> casti<strong>da</strong>de de<br />
Clitemnestra, sua esposa, um insigne músico que cantan<strong>do</strong> ao som <strong>da</strong> cítara<br />
os louvores <strong>da</strong> casti<strong>da</strong>de e leal<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s esposas, com a <strong>do</strong>çura <strong>da</strong> voz, com a<br />
suavi<strong>da</strong>de e melodia <strong>do</strong> canto de tal mo<strong>do</strong> conservou nela o amor e fideli<strong>da</strong>de<br />
para com seu esposo que foi necessário a Egistro tirar primeiro ao músico a<br />
vi<strong>da</strong>, [para] que pudesse lograr os amorosos intentos que por Clitemnestra a<br />
tantos excessos o conduziam.<br />
Deixo de referir os maravilhosos efeitos que <strong>da</strong> música de Orfeu referem<br />
os autores e poetas; o certo seja que a suavi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> música é <strong>do</strong>m <strong>do</strong> Céu,<br />
como disse o grande Agostinho, sen<strong>do</strong> suspensão <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s e ain<strong>da</strong> <strong>do</strong>s<br />
mais penosos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, ten<strong>do</strong> eficácia natural para mover a brandura aos<br />
corações mais severos, poderosa para aliviar as penas ain<strong>da</strong> aos ânimos mais<br />
aflitos, como em mim se verificou, a quem a melodia <strong>da</strong> voz, a <strong>do</strong>çura <strong>do</strong>s<br />
acentos, a discrição <strong>da</strong> letra e sobretu<strong>do</strong> sen<strong>do</strong> a que cantava mulher,<br />
embargou a jorna<strong>da</strong>, suspendeu os passos, divertiu a ira que na perpétua<br />
memória de meus agravos me acompanhava, procuran<strong>do</strong> de saber quem seria<br />
esta terrestre sereia que tanto meus sentimentos atraía. Apeei-me <strong>do</strong> cavalo<br />
que deixei ata<strong>do</strong> ao tronco de uma árvore e subin<strong>do</strong> pelo fragoso monte,<br />
servin<strong>do</strong>-me de roteiro que seguia os ecos <strong>da</strong> voz, descobri entre a espessura<br />
<strong>do</strong> monte uma moça que como aurora de lágrimas chorava, cantan<strong>do</strong> seus<br />
infortúnios.<br />
Estava pobremente vesti<strong>da</strong>, porém de presença e aspecto tão grave<br />
que, juntamente com sua grande fermosura, ain<strong>da</strong> em esta<strong>do</strong> tão humilde e em<br />
lugar tão indecente a seu decoro, manifestava um espírito nobre e <strong>da</strong>va<br />
Arist., Polit. 8.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 197<br />
indícios de um ânimo generoso. Turbou-se com minha vista; assegurei-a de<br />
seus temores e cortesmente lhe perguntei a ocasião de seu sentimento, que<br />
ela me disse em breves palavras: como era natural <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Sevilha, em<br />
An<strong>da</strong>luzia, órfã de pai, que fora fi<strong>da</strong>lgo principal, fican<strong>do</strong> em companhia de sua<br />
mãe viúva, no qual tempo a suavi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> voz que a fama de sua música<br />
publicava, a i<strong>da</strong>de juvenil na primavera <strong>do</strong>s anos, a fermosura e outras partes<br />
que nela havia, lhe granjearam afeições várias de muitos amantes que por<br />
esposa a procuraram, entre os quais um, a quem mais a inclinou a vontade<br />
para seu <strong>da</strong>no, foi um mancebo aragonês e, conforme ela dizia, principal, que<br />
em Sevilha forasteiro an<strong>da</strong>va, o qual com título de seu esposo (sem que sua<br />
mãe o soubesse) a roubou de casa com seu consentimento, levan<strong>do</strong><br />
juntamente as jóias e vesti<strong>do</strong>s ricos que tinha, dizen<strong>do</strong> que a levava a<br />
Saragoça, ci<strong>da</strong>de metrópoli <strong>do</strong> reino e sua pátria, aonde seus pais e morga<strong>do</strong><br />
tinha.<br />
Deu crédito a suas palavras a pouco experimenta<strong>da</strong> Eugenia (que assim<br />
se chamava) e sain<strong>do</strong> de casa de sua mãe, que o amor lhe fazia deixar,<br />
ausentan<strong>do</strong>-se de sua vista e companhia segura, que pela duvi<strong>do</strong>sa de seu<br />
amante trocava, caminhan<strong>do</strong> com ele alguma jorna<strong>da</strong>, desvian<strong>do</strong>-se sempre<br />
<strong>da</strong>s estra<strong>da</strong>s e emboscan<strong>do</strong>-se a maior parte <strong>do</strong> dia no oculto <strong>do</strong>s bosques e<br />
silvas mais espessas, chegaram a Serra Morena, cujas montanhas parece que<br />
dão atrevimento aos maiores insultos; ele, que já sobre o título de esposo, que<br />
cautelosamente tomava, tinha logra<strong>do</strong> as pren<strong>da</strong>s de sua fermosura, com<br />
ânimo bárbaro, acção indigna de peito humano quan<strong>do</strong> mais bem nasci<strong>do</strong>,<br />
despojou-a de seus ricos vesti<strong>do</strong>s e jóias, e deixan<strong>do</strong>-a naquele solitário ermo<br />
se ausentou de sua vista; castigo mereci<strong>do</strong> de sua livian<strong>da</strong>de, pois deixava a<br />
casa de sua mãe indiscretamente para seguir a um forasteiro, a quem amor a<br />
inclinou, para perder-se.<br />
Confesso que suposto que minhas aflições e agravos tanto me tinham<br />
ocupa<strong>do</strong> o ânimo, to<strong>da</strong>via à vista de narração tão lastimosa pus à parte meus<br />
sentimentos, desejan<strong>do</strong> poder tomar vingança de um engano e sem razão tão<br />
indigna de um tal sujeito. Nem deixaram meus olhos de serem provoca<strong>do</strong>s a<br />
lágrimas à vista <strong>da</strong>s muitas que seus olhos vertiam; que enfim são lágrimas o<br />
fruto <strong>da</strong>s tristeza e é desafio de sentimento vê-las em outros olhos. Procurei<br />
consolá-la; que, como diz o Séneca, não há mal tão grave, nem per<strong>da</strong> tão
198 Padre Mateus Ribeiro<br />
grande que não admita alguma consolação (senão a minha, que <strong>caso</strong>s a que<br />
se não espera remédio, mal podem admitir alívio), por ser a esperança, como<br />
diz Cícero, aquela que nas maiores adversi<strong>da</strong>des consolar costuma; e porque o<br />
lugar em que estava, além de indecente à <strong>do</strong>nzela, era arrisca<strong>do</strong> a maiores<br />
perigos pelos contínuos saltea<strong>do</strong>res que muitas vezes em Serra Morena<br />
assistem, lhe pedi encareci<strong>da</strong>mente quisesse vir em minha companhia, que eu<br />
me obrigava a levá-la a lugar seguro ou aonde ela me ordenasse. Deu-me as<br />
graças <strong>da</strong> cortesia que com ela usava e me pediu a quisesse levar a Grana<strong>da</strong>,<br />
aonde em um convento de religiosas tinha a uma sua tia, com quem intentava<br />
passar o resto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, não se atreven<strong>do</strong> a tornar a Sevilha à presença de sua<br />
mãe, nem de seus parentes. Pareceu-me intento acerta<strong>do</strong> e, pon<strong>do</strong>-a nas<br />
ancas <strong>do</strong> cavalo, prossegui o caminho para Grana<strong>da</strong>.<br />
Já o sol queria ocultar a radiante me<strong>da</strong>lha de seus cabelos, ou os vivos<br />
raios de sua <strong>do</strong>ura<strong>da</strong> madeixa, quan<strong>do</strong> ao querer passar o celebra<strong>do</strong> rio<br />
Gua<strong>da</strong>lquivir, que antigamente se chamou Bétis, tão famoso nas histórias de<br />
Espanha, que ten<strong>do</strong> seu nacimento nos campos de Montiel, junto à serra de<br />
Alçaras, depois de atravessar com sua cau<strong>da</strong>losa corrente os confins <strong>do</strong> reino<br />
de Grana<strong>da</strong> e to<strong>da</strong> a An<strong>da</strong>luzia, retratan<strong>do</strong> no cristalino espelho de suas águas<br />
a famosa ci<strong>da</strong>de de Sevilha, vem pagar alfim como rio tributo delas ao mar<br />
Mediterrâneo, junto a S. Lucar, empório bem conheci<strong>do</strong> <strong>do</strong>s navegantes dele.<br />
Sucedeu, digo, que <strong>do</strong> espesso de um sombrio bosque vizinho às suas ribeiras<br />
se ouvissem uns suspiros e gemi<strong>do</strong>s que podiam mover a compaixão a<br />
qualquer ânimo generoso que os ouvisse. Suspendeu-me o eco lastimoso a<br />
quem desejava socorrer, porém receios de deixar ou atemorizar a Eugenia com<br />
novos perigos, e em lugar solitário, me dissuadiu <strong>do</strong> intento, se ela mesma me<br />
não pedira quisesse saber quem se queixava, ou fosse que o coração como<br />
profeta natural <strong>do</strong> que teme a avisasse, ou que os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s em que seus<br />
trágicos infortúnios a tinham lho persuadissem.<br />
Entrámos pelo bosque que de copa<strong>da</strong>s árvores se formava, e seguin<strong>do</strong><br />
os ecos <strong>do</strong>s gemi<strong>do</strong>s, vimos a um mancebo de agradável presença banha<strong>do</strong><br />
em sangue, que de mortais feri<strong>da</strong>s que tinha como de copiosas fontes manava,<br />
purpurizan<strong>do</strong> a verde relva com seus matizes, o qual já com voz desalenta<strong>da</strong><br />
confissão pedia. Foi logo conheci<strong>do</strong> de Eugenia por seu ingrato amante, a qual<br />
à vista de um espectáculo tão lastimoso riscan<strong>do</strong> <strong>da</strong> memória seus agravos,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 199<br />
ven<strong>do</strong> o derrama<strong>do</strong> sangue de seu ingratamente ama<strong>do</strong> esposo,<br />
transforman<strong>do</strong> os olhos em fonte de lágrimas, lhe disse desta maneira:<br />
- Que é isto, ingrato Roberto, amante falso, esposo cruel e fementi<strong>do</strong>? É<br />
este o galardão de tua traição e o castigo mereci<strong>do</strong> de tua aleivosia com que a<br />
tão miserável esta<strong>do</strong> me trouxestes? Porém que pergunta é a minha à vista <strong>do</strong><br />
que vejo? Sen<strong>do</strong> juízos de Deus em tu<strong>do</strong> justos e acerta<strong>do</strong>s, a quem nem<br />
podem enganar nem fugir humanos discursos.<br />
Assim falou e chorou a discreta Eugenia, a quem ele, que a conheceu,<br />
com voz intercadente e fraca deu semelhante resposta:<br />
- Bem sei, ofendi<strong>da</strong> Eugenia, que a morte com que estou lutan<strong>do</strong> em<br />
tanta agonia é castigo bem mereci<strong>do</strong> de minha ingratidão, e pesa-me de não<br />
ter outra satisfação maior que <strong>da</strong>r a vossas queixas, mais que as tristes<br />
pren<strong>da</strong>s de meu derrama<strong>do</strong> sangue e a mão de esposo indigno que vos<br />
ofereço neste último trance <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Saltea<strong>do</strong>res me mataram nesta espessura<br />
e me roubaram as jóias de que vos despojou minha ingratidão e tirania; eu<br />
tenho o galardão que mereço de haver tanto agrava<strong>do</strong> a quem maiores<br />
obrigações devia. Minha pátria é Saragoça, minha família nobre, meu<br />
património rico, quan<strong>do</strong> cheguem a meus pais as trágicas novas de minha<br />
morte não faltará <strong>do</strong>nde se satisfação as dívi<strong>da</strong>s em que vos fico <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong>,<br />
somente as <strong>do</strong> amor não poderei pagar, pois no melhor me falta a vi<strong>da</strong> para<br />
satisfazê-las como desejara.<br />
Assim falou o ansia<strong>do</strong> Roberto e toman<strong>do</strong> a mão direita de Eugenia a<br />
recebeu por sua esposa, e pedin<strong>do</strong> a Deus perdão <strong>da</strong>s suas culpas espirou<br />
logo em seus braços, porque as mortais feri<strong>da</strong>s que tinha recebi<strong>do</strong> não<br />
concederam mais dilata<strong>do</strong> prazo à sua vi<strong>da</strong>. À vista deste espectáculo, a<br />
lastima<strong>da</strong> Eugenia, em quem não estavam extintas as veras com que a<br />
Roberto amava, ven<strong>do</strong> a brevi<strong>da</strong>de com que a morte tomou posse de seu<br />
malogra<strong>do</strong> esposo, rompeu em tantas lágrimas de sentimento, tantas queixas<br />
disse, tantos extremos manifestou de ver<strong>da</strong>deira amante, que podia enternecer<br />
com suas lástimas as penhas mais cruéis e desumanas, moven<strong>do</strong> a compaixão<br />
seu sentimento os olhos mais secos, os corações mais duros. Motivos foram<br />
estes maiores para <strong>do</strong>brar minhas ânsias, consideran<strong>do</strong> tantos extremos de<br />
ver<strong>da</strong>deiro amor em Eugenia para com um esposo que com tantos agravos a<br />
ofendera, e ven<strong>do</strong> tanta ingratidão e falsi<strong>da</strong>de em Teo<strong>do</strong>ra para comigo, que
200 Padre Mateus Ribeiro<br />
com tantos excessos a servi e com tantas finezas e leal<strong>da</strong>de de amor a tratei;<br />
que como os contrários mais à vista <strong>do</strong>s outros se conhecem, assim tão vários<br />
e encontra<strong>do</strong>s efeitos de minhas aflições à vista de tão vivas demonstrações de<br />
amor ver<strong>da</strong>deiro se acrescentavam.<br />
Chegou-se a noite, e porque o desanima<strong>do</strong> cadáver não ficasse naquele<br />
solitário bosque, pedi a um carreteiro o quisesse levar ao lugar mais vizinho,<br />
que enten<strong>do</strong> se chamava A<strong>da</strong>mus, aonde o levámos, e ao tempo de o<br />
amortalharem para ser sepulta<strong>do</strong> o vimos trespassa<strong>do</strong> de balas e feri<strong>da</strong>s<br />
penetrantes por muitas partes, cousa lastimosa para ser vista, e mais <strong>do</strong>s olhos<br />
de Eugenia, sua esposa, que esqueci<strong>da</strong> <strong>do</strong>s recebi<strong>do</strong>s agravos, ao espectáculo<br />
trágico <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s de seu defunto esposo, mostrava haver renasci<strong>do</strong> seu<br />
primeiro amor, não <strong>da</strong>s chamas em que a Fénix se abrasa, mas <strong>da</strong>s lágrimas<br />
que de seus olhos como de fontes corriam. Finalmente neste lugar ficou<br />
sepulta<strong>do</strong> Roberto com universal sentimento. Resolveu-se Eugenia a<br />
prosseguir seu primeiro intento, recolhen<strong>do</strong>-se em Grana<strong>da</strong> com sua tia no<br />
convento em que estava, ou para ficar nele religiosa, ou quan<strong>do</strong> o discurso <strong>do</strong><br />
tempo a outra cousa a movesse, avisar <strong>da</strong>í a sua mãe com mais decência,<br />
reputação e crédito de seu passa<strong>do</strong> atrevimento. Aprovei-lhe o parecer por<br />
acerta<strong>do</strong> e, apressan<strong>do</strong> o caminho, chegámos em poucos dias a Grana<strong>da</strong>,<br />
ci<strong>da</strong>de famosa que dá título de seu nome a to<strong>do</strong> o reino de que é cabeça,<br />
ganha<strong>da</strong> de poder <strong>do</strong>s mouros que muitos anos com notável opulência e<br />
grandeza a possuíram, pelos reis católicos de Castela, D. Fernan<strong>do</strong> e Dona<br />
Isabel. Nesta ci<strong>da</strong>de preparei de algum dinheiro que comigo levava outro traje<br />
para Eugenia mais decente que o que lhe tinha deixa<strong>do</strong> a desleal<strong>da</strong>de<br />
desumana de seu defunto esposo, porque ain<strong>da</strong> que para casa qualquer traje<br />
basta, como diz Aulo Gélio, contu<strong>do</strong> no público há-de ser o traje honesto e<br />
conveniente; sen<strong>do</strong>-o muito, como ensina S. Gregório Papa, o traje exterior<br />
assea<strong>do</strong> e grave, quan<strong>do</strong> conforme com a perfeição <strong>da</strong> alma e gravi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s<br />
costumes. Nesta conformi<strong>da</strong>de acompanhei-a ao convento, aonde <strong>da</strong><br />
abadessa e de sua tia foi recebi<strong>da</strong> com lágrimas de alegria, e ela se despediu<br />
de mim com as maiores mostras de agradecimento que o tempo permitia,<br />
mostran<strong>do</strong>-me amor como a irmão seu que fora muito ama<strong>do</strong>, em cuja conta<br />
me tinha.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 201<br />
De Grana<strong>da</strong> prossegui meu caminho, consideran<strong>do</strong> as causas de meu<br />
tão justo sentimento à vista <strong>da</strong>s lágrima que Eugenia por seu defunto esposo,<br />
para ela tão enganoso e desumano, chorava, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> em certo mo<strong>do</strong> a Roberto<br />
título de venturoso ain<strong>da</strong> em suas próprias calami<strong>da</strong>des, pois morrera tão<br />
deveras ama<strong>do</strong> de quem se via dele com tanta causa ofendi<strong>da</strong>; e ao contrário,<br />
julgan<strong>do</strong>-me a mim por desditoso em viver certifica<strong>do</strong> de ser tão deveras<br />
ofendi<strong>do</strong> de quem tinha tantas razões para não agravar-me nem ofender-me.<br />
Lá disse Quintiliano 260 que era maior sentimento sofrer afronta e vitupério <strong>do</strong><br />
que a ofensa ou golpes por mais mortais que fossem nem a ira os causasse;<br />
porque se, como ensina Aristóteles 261 , naturalmente falan<strong>do</strong> não há pessoa no<br />
mun<strong>do</strong> que em pouco se estime ou avalie, muitos podem não sentir a ofensa,<br />
porém to<strong>do</strong>s com grande extremo sentem a afronta. Que a que os homens por<br />
seus vícios e desaforos ocasionaram os manche, não é de admirar, antes mais<br />
tolerável de sofrer, pois fica sen<strong>do</strong> castigo de suas culpas e justa pena de seus<br />
delitos; porém que pela livian<strong>da</strong>de de uma mulher desleal haja de ver-se<br />
afronta<strong>do</strong> seu mari<strong>do</strong>, mal visto <strong>do</strong> povo pela culpa a que não deu causa,<br />
infama<strong>do</strong> pelo delito em que não teve culpa, abati<strong>do</strong> pelo crime em que não foi<br />
complice, é lei injusta <strong>da</strong> política erra<strong>da</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>!<br />
- Pois, senhor, (disse então o Ermitão) se conheceis o erro, porque tanto<br />
sentis o engano? Quan<strong>do</strong> pareceres <strong>do</strong> vulgo foram acerta<strong>do</strong>s? Se o grande<br />
Agostinho 262 lhe chamou erra<strong>do</strong>s e São Gregório Papa 263 intitulou ao povo<br />
in<strong>do</strong>uto e ignorante; parecer que já antigamente tinha inculca<strong>do</strong> Platão 264 ,<br />
chaman<strong>do</strong> ao povo inábil para mestre; opinião que seguiu Plutarco 265 , dizen<strong>do</strong><br />
que era necessário desagra<strong>da</strong>r aos sábios e discretos, quem ao vulgo<br />
satisfazia e agra<strong>da</strong>va. E assim essa lei erra<strong>da</strong> ou essa ignorância certa a que o<br />
mun<strong>do</strong> intitula lei de agravos nem tem lugar com os prudentes, nem pode ser<br />
segui<strong>da</strong> <strong>do</strong>s sábios; porque assim como a honra ver<strong>da</strong>deira consiste nas obras<br />
próprias, assim a infâmia própria deve consistir nos defeitos pessoais e não<br />
260 Quintil., Declam. 13.<br />
261 Arist, Rhetor. 2.<br />
262 D. Aug., Lib. 1. De Civil Dei<br />
263 D. Greg., 16. Moral.<br />
264 Plato, in Alcib.<br />
265 Plutarc, De educand. liber.
202 Padre Mateus Ribeiro<br />
alheios. Ignorantemente julga quem com nuvens alheias intenta escurecer e<br />
eclipsar luzes e resplan<strong>do</strong>res próprios. Pouco cabe<strong>da</strong>l se pode e deve fazer <strong>do</strong><br />
juízo <strong>do</strong> vulgo, que pela maior parte as cousas indiscretamente avalia, e quanto<br />
mais acelera<strong>da</strong>mente de alguém falar, tanto mais brevemente de falar cessa,<br />
que sempre a muita veloci<strong>da</strong>de no correr indício foi de muito ce<strong>do</strong> haver de<br />
parar. Aquela se deve avaliar por desgraça (quan<strong>do</strong> não fosse por afronta), que<br />
<strong>do</strong>s sábios foi escrita e <strong>do</strong>s <strong>do</strong>utos trata<strong>da</strong>, porque contra a duração <strong>do</strong>s<br />
tempos parece imortalizam perseverança. De Hiponates, insigne poeta, se<br />
conta ser tão feio e disforme no rosto que em certo mo<strong>do</strong> mais se podia julgar<br />
por monstro que por homem; e porque Antermo e Bupalo, <strong>do</strong>us escultores de<br />
seu tempo, o esculpiram em mármore por zombaria, fazen<strong>do</strong> grande ludíbrio e<br />
solenizan<strong>do</strong> com demasia<strong>do</strong>s risos sua figura, ele notavelmente ira<strong>do</strong> de tal<br />
sorte os perseguiu com a mor<strong>da</strong>z sátira de seus versos, e tão afectuosamente<br />
perseverou em vituperá-los com seus poemas em vingança, que dizem chegou<br />
um deles a enforcar-se, precipita<strong>do</strong> <strong>do</strong>s desgostos com que Hiponates lhe fez<br />
pagar sua indiscreta zombaria. E por ventura que essa seria a causa porque o<br />
grande Alexandre tanto se temia <strong>do</strong>s escritos <strong>do</strong>s sábios, <strong>da</strong>s obras <strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>utos, que mais deles se receava que <strong>do</strong>s exércitos arma<strong>do</strong>s com que em<br />
campanha combatia, ten<strong>do</strong> para si que eram poderosos com seus escritos (se<br />
o odiassem) a dislustrar as glórias que seus triunfos adquiri<strong>da</strong>s lhe tinham.<br />
Porém <strong>do</strong>s ditos <strong>do</strong> vulgo, pela maior parte ignorante, nem há porque tomar<br />
gosto, por serem indiscretos, nem há razão de sentir tanta pena, por serem<br />
seus rumores de pouca dura. É o povo símbolo <strong>da</strong> mesma inconstância, como<br />
disse Cícero: tão fácil de mu<strong>da</strong>r-se, como de persuadir-se. Exemplos de sua<br />
muita varie<strong>da</strong>de podem ser Alcibíades ateniense e Marco António romano,<br />
ambos em extremo de seus povos aclama<strong>do</strong>s e ambos com igual excesso<br />
persegui<strong>do</strong>s. Foi Alcibíades mil vezes <strong>do</strong> povo de Atenas ama<strong>do</strong> e mil vezes<br />
dele com notável ódio infama<strong>do</strong> e persegui<strong>do</strong>, até que ultimamente em Frigia<br />
foi tiranicamente morto. Marco Mânlio aclama<strong>do</strong> com vivas imortais <strong>do</strong> povo<br />
romano, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe o honroso título de capitolino por haver com notável valor<br />
defendi<strong>do</strong> o Capitólio <strong>do</strong>s franceses, quan<strong>do</strong> o tinham com astúcia militar quasi<br />
ocupa<strong>do</strong>: tão celebra<strong>do</strong> pelas grandes vitórias que tinha alcança<strong>do</strong> com seu<br />
valor, e juntamente pelos muitos benefícios que tinha feito ao povo romano, e<br />
ultimamente dele mesmo foi sentencia<strong>do</strong> à morte e precipita<strong>do</strong> <strong>da</strong> Roca
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 203<br />
Tarpeia, servin<strong>do</strong>-lhe de precipício o próprio lugar que de antes tinha si<strong>do</strong><br />
teatro de suas glórias. Assim que sen<strong>do</strong> o povo tão mudável, o vulgo<br />
ordinariamente tão ignorante, pouco <strong>caso</strong> se deve fazer de seus juízos, que<br />
muitas vezes sem causa ama e sem razão aborrece. Nem sempre o que<br />
aprova é o mais escolhi<strong>do</strong>, nem o que reprova o mais rejeita<strong>do</strong>: o parecer <strong>do</strong>s<br />
sábios é o elogio mais eficaz e o juízo <strong>do</strong> vulgo o testemunho menos firme.<br />
Pressuposto pois que <strong>da</strong> erra<strong>da</strong> opinião com que o povo costuma avaliar<br />
aos <strong>da</strong> desleal<strong>da</strong>de de suas mulheres ofendi<strong>do</strong>s se deve fazer pouco <strong>caso</strong>,<br />
como de política erra<strong>da</strong> e ignorante, não governa<strong>da</strong> por discursos <strong>da</strong><br />
prudência, disposições de leis ou ditames de sabe<strong>do</strong>ria ver<strong>da</strong>deira, senão por<br />
sua indiscrição popular e sem fun<strong>da</strong>mento; tratarei agora algumas razões que<br />
quan<strong>do</strong> não cheguem a sossegar de to<strong>do</strong> vossos desgostos, sirvam ao menos<br />
de avaliar muita parte de vosso sofrimento.<br />
Não nego que a <strong>do</strong>r de ver-se um esposo ofendi<strong>do</strong> de sua esposa seja<br />
grande aflição, penosa, áspera de sofrer, difícil de consolar, que, se como disse<br />
o Séneca 266 , não há ânimo tão agreste, nem pessoa tão rústica e humilde a<br />
quem uma ofensa não altere, um agravo não a atormente, com muito maior<br />
razão se deve sentir a ofensa causa<strong>da</strong> <strong>da</strong> pessoa de quem mais se esperava o<br />
favor, a ingratidão de quem mais se esperava o conhecimento, o agravo de<br />
quem se prometia o benefício. Porém querer fazer firmeza na maior mu<strong>da</strong>nça,<br />
intentar estabelecer a cousa mais instável, ou fica sen<strong>do</strong> desejo bal<strong>da</strong><strong>do</strong> ou<br />
empenho impossível, e assim sen<strong>do</strong> a mulher a cousa mais mudável na vi<strong>da</strong>,<br />
como disse Virgílio 267 , que firmeza se pode prometer em tanta livian<strong>da</strong>de e<br />
inconstância? Geralmente falo, as excepções não reprovo. Não puderam, na<br />
ver<strong>da</strong>de, muitos reis poderosos e monarcas soberanos isentar-se de seus<br />
agravos, e porventura que a este intento falou o Séneca quan<strong>do</strong> disse que não<br />
havia poder nem majestade, por mais soberana que fosse, que totalmente<br />
pudesse isentar-se de ser agrava<strong>da</strong> e ofendi<strong>da</strong>. Testemunhas sejam Filipe, rei<br />
de Macedónia, pai <strong>do</strong> grande Alexandre, ofendi<strong>do</strong> de sua mulher Olímpias,<br />
Ptolomeu, rei <strong>do</strong> Egipto, por Cleópatra, Menelau, rei de Esparta, por Helena,<br />
Minos, rei de Creta, por Pasifae, Agides, rei de Esparta, por Timea, o grande<br />
Sen., Epist. 47.<br />
Virgil., /Eneid. 4.
204 Padre Mateus Ribeiro<br />
Lúcio Cila, tirano de Roma, por Metela, com tanto excesso que se dilatou até<br />
Grécia a fama de seu licencioso viver. Que direi de Marco Aurélio com as<br />
livian<strong>da</strong>des de Faustina, Domiciano com Domicia, Cláudio com Messalina, aos<br />
quais a suprema coroa <strong>do</strong> império não pôde isentar de semelhantes agravos?<br />
- Estes exemplos <strong>da</strong>s desgraças destes príncipes (replicou o Peregrino)<br />
não aliviam minhas queixas, nem mitigam a <strong>do</strong>r de meu sentimento; porque<br />
desses monarcas, se foram ofendi<strong>do</strong>s, muitos o não souberam, e a ignorância<br />
<strong>da</strong>s ofensas é muita parte <strong>da</strong> ventura; outros as vingaram, e ain<strong>da</strong> que a<br />
vingança se tenha por limite <strong>do</strong> valor ou gosto de ânimo avilta<strong>do</strong>, como disse<br />
Juvenal 268 , ou sen<strong>do</strong> os desejos de vingança alegria de mal alheio, como lhe<br />
chamou o grande Agostinho 269 , to<strong>da</strong>via se não serve de remédio ao agravo<br />
recebi<strong>do</strong>, é julga<strong>da</strong> regra <strong>do</strong> vulgo por satisfação de desagravo à ofensa; e se<br />
alguns desses príncipes as souberam e não vingaram, puderam dissimular com<br />
prudência sem temores de nota, suposto que a vingança pública lhes não<br />
convinha; quanto mais que às honras <strong>do</strong>s príncipes dificultosamente se<br />
atrevem as línguas <strong>do</strong> povo, a fama parece se atemoriza de publicar-se e<br />
talvez a mesma digni<strong>da</strong>de a desmente ou avalia, quan<strong>do</strong> em to<strong>do</strong> não por<br />
falsa, ao menos por duvi<strong>do</strong>sa: porém às pessoas de humilde fortuna to<strong>da</strong>s as<br />
línguas se atrevem, logo sua fama ofendi<strong>da</strong> crédito alcança, ain<strong>da</strong> muitas<br />
vezes com mentiras que confirmam muitos e de que duvi<strong>da</strong>m poucos.<br />
Além <strong>do</strong> que em meu sentimento se dão to<strong>do</strong>s os motivos para ser<br />
julga<strong>do</strong> por sem alívio, porque <strong>da</strong>s ofensas <strong>do</strong>s outros pode a certeza duvi<strong>da</strong>r-<br />
se, porém não <strong>da</strong> minha, pois se ausentou com seu desleal amante a causa de<br />
minhas penas à vista de to<strong>da</strong> uma ci<strong>da</strong>de que o soube, que o falou, que o<br />
averiguou, e assim não acho consolação alguma a meu tormento, chegan<strong>do</strong> a<br />
tal esta<strong>do</strong> que estou forman<strong>do</strong> argumentos contra meu alívio, pois não somente<br />
houve ofensa, mas a publici<strong>da</strong>de, não somente o agravo, porém a fugi<strong>da</strong>.<br />
- E que sabeis vós, senhor, (disse o Ermitão) se essa fugi<strong>da</strong> seria em<br />
particular utili<strong>da</strong>de vossa, que porventura correria muito risco vossa vi<strong>da</strong> se ao<br />
depois de ofender-vos em secreto se não ausentara? Quantas mulheres houve<br />
no mun<strong>do</strong> que procuraram as mortes a seus mari<strong>do</strong>s depois de os ofenderem,<br />
Juv., Satyr. 14.<br />
Div. Aug., Lib. 3. qq. super Levit.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 205<br />
ou para assegurarem seu temor, ou para livremente prosseguirem sua<br />
desleal<strong>da</strong>de? Exemplos temos em Can<strong>da</strong>ules, quarto rei de Lídia, morto às<br />
punhala<strong>da</strong>s às mãos de Giges, seu maior amigo, por ordem de sua própria<br />
mulher, a rainha, que com ele depois <strong>caso</strong>u e a quem deu a coroa de seu<br />
reino; em Amintas, rei de Macedónia, a quem Eurídice, sua própria esposa,<br />
maquinou a morte; e de Filipe, pai <strong>do</strong> grande Alexandre, se suspeita que<br />
quan<strong>do</strong> Pausânias lhe tirou a vi<strong>da</strong> fosse persuadi<strong>do</strong> ou favoreci<strong>do</strong> de Olímpias,<br />
sua esposa. A inimigo que foge fazer-lhe a ponte de prata, que mais vai<br />
inimizade descoberta que amor enganoso e fingi<strong>do</strong>. Mulher que uma vez<br />
perdeu decoro devi<strong>do</strong> a seu esposo, com ofendê-lo na leal<strong>da</strong>de, sempre ficou<br />
suspeita de tirana; porque como a própria consciência com temores contínuos<br />
a inquieta, receios que os remorsos de sua própria consciência culpa<strong>da</strong> lhe<br />
causam, pensão própria de criminosos, como disse Plutarco, sen<strong>do</strong> a<br />
consciência mil testemunhas de um delito, como discretamente diz Quintiliano,<br />
ou sen<strong>do</strong> a pena mais grave <strong>da</strong>s culpas ela mesma, como escreve S. Isidro. E<br />
sen<strong>do</strong> o contínuo temor causa <strong>do</strong> ódio, não poden<strong>do</strong> ser ama<strong>do</strong> naturalmente o<br />
que é muito temi<strong>do</strong>, quem duvi<strong>da</strong> que trate de assegurar seu temor à custa <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>, cuja duração inquieta e sobressalta? A quantos, porventura, oculto<br />
veneno acelerou a morte a quem uma fugi<strong>da</strong> manifesta pudera conservar a<br />
vi<strong>da</strong>? Mais se temeram sempre desafeiçoa<strong>do</strong>s encobertos que manifestos<br />
inimigos. De ladrão <strong>do</strong>méstico não há quem se assegure, de saltea<strong>do</strong>r<br />
estranho muitos se acautelam: viver em um <strong>do</strong>micílio com inimigos é mais que<br />
guerrear em campanha com adversários, e de uma mulher desleal é o inimigo<br />
de que mais se deve acautelar e temer, antes julgo aventura que desgraça o<br />
viver de suas traições assegura<strong>do</strong>.<br />
Além disto o assistir na companhia de um mari<strong>do</strong> agrava<strong>do</strong> que o ignora,<br />
uma mulher liviana que o ofende, dá motivos ao vulgo sempre malicioso a<br />
formar juízos contra a reputação e decoro de quem menos alcança sua ofensa.<br />
Qual o faz complice no delito? Qual língua licenciosa o culpa de descui<strong>da</strong><strong>do</strong>?<br />
Qual o censura de cobarde ou indiscreto? E o que no mari<strong>do</strong> fica sen<strong>do</strong><br />
inculpável ignorância quer muitas vezes a malícia humana avaliar por<br />
dissimula<strong>do</strong> conhecimento. Porém na mulher que temerosa foge, que culpa<strong>da</strong><br />
se ausenta, não tem lugar a malícia atrevi<strong>da</strong> para impor a seu mari<strong>do</strong> censuras<br />
de seu delito, pois com fugir manifesta que o temeu e temen<strong>do</strong>-o mostra que
206 Padre Mateus Ribeiro<br />
seu agravo ignorou. Desculpa de um mari<strong>do</strong> honra<strong>do</strong> são tais fugi<strong>da</strong>s, créditos<br />
de seu valor são semelhantes temores. E assim na fugi<strong>da</strong> de uma mulher<br />
desleal assegura seu esposo a vi<strong>da</strong> e juntamente a fama. Nem tem o vulgo<br />
ignorante que culpar o não haver evita<strong>do</strong> o que não foi possível ser previsto,<br />
nem lhe pode imputar a culpa o não haver vinga<strong>do</strong> o agravo a quem o<br />
assegurar-se <strong>da</strong> vingança fez conheci<strong>do</strong>. Nem aprovo, senhor, o imaginardes<br />
que mais se atreva o vulgo a manchar a fama <strong>do</strong>s pequenos que <strong>do</strong>s grandes e<br />
poderosos; antes pelo contrário, os infortúnios <strong>do</strong>s grandes celebram as<br />
histórias antigas, as desgraças <strong>do</strong>s pequenos apenas sua pátria as sabe. Os<br />
obeliscos e torres grandes são alvo de to<strong>do</strong>s os olhos, os montes levanta<strong>do</strong>s<br />
de muito longe se divisam; porém os <strong>do</strong>micílios humildes edifica<strong>do</strong>s nos vales,<br />
ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> estão vizinhos, apenas se mostram. Os eclipses <strong>do</strong> sol to<strong>do</strong>s o<br />
contemplam, que, como disse Plutarco 270 , não podem encobrir-se defeitos ou<br />
malícia em poder grande; se alguns nas estrelas há, poucos os conhecem: as<br />
eminências maiores são objectos de to<strong>da</strong>s as notas e defeitos; não puderam as<br />
púrpuras isentar-se <strong>da</strong> fama que historiou seus descui<strong>do</strong>s, que descreveu suas<br />
vi<strong>da</strong>s; livraram-se porém deste perigo os sujeitos humildes, a quem não chegou<br />
a manchar quem se atreveu a pôr labéu nos monarcas e príncipes mais<br />
soberanos. Em vós não tem que censurar o vulgo, pois não sois culpa<strong>do</strong>, nem<br />
que perpetuar a fama, pois não sois monarca. Crimes de outrem não podem<br />
des<strong>do</strong>urar vosso nome: alheias culpas como hão-de dislustrar vossos<br />
merecimentos? Que se ain<strong>da</strong> a honra que por culpa se perde, por<br />
merecimentos depois se restaura, quan<strong>do</strong> a vossa se eclipsasse por desgraça,<br />
como seriam bastantes vossos méritos a <strong>da</strong>r-lhe novo lustre! Ser honra<strong>do</strong> com<br />
proezas alheias foi ventura sem culpa, por culpas de outrem ser ofendi<strong>do</strong> não é<br />
delito. Os vícios e desaforos não infamam a quem os ignora. Esta é opinião <strong>do</strong>s<br />
sábios 271 , <strong>do</strong>s <strong>do</strong>utos e discretos; se o vulgo outra cousa sente é erro grande e<br />
manifesta ignorância que nenhum sábio aprova nem discreto admite.<br />
- Consola<strong>do</strong> em parte (disse o Peregrino) me deixam vossas razões<br />
porque sua prudência é poderosa para persuadir e eficaz para aliviar mal tanto<br />
sem alívio, como o meu parece; porém quan<strong>do</strong> considero ser <strong>da</strong> pren<strong>da</strong> de<br />
Plut., De Sera. Numin. vindicta.<br />
Quintil., Declam. 9.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 207<br />
mim mais queri<strong>da</strong> com tanta desleal<strong>da</strong>de agrava<strong>do</strong>, e em tão breves dias de<br />
alegre ver-me de repente conduzi<strong>do</strong> a tal extremo que viva sempre triste, por<br />
mais que quero consolar-me, a <strong>do</strong>r não me deixa, o sentimento mo não<br />
permite.<br />
- Não é este o maior motivo dele (respondeu o Ermitão), porque quanto<br />
à duração <strong>da</strong>s alegrias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, maior admiração fora serem duráveis que em<br />
tão breve tempo desaparecerem. Lá disse o Séneca 272 discretamente que em<br />
tão breve tempo podia o senhor considerar a seu escravo cativo como,<br />
mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se a sorte, o servo considerar cativo a seu senhor. Brevíssima<br />
duração atribui Cícero aos contentamentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, como a água que corre,<br />
como o vento que voa. Opinião foi de Tito Lívio 273 que uma hora de duração<br />
nas delícias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> era i<strong>da</strong>de decrépita para arruinar talvez as cousas mais<br />
altivas e que se avaliavam por mais seguras. Princípio <strong>da</strong>s tristezas chamou<br />
Ovídio 274 às lágrimas cuja duração, haven<strong>do</strong> de regular-se por serem<br />
contentamentos de humana vi<strong>da</strong> e felici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra, o termo mais breve lhe<br />
fica servin<strong>do</strong> de dilata<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Que rosa quan<strong>do</strong> mais purpuriza<strong>da</strong> manifestou<br />
nas primeiras luzes <strong>da</strong> manhã, nas meninices <strong>do</strong> dia a encarna<strong>da</strong> esfera de<br />
suas aljofra<strong>da</strong>s folhas? Que flor por mais airosa começou a fazer gala de seus<br />
matizes que juntamente não seguisse as luzes <strong>do</strong> sol, quan<strong>do</strong> se esconde, com<br />
desanimar as vivas cores em que se revia? A tão pouca duração, a tão<br />
abrevia<strong>do</strong> termo mal se podem atribuir permanências quan<strong>do</strong> faltam os<br />
contentamentos passa<strong>do</strong>s que a muitos desaparecerão não logra<strong>do</strong>s.<br />
O serdes ofendi<strong>do</strong> <strong>da</strong> cousa mais ama<strong>da</strong> pensão é <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana e<br />
desengano que permite a Providência Divina, que esse í<strong>do</strong>lo de vossos<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s vos ofendesse para que desengana<strong>do</strong> vosso amor de to<strong>do</strong> o humano,<br />
somente se empregasse no Divino. E se tanto ain<strong>da</strong> vos inquietam memórias<br />
de quem vos agrava, a que precipícios vos não conduziam finezas de quem<br />
vos amara? Que por ventura extremos de afeição vos podiam ocasionar por<br />
seu respeito grande ruína. Quantos por excesso de amor se condenaram e<br />
quantos por ofensas recebi<strong>da</strong>s se não perderam? As ocultas vozes com que<br />
Séneca, Epist. 2.<br />
Tit. Liv., L. 3. Dec.<br />
Ovid., Metamor. 7.
208 Padre Mateus Ribeiro<br />
Deus nos chama para que o amemos muitas vezes são agravos <strong>do</strong> ódio com<br />
que as criaturas a quem mais amor temos nos ofendem, que muitas vezes<br />
chama Deus com sentimentos e desgostos àqueles que porventura não<br />
acudiram se com brandura e felici<strong>da</strong>des os chamasse. A côngrua vocação de<br />
seus auxílios, os meios por onde atrai, somente sua eterna Providência alcança<br />
o que nossa ignorância conhecer não pode.<br />
No que toca à vingança de vossos ofensores, que maior castigo quereis<br />
que seu mesmo delito? E na ver<strong>da</strong>de por mais fácil se julga acabar de uma vez<br />
a vi<strong>da</strong> que vê-la dilata<strong>da</strong> com perpétuos temores; que vi<strong>da</strong> com trabalhos<br />
contínuos só pode desejá-la quem com a morte não se atreve. Discretamente<br />
disse Quintiliano 275 que o temor costuma fazer as cousas ain<strong>da</strong> mais<br />
desabri<strong>da</strong>s <strong>do</strong> que eram. São Gregório Papa 276 lhe chamou testemunha<br />
perpétua <strong>do</strong>s delitos; e o grande Agostinho o intitulou verdugo <strong>da</strong> alma que<br />
continuamente serve de atormentá-la, ain<strong>da</strong> em meio de suas maiores alegrias.<br />
Que inquieto trazia o temor a Dionísio, tirano de Sicília, que em meio de suas<br />
prosperi<strong>da</strong>des e delícias de tal sorte o atormentava que (como refere Marco<br />
Túlio 277 ) cercou o leito e camera em que <strong>do</strong>rmia com largo fosso, como<br />
fortaleza, retiran<strong>do</strong>-se ao leito com ponte de madeira levadiça, aonde o sono<br />
era inquieto e o descanso atribula<strong>do</strong>, mais parecen<strong>do</strong> capitão cerca<strong>do</strong> que<br />
monarca poderoso! Masinissa, rei de Numídia, assim vivia intimi<strong>da</strong><strong>do</strong> que, não<br />
se confian<strong>do</strong> já <strong>da</strong> guar<strong>da</strong> <strong>do</strong>s homens para repousar com segurança, se<br />
cercava de cães que para este efeito tinha, em cuja fiel vigilância o penoso<br />
descanso confiava; e servia de guar<strong>da</strong> e companhia a um rei tão poderoso a<br />
que muitas vezes seria molesta a um pastor de ga<strong>do</strong>. Assim o refere Valério<br />
Máximo 278 . Pois se um temor tanto inquieta, se um receio tanto perturba, como<br />
não será avalia<strong>do</strong> por castigo grande o temor que a vossos ofensores<br />
continuamente segue? Se não pode ser aprazível a fermosura <strong>do</strong> campo<br />
quan<strong>do</strong> mais flori<strong>do</strong> e matiza<strong>do</strong> na Primavera a quem com temores vê as<br />
diversas cores de matizes; se a conversação mais discreta, a música mais<br />
Quintil., Declam. 11.<br />
Greg. P., Lib. 2. Moral.<br />
Cicer., Tusculan. 5.<br />
Vai. Max., Lib. 9.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 209<br />
suave, as iguarias mais saborosas não podem alegrar a quem se teme, não<br />
costumam satisfazer a quem se receia, antes em meio <strong>da</strong>s maiores delícias<br />
que goza lhe dão penoso rebate as adversi<strong>da</strong>des e males [de] que foge; como<br />
não direi que o contínuo sobressalto que a vossos ofensores como sombra<br />
segue é castigo rigoroso e pena mereci<strong>da</strong> de seu delito? Nem vosso desleal<br />
ofensor sofrerá menos desvelos, consideran<strong>do</strong> as muitas livian<strong>da</strong>des dessa<br />
desleal companhia que o segue; porque não é de crer que haja de guar<strong>da</strong>r<br />
fideli<strong>da</strong>de a um estranho quem se mostrou tão falta a seu próprio esposo: ele<br />
lhe <strong>da</strong>rá tantos motivos de sentimento que porventura não serão os menores<br />
verdugos de sua alegria. Que confiança terá de que lhe seja firme quem a seu<br />
mesmo esposo se mostrou inconstante? E assim se vossa ingrata esposa dele<br />
é ama<strong>da</strong>, tenho quasi por impossível não lhe servir de um contínuo tormento<br />
que com temores de lhe ser falsa o inquiete; e se porventura já não ama, que<br />
maior castigo quereis a esta mulher que haver de seguir e servir como escrava<br />
a pessoa de quem em lugar de ser ama<strong>da</strong> se há-de considerar aborreci<strong>da</strong>? E<br />
nas lembranças <strong>do</strong> sossego que perdeu em vossa companhia terá muito que<br />
sentir e muito que sofrer.<br />
Viverão sem <strong>do</strong>micílio próprio que possam avaliar por asilo seguro,<br />
continuamente peregrinan<strong>do</strong> e sempre temen<strong>do</strong>. Não refiro os perigos em que<br />
continuamente hão-de ver-se, caminhan<strong>do</strong> terras estranhas com perigos de<br />
saltea<strong>do</strong>res nos campos, de olhos ociosos nos povoa<strong>do</strong>s; que não é limita<strong>do</strong><br />
risco para quem caminha com mulher fermosa e moça, aonde em gente<br />
inquieta desejos de gozá-la podem ocasionar tantos perigos à sua vi<strong>da</strong>. Não<br />
trato <strong>do</strong>s assaltos de piratas no mar ou <strong>da</strong>s justiças na terra, as companhias<br />
falsas, os ânimos cautelosos com quem a maior inocência jamais vive segura,<br />
quanto mais uma malícia tão culpa<strong>da</strong>; finalmente me persua<strong>do</strong> a que tem na<br />
duração de tão inquieta e penosa vi<strong>da</strong> maior castigo <strong>do</strong> que lhe pudera <strong>da</strong>r<br />
qualquer breve morte.<br />
- Tanto tem vossos acerta<strong>do</strong>s discursos (disse o Peregrino) alivia<strong>do</strong><br />
meu sentimento, que vos afirmo me sinto consola<strong>do</strong> de sorte que já me não<br />
inquietam vinganças, nem desvelam castigos. E pois que o amor <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> me<br />
tem desengana<strong>do</strong> no melhor <strong>do</strong>s anos, <strong>do</strong> pouco que deve ser busca<strong>do</strong> de<br />
quem seus enganos conhece, tratarei de hoje em diante de empregar meu<br />
amor em Deus, a quem to<strong>da</strong>s as finezas se devem e com tanta vantagem as
210 Padre Mateus Ribeiro<br />
paga. Neste santo monte, a quem angélicos favores ilustram e com tão insigne<br />
santuário se enobrece, aonde minhas tristezas acharam consolação e meus<br />
sentimentos alívio, quero passar o restante <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em vossa companhia, se<br />
este favor não encontrar meu pouco merecimento.<br />
E por <strong>da</strong>r-vos a última notícia de meus sucessos, deixan<strong>do</strong> a Eugenia<br />
em Grana<strong>da</strong> passei a Múrcia, e <strong>da</strong>í a Valência, sem alcançar notícia alguma<br />
nem indícios <strong>do</strong> que procuravam meus vingativos furores. Entrei por Aragão e<br />
Catalunha, embarquei-me em Barcelona nas galés de Espanha, cheguei a<br />
Génova, pátria de nossa antiga família <strong>do</strong>s Fiescos, à vista <strong>da</strong> qual achei novos<br />
motivos de sentimento, consideran<strong>do</strong> seu antigo lustre e glória e mu<strong>da</strong>nça que<br />
fez o tempo nela; ali recordei minhas ofensas e agravos, ven<strong>do</strong> que o teatro em<br />
que se representaram tantas opulências de meus progenitores, tantas heróicas<br />
empresas e honrosos cargos, hoje servia não somente à memória de seus<br />
desterros, mortes e infortúnios, mas juntamente à representação de minhas<br />
ofensas e agravos. Enfim, por não aumentar mais minha <strong>do</strong>r e meu sentimento,<br />
saí de Génova, passei à Lombardia, cheguei a Roma, aquele abrevia<strong>do</strong><br />
compêndio de to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, se antigamente cabeça e metrópoli <strong>do</strong> maior<br />
império, hoje com maior excelência de to<strong>da</strong> a cristan<strong>da</strong>de; atravessei Nápoles<br />
e Calábria, cheguei a Apulha, aonde os desejos de visitar este admirável<br />
santuário ocasionaram a ventura de encontrar-vos, para alívio de minhas<br />
tristezas, para consolação de minhas queixas e sentimentos grandes.<br />
E pois em vossa conversação alcancei sossego a minhas maiores<br />
inquietações, não me encontreis o alívio de ficar em vossa companhia, pois a<br />
de tão prudente e sábio sujeito pode e deve com to<strong>do</strong>s os extremos procurar-<br />
se para remédio; que quan<strong>do</strong> com a anciani<strong>da</strong>de reveren<strong>da</strong> de vossa i<strong>da</strong>de se<br />
dá a madureza de juízo, o acerto <strong>da</strong> prudência, a sabe<strong>do</strong>ria <strong>do</strong>s conselhos, a<br />
discrição <strong>da</strong>s palavras e a vi<strong>da</strong> tão exemplar e reforma<strong>da</strong> nas acções, como<br />
[em] vós se manifesta, não há dúvi<strong>da</strong> que está nos anciãos a prudência, como<br />
disse Aristóteles 279 ; que neles se acham os conselhos, como disse<br />
Euripides 280 ; a prática mais suave e grave, como tem para si S. Gregório<br />
Arist., Polit. 7.<br />
Eurip., apud Plut. De educai, líber.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 211<br />
Papa ; o respeito e cortesia mais mereci<strong>da</strong>, como escreve S. Ambrósio .<br />
Tão respeita<strong>da</strong> foi a anciani<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s romanos como eram reverencia<strong>do</strong>s os<br />
magistra<strong>do</strong>s e digni<strong>da</strong>des maiores, testemunhas são Ovídio e Aulo Gélio; tão<br />
obedeci<strong>da</strong> e venera<strong>da</strong> <strong>do</strong>s lacedemónios, como refere Valério Máximo; tão<br />
temi<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> <strong>do</strong>s poderosos e grandes sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, como escreve Tito Lívio; à<br />
qual se devem juntamente os cargos mais honrosos e as demonstrações de<br />
maior respeito e veneração. E assim não me culpeis se como de tão sábio<br />
sujeito procuro vossa companhia, pois deve desejar-se a de um sábio como<br />
grande ventura para to<strong>do</strong>s os esta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
- Agradeço muito (respondeu o Ermitão) os injustos louvores com que<br />
vossa cortesia me trata, <strong>do</strong>s quais me confesso indigno, estiman<strong>do</strong> somente<br />
haverem si<strong>do</strong> minhas palavras ocasião de vosso alívio, motivo de vosso<br />
sossego. Em uma pobre ermi<strong>da</strong> que na fal<strong>da</strong> deste monte edifica<strong>da</strong> se mostra,<br />
é minha assistência há muitos anos em um tosco <strong>do</strong>micílio, porém capaz de<br />
juntamente receber-vos. O lugar é solitário, cerca<strong>do</strong> de espesso arvore<strong>do</strong>,<br />
habita<strong>do</strong> de músicas aves, cuja harmonia me alegra, cuja suavi<strong>da</strong>de me<br />
recreia. Um arrojo de cristalinas águas me serve de perene fonte, as quais<br />
despenha<strong>da</strong>s <strong>do</strong> alto de uma penhascosa serrania fertilizam o vale com sua<br />
corrente. A cari<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s fiéis que nas povoações e lugares vizinhos assistem<br />
me administra o sustento. Subo este monte muitas vezes a visitar este insigne<br />
santuário, que logo vereis, em que acha minha devoção motivos para<br />
afervorar-se, incentivos grandes para não perder-se. Se este sítio vos agra<strong>da</strong>,<br />
se vos satisfaz esta vi<strong>da</strong>, se vos contenta este pobre <strong>do</strong>micílio, eu sou o que<br />
em vossa companhia muito ganho, pois em anos tão juvenis tão maduro juízo,<br />
tantas letras e discrição são dignas de serem em muito estima<strong>da</strong>s e<br />
favoreci<strong>da</strong>s.<br />
Agradeci<strong>do</strong> lhe tornou as graças o Peregrino e com corteses palavras<br />
aceitou o ficar em sua companhia; e porque a este tempo tinha já o sol subi<strong>do</strong><br />
muito sobre o horizonte, continuaram sua jorna<strong>da</strong>, subin<strong>do</strong> o monte que é<br />
fragoso e algum tanto difícil, pela grande eminência em que se mostra, sen<strong>do</strong><br />
ramo <strong>do</strong> monte Apenino que divide a Itália por meio. Há nele algumas selvas<br />
Greg., in Evangel.<br />
Amb., Hexamer. lib. 1.
212 Padre Mateus Ribeiro<br />
aprazíveis, ain<strong>da</strong> que em outras partes é falto delas; porém tem relvas mui<br />
frescas de ervas tão diversas nas espécies como nas virtudes e proprie<strong>da</strong>des.<br />
É em algumas partes despenha<strong>do</strong>; há nele algumas povoações em lugares<br />
diferentes, entre as quais uma <strong>da</strong>s principais é o castelo ou vila de Santo<br />
Angelo, edifica<strong>da</strong> na eminência <strong>do</strong> monte sobre um vivo roche<strong>do</strong> e serrania que<br />
fica sobranceira à parte <strong>do</strong> mar Adriático, em cujas raízes está edifica<strong>da</strong><br />
Manfredónia, como este já dissemos. É esta povoação de Santo Ângelo<br />
habita<strong>da</strong> de muitos mora<strong>do</strong>res, abun<strong>da</strong>nte de muitos mantimentos e cousas<br />
necessárias à vi<strong>da</strong> humana, que <strong>do</strong>s lugares e distrito <strong>do</strong> monte se colhem.<br />
Neste lugar se vê o milagroso santuário e devota cova e templo<br />
dedica<strong>do</strong> ao príncipe <strong>do</strong>s exércitos <strong>da</strong> glória, o glorioso arcanjo São Miguel: a<br />
qual cova foi descoberta no ano de nossa Redenção de quinhentos e oitenta e<br />
seis, aos oito dias de Maio, no pontifica<strong>do</strong> de Gelásio, por revelações <strong>do</strong><br />
mesmo S. Arcanjo. É este devoto santuário uma grande cova ou lapa aberta<br />
em uma viva rocha deste monte por obra <strong>do</strong>s anjos, como piamente se crê.<br />
Entra-se nela por uma porta grande de mármore bem lavra<strong>do</strong>, que fica à parte<br />
<strong>do</strong> meio-dia, a qual lhe man<strong>da</strong>ra fazer os senhores <strong>do</strong> reino de Nápoles e<br />
Apulha. Desta entra<strong>da</strong> se vai descen<strong>do</strong> por cinquenta e cinco degraus<br />
continua<strong>do</strong>s para a parte <strong>do</strong> norte, que se lhe não comunicassem luz as frestas<br />
que na viva pedra como arte se fizeram, não poderiam sem luz artificial<br />
como<strong>da</strong>mente decer os peregrinos por eles. No fim desta esca<strong>da</strong> se vê um<br />
cemitério grande em campo plano, no qual há muitas capelas e sepulturas de<br />
várias pessoas. Passa<strong>do</strong> este campo e cemitério, por uma porta de metal<br />
obra<strong>da</strong> de curioso artifício se entra na santa cova, na qual se não concede<br />
entra<strong>da</strong> alguma antes de nacer o sol. Esta porta, pela qual se entra neste santo<br />
lugar, está direita ao poente; e à mão direita dela se vê aquele santuário e<br />
templo dedica<strong>do</strong> ao S. Arcanjo, to<strong>do</strong> feito de viva pedra milagrosamente. É esta<br />
lapa ou cova baixa, sombria e pouco clara: em meio dela está um coro<br />
pequeno a que se sobe por quatro degraus, sobre os quais está o altar<br />
dedica<strong>do</strong> ao S. Arcanjo, tão eficaz com sua presença a ser respeita<strong>do</strong> e<br />
venera<strong>do</strong> que não há ânimo, por mais distraí<strong>do</strong> e indevoto que seja, que não<br />
mostre temor e reverência grande, movi<strong>do</strong> interiormente de força superior<br />
quan<strong>do</strong> a tão santo altar se avezinha. Está este altar que o S. Arcanjo<br />
consagrou a sua memória coberto de ouro, feito por arte, aonde de ordinário as
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 213<br />
missas se celebram. Não muito distante se mostra uma fonte de licor precioso<br />
e sempre manancial, <strong>da</strong> qual to<strong>do</strong>s se aproveitam em suas necessi<strong>da</strong>des,<br />
aflições e enfermi<strong>da</strong>des por remédio certo e proveitoso para conseguir saúde<br />
nelas. À mão esquer<strong>da</strong> ficam outras capelas e altares em que também se<br />
celebram missas, entre os quais há <strong>do</strong>us que também é tradição de serem<br />
feitos milagrosamente. É o pavimento deste milagroso templo de mármores<br />
brancos e vermelhos: há nele uma fermosa cruz de transparente cristal, <strong>da</strong> qual<br />
é tradição ser juntamente acha<strong>da</strong> nesse milagroso santuário em sua invenção<br />
e aparecimento.<br />
Aqui ouviram a última missa com muita devoção o Ermitão e o<br />
Peregrino, e depois de verem vagarosamente to<strong>da</strong>s as cousas dignas de se<br />
saberem que neste santuário havia, sain<strong>do</strong> fora dele viram um bosque que<br />
vezinho estava quasi sobre a entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> cova, tão abun<strong>da</strong>nte de copa<strong>da</strong>s<br />
árvores e tão viçoso que o Peregrino se admirou, consideran<strong>do</strong> que o monte<br />
em muita distância outras árvores não tinha. E perguntan<strong>do</strong> ao Ermitão a<br />
causa, ele lhe disse como este bosque era dedica<strong>do</strong> ao S. Arcanjo e por esta<br />
razão, com estarem as raízes de tão grandes e copa<strong>da</strong>s árvores sobre viva<br />
rocha, estava continuamente tão verde e aprazível, a quem os homens ofender<br />
ou diminuir não se atrevem com temor de serem castiga<strong>do</strong>s, como se conta<br />
que o foi no ano de mil e quatrocentos e noventa e quatro um sol<strong>da</strong><strong>do</strong> de<br />
Carlos VIII, rei de França, que conquistou este reino, o qual sol<strong>da</strong><strong>do</strong> francês,<br />
cortan<strong>do</strong> com atrevi<strong>da</strong> temeri<strong>da</strong>de uma <strong>da</strong>s árvores deste bosque, foi<br />
subitamente morto em pena de sua ousadia.<br />
- Não me maravilho (disse o Peregrino) que os bosques e lugares<br />
dedica<strong>do</strong>s aos santos anjos sejam com to<strong>do</strong> o respeito e decência trata<strong>do</strong>s<br />
ain<strong>da</strong> com o temor <strong>do</strong> castigo, quan<strong>do</strong> o mesmo demónio com os rigores que<br />
usava se queria fazer respeitar nos lugares em que pelos idólatras a usurpa<strong>da</strong><br />
a<strong>do</strong>ração se lhe oferecia.<br />
De Cambises, poderoso rei de Pérsia, se conta que depois de ver<br />
conquista<strong>do</strong> ao Egipto determinou assolar e destruir o templo de Ammonna<br />
Líbia, tão celebra<strong>do</strong> por seus oráculos, para o qual efeito man<strong>do</strong>u um exército<br />
de cinquenta mil infantes escolhi<strong>do</strong>s, com ordem para que abrasassem o<br />
oráculo de Júpiter Ammon e seu sacro e intacto bosque, não deixan<strong>do</strong> cousa<br />
alguma que não destruíssem e assolassem, e porém o demónio, que no í<strong>do</strong>lo
214 Padre Mateus Ribeiro<br />
falava, os castigou de mo<strong>do</strong>, moven<strong>do</strong> furiosamente as areias <strong>da</strong>quele<br />
espantoso deserto, quan<strong>do</strong> em meio delas o exército estava mais<br />
reconcentra<strong>do</strong>, que de tão copiosas esquadras não escapou algum que não<br />
ficasse submergi<strong>do</strong> e sepulta<strong>do</strong> neste golfo de areias, perden<strong>do</strong><br />
miseravelmente as vi<strong>da</strong>s.<br />
- Não é muito (respondeu o Ermitão) usar o demónio de semelhantes<br />
rigores para sustentar o engano <strong>do</strong>s poderes que os idólatras lhe atribuíram;<br />
porém este bosque está na protecção <strong>do</strong> S. Arcanjo e como tal a devoção <strong>do</strong>s<br />
fiéis o respeita e não ofende.<br />
Assim pratican<strong>do</strong> foram decen<strong>do</strong> o monte e consideran<strong>do</strong> as várias<br />
povoações que nele havia, como S. Arignano, S. Alicandro, Precinna, em que<br />
está um sumptuoso paço edifica<strong>do</strong> por Frederico II. Também se via Torre<br />
Maior, castelo e povoação vizinha quatro milhas ao rio Fortoro, e outros muitos,<br />
além <strong>do</strong>s vestígios e ruínas de outros que já foram, a quem o tempo como<br />
homici<strong>da</strong> universal de to<strong>da</strong>s as cousas desfez e acabou. Discursan<strong>do</strong> sobre<br />
várias matérias que a vista ocasionava iam entreten<strong>do</strong> a moléstia <strong>do</strong> caminho,<br />
quan<strong>do</strong> o sol com seus raios ia decen<strong>do</strong> deste trono de safiras <strong>do</strong> hemisférico a<br />
que coroa<strong>do</strong> de seus próprios raios subira; e entre outras práticas que se<br />
ofereceram, tratan<strong>do</strong> o Ermitão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> solitária que nos campos se passa, o<br />
Peregrino, toman<strong>do</strong> a mão a louvá-la, disse assim:<br />
- Com quanta razão, senhor, se podem chamar felices uma e muitas<br />
vezes aqueles que isentos <strong>do</strong>s tumultos <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des, <strong>da</strong> confusão <strong>da</strong>s cortes,<br />
nesta aprazível solidão passam a vi<strong>da</strong>, aonde nem pertensões os inquietam,<br />
nem cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s os ofendem? Não se teme a falsi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> amigo, nem a<br />
murmuração <strong>do</strong> contrário aonde nem a ousadia os arrisca, nem o temor os<br />
perturba; as aves os saú<strong>da</strong>m e com seu canto alegram, as flores os recreiam,<br />
as selvas os abrigam, os bosques os hospe<strong>da</strong>m. Oh! quanto fora melhor a<br />
tantos nunca conhecerem as ci<strong>da</strong>des para seu <strong>da</strong>no e viverem sempre nos<br />
campos para seu proveito, aonde por ventura nem sentiriam a desleal<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
esposa, a ingratidão <strong>do</strong> obriga<strong>do</strong>, a calúnia <strong>do</strong> invejoso, o agravo <strong>do</strong> poderoso,<br />
o desprezo <strong>do</strong> vali<strong>do</strong>! To<strong>da</strong>s as ânsias se acrecentam à vista de quem foi<br />
testemunha de suas ofensas; to<strong>do</strong>s os sentimentos se aliviam quan<strong>do</strong> faltam<br />
os que assistiram à vista <strong>do</strong>s agravos. Aqui as árvores se com o vento falam,<br />
se os arroios com sua corrente murmuram, nem falam para ofenderem, nem
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 215<br />
murmuram para agravarem; recreios são seus ecos, delícias seus murmúrios.<br />
Aqui a Primavera mais vistosa matiza os campos, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> aos olhos a vista mais<br />
aprazível e ao olfacto o cheiro <strong>da</strong> fragrância mais suave; aonde as flores<br />
oferecem contínuos ramalhetes a quem as contempla, naturais alcatifas a<br />
quem as ocupa. Lembra-me que em umas vistas que tiveram Famabaso<br />
persiano com Agesilau, rei de Esparta, ven<strong>do</strong> o persiano ao rei assenta<strong>do</strong> na<br />
verde relva matiza<strong>da</strong> de flores, ao uso <strong>da</strong> pobreza lacedemónica com que vivia,<br />
servin<strong>do</strong>-lhe de <strong>do</strong>ssel as árvores mais copa<strong>da</strong>s que com sua sombra o<br />
cobriam, deixou as ricas alcatifas persianas que para esse efeito trazia, e se foi<br />
assentar igualmente sobre a relva com ele, desprezan<strong>do</strong> os teci<strong>do</strong>s, debuxos<br />
<strong>da</strong> arte, à vista <strong>do</strong>s flori<strong>do</strong>s paramentos <strong>da</strong> natureza. Esta é vi<strong>da</strong> segura de<br />
esta<strong>do</strong> político e sossega<strong>do</strong>, digno de ser de to<strong>do</strong>s inveja<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s<br />
fora bem conheci<strong>do</strong>.<br />
- Na ver<strong>da</strong>de (disse o Ermitão), que vossa eloquência o retratou de<br />
maneira que pudera persuadir a quantos vos ouvissem a seguirem vi<strong>da</strong> tão<br />
inquieta e segura, tão isenta de ambições, tão livre de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e sentimentos,<br />
como a descrevestes e na ver<strong>da</strong>de é. Grandes poderes são os <strong>da</strong> eloquência<br />
em persuadir, notáveis forças adquire para excitar. De Pisistrato Ateniense<br />
referem Plutarco e Heró<strong>do</strong>to que com a eficácia grande de sua eloquência se<br />
fez senhor e tirano de sua pátria, persuadin<strong>do</strong> aos naturais quanto queria e<br />
moven<strong>do</strong> suas vontades de maneira que contra a própria liber<strong>da</strong>de que<br />
gozavam, o obedeceram por senhor. Da eloquência de Amphion se contam tais<br />
poderes, que chegaram a fingir debaixo <strong>da</strong> metáfora <strong>da</strong> música que movia as<br />
pedras, as árvores e bosques cantan<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> a história que com a suavi<strong>da</strong>de<br />
de suas palavras oran<strong>do</strong>, enternecia os corações mais duros, movia os ânimos<br />
mais agrestes para se unirem e edificarem a ci<strong>da</strong>de de Tebas, de que sua<br />
eloquência foi artífice. Do insigne ora<strong>do</strong>r e filósofo Hegésias escreve Diógenes<br />
Laércio que de tal sorte oran<strong>do</strong> com a grande eficácia de sua eloquência as<br />
misérias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> retratava, que muitos <strong>do</strong>s ouvintes, pelas evitarem,<br />
voluntariamente escolheram a morte, pela qual razão el-rei Ptolomeu lhe<br />
proibiu que mais <strong>da</strong>í em diante de semelhante matéria não orasse. Da<br />
admirável eloquência <strong>do</strong> ora<strong>do</strong>r Marco António se conta que sen<strong>do</strong> man<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
alguns sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s para lhe tirarem a vi<strong>da</strong>, eles, movi<strong>do</strong>s <strong>da</strong> eloquência,<br />
recolheram outra vez as espa<strong>da</strong>s desembainha<strong>da</strong>s e o deixaram livre: assim o
216 Padre Mateus Ribeiro<br />
refere Plutarco e Apiano Alexandrino. Da eloquência disse Demóstenes 284<br />
que era poderosa a resistir aos reis e monarcas mais poderosos; sen<strong>do</strong> opinião<br />
de Cícero que a eloquência sábia podia mitigar e moderar igualmente as<br />
alegrias e as tristezas; e assim não duvi<strong>do</strong> que se muitos vos ouvissem,<br />
senhor, louvar a vi<strong>da</strong> camponesa e retira<strong>da</strong>, persuadi<strong>do</strong>s de vossa eloquência,<br />
a seguissem.<br />
- Lisonja é que por favor agradeço (respondeu o Peregrino) a com que<br />
vossa cortesia me trata; que como é tesouro que não se gasta, por muito que<br />
dela dispendeis comigo, sempre em vós fica mui viva e copiosa; e quan<strong>do</strong> em<br />
vós tanta erudição se manifesta, quan<strong>do</strong> em mim pudera haver alguma, como<br />
discípulo de tal mestre, por vossa a estimara, que sempre a companhia <strong>do</strong>s<br />
sábios foi de muita utili<strong>da</strong>de a quem, como eu, sabe conhecer sua grande valia.<br />
Assim entreten<strong>do</strong> em várias práticas a moléstia <strong>do</strong> caminho, foram<br />
continuan<strong>do</strong> algumas milhas de sua jorna<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> já esse morga<strong>do</strong> <strong>da</strong>s<br />
luzes ia declinan<strong>do</strong> as forças de seus raios, e antes de chegarem à ermi<strong>da</strong><br />
viram junto à estra<strong>da</strong> uma sepultura, a cuja cabeceira uma fermosa cruz de<br />
pedra arvora<strong>da</strong> estava, e perguntan<strong>do</strong> o Peregrino cuja era, o Ermitão lhe disse<br />
ser tradição que era de um nobre capitão húngaro ou boémio que, vin<strong>do</strong> a<br />
servir a el-rei de França na conquista <strong>do</strong> reino de Nápoles, morrera junto<br />
àquele lugar.<br />
- De quantas sepulturas (respondeu o Peregrino) está cheio o mun<strong>do</strong> de<br />
sujeitos grandes, assim nas letras como nas armas, a quem alheias terras<br />
sepultaram e não as em que naceram?<br />
- São tantas as contínuas mu<strong>da</strong>nças de nossa vi<strong>da</strong> (disse o Ermitão),<br />
tão vários os sucessos, tão diversos os fins com que os homens acabam o<br />
curso desta peregrinação antes que vi<strong>da</strong>, que não há que admirar que assim<br />
como tantos ou violenta<strong>do</strong>s, ou voluntários de suas pátrias em vi<strong>da</strong> se<br />
desterram, assim tantos fiquem sepulta<strong>do</strong>s por morte em regiões estranhas, e<br />
ain<strong>da</strong> que à vista primeira pareça grande desconsolação morrer em terra e<br />
reino estranho, não fica isso para os sábios sen<strong>do</strong> motivo de pena alguma,<br />
sen<strong>do</strong> para eles pátria o mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>. De Samo foi natural aquele grande<br />
Plutarc, De bello civil.<br />
Demost., in Olynt. officior2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 217<br />
mestre e pai <strong>da</strong> Filosofia, Pitágoras, e morreu e foi sepulta<strong>do</strong> em Calábria, terra<br />
mui estranha à de seu nacimento; a Terêncio serviu de berço Cartago e de<br />
sepulcro Arcádia; em Mântua naceu Virgílio e foi sepulta<strong>do</strong> em Nápoles; em<br />
Itália Ovídio, e morreu desterra<strong>do</strong> na região de Ponto; ao grande Alexandre<br />
gerou Grécia e sepultou Babilónia; em Pérsia naceu Ciro e em Cítia ficou<br />
morto; em Roma naceram o grande Pompeu e Marco António e a ambos<br />
apenas deu o Egipto sepultura. E se considerar-mos bem as histórias, veremos<br />
que pela maior parte os grandes talentos, assim em letras como em armas, em<br />
terras estranhas e não em suas pátrias sepulta<strong>do</strong>s ficaram, e não me<br />
maravilho, porque sen<strong>do</strong> ordinariamente os sujeitos mais ilustres de maiores<br />
merecimentos, em suas pátrias pouco aceitos e a seus próprios naturais e<br />
patrícios odiosos, por não dizer inveja<strong>do</strong>s, não há dúvi<strong>da</strong> que para serem<br />
conheci<strong>do</strong>s por grandes, avalia<strong>do</strong>s por ilustres e afama<strong>do</strong>s por insignes, alheia<br />
terra havia de ampará-los e favorecê-los; porque um entendimento e juízo<br />
grande, se por estar em sujeito humilde o não ilustrará entre os naturais, sem<br />
dúvi<strong>da</strong> o enobrecerá entre os estrangeiros; porque a sabe<strong>do</strong>ria, ain<strong>da</strong> que<br />
tarde, sempre nesta ou naquela terra dá fruto, ain<strong>da</strong> que muitas vezes na<br />
própria pátria os pobres com partes sejam sepulcros vivos de seus<br />
merecimentos; e com maior razão podem chamar pátria sua a que os aplaude,<br />
que a que os encontra e persegue; aquela que os louva, que a que os vitupera;<br />
a que os ampara, que a que os desfavorece.<br />
Sete ci<strong>da</strong>des de Grécia contenderam entre si sobre Homero, e de<br />
nenhuma nos consta com certeza infalível que fosse sua pátria própria e<br />
ver<strong>da</strong>deira; porém mais obriga<strong>do</strong> lhe ficava pelos grandes desejos que<br />
mostravam de o terem por natural <strong>do</strong> que a sua mesma pátria, que porventura<br />
o estimou em menos. O morrer em terra alheia pouco importa, o morrer como<br />
convém é o necessário empenho que procurar devemos; pois sen<strong>do</strong> nossa<br />
pátria universal e ver<strong>da</strong>deira a glória, para chegarmos a ela de to<strong>da</strong> a parte se<br />
pode começar a jorna<strong>da</strong>. Para quem bem vive, to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> é pátria, como<br />
disse Santo Ambrósio; e para quem mal procede, to<strong>da</strong> a terra é estranha; os<br />
vícios desnaturalizam e as virtudes habilitam; nenhum é estrangeiro sen<strong>do</strong><br />
vicioso, nenhum é natural sen<strong>do</strong> perverso.<br />
Nisto chegaram à ermi<strong>da</strong> sen<strong>do</strong> já o sol-posto: estava edifica<strong>da</strong> em um<br />
sombrio vale, servin<strong>do</strong>-lhe de espal<strong>da</strong>s um <strong>do</strong>s montes que o formavam. Era
218 Padre Mateus Ribeiro<br />
dedica<strong>da</strong> à Virgem Santíssima Mãe de Deus, cuja devota imagem no altar<br />
estava e a ermi<strong>da</strong> a<strong>do</strong>rna<strong>da</strong> de muitas flores que a abundância <strong>do</strong>s pra<strong>do</strong>s<br />
vezinhos e a devoção curiosa <strong>do</strong> Ermitão lhe ofereciam. Era o sítio solitário e<br />
próprio para uma vi<strong>da</strong> contemplativa; que a solidão é de quem se fiam os<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong> alma e a conversação que mais contenta a quem bem a conhece.<br />
Era o lugar próprio para sujeitos desengana<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s afeições e <strong>do</strong> pouco<br />
fun<strong>da</strong>mento que nas esperanças <strong>da</strong> terra deve fazer-se, pouco preço e cabe<strong>da</strong>l<br />
em que as promessas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e suas lisonjas devem estimar-se.<br />
Fizeram oração na ermi<strong>da</strong>, e depois entraram na casa e aposento <strong>do</strong><br />
Ermitão que junto estava, aonde hospe<strong>do</strong>u o Peregrino com o sustento que<br />
tinha e sobretu<strong>do</strong> com a grandeza <strong>da</strong> vontade, que é a iguaria mais saborosa<br />
de que se sustenta um ânimo nobre e primoroso.<br />
Aonde por ora os deixaremos descansar <strong>do</strong> caminho, até que outros<br />
diálogos e vários sucessos, assim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> Ermitão como <strong>do</strong>s ofensores <strong>do</strong><br />
Peregrino, nos dêem matéria à segun<strong>da</strong> parte desta obra que prometo, sen<strong>do</strong><br />
esta aceita com a benevolência que espero e a vontade de aproveitar e servir a<br />
to<strong>do</strong>s merece.<br />
FIM.
Cap. I.<br />
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 219<br />
ALIVIO DE TRISTES<br />
E<br />
CONSOLAÇÃO DE QUEIXOSOS<br />
II. PARTE<br />
Em que o Ermitão dá princípio à relação de sua vi<strong>da</strong><br />
Diverti<strong>do</strong> com o alívio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> solitária o nosso Peregrino que em<br />
companhia <strong>do</strong> venerável Ermitão passava, resistia às memórias de seu<br />
sentimento, se de to<strong>do</strong> podem resistir-se agravos que tanto a honra ofendem,<br />
sen<strong>do</strong> estes pesadelos <strong>da</strong> alma que a oprimem, não permitin<strong>do</strong> hora de<br />
descanso a quem os padece. É a honra em ânimos generosos primeiro móvel<br />
<strong>da</strong>s acções, que trás si as leva, violenta corrente <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s que os arrebata,<br />
não lhes permitin<strong>do</strong> que cuidem mais que na ofensa recebi<strong>da</strong>; e como a<br />
memória <strong>do</strong> nosso Peregrino estava tão feri<strong>da</strong> <strong>do</strong>s golpes de seus infortúnios e<br />
tão magoa<strong>da</strong> <strong>da</strong> viva representação de seu justo sentimento, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong><br />
mais solicitava divertir-se, não podia de to<strong>do</strong> deixar de queixar-se.<br />
É a queixa alívio infrutuoso <strong>do</strong>s ofendi<strong>do</strong>s, desafogo <strong>da</strong> pena nos<br />
agrava<strong>do</strong>s, que não lhes <strong>da</strong>n<strong>do</strong> remédio para satisfação <strong>do</strong> <strong>da</strong>no, nem<br />
vingança para desagravo <strong>da</strong> ofensa, ain<strong>da</strong> assim lhes serve de a<strong>do</strong>çar<br />
disfavores <strong>da</strong> mágoa e de divertir o intenso <strong>da</strong> pena, respiran<strong>do</strong> a paixão pela<br />
voz porque não rebente o coração com a ofensa. Assim entre queixoso e
220 Padre Mateus Ribeiro<br />
diverti<strong>do</strong>, crepúsculos entre a noite <strong>do</strong> sentimento e o dia <strong>do</strong> alívio,<br />
entrecadências entre as tempestades <strong>do</strong> agravo e as bonanças <strong>do</strong> alívio, férias<br />
entre o estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> <strong>do</strong>r e o ócio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, passava o nosso forasteiro, quan<strong>do</strong> um<br />
dia que entre outros viu ao Ermitão mais livre de ocupações de passageiros<br />
que o buscavam ain<strong>da</strong> na sole<strong>da</strong>de em que vivia, lhe pediu encareci<strong>da</strong>mente<br />
quisesse satisfazer-lhe a promessa de lhe contar os discursos de sua vi<strong>da</strong>. O<br />
Ermitão, que pela promessa se via obriga<strong>do</strong> e pela amizade empenha<strong>do</strong> a<br />
satisfazer-lhe o desejo, assentan<strong>do</strong>-se com ele sobre a relva, de um ameno<br />
pra<strong>do</strong>, a quem formavam pavelhão os frescos ramos de um copa<strong>do</strong> freixo, deu<br />
princípio aos perío<strong>do</strong>s de sua vi<strong>da</strong>, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Se o repetir naufrágios na tranquili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> bonança talvez é alívio para<br />
quem os refere e suspensão para quem os ouve, o referir arrojos <strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de<br />
poderá avaliar-se por indecência <strong>da</strong> velhice. São os exemplos, como disse<br />
Cícero 285 , motivos grandes para persuadir; e o Juvenal 286 diz que mais<br />
facilmente se imita o licencioso <strong>do</strong> tempo que o desengana<strong>do</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; porém<br />
porque vos considero hoje com a experiência de vossos passa<strong>do</strong>s infortúnios,<br />
ain<strong>da</strong> que nos anos moço, nos desenganos velho, principiarei a história de<br />
minha vi<strong>da</strong>, sem ocultar os discursos e varie<strong>da</strong>des dela, para que vos consoleis<br />
em vossas tristezas, ven<strong>do</strong> que não sois singular nos desgostos padeci<strong>do</strong>s.<br />
Meu nome é Felisberto, minha pátria a ilustre ci<strong>da</strong>de de Nápoles que na<br />
Campania feliz de Itália está situa<strong>da</strong>, vizinha às on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mar Mediterrâneo,<br />
em quem a fermosura de seus edifícios como em espelho se retrata, cuja<br />
sumptuosi<strong>da</strong>de pode emparelhar com as mais célebres <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Os antigos<br />
lhe chamaram Pathenope, <strong>do</strong> nome de uma <strong>da</strong>s três músicas que a<br />
antigui<strong>da</strong>de celebrou debaixo <strong>do</strong> fingimento <strong>da</strong>s sereias, como diz Sílio Itálico,<br />
que junto às praias <strong>do</strong> mar foi sepulta<strong>da</strong> vizinha aos muros de minha pátria, té<br />
que a grandeza de seus aumentos lhe mu<strong>do</strong>u o nome em o de Nápoles, que<br />
significa nova ci<strong>da</strong>de, como lhe chamaram os calcedónios e atenienses, a<br />
quem ela deve o próspero de sua renovação, como Fénix renasci<strong>da</strong> <strong>da</strong>s cinzas<br />
de sua ruína. Em esta pois nobre e ilustre ci<strong>da</strong>de, a nenhuma inferior nas<br />
opulências e a muitas superior na majestade, nasci eu de pais ilustres no<br />
Cicer., Officior. 1. et 3. De oral<br />
Juven., Sat. 14.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 221<br />
sangue e ricos na fazen<strong>da</strong>, festeja<strong>do</strong> como primogénito e ain<strong>da</strong> ama<strong>do</strong> como<br />
único, em quem estabeleciam a sucessão de sua casa, esperanças de sua<br />
prosperi<strong>da</strong>de. Dos filhos varões, disse Euripides, que eram colunas em que se<br />
sustentavam as casas de seus maiores, porque se bem tal vez por filhas se<br />
aumentaram as casas e a nobreza delas, contu<strong>do</strong> temos visto quantas mais se<br />
tem por filhas arruina<strong>do</strong> e quantas de seu antigo esplen<strong>do</strong>r diminuí<strong>da</strong>s. Enfim<br />
na de meus pais cria<strong>do</strong> com cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, ama<strong>do</strong> com desvelos, festeja<strong>do</strong> com<br />
aplausos, fui nos tenros anos <strong>da</strong> meninice a alegria de seus olhos, até que para<br />
suspender a fortuna a festiva corrente de seus pensamentos lhes naceu uma<br />
filha, que chamaram Lucin<strong>da</strong>, para que dividi<strong>do</strong> o amor com os novos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s,<br />
tivessem duplica<strong>do</strong>s os desvelos, pois o nacimento de uma filha em peitos<br />
nobres é poderoso para causar muitos. Crecia eu na i<strong>da</strong>de e Lucin<strong>da</strong> na<br />
beleza; que parece corriam parelhas nela o admirável parecer para causar-me<br />
as penas e em mim o apressar os anos <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de para chegar a senti-las.<br />
Passei os perío<strong>do</strong>s <strong>da</strong> infância sem sentir que os passava, sen<strong>do</strong> aquele limbo<br />
<strong>da</strong> i<strong>da</strong>de o em que nem as glórias se conhecem, nem os pesares duram,<br />
porque verde agraço <strong>do</strong>s anos não permite diferençar o delicioso <strong>do</strong> molesto,<br />
porque nem um nem outro tem perseverança para estimar-se.<br />
Passa<strong>do</strong> pois este venturoso tempo, que bem se podia chamar tréguas<br />
que faz a vi<strong>da</strong> com a fortuna, suspensão de armas entre as tristezas e alegrias,<br />
crepúsculo entre as luzes <strong>da</strong> razão e as sombras <strong>da</strong> ignorância, deseja<strong>do</strong><br />
quan<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong>, desconheci<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> logra<strong>do</strong>, me aplicaram meus pais ao<br />
estu<strong>do</strong> <strong>da</strong>s letras, a que me chamava minha própria inclinação: acerta<strong>da</strong><br />
eleição seguir o natural e não o violentar. Deste disse o filósofo 287 que não<br />
podia ser durável, porque está fora de seu centro, o que se obra contra a<br />
própria inclinação. Passei o molesto <strong>da</strong>s Gramáticas, o diverti<strong>do</strong> <strong>da</strong>s<br />
Humani<strong>da</strong>des, entrei nas Filosofias e saí com progresso tão feliz que com<br />
aplausos me graduei mestre, fruto primeiro que <strong>do</strong>s trabalhos <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s se<br />
colhe, a tempo que teria de i<strong>da</strong>de vinte anos, bem emprega<strong>do</strong>s nas letras, cuja<br />
lição só até este tempo me divertia. Era Lucin<strong>da</strong>, minha irmã, já de dezoito<br />
anos de i<strong>da</strong>de, primavera mais flori<strong>da</strong> <strong>do</strong> tempo, lisonja <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, prelúdio <strong>da</strong>s<br />
representações de sua varie<strong>da</strong>de, aonde tiveram princípio suas tragédias e<br />
Arist., De Cœlo & mun<strong>do</strong>.
222 Padre Mateus Ribeiro<br />
meus infortúnios. Era tão celebra<strong>da</strong> por fermosa que os encarecimentos com<br />
que se aplaudia sua fama não pareciam encarecimentos à sua vista. Parece<br />
que competiram em Lucin<strong>da</strong> a natureza e a fortuna; esta para lhe comunicar as<br />
desgraças e aquela para lhe comunicar a beleza. O Euripides 288 chamou à<br />
fermosura infelici<strong>da</strong>de, título que à primeira vista parecia impróprio, poden<strong>do</strong>-se<br />
avaliar pela maior ventura; porém tem mostra<strong>do</strong> o tempo tantas experiências<br />
de suas desgraças que o mais que tem para se louvar é o menos que tem para<br />
se temer.<br />
As medianias nem são objectos <strong>do</strong>s aplausos, nem motivos <strong>da</strong>s invejas,<br />
e assim vivem seguras destes <strong>do</strong>us inimigos: pois nem são persegui<strong>da</strong>s por<br />
inveja<strong>da</strong>s, nem se vem desvaneci<strong>da</strong>s por aplaudi<strong>da</strong>s. Só nos extremos tem<br />
jurisdição os perigos. E por essa razão disse Aristóteles 289 que a mediania em<br />
tu<strong>do</strong> era a melhor e S. Bernar<strong>do</strong> 290 a aprova pela mais segura. Quem carece<br />
<strong>da</strong>s exagerações <strong>da</strong> fama também se isenta <strong>do</strong>s assaltos <strong>da</strong> inveja, e se não é<br />
singular para estima<strong>da</strong>, também não é lembra<strong>da</strong> para persegui<strong>da</strong>. Bem<br />
manifestou o tempo em Lucin<strong>da</strong> este desengano, pois não sen<strong>do</strong> bastantes<br />
nem seu próprio recolhimento e modéstia com que foi cria<strong>da</strong>, raras vezes<br />
aparecen<strong>do</strong> aonde pudesse ser vista, a cautela de meus pais e meu contínuo<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, juntamente sua própria inclinação à vi<strong>da</strong> religiosa que ela escolher<br />
pertendia, foi poderosa a fama de sua gentileza para arruinar tantos muros de<br />
prevenções e deixar frustra<strong>da</strong>s tantas cautelas, como agora ouvireis.<br />
Entre os muitos casamentos que a meu pai se trataram para Lucin<strong>da</strong>,<br />
movi<strong>do</strong>s <strong>da</strong> fama que sua fermosura e discrição publicava, e a que meu pai<br />
não diferia, por conhecer em minha irmã desejo de tomar mui diferente esta<strong>do</strong>,<br />
o que mais empenha<strong>do</strong> se mostrou em pertendê-la foi Juliano, um ilustre<br />
mancebo espanhol que como parente <strong>do</strong> vice-rei de Nápoles com ele tinha<br />
vin<strong>do</strong> de Espanha. Era Juliano mancebo de flori<strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, gentil na presença,<br />
ilustre no sangue, brioso na pessoa, alenta<strong>do</strong> nos brios, valeroso nas armas<br />
em que se tinha cria<strong>do</strong>, discreto no juízo, afável na conversação, mas pobre<br />
nos bens <strong>da</strong> fortuna, e como tal, por serem faleci<strong>do</strong>s seus pais em Espanha,<br />
Euripid., in Helen.<br />
Arist., Politic. 4.<br />
D. Bern., Lib 2. De consid.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 223<br />
seguiu as armas, refúgio de que se valem os pobres bem nasci<strong>do</strong>s, e<br />
ultimamente ao vice-rei de Nápoles, que por parente e destemi<strong>do</strong> sol<strong>da</strong><strong>do</strong> o fez<br />
capitão de uma <strong>da</strong>s galés que o reino tem de sua guar<strong>da</strong> e serviço de seu<br />
monarca, que então era o invencível empera<strong>do</strong>r Carlos Quinto. Era este Juliano<br />
o que maiores instâncias fez para alcançar a minha irmã por esposa, valen<strong>do</strong>-<br />
se <strong>do</strong> próprio vice-rei para que a meu pai falasse, acreditan<strong>do</strong> a Juliano por seu<br />
parente, cousa que aos grandes custa pouco e talvez aproveita muito; porém<br />
meu pai conhecen<strong>do</strong> de Lucin<strong>da</strong> que to<strong>do</strong>s os casamento despedia pela firme<br />
tenção que tinha de ser religiosa; e porque com esta desculpa a tinha nega<strong>do</strong> a<br />
outras pertensões de pessoas bem ilustres e naturais que por esposa lha<br />
pediram, aos quais ficava agravan<strong>do</strong>, deven<strong>do</strong> juntamente ressentir-se quan<strong>do</strong><br />
com o espanhol a casasse, que preferências mal se sofrem no que muito se<br />
deseja, se desculpou com o vice-rei, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe por escusa o firme intento que<br />
Lucin<strong>da</strong> tinha em dedicar-se ao Esposo <strong>da</strong>s almas. Satisfeito ficou o vice-rei <strong>da</strong><br />
desculpa, que como conhecia a melhora <strong>da</strong> eleição e o avanteja<strong>do</strong> <strong>do</strong> acerto,<br />
louvan<strong>do</strong> o juízo ser igual à fama <strong>da</strong> fermosura que Nápoles aplaudia.<br />
Cap. II.<br />
Em que prossegue o Ermitão sua história<br />
Violento remédio é um desengano para curar a um hidrópico de<br />
esperanças, e mais quan<strong>do</strong> estas são causa<strong>da</strong>s <strong>do</strong> amor: passar de um<br />
extremo a outro sempre foi perigoso. Não há causa que mais atormente, que é<br />
uma esperança perdi<strong>da</strong>, disse Quintiliano 291 , porque à desesperação se segue<br />
a temeri<strong>da</strong>de. Beber de um trago amargura de um desengano na enfermi<strong>da</strong>de<br />
de um desejo é veneno de sofrimento que, se não tira ávi<strong>da</strong>, deixa delírios na<br />
razão. Bem se viu este efeito em Juliano que, desengana<strong>do</strong> de conseguir o<br />
casamento de Lucin<strong>da</strong>, intentou a temeri<strong>da</strong>de maior que pudera emprender a<br />
ousadia em ânimo desespera<strong>do</strong>, queren<strong>do</strong> vencer com violência o que não<br />
alcançou o valimento <strong>do</strong> poder, o desvelo <strong>do</strong> amor e o eloquente <strong>da</strong> cortesia.<br />
Quintil., Declam. 12.
224 Padre Mateus Ribeiro<br />
Tínhamos fora de Nápoles, vizinha ao mar, uma quinta agradável na<br />
vista, deleitosa no sítio e aprazível nos copa<strong>do</strong>s arvore<strong>do</strong>s de árvores sombrias<br />
e vários frutos, aonde alguns meses <strong>do</strong> Estio costumava meu pai retirar-se com<br />
sua família para lograr o ameno <strong>do</strong> campo, o cristalino <strong>da</strong>s fontes, o fresco <strong>do</strong>s<br />
ares e o delicioso <strong>da</strong> vista, se é como diz o provérbio, o maior recreio <strong>da</strong><br />
segurança <strong>da</strong> terra ver o inquieto <strong>do</strong> mar. Era o exercício <strong>da</strong> caça o<br />
divertimento <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e as férias de meu estu<strong>do</strong> no tempo breve deste<br />
retiro, quan<strong>do</strong> nele teve princípio to<strong>da</strong> a inquietação de minha vi<strong>da</strong>.<br />
Resoluto Juliano em roubar a Lucin<strong>da</strong>, queren<strong>do</strong> agradecer à violência o<br />
que não devia às rogativas, esperou para executar tão temerária insolência o<br />
tempo em que nesta quinta estivéssemos. E chegan<strong>do</strong>-lhe a ocasião oportuna<br />
a seu intento, escolhen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s força<strong>do</strong>s mouros <strong>da</strong> sua galé os que lhe<br />
pareceram mais ousa<strong>do</strong>s, trazen<strong>do</strong>-os a terra, ten<strong>do</strong>-lhes prepara<strong>do</strong>s vesti<strong>do</strong>s<br />
e armas convenientes, tiran<strong>do</strong>-lhes os ferros e prometen<strong>do</strong>-lhes liber<strong>da</strong>de, os<br />
persuadiu a que no maior escuro e silêncio <strong>da</strong> noite fingin<strong>do</strong>-se cossários<br />
acometessem a quinta e a Lucin<strong>da</strong> roubassem, e ao esquife <strong>da</strong> galé, em que<br />
com poucos remeiros os esperava, lha trouxessem. Prevenir sucessos<br />
inopina<strong>do</strong>s não é objecto <strong>da</strong> providência humana: perigos na segurança,<br />
naufrágios no porto seguro, infideli<strong>da</strong>de na confiança, assaltos na paz,<br />
hostili<strong>da</strong>des no próprio <strong>do</strong>micílio, vinganças sem precederem ofensas, tiranias<br />
sem intervirem agravos, que juízo pode evitá-los ou que discurso oprimi-los?<br />
Descifrar os intentos de uma paixão manifesta, talvez será vitória <strong>do</strong><br />
entendimento; mas prever as astúcias de um sentimento que se encobre, de<br />
uma pena que se oculta, de um desgosto que se esconde sem <strong>da</strong>r na altura <strong>do</strong><br />
profun<strong>do</strong> de um coração que sabe lançar cadea<strong>do</strong>s e chaves à <strong>do</strong>r e<br />
fechaduras à mágoa, empenho é superior aos limites de um discurso e à esfera<br />
de um juízo: isto digo para que conheçais que não foi a causa deste trágico<br />
sucesso que vou referin<strong>do</strong> nem falta <strong>da</strong> prevenção, pois aonde não se pode<br />
temer o <strong>da</strong>no, não é desaire não antecipar o remédio.<br />
Era a noite escura, que sempre foram as sombras rebuço <strong>do</strong>s desaforos;<br />
tinha eu i<strong>do</strong> à caça esse dia com outros amigos, em que nos detivemos<br />
dilata<strong>do</strong> tempo, que quem não prevê os perigos, não apressa os reparos;<br />
estavam meus pais e irmã recolhi<strong>do</strong>s, que eram as horas apropria<strong>da</strong>s ao<br />
descanso, e as primeiras portas abertas encomen<strong>da</strong><strong>da</strong>s à vigilância de alguns
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 225<br />
cria<strong>do</strong>s que esperavam minha vin<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> de repente se viram <strong>do</strong>s mouros<br />
assalta<strong>do</strong>s que, falan<strong>do</strong> o arábigo para mais acreditar o engano e <strong>da</strong>r forças ao<br />
temor, imaginan<strong>do</strong>-se cativos os cria<strong>do</strong>s fugiram desamparan<strong>do</strong> as portas e<br />
casa, valen<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> escuro por entre os arvore<strong>do</strong>s <strong>da</strong> quinta para segurarem a<br />
liber<strong>da</strong>de que já temiam perdi<strong>da</strong>. Pouco trataram de segui-los os disfarça<strong>do</strong>s<br />
piratas, que como não buscavam mais riquezas que Lucin<strong>da</strong>, que era to<strong>da</strong> a<br />
presa e saco desta navegação que emprendiam, não se empenharam em<br />
seguir o que não buscavam, porque lhes não fugisse o que queriam.<br />
Arruinaram as portas em que meus pais e Lucin<strong>da</strong> retira<strong>do</strong>s estavam e com os<br />
mosquetes encara<strong>do</strong>s e outros com os alfanges na mão, ameaçan<strong>do</strong> com a<br />
morte a quem lhes resistisse, toman<strong>do</strong> <strong>do</strong>us deles pela mão a inocente<br />
Lucin<strong>da</strong>, a quem o sustento lamentável em que se via lançava grilhões aos pés<br />
para mover-se e embargos à voz para queixar-se, que um sobressalto grande e<br />
repentino é rémora <strong>do</strong>s passos e silêncio <strong>da</strong>s vozes, porque ocupa<strong>do</strong> o<br />
coração com a carga <strong>do</strong>s pesares, to<strong>da</strong>s as potências suspende, to<strong>do</strong>s os<br />
alívios embarga.<br />
Considerai, discreto amigo, no penoso deste sucesso, o lastima<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
pena e o requinta<strong>do</strong> <strong>da</strong> <strong>do</strong>r que sentiriam meus aflitos pais ven<strong>do</strong> à sua vista<br />
roubar a pren<strong>da</strong> em que se reviam seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e por quem se desvelavam<br />
suas memórias: ven<strong>do</strong> a filha mais queri<strong>da</strong>, prodígio por fermosa, espanto por<br />
modesta como cordeira entre as garras violentas de despie<strong>do</strong>sos inimigos<br />
arrancar-se de seus olhos para jamais a verem. Rompeu enfim a voz mais a<br />
força <strong>do</strong> amor e a <strong>do</strong> alento em meu pai, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Se o desejo de adquirir riquezas vos obriga a este assalto, em que<br />
mais descui<strong>da</strong><strong>do</strong> dele vivia, riqueza tenho, senhores, com que possais<br />
satisfazer vossos desejos, sem profanares o decoro dessa filha de quem pende<br />
a vi<strong>da</strong> dessa desconsola<strong>da</strong> mãe. Aqui tendes as chaves de quanto possuo, que<br />
bem sobra para compensar to<strong>do</strong> o resgate que por ela pedir vosso interesse.<br />
Resgatai a vi<strong>da</strong> de uma mãe com a liber<strong>da</strong>de de uma filha, não queirais de um<br />
golpe tiranizar tantas vi<strong>da</strong>s; e quan<strong>do</strong> não me conce<strong>da</strong>is esta pie<strong>da</strong>de que vos<br />
peço, ao menos não me negueis levar-nos com ela cativos, corram nossas<br />
vi<strong>da</strong>s uma própria fortuna, e se nos hão-de matar as lembranças sau<strong>do</strong>sas <strong>do</strong><br />
bem que perdemos, mate-nos o rigor <strong>do</strong> cativeiro e não a tirania <strong>da</strong>s sau<strong>da</strong>des;
226 Padre Mateus Ribeiro<br />
considerai a que extremo me chegou a fortuna, pois vos peço por favor a<br />
mesma cruel<strong>da</strong>de.<br />
Chorava minha mãe, lamentava Lucin<strong>da</strong> sua sorte, mas sen<strong>do</strong> as<br />
lágrimas de si tão poderosas, e mais na juvenil beleza de Lucin<strong>da</strong>, para<br />
conseguirem despachos, não puderam em os ânimos bárbaros <strong>da</strong>queles<br />
inimigos conseguir favor algum, que mais facilmente se enternecem as feras<br />
que corações em tais sujeitos. A resposta que deram entre a confusão não<br />
entendi<strong>da</strong> <strong>do</strong> arábigo que gritan<strong>do</strong> falavam, foi uns caminharem com Lucin<strong>da</strong>,<br />
que rompen<strong>do</strong> os ares com gritos apenas entre o silêncio <strong>da</strong> noite se lhe<br />
ouviram os ecos, e outros fecharem as portas com as chaves, para que meus<br />
lastima<strong>do</strong>s pais os não seguissem.<br />
Estavam os lugares e povoações distantes <strong>da</strong> quinta, e como nos<br />
cria<strong>do</strong>s, que intimi<strong>da</strong><strong>do</strong>s fugiram, o temor lhes tinha embarga<strong>do</strong> as vozes para<br />
gritarem, recean<strong>do</strong> se as levantassem que já com eles estavam os mouros e se<br />
imaginavam cativos, punham o remédio mais em se esconderem que em se<br />
ouvirem. Deixemos a meu pai nas aflições e a minha mãe nas lágrimas,<br />
impossibilita<strong>do</strong>s de poderem seguir a infeliz Lucin<strong>da</strong> mais que com seus<br />
suspiros e corrente de suas lágrimas, e acompanhemos a Lucin<strong>da</strong>, que leva<strong>da</strong><br />
nos braços de seus inexoráveis rouba<strong>do</strong>res, ferin<strong>do</strong> os ares com gritos,<br />
violentavelmente se ausentava <strong>da</strong>s caras pren<strong>da</strong>s que nela se reviam, <strong>da</strong> pátria<br />
que a criara e <strong>do</strong> pátrio <strong>do</strong>micílio em que vivia. Era <strong>da</strong> quinta ao mar meia<br />
légua de distância e a Nápoles duas de caminho, e paran<strong>do</strong> os cossários na<br />
representação, se bem mouros na reali<strong>da</strong>de, um deles, que mancebo na flor<br />
<strong>do</strong>s anos era e deles to<strong>do</strong>s respeita<strong>do</strong> por nobremente nasci<strong>do</strong>, disse aos<br />
companheiros desta sorte:<br />
- Lembra<strong>do</strong> estou, companheiros e amigos meus, que chamou Astíages,<br />
rei de Media e grande monarca <strong>da</strong> Ásia, de néscio e grosseiro de juízo a seu<br />
rebelde vali<strong>do</strong> Harpago, porque tratan<strong>do</strong> de tirar-lhe o reino em vingança <strong>do</strong><br />
filho que lhe deu a comer feito iguaria, não tratou de tomar o reino de Media<br />
para si próprio, senão para dá-lo a Ciro, que nele lhe sucedeu; não sei se<br />
merecêramos nós a mesma censura de pouco ajuiza<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> ten<strong>do</strong> em<br />
nossas mãos o remédio, queiramos pô-lo no arbítrio de outrem. Prometeu-nos<br />
nosso capitão Juliano liber<strong>da</strong>de por lhe roubarmos esta moça; mas que não<br />
prometerá um amante por conseguir seu desejo? Dar-nos liber<strong>da</strong>de não pende
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 227<br />
<strong>do</strong> seu querer, porque lhe falta o <strong>do</strong>mínio; e ain<strong>da</strong> está o perigo em que<br />
descobrin<strong>do</strong>-se o roubo desta <strong>do</strong>nzela, que sen<strong>do</strong> ilustre e seus pais tão<br />
vali<strong>do</strong>s é certo em breve descobrir-se, nós como rouba<strong>do</strong>res pagaremos a<br />
pena ao rigor de um laço e ele logran<strong>do</strong> o que deseja se assegura com a<br />
fugi<strong>da</strong>. Sempre o rigor se põe contra os desvali<strong>do</strong>s e faz liga a fortuna com a<br />
morte contra os desempara<strong>do</strong>s. Por um mouro quem há-de interceder? Antes<br />
para aliviarem a Juliano a culpa nos lançarão às costas to<strong>da</strong> a pena. Não saber<br />
lograr as venturas é habilitar-se para as desgraças; perder a oportuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
ocasião é cerrar as portas à queixa e abri-las ao arrependimento. Isto digo,<br />
porque pois a ventura nos convi<strong>da</strong> com o favor, não percamos a ocasião com o<br />
descui<strong>do</strong>. Estamos livres e arma<strong>do</strong>s, a galé sem capitão, muitos <strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
em terra, os força<strong>do</strong>s <strong>da</strong> nossa parte, pois por conseguirem a liber<strong>da</strong>de hão-de<br />
seguir nosso intento; pren<strong>da</strong>mos a Juliano e partamos com ele à galé, que logo<br />
a renderemos, e largan<strong>do</strong> as velas neste silêncio <strong>da</strong> noite, confiemos <strong>do</strong> valor e<br />
<strong>da</strong> ventura o sair <strong>da</strong> moléstia <strong>do</strong> cativeiro, que só para evitá-la se pode<br />
ousa<strong>da</strong>mente aventurar a vi<strong>da</strong>.<br />
Aprovam to<strong>do</strong>s o parecer por acerta<strong>do</strong>, e conhecen<strong>do</strong> que na brevi<strong>da</strong>de<br />
consistia o eficaz remédio, pressan<strong>do</strong> os passos, levan<strong>do</strong> <strong>da</strong> mão a<br />
desconsola<strong>da</strong> Lucin<strong>da</strong> o mouro que deu o conselho, a quem os outros como a<br />
capitão seguiam, chegaram aonde o esquife esperava com o desditoso Juliano,<br />
que sain<strong>do</strong> a terra para receber a violenta<strong>da</strong> pren<strong>da</strong> que o mouro lhe levava,<br />
em um instante se viu deles preso e despoja<strong>do</strong> <strong>da</strong>s armas, ameaçan<strong>do</strong>-o com<br />
cruel morte se levantasse a voz ou desse o menor motivo para serem senti<strong>do</strong>s.<br />
Embarcaram-se to<strong>do</strong>s com o maior silêncio, e chegan<strong>do</strong> à galé que fora <strong>da</strong><br />
barca estava, obrigaram a Juliano a que falasse para ser <strong>da</strong> sentinela<br />
conheci<strong>do</strong>, que o temor <strong>da</strong> morte em que se via lhe fazia obedecer ao gosto de<br />
quem com a espa<strong>da</strong> na mão o ameaçava. Subiram à galé, e como os poucos<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que nela havia estavam ocupa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> sono, como quem temia tal<br />
infortúnio, facilmente os renderam os que iam preveni<strong>do</strong>s e de armas e valor<br />
acompanha<strong>do</strong>s. Viram-se cativos os que <strong>do</strong>rmiam livres e viram-se com<br />
liber<strong>da</strong>de os que estavam aprisiona<strong>do</strong>s; e em tão breve espaço mostrou a<br />
fortuna tal mu<strong>da</strong>nça, porque para as felici<strong>da</strong>des e desgraças raramente man<strong>da</strong><br />
diante mensageiros que avisem. Escravo de um me<strong>do</strong> era Sibaris Persiano,<br />
que com cadeias nos pés e grilhões o servia, e de repente o tomou Ciro por
228 Padre Mateus Ribeiro<br />
companheiro na conquista de Media que emprendia, tiran<strong>do</strong>-lhe com sua<br />
própria mão os ferros com que an<strong>da</strong>va, e o <strong>caso</strong>u com sua irmã, fazen<strong>do</strong>-o<br />
governa<strong>do</strong>r de to<strong>da</strong> a Pérsia.<br />
Esta mu<strong>da</strong>nça de livre a cativo, de capitão a prisioneiro, de ser<br />
obedeci<strong>do</strong> a ser obediente, princípio foi <strong>do</strong> castigo que Juliano merecia, pelo<br />
insulto que intentou no roubo de Lucin<strong>da</strong>, profanan<strong>do</strong> o decoro e ofenden<strong>do</strong> o<br />
respeito que a meus pais se devia; queren<strong>do</strong>-os privar com tão injusta violência<br />
de uma filha tão rara na fermosura como na modéstia, e que tinha escolhi<strong>do</strong> o<br />
melhor esposo na tenção de dedicar-se a Deus em um convento, rejeitan<strong>do</strong><br />
tantos e tão ilustres casamentos, como se lhe tinham ofereci<strong>do</strong>. Rendi<strong>da</strong> pois a<br />
galé, e encerran<strong>do</strong> a minha irmã na camera dela este novo capitão <strong>da</strong> ventura,<br />
e ven<strong>do</strong> que estava a embarcação bastantemente provi<strong>da</strong> de bastimentos,<br />
pólvora e balas, repartin<strong>do</strong> as armas pelos mouros que mais idóneos julgou<br />
para defensa, e preparan<strong>do</strong> o que conforme a brevi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> tempo para a<br />
navegação convinha, largou a vela e fez empunhar os remos, não se isentan<strong>do</strong><br />
Juliano de experimentar o trabalho de força<strong>do</strong>, pois tão mal soube usar <strong>do</strong>s<br />
privilégios de livre.<br />
Cap. III.<br />
Em que o Ermitão refere o que lhe sucedeu na noite <strong>do</strong> roubo de Lucin<strong>da</strong><br />
Deixemos agora navegan<strong>do</strong> a Zaide, que assim se chamava o novo<br />
capitão que a minha irmã levava, entre o mar <strong>da</strong>s lágrimas de Lucin<strong>da</strong> e os<br />
ares <strong>do</strong>s suspiros de Juliano, se ain<strong>da</strong> suspirar se lhe permitia para alívio <strong>da</strong><br />
intensa <strong>do</strong>r de seu grande sofrimento; e tratemos <strong>do</strong> que me sucedeu nessa<br />
trágica noite, teatro <strong>da</strong>s tragédias que a fortuna representava.<br />
Era eu, como já disse, inclina<strong>do</strong> ao divertimento <strong>da</strong> caça, de quem disse<br />
Tito Lívio 292 que eram os gostos custosos e o divertimento penoso. Entre os<br />
amigos com quem neste exercício me acompanhava era Alexandre, um<br />
mancebo quasi <strong>da</strong> minha i<strong>da</strong>de, filho de pais de conheci<strong>da</strong> nobreza em<br />
Tit. Liv., Decad. 1. lib 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte II 229<br />
Nápoles, se bem não ricos, porque por vários sucessos <strong>da</strong> fortuna, homizios,<br />
ban<strong>do</strong>s e inquietações em que foram culpa<strong>do</strong>s com outros de sua família, tinha<br />
gasta<strong>do</strong> e perdi<strong>do</strong> a maior parte <strong>do</strong>s bens que possuíam. Tinha Alexandre uma<br />
irmã, moça de gentil presença e raro aviso que se chamava Anastácia, que<br />
com seus pais e irmão a maior parte <strong>do</strong> tempo viviam fora de Nápoles retira<strong>do</strong>s<br />
em uma quinta, porque o limita<strong>do</strong> <strong>da</strong>s ren<strong>da</strong>s lhes não permitia viverem no<br />
cortejo e custoso <strong>da</strong> corte com a decência que se podia esperar <strong>do</strong> ilustre de<br />
seu sangue.<br />
Grande pensão é a de um pobre bem nasci<strong>do</strong>, que quan<strong>do</strong> mais luzir<br />
deseja, lhe serve a pobreza de eclipse que o esconde! O que nasceu pobre<br />
não faz nele abalo o carecer <strong>da</strong>s luzes, que como desde o berço lhe serviu a<br />
pobreza de sombra, pouco sente o não brilhar quem sempre careceu <strong>do</strong>s<br />
motivos de luzir. Porém o que cria<strong>do</strong> com grandeza se considera reduzi<strong>do</strong> a<br />
perder os aplausos com que o tinha lisonjea<strong>do</strong> a ventura, ven<strong>do</strong>-se esqueci<strong>do</strong><br />
de quem o cortejava e menos respeita<strong>do</strong> <strong>do</strong>s que de antes com venerações o<br />
recebiam, não poden<strong>do</strong> deitar galas quan<strong>do</strong> os festejos as pedem, nem assistir<br />
nos públicos com o decoro que à sua família se devia, não tem mais remédio<br />
que apelar para o retiro <strong>do</strong>s campos, aonde a fortuna oculta o que nas ci<strong>da</strong>des<br />
manifesta.<br />
Retira<strong>do</strong> pois Alexandre com seus pais e irmã a esta quinta, que distava<br />
duas léguas <strong>da</strong> nossa, aonde eu muitas vezes lhe assistia, sucedeu que<br />
an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> com ele à caça, apartan<strong>do</strong>-se comigo ao solitário de um bosque que<br />
entre as eminências de uns montes se formava, a horas em que já o sol ia<br />
recolhen<strong>do</strong> as <strong>do</strong>ura<strong>da</strong>s redes de seus brilhantes resplan<strong>do</strong>res, me disse desta<br />
sorte:<br />
- Se, como disse Marco Túlio, é atributo inseparável <strong>da</strong> amizade<br />
ver<strong>da</strong>deira, na próspera e adversa fortuna, ser inseparável companheira, o que<br />
já tinha dito Aristóteles e é comum prolóquio <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de; bem sei eu, amigo<br />
Felisberto, que sentireis, como quem o é tanto, meus pesares e me<br />
acompanhareis na vingança que tomar determino de minha honra ofendi<strong>da</strong>. E<br />
porque o tempo é breve para relatar mais extensamente a causa, a resumirei<br />
com dizer que Dionísio Montal<strong>do</strong>, aquele rico genovês que desterra<strong>do</strong> de<br />
Génova pelo ban<strong>do</strong> contrário veio viver em Nápoles com tanta ostentação,<br />
deve a honra com palavra de esposo a minha irmã Anastácia, o que ela
230 Padre Mateus Ribeiro<br />
confessou, obriga<strong>da</strong> de saber que ele tratava em Nápoles casamento com<br />
quem melhor <strong>do</strong>te podia <strong>da</strong>r-lhe, não mais nobreza. Eu o mandei hoje desafiar<br />
por um escrito para meia légua de Nápoles, aonde está um mosteiro de<br />
cónegos regrantes, e as horas hão-de ser as dez <strong>da</strong> noite; peço-vos me<br />
acompanheis, ou para ver se o podeis reduzir a que com Anastácia se case, ou<br />
para me servirdes de padrinho quan<strong>do</strong> sua sem-razão me obrigue a que o<br />
desafio se efectue.<br />
Admira<strong>do</strong> fiquei <strong>do</strong> sucesso de Anastácia e repentina resolução de<br />
Alexandre; mas quan<strong>do</strong> a ira elegeu conselheiros, e mais estan<strong>do</strong> de permeio<br />
tão notório agravo? Bem disse o filósofo que quebras na honra eram<br />
insofríveis: por ela vimos tantas vezes arriscar e perder as vi<strong>da</strong>s; e assim não<br />
era maravilha que Alexandre, ven<strong>do</strong>-se sobre pobre nela ofendi<strong>do</strong>, se<br />
aventurasse a perder quem sem honra não tinha que ganhar.<br />
- Sinto tanto, lhe respondi eu, amigo Alexandre, vosso desgosto, como a<br />
quem nossa antigua amizade fez participante <strong>da</strong> maior parte dele; e pois já não<br />
há lugar para o conselho, pois me comunicastes o desafio, quan<strong>do</strong> já o sol se<br />
esconde e a noite se avizinha, partamos a Nápoles e lá nos mostrará a ocasião<br />
o que devemos seguir.<br />
Agradeci<strong>do</strong> me respondeu Alexandre, e montan<strong>do</strong> ambos a cavalo, sem<br />
levar cria<strong>do</strong> algum comigo, partimos para Nápoles quan<strong>do</strong> já a noite vestin<strong>do</strong> a<br />
gala <strong>da</strong> mais brilhante pedraria de suas estrelas, com tantos olhos fazia ao<br />
mun<strong>do</strong> sentinela, cobrin<strong>do</strong> de sombras quanto o sol tinha matiza<strong>do</strong> de luzes.<br />
Chegámos junto ao mosteiro, apeámo-nos e prenden<strong>do</strong> os cavalos aos troncos<br />
<strong>da</strong>s copa<strong>da</strong>s árvores que o sítio fazem vistoso, e com sua sombra aprazível e<br />
ameno nos assentámos a esperar a vin<strong>da</strong> <strong>do</strong> genovês Dionísio, que não tar<strong>do</strong>u<br />
muito em chegar acompanha<strong>do</strong> de um valente espanhol, chama<strong>do</strong> Capitão D.<br />
Sancho de Car<strong>do</strong>na, que nas guerras de Alemanha e Itália em que tinha<br />
milita<strong>do</strong> adquiriu nome de valeroso e destemi<strong>do</strong>. Este apenas nos reconheceu,<br />
quan<strong>do</strong> com muita cortesia rompe nestas palavras:<br />
- Eu, senhor Alexandre, venho aqui acompanhan<strong>do</strong> ao senhor Dionísio<br />
Montal<strong>do</strong>, a quem vós desfiastes para este lugar: estimarei saber a razão <strong>do</strong><br />
agravo que a isto vos obriga, porque se sem o juízo <strong>da</strong>s armas puder<br />
satisfazer-se, estimarei muito que pessoas tanto para estimar-se não se<br />
aventurem ao que depois de executa<strong>do</strong> carece de remédio. Atalhar os <strong>da</strong>nos é
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 231<br />
lanço <strong>da</strong> prudência e satisfazê-los desempenho <strong>da</strong> valentia: arrojos <strong>da</strong> paixão<br />
nunca foram louva<strong>do</strong>s, e assim antes de obrar a ira, dêmos lugar à razão, que<br />
quan<strong>do</strong> esta não possa satisfazer-se menos que com o sangue, em lugar<br />
estamos para deixar-vos desagrava<strong>do</strong>s e, se a causa o permite, satisfeito.<br />
- Devo à vossa cortesia (disse Alexandre), senhor D. Sancho, tantos<br />
respeitos além <strong>do</strong>s que merece vossa pessoa, que me obrigam a referir-vos a<br />
justa causa de meu agravo. O senhor Dionísio Montal<strong>do</strong>, que está presente,<br />
inquietou a minha irmã Anastácia e a gozou com promessa de casamento,<br />
conhecen<strong>do</strong> minha nobreza e desprezan<strong>do</strong> os respeitos e decoro que a casa<br />
de meu pai se deviam, e dizem trata de casar-se em outra parte, não temen<strong>do</strong><br />
o castigo que Deus pode <strong>da</strong>r-lhe pelo engano e o que eu posso na terra <strong>da</strong>r-lhe<br />
pelo agravo. Ain<strong>da</strong> hoje me descobriu Anastácia com mais lágrimas que<br />
palavras esta tragédia de sua honra e este eclipse <strong>da</strong>s luzes de meus<br />
antepassa<strong>do</strong>s; que sempre um ofendi<strong>do</strong> é o último que sabe seu descrédito<br />
para senti-lo a tempo, que não foi poderoso para evitá-lo. Atreve-se a profanar<br />
o sagra<strong>do</strong> <strong>da</strong> fi<strong>da</strong>lguia, só pode ter desculpa na loucura, porque não diferençar<br />
o luzi<strong>do</strong> <strong>do</strong> escuro, o altivo <strong>do</strong> humilde, o decoroso <strong>do</strong> vulgar, ou é erro de<br />
quem se cega, ou arrojo de quem delira, pois haven<strong>do</strong>-me ofendi<strong>do</strong> quem<br />
devia respeitar-me, impossível era assegurar-se vivo enquanto não me visse<br />
morto; e ain<strong>da</strong> depois de minha morte, parentes tenho que pudessem vingar o<br />
labéu de sua ofensa e a per<strong>da</strong> de minha vi<strong>da</strong>. Esta é, senhor Dom Sancho, a<br />
causa de trazer ao senhor Dionísio a este lugar, para que ou seu sangue lave<br />
as manchas de minha honra perdi<strong>da</strong>, ou minha morte sirva de fim a meu<br />
sentimento; que a um honra<strong>do</strong> ofendi<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> é tormento e a morte alívio.<br />
Deu fim Alexandre ao justo de sua queixa, mas não ao intenso de sua<br />
mágoa, de que admira<strong>do</strong> o espanhol perguntou a Dionísio que satisfação tinha<br />
que <strong>da</strong>r a uma culpa tão indigna de caber em honra<strong>do</strong> peito; ao que o genovês<br />
respondeu que o senhor Alexandre estava mal informa<strong>do</strong> no crime que lhe<br />
arguia, porque ele nunca vira a senhora Anastácia sua irmã, nem lhe devia o<br />
mais pequeno favor, pois quan<strong>do</strong> ele os pertendesse alcançar dela, seria para<br />
honrar-se em casar com ela e não para enganá-la, nem desacreditar o luzi<strong>do</strong><br />
de sua fama, e que se ela outra cousa dizia não falava o certo.<br />
- Pois poderei eu persuadir-me (disse Dom Sancho) que essa senhora,<br />
sen<strong>do</strong> <strong>do</strong>nzela e tão bem naci<strong>da</strong>, houvesse de pôr sobre seu crédito uma falta
232 Padre Mateus Ribeiro<br />
tão grande, e de que à sua família e nobreza de seus pais redun<strong>da</strong> tanta<br />
afronta sem ser ver<strong>da</strong>de? Ou imaginais que a fama de vossa riqueza faria<br />
brecha em seu pun<strong>do</strong>nor para com o título de ofensa querer-vos por esposo?<br />
Aonde se viu mulher que não sen<strong>do</strong> amante obrasse mais como interessa<strong>da</strong><br />
que como decorosa? Não sabeis vós que o requinta<strong>do</strong> <strong>da</strong> amargura é chegar<br />
uma mulher bem nasci<strong>da</strong> e com recolhimento cria<strong>da</strong> a confessar que caiu,<br />
sen<strong>do</strong> ver<strong>da</strong>deiro o descui<strong>do</strong>, quanto mais a publicar que se rendeu, sen<strong>do</strong><br />
falso o delito? Em que tormento a puseram para culpar-vos? Ou por ventura<br />
éreis único para pertender-vos? Se não vos iguala a riqueza, na<strong>da</strong> desmerece<br />
na fi<strong>da</strong>lguia, e sen<strong>do</strong> moça e fermosa que faltava para não ser merece<strong>do</strong>ra <strong>da</strong><br />
maior ventura? Assim que, senhor Dionísio, não queirais negar o que não<br />
podeis sustentar nem defender, pois não haveis de ser cri<strong>do</strong>, que eu não saí<br />
convosco a este lugar para apadrinhar sem-razões, que se <strong>da</strong> causa deste<br />
desafio tivera conhecimento, nem eu vos consentira que saísseis, nem vos<br />
acompanhara.<br />
Quis replicar o genovês, mas Alexandre arrancan<strong>do</strong> a espa<strong>da</strong> já<br />
impaciente investia, sem querer mais ouvi-lo; que quan<strong>do</strong> os desaforos chegam<br />
a não poder tolerar-se, desluzimento <strong>do</strong> valor seria o com palavras divertir-se.<br />
Arranquei eu a espa<strong>da</strong> e Dom Sancho, que meten<strong>do</strong>-se de por meio intentava<br />
que Alexandre de novo o ouvisse, mas antecipou-se a paixão no agrava<strong>do</strong>, que<br />
sen<strong>do</strong> esta, como disse Aristóteles, impetuosa violência para acometer a<br />
vingança, antes que Dom Sancho pudesse ser ouvi<strong>do</strong>, tinha o genovês<br />
recebi<strong>do</strong> no braço direito uma perigosa feri<strong>da</strong>, com que não poden<strong>do</strong> sustentar<br />
a espa<strong>da</strong> lhe caiu em terra. Acudiu Dom Sancho a que o não matassem,<br />
defenden<strong>do</strong>-o com valor, que ain<strong>da</strong> que conhecia a razão de Alexandre, era<br />
justo fazer nesta precisa ocasião ofício de padrinho em defendê-lo; porém não<br />
foi tão fácil a protecção que ele não ficasse feri<strong>do</strong> e nos ferisse, se bem não<br />
eram os golpes de perigo.<br />
A este tempo em que o campo estava matiza<strong>do</strong> de sangue e a<br />
pendência tão confusa, que se lhe podia pronosticar um fim lastimoso, porque<br />
a paixão de Alexandre não lhe consentia suspender as armas sem matar ao<br />
mal aconselha<strong>do</strong> genovês a quem Dom Sancho defendia, para que o não<br />
matasse, e ven<strong>do</strong>-nos to<strong>do</strong>s feri<strong>do</strong>s e empenha<strong>do</strong>s no solitário <strong>do</strong> lugar e no<br />
maior silêncio <strong>da</strong> noite, acudiu a apartar-nos a justiça, que ten<strong>do</strong>-se em
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 233<br />
Nápoles aviso <strong>do</strong> desafio, man<strong>do</strong>u o vice-rei a to<strong>da</strong> a pressa um auditor <strong>da</strong><br />
corte bem acompanha<strong>do</strong> de gente, que chegan<strong>do</strong> ao lugar nos requereram <strong>da</strong><br />
parte d'el-rei que nos tivéssemos, encaran<strong>do</strong> em nós as espingar<strong>da</strong>s para que<br />
não resistíssemos. Estava Alexandre tão colérico de ver que não conseguira na<br />
morte de Dionísio a vingança total de seu agravo, e que com a prisão agora de<br />
novo se impedia, que chegan<strong>do</strong>-se um <strong>do</strong>s ministros <strong>da</strong> justiça para prendê-lo,<br />
ele cego <strong>da</strong> ira, não consideran<strong>do</strong> o que fazia, lhe correu a espa<strong>da</strong> <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe<br />
pelo peito uma estoca<strong>da</strong> perigosa, caiu em terra pedin<strong>do</strong> confissão; e o auditor,<br />
ofendi<strong>do</strong> <strong>da</strong> resistência e pouco respeito que se lhe guar<strong>da</strong>va, sem guar<strong>da</strong>r<br />
isenções <strong>da</strong> fi<strong>da</strong>lguia que se deviam à quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s pessoas, privan<strong>do</strong>-nos<br />
<strong>da</strong>s armas nos levou presos, buscan<strong>do</strong> só na quinta que estava mais vizinha<br />
uma liteira em que ia o genovês e o ministro, por serem de perigo as feri<strong>da</strong>s e<br />
não estarem capazes de ir a pé perto de meia légua de caminho que a ci<strong>da</strong>de<br />
de Nápoles distava <strong>do</strong> lugar.<br />
Cap. IV.<br />
Do que sucedeu em Nápoles e a notícia que se teve <strong>do</strong> roubo de Lucin<strong>da</strong><br />
Confusos caminhávamos os quatro prisioneiros entre o silêncio <strong>da</strong> noite<br />
e o estron<strong>do</strong>so <strong>da</strong> justiça, que como os que nos acompanhavam eram muitos e<br />
bem arma<strong>do</strong>s, por to<strong>do</strong>s os lugares que passávamos, sain<strong>do</strong> a gente a saber o<br />
que era, se divulgava a fama; e como esta, como disse Cícero, refere as<br />
cousas em suma, mas não a ordem delas, fica penden<strong>do</strong> <strong>da</strong>s opiniões e<br />
pareceres <strong>do</strong> vulgo o luzi<strong>do</strong> ou desairoso <strong>da</strong>s acções, enquanto o dia <strong>da</strong><br />
ver<strong>da</strong>de, desterran<strong>do</strong> as sombras de que as vestiu o primeiro rumor na<br />
apreensão <strong>do</strong>s ouvintes, não apura o merecimento delas.<br />
É sempre o povo o primeiro juiz que sentenceia as cousas pelo que<br />
ouve, e só tem sua sentença apelação para o tribunal <strong>do</strong> desengano quan<strong>do</strong> se<br />
qualifica o que é. Facilmente, diz S. Jerónimo, se apaga um rumor quan<strong>do</strong> a<br />
falsi<strong>da</strong>de o produz, bem como a exalação que apenas se vê quan<strong>do</strong> se apaga,<br />
que como a matéria de que se forma é tão ténue bem poderá correr, mas não<br />
durar. Isto digo pela varie<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s juízos que sobre nossa prisão corriam;
234 Padre Mateus Ribeiro<br />
porque ven<strong>do</strong>-se a tais horas tanta multidão de gente arma<strong>da</strong> e uns feri<strong>do</strong>s a<br />
pé cerca<strong>do</strong>s de espingar<strong>da</strong>s, outros feri<strong>do</strong>s em liteira acompanha<strong>do</strong>s de<br />
gemi<strong>do</strong>s, o tropel de cavalos que nos seguiam, bastante motivo <strong>da</strong>vam a nos<br />
avaliarem por ban<strong>do</strong>leiros, outros a nos julgarem por homici<strong>da</strong>s ou facinorosos<br />
delinquentes. É a noite, como disse Tito Lívio, a que faz as cousas mais<br />
duvi<strong>do</strong>sas, é centro <strong>da</strong> confusão, inquieta apreensão <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, sofístico<br />
argumento <strong>do</strong>s receios, oficina tenebrosa <strong>do</strong>s temores, como lhe chamou S.<br />
Agostinho, temporal morte <strong>do</strong>s olhos, abrevia<strong>da</strong> suspensão <strong>da</strong> vista, engano <strong>da</strong><br />
fantasia, trémula diversão <strong>do</strong> juízo, rémora <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e imagem <strong>da</strong> morte. E se<br />
para to<strong>do</strong>s é geral sua moléstia, bem posso eu afirmar que para mim com<br />
particulari<strong>da</strong>des foi penosa, pois me considerava preso, feri<strong>do</strong> e com menos<br />
decência trata<strong>do</strong> <strong>do</strong> rigor severo <strong>da</strong> justiça, que como o auditor <strong>da</strong> corte na<br />
resistência que Alexandre fez quan<strong>do</strong> feriu ao ministro que o prendia presumiu<br />
se lhe perdia o decoro, é tão escrupulosa <strong>do</strong>s respeitos a autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> justiça<br />
que talvez a menor sombra imagina por agravo.<br />
Nunca aos príncipes, diz Santo Anselmo, se há-de fazer resistência,<br />
ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> nos tiram o que é nosso, quanto mais quan<strong>do</strong> usam <strong>do</strong> justo<br />
poder que é seu. É a justiça <strong>do</strong>s reis a paz <strong>do</strong>s povos, defensa <strong>da</strong> pátria,<br />
balança fiel <strong>da</strong> razão, cura <strong>da</strong>s insolências, freio <strong>do</strong>s desaforos, refúgio <strong>do</strong>s<br />
oprimi<strong>do</strong>s, amparo <strong>do</strong>s agrava<strong>do</strong>s e conservação <strong>da</strong> bonança <strong>da</strong> república. Lá<br />
disse S. Agostinho que quem resiste ao rei justo parece resistir a Deus, cujo<br />
ministro é e imagem sua.<br />
Chegámos a Nápoles, minha pátria, com diferente gosto <strong>do</strong> que outras<br />
vezes alegria. Era meia-noite quan<strong>do</strong> na ci<strong>da</strong>de entrámos, mais acompanha<strong>do</strong>s<br />
de gente <strong>do</strong> que quiséramos: levou-nos o auditor a mim e a Alexandre e a Dom<br />
Sancho à cadeia pública, chaman<strong>do</strong> quem nos curasse <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s que<br />
tínhamos, eu uma estoca<strong>da</strong> na mão esquer<strong>da</strong>, Alexandre um golpe no alto <strong>da</strong><br />
cabeça e Dom Sancho de Car<strong>do</strong>na uma estoca<strong>da</strong> no ombro direito, mas<br />
nenhuma destas perigosa. Só Dionísio, por sua penetrante feri<strong>da</strong> lhe não<br />
assegurar a vi<strong>da</strong>, lhe deu o auditor a casa por prisão com vinte sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s para o<br />
guar<strong>da</strong>rem até <strong>da</strong>r conta ao vice-rei, que era neste tempo Dom Pedro de<br />
Tole<strong>do</strong>, Marquês de Vila Franca, sujeito <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de grande valor e experiência<br />
assim nas armas como nas razões de esta<strong>do</strong>. O ministro feri<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> cura<strong>do</strong>,<br />
desconfiaram os cirurgiões de sua vi<strong>da</strong>, cousa que a to<strong>do</strong>s pôs em grande
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 235<br />
pena, porque como o vice-rei era pessoa de tanta inteireza na justiça, queren<strong>do</strong><br />
que to<strong>do</strong>s a respeitassem, se o feri<strong>do</strong> morresse grande risco corria a vi<strong>da</strong> de<br />
Alexandre e ain<strong>da</strong> as <strong>do</strong>s mais presos não se julgavam seguras.<br />
Em rompen<strong>do</strong> a manhã, deu o auditor conta ao vice-rei <strong>do</strong> sucedi<strong>do</strong>, que<br />
com notável severi<strong>da</strong>de nos man<strong>do</strong>u aos três levar presos ao castelo de<br />
Santelmo, que está edifica<strong>do</strong> junto ao mar na eminência de um roche<strong>do</strong>, obra<br />
que foi de Carlos de Anjou, francês rei de Nápoles, e de novo fortifica<strong>do</strong> pelo<br />
ínclito empera<strong>do</strong>r Carlos Quinto, que ao presente em Nápoles reinava. Nesta<br />
varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fortuna, mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> sítios sem mu<strong>da</strong>r ventura, mas só de uma<br />
prisão pública para outra, se bem menos vulgar mais aperta<strong>da</strong>, andei<br />
experimentan<strong>do</strong> a diferença que vai <strong>do</strong> cativeiro à liber<strong>da</strong>de. Lá disse Diógenes<br />
que a melhor cousa e a pren<strong>da</strong> entre os homens de maior estimação era a<br />
liber<strong>da</strong>de; ao mesmo intento falou Cícero quan<strong>do</strong> disse que a fim de restaurar-<br />
se a liber<strong>da</strong>de perdi<strong>da</strong> o menos era aventurar a vi<strong>da</strong>. O Séneca discretamente<br />
lhe chamou bem inestimável, e ain<strong>da</strong> nas aves e brutos animais se conhece o<br />
sentimento grande de a perderem. Ter embarga<strong>do</strong>s os passos, impedi<strong>do</strong>s os<br />
desejos, com grades a vista, com sentinela a vi<strong>da</strong>, com vigias o sono, viver ao<br />
querer de vontade alheia, obedecer força<strong>do</strong> ao que menos se inclina, ver an<strong>da</strong>r<br />
outros livres que valem menos, passar os dias sem gosto, as noites sem alívio,<br />
a vi<strong>da</strong> sem lograr-se, a i<strong>da</strong>de sem frutos, os anos sem proveito, nem livre para<br />
as delícias <strong>da</strong> paz nem para merecer os conflitos <strong>da</strong> guerra, esqueci<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
amigos e sen<strong>do</strong> alvo <strong>da</strong> vingança <strong>do</strong>s contrários, envejan<strong>do</strong> aos mesmos<br />
cria<strong>do</strong>s que o servem a liber<strong>da</strong>de com que lhe assistem, nem poderosos para<br />
livrar-se a si, nem vali<strong>do</strong>s para favorecerem a outrem, é pena tão excessiva,<br />
<strong>do</strong>r tão contínua, que como primeiro móvel leva após si to<strong>do</strong>s os sentimentos.<br />
E como em mim era a primeira vez que me vi prisioneiro, quan<strong>do</strong> me<br />
considerava mais mimoso <strong>da</strong> ventura na companhia de meus pais e irmã,<br />
passan<strong>do</strong> os rigores <strong>do</strong> Estio entre o sombrio <strong>do</strong>s bosques, o ameno <strong>do</strong>s<br />
pra<strong>do</strong>s, o delicioso <strong>do</strong>s arvore<strong>do</strong>s, o cristalino <strong>da</strong>s fontes e o matiza<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
jardins que na quinta tinha, ven<strong>do</strong>-me agora priva<strong>do</strong> <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, bem que<br />
nem se conhece nem estima senão quan<strong>do</strong> se perde, e isto para mais<br />
sentimento sem eu ser culpa<strong>do</strong>, nem nas levian<strong>da</strong>des de Anastácia que se<br />
confiou de promessas, nem na pouca ver<strong>da</strong>de e ingratidão <strong>do</strong> genovês em<br />
negar tão justas obrigações, de crer é que seria particular meu sentimento,
236 Padre Mateus Ribeiro<br />
encerra<strong>do</strong> em uma torre, em cujos roche<strong>do</strong>s as on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mar quebravam seus<br />
furores, e exposto à severa justiça <strong>do</strong> vice-rei, em quem competia o valor com<br />
inteireza.<br />
Apenas pois as primeiras vanguar<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s luzes <strong>da</strong> aurora fez equivocar<br />
suspensões entre a noite e o dia, se dia pode chamar-se o que aparece vesti<strong>do</strong><br />
ain<strong>da</strong> <strong>do</strong> mesmo luto <strong>da</strong> noite, quan<strong>do</strong> acudin<strong>do</strong> os cria<strong>do</strong>s que afugentou o<br />
temor e fez esconder o receio à quinta e aos bra<strong>do</strong>s de meu pai, quebran<strong>do</strong><br />
com macha<strong>do</strong>s a porta, porque as chaves tinham leva<strong>do</strong> os mouros para que<br />
ninguém os seguisse, viram a meu lastima<strong>do</strong> pai <strong>da</strong>n<strong>do</strong> gritos entre fontes de<br />
lágrimas, que quan<strong>do</strong> os pesares são tão poderosos e a per<strong>da</strong> tão irreparável<br />
no <strong>da</strong>no não é fraqueza o chorar, pois é tão justa e natural a obrigação <strong>do</strong><br />
sentir. São as lágrimas o fruto <strong>da</strong> tristeza, o tributo que se paga à aflição, a<br />
pensão onerosa que se tributa à mágoa. Chorou César à vista <strong>da</strong> corta<strong>da</strong><br />
cabeça de Pompeu; chorou Cipião à vista <strong>do</strong>s incêndios de Cartago; chorou o<br />
grande Alexandre não só na injusta morte de Clito, mas com extremos na de<br />
seu caro amigo Heféstion; e outros muitos que referir pudera, porque, como diz<br />
Santo Ambrósio, são os olhos anima<strong>do</strong>s poros <strong>do</strong> coração por onde respira a<br />
<strong>do</strong>r. Acompanharam to<strong>do</strong>s a meu pai no sentimento e lágrimas; mas que muito<br />
era que chorassem tal infortúnio os que se tinham cria<strong>do</strong> com Lucin<strong>da</strong> quan<strong>do</strong><br />
ain<strong>da</strong> <strong>do</strong>s mais estranhos foi sua per<strong>da</strong> geralmente senti<strong>da</strong> e particularmente<br />
chora<strong>da</strong>? Acrescentava a pena o verem a minha mãe desmaia<strong>da</strong>, priva<strong>da</strong> <strong>do</strong>s<br />
senti<strong>do</strong>s; nem era maravilha que quem teve senti<strong>do</strong>s para conhecer tal per<strong>da</strong>, a<br />
mágoa grande dela lhe roubasse os senti<strong>do</strong>s. E para que em tu<strong>do</strong> fosse a pena<br />
sem alívio, faltava eu, fora <strong>do</strong> costume de não faltar de casa, que quan<strong>do</strong> a<br />
fortuna fecha as portas à consolação nem deixa postigo aberto ao desafogo.<br />
Eram os juízos que se lançavam vários; mas quem em tanta confusão<br />
poderia discursar ajuiza<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> ninguém tinha livre o juízo para o discurso?<br />
Chegaram as cria<strong>da</strong>s <strong>da</strong> embosca<strong>da</strong> em que as ocultou o pavor <strong>do</strong> cativeiro<br />
naquela infausta noite e só serviram com suas lastimosas lágrimas de<br />
aumentar a pena, se podia acrecentar-se <strong>do</strong>r, que parece tinha chega<strong>do</strong> ao<br />
auge <strong>do</strong> sentir. E como em na<strong>da</strong> meu pai achava nem conselho, nem alívio,<br />
antes tu<strong>do</strong> lhe impossibilitava o remédio, deixan<strong>do</strong> minha mãe ao cui<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>da</strong>s<br />
cria<strong>da</strong>s, para que lhe assistissem com remédios, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> selar um cavalo<br />
que na ligeireza mais parecia insensível raio que anima<strong>do</strong> bruto, partiu para
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte II 237<br />
Nápoles a <strong>da</strong>r conta ao vice-rei de sua queixa, la pelo caminho, nas<br />
intercadências que permitia a <strong>do</strong>r ao juízo, forman<strong>do</strong> tais discursos:<br />
- Que este roubo de Lucin<strong>da</strong> fosse de piratas, meus olhos o viram; mas<br />
que só a ela levassem sem tocar nas jóias e fazen<strong>da</strong> de minha casa, nem me<br />
levarem a mim e a sua mãe cativa, sequer para aumentar o preço de seu<br />
resgate, em que juízo cabe? Aonde jamais se viram cossários que, poden<strong>do</strong><br />
enriquecer com o assalto, fossem tão comedi<strong>do</strong>s na execução? E se disser que<br />
o lanço foi de quem a Lucin<strong>da</strong> amava, como podia um mouro amar o que visto<br />
não tinha? E quan<strong>do</strong> concedera que a amasse pela fama só <strong>da</strong> fermosura de<br />
que a enriqueceu a natureza para ser tão pouco venturosa, como os outros<br />
mouros satisfizeram com a ventura de um só sua natural cobiça? Não tocar nas<br />
riquezas quem só se move a piratear por interesses, arriscar-se a perder a vi<strong>da</strong><br />
nos assaltos e, sen<strong>do</strong> gentes bárbaras, rejeitar tão liberal os logros <strong>da</strong> cobiça,<br />
quan<strong>do</strong> tanto a seu salvo puderam aproveitar-se, é segre<strong>do</strong> que não decifra<br />
qualquer juízo. Contentar-se com a presa de uma moça tanta diversi<strong>da</strong>de de<br />
pareceres e tanta varie<strong>da</strong>de de vontades, mais tem de fun<strong>do</strong> para son<strong>da</strong>r-se <strong>do</strong><br />
que de clareza para entender-se. Além disto, como estan<strong>do</strong> sete galés reais no<br />
porto de Nápoles teve ousadia uma lancha de mouros para em tão pouca<br />
distância delas lançar gente em terra? Em que se confiou a temeri<strong>da</strong>de destes<br />
inimigos? Ou quem lhes assegurou a felici<strong>da</strong>de <strong>do</strong> retiro? Mas tu<strong>do</strong> lhes<br />
sucedeu como queriam porque era eu só o agrava<strong>do</strong>. Oh! malogra<strong>da</strong> Lucin<strong>da</strong>,<br />
em que vieram a parar teus merecimentos e minhas alegrias? Perdi-te na flor<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, na lisonja de teus anos, no tempo em que me considerava mais feliz,<br />
quan<strong>do</strong> eras o lume de nossos olhos, para deixares sem luz nossa vista.<br />
Assim vacilan<strong>do</strong> entre lágrimas e discursos entrou meu pai em Nápoles,<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong> conta ao vice-rei desta desgraça com as circunstâncias dela e, antes<br />
que o vice-rei se deliberasse no remédio que lhe <strong>da</strong>ria, lhe entrou um sol<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
dizen<strong>do</strong> que a galé <strong>do</strong> capitão Juliano faltava <strong>da</strong> barra aonde estava ancora<strong>da</strong><br />
e que uma barca que entrara de pesca<strong>do</strong>res dera vista dela, que ia navegan<strong>do</strong><br />
na volta de Berbéria. Aqui ficou de to<strong>do</strong> assusta<strong>do</strong> o vice-rei e meu pai,<br />
recolhen<strong>do</strong> as implica<strong>da</strong>s redes de seus discursos com a nova presente, lhe<br />
disse assim:<br />
- Excelentíssimo senhor, declara<strong>do</strong> vejo já o escuro enigma em que<br />
tanto tem vacila<strong>do</strong> meu juízo. O capitão Juliano man<strong>do</strong>u roubar minha filha
238 Padre Mateus Ribeiro<br />
Lucin<strong>da</strong>, queren<strong>do</strong> encobrir o escan<strong>da</strong>loso <strong>do</strong> insulto com o disfarce mourisco,<br />
como se pudera estar muito tempo oculto tão execrável delito. Não é justo que<br />
em terra de um empera<strong>do</strong>r tão católico e em um reino governa<strong>do</strong> por um<br />
príncipe tão justo como vossa excelência se permitam tais desaforos e que por<br />
Juliano se criar na casa de vossa excelência, de quem pudera aprender to<strong>da</strong> a<br />
modéstia, tomasse motivos para tão grande ousadia. Quem poderá viver de<br />
hoje em diante seguro se um tão odioso atrevimento se não refrear com o mais<br />
exemplar castigo? Man<strong>do</strong>u Júlio Bruto degolar seu próprio filho na praça de<br />
Roma por intentar introduzir nela a Tarquino; e o cônsul Tito Mânlio, não menos<br />
severo, man<strong>do</strong>u degolar a seu filho, com ser vence<strong>do</strong>r na batalha que deu aos<br />
latinos, por haver peleja<strong>do</strong> contra a obediência que devia a suas ordens. E<br />
Mazeu, capitão <strong>do</strong>s cartagineses, man<strong>do</strong>u matar a seu próprio filho Cartallo,<br />
por lhe sair a falar fora <strong>do</strong>s muros de Cartago com gala de festa, quan<strong>do</strong> o pai<br />
com muitos <strong>do</strong>s principais cartagineses an<strong>da</strong>va desterra<strong>do</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Pois se<br />
na justiça não teve lugar o amor paternal para suspender o rigor, nem para<br />
impedir o castigo, confio eu <strong>da</strong> inteireza e valor de vossa excelência, não<br />
deixará em o atrevi<strong>do</strong> Juliano um crime tão escan<strong>da</strong>loso sem a pena mereci<strong>da</strong>;<br />
para que nele tomem exemplo os arroja<strong>do</strong>s a não profanar a casa de pessoas<br />
ilustres e guar<strong>da</strong>r o decoro que se deve às <strong>do</strong>nzelas de tantas pren<strong>da</strong>s e<br />
virtude como Lucin<strong>da</strong>, a quem vossa excelência tem tanta obrigação de<br />
amparar e defender, assim por quem é, como pelo cargo e lugar em que está<br />
posto.<br />
Admira<strong>do</strong> ouviu o vice-rei as justas queixas de meu pai, e prometen<strong>do</strong>-<br />
Ihe fazer em Juliano (se em tal mal<strong>da</strong>de o achasse compreendi<strong>do</strong>) um tal<br />
castigo que desse em to<strong>da</strong> a Europa maior bra<strong>do</strong> <strong>do</strong> que fosse a voz<br />
publica<strong>do</strong>ra de seu delito, e man<strong>do</strong>u logo que to<strong>da</strong>s as galés que no porto<br />
estavam fossem em seguimento <strong>da</strong> que fugira. Na capitania <strong>da</strong>s quais se<br />
embarcou meu pai, leva<strong>do</strong> <strong>da</strong> <strong>do</strong>r <strong>do</strong> agravo e estimula<strong>do</strong> <strong>do</strong>s vingativos<br />
desejos <strong>da</strong> satisfação que dele pertendia. E como té este tempo minha prisão<br />
ignorasse, deixan<strong>do</strong> uma carta escrita a minha mãe, e em que a consolava e<br />
dizen<strong>do</strong>-lhe se embarcava a procurar sua filha, e encomen<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me a mim<br />
que com to<strong>do</strong> o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> lhe assistisse, seriam dez horas <strong>da</strong> manhã quan<strong>do</strong> as<br />
galés largaram as velas e ao maior impulso <strong>do</strong>s remos foram cortan<strong>do</strong> as
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 239<br />
on<strong>da</strong>s com tal pressa, por terem o vento favorável, que em breve espaço de<br />
tempo as perderam de vista.<br />
Cap. V.<br />
Em que o Ermitão prossegue os sucessos de sua prisão e a deliberação de<br />
Anastácia<br />
Deixemos agora a meu pai navegan<strong>do</strong> em companhia <strong>da</strong>s galés que<br />
seguiam a fugitiva em que ia rouba<strong>da</strong> a filha dele com extremos ama<strong>da</strong>, que a<br />
seu tempo trataremos <strong>da</strong> derrota desta navegação, para referir os rumores <strong>da</strong><br />
fama que em Nápoles corriam sobre este inopina<strong>do</strong> sucesso. Apenas se<br />
divulgou o <strong>caso</strong>, quan<strong>do</strong> se empenharam os juízos a investigar as causas dele.<br />
É natural aos que ouvem uma novi<strong>da</strong>de acrescentá-la com arguí-la, disse Tito<br />
Lívio 293 ; porque como as intenções de quem obra não sejam manifestas a<br />
quem delas não participa, com quererem alcançar os fins que ignoram,<br />
aumentam os rumores <strong>do</strong> que a fama publica. Quem dizia que Juliano roubara<br />
a Lucin<strong>da</strong> por vingar-se de não ser por esposo admiti<strong>do</strong>; quem ajuizava que só<br />
obriga<strong>do</strong> <strong>do</strong> amor que lhe tinha se empenhara a levá-la, por serem mais<br />
poderosas as forças <strong>do</strong> amor que as <strong>da</strong> vingança, e mais quan<strong>do</strong> o não ser<br />
admiti<strong>do</strong> se não podia avaliar por agravo, pois a outro não escolhia. Ser outro<br />
na pertensão preferi<strong>do</strong> pudera com <strong>da</strong>r motivos ao sentimento, <strong>da</strong>r causas à<br />
temeri<strong>da</strong>de <strong>do</strong> arrojo em ânimos vingativos, mas faltan<strong>do</strong> a ocasião de ser<br />
outro anteposto não ficava razão de <strong>do</strong>r que a tanto atrevimento provocasse.<br />
Nestes e outros vários juízos se ocupava o vulgo, quan<strong>do</strong> me chegaram<br />
as trágicas novas por um <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s de meu pai que ficou em Nápoles que,<br />
ten<strong>do</strong> notícia de estar eu preso no castelo de Santelmo, veio para <strong>da</strong>r-me aviso<br />
deste infortúnio. Considerai, discreto amigo, qual seria o vivo de minha <strong>do</strong>r e o<br />
íntimo pesar de meu coração quan<strong>do</strong> tantas penas juntas me acometiam, que<br />
parece tem os males simpatia entre si para nunca virem solitários. Via de uma<br />
parte rouba<strong>da</strong> minha irmã em risco de jamais tomar a vê-la, seu crédito em<br />
Tit. Liv., Dec. 3. lib. 8.
240 Padre Mateus Ribeiro<br />
opiniões, minha honra em juízos <strong>do</strong> vulgo, meu pai embarca<strong>do</strong>, ofereci<strong>do</strong> aos<br />
perigos, minha mãe com poucas esperanças de vi<strong>da</strong> e eu impossibilita<strong>do</strong> de<br />
poder <strong>da</strong>r nem ao feito remédio, nem ao receio alívio, pois nem podia<br />
acompanhar a meu pai, nem assistir a consolar minha mãe em uma aflição tão<br />
excessiva. Intentar licença <strong>do</strong> vice-rei me parecia impossível, assim por estar o<br />
ministro feri<strong>do</strong> com poucas esperanças de vi<strong>da</strong>, como porque sen<strong>do</strong> ele de sua<br />
condição mui inteiro na justiça, ain<strong>da</strong> com a fugi<strong>da</strong> de Juliano e per<strong>da</strong> <strong>da</strong> galé,<br />
estaria mais implacável no rigor. Pertender a fugi<strong>da</strong>, além de ser arrisca<strong>da</strong>, não<br />
convinha porque era força me seguissem e buscassem, e assim não podia<br />
assistir a minha mãe para seu alívio. Pedir licença ao capitão <strong>do</strong> castelo era o<br />
meio menos arrisca<strong>do</strong>, mas com probabili<strong>da</strong>des de não me ser concedi<strong>do</strong>,<br />
porque desgostar ao vice-rei não se atrevem os ministros, assim pelo temor<br />
como pela dependência; que como de sua informação e favor se causam de<br />
ordinário seus aumentos, não é boa razão de conveniência dissaborear o gosto<br />
de quem pode resultar a ventura de seus aumentos.<br />
Nesta confusão em que me via sem acertar o meio que escolhesse, que<br />
nunca a tristeza foi aprova<strong>da</strong> para conselheira, me deliberei a escrever a minha<br />
mãe, consolan<strong>do</strong>-a na per<strong>da</strong> de Lucin<strong>da</strong>, com esperanças de em breves dias<br />
recuperá-la e eu brevemente vê-la, e com isto despedi ao cria<strong>do</strong>, que achan<strong>do</strong>-<br />
a com mais senti<strong>do</strong> com os remédios que se lhe aplicaram, impaciente <strong>da</strong><br />
corrente de tão repeti<strong>da</strong>s mágoas se partiu para Nápoles para aí ver o meio<br />
que ter podia para livrar-me e esperar que as novas <strong>da</strong>s galés viessem.<br />
Devassava-se o <strong>caso</strong> <strong>do</strong> desafio e resistência com notável rigor, porque o<br />
genovês estava em evidente perigo e o ministro feri<strong>do</strong> quasi nas desconfianças<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, de cuja morte se podiam seguir irreparáveis <strong>da</strong>nos, quan<strong>do</strong> sucedeu<br />
que Anastácia, a irmã de Alexandre, ouvin<strong>do</strong> as novas <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> em que se<br />
achava Dionísio, arroja<strong>da</strong> <strong>do</strong> amor e precipita<strong>da</strong> na vingança de seu ingrato<br />
amante, esconden<strong>do</strong> um punhal e acompanha<strong>da</strong> de uma cria<strong>da</strong>, secretária que<br />
havia si<strong>do</strong> de seus infelices cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, ao tempo que seus pais <strong>do</strong>rmiam, se<br />
saiu de casa e chegan<strong>do</strong> a Nápoles antes de pedir a aurora ao mun<strong>do</strong><br />
alvíssaras <strong>do</strong> dia, entran<strong>do</strong> em casa <strong>do</strong> genovês com ousadia de amante e<br />
com atrevimentos de ofendi<strong>da</strong>, posta em sua presença lhe disse desta sorte:<br />
- Aqui verás, ingrato e falso Dionísio, a quanto obriga um amor e a<br />
quanto incita um agravo em uma mulher bem nasci<strong>da</strong>. Não te admires de ver-
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 241<br />
me arroja<strong>da</strong>, pois me confesso amante; nem te espantes de ver-me atrevi<strong>da</strong>,<br />
pois me publico ofendi<strong>da</strong>, que correm parelhas em meu peito o muito que te<br />
quis e o muito que me ofendes. São os agravos mui pouco cometi<strong>do</strong>s e os<br />
ciúmes em na<strong>da</strong> reporta<strong>do</strong>s, e nece<strong>da</strong>de grande seria que obran<strong>do</strong> tu como<br />
ingrato não obre eu como queixosa. Tem o sofrimento seus limites, enquanto<br />
as ofensas podem tolerar-se; mas quan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>r excede à paciência é apurar o<br />
sofri<strong>do</strong>, ocultar em silêncio o magoa<strong>do</strong>. Inquietaste, ingrato amante, o retiro em<br />
que vivia com meus pais a título de pertender-me para esposa; dei crédito a<br />
teus enganos, que como não aprendi a mentir, não pude a falsi<strong>da</strong>de conhecer.<br />
Presumi merecer-te por quem era e assim não era desvanecimento que te<br />
cresse. Não me cegaram tuas riquezas, porque só me paguei de tua pessoa;<br />
não busquei o que possuías, antes só o que eras, e quan<strong>do</strong> tiveras menos,<br />
então te estimara mais; pois fora para mim a maior riqueza conheceres que as<br />
não procuro. Teve meu amor tanto de fio como de desinteressa<strong>do</strong>, que suposto<br />
que me concedeu a fortuna limita<strong>do</strong>s os bens, comunicou-me a natureza<br />
aventeja<strong>do</strong>s os brios. Se foras mui humilde e eu mais poderosa, te levantara <strong>da</strong><br />
maior humil<strong>da</strong>de para subir-te à maior grandeza. Fez tua importunação brecha<br />
em meu peito, rendi-me a parti<strong>do</strong>s de tua esposa, porque então me julgava<br />
vence<strong>do</strong>ra quan<strong>do</strong> rendi<strong>da</strong> com tal título. Fostes fácil em prometer, porque<br />
intentavas não pagar: como se faltasse justiça no céu a quem o prometesse e<br />
vingança na terra a quem enganasse. Intentavas casamento agora com quem<br />
tinha mais para <strong>do</strong>tar-se, não com quem tinha mais valor para merecer-te.<br />
Cegou-te a ambição, sen<strong>do</strong> rico, e a mim não me cegaram tuas riquezas,<br />
sen<strong>do</strong> pobre: dispõe de quanto possuis a teu gosto e verás quanto te quero<br />
mais esposo pobre que amante rico. Amor que de interesses se vence é<br />
moe<strong>da</strong> falsa, tem os cunhos <strong>do</strong> querer e o metal de enganar; jamais na balança<br />
<strong>do</strong> amar pesou na<strong>da</strong> a ambição, porque em balanças <strong>da</strong> alma na<strong>da</strong> avultam os<br />
bens <strong>da</strong> terra.<br />
Agra<strong>do</strong>u-te meu parecer com lisonjas de fermosa; pagaste-te de meu<br />
juízo com adulações de discreta; pois como tão brevemente mu<strong>da</strong>stes de<br />
opinião sem eu mu<strong>da</strong>r-me? Se então me julgavas digna de merecer-te, como<br />
agora e avalias incapaz de alcançar-te? Se me aborreces por querer-te mais,<br />
novo arbítrio é <strong>da</strong> tirania pagarem-se finezas com desprezos. Que viste em<br />
mim que te desagra<strong>da</strong>sse? Por ventura ser fácil em crer-te? Pois <strong>da</strong>í mesmo te
242 Padre Mateus Ribeiro<br />
acresce maior obrigação; pois a troco de não mostrar-me ingrata ao que<br />
fingias, cerrei os olhos a temer que me enganavas.<br />
Põe diante o esta<strong>do</strong> em que estás, o risco <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a conta que hás-de<br />
<strong>da</strong>r, a obrigação que me deves, meu crédito perdi<strong>do</strong>, minha fama dislustra<strong>da</strong>,<br />
meus pais senti<strong>do</strong>s, meu irmão à morte arrisca<strong>do</strong> e eu de to<strong>do</strong>s aborreci<strong>da</strong> por<br />
teu respeito. De mulher bem nasci<strong>da</strong> e resoluta, quan<strong>do</strong> está tão injustamente<br />
agrava<strong>da</strong>, teme a maior vingança, que não há rigor mais tirano que aquele que<br />
nasce de um amor ofendi<strong>do</strong> e de uma fé mal paga<strong>da</strong>.<br />
Assim deu fim a senti<strong>da</strong> Anastácia a suas queixas, se queixas tão justas<br />
podem ter fim. Atento a ouviu o mal aconselha<strong>do</strong> amante e respondeu desta<br />
sorte:<br />
- Venceste, ó discreta Anastácia, com tuas razões meu desacerto, que<br />
negar ver<strong>da</strong>des tão notórias seria emprender impossíveis. É a razão pedra de<br />
estancar desculpas, que mal pode haver estas quan<strong>do</strong> a razão as embarga e a<br />
justiça as suspende. Confesso que te amei e que te devo as maiores dívi<strong>da</strong>s,<br />
que quem a dívi<strong>da</strong> confessa não quer isentar-se <strong>da</strong> paga. Dilatar o receber-te<br />
por esposa não foi por intentar em outra parte casamento, que isso ou foi ilusão<br />
de minha desgraça, ou imagina<strong>da</strong> apreensão de teus ciúmes; mas quis lograr<br />
os privilégios de livre este tempo em que não me resolvia a sofrer os encargos<br />
de casa<strong>do</strong>. Bem o pago no esta<strong>do</strong> em que me vês mais propínquo ao sepulcro<br />
que ao tálamo. Negar a teu irmão Alexandre a obrigação em que te estava, foi<br />
fazer pun<strong>do</strong>nor de querer obrigar-me com as armas ao que pudera persuadir-<br />
me a cortesia; e imaginei ficava desairoso em ceder ao desafio <strong>da</strong> espa<strong>da</strong> o<br />
que sem ela pudera vencer o termo <strong>da</strong> fi<strong>da</strong>lguia. Porventura quan<strong>do</strong> eu<br />
merecia tanta ventura em alcançar-te eram necessários desafios para receber-<br />
te? Mas não me admiro, que em ti foi acção de ciosa, em Alexandre de colérico<br />
e em mim de mal afortuna<strong>do</strong>. To<strong>do</strong>s os extremos fizeram liga em meu <strong>da</strong>no;<br />
que sabe uma desgraça unir o que muitos dias não poderiam ajuntar. E para<br />
desengano <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de que digo, aqui estou pronto para receber-te por esposa,<br />
sequer para que me estimes depois de morto, pois tanto risco me ocasionaste<br />
quan<strong>do</strong> vivos.<br />
Apenas o ansia<strong>do</strong> Dionísio deu fim a este enterneci<strong>do</strong> colóquio, quan<strong>do</strong><br />
Anastácia, largan<strong>do</strong> os grilhões às lágrimas que a paixão vingativa no íntimo de<br />
seus olhos tinha presas, quis mitigar com a água as chamas que em seu
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 243<br />
coração levantara a ira. Estava vivo o incêndio de seu amor, ain<strong>da</strong> que nas<br />
cinzas <strong>do</strong>s agravos escondi<strong>do</strong>, e como com o ar de seus suspiros se<br />
afugentaram as cinzas, renasceu delas como Fénix outra vez o mais abrasa<strong>do</strong><br />
querer. Man<strong>do</strong>u a to<strong>da</strong> a pressa chamar a seus pais para virem assistir a seu<br />
casamento que com licença <strong>do</strong> arcebispo de Nápoles, visto o perigo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em<br />
que Dionísio estava, se celebrou no próprio dia, não sem lágrimas de to<strong>do</strong>s,<br />
que há venturas que chegam tão tarde que servem de suspensão às alegrias.<br />
Lograr as felici<strong>da</strong>des sem pensão é privilégio <strong>do</strong>s venturosos; mas possuí-las<br />
com receios de perdê-las é lisonja que faz a fortuna aos tristes. Assim assistia<br />
Anastácia ao remédio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de seu esposo, entre os acidentes de alegre e as<br />
reali<strong>da</strong>des de triste. Alegre de se ver casa<strong>da</strong>, bem logra<strong>da</strong> sua deliberação,<br />
restaura<strong>da</strong> sua honra, livre de manchas seu crédito, desenviola<strong>da</strong> sua fama,<br />
satisfeitos seus pais, desagrava<strong>do</strong>s seus parentes, com esposo nobre e rico,<br />
estima<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s e corteja<strong>do</strong> de muitos, que, como diz Euripides, sempre os<br />
ricos são busca<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s grandes e admira<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s pequenos. Via-se triste em<br />
considerar a breve duração que prometiam suas alegrias no esta<strong>do</strong> em que via<br />
a seu esposo e em ver por sua causa a seu irmão preso e tão arrisca<strong>do</strong>.<br />
Levantar edifícios sobre temores é levar de companhia a ruína: são os receios<br />
névoas <strong>da</strong> alegria, porque assim como estas enquanto duram não consentem<br />
que o sol manifeste o brilhante resplan<strong>do</strong>r de seus raios, antes lhe escurecem<br />
o cintilante <strong>da</strong>s luzes, assim os temores e receios servem de eclipse às<br />
alegrias, não lhes permitin<strong>do</strong> nem <strong>do</strong>micílio no coração nem aparência na vista.<br />
São os temores escrúpulos <strong>da</strong> alegria que lhe não permitem lançar<br />
raízes no coração, porque quanto mais intenta descui<strong>da</strong>r-se, lhe tocam a<br />
rebate os receios e o assaltam as desconfianças de lograr-se o que mais se<br />
estima. Não há coração que seja monte Olimpo na eminência a quem não se<br />
atrevam os ventos <strong>do</strong> temor e as nuvens <strong>do</strong>s receios. Assegurar-se <strong>da</strong> fortuna<br />
será querer isentar-se de humano: não vende a fortuna seus favores tão<br />
baratos que os reparta sem pensão. Por isso disse Cassio<strong>do</strong>ro que raramente<br />
podia achar-se alegria isenta de inquietação e livre de receios, que como as<br />
cousas fora de seu centro estão violenta<strong>da</strong>s e sempre inquietas, assim nesta<br />
vi<strong>da</strong> as alegrias estão desnaturaliza<strong>da</strong>s de seu centro e como tais oprimi<strong>da</strong>s.<br />
De maneira que o ar aprisiona<strong>do</strong> nas entranhas <strong>da</strong> terra se queixa com<br />
gemi<strong>do</strong>s e forceja com abalos por soltar-se <strong>do</strong> cárcere que o encerra, porque
244 Padre Mateus Ribeiro<br />
fora de sua esfera não pode a bonança em alheio <strong>do</strong>micílio; assim como<br />
violenta<strong>da</strong>s as lágrimas em vale de tristezas na<strong>da</strong> tem de seguras e muito de<br />
inquietas.<br />
Deixemos Anastácia na suspensão que digo, entre os horizontes de<br />
triste e de alegre, se podem viver juntos <strong>do</strong>us contrários em distância tão<br />
breve, e tratarei <strong>do</strong> que nós passámos na prisão <strong>do</strong> castelo de que era<br />
governa<strong>do</strong>r um Filipe Ortis de Aven<strong>da</strong>nho, nobre espanhol e experimenta<strong>do</strong><br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong>, que casa<strong>do</strong> em Nápoles com uma senhora bem <strong>do</strong>ta<strong>da</strong> tinha dela<br />
uma filha que se chamava Eugenia, que a ser na i<strong>da</strong>de antiga pudera ser<br />
celebra<strong>da</strong> por admiração de fermosura mais que as Helenas e Cleópatras que<br />
deram motivo aos aplausos com que historia<strong>do</strong>res e poetas fizeram assunto<br />
<strong>do</strong>s encarecimentos, se bastantes encarecimentos pudera haver para tal<br />
assunto. Competia Eugenia consigo mesma, porque só ela era poderosa para<br />
emparelhar consigo, e pudera, anima<strong>do</strong> Narciso, desvanecer-se por única se<br />
no espelho por prodígio se retratara; mas nem o fino <strong>do</strong> cristal era capaz de<br />
debuxá-la sem ficar abati<strong>do</strong>, nem flor alguma era idónea para transformá-la em<br />
si sem ofendê-la. Parece se esmerou a natureza em fazê-la um extremo de<br />
beleza para ser queri<strong>da</strong> e a fortuna um extremo de amante para ser malogra<strong>da</strong>;<br />
competiam extremos com extremos e como estes são mimos <strong>da</strong> natureza e<br />
sempre são desfavoreci<strong>do</strong>s <strong>da</strong> ventura. Abater o soberano é ocasionar o<br />
desprezo, inclinar a altiveza, é perder os privilégios de singular; que o que<br />
granjeia respeitos por esquisito vem a perder to<strong>da</strong> a estimação por vulgar.<br />
Quem nasce só para ser ama<strong>da</strong> não ame, que em tanto conservará os<br />
aplausos de queri<strong>da</strong> enquanto não humilhar a bizarria de retira<strong>da</strong>. Presume um<br />
coração rendi<strong>do</strong> que é invencível o valor de quem a vence e venera com<br />
respeitos de querer-lhe mais a quem sempre presume de pagar-lhe menos. É<br />
razão de esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> fermosura o ser ingrata, que se a ingratidão em outros é<br />
vício, na beleza é conservação.<br />
As obras que se fazem força<strong>da</strong>s <strong>do</strong> interesse próprio não podem fazer<br />
obrigação, nem tem valor de dívi<strong>da</strong>s para esperarem satisfação, e como nos<br />
desvelos de amar ao portentoso <strong>da</strong> fermosura obra o amante (se bem livre na<br />
vontade) como violenta<strong>do</strong> <strong>do</strong> desejo ou suborna<strong>do</strong> <strong>da</strong> pertensão, não merece<br />
título de ingrata quem nem lhe pede os serviços, nem lhe admite os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s.<br />
Que a ame, a fermosura o pede, que a sirva, seu desejo o obriga, que a
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 245<br />
corteje, seu desvelo o persuade, e assim como acções de interesse próprio lhe<br />
não fica em dívi<strong>da</strong> o coração alheio. Oh! quanto Eugenia fora mais venturosa<br />
por cruel <strong>do</strong> que o foi por pie<strong>do</strong>sa! Nunca mostrara que tinha peito de humana<br />
quem tinha a beleza superior; vivera sempre nos retiros de ingrata e não<br />
experimentara os infortúnios de compassiva; deixara só amar-se e não amara,<br />
deixara só querer-se e não quisera, não decera <strong>da</strong> eminência de admira<strong>da</strong> ao<br />
baixo de querer ser pie<strong>do</strong>sa, que quan<strong>do</strong> os elementos mu<strong>da</strong>m de sítio sempre<br />
é para ruína. Dece o fogo no raio e sobe a água na inun<strong>da</strong>ção <strong>do</strong> dilúvio e tu<strong>do</strong><br />
é confusão, porque tu<strong>do</strong> an<strong>da</strong> fora de sua natural harmonia, o fogo decen<strong>do</strong> e<br />
a água subin<strong>do</strong>.<br />
Cap. VI.<br />
Em que Felisberto refere a história de Eugenia<br />
Era esta moça de quem vou tratan<strong>do</strong> única filha de seus pais que nela<br />
cifravam seus desvelos e empenhavam as memórias de seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s: era<br />
discreta como italiana e briosa como espanhola, que Espanha lhe comunicou o<br />
<strong>do</strong>naire e Itália o juízo, para que em tu<strong>do</strong> fosse cabal quem se prezava de seu<br />
única em tu<strong>do</strong>. A i<strong>da</strong>de não chegava aos vinte anos: flor <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, se não<br />
dissermos que a mais dilata<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> sempre pelo fugitivo é flor, que como nesta<br />
o viver parece acidente, pelo breve que dura to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> parece instante,<br />
porque a instantes passa.<br />
Estávamos os três prisioneiros neste castelo entregues à guar<strong>da</strong> de seu<br />
pai com aperta<strong>da</strong>s ordens <strong>do</strong> vice-rei, mas com liber<strong>da</strong>de para an<strong>da</strong>rmos por<br />
ele, aonde ela nos viu e foi de nós vista: não determino em que esteve o risco<br />
maior; só sei que o basilisco bem pode ser visto sem matar, mas não ver sem<br />
tirar vi<strong>da</strong>s, porque o veneno homici<strong>da</strong> não se oculta nos olhos que o vê, mas na<br />
vista mata<strong>do</strong>ra com que ele olha; assim o risco maior <strong>da</strong> fermosura mais<br />
próprio está em ver-se que me ver. É a fermosura, como disse Platão, a cousa<br />
mais amável: é raio que muitas vezes mata sem intentar matar, espa<strong>da</strong> que mil<br />
vezes fere sem querer ferir. Viu-nos enfim Eugenia e foi vista: a to<strong>do</strong>s<br />
alegraram seus olhos, admiran<strong>do</strong> a gentileza de que a <strong>do</strong>tou a natureza; mas
246 Padre Mateus Ribeiro<br />
quem ficou rendi<strong>do</strong> de sua vista foi Alexandre, que quan<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> fora o<br />
macedónio, perdera o nome de invencível com este vencimento. Descobriu-nos<br />
o cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, que este dificilmente se oculta: foi sua eleição aprova<strong>da</strong> por discreta<br />
e ain<strong>da</strong> não sei se diga que inveja<strong>da</strong> por venturosa; porque nos empenhos de<br />
amar é o maior valimento o <strong>da</strong> ventura: achou agra<strong>do</strong> nos olhos de Eugenia e<br />
em breves dias de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s mostrou séculos de finezas que, como tinham em<br />
Nápoles sua irmã já casa<strong>da</strong> e com tanta riqueza, eram sem número os regalos<br />
que a seu pai man<strong>da</strong>va com o título de prisioneiro, mas na ver<strong>da</strong>de mais<br />
estava de Eugenia sua filha com a liber<strong>da</strong>de rendi<strong>da</strong> que de seu pai com a<br />
liber<strong>da</strong>de sujeita. Duas prisões tinha: uma em que vivia e outra em que morava,<br />
que vai diferença grande entre morrer e viver, e como <strong>do</strong> amante disse Platão<br />
que em si próprio está como morto, porque só no empenho ama<strong>do</strong> vive;<br />
morava Alexandre com o corpo na torre, mas com os desvelos <strong>da</strong> alma na casa<br />
em que Eugenia vivia.<br />
Eram em nós os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s diferentes, porque meus pensamentos<br />
combati<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s de tão repeti<strong>do</strong>s pesares eram sem alívio; em Dom<br />
Sancho os desejos <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de só eram seus desvelos; mas em Alexandre as<br />
memórias de Eugenia eram seu sustento, não sentin<strong>do</strong> o estar preso, pois aí<br />
lograva a vista de seu maior alívio. Um dia pois que to<strong>do</strong>s três por divertir<br />
sentimentos estávamos em diversas matérias pratican<strong>do</strong>, disse eu o muito que<br />
tar<strong>da</strong>va aviso <strong>da</strong>s galés que em seguimento de Juliano seguiam, porque<br />
receava que a dilação, ain<strong>da</strong> que pequena, ocasionasse algum desvio com que<br />
se não conseguisse o efeito. Sempre a brevi<strong>da</strong>de, disse Dom Sancho, é o<br />
melhor roteiro <strong>da</strong> ventura. Se Aníbal não demorara inutilmente em Cápua fora<br />
senhor <strong>do</strong> Capitólio de Roma; o não seguir a tempo o grande Pompeu a vitória<br />
que alcançou contra César junto a Duraso, com que nesse dia pudera <strong>da</strong>r fim<br />
venturoso às guerras civis de Roma, foi causa de ser despois venci<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
mesmo César nos campos Farsálicos e perder Roma a liber<strong>da</strong>de que té então<br />
possuía. O grande Alexandre tanto venceu e conquistou com o valor como com<br />
a veloci<strong>da</strong>de, nunca <strong>da</strong>n<strong>do</strong> tempo ao inimigo que fugia para assegurar-se nem<br />
refazer-se. Vai grande diferença de quem intimi<strong>da</strong><strong>do</strong> foge, a quem vingativo o<br />
busca. Quem foge, trata de assegurar a vi<strong>da</strong>, e quem ofendi<strong>do</strong> o segue,<br />
empenha-se em <strong>da</strong>r-lhe morte. A primeira é acção <strong>da</strong> natureza e a segun<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
ira, e sempre as acções naturais são mais eficazes para os efeitos. Quem se
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 247<br />
teme foge com os passos e juntamente com os temores, quem o busca<br />
caminha com os passos e com os desejos: porém os temores são mais velozes<br />
para a conservação <strong>do</strong> que os desejos para a vingança. Isto digo porque como<br />
houve tantas horas de distância entre a fugi<strong>da</strong> dessa galé e as outras que<br />
saíram a <strong>da</strong>r-lhe alcance, qualquer distância em quem foge vem a ser grande,<br />
e como na inconstância <strong>da</strong>s navegações não há cousa segura, pois ou a calma<br />
<strong>do</strong>s ventos, ou o furioso <strong>da</strong>s borrascas, ou o impetuoso <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s fazem variar<br />
as derrotas com que se dilatam os efeitos. Nem é de admirar não ter chega<strong>do</strong><br />
aviso, pois temperar os mares não está na jurisdição de quem o deseja, mas<br />
no poder eterno de quem tu<strong>do</strong> governa.<br />
- Outra razão há (disse Alexandre) e é que para acometer o rendimento<br />
de uma galé que foge, não se aventura outra só que a segue, que como a<br />
desesperação faz <strong>da</strong> covardia temeri<strong>da</strong>de, como disse César, converten<strong>do</strong> em<br />
furor o que de antes era cautela, ven<strong>do</strong> os rebeldes fugitivos atalha<strong>do</strong>s os<br />
meios de salvarem as vi<strong>da</strong>s, voltam-se ao desejo cruel de vingarem as mortes<br />
e dá a desesperação agiganta<strong>do</strong>s alentos a quem de antes <strong>da</strong>va o temor<br />
fugitivas covardias. Esta foi a razão porque Temístocles, insigne capitão<br />
ateniense, sen<strong>do</strong> Xerxes venci<strong>do</strong> <strong>do</strong> exército e arma<strong>da</strong> <strong>da</strong>s uni<strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des de<br />
Grécia, e ven<strong>do</strong> que intentavam os gregos a to<strong>da</strong> a pressa ir-lhe cortar a ponte<br />
que sobre o Helesponto lança<strong>da</strong> tinha, para lhe atalharem o poder retirar-se, o<br />
man<strong>do</strong>u avisar que se apressasse em caminhar antes que lhe atalhassem a<br />
passagem <strong>da</strong> ponte (como fez) e deu a razão <strong>do</strong> aviso, dizen<strong>do</strong> que não queria<br />
chegar ao inimigo que fugia a última desesperação de não poder fazê-lo, pois<br />
bastavam trezentos mil persianos que com Mardónio, seu capitão, Xerxes em<br />
Grécia deixava; e não acrescentar mais inimigos a sua pátria com atalhar os<br />
passos ao restante deles, e é comum prolóquio que a inimigo que foge fazer-<br />
Ihe a ponte de prata.<br />
Não digo isto para que se enten<strong>da</strong> que houvesse de deixar de seguir-se<br />
com to<strong>do</strong> o afecto a Juliano, pois o delito é tal que de si próprio está pedin<strong>do</strong> o<br />
mais exemplar castigo, assim pelo violento rapto <strong>da</strong> senhora Lucin<strong>da</strong>, como<br />
pelo meio que para isso escolheu, <strong>do</strong>s mouros que na galé trazia, por se<br />
levantar com ela ao empera<strong>do</strong>r seu senhor, desobedecen<strong>do</strong> às ordens <strong>do</strong> vice-<br />
rei seu tenente, e <strong>da</strong>r indícios de intentar piratear os mares como cossário, que<br />
tu<strong>do</strong> são crimes que impossibilitam to<strong>do</strong> o perdão e excluem to<strong>da</strong> a clemência;
248 Padre Mateus Ribeiro<br />
mas para mostrar que se as galés que o seguem não puderem junto acometê-<br />
lo, uma só, e ain<strong>da</strong> duas, parece empresa arrisca<strong>da</strong>.<br />
- Nas batalhas e conflitos militares (respondi eu) mal pode haver<br />
segurança <strong>do</strong>s perigos. Bem sei eu, disse Lactâncio, que ninguém mais<br />
obstina<strong>da</strong>mente e com mais intrépi<strong>do</strong> valor peleija que o que a pelejar<br />
violentamente é constrangi<strong>do</strong>. Mas nem por isso se há-de deixar de emprender<br />
o conflito <strong>da</strong> guerra quan<strong>do</strong> a causa o pede. O provocar e desafiar a batalha,<br />
disse Vegécio 294 , que era mais feliz que o ser provoca<strong>do</strong> à conten<strong>da</strong>: e a razão<br />
deve de ser, por pressupor, que o que à batalha provoca leva <strong>da</strong> sua parte a<br />
justiça; porque se assim não fora, nem o saltea<strong>do</strong>r se prendera, nem o<br />
homici<strong>da</strong> se castigara, nem o facinoroso se punira, nem o pirata se afugentara;<br />
e padecera a república o detrimento de tantas insolências, se por se considerar<br />
que os delinquentes hão-de resistir obstina<strong>da</strong>mente, a quem para o castigo os<br />
busca quan<strong>do</strong> fogem, se lhes houvesse de permitir a fugi<strong>da</strong> com temor <strong>do</strong>s<br />
arrojos <strong>da</strong> desesperação. Vitórias não se alcançam sem sangue, triunfos não<br />
se conseguem sem perigos, fama não se adquire sem riscos e honra não se<br />
ganha sem trabalhos. Não fui eu tão venturoso que pudesse nesta ocasião de<br />
tanto sentimento meu e de tanta pena acompanhar a meu pai nesta jorna<strong>da</strong>,<br />
que eu fora o primeiro que me arrojara aos perigos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, sem temer riscos<br />
<strong>da</strong> morte, a troco de livrar minha irmã Lucin<strong>da</strong> e tomar a mereci<strong>da</strong> vingança de<br />
um agravo tão execrável como o temerário Juliano cometeu contra a casa de<br />
meus pais e decoroso respeito que a Lucin<strong>da</strong> se devia. Mas vejo meus pesares<br />
tão sem alívio que de to<strong>da</strong>s as partes de fecharam as portas ao remédio. Minha<br />
irmã desapareci<strong>da</strong>, meu pai ausente, minha mãe em contínuas lágrimas sem<br />
consolação, eu sem liber<strong>da</strong>de, nem poderoso para procurar-lhe o alívio, nem<br />
capaz para emprender o remédio.<br />
Assim estávamos com estes e outros discursos semelhantes os três<br />
prisioneiros, entreten<strong>do</strong> a moléstia por divertir os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s uma manhã, quan<strong>do</strong><br />
chegou um pajem de Anastácia a <strong>da</strong>r um escrito a Alexandre, que em o len<strong>do</strong>,<br />
mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> de repente as cores com o susto <strong>da</strong> nova, mostrou no sobressalto o<br />
desalento que sentia. Mal se dissimulam paixões <strong>da</strong> alma, pois por mais que a<br />
prudência ou valor intentem disfarçá-las, o coração com os golpes, os senti<strong>do</strong>s<br />
Vegec, Lib. 1.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 249<br />
com a inquietação e a memória com os divertimentos mostram que há inimigos<br />
que os assaltam e lhes não permitem sossego: já disse Euripides que não se<br />
podia intitular feliz o que muitas riquezas possuía, senão aquele a quem<br />
nenhumas tristezas inquietavam; e com razão, porque são as tristezas<br />
verdugos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, martírios <strong>da</strong> alma e eclipse de to<strong>do</strong>s os postos, embargos<br />
<strong>da</strong>s bonanças, rebates <strong>do</strong> descanso e assaltos inseparáveis <strong>da</strong> tranquili<strong>da</strong>de,<br />
ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> se imagina mais segura. Enfim Alexandre, violenta<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
sobressalto, se apartou connosco a lugar mais remoto e nos disse assim:<br />
- Por este escrito de minha irmã Anastácia vereis, senhores, o risco em<br />
que está a minha vi<strong>da</strong>, lede-o e consultaremos o meio que pode haver para<br />
evitar a morte, se bem eu confesso que o susto me tem tão inquieto que só<br />
tenho discurso para conhecer o perigo e não para descobrir o remédio.<br />
Com isto me entregou o escrito de Anastácia que dizia desta sorte:<br />
Como minhas venturas tiveram seu nascimento nas desgraças e<br />
minhas alegrias sua primeira origem nas tristezas, não é espanto que<br />
minhas felici<strong>da</strong>des sintam a pensão <strong>do</strong>s sobressaltos e penas em que me<br />
vejo. O ministro a quem feristes na infortuna<strong>da</strong> noite de vossa prisão a<br />
esta hora faleceu desta vi<strong>da</strong>, e conforme a rigorosa condição <strong>do</strong> vice-rei e<br />
zelo <strong>da</strong> justiça não há que esperar outra satisfação mais que a de vossa<br />
morte. Tratai com o segre<strong>do</strong> e brevi<strong>da</strong>de possível de ver se podeis fugir<br />
desse castelo antes que vos passem a prisão pública desta corte, que<br />
ouro e jóias tenho para facilitar-vos a saí<strong>da</strong>, se com chaves de ouro se<br />
puderem franquear as portas dessa prisão, e avisai-me logo <strong>do</strong> que<br />
ordenais, porque na brevi<strong>da</strong>de está o remédio. Vossa irmã Anastácia.<br />
Isto continha o papel que a to<strong>do</strong>s nos causou cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, porque to<strong>do</strong>s<br />
nos considerávamos participantes <strong>do</strong> perigo; porque se bem Alexandre, pelo<br />
que constava <strong>da</strong> devassa que se tirou, era o mata<strong>do</strong>r <strong>do</strong> ministro, e como tal<br />
exposto ao rigor <strong>do</strong> castigo, contu<strong>do</strong>, como nos tínhamos acha<strong>do</strong> no desafio<br />
como padrinhos dele, de que resultou ultimamente a morte <strong>do</strong> ministro, nunca<br />
ficávamos isentos à vista delas de uma dilata<strong>da</strong> prisão e áspero degre<strong>do</strong>,<br />
conforme o escan<strong>da</strong>loso <strong>da</strong> morte e severa condição <strong>do</strong> vice-rei, de que não
250 Padre Mateus Ribeiro<br />
podia esperar-se pie<strong>da</strong>de alguma. A autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leis, disse Demóstenes ,<br />
consiste na severi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> executor. Lá disse Santo Agostinho 296 que a coluna<br />
que sustentava a república era só a justiça; a esta chamou São João<br />
Crisóstomo 297 raiz <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> reino, porque sem ela mal pode conservar-se a<br />
monarquia, e como o vice-rei se prezava tanto de ministro inteiro na rectidão e<br />
constante na justiça, temi<strong>do</strong> por implacável na execução <strong>do</strong> que entendia era<br />
justo, em cujo ânimo não tinha entra<strong>da</strong> nem o valimento nem a compaixão para<br />
declinar ao favor, queren<strong>do</strong> que a justiça com inteira autori<strong>da</strong>de se<br />
conservasse em seus ministros; não havia no conflito presente para quem a<br />
vi<strong>da</strong> de Alexandre apelasse mais que para a fugi<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> esta executar se<br />
pudesse.<br />
Discursámos sobre o mo<strong>do</strong> com que poderia efectuar-se e em to<strong>do</strong>s<br />
achávamos mil dificul<strong>da</strong>des para deixar de sentir-se. Subornar com dádivas ao<br />
capitão parecia impossível, intentar suborno aos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s era meio mais para<br />
manifestar-se que para conseguir-se, intentar por cor<strong>da</strong>s despenhar-se <strong>do</strong><br />
muro tinha evidente risco, romper as portas <strong>do</strong> castelo temeri<strong>da</strong>de, fazer<br />
violência às sentinelas desespera<strong>do</strong> arrojo e finalmente a brevi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> prazo<br />
em que era necessário emprender a fugi<strong>da</strong> e a inquietação <strong>do</strong> coração de tal<br />
mo<strong>do</strong> embargavam os discursos que quanto mais se queriam apressar ao<br />
remédio, tanto menos acertavam o caminho. Não é o dia de aflição dia para<br />
subtilizar empresas quan<strong>do</strong> o temor oprime e quan<strong>do</strong> a pressa inquieta; e<br />
assim resolvemos que escrevesse Alexandre a sua irmã lhe enviasse logo as<br />
jóias e o mais dinheiro que pudesse, enquanto nos resolvíamos no caminho<br />
que a ventura nos preparasse.<br />
Cap. VII.<br />
Em que se conta a fugi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s três prisioneiros <strong>do</strong> castelo<br />
Demost., Cont. Mid.<br />
S.Aug., Decivit. Dei. 2.<br />
In Epist. Ad Rom.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 251<br />
Despedi<strong>do</strong> o pajem com esta resposta, consultámos os três o meio<br />
menos arrisca<strong>do</strong> para a fugi<strong>da</strong>.<br />
- Prolóquio foi (disse Alexandre) de Públio Mimo que um perigo grande<br />
não se vence sem outro; e o Séneca ensina que o valor é desejoso <strong>do</strong>s<br />
perigos. Eu, senhores, me vejo em esta<strong>do</strong> de me aventurar aos maiores por<br />
salvar a vi<strong>da</strong>: buscá-los sem causa é temeri<strong>da</strong>de, como diz Santo Ambrósio 298 ;<br />
mas quan<strong>do</strong> a necessi<strong>da</strong>de obriga e a ocasião a requer, e quan<strong>do</strong> outro<br />
remédio se não descobre, será mais desalento <strong>do</strong> coração e desmaio <strong>do</strong> valor<br />
obrar com regras <strong>da</strong> prudência que com os arrojos de temerário. Do vice-rei<br />
não há esperar pie<strong>da</strong>de pelo que tem de zeloso <strong>da</strong> justiça, o <strong>caso</strong> <strong>da</strong> morte <strong>do</strong><br />
ministro é capital, eu estou preso e em vésperas de ser leva<strong>do</strong> ao cárcere<br />
público de Nápoles, para dele sair a deixar a cabeça nas mãos de um verdugo,<br />
com lástima perpétua e lágrimas de meus pais, e assim a troco de evitar tão<br />
irreparável <strong>da</strong>no me resolvo aventurar antes a vi<strong>da</strong> a qualquer risco, pois<br />
estan<strong>do</strong> prisioneiro tenho a morte por certa e na fugi<strong>da</strong> duvi<strong>do</strong>sa; e quan<strong>do</strong> os<br />
<strong>da</strong>nos são inevitáveis, parece mais acerto seguir o que deixa alguma sombra à<br />
esperança que o outro, <strong>do</strong>nde em flor to<strong>da</strong> a esperança se corta.<br />
- Esse é meu parecer, disse Dom Sancho, mas a mim me ocorre um<br />
pensamento que porventura sem risco nos pode ocasionar o remédio, e vem a<br />
ser que como vós, senhor Alexandre, estais tão pren<strong>da</strong><strong>do</strong> nos amorosos<br />
desvelos de Eugenia, a quem sua rara fermosura e discrição habilitam para ser<br />
esposa de qualquer grande sujeito, se entendeis que ela com tanto extremo se<br />
vos mostra afeiçoa<strong>da</strong> e o coração rendi<strong>do</strong> não há empresa que pareça<br />
dificultosa; sabei fazer <strong>do</strong> amor conveniência e <strong>do</strong> perigo remédio, com a<br />
persuadir a que <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe palavra de esposo queira convosco ausentar-se,<br />
manifestan<strong>do</strong>-lhe o risco em que está vossa vi<strong>da</strong>; que se o amor que vos<br />
mostra é ver<strong>da</strong>deiro, não será primeira fineza deixar a casa de seus pais por<br />
segurar (a) a vi<strong>da</strong> a seu esposo. Não fez instância grandíssima a mulher <strong>do</strong><br />
romano Lentulo, Sulpícia, sen<strong>do</strong> ele proscrito e condena<strong>do</strong> à morte por Octávio<br />
e Marco António, queren<strong>do</strong> fugir? E pedin<strong>do</strong>-lhe a mulher com instâncias a<br />
levasse consigo, e não lho conceden<strong>do</strong> ele pelo risco que corria, ela deixan<strong>do</strong><br />
S. Ambr., Offic. 1.<br />
Segurar corresponde à forma mais comum de assegurar.
252 Padre Mateus Ribeiro<br />
a seus pais com grandes moléstias e perigos se ausentou e o foi buscar a<br />
Sicília, impon<strong>do</strong>-se aos perigos <strong>da</strong> morte por segui-lo, como conta Apiano<br />
Alexandrino. O amor grande não repara em discómo<strong>do</strong>s, que talvez por isso se<br />
pintava cego, porque fechava os olhos aos perigos, não reparan<strong>do</strong> nos <strong>da</strong>nos,<br />
desprezan<strong>do</strong> os discómo<strong>do</strong>s pela cousa ama<strong>da</strong>.<br />
Aprovei eu o parecer e não desagra<strong>do</strong>u a Alexandre, e consulta<strong>do</strong> o<br />
meio para poder falar-lhe, ele o fez de sorte que a persuadiu, com <strong>da</strong>r-lhe<br />
palavra de esposo, a que furtaria a seu pai as chaves <strong>da</strong> porta <strong>do</strong> castelo<br />
quan<strong>do</strong> estivesse no mais profun<strong>do</strong> sono e a noite no maior silêncio, e se iria<br />
connosco levan<strong>do</strong> as melhores jóias que tinha, sen<strong>do</strong> que destas pouco<br />
Alexandre necessitava. Grande é a eloquência <strong>do</strong> amor para persuadir, pouca<br />
retórica há mister um coração amante para mover-se; fez liga no de Eugenia o<br />
amor com a pie<strong>da</strong>de, persuadin<strong>do</strong>-se como amante, entemeceu-se como<br />
compassível e deliberou-se como afeiçoa<strong>da</strong>. É a mulher amante (disse Valério)<br />
a cousa mais ousa<strong>da</strong> e quan<strong>do</strong> se delibera a mais destemi<strong>da</strong>; sempre discursa<br />
menos quem ama mais. Antever os perigos é empenho <strong>da</strong> prudência, <strong>do</strong> amor<br />
o desprezá-los, <strong>do</strong> valor o acometê-los: a tu<strong>do</strong> se ofereceu Eugenia por<br />
Alexandre, que contente por extremos <strong>da</strong> resposta, pois não só se considerava<br />
livre <strong>da</strong>s sombras <strong>da</strong> morte, mas na companhia <strong>da</strong> causa que com finezas<br />
amava e a quem as maiores obrigações reconhecia, nos veio a comunicar sua<br />
alegria, de que to<strong>do</strong>s participávamos na liber<strong>da</strong>de que conseguíamos, e<br />
juntamente a consultar o como poderíamos subornar a sentinela <strong>da</strong> porta, para<br />
a abrirmos sem risco de sentir-se nosso intento. Mas como o presídio <strong>do</strong><br />
castelo era de espanhóis e Dom Sancho de to<strong>do</strong>s eles conheci<strong>do</strong>, ele tomou a<br />
seu cargo facilitar este inconveniente, que pois a ventura se nos mostrasse<br />
favorável no mais, não havia que temer, que assim seria no menos.<br />
Chegou neste tempo o pajem de Anastácia trazen<strong>do</strong> em uma caixa bem<br />
lacra<strong>da</strong> quanti<strong>da</strong>de de moe<strong>da</strong>s de ouro com algumas jóias ricas de diamantes,<br />
que entregou com um escrito em que referia as jóias que man<strong>da</strong>va e o valor<br />
delas, encomen<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe a brevi<strong>da</strong>de de se pôr salvo e oferecen<strong>do</strong>-lhe quanto<br />
mais lhe fosse necessário. A que respondeu Alexandre agradeci<strong>do</strong>, avisan<strong>do</strong>-a<br />
que em certo sítio vizinho ao castelo estivessem três cavalos prepara<strong>do</strong>s à<br />
meia-noite com o silêncio possível.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 253<br />
Disposta pois a fugi<strong>da</strong> neste mo<strong>do</strong>, se informou secretamente Dom<br />
Sancho de quem era o sol<strong>da</strong><strong>do</strong> a quem aquela noite caía a sentinela <strong>da</strong> porta,<br />
e veio a saber ser um sol<strong>da</strong><strong>do</strong> com quem tinha mais particular conhecimento,<br />
por haver si<strong>do</strong> seu sol<strong>da</strong><strong>do</strong> nas guerras de Itália em que militou antigamente;<br />
com este se pôs a praticar sobre o tempo passa<strong>do</strong>, admiran<strong>do</strong>-se de o não ver<br />
acrecenta<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> na milícia antigo; a que o sol<strong>da</strong><strong>do</strong> respondeu com as<br />
gerais queixas de lhe faltar o favor que apadrinhasse seus merecimentos,<br />
porque se adiantava o valimento e ele se fiava na justiça, além <strong>do</strong> que entrou a<br />
queixa <strong>do</strong>s dilata<strong>do</strong>s pagamentos que o obrigavam a passar necessita<strong>do</strong> e<br />
endivi<strong>da</strong><strong>do</strong>, <strong>da</strong> qual ocasião aproveitan<strong>do</strong>-se Dom Sancho com prudência, pois,<br />
como disse o príncipe <strong>do</strong>s ora<strong>do</strong>res gregos, Demóstenes, é a oportuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />
ocasiões a maior eloquência para persuadir, oferecen<strong>do</strong>-lhe duzentos escu<strong>do</strong>s<br />
de ouro e em sua companhia to<strong>do</strong> o favor, e ver-se livre <strong>do</strong>s discómo<strong>do</strong>s e<br />
necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> milícia, com outras promessas e esperanças o veio a reduzir<br />
a seguir-nos, que não foi pouco favor <strong>da</strong> ventura vir a romper o temor <strong>do</strong>s<br />
riscos a que se expunha, leva<strong>do</strong> <strong>do</strong> interesse e esperanças de melhora<strong>da</strong><br />
fortuna, que são os pólos em que se move a máquina <strong>do</strong>s ambiciosos ou<br />
necessita<strong>do</strong>s.<br />
Assim contentes e temerosos esperávamos que o sol encobrisse a<br />
fermosura de seus <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s resplan<strong>do</strong>res para com o rebuço <strong>da</strong> noite se<br />
efectuar nossa fugi<strong>da</strong>: contentes por termos nos meios acha<strong>do</strong> tão favorável o<br />
caminho de conseguirmos a liber<strong>da</strong>de deseja<strong>da</strong>, temerosos de poder mu<strong>da</strong>r-se<br />
ou em Eugenia a resolução, pois, como disse Virgílio, era a mulher a cousa<br />
mais mudável e pudera mu<strong>da</strong>r-se a considerar a quietação que na companhia<br />
de seus pais deixava e os perigos a que nesta ausência se oferecia, fia<strong>da</strong> na<br />
palavra de um mancebo de quem pudera recear que o temor <strong>da</strong> morte que o<br />
ameaçava lhe persuadia a prometer palavra de esposo que, ven<strong>do</strong>-se livre,<br />
talvez poderia não cumprir. Além <strong>do</strong> que, como o amor tinha tão tenras as<br />
raízes pela brevi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> tempo, podiam arrancar-se facilmente com a<br />
representação <strong>do</strong>s discómo<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s rigores <strong>da</strong> ausência, <strong>da</strong> tirania <strong>da</strong>s<br />
sau<strong>da</strong>des, com o temor <strong>do</strong>s perigos que em fugi<strong>da</strong> tão arrisca<strong>da</strong> qualquer<br />
discurso antevia, os trabalhos que a seu pai causava, pois por <strong>da</strong>r liber<strong>da</strong>de a<br />
seu amante, ocasionava a seu pai o cativeiro e o poder ser avalia<strong>do</strong> por<br />
consenti<strong>do</strong>r na fuga, de que se lhe podiam resultar irreparáveis <strong>da</strong>nos, e com
254 Padre Mateus Ribeiro<br />
esta consideração pudera mu<strong>da</strong>r de parecer antes de aventurar-se, o que<br />
causaria a total ruína de quanto fabrica<strong>do</strong> tínhamos.<br />
Também temia que o sol<strong>da</strong><strong>do</strong> e sentinela mu<strong>da</strong>sse de intento, pois não<br />
arriscávamos menos que a vi<strong>da</strong>, persuadin<strong>do</strong>-se a passar antes uma vi<strong>da</strong><br />
necessita<strong>da</strong> que aventurar-se a uma morte afrontosa; que suposto que os<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s tragam a vi<strong>da</strong> ofereci<strong>da</strong> aos assaltos <strong>da</strong> ventura, contu<strong>do</strong> temem<br />
menos sofrer a morte no conflito <strong>da</strong> guerra que padecê-la com afronta na<br />
tranquili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> paz. Mas enfim a Eugenia cegou o amor e ao sol<strong>da</strong><strong>do</strong> o<br />
interesse, que são os inimigos que tem a razão para precipitar-se.<br />
Enfim entre estes temerosos discursos se avizinhou a noite de nós tão<br />
deseja<strong>da</strong> para alívio, como de outros temi<strong>da</strong> por tormenta. Era esta escura e<br />
como tal apropria<strong>da</strong> para o que a nosso intento convinha: ocuparam as<br />
sombras o hemisfério, perderam as cores a vi<strong>da</strong>, as flores a gala, os pra<strong>do</strong>s a<br />
fermosura, os campos a esmeral<strong>da</strong>; deceu a confusão rebuça<strong>da</strong> nas trevas,<br />
entrou o silêncio disfarça<strong>do</strong> no descui<strong>do</strong>, esconderam-se as aves músicas em<br />
seus abrigos, saíram as nocturnas de suas covas; só as estrelas cintilavam,<br />
quan<strong>do</strong> as nuvens lugar lhes concediam, que até para luzes de estrelas há<br />
embargos de nuvens. O mar com seus brami<strong>do</strong>s resisti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s roche<strong>do</strong>s nem<br />
<strong>do</strong>rmia, porque clamava, nem se acobar<strong>da</strong>va, porque luzia, granjean<strong>do</strong>-lhe o<br />
escuro manto <strong>da</strong> noite os cintilantes e argenta<strong>do</strong>s matizes que lhe negava o<br />
dia.<br />
Entre temor e esperança <strong>do</strong>s martírios <strong>do</strong> desejo atendíamos às horas<br />
em que o capitão <strong>do</strong> castelo se recolhesse e ao sono se entregasse, bem<br />
ignorante de quantos desvelos havia de custar-lhe este breve descui<strong>do</strong>: mas<br />
quan<strong>do</strong> a ocasião de sua própria casa lhe nascia, quem pode adivinhar seu<br />
próprio <strong>da</strong>no? Seria meia-noite já an<strong>da</strong><strong>da</strong> quan<strong>do</strong> Eugenia nos fez sinal que<br />
eram as horas de nós tão espera<strong>da</strong>s e, abrin<strong>do</strong> bran<strong>da</strong>mente a porta, saiu com<br />
as chaves <strong>do</strong> castelo que subtilmente a seu pai furtara, e juntamente levan<strong>do</strong><br />
algumas jóias suas que tinha, como adverti<strong>da</strong> e acautela<strong>da</strong>, nos entregou três<br />
pistolas <strong>da</strong>s que seu pai tinha, e encaminhan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s para as portas <strong>do</strong> castelo<br />
em que a pobre sentinela nos esperava, antes de entregar as chaves nos disse<br />
desta sorte:<br />
- Esta, senhores, que em mim podeis julgar por livian<strong>da</strong>de de amante,<br />
sen<strong>do</strong> pie<strong>do</strong>sa compaixão de vosso risco, me obrigou a deixar a casa de meus
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 255<br />
pais, de quem sempre fui com extremos queri<strong>da</strong>, deixar o seguro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em<br />
que estava, o natural <strong>da</strong> pátria em que nasci, com desenganos prováveis de<br />
mais não vê-la, aventurar-me aos discómo<strong>do</strong>s de terras estranhas por seguir a<br />
quem não sei como pagará esta fineza. Peço-vos, senhor Alexandre, que a<br />
conheçais por extremos de quem vos ama, e que por assegurar-vos a vi<strong>da</strong> a<br />
sua própria aventura, cumprin<strong>do</strong>-me a palavra que de esposo me destes, pois<br />
como a esposo vos sigo e a meu pai ofereci<strong>do</strong> a tantas penas e moléstias<br />
deixo.<br />
Calou com isto Eugenia, mas falaram seus olhos com eloquência de<br />
cristal, cifra<strong>da</strong> em suas lágrimas que são o desafogo <strong>da</strong>s sau<strong>da</strong>des no<br />
sentimento grande <strong>da</strong>s ausências.<br />
Respondeu-lhe Alexandre como amante e obriga<strong>do</strong>, confirman<strong>do</strong> mil<br />
vezes a palavra de seu esposo como na primeira ocasião em que lhe fosse<br />
possível sua ver<strong>da</strong>de mostraria; o que nós to<strong>do</strong>s abonámos. Entregou as<br />
chaves e abrin<strong>do</strong>-se as portas <strong>do</strong> castelo, em que as deixámos com notável<br />
alegria de nos vermos livres, juntamente com o sol<strong>da</strong><strong>do</strong> ban<strong>do</strong>leiro, espia <strong>da</strong><br />
mal guar<strong>da</strong><strong>da</strong> praça, fomos caminhan<strong>do</strong> para o lugar em que Alexandre avisou<br />
que os cavalos estivessem, que <strong>do</strong> castelo não era mui distante. Estavam <strong>do</strong>us<br />
cria<strong>do</strong>s confidentes esperan<strong>do</strong> com eles, em um <strong>do</strong>s quais subin<strong>do</strong> Alexandre<br />
e acomo<strong>da</strong>n<strong>do</strong> nas ancas a sau<strong>do</strong>sa Eugenia que entre pensativa e temerosa<br />
o seguia, montan<strong>do</strong> em outro Dom Sancho e nas ancas o fugitivo sol<strong>da</strong><strong>do</strong> e<br />
ultimamente eu no outro. Arma<strong>do</strong>s pois com as pistolas que nos deu Eugenia e<br />
acompanha<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s, começámos a caminhar na volta de Roma, aonde<br />
dirigíamos o assegurar-nos <strong>da</strong>s grandes diligências que o vice-rei havia de<br />
empenhar para prender-nos.<br />
Cap. VIII.<br />
Em que prossegue o Ermitão os sucessos vários desta fugi<strong>da</strong><br />
Alegres caminhávamos to<strong>do</strong>s, se alegria pode <strong>da</strong>r-se em quem teme,<br />
como nega Euripides, e com a veloci<strong>da</strong>de possível pertendíamos ausentar-nos<br />
<strong>da</strong> corte, que com ser pátria minha e de Alexandre era então de nós
256 Padre Mateus Ribeiro<br />
aborreci<strong>da</strong>, pois nela tínhamos o perigo certo e na ausência dela a segurança.<br />
Discursava Dom Sancho como sol<strong>da</strong><strong>do</strong> que nossa fugi<strong>da</strong> não podia ser<br />
descoberta senão ao romper <strong>do</strong> nome no castelo, que era na madruga<strong>da</strong>, e<br />
depois de sabi<strong>da</strong> para se manifestar ao vice-rei e ele passar ordens para<br />
sermos segui<strong>do</strong>s, seriam horas a que nós levan<strong>do</strong> tanta distância e bons<br />
cavalos não seríamos alcança<strong>do</strong>s té sairmos <strong>da</strong>s raias <strong>do</strong> reino para o senhorio<br />
de Roma, aonde ficávamos seguros. Com este pensamento anima<strong>do</strong>s<br />
apressávamos a jorna<strong>da</strong> mais <strong>do</strong> que permitia a mimosa criação de Eugenia<br />
que, costuma<strong>da</strong> ao recolhimento de seu retiro e não a jorna<strong>da</strong>s tão perigosas e<br />
ligeiras, tirava <strong>do</strong> amor as forças para segui-las e de seu ânimo varonil os<br />
alentos para sofrê-las.<br />
Algumas léguas tínhamos an<strong>da</strong><strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> a aurora soltou as<br />
equivocações que havia entre o serem sombras ou luzes as que<br />
acompanhavam seu nascimento, porque era a luz tão confusa e a sombra tão<br />
luzi<strong>da</strong> que nem tinha reali<strong>da</strong>des de noite nem certezas de dia: de to<strong>do</strong>s<br />
naturalmente foi sempre a luz deseja<strong>da</strong> como gala de que se veste o mun<strong>do</strong>,<br />
alegria <strong>do</strong>s tristes, alívio <strong>do</strong>s enfermos, guia <strong>do</strong>s navegantes, abrigo <strong>do</strong>s pobres<br />
e recreio <strong>do</strong>s ricos; só <strong>do</strong>s fugitivos e homizia<strong>do</strong>s talvez pode ser mal recebi<strong>da</strong>,<br />
com temor que com ela se descubra a fugi<strong>da</strong> que com as sombras se disfarça.<br />
Com a luz se conhece quem caminha, a derrota que leva, os sinais por<br />
onde o busquem, com as mais circunstâncias e indícios que podem manifestá-<br />
lo, sen<strong>do</strong> forçosamente visto de muitos olhos o que tu<strong>do</strong> com as sombras <strong>da</strong><br />
noite se evita; e assim não sei se diga que o dia nos pareceu pouco alegre pelo<br />
perigo que temíamos e a noite nos era mais aceita pelo risco de que com ela<br />
nos assegurávamos. Descobriu Eugenia o admirável <strong>da</strong> fermosura, que<br />
suposto que com um leve véu levava o rosto coberto, nunca nuvem que não é<br />
muito escura e densa pode embargar os resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol, antes revesti<strong>da</strong><br />
de seus raios não lhe serve de nuvem que o esconde, mas de espelho que o<br />
retrata. Tal Eugenia, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> rebuça<strong>da</strong>, mostrava que era sol na gentileza<br />
com o custoso <strong>da</strong> gala, se mais gala podia haver que a de seu rosto, julgan<strong>do</strong><br />
to<strong>do</strong>s (e não sei se sem inveja) por mais que venturoso a Alexandre em<br />
conseguir a liber<strong>da</strong>de e escapar ao conflito <strong>da</strong> morte por tal meio, que outros o<br />
desejassem para delícia na vi<strong>da</strong>.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 257<br />
Consultámos entre nós se nos esconderíamos por não ser vistos ou se<br />
seguiríamos a jorna<strong>da</strong>. Em qualquer <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s havia seu perigo, um em<br />
ficarmos retar<strong>da</strong><strong>do</strong>s e outro em sermos vistos: mas Dom Sancho foi de parecer<br />
que não parássemos, pois nossa segurança pendia em nos distanciarmos <strong>do</strong><br />
reino, e to<strong>do</strong> o tempo que nos detivéssemos na embosca<strong>da</strong> era tempo perdi<strong>do</strong><br />
e arrisca<strong>do</strong>; parecer que por mais acerta<strong>do</strong> seguimos, desvian<strong>do</strong>-nos o<br />
possível <strong>do</strong>s lugares e povoações e seguin<strong>do</strong> o retira<strong>do</strong> <strong>do</strong> caminho que o<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong> que nos acompanhava bem sabia.<br />
Já o sol ia declinan<strong>do</strong> <strong>do</strong> ponto mais subi<strong>do</strong> <strong>do</strong> meio-dia, diminuin<strong>do</strong> as<br />
sombras e condensan<strong>do</strong> os raios que no intenso <strong>do</strong> calor mostravam, que na<br />
oficina <strong>do</strong>s resplan<strong>do</strong>res haviam subi<strong>do</strong> ao último de seus quilates, quan<strong>do</strong><br />
caminhan<strong>do</strong> nós pelo sombrio de um bosque vimos, não em muita distância, vir<br />
um cavaleiro com notável brevi<strong>da</strong>de pela derrota que levávamos, como em<br />
nosso seguimento, cuja vista, se bem como era de uma só pessoa, não nos<br />
deu muito temor, contu<strong>do</strong> não nos livrou <strong>do</strong> sobressalto, recean<strong>do</strong> pudesse<br />
atrás vir mais gente em seu seguimento. Da súbita alteração disse o filósofo<br />
que não tinha princípio; mas na perturbação presente tivemos nós bastante<br />
causa, se bem se consideram as circunstâncias <strong>da</strong>s horas, <strong>do</strong> lugar, <strong>da</strong> pressa<br />
com que caminhava e os receios de nossa fugi<strong>da</strong>. Querer desviar <strong>do</strong> caminho<br />
era dificultoso, porque já nos tinha visto e ficava sen<strong>do</strong> o retiro suspeitoso;<br />
adiantar-nos permitia-o mal o cansaço <strong>do</strong>s cavalos e a moléstia de Eugenia,<br />
como não costuma<strong>da</strong> a jorna<strong>da</strong>s tão trabalhosas; o esperar no próprio sítio<br />
parecia arrisca<strong>do</strong>, não saben<strong>do</strong> se vinha mais gente em seu seguimento;<br />
deixar no lugar deserto a Eugenia seria cruel<strong>da</strong>de sobre ingratidão excessiva<br />
às obrigações em que lhe estávamos; nem Alexandre o sofreria como amante,<br />
nem nós como agradeci<strong>do</strong>s, e finalmente, entre tantos inconvenientes<br />
escolhen<strong>do</strong> o menor, nos resolvemos a desmontar <strong>do</strong>s cavalos e, retiran<strong>do</strong>-nos<br />
um breve intervalo <strong>do</strong> caminho, fazermos rosto à fortuna se nos acometesse.<br />
Com esta resolução nos retirámos, preparan<strong>do</strong> as armas os três<br />
prisioneiros, o sol<strong>da</strong><strong>do</strong> sentinela que connosco vinha e os <strong>do</strong>us cria<strong>do</strong>s que nos<br />
acompanhavam e os cavalos <strong>da</strong>s rédeas tinham, estan<strong>do</strong> delibera<strong>do</strong>s em<br />
defender as liber<strong>da</strong>des té o último <strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s; mas então chegou a admiração a<br />
extremo e o temor a espanto quan<strong>do</strong> avezinhan<strong>do</strong>-se mais o cavaleiro foi logo<br />
conheci<strong>do</strong> ser o pai de Eugenia e capitão <strong>do</strong> castelo de que tínhamos fugi<strong>do</strong>,
258 Padre Mateus Ribeiro<br />
com a vista <strong>do</strong> qual turva<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s, desalenta<strong>do</strong> o coração e<br />
intercadentes os pulsos caiu Eugenia desmaia<strong>da</strong> sobre a natural alcatifa <strong>da</strong><br />
relva de que o bosque se cobria. Acudiu Alexandre a sustentá-la em seus<br />
braços, antepon<strong>do</strong> o perigo <strong>do</strong> que amava ao seu próprio que temia.<br />
Assusta<strong>do</strong>s e resolutos, que mil vezes <strong>do</strong> próprio susto nasce a<br />
resolução, esperámos com as armas preveni<strong>da</strong>s a chega<strong>da</strong> <strong>do</strong> capitão que<br />
apenas nos avistou quan<strong>do</strong>, esporean<strong>do</strong> o cavalo a to<strong>da</strong> a carreira,<br />
emparelhou connosco e saltan<strong>do</strong> dele em terra com uma pistola reforça<strong>da</strong> que<br />
na mão trazia, disse desta sorte:<br />
- Não merecia, fugitivos senhores, a cortesia com que vos tratei no meu<br />
castelo uma correspondência tão ingrata como sobre deixar-me perdi<strong>do</strong> e<br />
arrisca<strong>do</strong> ao cutelo roubar-me minha filha única, se de antes alívio de meu<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, hoje eterno sentimento de meus desvelos. Menos de estranhar fora<br />
tirar-me a vi<strong>da</strong> que roubar-me a honra, pois a que desde minha moci<strong>da</strong>de<br />
adquiri nas militares empresas com o dispêndio de meu sangue, hoje vejo por<br />
vossa causa com o deslustre desta perpétua afronta minha. Em que vos<br />
ofendeu meu primor para tal injúria? Ou em que vos agravou minha confiança<br />
para semelhante vingança? Que favor me pedistes que vos não concedesse?<br />
Que permissão me foi possível que vos não outorgasse? Se pois a ver<strong>da</strong>de é<br />
esta, em que peitos nasci<strong>do</strong>s se achou tal galardão que em um instante me<br />
deixásseis sem honra, sem fazen<strong>da</strong>, que to<strong>da</strong> <strong>do</strong>u por perdi<strong>da</strong>, sem vi<strong>da</strong> que a<br />
segure e sem <strong>do</strong>micílio em que viva? Se por me verdes só vos julgais seguros<br />
de minha vingança é engano, que pode muito um agrava<strong>do</strong> e é muito para<br />
temer um ofendi<strong>do</strong>.<br />
Cap. IX.<br />
Em que se prossegue o que mais sucedeu com o capitão<br />
Suspensos e acautela<strong>do</strong>s ouvimos o justo <strong>da</strong> queixa que entre senti<strong>da</strong>s<br />
demonstrações o capitão fazia; e porque o acidente em Eugenia lhe tinha<br />
equivoca<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> com a morte e ocupa<strong>do</strong> Alexandre em sustentá-la não<br />
estava para <strong>da</strong>r mais resposta que a de sua desgraça e sentimento; eu me
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 259<br />
deliberei a responder-lhe e, sem tirarmos as armas <strong>da</strong>s mãos, nem a cautela<br />
<strong>do</strong>s olhos uns <strong>do</strong>s outros, lhe disse assim:<br />
- Se a paixão que vos senhoreia e a ira, senhor capitão, que vos cega<br />
deram (a) lugar a fazer tréguas o desgosto com a razão e o sentimento com o<br />
discurso, porventura que ouvin<strong>do</strong>-me nem vossa queixa parecerá tão excessiva<br />
no agravo, nem a ofensa tão desconfia<strong>da</strong> <strong>do</strong> remédio. Sentir com extremo os<br />
males quan<strong>do</strong> podem remediar-se é fazer desperdício <strong>da</strong> <strong>do</strong>r e infrutuoso o<br />
sentimento: só na ver<strong>da</strong>de aqueles males devem sentir-se que de remédio<br />
carecem, pois de to<strong>do</strong> fecham as portas ao alívio; mas neste infortúnio em que<br />
de presente vos vedes, não falta razão que vos anime nem se impossibilita<br />
remédio que vossa pena modere.<br />
Primeiramente, se vos queixais de fugirmos <strong>da</strong> prisão, ao homem é<br />
natural a liber<strong>da</strong>de com que nasce e o cativeiro introduziu o uso <strong>da</strong>s gentes, e<br />
nenhum de nós vos jurou nem prometeu de não sair dela, e assim confiar em<br />
quem perde a liber<strong>da</strong>de que não procure os meios de consegui-la, quan<strong>do</strong> vê<br />
sua vi<strong>da</strong> arrisca<strong>da</strong>, mais é engano <strong>da</strong> confiança que prudência <strong>da</strong> cautela.<br />
To<strong>da</strong>s as cousas fora de seu natural estão violenta<strong>da</strong>s, e como a liber<strong>da</strong>de é<br />
tão natural ao homens, que sem ela estão violenta<strong>do</strong>s, <strong>do</strong> que é violento nem<br />
se pode prometer duração, nem segurança. Rei de Síria era Demétrio e fugiu<br />
<strong>da</strong> prisão em que os partos o tinham, como conta Marco António; e usardes<br />
connosco de vossa cortesia em não nos estreitar mais a prisão, como pudéreis<br />
fazer, em vós foi efeito <strong>do</strong> primor e em nós <strong>da</strong> ventura, não saber aproveitar-se<br />
de seus favores é perdê-los. A cousa mais forte, disse Tales Millessio 299 , é a<br />
necessi<strong>da</strong>de, porque tu<strong>do</strong> atropela e em na<strong>da</strong> repara: esta nos obrigou à<br />
fugi<strong>da</strong>, por estar a vi<strong>da</strong> de Alexandre em notório perigo e a nossa liber<strong>da</strong>de mui<br />
vagarosa. A esta favoreceram tanto to<strong>da</strong>s as nações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que para seu<br />
reparo edificaram templos que lhe servissem de refúgio, como foi em Pérgamo<br />
o de Esculápio, em Pafo o de Vénus, em Éfeso o de Diana, em Calidónia o de<br />
Palas, em Egipto o de Osíris, em Samo o de Juno e em Roma o de Apolo, e<br />
outros diversos: nos quais templos to<strong>do</strong>s os homizia<strong>do</strong>s que deles se valessem<br />
não eram ofendi<strong>do</strong>s. Se pois to<strong>da</strong>s as nações deram asilo à liber<strong>da</strong>de, que<br />
Enten<strong>da</strong>-se: derem, futuro imperfeito <strong>do</strong> conjuntivo.<br />
' Apud Diogen., Lib. 1.
260 Padre Mateus Ribeiro<br />
admiração é que quem se via priva<strong>do</strong> dela a procurasse conseguir, quan<strong>do</strong><br />
nem intervinha licença vossa que debaixo de palavra nos destes, nem<br />
promessa ou juramento que de nossa parte vos assegurasse?<br />
E se vos queixais <strong>do</strong> rapto <strong>da</strong> senhora Eugenia, desculpas tem o amor,<br />
pois em seu tribunal não assistem conselheiros. De Periandro, tirano de<br />
Atenas, se conta que ven<strong>do</strong>-se importuna<strong>do</strong> de sua mulher a que man<strong>da</strong>sse<br />
castigar a um mancebo atrevi<strong>do</strong> que perdera o decoro à princesa sua filha na<br />
praça de Atenas, in<strong>do</strong> ela em companhia de sua mãe, usurpan<strong>do</strong> de seu rosto<br />
um violento favor, ele lhe respondeu que se no amor confiara o atrevi<strong>do</strong><br />
mancebo a ousadia, se castigasse a quem suas cousas amava, que castigos<br />
reservaria para quem as aborrecia? Se os ícaros e Faetontes se houveram<br />
despenha<strong>do</strong> amantes, mais desculpas teriam que de se precipitarem<br />
ambiciosos. Ela saiu com seu esposo, o senhor Alexandre, cuja nobreza é<br />
notória e seus merecimentos bem conheci<strong>do</strong>s, que não desacertou na eleição,<br />
pois só ele podia merecê-la. Assegurar a vi<strong>da</strong> de seu esposo mais tem de<br />
pie<strong>da</strong>de que de culpa, se o golpe <strong>do</strong> cutelo, suposto que havia de ser de quem<br />
o recebia, a <strong>do</strong>r havia de ser de quem o amava. É natural nas mulheres a<br />
compaixão para to<strong>do</strong>s, quanto mais para quem tão interessa<strong>da</strong> em a vi<strong>da</strong> de<br />
Alexandre estava, aonde, parece, era dívi<strong>da</strong> o remédio e não somente pie<strong>da</strong>de<br />
o socorro. A infanta Dona Sancha, irmã d'el-rei Dom Garcia de Navarra, livrou a<br />
seu mari<strong>do</strong>, o conde Fernão Gonçalves de Castela, disfarça<strong>do</strong> em seus<br />
vesti<strong>do</strong>s, <strong>da</strong> prisão em que o tinha el-rei Dom Sancho de Leão, sen<strong>do</strong> por esta<br />
amorosa acção não só de to<strong>do</strong>s os escritores louva<strong>da</strong>, mas <strong>do</strong> próprio rei<br />
engrandeci<strong>da</strong>. O ser sem vossa licença esta saí<strong>da</strong>, acidente é <strong>da</strong> eleição, que<br />
nem por isso fica desluzi<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> ela de si foi acerta<strong>da</strong>; nem em to<strong>da</strong>s as<br />
cousas tem jurisdição o desejo para serem a ele ajusta<strong>da</strong>s, em muitas se<br />
excede ao que desejamos, que o tempo vem a mostrar serem quais nós<br />
quiséramos. A senhora Eugenia, haven<strong>do</strong> de ter esposo, está bem emprega<strong>da</strong><br />
sem mais <strong>do</strong>te que sua honra e fermosura; e se sentistes a ausência, em<br />
breves horas vo-la restituiu a ventura, trata<strong>da</strong> com respeitos de irmã e com<br />
promessas de esposa.<br />
Se vos molesta a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong> que no castelo vos fica, cabe<strong>da</strong>l tem<br />
meus pais para satisfazê-la e os <strong>do</strong> senhor Alexandre para restaurá-la, não<br />
seja essa a ocasião de vossa pena, que quan<strong>do</strong> os bens se perdem por outra
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 261<br />
via se reparam. E se sentis o deixar a Nápoles, sen<strong>do</strong> natural de Espanha,<br />
sirva-vos de alívio terdes companheiros na ausência, sen<strong>do</strong> Nápoles sua<br />
pátria. A desgraça de um só é pena inteira no sentimento; mas quan<strong>do</strong> nela há<br />
participantes é desgosto dividi<strong>do</strong> na <strong>do</strong>r para poder sofrer-se e assisti<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
consolação para passar-se. Nem sempre há-de governar este vice-rei tão<br />
zeloso no rigor e tão inteiro na justiça, que nem se mova na compaixão nem se<br />
<strong>do</strong>bre <strong>da</strong>s rogativas. O tempo com seu discurso cura os males de que a<br />
natureza se confia, e assim poderá mu<strong>da</strong>r os presentes naufrágios em<br />
bonanças; que como as cousas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> por instantes se mu<strong>da</strong>m, nem os<br />
males, nem os bens tem perseverança.<br />
Já a este tempo tornava Eugenia em seu senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> paracismo rigoroso<br />
que teve, e movi<strong>do</strong> o pai de compaixão e <strong>da</strong>s razões que tinha ouvi<strong>do</strong>, e <strong>do</strong><br />
que Dom Sancho juntamente lhe aconselhou, sen<strong>do</strong> como ele espanhol e<br />
pessoa de respeito por seu sangue e valor, que vin<strong>do</strong> Alexandre e Eugenia a<br />
lançar-se a seus pés banha<strong>da</strong> em lágrimas e púrpura; que não foi a primeira<br />
vez que as pérolas <strong>do</strong> orvalho sobre a rosa caíssem; que enfim o pai<br />
enterneci<strong>do</strong> os levantou nos braços e per<strong>do</strong>ou o atrevimento <strong>da</strong> fugi<strong>da</strong>; que é<br />
regra <strong>da</strong> prudência <strong>da</strong>r passagem <strong>do</strong> favor ao que o rigor não pode <strong>da</strong>r<br />
remédio.<br />
Enquanto mandámos um <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s a buscar a uma povoação que se<br />
descobria algum sustento, nos deu conta o pai de Eugenia em como acor<strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
ain<strong>da</strong> de noite e achan<strong>do</strong> menos a filha, vestin<strong>do</strong>-se apressa<strong>da</strong>mente e<br />
corren<strong>do</strong> o castelo via abertas as portas e a sentinela fugi<strong>da</strong> com os três<br />
prisioneiros e, não se atreven<strong>do</strong> a esperar os rigores <strong>do</strong> vice-rei, selara o<br />
cavalo à pressa e man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> sua mulher com as cria<strong>da</strong>s a casa de uma sua tia<br />
em Nápoles, entregan<strong>do</strong> as chaves <strong>do</strong> castelo ao tenente com ordem que até<br />
ao meio-dia não manifestasse sua ausência, e chegan<strong>do</strong> este termo avisasse<br />
ao vice-rei em como ele ia em seguimento <strong>do</strong>s prisioneiros que lhe levavam<br />
sua filha, e dito isto seguira o caminho à ventura de encontrar-nos, té que<br />
rompen<strong>do</strong> a manhã vira o rasto <strong>do</strong>s cavalos e por ele nos seguira. Como desde<br />
a hora em que <strong>do</strong> castelo saímos não tínhamos comi<strong>do</strong>, mandei que um <strong>do</strong>s<br />
cria<strong>do</strong>s fosse a um casal que não muito distante se via a comprar algum<br />
sustento para podermos prosseguir o caminho; porque mal descansa um<br />
coração receoso quan<strong>do</strong> com o menor movimento por instantes lhe tocam a
262 Padre Mateus Ribeiro<br />
rebate seus temores, e apenas tomámos com a breve comi<strong>da</strong> algum alento,<br />
quan<strong>do</strong> tratámos de prosseguir o caminho, levan<strong>do</strong> o capitão nas ancas <strong>do</strong><br />
cavalo a sua filha Eugenia, por parecer mais decente a companhia de seu pai<br />
enquanto não havia comodi<strong>da</strong>de de poder receber-se com seu esposo.<br />
Caminhámos com a pressa possível o que restava <strong>do</strong> dia, não saben<strong>do</strong><br />
a hora em que avistássemos as raias <strong>do</strong> reino para podermos descansar com<br />
mais seguro abrigo, té que entran<strong>do</strong> a noite mais escura <strong>do</strong> costuma<strong>do</strong>, porque<br />
fechou as estrelas com as portas de um nubla<strong>do</strong> triste, presságio de algum<br />
sucesso infelice, apenas víamos a estra<strong>da</strong> que levávamos; tais eram as trevas<br />
de que o ar se mostrava vesti<strong>do</strong>. Mal se descobriam as eminências <strong>do</strong>s<br />
montes, que o escuro lhes tinha rouba<strong>do</strong> a grandeza e superiori<strong>da</strong>de com que<br />
<strong>do</strong>minavam aos vales humildes; e para ser maior a confusão, cerrou-se uma<br />
névoa tão densa que ain<strong>da</strong> os próprios <strong>da</strong> companhia mal nos divisávamos.<br />
Com tantas faltas de luz e tantos assombros <strong>da</strong> noite erraram as guias o<br />
caminho, e quan<strong>do</strong> nos parecia termos an<strong>da</strong><strong>do</strong> boa parte dele, nos achámos<br />
embosca<strong>do</strong>s entre uns montes penhascosos e com arvore<strong>do</strong> tão espesso,<br />
matos tão fecha<strong>do</strong>s, que parecia impossível passar adiante, nem ain<strong>da</strong> voltar<br />
atrás o caminho para sairmos deste natural labirinto em que como presos<br />
estávamos.<br />
Foi força<strong>do</strong> o parar, porque não se via a estra<strong>da</strong> nem caminho que<br />
seguir e assim, apean<strong>do</strong>-nos <strong>do</strong>s cavalos, nos resolvemos a esperar que a<br />
névoa adelgaçasse e a noite com a saí<strong>da</strong> <strong>da</strong> lua, que em tão poucas horas<br />
antes de amanhecer nascia, nos mostrasse em que mo<strong>do</strong> pudéssemos romper<br />
os laços com que o funesto luto <strong>da</strong> noite cerca<strong>do</strong> nos tinha: fizemos abrigo <strong>da</strong>s<br />
copa<strong>da</strong>s árvores que tecen<strong>do</strong> seus ramos fabricavam verdes telha<strong>do</strong>s a móveis<br />
edifícios, se bem então se conheciam mais pelo tacto que pela vista; e,<br />
assenta<strong>do</strong>s no tosco mato de que a terra se vestia, disse Alexandre desta<br />
sorte:<br />
Cap. X.<br />
Da prática que teve Alexandre com seus companheiros e como foram neste<br />
sítio assalta<strong>do</strong>s de ban<strong>do</strong>leiros
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 263<br />
- Bem sei, senhores, que com justa razão podeis queixar-vos que eu fui<br />
a causa de vos verdes tão inquietos, porque <strong>do</strong> desafio que emprendi com<br />
Dionísio Montal<strong>do</strong>, hoje meu cunha<strong>do</strong> e de antes meu ofensor, nasceram os<br />
sobressaltos e peregrinações tão molestas em que nos vemos; mas minha<br />
desculpa nasce <strong>da</strong> causa que como tão forçosa deu motivo a meu justo<br />
sentimento. Lá disse Quintiliano 300 que era menos sofrer os perigos <strong>da</strong> ira que<br />
os vitupérios <strong>da</strong> injúria. É a honra nos sujeitos bem nasci<strong>do</strong>s tão escrupulosa<br />
que periga com as sombras <strong>do</strong> desprezo, quanto mais com os desenganos <strong>da</strong><br />
desestimação, sen<strong>do</strong> um ilustre afronta<strong>do</strong> cadáver de sua nobreza, que pouco<br />
lhe importa a vi<strong>da</strong> natural quan<strong>do</strong> nele está morta a vai<strong>da</strong>de <strong>da</strong> estimação.<br />
Muitas cousas faz a amizade por vontade que não sofre a estimação por<br />
descui<strong>do</strong>.<br />
Ferin<strong>do</strong> casualmente Alexandre Magno a Lisimacho dizem tirou a própria<br />
diadema real que na cabeça tinha para ven<strong>da</strong>r-lhe a feri<strong>da</strong>; e navegan<strong>do</strong> em<br />
outra ocasião pelo rio Eufrates, cain<strong>do</strong>-lhe o diadema <strong>da</strong> cabeça, um<br />
marinheiro se lançou a na<strong>do</strong> à corrente <strong>do</strong> rio e colhen<strong>do</strong> o diadema o pôs na<br />
cabeça para lhe ficarem livres os braços com que na<strong>da</strong>va, e apresentan<strong>do</strong>-o a<br />
Alexandre, ele lhe man<strong>do</strong>u <strong>da</strong>r um talento em prémio <strong>do</strong> serviço; e logo o<br />
man<strong>do</strong>u enforcar em castigo <strong>do</strong> atrevimento: que nem para reparo de melhor<br />
servir permitiu se valesse de indecências que tivessem sombras de ofender. A<br />
cousa que mais se sente, disse o filósofo, é o ver-se <strong>da</strong> honra despoja<strong>do</strong> quem<br />
nasceu dela enobreci<strong>do</strong>, e como a injúria de minha irmã tanto por minha conta<br />
corria, provocan<strong>do</strong>-me à vingança um tão injusto agravo, não era maravilha<br />
que eu para me apadrinhar no desafio me valesse <strong>da</strong> cortesia e valor <strong>do</strong><br />
senhor Felisberto, ignorante de seus próprios desgostos que hoje chego tanto a<br />
sentir quanto menos vejo os meios de os poder remediar. Bem pudera meu<br />
cunha<strong>do</strong> confessar a dívi<strong>da</strong>, como depois fez, e oferecer-se à satisfação como<br />
era justo fizera; mas como pudera eu vir a ser esposo <strong>da</strong> senhora Eugenia, que<br />
é hoje to<strong>do</strong> o meu alívio, se primeiro não experimentara o susto de meu maior<br />
tormento?<br />
Quintil., Declam. 13.
264 Padre Mateus Ribeiro<br />
Nunca a ventura vende tão baratos seus favores que se possa vangloriar<br />
um venturoso que lhe custaram pouco suas felici<strong>da</strong>des; que se <strong>do</strong> pouco preço<br />
nace a desestimação, quer a ventura que se estimem em muito suas ditas,<br />
venden<strong>do</strong>-as ao maior preço. E quan<strong>do</strong> por baratas se avaliam nos princípios,<br />
bem lhas vende caro nos fins. Três novas alegres e felices chegaram<br />
juntamente em um dia a Filipe, rei de Macedónia, pai <strong>do</strong> grande Alexandre: o<br />
primeiro, que Parmenião, capitão de seu exército, alcançara gloriosa vitória <strong>do</strong>s<br />
llíricos; a segun<strong>da</strong>, que os seus cavalos, que ele muito estimava, ficaram<br />
vence<strong>do</strong>res na carreira <strong>do</strong>s jogos Olímpicos; e a terceira que lhe nacera seu<br />
filho Alexandre para ser sucessor de sua monarquia; o que ouvin<strong>do</strong> o sábio rei<br />
suspirou, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Com que infortúnio e desgosto me compensará a ventura tantas<br />
felici<strong>da</strong>des juntas?<br />
E não se enganou no temor, pois ultimamente veio a ser violentamente<br />
morto por Pausânias a punhala<strong>da</strong>s, quan<strong>do</strong> mais feliz e seguro se julgava.<br />
Esta ventura que hoje logro a meus pesares devo, que se tantos não<br />
sentira meu coração, não a possuíra minha alegria. Só sinto, senhores, vosso<br />
discómo<strong>do</strong>, em que protesto ser-vos fiel companheiro até com quanto valer e<br />
possuir pôr-vos em seguro e procurar-vos to<strong>do</strong> o remédio possível; que ânimos<br />
agradeci<strong>do</strong>s nunca necessitam de que se lhes lembrem os benefícios que<br />
receberam, porque não só os tem escritos na memória, mas impressos, como é<br />
justo, no coração. Lembra-me que <strong>da</strong>n<strong>do</strong> César a vi<strong>da</strong> a um cavaleiro <strong>do</strong> ban<strong>do</strong><br />
de seus contrários, a petição e rogos de um seu vali<strong>do</strong>, este ca<strong>da</strong> vez que se<br />
encontrava com o cavaleiro a quem livrou <strong>da</strong> morte lhe dizia:<br />
disse assim:<br />
- Que houvera si<strong>do</strong> de vossa vi<strong>da</strong> se eu vos não valera?<br />
O que repetin<strong>do</strong> em muitas ocasiões, molesta<strong>do</strong> o apadrinha<strong>do</strong>, lhe<br />
- Se me julgas por ingrato ao que por mim fizestes, não me valeras;<br />
porque de ingratos não se pode esperar conhecimento aos favores recebi<strong>do</strong>s;<br />
e se me julgas por agradeci<strong>do</strong>, para que me molestas com repetir-me tantas<br />
vezes o favor com lembrar-me o perigo? Não permitirás que talvez me<br />
esqueçam minhas desgraças sem seres desperta<strong>do</strong>r de meus perigos? Menos<br />
mal me fizeras em consentir matar-me, pois só de uma vez sofrera a morte,<br />
que em me lembrares tantas vezes o risco em que tive a vi<strong>da</strong>; pois ca<strong>da</strong>
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 265<br />
lembrança <strong>da</strong> pena é um tormento novo para a memória e um martírio em que<br />
padece o coração.<br />
Não necessitara, senhores, minha lembrança de incentivos para servir-<br />
vos enquanto me durar a vi<strong>da</strong>, porque jamais se riscará de minha memória o<br />
que por mim fizestes, a quietação que perdestes, os <strong>do</strong>micílios que deixastes,<br />
os riscos a que vos oferecestes. Só sentirei não me ser possível poder<br />
cabalmente restaurar tantas per<strong>da</strong>s, assim como sei avaliar as obrigações,<br />
porque não igualam os poderes aos desejos; mas tu<strong>do</strong> o que em mim houver<br />
de valia, e até oferecer a própria vi<strong>da</strong>, será o menor desempenho de minha<br />
obrigação.<br />
- Quan<strong>do</strong> eu soubera, senhor Alexandre (disse Dom Sancho), que o<br />
senhor Dionísio Montal<strong>do</strong> tinha tão pouca razão em sustentar o desafio, nem<br />
eu apadrinhara sua injustiça, nem consentira que a tão justa dívi<strong>da</strong> faltasse;<br />
mas como eu ignorava a causa, e ele negava a obrigação, não pude em<br />
pun<strong>do</strong>nor de sol<strong>da</strong><strong>do</strong> deixar de acompanhar a quem como amigo de mim se<br />
valia. Porém ele como discreto veio em conhecimento <strong>do</strong> muito que ganhava<br />
em ser esposo <strong>da</strong> senhora Anastácia, por quem se podem <strong>da</strong>r por bem<br />
emprega<strong>do</strong>s os discómo<strong>do</strong>s padeci<strong>do</strong>s, e quan<strong>do</strong>, senhor Alexandre, por<br />
servir-vos se ofereceram outros maiores, em meu ânimo achareis sempre valor<br />
para sofrê-los, porque tu<strong>do</strong> merece vossa cortesia.<br />
A este tempo se ouviu o tiro de uma pistola que a to<strong>do</strong>s causou notável<br />
susto, porque o inculto <strong>do</strong> sítio solitário em que estávamos, o silêncio e escuro<br />
<strong>da</strong> noite não <strong>da</strong>vam lugar a imaginarmos que podia ser caça<strong>do</strong>r quem a tais<br />
horas disparava. É o temor gigante <strong>da</strong>s cousas que de pequenas as faz<br />
grandes: nunca para quem se receia houve perturbação limita<strong>da</strong>. Lá disse<br />
Euripides que quem caminha por terra suspeitosa em ca<strong>da</strong> passo pisa um<br />
receio, e como nós estávamos ain<strong>da</strong> dentro <strong>do</strong> reino, o caminho erra<strong>do</strong>, o lugar<br />
sem saí<strong>da</strong>, mais próprio para mora<strong>da</strong> de feras que para assistência de<br />
homens, temíamos se porventura seria gente que o vice-rei em nosso<br />
seguimento man<strong>da</strong>sse e por espias nos descobrisse. To<strong>do</strong>s nos levantámos a<br />
preparar as armas para o que suceder pudesse, ao tempo que a lua vinha<br />
nascen<strong>do</strong>, envelheci<strong>da</strong> com crepúsculos de luz que entre a névoa mal se<br />
divisavam: mas pouco tar<strong>do</strong>u o desengano, ven<strong>do</strong> uma quadrilha de<br />
ban<strong>do</strong>leiros entrar pela espessura <strong>do</strong> mato como práticos nos caminhos, os
266 Padre Mateus Ribeiro<br />
quais, encaran<strong>do</strong> as clavinas e espingar<strong>da</strong>s, nos disseram com vozes<br />
ameaça<strong>do</strong>ras que nenhum de nós fizesse movimento, se não queríamos to<strong>do</strong>s<br />
perder as vi<strong>da</strong>s.<br />
Seriam os ban<strong>do</strong>leiros perto de trinta, to<strong>do</strong>s arma<strong>do</strong>s de couras, pistolas<br />
nas cintas, clavinas ou espingar<strong>da</strong>s nas mãos, e to<strong>do</strong>s tão mal assombra<strong>do</strong>s<br />
como o exercício de suas vi<strong>da</strong>s. Perguntou-lhes o capitão lhe dissessem o<br />
nome de quem os governava, e eles responderam chamar-se Frederico, a<br />
quem, respondeu, nos renderíamos se presente estava.<br />
- Não está presente (disse o ban<strong>do</strong>leiro) que com outra esquadra fica na<br />
volta desta montanha.<br />
- Pois sede, senhor, servi<strong>do</strong>, replicou o capitão, de nos levardes diante<br />
dele; e porque esta minha filha vem indisposta, me concedei favor de que eu a<br />
leve nas ancas <strong>do</strong> cavalo, porque não lhe será possível caminhar de outra<br />
sorte.<br />
- Seja assim (disse o ban<strong>do</strong>leiro).<br />
E man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> aos outros nos despojassem <strong>da</strong>s armas que tínhamos e<br />
trouxessem os cavalos <strong>da</strong>s rédeas, montan<strong>do</strong> só o capitão em o seu e<br />
acomo<strong>da</strong>n<strong>do</strong> nas ancas dele a Eugenia, a quem o sobressalto tinha<br />
embarga<strong>do</strong> a voz e a pena desata<strong>da</strong>s as lágrimas para testemunhas de seu<br />
sentimento, cerca<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>leiros, quan<strong>do</strong> já a lua reforçava os<br />
resplan<strong>do</strong>res, servin<strong>do</strong>-nos de guias os que temíamos verdugos, começámos a<br />
caminhar pelo deserto de um vale, a quem cercavam levanta<strong>do</strong>s montes que<br />
com os raios <strong>da</strong> lua já se conheciam.<br />
To<strong>do</strong>s calavam; mas que maravilha, se a uns emudecia o temor e os<br />
outros com os despojos <strong>da</strong> presa que já se prometiam, a ambição com que<br />
caminhavam se juntamente não fosse para causarem maior pavor, que a pouca<br />
afabili<strong>da</strong>de atemoriza e a conversação dá desconfianças.<br />
Com silêncio, como digo, caminhávamos, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> vários rodeios ao<br />
monte, sempre por estra<strong>da</strong>s embosca<strong>da</strong>s e caminhos encobertos, fecha<strong>do</strong>s de<br />
arvore<strong>do</strong>, que só a quem frequentava tão repeti<strong>da</strong>mente seus retiros podiam<br />
ser manifestos. Passa<strong>do</strong> era dilata<strong>do</strong> espaço <strong>da</strong> noite, para nós a mais penosa<br />
que jamais tivemos; queria já a lua, desmaian<strong>do</strong> os resplan<strong>do</strong>res de seu<br />
pequeno círculo, <strong>da</strong>r lugar a que os primeiros assaltos <strong>da</strong> aurora <strong>da</strong><br />
embosca<strong>da</strong> <strong>do</strong> horizonte se descobrissem, quan<strong>do</strong> avistámos uma confusa luz
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 267<br />
que num côncavo de um penhasco <strong>da</strong> montanha a intervalos luzi<strong>do</strong>s se<br />
descobria, e ouvin<strong>do</strong> os lati<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s cães, que sentin<strong>do</strong> os passos que <strong>da</strong>vam<br />
tantos caminhantes despertavam aos que <strong>do</strong>rmiam, entendemos nos<br />
avizinhávamos ao tribunal <strong>da</strong> violência, a quem remeti<strong>da</strong> nossa causa ia.<br />
Cap. XI.<br />
Em se trata de quem era Frederico e o que com ele passámos<br />
Chegámos ao espaçoso <strong>do</strong> vale, aonde se fazia uma praça cerca<strong>da</strong> de<br />
árvores silvestres, e como já a manhã pedia ao mun<strong>do</strong> alvíssaras <strong>da</strong><br />
vizinhança <strong>do</strong> sol, que suposto que distante nos reflexos e rosa<strong>da</strong> cor de que<br />
se ia vestin<strong>do</strong> o horizonte sua próxima chega<strong>da</strong> descobria, vimos à entra<strong>da</strong> de<br />
uma cova que a natureza nas vivas penhas fabrica<strong>do</strong> tinha, que dilatan<strong>do</strong>-se<br />
pelo centro <strong>da</strong> montanha mostrava poder ser cómo<strong>da</strong> habitação de muita<br />
gente, saíam dela outros ban<strong>do</strong>leiros não menos que os primeiros temerosos e<br />
odiosos à vista, pois nunca, como disse Plutarco, pode deixar de parecer<br />
odioso aquilo que é temi<strong>do</strong>. Apeou-se o capitão em chegan<strong>do</strong>, desmontan<strong>do</strong><br />
nos braços a sua filha Eugenia, a quem não era poderosa a contínua tristeza<br />
que trazia para eclipsar os resplan<strong>do</strong>res que mostrava: entraram alguns <strong>do</strong>s<br />
ban<strong>do</strong>leiros que nos renderam a <strong>da</strong>rem reca<strong>do</strong> a seu maioral que<br />
acompanha<strong>do</strong> de outros saiu a receber-nos.<br />
Era Frederico, ao que parecia, homem de até quarenta anos de i<strong>da</strong>de,<br />
rosto grave, mas não desabri<strong>do</strong> nem severo à vista, antes no proporciona<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong>s feições e agradável <strong>da</strong> presença <strong>da</strong>va indícios de ânimo não cruel nem<br />
desumano, antes generoso e cortês; vestia como os outros, calçava botas de<br />
cavalgar, aperta<strong>da</strong>s com <strong>do</strong>ura<strong>da</strong>s esporas e trazia atravessa<strong>da</strong> uma ban<strong>da</strong><br />
azul com ren<strong>da</strong>s de ouro, espa<strong>da</strong> com adereços <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s, pistolas na cinta e<br />
uma carapuça de campanha na cabeça. Apenas nos advertiram que era ele,<br />
quan<strong>do</strong> nos inclinámos com uma profun<strong>da</strong> cortesia, que sabe o temor ser mui<br />
cortês; ele nos respondeu à submissão, descobrin<strong>do</strong> a cabeça. E Eugenia, ou<br />
que houvesse si<strong>do</strong> no caminho de seu pai adverti<strong>da</strong>, ou de sua própria pena
268 Padre Mateus Ribeiro<br />
ensina<strong>da</strong>, que é a necessi<strong>da</strong>de mestra, prostran<strong>do</strong>-se ajoelha<strong>da</strong> a seus pés,<br />
lhe disse desta sorte:<br />
- A teus pés, ó generoso Frederico, vem pedir clemência e solicitar<br />
remédio a mulher mais aflita e mais persegui<strong>da</strong> <strong>da</strong> fortuna. Não permitirá teu<br />
valor que fiquem frustra<strong>da</strong>s minhas esperanças, pois são nasci<strong>da</strong>s não menos<br />
<strong>do</strong> rigoroso de minhas penas que <strong>da</strong> confiança de tua cortesia. Eu e meu pai e<br />
esposo, com os mais que me acompanham, vimos fugin<strong>do</strong> de Nápoles, <strong>do</strong>s<br />
rigores <strong>do</strong> vice-rei e <strong>da</strong>s sombras <strong>da</strong> morte que nos segue, e pois quis a<br />
ventura que teus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s nos encontrassem e à tua presença nos<br />
trouxessem, achem em teu valor compaixão nossas desgraças e amparo<br />
nossos temores, pois é obrigação de ânimos generosos favorecer aos aflitos e<br />
socorrer aos persegui<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> se valem <strong>da</strong> sombra de seu valor.<br />
Assim falou Eugenia, sain<strong>do</strong> a corrente de suas lágrimas a continuar a<br />
petição e a testemunhar sua pena; que não há eloquência mais poderosa para<br />
demover que uma fermosura senti<strong>da</strong> e uma beleza chorosa; ten<strong>do</strong>, como disse<br />
Euripides, a mulher uma natural eficácia e uma poderosa influência para<br />
enternecer com suas lágrimas.<br />
Levantou-a Frederico com grande cortesia; e lhe respondeu desta sorte:<br />
- Suspendei, discreta senhora, a corrente de vossas lágrimas e o<br />
intenso de vossa <strong>do</strong>r, que não vos trouxe a fortuna à presença de nenhum<br />
bárbaro tirano, nem de nenhum cita cruel em quem falte a pie<strong>da</strong>de para<br />
demover-se e a compaixão para a pie<strong>da</strong>de de vossa aflição. Estai segura de<br />
que não hei-de faltar a vosso remédio e vos hei-de pôr com quem vos<br />
acompanhe em lugar seguro em que vosso temor descanse: que pois debaixo<br />
<strong>do</strong> exercício em que me vedes soubestes conhecer a pie<strong>da</strong>de que em meu<br />
peito mora, nem ficará sem fruto vossa esperança, nem sem desempenhar-se<br />
minha obrigação.<br />
Agradeci<strong>da</strong> lhe respondeu Eugenia e nós juntamente to<strong>do</strong>s, que sempre<br />
o agradecimento granjeia benevolência, e, como disse Cícero, é leve pensão<br />
que acompanha ao beneficio.<br />
Man<strong>do</strong>u Frederico trazer de dentro <strong>da</strong> tosca habitação umas toscas<br />
esteiras e alguma comi<strong>da</strong>, pedin<strong>do</strong>-nos comêssemos, e pon<strong>do</strong> de parte a<br />
inquietação <strong>do</strong> sobressalto passa<strong>do</strong>, nos déssemos por seguros <strong>da</strong> inquietação<br />
que trazíamos. Obedecemos a seu gosto por entendermos nisso lho dávamos,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 269<br />
que quem necessita <strong>do</strong> favor não há-de encontrar a vontade de que depende.<br />
Entretanto deu ordem Frederico a despachar seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, assinan<strong>do</strong>-lhes os<br />
sítios que haviam de ocupar, a uns nas eminências para desquartinarem as<br />
estra<strong>da</strong>s, a outros em embosca<strong>da</strong>s para vigiarem os caminhantes, outros em<br />
esquadra para correrem as devesas, e <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhes as ordens que haviam de<br />
seguir e as horas a que haviam de tornar, como se fora milícia o que era<br />
escân<strong>da</strong>lo <strong>do</strong>s montes e assombro <strong>da</strong>s estra<strong>da</strong>s, a vi<strong>da</strong> mais arrisca<strong>da</strong> e<br />
inquieta, fican<strong>do</strong> só <strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>leiros e, assentan<strong>do</strong>-se connosco, disse assim:<br />
- Para que saibais, senhores, a causa de me verdes no esta<strong>do</strong> presente,<br />
antes de referir-vos os sucessos de minha vi<strong>da</strong>, estimarei me digais quem sois,<br />
para onde dirigis vosso caminho, que ocasião tivestes para deixares a pátria e<br />
vires fugin<strong>do</strong> aos rigores <strong>do</strong> vice-rei, meu inimigo.<br />
Ao que Alexandre lhe fez inteira relação de nossa história, desde aquela<br />
infelice noite <strong>do</strong> roubo de minha irmã e desafio até à hora presente, de que ele<br />
se mostrou compadeci<strong>do</strong>, prometen<strong>do</strong> de novo seu favor e companhia até nos<br />
deixar na primeira povoação fora <strong>da</strong>s raias <strong>do</strong> reino que poucas léguas distava.<br />
E <strong>da</strong>n<strong>do</strong> princípio aos perío<strong>do</strong>s de sua vi<strong>da</strong>, disse:<br />
Cap. XII.<br />
Em Frederico relata seus sucessos<br />
- Nasci nos arrabaldes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Nápoles, em um lugar pequeno que<br />
fica na estra<strong>da</strong> de Puzol; foram meus pais lavra<strong>do</strong>res e pobres, que to<strong>do</strong>s os<br />
infortúnios seguem a pobreza. Tiveram-me a mim e a uma filha chama<strong>da</strong><br />
Claudiana, com quem se mostrou a natureza tão liberal quanto a fortuna<br />
inimiga: poucas vezes fazem pazes a ventura e a beleza; sempre prodígios são<br />
objectos <strong>da</strong> admiração para serem ludíbrios <strong>da</strong> fortuna. Era tal a beleza de<br />
Claudiana que nem o escondi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s montes bastava a escondê-la, nem o<br />
rústico e pastoril traje era poderoso para deslustrá-la: tratavam meus pais de<br />
encobri-la aos olhos <strong>do</strong>s naturais e a fama a publicava ain<strong>da</strong> nos estrangeiros.<br />
Era neste tempo ela de <strong>do</strong>ze anos e eu de quinze, que não me incitan<strong>do</strong> a<br />
inclinação a seguir a vi<strong>da</strong> e exercício de meus pais, tratei em Nápoles de seguir
270 Padre Mateus Ribeiro<br />
as letras, servin<strong>do</strong> a um fi<strong>da</strong>lgo de pajem no estu<strong>do</strong>, por meu pai não poder<br />
sustentar-me nele, que em poucos anos aju<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o desvelo ao natural e o<br />
desejo de valer ao repeti<strong>do</strong> cui<strong>da</strong><strong>do</strong> de estu<strong>da</strong>r, de vinte e cinco anos de i<strong>da</strong>de<br />
fui gradua<strong>do</strong> em leis e com aplausos de opositor às cadeiras desta facul<strong>da</strong>de,<br />
com invejas <strong>do</strong>s que comigo estu<strong>da</strong>vam e adianta<strong>do</strong> tanto me viam.<br />
Já minhas esperanças se prometiam despacha<strong>da</strong>s com os lugares<br />
melhores, que é talvez a fama corretora <strong>da</strong>s venturas e a primeira que<br />
despacha na estimação, a quem engrandece. Quem diria, senhores, que tal<br />
mu<strong>da</strong>nça se desse que <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong>des decesse às montanhas, de julga<strong>do</strong>r<br />
a temer ser julga<strong>do</strong>, de professor <strong>da</strong>s Leis a temer seus rigores e de aplaudi<strong>do</strong><br />
por letra<strong>do</strong> a ser temi<strong>do</strong> por ban<strong>do</strong>leiro; tal mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> fortuna só em mim<br />
pudera achar-se, porque nasci para exemplo de sua inconstância. Socorria eu<br />
a meus pais com o que podiam granjear meus contínuos estu<strong>do</strong>s, que como<br />
tão lisonjea<strong>do</strong> <strong>da</strong> fama to<strong>do</strong>s se me <strong>da</strong>vam por amigos e me ofereciam<br />
dádivas, consultan<strong>do</strong>-me em negócios e pedin<strong>do</strong>-me arrazoa<strong>do</strong>s em causas de<br />
importância, ten<strong>do</strong> como por oráculos meus escritos, e assim nem a mim me<br />
faltava com que passar a vi<strong>da</strong> com autori<strong>da</strong>de, nem <strong>do</strong> que eu lhes enviava a<br />
meus pais e irmã com que poderem viver com mais largueza.<br />
Sucedeu pois, para desgraça de to<strong>do</strong>s, que o conde Roberto,<br />
ilustríssimo no sangue, rico e grandioso no esta<strong>do</strong>, aparenta<strong>do</strong> com o melhor<br />
de Itália, mancebo arroja<strong>do</strong> nas ousadias e temerário nas empresas, visse um<br />
dia, an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> à caça, a minha irmã Claudiana, e informa<strong>do</strong> de quem eram seus<br />
pais, desprezan<strong>do</strong> o humilde <strong>do</strong> exercício camponês em que viviam, suborna<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong> rara fermosura de sua vista, quis solicitar seu amor tão publicamente que<br />
não reparan<strong>do</strong> no deslustre que à fama de minha irmã causava com as<br />
contínuas assistências em lugar pequeno, aonde até os pensamentos se<br />
registam, quanto mais as acções indecorosas se murmuram; nem reparan<strong>do</strong><br />
no respeito que se devia à presença de meus pais, continuou tão insolente em<br />
<strong>da</strong>r-lhe músicas de noite, em passeá-la de dia, que ven<strong>do</strong> os mensageiros que<br />
man<strong>da</strong>va trazerem de minha irmã as respostas tão desabri<strong>da</strong>s, como merecia<br />
seu desaforo, por ser naturalmente Claudiana de vi<strong>da</strong> recolhi<strong>da</strong> e zelosa de<br />
sua reputação e honesta fama; que desespera<strong>do</strong> se resolveu a furtá-la de casa<br />
de meus pais, intentan<strong>do</strong> que conquistasse a violência a inteireza que não<br />
podia vencer a brandura.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 271<br />
Bem disse Santo Agostinho que era temeri<strong>da</strong>de querer passar por onde<br />
to<strong>do</strong>s costumam precipita<strong>da</strong>mente cair; porque se o mal considera<strong>do</strong> conde<br />
advertira os <strong>da</strong>nos que ao mun<strong>do</strong> ocasionaram semelhantes desaforos, nunca<br />
emprendera tão prejudicial insolência. A Lívia Oristila roubou o empera<strong>do</strong>r<br />
Calígula no dia em que estava para casar-se com Caio Pisão, e conjuran<strong>do</strong>-se<br />
contra ele os que odiavam seus desaforos o mataram em o dia que estava para<br />
solenizar espectáculos festivos. De semelhantes tragédias que referir pudera<br />
se empenharam os historia<strong>do</strong>res em recitá-las, que de semelhantes raptos se<br />
seguiram, porque para inimigo ninguém é pequeno e para amigo nem to<strong>do</strong>s<br />
são grandes. Resoluto pois Roberto neste temerário pensamento, uma noite<br />
arma<strong>do</strong> com outros que o seguiam (que a um rico e poderoso nunca faltam<br />
séquitos que o acompanhem) vin<strong>do</strong> ao pobre <strong>do</strong>micílio em que meus pais<br />
viviam, quan<strong>do</strong> a noite com seu maior silêncio podia apadrinhar tal insulto,<br />
rompen<strong>do</strong> as portas com violência, entraram na casa e lançan<strong>do</strong> mão de minha<br />
irmã que de tal ousadia descui<strong>da</strong><strong>da</strong> estava, ferin<strong>do</strong> o ar com gritos e o céu com<br />
queixas, não sen<strong>do</strong> poderosas para defendê-la nem lágrimas que chorava,<br />
nem lástimas que dizia, a meteram em uma carroça que traziam, não sen<strong>do</strong><br />
meus aflitos pais bastantes a defendê-la de tantas armas e corações<br />
desumanos que se lhes opuseram para impedi-los, e a levaram a uma quinta<br />
seis léguas distante de Nápoles, com a pena que podeis considerar em a pobre<br />
<strong>do</strong>nzela que seus pais deixava, e neles que rouba<strong>da</strong> sua ama<strong>da</strong> filha com tal<br />
injustiça viam.<br />
Bem descui<strong>da</strong><strong>do</strong> em Nápoles estava eu de tão inopina<strong>do</strong> sucesso,<br />
quan<strong>do</strong> de manhã (que sempre as novas tristes madrugam) me chegaram as<br />
[novas] de tanta pena minha, que apenas as ouvi quan<strong>do</strong> disse:<br />
- Aqui deram fim meus estu<strong>do</strong>s e minhas malogra<strong>da</strong>s esperanças, que<br />
mal podiam durar muito, sen<strong>do</strong> minhas. Oh penosa vi<strong>da</strong>! Que bem chorava o<br />
filósofo Heraclito tuas misérias, assim como Demócrito se ria e zombava de<br />
tuas vai<strong>da</strong>des, que mais parecem representações cómicas que enti<strong>da</strong>des<br />
ver<strong>da</strong>deiras, sombras que passam, sonhos que desaparecem sem deixarem<br />
mais que a mágoa por vestígios de suas fugitivas glórias! Que importou a<br />
Quinto Metelo <strong>da</strong>rem-lhe suas venturas, digni<strong>da</strong>des e triunfos o título de felice,<br />
se esteve para ser despenha<strong>do</strong> <strong>do</strong> Capitólio em Roma, sen<strong>do</strong> acusa<strong>do</strong>, se a<br />
pie<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s filhos e a compaixão de outros tribunos não lhe valera? Merecer
272 Padre Mateus Ribeiro<br />
as honras consiste nas obras, mas o possuí-las ou lográ-las na ventura.<br />
Quanto trabalhei em tantos anos para subir, um só dia bastou para abater.<br />
Quanto trabalhou Agis, rei <strong>do</strong>s lacedemónios, por sua república, em um dia<br />
desfizeram os éforos, seus severos juízes, privan<strong>do</strong>-o <strong>da</strong> coroa e man<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-<br />
Ihe tirar a vi<strong>da</strong> afrontosamente; que não foi poderoso o ceptro com que a to<strong>do</strong>s<br />
man<strong>da</strong>va para isentá-lo de obedecer a quem de antes lhe obedecia.<br />
Assim suspiran<strong>do</strong> parti a casa de meus pais, para alcançar mais<br />
particular informação de minha pena, aonde achei a minha mãe tão enferma de<br />
<strong>do</strong>r, como <strong>da</strong>s sau<strong>da</strong>des de uma filha tão queri<strong>da</strong> e tanto para estima<strong>da</strong>. São<br />
as sau<strong>da</strong>des uma batalha que se dá entre o coração, os olhos e a memória:<br />
esta lembran<strong>do</strong>, o coração aman<strong>do</strong> e os olhos não ven<strong>do</strong>. Se o coração não<br />
amara, a memória se riscara e os olhos não sentiram; mas como ama o<br />
coração, nem a memória se descui<strong>da</strong>, nem os olhos sossegam. Se o coração<br />
não penara, os olhos não <strong>do</strong>rmiram e a memória suspendera o desperta<strong>do</strong>r de<br />
seu tormento, mas como o amor se não suspende, nem a memória tem tréguas<br />
em que descanse, nem os olhos suspensão de armas em que sosseguem.<br />
Pesam-se as sau<strong>da</strong>des na balança <strong>do</strong> querer: tanto tem de rigorosas, quanto o<br />
amor de grande; tanto de dilata<strong>da</strong>s, quanto o querer de firme. Não dá tormento<br />
ausentar-se o que não dá desvelo em querer-se, porque pouco lembra a<br />
memória para sentir-se, que lhe custa pouco em estimar-se; mas como em<br />
minha mãe era o amor tão poderoso, tão fresca a mágoa, tão excessiva a <strong>do</strong>r,<br />
pouco faltava para tirar-lhe a vi<strong>da</strong>, se ain<strong>da</strong> tinha vi<strong>da</strong> para perder quem no<br />
sentimento <strong>do</strong> rapto de tal filha tinha perdi<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>.<br />
Informei-me <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de antes de resolver-me no remédio, se podia ter<br />
remédio tão irreparável <strong>da</strong>no; e era tal a pena de meus pais que mal <strong>da</strong>va lugar<br />
para o certo se descobrir. Enfim subi a quinta aonde o conde estava e os que<br />
lhe fizeram escolta ao insulto, e não me custou pouca moléstia ajuizar sobre a<br />
vingança, porque um coração aflito serve de rémora ao discurso e de martírio<br />
ao juízo. Consultar os meios de uma vingança, quem tem recebi<strong>do</strong> a ofensa,<br />
não pode em breve espaço; porque as paixões <strong>da</strong> alma impedem o acerto <strong>da</strong><br />
eleição; e mais quanto o ofensor é poderoso, de quem pode resultar receber<br />
antes nova ofensa <strong>do</strong> que <strong>da</strong> primeira satisfação. Provoca uma vingança outra,<br />
como disse Euripides. É necessário mais juízo na vingança que na ofensa; esta<br />
talvez é parto <strong>do</strong> furor e estoutra <strong>do</strong> discurso. Era Roberto ofensor e poderoso,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 273<br />
e não se podia presumir estivesse com tão pouca cautela, nem de amigos tão<br />
desprovi<strong>do</strong>, nem de armas tão despoja<strong>do</strong> que pudesse assaltar-lhe a casa,<br />
nem chegar a poder ofendê-lo um homem desigual na condição, solitário na<br />
companhia, acompanha<strong>do</strong> só de seus pesares e assisti<strong>do</strong> de seus desgostos,<br />
professor mais de letras que de armas, falto de cabe<strong>da</strong>is para as ausências e<br />
para as empresas de ventura. Meu pai me dissuadia <strong>da</strong> vingança, dizen<strong>do</strong>-me<br />
a levasse por justiça; mas como contra réus tão poderosos como estaria a<br />
justiça segura, quan<strong>do</strong> <strong>da</strong>s violências <strong>do</strong> poder talvez não está segura a<br />
justiça?<br />
Os juízes areopagitas de Atenas eram tão rectos na inteireza que não<br />
ouviam as partes senão com as janelas fecha<strong>da</strong>s para que nem a fermosura,<br />
nem a velhice, nem as lágrimas pudessem demovê-los <strong>da</strong> justiça. Os éforos,<br />
que eram os juízes de Esparta, eram tão inteiros no que ser justo entendiam<br />
que <strong>do</strong> que os reis sentenciavam se apelava para eles como a tribunal<br />
supremo, e tinham superiori<strong>da</strong>de sobre os mesmos reis, até para os depor e<br />
condenar à morte. O sena<strong>do</strong> romano foi antigamente tão recto no que julgava<br />
que diz o <strong>do</strong>utor S. Tomás lhe conservou Deus Senhor nosso o império <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> por espaço de seiscentos anos pela inteireza que na justiça mostravam.<br />
Tito Mânlio Torcato, cônsul, sen<strong>do</strong> juiz em Roma <strong>da</strong>s acusações que os<br />
macedónios deram contra seu filho Júlio Silano, e sen<strong>do</strong> convenci<strong>do</strong> delas, o<br />
condenou tão rigorosamente que o próprio filho, desesperan<strong>do</strong> de ter recurso<br />
em sua sentença, se enforcou para acabar a vi<strong>da</strong>. Condenaram os juízes<br />
areopagitas ao insigne capitão Melcíades Ateniense, por haver desisti<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
sítio que tinha posto à ilha de Paro, em cinquenta talentos, e pelos não ter<br />
morreu preso no cárcere de Atenas, chegan<strong>do</strong> a severi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s juízes a tal<br />
excesso que não consentiram se desse sepultura a seu corpo sem que<br />
Címones, seu filho, se metesse na prisão por ele até satisfazer a condenação.<br />
Condenaram os romanos rigorosamente a Lúcio Quíncio cônsul, porque<br />
estan<strong>do</strong> em Placência de Itália man<strong>da</strong>ra degolar a um <strong>do</strong>s condena<strong>do</strong>s à morte<br />
na presença de uma <strong>da</strong>ma cortesã, por <strong>da</strong>r-lhe gosto de ver degolá-lo; e orou<br />
contra ele Catão leva<strong>do</strong> <strong>do</strong> zelo <strong>da</strong> justiça. Necessitou Pausânias, rei de<br />
Esparta, sen<strong>do</strong> cita<strong>do</strong> a juízo por man<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong>s éforos, pelas tréguas que havia<br />
feito com os tebanos com pouca aprovação de seu exército, de acolher-se ao
274 Padre Mateus Ribeiro<br />
templo de Minerva em Tegeia para escapar <strong>da</strong> morte, <strong>do</strong>nde não saiu mais em<br />
sua vi<strong>da</strong>.<br />
Cap. XIII.<br />
Em Frederico prossegue a história de Claudiana<br />
Na rectidão e severi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s juízes (continuou Frederico) consiste,<br />
como ensina Demóstenes, a autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leis, sen<strong>do</strong> a justiça a harmonia e<br />
consonância <strong>do</strong> corpo político <strong>da</strong> república, balança que se não torce, fiel que<br />
não avaria, diamante que não se amolga, luz que não se escurece. Mas como<br />
hoje, com o discurso <strong>do</strong>s anos, mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong>s monarquias e varie<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s<br />
tempos, vem a estar tão destemi<strong>do</strong> o poder e tão acovar<strong>da</strong><strong>da</strong> a razão, ten<strong>do</strong><br />
poucos que a amparem e o valimento tantos que o apadrinhem, quem confiará<br />
seus agravos <strong>da</strong> justiça contra o poder e <strong>da</strong> razão contra o valimento? Já no<br />
tempo de Jugurta, rei de Numídia, sen<strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> em Roma <strong>da</strong>s mortes que<br />
injustamente deu a seus irmãos Hiempsal e Aderbal, por ensenhorear-se<br />
tiranicamente de to<strong>do</strong> o reino, teve o ouro que levou tanto valor com os que<br />
suborna<strong>do</strong>s <strong>do</strong> sena<strong>do</strong> dele iam, que sain<strong>do</strong> absoluto, quan<strong>do</strong> devia<br />
justamente ser condena<strong>do</strong>, disse que era Roma ci<strong>da</strong>de para vender-se, se<br />
tivera compra<strong>do</strong>r: como a riqueza corrompeu o zelo, logo perigou a igual<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> justiça.<br />
Pois como cometerei eu a satisfação de um tal agravo ao risco <strong>do</strong> poder<br />
com tanta desigual<strong>da</strong>de nas pessoas, um conde rico, minha irmã pobre; ele<br />
aparenta<strong>do</strong>, eu desvali<strong>do</strong>; ele senhor, meus pais lavra<strong>do</strong>res; ele assegurar-se-á<br />
com a fugi<strong>da</strong>, eu ficarei com a desonra; e quan<strong>do</strong> ao fim venha a causa a final<br />
sentença lhe julgarão algum <strong>do</strong>te que a ele fará pouca falta e a mim muita<br />
afronta? Como aparecerei eu nas academias, sen<strong>do</strong> alvo de tantos olhos,<br />
assunto de tantos juízos, uns que digam que como humildemente cria<strong>do</strong> me<br />
contentei com tão baixa satisfação, outros que como covarde remeti minha<br />
vingança ao juízo, para ficar de to<strong>do</strong> sem vingança?<br />
Vacilan<strong>do</strong> nestes e semelhantes discursos se passou o dia, que para<br />
quem não deseja ser visto sempre é penoso. Chegou a noite, abrigo <strong>do</strong>s
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 275<br />
descontentes, máscara <strong>do</strong>s aborreci<strong>do</strong>s, e valen<strong>do</strong>-me de suas sombras me<br />
parti para a quinta, teatro <strong>da</strong> representação de minha trágica fortuna, levan<strong>do</strong><br />
só a espa<strong>da</strong> e uma pistola, que são as armas que com a brevi<strong>da</strong>de que saí de<br />
Nápoles me acompanharam. Seriam as onze horas <strong>da</strong> noite, quan<strong>do</strong>, antes de<br />
chegar à quinta, vi vir uma mulher pela estra<strong>da</strong>, com passos apressa<strong>do</strong>s em<br />
corpo, e chegan<strong>do</strong> mais perto divisei que trazia um punhal na mão. Admira<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> encontro a tais horas, quis conhecer quem seria, quan<strong>do</strong> ela conhecen<strong>do</strong>-<br />
me na voz:<br />
- Ó meu caro irmão Frederico, quem senão vós poderia socorrer-me em<br />
trance tão preciso? Eu sou Claudiana, que deixo ao conde Roberto ou de to<strong>do</strong><br />
morto, ou nas últimas despedi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, por querer violentar o decoro de<br />
minha honesti<strong>da</strong>de, que eu defendi, manchan<strong>do</strong> este punhal em seu sangue;<br />
peço-vos me ponhais em lugar seguro, <strong>do</strong>nde vos <strong>da</strong>rei mais inteira notícia<br />
deste sucesso.<br />
Competiu em mim com tal nova a alegria com o desgosto que senti<strong>do</strong><br />
tinha, que para julgar qual foi maior não sei facilmente resolver-me, pois via a<br />
minha irmã livre <strong>do</strong> opróbrio, vinga<strong>da</strong> <strong>da</strong> ofensa, e a mim <strong>do</strong> cui<strong>da</strong><strong>do</strong> de<br />
procurá-la, sen<strong>do</strong> o risco mais certo que o desempenho <strong>do</strong> agravo recebi<strong>do</strong>. E<br />
como era necessário pôr a Claudiana em salvo e juntamente a meus pais, até<br />
ver o que o tempo descobria, caminhan<strong>do</strong> com minha irmã a casa e ven<strong>do</strong><br />
maus pais a Claudiana, aquela rouba<strong>da</strong> pren<strong>da</strong> tão chora<strong>da</strong> por queri<strong>da</strong> como<br />
agora com lágrimas de alegria por ganha<strong>da</strong>, levan<strong>do</strong> algum dinheiro e o melhor<br />
que na limitação de casa de meus pais havia, entre o silêncio <strong>da</strong> noite nos<br />
partimos a Nápoles e, antes que os reflexos <strong>da</strong> aurora pudessem manifestar-<br />
nos, entrámos em casa de uma senhora viúva, pessoa principal, com um filho<br />
ao qual tinha eu, como já ouvistes, assisti<strong>do</strong> os princípios de meus estu<strong>do</strong>s, e<br />
nos tinha ela particular afeição, e assim tomámos sua casa neste repentino<br />
sucesso por asilo seguro. Admirou-se ela não menos <strong>da</strong> insolência <strong>do</strong> conde<br />
que <strong>do</strong> invencível valor de Claudiana, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe mil abraços e aplaudin<strong>do</strong> com<br />
notáveis louvores sua constância, e desejan<strong>do</strong> saber mais dilata<strong>da</strong>mente e nós<br />
to<strong>do</strong>s a relação <strong>do</strong> sucesso, o referiu por extenso minha irmã, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Desengana<strong>do</strong> o conde Roberto, que sem fruto nem esperança<br />
intentavam abrir brechas em meu peito seus escan<strong>da</strong>losos galanteios, dádivas,<br />
regalos, ofertas e promessas, porque quis a natureza fazer-me mais rica de
276 Padre Mateus Ribeiro<br />
brios que de ambições e mais escrupulosa de meu crédito e fama que desejosa<br />
de riquezas com labéus <strong>da</strong> fama adquiri<strong>da</strong>s, quis remeter ao assalto <strong>da</strong><br />
violência o empenho que não podia conquistar nem sua riqueza, nem seu<br />
desejo.<br />
Desvanecem-se tanto no mun<strong>do</strong> os poderosos que não só pertendem<br />
que obedeçam a seus acenos as vontades <strong>do</strong>s desvali<strong>do</strong>s, mas ain<strong>da</strong> com<br />
delírios <strong>da</strong> soberba querem ser obedeci<strong>do</strong>s <strong>da</strong> natureza. Queren<strong>do</strong> Xerxes,<br />
soberbíssimo monarca <strong>da</strong> Ásia, passar com inumerável exército o rio Guindes,<br />
que profun<strong>do</strong> e de cau<strong>da</strong>losa corrente era, porque lhe submergiu arrebata<strong>da</strong><br />
corrente algum seu vali<strong>do</strong>, que enfermo <strong>da</strong> mesma soberba quis<br />
temerariamente atravessá-lo, ressenti<strong>do</strong> o monarca lhe ameaçou e jurou que<br />
ele faria que até as mulheres e moços de seu exército o vadeassem, e assim o<br />
man<strong>do</strong>u dividir em tantos arroios que, enfraqueci<strong>do</strong> o rio de tantas sangrias de<br />
cristal, desmaiou de tal sorte os vitais espíritos de sua neve, que to<strong>do</strong>s<br />
puderam atravessá-lo. Não menos soberba mostrou em man<strong>da</strong>r ferir com varas<br />
ao Helesponto, porque com impetuosas inun<strong>da</strong>ções de sua águas lhe arruinou<br />
a ponte que para passá-lo feito tinha, não escapan<strong>do</strong> de semelhante loucura o<br />
célebre monte Atos de Macedónia, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe cortar o istmo para o<br />
converter em ilha, em castigo de lhe ter o mar nos roche<strong>do</strong>s de sua costa<br />
destroça<strong>do</strong> trezentas naus de sua arma<strong>da</strong>, de que era capitão-general<br />
Mardónio. Semelhantes delírios cometeu o empera<strong>do</strong>r Calígula na<br />
extraordinária ponte que fez no golfo de Baias, queren<strong>do</strong> correr carroças e<br />
cavalos sobre a inconstância <strong>do</strong> mar como se fora sobre a firmeza <strong>da</strong> terra. Tal<br />
o conde Roberto, impaciente de minha resistência que ele avaliava por agravo,<br />
fazen<strong>do</strong> já <strong>do</strong> amor porfia e <strong>da</strong> afeição pun<strong>do</strong>nor, se valeu <strong>do</strong> poder, meten<strong>do</strong>-<br />
me seus vali<strong>do</strong>s à força na carroça, ao entrar <strong>da</strong> qual com a resistência que eu<br />
fazia, valen<strong>do</strong>-me <strong>da</strong>s sombras <strong>da</strong> noite, pude a um deles tirar este punhal <strong>da</strong><br />
cinta sem ele adverti-lo que, esconden<strong>do</strong> eu entre os vesti<strong>do</strong>s, propus ser ele o<br />
instrumento de minha vingança.<br />
Apearam-me <strong>da</strong> carroça, ou para mim mais propriamente tumba, pois a<br />
<strong>do</strong>r e sentimento grande me levava nela mais morta que viva, e levan<strong>do</strong>-me por<br />
várias casas a uma mais oculta em que estava um lampião aceso, ven<strong>do</strong> eu<br />
que Roberto com a chave fechava a porta fican<strong>do</strong> comigo dentro, tiran<strong>do</strong> o<br />
punhal, já delibera<strong>da</strong> lhe disse desta sorte:
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 277<br />
- Suspende, atrevi<strong>do</strong> conde, os passos que dás para minha desonra e<br />
ouve-me atento, se não queres que com este punhal me atravesse o peito.<br />
Parou Roberto admira<strong>do</strong> e me disse:<br />
- Ten<strong>do</strong> Demétrio sitia<strong>do</strong> a Rodes, desistiu de <strong>da</strong>r-lhe assalto nem pôr-<br />
Ihe fogo por não perigar uma pintura <strong>do</strong> insigne pintor Protógenes que sobre o<br />
muro estava; e assim não será muito que por suspender o golpe a esta beleza<br />
que tão caro me custa, aten<strong>da</strong> a ouvir-te.<br />
Respondi eu apaixona<strong>da</strong> e resoluta:<br />
- Amor, conde atrevi<strong>do</strong>, é rendimento <strong>da</strong> vontade e não violência <strong>da</strong><br />
tirania; triunfar de uma pessoa força<strong>da</strong> é vencer um corpo sem alma, uma<br />
imagem sem vi<strong>da</strong>. Presumir que te ofen<strong>do</strong> em não amar-te é desacerto de teu<br />
desejo ou ilusão de teu juízo, que como amor é parto <strong>da</strong> vontade, voluntário ha<br />
de ser para ser legítimo e monstruoso seria quan<strong>do</strong> fosse força<strong>do</strong>. Não me<br />
inclinaram as estrelas a querer-te, porque vejo que não posso igualar-te, que<br />
quan<strong>do</strong> tanto na grandeza me não avantejaras, porventura que nas finezas me<br />
não excederas. Não quis minha fortuna que pudesse merecer-te para esposo e<br />
por isso não posso aceitar-te como amante, que pois sou pequena para<br />
mulher, também sou muito grande para <strong>da</strong>ma. Imaginas que no tosco de meu<br />
nascimento não pode encerrar-se uma condição mui briosa? Na tosca concha<br />
<strong>do</strong> nácar não se oculta a preciosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pérola? Ou porventura custa menos<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s ao sol com a eficácia e influência de seus raios produzir o espinho <strong>do</strong><br />
que a rosa? Pois como te persuades que não haverá em mim tão briosos<br />
espíritos para defender-me como em ti abati<strong>do</strong>s para forçar-me? Se em ti<br />
corresponderam as obras ao ilustre de teu sangue, mais obrigação te corria de<br />
amparar-me que de ofender-me; mas como estás suborna<strong>do</strong> de teu lascivo<br />
desejo, não sentenciarás em meu favor, ain<strong>da</strong> que conheces a justiça. Se te<br />
presas de soberano, não abatas o altivo a conquistar minha humil<strong>da</strong>de; olha<br />
que é descrédito de bizarro intentares ofender a quem não te ofende. Sujeitos<br />
haverá que te mereçam, se pode merecer-se teu sujeito; aí empenha o<br />
senhoril, que será aplaudi<strong>do</strong>, e não <strong>do</strong>nde possas ser vitupera<strong>do</strong>. Partes tens<br />
para seres ama<strong>do</strong> de quem te iguale, não procures com violências sê-lo de<br />
quem não pode querer-te; porque será pedires ao céu flores e ao campo<br />
estrelas o pertenderes obrigar-me nem com tuas finezas, nem com teus
278 Padre Mateus Ribeiro<br />
rigores, pois antes deixarei a vi<strong>da</strong> aos fios deste punhal que a honra aos<br />
assaltos de tua violência.<br />
Confuso entre admira<strong>do</strong> me ouviu o conde, nem delibera<strong>do</strong>, nem<br />
arrependi<strong>do</strong>, mas depois de um breve intervalo em que se aconselhou com<br />
seus desejos, me disse:<br />
- Até agora, fermosa Claudiana, te amei por fermosa e agora te quero<br />
mais por discreta; e se mal podia resistir um só motivo de amar-te, como<br />
resistirei <strong>do</strong>bran<strong>do</strong>-se os motivos de querer-te? O penhascoso <strong>da</strong>s serras, junto<br />
onde te criaste, te comunicou a dureza e a neve que as veste te repartiu o<br />
esquivo: a hora em que te vi foi para mim desditosa, quan<strong>do</strong> a julgava meu<br />
amor por mais felice. Ameaças-me que serás Lucrécia antes de eu ser<br />
Tarquino, mal se acovar<strong>da</strong> meu coração com ameaços; veremos se posso<br />
mais esquiva<strong>do</strong> <strong>do</strong> que pudera ser correspondi<strong>do</strong>.<br />
Assim disse, e queren<strong>do</strong> avizinhar-se temerário aonde eu estava, lhe<br />
meti o punhal tão vizinho ao coração, que cain<strong>do</strong> em terra sem voz nem<br />
movimentos, deu indícios de ser a feri<strong>da</strong> mortal; e eu abrin<strong>do</strong> a janela que a um<br />
jardim caía, e não era altura tal que me intimi<strong>da</strong>sse, me lancei abaixo, <strong>do</strong>nde<br />
sain<strong>do</strong> à quinta e saltan<strong>do</strong> seu muro encontrei a meu irmão Frederico, que o<br />
céu me deparou em aflição semelhante para amparar-me e trazer-me ao<br />
seguro abrigo desta casa, de quem espero to<strong>do</strong> o favor <strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de de vossa<br />
senhoria, pois a causa é tão justa, eu tão persegui<strong>da</strong> <strong>da</strong> fortuna e vossa<br />
senhoria tão costuma<strong>da</strong> a valer aos que dela se amparam.<br />
Cap. XIV.<br />
Em Frederico prossegue a história de Claudiana<br />
Com grande aceitação foi de to<strong>do</strong>s louva<strong>da</strong> a generosa acção de<br />
Claudiana em defensa <strong>da</strong> sua honesti<strong>da</strong>de, porque se a tebana Timocleia, irmã<br />
<strong>do</strong> valeroso Teágenes, matou ao bárbaro capitão de Trácia e por isso foi<br />
louva<strong>da</strong> <strong>do</strong> grande Alexandre, foi depois de a ter violentamente força<strong>da</strong> no<br />
saco e destruição <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Tebas; mas Claudiana foi tanto mais aplaudi<strong>da</strong><br />
e com panegíricos celebra<strong>da</strong>, pois antes de padecer o agravo de força<strong>da</strong>, em
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 279<br />
defensa de sua honra se mostrou generosa vingativa. Rompeu a fama ao outro<br />
dia a morte <strong>do</strong> conde juntamente com a causa e, como a insolência de Roberto<br />
era de to<strong>do</strong>s geralmente aborreci<strong>da</strong>, to<strong>do</strong>s em geral ao conde culpavam e com<br />
encómios a minha irmã engrandeciam. É o povo, como disse Quintiliano, fácil<br />
de persuadir e como a razão estava tão manifesta, como o desaforo <strong>do</strong> rapto<br />
público, aprovaram to<strong>do</strong>s por generoso o castigo. Acudiu a justiça a devassar a<br />
morte, mas como constava <strong>da</strong> ofensa, ficou suspenso o rigor e tíbio o zelo; que<br />
uma razão manifesta é pedra de estancar queixas e de suspender iras.<br />
Retirou-se Claudiana a um convento por via desta senhora em cuja casa<br />
estávamos e a quem meus pais, por temor <strong>do</strong>s parentes <strong>do</strong> conde morto,<br />
ficaram encomen<strong>da</strong><strong>do</strong>s para aí assistirem; e eu não queren<strong>do</strong> já de Nápoles<br />
residências, assim pela moléstia que sentia, como recean<strong>do</strong> <strong>do</strong>s parentes <strong>do</strong><br />
conde, que eram poderosos, alguma vingança, não queren<strong>do</strong> seguir as letras<br />
por ver se me favorecia mais a ventura pelas armas, me parti a Flandres, <strong>da</strong>í a<br />
Alemanha e assentei praça de sol<strong>da</strong><strong>do</strong> no exército <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Carlos<br />
Quinto, no tempo de suas militares empresas e gloriosos triunfos. Achei-me<br />
nas guerras de Saxónia contra o rebelde duque, lançámos ponte ao rio Albis<br />
em seguimento <strong>do</strong>s saxones que se iam retiran<strong>do</strong>, demos-lhe batalha e sen<strong>do</strong><br />
o duque feri<strong>do</strong> a minha companhia se avançou a ele com tal valor que o<br />
fizemos prisioneiro, sen<strong>do</strong> trazi<strong>do</strong> à presença <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r pelo conde Hipólito<br />
<strong>do</strong> <strong>Porto</strong>, ilustre vicentino em cuja companhia eu an<strong>da</strong>va. Fizeram-me alferes,<br />
continuei a milícias, achei-me no sítio de Metz, ci<strong>da</strong>de posta na província de<br />
Lorena quan<strong>do</strong> por demasia<strong>da</strong> confiança de quem a governava se entregou a<br />
el-rei de França, sobre a qual voltan<strong>do</strong> o empera<strong>do</strong>r com poderoso exército, de<br />
que era tenente-general o duque de Alva; e empenhei-me tanto nos conflitos<br />
militares, aventuran<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> com os estímulos de granjear honra, que mereci<br />
sem valimento de quem me apadrinhasse mais que meus serviços ser capitão<br />
de cavalos no exército <strong>do</strong> César, com nome de destemi<strong>do</strong> e valeroso sol<strong>da</strong><strong>do</strong>;<br />
o que mostrei em muitas ocasiões em que me pôs a fortuna em discurso de<br />
dez anos.<br />
De lá socorria a meus pais com o que podia granjear de meus<br />
ordena<strong>do</strong>s e presas e mandei <strong>do</strong>te para professar minha irmã, Claudiana,<br />
como fez no convento aonde se havia retira<strong>do</strong>; e desejan<strong>do</strong> vê-la e a meus<br />
pais que havia tanto tempo deixara, me parti a Nápoles honra<strong>do</strong> com a
280 Padre Mateus Ribeiro<br />
capitania que tinha e com as autoriza<strong>da</strong>s certidões de meus serviços que à<br />
custa <strong>do</strong> dispêndio de meu sangue fizera. Fui em Nápoles de to<strong>do</strong>s festeja<strong>do</strong><br />
com os parabéns de meus argumentos, com lágrimas de alegria de meus pais,<br />
com excessivo alvoroço de minha irmã, visitei a academia em que havia<br />
estu<strong>da</strong><strong>do</strong>, e de to<strong>do</strong>s era festeja<strong>do</strong> e benquisto, que não é pouco ser benquisto<br />
<strong>do</strong> povo, porque não só pende de obrar e proceder com satisfação, mas<br />
juntamente <strong>da</strong> ventura, sen<strong>do</strong> até o excessivo bem obrar talvez ao vulgo<br />
aborreci<strong>do</strong>.<br />
A lei <strong>do</strong> ostracismo que tinham os atenienses era a em que desterravam<br />
por dez anos fora de Atenas as pessoas mais eminentes, porque não<br />
afectassem levantar-se com o senhorio. Era Aristides insigne capitão e tão<br />
justifica<strong>do</strong> nas obras que lhe chamavam por sobrenome o justo. E como para o<br />
desterro haviam de ser os votantes seis mil de Atenas e seus arrabaldes, veio<br />
um lavra<strong>do</strong>r e pediu a Aristides, sem conhecê-lo, lhe escrevesse o nome de<br />
Aristides para o lançar no seu voto. Perguntou-lhe ele se lhe tinha o capitão<br />
Aristides feito algum agravo. Ao que respondeu o lavra<strong>do</strong>r que não, nem ele o<br />
tinha visto, mas que votava em que fosse desterra<strong>do</strong> porque lhe enfa<strong>da</strong>va<br />
to<strong>do</strong>s o nomearem por justo e se cansava de ouvir tantra bon<strong>da</strong>de e louvores<br />
seus. Escreveu-lhe Aristides, sem <strong>da</strong>r-se a conhecer, o voto e foi desterra<strong>do</strong> de<br />
Atenas.<br />
Celebravam-se em Nápoles umas festas grandes, cousa mui ordinária<br />
naquela corte, e an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> eu na praça a pé ven<strong>do</strong> as armações custosas de<br />
que estava a<strong>do</strong>rna<strong>da</strong> e festejos que nela havia, vin<strong>do</strong> passan<strong>do</strong> uma <strong>da</strong>nça de<br />
mascara<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>s de uma cor vesti<strong>do</strong>s, passan<strong>do</strong> por junto <strong>do</strong>nde eu estava<br />
com outros cavaleiros, gente principal, me deu um <strong>do</strong>s mascara<strong>do</strong>s uma<br />
bofeta<strong>da</strong> repentinamente sem com ele haver ti<strong>do</strong> palavra ou encontro algum.<br />
Vedes, senhores, qual eu ficaria com tão inopina<strong>do</strong> sucesso? Levei <strong>da</strong> espa<strong>da</strong><br />
e a<strong>da</strong>ga e os que estavam comigo, e como os mascara<strong>do</strong>s se baralharam uns<br />
com outros entre a muita gente que na praça assistia, e eu não podia conhecer<br />
qual era o que me havia ofendi<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> um só o agressor <strong>do</strong> agravo, foram<br />
para mim ofensores to<strong>do</strong>s, e assim dei morte a três e feri outros a quem sua<br />
desgraça pôs máscara este dia, que talvez há desgraças que se comunicam,<br />
como venturas que se repartem.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 281<br />
Ao tumulto <strong>da</strong> pendência de que an<strong>da</strong>va to<strong>da</strong> a praça confusa acudiu um<br />
auditor <strong>da</strong> justiça a querer prender-me; mas eu, que <strong>da</strong> cólera e paixão estava<br />
sur<strong>do</strong> para ouvi-lo e ain<strong>da</strong> cego para conhecê-lo, resistin<strong>do</strong> a ele e seus<br />
ministros, aju<strong>da</strong><strong>do</strong> de alguns sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que <strong>da</strong> minha parte se puseram por<br />
haverem nas guerras <strong>do</strong> império milita<strong>do</strong> comigo, me mostrei tão arroja<strong>do</strong> que<br />
feri<strong>do</strong>s alguns ministros, e não sei se mortalmente, me deram estra<strong>da</strong> franca<br />
para retirar-me, e sain<strong>do</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de acompanha<strong>do</strong> <strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que digo,<br />
caminhan<strong>do</strong> pelos montes, se ajuntaram connosco outros criminosos foragi<strong>do</strong>s,<br />
e crescen<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> vez mais o número me escolheram por seu capitão em ódio<br />
<strong>da</strong> justiça, que man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> em algumas ocasiões gente para prender-nos,<br />
sempre ficaram venci<strong>do</strong>s, alguns mortos e muitos se retiraram feri<strong>do</strong>s.<br />
Vim a saber que o mascara<strong>do</strong> que me afrontara era um cria<strong>do</strong> de<br />
Raimun<strong>do</strong>, primo <strong>do</strong> conde Roberto morto, fi<strong>da</strong>lgo tão dissoluto na vi<strong>da</strong> como<br />
ele, que em vingança de sua morte ordenara por tal meio afrontar-me: fora-lhe<br />
melhor tirar-me a vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> que assombrar-me a honra. Apenas tive tal notícia,<br />
quan<strong>do</strong> uma noite escura de repente com meus companheiros lhe assaltei a<br />
casa, e mal feri<strong>do</strong> de duas balas, saltan<strong>do</strong> pela janela, lhe valeu o escuro <strong>da</strong><br />
noite para não ficar morto: destruí quanto lhe achei em casa, que dei a meus<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s por despojos <strong>do</strong> assalto, e antes que pudéssemos ser senti<strong>do</strong>s, nos<br />
pusemos em salvo; que o estron<strong>do</strong> <strong>do</strong> trovão quan<strong>do</strong> avisa já o raio tem<br />
executa<strong>do</strong> o golpe e de assaltos repentinos não há prevenção segura.<br />
Mandei ordem a meus pais para se mu<strong>da</strong>rem a Roma, aonde assistem,<br />
e eu neste exercício em que me vedes, leva<strong>do</strong> de desejos vingativos de<br />
Raimun<strong>do</strong> e sua família pela causa <strong>do</strong> agravo que ouvistes, cujo executor<br />
indiscretamente foi um <strong>do</strong>s que ficaram mortos no fracasso, mas não se <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
por satisfeito meu sentimento sem lavar em seu sangue as manchas de meu<br />
rosto por seu man<strong>da</strong><strong>do</strong> ofendi<strong>do</strong>, sem temer os editais <strong>do</strong> vice-rei, nem os<br />
rigores com que me persegue; porque como está de permeio o desagravo de<br />
minha ofensa e a reputação de minha honra, sen<strong>do</strong> esta, como disse Plínio,<br />
prémio <strong>da</strong> virtude e adquiri<strong>da</strong> com tantos desvelos e trabalhos militares e<br />
dispêndio de meu sangue, com arrojo persevero nos perigos que conheço e<br />
faço pouca estimação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que logro, se porventura vi<strong>da</strong> tão arrisca<strong>da</strong> aos<br />
sustos de perdê-la pode chamar-se vi<strong>da</strong>. Esta é, senhores passageiros, a<br />
relação de minha história e a causa de me verdes capitão de foragi<strong>do</strong>s nas
282 Padre Mateus Ribeiro<br />
montanhas, haven<strong>do</strong> si<strong>do</strong> capitão de cavalos em campanha nos exércitos de<br />
César. Mas quem pode assegurar a mudável ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> fortuna?<br />
Cap. XV.<br />
Do que mais passou Frederico com os passageiros<br />
Admira<strong>do</strong>s ficámos to<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s discursos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de Frederico, a<br />
varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sorte em levantá-lo e em desfavorecê-lo, a quem eu respondi<br />
desta sorte:<br />
- Se o sentimento, senhor Frederico, vos permitira mais tréguas a<br />
ouvirdes com atenção minhas palavras, porventura que nem vossa <strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong>minara tanto vosso bom juízo, nem vos movesse a paixão a terdes tão<br />
inquieta a vi<strong>da</strong> como vós mesmos conheceis.<br />
Respondeu ele que estimara ouvir-me e eu prossegui, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Que a honra seja de to<strong>do</strong>s apeteci<strong>da</strong>, ensina Aristóteles 301 ; e que seja<br />
digno galardão de heróicos merecimentos, disse Cícero 302 ; que haja de<br />
guar<strong>da</strong>r-se com vigilante cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e solícito desvelo, escreve Plínio Júnior; mas<br />
também ensina o padre S. Gregório 303 que pouco importa o subir quem pelos<br />
defeitos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> começa a descer. Que importa, senhor Frederico, que com o<br />
dispêndio de tantos riscos e militares proezas à honra de capitão na campanha<br />
gloriosamente subísseis, se hoje com o exercício presente dessa digni<strong>da</strong>de<br />
caístes? Intentais vingar a honra com os próprios meios com que abateis seu<br />
luzimento? E queren<strong>do</strong> ficar com excesso satisfeito, seguis o caminho de<br />
vingardes a ser menos estima<strong>do</strong>.<br />
Confesso que o agravo que se vos fez foi grande e de vós não mereci<strong>do</strong>,<br />
mas diz o Séneca que não há poder por maior que se avalie que se isente <strong>do</strong><br />
poder ser afronta<strong>do</strong>; porque em nós está o podermos particularmente merecer,<br />
mas não está em nosso querer o podermos os agravos evitar. Empera<strong>do</strong>r de<br />
Arist., Topic. 6.<br />
Cicer., De Ciar. oral lib. 1. Epist.<br />
Greg., 1. Dial.
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte II 283<br />
Roma era Valeriano e, sen<strong>do</strong> venci<strong>do</strong> de Sapor, rei de Pérsia, o afrontou de<br />
sorte que debruça<strong>do</strong> em terra fazia a ele escabelo em que punha os pés<br />
quan<strong>do</strong> cavalgava. A mesma fortuna correu e o mesmo ludíbrio o grão turco<br />
Baiaceto com grão Thamorlão sen<strong>do</strong> ele venci<strong>do</strong>, sem ser bastante a nenhum<br />
deles seu poder para de semelhantes opróbrios isentá-los. Que importou aos<br />
romanos Átalo tomar as insígnias imperiais por ordem de Ataulfo, rei <strong>do</strong>s<br />
go<strong>do</strong>s, em ódio <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Honório, se depois preso em Espanha e envia<strong>do</strong><br />
ao empera<strong>do</strong>r Constâncio em Ravena lhe man<strong>do</strong>u cortar as mãos e leva<strong>do</strong><br />
ata<strong>do</strong> com cadeias pelas ci<strong>da</strong>des <strong>do</strong> império a Constantinopla, aonde à vista<br />
<strong>do</strong>s que o viram cora<strong>do</strong> foi ludibrioso espectáculo <strong>da</strong> fortuna enquanto lhe<br />
durou a vi<strong>da</strong>? Não consistin<strong>do</strong> logo na eminência <strong>do</strong> poder o isentar-se de<br />
poder ser afronta<strong>do</strong>, resta mostrar como <strong>do</strong> agravo que recebestes estais<br />
cabalmente satisfeito e para com os pun<strong>do</strong>nores <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> desagrava<strong>do</strong>.<br />
Ofendeu-vos um mascara<strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong> e arrancan<strong>do</strong> a espa<strong>da</strong><br />
matastes três, bem lavastes com seu sangue as manchas de vossa honra e<br />
satisfizestes com suas mortes na própria praça o labéu de vossa injúria: se foi<br />
Nápoles teatro <strong>da</strong> ofensa também o ficou sen<strong>do</strong> <strong>da</strong> vingança. Consiste a honra<br />
popular e política na estimação; também esse é o juiz <strong>do</strong> desagravo: quem foi<br />
testemunha <strong>do</strong> atrevimento também o ficou sen<strong>do</strong> <strong>do</strong> castigo. Não é pouco<br />
favor <strong>da</strong> ventura conseguir um desagravo na presença de quem viu o delito.<br />
Muitos quiseram vingar-se que não puderam satisfazer-se, ou porque os não<br />
acompanhou o valor, que se o coração se retira pouco importa que avancem os<br />
desejos, ou porque a violência de maior poder no contrário preveni<strong>do</strong> lhe<br />
atalhou os passos na ocasião e esta uma vez perdi<strong>da</strong> nem sempre, nem com<br />
facili<strong>da</strong>de, se cobra. Tem tantos desvios, diz Tito Lívio 304 , qualquer acção que<br />
emprendemos, que o mais <strong>do</strong> que intentamos fica sen<strong>do</strong> menos o que<br />
conseguimos; o emprender consiste no valor, o efectuar na ventura. Vós não<br />
tendes de que queixar-vos, pois valerosamente vos empenhastes e felizmente<br />
o desagravo conseguistes.<br />
No que dizeis que por ordem de Raimun<strong>do</strong>, primo <strong>do</strong> conde morto, foi<br />
solicita<strong>do</strong> o agravo, são juízos de opinião particular que a to<strong>do</strong>s não é<br />
manifesta, que bem poderiam enganar-vos, pois vós assim como não fostes o<br />
Tit. Liv., Lib. 3. Dec. 1.
284 Padre Mateus Ribeiro<br />
mata<strong>do</strong>r, assim não éreis o objecto de sua vingança, e sen<strong>do</strong> sua morte tão<br />
mereci<strong>da</strong> e pela senhora Claudiana em defensa de sua honra tão<br />
valerosamente executa<strong>da</strong>, nem o <strong>caso</strong> era de procurar-se vingança, nem de<br />
serdes vós empenho de sua ira. Certeza disso infalível não há e só pende de<br />
opinião. Lá disse o Séneca que ninguém por opinião senão pelo certo se move,<br />
porque era levantar edifícios sobre bases sem fun<strong>da</strong>mento de que muitas<br />
vezes pelo arrependimento apenas ficam ruínas. Não parece certo arrojar-se a<br />
vinganças sem certezas, pois podia nascer o agravo antes ordena<strong>do</strong> por ânimo<br />
invejoso que ocasiona<strong>do</strong> por desejo vingativo. Disse Eusébio que assim como<br />
a sombra acompanha inseparavelmente a quem caminha ao sol, assim segue<br />
a inveja a quem logra melhoras ou na fortuna ou no valor. E o Séneca escreve<br />
que quantos são os olhos que se ocupam e um felice, tantas são as invejas<br />
que como a alvo lhe tiram os corações. E como vós, senhor, entrastes em<br />
Nápoles com tantos aumentos <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> em que dela saístes, que maravilha<br />
seria o serdes de muitos inveja<strong>do</strong>? E sen<strong>do</strong> a inveja comum, quem poderia<br />
acertar <strong>do</strong>nde procedesse o agravo particular?<br />
E quan<strong>do</strong> estivésseis de to<strong>do</strong> certo que de Raimun<strong>do</strong> por sua ordem a<br />
ofensa nascesse, que mais vingança procurais que a que dele tomastes?<br />
Deste-lhe assalto, escapou <strong>da</strong> morte mal feri<strong>do</strong> e fugin<strong>do</strong>, saqueaste-lhe a<br />
casa, despojan<strong>do</strong>-o de quanto nela tinha, pois que maior satisfação de um<br />
agravo duvi<strong>do</strong>so quan<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> pudera ser justifica<strong>do</strong> por mui certo? Se com<br />
tanto zelo, senhor Frederico, seguis vinganças <strong>da</strong> honra, como dela vos<br />
mostrais tão diverti<strong>do</strong> que não considerais que os instrumentos que tomais<br />
para vingá-la são próprios meios de perdê-la? Não advertis o título<br />
escan<strong>da</strong>loso que adquiris, odioso a vossa pátria, a quem diz Cícero que se<br />
deve igualar com o mesmo amor <strong>do</strong>s pais? El-rei Codro de Atenas<br />
voluntariamente se ofereceu disfarça<strong>do</strong> à morte para que a ci<strong>da</strong>de ficasse livre<br />
e <strong>do</strong> perigo isenta. Quantos filhos de Roma se dedicaram à morte por livrá-la e<br />
os ci<strong>da</strong>dãos de Numância por não a renderem aos romanos se privaram <strong>da</strong>s<br />
vi<strong>da</strong>s? E vós, senhor, sen<strong>do</strong> filho de Nápoles a trazeis intimi<strong>da</strong><strong>da</strong> e a seus<br />
mora<strong>do</strong>res, vossos naturais, e aos estrangeiros que a ela vem assombra<strong>do</strong>s de<br />
temor, sem terem culpa em vosso desgosto.<br />
Em seguir-vos a justiça e em perseguir-vos o vice-rei não podeis<br />
justamente queixar-vos, que é empenho de seu cargo e precisa obrigação de
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 285<br />
seu ofício perseguirem os delinquentes e assegurarem os caminhos. El-rei<br />
nunca agrava e quem está em seu lugar como tenente de seu poder não chega<br />
a ofender, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> chega a castigar, porque como o poder nele é<br />
universal, que os povos lhe deram, e não particular de que use, não pode<br />
nunca ofender. Eu não sei, senhor Frederico, como vosso bom juízo não<br />
pondera a vi<strong>da</strong> que seguis e o perigo em que estais. A vi<strong>da</strong> mais inquieta e<br />
assusta<strong>da</strong>, sem descanso de noite e sem quietação de dia: vi<strong>da</strong> combati<strong>da</strong> de<br />
receios, molesta<strong>da</strong> de sobressaltos, desabri<strong>da</strong> no <strong>do</strong>micílio, áspera no<br />
sustento, odiosa no nome e indecorosa no exercício, perigosa para se temer<br />
por instantes, pois os monarcas são como o sol que estan<strong>do</strong> em um lugar com<br />
o corpo chegam aos mais distantes com os raios. Como podeis segurar-vos<br />
deste sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que vos seguem que, ou <strong>do</strong> interesse <strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>s suborna<strong>do</strong>s,<br />
ou por assegurarem as vi<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s castigos, vos não entreguem quan<strong>do</strong> menos<br />
o temerdes? O romano Sertório, capitão <strong>do</strong>s lusitanos, não foi morto por<br />
Perpena, seu particular amigo, sen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s romanos suborna<strong>do</strong>? Na proscrição<br />
de Octaviano Lépi<strong>do</strong> e Marco António não foi o Pretor Múcio entregue à morte<br />
por seu próprio filho, perfídia a mais atroz que viu Roma, Ligário malsina<strong>do</strong> e<br />
entregue por uma escrava sua que em casa criara, Septímio por sua própria<br />
esposa com notável desleal<strong>da</strong>de e outros muitos que refere Apiano<br />
Alexandrino? Pois se ain<strong>da</strong> nas maiores razões de parentesco, criação e<br />
obediência se deram inconfidências tão execráveis, como se tem visto; como<br />
não se poderá temer com fun<strong>da</strong>mento que a fama <strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>s que sobre vossa<br />
vi<strong>da</strong> se publicam, prometen<strong>do</strong>-se seguro dela e prémios a quem entregue<br />
vossa pessoa, estes foragi<strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que vos assistem, ou por temor <strong>da</strong><br />
morte, ou por ambição <strong>do</strong> interesse, não se persua<strong>da</strong>m a uma perfídia?<br />
Considerai, senhor, que honra ficará [a] vossa, de que vos mostrais tão<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so, se (o que Deus não permita) vos prendessem e com lastimoso<br />
espectáculo, mágoa para vossos amigos e gosto de vosso contrários<br />
deixásseis a cabeça nas mãos de um verdugo, com lástima grande <strong>da</strong> senhora<br />
Claudiana, vossa irmã, eternas lágrimas e sentimento de vossos pais, eclipse<br />
de vossa fama e perpétuo labéu de vosso nome? Confiais em foragi<strong>do</strong>s; não<br />
sabeis vós que de edifício que ameaça caí<strong>da</strong> to<strong>do</strong>s se vão afastan<strong>do</strong> longe,<br />
com temor de serem oprimi<strong>do</strong>s de sua ruína? Ora, senhor Frederico, não<br />
permitais se malogrem tantos anos de estu<strong>do</strong>s e tantos dispêndios nos
286 Padre Mateus Ribeiro<br />
militares conflitos; desassombrai vossa pátria de temores e a vossos pais de<br />
receios; retirai-vos a Roma, aonde os tendes, não queirais fazer desperdícios<br />
<strong>da</strong> ventura que vos tem favoreci<strong>do</strong>, que intentar competir com quem mais pode<br />
é mais arrojo <strong>da</strong> paixão que acerto <strong>da</strong> prudência. O empera<strong>do</strong>r pode muito e<br />
seus ministros, nas mesmas covas <strong>do</strong>s montes não estais seguro ain<strong>da</strong> oculto,<br />
quanto mais manifesto; não sejais como as estrelas que são inflexíveis e<br />
extremosas, porque as fixas jamais se movem e as errantes nunca param;<br />
sede como o sol que soube parar-se a Josué e soube retirar-se a Ezequias.<br />
Um bom retiro e a tempo é indício <strong>da</strong> glória militar, que não consiste sempre<br />
em acometer, mas juntamente, quan<strong>do</strong> importa, em saber-se retirar. Isto é o<br />
que vos pode advertir minha ignorância enquanto a restaurardes vosso crédito<br />
e assegurardes vossa vi<strong>da</strong>, que os riscos de vossa alma vós melhor os<br />
conheceis <strong>do</strong> que os posso recitar nem com palavras advertir.<br />
Com atenção grande ouviu Frederico meu conselho e conheceu que lhe<br />
falava desengana<strong>do</strong>, desejoso de seu bem e sossego, e me respondeu assim:<br />
- Tem-me tanto persuadi<strong>do</strong>, discreto passageiro, vossas palavras e o<br />
que delas infiro, desejardes meu descanso e porto seguro nas flutuantes<br />
tormentas que me combatem, que me não deterei em retirar-me desta<br />
inquietação em que vivo mais que enquanto descobrir o mo<strong>do</strong> com que me<br />
possa despedir destes sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que me acompanham, pois não parece razão,<br />
assistin<strong>do</strong>-me eles em tantas ocasiões arrisca<strong>da</strong>s, eu os deixe no tempo mais<br />
perigoso à morte ofereci<strong>do</strong>s. É o agradecimento dívi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s benefícios que, diz<br />
S. Agostinho 305 , deve igualá-los quan<strong>do</strong> não possa excedê-los. Lembra-me que<br />
fugin<strong>do</strong> o romano Largoso <strong>da</strong> morte a que estava condena<strong>do</strong> e proscrito por<br />
Octaviano e seus colegas, encontran<strong>do</strong>-o uns sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que iam no alcance de<br />
outros bandi<strong>do</strong>s para ganharem o prémio que era prometi<strong>do</strong> a quem o<br />
degolasse e, sen<strong>do</strong> deles acha<strong>do</strong> sem o buscarem, movi<strong>do</strong>s de pie<strong>da</strong>de o<br />
deixaram, e a pouco espaço que se tinha aparta<strong>do</strong> deles lhe saíram outros a<br />
prendê-lo, e ven<strong>do</strong> ele não lhe ser já possível evitar a morte, se voltou fugin<strong>do</strong><br />
aos primeiros, que de compadeci<strong>do</strong>s o tinham deixa<strong>do</strong>, para que eles preso o<br />
levassem e ganhassem o prémio prometi<strong>do</strong>, pois com outra cousa pagar-lhes<br />
não podia o desejo pie<strong>do</strong>so que tiveram de livrá-lo, como refere Apiano<br />
S. August., Soliloq. cap. 8.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 287<br />
Alexandrino, autor <strong>da</strong>quele tempo. Bem se viu em o leão de Andronico <strong>da</strong>r-se<br />
até nos brutos animais, que de razão carecem, algum conhecimento de boas<br />
obras recebi<strong>da</strong>s. Que queixas não <strong>da</strong>rão de mim ou que males não arguirão a<br />
minha ingratidão, se além <strong>da</strong> ingratidão podem <strong>da</strong>r-se mais males? Velaram<br />
quan<strong>do</strong> eu <strong>do</strong>rmia, assistiram-me quan<strong>do</strong> eu vinganças intentava. Por mim se<br />
arriscaram aos perigos, seguiram-me nas empresas, defenderam-me nos<br />
perigos, sustentaram-me com as presas, acudiram-me nos riscos,<br />
asseguraram-me nos assaltos, e parece ingratidão pôr-me eu em seguro e<br />
desampará-los. Bem sei que haverá no mun<strong>do</strong> obriga<strong>do</strong>s que, por não<br />
poderem pagar os benefícios, quebram de to<strong>do</strong> com as leis <strong>do</strong> agradecimento.<br />
E este avalio eu, abaixo de ofender, pelo género pior <strong>da</strong> ingratidão, pois perde<br />
a memória <strong>do</strong> benefício recebi<strong>do</strong>, como disse Cassio<strong>do</strong>ro. Assim que,<br />
senhores, não consiste em mais a hora de retirar-me desta perigosa<br />
inquietação que em dispor o meio com que ao desempenho desta obrigação<br />
satisfaça.<br />
- Este, senhor Frederico, não há-de faltar-vos, porque venci<strong>da</strong> a<br />
dificul<strong>da</strong>de maior, não permitirá Deus que a menor vos embargue tão acerta<strong>do</strong><br />
intento (disse Alexandre). Chamai vossos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e com eles a título de<br />
acompanhar-nos a lugar seguro, como neles estivermos, lhes fazei uma prática<br />
digna de vosso bom juízo em que, manifestan<strong>do</strong>-lhes os riscos <strong>da</strong> alma e os<br />
perigos evidentes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, vos quereis retirar a esta<strong>do</strong> mais seguro, pelo que<br />
agora, que em tal lugar estão, trate ca<strong>da</strong> qual de buscar o melhor caminho de<br />
seu remédio, e repartin<strong>do</strong> com eles duzentos escu<strong>do</strong>s que vos ofereço os<br />
despi<strong>da</strong>is, pois ficam em lugar <strong>da</strong> justiça seguro e os não deixais a perigos<br />
ofereci<strong>do</strong>s e lhes <strong>da</strong>is aju<strong>da</strong> de custo para o caminho. E se alguns não<br />
quiserem seguir o que a razão lhes mostra, de si só se queixarão quan<strong>do</strong> o<br />
tempo os desengane, que vós ficais desobriga<strong>do</strong> <strong>do</strong> que depois lhes suceder e<br />
eles sem justa queixa que de vós possam formar.<br />
A to<strong>do</strong>s pareceu bem o conselho e Frederico se resolveu a segui-lo,<br />
agradecen<strong>do</strong> muito a Alexandre o zelo que mostrava e a oferta que lhe fazia,<br />
que cortês aceitou por se achar falto de dinheiro para lhes fazer este último<br />
<strong>do</strong>nativo. Já a este tempo tinha o sol subi<strong>do</strong> ao auge de seus resplan<strong>do</strong>res,<br />
diminuin<strong>do</strong> a grandeza de seu globo quan<strong>do</strong> aumentava os incêndios de seus<br />
raios, e assim man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> Frederico aviso a que to<strong>do</strong>s os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s se
288 Padre Mateus Ribeiro<br />
ajuntassem, como brevemente fizeram, subin<strong>do</strong> em um fermoso cavalo, que<br />
sempre prepara<strong>do</strong> tinha como quem se temia, e ordenan<strong>do</strong> que os passageiros<br />
nos seus montassem, levan<strong>do</strong> o capitão a sua filha nas ancas, acompanha<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>leiros que seriam até oitenta, tão bem provi<strong>do</strong>s de armas como mal<br />
assombra<strong>do</strong>s de rostos, começaram to<strong>do</strong>s a caminhar com silêncio por<br />
ásperos caminhos, se bem sabi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s que neles an<strong>da</strong>vam tão versa<strong>do</strong>s. Não<br />
descifravam os ban<strong>do</strong>leiros vestígio algum <strong>do</strong>s desígnios de Frederico, nem<br />
podiam investigar aonde se dirigia esta repentina jorna<strong>da</strong> e cortesia que com<br />
os passageiros usava, quan<strong>do</strong> deles se prometiam rica presa.<br />
Enfim caminhan<strong>do</strong> e ajuizan<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> qual conforme seu juízo, chegaram<br />
antes de se pôr o sol às terras que se avizinhavam à ci<strong>da</strong>de de Tivoli, que<br />
antigamente se chamou Tibur, ci<strong>da</strong>de que no tempo passa<strong>do</strong> se gloriou de<br />
soberba e poderosa, como lhe chama Virgílio, e que deu nome à sibila<br />
Tiburtina que junto dela nasceu. Está esta ci<strong>da</strong>de edifica<strong>da</strong> em lugar eminente,<br />
junto <strong>da</strong> qual despenhan<strong>do</strong>-se o rio Teverono <strong>do</strong>s precipícios <strong>do</strong>s montes que a<br />
cercam, vai com sua já navegável corrente a pagar ao celebra<strong>do</strong> Tibre tributo<br />
de cristal no mais copioso de suas águas. Foi ci<strong>da</strong>de majestosa enquanto<br />
durou a magnificência <strong>do</strong> império romano, mas depois foi arruina<strong>da</strong> a parte<br />
maior de seus muros e sumptuosos edifícios pelos alemães. Mas, an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o<br />
tempo, a refez o empera<strong>do</strong>r Frederico Barbaroxa e o Papa Pio Segun<strong>do</strong> lhe<br />
man<strong>do</strong>u edificar a insigne fortaleza que hoje tem, por ser <strong>da</strong> jurisdição <strong>da</strong><br />
igreja. Tem em ro<strong>da</strong> altíssimos montes e selvas espessas e fazem-se <strong>da</strong>í a<br />
Roma cinco léguas de caminho.<br />
Chegan<strong>do</strong> pois Frederico a este sítio em que se viam já livres <strong>da</strong><br />
jurisdição de Nápoles e seguros por ser <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio e senhorio de Roma,<br />
apean<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> cavalo, o que os passageiros também fizeram leva<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
cortesia, chaman<strong>do</strong> Frederico aos ban<strong>do</strong>leiros, lhes disse desta sorte:<br />
- Amigos e companheiros meus, bem confio <strong>do</strong> amor que sempre me<br />
mostrastes que aprovareis minha resolução por acerta<strong>da</strong>, pois vos mereço<br />
festejardes meus acertos. Meus pais de Roma me chamam, a quem o dilata<strong>do</strong><br />
de minha ausência tem conduzi<strong>do</strong> a tristezas contínuas sobre o vivo<br />
sentimento de seus pesares. E pois a ventura me tem até esta hora favoreci<strong>do</strong>,<br />
não será prudência que quem experimentou o bonançoso querer esperar o<br />
arrisca<strong>do</strong>. Se o grande Pompeu se dera por contente com havê-la conheci<strong>do</strong>
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 289<br />
em tantas empresas favorável e se retirara glorioso, não chegara a conhecer<br />
suas mu<strong>da</strong>nças fican<strong>do</strong> nas areias <strong>do</strong> Egipto degola<strong>do</strong>. Cansa-se a ventura de<br />
trazer muito tempo aos ombros a um ditoso e assim, por aliviar o peso, o deixa<br />
cair em terra quan<strong>do</strong> menos a teme. An<strong>da</strong>m tão encadea<strong>da</strong>s as felici<strong>da</strong>des<br />
com as desgraças que se pode avaliar um venturoso que estão no decrépito <strong>do</strong><br />
favor suas venturas quan<strong>do</strong> muitas vezes as recebe. O cocodrilo engana com<br />
as lágrimas e aventura com os risos. Nunca está menos segura que quan<strong>do</strong><br />
parece estar mais firme.<br />
Temos por contrário não menos que ao empera<strong>do</strong>r e ao seu vice-rei em<br />
Nápoles, maravilha é termos livra<strong>do</strong> de seus assaltos tantas vezes com o risco<br />
de nossas vi<strong>da</strong>s e muitas com o dispêndio de nosso sangue. Contrários tão<br />
poderosos, quem pode assegurar-se deles? De África pode o empera<strong>do</strong>r<br />
Gordiano man<strong>da</strong>r pelo seu questor matar em Roma a Viteliano, sen<strong>do</strong> general<br />
<strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s pretorianos; e não lhe valeu nem a fama de temi<strong>do</strong>, nem o cargo<br />
de respeita<strong>do</strong>. A Parmenião, seu tão antigo vali<strong>do</strong> sen<strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r de Media,<br />
man<strong>do</strong>u desde Hicamia matar o grande Alexandre por Poli<strong>da</strong>manse, sem o<br />
livrar nem as muitas léguas de distância que dele o apartavam; porque <strong>do</strong><br />
poder de monarcas grandes ninguém se pode avaliar seguro. Que importou ao<br />
insigne português Viriato haver venci<strong>do</strong> tão gloriosamente aos pretores<br />
romanos Marco Vitílio, Caio Planeio e Cláudio Unimano e haver triunfa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
exércitos consulares, se no fim por ordem <strong>do</strong> procônsul Servílio Célio foi morto<br />
à traição por quem menos o esperava, quan<strong>do</strong> por mais invencível se tinha?<br />
Havermos livra<strong>do</strong> até agora a vi<strong>da</strong> foi favor grande <strong>da</strong> ventura, retiremo-<br />
nos enquanto se nos mostra propícia antes que a experimentemos adversária.<br />
Que temos tira<strong>do</strong> <strong>da</strong>s injustas presas <strong>do</strong>s descui<strong>da</strong><strong>do</strong>s caminhantes mais que<br />
as contínuas necessi<strong>da</strong>des que passamos? Que as fazen<strong>da</strong>s mal adquiri<strong>da</strong>s,<br />
sem se sentirem, desaparecem. O ouro tolosano que roubaram os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s na<br />
injusta destruição e ruína que fez o cônsul Quinto Cépio na ci<strong>da</strong>de de Tolosa<br />
foi tão mal afortuna<strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s quantos o roubaram miseravelmente<br />
pereceram. De sorte que ficou em provérbio para as cousas mal adquiri<strong>da</strong>s e<br />
pior logra<strong>da</strong>s chamarem-lhe ouro de Tolosa. Em nós vemos a experiência ca<strong>da</strong><br />
vez mais necessita<strong>do</strong>s, faltan<strong>do</strong>-nos no melhor ain<strong>da</strong> um grosseiro sustento,<br />
porque assim o permite Deus por castigo. Eu, amigos e companheiros meus,<br />
não vos deixo ofereci<strong>do</strong>s a perigos, porque quan<strong>do</strong> os houvera, soubera eu
290 Padre Mateus Ribeiro<br />
neles morrer convosco; estais fora <strong>do</strong> senhorio <strong>do</strong> vice-rei, aonde não se<br />
estende o rigor de seus ban<strong>do</strong>s; Itália é grande, tem senhorias soberanas e<br />
príncipes potenta<strong>do</strong>s a quem podeis servir, além de muitos títulos grandes com<br />
quem vos podeis acomo<strong>da</strong>r, partin<strong>do</strong>-vos dividi<strong>do</strong>s em pouco número por não<br />
<strong>da</strong>rdes que notar a quem vos vir caminhar em tropas grandes. O tempo com<br />
seus perío<strong>do</strong>s é o médico melhor de curar os deslustres <strong>da</strong> fama, que como<br />
verdugo universal de to<strong>da</strong>s as coisas, a umas deixa só as ruínas <strong>do</strong> que foram<br />
e a outras rouba a memória <strong>do</strong> que eram. Vossos bons procedimentos de hoje<br />
em diante serão os que <strong>do</strong>urem o escuro de vossas obras passa<strong>da</strong>s; porque<br />
assim como um mau fim deslustra os merecimentos bons que de antes se<br />
adquiriram, assim um fim honroso desterra <strong>da</strong> lembrança to<strong>do</strong>s os deméritos<br />
que de antes se cometeram. Em qualquer parte que eu esteja e me ocupardes,<br />
me haveis sempre achar no que puder servir-vos, certo como amigo e obriga<strong>do</strong><br />
como companheiro.<br />
Dizen<strong>do</strong> isto, Frederico sem esperar resposta os foi abraçan<strong>do</strong> e<br />
repartin<strong>do</strong> com eles os escu<strong>do</strong>s para o caminho que Alexandre lhe havia <strong>da</strong><strong>do</strong>,<br />
com que eles entre suspensos e alegres se foram despedin<strong>do</strong> de quatro em<br />
quatro, seguin<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> companhia o caminho que lhe parecia mais conveniente,<br />
fican<strong>do</strong> nós to<strong>do</strong>s admira<strong>do</strong>s de considerar o respeito que lhe tiveram e a<br />
obediência que lhe guar<strong>da</strong>ram; que em gente costuma<strong>da</strong> a tão dissoluta vi<strong>da</strong><br />
não era motivo de pequeno espanto. E porque se avizinhava já a noite,<br />
bor<strong>da</strong>n<strong>do</strong> em basti<strong>do</strong>r de safiras a gala de sombras par<strong>da</strong>s argenta<strong>da</strong> com<br />
matizes de estrelas, e as dúvi<strong>da</strong>s entre a noite e o dia ia dissolven<strong>do</strong> o retiro <strong>do</strong><br />
crepúsculo que venci<strong>do</strong> <strong>da</strong>s sombras se ausentava, foram os nossos<br />
passageiros caminhan<strong>do</strong> para a ci<strong>da</strong>de de Tivoli que vizinha estava,<br />
discursan<strong>do</strong> aonde nos hospe<strong>da</strong>ríamos essa noite para evitar alguns<br />
inconvenientes que seguir-se podiam.<br />
Advertiu-nos um <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s de Dionísio Montal<strong>do</strong> que connosco ia que<br />
nesta ci<strong>da</strong>de tinha seu senhor um particular amigo que se chamava Octávio<br />
Leonino, pessoa principal, casa<strong>do</strong> com uma senhora ilustre, que nos<br />
hospe<strong>da</strong>ria com boa vontade. Pareceu-nos a comodi<strong>da</strong>de acerta<strong>da</strong>, e assim<br />
entra<strong>da</strong> já a noite chegámos a sua casa, que sumptuosa era, e <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe o<br />
cria<strong>do</strong> reca<strong>do</strong> que estava aí um cunha<strong>do</strong> de Dionísio Montal<strong>do</strong>, seu amigo, com<br />
outros companheiros, nos saiu a receber com grande alegria; que os ricos e
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 291<br />
poderosos são carta de recomen<strong>da</strong>ção em qualquer parte para serem to<strong>da</strong>s as<br />
suas cousas bem recebi<strong>da</strong>s. Deu-lhe Alexandre brevemente notícia de seus<br />
sucessos e de nossa fugi<strong>da</strong> <strong>do</strong> castelo, não falan<strong>do</strong> nas cousas de Frederico,<br />
que connosco estava, por não vir a ser conheci<strong>do</strong>. Octávio se mostrou por<br />
extremo contente de nossa boa fortuna, porque conforme a zelosa e severa<br />
condição <strong>do</strong> vice-rei, mal livraria Alexandre a vi<strong>da</strong> se a fugi<strong>da</strong> lha não<br />
assegurara; e de novo nos fez corteses oferecimentos <strong>da</strong> casa e pessoa com<br />
quanto valesse para estarmos nela dilata<strong>do</strong> tempo. Foi Eugenia recebi<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
mulher de Octávio e de uma filha que tinha de singular beleza: preparou-se-nos<br />
esplêndi<strong>da</strong> ceia, que bem necessitávamos dela, conforme a moléstia <strong>do</strong>s<br />
caminhos e sustos que passa<strong>do</strong> tínhamos. E man<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-nos preparar<br />
adereça<strong>da</strong>s camas, nos recolhemos a descansar sem os temores e desvelos<br />
que tantos dias molesta<strong>do</strong>s nos traziam.<br />
Cap. XVI.<br />
Do que passámos até chegar a Roma<br />
Dous dias havia que estávamos em casa de Octávio Leonino<br />
descansan<strong>do</strong> <strong>da</strong>s moléstias passa<strong>da</strong>s, sen<strong>do</strong> dele trata<strong>do</strong>s com tanto amor e<br />
cortesia quanto de sua nobreza e benigna condição, como fia<strong>do</strong>res tão<br />
abona<strong>do</strong>s de seus primores, podiam esperar-se. Neste tempo mu<strong>do</strong>u Frederico<br />
de traje ao escolástico que como discreto, pon<strong>do</strong> à parte o de militar, se valeu<br />
<strong>do</strong> estudioso para não ser conheci<strong>do</strong>. E assim andámos ven<strong>do</strong> a ci<strong>da</strong>de, sen<strong>do</strong><br />
visita<strong>do</strong> <strong>da</strong> gente mais principal que nela havia, quan<strong>do</strong> de repente se<br />
converteu em tristeza to<strong>da</strong> a alegria: pensão inseparável <strong>do</strong>s gostos desta vi<strong>da</strong><br />
que pelo breve que duram mais parece exalação que corre, nuvem que voa,<br />
sombra que passa, relâmpago que espira, que enti<strong>da</strong>de que permanece. Foi a<br />
causa <strong>da</strong>r repentinamente a Felícia, única filha de Octávio Leonino, um<br />
acidente tão cruel no rigor e tão mortal nos efeitos que, por mais remédios que<br />
os médicos lhe aplicaram, em espaço de cinco horas acabou a vi<strong>da</strong>. Encarecer<br />
o sentimento de seus pais mais é empenho <strong>da</strong> consideração <strong>do</strong> que<br />
desempenho <strong>da</strong>s palavras, pois sen<strong>do</strong> filha única, <strong>do</strong>ta<strong>da</strong> de singular
292 Padre Mateus Ribeiro<br />
fermosura, enriqueci<strong>da</strong> de partes e ama<strong>da</strong> com extremos, bem se manifesta,<br />
pesan<strong>do</strong>-se o sentimento na balança <strong>do</strong> amor, qual seria o vivo <strong>da</strong> mágoa e o<br />
excessivo <strong>da</strong> pena.<br />
- Oh filha minha (dizia a aflita mãe) quem pudera trocar contigo a sorte,<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-te a vi<strong>da</strong> e passan<strong>do</strong> eu a morte? Nunca dá a ventura a escolha a um<br />
triste, pois lhe tira o que ama e lhe deixa o que aborrece. Que importou tua<br />
beleza se havia de acabar tão malogra<strong>da</strong>? Para <strong>do</strong>bra<strong>da</strong> mágoa minha te deu<br />
tantos <strong>do</strong>tes a natureza, para que tivesse a morte mais despojos que levar e eu<br />
mais penas que sentir. Que pouco deves ao mun<strong>do</strong>, pois no melhor te desterra;<br />
que pouco deves à vi<strong>da</strong>, pois no melhor te falta! Aonde te irei buscar, fugitiva<br />
glória minha, sol que a meus olhos te escondes, luz que me faltas? Se nas<br />
lágrimas deles pudera ter desafogo minha <strong>do</strong>r, perenes fontes os faria meu<br />
sentimento. Mas que água será bastante para moderar tanta pena, se por<br />
excessiva não pode ser a pena modera<strong>da</strong>? Oh morte, como fazes liga com<br />
meus pesares para de mim te esqueceres? Porque não te lembras de quem te<br />
busca já que te lembraste de quem te não buscava? Maior vitória tua fora<br />
levares a quem te deseja que <strong>da</strong>res assalto a quem te aborrecia. Deixaras a<br />
Felícia mais lograr para teres depois mais que vencer. Assaltar a um<br />
descui<strong>da</strong><strong>do</strong> bem pode ser astúcia, mas não valentia. Dos que esperam o<br />
combate são os triunfos mais gloriosos, se pode achar-se glória em teus<br />
triunfos. Em uma parte deste o golpe e em outra a <strong>do</strong>r por levares duas vi<strong>da</strong>s<br />
de um só golpe. Menos fizeras se logo me mataras, ficara-te obriga<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
própria tirania com que me trataras e agora fico ofendi<strong>da</strong> <strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de com que<br />
me deixas. A quem aborrece a vi<strong>da</strong> na<strong>da</strong> lhe pode <strong>da</strong>r alívio, porque no próprio<br />
padecer consiste seu recreio. E não posso ficar-te obriga<strong>da</strong> porque viva, só te<br />
serei agradeci<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> morta. Oh malogra<strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de, flor que na flor <strong>do</strong>s<br />
anos acabaste em flor, delícia de meus senti<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> viva, rigor de minhas<br />
sau<strong>da</strong>des quan<strong>do</strong> morta! Que farei para acompanhar-te, pois tantas finezas fiz<br />
para querer-te? Seca-se com os incêndios <strong>da</strong> <strong>do</strong>r meu coração para que faltem<br />
lágrimas a meus olhos. Mas se estas podem ser algum alívio a minha pena,<br />
justo é que uma pena tão cruel não tenha alívio. Feche meu sentimento to<strong>da</strong>s<br />
as portas à consolação, para que nunca chegue a consolar-se meu eterno<br />
sentimento.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 293<br />
Assim disse, e caiu desmaia<strong>da</strong> a aflita mãe sobre o cadáver <strong>da</strong><br />
malogra<strong>da</strong> filha, que a to<strong>do</strong>s nos causou tanta mágoa que testemunharam<br />
nossos olhos a compaixão. Acudiu-lhe Eugenia toman<strong>do</strong>-a em seus braços e<br />
com as cria<strong>da</strong>s a levaram a outro quarto aparta<strong>do</strong> <strong>do</strong> em que estava a defunta,<br />
enquanto se preparava seu enterro que se fez ao outro dia com a<br />
sumptuosi<strong>da</strong>de possível, a quem os quatro companheiros levámos aos ombros<br />
a depositar na capela de seus pais. Tratámos de despedir-nos deles para<br />
partirmos a Roma e ouvin<strong>do</strong> o excessivo <strong>da</strong> aflição em que a mãe estava, lhe<br />
disse eu desta sorte:<br />
- É tão geral, senhora Laura, em nós o sentimento <strong>da</strong> vossa per<strong>da</strong> e de<br />
vossa mágoa que qualquer de nós mais necessitava de quem aliviasse nossas<br />
tristezas que de poder consolar o vivo de vossa <strong>do</strong>r, estan<strong>do</strong> a chaga tão<br />
fresca e tão presente a mágoa dela. Mas como disse São Gregório Papa que<br />
só sabe consolar quem é participante <strong>da</strong> mesma <strong>do</strong>r, caben<strong>do</strong>-nos a nós tanta<br />
parte dela, bem podemos aliviar vossa pena, se pode achar-se alívio em pena<br />
que parece carecer de consolação.<br />
Levou a morte a senhora Felícia no que parecia agra<strong>do</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, lisonja<br />
<strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, delícia <strong>do</strong> tempo, primavera <strong>do</strong>s anos, aurora <strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de. Assim o<br />
parece se a consideramos conforme vemos; mas se ponderarmos a vi<strong>da</strong> que<br />
lhe decretou a Divina Providência desde seu nascimento, nem ela tinha mais<br />
vi<strong>da</strong> que lograr, nem lhe faltou o menor instante de viver. O Santo Job disse<br />
que assinou Deus o termo à nossa vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> qual não é possível passar, porque<br />
o número de nossos dias tem ele deposita<strong>do</strong> nos decretos de sua Providência,<br />
a quem não podem encontrar nossos desejos. Não se há-de regular nossa vi<strong>da</strong><br />
pelo que ain<strong>da</strong> pudéramos viver, senão pelo que nos faltava para ao termo<br />
defini<strong>do</strong> chegar. Para o mesmo porto caminhamos to<strong>do</strong>s desde que nascemos:<br />
não se suspende a jorna<strong>da</strong> nem quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>rmimos, nem quan<strong>do</strong> velamos. Pois<br />
que admiração é que chegue ao porto quem sempre navega, nem que chegue<br />
ao termo decreta<strong>do</strong> quem sempre caminha? A i<strong>da</strong>de mais flori<strong>da</strong> foi para ela a<br />
mais dilata<strong>da</strong>, que como o decreto divino lhe abreviou o caminho, pode chegar<br />
mais ce<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> nos parecia que chegaria mais tarde. Queixai-vos porque<br />
vo-la tiraram e não considerais que empresta<strong>da</strong> vo-la deram, como<br />
discretamente disse o Séneca; e assim fica sen<strong>do</strong> só restituição <strong>da</strong> dívi<strong>da</strong> o<br />
que julgais ser tirania <strong>da</strong> morte. Chorais porque morreu quem nasceu mortal;
294 Padre Mateus Ribeiro<br />
se nascera imortal, justamente tivéreis que sentir; mas nascen<strong>do</strong> obriga<strong>da</strong> a<br />
pagar à morte os foros <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, nem é admiração quan<strong>do</strong> os paga, sen<strong>do</strong> maior<br />
espanto quan<strong>do</strong> vive.<br />
É a vi<strong>da</strong> humana tão frágil e arrisca<strong>da</strong> que assim como o mais pequeno<br />
movimento <strong>do</strong> ar pode apagar a mais brilhante luz, assim qualquer acidente<br />
pode despojar a mais flori<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Qualquer indisposição a combate, qualquer<br />
enfermi<strong>da</strong>de a desmaia, qualquer excesso a enferma, qualquer mal a<br />
senhoreia e qualquer golpe a desanima. O sol com os calores, o Inverno com<br />
as neves, o vento com os sopros, as nuvens com os raios, os trovões com os<br />
assombros, a terra com os tremores, com a escuridão a noite e com os<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s o dia, to<strong>do</strong>s são perpétuos verdugos para acabá-la e com seus<br />
repeti<strong>do</strong>s assaltos não desistem de persegui-la. Pois se, como diz S.<br />
Agostinho 306 , to<strong>do</strong> o discurso de nossa vi<strong>da</strong> é uma estra<strong>da</strong> <strong>da</strong> morte, que<br />
maravilha fica sen<strong>do</strong> que uma vi<strong>da</strong> de tantos contrários combati<strong>da</strong> viesse a <strong>da</strong>r<br />
fim à jorna<strong>da</strong> que desde seu nacimento começou?<br />
Sentis, senhora Laura, porque a senhora Felícia se apartou? Não parece<br />
fineza de quem ama entristecer-se com os bens <strong>da</strong> cousa ama<strong>da</strong>: se ela foi a<br />
descansar desta contínua pena, para que haveis de mostrar tão vivo<br />
sentimento de seu descanso? Ela deixou as tormentas e está no porto, deixou<br />
os riscos e está na bonança, saiu <strong>do</strong> cativeiro e está em liber<strong>da</strong>de, fugiu <strong>do</strong><br />
perigo e está no seguro, deixou as sombras tristes <strong>da</strong> noite e está nos<br />
resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> perpétuo dia, deixou os baixos <strong>da</strong> terra pelas eminências <strong>do</strong><br />
céu, as galas que se gastam pelas estrelas que brilham, a vi<strong>da</strong> que dura pela<br />
frágil que acaba, a pena que aflige pela glória que recreia. Pois se melhoran<strong>do</strong><br />
a sorte de sua ventura está contente, de que serve vossa pena? Queríeis<br />
porventura reduzi-la a que tornasse a engolfar-se no mar quem já se livrou de<br />
seus naufrágios? Seria abono <strong>do</strong> querer pedir que decesse aos vales escuros<br />
quem está nos montes alegres? Que viesse onde penasse quem está livre <strong>da</strong><br />
<strong>do</strong>r? Que tornasse aonde sentisse quem está livre <strong>da</strong> pena? Não me<br />
persuadirei que o desejais, pois conheço de vós quanto lhe quereis. Dai,<br />
senhora Laura, por bem emprega<strong>da</strong> a morte com que se logra a eterni<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>. Pois se enfim mais ou menos anos passa<strong>do</strong>s sempre havia de acabar,<br />
D. Aug., Lib. 3. De civil Dei. cap. 10.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 295<br />
venturosa sorte é morrer em i<strong>da</strong>de que se assegura, que passar a i<strong>da</strong>de onde<br />
se arrisque. Se deixou a companhia <strong>do</strong>s pais e parentes na terra, achou a<br />
companhia <strong>do</strong>s anjos no céu. Se não alcançou o esposo que podíeis <strong>da</strong>r-lhe,<br />
alcançou o esposo <strong>da</strong>s virgens que é gala <strong>do</strong>s esposos. Ditosa quem chegou a<br />
felici<strong>da</strong>de tanta que não tem que invejar nas venturas, só estas podem ser<br />
inveja<strong>da</strong>s! Venturosa mãe que teve filha tão bem pren<strong>da</strong><strong>da</strong> na vi<strong>da</strong> e tão ditosa<br />
na morte; na vi<strong>da</strong> tanto para estimar-se e tanto para invejar-se na morte, pois<br />
se desposou tão felice!<br />
E se me disserdes que não pode a natureza deixar de sentir sau<strong>da</strong>des<br />
suas, obre a razão com considerar as melhoras e logo porá termo às mágoas,<br />
e com ver que é esta vi<strong>da</strong> tão breve, que por isso Santo Agostinho a comparou<br />
com um dia, e que não é o termo tão dilata<strong>do</strong> nem o prazo tão vagaroso que<br />
não vejais a quem tanto amais e por quem hoje tantas lágrimas verteis. Porque<br />
enfim como to<strong>do</strong>s para lá caminhamos, com os passos que <strong>da</strong>mos é força que<br />
cheguemos; pois onde nunca se pára e sempre se caminha to<strong>da</strong> a jorna<strong>da</strong> é<br />
breve, ain<strong>da</strong> que pareça larga.<br />
Atenta ouviu Laura e seu mari<strong>do</strong> as razões que ouvistes, de que se<br />
mostraram alivia<strong>do</strong>s, pois ela suspenden<strong>do</strong> as lágrimas, sinal de haverem feito<br />
tréguas os olhos com a <strong>do</strong>r, se mostrou cortesmente agradeci<strong>da</strong> ao desejo de<br />
aliviá-la em seus sentimentos; e nós renden<strong>do</strong>-lhes as graças <strong>do</strong> agasalho e<br />
favores que nos fizeram, nos partimos para Roma, que era jorna<strong>da</strong> de cinco<br />
léguas, senti<strong>do</strong>s de em o breve espaço de nossa assistência vermos motivos<br />
de tanta pena na morte de Felícia. Mas são juízos <strong>da</strong> sabe<strong>do</strong>ria eterna que<br />
nossos discursos investigar não podem.<br />
Assim pratican<strong>do</strong> em várias cousas fomos passan<strong>do</strong> a moléstia <strong>do</strong><br />
caminho, divertin<strong>do</strong> a vista na diversi<strong>da</strong>de de povoações, quintas e campos<br />
que nesta campanha feliz de Roma se descobriam; até que avistámos a<br />
venturosa ci<strong>da</strong>de que se edificou para ser cabeça <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, situa<strong>da</strong> sobre as<br />
eminências de seus montes, cuja vista nos causou notável alegria pelos<br />
desejos grandes que tínhamos de chegar a ela: na qual entrámos ao pôr-<strong>do</strong>-sol<br />
e fomos apear-nos em casa <strong>do</strong>s pais de Frederico, por mostrar ele particular<br />
gosto de que fossemos a pousar com ele enquanto se achavam casas<br />
convenientes para assistirmos. Foi Frederico recebi<strong>do</strong> de seus pais com<br />
copiosas lágrimas de alegria, ven<strong>do</strong>-o em hábito mu<strong>da</strong><strong>do</strong>, tão diferente <strong>do</strong> que
296 Padre Mateus Ribeiro<br />
seu odioso exercício usava, que refrear as lágrimas de alegria mal podiam;<br />
porque em uma alegria grande mais dificilmente se moderam os<br />
contentamentos que em uma pena excessiva os sentimentos dela, como disse<br />
Quintiliano 307 e escreve Cassio<strong>do</strong>ro.<br />
Era o pai de Frederico já ancião nos anos e a mãe já de provecta i<strong>da</strong>de,<br />
de boa presença e aprazível conversação, que logo deram ordem a preparar a<br />
ceia e camas, admira<strong>do</strong>s <strong>da</strong> fermosura de Eugenia, que ain<strong>da</strong> se mostrava<br />
pensativa e pouco alegre, não lhe sain<strong>do</strong> <strong>da</strong> memória a antecipa<strong>da</strong> morte de<br />
Felícia; que é poderosa a representação <strong>da</strong> morte para suspender to<strong>da</strong>s as<br />
alegrias e embargar os maiores contentamentos. Depois <strong>da</strong> ceia, que foi<br />
abun<strong>da</strong>nte, deu Frederico notícia a seus pais <strong>da</strong> acerta<strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça de sua<br />
vi<strong>da</strong>, de que se mostraram tão alegres que foi maravilha com o intenso <strong>da</strong><br />
alegria não lhes <strong>da</strong>r assalto a morte. Louvaram-lhe tão prudente conselho e a<br />
nós deram as graças de tão venturoso encontro como motivo de tanto bem. E<br />
com isso, alegres nos recolhemos a descansar o que restava <strong>da</strong> noite.<br />
Cap. XVII.<br />
Em que prossegue o Ermitão o que lhe sucedeu em Roma<br />
Ao outro dia começámos a ver as maravilhas de Roma, sen<strong>do</strong> ela a<br />
oitava maravilha, porque a sumptuosi<strong>da</strong>de de seus templos, as antigui<strong>da</strong>des de<br />
seus edifícios, os palácios magníficos que a a<strong>do</strong>rnam, os pirâmides (a) e<br />
obeliscos que a fermoseiam, a eclesiástica hierarquia que a ilustra e a<br />
diversi<strong>da</strong>de de gente que a habita é tal que como cabeça <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> se lhe<br />
podia chamar a primeira maravilha. Passa<strong>do</strong>s os primeiros dias em admirar sua<br />
grandeza, tratou o capitão com Alexandre preparassem as licenças para poder<br />
receber-se com sua filha Eugenia, o que ele logo procurou com igual desejo,<br />
despedin<strong>do</strong> nós entretanto um cria<strong>do</strong> a Nápoles para nos trazer novas <strong>do</strong> que<br />
dU/ Quintil., Lib. 9.<br />
(a) Embora seja um substantivo feminino, alguns autores <strong>da</strong> época (por exemplo, Rodrigues<br />
Lobo) usam-no como masculino.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 297<br />
lá se passava depois de nossa fugi<strong>da</strong> e se eram chega<strong>da</strong>s as galés e que<br />
novas havia de meu pai e de Lucin<strong>da</strong>, cui<strong>da</strong><strong>do</strong> que embargava to<strong>da</strong>s minhas<br />
alegrias; que mal as pode haver cabais onde há cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Escreveu<br />
juntamente o capitão a sua mulher se partisse logo com segura companhia a<br />
Roma, para se achar no recebimento de Eugenia, trazen<strong>do</strong> as peças melhores<br />
que tinha, como quem tarde havia de tornar a ser em Nápoles mora<strong>do</strong>ra.<br />
Despedi<strong>do</strong> o cria<strong>do</strong>, tratámos de buscar casas convenientes para o<br />
recebimento, conforme à quali<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s desposa<strong>do</strong>s, valen<strong>do</strong>-se Alexandre de<br />
vender algumas jóias de preço <strong>da</strong>s que sua irmã lhe tinha man<strong>da</strong><strong>do</strong>.<br />
Enquanto nos ocupávamos nisto, Frederico ocupa<strong>do</strong> de diferentes<br />
pensamentos se foi confessar geralmente com um <strong>do</strong>uto e exemplar religioso<br />
penitenciário de sua santi<strong>da</strong>de o Papa Paulo Terceiro, que neste tempo<br />
governava a católica igreja, de cujos santos conselhos e admoestações veio<br />
tão troca<strong>do</strong> <strong>do</strong> que antes fora, como costuma mu<strong>da</strong>r a divina graça os corações<br />
em que entra. Ninguém deixa a Deus, diz o grande Agostinho 308 , senão<br />
engana<strong>do</strong> e ninguém o busca senão <strong>da</strong> graça preveni<strong>do</strong>. Dom <strong>da</strong> graça, diz o<br />
padre S. Gregório, é despir o velho Adão, fican<strong>do</strong>, como ensina São João<br />
Crisóstomo, valeroso para vencer as tentações que de antes o prendiam e<br />
senhoreavam. Assim Frederico mostrava em tu<strong>do</strong> tal mu<strong>da</strong>nça que nos<br />
admirávamos, os que havia tão poucos dias o tememos ban<strong>do</strong>leiro, ven<strong>do</strong>-o<br />
agora de repente reforma<strong>do</strong>. Mas quem pode alcançar os segre<strong>do</strong>s divinos ou<br />
pôr termos ao mar infinito de suas misericórdias, como lhe chama São João<br />
Crisóstomo 309 ? Pratican<strong>do</strong> eu com ele mais em particular um dia sobre os<br />
venturosos acertos de sua mu<strong>da</strong>nça e retiro que intentava fazer às vai<strong>da</strong>des <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>, como quem tinha experimenta<strong>do</strong> o lisonjeiro de seus enganos, o<br />
indecoroso de seus caminhos e o arrisca<strong>do</strong> de suas promessas, me referiu lhe<br />
dissera o religioso com quem comunicou o remédio de sua alma, entre outras<br />
cousas, assim, para animá-lo ao seguimento <strong>da</strong> virtude:<br />
- Lembra<strong>do</strong> estou que na Vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> abade São Pafuncio escreve o bispo<br />
Equilino que, fazen<strong>do</strong> uma vez petição a Deus Senhor nosso em que pedia lhe<br />
revelasse a qual <strong>do</strong>s servos que no mun<strong>do</strong> tinha era ele semelhante, lhe fora<br />
S. Aug., in Queest. ex utroque Testamento.
298 Padre Mateus Ribeiro<br />
revela<strong>do</strong> por um anjo que era semelhante a um pobre que tangen<strong>do</strong> uma viola<br />
e cantan<strong>do</strong> a ela pelas portas <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Heraclea, situa<strong>da</strong><br />
nos confins <strong>do</strong> deserto, nas raízes <strong>do</strong> monte Tauro, sustentava a vi<strong>da</strong>.<br />
Admira<strong>do</strong> o santo abade <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de de tal revelação se partiu para a ci<strong>da</strong>de e<br />
achan<strong>do</strong> ao pobre tange<strong>do</strong>r que lhe foi revela<strong>do</strong>, chaman<strong>do</strong>-o à parte, lhe<br />
perguntou quem era e que vi<strong>da</strong> tivera. Ele lhe respondeu que ban<strong>do</strong>leiro,<br />
saltea<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s estra<strong>da</strong>s e terror <strong>do</strong>s passageiros a quem roubava, e combati<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> temor <strong>da</strong> justiça e castigo que por seus delitos receava, deixan<strong>do</strong> os montes<br />
e charnecas em que os roubos e salteamentos cometia se retirara ao povoa<strong>do</strong>,<br />
valen<strong>do</strong>-se <strong>da</strong>quele instrumento que tangia para ganhar o sustento com que<br />
passar a vi<strong>da</strong>. Admira<strong>do</strong> o santo lhe perguntou se havia feito alguma boa obra<br />
em sua vi<strong>da</strong>. Ao que o pobre respondeu que só lhe lembrava que rouban<strong>do</strong> ele<br />
com seus companheiros de um mosteiro de freiras a uma religiosa e queren<strong>do</strong><br />
os outros violar sua pureza ele o não consentira, antes de noite secretamente a<br />
tornara a levar ao seu convento sem lhe fazer ofensa alguma. E também lhe<br />
lembrava que em outra ocasião achan<strong>do</strong> no deserto a uma mulher que aflita<br />
caminhava sem saber por onde, e perguntan<strong>do</strong>-lhe para que parte ia e que<br />
pena a molestava, dizen<strong>do</strong> ela que ficavam seu mari<strong>do</strong> e filhos presos por<br />
dívi<strong>da</strong>s a el-rei e a ela a queriam também prender se não fugira e havia três<br />
dias que com esta aflição caminhava sem ter comi<strong>do</strong>, ele movi<strong>do</strong> a compaixão<br />
a levara à sua cova, onde lhe deu de comer e lhe dera trezentos sol<strong>do</strong>s com<br />
que a pobre mulher pagou as dívi<strong>da</strong>s e resgatou a seu mari<strong>do</strong> e filhos <strong>da</strong> prisão<br />
rigorosa em que estavam.<br />
Ouvin<strong>do</strong> isto o santo abade chorou, dizen<strong>do</strong> que em tantos anos de<br />
anacoreta no deserto não tinha feito obras de tanta cari<strong>da</strong>de como as deste<br />
pobre, e contan<strong>do</strong>-lhe a revelação que dele tivera, o levou ao mosteiro e<br />
deitan<strong>do</strong>-lhe o hábito acabou nele em obras de virtude santamente.<br />
Referiu-lhe também, como se escreve na Vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> abade Daniel que<br />
an<strong>da</strong> nas Vi<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s Padres, que haven<strong>do</strong> gasta<strong>do</strong> o melhor de seus anos em<br />
roubar os passageiros no desertos de Hermopolis, que entre o rio Nilo e os<br />
montes de Líbia está situa<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> capitão de uma quadrilha de trinta<br />
ban<strong>do</strong>leiros foi um dia a um mosteiro de monges que no deserto estava,<br />
pedin<strong>do</strong>-lhe lhe dessem o hábito porque queria ser monge. O que negan<strong>do</strong> o<br />
abade e mais monges fazer, porque haviam conheci<strong>do</strong> o escan<strong>da</strong>loso de sua
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 299<br />
vi<strong>da</strong> e o viam já ancião para sofrer os rigores <strong>da</strong> penitência, ele os ameaçou<br />
que se não o quisessem admitir por companheiro, o experimentariam saltea<strong>do</strong>r<br />
que roubaria o mosteiro e os passaria à espa<strong>da</strong>. De cujos ameaços eles<br />
intimi<strong>da</strong><strong>do</strong>s o aceitaram, vestin<strong>do</strong>-lhe o hábito, no qual viveu com tal aspereza<br />
de penitência, lágrimas de suas culpas e obras de heróicas virtudes que<br />
floreceu depois de sua morte com grandes milagres que Deus Nosso Senhor<br />
obrou por ele.<br />
Com a eficácia destes exemplos de sorte se demoveu o coração de<br />
Frederico e com as exortações que o sábio penitenciário lhe fez, lembran<strong>do</strong>-lhe<br />
o muito que tinha que agradecer à divina bon<strong>da</strong>de a paciência com que o tinha<br />
sofri<strong>do</strong>, a larga espera que lhe havia <strong>da</strong><strong>do</strong>, os perigos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de que o havia<br />
livra<strong>do</strong> e os perigos <strong>da</strong> alma em que se poderia ter visto, condenan<strong>do</strong>-se<br />
eternamente, morren<strong>do</strong> em os peca<strong>do</strong>s de tão dissoluta vi<strong>da</strong>, escân<strong>da</strong>lo <strong>do</strong><br />
reino e terror <strong>do</strong>s caminhos, tantos roubos injustos nos passageiros e tantas<br />
violências por seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s executa<strong>da</strong>s, tão pouca lembrança <strong>do</strong> céu, tão<br />
endureci<strong>do</strong>s pensamentos na terra, tantas ocasiões de sua salvação perdi<strong>da</strong>s e<br />
tantas de sua perdição busca<strong>da</strong>s; que ele enfim, como bem entendi<strong>do</strong>, de to<strong>do</strong><br />
caiu na conta para fazer contas com sua alma, e mediante a graça divina que<br />
com sua eficácia obra suave e poderosamente, se mu<strong>do</strong>u de maneira que a<br />
to<strong>do</strong>s nos deixou alegres e invejosos de o imitar. Eram em sua mãe tantas as<br />
lágrimas de alegria como de antes tinha chora<strong>do</strong> de tristeza.<br />
Entretanto se buscaram as casas acomo<strong>da</strong><strong>da</strong>s ao intento e se<br />
prepararam com o adereço que convinha; houveram-se as licenças para o<br />
recebimento, cortaram-se galas e só se esperava a chega<strong>da</strong> de Sigismun<strong>da</strong>,<br />
que era a mãe de Eugenia, para se solenizarem as bo<strong>da</strong>s, que por isso se<br />
dilataram alguns dias. Chegou enfim acompanha<strong>da</strong> de alguns parentes,<br />
alvoroça<strong>da</strong> com o desejo de ver a sua filha, a quem uma amorosa pie<strong>da</strong>de<br />
roubara de seus olhos; e depois de chorar com ela enterneci<strong>da</strong>s lágrimas de<br />
alegria de a tornar a ver, e tão bem emprega<strong>da</strong> em tal esposo, deu por bem<br />
emprega<strong>da</strong>s as moléstias passa<strong>da</strong>s a troco <strong>da</strong>s alegrias presentes.<br />
Perguntaram-lhe as novas <strong>do</strong> que havia passa<strong>do</strong> em Nápoles depois de sua<br />
fugi<strong>da</strong> e que novas havia <strong>da</strong>s galés e de Lucin<strong>da</strong>. Ao que respondeu Leonar<strong>do</strong>,<br />
um primo de Sigismun<strong>da</strong> que com outros parentes a acompanharam, pessoa
300 Padre Mateus Ribeiro<br />
<strong>do</strong>uta em várias facul<strong>da</strong>des a que se tinha aplica<strong>do</strong> e nas razões de esta<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> bem instruí<strong>do</strong>, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Porque <strong>do</strong> sucesso <strong>da</strong>s galés posso eu <strong>da</strong>r inteira relação como quem<br />
foi nelas embarca<strong>do</strong> com alguns amigos meus, por lhes fazer companhia nesta<br />
repentina jorna<strong>da</strong> responderei, senhores, ao desejo que tendes de saber o que<br />
neste negócio e na corte tem sucedi<strong>do</strong> depois de vossa ausência. Seriam as<br />
dez horas <strong>da</strong> manhã passa<strong>da</strong>s, quan<strong>do</strong> a to<strong>do</strong> o impulso <strong>do</strong>s remos, por estar<br />
o vento calmoso, partimos <strong>do</strong> porto de Nápoles as seis galés que nele estavam<br />
com notáveis desejos de alcançarmos a fugitiva, se bem eram diversos os<br />
motivos <strong>do</strong> desejo. Os capitães por ganhar honra, os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s por merecerem<br />
prémios e os força<strong>do</strong>s por inveja de verem os <strong>da</strong> outra fugitiva galé mais<br />
venturosos. É a inveja vício tão avilta<strong>do</strong> que com pouqui<strong>da</strong>des ain<strong>da</strong> se arroja<br />
sem esperar grandezas, como disse Hesío<strong>do</strong>, referi<strong>do</strong> por Plutarco; que até um<br />
pobre tem inveja de outro. Navegámos o que restava <strong>do</strong> dia sem avistarmos o<br />
que seguíamos. E porque ao vento, já quan<strong>do</strong> o sol em sepulcro de topázios<br />
páli<strong>do</strong> se encobria, largámos as velas, engolfan<strong>do</strong>-nos para a parte de Berbéria<br />
por lhe atalharmos o rumo que para lá intentasse, parecen<strong>do</strong>-nos que esse<br />
devia seguir por desviar-se de Itália, aonde não podia assegurar-se. Não nos<br />
enganou o discurso, porque contra a madruga<strong>da</strong> nos deu notícia uma barca de<br />
pesca<strong>do</strong>res de Sardenha que encontrámos que tinham visto pela meia-noite a<br />
galé que se ia fazen<strong>do</strong> na volta de Berbéria. Alegres com a nova, a velas e<br />
remos nos fizemos no rumo para atalhar-lhe o caminho, que mais pareciam os<br />
nossos baixéis aves que voavam, que não embarcações que pelo mar se<br />
moviam. Assim navegámos <strong>do</strong>us dias sem termos mais notícias dela, que<br />
como o espaço <strong>do</strong> mar é páramo e campanha tão dilata<strong>da</strong>, não é fácil descobrir<br />
o que nele se busca, porque dificultoso é ver o que nele se deseja.<br />
Passa<strong>do</strong>s estes dias, em que passan<strong>do</strong> à vista de Sardenha fomos<br />
descobrin<strong>do</strong> África, tivemos notícia que a fugitiva galé passara junto a Córsega;<br />
o que soubemos de uma setia siciliana a quem a galé quis <strong>da</strong>r caça e ela lhe<br />
escapou por ligeira. Suspensos nos deixou a nova, e com razão, em<br />
considerarmos duas cousas: a primeira, como podia an<strong>da</strong>r Juliano tão<br />
descui<strong>da</strong><strong>do</strong> de seu próprio perigo que procurasse, em lugar de assegurar-se<br />
com a ligeireza <strong>da</strong> fugi<strong>da</strong>, tratar de piratear a quem navegava? Pois, como diz<br />
Demóstenes, é mais conveniente guar<strong>da</strong>r suas próprias cousas <strong>do</strong> que adquirir
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 301<br />
as alheias; assim como nos naufrágios em que os navegantes a troco de<br />
salvarem as vi<strong>da</strong>s <strong>do</strong> furor proceloso <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s arrojam ao mar, como diz<br />
Quinto Cúrcio, o mais precioso <strong>da</strong>s merca<strong>do</strong>rias. Além disto nos parecia<br />
dificultoso que Juliano, sen<strong>do</strong> católico e espanhol, intentasse roubar o baixel<br />
siciliano, sen<strong>do</strong> de vassalos <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r como ele era; ain<strong>da</strong> que, por outra<br />
parte, andem os vícios tão encadea<strong>do</strong>s uns aos outros que não seria a maior<br />
maravilha que quem se rebelou com a galé de seu príncipe, se fizesse cossário<br />
de seus súbditos. Lavram os vícios a terra <strong>do</strong> coração, disse o Séneca, para de<br />
um nascerem muitos: e assim proceden<strong>do</strong> Juliano <strong>do</strong> rapto à rebelião, não<br />
seria novi<strong>da</strong>de que desse em pirata quem perdeu o temor a ser rebelde.<br />
Enfim na varie<strong>da</strong>de de discursos seguimos a derrota <strong>da</strong> ilha de Córsega,<br />
que é <strong>do</strong> senhorio genovês desde o tempo em que Ademaro, primeiro<br />
governa<strong>do</strong>r <strong>da</strong> república genovesa, desbaratan<strong>do</strong> a arma<strong>da</strong> <strong>do</strong>s mouros junto a<br />
esta ilha, que a tinham subjuga<strong>da</strong>, ele se senhoreou dela. Avistámos a ilha e<br />
juntamente a galé que em uma ensea<strong>da</strong> dela estava fazen<strong>do</strong> agua<strong>da</strong> de que<br />
devia ir desprovi<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> partiu de Nápoles. Apenas ela nos descobriu,<br />
quan<strong>do</strong> tratou de fugir com to<strong>da</strong> a pressa, tarde arrependi<strong>do</strong>s <strong>da</strong> demora, mas<br />
eram tais em nós os desejos de atalhar-lhe a jorna<strong>da</strong> que, por mais que lhe<br />
<strong>da</strong>va asas seu temor, não podiam remontar-se <strong>do</strong> perigo, e à vela e remo ela<br />
fugin<strong>do</strong> e nós seguin<strong>do</strong>-a, enfim lhe viemos a <strong>da</strong>r alcance de sorte que era já<br />
impossível escapar de ser presa. O que eles ven<strong>do</strong>, lançan<strong>do</strong> o esquife ao mar,<br />
man<strong>da</strong>ram um <strong>do</strong>s espanhóis prisioneiros com uma carta ao general que dizia<br />
assim:<br />
Por man<strong>da</strong><strong>do</strong> de Juliano, capitão desta galé, saímos dela trinta<br />
mouros a roubar uma <strong>do</strong>nzela cristã com quem desejava casar-se.<br />
Conseguimos o intento; mas parecen<strong>do</strong>-nos conveniente a ocasião para<br />
alcançarmos liber<strong>da</strong>de, nos levantámos com a galé, prenden<strong>do</strong> ao<br />
capitão Juliano e aos mais sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, reservan<strong>do</strong> a rouba<strong>da</strong> <strong>do</strong>nzela sem<br />
ser ofendi<strong>da</strong>, como ela própria dirá, no decoroso respeito com que é<br />
trata<strong>da</strong>. Man<strong>da</strong>mos a vossa senhoria esse espanhol por embaixa<strong>do</strong>r para<br />
que, se nos derem a vi<strong>da</strong> e liber<strong>da</strong>de, entregaremos a galé e a <strong>do</strong>nzela e<br />
ao capitão e mais sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s dela que temos prisioneiros. E quan<strong>do</strong> vossa
302 Padre Mateus Ribeiro<br />
defensa e pôr fogo à galé para não ficarem dela mais que as cinzas.<br />
Porque se havemos de morrer por levanta<strong>do</strong>s, melhor nos será morrer<br />
por valerosos. Zaide Sultão.<br />
Isto continha a carta <strong>do</strong> mouro e a informação <strong>do</strong> sol<strong>da</strong><strong>do</strong> espanhol que<br />
a trazia, com que o general se viu confuso e chaman<strong>do</strong> a conselho logo os<br />
capitães <strong>da</strong>s outras galés, com os quais e o pai <strong>da</strong> senhora Lucin<strong>da</strong> e as<br />
pessoas principais que iam embarca<strong>da</strong>s na capitania, onde eu juntamente ia,<br />
se pôs em conselho a resposta que havia de <strong>da</strong>r-se, sobre que houve diversos<br />
pareceres. Uns diziam que a resposta fosse acometê-los, porque nem sua<br />
rebelião era merece<strong>do</strong>ra de outra resposta, nem <strong>do</strong>s ameaços <strong>do</strong> mouro havia<br />
que recear; porque eram meios só de ver se podiam escapar <strong>do</strong> perigo. Porque<br />
apenas se veriam assalta<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s seis galés, quan<strong>do</strong> acovar<strong>da</strong><strong>do</strong>s se<br />
renderiam. Nem era crédito <strong>da</strong> arma<strong>da</strong> real de um monarca tão grande ouvir<br />
propostas de uns mouros escravos levanta<strong>do</strong>s, quanto mais conceder-lhes<br />
parti<strong>do</strong>s, e não havia mais que pendurá-los nas antenas. Deste parecer eram<br />
os mais <strong>do</strong>s capitães. Tomou-se o parecer <strong>do</strong> pai <strong>da</strong> senhora Lucin<strong>da</strong>, como<br />
pessoa tão avisa<strong>da</strong> e que ia tão interessa<strong>do</strong> nesta empresa, o qual disse<br />
assim:<br />
- Suposto, senhores, que meu parecer tenha tão pouco lugar entre<br />
pessoas tão discretas e no militar exercício tão experimenta<strong>da</strong>s, contu<strong>do</strong>, pois<br />
me dão licença para falar, direi o que me parece. A origem <strong>da</strong> fugi<strong>da</strong> desta galé<br />
nasceu <strong>do</strong> injusto atrevimento <strong>do</strong> capitão Juliano no rapto de Lucin<strong>da</strong>, minha<br />
filha, e assim menos culpa<strong>do</strong>s são os mouros em se levantarem com pretexto<br />
de fugirem, <strong>do</strong> que ele que os libertou e armou com intentos de ofender-me.<br />
Desejar a liber<strong>da</strong>de é afecto natural ao prisioneiro e não se há-de <strong>da</strong>r ao<br />
inimigo cativo o suave <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de; porque lhe é sobremo<strong>do</strong> insofrível tragar o<br />
agro de preso, quem ven<strong>do</strong>-se fora <strong>do</strong> cativeiro gostou o <strong>do</strong>ce de livre. Fiar<br />
fideli<strong>da</strong>des <strong>do</strong> inimigo é solicitar impossíveis, sen<strong>do</strong>, como disse Públio Mimo, o<br />
melhor seguro a desconfiança deles. Mas como Juliano estava <strong>da</strong> afeição<br />
cego, não abriu os olhos ao perigo.<br />
Pressuposto pois que o culpa<strong>do</strong> nisto é Juliano, vejamos na proposta de<br />
Zaide o que pede e o que arriscamos. Se vem a ser menos mal o conceder ou<br />
o negar. Pede-nos segurança <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e liber<strong>da</strong>de dele e de seus
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 303<br />
companheiros, e de lha negarmos morrerem na defesa de suas vi<strong>da</strong>, porem<br />
fogo à galé e perder-se tu<strong>do</strong>. Chega a desesperação <strong>do</strong> perdão, como diz<br />
Vegécio, a fazer <strong>do</strong> temor a maior valentia. E quem chega a perder as<br />
esperanças <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, faz lisonja <strong>do</strong>s próprios riscos <strong>da</strong> morte queren<strong>do</strong> morrer<br />
vinga<strong>do</strong>, pois de to<strong>do</strong> desconfia de ficar vivo. Por isso Júlio César man<strong>do</strong>u<br />
queimar as trincheiras de seu exército para <strong>da</strong>r batalha a Pompeu e Agatocles<br />
a arma<strong>da</strong> de seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s fazen<strong>do</strong> guerra a Cartago. Três inconvenientes<br />
grandes se seguem de acometer a Zaide: o primeiro a morte <strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
espanhóis, o segun<strong>do</strong> a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> galé e <strong>do</strong>s mesmos força<strong>do</strong>s e o terceiro a<br />
per<strong>da</strong> de Lucin<strong>da</strong>, porque na<strong>da</strong> escapará com vi<strong>da</strong> pon<strong>do</strong>-se à galé fogo; já<br />
não falo <strong>do</strong> sangue <strong>do</strong>s que aqui estamos, porque vitórias alcança<strong>da</strong>s de gente<br />
que já traga<strong>da</strong> tem a morte na peleja nunca se vendem baratas. Lembra-me<br />
que Agesilau, rei de Esparta, chorou no dia <strong>da</strong> insigne vitória que alcançou <strong>do</strong>s<br />
coríntios pelo muito custo de sangue que nela seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s derramaram e<br />
vi<strong>da</strong>s que perderam, de que escaparam poucos. Porque pelos coríntios<br />
pelejavam juntamente os atenienses e outros gregos alia<strong>do</strong>s, e como o custo<br />
<strong>da</strong> vitória se vendeu a tanto preço de vi<strong>da</strong>s, em lugar de se alegrar como<br />
vence<strong>do</strong>r, chorou como venci<strong>do</strong>. Porque nunca vencimentos tão custosos são<br />
para festejos, mas para sentimentos. Bem custosa e molesta foi para os<br />
romanos a guerra <strong>do</strong>s gladia<strong>do</strong>res levanta<strong>do</strong>s no monte Vesúvio com Sparmeu<br />
seu capitão, como conta Sabélico. Assim é meu parecer que a Zaide se<br />
conce<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> e liber<strong>da</strong>de com alguns <strong>do</strong>s companheiros que ele escolher e<br />
aos outros as vi<strong>da</strong>s, mas que fiquem cativos como de antes estavam. E quan<strong>do</strong><br />
o senhor vice-rei não aprove as liber<strong>da</strong>des <strong>do</strong>s que ficarem livres, eu me obrigo<br />
a pagar de minha fazen<strong>da</strong> o preço deles, contanto que entreguem a galé com<br />
to<strong>do</strong>s os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e prisioneiros dela e ao capitão Juliano preso em ferros para<br />
em Nápoles ser sentencia<strong>do</strong>.<br />
Cap. XVIII.<br />
De como foi a galé entregue e entrou Juliano preso em Nápoles
304 Padre Mateus Ribeiro<br />
Aprovou o general o parecer <strong>do</strong> senhor Camilo, pai <strong>da</strong> senhora Lucin<strong>da</strong>,<br />
como mais acerta<strong>do</strong> e menos arrisca<strong>do</strong>, e assim o seguiram os mais que<br />
votaram nesta matéria, acrecentan<strong>do</strong> ser mais acerto per<strong>do</strong>ar as vi<strong>da</strong>s aos<br />
culpa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que arriscar as vi<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que na galé estavam inocentes<br />
e a <strong>da</strong> senhora Lucin<strong>da</strong>, a quem por livrá-la vínhamos to<strong>do</strong>s empenha<strong>do</strong>s. Lá<br />
disse Demóstenes 310 que sempre os prudentes devem escolher <strong>do</strong>s conselhos<br />
os mais proveitosos. Despacharam ao mensageiro com um salvo conduto <strong>do</strong><br />
general em que prometia a vi<strong>da</strong> a to<strong>do</strong>s os mouros e a Zaide Sultão a liber<strong>da</strong>de<br />
com os que o acompanharam quan<strong>do</strong> saíram a roubar Lucin<strong>da</strong> por man<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> capitão Juliano, aos quais <strong>da</strong>ria embarcação e mantimento para se irem<br />
para Berbéria, com condição que entregaria a Lucin<strong>da</strong>, constan<strong>do</strong> de seu dito<br />
não lhe ser feito ofensa nem agravo; e entregaria preso em ferros a Juliano e a<br />
galé inteiramente com to<strong>do</strong>s os petrechos com que tinha saí<strong>do</strong> <strong>do</strong> porto de<br />
Nápoles.<br />
Contentou-se o mouro <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, como quem temia uma afrontosa<br />
morte, e <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se-lhe as seguranças que ele pediu para segurança <strong>do</strong><br />
capitula<strong>do</strong>, se embarcou o senhor Camilo no esquife <strong>da</strong> galé capitania com<br />
desejos de ver a sua filha, in<strong>do</strong> eu com ele e outros amigos. E chegan<strong>do</strong> à<br />
camera <strong>da</strong> galé, vimos a senhora Lucin<strong>da</strong> tão enfraqueci<strong>da</strong> e demu<strong>da</strong><strong>da</strong> de sua<br />
antiga beleza que só o senhor Camilo podia conhecê-la.<br />
- Oh filha minha (disse choran<strong>do</strong> o lastimoso pai), que mu<strong>da</strong>nça é esta<br />
de minha fortuna? O esta<strong>do</strong> em que de antes te via e o em que agora te vejo?<br />
Quem te roubou as rosas encarna<strong>da</strong>s de teu rosto, a fermosura <strong>do</strong>s olhos, a<br />
gala <strong>do</strong> <strong>do</strong>naire, o gracioso <strong>da</strong> vista e o agradável <strong>do</strong> gesto? Esta és tu,<br />
Lucin<strong>da</strong>? Mal o conhecem meus olhos se o não testemunhara meu coração.<br />
Oh queri<strong>da</strong> pren<strong>da</strong> de meus senti<strong>do</strong>s, perdi<strong>da</strong> para meu tormento e acha<strong>da</strong><br />
para minha mágoa: perdi<strong>da</strong> para seres mais estima<strong>da</strong>, se pode chegar meu<br />
amor a mais estima! Quem me assegurara a mim que havia hoje de ter dia de<br />
tanta ventura que te tivesse restaura<strong>da</strong>, haven<strong>do</strong>-te chora<strong>da</strong> tantos dias<br />
perdi<strong>da</strong>? Ora, filha minha, suspende o extremo de teu sentimento, desterra o<br />
profun<strong>do</strong> de tua tristeza, que aqui tens a um pai que com finezas te ama e com<br />
desvelos te busca; que em ti tem cifra<strong>da</strong> sua alegria, porque sem ti não quer<br />
Demost., in Olynth.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 305<br />
alegria alguma. Vem, Lucin<strong>da</strong>, consolar as sau<strong>da</strong>des de tua mãe, que desde a<br />
noite de perder-te tem si<strong>do</strong> rios seus olhos em chorar-te. Cobre alento teu<br />
magoa<strong>do</strong> coração que já estás comigo; não temas nem perigos presentes, nem<br />
te lembrem os infortúnios passa<strong>do</strong>s, que quem os causa perto está <strong>do</strong> castigo<br />
que seu delito merece. Só quero que com to<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong>de me digas se estes<br />
mouros que te roubaram alguma ofensa ao decoro de tua honra fizeram.<br />
- Não por certo, pai e senhor de meus olhos, respondeu Lucin<strong>da</strong>, porque<br />
me trataram com tanto respeito que posso afirmar achei mais pie<strong>da</strong>de e<br />
compaixão em os mouros <strong>do</strong> que podia esperar de sua bárbara condição. Ele<br />
prendeu em ferros ao atrevi<strong>do</strong> Juliano, não consentin<strong>do</strong> que nem com os olhos<br />
me visse; ele me prometeu pôr em terra de cristãos na primeira ocasião que<br />
fazê-lo pudesse, como agora intentava nesta ilha se as galés tão depressa não<br />
chegaram; ele me consolava nas tristezas com as promessas de livrar-me,<br />
acudin<strong>do</strong> com os regalos que na galé havia a tratar de meu sustento como se<br />
eu sua própria irmã fora. Mas como minha pena tinha toma<strong>do</strong> tanta posse de<br />
meus senti<strong>do</strong>s, as sau<strong>da</strong>des de meu coração e os sentimentos de minha alma,<br />
nem pude jamais divertir a <strong>do</strong>r, nem dissimular o tormento, nem <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> de<br />
noite, nem descansan<strong>do</strong> de dia, e enjoa<strong>da</strong> <strong>do</strong> movimento <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s, temerosa<br />
<strong>do</strong>s brami<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s mares e sobretu<strong>do</strong> combati<strong>da</strong> de rigorosas sau<strong>da</strong>des de<br />
vossa vista e de minha mãe e senhora, enferma de tantos achaques e<br />
tristezas, maravilha foi não me achardes morta, quan<strong>do</strong> vos admirais de verme<br />
enfraqueci<strong>da</strong>.<br />
To<strong>do</strong>s lhe demos os parabéns de sua restaura<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, e<br />
compran<strong>do</strong> o senhor Camilo na ilha uma barca a uns pesca<strong>do</strong>res e meten<strong>do</strong>-<br />
Ihe <strong>da</strong>s galés o mantimento necessário, embarcan<strong>do</strong> nela a vinte e seis mouros<br />
que Zaide nomeou, ele se foi despedir <strong>da</strong> senhora Lucin<strong>da</strong>, pedin<strong>do</strong>-lhe perdão<br />
<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> roubo, por ser man<strong>da</strong><strong>do</strong>, e de a não haver posto em terra por ser<br />
<strong>da</strong>s galés que chegaram impedi<strong>do</strong>. A quem agradeci<strong>da</strong> a senhora Lucin<strong>da</strong> deu<br />
uma jóia de diamantes e o senhor Camilo uma cadeia de ouro que levava e<br />
com palavras de muito agradecimento dele se despediram, que embarcan<strong>do</strong>-se<br />
largaram as velas e se engolfaram.<br />
Man<strong>do</strong>u o general passar à sua galé preso em ferros a Juliano,<br />
proven<strong>do</strong> a galé de novo capitão. E porque a senhora Lucin<strong>da</strong> estava tão<br />
enferma, fretou o senhor Camilo um baixel corso para o passar com sua filha
306 Padre Mateus Ribeiro<br />
ao porto de Liorne, que era breve distância, para aí convalecer <strong>da</strong>s moléstias<br />
<strong>do</strong> mar e discómo<strong>do</strong>s passa<strong>do</strong>s, e depois ir por terra a Nápoles, escreven<strong>do</strong> à<br />
mãe <strong>da</strong> senhora Lucin<strong>da</strong> to<strong>do</strong> o sucesso passa<strong>do</strong> desde que partiu nas galés.<br />
Grande alegria recebi eu e to<strong>do</strong>s os que presentes estávamos com tão<br />
felices novas, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a Leonar<strong>do</strong> as devi<strong>da</strong>s graças de haver si<strong>do</strong> o anúncio<br />
delas, livran<strong>do</strong>-nos de tantos sustos e cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s quantos tinha, sen<strong>do</strong> em tantos<br />
dias. Determina<strong>do</strong> logo em Alexandre se receben<strong>do</strong> de me partir a Liorne a ver<br />
a meu pai e irmã e trazê-los por Roma para verem suas antigas maravilhas; e<br />
assim com este alvoroço lhe perguntei o que sucedeu às galés até chegarem a<br />
Nápoles e o que fez o vice-rei sobre o sucedi<strong>do</strong>. Ao que Leonar<strong>do</strong> continuou<br />
com sua relação, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Partimos de Córsega com tempo favorável e passan<strong>do</strong> Sardenha nos<br />
engolfámos alguma distância para virmos a abreviar a jorna<strong>da</strong>, porque nos<br />
aju<strong>da</strong>va o vento; porém ao outro dia se nos voltou contrário de mo<strong>do</strong> que<br />
tornámos a descair <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> à vista de Sardenha e fomos corren<strong>do</strong> com<br />
tempo tão rigoroso que, por não ser outra cousa possível, chegámos a avistar<br />
Génova. Ancorámos no porto <strong>do</strong>us dias sem podermos sair. Neste tempo<br />
deram novas ao general como Juliano havia três dias não comia nem a pessoa<br />
alguma falava, estan<strong>do</strong> com uma tristeza tão profun<strong>da</strong> que parece que ao rigor<br />
dela intentava acabar a vi<strong>da</strong>. Pediu o general a um <strong>do</strong>uto padre que ia por<br />
capelão <strong>da</strong> galé real, pessoa discreta e de to<strong>do</strong>s mui respeita<strong>do</strong>, quisesse ir<br />
abaixo a falar com ele para diverti-lo <strong>da</strong> melancolia e fazer que comesse, e não<br />
quisesse acabar barbaramente a vi<strong>da</strong>. Assim o fez o capelão, por fazer a Deus<br />
esse serviço e <strong>da</strong>r gosto ao general que lho pedia, e eu fui em sua companhia<br />
por ver o que nisto passava e juntamente porque em Nápoles tinha si<strong>do</strong> amigo<br />
de Juliano. Descemos à camera em que estava preso com grilhões nos pés,<br />
ordem especial que o vice-rei ao general, quan<strong>do</strong> partiu, tinha <strong>da</strong><strong>do</strong>, e<br />
sau<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-o cortesmente lhe disse o capelão, depois de nos sentarmos junto<br />
dele, assim:<br />
- Com a conversação, senhor Juliano, se curam, como diz Plutarco 311 ,<br />
muitas vezes as enfermi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> alma, que são suas veementes paixões, e<br />
como esta tão profun<strong>da</strong> tristeza com que vos vejo seja incentivo tão eficaz para<br />
311 Polit.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 307<br />
acabar-vos a vi<strong>da</strong>, obrigação me corre de tratar de vosso remédio, para que<br />
como desespera<strong>do</strong> não busqueis morte que vos chegue a privar <strong>da</strong> eterna vi<strong>da</strong>.<br />
É possível que sen<strong>do</strong> vós cristão, ilustre e espanhol, que é quanto dizer se<br />
pode, vos mostreis tão sem alívio triste, tão sem consolação atribula<strong>do</strong> que<br />
queirais arriscar a vi<strong>da</strong> a malograr-se, a alma a perder-se, a fama a um labéu<br />
eterno, e que crian<strong>do</strong>-vos cristão acabeis como gentio que outra vi<strong>da</strong> não<br />
espera nem conhece? Tal não crera de vós, se to<strong>do</strong>s o não disseram. Porque é<br />
tal o desaire a que vos vejo arrisca<strong>do</strong>, que me faz pôr escrúpulos a ver<strong>da</strong>de o<br />
indecoroso de vossas acções. Os ânimos generosos nas adversi<strong>da</strong>des se vem;<br />
que se não houvera trabalhos que vencer, não tivera o valor de que triunfar. O<br />
romano Atílio Régulo bem previa a morte que lhe haviam de <strong>da</strong>r os<br />
cartagineses e mais com notável valor se tornou a meter na prisão de Cartago,<br />
só por não faltar à fideli<strong>da</strong>de <strong>da</strong> promessa que de tornar lhes fizera. Ao valor<br />
definiu Aristóteles 312 ser quali<strong>da</strong>de pela qual o terror <strong>da</strong> morte ao ânimo não<br />
atemoriza. E Cícero 313 , que a mesma definição segue, diz que ao ânimo<br />
generosos nem castigos acovar<strong>da</strong>m, nem riscos intimi<strong>da</strong>m. Temer os males<br />
antes de virem é duas vezes passá-los, uma na representação e outra na<br />
reali<strong>da</strong>de. Porventura quereis desculpar os erros <strong>da</strong> vontade com delírios de<br />
entendi<strong>do</strong>? Que fruto podeis tirar desta tristeza? Nem conseguis a liber<strong>da</strong>de,<br />
nem impetrais o perdão, nem solicitais o remédio. Nenhum comércio há entre a<br />
paixão e a prudência. Desperdícios são os sentimentos de que se não<br />
conseguem utili<strong>da</strong>des. Quem entra nas batalhas com receio de perdê-las, já vai<br />
quasi venci<strong>do</strong> de seu próprio temor. O fazer rosto à fortuna é habilitar-se para a<br />
bonança. Nunca César desmaiou ven<strong>do</strong>-se venci<strong>do</strong> de Pompeu na batalha de<br />
Durazo, té que se viu vence<strong>do</strong>r na batalha <strong>do</strong>s campos farsálicos. Não<br />
desanimou o insigne capitão Temístocles com ver Atenas, sua pátria, destruí<strong>da</strong><br />
e abrasa<strong>da</strong> por Xerxes e depois foi vence<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s persas na gloriosa batalha<br />
naval de Salamina e viu outra vez sua pátria restaura<strong>da</strong>. Pois se em mostrar o<br />
valor talvez se mu<strong>da</strong> a ventura, que desalento <strong>do</strong> coração vos senhoreia para<br />
quererdes contra vós mesmo fazer liga com vossas desgraças, onde tu<strong>do</strong> se<br />
arrisca e na<strong>da</strong> se remedeia?<br />
2 Arist., De virt. & vit.<br />
3 Cie, Offic. 1.
308 Padre Mateus Ribeiro<br />
Pensativo esteve ouvin<strong>do</strong> estas razões Juliano e, arrancan<strong>do</strong> um suspiro<br />
<strong>do</strong> peito por prelúdio <strong>da</strong> representação trágica de sua <strong>do</strong>r, respondeu assim:<br />
- São tantos os motivos de minha tristeza que uns aos outros se<br />
impedem para declarar-se, por não poderem explicar-se to<strong>do</strong>s juntos. O<br />
primeiro seja ver-me preso e por meus próprios força<strong>do</strong>s encarcera<strong>do</strong> e agora<br />
ao general entregue, que é motivo de sentimento grande que pon<strong>do</strong>-os eu em<br />
liber<strong>da</strong>de, eles mesmos a mim me prendessem.<br />
- Não é esse o maior espanto, pois vos confiastes de inimigos,<br />
entregan<strong>do</strong>-lhes as armas com que depois vos ofendessem. Maravilha seria<br />
quan<strong>do</strong> eles o não fizessem; que haverem-no executa<strong>do</strong> não pode causar<br />
admiração; se ain<strong>da</strong> os amigos talvez nos saem falsos, que prudência era <strong>do</strong>s<br />
inimigos fazerdes confiança? Em o consula<strong>do</strong> ou cargo tribunício com poder<br />
consular de Agripa Menénio Lanato e Públio Lucrécio, em Roma, esteve a<br />
ci<strong>da</strong>de arrisca<strong>da</strong> a ser perdi<strong>da</strong> por se haverem os escravos conjura<strong>do</strong> para<br />
porem uma noite fogo a Roma e ocuparem repentinamente o Capitólio. E a não<br />
ser por <strong>do</strong>us deles descoberta a conjuração aos tribunos militares, antes de<br />
pôr-se em execução, se vira Roma reduzi<strong>da</strong> à maior calami<strong>da</strong>de e risco de ser<br />
perdi<strong>da</strong>. Desacerto foi de vosso discurso ou cegueira de vossa afeição<br />
tomardes companhia de gente tão desluzi<strong>da</strong>. Quem se chega a quem está<br />
abati<strong>do</strong> nunca pode ficar autoriza<strong>do</strong>. Porque o sol se avizinha e ajunta à lua,<br />
quan<strong>do</strong> está a nossos olhos falta de luz, logo fica eclipsa<strong>do</strong>. Parece que leva<br />
consigo o desluzimento contagião para comunicar-se, sen<strong>do</strong> mais fácil às<br />
nuvens impedir as luzes <strong>do</strong> sol <strong>do</strong> que os resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> maior planeta<br />
fazerem resplandecer o escuro luto <strong>da</strong>s nuvens: assim que nem foi novi<strong>da</strong>de<br />
que eles rebela<strong>do</strong>s vos prendessem, nem tendes queixas que formar que vos<br />
entregassem; antes lhes podeis agradecer o não vos tirarem logo a vi<strong>da</strong>. Que<br />
quem perde o respeito para levantar-se, não era muito usar <strong>do</strong> homicídio para<br />
segurar-se: estan<strong>do</strong> mais o dificultoso em tirar a máscara ao temor de súbditos<br />
<strong>do</strong> que em granjear o título de homici<strong>da</strong>s.<br />
- Perco a Lucin<strong>da</strong> (respondeu Juliano) procuran<strong>do</strong>-a para esposa, por<br />
quem tenho passa<strong>do</strong> tantos trabalhos e arrisca<strong>do</strong> a tantos perigos, e assim<br />
parecem meus sentimentos sem alívio, pois meu amor carece de remédio.<br />
- Injusta queixa é a vossa (disse o capelão), pois arrisca<strong>do</strong>s estiveram<br />
seus pais a ficar sem ela, sen<strong>do</strong> sua. De que vos sentis o ser-vos tira<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong>
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte II 309<br />
alheia? Se a procuráveis para esposa, casamentos nunca foram força<strong>do</strong>s.<br />
Tratáreis de conquistar a vontade e não querer obrigar com violência. Sempre<br />
as violências foram aborreci<strong>da</strong>s e serviram de apagar ain<strong>da</strong> os incêndios <strong>do</strong><br />
maior amor: cousas violenta<strong>da</strong>s despojam a estimação <strong>da</strong> cousa que padece a<br />
violência. Pois não lhe deixa lugar para usar <strong>do</strong>s privilégios <strong>da</strong> vontade em se<br />
mostrar senhora, pois a tratam com desprezo como se fora cativa. Nunca o<br />
gosto fez pazes com a força nem a isenção com o desprezo; querem-se os<br />
favores agradeci<strong>do</strong>s e não força<strong>do</strong>s. Porque entran<strong>do</strong> a violência de permeio,<br />
deixan<strong>do</strong> de ser favores, parecem tributos. Liber<strong>da</strong>de constrangi<strong>da</strong> é espécie<br />
de cativeiro, disse Quintiliano; e assim não é maravilha que perdêsseis a quem<br />
tão mal granjeastes, que em lugar de pertendê-la com respeitos de senhora,<br />
quisestes obrigá-la com indecências e menosprezos de escava.<br />
- Não pude demovê-la com serviços (disse Juliano), porque amante<br />
aborreci<strong>do</strong> com as finezas ofende e com desvelos e carícias desmerece.<br />
- Pois (replicou o capelão) se a não pudestes enternecer aman<strong>do</strong>, como<br />
a intentáveis merecer ofenden<strong>do</strong>? Confiáveis mais <strong>do</strong>s agravos que <strong>do</strong>s<br />
serviços? Mais valimentos acháveis na tirania que na brandura? Se com meios<br />
tão suaves não conseguíeis o ser favoreci<strong>do</strong>, como valen<strong>do</strong>-vos <strong>do</strong>s cruéis<br />
presumíeis avançar a serdes ama<strong>do</strong>? Erro foi de entendi<strong>do</strong>, haven<strong>do</strong> de ser<br />
proporciona<strong>do</strong>s os meios aos fins para granjeardes amor, tomardes por meio a<br />
violência. Se podereis roubar a vontade, assim como roubáveis a pessoa,<br />
ain<strong>da</strong> com ser tal o desacerto na acção, buscara desculpas no efeito; mas<br />
quan<strong>do</strong> este não podia seguir-se, como podia o intento desculpar-se? Tu<strong>do</strong><br />
foram enganos <strong>do</strong> discurso e tu<strong>do</strong> desacertos <strong>da</strong> eleição.<br />
- Temo muito (disse Juliano) a presença <strong>do</strong> vice-rei e a sentença que<br />
há-de <strong>da</strong>r-me seu rigor, assim mal posso admitir alívio em minha pena.<br />
- Quisera eu (senhor Juliano) replicou o capelão, que tivéreis vós na<br />
memória mui presente a presença <strong>do</strong> Justo Juiz de vivos e mortos, nosso<br />
salva<strong>do</strong>r Jesus Cristo, e a sentença que pode <strong>da</strong>r-vos de eterna condenação,<br />
que esta só era para ser temi<strong>da</strong> e à vista desta não temeríeis a outra. Que tem<br />
que ver o temporal com o eterno, o momentâneo com o permanente? To<strong>da</strong>s as<br />
penas desta vi<strong>da</strong> compara<strong>da</strong>s com as <strong>da</strong> outra parecem pinta<strong>da</strong>s. Para
310 Padre Mateus Ribeiro<br />
merecer o eterno, diz São Bernar<strong>do</strong> 314 , nenhuma pena é dura, nenhum tempo<br />
vagaroso, nenhum tormento grande. Temeis tanto uma morte que em um<br />
instante passa e não vos dá temor uma morte que eternamente dura? Morte<br />
sem morte chamou o padre São Gregório Papa 315 a eterna condenação,<br />
porque morren<strong>do</strong> sempre pelas penas, nunca acabam por ser eterna a<br />
duração.<br />
- Não me atormenta tanto a morte (replicou Juliano) como as<br />
circunstâncias dela. O ser por pública sentença, o ser em público teatro à vista<br />
de tantos olhos e por mãos de um verdugo, isto na flor <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de e depois de<br />
haver gasta<strong>do</strong> o melhor <strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de em servir ao empera<strong>do</strong>r com tantos<br />
desvelos e perigos, ser este o galardão de meus trabalhos e o prémio de tantos<br />
serviços. Que paciência pode levar tão agra bebi<strong>da</strong> ou que alívio se pode achar<br />
para tanta pena?<br />
- Para responder (disse o capelão) aos motivos juntos de vossa tristeza,<br />
não é possível, sen<strong>do</strong> tantos, com uma só resposta ficarem to<strong>do</strong>s satisfeitos, e<br />
assim responderei a vossas queixas pela mesma ordem com que as<br />
manifestastes. Dizeis que não vos dá temor a morte, só enquanto morte, mas<br />
em ser morte violenta: erra<strong>do</strong> argumento fazeis, pois a morte sempre é a<br />
mesma. Esta definiu Aristóteles ser um apartamento que a alma faz <strong>do</strong> corpo e<br />
assim como nas que chamamos violentas ou naturais a alma <strong>do</strong> corpo se<br />
aparta, enquanto a este fim qualquer morte é a mesma. Os meios de apartar-se<br />
diferentes serão; mas como to<strong>do</strong>s atendem ao próprio fim, pouco diferem os<br />
meios. Qualquer enfermi<strong>da</strong>de, qualquer exorbitante <strong>do</strong>r, qualquer rigoroso<br />
acidente, tantos achaques mortais, tantas febres ardentes, tantas naci<strong>da</strong>s<br />
venenosas, que diferem <strong>do</strong> cutelo para acabar a vi<strong>da</strong>? só lhes acho as<br />
diferenças em serem os outros mais dilata<strong>do</strong>s na <strong>do</strong>r e este mais abrevia<strong>do</strong> na<br />
pena. Tanto tem os tormentos de menos rigorosos, quanto tem de menos<br />
duração. Nunca pena breve se julgou por grande nem a que é dilata<strong>da</strong> por<br />
pequena. Pesa-se à <strong>do</strong>r na balança <strong>do</strong> tempo; muito pesa a que dura muito,<br />
pouco pesa a que em breve passa. Oh quantos desejaram porém ao<br />
sofrimento de um golpe o amargo de sua vagarosa pena? Quantos as passam<br />
4 S. Bern, in Doct.<br />
5 D. Gregor, in Moral.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 311<br />
dilata<strong>do</strong>s dias que teriam por alívio se se lhes comutasse o vivo de seu<br />
sentimento por breves horas? Se fordes sentencia<strong>do</strong>, não será novi<strong>da</strong>de; que<br />
Séneca e Lucano o foram <strong>do</strong> tirano Nero. Sócrates injustamente sentencia<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s juízes areopagitas e Fócion, insigne capitão ateniense, falsamente<br />
acusa<strong>do</strong> e sentencia<strong>do</strong>, um e outro à morte com grande valor a sofreram, sem<br />
<strong>da</strong>rem a mais pequena demonstração de covardia; que com a morte é termo<br />
inevitável <strong>do</strong>s perío<strong>do</strong>s de nossa vi<strong>da</strong>, porque nos há-de assombrar quan<strong>do</strong><br />
chegue, pois enfim há-de chegar mais ou menos tarde? Tu<strong>do</strong> quanto tem<br />
passa<strong>do</strong> de nossa vi<strong>da</strong>, diz Séneca 316 , são já despojos <strong>da</strong> morte. E quem tem<br />
já tanta parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cobra<strong>da</strong>, que admiração pode causar quan<strong>do</strong> remata a<br />
dívi<strong>da</strong>? To<strong>do</strong>s os dias dividimos com a morte, pois ca<strong>da</strong> dia se perde alguma<br />
parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, acrescenta o mesmo Séneca; e assim é tal nosso viver que nem<br />
de to<strong>do</strong> se pode chamar vi<strong>da</strong>, pois dela leva tanta parte a morte, nem se pode<br />
chamar morte, pois tem os efeitos de vi<strong>da</strong>.<br />
Sentis o ser em teatro público: to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> é teatro de nossas vi<strong>da</strong>s<br />
em que ca<strong>da</strong> um de nós seu papel representa, como ensina o padre Santo<br />
Agostinho 317 , até que a tragicomédia de nossa vi<strong>da</strong> se acaba; e assim que<br />
importa pouca o particular teatro para morrer, se em to<strong>da</strong> a parte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
como em teatro se morre. Ser na presença de muitos olhos não pode causar<br />
pena, que se tiverdes muitos que vos vejam, também entre eles haverá muitos<br />
que de vós se compadeçam e dividi<strong>da</strong> a pena fica mais leve. Que por isso<br />
disse São Gregório Papa 318 que era alívio para a <strong>do</strong>r a visita e vista de quem<br />
se compadece dela. A pena de que ninguém mostra compaixão fica to<strong>da</strong> no<br />
coração de quem a padece, por não haver quem dela pela comiseração<br />
participe; mas quan<strong>do</strong> muitos se mostram enterneci<strong>da</strong>mente senti<strong>do</strong>s, divide-se<br />
<strong>do</strong> coração como rio em arroios, sen<strong>do</strong> alívio conhecer que há quem seus<br />
desgostos sinta e, se lhes possível fora, livrá-la deles.<br />
Tereis também muitos, ou para melhor dizer to<strong>do</strong>s, que com orações vos<br />
acompanhem: que não é pequeno bem, pois diz Santo Ambrósio 319 que parece<br />
b Senec, Epist. 2.<br />
7 S. Aug., Lib. 3. De civil Dei.<br />
8 Gregor. P., 4. Moral.<br />
9 S. Ambros., De psenit.
312 Padre Mateus Ribeiro<br />
impossível não terem eficácia as orações de muitos. E como o fim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é o<br />
tempo e ocasião em que mais se necessita, negligência é de quem deixa de<br />
pedir, diz S. João Crisóstomo, quan<strong>do</strong> não se pode duvi<strong>da</strong>r <strong>da</strong> misericórdia de<br />
quem há-de conceder.<br />
Queixais-vos de ser o verdugo o executor <strong>da</strong> capital sentença, não<br />
advertin<strong>do</strong> que é ministro <strong>da</strong> divina justiça. É a justiça humana participa<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
divina, como disse São Cipriano, e os reis <strong>da</strong> terra são ministros <strong>do</strong> supremo<br />
rei <strong>da</strong> glória, como ensina o apóstolo São Paulo: to<strong>do</strong>s os que julgam e os que<br />
as sentenças executam na terra são ministros de Deus, executores de sua<br />
justiça; e assim este verdugo haveis de considerar que é na terra um executor<br />
<strong>da</strong> justiça de Deus, que não só por ministério <strong>do</strong>s homens, mas <strong>do</strong>s anjos,<br />
santos e <strong>do</strong>s demónios e de to<strong>da</strong>s as criaturas, quan<strong>do</strong> é servi<strong>do</strong> dá castigo<br />
aos peca<strong>do</strong>res. Para castigar a obstina<strong>da</strong> malícia de faraó no Egipto tomou<br />
tanta diversi<strong>da</strong>de de animais molestos que aos egípcios perseguiam e as<br />
on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> Mar Vermelho para sumergi-los com o endureci<strong>do</strong> faraó em seu<br />
centro. A terra para tragar vivos a Dathon e Abirão. O fogo que ofereciam no<br />
tabernáculo Na<strong>da</strong>b e Abiú, filhos de Aarão, foi o mesmo verdugo que os<br />
abrasou e lhes tirou as vi<strong>da</strong>s. Um leão man<strong>do</strong>u Deus para <strong>da</strong>r a morte ao<br />
profeta desobediente que veio a Bethel em tempo de Geroboão. Dous ursos<br />
foram os verdugos que mataram a quarenta e <strong>do</strong>us filhos <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res <strong>da</strong><br />
soberba ci<strong>da</strong>de de Jericó, em castigo <strong>da</strong>s injúrias que tinham dito e ludíbrio que<br />
tinham feito ao profeta Eliseu. A fun<strong>da</strong> pastoril de David foi o verdugo que<br />
derribou em terra a soberba <strong>do</strong> blasfemo gigante Filisteu. A pedra <strong>da</strong> mulher de<br />
Samaria a que quebrou a cabeça ao tirano Abimelech. Pelo demónio Asmodeu<br />
matou Deus os lascivos mari<strong>do</strong>s de sara, filha de Raquel. Por anjos man<strong>do</strong>u<br />
Deus açoutar a Helio<strong>do</strong>ro, queren<strong>do</strong> roubar o erário <strong>do</strong> templo de Jerusalém.<br />
Por um anjo matou em uma noite cento e oitenta e cinco mil sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, os<br />
melhores de seu exército, a Senaquerib, empera<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s assírios, em tempo de<br />
Ezequias, rei de Jerusalém. Porque to<strong>da</strong>s as criaturas, angélicas e humanas,<br />
grandes e humildes, intelectivas e irracionais, sensitivas e insensíveis, são<br />
ministros executores de sua justiça, como se diz na Sabe<strong>do</strong>ria, que armará<br />
Deus suas criaturas para a vingança de seus castigos.<br />
Nem imagineis que só vós partireis desta vi<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> tal sentença,<br />
como temeis, se executasse, porque não há dia em que na barca <strong>da</strong> morte não
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte II 313<br />
passem almas a milhares desta vi<strong>da</strong> para a outra. Na vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> melífluo padre<br />
São Bernar<strong>do</strong> se escreve que no dia em que passou desta vi<strong>da</strong> faleceram seis<br />
mil pessoas. E não é maravilha. Porque consideran<strong>do</strong>-se bem a grandeza <strong>da</strong><br />
terra, os muitos reinos, ci<strong>da</strong>des, vilas e lugares, as contínuas <strong>do</strong>enças,<br />
acidentes, batalhas, naufrágios, pendências, perigos, infortúnios e sucessos <strong>da</strong><br />
humana vi<strong>da</strong>, quem duvi<strong>da</strong>rá que ca<strong>da</strong> dia toma a morte posse de milhares de<br />
vi<strong>da</strong>s? Sen<strong>do</strong> pois tantos os caminhantes pela estra<strong>da</strong> <strong>da</strong> outra vi<strong>da</strong>, a estra<strong>da</strong><br />
tão cursa<strong>da</strong> e os companheiros tantos em número, para que com tanto excesso<br />
temeis o que tantos vos acompanham para o passardes, pois diz Cícero que<br />
aqueles se chamam companheiros que <strong>do</strong> mesmo bem ou mal participam.<br />
Até agora, senhor Juliano, respondi ao senti<strong>do</strong> de vossas queixas, para<br />
vos mostrar em como não era tão incurável vossa pena que não pudesse<br />
admitir consolação, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o rigor que temeis se executasse; mas<br />
agora vos servirá de alívio o dizer-vos que não desconfieis <strong>do</strong> remédio, porque<br />
muitas vezes a esperança é como a Fénix que, quan<strong>do</strong> se considera morta, de<br />
suas mesmas cinzas se ressuscita. Por morto se deu o cônsul Mário quan<strong>do</strong><br />
fugin<strong>do</strong> de Sila, seu contrário, se escondeu na lapa <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Mintumas,<br />
ven<strong>do</strong> ao verdugo diante de si para tirar-lhe a vi<strong>da</strong>; e depois escapan<strong>do</strong> <strong>da</strong>s<br />
garras <strong>da</strong> morte, com quem já lutava, se viu não só livre, mas restituí<strong>do</strong> à<br />
digni<strong>da</strong>de de consular que de antes lograva, como conta Apiano Alexandrino.<br />
Ain<strong>da</strong>, senhor Juliano, ides navegan<strong>do</strong> pelo mar, ain<strong>da</strong> não saístes em terra,<br />
não fostes ouvi<strong>do</strong>, nem estais sentencia<strong>do</strong>. Bem pode moderar-se o rigor,<br />
aplacar-se a ira, valer a pie<strong>da</strong>de, interceder o favor, apadrinhar a criação, curar<br />
a feri<strong>da</strong> o tempo, ain<strong>da</strong> que pareça ao remédio incurável, que de um dia para o<br />
outro há mil mu<strong>da</strong>nças, e a árvore que hoje estava de to<strong>do</strong> despoja<strong>da</strong>,<br />
amanhece de flores vesti<strong>da</strong>: anoiteceu ludíbrio <strong>do</strong> campo e amanheceu lisonja<br />
<strong>do</strong> pra<strong>do</strong>; hoje parecia tristes despojos <strong>da</strong> morte e amanhã ressuscita delícia<br />
alegre <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. A esperança há-se correr o curso de nossa vi<strong>da</strong>, tantos passos<br />
há-de <strong>da</strong>r a esperança quantos dá a respiração, e se a última é o termo de<br />
vivermos, a última seja o limite de esperarmos. Porque, como disse Ovídio,<br />
ain<strong>da</strong> que o médico desconfie <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença, nunca convém que desanime o<br />
coração <strong>do</strong> remédio.
314 Padre Mateus Ribeiro<br />
Cap. XIX.<br />
Em que se prossegue o sucesso de Juliano<br />
Atento ouviu o preso Juliano as discretas exortações <strong>do</strong> capelão, de que<br />
lhe rendeu as graças cortesmente <strong>do</strong> desejo de procurar sua consolação e<br />
alívio, e mostrou recebê-lo, em que comeu e falou <strong>da</strong>í em diante com quem o<br />
visitava, com rosto mais alegre e ânimo sossega<strong>do</strong>, sem os extremos <strong>da</strong><br />
profun<strong>da</strong> melancolia que de antes o senhoreava. Navegan<strong>do</strong> pois as galés na<br />
volta de Nápoles, nos sobreveio uma tormenta que nos fez tomar o porto <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de de Óstia Tiberina, para nos defendermos <strong>da</strong> inclemência <strong>do</strong>s mares.<br />
Durou esta três dias em que não foi possível seguirmos a derrota; depois <strong>do</strong>s<br />
quais continuámos à vela e remo. E in<strong>do</strong> à vista de Caeta, ilustre ci<strong>da</strong>de e<br />
seguro porto <strong>do</strong>s navegantes que el-rei D. Fernan<strong>do</strong>, o católico, lançan<strong>do</strong> fora<br />
dela aos franceses, man<strong>do</strong>u cingir de fortes muros e inexpugnável torre, na<br />
eminência de um monte edifica<strong>da</strong>, que a ter bastimentos convenientes parece<br />
ser insuperável, nos tornou a sobrevir a tormenta com <strong>do</strong>bra<strong>do</strong> rigor: pensão de<br />
quem navega os mares ter sempre que experimentar e referir seus perigos,<br />
sen<strong>do</strong>, como disse Menandro, mais seguro ser pobre em terra que rico no mar.<br />
Arribámos pois a Caeta e ain<strong>da</strong> entrámos no porto com trabalho, demoran<strong>do</strong><br />
nele os dias que durou a borrasca. Enfim aplaca<strong>da</strong> a fúria <strong>do</strong>s ventos e o<br />
brami<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mares, sereno o ar e calmoso o tempo, a remos nos saímos <strong>do</strong><br />
porto e chegámos a Nápoles no seguinte dia <strong>da</strong> vossa fugi<strong>da</strong> <strong>do</strong> castelo de<br />
Santelmo. Estava o vice-rei com extremos exaspera<strong>do</strong>, haven<strong>do</strong> despedi<strong>do</strong> em<br />
vosso seguimento e <strong>do</strong> capitão a uma tropa de trinta cavalos que voltou sem<br />
encontrar-vos: e não foi pequeno favor <strong>do</strong> céu o desviardes-vos deles; porque<br />
a vos descobrirem, não vos pudéreis livrar de serdes ou presos ou mortos,<br />
porque a ordem era rigorosa que se lhes tinha <strong>da</strong><strong>do</strong>.<br />
Apenas soube o vice-rei o que aos mouros se fizera, quan<strong>do</strong> <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se<br />
por mal servi<strong>do</strong> <strong>do</strong> general, o despediu com áspera repreensão de sua<br />
presença, sem lhe querer ouvir as escusas que <strong>da</strong>va; que, como disse<br />
Séneca 320 , de um poderoso apaixona<strong>do</strong> to<strong>da</strong>s as demonstrações são irosas,<br />
man<strong>do</strong>u que logo fosse em ferros Juliano trazi<strong>do</strong> diante dele, e tememos to<strong>do</strong>s<br />
Senec, Epist. 91.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 315<br />
que conforme a ira que mostrava e a severi<strong>da</strong>de que descobria, lhe desse de<br />
vi<strong>da</strong> poucas horas. Chegou acompanha<strong>do</strong> <strong>do</strong> capelão <strong>da</strong> galé real à sua<br />
presença, corta<strong>do</strong> <strong>do</strong> temor e prostran<strong>do</strong>-se a seus pés assim preso com<br />
humil<strong>da</strong>de de réu, lhe disse, conforme nos referiu o capelão que estava<br />
presente e por ventura o tinha industria<strong>do</strong> assim:<br />
- A teus pés, ó poderoso senhor, chega prisioneiro o mal afortuna<strong>do</strong><br />
Juliano, e bem mal afortuna<strong>do</strong>, pois chega em tua desgraça, penden<strong>do</strong> hoje de<br />
tua graça to<strong>da</strong> a minha ventura. Confesso haver-me cria<strong>do</strong> em tua casa e que<br />
tive o melhor mestre em ti, de quem pudera aprender to<strong>do</strong> o bem, e que saí<br />
mau discípulo, pois me precipitei ao mal; mas prouvera a Deus te achara com<br />
entranhas de mestre e não com rigores de juiz. Que o mestre só pertende ver<br />
no discípulo a emen<strong>da</strong>, mas o juiz não se satisfaz senão com ver no réu o<br />
castigo. Confesso, senhor, que mandei roubar a Lucin<strong>da</strong> com intentos de tê-la<br />
por esposa, pois haven<strong>do</strong>-a pertendi<strong>do</strong> por tantos meios, e sen<strong>do</strong> tu próprio o<br />
principal que vales tu<strong>do</strong>, jamais foi admiti<strong>do</strong> meu desejo. São estes em quem<br />
ama delírios e os desenganos frenéticos de um louco amante e de um frenético<br />
desengano, desculpa podem ter as acções ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> pareçam mais<br />
inculpáveis. Aonde se viu amante obrar como discreto? Poucas vezes se vê um<br />
desengana<strong>do</strong> obrar como prudente. O man<strong>da</strong>r roubá-la pelos mouros, decoro<br />
foi que te guardei a ti mesmo; pois não convinha que se dissesse que de sua<br />
casa a tirava quem se criou sempre na tua. Pudera-se dizer que a levara quem<br />
te não conhecia e não que era o raptor quem te venerava. Não a ofendi mais<br />
que no desejo: quan<strong>do</strong> se condenaram estes nos tribunais <strong>da</strong> terra? Que se<br />
nela houvera penas arbitra<strong>da</strong>s aos desejos, poucos deixariam de serem por<br />
desejar castiga<strong>do</strong>s. Amar com extremos mal se compadece com a razão; que o<br />
muito discursar tem pouco comércio com o querer. Ajuizei como quem muito<br />
amava e assim obrei como quem pouco entendia. Oh prouvera a Deus que a<br />
seu divino tribunal se remetera minha causa para ser sentencia<strong>da</strong> nele, que<br />
não duvi<strong>do</strong> achasse nele a misericórdia como em Deus que dificulto poder<br />
achar em ti como em homem. Deus satisfaz-se com ver arrependi<strong>do</strong>s; mas os<br />
homens só se aplacam com verem castiga<strong>do</strong>s: Deus dá-se por contente com<br />
ver no coração a <strong>do</strong>r; mas os homens só com executar os castigos.<br />
Não foi meu intento, grã senhor, nem levantar-me com a galé, nem sair<br />
de Nápoles, mas só obrigar a Lucin<strong>da</strong> a querer-me por esposo; mas em tu<strong>do</strong>
316 Padre Mateus Ribeiro<br />
me saiu contrária a sorte, pois me vi preso quan<strong>do</strong> me avaliava superior, nem<br />
poden<strong>do</strong> possuir o que amava, nem poden<strong>do</strong> impedir a rebelião <strong>do</strong>s mouros<br />
que aborrecia. Não queirais, senhor, pôr-te contra mim <strong>da</strong> parte <strong>da</strong> fortuna, que<br />
bem basta a um infelice por castigo sua desgraça. Se a justiça se pinta com<br />
iguais balanças, nelas mesmas quero pesar minha desculpa. Serviram-te meus<br />
pais tantos anos e eu desde menino me criei e te servi em tua casa: servi ao<br />
empera<strong>do</strong>r desde que cingi a espa<strong>da</strong> com tanta satisfação, como tu sabes,<br />
arriscan<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> e derraman<strong>do</strong> o sangue em tantas ocasiões de serviço. Pois,<br />
poderoso senhor, põe nas balanças <strong>da</strong> justiça uma hora de descui<strong>do</strong> com<br />
tantos anos de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, um erro com tantos acertos no servir, um delito<br />
amoroso com tantas acções honrosas, e verás quanto pesam menos meus<br />
descui<strong>do</strong>s que meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, minha culpa que meus serviços e uma hora<br />
infelice que tantos anos venturosos. É própria cali<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s príncipes a<br />
clemência. Desta se prezou Júlio César mais que de empera<strong>do</strong>r, pois nunca<br />
negou perdão a quem lho pedisse: que para <strong>da</strong>r castigos qualquer homem<br />
basta, mas para <strong>da</strong>r perdão, só o <strong>da</strong>va César. Maior inveja teve Catão de sua<br />
clemência que de suas vitórias; porque estas eram favores <strong>da</strong> ventura e a<br />
clemência <strong>da</strong> bizarria. Bem pudera César chegar a ser venci<strong>do</strong>, mas nunca<br />
chegara a ser cruel. Porque o vence<strong>do</strong>r pendia <strong>da</strong> sorte e a clemência <strong>da</strong><br />
generosi<strong>da</strong>de. Não faças, ó excelente senhor, meu erro mais soa<strong>do</strong> com as<br />
martela<strong>da</strong>s <strong>do</strong> castigo; bem podes valer-me como senhor e não sentenciar-me<br />
como juiz. Bem conheço que valias contigo valem pouco; mas é porque tu<br />
próprio vales tu<strong>do</strong>. E se não houvera culpas que per<strong>do</strong>ar, não tivera a<br />
clemência em que ver-se. Pois castigar virtudes seria empenho <strong>da</strong> tirania e<br />
per<strong>do</strong>ar delitos será empenho <strong>da</strong> clemência. Bem conhecem to<strong>do</strong>s que eu não<br />
ofendi a Lucin<strong>da</strong>, se ela quiser receber-me por esposa, a to<strong>do</strong>s constará que<br />
outro nenhum pode ofendê-la. Acode, senhor, a seu crédito e não a minha vi<strong>da</strong>;<br />
que se eu desejava mais vi<strong>da</strong> era para mais amá-la. Se isto não mereço, pois<br />
te ofendi, mereçam meus pais, pois te serviram. Que não parece justo que uma<br />
culpa paguem to<strong>do</strong>s, quem te ofende e quem te serve. E se há-de haver<br />
diferença entre o castigo e o galardão, compense tua pie<strong>da</strong>de o galardão com<br />
suspenderes o castigo.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 317<br />
Atento ouviu o vice-rei a Juliano, que é prelúdio <strong>da</strong> ventura de um réu o<br />
atender o juiz a ouvi-lo; pois é cousa dura, como disse Aristóteles 321 , o não<br />
poder uma pessoa nem com as armas, nem com as palavras defender-se, o<br />
que sem ser ouvi<strong>do</strong> mal pode conseguir-se. Quasi que quis assomar-se aos<br />
olhos a compaixão, mas soube-a dissimular com colar ao rosto a viseira <strong>da</strong><br />
severi<strong>da</strong>de para encobri-la; que é razão de esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> majestade ter a mágoa<br />
no coração como particular e mostrar o rigor no exterior como público juiz e<br />
superior. Tal se ostentou o vice-rei com o preso, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Bem pudera eu, ingrato e atrevi<strong>do</strong> Juliano, man<strong>da</strong>r-te logo <strong>da</strong>r o<br />
castigo que teu delito merece; mas dilatá-lo-ei para informar-me se ao crédito<br />
de Lucin<strong>da</strong> falta alguma cousa para cabalmente satisfazer-se: a quem podes<br />
agradecer este breve espaço de tempo que tua vi<strong>da</strong> durar.<br />
E, dizen<strong>do</strong> isto, o man<strong>do</strong>u levar ao cárcere público de Nápoles, onde<br />
ficou a bom reca<strong>do</strong> preso.<br />
Sempre as dilações à execução <strong>do</strong> castigo são como recebi<strong>do</strong>s<br />
embargos <strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de: que o primeiro degrau <strong>do</strong> templo <strong>da</strong> clemência é<br />
suspender por qualquer espaço os rigores <strong>da</strong> justiça. Se o grande Alexandre<br />
tão acelera<strong>da</strong>mente não man<strong>da</strong>ra tirar a vi<strong>da</strong> ao inocente Orsines por<br />
testemunhos <strong>do</strong> eunuco Bagoas, nunca deixara esse labéu a suas glórias. Pois<br />
é certo que se primeiro o ouvira, não o matara, ou se a execução dilatara,<br />
Orsines sem culpa não morrera. Assim se entendeu que a compaixão<br />
encerra<strong>da</strong> no peito <strong>do</strong> vice-rei tomou por motivo, e com razão, o crédito e<br />
reputação <strong>da</strong> pessoa ofendi<strong>da</strong>: que há castigos que servem só de punir o delito<br />
e não de satisfazer o <strong>da</strong>no. Com estes pretextos obra talvez a pie<strong>da</strong>de,<br />
valen<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> máscara <strong>da</strong> justiça; que é a melhor razão de esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> favor o<br />
saber valer-se <strong>da</strong> justiça para a clemência, pois sem faltar no que deve às<br />
demonstrações de justo, obra muitas o que o desejo compassivo. Neste esta<strong>do</strong><br />
ficam em Nápoles os negócios, esperan<strong>do</strong>-se a chega<strong>da</strong> <strong>do</strong> senhor Camilo e<br />
<strong>da</strong> senhora Lucin<strong>da</strong>, sua filha, para com isso se sentenciar Juliano. Sobre o<br />
que os pareceres são vários no vulgo; porque uns o fazem sem dúvi<strong>da</strong> com<br />
sua chega<strong>da</strong> sentencia<strong>do</strong> à morte e outros apelan<strong>do</strong> para sua pie<strong>da</strong>de o fazem<br />
livrar com vi<strong>da</strong>.<br />
Arist., Rhetor. 1.
318 Padre Mateus Ribeiro<br />
- Não me parece a mim (disse eu então), senhor Leonar<strong>do</strong>, que meu pai<br />
será tão compassivo que permita que Juliano se possa jamais gloriar de que<br />
veio a conseguir por atrevi<strong>do</strong> o que não pôde alcançar por cortês; e que<br />
man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> roubar a minha irmã Lucin<strong>da</strong> com um tão bárbaro desaforo, como o<br />
tempo descobriu, fique sem com sua morte <strong>da</strong>r exemplo, para que outros não<br />
se atrevam a cometerem tão insolentes delitos. Pois, como ensina Marco<br />
Túlio 322 , com o castigo de um, muitas vezes se refreiam os desaforos de<br />
muitos. E Lactan<strong>do</strong> 323 diz que o <strong>da</strong>r castigo a um mau é assegurar a muitos<br />
bons.<br />
- Os que melhor discursam (respondeu Leonar<strong>do</strong>) assim o julgam. Mas<br />
como ca<strong>da</strong> um discursa conforme as inclinações, sen<strong>do</strong> estas tão diversas, não<br />
podem deixar de ser os juízos diferentes. Novas <strong>do</strong> senhor Dionísio Montal<strong>do</strong><br />
são ficar já ergui<strong>do</strong>, convalecen<strong>do</strong>, mas não ain<strong>da</strong> idóneo para a jorna<strong>da</strong>: e por<br />
essa causa não veio em nossa companhia a achar-se nos desposórios <strong>do</strong><br />
senhor Alexandre, como desejava, porque o desculpa sua fraqueza. Mas que<br />
achan<strong>do</strong>-se com mais vigor viria satisfazer a obrigação que devia.<br />
Ao que Alexandre se mostrou agradeci<strong>do</strong> e nós to<strong>do</strong>s a Leonar<strong>do</strong> pelas<br />
alegres novas que nos deu.<br />
Preparou-se o recebimento <strong>do</strong>s noivos para o dia seguinte, em que<br />
acompanha<strong>do</strong>s de pessoas autoriza<strong>da</strong>s se celebraram os desposórios com<br />
ostentação conveniente de quem eram, e ao dia seguinte me despedi deles<br />
para ir a Liorne a ver a meu pai e a Lucin<strong>da</strong>, em companhia de Dom Sancho,<br />
que quis-me acompanhar na jorna<strong>da</strong>, prometen<strong>do</strong> aos noivos e a seus pais de<br />
fazer que viesse Lucin<strong>da</strong> por Roma, para ver de caminho suas grandezas e<br />
então sermos seus hóspedes alguns dias. E com estas esperanças nos<br />
deixaram partir, divertin<strong>do</strong> as sau<strong>da</strong>des com o alvoroço <strong>da</strong> promessa.<br />
Cap. XX.<br />
Da jorna<strong>da</strong> que fizemos a Liorne e <strong>do</strong> que nos sucedeu<br />
Cie, Pro Rose.<br />
Lactant., De ira dei.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 319<br />
Acompanha<strong>do</strong> de <strong>do</strong>us cria<strong>do</strong>s e provi<strong>do</strong>s de pistolas nos coldres,<br />
montámos eu e Dom Sancho a cavalo, a horas em que o sol em berço de rubis<br />
vinha nascen<strong>do</strong>, que com ser decrépito nos anos, to<strong>do</strong>s os dias nasce, pois<br />
como Fénix morre abrasa<strong>do</strong> em seus próprios resplan<strong>do</strong>res. íamos pratican<strong>do</strong><br />
em que muitas vezes os que nos parecem trabalhos são favores que Deus nos<br />
faz, sem nós os conhecermos. Pois se nos não perdêramos no caminho com a<br />
névoa, quan<strong>do</strong> de Nápoles fugimos, e nos prendessem os ban<strong>do</strong>leiros de<br />
Frederico, que nos pareceu então a maior desgraça, mal poderíamos escapar<br />
<strong>da</strong> tropa que em nosso seguimento, por ordem <strong>do</strong> vice-rei, com to<strong>da</strong> a pressa<br />
vinha. E em errarmos a estra<strong>da</strong> esteve o acerto <strong>da</strong> ventura. Ninguém se<br />
desconsole quan<strong>do</strong> se vê perdi<strong>do</strong>, pois talvez com essa perseguição evita<br />
outros riscos maiores. Quantos com o cativeiro asseguravam as vi<strong>da</strong>s que<br />
depois ven<strong>do</strong>-se na liber<strong>da</strong>de perderam! E a quantos o desterro <strong>da</strong> pátria subiu<br />
às digni<strong>da</strong>des maiores, que viven<strong>do</strong> aonde nasceram nunca alcançariam!<br />
Quanto melhor fora ao insigne ora<strong>do</strong>r Marco Túlio morrer desterra<strong>do</strong> em<br />
Grécia, para onde se partiu com as lágrimas nos olhos quan<strong>do</strong> seus émulos o<br />
perseguiram, <strong>do</strong> que voltar a Roma para deixar a cabeça nos fios <strong>da</strong> espa<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
ingrato Popílio Lenas! Para quem to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> é pátria universal, nenhuma<br />
terra é desterro. Se o empera<strong>do</strong>r Severo não deixara a África, Filipe a Arábia,<br />
Trajano a Espanha, Saturnino a França e Proculeio a Ligúria, nenhum deles<br />
subira a ser senhor <strong>do</strong> império romano. São as pátrias émulas <strong>do</strong>s<br />
merecimentos; ser venturoso em sua pátria é ventura <strong>do</strong>bra<strong>da</strong>. Lembram mais<br />
nelas as humil<strong>da</strong>des <strong>da</strong> criação <strong>do</strong> que os aumentos <strong>do</strong> merecer. Aonde se<br />
viram o tosco <strong>da</strong>s raízes, nunca se aplaude a árvore, por mais que se vista de<br />
flores ou se enriqueça de frutos.<br />
- Assim é (disse Dom Sancho), que sempre as terras estranhas<br />
guar<strong>da</strong>m maior decoro aos forasteiros, porque os acham fora <strong>do</strong>s rudimentos e<br />
tirocínios <strong>da</strong> infância e com os acertos e corteses procedimentos <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de<br />
varonil. O que não é nas pátrias, aonde o superior o despreza porque o viu tão<br />
pequeno, o igual o inveja porque o vê luzi<strong>do</strong>, o humilde o aborrece porque lhe<br />
parece que aspira a ser grande. Por isso não se aventura à grandezas, porque<br />
o maior, o menor e o igual to<strong>do</strong>s o oprimem: uns porque os não iguale, outros<br />
porque os não prefira e outros porque os não <strong>do</strong>mine. Nas terras alheias, como
320 Padre Mateus Ribeiro<br />
aparece já para tu<strong>do</strong> idóneo, nem ao grande dá cui<strong>da</strong><strong>do</strong> que o iguale, nem ao<br />
igual que se adiante, nem ao inferior que o mande; que como nenhum o viu<br />
luzir menos, não lhe encontra que chegue a luzir mais. Assim que muitas vezes<br />
no que parece desterro está a ventura e no que parece cativeiro a segurança.<br />
Assim discursan<strong>do</strong> em estes e semelhantes assuntos, fomos passan<strong>do</strong><br />
a maior parte <strong>do</strong> dia junto às ribeiras cristalinas <strong>do</strong> celebra<strong>do</strong> Tibre, que<br />
nascen<strong>do</strong> <strong>do</strong> monte Apenino de limita<strong>da</strong> fonte, começan<strong>do</strong> nas mininices de<br />
arroio por algum espaço em que a secura <strong>da</strong> terra como estéril ama lhe nega o<br />
leite <strong>do</strong> líqui<strong>do</strong> cristal com que os outros crescem, depois discorren<strong>do</strong> o espaço<br />
de cento e cinquenta milhas de jorna<strong>da</strong>, em que vai receben<strong>do</strong> quarenta e <strong>do</strong>us<br />
arroios e ribeiras que perdem o nome e as águas para enriquecê-lo delas, vai<br />
cau<strong>da</strong>loso pelo meio <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Roma, cabeça <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, a pagar tributo ao<br />
mar Tirreno, fazen<strong>do</strong> o porto <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Óstia Tiberina, que lhe fica servin<strong>do</strong><br />
de sepulcro e epitáfio para ser tão célebre no mun<strong>do</strong>.<br />
la já o sol a este tempo apressan<strong>do</strong> a carreira para sepultar seus<br />
resplan<strong>do</strong>res, para deixar a terra em sau<strong>da</strong>des. Porque para ser mais estima<strong>do</strong><br />
é necessário que se retire em cortina onde não se veja; que se sempre se<br />
manifestara, o contínuo luzir o despojara <strong>da</strong> estimação de se desejar. Era o<br />
sítio despovoa<strong>do</strong>, sombrio, com o denso de uma selva que com fecha<strong>do</strong><br />
arvore<strong>do</strong> o fazia triste, quan<strong>do</strong> ouvimos estron<strong>do</strong> de espa<strong>da</strong>s de quem parece<br />
pendenciava dentro <strong>do</strong> arvore<strong>do</strong>. Esporeou Dom Sancho o cavalo, como tão<br />
costuma<strong>do</strong> às armas, e eu o segui, e a pouco espaço que pelo arvore<strong>do</strong><br />
entrámos, vimos a <strong>do</strong>us mancebos que logo no traje pareciam pessoas graves,<br />
que com espa<strong>da</strong>s e a<strong>da</strong>gas se an<strong>da</strong>vam acutilan<strong>do</strong> sem falarem palavra.<br />
Apeámo-nos e, arrancan<strong>do</strong> as espa<strong>da</strong>s, tratámos de apartá-los. Ao que um<br />
deles disse:<br />
- Para que, senhores passageiros, vos empenhais a apaziguar uma<br />
pendência sem saberdes a causa?<br />
- Por isso mesmo (respondeu Dom Sancho), porque desejo sabê-la e<br />
porque não é justo que vos mateis, quan<strong>do</strong> porventura as cousas por outros<br />
meios, que o <strong>da</strong>s armas, se podem remediar. E assim vos peço por cortesia me<br />
deis notícia <strong>da</strong> ocasião deste desafio, fian<strong>do</strong> de mim que, como forasteiro na<br />
terra, direi sem lisonja nem suborno meu parecer.<br />
- Seja assim - disseram ambos.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 321<br />
E assentan<strong>do</strong>-nos to<strong>do</strong>s quatro nos ver<strong>do</strong>res <strong>da</strong> relva de que o rio com a<br />
liberali<strong>da</strong>de de suas águas tinha vesti<strong>do</strong> o pra<strong>do</strong>, um deles disse desta sorte:<br />
- No antigo castelo de Monte Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, que pouco <strong>da</strong>qui dista e de<br />
Roma catorze milhas, avizinhan<strong>do</strong>-se ao mar e desquartinan<strong>do</strong> com sua<br />
eminência a terra, mora uma senhora viúva <strong>do</strong> ilustre sangue <strong>do</strong>s Orsinos,<br />
família antiquíssima de Roma e senhores <strong>da</strong> grande parte deste território em<br />
que estamos. Ficou-lhe de seu defunto esposo uma filha chama<strong>da</strong> Laura, que<br />
para encanto <strong>da</strong>s almas nasceu no mun<strong>do</strong> por assombro <strong>da</strong> beleza, por<br />
prodígio singular <strong>da</strong> fermosura. Se o sol fora capaz de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, os pudera<br />
receber em vê-la; e se coubera nele inveja, a recebera quan<strong>do</strong> em suas luzes<br />
se representara. Não me censureis, senhores, se pareço demasia<strong>do</strong> no<br />
encarecer a Laura, porque é tal que, por mais que pareça encareci<strong>da</strong>, nunca<br />
chega cabalmente a ser louva<strong>da</strong>. Pois extremos que nascem para admiração<br />
nunca perdem seus privilégios para serem em to<strong>do</strong> o tempo maravilha. E fica<br />
sen<strong>do</strong> o mais que dela publico, o menos que nela há. Tinha o insigne pintor<br />
Apeles principia<strong>do</strong> uma imagem de Vénus antes de o chamar a morte e não<br />
houve depois dele pintor algum, de quantos celebrou a antigui<strong>da</strong>de, que se<br />
atrevesse a acabá-la, porque to<strong>do</strong>s os pincéis pareciam toscos, to<strong>da</strong>s as mãos<br />
grosseiras, to<strong>da</strong>s as tintas mais finas descora<strong>da</strong>s para imagem tão perfeita: e<br />
foi seu maior encómio ficar sem acabar-se. Tal digo por Laura, que se não há<br />
no mun<strong>do</strong> quem a imite, também não há eloquência que a retrate. To<strong>do</strong> o<br />
admirável disse o filósofo que era amável, consistin<strong>do</strong> no raro o maior motivo<br />
<strong>do</strong> amor; e assim não era espanto que sen<strong>do</strong> Laura admiração de to<strong>do</strong>s, de<br />
to<strong>do</strong>s fosse queri<strong>da</strong>, mas que a ninguém quisesse; porque só emparelhou nela<br />
a isenção com sua própria fermosura. Naceu para queri<strong>da</strong> e não para querer;<br />
nasceu para render e não para venci<strong>da</strong>. Competiu nela a isenção com a<br />
beleza, o <strong>do</strong>nairoso com o esquivo, o vistoso com o soberano e o senhoril com<br />
o ingrato. A haver novo Narciso, se desvanecera consigo própria, porque só de<br />
si mesma se afeiçoara. Quantas vezes amantes desvelos lhe disseram:<br />
- Que pertendes Laura? Queres imitar ao diamante? Não vês que com<br />
sua dureza desacredita seu valor? Pois se pelo brilhante <strong>da</strong> luz se quer<br />
desvanecer por filho <strong>do</strong> sol, pela dureza mostra que é pedra. Que importa que<br />
furtasse os resplan<strong>do</strong>res ao sol, se tomou <strong>da</strong> rocha a dureza? E perde pela<br />
esquivança de duro, quanto granjeia com os raios de luzi<strong>do</strong>.
322 Padre Mateus Ribeiro<br />
A esta fermosura sem pie<strong>da</strong>de, a quem tantos alvedrios se renderam<br />
sem esperanças de se verem livres, fui eu entre os mais o que entre os<br />
desespera<strong>do</strong>s de a merecerem por esposa descobrisse uns longes de<br />
brandura entre os pertos de seu rigor. Descobri, digo, estes assombros de<br />
pie<strong>do</strong>sa em deixar-se ver com um vagaroso retiro, sen<strong>do</strong> para os mais uma<br />
fugi<strong>da</strong> apressa<strong>da</strong>. Bem assim como o relâmpago que, despedin<strong>do</strong> o raio,<br />
apenas deixa ver-se. Dei em ron<strong>da</strong>r de noite os muros <strong>do</strong> castelo que esconde<br />
este amoroso basilisco e encontrei ao senhor Fábio, que está presente, que<br />
com o mesmo intento sitiava com seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s ao castelo que eu defendia<br />
com meus desvelos. Reconhecemo-nos e pedi-lhe em cortesia quisesse<br />
desistir <strong>da</strong> pertensão, pois eu tão empenha<strong>do</strong> estava nela. Respondeu-me com<br />
me pedir o mesmo que eu lhe pedia, dizen<strong>do</strong> que, se eu me tinha antecipa<strong>do</strong> a<br />
pedir, ele se tinha adianta<strong>do</strong> em amar, e não havia maior causa para ele não<br />
prosseguir no empenho <strong>do</strong> que eu tinha para continuar no cui<strong>da</strong><strong>do</strong>. Enfim, por<br />
não concor<strong>da</strong>rmos nas razões, remetemos a resolução para as armas, e<br />
sain<strong>do</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Malhiano, <strong>da</strong>qui poucas milhas, onde assistimos,<br />
escolhemos este sítio por solitário, onde se vós, senhores, não chegareis,<br />
estivera já com as armas nossa questão finaliza<strong>da</strong>. Agora diga o senhor Fábio<br />
se to<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong>de é a que tenho referi<strong>da</strong>.<br />
- Assim é (disse Fábio), nem jamais o senhor Júlio podia deixar de dizê-<br />
la. Só tenho <strong>da</strong> minha parte que alegar que não sou <strong>do</strong>s mais desfavoreci<strong>do</strong>s<br />
de Laura; porque além de se sorrir algumas vezes quan<strong>do</strong> me via, assistiu à<br />
janela a uma música que por ordem minha se lhe deu uma noite; e quem<br />
assiste parece que se não desagra<strong>da</strong> <strong>do</strong> serviço.<br />
- Tem vossas mercês (disse Dom Sancho) mais sobre isto que alegar?<br />
Calan<strong>do</strong> ambos, replicou Dom Sancho:<br />
- Pois a mim me parece, senhores, que a pendência era injusta e sem<br />
fun<strong>da</strong>mentos de razão. A senhora Laura a nenhum de vossas mercês está<br />
obriga<strong>da</strong> a querer, porque sua vontade até agora se não empenhou a amar.<br />
Nenhum tem recebi<strong>do</strong> nem favor, nem promessa; porque faz sua fermosura<br />
razão de esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> sua própria isenção: e assim to<strong>do</strong>s podem pertender o que<br />
está tão impossibilita<strong>do</strong> de se poder alcançar. As resistências <strong>do</strong> combati<strong>do</strong><br />
foram sempre as glórias <strong>do</strong> vence<strong>do</strong>r; e quantos mais forem os pertendentes<br />
rejeita<strong>do</strong>s, tanto maior será a glória <strong>do</strong> admiti<strong>do</strong>. A um prémio se opõem muitos
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 323<br />
e um só o leva. Vontades não se conquistam com armas, senão com serviços.<br />
Avantaje-se ca<strong>da</strong> qual nas finezas, perten<strong>da</strong> com os desvelos, obrigue com os<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, e o que for mais venturoso que possa abrir brecha no adiamanta<strong>do</strong><br />
de seu peito, esse logre a vitória, aclame o triunfo e receba a coroa de mais<br />
venturoso. Este é meu parecer, que me parece o mais acerta<strong>do</strong>; vossas<br />
mercês se dem os braços de amigos e ca<strong>da</strong> qual prossiga sua ventura; que<br />
tomar pendências pelo que pende de alheia vontade é arrojo <strong>da</strong> paixão e<br />
desacerto <strong>do</strong> juízo.<br />
Agra<strong>do</strong>u a to<strong>do</strong>s o discreto parecer de Dom Sancho. E assim, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se<br />
os braços, Fábio e Júlio ficaram amigos. E tocan<strong>do</strong> Fábio um apito, vieram <strong>do</strong><br />
mais oculto <strong>do</strong> sombrio vale seus cria<strong>do</strong>s com os cavalos que deixa<strong>do</strong> tinham;<br />
em que subin<strong>do</strong>, e nós juntamente nos nossos, fomos caminhan<strong>do</strong> o que <strong>do</strong><br />
dia ficava, importuna<strong>do</strong>s de Fábio e Júlio para irmos pousar com eles; que foi<br />
necessário deixar-nos vencer de sua cortesia. E assim chegámos, já entra<strong>da</strong> a<br />
noite, à ci<strong>da</strong>de de Malhiano, que está no alto de um monte situa<strong>da</strong>, populosa<br />
de gente e vistosa de alguns nobres edifícios. E porque ca<strong>da</strong> um queria levar-<br />
nos a sua casa, por não faltarmos à cortesia de ambos, eu fui hóspede de<br />
Fábio e Dom Sancho de Júlio, que não distavam muito umas casas <strong>da</strong>s outras;<br />
e como eram pessoas principais na ci<strong>da</strong>de, tu<strong>do</strong> lhes sobrou para sermos com<br />
grandeza hospe<strong>da</strong><strong>do</strong>s e com demonstrações de alegria recebi<strong>do</strong>s. Ao outro dia<br />
de manhã, despedin<strong>do</strong>-nos de Júlio e Fábio, nos partimos na volta de Liorne,<br />
caminhan<strong>do</strong> apressa<strong>do</strong>s com os desejos que tinha de chegar a ver a meu pai e<br />
a Lucin<strong>da</strong>; porém com uma insaciável curiosi<strong>da</strong>de de poder ver a Laura, tão<br />
hiperboliza<strong>do</strong> prodígio de beleza. Porque suposto que os <strong>do</strong>us amantes como<br />
tais a encarecessem, contu<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> pessoas de bom juízo e sen<strong>do</strong> a fama o<br />
ora<strong>do</strong>r contínuo que aplaudia o raro <strong>da</strong> fermosura, sem dúvi<strong>da</strong> seria admiração<br />
para vista, pois era maravilha para louva<strong>da</strong>. Bem disse o padre S. Gregório 324<br />
que a curiosi<strong>da</strong>de demasia<strong>da</strong> era esquecimento de si própria. Porque se eu<br />
não intentara ver ao perto a Laura, não experimentara depois tantos perigos.<br />
Que importava à simples mariposa investigar tanto de perto onde nasciam os<br />
resplan<strong>do</strong>res <strong>da</strong> luz, para ficar abrasa<strong>da</strong> em seus raios? Ao filósofo<br />
Empé<strong>do</strong>cles matou a curiosi<strong>da</strong>de de querer especular de perto os incêndios <strong>do</strong><br />
D. Greg., Homil. 36.
324 Padre Mateus Ribeiro<br />
monte Etna de Sicília; e a Plínio tirou a vi<strong>da</strong> uma chama ardente <strong>do</strong> monte<br />
Vesúvio de Itália, por se avizinhar a investigar curioso a origem de seus<br />
incêndios. Pois, como diz Séneca, sempre está o perigo escondi<strong>do</strong> no desejo.<br />
Caminhámos eu e Dom Sancho por diversas povoações, vilas e ci<strong>da</strong>des<br />
alguns dias, ten<strong>do</strong> sempre assuntos em que tratar sobre nossos sucessos, até<br />
chegarmos à ci<strong>da</strong>de de Pisa, distante três milhas <strong>da</strong>s praias <strong>do</strong> mar<br />
Mediterrâneo, situa<strong>da</strong> entre os <strong>do</strong>us rios: o cristalino Ezaro e o cau<strong>da</strong>loso Arno.<br />
Foi antigamente felice nas vitórias que adquiriu com suas arma<strong>da</strong>s, sujeitan<strong>do</strong><br />
a ilha de Sardenha, Cartago em África e Palermo em Sicília, que estava<br />
senhorea<strong>da</strong> <strong>do</strong>s mouros. Deram adjutório aos franceses para a conquista <strong>da</strong><br />
Terra Santa: man<strong>da</strong>ram arma<strong>da</strong> em favor de Almerico, rei de Jerusalém,<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe quarenta galés contra os mouros que ocupavam Alexandria; <strong>do</strong>s<br />
quais alcançaram gloriosas vitórias, até que usan<strong>do</strong> o tempo de suas<br />
costuma<strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças, vieram a ficar sujeitos os pisanos à república florentina<br />
e hoje ao grão-duque de Florença. Com o que perden<strong>do</strong> o antigo esplen<strong>do</strong>r, o<br />
melhoraram: que há que<strong>da</strong>s para subir e subi<strong>da</strong>s para descer. Nunca tanto<br />
subira o sol, se até o hemisférico não descera. Porque se nos horizontes<br />
parara, jamais ao zénite subira. E a pedra <strong>do</strong> corisco se tanta elevação não<br />
tivera, na terra ficara e ao profun<strong>do</strong> dela não descera.<br />
Chegámos a esta insigne ci<strong>da</strong>de porque me disseram no caminho que<br />
meu pai e irmã estavam nela, haven<strong>do</strong> saí<strong>do</strong> de Liorne por ter Pisa ares mais<br />
sadios e benévolos para convalecer Lucin<strong>da</strong> de tantos trabalhos sofri<strong>do</strong>s e<br />
naufrágios passa<strong>do</strong>s. Não me atrevo a encarecer o intenso <strong>da</strong> festiva alegria<br />
com que fomos recebi<strong>do</strong>s, pois ao fim de tantos perigos e tão mortifica<strong>da</strong>s<br />
esperanças, vi restaura<strong>da</strong> esta pren<strong>da</strong> perdi<strong>da</strong> e tão venturosamente acha<strong>da</strong>.<br />
Assim nos referiu por extenso o trágico <strong>da</strong> história que tendes ouvi<strong>do</strong> e<br />
eu a meu pai e a ela os perío<strong>do</strong>s de nossos sucessos e o esta<strong>do</strong> em que<br />
Juliano ficava, de que meu pai se mostrou satisfeito e Lucin<strong>da</strong> pensativa,<br />
suspensão que faz a alma entre o iroso e o compassivo. Pois nem o agravo a<br />
deixava enternecer, nem a pie<strong>da</strong>de lhe permitia de to<strong>do</strong> a vingança desejar.<br />
Fomos visita<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s pessoas principais <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-nos os parabéns <strong>da</strong><br />
restauração de Lucin<strong>da</strong>, cuja per<strong>da</strong> tinha divulga<strong>do</strong> a fama em tantas partes.<br />
Com os ares <strong>da</strong> terra convaleceu minha irmã em breves dias, cobran<strong>do</strong> o lustre<br />
de sua antiga beleza de que a tinham despoja<strong>do</strong> tantos golpes <strong>da</strong> fortuna, que
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 325<br />
poucas vezes fez pazes com a beleza. À vista de Lucin<strong>da</strong>, que a ci<strong>da</strong>de<br />
admirava nas ocasiões em que por divertir memórias de seus pesares<br />
connosco ao pra<strong>do</strong> saía, se desculpava o delito de Juliano, pois a fim de ser<br />
esposo seu se arrojara com precipícios de amante a roubá-la, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe título<br />
de rouba<strong>do</strong>r venturoso se o conseguira. Outros acriminavam mais seu<br />
desaforo, pois buscara ministros tão indecentes como os mouros para pôr em<br />
risco sua própria ventura e a vi<strong>da</strong> e crédito <strong>do</strong> que com extremos amava: que<br />
como amor discursa com a vontade e não com o entendimento, sen<strong>do</strong> esta<br />
cega, mal pode servir de guia.<br />
Preparan<strong>do</strong> andávamos a parti<strong>da</strong> para Nápoles, para desassossegar<br />
Lucin<strong>da</strong> as excessivas sau<strong>da</strong>des que de ver a sua mãe a afligiam; quan<strong>do</strong> o<br />
grão-duque de Florença nos man<strong>do</strong>u visitar com um refresco digno de tal<br />
príncipe e pedir-nos quiséssemos ir por Florença para que Lucin<strong>da</strong> um par de<br />
dias aí descansasse <strong>da</strong>s moléstias passa<strong>da</strong>s. São as petições <strong>do</strong>s príncipes,<br />
como disse Quintiliano, impérios disfarça<strong>do</strong>s em rogos: man<strong>da</strong>m como quem<br />
roga e pedem como quem man<strong>da</strong>, ocultam o poder na benevolência <strong>do</strong> rogar.<br />
São mais poderosas rogativas de um poderoso que ameaços de um desvali<strong>do</strong>,<br />
e obra mais a cortesia de um grande que a dádiva, por maior que seja, de um<br />
pequeno. Enfim foi força obedecer a seu gosto, assim por ser um príncipe tão<br />
generoso, como por estarmos nas terras de seu senhorio. Partimos para<br />
Florença, meu pai e irmã em carroça e eu e Dom Sancho a cavalo, com<br />
companhia conveniente de cria<strong>do</strong>s, caminhan<strong>do</strong> junto às cristalinas correntes<br />
<strong>do</strong> rio Arno, que com a frescura de suas águas, nascen<strong>do</strong> pequeno arroio no<br />
monte Apenino que lhe serve de berço, com o discurso de sua jorna<strong>da</strong><br />
usurpan<strong>do</strong> as águas como saltea<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s pra<strong>do</strong>s a diversas ribeiras que com<br />
ele se encontram, já poderoso no cabe<strong>da</strong>l e destemi<strong>do</strong> na ousadia, se atreve a<br />
sair <strong>da</strong>s embosca<strong>da</strong>s <strong>do</strong> campo e avizinhar-se aos muros <strong>da</strong> rica Florença,<br />
sem receios de ser preso; porque sua ligeireza no correr o assegura, e<br />
despojan<strong>do</strong> vários arroios, passan<strong>do</strong> por Pisa, confia<strong>do</strong> entra no mar<br />
desvaneci<strong>do</strong>, para perder nele em um assalto quanto tinha ganha<strong>do</strong> na terra<br />
em diversos encontros.<br />
Seguin<strong>do</strong> pois, como digo, o ameno curso deste famoso rio, que liberal<br />
com os pra<strong>do</strong>s os matiza de flores e enriquece de frutos, avistámos a Florença,<br />
que o rio divide em duas partes para deixar assunto aos juízes sobre qual delas
326 Padre Mateus Ribeiro<br />
é mais bela; sen<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> qual tão vistosa e <strong>da</strong>n<strong>do</strong> tanto agra<strong>do</strong> à vista que com<br />
razão se lhe deu o título de Florença, pela beleza <strong>da</strong> flor a quem se parece.<br />
Man<strong>do</strong>u-nos o grão-duque receber à entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de com alguns gentis-<br />
homens de sua casa que nos foram ao paço acompanhan<strong>do</strong> com grande<br />
cortesia. Subimos ao sumptuoso alcáçar, condigna habitação de tal príncipe:<br />
fomos beijar-lhe a mão e render as graças <strong>do</strong>s favores que nos fazia. Ele nos<br />
recebeu com mostras de sua benigni<strong>da</strong>de, desculpan<strong>do</strong>-se de nos haver<br />
man<strong>da</strong><strong>do</strong> vir à corte, com desejos de que Lucin<strong>da</strong> nela descansasse alguns<br />
dias <strong>da</strong>s moléstias <strong>do</strong> mar, e para saber mais por extenso este sucesso. Referi-<br />
Ihe eu recompila<strong>da</strong>mente a substância dele, de que admira<strong>do</strong>, pon<strong>do</strong> os olhos<br />
em Lucin<strong>da</strong>, disse:<br />
- Desculpas tem Juliano em seus erros, sen<strong>do</strong> tão superior a causa por<br />
quem se precipitou a cometê-los; e no próprio motivo se acrimina a ofensa e se<br />
conhece a causa.<br />
Man<strong>do</strong>u ao seu mor<strong>do</strong>mo mor que nos hospe<strong>da</strong>sse em sua casa, que<br />
era o conde Hipólito casa<strong>do</strong> com uma senhora espanhola, chama<strong>da</strong> Dona<br />
Jacinta, que nos recebeu com notável contentamento, pagan<strong>do</strong>-se tanto <strong>da</strong><br />
presença e juízo de Lucin<strong>da</strong> que nem um instante podia estar sem ela. Levou-a<br />
a ver consigo na carroça as grandezas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, que a to<strong>do</strong>s dão bem que<br />
admirar suas grandezas. Ca<strong>da</strong> dia nos man<strong>da</strong>va visitar o duque com tantos<br />
regalos <strong>da</strong> sua mesa, que a to<strong>do</strong>s nos tinha posto em confusão <strong>do</strong>nde podia<br />
nascer tão excessiva urbani<strong>da</strong>de, não haven<strong>do</strong> de antes nem amizade, nem<br />
preceden<strong>do</strong> serviços que meu pai lhe fizesse.<br />
Para ser amizade, <strong>da</strong>va-se desigual<strong>da</strong>de grande, qual era um príncipe<br />
tão grande e um fi<strong>da</strong>lgo particular. Pois, como diz Quinto Cúrcio, a amizade<br />
quer igual<strong>da</strong>de. Assim o tinha dito Aristóteles 325 e o ensina o padre São<br />
Jerónimo 326 . E assim para ser amizade era a desigual<strong>da</strong>de muita e o<br />
conhecimento pouco; porque meu pai nunca a Florença tinha vin<strong>do</strong>. Para ser<br />
prémio de serviços, nenhuns ao grão-duque tinha feito; e assim andávamos<br />
nesta perplexi<strong>da</strong>de, sem saber determinar a que tantos favores atendiam.<br />
Enfim esperávamos que o tempo nos mostrasse a saí<strong>da</strong> deste confuso labirinto<br />
Arist., Ethic. 8.<br />
D. Hieron., Sup. Matth.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 327<br />
em que to<strong>do</strong>s estávamos enlaça<strong>do</strong>s. Um dia, pois que, levanta<strong>da</strong>s as mesas,<br />
estávamos to<strong>do</strong>s em uma quadra que com espaçosas janelas sobre o ameno<br />
de um jardim caía, logran<strong>do</strong> <strong>do</strong> recreio <strong>da</strong> vista agradável e suaves aromas de<br />
suas flores, entrou a visitar-nos o confessor de sua alteza, que era um grave e<br />
<strong>do</strong>uto religioso, que depois de praticar em várias matérias, disse a meu pai<br />
desta sorte:<br />
Cap. XXI.<br />
Do que se tratou sobre Juliano<br />
- Se o justo sentimento de vosso agravo me permitira, senhor,<br />
interceder por Juliano, não deixara de mostrar-vos que não há queixa tão<br />
magoa<strong>da</strong> que não possa permitir algum alívio, nem delito tão odioso que de<br />
to<strong>do</strong> careça de desculpa. Confesso que Juliano em tu<strong>do</strong> obrou como cego e só<br />
em o empenho que amou se mostrou ajuiza<strong>do</strong>; pois teve tão discreto gosto que<br />
como abelha não só deixan<strong>do</strong> as plantas buscou as flores, mas ain<strong>da</strong> destas<br />
escolheu a mais bela: na singular fermosura <strong>da</strong> senhora Lucin<strong>da</strong> foi seu amor<br />
tão gigante nas finezas como o objecto que amava nos <strong>do</strong>tes e méritos para<br />
ser ama<strong>da</strong>. Solicitou com to<strong>da</strong>s as veras que o admitisse por esposo, como vós<br />
confessais, era fi<strong>da</strong>lgo no sangue, mancebo na i<strong>da</strong>de, galã na pessoa, capitão<br />
no cargo, militar na experiência de tantos anos que tinha exercita<strong>do</strong> as armas,<br />
aceito ao vice-rei, pois se havia cria<strong>do</strong> em sua casa, rico de amigos, bem quisto<br />
de to<strong>do</strong>s, amante com extremos; e sen<strong>do</strong> merece<strong>do</strong>r <strong>da</strong> melhor ventura, não foi<br />
admiti<strong>do</strong>. Pois que maravilha é que amante e desengana<strong>do</strong> se mostrasse<br />
arroja<strong>do</strong>?<br />
Emprendeu o fim e errou na eleição <strong>do</strong>s meios. Que muito que errasse,<br />
pintan<strong>do</strong>-se amor cego e <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe Quintiliano 327 esse título! Perguntemos a<br />
Paris por que roubou Helena? A Antíoco por que amou a Estratocínia, sen<strong>do</strong><br />
mulher de seu pai Seleuco? A Marco António por que se perdeu por Cleópatra,<br />
deixan<strong>do</strong> a sua esposa, irmã de Agostinho? A Aristodemo, tirano de Cumas,<br />
Quintil., Lib. 6.
328 Padre Mateus Ribeiro<br />
por que amou a Xenócrita, que foi causa de sua morte? E outros sem número<br />
que referir pudera. E to<strong>do</strong>s dirão que amor não conhece os perigos, porque tem<br />
os olhos ven<strong>da</strong><strong>do</strong>s aos temores. Enganou-se Juliano como amante, desculpas<br />
tem no amor, escusas na i<strong>da</strong>de; pois, como ensina Aristóteles, mal se casa a<br />
prudência com o juvenil <strong>do</strong>s anos. Antes, diz Santo Ambrósio, está sempre a<br />
moci<strong>da</strong>de vizinha ao precipício. Teve-se me Alexandre a modéstia com que se<br />
houve com a mulher de Dário por admiração, em Roma o segre<strong>do</strong> em Papirio<br />
por espanto, a continência de Cipião em Espanha por maravilha; porque <strong>do</strong><br />
juvenil de seus anos eram acções que mal se prometiam, eram morais virtudes<br />
que menos se esperavam, como ensina São João Crisóstomo.<br />
Pois sen<strong>do</strong> em Juliano desculpa a fermosura que amava e escusa o<br />
juvenil de seus anos, ficam sen<strong>do</strong> as temeri<strong>da</strong>des que emprendia efeitos de<br />
seu amor que o incitava. E se se despenhou como cego, abriu os olhos agora<br />
como desengana<strong>do</strong>. De quem a si próprio se ofende, menos se pode admirar<br />
que ofen<strong>da</strong> a outros. De quem consigo mesmo foi cruel, como há-de ser com<br />
os outros pie<strong>do</strong>so? Porque como as primeiras acções se julgam por delírios de<br />
quem se ofende, que novi<strong>da</strong>de será que as outras se avaliem por frenéticas?<br />
Pois, senhores, se Juliano para si próprio fabricou os <strong>da</strong>nos, como repararia<br />
nos alheios? Confiou de mouros sua ventura e experimentou neles sua<br />
desgraça. Persuadiu-se ser ícaro <strong>do</strong>s raios <strong>do</strong> sol, viu-se despenha<strong>do</strong> ao mar<br />
de suas lágrimas. Era senhor, viu-se cativo; era livre, achou-se prisioneiro; que<br />
mais castigo para um erro que padecer juntos tantos castigos? Bem considero<br />
que pudera ser o <strong>da</strong>no irreparável se os mouros usassem como tais <strong>da</strong><br />
violência. Não o permitiu Deus por seus ocultos juízos. Ficou a senhora<br />
Lucin<strong>da</strong> sem ofensa, vós sem mágoa e to<strong>do</strong>s sem o sentimento que havia de<br />
causar sua per<strong>da</strong> a to<strong>do</strong>s. Aberta está a porta à pie<strong>da</strong>de, que se em Roma o<br />
templo de Jano só na paz se fechava, as portas <strong>do</strong> <strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de na guerra e na<br />
paz sempre se abriam. Pendente está o cutelo sobre a garganta <strong>do</strong> prisioneiro<br />
Juliano: que acção mais heróica pode ser em vós que <strong>da</strong>r-lhe a vi<strong>da</strong>? Para<br />
matar, qualquer acidente é poderoso; mas para <strong>da</strong>r a vi<strong>da</strong>, força mais superior<br />
é necessária. Pender de vosso querer sua morte ou sua vi<strong>da</strong> é serdes<br />
potenta<strong>do</strong> sobre <strong>do</strong>us extremos. Muitos podem <strong>da</strong>r a morte e não a vi<strong>da</strong>; mas<br />
vós podeis <strong>da</strong>r-lhe a vi<strong>da</strong> e mais a morte. A cruel<strong>da</strong>de to<strong>do</strong>s os achaques cura<br />
com ferro; mas a clemência com lenitivos <strong>da</strong> brandura. As leis que Draco deu
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 329<br />
aos atenienses eram tão cruéis que diziam delas se escreveram com sangue e<br />
por isso se esqueceram; veio Sólon e abran<strong>do</strong>u-as e por isso se observaram. A<br />
cruel<strong>da</strong>de disse Euripides que foi destruição <strong>do</strong>s reinos e ruína <strong>do</strong>s povos.<br />
Indigna de muitos generosos chamou o Séneca à cruel<strong>da</strong>de. Lúcio Sila e Caio<br />
Mário por cruéis foram de to<strong>do</strong>s aborreci<strong>do</strong>s. Pisístrato, sen<strong>do</strong> tirano de<br />
Atenas, pela muita clemência se fez ama<strong>do</strong>. Se para com Juliano vos<br />
mostrardes implacável, não deixareis de ficar de muitos aborreci<strong>do</strong>; se vos<br />
mostrardes pie<strong>do</strong>so, de to<strong>do</strong>s sereis louva<strong>do</strong>. Porque a demasia<strong>da</strong> crueza<br />
nunca se isentou de censura e a pie<strong>da</strong>de sempre conseguiu o louvor.<br />
O meio para abran<strong>da</strong>r a inteireza <strong>do</strong> vice-rei é que vós, senhor, per<strong>do</strong>eis<br />
a Juliano este amoroso delito e que a senhora Lucin<strong>da</strong> lhe dê a mão de<br />
esposa, com que ficará sua fama nas línguas de to<strong>do</strong>s sem escrúpulo <strong>da</strong><br />
menor sombra de indecência, vossa clemência acredita<strong>da</strong>, Juliano venturoso e<br />
to<strong>da</strong> Nápoles satisfeita.<br />
Aqui me levantei eu impaciente e disse:<br />
- Que a autori<strong>da</strong>de que em vossa paterni<strong>da</strong>de to<strong>do</strong>s veneramos<br />
intercedesse por Juliano para o perdão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, empenho digno era <strong>da</strong><br />
profissão de seu esta<strong>do</strong> e letras; mas querer que este atrevi<strong>do</strong> não só fique<br />
com vi<strong>da</strong>, mas juntamente com minha irmã casa<strong>do</strong>, parece excesso <strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de<br />
não só ficar sem castigo, mas ain<strong>da</strong> com prémio de seu desaforo; e que<br />
alcance por descomedi<strong>do</strong>, o que não pôde conseguir por modesto. O crédito de<br />
Lucin<strong>da</strong> um convento abona, que quem lhe não soube guar<strong>da</strong>r respeitos<br />
quan<strong>do</strong> amante, menos lhos guar<strong>da</strong>rá quan<strong>do</strong> casa<strong>da</strong>. Além <strong>do</strong> que, quan<strong>do</strong><br />
Juliano fique com a vi<strong>da</strong>, nunca poderá livrar de um desterro dilata<strong>do</strong> e não<br />
convém que minha irmã, sen<strong>do</strong> a ofendi<strong>da</strong>, se desterre com ele como culpa<strong>da</strong><br />
ou fiquem como em divórcio de uma vagarosa ausência. Diferença, como diz<br />
Cícero 328 , há-de haver entre prémios e castigos; porque nem há inocência se<br />
há-de <strong>da</strong>r castigo, nem é justo que à culpa se dê prémio.<br />
- Falais, senhor (respondeu o confessor <strong>do</strong> grão-duque), com mais<br />
paixão que experiência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Porque se me concedeis o fim, que é a vi<strong>da</strong><br />
de Juliano, obriga<strong>do</strong> ficais a conceder-me os meios; pois, conforme ao Direito,<br />
são os meios tão suborna<strong>do</strong>s aos fins que participam <strong>da</strong> própria natureza; e<br />
Cicer., 1. De natura deorum.
330 Padre Mateus Ribeiro<br />
como o casamento <strong>da</strong> senhora Lucin<strong>da</strong> com Juliano seja o único meio que há<br />
para se conseguir o fim de se lhe outorgar a vi<strong>da</strong>, se a este vos pode mover a<br />
pie<strong>da</strong>de, não deveis contradizer o casamento, sen<strong>do</strong> o meio de poder-lhe<br />
impetrar a vi<strong>da</strong>. E se dizeis que não saberá casa<strong>do</strong> estimar o bem que no<br />
casamento dessa senhora alcança, é engano; pois além de ela consigo levar<br />
to<strong>da</strong> a estimação que merece, o muito que tem custa<strong>do</strong> a Juliano o pertendê-la,<br />
a faz segura <strong>da</strong> maior estimação e valor. Pois, como ensina Aristóteles 329 , em<br />
muito se estima o que muito custa; e como o amor é o que põe o preço, como<br />
disse Santo Ambrósio 330 , pois em tanto uma cousa se preza em quanto se<br />
ama; abona<strong>do</strong> fia<strong>do</strong>r em seu amor tem Juliano para assegurar nele a<br />
estimação desta senhora, que tão cara lhe custa e tão finamente ama. Ao que<br />
dizeis de seu desterro, não vos dê cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, que quem se empenha a procurar-<br />
Ihe a vi<strong>da</strong>, também terá valor para procurar-lhe o cabal perdão, com que não só<br />
fique em Nápoles seguro, mas ain<strong>da</strong> mais honra<strong>do</strong>, se pode subir a mais,<br />
sen<strong>do</strong> esposo <strong>da</strong> senhora Lucin<strong>da</strong> com que se autoriza tanto.<br />
A isto respondeu meu pai que o negócio era tal que não podia resolver-<br />
se nele de repente, que lhe desse espaço para o consultar com Lucin<strong>da</strong> e que<br />
<strong>da</strong>ria a resolução ao outro dia.<br />
- Seja assim (respondeu o confessor), que, se bem discursardes, vereis<br />
que vos aconselho o que mais vos convém.<br />
E com isto se despediu de nós com grande cortesia. Admira<strong>do</strong>s nos<br />
deixou a novi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> petição, ven<strong>do</strong> mostrar-se tão empenha<strong>do</strong> nela quem<br />
nem por parentesco, nem por pátria, nem por amizade obriga<strong>do</strong> estivesse a<br />
Juliano. Mas desta dúvi<strong>da</strong> nos tirou o conde Hipólito, em cuja casa estávamos,<br />
dizen<strong>do</strong> como o grão-duque Cosmo de Médices, seu senhor, estava<br />
empenha<strong>do</strong> nisto, por lho haver man<strong>da</strong><strong>do</strong> pedir Dona Leonor de Tole<strong>do</strong>, filha<br />
<strong>do</strong> vice-rei Dom Pedro, com quem se tratava casamento, que veio brevemente<br />
a efectuar-se, casan<strong>do</strong> com o grão-duque Cosmo de Médices.<br />
E como Juliano se tinha cria<strong>do</strong> em sua casa, interpôs ao grão-duque<br />
para vencer a rígi<strong>da</strong> e severa condição <strong>do</strong> vice-rei seu pai e que por essa<br />
razão, não queren<strong>do</strong> ele pessoalmente falar nisso, man<strong>da</strong>ra ao seu confessor a<br />
Arist., Ethic. 8.<br />
S. Ambr., Officior. 1.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 331<br />
pedi-lo, sem querer mais declarar-se, mas com intento de o conseguir por<br />
qualquer meio que possível fosse; e que assim lhe aconselhava quisesse vir no<br />
casamento, pois ou casan<strong>do</strong> Juliano, ou não casan<strong>do</strong>, havia de alcançar<br />
perdão, e que mais conveniência sua era que a ele Juliano devesse o alcançar<br />
a vi<strong>da</strong> e o perdão, a que sempre a própria vi<strong>da</strong> lhe ficara obriga<strong>da</strong>, <strong>do</strong> que<br />
dever ao poder o que podia reconhecer a pie<strong>da</strong>de. Que dirá o mun<strong>do</strong> se vir<br />
livre a Juliano contra vossa vontade? Pois está empenha<strong>do</strong> um príncipe tão<br />
grande em alcançar-lhe o perdão. Porque é próprio <strong>do</strong>s príncipes, como diz<br />
Cícero, socorrer aos aflitos e amparar aos desampara<strong>do</strong>s. Ou por via <strong>do</strong> vice-<br />
rei, ou <strong>do</strong> mesmo empera<strong>do</strong>r, como senhor absoluto, há-de conseguir o intento<br />
de livrá-lo, pois lho pediu a quem ele na<strong>da</strong> é justo negar. E já que teve Juliano<br />
a ventura em ter tal valia, seja venturoso em valer convosco quem o pede: que<br />
talvez <strong>da</strong> demasia<strong>da</strong> porfia em negar, se vem a desestimar depois a graça <strong>do</strong><br />
conceder. Não queria o sena<strong>do</strong> conceder a Júlio César a Gália Comata; mas<br />
ven<strong>do</strong> que o povo intentava <strong>da</strong>r-lha, lha concedeu para que ao sena<strong>do</strong> e não<br />
ao povo a devesse. Com esta pie<strong>da</strong>de que usardes com Juliano ficais<br />
obrigan<strong>do</strong> ao grão-duque, para achardes nele sempre o favor, o patrocínio e<br />
valimento que um príncipe tão grande pode <strong>da</strong>r-vos; obrigais ao mesmo vice-<br />
rei, que suposto mostre para satisfazer-vos querer <strong>da</strong>r-lhe o castigo, outra<br />
cousa desejará no coração, pois o criou em sua casa. E porventura deseja<br />
suspender a pena, sem faltar à justiça. E é lição <strong>da</strong> prudência, o que pode ser<br />
violento ao gosto, concedê-lo de vontade. Pois, diz o Séneca, que é melhor<br />
condescender ao que se pede que sofrer com violência as forças de maior<br />
poder.<br />
Cap. XXII.<br />
Do encontro <strong>do</strong> jurista Justino<br />
Confusos ficámos com as palavras <strong>do</strong> conde, ven<strong>do</strong> ao grão-duque<br />
justamente empenha<strong>do</strong>, pois intercedeu por Juliano, pessoa a quem ele não<br />
podia faltar. E consulta<strong>da</strong>s as razões e inconvenientes que por uma e outra<br />
parte havia, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> Dom Sancho seu parecer enfim como espanhol e que tinha
332 Padre Mateus Ribeiro<br />
si<strong>do</strong> amigo de Juliano, e justamente a condessa Jacinta, assim por espanhola,<br />
como por servir ao gosto <strong>do</strong> grão-duque, rogou tanto a Lucin<strong>da</strong> que ela veio a<br />
dizer obedeceria ao que seu pai quisesse, pois conhecia era esse o gosto de<br />
sua alteza. Logo o conde lhe deu a nova, de que em extremo se mostrou<br />
alegre, porque via desempenha<strong>do</strong> seu desejo e gosto de quem havia de ser<br />
sua esposa. E nós ain<strong>da</strong> que com pouco, enfim ao de um tal príncipe não podia<br />
mais resistir-se.<br />
Man<strong>do</strong>u ele representar comédias para alegrar a Lucin<strong>da</strong> e músicas de<br />
escolhi<strong>da</strong>s vozes que em casa <strong>do</strong> conde se <strong>da</strong>vam; os pratos que enviava <strong>da</strong><br />
sua mesa eram sem número; e finalmente soube como príncipe tão generoso<br />
de tal sorte obrigar-nos, que lhe ficámos agradeci<strong>do</strong>s, em lugar de nos<br />
podermos mostrar agrava<strong>do</strong>s. Passa<strong>do</strong>s eram já alguns dias, e foi meu pai<br />
pedir licença ao grão-duque para nos partirmos, pelas sau<strong>da</strong>des que Lucin<strong>da</strong><br />
mostrava de ver a sua mãe, e ele, in<strong>do</strong> ela despedir-se, depois de agradecer-<br />
Ihe o consentimento que ao casamento de Juliano dera, ao beijar-lhe a mão,<br />
lhe deu uma rosa de diamantes de grande valor, dizen<strong>do</strong>-lhe seria para levar<br />
quan<strong>do</strong> se recebesse; e man<strong>do</strong>u ao conde Hipólito fosse a Nápoles em nossa<br />
companhia a <strong>da</strong>r ao vice-rei as cartas que sobre Juliano e sua liber<strong>da</strong>de<br />
escrevia e alcançar para mim perdão <strong>da</strong> fugi<strong>da</strong> <strong>do</strong> castelo, como juntamente a<br />
tratar com Dona Leonor sobre seu casamento ter efeito.<br />
Prepara<strong>do</strong> o adereço para a parti<strong>da</strong>, saímos to<strong>do</strong>s de Florença uma<br />
manhã, quan<strong>do</strong> a aurora vestia de encarna<strong>do</strong> os horizontes, para os lavrarem<br />
de ouro os resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol. íamos acompanha<strong>do</strong>s de carroças e cria<strong>do</strong>s,<br />
divertin<strong>do</strong> o caminho com diversas práticas até nos avizinharmos ao castelo de<br />
Monte Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>; e como viviam em mim os desejos de ver a Laura, pedi a<br />
Lucin<strong>da</strong> a quisesse ver de caminho. O que ela fez por <strong>da</strong>r-me gosto. E porque<br />
o conde Hipólito ain<strong>da</strong> tinha razão de parentesco com seu pai defunto,<br />
tratámos de hospe<strong>da</strong>r-nos essa noite em sua casa, por não haver em to<strong>do</strong> o<br />
circuito lugar tão conveniente que de hospício nos servisse. Man<strong>do</strong>u-se-lhe<br />
diante reca<strong>do</strong>, e quan<strong>do</strong> chegámos estava tu<strong>do</strong> tão adereça<strong>do</strong> como se<br />
esperava de quem eram.<br />
Saíram-nos a receber Laura e sua mãe Vetúria e vi os hipérboles sem<br />
exagerações e os encarecimentos sem serem cabalmente encareci<strong>do</strong>s; porque<br />
era em Laura tão portentosa a beleza que podia queixar-se a vista <strong>do</strong>s agravos
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 333<br />
que lhe fizera a fama. Sempre <strong>da</strong>s cousas excessivas se apela <strong>do</strong>s ouvi<strong>do</strong>s<br />
para os olhos como <strong>da</strong> lisonja para o desengano. Mas em Laura a maior lisonja<br />
foi ver<strong>da</strong>de, porque a maior ver<strong>da</strong>de nunca aspirou a sombras de lisonja.<br />
To<strong>do</strong>s os aplausos levam consigo receio de não serem cri<strong>do</strong>s; mas em Laura<br />
levavam os temores de serem por pequenos rejeita<strong>do</strong>s. Pois onde não tem<br />
lugar senão extremos, só podem presumir entra<strong>da</strong> os encómios quan<strong>do</strong> são<br />
gigantes. Era Laura competi<strong>do</strong>ra de si mesma, porque só ela podia emparelhar<br />
consigo. Admirou-se Lucin<strong>da</strong> em vê-la e não se admirou ela quan<strong>do</strong> viu a<br />
Lucin<strong>da</strong>: que suposto que nestes <strong>do</strong>us pólos parecia cifrar-se to<strong>da</strong> a esfera <strong>da</strong><br />
beleza <strong>da</strong>quela i<strong>da</strong>de, ficou oblíqua porque pesou mais quem roubou os<br />
aplausos para Lucin<strong>da</strong> luzir menos. Era de vinte anos de i<strong>da</strong>de, se correm anos<br />
aonde tu<strong>do</strong> pára; que nunca os anos se atrevem a <strong>da</strong>r assalto à fermosura,<br />
quan<strong>do</strong> ela é o crédito <strong>da</strong> mesma i<strong>da</strong>de. Correu a cortina encarna<strong>da</strong> o sumilher<br />
sobressalto à fermosura e nem por isso ficou encoberta a beleza; que o<br />
purpúreo <strong>do</strong> disfarce a aumentaria, se nela fora possível receber<br />
acrescentamentos à fermosura. Enfim era Laura naci<strong>da</strong> para admiração de<br />
quantos a viam, pois nunca podia ver-se sem causar admiração; que fora<br />
maravilha vê-la quem não se admirasse, sen<strong>do</strong> ela de suas próprias<br />
admirações anima<strong>da</strong> maravilha. To<strong>do</strong>s com esta ficaram quantos a viram,<br />
desculpan<strong>do</strong> eu e Dom Sancho a Júlio e a Fábio nos motivos <strong>do</strong> desafio;<br />
porque o arriscar-se por pouco é deslustre de entendi<strong>do</strong> e o aventurar-se por<br />
tanto não se julga por descrédito de arroja<strong>do</strong>.<br />
Com grandes cortesias fomos recebi<strong>do</strong>s de Vetúria, que era tão airosa<br />
no parecer e tão cortês nas demonstrações <strong>da</strong> urbani<strong>da</strong>de, como viúva <strong>do</strong><br />
mari<strong>do</strong> que foi e mãe <strong>da</strong> filha que tinha. Quis informar-se mais particularmente<br />
<strong>do</strong> sucesso de Lucin<strong>da</strong>, que ela referiu e eu continuei por <strong>da</strong>r-lhe gosto; de que<br />
mostran<strong>do</strong>-se admira<strong>da</strong>s, louvaram muito a pie<strong>do</strong>sa acção de meu pai em<br />
per<strong>do</strong>ar a Juliano, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> esse gosto ao grão-duque de Florença, e descrição<br />
de Lucin<strong>da</strong> em haver de recebê-lo por esposo, que era o mais acerta<strong>do</strong> meio<br />
que este negócio tinha para a paz e quietação de to<strong>do</strong>s. Depois de se<br />
despender espaçoso tempo em várias práticas, vieram as cria<strong>da</strong>s preparar a<br />
mesa com tanta abundância de manjares, que podia neles competir a<br />
diversi<strong>da</strong>de com o asseio. Depois, levan<strong>do</strong> Laura e sua mãe Vetúria a Lucin<strong>da</strong><br />
consigo, nos retirámos nós aos aposentos que prepara<strong>do</strong>s estavam para nos
334 Padre Mateus Ribeiro<br />
hospe<strong>da</strong>rmos; mas era tão eficaz em mim a memória de Laura que fez divórcio<br />
o sono com meus olhos, porque tinha ela senhorea<strong>do</strong> meus senti<strong>do</strong>s. Lá disse<br />
Cícero 331 que estimara antes saber a arte de esquecer-se que de saber<br />
lembrar-se; porque lhe lembravam muitas cousas que desejava esquecer e não<br />
podia, e <strong>da</strong>s que queria lembrar-se, sempre se lembrava. Porteira <strong>da</strong> vontade é<br />
a memória <strong>do</strong> que se ama: para entrar o amor, a memória lhe franqueia a<br />
porta; não tivera tão fácil entra<strong>da</strong> o querer, se não fora tão solícita porteira a<br />
memória no lembrar. E como a de Laura era em mim tão poderosa que não<br />
podia esquecer-me, não foi maravilha render-me amante de quem tinha tantas<br />
pren<strong>da</strong>s para merecer amar-se. Já me desvelavam os <strong>do</strong>us pertendentes,<br />
Fábio e Júlio; já temia que fosse de outros pertendi<strong>da</strong>; afligia-me o que se<br />
publicava de sua isenção e alegrava-me porque com to<strong>do</strong>s se mostrasse<br />
esquiva. Sentia que não chegasse o dia para vê-la e sentia que chegasse para<br />
deixá-la; e de tantos contrários no desejo, ficava Laura sen<strong>do</strong> o único motivo na<br />
vontade.<br />
Enfim chegou a luz a <strong>da</strong>r novas <strong>da</strong> aurora; mas já as tinha eu de que o<br />
sol amanhecia em Laura, e madrugan<strong>do</strong> minhas esperanças como desvela<strong>da</strong>s,<br />
acharam presente em Laura o dia, sen<strong>do</strong> dela recebi<strong>do</strong> com mostras de<br />
alegria, grande favor que agradeci à companhia de Lucin<strong>da</strong> que de permeio<br />
estava. Queria Vetúria nos detivéssemos mais tempo pelo gosto que<br />
mostravam receber com Lucin<strong>da</strong>; mas o conde, por satisfazer com brevi<strong>da</strong>de<br />
ao que o grão-duque queria, não deu lugar nem a seu gosto, nem a meu<br />
desejo. Despedimo-nos <strong>da</strong> mãe e filha com os rendimentos de muito<br />
agradeci<strong>do</strong>s, e elas de Lucin<strong>da</strong> bem sau<strong>do</strong>sas, prometen<strong>do</strong>-se eternas<br />
amizades e correspondências de que eu me oferecia ser o mensageiro.<br />
- Pois com esta promessa (disse Laura) consentirei no apartamento de<br />
quem tanto estimo.<br />
Com isto nos despedimos, caminhan<strong>do</strong> para chegar a Roma, aquela<br />
pátria comum a to<strong>do</strong>s, como os jurisconsultos lhe chamaram; cabeça <strong>da</strong>s<br />
ci<strong>da</strong>des <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, como lhe deu título Santo Agostinho 332 , e imperial <strong>do</strong>micílio,<br />
Cie, 4. De finib.<br />
S. Aug., in Quœst. ex utroq. Testam.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 335<br />
como antigamente a descreveu Cícero . Motivos teve a jorna<strong>da</strong> para divertir a<br />
moléstia em se aplaudir a fermosura de Laura, de que to<strong>do</strong>s iam tão<br />
suborna<strong>do</strong>s <strong>da</strong> vista como obriga<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s primores. Avistámos a Roma quan<strong>do</strong><br />
já os resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol se iam perden<strong>do</strong> de vista. Chegámos a casa de<br />
Alexandre, sen<strong>do</strong> dele e de Eugenia recebi<strong>do</strong>s e festeja<strong>do</strong>s com singular<br />
alegria ven<strong>do</strong> a Lucin<strong>da</strong>, tão chora<strong>da</strong>, já restaura<strong>da</strong>, que parece fazia o mesmo<br />
contentamento dúvi<strong>da</strong>s à própria reali<strong>da</strong>de. Perguntei por Frederico e nos<br />
respondeu Alexandre que depois de minha parti<strong>da</strong> para Pisa e com muitas<br />
lágrimas se despedira dele, e se retirara a ser religioso em um convento bem<br />
reforma<strong>do</strong>, algumas léguas fora de Roma, para acabar em penitência o resto<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
- Que acerta<strong>do</strong> an<strong>do</strong>u (respondi eu), pois, como ensina São Jerónimo, o<br />
mo<strong>do</strong> de vencer o mun<strong>do</strong> é fugir dele e o hábito <strong>da</strong> religião o despreza <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> as vai<strong>da</strong>des e enganos, como ensina São Gregório Papa. Ditoso quem<br />
soube buscar tão venturosos acertos depois de conhecer em seus erros tão<br />
eminentes perigos. Inveja pode ter de suas melhoras na eleição quem foi<br />
testemunha <strong>do</strong>s desacertos de sua passa<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, pois soube passar <strong>do</strong><br />
extremo de poder perder-se, ao extremo de saber ganhar-se.<br />
- Na perseverança <strong>do</strong> bem (disse Dom Sancho) está o triunfo.<br />
- Assim é (repliquei eu). Porque ain<strong>da</strong> com a luz <strong>da</strong> razão natural, disse<br />
o Séneca 334 que no alto consistia a bem-aventurança; mas que a perseverança<br />
era esca<strong>da</strong> por onde lá se subia. E São Bernar<strong>do</strong> 335 lhe chamou fim e<br />
complemento <strong>da</strong>s virtudes. Esta lhe pode Deus <strong>da</strong>r, para que to<strong>do</strong>s sua<br />
felici<strong>da</strong>de festejemos.<br />
Diversas práticas se moveram sobre o perdão e casamento de Lucin<strong>da</strong><br />
com Juliano, que à primeira vista parecia resolução acelera<strong>da</strong>; mas<br />
pondera<strong>da</strong>s depois as causas que nisso intervieram, de to<strong>do</strong>s foi aprova<strong>do</strong> o<br />
parecer. Foi Lucin<strong>da</strong> com Eugenia a ver as maravilhas de Roma em alguns<br />
dias que nela estivemos, sen<strong>do</strong> o conde Hipólito visita<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> o mais luzi<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong> romana cúria, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s a meu pai os parabéns de suas alegrias. E<br />
Cie, in Catilin.<br />
Seneca, Epist. 65.<br />
D. Bern., in Epist.
336 Padre Mateus Ribeiro<br />
porque o conde se apressava a partir para Nápoles a <strong>da</strong>r expedição aos<br />
negócios que a seu cargo tinha, foi força<strong>do</strong> despedirmo-nos de Alexandre e de<br />
Eugenia, com excessivas sau<strong>da</strong>des suas, assim pela grande amizade, como<br />
por verem que ia eu a lograr a vista de nossa pátria, de que tanto [tempo] havia<br />
eu desterra<strong>do</strong> an<strong>da</strong>va e de que eles priva<strong>do</strong>s se viam; que, como disse<br />
Euripides 336 , é pena tão grande que mais se manifesta com o sentimento<br />
interior <strong>da</strong> alma <strong>do</strong> que com as palavras exteriores <strong>da</strong> queixa. Enfim <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-nos<br />
cartas para seus pais, para Anastácia, sua irmã, e Dionísio Montal<strong>do</strong>, seu<br />
cunha<strong>do</strong>, nos partimos a Nápoles, fican<strong>do</strong> Dom Sancho com Alexandre, pois<br />
não podia entrar na corte por an<strong>da</strong>r criminoso, pelas causas já referi<strong>da</strong>s.<br />
A sestear ao fresco de uma sombria fonte que com vozes de cristal<br />
murmurava <strong>do</strong> sol, porque a não visitava com seus raios, como a outra fazia, e<br />
se queixava <strong>do</strong>s freixos que a cercavam, porque tanto com os lucros de sua<br />
corrente se engrossavam e à sua custa subiam, que lhe tiravam a vista <strong>do</strong>s<br />
montes, pagan<strong>do</strong>-lhe em sombras o que em neve bebiam; a sestear, como<br />
digo, nos apeámos, convi<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>do</strong> ameno <strong>do</strong> sítio e <strong>da</strong> suavi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s vozes<br />
com que os músicos rouxinóis a desafio em descantar seus inexplicáveis<br />
vilancicos competiam: que até nas aves há emulações de mais luzir e<br />
inculpáveis invejas de melhor cantar; quan<strong>do</strong> vimos um mancebo de flori<strong>da</strong><br />
i<strong>da</strong>de que ao refúgio <strong>da</strong> cristalina fonte descansan<strong>do</strong> estava, tão triste na<br />
aparência e tão suspenso no êxtase natural de suas próprias imaginações que,<br />
ain<strong>da</strong> avizinhan<strong>do</strong>-nos ao sítio, pouco em nós advertia.<br />
Enfim recor<strong>da</strong>n<strong>do</strong> <strong>do</strong> letargo de seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, lançan<strong>do</strong> mão de uma<br />
trouxa pequena em que tinha alguns livros e ao que parecia um vesti<strong>do</strong> de<br />
estu<strong>da</strong>nte, quis de cortês <strong>da</strong>r-nos o lugar com ausentar-se <strong>da</strong> fonte. O que eu e<br />
o conde lhe não consentimos, antes lhe pedimos se assentasse. O que ele fez<br />
mais obriga<strong>do</strong> de nosso gosto <strong>do</strong> que de sua vontade. Repartimos <strong>do</strong> jantar<br />
com ele e, levanta<strong>da</strong> a mesa, lhe perguntei <strong>do</strong>nde vinha e para onde<br />
caminhava. Respondeu que vinha de Nápoles e ia para casa de seus pais, que<br />
era uma pequena aldeia junto à ci<strong>da</strong>de de Cápua, ribeira <strong>do</strong> rio Vultumo, e que<br />
haven<strong>do</strong> estu<strong>da</strong><strong>do</strong> em Nápoles alguns anos, deixava os desvelos <strong>da</strong>s letras e<br />
Eurip., in Phœnis.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 337<br />
se retirava à casa de seus pais com pensamento de mais não cursar estu<strong>do</strong>s<br />
em sua vi<strong>da</strong>. Perguntei-lhe a causa de tal mu<strong>da</strong>nça e ele me respondeu assim:<br />
- Nasci, senhores meus, nos campos vizinhos à ci<strong>da</strong>de de Cápua, de<br />
pais humildes no exercício e pobríssimos nos bens <strong>da</strong> fortuna; pois para criar-<br />
nos a mim, que Justino me chamo, e a duas irmãs de menos i<strong>da</strong>de era<br />
necessário a meu pai arrancar carvão, para que venden<strong>do</strong>-o pudesse<br />
sustentar-nos. Foi Cápua para Aníbal o eclipse de seus triunfos com as delícias<br />
e foi para mim o principio de meus infortúnios com a pobreza. Bem disse<br />
Menandro 337 que por um pobre morto ninguém põe luto; porque a pobreza com<br />
ninguém tem parentesco.<br />
Põe a fortuna aos ricos e poderosos a ventura no descanso e aos<br />
pobres, diz Séneca, no trabalho de suas mãos lhes assinalou o sustento.<br />
Cheguei à i<strong>da</strong>de de aprender a 1er e outro pobre <strong>do</strong> lugar me deu lição e,<br />
ven<strong>do</strong>-me hábil para as letras, disse a meus pais que se tivera comodi<strong>da</strong>de<br />
para segui-las, talvez aproveitaria. O conselho foi <strong>da</strong><strong>do</strong> com bom zelo: mas que<br />
importa querer que voe, quem nasceu sem asas? São as <strong>da</strong> riqueza ou<br />
fi<strong>da</strong>lguia asas que chegam a tu<strong>do</strong>. Regista a águia os resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol sem<br />
ser deles ofendi<strong>da</strong>, remontan<strong>do</strong>-se às nuvens sem despenhar-se, que a<br />
grandeza <strong>da</strong>s asas para tu<strong>do</strong> a assegura. Mas sem asas emprender voos é<br />
fabricar precipícios.<br />
Fugi a meus pais leva<strong>do</strong> <strong>da</strong> lisonja natural de poder valer-me, pus-me<br />
por cria<strong>do</strong>, entrei no estu<strong>do</strong>, favoreceu-me o engenho, patrocinou-me o<br />
desvelo, apoiou-me o cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, abonou-me o cansaço, esporeou-me o desejo,<br />
persuadiu-me a esperança, incitou-me a emulação; e no fim de tão bem<br />
nasci<strong>do</strong>s pensamentos, faltaram-me as asas e fiquei despoja<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> me<br />
pudera imaginar favoreci<strong>do</strong>. Passei as Humani<strong>da</strong>des, fiz progressos na<br />
Filosofia, quis graduar-me de mestre, faltou-me cabe<strong>da</strong>l e fiquei discípulo.<br />
Entrei a estu<strong>da</strong>r o Direito, vi-me sem amigos, porque os ilustres e ricos me<br />
desprezavam, uns por humilde, outros por pobre, e to<strong>do</strong>s por inveja de eu<br />
querer luzir, parece que conjura<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s me aborreciam e a qualquer sombra<br />
de avantajar-me no saber, já o pó de carvão de meu pai escurecia meu aborto<br />
luzimento; sem serem poderosos tantos desvelos para melhorarem minha<br />
Menand., apud Stobeu.
338 Padre Mateus Ribeiro<br />
fortuna. Que resplandeçam as estrelas, que desde o berço de seu brilhante<br />
nascimento luziam, não é admiração, sen<strong>do</strong> a luz tão natural a quem desde o<br />
princípio a vestiu por gala; mas que o cometa forma<strong>do</strong> <strong>da</strong>s exalações <strong>da</strong> terra<br />
queira, subin<strong>do</strong> ao mais alto, parecer estrela no luzir, é desvanecimento, pois<br />
quanto mais apressa<strong>do</strong> brilha, mais depressa sua luz se apaga; pois<br />
sustentan<strong>do</strong>-se no que tem de terreno o que parece resplan<strong>do</strong>r de estrela, não<br />
teve mais duração para luzir que a que teve a matéria em se gastar.<br />
Desengana<strong>do</strong> pois <strong>do</strong> pouco que posso esperar <strong>do</strong> fruto de meus<br />
desvelos e <strong>do</strong> lucro de meus trabalhos, ven<strong>do</strong>-me ca<strong>da</strong> vez mais pobre e<br />
menos estima<strong>do</strong>, porque as emulações não dão quartel às cortesias,<br />
desespera<strong>do</strong> <strong>da</strong> fortuna e magoa<strong>do</strong> de haver despendi<strong>do</strong> a flor de meus anos<br />
nas letras com tantos trabalhos e tão pouco proveito, desengana<strong>do</strong> que<br />
nascimento humilde e pobreza grande não são asas para subir, antes pesos<br />
para mais descer, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a despedi<strong>da</strong> aos estu<strong>do</strong>s, me retiro ao tosco <strong>do</strong>micílio<br />
de meus pais, onde com o trabalho de minhas mãos os ajude a sustentar a<br />
vi<strong>da</strong>, já que com o de meus desvelos não pude melhorar em na<strong>da</strong> sua pobreza.<br />
Siga as escolas quem nasceu poderoso, pois há-de ser respeita<strong>do</strong>;<br />
quem nasceu rico, pois há-de ser favoreci<strong>do</strong>; quem tem asas para voar, pois<br />
tem segura a subi<strong>da</strong>; quem tem luzes para poder resplandecer, pois sempre<br />
pode brilhar. Mas a mim, a quem tu<strong>do</strong> falta, de que aproveita o génio natural<br />
senão de conhecer que aprendi a conhecer desenganos à custa de meus<br />
trabalhos e que é ignorância querer aspirar a grandezas quem nasceu e se<br />
criou em pobreza e humil<strong>da</strong>de?<br />
Suspensos nos deixou uma tão desespera<strong>da</strong> resolução como mostrou o<br />
magoa<strong>do</strong> mancebo, a quem eu respondi desta sorte:<br />
- Duvi<strong>da</strong>r pudéramos com razão <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de de vossos estu<strong>do</strong>s e<br />
progressos neles à vista de uma tão indiscreta resolução, como mostrais em<br />
vosso retiro, acção indigna de quem professa letras. Cousas há que ou nunca<br />
houveram de emprender-se, ou nunca convém deixarem-se; porque é publicar<br />
<strong>do</strong>us desacertos: o primeiro em emprender e o segun<strong>do</strong> em deixar. A<br />
inconstância sempre foi repreendi<strong>da</strong> e a constância louva<strong>da</strong>. Nunca de árvore<br />
que muitas vezes mu<strong>da</strong> o lugar, diz o Séneca 338 , pode colher-se fruto. Se<br />
Senec, Epist. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 339<br />
desde pequeno seguireis o rústico exercício de vosso pai, ninguém tivera que<br />
culpar-vos, porém nessa i<strong>da</strong>de e esta<strong>do</strong> querer segui-lo, mereceis ser de to<strong>do</strong>s<br />
censura<strong>do</strong>: pois deixais o melhor por seguirdes o pior, o liberal pelo servil, o<br />
político pelo grosseiro, a academia pelo mato, a corte pela aldeia e a estra<strong>da</strong><br />
de poderdes valer pelo caminho de nunca merecerdes desta humil<strong>da</strong>de e<br />
pobreza sair.<br />
Porventura fostes vós o primeiro que de humilde nascimento e pobreza<br />
por seus merecimentos a digni<strong>da</strong>des subisse? Não, por certo: que Agatocles<br />
de filho de um oleiro chegou a ser rei de Sicília; Tarquino Prisco, sen<strong>do</strong> filho de<br />
um merca<strong>do</strong>r, mereceu ser rei de Roma; Sérvio Tullo possuiu a mesma coroa,<br />
sen<strong>do</strong> filho de uma mãe escrava; Hélio Pertinaz, com ser filho de um liberto,<br />
Maximino de um pastor de ga<strong>do</strong> e Macrino de um oficial mecânico (a) , subiram a<br />
possuírem o império romano; Caio Mário e Marco Túlio foram cônsules em<br />
Roma, um pelo valor <strong>da</strong>s armas e o outro pelas letras. E para vos mostrar esta<br />
ver<strong>da</strong>de com vosso próprio natural, lembrai-vos <strong>do</strong> insigne letra<strong>do</strong> João António<br />
Campano, natural de Cápua, junto aonde vós nascestes, que sen<strong>do</strong> moço de<br />
pouca i<strong>da</strong>de servia a seu pobre pai de guar<strong>da</strong>r-lhe as ovelhas; mas como seu<br />
natural o chamava às letras, fugin<strong>do</strong> ao tosco <strong>do</strong>s rebanhos, foi buscar quem o<br />
ensinasse, e sofren<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os discómo<strong>do</strong>s e trabalhos de sorte estu<strong>do</strong>u que<br />
depois de na república de Perugia 1er publicamente com grandes aplausos <strong>da</strong><br />
fama, o sumo pontífice Pio Segun<strong>do</strong> o promoveu a bispo Apruntino; e passou a<br />
ser pastor <strong>da</strong>s ovelhas <strong>do</strong> rebanho de Cristo, quem só por seguir as letras fugiu<br />
de guar<strong>da</strong>r ovelhas; porque a sabe<strong>do</strong>ria dá nobreza: assim o dizem os<br />
jurisconsultos.<br />
Para melhor seguir as letras Demócrito Abderita, sen<strong>do</strong> filho de<br />
riquíssimo pai, se fez pobre e deixou tu<strong>do</strong>, contentan<strong>do</strong>-se com as ciências<br />
pela maior riqueza. Como tais as avaliou o sábio Bias quan<strong>do</strong> escapan<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
assalto e saco as ci<strong>da</strong>de de Priene, sua pátria, <strong>do</strong>nde ele com os mais vizinhos<br />
fugin<strong>do</strong> e trazen<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> um às costas qualquer peça ou móvel de casa, e<br />
perguntan<strong>do</strong>-lhe a ele porque na<strong>da</strong> salvara nem trazia, respondeu que tu<strong>do</strong><br />
levava nas ciências que trazia. Não impediu a pobreza os aplausos <strong>da</strong> fama<br />
aos insignes romanos Valério Publicola e Menenio Agripa que acabaram tão<br />
No senti<strong>do</strong> primitivo de trabalha<strong>do</strong>r ou indivíduo de condição inferior.
340 Padre Mateus Ribeiro<br />
pobres que de esmolas <strong>do</strong> povo se lhes celebraram as exéquias, competin<strong>do</strong> a<br />
fama e a pobreza qual neles era maior. Riquíssimo nasceu por património o<br />
insigne filósofo Anaxágoras e só para se aplicar à Filosofia e às ciências se<br />
despojou de tu<strong>do</strong> e se fez pobre.<br />
Pois se nem a humil<strong>da</strong>de <strong>do</strong> nascimento, nem a pobreza grande<br />
impediram a tantos e tão insignes varões, nem as ciências, nem os aplausos<br />
<strong>da</strong> fama, nem as digni<strong>da</strong>des maiores antes <strong>da</strong> maneira que a palma quanto<br />
mais peso lhe põe em cima, tanto mais direita sobe, sem jamais declinar <strong>do</strong><br />
caminho que leva a querer investigar os raios <strong>do</strong> sol que em suas folhas<br />
retrata, e por essa razão é insígnia triunfal <strong>do</strong>s vence<strong>do</strong>res; como vós quereis,<br />
com os títulos <strong>da</strong> humil<strong>da</strong>de com que nascestes e <strong>da</strong> pobreza com que viveis,<br />
desculpar um desacerto tão grande, como depois de tantos anos de estu<strong>do</strong>s e<br />
desvelos voltar ao rústico de tal vi<strong>da</strong> de que fugistes menino, para a tornar a<br />
exercitar quan<strong>do</strong> sois homem? Mu<strong>da</strong>nças para não serem culpáveis hão-de ser<br />
<strong>do</strong> bom para o melhor, <strong>do</strong> pouco para o muito, <strong>do</strong> menos para o mais; mas<br />
nesta vossa, tu<strong>do</strong> pelo contrário. Quereis malograr os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, fazer<br />
desperdício <strong>do</strong>s desvelos, fechar as portas à ventura, cortar a ponte às<br />
esperanças e quan<strong>do</strong> as asas começavam a nascer-vos, tirar-lhes as penas<br />
para que nunca saibam remontar-se? Queixais-vos de ser inveja<strong>do</strong>? Esse ha<br />
de ser o primeiro favor que devais a vosso merecimento. Um <strong>do</strong>s conselhos<br />
que <strong>da</strong>va Pitaco, um <strong>do</strong>s sete sábios de Grécia era que to<strong>do</strong>s fizessem muito<br />
por serem inveja<strong>do</strong>s; porque era o tributo que costuma pagar o mun<strong>do</strong> aos<br />
beneméritos. Quem carece de inveja<strong>do</strong>, carece <strong>da</strong> Victoria de ser a outros<br />
preferi<strong>do</strong>. Porque, como disse Plínio 339 , sempre a inveja é <strong>do</strong>s inferiores no<br />
motivo <strong>da</strong> inveja, que até o grande Alexandre invejou a Aquiles a eloquente<br />
suavi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> lira poética de Homero para cantar suas proezas, como refere<br />
Quinto Cúrcio 340 . Invejas há que não ofendem ao inveja<strong>do</strong>, porque são só<br />
castigo invejoso, como lhe chama Ovídio 341 ; e assim pouco tendes que queixar-<br />
vos de quem a si próprio se ofende. Dizeis que vos abatem com o escuro <strong>do</strong><br />
carvão? Bem o podeis vós <strong>do</strong>urar com o ouro <strong>da</strong> sabe<strong>do</strong>ria, que como ela de si<br />
Quint. Curt., Lib. 2.<br />
Ovid., Metamor. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 341<br />
mesma leva a nobreza, como ensina Aristóteles , mais podeis vós <strong>do</strong>urar e<br />
ilustrar o escuro de seu pobre exercício <strong>do</strong> que ele escurecer as luzes de vossa<br />
adquiri<strong>da</strong> nobreza. Pois o empera<strong>do</strong>r Justiniano deu título de pai ao<br />
jurisconsulto Ulpiano, sen<strong>do</strong> tão desiguais, só pelo lustre <strong>da</strong> sabe<strong>do</strong>ria.<br />
Querer granjear luzes <strong>do</strong>s abatimentos alheios é vileza de pouco<br />
merecer. Quan<strong>do</strong> a lua se eclipsa nunca aparece o sol, que como monarca <strong>do</strong>s<br />
astros não era bizarria de seus resplan<strong>do</strong>res parecer que então luzia quan<strong>do</strong><br />
outros se eclipsavam; e assim não é lanço <strong>da</strong> prudência fazer cabe<strong>da</strong>l de<br />
émulos que, por pouco que luzem, se valem de alheias sombras; que, como diz<br />
Plutarco 343 , redun<strong>da</strong>m em prejuízo <strong>do</strong>s próprios que as dizem. Ser despreza<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s néscios é ser louva<strong>do</strong>, disse Prasmo. Porque não é desestimação <strong>do</strong><br />
diamante que o despreze quem seu valor não conhece.<br />
Ain<strong>da</strong> não acabastes os estu<strong>do</strong>s e já vos queixais <strong>do</strong>s prémios?<br />
Prossegui para merecer que o galardão não vos faltará. Não vos desanime a<br />
pobreza <strong>do</strong> nascimento, nem a humil<strong>da</strong>de <strong>da</strong> criação; alente-vos o nobre <strong>da</strong><br />
ocupação, pois quan<strong>do</strong> a professastes de novo na academia nascestes.<br />
Lavra<strong>do</strong>r e pobre era Glauco e porque nos jogos Olímpicos ganhou vinte e<br />
cinco coroas, lhe puseram estátua no templo de Júpiter; e não foi bastante a<br />
humil<strong>da</strong>de de seu nascimento e exercício para roubar-lhe a glória <strong>do</strong>s<br />
merecimentos. Nem sempre se vos há-de antepor o poder, nem adiantar a<br />
riqueza, nem preferir o valimento para vos tirarem a remuneração; também<br />
alguma vez lugar há-de ter, amparan<strong>do</strong>-vos a justiça e valen<strong>do</strong>-vos a razão. E<br />
quan<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> o maior poder fizesse negar-vos o lugar e prémio que ao<br />
merecimento se deve, servir-vos-á de louvor <strong>da</strong>rdes a resposta que deu Catão<br />
quan<strong>do</strong> lhe perguntavam por que sen<strong>do</strong> ele em tu<strong>do</strong> tão insigne, não tinha<br />
estátua no sena<strong>do</strong> de Roma, como outros tinham. A que ele respondeu:<br />
- Antes quero que se diga: Por que Catão não tem estátua no sena<strong>do</strong>?<br />
Do que dizer-se: Por que puseram estátua no sena<strong>do</strong> a Catão? Porque na<br />
primeira pergunta abona-se o merecimento e se estranha a falta <strong>da</strong><br />
remuneração. E na segun<strong>da</strong> conhece-se o prémio, mas ignora-se o<br />
Arist., apud Dion. Lib. 6.<br />
Plutarc, De utilit. cap. ab. ini.
342 Padre Mateus Ribeiro<br />
merecimento. E vai mais que conheçam que mereço o que não alcanço <strong>do</strong> que<br />
ver-se que alcanço o que não mereço.<br />
É a glória <strong>do</strong> merecer, diz Cícero, não o menor prémio que se pode<br />
alcançar; e assim, quan<strong>do</strong> não conseguísseis o galardão <strong>do</strong> que desejais,<br />
ninguém vos privará <strong>da</strong> glória <strong>do</strong> que mereceis; e vai tanto a justiça de uma<br />
queixa em o merecimento fun<strong>da</strong><strong>da</strong> como o prémio de uma obra injustamente<br />
mereci<strong>do</strong>. Assim que, mal aconselha<strong>do</strong> mancebo, tornai a continuar vossos<br />
estu<strong>do</strong>s e não vos desanimem queixas antecipa<strong>da</strong>s; que se vos acompanhar o<br />
merecimento, sempre nele tereis a maior valia, e quan<strong>do</strong> necessiteis de outras,<br />
aqui estamos nós para vos ampararmos em o que valermos.<br />
Cap. XXIII.<br />
Como chegámos a Nápoles e <strong>do</strong> casamento de Juliano e Lucin<strong>da</strong><br />
Agradeci<strong>do</strong> se mostrou o desconsola<strong>do</strong> Justino ao conselho que lhe dei<br />
e oferecimentos que lhe fizemos, reduzin<strong>do</strong>-se de mo<strong>do</strong> a continuar seus<br />
estu<strong>do</strong>s, que quis logo voltar a Nápoles em nossa companhia. O que to<strong>do</strong>s<br />
estimámos, por ver que como discreto soube render-se às persuasões <strong>da</strong><br />
razão e conhecimento <strong>do</strong> que mais lhe convinha. Pois, como diz Demóstenes,<br />
<strong>do</strong>s conselhos sempre escolhem os prudentes os mais proveitosos. Antes de<br />
chegar a Nápoles avisámos a minha mãe de nossa i<strong>da</strong>, para que viesse<br />
esperar-nos na quinta, por escusarmos <strong>da</strong>r tanto alvoroço na corte com nossa<br />
chega<strong>da</strong>; porque a excessiva alegria a não assaltasse de repente,<br />
ocasionan<strong>do</strong>-lhe algum perigo, como sucedeu ao sábio Chilon Lacedemónio<br />
que abraçan<strong>do</strong> a um filho que saiu vence<strong>do</strong>r nos jogos Olímpicos, <strong>da</strong> excessiva<br />
alegria morreu em seus braços. E juntamente, porque como eu estava<br />
criminoso pela fugi<strong>da</strong> <strong>do</strong> castelo, não convinha entrar em Nápoles até que o<br />
conde Hipólito falasse com o vice-rei e me alcançasse a segurança para entrar<br />
na corte. Chegámos à quinta que havia si<strong>do</strong> teatro <strong>do</strong> roubo de Lucin<strong>da</strong> e o era<br />
agora <strong>da</strong>s alegrias de sua restaura<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, onde estava minha mãe<br />
esperan<strong>do</strong> nossa chega<strong>da</strong>; que, se crescem os desejos com os vagares, como
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 343<br />
diz S. Gregório Papa , não sei que admitissem paralelos em minha mãe seus<br />
amorosos desejos, nem me é possível referir as alegrias, porque só podiam<br />
pesar-se na própria balança <strong>do</strong>s sentimentos; pois os contrários à vista <strong>do</strong>s<br />
outros mais se manifestam. Aprovou minha mãe o casamento de Lucin<strong>da</strong> por<br />
satisfazer ao gosto <strong>do</strong> grão-duque e intercessão <strong>do</strong> conde Hipólito, que ao<br />
outro dia depois de nossa chega<strong>da</strong> partiu com meu pai a Nápoles.<br />
A nova de sua chega<strong>da</strong> deu sustos às esperanças e rebates aos<br />
temores de Juliano. Pois nunca se pode chamar felice quem aos sustos de um<br />
perigo vive. Divulgou-se o <strong>caso</strong>, dividiu-se em pareceres o povo, sentencian<strong>do</strong><br />
a Juliano a vários castigos com a presença de meu pai e de Lucin<strong>da</strong>; mas<br />
enfim to<strong>do</strong>s se enganaram, porque sem embargo <strong>da</strong> condição <strong>do</strong> vice-rei ser<br />
tão severa na execução <strong>da</strong> justiça, obedecen<strong>do</strong> ao gosto de um tal príncipe, e<br />
que estava destina<strong>do</strong> para ser seu genro, e com o perdão de meu pai e<br />
consentimento de Lucin<strong>da</strong> no casamento, em poucos dias saiu Juliano <strong>da</strong><br />
prisão, vesti<strong>do</strong> de ricas galas e acompanha<strong>do</strong> <strong>do</strong> lustroso <strong>da</strong> corte, depois de ir<br />
<strong>da</strong>r as graças ao vice-rei <strong>da</strong> mercê que lhe havia feito, a receber-se com<br />
Lucin<strong>da</strong> com invejas de muitos de o verem tão venturoso, depois de o terem<br />
visto tão desgraça<strong>do</strong>. Muitos lhe pronosticavam pouca duração a tantas<br />
felici<strong>da</strong>des; porque às venturas excessivas sua própria grandeza lhes serve de<br />
peso que as arruina.<br />
Celebraram-se, como digo, as bo<strong>da</strong>s com to<strong>da</strong> a grandeza, muitos<br />
parabéns e não menos invejas; que limita<strong>da</strong> seria a sorte, quan<strong>do</strong> não fosse<br />
inveja<strong>da</strong>. Deu-se-me perdão <strong>da</strong> fugi<strong>da</strong>, fui visita<strong>do</strong> de amigos, e ven<strong>do</strong> as<br />
cousas de nossa casa quietas, como as memórias de Laura viviam em mim tão<br />
presentes que me suspendiam as alegrias e mas pagavam em cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s:<br />
comércio bem desigual <strong>da</strong>r desvelos por prazeres e inquietações por alívios;<br />
pedi licença a meu pai para acompanhar ao conde, que já preparava a parti<strong>da</strong><br />
para Florença, para <strong>da</strong>r ao duque as graças <strong>da</strong> mercê que nos havia feito; e<br />
juntamente pedin<strong>do</strong> a Lucin<strong>da</strong> que escrevesse a Laura para de caminho visitá-<br />
la como lhe prometera. Quis também Dionísio Montal<strong>do</strong> acompanhar-nos até<br />
Roma para ver Alexandre, seu cunha<strong>do</strong>, e a Eugenia; e assim bem<br />
acompanha<strong>do</strong>s, saímos de Nápoles quan<strong>do</strong> o morga<strong>do</strong> <strong>da</strong>s luzes na espaçosa<br />
S. Greg. P., Homil. 23.
344 Padre Mateus Ribeiro<br />
estra<strong>da</strong> de safiras vinha restituin<strong>do</strong> aos pra<strong>do</strong>s as cores e fermosura que lhe<br />
roubara a noite com os assombros <strong>do</strong> escuro pavelhão com que os cobrira.<br />
Chegámos a Roma, fomos de Alexandre, Eugenia e seus pais recebi<strong>do</strong>s com<br />
extremos de alegria, a quem Dionísio Montal<strong>do</strong> ofereceu algumas jóias que<br />
Anastácia a Eugenia, sua caminha<strong>da</strong>, man<strong>da</strong>va; que além <strong>da</strong> benevolência que<br />
no <strong>da</strong>r se manifesta, como diz Valério Máximo 345 , sempre quem semeia os<br />
benefícios vem a colher o fruto deles, como escreve Cícero, e com razão;<br />
porque raramente se achará coração tão estéril de agradecimento que <strong>do</strong> que<br />
por liberali<strong>da</strong>de recebe algum fruto não dê.<br />
Poucos dias nos detivemos eu e o conde em Roma, ele com os desejos<br />
de chegar a Florença, para <strong>da</strong>r conta ao grão-duque <strong>do</strong> bem que tu<strong>do</strong> quanto<br />
levava a seu cargo negociara, e eu com os desejos de ver a Laura, sobre quem<br />
tinha empenha<strong>do</strong> ao conde para que sua mãe ma quisesse <strong>da</strong>r por mulher; o<br />
que ele me tinha prometi<strong>do</strong>. E assim, com este alvoroço de amante, chegámos<br />
ao castelo de Monte Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o sol em desmaia<strong>da</strong>s luzes, enfermo<br />
<strong>do</strong>s mesmos ar<strong>do</strong>res de seus raios, mostrava paracismos de espirar em cama<br />
de nuvens que no leito de seu horizonte o cobriam. Fomos recebi<strong>do</strong>s com mais<br />
cortesia que alegria, que me causou confusão, ignoran<strong>do</strong> a causa, que<br />
brevemente se soube, e era estar Vetúria esperan<strong>do</strong> esse dia a vin<strong>da</strong> de um<br />
cavaleiro ilustre e rico, chama<strong>do</strong> Carlos Savello, senhor <strong>do</strong> castelo de Savello,<br />
edifica<strong>do</strong> nas antigas ruínas de Alba Longa, o qual vinha a jurar-se com Laura,<br />
com quem sua mãe tinha concerta<strong>do</strong> o casamento de sua filha com pouco<br />
gosto dela, por ter fama o noivo de ser por extremo cioso e inquieto, suposto<br />
que mui ilustre na família e mui rico nos bens <strong>da</strong> fortuna.<br />
Foi tal a pena que recebi com tal nova, que foi maravilha não acabar a<br />
vi<strong>da</strong> ao rigor <strong>do</strong> sentimento: se quem com tanto extremo sente, pode sustentar<br />
a vi<strong>da</strong>. Não menos ficou o conde Hipólito assusta<strong>do</strong> em ver tão malogra<strong>da</strong>s<br />
minhas esperanças, quan<strong>do</strong> vinha tão empenha<strong>do</strong> em desempenhar-me o<br />
gosto de ser esposo de Laura; e porque a paixão talvez não tem desafogo,<br />
senão na queixa, eu, impaciente, lhe disse desta sorte:<br />
- Não imaginei eu, senhora Vetúria, que vossa mercê tão brevemente<br />
dispusesse <strong>do</strong> casamento <strong>da</strong> senhora Laura, quan<strong>do</strong> eu vinha tão empenha<strong>do</strong><br />
Vai. Max., Lib. 4.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 345<br />
em alcançá-la por esposa e o senhor conde cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so de alcançar-me essa<br />
ventura. Carlos Savello pode avantajar-me na sorte, mas não no merecimento,<br />
nem em saber estimar o valor <strong>da</strong> pren<strong>da</strong> que lava. Competiu meu amor com<br />
sua ventura e, sen<strong>do</strong> este maior, ficou venci<strong>do</strong>, porque a ventura tu<strong>do</strong> vence.<br />
Vossa mercê, senhora Laura, se logre felices anos e me dê licença para partir-<br />
me, que basta que eu padeça meus próprios pezares, sem que seja<br />
testemunha de glórias alheias.<br />
O que Laura respondeu:<br />
- Eu, senhor Felisberto, ain<strong>da</strong> não estou jura<strong>da</strong>, nem recebi<strong>da</strong>, nem<br />
minha mãe há-de querer violentar-me a vontade para eu casar a desgosto de<br />
minha eleição. Se o senhor conde estava empenha<strong>do</strong> em vossa mercê ser meu<br />
esposo, basta ser vossa mercê irmão de minha amiga Lucin<strong>da</strong> para que eu me<br />
tenha por venturosa em alcançar cousas suas.<br />
Savello?<br />
Ao que replicou a mãe:<br />
- E como ficará minha palavra acredita<strong>da</strong>, esperan<strong>do</strong> hoje a Carlos<br />
- Fique isso por nossa conta (disse o conde), que a senhora Laura fica<br />
ganhan<strong>do</strong> e na<strong>da</strong> na mu<strong>da</strong>nça perden<strong>do</strong>.<br />
Maravilha foi não matar-me a alegria; que passar de um extremo ao<br />
outro é a estra<strong>da</strong> mais certa <strong>do</strong> perigo. Juramo-nos logo com excessivo<br />
contentamento, esperan<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> chegaria Carlos Savello, que não veio esse<br />
dia; que sempre as dilações foram madrastas <strong>da</strong> ventura. Bem disse<br />
Euripides 346 que Marte aborrecia os vagares. Nunca o grande Alexandre deixou<br />
para amanhã o que podia avançar hoje: e com esta celeri<strong>da</strong>de venceu o<br />
mun<strong>do</strong>. Quer a fortuna, como escreve Ovídio, que se solicitem seus favores<br />
com to<strong>da</strong> a brevi<strong>da</strong>de, porque sempre vai de passagem quan<strong>do</strong> os distribui. Ao<br />
que parece aludiu Lucano 347 quan<strong>do</strong> disse que sempre as demoras malogram<br />
os desejos.<br />
Apenas as aves com seu canto deram o primeiro anúncio de se<br />
avizinhar a alegria <strong>da</strong>s auroras radiantes <strong>do</strong> dia, quan<strong>do</strong> com parecer <strong>do</strong> conde<br />
nos resolvemos a partir to<strong>do</strong>s para Roma, não queren<strong>do</strong> esperar a chega<strong>da</strong> de<br />
Eurip., in Hec. Fur.<br />
Lucan., Lib. 1.
346 Padre Mateus Ribeiro<br />
Carlos por escusar enfa<strong>do</strong>s em despedi-lo; e assim com to<strong>da</strong> a casa, cria<strong>do</strong>s e<br />
cria<strong>da</strong>s de Vetúria caminhámos com a brevi<strong>da</strong>de possível as cinco léguas <strong>da</strong><br />
jorna<strong>da</strong> e ain<strong>da</strong> com espaço dilata<strong>do</strong> <strong>do</strong> dia chegámos à casa de Alexandre,<br />
que nos agasalhou com igual vontade à novi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> que via, causan<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s<br />
admiração a singular fermosura de Laura, a cuja vista to<strong>da</strong> a demais beleza<br />
desaparecia.<br />
Informa<strong>do</strong> <strong>do</strong> sucesso, tirou licenças para nos recebermos, intervin<strong>do</strong> o<br />
favor <strong>do</strong> conde Hipólito, de sorte que ao dia seguinte estávamos recebi<strong>do</strong>s,<br />
com que eu me avaliei pelo mais venturoso, se perseverança houvera na<br />
ventura. Chegaram a Carlos as novas <strong>do</strong> casamento, deu-se notavelmente por<br />
ofendi<strong>do</strong>, desesperou com a paixão de agrava<strong>do</strong>, deixou-se levar de um furor<br />
vingativo; e como era rico e por natureza inquieto e soberbo, não foi menos o<br />
desejo <strong>da</strong> vingança em seu coração que víbora venenosa nas entranhas, que<br />
esse nome lhe dá São João Crisóstomo 348 . Era aparenta<strong>do</strong> em Roma, e assim<br />
entran<strong>do</strong> nela uma noite disfarça<strong>do</strong>, para não ser senti<strong>do</strong>, comunicou a seus<br />
parentes e amigos o agravo e a satisfação que intentava tomar dele. Foram<br />
vários os pareceres que se deram, entre os quais um fi<strong>da</strong>lgo já ancião na i<strong>da</strong>de<br />
e prudente na madureza <strong>do</strong> juízo lhe disse, como depois se soube, desta sorte:<br />
Cap. XXIV.<br />
Em que se prossegue o que nisto passou até me partir a Nápoles<br />
- Suposto que, como ensina Aristóteles na sua Política 349 , está nos<br />
mancebos o valor e nos ancianos a prudência, e Euripides diz que vai mais<br />
uma velhice animosa que muitas moci<strong>da</strong>des sem experiência; eu não por me<br />
escusar <strong>do</strong> perigo, pois o ilustre <strong>do</strong> sangue que me alimenta não paga tributos<br />
aos anos, mas para que as cousas não se empren<strong>da</strong>m temerariamente, direi o<br />
que sinto, como quem tantos anos despendeu na milícia em minha moci<strong>da</strong>de.<br />
Queixais-vos, Carlos, de agrava<strong>do</strong> porque Laura se <strong>caso</strong>u com Felisberto,<br />
Chrisost., Homil. 41. in ActaApost.<br />
Arist., Polit. 7.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 347<br />
ten<strong>do</strong> sua mãe Vetúria contrato convosco de ser esposa vossa: de vós vos<br />
podeis queixar, se nisso há motivo de sentimento, pois vos descui<strong>da</strong>steis em<br />
vir ao dia sinala<strong>do</strong> em que éreis espera<strong>do</strong>. Por o impera<strong>do</strong>r Macrino se deter<br />
depois de aclama<strong>do</strong> em vir a Roma, divertin<strong>do</strong>-se nos festejos de Antioquia,<br />
perdeu o império juntamente com a vi<strong>da</strong>. Se os <strong>do</strong>us varões consulares e<br />
regentes <strong>do</strong> romano império, Maximino e Balbino, chamassem a tempo em seu<br />
favor o exército germano que estava vizinho a Roma contra a insolência <strong>do</strong>s<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s pretorianos que aclamavam a Heliogabalo, não viriam ambos a<br />
perderem as vi<strong>da</strong>s tão afrontosamente, como conta Herodiano 350 . Se Besso,<br />
quan<strong>do</strong> fugiu a Alexandre, depois de haver aleivosamente morto a seu rei e<br />
senhor Dário, se não detivera na província <strong>do</strong>s bactrianos em banquetes e se<br />
houvera passa<strong>do</strong> à índia com brevi<strong>da</strong>de, não morrera com a ignomínia e<br />
ludíbrio com que foi castiga<strong>do</strong>. Um descui<strong>do</strong> na demora, ain<strong>da</strong> de mui breve<br />
espaço, muitas vezes é a ruína de um império e o verdugo de uma vi<strong>da</strong> de que<br />
estão cheias as crónicas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
Pois se tar<strong>da</strong>stes em chegar, que culpa maior para desmerecer? E<br />
sen<strong>do</strong> deslustre <strong>do</strong> amar qualquer descui<strong>do</strong>, foi o de vossa demora o maior<br />
delito: e assim recebestes a maior pena. Se Laura vos amara, não se mostrara<br />
tão executora <strong>do</strong> castigo; que sabe, quem sabe muito querer, facilmente<br />
per<strong>do</strong>ar; pois o próprio amor, se é ver<strong>da</strong>deiro, contra seu próprio sentimento<br />
alega as desculpas para <strong>da</strong>r o perdão, como escreve Terêncio 351 . Mas como<br />
era em Laura átomo o amor, logo ficou sen<strong>do</strong> gigante o descui<strong>do</strong>. Se pois<br />
Laura vos não amava, para que sentis tanto perdê-la? Amar com extremos a<br />
quem na<strong>da</strong> me paga o querer é sacrificar os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s a quem faz deles<br />
ludíbrio; é empregar os desvelos em um mármore, tributar finezas a um bronze<br />
tão incapaz de pagá-las como de conhecê-las: como conta Célio Rhodiginio de<br />
um mancebo que em Atenas se enamorou de uma estátua de Vénus de<br />
mármore, a quem os juízes areopagitas puseram pena que não chegasse com<br />
muita distância ao lugar em que estava, parecen<strong>do</strong>-lhes justamente nece<strong>da</strong>de<br />
sobre loucura dedicar cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s a uma pedra.<br />
Herodian., Lib. 8.<br />
Terent., in And.
348 Padre Mateus Ribeiro<br />
Que esperáveis, senhor Carlos, de Laura, se diamante na vista, pedra<br />
na dureza? Não sabeis que as empresas não alcança só o valor mas<br />
juntamente a ventura? Não faltou o valor ao grande Pompeu, mas pôs-se a<br />
ventura <strong>da</strong> parte de César. Não era Mário menos invencível nas batalhas que<br />
Sila; mas quis a ventura favorecer a Sila, desamparan<strong>do</strong> a Mário. Se Felisberto<br />
em alcançar o casamento de Laura foi mais venturoso, quereis tomar vingança<br />
<strong>da</strong> ventura? Parece-vos decente que se diga que sentis o que já não podeis<br />
remediar? Se Laura ain<strong>da</strong> por casar estivera, ain<strong>da</strong> se vos podia menos culpar<br />
que pelas armas vos aventurásseis a pertendê-la, mas depois de casa<strong>da</strong>, que<br />
remédio <strong>da</strong>is ao desejo? Discretamente disse o Séneca que o que nos é<br />
impossível de conseguir, não nos é impossível para o podermos deixar.<br />
Deixou-vos Laura, sabei vós deixar a Laura e tomareis vingança de discreto,<br />
pois não vos compete a de ofendi<strong>do</strong>. Não sabeis que muitas vezes servem as<br />
vinganças de publicarem defeitos? Que dirá quem ouvisse que vos vingáveis,<br />
se não que fostes na honra ofendi<strong>do</strong>? Quereis pôr em opiniões vosso crédito?<br />
Não sabeis que no recato consiste a honra? E muitos se desacreditaram pela<br />
fama, que não cometeram descrédito pelas obras? Por essa razão disse<br />
Plínio 352 que os ilustres temiam mais a fama que cometer os delitos; porque ela<br />
é o primeiro juiz que os castiga. A boa fama e honroso nome chamou Públio<br />
Mimo segun<strong>do</strong> património com que o homem se enriquece. A fama boa sem<br />
riquezas vai per si muito e as riquezas sem esta na<strong>da</strong> valem. Bem pudera o<br />
sábio empera<strong>do</strong>r Marco Aurélio tomar pública satisfação <strong>da</strong>s repeti<strong>da</strong>s<br />
livian<strong>da</strong>des de sua esposa Faustina; mas como prudente não quis que<br />
publicasse a vingança o que encobria a majestade.<br />
Quererdes vingar-vos de Laura e sua mãe é indecência que to<strong>do</strong>s<br />
censurarão por covardia; se de Felisberto seria justiça que to<strong>do</strong>s julgarão por<br />
cruel<strong>da</strong>de; elas <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça se desculpam por mulheres, ele <strong>do</strong> casamento se<br />
escusa por venturoso. Que sempre os favores <strong>da</strong> ventura desculpam<br />
temeri<strong>da</strong>des; que neles fiava Júlio César o aventurar-se a atravessar o mar<br />
Adriático na pobre barca de Amiclas. Nem ele estava obriga<strong>do</strong> a guar<strong>da</strong>r-vos<br />
esse respeito, pois nem a amizade o pedia, nem vossa pertensão se lhe<br />
comunicava. E se a vós a fermosura vos obrigou a pertendê-la, essa mesma a<br />
Plin. Jun., Lib. 3.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 349<br />
obrigaria a ele a se empenhar em alcançá-la. Sen<strong>do</strong> isto assim, que motivos<br />
tem aqui o agravo para vingança? Pertencíeis ou sentir como mínimo, ou<br />
vingar-vos como tirano? E que sabeis vós se Laura vos não convinha? Porque<br />
se de outro estava afeiçoa<strong>da</strong>, era arrisca<strong>da</strong> para esposa. Se a vós vos<br />
aborrecia, penosa para mulher. Porque entrar aborrecen<strong>do</strong> é fechar as portas<br />
ao amor.<br />
Porventura cifrou-se em Laura a beleza? Compendiou-se a discrição?<br />
Terminou-se o gracioso? Finalizou-se o agradável? Não, por certo, suposto que<br />
a vós assim pareça. Porque é o mun<strong>do</strong> tão grande que o que em um lugar nos<br />
parece singular, discorren<strong>do</strong> por outros já nos aparece comum. Fermosuras<br />
tem Itália que podem igualar a to<strong>da</strong> a fermosura, belezas tem França,<br />
gentilezas tem Espanha que podem ser assombros <strong>do</strong> parecer. Se houve em<br />
Pérsia Campaspe que fez desmaiar os pincéis de Apeles para retratá-la,<br />
também houve uma Cleópatra em Egipto, uma Zonóbia no Oriente, uma<br />
Sofonisba em África, uma Florin<strong>da</strong> em Espanha, e outras muitas que puseram<br />
em competência a alma <strong>da</strong> fermosura. Nem a natureza se mostrou convosco<br />
tão avara, nem a fortuna tão rigorosa, que pelo ilustre <strong>do</strong> sangue, pelo flori<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong> i<strong>da</strong>de e pelo rico <strong>do</strong> património vos não habilitassem para os melhores<br />
empregos. Como logo quereis desacreditar o que mereceis com intentar<br />
vinganças <strong>do</strong> que não alcançais? Que perdestes que não possais cobrar ain<strong>da</strong><br />
com melhoras? Uma esposa que não soube estimar-vos! Haverá muitas que<br />
vos estimem. Seria avilitar o generoso <strong>do</strong>s brios e desluzir os méritos de vosso<br />
sujeito intentar tal, com pordes em risco a vossa pessoa e esta<strong>do</strong>, e arriscar a<br />
vossos parentes sem haver causa de justo agravo, solicitar vinganças de<br />
ofendi<strong>do</strong>. Laura não nasceu para ser vossa, pois já tem esposo, tu<strong>do</strong> o que<br />
outro lograr tem já menos estimação; não vos incitem memórias <strong>do</strong> que<br />
imaginais que perdestes, que em breve tempo nem de Laura haveis de ter<br />
memórias. Porque, como bem disse Demóstenes, são tais <strong>do</strong> tempo os<br />
poderes que <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des faz campos e <strong>do</strong>s campos, povoações; <strong>do</strong>s inimigos,<br />
amigos e <strong>do</strong>s amigos, contrários; <strong>da</strong>s eminências, ruínas; <strong>do</strong> estima<strong>do</strong>,<br />
abatimento; <strong>do</strong> agradável, molesto e <strong>do</strong> lembra<strong>do</strong>, esqueci<strong>do</strong>.<br />
To<strong>do</strong>s louvaram e aprovaram por prudente e acerta<strong>do</strong> o parecer que deu<br />
Timóteo Savello, que assim se chamava este fi<strong>da</strong>lgo ancião, e ain<strong>da</strong> o mesmo<br />
Carlos se sujeitou a ele, pois já alivia<strong>do</strong> <strong>da</strong> tristeza e consola<strong>do</strong> <strong>da</strong> mágoa se
350 Padre Mateus Ribeiro<br />
despediu e se tornou para o seu castelo, sem mais tratar de outra satisfação<br />
mais que a de esquecer de Laura as passa<strong>da</strong>s memórias; sen<strong>do</strong> o remédio<br />
mais eficaz de esquecer o lembrar-se ou <strong>do</strong>s agravos <strong>do</strong> desprezo, ou <strong>da</strong><br />
cruel<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s ingratidões que, conforme diz Quintiliano, são os maiores<br />
delitos. De tu<strong>do</strong> isto teve notícia Dionísio Montal<strong>do</strong> por um particular amigo seu<br />
que se tinha acha<strong>do</strong> presente a esta justa e lhe referiu o que se resolvera nela;<br />
de que to<strong>do</strong>s ficámos com alívio no cui<strong>da</strong><strong>do</strong> que pudera <strong>da</strong>r-nos ver a Carlos<br />
empenha<strong>do</strong> na satisfação <strong>do</strong> que julgava por desprezo; e como este an<strong>da</strong> tão<br />
vizinho, como diz S. Jerónimo, à falta <strong>do</strong> crédito e opinião <strong>do</strong> despreza<strong>do</strong>, pode<br />
nos ânimos mais altivos menor sombra de se imaginar despreza<strong>do</strong> <strong>da</strong>r motivos<br />
a se querer vingar como mais ofendi<strong>do</strong>. Enfim livres em parte deste susto,<br />
deten<strong>do</strong>-me em Roma breves dias, preparei a jorna<strong>da</strong> para Nápoles em<br />
companhia de Dionísio Montal<strong>do</strong>, despedin<strong>do</strong>-se de nós o conde Hipólito para<br />
Florença e Dom Sancho para se partir para Flandres para acompanhar ao<br />
príncipe de Espanha, Dom Filipe, filho <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Carlos Quinto, que<br />
passava a Inglaterra a casar com a rainha Maria, e haviam de acompanhá-lo<br />
vários terços de espanhóis, com os quais queria ir Dom Sancho a achar-se<br />
nesta jorna<strong>da</strong>.<br />
Partimos de Roma Laura e sua mãe, eu e Dionísio Montal<strong>do</strong>, bem<br />
acompanha<strong>do</strong>s de cria<strong>do</strong>s e gente de cavalo pela cautela <strong>do</strong> que suceder<br />
pudesse: que, como diz S. Gregório Papa, é erro de cegos não acautelar aos<br />
perigos. Sen<strong>do</strong> Salomão o rei mais pacífico, foi como tão sábio o que nos<br />
empenhos <strong>da</strong> cautela esteve sempre o mais arma<strong>do</strong>. Bem pode um acautela<strong>do</strong><br />
receber assaltos, mas não sustos; porque os primeiros são atributos de quem<br />
receia, mas os segun<strong>do</strong>s são descui<strong>do</strong>s de quem se confia. Assim disse Públio<br />
Mimo que nunca será ofendi<strong>do</strong> quem <strong>do</strong> inimigo se prevenir como desconfia<strong>do</strong>:<br />
e como era por natureza inquieto e juntamente rico e poderoso, não me<br />
assegurei tanto com seu retiro que não pudesse temer algum repentino assalto.<br />
Sem este chegámos a Nápoles, sen<strong>do</strong> Laura recebi<strong>da</strong> de meus pais e de<br />
Lucin<strong>da</strong> com extremos de alegria, ven<strong>do</strong>-me casa<strong>do</strong> tanto a seu gosto,<br />
publican<strong>do</strong> logo a fama de Laura a fermosura por admiração; pois sempre foi a<br />
admiração foreira <strong>da</strong> fermosura. Fui visita<strong>do</strong> <strong>do</strong>s fi<strong>da</strong>lgos e ela <strong>da</strong>s principais<br />
senhoras <strong>da</strong> corte, despedin<strong>do</strong>-se to<strong>do</strong>s com inveja, com que eu me julguei<br />
pelo mais venturoso, se venturas sobre invejas alheias podem ser seguras.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 351<br />
Pois disse Demócrito que a origem <strong>da</strong>s discórdias era a inveja. Retirei-me a<br />
viver na quinta e meus pais com Lucin<strong>da</strong> e Juliano viviam em Nápoles, onde eu<br />
os ia ver os mais <strong>do</strong>s dias e eles vinham a recrear-se à quinta muitas vezes por<br />
lograrem as delícias <strong>do</strong> campo no ameno <strong>do</strong>s pra<strong>do</strong>s. Assim passei os<br />
primeiros anos tão satisfeito de minha ventura que só podia temer que tão<br />
repeti<strong>da</strong>s felici<strong>da</strong>des pronosticassem breve duração, pois a muita pressa com<br />
que os rios correm é para no mar pararem, em que sua corrente e nome<br />
perdem. E bem disse Plutarco que não se podia fazer muita estimação de<br />
ventura que de muitas causas dependia.<br />
Cap. XXV.<br />
Do que sucedeu a Felisberto e como se ausentou de Nápoles<br />
Haviam de ter fim minhas bonanças, porque se chegava o tempo de<br />
começarem meus desgostos que, como não podiam sempre durar, haviam de<br />
vir arruinar minhas alegrias e terem princípio minhas tristezas, para que<br />
ninguém com as lisonjas <strong>da</strong> ventura possa, enquanto vive, avaliar-se por feliz.<br />
Vinha eu uma noite de Nápoles para a quinta, como muitas vezes costumava, e<br />
ouvi junto <strong>da</strong> porta uma música que se <strong>da</strong>va com suaves vozes e discretas<br />
letras, em que o nome de Laura algumas vezes se repetia. Assistiam aos<br />
músicos alguns rebuça<strong>do</strong>s para assegurar-lhes o sítio. Vinha eu só com um<br />
cria<strong>do</strong>, que trazia nas ancas <strong>do</strong> cavalo, sem outras armas que a espa<strong>da</strong> e duas<br />
pistolas no coldre <strong>da</strong> sela. Apeei-me e deixan<strong>do</strong> o cria<strong>do</strong> com o cavalo,<br />
parecen<strong>do</strong>-me desaire <strong>do</strong> valor entrar pela porta sem reconhecer quem os <strong>da</strong><br />
música eram, e julgan<strong>do</strong> temeri<strong>da</strong>de intentar só reconhecer a tantos, e que não<br />
deviam de estar mal preveni<strong>do</strong>s, pois se atreviam a <strong>da</strong>r música toa vizinha à<br />
porta <strong>da</strong> quinta, saltei pelo muro sem que me vissem e entran<strong>do</strong> em casa achei<br />
a Laura inquieta que, antes de eu falar palavra, me disse assim:<br />
- Muitas vezes, Felisberto, tenho dissimula<strong>do</strong> o vivo de meus pesares<br />
por escusar-te a sombra <strong>do</strong> menor desgosto; mas tempo é de mostrar-me já<br />
queixosa, pois o sentimento não só pára já em minha mágoa, mas se vai<br />
dilatan<strong>do</strong> a teu próprio crédito. Quem tem a mulher tão moça na i<strong>da</strong>de e tão
352 Padre Mateus Ribeiro<br />
lisonjea<strong>da</strong> <strong>da</strong> fama de bem pareci<strong>da</strong>, não porque eu o creia, mas porque tu o<br />
dizes, não lhe será bem avalia<strong>do</strong> que, deixan<strong>do</strong>-me no deserto e sole<strong>da</strong>de<br />
desta quinta, os mais <strong>do</strong>s dias vás a Nápoles e te recolhas a horas que falta<br />
pouco à noite para ausentar-se e menos horas à aurora para mostrar que é dia.<br />
Dizem-me que an<strong>da</strong>s diverti<strong>do</strong> com Rosaura, essa <strong>da</strong>ma cortesã que veio à<br />
corte para distraimento <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s; mal o crera pelo indecente se tantos o<br />
não publicaram pelo escan<strong>da</strong>loso. Que tem em que me exce<strong>da</strong> para divertir-te?<br />
Solicitaste-me amante para me ofenderes mari<strong>do</strong>? Que achas em mim que te<br />
desagrade, quan<strong>do</strong> já fui de teu agra<strong>do</strong> o maior empenho? Ou quan<strong>do</strong> me<br />
elegestes hás-de confessar que estavas cego, ou quan<strong>do</strong> me ofendes hás-de<br />
conceder que és tirano? Deixas a quem te ama, quiçá por assistires a quem te<br />
não merece? Que quem tem os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s tão comuns, não sabe ter amor<br />
particular.<br />
Bem vejo eu, Felisberto, que porque te mereço mais, me estimas menos:<br />
não sei se porque Rosaura te quer menos, por isso te desvelas em querer-lhe<br />
mais? Oh! que grande baixa deram minhas venturas, pois quan<strong>do</strong> me<br />
desvaneci de feliz em ter-te por esposo, hoje me desconheço em ver-te tão<br />
diverti<strong>do</strong>, que me parece que não sou já a que fui, porque te vejo tão mu<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> que de antes eras! Não te contentas de gastares em Nápoles os dias, se<br />
não despenderes lá a maior parte <strong>da</strong>s noites? Para que te molestas em<br />
caminhar apressa<strong>do</strong> a este átomo <strong>da</strong>s sombras por comprimento, quan<strong>do</strong><br />
despendes tantos séculos de luzes por afeição? Agradece-me haver até agora<br />
dissimula<strong>do</strong> estes ciúmes por não te causar penas, que nunca tem desejo de<br />
ofender, quem tão finamente sabe amar.<br />
São os ciúmes em um coração amante quinta essência <strong>do</strong> tormento que<br />
não pode apurar-se mais: verdugos <strong>da</strong> paciência, acidentes frenéticos <strong>da</strong><br />
razão, áspides venenosos que matam entre as flores <strong>do</strong> querer, incêndios que<br />
abrasam sem consumir-se, raios que tiranizam as almas sem ofender os<br />
corpos, harpias com caras humanas e garras de feras e ofensas de ingratos,<br />
que é o maior extremo <strong>do</strong> encarecer. Pois to<strong>da</strong> esta pena tenho sofri<strong>do</strong> sem<br />
publicá-la por que (a) me devesses o padecen<strong>do</strong> tanto, queixar-me tão pouco;<br />
mas quan<strong>do</strong> vejo que, por te verem an<strong>da</strong>r diverti<strong>do</strong>, haja quem se atreva a<br />
Forma pouco usa<strong>da</strong> equivalente a para que.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 353<br />
profanar com músicas o decoro de meu crédito e o respeito de tua pessoa, à<br />
vista desta ousadia rebentou a mina de meu coração e abriu brechas à minha<br />
voz meu sentimento, para que conheças que com ser de ti eu a ofendi<strong>da</strong>, sou<br />
incapaz de nem com os pensamentos ofender-te. Porque quem soube tanto<br />
tempo dissimular seus agravos sem queixar-se, saberá perder a vi<strong>da</strong> sem de<br />
suas obrigações esquecer-se.<br />
Suspenso me deixaram as queixas de Laura e mais quan<strong>do</strong> para<br />
testemunhar seu sentimento abrotaram as lágrimas em seus olhos, que são os<br />
ar<strong>do</strong>res mais eloquentes para persuadirem quanto intentam. Prosseguiu<br />
Vetúria, sua mãe, as razões e sentimentos <strong>da</strong> filha. Ao que eu respondi desta<br />
sorte:<br />
- Começaste, Laura, a queixar-te para suspender-me as queixas e com<br />
adiantares teu sentimento quiseste prevenir minha justa <strong>do</strong>r? Pois sabe que<br />
não há-de ser poderosa a retórica de tuas palavras para divertir minha pena;<br />
porque é ela tão eficaz que não pode ser diverti<strong>da</strong>. Queixas-te de Rosaura,<br />
porque alguma vez a visito em companhia de outros amigos. Nunca te dem<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong> visitas tão públicas e acompanha<strong>da</strong>s, pois jamais para ofensa se<br />
buscam testemunhas. Se eu soubera que era teu amor tão fiscal de meus<br />
passos, jamais à corte fora; pois por te escusar o menor receio, me privara <strong>do</strong><br />
maior alívio. Mas como meu ânimo era sincero, na<strong>da</strong> cuidei menos que o que<br />
tu publicas mais. Rosaura veio à corte a pertender heranças litigiosas que de<br />
seus pais ficaram; tem muito de fácil em deixar visitar-se, mas na<strong>da</strong> de liviana<br />
em permitir ofender-se; e assim mais consiste a queixa em tua desconfiança<br />
que em minhas ousadias: que mal poderia ofender-te quem com extremos se<br />
desvelou em amar-te.<br />
Se algumas noites me recolho tarde, meus pais e a distância de caminho<br />
o ocasionaram, que como vivia em ti tão seguro meu coração, não me<br />
apressava porque não temia e sempre estava presente com os desejos, ain<strong>da</strong><br />
que estivesse ausente com as distâncias. Mas, ai Laura, que pouco confio já de<br />
minha ventura, suposto que não desconfio de tuas ver<strong>da</strong>des! Pois ouço<br />
celebrar-te com músicas, para que as repita com lágrimas. Bem conheço, de<br />
quem és, que não me ofendes; mas quem ouvir cantar à porta de um mari<strong>do</strong><br />
ausente, como se persuadirá que não dás ocasião a seres pertendi<strong>da</strong>? Que<br />
como nem to<strong>do</strong>s podem julgar o que eu de ti conheço, ela é a causa de minha
354 Padre Mateus Ribeiro<br />
pena e sentimento. Quem se atreve a solicitar-te não é sem esperanças de<br />
poder demover-te; e se pode um atrevi<strong>do</strong> confiar persuadir-te, como poderá um<br />
mari<strong>do</strong> não temer deixar-te?<br />
Eu me resolvo, Laura, em partir-me amanhã para o nosso castelo de<br />
Monte Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, para que nem te queixes que te ofen<strong>do</strong>, nem eu me ponha ao<br />
risco de poder ser agrava<strong>do</strong>: pois tanta <strong>do</strong>r causa em minha alma o considerar<br />
que haja no mun<strong>do</strong> quem procure ofender-me, como se me considerasse na<br />
reali<strong>da</strong>de ofendi<strong>do</strong>.<br />
Alegre se mostrou Laura <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça, e assim preparan<strong>do</strong> nessa noite<br />
tu<strong>do</strong> o que para partir necessário era, nos fomos de manhã despedir de meus<br />
pais, que com muitas lágrimas suas e de Lucin<strong>da</strong> esta ausência sentiram; e<br />
logo com to<strong>da</strong> a gente de nossa causa caminhámos na volta de Roma.<br />
Chegámos à casa de Alexandre, que o achámos bem molesta<strong>do</strong>, por estar sua<br />
esposa Eugenia desconfia<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> sentimento que tomou de lhe pedir<br />
Alexandre satisfação de umas desconfianças ou ciúmes em que ela não era<br />
culpa<strong>da</strong>; e como o amava muito, sentiu tanto ver a seu esposo tão desconfia<strong>do</strong><br />
de quem to<strong>da</strong> a confiança lhe merecia que, enferman<strong>do</strong> de uma profun<strong>da</strong><br />
tristeza, de sorte se lhe agravou o mal que desconfian<strong>do</strong> os médicos mais<br />
peritos de sua vi<strong>da</strong>, estava quan<strong>do</strong> chegámos já vizinha aos horizontes <strong>da</strong><br />
morte. Entrámos a vê-la magoa<strong>do</strong>s e Alexandre choran<strong>do</strong> de sumamente<br />
enterneci<strong>do</strong>; ao que ela, já com voz debilita<strong>da</strong>, disse assim:<br />
- Chegaram já tarde, ó Alexandre, tuas carícias, porque se fechou meu<br />
coração com teus rigores; e foram mais poderosas tuas desconfianças para<br />
ocasionar-me a morte que teus arrependimentos para dilatar-me a vi<strong>da</strong>. Ai de<br />
mim que te mereci tão pouco quan<strong>do</strong> entendi que me devias mais! Tu<strong>do</strong><br />
nasceu de minha fortuna e não de teu desconhecimento; que era impossível,<br />
sen<strong>do</strong> tu discreto, não advertires que quem contigo se desterrou por amante<br />
mal poderia ofender-te descui<strong>da</strong><strong>da</strong>. Quan<strong>do</strong> meu pensamento fora agravar-te,<br />
não me custara a vi<strong>da</strong> a <strong>do</strong>r de ver-te de teus ciúmes impaciente: que quem<br />
não ama não sente tanto as penas alheias que por elas padeça penas próprias.<br />
Igualou-se me mim o querer com o sentir e era impossível quem amou tanto,<br />
sentir pouco: tomou posse a <strong>do</strong>r de meu coração e, como era fonte de vi<strong>da</strong>,<br />
secaram-se-lhe to<strong>do</strong>s os alentos que podiam alimentar-me. Enfermei de<br />
ofendi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s pesares que me deste, sem merecê-los, e assim não pode meu
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 355<br />
coração já melhorar com os favores que me fazes, sem pedi-los. Não bastaram<br />
minhas satisfações para desapaixonar-te quan<strong>do</strong> puderas valer-me; já agora<br />
não são proveitosas tuas lágrimas para poder remediar-me. Será minha morte<br />
abono de minhas ver<strong>da</strong>des e me <strong>da</strong>rei por contente de serem de ti cri<strong>da</strong>s, pois<br />
viven<strong>do</strong> foram de ti tão pouco estima<strong>da</strong>s.<br />
Não falou mais a malogra<strong>da</strong> Eugenia, em quem competiu com a beleza<br />
a discrição e com uma e outra o disfavor <strong>da</strong> ventura; e acabou em poucas<br />
horas a vi<strong>da</strong>, com excessiva mágoa e sentimento de to<strong>do</strong>s, porque de to<strong>do</strong>s<br />
era por seus merecimentos com extremos queri<strong>da</strong>. Seus pais a choravam<br />
como a filha única em quem perdiam as esperanças de sua posteri<strong>da</strong>de, o<br />
alívio de seus olhos, o báculo de sua velhice, a consolação de to<strong>do</strong>s seus<br />
pesares. Alexandre a sentia com tão intensa <strong>do</strong>r e tão cordial mágoa que a<br />
poder-se encarecer não fora grande, porque nunca fica uma <strong>do</strong>r mais bem<br />
encareci<strong>da</strong> que quan<strong>do</strong> nas palavras menos exagera<strong>da</strong>: perdia esposa mui<br />
amante, peregrina na beleza, rara na discrição e a quem não devia menos que<br />
a vi<strong>da</strong>; e para aumentar sua mágoa, causan<strong>do</strong>-se sua morte <strong>do</strong> sentimento de<br />
seus injustos ciúmes, aquele inferno temporal de amantes, linces sem olhos,<br />
descréditos <strong>do</strong> querer, pesadelos <strong>da</strong> alma, sonhos de quem vela e sentinelas<br />
de quem sonha, gigantes sem corpo, aparências sem ver<strong>da</strong>de, tiranos<br />
disfarça<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s e executores inexoráveis <strong>da</strong>s mortes: como se viu na de<br />
Eugenia, a quem seus sentimentos mataram porque para ser cri<strong>da</strong> suas<br />
ver<strong>da</strong>des não valeram.<br />
Entrou a visitar-nos um catedrático <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de de Bolonha, que<br />
então em Roma assistia, grande amigo de Alexandre; o qual, ven<strong>do</strong> os<br />
excessos <strong>da</strong> pena e sentimento que por Eugenia mostrava e juntamente as<br />
mágoas de seus pais tão sem admitirem alívio, lhes disse assim:<br />
- Se nas lágrimas e sentimentos pudera ter remédio a per<strong>da</strong> ou cabal<br />
desafogo a <strong>do</strong>r, nem eu, senhores, empenhara as palavras para impedi-las,<br />
nem deixara de ajudá-las a derramar, pois tanto vossos pesares sei sentir. Mas<br />
como na<strong>da</strong> se remedeia, e a vi<strong>da</strong> com os extremos se arrisca, é força pôr-me<br />
<strong>da</strong> parte <strong>da</strong> razão para vencer os excessos <strong>do</strong> sentir.<br />
Chorais a morte <strong>da</strong> malogra<strong>da</strong> Eugenia? Venturosa, pois acabou em sua<br />
casa e à vossa vista, em i<strong>da</strong>de que pudesse ser causa de sau<strong>da</strong>des e não<br />
motivo de aborrecimento. Quantas no juvenil <strong>do</strong>s anos acabaram
356 Padre Mateus Ribeiro<br />
lamentavelmente as vi<strong>da</strong>s, como as virgens vestais, Ópia, Minúcia, Sextília e<br />
Túcia, que nesta ci<strong>da</strong>de de Roma foram sepulta<strong>da</strong>s vivas com perpétuo labéu<br />
de seu nome e descrédito de seus pais? Que melhora<strong>da</strong> sorte experimentou<br />
Tarpeia, morta com os escu<strong>do</strong>s pelos sabinos na entra<strong>da</strong> de Roma? Olímpia,<br />
mãe <strong>do</strong> grande Alexandre, degola<strong>da</strong> em Macedónia, Florin<strong>da</strong> despenha<strong>da</strong> em<br />
África, Cleópatra morta no Egipto, Marienne em Palestina por man<strong>da</strong><strong>do</strong> de<br />
Herodes, o cruel seu esposo? E outras sem número que não em suas casas,<br />
nem na presença <strong>do</strong>s seus, mas submergi<strong>da</strong>s nas on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mar e profun<strong>da</strong>s<br />
correntes <strong>do</strong>s rios, ou despenha<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s roche<strong>do</strong>s, ou consumi<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s chamas,<br />
ou atravessa<strong>da</strong>s <strong>do</strong> ferro em terras estranhas miseravelmente acabaram as<br />
vi<strong>da</strong>s?<br />
À vista deste desamparo, tragédia <strong>da</strong> fortuna, tirania <strong>da</strong> sorte tantas<br />
vezes no mun<strong>do</strong> representa<strong>da</strong>, muito tem a Deus que louvar e muitas as<br />
graças que à sua infinita misericórdia render quem em sua própria casa, na sua<br />
cama, na companhia e assistência de seus pais e esposo acaba uma vi<strong>da</strong><br />
mortal para principiar uma eterna vi<strong>da</strong>. Assim diz o apóstolo S. Paulo que<br />
despiremos o mortal para vestir o imortal. Quem, para vestir-se de uma gala<br />
rica e preciosa, sentiria despir e deixar um vesti<strong>do</strong> rasga<strong>do</strong>, pobre e tosco?<br />
Pois tal é esta a vi<strong>da</strong> mortal, se com a imortal a comparamos. Quem, sentin<strong>do</strong><br />
o cansaço e moléstias grandes <strong>do</strong> caminho, sentiria avizinhar-se a sua pátria,<br />
onde tinha o descanso seguro, o recreio certo e o refrigério conheci<strong>do</strong>? Pois<br />
sen<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a nossa vi<strong>da</strong> caminho tão penoso <strong>da</strong>s aflições, tão repeti<strong>do</strong> nas<br />
moléstias, quem pode desejar tal vi<strong>da</strong>, tal peregrinação, que assim lhe chama o<br />
padre São Gregório 353 , que se não deseje antes na pátria com descanso, que<br />
na peregrinação deste mun<strong>do</strong> com trabalhos? Que ain<strong>da</strong> com o lume natural<br />
alcançou Séneca 354 que to<strong>da</strong> a nossa vi<strong>da</strong> era peregrinação e contínua<br />
jorna<strong>da</strong>.<br />
Sentis que morre na flor <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de? Nessa morrem as rosas; que não<br />
pode ter vi<strong>da</strong> mais dilata<strong>da</strong> quem é flor. Não consiste a perfeição no dilata<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>. Séculos vive um corvo, para to<strong>do</strong>s molesto, pouco vive um rouxinol, para<br />
to<strong>do</strong>s alívio. Quem dilata<strong>do</strong>s anos vive, dilata<strong>da</strong>s penas passa, vagarosos<br />
S. Gregor., Serm. 40.<br />
Seneca, De Senect.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 357<br />
tormentos experimenta; que crecem as moléstias com os anos, os pesares com<br />
a i<strong>da</strong>de e os achaques com o curso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Mas quem em poucos anos<br />
acabou a jorna<strong>da</strong>, acabou as penas e deu princípio às glórias. Duvi<strong>da</strong>va-se <strong>do</strong><br />
dia, não <strong>do</strong> termo, diz o Séneca. Venturoso quem primeiro chega a possuir,<br />
pois de um salto to<strong>da</strong>s as moléstias soube passar e vencer.<br />
Sentis que lhe abreviaram a vi<strong>da</strong> os sentimentos? Venturosos foram,<br />
pois vos deram desenganos; que como ânimos honra<strong>do</strong>s sentem mais as<br />
desconfianças de seu bom proceder que qualquer outra moléstia de passar; ela<br />
<strong>da</strong>ria por bem emprega<strong>da</strong> a morte, a troco de ficar sua leal<strong>da</strong>de conheci<strong>da</strong>.<br />
Mais sentiu Lucrécia o labéu que Tarquino queria pôr à sua fama <strong>do</strong> que perder<br />
às suas mãos a vi<strong>da</strong>. Se tanto vos entristeceis de que com vossas<br />
desconfianças ocasionastes sua morte: não vos desconsoleis, que não seria<br />
essa a causa total de acabar a vi<strong>da</strong>; que, se o termo era chega<strong>do</strong>, qualquer<br />
achaque bastava para ser executor de seus perío<strong>do</strong>s; que se estava decreta<strong>do</strong><br />
que ela não vivesse mais, pouca causa era poderosa para que fosse a vi<strong>da</strong><br />
menos. Pouco veneno bastou para matar a Alexandre e muito não bastou para<br />
tirar a vi<strong>da</strong> a Mitri<strong>da</strong>tes. A quem vai vizinho ao temor de seus dias pouca causa<br />
basta e a quem tem vi<strong>da</strong> que cursar nenhum motivo empece. Não tinha mais<br />
vi<strong>da</strong> que lograr e assim qualquer ocasião havia de ser mortal. Sentis que lhe<br />
causastes os desgostos? Consolai-vos, pois lhe pedistes deles perdão. E se<br />
sentiu que errásteis em culpá-la, também teve o alívio de conhecer que vos<br />
arrependestes de ofendê-la. Fácil é, diz o Cícero 355 , de alcançar o perdão,<br />
quem chega a publicar o erro que emprendeu. Pudera ela morrer com a mágoa<br />
de ver sua inocência culpa<strong>da</strong> e não de ver vossa paixão arrependi<strong>da</strong>.<br />
Venturoso fostes em experimentardes que vos amou até [à] morte e não<br />
poderdes imaginar vos ofendera na vi<strong>da</strong>.<br />
Sentis, senhor Alexandre, que lhe não pudestes pagar as finezas<br />
grandes que lhe devíeis? Se a paga nunca podia cabalmente satisfazê-las,<br />
paga é o confessar que não podiam ser pagas; que assim como negar o<br />
benefício recebi<strong>do</strong> é a maior ingratidão, assim pelo contrário o confessá-lo tem<br />
o lugar <strong>do</strong> agradecimento; e ficais desempenha<strong>do</strong> no desejo, já que não<br />
pudestes desempenhar-vos de to<strong>do</strong> na satisfação. Sentis que, deven<strong>do</strong>-lhe a<br />
Cie, in Vat.
358 Padre Mateus Ribeiro<br />
vi<strong>da</strong>, apaixona<strong>do</strong> lhe ocasionastes a morte? Ela obrou como amante, vós como<br />
engana<strong>do</strong>. Ela fez o que devia, pois amava; vós desculpa<strong>do</strong> estais na paixão<br />
que como engana<strong>do</strong> sentiríeis. Ela livrou-vos a vi<strong>da</strong>, porque podia; vós não a<br />
livrastes <strong>da</strong> morte, porque não podeis. Bem certa foi em conhecer vosso<br />
desejo; o que ela não sente por certifica<strong>da</strong>, para que o sentis vós por<br />
enterneci<strong>do</strong>?<br />
A paga que lhe hoje podeis <strong>da</strong>r ao muito que lhe deveis são as honras<br />
<strong>da</strong>s exéquias que lhe celebrais e a memória perpétua que <strong>do</strong>s sufrágios de sua<br />
alma tereis; que o amor para com os mortos nisto pode manifestar-se; que o<br />
enterneci<strong>do</strong> <strong>do</strong> sentir, com o lastimoso <strong>do</strong> chorar, nem lhe serve de alívio se<br />
está em pena, nem lhe serve de agra<strong>do</strong> se está na glória.<br />
Assim falou estas e outras semelhantes palavras ao intento este<br />
catedrático genovês, com que em parte se aliviou a penosa tristeza que a to<strong>do</strong>s<br />
nos senhoreava a vista <strong>da</strong> malogra<strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de de Eugenia, a quem to<strong>do</strong>s nos<br />
reconhecíamos tão obriga<strong>do</strong>s. Celebraram-se as exéquias com a soleni<strong>da</strong>de<br />
possível: últimas honras que logra neste mun<strong>do</strong> quem se despede dele.<br />
Consolação fúnebre <strong>da</strong>s sau<strong>da</strong>des <strong>do</strong>s vivos, como lhes chama Santo<br />
Agostinho. Grandes foram os dispêndios que fez o grande Alexandre nas<br />
exéquias de Efestião, seu maior vali<strong>do</strong>, em que gastou, como diz Quinto<br />
Cúrcio, <strong>do</strong>ze mil talentos. As honras funerais de Lúcio Sila e de Júlio César em<br />
Roma foram por extremo sumptuosas, como conta Apiano Alexandrino.<br />
Grandes foram as que fizeram seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s ao insigne capitão Pelópi<strong>da</strong>s<br />
Tebano, que sen<strong>do</strong> morto na batalha que os tebanos tiveram com Alexandre, o<br />
cruel rei de Macedónia, foi tal em seu exército o sentimento de sua morte que,<br />
acometen<strong>do</strong> como desespera<strong>do</strong>s, venceram a batalha e nenhum deles se quis<br />
curar <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s, nem tirar os freios aos cavalos, até que em ro<strong>da</strong> de seu<br />
defunto corpo lhe arvoraram vitoriosos troféus, celebran<strong>do</strong>-lhe tão sumptuosas<br />
honras funerais que foram abono <strong>do</strong> amor que em vi<strong>da</strong> lhe tiveram e <strong>da</strong>s<br />
grandes sau<strong>da</strong>des que de sua morte lhe ficavam.<br />
Enfim, tornan<strong>do</strong> à minha história, depois de sepulta<strong>da</strong> com as funerais<br />
honras possíveis ao tempo a fermosa Eugenia, pedi eu a Alexandre viesse<br />
connosco ao castelo de Monte Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, para divertir o intenso pesar de sua<br />
mágoa. O que ele fez, despedin<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s pais de sua defunta esposa com
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 359<br />
mais lágrimas que palavras; que há cousas, como diz Quintiliano, que por<br />
muito que se queiram declarar, nunca se acabam de sentir.<br />
Cap. XXVI.<br />
Do que me sucedeu no castelo de Monte Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, e como eu e Alexandre nos<br />
ausentámos<br />
Algum tempo havia que morava no castelo em companhia de Alexandre,<br />
que, como diz Séneca, to<strong>do</strong> o bem sem companhia desagra<strong>da</strong>; só na privança<br />
é molesta a companhia, porque se reparte o valer e man<strong>da</strong>r; porém em tu<strong>do</strong> o<br />
mais é a companhia alívio nas moléstias e agra<strong>do</strong> nas alegrias. Tal vez<br />
diverti<strong>do</strong>s com o exercício <strong>da</strong> caça, outras vezes com visitas de amigos, outras<br />
com a recor<strong>da</strong>ção de nossos passa<strong>do</strong>s discursos, até que sucedeu que uma<br />
noite, que foi o prelúdio de to<strong>da</strong>s minhas peregrinações e trabalhos, vin<strong>do</strong> eu e<br />
Alexandre <strong>da</strong> caça em que tínhamos dispendi<strong>do</strong> alguma parte <strong>do</strong> dia, já<br />
vizinhos ao castelo, nos saíram ao encontro dez homens rebuça<strong>do</strong>s e nos<br />
dispararam duas pistolas que, erran<strong>do</strong> as balas o golpe, não fizeram efeito.<br />
Admira<strong>do</strong>s nós <strong>do</strong> desaforo, arrancámos as espa<strong>da</strong>s e, acometen<strong>do</strong> aos<br />
primeiros que diante achámos, lhes demos de estoca<strong>da</strong>s, com que caíram<br />
pedin<strong>do</strong> confissão. Já a este tempo nos acometiam os outros com desejos<br />
vingativos, mas como estava a razão <strong>da</strong> nossa parte, não só nos defendíamos<br />
deles, mas ain<strong>da</strong> os tratámos de sorte que cain<strong>do</strong> outro em terra mortalmente<br />
feri<strong>do</strong>, trataram os outros de retirar-se, in<strong>do</strong> gritan<strong>do</strong> sobre nós que havíamos<br />
morto a seus senhores. A estas vozes começaram a acudir homens de alguns<br />
lugares e acharam aos três feri<strong>do</strong>s nos últimos parocismos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, que<br />
conheci<strong>do</strong>s eram, Júlio e Fábio, <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Milhiano, os antigos amantes de<br />
Laura, e um filho segun<strong>do</strong> <strong>do</strong> marquês Valeriano que vinha com eles a<br />
favorecer a vingança que tomar de mim queriam.<br />
Apenas foram os quasi mortos conheci<strong>do</strong>s, porque levan<strong>do</strong>-os ao mais<br />
vizinho lugar em breve espaço morreram, quan<strong>do</strong> acudin<strong>do</strong> o auditor de<br />
Milhiano com muita gente, pelos ditos <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s que fugiram, em que nos<br />
culpavam a mim e Alexandre por homici<strong>da</strong>s, cercou o castelo para prender-
360 Padre Mateus Ribeiro<br />
nos, mas valeu-nos a diligência com que apenas foram os mortos conheci<strong>do</strong>s,<br />
quan<strong>do</strong> montan<strong>do</strong> eu e Alexandre a cavalo, apenas ten<strong>do</strong> lugar de despedir-me<br />
de Laura, partimos na volta de Florença, caminhan<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a noite com<br />
excessiva pressa, que na sabe o temor admitir vagares.<br />
- Oh fermosura de Laura (dizia eu muitas vezes), quem nunca te<br />
houvera visto, pois duas vezes foste meu tormento, quan<strong>do</strong> deseja<strong>da</strong> e quan<strong>do</strong><br />
possuí<strong>da</strong>! Desejei-te com desvelos e possui-te com perigos. Extremos fostes<br />
para mim sempre, pois nunca extremos foram seguros: penosos para<br />
pretendi<strong>do</strong>s e perigosos para logra<strong>do</strong>s. São as medianias isentas <strong>do</strong>s aplausos<br />
e seguras <strong>do</strong>s perigos: nem dão lugar a invejar-se, nem admitem lisonjas de<br />
aplaudir-se; mas extremos <strong>do</strong> parecer nem se pretendem sem riscos, nem se<br />
possuem com descanso. Não bastou desterrar-me <strong>da</strong> minha pátria por tua<br />
causa para viver quieto em terra alheia: que como me acompanhavas, sempre<br />
vai ofereci<strong>do</strong> a ser persegui<strong>do</strong> quem leva consigo o que de muitos é deseja<strong>do</strong>.<br />
Nem tem a víbora culpa em nascer venturosa, nem eu te culpo de nascer<br />
contigo a fermosura; mas <strong>do</strong> que é venenoso to<strong>do</strong>s se retiram e <strong>do</strong> que é<br />
fermoso to<strong>do</strong>s se agra<strong>da</strong>m e igualmente to<strong>do</strong>s se perigam: uns, porque<br />
inadverti<strong>do</strong>s não fugiram; outros, porque cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sos a buscaram. Por teu<br />
respeito Júlio e Fábio quiseram tirar-me a vi<strong>da</strong> e sem vi<strong>da</strong> eles e o filho<br />
malogra<strong>do</strong> <strong>do</strong> marquês Valeriano ficaram: eu perdi<strong>do</strong> para mais não ver-te e tu<br />
desampara<strong>da</strong> e sem remédio para sustentar-te. Eras, quan<strong>do</strong> rica, combati<strong>da</strong>,<br />
agora, pobre, como não serás solicita<strong>da</strong>? E se com minha presença se<br />
atreviam a teu decoro, com ausências minhas quem te guar<strong>da</strong>rá respeito?<br />
Quem me deu notícias <strong>da</strong> beleza que tinhas para si fabricou a sepultura e para<br />
mim o veneno: eles acaban<strong>do</strong> as vi<strong>da</strong>s pagaram o que deviam à morte, mas<br />
eu, viven<strong>do</strong>, ca<strong>da</strong> dia morrerei de triste. Porque as penas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> com a morte<br />
se acabam, mas as ânsias <strong>da</strong> minha alma sempre acrecenta<strong>da</strong>s duram.<br />
Assim caminhan<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> me queixava <strong>da</strong> fortuna, se fortuna pudera<br />
haver de quem queixar-me, mas a eficácia <strong>da</strong> pena embargava os discursos <strong>da</strong><br />
razão. A quem Alexandre, queren<strong>do</strong> divertir-me o vivo <strong>do</strong> sentimento,<br />
respondeu assim:<br />
- Na ver<strong>da</strong>de, amigo Felisberto, que se o grave <strong>da</strong> ânsia em que vos<br />
considero não desculpara o liviano <strong>da</strong> pena que vos ouço, pusera em dúvi<strong>da</strong> o<br />
acredita<strong>do</strong> de vossa descrição, com ter tantas certezas de vosso bom juízo. É
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 361<br />
possível que ignorais que por isto comparou Santo Ambrósio a vi<strong>da</strong> humana<br />
à rosa, porque cerca<strong>da</strong> sempre de espinhos, <strong>do</strong>s próprios mimos <strong>do</strong> sol com<br />
que desvela<strong>do</strong> a cria, com seus mesmos resplan<strong>do</strong>res descui<strong>da</strong><strong>do</strong> a ofende,<br />
sen<strong>do</strong> seus raios carícias para que nasça e verdugos para que morra? Da vi<strong>da</strong><br />
humana disse Plutarco 357 que era tão variável nos acidentes que dificilmente se<br />
podia conhecer quan<strong>do</strong> estava venturosa ou quan<strong>do</strong> infelice; pensamento que<br />
seguiu Demóstenes, dizen<strong>do</strong> que na mu<strong>da</strong>nça perpétua <strong>da</strong> mortal vi<strong>da</strong> em<br />
breve espaço de tempo pede o venci<strong>do</strong> misericórdia ao vence<strong>do</strong>r e chega a<br />
pedir o vence<strong>do</strong>r pie<strong>da</strong>de ao que foi dele venci<strong>do</strong>. Pois sen<strong>do</strong> esta a condição<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> a varie<strong>da</strong>de <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, de que vos admirais afligi<strong>do</strong> ou de que vos<br />
queixais impaciente? De verdes mu<strong>da</strong><strong>da</strong>s vossas bonanças em tormentas? Se<br />
o mun<strong>do</strong> é mar, como lhe chama São Agostinho, que raras vezes se mostra<br />
sereno, porque continuamente an<strong>da</strong> tempestuoso e inquieto; e assim mais nos<br />
pudéramos admirar de suas bonanças que de seus perigos. Pois, como diz<br />
Cícero, o costume de padecer desterra a novi<strong>da</strong>de de sentir.<br />
Queixais-vos <strong>da</strong> fermosura de vossa esposa? Injusta queixa é que<br />
sintais alcançar o que tantos não puderam merecer. O que to<strong>do</strong>s avaliam por<br />
ventura, sem razão quereis vós condenar por desgraça. E mostran<strong>do</strong>-se com<br />
ela tão liberal a natureza, queríeis que fosse pródiga a fortuna? Que ofensa fez<br />
a algum o ser fermosa? Que culpa tem a candeia em luzir para se abrasar a<br />
mariposa por se lhe avizinhar? Que delito comete a luz em resplandecer de<br />
longe para querer a borboleta conversá-la de perto? Não está o <strong>da</strong>no na luz<br />
quan<strong>do</strong> resplandece, está o perigo nas asas de quem precipita<strong>do</strong> se atreve. De<br />
outra sorte só no mun<strong>do</strong> seriam estima<strong>da</strong>s as feias e aborreci<strong>da</strong>s as fermosas.<br />
O que é erro; porque a fermosura per si não deixa, como diz Platão 358 , de ser<br />
objecto grande <strong>do</strong> amor, e tirar-lhe o ser amável ou seria mu<strong>da</strong>r-lhe a natureza,<br />
ou privá-la <strong>do</strong> objecto. O que se não concede dizíeis que com trabalhos se<br />
alcança e com perigos se possui. E que cousa houve jamais digna de<br />
estimação que sem moléstia se adquirisse e sem temores se lograsse? As<br />
pedras preciosas, as pérolas de valor mais ricas, as jóias mais subi<strong>da</strong>s no<br />
Ambr., in Hexam. lib. 3. c. 11.<br />
Plutarc, De tranquilit. anim.<br />
Plato, De pulchri.
362 Padre Mateus Ribeiro<br />
preço, maiores na estimação, quem jamais as adquiriu senão com moléstias,<br />
suores e trabalhos? Ou quem as chega a possuir tão seguro que não tema<br />
perdê-las quan<strong>do</strong> mais as estima, ou teme serem-lhe rouba<strong>da</strong>s quan<strong>do</strong> mais as<br />
preza? Só quem na vi<strong>da</strong> na<strong>da</strong> possui se livra <strong>do</strong> temor de perder, que como<br />
tu<strong>do</strong> lhe falta para possuí<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong> lhe falta para arrisca<strong>do</strong>. Se por receios de ser<br />
despoja<strong>do</strong> <strong>do</strong> que é precioso ninguém tratara de adquiri-lo, to<strong>do</strong>s no mun<strong>do</strong><br />
seriam pobres e nenhum se jactaria de rico: perderiam as cousas seu valor por<br />
faltar quem no que merecem as estimasse e por não se achar quem se<br />
desvelasse em adquiri-las. Tal a fermosura humana: porque há-de atemorizar,<br />
sen<strong>do</strong> tanto para se aplaudir?<br />
Estas mortes vós não as ocasionastes: a defensa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é acção<br />
natural; que culpa tem Laura em escolher-vos por esposo, pois a nenhum<br />
estava obriga<strong>da</strong>? Man<strong>do</strong>u-lhes ela porventura sair a desafio por seu respeito?<br />
Se os apartastes e deixastes em paz, bem vos pagavam o favor com<br />
intentarem tirar-vos a vi<strong>da</strong>; se vos casastes com Laura, que agravo lhes<br />
fizestes? Sua era a eleição como senhora livre. O sábio Filipe Macedónio, pai<br />
<strong>do</strong> grande Alexandre, se fez senhor de to<strong>da</strong> Grécia sem perder o título de<br />
sábio, porque <strong>da</strong>n<strong>do</strong> favor aos que o chamavam contra os outros, depois que<br />
os vencia, os sujeitava.<br />
Sentis que fica Laura pobre e só sem vossa presença? Não vos dê isso<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, que não é bastante a pobreza para de suas obrigações descui<strong>da</strong>r-se,<br />
quem tem amor para de seu esposo não esquecer-se. Temer as enfermi<strong>da</strong>des<br />
sem causa é provocar os humores com a força <strong>da</strong> imaginação. Infortuna<strong>da</strong><br />
seria a sorte de um mari<strong>do</strong> que não haja de viver confia<strong>do</strong> na leal<strong>da</strong>de de sua<br />
mulher, ain<strong>da</strong> que esteja ausente. Porque se sempre a ela corre a obrigação de<br />
lhe guar<strong>da</strong>r o devi<strong>do</strong> respeito, também é justo que ele creia que em to<strong>do</strong> o<br />
tempo lho guar<strong>da</strong>.<br />
Dizeis que poderá ser combati<strong>da</strong> por fermosa: também sairá vence<strong>do</strong>ra<br />
por honra<strong>da</strong>. Pouco valem os combates contra o valor, que nem tu<strong>do</strong> o que se<br />
emprende se conquista. Muitos depois <strong>do</strong>s assaltos se retiram venci<strong>do</strong>s, que<br />
as vitórias as aclama o valor e não a porfia. Dez mil atenienses desbarataram a<br />
seiscentos mil persianos em Maratona, que onde parecia tão infalível a vitória,<br />
veio a ser tão irreparável o destroço. Quem vos escolheu por esposo não foi<br />
para ofender-vos, senão para estimar-vos mais. Sempre a nobreza e luzimento
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 363<br />
<strong>do</strong> sangue é abona<strong>do</strong> fia<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s bons procedimentos: assim disse Euripides<br />
que se envergonha a fi<strong>da</strong>lguia de cometer cousas indecorosas, e S. João<br />
Crisóstomo 360 que a nobreza se peja <strong>da</strong>s acções indecentes ao tronco ilustre<br />
de sua origem; e assim, sen<strong>do</strong> Laura ilustremente nasci<strong>da</strong>, indigno receio seria<br />
temer dela acção que de seu sangue desdiga e <strong>da</strong>r por tantas vias devi<strong>da</strong>s<br />
obrigações a seu esta<strong>do</strong>. Se sentis o deixá-la só, ela virá a acompanhar-vos,<br />
como estiverdes em lugar seguro; pois com os romanos Regínio e Marco<br />
Varrão se desterraram voluntariamente suas esposas, não temen<strong>do</strong> nem os<br />
perigos a que se expunham, nem os discómo<strong>do</strong>s <strong>da</strong> pobreza a que se<br />
ofereciam, como refere Apiano Alexandrino. Hipsicrácia, rainha de Ponto,<br />
mulher de Mitri<strong>da</strong>tes, poderoso monarca, sen<strong>do</strong> com extremos fermosa e tão<br />
grande senhora, seguiu de sorte a seu mari<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> venci<strong>do</strong> <strong>do</strong>s romanos e<br />
an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> fugitivo por várias regiões <strong>do</strong> Oriente, por caminhos incultos, serras<br />
fragosas e gentes bárbaras, de tal sorte alivian<strong>do</strong> os disfavores de sua fortuna<br />
que, ven<strong>do</strong> seu esposo como jamais faltava de seu la<strong>do</strong> quem com tantos<br />
extremos o amava, não lhe parecia que an<strong>da</strong>va perdi<strong>do</strong> e fugitivo, mas que<br />
estava em seu próprio reino como de antes seguro.<br />
O coração generoso vê-se nos perigos, prova-se nos assaltos <strong>da</strong><br />
fortuna; não são as bonanças o objecto <strong>da</strong> magnanimi<strong>da</strong>de, salvo em estimá-<br />
las em pouco e moderar as alegrias na prosperi<strong>da</strong>de, como ensina<br />
Aristóteles 361 ; mas o Séneca 362 a descreve consistir em não se acovar<strong>da</strong>r nem<br />
desanimar com as adversi<strong>da</strong>des, saben<strong>do</strong> desprezar os perigos e os<br />
assombros <strong>da</strong> morte, e em não acometer sem prudência as empresas<br />
temerárias. Há-de ser o coração como os areais <strong>do</strong> mar que servem de<br />
trincheiras ao encapela<strong>do</strong> de suas on<strong>da</strong>s, que parecen<strong>do</strong> serras que se<br />
movem, em quebran<strong>do</strong> neles o furor impetuoso, destroça<strong>da</strong>s em neva<strong>da</strong>s<br />
escumas se retiram; pois nem o desalento dá remédio ao mal, nem o desmaio<br />
diminui o perigo.<br />
Eurip., in Alast.<br />
Chrysost., Sup. Matheent.<br />
Arist., De virt. & vit divis.<br />
Sen., Epist. 39.
364 Padre Mateus Ribeiro<br />
- Assim o conce<strong>do</strong> (lhe disse eu) e mais quan<strong>do</strong> tenho em vós tão<br />
ver<strong>da</strong>deiro amigo e tão participante em meus pesares, em que, como bem diz<br />
Cícero 363 , só a ver<strong>da</strong>deira amizade se prova; e é a descrição que lhe dá o<br />
filósofo 364 tratan<strong>do</strong> <strong>da</strong> amizade ver<strong>da</strong>deira.<br />
Com vários discursos chegámos a Florença, a casa <strong>do</strong> conde Hipólito,<br />
que se mostrou pesaroso <strong>do</strong> sucesso, assim por respeito nosso, como por<br />
termos no marquês Valeriano tão poderoso contrário. Man<strong>do</strong>u logo ordem para<br />
que Laura com sua mãe viesse, que em breves dias chegaram, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> novas<br />
como ficava sequestra<strong>da</strong> to<strong>da</strong> a fazen<strong>da</strong> e nós culpa<strong>do</strong>s nas rigorosas<br />
devassas, que como nelas juraram os que na companhia <strong>do</strong>s mortos vinham,<br />
lançaram-nos a culpa que eles tinham; porque contra o persegui<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s se<br />
põem <strong>da</strong> parte <strong>da</strong> fortuna. E porque o <strong>caso</strong> estava tão fresco, as partes<br />
poderosas e nós em Florença, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> ordem o conde a se recolherem Laura e<br />
sua mãe em um convento em que ele tinha parentas religiosas, e que também<br />
ain<strong>da</strong> o eram de Laura, até ver o que o tempo dispunha, eu e Alexandre nos<br />
resolvemos a ir servir nas guerras de Alemanha ao empera<strong>do</strong>r, até ver o que o<br />
tempo com seu discurso vagaroso obrava; que muitas vezes cura o de que as<br />
esperanças desconfiam. É o tempo remédio que alivia os sentimentos com<br />
esquecer as ofensas; que como a memória não possa estar sempre fixa em um<br />
objecto, com a continuação de ver uns se vão pouco a pouco apagan<strong>do</strong> nela as<br />
imagens <strong>do</strong>s outros; que assim disse Santo Agostinho 365 que o esquecimento<br />
não se causa de repente, mas com vagares. Porque sen<strong>do</strong> este, como lhe<br />
chamou Aristóteles 366 , uma nuvem que encobre as espécies e representações<br />
que imprimiram os senti<strong>do</strong>s, tempo é necessário para encobrir-se e dilata<strong>do</strong>s<br />
desmaios <strong>do</strong> divertimento para apagar-se.<br />
Cap. XXVII.<br />
Como partimos de Florença e <strong>do</strong> sucesso que tivemos<br />
363 Cicer., Ad Heren.<br />
364 Arist., Rhetor. 2.<br />
365 D. Aug., Lib. 6. Music, cap. 4.<br />
366 Arist., Topic. 3.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 365<br />
Despedi<strong>do</strong>s de Laura, se em quem ama e se aparta se pode <strong>da</strong>r<br />
despedi<strong>da</strong>. Lá disse o Séneca que há sujeitos que estan<strong>do</strong> presentes na<br />
reali<strong>da</strong>de, estão ausentes pelo descui<strong>do</strong>. Mas eu digo que quem ama estan<strong>do</strong><br />
ausente, sempre vive presente pelo cui<strong>da</strong><strong>do</strong>. Ficou Laura com os olhos em<br />
lágrimas banha<strong>do</strong>s e não parti eu com os meus enxutos; mas como era força<br />
abreviar a parti<strong>da</strong>, fez violência ao coração o preciso <strong>do</strong> retiro. Fomos bem<br />
provi<strong>do</strong>s de armas e vesti<strong>do</strong>s, que nos man<strong>do</strong>u <strong>da</strong>r o grão-duque, e cartas de<br />
favor para a Alemanha, onde chegámos na ocasião que o exército imperial<br />
caminhava sobre Luxemburgo, que o francês tinha toma<strong>da</strong> e bem presidia<strong>da</strong>.<br />
Mas avizinhan<strong>do</strong>-se a ela o exército imperial, com Dom Fernan<strong>do</strong> Gonzaga<br />
lugar-tenente <strong>do</strong> César, em poucos dias foi conquista<strong>da</strong> e ao empera<strong>do</strong>r<br />
restituí<strong>da</strong>, mais por desalento de quem a defendia, que porque tão facilmente<br />
pudessem os sitia<strong>do</strong>s ser constrangi<strong>do</strong>s a render a praça. Bem dizia Pirro, rei<br />
<strong>do</strong>s epirotas, que a ser ele capitão <strong>do</strong>s romanos tivera conquista<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong><br />
to<strong>do</strong>. Muitas vezes tinham os numantinos venci<strong>do</strong> aos romanos no dilata<strong>do</strong><br />
sítio que sofreram, até que veio Cipião Africano por general <strong>do</strong> exército,<br />
reforman<strong>do</strong> de sorte a milícia romana que sempre foi <strong>da</strong>í em diante vence<strong>do</strong>ra;<br />
e quan<strong>do</strong> os velhos de Numância repreendiam aos mancebos de fugirem <strong>do</strong>s<br />
romanos, a quem tantas vezes gloriosamente tinham venci<strong>do</strong>, respondiam que<br />
o ga<strong>do</strong> era <strong>do</strong> mesmo, mas que o governava outro pastor. Bem se viu isto logo<br />
no sítio que pusemos a Sandefir, onde era governa<strong>do</strong>r o Lan<strong>da</strong>, valeroso e<br />
destemi<strong>do</strong> francês que sustentou e defendeu a praça <strong>do</strong>s assaltos que se lhe<br />
deram, com notável <strong>da</strong>no <strong>do</strong>s tudescos e espanhóis que assaltavam os muros;<br />
e sen<strong>do</strong> o Lan<strong>da</strong> morto de uma batalha de artelharia, lhe sucedeu no cargo<br />
Monsiur Sanferra, que sustentou a praça com notável valor, matan<strong>do</strong> nos<br />
assaltos ao príncipe de Orange e muitas pessoas de cargo que tinham milita<strong>do</strong><br />
muitos anos com grande fama. Faltavam já aos sitia<strong>do</strong>s os bastimentos;<br />
capitularam com o César que se dentro em <strong>do</strong>ze dias não fossem de el-rei de<br />
França socorri<strong>do</strong>s, entregariam a praça com condições honrosas, como fizeram<br />
passa<strong>do</strong> o termo capitula<strong>do</strong>.<br />
Avistaram-se depois os <strong>do</strong>us exércitos junto ao rio Matrona, que um <strong>do</strong><br />
outro dividia, e estan<strong>do</strong> quasi para se <strong>da</strong>rem batalha, se vieram a tratar<br />
capitulações de paz, que se concluíram entre o César e el-rei de França, com
366 Padre Mateus Ribeiro<br />
grande alegria de ambas as partes. Daí nos partimos à guerra contra o turco<br />
Solimão em Hungria, onde eu e Alexandre militámos repeti<strong>do</strong>s anos em to<strong>da</strong>s<br />
as ocasiões que se ofereceram. Depois tornámos à Alemanha a servir ao<br />
empera<strong>do</strong>r na guerra contra os rebeldes duques de Saxónia e Langravio, que<br />
foi bem arrisca<strong>da</strong>. Voltámos outra vez a Hungria, achámo-nos no sítio de<br />
Toccay, praça-forte na fronteira de Hungria que se tomou à escala vista,<br />
morren<strong>do</strong> no assalto o governa<strong>do</strong>r que a defendia; e na empresa <strong>da</strong> fortaleza<br />
de Erdeu, em outros muitos conflitos militares em tempo <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r<br />
Fernan<strong>do</strong> e Maximiliano Segun<strong>do</strong>, com bastantes riscos <strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s. Pois, como<br />
diz Demóstenes, rara ventura é o achar-se em muitas batalhas e assaltos e sair<br />
de to<strong>do</strong>s bem. Mas nem eu nem Alexandre podíamos deixar de dizer com<br />
Virgílio que não há na guerra que esperar mais que a morte; pois muitas vezes<br />
saímos feri<strong>do</strong>s, com sairmos vence<strong>do</strong>res. E por ventura por essa razão disse<br />
S. Agostinho que ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> guerra quan<strong>do</strong> é justa se havia de abster e retirar.<br />
Neste tempo tive novas <strong>da</strong> morte de Laura, que faleceu em Florença, no<br />
convento em que estava recolhi<strong>da</strong>, de uma tristeza contínua, verdugo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />
mais para ser deseja<strong>da</strong> de to<strong>do</strong>s que teve Itália. Eclipsou-se o sol <strong>da</strong> fermosura<br />
nas sombras tristes <strong>da</strong> morte; que não há sol que se isente de eclipses, porque<br />
não há sol a quem não acometam sombras. Aqui tiveram princípio meus<br />
pesares, onde tiveram fim minhas malogra<strong>da</strong>s alegrias; que para serem<br />
minhas, ain<strong>da</strong> muito duraram, se se pode dizer que duraram, quan<strong>do</strong> tão pouco<br />
viveram. Inveja parece a morte aos extremos: descui<strong>da</strong>r-se de um aborreci<strong>do</strong> e<br />
assaltar a um deseja<strong>do</strong>; que como se an<strong>da</strong>ra em seguimento <strong>do</strong> amor, onde<br />
amor faz o tiro, aí executa ela o golpe. Foi este para mim bem rigoroso porque<br />
me roubou to<strong>da</strong> a esperança que só em Laura se sustinha, sau<strong>da</strong>des eternas<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, sentimentos sem alívio na morte. É muitas vezes o amor, quan<strong>do</strong><br />
grande, o verdugo sem o querer ser <strong>da</strong> cousa ama<strong>da</strong>. Lá fingiram os poetas<br />
que cantan<strong>do</strong> Orfeu no monte Olimpo ao suave som <strong>da</strong> sua lira, as moças de<br />
Trácia, movi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> melodia de seu canto, com tanto excesso o amaram que<br />
corren<strong>do</strong> juntas ca<strong>da</strong> qual a querê-lo levar por esposo, de sorte pegaram dele<br />
que, fazen<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> qual força juntamente por levá-lo, o despe<strong>da</strong>çaram e<br />
privaram <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> o excesso <strong>do</strong> amor mais cruel instrumento de tirar-lhe<br />
a vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> que pudera ser o ódio para <strong>da</strong>r-lhe a morte. Assim o muito que Laura<br />
me amava, posso dizer foi por meio <strong>da</strong>s sau<strong>da</strong>des e rigorosas tristezas desta
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 367<br />
cruel ausência, por seu respeito ocasiona<strong>da</strong>, quem lhe despe<strong>da</strong>çou as forças,<br />
quem lhe abreviou os dias.<br />
E porque os desgostos an<strong>da</strong>m sempre encadea<strong>do</strong>s uns com os outros,<br />
porque tomem as estra<strong>da</strong>s a to<strong>do</strong> o alívio, a poucos dias passa<strong>do</strong>s me tocaram<br />
a rebate novas penas com as trágicas novas <strong>da</strong> morte de meus pais: ele que<br />
morreu preso no castelo de Santelmo, <strong>do</strong>nde eu havia fugi<strong>do</strong>, e minha mãe <strong>do</strong><br />
excessivo sentimento de sua morte e de minha dilata<strong>da</strong> ausência. Bem se<br />
podia verificar em mim o dito de Plutarco 367 que só <strong>do</strong>s desgraça<strong>do</strong>s ninguém<br />
tem inveja. Mas que se podia esperar de minhas tantas venturas, senão que<br />
haviam de compensar-se com <strong>do</strong>bra<strong>do</strong>s desgostos? Ao leão morto qualquer<br />
formiga se atreve e a um triste to<strong>do</strong>s os pesares magoam. São mais<br />
intoleráveis as calami<strong>da</strong>des, disse Quintiliano 368 , a quem se julgou por feliz. Foi<br />
a causa <strong>da</strong> prisão de Camilo, meu pai, uns ban<strong>do</strong>s que se levantaram em<br />
Nápoles entre a nossa família e outras ilustres, por causas que puderam bem<br />
escusar-se, se se atendera aos fins; mas como estes se consideraram pouco,<br />
vieram elas a crescer muito; porque provocan<strong>do</strong> uns agravos aos outros, houve<br />
mortes de uma e outra parte em pessoas principais, em que meu pai foi<br />
culpa<strong>do</strong> por cabeça de ban<strong>do</strong>. Governava então Nápoles como vice-rei o<br />
duque de Alva, como lugar-tenente de Filipe, o prudente, o qual para aquietar<br />
os motins que havia, usan<strong>do</strong> de sua severi<strong>da</strong>de, man<strong>do</strong>u prender meu pai com<br />
estreita prisão no castelo de Santelmo, depois de confiscar-lhe os bens, e a<br />
outros <strong>do</strong>s contrários ban<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s quais muitos se ausentaram, e meu pai<br />
morreu preso em breve tempo; a que seguiu minha mãe com os sentimentos e<br />
desgosto de se ver sem mari<strong>do</strong> e sem filho que a consolasse, e sem remédio<br />
com que conforme quem era se sustentasse. Só ficou Lucin<strong>da</strong> com Juliano<br />
com o <strong>do</strong>te que lhe tinha <strong>da</strong><strong>do</strong> em seu casamento, que não era muito.<br />
Nem pararam aqui meus sentimentos, porque quis a fortuna privar-me<br />
de to<strong>da</strong> a sombra de alívio, se porventura podia algum ficar-me. Porque<br />
Alexandre, meu maior amigo desde os anos pueris de nossa criação e estu<strong>do</strong>,<br />
foi morto dentro em Pallota, praça de Hungria entre Alva Real e Javarino, nos<br />
assaltos rigorosos que nos deu o Baxá de Bu<strong>da</strong>, valente turco, sen<strong>do</strong>-lhe a<br />
Plut., De invidia.<br />
Quintil., Declam. 8.
368 Padre Mateus Ribeiro<br />
praça defendi<strong>da</strong> com extremoso valor pelo governa<strong>do</strong>r dela, Jorge Tuti,<br />
húngaro grão sol<strong>da</strong><strong>do</strong>. Nos quais assaltos, pelejan<strong>do</strong> com notável alento,<br />
Alexandre foi mortalmente feri<strong>do</strong> e morreu em poucas horas que lhe durou a<br />
vi<strong>da</strong>, para ser em mim eterna a memória de sua morte. Aqui me vi de to<strong>do</strong><br />
despoja<strong>do</strong> de alívio, priva<strong>do</strong> de consolação, pois era sua companhia a última<br />
que me tinha fica<strong>do</strong> em tantos mares de penas em que naufragava meu<br />
sofrimento. Bem chamou Aristóteles 369 ao amigo uma alma em <strong>do</strong>us corpos,<br />
porque o pesar e alegria de um se comunica ao outro. Tal era para mim<br />
Alexandre: quem sabia solenizar minhas alegrias quan<strong>do</strong> venturoso; quem<br />
sabia participar de minhas penas quan<strong>do</strong> triste. Enfim deixan<strong>do</strong>-o sepulta<strong>do</strong><br />
com repeti<strong>da</strong>s lágrimas minhas, já desengana<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e suas vai<strong>da</strong>des,<br />
abrin<strong>do</strong> os olhos <strong>da</strong> alma a seus enganos, ven<strong>do</strong> o pouco que se podia esperar<br />
de suas lisonjas tão abrevia<strong>da</strong>s, as que avaliei em algum tempo alegrias, tão<br />
eterniza<strong>da</strong>s as penas, tão insofríveis as mágoas, muitas para senti<strong>da</strong>s, mas<br />
nunca cabalmente declara<strong>da</strong>s; deixan<strong>do</strong> os bélicos estron<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s caixas, os<br />
militares ecos <strong>do</strong>s clarins que segui<strong>do</strong> tinha e em que despendi a primavera <strong>da</strong><br />
i<strong>da</strong>de e o tempo irreparável de meus anos, me parti para Itália e vesti<strong>do</strong> neste<br />
hábito de penitência, castigo <strong>da</strong>s galas, desengano <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e desperta<strong>do</strong>r <strong>da</strong><br />
morte, buscan<strong>do</strong> lugar retira<strong>do</strong> em que viver para Deus, me deparou ele esta<br />
ermi<strong>da</strong> em que há anos assisto, tão contente de deixar o mun<strong>do</strong> como fui em<br />
algum tempo cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so em buscá-lo.<br />
Esta é, discreto Peregrino, a relação de minha história, em que fui<br />
dilata<strong>do</strong> para vos mostrar a varie<strong>da</strong>de que o mun<strong>do</strong> faz com suas mu<strong>da</strong>nças, o<br />
pouco prémio que interessa quem o segue, o como no melhor falta, como só o<br />
buscar a Deus é caminho seguro, estra<strong>da</strong> pratea<strong>da</strong> sem perigos, vi<strong>da</strong> em que<br />
só se vive, paz <strong>da</strong>s almas, descanso <strong>do</strong> coração, alívio <strong>da</strong>s tristezas,<br />
consolação <strong>da</strong>s aflições; porque a maior gentileza <strong>do</strong>s cavaleiros no correr<br />
consiste em saber airosamente parar. Aqui parei bem, ain<strong>da</strong> que no caminho<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> mal corri; mas se, como diz São Cipriano 370 , nunca a penitência,<br />
uma vez que chega, é vagarosa, ain<strong>da</strong> quis a divina misericórdia que chegasse<br />
Arist., Ethic. 4.<br />
S. Cyprian., Contra Demetr.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 369<br />
a tempo que pudesse, como diz S. João Crisóstomo, abrir-me a <strong>do</strong>r de<br />
arrependi<strong>do</strong> as portas que fechou a culpa de engana<strong>do</strong>.<br />
Cap. XXVIII.<br />
Em que o Peregrino Dionísio teve notícia <strong>do</strong> sucesso de seus ofensores<br />
Admira<strong>do</strong> igualmente que agradeci<strong>do</strong> ficou o Peregrino Dionísio <strong>da</strong><br />
relação que o Ermitão Felisberto lhe deu <strong>do</strong>s vários perío<strong>do</strong>s e discursos de<br />
sua vi<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> tão intercadente nas venturas como peregrina nos sucessos,<br />
de que renden<strong>do</strong>-lhe as graças pelo fazer participante <strong>da</strong> vária lição de sua<br />
vi<strong>da</strong>, em que ele recebia eficaz exemplo para se saber acautelar de sua;<br />
porque, como bem disse Plínio, quan<strong>do</strong> nos alegramos pela novi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> que<br />
ouvimos, tomamos <strong>da</strong>í exemplos para nossa vi<strong>da</strong> guiarmos. Com isto se<br />
recolheram, porque o sol, diminuin<strong>do</strong> as luzes e agigantan<strong>do</strong> as sombras,<br />
mostrava paracismos nos raios e desmaia<strong>do</strong>s acidentes no brilhar, que até<br />
para o monarca <strong>do</strong>s astros há embargos na luz. Alguns meses eram já<br />
passa<strong>do</strong>s que o Peregrino assistia na companhia <strong>do</strong> Ermitão, aproveitan<strong>do</strong><br />
sempre com ouvi-lo e imitá-lo. Pois, como diz Séneca 371 , a companhia de um<br />
sábio, não tanto ain<strong>da</strong> com o ouvir, mas ain<strong>da</strong> só com o ver, costuma de<br />
ordinário aproveitar: e o nosso Peregrino não estava pouco reforma<strong>do</strong>, assim<br />
no conhecimento <strong>do</strong>s desenganos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, como na paciência de seus<br />
sentimentos e alívio de seus pesares de que de antes tão magoa<strong>do</strong> vivia e tão<br />
queixoso se mostrava.<br />
Sucedeu no discurso dilata<strong>do</strong> deste tempo que uma noite <strong>do</strong> Verão,<br />
quan<strong>do</strong> a lua com o rebuço <strong>da</strong>s sombras meio rosto encobria, se porventura<br />
era o disfarce bastante para que a não conhecessem, porque é pensão ou<br />
privilégio <strong>do</strong>s príncipes, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> se rebuçam, não poderem encobrir-se,<br />
pois os rebates <strong>da</strong> luz os manifestam; sucedeu, quero dizer, que estan<strong>do</strong> os<br />
<strong>do</strong>us companheiros já recolhi<strong>do</strong>s lhes batessem à porta, pedin<strong>do</strong>-lhe que a<br />
abrissem. Abriu o Ermitão e viu que quem chamava era um mancebo de gentil<br />
Sen., Epist. 75.
370 Padre Mateus Ribeiro<br />
presença e bem traja<strong>do</strong> que vinha sobressalta<strong>do</strong> e com corteses palavras lhe<br />
pediu que, porque tinha perdi<strong>do</strong> a notícia <strong>do</strong> caminho, ou lhe desse agasalho<br />
aquela noite até que aparecesse o dia, ou lhe ensinasse o caminho que podia<br />
seguir. Porque o penhascoso <strong>da</strong> montanha e o espesso <strong>do</strong> muito arvore<strong>do</strong> lhe<br />
impedia acertar segui-lo. Com muita cortesia lhe disse o Ermitão que entrasse<br />
a descansar <strong>da</strong> moléstia que trazia e que pela manhã o iria encaminhar aonde<br />
quisesse. Aceitou o forasteiro a oferta, renden<strong>do</strong>-lhe as graças <strong>do</strong> favor que lhe<br />
fazia, e, depois de fazer oração na ermi<strong>da</strong>, lhe ofereceu o Ermitão pão com<br />
algumas frutas que comesse, de que ele se mostrava vir necessita<strong>do</strong> de<br />
sustento. Depois de haver comi<strong>do</strong>, e mostran<strong>do</strong> estar mais alivia<strong>do</strong> na<br />
inquietação que trazia, lhe pediu o Ermitão lhe quisesse <strong>da</strong>r e a seu<br />
companheiro notícia de sua jorna<strong>da</strong>, se ela o permitia. Ao que o forasteiro<br />
mancebo satisfez, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Meu nome é Rogério, minha pátria a ci<strong>da</strong>de de Pavia, no duca<strong>do</strong> de<br />
Milão, tão nomea<strong>da</strong> no mun<strong>do</strong> pela prisão de el-rei Francisco de França que,<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe assalto, ficou prisioneiro <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Carlos Quinto. Meus pais<br />
medianamente ricos <strong>do</strong>s bens <strong>da</strong> fortuna e eu seu filho único, que desejan<strong>do</strong><br />
ver-me com aumentos (desejo próprio nos pais, mais que ambição cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa<br />
<strong>do</strong>s filhos) me man<strong>da</strong>ram estu<strong>da</strong>r à universi<strong>da</strong>de de Bolonha em casa de um<br />
tio meu, onde assisti muitos anos, aplican<strong>do</strong>-me às ciências com tanto desvelo<br />
de meu estu<strong>do</strong> que adquiri fama de <strong>do</strong>uto, graduan<strong>do</strong>-me em a facul<strong>da</strong>de de<br />
Leis com aplausos <strong>da</strong> academia e satisfação geral de to<strong>do</strong>s. Consegui<strong>do</strong> assim<br />
este principal intento <strong>do</strong> gosto de meus pais e fim de meus desvelos, me parti a<br />
Pavia, minha pátria, desejoso de ver a meus pais que por horas esperavam<br />
minha chega<strong>da</strong>, mas incita<strong>do</strong> <strong>da</strong> devoção de satisfazer a promessa de uma<br />
romaria que havia prometi<strong>do</strong> a este santuário de Santo Ângelo, tão celebra<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, fiz o caminho por junto à marítima ci<strong>da</strong>de de Manfredónia, a quem<br />
este misterioso monte com sua eminência serve de inexpugnável castelo que<br />
não só a defende, mas de to<strong>do</strong> o perigo a assegura; quan<strong>do</strong> a horas que o sol,<br />
Fénix de raios, com as confianças de renascer de novo, pouco sentia o morrer<br />
de velho, purpurizan<strong>do</strong> as nuvens <strong>do</strong> Ocidente para vestirem gala em lugar de<br />
luto, vi atravessar pelo espesso de um bosque a um sol<strong>da</strong><strong>do</strong> em companhia de<br />
uma mulher ain<strong>da</strong> moça na i<strong>da</strong>de, tão airosa nos passos e tão briosa no talhe<br />
que logo parecia espanhola, sem lhe ouvir a fala, porque falava com o brio e
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 371<br />
<strong>da</strong>va vozes com os passos. Mostrava no semblante pouca alegria que se,<br />
como disse Platão, a <strong>do</strong>r que assiste no coração logo se manifesta no rosto,<br />
sen<strong>do</strong> este como relógio mostra<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s paixões que como ro<strong>da</strong>s se movem<br />
dentro, bem se descobria nos pesares que mostrava o peso <strong>do</strong> sentimento que<br />
na alma tinha.<br />
Ao entrarem pelo denso <strong>do</strong> sombrio bosque, a quem já os retiros <strong>do</strong> sol<br />
faziam mais solitário, voltan<strong>do</strong> os olhos atrás, me fez sinal com a mão que a<br />
seguisse, de que fiquei suspenso, não me resolven<strong>do</strong> no que fizesse, porque a<br />
companhia que a mulher levava e o sombrio <strong>do</strong> bosque em que entravam,<br />
juntamente com as horas em que a noite disfarça<strong>da</strong> em crepúsculos se<br />
avizinhava, me retiravam de que a seguisse. Por outra parte, o ver que me<br />
chamava e a tristeza que nela descobria, indiciavam que algum mal temia, em<br />
que queria que lhe valesse, e parecia covardia desumana desamparar a quem<br />
favor me pedia; e assim resoluto neste parecer, desmontei <strong>do</strong> cavalo em que<br />
vinha e, atan<strong>do</strong>-lhe apressa<strong>da</strong>mente as rédeas a uma árvore, entrei em seu<br />
seguimento pelo bosque, quan<strong>do</strong> já as sombras com o arvore<strong>do</strong> facilmente me<br />
encobriam; e ven<strong>do</strong> que eles paravam, me fui chegan<strong>do</strong> entre as ramas para<br />
ouvi-los, e vi que o sol<strong>da</strong><strong>do</strong> que vinha com a mulher lhe disse assim:<br />
- A este lugar te quis trazer, falsa Teo<strong>do</strong>ra, para vingar meus agravos e<br />
<strong>da</strong>r fim a teus enganos com tua vi<strong>da</strong>, pois sei que me tens ofendi<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> eu<br />
por tua causa há tantos anos que an<strong>do</strong> de minha pátria e <strong>da</strong> casa de meus pais<br />
desterra<strong>do</strong>.<br />
Ao que a aflita mulher respondeu assim:<br />
- Bem parece, ingrato Maurício, que ven<strong>do</strong>-te tão endivi<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>da</strong>s<br />
obrigações que me tens, queres quebrar com a dívi<strong>da</strong> por ver-te impossibilita<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong> paga. Ai de mim, que mal fundei minhas esperanças, pois imaginan<strong>do</strong> que<br />
sobre amor as levantava, vejo agora que edifiquei sobre a maior ingratidão<br />
para lamentar a ruína! É possível, Maurício, que me culpas a mim, sen<strong>do</strong> tu o<br />
culpa<strong>do</strong>? Que me acriminas ofensas, sen<strong>do</strong> eu a ofendi<strong>da</strong>? Já não te lembra<br />
que por ti deixei meu próprio esposo, desterran<strong>do</strong>-me por tantas terras por<br />
seguir-te? Mas é castigo de minha livian<strong>da</strong>de que seja hoje de ti aborreci<strong>da</strong>,<br />
pois engana<strong>da</strong> deixei por ti meu esposo de quem era com extremos ama<strong>da</strong>. Ai<br />
de mim, que me perdi por seguir-te, que como eras guia enganosa, só me<br />
encaminhaste ao precipício em que me vejo! Dizes que me trouxeste a esta
372 Padre Mateus Ribeiro<br />
solidão a fim de tirar-me a vi<strong>da</strong>? Bom prémio dás às finezas com que te amei,<br />
pagar-me com tiranias, que como nunca foste amante ver<strong>da</strong>deiro, não sabes<br />
pagar senão em moe<strong>da</strong> falsa. Que te cansasses de querer-me, prova seria de<br />
tua mu<strong>da</strong>nça, mas que intentes tirar-me a vi<strong>da</strong>, novo arbítrio é de tua<br />
cruel<strong>da</strong>de, pois intentas ser verdugo, quan<strong>do</strong> te julgava amparo, tomas<br />
privilégios de mari<strong>do</strong> para ofender-me e não obrigações de amante para pagar-<br />
me. Oh quem pudera declarar o que sinto, pois quanto digo é só um átomo <strong>do</strong><br />
que padeço! Se me aborreces e me avalias molesta para companhia, quan<strong>do</strong><br />
já em outro tempo me chamavas delícia, me intitulavas recreio, deixas-me<br />
nesta solidão a que me conduziste, que se adquirires nome de ingrato, não<br />
granjearás o de cruel. Com me deixares, ficarás leve <strong>da</strong> carga que te oprime,<br />
pois <strong>da</strong>ma aborreci<strong>da</strong> é tão pesa<strong>da</strong> carga. Seja este, Maurício, o último favor<br />
que te peço, que pois não tens com que pagar quanto me deves, só com que<br />
me deixes me <strong>da</strong>rei por paga. Busca a quem mais te agrade, solicita a quem<br />
melhor te pareça, e deixa-me a mim só e em terra alheia chorar os desacertos<br />
de minha passa<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, que ain<strong>da</strong> que chego tarde para descobri-los, nunca<br />
chegarei tarde para chorá-los.<br />
Assim choran<strong>do</strong> falava a discreta espanhola, com grande lástima de mim<br />
que encoberto a ouvia, mas estava tão endureci<strong>do</strong> o coração de seu ingrato<br />
amante, que não puderam as balas de cristal de suas lágrimas abrir a brecha<br />
menor na dureza de seu peito, antes arrancan<strong>do</strong> a espa<strong>da</strong>, cego <strong>da</strong> paixão, se<br />
foi chegan<strong>do</strong> a ela, que posta de joelhos a grandes vozes dizia:<br />
- Suspende, Maurício, o golpe, que não é acção <strong>do</strong> valor tiranizar uma<br />
vi<strong>da</strong> de tantas penas molesta<strong>da</strong>. Sabem os leões per<strong>do</strong>ar a uma mulher<br />
rendi<strong>da</strong>, embainhan<strong>do</strong> as garras de que os armou a natureza, e tu, sen<strong>do</strong><br />
racional, desembainhas a espa<strong>da</strong> para tingi-la em meu sangue. Que vitória<br />
alcanças de quem a teus pés se humilha? Que vingança consegues de quem<br />
jamais te ofendeu? Valham-me os privilégios de ser mulher para apie<strong>da</strong>r-te,<br />
pois me não valeram os merecimentos de amante para entemecer-te.<br />
Aqui já eu impaciente e magoa<strong>do</strong>, ven<strong>do</strong> que o apaixona<strong>do</strong> sol<strong>da</strong><strong>do</strong> a<br />
na<strong>da</strong> se demovia, me arrojei furioso e, arrancan<strong>do</strong> a espa<strong>da</strong>, lhe disse:<br />
- Descomedi<strong>do</strong> espanhol, não mostrais ser valeroso nem bem-nasci<strong>do</strong><br />
na bárbara acção que emprendeis, em quererdes matar a uma pobre mulher
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 373<br />
que na<strong>da</strong> vos deve, trazen<strong>do</strong>-a enganosamente a este lugar solitário para<br />
acção tão indecorosa a cristão, a espanhol e a cavaleiro.<br />
vós.<br />
- Porventura (respondeu ele) intentais vós defendê-la?<br />
- Não só (lhe disse eu) perten<strong>do</strong> defendê-la a ela, mas a castigar-vos a<br />
Levantan<strong>do</strong>-se ela nisto para se pôr a meu la<strong>do</strong>, ele com improvisa<br />
ligeireza lhe meteu a espa<strong>da</strong> pelo meio com tal cruel<strong>da</strong>de que nem os antigos<br />
tiranos Fálaris de Agrigento, Perilo de Atenas, Dionísio de Sicília e Nero de<br />
Roma tal cruel<strong>da</strong>de executariam. Caiu em terra Teo<strong>do</strong>ra e eu me arrojei a ele<br />
tão desejoso de vingá-la que, com a destreza <strong>da</strong>s armas a que fui sempre<br />
afeiçoa<strong>do</strong> desde moço (que nunca o exercício <strong>da</strong> destreza <strong>da</strong>s armas impediu<br />
o natural <strong>da</strong>s letras) e juntamente incita<strong>do</strong> <strong>da</strong> paixão de ver com os olhos uma<br />
barbari<strong>da</strong>de tão indigna de humano peito, decepan<strong>do</strong>-lhe de um golpe a mão<br />
<strong>da</strong> homici<strong>da</strong> e bárbara espa<strong>da</strong>, que lhe caiu em terra, lhe dei tantas feri<strong>da</strong>s que<br />
acabou a vi<strong>da</strong> como merecia sua cruel<strong>da</strong>de; sen<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> menos, como disse<br />
Ovídio, o haver padeci<strong>do</strong> a pena <strong>do</strong> que havê-la mereci<strong>do</strong>.<br />
Voltei à desmaia<strong>da</strong> mulher que caí<strong>da</strong> em terra estava e vi que tinha o<br />
peito de uma estoca<strong>da</strong> penetrante passa<strong>do</strong>; tomei-lhe com um lenço o sangue<br />
o melhor que pude, que tornan<strong>do</strong> em seus senti<strong>do</strong>s e ven<strong>do</strong> ao triste cadáver<br />
de seu ingrato e cruel amante desanima<strong>do</strong>, me pediu a levasse <strong>da</strong>quele lugar<br />
onde pudesse tratar de sua alma porque se sentia no fim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Assusta<strong>do</strong><br />
com este desgosto, a tomei em braços e caminhei para o primeiro lugar por<br />
onde havia passa<strong>do</strong>, que me parece se chamava São Victor, lugar ameno e<br />
bem povoa<strong>do</strong> de gente. Aqui levei a aflita Teo<strong>do</strong>ra à primeira casa que<br />
encontrei, pedin<strong>do</strong> se lhe chamasse logo confessor e quem a curasse <strong>da</strong><br />
mortal feri<strong>da</strong>, de que logo desconfiaram os que a viram, julgan<strong>do</strong>-a mortal pelos<br />
acidentes que causava; e deixan<strong>do</strong> eu alguns escu<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s que levava a quem<br />
a recolheu em casa, e despedin<strong>do</strong>-me dela com a mágoa grande de seus<br />
infortúnios, antes que a nova <strong>da</strong> morte <strong>do</strong> espanhol mais se divulgasse e a<br />
justiça mo impedisse, vim buscar o cavalo que deixei ata<strong>do</strong> e o não achei,<br />
porque quebra<strong>do</strong>s os loros <strong>da</strong>s rédeas tinha fugi<strong>do</strong>. E como a terra para mim<br />
era desconheci<strong>da</strong>, e voltar ao lugar não me convinha, a noite impedin<strong>do</strong> para<br />
acertar a estra<strong>da</strong> que seguir me importava, entre tantas suspensões<br />
caminhan<strong>do</strong> sem advertir por onde, descobri esta ermi<strong>da</strong> para de seu sagra<strong>do</strong>
374 Padre Mateus Ribeiro<br />
valer-me, até que o dia como guia geral <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> me ensinasse o caminho<br />
mais seguro, pois a noite me fazia to<strong>do</strong>s suspeitosos.<br />
Assim deu fim Rogério à narração <strong>do</strong> trágico encontro de sua jorna<strong>da</strong>,<br />
de que ficaram os <strong>do</strong>us ouvintes tão suspensos, como se podia esperar de<br />
quem tão interessa<strong>do</strong> como Dionísio nela estava e tão admira<strong>do</strong> como o<br />
Ermitão em seus sucessos se via. Põe muitas vezes o desejo de uma cousa<br />
dúvi<strong>da</strong> à própria reali<strong>da</strong>de dela, porque se tem os infelices por tão esqueci<strong>do</strong>s<br />
<strong>da</strong> ventura, que duvi<strong>da</strong>m de qualquer sombra de favor pela repeti<strong>da</strong><br />
desconfiança de se poder lembrar a fortuna deles. Assim Dionísio, sem<br />
descobrir quem era (que não foi pequena demonstração de prudência saber<br />
moderar os indícios <strong>do</strong> que interiormente sentia), louvan<strong>do</strong> a Rogério não<br />
menos de valeroso na acção que de pie<strong>do</strong>so na obra de procurar a Teo<strong>do</strong>ra o<br />
remédio <strong>da</strong> alma e a cura <strong>da</strong> feri<strong>da</strong>, e lhe perguntou se lhe dissera Teo<strong>do</strong>ra<br />
como ou de que parte ali viera. Ao que respondeu Rogério que na<strong>da</strong> declarara,<br />
porque o mortal <strong>da</strong> penetrante feri<strong>da</strong> lhe não concedia lugar a falar senão a<br />
espaços, e isso com a voz frágil e intercadente nos acentos com que a proferia,<br />
que ain<strong>da</strong> para o preciso se explicava mal, e que neste esta<strong>do</strong> a deixara<br />
quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> lugar saíra.<br />
Cap. XXIX.<br />
Em que se refere o que Dionísio e o Ermitão com Teo<strong>do</strong>ra passaram e se dá<br />
fim à história<br />
Depois de vários discursos que os <strong>do</strong>us companheiros sobre o sucesso<br />
com Rogério tiveram, sem jamais declarar-se o Peregrino, se retirou Rogério a<br />
descansar o que <strong>da</strong> noite ficava, que não era muito; porque, como era o tempo<br />
<strong>do</strong> estio, em que os dias usurpam às noites a maior parte <strong>do</strong> tempo, que o<br />
primeiro móvel com seu rapto movimento lhes paga, ficam as noites<br />
defrau<strong>da</strong><strong>da</strong>s nas partilhas <strong>da</strong> porção, que o Inverno depois como juiz lhes<br />
restitui.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 375<br />
Dormiu Rogério, porque o constrangeu o cansaço; mas não <strong>do</strong>rmiu<br />
Dionísio, porque o despertava o cui<strong>da</strong><strong>do</strong>. Que, como disse Ovídio 372 , são os<br />
que atenuam as forças <strong>do</strong> corpo e os que perturbam as operações <strong>da</strong> alma.<br />
São os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s rémoras <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, divertimentos <strong>do</strong>s discursos, leitos de<br />
abrolhos em que não há descanso, desperta<strong>do</strong>res importunos que não<br />
permitem sossego, encapela<strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s que nunca param, trombetas que tocam<br />
sempre a viva guerra, <strong>do</strong>res insensíveis que atormentam a quem os sustenta,<br />
pagan<strong>do</strong>-lhes o gasalha<strong>do</strong> em desvelos e o hospício em tiranias como ingratos.<br />
Tal estava o coração de Dionísio nesta, ain<strong>da</strong> que breve, contu<strong>do</strong> para ele<br />
eterniza<strong>da</strong> noite, parecen<strong>do</strong>-lhe que as sombras se não moviam, porque as<br />
luzes não marchavam. Parecia-lhe ou que o carro <strong>da</strong> noite perdera o norte de<br />
seu caminho, ou se haviam desgoverna<strong>do</strong> os pólos de seu carro ou estrela<strong>do</strong>s<br />
círculos de suas ro<strong>da</strong>s, pois tão pouco seguiam seu caminho. Já lhe parecia<br />
que os alígeros cavalos <strong>do</strong> brilhante carro <strong>do</strong> sol ou paravam de cansa<strong>do</strong>s, ou<br />
tornavam atrás de ressenti<strong>do</strong>s por não descobrirem ao mun<strong>do</strong> a Teo<strong>do</strong>ra,<br />
antigamente tão própria pela beleza para ser vista como agora no esta<strong>do</strong><br />
presente tão miserável para ser chora<strong>da</strong>.<br />
- Oh noite penosa (dizia o ansia<strong>do</strong> Dionísio), quem te fez tão pesa<strong>da</strong><br />
para minhas penas, sen<strong>do</strong> de antes tão fugitiva a minhas alegrias? Quem te<br />
pôs os pesos <strong>do</strong> relógio de meus pesares para te moveres tão pouco, se em<br />
tempo de minhas venturas tiveste asas para voares tanto? Oh infeliz Teo<strong>do</strong>ra,<br />
que nem tiveste dita por esposa, pois me deixaste, nem por amante, pois te<br />
deixaram! Naceste no mun<strong>do</strong> para exemplo trágico <strong>da</strong>s lisonjas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>do</strong>s<br />
desenganos <strong>da</strong> morte. Deu-te a natureza partes para ser queri<strong>da</strong>, se souberas<br />
estimar-te. Mas quem a si próprio se desestima, como há-de ser de outros<br />
estima<strong>do</strong>? Deixaste-me a mim, teu esposo, que me desvaneci de venturoso em<br />
possuir-te, para seguires os passos de um tirano que te privou <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> para<br />
deixar-te. Ele te deu a paga como ingrato e ele a recebeu como tirano. Que<br />
nem dele podia esperar-se outro galardão, nem de ti podia prometer-se mais<br />
venturosa sorte; nem a livian<strong>da</strong>de costumou <strong>da</strong>r outro fruto, nem a ingratidão<br />
costuma receber outro agradecimento. Que de terras te ausentaste, que de<br />
ci<strong>da</strong>des fugiste, que de reinos passaste? E quanto menos o temeste, por teu<br />
Ovid., Met. 6.
376 Padre Mateus Ribeiro<br />
próprio enganoso amante castiga<strong>da</strong> te viste, que como te ia seguin<strong>do</strong> tua<br />
própria culpa, também ia em teu seguimento a mereci<strong>da</strong> pena. Não te dei eu<br />
porque nem tivesses essa penosa consolação de haveres pago a quem devias,<br />
senão que te acompanhasse a mágoa de te executar como acre<strong>do</strong>r (a) quem te<br />
devia mais, porque na tirania de injustamente executa<strong>da</strong>, <strong>do</strong>brasses o<br />
sentimento de te veres tão ingratamente persegui<strong>da</strong>, que ain<strong>da</strong> nas mesmas<br />
penas pode haver ventura, se nas próprias venturas pode haver desgraça.<br />
Assim em estes e semelhantes discursos passou a penosa noite o<br />
lastima<strong>do</strong> Peregrino, até que com os primeiros anúncios <strong>da</strong> vizinhança <strong>da</strong><br />
aurora, despertan<strong>do</strong> a Rogério e ao Ermitão, despedin<strong>do</strong>-se deles com<br />
palavras mui comedi<strong>da</strong>s, lhe foram ensinar o caminho que havia de seguir para<br />
subir ao monte. E voltan<strong>do</strong> o Ermitão e Dionísio, caminharam para o lugar de<br />
São Victor, onde o Ermitão era de to<strong>do</strong>s bem conheci<strong>do</strong> e respeita<strong>do</strong>; e<br />
perguntan<strong>do</strong> pela casa em que estava a pouco venturosa Teo<strong>do</strong>ra, a acharam<br />
já defunta de poucas horas e ain<strong>da</strong> naquele fúnebre espectáculo, com<br />
aparências de tão bela que parece que a morte não executara o golpe para<br />
privá-la <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, mas só para representar uma semelhança de morta. Tinha<br />
trespassa<strong>do</strong> o peito <strong>da</strong> cruel estoca<strong>da</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong> pela mão <strong>do</strong> mais ingrato<br />
homici<strong>da</strong>, tão ajusta<strong>da</strong> ao coração que, se dela não ficou feri<strong>do</strong>, ficou <strong>do</strong> golpe<br />
assombra<strong>do</strong>, e os espíritos vitais tão fugitivos <strong>do</strong> ferro que, desamparan<strong>do</strong> a<br />
quem de antes tão cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sos acudiam, deixaram de ser vitais, pois com seu<br />
retiro a privaram acovar<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
To<strong>do</strong>s estavam magoa<strong>do</strong>s no lugar de verem uma moci<strong>da</strong>de tão<br />
malogra<strong>da</strong>, uma beleza tão infelice, morta com tal rigor quem merecia a<br />
pie<strong>da</strong>de; que sempre, como disse Euripides, tem natural propensão a mulher<br />
para enternecer e abran<strong>da</strong>r. Aí referiram ao Ermitão como a defunta com<br />
muitas lágrimas se confessara e declarara às mulheres que na casa lhe<br />
assistiram como, ten<strong>do</strong> vin<strong>do</strong> de Sicília com o mata<strong>do</strong>r em uma nau que<br />
aportou na marítima ci<strong>da</strong>de de Rore, empório <strong>do</strong> mar Adriático poucas milhas<br />
distante de Manfredónia, por imagina<strong>do</strong>s ciúmes que teve <strong>do</strong> capitão <strong>da</strong> nau<br />
para com ela, que neles não estava culpa<strong>da</strong> em ofendê-lo, desembarcan<strong>do</strong> em<br />
terra, a levara àquele solitário lugar cautelosamente para lhe tirar a vi<strong>da</strong>, onde<br />
O memso que cre<strong>do</strong>r.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte II 377<br />
logo ficaria morta se um mancebo passageiro, acudin<strong>do</strong> ao clamor de seus<br />
bra<strong>do</strong>s, ao ingrato ofensor não tirara a vi<strong>da</strong>.<br />
Chegou nisto a justiça <strong>do</strong> lugar, trazen<strong>do</strong> o corpo morto <strong>do</strong> cruel<br />
Maurício trespassa<strong>do</strong> de estoca<strong>da</strong>s (mereci<strong>do</strong> castigo de sua impie<strong>da</strong>de), de<br />
quem to<strong>do</strong>s na<strong>da</strong> se compadeceram à vista <strong>da</strong> morte <strong>da</strong> malogra<strong>da</strong> Teo<strong>do</strong>ra,<br />
que de to<strong>do</strong>s geralmente era senti<strong>da</strong>. Com abun<strong>da</strong>ntes lágrimas <strong>do</strong> malogra<strong>do</strong><br />
Dionísio e não menos <strong>do</strong> Ermitão Felisberto se preparou honroso enterro a<br />
Teo<strong>do</strong>ra, que onde parou o desejo <strong>da</strong> vingança, renasceu a compaixão de sua<br />
acelera<strong>da</strong> morte; que não é justo que além <strong>da</strong> morte passe a memória <strong>do</strong>s<br />
agravos na vi<strong>da</strong> recebi<strong>do</strong>s, antes que com ela se sepultem, para eternamente<br />
se esquecerem. Ali, em pouco espaço de terra se escondeu muita gala <strong>da</strong><br />
beleza, grande suavi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> voz, o aplauso <strong>da</strong> discrição, o garbo <strong>da</strong> bizarria<br />
espanhola, que antigamente foram para o nosso Peregrino o encanto <strong>do</strong>s<br />
senti<strong>do</strong>s e o voluntário argel de seus amantes cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, a quem tributou seu<br />
coração tantos desvelos de afeiçoa<strong>do</strong>, como hoje lágrimas seus olhos de<br />
enterneci<strong>do</strong>s. Este troféu arvorou a morte por mostrar que to<strong>do</strong> o luzi<strong>do</strong> e<br />
fermoso que no mun<strong>do</strong> se estima são despojos de seu golpe, são ruínas de<br />
seu valor, deixan<strong>do</strong> em sombras as que foram luzes, em luto o que foi gala e<br />
em terra o que foi flor.<br />
O enterro de Maurício correu por conta <strong>da</strong> justiça. E os <strong>do</strong>us<br />
companheiros tornan<strong>do</strong> para a ermi<strong>da</strong> em que assistiram, depois de<br />
encomen<strong>da</strong>rem a Deus as almas <strong>do</strong>s defuntos, disse o Ermitão a Dionísio:<br />
- Já de hoje em diante podeis com mais alívio de vossos desgostos<br />
empregar os pensamentos em servirdes a Deus com to<strong>do</strong> o cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, pois<br />
vistes em que vieram a parar os que ofendi<strong>do</strong> vos tinham. Já não vos lembrem<br />
agravos, nem vos incitem vinganças, pois sem as procurardes com os olhos as<br />
vistes; que muitas vezes quan<strong>do</strong> menos no agravo se teme 373 , então chega<br />
mais depressa a satisfação.<br />
Desengana<strong>do</strong> estais como no mun<strong>do</strong> o amor é lisonja, pois se converteu<br />
em tirania; que nem soube Maurício entemecer-se às lágrimas, nem demover-<br />
se à fermosura, nem per<strong>do</strong>ar à moci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> malogra<strong>da</strong> Teo<strong>do</strong>ra, objecto hoje<br />
Ain<strong>da</strong> que a edição de 1734 registe a forma mete, julgamos preferível, atenden<strong>do</strong> ao<br />
contexto, manter a forma teme.
378 Padre Mateus Ribeiro<br />
de nossa compaixão. A vista pois de espelho em que tanto ao vivo se<br />
representam as ver<strong>da</strong>des, bem fio de vosso juízo perseverareis como discreto<br />
no acerto <strong>do</strong> retiro em que vivemos: que quem escapa <strong>do</strong>s perigos <strong>do</strong> mar<br />
tempestuoso deste mun<strong>do</strong>, erro fora de ajuiza<strong>do</strong> engolfar-se de novo na<br />
turbulenta confusão de seus enganos, sempre arrisca<strong>do</strong>s e tarde conheci<strong>do</strong>s.<br />
- Quan<strong>do</strong> eu (respondeu o Peregrino) os prémios que o mun<strong>do</strong> dá tanto<br />
à vista presentes não tivera, como magoa<strong>do</strong> vejo e compassivo choro, só<br />
vosso exemplo me obrigara a que fugin<strong>do</strong> ao deserto os conhecera. Aqui<br />
acabará minha vi<strong>da</strong>, onde teve princípio meu desengano, pois só então se<br />
começa a viver quan<strong>do</strong> se escolhe o meio de venturosamente acabar.<br />
Com isto se recolheram, e eu as redes de meus discursos, que se<br />
colherem o fruto de aliviar sentimentos, <strong>da</strong>rei por bem emprega<strong>do</strong> este<br />
trabalho.<br />
FIM.
Cap. I.<br />
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 379<br />
ALIVIO DE TRISTES<br />
E<br />
CONSOLAÇÃO DE QUEIXOSOS<br />
III. PARTE<br />
Da jorna<strong>da</strong> que Dionísio e Felisberto fizeram à casa de Nossa Senhora <strong>do</strong><br />
Loreto<br />
Mal feri<strong>do</strong> <strong>do</strong>s enganos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, se bem cura<strong>do</strong> com a vista <strong>da</strong>s<br />
mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e pouca firmeza de suas fugitivas esperanças, divertia o<br />
Peregrino Dionísio seus repeti<strong>do</strong>s sentimentos na companhia <strong>do</strong> Ermitão<br />
Felisberto, mais alivia<strong>do</strong> <strong>da</strong> pena e consola<strong>do</strong> nas queixas de seus passa<strong>do</strong>s<br />
sentimentos, sem já o inquietarem nem desejos vingativos <strong>do</strong> agravo, nem<br />
memórias importunas <strong>da</strong> ofensa <strong>da</strong> mal guar<strong>da</strong><strong>da</strong> fé de sua malogra<strong>da</strong> esposa<br />
Teo<strong>do</strong>ra; porque enfim tu<strong>do</strong> o que encobre a terra vem a riscar-se <strong>da</strong> memória,<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe princípio a vi<strong>da</strong> para sentir-se e a morte fim para esquecer-se, como<br />
diz Cícero. Com a mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> também as lembranças se mu<strong>da</strong>m:<br />
esquece-se o navegante <strong>da</strong>s tormentas quan<strong>do</strong> se vê na bonança, o preso <strong>da</strong>s<br />
cadeias, o cativo <strong>da</strong>s masmorras ven<strong>do</strong>-se na liber<strong>da</strong>de, o sol<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong>s riscos<br />
<strong>da</strong>s batalhas e <strong>do</strong>s discómo<strong>do</strong>s nas guerras sofri<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> descansa na paz,<br />
o aflito <strong>da</strong>s tristezas padeci<strong>da</strong>s quan<strong>do</strong> depois logra as alegrias; que porventura
380 Padre Mateus Ribeiro<br />
por essa causa chamaria Euripides ao esquecimento <strong>do</strong>s males remédio<br />
apeteci<strong>do</strong> <strong>do</strong>s descontentes, pois como esquecimento se cura o de que a<br />
natureza <strong>do</strong>s sentimentos desconfia.<br />
São os ares <strong>do</strong> esquecimento sempre salutíferos para convalecer de<br />
achaques <strong>do</strong>s agravos: to<strong>do</strong>s os ofendi<strong>do</strong>s, diz Cícero 375 , enfermam de<br />
sentimento; e assim como nos delírios frenéticos o remédio mais eficaz é o<br />
sono, assim na enfermi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s ofensas o remédio mais poderoso disse<br />
discretamente Públio Mimo 376 que era o olvi<strong>do</strong>. Ven<strong>do</strong>-se pois Dionísio na<br />
tranquili<strong>da</strong>de presente, sem já o inquietarem os desejos <strong>da</strong> vingança que, como<br />
rios arrebata<strong>do</strong>s que <strong>da</strong> ira nasciam, no mar lastimoso <strong>da</strong>s mortes de seus<br />
ofensores pararam, passava uma vi<strong>da</strong> inquieta por desengana<strong>da</strong> e pacífica por<br />
diverti<strong>da</strong>, que são os <strong>do</strong>us pólos que pode ter a mortal vi<strong>da</strong> para nem a<br />
desviarem ambições de pertendente, nem a molestarem sentimentos de<br />
ofendi<strong>do</strong>. São estes <strong>do</strong>us motivos inimigos declara<strong>do</strong>s <strong>do</strong> descanso, não<br />
conceden<strong>do</strong> ao ambicioso paz seus inquietos desejos, nem permitin<strong>do</strong> ao<br />
agrava<strong>do</strong> tréguas a molesta memória de sua apeteci<strong>da</strong> vingança: sempre foi a<br />
ambição, como lhe chamou Aristóteles, a causa <strong>da</strong>s divisões, tumultos e<br />
inquietações <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des, como se viu antigamente em Atenas, Roma e<br />
Cartago, e quasi em nossos tempos em Génova, Sena, Florença e outras<br />
muitas em que o desejo de <strong>do</strong>minar brotou tantas parciali<strong>da</strong>des e ban<strong>do</strong>s,<br />
custan<strong>do</strong> tantas vi<strong>da</strong>s e derraman<strong>do</strong> tantos rios de sangue um desejo de mais<br />
luzir e uma pertensão de mais valer.<br />
Pergunta<strong>do</strong> Júlio César por seus companheiros em um lugar pequeno e<br />
tosco, situa<strong>do</strong> entre as fragosas serranias <strong>do</strong>s montes Alpes, desabriga<strong>do</strong> ao<br />
rigor <strong>do</strong>s ventos e exposto à inclemência <strong>da</strong>s neves, se entre os poucos e<br />
grosseiros mora<strong>do</strong>res de tão rústica habitação poderia <strong>da</strong>r-se ambiciosa<br />
competência de primazias, respondeu César que antes elegera ser ele o<br />
primeiro em tão pobre lugar <strong>do</strong> que ser o segun<strong>do</strong> na política grandeza e<br />
opulência de Roma. Costumava dizer o insigne capitão <strong>do</strong>s atenienses,<br />
Temístocles, que a glória militar que o vitorioso general Melcíades tinha<br />
Euripid., in Orest.<br />
Cicer., Pro Flacc.<br />
Publ. Mim., DeAmicit.
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte III 381<br />
adquiri<strong>do</strong> na imortal batalha de Maratona contra os persas era um perpétuo<br />
desperta<strong>do</strong>r que nem de dia lhe permitia sossego, nem de noite lhe concedia<br />
lugar ao sono para o descanso. Foi o romano Lúcio Sila tão ambicioso de<br />
<strong>do</strong>minar e de sobre to<strong>do</strong>s ele só luzir que, com ser o grande Pompeu o<br />
principal de seu séquito e que ao seu ban<strong>do</strong> patrocinava, não podia levar em<br />
paciência as honras que o povo romano a Pompeu fazia, sentin<strong>do</strong> e<br />
dissimulan<strong>do</strong> no íntimo de seu coração ver a outro aplaudi<strong>do</strong>, desejan<strong>do</strong><br />
estancar em si só to<strong>da</strong>s as honras, para que a ninguém mais se<br />
comunicassem.<br />
Diferente exemplo nos dá o mar porque, suposto que seja o centro em<br />
que to<strong>do</strong>s os rios e fontes finalmente param, logo torna a repetir-lhes liberal<br />
quantos tributos de suas águas recebe, acrescentan<strong>do</strong> muitas vezes o cabe<strong>da</strong>l<br />
maior a quem por arroio pobre lhe ofereceu menos; que é desempenho de<br />
generosos remunerar com vantagens o que se recebe. Não inquietavam pois<br />
ao nosso desengana<strong>do</strong> Peregrino nem lisonjas <strong>da</strong> ambição, porque na<strong>da</strong><br />
pertendia, nem o molestavam vingativos sentimentos, pois na morte de sua<br />
ingrata esposa e falso amigo se tinham sepulta<strong>do</strong> suas memórias. Assim isento<br />
dessa pensão <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s (que nunca foram os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s limita<strong>da</strong> pensão de<br />
quem os sustenta) passava a vi<strong>da</strong>; que só pode com razão dizer que vive quem<br />
sem cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s a passa, que o viver com cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s mais é durar <strong>do</strong> que viver.<br />
Era o tempo <strong>da</strong> Primavera entre Abril e Maio, coroa flori<strong>da</strong> <strong>do</strong> ano,<br />
quan<strong>do</strong> este se mostra mais alegre para desterrar as tristezas <strong>do</strong> Inverno, que<br />
até os campos sentiram, sen<strong>do</strong> incapazes <strong>do</strong> sentimento. Vestia o sol com<br />
seus benignos raios os campos <strong>da</strong> verde e vistosa libré de sua relva, de quem<br />
aprendiam as esmeral<strong>da</strong>s as agradáveis lições de seus luzi<strong>do</strong>s ver<strong>do</strong>res e os<br />
pra<strong>do</strong>s trajan<strong>do</strong>-se de gala natural de suas flores eram lisonja apeteci<strong>da</strong> <strong>do</strong>s<br />
olhos e recreio aplaudi<strong>do</strong> <strong>da</strong> vista. Ouvia-se a suave melodia <strong>da</strong>s músicas aves<br />
que, entre o delicioso <strong>do</strong> bosques, cantan<strong>do</strong> sem solfa se mostravam tão<br />
destras nos assentos de sua harmonia, que lhe tinha passa<strong>do</strong> a natureza carta<br />
de exame para cantarem não menos seguras que confia<strong>da</strong>s, alegran<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s<br />
os passageiros que as ouviam para que <strong>da</strong> moléstia <strong>do</strong> caminho<br />
descansassem; pois, como ensina Aristóteles, to<strong>da</strong>s as moléstias com a<br />
música se aliviam.
382 Padre Mateus Ribeiro<br />
Livres corriam os rios <strong>da</strong>s vagarosas prisões de neve e grilhões de<br />
cristal em que tanto tempo os tinha embarga<strong>do</strong> o Inverno, rigoroso executor e<br />
acre<strong>do</strong>r inexorável, e <strong>da</strong>s próprias correntes, que de antes o prendiam, faziam<br />
correntes com que caminhavam ou, para melhor dizer, corriam; que em passos<br />
tão apressa<strong>do</strong>s mais parece o movimento fugi<strong>da</strong> de quem se teme que jorna<strong>da</strong><br />
de quem caminha. Murmuravam as fontes mais por costume que por causa<br />
(que não necessita desta quem tem o murmurar por costume) e com ambições<br />
de aspirarem a rios se esqueciam de serem fontes; que sempre se descui<strong>da</strong><br />
em conhecer-se, quem ambicioso a mais subir se arroja.<br />
Tinham feito tréguas entre si o Inverno e o Estio para suspenderem as<br />
armas <strong>da</strong>s setas <strong>do</strong> frio e os raios <strong>do</strong> calor com que sempre à campanha<br />
saíam; e as árvores, que tinham senti<strong>do</strong> as hostili<strong>da</strong>des <strong>do</strong> frio no despojo <strong>da</strong>s<br />
galas, agora na suspensão <strong>da</strong>s armas recompensan<strong>do</strong> o roubo de novo se<br />
vestiam, deixan<strong>do</strong> em discreta suspensão para saber avaliar-se se foi menos o<br />
que perderam, se o que de novo lograram. Neste pois alegre tempo, que se lhe<br />
não competia o título de século <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>, ao menos não se lhe podia negar o<br />
privilégio de século flori<strong>do</strong>, agra<strong>do</strong> <strong>da</strong> vista, lisonja <strong>do</strong> tempo, delícias <strong>do</strong> ano,<br />
recreio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, breve quan<strong>do</strong> se logra e dilata<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> se sente perdi<strong>do</strong>, de<br />
pouca duração nas posses como to<strong>da</strong>s as alegrias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, de quem diz São<br />
Cipriano que como sombra passam pelo pouco que perseveram; pediu um dia<br />
Dionísio a seu companheiro Felisberto quisesse acompanhá-lo a uma romaria<br />
que tinha prometi<strong>do</strong> havia já tempo à milagrosa casa e admirável santuário,<br />
honra de Itália e tesouro inestimável <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>, a camera angelical <strong>da</strong><br />
Virgem Nossa Senhora <strong>do</strong> Loreto, sita junto à ci<strong>da</strong>de de Recanate e vizinha ao<br />
mar Adriático, milagroso hospício de to<strong>da</strong> a cristan<strong>da</strong>de.<br />
- Suposto que minha i<strong>da</strong>de (respondeu Felisberto) me pudera desculpar<br />
<strong>do</strong> aforismo geral de Plutarco em que diz: Uma <strong>da</strong>s obrigações <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira<br />
amizade é querer o mesmo que o amigo quer para mostrar que a vontade é<br />
uma só pelo amor, sen<strong>do</strong> duas distantes pela natureza; não sen<strong>do</strong> tanto de<br />
temer a velhice para si como por vir acompanha<strong>da</strong>, como disse Euripides, de<br />
to<strong>da</strong>s as moléstias juntas, contu<strong>do</strong> por ser a jorna<strong>da</strong> tão meritória e a romaria<br />
de tanta devoção que mil vezes me persuadiu o desejo a emprendê-la, me<br />
ofereço a fazer-vos companhia porque me lembra que ensina o padre São
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 383<br />
Jerónimo que nem os merecimentos se adquirem sem trabalhos, nem estes se<br />
devem avaliar por grandes quan<strong>do</strong> por eles a eterni<strong>da</strong>de se adquire.<br />
Com notável alegria lhe rendeu o Peregrino Dionísio as graças <strong>do</strong> favor<br />
que recebia em querer acompanhá-lo nesta pia jorna<strong>da</strong>, pois sua prudência era<br />
de tanta estimação quanto ele em sua companhia tinha experimenta<strong>do</strong>.<br />
- To<strong>da</strong> a nossa vi<strong>da</strong> ensina o Padre Santo Agostinho (disse o Ermitão)<br />
ser uma perpétua peregrinação e uma repeti<strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> em que an<strong>da</strong>mos sobre<br />
a terra, sem ter <strong>do</strong>micílio seguro quem só no céu tem seu próprio descanso, e<br />
assim não é novi<strong>da</strong>de o peregrinar quem sempre an<strong>da</strong> no mun<strong>do</strong> peregrino. O<br />
Séneca disse que para o sábio era pátria to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, mas para o virtuoso<br />
to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> é desterro enquanto se dilata o chegar à nossa ver<strong>da</strong>deira pátria.<br />
Assim discursan<strong>do</strong> nesta matéria se resolveram em partirem na<br />
madruga<strong>da</strong> <strong>do</strong> seguinte dia a <strong>da</strong>r princípio à sua romaria.<br />
Cap. II.<br />
Como os nossos romeiros partiram <strong>da</strong> ermi<strong>da</strong> e <strong>do</strong> encontro que no caminho<br />
tiveram<br />
Apareceu a aurora com os prelúdios de sua luz entre as confusas luzes<br />
<strong>da</strong> sombria noite que, ressenti<strong>da</strong> de perder a posse em que estivera, se movia<br />
com passos tão lentos e vagarosos, que se por temor <strong>da</strong> vizinhança <strong>do</strong> dia se<br />
despedia, bem mostrava quanto violenta<strong>da</strong> o campo deixava. Sen<strong>do</strong> a aurora<br />
tão antiga como o sol, ca<strong>da</strong> vez nasce mais bela; que não sente os defeitos <strong>da</strong><br />
i<strong>da</strong>de quem sempre de novo nascen<strong>do</strong> não excede os termos <strong>da</strong> meninice.<br />
Pouco valor tivera a aurora para desterrar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> os poderes <strong>da</strong> noite se lhe<br />
não deram socorro os valentes resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol que de to<strong>do</strong> a põem em<br />
fugi<strong>da</strong>, porque ao assalto de tão brilhantes raios mal podiam resistir sem retirar-<br />
se as sombras. A este tempo, pois que a purpúrea cortina <strong>do</strong> horizonte<br />
começava a vestir o mun<strong>do</strong> de alegria, haven<strong>do</strong> o Ermitão encomen<strong>da</strong><strong>do</strong> as<br />
chaves e cui<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>da</strong> sua ermi<strong>da</strong> a um amigo seu <strong>do</strong> lugar mais vizinho<br />
enquanto durasse a devota jorna<strong>da</strong> que faziam, saíram os <strong>do</strong>us romeiros a <strong>da</strong>r
384 Padre Mateus Ribeiro<br />
princípio à romaria nos últimos dias de Maio, o tempo mais delicioso que o ano<br />
logra.<br />
Dous caminhos se ofereciam aos nossos caminhantes para seguirem a<br />
jorna<strong>da</strong>, um pelas ribeiras <strong>do</strong> mar Adriático e outro pela terra dentro; e<br />
seguin<strong>do</strong> o parecer de Plutarco, em que diz que assim como a navegação tanto<br />
fica sen<strong>do</strong> mais agradável quanto não perde a vista <strong>da</strong> terra, assim a jorna<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> terra tanto tem de mais deliciosa quan<strong>do</strong> se faz à vista <strong>do</strong> mar; quiseram os<br />
nossos passageiros seguir o caminho em que nem de to<strong>do</strong> fosse pela costa<br />
marítima, nem de to<strong>do</strong> pelo serrão, para assim lograrem juntamente as<br />
comodi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> terra e o aprazível <strong>da</strong> vista <strong>do</strong> mar.<br />
Começava o sol a retratar seus brilhantes resplan<strong>do</strong>res nos inquietos<br />
cristais <strong>da</strong>s buliçosas on<strong>da</strong>s, sen<strong>do</strong> tantos os espelhos em que se viam<br />
quantas eram as on<strong>da</strong>s em que seus raios espalhava. Variavam-se os<br />
horizontes com a varie<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s passos, descobrin<strong>do</strong>-se de uma parte as<br />
eminências <strong>do</strong>s montes, o espaçoso <strong>do</strong>s campos com a diversi<strong>da</strong>de de<br />
lugares, desvelos <strong>do</strong> lavra<strong>do</strong>r cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so, descui<strong>do</strong>s apeteci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> passageiro<br />
molesta<strong>do</strong>. Feriavam os ventos de seu contínuo movimento, deixan<strong>do</strong> em<br />
calma os ramos <strong>da</strong>s copa<strong>da</strong>s árvores para sossegarem a inquietação em que<br />
viviam. Acometiam de outra parte às penhas mais seguras as on<strong>da</strong>s mais<br />
inconstantes, retiran<strong>do</strong>-se acovar<strong>da</strong><strong>da</strong>s se se tinham mostra<strong>do</strong> no avançar<br />
atrevi<strong>da</strong>s (que costuma desenganar a resistência a quem lisonjeava a ousadia),<br />
e parecen<strong>do</strong> de antes serras de cristal, se retiravam vales de neva<strong>da</strong> escuma.<br />
Com o recreio <strong>da</strong> vista, ameno <strong>do</strong> tempo, o alegre <strong>do</strong> dia sem calma que<br />
molestasse nem frio que ofendesse, pazes que tinha o ano celebra<strong>do</strong> entre o<br />
Inverno que se ausentava e o Estio que vizinho vinha, caminhavam alegres os<br />
<strong>do</strong>us companheiros, quan<strong>do</strong> ao tempo que o sol tinha subi<strong>do</strong> ao auge <strong>do</strong><br />
hemisfério, diminuin<strong>do</strong> as sombras que em seu nascimento agiganta<strong>da</strong>s se<br />
viram, sen<strong>do</strong> os mesmos raios <strong>do</strong> sol os que as fizeram grandes e os que lhe<br />
usurparam a grandeza (porque não há na terra tão seguro favor, que assim<br />
como pode causar o patrocínio, não possa igualmente ocasionar o <strong>da</strong>no),<br />
quan<strong>do</strong> começaram a caminhar pela espaçosa campanha <strong>da</strong> Apulha Capitana,<br />
sítio falto de to<strong>da</strong> a frescura de arvore<strong>do</strong>, planície descoberta aos ardentes<br />
raios <strong>do</strong> sol, falta de fontes, estéril de rios, pobre de arroios e careci<strong>da</strong> de<br />
ameni<strong>da</strong>de aos que por ela passam.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 385<br />
Não é maravilha que na arábia deserta se surquem golfos de areia em<br />
terra firme: pensão que pagam os caminhantes aos ardentes raios <strong>do</strong> sol que<br />
abrasan<strong>do</strong> a terra, de to<strong>do</strong> a esteriliza de frescura; quan<strong>do</strong> no coração de Itália<br />
se dá sítio tão falto de to<strong>do</strong> o abrigo que parece mu<strong>da</strong>r de natureza e, sen<strong>do</strong> o<br />
melhor clima <strong>da</strong> Europa, emparelhar no estéril com o mais inculto <strong>da</strong> Ásia ou o<br />
mais molesto <strong>da</strong> Líbia. Era o calmoso <strong>do</strong> sol que neste sítio dá posse ao rigor<br />
<strong>do</strong> Estio antes de tempo, o seco <strong>da</strong> campanha, a falta de sombras que<br />
servissem de escu<strong>do</strong>s contra os incêndios de seus raios, a carestia <strong>da</strong> água<br />
grande para o molesto <strong>do</strong> caminho, tanto então mais apeteci<strong>da</strong>, quanto de<br />
achar-se mais impossibilita<strong>da</strong>. Algum espaço tinham já an<strong>da</strong><strong>do</strong> desta inculta<br />
campanha com o desejo de ver se podiam descobrir algum refúgio contra o sol<br />
e algum alívio contra a sede, que de si é tão insofrível que lhe chamou Santo<br />
Anselmo 377 remédio contra a fome, porque com a veemência <strong>do</strong> desejo de<br />
remediar a sede se esquece a moléstia de satisfazer à fome; quan<strong>do</strong> os nossos<br />
caminhantes ouviram o débil murmurar de uma pequena fonte, que apenas se<br />
sentia que murmurava, ou por envergonhar-se de murmurar ela só aonde<br />
nenhuma outra lhe respondia, ou por parecer-lhe desaire com tão pouco<br />
cabe<strong>da</strong>l fazer motejos de outras que mais ricas e opulentas haveria, pois, como<br />
diz Juvenal 378 , é desprezo para os ricos a inópia <strong>do</strong> pobre; e bem se mostrava<br />
ser pobre a fonte, pois em lugar tão solitário vivia.<br />
Seguiram os caminhantes a pequena sangria de cristal que em lugar de<br />
arroio lentamente corria, pois para se intitular arroio era pequena e para<br />
sangria não excedia, e foram parar na deseja<strong>da</strong> fonte que no tosco berço de<br />
uns pene<strong>do</strong>s nascia tão pobre que em cama de espa<strong>da</strong>nas e juncos como<br />
envergonha<strong>da</strong> se escondia. Estava junto a ela assenta<strong>do</strong> um mancebo de<br />
agradável presença e bem vesti<strong>do</strong> no traje, mas ao que mostrava no parecer<br />
tão triste que, por mais que com a chega<strong>da</strong> <strong>do</strong>s caminhantes quis disfarçar a<br />
seus olhos algumas furta<strong>da</strong>s lágrimas de que ain<strong>da</strong> se mostravam<br />
humedeci<strong>do</strong>s, não pôde de to<strong>do</strong> ocultar os indícios <strong>do</strong> que foram que<br />
desmentissem as memórias <strong>do</strong> que eram; sau<strong>da</strong>ram-no cortesmente os<br />
passageiros, a que ele respondeu com a própria cortesia, e despois de<br />
S. Anselm., Sup. Epist. ad Roman.<br />
Juven., Satyr. 3.
386 Padre Mateus Ribeiro<br />
haverem satisfeito a sede que os tinha molesta<strong>do</strong>, escusan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> sol, não<br />
com a sombra <strong>da</strong>s árvores que no sítio não havia, mas com a que lhes causava<br />
a <strong>do</strong>s incultos pene<strong>do</strong>s que a fonte em ro<strong>da</strong> cercavam, o Ermitão lhe disse<br />
assim:<br />
- O excesso <strong>do</strong> calor que o sol a estas horas mostra e o cansaço <strong>do</strong><br />
caminho que hoje senti<strong>do</strong> temos, nos obriga a descansar ao abrigo desta fonte,<br />
que se bem é tão limita<strong>da</strong> na corrente, como desampara<strong>da</strong> no sítio, contu<strong>do</strong> a<br />
faz parecer-nos cau<strong>da</strong>losa o desejo que trazíamos de vê-la e as desconfianças<br />
de encontrá-la. E se vosso caminho, senhor, for o mesmo que seguimos, e não<br />
tendes precisa causa que vos obrigue a maior pressa, estimarei vamos em<br />
companhia, como abran<strong>da</strong>r o sol o mais intenso <strong>do</strong>s raios que agora nos<br />
molestam.<br />
- É, senhores (respondeu o forasteiro), meu caminho tão incerto como<br />
de quem vai seguin<strong>do</strong> os passos <strong>da</strong> fortuna, e sen<strong>do</strong> esta tão vária, que<br />
consiste seu ser na própria mu<strong>da</strong>nça, que passos pode <strong>da</strong>r seguros quem se<br />
guia por farol tão inconstante? Dela disse Marco Túlio 379 que era nece<strong>da</strong>de<br />
louvá-la e vituperá-la soberba, porque quan<strong>do</strong> se agradece então falta e<br />
quan<strong>do</strong> se culpa então favorece. E como minha vi<strong>da</strong> é um espelho em que se<br />
retrata ao vivo sua pouca firmeza, nem sei para onde caminho derrota<strong>do</strong>, nem<br />
saberei afirmar que fim poderão ter os perío<strong>do</strong>s que acompanha<strong>do</strong> de minhas<br />
tristezas sigo.<br />
- O primeiro móvel de nossas acções (disse o Ermitão) ensina<br />
Aristóteles 380 que é o fim a que se dirigem; e o Séneca diz que não há caminho<br />
sem termo, em que parece assim como to<strong>do</strong>s os rios tem no mar seu termo e<br />
seu sepulcro, assim parece cousa difícil que ignoran<strong>do</strong> vós, senhor, o fim,<br />
prossigais no seguimento <strong>do</strong>s meios. E se a causa permite manifestardes o<br />
motivo de vosso sentimento, porventura que quan<strong>do</strong> não consigais remédio,<br />
talvez que recebais alívio.<br />
- Esse (respondeu o passageiro) tenho por impossível, e para que<br />
conheçais, senhores, que com justa causa dificulto o alívio, afirman<strong>do</strong> ser<br />
impossível a meus pesares o remédio, satisfarei aos desejos que mostrais de<br />
Cicer., 1. De invent.<br />
Arist., Phisic. 2. in Epist.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 387<br />
conhecerdes a causa deles, se o tempo conceder espaço para compendiar<br />
infortúnios tão sem compêndio.<br />
Mui agradeci<strong>do</strong>s lhe deram as graças os romeiros <strong>do</strong> favor que nisso<br />
lhes fazia, e ele, não menos triste que cortês, começou sua história desta sorte:<br />
Cap. III.<br />
Em que Felizar<strong>do</strong> dá princípio a seus discursos<br />
- Na romana Transpa<strong>da</strong>na, região fértil de Itália, além <strong>do</strong> tão celebra<strong>do</strong><br />
rio Pó, está edifica<strong>da</strong> a ilustre ci<strong>da</strong>de de Ferrara, que escreve Gabriel<br />
Veneziano nos seus anais de Veneza ser sua primeira fun<strong>da</strong>ção obra <strong>do</strong>s<br />
antigos troianos, quan<strong>do</strong> derrota<strong>do</strong>s aportaram a Itália, empório comum de<br />
várias nações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que a ela tem vin<strong>do</strong>. Com o discurso <strong>do</strong> tempo que,<br />
como diz Quintiliano 381 , tu<strong>do</strong> vai mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong>, ou para a grandeza, ou para a<br />
ruína, como bem escreveu Cícero 382 , veio Ferrara de pequenos princípios a ter<br />
tantos aumentos de edifícios sumptuosos, povo inumerável, nobreza ilustre e<br />
digni<strong>da</strong>des que pelo Sumo Pontífice Paulo Segun<strong>do</strong> foi constituí<strong>da</strong> em duca<strong>do</strong>,<br />
que ao tempo presente se mu<strong>do</strong>u ao título de Módena, em que persevera com<br />
livre <strong>do</strong>mínio entre os maiores príncipes de Itália. Nesta ínclita e poderosa<br />
ci<strong>da</strong>de, a quem o Pó com a cau<strong>da</strong>losa corrente banha os muros com seus<br />
cristais em que sua beleza se retrata, nasci eu de pais ilustres no sangue, <strong>da</strong>s<br />
famílias mais antigas de Ferrara, se bem por vários sucessos <strong>da</strong> fortuna menos<br />
poderosos na riqueza, mas não de sorte que a falta desta diminuísse muito o<br />
antigo lustre de nossa família, porque passavam meus pais com uma mediania<br />
que, se não era bastante para lhes aumentar a grandeza, contu<strong>do</strong> não tinha<br />
poderes para usurpar-lhe o decoro de quem eram. Puseram-me por nome<br />
Felizar<strong>do</strong> e como filho único fui cria<strong>do</strong> com cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e amor singular, como<br />
coluna que havia de sustentar o esplen<strong>do</strong>r de sua casa; que assim chamou<br />
Quintil., Lib. 3.<br />
Cicer., Pro Muren.
388 Padre Mateus Ribeiro<br />
Euripides aos filhos varões, colunas que sustentam a glória de seus<br />
progenitores.<br />
Inclinou-me meu natural às letras e assim para prossegui-las me parti a<br />
Bolonha, mãe <strong>da</strong> erudição e mestra <strong>da</strong>s ciências de Itália, aonde com o<br />
discurso <strong>do</strong>s anos que nela assisti me graduei em os sagra<strong>do</strong>s Cânones com<br />
grande alegria de meus pais, que por este caminho me intentavam subir à<br />
digni<strong>da</strong>de e esta<strong>do</strong> que seu amor desejava. Duas vezes é pai, disse<br />
Diógenes 383 , quem a seus filhos man<strong>da</strong> ensinar as ciências decentes a seu<br />
esta<strong>do</strong>; porque, como ensina Aristóteles 384 , se pela geração lhe deu o ser <strong>da</strong><br />
natureza, pela educação <strong>da</strong>s boas artes e ciências lhe deu o segun<strong>do</strong> ser <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> política para aos outros avantajar-se no esta<strong>do</strong>, e sen<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s igual<br />
quan<strong>do</strong> nasceu, a muitos se avantajou quan<strong>do</strong> estu<strong>do</strong>u. Mais estimou Filipe<br />
macedónico o nascer Alexandre em tempo de Aristóteles para ensiná-lo <strong>do</strong> que<br />
o haver nasci<strong>do</strong> para na coroa suceder-lhe; porque ain<strong>da</strong> nas coroas e ceptros<br />
é lustre particular a sabe<strong>do</strong>ria que os raios <strong>da</strong> coroa esmalta e faz que mais<br />
resplandeçam.<br />
Vinte seis anos teria eu de i<strong>da</strong>de quan<strong>do</strong> me graduei em Bolonha,<br />
desejoso de vir já assistir com quietação em minha pátria de quem me tinha<br />
ausenta<strong>do</strong> tantas vezes, sem em o discurso deste tempo haverem ocupa<strong>do</strong><br />
meu desejo mais que os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e contínuos desvelos de meu estu<strong>do</strong>; pois,<br />
como diz Plutarco 385 , não admitem as ciências, a quem a elas com desejo se<br />
não aplica, férias para se divertir a vai<strong>da</strong>de, que mal se compadecem<br />
empenhos <strong>do</strong> entendimento com distraimento a vontade. Escreveu Dionísio,<br />
tirano de Sicília, a Platão, lembran<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> desabrimento com que o havia<br />
trata<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> em Sicília esteve, que lhe pedia muito que não dissesse dele<br />
mal; ao que Platão lhe respondeu que tinha tão ocupa<strong>da</strong> a memória com seus<br />
estu<strong>do</strong>s que nem se lembrava se neste mun<strong>do</strong> Dionísio havia para conhecê-lo,<br />
quanto mais para murmurá-lo. Porém como se chegava o tempo em que deste<br />
ócio em que vivia viesse a experimentar as inquietações que hoje padeço,<br />
passan<strong>do</strong> <strong>da</strong> bonança à tempestade, <strong>do</strong> descui<strong>do</strong> seguro ao desvelo perigoso,<br />
Diógenes, apud Stob.<br />
Arist., Ethic. 8.<br />
Plutar., De Tranquil.
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte III 389<br />
<strong>da</strong> paz <strong>do</strong> descanso à guerra <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e <strong>do</strong> viver na pátria a viver hoje<br />
dela desterra<strong>do</strong>.<br />
Sucedeu que entre os vários lugares e povoações que enobrecem o<br />
território de Ferrara, caminhan<strong>do</strong> pela ribeira <strong>do</strong> rio até <strong>do</strong>nde entra no mar a<br />
pagar-lhe o tributo que como vassalo lhe deve <strong>do</strong> mais cau<strong>da</strong>loso de suas<br />
águas, um <strong>do</strong>s lugares mais conheci<strong>do</strong>s é o de Fossa, pelo ser assim no<br />
número de seus mora<strong>do</strong>res e fertili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> terreno, como por ficar mais vizinho<br />
ao mar, em que o rio como em sepulcro de cristal se esconde. A este lugar<br />
costumava eu ir algumas vezes com outros amigos, assim a divertir-me no<br />
exercício <strong>da</strong> caça como na pescaria <strong>do</strong> rio, lisonjea<strong>do</strong> <strong>do</strong> gosto que recebia<br />
com a vista <strong>do</strong> mar, que sempre a quem o vê <strong>da</strong> terra é agradável. Sucedeu<br />
pois que junto a uma fonte que no ameno de um bosque nascia, tão desejosa<br />
de ver os resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol que desejava subir <strong>do</strong> vale às serras para<br />
participar em descoberto o mais brilhante de suas luzes, que ao tempo <strong>da</strong><br />
sesta visse assenta<strong>da</strong> uma moça em traje lavra<strong>do</strong>ra, por quem discretamente<br />
podiam deixar-se os povoa<strong>do</strong>s para assistir em seus campos o pequeno arroio<br />
que <strong>da</strong> fonte corria para vê-la, que cousas de admiração fazem hidrópico o<br />
desejo para não satisfazer-se.<br />
Era seu rosto desluzimento <strong>da</strong> Primavera quan<strong>do</strong> mais flori<strong>da</strong>, que o<br />
neva<strong>do</strong> <strong>da</strong>s açucenas e a encarna<strong>da</strong> púrpura <strong>da</strong> rosa mais viva parece se<br />
achava nela que nos pra<strong>do</strong>s. Não pareça o encarecimento lisonja de rendi<strong>do</strong>,<br />
porque era tal o sujeito de Amatilde que os melhores juízos em louvá-la podiam<br />
graduar-se de discretos, sem a censura de parecer em que aspiravam ao<br />
valimento de excessivos. Sobre as esmeral<strong>da</strong>s de seus olhos fiarem-se os<br />
corações, parece que não era exceder o preço <strong>do</strong> que se <strong>da</strong>va, se fora a<br />
firmeza <strong>da</strong>s pren<strong>da</strong>s que se recebiam, pois as pren<strong>da</strong>s que no melhor podem<br />
negar-se tem muito valor para estima<strong>da</strong>s, trazem grandes cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s para<br />
possuí<strong>da</strong>s. Era Amatilde mimo singular <strong>da</strong> natureza, anima<strong>da</strong> tirania <strong>do</strong> amor,<br />
registo <strong>da</strong>s vontades, imperioso senhorio <strong>do</strong>s corações para cuja vista se vestia<br />
a admiração de novo espanto, pois quanto mais a via, maiores encómios lhe<br />
oferecia o discurso, maiores sujeições lhe rendia a vontade.<br />
Bem sei, senhores, que avaliareis por exagerações o dilata<strong>do</strong> com que<br />
encareci a beleza de Amatilde, mas quan<strong>do</strong> pelo discurso de minha história<br />
ouvirdes os efeitos que dela resultaram, ain<strong>da</strong> sem a verdes julgareis que me
390 Padre Mateus Ribeiro<br />
deve pouco nos aplausos, porque para louvá-la to<strong>do</strong>s os aplausos vem a ser<br />
poucos. Era um verde listão venturoso alcaide que prendia a <strong>do</strong>ura<strong>da</strong> madeixa<br />
de seus cabelos (que muitas vezes se comunicam as venturas a quem as não<br />
conhece) e com o sobressalto de ver-me em lugar tão sombrio, que duvi<strong>da</strong>va o<br />
sol nele entrar com receio de não poder sair, foi o susto ligeiro sumilher <strong>da</strong><br />
cortina carmesim de seu rosto, com que envergonhou os cravos que páli<strong>do</strong>s<br />
ficaram à sua vista, padecen<strong>do</strong> eles o desmaio maior, quan<strong>do</strong> ela o sobressalto<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Intentou ausentar-se por entre a lame<strong>da</strong> que sitiava a fonte com<br />
cordão de verdes ramos, mais para defendê-la que para conquistá-la, mas<br />
atalhou seus passos minha cortesia, que ela em conhecê-la mostrou que tinha<br />
só o traje <strong>do</strong> campo e o brio <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Ouviu minhas desculpas em ser-lhe<br />
molesta minha chega<strong>da</strong>, pois achei a ventura sem buscá-la, que poucas vezes<br />
esta se acha quan<strong>do</strong> se busca; que vinha sequioso à fonte por água e achei<br />
incêndios, e murmuraria justamente a fonte de mim se se ausentava, que<br />
quan<strong>do</strong> mais cau<strong>da</strong>losa nos cristais a deixava em seco de esperanças, pois em<br />
seu retiro as perdia e com a vista as sustentava. Com estas e outras<br />
semelhantes palavras que me não lembram, intentei satisfazer seu decoroso<br />
temor, que ela abreviou com dizer que para desculpas bastavam e para<br />
lisonjas as não entendia, e com uma mesura cortês se despediu; nem eu<br />
intentei ser-lhe molesto com replicar-lhe, pois nunca o importuno foi aceito,<br />
porque to<strong>do</strong> o penoso não se isenta de ser aborreci<strong>do</strong>.<br />
Falan<strong>do</strong> Platão 386 <strong>da</strong> fermosura, disse que era a cousa mais amável que<br />
a natureza produzira, porque sen<strong>do</strong> de ordinário a fermosura soberba pela<br />
presunção, como diz Ovídio 387 , e como agradeci<strong>da</strong> pelo isento e senhoril em<br />
que se estima, é tão poderosa na vista que se faz amar ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> o não<br />
procura nem intenta esse amor agradecer. Entra a beleza em campo com a<br />
vontade sem motivos que para ser queri<strong>da</strong> obrigá-la possam, nem por boas<br />
obras que lhe haja feito, nem por favor algum em que lhe esteja deve<strong>do</strong>ra,<br />
antes talvez ofendi<strong>da</strong> <strong>da</strong> sequidão, ou agrava<strong>da</strong> <strong>do</strong> esquivo, ou ressenti<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
ingrato, incentivos to<strong>do</strong>s mais para aborrecer que para amar, e com ser assim<br />
deixa-se a vontade mil vezes lisonjear <strong>do</strong> agradável que vê, divertin<strong>do</strong>-se <strong>do</strong><br />
Plat., De Pulchrit.<br />
Ovid., 5. Fast.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 391<br />
esquivo que sente. É o primeiro berço em que amor nasce o delicioso <strong>da</strong> vista,<br />
não o agradeci<strong>do</strong> <strong>do</strong> favor, e pode mais a simpatia que tem com a beleza <strong>do</strong><br />
que a conveniência que tem com a isenção, o suborno de ver que o útil <strong>do</strong><br />
discursar.<br />
Assim me sucedeu a mim neste dia, que sen<strong>do</strong> a vez primeira que viram<br />
meus olhos Amatilde em traje de pastoril disfarce, em que se encobria uma<br />
generosi<strong>da</strong>de ilustre, um brio senhoril e um <strong>do</strong>naire cortesão, clamores que<br />
sem vozes <strong>da</strong>va o natural contra o rebuço; e ao mesmo intento falou<br />
Plutarco 388 , dizen<strong>do</strong> que as demonstrações <strong>da</strong> natureza não necessitavam <strong>do</strong>s<br />
socorros <strong>da</strong> fortuna para descobrir-se; no mesmo instante que vi em Amatilde<br />
tantos prodígios de beleza em poucos anos de i<strong>da</strong>de, e tão grave brio no retiro<br />
no tosco <strong>do</strong> traje camponês, rendi a liber<strong>da</strong>de sem conhecer de quem ficava<br />
prisioneiro. Descifrar o que se oculta, antever o que se esconde, adivinhar o<br />
que se encobre nos emblemas e enigmas, talvez é vitória <strong>do</strong> juízo ou triunfo <strong>da</strong><br />
prudência: mas em mim mais foi acerto <strong>da</strong> ventura que subtileza <strong>do</strong> discurso o<br />
persuadir-me, sem conhecê-lo, que em traje tão humilde se disfarçava muita<br />
altiveza, como depois o tempo mostrou. Informei-me de quem era, e achei que<br />
se chamava Amatilde e era filha de um rico e principal lavra<strong>do</strong>r, por nome<br />
Sílvio, que outra não tinha, cria<strong>da</strong> dele e de sua mulher Dionísia com notável<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, como único empenho de seu amor e desvelos. Juntamente me deram<br />
notícias como seus pais não admitiam muitos casamentos que se lhe haviam<br />
proposto, e de to<strong>do</strong>s ela fazia pouca estimação, ten<strong>do</strong> por agravo o ser<br />
pertendi<strong>da</strong> e por ofensa o ser ama<strong>da</strong>: tributo que se paga aos venturosos, pois<br />
chegam a julgar por ousadia, o que os menos mimosos <strong>da</strong> ventura estimariam<br />
por favor. Era Amatilde igualmente em as ribeiras <strong>do</strong> Pó para os pastores<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, para as pastoras inveja, que sempre esta é o aplauso <strong>do</strong>s mimos <strong>da</strong><br />
ventura, nunca se avalian<strong>do</strong> por grande, se deixou neutral sem declarar-se a<br />
inveja <strong>do</strong> favor.<br />
Com esta informação me retirei a Ferrara, fian<strong>do</strong> só meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s de<br />
meu silêncio, arrisca<strong>da</strong> sentinela para batalhas <strong>do</strong> amor, e não poden<strong>do</strong> admitir<br />
descanso de noite com imaginações tão inquietas, que eram muitas para<br />
sofri<strong>da</strong>s e poucas para passa<strong>da</strong>s, apenas desmaiavam as estrelas os luzi<strong>do</strong>s<br />
Plutarc, De Curiosit.
392 Padre Mateus Ribeiro<br />
alentos de seus cintilantes resplan<strong>do</strong>res, quan<strong>do</strong> me parti a Fossa pelo Sella,<br />
campo memorável <strong>da</strong> batalha em que perdi a liber<strong>da</strong>de que de antes possuía,<br />
e deixan<strong>do</strong> o cavalo em parte <strong>do</strong>nde curassem dele, me fui à fonte em que vi<br />
to<strong>do</strong> meu <strong>da</strong>no, que apenas com uns reflexos <strong>do</strong> sol que a tocavam, não sei de<br />
ver-me tal, se murmurava ou se ria: assenta<strong>do</strong> debaixo <strong>do</strong> tosco e alegre tol<strong>do</strong><br />
que os álamos e freixos fabricavam, esperei se podia ver a quem tão caro me<br />
custava sua vista.<br />
Cap. IV.<br />
Em que Felizar<strong>do</strong> prossegue sua vi<strong>da</strong><br />
Era já passa<strong>da</strong> a maior parte <strong>do</strong> dia sem aparecer quem de minha pátria<br />
e casa tão desterra<strong>do</strong> me trazia, ou fosse que adivinhasse meu desejo de vê-<br />
la, ou que outra ocupação a divertisse, e ven<strong>do</strong> eu que declinava o sol já o<br />
vigoroso de seus raios, ten<strong>do</strong> por infelice o dia, por malogra<strong>da</strong> a ocasião, por<br />
sem fruto o desvelo, ausentan<strong>do</strong>-me <strong>da</strong> fonte, passei por junto <strong>da</strong>s casas de<br />
Amatilde, que pouca distância <strong>do</strong> lugar estavam, quan<strong>do</strong> já a tarde era termo<br />
em que parava o senhorio <strong>do</strong> sol e raia em que costumava o <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> noite.<br />
Apenas rodeei a cerca em que as casas estavam, que com varie<strong>da</strong>de de<br />
árvores mais vistosas as faziam, quan<strong>do</strong>, assenta<strong>da</strong> ao pé de um loureiro,<br />
amoroso desvelo <strong>do</strong> sol, vi a Amatilde que pensativa e, se pudera caber<br />
tristeza na fermosura, dissera que estava triste. Cheguei-me aonde pudesse<br />
dela ser visto e com corteses palavras lhe dei a entender minha alegria em vê-<br />
la; mas como dia de melancolia não é apropria<strong>do</strong> para despachos, voltan<strong>do</strong> as<br />
costas me respondeu com o retiro.<br />
Desmaiou meu sentimento os alentos de minhas esperanças: pudera<br />
não navegar contra a ventura, se amor permitira aconselhar-se; mas como tem<br />
mais de impaciente que de ajuiza<strong>do</strong>, fiz agravo <strong>da</strong> isenção e desprezo <strong>do</strong><br />
recato, empenhan<strong>do</strong>-me a querer vencer com a porfia a resistência que armava<br />
contra mim a ventura. Não sempre, diz o Séneca 389 , responde a fortuna aos<br />
Senec, De iracund. lib. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 393<br />
desejos; assegurar os fins, diferente efeito é <strong>do</strong> que escolher os meios, disse<br />
Ovídio 390 , e com razão; porque escolher os meios é empenho <strong>do</strong> juízo, mas<br />
conseguir os fins é favor <strong>da</strong> ventura, e esta é pren<strong>da</strong> que não se comunica,<br />
nem participa. Só se conta que estan<strong>do</strong> um dia o supremo dita<strong>do</strong>r Lúcio Sila na<br />
praça de Roma com outros cônsules e magistra<strong>do</strong>s, passou a fermosa Valéria,<br />
filha <strong>do</strong> insigne ora<strong>do</strong>r Messalla e irmã de Hortênsio, e lhe foi de propósito<br />
corren<strong>do</strong> a mão pelo vesti<strong>do</strong>, de sorte que o sentiu ele e, como era tão temi<strong>do</strong><br />
que nem os olhos se atreviam bem a vê-lo, voltan<strong>do</strong> ele para ela com o rosto<br />
severo e quasi ira<strong>do</strong>, ela discretamente lhe respondeu que como ele se<br />
intitulava felice, queria ver se tocan<strong>do</strong>-o alguma ventura se lhe pegava, suposto<br />
que se dizia que jamais se pegava a ventura. Do qual disto ele satisfeito, e<br />
mais ven<strong>do</strong>-a tão fermosa, a recebeu por esposa. Porém raras vezes no<br />
mun<strong>do</strong> vemos <strong>da</strong>r-se a ventura por companhia, nem seguir a quem a deseja,<br />
senão a quem dela se esquece e a não solicita.<br />
Tinha eu neste lugar de Fossa pelo Sella um amigo caça<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s<br />
mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> lugar, com quem algumas vezes que lá ia costumava pousar em<br />
sua casa, divertin<strong>do</strong>-nos umas vezes na caça, outras nas pescarias que neste<br />
sítio são frequentes. Era mancebo solteiro e se chamava Valério, e tinha este já<br />
antigas competências com outro mancebo rico <strong>do</strong> próprio lugar, por nome<br />
Ro<strong>do</strong>lfo, bem aparenta<strong>do</strong>; que nunca faltam parentes à riqueza, nem amigos,<br />
como disse Quintiliano 391 . As causas <strong>da</strong> discórdia haviam si<strong>do</strong> certo agravo que<br />
Ro<strong>do</strong>lfo tinha recebi<strong>do</strong> de Valério, de que queren<strong>do</strong> Ro<strong>do</strong>lfo vingar-se, em<br />
lugar de satisfeito saiu mais ofendi<strong>do</strong>. Tem seus estímulos, diz Cícero 392 , o<br />
agrava<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> que se divirta o ofensor, e principalmente sen<strong>do</strong> rico; que<br />
quan<strong>do</strong> não possa per si desagravar-se, não falta quem se empenhe na<br />
satisfação.<br />
Sucedeu pois que hospe<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me eu em casa de Valério, como em<br />
outras ocasiões costumava, não poden<strong>do</strong> admitir descanso meu inquieto<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, lhe pedi, sem declarar-lhe o que sentia, saíssemos a <strong>da</strong>r um passeio<br />
Ovid., 2. Epist.<br />
Quintil., Lib. 5.<br />
Cicer. Act. 5. in Verr.
394 Padre Mateus Ribeiro<br />
pelo lugar, para lograr o fresco <strong>da</strong> noite com a viração <strong>do</strong> mar; que não era<br />
muito abreviar as horas ao sono, quem de <strong>do</strong>rmir tão poucas horas gozava.<br />
Saímos de casa levan<strong>do</strong> só as espa<strong>da</strong>s e pistolas; e como a pedra de<br />
cevar em qualquer sítio que esteja sempre por natural simpatia busca o norte,<br />
assim eu rodean<strong>do</strong> várias ruas fui deman<strong>da</strong>r o sítio aonde vivia Amatilde, novo<br />
norte de meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s a que me guiava o amor e a fortuna. Seriam as onze<br />
horas <strong>da</strong> noite, que era entre clara e escura, quan<strong>do</strong> defronte <strong>da</strong>s suas casas<br />
(quem cui<strong>da</strong>ra achar o perigo aonde buscava o recreio!), de repente<br />
dispararam quatro homens que rebuça<strong>do</strong>s passavam uma espingar<strong>da</strong> com<br />
duas balas, que, levan<strong>do</strong> a mira erra<strong>da</strong> <strong>do</strong> intento, acertaram em mim<br />
buscan<strong>do</strong> a Valério, abrin<strong>do</strong>-me uma perigosa e penetrante feri<strong>da</strong> pelo peito<br />
direito, de que assusta<strong>do</strong>, queren<strong>do</strong> disparar a pistola que trazia, caí<br />
desacor<strong>da</strong><strong>do</strong> em terra junto à porta de Amatilde. Disparou Valério a pistola,<br />
mas sem fruto, porque conhecen<strong>do</strong> os rebuça<strong>do</strong>s haverem erra<strong>do</strong> o tiro que a<br />
ele dirigiam, pesarosos <strong>do</strong> desacerto e desejosos <strong>da</strong> vingança, arrancan<strong>do</strong> as<br />
espa<strong>da</strong>s o acometeram tão arroja<strong>do</strong>s que lhe foi necessário buscar na fugi<strong>da</strong> o<br />
remédio que é o refúgio, que Euripides 393 escreve permitir a noite contra os<br />
perigos. Não foram menos velozes os rebuça<strong>do</strong>s em seguir que Valério em<br />
correr que, como eram tantos, toman<strong>do</strong>-lhe os atalhos como práticos na terra, o<br />
obrigaram por força a defender-se e, como a defensa era força<strong>da</strong>, converteu-se<br />
em desesperação, e com esta, como escreve Vegécio 394 , a ousadia para<br />
passar de atrevi<strong>do</strong> a temerário.<br />
Na liga <strong>da</strong> poderosa arma<strong>da</strong> que fizeram as repúblicas e ci<strong>da</strong>des de<br />
Grécia contra as arma<strong>da</strong>s e exércitos poderosos de Xerxes, sen<strong>do</strong> general <strong>do</strong>s<br />
gregos o prudente Temístocles, ven<strong>do</strong> que venci<strong>do</strong> Xerxes na famosa batalha<br />
naval de Salamina queriam os gregos vitoriosos cortar-lhe a ponte que tinha<br />
lança<strong>do</strong> ao Helesponto, para impedir-lhe a retira<strong>da</strong> com que fugia, ele lhe<br />
man<strong>do</strong>u secreto aviso que se apressasse em passar antes que os gregos lhe<br />
cortassem a ponte, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> por razão prudentemente que bastava ao inimigo<br />
fugir, sem que chegassem a desesperar, porque a vitória que aos gregos tinha<br />
<strong>da</strong><strong>do</strong> a valentia, podia <strong>da</strong>r a Xerxes a desesperação. Isto digo porque ven<strong>do</strong>-se<br />
Eurip., in Rhet.<br />
Vegecius, Lib. 3.
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte III 395<br />
Valério de to<strong>da</strong>s as partes atalha<strong>do</strong> e já feri<strong>do</strong>, converteu o temor em arrojo e a<br />
fugi<strong>da</strong> em furor, de tal sorte que ficou Ro<strong>do</strong>lfo com duas estoca<strong>da</strong>s perigosas e<br />
os que o acompanhavam também feri<strong>do</strong>s, ain<strong>da</strong> que não com risco, e acudin<strong>do</strong><br />
gente os apartaram, que deixaremos agora retira<strong>do</strong>s com os trágicos sucessos<br />
desta noite, para prosseguir os meus como tão participante deles.<br />
Cap. V.<br />
Como Felizar<strong>do</strong> foi recolhi<strong>do</strong> em casa de Amatilde e <strong>do</strong> que lhe sucedeu<br />
Feri<strong>do</strong>, como disse, <strong>da</strong>s balas que erra<strong>da</strong>mente me acertaram e<br />
enfraqueci<strong>do</strong> com o muito sangue que <strong>da</strong> feri<strong>da</strong> manava, estava eu<br />
desacor<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong>s sentimentos em terra, quan<strong>do</strong> acudin<strong>do</strong> Sílvio com seus<br />
cria<strong>do</strong>s, e ven<strong>do</strong>-me neste esta<strong>do</strong>, movi<strong>do</strong>s de compaixão (que são os<br />
infortúnios muitas vezes poderoso suborno de pie<strong>da</strong>de) me levaram nos braços<br />
para sua casa tão priva<strong>do</strong> <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s que nem conhecia o esta<strong>do</strong> em que me<br />
achava, nem podia agradecer o favor que recebia. Acudiram Dionísia e<br />
Amatilde a receber-me assusta<strong>da</strong>s <strong>do</strong> sobressalto, e fazen<strong>do</strong>-me uma cama<br />
logo por man<strong>da</strong><strong>do</strong> de Sílvio, me deitaram nela pesarosas de minha desgraça, e<br />
vin<strong>do</strong> o cirurgião <strong>do</strong> lugar, nem de to<strong>do</strong> assegurou minha vi<strong>da</strong>, nem desconfiou<br />
dela. Com as <strong>do</strong>res <strong>da</strong> cura que me fazia tornei em meu senti<strong>do</strong>, como quem<br />
desperta de um pesaroso sono, estranhan<strong>do</strong> o lugar em que me via, tão<br />
diferente <strong>do</strong> que imaginava; e dizen<strong>do</strong> quem era, pedi me chamassem<br />
confessor e se man<strong>da</strong>sse reca<strong>do</strong> a meus pais, porque queria vê-los, se<br />
possível fosse, antes de atalhar-me a morte sua vista.<br />
Despediram-se logo mensageiros a levar as novas a Ferrara, que pouco<br />
mais de duas léguas distava <strong>do</strong> lugar, e como eram trágicos os anúncios,<br />
pouco tempo haviam mister para chegarem, pois apenas o sol vestia de novas<br />
luzes seu horizonte, quan<strong>do</strong> meus pais se apeavam de um coche, com to<strong>do</strong>s<br />
os cria<strong>do</strong>s de casa, à porta de Sílvio, tão desmaia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> sentimento que sen<strong>do</strong><br />
eu o feri<strong>do</strong>, eles eram os que sentiam a <strong>do</strong>r. Nem era maravilha, sen<strong>do</strong> eu filho<br />
único e com extremos ama<strong>do</strong>, únicas esperanças de sua prosperi<strong>da</strong>de, desvelo<br />
de seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e agora, em tal esta<strong>do</strong>, centro cabal de sua <strong>do</strong>r. Nem to<strong>do</strong>s
396 Padre Mateus Ribeiro<br />
os pais tem o sofrimento <strong>do</strong> filósofo Anaxágoras que <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se-lhe nova que<br />
seu filho era morto, respondeu ao mensageiro:<br />
mortal.<br />
- Nenhuma novi<strong>da</strong>de me dizeis, porque eu bem sabia que era ele<br />
Semelhante valor mostrou Péricles, capitão de Atenas, que morren<strong>do</strong>-<br />
Ihe <strong>do</strong>us filhos em espaço de quatro dias não fez mu<strong>da</strong>nça no rosto e com<br />
grinal<strong>da</strong> posta na cabeça orou publicamente ao povo de Atenas como se<br />
nenhum filho perdera. Quan<strong>do</strong> chegaram a Esparta as novas <strong>do</strong>s muitos<br />
lacedemónios que haviam si<strong>do</strong> mortos na cruel batalha que tiveram com os<br />
tebanos, os pais <strong>do</strong>s mortos se <strong>da</strong>vam uns aos outros os parabéns <strong>da</strong>s mortes<br />
de seus filhos, com tantas demonstrações de alegria, como se celebrassem a<br />
maior festa de sua ci<strong>da</strong>de e fossem insensíveis ao sentimento <strong>da</strong> própria<br />
natureza. Porém, como em meus pais se não <strong>da</strong>va este extremo de valor para<br />
resistirem à <strong>do</strong>r e incentivos de sua mágoa, não havia alívios para sua pena,<br />
porque suas lágrimas manifestavam que não admitia férias no sentir o vivo de<br />
sua <strong>do</strong>r.<br />
Intentaram levar-me a Ferrara em uma liteira, mas ven<strong>do</strong> que quem me<br />
curava lhes dizia [que] corria evidente risco minha vi<strong>da</strong> se me movessem em tal<br />
esta<strong>do</strong>, se resolveram a ficarem comigo em casa de Sílvio, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> vir <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de os cirurgiões mais insignes que nela havia para em companhia <strong>do</strong> que<br />
me curava me assistirem. Veio juntamente um auditor a devassar <strong>do</strong> <strong>caso</strong> e em<br />
pouco espaço se descobriram os culpa<strong>do</strong>s nele e como intentan<strong>do</strong> tirar a vi<strong>da</strong> a<br />
Valério, erran<strong>do</strong>-se o tiro, me acertaram a mim, a quem não buscavam. Foram<br />
logo to<strong>do</strong>s presos, e Ro<strong>do</strong>lfo, assim mal feri<strong>do</strong> como estava, leva<strong>do</strong> à cadeia<br />
de Ferrara, que como o <strong>caso</strong> era tão mal aceito e meu pai poderoso e o auditor<br />
inteiro na justiça, não dá lugar à pie<strong>da</strong>de o severo <strong>do</strong> rigor.<br />
Continuavam os cirurgiões sem me assegurarem a vi<strong>da</strong>, empenhan<strong>do</strong><br />
em procurar-ma to<strong>do</strong> o perito e estudioso que a arte permitia, e meus pais<br />
agradeci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> cui<strong>da</strong><strong>do</strong> com que Sílvio acudiu a recolher-me em sua casa,<br />
desejaram desempenhar-se no agradecimento com dádivas e regalos que<br />
man<strong>da</strong>vam vir <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, parecen<strong>do</strong>-lhes tu<strong>do</strong> pouco para a vontade que lhes<br />
deviam, e com razão, porque nunca a vontade pôde cabalmente pagar-se,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 397<br />
disse Demóstenes ; porque se podem remunerar-se as obras, sempre fica<br />
endivi<strong>da</strong><strong>do</strong> quem se mostra obriga<strong>do</strong> <strong>do</strong>s desejos.<br />
Assistia Amatilde com minha mãe com grande cui<strong>da</strong><strong>do</strong> a consolá-la,<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe esperanças de minha vi<strong>da</strong>, porque tanto tinha de fermosa como de<br />
discreta, e um dia assistin<strong>do</strong> à minha cura lhe vi derramar lágrimas em<br />
abundância, usurpa<strong>da</strong>s ao direitos de seu recato, e disse eu entre mim:<br />
- Ó quem pudera conhecer de que fonte nascem esses rebuça<strong>do</strong>s<br />
arroios de cristal, se de amor ou de compaixão! Se obra o enterneci<strong>do</strong>, se o<br />
amoroso? Que como o coração é o mar <strong>do</strong>nde as lágrimas saem, menos<br />
obriga<strong>do</strong> fico a te mostrares pie<strong>do</strong>sa de minhas <strong>do</strong>res que se te conhecera<br />
compadeci<strong>da</strong> de meus desvelos. Menor brecha abriram em meu peito as balas<br />
de teus olhos, mais dificultosas são de curar as feri<strong>da</strong>s de tua vista que as que<br />
recebi de quem não intentava ferir-me; porque as de teus olhos eu as busquei<br />
e as que padeço a mim me buscaram. Se bem conheceras o que me deves,<br />
por ventura mais com razão choravas de ver-me por tua ocasião arrisca<strong>do</strong> ou<br />
de ver-me em tua casa feri<strong>do</strong>, porque no primeiro tu eras a deve<strong>do</strong>ra e no<br />
segun<strong>do</strong> a ventura desumana. Que caro comprei o ver-te tão de perto, pois se<br />
desafiam minhas alegrias com meus pesares, sen<strong>do</strong> teus olhos equívocas<br />
respostas com suas lágrimas às perguntas de meu desejo, para que nem<br />
receba em minhas penas este pequeno alívio de saber se pesa mais em teu<br />
coração o amoroso ou o compassivo, e se deven<strong>do</strong>-me tanto de amor tratas só<br />
de pagar-me em pie<strong>da</strong>de, porque só com querer-me me satisfizeras e com<br />
sentir-me pie<strong>do</strong>sa nunca me pagaras.<br />
Com este solilóquio me queixava <strong>da</strong>s lágrimas de Amatilde, se sobre<br />
quem não tem culpas podem caber queixas; mas como o amor se pinta<br />
menino, tal vez se queixa de mimoso sem estar ofendi<strong>do</strong>. Assistia-me ela com<br />
notável cui<strong>da</strong><strong>do</strong> em companhia de minha mãe as moléstias de minhas <strong>do</strong>res,<br />
que, como bem disse Platão 396 , é um enfermo sempre molesto a si próprio e a<br />
quem dele cura; parecer que seguiu Euripides 397 e mostra a experiência;<br />
porque o intolerável <strong>da</strong>s <strong>do</strong>res e o perigoso <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s mal deixa mostrar-se<br />
Demost., Advers. Arist.<br />
Plato, De tranquil, anim.<br />
Eurip., in Orest.
398 Padre Mateus Ribeiro<br />
aprazível a condição, sen<strong>do</strong> de tantas moléstias combati<strong>da</strong>. Era a vista de<br />
Amatilde para mim o maior recreio e o maior tormento; que só amor pudera unir<br />
tais extremos. Era o recreio de vê-la, pois se pudera receber aumentos sua<br />
fermosura, ca<strong>da</strong> dia parecia que crescia, porque ca<strong>da</strong> dia mais me agra<strong>da</strong>va.<br />
Era o tormento de ver nela uma isenção tão senhoril, um recato tão modesto,<br />
um brio tão grave, um olhar tão contrário a meu desejo que me causava<br />
admiração como nos retiros <strong>da</strong> corte, no tosco <strong>do</strong>s montes, no grosseiro <strong>da</strong><br />
criação se achava pastora tão briosa que, suborna<strong>da</strong> <strong>da</strong>s lisonjas <strong>da</strong> beleza,<br />
quisesse igualar e ain<strong>da</strong> avantajar por bizarra os privilégios que lhe negou a<br />
natureza de senhora. Assim nesta batalha de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s flutuavam meus<br />
discursos (se por ventura chega a discursar bem quem deveras ama), quan<strong>do</strong><br />
oferecen<strong>do</strong>-se ocasião de por estar minha mãe indisposta, entran<strong>do</strong> ela a seus<br />
rogos um dia a trazer-me a comi<strong>da</strong>, valen<strong>do</strong>-me eu <strong>da</strong> oportuni<strong>da</strong>de <strong>do</strong> tempo,<br />
lhe disse desta sorte:<br />
- Bem disse Tito Lívio 398 que mal pode curar-se a feri<strong>da</strong> sem manifestar-<br />
se, e se nas <strong>do</strong> corpo é sentença tão certa, nas feri<strong>da</strong>s <strong>da</strong> alma quan<strong>do</strong> será<br />
mais ver<strong>da</strong>deira? Teus olhos, Amatilde, foram meus homici<strong>da</strong>s: Ro<strong>do</strong>lfo me<br />
feriu, tu me mataste; a ele to<strong>do</strong>s condenam e a ti ninguém te culpa, que eu só<br />
sou testemunha, mas de pouco valor porque sou parte. Pouco te devo no rigor<br />
com que me trataste, permite que sequer te fique deve<strong>do</strong>r este pequeno<br />
espaço com me ouvires, e deva-te por enfermo este favor, pois não pude<br />
merecê-lo por amante.<br />
Bem conheces quem sou e que só por ver-te me vejo no esta<strong>do</strong> em que<br />
me vês: prodigiosa vista foi a tua de que tais efeitos resultaram, e não me<br />
considero arrependi<strong>do</strong> se te confessaras obriga<strong>da</strong>; mas ai, que se padeço o<br />
<strong>da</strong>no, não descubro o remédio, e quan<strong>do</strong> cui<strong>do</strong> que mereço mais, então te<br />
obrigo menos? Mais vizinho à morte me tem teus disfavores que meus<br />
infortúnios, mais sinto teu rigor que minha pena: pois tão avara me concedes o<br />
ver-te sem assistências de quem emudece minha voz para queixar-se. Que mal<br />
dizem o seres enfermeira e o matar-me! Porque se como enfermeira me<br />
solicitas a vi<strong>da</strong>, como pouco pie<strong>do</strong>sa me condenas à morte.<br />
Tit. Liv., 3. Decad. lib. 8.
esposta:<br />
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 399<br />
Nem pude pela fraqueza falar mais, nem ela o permitiu com <strong>da</strong>r-me esta<br />
- Não imagineis, senhor Felizar<strong>do</strong>, que ignoro o que vos devo ou<br />
desconheço vossos merecimentos serem grandes, mas como não posso<br />
aspirar a ser esposa vossa, porque o humilde em que me criei não emparelha<br />
com o ilustre <strong>do</strong>s pais de quem nascestes, quero antes parecer ingrata que<br />
presumi<strong>da</strong>; se pudera igualar-vos pouco vos devera, não quis minha fortuna<br />
fazer-me tão venturosa, não me culpeis tanto de cruel, pois não me é possível<br />
parecer-vos pie<strong>do</strong>sa. E se dizeis é vosso maior desvelo obrigar-me, em<br />
tratardes de vossa saúde podeis fazer ver<strong>da</strong>deira essa lisonja, que como vai<br />
meu desejo tão interessa<strong>do</strong> em vossa melhoria, quero prezar-me de parecer<br />
boa enfermeira, pois vossos pais se quiseram servir <strong>do</strong> pobre hospício desta<br />
casa.<br />
Entrou nisto Dionísia, sua mãe, e ela se despediu deixan<strong>do</strong>-me em uma<br />
batalha de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Prosseguir a empresa me parecia impossível, resistir ao<br />
amor dificultoso, pedi-la por esposa abatimento, viver sem sua vista insofrível,<br />
desgostar a meus pais impie<strong>da</strong>de, malograr meus estu<strong>do</strong>s desacertos, batalhar<br />
com meus desejos guerra dura, deixar-me vencer deles covardia, e assim entre<br />
tantos assaltos combati<strong>do</strong>, nem podia melhorar nas feri<strong>da</strong>s, porque a<br />
imaginação com sua insensível violência suspendia to<strong>da</strong>s as operações à<br />
natureza, nem podia de mim próprio lembrar-me, por lembrar-me de Amatilde,<br />
que, como diz Quinto Cúrcio 399 , é o género de memória mais nocivo aquele que<br />
chega a fazer esquecer-se de si mesmo.<br />
Seria meia-noite no relógio de meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, se podiam numerar horas<br />
certas, que estan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s no maior silêncio venci<strong>do</strong>s <strong>da</strong> natural suspensão <strong>do</strong><br />
sono, e só eu fazen<strong>do</strong> sentinela a meus desvelos e a minhas <strong>do</strong>res que mal me<br />
permitiam descanso, ouvi de repente tocar instrumentos músicos em distância<br />
que facilmente podiam ouvir-se e, incita<strong>do</strong> <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de em tal sítio e não sei de<br />
que oculto estímulo de ciúmes, não reparan<strong>do</strong> na fraqueza e <strong>do</strong>res que sofria,<br />
me levantei <strong>da</strong> cama coberto com a capa e pon<strong>do</strong>-me a uma janela que para a<br />
parte <strong>do</strong>s músicos caía, ouvi que cantavam a três vozes bem sonoras e suaves<br />
alguns quartetos de um romance composto, ao que parecia, a Amatilde, em<br />
Q. Curt., Lib. 4.
400 Padre Mateus Ribeiro<br />
que em alguns <strong>do</strong>s versos se repetia seu nome, tão aplaudi<strong>do</strong> no juízo de<br />
quem os escreveu como na suavi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s vozes que os cantavam. Era a noite<br />
clara porque a lua tinha vesti<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s seus resplan<strong>do</strong>res, com os quais pude<br />
descobrir que eram oito pessoas as que assistiam e um deles, que o principal<br />
parecia, an<strong>da</strong>va passean<strong>do</strong> enquanto os músicos para nova letra os<br />
instrumentos temperavam. Repetiu-se a música e repetiu-se ao nome de<br />
Amatilde: sen<strong>do</strong> os maiores encómios em que se empenhou a poesia, ficavam<br />
sen<strong>do</strong> limita<strong>do</strong>s encarecimentos a seu louvor, porque parece que nela quis<br />
compendiar a natureza tu<strong>do</strong> o que tinha reparti<strong>do</strong> com as mais favoreci<strong>da</strong>s de<br />
seus <strong>do</strong>tes na beleza.<br />
Do insigne pintor Zeusis se conta que para haver de pintar aquele<br />
famoso retrato de Juno Lúcia, que tanto celebrou a antigui<strong>da</strong>de, escolhera<br />
cinco moças, as mais fermosas que na ci<strong>da</strong>de se acharam, e de ca<strong>da</strong> uma<br />
delas escolheu a feição mais bela, toman<strong>do</strong> de uma os olhos, de outra os<br />
cabelos, de outra as cores e finalmente de to<strong>da</strong>s o melhor, dizen<strong>do</strong> que to<strong>da</strong>s<br />
as partes <strong>da</strong> beleza não podiam achar-se para se copiar em uma só, e assim<br />
saiu o retrato de Juno maravilha, porque o maravilhoso de to<strong>da</strong>s se copiou em<br />
Juno. Mas eu digo que se só se retratara Amatilde, achara o insigne pintor<br />
junto quanto nas outras copiou reparti<strong>do</strong>. Nos jogos Olímpicos que se<br />
celebravam em Grécia, foi Hércules o primeiro vence<strong>do</strong>r, não porque vencesse<br />
o desafio, mas porque posto em campo ninguém se atreveu a contender com<br />
ele. Tal posso afirmar de Amatilde que de to<strong>da</strong>s saiu vence<strong>do</strong>ra, porque nas<br />
fermosura ninguém se atreveria a sair a competência com ela.<br />
Cap. VI.<br />
Como Felizar<strong>do</strong> com seus pais e Amatilde com os seus partiram para Ferrara<br />
Considerai, discretos senhores, que sentiria eu ven<strong>do</strong>-me no esta<strong>do</strong> em<br />
que estava, combati<strong>do</strong> de amores e de ciúmes: <strong>do</strong>us tiranos <strong>da</strong> vista, <strong>do</strong>us<br />
eclipses <strong>da</strong> razão, <strong>do</strong>us verdugos <strong>do</strong> sofrimento. Não me maravilho <strong>do</strong>s<br />
extremos que de ciosa fizeram Fúlvia, mulher de Marco António, que, ven<strong>do</strong><br />
que estava no Egipto diverti<strong>do</strong> com Cleópatra, fez com Lúcio António, seu
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 401<br />
cunha<strong>do</strong>, que quebrasse a paz que com Augusto César tinha para que<br />
obriga<strong>do</strong> <strong>da</strong> guerra a Cleópatra deixasse, e como com extremos ciosa quis<br />
cortar pelo bem público <strong>da</strong> paz por não sofrer de seus ciúmes a guerra.<br />
Não menos arroja<strong>da</strong> se mostrou Cornélia, mulher <strong>do</strong> grande Pompeu,<br />
pois queren<strong>do</strong> ele, depois de haver perdi<strong>do</strong> a batalha <strong>do</strong>s campos Farsálicos, ir<br />
pedir socorro à rainha <strong>do</strong>s partos, ela o encontrou por imagina<strong>do</strong>s ciúmes de<br />
ser a rainha moça e muito fermosa e persuadiu antes a ir a Ptolomeu, rei <strong>do</strong><br />
Egipto, em cuja perfídia achou a morte e Roma sua última ruína, como escreve<br />
Marco António Sabélico no sexto livro de sua Enei<strong>da</strong>; que costumam cortar<br />
ciúmes não somente pelos perigos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, mas ain<strong>da</strong> pelos assombros <strong>da</strong><br />
morte.<br />
Que encanto (dizia eu) é este de Amatilde, a quem não bastam para<br />
ocultar nem o humilde <strong>do</strong> traje, nem o retira<strong>do</strong> <strong>do</strong>s campos, nem a vizinhança<br />
<strong>do</strong> rio? Que prodígio se encerra em uma lavra<strong>do</strong>ra que sobre me ocasionar o<br />
esta<strong>do</strong> em que me vejo, a inquietação em que vivo, seja corteja<strong>da</strong> com<br />
músicas, celebra<strong>da</strong> com versos, pertendi<strong>da</strong> com desvelos, solicita<strong>da</strong> com<br />
empenhos e, para mais pena minha, sem poder eu conhecer quem será este<br />
opositor de minhas custosas venturas? Não se empenham pesca<strong>do</strong>res pobres,<br />
nem lavra<strong>do</strong>res rústicos a pretender com músicas tão sonoras, versos tão<br />
lima<strong>do</strong>s e poemas tão discretos, que excedem o grosseiro de seu esta<strong>do</strong> e o<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so de sua vi<strong>da</strong>. Superior pertendente me dá por competi<strong>do</strong>r a fortuna,<br />
de mais alto cai minha ventura, mais arrisca<strong>do</strong>s golfos navega meu receio, para<br />
que nunca se assegure minha esperança. Ó música para meus ouvi<strong>do</strong>s tão<br />
penosa, para que te chamou Aristóteles 400 alegria <strong>da</strong> alma se só serves nesta<br />
ocasião de tristeza <strong>da</strong> minha? Como te descreveu dádiva <strong>do</strong> céu, se hoje és<br />
para mim o maior tormento <strong>da</strong> terra? Não considerou Homero 401 o que me<br />
causas e por isso escreveu o que valias.<br />
Despediram-se nisto os <strong>da</strong> música, e eu me retirei <strong>da</strong> janela, sem poder<br />
admitir repouso o que <strong>da</strong> noite ficava, que foi para minha inquietação bem<br />
vagarosa; pois suposto que Tito Lívio diga que a noite foi <strong>da</strong><strong>da</strong> aos mortais<br />
para o alívio <strong>do</strong>s trabalhos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, em mim pelo contrário se mostrava ser<br />
Arist., Polit. 4.<br />
Homer., Odiss. lib. 3.
402 Padre Mateus Ribeiro<br />
inimiga de to<strong>do</strong> o meu descanso. Correu a aurora a purpúrea cortina ao<br />
horizonte como sumilher <strong>do</strong> sol, majestoso monarca <strong>da</strong>s luzes, achan<strong>do</strong>-me tão<br />
desvela<strong>do</strong> como a noite me assaltou diverti<strong>do</strong>. Visitou-me minha mãe com<br />
Amatilde e se sempre me parecia portento <strong>da</strong> beleza, posso afirmar que nesta<br />
ocasião se me representou maior admiração <strong>da</strong> fermosura. Não sei que<br />
perfeições acrescentam os ciúmes à cousa ama<strong>da</strong>! Singular pintor é no querer<br />
a competência, nunca tanto agra<strong>da</strong> a cousa ama<strong>da</strong> por bela, quanto chega<br />
mais a agra<strong>da</strong>r por pertendi<strong>da</strong>. Ain<strong>da</strong> no que se aborrece faz talvez o vê-lo de<br />
outro pertendi<strong>do</strong> estimação, e o que se rejeitou por enfa<strong>do</strong> só lhe dá cores de<br />
agradável a competência. Assim na vista de Amatilde cresceu meu amor nesta<br />
ocasião a tal extremo que era Olimpo para não subir a mais e mar Oceano para<br />
não decer a menos. Vieram cirurgiões e, combati<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s rogos de minha mãe,<br />
me <strong>da</strong>vam licença para que em liteira e com resguar<strong>do</strong> pudesse mu<strong>da</strong>r-me a<br />
Ferrara, que foi <strong>da</strong>r à costa com minhas derrota<strong>da</strong>s esperanças. Quis embargar<br />
a sentença que parecia <strong>da</strong>r-se em meu favor, mas emudeceu-me o sentimento,<br />
que muitas vezes é sentimento tão poderoso que, com ter a origem no coração,<br />
embarga to<strong>da</strong>s as potências e suspende não só as vozes mas os discursos.<br />
Competiu minha tristeza com a alegria de meus pais, sen<strong>do</strong> tão<br />
diferentes efeitos de uma própria causa; mas que muito, se no mesmo sol as<br />
paralaxes de diversa vista fazem que a uns olhos pareça ser to<strong>do</strong> de sua luz<br />
priva<strong>do</strong>, a outros meio luzi<strong>do</strong> e meio tenebroso e a outros com o vivo <strong>do</strong>s raios<br />
de to<strong>do</strong> resplandecente! Ven<strong>do</strong> pois que era força levarem-me a Ferrara,<br />
quan<strong>do</strong> meu amor estava no auge <strong>do</strong> querer e nos ciúmes de penar, extremos<br />
dificultosos para padeci<strong>do</strong>s e ain<strong>da</strong> molestos para imagina<strong>do</strong>s, pedi a minha<br />
mãe acabasse (a) com os pais de Amatilde a deixassem ir em sua companhia<br />
pelo alívio que tinha de ela ser minha enfermeira. São as petições <strong>do</strong>s filhos<br />
poderoso suborno para os pais. E como minha mãe me amava tanto, que,<br />
como diz o filósofo, ain<strong>da</strong> se avantaja o amor <strong>da</strong>s mães ao <strong>do</strong>s pais em<br />
amarem aos filhos com extremos, e eu por único e por enfermo era to<strong>do</strong> o<br />
desvelo de seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, empenhou-se minha mãe em fazer-me esta vontade<br />
que mostrava para <strong>da</strong>r-me esse alívio com to<strong>da</strong>s as veras, que suposto que<br />
teve o despacho bastantes desvios, venceu a instância de minha mãe e a<br />
Enten<strong>da</strong>-se: acor<strong>da</strong>sse.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 403<br />
diligência de meu pai a vontade de Sílvio para consentir a que Dionísia com<br />
Amatilde fossem estar alguns dias em sua companhia, cousa que foi a maior<br />
alegria que pudera suspender o rigor <strong>da</strong> minha mortal tristeza. Pouca maravilha<br />
foi melhorar <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s, maior admiração pudera ser tão excessiva alegria não<br />
me causar a morte. Não sem causa disse Euripides que a cousa mais alegre<br />
podia ser a mais nociva, porque talvez o excesso <strong>da</strong> alegria pode ser para o<br />
coração o mais homici<strong>do</strong> veneno; mas como tinha que passar o discurso de<br />
meus penosos sentimentos, per<strong>do</strong>ou-me o excesso <strong>da</strong> alegria a vi<strong>da</strong>, para ver<br />
me depois tantas vezes ofereci<strong>do</strong> aos riscos <strong>da</strong> morte.<br />
Preparou-se logo a liteira para mim e o coche para meus pais irem com<br />
Amatilde e sua mãe, sen<strong>do</strong> para ela a primeira fineza, que por mim fazia, o ir<br />
com rosto alegre nesta jorna<strong>da</strong>. Quem vive costuma<strong>do</strong> aos pesares qualquer<br />
pequeno alívio lhe parece grande, e como eu estava tão habitua<strong>do</strong> aos<br />
disfavores, este limita<strong>do</strong> favor me pareceu excessivo. É a alegria o melhor<br />
médico <strong>da</strong>s enfermi<strong>da</strong>des, a epítema mais eficaz para o coração; que por isso<br />
veio a dizer o Quintiliano que a alegria era mãe <strong>da</strong>s esperanças. Enfermo que<br />
chegou de veras a mostrar-se alegre, anúncios certos dá de sua melhoria; isto<br />
digo, porque com o contentamento de levar Amatilde em minha companhia<br />
para haver de assistir dias em minha casa, chegou a tal requinte meu recreio<br />
que já não me molestavam as <strong>do</strong>res, nem lembravam as feri<strong>da</strong>s, antes em<br />
parte as lisonjeava minha alegria com título de venturosas, pois por seu meio<br />
chegava a ver-me tão vizinho <strong>da</strong> companhia de Amatilde, que se as não<br />
padecera, nunca a tal felici<strong>da</strong>de chegara. São os discursos de quem ama em<br />
tu<strong>do</strong> encareci<strong>do</strong>s, disse Plutarco 402 ; nunca se satisfazem menos que com<br />
extremos, que como o amor não conhece balizas em que pare, também seus<br />
discursos não reconhecem termos em que finalizem. Assim não parecerá<br />
novi<strong>da</strong>de que tão demasia<strong>do</strong> fosse meu contentamento, porque discurso<br />
senhorea<strong>do</strong> de amor sempre avalia ao preço mais subi<strong>do</strong> qualquer favor que<br />
deseja.<br />
Chegámos a Ferrara ao tempo que o sol se retirava ao brilhante<br />
alojamento <strong>do</strong> horizonte, porque como meu pai por meu respeito não permitiu<br />
apressar-se o caminho, dilatou-se mais tempo <strong>do</strong> que a distância pedia. Era a<br />
Plutarc, Problem. Dec. 1.
404 Padre Mateus Ribeiro<br />
nossa mora<strong>da</strong> no principal sítio <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, na estra<strong>da</strong> <strong>do</strong>s Anjos, que tomou tal<br />
nome de por ela se ir ao sumptuoso Mosteiro <strong>do</strong>s Anjos, que edificou o duque<br />
D. Leonel de Este, mosteiro insigne <strong>do</strong>s padres prega<strong>do</strong>res, aonde está<br />
sepulta<strong>do</strong> este ínclito príncipe. Eram as nossas casas sumptuosas, solar antigo<br />
de meus antepassa<strong>do</strong>s; nelas se preparou um quarto bem adereça<strong>do</strong> para<br />
Amatilde assistir com sua mãe Dionísia. Hospe<strong>do</strong>u-as minha mãe com tantas<br />
demonstrações de contentamento, assim por entender nisso mo <strong>da</strong>va, como<br />
por agradeci<strong>da</strong> ao gasalho que em sua casa me haviam feito, que elas se<br />
admiravam <strong>do</strong>s regalos e grandeza com que eram trata<strong>da</strong>s, se bem na<strong>da</strong><br />
igualava aos desejos que eu de servir Amatilde tinha. Davam-se em mim amor<br />
e agradecimentos, <strong>do</strong>us motivos mais eficazes para servi-la: <strong>do</strong> amor é provar-<br />
se na grandeza <strong>do</strong> despender, que por isso os antigos o pintavam despi<strong>do</strong>,<br />
porque como tu<strong>do</strong> oferecia, na<strong>da</strong> para si reservava; tem o amor muito de pobre<br />
porque se despoja de tu<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> por desluzimento <strong>do</strong> querer ser rico mais que<br />
de amar.<br />
Do agradecimento disse Cícero 403 que havia de ser imita<strong>do</strong>r <strong>do</strong> campo<br />
mais fértil, que por um que recebe torna cento; <strong>do</strong>nde veio a dizer<br />
discretamente Plauto que os benefícios que se fazem a ânimos honra<strong>do</strong>s e<br />
generosos vão já prenhes <strong>da</strong>s remunerações com que se galar<strong>do</strong>am. E como<br />
eu me conhecia tão obriga<strong>do</strong> ao hospício que em casa de Amatilde tinha<br />
recebi<strong>do</strong>, e meus pais desde o dia de meus infortúnios que sempre em sua<br />
casa assistiram, bastara em mim o muito que reconhecia dever, quan<strong>do</strong> não se<br />
ajuntara o fino de tanto amar.<br />
Asseguraram logo os cirurgiões minha vi<strong>da</strong> com promessas de<br />
brevemente ficarem sãs as feri<strong>da</strong>s; nem era maravilha, servin<strong>do</strong>-me de<br />
antí<strong>do</strong>to a vista de Amatilde, que vesti<strong>da</strong> ao cortesão à instância de minha<br />
mãe, com gala que lhe deu para saírem no coche a verem o culto <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, de<br />
sorte desmentiu o montanhês no garbo, no airoso e brio cortesão, que se havia<br />
si<strong>do</strong> de antes o <strong>do</strong>naire <strong>do</strong>s campos, agora parecia o bizarro <strong>da</strong> corte e a<br />
admiração de Ferrara. Da insigne estátua de Vénus que fez o celebra<strong>do</strong><br />
escultor Praxiteles se conta que a compraram por excessivo preço os<br />
mora<strong>do</strong>res <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Nig<strong>do</strong>, e queren<strong>do</strong> el-rei Nicomedes comprar-lha por<br />
Cicer., 2. Offic.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 405<br />
to<strong>do</strong> o preço que pedissem e ain<strong>da</strong> com remitir-lhes o grande tributo que de<br />
muitos anos lhe deviam, eles a não quiseram largar, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> por escusa que<br />
sen<strong>do</strong> a sua ci<strong>da</strong>de pequena, só por razão desta estátua de mármore era no<br />
mun<strong>do</strong> celebra<strong>da</strong> e conheci<strong>da</strong>, navegan<strong>do</strong> a ela de muitas partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
várias gentes com os desejos de vê-la; discreta escusa e briosa para que<br />
Nicomedes mais na petição não instasse. Porém com maior razão podia eu<br />
dizer que ficava Ferrara mais conheci<strong>da</strong> com ter em Amatilde tão raro original<br />
<strong>da</strong> fermosura <strong>do</strong> que a fazem celebra<strong>da</strong> os triunfos de seus primeiros<br />
fun<strong>da</strong><strong>do</strong>res e a magnificência <strong>do</strong>s que tanto depois aumentaram seu senhorio.<br />
Não acrecentou o traje cortesão sua beleza, mas realçou tanto seu garbo que<br />
parece que no monte representava papel de lavra<strong>do</strong>ra mas que havia naci<strong>do</strong><br />
cortesã, que era disfarce o camponês e natural o poli<strong>do</strong>, que se ensaiara de<br />
pastora mas que jubilara de senhora, que vivera sempre no paço e que se<br />
divertira no campo.<br />
Um dia pois que eu já convalecente deci ao jardim em que ela estava a<br />
<strong>da</strong>r enveja às flores com sua vista, já resoluto em o fim de meus discursos, lhe<br />
disse:<br />
- Qual seja meu amor, queri<strong>da</strong> Amatilde, tu o sabes, que não te formou<br />
a natureza menos discreta que fermosa, e assim não é possível que ignores o<br />
que tantas vezes meus desvelos publicam e meus senti<strong>do</strong>s declaram. Muito<br />
deves à natureza em formar-te tão bela, muito deves à ventura em fazer-te tão<br />
ditosa que chegues a ser com extremos queri<strong>da</strong> sem <strong>da</strong>res a menor sombra de<br />
querer. O que te negou a natureza em nasceres humilde, te compensou em<br />
fazer-te tão briosa, que vences com a estimação o tosco nascimento e com o<br />
recato <strong>da</strong> isenção o humilde <strong>do</strong> montanhês. Meu amor para contigo foi rio que<br />
não sabe voltar atrás sua corrente; porque nem se arrepende de amar-te, nem<br />
confia de vencer-te. São mui desiguais as armas de minhas finezas com as de<br />
tua isenção, pois como nunca te dás por obriga<strong>da</strong> de seres queri<strong>da</strong>, não é<br />
muito que possa mais tua condição que meus serviços. Quem entra no desafio<br />
acobar<strong>da</strong><strong>do</strong> não é admiração o sair dele venci<strong>do</strong>: que são prelúdios certos <strong>do</strong><br />
triunfo <strong>do</strong> contrário pelejar com desconfianças <strong>da</strong> vitória. Isto digo, Amatilde,<br />
porque perten<strong>do</strong> ser teu esposo, se merecer que esse me aceites. Considera<br />
se é fino meu amor, pois se rende a tal parti<strong>do</strong>, que quan<strong>do</strong> o vulgo me conjure<br />
de arroja<strong>do</strong> na escolha, então me avalio eu por mais ajuiza<strong>do</strong> na eleição e
406 Padre Mateus Ribeiro<br />
sempre acharei desculpas em o que mereces e não me faltarão invejosos em<br />
alcançar o que vales.<br />
Suspensa ouviu Amatilde minha amante resolução, e como se viu<br />
atalha<strong>da</strong> de desvios, pois rejeitar-me de esposo seria ingratidão a quem tal<br />
fineza mostrava, respondeu assim:<br />
- Chegou já vosso amor, senhor Felizar<strong>do</strong>, a delírios de entendi<strong>do</strong>, pois<br />
se amor se avalia enfermi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma, bem arrisca<strong>do</strong> está quan<strong>do</strong> delira. E<br />
bem, com tantos anos de estu<strong>do</strong> ignorais que o que me ofereceis por fineza é<br />
para mim e para vós a maior tirania? Que diriam vossos pais se vos vissem<br />
emprega<strong>do</strong> em sujeito tão alheio de suas esperanças? Nunca a desigual<strong>da</strong>de<br />
prometeu ventura: o girassol amante <strong>do</strong> sol é, que jamais de seus resplan<strong>do</strong>res<br />
se aparta, mas como vai tanta distância entre ele e o sol como vai <strong>da</strong> terra ao<br />
céu, o sol ca<strong>da</strong> vez luz mais e ele em pouco espaço fica cadáver de si mesmo.<br />
Raras vezes vence a ventura os disfavores <strong>da</strong> natureza. Nasci lavra<strong>do</strong>ra e vós<br />
ilustre; criei-me no campo e vós na corte; meus pais humildes e os vossos<br />
poderosos; quem desculpará tal desacerto? Vós mesmo, que hoje me<br />
lisonjeais de fermosa, amanhã arrependi<strong>do</strong> me aborreceis desengana<strong>do</strong>, ven<strong>do</strong><br />
que comigo cortastes as melhoras que pudéreis conseguir, se prudente<br />
escolhêsseis o que precipita<strong>do</strong> seguis. Atendei mais considera<strong>do</strong> que para vós<br />
solicitais arrependimento sem fruto, para mim moléstias sem remédio, para<br />
vossos pais eterno sentimento e para os meus inquietações sem reparo;<br />
porque de um casamento desigual to<strong>do</strong>s ficam descontentes, to<strong>do</strong>s pesarosos<br />
e to<strong>do</strong>s desterra<strong>do</strong>s. O viver em Ferrara é impossível com vossos pais<br />
ofendi<strong>do</strong>s, an<strong>da</strong>r desterra<strong>do</strong> pelo mun<strong>do</strong> o maior discómo<strong>do</strong>, meus pais<br />
arrisca<strong>do</strong>s a poderem viver com sossego: que poderosos ofendi<strong>do</strong>s mal deixam<br />
descansar a quem tem a menor simpatia com quem os agrava; pois como<br />
quereis, senhor Felizar<strong>do</strong>, vender-me por fineza o maior castigo? Contentai-vos<br />
com saberdes que vos amo e que não admitirei esposo algum por não ofender-<br />
vos, deixai-me viver no esta<strong>do</strong> em que me tem a fortuna, que não parece justo<br />
perdermos pátria e pais por um arrojo em que procurais para vós moléstias de<br />
arrependi<strong>do</strong> e para mim queixas de mal afortuna<strong>da</strong>; porque suposto que em<br />
merecer-vos ganhava tanto, não se podem avaliar por venturas as que se<br />
arriscam a tão conheci<strong>do</strong>s despenhos.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 407<br />
Assim falou Amatilde, e queren<strong>do</strong> replicar à sua resposta, o impediram<br />
meus pais, que no jardim entraram, fican<strong>do</strong> em meu coração a mágoa viva e a<br />
esperança morta. São os desejos tão eficazes que para se sujeitarem diz<br />
Plutarco necessitarem de superior poder. São os desejos, diz o Séneca, mais<br />
para serem no princípio rejeita<strong>do</strong>s que para depois de entra<strong>do</strong>s poderem ser<br />
despedi<strong>do</strong>s. Discretamente discursava Amatilde, se estivera capaz meu amor<br />
para admitir discursos com que houvera evita<strong>do</strong> as mágoas que hoje sinto; mas<br />
que amante previu os <strong>da</strong>nos antes de padecê-los? Tinha eu em Ferrara um<br />
particular amigo que se chamava Constantino, pessoa ilustre no sangue e mui<br />
versa<strong>do</strong> nas histórias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e lição <strong>do</strong>s livros, a quem eu nunca tinha <strong>da</strong><strong>do</strong><br />
notícia de meus pensamentos, porque, como diz Valério Máximo 404 , não se dá<br />
na vi<strong>da</strong> amizade tão segura que com as mu<strong>da</strong>nças e varie<strong>da</strong>de <strong>do</strong> tempo não<br />
possa converter-se em ódio e, deixan<strong>do</strong> de ser união, ser aborrecimento.<br />
Entrou Constantino nesta ocasião a visitar-me como outras vezes<br />
costumava e, como a resposta de Amatilde me deixou tão pensativo e triste<br />
que me parecia impossível o poder dissimular a minha tristeza, que é a paixão<br />
<strong>da</strong> alma tão poderosa que por mais que se rebuce com a discrição sempre<br />
deixa vestígios e sombras para conhecer-se, tanto investigou Constantino as<br />
razões de ver-me triste que, não poden<strong>do</strong> já meu coração sofrer a carga de<br />
seus repeti<strong>do</strong>s pesares sem desafogar a pena que me oprimia, vim a <strong>da</strong>r-lhe<br />
inteira notícia <strong>da</strong> causa de meu sentimento desde seu princípio, com o discurso<br />
de quanto até ao presente havia passa<strong>do</strong> com Amatilde.<br />
Admirou-se Constantino, e com razão, porque, como diz Plínio, o que<br />
menos se espera é sempre o que mais admira, e depois de reparar um breve<br />
espaço em consultar com seu juízo a resposta, me disse:<br />
- Se, como escreve Plutarco, não pode <strong>da</strong>r-se em um sujeito juntamente<br />
ser amigo e adula<strong>do</strong>r, não me culpareis, Felizar<strong>do</strong>, se disser o que sinto como<br />
amigo, valen<strong>do</strong>-me <strong>do</strong> desengano e não <strong>da</strong> adulação. Que amasseis a<br />
Amatilde por fermosa, privilégios são <strong>da</strong> beleza, arrojos <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, divertimento<br />
<strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, descui<strong>do</strong>s <strong>da</strong> vontade. Achastes nela valor para estimar-se, juízo<br />
para não render-se, isenção para retirar-se, muito é de louvar em uma moça<br />
humilde tão honra<strong>da</strong> bizarria que, conhecen<strong>do</strong> não podia merecer-vos, fizesse<br />
Valer. Maxim., Lib. 7.
408 Padre Mateus Ribeiro<br />
escu<strong>do</strong> <strong>da</strong> discrição para resistir-vos; se bem me parece que nunca amou<br />
deveras quem ajuíza tão prudente. Pinta-se o amor cego porque em na<strong>da</strong><br />
repara, o menos que tem é de discreto e o muito que tem é de arroja<strong>do</strong>: assim<br />
o escreve Propércio e o mostra a experiência. Pelo que posso considerar em<br />
Amatilde que porventura nasce de falta de amor tanta sobra no juízo.<br />
Oferecestes-vos por seu esposo, que era o requinta<strong>do</strong> <strong>da</strong>s finezas e o auge a<br />
que podia subir vosso querer; vós resolvestes como quem amava e ela reparou<br />
como quem entendia.<br />
Um <strong>do</strong>s conselhos de Diógenes em escolher mulher era a igual<strong>da</strong>de,<br />
que nunca de desigual<strong>da</strong>des se seguem acertos. Não sempre a fermosura<br />
acha desculpas para entendi<strong>do</strong>s, que como é bem que uma enfermi<strong>da</strong>de<br />
facilmente deslustra, o tempo gasta, a i<strong>da</strong>de murcha e a continuação de ser<br />
vista diminui na estimação, pouco tem de desculpar-se quem só pela beleza<br />
chega a mover-se. Casou o segun<strong>do</strong> Constantino, empera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Oriente, com<br />
Teo<strong>do</strong>ra por fermosa, haven<strong>do</strong> si<strong>do</strong> cria<strong>da</strong> de sua primeira mulher, a<br />
emperatriz, e de to<strong>do</strong>s foi reprova<strong>do</strong> tão desigual casamento que celebrou com<br />
Roxanes, com ser prodígio <strong>da</strong> fermosura <strong>da</strong>quela i<strong>da</strong>de; porque a tão soberano<br />
monarca não condiziam bo<strong>da</strong>s tão indecentes, como diz Quinto Cúrcio; e<br />
porventura não foi esta a menor cousa <strong>da</strong>s conjurações que os macedónios<br />
contra Alexandre intentaram, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se por afronta<strong>do</strong>s de que lhes intentasse<br />
<strong>da</strong>r sucessor no império que fosse filho de tão humilde mãe: menor obrigação<br />
parece deverem os filhos <strong>da</strong>s pessoas ilustres em casamentos desiguais a<br />
seus pais, fican<strong>do</strong> em dívi<strong>da</strong>s <strong>do</strong>bra<strong>da</strong>s a suas mães: a elas porque lhes<br />
souberam <strong>da</strong>r tão honra<strong>do</strong>s pais e a eles menos obriga<strong>do</strong>s porque não<br />
repararam em <strong>da</strong>r-lhes tão humildes mães. Discreta foi a resposta que deu<br />
Menentheu Ateniense, que sen<strong>do</strong> filho <strong>da</strong> filha d'el-rei de Trácia, que fugin<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> reino se <strong>caso</strong>u a furto com seu pai, e pergunta<strong>do</strong> a quem maiores<br />
obrigações devia, respondeu que a sua mãe, porque esta lhe soube <strong>da</strong>r pai<br />
ateniense, que era naquele tempo a política <strong>da</strong>s repúblicas, e seu pai sen<strong>do</strong> tal<br />
o fizera nascer bárbaro por sua mãe.<br />
Se pois tão desiguais casamentos nem acham desculpas no amor, nem<br />
escusas na fermosura, porque os juízos como livres julgam desapaixona<strong>do</strong>s,<br />
como vos livrareis <strong>da</strong> censura <strong>do</strong>s discretos se, despois de tantos anos de<br />
estu<strong>do</strong> em que despendestes o mais flori<strong>do</strong> tempo <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, quan<strong>do</strong> pudéreis
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 409<br />
justamente aspirar aos cargos que mereceis, vos vissem emprega<strong>do</strong> em ser<br />
esposo de uma moça, se bem fermosa no parecer, tão desigual no esta<strong>do</strong> e<br />
tão humilde no nascimento? Considerai os desgostos de vossos pais, as iras<br />
de vossos parentes e o sentimento de vossos amigos, pois não poden<strong>do</strong> viver<br />
em vossa pátria, vos seria forçoso peregrinar terras estranhas, e isso com<br />
pouco cabe<strong>da</strong>l e com uma moça fermosa em companhia, que nem é a pensão<br />
menor, nem a menos arrisca<strong>da</strong>, ocasionan<strong>do</strong> perigos o parecer em tantos<br />
olhos que forçosamente a devem encontrar. Fugin<strong>do</strong> a infanta Dona Sancha,<br />
irmã d'el-rei Dom Garcia de Navarra, <strong>da</strong> torre de Castro Velho com o conde de<br />
Castela, Dom Fernan<strong>do</strong> Gonçalves, que na torre sobredita por el-rei estava<br />
preso, sen<strong>do</strong> a infanta mui fermosa, esteve arrisca<strong>do</strong> o conde a ser morto no<br />
caminho e sua esposa violenta<strong>da</strong> por uns caça<strong>do</strong>res que os encontraram,<br />
perigos de que se livraram quasi milagrosamente.<br />
To<strong>do</strong>s os interesses e ain<strong>da</strong> to<strong>da</strong>s as delícias com riscos e moléstias<br />
perdem a estimação e dissuadem ao desejo. Muito desejava Eumenes, rei de<br />
Pérgamo, casar com a filha de Antíoco, famoso rei de Síria e de muita parte <strong>da</strong><br />
Ásia, o que não chegava a ter efeito, porque o pai dela, confia<strong>do</strong> na grandeza<br />
em que se via, desejava empregá-la ain<strong>da</strong> melhor. Porém chegan<strong>do</strong> o tempo<br />
de lhe moverem guerra os romanos, man<strong>do</strong>u-lha oferecer por esposa, mas<br />
Eumenes, ven<strong>do</strong> que de aceitá-la era força empenhar-se na guerra por Antíoco<br />
sobre quem a guerra se movia, de que resultaria além <strong>da</strong> inquietação o risco de<br />
perder-se, não quis aceitar as bo<strong>da</strong>s que tanto de antes solicitara, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> razão<br />
que se o <strong>do</strong>te que lhe <strong>da</strong>vam e a esposa que lhe ofereciam havia de ser sua<br />
ruína, antes queria viver solteiro em quietação que casa<strong>do</strong> com perigo.<br />
Bem disse Plutarco 405 que só o seguro era louvável e to<strong>do</strong> o arrisca<strong>do</strong><br />
mais para causar admiração por emprendi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que digno de louvar-se por<br />
acerta<strong>do</strong>. E se ain<strong>da</strong> os perigos mil vezes buscam a quem lhes foge, como não<br />
seguirão a quem os busca? Antever os males é lanço <strong>da</strong> prudência, buscar-<br />
Ihes o remédio ven<strong>do</strong>-se neles é empenho forçoso <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de; isto digo,<br />
Felizar<strong>do</strong>, porque estais em tempo de vos retirar ao sagra<strong>do</strong> de um desengano:<br />
já por ocasião de Amatilde derramastes o sangue e chegastes aos horizontes<br />
<strong>da</strong> morte; pouco deveis à fortuna quan<strong>do</strong> vos trata com tão tiranos princípios.<br />
Plut., De tranquil, animai.
410 Padre Mateus Ribeiro<br />
Comprastes caros os prelúdios, não apeteçais o fazerdes experiência <strong>do</strong>s fins<br />
trágicos. Agradecei a Amatilde que vos aconselhou como discreta, desejan<strong>do</strong><br />
mais vosso bem que seus aumentos; amai-a como agradeci<strong>do</strong> e não como<br />
pertendente, pois a mesma que hoje considerais admiração, em breves dias<br />
vos há-de parecer diferente, e não parece justo que arrisqueis por um empenho<br />
em que na<strong>da</strong> interessais, a honra, a quietação e as esperanças que<br />
inadverti<strong>da</strong>mente perdeis.<br />
Cap. VII.<br />
De como se descobriu quem era Amatilde e como se partiu de Ferrara<br />
Deu fim Constantino (a) a persuadir-me, se pudera persuadir-me quem<br />
tanto amava. É a enfermi<strong>da</strong>de de amor, diz Ovídio 406 , de dificultosa cura, sur<strong>do</strong><br />
para as admoestações, e, como diz o padre São Bernar<strong>do</strong> 407 , diverti<strong>do</strong> para<br />
admitir os conselhos. É a memória com a perseverança <strong>do</strong> lembrar, diz São<br />
João Crisóstomo, a arma mais reforça<strong>da</strong> <strong>do</strong> amor, porque enquanto não chega<br />
a esquecer-se, dificultosamente deixa persuadir-se; e como estava Amatilde<br />
tão presente na memória e tão próxima na vista, era em mim mais poderoso o<br />
afecto que a razão, quanto são mais eficazes os senti<strong>do</strong>s que os discursos.<br />
Queria eu replicar a Constantino quan<strong>do</strong> chegou um cria<strong>do</strong> a chamar-<br />
me, dizen<strong>do</strong> que de um coche saíam uns fi<strong>da</strong>lgos bem acompanha<strong>do</strong>s de<br />
gente de cavalo que perguntavam por meu pai e pareciam forasteiros. Subimos<br />
eu e Constantino acima a recebê-los juntamente com meu pai, e vimos a Sílvio,<br />
pai até este tempo de Amatilde, que vinha acompanhan<strong>do</strong> a Dom Cláudio de<br />
Este, parente <strong>do</strong> duque de Módena, com outros fi<strong>da</strong>lgos que assistiam, gente<br />
to<strong>da</strong> bem luzi<strong>da</strong> e traja<strong>da</strong>. Depois <strong>da</strong>s devi<strong>da</strong>s cortesias <strong>do</strong> recebimento a<br />
pessoas tão qualifica<strong>da</strong>s no ser e no esta<strong>do</strong>, Dom Cláudio, que era mancebo<br />
A partir deste ponto, este amigo de Felizar<strong>do</strong>, apresenta<strong>do</strong> anteriormente como Constantino,<br />
será chama<strong>do</strong> Constâncio. Optámos por manter a primeira forma.<br />
406 Ovid., in Epist.<br />
407 S. Bern., Ser. 33. Supr. Cant.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 411<br />
não menos cortês que discreto, como na prática manifestou, falan<strong>do</strong> com meu<br />
pai, disse assim:<br />
- Novi<strong>da</strong>de poderá parecer a vossa mercê, senhor Gui<strong>do</strong> de Rangon, e<br />
assim meu pai se chamava, que desde a corte de Módena venha visitar a V. M.<br />
acompanha<strong>do</strong> destes senhores e fi<strong>da</strong>lgos, que por ordem <strong>do</strong> duque, meu tio e<br />
senhor, me fazem companhia; porém quan<strong>do</strong> V. M. conhecer a causa,<br />
porventura receberá nova admiração, pois vimos não menos que a buscar um<br />
tesouro escondi<strong>do</strong> que nesta casa encobriu o tempo e descobriu a ventura. É o<br />
tempo não só medi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s anos, mas também o relógio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, como lhe<br />
chamou Tales Milésio, pois a varie<strong>da</strong>de de seu curso vem a descobrir tu<strong>do</strong> o<br />
que rebuçou a necessi<strong>da</strong>de, o que encobriu a astúcia e o que escondeu o<br />
recato: não haven<strong>do</strong> enigma tão escuro que o tempo não manifeste, nem<br />
emblema tão difícil que o tempo não aclare. O marquês Aníbal de Este, meu<br />
tio, que Deus haja, primo <strong>do</strong> duque meu senhor que tantos lauros e triunfos<br />
adquiriu pelas armas nas guerras <strong>do</strong> império contra os luteranos rebela<strong>do</strong>s,<br />
como publica a fama em to<strong>da</strong> a Europa, faleceu em Veneza, vin<strong>do</strong> já com<br />
licença <strong>do</strong> César para descansar algum tempo em seu esta<strong>do</strong>, ver os muros de<br />
sua pátria, de quem tantos anos o trouxe desnaturaliza<strong>do</strong> o militar pun<strong>do</strong>nor e<br />
desejo de servir ao César. Atalhou-lhe a morte os passos, não a fama com<br />
suas proezas adquiri<strong>da</strong>, e fazen<strong>do</strong> testamento, nele declarou como em os anos<br />
juvenis de sua moci<strong>da</strong>de tivera uma filha em Ferrara de uma moça nobre, a<br />
qual por justos respeitos dera a criar ocultamente a um lavra<strong>do</strong>r de Fossa pelo<br />
Sella chama<strong>do</strong> Sílvio, casa<strong>do</strong> com Dionísia, que a título de filha própria a<br />
criara, e se chamava Amatilde a quem ele deixava, por não ter filhos, por<br />
universal herdeira de seu esta<strong>do</strong>, e pedia ao duque que como a parenta a<br />
man<strong>da</strong>sse ir ao paço para assistir em companhia <strong>da</strong> senhora duquesa, até a<br />
casar conforme a seu sangue e digni<strong>da</strong>de, confirman<strong>do</strong>-lhe o marquesa<strong>do</strong> para<br />
quem casasse com ela.<br />
Isto e outras cousas continha o testamento <strong>do</strong> marquês, que sen<strong>do</strong><br />
apresenta<strong>do</strong> a sua alteza, depois de celebrar as honras funerais que a tão<br />
insigne capitão e preza<strong>do</strong> parente eram devi<strong>da</strong>s, me ordenou que com a<br />
companhia destes fi<strong>da</strong>lgos de sua corte viesse buscar a Amatilde, para que<br />
com Sílvio e Dionísia, seus pais na criação e amor, vá assistir em Módena no
412 Padre Mateus Ribeiro<br />
paço até se lhe ordenar o esta<strong>do</strong> que por filha de tal pai e por quem é se lhe<br />
deve.<br />
Cheguei a Fossa pelo Sella, procurei a Sílvio, e ele me deu notícia de<br />
que Amatilde com Dionísia estavam em vossa casa, e os motivos que para vir<br />
a Ferrara a moveram: estimo que o senhor Felizar<strong>do</strong> esteja livre já <strong>do</strong> susto de<br />
seu perigo, que a to<strong>do</strong>s nos custou sentimento quan<strong>do</strong> dele notícias tivemos, e<br />
agora lhe <strong>da</strong>mos os parabéns de sua melhoria, e a vós, senhor Gui<strong>do</strong>, pedimos<br />
licença para levar a Módena a marquesa Amatilde, pois sua alteza assim<br />
ordena e para esse efeito nos envia.<br />
Suspensos nos deixou a to<strong>do</strong>s a novi<strong>da</strong>de de tal sucesso, e<br />
principalmente em mim obrou tão encontra<strong>do</strong>s efeitos que não poderei<br />
facilmente avaliar se foi maior o excesso <strong>da</strong> alegria, se o extremo <strong>do</strong> seu pesar.<br />
Conheceu Constantino em meu rosto, como relógio <strong>do</strong>s afectos <strong>da</strong> alma, que<br />
assim lhe chamou Cleanto 408 e Cícero 409 lhe deu título de porta <strong>da</strong>s paixões e<br />
sentimentos <strong>do</strong> coração, e como eu lhe havia descoberto meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, viu<br />
ele em mim tão vários movimentos que me disse com voz baixa:<br />
- Felizar<strong>do</strong>, sabei como prudente valer-vos <strong>da</strong> ventura, pois vos entra<br />
em casa com seu favor.<br />
Eu, que estava já resoluto em aventurar-me, disse desta sorte:<br />
- Suposto, senhor Dom Cláudio, que a meu pai e não a mim em primeiro<br />
lugar pertencia a resposta deste sucesso, contu<strong>do</strong> a mim convém antecipar-me<br />
a dá-la, pela razão que ouvireis. A senhora Amatilde é minha esposa, porque<br />
de secreto estou desposa<strong>do</strong> com ela, sem saber mais de sua quali<strong>da</strong>de que os<br />
merecimentos de sua fermosura e discrição. Meu amor não adivinhou esta<br />
ventura, levou-se <strong>do</strong> que viu; não se subornou <strong>do</strong> que ignorava e em parte me<br />
pesa de que suba a mais, porque não me fique obriga<strong>da</strong> menos. Amor iguala<br />
tu<strong>do</strong>, disse Ovídio, e se eu a igualei a mim sen<strong>do</strong> lavra<strong>do</strong>ra, não parecerá<br />
admiração que ela me iguale a si sen<strong>do</strong> senhora. Minha família é bem<br />
conheci<strong>da</strong> em Ferrara, em Bolonha e em Módena, e assim não se avaliará por<br />
maravilha este emprego; que subir um fi<strong>da</strong>lgo a ser senhor nem o mun<strong>do</strong> o terá<br />
por novi<strong>da</strong>de, nem os discretos o julgarão por admiração.<br />
Cleant., apud Diogili. 7.<br />
Cie, AdLent.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 413<br />
Absortos ficaram to<strong>do</strong>s em ouvir-me, mas quem mais se mostrou senti<strong>do</strong><br />
e quasi apaixona<strong>do</strong> foi Dom Cláudio, como quem era opositor ao casamento de<br />
Amatilde, e assim, entre turba<strong>do</strong> e colérico, respondeu:<br />
- Mais parece, senhor Felizar<strong>do</strong>, quererdes aproveitar-vos <strong>da</strong> fortuna<br />
próspera de Amatilde <strong>do</strong> que acreditar-vos de amante; porque como intentais<br />
persuadir-me que, sen<strong>do</strong> vós ajuiza<strong>do</strong> e filho único de ilustres pais, vos<br />
vencêsseis tanto <strong>do</strong> parecer de uma moça ti<strong>da</strong> por humilde no nascimento,<br />
sem bens <strong>da</strong> fortuna que a <strong>do</strong>tassem, que a escolhêsseis por esposa? Ou vós<br />
me haveis de conceder que por via de Sílvio e Dionísia tivestes conhecimento<br />
de quem era quan<strong>do</strong> a escolhestes, ou que delirastes no juízo quan<strong>do</strong>, como<br />
vós dizeis, vos desposastes, porque prever as venturas não cabe na esfera <strong>do</strong><br />
humano discurso! Se Sílvio e sua mulher, quan<strong>do</strong> estivestes em sua casa, vos<br />
declararam o segre<strong>do</strong> com que se lhes entregou Amatilde, não se livram <strong>da</strong><br />
culpa e de pouco leais a quem deles fiou seu crédito; e se tiveram oculto o<br />
segre<strong>do</strong> que deviam, quem vos livrará <strong>da</strong> censura de pouco ajuiza<strong>do</strong>, pois<br />
sen<strong>do</strong> quem sois e despenden<strong>do</strong> tantos anos nas academias para aos<br />
aumentos de maiores esta<strong>do</strong>s subirdes, no flori<strong>do</strong> <strong>da</strong>s esperanças, no tempo<br />
de largardes as asas ao voo, as abatestes a ficardes sen<strong>do</strong> ludíbrio <strong>da</strong> bizarria,<br />
sentimento de vossos pais, desgosto de vossos parentes e objecto de<br />
murmuração a quantos vos conheciam? E como não me persua<strong>do</strong> em que vos<br />
precipitásseis a tantos despenhos, mais quero julgar a que vos cega a ambição<br />
de casardes com a marquesa <strong>do</strong> que imaginar que vos cegou tanto o amor que<br />
vos desposásseis com Amatilde lavra<strong>do</strong>ra. O duque está empenha<strong>do</strong> em casá-<br />
la por sua escolha, pois o defunto marquês tanto lho encomen<strong>do</strong>u, e em levá-la<br />
para Módena; não an<strong>da</strong>reis bem aconselha<strong>do</strong> em encontrar seu intento, porque<br />
aos principais soberanos não se hão-de ocasionar desgostos, pois para amigos<br />
são bons e para inimigos muito grandes.<br />
Alteraram-se to<strong>do</strong>s os que com Cláudio vinham, dizen<strong>do</strong> que não<br />
parecia justo desobedecer ao que o duque ordenava, que fosse Amatilde<br />
leva<strong>da</strong> à sua presença e que lá se apuraria a ver<strong>da</strong>de, pois conselheiros tinha<br />
aonde se ventilasse a justiça a quem a tivesse. Queria eu responder, mas<br />
atalhou-o meu pai, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Senhores, este negócio não se leva por estron<strong>do</strong>s, senão por razão e<br />
justiça, e assim direi o que neste me parece. Primeiramente eu deste <strong>caso</strong> não
414 Padre Mateus Ribeiro<br />
sei notícia alguma mais que acudin<strong>do</strong> eu a Fossa pelo Sella a meu filho<br />
Felizar<strong>do</strong>, juntamente com sua mãe Valentina, o achámos mal feri<strong>do</strong> e em risco<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em casa de Sílvio e Dionísia, honra<strong>do</strong>s lavra<strong>do</strong>res <strong>do</strong> lugar que<br />
cari<strong>do</strong>samente o haviam recolhi<strong>do</strong>, e por os cirurgiões defenderem o abalar-se<br />
em tal esta<strong>do</strong>, ficámos eu e sua mãe nas própria casas assistin<strong>do</strong>-lhe o<br />
discurso de alguns dias, juntamente com Dionísia e Amatilde, que com grande<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e desvelo lhe serviam de enfermeiras. Deu a enfermi<strong>da</strong>de lugar a<br />
poder mu<strong>da</strong>r-se a Ferrara, e pediu ele encareci<strong>da</strong>mente a sua mãe trouxesse<br />
consigo a Amatilde e Dionísia para alguns dias assistirem em esta casa.<br />
Levam as petições e rogos <strong>do</strong>s filhos para com os pais seguros sempre<br />
os despachos, disse discretamente Platão 410 ; e se ain<strong>da</strong>, como diz Ovídio 411 , a<br />
ira com os rogos se abran<strong>da</strong> em um peito apaixona<strong>do</strong>, que diferente eficácia<br />
teriam as petições de um filho único e tão enfermo no coração enterneci<strong>do</strong> de<br />
uma mãe? E como a mulher, diz Euripides, tem natural eficácia para demover e<br />
alcançar o que deseja, concedeu-lhe Dionísia o vir com Amatilde em nossa<br />
companhia a Ferrara, aonde estão. A ver<strong>da</strong>de <strong>do</strong> que tem passa<strong>do</strong> é o que<br />
tenho referi<strong>do</strong>, o mais, nem <strong>do</strong> amor de Felizar<strong>do</strong> ou de seus ocultos<br />
desposórios, nem <strong>da</strong> nova mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de Amatilde, agora com vossa<br />
chega<strong>da</strong> o ouvi. Que Amatilde lavra<strong>do</strong>ra suba a ser marquesa, sua fermosura o<br />
merece, pois sempre esta, como diz Ovídio, é digna de senhorio; que meu filho<br />
Felizar<strong>do</strong> se cegasse em escolhê-la por esposa sem eu sabê-lo, arrojo foi de<br />
amante, inconsideração <strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de; que a escolhesse sen<strong>do</strong> lavra<strong>do</strong>ra,<br />
cegueira <strong>do</strong> querer, falta <strong>do</strong> discursar; ser seu esposo ele o afirma e ela poderá<br />
dizer o que nisso passa: se é ver<strong>da</strong>de que se desposaram, nem o duque tem<br />
razão de queixa, pois ele a escolheu sem conhecê-la, leva<strong>do</strong> só de a amar; eu<br />
só pudera ser o queixoso e o que me mostrasse ressenti<strong>do</strong>, pois se casava<br />
com lavra<strong>do</strong>ra, que era o desacerto; que o mu<strong>da</strong>r-se em marquesa foi ventura,<br />
e mais se devem sentir os desaires de arroja<strong>do</strong> <strong>do</strong> que estimar os acidentes de<br />
venturoso, porque no primeiro estava certo o erro e no segun<strong>do</strong> foi contingente<br />
a ventura.<br />
410 Plat., Delegib.<br />
411 Ovid., 1. De arte amandí.
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte III 415<br />
Isto pressuposto, para que a ordem de sua alteza não fique sem efeito,<br />
nem meu filho sem decoro, eu e minha mulher Valentina levaremos a Módena<br />
a Amatilde à presença <strong>do</strong> senhor duque, juntamente com meu filho Felizar<strong>do</strong>,<br />
Sílvio e Dionísia, para que em sua presença se apure a ver<strong>da</strong>de, que fio eu de<br />
seu valor e justiça, ordenará o que for mais conforme à razão com sua<br />
prudência, que, como ensina Aristóteles, é a virtude própria <strong>do</strong> governo <strong>do</strong>s<br />
príncipes. E porque hoje é já tarde para a jorna<strong>da</strong>, sirva-se o senhor Dom<br />
Cláudio de ser hoje meu hóspede com estes senhores que o acompanham, e<br />
pela manhã partiremos à corte, pois acompanha<strong>da</strong> com Valentina, minha<br />
esposa, vai mais decente a quem ela é e à presença de quem espera sua<br />
vin<strong>da</strong>.<br />
Disseram to<strong>do</strong>s que era acerta<strong>do</strong> o conselho, se bem Dom Cláudio<br />
impaciente ain<strong>da</strong> replicar queria, mas como viu que to<strong>do</strong>s os que com ele<br />
vinham aprovavam o parecer de meu pai, houve contra seu gosto de<br />
acomo<strong>da</strong>r-se a ele, se bem temen<strong>do</strong> a diferença ser mui desigual no parti<strong>do</strong>,<br />
pois estan<strong>do</strong> eu de portas adentro e ten<strong>do</strong> minha mãe por medianeira bem<br />
previa que havia de conseguir quanto intentasse. Alegre eu <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, cobrei<br />
forças <strong>da</strong> fraqueza com que passava, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me novo alento as esperanças<br />
que, como disse Tibulo 412 , são o remédio mais poderoso <strong>da</strong>s aflições.<br />
Preparou-se o agasalho decente para tais hóspedes e só em Dom Cláudio se<br />
via uma profun<strong>da</strong> tristeza que, por mais que procurava disfarçá-la, ela mesma<br />
se descobria. Não sempre (a) os ânimos são senhores <strong>da</strong>s paixões para ocultá-<br />
las, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> se mostram poderosos para vencê-las. Bem deseja o<br />
delinquente encobrir a turbação, mas muitas vezes mal pode desmentir o temor<br />
porque publica o rosto o que quer esconder o desejo. Assim Dom Cláudio,<br />
como estava suborna<strong>do</strong> <strong>da</strong> fama <strong>da</strong> fermosura de Amatilde desde a hora que<br />
de Veneza chegou a nova <strong>do</strong> marquês e <strong>do</strong> que ordenava em seu testamento,<br />
se partiu, como depois se soube, a Fossa pelo Sella com alguns cria<strong>do</strong>s e<br />
músicos para vê-la disfarça<strong>do</strong>, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe de noite a música que já referi; mas<br />
não lhe sen<strong>do</strong> possível vê-la, e ele não queren<strong>do</strong> de dia ser visto, se tornou a<br />
2 Tibul., Lib. 2.<br />
) Enten<strong>da</strong>-se: Nem sempre.
416 Padre Mateus Ribeiro<br />
Módena, contentan<strong>do</strong>-se com as informações que dela lhe deram e dedican<strong>do</strong>-<br />
a em seu pensamento desde essa hora para esposa.<br />
Pedi eu a Constantino quisesse acompanhar-me na jorna<strong>da</strong>, a que ele<br />
se ofereceu alegremente, dizen<strong>do</strong>-me que se de antes como amigo me tinha<br />
dissuadi<strong>do</strong> o casamento de Amatilde por se ignorar sua quali<strong>da</strong>de, agora mo<br />
aconselhava e que dele não desistisse, pois minha feliz sorte a casa me<br />
trouxera to<strong>da</strong> a ventura que desejar podia. Avisaram-se a parentes nossos para<br />
nos acompanharem, e eu, com desculpas de convalescente recolhen<strong>do</strong>-me<br />
mais ce<strong>do</strong>, fui aonde Amatilde estava e lhe disse assim:<br />
- Bem sabes, discreta Amatilde, que não me empenhei a querer-te por<br />
riquezas, nem esta<strong>do</strong>s que possuísses, sen<strong>do</strong> como te imaginava lavra<strong>do</strong>ra,<br />
mas porque se pagou meu amor só <strong>do</strong> que por ti própria merecias; em minha<br />
eleição esteve amar tuas perfeições, não adivinhar tuas venturas; ofereci-me<br />
por teu esposo sen<strong>do</strong> quem sou, não reparan<strong>do</strong> em seres tu quem então eras.<br />
Bem manifestei quanto tive de desinteressa<strong>do</strong> em querer-te e quanto de fino<br />
em amar-te. A Deus provera que estiveras hoje no mesmo esta<strong>do</strong> em que<br />
meus olhos te viram: porque eu a ti te busquei porque tu só vales tu<strong>do</strong>. Os<br />
esta<strong>do</strong>s, favores são <strong>da</strong> fortuna, mas os merecimentos, <strong>do</strong>tes <strong>da</strong> natureza; e<br />
quem vive contente só com o que ama, não tem ambições <strong>do</strong>s logros <strong>do</strong> que<br />
em menos estima. Man<strong>da</strong>-te buscar a Módena sua alteza para como tutor <strong>da</strong>r-<br />
te <strong>da</strong> sua mão esta<strong>do</strong>: bem poderá casar-te com quem maiores esta<strong>do</strong>s<br />
possua, mas não com quem mais por amante te mereça. Tenho publica<strong>do</strong> que<br />
sou teu esposo, agora verei, Amatilde, o que vai para contigo meu amor, se<br />
porventura quan<strong>do</strong> eu te escolhi sen<strong>do</strong> humilde, tu me desprezas quan<strong>do</strong> te<br />
vês senhora.<br />
- Não passes adiante, Felizar<strong>do</strong> (respondeu Matilde), que os brios que<br />
comigo nasceram não os devo eu ao esta<strong>do</strong> que ain<strong>da</strong> não possuo. Para<br />
desempenhar-me <strong>do</strong> que te devo, posso afirmar que me pesa de nasceres tão<br />
ilustre, porque em confessar-me por tua esposa quan<strong>do</strong> foras menos, então me<br />
desempenhara mais. Se queres que por ti deixe o esta<strong>do</strong>, farei conta que ain<strong>da</strong><br />
sou lavra<strong>do</strong>ra, e pouco me custara a troco de ser tua esposa viver só como<br />
Amatilde e não como marquesa, porque em ter-te a ti logro tu<strong>do</strong> e sem ti tu<strong>do</strong> o<br />
mais estimo em na<strong>da</strong>. Está seguro que não só arriscan<strong>do</strong> os esta<strong>do</strong>s que meu<br />
pai me deixa, mas ain<strong>da</strong>, se necessário for, aventuran<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong>, nem me
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 417<br />
venças na fineza de querer-te, nem me avantajes nos quilates de estimar-te,<br />
pois se não te aceitei quan<strong>do</strong> lavra<strong>do</strong>ra foi por não viver sempre contigo<br />
endivi<strong>da</strong><strong>da</strong>; mas agora que podes ficar-me deve<strong>do</strong>r, estimo ter que me devas,<br />
porque em amor me pagues, se porventura pode haver paga que cabalmente<br />
iguale a meu amor.<br />
Com isto, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me promessas firmes de esposa se retirou ao quarto<br />
em que assistia, a quem minha mãe foi acompanhar, assistin<strong>do</strong> em práticas<br />
com ela e Dionísia a maior parte <strong>da</strong> noite.<br />
Apenas equivocou a aurora os rasgos <strong>da</strong> primeira luz com os retiros <strong>da</strong>s<br />
últimas sombras <strong>da</strong> noite, deixan<strong>do</strong> em suspensões qual por seu o campo de<br />
safiras tinha, quan<strong>do</strong> a<strong>do</strong>rna<strong>da</strong> com as galas e jóias que lhe tinha ofereci<strong>do</strong><br />
minha mãe, estava Amatilde desmentin<strong>do</strong> com o <strong>do</strong>nairoso e bizarro de<br />
senhora os antigos acidentes <strong>da</strong> pastoril criação; porque assentou nela a<br />
natureza tão amodela<strong>do</strong> o brio cortesão que mais parecia mestra <strong>do</strong> garbo<br />
palaciano que discípula que aprendesse lições políticas de majestosa em tu<strong>do</strong><br />
se mostrar. Prepararam-se os coches: o nosso para ela, minha mãe e Dionísia;<br />
liteira para mim, por indisposto, em que juntamente ia Constantino, meu<br />
particular amigo; no de Dom Cláudio ia meu pai com outros cavaleiros; e em<br />
cavalos alguns parentes e outros fi<strong>da</strong>lgos que com Dom Cláudio vieram, e<br />
juntamente Sílvio, antigo pai de Amatilde. To<strong>do</strong>s iam admira<strong>do</strong>s de vê-la, assim<br />
pelo raro <strong>da</strong> beleza como pelo admirável <strong>do</strong> brioso, mal se persuadin<strong>do</strong> a que<br />
fosse no inculto <strong>do</strong>s montes cria<strong>da</strong> quem nem o menor vestígio tinha de<br />
montanhesa; mas a quem mais atormentava este cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, como mais<br />
interessa<strong>do</strong> na pertensão, era Dom Cláudio, que desesperava com a inveja de<br />
me considerar mais venturoso, e assim se resolveu (como depois manifestou) a<br />
impedir-me o casamento, [por] mais que no intento aventurasse a vi<strong>da</strong>.<br />
É o caminho de Ferrara a Módena dilata<strong>do</strong>, seguin<strong>do</strong> as cristalinas<br />
ribeiras <strong>do</strong> famoso rio Pó, que pode afectar competências com o Nilo, não só<br />
no cau<strong>da</strong>loso <strong>da</strong>s águas a quem a fábula de ícaro fez tão celebra<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s<br />
poetas, mas ain<strong>da</strong> nos vários ramos em que dividia sua grandeza, como por<br />
várias bocas quer beber as on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mar Adriático como o Nilo as on<strong>da</strong>s <strong>do</strong><br />
mar Mediterrâneo. É o caminho alegre pelo espaçoso <strong>da</strong> vista, fresco pelo<br />
ameno <strong>do</strong>s pra<strong>do</strong>s, que à vizinhança <strong>do</strong> rio devem o verde de que se trajam e<br />
as flores de que se a<strong>do</strong>rnam; mui povoa<strong>do</strong> sítio de vilas e principais lugares
418 Padre Mateus Ribeiro<br />
que o fértil <strong>do</strong> terreno permite a seus mora<strong>do</strong>res, lisonjean<strong>do</strong>-os com<br />
abundância de seus frutos e grandiosas novi<strong>da</strong>des que, como ensina Plínio,<br />
são os estímulos <strong>do</strong> cui<strong>da</strong><strong>do</strong> de seus habita<strong>do</strong>res e ain<strong>da</strong> <strong>da</strong>s invejas <strong>do</strong>s que<br />
as não logram, como escreve Salústio.<br />
Havíamos de passar por Fossa pelo Sella, primeiro centro de meus<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e berço <strong>da</strong>s meninices de Amatilde, que quan<strong>do</strong> chegou ao lugar em<br />
esta<strong>do</strong> tão diferente ao em que seus mora<strong>do</strong>res a viram, to<strong>do</strong>s com lágrimas<br />
de alegria vieram a <strong>da</strong>r-lhe os parabéns de sua feliz ventura, e as lavra<strong>do</strong>ras<br />
suas amigas que com ela se criaram, ven<strong>do</strong> que se ausentava para mais no<br />
lugar a não verem, foram tantas as lágrimas com que dela se despediram, que<br />
abriram em o peito de Amatilde tão sau<strong>do</strong>sa brecha de sentimento que mal<br />
podia estancar as lágrimas a seus olhos pelo magoa<strong>do</strong> que tinha o coração. É<br />
a criação segun<strong>da</strong> natureza, tão dificultosa de apartar como a própria vi<strong>da</strong>, e<br />
como Amatilde não conheceu outra pátria mais que esta, nem outras amigas<br />
mais <strong>do</strong> que as <strong>do</strong> lugar com quem iguais nos anos tinha sempre vivi<strong>do</strong>, não<br />
era admiração que, não obstante a grandeza em que agora se via, sentisse<br />
enterneci<strong>da</strong>mente o pátrio <strong>do</strong>micílio e amigas que em Fossa pelo Sella para<br />
sempre deixava.<br />
Apressámos o caminho para lhe divertir as sau<strong>do</strong>sas lembranças, se<br />
bem na tristeza mostrava que pedia empresta<strong>do</strong> à memória o sítio que lhe<br />
negava a vista, para solenizar com o sentir o que os olhos na distância lhe não<br />
permitiam ver. Man<strong>do</strong>u meu pai diante preparar o hospício para pousarmos<br />
esta noite em Francolino, lugar situa<strong>do</strong> junto ao mar e porto para quem quer<br />
passar a Veneza, aonde um primo de meu pai, que era senhor desta povoação<br />
e castelo que nela há, se bem diminuí<strong>do</strong> <strong>da</strong> grandeza que de antes tinha,<br />
estava ao presente mora<strong>do</strong>r, que conforme o tempo em que lhe chegou o<br />
aviso, preparou o agasalho com a grandeza de seu ânimo e decência <strong>do</strong>s<br />
hóspedes que esperava; mas porque pareceu a jorna<strong>da</strong> a Cláudio breve, para<br />
o que ocultamente em seu peito intentava, porfiou que se passasse adiante,<br />
que ele avisaria a quem tivesse prepara<strong>do</strong> o alojamento conveniente para se<br />
passar a noite como<strong>da</strong>mente. Consentimos no que dizia, mais por cortesia de<br />
não parecer que o encontrávamos em tu<strong>do</strong> o que queria, que por recearmos<br />
perigo algum em quem vinha com comissão <strong>do</strong> duque para levar Amatilde a<br />
sua presença; mas ele com ânimo cauteloso, cego <strong>da</strong> fermosura de Amatilde,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 419<br />
que para quantos a viam era poderoso suborno <strong>da</strong>s vontades, desconfia<strong>do</strong> de<br />
alcançá-la por esposa conforme o duque era inteiro na justiça, intentou cometer<br />
a violência, o que não podia ter direito na razão.<br />
Cap. VIII.<br />
Do roubo violento de Amatilde e <strong>do</strong> que nisso passou<br />
Bem disse Cícero que estava tão ocasiona<strong>do</strong> a traições o mun<strong>do</strong> que<br />
era necessário a quem nele vive estar sempre em perpétua sentinela; <strong>do</strong>nde<br />
veio a dizer Tito Lívio 413 que maior perigo corria a vi<strong>da</strong> na perfídia <strong>do</strong>s<br />
companheiros que nos assaltos <strong>do</strong>s inimigos; porque <strong>do</strong>s primeiros mal se<br />
acautela a sinceri<strong>da</strong>de e <strong>do</strong>s segun<strong>do</strong>s bem se assegura a vigilância.<br />
Molesta<strong>do</strong> Júlio César de avisos ocultos que se lhe <strong>da</strong>vam, de traições que se<br />
lhe maquinavam, sem saber de quem devia assegurar-se, nem queren<strong>do</strong> já <strong>da</strong><br />
guar<strong>da</strong> que lhe assistia acompanhar-se, disse, como refere Suetónio, que<br />
antes queria cair de uma vez que temer tanto. Isto digo, porque mal pudera<br />
persuadir-me que Dom Cláudio, pessoa tão ilustre no sangue, que é de<br />
ordinário o maior abono <strong>do</strong> bom procedimento, vin<strong>do</strong> por ordem <strong>do</strong> duque para<br />
levar a Módena a Amatilde, o precipitasse tanto a inveja de me considerar em<br />
seus olhos mais aceito e o despenhar-se tanto o prodigioso <strong>da</strong> beleza, que<br />
cortan<strong>do</strong> pelos respeitos que ao duque e a si mesmo se devia, quisesse pôr à<br />
sua fama um labéu tão indecente ao lustre de seus progenitores.<br />
Há no caminho que seguíamos uma vila acastela<strong>da</strong>, bem povoa<strong>da</strong> de<br />
mora<strong>do</strong>res, que se chama Castel-Venesio, <strong>do</strong> senhorio <strong>da</strong> República de<br />
Veneza, que com estar em meio <strong>do</strong> duca<strong>do</strong> de Módena é, como digo, <strong>do</strong>s<br />
venezianos. Nesta vila tinha Dom Cláudio um grande amigo e poderoso em<br />
riquezas e vassalos, a quem avisou de sua i<strong>da</strong>, para que em sua casa lhe<br />
tivesse prepara<strong>do</strong> hospício e de secreto alguma gente arma<strong>da</strong> para o que ele<br />
em particular lhe declararia. Era Alberto, que assim se chamava, mancebo na<br />
i<strong>da</strong>de, destemi<strong>do</strong> no valor, arroja<strong>do</strong> nas ousadias, muito rico no esta<strong>do</strong> e<br />
413 Tit. Liv., Lib. 1. dec. 1.
420 Padre Mateus Ribeiro<br />
grande amigo de Dom Cláudio, e em receben<strong>do</strong> o aviso não se descui<strong>do</strong>u em a<br />
preparação <strong>do</strong> que se lhe encomen<strong>da</strong>va. Chegámos à vila ao tempo que o sol<br />
ia <strong>da</strong>n<strong>do</strong> as despedi<strong>da</strong>s ao dia, e este a minhas venturas, se até então se<br />
podiam chamar venturas minhas, pois, como bem diz Plutarco, venturas que de<br />
um fio pendem, porque causa venturas se intitulam? Apeámo-nos em sua casa,<br />
que era grandiosa e estava de tu<strong>do</strong> com abundância provi<strong>da</strong>: recolheram-se<br />
minha mãe, Amatilde e Dionísia a um quarto separa<strong>do</strong>, e nós em outro;<br />
puseram-se mesas conforme a grandeza de quem nos recebia, em que Alberto<br />
quis que houvesse música de falas escolhi<strong>da</strong>s que em casa tinha, para que<br />
não faltasse à hospe<strong>da</strong>gem género algum de recreio em que se não<br />
descobrisse quanto podia. Retirámo-nos ao nosso quarto, depois de lhe render<br />
as graças <strong>do</strong> favor que nos fizera.<br />
Recolhi<strong>do</strong>s os hóspedes, pedi eu a Alberto fossemos ao jardim que era<br />
bem fresco, o que ele fez, e assentámo-nos em um lugar <strong>do</strong>nde aos raios <strong>da</strong><br />
lua se descobria não só muita parte <strong>do</strong>s campos, mas também se<br />
desquartinava aquele grande lago ou, para melhor dizer, mar pequeno que com<br />
a união de suas cau<strong>da</strong>losas correntes junto a este lugar formam os <strong>do</strong>us<br />
celebra<strong>do</strong>s rios Menaco e Tártaro, impetuosamente desafian<strong>do</strong> ao Pó, ficam<br />
dele despoja<strong>do</strong>s e venci<strong>do</strong>s. Disse eu a Alberto desta sorte:<br />
- Vejo-me, senhor Alberto, tão empenha<strong>do</strong> nas obrigações em que com<br />
vossa grandeza me tendes posto que elas mesmas me dão motivo a pedir-vos<br />
novos favores, pois quan<strong>do</strong> o ânimo é tão generoso, as mercês que faz são<br />
conheci<strong>do</strong>s ensaios e prelúdios para as avantaja<strong>da</strong>s que dele se esperam. Já<br />
tereis notícia <strong>do</strong>s sucessos de Amatilde de antes lavra<strong>do</strong>ra e hoje marquesa,<br />
que o duque de Módena man<strong>da</strong> levar à sua presença, a quem tenho <strong>da</strong><strong>do</strong><br />
palavra de esposo antes de conhecer o que hoje alcança, porque sempre<br />
avaliei por grande o muito que por si só merece. Receio ter competi<strong>do</strong>res<br />
poderosos nesta ventura que granjeou meu amor sem conhecê-la e que me<br />
custa porventura ain<strong>da</strong> as feri<strong>da</strong>s que mal cerra<strong>da</strong>s em meu peito trago; e<br />
como este caminho a Módena além de ser desusa<strong>do</strong> para mim, o principal que<br />
havemos de passar é <strong>do</strong> senhorio de Veneza e não de Módena, estimara me<br />
quisésseis acompanhar com gente vossa até lugar seguro, que como conheço<br />
o muito que valeis e o valor que a fama de vós publica, sen<strong>do</strong> vós meu<br />
protector na defensa, irá seguro meu coração <strong>do</strong>s assaltos <strong>da</strong> fortuna.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 421<br />
Atento ouviu Alberto a petição que lhe fazia e respondeu assim:<br />
- Obrigação minha era, senhor Felizar<strong>do</strong>, oferecer-vos eu a companhia,<br />
pois a senhora Amatilde se serviu de hospe<strong>da</strong>r-se nesta casa, se bem não<br />
igual ao que ela merece e eu desejo. Discretamente vos mostrais temeroso:<br />
que venturas grandes trazem as desconfianças por companheiras, nunca se<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong> por seguro para descui<strong>da</strong>r-se o que se estima em muito para possuir-se,<br />
mas estai certo que não hei-de faltar em servir-vos, empenhan<strong>do</strong> este pouco<br />
que valer meu desejo em assistir-vos e acompanhar-vos, pois neste <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong><br />
senhoria de Veneza algum respeito se me guar<strong>da</strong>. E porque vos pode o sereno<br />
<strong>da</strong> noite ser nocivo por estares ain<strong>da</strong> convalescente, vos recolhei a pousar,<br />
pon<strong>do</strong> à parte os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s sobre minha promessa.<br />
recolhemos.<br />
Rendi-lhe as devi<strong>da</strong>s graças <strong>da</strong> mercê que me fazia e com isto nos<br />
Que importa, senhores, a cautela a quem tem pouca ventura se muitas<br />
vezes os meios que solicita para assegurar-se são os mesmos instrumentos de<br />
sua ruína? Quem havia de prever com o juízo que, recean<strong>do</strong>-me eu de Dom<br />
Cláudio, de Alberto me havia de resultar a ofensa, valen<strong>do</strong>-me eu de seu favor<br />
contra o agravo que temia? Risco grande leva consigo a fermosura, estímulos<br />
a ambição e precipícios o amor. São as leis <strong>do</strong> hospício tão sagra<strong>da</strong>s e<br />
invioláveis que por Paris, príncipe de Tróia, as haver quebra<strong>do</strong> no injusto roubo<br />
de Helena, incitou to<strong>da</strong> Grécia a que tantos anos lhe continuasse o aperta<strong>do</strong><br />
sítio até converterem a troiana monarquia em cinzas. O empera<strong>do</strong>r Aureliano<br />
man<strong>do</strong>u esquartejar ata<strong>do</strong> a duas árvores violentamente inclina<strong>da</strong>s a um<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong> por haver força<strong>do</strong> a mulher <strong>do</strong> patrão aonde estava aloja<strong>do</strong>, violan<strong>do</strong><br />
os foros e imuni<strong>da</strong>des <strong>do</strong> hospício de que em sua casa o recebia. Lá disse<br />
Homero 414 que era cousa inumana ofender ao hóspede, nem ain<strong>da</strong> com<br />
importuná-lo; porque sen<strong>do</strong> a hospitali<strong>da</strong>de prova em que a humil<strong>da</strong>de se<br />
mostra, tu<strong>do</strong> fica sen<strong>do</strong> desumano quanto contra ela se dirige.<br />
Não duvi<strong>do</strong> que Alberto como ajuiza<strong>do</strong> assim o entendesse, porém que<br />
importa conhecer o bem quem persuadi<strong>do</strong> de suas paixões se resolve a seguir<br />
o mal? Era Alberto rico nos bens, ilustre no sangue, mancebo na i<strong>da</strong>de,<br />
distraí<strong>do</strong> na vi<strong>da</strong>, respeita<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s, de uns por liberal e de outros por<br />
4 Homer., Odyss. lib. 9.
422 Padre Mateus Ribeiro<br />
tremi<strong>do</strong>, arroja<strong>do</strong> no que emprendia e majestoso no esta<strong>do</strong>, tratan<strong>do</strong>-se com<br />
tanta ostentação que muitos titulares o não excediam, mas antes alguns o não<br />
igualavam. Venceu-se <strong>do</strong> parecer de Amatilde, pareceu-lhe o título de<br />
marquesa que era próprio para se empenhar em ser seu esposo, e resoluto<br />
neste desejo pôs de parte to<strong>da</strong>s as obrigações e fechou os olhos a to<strong>do</strong>s os<br />
riscos.<br />
Tocavam as primeiras luzes o clarim de seus raios à chega<strong>da</strong> <strong>do</strong> sol,<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong> salva as músicas aves com seu canto, mais com receio que com<br />
estron<strong>do</strong>, que sempre os festejos mais agradáveis são os em que tem o gosto<br />
certo o suave e não o coração o receio <strong>do</strong> perigo. Deu meu pai logo ordem a<br />
preparar para a jorna<strong>da</strong>, mas Alberto o impedia dizen<strong>do</strong> que era justo<br />
descansar a marquesa <strong>da</strong> moléstia <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> esse dia, que pois se hospe<strong>da</strong>ra<br />
em sua casa, queria festejá-la como era devi<strong>do</strong> a tal pessoa. Não pesou a Dom<br />
Cláudio <strong>da</strong> demora, para ter mais lugar de solicitar o mesmo que Alberto<br />
pertendia, sem se haverem comunica<strong>do</strong> os pensamentos. Enfim venceu-se<br />
meu pai <strong>da</strong> cortesia, e Amatilde não se mostrou pesarosa <strong>da</strong> dilação, que como<br />
era para ser sua vin<strong>da</strong> festeja<strong>da</strong>, poucas vezes causa desgosto o aplauso<br />
quan<strong>do</strong> dele se não receia, nem descrédito que desluza, nem desaire que<br />
des<strong>do</strong>ure. O intento de Alberto era com os vagares conseguir <strong>do</strong>us fins: o<br />
primeiro obrigar e afeiçoar a Amatilde com os serviços e festas que por sua<br />
causa celebrava, e o segun<strong>do</strong> ter lugar com a dilação para traçar mais<br />
como<strong>da</strong>mente o roubá-la aos que a acompanhavam, ten<strong>do</strong> por certo que se ela<br />
se desse por obriga<strong>da</strong> <strong>do</strong>s serviços, não se <strong>da</strong>ria por muito ofendi<strong>da</strong> <strong>do</strong> rapto<br />
nem <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong>s desposórios que de mim se prometiam.<br />
É a vontade humana fácil em variar de intentos, diz o Séneca 415 ; e Santo<br />
Agostinho 416 escreve que com mais facili<strong>da</strong>de se mu<strong>da</strong> para o mal que para o<br />
bem. Tem a vontade seu tribunal aonde muitas vezes o bem se desterra e o<br />
vício se aplaude, o mal passa sem castigo e o bem sem galardão, porque<br />
arrazoa pelo mal o desejo de segui-lo e pelo bem emudece a tibieza de<br />
procurá-lo. Solenizou Alberto o dia com músicas, esplêndi<strong>do</strong> banquete em que<br />
bem mostrava sua grandeza, e quis na tarde que houvesse comédia,<br />
5 Senec, Epist. 68.<br />
6 D. Aug., Ser. De verb Apost.
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte III 423<br />
representa<strong>da</strong> com admirável perfeição, a que se acharam presentes as<br />
principais pessoas <strong>da</strong> vila, que to<strong>do</strong>s <strong>da</strong>vam a Amatilde os parabéns de sua<br />
venturosa sorte. À noite houve máscara de cavalo com tochas, ricas galas e<br />
muitas gentilezas de cavalo em que não assisti por indisposto mais que a vê-<br />
las, se bem tão triste entre tantas demonstrações de alegria que parece que o<br />
coração vaticinava as repeti<strong>da</strong>s tristezas que haviam de custar-me estes<br />
festejos em que Alberto trazia tão diverti<strong>do</strong>s os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e tão empenha<strong>do</strong>s os<br />
desvelos.<br />
Também Dom Cláudio se mostrava pouco contente <strong>da</strong> dilação, porque<br />
como conhecia a condição de Alberto ser inquieta e mostrar-se tão generoso<br />
em celebrar os merecimentos de Amatilde, não quisera ele que outro em seus<br />
olhos parecesse que a persuadia a mais agra<strong>do</strong>, nem que a outro ficasse ela<br />
deve<strong>do</strong>ra de maiores obrigações. É o amor por extremo desconfia<strong>do</strong> e ain<strong>da</strong><br />
temeroso pelo que tem de o pintarem menino, e assim, como diz Terêncio, to<strong>do</strong><br />
vive entre suspeitas e receios. E como lhe sucedeu essa noite nas carreiras<br />
que diante de Amatilde se corriam <strong>da</strong>r uma que<strong>da</strong> desairosa <strong>do</strong> cavalo à sua<br />
vista, suposto que não correu perigo e tornou a montar nele com ligeireza,<br />
contu<strong>do</strong> é o desejo de agra<strong>da</strong>r tão escrupuloso de perder que os átomos<br />
imaginam que o desluzem quan<strong>do</strong> outros mais airosos saem <strong>da</strong> empresa. Já<br />
em manifesto se descobria Dom Cláudio arrependi<strong>do</strong> <strong>do</strong> hospício que ele<br />
mesmo procurara, pois com intento de com o favor de Alberto poder précipitas<br />
se ao roubo de Amatilde, agora que o via tão empenha<strong>do</strong> em servi-la tão de<br />
veras, já o tinha por suspeito na pertensão para não se atrever a comunicar-lhe<br />
seu tão temerário intento. Enfim escolheu por remédio o partir-se de manhã,<br />
porque pon<strong>do</strong> a distância em meio conseguia o divertir Alberto <strong>da</strong> vista de<br />
Amatilde e pôr-lhe impedimento a mais servi-la, por evitar a mais obrigá-la.<br />
Assim se assentou a parti<strong>da</strong> para o outro dia de madruga<strong>da</strong>, para termos<br />
lugar de chegar a Módena com tempo, que ain<strong>da</strong> distava algumas léguas. Deu<br />
sinal a radiante estrela de Vénus que vinha a descobrir o campo <strong>do</strong> horizonte<br />
como luzi<strong>da</strong> sentinela <strong>do</strong> sol, quan<strong>do</strong> se começou a aprestar nossa parti<strong>da</strong>, que<br />
ao avançar <strong>da</strong> manhã estava de to<strong>do</strong> apresta<strong>da</strong>, e Alberto com trinta de cavalo<br />
bem provi<strong>do</strong>s de armas de fogo para acompanhar-nos, acção que em to<strong>do</strong>s<br />
causou vários juízos. Eu avaliei ser efeito <strong>da</strong> petição que havia feito, meu pai<br />
ser desempenho <strong>da</strong> cortesia com que nos havia trata<strong>do</strong> e Dom Cláudio ser
424 Padre Mateus Ribeiro<br />
execução de aviso que de antes lhe havia escrito, suposto que faltan<strong>do</strong> o<br />
tempo com os divertimentos que referi, nunca lhe havia sobre isso fala<strong>do</strong>.<br />
Enfim to<strong>do</strong>s discursan<strong>do</strong> e nenhum acertan<strong>do</strong>, pois a acção equivocava<br />
diversos pensamentos, saímos de Castel-Venesio caminhan<strong>do</strong> a Len<strong>da</strong>nára e<br />
<strong>da</strong>í à Abbadia, populosas vilas, to<strong>da</strong>s de jurisdição e senhorio de Veneza que<br />
por capitulações de pazes que os antigos duques de Ferrara, depois de<br />
dilata<strong>da</strong> guerra, fizeram com a senhoria de Veneza, lhe ficou esta terra que se<br />
chama Marca Trivigiana ao <strong>do</strong>mínio veneziano que a possui.<br />
Nesta vila <strong>da</strong> Abbadia, ribeiras <strong>do</strong> rio Pó, tinha Alberto uma bem ren<strong>do</strong>sa<br />
e sumptuosa quinta em que tinha man<strong>da</strong><strong>do</strong> preparar um refresco para oferecer-<br />
nos, que suposto nos desculpávamos de fazer demora, ele a não consentiu.<br />
Enfim apean<strong>do</strong>-nos na quinta, estavam as mesas prepara<strong>da</strong>s com tal asseio,<br />
tal cópia de manjares custosos, tanta abundância de refrescos esquisitos, que<br />
duvi<strong>do</strong> que um grande príncipe o pudesse avantajar. Mas que muito, se estava<br />
Alberto empenha<strong>do</strong> nos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s de Amatilde e ela, como se viu, não<br />
desafeiçoa<strong>da</strong> às bizarrias <strong>do</strong> ânimo e merecimentos de Alberto! Acompanhou a<br />
música o banquete. É a música usurpa<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> tempo, diz Aristóteles na<br />
Política, que se despende sem sentir-se, parecen<strong>do</strong> que suspende o sol seu<br />
uniforme movimento ao suave <strong>da</strong> harmonia, como a fábula que acreditou a<br />
antigui<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s sereias de Nápoles, como refere Sílio Itálico, a cujas suaves<br />
vozes diziam se esqueciam os navegantes não só <strong>do</strong> governo <strong>da</strong>s naus, mas<br />
de si mesmos. Isto digo, porque como o intento de Alberto era dilatar-nos para<br />
que a Módena não chegássemos, buscou to<strong>do</strong>s os divertimentos para<br />
suspender-nos o caminho, queren<strong>do</strong> como discreto juntamente obrigar a<br />
Amatilde com a grandeza <strong>do</strong>s serviços, e a nós deixar-nos em a suspensão<br />
<strong>do</strong>s discursos, sem com certeza podermos descifrar aonde seus pensamentos<br />
se dirigiam.<br />
Gastou-se parte <strong>da</strong> manhã em o referi<strong>do</strong>, e ao tempo que intentávamos<br />
prosseguir o caminho, disse Alberto, com ânimo resoluto, desta sorte:<br />
- Man<strong>da</strong>ram os romanos embaixa<strong>do</strong>res antigamente aos franceses,<br />
quan<strong>do</strong> entraram em Itália, a perguntar-lhes que direito ou justiça tinham para<br />
entrarem a conquistar a Toscana, e responderam que o seu direito consistia<br />
nas armas e que o mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong> seria de quem tivesse valor para conquistá-lo.<br />
Assim direi eu, senhores, que o casamento <strong>da</strong> senhora Amatilde será meu,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 425<br />
porque me acompanha valor para defendê-la de quem intentar contra meu<br />
gosto alcançá-la, que bem conheço que em ninguém se dá igual<strong>da</strong>de para<br />
merecê-la. Do insigne pintor Zêuxis se conta que depois de haver adquiri<strong>do</strong><br />
grandes riquezas pela delicadeza <strong>da</strong> pintura, as obras mais célebres que fazia<br />
de graça e sem preço algum as <strong>da</strong>va, dizen<strong>do</strong> que as <strong>da</strong>va sem preço porque<br />
não havia preço que igualá-las pudesse. Assim não haven<strong>do</strong> quem a senhora<br />
Amatilde dignamente mereça, justo parece que pois a tenho em minha casa,<br />
nela fique, que é ser ingrato à ventura quem deixa passar as ocasiões quan<strong>do</strong><br />
lhas oferece. Ela não pode ser esposa de Dom Cláudio pelo parentesco que<br />
tem com seu pai, o marquês defunto; nem é justo que o seja de Felizar<strong>do</strong>,<br />
porque se ela o não admitiu por esposo quan<strong>do</strong> lavra<strong>do</strong>ra, menos condiz que<br />
com ele se case quan<strong>do</strong> marquesa; e se outra cousa disse, seria por estar em<br />
sua casa e contra seu gosto; em mim granjeia esposo como to<strong>do</strong>s ilustre e<br />
mais que to<strong>do</strong>s rico; e quan<strong>do</strong> o duque de Módena não aprove o casamento,<br />
eu nem sou seu vassalo para obedecer-lhe, nem vivo em terras suas para<br />
sentir nem castigo que me dê, nem ren<strong>da</strong>s que me tire, e tem a senhora<br />
Amatilde, quan<strong>do</strong> não logre o esta<strong>do</strong> que seu pai lhe deixa e se lhe deve, tem<br />
meu esta<strong>do</strong> muito em que viver como senhora, que eu não a escolho por<br />
mulher pelo que ain<strong>da</strong> não logra, senão pelo muito que me agra<strong>da</strong>; por ser filha<br />
de quem é e não pelo que espera possuir. Ninguém se queixe de minha<br />
resolução, porque nela ninguém tem poder mais que seu gosto, e fio eu de seu<br />
juízo que saberá estimar o muito que lhe quero e o pouco que perde em ficar<br />
comigo.<br />
Assim falou Alberto, deixan<strong>do</strong>-nos admira<strong>do</strong>s tão repentina e não<br />
prevista resolução. Emudeceu-nos o susto para responder, e mais quan<strong>do</strong><br />
vimos a Amatilde tão pouco turba<strong>da</strong>, que quasi indicava ser já desta resolução<br />
participante; porque o rosa<strong>do</strong> de seu rosto nem mu<strong>do</strong>u a cor de que a <strong>do</strong>tou a<br />
natureza, nem mostrou o menor sobressalto, nem tratou de replicar ao menos<br />
por desmentir minhas suspeitas de ser ela cúmplice na mu<strong>da</strong>nça; antes com<br />
notável sossego, como se não entendera a Alberto, perseverou na mesma<br />
quietação que antes mostrava. Olhava Dom Cláudio para mim e eu para ele,<br />
esperan<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> qual quem responderia sequer para desafogar o sentimento<br />
com a queixa, pois bem se considerava que seria impossível remediar o <strong>da</strong>no;<br />
mas como queixas sem fruto dão pouco alívio, nenhum se resolvia a romper o
426 Padre Mateus Ribeiro<br />
silêncio, meu pai como mais ancião e a quem pela pessoa e i<strong>da</strong>de se devia<br />
diferente respeito, conhecen<strong>do</strong> em mim a mágoa e em Dom Cláudio a ira,<br />
pon<strong>do</strong> os olhos em Alberto, falou assim:<br />
- Trouxeste-nos, senhor Alberto, à vossa quinta para nela nos<br />
desenganardes <strong>do</strong> que já meu discurso antecipa<strong>da</strong>mente quasi previa: que os<br />
excessos de vossa cortesia nasciam <strong>do</strong>s excessos de vosso amor. Pouco vos<br />
devemos nos festejos e regalos, pois nos <strong>da</strong>is as despedi<strong>da</strong>s tão desabri<strong>da</strong>s,<br />
pois o que corria por conta <strong>da</strong> senhora Amatilde não fica sen<strong>do</strong> dívi<strong>da</strong> de nossa<br />
obrigação. Mal aprendeu meu filho Felizar<strong>do</strong> a lição que hoje nos destes, pois<br />
ten<strong>do</strong> em minha casa a senhora marquesa, quis pôr em contingências por<br />
primoroso o que vós hoje alcançais por resoluto. Antecipar a fortuna, disse<br />
Plutarco, arrojo é <strong>do</strong>s venturosos, não <strong>do</strong>s entendi<strong>do</strong>s: que corta muitas vezes<br />
o pun<strong>do</strong>nor pelas mesmas razões <strong>da</strong> utili<strong>da</strong>de. No banquete que deu Sexto<br />
Pompeu na sua nau a Octaviano Augusto e a Marco António, que ambos o<br />
império romano tinham, lhe advertiu em segre<strong>do</strong> Meno<strong>do</strong>ro se queria que<br />
cortan<strong>do</strong> as amarras se partisse com a nau, com que levan<strong>do</strong> aos <strong>do</strong>us<br />
príncipes prisioneiros seria ele só senhor <strong>do</strong> império <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>; ao que ele lhe<br />
respondera que uma vez que lho comunicou, já não convinha, porque ele o<br />
pudera haver feito como súbdito, que a ele lhe não convinha fazê-lo como<br />
príncipe, desestiman<strong>do</strong> a ventura por não contrair a nota. Eu, senhor Alberto,<br />
obedeci às ordens <strong>do</strong> meu príncipe em trazer a senhora Amatilde à sua<br />
presença e hospedá-la em vossa casa vós usais como livre em levantar-vos<br />
com ela; e para vós ficardes venturoso, força era ser meu filho desgraça<strong>do</strong>.<br />
Vejo na senhora Amatilde sentir pouco a mu<strong>da</strong>nça, sinal que está mu<strong>da</strong><strong>da</strong>:<br />
empenhos que nascem <strong>da</strong> vontade não se levam com violências, a meu filho<br />
não faltará esta<strong>do</strong> a quem é conveniente, que pois a senhora Amatilde se não<br />
considerou dele obriga<strong>da</strong>, não é maravilha que não se mostre agradeci<strong>da</strong><br />
quan<strong>do</strong> a quem não favorece a ventura não causa o desvelo maior no servir<br />
direito ao galardão alcançar.<br />
Com isto se levantou meu pai e nós to<strong>do</strong>s ao mesmo tempo, e minha<br />
mãe ao despedir-se de Amatilde disse que estimaria muito que a fortuna lhe<br />
não desse a sentir motivos de em algum tempo se queixar. A que ela não<br />
respondeu mais que com as lágrimas que derramou, ou de sau<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />
despedi<strong>da</strong>, ou juntamente de não ter desculpa sua mu<strong>da</strong>nça; que há ofensas
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte lil 427<br />
tão odiosas que de to<strong>do</strong> fecham as portas às desculpas. Só Sílvio e Dionísia<br />
ficaram em sua companhia, e se suspeitou que ela fora com Amatilde a<br />
medianeira por Alberto neste oculto trato, leva<strong>da</strong> <strong>da</strong>s promessas grandes que<br />
lhe fez; que dádivas e promessas são de ordinário as mais poderosas valias.<br />
Partimo-nos to<strong>do</strong>s desgosta<strong>do</strong>s, Cláudio com seus companheiros para<br />
Módena a <strong>da</strong>r notícia ao duque de tão inopina<strong>do</strong> sucesso, eu e meus pais e<br />
parentes para Ferrara, e Constantino na liteira comigo, pertenden<strong>do</strong> aliviar<br />
minha profun<strong>da</strong> tristeza e consolar o intenso de meus pesares; mas está ain<strong>da</strong><br />
hoje tão viva em meu coração a memória deste agravo, que são para mim os<br />
alívios impossíveis, pois foi para meu amor tão sem remédio a ofensa.<br />
Agravaram-se-me as <strong>do</strong>res <strong>da</strong>s mal cura<strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s, feri<strong>da</strong>s que se entretinham<br />
minha alegria de novo renovaram meu sentimento, que não seria novi<strong>da</strong>de de<br />
brotarem sangue quan<strong>do</strong> viam tão presente sua ofensa. Chegámos bem noite<br />
a Ferrara (que é a noite refúgio penoso <strong>do</strong>s descontentes), não queren<strong>do</strong> ser<br />
visto quem vem <strong>da</strong> fortuna derrota<strong>do</strong>, e se havia de dia rebuçar-se com a<br />
vermelha cortina de seu pejo, quer de noite esconder-se com o triste pavelhão<br />
de suas sombras. Lá disse Diógenes 417 que o pejo era a cor e gala de que a<br />
virtude se vestia; e Cícero 418 lhe chamou guar<strong>da</strong> <strong>da</strong>s virtudes, porque Terêncio<br />
intitula a erubescência, ou pejo, companhia de ânimos honra<strong>do</strong>s e generosos,<br />
a quem a menor sombra de desairosos fica sen<strong>do</strong> o maior tormento.<br />
Assim me considerava eu envergonha<strong>do</strong> sem haver delitos cometi<strong>do</strong>,<br />
que desejara que o sol <strong>do</strong>s antípo<strong>da</strong>s não subira para que ninguém me visitara.<br />
São as visitas para os enfermos alívios e para os descontentes tormentos,<br />
consolação de um desampara<strong>do</strong> e moléstia de um persegui<strong>do</strong>, não poden<strong>do</strong><br />
agra<strong>da</strong>r-se de o buscarem, quem ofendi<strong>do</strong> de sua sorte se retira. Tínhamos<br />
uma quinta fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, suposto que não situa<strong>da</strong> junto às correntes<br />
cau<strong>da</strong>losas <strong>do</strong> rio Pó, mas em sítio mais ao sertão <strong>da</strong> terra, aonde a cópia de<br />
árvores sombrias <strong>da</strong>va mais comodi<strong>da</strong>de ao retiro; a este pedi licença aos<br />
meus pais para partir-me para evitar visitas, o que eles me concederam.<br />
Retirei-me com <strong>do</strong>us cria<strong>do</strong>s somente, <strong>do</strong>s quais despedi um a Castel-<br />
Venesio para que secretamente se informasse <strong>do</strong> que passava neste sucesso<br />
7 Diog., Lib. 7.<br />
8 Cicer., De Oral in And.
428 Padre Mateus Ribeiro<br />
de Amatilde, que depois de poucos dias tornou com a informação, dizen<strong>do</strong><br />
como no próprio dia de nossa parti<strong>da</strong> para Ferrara, acompanha<strong>do</strong> Alberto de<br />
to<strong>da</strong> a gente de cavalo que consigo tinha, em um coche se partira <strong>da</strong> quinta<br />
com Amatilde para Castel-Venesio e depositan<strong>do</strong>-a em casa de um prima sua<br />
que aí vivia, preparan<strong>do</strong> as licenças e atavian<strong>do</strong> galas com grande<br />
acompanhamento <strong>do</strong> lustroso de to<strong>da</strong> a vila e outros lugares, com ela se<br />
recebeu com solene festa; e que também se dizia que ressenti<strong>do</strong> o duque <strong>do</strong><br />
atrevimento de Alberto e desobediência de Amatilde, os privara <strong>do</strong><br />
marquesa<strong>do</strong>, títulos, terras e esta<strong>do</strong> que seu pai lhe deixara, empossan<strong>do</strong><br />
neles a Dom Cláudio como parente legítimo e mais propínquo ao defunto; e<br />
ain<strong>da</strong> se dizia que <strong>do</strong> atrevi<strong>do</strong> procedimento de Alberto se man<strong>da</strong>ra queixar por<br />
meio <strong>do</strong> seu embaixa<strong>do</strong>r assistente à senhoria de Veneza, de quem Alberto é<br />
vassalo.<br />
Apenas ouvi tal anúncio, quan<strong>do</strong> não me aconselhan<strong>do</strong> o coração sofrer<br />
o golpe tão vizinho aos horizontes de Ferrara, ven<strong>do</strong> fecha<strong>da</strong> totalmente a<br />
porta a minhas malogra<strong>da</strong>s esperanças, corta<strong>da</strong>s no tempo em que prometiam<br />
o fruto, arranca<strong>da</strong>s em flor a golpes <strong>da</strong> ingratidão e a assaltos <strong>da</strong> violência, não<br />
me atreven<strong>do</strong> de envergonha<strong>do</strong> <strong>do</strong> pouco respeito que se guar<strong>do</strong>u a mim e a<br />
meus pais de aparecer em Ferrara sem tomar vingança, e esta parecen<strong>do</strong>-me<br />
não só muito arrisca<strong>da</strong>, mas ain<strong>da</strong> quasi impossível, deixan<strong>do</strong> aos cria<strong>do</strong>s na<br />
quinta, me ausentei uma manhã sem comunicar-lhes minha parti<strong>da</strong>, e<br />
discorren<strong>do</strong> por vários caminhos sem levar algum certo, há já treze dias que<br />
an<strong>do</strong> peregrino, assisti<strong>do</strong> só de meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, que são só a companhia de um<br />
triste, até chegar a esta fonte aonde me guiou a sede e calmosa moléstia deste<br />
dia para encontrar-vos, se quem vive tão desvali<strong>do</strong> e aos alívios desterra<strong>do</strong><br />
pode ser de algum préstimo, senhores, para servir-vos.<br />
Cap. IX.<br />
Do que os peregrinos passaram com Felizar<strong>do</strong><br />
Assim deu fim Felizar<strong>do</strong> à sua prática e principiou a aumentar seu<br />
sentimento, a quem Felisberto disse:
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte III 429<br />
- Parecia-me, senhor Felizar<strong>do</strong>, que os extremos de vosso desgosto e o<br />
excessivo de vossa tristeza procedia de causa tão avantaja<strong>da</strong> a to<strong>do</strong> o alívio<br />
que vencesse vosso bom juízo e eclipsasse as luzes de vosso discurso; mas<br />
vejo no que me haveis referi<strong>do</strong> que parece exceder o padecimento à razão e o<br />
desespera<strong>do</strong> aos motivos. Tendes por novi<strong>da</strong>de faltar a firmeza em Amatilde?<br />
Efeito é esse no mun<strong>do</strong> mui vulgar. Lá disse Aristóteles 419 que geralmente<br />
eram as mulheres menos constantes que os homens. Propércio 420 escreve que<br />
é a firmeza na mulher de bem pouca perseverança. Não se escreve de Erifile<br />
que por um colar de ouro que lhe deu Adrasto, rei de Argos, entregou a<br />
Amphiarão, seu mari<strong>do</strong>, com ser dele pela fermosura tão ama<strong>da</strong>? Cláudio,<br />
empera<strong>do</strong>r, não man<strong>do</strong>u matar nos jardins lucinianos a Messalina, sua esposa,<br />
pelo haver ofendi<strong>do</strong>? O mesmo fez o empera<strong>do</strong>r Cómo<strong>do</strong> com Crispina, sua<br />
esposa, pela mesma causa. E o cônsul Lépi<strong>do</strong>, fugitivo em Sardenha, morreu<br />
de sentimento, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se-lhe novas que sua esposa, que em Roma deixara, o<br />
havia ofendi<strong>do</strong>, poden<strong>do</strong> com ela mais a distância em que ficava que os<br />
respeito que à leal<strong>da</strong>de devia.<br />
Pois se de tantos exemplos estão cheios os livros, de que vos admirais<br />
que Amatilde sem ser ain<strong>da</strong> vossa esposa se casasse? Que importava o ilustre<br />
<strong>do</strong> sangue de seus progenitores, se <strong>do</strong>minou nela mais o tosco <strong>da</strong> criação?<br />
Porventura que se menos a amasseis, em mais vos estimara; que há finezas<br />
que ofendem e esquivanças que obrigam. A muita estimação que fizestes de<br />
Matilde sen<strong>do</strong> pastora, lhe <strong>da</strong>ria motivos para vos deixar quan<strong>do</strong> se imaginou<br />
marquesa. Dizeis que a tínheis com serviços e finezas obriga<strong>da</strong>. Não há cousa<br />
mais fácil de esquecer-se que os benefícios recebi<strong>do</strong>s; assim o disse<br />
Aristóteles, referi<strong>do</strong> por Diógenes 421 , que a cousa que primeiro envelhecia era o<br />
benefício que se recebe: razão que não corre parelhas no agravo, porque a<br />
memória deste sempre pela maior parte vive e a razão pode ser além <strong>da</strong> geral<br />
de ficar nossa natureza desde a primeira culpa, tíbia para o bem e pronta para<br />
o mal, que o favor escreveu sobre a necessi<strong>da</strong>de ou humil<strong>da</strong>de, perigo ou<br />
desamparo, e como este cessou, facilmente se vai apagan<strong>do</strong> o que nele estava<br />
9 Arist., DeAnim. 8.<br />
'° Prop., Lib. 2.<br />
!1 Diog., Lib. 5.
430 Padre Mateus Ribeiro<br />
escrito; mas o agravo escreve sobre a injustiça <strong>da</strong> ofensa, e como esta dura<br />
enquanto o agravo não se satisfaz, ou pelo perdão, ou pelo castigo, <strong>da</strong>qui<br />
nasce poderem se esquecer os benefícios <strong>do</strong> favor e serem dificultosas de<br />
riscar as lembranças <strong>da</strong> ofensa.<br />
Servistes, senhor, a Amatilde quan<strong>do</strong> humilde, passou <strong>da</strong> humil<strong>da</strong>de a<br />
senhora, que fácil é de esquecer com a mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> as finezas que por<br />
ela fizestes quan<strong>do</strong> lava<strong>do</strong>ra. Que perdestes em Amatilde? Os desvelos que<br />
empregastes, as finezas que obrastes, os riscos em que vos vistes? Não será o<br />
primeiro desperdício nem o primeiro galardão que faltasse aos merecimentos.<br />
Que ingrato se mostrou o empera<strong>do</strong>r Justiniano com os <strong>do</strong>us famosos capitães<br />
Belisário e Narses, que sen<strong>do</strong> as colunas que sustentaram o império em seus<br />
mais arrisca<strong>do</strong>s conflitos, a ambos desprivou <strong>do</strong> governo e a um deles privou<br />
<strong>da</strong> vista! Que maior ingratidão que a de Xerxes com Pitheu, riquíssimo senhor<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Cilena Frigia, que haven<strong>do</strong>-o hospe<strong>da</strong><strong>do</strong> com to<strong>do</strong> seu exército,<br />
que era de sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s sem número, e haven<strong>do</strong>-lhe ofereci<strong>do</strong> para pagamento <strong>do</strong><br />
exército quanta riqueza tinha, que era excessiva, por lhe pedir que de cinco<br />
filhos seus que a Xerxes no exército seguiam lhe quisesse largar o mais velho<br />
para ficar em sua companhia, o monarca tirano e ingratíssimo lho man<strong>do</strong>u<br />
partir em duas partes e que posta ca<strong>da</strong> uma em um la<strong>do</strong> <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> passasse<br />
o exército pelo meio. Que galardão alcançou o moço Aleixo, filho <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r<br />
de Constantinopla, <strong>do</strong> tirano Martillo, pois haven<strong>do</strong> subi<strong>do</strong> de homem particular<br />
ao valimento e única privança <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r defunto, apenas o viu morto,<br />
quan<strong>do</strong> com suas próprias mãos lhe afogou o príncipe Aleixo para lhe usurpar<br />
o império, rebelan<strong>do</strong>-se com ele? Quem mais ingrato e desconheci<strong>do</strong> que<br />
Theudio, rei de Espanha, que man<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-o buscar sua tia, a rainha<br />
Amalecunta, viúva d'el-rei Amalarico, para juntamente com ela governar os<br />
reinos, que logo nele renunciou para lhe suceder por sua morte, não só a<br />
despojou logo <strong>do</strong> governo, mas juntamente lhe man<strong>do</strong>u tirar a vi<strong>da</strong>?<br />
Pois dizei-me, senhor Felizar<strong>do</strong>, se tantos exemplos tem visto o mun<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong>s maiores ingratidões, como cabe em vosso juízo estranhardes tanto em<br />
Amatilde estilo tão versa<strong>do</strong>, desconhecimento tão vulgar? Que cousa mais<br />
usa<strong>da</strong> que alcançar menos muitas vezes quem serve mais? Que diferente<br />
remuneração alcançou de Roma Cipião, desterra<strong>do</strong> dela? Que prémio<br />
conseguiu Clito de Alexandre com defender-lhe a vi<strong>da</strong> senão a morte? Em que
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte III 431<br />
pagou o cruel fratrici<strong>da</strong> Jugurta a Micipsa, rei de Numídia, seu a<strong>do</strong>ptivo pai,<br />
como quer Sabélico, não só o amor <strong>da</strong> criação, mas o singular benefício de o<br />
deixar com seus <strong>do</strong>us filhos igualmente herdeiro de seu reino, senão com<br />
matar-lhe os filhos e tiranicamente usurpar-lhes o reino? Que maravilha, para<br />
que vos assombre, ou que espanto vem a ser, para que vos admire, que uma<br />
moça montanhesa, a quem as ribeiras <strong>do</strong> Pó no inculto <strong>do</strong>s campos deram as<br />
primeiras lições e <strong>do</strong>cumentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, errasse os lanços de agradeci<strong>da</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> porventura não chegaria a entender os termos de obriga<strong>da</strong>?<br />
E se me disserdes que era discreta, não abono o desacerto manifesto <strong>da</strong><br />
eleição, pois fi<strong>da</strong>lgo por fi<strong>da</strong>lgo, que graus acrescentava na subi<strong>da</strong> para deixar-<br />
vos a vós e admitir a Alberto sem mais título que ser mais rico? Em vós tinha<br />
experiências <strong>do</strong> amor, <strong>do</strong> sujeito, <strong>da</strong> casa de vossos pais, <strong>da</strong>s demonstrações<br />
de estima<strong>da</strong> e <strong>da</strong>s finezas de queri<strong>da</strong>; o que em Alberto tu<strong>do</strong> era ao contrário,<br />
pois em espaço tão breve de <strong>do</strong>us dias mal podia certificar-se <strong>do</strong> que antes de<br />
deliberar-se lhe convinha; e assim perdeu a estimação de discreta por arroja<strong>da</strong><br />
em a escolha de que o tempo a possa mostrar arrependi<strong>da</strong>. A Alberto mais o<br />
devia de persuadir o interesse <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> que o incentivo <strong>da</strong> beleza; e como se<br />
vir priva<strong>do</strong> de possuí-lo, não duvi<strong>do</strong> que se arrepen<strong>da</strong> de ver-se casa<strong>do</strong> com<br />
Amatilde, pois tanto tem o amor menos de fino, quanto tem de interessa<strong>do</strong>.<br />
Lisandro Lacedemónio que tantos anos vitorioso adquiriu não menos<br />
glória que riqueza com seus triunfos, assim nas batalhas navais como <strong>da</strong> terra,<br />
casan<strong>do</strong> suas duas filhas com os maiores senhores <strong>do</strong> reino de Esparta, que<br />
se tinham por mui felices em se aparentarem com tão insigne capitão; e<br />
quan<strong>do</strong> no dia de sua morte se lhe não achou riqueza alguma por haver tu<strong>do</strong><br />
francamente na vi<strong>da</strong> despendi<strong>do</strong>, ven<strong>do</strong>-se os genros priva<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s esperanças<br />
de seus imagina<strong>do</strong>s tesouros, ambos repudiaram as mulheres por quem em<br />
vi<strong>da</strong> de Lisandro tanto se tinham desvela<strong>do</strong>. Lá disse o Plutarco 422 que to<strong>do</strong>s<br />
os homens eram interesseiros e ambiciosos, ou de riquezas ou de esta<strong>do</strong>s, e<br />
como o duque de Módena justamente de Alberto e de Amatilde ofendi<strong>do</strong> os<br />
privou <strong>do</strong> título e esta<strong>do</strong> que em o senhorio de seu duca<strong>do</strong> tinham, de que já<br />
Dom Cláudio está de posse, não duvi<strong>do</strong> que se mostre pesaroso de haver-se<br />
com Amatilde casa<strong>do</strong>, pois faltan<strong>do</strong>-lhe a grandeza <strong>do</strong> <strong>do</strong>te a que aspirava,<br />
Plutarc, De tranquil, animée.
432 Padre Mateus Ribeiro<br />
to<strong>da</strong> a fermosura que com ele se aplaudia perde muito <strong>da</strong> estimação e o tempo<br />
lhe vem a gastar o raro <strong>da</strong> admiração e ain<strong>da</strong> o luzimento <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de. Não<br />
há cousa, disse Cícero 423 , que o tempo não deslustre e com seu discurso<br />
abata: murcham-se as flores, arruínam-se os edifícios, mu<strong>da</strong>m-se os rios,<br />
secam-se as fontes e finalmente deixa em assombros de cadáver o que foi<br />
lisonja <strong>da</strong> admiração; e como desta pensão na<strong>da</strong> na terra se isenta, que, como<br />
diz o padre Santo Agostinho, para nosso desengano ordenou Deus que o<br />
tempo sempre corresse e não parasse, não duvi<strong>do</strong> que faltan<strong>do</strong> a Alberto a<br />
grandeza que se prometia, venha a desestimar to<strong>do</strong> o agra<strong>do</strong>, pois de ordinário<br />
de resoluções repentinas se seguem arrependimentos vagarosos.<br />
Além disto me parece que neste sucesso de Amatilde em parte an<strong>da</strong>stes<br />
venturoso, pois se com ela chegásseis à presença <strong>do</strong> duque, publican<strong>do</strong> a<br />
palavra que vos tinha <strong>da</strong><strong>do</strong> de ser vossa esposa, poderia ele encontrá-lo como<br />
tão senhor e parente tão chega<strong>do</strong> <strong>do</strong> marquês defunto, por seres pessoa,<br />
suposto que ilustre, enfim vassalo seu, sem títulos que a mais vos abonassem,<br />
e se fizésseis instâncias, [man<strong>da</strong>ria] ou prender-vos ou desterrar-vos fora de<br />
seus esta<strong>do</strong>s e a ela metê-la em um convento, de que ficareis mais desairoso<br />
que não mu<strong>da</strong>r-se uma mulher, varian<strong>do</strong> de parecer em escolher mari<strong>do</strong>, em<br />
que quan<strong>do</strong> imaginais que perdestes tu<strong>do</strong>, ficais sem perderdes na<strong>da</strong>, pois<br />
nem na pessoa, nem na fazen<strong>da</strong> padeceis detrimento; e se com Amatilde não<br />
ganhastes, na<strong>da</strong> sem Amatilde perdestes. Estais, senhor, de vossa vontade<br />
para elegerdes esta<strong>do</strong>, ou conforme vossos estu<strong>do</strong>s, ou conforme vossa<br />
eleição. Contentai-vos com que Alberto e Amatilde estão castiga<strong>do</strong>s, ela sem<br />
os títulos e ele sem as ren<strong>da</strong>s: que ofender a principais soberanos sempre leva<br />
por companheiro o castigo.<br />
O quererdes desterrar-vos é desacerto, que só os que cometem delitos<br />
padecem essa pena, como diz Cícero; e não é justo que deis a vossos pais tão<br />
injustos prazeres, quan<strong>do</strong> lhe deveis granjear os maiores alívios. Sois único e<br />
como tal ama<strong>do</strong>, como os quereis desamparar quan<strong>do</strong> de maior consolação<br />
necessitam? Porque intentáveis que paguem eles na tristeza a pena que<br />
mereceu Alberto na ousadia? E se me disserdes que o fazeis de<br />
envergonha<strong>do</strong>, é engano de vosso sentimento; pois aonde não há delito<br />
Cicer., De divin.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 433<br />
cometi<strong>do</strong> não se pode <strong>da</strong>r pejo que possa ser aprova<strong>do</strong>. Para os réus, diz o<br />
padre Santo Agostinho 424 , é lucrosa a vergonha, que muitas vezes à vista desta<br />
abran<strong>da</strong> o juiz parte <strong>do</strong> rigor, que assim como no réu ver o desaforo mais o<br />
delito agrava, assim pelo contrário ver nele o pejo <strong>da</strong> culpa cometi<strong>da</strong> a mais<br />
pie<strong>da</strong>de incita. O mesmo escreve Santo Ambrósio 425 . Mas vós, senhor<br />
Felizar<strong>do</strong>, não haven<strong>do</strong> falta<strong>do</strong> às obrigações de quem sois, porque haveis de<br />
envergonhar-vos de assistirdes em Ferrara e em to<strong>da</strong> a parte com a mesma<br />
confiança de que antes assistíeis? Quereis porventura que o vulgo se atreva à<br />
vossa fama, presumin<strong>do</strong> que houve agravo quan<strong>do</strong> não estais ofendi<strong>do</strong>? Não<br />
considerais que seria vosso retiro fabrica<strong>do</strong>r de vossa ofensa, e que não ten<strong>do</strong><br />
justamente que sentir desaires, podíeis <strong>da</strong>r motivo a padecer murmurações?<br />
Amatilde é mulher e não era vossa esposa, e assim não pode ofender-vos em<br />
casar-se. Mu<strong>do</strong>u-se, não era maravilha, pois no mun<strong>do</strong> tantas vezes se tem<br />
visto: casamentos por vontade se levam, não por porfia.<br />
Metei em meio de vosso sentimento sua mu<strong>da</strong>nça e brevemente vos<br />
esquecerá; que sacrificardes tantas penas nas asas de sua ingratidão é<br />
desluzirdes o entendi<strong>do</strong> com as nuvens de magoa<strong>do</strong> e executardes em vós a<br />
pena, cometen<strong>do</strong> outro a culpa: quantas vezes no mun<strong>do</strong> se encobre e<br />
dissimula o estímulo penoso <strong>da</strong> <strong>do</strong>r só por não <strong>da</strong>r a sentir a menor sombra de<br />
fraqueza? Que dirá quem vos vir com tristeza tão profun<strong>da</strong>, senão que mágoa<br />
que se atreve tanto ao coração tem muito de vizinha à alma pelo afrontoso? E<br />
com não haver neste <strong>caso</strong> cousa de que possais juntamente ressentir-vos<br />
injuria<strong>do</strong>, quereis pôr mancha a vosso crédito nas línguas <strong>do</strong> vulgo por<br />
deixardes a pátria, a casa, os pais e amigos de queixoso.<br />
Cap. X.<br />
Como Felizar<strong>do</strong> foi em companhia <strong>do</strong>s romeiros e <strong>do</strong> que sucedeu<br />
Deu fim Felisberto à sua prática, a que replicou Felizar<strong>do</strong>, dizen<strong>do</strong>:<br />
S. Aug., Ser. 4. De verb, <strong>do</strong>mini.<br />
S. Amb., De morte Abel.
434 Padre Mateus Ribeiro<br />
- Bem conce<strong>do</strong>, senhor, que julgais como entendi<strong>do</strong> e eu sinto como<br />
magoa<strong>do</strong>: compete em vós a razão com minha pena e tem mais força o sentir<br />
que o discursar. Bem disse Euripides que era mais fácil consolar a um aflito <strong>do</strong><br />
que acompanhá-lo, porque o primeiro pendia só de falar e o segun<strong>do</strong> de sofrer.<br />
Vai grande distância entre padecer o agravo e consultar a razão, assim como<br />
vai muita diferença entre o enfermo e o médico que o cura, que com ambos<br />
conhecerem o mal, um só o padece. Porventura poderá esquecer-me uma fé<br />
rompi<strong>da</strong>? Um amor despreza<strong>do</strong>? Uma fineza ofendi<strong>da</strong>? E tantos desvelos e<br />
perigos por Amatilde sofri<strong>do</strong>s tão mal emprega<strong>do</strong>s, pois servir a ingratos é o<br />
maior desperdício? Deixarei eu de sentir no íntimo de meu coração a ofensa de<br />
Alberto em quebrar as leis invioláveis <strong>do</strong> hospício e os foros <strong>da</strong> protecção, pois<br />
me valia eu de sua companhia para assegurar-me de Dom Cláudio, de quem<br />
então mais me receava, e ele perden<strong>do</strong> a meus pais o respeito e a mim a<br />
fideli<strong>da</strong>de, confia<strong>do</strong> no presídio arma<strong>do</strong> que consigo tinha, levantar-se com<br />
Amatilde, saben<strong>do</strong> me havia <strong>da</strong><strong>do</strong> palavra de ser minha esposa?<br />
Como aparecerei eu em Ferrara diante de quem me conheceu<br />
respeita<strong>do</strong>, de quem me avaliou venturoso, de quem me invejou por felice,<br />
ofenden<strong>do</strong> sem vingança e desprezan<strong>do</strong> sem castigo? Não quis o grande<br />
Pompeu entrar em Mitilene, que seus mora<strong>do</strong>res afectuosamente lhe<br />
ofereciam, depois de ser venci<strong>do</strong> nos campos Farsálicos, só porque o não<br />
vissem seus mora<strong>do</strong>res venci<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> tantas vezes o admiraram vence<strong>do</strong>r:<br />
e entrarei eu em minha pátria a ser objecto <strong>do</strong>s olhos com tanta baixeza de<br />
opinião? É a quebra nesta maior per<strong>da</strong> que a de to<strong>da</strong>s as riquezas, disse Tito<br />
Lívio 426 , e com razão; porque assim como o clarim <strong>da</strong> fama generosa faz em<br />
certo mo<strong>do</strong> que os mortos nas asas <strong>da</strong> fama vivam, assim a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> opinião<br />
faz que os vivos antes <strong>da</strong> morte se sepultem. Costumava o insigne capitão<br />
Lisandro Lacedemónio trazer sempre a seu la<strong>do</strong> ao famoso poeta Cherillo, para<br />
que na língua de seus poemas decantasse o imortal de suas obras. Mas eu<br />
quem levarei a meu la<strong>do</strong> no esta<strong>do</strong> em que me considero, senão a meus<br />
infortúnios, para irem publican<strong>do</strong> minhas mágoas?<br />
Retirou-se o empera<strong>do</strong>r Tibério à ilha Capreária, junto a Nápoles, não se<br />
atreven<strong>do</strong> a aparecer em Roma pelas sátiras e murmurações que dele se<br />
Tit. Liv., Dec. 1. Iib.6.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 435<br />
diziam, e sen<strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r receou as línguas de seus vassalos; e eu irei ser<br />
alvo <strong>da</strong>s de meus naturais, que se me invejaram por venturoso, agora se<br />
compadecerão de mim ven<strong>do</strong>-me desgraça<strong>do</strong>? Raras vezes as compaixões<br />
granjeiam as venturas. Só se conta que fugin<strong>do</strong> Marco António aflito e<br />
persegui<strong>do</strong> ao exército de Lépi<strong>do</strong>, que então estava no auge <strong>do</strong> poder, a pedir-<br />
Ihe amparo, vin<strong>do</strong> vesti<strong>do</strong> em hábito humilde e miseran<strong>do</strong>, e não queren<strong>do</strong><br />
Lépi<strong>do</strong> ouvi-lo nem admiti-lo à sua presença, antes man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> tocar as bélicas<br />
trombetas para que seus clamores <strong>do</strong> exército não fossem ouvi<strong>do</strong>s,<br />
compadeci<strong>do</strong>s os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s de verem a tão grande capitão tão miserável e<br />
desfavoreci<strong>do</strong>, o admitiram aos reais de Lépi<strong>do</strong> e contra sua vontade o<br />
elegeram por seu capitão e como tal o receberam, com que ficou ao mesmo<br />
Lépi<strong>do</strong> superior. Efeito foi este <strong>da</strong> compaixão militar nesta ocasião justo; mas<br />
em mim não tem lugar a compaixão para as melhoras, antes muito <strong>da</strong>no a<br />
inveja para o tormento.<br />
- Conce<strong>do</strong>, senhor (disse o Ermitão), tu<strong>do</strong> o que tendes dito, mas se<br />
discursarmos mais vagarosamente, não nos parecerá tão intolerável como se<br />
vos representa. De Amatilde não há vingança por ser mulher, a quem a política<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> fez dela incapaz pelo ser juntamente de poder defender-se, e assim<br />
em variar de eleição não vos agravou, que não pode ser causa de agravo<br />
quem não pode ser objecto <strong>da</strong> vingança e satisfação dele. De Alberto não vos<br />
podem culpar de cobardia em se levantar com ela na sua quinta, ten<strong>do</strong> consigo<br />
tanta gente arma<strong>da</strong> cautelosamente para esse efeito preveni<strong>da</strong>, porque o<br />
arrojar-se a temeri<strong>da</strong>des não é prova <strong>da</strong> valentia. Os romanos que eram tão<br />
afama<strong>do</strong>s no valor e foram ao diante senhores <strong>do</strong> império <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong><br />
venci<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s samnitas com os <strong>do</strong>us cônsules Postúmio e Vetúrio, passaram<br />
vergonhosamente por baixo <strong>do</strong> jugo <strong>do</strong>s vence<strong>do</strong>res, porque no esta<strong>do</strong> em que<br />
se viam não puderam fazer menos, que o morrer era sem fruto quan<strong>do</strong> os<br />
inimigos tanto a seu salvo podiam dispor de suas vi<strong>da</strong>s sem receberem <strong>da</strong>no.<br />
Assim que nem vós, nem to<strong>do</strong>s os que vos acompanhavam, podiam defender o<br />
que era impossível restaurar, principalmente quan<strong>do</strong> Amatilde nem se queixava<br />
de ofendi<strong>da</strong>, antes em seu silêncio mostrava não lhe ser a violência odiosa.<br />
Haverdes de satisfazer vosso desgosto depois de Alberto estar com<br />
Amatilde casa<strong>do</strong> seria vingança vagarosa, pois nesse tempo já não vos<br />
ofendia, pois ela voluntariamente se recebeu com ele, e mais se atribuiria
436 Padre Mateus Ribeiro<br />
vossa vingança a inveja <strong>do</strong> que a desagravo, porque o tempo com mu<strong>da</strong>r os<br />
motivos, mu<strong>da</strong> às acções o título que adquiriam. Do empera<strong>do</strong>r Adriano<br />
escreve Sabélico que antes de ser empera<strong>do</strong>r desejava vingar-se de um<br />
cavaleiro romano seu inimigo, o qual fican<strong>do</strong> mui intimi<strong>da</strong><strong>do</strong> quan<strong>do</strong> o viu eleito<br />
empera<strong>do</strong>r, ele com rosto alegre lhe disse que não temesse, que o tempo lhe<br />
<strong>da</strong>va já carta de seguro contra sua vingança, porque o que de antes se<br />
atribuiria ao valor, agora podia julgar-se desacerto <strong>da</strong> tirania. Costumavam os<br />
atenienses a lei <strong>do</strong> ostracismo, em que para a segurança <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
república desterravam de Atenas os varões mais insignes, ricos e poderosos<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de; e porque vieram um ano a desterrarem a Hiperbolo, que era um<br />
homem inquietíssimo, mas baixo e pobre, o que ele estimou por favor, pois<br />
com isso o faziam conheci<strong>do</strong> como aos grandes varões que tinham desterra<strong>do</strong>,<br />
nunca mais os atenienses usaram <strong>do</strong> ostracismo e derrogaram a lei que até<br />
então tinham observa<strong>do</strong>.<br />
Há tempos, senhor Felizar<strong>do</strong>, em que as satisfações não tem lugar<br />
porque se veriam os motivos delas em outros diferentes, porque o mun<strong>do</strong><br />
avalia as cousas mais pelo que ao presente parecem que pelos motivos que de<br />
antes tiveram, e assim que nenhum bom juízo pode culpar-vos, porque <strong>da</strong>s<br />
ousadias de Alberto vingardes-vos então não era possível e agora já não é<br />
decente; e se Amatilde obrou como mulher, ninguém pode culpar-vos em<br />
obrardes vós como prudente, pois sois <strong>do</strong>uto e ajuiza<strong>do</strong>. E se quereis alguns<br />
dias divertir este pesar de que vos mostrais tão oprimi<strong>do</strong>, podeis acompanhar-<br />
nos nesta devota romaria que à Casa Santíssima <strong>do</strong> Loreto fazemos, avisan<strong>do</strong><br />
primeiro por carta aos senhores vossos pais, para lhes aliviardes a inquietação<br />
<strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s; que porventura com a vista de tão vários lugares se vos<br />
divertirão os sentimentos que a fresca memória de Amatilde vos representa tão<br />
vivos, pois a mu<strong>da</strong>nça de terras, ares e sítios mil vezes sara os achaques <strong>da</strong><br />
pena e as enfermi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> paixão quan<strong>do</strong> incuráveis parecem.<br />
- Venturoso encontro foi o vosso para mim (disse Felizar<strong>do</strong>), pois nele<br />
vão sentin<strong>do</strong> minhas tristezas as primeiras sombras de alívio desde que me<br />
assaltaram as implacáveis on<strong>da</strong>s de meus pesares. Bem disse o Séneca 427<br />
que a conversação de um discreto era guia <strong>do</strong>s passos que <strong>da</strong>va em seu <strong>da</strong>no<br />
Senec, Epist. 87.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 437<br />
um aflito para reduzi-los. Donde veio a dizer Santo Isi<strong>do</strong>ro que a<br />
conversação <strong>do</strong>s bons e virtuosos juntamente aproveita e edifica. Eu aceito,<br />
senhores, o favor que me fazeis em me admitirdes a vossa companhia em tão<br />
pia jorna<strong>da</strong>, que nela, espero, terão termo meus desgostos, pois começo a<br />
sentir em minhas repeti<strong>da</strong>s mágoas as luzes <strong>do</strong> primeiro alívio.<br />
Com muita cortesia lhe responderam alegres os <strong>do</strong>us companheiros; e<br />
porque tinha o sol já declina<strong>do</strong> grande parte de seu caminho e tinham ain<strong>da</strong><br />
que caminhar largo espaço para saírem desta estéril campanha em que<br />
estavam, levantan<strong>do</strong>-se os três <strong>da</strong> tosca fonte, se tal se podia chamar a quem<br />
tão falta de cabe<strong>da</strong>l se achava, foram continuan<strong>do</strong> seu caminho por este sítio<br />
inculto e despovoa<strong>do</strong>, passan<strong>do</strong> as ruínas <strong>da</strong> antiga ci<strong>da</strong>de de Arpe,<br />
antigamente populosa, que, como escreve Trogo, foi edifica<strong>da</strong> por Diomedes,<br />
arriban<strong>do</strong> com a arma<strong>da</strong> depois <strong>da</strong>s ruínas de Tróia às ribeiras <strong>do</strong> mar<br />
Adriático que vizinho lhe fica. Não se vem hoje dela mais que alguns vestígios<br />
<strong>do</strong> que foi, que o tempo reservou por memória de seus triunfos; pois, como<br />
disse Cícero 429 , não há ci<strong>da</strong>de por mais populosa, castelo por mais forte,<br />
edifício por seguro, obelisco por mais majestoso e finalmente torre por mais<br />
inexpugnável que seja, a quem o tempo com seus insensíveis assaltos não<br />
gaste, não arruine e não consuma.<br />
Adivinhava-se a noite disfarça<strong>da</strong> nos crepúsculos <strong>da</strong> tarde, quan<strong>do</strong> os<br />
nossos romeiros chegavam à vista <strong>do</strong> lugar de Fogia, limita<strong>da</strong> habitação, se<br />
bem em campos tão desertos oportuno hospício aos passageiros. Tinha neste<br />
lugar Felisberto um amigo que os agasalhou com muita cari<strong>da</strong>de e alegria.<br />
Daqui despachou Felizar<strong>do</strong> um próprio com cartas a seus pais, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhes<br />
notícia <strong>da</strong> romaria que a Loreto fazia, para que lá man<strong>da</strong>ssem aos cria<strong>do</strong>s<br />
esperá-lo com o cavalo para quan<strong>do</strong> tornasse. Ao outro dia madrugaram por<br />
gozar as delícias <strong>da</strong> manhã nos frescos mimos <strong>da</strong> aurora, que são para quem<br />
caminha as horas mais acomo<strong>da</strong><strong>da</strong>s para evitar a moléstia e lograr a porção<br />
mais aprazível <strong>do</strong> dia. Descobriam-se as inquietas on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mar Adriático, que<br />
com seu repeti<strong>do</strong> movimento obedecen<strong>do</strong> aos ventos que as investiam, já<br />
formavam aparentes serras de neva<strong>da</strong> escuma, já desfazen<strong>do</strong> as eminências<br />
Isi<strong>do</strong>r., De sum. bono.<br />
Cicer., Ad Marc.
438 Padre Mateus Ribeiro<br />
se revolviam em vales, que como eram fábricas fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s no vento, não<br />
podiam permanecer mais que o mesmo ar que as sustentava com a deliciosa<br />
vista, assim <strong>do</strong>s horizontes <strong>do</strong> mar como <strong>da</strong> terra. Foram os peregrinos<br />
continuan<strong>do</strong> a jorna<strong>da</strong> até chegarem à antiga ci<strong>da</strong>de de Luceria, que ao<br />
presente se chama de Santa Maria: foi antigamente possuí<strong>da</strong> e habita<strong>da</strong> <strong>do</strong>s<br />
mouros que o empera<strong>do</strong>r Frederico II trouxe de África no tempo <strong>da</strong>s<br />
infortuna<strong>da</strong>s guerras que mal aconselha<strong>do</strong> em Itália fazia, como escreve<br />
Blon<strong>do</strong>; os quais mouros a possuíram alguns anos com notável <strong>da</strong>no <strong>do</strong>s<br />
campos e territórios vizinhos em que executavam continua<strong>da</strong>s hostili<strong>da</strong>des, até<br />
que à força de armas a ganhou e excluiu dela João Pepin, general <strong>do</strong> exército<br />
de Carlos II, conde de Proença e rei de Nápoles, que pon<strong>do</strong>-lhe aperta<strong>do</strong> sítio,<br />
com assaltos reforça<strong>do</strong>s a tomou à força de armas, passan<strong>do</strong> à espa<strong>da</strong> to<strong>do</strong>s<br />
os seus bárbaros defensores sem <strong>da</strong>r vi<strong>da</strong> a pessoa alguma. E porque esta tão<br />
insigne vitória se alcançou no dia felicíssimo <strong>da</strong> assunção <strong>da</strong> Rainha <strong>do</strong>s Anjos,<br />
lhe pôs nome de Luceria de Santa Maria, edifican<strong>do</strong> nela um templo sumptuoso<br />
dedica<strong>do</strong> a esta celestial Senhora.<br />
Seriam as dez horas <strong>do</strong> dia quan<strong>do</strong> os romeiros entraram na ci<strong>da</strong>de de<br />
Luceria de Santa Maria, que era na ocasião de uma <strong>da</strong>s duas feiras grandes<br />
que duas vezes no ano costumam nela fazer-se, a que se ajuntam merca<strong>do</strong>res<br />
de várias partes e províncias de Itália com grossas merca<strong>do</strong>rias de to<strong>do</strong> o<br />
género de drogas, por serem feiras de notável trato. Estavam quasi to<strong>da</strong>s as<br />
casas ocupa<strong>da</strong>s de forasteiros e os campos de ten<strong>da</strong>s, pelo que ven<strong>do</strong> os<br />
nossos romeiros a confusão de tanta gente para aí ficarem, se resolveram a<br />
passar adiante duas léguas e meia até à vila de Furunsola, para nela<br />
descansarem <strong>do</strong> caminho e se hospe<strong>da</strong>rem essa noite. Não é a vila grande<br />
nem muito povoa<strong>da</strong>, e só conheci<strong>da</strong> por nela morrer o empera<strong>do</strong>r Frederico II,<br />
odioso a to<strong>da</strong> a Itália e por sua soberba a to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>: que sen<strong>do</strong> a soberba<br />
insolente origem de to<strong>do</strong>s os vícios, como lhe chamou Santo Anselmo, assim<br />
de to<strong>do</strong>s geralmente é um soberbo aborreci<strong>do</strong>.<br />
Quatro horas <strong>da</strong> tarde seriam quan<strong>do</strong> os romeiros entraram na vila de<br />
Furunsola. Foi Felizar<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong> de um sacer<strong>do</strong>te que aí morava e com ele<br />
tinha estu<strong>da</strong><strong>do</strong> em a universi<strong>da</strong>de de Bolonha, o qual o recebeu com grande<br />
alegria e a seus companheiros, hospe<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-os em sua casa com to<strong>da</strong> a<br />
liberali<strong>da</strong>de, porque era franco de condição e bem afazen<strong>da</strong><strong>do</strong> na vila.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 439<br />
Moveram-se práticas várias de seus cursa<strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s e aproveita<strong>do</strong> tempo,<br />
pois o que nos estu<strong>do</strong>s se despende jamais se desperdiça, como ensina<br />
Plutarco. Era o sacer<strong>do</strong>te, que Eugénio se chamava, mui visto nas histórias <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>, nas humani<strong>da</strong>des <strong>do</strong>s livros poéticos e bem ajuiza<strong>do</strong> nos discursos, e<br />
assim de umas práticas passan<strong>do</strong> a outras no discurso <strong>da</strong> conversação que<br />
tiveram, veio a contar a admirável história de seu tio Reginal<strong>do</strong>, dizen<strong>do</strong> assim:<br />
Cap. XI.<br />
Em que Eugénio dá princípio à prodigiosa história de Reginal<strong>do</strong><br />
- Para tomar a narração mais na fonte de sua origem, sabereis,<br />
senhores, que o solar de nossa antigua família teve seu princípio na ci<strong>da</strong>de de<br />
Lessina, vizinha ao mar Adriático, edifica<strong>da</strong> junto ao grande lago que o<br />
cau<strong>da</strong>loso rio Tortoro forma com o cabe<strong>da</strong>l de suas águas, antes de entrar no<br />
mar a perder juntamente o nome e a corrente. Foram os fun<strong>da</strong><strong>do</strong>res desta<br />
ci<strong>da</strong>de pesca<strong>do</strong>res que <strong>da</strong>s pescarias de seu lago se sustentavam, começan<strong>do</strong><br />
a edificar pobres cabanas que o tempo foi mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> em casas, e acrescen<strong>do</strong><br />
outras gentes de diversas partes, multiplicaram de sorte as humildes<br />
habitações que cercan<strong>do</strong>-as de muros e pedin<strong>do</strong> bispo a Sua Santi<strong>da</strong>de se<br />
erigiu em ci<strong>da</strong>de com aplausos de populosa. Porém no tempo que os mouros<br />
passaram na Apulha, assaltan<strong>do</strong>-a lhe arruinaram muita parte de sua<br />
grandeza, que suposto que ao diante se reparassem suas ruínas, nunca porém<br />
chegaram seus reparos a cabalmente compensar-lhe os <strong>da</strong>nos recebi<strong>do</strong>s. Está<br />
Lessina, como digo, vizinha uma milha ao grande lago que dela toma o nome,<br />
mui abun<strong>da</strong>nte de peixe, que dele se reparte a diversas vilas e povoações que<br />
em circuito <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de se divisam. O mar fica distante uma légua, que com sua<br />
vizinhança seguin<strong>do</strong> a corrente <strong>do</strong> rio faz o sítio ameno, abun<strong>da</strong>nte e delicioso,<br />
pois logra além <strong>da</strong>s utili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> terra, as conveniências <strong>do</strong> rio e os proveitos<br />
<strong>do</strong> mar.<br />
Nesta ci<strong>da</strong>de de Lessina, aonde meus avós nasceram e meus pais se<br />
criaram, nasceu Reginal<strong>do</strong>, meu tio, irmão de meu pai, que logo desde os<br />
primeiros rudimentos de sua criação começou a mostrar a natureza que se
440 Padre Mateus Ribeiro<br />
criava para exemplo <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong> fortuna e espelho manifesto <strong>da</strong><br />
varie<strong>da</strong>de de nossa vi<strong>da</strong>. Era o pai de Reginal<strong>do</strong> pesca<strong>do</strong>r que com o exercício<br />
de suas redes sustentava a vi<strong>da</strong>; mas Reginal<strong>do</strong> logo desde seu nascimento<br />
saiu tão <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de gentileza, tão enriqueci<strong>do</strong> de brios, tão acompanha<strong>do</strong> de<br />
valor, tão generoso nos empenhos, que não parecia filho de pobre pesca<strong>do</strong>r,<br />
mas de príncipe rico. É a alma capaz de to<strong>da</strong>s as grandezas, e assim não<br />
estão sujeitos seus voos e as bizarrias de suas asas aos pesos e abatimentos<br />
<strong>do</strong> corpo. Lá disse o Séneca 430 que o corpo de muitas cousas necessita, a<br />
alma consigo própria se contenta. Da alma, disse Aristóteles 431 , resulta ao<br />
corpo o viver, o mover e o sentir, e como tem o senhorio de man<strong>da</strong>r e o corpo a<br />
sujeição de obedecer, não é maravilha se os espíritos generosos que <strong>da</strong> alma<br />
nascem não são impedi<strong>do</strong>s <strong>da</strong> humil<strong>da</strong>de e pobreza em que se cria o corpo.<br />
Isto digo, porque nem Reginal<strong>do</strong> se inclinou ao exercício de pesca<strong>do</strong>r, nem<br />
tratava mais que <strong>do</strong> <strong>da</strong>s armas em que saiu mui destro: a presença era por<br />
extremo agradável, a conversação benévola e mui cortês, a condição liberal, o<br />
ânimo generoso e finalmente mostrava no altivo <strong>do</strong>s pensamentos que tinha<br />
muito de bizarro e que em na<strong>da</strong> o obrigava a pobreza <strong>do</strong> nascimento a<br />
acomo<strong>da</strong>r-se a pequeno.<br />
Nestes exercícios em que Reginal<strong>do</strong> procedia, de muitos ama<strong>do</strong> pelo<br />
cortesão e de muitos respeita<strong>do</strong> pelo valente, e não duvi<strong>do</strong> que <strong>do</strong>utros<br />
enveja<strong>do</strong>, porque tantas partes juntas mal podiam fechar as portas à inveja,<br />
sucedeu que an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> um dia junto às praias <strong>do</strong> mar em cuja vista se<br />
entretinha, visse o princípio de to<strong>da</strong> sua fortuna, <strong>do</strong>nde tiveram a origem os<br />
vários perío<strong>do</strong>s e discursos de sua vi<strong>da</strong>, nos olhos de uma bizarra caça<strong>do</strong>ra<br />
que ricamente vesti<strong>da</strong> e com um venábulo na mão seguia os passos de um<br />
javali, que respeitan<strong>do</strong> ao belo que o seguia, mais que temen<strong>do</strong> o cruel <strong>do</strong><br />
venábulo que o buscava, punha na fugi<strong>da</strong> o respeitoso e na ligeireza o isentar-<br />
se de parecer ou grosseiro na resistência ou descui<strong>da</strong><strong>do</strong> em não saber guar<strong>da</strong>r<br />
sua própria vi<strong>da</strong>. Embargou-lhe os passos Reginal<strong>do</strong>, e arrancan<strong>do</strong> a espa<strong>da</strong><br />
lhe deu tão venturoso golpe que, jarretan<strong>do</strong>-o aos pés <strong>da</strong> fermosa caça<strong>do</strong>ra,<br />
lhe deu lugar a que ela lhe empregasse o venábulo que trazia que, se lhe<br />
Senec, in Epist.<br />
Arist., De anima.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 441<br />
suspendeu a fugi<strong>da</strong>, não quis encontrar a quem o seguia o gosto de por sua<br />
mão matá-lo. Chegaram a este tempo os monteiros e outros cavaleiros, a quem<br />
ela referiu o bom acerto que Reginal<strong>do</strong> fizera, de que to<strong>do</strong>s o louvaram.<br />
Ela suborna<strong>da</strong> <strong>da</strong> rara gentileza de Reginal<strong>do</strong> e <strong>do</strong> valor que mostrara<br />
juntamente ao cortês serviço, agradeci<strong>da</strong> lhe pediu a acompanhasse até uma<br />
deliciosa casa de campo em que com seu pai assistia, oferta que ele aceitou<br />
por favor, lisonjea<strong>do</strong> <strong>da</strong> singular beleza de Flora, que assim a caça<strong>do</strong>ra se<br />
chamava; e com razão lhe competia o nome, porque em tu<strong>do</strong> representava a<br />
mais bela flor. Era isto no tempo <strong>da</strong> Primavera, e ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> esta não<br />
chegara, sempre nas rosas de seu rosto a Primavera vivia. Pouco deviam seus<br />
olhos às esmeral<strong>da</strong>s, porque as esmeral<strong>da</strong>s à brilhante luz de seus olhos<br />
parece que seus ver<strong>do</strong>res deviam. A neve ficava escura à sua vista, porque<br />
seu rosto parecia eclipse <strong>da</strong> própria neve. O sol apurava os raios no <strong>do</strong>ura<strong>do</strong><br />
de seus cabelos, pois ca<strong>da</strong> madeixa sua era uma mina de raios, que quan<strong>do</strong> o<br />
denso <strong>da</strong>s nuvens os resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol encobriam, sempre nos cabelos de<br />
Flora suas luzes ao mun<strong>do</strong> manifestavam, pois se para o sol podia haver<br />
cortina que o suspendesse, para a beleza de Flora não podia haver rebuço que<br />
a encobrisse quan<strong>do</strong> tantos prodígios de fermosura a publicavam. Era enfim<br />
Flora com tal extremo bela que ficava parecen<strong>do</strong> <strong>da</strong> beleza extremo, que<br />
podiam as penhas deixar-se enternecer de afeiçoa<strong>da</strong>s, porque só então não<br />
incorreriam no desaire de serem penhas, e quan<strong>do</strong> a nativa dureza as<br />
desacreditara, as brechas de afeiçoa<strong>da</strong>s as desculparam.<br />
Era Flora filha <strong>do</strong> conde Manfre<strong>do</strong>, rico senhor e mui aparenta<strong>do</strong> não só<br />
em Itália, mas em Sabóia e França, <strong>do</strong>nde descendia o ínclito solar de sua<br />
casa. Tinha Manfre<strong>do</strong> um filho sucessor de sua casa, de flori<strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, que se<br />
chamava Carlos, mancebo de grandes esperanças, muito valor e grande aviso.<br />
Era o conde viúvo e era Flora o centro de seu amor e alvo de seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s.<br />
Acompanhou Reginal<strong>do</strong> a Flora até à quinta em que o conde e seu irmão<br />
assistiam, que ten<strong>do</strong> notícia <strong>do</strong> que Flora lhe referiu de seu grande valor e<br />
cortesia quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s monteiros e os que a seguiam se viu desampara<strong>da</strong> e<br />
ain<strong>da</strong> arrisca<strong>da</strong>, se o indómito javali usara <strong>do</strong>s arrojos de persegui<strong>do</strong>, o conde<br />
lhe pediu quisesse ficar em sua casa para assistir a Carlos, seu filho, que quasi<br />
<strong>da</strong> própria i<strong>da</strong>de era.
442 Padre Mateus Ribeiro<br />
Suspenso se viu Reginal<strong>do</strong> na resposta, porque de servir ao conde<br />
parece que desluzia suas esperanças que a maiores empresas o persuadiam:<br />
efeito próprio <strong>do</strong> valor. Repartin<strong>do</strong> o grande Alexandre em Macedónia antes de<br />
partir para a conquista de Pérsia to<strong>da</strong>s as riquezas e bens que possuía a seus<br />
amigos e capitães de seu exército, sem reservar para si cousa alguma,<br />
perguntan<strong>do</strong>-lhe os amigos que deixara para si, respondeu que lhe ficavam as<br />
esperanças. Bem as intitulou Santo Agostinho 432 serem vi<strong>da</strong> de nossa mortal<br />
vi<strong>da</strong> e o manjar mais suave com que se alimenta. Por outra parte, como estava<br />
venci<strong>do</strong> <strong>da</strong> fermosura de Flora, que como raio não necessitou de tempo para<br />
feri-lo, considerava ser a conveniência própria para lograr repeti<strong>da</strong>mente sua<br />
vista, o que sem isto lhe não ficaria fácil, e assim poden<strong>do</strong> com ele mais o amor<br />
que as esperanças de mais valer, aceitou as ofertas que lhe fez o conde,<br />
avalian<strong>do</strong> que não tinha mais alto sua ventura que subir que chegar Flora a<br />
querer. Alegres ficaram to<strong>do</strong>s com a resposta, e principalmente Flora, e porque<br />
interiormente se de to<strong>do</strong> já o não amava, ao menos em vê-lo se revia.<br />
Poderosa valia é a gentileza que dá assaltos ao coração para buscar nele<br />
entra<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong>-lhe tibiamente defendi<strong>da</strong>. Praça em que a bataria é repeti<strong>da</strong> e a<br />
defensa descui<strong>da</strong><strong>da</strong>, muito próxima está de ser rendi<strong>da</strong>: porque assaltos tão<br />
contínuos para abrirem brecha no peito se valem <strong>do</strong>s olhos, que como<br />
suborna<strong>do</strong>s <strong>da</strong> vista que, como disse Quintiliano 433 , são as estra<strong>da</strong>s<br />
encobertas <strong>do</strong> coração, dão a entra<strong>da</strong>.<br />
Ficou Reginal<strong>do</strong> no serviço <strong>do</strong> conde e em breves dias na privança e<br />
valimento de seu filho Carlos, mas muito mais no valimento de Flora. Competia<br />
nela o recato com o amor, o pun<strong>do</strong>nor com o querer, o senhoril com o amar:<br />
disfarçava o fino no majestoso, queria ver e não parecer que via, que como tão<br />
senhora e Reginal<strong>do</strong> tão desigual, suspendia a gravi<strong>da</strong>de com a cautela<br />
quan<strong>do</strong> se empenhava o amor com as finezas. A desafio saíam em seu peito a<br />
gentileza e partes de Reginal<strong>do</strong> com seu esta<strong>do</strong>; <strong>da</strong>va-lhe a mão o amor para<br />
que subisse, embargava-o sua humil<strong>da</strong>de para que decesse. Vai grande<br />
diferença de achar amor iguais, a fazê-los; que <strong>do</strong>nde acha igual<strong>da</strong>des talvez<br />
obra como entendi<strong>do</strong>, mas para fazer iguais é necessário que se arroje como<br />
S. Aug., Supr. Psal. 3 (Supr. Dial. 3. na edição de 1734).<br />
Quintil., Declam. 12.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 443<br />
cego. Talvez <strong>da</strong>va Flora comissão a seus olhos para que falassem, mas logo<br />
decia o rebuço <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong>de para que emudecessem: de sorte que quan<strong>do</strong><br />
mais Reginal<strong>do</strong> desejava certificar-se, então mais achava motivos de não<br />
entender-se.<br />
Nesta suspensão e labirinto de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, sem acertar saí<strong>da</strong> a seus<br />
desvelos passou Reginal<strong>do</strong> alguns meses no serviço <strong>do</strong> conde em que mostrou<br />
tantos méritos, assim no valor de destemi<strong>do</strong>, como nos empenhos de ajuiza<strong>do</strong>,<br />
como quem intentava agra<strong>da</strong>r a quem tanto se afinava no querer, que o conde<br />
e seu filho Carlos nem emprendiam acção de importância sem consultá-lo, nem<br />
no governo de seu esta<strong>do</strong> dispunham resolução alguma sem sua aprovação,<br />
sen<strong>do</strong> Reginal<strong>do</strong> o oráculo de suas vontades, para em tu<strong>do</strong> suas ordens<br />
seguirem.<br />
An<strong>da</strong>n<strong>do</strong> pois um dia à caça o conde, Carlos e juntamente Flora com<br />
seus cria<strong>do</strong>s e monteiros, sucedeu que desuni<strong>do</strong>s com o seguimento <strong>da</strong>s feras<br />
e derrota<strong>do</strong>s por vários sítios entre o espesso <strong>do</strong> arvore<strong>do</strong> que o monte em<br />
várias partes dividia, viesse a encontrar-se Reginal<strong>do</strong> só com Flora no solitário<br />
de um bosque com quem fazia contínuo divórcio o sol pelo sombrio, e ven<strong>do</strong> a<br />
ocasião tão apropria<strong>da</strong> para desenganar-se <strong>da</strong>s dúvi<strong>da</strong>s em que tanto tempo<br />
vivia, lhe disse entre temeroso e atrevi<strong>do</strong> desta sorte:<br />
- Muitos dias há, queri<strong>da</strong> Flora, que an<strong>da</strong>m meus pensamentos<br />
navegan<strong>do</strong> sem saberem para onde me leva a ventura, suspensas minhas<br />
esperanças tão bem nasci<strong>da</strong>s, como malogra<strong>da</strong>s. Das redes de meu pai<br />
aprendeu minha fortuna a ocupar muito e prender pouco, pois cercan<strong>do</strong> tanto<br />
mar, nenhuma água prendem. Entrei em tua casa a servir-te, melhor dissera a<br />
amar-te, pois nos extremos de amar-te se cifram to<strong>do</strong>s os desvelos de servir-te:<br />
que nunca serviu mal quem quis bem, nem soube servir pouco quem ama<br />
muito. Foi meu amor filho de meus pensamentos, não de meu nascimento, e<br />
assim não era muito que tão alto voasse, que costumam os pensamento subir<br />
aonde à humil<strong>da</strong>de <strong>do</strong> nascimento não é possível voar. Mas ai de mim, que<br />
quan<strong>do</strong> cuidei obrigar-te, vejo em o severo com que me tratas indícios de<br />
ofender-te! Se porque nasci humilde te agravas de ser ama<strong>da</strong>, despacho é <strong>da</strong><br />
tirania, pois menos merecera quan<strong>do</strong> te igualara: que a distância, quan<strong>do</strong> é<br />
pouca, com pouco se vence; mas sen<strong>do</strong> tão superior, de venturosas asas
444 Padre Mateus Ribeiro<br />
necessita, e quanto é maior o risco <strong>da</strong> caí<strong>da</strong>, tanto tem de mais aplaudi<strong>da</strong> a<br />
valentia <strong>do</strong> voo.<br />
- Não passes adiante (respondeu Flora), que é demasia<strong>do</strong> atrevimento<br />
perderes-me o respeito, sen<strong>do</strong> eu Flora e tu meu cria<strong>do</strong>. Que se atrevessem ao<br />
superior de quem sou teus pensamentos, ain<strong>da</strong> por encobertos podiam<br />
dissimular-se, mas que se declarem comigo tuas palavras é profanar o decoro<br />
a quem se devia o maior respeito e aventurar-te a seres castiga<strong>do</strong> por<br />
temerário, se não te valer o privilégio de louco.<br />
E dizen<strong>do</strong> isto lhe voltou as costas sem mais querer ouvi-lo. Mal poderá<br />
explicar-se, salvo com a consideração, qual ficou nesta Reginal<strong>do</strong>, que imóvel<br />
nos passos, suspensos os senti<strong>do</strong>s, diverti<strong>do</strong>s os discursos, o coração cheio de<br />
<strong>do</strong>r, a alma de pena, a vi<strong>da</strong> de mágoa e os olhos de lágrimas, nem advertin<strong>do</strong><br />
se era dia, porque tu<strong>do</strong> lhe parecia noite, que a confusão em que se via tu<strong>do</strong><br />
lhe representava tenebroso, impaciente ao desprezo, queixoso à ingratidão,<br />
desespera<strong>do</strong> ao desairoso, mal remunera<strong>do</strong> <strong>do</strong>s serviços, precipita<strong>do</strong> <strong>da</strong>s<br />
esperanças ao profun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s desenganos e ofendi<strong>do</strong> sobre desengana<strong>do</strong>, que<br />
é o veneno mais requinta<strong>do</strong> para acabar a vi<strong>da</strong> de um triste, se porventura há<br />
mais morte que a tristeza, rompeu o dilata<strong>do</strong> silêncio nestas palavras:<br />
- De que serviu à natureza comunicar-me os brios, se não pude acabar<br />
com minha fortuna o isentar-me <strong>do</strong>s <strong>da</strong>nos? Que aproveita voar com os<br />
pensamentos atrevi<strong>do</strong>s, se hão-de ficar meus voos malogra<strong>do</strong>s? Ó dura sorte<br />
minha! Que quan<strong>do</strong> te avaliei venturosa, te vejo despenha<strong>da</strong>! Dizem que aos<br />
ousa<strong>do</strong>s favorece a ventura e perdi a ventura na ousadia; que como me<br />
nasceram as asas juntamente com o juízo, não puderam sustentar-me porque<br />
as não conheci no berço. As aves com facili<strong>da</strong>de voam porque no ninho<br />
cobram as asas; mas ai de mim, que como as não tive de nascimento, quan<strong>do</strong><br />
as quis largar foi só para cair! Oh ingrata Flora, ama<strong>da</strong> para perdi<strong>da</strong>, que se te<br />
amara menos, não te perdera! Em que academia <strong>da</strong> ingratidão estu<strong>da</strong>stes<br />
tanta cruel<strong>da</strong>de que faças razão de esta<strong>do</strong> para castigar-me de desconhecer o<br />
fino de querer-te? Que castigos reservas para quem te aborreça, se com tal<br />
rigor tratas a quem te ama? Deixaras-me viver engana<strong>do</strong> de meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s,<br />
que assaz castigo era para um triste o viver sempre engana<strong>do</strong> e não se<br />
considerar arrependi<strong>do</strong>. Mas já que quisestes, tirana Flora, que nem me<br />
lisonjeasse a ventura de querer-te, nem o merecimento de servir-te, fica-te
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 445<br />
embora para jamais ver-te, que em terras estranhas ausente de teus olhos irei<br />
buscar o valimento que na própria me falta, ou de to<strong>do</strong> perderei a vi<strong>da</strong>, se vi<strong>da</strong><br />
tem que perder quem em perder-te de vista perdeu tu<strong>do</strong>.<br />
Assim falou o magoa<strong>do</strong> Reginal<strong>do</strong>, acompanhan<strong>do</strong> os olhos suas vozes,<br />
que não é desmaio <strong>do</strong> valor derramar lágrimas de senti<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> sabia<br />
aventurar a vi<strong>da</strong> muitas vezes sem chorá-la. Partiu-se para as praias <strong>do</strong> mar<br />
por ver se descobria alguma embarcação em que passar-se a Veneza e <strong>da</strong>í<br />
embarcar-se para onde o guiasse sua ventura, se ventura segue quem por<br />
paixão se guia. Não se descobriu no mar vela alguma; mas quan<strong>do</strong> achou um<br />
triste cousa que desejasse? Chegava-se a noite e retirou-se ao tosco <strong>do</strong>micílio<br />
de um roche<strong>do</strong>, que <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s cava<strong>do</strong> devia ao cristal mais que ao ferro a<br />
grande brecha que se tinha aberto em suas entranhas, aonde o deixaremos<br />
hospe<strong>da</strong><strong>do</strong> de seus pesares, que é a companhia mais certa de um aflito, para<br />
tratarmos de Flora.<br />
Cap. XII.<br />
Como Flora fez prender a Reginal<strong>do</strong> e como depois se ausentou de casa de<br />
seu pai com ele<br />
Pensativa mais que irosa se retirou Flora <strong>da</strong> presença de seu queixoso<br />
amante e porventura ia sentin<strong>do</strong> os ecos de suas senti<strong>da</strong>s palavras,<br />
competin<strong>do</strong> em seu peito o grave com o amoroso. É razão de esta<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
fermosura mostrar-se soberana e <strong>da</strong> fi<strong>da</strong>lguia ostentar-se respeitosa, e assim<br />
suposto que o interior não se <strong>da</strong>va por agrava<strong>do</strong>, representou nos exteriores<br />
demonstrações de ofendi<strong>do</strong>. Não duvi<strong>do</strong> que fosse pesarosa <strong>da</strong> pena com que<br />
a Reginal<strong>do</strong> deixava, mas disfarçou-a no rigor, por não <strong>da</strong>r indícios de<br />
arrependi<strong>da</strong>. Chegaram a casa e achou-se menos Reginal<strong>do</strong>, o que to<strong>do</strong>s<br />
sentiram; esperaram que ao outro dia viesse, mas ven<strong>do</strong> que faltava,<br />
man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> alguns cria<strong>do</strong>s a ver se o descobriam, entrou um deles dizen<strong>do</strong> que<br />
uns pesca<strong>do</strong>res lhe haviam dito o viram no marítimo <strong>da</strong> costa procuran<strong>do</strong> se se<br />
descobria embarcação alguma em que passar-se a Veneza. Aqui foi em to<strong>do</strong>s<br />
admiração <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de, que como se ignorava a causa, não podia deixar de
446 Padre Mateus Ribeiro<br />
causar espanto. Mas em quem a <strong>do</strong>r sobrevenceu os limites <strong>do</strong> sofrimento foi<br />
em Flora, que tarde arrependi<strong>da</strong> <strong>da</strong> severi<strong>da</strong>de grande com que tratou a<br />
Reginal<strong>do</strong>, sentiu na <strong>do</strong>r a pena de seu demasia<strong>do</strong> rigor, que, como diz Tito<br />
Lívio, é o primeiro e não o menor castigo que ao arrependimento segue; e<br />
Quintiliano diz que cresce ca<strong>da</strong> vez mais o pesar quan<strong>do</strong> o pensamento mais<br />
sobre a causa discursa.<br />
Ansia<strong>da</strong> pois com os temores <strong>da</strong> ausência, que é o verdugo mais cruel<br />
para quem ama, pesarosa de se mostrar tão ingrata quan<strong>do</strong> era ocultamente<br />
tão amante, representan<strong>do</strong>-lhe a memória a rara gentileza e merecimentos de<br />
Reginal<strong>do</strong>, que para sempre de seus olhos perdia, que então cabalmente<br />
chegam a conhecer-se quan<strong>do</strong> se perdem, impaciente no penar e amante no<br />
sentir, buscou traça seu amor para impedir que Reginal<strong>do</strong> se embarcasse, sem<br />
que pudesse conhecer-se que como amante o fazia, e assim entran<strong>do</strong> na<br />
camera e esconden<strong>do</strong> as jóias mais ricas no valor que tinha, que vinham a ser<br />
de grande preço, se veio a queixar ao conde seu pai e a Carlos seu irmão de<br />
que as jóias mais preciosas que tinha lhe faltavam e que sem dúvi<strong>da</strong> Reginal<strong>do</strong><br />
as levava, e por isso passar-se a Veneza pertendia. Não foi mui dificultoso de<br />
crer o que Flora afirmava, porque ain<strong>da</strong> que seus bons procedimentos o<br />
desdiziam, contu<strong>do</strong> a repentina fugi<strong>da</strong>, para quem dela ignorava os motivos,<br />
não deixava de indiciar o poder no fingi<strong>do</strong> furto ser culpa<strong>do</strong>. Traz consigo a<br />
fugi<strong>da</strong> por companheira a suspeita: largou um fugitivo o campo às<br />
desconfianças, que como não pode defender-se <strong>da</strong>s calúnias, to<strong>do</strong>s se<br />
atrevem a culpá-lo. Não deixaria Reginal<strong>do</strong> de ter na casa <strong>do</strong> conde Manfre<strong>do</strong><br />
invejosos, que como em tão pouco tempo tinha subi<strong>do</strong> tanto seu valimento,<br />
assim como não há luz sem sombra, não há subi<strong>da</strong> sem inveja. Estes tais<br />
acreditaram o roubo por ver<strong>da</strong>deiro, e por ordem <strong>do</strong> conde, que senti<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
desleal<strong>da</strong>de de Reginal<strong>do</strong> se mostrava, saíram to<strong>do</strong>s a buscá-lo bem provi<strong>do</strong>s<br />
de armas, porque já conheciam quanto tinha de destemi<strong>do</strong>. Encomen<strong>do</strong>u muito<br />
o conde que o não matassem, mas que só preso e bem guar<strong>da</strong><strong>do</strong> à sua<br />
presença o trouxessem; e o mesmo pediu eficazmente Flora, que de nenhum<br />
mo<strong>do</strong> o ofendessem para que declarasse aonde as jóias tinha.<br />
Admiráveis são as traças <strong>do</strong> amor, pois talvez se disfarça no ódio,<br />
parecen<strong>do</strong> que aborrece o mesmo que com finezas ama. Reparou o padre
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 447<br />
Santo Ambrósio no fingimento com que se ouve José com seu irmão<br />
Benjamim, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe esconder a taça no saco de trigo para prendê-lo, e<br />
chama-lhe engano pie<strong>do</strong>so para restaurar a seus olhos a presença e vista de<br />
quem tanto amava. Quasi deste mo<strong>do</strong> se ouve Flora em Reginal<strong>do</strong>, que não<br />
duvi<strong>do</strong>u em culpá-lo injustamente de rouba<strong>do</strong>r para depois desanojá-lo amante<br />
e pagar-lhe nas maiores finezas <strong>do</strong> querer os injustos agravos de o culpar.<br />
Caminharam os cria<strong>do</strong>s e monteiros <strong>do</strong> conde com to<strong>da</strong> a pressa,<br />
desquartinan<strong>do</strong> com a vista e diligência não só as praias <strong>do</strong> mar, mas as<br />
ensea<strong>da</strong>s e penhascos mais remonta<strong>do</strong>s e escondi<strong>do</strong>s, té que foram descobrir<br />
a Reginal<strong>do</strong> <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> na concavi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> marítimo roche<strong>do</strong>. É o sono, diz o<br />
padre Santo Agostinho 435 , o tribunal para onde costumam apelar os tristes,<br />
sen<strong>do</strong> insensível refúgio de que se vai a alma no sentimento de suas penas. É<br />
o sono alegre lisonja apeteci<strong>da</strong> <strong>do</strong> cansaço, diz São João Crisóstomo 436 , para<br />
quem trabalha e não menos é alívio <strong>da</strong>s aflições para quem as padece, que<br />
como estão embarga<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s para não sentirem, também ficam<br />
suspensas as operações <strong>da</strong> alma para com suas memórias não atormentarem.<br />
Assim estava Reginal<strong>do</strong> neste limbo natural <strong>do</strong> descui<strong>do</strong> de seus desgostos,<br />
quan<strong>do</strong> acor<strong>do</strong>u cerca<strong>do</strong> de quem em um instante se viu prisioneiro e<br />
despoja<strong>do</strong> <strong>da</strong>s armas e ata<strong>da</strong>s as mãos como delinquente, afrontan<strong>do</strong>-o com<br />
títulos de desleal ao conde e rouba<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s preciosas jóias de Flora, sua<br />
senhora, foram caminhan<strong>do</strong> com ele para a quinta de Manfre<strong>do</strong>, sem lhe valer<br />
nem a inocência que era o mais, nem a desculpa que era o menos.<br />
Considerai, senhores, que sentiria o ansia<strong>do</strong> coração de Reginal<strong>do</strong><br />
quan<strong>do</strong> se considerasse de Flora por tantas vias ofendi<strong>do</strong>. Lá disse o Cícero 437<br />
que tinha a injúria de si própria tal estímulo que com dificul<strong>da</strong>de as podiam<br />
dissimular os varões prudentes. Bem disse Santo Agostinho 438 que eram as<br />
injúrias a pedra de toque em que se descobria o valor no sofrimento dela. É<br />
demonstração <strong>do</strong>s ânimos generosos o não se mostrarem venci<strong>do</strong>s <strong>da</strong> fortuna.<br />
S. Amb., Lib. de Joseph.<br />
D. Aug., Lib. 10. Conf. c. 13.<br />
Chrysost., Horn. 2. Ad popul. Antioc.<br />
Cicer., Act. 5. in Ver.<br />
S. Aug., in Psal. 62.
448 Padre Mateus Ribeiro<br />
Sen<strong>do</strong> Filipe Macedónico, pai <strong>do</strong> grande Alexandre, no sítio que pôs à ci<strong>da</strong>de<br />
de Mo<strong>do</strong>n feri<strong>do</strong> de uma seta em um olho, que o privou dele (per<strong>da</strong> tão<br />
irreparável e tanto para poder sentir-se), temen<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s que toman<strong>do</strong> a ci<strong>da</strong>de<br />
executasse em vingança as hostili<strong>da</strong>des maiores, ele nenhuma cruel<strong>da</strong>de<br />
executou; antes se houve com seus mora<strong>do</strong>res com tanta brandura e pie<strong>da</strong>de,<br />
como se deles tal ofensa recebi<strong>do</strong> não tivera. E como o nosso Reginal<strong>do</strong>, se<br />
bem tão afronta<strong>do</strong>, se considerava inocente, tem a ignorância de si tal carta de<br />
seguro nas aflições que ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> mais combati<strong>da</strong>, então se mostra mais<br />
confia<strong>da</strong>. Lá disse o Quintiliano 439 que o carecer <strong>do</strong>s vícios era triunfar <strong>da</strong>s<br />
calúnias, pois nunca faltava eloquência para se defender a quem feri<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />
consciência não se atrevem a inquietar. Caminhava Reginal<strong>do</strong> preso mas<br />
confia<strong>do</strong>, ressenti<strong>do</strong> e seguro, magoa<strong>do</strong> e sem temor, que para tu<strong>do</strong> tinha<br />
causas, porque se <strong>do</strong> roubo o assegurava a inocência, a ingratidão de Flora<br />
não o isentava <strong>da</strong> <strong>do</strong>r.<br />
Chegaram à quinta já de noite, e não queren<strong>do</strong> o conde de apaixona<strong>do</strong> e<br />
Carlos em parte de compassivo verem ao preso logo na entra<strong>da</strong>, por <strong>da</strong>rem<br />
lugar a discursarem o mo<strong>do</strong> com que haviam de proceder com ele, informa<strong>do</strong>s<br />
de que nem as jóias se lhe acharam, nem ele confessava ter delas notícia, o<br />
man<strong>da</strong>ram fechar em uma casa bem seguro té ao outro dia o conde falar com<br />
ele. Meia-noite seria conforme as guar<strong>da</strong>s <strong>do</strong> norte com seu movimento<br />
mostravam, relógio tão certo que jamais se desgoverna nem o curso de suas<br />
ro<strong>da</strong>s se suspende, quan<strong>do</strong> estan<strong>do</strong> o aflito Reginal<strong>do</strong> tão desperto como sua<br />
pena (que penas <strong>da</strong> alma não sabem <strong>do</strong>rmir, porque jamais se descui<strong>da</strong>m de<br />
atormentar), sentiu que abriam a porta bran<strong>da</strong>mente e viu entrar com uma vela<br />
na mão a Flora sem outra companhia que lhe assistisse, a cuja vista brotan<strong>do</strong><br />
as lágrimas pelos olhos a Reginal<strong>do</strong> sem poder impedi-las, que como é sangue<br />
<strong>da</strong> alma, não era muito que à vista <strong>da</strong> ofensora pelos rasgos de seus olhos<br />
violenta<strong>da</strong>s saíssem, antes de ela falar, lhe disse:<br />
- Ain<strong>da</strong>, cruel Flora, te não dás por satisfeita de teus castigos? Tem<br />
ain<strong>da</strong> tua tirania novos arbítrios de rigor que executar? Não deixes, ingrata,<br />
género algum de tormento, que não quero agradecer-te pie<strong>da</strong>de, porque me<br />
sirvam to<strong>do</strong>s os motivos de culpar-te por cruel. Por amar-te me castigas?<br />
Quintil., Lib. 8.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 449<br />
Quem viu jamais condenar por delitos os que podiam ser merecimentos? Quem<br />
viu pagar com afrontas obséquios amorosos e com <strong>da</strong>r-me culpas de roubar-te,<br />
despojares-me <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, arriscares-me a vi<strong>da</strong> e desluzires-me a honra? Se<br />
não foi poderoso meu amor, sen<strong>do</strong> gigante, para abrir em teu peito de<br />
diamante a menor brecha, como abririam minhas mãos os escritórios de teus<br />
diamantes? E desejan<strong>do</strong> eu possuir quantos produz o Oriente para oferecer-<br />
tos, me culpas que me cegaria a cobiça <strong>do</strong>s teus para roubá-los? Deixa-me,<br />
ingrata, e não intentes com tua vista duplicar o intenso a meus pesares, porque<br />
vivo de ti tão justamente queixoso que te desejo ver com extremos cruel, só<br />
para não dever-te a menor sombra de pie<strong>da</strong>de.<br />
Acompanharam as lágrimas de senti<strong>do</strong> os breves perío<strong>do</strong>s de queixoso,<br />
a que a pie<strong>da</strong>de de Flora, não menos chorosa que enterneci<strong>da</strong>, respondeu<br />
assim:<br />
- Culpas-me, Reginal<strong>do</strong>, de cruel? Ó nunca me fizera o amor tão<br />
compassiva, que a ser assim tu te queixaras menos e eu não sentiria mais!<br />
Prova é de amar o sofrimento, que nele consiste a valentia <strong>do</strong> querer: aonde<br />
viste diamante que se acreditasse de o ser por sofrer pouco? Quanto tem o<br />
amor de constante, tanto tem de fino: que desmaiar aos primeiros combates é<br />
desluzimento <strong>do</strong> valor. Respondi-te severa por fazer experiência <strong>do</strong>s extremos<br />
com que me amavas; pouco abonaste o querer, pois te persuadiste a ausentar<br />
e pusestes em dúvi<strong>da</strong>s o fino, por te mostrares no desespera<strong>do</strong> tão grosseiro.<br />
Nem a quem eu era convinha responder-te mais amante, nem são gloriosos os<br />
triunfos quan<strong>do</strong> se conseguem sem resistências: pois as vitórias sem riscos e<br />
desvelos alcança<strong>da</strong>s mais abonam a ventura que o valor. Foram teus<br />
pensamentos bem nasci<strong>do</strong>s e teu pouco sofrimento os fazia malogra<strong>do</strong>s: que<br />
jamais impaciências facilitaram as esperanças. Tu me deixavas e eu te<br />
busquei; mais abonei eu o amar-te <strong>do</strong> que tu o querer-me: que meter ausências<br />
em meio é desterrar sem culpas ao amor. Dirás que te culpei nas jóias<br />
injustamente; mas dize-me, que motivo podia eu buscar para deter-te sem<br />
declarar-me? Mais poderás agradecer-me o engano que ressentir-te <strong>do</strong> agravo,<br />
pois em mim foi fineza o que julgas tirania. Para satisfazer as tuas queixas e<br />
pagar o que publicas de amante <strong>do</strong>u palavra firme de ser tua esposa e como tal<br />
a qualquer parte seguir-te, para que vejas se sei amar mais fino <strong>do</strong> que tu<br />
soubeste obrigar-me constante.
450 Padre Mateus Ribeiro<br />
Assim falou Flora, e foi tal o peso <strong>da</strong>s alegrias que recebeu o aflito<br />
coração de Reginal<strong>do</strong> que ajoelhou aos pés de sua compassiva Flora: que<br />
também as venturas não espera<strong>da</strong>s podem carregar com os pesares. Ela para<br />
levantá-lo lhe deu a mão como a esposo, consultan<strong>do</strong> entre si o mo<strong>do</strong> e<br />
ocasião que poderia haver para ausentar-se com mais segurança, e que<br />
enquanto o tempo lhes mostrava a oportuni<strong>da</strong>de de fazê-lo, ela fingiria que<br />
achara as jóias em parte diferente, e ele aceitasse as desculpas que o conde<br />
lhe desse de havê-lo preso e se deixasse ficar em casa até sua fugi<strong>da</strong><br />
conseguirem. Tu<strong>do</strong> se efectuou como ordenou Flora, fazen<strong>do</strong> as ricas jóias<br />
apareci<strong>da</strong>s em parte que abonavam a inocência de Reginal<strong>do</strong>, a quem o conde<br />
pediu perdão <strong>do</strong> que dele havia presumi<strong>do</strong> e Carlos o persuadiu com tantas<br />
desculpas que ele se deu por satisfeito <strong>do</strong> penoso susto que senti<strong>do</strong> tinha e<br />
ficou em seu serviço como de antes estava; não lhe faltan<strong>do</strong> desculpas que <strong>da</strong>r<br />
<strong>da</strong> ausência que havia intenta<strong>do</strong>, com diferentes pensamentos <strong>do</strong> que eles<br />
julgaram no roubo que criam.<br />
Alguns dias eram passa<strong>do</strong>s em que Reginal<strong>do</strong> esperava que houvesse<br />
alguma embarcação para Veneza, que era o refúgio em quem sustentava as<br />
esperanças de se poder conseguir sua fugi<strong>da</strong>, té que lhe deram notícias de<br />
uma nau que estava prepara<strong>da</strong> para se partir brevemente. Solicitou<br />
pessoalmente mais certa informação seu cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, falan<strong>do</strong> com o patrão dela,<br />
que era um nobre genovês, mancebo na i<strong>da</strong>de e rico nos bens <strong>da</strong> fortuna, que<br />
passava a Veneza para <strong>da</strong>í voltar a Alexandria com negócios de importância, e<br />
se chamava Raimun<strong>do</strong>. Este lhe disse que se queria embarcar-se o levaria a<br />
Veneza, mas que havia de ser com brevi<strong>da</strong>de, porque dentro em <strong>do</strong>us dias<br />
determinava partir-se. Com este aviso persuadiu a Flora a ocasião oportuna<br />
que se oferecia, e ela, que como tão amante estava já resoluta em segui-lo,<br />
ajuntan<strong>do</strong> as jóias mais ricas que possuía, se preparou para na seguinte noite<br />
se embarcarem. É o amor, como bem lhe chamou Platão 440 , mestre <strong>da</strong>s<br />
ousadias: nunca ensinou a temer, porque na academia <strong>do</strong> querer jamais se<br />
ouviu lição de recear.<br />
Assim destemi<strong>do</strong> Reginal<strong>do</strong>, esperan<strong>do</strong> a ocasião para ele a mais<br />
apeteci<strong>da</strong> e a mais arrisca<strong>da</strong> que em sua vi<strong>da</strong> teve, esperan<strong>do</strong> que a noite com<br />
Plat., in Tim.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 451<br />
o véu de suas sombras favorecesse sua amorosa fugi<strong>da</strong>, saiu <strong>da</strong> quinta com<br />
Flora, tanto por extremo bela que pudera deste roubo o troiano Paris ter inveja<br />
quan<strong>do</strong> roubou a Helena para sua ruína. Era a noite escura, porque mal<br />
cintilavam as estrelas, que como nos olhos de Flora as levava tão luzi<strong>da</strong>s,<br />
pouca falta lhes faziam resplan<strong>do</strong>res. Eram as nuvens cortinas que a intervalos<br />
encobriam os faróis <strong>do</strong> firmamento, mas como o amor lhes servia de guia,<br />
confia<strong>da</strong>mente caminhavam quan<strong>do</strong> tinham tão arrisca<strong>do</strong> o caminho, que<br />
nunca chega facilmente a desenganar-se quem leva consigo os motivos de<br />
desvanecer-se. Seguiam a corrente <strong>do</strong> rio, que como arrieiro de cristal que de<br />
dia e de noite sem parar caminha os ia guian<strong>do</strong> ao mar, centro em que param<br />
as ânsias com que corre, então só desengana<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong>, pois lhe<br />
valera mais ser forte e conservar-se que despenhar-se rio para perder-se.<br />
Chegaram ao mar quan<strong>do</strong> a alva vinha rompen<strong>do</strong> as nuvens com seus<br />
raios, descobrin<strong>do</strong> os campos dilata<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mar, que com os inquietos brami<strong>do</strong>s<br />
de suas on<strong>da</strong>s nunca sabem lisonjear sossego a quem o busca, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong><br />
o conhece inconstante. Estava a embarcação de Raimun<strong>do</strong> em distância de<br />
meia légua de terra ancora<strong>da</strong>, e como o silêncio <strong>da</strong> noite se encontrava com o<br />
murmurar <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s, que mal concediam ouvirem-se as vozes de quem<br />
chamava, e o perigo de poderem vir-lhe no alcance os afligia, ven<strong>do</strong> Reginal<strong>do</strong><br />
uma barca de pesca<strong>do</strong>res que na praia estava resistin<strong>do</strong> aos assaltos <strong>do</strong> mar<br />
ata<strong>da</strong> a uma fateixa, pequeno escu<strong>do</strong> para rebater tão repeti<strong>do</strong>s assaltos,<br />
entran<strong>do</strong> nela com Flora e largan<strong>do</strong> a cor<strong>da</strong> que a sustinha por estarem<br />
ausentes os pesca<strong>do</strong>res, toman<strong>do</strong> os remos nas mãos quis entregar à ventura<br />
o mais precioso de suas esperanças, se quem as entrega ao mar tem<br />
esperanças seguras.<br />
Cap. XIII.<br />
Em que se prossegue a história de Reginal<strong>do</strong><br />
Reman<strong>do</strong> contra o ímpeto <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s e contra os encontros <strong>da</strong> ventura ia<br />
Reginal<strong>do</strong> cortan<strong>do</strong> os mares, sen<strong>do</strong> seu amor o piloto mais destemi<strong>do</strong> que em<br />
tão frágil embarcação atravessava tantos golfos. Era Flora o norte de seus
452 Padre Mateus Ribeiro<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, e assim só a ela seus pensamentos seguiam, porque só nela seus<br />
desvelos como e centro paravam. Não desmaiava seu coração porque Flora<br />
com sua fermosura era a epítema mais poderosa de seus alentos. Pequeno na<br />
quanti<strong>da</strong>de, disse Hugo 441 , era o coração humano, mas tão generoso nas<br />
empresas que o mun<strong>do</strong> lhe parece pequeno para satisfazer-se. Arrisca<strong>da</strong>s<br />
eram as horas, frágil a barca, dilata<strong>do</strong> o caminho, e duvi<strong>do</strong>so, porque ao<br />
inquieto <strong>do</strong>s mares mal resistiam de Reginal<strong>do</strong> as forças; ia crescen<strong>do</strong> o vento<br />
com as vizinhanças <strong>da</strong> lua; o apartar-se <strong>da</strong> terra era fugir e buscar o perigo<br />
fugin<strong>do</strong> de quem os buscasse na terra e de novo temê-lo engolfan<strong>do</strong>-se nos<br />
mares; nem na terra havia segurança, nem nos mares abrigo. Porque não há<br />
nesta vi<strong>da</strong>, como diz o Séneca 442 , lugar tão seguro que isente <strong>do</strong>s receios nem<br />
seja torre inexpugnável aos perigos. Dobrava o mar com seu inquieto<br />
movimento o temor: a lua, umas vezes encoberta com as nuvens e outras<br />
manifesta com os raios, sempre ameaçava naufrágio aos desejos; parecia a<br />
distância maior aos remos que aos olhos, pois quanto a estes parecia mais<br />
vizinha, tanto os golfos <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s a faziam mais distante. A pequena barca<br />
pouco idónea para experimentar os impulsos <strong>do</strong>s mares, como costuma<strong>da</strong> só a<br />
navegar os rios e seus remansos, mal resistia aos combates <strong>do</strong>s ventos.<br />
Donde bem veio a dizer Anacharsis que a embarcação mais segura era a que<br />
no porto ancora<strong>da</strong> estava, porque em to<strong>da</strong>s as mais havia risco ou de serem<br />
destroça<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s ventos, ou soçobra<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s mares.<br />
Enfim com a moléstia deste receio e com a pena deste assusta<strong>do</strong><br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong> chegou Reginal<strong>do</strong> à nau de Raimun<strong>do</strong>, a quem chaman<strong>do</strong> e acudin<strong>do</strong><br />
os marinheiros, lançan<strong>do</strong>-lhe cabos para assegurarem a barca ao bor<strong>do</strong> os<br />
receberam nela, admiran<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> ousadia de em tão frágil batel, e no silêncio<br />
<strong>da</strong> noite em que os ventos tão inquietos estavam, navegar tão alenta<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong><br />
tanto à vista o perigo. Admiraram-se to<strong>do</strong>s <strong>da</strong> fermosura de Flora, que suposto<br />
não era deles conheci<strong>da</strong>, logo na bizarria <strong>do</strong> traje mostrava sem escrúpulos <strong>do</strong><br />
juízo ser principal senhora. Raimun<strong>do</strong> lhe deu as boas vin<strong>da</strong>s e que se tinha<br />
por venturoso em levá-la na sua nau, porque com tal companhia não temia<br />
perigos. Ao que ela responden<strong>do</strong> cortesmente lhe pediu muito lhe fizesse favor<br />
Hug., 1. De anim.<br />
Senec, Epist. 117.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 453<br />
de partirem com a brevi<strong>da</strong>de possível, o que ele lhe prometeu, que quan<strong>do</strong> se<br />
empenha a fermosura em pedir, poucas vezes se retira sem o despacho<br />
alcançar.<br />
Acomo<strong>do</strong>u-os no melhor aposento, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe os refrescos <strong>da</strong> nau os<br />
mais estima<strong>do</strong>s, que bem via que quem a tais horas <strong>da</strong> noite e sem<br />
matalotagem se embarcava, traziam por mantimento o temor e por alimento o<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>. To<strong>do</strong>s em secreto discursavam sobre quem estes navegantes seriam,<br />
pois para senhores vinham sós e para ricos desprovi<strong>do</strong>s: as horas suspeitosas,<br />
que bem mostravam no arrojo de se fiarem <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s que nascia a temeri<strong>da</strong>de<br />
<strong>do</strong> temor e a valentia <strong>do</strong> receio; porque quem vive ameaça<strong>do</strong> de maior mal,<br />
não duvi<strong>da</strong> em se aventurar ao menos. Porém quem sobre to<strong>do</strong>s mais<br />
sobressalta<strong>do</strong> nos discursos se mostrava era o capitão Raimun<strong>do</strong>, que à vista<br />
<strong>da</strong> beleza e bizarria de Flora consigo solitário assim dizia:<br />
- Que desvelo é este que assalta meu coração? Que novo cui<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
combate meu juízo que em tão breve espaço de tempo nem me permite<br />
descanso para respirar, nem me concede sossego para viver? Que passageira<br />
é esta que quer surcar os mares e experimentar o inquieto de suas on<strong>da</strong>s, que<br />
para pequena tem tantos assomos de grande e para pobre tantos respeitos de<br />
rica? De que se teme na terra a fermosura que vem buscar no mar a<br />
segurança? Ou que delitos cometeu tanta beleza que possa temer-se <strong>do</strong>s<br />
castigos? Pede-me que nascen<strong>do</strong> a aurora largue as velas e há muito que em<br />
seus olhos nasce o dia. Que pouca falta fica fazen<strong>do</strong> um sol para <strong>da</strong>r luzes,<br />
quan<strong>do</strong> em seu rosto vejo duplica<strong>do</strong>s resplan<strong>do</strong>res? Quem se viu como eu tão<br />
venturoso e infelice que tenha em meu poder o maior tesouro, haven<strong>do</strong> de ser<br />
eu quem o guarde e outro quem o logre? Pois não permita amor tal injustiça,<br />
desvele-se como eu, pois me desvelo, e sinta a inquietação que minha alma<br />
sente, até que o tempo descubra o oculto deste enigma em que meu juízo<br />
desmaia e meu coração se atormenta.<br />
Assim discursan<strong>do</strong> chamou a Reginal<strong>do</strong> e lhe pediu fosse hóspede na<br />
sua camera, e que aquela senhora mais retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> vista <strong>do</strong>s passageiros, para<br />
maior decência, em outro aposento aparta<strong>da</strong> estivesse, onde seria com to<strong>do</strong> o<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong> servi<strong>da</strong>. Suspenso ficou Reginal<strong>do</strong> com a proposta <strong>do</strong> capitão<br />
Raimun<strong>do</strong>, mas como necessitava tanto de seu favor, e o contradizer a seu<br />
gosto seria arruinar a fábrica de suas esperanças, lhe deu as graças <strong>do</strong>
454 Padre Mateus Ribeiro<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so zelo que mostrava. Que é razão de esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> prudência, quan<strong>do</strong> a<br />
necessi<strong>da</strong>de o pede, mostrar que aceita por favor o desgosto que se rebuça<br />
com máscara de benefício. Tal se havia com Jugurta Micipsa, seu a<strong>do</strong>ptivo pai,<br />
rei de Numídia, que conhecen<strong>do</strong> a condição ambiciosa e inquieta de Jugurta, o<br />
man<strong>do</strong>u a Espanha a militar no exército de Cipião, com título de que o<br />
man<strong>da</strong>va para se adestrar nas armas e exercícios militares <strong>do</strong>s romanos: e o<br />
intento <strong>do</strong> rei era que para lá, nos arrisca<strong>do</strong>s conflitos <strong>da</strong> guerra, o privassem<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. E Jugurta como sagaz lhe rendia as graças <strong>do</strong> favor, com conhecer<br />
que seu intento era vê-lo sem vi<strong>da</strong>. Passou-se Reginal<strong>do</strong> à camera de<br />
Raimun<strong>do</strong>, que o hospe<strong>do</strong>u com to<strong>da</strong> a cortesia, e queren<strong>do</strong> obrigá-lo<br />
discretamente a lhe <strong>da</strong>r notícias de sua vi<strong>da</strong>, para dela saber quem era Flora,<br />
que em tão breve espaço de vista era seu maior cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, como a noite era<br />
dilata<strong>da</strong> e estavam ain<strong>da</strong> vagarosas as vizinhanças <strong>do</strong> dia, e ambos<br />
desvela<strong>do</strong>s com seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> Flora o centro em que paravam seus<br />
desvelos, se bem mais presumi<strong>do</strong>s que declara<strong>do</strong>s, Raimun<strong>do</strong> lhe disse desta<br />
sorte:<br />
- Para obrigar-vos, senhor passageiro, a me <strong>da</strong>rdes notícia de vossa<br />
vi<strong>da</strong> e a causa que vos obriga a vos ausentardes com esta senhora, confian<strong>do</strong><br />
na brevi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ausência a quietação de vossos receios, vos quero eu primeiro<br />
fazer relação de minha vi<strong>da</strong> e de an<strong>da</strong>r nestas navegações em que me vedes:<br />
porque como a noite caminha vagarosa e eu vos considero desvela<strong>do</strong>, servirá<br />
de divertir o molesto ouvirdes os perío<strong>do</strong>s vários de minha vi<strong>da</strong>, que talvez é<br />
alívio para um aflito o ouvir os discursos <strong>da</strong> vária fortuna que outros<br />
experimentam.<br />
Agradeci<strong>do</strong> lhe respondeu Reginal<strong>do</strong>, prometen<strong>do</strong> pagar-lhe a narração<br />
com a de sua vi<strong>da</strong>, e Raimun<strong>do</strong> prosseguiu, dizen<strong>do</strong>:<br />
- A ci<strong>da</strong>de de Génova, bem conheci<strong>da</strong> em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> por suas<br />
riquezas, vitórias e fortuna, serviu de berço a meu nascimento. Foram meus<br />
pais ilustres no sangue e bem <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s de riquezas, sen<strong>do</strong> a nossa família entre<br />
as principais <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de estima<strong>da</strong> e não lhe faltan<strong>do</strong> émulos que a invejassem:<br />
que pouco tivera que aplaudir-se, quan<strong>do</strong> não tivera que invejar-se. Puseram-<br />
me por nome Raimun<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> filho único, porque a breve morte de meus pais<br />
depois de meu nascimento não deu lugar a que de meus pais mais copiosa<br />
sucessão ficasse. Em a tutela de um tio, irmão de minha mãe, que se chamava
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 455<br />
Ricar<strong>do</strong>, me criei desde a i<strong>da</strong>de que digo em as tironices <strong>da</strong>quele mais<br />
venturoso tempo, se se conhecera para estimar-se, porque quan<strong>do</strong> se<br />
conhece, já tem passa<strong>do</strong>, e assim sempre se logra sem conhecer-se. Apliquei-<br />
me às letras humanas quan<strong>do</strong> os anos me persuadiam ao estu<strong>do</strong>: e se não<br />
podia dizer por mim o que escreve Aristóteles 443 , que por acreditarmos o<br />
engenho, negamos a aplicação, porque esta foi em mim com tanto desvelo<br />
continua<strong>da</strong> que era meu maior divertimento o desvelo com que estu<strong>da</strong>va e o<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong> com que aprendia, pois, como diz o Séneca 444 , a lição sustenta ao<br />
engenho e não ao contrário o engenho à lição.<br />
Tive opositores e ficaram venci<strong>do</strong>s: crédito é <strong>da</strong> vitória o valor <strong>da</strong><br />
resistência; que em to<strong>da</strong>s as vitórias <strong>da</strong>s letras e <strong>da</strong>s armas é ventura <strong>do</strong><br />
vence<strong>do</strong>r haver de quem consiga o triunfo. Prolóquio é de Demóstenes 445 que<br />
põe to<strong>do</strong> o aplauso <strong>da</strong> vitória na grandeza e rendimento <strong>do</strong>s venci<strong>do</strong>s. Nem a<br />
Cipião <strong>do</strong>s numantinos ficou que triunfar, nem a Bruto <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res de Xanto,<br />
nem aos romanos com Augusto César deixaram os <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Metulia<br />
vestígio algum de seu triunfo, mais que as cinzas em que eles e as ci<strong>da</strong>des<br />
inteiras voluntariamente se abrasaram, porque aos vence<strong>do</strong>res não ficasse<br />
nem sombra de vencimento, nem despojos <strong>do</strong> triunfo, sen<strong>do</strong> vitórias mal<br />
afortuna<strong>da</strong>s aonde nem vivos nem mortos há de quem poder estimar a glória<br />
<strong>do</strong> triunfo. Nem para usar de clemência com os rendi<strong>do</strong>s, nem para usar de<br />
castigo com os soberbos; porque a destruição desespera<strong>da</strong> e voluntária atalha<br />
to<strong>da</strong>s as glórias ao vence<strong>do</strong>r. São ou os cativos ou os despojos <strong>do</strong>s inimigos,<br />
quan<strong>do</strong> grandiosos se conseguem, satisfação <strong>do</strong>s dispêndios e desafogo <strong>do</strong>s<br />
desvelos que as guerras custam. Donde justamente se queixou o monarca<br />
Xerxes a Mardónio, seu general e seu vali<strong>do</strong>, de o haver persuadi<strong>do</strong> a mover<br />
guerra aos gregos, sen<strong>do</strong> gente tão invencível, que no estreito passo de<br />
Termopilas valorosamente pelejan<strong>do</strong>, sem nenhum tratar de render-se, caíram<br />
to<strong>do</strong>s mortos dentro no exército <strong>do</strong>s persianos, trocan<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> um a vi<strong>da</strong> que<br />
deixava por milhares de vi<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s contrários por que a vendia: e sen<strong>do</strong> gente<br />
tão isenta <strong>da</strong>s ambições <strong>da</strong>s riquezas, que nos jogos Olímpicos que<br />
Arist., Topic. 3. (Topic. 4 na edição de 1734).<br />
Senec, Epist. 86.<br />
Demost., Excogn. lib.
456 Padre Mateus Ribeiro<br />
celebravam to<strong>do</strong> o seu cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e desvelo era alcançarem, sen<strong>do</strong> vence<strong>do</strong>res,<br />
uma coroa de rama que o tempo murcha e não ouro e pedras preciosas que o<br />
mun<strong>do</strong> estima. Justamente se queixava o monarca tarde arrependi<strong>do</strong> de que<br />
mal aconselha<strong>do</strong> nesta guerra, nem achava rendi<strong>do</strong>s para a veneração, nem<br />
conseguia despojos para compensar os dispêndios.<br />
Daqui venho a inferir que assim as vitórias <strong>da</strong>s letras como <strong>da</strong>s armas<br />
tanto tem de aplaudi<strong>da</strong>s, quanto tem os venci<strong>do</strong>s nelas de estimação. Era eu a<br />
este tempo de dezoito anos de i<strong>da</strong>de, quan<strong>do</strong> se pôs comigo à pública disputa<br />
de Retórica, Fábulas e Humani<strong>da</strong>des <strong>do</strong>s livros históricos e poéticos um ilustre<br />
mancebo <strong>da</strong> mesma ci<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> família <strong>do</strong>s Spínola, que se chamava Valentino<br />
Spínola, mancebo de pouco mais <strong>da</strong> minha i<strong>da</strong>de, grande estu<strong>da</strong>nte, muito rico<br />
e de to<strong>do</strong>s estima<strong>do</strong>, não só pelo que era, mas pelo muito que pela fama de<br />
seus estu<strong>do</strong>s merecia. Havia de ser pública a disputa, os juízes dela escolhi<strong>do</strong>s<br />
pela fama de suas letras e inteireza de seu juízo, que haviam de <strong>da</strong>r o prémio<br />
pelo merecimento <strong>da</strong> justiça e não por respeitos <strong>do</strong> favor. Era o prémio<br />
precioso no valor, mas muito mais em ser prémio, pois, como diz Cícero 446 , não<br />
há ânimo tão despreza<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s honras <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que a remuneração <strong>do</strong> louvor<br />
que adquire não deseje; e Cassio<strong>do</strong>ro 447 ensina que os prémios públicos que<br />
se dão aos merecimentos são os alimentos com que se criam as virtudes, que<br />
muitas vezes sem eles desmaiam e desalenta<strong>do</strong>s se retiram.<br />
Concorreu a este desfio literário o mais lustroso <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, procedeu-se<br />
às disputas, ostentou ca<strong>da</strong> um o que sabia e por fim <strong>da</strong> conten<strong>da</strong> se me julgou<br />
o prémio. Ressentiu-se Valentino de se ver de mim preferi<strong>do</strong> e com os victores<br />
que me <strong>da</strong>vam menos airoso; quis censurar aos juízes de menos rectos no que<br />
julgaram; empenharam-se seus parentes em defender o que dizia e os meus<br />
em sustentarem a razão e justiça com que o prémio se me <strong>da</strong>va, chegan<strong>do</strong> a<br />
controvérsia a termos que <strong>da</strong>s letras se passou às armas; e como os Spínolas<br />
não eram <strong>do</strong> nosso ban<strong>do</strong>, antes <strong>do</strong> contrário, lembran<strong>do</strong>-se ca<strong>da</strong> qual de seus<br />
antigos desgostos (feri<strong>da</strong>s velhas e mal cura<strong>da</strong>s que facilmente renovam),<br />
resultou <strong>da</strong> pendência ficarem de uma e outra parte muitos feri<strong>do</strong>s e um <strong>do</strong>s<br />
Cicer., in Tuscul.<br />
Cassiod., Lib. 4.
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte III 457<br />
principais <strong>do</strong> ban<strong>do</strong> contrário morto, com que me foi necessário e a meu tio<br />
fugirmos com to<strong>da</strong> a brevi<strong>da</strong>de para Sabóia, antes que nos prendessem.<br />
Em to<strong>do</strong>s os bens se fez rigoroso sequestro, viu-se meu tio pobre e<br />
assim comigo juntamente tratou de servir ao duque na guerra que então fazia<br />
sobre as pertensões <strong>do</strong> Monferrato. Deu-se a meu tio lugar de capitão de<br />
cavalos por haver antigamente milita<strong>do</strong> nas guerras <strong>do</strong> império e ter <strong>da</strong> guerra<br />
conheci<strong>da</strong> experiência: assisti eu em sua companhia, passan<strong>do</strong> com esta vária<br />
fortuna <strong>da</strong>s letras às armas; achei-me presente em as mais <strong>da</strong>s ocasiões<br />
militares que na infrutuosa conquista <strong>do</strong> Monferrato se ofereceram. Entrámos a<br />
parti<strong>do</strong> a Praça de Moncalvo, que se rendeu por estar mina<strong>da</strong> e não ser<br />
socorri<strong>da</strong>. Sitiámos Niza, mas desistimos <strong>do</strong> assalto por estar bem fortifica<strong>da</strong>,<br />
suposto que foi alguns dias com artelharia bati<strong>da</strong>; mas o conde Gui<strong>do</strong>, que<br />
governava as armas de Sabóia, foi constrangi<strong>do</strong> a levantar o sítio porque vinha<br />
poder grande a socorrê-la. Enfim sobre a ci<strong>da</strong>de de Astino encontrámos com o<br />
exército de Espanha, que governava o governa<strong>do</strong>r de Milão, e se deu batalha<br />
em que os saboianos ficaram venci<strong>do</strong>s; nela morreu meu tio como valeroso<br />
capitão, que, como bem disse Demóstenes 448 , os mortos honrosamente nas<br />
batalhas se contam entre os vence<strong>do</strong>res. Vi-me só, sem a companhia de meu<br />
tio, considerei os frutos que <strong>da</strong> guerra se colhem serem arrisca<strong>do</strong>s, sempre,<br />
como diz Cícero 449 , cheios de temor e pensiona<strong>do</strong>s de receios; pareceu-me<br />
desacerto deixar os estu<strong>do</strong>s, que por inclinação seguia, para continuar as<br />
armas, que por violenta<strong>do</strong> <strong>da</strong> fortuna tomava, e assim me resolvi a partir-me a<br />
Paris, com desejo de continuar as letras na universi<strong>da</strong>de.<br />
Entrei em Paris, admiran<strong>do</strong> suas grandezas, que sempre estas são os<br />
objectos <strong>da</strong> admiração, sen<strong>do</strong>, como disse Plínio, tanto mais estimáveis,<br />
quanto mais vistas; que se há cousas no mun<strong>do</strong> a quem a continuação priva <strong>do</strong><br />
espanto, há outras a quem o continua<strong>do</strong> causa maior admiração. Tal foi a<br />
fermosura de Anar<strong>da</strong>, uma moça francesa que por milagre <strong>da</strong> natureza<br />
produziu Paris para maravilha <strong>da</strong> Europa, ou para melhor dizer, para assombro<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Era o monte Olimpo com alma, a cuja superior eminência nem os<br />
ventos se atrevem, nem as nuvens se avizinham; porque para emparelhar com<br />
Demost., Exord. 5.<br />
Cicer., Ad Marc.
458 Padre Mateus Ribeiro<br />
Anar<strong>da</strong>, tu<strong>do</strong> desmaiava por inferior na beleza, na<strong>da</strong> presumia competências<br />
na fermosura. Era Fénix de França, não de Arábia, que se a ver<strong>da</strong>de não se<br />
livra de escrúpulos em querer que esta seja singular, sem exagerações se<br />
pudera afirmar que Anar<strong>da</strong> era única em França. Seria a i<strong>da</strong>de de vinte e cinco<br />
anos, se porventura se atrevem anos à beleza; porque como o sol é superior<br />
ao tempo, não se contan<strong>do</strong> os anos em seus raios, assim em o sol de Anar<strong>da</strong><br />
parece que perdia sua jurisdição o tempo. Tem França por armas as flores de<br />
seus lírios, e com maior proprie<strong>da</strong>de pudera vangloriar-se <strong>da</strong>s rosas de seu<br />
rosto, ten<strong>do</strong> nelas não só armas para vencer, mas juntamente motivos<br />
poderosos para se envejar, se vence o mais belo com brandura <strong>do</strong> que o<br />
destemi<strong>do</strong> com valor. Conquistam-se as ci<strong>da</strong>des com as armas, mas os<br />
corações com a beleza: <strong>da</strong>s armas muitas vezes se defende quem resiste, mas<br />
<strong>da</strong> fermosura raras vezes resiste quem se rende. To<strong>da</strong>s as cousas à primeira<br />
vez vistas são só objectos <strong>da</strong> apreensão, mas a beleza, se é portentosa, é<br />
objecto próprio <strong>do</strong> espanto, persuadin<strong>do</strong> a julgar por maravilha o que nas<br />
outras cousas só se apreende como novi<strong>da</strong>de. Era órfã de pai e mãe, que<br />
depois de produzirem tal beleza, foi discrição o acabar, pois quem extremos<br />
obra, não tem mais que prometer.<br />
Era Anar<strong>da</strong> pobre, porque não quis a natureza dever os aplausos à<br />
fortuna, e quis que fosse só admira<strong>da</strong> pelos prodígios de fermosa e não pelos<br />
respeitos de rica, pois ficariam equívocas as venerações se fora poderosa<br />
entre o raro <strong>da</strong> beleza e o rico <strong>da</strong> estimação. Criou-se em casa de uma tia<br />
nobre no sangue e limita<strong>da</strong> nos bens; porém que maiores bens que ter consigo<br />
Anar<strong>da</strong>, se para to<strong>do</strong>s a vista de tal sobrinha ficava sen<strong>do</strong> o maior bem? Era<br />
tão recolhi<strong>da</strong> por honesta que o sol necessitava de valimento para vê-la e<br />
muitos dias se retirava senti<strong>do</strong> de ver-lhe desestimar seus resplan<strong>do</strong>res: que<br />
como ia aprender novas luzes de seus olhos, qualquer dia que perdia de vê-la<br />
avaliava por muitas faltas de ouvi-la, cui<strong>da</strong>n<strong>do</strong> que chegava a luzir menos<br />
quan<strong>do</strong> Anar<strong>da</strong> se ocultava mais.<br />
Descrevi brevemente qual era Anar<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> cheguei a Paris; mas<br />
como poderia eu cabalmente descrever a quem o exagera<strong>do</strong> <strong>da</strong> maior<br />
eloquência não se atreveu a definir? Entrei na universi<strong>da</strong>de e entre alguns<br />
amigos que adquiri por forasteiro foi um fi<strong>da</strong>lgo chama<strong>do</strong> Félis, quasi <strong>da</strong> minha<br />
i<strong>da</strong>de, natural de Paris, grandemente estudioso, a quem a profissão <strong>da</strong>s letras,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 459<br />
a parelha na i<strong>da</strong>de e a igual<strong>da</strong>de na fi<strong>da</strong>lguia obrigou a <strong>da</strong>r-se por meu<br />
particular amigo, que, como ensina Aristóteles 450 , mal se pode <strong>da</strong>r ou conservar<br />
amizade ver<strong>da</strong>deira aonde a igual<strong>da</strong>de falta. Uma <strong>da</strong>s razões que os<br />
embaixa<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s citas <strong>da</strong>vam ao grande Alexandre para que lhes não fizesse<br />
guerra a fim de sujeitá-los, era que enquanto possuíam a liber<strong>da</strong>de com que<br />
nasceram podiam ser-lhe ver<strong>da</strong>deiros amigos, o que depois de sujeitos não<br />
podia <strong>da</strong>r-se, porque entre o senhor e o servo, entre o superior e o súbdito,<br />
entre o grande e o pequeno, não podia conservar-se perfeita amizade. Ter<br />
amigos é ventura, assim como ter inimigos desgraça. Lembra-me que conta<br />
Sabélico que quan<strong>do</strong> Nero, fugitivo de Roma, condena<strong>do</strong> pelo sena<strong>do</strong> por<br />
monstro <strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de, quis <strong>da</strong>r-se à morte para evitar a mais afrontosa, e não<br />
achan<strong>do</strong> quem o matasse, exclamou de senti<strong>do</strong>, dizen<strong>do</strong> que era tal sua<br />
fortuna e tão extremosa sua desgraça que nem tinha amigos, nem inimigos,<br />
pois nem achava quem lhe acudisse, nem quem a vi<strong>da</strong> lhe tirasse; aludiu Nero<br />
antes à necessi<strong>da</strong>de em que se via que ao dito de Diógenes 451 , em que afirma<br />
que necessita a vi<strong>da</strong> ou de amigos mui fiéis, ou de inimigos mui fortes, porque<br />
ou bem <strong>do</strong>s amigos se confie, ou sempre <strong>do</strong>s inimigos se acautele. Era tão<br />
particular a amizade que eu com Félis tinha que muitas vezes não saía de sua<br />
casa mais que o tempo em que as precisas horas <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> e outras<br />
conferências de letras nos dividiam.<br />
Sobreveio a Félis uma melancolia tão profun<strong>da</strong> nas raízes, tão manifesta<br />
na vista e tão oculta na causa, tão intensa para divertir-se e tão intolerável para<br />
passar-se que a to<strong>do</strong>s nos tinha posto em confusão; mas ain<strong>da</strong> mais a sua<br />
mãe em cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, que sen<strong>do</strong> viúva e não ten<strong>do</strong> outro filho algum, e sen<strong>do</strong> este<br />
<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de tantas pren<strong>da</strong>s era o centro de seus desvelos e nesta ocasião o<br />
desvelo maior de seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. To<strong>do</strong>s ignoravam a causa de tão desusa<strong>do</strong><br />
acidente, porque sen<strong>do</strong> de antes na condição afável e na conversação<br />
aprazível, agora se mostrava desabri<strong>do</strong>, pagan<strong>do</strong>-se mais <strong>da</strong> sole<strong>da</strong>de que <strong>da</strong><br />
companhia; fastioso para o sustento e inquieto para o repouso; a quem o sono<br />
não divertia porque velava, nem o dia alegrava porque o aborrecia; suspirava<br />
muitas vezes, queriam as lágrimas manifestar a <strong>do</strong>r e não podiam, que como<br />
Arist., Ethic. 4.<br />
Diog., De amicit. & adul. apud Plut.
460 Padre Mateus Ribeiro<br />
abortos <strong>da</strong> pena sem sair à luz nas mesmas fontes de seus olhos se<br />
congelavam; finalmente era de quali<strong>da</strong>de o mal que ameaçava a vi<strong>da</strong> que se<br />
temiam de seu rigor as esperanças de seu remédio.<br />
A rogos de sua mãe, que me tinha por seu vali<strong>do</strong>, fiz com ele tão<br />
aperta<strong>da</strong> instância que veio a dizer-me como Anar<strong>da</strong> era o cabal tormento de<br />
seu coração e a única causa de suas penas.<br />
- É em mim (disse Félis) este amor antigo em servi-la, mas esta pena<br />
moderna em haver de perdê-la; porque como não me resolvi a ser seu esposo,<br />
por entender que minha mãe havia de encontrar o casamento, pesan<strong>do</strong> mais<br />
em seu desejo meus aumentos que meu gosto, e valen<strong>do</strong> mais com as<br />
esperanças de ver-me grande que as conveniências de ver-me alegre, nestes<br />
discursos de meu temor e nestes extremos de meu querer adiantou-se quem<br />
foi mais venturoso em pedi-la por esposa, valen<strong>do</strong> mais que eu no ser e na<br />
fortuna, que é o filho terceiro <strong>do</strong> defunto conde Octávio, mancebo de grandes<br />
esperanças e gentil presença, e tem já o fim <strong>do</strong> casamento e a visita como<br />
esposo, que com ela celebrará o casamento qualquer dia, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> fim trágico a<br />
meu amor e princípio venturoso a suas alegrias: levará por esposa a maior<br />
fermosura que admirou França e eu ficarei com a mágoa <strong>do</strong> maior sentimento<br />
que amante teve em sua vi<strong>da</strong>.<br />
Mais dissera Félis se a <strong>do</strong>r lho consentira, mas foi tão eficaz que lhe<br />
embargou as palavras, fican<strong>do</strong> suspensos os últimos ecos, tão mal<br />
pronuncia<strong>do</strong>s como bem nasci<strong>do</strong>s. Desmaiou o coração com a força <strong>da</strong> pena, e<br />
desacor<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s em braços o levámos ao leito, aplican<strong>do</strong>-lhe vários<br />
confortativos para que o acidente aplacasse, que vagarosamente se foi<br />
despedin<strong>do</strong>. Consultei com sua mãe a ocasião <strong>da</strong> tristeza, o rigor <strong>da</strong> <strong>do</strong>r, o<br />
malogra<strong>do</strong> <strong>da</strong> esperança, o dificultoso <strong>do</strong> remédio, o lamentável <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e os<br />
ameaços <strong>da</strong> morte, que de tão vivo sentimento podiam temer-se, sen<strong>do</strong> uma<br />
desesperação muitas vezes ou o remédio com que de to<strong>do</strong> se acaba o mal, ou<br />
o veneno mais poderoso com que brevemente se termina a vi<strong>da</strong>: que ela como<br />
mãe que a seu filho com extremos amava, resoluta como mulher e<br />
aconselha<strong>da</strong> como discreta, acompanha<strong>da</strong> só de duas cria<strong>da</strong>s se partiu a casa<br />
de Anar<strong>da</strong>, que sen<strong>do</strong> dela cortesmente recebi<strong>da</strong>, lhe disse a mãe de Félis<br />
assim:
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 461<br />
- Se vos parecer, senhora Anar<strong>da</strong>, novi<strong>da</strong>de minha vin<strong>da</strong> a visitar-vos,<br />
culpai meu sentimento, se este merece culpa, e poreis à parte a admiração:<br />
sou mãe e vejo por vossa causa chega<strong>do</strong> aos horizontes <strong>da</strong> morte a Félis, meu<br />
filho; que bastava ser filho para ser ama<strong>do</strong>, quanto mais sen<strong>do</strong> único,<br />
obrigação era ser com extremos queri<strong>do</strong>. Empenhou-se em amar-vos, discreto<br />
foi em querer-vos; porque é tal vossa fermosura que se gradua de entendi<strong>do</strong><br />
quem se professa amante vosso. Encobriu o querer sem comunicar os<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, respeito grande que guar<strong>do</strong>u a vosso decoro, fineza extremosa que<br />
acabou com seu coração não descobrir a pena que sentia, por guar<strong>da</strong>r<br />
obediências a quem amava. Dous anos de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, se bem se pesam na<br />
balança <strong>do</strong> sofrimento, são séculos dilata<strong>do</strong>s a quem se deve to<strong>do</strong> o galardão.<br />
Soube que vos casáveis com Lu<strong>do</strong>vico, filho terceiro <strong>do</strong> defunto conde Octávio:<br />
vossos merecimentos vos habilitam para to<strong>da</strong>s as venturas, se podem <strong>da</strong>r-se<br />
venturas que remunerem merecimentos. Mas ai de mim, que o tálamo de<br />
vossas bo<strong>da</strong>s será o sepulcro de meu filho, cain<strong>do</strong> de magoa<strong>do</strong> <strong>do</strong>nde o outro<br />
se gloriar de venturoso! É seu sentimento o verdugo que lhe abrevia a vi<strong>da</strong>,<br />
não haven<strong>do</strong> mais dilação em perdê-la que a que houver em Lu<strong>do</strong>vico de<br />
ganhar-vos. Foi seu querer mais ditoso, não mais antigo: deu-lhe a mão a<br />
ventura para subir mais ligeiro; tar<strong>do</strong>u Félis em chegar porque não temia podê-<br />
lo no amar outro vencer.<br />
Peço-vos, senhora Anar<strong>da</strong>, que deis remédio a esta pena, ou mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
de parecer, pois em serdes esposa de Félis não ficais perden<strong>do</strong>, que é filho<br />
único e Lu<strong>do</strong>vico terceiro, a quem nem reconhece vantagens no ser, nem na<br />
riqueza; ou quan<strong>do</strong> menos suspendei as bo<strong>da</strong>s dilata<strong>do</strong> tempo, pois quan<strong>do</strong><br />
Lu<strong>do</strong>vico se enfade <strong>do</strong>s vagares, sempre tendes a Félis para estimar-vos, pois<br />
tanto tempo soube despender em querer-vos. Restaurareis uma vi<strong>da</strong> que é<br />
tanto vossa, que sem vós não pertende seja sua: que não é prémio justo de um<br />
amor tão fino pagar morren<strong>do</strong> o que viveu aman<strong>do</strong> e acabar de senti<strong>do</strong> quem<br />
an<strong>do</strong>u tão constante.<br />
Assim deu a discreta mãe de Félis fim à sua prática e princípio à<br />
cau<strong>da</strong>losa corrente de suas lágrimas, em que Anar<strong>da</strong>, sem o intentar, de força<br />
a acompanhou, ven<strong>do</strong>-se por prodígio em o dia mais sereno de seus olhos<br />
chover no flori<strong>do</strong> pra<strong>do</strong> de seu rosto; e se com os orvalhos mais brilham as<br />
flores, nova graça mostraram os can<strong>do</strong>res <strong>da</strong>s açucenas e a púrpura <strong>da</strong>s rosas
462 Padre Mateus Ribeiro<br />
quan<strong>do</strong> se viram <strong>do</strong> cristal aljofra<strong>da</strong>s e <strong>do</strong> orvalho vesti<strong>da</strong>s. Finalmente depois<br />
de várias práticas que entre elas houve, deu Anar<strong>da</strong> palavra de dilatar o<br />
casamento até se buscarem traças e meios para poder casar com Félis, a<br />
quem sem dúvi<strong>da</strong> Anar<strong>da</strong> queria bem, ain<strong>da</strong> que no discurso de <strong>do</strong>us anos<br />
jamais mostrou ter a vontade afeiçoa<strong>da</strong>, por não confessar-se venci<strong>da</strong>; e assim<br />
ostentan<strong>do</strong>-se neutral, nem se publicava ingrata, nem se descobria amorosa. O<br />
ser neutral nas empresas algumas vezes é nocivo e nunca foi frutuoso. Lei era<br />
<strong>do</strong>s atenienses que quem nos ban<strong>do</strong>s que na ci<strong>da</strong>de se levantassem se<br />
quisesse mostrar neutral, sem se unir a algum deles, fosse avalia<strong>do</strong> por<br />
ci<strong>da</strong>dão inútil e desterra<strong>do</strong> de Atenas, pois queria ver de lugar seguro a<br />
destruição de sua pátria, sem aventurar-se em defende-la. Esta condição não<br />
quis Júlio César aceitar aos de Marselha quan<strong>do</strong> lhe ofereciam que seriam<br />
neutrais entre ele e o sena<strong>do</strong>; ao que ele respondeu que não admitia<br />
neutrali<strong>da</strong>des: que declarassem o ban<strong>do</strong> que seguiam, e ou bem fossem<br />
amigos ou inimigos; e por não se declararem, como a inimigos os conquistou e<br />
venceu. Isto digo, porque de Anar<strong>da</strong> com esta neutrali<strong>da</strong>de não se haver<br />
declara<strong>do</strong> amante de Félis, tinham seus desgostos chega<strong>do</strong> a este extremo,<br />
procuran<strong>do</strong>-se-lhe o remédio quan<strong>do</strong> já parecia ser inevitável o <strong>da</strong>no.<br />
Com estas novas que a Félis se trouxeram, de sorte o melhorou sua<br />
alegria que parecia que renaceu seu coração com novos espíritos nas<br />
esperanças de poder vir a casar com quem tão senhora estava de seus<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Não faltaram traças a Anar<strong>da</strong> para proibir a Lu<strong>do</strong>vico as visitas,<br />
fingin<strong>do</strong> agravos de ciosa quan<strong>do</strong> dele se via mais servi<strong>da</strong>, retiran<strong>do</strong> a vista a<br />
título de ofendi<strong>da</strong>, se porventura era ofensa o ser ca<strong>da</strong> vez dele mais ama<strong>da</strong>.<br />
Visitava-a a mãe de Félis muitas vezes, obrigan<strong>do</strong>-a com tantas carícias e<br />
regalos que veio a persuadi-la a de to<strong>do</strong> fechar as portas às esperanças de<br />
Lu<strong>do</strong>vico e haver de ser esposa de Félis: que tem muita eficácia uma mulher<br />
para persuadir, quan<strong>do</strong> se empenha em alcançar. Desesperava Lu<strong>do</strong>vico,<br />
ven<strong>do</strong> tão de repente malogra<strong>da</strong>s suas esperanças, frustra<strong>do</strong>s seus desejos,<br />
despenha<strong>da</strong>s suas venturas, sem galardão seus serviços, sem prémio seus<br />
desvelos, sem porto seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, sem norte seus intentos, condena<strong>do</strong> sem<br />
ser ouvi<strong>do</strong> e, para maior pena, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe cargos de ofensor quan<strong>do</strong> ele<br />
professava mais finezas. Com esta <strong>do</strong>r tão grande para senti<strong>da</strong> e tão pouco<br />
para explica<strong>da</strong>, ron<strong>da</strong>va de noite as casas de Anar<strong>da</strong>, para desafogar a pena
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 463<br />
com a vista <strong>da</strong>queles cerra<strong>do</strong>s horizontes em que algumas vezes nasceu o sol<br />
de Anar<strong>da</strong> a seus olhos, ain<strong>da</strong> que tão de passagem que mais pareceu<br />
relâmpago que dia, pois nunca dura muito a um desditoso o que lhe pode<br />
causar contentamento.<br />
Em uma noite destas, quis Félis em minha companhia fazer à casa de<br />
Anar<strong>da</strong> sentinela, pois sempre lha faziam seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, e nos encontrámos<br />
com o desespera<strong>do</strong> Lu<strong>do</strong>vico, que quis conhecer-nos e nos encobrimos;<br />
passou-se <strong>da</strong>s palavras às armas, e em breve espaço de tempo caiu Lu<strong>do</strong>vico<br />
mal feri<strong>do</strong> em terra, de que ao dia seguinte acabou a vi<strong>da</strong> e com ela suas<br />
amorosas porfias e pouco venturosas esperanças. Devassou a justiça com<br />
rigor; mas como as horas <strong>da</strong> pendência eram as <strong>do</strong> maior silêncio, a noite<br />
escura e a ci<strong>da</strong>de tão grande, jamais houve quem nos culpasse; porque como<br />
Félis nunca de dia passeava pela rua de Anar<strong>da</strong>, e de noite raras vezes, e<br />
estava por mui estudioso avalia<strong>do</strong>, cuja ocupação <strong>da</strong>s letras mal admitem<br />
presunções de ron<strong>da</strong>r de noite, nem Lu<strong>do</strong>vico nos havia conheci<strong>do</strong>, nem de<br />
nós se queixava, porque <strong>da</strong>s pertensões de Félis não sabia; não foi possível ao<br />
julga<strong>do</strong>r que <strong>da</strong> morte devassava descobrir com clareza os homici<strong>da</strong>s em<br />
ci<strong>da</strong>de tão populosa e horas tão encobri<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> delito.<br />
Mostrou-se Anar<strong>da</strong> senti<strong>da</strong>, e com razão; pois era a ocasião senão a<br />
causa <strong>da</strong> malogra<strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de de Lu<strong>do</strong>vico, que ressenti<strong>do</strong> de se ver dela<br />
injustamente esquiva<strong>do</strong>, chegou enfim a perder a vi<strong>da</strong>. Não soube Anar<strong>da</strong> com<br />
certeza quem lhe causou a morte; nem era prudência o confessar-se mata<strong>do</strong>r,<br />
quem tanto se publicava amante: que fica sen<strong>do</strong> a morte sempre no mata<strong>do</strong>r<br />
aborreci<strong>da</strong>. É o derrama<strong>do</strong> sangue tinta tão fina que jamais se apaga, mancha<br />
tão escura que jamais se lava, eclipse tão grande que nunca se termina, e<br />
assim quem procura ser ama<strong>do</strong> jamais deve jactar-se <strong>do</strong> que o pode fazer<br />
aborreci<strong>do</strong>.<br />
Passaram alguns meses e sempre Anar<strong>da</strong> se mostrava triste. Notáveis<br />
são as sombras <strong>da</strong> morte, pois se atreveram a enlutar a esfera <strong>da</strong> fermosura, a<br />
cobrir de nuvens o Olimpo <strong>da</strong> beleza. Era muitas vezes <strong>da</strong> mãe de Félis<br />
visita<strong>da</strong>, mas sempre a achava tão cortês como triste, não bastan<strong>do</strong><br />
divertimentos para alegrar-se, e quan<strong>do</strong> lhe falava em as bo<strong>da</strong>s de Félis,<br />
solenizava com lágrimas o silêncio com que só respondia, de que Félis se<br />
mostrava ressenti<strong>do</strong> e sua mãe pesarosa e eu confuso; porque para amor <strong>do</strong>
464 Padre Mateus Ribeiro<br />
defunto era impróprio, para compaixão demasia<strong>da</strong> e para estar <strong>do</strong> casamento<br />
arrependi<strong>da</strong> não se isentava de mudável; mas brevemente o tempo nos deu o<br />
desengano, quan<strong>do</strong> in<strong>do</strong> um dia a um mosteiro de freiras, aonde tinha uma<br />
prima, a ver uma festa que nele se celebrava, se recolheu <strong>da</strong> clausura para<br />
dentro, cerran<strong>do</strong> as portas ao mun<strong>do</strong> e a suas lisonjas: acerta<strong>da</strong> eleição e<br />
digna empresa de sua discrição e fermosura.<br />
Admirou-se Paris <strong>do</strong> acerto, julgan<strong>do</strong> que tal prodígio de beleza só era<br />
digna de tal esposo: louvaram o desengano tão despreza<strong>do</strong>r <strong>da</strong> lisonja, a<br />
pie<strong>do</strong>sa resolução tão merece<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s aplausos; e se foi assombro que<br />
espantou pelo belo, não menos foi admiração que assombrou pelo ajuiza<strong>do</strong>.<br />
Mas foi tal em Félis o sentimento desta repentina mu<strong>da</strong>nça que pouco lhe<br />
faltou para acabar a vi<strong>da</strong> aos rigores <strong>da</strong> mágoa, sem admitir férias em sua<br />
pena, celebran<strong>do</strong> com tantas lágrimas o total desengano de suas esperanças<br />
que eu, compadeci<strong>do</strong> de ver o excessivo que sentia, lhe disse um dia, que só<br />
com ele estava, assim:<br />
Cap. XIV.<br />
Da prática que teve Raimun<strong>do</strong> com Félis e como se ausentaram de Paris<br />
- Quan<strong>do</strong> vosso sentimento, amigo Félis, fora justo, valera-me de outros<br />
motivos para os alívios; mas quan<strong>do</strong> vejo o muito que sem razão sentis e a<br />
pouca causa que tendes quan<strong>do</strong> vos queixais, pôr-me-ei <strong>da</strong> parte <strong>da</strong> razão<br />
para convencer vossa injustiça. Chorais de Anar<strong>da</strong> os acertos de discreta? Que<br />
mais podereis sentir os enganos de erra<strong>da</strong>? Ou que lágrimas reserváveis se<br />
fôreis ofendi<strong>do</strong>, se tantas derramais quan<strong>do</strong> vos não ofende? Dizeis que a<br />
amáveis muito, eu o conce<strong>do</strong>, mas a vós mesmo vos amáveis mais; pois to<strong>do</strong><br />
este querer era a fim de possuí-la, que se só a ela sinceramente amásseis, vos<br />
devíeis muito alegrar com suas melhoras; mas como era vosso amor<br />
interessa<strong>do</strong>, sentis o que imaginais que perdeis, cerran<strong>do</strong> os olhos ao muito<br />
que ela nesta mu<strong>da</strong>nça ganhou. Bem disse Santo Agostinho que nunca se<br />
chega a amar aquilo que só per si mesmo se não ama. São Gregório Papa<br />
ensina que quem não deseja ver melhora<strong>da</strong> a cousa ama<strong>da</strong>, nunca na ver<strong>da</strong>de
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 465<br />
a amou: logo bem se infere que to<strong>do</strong> o fino com que dizeis que amáveis Anar<strong>da</strong><br />
era grosseiro; pois sentis e chorais vê-la desposa<strong>da</strong> com tão Divino Esposo.<br />
Que obrigações tinha Anar<strong>da</strong> para querer-vos, se só por vosso interesse<br />
próprio era de vós queri<strong>da</strong>? Intentáveis vender-lhe interesses por finezas,<br />
conveniências por extremos, desejos de possuí-la por desvelos de amá-la?<br />
Queríeis antepor vosso gosto a seu descanso? Discreta, que soube conhecer<br />
tanto a tempo que vos devia menos, quan<strong>do</strong> cuidáveis que a obrigáveis mais.<br />
Era admiração <strong>da</strong> fermosura, pois por isso convinha se dedicasse a tal Esposo.<br />
Que ain<strong>da</strong> o bárbaro empera<strong>do</strong>r Heliogabalo, sen<strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>te <strong>do</strong> sol, lhe deu<br />
por esposa a lua, celebran<strong>do</strong> em Roma com admirável ostentação estes<br />
fabulosos desposórios, dizen<strong>do</strong> que à fermosura brilhante <strong>da</strong> lua não convinha<br />
admitir outro esposo senão o sol: pois se ain<strong>da</strong> na cegueira <strong>da</strong> i<strong>do</strong>latria se<br />
buscou à lua por bela o mais luzi<strong>do</strong> esposo, de que vos admirais que, sen<strong>do</strong><br />
Anar<strong>da</strong> a gala <strong>da</strong> beleza e o crédito e aplauso maior <strong>da</strong> fermosura, escolhesse<br />
tão discreta o Divino Esposo <strong>da</strong>s almas que só lhe convinha?<br />
Se por outro vos deixara, ain<strong>da</strong> em parte desculpara vosso sentimento,<br />
em que outro, sen<strong>do</strong> mais agradável em seus olhos, fosse mais venturoso em<br />
merecê-la: mas nem ela se enganou na escolha, nem outro se pode vangloriar<br />
<strong>da</strong> ventura. Desenganou-a a morte de Lu<strong>do</strong>vico, de que sua fermosura foi o<br />
motivo, e quis dela fazer a Deus sacrifício, embainhan<strong>do</strong> na clausura as<br />
espa<strong>da</strong>s de seus olhos para que não mais matassem. Enterneceu-se de haver<br />
si<strong>do</strong> homici<strong>da</strong> sua beleza e de pagar tão mal por vossa causa a Lu<strong>do</strong>vico seu<br />
amante: venturosa foi em saber recear, que podia castigá-la o mun<strong>do</strong> em<br />
disfavores, pois tinha desespera<strong>do</strong> a seu amante com desprezos. Que mais<br />
aplaudi<strong>da</strong> vitória podíeis conseguir com vossas amorosas porfias que fazerdes<br />
deixar o mun<strong>do</strong> a quem vos trazia em repeti<strong>do</strong>s desvelos? E sepultar-se viva<br />
por vossa causa uma gentileza em cuja vista tantos corações se sepultaram<br />
vivos? Se o avaliais por esquivança, estais vinga<strong>do</strong>, e se por fineza, nunca<br />
estais ofendi<strong>do</strong>. Que se escondesse ao mun<strong>do</strong> quem o mun<strong>do</strong> despreza,<br />
motivos teria no sentimento, mas esconder-se ao mun<strong>do</strong> para jamais ser vista<br />
quem tinha tanto que ver nos aplausos e estimações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> é admiração<br />
que suspende, é maravilha que espanta! Que se dê por desengana<strong>da</strong> Anar<strong>da</strong><br />
na lisonja <strong>do</strong>s enganos, e quan<strong>do</strong> os seus resplan<strong>do</strong>res a publicavam o sol<br />
meter-se em nuvens, quan<strong>do</strong> competiam em seu rosto as rosas e açucenas, se
466 Padre Mateus Ribeiro<br />
era mais viva a púrpura se a neve, deixan<strong>do</strong> suspensões aos discursos se vivia<br />
a Primavera mais flori<strong>da</strong> no pra<strong>do</strong> ou em seu rosto, quan<strong>do</strong> tantos olhos se<br />
desvelavam para vê-la, estan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os desvelos cifra<strong>do</strong>s em seus olhos,<br />
fugir para não ser vista e fechar as portas ao mun<strong>do</strong> para não ser ama<strong>da</strong>, que<br />
valentia maior de discreta! Que vitória mais insigne <strong>do</strong> desengano! E sen<strong>do</strong> os<br />
triunfos seus, parte <strong>da</strong>s vitórias são vossas, pois a fim de não casar-se,<br />
escolheu o retiro de esconder-se.<br />
Mostrais-vos tão ressenti<strong>do</strong> de não serdes seu esposo: que sentimento<br />
mostraríeis se a perdêsseis depois de sê-lo? Pois vai grande distância entre os<br />
desejos e a posse. São os desejos as asas com que a vontade voa ao que<br />
apetece; são as posses centro em que param os maiores voos. Uma cousa<br />
deseja<strong>da</strong> é só inquietação <strong>da</strong> vontade; mas quan<strong>do</strong> possuí<strong>da</strong> é empenho de<br />
to<strong>da</strong> a natureza que ocupa os senti<strong>do</strong>s, o entendimento e a vontade: os<br />
senti<strong>do</strong>s pelo que vem (a) , o discurso pelo que julga e a vontade pelo que logra.<br />
O que se deseja é ain<strong>da</strong> bem alheio, pois o não possuímos; mas o que se<br />
possui é já bem próprio, pois o logramos, como diz Cícero 452 e ensina<br />
Quintiliano 453 : pois a diferença que há entre uma cousa deseja<strong>da</strong> ou possuí<strong>da</strong>,<br />
há entre a <strong>do</strong>r e sentimento <strong>do</strong> que se perde quan<strong>do</strong> se deseja ou quan<strong>do</strong> se<br />
possui.<br />
Pudera a morte roubar-vos Anar<strong>da</strong> depois de vossa esposa, que não<br />
respeita seu rigor nem ao agraço <strong>do</strong>s anos, nem às auroras <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, nem aos<br />
prelúdios <strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de. Ain<strong>da</strong> o Plutarco 454 disse que a quem os deuses<br />
amavam chamavam para si, tiran<strong>do</strong>-os <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> no juvenil <strong>do</strong>s anos; e ain<strong>da</strong><br />
Ausónio disse que a morte mais venturosa era a mais têmpora na vi<strong>da</strong>, assim<br />
como os frutos temporãos são os mais festeja<strong>do</strong>s, e com razão, pois como<br />
to<strong>do</strong>s caminhamos para o fim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, diz Ovídio, o que mais em breve chega<br />
de maior moléstia se livra. Poden<strong>do</strong> pois a morte levar a Anar<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> vossa<br />
esposa, que sentimentos guardáveis para uma tal per<strong>da</strong>, se tantas lágrimas<br />
(a) Como foi referi<strong>do</strong> nos critérios de edição <strong>do</strong> texto, as formas <strong>da</strong> terceira pessoa <strong>do</strong> plural <strong>do</strong><br />
indicativo de verbos como ter, ver e vir, na época monossilábicas, são transcritas como a<br />
terceira pessoa <strong>do</strong> singular.<br />
452 Cicer., Epist. Familiar.<br />
453 Quintil., Lib. 7.<br />
454 Plutarc, in Oral de consol.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 467<br />
derramais por uma mágoa? Se vireis eclipsa<strong>da</strong> a luz de seus olhos e os<br />
matutinos resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol desta anima<strong>da</strong> fermosura encobertos nas<br />
sombras tristes de um cadáver, deslustra<strong>da</strong>s nos crepúsculos <strong>da</strong> morte as<br />
auroras <strong>do</strong> mais alegre dia, túmulo o que foi pra<strong>do</strong>, terra o que foi flor,<br />
desfolha<strong>da</strong> rosa aos golpes <strong>da</strong> morte a lisonja <strong>do</strong> campo mais aprazível,<br />
sepulcro páli<strong>do</strong> <strong>do</strong>s brios desanima<strong>do</strong>s o que foi troféu de cristal <strong>da</strong> gala mais<br />
senhoril, insensível o <strong>do</strong>naire, a graça emudeci<strong>da</strong>, assombra<strong>da</strong> a beleza que<br />
de to<strong>da</strong>s foi assombro, sem raios as estrelas de seus olhos que foram os<br />
registos <strong>da</strong>s vontades em que se alistavam tantos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s de sua vista<br />
venci<strong>do</strong>s, e finalmente um desengano <strong>do</strong> pouco que val a vi<strong>da</strong> contra os<br />
poderes <strong>da</strong> morte; aqui tivera mais lugar o sentimento quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> junto vos<br />
faltasse: a posse converti<strong>da</strong> em despojos violentamente perdi<strong>do</strong>s, a mágoa <strong>da</strong><br />
per<strong>da</strong>, o intenso <strong>da</strong> <strong>do</strong>r, a sole<strong>da</strong>de <strong>da</strong> companhia, o irreparável <strong>do</strong> <strong>da</strong>no muito<br />
para senti<strong>do</strong> e eterno para chora<strong>do</strong>. Além disto, o mostrar ao mun<strong>do</strong> o devi<strong>do</strong><br />
sentimento não é a menor pensão que traz consigo a morte, porque to<strong>da</strong>s as<br />
demonstrações de <strong>do</strong>r, quan<strong>do</strong> as penas são excessivas, to<strong>da</strong>s parecem<br />
poucas. Quan<strong>do</strong> chegaram a Roma as trágicas novas de ser morto pelos<br />
alemães Quintílio Varo e passa<strong>da</strong>s aos fios <strong>da</strong> espa<strong>da</strong> as três legiões romanas<br />
que governava, foi esta per<strong>da</strong> tão senti<strong>da</strong> que o empera<strong>do</strong>r Augusto César em<br />
três meses contínuos não fez a barba, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> por decreto que o dia desta<br />
infelice batalha fosse para sempre ti<strong>do</strong> por infausto e como tal senti<strong>do</strong>.<br />
Quan<strong>do</strong> se soube em Roma <strong>da</strong> morte de Germânico, ama<strong>do</strong> com<br />
extremos <strong>do</strong> povo romano, de mo<strong>do</strong> que quan<strong>do</strong> vinha a Roma muitas vezes<br />
correu risco de morrer abafa<strong>do</strong> <strong>da</strong> multidão <strong>do</strong> povo que saiu a esperá-lo fora<br />
<strong>do</strong>s muros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de para abraçá-lo; este príncipe, que foi pai <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r<br />
Calígula (que em tu<strong>do</strong> saiu dissemelhante dele), sen<strong>do</strong> morto na ci<strong>da</strong>de de<br />
Antioquia, quasi to<strong>do</strong>s os reis <strong>do</strong> oriente cortaram as barbas, que era entre eles<br />
a demonstração maior <strong>do</strong> sentimento, e no dia em que a Roma chegaram as<br />
novas de sua morte foi tal o excesso <strong>da</strong> <strong>do</strong>r que como furiosos saíram a<br />
apedrejar os templos <strong>do</strong>s deuses, magoa<strong>do</strong>s de tal morte, como refere<br />
Sabélico. Menos amante se mostrou o supremo dita<strong>do</strong>r Lúcio Sila, que estan<strong>do</strong><br />
celebran<strong>do</strong> os esplêndi<strong>do</strong>s banquetes em muitos dias com seus amigos e<br />
chegan<strong>do</strong>-lhe novas que Metella, sua esposa, estava desconfia<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, ele<br />
por não interromper a frequência <strong>do</strong>s festejos e banquetes que celebrava com
468 Padre Mateus Ribeiro<br />
os lutos e sentimentos <strong>da</strong>s exéquias, lhe man<strong>do</strong>u carta de repúdio, e com isso<br />
se eximiu de achar-se obriga<strong>do</strong> às ostentações de viúvo, queren<strong>do</strong> antes que<br />
morresse dele repudia<strong>da</strong>, por não sujeitar-se às demonstrações de ser dele,<br />
como era razão, senti<strong>da</strong>.<br />
Esta foi a desumani<strong>da</strong>de de Sila por não degenerar <strong>da</strong> nativa cruel<strong>da</strong>de<br />
com que fez correr mares de sangue de tantos sena<strong>do</strong>res e cavaleiros<br />
romanos a quem tirou as vi<strong>da</strong>s, e quis que também dela participasse sua<br />
esposa antes de acabar o último termo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; mas vós, amigo Félis, em<br />
quem as finezas de amante vaticinavam quais seriam os extremos de mari<strong>do</strong>,<br />
que deixáveis para senti<strong>do</strong> celebrardes a morte, se com tal excesso magoa<strong>do</strong><br />
solenizais choran<strong>do</strong> os retiros venturosos que de vós justamente houveram de<br />
ser aplaudi<strong>do</strong>s? Ela fica na escolha que fez muito interessan<strong>do</strong> e vós em suas<br />
melhoras na<strong>da</strong> ficais perden<strong>do</strong>.<br />
Estais senhor de vossa liber<strong>da</strong>de, que não é na vi<strong>da</strong> o menor interesse,<br />
podeis eleger o esta<strong>do</strong> que quiserdes, isento de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s que vos desvelem,<br />
de ciúmes que vos maltratem, de moléstias que vos aflijam; nem vos <strong>da</strong>rá pena<br />
a condição de Anar<strong>da</strong>, que poderia ser ou pela fermosura soberba, ou pelo<br />
querer ciosa, que qualquer destas pensões é para quem força<strong>do</strong> há-de sofrê-<br />
las bastantemente desabri<strong>da</strong>. São as bo<strong>da</strong>s, diz Euripides, se em tu<strong>do</strong> nelas se<br />
acerta venturosas, mas se por desgraça se erra infelices, ten<strong>do</strong> a pena tanto<br />
mais que sentir quanto menos se pode remediar. Bem disse Quintiliano que<br />
to<strong>do</strong>s os golpes e feri<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s inimigos podiam desviar-se antecipa<strong>da</strong>mente,<br />
mas as moléstias <strong>da</strong> mulher só se sentem depois de recebi<strong>da</strong>s. E a razão<br />
poderá ser porque se não conhecem senão depois de experimenta<strong>da</strong>s, e então<br />
é a moléstia certa e o remédio duvi<strong>do</strong>so. De to<strong>da</strong> esta pensão estais hoje livre<br />
para vos não desvelarem as condições alheias: nem se desvanece por<br />
fermosa, nem se vos despreza por soberba, podeis divertir o tempo sem<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, porque se agora algum vos assiste, então os teríeis <strong>do</strong>bra<strong>do</strong>s.<br />
É este o tempo mais alegre de nossa vi<strong>da</strong>, que com proprie<strong>da</strong>de se pode<br />
comparar à Primavera em que nem o frio molesta, nem a calma oprime: o<br />
tempo sereno, o campo alegre, o pra<strong>do</strong> flori<strong>do</strong>, os dias iguala<strong>do</strong>s às noites<br />
quietas, nem coarcta<strong>da</strong>s para o descanso, nem dilata<strong>da</strong>s para o enfa<strong>do</strong>;<br />
músicas as aves, sonoras as fontes, transparentes os arroios, as árvores em<br />
flor, a terra em esperanças, e finalmente tu<strong>do</strong> para o recreio e na<strong>da</strong> para o
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 469<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>. Pois tal é a vi<strong>da</strong> que hoje podeis lograr o esta<strong>do</strong> em que vos<br />
considero, sem as pensões de casa<strong>do</strong> e com os privilégios de livre, senhor<br />
para escolherdes e não cativo para vos sujeitardes. Essas lágrimas que<br />
derramais de senti<strong>do</strong>, se pudéreis discursar livre <strong>da</strong> pena, são desperdícios <strong>da</strong><br />
<strong>do</strong>r por mal emprega<strong>da</strong>s, pois além de serem sem causa, são juntamente sem<br />
fruto, porque nem Anar<strong>da</strong> as vê para senti-las, nem ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> as vira pode<br />
remediá-las. E pois ela se mostra contente, desaire de entendi<strong>do</strong> será<br />
mostrardes-vos vós triste e quererdes compensar com sentir o de que ela não<br />
está arrependi<strong>da</strong> com o obrar. Fique ela na clausura, pois a quis, e lograi vós a<br />
liber<strong>da</strong>de, pois podeis; que não parece justo que ela viva contente e vós<br />
pensan<strong>do</strong> triste.<br />
Advertiu bem Félis as minhas palavras e mostrou que fazia estimação de<br />
meu conselho, porque respirou sua <strong>do</strong>r e fez pausa a inquietação de seu<br />
tormento, admitin<strong>do</strong> por acerta<strong>do</strong>s meus discursos, se o tempo em chaga tão<br />
fresca lhe concedera esquecer-se. Contu<strong>do</strong> diminuiu muita parte <strong>da</strong>s ânsias<br />
que sentia, enxugou os olhos, dilatou o coração, e mostrou que se to<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
enfermi<strong>da</strong>de de seus pesares não estava são, ao menos convalecia <strong>da</strong>s<br />
tristezas que com tanto excesso o atormentaram. Continuámos os estu<strong>do</strong>s, não<br />
faltan<strong>do</strong> amigos com quem divertíamos o tempo que é para férias <strong>da</strong> aplicação<br />
que justamente se concedem, la esquecen<strong>do</strong> a memória de Anar<strong>da</strong>, que o<br />
tempo com seu discurso tu<strong>do</strong> esquece.<br />
An<strong>da</strong>va já Félis sem a pensão <strong>da</strong>s tristezas, a quem tinha tributa<strong>do</strong><br />
tantas lágrimas sem fruto, de que se mostrava arrependi<strong>do</strong>, que são como<br />
serviços sem galardão de que só fica a mágoa <strong>do</strong> arrependimento. Neste<br />
tempo em que Félis mais quieto passava e eu mais descui<strong>da</strong><strong>do</strong> vivia, sucedeu<br />
que a mãe <strong>do</strong> defunto Lu<strong>do</strong>vico veio a ter notícia de que havíamos si<strong>do</strong> eu e<br />
Félis os mata<strong>do</strong>res de seu filho; e o que as devassas, quan<strong>do</strong> com rigor se<br />
tiraram, descobrir não puderam, vieram a alcançar as diligências de uma mãe.<br />
Fez a petição para se devassar de novo, de que a mãe de Félis teve logo<br />
secreto aviso, e antes que o tempo nos embargasse a saí<strong>da</strong>, a fizemos de<br />
Paris, in<strong>do</strong> Félis bem provi<strong>do</strong> de dinheiro, além de algumas jóias de valor que<br />
sua mãe lhe deu, para que sen<strong>do</strong> necessário valer-se delas. Atravessámos<br />
muita parte de França té chegarmos a Marselha, marítima e populosa ci<strong>da</strong>de<br />
<strong>do</strong> mar Mediterrâneo, onde passa<strong>do</strong>s alguns dia em que tivemos aviso de Paris
470 Padre Mateus Ribeiro<br />
como se provava sermos os homici<strong>da</strong>s de Lu<strong>do</strong>vico, ven<strong>do</strong> que descoberta a<br />
morte, e sen<strong>do</strong> tão poderosas as partes, em to<strong>da</strong> a França não estávamos<br />
seguros, nos embarcámos em uma nau que ia para Veneza, assim para ver<br />
novos reinos, como para nos assegurarmos de quem intentasse prender-nos.<br />
Cap. XV.<br />
Em que Raimun<strong>do</strong> prossegue seus discursos<br />
Com próspero vento partimos <strong>do</strong> porto de Marselha eu e Félis,<br />
engolfan<strong>do</strong>-nos em pouco espaço e seguin<strong>do</strong> a derrota de nossa navegação,<br />
não se entenden<strong>do</strong> em nós o que diz o Séneca: que a ambição é o motivo de<br />
navegar os mares, esquecen<strong>do</strong>-se <strong>da</strong>s tormentas quem <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s se fia; pois<br />
nem nos obrigava ambição a embarcar-nos, nem <strong>da</strong>s borrascas <strong>do</strong> mar íamos<br />
tão seguros que as não temêssemos; foi-nos o tempo favorável, que<br />
experimentá-lo sereno não é pequena ventura, sen<strong>do</strong> nas navegações sua<br />
própria natureza tão mudável; e haven<strong>do</strong> navega<strong>do</strong> alguns dias, quan<strong>do</strong><br />
passan<strong>do</strong> à vista de Sicília queríamos <strong>do</strong>brar o cabo de Otranto para entrarmos<br />
no golfo de Veneza, nos vieram acometer duas naus de mouros com tanta<br />
resolução, sain<strong>do</strong> <strong>da</strong> ensea<strong>da</strong> que faz o mar neste sítio, que por elas serem<br />
ligeiras e empenha<strong>da</strong>s em investir-nos, não podemos desviar-nos e assim foi<br />
força o pelejar para nos defendermos.<br />
Era o nosso capitão um valeroso francês, que se chamava Lotário, mui<br />
experimenta<strong>do</strong> nas militares empresas <strong>da</strong>s guerras de França, em que obrou<br />
sempre de sorte que foi conheci<strong>do</strong> pelo valor que mostrou, não só <strong>do</strong>s naturais<br />
que o invejaram, mas também <strong>do</strong>s contrários que o temeram. E como era tão<br />
alenta<strong>do</strong> e se prezava mais de acometer que de ser acometi<strong>do</strong>, tomou por<br />
pun<strong>do</strong>nor de sol<strong>da</strong><strong>do</strong> o não desviar-se <strong>da</strong> batalha, que ain<strong>da</strong> largan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o<br />
velame porventura pudéramos declinar se o capitão Lotário o permitira. Lá<br />
disse Euripides que o ânimo destemi<strong>do</strong> se pejava de obrar as empresas aonde<br />
faltassem testemunhas de seu valor. Tal resposta deu o grande Alexandre a
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 471<br />
Parmenião, como escreve Quinto Cúrcio , quan<strong>do</strong> lhe aconselhava que, visto<br />
o excessivo número <strong>do</strong> exército <strong>do</strong>s persas, os acometesse de noite, por que<br />
os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s macedónicos se não intimi<strong>da</strong>ssem. Ao que Alexandre respondeu<br />
que só os ladrões obravam às escuras, que ele não saíra de Grécia a buscar<br />
empresas de que envergonhar-se, senão vitórias de que to<strong>do</strong>s fossem<br />
testemunhas.<br />
Preparou Lotário a sua gente, que não era pouca nem pouco exercita<strong>da</strong>,<br />
e depois de se <strong>da</strong>rem duas vezes salva <strong>da</strong> artelharia, que nos não fez muito<br />
<strong>da</strong>no, atracou uma <strong>da</strong>s naus <strong>do</strong>s mouros, investin<strong>do</strong>-a com imortal valor, em<br />
que se obraram <strong>da</strong> nossa parte proezas merece<strong>do</strong>ras de eterna fama à custa<br />
de muito sangue que se derramou de uma e de outra parte, até que finalmente<br />
morta a maior parte <strong>do</strong>s mouros que a defendiam a nau ficou rendi<strong>da</strong>. A outra<br />
que de longe jogan<strong>do</strong> a artelharia intentava socorrê-la, ven<strong>do</strong> que em lugar <strong>da</strong>s<br />
presas que buscava não achava mais que <strong>da</strong>nos que recebia, arrependi<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
assalto que lhe custava tão caro, se fez na volta <strong>do</strong> mar, deixan<strong>do</strong> em nosso<br />
poder a companheira, em quem eu entrei por ordem de Lotário com Félis e<br />
outros <strong>do</strong>s seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s para a guiarmos a Veneza em sua companhia. Deu-<br />
me comissão de capitão dela, persuadi<strong>do</strong> de me ver na naval peleja ser eu o<br />
primeiro que entrei nela, rompen<strong>do</strong> por mil riscos <strong>da</strong> morte, que como com meu<br />
tio tinha já milita<strong>do</strong> nas guerras de Sabóia, vai grande diferença de quem tem<br />
perdi<strong>do</strong> o temor a quem entra nos militares conflitos sem haver visto nem o<br />
sangue em fontes que corre, nem a morte que nos assaltos se rebuça.<br />
Uma <strong>da</strong>s causas que tinham os romanos com serem tão vistos na<br />
política <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para sustentarem em Roma tanto número de esgrimi<strong>do</strong>res e<br />
consentirem que nos públicos espectáculos saíssem a matar-se uns aos outros<br />
a cutila<strong>da</strong>s e estoca<strong>da</strong>s, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> prémios aos vence<strong>do</strong>res que mais houvessem<br />
morto, era para que costuma<strong>do</strong>s os romanos a verem tanto sangue derrama<strong>do</strong><br />
e tantas feri<strong>da</strong>s e mortes nos anfiteatros, fossem já quan<strong>do</strong> partissem para a<br />
guerra com os olhos e os corações destemi<strong>do</strong>s e não estranhassem nas<br />
batalhas nem os que mortos caíssem, nem os rios de sangue que corressem.<br />
Documento que seguiram de Aristóteles 456 quan<strong>do</strong> disse que importava<br />
In Vit. Alex.<br />
Arist., Ethic. 2.
472 Padre Mateus Ribeiro<br />
acostumar os filhos ao que depois haviam de exercitar, para que o não<br />
estranhassem; e Plutarco 457 escreve que com o costume se suavizam ain<strong>da</strong> as<br />
cousas que de sua própria natureza são ásperas e desabri<strong>da</strong>s.<br />
Com a alegria desta vitória começámos a querer entrar no golfo de<br />
Veneza, sen<strong>do</strong> o tempo alegre e bonançoso; mas como nas navegações se<br />
experimenta sempre a maior varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fortuna, de repente se nos mu<strong>do</strong>u o<br />
vento em contrário, perturban<strong>do</strong> de sorte os mares com tão rigorosa tormenta<br />
que o menos era impedir-nos a jorna<strong>da</strong>, se não fora o mais ameaçar-nos as<br />
vi<strong>da</strong>s.<br />
Resistiu aos luzi<strong>do</strong>s privilégios <strong>do</strong> dia o escuro véu <strong>da</strong>s densas nuvens<br />
de que se cobriu o sol ao meio-dia. Converteram-se em trevas seus<br />
resplan<strong>do</strong>res, em sombra a luz, em confusão a alegria; bramavam os ventos de<br />
furiosos, gemiam os mastos (a) de combati<strong>do</strong>s, rasgavam-se as velas de<br />
assalta<strong>da</strong>s, e a nau, sen<strong>do</strong> por nascimento filha <strong>do</strong> bosque mais sombrio, com<br />
os balanços se queixava de quem a desterrou sem culpas de seu <strong>do</strong>micílio,<br />
para vir a ser ludíbrio <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s quem era lisonja <strong>do</strong> pra<strong>do</strong> e digni<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />
bosque. Queixara-se, se tivera voz, de quanto mais seguras lhes vinham as<br />
verdes ramas de que a vestiu a natureza <strong>do</strong> que as arrisca<strong>da</strong>s velas de que a<br />
armou a ambição; pois poden<strong>do</strong> viver com o útil <strong>da</strong>s raízes, a obrigaram a<br />
sustentar-se com o inconstante <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s, queren<strong>do</strong> que voasse com asas<br />
contrafeitas quan<strong>do</strong> aspirava a não mover-se com os pés naturais.<br />
Creciam de sorte os mares em competência <strong>do</strong>s ventos que temiam os<br />
penhascos e roche<strong>do</strong>s <strong>da</strong> costa virem a ser colónias <strong>do</strong> mar e ficarem ilhas<br />
pelos assaltos <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s, sen<strong>do</strong> de antes terrestres mora<strong>do</strong>res pelos foros <strong>do</strong><br />
nascimento. Os troncos mais valentes desconfiavam <strong>da</strong>s raízes poderem<br />
sustentar <strong>do</strong> peso de seus ramos, porque <strong>da</strong> violência de tão poderosos<br />
contrários nem as raízes se isentam por escondi<strong>da</strong>s, nem os ramos se<br />
asseguram por vistosos, e tão vizinho está o perigo no que se esconde como<br />
no que se manifesta. Desmaiava o leme a governar; mas que maravilha, se<br />
faltava o coração a quem o governa, que como desmaiavam os alentos com<br />
tanta hostili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> mar, que discurso podia ter quem se via quasi sumergi<strong>do</strong><br />
Plut., De utilitat. cap. Ab. inim.<br />
Forma que coexistia com mastro.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 473<br />
de seus combates? As naus impeli<strong>da</strong>s <strong>do</strong> furor <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s, mal resistin<strong>do</strong> a<br />
quem mais podia, seguiam violenta<strong>da</strong>s a derrota, não a que os pilotos queriam,<br />
mas a que a tormenta man<strong>da</strong>va, e perden<strong>do</strong>-nos de vista, em poucas horas<br />
foram tão vários os rumos em que seguimos que a de Lotário nunca foi mais<br />
vista, nem houve nova certa se a sumergiu o mar ou a destroçou a costa, pois<br />
dela se não teve té o presente notícia. Segui eu os rumos <strong>da</strong> fortuna, que nas<br />
<strong>do</strong> mar é o roteiro mais certo não seguir roteiro: avizinhou-se a noite, se já no<br />
escuro <strong>da</strong> tormenta se não tinha despedi<strong>do</strong> o dia; cerraram-se as trevas mais<br />
que nunca tristes; fuzilaram os relâmpagos para nos mostrarem mais o perigo,<br />
não para nos aliviarem a pena; os brami<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mar cresciam a desafio com os<br />
ventos; fraquejavam as antenas; amontoavam-se as on<strong>da</strong>s converten<strong>do</strong>-se em<br />
montes, assaltan<strong>do</strong> os costa<strong>do</strong>s com tal ímpeto que muralhas reforça<strong>da</strong>s mal<br />
resistiriam seus combates, quanto mais brea<strong>da</strong>s tábuas de uma nau mal<br />
segura.<br />
Pareceu-nos a noite a mais dilata<strong>da</strong> sobre a mais penosa: não se viu<br />
estrelas, que as tinha prisioneiras o nubla<strong>do</strong> escuro em cárcere de sombras;<br />
rasgou-se o farol com as cargas cerra<strong>da</strong>s <strong>do</strong> vento, que como a mais luzi<strong>do</strong><br />
nele se empregavam e ficou participan<strong>do</strong> <strong>da</strong> desgraça quem se isentava como<br />
favoreci<strong>do</strong> <strong>da</strong> ventura. Os marinheiros assusta<strong>do</strong>s com o temor desconfiavam<br />
de evitar o perigo, e assim desalenta<strong>da</strong>s as esperanças, ain<strong>da</strong> o pouco que<br />
obravam luzia menos, porque tu<strong>do</strong> o que se faz sem esperança leva consigo o<br />
desgosto por companhia. É a alegria e gosto aju<strong>da</strong> <strong>da</strong>s operações, nunca<br />
parecen<strong>do</strong> vitais as que se obram com o desgosto e tristeza. Assim disse o<br />
Séneca 458 que convém quem obra estar alegre e confia<strong>do</strong>, porque o ânimo <strong>da</strong>s<br />
esperanças desfaleci<strong>do</strong> na<strong>da</strong> obra com acerto. Por isso disse São Bernar<strong>do</strong> 459<br />
que desejava sempre ver os ânimos alegres; pois assim como a tristeza é<br />
veneno <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, assim é morte <strong>da</strong>s acções que com ela se emprendem. Não de<br />
outra sorte os marinheiros e oficiais <strong>da</strong> combati<strong>da</strong> nau acudiam a suas<br />
obrigações, tão desconfia<strong>do</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e tão senhorea<strong>do</strong>s <strong>da</strong> desconfiança <strong>do</strong><br />
perigo evidente em que se viam que tu<strong>do</strong> quanto trabalhavam luzia pouco,<br />
porque o temor <strong>da</strong> morte em to<strong>do</strong>s avultava muito.<br />
Senec, Epist. 23.<br />
S. Bem., Ser. 4. Sup. Ps. Qui habitat.
474 Padre Mateus Ribeiro<br />
Uns se queixavam <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de que os obrigava, sen<strong>do</strong> esta o<br />
primeiro berço em que nasceram a surcar os mares e seus riscos, pois, como<br />
dizia Menandro, valera mais ser pobre no <strong>do</strong>micílio <strong>da</strong> terra <strong>do</strong> que intentar<br />
livrar-se <strong>da</strong> pobreza com os perigos <strong>do</strong> mar. Outros ressenti<strong>do</strong>s formavam<br />
queixas <strong>da</strong> ambição, pois os persuadira, ten<strong>do</strong> com que poderem<br />
convenientemente passar a vi<strong>da</strong>, assim de acrescentarem o que seguramente<br />
logravam, se aventuraram a perderem tu<strong>do</strong>, perden<strong>do</strong> as vi<strong>da</strong>s. Assim o<br />
escreveu Heró<strong>do</strong>to 460 que os ambiciosos de adquirirem o que está em poder<br />
alheio, vem a perder o que tinham em seu poder. Qual gemen<strong>do</strong> se arrependia<br />
<strong>da</strong> nociva curiosi<strong>da</strong>de de ver reinos estranhos, ven<strong>do</strong>-se agora tão vizinhos a<br />
não tornarem a jamais a ver o próprio, como reprova Platão 461 , condena<strong>do</strong> por<br />
nece<strong>da</strong>de querer especular terras estranhas quem to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> pudera<br />
despender em conhecer a própria. Assim o ensina Cícero 462 , julgan<strong>do</strong> por<br />
desacerto a demasia<strong>da</strong> curiosi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> que pouco importa.<br />
Enfim nesta confusão to<strong>do</strong>s de navegar pesarosos com diversos motivos<br />
se queixavam, porque to<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s assaltos <strong>da</strong> morte combati<strong>do</strong>s se viam.<br />
Conjurou-se a noite com a tormenta, fez liga em nosso <strong>da</strong>no o mar com os<br />
ventos, <strong>da</strong>vam-se as mãos o escuro com o perigo, uniu-se a confusão com o<br />
temor, e a nau de tantos golpes assalta<strong>da</strong> mostrava nos paracismos de venci<strong>da</strong><br />
que já enfraqueci<strong>da</strong> mal podia resistir a quem tinha tão valentes forças para a<br />
soçobrar. Dilatava-se a noite em despedir-se, porque parece que de novo<br />
intentava sustentar-se, não se <strong>da</strong>n<strong>do</strong> por venci<strong>da</strong> sem vencer-nos, como se<br />
quisera arvorar nosso destroço por triunfo. Oh mar, dizia eu, feito azul,<br />
matiza<strong>do</strong> de pérolas, que inquieto estás para o descanso! Quanto mais<br />
descansa<strong>do</strong> <strong>do</strong>rme qualquer pobre pastor na tosca cama de seu feno <strong>do</strong> que<br />
quem te busca nas turbulentas on<strong>da</strong>s de teus golfos! Que mal hospe<strong>da</strong>s a<br />
quem de ti se fia! Bem disse Anacharsis que eras sepulcro em que uma tábua<br />
divide a morte e a vi<strong>da</strong>. Enganas com o sereno para roubares com o tormento,<br />
lisonjeias com as promessas para sumergires com as on<strong>da</strong>s, que se sempre<br />
mostraras o perigo ninguém te buscara e se sempre te mostraras sossega<strong>do</strong><br />
Herod., apud Stob.<br />
Plat., De Republ.<br />
Cicer., in Lœl.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 475<br />
ninguém te temera. Oh noite, para muitos alívio e para mim tormento, quem te<br />
fez tão imóvel, senão minha fortuna? Quem dilatou tanto o senhorio de tuas<br />
sombras que intentes usurpar tanta parte ao dia? Conspiraste com meus<br />
pesares para tiranizar-me, queren<strong>do</strong> se sepulte em teu luto quem perde a vi<strong>da</strong>;<br />
não te agradeço celebrares exéquias à minha morte, pois de negro te vestes<br />
to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>, se há vi<strong>da</strong> em ti que não pareça morte, pois em representares a<br />
morte, como diz Santo Agostinho 463 , consiste a tua vi<strong>da</strong>.<br />
Assim eu e to<strong>do</strong>s nos queixávamos sem fruto, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-nos já de to<strong>do</strong> por<br />
perdi<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong>, compadeci<strong>do</strong> o céu de nossas penas, vimos uns confusos<br />
assomos <strong>da</strong> primeira luz <strong>do</strong> dia. Com razão chamou Quinto Cúrcio 464 à luz<br />
natural alívio <strong>do</strong>s tristes, pois apenas se divisaram os debuxos de morta, cor de<br />
sua beleza, quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s pedin<strong>do</strong>-se alvíssaras <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> aurora, como<br />
ressucita<strong>do</strong>s de tão dilata<strong>da</strong> morte, parece que cobravam nova vi<strong>da</strong>.<br />
Começou o vento a serenar, o mar a sossegar-se, o nubla<strong>do</strong> a dividir-se,<br />
as luzentes safiras <strong>do</strong> céu a manifestar-se, a desterrar-se a tristeza, a<br />
desaparecer o temor, a cobrar alentos o coração, a <strong>da</strong>r novos visos a alegria e<br />
finalmente, com o brilhante nascimento <strong>do</strong> sol, cessou de sorte a tormenta que<br />
passou o mar a mostrar a mais aprazível bonança de havermos padeci<strong>do</strong> a<br />
mais rigorosa tormenta. Achámo-nos à vista de Sicília, para onde logo fomos<br />
navegan<strong>do</strong>, reparan<strong>do</strong> a ruína e destroço que causa<strong>do</strong> tinha a borrasca o<br />
melhor que pudemos; chegámos ao porto de Saragoça, procurámos novas <strong>da</strong><br />
nau de Lotário sem haver notícias dela, o que nos deu sentimento. Esperámos<br />
mais <strong>do</strong>us dias, refazen<strong>do</strong>-nos <strong>do</strong> que necessitávamos, e ven<strong>do</strong> que nenhuma<br />
embarcação dela <strong>da</strong>va notícias, vendi ao vice-rei de Sicília os mouros que<br />
trazíamos cativos, para servirem nas galés <strong>do</strong> reino, e à instância <strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
e marinheiros que comigo vinham, fiz inventário <strong>do</strong> que a nau trazia, em que se<br />
acharam ricas presas e de grande valor que os mouros em várias empresas<br />
tinham rouba<strong>do</strong>. A vista <strong>da</strong>s riquezas alegrou os olhos de to<strong>do</strong>s e lisonjeou a<br />
cobiça, pedin<strong>do</strong>-me, como a capitão, que repartisse com eles o que delas lhes<br />
tocava, pois com os riscos de suas vi<strong>da</strong>s e com tantos perigos as tinham<br />
mereci<strong>do</strong>. E suposto que eu desejava dilatá-lo mais, até ver se de Lotário havia<br />
Lib. 2., De Civ. Dei.<br />
Quint. Curt., Lib. 8.
476 Padre Mateus Ribeiro<br />
novas mais certas, não o consentiu a ambição de quem o pedia: e assim reparti<br />
to<strong>da</strong> a presa com tanta franqueza e igual<strong>da</strong>de que to<strong>do</strong>s me ficaram obriga<strong>do</strong>s,<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se por satisfeitos, que não é tão pouca ventura satisfazer a ânimos<br />
cobiçosos sem haver queixas de quem com eles reparte.<br />
É necessário a quem há-de governar e capitanear sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s o ser<br />
juntamente liberal e compassivo para os trazer contentes. O grande Alexandre<br />
com a liberali<strong>da</strong>de se fez de seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s tão ama<strong>do</strong> e juntamente com a<br />
pie<strong>da</strong>de e compaixão tão queri<strong>do</strong> que sen<strong>do</strong> feri<strong>do</strong> de uma seta, não poden<strong>do</strong><br />
caminhar senão assenta<strong>do</strong> em cadeira ou an<strong>do</strong>r, houve notável conten<strong>da</strong> entre<br />
os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s de pé e de cavalo de seu exército, com risco de chegarem às<br />
armas, sobre quais deles haviam de levá-lo nos braços; a que ele,<br />
agradecen<strong>do</strong> o amor que lhe mostravam, meteu em paz com ordenar que<br />
alternativamente o levassem uma distância <strong>do</strong> caminho os de pé e outra os de<br />
cavalo. Esta fineza que os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s de seu exército mostraram, além <strong>da</strong><br />
liberali<strong>da</strong>de de Alexandre, era de sua pie<strong>da</strong>de bem mereci<strong>da</strong>, porque na<br />
ocasião <strong>da</strong>queles mortais rigores <strong>do</strong> frio e neve que ele padeceu com seu<br />
exército, que refere Quinto Cúrcio 465 , achan<strong>do</strong> a um sol<strong>da</strong><strong>do</strong> macedónico quasi<br />
morto de frio, ele se ergueu <strong>da</strong> cadeira em que ao fogo se aquentava e,<br />
toman<strong>do</strong>-o em seus braços, o assentou na mesma cadeira até que cobrasse<br />
alento de seu mortal paracismo.<br />
Não menos pie<strong>da</strong>de mostrou quan<strong>do</strong> in<strong>do</strong> em seguimento de Besso pela<br />
estéril e arenosa região <strong>do</strong>s bactrianos, aonde seu exército ia desfalecen<strong>do</strong> à<br />
sede, e trazen<strong>do</strong>-se-lhe um vaso de água que um sol<strong>da</strong><strong>do</strong> descobriu para que<br />
a bebesse, ele a não quis beber, pois to<strong>do</strong>s seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s a não bebiam,<br />
dizen<strong>do</strong> que antes queria com eles padecer a sede <strong>do</strong> que, fican<strong>do</strong> eles com<br />
ela, valer-se ele só <strong>do</strong> alívio.<br />
Tão pie<strong>do</strong>so se mostrou o empera<strong>do</strong>r Trajano com seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s depois<br />
<strong>da</strong> cruel batalha que deu aos de Dácia, em que ficou vence<strong>do</strong>r, que foram<br />
tantos os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s feri<strong>do</strong>s de seu exército, que não haven<strong>do</strong> já panos que<br />
bastassem para serem cura<strong>do</strong>s, chegou a despir a própria camisa para se<br />
fazerem dela panos para os feri<strong>do</strong>s; e pelo grande amor que seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
sempre lhe tiveram conseguiu tão venturosas conquistas e tão insignes vitórias<br />
Quint. Curt., in Vit. Alex.
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte III 477<br />
que seu nome imortalizaram. Engano é <strong>do</strong> capitão, se seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s o<br />
aborrecerem, prometer-se feliz sucesso nos conflitos que emprende, porque<br />
pode suceder que a fim de ele ficar sem a glória de vence<strong>do</strong>r desestimem eles<br />
as vi<strong>da</strong>s em quererem ser venci<strong>do</strong>s. Assim sucedeu antigamente ao romano<br />
dita<strong>do</strong>r Papírio, que queren<strong>do</strong> man<strong>da</strong>r degolar ao general <strong>da</strong> cavalaria Quinto<br />
Fábio, porque em sua ausência, contra a ordem que deixara, havia <strong>da</strong><strong>do</strong><br />
batalha aos samnitas, sain<strong>do</strong> deles vence<strong>do</strong>r, e pedin<strong>do</strong>-lhe to<strong>do</strong> o exército<br />
com grande instância lhe desse a vi<strong>da</strong>, o que ele não quis fazer, quan<strong>do</strong> depois<br />
os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s souberam que a rogos <strong>do</strong> povo de Roma lhe per<strong>do</strong>ara, o<br />
aborreceram de sorte, por haver feito de seus rogos tão pouca conta, que<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o dita<strong>do</strong>r Lúcio Papírio segun<strong>da</strong> batalha aos mesmos samnitas, não<br />
quiseram pelejar em ordem e se deixaram deles vencer, só para que o dita<strong>do</strong>r<br />
ficasse priva<strong>do</strong> <strong>da</strong> glória <strong>do</strong> vencimento. Não menos aborreci<strong>do</strong>s os romanos<br />
<strong>da</strong> soberba e áspera condição de seu capitão, o cônsul Marco Postúmio,<br />
queren<strong>do</strong> ele castigar alguns sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s amotina<strong>do</strong>s, se amotinou o exército to<strong>do</strong><br />
e o matou às pedra<strong>da</strong>s.<br />
Insigne foi o empera<strong>do</strong>r Probo, e tão justifica<strong>do</strong> em suas obras que<br />
diziam dele que se não tivera por nome o título de Probo, que significava bom,<br />
suas próprias obras lho adquiririam; e com ser tal, porque se mostrou<br />
desabri<strong>do</strong> aos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, dizen<strong>do</strong> que esperava muito ce<strong>do</strong> pôr o império<br />
romano em tanta paz que escusasse sustentar sol<strong>da</strong>desca, eles amotinan<strong>do</strong>-se<br />
o mataram cruelmente. É necessário ao capitão trazer contentes os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s,<br />
pois sen<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o perigo e risco seu, o luzi<strong>do</strong> <strong>do</strong> triunfo to<strong>do</strong> é de quem os<br />
governa, a glória <strong>da</strong>s vitórias neles fica confusa e só no capitão nas línguas <strong>da</strong><br />
fama se vê brilhante e luzi<strong>da</strong>. A via láctea ou círculo que de noite se vê no céu<br />
dizem os astrólogos que é um inumerável ajuntamento de estrelas tão<br />
pequenas que, impedin<strong>do</strong>-se umas às outras, nenhuma chega a luzir e só<br />
to<strong>da</strong>s juntas fazem aquela confusão que nem é luzimento, nem é sombra.<br />
Assim os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s de um exército vitorioso tem a vitória em confusão de<br />
vencerem, mas só o general a luz <strong>do</strong> triunfo, que como a nenhum deles em<br />
particular se atribui a vitória, sen<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os que a alcançaram, só ao capitão<br />
se atribui a aclamação e, luzin<strong>do</strong> só per si como estrela, seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s só se<br />
impedem uns aos outros a luz em confusão.
478 Padre Mateus Ribeiro<br />
Com a liberal repartição que <strong>da</strong>s presas que na nau se acharam fiz aos<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, se mostraram tão obriga<strong>do</strong>s que, desembarcan<strong>do</strong> em Veneza,<br />
quiseram to<strong>do</strong>s de novo embarcar-se comigo. Vendi o que me coube, e<br />
preparan<strong>do</strong> a nau e abastecen<strong>do</strong>-a <strong>do</strong> necessário, fican<strong>do</strong> Félis em Veneza a<br />
continuar seus estu<strong>do</strong>s, não queren<strong>do</strong> fiar-se mais <strong>do</strong>s perigos <strong>do</strong> mar,<br />
naveguei a Alexandria <strong>do</strong> Egipto, suceden<strong>do</strong>-me tão próspera a viagem que<br />
com <strong>do</strong>bra<strong>do</strong> cabe<strong>da</strong>l voltei a Veneza, achan<strong>do</strong> que Félis se tinha passa<strong>do</strong> a<br />
Roma, aonde se ordenou sacer<strong>do</strong>te e estava delibera<strong>do</strong> de tornar a Paris a ver<br />
sua mãe, como em efeito se partiu. Continuei eu mais algumas navegações em<br />
que me favoreceu a ventura com grande aumento <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong>; vim a Ravena e<br />
agora me parto a Veneza, para com nova carga voltar a Alexandria. Esta é,<br />
senhor passageiro, a vária fortuna de minha vi<strong>da</strong>, de que vos dei inteira notícia<br />
para que me não encubrais a causa desta vossa navegação com a companhia<br />
desta senhora, porque achareis em mim uma vontade grande para o que eu<br />
puder valer para servir-vos.<br />
Cap. XVI.<br />
Do que sucedeu a Reginal<strong>do</strong> e como foi preso em Veneza, e o que nisso<br />
passou<br />
Agradeci<strong>do</strong> respondeu Reginal<strong>do</strong> ao capitão Raimun<strong>do</strong> <strong>do</strong> favor que lhe<br />
havia feito em lhe comunicar os discursos de sua vi<strong>da</strong>, e para satisfazer a seu<br />
desejo lhe manifestou a inteira relação de seus sucessos, de que Raimun<strong>do</strong><br />
admira<strong>do</strong> lhe disse:<br />
- Está o empenho em que vos hoje considero, senhor Reginal<strong>do</strong>, tão<br />
vizinho ao perigo como distante de receber conselho. De uma parte considero<br />
o muito valor e poder <strong>do</strong> conde Manfre<strong>do</strong>, de vós tão ofendi<strong>do</strong> em o rapto<br />
dessa senhora, e sen<strong>do</strong> vós seu cria<strong>do</strong>, que o sê-lo agrava mais o delito, e tão<br />
humilde no nascimento, não se pode esperar nem que o conde <strong>da</strong> vingança se<br />
refreie, nem que jamais o tempo desta paixão o mude. É um grande ofendi<strong>do</strong><br />
em afectar a vingança como rio impetuoso que não sabe voltar atrás a sua<br />
corrente. Lá disse Juvenal que maior vingança era de um agravo o contínuo
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 479<br />
temor <strong>do</strong> que a breve pena <strong>do</strong> castigo: é ca<strong>da</strong> temor um tormento que padece<br />
a alma e um verdugo que ameaça a vi<strong>da</strong>; e como o conde é tão senhor,<br />
aparenta<strong>do</strong> e poderoso, o agravo tão vivo, a <strong>do</strong>r dele tão intensa, a per<strong>da</strong> de<br />
uma única filha tão senti<strong>da</strong> e o remédio <strong>do</strong> <strong>da</strong>no tão irreparável, não posso<br />
assegurar-vos que possais em to<strong>da</strong> a Europa viver com quietação que vos<br />
isente <strong>do</strong>s sobressaltos <strong>do</strong> castigo. De outra parte considero que já hoje não<br />
podeis deixar de seguir os rumos <strong>da</strong> ventura, porque desamparares esta<br />
senhora a quem trazeis com título de esposa seria faltardes aos respeitos de<br />
esposo e juntamente às obrigações de amante, deixan<strong>do</strong>-a no perigo para vos<br />
pordes em seguro; e pois a sorte está lança<strong>da</strong> ao jogo <strong>da</strong> fortuna, segui como<br />
fez Júlio César ao passar ao rio Rubicão, que pelo sena<strong>do</strong> lhe estava proibi<strong>do</strong>,<br />
que talvez apadrinha o arrojo nas empresas a quem não convém voltar atrás<br />
nos discursos <strong>da</strong> consideração.<br />
- Assim o intento fazer (respondeu Reginal<strong>do</strong>), e quan<strong>do</strong> venha a perder<br />
a vi<strong>da</strong> por atrevi<strong>do</strong> em o altivo <strong>da</strong> empresa, servir-me-á de alívio ser a causa<br />
tão superior que me sirva de desculpa à temeri<strong>da</strong>de <strong>do</strong> voo. Nunca covardias<br />
habilitaram para as grandezas, que o imortal <strong>da</strong> fama no berço tem os perigos<br />
e no sepulcro os aplausos. Nas Atas Philenas se deixaram enterrar vivos os<br />
<strong>do</strong>us irmãos chama<strong>do</strong>s Philenos Cartagineses por dilatarem os termos <strong>do</strong><br />
senhorio de Cartago contra os de Cirene, granjean<strong>do</strong> fama imortal na<br />
sepultura. Igualmente nos cercos de Roma que os go<strong>do</strong>s lhe puseram em<br />
tempo <strong>do</strong> invencível capitão Belisário, ven<strong>do</strong> outros <strong>do</strong>us irmãos romanos que<br />
os go<strong>do</strong>s no assalto rompiam a porta pinciniana, defenden<strong>do</strong>-a com imortal<br />
valor a to<strong>do</strong> o exército inimigo, se atravessaram nela, e cain<strong>do</strong> a poder de<br />
golpes entre rios de sangue, fizeram de seus corpos trincheiras com que vivos<br />
e mortos a defenderam para que os go<strong>do</strong>s não entrassem. Pois se destes e de<br />
outros mil exemplos que os autores escrevem estão cheios os anais <strong>da</strong> fama,<br />
como me há-de intimi<strong>da</strong>r a morte, quan<strong>do</strong> na empresa que sigo vou tão<br />
empenha<strong>do</strong> a aventurar a vi<strong>da</strong>?<br />
Flora me escolheu por esposo, nela foi a eleição de quem amava, em<br />
mim ventura de quem menos a merecia; empenhe o conde Manfre<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o<br />
arbítrio <strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de, que em mim há-de achar to<strong>do</strong> o cabe<strong>da</strong>l <strong>do</strong> valor para<br />
resistir-lhe, e quan<strong>do</strong> morra na empresa, morren<strong>do</strong> esposo de Flora, morrerei<br />
contente, pois morro tão honra<strong>do</strong>, que se enfim mais ce<strong>do</strong> ou mais tarde se há-
480 Padre Mateus Ribeiro<br />
de acabar a vi<strong>da</strong>, muitos séculos vive quem tão honra<strong>do</strong> morre, pois a causa<br />
faz a morte ser honrosa ou abati<strong>da</strong>.<br />
Já a este tempo vinha preparan<strong>do</strong> a aurora a luzi<strong>da</strong> estra<strong>da</strong> <strong>do</strong> horizonte<br />
para o triunfo <strong>do</strong> sol, que vence<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s escuras sombras <strong>da</strong> noite, arvoran<strong>do</strong><br />
seus resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> troféu no brilhante carro, se avizinhava, quan<strong>do</strong><br />
Raimun<strong>do</strong> desejan<strong>do</strong> ver de dia se com os extremos <strong>da</strong> beleza de Flora se<br />
haviam seus olhos engana<strong>do</strong> de noite, entrou com Reginal<strong>do</strong> a <strong>da</strong>r-lhe os bons<br />
dias, e viu que o encareci<strong>do</strong> na francesa Anar<strong>da</strong> tinha si<strong>do</strong> pintura de morta cor<br />
para comparar-se com Flora. Admirou-se de vê-la por prodígio, porque sempre<br />
estes sustentaram a admiração, que a formou a natureza para cópia de<br />
fermosura, se, sen<strong>do</strong> única, pudera em outra ser copia<strong>da</strong>. Desmentiu os<br />
hipérboles por pequenos, porque com Flora nenhum hipérbole foi grande. Bem<br />
puderam <strong>da</strong>r os olhos que a viram comissão a to<strong>da</strong> a eloquência para<br />
encarecê-la, se a mesma vista não suspendera to<strong>da</strong>s as eloquências para<br />
poder louvá-la. E faltan<strong>do</strong> a quem a via to<strong>da</strong> a eloquência para falar, só seus<br />
olhos tinham a maior eloquência para persuadir. Nem sempre o médico as<br />
enfermi<strong>da</strong>des cura, disse Aristóteles: mas tinha Flora em seus olhos tão subi<strong>da</strong><br />
a moção no olhar que parecia se não <strong>da</strong>va distância entre o ver e persuadir,<br />
pois para ser de to<strong>do</strong>s ama<strong>da</strong> bastava que chegasse a ser de to<strong>do</strong>s vista.<br />
Rendeu as graças a Raimun<strong>do</strong> <strong>do</strong> favor que lhe fazia, e lhe pediu<br />
quisesse largar as velas para partirem: menos petição bastara para ser<br />
ofereci<strong>da</strong> de quem avaliava por mimo <strong>da</strong> ventura haver ocasião de agradá-la.<br />
- Oh venturoso pesca<strong>do</strong>r (dizia Raimun<strong>do</strong>), que bem sem as malhas de<br />
tuas redes soubeste pescar a maior beleza junto com a maior fi<strong>da</strong>lguia!<br />
Quan<strong>do</strong> se viu junta união de tal valor e fermosura? Se se mostrou contigo tão<br />
amorosa a ventura no mais, como deixará de favorecer-te no menos? Subiu-te<br />
de pesca<strong>do</strong>r a senhor, de cria<strong>do</strong> a esposo, favor que qualquer deles pudera<br />
desvanecer-te de feliz; mas ain<strong>da</strong> para maior aplauso <strong>da</strong> subi<strong>da</strong>, te deu a maior<br />
beleza que meus olhos viram, para que na<strong>da</strong> ten<strong>do</strong> que invejar, só tu sejas de<br />
to<strong>do</strong>s inveja<strong>do</strong>. Nunca a fortuna aos outros reparte tu<strong>do</strong> junto, porque ten<strong>do</strong><br />
que desejar, tenham mais que lhe pedir; mas para contigo se mostrou tão<br />
pródiga nos favores que na<strong>da</strong> te quis deixar que lhe peças, porque na<strong>da</strong> te<br />
deixou que mais desejes.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 481<br />
Assim falan<strong>do</strong> e sentin<strong>do</strong>, ou sentin<strong>do</strong> mais <strong>do</strong> que falava (poucas vezes<br />
as vozes são intérpretes cabais <strong>do</strong> sentimento), man<strong>do</strong>u largar as velas que o<br />
sol sobre<strong>do</strong>urava com seus raios, navegan<strong>do</strong> na volta de Veneza, aonde por<br />
agora os deixaremos, para tratar <strong>do</strong> conde Manfre<strong>do</strong>, que apenas na manhã<br />
sentiu a falta de Flora e a fugi<strong>da</strong> de Reginal<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> suspeitan<strong>do</strong> que com<br />
ele se fora, pouco lhe faltou para perder a vi<strong>da</strong>, se tem mais vi<strong>da</strong> que perder<br />
quem tais agravos sente. Davam-se nele juntamente agravos para senti-los,<br />
sau<strong>da</strong>des para chorá-las, que poderosa desculpa tem os olhos quan<strong>do</strong> ao rigor<br />
de sau<strong>da</strong>des choram: estas nasciam <strong>do</strong> amor e os agravos <strong>da</strong> ofensa, <strong>do</strong>us<br />
verdugos <strong>do</strong> sofrimento, <strong>do</strong>us martírios <strong>do</strong> coração, qualquer deles poderoso<br />
para acabar a vi<strong>da</strong>, se a própria <strong>do</strong>r a não reservara para sentir mais dilata<strong>da</strong>s<br />
as penas.<br />
- Oh infelice filha (dizia o pai), até agora delícia de meus olhos e agora<br />
eternas lágrimas deles! Quanto mais bem afortuna<strong>do</strong> pudera julgar-me se te<br />
não tivera! Há venturas que são prelúdios <strong>da</strong>s desgraças, pois o que se avalia<br />
favor, vem a ser castigo. Dotou-te a natureza para seres ludíbrio <strong>da</strong> fortuna e<br />
enriqueceu-me de valor para ser maior hoje teu abatimento. Nos rios grandes<br />
logo se conhecem as faltas quan<strong>do</strong> descobrem as areias; nos arroios<br />
pequenos mal se divisam, nem as crescentes por poucas, nem as faltas por<br />
limita<strong>da</strong>s. Mas ai de mim, que no lustre de meus progenitores com tanta glória<br />
adquiriu os átomos como no sol se divisam para senti-los, quanto mais tão<br />
grande mancha para deslustrá-los! Que te faltava, Flora, para estima<strong>da</strong> ou que<br />
não te sobrava para senhora? Como quiseste de um golpe cortar-me a honra e<br />
a vi<strong>da</strong>? Se tem vi<strong>da</strong> que perder quem perde a honra. Que importaram as<br />
glórias militares com tantos riscos ganha<strong>da</strong>s e com tantos desvelos possuí<strong>da</strong>s,<br />
se bastou uma hora para malograr anos também despendi<strong>do</strong>s e para arruinar<br />
edifícios tão generosamente fun<strong>da</strong><strong>do</strong>s? Aonde me ocultarei que me não vejam<br />
tão desluzi<strong>do</strong>? Que nunca os olhos se empregam em ver ao sol senão quan<strong>do</strong><br />
a luz lhe falta. Oh filha desditosa, nasci<strong>da</strong> para exemplo <strong>da</strong> fortuna, que pôde<br />
mais contigo um cria<strong>do</strong> para roubar-te que um pai que te quis tanto para<br />
possuir-te! Que mal empregastes as finezas em tal sujeito, pois quan<strong>do</strong> apenas<br />
era capaz de ser cria<strong>do</strong>, como cega o elegestes para mari<strong>do</strong>? Se te vira melhor<br />
emprega<strong>da</strong>, serviriam teus acertos de alívio a minhas mágoas, mas sen<strong>do</strong> tão
482 Padre Mateus Ribeiro<br />
erra<strong>da</strong> a eleição como indecorosa a fugi<strong>da</strong>, nem admite parelhas minha <strong>do</strong>r,<br />
nem tem consolação meu sentimento.<br />
Mas como pode em mim mais o enterneci<strong>do</strong> que o agrava<strong>do</strong>? As<br />
sau<strong>da</strong>des que as ofensas? O afecto paternal que o rigoroso? Quis antes o<br />
romano Virgínio com suas próprias mãos tirar a vi<strong>da</strong> a sua filha inocente, só<br />
porque conheceu que Ápio Cláudio com os poderes de seu triunvirato lha<br />
queria com títulos fingi<strong>do</strong>s de cativa tirá-la <strong>do</strong> poder de seu pai, para<br />
libidinosamente gozá-la; e com ser Virgínia com extremos tão fermosa como<br />
honesta, lhe tirou Virgínio, seu pai, a vi<strong>da</strong>, por não vê-la mancha<strong>da</strong> com seu<br />
desluzimento. Não tirou a vi<strong>da</strong> Mitri<strong>da</strong>tes a Sifaces, seu filho, e de Estratonica,<br />
sua esposa, só a fim de castigar a mãe de haver entregue aos romanos a<br />
praça forte em que estava com os tesouros que Mitri<strong>da</strong>tes nela tinha,<br />
capitulan<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> e liber<strong>da</strong>de de Sifaces, seu filho, de que ira<strong>do</strong> o pai o<br />
matou? Não tirou a vi<strong>da</strong> o romano Lúcio António a Fúlvio, seu filho, por querer<br />
seguir contra Roma a parciali<strong>da</strong>de de Catilina, dizen<strong>do</strong> que ele o gerara para<br />
servir a pátria e não para seguir aos que se rebelavam contra ela? Pois se em<br />
to<strong>do</strong>s estes pôde mais o zelo ou a mágoa que o amor, como em mim será mais<br />
pie<strong>do</strong>sa a pie<strong>da</strong>de de pai que a mágoa de ofendi<strong>do</strong>? Toque a fama o clarim de<br />
minha vingança, pois tanto há-de soar o de minha ofensa, e corra parelhas o<br />
castigo com o agravo e ouça-se a voz <strong>do</strong> que ofendi<strong>do</strong> obro <strong>do</strong>nde se ouvir a<br />
voz <strong>do</strong> que agrava<strong>do</strong> sofro.<br />
Assim dizem que falou o conde, e derraman<strong>do</strong> iras entre lágrimas, que<br />
mal se divisava se as causava a <strong>do</strong>r ou as brotava a cólera, man<strong>do</strong>u armar<br />
to<strong>da</strong> a sua gente e que a to<strong>do</strong> o correr <strong>do</strong>s cavalos uns fossem cortan<strong>do</strong> as<br />
estra<strong>da</strong>s <strong>da</strong> terra e outros seguin<strong>do</strong> as <strong>do</strong> mar, desquartinan<strong>do</strong> de uma e outra<br />
parte os bosques mais sombrios, as covas mais ocultas e as penhas e<br />
roche<strong>do</strong>s mais remonta<strong>do</strong>s, e que <strong>do</strong> que descobrissem ou de qualquer notícia<br />
que alcançassem, voltassem logo a <strong>da</strong>r-lhe aviso. Não quis Carlos ficar em<br />
casa, antes persuadi<strong>do</strong> <strong>do</strong> sentimento, seguiu os que iam a descobrir a costa,<br />
onde viram uns pesca<strong>do</strong>res que senti<strong>do</strong>s se queixaram <strong>da</strong> falta <strong>do</strong> barco que<br />
de noite na praia sobre fateixa tinham; isto com a nau haver <strong>da</strong><strong>do</strong> à vela nas<br />
primeiras auroras <strong>da</strong> manhã certificou a Carlos que sem dúvi<strong>da</strong> se valeram <strong>do</strong><br />
barco para embarcar-se nela, ten<strong>do</strong> por sem dúvi<strong>da</strong> que a Veneza iam. Com<br />
estas notícias voltaram ao conde, que se confirmaram mais com virem as
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 483<br />
atalaias <strong>da</strong> terra, dizen<strong>do</strong> que enquanto tinham an<strong>da</strong><strong>do</strong> não houve pessoa que<br />
<strong>do</strong> que procuravam razão alguma desse. Resolven<strong>do</strong>, pois, o conde Manfre<strong>do</strong><br />
e Carlos que sem dúvi<strong>da</strong> Flora e Reginal<strong>do</strong> a Veneza navegavam, não<br />
queren<strong>do</strong> que a demora com seus vagares ocasionasse o porem-se em<br />
seguro, fretan<strong>do</strong> uma barca grande de pesca<strong>do</strong>res e embarcan<strong>do</strong>-se nela com<br />
seu filho Carlos e to<strong>do</strong>s seus cria<strong>do</strong>s bem provi<strong>do</strong>s de armas para o que<br />
sucedesse, quis aventurar-se a atravessar o golfo: que se o amor é mestre de<br />
emprender temeri<strong>da</strong>des, não menos a paixão no coração <strong>do</strong> conde lhe<br />
persuadia aventurar-se aos riscos por desagravar-se. Havia o conde em sua<br />
moci<strong>da</strong>de milita<strong>do</strong> nas guerras <strong>do</strong> império, alcançan<strong>do</strong> nas línguas <strong>da</strong> fama<br />
aplausos de valente, e assim remoçan<strong>do</strong> nele o agravo os brios com a paixão e<br />
o valor com a ira, à vista <strong>do</strong>s eclipses que recebia sua pessoa com a fugi<strong>da</strong> de<br />
Flora, não receou engolfar-se nas on<strong>da</strong>s em tão pequeno baixel, sem ser a<br />
barca de Amiclas, nem ele assegurar de César a ventura.<br />
Acalmou o vento à nau de Raimun<strong>do</strong>, com que foi força<strong>do</strong> a suspender<br />
as velas; adiantou-se a barca, porque se valeu <strong>do</strong>s remos, e em breve tempo<br />
aportou em Veneza, aquele marítimo empório sobre as on<strong>da</strong>s fun<strong>da</strong><strong>do</strong> pelos<br />
antigos troianos, terra que parece mar e mar que logra os privilégios de terra:<br />
comércio geral <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, por não lhe chamar mun<strong>do</strong> abrevia<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> para<br />
mun<strong>do</strong> pequeno e para abreviar-se muito grande. Desembarcou o conde com<br />
sua gente, e deixan<strong>do</strong> alguns cria<strong>do</strong>s na praia, para <strong>da</strong>rem aviso de quan<strong>do</strong> a<br />
nau chegasse, ele e Carlos, seu filho, se foram hospe<strong>da</strong>r em casa de<br />
Vespasiano, um <strong>do</strong>s ilustres e prudentes sena<strong>do</strong>res <strong>da</strong>quela senhoria, que era<br />
seu amigo de muitos anos e havia milita<strong>do</strong> com ele nos juvenis de sua i<strong>da</strong>de.<br />
Admira<strong>do</strong> este de ver ao conde vir a Veneza com tanta pressa, e conhecen<strong>do</strong><br />
de sua senti<strong>da</strong> relação a causa <strong>do</strong> intenso de sua <strong>do</strong>r, com lágrimas referi<strong>da</strong> e<br />
com iras termina<strong>da</strong>, lhe disse:<br />
- Com razão se costuma dizer, conde amigo e senhor, que a ira e a<br />
razão jamais moraram juntas em um <strong>do</strong>micílio, porque quanto tem a paixão de<br />
fogosa, tem a prudência de reporta<strong>da</strong>. Os efeitos <strong>da</strong> ira são fazerem tu<strong>do</strong><br />
desabri<strong>do</strong> e os <strong>da</strong> razão, como disse Plutarco 466 , o que à primeira vista parece<br />
insofrível o fazem parecer tolerável. Daqui veio a dizer o Epicuro, referi<strong>do</strong> por<br />
466 De Poet.
484 Padre Mateus Ribeiro<br />
Diógenes, que avaliava por melhor o ser desgraça<strong>do</strong> seguin<strong>do</strong> os ditames <strong>da</strong><br />
razão, <strong>do</strong> que sair venturoso guian<strong>do</strong>-se pelos arrojos <strong>da</strong> ira. Digo isto por<br />
prelúdio <strong>do</strong> que intento dizer-vos, que porventura, se com atenção me ouvirdes,<br />
vos não precipitareis com tanto arrojo nas vinganças, que além <strong>do</strong>s riscos de<br />
vossa alma, arrisqueis vossa vi<strong>da</strong>, vossa fama e vosso esta<strong>do</strong> a uma<br />
irreparável ruína.<br />
- Bem vejo eu (replicou o conde) que vai grande distância em sofrer a<br />
pena a aconselhar o alívio dela, como vai <strong>do</strong> padecer ao discursar. Sempre em<br />
nossas causas próprias formamos um juízo e nas alheias outro. Ven<strong>do</strong>-se os<br />
focenses, povos <strong>da</strong> Grécia, oprimi<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s hostili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> guerra que lhes<br />
faziam os tebanos, e não ten<strong>do</strong> dinheiro com que pagar e ajuntar exército que<br />
os defendesse, foram despejar o templo de Apolo Deifico de to<strong>do</strong> o ouro e<br />
prata que nele acharam, com que ajuntaram exército para se defenderem; o<br />
que ouvin<strong>do</strong> Filipe, rei de Macedónia, como a sacrílegos os veio castigar,<br />
fazen<strong>do</strong>-lhes cruel guerra, e os venceu e destruiu como quem trazia alça<strong>da</strong> e<br />
comissão de Apolo para vingá-lo; não encontrou templo algum <strong>do</strong>s deuses que<br />
não saqueasse e despojasse de quanto nele havia, sen<strong>do</strong> em um mesmo<br />
tempo juiz que castigava e ladrão que despojava quanto nos templos via.<br />
Semelhante exemplo se viu em Mestefel, que quan<strong>do</strong> por morte <strong>do</strong><br />
empera<strong>do</strong>r Teodósio se rebelou Gil<strong>do</strong> com a província de África que<br />
governava, o estranhou e abominou tanto Mestefel, irmão <strong>do</strong> rebela<strong>do</strong>, que<br />
fugin<strong>do</strong> para Honório, que então imperava, criminou tanto diante dele a rebelião<br />
<strong>do</strong> irmão que o empera<strong>do</strong>r o man<strong>do</strong>u com poderoso exército a castigá-lo, e<br />
depois que em batalha o venceu e matou, ven<strong>do</strong>-se vence<strong>do</strong>r e com exército,<br />
se rebelou contra o império, como seu irmão Gil<strong>do</strong> havia feito, não estranhan<strong>do</strong><br />
em si próprio o que tanto estranhou e detestou no outro. Porque vai grande<br />
diferença de julgarmos nossas causas próprias a sentenciar alheias, assim<br />
como vai muita distância entre o aconselhar e o sofrer. Quem padece a <strong>do</strong>r,<br />
sente a pena, que como com rapto movimento leva trás si os discursos, como<br />
diz Euripides 467 , converten<strong>do</strong> a alma to<strong>da</strong>s as suas potências onde o peso <strong>da</strong><br />
<strong>do</strong>r a tiraniza; mas quem está livre de sentir tem os discursos livres para<br />
aconselhar: que como a <strong>do</strong>r o não oprime, também o juízo o não padece.<br />
Eurip., in Joan.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 485<br />
Contu<strong>do</strong> confio eu tanto, senhor Vespasiano, de vossa prudência e confio tanto<br />
<strong>do</strong> que vos merece o vínculo antigo de nossa amizade que estimarei ouvir-vos,<br />
suposto que vivo tão desespera<strong>do</strong> <strong>do</strong> remédio.<br />
- Sempre os conselhos, senhor conde, merecem ser ouvi<strong>do</strong>s, disse<br />
Vespasiano, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> não hajam de ser aceitos. Porque Plutarco 468<br />
escreve que to<strong>do</strong>s necessitamos de ser aconselha<strong>do</strong>s enquanto vivemos.<br />
Porque como as paixões <strong>da</strong> alma pintem as cousas de diferentes cores <strong>da</strong>s<br />
que em si tem, a esperança de verde, o temor páli<strong>do</strong>, a ira de sangue, a<br />
tristeza de negro e o amor de flori<strong>do</strong>, só quem se acha livre destas paixões que<br />
nos cegam tem livres os olhos para ver as cousas com as próprias cores de<br />
que as vestiu a natureza e o tempo, e não com as de que as sobrevestem as<br />
paixões eficazes que a alma sente.<br />
Primeiramente não intento aprovar a escolha <strong>da</strong> senhora Flora por<br />
acerta<strong>da</strong>, pois assim no essencial como no mo<strong>do</strong> leva consigo tanto desacerto:<br />
só procuro consolar vossa mágoa e aplicar-lhe o remédio que o esta<strong>do</strong><br />
presente admitir pode. Entre os naturais bens que Deus Senhor nosso<br />
concedeu aos homens me parecem <strong>do</strong>us os principais, quais são a vi<strong>da</strong> e a<br />
liber<strong>da</strong>de. Da vi<strong>da</strong> quis ele só ser senhor, <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de quis que o fosse o<br />
homem. A senhora Flora era livre para eleger esta<strong>do</strong>, usou <strong>do</strong>s privilégios <strong>da</strong><br />
vontade, guian<strong>do</strong>-se somente pelos ditames <strong>do</strong> amor. Esta diferença põe<br />
Aristóteles 469 entre os livres e os escravos, que estes vivem à vontade <strong>do</strong> seu<br />
senhor e os livres vivem à sua vontade própria. É a liber<strong>da</strong>de nas eleições,<br />
disse Diógenes 470 , <strong>do</strong>m <strong>do</strong> Céu e mimo inestimável <strong>da</strong> ventura: seus perigos<br />
tem a liber<strong>da</strong>de, disse o Séneca 471 , quan<strong>do</strong> pelo justo não se regula. Mas quem<br />
há-de coarctar os indultos de livre se a natural razão os não modera? Que a<br />
senhora Flora escolhesse esposo a vosso gosto, obrigação era, que a razão o<br />
pedia; foi mais poderoso o amor em persuadi-la <strong>do</strong> que a reverência <strong>do</strong> pai em<br />
moderá-la; usou <strong>do</strong>s privilégios de livre na eleição porque teve o querer mais<br />
468 Plut., De amicit. & adul.<br />
469 Arist., Polit. 6.<br />
470 Diog., apud Laert.<br />
471 Senec, Epist. 9.
486 Padre Mateus Ribeiro<br />
subornos <strong>do</strong> que o discurso respeitos, e por não faltar ao fino de amar, faltou<br />
ao decoroso de vos obedecer.<br />
Sen<strong>do</strong> em Reginal<strong>do</strong> tão rara a gentileza, tão subi<strong>do</strong> o valor, tão<br />
estimáveis os <strong>do</strong>tes naturais, como vós próprio confessais, alguma desculpa<br />
tem a senhora Flora em escolhê-lo, pois já quan<strong>do</strong> a natureza o <strong>do</strong>tou tão<br />
liberal, logo o habilitou para superior ventura, e se lhe negou a grandeza<br />
quan<strong>do</strong> nascia, não lhe negou to<strong>do</strong>s os meios de poder merecê-la. São os<br />
merecimentos esca<strong>da</strong>s <strong>da</strong> ventura por onde se sobe às digni<strong>da</strong>des, ten<strong>do</strong><br />
estes, como diz Quintiliano 472 , tanto mais de aplaudi<strong>do</strong>s quanto foram no subir<br />
mais arrisca<strong>do</strong>s. Negou-lhe o humilde <strong>do</strong> nascimento que luzisse, mas não o<br />
impossibilitou com <strong>da</strong>r-lhe tantas partes para que à maior ventura não<br />
aspirasse. E se lhe tirou as penas ao nascer, deu-lhas o tempo com os méritos<br />
para poder voar. Às aves o ninho lhes comunicou as asas e o tempo com seus<br />
discursos as penas: mas a Reginal<strong>do</strong> negan<strong>do</strong>-lhe tu<strong>do</strong> o berço por humilde,<br />
lhe deu o tempo as asas e as penas. As asas sem penas não aproveitam, as<br />
penas sem asas pouco levantam: mas a esse mancebo faltan<strong>do</strong>-lhe tu<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong><br />
lhe deu o tempo quan<strong>do</strong> mais lhe importava.<br />
Isto pressuposto, e que não errou a senhora Flora nas partes <strong>do</strong> esposo<br />
que escolheu, pois concedeis tinha tantas, se em outro sujeito mais altivo se<br />
deram, fica só a queixa <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de e em não vos guar<strong>da</strong>r obediência que<br />
como a tal pai devia. Desta segun<strong>da</strong> culpa tem a desculpa em ser amante, que<br />
como amor se pinta ven<strong>da</strong><strong>do</strong>s os olhos, mal pode acertar nos respeitos quem<br />
nem os vê para segui-los, nem os considera para guardá-los. Senão<br />
perguntemos a Orithia, filha de Pandíon, rei de Atenas, porque fugiu a seu pai<br />
com o filho de Astreu, rei de Trácia? A Adriana, porque fugiu de Creta <strong>do</strong> paço<br />
de seu pai, el-rei Minoe, com Teseu, desconheci<strong>do</strong> por sol<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>da</strong> fortuna em<br />
terra alheia? Perguntemos à Infanta Dona Ximena, irmã d'el-rei Dom Afonso, o<br />
casto, de Castela, porque quis fugir com o conde Dom Sancho Dias de<br />
Sal<strong>da</strong>nha, sen<strong>do</strong> seu vassalo, depois de havê-la goza<strong>do</strong>? E to<strong>da</strong>s responderão<br />
que se cegaram porque bem quiseram. Que como o amor discursa com a<br />
vontade, como disse Plutarco 473 , o mais que se segue é o arrojo e o menos que<br />
Quint., Lib. 6.<br />
Plut., De amicit. & adul.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 487<br />
repara é no discurso. Nenhuma cousa dizem ser ama<strong>da</strong> sem primeiro ser<br />
conheci<strong>da</strong>; mas a fermosura apenas passa <strong>da</strong> apreensão ao juízo quan<strong>do</strong> logo<br />
dá assaltos à vontade, sem esperar provações <strong>do</strong> discurso. Daqui veio a dizer<br />
Propércio que o amor não se governa pela razão, porque esta pende <strong>do</strong><br />
discurso, o que o amor não admite. Majestade e amor disse Ovídio 474 que não<br />
moravam juntos em um <strong>do</strong>micílio, porque o querer tem pouco de respeitoso e a<br />
majestade se desvela em querer ser respeita<strong>da</strong>; e assim não é maravilha que,<br />
se amava a senhora Flora, não reparasse na desigual<strong>da</strong>de de Reginal<strong>do</strong> para<br />
ausentar-se com ele: que costuma o amor igualar as distâncias que a política<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> diferença tanto.<br />
Nem a humil<strong>da</strong>de <strong>do</strong> nascimento de Reginal<strong>do</strong> impossibilita sua ventura,<br />
que rei de Assíria e Media era Astíages e poden<strong>do</strong> casar a princesa sua filha<br />
com qualquer <strong>do</strong>s reis <strong>do</strong> oriente que ele quisesse, a foi casar com Cambisses,<br />
um desvali<strong>do</strong> e pobre persiano, de quem nasceu o grande Ciro que conquistou<br />
tantas províncias <strong>do</strong> oriente. Humilde e pobre de nascimento era Caio Mário e<br />
<strong>caso</strong>u com Júlia, ilustríssima tia de Júlio César, primeiro empera<strong>do</strong>r de Roma,<br />
alcançan<strong>do</strong> depois pelo valor de sua pessoa o ser sete vezes cônsul. Não<br />
queriam os patrícios, cavaleiros e sena<strong>do</strong>res romanos que nenhum <strong>do</strong> povo<br />
casasse com filhas e parentas suas, mas o tribuno <strong>do</strong> povo Caio Canuleio fez<br />
tanta instância que, sen<strong>do</strong> cônsules de Roma Tito Quíncio e Aulo Fúrio, se<br />
ordenou por lei que a qualquer plebeu fosse lícito poder casar com filhas, irmãs<br />
e parentas <strong>do</strong>s cavaleiros e sena<strong>do</strong>res de Roma, como <strong>da</strong>í em diante casaram.<br />
Pois se a necessi<strong>da</strong>de em que Roma se via com as guerras de tantos<br />
inimigos que ca<strong>da</strong> dia a cercavam fez <strong>da</strong>r consentimento aos patrícios,<br />
cavaleiros e sena<strong>do</strong>res para o povo conseguir uma permissão tão agra para<br />
eles e a que tanta repugnância tinham feito, não seria estranha maravilha que<br />
no termo em que hoje vos vedes permitísseis que a senhora Flora fosse<br />
esposa de Reginal<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> ele pelos merecimentos primeiro se habilitasse<br />
para merecê-la. Porque o intentardes vingança é não advertirdes que muitas<br />
vezes serve esta mais de deslustrar que de satisfazer, pois sempre fica mais<br />
presente a ofensa que o desagravo dela. Há castigos que autorizam a quem os<br />
sofre e vinganças que des<strong>do</strong>uram a quem as toma; e vai mais muitas vezes o<br />
Ovid., Metamorph. 2.
488 Padre Mateus Ribeiro<br />
dissimular com o agravo <strong>do</strong> que empenhar-se na satisfação. Lá disse<br />
Diógenes, referi<strong>do</strong> por Plutarco, que o melhor género de vingança era saber<br />
per<strong>do</strong>ar no tempo em que a vingança se podia conseguir; e o Juvenal chamou<br />
à vingança desejo de ânimos avilita<strong>do</strong>s e vis que intentam curar o sentimento<br />
<strong>da</strong> paixão com o próprio remédio com que se agrava a ofensa nas opiniões.<br />
Achou-se Públio Clódio, distraí<strong>do</strong> mancebo e poderoso em Roma, vesti<strong>do</strong> em<br />
hábito de mulher uma noite em casa de Júlio César, dizem que leva<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
afeição de Pompeia, sua esposa, e sen<strong>do</strong> preso, consentiu César<br />
discretamente que o soltassem a título de não ter culpa; porque se o<br />
castigassem, como o atrevimento pedia, divulgara-se com ele que podia César<br />
ser ofendi<strong>do</strong>, o que ven<strong>do</strong> soltar a Clódio se duvi<strong>da</strong>va; e quis com prudente<br />
dissimulo cortar os motivos às opiniões e não o castigo publicar a ofensa, a<br />
quem a duvi<strong>da</strong>va. Senão dizei-me, senhor conde, que conseguiu o duque de<br />
Milão, Filipe Galeácio, com man<strong>da</strong>r publicamente degolar a duquesa Dona<br />
Brites, sua esposa, por dizer que havia cometi<strong>do</strong> adultério com seu copeiro (o<br />
que ela sempre até à morte negou), senão o ser <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> avalia<strong>do</strong> se o delito<br />
foi certo por ofendi<strong>do</strong> e se foi falso por injusto?<br />
Disse que havia castigos que a quem os padecia autorizavam, porque<br />
me lembra que havia uma lei entre os tebanos que qualquer governa<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s<br />
armas <strong>da</strong> República de Tebas que usasse mais <strong>do</strong> governo por tempo de<br />
quatro meses, fora <strong>do</strong> tempo que o sena<strong>do</strong> lhe concedesse o governo,<br />
morresse por isso violentamente. E haven<strong>do</strong> excedi<strong>do</strong> este termo o invencível<br />
capitão Epaminon<strong>da</strong>s, em que alcançou gloriosos triunfos à sua pátria, o<br />
prenderam em Tebas para o condenarem conforme a lei. A que ele não deu<br />
outra escusa senão pedir que, na sentença de morte que lhe dessem,<br />
declarassem os juízes como nos quatro meses por que o condenavam<br />
alcançara ele para Tebas mais gloriosas vitórias e triunfos <strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s seus<br />
antecessores lhe tinham adquiri<strong>do</strong> em dilata<strong>do</strong>s anos. O que ven<strong>do</strong> os juízes, e<br />
que o castigo mais ficava sen<strong>do</strong> para Epaminon<strong>da</strong>s honra grande que castigo<br />
<strong>da</strong> lei, man<strong>da</strong>ram fosse solto. Se quiserdes castigar a Reginal<strong>do</strong>, o castigo o<br />
fica autorizan<strong>do</strong>, de que sen<strong>do</strong> filho de pais humildes, teve brios tão generosos<br />
que aspirou a empresa tão sublime, qual foi ser esposo <strong>da</strong> senhora Flora, e<br />
que teve <strong>do</strong>tes de que ela tanto se pagasse que de vossa casa com ele se<br />
saísse: e ficará servin<strong>do</strong>-lhe o castigo mais de crédito de seu valor que de
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 489<br />
satisfação de vosso sentimento. As empresas grandes autorizam só com se<br />
emprenderem, quanto mais quan<strong>do</strong> se alcançam. E se perder Reginal<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong><br />
por atrevi<strong>do</strong>, ninguém lhe tirará os aplausos de generoso.<br />
Quanto mais, se bem o considerardes, não estais afronta<strong>do</strong>, mas só<br />
desobedeci<strong>do</strong>. A que propriamente se chama afronta desce <strong>do</strong>s pais aos filhos<br />
e não sobe <strong>do</strong>s filhos aos pais. To<strong>do</strong>s louvam ao empera<strong>do</strong>r Antonino Pio de<br />
príncipe excelente e ninguém o culpa na vi<strong>da</strong> indecorosa e liviana de Faustina,<br />
sua filha. To<strong>do</strong>s engrandecem a Alcibíades, insigne capitão <strong>do</strong>s atenienses,<br />
aplaudin<strong>do</strong> nele o valor e prudência com que se conservou, assim no ódio,<br />
como no amor de sua República, na varie<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s tempos. E vejo que nenhum<br />
autor o culpa pelos erros de Lai<strong>da</strong>, sua filha, sen<strong>do</strong> aquela tão licenciosa como<br />
afama<strong>da</strong> cortesã que viveu em Corinto. Porque <strong>do</strong>s filhos não sobe o<br />
descrédito aos pais, assim como <strong>do</strong>s pais desce aos filhos. Dos ramos não se<br />
comunicam os desaires aos ramos: pouco importa mortificar-se um ramo para<br />
a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> árvore, mas muito importa para o ver<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s ramos não mortificar-se<br />
o tronco. Sen<strong>do</strong> isto assim, bem podeis, senhor conde, estar <strong>da</strong> desobediência<br />
ressenti<strong>do</strong>, mas não justamente afronta<strong>do</strong>; que a desobediência <strong>do</strong>s filhos bem<br />
pode ser mágoa, mas não chega a ser rigorosa afronta <strong>do</strong>s pais.<br />
Se a senhora Flora persuadi<strong>da</strong> <strong>da</strong> afeição escolheu esposo tão pequeno<br />
na quali<strong>da</strong>de, sabei vós como generoso fazê-lo grande. Que mais se louva a<br />
Alexandre por haver feito rei de Sidónia ao pobre pomareiro Ab<strong>do</strong>lomino <strong>do</strong><br />
que por haver despoja<strong>do</strong> a Dário <strong>do</strong> império <strong>do</strong> oriente. Porque em tirar-lhe a<br />
coroa mostrou-se ambicioso, mas em <strong>da</strong>r a coroa de Sidónia a Ab<strong>do</strong>lomino<br />
ostentou-se magnífico. Entre as façanhas que de Hércules se contam, foi uma<br />
delas fazer rei de Esparta a Tín<strong>da</strong>ro, sen<strong>do</strong> particular ci<strong>da</strong>dão. Porque em <strong>da</strong>r-<br />
Ihe a coroa se mostrou grandioso e em tirá-la a Gerião em Espanha manifestou<br />
ambição. É próprio <strong>da</strong> majestade o fazer grandes, que <strong>da</strong>s humil<strong>da</strong>des não é<br />
fazer grandezas. To<strong>do</strong>s se queixam <strong>do</strong> vento quan<strong>do</strong> a fúria de sua violência<br />
quebran<strong>do</strong> as árvores alterosas as arruina e deixa pequenas. Ninguém se<br />
queixa <strong>do</strong> sol quan<strong>do</strong> com seus raios levantan<strong>do</strong> <strong>da</strong> terra os pequenos vapores<br />
os faz nuvens grandes. Porque o levantar aos pequenos sempre é majestoso e<br />
o desfazer aos grandes sempre se avaliou violento. Se a ventura quer levantar<br />
a Reginal<strong>do</strong>, <strong>da</strong>r-lhe a mão para que suba, ponde-vos <strong>da</strong> parte <strong>da</strong> ventura para<br />
favorecê-lo e não <strong>da</strong> parte <strong>da</strong> sua ousadia para derribá-lo. Acreditai-vos
490 Padre Mateus Ribeiro<br />
pie<strong>do</strong>so e não de severo. Porque sempre a pie<strong>da</strong>de foi louva<strong>da</strong> e a severi<strong>da</strong>de<br />
nunca foi aplaudi<strong>da</strong>.<br />
Seleuco, rei <strong>do</strong>s locrenses, fez uma lei em que man<strong>da</strong>va que ao que<br />
fosse compreendi<strong>do</strong> em adultério lhe fossem tira<strong>do</strong>s ambos os olhos; e sen<strong>do</strong> o<br />
príncipe, seu filho, em adultério acha<strong>do</strong>, por não privar ao filho de ambos os<br />
olhos, lhe man<strong>do</strong>u tirar um e a si mesmo tirou o outro: acção que foi mais<br />
admira<strong>da</strong> por severa <strong>do</strong> que louva<strong>da</strong> por acerta<strong>da</strong>. Não queirais, senhor, privar-<br />
vos de uma filha, tanto para estimar-se pela fermosura, por vingardes severo<br />
uma desobediência que no amor tem desculpa e em vossa pie<strong>da</strong>de pode ter o<br />
remédio. Duas vezes fica sen<strong>do</strong> pai quem a vi<strong>da</strong> a seus filhos conserva: em lha<br />
<strong>da</strong>rdes a primeira vez fostes ministro (a) <strong>da</strong> natureza, mas em lha conservardes<br />
sereis administra<strong>do</strong>r <strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de. Não vos precipiteis em os despenhos <strong>da</strong> ira<br />
que ao diante trazem consigo sem fruto os arrependimentos: como se viu<br />
quan<strong>do</strong> Herodes, o cruel, man<strong>do</strong>u matar a fermosa Mariene, sua esposa, de<br />
que depois se arrependeu tanto que chegava a delirar de sentimento. Bem se<br />
viu em a arroja<strong>da</strong> morte de Clito nas lágrimas que de arrependi<strong>do</strong> chorou o<br />
grande Alexandre, queren<strong>do</strong> deixar-se morrer de pesaroso, se os capitães de<br />
seu exército compassivos lho não impediram. Lá disse o Quintiliano que o ter<br />
compaixão <strong>do</strong>s filhos era a cabal obrigação <strong>do</strong> amor <strong>do</strong>s pais. Pois se o amor<br />
que lhes tem não se mostrou compadeci<strong>do</strong>, em que se há-de experimentar o<br />
afecto natural de amá-los? E se os erros <strong>do</strong>s filhos não acharem remédio nas<br />
entranhas enterneci<strong>da</strong>s de um pai, como acharão nem escusa nem remédio<br />
em peitos estranhos? Se o pelicano, por <strong>da</strong>r remédio aos filhos, faz <strong>do</strong> pico<br />
lança com que se rasga o peito, fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s líqui<strong>do</strong>s rubios de seu sangue<br />
poderosa epítema para <strong>da</strong>r-lhes vi<strong>da</strong>, fazen<strong>do</strong> de sua própria <strong>do</strong>r remédio<br />
contra os assaltos <strong>da</strong> morte, com quanta mais razão devem os pais socorrer no<br />
perigo aos filhos, que tem tanta parte nos vitais alentos de seu coração?<br />
Aqui chegava Vespasiano com sua prudente persuasão, de que o conde<br />
não estava pouco enterneci<strong>do</strong>, enfim de pai em quem a pie<strong>da</strong>de com pouca<br />
bataria abre brecha à compaixão, quan<strong>do</strong> entraram uns cria<strong>do</strong>s dizen<strong>do</strong> que a<br />
nau de Raimun<strong>do</strong> vinha entran<strong>do</strong> no porto: anúncio com que to<strong>do</strong>s se<br />
perturbaram; e ven<strong>do</strong> Vespasiano ao conde e a Carlos, seu filho, com as cores<br />
Instrumento, apetrecho.
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte III 491<br />
mu<strong>da</strong><strong>da</strong>s, lhes pediu não saíssem de casa, que ele iria à nau a trazer a<br />
senhora Flora para sua casa e faria prender a Reginal<strong>do</strong> em lugar seguro, té<br />
mais vagarosamente discursarem o que sobre isto devia fazer-se. Pareceu<br />
prudente o conselho, porque nunca os ofendi<strong>do</strong>s tem o ânimo tão livre <strong>da</strong><br />
paixão que com a vista <strong>do</strong>s ofensores se refreiem <strong>do</strong>s excessos a que pode<br />
precipitá-los a vingança. Saiu Vespasiano com seus cria<strong>do</strong>s, e chaman<strong>do</strong> a um<br />
auditor <strong>da</strong> senhoria para que com seus ministros o acompanhasse,<br />
embarcan<strong>do</strong>-se em um bargantim, quan<strong>do</strong> a nau <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a costuma<strong>da</strong> salva,<br />
recolhen<strong>do</strong> as velas as âncoras largava, subiram ao convés <strong>da</strong> nau com<br />
admiração de Raimun<strong>do</strong> e não pouco temor de Reginal<strong>do</strong>. Deram as boas<br />
vin<strong>da</strong>s a Raimun<strong>do</strong> e lhe man<strong>da</strong>ram que fizesse vir à sua presença a<br />
Reginal<strong>do</strong> e a Flora, que em sua nau trazia. Perturbou-se Raimun<strong>do</strong>, descorou<br />
o rosto Reginal<strong>do</strong>, suspenderam-se os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e marinheiros e ficou a nau<br />
cheia de confusão com a presença de Vespasiano e auditor. Porque como a<br />
senhoria de Veneza é tão recta na justiça como temi<strong>da</strong>, to<strong>do</strong>s ficaram<br />
intimi<strong>da</strong><strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> viram procurar a Reginal<strong>do</strong> e a Flora, porque to<strong>do</strong>s sentiam<br />
seus desgostos.<br />
Respondeu Reginal<strong>do</strong> que ele era e que Flora era sua esposa e estava<br />
recolhi<strong>da</strong>. Replicou o sena<strong>do</strong>r que importava que aparecesse para a diligência<br />
que fazer queria. Entrou Reginal<strong>do</strong> a chamá-la, assusta<strong>do</strong> <strong>do</strong> que ser poderia,<br />
e saiu Flora ao convés tão bizarra que, se para uns foi sua vista novi<strong>da</strong>de, para<br />
to<strong>do</strong>s ficou sen<strong>do</strong> admiração. Sau<strong>do</strong>u-a o sena<strong>do</strong>r Vespasiano e o auditor com<br />
muita cortesia, e lhe disse que importava que a senhora Flora fosse estar em a<br />
companhia de Lívia, sua esposa, e Reginal<strong>do</strong> prisioneiro em casa <strong>do</strong> auditor.<br />
- Isso não será (disse Reginal<strong>do</strong>) estan<strong>do</strong> eu vivo, pois não me falta<br />
valor para antes sofrer a morte que consentir tal apartamento.<br />
O que disse empunhan<strong>do</strong> a espa<strong>da</strong> já na ira precipita<strong>do</strong>. Lançou Flora a<br />
mão à espa<strong>da</strong> de um sol<strong>da</strong><strong>do</strong>.<br />
- Primeiro que eu veja a meu esposo preso (dizia ela), saberei a seu<br />
la<strong>do</strong> morrer por defendê-lo.<br />
Alvoroçaram-se os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e o capitão Raimun<strong>do</strong>, desejan<strong>do</strong> servir a<br />
Flora, disse assim:<br />
- Esta nau, senhores, em que me vedes, é minha e na<strong>da</strong> deve à<br />
senhoria de Veneza. Aportei aqui em razão de comércio, mas vejo que me
492 Padre Mateus Ribeiro<br />
recebem com semelhantes rigores; picarei a amarra e largarei as velas, que<br />
para comerciar o mun<strong>do</strong> é grande, e não hei-de consentir se agravem estes<br />
senhores que eu trago nesta nau debaixo de minha palavra e segurança.<br />
Os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e marinheiros se arrojavam a tomar as armas por seu<br />
capitão e outros a quererem cortar a amarra para se partirem. O que ven<strong>do</strong><br />
Vespasiano lhe disse:<br />
- Não é, senhores, o meu intento nem ofender a senhora Flora, nem a<br />
Reginal<strong>do</strong>, senão assegurar-lhes as vi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> vingança <strong>do</strong> conde e <strong>da</strong>r meios<br />
com que se aplaque sua ira, como já em parte tenho feito. E debaixo de minha<br />
palavra os seguro que nenhum <strong>da</strong>no receberão. Sirva-se a senhora Flora de<br />
ser hóspe<strong>da</strong> de Lívia e o senhor Reginal<strong>do</strong> de o ser por uns dias <strong>do</strong> senhor<br />
auditor como entreteni<strong>do</strong>, e não prisioneiro, com protesto que não vin<strong>do</strong> o<br />
conde Manfre<strong>do</strong> nos parti<strong>do</strong>s e condições que eu lhe propuser, o senhor<br />
Reginal<strong>do</strong> seja posto em to<strong>da</strong> sua inteira liber<strong>da</strong>de. Porque meu intento é fazer<br />
pazes e não vinganças, nem de meu cargo é solicitar <strong>da</strong>nos senão atalhos.<br />
Pareceu justo aceitar-se o parti<strong>do</strong>, pois podia ser proveitoso, e sen<strong>do</strong> o<br />
medianeiro pessoa tão autoriza<strong>da</strong> e de tanto valimento na senhoria; e assim<br />
despedin<strong>do</strong>-se Reginal<strong>do</strong> e Flora, com as lágrimas nos olhos, de Raimun<strong>do</strong>,<br />
que com os seus deu mostras de sentir este apartamento, que em perder a<br />
Flora de vista tanto lhe custava, entraram no bargantim, e man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> aviso lhes<br />
viesse o coche em desembarcan<strong>do</strong>, entraram nele os quatro. E vin<strong>do</strong> Lívia à<br />
porta a receber a Flora, que com Vespasiano subia, partiu no coche o auditor<br />
com Reginal<strong>do</strong> a sua casa prisioneiro, mas como em depósito guar<strong>da</strong><strong>do</strong>; que<br />
de qualquer sorte ten<strong>do</strong> a liber<strong>da</strong>de impedi<strong>da</strong>, ficava sen<strong>do</strong> tormento, pois<br />
perdia a companhia <strong>do</strong> que tanto amava, e se via entregue em guar<strong>da</strong> <strong>do</strong> que<br />
podia temer quem os fins ignorava em que isto pararia.<br />
Cap. XVII.<br />
Do que Vespasiano fez neste negócio, até Reginal<strong>do</strong> se embarcar por capitão<br />
para Chipre
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 493<br />
Prisioneiro Reginal<strong>do</strong> em casa <strong>do</strong> auditor e deposita<strong>da</strong> Flora em a de<br />
Vespasiano, sentiu ca<strong>da</strong> qual deles o rigor <strong>do</strong> apartamento, verdugo inexorável<br />
de quem ama, tirania <strong>do</strong> querer, martírio <strong>do</strong> coração afeiçoa<strong>do</strong> que, como diz<br />
Valério Máximo 475 , menos sente perder a vi<strong>da</strong> que apartar-se <strong>da</strong> companhia <strong>do</strong><br />
que ama. Donde veio a dizer Júlio César 476 que as cousas ausentes são as que<br />
mais atormentam e inquietam. Consolava Lívia as lágrimas de Flora com a<br />
persuadir a esperar as melhoras e acrescentamentos de Reginal<strong>do</strong>, com que<br />
sua escolha ficaria mais decorosa e seu amor mais desculpável nas opiniões<br />
<strong>do</strong>s que o condenavam por indecente. Ao que Flora, sem suspender as<br />
lágrimas de enterneci<strong>da</strong>, respondeu assim:<br />
- Quan<strong>do</strong>, senhora Lívia, Reginal<strong>do</strong> ou na quali<strong>da</strong>de ou na fortuna me<br />
igualara, pouco tivera que agradecer-me que por esposo o escolhera. Amor<br />
nas desigual<strong>da</strong>des se assina, que nas parelhas pouco se manifesta. Se<br />
Reginal<strong>do</strong> carecera de tantos <strong>do</strong>tes de que o enriqueceu a natureza para ser<br />
ama<strong>do</strong>, desculpas tivera minha escolha em se pintar o amor cego e tivera<br />
minha eleição tu<strong>do</strong> de amante e na<strong>da</strong> de entendi<strong>da</strong>. Mas quan<strong>do</strong> a natureza<br />
tão cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa o fez na gentileza raro, no valor animoso, na cortesia agradável,<br />
no juízo discreto, na conversação poli<strong>do</strong>, no trato afável e no amar tão fino, que<br />
lhe faltava para ser estima<strong>do</strong>? Nascer de pais humildes? Não quis a natureza<br />
<strong>da</strong>r-lhe tu<strong>do</strong> porque se não desvanecesse quan<strong>do</strong> na<strong>da</strong> lhe faltasse.<br />
Queixaram-se as aves a Júpiter, dizen<strong>do</strong> a águia porque, sen<strong>do</strong> <strong>da</strong>s aves<br />
rainha, não havia de ter a fermosura <strong>da</strong>s penas <strong>do</strong> pavão e a suave melodia <strong>do</strong><br />
rouxinol com que a to<strong>do</strong>s suspende quan<strong>do</strong> canta? Queixou-se o pavão porque<br />
lhe dera uma voz tão desabri<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> ave tão vistosa, que em suas penas<br />
retratava os resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol e os olhos cintilantes <strong>do</strong> firmamento? Queixou-<br />
se o rouxinol porque sen<strong>do</strong> Orfeu <strong>do</strong>s pra<strong>do</strong>s, sonoro embaixa<strong>do</strong>r <strong>da</strong><br />
Primavera, o que dá música à aurora quan<strong>do</strong> nasce e canta vilancicos ao sol<br />
quan<strong>do</strong> ao meio-dia parece que a sesta <strong>do</strong>rme, não havia de ter melhores asas<br />
e mais fermosas penas? A to<strong>do</strong>s dizem satisfez Júpiter com uma só resposta,<br />
dizen<strong>do</strong> se contentassem com o que tinham, pois não se podia <strong>da</strong>r tu<strong>do</strong> a<br />
to<strong>do</strong>s.<br />
Vai. Maxim., Lib. 4.<br />
Caesar, De bello Gall. lib. 7.
494 Padre Mateus Ribeiro<br />
Se Reginal<strong>do</strong> me igualara, porventura que me não quisera; e que nas<br />
asas de tantas partes voara a buscar superiores empenhos a quem querer.<br />
Narciso de si próprio desvaneci<strong>do</strong>, na<strong>da</strong> para se render lhe contentara, e fizera<br />
pequena estimação <strong>do</strong> que em mim quer o mun<strong>do</strong> engrandecer. Tem-me o<br />
conde por desgraça<strong>da</strong>? Aí tem a Carlos, seu filho, que logre suas venturas. É<br />
poderoso? Deixe-me ser humilde. Se é rico? Deixe-me ser pobre: que eu me<br />
contento com minha sorte, sem invejar suas grandezas. Siga o soberano e não<br />
se compadeça <strong>do</strong> meu abatimento: que as lágrimas que choro são de mágoa e<br />
não de arrependi<strong>da</strong>. Se quer tirar-me a vi<strong>da</strong>? Cobrará essa dívi<strong>da</strong> em que lhe<br />
estou obriga<strong>da</strong> e ficará despoja<strong>do</strong> de rigoroso acre<strong>do</strong>r e eu livre de ser-lhe tão<br />
infelice deve<strong>do</strong>ra. Perdi a condessa Lucrécia, minha mãe e senhora, e logo em<br />
sua morte deram baixa minhas venturas; pois se viva a tivera, diferente<br />
compaixão experimentara. Bem disse o filósofo que mais amavam as mães a<br />
seus filhos <strong>do</strong> que os pais, porque em seus ventres os trouxeram; e se<br />
enternece mais uma mãe de um filho quan<strong>do</strong> chora <strong>do</strong> que um pai de um filho<br />
quan<strong>do</strong> pena. Faltou-me nela tu<strong>do</strong> e por isso a ventura me falta, pois não<br />
bastou ser sempre meu pai de mim com tantos desvelos servi<strong>do</strong> para o<br />
experimentar obriga<strong>do</strong>. Dous freios tem a ira para reportar-se, ou o carinho <strong>da</strong><br />
criação ou a lembrança <strong>do</strong>s serviços; mas meu pai nem se lembra que me<br />
criou, nem põe diante os serviços que lhe fiz. Vejo-me me terra alheia com meu<br />
esposo preso para não poder amparar-me e presente meu rigoroso pai para<br />
perseguir-me. Como poderei consolar-me, nem suspenderem rneus olhos suas<br />
correntes, pois minhas mágoas são tão vivas para senti<strong>da</strong>s como eternas para<br />
chora<strong>da</strong>s?<br />
Enterneci<strong>da</strong>, Lívia acompanhou nas lágrimas a Flora, consolan<strong>do</strong>-a em<br />
que nela teria mãe, se a condessa lhe faltava: que como Lívia era senhora tão<br />
ilustre, é próprio atributo <strong>da</strong> fi<strong>da</strong>lguia o ser compadeci<strong>da</strong>. Como bem disse<br />
Cícero 477 , e São Gregório 478 ensina, que o compadecer-se <strong>da</strong>s aflições <strong>do</strong>s<br />
outros é crédito grande <strong>da</strong> virtude própria. Entretanto tratou Vespasiano com o<br />
conde que ele faria que um seu sobrinho, que era capitão de uma <strong>da</strong>s naus<br />
que iam de socorro a Chipre, a quem o grão turco Selim man<strong>da</strong>va conquistar,<br />
Cicer., Offic. 2.<br />
Greg., 19. Moralium.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 495<br />
renunciasse a capitania em Reginal<strong>do</strong> e que a senhoria o confirmasse nela,<br />
para que in<strong>do</strong> mais autoriza<strong>do</strong>, servisse e merecesse acrescentamentos de<br />
maior honra, pois a empresa era digna de nela se empregar to<strong>do</strong> o valor; e<br />
mostran<strong>do</strong>-se o conde indetermina<strong>do</strong> e suspenso se nisto consentiria,<br />
Vespasiano, como singular estadista, lhe disse:<br />
- Este arbítrio, senhor conde, que vos <strong>do</strong>u, pouco tem que discursar em<br />
aceitar-se, porque nele nunca ides a perder, antes, conforme o tempo em que<br />
estamos, a ganhar. Fazermos a Reginal<strong>do</strong> capitão para uma guerra tão<br />
honrosa é autorizá-lo, seguin<strong>do</strong>-se <strong>da</strong>qui um de <strong>do</strong>us efeitos, quais são: se<br />
nela proceder com o valor que deve e ficar vivo de guerra tão arrisca<strong>da</strong> como<br />
esta, merecerá que a senhoria o acrescente em cargos tão autoriza<strong>do</strong>s e<br />
proveitosos que, como de novo renasci<strong>do</strong>, possa aspirar a merecer ser genro<br />
vosso, subin<strong>do</strong> pelas armas ao que lhe negou o nascimento, como tantos no<br />
mun<strong>do</strong> se tem visto que por elas os maiores postos ocuparam. E se morrer na<br />
empresa, que se pode vaticinar ser o mais certo, ficais desassombra<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
pena em que agora vos vedes, pois a senhora Flora mu<strong>da</strong>rá de parecer, ven<strong>do</strong><br />
sepulta<strong>do</strong> a quem mostrou amar tanto. Não há mais discreto castigo que<br />
aquele que se dá a título de favor. Porque o que vem com título de castigo<br />
pode talvez evitar-se, mas o castigo que se disfarça em favor como apeteci<strong>do</strong><br />
se procura.<br />
Lembra-me que an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> Lisandro, insigne e venturoso capitão <strong>do</strong>s<br />
lacedemónios, com poderoso exército conquistan<strong>do</strong> muitas ci<strong>da</strong>des de Grécia,<br />
para as fazer tributárias de sua república, a to<strong>do</strong>s os atenienses que<br />
encontrava em várias partes por onde passava lhes man<strong>da</strong>va que logo se<br />
recolhessem dentro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Atenas, ameaçan<strong>do</strong>-os que se outra vez os<br />
encontrasse fora dela, os passaria à espa<strong>da</strong>. A que eles obedecen<strong>do</strong> se<br />
recolhiam, avalian<strong>do</strong> os atenienses por favor grande este respeito que Lisandro<br />
mostrava que lhes tinha; e era tanto ao contrário que, como ele secretamente<br />
intentava pôr sítio à ci<strong>da</strong>de de Atenas, como depois lhe pôs, queria que<br />
estivesse nela tanta gente junta que os bastimentos lhes não bastassem para<br />
sofrerem o sítio; e assim os venceu e a ci<strong>da</strong>de tomou. De semelhante astúcia<br />
usou Teo<strong>do</strong>rico, rei <strong>do</strong>s ostrogo<strong>do</strong>s, que ven<strong>do</strong>-se senhor de to<strong>da</strong> Itália,<br />
man<strong>do</strong>u publicar por édito que nenhum romano <strong>da</strong>í em diante militasse nos<br />
exércitos, senão que pacificamente em suas casas vivesse e descansasse. O
496 Padre Mateus Ribeiro<br />
que à primeira vista parecia favor, mas depois se conheceu que era castigo.<br />
Porque, como na conquista de Itália os que mais lhe resistiram foram os<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s de Roma, quis com o ócio <strong>da</strong> paz inabilitá-los <strong>da</strong> disciplina militar que<br />
neles estava tão luzi<strong>da</strong>, e parecen<strong>do</strong> que era favor grande que só aos romanos<br />
fazia, era castigo com que os incapacitava, porque só deles se temia.<br />
Os dez varões consulares que governavam a Roma não podiam levar<br />
em sofrimento a liber<strong>da</strong>de com que pelo povo lhes falava Lúcio Siccio, que era<br />
tão valeroso sol<strong>da</strong><strong>do</strong> e de to<strong>do</strong>s tão temi<strong>do</strong> que em espaço de quarenta anos<br />
que tinha milita<strong>do</strong> se tinha acha<strong>do</strong> em cento e vinte batalhas e havia recebi<strong>do</strong><br />
quarenta e cinco feri<strong>da</strong>s, to<strong>da</strong>s no peito, e ganha<strong>do</strong> vinte e cinco coroas<br />
militares. Com esta confiança de seu valor tão afama<strong>do</strong>, falava aos dez varões<br />
com to<strong>da</strong> a liber<strong>da</strong>de. O que eles mal sofriam e, a título de o honrarem na<br />
guerra <strong>do</strong>s sabinos, o privaram <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. São muitas vezes as honras nos<br />
conflitos arrisca<strong>do</strong>s mortalhas que se oferecem aos valerosos e epitáfios <strong>da</strong>s<br />
sepulturas, mais que digni<strong>da</strong>des de vivos. São feri<strong>da</strong>s de setas, que se sentem<br />
os golpes e não se ouvem os tiros. Porque a seta leva nas penas a brandura e<br />
no ferro o rigor, e com a brandura <strong>da</strong>s penas rebuça <strong>do</strong> ferro a cruel<strong>da</strong>de. Lá<br />
disse Tito Lívio 479 que os perigos rebuça<strong>do</strong>s nas honras não se sentem, e<br />
quanto tem de ignorância na causa, tem de certeza nos efeitos. Reginal<strong>do</strong><br />
an<strong>da</strong> nos braços <strong>da</strong> ventura, sairá glorioso, e vós, senhor conde, ficareis em<br />
parte satisfeito; e se descair de felice, honra<strong>da</strong>mente ficará sepulta<strong>do</strong>, e vós<br />
alivia<strong>do</strong> <strong>da</strong> <strong>do</strong>r que vos oprime: que com as honras tu<strong>do</strong> se <strong>do</strong>ura e com a<br />
sepultura tu<strong>do</strong> <strong>da</strong> memória se risca.<br />
Assim falou Vespasiano e o conde se deu por bem aconselha<strong>do</strong>, e logo<br />
deram ordem para a Reginal<strong>do</strong> se <strong>da</strong>r a capitania, a quem, quan<strong>do</strong> Flora o<br />
soube, man<strong>do</strong>u algumas jóias ricas para despender nos aprestos e galas de<br />
sua pessoa; e estan<strong>do</strong> a arma<strong>da</strong> a ponto de partir-se, veio Reginal<strong>do</strong> em<br />
companhia <strong>do</strong> auditor a despedir-se de Flora a casa de Vespasiano, tão bizarro<br />
que parece que o novo cargo com as galas e plumas de que se ornava lhe<br />
<strong>da</strong>vam novo lustre à gentileza. E posto na presença de Flora, assistin<strong>do</strong> o<br />
auditor, Vespasiano e Lívia, lhe disse desta sorte:<br />
Tit. Liv., Dec. 1. lib. 6.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 497<br />
- Ausente, senhora Flora, <strong>do</strong> bem de vossa vista me leva a fortuna a<br />
terras estranhas a buscar a morte, se tem mais vi<strong>da</strong> que perder quem de vista<br />
vos perde. A seus favoreci<strong>do</strong>s pôs a ventura os prémios no descanso, mas a<br />
mim nos perigos; aos outros no logro <strong>do</strong> desejo, porém a mim nos rodeios <strong>da</strong><br />
esperança. Bem conheço que para merecer-vos ain<strong>da</strong> é pequeno cabe<strong>da</strong>l a<br />
vi<strong>da</strong>, mas quem não possui mais, nela oferece tu<strong>do</strong>. Não confio de minha<br />
fortuna que tornarei a ver-vos, porque a um infelice nunca se repetem as<br />
alegrias, e como esta breve que em vossos olhos logro é para mim tão grande,<br />
bem prevejo que em tu<strong>do</strong> será singular, não repeti<strong>da</strong>, pois sempre me<br />
compensou a fortuna por instantes de alegre muitos séculos de triste. Abonos<br />
foram sempre minhas felici<strong>da</strong>des, mortas antes de nasci<strong>da</strong>s, que antes de<br />
conhecerem o berço ocuparam o sepulcro. Apenas nasceram as asas a meu<br />
amor, quan<strong>do</strong> lhas cortou a fortuna; lisonjeou-me a subi<strong>da</strong> para executar o<br />
despenho; quis remontar-me ao Olimpo <strong>da</strong> maior beleza, para precipitar-me ao<br />
vale desta penosa ausência; mostrou-me a bonança e deu-me a tormenta;<br />
adulou-me com o prémio e desenganou-me com o castigo. Competir com quem<br />
tem maior poder, arrojo é <strong>do</strong> valor, mas não aplauso <strong>da</strong> vitória: que se põe a<br />
ventura <strong>da</strong> parte de quem mais pode, voltan<strong>do</strong> as costas a quem se arrojou<br />
mais, poden<strong>do</strong> menos. Ficai-vos embora, causa de minhas glórias e de minhas<br />
amorosas sau<strong>da</strong>des, e se nesta vi<strong>da</strong> mais nos não virmos, mereçam as finezas<br />
de meu amor viver em vossas lembranças. Reginal<strong>do</strong>, que para merecer-vos<br />
vai oferecer a vi<strong>da</strong> aos golpes <strong>da</strong> ventura, se esta me não despojar também de<br />
vossas memórias, como me roubou to<strong>da</strong>s minhas alegrias, tão vagarosas<br />
quan<strong>do</strong> deseja<strong>da</strong>s, acelera<strong>da</strong>s para se verem perdi<strong>da</strong>s.<br />
Assim falou Reginal<strong>do</strong>, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> seus olhos testemunhos <strong>do</strong> que sentia:<br />
que como são relógios <strong>da</strong> alma, como lhes chama Demóstenes 480 , logo<br />
mostraram fora a <strong>do</strong>r que estava dentro. Enterneceram-se to<strong>do</strong>s, participan<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> sentimento: que também se comunicam os pesares, assim como se<br />
participa <strong>da</strong>s alegrias. Mas quem manifestou o maior extremo <strong>da</strong> pena foi a<br />
amante e magoa<strong>da</strong> Flora, que verten<strong>do</strong> de seus olhos lágrimas vivas de um<br />
coração ao rigor de sentimentos quasi morto, perturba<strong>da</strong> a voz com a eficácia<br />
<strong>da</strong> pena, que nunca esta, sen<strong>do</strong> excessiva, deixou desimpedi<strong>da</strong> a eloquência<br />
Demost., in Oral Amat.
498 Padre Mateus Ribeiro<br />
para cabalmente declarar-se em palavras intercadentes na pronunciação ao<br />
movimento <strong>do</strong>s suspiros, sem poder disfarçar o que sentia, porque a <strong>do</strong>r<br />
violentamente se publicava, lhe disse assim:<br />
- Bem tem mostra<strong>do</strong> a fortuna o pouco que lhe devo nos disfavores com<br />
que me trata, pois hoje vos ausenta de meus olhos, para me despojar de to<strong>do</strong><br />
alívio. Nunca aos desditosos foi o bem de dura, nem o mal de passagem.<br />
Mostrou-me a ventura o bem para perdê-lo, para que suas memórias me<br />
atormentem quan<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong>; pon<strong>do</strong>-me o alívio distante e a <strong>do</strong>r presente; o<br />
bem para senti-lo e a <strong>do</strong>r para sofrê-la. Ide-vos embora, esposo Reginal<strong>do</strong>,<br />
alegria de meu coração e lágrimas de meus olhos, e estai seguro que suposto<br />
que a fortuna pode roubar-me o alívio de ver-vos, jamais me privará <strong>da</strong> firmeza<br />
de amar-vos. Viverei de firme e morrerei de magoa<strong>da</strong>, que poderão matar-me<br />
ausências, mas não vencer-me mu<strong>da</strong>nças, e correrão em mim parelhas o ser<br />
constante e o ser desgraça<strong>da</strong>, pois em pessoas como eu só uma eleição tem a<br />
vontade; e pois fui amante na escolha, serei diamante na firmeza.<br />
Com isto se despediram, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> qual comissão a seus olhos para<br />
que continuassem as lágrimas o que faltava nas vozes: que sempre seriam<br />
mais, se as lágrimas foram menos. São as lágrimas desafogo <strong>da</strong> <strong>do</strong>r, como<br />
lhes chamou Euripides 481 , penoso alívio <strong>da</strong>s aflições, remédio violento <strong>da</strong>s<br />
tristezas, tormenta em que navega a alma nas opressões <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, dilúvios que<br />
move a pena nas turbulências <strong>da</strong> fortuna, tribunal para onde apela o coração<br />
magoa<strong>do</strong>, banhos em que intenta lavar-se o sentimento, mares em que se<br />
engolfa quem vive atribula<strong>do</strong>, chuva que rende muito e rende pouco e<br />
finalmente débil refúgio <strong>do</strong>s disfavores <strong>da</strong> ventura com que se escu<strong>da</strong>m os<br />
ofendi<strong>do</strong>s de seus assaltos, para defender-se pequenos e grandes para<br />
queixar-se.<br />
Acompanhou Vespasiano até entrar na nau a Reginal<strong>do</strong>, largou ao vento<br />
as velas e suas arrisca<strong>da</strong>s esperanças, despediu-se o sena<strong>do</strong>r magoa<strong>do</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> ele navegava tão senti<strong>do</strong>. Onde agora o deixaremos engolfan<strong>do</strong>-se nas<br />
on<strong>da</strong>s em companhia de to<strong>da</strong> arma<strong>da</strong> que para Chipre navegava, para<br />
tratarmos <strong>do</strong> conde que sem querer ver a Flora, nem ela parecer em sua<br />
presença, como viu a Reginal<strong>do</strong> ausente, despedin<strong>do</strong>-se de Vespasiano,<br />
Euripid., in Trat.
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte III 499<br />
agradeci<strong>do</strong> <strong>do</strong> bem que nisto havia obra<strong>do</strong>, se embarcou com Carlos para as<br />
suas terras a tratar <strong>do</strong>s negócios de seu esta<strong>do</strong>. Ficou Flora em companhia de<br />
Lívia, que como mãe a consolava, se fora capaz de admitir consolação a pena<br />
de suas sau<strong>da</strong>des. Que como estas tem só o alívio nas esperanças, sen<strong>do</strong> tão<br />
incertas, igualmente o é o alívio que nelas se sustenta.<br />
Raimun<strong>do</strong>, que <strong>do</strong>s olhos de Flora estava bem feri<strong>do</strong> e mal cura<strong>do</strong>,<br />
ven<strong>do</strong> a Reginal<strong>do</strong> ausente e discursan<strong>do</strong>, como homem de juízo, que em<br />
guerra tão arrisca<strong>da</strong> quem ia a merecer como amante o subir a ser seu esposo,<br />
levava mais certo o perigo que a ventura, porque para valer se havia mais que<br />
to<strong>do</strong>s arriscar e nos arrojos de querer luzir estava o <strong>da</strong>no de a vi<strong>da</strong> lhe faltar,<br />
intentou o ser esposo de Flora, quan<strong>do</strong> seu pensamento ver<strong>da</strong>deiro saísse.<br />
Leva<strong>do</strong> deste cui<strong>da</strong><strong>do</strong> vendeu a nau à senhoria de Veneza, que como<br />
necessitava de embarcações para esta guerra, lha pagou bem; e desfazen<strong>do</strong>-<br />
se <strong>da</strong>s merca<strong>do</strong>rias que na nau trazia, ajuntou cinquenta mil escu<strong>do</strong>s, com que<br />
toman<strong>do</strong> casa grandiosa em Veneza, com trato e cria<strong>do</strong>s lustrosos, se mostrou<br />
tão liberal no trato e luzi<strong>do</strong> na casa que, como era fi<strong>da</strong>lgo, em pouco tempo era<br />
bem estima<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s e visita<strong>do</strong> <strong>do</strong>s sena<strong>do</strong>res, movi<strong>do</strong>s não menos de seu<br />
juízo que <strong>da</strong> ostentação com que se tratava. Lá disse Euripides 482 que os ricos<br />
e poderosos sempre eram bem vistos de to<strong>do</strong>s. O mesmo parecer seguiu<br />
Cícero 483 , quan<strong>do</strong> disse que no mun<strong>do</strong> valia mais a autori<strong>da</strong>de de quem mais<br />
riquezas possuía. Não digo isto porque Raimun<strong>do</strong> por sua pessoa só não<br />
merecesse muito, mas porque depois que se manifestou tão generoso no trato,<br />
mostrou que ain<strong>da</strong> merecia mais, sen<strong>do</strong> de muitos <strong>do</strong>s principais assisti<strong>do</strong>, de<br />
to<strong>do</strong>s respeita<strong>do</strong> e geralmente bem quisto. Tomou particular amizade com<br />
Vespasiano desde que na sua nau entrou a prender a Reginal<strong>do</strong> e o visitou em<br />
casa <strong>do</strong> auditor enquanto esteve em Veneza, oferecen<strong>do</strong>-lhe liberalmente<br />
acudir a quanto necessário lhe fosse, como em algumas ocasiões fez. Com<br />
este conhecimento visitava a Vespasiano e algumas vezes a Flora, em<br />
companhia de Lívia, a quem enviava regalos, dizen<strong>do</strong> que como a forasteira<br />
nas ausências de seu amante Reginal<strong>do</strong> tomava essa confiança, suposto que<br />
bem sabia lhe sobrava tu<strong>do</strong>. O que Flora cortesmente lhe agradecia.<br />
Eurip., in Suppl.<br />
Cicer., Ad Lentul.
500 Padre Mateus Ribeiro<br />
Assim pouco e pouco foi tratan<strong>do</strong> de servi-la, sem declarar-se que a<br />
obrigava, que como era discreto, bem entendia que estan<strong>do</strong> as memórias de<br />
Reginal<strong>do</strong> tão presentes, assim como a tintura negra nunca admite outra cor,<br />
assim o amor, quan<strong>do</strong> é fino, não recebe outro cui<strong>da</strong><strong>do</strong>. Esperava que o tempo<br />
com seu discurso curasse a chaga quan<strong>do</strong> com a morte de Reginal<strong>do</strong> se<br />
desconfiasse <strong>do</strong> remédio. Lívia bem suspeitava o intento de Raimun<strong>do</strong> qual<br />
seria, mas como se Flora com ele casasse entendia que <strong>do</strong> primeiro esposo se<br />
melhorava muito, <strong>da</strong>va-se por desentendi<strong>da</strong> <strong>do</strong> mesmo, que como discreta<br />
ajuizava. Vespasiano, porventura com o mesmo pensamento, não se mostrava<br />
descifra<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s pensamentos ocultos que Raimun<strong>do</strong> encobria: tratava-o como<br />
amigo e como tal o visitava. Só Flora conhecia os pensamentos de Raimun<strong>do</strong><br />
onde aspiravam, porque só quem aprende a amar, sabe acertar os emblemas<br />
mais escuros e os enigmas de pensamentos amantes. Mas como Raimun<strong>do</strong><br />
tanto se encobria, que propunha o emblema e não declarava o senti<strong>do</strong>, não se<br />
<strong>da</strong>va por ama<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> dele se confessava servi<strong>da</strong>; e assim nesta suspensão<br />
to<strong>do</strong>s se entendiam e ninguém se declarava, sen<strong>do</strong> nesta matéria a<br />
dissimulação intérprete desentendi<strong>do</strong> com que nem se faltava às leis <strong>da</strong><br />
cortesia política, nem se fiscalizavam os pensamentos encobertos.<br />
Navegava entretanto a arma<strong>da</strong> na volta de Chipre, em que Reginal<strong>do</strong>,<br />
mais propriamente capitão <strong>da</strong> ventura que capitão de aventureiros, como se<br />
intitulava, ia merecer pelas armas os timbres que lhe negou o nascimento;<br />
desembarcou com próspero vento e navegação felice, e entrou com a sua<br />
companhia na ci<strong>da</strong>de de Nicosia, metropoli <strong>do</strong> reino, antes que a poderosa<br />
arma<strong>da</strong> <strong>do</strong> grão turco Selim chegasse à ilha, que poucos dias depois apareceu,<br />
cobrin<strong>do</strong> os mares com galés em que trazia a flor <strong>do</strong>s melhores sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
império otomano. Era general dela Piali, valeroso turco, mui experimenta<strong>do</strong> nas<br />
cousas <strong>do</strong> mar e vali<strong>do</strong> <strong>do</strong> grão senhor, e vinha por general <strong>da</strong> terra para<br />
governar as armas na conquista <strong>do</strong> reino Mustafá, capitão tão venturoso nas<br />
empresas como cruel e implacável nas execuções, e por tal escolhi<strong>do</strong> para<br />
esta conquista. Desembarcou a arma<strong>da</strong> a gente em terra, que era muita e<br />
escolhi<strong>da</strong>, enquanto o general <strong>da</strong> arma<strong>da</strong> voltava a trazer outra de refresco.<br />
Vieram avizinhan<strong>do</strong>-se a Nicosia, suposto que com per<strong>da</strong> de muita gente, que<br />
em tanta multidão pouca falta fazia, sem consentir o governa<strong>do</strong>r Nicolau<br />
Dan<strong>da</strong>lo, que era lugar-tenente <strong>do</strong> reino pela senhoria de Veneza, que de
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 501<br />
Nicosia saíssem a encontrar os turcos, antes que tanto com os ataques se lhe<br />
avizinhassem. Mil vezes o importunou Reginal<strong>do</strong> para que lhe desse esta<br />
licença, sem poder consegui-la, que foi o primeiro vaticínio de sua total ruína.<br />
É obrigação <strong>do</strong> capitão que as armas governa ser para os inimigos<br />
destemi<strong>do</strong> e para seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s benévolo, como disse Agesilau; mas o general<br />
Dan<strong>da</strong>lo para os súbditos se mostrava áspero e para com os inimigos mais<br />
considera<strong>do</strong> <strong>do</strong> que as ocasiões pediam; de que ao diante se arrependeu sem<br />
fruto, como Pompeu de não saber aproveitar-se <strong>da</strong> vitória que alcançou de<br />
César em Durazo e o cartaginês Aníbal <strong>da</strong> de Canas para nesse dia ser senhor<br />
de Roma. Quatro cousas diz o Cícero 484 que eram necessárias ao general <strong>da</strong>s<br />
armas: autori<strong>da</strong>de, experiência <strong>da</strong> guerra, valentia e ventura; porque qualquer<br />
que lhe falte o porá em perigo. Bem disse o Vegécio 485 que a destreza e ânimo<br />
<strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s dá ao capitão os aplausos <strong>da</strong>s vitórias; porque se o Dan<strong>da</strong>lo<br />
concedera licença à saí<strong>da</strong> fervorosa que Reginal<strong>do</strong> lhe pedia, não dera lugar<br />
ao inimigo em breve tempo lhe assestar a bataria de tão perto como fez,<br />
meten<strong>do</strong>-se com os ataques debaixo <strong>da</strong> artelharia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e baten<strong>do</strong>-a com<br />
tanta fúria e tão notável <strong>da</strong>no que, ven<strong>do</strong>-se o Dan<strong>da</strong>lo confuso, deu tarde a<br />
licença que tanto a tempo pedi<strong>da</strong> pudera haver-lhe si<strong>do</strong> proveitosa.<br />
Saiu <strong>da</strong> praça Reginal<strong>do</strong> com seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e outros que se lhe<br />
juntaram, e ao meio-dia, quan<strong>do</strong> os turcos repousavam descui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, lhes deu<br />
tão improviso assalto, executa<strong>do</strong> com tão invencível valor que intimi<strong>da</strong><strong>do</strong>s se<br />
desordenaram, de sorte que cain<strong>do</strong> muitos mortos e feri<strong>do</strong>s, largaram as<br />
trincheiras fugin<strong>do</strong>. Mas acudin<strong>do</strong> Mustafa, e ven<strong>do</strong> o pouco número <strong>do</strong>s<br />
nossos, carregou contra eles com os mais valentes genisaros <strong>do</strong> exército e os<br />
fez retirar com per<strong>da</strong> <strong>do</strong>s mais valerosos, entre os quais haven<strong>do</strong> Reginal<strong>do</strong><br />
feito admiráveis provas de seu valor, caiu morto de muitas feri<strong>da</strong>s sem querer<br />
render-se aos turcos, que pelo valor que nele viam, lhe ofereciam quartel se se<br />
rendesse. Mas o malogra<strong>do</strong> mancebo, que nunca conheceu sujeição mais que<br />
aos olhos de sua ama<strong>da</strong> Flora, em quem só estava o Argel de seus amantes<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, fazen<strong>do</strong> estrago cruel nos inimigos enquanto o coração lhe<br />
comunicou os vitais alentos, tinta a espa<strong>da</strong> no sangue que <strong>do</strong>s contrários<br />
Cicer., 2. Offic.<br />
Vegec, Lib. 1.
502 Padre Mateus Ribeiro<br />
corria, rendeu a vi<strong>da</strong> ao desalento e a fama de seu valor a imortais aplausos,<br />
em quem viverá eterniza<strong>da</strong> sua memória sobre a duração <strong>do</strong> tempo.<br />
Cap. XVIII.<br />
Das novas que chegaram a Flora <strong>da</strong> morte de Reginal<strong>do</strong> e <strong>do</strong> que fez<br />
Magoa<strong>do</strong>s se mostraram os ouvintes <strong>da</strong> antecipa<strong>da</strong> morte <strong>do</strong> malogra<strong>do</strong><br />
capitão Reginal<strong>do</strong> e, desejosos de ver o que em Flora obraria o infelice<br />
anúncio, lhe pediram continuasse. O que ele fez, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Tocou a fama de seu imortal valor o clarim de sua morte em Veneza,<br />
muito para ser inveja<strong>da</strong> e pela per<strong>da</strong> muito para senti<strong>da</strong>. Raimun<strong>do</strong> foi o<br />
primeiro que dela teve notícia, e não queren<strong>do</strong> ser embaixa<strong>do</strong>r de tristezas,<br />
que nunca estes são bem recebi<strong>do</strong>s, e ele se desvelava em ser aos olhos de<br />
Flora aceito, procurou que um religioso, grande seu amigo e discreto, lhe desse<br />
as trágicas notícias, consolan<strong>do</strong>-a nelas, e se visse em seu seguimento que<br />
podia <strong>da</strong>r o desgosto entra<strong>da</strong> a algum alívio, lhe tocasse em o casamento que<br />
tanto desejava seu desvelo. Era este religioso conheci<strong>do</strong> de Vespasiano e que<br />
o visitava algumas vezes e a Lívia, sua esposa, que com Flora assistia, e in<strong>do</strong><br />
nesta ocasião a visitá-la, estan<strong>do</strong> Flora presente, lhe disse assim:<br />
- Com razão se disse na Sagra<strong>da</strong> Escritura 486 que era melhor o dia <strong>da</strong><br />
morte que o <strong>do</strong> nascimento, pois bem considera<strong>da</strong> a inconstância de nossa<br />
vi<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> o dia de nascermos nos arrisca, tanto o de acabarmos a vi<strong>da</strong> nos<br />
assegura. Lá disse Aristóteles 487 que o maior bem era conseguir um bom e<br />
honra<strong>do</strong> fim. Porque sen<strong>do</strong> tão vária a ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> fortuna, que tu<strong>do</strong> desta vi<strong>da</strong> traz<br />
em ro<strong>da</strong>, não é pequeno favor <strong>do</strong> Céu em tantos giros <strong>da</strong> ventura, já próspera<br />
já adversa, alcançar um fim que na fama se eterniza, generoso para quem o<br />
consegue e aplaudi<strong>do</strong> para quem o ouve. Pensamento foi que seguiu o<br />
Séneca, dizen<strong>do</strong> que era cousa louvável acabar a vi<strong>da</strong> antes de chegar a<br />
morte; <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a entender que primeiro se revive pelo louvor <strong>do</strong> que a morte<br />
Physic. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 503<br />
tiranize a vi<strong>da</strong> pela privação. Isto digo, senhora Flora, para lhe <strong>da</strong>r a vossa<br />
mercê não os pêsames, mas os vivas <strong>da</strong> morte <strong>do</strong> senhor Reginal<strong>do</strong>, que Deus<br />
tem, vivo nos anais <strong>da</strong> fama e morto às perseguições penosas desta vi<strong>da</strong>.<br />
Aprovou com o decoroso de sua morte em vossa mercê o discreto <strong>da</strong> eleição,<br />
mostran<strong>do</strong> nos extremos <strong>do</strong> valor quanto merece<strong>do</strong>r era de ser escolhi<strong>do</strong> por<br />
tal juízo. É o último dia de nossa vi<strong>da</strong> o juiz que dá a sentença dela, como disse<br />
Santo Agostinho. Venturoso quem soube tão generosamente acabar que to<strong>da</strong><br />
a vi<strong>da</strong> pudesse enobrecer! Morreu pelejan<strong>do</strong> contra os turcos, inimigos de<br />
nossa Santa Fé, na ocasião mais honrosa, defenden<strong>do</strong> a ci<strong>da</strong>de de Nicosia,<br />
assaltan<strong>do</strong> aos inimigos em suas próprias trincheiras, que lhes fez desocupar,<br />
seu imortal valor derraman<strong>do</strong> deles tanto sangue que parece na<strong>da</strong>vam seus<br />
vesti<strong>do</strong>s nas on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mar Vermelho pela púrpura que os tingia. Não quis<br />
aceitar quartel de rendi<strong>do</strong>, porque nasceu para vence<strong>do</strong>r, acaban<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong>: <strong>do</strong>s<br />
turcos admira<strong>do</strong> por invencível e <strong>do</strong>s nossos inveja<strong>do</strong> por vence<strong>do</strong>r venturoso.<br />
Entre as leis que Licurgo deu aos lacedemónios era uma que só pudessem ter<br />
epitáfios nas sepulturas os que morressem nas batalhas, obran<strong>do</strong> heróicos<br />
feitos pelo aumento e honra <strong>da</strong> república. Que honrosos epitáfios no templo <strong>da</strong><br />
fama merece o senhor Reginal<strong>do</strong> para imortal memória de seu nome, que tão<br />
valerosamente soube acometer tão generoso e acabar tão honra<strong>do</strong>, que se<br />
podiam trocar muitas vi<strong>da</strong>s pelos lauros e coroas de tal morte! Vossa mercê<br />
como tão ajuiza<strong>da</strong> saberá compensar a mágoa com a glória e os aumentos de<br />
sua fama com o sentimento de sua per<strong>da</strong>, dispon<strong>do</strong> de seu esta<strong>do</strong>, pois de<br />
to<strong>do</strong> está livre para a escolha dele.<br />
- Assim o farei (respondeu Flora).<br />
E toman<strong>do</strong> uma tesoura que sobre uma almofa<strong>da</strong> estava, cortou a<br />
<strong>do</strong>ura<strong>da</strong> madeixa de seus cabelos tão improvisamente que não foi Lívia<br />
poderosa a impedir-lhe o amoroso sacrifício que deles sua <strong>do</strong>r fazia. Caíram no<br />
regaço aqueles despojos <strong>da</strong> beleza que tantas vezes tinham <strong>da</strong><strong>do</strong><br />
competências ao sol quan<strong>do</strong> mais luzi<strong>do</strong>, que se em balanças se puseram, só<br />
com os resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> maior planeta podiam pesar-se. Porque de raios a<br />
raios pouca diferença havia. Congelaram-se as lágrimas em os nácares de<br />
seus fermosos olhos e ficaram sen<strong>do</strong> pérolas <strong>da</strong> aurora verti<strong>da</strong>s, pois a mesma<br />
<strong>do</strong>r que causava a corrente a impedia; que não é maravilha o rigor de uma<br />
pena excitar as lágrimas e suspendê-las. Levantou-se e, fazen<strong>do</strong> uma cortesia
504 Padre Mateus Ribeiro<br />
ao religioso e a Lívia, se retirou a outra casa, onde largan<strong>do</strong> a corrente a suas<br />
lágrimas fez só a seus olhos testemunhas de sua <strong>do</strong>r.<br />
Foi Lívia a consolá-la: mas pouco alívio admite um coração tão<br />
repeti<strong>da</strong>mente magoa<strong>do</strong>. Man<strong>do</strong>u desfazer as ricas jóias de diamantes que<br />
trouxera, preparou o <strong>do</strong>te para sua entra<strong>da</strong> e sem admitir visitas nem<br />
persuasões que intentavam aconselhá-la, em um coche só com Lívia, e<br />
acompanha<strong>da</strong> em outros de Vespasiano e alguns senhores, não faltan<strong>do</strong><br />
Raimun<strong>do</strong> de <strong>da</strong>r esta última despedi<strong>da</strong> a seus olhos, pois lhe negava a<br />
ventura o logro de seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, se recolheu em um convento, deixan<strong>do</strong><br />
escrita uma carta ao conde seu pai, que assim dizia:<br />
Nos erros de minha primeira eleição, por vossa senhoria tão<br />
reprova<strong>da</strong>, não acho melhor desculpa que a <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> presente que hoje<br />
tomo: na primeira foi meu amor a guia e nesta meu juízo; de antes escolhi<br />
com a vontade e nesta com o discurso. Já despedi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s enganos <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>, nem vossa senhoria terá que sentir mágoas, nem eu penas; nem<br />
vossa senhoria iras que executar, nem eu temores que padecer. Foi a<br />
morte de Reginal<strong>do</strong> para vossa senhoria desafogo <strong>da</strong> <strong>do</strong>r, para ele crédito<br />
de amante e para mim lição de desengana<strong>da</strong>. À sua memória devo muito,<br />
e com despedir-me <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> não sei se ain<strong>da</strong> cabalmente lhe pago.<br />
Vossa senhoria veja a Carlos felizmente emprega<strong>do</strong>, pois tanto lamentou<br />
os empregos de Flora; que meu desejo será que alcance grandes<br />
venturas e vossa senhoria felices anos de vi<strong>da</strong> para lográ-las.<br />
Despediu-se Flora à portaria <strong>do</strong> convento com lágrimas de to<strong>do</strong>s, e<br />
principalmente de Raimun<strong>do</strong>, que viu esconder-se o sol para mais não vê-lo.<br />
Com o que to<strong>do</strong>s se tornaram sau<strong>do</strong>sos de sua vista, a quem a nuvem de um<br />
véu eclipsou os raios. Man<strong>do</strong>u Vespasiano a carta ao conde Manfre<strong>do</strong>, que a<br />
recebeu com suspensão, a leu com ânsias e a acabou com lágrimas, ou<br />
fossem de magoa<strong>do</strong> ou de sau<strong>do</strong>so. E este fim teve Reginal<strong>do</strong> e sua ama<strong>da</strong><br />
Flora, exemplo grande <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>: nele corta<strong>da</strong> em flor e nela na<br />
lisonja <strong>do</strong>s anos escondi<strong>da</strong>.<br />
Com isto deu fim Eugénio à sua história, que de to<strong>do</strong>s foi celebra<strong>da</strong>,<br />
despenden<strong>do</strong> muita parte <strong>da</strong> noite em discutir sobre seus perío<strong>do</strong>s. Preparou-
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 505<br />
se a ceia com abundância, que a tu<strong>do</strong> <strong>da</strong>va lugar a liberal franqueza de<br />
Eugénio, e depois se retiraram a descansar o que <strong>da</strong> noite restava. Pela manhã<br />
se despediram <strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>te Eugénio mui agradeci<strong>do</strong>s à hospe<strong>da</strong>gem e<br />
cortesia que em sua casa lhes fez; pois, como diz Cícero, não só se devem<br />
agradecer as obras, mas igualmente a vontade com que se fazem ou as de<br />
quem as fizera se pudera obrá-las.<br />
Partiram os nossos três romeiros <strong>do</strong> lugar de Fortuniosa, em que<br />
Eugénio vivia, e chegaram a horas de meio-dia à ci<strong>da</strong>de de Tróia, edifica<strong>da</strong> nas<br />
raízes <strong>do</strong> monte Apenino por Babugiano, capitão <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Miguel de<br />
Constantinopla, e que hoje tem título de con<strong>da</strong><strong>do</strong>, fértil de terreno e bem<br />
povoa<strong>da</strong> de mora<strong>do</strong>res. Nela descansaram <strong>do</strong> caminho e, quan<strong>do</strong> o sol<br />
mostrava declinar parte <strong>do</strong> intenso de seus raios, continuan<strong>do</strong> seu caminho,<br />
agradável na vista de várias povoações e lugares que se descobriam, foram<br />
<strong>do</strong>rmir à ci<strong>da</strong>de de Asculi, que dá título de duca<strong>do</strong> a um <strong>do</strong>s senhores de Itália.<br />
Hospe<strong>da</strong>ram-se em uma estalagem, por nela não terem pessoas conheci<strong>da</strong>s,<br />
fazen<strong>do</strong> Felizar<strong>do</strong> o gasto a seus companheiros com grande liberali<strong>da</strong>de. Era<br />
grande a estalagem, como são pela maior parte as de Itália, e tinha vários<br />
aposentos para os passageiros que a ela vinham, em um <strong>do</strong>s quais estava<br />
havia dias enfermo um homem ancião nos anos, venerável na presença, que<br />
se chamava Rogério, tinha si<strong>do</strong> rico <strong>do</strong>s bens <strong>da</strong> fortuna, que em várias<br />
navegações havia perdi<strong>do</strong>, e era natural de Liorne, marítimo empório <strong>do</strong> mar<br />
Mediterrâneo, que haven<strong>do</strong> desembarca<strong>do</strong> em Ravena e caminhan<strong>do</strong> para sua<br />
pátria, a<strong>do</strong>ecera nesta estalagem e estava quasi desconfia<strong>do</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Estava Rogério tão impaciente ao perigo e tão insofrível a ver se lhe<br />
avizinhava o último termo de sua vi<strong>da</strong> que nem se dispunha a tratar <strong>da</strong> alma,<br />
porque como furioso só se lembrava <strong>do</strong> temporal que perdia e não <strong>do</strong> imortal<br />
que ganhava. Estava tão senti<strong>do</strong> que fechava as portas <strong>da</strong> razão a to<strong>do</strong> o<br />
alívio, dizen<strong>do</strong>, como desespera<strong>do</strong>:<br />
- De que te serviram, ó Rogério, tantos anos gasta<strong>do</strong>s em surcar os<br />
mares, em caminhar as terras? Os dias inquietos, as noites desvela<strong>da</strong>s, tantos<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s sem fruto, tantos trabalhos sem proveito? Que hei-de morrer e <strong>da</strong>r fim<br />
a minhas esperanças? Que não hei-de ver mais nem <strong>do</strong> sol os raios, nem <strong>do</strong><br />
céu os astros, nem <strong>do</strong> pra<strong>do</strong> as flores, nem <strong>do</strong> campo os frutos, nem <strong>do</strong> cristal<br />
as fontes, nem <strong>do</strong> rio as correntes, nem <strong>do</strong> mar as on<strong>da</strong>s, nem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> a
506 Padre Mateus Ribeiro<br />
gala? Oh sorte dura! Oh destino cruel de uma vi<strong>da</strong> que <strong>da</strong> força violenta<strong>da</strong> ha<br />
de pagar à morte tão odioso tributo! Para que era o nascer, se havia de<br />
acabar? Para que era o viver, se os foros <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> havia a morte de pedir? Não<br />
conhecesse que vivia, quem havia de conhecer que acabava. Fora o berço o<br />
sepulcro quan<strong>do</strong> o não temia e não hoje, quan<strong>do</strong> a morte me ameaça. Chegou-<br />
me a razão para sentir a pena, melhor fora não chegar, para evitar a mágoa. E<br />
se hei-de converter-me em terra, para que a natureza me vestiu de carne?<br />
Vestir a gala para ser despoja<strong>do</strong> dela, é <strong>do</strong>r tão intensa que melhor fora não<br />
vesti-la, favor que eu recebera, mimo que celebrara; que a troco de não me ver<br />
despoja<strong>do</strong>, agradecera nunca me ver vesti<strong>do</strong>. Morrerei pobre e em terra<br />
estranha: acabarão minhas memórias, para ficar esqueci<strong>do</strong>, não haven<strong>do</strong><br />
quem de mim se lembre, como se neste mun<strong>do</strong> não houvera si<strong>do</strong>. Oh mágoa<br />
de meu coração, tão presente para conheci<strong>da</strong> como sem remédio para<br />
chora<strong>da</strong>!<br />
Assim se queixava o quasi desespera<strong>do</strong> Rogério com vozes que os<br />
nossos romeiros bem ouviam; e movi<strong>do</strong>s de compaixão, para ver se podiam<br />
servir-lhe de desengano e juntamente de alívio, entran<strong>do</strong> em seu aposento, lhe<br />
disse o Ermitão desta sorte:<br />
- Na ver<strong>da</strong>de, senhor Rogério, que quan<strong>do</strong> fôreis nasci<strong>do</strong> ou nos<br />
bárbaros montes <strong>da</strong> penhascosa Cítia, ou nos vastos areais <strong>da</strong> deserta Arábia,<br />
ou finalmente nas incultas terras que ain<strong>da</strong> o mun<strong>do</strong> por encobertas nos<br />
esconde, pudera maravilhar-me de ouvir os ecos de vossas desesperações,<br />
quanto mais sen<strong>do</strong> vós nasci<strong>do</strong> em Liorne, no grémio <strong>da</strong> cristan<strong>da</strong>de e na<br />
política <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Sentis haver nasci<strong>do</strong>? Ingrato vos mostrais a Deus em não<br />
render-lhe as graças de tão grande benefício, qual é o <strong>da</strong> criação. Pois sen<strong>do</strong><br />
vós na<strong>da</strong>, vos deu ser; que pudéreis, como muitos possíveis que Deus pudera<br />
fazer e não há-de obrar, deixar-vos no na<strong>da</strong> que éreis, sem vos comunicar o<br />
ser que tendes. Pois quan<strong>do</strong> vos não criara, não deixara por isso Deus de ser<br />
infinitamente glorioso, como hoje é: que Deus não necessita de suas criaturas,<br />
porque to<strong>da</strong> a glória e infinita majestade em si próprio tem. E se tanto devemos<br />
aos pais por haverem si<strong>do</strong> causas segun<strong>da</strong>s de nosso ser, que graças render<br />
devemos a Deus que é a primeira causa <strong>do</strong> ser que temos? Assim diz S.<br />
Bernar<strong>do</strong>: Tu<strong>do</strong> devemos a Deus, que nos criou, que nos chamou e que nos<br />
remiu.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 507<br />
É o ser bem tão inestimável, com o não ser compara<strong>do</strong>, que até os<br />
próprios condena<strong>do</strong>s ao inferno em o excessivo rigor de seus tormentos não<br />
quiseram deixar de haver si<strong>do</strong>. Porque sen<strong>do</strong> o ser de si próprio bom, como<br />
dizem os filósofos com Aristóteles 488 , por ser quali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> ser a bon<strong>da</strong>de,<br />
como ensina São Dionísio Areopagita 489 , com os condena<strong>do</strong>s haverem perdi<strong>do</strong><br />
to<strong>do</strong> o bem e padecerem to<strong>do</strong> o mal, ain<strong>da</strong> este bem entitativo <strong>do</strong> ser que tem<br />
não desejam havê-lo perdi<strong>do</strong>. Como logo vós, senhor Rogério, estan<strong>do</strong> em<br />
esta<strong>do</strong> de poderdes salvar-vos, vos queixais de haverdes alcança<strong>do</strong> na criação<br />
um tal bem que os próprios condena<strong>do</strong>s não rejeitam, ain<strong>da</strong> padecen<strong>do</strong> o<br />
maior mal? Sentis chegar ao fim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, ven<strong>do</strong>-vos pobre e desta i<strong>da</strong>de? Por<br />
refúgio havíeis de apetecer a morte e não avaliá-la por moléstia. É a velhice<br />
estra<strong>da</strong> <strong>da</strong> morte, como lhe chamou o filósofo, e Temístocles 490 disse que<br />
morava a morte com a velhice em uma mesma casa. Achaque sem remédio lhe<br />
chamou Euripides, sen<strong>do</strong>, como diz o Séneca, cousa digna de vituperar-se a<br />
velhice que deseja tornar ao berço, estan<strong>do</strong> tão vizinha ao sepulcro. Vivestes<br />
dilata<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, e essa em trabalhos e moléstias? Para que suspirais pelas<br />
penas, quan<strong>do</strong> podeis adquirir as glórias? Que granjeastes na vi<strong>da</strong> com tantas<br />
navegações, engolfan<strong>do</strong>-vos nos mares? Que de dias penosos, de noites<br />
molestas, de riscos presentes, de perigos passa<strong>do</strong>s, de rigores sofri<strong>do</strong>s,<br />
inquieto o sono, atalha<strong>do</strong> o descanso, malogra<strong>da</strong> a alegria, perturba<strong>do</strong> o<br />
sossego, corta<strong>da</strong> a esperança, sem fruto o desejo, fugitiva a bonança, contínua<br />
a tormenta: e no fim de tantos desvelos ain<strong>da</strong> suspirais por passá-los, quan<strong>do</strong><br />
houvéreis de mostrar alegria de vos isentardes de mais sofrê-los? Oh<br />
endureci<strong>da</strong> condição <strong>da</strong> mortal vi<strong>da</strong>, pois no mesmo em que te asseguras, te<br />
dás por ofendi<strong>da</strong>, e <strong>do</strong> que mais havias de estimar te queixas! Vedes-vos cativo<br />
<strong>da</strong>s aflições e rejeitais a liber<strong>da</strong>de; an<strong>da</strong>is forasteiro e aborreceis a pátria;<br />
apeteceis o servir, poden<strong>do</strong> a escravidão escusar; que juízo se não condenará<br />
por erra<strong>do</strong> ou que vontade se livrará <strong>da</strong> censura de cega?<br />
Se fôreis no mun<strong>do</strong> príncipe ou monarca que de to<strong>do</strong>s vos vireis<br />
obedeci<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s grandes respeita<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong>s servi<strong>do</strong>, majestoso na opulência,<br />
Arist., Rhetor. 1.<br />
Dionys., ibi.<br />
Themist., apud Stob.
508 Padre Mateus Ribeiro<br />
soberano no senhorio, ten<strong>do</strong> muito que <strong>da</strong>r e na<strong>da</strong> que pedir, to<strong>do</strong>s de vós<br />
esperan<strong>do</strong> e vós de nenhum dependen<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> vossa queixa se<br />
julgasse por erro, não se censuraria por delito? Pois a fim de não deixardes o<br />
muito que na vi<strong>da</strong> tínheis, vos descuidáveis <strong>da</strong>s vantagens e eternos bens que<br />
na outra vi<strong>da</strong> esperáveis. E sen<strong>do</strong> isto engano <strong>do</strong> desejo de logrardes as<br />
grandezas temporais, encobrirá o ser hoje vossa impaciência manifesto delírio<br />
<strong>da</strong> razão? Mas, pobre velho e desvali<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong>, em que fun<strong>da</strong>is os desejos<br />
de quererdes ser imortal? Desampara<strong>do</strong> <strong>da</strong> natureza, ludíbrio <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de,<br />
desengana<strong>do</strong> <strong>do</strong> tempo, no mun<strong>do</strong> sem valia, na pobreza o abatimento, falto<br />
<strong>da</strong>s forças, o corpo mortifica<strong>do</strong>, os brios perdi<strong>do</strong>s e ain<strong>da</strong> em esta<strong>do</strong> tão digno<br />
de compaixão quereis ser imortal? Oh cegueira grande! Que quan<strong>do</strong> por<br />
conveniência própria houvera de ser-vos a vi<strong>da</strong> enfa<strong>do</strong>sa, ain<strong>da</strong> vos mostrais<br />
tão pesaroso quan<strong>do</strong> imaginais que a tendes perdi<strong>da</strong>!<br />
Se esta precisa lei de morrer só se vira executa<strong>da</strong> nos pobres, nos<br />
desvali<strong>do</strong>s e despreza<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> em certo mo<strong>do</strong> parece que pela<br />
desigual<strong>da</strong>de pudera admitir alguma razão de queixa sua execução. Mas que<br />
queixa pode <strong>da</strong>r-se de obedecer-se a uma lei de quem nem se isentam as<br />
supremas tiaras, as imperiais coroas, as majestades <strong>do</strong>s reis, as soberanias<br />
<strong>do</strong>s grandes, nem as riquezas <strong>do</strong>s mais poderosos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>? Que sumo<br />
pontífice por mais santo, que empera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> por mais temi<strong>do</strong>, que<br />
monarca, rei ou príncipe por mais soberano, que grande ou titular por mais<br />
vali<strong>do</strong> se isentou desta lei tão geral que a to<strong>do</strong>s executa? Que aproveitou a<br />
Nino o império <strong>do</strong>s assírios? A Ciro o <strong>do</strong>s persas e me<strong>do</strong>s? E a Júlio César o<br />
<strong>do</strong>s romanos? Assim eles, como to<strong>do</strong>s seus sucessores, acabaram as vi<strong>da</strong>s,<br />
uns de sua morte natural e muitos violentamente de mortais feri<strong>da</strong>s oprimi<strong>do</strong>s;<br />
e de to<strong>da</strong> sua grandeza apenas há vestígios <strong>do</strong> que eram e mal perseveram as<br />
memórias <strong>do</strong> que foram.<br />
Pois se ain<strong>da</strong> nas mais superiores opulências não houve remédio para<br />
não acabarem, porque a lei de terem fim é infalível, como vós, senhor Rogério,<br />
<strong>do</strong>s anos gasta<strong>do</strong>, <strong>do</strong> tempo consumi<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s trabalhos e navegações<br />
derrota<strong>do</strong>, perdi<strong>do</strong>s os cabe<strong>da</strong>is porque tanto vos desvelastes na vi<strong>da</strong>, pobre<br />
no mun<strong>do</strong>, desvali<strong>do</strong> na terra, triunfo <strong>do</strong> tempo e despojos <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, queríeis<br />
ser singular em um decreto para to<strong>do</strong>s tão comum? Se fôreis bem discursa<strong>do</strong>,<br />
que em obrigação de vossos anos pudera ser que o fosseis, por mimo
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 509<br />
houvéreis de pedir a morte, desejan<strong>do</strong>-a como seguro por to<strong>do</strong>s naufrágios <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong>s molestas pensões de vossa i<strong>da</strong>de.<br />
Bem pudera o Santo Simeão, quan<strong>do</strong> teve a Deus humana<strong>do</strong> em seus<br />
braços, pedir-lhe que ou lhe renovasse a i<strong>da</strong>de, ou que lhe dilatasse a vi<strong>da</strong>;<br />
mas na<strong>da</strong> disto lhe pediu, senão que em paz o tirasse dela, que como justo e<br />
bem entendi<strong>do</strong> conhecia que o maior favor era em paz <strong>da</strong>r fim a seus perío<strong>do</strong>s,<br />
pois com uma passagem breve finalizava muitos anos de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e muitos<br />
séculos de moléstias. É precisamente este trânsito forçoso, diz o padre Santo<br />
Ambrósio 491 , pois em passá-lo com constância e valor se faz suave a<br />
passagem. To<strong>do</strong>s os agros, por mais que pareçam desabri<strong>do</strong>s, com a vontade<br />
se a<strong>do</strong>çam. Lá disse Aristóteles 492 que a tristeza e a alegria tinham sua origem<br />
na vontade, porque assim como tu<strong>do</strong> o que de vontade se aceita é fácil e<br />
alegre, assim tu<strong>do</strong> o que sem ela se obra é pesa<strong>do</strong> e triste. É a vontade o<br />
cunho racional que dá valor às obras: se é a morte infalível, tomai-a com<br />
vontade e não vos parecerá espantosa, pois nunca se atemoriza o coração<br />
<strong>da</strong>quilo que a vontade deseja. Só teme morrer, diz São João Crisóstomo, quem<br />
viver mais não espera; mas quem aspira a logros <strong>da</strong> eterna vi<strong>da</strong> porque há-de<br />
temer largar os despojos <strong>da</strong> mortal? Ou porque há-de recear deixar um vale de<br />
penas quem pode viver seguro nos montes resplandecentes <strong>da</strong> glória? Oh<br />
pátria venturosa, Jerusalém celestial, visão de paz, <strong>do</strong>micílio <strong>do</strong> amor, região<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, centro <strong>da</strong> alegria, esfera de to<strong>do</strong>s os resplan<strong>do</strong>res, seguro porto de<br />
nossos desejos, mora<strong>da</strong> de Deus, corte <strong>do</strong>s santos, império <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de,<br />
quem fora tão ditoso que já em ti se vira!<br />
Com as lágrima nos olhos deu fim o Ermitão Felisberto à sua exortação,<br />
como quem vivia <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tão discretamente desengana<strong>do</strong>. De que seus<br />
companheiros se mostraram edifica<strong>do</strong>s e o enfermo Rogério não pouco<br />
persuadi<strong>do</strong>, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Confesso, venerável Ermitão, que quasi impaciente temi esta<br />
despedi<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, tanto mal aceita, quanto menos de meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
espera<strong>da</strong>. Mas já com ouvir-vos os desenganos dela, sinto em meu coração<br />
menos afeição ao temporal que deixo e novos desejos <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de que<br />
S. Amb., De bona mort.<br />
Arist., Rhetor.
510 Padre Mateus Ribeiro<br />
espero. E pois com tanto zelo e cari<strong>da</strong>de tomastes à vossa conta<br />
encaminhardes a seu último fim meus engana<strong>do</strong>s desvelos, estimara que me<br />
fizésseis favor descreverdes e retratardes a Ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Glória, para que com<br />
maior afecto meus desejos nela se ocupem e <strong>do</strong>s enganos desta miserável<br />
vi<strong>da</strong> se despi<strong>da</strong>m; que Deus nosso senhor vos pagará por mim esta<br />
consolação e alívio que de vós recebo.<br />
- Dificultoso empenho, senhor Rogério, me pedis (disse o Ermitão).<br />
Porque com o apóstolo São Paulo ser arrebata<strong>do</strong> ao terceiro Céu, diz que as<br />
cousas que lá viu e ouviu são total assunto <strong>da</strong> admiração e não <strong>da</strong> eloquência;<br />
nem é possível aos mortais explicarem os tesouros escondi<strong>do</strong>s que Deus tem<br />
reserva<strong>do</strong>s para seus escolhi<strong>do</strong>s, por ser assunto superior à capaci<strong>da</strong>de de<br />
to<strong>do</strong> o assunto, nem para perceber-se, nem para declarar-se. Mas, para que<br />
vosso desejo não fique desconsola<strong>do</strong> nesta petição que me fizestes, debuxarei<br />
um breve rascunho <strong>do</strong> que dizem os santos padres, descreven<strong>do</strong> em breve<br />
mapa a Ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Glória como quan<strong>do</strong> os matemáticos em pouco espaço<br />
descrevem ou a grandeza <strong>da</strong> terra e mar, ou o superior movimento <strong>da</strong>s esferas<br />
celestes.<br />
Alegre e agradeci<strong>do</strong> se mostrou Rogério, Dionísio e Felizar<strong>do</strong> desejosos<br />
de ouvi-lo, e ele começou, dizen<strong>do</strong>:<br />
Cap. XIX.<br />
Em que se trata a Ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Glória<br />
A Ci<strong>da</strong>de inestimável <strong>da</strong> Glória teve o princípio desde o princípio <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> Deus nosso senhor criou o céu e a terra, fun<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-a seu<br />
infinito poder para mora<strong>da</strong> e habitação perpétua de seus escolhi<strong>do</strong>s.<br />
Aristóteles, falan<strong>do</strong> deste nome Ci<strong>da</strong>de, em a sua Política 493 , diz que é um<br />
ajuntamento de muitos ci<strong>da</strong>dãos que habitam em um lugar, debaixo <strong>da</strong><br />
obediência de um príncipe que os governa e a quem eles obedecem, em que o<br />
político governo consiste. A união e concórdia <strong>do</strong>s ci<strong>da</strong>dãos e mora<strong>do</strong>res diz o<br />
Arist., Polit. 3.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 511<br />
padre Santo Agostinho ser a harmonia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, assim como na música a<br />
união <strong>da</strong>s vozes é o suave e sonoro dela. Sen<strong>do</strong> pois no mun<strong>do</strong> a congregação<br />
e ajuntamento de muitos mora<strong>do</strong>res debaixo de um rei, príncipe ou monarca<br />
que os governa, e a cujas leis obedecem, o político título <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>, que direi eu <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Glória em que os anjos e santos são<br />
perpétuos mora<strong>do</strong>res, juntamente com o supremo rei e monarca <strong>da</strong>s<br />
eterni<strong>da</strong>des, Deus nosso senhor, a quem intimamente amam e obedecem? Oh<br />
que glórias me dizem de vós, Ci<strong>da</strong>de de Deus! Exclama o profeta rei 494 , como<br />
admira<strong>do</strong> e absorto nas maravilhas que lhe eram revela<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s<br />
contentamentos, alegrias e resplan<strong>do</strong>res de mora<strong>da</strong> tão feliz e preciosa, a<br />
quem fica tão pronta a admiração como suspensa a eloquência. O evangelista<br />
mimoso diz que lhe foi mostra<strong>da</strong> esta soberana Ci<strong>da</strong>de nas revelações de seu<br />
Apocalipse 495 , e <strong>da</strong> grandeza de seus mistérios que lhe foram representa<strong>do</strong>s,<br />
rascunharemos umas sombras e um quadro de morta cor. Porque só a quem<br />
Deus o revela lhe saberá <strong>da</strong>r cores vivas e os bem-aventura<strong>do</strong>s que nela vivem<br />
podem só conhecer suas delícias.<br />
Sobre as últimas e luzi<strong>da</strong>s esferas <strong>do</strong> céu, matiza<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s brilhantes<br />
luzes de tantos astros, cujos permanentes resplan<strong>do</strong>res são o pavimento deste<br />
inefável edifício, havemos de considerar um espaço capacíssimo, superior a<br />
to<strong>da</strong> a grandeza deste mun<strong>do</strong> que desde a terra até o globo de safiras vemos.<br />
A vista para <strong>da</strong>r-lhe alcance seria emprender impossíveis, porque sua<br />
grandeza de vista foge a to<strong>da</strong> a vista. Pois se para habitarem neste visível<br />
mun<strong>do</strong> os homens fez Deus o mun<strong>do</strong> tão grande que nunca ain<strong>da</strong> cabalmente<br />
perece, que está desde seu princípio sua grandeza descoberta, que vista<br />
poderá medir o espaço que Deus nosso senhor preparou para nele fun<strong>da</strong>r a<br />
mora<strong>da</strong> <strong>do</strong>s anjos e a habitação <strong>do</strong>s escolhi<strong>do</strong>s em sua companhia? A terra<br />
fica sen<strong>do</strong> um ponto, se com esta superior circunferência se compara. Pois se<br />
sen<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> estrela <strong>do</strong> céu muito maior que o globo <strong>da</strong> terra, postos os astros<br />
no oitavo céu parecem à nossa vista tão pequenos, qual será a distância que<br />
vai sobre to<strong>do</strong>s os céus? Só fica objecto próprio <strong>da</strong> consideração por não poder<br />
definir-se com a vista. Neste espaçoso campo, que assim lhe chamarei, de<br />
Psal. 86. {Psal. 86 na edição de 1734).<br />
Apocai, cap. 21.
512 Padre Mateus Ribeiro<br />
to<strong>da</strong>s as flores matiza<strong>do</strong>, Primavera eterna <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, Abril sempre vivo,<br />
Maio nunca passa<strong>do</strong>, pra<strong>do</strong> de eternas rosas, jardim de to<strong>da</strong>s as alegrias de<br />
quem o terreal paraíso tomou as sombras, debuxou os longes, imitou apenas<br />
as distâncias <strong>do</strong>s visos, para ser na terra paraíso de delícias chama<strong>do</strong> com ser<br />
só rascunho deste ver<strong>da</strong>deiro paraíso, está fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em quadro a Ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
Glória, como a viu São João, seus muros mais transparentes que o cristal mais<br />
fino e mais que o ouro resplandecente, suas bases as pedras mais preciosas e<br />
ca<strong>da</strong> uma de suas <strong>do</strong>ze portas fabrica<strong>da</strong>s de inestimáveis pedrarias, sen<strong>do</strong><br />
ca<strong>da</strong> porta uma só pedra, em que brilhan<strong>do</strong> o rubi, a esmeral<strong>da</strong>, a safira, o<br />
topázio, o jacinto, o crisolito e to<strong>do</strong> o mais precioso que o mun<strong>do</strong> estima e por<br />
quem a ambição humana se desvela, uniu o precioso com tal grandeza que<br />
pusesse limites ao desejo o que soltava to<strong>da</strong>s as admirações aos discursos<br />
para serem maravilhas <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s.<br />
Esta soberana Ci<strong>da</strong>de, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> sobre resplan<strong>do</strong>res, cujas praças são de<br />
ouro radiante, onde está a fonte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, o rio que com perpétuo cristal alegra<br />
tão sublime mora<strong>da</strong>, fertilizan<strong>do</strong> os pra<strong>do</strong>s vistosos deste vergel flori<strong>do</strong>, em<br />
quem nem teve jamais entra<strong>da</strong> o Inverno nem o Estio; que nunca viu as<br />
sombras <strong>da</strong> noite, porque são nele permanentes as luzes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> dia; a<br />
quem jamais chegaram as nuvens, porque são inacessíveis seus resplan<strong>do</strong>res,<br />
paraíso real de to<strong>da</strong>s as delícias. No terreal foram tão breves como neste tão<br />
perduráveis: é a mora<strong>da</strong> de Deus, <strong>do</strong>s anjos e <strong>do</strong>s santos. Nela diz o profético<br />
evangelista que não viu sol, porque o Divino Cordeiro é o sol que lhe assiste, à<br />
vista de cujos raios o sol material parece escuro: quanta diferença vai <strong>do</strong><br />
cria<strong>do</strong>r à criatura, <strong>da</strong> causa aos efeitos, <strong>do</strong> eterno ao temporal, <strong>do</strong> increa<strong>do</strong> ao<br />
produzi<strong>do</strong>!<br />
Aqui as gerarquias <strong>do</strong>s espíritos angélicos em coros dividi<strong>do</strong>s e as almas<br />
bem-aventura<strong>da</strong>s, to<strong>do</strong>s unânimes no vínculo <strong>do</strong> amor, logram na visão<br />
beatífica de Deus to<strong>da</strong>s as alegrias, delícias e contentamentos juntos: pois<br />
nesta visão inefável <strong>da</strong> Divina Essência tu<strong>do</strong> junto possuem e tu<strong>do</strong> junto<br />
logram. A fermosura <strong>do</strong> pra<strong>do</strong> está comigo, disse Deus pelo Profeta rei 496 , por<br />
mostrar que to<strong>da</strong> a fermosura e perfeição que vemos nas criaturas dividi<strong>da</strong> em<br />
grau eminentíssimo está em Deus Senhor nosso, identicamente uni<strong>da</strong> como<br />
496 Psal. 49.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 513<br />
em primeira causa e primeiro princípio de to<strong>do</strong> o ser. Assim o traz Santo<br />
Anselmo 497 , S. Dionísio Areopagita 498 , o angélico <strong>do</strong>utor Santo Tomás 499 e<br />
Cassio<strong>do</strong>ro 500 , com outros <strong>do</strong>s santos padres e <strong>do</strong>utores escolásticos. Porque<br />
como ninguém possa <strong>da</strong>r o que não tem, diz o <strong>do</strong>utor angélico, certo é que pois<br />
Deus comunicou tantas perfeições, como vemos, às criaturas com eminência,<br />
contem em si mesmo to<strong>da</strong>s as perfeições que repartiu e outras sem número<br />
que criar pudera, se quisera. To<strong>do</strong> o belo <strong>da</strong>s flores, o vistoso <strong>da</strong>s cores, a<br />
delícia <strong>da</strong>s florestas, o recreio <strong>do</strong>s jardins, o suave <strong>do</strong>s aromas, a fragrância<br />
<strong>do</strong>s cheiros, o radiante <strong>da</strong>s pedras preciosas, as luzes <strong>do</strong>s planetas, os<br />
resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol, o ornato <strong>do</strong>s céus, a melodia <strong>da</strong> música, a fermosura <strong>do</strong>s<br />
anjos e os encarecimentos <strong>da</strong> beleza humana, com tu<strong>do</strong> o mais que pode<br />
subtilizar o discurso mais perito, está em Deus infinitamente mais perfeito <strong>do</strong><br />
que o pode alcançar nosso discurso. Deus para ti é tu<strong>do</strong>, diz o grande padre<br />
Santo Agostinho 501 , porque não pode aspirar o desejo a bem algum, delícia ou<br />
perfeição que em Deus não ache; gozan<strong>do</strong> a alma bem-aventura<strong>da</strong> tu<strong>do</strong> junto<br />
por fruição em grau superior, quanto separa<strong>da</strong>mente nas criaturas solicitava o<br />
desejo e não lograva.<br />
Três <strong>do</strong>tes tem na glória as almas bem-aventura<strong>da</strong>s, que são:<br />
perfeitíssima sabe<strong>do</strong>ria, perfeitíssimo amor e perfeitíssimo gosto ou fruição em<br />
que se encerra e cifra to<strong>do</strong> o gosto cabal e alegria. Assim ven<strong>do</strong> a Divina<br />
Essência eleva<strong>da</strong>s pelo lume <strong>da</strong> glória, tu<strong>do</strong> e to<strong>da</strong>s as ciências perfeitamente<br />
alcançam quanto aos merecimentos de ca<strong>da</strong> um pertence. Ali vem os tesouros<br />
<strong>do</strong> amor divino, em cujo infinito oceano engolfa<strong>da</strong> a vontade humana com<br />
to<strong>da</strong>s as potências <strong>da</strong> alma a Deus seu amante sobre tu<strong>do</strong> ama. Ali desposa<strong>da</strong><br />
a alma venturosa com seu Divino Esposo inefavelmente o goza, ten<strong>do</strong> neste<br />
logro juntos to<strong>do</strong>s os bens, as delícias, as alegrias e recreios em que o desejo<br />
pára e o coração só cabalmente descansa. Aqui, diz o melífluo padre São<br />
Bernar<strong>do</strong> 502 , nem admite o entendimento engano, nem a vontade <strong>do</strong>r, nem a<br />
497 S. Ansel, ibi.<br />
498 Dionys. Areop.<br />
499 S. Tho.<br />
500 Cassio<strong>do</strong>r.<br />
501 S. Aug.<br />
502 S. Bern.
514 Padre Mateus Ribeiro<br />
memória recreio. Aqui nem há noite que moleste, nem pena que aflija, nem<br />
temor que inquiete, nem inveja que ofen<strong>da</strong>, nem desvelo que oprima, nem<br />
paixão que atormente, nem ambição que sobressalte, nem finalmente<br />
penali<strong>da</strong>de ou sentimento algum que sirva ou de eclipse às alegrias ou de<br />
desaire aos receios.<br />
Tu<strong>do</strong> neste venturoso esta<strong>do</strong> é perpétuo e sereno dia, eterniza<strong>da</strong><br />
Primavera, flores que não se murcham, verduras que não se secam, fontes de<br />
eterna vi<strong>da</strong>, rio perene de delícias que alegra com sua vista em cristalina e<br />
luzi<strong>da</strong> corrente a Ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Glória, tu<strong>do</strong> músicas suavíssimas em alterna<strong>do</strong>s<br />
coros, em que eleva<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s, mais no divino amor se esforçam os<br />
afectos em amar aquele sumo bem que de to<strong>do</strong>s os cânticos, hinos e louvores<br />
é sumamente digno. Ali ca<strong>da</strong> um <strong>do</strong>s bem-aventura<strong>do</strong>s, <strong>da</strong> glória que os outros<br />
logram, novo gosto e acidental glória recebe, sen<strong>do</strong> sem número de seus<br />
contentamentos os gostos acidentais que logram. Porque o perfeito vínculo <strong>do</strong><br />
amor com que em Deus estão uni<strong>do</strong>s faz festejar como próprios to<strong>do</strong>s os bens<br />
e gostos alheios. E com serem os bem-aventura<strong>do</strong>s tão diferentes nos esta<strong>do</strong>s,<br />
nos merecimentos e nos prémios, como ensina o padre Santo Agostinho 503 ,<br />
não pode <strong>da</strong>r-se inveja, senão amor grande: assim porque <strong>da</strong> visão beatifica<br />
que é a glória essencial participam to<strong>do</strong>s, ca<strong>da</strong> um conforme a capaci<strong>da</strong>de de<br />
seu merecimento, como se no mun<strong>do</strong> a uma mesa to<strong>do</strong>s comessem de um<br />
manjar preciosíssimo e bebessem de um licor suavíssimo conforme o<br />
estamago de ca<strong>da</strong> um receber pudesse, não teria inveja o que menos comesse<br />
ou bebesse, pois comeu e bebeu quanto o seu estamago pedia, <strong>do</strong> outro que<br />
comesse ou bebesse mais, pois tinha o estamago mais capaz, sen<strong>do</strong> o<br />
precioso <strong>do</strong> manjar e o suave <strong>do</strong> licor para to<strong>do</strong>s o mesmo. Nem é possível<br />
haver inveja de outros terem maior glória, pois vem evidentissimamente em<br />
Deus igualíssima balança de sua infinita justiça com que reparte a glória ao<br />
peso certíssimo <strong>do</strong>s merecimentos. Nem é possível <strong>da</strong>r-se inveja porque a<br />
cari<strong>da</strong>de e grandeza <strong>do</strong> amor com que em Deus os bem-aventura<strong>do</strong>s estão<br />
uni<strong>do</strong>s não só exclui to<strong>do</strong> o dissabor de inveja e ambição, mas como<br />
ver<strong>da</strong>deiros irmãos, filhos <strong>do</strong> mesmo Eterno Pai, se alegram to<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s bens<br />
que os outros possuem e <strong>da</strong>s glórias que eternamente logram.<br />
Santo Aug.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 515<br />
Depois <strong>da</strong> ressurreição, os corpos <strong>do</strong>s bem-aventura<strong>do</strong>s uni<strong>do</strong>s a suas<br />
almas se revestirão <strong>da</strong>queles quatro <strong>do</strong>tes soberanos, que são: clari<strong>da</strong>de, com<br />
que serão mais resplandecentes que o sol; impossibili<strong>da</strong>de, com que não<br />
poderão padecer moléstia alguma; subtileza, com que poderão penetrar por<br />
to<strong>do</strong>s os corpos sóli<strong>do</strong>s, como o sol com seus raios penetra o vidro e cristal<br />
sem ofendê-los; e o <strong>do</strong>te <strong>da</strong> agili<strong>da</strong>de, com que poderão assistir nas maiores<br />
distâncias sem dispêndio <strong>do</strong> tempo. Esta vi<strong>da</strong>, que só pode chamar-se vi<strong>da</strong><br />
porque só nela não há nem assombros <strong>da</strong> morte, nem varie<strong>da</strong>de <strong>do</strong> tempo,<br />
nem moléstia <strong>da</strong> velhice, antes o flori<strong>do</strong> <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, o total recreio, a maior<br />
delícia, é a que logram e lograrão eternamente os venturosos mora<strong>do</strong>res <strong>da</strong><br />
celestial Jerusalém: festas sem fim, músicas sem termo, delícias sem medi<strong>da</strong>,<br />
júbilos perduráveis, alegrias incessáveis, glórias permanentes em que os<br />
gostos correm duração com a eterni<strong>da</strong>de. Enquanto an<strong>da</strong>mos no vale de<br />
lágrimas desta vi<strong>da</strong> mortal, diz S. João Crisóstomo 504 , só com o pensamento e<br />
o desejo podemos subir a este monte resplandecente <strong>da</strong> glória, mas nem<br />
explicá-lo com palavras, nem descrevê-lo com eloquência. Porque o mais que<br />
podemos dizer é um átomo apenas <strong>do</strong> que lá se possui e <strong>da</strong>s felici<strong>da</strong>des<br />
inefáveis que lá se logram.<br />
Consola<strong>do</strong> ficou o enfermo Rogério de ouvir a Felisberto e muito alivia<strong>do</strong><br />
em o penoso de suas tristezas, e respondeu assim:<br />
- Muita consolação recebeu meu coração, venerável senhor, em ouvir-<br />
vos, e só estimara, para ser meu alívio perfeito no que pode receber-se nesta<br />
vi<strong>da</strong>, que me declarásseis como aos bem-aventura<strong>do</strong>s em a eterni<strong>da</strong>de nem as<br />
festas <strong>da</strong> glória os cansam por contínuas, nem desejam ver mais mun<strong>do</strong> que o<br />
que logram? Porque vemos na terra tão inquietos os humanos desejos, que<br />
to<strong>do</strong> o continua<strong>do</strong> enfastia e to<strong>do</strong> o novo serve de agra<strong>do</strong>.<br />
- Rústica pergunta é esta (respondeu o Ermitão) e que tem facilíssima<br />
resposta. Para o que haveis de advertir que a razão porque nesta vi<strong>da</strong> nossos<br />
desejos an<strong>da</strong>m tão inquietos, que em na<strong>da</strong> descansam, é porque está nosso<br />
coração fora de seu centro, que é o sumo bem; e assim como to<strong>da</strong>s as cousas<br />
fora de seu centro não admitem sossego e estão violenta<strong>da</strong>s, assim não sabe<br />
nosso desejo <strong>da</strong>r-se por satisfeito em na<strong>da</strong> desta vi<strong>da</strong>, até parar em a visão<br />
504 Chrys.
516 Padre Mateus Ribeiro<br />
clara de Deus, em quem como em centro pára. E como to<strong>da</strong>s as cousas para<br />
se apartarem de seu próprio centro, padecem violência, assim se (por<br />
impossível) pudesse um bem-aventura<strong>do</strong> ser aparta<strong>do</strong> <strong>do</strong> sumo bem, que é<br />
Deus nosso senhor, se queixara e suspirara enterneci<strong>da</strong>mente de se ver<br />
aparta<strong>do</strong> de seu único e cabal centro em que só descansa. Além disto é o Céu<br />
nossa própria pátria e o mun<strong>do</strong> desterro, como ensinam os santos padres; e<br />
sen<strong>do</strong> a pátria tão amável, como diz Cícero 505 , quem deixaria a pátria pelo<br />
desterro dela? To<strong>da</strong> a privação <strong>da</strong> pátria, diz Santo Agostinho 506 , é penosa,<br />
sen<strong>do</strong> os ares <strong>da</strong> pátria tanto naturalmente agradáveis, quanto tem os <strong>da</strong><br />
ausência dela de aborreci<strong>do</strong>s; como logo se havia de deixar o Céu, sen<strong>do</strong><br />
nossa pátria, em que juntos se cifram to<strong>do</strong>s os bens, para buscar o mun<strong>do</strong>,<br />
onde tu<strong>do</strong> falta?<br />
Quem deixa a pátria ou é violenta<strong>do</strong>, ou temeroso, ou ambicioso de<br />
riquezas e honras, ou curioso de ver novas terras e conhecer vários climas. No<br />
Céu, nem pode <strong>da</strong>r-se violência, nem temor, nem necessi<strong>da</strong>de, nem ambição,<br />
nem ignorância. Porque tu<strong>do</strong> é perfeitíssima paz, concórdia e amor; tu<strong>do</strong><br />
possui e logra quanto o desejo desvelar-se podia; tu<strong>do</strong> perfeitissimamente sabe<br />
e em Deus, como em espelho de infinita luz, como lhe chama a Sagra<strong>da</strong><br />
Escritura na Sabe<strong>do</strong>ria 507 , conhece tu<strong>do</strong> quanto conforme a capaci<strong>da</strong>de de<br />
seus merecimentos conhecer, entender e ver pode; como logo, sen<strong>do</strong> a Ci<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> Glória nossa pátria, como lhe chama o grande padre São Basílio 508 , e<br />
logran<strong>do</strong> nela um bem-aventura<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os bens, poderia jamais ausentar-se<br />
dela?<br />
Que o contínuo e eterniza<strong>do</strong> <strong>do</strong>s gostos e delícias que no Céu se logram<br />
não possam jamais enfastiar o gosto; porque, como diz Santo Agostinho 509 , a<br />
fermosura infinita de Deus sem fim se logra, sem fastio se ama e sem trabalho<br />
se louva, porque fora <strong>da</strong> Glória não há cousa que se deseje e dentro <strong>da</strong> Glória<br />
na<strong>da</strong> se pode <strong>da</strong>r que enfastie. Se nas festas desta nossa mortal vi<strong>da</strong> chegam<br />
505 Cicer.<br />
506 Santo Aug.<br />
507 Sapient.<br />
508 S. Basil.<br />
509 Santo Aug.
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte III 517<br />
os homens a molestar-se com os vagares e continuação <strong>da</strong>s músicas e<br />
celebri<strong>da</strong>des quan<strong>do</strong> se dilatam, é além <strong>da</strong> principal razão de serem gostos e<br />
delícias limita<strong>da</strong>s na enti<strong>da</strong>de e em que o desejo não sossega o ser a vi<strong>da</strong><br />
humana combati<strong>da</strong> <strong>da</strong> fome, sono, cansaço, moléstias, cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s que com seus<br />
assaltos a divertem de assistir com descanso seguro às temporais alegrias,<br />
quan<strong>do</strong> as logra. Porém no Céu, como diz o melífluo padre São Bernar<strong>do</strong> 510 ,<br />
sen<strong>do</strong> admirável a sereni<strong>da</strong>de, cabal a segurança e eterna a alegria, não<br />
haven<strong>do</strong> nem pena, nem sentimento, pensão ou cui<strong>da</strong><strong>do</strong> que divirta <strong>do</strong> logro<br />
desta felici<strong>da</strong>de humana, nem pode jamais enfastiar-se o desejo, nem cansar-<br />
se a fruição <strong>da</strong>s eternas delícias.<br />
São as músicas <strong>da</strong> Glória tão diferentes <strong>da</strong>s <strong>da</strong> terra que se conta que<br />
estan<strong>do</strong> o seráfico padre S. Francisco uma noite mui aperta<strong>do</strong> de excessivas<br />
<strong>do</strong>res, veio um anjo a tocar-lhe um instrumento músico, a cujos breves toques<br />
foi tal a suavi<strong>da</strong>de que sentiu que não só as <strong>do</strong>res cessaram logo, mas<br />
confessava o santo que se a harmónica melodia mais durara, a alma eleva<strong>da</strong><br />
nos suaves rasgos de tão subi<strong>da</strong> glória sem dúvi<strong>da</strong> desamparara o corpo, por<br />
não se achar capaz nesta mortal vi<strong>da</strong> de gozar os logros de tal bem. Tal é a<br />
grandeza <strong>da</strong>s delícias e gostos <strong>da</strong> Glória. E como o tempo, que é o movimento<br />
<strong>do</strong> primeiro móvel, tem só computação nas cousas sublunares, e não no que<br />
lhe fica tão superior, <strong>da</strong>qui vem que na duração <strong>da</strong> Glória, sen<strong>do</strong> vi<strong>da</strong><br />
interminável, nem o tempo se sinta, nem pareça tempo. Lá se escreve no<br />
Espelho <strong>do</strong>s Exemplos que um religioso santo e devoto se desvelava em<br />
desejar de entender ca<strong>da</strong> vez que ouvia cantar no coro aquele verso <strong>do</strong> Salmo<br />
oitenta e nove: Mil anos, senhor, à vossa vista são como o dia de ontem já<br />
passa<strong>do</strong>; como podia ser não se sentir nem computar o tempo em anos a<br />
milhares? Quis Deus Senhor nosso mostrar-lhe um emblema deste mistério, e<br />
assim viu diante de seus olhos um pássaro de fermosíssimas penas e cores<br />
tão belas, que por não carecer de tão fermosa e agradável vista, o foi seguin<strong>do</strong><br />
fora <strong>do</strong> convento a um bosque que vizinho estava, onde começou a cantar com<br />
tal suavi<strong>da</strong>de que, eleva<strong>do</strong> o devoto religioso no suave <strong>da</strong> melodia, se<br />
esqueceu de tu<strong>do</strong> o que no mun<strong>do</strong> havia. Deu fim o músico pássaro a seu<br />
canto e voltan<strong>do</strong> o religioso para o mosteiro, baten<strong>do</strong> à portaria que estava<br />
510 S. Bernard.
518 Padre Mateus Ribeiro<br />
mu<strong>da</strong><strong>da</strong> e não sen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s religiosos conheci<strong>do</strong>, nem ele conhecen<strong>do</strong> aos que<br />
via, se veio a achar pelos anos <strong>do</strong> prela<strong>do</strong> que ele nomeava que então era,<br />
busca<strong>do</strong>s os livros <strong>do</strong> cartório <strong>do</strong> convento, que havia trezentos e sessenta<br />
anos que o devoto religioso <strong>do</strong> mosteiro saíra, que a ele lhe pareciam breves<br />
horas.<br />
Daqui podeis inferir, senhor Rogério, como nas delícias <strong>da</strong> Glória<br />
desaparece o tempo, pois ain<strong>da</strong> nesta mortal vi<strong>da</strong> só uma sombra <strong>da</strong>s glórias<br />
<strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de de sorte encobriu tantos séculos que pareciam tão breves horas,<br />
sem se sentirem nem avultarem.<br />
- Por extremo fico satisfeito (respondeu Rogério) e tanto em minhas<br />
aflições consola<strong>do</strong> que já nem me dá temores a morte, nem me deixa<br />
sau<strong>da</strong>des a despedi<strong>da</strong> desta miserável vi<strong>da</strong>. E a vós vos pague Deus a<br />
consolação que com vossas palavras me destes.<br />
Pediu logo lhe chamassem quem lhe administrasse os sacramentos; e<br />
ao outro dia se despediu <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> tão alegre quanto antes de ouvir a Felisberto<br />
se mostrava pesaroso e triste. Ficaram os nossos romeiros consola<strong>do</strong>s em ver<br />
o desengano <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> com que Rogério se entregou à morte, a cujo enterro lhe<br />
assistiram com lágrimas de alegria de haverem conheci<strong>do</strong> que um fim<br />
venturoso serve de abono que honra e ilustra to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>.<br />
Cap. XX.<br />
Como os romeiros partiram <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e <strong>do</strong> que lhes sucedeu na pousa<strong>da</strong><br />
Partiram os romeiros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Asculi, haven<strong>do</strong>-se deti<strong>do</strong> nela três<br />
dias com assistirem à morte e enterro <strong>do</strong> defunto Rogério, em que tiveram<br />
bastante assunto para irem divertin<strong>do</strong> a moléstia <strong>do</strong> caminho que fizeram pela<br />
espaçosa campanha que se estende até o mar, e à distância de pouco mais de<br />
uma légua se vê edifica<strong>do</strong> o sumptuoso templo de S. Leonar<strong>do</strong> que Frederico,<br />
segun<strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r, consignou aos cavaleiros teutónicos de Santa Maria de<br />
Prússia, com grandes ren<strong>da</strong>s que lhe agregou que, diminuin<strong>do</strong>-se depois com<br />
a mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong>s tempos, hoje é comen<strong>da</strong> <strong>da</strong> ordem. É templo de grande<br />
romagem e veneração, em que se vem pendura<strong>do</strong>s muitos grilhões e cadeias,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 519<br />
algemas e colares de ferro de quem muitos cativos e presos milagrosamente<br />
se viram livres por intercessão <strong>do</strong> glorioso S. Leonar<strong>do</strong>; que assim enquanto<br />
an<strong>do</strong>u nesta mortal vi<strong>da</strong>, como depois que foi gozar <strong>da</strong> eterna, sempre foi e é<br />
particular advoga<strong>do</strong> <strong>do</strong>s cativos e encarcera<strong>do</strong>s. Foi este milagroso santo<br />
francês <strong>da</strong> província de Aquitania, como dele escreve o bispo Equilino,<br />
ilustríssimo na geração e caríssimo aos reis de França por suas excelentes<br />
virtudes, que alcançou um singular privilégio d'el-rei Clo<strong>do</strong>veu, e era que to<strong>do</strong>s<br />
os presos que ele pessoalmente visitasse fossem soltos. Assim an<strong>da</strong>va o<br />
caritativo S. Leonar<strong>do</strong> de uma em outra ci<strong>da</strong>de de França só a soltar presos<br />
<strong>do</strong>s cárceres em que estavam, visitan<strong>do</strong>-os nas prisões. E esta mesma<br />
liber<strong>da</strong>de que lhes solicitou nesta vi<strong>da</strong>, enquanto vivo, lhes alcança hoje no<br />
Céu glorioso aos cativos e presos que invocam o patrocínio de sua intercessão,<br />
como neste templo milagroso se manifesta.<br />
Caminhan<strong>do</strong> a diante por esta espaçosa campanha se vê o sítio em que<br />
se deu aquela memorável batalha entre os espanhóis e franceses, em que<br />
ficou morto o duque de Numours, general <strong>do</strong> exército francês de Luís,<br />
duodécimo rei de França, sen<strong>do</strong> general <strong>do</strong>s espanhóis o grande capitão<br />
Gonçalo Fernandes de Cór<strong>do</strong>va, por el-rei D. Fernan<strong>do</strong> de Aragão, como refere<br />
Sabélico. É to<strong>da</strong> esta campanha estéril de arvore<strong>do</strong> e falta de água, e só foi<br />
abun<strong>da</strong>nte de arroios de sangue que nela nesta cruenta batalha correram.<br />
Cercam a esta dilata<strong>da</strong> campanha o monte Apenino <strong>da</strong> parte <strong>do</strong> sul e o mar <strong>da</strong><br />
parte <strong>do</strong> norte. Caminharam to<strong>do</strong> o dia os nossos romeiros por este espaçoso<br />
sítio, alegre pela vista <strong>do</strong>s horizontes <strong>do</strong> mar e de alguns lugares e povoações<br />
que ao abrigo <strong>do</strong> monte Apenino se descobriam na terra; foram costean<strong>do</strong> o<br />
grande lago de Lessina, em que lhes renovou a memória a morte <strong>do</strong> malogra<strong>do</strong><br />
Reginal<strong>do</strong> e seus infortúnios; e passan<strong>do</strong> <strong>da</strong> outra parte <strong>do</strong> grande rio Fortoro,<br />
foram descansar essa noite em o lugar de Campo Martino, que está edifica<strong>do</strong><br />
junto às ribeiras <strong>do</strong> mar Adriático, cuja vista como tão vizinha lhes serviu de<br />
recreio ao cansaço <strong>do</strong> dia.<br />
Estavam as estrelas cintilan<strong>do</strong> raios entre as escuras sombras <strong>da</strong> noite,<br />
porque a lua no berço de seu nascimento se tinha retira<strong>do</strong> por pequena,<br />
quan<strong>do</strong> a terra em silêncio e o mar em vozes juntamente com o repeti<strong>do</strong> de<br />
seus ecos ao sono persuadiam. Seria quasi a meia-noite pelo compassa<strong>do</strong><br />
curso <strong>do</strong> primeiro móvel, tempo em que a vi<strong>da</strong> nas balanças <strong>do</strong> sono está
520 Padre Mateus Ribeiro<br />
suspensa, quan<strong>do</strong> se ouviram os gemi<strong>do</strong>s de quem se queixava e com<br />
enterneci<strong>da</strong>s vozes favor pedia. Despertou o Ermitão a seus companheiros,<br />
que ouvin<strong>do</strong> os enterneci<strong>do</strong>s clamores, juntamente com o <strong>do</strong>no <strong>da</strong> casa em<br />
que se hospe<strong>da</strong>vam, saíram to<strong>do</strong>s apressa<strong>do</strong>s, seguin<strong>do</strong> o roteiro <strong>da</strong>s vozes<br />
que se ouviam, e chegan<strong>do</strong> fora <strong>do</strong> lugar, junto ao mar, viram em terra a um<br />
vulto que em gemi<strong>do</strong>s publicava a pena que sentia, se quan<strong>do</strong> uma pena é<br />
grande tem bastante comissão a voz para interpretar o intenso dela. Junto<br />
estava um cavalo em terra caí<strong>do</strong>, que mal podia levantar-se; mas enfim o<br />
obrigaram a que se erguesse, ain<strong>da</strong> que, leso de uma mão, vagarosamente<br />
caminhasse. Era quem <strong>da</strong>va as vozes um galhar<strong>do</strong> mancebo de vinte e cinco<br />
anos, ao que parecia, de i<strong>da</strong>de, ricamente vesti<strong>do</strong> e que logo mostrava ser<br />
pessoa digna de to<strong>do</strong> o respeito, e na guarnição e rico a<strong>do</strong>rno <strong>do</strong> cavalo se<br />
descobria o que a sua presença acreditava.<br />
E como não estava capaz de poder mover-se, por se mostrar to<strong>do</strong><br />
senti<strong>do</strong> e magoa<strong>do</strong> <strong>da</strong> que<strong>da</strong> rigorosa que com ele o cavalo dera <strong>da</strong> eminência<br />
de um outeiro que junto à praia se via, toman<strong>do</strong> o <strong>do</strong>no <strong>da</strong> casa o cavalo <strong>da</strong>s<br />
rédeas e os três companheiros em braços ao caí<strong>do</strong>, caminharam para o lugar à<br />
casa em que se hospe<strong>da</strong>vam; e fazen<strong>do</strong>-lhe uma cama o melhor que permitia a<br />
brevi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> tempo, se procurou quem o curasse <strong>da</strong>s <strong>do</strong>res e lesão que a<br />
despenha<strong>da</strong> que<strong>da</strong> lhe tinha causa<strong>do</strong>. E ele <strong>da</strong>n<strong>do</strong> ao hóspede uma bolsa que<br />
com moe<strong>da</strong>s de ouro em abundância trazia, lhe pediu despendesse<br />
liberalmente tu<strong>do</strong> quanto necessário lhe fosse. Não faltou ele em com to<strong>da</strong> a<br />
brevi<strong>da</strong>de procurar no lugar quem lhe acudisse a curá-lo com os remédios que<br />
por então mais convenientes pareceram; com os quais, mais bran<strong>da</strong>s as <strong>do</strong>res,<br />
pôde <strong>do</strong>rmir o que <strong>da</strong> noite restava, que não era muito. E aos primeiros rasgos<br />
<strong>da</strong> aurora foi o hóspede a outro lugar a chamar um perito cirurgião que nele<br />
assistia. O qual veio curá-lo e lhe assegurou não haver perigo. Com o que mais<br />
alivia<strong>do</strong>, o enfermo se mostrou mais consola<strong>do</strong> em suas moléstias.<br />
Desejosos estavam os nossos romeiros de saber quem o enfermo seria,<br />
porque na presença, trato e cortesia que mostrava parecia ser pessoa principal;<br />
e ven<strong>do</strong>u-o tão desacompanha<strong>do</strong> de cria<strong>do</strong>s, não alcançavam que segre<strong>do</strong><br />
seria o caminhar tão só. Com este desejo lhe assistiam com grande cari<strong>da</strong>de e<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, não lhes parecen<strong>do</strong> justo deixarem-no em casa e terra alheia, tão<br />
desampara<strong>do</strong> e molesta<strong>do</strong>, que com grande pena revolver-se podia. Assim lhe
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 521<br />
assistiam com grande cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e desejo de o verem com alívio. O que ele<br />
conhecen<strong>do</strong> como discreto, e queren<strong>do</strong> mostrar-se agradeci<strong>do</strong> como obriga<strong>do</strong>,<br />
lhes disse:<br />
- Bem enten<strong>do</strong>, senhores, que tereis desejo de saber os discursos de<br />
minha vi<strong>da</strong> e a ocasião que teve esta infelice que<strong>da</strong> que tão caro me tem<br />
custa<strong>do</strong>. E pois em outra cousa não posso ao presente mostrar o quanto estou<br />
agradeci<strong>do</strong> ao socorro que me destes e ao cui<strong>da</strong><strong>do</strong> com que vos mostrais<br />
compadeci<strong>do</strong>s de minha aflição e solícitos de meu remédio, vos <strong>da</strong>rei notícia<br />
de quem sou, de minha vi<strong>da</strong> e de minha tristeza, mais para desafogar o intenso<br />
de minha <strong>do</strong>r, que por esperar remédio dela.<br />
Agradeci<strong>do</strong>s à cortesia se lhe ofereceram de novo Felisberto e seus<br />
companheiros, e ele começou os discursos de sua vi<strong>da</strong>, dizen<strong>do</strong>:<br />
- A insigne ci<strong>da</strong>de de Ravena, empório célebre <strong>do</strong> mar Adriático que<br />
antigamente foi corte de Teo<strong>do</strong>rico, rei <strong>do</strong>s ostrogo<strong>do</strong>s e senhor absoluto de<br />
Itália, e depois assistência <strong>do</strong>s exarcos ou governa<strong>do</strong>res que os empera<strong>do</strong>res<br />
de Constantinopla man<strong>da</strong>vam a governar Itália, está situa<strong>da</strong> entre os <strong>do</strong>us rios,<br />
Bedeso e Montão, que ca<strong>da</strong> um deles por sua parte a cerca para que na<strong>da</strong> lhe<br />
faltasse para ser em tu<strong>do</strong> famosa, assim nos tempos passa<strong>do</strong>s como no<br />
presente, senhorean<strong>do</strong> com seu sítio as cristalinas on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mar Adriático, que<br />
com ser tão grande, para retratar sua grandeza parece espelho pequeno.<br />
Correu seu senhorio com os tempos vária fortuna, como to<strong>da</strong>s as grandezas <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> humana, como disse Demóstenes, pensão que ao tempo pagaram as mais<br />
opulentas ci<strong>da</strong>des e monarquias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>: sen<strong>do</strong> sujeita antigamente ao<br />
império romano, depois aos ostrogo<strong>do</strong>s e aos sumos pontífices romanos,<br />
depois aos empera<strong>do</strong>res de Constantinopla e logo ao império <strong>do</strong> ocidente,<br />
consistin<strong>do</strong> sua maior perseverança em não a ter em esta<strong>do</strong> algum, como<br />
disse Euripides. E sen<strong>do</strong> depois conquista<strong>da</strong> pelos venezianos, que também<br />
dela tiveram senhorio, ultimamente este foi restituí<strong>do</strong> aos sumos pontífices<br />
romanos.<br />
Nesta antiga e grandiosa ci<strong>da</strong>de nasci eu de uma <strong>da</strong>s ilustres famílias<br />
dela e me puseram por nome Constantino e fui segun<strong>do</strong> filho <strong>da</strong> casa de meus<br />
pais. Foi meu pai Júlio Polentano, antiquíssima família e que foram<br />
antigamente senhores <strong>do</strong> governo de Ravena em o tempo que venci<strong>do</strong>s os<br />
Traversários, que eram os mais poderosos <strong>do</strong> contrário ban<strong>do</strong>, a nossa família
522 Padre Mateus Ribeiro<br />
se ensenhoreou <strong>da</strong> absoluta administração <strong>da</strong> república. Depois, com a<br />
mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong>s tempos e varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fortuna, perderam os Polentanos o<br />
<strong>do</strong>mínio que tinham e ficaram excluí<strong>do</strong>s <strong>da</strong> soberania que antigamente<br />
lograram. Deixou Júlio, meu pai, a vi<strong>da</strong> presente em i<strong>da</strong>de que fiquei eu de oito<br />
anos, per<strong>da</strong> de mim então pouco conheci<strong>da</strong> e depois bem senti<strong>da</strong> e hoje bem<br />
chora<strong>da</strong>: sen<strong>do</strong> os pais tão dignos de serem ama<strong>do</strong>s, que como disse S. João<br />
Crisóstomo, tem os filhos obrigação té os últimos alentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de venerarem<br />
e servirem a seus pais.<br />
Inclinei-me às letras e juntamente às armas, que são os <strong>do</strong>us caminhos<br />
que os filhos segun<strong>do</strong>s pela maior parte seguem, que não impede o exercício<br />
escolástico o uso <strong>da</strong>s armas. Bem se viu em o insigne capitão tebano<br />
Epaminon<strong>da</strong>s, que foi invencível nas armas e eruditíssimo nas letras; Lúcio<br />
Sila, Júlio César e outros muitos <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de que assim na erudição <strong>da</strong>s<br />
letras como na glória militar foram no mun<strong>do</strong> tão celebra<strong>do</strong>s. Enfim com fama<br />
de letras e de sol<strong>da</strong><strong>do</strong> nas armas, de vinte anos de i<strong>da</strong>de fui chama<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
duque de Urbino para seu secretário, por via de um tio meu que em Urbino<br />
vivia e desejava ver-me com aumentos que se prometia sua esperança na<br />
corte de um tal príncipe, se merecesse ser seu vali<strong>do</strong>. É o cargo de secretário<br />
<strong>do</strong>s príncipes empenho dificultoso por ser sua obrigação entender e calar,<br />
como disse Aulo Gélio 511 : ser tesoureiro <strong>do</strong>s segre<strong>do</strong>s mais arrisca<strong>do</strong> é que<br />
<strong>da</strong>s riquezas. Porque se estas se roubarem, pode servir de desculpa a<br />
violência de quem as rouba; mas se os segre<strong>do</strong>s se descobrirem, não se pode<br />
atribuir senão à desleal<strong>da</strong>de de quem os manifesta; que porventura por isso<br />
chamou S. Gregório Papa 512 ao segre<strong>do</strong> depósito <strong>da</strong>s palavras e não menos<br />
<strong>do</strong>s pensamentos. São as vontades <strong>do</strong>s príncipes escrupulosas de publicarem<br />
seus afectos, e quan<strong>do</strong> se resolvem a declará-los, querem que os peitos de<br />
seus secretários e vali<strong>do</strong>s sejam sepulturas para ocultá-los e eles mais que<br />
mu<strong>do</strong>s para não dizê-los. Mais que mu<strong>do</strong>s disse, porque talvez estes<br />
impossibilita<strong>do</strong>s <strong>da</strong> voz se explicam com os acenos; e o secretário fiel nem com<br />
acenos há-de entender-se, nem com as vozes declarar-se. Entrei em casa <strong>do</strong><br />
duque com esta lição bem estu<strong>da</strong><strong>da</strong>: pagou-se de meu talento, mereci em<br />
511 Aul. Gel., Lib. 1.<br />
512 S. Greg., Horn, in Ezecch.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 523<br />
breve tempo sua privança, sen<strong>do</strong> seu maior vali<strong>do</strong>, busca<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s pelo<br />
valimento e por ele mesmo inveja<strong>do</strong> de muitos. Rara pensão <strong>do</strong>s vali<strong>do</strong>s, que<br />
os mesmos que os buscam para o favor, os aborreçam pela privança.<br />
Havia na corte de Urbino uma ilustre <strong>do</strong>nzela que se chamava Jacinta,<br />
filha de ilustres e ricos pais e única herdeira de quanto possuíam, por não<br />
terem mais filhos. Era Jacinta a pedra preciosa <strong>da</strong> beleza, com quem<br />
compara<strong>da</strong>s as jacintas mais ricas, fican<strong>do</strong> na estimação de seu luzimento<br />
pobres, perdiam o valor que de antes tinham. Desvelava-se a aurora em<br />
madrugar para vê-la, apressava o sol a veloci<strong>da</strong>de de seu brilhante carro para<br />
admirá-la, e com em ca<strong>da</strong> manhã vê-la, sempre se retirava admira<strong>do</strong>. Porque<br />
tinha a vista de Jacinta privilégios para sempre causar admirações, sem as<br />
repetições de vista a privarem <strong>do</strong> privilégio de ser admira<strong>da</strong>. Queixava-se a<br />
noite de não vê-la. Mas quan<strong>do</strong> podia a noite ver ao sol? E ain<strong>da</strong> que<br />
intentasse usurpar algum espaço ao dia, em aparecen<strong>do</strong> Jacinta já não havia<br />
noite.<br />
Direis, senhores, que encareço um impossível. Nunca o possível foi<br />
cabal assunto <strong>do</strong> encarecimento. Sen<strong>do</strong> tal a fermosura de Jacinta que mal se<br />
pode explicar em encarecimentos, e podia queixar-se de agrava<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong><br />
parece estar mais encareci<strong>da</strong>. A i<strong>da</strong>de mal chegava aos vinte anos, que na<br />
fermosura é o flori<strong>do</strong> <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de. Se o ouro nas minas se perdera, só em seus<br />
cabelos restaurar-se pudera, que como lograva tantos privilégios <strong>do</strong> sol, nunca<br />
podia faltar em seus cabelos o ouro. Os montes Riseus pouca neve encerram<br />
se se comparam com seu rosto. Porque quan<strong>do</strong> aparecem mais neva<strong>do</strong>s, na<br />
presença de Jacinta ficariam escuros. Pois se a neve com o sol se derrete, só<br />
em Jacinta há sol que resplandece e neve que dura. Competiu a púrpura<br />
emulações com os can<strong>do</strong>res e ficou em seu rosto a competência sem decidir-<br />
se. Porque os alvores purpurizavam e a púrpura nevava tanto que, suspensos<br />
os olhos que a viam, não determinavam se vencia a rosa ou açucena. Seus<br />
olhos tinham tanto de negros como de belos, toman<strong>do</strong> <strong>da</strong> Etiópia juntamente a<br />
cor e as setas, para rebuça<strong>do</strong>s com o escuro <strong>da</strong> cor não errarem o tiro, que se<br />
ao claro talvez se escu<strong>da</strong>m os golpes, no escuro ninguém se acautela <strong>da</strong>s<br />
feri<strong>da</strong>s. Era a boca alcaide de rubi que em cárcere breve aprisionava muitos<br />
diamantes, não poderosa só quan<strong>do</strong> falava, mas igualmente poderosa se se<br />
ria, porque ou falan<strong>do</strong> de veras ou de burlas era o triunfo <strong>do</strong>s corações e o
524 Padre Mateus Ribeiro<br />
encanto amoroso <strong>da</strong>s vontades. Era sua fermosura arrisca<strong>da</strong> para vista e<br />
ingrata para ama<strong>da</strong>: que sempre a ingratidão se põe <strong>da</strong> parte <strong>da</strong> beleza,<br />
avalian<strong>do</strong> o rendimento por dívi<strong>da</strong> e as finezas por tributo. Era finalmente<br />
Jacinta o assunto <strong>da</strong>s maravilhas <strong>da</strong> corte pelo belo e o objecto <strong>do</strong>s<br />
sentimentos pelo ingrato.<br />
Aspiravam a seu casamento os fi<strong>da</strong>lgos mais ilustres, não só de Urbino,<br />
mas de outras ci<strong>da</strong>des distantes: que como a fama em tu<strong>do</strong> a publicava<br />
singular, to<strong>do</strong>s se desvelavam para merecê-la. Mas como podia merecer-se<br />
quem fazia ludíbrio <strong>do</strong>s merecimentos de to<strong>do</strong>s? Entre tantos opositores a esta<br />
ventura, para minha desgraça, fui eu um <strong>do</strong>s empenha<strong>do</strong>s em amá-la, se fora<br />
venturoso em merecê-la. Escrevi-lhe, mas não alcancei resposta. Desvelei-me<br />
nos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, apurei-me nas finezas, furtava ao sono to<strong>da</strong>s as horas que a<br />
assistência <strong>do</strong> duque me deixava para o descanso, e destas fazia meu maior<br />
desassossego, ron<strong>da</strong>n<strong>do</strong> as casas e jardim em que Jacinta, <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, triunfava<br />
de meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sos desvelos.<br />
Em uma destas noites que meu amor fazia gala <strong>do</strong> trabalho e ela ludíbrio<br />
de minha pena, sucedeu que três homens rebuça<strong>do</strong>s, junto aos muros <strong>do</strong> seu<br />
jardim, de repente me acometessem com broquéis e estoques, sem me falarem<br />
cousa alguma, por não serem conheci<strong>do</strong>s. Eu, que me considerei tão<br />
improvisamente acometi<strong>do</strong> e com parti<strong>do</strong> tão desigual, empenhei-me não só na<br />
defensa, mas ain<strong>da</strong> na vingança, com tanto alento que ferin<strong>do</strong> a um <strong>do</strong>s três<br />
em um braço, que era o que mais delibera<strong>do</strong> me acometia, vi que como<br />
desalenta<strong>do</strong> se retirava <strong>da</strong> pendência, enquanto os outros não só me impediam<br />
que o seguisse, mas ain<strong>da</strong> por vingá-lo se arrojavam com brios repeti<strong>do</strong>s a me<br />
matarem. Cresceu-me a paixão com a porfia, e ven<strong>do</strong>-me arrisca<strong>do</strong> a um<br />
perigo, disparei uma pistola que na cinta levava, com cujas balas um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>us<br />
caiu em terra, pedin<strong>do</strong> confissão. O que eu ven<strong>do</strong>, me retirei apressa<strong>do</strong>, antes<br />
que acudisse quem pudesse conhecer-me.<br />
Cap. XXI.<br />
Em que Constantino prossegue os discursos de sua vi<strong>da</strong>
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 525<br />
Era a noite escura e o tempo <strong>do</strong> maior silêncio em que me retirava para<br />
não ser conheci<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> senti vir a ron<strong>da</strong>, e porque pelo caminho que eu<br />
levava era impossível o não encontrar-me com ela, para desviar o encontro, dei<br />
volta ao muro <strong>do</strong> jardim de Jacinta e saltei dentro com tanta ligeireza que não<br />
fui <strong>da</strong> ron<strong>da</strong> senti<strong>do</strong>. Vi aberta uma porta <strong>da</strong>s casas e, entran<strong>do</strong> por ela, ouvi<br />
an<strong>da</strong>r a gente revolta sobre o sucesso <strong>da</strong> briga e feri<strong>do</strong>s que junto às casas<br />
estavam, a que já a ron<strong>da</strong> tinha acudi<strong>do</strong>. Entrei pelas casas guia<strong>do</strong> <strong>do</strong> temor,<br />
de quem disse o Séneca 513 que ninguém se isenta. Sucedeu que ao querer<br />
entrar em uma <strong>da</strong>s casas, visse a Jacinta à luz de uma vela que sobre um<br />
bofete (a) ardia; e enten<strong>do</strong> fora escusa<strong>da</strong> outra luz onde brilhavam as luzes de<br />
seus olhos. Assustou-se em ver-me, e queren<strong>do</strong> retirar-se com o temor, eu lhe<br />
disse assim:<br />
- Vali-me, ó Jacinta, <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong> de tua casa, por fugir a ser conheci<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong> justiça; obrigação é de quem tu és amparar a quem se vai de teu patrocínio.<br />
Fugi <strong>da</strong>s sombras e avizinhei-me aos raios <strong>do</strong> sol. Quem viu fugir um temeroso<br />
<strong>da</strong>s trevas <strong>da</strong> noite para a luz <strong>do</strong> dia? Teus olhos foram a causa de quererem<br />
matar-me, e escusa<strong>da</strong> fora a morte, quan<strong>do</strong> teus olhos me tem morto. Defendi-<br />
me porque uma vi<strong>da</strong> não pode pagar à morte <strong>do</strong>us tributos: um aos golpes de<br />
quem me busca e outro às esquivanças de quem me foge. Pouco valeram<br />
contigo meus desvelos. Quem ama sem ventura nunca alcança galardão, por<br />
mais finezas que obre. Conheça-te nesta ocasião ao menos pie<strong>do</strong>sa, pois<br />
jamais pude conhecer-te obriga<strong>da</strong>, e mereça por forasteiro este favor, pois<br />
outro não pude merecer-te por amante.<br />
Atenta me ouviu Jacinta e, movi<strong>da</strong> à compaixão, me man<strong>do</strong>u esconder<br />
em outra casa de que ela só tinha a chave; e fechan<strong>do</strong> a porta, acudiu ao<br />
alvoroço que em sua casa ia, porque seu pai Fabrício e sua mãe Armin<strong>da</strong> com<br />
to<strong>da</strong> a gente de casa acudiam a receberem nela a Júlio Ubal<strong>do</strong>, primo <strong>do</strong><br />
duque, que desmaia<strong>do</strong> <strong>do</strong> muito sangue que <strong>da</strong> artéria <strong>do</strong> braço direito em que<br />
estava feri<strong>do</strong> lhe corria, em braços o subiam para se lhe aplicarem remédios,<br />
se o rigor <strong>da</strong> feri<strong>da</strong> o permitisse; e um <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s estava nos últimos termos<br />
513 Senec, Epist. 79.<br />
(a) Segun<strong>do</strong> D. Rafael Bluteau, espécie de banca lavra<strong>da</strong> <strong>do</strong> melhor pau que o ordinário e com<br />
mais curiosi<strong>da</strong>de.
526 Padre Mateus Ribeiro<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, abrin<strong>do</strong> as portas à morte as balas <strong>da</strong> pistola que entre o escuro <strong>da</strong><br />
noite o acertaram. Chamaram-se o confessor e os cirurgiões juntamente, e<br />
estes aplicaram vários remédios; mas com desconfianças <strong>do</strong>s remédios, que<br />
quan<strong>do</strong> nos próprios remédios vem a faltar a confiança, não se admite mais<br />
apelação que para o Céu, que é só o ver<strong>da</strong>deiro remédio. Deu-se logo conta ao<br />
duque, que por extremo se mostrou senti<strong>do</strong>; man<strong>do</strong>u-me chamar, e não me<br />
achan<strong>do</strong>, começaram a indiciar motivos de minha ausência poder eu ser o<br />
agressor deste <strong>da</strong>no; tomou-se a confissão ao cria<strong>do</strong> que escapa<strong>do</strong> tinha, e<br />
culpou-me. E ofendi<strong>do</strong> o duque contra mim, sem lhe constar <strong>da</strong> causa,<br />
ajuntan<strong>do</strong>-se aos émulos de meu valimento a acrescentarem sua paixão com<br />
suas calúnias, exasperaram de mo<strong>do</strong> o ânimo <strong>do</strong> príncipe que man<strong>do</strong>u publicar<br />
um édito em que a quem me entregasse <strong>da</strong>riam grandes prémios e ameaços<br />
de iguais castigos a quem me encobrisse.<br />
Arrisca<strong>da</strong> cousa é a privança <strong>do</strong>s príncipes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e sua condição<br />
perigosa, pois qualquer desgosto é bastante para se esquecerem de grandes<br />
serviços que tenham recebi<strong>do</strong>. Pode um dia de paixão riscar <strong>da</strong> memória<br />
muitos anos de finezas com que um vali<strong>do</strong> em servi-los se desvela. Quem vive<br />
na privança é respeita<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s, mas de nenhum ama<strong>do</strong>; tem muitos<br />
obriga<strong>do</strong>s e nenhum amigo; que pode mais a inveja que o agradecimento, e <strong>do</strong><br />
próprio valimento, sen<strong>do</strong> a muitos útil, fazem to<strong>do</strong>s agravo. É a privança a<br />
causa mais corteja<strong>da</strong> e a mais nociva, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se to<strong>do</strong>s por ofendi<strong>do</strong>s, para<br />
nenhum se confessar obriga<strong>do</strong>. É o favor <strong>da</strong> vontade fonte perene <strong>da</strong> inveja,<br />
que com mais violência corre quan<strong>do</strong> o valimento faz estanque <strong>do</strong> poder, e não<br />
basta que a muitos aproveite, se para to<strong>do</strong>s igualmente não corre. O que não é<br />
possível, sen<strong>do</strong> os desejos tantos e os cabe<strong>da</strong>is limita<strong>do</strong>s. Escolhe um príncipe<br />
a um vali<strong>do</strong> por companheiro para que lhe ajude a sustentar o peso <strong>do</strong> governo<br />
e monarquia, como de Atlante fingiram os poetas que escolhera a Hércules<br />
para que lhe aju<strong>da</strong>sse a sustentar a esfera celeste; e não quer o mun<strong>do</strong> que o<br />
peso <strong>do</strong> governo se sustente em outros ombros que os <strong>do</strong> príncipe, e antes<br />
querem que fique <strong>da</strong> carga oprimi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que verem que é <strong>do</strong> vali<strong>do</strong> alivia<strong>do</strong>; e<br />
assim lhe desejam a ruína, como se em aliviar ao príncipe se lhes fizera a eles<br />
a maior ofensa. Valimento que descaiu <strong>da</strong> grandeza, ninguém acha que lhe dê<br />
a mão para que se levante: que como se despenhou <strong>do</strong> mais alto, como pedra<br />
de corisco não pára senão muitas braças soterra<strong>da</strong> na terra. São os montes
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 527<br />
eminentes e altivos os primeiros, disse Ovídio 514 , com quem encontram os<br />
raios: a que<strong>da</strong> de um particular talvez acha quem se compadeça <strong>da</strong> ruína, mas<br />
a de um vali<strong>do</strong> em to<strong>do</strong>s acha o aplauso e em raros a pie<strong>da</strong>de. Porque, como<br />
de seu poder to<strong>do</strong>s se dão por ofendi<strong>do</strong>s, sem receberem agravos, assim de<br />
sua ruína to<strong>do</strong>s se mostram alegres, sem esperarem interesses. Bem disse<br />
Tucidides, referi<strong>do</strong> por Plutarco 515 , que a inveja e o poder eram sempre<br />
companheiros inseparáveis; e sen<strong>do</strong> os maiores inimigos, sempre vivem juntos.<br />
Apenas me viram caí<strong>do</strong> <strong>da</strong> graça e valimento <strong>do</strong> duque, quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s<br />
contra mim se conjuraram. Oh ingrata condição <strong>do</strong>s homens, que mostran<strong>do</strong><br />
tantos respeitos ao poder, logo se rebelam à infelici<strong>da</strong>de! Tanto que os<br />
atenienses foram venci<strong>do</strong>s em Sicília pelos de Cartago, logo ven<strong>do</strong> na batalha<br />
morto a seu capitão Nícias, se lhes rebelaram as mais <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des de Grécia<br />
que com eles tinham liga e amizade e outras que estavam obedientes a seu<br />
senhorio. Não basta haver com benefícios obriga<strong>do</strong>, quem se vê <strong>da</strong> fortuna<br />
desfavoreci<strong>do</strong>. Na batalha terrestre que em Alexandria deu Marco António a<br />
Augusto César, fez um sol<strong>da</strong><strong>do</strong> de Marco António tão valerosas finezas de<br />
animoso e destemi<strong>do</strong> que, admira<strong>do</strong> delas, o convi<strong>do</strong>u Marco António a cear<br />
com ele e Cleópatra, essa noite, a uma própria mesa, e lhe deram um elmo e<br />
um peito to<strong>do</strong> de ouro fino de grande preço; e o agradecimento que deu deste<br />
tão particular favor que havia recebi<strong>do</strong>, foi ao outro dia passar-se à parte de<br />
Augusto César e pôr-se contrário a Marco António, seguin<strong>do</strong> a quem favorecia<br />
a ventura e não a quem devia a obrigação.<br />
Tal me considerei eu neste tempo, busca<strong>do</strong> com notáveis diligências e<br />
publica<strong>do</strong> com éditos, calunia<strong>do</strong> para com o príncipe, rebelan<strong>do</strong>-se contra mim<br />
não só os que me estavam obriga<strong>do</strong>s, mas ain<strong>da</strong> os que de antes se<br />
confessavam mais amigos, sem ter pessoa de que poder fiar-me, quan<strong>do</strong> de<br />
mim se tinham vali<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s. Estive to<strong>do</strong> o seguinte dia em casa de Jacinta<br />
fecha<strong>do</strong> <strong>da</strong> sua mão, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me alguns regalos por uma cria<strong>da</strong> de quem só<br />
fiou este segre<strong>do</strong>. E pela meia-noite, quan<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a gente de casa estava<br />
recolhi<strong>da</strong>, abrin<strong>do</strong> a porta <strong>do</strong> aposento onde eu estava, em companhia <strong>da</strong><br />
cria<strong>da</strong> que só de mim sabia, me disse desta sorte:<br />
514 Ovid., 2. De remed. Amoris.<br />
515 Plutarc, De Vita Verecund.
528 Padre Mateus Ribeiro<br />
- Não me é possível, Constantino, o ter-vos mais nesta casa, porque o<br />
não permite nem meu crédito, nem a segurança de vossa vi<strong>da</strong>. O primo <strong>do</strong><br />
duque está desconfia<strong>do</strong> pelos juízos de quem o cura, com os fluxos de sangue<br />
repeti<strong>do</strong>s, sem serem eficazes to<strong>do</strong>s os remédios que se lhe aplicaram para<br />
pararem sua corrente. O cria<strong>do</strong> <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s é faleci<strong>do</strong>. O duque com notáveis<br />
diligências vos busca; esta casa com o feri<strong>do</strong> an<strong>da</strong> to<strong>da</strong> inquieta e eu não<br />
posso entre tantas assistências ocultar-vos como quisera. Não responder a<br />
vossos escritos não foi por desestimar o que merece vossa pessoa, mas por<br />
não ser meu intento mu<strong>da</strong>r de esta<strong>do</strong> sem o consentimento de meus pais; e<br />
como sois filho segun<strong>do</strong>, se fôreis o primeiro em tu<strong>do</strong> o seríeis para mim. Os<br />
pais sempre procuram os aumentos de seus filhos; e assim põem os olhos no<br />
que mais avulta, não no que mais merece. A noite é escura e acomo<strong>da</strong><strong>da</strong> para<br />
a fugi<strong>da</strong>, tratai de pôr-vos em seguro, que levarei grande gosto, pois fui a<br />
primeira que vos defendi de saber que não houve quem vos ofendesse. Bem<br />
sei que estareis desprovi<strong>do</strong> de dinheiro, porque os <strong>caso</strong>s repentinos não<br />
admitem prevenção; nesta bolsa levais com que possais valer-vos, e avisai-me<br />
como estiverdes livre de sobressaltos, que terei alegria grande quan<strong>do</strong> enten<strong>da</strong><br />
que estais alivia<strong>do</strong> <strong>da</strong> aflição em que vos considero.<br />
Dizen<strong>do</strong> isto, me deu uma bolsa brosla<strong>da</strong> de fio de ouro com quanti<strong>da</strong>de<br />
de escu<strong>do</strong>s que nela vinham; que eu receben<strong>do</strong> de sua mão, com a devi<strong>da</strong><br />
cortesia, lhe respondi:<br />
- Temo já tão pouco hoje os ameaços de minha vi<strong>da</strong> que o resguar<strong>da</strong>r-<br />
me <strong>do</strong>s assaltos de quem me busca será mais, discreta Jacinta, por <strong>da</strong>r-vos<br />
esse gosto que por interesse meu. O vir servir ao duque não foi por me faltar<br />
em Ravena, minha pátria, nem a fi<strong>da</strong>lguia de meu nascimento, nem a riqueza<br />
conveniente à minha quali<strong>da</strong>de; mas paga-me os desvelos com que o servi<br />
com os excessos <strong>do</strong> rigor com que me trata. A feri<strong>da</strong> de seu primo bem pode<br />
não ser mortal, mas a que em meu peito causou vossa vista carece de<br />
remédio, porque as que tocam ao coração sempre foram mortais a quem as<br />
recebe. Depois de tantos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, desvelos tão repeti<strong>do</strong>s, me rejeitais por ser<br />
filho segun<strong>do</strong>. Pouco me valeu ser em amar-vos o primeiro; mas interesses e<br />
amor nunca moraram juntos. Dais-me esmola como a pobre <strong>da</strong> ventura, e<br />
como tal a recebo, pois nem tive fortuna na privança, nem ventura nas finezas.<br />
De que algum dia pagarei essa dívi<strong>da</strong>, fique por fia<strong>do</strong>r este diamante que
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 529<br />
minha mãe me deu à despedi<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> me parti para Urbino. Dizem que um<br />
diamante com outro se lavra, mas no adiamanta<strong>do</strong> de vosso coração padece<br />
excepção esta regra, pois tantas finezas de meu amor nunca puderam lavrar<br />
sua dureza. Ficai-vos embora, senhora Jacinta, que quem vai como eu<br />
desengana<strong>do</strong> de merecer-vos, nem teme os riscos <strong>da</strong> morte, nem estima as<br />
seguranças <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Dizen<strong>do</strong> isto, tirei um anel de um diamante de muito preço, que minha<br />
mãe me tinha <strong>da</strong><strong>do</strong>, e lho ofereci; que ela duvi<strong>do</strong>u receber. Mas ven<strong>do</strong> minha<br />
porfia, o aceitou, dizen<strong>do</strong> o recebia por <strong>da</strong>r-me esse gosto, que tratasse mui<br />
deveras de assegurar-me, que o tempo me mostraria o quanto na opinião de<br />
sua dureza me enganava. Com estes longes de esperança me despedi <strong>do</strong>s<br />
pertos de sua vista. E vin<strong>do</strong> a cria<strong>da</strong> a abrir-me a porta <strong>do</strong> jardim, saí de sua<br />
casa mais sau<strong>do</strong>so de seus olhos que temeroso de meus perigos. Era a noite<br />
bem escura, porque em cárcere de densas nuvens tinham as sombras<br />
prisioneiras as estrelas; a lua decrépita na i<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s raios não tinha subi<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
inferior hemisfério de seu globo; e assim as trevas com universal <strong>do</strong>mínio<br />
senhoreavam, não haven<strong>do</strong> luzes que resistir-lhe pudessem. Vi-me na ci<strong>da</strong>de<br />
em que já fui tão vali<strong>do</strong> e ao presente me considerava tão odioso, de antes de<br />
to<strong>do</strong>s busca<strong>do</strong> para o favor e hoje de tantos procura<strong>do</strong> para o castigo, sem ter<br />
de tantos amigos que me cortejavam ao presente de quem fiar-me, pois<br />
quan<strong>do</strong> está de permeio o interesse, há-de ser de prova o amigo que lhe<br />
resista. Tinha o duque prometi<strong>do</strong> <strong>do</strong>us mil escu<strong>do</strong>s a quem me prendesse ou<br />
entregasse: rigor excessivo para quem nem conspirou contra sua pessoa, nem<br />
esta<strong>do</strong>s, antes com to<strong>da</strong> a leal<strong>da</strong>de o tinha sempre fielmente servi<strong>do</strong>. E sen<strong>do</strong><br />
a feri<strong>da</strong> de seu primo mais em minha defensa própria causa<strong>da</strong>, e a morte de<br />
seu cria<strong>do</strong>, que em seu agravo, e contu<strong>do</strong>, mal informa<strong>do</strong>, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se por<br />
ofendi<strong>do</strong>, com ban<strong>do</strong>s que lançou me fazia não ter de quem assegurar-me na<br />
corte de Urbino.<br />
Entre o escuro <strong>da</strong> noite, que sempre favorece aos temerosos, saí <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de, e caminhan<strong>do</strong> apressa<strong>do</strong>, para que a vizinhança <strong>da</strong> aurora me achasse<br />
distante <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, fui seguin<strong>do</strong> a corrente <strong>do</strong> rio Argilla, que fertilizan<strong>do</strong> os<br />
campos com suas águas, lhes paga na abundância <strong>do</strong>s frutos a passagem que<br />
lhe dão, sen<strong>do</strong> estrangeiro. Saiu a lua tão limita<strong>da</strong> na luz como minha alegria e<br />
a pouco espaço se avizinhou a aurora, mas tão resisti<strong>da</strong> <strong>da</strong>s nuvens que
530 Padre Mateus Ribeiro<br />
parece lhe protestavam que ain<strong>da</strong> não era tempo de declarar-se, pela<br />
resistência grande que faziam, a usar de seus brilhantes privilégios o dia.<br />
Enfim, como quem mais pode, sempre vence, luziu o dia, apesar <strong>da</strong>s nuvens, e<br />
reforçan<strong>do</strong> o sol a vanguar<strong>da</strong> <strong>do</strong>s raios, desfez o espesso e desterrou o raro,<br />
de sorte que <strong>da</strong> mais escura noite nasceu o mais alegre dia.<br />
Tinha eu caminha<strong>do</strong> bastante jorna<strong>da</strong>, e molesta<strong>do</strong> <strong>do</strong> cansaço e <strong>da</strong><br />
pena que me acompanhava neste caminho, ven<strong>do</strong> o ameno de uma fonte que<br />
em leito de espa<strong>da</strong>na e pavelhão de verdes ramos mais murmurava <strong>do</strong> que<br />
<strong>do</strong>rmia, me retirei a tomar algum alívio para poder continuar a jorna<strong>da</strong> que a<br />
Ravena, minha pátria, e a ver minha mãe se dirigia. Aqui consideran<strong>do</strong> as<br />
mu<strong>da</strong>nças de minha fortuna, larguei as rédeas ao sentimento, provocan<strong>do</strong>-me<br />
a sole<strong>da</strong>de <strong>do</strong> sítio e o arroio que <strong>da</strong> fonte nascia, que tão veloz caminhava, e<br />
assim lhe disse:<br />
- Bem parece, apressa<strong>do</strong> arroio, que não sentes nem o bem que<br />
perdes, nem o <strong>da</strong>no que buscas, pois te ausentas <strong>do</strong> berço em que nasces,<br />
para buscar no mar a sepultura em que morres! Deixas a pátria pelas terras<br />
estranhas, o abrigo <strong>da</strong> fonte que te cria pelo desabri<strong>do</strong> <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s que te<br />
esperam. Oh quanto melhor te fora parares nativo arroio que aspirares em<br />
terras alheias a ser rio, pois te conservaras no que te deu a natureza, sem<br />
experimentares os disfavores <strong>da</strong> ventura! Quanto melhor me fora viver na<br />
companhia de minha mãe que procurar valimento de príncipes estranhos. Na<br />
pátria tinha amigos e era estima<strong>do</strong>; hoje me vejo sem amigos e persegui<strong>do</strong>.<br />
Que o empera<strong>do</strong>r Tibério matasse a Sejano, seu vali<strong>do</strong>, e Cómo<strong>do</strong> a Perrénio,<br />
seu priva<strong>do</strong>, não foi a maior prova de sua cruel<strong>da</strong>de, porque seus deprava<strong>do</strong>s<br />
procedimentos lho tinham mereci<strong>do</strong>.<br />
Mas em que ofendi eu ao duque para que como a sedicioso delinquente<br />
me procure com prémios para tirar-me a vi<strong>da</strong>? Este prémio alcancei de deixar<br />
minha pátria e mãe para servi-lo? Mas quem <strong>do</strong>s valimentos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pode<br />
fazer confianças? São as vontades <strong>do</strong>s reis e príncipes mudáveis e é edificar<br />
sobre areia privança que se fun<strong>da</strong> em humanas vontades, chuva de estio e sol<br />
de Inverno, canto de rouxinol de pouca dura, exalação que se apaga quan<strong>do</strong><br />
resplandece, rosa que aljofra<strong>da</strong> nasce e na tarde desmaia<strong>da</strong> se murcha, mimo<br />
<strong>da</strong> aurora e lástima <strong>da</strong> noite, gala <strong>do</strong> pra<strong>do</strong> e despojos <strong>do</strong> campo. Tal o esperar<br />
firmezas arbítrios <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça é engano.
Alívio de tristes e consolação de queixosos- Parte III 531<br />
Assim me queixava, fazen<strong>do</strong> a fonte orelhas de cristal para ouvir-me;<br />
que não tem um aflito outros ouvintes que de suas mágoas se compadeçam<br />
senão as fontes, que não sentem, as árvores, que não ouvem, e as aves que<br />
lhe pagam em música os ecos de suas queixas. Neste tempo, que seria<br />
quan<strong>do</strong> o sol começava a declinar a lição de seus raios, senti passos por entre<br />
as árvores que a fonte encobriam, e vi de repente saírem oito homens com<br />
clavinas e pistolas que, levan<strong>do</strong>-as à cara, me disseram se não queria morrer,<br />
não resistisse. Suspendeu-me o susto tão impensa<strong>do</strong>, e conhecen<strong>do</strong> que eram<br />
foragi<strong>do</strong>s, lhes disse que to<strong>do</strong> o dinheiro que levava lhes <strong>da</strong>ria, contanto que<br />
me deixassem continuar meu caminho. E tiran<strong>do</strong> a bolsa com os escu<strong>do</strong>s que<br />
Jacinta me tinha <strong>da</strong><strong>do</strong>, lha ofereci. Ao que um deles, que como maioral<br />
respeita<strong>do</strong> parecia, me disse:<br />
- Recolhei a bolsa, que bem vos será necessária, porque meu intento<br />
não é despojar dela a quem de socorro necessita. Eu e meus companheiros<br />
homizia<strong>do</strong>s an<strong>da</strong>mos; e porventura com vos entregarmos ao duque,<br />
pudéramos alcançar perdão e viver em sossego de nossos homicídios; mas<br />
não queira Deus que um persegui<strong>do</strong> a outro persiga, nem com o preço de<br />
vossa vi<strong>da</strong> se restaure o perigo <strong>da</strong>s nossas. Outro caminho menos odioso nos<br />
abrirá o Céu, quan<strong>do</strong> Deus o ordene. E se quereis vos façamos companhia té<br />
vos pores em lugar seguro, o faremos com muito boa vontade.<br />
Admira<strong>do</strong> eu de um lanço de tanta pie<strong>da</strong>de, me lancei a seus olhos com<br />
lágrimas nos olhos, renden<strong>do</strong>-lhes as graças de um procedimento tão fi<strong>da</strong>lgo,<br />
qual era o que usavam comigo, em ocasião que me via tão desfavoreci<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
fortuna, sentin<strong>do</strong> não estar em o esta<strong>do</strong> de meu antigo valimento para<br />
desempenhar-me de uma tal dívi<strong>da</strong>. Ao que ele respondeu com a mesma<br />
cortesia. E parecen<strong>do</strong> acerta<strong>do</strong> o caminharmos adiante, e passan<strong>do</strong> Pessaro,<br />
chegámos, à vista <strong>do</strong> mar Adriático, àquele sumptuosíssimo paço e casa de<br />
campo que antigamente edificou o empera<strong>do</strong>r Frederico Terceiro, e se chama<br />
Pogio Imperial, em que os duques de Urbino vão assistir por recreação muita<br />
parte <strong>do</strong> ano, e onde eu com ele muitas vezes tinha i<strong>do</strong>.<br />
Não quisemos chegar a ele, por escusar o ser conheci<strong>do</strong>s; mas em um<br />
casal que à vista ficava determinámos passar a noite, que já nos retiros <strong>do</strong> dia,<br />
nos crepúsculos vespertinos como aposenta<strong>do</strong>res <strong>da</strong>s sombras se chegava; e<br />
man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> eu comprar com largueza por um pastor <strong>do</strong> casal o que se pôde
532 Padre Mateus Ribeiro<br />
achar para se preparar a ceia, depois de eu <strong>da</strong>r a Justiniano, que assim se<br />
chamava este pie<strong>do</strong>so foragi<strong>do</strong>, inteira notícia de minha vi<strong>da</strong> e a causa porque<br />
ia fugitivo, de que ele se mostrou compadeci<strong>do</strong> a meus infortúnios e me fez<br />
relação de seus sucessos, dizen<strong>do</strong>:<br />
Cap. XXII.<br />
Em que Justiniano refere sua vi<strong>da</strong><br />
- Meu nome é Justiniano, nasci na insigne ci<strong>da</strong>de de Lucca, que<br />
antigamente foi colónia <strong>do</strong>s romanos, a quem Desidério, rei <strong>do</strong>s longobar<strong>do</strong>s,<br />
cercou de fortes muros, como a praça dele muito estima<strong>da</strong>. Está situa<strong>da</strong> na<br />
província de Toscana, vizinha aos montes de Luna, em sítio plano e abun<strong>da</strong>nte<br />
pela fertili<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s campos, que agradeci<strong>do</strong>s ao cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so desvelo <strong>do</strong>s<br />
lavra<strong>do</strong>res que os cultivam, lhes respondem com copioso fruto. Com a<br />
varie<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s tempos correram seus mora<strong>do</strong>res vária fortuna, umas vezes<br />
conservan<strong>do</strong>-se em república livre, outras em diverso senhorio, que a riqueza e<br />
opulência <strong>do</strong>s que a governavam muitas vezes mu<strong>da</strong>ram à custa de civis<br />
hostili<strong>da</strong>des que se venderam ao preço de muitas vi<strong>da</strong>s, prevalecen<strong>do</strong> sempre<br />
os desejos <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de em que se conservou seu governo como república<br />
livre. Foi a família de meus pais mais nobre que rica, e como tinha muitos filhos<br />
e limita<strong>da</strong>s as ren<strong>da</strong>s, uns seguiram as letras e outros as armas, que são os<br />
caminhos que a ventura franqueia aos que, ven<strong>do</strong>-se com obrigações de<br />
honra<strong>do</strong>s, se vem <strong>do</strong>s bens <strong>da</strong> fortuna desfavoreci<strong>do</strong>s.<br />
Apliquei-me eu às letras e segui-as alguns anos com satisfação de meu<br />
estu<strong>do</strong> na Universi<strong>da</strong>de de Bolonha, em que meus pais me sustentavam o<br />
melhor que podiam. Entre os amigos que na universi<strong>da</strong>de tinha mais<br />
particulares era um deles Eugénio, um nobre mancebo natural <strong>da</strong> mesma<br />
ci<strong>da</strong>de de Bolonha e nela bem aparenta<strong>do</strong> com os principais <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Houve<br />
neste tempo uma oposição de cadeiras, em que nosso mestre apadrinhava a<br />
um seu sobrinho que era opositor e bom letra<strong>do</strong>, e nós nos empenhámos por<br />
seu respeito em que ele com o intento saísse. São os mestres os segun<strong>do</strong>s
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 533<br />
pais <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> política <strong>do</strong>s homens, sen<strong>do</strong>, como diz Santo Agostinho 516 , maior<br />
neles o trabalho de ensinarem que nos discípulos o de aprenderem. Deve-se<br />
aos mestres tanto respeito que um <strong>do</strong>s labéus e eclipses grandes que<br />
Alexandre pôs a suas glórias foi man<strong>da</strong>r matar ao filósofo Calístenes, sen<strong>do</strong><br />
sobrinho de Aristóteles, seu mestre, e que por tal lho havia <strong>da</strong><strong>do</strong> quan<strong>do</strong> partiu<br />
para Ásia. E foi sua morte a causa principal de lhe <strong>da</strong>rem o veneno com que<br />
acabou a vi<strong>da</strong>. Nero, entre os delitos de sua cruel<strong>da</strong>de, um <strong>do</strong>s que mais o fez<br />
odioso foi o condenar à morte a Séneca, seu mestre, a quem ele devia a maior<br />
veneração. Juliano Apóstata, para em tu<strong>do</strong> se mostrar monstro de tiranias,<br />
man<strong>do</strong>u lançar no rio Tibre a seu mestre e aio Pigmiaco, e usou a maior<br />
ingratidão a quem devia os maiores benefícios. São os mestres, diz<br />
Aristóteles 517 , como tochas em que as candeias se acendem, que sem<br />
diminuírem a luz que em si tem, a to<strong>da</strong>s as comunicam, e chegan<strong>do</strong> de antes<br />
escuras, fazem com que resplandeçam, que trevas chamou à ignorância o<br />
padre São Gregório 518 . O ser sempre ignorante diz Cícero 519 que é sempre ser<br />
menino, pois sempre o parecêramos, se os mestres não foram.<br />
Sen<strong>do</strong> pois tantas as obrigações que aos mestres devemos, que igual à<br />
dívi<strong>da</strong> nunca pode ser paga, empenhámo-nos eu e Eugénio em fazer séquito a<br />
seu sobrinho para conseguir o desejo com to<strong>do</strong> o valimento e cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, assim<br />
de seus parentes de Eugénio como de amigos que nos não faltavam. Era o<br />
opositor natural <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, pessoa humilde na família, mas rico, e que tinha<br />
granjea<strong>do</strong> com dádivas muitos parciais <strong>do</strong> povo, em que estava confia<strong>do</strong> de<br />
alcançar a pertensão em que se empenhava. Comunicámos ao mestre a cura<br />
popular que ao contrário favorecia. E ele nos respondeu:<br />
- Não é o maior abono de Eusébio o séquito popular em que fun<strong>da</strong> suas<br />
esperanças; porque me lembra que escreve Plutarco que o que agra<strong>da</strong> à<br />
multidão nunca foi aceito aos sábios e entendi<strong>do</strong>s. É o vulgo tão mudável nos<br />
pareceres, diz Demóstenes, que com dificul<strong>da</strong>de se pode conhecer em espaço<br />
de poucos dias o que aplaude, nem o que aborrece. É fácil cousa mover ao<br />
6 S. Aug., Insent.<br />
7 Arist., Polit. 1.<br />
8 S. Greg., 11. Mor.<br />
9 Cicer., in Oratione ad Brutum.
534 Padre Mateus Ribeiro<br />
povo, ensina Quintiliano , a qualquer <strong>do</strong>s pareceres; porque o que hoje louva,<br />
amanhã rejeita, e o que ontem aborrecia, hoje aclama, e o que hoje estima,<br />
amanhã persegue.<br />
Quan<strong>do</strong> Lisandro, capitão <strong>do</strong>s lacedemónios, depois de vários assaltos<br />
que deu à ci<strong>da</strong>de de Atenas, a tomou por armas, entran<strong>do</strong>-a vence<strong>do</strong>r, pôs e<br />
deixou nela, para que mais se não eximisse <strong>da</strong> sujeição em que ficava, o<br />
senhorio de Esparta a trinta governa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> povo, por que com a varie<strong>da</strong>de<br />
<strong>do</strong>s pareceres jamais pudessem rebelar-se, pois o que uns aprovassem por<br />
útil, outros haviam de reprovar por <strong>da</strong>noso. A Públio Sulpício, tribuno <strong>do</strong> povo<br />
em Roma, tu<strong>do</strong> quanto intentava conseguia <strong>do</strong> povo em vi<strong>da</strong>, e tanto que<br />
morreu, negou-lhe o povo a sepultura. A Mânlio Capitolino, que tanto tinha<br />
mereci<strong>do</strong> ao povo romano, assim em haver defendi<strong>do</strong> o Capitólio, <strong>do</strong>nde tomou<br />
o nome, como em se odiar com os sena<strong>do</strong>res e cavaleiros romanos, por acudir<br />
pelo povo, por sentença dele mesmo foi man<strong>da</strong><strong>do</strong> despenhar <strong>do</strong> Capitólio, e<br />
morreu tão ingratamente persegui<strong>do</strong>. Mas para que recorro eu a exemplos<br />
antigos, quan<strong>do</strong> temos outro tão fresco na memória? Em Lucca, vossa pátria,<br />
tereis sabi<strong>da</strong> a história memorável de Paulo Guinisio, que com o favor <strong>do</strong> povo<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de se levantou com o senhorio absoluto dela, por espaço de trinta anos,<br />
em que adquiriu excessivas riquezas, sen<strong>do</strong> não só <strong>do</strong> povo ama<strong>do</strong> e<br />
respeita<strong>do</strong> com grande veneração, mas ain<strong>da</strong> estima<strong>do</strong> <strong>do</strong>s príncipes de Itália<br />
por seu grande poder e riquezas; e no fim deste tempo, em que parecia que a<br />
felici<strong>da</strong>de de sua opulência estava mais segura, se levantou o povo contra ele<br />
e prendeu-o com cinco filhos que tinha; haven<strong>do</strong>-o despoja<strong>do</strong> de quantas<br />
riquezas possuía, o man<strong>da</strong>ram preso a Filipe, visconde duque de Milão, que<br />
era seu contrário. Onde ele e seus filhos, pobres e presos, acabaram as vi<strong>da</strong>s.<br />
Sen<strong>do</strong> pois o povo tão mudável e seu favor tão incerto, como temos<br />
visto, e ten<strong>do</strong> meu sobrinho Sílvio a vós e a Justiniano com os principais <strong>da</strong> sua<br />
parte, nem desconfio <strong>do</strong> vencimento, pois o patrocina a justiça, nem me<br />
atemoriza o favor <strong>do</strong> popular que a Eusébio aplaude; que se o interesse <strong>do</strong><br />
outro é bastante para o suborno, nem sempre é poderoso para prosseguir o<br />
desejo. Prudente an<strong>do</strong>u Licurgo entre as leis que deu aos lacedemónios, em<br />
ordenar que a moe<strong>da</strong> que em Esparta houvesse para o comércio fosse só de<br />
Qint., Declam. 11.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 535<br />
ferro e não de ouro, nem prata; conhecen<strong>do</strong> que entanto duraria a inteireza <strong>da</strong><br />
justiça, enquanto o ouro não tivesse valor na república. E bem se viu, pois to<strong>da</strong><br />
rectidão <strong>do</strong>s lacedemónios se começou a corromper com as muitas moe<strong>da</strong>s de<br />
ouro que Lisandro, seu capitão, man<strong>do</strong>u a Esparta <strong>do</strong>s despojos <strong>da</strong>s vitórias<br />
que alcançou <strong>do</strong>s persianos. Nem o veneno em ouro está seguro. Tinha Nero<br />
em um vaso de ouro prepara<strong>do</strong> o veneno para matar-se, se a necessi<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />
tumulto, que como cruel temia, a isso o constrangesse, e quan<strong>do</strong> quis dele<br />
valer-se, o achou furta<strong>do</strong>. Porque nem sempre as dádivas tem valor para o<br />
desejo.<br />
Anima<strong>do</strong>s nós com a exortação <strong>do</strong> mestre, nos empenhámos no<br />
patrocínio de Sílvio com tanto cui<strong>da</strong><strong>do</strong> que, não sen<strong>do</strong> poderosos os favores<br />
vulgares que a Eusébio assistiam, Sílvio levou a cadeira que procurava.<br />
Ressentiram-se os <strong>do</strong> contrário ban<strong>do</strong> que, sobre se foi justo ou não o<br />
provimento <strong>da</strong> cadeira, viemos a tanto desgosto com eles que houve alguns<br />
mortos e muitos feri<strong>do</strong>s <strong>da</strong> sua parte. E carregan<strong>do</strong> o tumulto popular em nosso<br />
seguimento, nos ausentámos eu e Eugénio a to<strong>da</strong> a pressa de Bolonha, para<br />
evitarmos o perigo. An<strong>da</strong>va ele sempre bem provi<strong>do</strong> de dinheiro, e assim<br />
determinámos passar a Roma a ver suas grandezas, até que o discurso <strong>do</strong><br />
tempo moderasse o furor <strong>do</strong>s ofendi<strong>do</strong>s. Vimos a sumptuosi<strong>da</strong>de de Roma, em<br />
que nos detivemos alguns meses, ten<strong>do</strong> sempre que admirar e ca<strong>da</strong> vez mais<br />
que ver; e discursan<strong>do</strong> por várias ci<strong>da</strong>des de Itália, chegámos a Urbino, em a<br />
qual vi a que tem si<strong>do</strong> ocasião de to<strong>do</strong>s os desgostos e perigos em que hoje<br />
me vejo.<br />
Passan<strong>do</strong> eu e Eugénio por uma rua <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Urbino, uma tarde de<br />
Maio em que o tempo estava mais alegre, como delícia <strong>do</strong> ano, ouvimos em<br />
uma casa <strong>da</strong>s mais vistosas <strong>da</strong> rua cantar uma voz de mulher com tão suave<br />
harmonia, ao som de uma harpa que tocava, que parámos a ouvi-la; e se o<br />
amor costuma a entrar ao coração pelos olhos, posso dizer com razão que<br />
entrou no meu pelos ouvi<strong>do</strong>s. É a música de si amável, que ain<strong>da</strong> nos brutos<br />
irracionais costuma ser poderosa para demover e atrair os senti<strong>do</strong>s. Dos cisnes<br />
diz Santo Isi<strong>do</strong>ro serem tão afeiçoa<strong>do</strong>s à música que se chegam e vão<br />
seguin<strong>do</strong> a quem bem canta; e as abelhas amam as vozes suaves e fogem <strong>da</strong>s<br />
dissonoras e desabri<strong>da</strong>s. Dos golfinhos o mostra a história de Arion, que
536 Padre Mateus Ribeiro<br />
escrevem haver sucedi<strong>do</strong> em tempo que Periandro senhoreava a Corinto, onde<br />
aportou.<br />
De sorte cantava Diana, que assim a música de que trato se chamava,<br />
que nos deixou absortos os senti<strong>do</strong>s em ouvi-la. Informei-me <strong>da</strong> vizinhança<br />
quem era esta italiana sereia que com o suave de sua voz nos suspendia, e<br />
achei se chamava Diana, única filha de um rico merca<strong>do</strong>r <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, e que de<br />
muitos era pertendi<strong>da</strong> pela voz e não se resolvia a tomar esta<strong>do</strong> de casa<strong>da</strong>, por<br />
ser feia. Em suspensões me deixou a informação, consideran<strong>do</strong> de uma parte<br />
a feal<strong>da</strong>de que diziam e por outra a harmonia que ouvia, a riqueza <strong>do</strong> <strong>do</strong>te,<br />
sen<strong>do</strong> filha única, para quem os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sos desvelos de seu pai tu<strong>do</strong><br />
adquiriam. Reprovava-me Eugénio o intentar casar com mulher que tinha<br />
opinião de ser feia, dizen<strong>do</strong> que se a vista continua<strong>da</strong> <strong>da</strong> fermosura muitas<br />
vezes lhe faz perder muito <strong>da</strong> estimação, que faria a repeti<strong>da</strong> assistência <strong>da</strong><br />
feal<strong>da</strong>de para ser molesta a quem sempre a visse? Ao que eu respondi:<br />
- Seus riscos traz consigo a beleza de que carece a feal<strong>da</strong>de, pois os<br />
ciúmes assentam mais sobre o que de muitos se deseja <strong>do</strong> que sobre o que a<br />
to<strong>do</strong>s desagra<strong>da</strong>; e viver um mari<strong>do</strong> isento desta molesta pensão ou<br />
desconfiança imagina<strong>da</strong> não é pequena ventura. Esta música dizem que é<br />
moça na i<strong>da</strong>de, e não há feal<strong>da</strong>de em poucos anos, pois o flori<strong>do</strong> deles a<br />
disfarça para que o não pareça. Na voz aprece anjo; o <strong>do</strong>te dizem que é rico;<br />
eu sou pobre e forasteiro, que são duas pobrezas juntas. A fermosura só de dia<br />
parece; a suavi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> voz também nas sombras <strong>da</strong> noite como no dia agra<strong>da</strong>,<br />
que de noite canta o rouxinol e é ain<strong>da</strong> seu canto mais aceito que de dia; e<br />
assim que a melodia <strong>da</strong> música em qualquer tempo é delícia <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s e a<br />
beleza só nas luzes o pode ser <strong>do</strong>s olhos; e assim me delibero a pertendê-la<br />
por esposa, se for tão venturoso que alcançá-la possa.<br />
Com esta resolução comecei a procurar o escrever-lhe, valen<strong>do</strong>-me<br />
algumas moe<strong>da</strong>s de ouro com que meu amigo Eugénio me assistia. Não era a<br />
feal<strong>da</strong>de tal que afugentasse, como se dizia; porque sempre <strong>da</strong> sentença <strong>do</strong>s<br />
ouvi<strong>do</strong>s há apelação para os olhos, onde muitas vezes se desengana a opinião<br />
<strong>do</strong>s rumores que divulgou a fama. Enfim, por não ser-vos molesto com referir o<br />
que neste intento houve, eu me vi casa<strong>do</strong> com Diana, com tanto contentamento<br />
meu, quanto hoje sinto de pena. Era mui discreta no juízo, admirável na<br />
suavi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> voz, mui destra no toque <strong>do</strong>s músicos instrumentos, mui afável
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 537<br />
no trato, mui primorosa na condição e sobre tu<strong>do</strong> que sabia estimar-me em<br />
mais <strong>do</strong> que eu merecia. Não era a feal<strong>da</strong>de grande, e pelo menos a mim mo<br />
não pareceu; e assim a estimei sempre como a esposa a quem muito queria.<br />
Seu pai, que outra filha não tinha, e era já ancião na i<strong>da</strong>de, se reviam seus<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s no alívio de a ver casa<strong>da</strong> comigo, que suposto que forasteiro, tinha<br />
bastante informação de que era honra<strong>do</strong>, abona<strong>do</strong> fia<strong>do</strong>r de que seria bem<br />
procedi<strong>do</strong>. Mandei a Lucca chamar a meu pai para que viesse ver e ouvir a sua<br />
nora. Veio ele e ficou mui satisfeito de meu acerto, que como o <strong>do</strong>te era bom e<br />
Diana, qual ouvistes, e tanto para ser ouvi<strong>da</strong> como estima<strong>da</strong>, ficou dela tão<br />
agra<strong>da</strong><strong>do</strong> que me servia de duplica<strong>do</strong> contentamento o ver minha eleição dele<br />
tão aprova<strong>da</strong>.<br />
Sucedeu, para pôr termo a minhas alegrias, que haven<strong>do</strong>-se Eugénio,<br />
meu amigo, despedi<strong>do</strong> para Bolonha, onde as riquezas de seus pais tinham já<br />
compostas as diferenças, favores enfim populares de muito estron<strong>do</strong> e pouca<br />
duração, e mais entran<strong>do</strong> de permeio os <strong>do</strong>nativos com que os rigores se<br />
abran<strong>da</strong>m, que, estan<strong>do</strong> meu pai um dia em conversação em Urbino com<br />
algumas pessoas principais, se viesse a mover prática sobre meu casamento<br />
com Diana. Estava na companhia um mancebo rico, mas livre no falar, vício<br />
que a experiência mostra quanto tem de arrisca<strong>do</strong>, de quem disse Euripides<br />
que vai mais um silêncio na conversação prudente <strong>do</strong> que um falar arroja<strong>do</strong> e<br />
para quem o ouve molesto; e de quem diz Santo Agostinho que os loquazes<br />
não são bons para amigos. Envolveu tantas liber<strong>da</strong>des na prática que meu pai,<br />
já impaciente, o desmentiu. A que ele respondeu com <strong>da</strong>r-lhe uma bofeta<strong>da</strong>.<br />
Levou meu pai de uma a<strong>da</strong>ga que trazia, meteram-se to<strong>do</strong>s em meio, e não<br />
pôde desagravar-se. Apenas eu tive deste agravo notícia, quan<strong>do</strong> acudin<strong>do</strong> ao<br />
tumulto, lhe dei estoca<strong>da</strong>s com que caiu morto. Retirei-me a um convento<br />
apressa<strong>do</strong>; e acudin<strong>do</strong> a justiça, prendeu a meu pai, que não pôde a tempo<br />
pôr-se em seguro; secrestou-se to<strong>da</strong> a fazen<strong>da</strong> e eu, não me asseguran<strong>do</strong> em<br />
Urbino, porque o morto, sobre ser rico, era bem aparenta<strong>do</strong>, levei Diana a<br />
Lucca a estar em companhia de minha mãe e voltei a ver se podia por alguma<br />
via livrar a meu pai, que vai em <strong>do</strong>us anos está preso, com tanta mágoa de<br />
meu coração, como podeis considerar.
538 Padre Mateus Ribeiro<br />
São tantas as obrigações que aos pais devemos, diz Aristóteles 521 , que<br />
nunca dignamente podemos compensá-las, porque nos geraram, porque nos<br />
criaram e porque nos <strong>do</strong>utrinaram. Lá refere Marco António Sabélico 522 que<br />
sen<strong>do</strong> Leão eleito empera<strong>do</strong>r por suas singulares virtudes e merecimentos, ele<br />
deu o título e insígnias imperiais a Zeno Isaurico, seu pai, e se privou de uma<br />
tal digni<strong>da</strong>de para que seu pai a tivesse. O templo <strong>da</strong> Pie<strong>da</strong>de, em Roma, teve<br />
princípio no consula<strong>do</strong> de Caio Quíncio e Marco Atílio, <strong>da</strong>quela pie<strong>do</strong>sa filha<br />
que, estan<strong>do</strong> seu pai preso e condena<strong>do</strong> a ser morto à fome, ela pedin<strong>do</strong><br />
licença para entrar a vê-lo, e sen<strong>do</strong> primeiro <strong>da</strong>s guar<strong>da</strong>s vista que nenhum<br />
sustento levava, o sustentou e alimentou com o leite de seus peitos tantos dias;<br />
até que lhe alcançou o sena<strong>do</strong> o perdão, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se edificar no lugar <strong>do</strong><br />
cárcere este templo à Pie<strong>da</strong>de, como conta Plínio.<br />
Movi<strong>do</strong> eu <strong>do</strong>s desejos pie<strong>do</strong>sos de pôr a meu pai em liber<strong>da</strong>de, pois a<br />
meu respeito deixan<strong>do</strong> sua pátria e casa veio a Urbino, onde em prisão tão<br />
dilata<strong>da</strong> há tanto que padece seus repeti<strong>do</strong>s desgostos, deixei a Diana em<br />
companhia de minha mãe, e acompanha<strong>do</strong> de <strong>do</strong>us irmãos que comigo an<strong>da</strong>m<br />
e outros parentes nossos, que são os que presentes vedes, prometemos de<br />
não tornar a Lucca, nossa pátria, sem levarmos a meu pai em nossa<br />
companhia, que não me sofre o amor e obrigações que lhe devo que viva eu no<br />
seguro <strong>do</strong> descanso e meu venerável pai na moléstia <strong>do</strong>s trabalhos em que o<br />
vemos. Meu sogro, ven<strong>do</strong>-se com tu<strong>do</strong> secresta<strong>do</strong> nesta fortuna, que a to<strong>do</strong>s<br />
envolve, se foi a estar em Lucca em companhia de Diana, ten<strong>do</strong> por alívio, já<br />
que se via sem o que possuía, ao menos lograr a vista e companhia de uma<br />
filha a quem tanto amava. Temos feito mil diligências, assim por valimentos de<br />
pessoas grandes, como indústria de vários meios, para ver se se podia<br />
remediar esta pena que me aflige; e ven<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> dia os portos mais fecha<strong>do</strong>s a<br />
meu desejo, demos em <strong>da</strong>r a nossos contrários to<strong>do</strong>s os pesares que<br />
podemos, desafogan<strong>do</strong> em parte com seus desgostos partes <strong>do</strong>s que nos<br />
causam. Muitas vezes nos saíram a buscar com a justiça para prender-nos,<br />
mas sempre voltaram ofendi<strong>do</strong>s. E an<strong>da</strong>mos já tão costuma<strong>do</strong>s a seus assaltos<br />
que me parece que an<strong>da</strong>m de nossas armas e resolutos assaltos mais<br />
Arist, Ethic. 8.<br />
Sabelic.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 539<br />
temerosos <strong>do</strong> que nós de seus acometimentos intimi<strong>da</strong><strong>do</strong>s, pois muitas vezes<br />
nos deixaram as armas por despojos.<br />
Lembra-me que um <strong>do</strong>s descui<strong>do</strong>s grandes que teve o empera<strong>do</strong>r<br />
Valente, quan<strong>do</strong> mal aconselha<strong>do</strong> consentiu aos go<strong>do</strong>s o habitarem junto às<br />
ribeiras <strong>do</strong> Danúbio, foi o não os despojar <strong>da</strong>s armas, pois podia fazê-lo; e de<br />
lhas deixar, ocasionou <strong>da</strong>rem depois ao império tantas rotas e trabalhos como<br />
deram. Que ao inimigo, quan<strong>do</strong> é inferior no parti<strong>do</strong>, se é generosi<strong>da</strong>de deixá-<br />
lo vivo, é imprudência manifesta o deixá-lo arma<strong>do</strong>. Eu de antes só professava<br />
letras, mas os perigos em que escapan<strong>do</strong> de ser preso me tenho visto, me tem<br />
feito e a meus irmãos e companheiros tão destros e atrevi<strong>do</strong>s que <strong>do</strong>s próprios<br />
riscos fazemos desprezo. Uma <strong>da</strong>s leis que Licurgo deu aos lacedemónios era<br />
que com um mesmo inimigo não batalhassem muitas vezes, por que o não<br />
viessem a fazer destro nas armas e destemi<strong>do</strong> nas ousadias. Donde veio a<br />
dizer Antacli<strong>da</strong>s Agesilau, rei de Esparta, sain<strong>do</strong> mal feri<strong>do</strong> de uma <strong>da</strong>s<br />
batalhas que deu aos tebanos, que ele tinha o prémio mereci<strong>do</strong> de haver<br />
ensina<strong>do</strong> aos de Tebas o exercício militar <strong>da</strong>s armas nas muitas vezes que<br />
lhes tinha movi<strong>do</strong> guerra, porque ou bem de uma vez os sujeitara, ou com eles<br />
pazes fizera.<br />
Esta é, senhor Constantino, a causa de meus inquietos desvelos, a vi<strong>da</strong><br />
que passo por ver se posso pôr a meu pai em liber<strong>da</strong>de, porque sinto eu mais<br />
seus discómo<strong>do</strong>s que meus trabalhos e me causa maior <strong>do</strong>r o vê-lo<br />
aprisiona<strong>do</strong> por meu respeito <strong>do</strong> que o an<strong>da</strong>r eu à morte ofereci<strong>do</strong>, por ver se<br />
posso livrá-lo. Quan<strong>do</strong> Bernar<strong>do</strong> dei Cárpio, sobrinho d'el-rei Dom Afonso, o<br />
Casto de Leão, filho de sua irmã Dona Ximena, viu preso a seu pai, o conde<br />
Dom Sancho Dias de Sal<strong>da</strong>nha, procuran<strong>do</strong> que el-rei o soltasse em prémio<br />
<strong>do</strong>s grandes serviços que lhe fazia e o não alcançan<strong>do</strong>, antes ven<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> dia a<br />
el-rei mais severo nos rigores, se partiu fora de seus reinos e lhe começou a<br />
fazer cruel guerra, para que a seu pai soltasse. Eu não sou súbdito <strong>do</strong> duque<br />
de Urbino; e ven<strong>do</strong> que por rogativas de grandes senhores e por meios <strong>do</strong><br />
favor não pude conseguir a meu pai a liber<strong>da</strong>de, me resolvi a fazer a suas<br />
terras os <strong>da</strong>nos que pudesse. Porque quan<strong>do</strong> o fim não se alcance, ao menos<br />
farei o que podia; e se morrer na empresa, entenderá o mun<strong>do</strong> que obrei como<br />
filho que muito a seu pai amava e a quem tanto devia.
540 Padre Mateus Ribeiro<br />
Cap. XXIII.<br />
Em que Constantino refere a prática que teve com Justiniano e o que nisto<br />
mais sucedeu<br />
Senti<strong>do</strong> e com extremos magoa<strong>do</strong> deu fim Justiniano à relação de seus<br />
desgostos e princípio a algumas lágrimas que nos olhos violenta<strong>da</strong>s foram<br />
pie<strong>do</strong>sos abortos de sua <strong>do</strong>r, que quan<strong>do</strong> estas fazem resistência ao valor para<br />
se mostrarem, excessiva é a pena que as despede, pois não basta o pun<strong>do</strong>nor<br />
para detê-las. Participei <strong>da</strong> mágoa, que é uma <strong>do</strong>r nos peitos honra<strong>do</strong>s,<br />
contágio enterneci<strong>do</strong> que se pega. E mais quan<strong>do</strong> o ouvinte traz o coração tão<br />
magoa<strong>do</strong>, e assim lhe disse:<br />
- Com viver hoje, senhor Justiniano, tão desengana<strong>do</strong> meu desejo <strong>do</strong><br />
valimento <strong>do</strong>s príncipes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, como <strong>do</strong>s sucessos de minha vi<strong>da</strong> tendes<br />
ouvi<strong>do</strong>, não me persuadin<strong>do</strong> [a] ambição a seguir roteiro tão incerto nos<br />
aplausos <strong>do</strong> mar proceloso <strong>da</strong> corte, afirmo-vos que me tem tão magoa<strong>do</strong><br />
vossa pena que, só a fim de poder aplacar o vivo <strong>do</strong> sentimento que mostrais,<br />
desejara ver-me na privança em que me vi, para com ela solicitar a vosso pai a<br />
liber<strong>da</strong>de e a vós o alívio. Mas pois hoje a fortuna a ambos nega o favor para<br />
ficarmos satisfeitos, eu nos desejos de servir-vos e vós no remanso <strong>do</strong>s<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s em que an<strong>da</strong>is flutuan<strong>do</strong> com os desejos, me parece justo advertir-<br />
vos que, para o fim <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de <strong>do</strong> preso que procurais, não parece que<br />
acertais os meios de consegui-la.<br />
Primeiramente, o estar preso, ain<strong>da</strong> que seja moléstia grande, não é o<br />
maior infortúnio, que muitos reis e senhores se viram presos e depois não só a<br />
liber<strong>da</strong>de, mas seu antigo esta<strong>do</strong>, e ain<strong>da</strong> com aumento, possuíram. O<br />
empera<strong>do</strong>r Justiniano foi preso por Leôncio, seu vassalo rebela<strong>do</strong>, e depois de<br />
preso foi desterra<strong>do</strong> para Chersona, prisioneiro com boa guar<strong>da</strong>. Donde<br />
fugin<strong>do</strong> tornou a ser restituí<strong>do</strong> a seu império e man<strong>do</strong>u justiçar a Leôncio e aos<br />
que na rebelião o seguiram. O conde Fernão Gonçalves foi preso por man<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
d'el-rei D. Garcia de Navarra em aperta<strong>da</strong> prisão e depois viu-se solto e conde<br />
absoluto de Castela e progenitor <strong>do</strong>s reis de Espanha. Francisco, rei de<br />
França, foi venci<strong>do</strong> e preso no assalto de Pavia pelo exército imperial de Carlos
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 541<br />
V; trazi<strong>do</strong> a Espanha, esteve anos prisioneiro em Madrid, e no fim se viu com<br />
sua liber<strong>da</strong>de e reino, com o livre governo de sua antiga monarquia, como<br />
antes <strong>da</strong> prisão a lograva. E não refiro muitos outros exemplos que trazer<br />
pudera, porque vós, como <strong>do</strong>uto, os tereis sabi<strong>do</strong>.<br />
Sentis, senhor, tanto a prisão de vosso pai como se fosse esta o maior<br />
<strong>da</strong>no; e parece mais excesso <strong>do</strong> sentir que reali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> parecer. Quan<strong>do</strong> os<br />
<strong>caso</strong>s não são capitais para merecerem a morte, onde com o molesto <strong>do</strong><br />
cárcere se ajunta o temeroso <strong>do</strong> castigo e faz liga a privação <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de com<br />
o receio a pena, não se pode avaliar a prisão pelo excessivo <strong>da</strong> mágoa, para<br />
vos mostrardes tão impaciente. Não consiste o abatimento no cárcere, mas na<br />
causa; e quan<strong>do</strong> esta de si não desacredita a estimação <strong>da</strong> pessoa, não lhe<br />
pode causar a prisão nem afronta, nem desprezo. Chorava a mulher de<br />
Sócrates o vê-lo preso sem culpa, e ele lhe respondeu:<br />
culpa<strong>do</strong>?<br />
- Pois queríeis vós que Sócrates, vosso esposo, estivesse preso e<br />
Como se dissera que sentiria a prisão se se vira culpa<strong>do</strong>, mas que na<strong>da</strong><br />
o afligia, pois se considerava inocente. Se as causas de ter embarga<strong>da</strong> a<br />
liber<strong>da</strong>de não são abati<strong>da</strong>s, que descrédito pode seguir-se a quem está preso?<br />
Sen<strong>do</strong> Catão Uticense o oráculo <strong>da</strong> moléstia de to<strong>da</strong> Roma, foi nela<br />
encarcera<strong>do</strong> por man<strong>da</strong><strong>do</strong> de Trebónio, tribuno <strong>do</strong> povo, seu contrário. Do que<br />
Catão fez pouco <strong>caso</strong>. Porque as paredes e grades não deslustram a quem<br />
seus honra<strong>do</strong>s procedimentos autorizam.<br />
Há bens tão pouco lembra<strong>do</strong>s que se não conhecem senão depois de<br />
perdi<strong>do</strong>s: um destes é a liber<strong>da</strong>de, que não avultan<strong>do</strong> na estimação de quem a<br />
logra, vem só a ser conheci<strong>do</strong> seu valor quan<strong>do</strong> dela o privam. Este é um <strong>do</strong>s<br />
interesses que <strong>da</strong> prisão se colhe, o conhecer-se a grande estimação que se<br />
deve fazer <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, quan<strong>do</strong> depois <strong>do</strong> cativeiro em boa paz se goza. Pois,<br />
como ensina Aristóteles 523 , um contrário é o que com mu<strong>da</strong> eloquência é<br />
panegírico que aplaude ao outro. À vista tenebrosa <strong>da</strong> noite adquire encómios<br />
o dia; à vista <strong>do</strong> estron<strong>do</strong>so <strong>da</strong> guerra causa suspiros a tranquili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> paz;<br />
nas tormentas procelosas <strong>do</strong> mar se dá a conhecer o remanso deseja<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
terra; e assim nos outros contrários. Pois para ao diante saber estimar-se a<br />
Arist., Rhet. 2.
542 Padre Mateus Ribeiro<br />
ventura de livre é meio eficaz o experimentar os discómo<strong>do</strong>s de preso.<br />
Discómo<strong>do</strong>s, disse, sem serem grandes, porque to<strong>do</strong> o penoso <strong>da</strong> prisão<br />
consiste em viver com a porta fecha<strong>da</strong> ao arbítrio alheio. E quantos tem as<br />
portas franquea<strong>da</strong>s, sem poderem usar <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de que possuem? Quantos<br />
enfermos e paralíticos estão presos <strong>da</strong> enfermi<strong>da</strong>de para se não moverem e,<br />
ten<strong>do</strong> desimpedi<strong>da</strong>s as saí<strong>da</strong>s, sofrem os grilhões e algemas que lhes deixou a<br />
<strong>do</strong>ença aos pés, e para mais se não levantarem, nem de um leito saírem? O<br />
preso, enquanto tal, está seguro <strong>do</strong> furor de seus inimigos para dele cá fora<br />
não tomarem vingança. Porque a justiça que os prende, juntamente os<br />
assegura. E porventura que a viver livre <strong>da</strong> prisão, seria objecto <strong>da</strong> mais<br />
cruenta satisfação de seus agravos, e com as grades evita o que talvez com a<br />
liber<strong>da</strong>de desviar não pudera. Quantos perderam as vi<strong>da</strong>s, sen<strong>do</strong> soltos, que<br />
as puderam conservar estan<strong>do</strong> presos? E vem a ser muitas vezes o favor o<br />
que parece castigo.<br />
Além disto vejo, senhor Justiniano, que no empenho que seguis nem a<br />
vosso pai remediais. Não advertis que os príncipes grandes são como o fogo<br />
que não consente tocar-se sem que abrase? Que a Fénix se avizinhe aos<br />
o<strong>do</strong>ríferos incêndios <strong>do</strong>s aromas de Arábia, tem desculpas no que parece<br />
delírio; pois <strong>da</strong> semente singular de suas cinzas, de novo de vi<strong>da</strong> se reveste, e<br />
com afectos de imortal não repara em ser holocausto de sua própria vi<strong>da</strong> e<br />
vítima de seu ser, tributária aos renovos de suas asas; mas que a simples<br />
borboleta com asas ténues, que nem cabe<strong>da</strong>l tem para fazerem sombra,<br />
intente ser Fénix <strong>da</strong> mais pequena luz e conversar de tão perto os ardentes<br />
fulgores, sem ter esperanças de renascer volante aos logros <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, quem a<br />
livrará de temerária? Quereis, senhor Justiniano, obrigar com hostili<strong>da</strong>des ao<br />
duque de Urbino, sen<strong>do</strong> príncipe potenta<strong>do</strong>, a que vosso pai solte, sen<strong>do</strong><br />
vossas forças tão desiguais a tal príncipe? E não considerais que pode vosso<br />
desejo a vós ser arrisca<strong>do</strong> e a vosso pai nocivo? Não advertis que quan<strong>do</strong> de<br />
vós não consiga a vingança, a tomará <strong>do</strong> preso, com apertar-lhe a prisão<br />
rigorosamente, e que em lugar de lhe solicitardes o remédio, podeis ocasionar-<br />
Ihe o maior <strong>da</strong>no?<br />
Hircano, rei de Jerusalém, alcançou título de pie<strong>do</strong>so, porque levan<strong>do</strong>-<br />
Ihe Ptolomeu cativa a sua mãe e irmãos, e in<strong>do</strong> Hircano com poderoso exército<br />
em seu seguimento o alcançou junto à ci<strong>da</strong>de de Jericó, na qual recolhen<strong>do</strong>-se
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 543<br />
Ptolomeu, lhe pôs Hircano aperta<strong>do</strong> sítio. E queren<strong>do</strong> <strong>da</strong>r-lhe o assalto, com<br />
que sem dúvi<strong>da</strong> a entraria, man<strong>do</strong>u Ptolomeu pôr sobre os muros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de a<br />
mãe e irmãos de Hircano, a to<strong>do</strong>s ameaçan<strong>do</strong> que logo os mataria, se <strong>do</strong><br />
assalto não desistisse. O que ven<strong>do</strong> o pie<strong>do</strong>so filho, man<strong>da</strong>va suspender as<br />
armas, por não ocasionar sobre o cativeiro a morte a sua mãe e irmãos. Se<br />
com vos arriscardes à morte pudésseis a vosso pai tirar de prisioneiro, ain<strong>da</strong><br />
desculparíeis os riscos de temerário com os arrojos <strong>do</strong> amor. Em tempo d'el-rei<br />
D. Pedro, o Cruel de Castela, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> na ci<strong>da</strong>de de Tole<strong>do</strong> enforcar a um<br />
velho de decrépita i<strong>da</strong>de, um mancebo filho seu na flor <strong>do</strong>s anos lhe foi pedir<br />
voluntariamente o man<strong>da</strong>sse enforcar a ele e per<strong>do</strong>asse a vi<strong>da</strong> a seu velho pai;<br />
e como o rei tinha as entranhas pouco pie<strong>do</strong>sas, aceitou-lhe o parti<strong>do</strong>, e<br />
man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> enforcar o filho, deu vi<strong>da</strong> ao pai.<br />
Quan<strong>do</strong> Marco Bruto governava as armas contra Augusto César,<br />
sucedeu que na ci<strong>da</strong>de de Patara man<strong>do</strong>u lançar um pregão, que com pena de<br />
morte ninguém ocultasse o dinheiro que em casa tivesse e se lhe entregasse<br />
to<strong>do</strong>, para pagar ao exército. Veio um escravo desleal a causar a seu senhor,<br />
que era um mancebo solteiro, de haver escondi<strong>do</strong> quanti<strong>da</strong>de de dinheiro, o<br />
que visto por Bruto, o condenou à morte. Veio a mãe <strong>do</strong> condena<strong>do</strong> choran<strong>do</strong> e<br />
gritan<strong>do</strong> que ela, e não seu filho, ocultara o dinheiro, e como tal ela, e não ele,<br />
merecia a morte: o filho por livrar a mãe e ela ao filho contendiam neste desafio<br />
de pie<strong>da</strong>de. De que compadeci<strong>do</strong> Bruto man<strong>do</strong>u tirar a vi<strong>da</strong> ao desleal escravo<br />
acusa<strong>do</strong>r, e absolven<strong>do</strong> ao filho <strong>da</strong> pena, man<strong>do</strong>u <strong>da</strong>r to<strong>do</strong> o dinheiro à<br />
enterneci<strong>da</strong> mãe. Se com os riscos de vossa vi<strong>da</strong> pudéreis livrar a vosso pai <strong>da</strong><br />
prisão, arrojo fora de pie<strong>do</strong>so; mas sem fruto buscardes para vós os perigos e<br />
para vosso pai os <strong>da</strong>nos nem é empenho <strong>da</strong> prudência, nem acerto <strong>da</strong><br />
pie<strong>da</strong>de. Querem-se os príncipes roga<strong>do</strong>s e não ofendi<strong>do</strong>s, persuadi<strong>do</strong>s com a<br />
submissão e não exaspera<strong>do</strong>s com a soberba, demovi<strong>do</strong>s com o humilde e não<br />
agrava<strong>do</strong>s com o rigoroso. E não vos engane o saíres com vossos<br />
companheiros airosos de alguns assaltos <strong>da</strong> justiça, que uma ventura não são<br />
muitas e em uma hora se pode perder tu<strong>do</strong> o que em muito tempo se costuma<br />
ganhar. Meu conselho é que busqueis valias de algum príncipe e senhor<br />
grande que lhe escreva encareci<strong>da</strong>mente para que se demova a favorecer este<br />
negócio; e se quiserdes vir comigo a Ravena, minha pátria, eu me ofereço a<br />
buscar-vos, por meio de meu pai e parentes, to<strong>do</strong> o favor possível; que
544 Padre Mateus Ribeiro<br />
arriscardes-vos com estes senhores que vos assistem a seres to<strong>do</strong>s um dia<br />
mortos ou presos, é <strong>do</strong>brares as penas a vosso pai e não <strong>da</strong>res remédio a seus<br />
desgostos.<br />
Agradeci<strong>do</strong>s se mostraram to<strong>do</strong>s a minhas persuasões, que não foi<br />
pouco serem bem aceitas de quem se mostrava tão precipita<strong>do</strong>. Lá diz<br />
Aristóteles 524 que assim como o médico nem sempre dá remédio ao enfermo,<br />
quan<strong>do</strong> as forças <strong>do</strong> mal são mais poderosas que os medicamentos que lhe<br />
aplica, assim nem sempre quem aconselha persuade a quem o ouve, quan<strong>do</strong><br />
as paixões são veementes e servem de desvio aos ditames <strong>da</strong> razão. Demétrio<br />
diz, como refere Diógenes 525 , que quanto nas batalhas pode o ferro, tanto pode<br />
na paz a eloquência <strong>do</strong> ora<strong>do</strong>r: e como Justiniano an<strong>da</strong>va atemoriza<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
perigos, suposto que mostrava desprezá-los, pesan<strong>do</strong> mais o pun<strong>do</strong>nor<br />
pie<strong>do</strong>so que a experiência conheci<strong>da</strong>, e ven<strong>do</strong> juntamente o pouco que<br />
frutificava seu desvelo e seu próprio risco, pois são os príncipes imagens de<br />
agiganta<strong>da</strong> estatura que se querem vistos de longe, por que não assombrem<br />
ao perto com sua vista. E ele an<strong>da</strong>va tão vizinho à corte de Urbino que, quan<strong>do</strong><br />
mais descui<strong>da</strong><strong>do</strong>, podia <strong>do</strong> poder <strong>do</strong> duque ser facilmente oprimi<strong>do</strong>: que são<br />
mui desiguais as forças de um gigante para os braços de um pigmeu.<br />
Deu-se por bem aconselha<strong>do</strong> de meu zelo, e tomaram resolução de<br />
voltar a Lucca e ver se poderia alcançar por favores o que era impossível<br />
conseguir com violência. É a violência, como diz Cícero 526 , inimiga <strong>da</strong> justiça e<br />
deslustre <strong>da</strong>s acções, nunca parecen<strong>do</strong> airosas quan<strong>do</strong> são constrangi<strong>da</strong>s. E<br />
se ain<strong>da</strong> em pessoas de pequena esfera é a violência tão odiosa, quanto mais<br />
ficará sen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s príncipes soberanos aborreci<strong>da</strong>? Depois <strong>da</strong> ceia, resolvemos<br />
que eu os acompanhasse a Lucca, e <strong>da</strong>í me partiria a Ravena. E suposto que o<br />
caminho se dilatava muito, quis eu obedecer a seu gosto, persuadi<strong>do</strong> <strong>do</strong> desejo<br />
que tinha de ouvir cantar a Diana, de cuja harmónica suavi<strong>da</strong>de tantos<br />
encarecimentos Justiniano dizia. Ao outro dia, apenas apareceu a aurora tão<br />
rosa<strong>da</strong>, como quem furtara aos rosais de Chipre o encarna<strong>do</strong> <strong>da</strong> cor e o<br />
aljofra<strong>do</strong> <strong>da</strong> púrpura, quan<strong>do</strong> nos pusemos a caminho, fazen<strong>do</strong> eu com grande<br />
Arist., Topic. 1.<br />
Diog., Lib. 5.<br />
Cicer., Pro Cœcin.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 545<br />
liberali<strong>da</strong>de o gasto dele, porque Justiniano e seus companheiros de to<strong>do</strong><br />
an<strong>da</strong>vam desprovi<strong>do</strong>s.<br />
Chegámos enfim a Lucca, depois de alguns dias que no caminho<br />
gastámos, onde fui em casa de Justiniano hospe<strong>da</strong><strong>do</strong> com grande cortesia. Vi<br />
a Diana, que na<strong>da</strong> tinha de feia, suposto que não era fermosa. Era moça na<br />
i<strong>da</strong>de e muito discreta; na música podia ser admiração <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, porque<br />
era o suave de sua voz <strong>do</strong>ce encanto de quem a ouvia, como eu a ouvi<br />
diversas vezes, sen<strong>do</strong> quanto mais ouvi<strong>da</strong>, mais deseja<strong>da</strong>. Porque o desejo<br />
jamais se satisfazia, antes ca<strong>da</strong> vez que a ouvia, mais de a tornar a ouvir<br />
sequioso se mostrava. Era tão cabalmente discreta que se nela emparelhara a<br />
fermosura com o aviso, pudera ser a maior admiração <strong>da</strong> nossa i<strong>da</strong>de. Lembra-<br />
me que estan<strong>do</strong> Justiniano um dia entre pensativo e triste, porventura<br />
consideran<strong>do</strong> seus infortúnios, que são estes o combate <strong>do</strong> sofrimento e o<br />
desterro total <strong>da</strong>s alegrias, ela, que o viu tão suspenso, decifran<strong>do</strong> a causa que<br />
o divertia, lhe disse desta sorte:<br />
- Bem sei, esposo meu, Justiniano, que de mim procedem vossas<br />
tristezas; e com razão, porque sen<strong>do</strong> pela maior parte as feias venturosas, eu,<br />
com o ser, me considero desgraça<strong>da</strong>. Pouco obriga<strong>da</strong> me vejo <strong>da</strong> ventura mais<br />
que em o bem de alcançar-vos por esposo; e conheço que só nisto me pagou<br />
quanto desejar pudera. Vi-me rica e agora pobre; de naturaliza<strong>da</strong> <strong>da</strong> pátria em<br />
que nasci, vejo a meu pai de tão opulento nos cabe<strong>da</strong>is hoje necessita<strong>do</strong> e em<br />
terra alheia; mas o que só me atormenta é o ver-vos triste. Porque se vos<br />
considerara alegre, na<strong>da</strong> me molestara. É vossa vista o primeiro móvel de<br />
meus senti<strong>do</strong>s que arrebata to<strong>do</strong>s os meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s: mal pode descansar<br />
quem vos ama, quan<strong>do</strong> vejo inquieto o bem que mais estimo. Se estais<br />
arrependi<strong>do</strong> <strong>da</strong> escolha que em mim fizestes, deslustre foi de entendi<strong>do</strong> em<br />
fazeres eleição de que vos mostreis pesaroso, que eu desejara ser a mais<br />
fermosa para merecer-vos. Compensai meu amor com minhas faltas e suprirá<br />
os desaires de minha ventura. Confesso que a <strong>do</strong>r de verdes preso a vosso pai<br />
é grande; reparti dela comigo e ser-vos-á mais leve. Os rios cau<strong>da</strong>losos<br />
partin<strong>do</strong>-se em arroios ficam pequenos. Desafogai a <strong>do</strong>r e será menos; não<br />
façais lago dela para ser mais. É o amor ver<strong>da</strong>deiro <strong>do</strong>s bens e <strong>do</strong>s males<br />
contágio que se pega. Vista-se o meu coração <strong>do</strong> luto de vossas tristezas, e<br />
pois com a minha vos não pude aliviar vossa <strong>do</strong>r, ao menos com minhas
546 Padre Mateus Ribeiro<br />
lágrimas vos farei companhia nela. Como é possível, Justiniano, que não basta<br />
o ter-vos obriga<strong>do</strong>, para vos considerar agradeci<strong>do</strong>? Porventura riscastes <strong>da</strong><br />
memória minhas finezas? Confiastes de mim em outro tempo as alegrias e hoje<br />
não fiais de mim as tristezas? Se me julgáveis capaz para depósito de vossos<br />
júbilos, como agora me não achais idónea para tolerar vossos desgostos? Não<br />
digo isto tanto para acreditar-me de amante, quanto para isentar-vos <strong>da</strong><br />
censura de ingrato. Pois ven<strong>do</strong>-vos tantas vezes tão profun<strong>da</strong>mente triste,<br />
vacila meu juízo se vos molesta o pesaroso, se vos atormenta o ressenti<strong>do</strong>. Em<br />
qualquer destes motivos a pena é vossa e a <strong>do</strong>r é minha, pois quereis que<br />
adivinhe minha mágoa o que não cabe na esfera de meu discurso.<br />
Assim falan<strong>do</strong> a discreta Diana soltou a corrente de suas lágrimas,<br />
poderoso assalto para vencer o contencioso desafio de suas queixas. De que<br />
obriga<strong>do</strong> e enterneci<strong>do</strong> Justiniano lhe deu tantas e tão ajuiza<strong>da</strong>s desculpas que<br />
ela se deu por satisfeita, pedin<strong>do</strong>-lhe no fim tomasse a harpa e alguma letra<br />
cantasse. Ao que ela obedecen<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> com os olhos humedeci<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
passa<strong>do</strong> dilúvio de seus sentimentos, cantou com tal <strong>do</strong>çura que julguei a<br />
Justiniano por mil vezes venturoso em alcançar tal esposa. Alguns dias a seu<br />
rogo fui hóspede em sua casa, sen<strong>do</strong> de to<strong>da</strong> a gente dela com grande amor<br />
trata<strong>do</strong>; té que chegan<strong>do</strong> um mensageiro de Urbino com cartas <strong>do</strong> pai de<br />
Justiniano, em que relatava os discómo<strong>do</strong>s de sua prisão, entre outras cousas<br />
referia que o primo <strong>do</strong> duque estava já seguro <strong>da</strong> feri<strong>da</strong> e que, obriga<strong>do</strong> ao<br />
amor com que em casa de Jacinta foi cura<strong>do</strong>, se já não fosse afeição antiga<br />
que lhe tinha, como se suspeitava, a tinha pedi<strong>do</strong> a seu pai por esposa, e o<br />
duque vinha no casamento, e que brevemente se receberiam. Aqui me vi<br />
combati<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mais vivos pesares, sentin<strong>do</strong> que não fosse a feri<strong>da</strong> mortal, pois<br />
eu no coração tão mortal a recebia, ven<strong>do</strong> que por Jacinta me vi despoja<strong>do</strong> de<br />
tu<strong>do</strong> o que valia, arrisca<strong>do</strong> aos assaltos <strong>da</strong> morte, e por fim desespera<strong>do</strong> de<br />
alcançar por esposa a quem, deven<strong>do</strong>-me tanto, tão mal me pagava; e assim<br />
toman<strong>do</strong> a pena, lhe escrevi esta carta, para que por via <strong>da</strong> cria<strong>da</strong> se lhe<br />
desse:<br />
Chegou, ingrata Jacinta, a ser hoje veneno para mim teu<br />
desengano, que é acidente mortal a uma esperança o ver-se perdi<strong>da</strong><br />
quan<strong>do</strong> mais empenha<strong>da</strong>. Venceu-te não o amor, mas o interesse:
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 547<br />
desluzi<strong>do</strong> triunfo para aplaudir-se. Pois resistin<strong>do</strong> às finezas de quem te<br />
amava, sujeitaste o bizarro às riquezas de quem te pertendia. Deu-me o<br />
amor as asas para aspirar ao voo de merecer-te: outrem sem voar levará<br />
as glórias e eu voan<strong>do</strong> ficarei só com as penas. Bem conce<strong>do</strong> que o<br />
sujeito é mais altivo, mas não mais amante: fui o primeiro em amar e o<br />
segun<strong>do</strong> em nascer. Adiantou a ventura a quem te agra<strong>do</strong>u mais para<br />
possuir-te e não a quem se desvelou mais para querer-te. Estava em ti<br />
violenta<strong>da</strong> minha esperança; e assim não é maravilha que caísse, pois<br />
tu<strong>do</strong> o que está fora de seu centro não pode prometer perseverança.<br />
Trocou a fortuna as mãos para meu <strong>da</strong>no, pois saran<strong>do</strong> a teu esposo <strong>da</strong><br />
mortal feri<strong>da</strong>, a mim ma deu mortal em tua mu<strong>da</strong>nça. Ele restaurou a vi<strong>da</strong><br />
para ganhar-te e eu perderei a vi<strong>da</strong> com perder-te. Sempre me pareceu<br />
que pudesse obrigar-te minha firmeza; mas como eras mudável de<br />
condição, não duvi<strong>do</strong> julgasses por agravo o que podia estimar-se por<br />
serviço. Porventura te agra<strong>da</strong>ra mais a ser mudável <strong>do</strong> que pude obrigar-<br />
te sen<strong>do</strong> firme. Deixas-me queixoso, quan<strong>do</strong> puderas obriga<strong>do</strong>: arbítrio <strong>da</strong><br />
ingratidão, fazer-se sur<strong>da</strong> às queixas, quem se resolve a não pagar a<br />
dívi<strong>da</strong>. Não espero de ti que te arrepen<strong>da</strong>s, que não cabe arrependimento<br />
em quem não conhece o <strong>da</strong>no. Mas se há vinganças no amor, teme, que<br />
pode <strong>da</strong>r-te o castigo <strong>da</strong> tirania que usas. Pois se há sentimento para<br />
atormentar aos tristes, também há pesares para castigar aos contentes.<br />
Isto continha a carta para Jacinta; que haven<strong>do</strong>-a entregue a quem<br />
seguramente a levasse para lhe ser <strong>da</strong><strong>da</strong>, me despedi de Justiniano, para em<br />
Ravena lhe solicitar to<strong>do</strong> o valimento possível sobre a liber<strong>da</strong>de de seu pai e<br />
desembaraço <strong>do</strong> sequestro <strong>do</strong>s bens de seu sogro. Porque como as partes<br />
eram tão poderosas, tu<strong>do</strong> estava bem dificultoso.<br />
Saí <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Lucca, quan<strong>do</strong> o morga<strong>do</strong> <strong>da</strong>s luzes com seus raios<br />
broslava de <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s matizes quanto a noite vestiu de negro luto de suas<br />
sombras. Passei junto ao lago Vientino, e já sobre a tarde cheguei à ci<strong>da</strong>de de<br />
Pistoia, em cujo dilata<strong>do</strong> território foi a batalha de Catilina Romano, quan<strong>do</strong> foi<br />
venci<strong>do</strong>, morto e desbarata<strong>do</strong> o exército de seus rebeldes sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s contra a<br />
pátria. Nesta ci<strong>da</strong>de se me ofereceu chegarem uns genoveses ricos à pousa<strong>da</strong><br />
em que estava, e convi<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me se queria jogar, por divertir algum espaço de
548 Padre Mateus Ribeiro<br />
tempo, eu quis aventurar à sorte os escu<strong>do</strong>s que <strong>do</strong> gasto me tinham resta<strong>do</strong>;<br />
e favoreceu-me a ventura, que lhes ganhei mil escu<strong>do</strong>s naquela noite. E no<br />
seguinte dia comprei este cavalo e adereço rico, com que não queren<strong>do</strong> estar<br />
mais ofereci<strong>do</strong> às lisonjas <strong>da</strong> esperança, me pus ao caminho, que muitas vezes<br />
errei, como pouco versa<strong>do</strong> nele, com que rodean<strong>do</strong> mais léguas <strong>do</strong> que<br />
cui<strong>da</strong>va, vim por remate de minhas jorna<strong>da</strong>s a parar no sítio em que vossa<br />
pie<strong>do</strong>sa diligência me achou despenha<strong>do</strong>. Porque como a noite era escura, o<br />
caminho desusa<strong>do</strong> e eu com os pensamentos de Jacinta se casar com meu<br />
inimigo, que havia si<strong>do</strong> a ocasião de to<strong>da</strong> a ruína de minhas felici<strong>da</strong>des, não<br />
era maravilha que quem errava nos discursos, se despenhasse nos passos.<br />
Cap. XXIV.<br />
Como os romeiros partiram de Campo Martino e chegaram ao Loreto<br />
Com corteses demonstrações de agradeci<strong>do</strong>s, renderam os nossos<br />
romeiros as graças a Constantino de lhes haver referi<strong>do</strong> os discursos de sua<br />
vi<strong>da</strong>, consolan<strong>do</strong>-o Felisberto <strong>do</strong>s lapsos de sua privança e infortúnios de seus<br />
perío<strong>do</strong>s, dizen<strong>do</strong>:<br />
- São as cousas desta vi<strong>da</strong>, senhor Constantino, tão pouco firmes e no<br />
ser tão mudáveis como o próprio mun<strong>do</strong> em que vivem. Com muita razão lhe<br />
chamou navio S. João Crisóstomo 527 , porque como este an<strong>da</strong> em contínua<br />
mu<strong>da</strong>nça sobre as águas, surcan<strong>do</strong> golfos e repetin<strong>do</strong> viagens: assim o<br />
mun<strong>do</strong>, com quantos nele vivem, não sabe admitir firmeza, porque seu próprio<br />
ser consiste na mu<strong>da</strong>nça. Sentir o caíres <strong>da</strong> privança e valimento <strong>do</strong> duque de<br />
Urbino sem o ofenderes, esse é o maior alívio que receber podeis; que o<br />
padecer justamente as calami<strong>da</strong>des mereci<strong>da</strong>s, mais é paciência que alívio.<br />
Estava Sócrates no cárcere de Atenas condena<strong>do</strong> à morte injustamente pelos<br />
juízes areopagitas por faltar informações; e vin<strong>do</strong> sua esposa a despedir-se<br />
dele, com enterneci<strong>da</strong>s lágrimas, dizen<strong>do</strong>:<br />
Chrysost., Horn. 11. Ad pop. Anth.
inocente?<br />
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 549<br />
- E como é possível, esposo meu, que haveis de vós morrer, estan<strong>do</strong><br />
Respondeu Sócrates com o rosto sereno:<br />
- E pois queríeis vós, senhora, que Sócrates morresse culpa<strong>do</strong>? Minha<br />
inocência será o maior alívio de minha pena e de vossa <strong>do</strong>r; que a culpa será<br />
báculo <strong>da</strong> paciência no castigo, mas a inocência é desempenho <strong>da</strong> fama no<br />
valor.<br />
E bem se viu. Pois depois de Sócrates ser morto, pesarosos os juízes de<br />
o haverem condena<strong>do</strong> a beber o veneno acelera<strong>da</strong>mente, man<strong>da</strong>ram, de<br />
senti<strong>do</strong>s, fechar as escolas e condenaram à morte a Melito, que contra<br />
Sócrates foi o principal acusa<strong>do</strong>r, e aos outros desterraram para sempre de<br />
Atenas.<br />
Vós, senhor Constantino, servistes fielmente ao duque de Urbino; em<br />
defensa vossa acometi<strong>do</strong>, sem conhecê-los, feristes ao senhor e matastes ao<br />
cria<strong>do</strong>, causa porque vos retirastes; não eram os motivos <strong>da</strong> ofensa tão<br />
inexcusáveis para tão excessivo se mostrar seu rigor e vir-vos a perseguição<br />
<strong>do</strong>nde pudéreis esperar o patrocínio. É o valimento <strong>do</strong>s príncipes a maior<br />
ventura, se sempre tivera estimação a ver<strong>da</strong>de, e o maior perigo, se pode <strong>da</strong>r<br />
assaltos a mentira. O empera<strong>do</strong>r Tito, que foi tão ama<strong>do</strong> <strong>do</strong> povo romano, que<br />
o intitulavam Delícias de Roma, e foi seu império tão aplaudi<strong>do</strong> como a<br />
brevi<strong>da</strong>de de sua vi<strong>da</strong> chora<strong>da</strong>, tanto que entrou no governo, desterrou de<br />
Roma to<strong>do</strong>s os murmura<strong>do</strong>res e maldizentes, e a <strong>do</strong>us deles mais<br />
escan<strong>da</strong>losos man<strong>do</strong>u vender por escravos e depois os degre<strong>do</strong>u de to<strong>da</strong><br />
Itália, dizen<strong>do</strong> que eram peste <strong>do</strong>méstica <strong>da</strong>s respúblicas e ruína <strong>do</strong>s impérios.<br />
Lá disse Cícero 528 que não havia cousa tão ligeira e tão barata como a<br />
detracção, porque por pouco preço se vende e em breve espaço muitas léguas<br />
corre. Bem disse Plutarco 529 que era avilita<strong>do</strong> desejo vestir-se um maldizente<br />
<strong>do</strong>s retalhos que corta <strong>do</strong>s vesti<strong>do</strong>s e galas <strong>do</strong>s outros e intentar fazer sem<br />
merecimentos asas para subir <strong>da</strong>s penas que às asas <strong>do</strong>s beneméritos tira a<br />
murmuração detractiva, sem o despojo <strong>da</strong>s asas, quem as possua, o merecer.<br />
Cicer., Pro Plane.<br />
Plutarc, De amic. & adul.
550 Padre Mateus Ribeiro<br />
Porque as asas que ao benemérito são nativas, ao outro são desiguais; e fica<br />
sen<strong>do</strong> Dé<strong>da</strong>lo no intento e ícaro despenha<strong>do</strong> na ruína.<br />
Isto digo por parecer-me que nunca o duque se mostrara tão rigoroso, se<br />
invejosos de vosso valimento lhe não acendessem com os sopros <strong>da</strong> detracção<br />
as chamas <strong>do</strong> sentimento; porém como com a vi<strong>da</strong> e saúde de seu feri<strong>do</strong> primo<br />
se virá a acrisolar vossa ver<strong>da</strong>de, ficará satisfeito de que o não ofendestes, e<br />
porventura pesaroso <strong>do</strong> precipita<strong>do</strong> rigor que tem mostra<strong>do</strong>. Sempre os<br />
ímpetos <strong>do</strong> demasia<strong>do</strong> sentir trouxeram por atributo os pesares e<br />
arrependimentos <strong>do</strong> proceder, e só por evitar o castigo de uma queixa, quan<strong>do</strong><br />
é justa, se pudera dissimular a vingança de um agravo, quan<strong>do</strong> é desiguala<strong>da</strong>.<br />
É a queixa o castigo <strong>da</strong> injustiça, talvez mais penosa de sentir que outro mais<br />
acerbo de sofrer; mais se pode tolerar o encontro de um agrava<strong>do</strong> vingativo<br />
que a vista de um ofendi<strong>do</strong> queixoso. Porque o primeiro ameaça à vi<strong>da</strong>, mas o<br />
segun<strong>do</strong> à alma. Do primeiro pode defender-se com as armas, mas <strong>do</strong><br />
segun<strong>do</strong> só com a fugi<strong>da</strong>. O primeiro faz testemunha ao agravo, mas o<br />
queixoso faz juiz a própria <strong>do</strong>r. Que entran<strong>do</strong> na queixa pelos ouvi<strong>do</strong>s, é<br />
veneno sem antí<strong>do</strong>to <strong>do</strong> coração, e dá mais cruéis golpes com as vozes <strong>do</strong> que<br />
pode <strong>da</strong>r o vingativo com as armas. Um <strong>do</strong>s motivos que faz mais aceita a<br />
música <strong>do</strong> rouxinol é o cantar a título de queixa, e sen<strong>do</strong> sua voz a to<strong>do</strong>s<br />
agradável pelo que tem de <strong>do</strong>ce, a faz ain<strong>da</strong> mais suave pelo que tem de<br />
senti<strong>da</strong>, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe o sentimento de queixoso nova aceitação aos ouvi<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
que tinha pelos privilégios de sonora. Assim que estimai muito, que vós sois o<br />
queixoso com razão e o duque quem vos perseguiu sem ela; pois pode<br />
comparar-se o título de uma queixa tão honesta ao preço <strong>da</strong> maior<br />
perseguição.<br />
Sentis, senhor Constantino, o perderes a Jacinta. Que outra cousa<br />
esperáveis de seu pouco amor? E se quan<strong>do</strong> vos viu no valimento, não se<br />
persuadiu a querer-vos, como se demoveria, ven<strong>do</strong>-vos desvali<strong>do</strong>, para amar-<br />
vos? Que a quem não incitam as bonanças, como se abrigará <strong>do</strong>s naufrágios?<br />
Muito de prova segura há-de ter o amor que persevere igual no próspero e no<br />
adverso. São os rumos <strong>da</strong> ventura e os <strong>da</strong> desgraça em tu<strong>do</strong> mui encontra<strong>do</strong>s<br />
e diferentes; e mui certa há-de ser a agulha <strong>da</strong> ventura ou <strong>do</strong> amor quan<strong>do</strong><br />
segura por to<strong>do</strong>s os rumos navegue. Quanto mais que Jacinta, pelo que vós<br />
referistes, nunca se mostrou empenha<strong>da</strong>; e quer vosso sentimento fazer
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 551<br />
rigorosa execução onde se não acha dívi<strong>da</strong> que executar. Se vos enganara nas<br />
promessas, se vos ofendera na leal<strong>da</strong>de, se vos faltara na fé ou se vos<br />
rejeitara por desvali<strong>do</strong>, haven<strong>do</strong>-vos queri<strong>do</strong> por priva<strong>do</strong>, razão tivéreis na<br />
queixa e desculpa no sentimento. Mas na<strong>da</strong> disto haven<strong>do</strong>, nem a queixa fica<br />
justa, nem a pena ao motivo adequa<strong>da</strong>.<br />
O desejo não tem poderes para causar obrigação na cousa deseja<strong>da</strong>:<br />
desejar a riqueza, a honra e felici<strong>da</strong>de não é direito para consegui-la. Os<br />
desejos nascem <strong>da</strong> vontade e o alcançar <strong>da</strong> ventura. Quem deseja, se é<br />
venturoso, já leva quasi a conten<strong>da</strong> venci<strong>da</strong>; mas os desejos em quem é<br />
desgraça<strong>do</strong> são assaltos que se dão ao coração sem ter armas para o<br />
vencimento. Quan<strong>do</strong> estáveis no valimento e pretendestes a Jacinta para<br />
esposa, faltou-vos a simpatia, que é a arma mais reforça<strong>da</strong> para afeiçoar a<br />
quem não demove o interesse; e agora que perdestes a privança, ficastes<br />
despoja<strong>do</strong> <strong>da</strong>s armas. E sen<strong>do</strong> o contrário tão poderoso, como queríeis sair<br />
desarma<strong>do</strong> a combater sobre Jacinta com um felice e poderoso? A ela sempre<br />
lhe deveis o mostrar-se convosco pie<strong>do</strong>sa, posto que não se mostrasse<br />
amante. E se com servi-la não conseguistes o querer-vos, ao menos<br />
alcançastes o livrar-vos. Quem há-de ser tão severo executor <strong>do</strong>s alvedrios<br />
alheios para sujeitá-los, há-de nascer nos braços <strong>da</strong> ventura; que to<strong>do</strong>s os<br />
serviços tem pouco preço, se lhe falta o cunho <strong>da</strong> ventura, que vai tu<strong>do</strong>. Do<br />
deve<strong>do</strong>r rigoroso aceita-se a paga em qualquer moe<strong>da</strong>. Pagou-vos Jacinta na<br />
pie<strong>da</strong>de de livrar-vos; <strong>da</strong>i-vos por satisfeito, pois se vos não pagou no ouro <strong>do</strong><br />
amor que desejáveis, ao menos satisfez a dívi<strong>da</strong> na prata <strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de, com que<br />
se empenhou a valer-vos. Jacinta tinha pais a que devia os respeitos de filha; e<br />
para se casar sem seu consentimento, havia de ser o amor gigante que a<br />
obrigasse. Não é justo culpá-la de que obrou como filha, quan<strong>do</strong> não estava<br />
obriga<strong>da</strong> a proceder como amante.<br />
Se era rara na fermosura, cousa é que paga pensões invioláveis ao<br />
tempo, verdugo universal <strong>da</strong> natureza. Nasce a rosa para lisonja em berço de<br />
espinhos; e apenas um dia representou aos olhos o papel de rainha, quan<strong>do</strong> se<br />
vestiu o de cadáver; começan<strong>do</strong> em comédia na manhã e <strong>da</strong>n<strong>do</strong> fim em<br />
tragédia nos assomos <strong>da</strong> tarde. O sol se multiplica a seus resplan<strong>do</strong>res o<br />
nascimento, também multiplica a seus raios o sepulcro. A terra se reveste de<br />
gala em Abril, também se enluta em Dezembro; os rios se vão poderosos no
552 Padre Mateus Ribeiro<br />
Inverno, também mostram as areias em o Estio; as árvores que se enriquecem<br />
de frutos, também se consideram despoja<strong>da</strong>s até <strong>da</strong>s folhas. Na<strong>da</strong> na vi<strong>da</strong> tem<br />
perseverança segura, quanto mais a beleza humana, sujeita aos assaltos <strong>da</strong><br />
i<strong>da</strong>de, <strong>do</strong> tempo, <strong>do</strong> frio, <strong>do</strong> sol, <strong>da</strong>s <strong>do</strong>enças, <strong>do</strong>s desgostos e de outros mil<br />
contrários que a podem desluzirtão facilmente.<br />
Meu conselho é, senhor Constantino, que desterran<strong>do</strong> <strong>da</strong> memória to<strong>do</strong>s<br />
os motivos que vos <strong>da</strong>vam pena, considereis que se perdestes a privança, não<br />
perdestes nem a vi<strong>da</strong>, nem a liber<strong>da</strong>de, como ser pudera. E se não alcançastes<br />
o casamento de Jacinta, não vos faltará outro emprego que vos mereça, pois<br />
quan<strong>do</strong> umas estrelas se escondem, outras se descobrem; e assim como no<br />
céu nunca faltam estrelas, assim na terra não faltam sujeitos para poderem ser<br />
escolhi<strong>da</strong>s para esposas. Não se compendiou a fermosura, nem se cifrou a<br />
discrição em Jacinta, nem o raro <strong>do</strong> aplauso se epilogou em Urbino, que a<br />
respeito só <strong>da</strong> esfera de Itália é um ponto. Não habiteis no vale <strong>do</strong>s<br />
sentimentos, que vos impede ajusta<strong>do</strong>s alívios; subi aos montes altos <strong>do</strong>s<br />
desenganos e descobrireis com o discurso novos climas de alívios, dilata<strong>do</strong>s<br />
paramos, fron<strong>do</strong>sas florestas, pra<strong>do</strong>s amenos, jardins flori<strong>do</strong>s de consolações;<br />
vereis de porto seguro os mares <strong>do</strong>s perigos de que [vos] livrastes, em que<br />
pudéreis naufragar tantas vezes. Alegrai os olhos com os ver<strong>do</strong>res <strong>da</strong><br />
esperança, de com o favor divino tornareis a lograr a pátria em que nascestes e<br />
a alegrar com vossa vista os desvelos e sustos que terão custa<strong>do</strong> a vossa mãe<br />
e irmãos as novas de vossos infortúnios, sem té o presente de vós terem<br />
notícias, nem certeza <strong>do</strong> bem que vos desejam.<br />
Calou Felisberto e Constantino mui agradeci<strong>do</strong> lhe rendeu as graças <strong>do</strong><br />
alívio que lhe <strong>da</strong>va com suas palavras e <strong>do</strong> zelo cari<strong>do</strong>so com que lhe assistia.<br />
Detiveram-se mais alguns dias e, com os remédios que se lhe aplicaram, veio a<br />
melhorar de sorte que disseram os médicos que já poderia a cavalo continuar o<br />
caminho, fazen<strong>do</strong> as jorna<strong>da</strong>s breves; e como para Ravena ficava o Loreto no<br />
caminho, ele, por não perder a companhia e conversação <strong>do</strong>s nossos romeiros,<br />
quis seguir a própria romaria, e para <strong>da</strong>r as graças à Virgem nossa Senhora<br />
<strong>da</strong>s mercês que lhe havia feito e perigos de que o tinha livra<strong>do</strong>. Satisfez<br />
Constantino como grandioso ao <strong>do</strong>no <strong>da</strong> casa o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> que mostrou em sua<br />
cura e, não menos liberal, to<strong>do</strong>s os dispêndios dela; que é a liberali<strong>da</strong>de<br />
própria de ânimos generosos e virtude que deve acompanhar aos príncipes,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 553<br />
como disse Artaxerxes, referi<strong>do</strong> por Plutarco . Tomou Constantino no lugar<br />
com bom salário quem o acompanhasse até Ravena, para ter cui<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
cavalo; que como tinha granjea<strong>do</strong> aplausos de liberal, to<strong>do</strong>s desejavam servi-<br />
lo. É, como disse Cícero 531 , a liberali<strong>da</strong>de pedra de cevar que atrai os<br />
corações, e tão apropria<strong>da</strong> a ânimos reais que o empera<strong>do</strong>r Tácito, que<br />
sucedeu a Aureliano no império, em o dia que foi eleito, man<strong>do</strong>u vender quanto<br />
possuía e o repartiu aos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s.<br />
Pobre era o romano dita<strong>do</strong>r Lúcio Quíncio Cincinato e vencen<strong>do</strong><br />
gloriosamente aos egos, povos de Itália, em batalha, não quis aceitar <strong>do</strong>s ricos<br />
despojos cousa alguma, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> aos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, e contente só com a glória<br />
<strong>do</strong> seu triunfo, com que entrou em Roma e se tornou a viver no seu pomar, fora<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, tão pobre como de antes. Címon, insigne capitão ateniense, foi tão<br />
generoso e liberal que nas quintas que tinha fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Atenas<br />
man<strong>da</strong>va que de dia e de noite estivessem as portas abertas, para que to<strong>do</strong>s<br />
pudessem delas colher quanto quisessem; e em sua casa man<strong>da</strong>va estivessem<br />
sempre as mesas postas e iguarias prepara<strong>da</strong>s para to<strong>do</strong>s os que entrar a<br />
comer quisessem. Com o que cativou as vontades <strong>do</strong>s atenienses, que como a<br />
oráculo o seguiam. Não desdisse desta generosi<strong>da</strong>de o insigne capitão<br />
Péricles, também ateniense, que man<strong>da</strong>va franquear as portas de seus jardins<br />
e quintas, para que ca<strong>da</strong> um tomasse tu<strong>do</strong> o que quisesse; com que se fez <strong>do</strong><br />
povo tão ama<strong>do</strong> que se dizia dele, quan<strong>do</strong> orava, que tinha a deusa <strong>da</strong><br />
Persuasão debaixo <strong>da</strong> língua, para persuadir quanto intentava.<br />
De Cassiano, rei <strong>do</strong>s tártaros, escreve Marco António Sabélico ser tanto<br />
com extremos liberal que toman<strong>do</strong> por armas na Síria a ci<strong>da</strong>de de Hama, em<br />
que o rei de Síria tinha deposita<strong>do</strong> seus riquíssimos tesouros, juntamente com<br />
as riquezas <strong>do</strong> rei <strong>do</strong> Egipto, tu<strong>do</strong> repartiu aos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s de seu exército,<br />
toman<strong>do</strong> para si só uma espa<strong>da</strong> e um pequeno escritório, que era a secretaria<br />
<strong>do</strong>s papéis <strong>do</strong> egipto rei venci<strong>do</strong>. Não é desempenho <strong>da</strong> liberali<strong>da</strong>de generosa<br />
fazer só uma vez o benefício, mas muitas vezes repeti-lo, disse bem Plínio<br />
Júnior. Porque assim como to<strong>da</strong>s as cousas com o tempo envelhecem, e vem<br />
a perder-se dela a lembrança, assim a memória <strong>da</strong>s <strong>da</strong>tas pode vir a ser<br />
Plutarc, in Apophth.<br />
Cicer., 2. De finib.
554 Padre Mateus Ribeiro<br />
decrépita com a i<strong>da</strong>de, se com outros benefícios se não renova. Porque o<br />
repetir o <strong>do</strong>m de presente é remoçar a memória <strong>do</strong>s passos. Na<strong>da</strong> faltou a<br />
Constantino, porque o tinha a fama aclama<strong>do</strong> ser liberal. E assim, ao dia<br />
seguinte, despedin<strong>do</strong>-se de to<strong>do</strong>s os melhores <strong>do</strong> lugar que lhe tinha assisti<strong>do</strong><br />
em sua <strong>do</strong>ença, se partiu com os romeiros para o Loreto.<br />
Seguiram seu caminho, ao princípio fazen<strong>do</strong> as jorna<strong>da</strong>s breves, por ir<br />
Constantino ain<strong>da</strong> molesta<strong>do</strong>; mas tanto que sentiu em si vigor e forças para<br />
poder acompanhar a pé aos romeiros, desmontan<strong>do</strong> <strong>do</strong> cavalo e man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> ao<br />
cria<strong>do</strong> montar, não foi possível acabar (a) com ele, por mais instantes e<br />
repeti<strong>do</strong>s rogos que os companheiros lhe fizeram para que mais a cavalo<br />
subisse. Assim to<strong>do</strong>s a pé foram continuan<strong>do</strong> seu caminho, umas vezes<br />
avizinhan<strong>do</strong>-se ao mar e outras apartan<strong>do</strong>-se de suas praias, divertin<strong>do</strong> a<br />
moléstia <strong>do</strong> caminhar com o alívio <strong>da</strong> conversação, que de to<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong><br />
discreta, é o maior alívio. Já discorriam pelas antigui<strong>da</strong>des que o mesmo<br />
caminho lhes oferecia, ven<strong>do</strong> as mu<strong>da</strong>nças que tinha causa<strong>do</strong> o tempo, que,<br />
como diz Cícero 532 , com os perío<strong>do</strong>s de seu curso tu<strong>do</strong> varia, como mostravam<br />
as ruínas de muitas ci<strong>da</strong>des que foram antigamente celebra<strong>da</strong>s e ao presente<br />
mal se conheciam os vestígios onde foram. Outras ci<strong>da</strong>des e vilas que se<br />
divisavam matos incultos e paramos desertos, hoje se viam povoa<strong>da</strong>s e de<br />
modernos e vistosos edifícios enobreci<strong>da</strong>s: poderes <strong>do</strong> tempo, como disse<br />
Demóstenes 533 , em tu<strong>do</strong> vário para desfazer e levantar, pois muitas vezes<br />
abate o mais sumptuoso e levanta o mais esqueci<strong>do</strong> e despreza<strong>do</strong>.<br />
Assim nestas considerações discorren<strong>do</strong> em sua jorna<strong>da</strong>, que se a<br />
distância a fazia dilata<strong>da</strong>, o discreto <strong>da</strong> conversação fazia que parecesse<br />
breve, se vieram avizinhan<strong>do</strong> à ci<strong>da</strong>de de Recanate, que antigamente se<br />
chamou Helvia Ricina, que ao empera<strong>do</strong>r Hélio Pertinaz atribui seus primeiros<br />
fun<strong>da</strong>mentos, ou, como outros querem, sua restauração. Era edifica<strong>da</strong> em alto,<br />
senhorean<strong>do</strong> <strong>da</strong> eminência os grandes e férteis campos de seu terreno, sen<strong>do</strong><br />
rica no trato, fermosea<strong>da</strong> de edifícios, povoa<strong>da</strong> de ilustres famílias e sobretu<strong>do</strong><br />
venturosa em ser a mais vizinha à santíssima Casa <strong>do</strong> Loreto, que dela em<br />
Enten<strong>da</strong>-se acabar com o senti<strong>do</strong> de acor<strong>da</strong>r ou convencer.<br />
Cie, Pro Mar. Cael.<br />
Demosthen., Ex arg. lib. 8.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 555<br />
distância de uma légua pequena se descobre. Que bastara esta só ventura<br />
para a fazer no mun<strong>do</strong> mais celebra<strong>da</strong> que to<strong>da</strong>s as famosas ci<strong>da</strong>des que o<br />
mun<strong>do</strong> aplaudiu por maravilhas.<br />
Com notáveis afectos de devoção, tanto que os nossos romeiros desde<br />
Recanate descobriram este inestimável tesouro, ajoelha<strong>do</strong>s em terra o<br />
sau<strong>da</strong>ram, e o Ermitão Felisberto, com as lágrimas nos olhos, rompeu nestas<br />
palavras:<br />
- Deus te salve, Sacrossanto Edifício, que pudeste ser inveja <strong>do</strong> mesmo<br />
Céu, quan<strong>do</strong> em ti habitou o mesmo Deus humana<strong>do</strong> na terra; Palácio Real <strong>do</strong><br />
mesmo Rei, Propiciatório de nosso remédio, Paraíso de to<strong>da</strong>s as delícias em<br />
que morou a árvore <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Erário inestimável que encerrastes em ti to<strong>da</strong>s as<br />
riquezas <strong>do</strong> Céu e terra. Deus te salve, Torre mística e inexpugnável de David<br />
de que pendem mil escu<strong>do</strong>s para nossa defensa, pois em ti acham remédio<br />
to<strong>do</strong>s os necessita<strong>do</strong>s e consolação to<strong>do</strong>s os tristes que an<strong>da</strong>m peregrinan<strong>do</strong><br />
neste mun<strong>do</strong>. Deus te salve, Angélico Obelisco, que trazi<strong>do</strong> sobre as asas <strong>do</strong>s<br />
anjos foste assombro <strong>da</strong> natureza, admiração <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, maravilha <strong>do</strong>s<br />
juízos, elevação <strong>do</strong>s discursos, sen<strong>do</strong> corte a quem os anjos se prezaram de<br />
serem embaixa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> eterno Monarca. Deus te salve, Tribunal supremo em<br />
que se decretou nossa vi<strong>da</strong>, para se desterrar a sentença funesta de nossa<br />
morte. Debuxo <strong>da</strong> Glória, pois em ti se encerrou a Glória to<strong>da</strong>. Abrevia<strong>do</strong> Céu,<br />
Superior Olimpo, a quem não pode acometer o nubla<strong>do</strong> <strong>da</strong> culpa, nem o vento<br />
<strong>da</strong> primeira ruína. Porque a mulher forte e invencível lhes quebrou a cabeça<br />
com as armas <strong>da</strong> Graça.<br />
Com lágrimas de cordial consolação, acompanharam os romeiros ao<br />
Ermitão Felisberto e foram caminhan<strong>do</strong> e chegaram à santa Casa <strong>do</strong> Loreto às<br />
dez horas <strong>do</strong> dia. Ali se suspenderam to<strong>do</strong>s os discursos à vista <strong>da</strong>s<br />
maravilhas, ven<strong>do</strong> no cruzeiro <strong>do</strong> grande templo, que se edificou engasta<strong>do</strong><br />
este preciosíssimo diamante, a casa própria em que tantos tempos a Virgem<br />
Santíssima Mãe de Deus morou com o menino Jesus e o Santo José em<br />
Nazaré de Galileia. Ali viram insígnias de milagres sem número que a Senhora<br />
com sua intercessão tem obra<strong>do</strong> em seus devotos, de que an<strong>da</strong>m impressos<br />
dilata<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>utos livros, aonde remeto aos curiosos. A frequência <strong>do</strong>s<br />
romeiros que ca<strong>da</strong> hora entravam, por excessiva, não é capaz de escrever-se.
556 Padre Mateus Ribeiro<br />
Porque tu<strong>do</strong> neste inefável santuário é objecto mais <strong>da</strong>s admirações que <strong>da</strong><br />
pena.<br />
Depois que ouviram missa, vieram buscar a Felizar<strong>do</strong> <strong>do</strong>us cria<strong>do</strong>s de<br />
seu pai, que já havia alguns dias que com o cavalo o estavam esperan<strong>do</strong>. Com<br />
o que ele se alegrou muito com as novas que de seu pai e mãe lhe deram. E<br />
abrin<strong>do</strong> uma carta que seu pai de Ferrara lhe escrevia, viu que dizia:<br />
Não deixei, filho meu, Felizar<strong>do</strong>, de censurar em vosso juízo o<br />
fazerdes uma ausência tão repentina, sem me haverdes noticia<strong>do</strong> dela,<br />
para <strong>da</strong>res a vossa mãe tantos sustos e a mim ocasionares iguais<br />
pesares. Vinde logo aliviar suas mágoas e meus sentimentos; que não é<br />
acção de entendi<strong>do</strong> o querer sentir as cousas mais <strong>do</strong> que merece seu<br />
valor. Se o fizestes pela mu<strong>da</strong>nça de Amatilde, já estais de sua ingratidão<br />
vinga<strong>do</strong>. Ela está viúva de Alberto, seu esposo, e outra vez mora<strong>do</strong>ra em<br />
Fossa pelo Sella, <strong>do</strong>micílio antigo de sua criação. Não se pode em papel<br />
referir tu<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> embora vieres, o sabereis por extenso. Não<br />
aumenteis com vossa dilação em vossa mãe as sau<strong>da</strong>des, nem deis<br />
penosos rodeios à minha esperança. A Deus, que vos guarde e traga<br />
como desejo. Vosso pai.<br />
Isto continha a carta. Com o que to<strong>do</strong>s ficámos admira<strong>do</strong>s de considerar<br />
em tão breves dias tantas mu<strong>da</strong>nças; que mais podia parecer representação<br />
cómica que sucesso ver<strong>da</strong>deiro. Felizar<strong>do</strong> estava suspenso entre alegre e<br />
triste, crepúsculo entre o dia <strong>da</strong>s alegrias e a noite <strong>da</strong>s tristezas; e perguntan<strong>do</strong><br />
aos cria<strong>do</strong>s o que disto sabiam, um deles, que mais discreto parecia, lhe disse:<br />
- O que eu, senhor Felizar<strong>do</strong>, ouvi contar, foi que <strong>do</strong> rapto violento de<br />
Amatilde, que Dom Cláudio ressenti<strong>do</strong> referiu ao duque de Módena, nosso<br />
príncipe, ele, entre as outras demonstrações de sentimento que mostrou, além<br />
de a privar a ela <strong>do</strong> marquesa<strong>do</strong> e investir no título a Dom Cláudio, seu primo,<br />
o desposou logo com uma senhora ilustríssima <strong>da</strong> corte; e porque Alberto não<br />
era seu vassalo, se man<strong>do</strong>u queixar à senhoria de Veneza, por via de seu<br />
embaixa<strong>do</strong>r assistente naquela corte, <strong>do</strong> desaforo que ele cometera.<br />
São as queixas <strong>do</strong>s príncipes grandes sempre com muita atenção<br />
ouvi<strong>da</strong>s; e como a república de Veneza se presa de tão recta, queren<strong>do</strong>
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 557<br />
satisfazer as justas queixas <strong>do</strong> duque, despachou logo um auditor para que o<br />
prendesse; e com guar<strong>da</strong> segura a Veneza o trouxeram. Chegou o auditor a<br />
Módena, a quem o duque deu uma tropa de cavalos para o acompanharem.<br />
Com que cercan<strong>do</strong>-lhe a casa repentinamente de noite, quis ele como soberbo<br />
e temerário fazer com seus cria<strong>do</strong>s resistência, atiran<strong>do</strong> com armas de fogo,<br />
com que mataram a um sol<strong>da</strong><strong>do</strong> e feriram a outros <strong>do</strong>s que acompanhavam ao<br />
auditor, que, ofendi<strong>do</strong> <strong>da</strong> resistência, man<strong>do</strong>u que lhe atirassem. E o acertaram<br />
duas balas pelo peito, de que caiu morto, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> fim juntamente à vi<strong>da</strong> e à mal<br />
considera<strong>da</strong> resistência.<br />
Prendeu-o o auditor e quantos cria<strong>do</strong>s o acompanhavam; os quais<br />
enviou presos a Pádua, para deles se fazer justiça. Acudiu seu primo a tomar<br />
posse de to<strong>da</strong> a fazen<strong>da</strong>, por ser to<strong>da</strong> vínculo de morga<strong>do</strong>, em que ele, como<br />
parente mais propínquo ao defunto, sucedia; e assim pôs a Amatilde fora <strong>da</strong>s<br />
grandiosas casas, que como ain<strong>da</strong> que não fosse a causa desta tragédia, ao<br />
menos havia si<strong>do</strong> a ocasião de que resultaram os <strong>da</strong>nos, ficou com to<strong>do</strong>s os<br />
parentes de Alberto odia<strong>da</strong>; e assim a trataram, como os que dela pouco se<br />
compadeciam. Viu-se Amatilde neste teatro <strong>da</strong> fortuna representan<strong>do</strong> o papel<br />
de suas mu<strong>da</strong>nças, tão breve no tempo como dilata<strong>do</strong> nos sentimentos. E não<br />
ten<strong>do</strong> em Castel Venesio quem a favorecesse, nem se atreven<strong>do</strong> ir a Módena à<br />
presença <strong>do</strong> duque ofendi<strong>do</strong>, tomou resolução de se tornar a Fossa pelo Sella<br />
com Sílvio e Dionísia, que com ela assistiam e como pais a haviam cria<strong>do</strong>,<br />
tornan<strong>do</strong> a ser o que de antes havia si<strong>do</strong>; que muito mais felice fora se <strong>do</strong> sítio<br />
em que se criou nunca saíra. Isto é, em resumo, o que, quan<strong>do</strong> parti, em<br />
Ferrara se contava. Vossa mercê, quan<strong>do</strong> agora for, o saberá mais por<br />
extenso.<br />
Admira<strong>do</strong>s ficaram to<strong>do</strong>s <strong>da</strong> relação abrevia<strong>da</strong> que o cria<strong>do</strong> de Felizar<strong>do</strong><br />
deu. E quan<strong>do</strong> fez tréguas o primeiro espanto com o discurso e a presunção<br />
com a voz, disse o Ermitão:<br />
- Entre os rigorosos incêndios e vorazes chamas em que se abrasava a<br />
ci<strong>da</strong>de de Cartago, estava choran<strong>do</strong> Cipião, seu severo executor, consideran<strong>do</strong><br />
as mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong> fortuna em ver converter em cinzas aquela antiga e populosa<br />
ci<strong>da</strong>de que tantos anos fez e sustentou guerra a Roma, sua pátria, sobre qual<br />
possuiria o império <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Uma <strong>da</strong>s misérias grandes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, disse<br />
Demóstenes, é o chegarem a necessitar o socorro <strong>do</strong>s pequenos os que
558 Padre Mateus Ribeiro<br />
lisonjea<strong>do</strong>s <strong>da</strong> fortuna se desconheceram de grandes. Bem diz Cícero que<br />
no breve espaço de uma noite, ou no intervalo fugitivo de um dia, se arruina a<br />
serra mais eminente e se seca a planta mais fron<strong>do</strong>sa.<br />
Caiu, senhor Felizar<strong>do</strong>, Amatilde, e ficou ludíbrio <strong>da</strong> fortuna quem se<br />
desvaneceu aplauso <strong>do</strong> tempo. O consula<strong>do</strong> em Roma de Vatino foi tão breve,<br />
pelo levar à morte, que disse dele discretamente Cícero que nem tivera Verão,<br />
nem Inverno, nem Primavera, nem Outono: tal se pode dizer pelo marquesa<strong>do</strong><br />
de Amatilde, que sonhou que era marquesa e que despertou lavra<strong>do</strong>ra. Ela<br />
teve o castigo de mudável e Alberto o de insolente em ofender aos príncipes <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>. Demóstenes 535 disse que o império <strong>do</strong>s príncipes os faz astutos e<br />
sagazes para conservarem a autori<strong>da</strong>de e majestade respeitosa <strong>do</strong> senhorio.<br />
São os príncipes soberanos como os áspides, que não consentem que os<br />
toquem sem empregar o veneno. Que segurança se podia prometer Alberto,<br />
haven<strong>do</strong> a um tal príncipe ofendi<strong>do</strong>? Ou que esperava Amatilde <strong>da</strong><br />
desobediência a seu natural senhor e tão benigno protector de seu<br />
desamparo? Ela desacertou como mulher e ele errou como soberbo. Felizar<strong>do</strong>,<br />
que té então com os discursos suspensos tinha ouvi<strong>do</strong> e cala<strong>do</strong>, jamais<br />
desafoga<strong>do</strong> <strong>do</strong> susto, disse assim:<br />
- Está, senhores, meu coração já também cura<strong>do</strong> <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s que<br />
recebeu <strong>da</strong>s memórias de Amatilde, que nem sinto sua mu<strong>da</strong>nça, nem me<br />
alegro de sua ruína. Como o amor que lhe tive não se causou de sua grandeza,<br />
pois a amei sen<strong>do</strong> humilde lavra<strong>do</strong>ra, se ela fora a que a meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s devia,<br />
em qualquer esta<strong>do</strong> que a visse, fora meu amor para com ela sempre o<br />
mesmo; mas como se mostrou tão ingrata, mostran<strong>do</strong> eu tantas finezas, foi o<br />
remédio mais eficaz para meu cui<strong>da</strong><strong>do</strong> divertir-se o ver nela tão injusta<br />
mu<strong>da</strong>nça para esquecer-se. Não tem comércio o amor com a ingratidão, e<br />
quem chega a perder a esperança de um desejo, facilmente risca to<strong>da</strong> a<br />
pertensão <strong>da</strong> memória. O alimento de que o amor se sustenta são as<br />
esperanças; e uma vez que estas faltaram, tu<strong>do</strong> faltou. Pois tributar finezas a<br />
quem as desestima, ou é delírio <strong>da</strong> razão, ou parto abortivo <strong>da</strong> vontade.<br />
Cicer., Pro Murœn.<br />
Demost., in Arg. lib.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte III 559<br />
O casamento de Amatilde já hoje não me convém. Porque quem faltou à<br />
promessa que de esposa me havia <strong>da</strong><strong>do</strong>, já não tinha lugar quan<strong>do</strong> fora<br />
<strong>do</strong>nzela, quanto mais sen<strong>do</strong> hoje viúva. Eu, enquanto amante, a pretendi por<br />
esposa, sem saber os futuros de sua grandeza, porque delírios <strong>do</strong> amor cortam<br />
mil vezes pelos <strong>do</strong>cumentos <strong>da</strong> razão; hoje, que considero as cousas com<br />
olhos livres, conheço que era precipício de meu querer o extremo a que me<br />
cheguei a humilhar. Saí de Ferrara, minha pátria, por me parecer que nas<br />
mu<strong>da</strong>nças de Amatilde e desaforos de Alberto ficava eu nos brios abati<strong>do</strong>.<br />
Desta pena me livrou o duque, nosso príncipe; e assim nem hoje sinto pena<br />
que me moleste, nem sentimento que me atormente. E pois os senhores<br />
Felisberto e Dionísio hão-de ficar neste santuário de novena, e as sau<strong>da</strong>des de<br />
minha mãe e as que terá a <strong>do</strong> senhor Constantino não admitem mais demora,<br />
eu lhe farei companhia até Ravena, e <strong>da</strong>í me partirei a Ferrara; que pois por<br />
ocasião de Amatilde tenho causa<strong>do</strong> a meus pais tantos sentimentos, justo<br />
parece lhos alivie com minha assistência.<br />
A to<strong>do</strong>s pareceu acerta<strong>do</strong> o intento de Felizar<strong>do</strong>. E despedin<strong>do</strong>-se <strong>do</strong><br />
Ermitão e de Dionísio com mostras de grandes sau<strong>da</strong>des de sua companhia,<br />
Felizar<strong>do</strong> e Constantino se partiram para suas pátrias; que, como disse<br />
Plutarco 536 , não se satisfaz a obrigação de seus filhos com que as houvessem<br />
ama<strong>do</strong>, mas com amá-las sempre de presente: por serem o primeiro berço de<br />
nosso nascimento, as que nos deram a primeira aura vital de nossa respiração,<br />
as amas de nossa infância e as primeiras mestras de nossa educação.<br />
Sau<strong>do</strong>sos ficaram os nossos <strong>do</strong>us romeiros de sua companhia,<br />
discursan<strong>do</strong> sobre os perío<strong>do</strong>s vários de sua história. Onde agora os<br />
deixaremos, começan<strong>do</strong> sua novena e residentes no magnífico hospital (a)<br />
<strong>da</strong>quela Santa Casa. E se na jorna<strong>da</strong> que para a sua ermi<strong>da</strong> fizerem outros<br />
novos sucessos derem motivos à história ain<strong>da</strong> comporemos a Quarta Parte.<br />
1 Plut., Ansenisit gerend. Resp.<br />
LAUS DEO.<br />
Casa onde se curam <strong>do</strong>entes pobres; onde se agasalham hóspedes e vian<strong>da</strong>ntes pobres.
560 Padre Mateus Ribeiro<br />
LISBOA,<br />
Na oficina de MIGUEL DESLANDES,<br />
Impressor de Sua Majestade.<br />
Com to<strong>da</strong>s as licenças necessárias.<br />
Ano M.DC.LXXX.VIII.
mais notáveis 561<br />
I N D E X<br />
DAS C O U S A S MAIS N O T Á V E I S E<br />
sentenciosas que se contém nesta Primeira, Segun<strong>da</strong> e Terceira Parte<br />
deste Volume Primeiro.<br />
O (P.) grande vai parte; o (p.) pequeno, página.<br />
Os mais breves não são tão essenciais. NB<br />
(N B) Nas edições consulta<strong>da</strong>s lê-se: O P. grande, vai Parte; o p. piqueno, pagina; o c. piqueno,<br />
columna; / e o & seqq e as seguintes. Os mais breves não são tão essenciaes. Suprimimos a<br />
indicação de coluna, pois a transcrição que apresentamos não contém essa divisão textual.<br />
Academia. Vide verbo Universi<strong>da</strong>de.<br />
Acção. P.1. p.183; p.194.H P.2.<br />
p.219; p.233; p.239; p.283; p.328;<br />
p.363.H P.3. p.386; p.473; p.544.<br />
Adivinhação. Vide verbo Pronóstico.<br />
Admiração. P.2. p.321.H P.3. p.407;<br />
p.409; p.457; p.557.<br />
Adulação. P.1. p.137; p.142.H P.3.<br />
p.407.<br />
Afronta. P.1. p.201; p.203; p.206.H<br />
P.2. p.254; p.263; p.274; p.281;<br />
p.282; p.285.H P.3. p.447; p.488.<br />
Agili<strong>da</strong>de. Vide verbo Corpo.<br />
Agradecimento. P.2. p.264; p.268;<br />
p.286; p.344; p.357.H P.3. p.p.404;<br />
p.504; p.520; p.526.<br />
Agra<strong>do</strong>. P.1. p.180. Vide verbo<br />
Cortesia.<br />
Agravo. P.1. p.131; p.200; p.203.H<br />
P.2. p.219; p.274; p.280; p.282;<br />
p.327; p.350. H P.3. p.380; p.393;<br />
p.429; p.478; p.487; p.550.<br />
Alegria. P.1. p.116; p.177; p.178;<br />
p.204; p.206; p.208; p.216.H P.2.<br />
p.243; p.255; p.291; p.296; p.304;<br />
p.342; p.366.H P.3. p.382; p.402;<br />
p.447; p.473; p.509;p.513.<br />
Alívio. P.1. p. 117; p. 197; p.203;<br />
p.206; p.209.H P.2. p.219; p.293;<br />
p.307; p.327; p.355.H P.3. p.385;<br />
p.401; p.434; p.447; p.454; p.475;<br />
p.503.
562 índex <strong>da</strong>s cousas<br />
Alma. P.1.p.116;p.208;p.214;<br />
p.217.H P.2. p.310; p.358; p.375.H<br />
P.3. p.412; p.440; p.447; p.484;<br />
p.513; p.550.<br />
Alteração. P.2. p.257.<br />
Alva. Vide verbo Aurora.<br />
Alvedrio. Vide verbo Vontade.<br />
Ambição. P.1. p.121.H P.3. p.380;<br />
p.421; p.431; p.470; p.474; p.489;<br />
p.513.<br />
Amigo. P.1. p.178; p.180; p.188.H<br />
P.2. p.308; p.368.11 P.3. p.393;<br />
p.458; p.526.<br />
Amizade. P.1. p.121; p.131; p.178.H<br />
P.2. p.229; p.263; p.308; p.326;<br />
p.364.11 P.3. p.382; p.407; p.459.<br />
Amor. P.1. p.128; p.132; p.167;<br />
p.169;p.177;p.181;p.186;p.189;<br />
P.205.H P.2. p.240; p.245; p.251;<br />
p.260; p.272; p.304; p.321; p.334;<br />
p.347; p.366.H P.3. p.390; p.410;<br />
p.421; p.442; p.449; p.443; p.489;<br />
p.497; p.545.<br />
Ânsia. P.1. p.117. Vide verbo Pena<br />
e verbo Sentimento.<br />
Ancião. P.1. p.210. Vide verbo<br />
Velhice.<br />
Ânimo. P.1. p.124; p.203; p.204.]]<br />
P.2. p.225; p.307; p.357.H P.3.<br />
p.447; p.456; p.470; p.473; p.490.<br />
Anjos. P.1. p.152.H P.3. p.510.<br />
Anos. P.1.p.128.H P.2. p.356. Vide<br />
verbo Tempo.H P.3. p.410; p.466;<br />
p.517.<br />
Antigui<strong>da</strong>des. P.1. p.116.<br />
Apartamento. Vide verbo Ausência.<br />
Aplauso. P.3. p.558. Vide verbo<br />
Fama e verbo Louvor.<br />
Armas. P.1. p.126; p.128; p.137;<br />
p.216.H P.2. p.279; p.288; p.302;<br />
p.320; p.339; p.365.H P.3. p.382;<br />
p.424; p.455; p.522; p.532; p.538;<br />
p.550. Vide verbo Guerra.<br />
Arrependimento. P.3. p.445; p.490.<br />
Arroio. Vide verbo Fonte.<br />
Arrojo. Vide verbo Atrevimento.<br />
Árvore. P.2. p.338.H P.3. p.489;<br />
p.551.<br />
Asilo. P.2.p.289. Vide verbo<br />
Liber<strong>da</strong>de.<br />
Astrologia. P.1. p.146.<br />
Astrólogo. P.1. p.145; p.152.<br />
Astúcia. P.1. p.122; p.187.<br />
Atrevimento. P.1. p.167.H P.2.<br />
P-238.H P.3. p.394; p.451; p.479;<br />
p.488.<br />
Audácia. Vide verbo Atrevimento.<br />
Aurora. P.1. p.115.H P.2. p.236;<br />
p.240; p.256; p.266; 332; p.334;<br />
p.345; p.352; p.376.H P.3. p.383;<br />
p.401; p.417; p.437; p.451; p.475.<br />
Ausência. P.2. p.273; p.319; p.365.H<br />
B<br />
P.3. p.446; p.493; p.497; p.516.
Ban<strong>do</strong>leiros. P.2. p.265; p.273;<br />
p.288; p.297.11 P.3. p.531.<br />
Ban<strong>do</strong>s. P.1. p.120l P.3. p.462;<br />
p.521;p.535.<br />
Batalha. P.1. p.149; p.187.H P.2.<br />
p.248; p.365.11 P.3. p.457; p.467;<br />
p.470; p.503;p.519.<br />
Beleza. Vide verbo Fermosura.<br />
Bem-aventura<strong>do</strong>s. P.3. p.511 ;<br />
p.512;p.514.<br />
Bem-aventurança. P.3. p.510. Vide<br />
verbo Glória.<br />
Benefício. P.1. p.159.H P.2. p.264;<br />
p.268; p.286; p.344; p.357.H P.3.<br />
p.404; p.430; p.527; p.553.<br />
Beneméritos. P.1.p.160.H P.2.<br />
p.340. Vide verbo Merecimento e<br />
verbo Prémio.<br />
Benevolência. P.2. p.344.<br />
Bens. P.1. p.156.H P.2. p.367.H P.3.<br />
p.485; p.513.<br />
Bo<strong>da</strong>s. P.3. p.468. Vide verbo<br />
Casamento.<br />
Bosque. P.1. p.183; p.193; p.198;<br />
P.213.H P.2. p.241; p.262; p.267;<br />
p.320; p.371.<br />
Brevi<strong>da</strong>de. P.2 p.246; p.345.<br />
C<br />
Cabelos. P.3. p.503; p.523.<br />
Caça. P.2. p.224; p.228.H P.3.<br />
p.440.<br />
Caminho. P.3. p.386.<br />
mais notáveis 563<br />
Campo. P.3. p.404.<br />
Capitão. P.2.p.267; p.282; p.285.H<br />
P.3. p.470; p.476; p.494; p.500;<br />
p.522. Vide verbo Ban<strong>do</strong>leiros e<br />
verbo Príncipe.<br />
Cárcere. P.3.p.541. Vide verbo<br />
Cativeiro.<br />
Cargo. P.1.p.210.<br />
Carta. P.1. p.141.H P.2. p.249;<br />
p.301 ; p.302.H P.3. p.448; p.504;<br />
p.546; p.556.<br />
Casamento. P.1. p.185.H P.2. p.277;<br />
p.329; p.330; p.342; p.344.H P.3.<br />
p.408; p.424; p.460; p.468; p.487;<br />
p.524.<br />
Castigo. P.1. p.159.H P.2. p.238;<br />
p.312; p.315; p.329.H P.3. p.445;<br />
p.478; p.487; p.495; p.549.<br />
Cativeiro. P.1. p.171; p.207.H P.2.<br />
p.235; p.259; p.319.1 P.3. p.455;<br />
p.485; p.541.<br />
Cativo. Vide verbo Cativeiro.<br />
Causa. P.1. p.144; p.152.H P.2.<br />
p.351 ; p.357.11 P.3. p.479; p.512;<br />
p.541.<br />
Cautela. P.2. p.350.U P.3. p.421;<br />
p.459.<br />
Centro. P.3. p.515.<br />
Céu. P.1. p.217.H P.2. p.356.H P.3.<br />
p.516. Vide verbo Glória.<br />
Ci<strong>da</strong>de. P.1. p.115; p.117; p175;<br />
P.200.H P.2. p.220; p.288; p.298;<br />
p.314; p.324; p.325.H P.3. p.437;<br />
p.439; p.510; p.521; p.532; p.554.
564 Index <strong>da</strong>s cousas<br />
Ciência. P.3. p.388 Vide verbo<br />
Sabe<strong>do</strong>ria.<br />
Ciúmes. P.1.p.188.H P.2. p.241;<br />
p.352.H P.3. p.400. Vide verbo<br />
Queixas.<br />
Clari<strong>da</strong>de. Vide verbo Corpo.<br />
Clemência. Vide verbo Misericórdia.<br />
Comércio. P.1. p.118.<br />
Compaixão. P.1. p.172.H P.2. p.255.<br />
p.260; p.268; p.311.H P.3. p.413;<br />
p.434; p.476; p.490; p.494. Vide<br />
verbo Pie<strong>da</strong>de.<br />
Companheiro. P.3. p.419.<br />
Companhia. P.2. p.359; p.369.H P.3.<br />
p.438; p.492.<br />
Competências. P.1. p.121.<br />
Condenação. P.2. p.310.H P.3.<br />
p.506.<br />
Confiança. P.3. p.459.<br />
Confissão. P.2. p.297; p.315; p.359.<br />
Consciência. P.1. p.205.<br />
Conselheiro. Vide verbo Conselho.<br />
Conselho. P.1. p.138; p.210.H P.2.<br />
p.260; p.282; p.286; p.302; p.304;<br />
p.340; p.342.H P.3. p.410; p.464;<br />
p.484; p.494; p.506; p.540.<br />
Consolação. P.1. p.117; p.197;<br />
p.206; p.209.11 P.2. p.295; p.307;<br />
p.356.11 P.3. p.464; p.502; p.505;<br />
p.515; p.548.<br />
Constância. P.2. p.338. Vide verbo<br />
Valor.<br />
Conten<strong>da</strong>. P.3. p.399.<br />
Contentamento. P.1. p.179; p.207.<br />
Continuação. Vide verbo<br />
Perseverança.<br />
Contrarie<strong>da</strong>de. P.3. p.541. Vide<br />
verbo Contrários.<br />
Contrários. P.1. p.199.H P.2. p.289;<br />
P.343.HP.3. p.541.<br />
Conversação. P.1. p.210.H P.2.<br />
p.306; p.319.11 P.3. p.436; p.537;<br />
p.554.<br />
Conversão. P.2. p.296.<br />
Coração. P.2. p.226; p.301 ; p.344;<br />
p.363; p.371.11 P.3. p.412; p.442;<br />
p.450; p.492; p.497; p.513; p.515.<br />
Cores. P.3. p.485.<br />
Coroa. P.3. p.489. Vide verbo<br />
Príncipe.<br />
Corpo. P.2. p.375.11 P.3. p.440;<br />
p.514.<br />
Corte. P.1.p.183.jl P-3. p.521. Vide<br />
verbo Ci<strong>da</strong>de.<br />
Cortesia. P.1. p.210; p.216.H P.2.<br />
p.267; p.325.<br />
Costume. P.1. p.118; p.200.H P.2.<br />
P.361.HP.3. p.392;p.471.<br />
Covardia. P.3. p.479. Vide verbo<br />
Atrevimento e verbo Temor.<br />
Crédito. P.3. p.455.<br />
Criação. Vide verbo Nascimento.<br />
Crime. P.1. p.205.<br />
Criminosos. Vide verbo Crime.<br />
Cruel<strong>da</strong>de. P.2. p.328; p.350. Vide<br />
verbo Rigor.<br />
Cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. P.1. p.177.H P.2. p.347;<br />
p.375.11 P.3. p.381.
Culpa. P.1.p.205.H P-2. p.260.H P.3.<br />
p.486; p.548. Vide verbo Castigo.<br />
Curiosi<strong>da</strong>de. P.2. p.323.H P.3.<br />
D<br />
p.474.<br />
Dádiva. P.2. p.343.H P.3. p.512;<br />
p.533; p.535; p.553. Vide verbo<br />
Benefício e verbo Liberali<strong>da</strong>de.<br />
Dano. P.2. p.224; p.330.H P.3.<br />
p.542.<br />
Defeitos. P.1. p.206.H P.2. p.282.<br />
Delícias. P.1. p.207.H P.3. p.409;<br />
p.513.<br />
Delito. P.1. p.205; p.208.H P.2.<br />
p.316; p.327; p.347.H P.3. p.432.<br />
Demónios. P.1. p.150.<br />
Demonstração. P.3. p.467.<br />
Demora. P.1. p.181l P.2. p.246;<br />
p.301. Vide verbo Dilação e verbo<br />
Vagar.<br />
Desafio. P.2. p.229; p.320; p.333;<br />
P.362.H P.3. p.400; p.405.<br />
Desaforo. P.1. p.206.H P.2. p.224;<br />
p.318.<br />
Desagravo. P.2. p.283.H P.3. p.435.<br />
Descanso. P.2. p.337.<br />
Descrição. Por serem muitas e mui<br />
várias as descrições, se não põem<br />
aqui; vejam-se em seus próprios<br />
lugares.<br />
Descui<strong>do</strong>. P.1. p.117.H P.2. p.246;<br />
p.345; p.365.<br />
mais notáveis 565<br />
Desculpa. P.2. p.260.H P.3. p.486.<br />
Desdita. Vide verbo Infelici<strong>da</strong>de.<br />
Desejo. P.2. p.233; p.315; p.342;<br />
P.345.H P.3. p.396; p.406; p.409;<br />
p.466; p.513; p.515; p.534; p.551.<br />
Desengana<strong>do</strong>. Vide verbo<br />
Desengano.<br />
Desengano. P.1. p.143; p186;<br />
p.193.11 P.2. p.223; p.315; p.338;<br />
P.357.H P.3. p.407; p.444; p.463;<br />
p.509.<br />
Desesperação. P.2. p.223; p.247;<br />
p.303; p.307.H P.3. p.394; p.455;<br />
p.506.<br />
Desgosto. P.3. p.473.<br />
Desgraça. P.3. p.459. Vide verbo<br />
Fortuna e verbo Infelici<strong>da</strong>de.<br />
Desgraça<strong>do</strong>. P.3. p.483.<br />
Desobediência. P.3. p.489.<br />
Despedi<strong>da</strong>. P.3. p.498.<br />
Despojos. P.3. p.455.<br />
Desprezo. P.2. p.263; p.282; p.341 ;<br />
P-350.HP.3. p.385;p.581. Vide<br />
verbo Afronta.<br />
Desterro. P.1. p.216.H P.2. p.280;<br />
p.319; p.363.H P.3. p.383; p.432;<br />
p.516.<br />
Desvelo. P.1. p.177l P.3. p.453.<br />
Detença. Vide verbo Vagar.<br />
Detracção. Vide verbo Maldizentes.<br />
Deus. P.1.p.147; p.151; p.156;<br />
p.159; p.166.11 P.2. p.293; p.312;<br />
p.315; p.319; p.356. HP.3. p.467;
566 Index <strong>da</strong>s cousas<br />
p.506; p.511. Vide verbo<br />
Providência Divina.<br />
Dia. P.2. p.250; p.272; p.293; p.294;<br />
p.310; p.345; p.347; p.357.H P.3.<br />
p.467; p.502; p.514; p.558.<br />
Digni<strong>da</strong>des. P.1. p.124; p.132;<br />
p.157.11 P.2. p.339.11 P.3. p.486;<br />
p.558.<br />
Dilação. P.2. p.246; p.317; p.345.<br />
Vide verbo Vagar.<br />
Dinheiro. P.3. p.528; p.535; p.543;<br />
p.547.<br />
Direito. P.3. p.424.<br />
Discípulo. P.3. p.533. Vide verbo<br />
Mestre.<br />
Discretos. Vide verbo Discrição.<br />
Discrição. P.1. p.116; p.167; p.201.<br />
Discurso. P.1. p.144; p.152.H P.2.<br />
p.226; p.236; p.248. H P.3. p.385;<br />
p.398; p.464.<br />
Dissimulação. P.1. p.122.H P.2.<br />
p.351.<br />
Dita. Vide verbo Fortuna.<br />
Divertimento. P.2. p.228.<br />
Dor. P.3. p.513. Vide verbo Pena e<br />
verbo Sentimento.<br />
Dotes. P.3. p.513;p.514.<br />
Duração. Vide verbo Perseverança.<br />
E<br />
Eloquência. P.1. p.142; p.215.H P.2.<br />
p.252; p.253; p.321.H P.3. p.448;<br />
p.544.<br />
Embaixa<strong>do</strong>r. P.3. p.424.<br />
Embarcação. P.3. p.452. Vide verbo<br />
Mar e verbo Navegação.<br />
Empresas. P.2. p.248; p.283; p.338;<br />
p.346; p.363.11 P.3. p.452; p.462;<br />
p.470; p.488.<br />
Émulos. P.2. p.341.<br />
Enfermo. P.3. p.397.<br />
Engano. P.3. p.513. Vide verbo<br />
Astúcia.<br />
Engenho. P.3. p.455.<br />
Entendimento. P.3. p.388; p.513.<br />
Epitáfio. P.3. p.503.<br />
Ermitão. Vide verbo Ermo.<br />
Ermo. P.1.p.193;p.211;p.213;<br />
p.217.<br />
Erro. P.3. p.490.<br />
Escravo. Vide verbo Cativeiro.<br />
Escultor. P.1. p.121; p.180; p.202.U<br />
P.3. p.404.<br />
Esgrimi<strong>do</strong>r. P.3. p.471.<br />
Espanto. Vide verbo Admiração.<br />
Espectáculos. P.3. p.471.<br />
Esperança. P.1. p.192; p.197.H P.2.<br />
p.223;p.251; p.303; p.313;<br />
P.364.H P.3. p.415; p.441; p.473;<br />
p.552.<br />
Esposa. Vide verbo Esposo.<br />
Esposo. P.1. p.178; p.198; p.203.H<br />
P.3. p.464; p.486; p.493; p.497;<br />
p.536.<br />
Esquecimento. P.1. p.131.H P.2.<br />
p.323; p.334; p.364; p.377.H P.3.<br />
p.379;p.399;p.410.
Essência Divina. P.3. p.512.<br />
Esta<strong>do</strong>. P.3. p.514; p.515. Vide<br />
verbo Glória.<br />
Estátua. P.3. p.404.<br />
Estatuto. Vide verbo Lei.<br />
Estimação. P.1. 201; p.216.H P.2.<br />
p.263; p.283; p.320; p.330; p.351;<br />
p.361. P.3. p.409;p.541;p.549.<br />
Estio. P.3. p.382; p.385.<br />
Estratagema. Vide verbo Astúcia.<br />
Estrela. P.1. p.143; p.147.H P.2.<br />
p.338.H P.3. p.423; p.477; p.511 ;<br />
p.519; p.552.<br />
Estu<strong>do</strong>. P.2. p.221.H P.3. p.438.<br />
Vide verbo Letras.<br />
Eterni<strong>da</strong>de. P.1. p.148.H P.2. p.309;<br />
P.356.HP.3. p.382; p.515.<br />
Exemplo.P.2. p.220.<br />
Exéquias. P.2. p.358.H P.3. p.467.<br />
Exortação. P.2. p.306.H P.3. p.509.<br />
Experiência. P.1. p.117; p.151.H<br />
P.2. p.343.<br />
Extremo. P.2. p.322.<br />
F<br />
Fábula. P.3. p.417; p.424.<br />
Fa<strong>do</strong>. P.1.p.144.<br />
Fama. P.1. p.121; p.122; p.126;<br />
p.168.11 P.2. p.221; p.233; p.239;<br />
p.248; p.269; p.285; p.339;<br />
P.348.H P.3. p.434; p.479; p.489;<br />
p.503; p.353.<br />
mais notáveis 567<br />
Favor. P.1. p.137; p.143; p.159.H<br />
P.3. p.489; p.495.<br />
Fazen<strong>da</strong>. P.2. p.289.<br />
Feal<strong>da</strong>de. P.3. p.536.<br />
Feira. P.3. p.438.<br />
Felici<strong>da</strong>des. P.1. p.144; p.168.H P.2.<br />
p.243; p.259.H P.3. p.515. Vide<br />
verbo Fortuna.<br />
Fénix. P.1. p.200.H P.2. p.313;<br />
P.319.HP.3. p.457;p.542.<br />
Feri<strong>da</strong>s. P.3. p.456; p.525; p.528.<br />
Fermosura. P.1. p.127; p.167;<br />
p.176; p.185.H P.2. p.222; p.244;<br />
p.256; p.268; p.270.H P.3. p.390;<br />
p.400; p.405; p.414; p.551.<br />
Fi<strong>da</strong>lguia. P.2. p.231 ; p.263; p.337;<br />
p.363.H P.3. p.494. Vide verbo<br />
Nobreza.<br />
Filhas. P.3. p.486. Vide verbo<br />
Filhos.<br />
Filhos. P.2. p.220.H P.3. p.395;<br />
p.408; p.413; p.460; p.478; p.481;<br />
p.486; p.488; p.521; p.538; p.542.<br />
F/m. P.1. p.124; p.166.11 P.2.<br />
P.330.H P.3. p.386; p.466; p.502;<br />
p.518.<br />
Fingimento. P.1. p.122.<br />
Flores. P.1. p.207;H P.2. p.325;<br />
P.356.H P.3. p.417; p.511; p.513.<br />
Vide verbo Primavera.<br />
Fome. P.3. p.385.<br />
Fonte. P.1. p.211.HP.2. p.224;<br />
p.235.11 P.3. p.382; p.384; p.389;<br />
p.390; p.391; p.514; p.530.
568 Index <strong>da</strong>s cousas<br />
Foragi<strong>do</strong>s. Vide verbo Ban<strong>do</strong>leiros.<br />
Fortaleza. Vide verbo Valor.<br />
Fortuna. P.1. p.124; p.128; p.143;<br />
p.152; p.157; p.162.H P.2. p.227;<br />
p.264; p.271; p.283; p.324.H P.3.<br />
p.386; p.426; p.502; p.557.<br />
Freira. Vide verbo Religiosa.<br />
Fruição. P.3. p.513. Vide verbo<br />
Gosto.<br />
Frutos. P.3. p.417; p.457.<br />
Fugi<strong>da</strong>. P.1. p.204.H P.2. p.228;<br />
p.238; p.246; p.251; p.255; p.259;<br />
p.300; p.363.11 P.3. p.394; p.446;<br />
p.550.<br />
Furto. Vide verbo Roubo.<br />
Futuros. P.1. p.144; p.147; p.151.<br />
G<br />
Galas. Vide verbo Traje.<br />
General. P.3. p.500. Vide verbo<br />
Capitão.<br />
Generoso. Vide verbo Liberal e<br />
verbo Poderoso.<br />
Gentileza. Vide verbo Fermosura.<br />
Gigante. P.3. p.551.<br />
Girassol. P.3. p.406.<br />
Glória. P.1. p.217.11 P.2. p.312;<br />
p.357; p.358.11 P.3. p.380; p.387;<br />
p.509; p.515.<br />
Golfinhos. P.3. p.535.<br />
Gosto. P.2. p.228; p.291.H P.3.<br />
p.473; p.513.<br />
Governa<strong>do</strong>r. Vide verbo Governo.<br />
Governo. P.1. p.118; p.160.H P.3.<br />
p.380.<br />
Graça. P.2. p.297; p.331.<br />
Grande. P.3. p.489; p.557. Vide<br />
verbo Poderoso e verbo Príncipe.<br />
Grandeza. P.1. p.132.H P.3. p.455;<br />
p.457; p.479.<br />
Guar<strong>da</strong>. P.2. p.300.<br />
Guerra. P.1. p.142; p.143; p.165;<br />
H<br />
p.187.H P.2. p.248; p.303; p.328;<br />
p.347; p.364.H P.3. p.465; p.470;<br />
p.494; p.539. Vide verbo Armas.<br />
História. P.3. p.438.<br />
Honra. P.1. p.201; p.204; p.206.H<br />
P.2. p.225; p.330; p.248; p.263;<br />
p.272;p.281;p.339;p.348;<br />
P.357.H P.3. p.456; p.481; p.488;<br />
p.496.<br />
Hóspede. Vide verbo Hospício.<br />
Hospício. P.3. p.421; p.434; p.504.<br />
Humil<strong>da</strong>de. P.3. p.489. Vide verbo<br />
I<br />
Nascimento.<br />
Ignorância. P.1. p.138; p.140; p.156;<br />
p.201; p.202.11 P.2. p.226; p.341.H<br />
P.3. p.533.<br />
Ignorantes. P.3. p.533. Vide verbo<br />
Ignorância.
Igual<strong>da</strong>de. P. 1. p. 120; p.137.H P.2.<br />
p.277; p.326.H P.3. p.408; p.412;<br />
p.458; p.487.<br />
Imitação. P.2. p.220.<br />
Impassibili<strong>da</strong>de. Vide verbo Corpo.<br />
Império. P.1. p. 118.<br />
Impossível. P.2. p.348.<br />
Incêndio. P.1. 150.<br />
lnclinação.P.2. p.221.<br />
Inconstância. P.1. p.202.H P.2.<br />
p.338.<br />
Indignos. P.1. p.159; p.197.<br />
Infâmia. P.1. p.201; p.206.<br />
Infelici<strong>da</strong>de. P.1. p. 143; p. 161;<br />
p.187;p.194.HP.2. P.263.HP.3.<br />
p.394.4p.434; p.527. Vide verbo<br />
Fortuna e verbo Ventura.<br />
Influência. P.1. p.144; p.148.<br />
Infortúnio. P.3. p.540. Vide verbo<br />
Infelici<strong>da</strong>de.<br />
Ingratidão. P.1. p.130.H P.2. p.387;<br />
p.350; p.357.11 P.3. p.429. Vide<br />
verbo Agradecimento.<br />
Ingratos. P.1. p. 130. Vide verbo<br />
Ingratidão.<br />
Inimigo. P.1. p.194; p.204.H P.2.<br />
p.247; p.290; p.308; p.349.H P.3.<br />
p. 419; p.455; p.459; p.462; p.468;<br />
p.539.<br />
Inimizade. P.1. p.205. Vide verbo<br />
Inimigo.<br />
Injúria. P.2. p.263.H P.3. p.447. Vide<br />
verbo Afronta.<br />
mais notáveis 569<br />
Injustiça. P.3. p.550. Vide verbo<br />
Justiça.<br />
Inocência. P.3. p.447; p.548.<br />
Interesse. P.3. p.409; p.431 ; p.534.<br />
Inveja. P.1. p.121; p.131; p.139;<br />
P.168.H P.2. 222; p.284; p.300;<br />
p.340; p.350; p.367.H P.3. p.417;<br />
p.435; p.513; p.514; p.526.<br />
Inverno. P.3. p.381; p.384.<br />
Ira. P.1. p.1901 P.2. p.230; p.263;<br />
p.315.11 P.3. p.414; p.483; p.490;<br />
p.494.<br />
Irmão. P.1. p.185; p.192.H P.3.<br />
J<br />
p.479. Vide verbo Queixas.<br />
Jardim. P.2. p.327.H P.3. p.420.<br />
Jorna<strong>da</strong>. P.2. p.356.H P.3. p.382.<br />
Juiz. P.2. p.273; p.315. p.317.H P.3.<br />
p.502; p.549. Vide verbo Justiça.<br />
Juízo. P.1. p. 153; p. 155.11 P-2.<br />
p.226; p.232; p.239; p.318.H P.3.<br />
p.484.<br />
Justiça. P.1. p.137. H P.2. p.234;<br />
L<br />
p.238; p.250; p.273; p.312; p.316;<br />
p.331.11 P.3. p.514.<br />
Lágrimas. P.1. p.207.H P.2. p.225;<br />
p.236; p.242; p.268; p.292; p.353;<br />
p.355.H P.3. p.396; p.448; p.503.<br />
Lei. P.1.p.118; p.131; p.137;<br />
p.201 .H P.2. p.250; p.270; p.274;
570 Index <strong>da</strong>s cousas<br />
p.280; p.328; p.370.H P.3. p.421;<br />
p.436; p.462; p.489; p.503; p.508;<br />
p.534; p.539.<br />
Letras. P.1. p.126; p.128; p.135;<br />
p.137;p.157;p.184;p.216.1P.2.<br />
p.221; p.270; p.337; p.373.H P.3.<br />
p.522; p.532.11 P.3. p.387; p.455;<br />
p.522; p.532. Vide verbo<br />
Sabe<strong>do</strong>ria e verbo Sábios.<br />
Levantamento. P.1. p.123.<br />
Liberal. Vide verbo Liberali<strong>da</strong>de.<br />
Liberali<strong>da</strong>de. P.2. p.334.H P.3.<br />
p.476; p.504; p.552.<br />
Liber<strong>da</strong>de. P.2. p.226; p.235; p.253;<br />
p.259; p.301; p.309; p.319.H P.3.<br />
p.459; p.485; p.540.<br />
Lição. P.3. p.450; p.455. Vide verbo<br />
Mestre.<br />
Língua. P.1. p.143; p.204.<br />
Lisonja. Vide verbo Adulação.<br />
Livre. Vide verbo Liber<strong>da</strong>de.<br />
Loquaz.<br />
Louvor. P.2. p.341 .1j P.3. p.409;<br />
p.456; p.541.<br />
Lua. P.1. p.148.H P-2. p.265; p.266;<br />
p.308; p.341 ; p.375.11 P.3. p.399;<br />
p.420;p.452;p.519;p.529.<br />
Luz. P.2. p.256.11 P.3. p.475.<br />
M<br />
Mãe. P.2. p.292; p.355.H P.3. p.402;<br />
p.413; p.460; p.543; p.559. Vide<br />
verbo Queixas e verbo<br />
Sentimento.<br />
Magistra<strong>do</strong>. Vide verbo Governo e<br />
verbo República.<br />
Magnanimi<strong>da</strong>de. P.2. p.363. Vide<br />
verbo Valor.<br />
Maioria. P.1. p.121.<br />
Majestade. P.1. p.203.H P.3. p.486.<br />
Maldizentes. P.3. p.434; p.549.<br />
Malenconia. Vide verbo Tristeza.<br />
Ma/es. P.1. p. 117; P.182.HP.2.<br />
p.239; p.259; p.307.<br />
Mancebo. P.1. p.120; p.121; p.128.H<br />
P.2. p.222; p.270; p.336; p.346;<br />
p.347; p.369.H P.3. p.385; p.421;<br />
p.441; p.450; p.486; p.501. Vide<br />
verbo Moci<strong>da</strong>de.<br />
Manhã. P.1. p.115l P.2. p.332;<br />
p.334. Vide verbo Aurora e verbo<br />
Sol.<br />
Mãos. P.1. p.159.<br />
Mar. P.1. p.124; p.172.H P.2. p.223;<br />
p.247;p.254;p.300;p.314;<br />
P.351.H P.3. p.381; p.388; p.437;<br />
p.451;p.470.<br />
Mari<strong>do</strong>s. P.1. p.135.H P.2. p.251;<br />
p.260; p.362.<br />
Matemáticos. Vide verbo<br />
Astrólogos.<br />
Mediania. P.2. p.222; p.360.<br />
Médico. P.1. p.146.11 P.3. p.480;<br />
p.544.<br />
Meio. P.2. p.329.11 P.3. p.392;<br />
p.540.
Memória. P.2. p.272; p.287; p.334;<br />
p.358; p.3641 P.3. p.379; p.388;<br />
p.399; p.410.<br />
Mentira. Vide verbo Ver<strong>da</strong>de.<br />
Mercê. Vide verbo Benefício.<br />
Merecimento. P.1. p.137; p.143;<br />
p.160; p.184.H P.2. p.282; p.339.H<br />
P.3. p.382; p.456; p.486; p.514.<br />
Mestre. P.1. p.201.H P.2. p.221;<br />
p.268; p.315.11 P.3. p.388; p.450;<br />
p.533. Vide verbo Letras.<br />
Miséria. P.3. p.557.<br />
Misericórdia. P.2. p.297; p.316;<br />
p.328; p.356.<br />
Moci<strong>da</strong>de. P.1. p.116; p.120.H P.2.<br />
p.220; p.328; p.346.<br />
Moço. P.2. p.328. Vide verbo<br />
Moci<strong>da</strong>de.<br />
Moe<strong>da</strong>. Vide verbo Dinheiro.<br />
Monarca. Vide verbo Príncipe e<br />
verbo Rei.<br />
Monarquia. P.1. p.119.11 P.3. p.508.<br />
Montes. P.3. p.526.<br />
Morte. P.1. p.2161 P.2. p.254;<br />
p.292; p.303; p.310; p.360.H P.3.<br />
p.379; p.456; p.466; p.501; p.505.<br />
Mortos. Vide verbo Morte.<br />
Mosteiro. P.3. p.403.<br />
Mu<strong>da</strong>nça. P.1. p.118; p.152; p.159;<br />
p.167; 170;p.188;p.202.HP.2.<br />
p.270; p.297; p.338.H P.3. p.407;<br />
p.530; p.548.<br />
Mu<strong>do</strong>. P.1. P.189.H P.3. p.522.<br />
mais notáveis 571<br />
Mulheres. P.1. p.127; p.135; p.172;<br />
p.185; p.188; p.203.H P.2. p.240;<br />
p.252; p.253; p.260; p.268; p.275;<br />
p.277; p.363.H P.3. p.408; p.414;<br />
p.429; p.435; p.468; p.487.<br />
Multidão. Vide verbo Povo.<br />
Mun<strong>do</strong>. P.1. p.117; p.156; p.193;<br />
p.216.H P-2. p.273; p.311; p.319;<br />
p.334; p.361.11 P.3. p.383; p.419;<br />
p.514; p.539; p.554.<br />
Música. P.1. p.115; p.195; p.215.H<br />
P.2. p.336; p.345; p.351; p.356.H<br />
P.3. p.381; p.399; p.421;p.424;<br />
p.514; p.535; p.550.<br />
Nascimento. P.1. p.144; p.149;<br />
p.152.11 P.2. p.338; p.341.H P.3.<br />
p.487; p.493; p.502; p.506.<br />
Natural. P.2. p.221; p.259.<br />
Natureza. P.2. p.257. H P.3. p.391 ;<br />
p.493.<br />
Nau. P.3. p.255; p.472; p.490;<br />
p.498; p.507.<br />
Naufrágio. P.1. p.149; p.173.H P.3.<br />
p.508.<br />
Navegação. P.1. p.173.H P-2.<br />
p.247.11 P.3. p.383; p.452; p.470.<br />
Navegantes. P.1. p.173.Vide verbo<br />
Navegação.<br />
Nece<strong>da</strong>de. Vide verbo Ignorância.<br />
Necessi<strong>da</strong>de. P.2. p.259; p.268.H<br />
P.3. p.453; p.459; p.473.
572 índex <strong>da</strong>s cousas<br />
Néscios. Vide verbo Ignorância.<br />
Neutrali<strong>da</strong>de. P.3. p.462.<br />
Nobreza. P.2. p.339; p.341; p.362.H<br />
P.3. p.419. Vide verbo Fi<strong>da</strong>lguia.<br />
Noite. P.1. p.123; p.173.H P-2. p.23;<br />
p.254; p.262; p.271; p.374.H P.3.<br />
p.383; p.394; p.399; p.401; p.558.<br />
Nome. Vide verbo Fama.<br />
Novas. P.2. p.264; p.271.<br />
Novi<strong>da</strong>de.?.2. p.239; p.361 -H P.3.<br />
O<br />
p.417;p.515.<br />
Obediência. P.1. p.210.<br />
Obras. P.3. p.504; p.509.<br />
Observações. P.1. p.146.<br />
Ocasião. P.2. p.227; p.253; p.283.<br />
Ócio. P.3. p.495.<br />
Ódio. P.1. p.205.11 P.2. p.267.H P.3.<br />
p.446.<br />
Ofensa. P.1. p.201 ; p.203. Vide<br />
verbo Agravo.<br />
Olhos. P.1. p.128.11 P-2. p.236.11<br />
P.3. p.442; p.489; p.497; p.536.<br />
Vide verbo Lágrimas.<br />
Opinião. P.2. p.284.11 P.3. p.434.<br />
Oportuni<strong>da</strong>de. Vide verbo Ocasião.<br />
Oposição. P.1. p.187.<br />
Oração. P.2. p.311.<br />
Oráculos. P.1. p.151.<br />
Ora<strong>do</strong>r. P.1. p.135; p.142; p.215.<br />
Vide verbo Eloquência.<br />
Ouro. P.3. p.534.<br />
Ousadia. P.3. p.450. Vide verbo<br />
P<br />
Atrevimento.<br />
Pais. P.2. p.238; p.284.H P.3. p.391 ;<br />
p.395; p.402; p.414; p.461; p.481;<br />
p.488; p.506; p.521; p.532; p.538;<br />
p.542; p.559.<br />
Paixão. P.2. p.224; p.232; p.248.H<br />
P.3. p.483; p.485. Vide verbo Ira.<br />
Palma. P.2. p.340.<br />
Paraíso. Vide verbo Glória.<br />
Parciali<strong>da</strong>des. Vide verbo Ban<strong>do</strong>s.<br />
Parecer. Vide verbo Discurso.<br />
Pátria. P.1. p.136; p.184; p.194;<br />
p.215; p.216.11 P.2. p.284; p.319;<br />
p.336; p.356.11 P.3. p.383; p.462;<br />
p.516.<br />
Pavor. Vide verbo Temor.<br />
Paz. P.1. p.142.H P.2. p.328.11 P.3.<br />
p.495; p.516.<br />
Peca<strong>do</strong>r. P.2. p.312.<br />
Pejo. P.3. p.427; p.432.<br />
Pelicano. P.3. p.490.<br />
Pena. P.1. p.180; p.205.H P.2.<br />
p.224; p.305; p.331.H P.3. p.455;<br />
p.478; p.520; p.548. Vide verbo<br />
Queixas e verbo Sentimento.<br />
Penitência. P.2. p.368.<br />
Pequenos. P.3. p.489; p.557. Vide<br />
verbo Nascimento.<br />
Per<strong>da</strong>. P.3. p.550.
Perdão. P.2. p.303; p.316; p.329;<br />
p.347; p.357.<br />
Peregrinação. P.2. p.356.H P.3.<br />
p.383; p.408.<br />
Perigos. P.2. p.224; p.251 ; p.263;<br />
p.328; p.350; p.360; p.363.H P.3.<br />
p.409; p.452; p.479; p.496.<br />
Permanência. Vide verbo<br />
Perseverança.<br />
Perseguição. P.2. p.319.<br />
Perseverança. P.1. p.124; p.132.H<br />
P.2. P.335.HP.3. p.521.<br />
Persuasão. P.2. p.306.H P.3. p.410;<br />
p.506; p.543. Vide verbo<br />
Conselho.<br />
Pêsames. P.2. p.293; p.356.H P.3.<br />
p.502. Vide verbo Consolação.<br />
Pesar. P.2. p.364; p.366. Vide verbo<br />
Sentimento.<br />
Petição. P.2. p.268; p.315; p.325;<br />
P.327.H P.3. p.402; p.404; p.414;<br />
p.420.<br />
Pie<strong>da</strong>de. P.1. p.172.H P.2. p.316;<br />
p.329.H P.3. p.395; p.476; p.489;<br />
p.538; p.542. Vide verbo<br />
Compaixão.<br />
Pintores. P.1. p.127; p.176.H P.2.<br />
P.321.HP.3. p.400;p.424.<br />
Pintura. P.2. p.277; p.321.<br />
Planeta. Vide verbo Estrela.<br />
Pobre. P.1.p.138;p.155;p.161;<br />
p.180.11 P.2. p.229;p.314. Vide<br />
verbo Pobreza.<br />
mais notáveis 573<br />
Pobreza. P.1. p.157; p.180.H P.2.<br />
p.269; p.337; p.362.H P.3. p.385;<br />
p.473.<br />
Poder. P.1. p.132; p.203; p.205.H<br />
P.2. p.282; p.285; p.331; p.349.H<br />
P.3. p.527.<br />
Poderosos. P.1. p.138; p.205;<br />
p.210.11 P.2. p.273; p.276; p.289;<br />
p.314; p.325; p.331 ; p.337.H P.3.<br />
p.478; p.490; p.499.<br />
Poeta. P.1. p.132; p.135; p.157;<br />
p.177;p.201;p.217.<br />
Posse. P.3. p.467.<br />
Potências. Vide verbo Alma.<br />
Povo. P.1. p.201; p.204.H P.2.<br />
p.233; p.279; p.280.H P.3. p.533.<br />
Prática. P.1. p.210. Vide verbo<br />
Conversação e verbo Discurso.<br />
Preço. P.2. p.330.H P.3. p.526.<br />
Prémio. P.1. p.135; p.138; p.156.11<br />
P.2.p.281; p.329; p.341.HP.3.<br />
p.456; p.514.<br />
Presença. P.2. p.365.<br />
Prevenção. P.2. p.224; p.350.<br />
Primavera. P.1. p.115; p.185;<br />
p.214.11 P.3. p.381 ; p.468; p.511.<br />
Príncipe. P.1. p.125; p.132; p.136;<br />
p.140; p.166; p.171; p.203.H P-2.<br />
p.234; p.284; p.289; p.307; p.316;<br />
p.325; p.328; p.331-H P.3. p.414;<br />
p.424; p.488; p.507; p.522; p.530;<br />
p.543; p.544.<br />
Princípio. P.2. p.257.
574 índex <strong>da</strong>s cousas<br />
Prisão. P.3. p.540. Vide verbo<br />
Cativeiro.<br />
Prisioneiro. P.1. p.159; p.162;<br />
P.171.HP.2. P.315.HP.3. P-540.<br />
Vide verbo Cativeiro e verbo<br />
Liber<strong>da</strong>de.<br />
Priva<strong>do</strong>. Vide verbo Vali<strong>do</strong>.<br />
Privança. P.1. p.139.H P.2. p.359.H<br />
P.3. p.522; p.530; p.550. Vide<br />
verbo Vali<strong>do</strong>.<br />
Pronóstico. P.1. p.145; p.148.H P.2.<br />
p.263.<br />
Prosperi<strong>da</strong>de. P.1. p.162; p.170.<br />
Vide verbo Fortuna.<br />
Providência Divina. P.1. p.151 ;<br />
p.156;p.159;p.161;p.164;<br />
p.207.H P.2. p.293. Vide verbo<br />
Deus.<br />
Prudência. P.1. p.116; p.210.H P-2.<br />
Q<br />
p.252; p.296; p.328; p.341;<br />
P.346.H P.3. p.414; p.447; p.453;<br />
p.484.<br />
Que<strong>da</strong>.<br />
Queixas. P.1. p.137; p.143; p.161;<br />
p.178;p.189;p.198.HP.2. p.219;<br />
p.255; p.231; p.241; p.360.H P.3.<br />
p.406; p.425; p.444; p.473; p.545.<br />
Queixoso. Vide verbo Queixas.<br />
Quinta. P.2. p.223; p.235. Vide<br />
verbo Primavera.<br />
R<br />
Rainha. P.1. p.172.<br />
Raios. P.3. p.527.<br />
Rapto. Vide verbo Roubo.<br />
Razão. P.3. p.483; p.486.<br />
Receio. P.2. p.243.H P.3. p.452;<br />
p.457; p.514. Vide verbo Temor.<br />
Recreio. P.2. p.224.<br />
Refúgio. P.2. p.259.<br />
Rei. P.1. p.134; p.159; p.162; p.170;<br />
p.215.H P.2. p.234; p.237; p.312.<br />
Vide verbo Príncipe.<br />
Reino. P.1. p.119; p.167. Vide verbo<br />
Príncipe e verbo Rei.<br />
Relação. P.2. p.269; p.275; p.300;<br />
p.306.H P.3. p.439; p.454; p.521.<br />
Religiosa. P.3. p.464; p.503.<br />
Religioso. P.3. p.517.<br />
Relógio. P.3. p.410; p.412; p.448;<br />
p.497.<br />
Remédio. P.1. p.117.^1 P.2. p.224;<br />
p.226; p.259.11 P.3. p.415; p.543.<br />
Remuneração. P.3. p.456. Vide<br />
verbo Prémio.<br />
República. P.1. p.118; p.138; p.176.<br />
H P.3. p.549.<br />
Reputação. P.2. p.281.<br />
Resistência. P.3. p.455.<br />
Respeito. P.1. p.210.H P.3. p.486;<br />
p.533. Vide verbo Valia.<br />
Resposta. P.1. p.190.H P.2. p.282;<br />
p.286; p.316; p.330; p.338; p.341;<br />
p.371. Vide verbo Discurso.
Retórica. Vide verbo Eloquência.<br />
Retrato. P.1.p.127; p.176; p.185.H<br />
P.2. p.221; p.244; p.298.H P.3.<br />
p.400; p.522.<br />
Revelação.<br />
Ricos. P.2. p.290; p.315.jl P.3.<br />
p.499. Vide verbo Riqueza.<br />
Rigor. P.1.p.175.HP.2. p.238;<br />
P-317.HP.3. p.445.<br />
Rios. P.1. p.1981 P.2. p.288; p.324;<br />
p.325.11 P.3. p.381; p.389; p.551.<br />
Riqueza. P.1. p.156.H P.2. p.243;<br />
p.249; p.274; p.276; p.289; p.337;<br />
P.362.H P.3. p.387; p.393; p.434;<br />
p.499; p.522.<br />
Rogos. P.1. p.180.11 P.2. p.325.H<br />
P.3. p.414.<br />
Rosa. P.1. p.207.1] P.2. p.361.H P.3.<br />
p.551. Vide verbo Flores e verbo<br />
Primavera.<br />
Rosto. P.1. p.140.11 P.2. p.307;<br />
P.371.H P.3. p.412;p.523.<br />
Roubo. P.2. p.224; p.236; p.271 ;<br />
p.315; P.327.T1 P.3. p.425; p.446;<br />
p.481.<br />
Ruína. P.1. p.132.<br />
Rumor. P.1. p.123.H P.2. p.233.<br />
S<br />
Vide verbo Fama.<br />
Sabe<strong>do</strong>ria. P.1. p.116; p.136; p.141;<br />
p.142; p.164; p.217.H P.2. p.339;<br />
P.340.HP.3. p.388;p.513.<br />
mais notáveis 575<br />
Sábios. P.1. p.136; p.142; p.153;<br />
p.156;p.161; p.164; p.173;<br />
p.201.11 P.2. p.319; p.362.H P.3.<br />
p.383; p.426.<br />
Sangue. Vide verbo Fi<strong>da</strong>lguia e<br />
verbo Nobreza.<br />
Santos. P.3. p.512.<br />
Satisfações. Vide verbo Queixas.<br />
Sau<strong>da</strong>des. P.1. p.174.H P.2. p.225;<br />
p.272; p.305.H P.3. p.493; p.497.<br />
p.498.<br />
Secretário. P.3. p.522.<br />
Sede. P.3. p.385.<br />
Segre<strong>do</strong>. P.3. p.522.<br />
Segurança. P.1. p.159; p.161;<br />
p.172; p.204.H P.2. p.282; p.285.<br />
Seguro. P.3. p.409.<br />
Sem-razão. P.1. p.189.<br />
Senhor. P.1.p.207.<br />
Sentença. P.2. p.284; p.311.<br />
Sentimento. P.1. p.198; p.206.H P.2.<br />
p.224; p.235; p.258.H P.3. p.460;<br />
p.464; p.465.<br />
Sentinela. P.3. p.419.<br />
Sepulcro. P.1. p.135; p.216.H P.3.<br />
p.474; p.479; p.503; p.507.<br />
Ser. P.3. p.506.<br />
Serviços. P.1. p.137.H P.3. p.430.<br />
Servo. P.1. p.207.H P.2. p.297.<br />
Seta. P.3. p.496.<br />
Severi<strong>da</strong>de. P.1. p.176.H P.3. p.489.<br />
Silêncio. P.1. p.140; p. 189.^1 P.3.<br />
p.537.<br />
Simpatia. P.3. p.393; p.551.
576 Index <strong>da</strong>s cousas<br />
Soberba. P.3. p.438.<br />
Sobressalto. P.2. p.225.<br />
Sofrimento. P.3. p.447.<br />
Sol. Seu nascimento. P.1. p.115;<br />
p.174.11 P.2. p.267; p.319; p.343.H<br />
P.3. p.384; p.395; p.547.<br />
Seu maior auge em o meio-dia.<br />
P.1. p.195;H P.2. P.287.HP.3.<br />
p.384.<br />
Seu o<strong>caso</strong>. P.1. p.198; p.211;<br />
p.214; p.2161 P.2. p.229; p.253;<br />
P.257.U P.3. p.391; p.419; p.530.<br />
Várias considerações e descrições<br />
<strong>do</strong> sol. P.1. p.148; p.206.H P.2.<br />
p.284; p.308; p.321; p.324;<br />
P.375.H P.3. p.381; p.389; p.402;<br />
p.523; p.551.<br />
Sol<strong>da</strong><strong>do</strong>. P.3. p.476; p.501. Vide<br />
verbo Capitão.<br />
Solidão. Vide verbo Ermo.<br />
Sono. P.3. p.447;p.519.<br />
Subtileza. Vide verbo Corpo.<br />
Sucessos. P.1. p.148; p.165.H P.2.<br />
p.224.<br />
Superiori<strong>da</strong>de. P.1. p.121.<br />
Suspeitas. P.1. p.182.<br />
T<br />
Temeri<strong>da</strong>de. P.2. p.271 ; p.328.<br />
Temor. P.1. p.123; p.132; p.167;<br />
p.173; p.205; p.208; p.210.H P.2.<br />
p.243; p.265; p.303; p.307;<br />
p.360.H P.3. p.450; p.457; p.478;<br />
p.513; p.525.<br />
Tempestade. P.1. p.173.H P.3.<br />
p.472. Vide verbo Naufrágio.<br />
Templo. P.1. p.116; p.121; p.161;<br />
p.209; p.212; p.213.D P-2. p.259;<br />
p.274; p.370.H P.3. p.382; p.438;<br />
p.467;p.518; p.538; p.555.<br />
Tempo. P.1. p.116; p.118; p.141;<br />
p.148; p.180.11 P.2. p.220; p.274;<br />
p.310; p.349; p.364.H P.3. p.382;<br />
p.387;p.407;p.431;p.554.<br />
Tentação. P.1. p.153.<br />
Terra. P.1. p.118.H P.3. p.473;<br />
p.551.<br />
Terremoto. P.1. p.150.<br />
Tiranos. P.2. p.373.H P.3. p.533.<br />
Tormenta. Vide verbo Naufrágio e<br />
verbo Tempestade.<br />
Trabalho. P.1. p.194.H P.2. p.297;<br />
p.319; p.337; p.362.H P.3. p.382.<br />
Traje. P.1. p.200.<br />
Tréguas. P.3. p.557.<br />
Traição. P.2. p.285. H P.3. p.419.<br />
Tristeza. P.1. p.117; p.178; p.179;<br />
p.207; p.215.H P.2. p.240; p.249;<br />
p.271; p.291;p.304;p.306;<br />
p.358.H P.3. p.407; p.447; p.460;<br />
p.473; p.509.<br />
Triunfo. P.2. p.248; p.307.H P.3.<br />
p.455.
União. P.3. p.510.<br />
Universi<strong>da</strong>de. P.1. p.126; p.135;<br />
p.164; p.184.11 P.2. p.370.H P.3.<br />
p.457; p.532.<br />
Urbani<strong>da</strong>de política. Vide verbo<br />
V<br />
Cortesia.<br />
Vagar. P.1. p. 181.H P.2. p.246;<br />
p.342; p.345; p.346; p.360; p.364.<br />
Valentia. P.3. p.435. Vide verbo<br />
Valor.<br />
l/a//"a. P.1. p.137. Vide verbo<br />
Valimento.<br />
Vali<strong>do</strong>. P.1. p.138; p. 139.H P.2.<br />
P.359.H P.3. p.522; p.526; p.530;<br />
p.548. Vide verbo Privança e<br />
verbo Valimento.<br />
Valimento. P.2. p.274; p.341 .H P.3.<br />
p.522; p.526; p.531; p.599.<br />
Valor. P.1. p.122; p.124; p.168;<br />
p.174; p.204.H P.2. p.222; p.248;<br />
p.275; p.283; p.307.H P.3. p.435;<br />
p.441; p.447; p.455; p.470; p.501.<br />
Vide verbo Preço.<br />
Varão. P.1. p.179.H P.2. p.221.<br />
Varie<strong>da</strong>de. Vide verbo Mu<strong>da</strong>nça.<br />
Vassalo. P.1. p.133; p.216.<br />
Vaticínio. Vide verbo Pronóstico.<br />
Velhice. P.1. p.116.H P.2. p.346.H<br />
P.3. p.382; p.507.<br />
Velho. Vide verbo Velhice.<br />
mais notáveis 577<br />
Vence<strong>do</strong>r. P.3. p.457; p.503. Vide<br />
verbo Vitória.<br />
Veneração. P.1. p.210. Vide verbo<br />
Respeito.<br />
Ventura. P.1. p.168; p.169; p.203.H<br />
P.2. p.246; p.264; p.271; p.288;<br />
p.317; p.337; p.348-H P.3. p.388;<br />
p.426; p.459; p.479; p.550.<br />
Ver<strong>da</strong>de. P.3. p.549.<br />
Vergonha. Vide verbo Pejo.<br />
Via Láctea. P.3. p.477.<br />
Vício. P.1. p.156; p.206; p.217.H<br />
P.2. p.301 .H P.3. p.448. Vide<br />
verbo Pátria.<br />
Vi<strong>da</strong>. P.1. p.117; p.139; p.148;<br />
p.162; p.206; p.214.H P.2. p.271;<br />
p.282; p.294; p.311 ; p.355.H P.3.<br />
p.379; p.459; p.474; p.485; p.502.<br />
Vingança. P.1. p.131; p.194; p.204.H<br />
P.2. p.232; p.272; p.283; p.303;<br />
p.346; p.359.H P.3. p.435; p.478;<br />
p.487.<br />
Violência. P.2. p.248; p.259; p.270;<br />
p.276; p.283.H P.3. p.515; p.544.<br />
Virtude. P.1. p.156; p.164; p.217.H<br />
P.2. p.281;p.297;p.316;p.328;<br />
P.335.H P.3. p.383; p.427; p.456.<br />
Visão Beata. P.3. p.512.<br />
Vista. P.1. p.116. HP.3. p.442;<br />
p.480;p.511.<br />
Vitória. P.1. p.165.H P-2. p.248;<br />
p.303; p.316; p.362.H P.3. p.455.<br />
Vitupério. P.2. p.263. Vide verbo<br />
Afronta.
578 Index <strong>da</strong>s cousas<br />
Vontade. P.1. p.129; p.147.H P.2. p.486; p.504; p.509; p.513; p.530;<br />
p.223.H P-3. p.388; p.396; p.422; p.551.<br />
LAUS DEO.<br />
Vulgo. Vide verbo Povo.
ALIVIO DE TRISTES<br />
E<br />
CONSOLAÇÃO DE QUEIXOSOS<br />
QUARTA, QUINTA E SEXTA PARTE<br />
COMPOSTO<br />
Pelo P. MATEUS RIBEIRO<br />
Teólogo Prega<strong>do</strong>r deste Arcebispa<strong>do</strong> e natural de Lisboa<br />
OFERECIDO<br />
À VIRGEM SANTÍSSIMA<br />
DO MONTE DO CARMO<br />
SEGUNDO VOLUME<br />
LISBOA,<br />
Na oficina MIGUEL MANESCAL,<br />
Impressor <strong>do</strong> Santo Ofício.<br />
À custa de Manuel Lopes Ferreira e António Correia <strong>da</strong> Fonseca,<br />
Merca<strong>do</strong>res de Livros na Rua Nova,<br />
Com to<strong>da</strong>s as licenças necessárias e Privilégio Real. Ano de 1688.
Alívio de tristes e consolação de queixosos 581<br />
INDEX<br />
DOS CAPÍTULOS QUE SE CONTEM NESTE<br />
SEGUNDO VOLUME.<br />
IV. PARTE<br />
Cap. I. Do que sucedeu aos romeiros estan<strong>do</strong> no hospital, p. 587.<br />
Cap. II. Em que o cativo dá princípio à relação de sua vi<strong>da</strong>. p. 591.<br />
Cap. III. Como Hortênsio veio a conhecer quem era Aurora e <strong>do</strong> que lhe<br />
sucedeu, p. 597.<br />
Cap. IV. Em que Hortênsio prossegue o que lhe sucedeu com Aurora, p. 604.<br />
Cap. V. Como Aurora mostrou mu<strong>da</strong>r-se <strong>do</strong> intento que tinha e <strong>do</strong> que<br />
Hortênsio sobre isso fez. p. 611.<br />
Cap. VI. Da prática que Hortênsio teve com Aurora e <strong>do</strong> mais que sucedeu.<br />
p.618.<br />
Cap. VII. Do que Aurora passou na noite de sua ausência, p. 626.<br />
Cap. VIII. Em que se refere quem era este sol<strong>da</strong><strong>do</strong> e <strong>do</strong> risco com que se viu<br />
Aurora, p. 631.<br />
Cap. IX. Do que passou Hortênsio com as novas <strong>do</strong> casamento de Aurora e<br />
como foi solto <strong>da</strong> prisão, p. 638<br />
Cap. X. De como Hortênsio foi solto <strong>da</strong> prisão e como chegou a Taranto sua<br />
pátria, p. 650.<br />
Cap. XI. Dos motivos que Zelin<strong>da</strong> teve para querer ausentar-se de sua casa.<br />
p. 658.
582 Padre Mateus Ribeiro<br />
Cap. XII. Do que mais passou sobre o casamento de Zelin<strong>da</strong> e como ela se<br />
deliberou a fugir de casa com Hortênsio. p. 665.<br />
Cap. XIII. De como Hortênsio dispôs a fugi<strong>da</strong> de Zelin<strong>da</strong>, até se embarcar em<br />
uma nau veneziana, p. 671.<br />
Cap. XIV. Da navegação que fez Hortênsio e como desembarcou em Tarante<br />
p. 674.<br />
Cap. XV. Do encontro que tiveram na Casa <strong>do</strong> Loreto os nossos romeiros<br />
com um forca<strong>do</strong>, p. 679.<br />
Cap. XVI. Do encontro que teve o casamento de Estela e como Arnal<strong>do</strong> com<br />
sua família se saiu de Perúsia. p. 685.<br />
Cap. XVII. Como tornámos outra vez para Perúsia e como enviuvan<strong>do</strong><br />
Salviano de Finar<strong>da</strong> <strong>caso</strong>u com Estela, e <strong>do</strong> que mais passou, p. 695.<br />
Cap. XVIII. Do que Polinar<strong>do</strong> refere que lhe sucedeu em Perúsia e como se<br />
ausentou para Pádua, e <strong>do</strong> que lá passou, p. 699.<br />
Cap. XIX. Do que sucedeu em Pádua a Luís Orsino sobre a morte <strong>da</strong><br />
duquesa Vitória, p. 704.<br />
Cap. XX. Do que sucedeu até Polinar<strong>do</strong> com to<strong>do</strong>s os companheiros serem<br />
presos e <strong>da</strong> justiça que se fez. p. 714.<br />
Cap. XXI. Da prática que Felisberto teve com Polinar<strong>do</strong> e como ele se partiu<br />
para Taranto com Hortênsio. p. 719.<br />
Cap. XXII. Do encontro que Felisberto e Dionísio, seu companheiro, tiveram<br />
antes de chegarem ao sítio <strong>da</strong> sua ermi<strong>da</strong>, p. 724.<br />
Cap. último. Da resposta que deu Felisberto a Aureliano e como se partiram<br />
em sua companhia, p. 733.<br />
V. PARTE<br />
Cap. I. Do encontro e prática que teve o Ermitão Felisberto junto <strong>da</strong> sua<br />
ermi<strong>da</strong> com um passageiro, p. 739.
Alívio de tristes e consolação de queixosos 583<br />
Cap. II. Em que o passageiro dá princípio à narração de sua vi<strong>da</strong>. p. 746.<br />
Cap. III. Da prática que teve Antíoco com Feliciano e o que dela resultou, p.<br />
752.<br />
Cap. IV. Como estan<strong>do</strong> ajusta<strong>do</strong> o casamento de Florisela com Silvério, foi<br />
rouba<strong>da</strong> por Feliciano, p. 760.<br />
Cap. V. Como Florisela foi restituí<strong>da</strong> a sua mãe e o que nisso passou, p. 768.<br />
Cap. VI. Do que sucedeu a Lisar<strong>do</strong> sain<strong>do</strong> de Bolonha para vir para Cesena.<br />
p. 776.<br />
Cap. VII. Em que se prosseguem os sucessos de Lívia. p. 783.<br />
Cap. VIII. Da prática que Mário teve com Lisar<strong>do</strong> e <strong>da</strong> fugi<strong>da</strong> de Lívia. p. 792.<br />
Cap. IX. Do que sucedeu a Lívia na fugi<strong>da</strong>, p. 803.<br />
Cap. X. Da prática que Cláudio teve com Roberto e determinação que sobre<br />
Lívia se tomou. p. 810.<br />
Cap. XI. Do que se passou sobre o casamento de Florisela e como veio a<br />
casar com Feliciano, p. 817.<br />
Cap. XII. Em que se prossegue o que passou no casamento de Florisela e a<br />
notícia que houve de Lívia. p. 828.<br />
Cap. XIII. Como Lisar<strong>do</strong> conheceu que Jacinta era Lívia, a esposa de<br />
Roberto, e <strong>do</strong> que nisso sucedeu e se ajustou o casamento de Feliciano<br />
com Florisela. p. 840.<br />
Cap. XIV. Em que o ban<strong>do</strong>leiro Constantino começa a referir seus sucessos.<br />
p. 853.<br />
Cap. XV. Em que Constantino prossegue o que passou com Camilo, p. 863.<br />
Cap. XVI. Como Jacinta e Doroteia se partiram para Cesena e <strong>do</strong> que se<br />
passou até os desposórios de Florisela com Feliciano, p. 871.<br />
Cap. XVII. Da prática de Valério com Silvério Albertino e casamento de<br />
Feliciano com Florisela. p. 885.
584 Padre Mateus Ribeiro<br />
VI. PARTE<br />
Cap. I. Em que Lisar<strong>do</strong> continua os discursos de sua história, p. 897.<br />
Cap. II. Em que Lisar<strong>do</strong> prossegue a história de Fenisa. p. 903.<br />
Cap. III. Em que se dá princípio à ver<strong>da</strong>deira história de Manfre<strong>do</strong> e de sua<br />
esposa Eurides. p. 908.<br />
Cap. IV. Em que Adriano continua o que sucedeu a Manfre<strong>do</strong> com o<br />
empera<strong>do</strong>r Constâncio, p. 918.<br />
Cap. V. Da prática que Raimun<strong>do</strong> teve com Fenisa e <strong>do</strong> que dela resultou, p.<br />
930.<br />
Cap. VI. Em que se refere o que Raimun<strong>do</strong> fez quan<strong>do</strong> soube <strong>da</strong> ausência de<br />
Fenisa. p. 936.<br />
Cap. VII. Do que se seguiu <strong>da</strong> prática de Bernardino, e como Raimun<strong>do</strong> se<br />
tornou para Módena e Bernardino se partiu para Bolonha, e <strong>do</strong> que lhe<br />
sucedeu, p. 949.<br />
Cap. VIII. De como Raimun<strong>do</strong> veio a Bolonha sobre o casamento de Fenisa e<br />
<strong>do</strong> que sucedeu, p. 956.<br />
Cap. IX. Em que Lisar<strong>do</strong> prossegue os sucessos de Raimun<strong>do</strong> sobre o<br />
casamento de Fenisa e como se tornou para Módena. p. 969.<br />
Cap. X. Do que passou Justiniano sobre o casamento de Raimun<strong>do</strong> com<br />
Fenisa e como não teve efeito, p. 980.<br />
Cap. XI. Do que passou sobre o casamento de Raimun<strong>do</strong>, p. 985.<br />
Cap. XII. Da resposta que Justiniano deu a Raimun<strong>do</strong> e <strong>do</strong> que dela resultou.<br />
p. 997.<br />
Cap. XIII. Do que sucedeu a Lisar<strong>do</strong> no caminho de Bolonha, p. 1006.<br />
Cap. XIV. Em que Lisar<strong>do</strong> prossegue seus sucessos, p. 1013.<br />
Cap. XV. Da prática que Lisar<strong>do</strong> teve com Carlos e seus pais e como partiu<br />
para Cesena. p. 1019.<br />
Cap. XVI. Em que Lisar<strong>do</strong> refere o que lhe sucedeu no caminho de Cesena.<br />
p. 1027.
Alívio de tristes e consolação de queixosos 585<br />
Cap. XVII. Em que Lisar<strong>do</strong> refere os conselhos que deu a Hortênsio e como<br />
ambos se partiram para Cesena. p. 1032.<br />
Cap. XVIII. Como Frederico Manfre<strong>do</strong> com sua casa e família foram tira<strong>do</strong>s<br />
de Bolonha por Raimun<strong>do</strong> e trazi<strong>do</strong>s à sua quinta de Bom <strong>Porto</strong>, e <strong>do</strong> que<br />
nisso passou, p. 1043.<br />
Cap. XIX. Como se divulgou em Bolonha a fugi<strong>da</strong> de Carlos e seu pai. p.<br />
1053.<br />
Cap. XX. De como Lisar<strong>do</strong> se partiu com seus amigos para a quinta de<br />
Frederico e <strong>do</strong> que nela passou, p. 1061.<br />
Cap. XXI. Da resolução de esta<strong>do</strong> que escolheu Lisar<strong>do</strong> e como se despediu<br />
<strong>do</strong>s ermitães, p. 1068.
586 Padre Mateus Ribeiro
Cap. I.<br />
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 587<br />
ALIVIO DE TRISTES<br />
E<br />
CONSOLAÇÃO DE QUEIXOSOS<br />
IV. PARTE<br />
Do que sucedeu aos romeiros estan<strong>do</strong> no hospital<br />
Deixámos ao Ermitão Felisberto e ao Peregrino Dionísio, seu<br />
companheiro, descansan<strong>do</strong> <strong>da</strong> dilata<strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> no sumptuoso hospital <strong>do</strong><br />
Loreto, que, como disse o Séneca 537 , não há caminho sem termo em que pare,<br />
nem peregrinação sem hospício em que descanse. Prepararam-se para<br />
confessar e comungar ao outro dia: louvável costume <strong>do</strong>s que vão visitar<br />
aquele angélico santuário, entrarem nele com as consciências puras; pois vão<br />
a entrar na própria mora<strong>da</strong> em que nasceu o exemplar <strong>da</strong> maior pureza, a<br />
Virgem Santíssima Senhora Nossa, e em que viveu tantos anos o Santo José<br />
em companhia <strong>do</strong> Divino Verbo encarna<strong>do</strong>, que neste angélico <strong>do</strong>micílio foi<br />
concebi<strong>do</strong>. É a devoção, como a escreve S. Bernar<strong>do</strong>, um espiritual unguento,<br />
poderoso a abran<strong>da</strong>r e suavizar to<strong>da</strong>s as <strong>do</strong>res e sentimentos <strong>da</strong> alma; ou um<br />
fervor <strong>do</strong> amor, como a descreve Hugo, que com dificul<strong>da</strong>de se oculta no<br />
interior <strong>do</strong> coração, para não manifestar-se nos exteriores <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s.<br />
537 Ep. 78.
588 Padre Mateus Ribeiro<br />
Desta cordial devoção, que, como diz Cassio<strong>do</strong>ro , é mais útil nos<br />
menos sabi<strong>do</strong>s que nos <strong>do</strong>utos a sabe<strong>do</strong>ria com faltas dela, entraram os<br />
nossos romeiros tão acompanha<strong>do</strong>s naquele paraíso <strong>da</strong> terra, que só com<br />
razão se podia intitular na terra paraíso, que brotaram em copiosas lágrimas as<br />
admirações <strong>do</strong> que os olhos viam e os discursos contemplavam. Eram tantas<br />
as maravilhas que se viam neste abrevia<strong>do</strong> Céu, pequena esfera <strong>do</strong> maior<br />
planeta, epiloga<strong>do</strong> sólio <strong>da</strong> majestade, venturoso <strong>do</strong>micílio de Deus na terra,<br />
inveja<strong>da</strong> habitação <strong>da</strong> mesma Glória, quan<strong>do</strong> nela o cria<strong>do</strong>r dela vivia, que<br />
podiam os desejos afectuosos nela sempre procurar entrar, mas nunca<br />
pretenderem dela sair; porque na entra<strong>da</strong> ia o desejo acompanha<strong>do</strong> <strong>do</strong> gosto,<br />
mas na saí<strong>da</strong> ficava o gosto violenta<strong>do</strong> <strong>da</strong>s sau<strong>da</strong>des. E a diferença grande<br />
que vai <strong>do</strong> gosto à violência, vai <strong>da</strong> entra<strong>da</strong> à saí<strong>da</strong>.<br />
Não há nos contentamentos desta vi<strong>da</strong> perseverança segura. Umas<br />
vezes se reveste a terra de flores, outras de espinhos; ao dia alegre sucede a<br />
noite melancólica e triste; à gala <strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de, a moléstia <strong>da</strong> velhice. Donde<br />
com razão disse Cícero que nem há no mun<strong>do</strong> árvore que sempre esteja<br />
flori<strong>da</strong>, nem felici<strong>da</strong>de que por muito tempo dure. An<strong>da</strong> sempre o tempo em<br />
perpétua mu<strong>da</strong>nça; e assim em breve espaço deixa decrépito o que se<br />
considerava mais firme e cadáver despoja<strong>do</strong> o que se avaliava mais vistoso.<br />
Assi saíram os nossos romeiros <strong>da</strong>quele angélico santuário, tão cheios de<br />
sau<strong>da</strong>des como de lágrimas, desejan<strong>do</strong> (se possível lhes fora) jamais dele<br />
saírem, antes até às últimas despedi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> nele perseverarem. Porque a<br />
morte em tal lugar muito tinha de vi<strong>da</strong>; pois lugar em que se criou a mesma<br />
vi<strong>da</strong>, parece que se isentava <strong>do</strong>s foros rigorosos <strong>da</strong> morte, perden<strong>do</strong> esta<br />
jurisdição que tinha sobre os tributos <strong>da</strong> humana vi<strong>da</strong>.<br />
Retiraram-se ao hospital como a seu próprio <strong>do</strong>micílio; que sempre foi<br />
a hospitali<strong>da</strong>de o abrigo e amparo próprio <strong>do</strong>s peregrinos. Donde uma e muitas<br />
vezes tornaram sau<strong>do</strong>sos a repetir com a vista, o que sempre traziam tão<br />
estampa<strong>do</strong> nas memórias como presente nos corações; parecen<strong>do</strong> seus<br />
desejos hidrópicos em verem o que quanto mais viam, mais desejavam. Eram<br />
tantas as admirações que ca<strong>da</strong> hora se descobriam e tantos os mistérios que<br />
neste novo paraíso contemplavam que <strong>da</strong> sorte que os navegantes <strong>do</strong> oceano<br />
Cassiod., in Collect. Joan.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 589<br />
mar, por muitos golfos que naveguem e por muitas terras que descubram,<br />
sempre lhes ficam incógnitos mares que navegar e novos climas que descobrir,<br />
sen<strong>do</strong> os paramos procelosos que navegam, dilata<strong>da</strong>s distâncias para o que<br />
para surcarem lhes falta. Assi este milagroso santuário, admiração <strong>da</strong> Europa e<br />
maravilha <strong>do</strong> mu<strong>do</strong>, oceano em que param os desejos e <strong>do</strong>nde como rios de<br />
novo nascem os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, delícias quan<strong>do</strong> se logra e sau<strong>da</strong>des quan<strong>do</strong> se<br />
deixa, sempre admirava quan<strong>do</strong> se via e aumentava os sau<strong>do</strong>sos afectos<br />
quan<strong>do</strong> se deixava.<br />
Passa<strong>do</strong>s eram três dias <strong>da</strong> sua devota novena que à Virgem<br />
Santíssima <strong>do</strong> Loreto faziam, quan<strong>do</strong> se principiou na ci<strong>da</strong>de de Recanate,<br />
distante para o mar uma légua <strong>do</strong> Loreto, aquela célebre feira que se costuma<br />
fazer to<strong>do</strong>s os anos e dura por espaço de alguns dias, e a que de quasi to<strong>da</strong><br />
Europa concorrem ricos merca<strong>do</strong>res de diversos reinos e províncias a vender e<br />
trocar suas fazen<strong>da</strong>s. Que, como disse Homero 539 , é o comércio empenho<br />
cabal <strong>da</strong> mercancia. Era nesta ocasião tão grande o concurso <strong>da</strong> gente que ao<br />
Loreto vinha que os caminhos e estra<strong>da</strong>s de Recanate sempre estavam<br />
notavelmente frequenta<strong>da</strong>s de passageiros e as casas to<strong>da</strong>s <strong>da</strong> grande<br />
habitação <strong>do</strong> Loreto tão ocupa<strong>da</strong>s de hóspedes que não havia lugar, por<br />
pequeno que fosse, em que não estivessem muitos hóspedes juntos.<br />
Avizinhava-se a noite disfarça<strong>da</strong> nos crepúsculos <strong>da</strong> tarde, que como<br />
aborreci<strong>da</strong> <strong>do</strong>s que a consideram tão vesti<strong>da</strong> de luto e tão melancólica no<br />
parecer, parece se não atreve a vir senão nos crepúsculos disfarça<strong>da</strong>. Já os<br />
raios <strong>do</strong> sol de to<strong>do</strong> estavam recolhi<strong>do</strong>s, retiran<strong>do</strong>-se de enfraqueci<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong><br />
poderoso o breve termo de um dia para mostrar decrépitos os resplan<strong>do</strong>res,<br />
que se ao meio-dia feriam, agora, debilita<strong>do</strong>s no ferir e no luzir, se retiraram. Já<br />
os campos se mostravam sombrios, porque as ausências <strong>do</strong> sol lhes restituía<br />
as sombras de que seus resplan<strong>do</strong>res os despojaram. Recolhiam-se os<br />
rebanhos aos apriscos, feriavam os jornaleiros de seu repeti<strong>do</strong> trabalho,<br />
queriam <strong>da</strong>r assalto as estrelas à retaguar<strong>da</strong> <strong>da</strong>s luzes, se bem tão receosas<br />
que apenas começavam a parecer, quan<strong>do</strong> acobar<strong>da</strong><strong>da</strong>s se escondiam de<br />
luzir.<br />
Horn., Illiad. lib. 7.
590 Padre Mateus Ribeiro<br />
A este tempo em que já as portas <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong> templo estavam<br />
fecha<strong>da</strong>s, estavam os nossos romeiros assenta<strong>do</strong>s à entra<strong>da</strong> <strong>do</strong> hospital,<br />
gozan<strong>do</strong> o fresco <strong>da</strong> viração e a vista <strong>do</strong> grande concurso de gente que ao<br />
Loreto vinha, quan<strong>do</strong> chegou um mancebo em traje de cativo e, com muita<br />
cortesia, lhes perguntou se haveria alguma comodi<strong>da</strong>de aonde pudesse passar<br />
a noite, pois chegara tão tarde que estavam já fecha<strong>da</strong>s as portas <strong>do</strong> templo,<br />
para onde vinha em romaria.<br />
- O hospício (disse o Ermitão Felisberto) não é fácil, por estarem<br />
ocupa<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as casas com a muita gente que <strong>da</strong> feira de Recanate tem<br />
concorri<strong>do</strong>; nós estamos hospe<strong>da</strong><strong>do</strong>s neste hospital, se fordes servi<strong>do</strong> de vos<br />
agasalhardes no quarto em que nós assistimos, achareis em nós a vontade,<br />
que é o melhor hospício de quem pouco pode.<br />
Cortês lhes rendeu o cativo as graças, aceitan<strong>do</strong> o favor que lhes<br />
faziam, e entran<strong>do</strong> com ele no hospital, o convi<strong>da</strong>ram liberalmente com a ceia<br />
que prepara<strong>da</strong> tinham; que a cari<strong>da</strong>de com que a ofereciam, fez que pudesse<br />
satisfazer a to<strong>do</strong>s. Acaba<strong>da</strong> a ceia, a que o cativo se mostrou discretamente<br />
agradeci<strong>do</strong>, evidente indício de sujeito bem cria<strong>do</strong>, pois, como disse<br />
Ausónio 540 , ingratas graças são as vagarosas e duplica<strong>do</strong>s os agradecimentos<br />
apressa<strong>do</strong>s. Conheceu o cativo os desejos que seus hóspedes teriam de terem<br />
notícia <strong>do</strong>s perío<strong>do</strong>s de sua vi<strong>da</strong>; que conforme ao hábito de cativeiro que<br />
trazia, prometiam serem peregrinos; queren<strong>do</strong> satisfazer ao desejo, antes de<br />
ser para isso roga<strong>do</strong>, que é discreto mo<strong>do</strong> de obrigar, poupar as petições a<br />
quem se há-de conceder o despacho delas, lhes disse assim:<br />
- Porque conheço, senhores, que o traje em que me vedes vos incitará<br />
o desejo de saberdes quem sou e os progressos vários de minha vi<strong>da</strong>, tão<br />
vária em tu<strong>do</strong> como minha fortuna tem si<strong>do</strong> desde o princípio de minha vi<strong>da</strong>,<br />
até esta hora em que me vedes, quero referir-vos a história de minha<br />
peregrinação.<br />
Mui agradeci<strong>do</strong>s se lhe mostraram os romeiros <strong>do</strong> favor que lhes fazia,<br />
e ele, satisfeito <strong>da</strong> vontade que mostravam e <strong>da</strong> atenção com que o ouviam,<br />
disse assim:<br />
Auson., In Epigr.
Cap. II.<br />
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 591<br />
Em que o cativo dá princípio à relação de sua vi<strong>da</strong><br />
- Meu nome é Hortênsio, minha pátria a insigne ci<strong>da</strong>de de Taranto,<br />
situa<strong>da</strong> junto às inquietas on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mar Mediterrâneo, <strong>da</strong> qual recebeu o nome<br />
o grande golfo que no mun<strong>do</strong> é igualmente nomea<strong>do</strong> como <strong>do</strong>s navegantes<br />
conheci<strong>do</strong>. Foi esta populosa ci<strong>da</strong>de edifica<strong>da</strong> na oitava região de Itália, que<br />
Magna Grécia se intitula, nome que lhe puseram os aborígenes por haverem<br />
nela habita<strong>do</strong> os gregos dilata<strong>do</strong>s anos. Foi Taranto, conforme escreve Lúcio<br />
Floro, edifica<strong>da</strong> pelos lacedemónios, outros querem que pelos parténios, seus<br />
filhos espúrios, que vaguean<strong>do</strong> pelo mun<strong>do</strong> sem próprio <strong>do</strong>micílio, deram<br />
princípio, ain<strong>da</strong> que pequeno, a esta ínclita ci<strong>da</strong>de. To<strong>da</strong>s as cousas em seus<br />
princípios nascem pequenas. O cedro mais altivo, registo pela eminência <strong>do</strong>s<br />
resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol, começou em seu nascimento rasteira e humilde planta. O<br />
rio cau<strong>da</strong>loso, <strong>do</strong>s vales cristalino terror e emulação ambiciosa <strong>do</strong>s mares,<br />
nasceu de pobre fonte desvali<strong>do</strong> arroio. O incêndio mais temi<strong>do</strong> por devasta<strong>do</strong>r<br />
de edifícios mais sumptuosos se principiou de despreza<strong>da</strong> faísca no tosco<br />
berço de um pedernal, feri<strong>do</strong> aos violentos golpes de um fuzil. O colosso mais<br />
soberbo, qual foi o celebra<strong>do</strong> de Rodes, <strong>do</strong>s olhos admiração e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
aplaudi<strong>da</strong> maravilha, se originou em pequena frágua às martela<strong>da</strong>s de um<br />
braço, progenitor de sua agiganta<strong>da</strong> grandeza. A nau mais alterosa, móvel<br />
castelo <strong>do</strong>s mares, pomposo freio de suas procelosas on<strong>da</strong>s, torre sem<br />
fun<strong>da</strong>mento, edifício sem bases, móvel obelisco ao império <strong>do</strong>s ventos, nasce<br />
de pequeno tronco <strong>do</strong> campo, desterra<strong>do</strong> <strong>da</strong> terra para viver nas águas. Assim<br />
que como tu<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> tem os primeiros rudimentos na limitação <strong>do</strong><br />
vilipêndio, antes de chegar a ser <strong>do</strong>s olhos admiração e <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s<br />
assombro, não é novi<strong>da</strong>de que Taranto, pátria minha, ten<strong>do</strong> tão humildes<br />
fun<strong>da</strong>mentos, subisse depois com o tempo ao timbre <strong>da</strong> grandeza em que hoje<br />
se mostra. Muito pudera dilatar-me em descrever elogios à sua fama,<br />
panegíricos à sua opulência, pois já aos antigos romanos causou tantos<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s suas conquista, como os historia<strong>do</strong>res referem; mas não o faço por<br />
não arriscar o crédito de ver<strong>da</strong>deiro com o afectuoso de filho.
592 Padre Mateus Ribeiro<br />
Nesta pois ilustre ci<strong>da</strong>de, que depois de ser colónia <strong>do</strong>s romanos veio a<br />
ser cabeça de Calábria, Apulha e de Lucânia, afama<strong>da</strong> pela bon<strong>da</strong>de de seu<br />
porto, insigne e populosa pela multidão e luzimento de seus habita<strong>do</strong>res, nasci<br />
eu de família ilustre, <strong>da</strong>s mais antigas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Chama-se meu pai Arnal<strong>do</strong> e<br />
minha mãe Eufemia, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s de bastantes ren<strong>da</strong>s para sustentarem o<br />
decoroso de seu esta<strong>do</strong>. Era já nasci<strong>do</strong>, ao tempo que eu pelos perío<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> entrei no mun<strong>do</strong>, meu primeiro irmão, Teodósio, para ser sucessor <strong>do</strong><br />
morga<strong>do</strong> e casa de meu pai. Grande foi a contrarie<strong>da</strong>de que desde os<br />
primeiros anos e prelúdios <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de se deram em nossas inclinações; pois<br />
apenas os ditames <strong>da</strong> razão começaram a <strong>da</strong>r luz às sombras <strong>da</strong> ignorância,<br />
quan<strong>do</strong> se descobriu a oposição manifesta, sen<strong>do</strong> tão encontra<strong>do</strong>s os gostos,<br />
tão distantes os pareceres e tão antípo<strong>da</strong>s as vontades em nossos desejos que<br />
se, como disse Aristóteles 541 , os contrários à vista <strong>do</strong>s outros mais se<br />
descobrem, bem posso afirmar que à vista de meu irmão Teodósio mais o<br />
controverso desta natural aversão se descobria. Este me aborrecia e eu pouco<br />
o amava, de que meus pais sentiam notável pena; e por mais que pretendiam<br />
com suas admoestações atalhar os dissabores desta desunião <strong>da</strong>s vontades,<br />
mais eram tréguas que se guar<strong>da</strong>vam ao respeitoso de sua presença <strong>do</strong> que<br />
pazes que se concediam ao natural.<br />
Dos <strong>do</strong>us filhos <strong>do</strong> romano empera<strong>do</strong>r Septímio Severo, conta<br />
Herodiano que começaram Gethas e António, que assim se chamavam, a<br />
contenderem desde as tironices <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de com tão discordes inclinações que<br />
nunca tiveram fim, senão no sepulcro, tiran<strong>do</strong> António violentamente a vi<strong>da</strong> a<br />
seu irmão Getas nos braços de Júlia, sua mãe. A lua, como nos primeiros<br />
rudimentos de sua criação apareceu com as manchas que nela vemos entre os<br />
nevoa<strong>do</strong>s can<strong>do</strong>res de suas luzes, por mais que ao sol se avizinhasse ou que<br />
de seus raios se aparte, por mais que se escon<strong>da</strong> ou manifeste, por mais anos<br />
a milhares que em seus perío<strong>do</strong>s conte, nunca perdeu as sombras.<br />
Ressenti<strong>do</strong> meu pai de continuar tanto a oposição, de que podia temer-<br />
se alguma ruína, porque Teodósio tinha já a este tempo vinte e <strong>do</strong>us anos de<br />
i<strong>da</strong>de e eu quasi vinte, tratou de me man<strong>da</strong>r à universi<strong>da</strong>de de Bolonha, para<br />
dividir-nos, visto estar eu em Taranto bem instruí<strong>do</strong> nas humani<strong>da</strong>des <strong>do</strong>s<br />
Arist., Rhetor. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 593<br />
livros históricos e poéticos. Despedi-me sau<strong>do</strong>so de sua vista, por ser a<br />
primeira jorna<strong>da</strong> que para dilata<strong>do</strong> tempo fazia fora de sua casa; e assim<br />
provi<strong>do</strong> de dinheiro e acompanha<strong>do</strong> de <strong>do</strong>us cria<strong>do</strong>s, me parti para Bolonha,<br />
aquela nova Atenas de Itália, em que o invencível empera<strong>do</strong>r Carlos Magno<br />
instituiu a célebre universi<strong>da</strong>de de que tem saí<strong>do</strong> tão ilustres sujeitos e tão<br />
aplaudi<strong>do</strong>s mestres em to<strong>da</strong>s as ciências, para honra de Europa e admiração<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
Cheguei à vista <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, e não queren<strong>do</strong> nela entrar de dia, apean<strong>do</strong>-<br />
me com os cria<strong>do</strong>s, despedi os arrieiros; e man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> a um <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s que<br />
fosse preparar a casa, que já por ordem de meu pai estava para eu morar<br />
preveni<strong>da</strong> havia alguns dias, fiquei com o outro assenta<strong>do</strong> junto à cau<strong>da</strong>losa<br />
corrente <strong>do</strong> rio Reno, que nascen<strong>do</strong> pobre de cabe<strong>da</strong>l nos incultos penhascos<br />
<strong>do</strong> monte Apenino e mendigan<strong>do</strong> águas <strong>do</strong>s arroios que encontra, como quem<br />
vai pedin<strong>do</strong> esmola com a débil voz de sua corrente, já provi<strong>do</strong> de grosso<br />
cabe<strong>da</strong>l de líqui<strong>do</strong> cristal e corrente prata passa vizinho a Bolonha a fazer<br />
ostentação de rico, se de antes se escondia de aparecer nos lugares povoa<strong>do</strong>s<br />
pelos desaires de pobre. Que a pobreza sempre de aparecer desconfia, como<br />
disse Diógenes, referi<strong>do</strong> por Estobeu. Devia à sua corrente o a<strong>do</strong>rno verde <strong>da</strong><br />
relva de que se vestia e as guarnições matiza<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s flores de que se trajava,<br />
porque era o sítio tão ameno com a sombra <strong>da</strong>s árvores que nos espelhos <strong>do</strong><br />
Reno se reviam que convi<strong>da</strong>va a parar ain<strong>da</strong> a quem maiores cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
persuadissem a não se deter. E como em mim o desejo não apressava a<br />
jorna<strong>da</strong>, e estava já tão vizinho a Bolonha, quis lograr <strong>da</strong> frescura e ameni<strong>da</strong>de<br />
<strong>do</strong> sítio enquanto se dilatava o dia, que era por extremo calmoso.<br />
Passa<strong>da</strong>s seriam as cinco horas <strong>da</strong> tarde, em que ain<strong>da</strong> o sol no<br />
incêndio <strong>do</strong>s raios se mostrava vigoroso, quan<strong>do</strong> chegou ao lugar em que eu<br />
estava uma mulher rebuça<strong>da</strong>, bem traja<strong>da</strong> e no que parecia bem airosa, e com<br />
ela uma cria<strong>da</strong> também com o rebuço encoberta. E algum tanto assusta<strong>da</strong> me<br />
disse:<br />
- Peço-vos, senhor, me queirais valer e como a mulher amparar, para<br />
que uns homens, que suspeito me vem seguin<strong>do</strong>, não cheguem a reconhecer-<br />
me, porque me importa.<br />
- Obrigação é essa (lhe disse eu) de to<strong>do</strong>s os que se prezam de<br />
honra<strong>do</strong>s; e assim estai certa, senhora, que não permitirei que enquanto eu
594 Padre Mateus Ribeiro<br />
tiver vi<strong>da</strong>, ninguém chegue a violentar vosso gosto. Eu sou forasteiro nesta<br />
terra, que de Taranto, minha pátria, agora me apeei, para estu<strong>da</strong>r em Bolonha;<br />
vede se sois servi<strong>da</strong> que a ela vos leve, ou aonde ordenares, porque o farei<br />
com grande vontade.<br />
Respondeu-me agradeci<strong>da</strong> e me pediu a acompanhasse a Bolonha. Ao<br />
que eu obedecen<strong>do</strong>, com o meu cria<strong>do</strong> nos pusemos ao caminho, que seria <strong>do</strong><br />
sítio em que estava duas milhas, e chegámos ao tempo que o sol ia já<br />
encobrin<strong>do</strong> a fermosura de seus raios. No discurso deste caminho lhe dei<br />
inteira notícia de quem era e <strong>do</strong>s intentos com que a Bolonha vinha. E<br />
chegan<strong>do</strong> à entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> populosa ci<strong>da</strong>de, ela me pediu cortesmente que ali a<br />
deixasse e mais a não seguisse, porque já se <strong>da</strong>va por segura <strong>do</strong> susto que<br />
tivera.<br />
- Bem poderá ser (lhe disse eu) que vossa mercê se dê por segura de<br />
quem a seguia, que bem rústico seria quem pretendesse molestá-la, senão<br />
servi-la; porém eu me não asseguro <strong>da</strong> companhia que tenho sem lhe ver o<br />
rosto, para que saiba de quem devo acautelar-me de hoje adiante. Porque<br />
inimigos encobertos foram sempre por desconheci<strong>do</strong>s os mais arrisca<strong>do</strong>s.<br />
- Pois se vossa mercê me vir (replicou ela) ain<strong>da</strong> lhe causarei maior<br />
temor, porque sou muito feia, e to<strong>do</strong> o feio é de si espantoso e temi<strong>do</strong>. Mas<br />
porque vossa mercê não diga que a primeira petição que me fez ficou sem<br />
despacho, corra o risco to<strong>do</strong> por sua conta.<br />
Dizen<strong>do</strong> isto, descobriu o manto, e foi relâmpago de luz que apenas<br />
apareceu quan<strong>do</strong> na própria nuvem se encobriu. Não vi beleza maior em<br />
quanto tinha visto, e em esfera tão breve para vista, tão dilata<strong>da</strong> fermosura<br />
para ama<strong>da</strong>. Era esta desconheci<strong>da</strong> beleza moça no mais flori<strong>do</strong> <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, que<br />
são os anos mais habilita<strong>do</strong>s para os cargos de ser queri<strong>da</strong>, que como no<br />
tribunal e república <strong>do</strong> amor não há conselheiros, como disse Menandro 542 , não<br />
se admite a gravi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s anos aonde o menos que se busca são<br />
conselheiros.<br />
É amor to<strong>do</strong> contínua guerra <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, assaltos <strong>do</strong> coração, rebates<br />
<strong>da</strong> vontade, combates <strong>do</strong> juízo, resistências <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, batalha <strong>da</strong> razão,<br />
sítio <strong>da</strong>s esperanças e triunfos <strong>da</strong> fermosura. Na milícia só se alista o juvenil <strong>da</strong><br />
Men., apud Stob.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 595<br />
i<strong>da</strong>de e não a anciani<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s anos; e assim nos empenhos <strong>do</strong> querer só se<br />
aceita o flori<strong>do</strong> <strong>do</strong> tempo e não o desengana<strong>do</strong> de vi<strong>da</strong>. Seria esta anima<strong>da</strong><br />
admiração de vinte anos de i<strong>da</strong>de, em quem fizeram liga o portentoso <strong>do</strong><br />
parecer com a primavera <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. E não se pudera facilmente julgar se o<br />
parecer devia os aplausos à i<strong>da</strong>de, se esta devia os encómios mais subi<strong>do</strong>s ao<br />
parecer. Chamava-se Aurora (como ao depois vim a saber). E com razão nesta<br />
primeira vista lhe competiu o nome, pois entre o escuro <strong>do</strong> manto apenas se<br />
divisava o resplan<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mais luzi<strong>do</strong> dia, quan<strong>do</strong> se encobria no véu escuro <strong>da</strong><br />
noite, sen<strong>do</strong> esta em seu rebuço nuvem que durava e a beleza <strong>do</strong> rosto luz que<br />
fugia.<br />
Pediu-me cortesmente que a não seguisse, despedin<strong>do</strong>-me com uma<br />
cortesia, calan<strong>do</strong> e deixan<strong>do</strong>-me na maior suspensão em que jamais me havia<br />
visto.<br />
- Bem me recebe Bolonha (disse eu) na primeira entra<strong>da</strong> em que a vejo,<br />
pois se tais sereias encerra, chamara-se Parténope, como escreve Sílio Itálico<br />
ser o primeiro nome de Nápoles deriva<strong>do</strong> de umas três sereias que fingiram os<br />
poetas serem com a suavi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s vozes amoroso encanto <strong>do</strong>s navegantes, e<br />
não se intitulara Bolonha, nome que lhe puseram, conforme diz Políbio, os<br />
antigos toscanos que a edificaram. Esconde-se já o sol, e não é muito quan<strong>do</strong><br />
este humana<strong>do</strong> sol se retira; pois quem dá liber<strong>da</strong>de às sombras de um rebuço<br />
sen<strong>do</strong> dia, que maravilha será deixar livres as sombras sen<strong>do</strong> noite? Se por<br />
homici<strong>da</strong> se teme, como ain<strong>da</strong> entre o temor executa a tirania? Que o matar<br />
uma vez podia ser acidente, mas continuar as mortes é fazer o acidental<br />
costume. Bem faz em embainhar os olhos no rebuço <strong>do</strong> manto, pois armas tão<br />
arrisca<strong>da</strong>s privilégios tem de basiliscos, ain<strong>da</strong> que o delica<strong>do</strong> de um véu é débil<br />
prisão para tantos raios e limita<strong>da</strong> nuvem para tanto sol.<br />
Assim com estes solilóquios, mais senti<strong>do</strong>s que acerta<strong>do</strong>s, pois quem os<br />
sente mais, acerta menos, entrei na ilustre ci<strong>da</strong>de de Bolonha, para as casas<br />
que o cria<strong>do</strong> que despedi diante prepara<strong>da</strong>s tinha. Aonde descansan<strong>do</strong> alguns<br />
dias, entrei na universi<strong>da</strong>de a estu<strong>da</strong>r o Direito Cível. Porém como a memória<br />
<strong>do</strong> que visto tinha era o desperta<strong>do</strong>r de meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, com os desejos de<br />
conhecer quem era este enigma encoberto, que com as lembranças de sua<br />
vista me desvelava tanto. Muitas vezes cursei as ruas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de por ver se<br />
podia descobrir este escondi<strong>do</strong> encanto; mas foram to<strong>da</strong>s diligências inúteis,
596 Padre Mateus Ribeiro<br />
tempo frustra<strong>do</strong> e desvelo infrutuoso. Entre os amigos que no estu<strong>do</strong> tive era o<br />
mais particular, que se chamava Septímio, natural <strong>da</strong> mesma ci<strong>da</strong>de de<br />
Bolonha, a quem dei notícia desta inquietação em que vivia, pedin<strong>do</strong>-lhe me<br />
noticiasse quem podia ser a causa deste labirinto tão sem saí<strong>da</strong> em que me<br />
via. Ouviu-me ele a proposta e me respondeu desta sorte:<br />
- É esta ci<strong>da</strong>de tão populosa e enriqueci<strong>da</strong> de tão principais senhoras,<br />
não menos <strong>do</strong>ta<strong>da</strong>s de nobreza que de fermosura, que com grande dificul<strong>da</strong>de<br />
se poderá vir a conhecer que sujeito seja o em que vos desvelais com tantos<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s; e mais sen<strong>do</strong> a vista que referistes tão breve para indiciar vestígios<br />
pelos quais se pudesse descobrir essa admiração que tanto exagerais. Do<br />
insigne pintor Protógenes Rodiano se conta que man<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-o sair de<br />
Alexandria por um desgosto que dele teve Ptolomeu, rei de Egipto, com<br />
resolução que sob graves penas à sua presença jamais tornasse; a que ele<br />
obedecen<strong>do</strong>, navegava para Rodes, sua pátria. Levantou-se uma tormenta<br />
grande, com que, por se não perderem, lhe foi força<strong>do</strong> arribar outra vez ao<br />
porto de Alexandria, <strong>do</strong>nde havia saí<strong>do</strong>. Souberam <strong>da</strong> arriba<strong>da</strong> uns émulos<br />
seus e lhe enviaram um reca<strong>do</strong> fingi<strong>do</strong>, dizen<strong>do</strong>-lhe que el-rei o chamava. Ao<br />
que ele <strong>da</strong>n<strong>do</strong> crédito, tornou à sua presença. Ira<strong>do</strong> o rei <strong>do</strong> pouco respeito que<br />
lhe guar<strong>da</strong>ra à proibição que lhe pusera, perguntou-lhe como tivera ousadia de<br />
tornar a aparecer diante dele. Protógenes, assusta<strong>do</strong>, se desculpava com o<br />
reca<strong>do</strong> que se lhe dera. Mas não sen<strong>do</strong> <strong>do</strong> rei cri<strong>do</strong>, nem ele conhecen<strong>do</strong> ao<br />
mensageiro, de repente com um carvão lhe retratou tanto ao natural o rosto<br />
que foi de to<strong>do</strong>s conheci<strong>do</strong>. E sen<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> e confessan<strong>do</strong> a ver<strong>da</strong>de, foi o<br />
insigne pintor não só per<strong>do</strong>a<strong>do</strong>, mas de novo pela delicadeza <strong>do</strong> debuxo à<br />
graça de Ptolomeu recebi<strong>do</strong>.<br />
- Pois, Septímio (disse eu), quan<strong>do</strong> eu fora tão eminente pintor como<br />
Protógenes, mal pudera retratar tanta beleza; pois se para o famoso Apeles<br />
retratar Campaspe, tremen<strong>do</strong>-lhe as mãos, caíram desmaia<strong>do</strong>s os pincéis,<br />
sen<strong>do</strong> mais poderosa a vista que a ciência, com maior razão podiam<br />
suspender-se as mãos e desmaiarem os senti<strong>do</strong>s se intentara retratar um rosto<br />
que formou a natureza para ser prodígio <strong>do</strong> belo e não para copia<strong>do</strong>.<br />
O sol para ser conheci<strong>do</strong> não necessita de sinais, porque de ser só se<br />
lhe derivou o nome, pois entre to<strong>do</strong>s os planetas e estrelas só ele com próprias<br />
luzes resplandece. Assim posso dizer que, entre to<strong>do</strong>s os rostos que Bolonha
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 597<br />
encerra, só este desconheci<strong>do</strong> rosto é sol no parecer: assi a pudera eu retratar<br />
com as palavras como a trago retrata<strong>da</strong> na memória, pois ain<strong>da</strong> que tanto em<br />
breve visto, muito tem para exagera<strong>da</strong> e muito para conheci<strong>da</strong>. Foi Apeles um<br />
dia buscar a Protógenes, a quem nunca tinha visto e só conhecia pela fama; e<br />
não o achan<strong>do</strong> em casa, lançou com grande delicadeza uma linha em um<br />
quadro que Protógenes fazia e foi-se sem dizer quem era. Vin<strong>do</strong> depois<br />
Protógenes, apenas viu a linha que no quadro <strong>da</strong> pintura lançara, quan<strong>do</strong> disse<br />
admira<strong>do</strong>:<br />
- A mão de Apeles é esta.<br />
Assim direi eu que o primeiro rasgo <strong>da</strong> vista era poderoso para <strong>da</strong>r-se a<br />
conhecer ser ela só em Bolonha a primeira para ser vista e sem segun<strong>da</strong> para<br />
ser imita<strong>da</strong>.<br />
- Pois se assim é (respondeu Septímio) deixemos ao tempo, que ele<br />
descobrirá esse prodígio. Porque enfim o tempo revela tu<strong>do</strong> e admirações não<br />
podem estar ocultas, que por mais que o sol queira esconder-se, suas próprias<br />
luzes o manifestam. O único não admite consórcio com que emparelhe; porque<br />
a sofrer semelhante, perderia os privilégios de singular e faria cessão <strong>do</strong>s foros<br />
de único. E assim como dizeis que esta desconheci<strong>da</strong> <strong>da</strong>ma é rara no parecer,<br />
singular na beleza e única no juízo, não poderá estar muito tempo encoberta<br />
quem logra tantas singulari<strong>da</strong>des para ser conheci<strong>da</strong>. Há sujeitos que por mais<br />
que preten<strong>da</strong>m ocultar-se no retiro, seus próprios merecimentos os<br />
manifestam; e não é poderoso o rebuço para que deixe de luzir quem se<br />
acompanha de raios.<br />
- Assim é (disse eu). Mas também considero que os remédios que se<br />
deixam ao tempo são os de que a medicina desconfia e a dilação de uma<br />
esperança é o verdugo mais apressa<strong>do</strong> para uma vi<strong>da</strong>.<br />
Cap. III.<br />
E com isto nos despedimos.<br />
Como Hortênsio veio a conhecer quem era Aurora e <strong>do</strong> que lhe sucedeu<br />
Passa<strong>do</strong>s seriam já quatro meses, e já entrava nos cinco de minha<br />
chega<strong>da</strong> a Bolonha, sem poder descifrar o escuro deste emblema em que se
598 Padre Mateus Ribeiro<br />
desvelava meu juízo. Haviam si<strong>do</strong> sem fruto minhas assistências em to<strong>da</strong>s as<br />
públicas festas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, margens cristalinas <strong>do</strong> rio, saí<strong>da</strong>s celebra<strong>da</strong>s <strong>do</strong><br />
campo, ameni<strong>da</strong>des <strong>do</strong>s pra<strong>do</strong>s e finalmente nos mais festivos concursos que<br />
Bolonha celebra. Porque com ver inumeráveis rostos, nenhum condisse com o<br />
que na estampa <strong>da</strong> memória debuxa<strong>do</strong> trazia. Duvi<strong>da</strong>va meu desejo se sua<br />
vista havia si<strong>do</strong> ilusão <strong>do</strong> sonho, pois pelo descostume <strong>da</strong>s venturas também<br />
esta me parecia sonha<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong>, como disse Aristóteles nos Tópicos, to<strong>do</strong> o<br />
desacostuma<strong>do</strong> escuro. Impaciente à ignorância e desengana<strong>do</strong> ao desejo, se<br />
porventura desejos grandes costumavam admitir desenganos, quis curar o<br />
molesto deste inquieto cui<strong>da</strong><strong>do</strong> com os remédios violentos <strong>do</strong> esquecimento:<br />
que, sen<strong>do</strong> o mais eficaz, é o desespera<strong>do</strong> <strong>do</strong>s remédios. É o esquecimento<br />
um sintoma ou desmaio <strong>da</strong> memória poderoso para riscar dela as imagens que<br />
por meio <strong>da</strong> fantasia lhe imprimiram os senti<strong>do</strong>s. E <strong>da</strong> sorte que a escura<br />
sombra <strong>da</strong> noite rouba as cores e gala às criaturas para se desconhecerem,<br />
enquanto duram os desmaios <strong>da</strong> luz nas ausências <strong>do</strong> dia, assim a nuvem<br />
escura <strong>do</strong> esquecimento faz que desapareçam <strong>da</strong> memória as representações<br />
que nela, como em quadro, debuxa<strong>da</strong>s vivam.<br />
Na cível guerra que Marco António fez aos partos, como conta Sabélico,<br />
an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s romanos derrota<strong>do</strong>s por diversas regiões e desertos de<br />
Ásia, constrangi<strong>do</strong>s <strong>da</strong> fome, comen<strong>do</strong> só <strong>da</strong>s ervas que pelo campo achavam,<br />
vieram a comer entre elas uma que naturalmente causava tal esquecimento<br />
que de nenhuma cousa se lembravam, nem pessoa alguma conheciam. Estes<br />
violentos efeitos muitas vezes causa a natureza, mas não a vontade; porque<br />
esta quan<strong>do</strong> mais procura esquecer-se, o próprio desejo, que para isso<br />
empenha, é o mais próprio motivo de lembrar-se.<br />
Estava eu um dia à tarde só com um cria<strong>do</strong> nas sau<strong>do</strong>sas ribeiras <strong>do</strong><br />
cristalino rio Reno, por divertir cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e lograr o fresco <strong>do</strong> sombrio <strong>da</strong>s<br />
árvores e o ameno <strong>do</strong> pra<strong>do</strong>, que mimoso <strong>da</strong> fugitiva corrente lhe tributava em<br />
relva quanto recebia em água, quan<strong>do</strong> o meu cria<strong>do</strong> me deu reca<strong>do</strong> que uma<br />
mulher rebuça<strong>da</strong> queria falar-me. Levantei-me <strong>do</strong> arrimo de um freixo, que<br />
servin<strong>do</strong>-me de verde tol<strong>do</strong> com os ramos, me fabricava a cadeira com o<br />
tronco, ao tempo que chegava esta tapa<strong>da</strong> embaixa<strong>do</strong>ra a dizer-me que uma<br />
senhora desejava e lhe importava falar comigo, se quisesse segui-la, que a<br />
jorna<strong>da</strong> não era muito distante, nem havia nela perigo.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 599<br />
- Quan<strong>do</strong> o houvera (respondi eu), nele não reparara, por obedecer ao<br />
desejo dessa senhora; e ficará o meu cria<strong>do</strong> esperan<strong>do</strong> neste lugar, por ir com<br />
mais recato.<br />
- Seja assim (disse ela), e pode vossa mercê seguir-me.<br />
Começou a caminhar, apartan<strong>do</strong>-se algum espaço <strong>da</strong> vizinhança <strong>do</strong> rio.<br />
E haven<strong>do</strong> caminha<strong>do</strong> quasi duas milhas, chegámos a uma quinta sumptuosa<br />
na grandeza <strong>da</strong> casaria e vistosa no copioso <strong>do</strong> arvore<strong>do</strong> que a cercava. Aonde<br />
entran<strong>do</strong> a cria<strong>da</strong> que me serviu de guia a <strong>da</strong>r reca<strong>do</strong> de minha vin<strong>da</strong>, passa<strong>do</strong><br />
um breve intervalo, me fez sinal que subisse. Entrei na primeira quadra, que<br />
bem e custosamente orna<strong>da</strong> estava, na qual me saiu a receber a imagem viva<br />
de minhas quasi já mortas esperanças, o emblema anima<strong>do</strong> a quem tantas<br />
diligências nunca puderam descifrar o senti<strong>do</strong>. Não foi em mim a primeira<br />
admiração pelo belo <strong>do</strong> parecer, porque seu rosto podia ser o crédito mais<br />
abona<strong>do</strong> <strong>da</strong> beleza, nem me admirou o custoso <strong>da</strong> gala e riqueza <strong>do</strong> traje,<br />
porque <strong>do</strong> precioso <strong>do</strong>s trajes era ela a gala e parava o encareci<strong>do</strong> aonde se<br />
principiava o vistoso. Só me pôde assustar tão repentino assalto, consideran<strong>do</strong><br />
em um instante descoberto o que à ânsia de meu desejo tanto tempo esteve<br />
oculto. Assim, depois de com uma profun<strong>da</strong> cortesia me mostrar alegre e<br />
obriga<strong>do</strong> de sua vista, lhe disse assim:<br />
- Bem dizem, senhora, que pode mais uma hora de ventura que muitos<br />
anos de diligências; pois ten<strong>do</strong>-me custa<strong>do</strong> tantas desde que entrei em<br />
Bolonha, o descobrir este tesouro tão a meus olhos escondi<strong>do</strong>, quanto a<br />
minhas esperanças incerto, devo mais a uma hora de descui<strong>do</strong> <strong>do</strong> que a<br />
muitos dias de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so. Logro a vista que mais desejo e ain<strong>da</strong> não afirmei<br />
que a logro, porque avalio tão incertas minhas alegrias que duvi<strong>do</strong> se são suas<br />
glórias aparentes ou ver<strong>da</strong>deiras; com receios <strong>do</strong>s eclipses <strong>da</strong> fugi<strong>da</strong>, não me<br />
asseguro <strong>do</strong>s raios <strong>do</strong> sol na presença. O passar <strong>do</strong> extremo a extremo leva<br />
consigo o risco, porque mal sofrerá a vi<strong>da</strong> passar de repente o coração <strong>do</strong><br />
tormento <strong>do</strong> frio aos incêndios <strong>da</strong> calma, nem a vista <strong>do</strong> mais escuro <strong>da</strong> noite<br />
ao mais brilhante <strong>do</strong>s resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol; e assim de tantos meses de<br />
sombras, quem passa de repente a tantos raios de luz tem o risco ou em<br />
perigar a vista ou em se enganar o desejo, ten<strong>do</strong> os olhos o perigo no<br />
repentino e os desejos o <strong>da</strong>no no duvi<strong>do</strong>so.
600 Padre Mateus Ribeiro<br />
Ouviu-me Aurora com atenção estas ou semelhantes palavras, que os<br />
repentes são ordinariamente mais empenhos <strong>do</strong>s poetas que de ora<strong>do</strong>res. E<br />
respondeu-me assim:<br />
- Quis, senhor Hortênsio, chamar-vos no tempo de vosso maior<br />
descui<strong>do</strong> para que me devêsseis a mim to<strong>do</strong> o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e não a vossas<br />
diligências; porque neste repente que avaliais por ventura na<strong>da</strong> se devesse a<br />
vosso cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e tu<strong>do</strong> a minhas finezas, se por tais forem julga<strong>da</strong>s, quan<strong>do</strong><br />
forem conheci<strong>da</strong>s. Meu nome é Aurora, sou filha única de Octávio Lambertas,<br />
pessoa bem conheci<strong>da</strong> em Bolonha e to<strong>do</strong> seu senhorio por principal rico e<br />
poderoso, de quem tereis bastantes notícias. Foi a nossa família <strong>do</strong>s<br />
Lambertases sempre na grandeza com a <strong>do</strong>s Galeazzos competi<strong>do</strong>ra, com<br />
antigos ban<strong>do</strong>s e hostili<strong>da</strong>des que Bolonha tem senti<strong>do</strong> desde os princípios de<br />
seu aumento. Ultimamente, haverá <strong>do</strong>us anos que Júlio Galeazzo, o principal<br />
deste inimigo ban<strong>do</strong>, no respeita<strong>do</strong> e no poderoso, vin<strong>do</strong> a pendenciar com<br />
meu irmão, Laurélio Lambertas, lhe deu a morte, porventura mais provoca<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong>s competências antigas que <strong>da</strong>s ocasiões presentes. Prenderam-no logo<br />
pelo homicídio; e como o senhor Lega<strong>do</strong> é tão inteiro na justiça e nossa família<br />
tão poderosa e Júlio tão rico e aparenta<strong>do</strong>, empenhou-se to<strong>do</strong> o poder, assim<br />
desta ci<strong>da</strong>de como de muitos senhores de Itália, para abran<strong>da</strong>rem o justo<br />
sentimento de meu pai, para que Júlio não morresse e para que o senhor<br />
Lega<strong>do</strong> viesse tão só em conceder-lhe a vi<strong>da</strong>, mas ain<strong>da</strong> o perdão, se<br />
desvelaram em quererem que casasse eu com ele para paz destas famílias,<br />
que deste casamento se esperava. Abran<strong>do</strong>u meu pai o ira<strong>do</strong>, combati<strong>do</strong> de<br />
tantas rogativas. Mas eu, como penhasco duro e aos assaltos <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s<br />
invencível, me tenho oposto a seus intentos. E quan<strong>do</strong> vos pedi me<br />
acompanhásseis era para evitar, com sair-me <strong>da</strong> quinta pela porta de um<br />
jardim, a importunação de <strong>do</strong>us tios <strong>do</strong> preso Júlio Galeazzo que vinham a<br />
molestar-me o sofrimento sobre este de mim tão aborreci<strong>do</strong> casamento.<br />
Eu, senhor Hortênsio, não hei-de <strong>da</strong>r a mão de esposa a quem com a<br />
sua derramou de meu irmão o sangue: que se minha mãe lhe faltou para<br />
chorá-lo, fiquei eu em seu lugar para senti-lo, pois outro não tinha e por suas<br />
partes era tão digno de ser ama<strong>do</strong>. Casar em Bolonha não me convém, pelas<br />
razões que digo; sei que sois ilustre e forasteiro: se quiserdes ser meu esposo<br />
e levar-me convosco a Taranto, vossa pátria, o desgosto de meu pai curará o
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 601<br />
tempo, que ao fim tu<strong>do</strong> cura, e enquanto lhe durar o sentimento, jóias tenho eu<br />
de tanto valor que bem serão bastantes para passarmos a vi<strong>da</strong> não só sem<br />
sentir necessi<strong>da</strong>des, mas ain<strong>da</strong> com largueza. Tomei esta ousadia de falar-vos<br />
por ser meu pai fora a negócio preciso. E assi deste que vos propus me haveis<br />
de <strong>da</strong>r logo resposta para eu deliberar-me, ou a preparar-me para como a<br />
esposo seguir-vos, ou a mais me não tornardes a ver em vossa vi<strong>da</strong>. Que<br />
quan<strong>do</strong> as mulheres de minha quali<strong>da</strong>de se empenham em semelhante<br />
resolução, sempre delas vem a seguir-se extremos.<br />
Assim falou Aurora, verten<strong>do</strong> algumas lágrimas de seus olhos, para que<br />
por to<strong>da</strong>s as razões o título de Aurora lhe competisse. Bem conheço, senhores,<br />
julgareis o absorto <strong>da</strong> suspensão em que suas palavras e vista me deixariam<br />
na ocasião presente poderosa para perturbar e suspender aos melhores juízos.<br />
Via-me na terra forasteiro, moço na i<strong>da</strong>de e não <strong>do</strong>s mais vali<strong>do</strong>s na ventura <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>, com poucas experiências que pudessem noticiar-me os perigos que<br />
debaixo desta resolução se encerravam. Da maneira que a simples mariposa<br />
se engana com os resplan<strong>do</strong>res <strong>da</strong> luz, parecen<strong>do</strong>-lhe que não pode ser nociva<br />
aparência tão brilhante nos raios, e vem a ser sacrifício em que se abrasa a<br />
que se presumia hóspe<strong>da</strong> cortesmente recebi<strong>da</strong> no hospício <strong>da</strong>s luzes a quem<br />
se avizinha; assim eu, lisonjea<strong>do</strong> com raios amorosos de seus olhos, me<br />
aproximei ao <strong>da</strong>no sem advertir no perigo. Fiz comigo um breve discurso, e o<br />
menos que tem de discurso é o ser breve, e resolvi em imaginar-me o mais<br />
venturoso, pois sem passar o dilata<strong>do</strong> martírio <strong>da</strong>s esperanças, a quem Cícero<br />
chamou arrisca<strong>da</strong> navegação <strong>do</strong>s pretendentes, me considerava nas posses<br />
<strong>da</strong> ventura. Assim resoluto neste parecer, que então julguei por mimo <strong>da</strong><br />
fortuna, lhe respondi assim:<br />
- Se dizem que costuma patrocinar a ventura a quem a merece menos,<br />
bem posso avaliar-me hoje pelo mais feliz, pois vós, senhora Aurora, me<br />
quisestes habilitar para merecer tanto. Em não admitirdes o casamento de Júlio<br />
Galeazzo, bem mostrais os abonos de entendi<strong>da</strong>, pois casamentos a<br />
desgostos nunca prometem venturosos desempenhos, sen<strong>do</strong> grande a<br />
repugnância que tem o gosto com as leis <strong>da</strong> sujeição. Ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> o preso<br />
Júlio vos pretendera só pelo que mereceis, e não pela liber<strong>da</strong>de que deseja,<br />
tivera desculpas de entendi<strong>do</strong> em solicitar cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so o que só hoje procura<br />
interessa<strong>do</strong>. As cousas que se fazem como violenta<strong>da</strong>s raramente se
602 Padre Mateus Ribeiro<br />
experimentaram proveitosas. Os planetas, quan<strong>do</strong> an<strong>da</strong>m retrógra<strong>do</strong>s, nunca<br />
suas influências trazem utili<strong>da</strong>des, antes se julgam nocivas, porque violenta<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> mais poderoso movimento, vão contra a própria inclinação de seu directo<br />
caminho. As grandes empresas para se executarem não se costumam pesar<br />
na balança <strong>do</strong> juízo, pelo que mostram, mas na <strong>do</strong> coração, pelo que ama,<br />
sen<strong>do</strong> os pesos por onde se avaliam os alentos <strong>do</strong> valor com que se<br />
emprendem. Isto digo, senhora, porque suposto que esta ausência de que<br />
tratamos parece à primeira vista dificultosa se a humana prudência a julga,<br />
menos tem de arrisca<strong>da</strong> se o amor a favorece, pois em seu tribunal se absolve<br />
o que no <strong>da</strong> prudência se condena. Assim que disponde o que for mais vosso<br />
gosto, porque o meu é estar pronto para obedecer-vos.<br />
Obriga<strong>da</strong> e alegre se mostrou Aurora de ver em minha resposta os<br />
alentos tão ajusta<strong>do</strong>s a seu desejo, e, despedin<strong>do</strong>-se agradeci<strong>da</strong>, me disse que<br />
ela me avisaria quan<strong>do</strong> visse a ocasião conveniente. Com isto despedi<strong>do</strong>, me<br />
parti para Bolonha entre alegre e pensativo, consideran<strong>do</strong> pelo caminho<br />
juntamente os riscos e os interesses desta empresa em que empenha<strong>do</strong> me<br />
via, fazen<strong>do</strong> comigo este discurso solilóquio:<br />
- O insigne capitão Péricles Ateniense, ca<strong>da</strong> vez que o sena<strong>do</strong> de<br />
Atenas o elegia para general de seu exército, falan<strong>do</strong> consigo próprio dizia:<br />
- Olha Péricles como te portas, pois vais governar a gente livre,<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s gregos e sobretu<strong>do</strong> atenienses, aonde a política <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> está<br />
cifra<strong>da</strong>: que hás-de ter muitos olhos que te vejam e muitos juízes que te<br />
julguem, e levan<strong>do</strong> contigo os fiscais de tuas obras, deixas em Atenas aos<br />
juízes de teus procedimentos.<br />
Assim dizia eu:<br />
- Que labirinto é este, Hortênsio, em que te consideras, com tantos<br />
rodeios <strong>da</strong> fortuna e com tão pouca luz de minha sorte? Vim a Bolonha para<br />
cursar os estu<strong>do</strong>s e agora só estu<strong>do</strong> na arte de amar de Ovídio? Como hei-de<br />
trocar a academia pela peregrinação, os livros em armas e os acertos de<br />
estudioso em os precipícios de arrisca<strong>do</strong>? Mas que beleza pode emparelhar<br />
com a de Aurora, que Primavera mais flori<strong>da</strong> que seus anos, matiza<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s<br />
rosas de seu rosto, desmaio <strong>da</strong> púrpura mais fina, receios <strong>da</strong> neve mais<br />
cândi<strong>da</strong>, pois aquela teme o apeli<strong>do</strong> e esta o escuro a sua vista? Aonde se<br />
achará junto o raro <strong>do</strong> juízo, o ilustre <strong>do</strong> sangue, o precioso <strong>da</strong> riqueza, sen<strong>do</strong>
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 603<br />
filha única e como tal ama<strong>da</strong>? Porventura esperarei eu sem risco lograr tanto?<br />
Outros com maiores riscos na<strong>da</strong> logram. Que vou eu aventurar neste jogo <strong>da</strong><br />
sorte? Nasci filho segun<strong>do</strong> e de meu irmão sempre encontra<strong>do</strong>. Vim a estu<strong>da</strong>r<br />
porque me faltam as possessões, pois tu<strong>do</strong> está vincula<strong>do</strong> ao morga<strong>do</strong>. Os<br />
anos que hei-de despender no estu<strong>do</strong> são muitos e os prémios que posso<br />
conseguir estão incertos. O relógio <strong>da</strong>s esperanças vagaroso e os anos de<br />
minha moci<strong>da</strong>de correm apressa<strong>do</strong>s. As venturas pendem <strong>da</strong>s ocasiões, e uma<br />
vez que estas passam, também elas fogem. Pois se a fortuna me chama pela<br />
voz de Aurora, reclamo mais poderoso para atrair os corações, vista a mais<br />
carinhosa para render liber<strong>da</strong>des, largarei eu a ventura que agora me oferece,<br />
para esperar novo acerto que a fortuna me não permite?<br />
É ver<strong>da</strong>de que risco tem a empresa, pois pelo roubo <strong>da</strong>s <strong>do</strong>nzelas<br />
sabinas, em tempo de Rómulo, se viram os primeiros mora<strong>do</strong>res de Roma a<br />
perigo de ficarem eles perdi<strong>do</strong>s e Roma deserta. Pelo roubo de Helena, mulher<br />
de Menelau, rei de Esparta, se abrasou Tróia. Pelo roubo <strong>da</strong>s <strong>do</strong>nzelas<br />
espartanas, que os messénios roubaram, foi a ci<strong>da</strong>de de Messénia, depois de<br />
dez anos de sítio, destruí<strong>da</strong> pelos lacedemónios, sen<strong>do</strong> de semelhantes raptos<br />
estes os frutos. Porém, quan<strong>do</strong> sem perigos se granjearam venturas, nem sem<br />
o arrisca<strong>do</strong> <strong>da</strong> guerra se adquiriram triunfos? Pois nunca subiu em carro triunfal<br />
ao Capitolino quem primeiro se não viu acometi<strong>do</strong> <strong>da</strong>s lanças no rigor <strong>da</strong>s<br />
batalhas. Direi eu, como César ao passar o rio Rubicão, que por decreto <strong>do</strong><br />
sena<strong>do</strong> lhe era proibi<strong>do</strong>: A sorte está lança<strong>da</strong>, seguirei os rumos de minha<br />
fortuna.<br />
Assim discursava eu, se um juízo amante costumava ter discurso.<br />
Porque trazia tão viva na memória a rara fermosura de Aurora, que para vista<br />
era to<strong>da</strong> delícias e para perdi<strong>da</strong> to<strong>da</strong> sau<strong>da</strong>des. Já me arrependia de haver<br />
considera<strong>do</strong> riscos na companhia de Aurora, pois não receia os desaires <strong>da</strong><br />
noite quem leva consigo os privilégios <strong>do</strong> dia. Já me considerava de tu<strong>do</strong><br />
vence<strong>do</strong>r, pois Aurora estava em posse de conseguir vitórias. O grande<br />
Alexandre não foi feri<strong>do</strong> em Tiro e em Gaza? E foi monarca <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Lúcio<br />
Sila não se viu em os campos de Orcómeno desampara<strong>do</strong> de seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s,<br />
arrojan<strong>do</strong>-se ele só no exército <strong>do</strong>s inimigos, até que, sen<strong>do</strong> socorri<strong>do</strong>, saiu<br />
vence<strong>do</strong>r e foi supremo dita<strong>do</strong>r de Roma? Júlio César não se viu com to<strong>do</strong> o<br />
exército, junto a Placência, contra ele amotina<strong>do</strong> e tumultuoso, com receios de
604 Padre Mateus Ribeiro<br />
ser morto, como escreve Apiano Alexandrino? E de tu<strong>do</strong> saiu vence<strong>do</strong>r e<br />
venturoso. Augusto não se considerou, derrota<strong>da</strong> a poderosa arma<strong>da</strong> que<br />
tinha, naufragante nos penhascos <strong>do</strong> Ilírico, desampara<strong>do</strong> e fugitivo, com<br />
riscos de ser preso <strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s de Pompeu, o moço, a quem fazia guerra? E<br />
depois foi empera<strong>do</strong>r de Roma. Pois se tantos e tão insignes varões que<br />
admiraram ao mun<strong>do</strong> com suas vitórias souberam render os perigos e,<br />
desprezan<strong>do</strong> os receios, triunfaram <strong>do</strong> tempo e <strong>da</strong> fortuna, sen<strong>do</strong> pensão <strong>da</strong>s<br />
venturas serem os riscos o preço com que se compram e os perigos com que<br />
se merecem, porque no empenho de Aurora, sen<strong>do</strong> admiração para vista,<br />
repararei eu nas sombras <strong>do</strong> temor, quan<strong>do</strong> a luz <strong>da</strong> aurora é desterro <strong>da</strong>s<br />
sombras? Se seu pai se der por ofendi<strong>do</strong>, o tempo curará seus sentimentos,<br />
pois ao fim o tempo tu<strong>do</strong> cura. Prever os perigos é estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s acautela<strong>do</strong>s,<br />
mas ignorá-los é poupar os sentimentos. Pois mil vezes se sente na<br />
imaginação o que nunca se padece na reali<strong>da</strong>de.<br />
Com isto me resolvi a seguir animosamente a empresa, pois consultar<br />
ao temor é o caminho para desistir <strong>da</strong>s venturas.<br />
Cap. IV.<br />
Em que Hortênsio prossegue o que lhe sucedeu com Aurora<br />
Com estes discursivos pensamentos, tratei logo de preparar o apresto<br />
que me pareceu conveniente ao intento que emprendia. Comprei um cavalo de<br />
passo ligeiro que pudesse desempenhar-me na jorna<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> a necessi<strong>da</strong>de<br />
o pedisse, e juntamente algumas pistolas reforça<strong>da</strong>s para os coldres. Provi-me<br />
de uma clavina, que tinha aprendi<strong>do</strong> na escola de Vulcano lições de fogosa,<br />
para juntamente com as balas restituir em chamas quanto se lhe entregasse<br />
em pólvora. Aos amigos que me viam alguns destes aprestos disfarçava o<br />
intento, com dizer-lhes que meu irmão, o morga<strong>do</strong>, me encomen<strong>da</strong>ra lhe<br />
comprasse um bom cavalo para sair a umas festas e que lho levasse quan<strong>do</strong><br />
fosse a Taranto estar as férias que se vinham chegan<strong>do</strong>.<br />
Bem disposto me pareceu o empenho, assim no silêncio, como na<br />
preparação. Mas que importa, senhores, o acautela<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> falta o<br />
venturoso? A mais feliz vitória de quantas César teve foi a que alcançou de
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 605<br />
Fárnaces, rei de Ponto, pela brevi<strong>da</strong>de e pouco risco, quan<strong>do</strong> escreveu ao<br />
sena<strong>do</strong>, dizen<strong>do</strong>: Cheguei, vi e venci. Tal me imaginava eu nesta empresa, se<br />
fora efectua<strong>da</strong> com a brevi<strong>da</strong>de que prometia.<br />
Estava eu esperan<strong>do</strong> por horas aviso de Aurora, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me notáveis<br />
sustos a dilação. São as esperanças tão mimosas que <strong>do</strong>s vagares fazem<br />
ofensas. Já me parecia que Aurora se mu<strong>da</strong>va, arrependi<strong>da</strong> <strong>da</strong> temeri<strong>da</strong>de que<br />
emprendia, pois para mu<strong>da</strong>r de parecer, pouco tempo há mister a vontade;<br />
porque como tão senhora de suas acções, sabe variar de intentos com a<br />
mesma facili<strong>da</strong>de com que se resolve a segui-los, como disse Ausónio 543 , e<br />
qualquer discurso pudera ser eficaz ora<strong>do</strong>r para dissuadi-la <strong>do</strong> intento. Pudera<br />
considerar na dificul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> saí<strong>da</strong>, haven<strong>do</strong> de desamparar a casa de seu pai,<br />
a pátria em que nasceu e se criou, o estímulo de sua fama, o timbre <strong>da</strong> opinião,<br />
o propugnáculo de seu crédito, o acrisola<strong>do</strong> <strong>da</strong> honra, abrin<strong>do</strong> as portas aos<br />
juízes <strong>do</strong> vulgo condenarem a sua livian<strong>da</strong>de e ocasionan<strong>do</strong> a seu pai<br />
irreparáveis desgostos e seus parentes incentivos de maior vingança, e tu<strong>do</strong><br />
por fiar-se <strong>da</strong> palavra de um mancebo forasteiro, sem mais seguranças que a<br />
promessa que podia faltar, por mais que julgasse por infalível. Destas e outras<br />
considerações podia causar-se tal mu<strong>da</strong>nça que desluzisse a fortuna em um<br />
instante quanto a ventura prometia a meus desvelos.<br />
Neste tempo em que vacilava meu desejo no flutuoso de tantos<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, tive um aviso de Aurora, em que dizia que <strong>da</strong>í a oito dias havia de<br />
seu pai fazer ausência <strong>da</strong> casa por alguns dias e que para então estivesse<br />
preveni<strong>do</strong> para a parti<strong>da</strong>. Alegrou-me o aviso, mas suspendeu-me a alegria a<br />
demora <strong>do</strong> tempo, pois oito dias de espaço, sen<strong>do</strong> prazo interminável para uma<br />
esperança, podia causar mui diferentes os efeitos. Sete dias de tréguas<br />
concedeu Cleómenes, rei de Esparta, aos argivos e, quan<strong>do</strong> mais seguros com<br />
elas se julgavam, os assaltou na terceira noite, passan<strong>do</strong> muitos à espa<strong>da</strong> e<br />
cativan<strong>do</strong> aos outros, dizen<strong>do</strong> cautelosamente que ele prometera assegurar os<br />
dias e não as noites; e em tão breve espaço se viram cativos e destruí<strong>do</strong>s os<br />
que livres se imaginaram. Bem disse Euripides 544 que Marte odiava<br />
grandemente aos vagares, e como amor seja to<strong>do</strong> guerra, aborrece igualmente<br />
Auson., in Eglog.<br />
Eurip., in Heracl.
606 Padre Mateus Ribeiro<br />
as demoras, porque muitas vezes na dilação se disfarça o desacerto. Daqui<br />
veio a dizer Demétrio 545 , como refere Estobeu, que os vagares fazem sair<br />
imperfeitas as empresas. Este temor lisonjea<strong>do</strong> <strong>da</strong> esperança, ou esta<br />
esperança pensiona<strong>da</strong> <strong>do</strong> temor, <strong>do</strong>us verdugos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>do</strong>us martírios <strong>do</strong><br />
desejo, iam em mim corren<strong>do</strong> parelhas com os dias, parecen<strong>do</strong>-me um século<br />
dilata<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> dia que com meu desejo competia. O sol me parecia que tar<strong>da</strong>va<br />
em apressar ao dia e que se descui<strong>da</strong>va para chegar-se a noite. Pouco tem de<br />
sofri<strong>da</strong> uma esperança, tu<strong>do</strong> julga que corre vagaroso para seu tormento, e<br />
quan<strong>do</strong> teme perigos para desempenhar-se, alimenta-se de sustos, fazen<strong>do</strong><br />
sustento <strong>da</strong> mesma aflição em que vive. Seis dias eram passa<strong>do</strong>s deste prazo<br />
de mim tão espera<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> vieram à quinta <strong>do</strong> pai de Aurora <strong>do</strong>us tios <strong>do</strong><br />
preso Júlio Galeazzo, pessoas bem autoriza<strong>da</strong>s e poderosas em Bolonha, em<br />
companhia <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor Claudino, insigne catedrático e eloquente ora<strong>do</strong>r, e por tal<br />
na universi<strong>da</strong>de conheci<strong>do</strong>; aos quais saiu a receber Octávio Lamberias e,<br />
subin<strong>do</strong> com eles acima, lhe pediram fizesse com a senhora Aurora que os<br />
ouvisse. Estava já em parte aplaca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s vingativos desejos <strong>da</strong> morte de seu<br />
filho Aurélio e desejoso que Aurora consentisse neste tão pretendi<strong>do</strong><br />
casamento, para que estas opostas famílias, pon<strong>do</strong> de parte os ódios, em paz<br />
e amizade vivessem: entran<strong>do</strong> no quarto de Aurora, a obrigou a que, por não<br />
faltar à cortesia que a pessoas tão respeita<strong>da</strong>s se devia, quisesse ouvi-los, pois<br />
desde Bolonha tinham vin<strong>do</strong> só a falar-lhe. Com pouco gosto obedeceu ela aos<br />
rogos de seu pai, como quem tinha tão diferentes os intentos; mas mostran<strong>do</strong>-<br />
se respeitosa às ordens e petição de seu pai, saiu fora; e depois <strong>da</strong>s devi<strong>da</strong>s<br />
cortesias, toman<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s assento, Claudino começou a falar assim:<br />
- Bem considero, senhora, que enquanto o sentimento for mais<br />
poderoso que o discurso de vosso bom juízo, e vos oprimir mais a paixão a<br />
vontade de que a razão vos licenciar os ditames de entendi<strong>da</strong>, nem eu serei<br />
ouvi<strong>do</strong> com atenção, nem minhas palavras pondera<strong>da</strong>s com madureza, pois<br />
um coração apaixona<strong>do</strong> raras vezes admite discursos proveitosos. Lembra-me<br />
que queren<strong>do</strong> orar em Roma Cipião Africano contra o excessivo poder que os<br />
tribunos <strong>do</strong> povo adquiri<strong>do</strong> tinham, o povo lhe voltou as costas e o não quis<br />
ouvir. E queren<strong>do</strong> Catalão em outra ocasião orar no rosto <strong>da</strong> praça de Roma<br />
Demetrius.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 607<br />
contra César, não só não foi ouvi<strong>do</strong>, mas ain<strong>da</strong> com violência <strong>da</strong> cadeira tira<strong>do</strong>.<br />
Bem disse Euripides que era mais fácil empenho dizer o que agra<strong>da</strong> <strong>do</strong> que o<br />
que aproveita; porque o primeiro sempre lisonjeia o gosto e o segun<strong>do</strong> nem<br />
sempre assegura a atenção. Porém como meu intento seja o agradável <strong>da</strong> paz<br />
e não o calamitoso <strong>da</strong> guerra, o útil <strong>da</strong> concórdia e não o arrisca<strong>do</strong> <strong>do</strong> ódio, a<br />
tranquili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> união e não o tempestuoso <strong>da</strong> vingança, o saudável <strong>da</strong><br />
amizade e não o nocivo <strong>do</strong> aborrecimento, e finalmente o esquecimento <strong>da</strong>s<br />
parciali<strong>da</strong>des e o princípio <strong>do</strong> amor, vos peço, senhora Aurora, queirais com<br />
paciência ouvir-me este espaço que a cortesia <strong>do</strong> senhor Octávio Lamberias<br />
me concede para poder falar-vos, porque quan<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> vos não deva o<br />
despacho, ao menos vos fique deven<strong>do</strong> a cortesia <strong>da</strong> atenção.<br />
Conheço que a morte <strong>do</strong> senhor Aurélio, que esteja em glória, é<br />
merece<strong>do</strong>ra de to<strong>do</strong> o justo sentimento, pois outro irmão não tínheis e ele por<br />
sua pessoa e valor merecia tanto. Mas quan<strong>do</strong> respeitou a morte<br />
merecimentos? Costuma fazer o emprego de seu golpe no que mais custa,<br />
para nos privar <strong>do</strong> que mais vai. Discretamente disse o Séneca que os mortos<br />
vão ensinan<strong>do</strong> os caminhos aos vivos, pois em jorna<strong>da</strong> tão precisa, quan<strong>do</strong> um<br />
de vista se perde, já o outro se lhe avizinha. Pendenciou o senhor Aurélio com<br />
o preso Júlio: os motivos teriam origem na desconfiança e esta as raízes nas<br />
antigas parciali<strong>da</strong>des e contrários ban<strong>do</strong>s de Galeazzo e Lambertases, famílias<br />
tão ilustres como opostas, por quem tanto sangue se tem derrama<strong>do</strong> nas<br />
praças de Bolonha, tantos incêndios devasta<strong>do</strong> o sumptuoso de seus edifícios,<br />
tantas hostili<strong>da</strong>des assola<strong>do</strong>s os campos; pois se algum dia hão-de terminar-se<br />
estas cruentas ruínas, a Bolonha vossa pátria tão nocivas e ain<strong>da</strong> a to<strong>da</strong> Itália<br />
lamentáveis, em vossa mão está hoje seu remédio, para que em Bolonha viva<br />
desassombra<strong>da</strong> vossa família sem sustos e Itália sem pensão de tão repeti<strong>da</strong>s<br />
inquietações. Porque como estas tão ilustres nas mais <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des lançaram<br />
raízes por honrosos casamentos, a to<strong>da</strong>s chegam os pesares que se lhe<br />
comunicam de seu tronco.<br />
Direis, senhora Aurora, e com razão, que como sen<strong>do</strong> morto o senhor<br />
Aurélio e preso o homici<strong>da</strong> Júlio, preten<strong>do</strong> eu que em lugar <strong>do</strong> castigo se lhe dê<br />
perdão e se confirmem pazes? Ao que responderei com o que diz Platão na
608 Padre Mateus Ribeiro<br />
sua República que assim como para as ci<strong>da</strong>des não há cousa de maior<br />
detrimento que a guerra, assim não há cousa mais proveitosa que a paz.<br />
É o nome, como escreve Cícero 547 , a cousa mais suave, o título mais<br />
festivo e a iguaria mais sabrosa. Assim disse Tito Lívio 548 que era de maior<br />
estimação qualquer paz possuí<strong>da</strong> que a mais gloriosa vitória espera<strong>da</strong>. O<br />
insigne capitão Sertório nunca pedia paz ao sena<strong>do</strong> de Roma, senão quan<strong>do</strong><br />
se via vence<strong>do</strong>r. Venceu o grande Pompeu a Mitri<strong>da</strong>tes, rei de Ponto, depois<br />
de tão cruentas e repeti<strong>da</strong>s guerras; e quan<strong>do</strong> imaginava depor as armas, lhe<br />
chegou novo decreto <strong>do</strong> sena<strong>do</strong>, para que de novo movesse a guerra na<br />
conquista <strong>da</strong>s Províncias <strong>do</strong> Oriente. Ao que ele, impaciente, exclamou,<br />
dizen<strong>do</strong>:<br />
- Oh quanto melhor me fora haver nasci<strong>do</strong> montanhês rústico <strong>do</strong> campo,<br />
em que gozara a deliciosa vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> paz, <strong>do</strong> que haver em Roma nasci<strong>do</strong> lustre,<br />
para não depor as armas, viven<strong>do</strong> sempre no bulício inquieto e no conflito<br />
estron<strong>do</strong>so <strong>da</strong> guerra.<br />
To<strong>da</strong>s as guerras, quan<strong>do</strong> são justas, tem por fim a paz, como ensina<br />
Santo Agostinho 549 e o escreve Vegécio 550 ; as vi<strong>da</strong>s mortais não podem ser<br />
eternas: se houvessem de perseverar sempre as discórdias e guerras, além <strong>do</strong><br />
que podem durar as vi<strong>da</strong>s, nem as guerras teriam quem as seguisse, nem a<br />
paz quem a lograsse. Além <strong>do</strong> que, se os pais deixassem a seus filhos a<br />
intolerável pensão de que juntamente com a sucessão <strong>da</strong>s casas e morga<strong>do</strong>s<br />
houvessem de continuar o agro <strong>da</strong>s discórdias, o nocivo <strong>da</strong>s vinganças e<br />
hostili<strong>da</strong>des <strong>do</strong>s ódios parciais, e quan<strong>do</strong> abriam os olhos <strong>da</strong> razão se vissem<br />
oprimi<strong>do</strong>s de sucederem nas discórdias veteranas que eles não ocasionaram,<br />
seria tributo tão sofrível que mil vezes desejariam antes não sucederem nos<br />
bens e títulos paternos <strong>do</strong> que possui-los com um gravame tão odioso e<br />
arrisca<strong>do</strong>.<br />
Plat., De Republ.<br />
Cie, Phil. 5.<br />
Tit. Liv., Lib. 1. dec. 3.<br />
Aug., De bono.<br />
Vegec, Lib. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 609<br />
Bem arrependi<strong>do</strong>, e já sem tempo, se queixava o cartaginês Aníbal de<br />
seu pai Amílcar o haver feito jurar em tenra i<strong>da</strong>de que sempre faria guerra aos<br />
romanos e nunca com eles faria paz; quan<strong>do</strong>, depois de desbarata<strong>do</strong> e<br />
diversas vezes venci<strong>do</strong>, fugitivo em Ásia se viu deles tão persegui<strong>do</strong>, sem lhe<br />
consentirem quietação em parte alguma, que ven<strong>do</strong> que Prusias, rei de Bitínia,<br />
o man<strong>da</strong>va matar à petição e instância de Quinto Flamínio, capitão <strong>do</strong>s<br />
romanos, lhe foi forçoso valer-se <strong>do</strong> veneno para acabar a vi<strong>da</strong> que via já<br />
impossibilita<strong>da</strong> a conservar-se. Com a paz, diz o padre Santo Agostinho, as<br />
ci<strong>da</strong>des se edificam de novo e com as guerras e discórdias as mais ilustres e<br />
populosas se acabam. Quem poderá hoje sinalar ao certo os sítios em que<br />
estiveram Esparta, Messénia, Tróia, Tebas, Atenas e outras inumeráveis que<br />
pelas discórdias, parciali<strong>da</strong>des e ban<strong>do</strong>s de seus mora<strong>do</strong>res, ou pelas<br />
repeti<strong>da</strong>s guerras de seus inimigos, consumiu o tempo, desluzin<strong>do</strong> a memória<br />
<strong>do</strong> que de antes foram? Quantas extinguiu a controvérsia <strong>da</strong>s vontades e<br />
quantas sepultou sem epitáfio o ar<strong>do</strong>r bélico <strong>da</strong>s vinganças, queren<strong>do</strong><br />
satisfazer mais ao ódio que à razão, mais à ambição que à justiça?<br />
Entre to<strong>da</strong>s as ci<strong>da</strong>des de Itália, e ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> Europa, tem si<strong>do</strong> Bolonha a<br />
que tem padeci<strong>do</strong> as maiores calami<strong>da</strong>des, desde seus princípios, com os<br />
ban<strong>do</strong>s lamentáveis <strong>do</strong>s Bentivolhos, Ganelódios, Lambertases e Galeazzos,<br />
fican<strong>do</strong> já como herança de sucessão de pais a filhos a contínua repetição<br />
destes ódios envelheci<strong>do</strong>s, como com o sangue gera<strong>do</strong>s, para tanta efusão <strong>do</strong><br />
mesmo sangue. Chamou Teo<strong>do</strong>ro a Tibério, seu discípulo, consideran<strong>do</strong> a<br />
cruel<strong>da</strong>de de sua indignação, barro amassa<strong>do</strong> com sangue; e assim pudera eu<br />
dizer <strong>do</strong> muito que se tem derrama<strong>do</strong> nos palácios e praças de Bolonha, que já<br />
os filhos destas contrárias famílias nasciam inclina<strong>do</strong>s a derramarem o sangue<br />
de seus competi<strong>do</strong>res; e que parece que nos mesmos peitos a que se criavam,<br />
bebiam sangue em lugar de leite, crian<strong>do</strong>-se para o destroço, sen<strong>do</strong> muitos<br />
ministros de sua própria ruína.<br />
Agora, depois de tantos <strong>da</strong>nos que executou o furor e de tantos<br />
homicídios que cometeu a vingança, brotan<strong>do</strong> como a Hidra de Hércules de<br />
uma cabeça corta<strong>da</strong> tantas cabeças vivas, chega o tempo venturoso em que<br />
vós, senhora Aurora, o sejais nos felices efeitos como no nome, desterran<strong>do</strong> de<br />
vossa pátria as escuras sombras de tão dilata<strong>da</strong> noite de tristezas. Em vossa<br />
mão se põe o dia alegre <strong>da</strong> paz, sen<strong>do</strong> arbitra dela. Comparou o padre Santo
610 Padre Mateus Ribeiro<br />
Agostinho a consonância <strong>da</strong> paz com a harmonia <strong>da</strong>s vozes, que se to<strong>da</strong>s se<br />
ajustam, tu<strong>do</strong> é melodia suave. Sem paz não pode haver gosto perfeito, diz S.<br />
João Crisóstomo, porque só ela é a cabal dispenseira <strong>da</strong>s alegrias. A parte<br />
maior <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> gasta nos vingativos o desejo de satisfazer <strong>do</strong>s agravos, o<br />
aborrecimento de considerar em seus ofensores as melhoras <strong>da</strong> ventura, o<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so desvelo de arruinar as felici<strong>da</strong>des que nos outros lhe não sofre o<br />
veneno <strong>da</strong> inveja, sen<strong>do</strong> estas tempestades <strong>da</strong> alma tormentas que não<br />
admitem bonança, antes borrascas em que naufragam ain<strong>da</strong> os maiores<br />
pilotos.<br />
O preso Júlio Galeazzo, discretamente arrependi<strong>do</strong>, pede perdão <strong>da</strong><br />
morte <strong>do</strong> senhor Aurélio Lamberias, executa<strong>da</strong> mais para defensa de sua<br />
própria vi<strong>da</strong> que por desejo de ofender a alheia. Da infelice pendência que<br />
ambos tiveram também ele saiu feri<strong>do</strong>: foi o golpe mais <strong>da</strong> fortuna que de seu<br />
braço; ele empunhou a espa<strong>da</strong> e a sorte adversa apontou a feri<strong>da</strong>. Encontrou-<br />
se a vontade com o destino. E o que se dirigia à defensa se terminou em<br />
homicídio. Se com sua vi<strong>da</strong> puni<strong>da</strong> pudera restaurar-se a <strong>do</strong> defunto, desculpa<br />
tivera o desejo de que morresse; pois com sua morte se recuperava uma vi<strong>da</strong> e<br />
com seu sangue derrama<strong>do</strong> renascia o <strong>do</strong> senhor Aurélio para de novo ocupar<br />
suas já consumi<strong>da</strong>s veias. Porém se a morte <strong>do</strong> vivo não pode restaurar a vi<strong>da</strong><br />
<strong>do</strong> morto, pois não consiste no desejo de quem o solicita, mas no poder infinito<br />
de Deus que só pode dá-la, arbítrio <strong>da</strong> discrição é pôr tréguas ao sentir, pois o<br />
dilata<strong>do</strong> sentimento nem serve à pena de remédio, nem à per<strong>da</strong> irreparável de<br />
alívio. O que é impossível de conseguir-se, diz o Séneca, possível é de largar-<br />
se; pois empregar os desvelos <strong>do</strong> sentimento em cousas impossíveis, seria<br />
violentar o coração a despender o vivo <strong>da</strong>s mágoas contra a proibição <strong>do</strong> juízo.<br />
O senhor lega<strong>do</strong> de Bolonha, justamente ressenti<strong>do</strong> <strong>da</strong> detestável<br />
perseverança destas nocivas parciali<strong>da</strong>des, para pôr fim com o castigo a tão<br />
repeti<strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>s, se determina a man<strong>da</strong>r degolar ao preso Júlio pelo<br />
homicídio, ou a lhe <strong>da</strong>r perdão se vós, senhora Aurora, lhe quiserdes <strong>da</strong>r a mão<br />
de esposa, para que com este venturoso casamento, em que to<strong>do</strong>s de ambas<br />
estas ilustres famílias concor<strong>da</strong>m, os antigos ódios e ban<strong>do</strong>s fiquem extintos, a<br />
paz segura, a concórdia durável e a amizade firme. Sujeito é Júlio Galeazzo<br />
por sua pessoa e riqueza merece<strong>do</strong>r de tal emprego, porque to<strong>da</strong>s as partes<br />
tem para estima<strong>do</strong>, pelo ilustre <strong>do</strong> sangue, pelo valor <strong>da</strong> pessoa, pela riqueza e
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 611<br />
pelo juízo. Na<strong>da</strong> na ver<strong>da</strong>de lhe falta mais que a ventura. E esta em vós está o<br />
fazê-lo venturoso. Não é pequeno privilégio o que lograis, em poderdes com<br />
um sim <strong>da</strong>r à vossa pátria a paz que to<strong>do</strong>s desejamos e a ele comunicar-lhe a<br />
ventura que só lhe falta. O senhor Octávio, vosso pai, como tão ajusta<strong>do</strong>,<br />
convém neste tão acerta<strong>do</strong> parti<strong>do</strong>; só falta <strong>da</strong>rdes vós a ele o consentimento<br />
como pie<strong>do</strong>sa e não menos discreta, para que Júlio vos fique deven<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong>,<br />
Bolonha a paz, to<strong>do</strong>s a geral alegria e nós o contentamento desta jorna<strong>da</strong>, para<br />
ficar sen<strong>do</strong> tão felice como desejamos.<br />
Cap. V.<br />
Como Aurora mostrou mu<strong>da</strong>r-se <strong>do</strong> intento que tinha e <strong>do</strong> que Hortênsio sobre<br />
isso fez<br />
Deu fim Claudiano à sua prática e proposta. A quem, depois de um<br />
breve intervalo, Aurora respondeu assim:<br />
- As letras e erudição de tão insigne catedrático seriam poderosas a<br />
persuadirem, senhor Claudiano, a to<strong>do</strong>s que ouvissem o elegante estilo de sua<br />
peroração; porém em mim, como mais grosseira no entender ou por mais<br />
delica<strong>da</strong> no sentir, não chega o erudito a incitar-me os ditames de pie<strong>do</strong>sa,<br />
para que haja de receber por esposo a meu maior inimigo. É o matrimónio<br />
vínculo de amor e não condiz com meu aborrecimento, e sen<strong>do</strong> tálamo <strong>da</strong> paz,<br />
não se amol<strong>da</strong> a estímulos de guerra. E bem: Que diria quem visse, pouco<br />
disse, visse nem ain<strong>da</strong> imaginasse que houvesse de <strong>da</strong>r eu a mão de esposa à<br />
própria mão que a Aurélio, meu defunto irmão, tirou a vi<strong>da</strong>? Nunca vossa<br />
mercê advertiu na contínua lição de tantos livros que a Castor e Pólux<br />
colocaram os poetas nas estrelas pelo grande amor que se tiveram, como<br />
escreve Homero; chegan<strong>do</strong> a tanto o amor destes irmãos que, morren<strong>do</strong><br />
primeiro Castor, fingiram lhe concedera Pólux a metade de sua própria vi<strong>da</strong>,<br />
para que com ela de novo vivesse e luzisse? As estrelas Plêiades igualmente<br />
no céu os poetas colocaram, porque morreram de senti<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s contínuas<br />
lágrimas que derramaram pela morte <strong>do</strong> malogra<strong>do</strong> moço Hias, seu irmão,<br />
morto por um leão, desastra<strong>da</strong>mente, an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> à caça. E para que me não<br />
valha de alegorias fabulosas <strong>do</strong>s poetas, trarei eu exemplos ver<strong>da</strong>deiros que
612 Padre Mateus Ribeiro<br />
alguma hora li, quan<strong>do</strong> meus sentimentos me concediam mais espaço a folheá-<br />
los, que as lágrimas depois me proibiram.<br />
Condenan<strong>do</strong> Dário, rei <strong>do</strong>s persas, à morte a Intafernes, ilustre persiano,<br />
e juntamente com ele a seu filho e cunha<strong>do</strong>, irmão de sua mulher, por um<br />
desacato grande que no paço cometeram, e movi<strong>do</strong> à compaixão <strong>da</strong>s<br />
lastimosas lágrimas que a mulher, mãe e irmã <strong>do</strong>s condena<strong>do</strong>s derramavam,<br />
lhe deu que <strong>do</strong>s três escolhesse um, a quem por amor dela concederia a vi<strong>da</strong>;<br />
e ela escolheu a seu irmão para que vivesse. De que admiran<strong>do</strong>-se o rei, e<br />
ven<strong>do</strong> pela razão que ela <strong>da</strong>va que discretamente escolhera, concedeu<br />
também a vi<strong>da</strong> ao filho. Seleuco, filho de Antíoco Magno, tanto que tomou<br />
posse <strong>do</strong> reino de Assíria, para livrar a seu irmão Antíoco, o moço, que estava<br />
prisioneiro em Roma e <strong>da</strong><strong>do</strong> em reféns desde o tempo <strong>da</strong>s guerras de seu pai,<br />
man<strong>do</strong>u a Demétrio, seu próprio filho, a Roma, para ficar nela prisioneiro, por<br />
<strong>da</strong>r a liber<strong>da</strong>de a seu irmão. Queixou-se o romano Marco António de sua mãe<br />
que em querer impetrar a vi<strong>da</strong> a Lúcio António, seu irmão e tio de Marco<br />
António, que com Lépi<strong>do</strong> e Augusto César o tinham proscrito e à morte<br />
condena<strong>do</strong>, se mostrara ter tanto de mãe cruel como de irmã pie<strong>do</strong>sa, pois a<br />
troco de conservar a vi<strong>da</strong> a seu irmão, deixava um inimigo perpétuo contra seu<br />
filho.<br />
Pois se o amor <strong>do</strong>s irmãos é tão poderoso, como poderei eu persuadir-<br />
me a receber por esposo a quem ficou <strong>do</strong> próprio sangue de meu irmão<br />
mancha<strong>do</strong>? Darei eu a mão de esposa a quem foi o verdugo de sua malogra<strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> e no mais flori<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anos cortou em flor tão lustrosas esperanças? Terão<br />
porventura meus olhos, de lágrimas eclipsa<strong>do</strong>s, luz para verem a quem foi o<br />
motivo cruel de eu derramá-las? Que segurança poderei ter de viver de umas<br />
portas adentro com quem em meu sangue banhou a espa<strong>da</strong>? E que diria o<br />
mun<strong>do</strong>, registro <strong>da</strong>s acções e censor rigoroso ain<strong>da</strong> <strong>do</strong>s pensamentos, ven<strong>do</strong><br />
que, em lugar <strong>do</strong> castigo, recebia Júlio o prémio de alcançar-me por esposa?<br />
Porque suposto que antes deste homicídio pudesse merecer muito, hoje, no<br />
esta<strong>do</strong> presente, para to<strong>do</strong> o merecimento está inábil. Se meu pai, o senhor<br />
Octávio, quer, movi<strong>do</strong> de pie<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>r-lhe perdão, eu não lho impi<strong>do</strong>. E se o<br />
senhor lega<strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r quiser <strong>da</strong>r-lhe a vi<strong>da</strong>, poderes tem para fazê-lo.<br />
Porém que eu haja de <strong>da</strong>r consentimento em admiti-lo por esposo, nem a <strong>do</strong>r<br />
mo permite, nem a causa o requer, nem o derrama<strong>do</strong> sangue de meu irmão o
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 613<br />
consente. As riquezas de Júlio Galeazzo, eu as escuso. Que quan<strong>do</strong> meu pai<br />
não possuíra tantas com que assegurar meu esta<strong>do</strong>, bastante o era para mim a<br />
clausura de um convento, em abono de que nenhuma ambição foi poderosa<br />
para persuadir-me a terminar a lembrança e <strong>da</strong>r tréguas ao justo sentimento de<br />
tão injusta morte.<br />
Deu fim Aurora ao discurso e princípio ao enterneci<strong>do</strong> com algumas<br />
lágrimas; que nunca perde a aurora os aplausos <strong>da</strong> beleza por se mostrar<br />
chorosa, sen<strong>do</strong> os aljofra<strong>do</strong>s dilúvios que derrama pérolas que a tocam, jóias<br />
que a enriquecem. Moveram em Octávio, seu pai, de novo enterneci<strong>da</strong>s<br />
memórias suas lágrimas. Que para um coração justamente magoa<strong>do</strong>, menos<br />
incentivos são poderosos para demover ao maior sentimento. Ain<strong>da</strong> em<br />
Claudiano deram rebate nos olhos uns assaltos de sentimento; mas ven<strong>do</strong>,<br />
como discreto, que vinham a perigar os efeitos de eloquente nos assomos de<br />
compassivo, e lembran<strong>do</strong>-se que viera a persuadir a uma vontade de quem<br />
pendia de Júlio a vi<strong>da</strong>, destas famílias a paz e de Bolonha o sossego, além <strong>do</strong><br />
crédito de suas letras e opinião de sua pessoa em conseguir venturoso o que<br />
emprendeu confia<strong>do</strong>, fingin<strong>do</strong> no rosto alegria e disfarçan<strong>do</strong> a pena no<br />
coração, acções próprias de ora<strong>do</strong>r eloquente, replicou, dizen<strong>do</strong>:<br />
- E bem, senhora Aurora, há-de ser em vós mais poderosa a tristeza<br />
que a razão, o passa<strong>do</strong> que o presente, o particular que o público, o vingativo<br />
que o pie<strong>do</strong>so e o estranha<strong>do</strong> que o aplaudi<strong>do</strong>? Não posso persuadir-me tal de<br />
vosso grande juízo, que, por perpetuardes um sentimento, queirais eternizar<br />
uma discórdia. Sen<strong>do</strong> esta (como disse Tito Lívio 551 ) tão nociva que de uma<br />
ci<strong>da</strong>de faz duas pela desunião <strong>da</strong>s vontades. Codro, rei de Atenas, na cruel<br />
guerra que contra sua pátria moveram conjura<strong>da</strong>s as ci<strong>da</strong>des <strong>do</strong> Peloponeso,<br />
voluntariamente se ofereceu à morte, só para assegurar-lhe a conservação.<br />
Para arruinar uma ci<strong>da</strong>de poderosa, diz Vegécio 552 que o meio mais eficaz era<br />
o semear discórdias entre os ci<strong>da</strong>dãos mais poderosos dela. Donde veio a<br />
dizer Valério Máximo que não menos generosa acção era acrescentar à pátria<br />
os bens <strong>do</strong> que, evitan<strong>do</strong> o perigo, perseverá-la <strong>do</strong>s males. Sen<strong>do</strong> esta a<br />
Tit. Liv., Lib. 6. dec. 1<br />
Vegec, Lib. 3.
614 Padre Mateus Ribeiro<br />
obrigação <strong>do</strong>s filhos ilustres à sua pátria, que (como ensina Cícero 553 ) é de<br />
to<strong>do</strong>s o maior parentesco, como vós, senhora, sen<strong>do</strong> de Bolonha tão ilustre<br />
filha, quereis com os excessos <strong>do</strong> sentir não só arriscar vossa pátria, mas<br />
juntamente vossa família to<strong>da</strong> a uma ruína? Pois <strong>da</strong> morte <strong>do</strong> preso Júlio,<br />
sen<strong>do</strong> tão aparenta<strong>do</strong>, se não podem esperar senão lamentáveis vinganças.<br />
Esta é a razão por que o senhor lega<strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r tanta instância faz neste<br />
tão útil casamento; para que com ele os ódios se sepultem, a paz reverdeça e<br />
as raízes destas discórdias de to<strong>do</strong> arranca<strong>da</strong>s se sequem. Com a guerra tu<strong>do</strong><br />
vive arrisca<strong>do</strong> e com a paz tu<strong>do</strong> fica seguro. Daqui procedeu (como conta<br />
Herodiano) que os romanos mais ricos e poderosos costumavam ter os erários<br />
de seus tesouros e riquezas deposita<strong>do</strong>s e guar<strong>da</strong><strong>do</strong>s no templo <strong>da</strong> Paz, <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
a entender que só nela se assegurava o que fora dela se arrisca.<br />
O insigne capitão Temístocles Ateniense se matou com veneno que<br />
bebeu, ven<strong>do</strong> que Xerxes o queria obrigar a vir com poderoso exército contra<br />
Grécia e contra Atenas, sua pátria, e quis antes acabar a vi<strong>da</strong>; que dirá o<br />
mun<strong>do</strong>, ven<strong>do</strong>-vos com Júlio casa<strong>da</strong>, que a vosso irmão deu a morte? Dirá que<br />
fostes tão generosa que soubestes sacrificar vossa vontade, antepon<strong>do</strong> o bem<br />
comum de vossa pátria a vosso gosto particular, e que soubestes vencer a<br />
repugnância <strong>do</strong> sentir com os desejos de aproveitar. Depois <strong>do</strong> cruento <strong>da</strong>s<br />
guerras se vem a celebrar a paz; e os meios mais convenientes para ser firme<br />
foram os casamentos com que se vincularam. Para se comporem as guerras<br />
entre Júlio César e o grande Pompeu, entre Augusto e Marco António, foram<br />
vínculos os casamentos que se contrataram. Porque (como disse Homero) a<br />
concórdia <strong>do</strong> tálamo nupcial é a mais agradável e a mais firme.<br />
Para se terminarem as cruelíssimas guerras que os go<strong>do</strong>s faziam em<br />
Itália contra o empera<strong>do</strong>r Honório se <strong>caso</strong>u Ataulfo, rei <strong>do</strong>s go<strong>do</strong>s, com Gala<br />
Placídia, irmã <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r; e isto depois de o rio Tibre correr em on<strong>da</strong>s de<br />
sangue que derramou de uma e outra parte o furor endureci<strong>do</strong> <strong>do</strong> conflito<br />
militar. Para se estabelecerem as repeti<strong>da</strong>s guerras entre el-rei Dom Bermu<strong>do</strong><br />
de Leão e Dom Sancho, rei de Navarra, <strong>caso</strong>u <strong>do</strong>m Fernan<strong>do</strong>, primogénito d'el-<br />
rei de Navarra, com Dona Sancha, irmã d'el-rei de Leão. E ain<strong>da</strong> o grande<br />
Alexandre, depois de despojar a Dário <strong>do</strong> império <strong>do</strong> Oriente e lhe ocasionar a<br />
Cie, De Orat.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 615<br />
morte, matan<strong>do</strong>-lhe milhares de sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, se <strong>caso</strong>u com sua filha para<br />
perpetuar a paz com os persianos, como ele mesmo disse na prática que fez<br />
aos persianos, como escreve Quinto Cúrcio.<br />
Pois se entre tantos monarcas e os maiores <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ao fim de tantas<br />
mortes executa<strong>da</strong>s, tantos reinos perdi<strong>do</strong>s, tantas ci<strong>da</strong>des assola<strong>da</strong>s,<br />
derrama<strong>do</strong>s mares de sangue, em cujas purpúreas on<strong>da</strong>s navegou a vingança,<br />
largou to<strong>da</strong>s as velas o furor e naufragaram as vi<strong>da</strong>s, houve casamentos, para<br />
com eles se confirmar a paz e ser durável a concórdia; como vós só, senhora<br />
Aurora, quereis mostrar-vos tão única no sentir que pareçais inexorável no<br />
conceder? Não considerais que muitas vezes de não aceitar-se a paz ofereci<strong>da</strong><br />
se dá motivo a ser a guerra mais obstina<strong>da</strong>? Assim sucedeu a Totila, rei <strong>do</strong>s<br />
go<strong>do</strong>s: abrasou a ci<strong>da</strong>de de Roma com o Capitólio e lhe assolou quasi de to<strong>do</strong>s<br />
os muros, deixan<strong>do</strong> o espectáculo lamentável, indigna<strong>do</strong> e ressenti<strong>do</strong> de o<br />
empera<strong>do</strong>r Justiniano lhe não querer aceitar nem conceder a paz que lhe<br />
pedia. Converte-se em um furor muitas vezes um despreza<strong>do</strong> sofrimento, e o<br />
que foi humil<strong>da</strong>de <strong>do</strong> rogo <strong>da</strong> cortesia, vem pela pouca estimação a degenerar<br />
em vingança. Se o preso Júlio for degola<strong>do</strong> pela morte <strong>do</strong> senhor Aurélio, nem<br />
vosso pai, o senhor Octávio, ficará seguro, nem vossos parentes encastela<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>s arrojos e tumultos <strong>do</strong> furor vingativo, sen<strong>do</strong> Júlio o principal <strong>da</strong> família <strong>do</strong>s<br />
Galeazzos, que à vista de sua morte se podem incitar à hostili<strong>da</strong>des para to<strong>do</strong>s<br />
nocivas. Não basta a Bolonha, vossa pátria, haver padeci<strong>do</strong> tantas tormentas,<br />
que ain<strong>da</strong> lhe pretendeis ocasionar maiores incêndios em que se abrase? Não<br />
são bastantes tantas vinganças executa<strong>da</strong>s, tantas insolências cometi<strong>da</strong>s,<br />
tantas casas assola<strong>da</strong>s, tantos foragi<strong>do</strong>s criminosos? Senão que ain<strong>da</strong><br />
intenteis que se acabe de arruinar o pouco que ficou reserva<strong>do</strong> <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s<br />
tumultuosas <strong>do</strong> furor e privilegia<strong>do</strong> <strong>da</strong>s tempestades <strong>da</strong> ira? Se a isto vos move<br />
o sentimento excessivo que mostrais <strong>da</strong> morte <strong>do</strong> senhor Aurélio, vosso irmão,<br />
os mortos não solicitam vingança, antes por sem dúvi<strong>da</strong> julgo que, se nos fora<br />
possível consultar seu parecer nesta proposta em que estamos, <strong>da</strong>ria por bem<br />
emprega<strong>da</strong> sua morte, a fim de ver em sua pátria estabeleci<strong>da</strong> esta paz. É o<br />
bem universal de uma república o empenho próprio <strong>do</strong>s bem nasci<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s<br />
entendi<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>s zelosos dela. Bem se viu no romano Marco Atílio Régulo, que<br />
estan<strong>do</strong> em Cartago cativo e sen<strong>do</strong> debaixo de palavra man<strong>da</strong><strong>do</strong> a Roma em<br />
companhia <strong>do</strong>s embaixa<strong>do</strong>res cartagineses, para persuadir ao sena<strong>do</strong> a fazer
616 Padre Mateus Ribeiro<br />
pazes com Cartago; ele ven<strong>do</strong> que não convinham elas ao crédito e autori<strong>da</strong>de<br />
de Roma, sua pátria, persuadiu ao sena<strong>do</strong> que não as fizesse. E quis antes<br />
expor-se a padecer a cruel morte que, tornan<strong>do</strong> ao cativeiro, os de Cartago lhe<br />
deram, <strong>do</strong> que, asseguran<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> e liber<strong>da</strong>de, ver o menor desaire na glória<br />
de sua pátria Roma. Diz Cícero que aos bons ci<strong>da</strong>dãos convém oferecerem as<br />
vi<strong>da</strong>s, as fazen<strong>da</strong>s e as pessoas pelo bem de sua república. Porque (como diz<br />
Tito Lívio) em tanto estarão seguras as vi<strong>da</strong>s e fazen<strong>da</strong>s particulares, enquanto<br />
estiver segura a paz e quietação <strong>do</strong> bem público.<br />
Ó ilustres ci<strong>da</strong>dãos de Bolonha que estais na outra vi<strong>da</strong>, os que<br />
perdestes as vi<strong>da</strong>s nos conflitos <strong>da</strong>s vinganças, nos bélicos arrojos <strong>do</strong> furor<br />
parcial, nas temeri<strong>da</strong>des <strong>do</strong>s séquitos e ban<strong>do</strong>s detestáveis, a vós chamo por<br />
testemunhas desta ver<strong>da</strong>de, que se vos fora permiti<strong>do</strong> o <strong>da</strong>res hoje vosso<br />
parecer, com quanta razão direis aos que vivos e presentes estamos que foi<br />
vossa porfia eclipse <strong>da</strong> razão, engano <strong>do</strong> discurso; pois poden<strong>do</strong> com<br />
segurança possuirdes as delícias <strong>da</strong> paz, seguistes as hostili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> guerra, e<br />
poden<strong>do</strong> viver em união pacífica <strong>da</strong> amizade, que (como diz Aristóteles) é o<br />
maior bem <strong>da</strong> república, sen<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s ama<strong>do</strong>s, vos despenhastes rigorosos<br />
a morrerdes infelizmente de to<strong>do</strong>s aborreci<strong>do</strong>s. Direis sem dúvi<strong>da</strong>, e com<br />
razão, que só a paz é porto seguro, navegação bonançosa, castelo<br />
inexpugnável, vi<strong>da</strong> sem temores, alegria sem sobressaltos, posse sem litígios,<br />
felici<strong>da</strong>des sem pensão e ventura sem risco. Esta, senhora Aurora, vos vimos<br />
oferecer, para que o raro de vossa fermosura se logre feliz nos aplausos <strong>da</strong><br />
fama e possa mais convosco o pie<strong>do</strong>so hoje que o vingativo, que não condiz à<br />
fermosura a cruel<strong>da</strong>de. Mereça-vos vossa pátria, pois vos criou para admiração<br />
<strong>da</strong> beleza, o que não merece de quem vos julgais por ofendi<strong>da</strong>; sede extremo<br />
de pie<strong>do</strong>sa para que fiqueis sen<strong>do</strong> em tu<strong>do</strong> extremo.<br />
Assim deu fim Claudiano à peroração de sua proposta, de que Aurora se<br />
mostrou quasi venci<strong>da</strong>. E meten<strong>do</strong>-se por vale<strong>do</strong>res os rogos <strong>do</strong>s tios de Júlio<br />
e ain<strong>da</strong> os de seu pai Octávio que desejava, viven<strong>do</strong> com quietação, ver-se<br />
livre <strong>do</strong>s sustos destes inquietos tumultos, porque tolerável seria o agravo<br />
recebi<strong>do</strong>, se <strong>do</strong>s inquietos pun<strong>do</strong>nores <strong>da</strong> vingança o ofendi<strong>do</strong> se livrara, sen<strong>do</strong><br />
estes no agravo <strong>do</strong>bra<strong>da</strong> pensão <strong>da</strong> ofensa padeci<strong>da</strong>; mostrou Aurora que<br />
enfim era mulher em mu<strong>da</strong>r-se, responden<strong>do</strong> que obedeceria ao que seu pai<br />
fizesse. Alegre de tal nova, Claudiano e os tios <strong>do</strong> preso Júlio lhe renderam
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 617<br />
to<strong>do</strong>s as graças <strong>do</strong> favor que lhes fazia. E despedin<strong>do</strong>-se dela, foram<br />
juntamente com Octávio Lamberias a <strong>da</strong>rem conta ao lega<strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />
que negocia<strong>do</strong> tinham. Divulgou logo a fama notícias <strong>do</strong> sucesso de Bolonha,<br />
sen<strong>do</strong> de ca<strong>da</strong> qual avalia<strong>do</strong> conforme os afectos que ao preso tinham. Que<br />
nunca o desamor soleniza festejar as venturas de quem aborrece. Tem as<br />
admirações por primeiro berço em que nascem ao descostume, como disse<br />
Plínio Júnior; porque em chegan<strong>do</strong> a ter igual, logo perdeu os foros de<br />
admirável, que só por único admitia. Tal este casamento de Júlio Galeazzo<br />
com Aurora, que a fama divulgou, admirou a to<strong>do</strong>s; não só por não espera<strong>do</strong>,<br />
mas ain<strong>da</strong> por incrível de que sen<strong>do</strong> tão singular nas perfeições, viesse a ser<br />
de seu próprio inimigo por esposa possuí<strong>da</strong>.<br />
Apenas me chegou o anúncio desta não espera<strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça de Aurora,<br />
ven<strong>do</strong> corta<strong>da</strong>s em flor to<strong>da</strong>s minhas esperanças, ou por não serem minhas<br />
finezas cabalmente conheci<strong>da</strong>s, ou por serem mal afortuna<strong>da</strong>s, que raras<br />
vezes correm os merecimentos parelhas com a ventura, quan<strong>do</strong>, impaciente ao<br />
excessivo <strong>da</strong> pena que ocupou meu coração, disse eu:<br />
- Aqui deram fim meus estu<strong>do</strong>s para sempre, que não me verá mais<br />
Bolonha cursar sua academia com desejos de venturoso, pois, desde o<br />
princípio que entrei nela, me considero tão desgraça<strong>do</strong>. É a <strong>do</strong>r de minha alma<br />
tão pesa<strong>da</strong> para sofrer-se como impossível para declarar-se. E quan<strong>do</strong> a pena<br />
se padece em silêncio, fica tão incapaz <strong>do</strong> remédio como careci<strong>da</strong> <strong>do</strong> alívio.<br />
Meu intento não era para declara<strong>do</strong> e assim minha aflição não é para diverti<strong>da</strong>,<br />
pois em comunicar-se tem o perigo e em encobrir-se tem o tormento. Bem<br />
disse Cícero que havia cousas que podiam emprender-se e não declarar-se;<br />
porque o emprendê-las é crédito <strong>do</strong> valor e o manifestá-las risco <strong>da</strong> ventura. E<br />
pois confiei <strong>do</strong> silêncio meu desejo, não convém que descubra com palavras o<br />
intenso de minha <strong>do</strong>r.<br />
Com esta resolução mandei a meus cria<strong>do</strong>s me preparassem o cavalo, e<br />
despedin<strong>do</strong>-me brevemente de alguns amigos, fingi me chegaram cartas em<br />
que minha mãe estava enferma e com perigo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e desejava ver-me antes<br />
de sua morte. E bem se mostrava em meu rosto a profun<strong>da</strong> tristeza que me<br />
assistia, se bem a causa dela só de meu coração a fiava. Assim <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a<br />
Bolonha as últimas despedi<strong>da</strong>s, como quem jamais intentava vê-la, quis passar<br />
pela quinta de Aurora, para ver se podia falar-lhe, e sucedeu-me a ocasião
618 Padre Mateus Ribeiro<br />
própria ao desejo; que sempre para acrescentar-se a pena a um infelice, traz a<br />
fortuna propícia a ocasião. Estava seu pai Octávio nessa [altura] em Bolonha,<br />
ocupa<strong>do</strong> nos concertos de seu casamento, e eu, desmontan<strong>do</strong> <strong>do</strong> cavalo, subi<br />
a cima, como quem na<strong>da</strong> temia: que pouca estimação faz <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> quem quasi<br />
desespera<strong>do</strong> se aventura a perdê-la. E ven<strong>do</strong> a Aurora, que sobressalta<strong>da</strong><br />
saía, não sei se a estimar ou se a repreender meu atrevimento, com voz mais<br />
ira<strong>da</strong> que respeitosa, lhe disse desta sorte:<br />
Cap. VI.<br />
Da prática que Hortênsio teve com Aurora e <strong>do</strong> mais que sucedeu<br />
- Despedi<strong>do</strong> já de Bolonha, e agora de tua presença para mais não ver<br />
te, mudável e inconstante Aurora, vou buscar a morte em terra alheia; pois não<br />
é certo voltar à sua pátria, quem nasceu tão pouco venturoso nela. Foste no<br />
princípio de meus estu<strong>do</strong>s malogra<strong>do</strong>s a sereia que inquietaste a meus<br />
senti<strong>do</strong>s e agora serás a harpia cruel que dês trágico fim à minha vi<strong>da</strong>. Se até<br />
agora vivi lisonjea<strong>do</strong>, hoje me parto não menos desengana<strong>do</strong> que queixoso,<br />
pois te obrigaram mais os agravos de Júlio que as finezas de Hortênsio. Que<br />
há finezas tão mal afortuna<strong>da</strong>s que ofendem e agravos tão venturosos que<br />
obrigam. É possível que pudesse contigo mais quem derramou teu próprio<br />
sangue que quem te ofereceu sua própria vi<strong>da</strong>? Foi mais venturoso quem tanto<br />
te ofendeu <strong>do</strong> que quem tanto te amou? A seres menos discreta, não fora tua<br />
culpa tão grande, nem minha mágoa tão excessiva; pois aonde tua ignorância<br />
achasse desculpas ao desacerto, acharia juntamente minha <strong>do</strong>r alívios ao<br />
penar. Mas sen<strong>do</strong> tu tão ajuiza<strong>da</strong>, como eu conheço, nem tens escusas na<br />
mu<strong>da</strong>nça, nem eu posso admitir tréguas na <strong>do</strong>r.<br />
Não sei, Aurora, se me queixe de teu juízo, se de tua vontade. Pois<br />
ven<strong>do</strong> tantos erros na eleição, não posso facilmente julgar quem mais me<br />
ofende, se o entendimento, pelo que julgas, ou se a vontade, pelo que queres.<br />
Julga tu própria os motivos de minha queixa: que suposto que julgues<br />
apaixona<strong>da</strong>, nunca poderás livrar-te <strong>da</strong> culpa, por mais que preten<strong>da</strong>s isentar-<br />
te <strong>da</strong> pena. Desprezares as finezas, podia ser razão de esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> fermosura;<br />
porém remunerar os agravos, é o maior desaire <strong>da</strong> eleição. Menos queixoso
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 619<br />
me partira de tua vista se só te considerara ingrata, mas <strong>do</strong>bra-se meu<br />
sentimento quan<strong>do</strong> te julgo só para <strong>da</strong>no meu desentendi<strong>da</strong>; pois que cerran<strong>do</strong><br />
os olhos ao desacerto que aprovas, obras não só como ingrata ao que me<br />
deves, mas juntamente como néscia ao que admites.<br />
Confias de Júlio que a solicitar-te com tantas instâncias para esposa o<br />
persuade o amor e não o interesse? Ou que haja de ser amante quem já<br />
nasceu inimigo? E sen<strong>do</strong> (como ensina Aristóteles) o costume a segun<strong>da</strong><br />
natureza, haja Júlio de mu<strong>da</strong>r juntamente a natureza e o costume? E o que não<br />
acabaram tantos anos de hostili<strong>da</strong>des, haja de acabar um dia de desposório?<br />
Se de antes o amavas, para que me enganavas? E se o aborrecias, para que<br />
em meu <strong>da</strong>no te sacrificas? Mas bem conheço que uniu em ti minha desgraça<br />
quereres o mesmo que aborreces e seguires o próprio de que foges, pois<br />
contra um infelice fazem liga os mesmos impossíveis. Fica-te embora para<br />
sempre, e permita o Céu que te logres dilata<strong>do</strong>s anos, para que conheças que<br />
me deves mais finezas quan<strong>do</strong> ofendi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que eu te devo prémios quan<strong>do</strong><br />
mais obriga<strong>do</strong>.<br />
Com isto quis sair <strong>da</strong> sala em que lhe falava, ao tempo que ela<br />
intentan<strong>do</strong> responder-me, violenta<strong>da</strong> de um acidente, caiu desmaia<strong>da</strong> nos<br />
braços de uma cria<strong>da</strong> que com ela presente assistia. Tão endureci<strong>do</strong> estava<br />
meu coração que não reparei em ausentar-me, deixan<strong>do</strong>-a com as cores<br />
perdi<strong>da</strong>s, emudeci<strong>da</strong> a voz e desalenta<strong>do</strong> o vital, se a cria<strong>da</strong> me não dera<br />
vozes, dizen<strong>do</strong> parecer excesso de cruel<strong>da</strong>de, deixan<strong>do</strong> a sua senhora com a<br />
vi<strong>da</strong> arrisca<strong>da</strong>, ausentar-me sem ouvi-la. Pareceu-me a petição pie<strong>do</strong>sa, que<br />
ao fim de poucas rogativas necessita um coração entre amante e ofendi<strong>do</strong>.<br />
Suspendi a saí<strong>da</strong>, mais de compassivo que de arrependi<strong>do</strong>; porque nem estava<br />
inexorável ao pie<strong>do</strong>so, nem de to<strong>do</strong> flexível ao comedi<strong>do</strong>, como tão magoa<strong>do</strong>.<br />
Veio apressa<strong>da</strong> outra cria<strong>da</strong> com água, com que em miú<strong>do</strong> orvalho rocian<strong>do</strong>-<br />
Ihe o desmaia<strong>do</strong> rosto, abriu os olhos para derramar copiosas lágrimas: que é<br />
proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> aurora banhar-se nelas, e até no lacrimável pareceu aurora.<br />
Acudiu o coração com esta epítima (a) ao desafogo <strong>da</strong> <strong>do</strong>r, para na<strong>da</strong> moderar-<br />
Ihe o sentimento <strong>da</strong> aflição, como diz Euripides, que se de to<strong>do</strong> não tivera este<br />
Port. Rest.: remédio tópico confortativo.
620 Padre Mateus Ribeiro<br />
desafogo pelos olhos, pudera oprimir de to<strong>do</strong> os alentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> o intenso<br />
reconcentra<strong>do</strong> <strong>da</strong> <strong>do</strong>r.<br />
Quis falar mas não pôde. Que quem lhe libertou as lágrimas, não lhe<br />
soltou a voz. Intentou romper o silêncio, mas não lho permitiu o rigoroso <strong>do</strong><br />
desmaio. Restituiu-lhe os senti<strong>do</strong>s, mas não as palavras. Que não costuma o<br />
excesso de uma pena ser tão fácil restitui<strong>do</strong>r <strong>do</strong> que usurpa: tu<strong>do</strong> em um<br />
instante rouba, mas com vagarosos intervalos o restaura. Só com os acenos,<br />
mu<strong>da</strong>s vozes com que declara o desejo o que manifestar não podem as<br />
palavras, me pediu que me não fosse. O que eu concedi. Que pode muito uma<br />
fermosura choran<strong>do</strong> no peito de quem foi queri<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong> com estar magoa<strong>do</strong>.<br />
Fazem liga o enterneci<strong>do</strong> com o amoroso e servem as lágrimas de<br />
ressuscitarem <strong>da</strong>s cinzas ofendi<strong>da</strong>s nova chama <strong>do</strong> querer; que tem muito<br />
valimento a vista para intercessora, sen<strong>do</strong> muitas vezes mais poderosos os<br />
senti<strong>do</strong>s para persuadirem que os discursos para acriminarem. Estavam em<br />
mim os desvelos amantes semivivos, e com o enternecimento de ver<br />
desmaia<strong>da</strong> a causa deles, a quasi perdi<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cobraram. Estavam ain<strong>da</strong> no<br />
coração as raízes <strong>do</strong> querer, e suposto que os ramos pareciam secos e<br />
desfolha<strong>do</strong>s pela mu<strong>da</strong>nça, com as lágrimas <strong>da</strong> Aurora reverdeceram; pois que<br />
chega a derramá-las, abona o querer que as obriga; e mais sen<strong>do</strong> o sujeito tão<br />
altivo na estimação, que não chorara de senti<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> a não incitassem<br />
finezas de amorosa.<br />
Levaram-na as cria<strong>da</strong>s em braços ao leito; e eu avisei a meus cria<strong>do</strong>s se<br />
retirassem com o cavalo ao sombrio de uma alame<strong>da</strong> que ao diante se via, e<br />
entretanto entrei em o escritório de Octávio, seu pai, que ricamente guarneci<strong>do</strong><br />
estava com admiráveis quadros de diversas fábulas de Ovídio, tira<strong>da</strong>s <strong>do</strong> livro<br />
de suas Transformações, tanto ao vivo debuxa<strong>da</strong>s que parecia solicitar a<br />
pintura ver<strong>da</strong>de aos mesmos fingimentos em que competia o juízo <strong>do</strong> pintor<br />
com a delicadeza <strong>do</strong> pincel. No custoso <strong>do</strong>s escritórios competia o artifício com<br />
o valor, não deixan<strong>do</strong> facilmente determinar se avultava mais o feitio pelo<br />
admirável, se o material pelo precioso. Bem mostrava o ornato <strong>do</strong> a<strong>do</strong>rno que<br />
não menos em Octávio Lamberias se achava a riqueza <strong>do</strong> que a política.<br />
Passa<strong>da</strong>s seriam mais de três horas desde que o parocismo referi<strong>do</strong> tinha<br />
embarga<strong>do</strong> em Aurora o eloquente <strong>da</strong> voz, quan<strong>do</strong> me chamou a cria<strong>da</strong>,<br />
dizen<strong>do</strong> que sua senhora queria falar-me. Entrei em uma camera em que
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 621<br />
Aurora estava deita<strong>da</strong> em um leito tão rico que, a ser no dia de sua bo<strong>da</strong>, não<br />
sei que mais custoso podia ser; e fazen<strong>do</strong> assentar-me em uma cadeira,<br />
estan<strong>do</strong> presente a cria<strong>da</strong> que era secretária fiel de seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, me disse<br />
assim:<br />
- Bem considero, Hortênsio, que à primeira vista justamente estareis de<br />
mim queixoso, consideran<strong>do</strong>-me mudável, se pode esse nome merecer quem<br />
na ver<strong>da</strong>de não se mu<strong>da</strong>. Mas que faria eu, ven<strong>do</strong>-me combati<strong>da</strong> <strong>do</strong>s respeitos<br />
de um pai e <strong>da</strong> eloquência de um ora<strong>do</strong>r, o mais insigne de Bolonha? Que<br />
cousa quis a elegância que não persuadisse? Não se conta que com a<br />
eloquência se fez Pisístrato tirano de Atenas e pôde persuadir a seus ci<strong>da</strong>dãos<br />
que o venerassem por senhor? Demóstenes, suborna<strong>do</strong> com o muito ouro que<br />
<strong>da</strong> Pérsia lhe man<strong>do</strong>u Dário, persuadiu aos povos de Grécia se rebelassem<br />
to<strong>do</strong>s contra os lacedemónios que os senhoreavam, com que foram<br />
constrangi<strong>do</strong>s a desistirem <strong>da</strong>s empresas que contra os persianos<br />
venturosamente faziam. Porém nem a eloquência de Claudiano, nem os rogos<br />
de meu pai me persuadiram. Porque em mim o conceder foi astúcia e não<br />
vontade, queren<strong>do</strong> divertir o importuno de suas instâncias, para assegurar<br />
melhor a execução de minhas finezas.<br />
Eu com Júlio não hei-de casar-me, porque intrinsecamente o aborreço. E<br />
haven<strong>do</strong> de ser o matrimónio vínculo de amor, sujeitar-me-ei eu a ser para mim<br />
perpétuo martírio <strong>do</strong> desamor e aborrecimento? Mas ai de mim! Que haven<strong>do</strong>-<br />
vos escolhi<strong>do</strong> meu amor por esposo e minha aflição por amparo, me quereis<br />
deixar como ingrato com aparentes motivos de ofendi<strong>do</strong>. Aonde acharão<br />
refúgio minhas penas, se quan<strong>do</strong> entendi que mais vos obrigava por firme,<br />
então me faltais por queixoso? Na mulher ilustremente nasci<strong>da</strong> o maior abono<br />
de amar é chegar a confessar que ama; porque como faz pun<strong>do</strong>nor de não<br />
mostrar-se rendi<strong>da</strong>, mostran<strong>do</strong> no isento <strong>da</strong>s palavras que nunca rendeu as<br />
armas <strong>do</strong> alvedrio e que to<strong>do</strong>s os serviços que lhe oferecem são dívi<strong>da</strong>s que<br />
paga o coração condena<strong>do</strong> por haverem si<strong>do</strong> os olhos atrevi<strong>do</strong>s; se abaten<strong>do</strong><br />
os privilégios de senhoril, se humilhou a publicar-se amante, não há justificação<br />
mais qualifica<strong>da</strong> <strong>do</strong> querer que sacrificar os brios em se declarar.<br />
Isto digo, Hortênsio, com razão queixosa, pois ten<strong>do</strong> de mim prova tão<br />
manifesta, destes mais crédito a vossas desconfianças <strong>do</strong> que a minhas<br />
ver<strong>da</strong>des. É porventura justo galardão tal retiro a minhas finezas? E que
622 Padre Mateus Ribeiro<br />
quan<strong>do</strong> por vós quero deixar o pátrio <strong>do</strong>micílio, frustra<strong>da</strong> de meu pai a palavra,<br />
exposta Bolonha às mais repeti<strong>da</strong>s guerras, esqueci<strong>da</strong> a bonança em que<br />
vivia, ofereci<strong>da</strong> aos assaltos <strong>da</strong> fortuna em terra estranha, tantas<br />
demonstrações de amante fiquem despreza<strong>da</strong>s e tantos extremos de querer<br />
tão mal agradeci<strong>do</strong>s, temeis porventura os perigos? Desluzimento será <strong>do</strong><br />
amor admitir temores. Por isso os antigos o pintaram cego; porque na<strong>da</strong> teme,<br />
ten<strong>do</strong> ven<strong>da</strong><strong>do</strong>s os olhos para não reparar nos <strong>da</strong>nos. O que sem risco se<br />
adquire, nunca granjeia estimação. Tanto tem as preciosas pedras de<br />
estima<strong>da</strong>s, quanto tiveram de custosas. Se o arrisca<strong>do</strong> enfraquecera o desejo,<br />
nenhuma empresa gloriosa se conseguira, e se perdera pelos desmaios <strong>da</strong><br />
cobardia quanto no mun<strong>do</strong> é objecto <strong>da</strong> estimação. Sen<strong>do</strong> meu esposo, que<br />
podeis recear? Não confiais em mim valor para saber morrer a vosso la<strong>do</strong>?<br />
Não me avalieis mimosa porque choro, julgai-me muito alenta<strong>da</strong> porque amo.<br />
São minhas lágrimas filhas de meu sentimento, não abortos <strong>da</strong> cobardia. Pois<br />
quem chega a derramá-las de considerar-se de vossa ausência sau<strong>do</strong>sa,<br />
também saberá derramar o sangue, se a vosso la<strong>do</strong> se vir a isso ofereci<strong>da</strong>. A<br />
condição mulheril, antes de deliberar-se, teme tu<strong>do</strong>; mas em se deliberan<strong>do</strong>,<br />
na<strong>da</strong> teme; e vem a ser destemi<strong>da</strong> por resoluta a que de antes era temi<strong>da</strong> por<br />
indetermina<strong>da</strong>.<br />
Assim falou Aurora, e não sem lágrimas, aljofra<strong>da</strong> eloquência de seus<br />
olhos, retórica de cristal poderosa para tu<strong>do</strong> persuadir, reforça<strong>da</strong> bataria que,<br />
com pérolas por balas, sen<strong>do</strong> tiros de neve, tem natureza de fogo. Rendi-lhe as<br />
graças <strong>do</strong> favor que me fazia em eleger-me por esposo, oferecen<strong>do</strong>-me de<br />
novo a aventurar a vi<strong>da</strong> por defendê-la, e assentámos que, pois não podia<br />
tornar a Bolonha, a esperasse o segun<strong>do</strong> dia junto ao palácio <strong>do</strong>s Rossis,<br />
grandiosa casa de campo destes ilustres fi<strong>da</strong>lgos bolonheses, merece<strong>do</strong>ra de<br />
hospe<strong>da</strong>r em seus obeliscos ain<strong>da</strong> aos maiores monarcas. E com isto me<br />
despedi <strong>da</strong> presença de Aurora entre alegre e triste: fronteira em que militam<br />
as esperanças <strong>do</strong> bem que muito se deseja, quan<strong>do</strong> a alegria o aplaude, e o<br />
temor de perdê-lo não se assegura. Considerava-me venturoso em ser<br />
escolhi<strong>do</strong> de Aurora para esposo, sen<strong>do</strong> tanto para estima<strong>da</strong> que sua própria<br />
estimação punha escrúpulos à minha ventura, e de seu muito merecer nasciam<br />
as desconfianças de a poder alcançar. Ponderava os muitos desvios que<br />
podiam encontrar minha alegria, queren<strong>do</strong> as esperanças pressagiar o mesmo
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 623<br />
que aborrecem; que como tão empenha<strong>da</strong>s no conseguir, qualquer melindre de<br />
temor é poderoso para as perturbar. Poucas vezes vaticinam o que agra<strong>da</strong>,<br />
muitas vezes querem prever o que mais temem; e antes de conseguirem o<br />
triunfo, são fiscais rigorosas <strong>do</strong> que esperam. Assim combati<strong>do</strong> destes<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, me retirei ao ameno sítio <strong>do</strong> palácio <strong>do</strong>s Rossis, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> diante a<br />
um <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s que fosse esperar-nos algumas léguas distante no caminho<br />
que vai a Florença.<br />
É o sítio deste grandioso vergel tão admirável que com razão se podia<br />
chamar Corte de Flora, pois se pode dizer que nele to<strong>do</strong> o ano é Primavera.<br />
Estão as copa<strong>da</strong>s árvores tão teci<strong>da</strong>s com os laços de seus ramos que<br />
parecem tol<strong>do</strong> de fina verdura, porque só ali se acha sempre a verdura mais<br />
fina. Não temiam as árvores que o rigor <strong>do</strong> Inverno as despojasse <strong>da</strong> gala<br />
vistosa de suas folhas, porque em to<strong>do</strong> o tempo <strong>do</strong> ano se mostravam delas<br />
vesti<strong>da</strong>s, como escolhi<strong>da</strong>s de diversas partes, para conservarem os ver<strong>do</strong>res<br />
contra a tirania <strong>da</strong>s neves e contra os assaltos <strong>da</strong> escarcha. As flores eram<br />
contínuas, porque em to<strong>do</strong> o tempo se mostrava Abril para a fermosura e Maio<br />
para a beleza, sen<strong>do</strong> tão diversas nas cores, no feitio e na suavi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> cheiro,<br />
que pudera o subtil pincel <strong>do</strong> insigne pintor Brietes Siccionio ter dilata<strong>do</strong>s anos<br />
que imitar, sem lhe faltar modelos o flori<strong>do</strong>. Deste pintor se conta que an<strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
afeiçoa<strong>do</strong> à beleza de uma moça, que tinha por ofício de que se sustentava<br />
vender ramalhetes e capelas, tomou por empenho imitar com o pincel quantas<br />
flores esquisitas ela buscava com a indústria; e assim se via sempre a<br />
Primavera presente nas mãos <strong>da</strong> moça que as flores tecia e nas de Brietes,<br />
que em competência as retratava. As fontes naturais competiam com os<br />
edifícios, com que imitan<strong>do</strong> a chuva mais aljofra<strong>da</strong>, banhavam os jardins e<br />
fertilizavam as plantas; e quan<strong>do</strong> no Estio se mostrava o sol mais ardente nos<br />
raios, se via nos jardins mais argenta<strong>da</strong> a chuva; e sen<strong>do</strong> sempre Abril para o<br />
flori<strong>do</strong>, era sempre Dezembro para o chuvoso.<br />
À vista pois deste sumptuoso edifício, recreio <strong>da</strong> vista e admiração <strong>do</strong><br />
discurso, no ameno <strong>da</strong> relva, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> retirar o cavalo, larguei as velas ao<br />
vento de minhas incertas esperanças, disposto a navegar os rumos que a<br />
fortuna me mostrasse. Competia meu desejo na grandeza com o tempo nos<br />
vagares, parecen<strong>do</strong>-me seu curso intolerável para o inquieto <strong>da</strong> esperança;<br />
porque por mais que o primeiro móvel se não descui<strong>da</strong>sse de continuar seu
624 Padre Mateus Ribeiro<br />
repeti<strong>do</strong> caminho, to<strong>da</strong> a veloci<strong>da</strong>de de seu correr a meu correr parecia<br />
vagaroso parar. Não sei com que fun<strong>da</strong>mento chamou Aristóteles 554 aos<br />
desejos suaves, ten<strong>do</strong> eles tanto de penosos. São os desejos inquietas asas<br />
com que voa o coração, sem chegar no voo a parar; <strong>da</strong> maneira que a ave que<br />
sobre os golfos <strong>do</strong> mar vai navegan<strong>do</strong> sente a pena no cansaço, porque não vê<br />
parte em que descanse o voo repeti<strong>do</strong> de suas penas, sen<strong>do</strong> na ver<strong>da</strong>de<br />
penas, ain<strong>da</strong> que sejam asas, assim os desejos sobre as on<strong>da</strong>s de dilatas<br />
esperanças, quanto mais apressa<strong>da</strong>mente voam, mais eficazmente sentem.<br />
Desta sorte, entre sentir e esperar, <strong>do</strong>us martírios <strong>do</strong> coração, um pelos<br />
vagares e outro pelos temores, passei o que restava <strong>do</strong> dia e o inquieto <strong>da</strong><br />
noite, para meu desejo a mais dilata<strong>da</strong> e para meus olhos desvela<strong>do</strong>s a mais<br />
insofrível. Deram salva as músicas aves aos prelúdios <strong>do</strong> dia, ensaiou a aurora<br />
as representações luzi<strong>da</strong>s aos resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol, salpicou a argentaria <strong>do</strong><br />
orvalho as esmeral<strong>da</strong>s <strong>da</strong> relva, apareceu brosla<strong>da</strong> a rosa e aljofra<strong>da</strong> a flor.<br />
Despertaram os jornaleiros <strong>do</strong> descui<strong>do</strong> <strong>do</strong> sono, queixan<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> luz, porque<br />
madrugara tanto para os alistar na matrícula de seu contínuo trabalho, que<br />
como no sono tinham as férias de seu descanso, pouco se mostravam<br />
obriga<strong>do</strong>s ao brilhante <strong>do</strong> dia, não advertin<strong>do</strong> (como disse Platão) que tanto<br />
tinham mais de vi<strong>da</strong>, quanto mais tinham de desvelo. É o sono imagem própria<br />
<strong>da</strong> morte, como lhe chama Catão; e assim to<strong>do</strong> o tempo que nos ocupa o sono,<br />
nos usurpa a vi<strong>da</strong>. Comecei eu a desquartinar com a vista o dilata<strong>do</strong> <strong>da</strong>s<br />
estra<strong>da</strong>s que de longe ao sítio <strong>da</strong> quinta de Aurora conduziam, que deste<br />
palácio <strong>do</strong>s Rossis distaria uma légua, ao qual, para chegar, forçosamente<br />
havia de passar a ponte de Casalecchio, que sobre o cristalino <strong>do</strong> Reno dá<br />
passagem segura. Porém não descobriram meus olhos cousa que desse alívio<br />
a meu desejo. Crescia o dia nas luzes e em mim os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s se aumentavam,<br />
sen<strong>do</strong> estes verdugos que se alimentam à custa de quem com eles vive.<br />
Passa<strong>da</strong> era já a maior parte <strong>do</strong> dia, e ven<strong>do</strong> eu que, <strong>do</strong> que desejava, na<strong>da</strong><br />
via, ansia<strong>do</strong> sobre queixoso, dizia:<br />
- Como é possível, Aurora, que o dia se passe e não apareces?<br />
Porventura queres nascer quan<strong>do</strong> o dia se acaba, e não quan<strong>do</strong> nasce? Como<br />
sen<strong>do</strong> tuas luzes a vanguar<strong>da</strong> <strong>do</strong> sol, agora queres aparecer na vanguar<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />
Arist., 1. De anim.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 625<br />
sombras caliginosas <strong>da</strong> noite? Se madrugavam as aves para festejar-te, como<br />
te <strong>da</strong>rão salva quan<strong>do</strong> se retiram? Como causan<strong>do</strong> a aurora a to<strong>do</strong>s alegria, só<br />
para mim se guar<strong>da</strong> a maior tristeza? Não consideras que para quem ama é o<br />
menor descui<strong>do</strong> o maior veneno? Como queres que logre a noite privilégios de<br />
dilata<strong>da</strong> posse, por faltares com tuas luzes a despedi-la? Que cousa pôde<br />
deter-te? Se as sau<strong>da</strong>des <strong>da</strong> pátria, para vencê-las é o valor; se o temor <strong>do</strong>s<br />
perigos, tu<strong>do</strong> facilita o querer; se duvi<strong>da</strong>s de minha firmeza, abona<strong>do</strong> fia<strong>do</strong>r<br />
tens em meu amor; se tua mu<strong>da</strong>nça, desculpa tens em minha ventura; que<br />
nunca para um desgraça<strong>do</strong> houve felici<strong>da</strong>de com segurança.<br />
Assim me queixava eu de impaciente a quem me não ouvia; que é<br />
desgraça de um queixoso o não ser ouvi<strong>do</strong>, pois se impossibilita o meio de ser<br />
remedia<strong>do</strong> seu sentimento. Era isto ao tempo que o sol ia retiran<strong>do</strong> a fermosura<br />
<strong>do</strong>s raios, quan<strong>do</strong> eu, montan<strong>do</strong> a cavalo, quis avizinhar-me à quinta de<br />
Aurora, para ver se podia ter indícios <strong>da</strong> ocasião desta para meu desejo tão<br />
insofrível tar<strong>da</strong>nça. An<strong>da</strong><strong>do</strong> teria meio caminho, quan<strong>do</strong> de repente me vi<br />
cerca<strong>do</strong> de uma tropa de gente de cavalo, com outra muita de pé, que com<br />
espingar<strong>da</strong>s e pistolas me disseram que me desse preso à justiça. Conheci,<br />
entre outros, a Octávio Lamberias e ao auditor de Bolonha. E perguntan<strong>do</strong> eu a<br />
razão por que me prendiam, respondeu Octávio Lambertas, sobre mo<strong>do</strong><br />
indigna<strong>do</strong>:<br />
- E bem, trai<strong>do</strong>r, perguntas a causa, haven<strong>do</strong>-me rouba<strong>do</strong> a minha filha?<br />
- Para que são palavras (disse um seu primo), cavaleiro bem alenta<strong>do</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s agravos podem satisfazer-se as vinganças?<br />
E levantan<strong>do</strong> o cão à espingar<strong>da</strong>, me ia a atirar delibera<strong>da</strong>mente, se o<br />
auditor se não adiantara a suspender-lhe o tiro a altas vozes, dizen<strong>do</strong>:<br />
- E bem, senhores, esse é o respeito que à justiça se guar<strong>da</strong>? Tão<br />
pouco confiais <strong>da</strong> rectidão e inteireza <strong>do</strong> senhor lega<strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r, que não<br />
<strong>da</strong>rá a esse preso o justo castigo que merecer seu delito? Porventura trazeis-<br />
me em vossa companhia para ser testemunha de vossa vingança e não juiz de<br />
vossa justiça? Se vos não desculpara o excesso <strong>do</strong> sentimento, maior<br />
demonstração fizera <strong>do</strong> pouco respeitosos que em minha presença vos<br />
mostrastes. Suspendei as armas, que a justiça se pinta com balanças e<br />
espa<strong>da</strong>, para que pesan<strong>do</strong> primeiro as culpas, possa depois ao melhor<br />
executar o golpe.
626 Padre Mateus Ribeiro<br />
Assim falou o auditor. E man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> a seus ministros me desmontassem<br />
<strong>do</strong> cavalo e despojassem <strong>da</strong>s armas, me lançaram umas algemas nas mãos e<br />
outras a Sílvio, meu cria<strong>do</strong>. E sem quererem ouvir as razões que eu dizia, nos<br />
levaram a Bolonha. Aonde entrámos já de noite, com tanto tumulto e estron<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong> gente, como se houvéramos si<strong>do</strong> foragi<strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>leiros, escân<strong>da</strong>lo <strong>da</strong>s<br />
montanhas e assombro <strong>do</strong>s caminhantes. Levou-nos o auditor à cadeia pública<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Aonde toman<strong>do</strong>-me a confissão sobre o roubo de Aurora, pelo dito<br />
<strong>da</strong>s cria<strong>da</strong>s que em casa ficaram, eu neguei saber dela cousa alguma e só<br />
disse que nesse dia tinha parti<strong>do</strong> para Taranto, minha pátria, a ver minha mãe,<br />
que estava muito enferma, por aviso que meu pai me man<strong>da</strong>ra, e que <strong>do</strong><br />
caminho voltava a buscar uns papéis de importância, que com a pressa e susto<br />
na parti<strong>da</strong> em Bolonha me ficaram. O mesmo disse o meu cria<strong>do</strong>, por mais<br />
aperta<strong>da</strong>s perguntas que se lhe fizeram. Com que o auditor se despediu bem<br />
pensativo e confuso. Nesta noite se man<strong>da</strong>ram atalhar to<strong>da</strong>s as estra<strong>da</strong>s com<br />
tropas de cavalos e correr as aldeias e povoações de seu distrito, para ver se<br />
podiam descobrir notícias <strong>da</strong> fugi<strong>da</strong> de Aurora. Em cujo seguimento os<br />
deixaremos caminhar desvela<strong>do</strong>s e cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sos, para tratar <strong>do</strong> que sucedeu a<br />
Aurora nesta fugi<strong>da</strong>.<br />
Cap. VII.<br />
Do que Aurora passou na noite de sua ausência<br />
Falan<strong>do</strong> Quintiliano 555 <strong>do</strong> cativeiro, diz que a sujeição violenta<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
liber<strong>da</strong>de não a deu a natureza, mas a fortuna. A maior pensão <strong>do</strong> cativeiro (diz<br />
o grande <strong>do</strong>utor S. Jerónimo 556 ) é o ficar sujeito ao querer e vontade de outro.<br />
E se esta só pensão é poderosa a ser motivo de excessiva pena, considerai,<br />
senhores, qual seria a minha, quan<strong>do</strong> tantas conspiravam para atormentar-me.<br />
Considerava-me de uma parte preso e com indecência trata<strong>do</strong>. E com ser este<br />
tão poderoso incentivo de desgosto, ficava a perder de vista seu rigor. Para o<br />
que me martirizavam o coração as memórias de Aurora, pois sen<strong>do</strong> esta<br />
Qui., Decl. 11.<br />
Hier., in Epist.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 627<br />
desapareci<strong>da</strong> e de mim não leva<strong>da</strong>, era esta ânsia a corta<strong>do</strong>ra espa<strong>da</strong> de meus<br />
pesares e o tormento mais implacável de meus senti<strong>do</strong>s. Que eu padecesse a<br />
prisão por sua causa, alívio fora <strong>do</strong> penoso a lisonja de me considerar de<br />
Aurora ama<strong>do</strong>. Que há moléstias que pelo sublime <strong>da</strong> causa levam consigo os<br />
alívios (como disse Quintiliano 557 ). Padecer pela fermosura é desculpa <strong>da</strong><br />
eleição e crédito <strong>do</strong> sentimento, sen<strong>do</strong> o alívio <strong>do</strong> empenho escu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
entendi<strong>do</strong>s; pois quanto tem de desaire ser o motivo por indecente censura<strong>do</strong>,<br />
tanto tem de desculpa a aflição, sen<strong>do</strong> a causa generosa e o motivo <strong>do</strong> penar<br />
engrandeci<strong>do</strong>. E por muito que se apure a <strong>do</strong>r, mais desvanece a alegria,<br />
consideran<strong>do</strong> que porventura possa causar mais inveja o penoso <strong>do</strong> que<br />
compaixão o aflito.<br />
Suspenderei agora o que sentia neste mar de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s em que flutuava,<br />
para tratar <strong>do</strong> que sucedeu a Aurora, como depois se soube. Delibera<strong>da</strong> Aurora<br />
em ausentar-se <strong>da</strong> casa de seu pai Octávio Lamberias, assim por satisfazer à<br />
promessa que me fez, como para evitar o casamento <strong>do</strong> preso Júlio, a quem<br />
aborrecia, apenas a libertou o desejo <strong>da</strong>s tiranias <strong>do</strong> desmaio, restituin<strong>do</strong>-lhe<br />
as luzes que o eclipse lhe embargara, quan<strong>do</strong> toman<strong>do</strong> as mais ricas jóias que<br />
tinha e vestin<strong>do</strong> a mais preciosa gala, se gala em tal beleza tinha preço, sen<strong>do</strong><br />
ela quem <strong>da</strong>va o preço mais subi<strong>do</strong> à mesma gala, acompanha<strong>da</strong> <strong>da</strong> cria<strong>da</strong><br />
que entre to<strong>da</strong>s só era a secretária de seu peito, sen<strong>do</strong> já passa<strong>da</strong> a meia-<br />
noite, tempo em que seu pai em Bolonha estava, saiu <strong>da</strong> quinta em que vivia a<br />
maior parte <strong>do</strong> ano. Começou a caminhar para o soberbo palácio <strong>do</strong>s Rossis,<br />
aplaudi<strong>da</strong> admiração de to<strong>da</strong> Itália. Seria a distância <strong>do</strong> caminho de uma légua,<br />
jorna<strong>da</strong> breve para o alenta<strong>do</strong> de uma resolução amante. Passa<strong>da</strong> tinha a<br />
ponte de Casalecchio, sobre o estron<strong>do</strong>so curso <strong>do</strong> cau<strong>da</strong>loso rio, sítio em que<br />
se dividem vários caminhos para diversas partes. São as trevas <strong>da</strong> noite<br />
duvi<strong>do</strong>sos roteiros: e assim erran<strong>do</strong> Aurora o que houvera de seguir para<br />
buscar-me, foi inadverti<strong>da</strong>mente seguin<strong>do</strong> outro tão contrário, como se tomara<br />
lições de errar, quan<strong>do</strong> mais desejava acertar e o caminho conhecer. Da<br />
maneira que a derrota<strong>da</strong> nau navegan<strong>do</strong> engolfa<strong>da</strong> com desejos de achar porto<br />
mais nas on<strong>da</strong>s se arroja, assim Aurora erran<strong>do</strong> o caminho, sem advertir no<br />
erro, cui<strong>da</strong>n<strong>do</strong> que o seguia, mais dele se apartava.<br />
Quint., Lib. 4.
628 Padre Mateus Ribeiro<br />
É a noite (como lhe chamou Santo Agostinho 558 ) oficina de temores,<br />
terrores <strong>do</strong> coração e eclipses <strong>do</strong>s olhos, confusão <strong>do</strong>s discursos, sepulcro <strong>da</strong><br />
beleza, morte <strong>do</strong> luzi<strong>do</strong> e vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> tenebroso. Caminhava Aurora com algum<br />
temor pelo solitário <strong>do</strong> lugar, o sombrio <strong>do</strong> monte e o denso <strong>do</strong> arvore<strong>do</strong>, que<br />
poden<strong>do</strong> ser recreativo de dia, tinha muito de suspeitoso na noite. Quisera<br />
parar, com dúvi<strong>da</strong>s de haver erra<strong>do</strong> o caminho; mas temen<strong>do</strong>-se que a<br />
seguissem, não se atrevia a esperar as vizinhanças <strong>do</strong> dia e queria antes<br />
arriscar-se aos assombros <strong>da</strong> noite. Seriam quasi duas horas antes de<br />
amanhecer, quan<strong>do</strong>, desengana<strong>da</strong> de que ia no caminho perdi<strong>da</strong> e <strong>do</strong> cansaço<br />
dele molesta<strong>da</strong>, se assentou com a cria<strong>da</strong>, violentan<strong>do</strong> o desejo, para esperar<br />
que as luzes primeiras <strong>da</strong> manhã lhe abrissem caminho a prosseguir a jorna<strong>da</strong><br />
aonde pretendia.<br />
Neste tempo, viram que descen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s penhascosos outeiros <strong>do</strong> monte<br />
que os cercava vinha um homem que apenas entre a confusão <strong>da</strong>s sombras se<br />
divisava. Alegraram-se, com lhes parecer ser algum pastor, a quem com<br />
prémio obrigassem a lhes fazer companhia até ao palácio <strong>do</strong>s Rossis. Porém,<br />
quan<strong>do</strong> ao perto ain<strong>da</strong> entre as equívocas sombras o viram, conheceram que<br />
era um mancebo bem traja<strong>do</strong> e que além <strong>da</strong> espa<strong>da</strong> e a<strong>da</strong>ga que cingia, trazia<br />
na cinta uma pistola, vista de que Aurora ficou confusa em sítio tão solitário e a<br />
tais horas. Contu<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s próprios temores alentos e apelan<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
receio para a cortesia, que em quem a professa é o melhor seguro, depois de<br />
saudá-lo, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe uma breve notícia de como erran<strong>do</strong> o caminho que ao<br />
palácio <strong>do</strong>s Rossis levava, com o escuro <strong>da</strong> noite se perdera, lhe pediu a<br />
quisesse guiar ao caminho de que se desviara, sem lhe <strong>da</strong>r outra alguma<br />
notícia, nem de quem era, nem <strong>da</strong> causa que a levava. Pôs nela cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so os<br />
olhos o passageiro, e no brilhante <strong>do</strong>s ricos diamantes que ain<strong>da</strong> entre as<br />
sombras resplandeciam, na riqueza <strong>da</strong> tela que vestia e na beleza <strong>do</strong> rosto que<br />
entre a rara nuvem de um rico volante, que mal o escondia, se mostrava,<br />
entendeu ser mulher de grandes pren<strong>da</strong>s, e dilatan<strong>do</strong> em uma breve<br />
suspensão a resposta, por fim lhe disse assim:<br />
- Que sejais senhora ilustre, vossa presença o descobre, ain<strong>da</strong> que<br />
vossa presença o dissimula; e assim me admiro que a tais horas e em sítio tão<br />
Aug., in Ps. 75.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 629<br />
solitário vos encontre. Se a tais passos vos obriga a fortuna, pouco respeito<br />
guar<strong>da</strong> à vossa beleza. E se vos guia amor, muitas finezas vos deve tão<br />
venturoso amante. Que procurais no palácio <strong>do</strong>s Rossis? Se asilo, vossa<br />
ventura vos assegura. Pois nunca se atreverá a justiça a quebrar as<br />
imuni<strong>da</strong>des <strong>da</strong> beleza. Se vos obrigam amorosos desvelos, desacerto parece<br />
humilhar o soberano e desmontar o sublime: que correm risco a se<br />
desestimarem por rendi<strong>do</strong>s os sacrifícios que de tais desvelos fazeis. Nas<br />
altivezas se conserva a estimação e é fina razão de esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong>de o não<br />
se <strong>da</strong>r por pensioneira aos serviços. Não advertis que o que foi venera<strong>do</strong> por<br />
altivo, em humilhan<strong>do</strong> o ceptro de soberano, perdeu logo os privilégios <strong>da</strong><br />
estimação? As vontades em se ven<strong>do</strong> lisonjea<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s favores, logo<br />
desvaneci<strong>da</strong>s apelam para a ingratidão, e quan<strong>do</strong> se haviam de reconhecer<br />
mais obriga<strong>da</strong>s, fazem gala de ostentar-se mais isentas. Isto digo, senhora,<br />
porque na admiração de ver-vos a tais horas e em tal lugar perdi<strong>da</strong>,<br />
consideran<strong>do</strong> o muito que mereceis, invejo as felici<strong>da</strong>des <strong>do</strong> venturoso sujeito a<br />
quem tão custosamente buscais. Porém se é gosto vosso prosseguirdes o<br />
caminho, que dizeis que fica <strong>da</strong>qui distante mais de três léguas, eu me ofereço<br />
a guiar-vos; porque suposto que para romper a manhã há ain<strong>da</strong> larga distância,<br />
farei conta que sempre caminha de dia quem leva consigo o sol.<br />
Assim falou o desconheci<strong>do</strong> passageiro, deixan<strong>do</strong> Aurora suspensa <strong>do</strong>s<br />
acertos que dizia sobre os próprios motivos que ignorava. Quisera ela vê-lo<br />
mais grosseiro que discreto e era já força o confiar-se dele, no mesmo tempo<br />
em que o temia, sem lhe <strong>da</strong>r a entender que <strong>da</strong> sua companhia desconfiava.<br />
Que muitas vezes se provocam as enfermi<strong>da</strong>des de se aplicarem sem<br />
necessi<strong>da</strong>de os remédios e dá motivos a desconfiança para despertarem as<br />
rebeliões e hostili<strong>da</strong>des <strong>do</strong>rmi<strong>da</strong>s. Fazen<strong>do</strong> Alexandre, rei de Jerusalém,<br />
guerra cruel aos ptolomai<strong>da</strong>s, pediram eles socorro a Ptolomeu, rei de Egipto,<br />
que ele logo lhes deu. E porque eles já desconfia<strong>do</strong>s o não quiseram aceitar, o<br />
rei egípcio, indigna<strong>do</strong> de desconfiarem de seu zelo, se declarou por inimigo e à<br />
força de armas os conquistou.<br />
Com corteses palavras lhe agradeceu Aurora o favor que lhe fazia em<br />
lhe servir de guia, sem responder ao mais, fazen<strong>do</strong>-se desentendi<strong>da</strong> aos<br />
hipérboles com que exagerava seu merecimento. E assi começaram a<br />
caminhar por onde ele a guiava. Era Aurora prudente e animosa: nem
630 Padre Mateus Ribeiro<br />
declarava o que temia, nem de to<strong>do</strong> se assegurava <strong>do</strong> que receava. Porém que<br />
importa a prudência, quan<strong>do</strong> o ânimo que se disfarça é trai<strong>do</strong>r? Bem disse<br />
Demóstenes que não é admiração o ser a sinceri<strong>da</strong>de engana<strong>da</strong> de um<br />
coração astuto e caviloso, mas que objecto fica <strong>do</strong> maior espanto, quan<strong>do</strong><br />
sucede o não ser engana<strong>do</strong> dele. Várias eram as práticas que o desconheci<strong>do</strong><br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong> movia, com título de aliviar a jorna<strong>da</strong>, para ver se podia descobrir<br />
quem Aurora era e a ocasião que a tais horas a caminhar a obrigava. Mas era<br />
em Aurora a cautela tão filha de sua discrição que, com o equívoco <strong>da</strong>s<br />
respostas e o divertimento <strong>da</strong>s palavras, de sorte contraminava ao desejo <strong>do</strong><br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong> que, ca<strong>da</strong> vez que respondia, o deixava mais confuso, sem poder<br />
son<strong>da</strong>r a altura <strong>do</strong> que tanto conhecer desejava.<br />
Largo espaço tinham caminha<strong>do</strong>, sem saber Aurora por onde se dirigia<br />
seu caminho, mas só seguin<strong>do</strong> os passos <strong>do</strong> destino de seu cauteloso piloto,<br />
que se no mar há fortunas, também muitas vezes na terra há tormentas. Vinha<br />
já a este tempo no teatro <strong>do</strong> horizonte lançan<strong>do</strong> aurora a loa à luzi<strong>da</strong><br />
representação <strong>da</strong> primeira jorna<strong>da</strong> <strong>do</strong> dia, quan<strong>do</strong> ven<strong>do</strong> o passageiro sol<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
mais ao claro que à companhia que levava não podia causar inveja a nova<br />
aurora que entre purpúreos visos parecia; pois na beleza <strong>do</strong> rosto podia ser<br />
desvelos <strong>do</strong> mesmo sol, se esse fora capaz de tributar desvelos, admira<strong>do</strong> de<br />
ver em um sujeito tanto brio no senhoril, tanta riqueza no trajar e tão rara<br />
fermosura no parecer, ficou de to<strong>do</strong> venci<strong>do</strong> <strong>do</strong> que via, julgan<strong>do</strong> este encontro<br />
pelo mais felice a que pudera aspirar seu desejo. Cegou-se, e não era espanto,<br />
pon<strong>do</strong> os olhos neste humano sol tanto de perto. Combatia em seu coração no<br />
mesmo tempo a leal<strong>da</strong>de com a beleza, e foi mais valente a vista <strong>da</strong> fermosura<br />
que o respeito <strong>da</strong> confiança. Eram desiguais as armas <strong>do</strong> desafio, porque a<br />
beleza de Aurora estava mui vizinha aos olhos e o respeito <strong>da</strong> fideli<strong>da</strong>de só<br />
pretendia entra<strong>da</strong> na razão; e assim obrou nele mais eficazmente a vista que o<br />
discurso. A este se opunha o desejo e à razão o apetite, e como eles<br />
juntamente com a vista <strong>da</strong>vam tantos combates à fideli<strong>da</strong>de, não era grande<br />
admiração em um ânimo já pelo distraí<strong>do</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> tão licencioso, mostrar-se<br />
despenha<strong>do</strong> ao que via e não respeitoso ao que julgava.<br />
Dissimilou o precipita<strong>do</strong> intento, e caminhan<strong>do</strong> para o mais fragoso <strong>do</strong><br />
monte Apenino, entre cujos penhascos e fron<strong>do</strong>sas selvas estavam, desvian<strong>do</strong>-<br />
se <strong>do</strong>s sítios que podiam ser <strong>do</strong>s passageiros frequenta<strong>do</strong>s e emboscan<strong>do</strong>-se
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 631<br />
ao mais solitário <strong>do</strong>s vales que entre as serranias se formavam, ia este<br />
desvaneci<strong>do</strong> sol<strong>da</strong><strong>do</strong> feito hipócrita <strong>da</strong> cortesia, mostran<strong>do</strong>-se compadeci<strong>do</strong> e<br />
ten<strong>do</strong> o ânimo tirano. Que nunca se disfarça melhor a cruel<strong>da</strong>de que no buço<br />
<strong>da</strong> compaixão. Inocente Aurora de seu engano, caminhava por onde a guiava.<br />
Que não sabe conhecer os laços fraudulentos quem não costuma usá-los.<br />
Assim disse S. Gregório Nazianzeno que o que de to<strong>do</strong> de enganar carece, fica<br />
mais exposto a padecer o engano.<br />
Chegou este dissoluto piloto ao sítio que julgou ser a seu intento mais<br />
apropria<strong>do</strong>: pois sempre foge de testemunhas quem pretende cometer os<br />
delitos. Era o lugar que digo um sombrio vale nas raízes <strong>do</strong> dilata<strong>do</strong> monte<br />
Apenino, que trazen<strong>do</strong> o montanhoso solar de sua origem <strong>do</strong>s neva<strong>do</strong>s montes<br />
Alpes e entran<strong>do</strong> pela Ligúria, como juiz árbitro em Itália, a divide em duas<br />
partes, e, estenden<strong>do</strong> os braços de seus roche<strong>do</strong>s, ocupa e senhoreia com sua<br />
eminência os <strong>do</strong>us mares, Mediterrâneo e Adriático, que com suas inquietas<br />
on<strong>da</strong>s de contínuo combatem seus roche<strong>do</strong>s. Era o lugar em que parou esta<br />
enganosa guia sombrio pelo espesso <strong>do</strong> arvore<strong>do</strong>, distante <strong>da</strong>s povoações que<br />
pelo monte assistem, teatro idóneo para nele se poder representar a tragédia<br />
de to<strong>do</strong> o insulto e desaforo. Disse que parecia acerta<strong>do</strong> descansarem <strong>do</strong><br />
caminho, que era fragoso, e juntamente, porque o sol com o intenso de seus<br />
raios se mostrava molesto esse dia, valerem-se <strong>do</strong> fresco abrigo <strong>da</strong> sombra,<br />
enquanto seu calor mais se aplacava; porque para chegarem ao lugar aonde<br />
iam tinham largo tempo. Assentou-se Aurora e junto dela a cria<strong>da</strong>, e ele, pouco<br />
distante delas, disse assim:<br />
Cap. VIM.<br />
Em que se refere quem era este sol<strong>da</strong><strong>do</strong> e <strong>do</strong> risco em que se viu Aurora<br />
- Quem pudera imaginar, fermosa senhora, que sen<strong>do</strong> a noite tão falta<br />
de luzes, descobrisse eu nela tão precioso tesouro? Ingrato parecera eu à<br />
fortuna se ou desconhecera o feliz que oferece, ou desestimara o venturoso<br />
que descubro. Eu sou nobre de geração, meu nome é António, minha pátria a<br />
ci<strong>da</strong>de de Pistóia, sujeita ao senhorio <strong>do</strong> grão-duque de Florença. Foi<br />
antiguamente opulenta e populosa; mas com os contrários ban<strong>do</strong>s, que se
632 Padre Mateus Ribeiro<br />
intitularam Brancos e Negros, contenden<strong>do</strong> entre si com as hostili<strong>da</strong>des de<br />
diversas facções e repeti<strong>da</strong>s vinganças, se desluziu a maior parte de sua<br />
grandeza. A estes opostos séquitos sucederam outros modernos em que<br />
entrou a família de meu solar, com que por executar vinganças de agravos<br />
recebi<strong>do</strong>s, an<strong>do</strong> de minha pátria desterra<strong>do</strong>. A fazen<strong>da</strong> que me ficou de meus<br />
pais, to<strong>da</strong> ficou com minhas inquietas fugi<strong>da</strong>s ou embarga<strong>da</strong>, ou perdi<strong>da</strong>, e eu<br />
necessita<strong>do</strong> a an<strong>da</strong>r sem abrigo pelos montes com mais cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s que remédio<br />
e com maiores riscos que descanso. Hoje caminhava para Ferrara com intento<br />
de embarcar-me para Veneza, e <strong>da</strong>í para onde a ventura me levasse, se para<br />
um desgraça<strong>do</strong> pode haver ventura. Só neste feliz encontro a tive, e a mais<br />
altiva que eu desejar pudera. Eu, senhora, sou solteiro e bem nasci<strong>do</strong>, fui rico e<br />
vejo-me pobre, gastei anos no estu<strong>do</strong> e aproveitou-me pouco; perdi a meus<br />
pais na flor de minha i<strong>da</strong>de, tenho contrários ofendi<strong>do</strong>s e poderosos que me<br />
não consentem viver em minha pátria; se quiserdes ser minha esposa, em<br />
qualquer parte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> convosco viverei contente, pois só quem vive com<br />
gosto neste mun<strong>do</strong> se pode dizer que vive.<br />
Assusta<strong>da</strong> ficou Aurora <strong>da</strong> néscia proposta <strong>do</strong> atrevi<strong>do</strong> António e entre<br />
resoluta e cortês, ven<strong>do</strong>-se em lugar tão ocasiona<strong>do</strong> a ousadias como<br />
impróprio para o socorro, lhe respondeu que ela era casa<strong>da</strong> e seu esposo a<br />
esperava no palácio <strong>do</strong>s Rossis, para onde ia; e assim lhe agradecia o desejo<br />
que mostrava e lhe pedia tivesse por bem de lhe <strong>da</strong>r licença para buscá-lo.<br />
- Mal o buscareis hoje (disse António), porque a quinta <strong>do</strong>s Rossis<br />
distante fica deste sítio cinco léguas e eu estou empenha<strong>do</strong> em não consentir<br />
que outro algum tanta beleza logre.<br />
Apenas ouviu Aurora uma resolução tão dissoluta, quan<strong>do</strong> levantan<strong>do</strong>-<br />
se e derreten<strong>do</strong> a ira o sangue vital que o temor de antes congelara, que nos<br />
ânimos generosos nasce a resolução <strong>do</strong>s mesmos apertos com que se vem<br />
oprimi<strong>do</strong>s, e, como disse Aristóteles, é a ousadia filha <strong>do</strong>s alentos <strong>do</strong> valor, lhe<br />
disse assim:<br />
- Imaginaste, atrevi<strong>do</strong> António, que se intimi<strong>da</strong>sse meu decoro nem <strong>da</strong>s<br />
armas quer trazes, nem <strong>do</strong> deserto sítio em que me vejo? Pois vives engana<strong>do</strong><br />
na presunção. Porque as mulheres tão ilustres como eu sou sabem nas aras<br />
<strong>da</strong> honra sacrificar as vi<strong>da</strong>s e desestimarem a morte por não mancharem a<br />
fama. Se tu foras bem nasci<strong>do</strong> como o publicas, não usaras de uma cautela tão
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 633<br />
indecente com quem se confiou de ti sem conhecer-te, e por não<br />
desacreditares os motivos de minha confiança, souberas vencer teus mal<br />
nasci<strong>do</strong>s desejos. Porque se os rusticamente nasci<strong>do</strong>s temem o castigo, os<br />
que se prezam de nobres temem o descrédito. Vali-me de ti como mulher; se<br />
não querias guiar-me ao lugar a que eu ia, prosseguiras teu caminho; e pois<br />
não te obrigavam motivos de pie<strong>do</strong>so, não te precipitassem cautelas de<br />
fraudulento. E se não havias de guiar-me como pie<strong>do</strong>so, não me desviaras <strong>do</strong><br />
caminho como tirano. Em que te ofenderam meus rogos para serem com tal<br />
insolência castiga<strong>do</strong>s? Pois se não foram poderosos para que sinceramente<br />
me acompanhasses, nunca podiam ser merece<strong>do</strong>res para que me ofendesses.<br />
Se tens necessi<strong>da</strong>de, e esta te persuade a mostrar-te atrevi<strong>do</strong>, aqui tens estas<br />
jóias com que te remedeies; que as jóias para mim valem pouco, mas o<br />
pun<strong>do</strong>nor de minha honra é só o que vai tu<strong>do</strong>. Não te assegures para obrares<br />
como insolente no lugar deserto a que cautelosamente me conduziste. Porque<br />
em to<strong>do</strong> o lugar está Deus presente para <strong>da</strong>r-me o socorro e para <strong>da</strong>r-te o<br />
castigo.<br />
Com isto quis Aurora caminhar com a cria<strong>da</strong>, que banha<strong>da</strong> em lágrimas<br />
a seguia, quan<strong>do</strong> o desafora<strong>do</strong> António, pegan<strong>do</strong>-lhe <strong>do</strong> braço, quis impedir-lhe<br />
o caminho. Aurora quis soltar-se e ele com violência, arrancan<strong>do</strong> a a<strong>da</strong>ga, quis<br />
detê-la. Mas ela, animosa, pegan<strong>do</strong>-lhe nas guarnições <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ga, intentava<br />
assegurar-lha, para que não pudesse executar o golpe que ameaçava,<br />
indecorosa acção para ameaço e bárbara para execução. Aos repeti<strong>do</strong>s e<br />
lastimosos gritos que a cria<strong>da</strong> <strong>da</strong>va, trouxe o Céu socorro de um ilustre<br />
espanhol, chama<strong>do</strong> Dom Rodrigo de Tole<strong>do</strong>, que bem acompanha<strong>do</strong> de<br />
cria<strong>do</strong>s não mui distante deste lugar ia caminhan<strong>do</strong> para Florença, o qual ao<br />
eco <strong>da</strong>s vozes acudiu ao correr <strong>do</strong> cavalo e os cria<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s em seu<br />
seguimento; e ao mesmo tempo que chegou, já Aurora tinha na mão duas<br />
feri<strong>da</strong>s pequenas, que lha tinham em sangue banha<strong>da</strong>, causa<strong>da</strong>s porventura<br />
de querer tirá-la <strong>da</strong> mão ao dissoluto António. Coléricos à vista desta tão<br />
indecente cruel<strong>da</strong>de, desmontaram <strong>do</strong>s cavalos Dom Rodrigo e seus cria<strong>do</strong>s.<br />
O que ven<strong>do</strong> António, quis fugin<strong>do</strong> ausentar-se <strong>da</strong> justa vingança que temia.<br />
Porém embargaram-lhe a fugi<strong>da</strong> as balas de duas espingar<strong>da</strong>s que lhe<br />
dispararam. De que cain<strong>do</strong> em terra mal feri<strong>do</strong>, lhe deram algumas estoca<strong>da</strong>s.<br />
E sem dúvi<strong>da</strong> o acabariam de matar, se a própria Aurora não pedira
634 Padre Mateus Ribeiro<br />
compassiva o não matassem, sequer para que ele pudesse confessar-se e de<br />
sua licenciosa vi<strong>da</strong> arrepender-se. Neste esta<strong>do</strong> o deixaram; e depois se soube<br />
que <strong>da</strong>í a três dias morrera no lugar mais vizinho, para onde uns pastores que<br />
por ali passaram, compadeci<strong>do</strong>s de o verem tão mortal, o conduziram.<br />
Acudiu logo Dom Rodrigo de Tole<strong>do</strong> a reprimir o sangue que <strong>da</strong>s leves<br />
feri<strong>da</strong>s de Aurora corria, parecen<strong>do</strong> purpúreos cravos seus matizes, que sobre<br />
os can<strong>do</strong>res de açucenas se desfolhavam; e não foi pequena fineza de seu<br />
valor, ven<strong>do</strong> ofendi<strong>da</strong> tão rara gentileza, suspender o último <strong>da</strong> vingança, por<br />
obedecer a seu rogo, mostran<strong>do</strong>-se em tu<strong>do</strong> cortês. Reprimiu-lhe o sangue<br />
com um rico lenço de Aurora, que com ser de neva<strong>da</strong> holan<strong>da</strong>, receou ficar<br />
escura em tocan<strong>do</strong> o cristalino <strong>da</strong> mão. E subin<strong>do</strong>-a com to<strong>da</strong> a decência nas<br />
ancas <strong>do</strong> seu cavalo, e a cria<strong>da</strong> nas <strong>do</strong> cria<strong>do</strong> mais ancião <strong>do</strong>s que consigo<br />
trazia, porque o deserto <strong>do</strong> lugar não permitia mais dilata<strong>da</strong> assistência,<br />
começaram a caminhar para o palácio <strong>do</strong>s Rossis, aonde Aurora lhe pediu que<br />
a levasse, esperan<strong>do</strong> que eu lá estivesse.<br />
É a fi<strong>da</strong>lguia em to<strong>da</strong>s as nações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> louva<strong>da</strong> e digna de to<strong>da</strong> a<br />
estimação, por ser (como diz o Séneca) um resplan<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s acções generosas<br />
comunica<strong>do</strong> com a própria natureza. Tesouro <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de lhe chamou Plutarco<br />
e lição estudiosa <strong>do</strong> pejo a intitulou Euripides, e com razão. Porque não se<br />
atreve um ânimo generoso a cometer acções tão indecorosas que o movam a<br />
pejar-se o pun<strong>do</strong>nor <strong>da</strong> fi<strong>da</strong>lguia que professa de serem publica<strong>da</strong>s; porque<br />
como vai tão interessa<strong>do</strong> em comunicar o luzi<strong>do</strong> <strong>da</strong> opinião, não se abate a <strong>da</strong>r<br />
motivos para ser <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em os desaires julga<strong>do</strong>. Com ser esta regra geral<br />
em to<strong>do</strong>s os que se prezam de ilustres, ain<strong>da</strong> nos fi<strong>da</strong>lgos espanhóis é com<br />
maior exacção observa<strong>da</strong> na cortesia com que respeitam as mulheres e as<br />
amparam. Assim se viu quan<strong>do</strong> o go<strong>do</strong> rei Alarico entran<strong>do</strong> em Roma por<br />
assalto e prenden<strong>do</strong> seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s a uma moça religiosa e fermosíssima que<br />
ia fugin<strong>do</strong>, e trazen<strong>do</strong>-a à sua presença com os ricos vasos de ouro que levava<br />
para salvá-los <strong>do</strong> saco que na ci<strong>da</strong>de se <strong>da</strong>va, o rei com to<strong>da</strong> a cortesia e<br />
decência a man<strong>do</strong>u levar com os ricos vasos que trazia ao seu convento, sem<br />
permitir que a militar ousadia <strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s nem a ofendesse, nem a<br />
despojasse. Não menos se manifestou esta espanhola cortesia quan<strong>do</strong> o<br />
valeroso conde de Barcelona, Dom Raimun<strong>do</strong> Arnal<strong>do</strong>, foi disfarça<strong>do</strong> à ci<strong>da</strong>de<br />
de Colónia a defender em público desafio, como então se costumava, a
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 635<br />
emperatriz Matilde, mulher <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Henrique Quinto, que aleivosamente<br />
era acusa<strong>da</strong> de haver cometi<strong>do</strong> adultério, por <strong>do</strong>us falsos cavaleiros seus<br />
vassalos; e no desafio a um deu a morte e ao outro obrigou a confessar<br />
publicamente a falsi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> testemunho que a sua senhora levantara, como se<br />
refere nas Crónicas de Espanha e em outras muitas ocasiões que não refiro se<br />
tem bem mostra<strong>do</strong> o generoso desta cortesia. Isto digo, pela generosa pie<strong>da</strong>de<br />
com que Dom Rodrigo de Tole<strong>do</strong> no conflito presente socorreu a Aurora, que<br />
com ser ela prodígio na beleza e sen<strong>do</strong> ele mancebo e bizarro, guar<strong>do</strong>u tão<br />
fi<strong>da</strong>lga modéstia em acompanhá-la como se seu próprio irmão nascera.<br />
Chegaram à vista <strong>do</strong> palácio e quinta sumptuosíssima <strong>do</strong>s Rossis, ao<br />
tempo em que o sol ia queren<strong>do</strong> recolher as <strong>do</strong>ura<strong>da</strong>s rédeas de seus raios, e<br />
porque Aurora vinha molesta<strong>da</strong> <strong>do</strong> descostume <strong>do</strong> caminho e <strong>da</strong>í a Bolonha ou<br />
à quinta de seu pai Octávio havia ain<strong>da</strong> uma légua grande, foi Dom Rodrigo de<br />
parecer que descansassem <strong>da</strong> moléstia <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> em um casal que vizinho<br />
em pouca distância lhes ficava. Pareceu a Aurora o conselho acerta<strong>do</strong>, e<br />
entran<strong>do</strong> no casal, aonde foi <strong>da</strong>s mulheres que nele estavam com grande amor<br />
recebi<strong>da</strong>, só com verem sua presença, que em tu<strong>do</strong> mostrava o altivo de quem<br />
era, enquanto Dom Rodrigo despediu alguns <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s a comprar em outros<br />
casais vizinhos tu<strong>do</strong> quanto de regalo pudesse achar-se, para que Aurora<br />
comesse, ela secretamente man<strong>do</strong>u a cria<strong>da</strong> até à quinta <strong>do</strong>s Rossis para que<br />
especulasse se me via.<br />
Fez ela to<strong>da</strong> a diligência possível, mas não trouxe novas de mim, que<br />
nesse mesmo tempo ia caminhan<strong>do</strong> aonde, como já referi, o auditor me<br />
prendeu. Que como se desencontram as venturas, logo to<strong>da</strong> a felici<strong>da</strong>de vai<br />
perdi<strong>da</strong>. Ressenti<strong>da</strong> ficou Aurora, julgan<strong>do</strong> minha ausência não à desgraça de<br />
quem tem pouca dita, mas a descui<strong>do</strong> de quem tem pouco amor; entendeu que<br />
eu, ou de tíbio no querer, ou de muito discursivo em recear, faltara com a<br />
promessa em esperá-la e deu-se por ofendi<strong>da</strong>, como quem ignorava que no<br />
próprio tempo estava eu aprisiona<strong>do</strong> por ela em Bolonha. Preparou-se com<br />
diligência no casal em que estavam o comer que os cria<strong>do</strong>s de Dom Rodrigo<br />
trouxeram; e pedin<strong>do</strong>-lhe ele que comesse, ela o fez por mostrar-se agradeci<strong>da</strong><br />
a quem se conhecia tão obriga<strong>da</strong>. Levanta<strong>da</strong>s as mesas, lhe pediu ele<br />
quisesse <strong>da</strong>r-lhe notícia de quem era e como viera ter a lugar tão solitário. Ao<br />
que ela satisfez com lhe referir seu nome e filha de quem era, com to<strong>da</strong> a
636 Padre Mateus Ribeiro<br />
ocasião que referi<strong>do</strong> temos de sua fugi<strong>da</strong> de casa só a fim de não casar com<br />
Júlio Galeazzo, e que erran<strong>do</strong> o caminho <strong>do</strong> palácio <strong>do</strong>s Rossis pelo escuro <strong>da</strong><br />
noite, no qual havia de esperar por ela quem havia de guiá-la até Florença, se<br />
perdera por ignorar o caminho, e como o atrevi<strong>do</strong> sol<strong>da</strong><strong>do</strong> António lhe saíra ao<br />
encontro com a insolência que se tinha visto. Porém não falan<strong>do</strong> em mim<br />
cousa alguma, como prudente que era. Admira<strong>do</strong> Dom Rodrigo não menos <strong>da</strong><br />
rara beleza que <strong>da</strong> discreta relação de Aurora, lhe respondeu desta sorte:<br />
- Lembra-me, senhora, que disse Aristóteles 559 que os conselhos muitas<br />
vezes mais se haviam de <strong>da</strong>r sobre os meios <strong>do</strong> que sobre os fins. Porque<br />
nestes, como são partos <strong>do</strong> desejo, poucas vezes se pede conselho para se<br />
escolherem, e nos meios sim, por serem as estra<strong>da</strong>s para se conseguirem. O<br />
fim, senhora Aurora, de deixardes vossa casa e pátria, foi o não quererdes<br />
aceitar por esposo a Júlio Galeazzo, sen<strong>do</strong> cabeça <strong>do</strong> contrário ban<strong>do</strong> e<br />
homici<strong>da</strong> de vosso irmão. Bastante causa tivestes em tantas causas para o não<br />
admitirdes por esposo, sen<strong>do</strong> a inimizade tão antiga, que raras vezes cura o<br />
tempo seus desaires; e o que não puderam remediar tão repeti<strong>do</strong>s anos, muito<br />
se podia temer a não curassem casamentos. Que importou o de Júlio César<br />
com a filha de Pompeu, nem o de Octávia, irmã de augusto, com Marco<br />
António? Duraram as guerras de César até lhe ser presenta<strong>da</strong> no Egipto a<br />
corta<strong>da</strong> cabeça de seu sogro, o grande Pompeu, aleivosamente morto, por<br />
man<strong>da</strong><strong>do</strong> de Ptolomeu, pelo trai<strong>do</strong>r Septímio, que já havia si<strong>do</strong> seu sol<strong>da</strong><strong>do</strong>; e<br />
Marco António, persegui<strong>do</strong> de seu cunha<strong>do</strong> Augusto, com suas próprias mãos<br />
se deu a morte. Também nas cruéis guerras que o ímpio Herodes Ascalonita<br />
trazia com Alexandre, rei de Jerusalém, sobre usurpar-lhe o reino, se tratou,<br />
para se pacificarem, que casasse com a fermosa Mariene, filha de Alexandre,<br />
assombro <strong>da</strong> beleza palestina; e depois foi morta por man<strong>da</strong><strong>do</strong> de seu tirano<br />
esposo, não sen<strong>do</strong> tantos vínculos poderosos para finalizarem tão repeti<strong>da</strong>s<br />
inimizades e implacáveis discórdias que entre eles se <strong>da</strong>vam.<br />
Isto pressuposto, e que o fim que colhestes de não casardes tanto a<br />
vosso desgosto, desculpan<strong>do</strong> o fim de vossa ausência <strong>da</strong> pátria e <strong>do</strong>micílio<br />
paterno que deixáveis, erro houve nos meios de o conseguirdes, pois sem mais<br />
companhia que a de uma cria<strong>da</strong>, no silêncio mais intempestivo <strong>da</strong> noite escura,<br />
Arist., Rhet.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 637<br />
ignoran<strong>do</strong> os caminhos e erran<strong>do</strong> as estra<strong>da</strong>s, vos aventurastes aos maiores<br />
perigos. Porém ten<strong>do</strong> a desculpa na aflição, que quan<strong>do</strong> é excessiva, em na<strong>da</strong><br />
repara. Eu sou Dom Rodrigo de Tole<strong>do</strong>, espanhol, morga<strong>do</strong> e <strong>do</strong> mais ilustre<br />
de Espanha: vim tratar negócios de importância com o duque de Módena e <strong>da</strong>í<br />
passava a Florença tratar outros com o grão-duque; conheço bem ao senhor<br />
Octávio Lamberias, vosso pai, que em to<strong>da</strong> Itália é por sua fi<strong>da</strong>lguia e riqueza<br />
bem conheci<strong>do</strong>; e por serdes filha de tal pai, e não menos rara na beleza que<br />
única no valor e aviso, se quiserdes ser minha esposa, eu vos receberei por tal,<br />
sem mais <strong>do</strong>te que vossos próprios merecimentos e o generoso valor que<br />
mostrastes em defender-vos <strong>da</strong> insolente ousadia de António, com pordes em<br />
risco a vi<strong>da</strong> por não desluzirdes os resplan<strong>do</strong>res <strong>da</strong> honra, que como<br />
ilustremente nasci<strong>da</strong>, sobre tu<strong>do</strong> estimastes. A mão que de esposa vos peço,<br />
banha<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> nos purpúreos matizes de vosso sangue, será para mim pren<strong>da</strong><br />
de tão altivo preço que to<strong>do</strong>s os rubis juntos <strong>do</strong> Oriente em sua comparação<br />
perdem o valor; porque to<strong>da</strong>s as jóias para mim valem pouco, mas o ilustre<br />
sangue, por defensa tão honrosa derrama<strong>do</strong>, tem para mim a mais subi<strong>da</strong><br />
estimação.<br />
Assim falou Dom Rodrigo de Tole<strong>do</strong>, esperan<strong>do</strong> a resposta de Aurora; a<br />
qual consideran<strong>do</strong> que de mim novas não tinha, culpan<strong>do</strong> faltar-lhe com a<br />
promessa que fizera mais a tibeza <strong>do</strong> querer que a desgraça de faltar, que<br />
sempre para os desgraça<strong>do</strong>s faltam advoga<strong>do</strong>s que desculpem, ven<strong>do</strong>-se<br />
desampara<strong>da</strong> e ocasiona<strong>da</strong> ou a casar com Júlio a seu desgosto, ou a ver-se<br />
em terra alheia a mil perigos arrisca<strong>da</strong>, se resolveu, pois a ventura lhe oferecia<br />
esposo tão ilustre e generoso, e a quem se via tão obriga<strong>da</strong>, a não parecer<br />
desconheci<strong>da</strong> ao grande favor que lhe fazia, e assim lhe disse:<br />
- Injustamente, senhor Dom Rodrigo, me queixei até agora <strong>da</strong> ventura à<br />
vista <strong>do</strong>s favores que hoje recebo. Vendeu-me ao preço de desgostos a maior<br />
felici<strong>da</strong>de que eu desejar pudera, que nunca custou pouco, o que se estima em<br />
muito. Bem sei que por mim pouco mereço: motivo que me faz estimar em mais<br />
esta felici<strong>da</strong>de, que quanto tiver mais de inveja<strong>da</strong>, tanto mais terá de venturosa,<br />
pois o alimentar invejas foi o maior aplauso <strong>da</strong>s venturas. Esta que hoje logro<br />
na mercê que vossa mercê me faz de escolher-me por esposa, aceito, e quanto<br />
a mereço menos, em tanto saberei estimá-la mais.
638 Padre Mateus Ribeiro<br />
Assim falou Aurora, sen<strong>do</strong> testemunhas seus cria<strong>do</strong>s e os mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />
casal, lhe deu a mão, prometen<strong>do</strong> de não casar com outro, e ele de a receber<br />
por sua esposa com inviolável promessa. Deu logo Dom Rodrigo ordem a se<br />
partirem para a quinta de Octávio, que distava uma légua, à qual chegaram já<br />
bem de noite, no tempo em que Octávio estava em Bolonha, na noite em que<br />
me levaram preso. Man<strong>do</strong>u-se-lhe logo reca<strong>do</strong> para que viesse. O que ele<br />
sobressalta<strong>do</strong> fez. E em chegan<strong>do</strong>, Dom Rodrigo e Aurora se lhe lançaram aos<br />
pés, que foi muito entre as copiosas lágrimas de alegria de ver restaura<strong>da</strong> sua<br />
perdi<strong>da</strong> pren<strong>da</strong> não acabar a vi<strong>da</strong>, se dela muitas vezes não é menor veneno o<br />
repentino de uma não espera<strong>da</strong> alegria, <strong>do</strong> que pode servir-lhe de verdugo o<br />
intenso de uma tristeza. Impediram as lágrimas as palavras, embargou a<br />
alegria as eloquências, que, como disse Cassio<strong>do</strong>ro, o excesso de uma alegria<br />
não espera<strong>da</strong> perturba to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s e lhes suspende o acerto <strong>da</strong>s<br />
operações. Deu-lhe Dom Rodrigo particular notícia de quem era, <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong><br />
que a Florença fazia, <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> em que a Aurora encontrara, <strong>do</strong> socorro que<br />
lhe dera em ocasião tão arrisca<strong>da</strong>, <strong>do</strong> castigo que dera ao insolente António e<br />
como assim por ser filha de tal pai, como pelo muito que ela por si própria<br />
merecia, se jurara com ela e como a sua esposa a trazia, para que a seus pés<br />
lança<strong>da</strong> lhe per<strong>do</strong>asse a desobediência que cometera. Ao que Octávio, como<br />
tão discreto, disse:<br />
- Se Aurora esse desacerto não cometera, porventura que esta ventura<br />
não lograra: que assim como há erros de que nascem acertos, quan<strong>do</strong> não se<br />
esperam, assim há desgraças de que nascem venturas. Eu estimo muito,<br />
senhor Dom Rodrigo, que soubesse Aurora ter escolha tão discreta, ten<strong>do</strong> a<br />
saí<strong>da</strong> de casa tão arroja<strong>da</strong>, pois alcança em vós melhor esposo <strong>do</strong> que eu<br />
pudera <strong>da</strong>r-lhe.<br />
Com isto os abraçou com muita alegria, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> preparar alojamento<br />
para to<strong>do</strong>s os cria<strong>do</strong>s serem hospe<strong>da</strong><strong>do</strong>s com grande liberali<strong>da</strong>de.<br />
Cap. IX.<br />
Do que passou Hortênsio com as novas <strong>do</strong> casamento de Aurora e como foi<br />
solto <strong>da</strong> prisão
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 639<br />
Ao seguinte dia chegaram a Bolonha as novas de ser Aurora apareci<strong>da</strong><br />
e vir com Dom Rodrigo de Tole<strong>do</strong> desposa<strong>da</strong>, com o sucesso <strong>do</strong> atrevi<strong>do</strong><br />
António. De que to<strong>da</strong> Bolonha ficou admira<strong>da</strong>, assim <strong>do</strong> perigo, como <strong>da</strong><br />
ventura. Levou-me as novas à prisão meu amigo Septímio mui alegre, pedin<strong>do</strong>-<br />
me alvíssaras de meu abrevia<strong>do</strong> livramento, como quem ignorava os secretos<br />
de meu coração. E foi maravilha o poder ouvir com vi<strong>da</strong> novas tão ocasiona<strong>da</strong>s<br />
à minha morte.<br />
Dava-se em meu coração uma <strong>do</strong>r tão excessiva na grandeza e tão<br />
intolerável no sofrimento, tão cruel para sentir-se e tão incapaz de declarar-se,<br />
que to<strong>do</strong>s os tormentos juntos me pareciam haverem conspira<strong>do</strong> para<br />
produzirem uma mágoa sem consolação e uma tristeza sem alívio. Aborrecia-<br />
me a vi<strong>da</strong> como enfa<strong>do</strong>nha, não admitia férias minha aflição, o dia me parecia<br />
escura noite pelo triste e a noite eterna na duração pelo que passava<br />
desvela<strong>do</strong>, an<strong>da</strong>va o sono como desterra<strong>do</strong> de meus olhos, o juízo era fiscal de<br />
meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Abria a <strong>do</strong>r as portas ao coração para romper com lágrimas<br />
nos olhos, que só eles, enterneci<strong>do</strong>s de verem a meu coração tão<br />
excessivamente magoa<strong>do</strong>, lhe <strong>da</strong>vam nas lágrimas esse penoso alívio, quan<strong>do</strong><br />
to<strong>da</strong>s as potências o atormentavam. A memória com as lembranças de minhas<br />
derrota<strong>da</strong>s esperanças, a vontade com a ingratidão que se deu por prémio a<br />
tantas finezas, o discurso em julgar o esta<strong>do</strong> presente em que por Aurora me<br />
via prisioneiro, desluzi<strong>da</strong> a estimação em que de antes era ti<strong>do</strong> e o indecente<br />
com que hoje me via trata<strong>do</strong>. A esperança que só podia ser a âncora firme em<br />
tão cruel tormenta, derrota<strong>da</strong> de to<strong>do</strong> e cabalmente perdi<strong>da</strong>, não deixava lugar<br />
a algum refúgio que sustentar-me pudesse. Pois quan<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> se esconde a<br />
esperança, fica sen<strong>do</strong> a aflição mortal e impossível o remédio.<br />
Minha tristeza por to<strong>da</strong>s as partes se descobria, mas a causa só meu<br />
coração a sentia e a calava. E fica sen<strong>do</strong> o requinta<strong>do</strong> <strong>do</strong> tormento, quan<strong>do</strong> o<br />
<strong>da</strong>no se sente e a origem se encobre, pois faltan<strong>do</strong> o desafogo <strong>da</strong> queixa,<br />
sobra a tirania <strong>da</strong> <strong>do</strong>r. Publicar o motivo era arrisca<strong>do</strong>, encobri-lo parecia<br />
impossível, o silêncio mortal e a queixa arrisca<strong>da</strong>, o parecer mu<strong>do</strong> não se<br />
agradecia e o publicar-me queixoso não se aprovava, desapaixonar o coração<br />
era violento remédio, pôr chaves à mágoa para enterrá-la era veneno <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
com o peso <strong>da</strong>s aflições que a oprimiam; e assim nesta suspensão de tantos<br />
pesares, derrota<strong>do</strong> <strong>da</strong>s tempestuosas on<strong>da</strong>s de meus desgostos, me deixava
640 Padre Mateus Ribeiro<br />
levar, sem saber para onde, se não fosse para minha abrevia<strong>da</strong> sepultura. Que<br />
não param em porto mais alegre navegações de mágoas e pesares.<br />
Entre os outros presos que na cadeia comigo estavam, o que mais se<br />
me mostrou particular amigo era um licencia<strong>do</strong> florentino chama<strong>do</strong> Anacleto,<br />
que haven<strong>do</strong> em Bolonha estu<strong>da</strong><strong>do</strong> alguns anos, e sen<strong>do</strong> já forma<strong>do</strong> nos<br />
sagra<strong>do</strong>s Cânones, o culparam em a morte de um mancebo nobre que se<br />
achou morto uma noite na ci<strong>da</strong>de; e por haverem de antes ti<strong>do</strong> pendências<br />
entre si o morto e o preso, com alguns ameaços, à instância <strong>do</strong>s pais <strong>do</strong> morto<br />
o prenderam havia já alguns meses e com poucas esperanças de recurso em<br />
seu livramento. Ven<strong>do</strong> pois Anacleto em mim tantas demonstrações de tristeza,<br />
na ocasião em que a to<strong>do</strong>s parecia que devia eu mostrar-me mais contente, e<br />
indiciar tão duplica<strong>do</strong>s os desgostos no tempo em que parecia que a ventura<br />
me convi<strong>da</strong>va com as alegrias, apartan<strong>do</strong>-se comigo <strong>do</strong>s outros presos em<br />
lugar mais retira<strong>do</strong>, me disse assim:<br />
- Na ver<strong>da</strong>de, Hortênsio, que se eu fora o juiz de vossa causa e<br />
advertira na profun<strong>da</strong> melancolia em que vosso rosto se manifesta, a viera a<br />
julgar por indício provável de vossa culpa. Porque (como disse Quintiliano) não<br />
se dá inocência aonde há chaga escondi<strong>da</strong>. E <strong>da</strong> maneira que os sintomas<br />
exteriores (diz o Séneca) descobrem a quali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> mal que interiormente<br />
padece o coração, assim o excessivo sentimento de preso parece indiciar que<br />
vos oprime mais a culpa cometi<strong>da</strong> <strong>do</strong> que a carência <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de deseja<strong>da</strong>.<br />
Para vos molestar tanto o cativeiro, é o tempo ain<strong>da</strong> muito pouco em que<br />
tendes seus discómo<strong>do</strong>s experimenta<strong>do</strong>, e mostrar tanta pena por tão breve<br />
moléstia, ou dá indícios de serdes pouco sofri<strong>do</strong>, ou de estardes muito culpa<strong>do</strong>.<br />
Porque na balança <strong>da</strong> razão se deve pesar a pena com a causa, e nunca fica<br />
airoso nos olhos de quem o pudera, ser a pena tanta, sen<strong>do</strong> a causa pouca. O<br />
ateniense Alcibíades prisioneiro esteve em Sardis, ci<strong>da</strong>de de Líbia, por ordem<br />
de Artafernes, rei de Esparta; e Laome<strong>do</strong>nte, rei de Síria, prisioneiro se viu de<br />
Ptolomeu, rei de Egipto; Carlos, príncipe de França, prisioneiro foi d'el-rei de<br />
Aragão em Espanha; Francisco, rei de França, prisioneiro <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Carlos<br />
Quinto; e Dom Hugo de Monca<strong>da</strong>, conde de Roselhon e Ampurias, se viu preso<br />
em rigorosa prisão pelo príncipe Dom Pedro, regente <strong>do</strong> reino de Aragão; e<br />
quan<strong>do</strong> a seus pés ajoelha<strong>do</strong> temeu que o man<strong>da</strong>sse degolar, o príncipe o<br />
levantou nos braços e lhe deu perdão e liber<strong>da</strong>de.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 641<br />
Na alegre presença e confiança <strong>do</strong>s réus se descobre muitas vezes sua<br />
inocência. Assim sucedeu a Públio Cipião, que sen<strong>do</strong> em Roma cita<strong>do</strong> a juízo<br />
pelos tribunos <strong>do</strong> povo, acusan<strong>do</strong>-o que havia recebi<strong>do</strong> dinheiro d'el-rei<br />
Antíoco, quan<strong>do</strong> sen<strong>do</strong> cônsul lhe fazia guerra em Ásia, ele aparecen<strong>do</strong> no<br />
sena<strong>do</strong>, sem mu<strong>da</strong>r vesti<strong>do</strong>, como era costume <strong>do</strong>s réus, sem fazer cabe<strong>da</strong>l<br />
algum de seus acusa<strong>do</strong>res, orou confia<strong>do</strong> <strong>da</strong> glória que tinha adquiri<strong>do</strong> a Roma<br />
com suas vitórias e triunfos, que nem os tribunos tiveram ousadia de lhe propor<br />
acusações algumas, nem os sena<strong>do</strong>res fizeram mais que, admira<strong>do</strong>s de ouvi-<br />
lo, acompanhá-lo quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> sena<strong>do</strong> saiu, pois na aprazível confiança mostrava<br />
carecer de culpa: assim refere Marco António Sabélico na guerra d'el-rei<br />
Antíoco.<br />
Pois se alegria <strong>do</strong> rosto é abono <strong>da</strong> inocência, como intentais com a<br />
tristeza <strong>do</strong> rosto fazerdes prova à culpa? E se outra culpa tiraniza vossa vi<strong>da</strong>,<br />
que granjeais com o ocultardes? Quan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>r é incapaz de sofrer-se, também<br />
o é de encobrir-se. Pois (como diz Euripides) é padecer os males <strong>do</strong>bra<strong>do</strong>s, o<br />
violentar o sofrimento para encobri-los; porque não lhe permitir o desafogo é<br />
impossibilitá-lo <strong>do</strong> remédio. São as palavras (disse S. Gregório Papa)<br />
intérpretes <strong>da</strong> alma e embaixa<strong>do</strong>res de seus sentimentos; e assim não me<br />
parece certo que manifestan<strong>do</strong>-se em vosso rosto com tantos indícios e acenos<br />
a <strong>do</strong>r que vos senhoreia, intenteis fazê-la ca<strong>da</strong> vez maior com a condenar ao<br />
silêncio, para que careça de alívio o rigor <strong>da</strong> aflição.<br />
Assim falou Anacleto, e eu, já impaciente aos pesares que sofria, rompi<br />
o silêncio e abri as portas ao coração, para desafogar no queixoso a pena de<br />
magoa<strong>do</strong>. Referi-lhe to<strong>do</strong> o discurso de meus sucessos desde a primeira hora<br />
que vim estu<strong>da</strong>r a Bolonha, aonde vi a Aurora, até o esta<strong>do</strong> presente, e<br />
prossegui, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Parece-vos, senhor Anacleto, que pode <strong>da</strong>r-se pena que possa<br />
emparelhar com meus pesares ou <strong>do</strong>r que chegue a igualar com minha<br />
mágoa? Na morte <strong>do</strong> cruel empera<strong>do</strong>r Calígula (contam Herodiano e Suetónio)<br />
se acharam nos seus escritórios (a) tantas diversi<strong>da</strong>des de venenos, que<br />
lança<strong>do</strong>s na corrente <strong>do</strong> rio Tibre, de tal sorte infeccionaram suas águas que<br />
causaram a Roma notável <strong>da</strong>no. Porém eu digo que ain<strong>da</strong> tantos venenos não<br />
(a) Conta<strong>do</strong>r com tampa por fora que cobre as gavetas; lugar onde se guar<strong>da</strong>m escrituras.
642 Padre Mateus Ribeiro<br />
podem igualar aos que tem recebi<strong>do</strong> meu coração, porque seriam poderosos<br />
para corromper os próprios mares.<br />
Oh! mudável Aurora, prelúdio não já <strong>do</strong> dia deseja<strong>do</strong> de minha alegria,<br />
mas <strong>da</strong> noite tenebrosa de meu implacável tormento! Nunca meus olhos te<br />
houveram visto, pois se te não viram, meu coração não padecera. Não foram<br />
poderosas minhas finezas, com te haverem obriga<strong>do</strong>, para considerar-te<br />
agradeci<strong>da</strong>. Pois quem ama sem ventura, <strong>do</strong>s mesmos extremos <strong>do</strong> amar faz<br />
motivos de ofender. Deixaste-me quan<strong>do</strong> mais me devias, alcançan<strong>do</strong> Dom<br />
Rodrigo por venturoso o que eu só merecia por amante. Por ti deixei os<br />
estu<strong>do</strong>s e só me desvelei em aprender a arte de te amar e leis de querer-te,<br />
pon<strong>do</strong> em enfraquecimento o que mais me importava seguir. E agora me priva<br />
a fortuna juntamente <strong>do</strong> que mais me importava e <strong>do</strong> que mais queria. Era meu<br />
amor cego, e como tal não conheceu o precipício. Não me cansava o voo,<br />
porque alentava as asas meu desejo. Mas tu<strong>do</strong> vi despenha<strong>do</strong> em um instante:<br />
o voo, porque era meu; a esfera, porque era tua. Levantei sobre mu<strong>da</strong>nças o<br />
edifício de minhas malogra<strong>da</strong>s esperanças. E não podiam sustentar-se em<br />
bases tão inconstantes pensamentos tão firmes, pois nunca um contrário se<br />
conserva em outro.<br />
Esta é, senhor, a raiz profun<strong>da</strong> de minha oculta tristeza, pouco declara<strong>da</strong><br />
e muito senti<strong>da</strong>; pois (como diz Quintiliano) há cousas que por muito que se<br />
expliquem, nunca cabalmente se declaram; porque não comete o intenso <strong>da</strong><br />
<strong>do</strong>r tanta comissão às palavras que possam tanto dizer quanto o coração<br />
chega a sentir.<br />
Atento e admira<strong>do</strong> ouviu Anacleto os progressos de minha vi<strong>da</strong> e as<br />
queixas de minha voz, e suspenso entre demonstrações de enterneci<strong>do</strong>,<br />
consultou um breve espaço minha <strong>do</strong>r em seu juízo sobre a resposta que <strong>da</strong>ria.<br />
Porque ao excessivo de uma mágoa, não é fácil a resposta de um alívio. E por<br />
conclusão me disse assim:<br />
- É possível, senhor Hortênsio, que com tanto excesso vos atormentem<br />
cousas sem remédio? E que permitais que sem fruto hajam de ser os<br />
desgostos verdugos de vossa vi<strong>da</strong>? Se na aflição <strong>da</strong> pena consistira seu<br />
remédio, fácil fora o padecer a fim de remediar. Questão foi discuti<strong>da</strong> entre os<br />
discretos sobre julgarem em que males assentava melhor o sentimento. E<br />
depois de diversos pareceres, resolveram que nenhuns males temporais eram
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 643<br />
objecto de serem vivamente senti<strong>do</strong>s, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a razão que se os males podiam<br />
remediar-se, era escusa<strong>do</strong> o senti-los, poden<strong>do</strong> remediar-se o <strong>da</strong>no; e se não<br />
tinha remédio, ficava sen<strong>do</strong> desperdício o extremoso sentimento. Porque como<br />
os impossíveis não são objectos <strong>do</strong> desejo, assim não ficam sen<strong>do</strong> objectos<br />
capazes para <strong>do</strong>r; que parecia desluzimento a razão desvelar-se com excesso<br />
no que a natureza quis impossibilitar o remédio. Se a pena que vos atormenta<br />
pudera remediar-se, ain<strong>da</strong> se vos pudera permitir a <strong>do</strong>r que mostrais. Porém<br />
quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> remédio carece, perguntara-vos eu, que pretendeis? Se o<br />
casamento de Aurora? Já tem esposo, tanto por seu gosto escolhi<strong>do</strong>, quanto<br />
ele por si mesmo para ser estima<strong>do</strong>, que não se pode dizer por ela que fica<br />
sen<strong>do</strong> castigo de um mau gosto, o deixá-lo padecer os arrependimentos de sua<br />
erra<strong>da</strong> eleição. Sentistes sua mu<strong>da</strong>nça? Já está mu<strong>da</strong><strong>da</strong>. E parece indiscrição<br />
sentirdes vós a pena, cometen<strong>do</strong> ela a culpa. Se culpa foi nela o mu<strong>da</strong>r-se, ela<br />
sinta o castigo; e se não foi culpa a mu<strong>da</strong>nça em escolher a Dom Rodrigo por<br />
esposo, ven<strong>do</strong>-se por ele livre na ocasião mais arrisca<strong>da</strong>, injusta fica sen<strong>do</strong><br />
vossa queixa, se nela foi falta o cometer o agravo; e injusto parece que vos<br />
mostrais queixoso, se vos faltam as razões de serdes ofendi<strong>do</strong>.<br />
Vistes porventura no mun<strong>do</strong> árvore alguma que sempre persevere<br />
flori<strong>da</strong>? Em que clima se dá perpétuo Abril? Mostrais-me sítio em que se<br />
eternize Maio? Pois se tu<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> com os tempos se mu<strong>da</strong>, e a árvore<br />
mais vistosa que a Primavera celebrou por lisonja <strong>da</strong> gala é ludíbrio <strong>do</strong> Inverno<br />
pelo despojo dela, que vos admira como novi<strong>da</strong>de, ou que vos suspende como<br />
admiração, que se mu<strong>da</strong>sse Aurora, ten<strong>do</strong> tantos motivos para poder mu<strong>da</strong>r-<br />
se? Com razão o Demóstenes chamou à humana vi<strong>da</strong> teatro de<br />
representações em que tu<strong>do</strong> se mu<strong>da</strong> e tu<strong>do</strong> se representa. Referis o muito<br />
que lhe mereceis? As consultas <strong>do</strong> merecer mais as despacha a ventura que o<br />
amor. Ser amante é diferente de ser venturoso. Uma hora de ventura alcança<br />
mais que muitos anos de serviço; e só fica habilita<strong>do</strong> para possuir quem a<br />
ventura consultou para lograr.<br />
Não parece Aurora tão culpa<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> por esposo vos escolhia: favor<br />
com que discreta e agradeci<strong>da</strong> remunerava to<strong>da</strong>s vossas finezas. Errou o<br />
caminho: desvio foi <strong>da</strong> fortuna, não <strong>da</strong> vontade; e assim injustamente lhe<br />
chamais ingrata, pois o eleger-vos por esposo e sair a buscar-vos, abonos<br />
eram de agradeci<strong>da</strong>. Se quis o foragi<strong>do</strong> António violentá-la e ela se defendeu
644 Padre Mateus Ribeiro<br />
valerosa até derramar o sangue e aventurar a vi<strong>da</strong>, bem vos mereceu em tão<br />
honrosa resistência aplausos de agradeci<strong>da</strong> e títulos de amante. Pois esse<br />
decoro, se a si própria o devia como ilustre, também a vós como a seu esposo<br />
na eleição o guar<strong>da</strong>va. Em sítio tão deserto, lugar <strong>do</strong> povoa<strong>do</strong> tão remoto, nem<br />
ela podia prever que Dom Rodrigo a socorresse, nem que por esposa a<br />
pedisse. Empenhou-se ele não só em defendê-la, mas em desagravá-la <strong>do</strong><br />
atrevi<strong>do</strong> desaforo de quem a ofendia; e sen<strong>do</strong> estas acções tão generosas<br />
dignas de to<strong>do</strong> o agradecimento, mais ingrata parece se mostrara Aurora com<br />
ele se, sen<strong>do</strong> tanto para estimar-se por esposo, o não admitira.<br />
Dos socorros vagarosos disse Euripides 560 que sempre foram mal<br />
recebi<strong>do</strong>s. Mais veloz se considerava o ofensor para o agravo <strong>do</strong> que o<br />
auxilia<strong>do</strong>r para a defensa, disse Quintiliano 561 . Porque o que necessita de asas,<br />
muitas vezes periga nas demoras. Para um aflito ser na necessi<strong>da</strong>de socorri<strong>do</strong>,<br />
não há ligeireza que o pareça; porque se encontra a ânsia de quem padece<br />
com a segurança de quem socorre. Se Perseu não fora tão veloz em soltar <strong>da</strong>s<br />
cadeias com que estava presa aos roche<strong>do</strong>s <strong>da</strong> marítima praia de Joppe a<br />
fermosíssima Andróme<strong>da</strong> (como se conta), ficaria lacrimável vítima devora<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de <strong>do</strong> marinho monstro, a quem barbaramente tão portentosa<br />
fermosura se oferecia; e ela agradeci<strong>da</strong> ao repentino favor, tanto a tempo <strong>da</strong><strong>do</strong><br />
no maior perigo, se <strong>caso</strong>u com Perseu, sen<strong>do</strong> ele desconheci<strong>do</strong> no reino e ela<br />
filha de Ceseu, rei de Fenícia. Os vagares em socorrer sempre foram nocivos<br />
(diz Lucano). Porque depois de executa<strong>do</strong> o golpe, pouco aproveita o escu<strong>do</strong>.<br />
An<strong>da</strong>n<strong>do</strong> el-rei Dom Pedro de Castela, o cruel, a braços em desafio com o<br />
infante Dom Henrique, seu irmão, e ten<strong>do</strong>-o derriba<strong>do</strong> em terra, se o<br />
Condestável de França Mossen Belarão o não socorrera com tanta ligeireza,<br />
nem el-rei Dom Pedro ficara às mãos <strong>do</strong> infante no Campo de Montiel morto,<br />
nem o infante Dom Henrique se vira feito rei de Castela de repente coroa<strong>do</strong>.<br />
Lutan<strong>do</strong> o cruel Nero com as ânsias <strong>da</strong> morte, que desespera<strong>do</strong> com suas<br />
mãos se dera, chegou a ele o centúrio a quem o sena<strong>do</strong> tinha man<strong>da</strong><strong>do</strong> com<br />
ordem que o matasse, e quan<strong>do</strong> viu que ele havia si<strong>do</strong> verdugo de sua vi<strong>da</strong>,<br />
fingiu que vinha a favorecê-lo. Ao que respondeu o semivivo Nero, dizen<strong>do</strong>: E<br />
Eurip., in Rhes.<br />
Quint., Lib. 8.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 645<br />
que tarde. E nisto espirou. Se Dom Rodrigo não socorrera tão apressa<strong>da</strong>mente<br />
a Aurora, ou ela ficaria morta, ou sua honrosa resistência <strong>da</strong> insolência de<br />
António violenta<strong>da</strong>. Livrou-a <strong>do</strong> maior risco e castigou <strong>do</strong> foragi<strong>do</strong> a temerária<br />
resistência, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> castigo ao delito e socorro ao desamparo. Pois que razão<br />
mais generosa podia <strong>da</strong>r-se para ser remunera<strong>da</strong>? Ou que serviço mais digno<br />
de ser justamente agradeci<strong>do</strong>?<br />
Dizeis, senhor Hortênsio, que era Aurora prodígio <strong>da</strong> beleza: hipérboles<br />
serão de amante. Além <strong>do</strong> que as cousas, quan<strong>do</strong> se perdem, sempre se<br />
avaliam maiores na estimação <strong>do</strong> queixoso. Eu conce<strong>do</strong> que Aurora é fermosa,<br />
assim porque vós o dizeis, como porque Bolonha sua beleza aplaude e a fama<br />
seus encómios publica. Porém as exagerações são mais objectos <strong>da</strong> cortesia<br />
<strong>do</strong> que <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. E se o conseguir tu<strong>do</strong> é impossível, não julgo impossível o<br />
deixar tu<strong>do</strong>. Porque o alcançar necessita <strong>do</strong>s favores <strong>da</strong> ventura e o deixar<br />
procede <strong>da</strong> generosi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> coração. Se não conseguistes a Aurora por<br />
esposa, sabei esquecer suas memórias. Que não se mostra o generoso no<br />
muito que logra, mas prova-se no muito que deixa. Discretamente (como refere<br />
Quinto Cúrcio) invejou o grande Alexandre a bizarria <strong>do</strong> ânimo <strong>do</strong> cínico<br />
Diógenes, porque na<strong>da</strong> queria e de na<strong>da</strong> necessitar mostrava, ten<strong>do</strong> por maior<br />
valor desprezar tu<strong>do</strong> <strong>do</strong> que possuí-lo. O piloto sábio e experimenta<strong>do</strong> nas<br />
navegações sabe discretamente acomo<strong>da</strong>r-se a to<strong>do</strong>s os ventos: e assim o<br />
varão prudente há-de acomo<strong>da</strong>r-se a to<strong>da</strong>s as varie<strong>da</strong>des <strong>da</strong> fortuna. Nem<br />
sempre no mar deste mun<strong>do</strong> se pode navegar com vento bonançoso e com<br />
maré de rosas; tal vez há-de haver vento contrário e mar tempestuoso. Pois se<br />
não deve o coração desmaiar pela tormenta, para desanima<strong>do</strong> largar o leme,<br />
antes, valen<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> indústria, fazer rosto contra a fortuna. Assim a prudência,<br />
que Cícero 562 intitula ser a cousa mais proveitosa e a mais suave, há-de<br />
mostrar-se em saber acomo<strong>da</strong>r-se aos disfavores <strong>da</strong> ventura, para não<br />
desvanecer-se quan<strong>do</strong> a julgar propícia e quan<strong>do</strong> a considerar adversa para<br />
não desanimar-se.<br />
Para salvar a vi<strong>da</strong> na tormenta, se arroja ao mar liberalmente quantas<br />
riquezas adquiriu a ambição <strong>do</strong> navegante em dilata<strong>do</strong>s anos, fican<strong>do</strong> sen<strong>do</strong><br />
despojos <strong>do</strong> temor os que foram desvelos <strong>do</strong> cui<strong>da</strong><strong>do</strong>. Este que pudera parecer<br />
Cie, Tusc. 1.
646 Padre Mateus Ribeiro<br />
delírio to<strong>do</strong>s o julgam por acerto. E não periga a estimação de entendi<strong>do</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> o naufragante parece mais arroja<strong>do</strong>. Tínheis, senhor Hortênsio, vossa<br />
vi<strong>da</strong> em manifesto perigo pelo escan<strong>da</strong>loso <strong>do</strong> cargo que se vos acriminava, e<br />
não menos pelo poderoso <strong>do</strong>s ofendi<strong>do</strong>s que pela inteireza na justiça <strong>do</strong><br />
lega<strong>do</strong>; <strong>da</strong>i muitas graças a Deus, que em espaço tão breve vos chegou o<br />
remédio, quan<strong>do</strong> mais podíeis recear o <strong>da</strong>no. Brevemente vos vereis solto<br />
desta prisão, pois consta que a Aurora não furtastes. E quan<strong>do</strong> vos culpem<br />
pelos ditos <strong>da</strong>s cria<strong>da</strong>s, que a ausentar-se <strong>da</strong> casa de seu pai a persuadistes,<br />
já não convém a Octávio Lamberias o culpar-vos, em razão de Dom Rodrigo,<br />
que com ela se casa. Porque seriam mui desairosas para um esposo tão<br />
ilustre, sentenciarem-se em público juízo livian<strong>da</strong>des que pudessem desluzir a<br />
honrosa opinião de sua esposa. E é certo que em razão de esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> pun<strong>do</strong>nor<br />
vos hão-de <strong>da</strong>r por livre. Pois se tão facilmente vindes a segurar a vi<strong>da</strong> e<br />
liber<strong>da</strong>de, <strong>do</strong>us bens de inestimável valor que tão arrisca<strong>do</strong>s tínheis, fazei<br />
desconto <strong>da</strong>s memórias de Aurora que perdeis, com os interesses que<br />
granjeais, que sempre comprais a vi<strong>da</strong> e a liber<strong>da</strong>de mui barata, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong><br />
julgais que mui caro vos custam.<br />
Recebei em pagamento <strong>do</strong>s desvelos e cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s que tendes referi<strong>do</strong> a<br />
vontade com que Aurora agradeci<strong>da</strong> vos pagava e o muito que se arriscou por<br />
vossa causa e o perigo a que se viu ofereci<strong>da</strong>, e sem dúvi<strong>da</strong> achareis que<br />
excederam muito seus agradecimentos a vossos serviços. Pendeu mais o não<br />
ser esposa vossa <strong>do</strong>s encontros <strong>da</strong> ventura que de sua ingratidão. Não vos<br />
moleste o que julgais que perdestes, antes considerai o que ganhastes:<br />
ganhais a liber<strong>da</strong>de e o poderdes voltar a vossa pátria e a verdes vossos pais,<br />
logrardes o tempo sem temores, o sono sem receios e a vi<strong>da</strong> sem cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. E<br />
se perdeis o casamento de Aurora, entendei que não estava destina<strong>da</strong> para<br />
vossa. As luzes quan<strong>do</strong> não são naturais, pela maior parte são nocivas, como<br />
se vê nos cometas que, porque de sua natureza não lhes compete a luz,<br />
sempre que com ela brilham, prognosticam calami<strong>da</strong>des e ameaçam <strong>da</strong>nos.<br />
Assim, se Aurora não nasceu para ser vossa, to<strong>do</strong>s os meios haviam de sair<br />
violentos. Quem fica livre, senhor <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, para que suspira pela sujeição?<br />
To<strong>do</strong>s os sentimentos cura o tempo, aplaca a ira, mitiga o aborrecimento,<br />
desterra o temor e esquecem as finezas <strong>do</strong> querer. Tem o tempo, como diz
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 647<br />
Demóstenes , mais poderes para curar as paixões <strong>da</strong> alma <strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s os<br />
medicamentos para as <strong>do</strong>enças <strong>do</strong> corpo. Pois o que rogativas não alcançam,<br />
o tempo concede, e o que a mágoa não consente, o tempo com seus vagares<br />
oferece e com seus perío<strong>do</strong>s outorga.<br />
To<strong>do</strong> o extremo vai arrisca<strong>do</strong> ou a durar pouco e a ser nocivo pelo<br />
custoso, ou a permanecer pouco pelo inveja<strong>do</strong>. Se Aurora era extremo na<br />
beleza, competin<strong>do</strong> com ela a discrição, poucas vezes se logra o que por<br />
muitas vias se inveja. A sombra <strong>da</strong> terra até ao céu <strong>da</strong> lua chega, e por isso<br />
muitas vezes se eclipsa; e se ain<strong>da</strong> o primeiro céu não vive <strong>da</strong>s sombras <strong>da</strong><br />
inveja seguro, como poderá isentar-se <strong>da</strong>s sombras <strong>da</strong> inveja quem na terra<br />
vive? Ignorar os futuros é poupar os sentimentos. Mas como terá privilégios<br />
para viver sem receios quem o inveja<strong>do</strong> <strong>do</strong>s extremos possui? Raro prodígio <strong>da</strong><br />
beleza foi a segun<strong>da</strong> Semíramis, emperatriz de Assíria, e, como escrevem<br />
Célio Rodigino e Heliano 564 , fez matar ao empera<strong>do</strong>r seu mari<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> com<br />
a ter por esposa mais venturoso na sorte e mais contente na vi<strong>da</strong> se julgava.<br />
Os intempestivos desposórios que celebrou Antíoco Magno com Ebia,<br />
fermosíssima <strong>do</strong>nzela de Calcedónia, no tempo em que os romanos<br />
preparavam os militares aparatos e poderosas arma<strong>da</strong>s para destruí-lo, de<br />
sorte lhe debilitou o valor que foi a cabal ocasião de sua morte e ruína, como<br />
refere Alexandrino. Nunca Marco António chegara a <strong>da</strong>r-se a morte com suas<br />
mãos, se o não ocasionaram os inconsidera<strong>do</strong>s desposórios que celebrou no<br />
Egipto com a fermosa rainha Cleópatra, encarecimento maior <strong>da</strong> fermosura<br />
<strong>da</strong>quela i<strong>da</strong>de, achan<strong>do</strong> o maior motivo para perder-se, aonde considerava<br />
descobrir a mais feliz ventura para ganhar-se.<br />
Discretamente chamou Teofrasto 565 à fermosura engano sem fala e o<br />
grego Teócrito 566 a intitulou detrimento de marfim que nos can<strong>do</strong>res esconde a<br />
tirania, sem eloquências persuade e sem merecimentos obriga; carta de<br />
recomen<strong>da</strong>ção sem letras para o favor, valia eficaz sem rogos, invencível<br />
guerreiro <strong>da</strong>s armas, soberbo senhorio sem galardão e enganoso cativeiro sem<br />
Dem., Exarg. lib.<br />
Celio Rodig., Helian.<br />
Theophrast.<br />
Theocrit., apud Diog. Lib. 5.
648 Padre Mateus Ribeiro<br />
resgate. Tanto tem de agra<strong>do</strong>, quanto de perigo; pois rebuça a cruel<strong>da</strong>de no<br />
aprazível e encobre o arco, disparan<strong>do</strong> a seta. Se pois a beleza de Aurora é,<br />
senhor Hortênsio, o cabal motivo de vossa pena pela haverdes perdi<strong>do</strong>,<br />
considerai que, se tinha muito para ser por esposa deseja<strong>da</strong>, também com as<br />
mu<strong>da</strong>nças várias <strong>do</strong> tempo podia <strong>da</strong>r-vos motivo para sua per<strong>da</strong> hoje ser<br />
menos senti<strong>da</strong>. Considerai que com seu casamento ficáveis granjean<strong>do</strong><br />
perpétuas inimizades com os Galeazzos e Lambertazes, ilustres e<br />
antiquíssimas famílias de Bolonha, que por meio deste casamento de Aurora<br />
com o preso Júlio intentavam <strong>da</strong>r fim aos odiosos escân<strong>da</strong>los e princípio à<br />
deseja<strong>da</strong> paz; e ven<strong>do</strong>-se impossibilita<strong>do</strong>s de por este meio consegui-la, talvez<br />
renovariam suspensas hostili<strong>da</strong>des e ódios a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>s. Nunca se terminam<br />
cabalmente, disse Demóstenes 567 , parciali<strong>da</strong>des que fomentam o ódio e o<br />
temor; porque o temor e o ódio são ao amor contrários. E como com o trata<strong>do</strong><br />
casamento de Aurora no preso fazia tréguas o temor e em seus parentes<br />
suspensão de armas o ódio, não leva Dom Rodrigo tão pequena pensão nestes<br />
desposórios de Aurora de poderem deles brotar novas origens de discórdias<br />
civis, com que de novo Bolonha padeça iguais calami<strong>da</strong>des às que tantas<br />
vezes tem padeci<strong>do</strong>.<br />
Inimizades disfarça<strong>da</strong>s, disse Cícero, foram sempre mais para se<br />
temerem que as manifestas; porque destas bem pode acautelar-se o temor,<br />
mas <strong>da</strong>s outras mal se defende a confiança. Os rios pequenos e arroios<br />
humildes logo mostram as areias de seu fun<strong>do</strong>, porque sen<strong>do</strong> este de tão<br />
pouca altura, tem mais ruí<strong>do</strong> nas on<strong>da</strong>s de cristal <strong>do</strong> que encobertas iras nas<br />
areias; porém os rios grandes e cau<strong>da</strong>losos fazem pouco estron<strong>do</strong> e arruínam<br />
muito. Estes ódios veteranos entre famílias tão poderosas não estão<br />
descui<strong>da</strong><strong>do</strong>s: professam tréguas, mas não confirmam pazes; fala a cortesia e<br />
cala a vontade; dissimula a esperança, porém não <strong>do</strong>rme o desamor; finge a<br />
pretensão, mas não o agravo. O ar que na sombra nos parece puro, visto aos<br />
raios <strong>do</strong> sol, to<strong>do</strong> an<strong>da</strong> de átomos empoa<strong>do</strong>. E como com este casamento de<br />
Dom Rodrigo com Aurora cessa o disfarce e se rasga o rebuço <strong>do</strong>s parentes <strong>do</strong><br />
preso Júlio, uma vez que fraqueja a pretensão bem se pode temer que se<br />
descubra a feri<strong>da</strong> que ven<strong>da</strong>va mal cura<strong>da</strong> a dissimulação <strong>da</strong> esperança.<br />
Dem., 1. Olinth.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 649<br />
E se me disserdes que vós, levan<strong>do</strong> convosco a Aurora, havíeis de viver<br />
com ela em Taranto, vossa pátria, e não em Bolonha, a isso respon<strong>do</strong> que<br />
sempre consigo leva o perigo quem a causa dele leva. De Bolonha a Taranto<br />
nem há mares que passar, nem os desertos <strong>da</strong> Líbia, nem os secos e<br />
movediços areais de Arábia, nem os montes Rifeus que subir, horríveis pelo<br />
intratável <strong>da</strong>s neves que os oprime, nem os montes Hiperboreus a que montar,<br />
que por sua eminência parecem nova colónia <strong>do</strong>s ares e soberba vizinhança <strong>do</strong><br />
norte, livros em que se registram os luzi<strong>do</strong>s prelúdios <strong>do</strong> nascimento <strong>da</strong>s<br />
estrelas. E sen<strong>do</strong> <strong>da</strong>qui a Taranto tão breve a jorna<strong>da</strong>, mal vos podíeis<br />
assegurar de inimigos poderosos, se se publicassem ofendi<strong>do</strong>s.<br />
Não se deram por seguros de Júlio César, que nos campos farsálicos<br />
vence<strong>do</strong>r ficava, nem o grande Pompeu em Lesbos, nem Catão em Útica, nem<br />
<strong>da</strong>s vinganças de Augusto Cássio e Bruto em Macedónia, nem Marco António<br />
em Alexandria. Nem se asseguraram <strong>do</strong> furor vingativo de Alexandre, Besso<br />
com os paramos bactrianos com muros impenetráveis de tantos montes, tantos<br />
mares que navegar e tantos cau<strong>da</strong>losos rios que vencer, que tu<strong>do</strong> valeu pouco<br />
a quem se temia, porque a ira <strong>do</strong>s ofendi<strong>do</strong>s venceu tu<strong>do</strong>. Pois como podíeis<br />
assegurar-vos em Taranto <strong>do</strong>s parentes de Aurora, sen<strong>do</strong> rouba<strong>da</strong> a seu pai, e<br />
<strong>do</strong>s Galeazzos, sen<strong>do</strong> tira<strong>da</strong> ao prometi<strong>do</strong> Júlio seu esposo? Não basta às<br />
pérolas preciosas terem no centro <strong>do</strong> mar em seu nácar marítimo juntamente o<br />
berço e o sepulcro, nem a guar<strong>da</strong> de tão impenetráveis on<strong>da</strong>s para defendê-las<br />
<strong>da</strong> ambição, que quan<strong>do</strong> mais seguras <strong>do</strong> temor, de repente as assalta e de<br />
seu centro as arranca, fazen<strong>do</strong> que apareçam aos resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol as que<br />
nunca viram mais que as lágrimas <strong>da</strong> aurora. Pois como poderíeis em tão<br />
breve distância assegurar-vos <strong>da</strong> vingança, viven<strong>do</strong> ao descoberto de seus<br />
assaltos? É o desejo vingativo tanto mais poderoso que a ambição, quan<strong>do</strong> se<br />
dirige a objecto mais sublime, nos ilustre e poderosos, qual é o desagravo <strong>da</strong><br />
honra, í<strong>do</strong>lo em que o mun<strong>do</strong> i<strong>do</strong>latra. E quan<strong>do</strong> a honra se avantaja em<br />
ânimos generosos à riqueza, tanto são seus incentivos mais eficazes para<br />
serem temi<strong>do</strong>s os estímulos <strong>da</strong> vingança. Um peito ilustre poderá tolerar a<br />
moléstia <strong>da</strong> pobreza, mas mal se mostrará sofri<strong>do</strong> aos desaires <strong>da</strong> afronta.<br />
Porque por pobre não perde a estimação para quem o conhece, mas por<br />
agrava<strong>do</strong> e ofendi<strong>do</strong> arrisca a veneração e põe aos lanços <strong>da</strong> fortuna o<br />
respeito.
650 Padre Mateus Ribeiro<br />
Destes sustos e temores, contínuos verdugos <strong>do</strong> coração, ficais livre<br />
sem o casamento de Aurora; que Êumenes, rei de Pérgamo, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
Antíoco Magno, monarca poderoso de Ásia, oferecer a princesa sua filha como<br />
riquíssimo <strong>do</strong>te em casamento, ele a não aceitou por não se envolver por seu<br />
respeito nas arrisca<strong>da</strong>s guerras que os romanos lhe faziam. À tranquili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
paz chamou Demétrio, referi<strong>do</strong> por Séneca, mar em calma, aonde nem os<br />
ventos ameaçam, nem as on<strong>da</strong>s inquietam, nem a tempestade arrisca, nem o<br />
temor desvela. A medi<strong>da</strong> e peso <strong>do</strong> agravo vai acompanhan<strong>do</strong> o temor, disse<br />
discretamente Cassiano 568 : muito tem que temer quem muito agrava, pouco<br />
tem que recear quem pouco ofende. Felice chamou Claudiano àquele que no<br />
pátrio <strong>do</strong>micílio pode viver seguro; porque suposto que as possessões sejam<br />
limita<strong>da</strong>s, o descanso e segurança as faz parecer grandiosas. Se Aurora vos<br />
pareceu aurora nas luzes <strong>da</strong> fermosura, outra haverá que possa parecer sol<br />
nos resplan<strong>do</strong>res <strong>da</strong> beleza. Não se empobrecem os delica<strong>do</strong>s moldes <strong>da</strong><br />
natureza com uma só estampa, para que não produzam outras, não só iguais,<br />
mas muitas em tu<strong>do</strong> superiores. Nem só em Bolonha se criaram prodígios no<br />
parecer, nem se cifrou a gala <strong>do</strong> vistoso, que em to<strong>da</strong> a terra se comunica o<br />
assombroso <strong>da</strong> fortuna e se reparte o encareci<strong>do</strong> e o exagera<strong>do</strong> <strong>da</strong> beleza.<br />
Cap. X.<br />
De como Hortênsio foi solto <strong>da</strong> prisão e como chegou a Taranto sua pátria<br />
Assim falou Anacleto, e suposto que o intenso de minha pena parecia<br />
incapaz de admitir alívios para divertir-se, confesso que foi poderosa sua<br />
persuasão para serenar em muita parte o tempestuoso mar de meus pesares.<br />
Considerei com mais maduro discurso o presente esta<strong>do</strong> em que me via, e que<br />
já era impossível ser Aurora esposa minha e parecia nece<strong>da</strong>de sentir com tanto<br />
extremo o que não podia melhorar-se com o repeti<strong>do</strong> <strong>da</strong> mágoa. Adverti os<br />
riscos que trazia consigo o roubo de Aurora, fican<strong>do</strong> tantas e tão poderosas<br />
pessoas ofendi<strong>da</strong>s, mina de que podiam brotar mil violentos incêndios de<br />
vinganças; pois nunca se pode julgar seguro, quem vive com poderosos<br />
Cassian., in Ps. 24.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 651<br />
ofendi<strong>do</strong>s. Da vingança disse bem Valério Máximo que suposto que aquela<br />
em seguimento <strong>do</strong> ofensor com passos lentos caminha, nunca de vista o perde,<br />
até que de repente, quan<strong>do</strong> mais descui<strong>da</strong><strong>do</strong>, o acomete e castiga.<br />
Ninguém na terra vive isento de poder ser ofendi<strong>do</strong>. Não se livrou<br />
Séneca <strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de de seu ingrato discípulo Nero, por modesto e bem<br />
procedi<strong>do</strong>; nem Cícero <strong>do</strong> furor de Marco António por eloquente; nem Júlio<br />
César <strong>da</strong> ira <strong>do</strong>s conjura<strong>do</strong>s sena<strong>do</strong>res por clemente; nem o empera<strong>do</strong>r<br />
Aureliano <strong>da</strong> rebelião de seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s por valeroso; nem Probo por ser em<br />
suas acções justifica<strong>do</strong>; nem Pertinaz por desinteressa<strong>do</strong>; nem o grande<br />
Pompeu por venturoso; nem Atílio Régulo por pontual e ver<strong>da</strong>deiro; nem Filipe,<br />
rei de Macedónia, por astuto e sagaz; nem o grande Alexandre por invencível;<br />
nem Calístenes por filósofo; nem Sócrates por sofri<strong>do</strong>; nem Seleuco por<br />
pie<strong>do</strong>so; nem Aníbal por guerreiro; nem Alcibíades por simula<strong>do</strong>; que to<strong>do</strong>s<br />
violentamente, ou com ferro ou com veneno, acabaram as vi<strong>da</strong>s, para que a<br />
humana presunção se desengane que de inimigos ninguém vive seguro.<br />
Preparavam-se neste tempo os ricos aprestos e custosas galas para o<br />
recebimento de Aurora com Dom Rodrigo de Tole<strong>do</strong>, de que to<strong>da</strong> Bolonha<br />
admira<strong>da</strong> estava, temen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s contrários ban<strong>do</strong>s alguma satisfação arrisca<strong>da</strong>.<br />
Porém eles dissimularam discretamente, sem se mostrarem agrava<strong>do</strong>s, assim<br />
por nisso intervir mu<strong>da</strong>nça de mulher, que trás consigo a desculpa, como<br />
também pela quali<strong>da</strong>de e estimação de Dom Rodrigo ser tão notória, e por não<br />
exasperarem mais o ânimo de Octávio Lambertas no perdão que para o preso<br />
Júlio pretendiam. Que o pender <strong>da</strong> vontade de outro no que pode ocasionar-se<br />
perigo sabe moderar as paixões e disfarçar os sentimentos, para que suspen<strong>da</strong><br />
a voz a queixa <strong>da</strong> mágoa que sente o coração. São as dependências tão<br />
poderosas que parece fazem muitas vezes divórcio entre o entendimento e os<br />
senti<strong>do</strong>s. Corteja ao que aborrece, aplaude ao que desengana, segue ao<br />
mesmo de quem foge, assiste ao que lhe é enfa<strong>do</strong>nho, obedece a quem<br />
despreza, sofre magoa<strong>do</strong> e dissimula ofendi<strong>do</strong>. Assim se viu neste sucesso,<br />
pois visitan<strong>do</strong> os Galeazzos a Octávio e a Dom Rodrigo com os parabéns <strong>do</strong>s<br />
desposórios de Aurora, mostravam tanto festejarem seus acertos como se no<br />
casamento fossem os mais interessa<strong>do</strong>s e em na<strong>da</strong> ofendi<strong>do</strong>s. É discreto<br />
Valer. Max., Lib. 1.
652 Padre Mateus Ribeiro<br />
mo<strong>do</strong> de saber obrigar o mostrar-se participante nas alegrias quem podia<br />
presumir-se justamente ofendi<strong>do</strong> nos pesares. Como os casamentos e as<br />
mortes franqueiam as portas para poderem desterrar-se os ódios e reconciliar-<br />
se as vontades até este tempo desuni<strong>da</strong>s, é acerto <strong>da</strong> discrição saber valer-se<br />
<strong>do</strong> tempo, quan<strong>do</strong> este oferece a ocasião.<br />
Esperava eu na prisão o termo em que haviam de parar meus<br />
sentimentos, quan<strong>do</strong>, um dia antes <strong>do</strong> recebimento de Aurora, veio à prisão o<br />
auditor a soltar-me, mas com que primeiro assinasse um termo de que, sob<br />
gravíssimas penas, não entraria em Bolonha, nem em to<strong>do</strong> o distrito de sua<br />
jurisdição. Bem pudera eu reparar no rigor, mas o desejo que tinha de me ver<br />
fora de Bolonha, por não ser violenta<strong>da</strong> testemunha <strong>da</strong>s bo<strong>da</strong>s de Aurora, não<br />
permitiu replicar, senão obedecer. Este desterro em Octávio foi cautela de<br />
estadista, no auditor prevenção de prudente e em mim obediência,<br />
aborrecen<strong>do</strong> a ci<strong>da</strong>de onde fui tão pouco venturoso. Saí <strong>da</strong> prisão, e o meu<br />
cria<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o sol retirava a retaguar<strong>da</strong> luzi<strong>da</strong> de seus raios. Despedi-me de<br />
Anacleto, que ficou bem sau<strong>do</strong>so de minha companhia. E sem querer demorar<br />
em Bolonha nem um instante, montei a cavalo e me parti desta para mim<br />
ci<strong>da</strong>de odiosa, para mais não vê-la; não tanto pelo termo que assinei, quanto<br />
pelo sentimento e pelos desaires <strong>da</strong> ventura que nela experimenta<strong>do</strong> havia.<br />
Caminhei com esta pena o mais <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong>, até que avistei os muros de minha<br />
pátria, iminente aos dilata<strong>do</strong>s mares de seu golfo no mun<strong>do</strong> tão conheci<strong>do</strong>.<br />
Cheguei a casa de meus pais, de quem fui com grandes demonstrações de<br />
amor recebi<strong>do</strong>, e ain<strong>da</strong> meu irmão me recebeu alegre, efeitos <strong>da</strong> ausência, que<br />
talvez obra com o primeiro alvoroço, o que não obriga a repeti<strong>da</strong> assistência.<br />
Referi a história <strong>do</strong> que me havia sucedi<strong>do</strong>, de que se admiraram meus pais,<br />
choran<strong>do</strong> compassivos <strong>do</strong>s riscos em que me vira, que corriam por conta de<br />
seus corações para senti-los. Fui visita<strong>do</strong> <strong>do</strong>s parentes e amigos, que com<br />
seus divertimentos, no agradável <strong>da</strong> pátria, se foram riscan<strong>do</strong> <strong>da</strong> memória as<br />
lembranças de Aurora, de tal sorte que, se me lembrava, já sua memória me<br />
não desvelava, nem <strong>do</strong> sossego que gozava me divertia.<br />
Dous anos seriam já passa<strong>do</strong>s que no pátrio <strong>do</strong>micílio e casa de meus<br />
pais vivia descui<strong>da</strong><strong>do</strong> nem de continuar estu<strong>do</strong>s, nem de seguir as armas,<br />
porque minha mãe, como tão amante, o impedia. Estava o coração de minha<br />
mãe tão lastima<strong>do</strong> só com a relação <strong>do</strong>s perigos e desgostos referi<strong>do</strong>s que não
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 653<br />
me permitia a menor ausência de seus olhos. Meu pai seguia o mesmo<br />
parecer. Só meu irmão Teodósio, tornan<strong>do</strong> com minha assistência a repetir os<br />
passos antigos de sua natural desunião para comigo, com estas repeti<strong>da</strong>s<br />
murmurações que meu irmão fazia, me deliberei a sair segun<strong>da</strong> vez de minha<br />
pátria e parti para Florença, para acompanhar a D. João de Médices, irmão <strong>do</strong><br />
grão-duque de Florença, que com <strong>do</strong>us mil sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s partia para Hungria para<br />
assistir ao arquiduque Matias, general <strong>da</strong>s armas imperiais na superior<br />
Hungria. Temia-se que o grão turco Hamurathes man<strong>da</strong>va poderoso exército<br />
sobre a ci<strong>da</strong>de de Javarino, praça fortíssima edifica<strong>da</strong> nas ribeiras <strong>do</strong> Danúbio,<br />
como ao fim sucedeu. A pedimento <strong>do</strong> general entrou na praça de presídio<br />
Dom João de Médices com a sua gente e mais outros mil sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s,<br />
aventureiros to<strong>do</strong>s italianos em que o general confiava muito. Entrei eu de<br />
presídio na ci<strong>da</strong>de, e não tar<strong>do</strong>u muito em aparecer Sinão, general de<br />
Amurathes, destina<strong>do</strong> dele e escolhi<strong>do</strong> para esta empresa por valeroso e<br />
venturoso capitão, que em diversas empresas havia adquiri<strong>do</strong> ao grão turco<br />
grandes vitórias. E como Amurathes tinha de seu valor e ventura tantas<br />
experiências conheci<strong>da</strong>s, desejan<strong>do</strong> muito conquistar esta fortíssima praça e<br />
ci<strong>da</strong>de de Javarino, lhe cometeu a ele esta empresa.<br />
Apareceu Sinão à vista <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de com um poderoso exército, em que se<br />
dizia trazer perto de cento e cinquenta mil turcos e tártaros, porém em que<br />
entrava muita gente inútil para a guerra, mas que só servia para a bagagem e<br />
trabalho e a crescer o número <strong>da</strong> vista militar que o exército fazia, cuja<br />
multidão, se no valor se comparava com o <strong>do</strong>s defensores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, era<br />
pouca, mas se se comparava com o número <strong>do</strong>s sitia<strong>do</strong>s, eram muitos.<br />
Quisemos <strong>da</strong>r-lhe as boas vin<strong>da</strong>s logo, antes de aquartelar-se, sain<strong>do</strong> a<br />
assaltá-los algumas tropas de aventureiros escolhi<strong>do</strong>s, e lhe demos uma<br />
investi<strong>da</strong> bem custosa. Porém como eram tantos e a cavalaria <strong>do</strong>s genizaros<br />
tão ligeira e atrevi<strong>da</strong>, ao retirar-nos fizeram considerável <strong>da</strong>no. E cain<strong>do</strong> feri<strong>do</strong><br />
o meu cavalo, fiquei prisioneiro e feri<strong>do</strong> <strong>do</strong>s turcos, que ain<strong>da</strong> que mal cura<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s que recebi<strong>do</strong> tinha, me man<strong>da</strong>ram a Constantinopla, aonde fui<br />
vendi<strong>do</strong> por escravo de um rico e poderoso turco que se chamava Zulema<br />
Ferrât.<br />
Tinha este turco, a quem servia, uma única filha, que teria vinte anos de<br />
i<strong>da</strong>de, í<strong>do</strong>lo vivo em que o pai fazia amorosas a<strong>do</strong>rações, por ser ela a maior
654 Padre Mateus Ribeiro<br />
a<strong>do</strong>ração <strong>do</strong>s seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Chama-se Zelin<strong>da</strong>, e com razão lhe competia o<br />
nome: pois se <strong>da</strong> lindeza nascem os ciúmes em quem ama, ela em o nome<br />
tinha junto os ciúmes e a lindeza. Pintou nela a natureza a oitava maravilha, se<br />
não disser que <strong>da</strong>s sete que tanto admirou a antigui<strong>da</strong>de, foi ela a primeira pela<br />
grande distância que vai <strong>do</strong> vivo ao desanima<strong>do</strong> e <strong>do</strong> racional ao insensível.<br />
Sobre<strong>do</strong>uravam as madeixas de seu cabelos a brunhi<strong>da</strong> prata de seu rosto,<br />
cujos can<strong>do</strong>res <strong>da</strong>vam temor às açucenas de poderem parecer escuras à sua<br />
vista, sen<strong>do</strong> anima<strong>da</strong> neve sem derreter-se; porque os montes Alpes não eram<br />
mais eminentes na presunção, nem mais altivos e neva<strong>do</strong>s na isenção e na<br />
dureza. Eram os olhos de Zelin<strong>da</strong> negros como a noite mais escura. Quem viu<br />
por admiração a noite nos olhos e a manhã no rosto? O escuro mais denso e o<br />
sol mais luzi<strong>do</strong>? Rasgou-lhe a natureza os olhos para facilitar seus assaltos,<br />
franquean<strong>do</strong> as portas para saírem as luzes. É ordinariamente o luto <strong>da</strong> noite<br />
bandeira de tréguas em que descansam os senti<strong>do</strong>s; mas em Zelin<strong>da</strong> era o luto<br />
agradável de seus olhos bandeira de viva guerra para assaltar descui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. E<br />
se o negro <strong>da</strong> noite é férias <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, os olhos de Zelin<strong>da</strong> a ninguém que<br />
os via permitiam descui<strong>do</strong>s; que como tinha o sol na cara e a noite nos olhos,<br />
logravam estes sempre para guerrearem os privilégios de dia.<br />
Sangria de coral parecia a boca pelo breve <strong>do</strong> rasgo, que sempre<br />
parecia na<strong>da</strong>r em sangue, sem vertê-lo, e em concha tão sucinta <strong>da</strong> púrpura<br />
mais fina aprisionava pérolas por dentes. E quan<strong>do</strong> nas lágrimas <strong>da</strong> aurora se<br />
não vissem congela<strong>da</strong>s, sempre em sua boca se viam as mais finas. Competia<br />
o <strong>do</strong>nairoso <strong>do</strong> talhe consigo mesma; porque tanto nela se apurou a natureza<br />
com os poli<strong>do</strong>s rasgos <strong>do</strong> pincel que quis fosse modelo para o brioso, de<br />
nenhuma imita<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong>s apeteci<strong>do</strong>. Era tão discreta como fermosa; e não<br />
encareci pouco seu juízo! Pois se com Zelin<strong>da</strong> ninguém correu parelhas na<br />
beleza, ninguém presumiu igual<strong>da</strong>de na discrição, sen<strong>do</strong> ela só em<br />
Constantinopla racional triunfo na beleza e aplaudi<strong>do</strong> vencimento na discrição.<br />
Era este anima<strong>do</strong> prodígio a mais celebra<strong>da</strong> maravilha pela fama que pela<br />
vista; porque não costumam as turcas saírem em público sem irem<br />
mascara<strong>da</strong>s. Porém que nuvem seria bastante para esconder tanto sol? Nem<br />
que máscara para encobrir tanta neve? Pois ao Olimpo superior não se<br />
atrevem as novens. Era Zelin<strong>da</strong> de sua própria estimação tão altiva e tão<br />
despreza<strong>do</strong>ra de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s que era a desestimação que de tu<strong>do</strong> fazia igual à
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 655<br />
fermosura com que sujeitava. É a fermosura (como diz Ovídio) sempre soberba<br />
por desvaneci<strong>da</strong>: entende que os desvelos se lhe devem por tributo e os<br />
cortejos mais obsequiosos como rendimentos de obrigação; quer vencer ao<br />
mun<strong>do</strong> sem armas, aprisionar sem cadeias e premiar serviços com desprezos,<br />
fazen<strong>do</strong> <strong>da</strong> mesma ingratidão que costuma defender, nova razão de esta<strong>do</strong><br />
para se conservar.<br />
Tal se via na condição de Zelin<strong>da</strong>, que rejeitan<strong>do</strong> grandes casamentos<br />
de ricos e poderosos senhores turcos, que a seu pai Zulema Ferrât a pediam<br />
por mulher, era amoroso martírio de quem a pretendia, sen<strong>do</strong> perpétuo<br />
desengano de quem a desejava. Igualmente se falava na corte de sua rara<br />
beleza que de sua desengana<strong>da</strong> ingratidão; pois se com a fermosura cativa os<br />
corações, era com a soberania e desprezo veneno <strong>da</strong>s esperanças de quem a<br />
pretendia. O pai, que como girassol an<strong>da</strong>va seguin<strong>do</strong> com os afectos as luzes<br />
deste anima<strong>do</strong> sol de sua filha, não se atreven<strong>do</strong> a desgostá-la em cousa<br />
alguma, porque quem ama muito não sabe <strong>da</strong>r pesares ain<strong>da</strong> em pouco, já não<br />
se atrevia a trazer-lhe embaixa<strong>da</strong>s de casamentos, porque sobre serem to<strong>do</strong>s<br />
dela rejeita<strong>do</strong>s, lhe <strong>da</strong>va motivos de pena por lhe serem tão odiosos.<br />
Com serem as turcas tão recata<strong>da</strong>s em não permitirem serem vistas, só<br />
<strong>do</strong>s escravos cristãos não se retiram no afável, ou seja porque como a cativos<br />
os estimam em pouco, ou porque como muitas vezes seja necessário<br />
entrarmos dentro a servi-las, não tem lugar o retiro aonde é forçosa a<br />
assistência. Em o dilata<strong>do</strong> discurso de meu cativeiro foi vista de mim Zelin<strong>da</strong><br />
muitas vezes, e com serem muitas as vistas, sempre que dela me ausentava,<br />
era com desejos novos de vê-la. Para dizer que me obrigava amor, <strong>da</strong>vam-se<br />
grandes distâncias: a diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s leis, sen<strong>do</strong> eu cristão e ela turca; a<br />
diferença <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> ela senhora e eu seu cativo; a altiveza de sua<br />
condição, que desprezan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>, menos se pagaria de quem no esta<strong>do</strong><br />
presente valia tão pouco; e finalmente que se suspeitasse o pai a menor<br />
sombra em mim de amoroso desvelo para Zelin<strong>da</strong>, a quem <strong>do</strong>s mesmos raios<br />
<strong>do</strong> sol zelava, conforme o cruel natural destes bárbaros, faltos de to<strong>da</strong> a<br />
pie<strong>da</strong>de e compaixão, sem dúvi<strong>da</strong> enten<strong>do</strong> que me tirasse a vi<strong>da</strong>. Por estes e<br />
outros motivos, não afirmarei com certeza que em mim se <strong>da</strong>va propriamente<br />
amor; porque rara vez este aspira a impossíveis (como disse Quintiliano), não
656 Padre Mateus Ribeiro<br />
sen<strong>do</strong> ditame <strong>da</strong> razão empenhar-se em pretender o que não se pode<br />
alcançar.<br />
To<strong>da</strong>s as cousas pelo costume de serem vistas vem a perder muito <strong>da</strong><br />
admiração primeira com que foram estima<strong>da</strong>s; porque sen<strong>do</strong> a novi<strong>da</strong>de o<br />
cunho que dá valor ao precioso, faz o costume que assim como se diminui a<br />
admiração, assim se abata o valor. Daqui veio a dizer S. João Crisóstomo que<br />
o costume causava muitas vezes o desprezo. Porém posso afirmar que quanto<br />
Zelin<strong>da</strong> era de mim mais vista, tanto era mais estima<strong>da</strong>. Porque o que é<br />
portentoso para se admirar, nunca debilita os alvoroços de estimação por se<br />
ver. Conhecia o pai de Zelin<strong>da</strong> pelas informações que tinha que era eu filho de<br />
ilustres pais, e eles ricos, suposto que eu era segun<strong>do</strong>, e como bem nasci<strong>do</strong> e<br />
de pais ricos, esperava de meu resgate avantaja<strong>do</strong>s interesses. Com estas<br />
ambiciosas esperanças, me tratava nos limites de cativo com mais decoroso<br />
respeito <strong>do</strong> que aos outros cativos fazia. Algumas vezes me man<strong>do</strong>u que<br />
escrevesse a meu pai sobre o meu resgate, que o turco subia a preço e valor<br />
que quasi dificultava o poder ver-me livre de seu poder. E suposto que por via<br />
de Veneza escrevi algumas vezes, jamais tive resposta. O que me causava<br />
notável pena, por recear se seriam meus pais mortos, ou as cartas se<br />
perderiam, ou se desviariam as repostas para não se me <strong>da</strong>rem. Com esta<br />
tristeza que me ocupava os senti<strong>do</strong>s, ain<strong>da</strong> que no exterior em parte<br />
disfarça<strong>da</strong>, porém não de to<strong>do</strong> encoberta, entrei um dia em um jardim, aonde<br />
Zelin<strong>da</strong> estava desafian<strong>do</strong> as flores a discretas competências de beleza, se<br />
flores podiam presumir competências com Zelin<strong>da</strong>. Estava ela só no jardim,<br />
que espaçoso e delicioso era; e depois de as sau<strong>da</strong>r com as cortesias de seu<br />
cativo, ven<strong>do</strong>-me ela com aparências de triste no semblante, relógio mostra<strong>do</strong>r<br />
<strong>da</strong>s horas que dentro aponta o coração, me disse em bastante língua italiana,<br />
que de uma cativa florentina aprendi<strong>do</strong> havia, desta sorte:<br />
- Suposto, Hortênsio, que o cativeiro e privação <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de seja<br />
bastante motivo para to<strong>da</strong> a tristeza, e o veres-te ausente <strong>da</strong> pátria e <strong>da</strong><br />
companhia de teus pais seja incentivo poderoso para duplicar os sentimentos,<br />
contu<strong>do</strong> vejo-te em umas ocasiões mais que em outras triste e estimara que<br />
me manifestaras a causa de teus pesares; porque se puderem aliviar-se com<br />
meu cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, nem tu viverás tão triste, nem eu de teus desgostos pesarosa.<br />
São as tristezas verdugos implacáveis <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, e eu desejo-te muita, não pelo
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 657<br />
resgate que de ti espero, mas porque estou bem informa<strong>da</strong> <strong>do</strong> muito que<br />
mereces, e para que conheças que tens pie<strong>do</strong>sa senhora, que não é em um<br />
cativo tão pouca ventura achar a pie<strong>da</strong>de aonde reconhece o senhorio. Os<br />
ânimos ilustres não desanimam com os assaltos <strong>da</strong> fortuna, nem abatem o<br />
generoso aos combates <strong>da</strong>s adversi<strong>da</strong>des. Não pela primeira tormenta se<br />
deixam as navegações; pois sen<strong>do</strong> as tempestades certas, ninguém aos golfos<br />
<strong>do</strong> mar se arriscara. Às borrascas se seguem as bonanças, ao perigo o<br />
descanso, à moléstia o sossego e à batalha a vitória. Quanto mais se dilata teu<br />
cativeiro, tanto será de maior estimação a liber<strong>da</strong>de, que a ser abrevia<strong>da</strong> a<br />
duração <strong>do</strong> que perdes, seria de menos valor a restauração quan<strong>do</strong> a cobrares.<br />
Se se pusessem em balança os desgostos que padeces com as alegrias que<br />
na liber<strong>da</strong>de possuir esperas, porventura que estas pesariam mais e as outras<br />
molestariam menos. Algum dia farás lisonja desta lembrança; pois assim como<br />
o ouro que se tira <strong>da</strong> mina mais profun<strong>da</strong> é nos quilates o mais subi<strong>do</strong>, assim a<br />
alegria que nasce <strong>da</strong> maior pena é a delícia para o coração de maior estima.<br />
Assim falou Zelin<strong>da</strong>, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> uns longes de amorosa entre as<br />
demonstrações de compassiva, uns assomos de poder parecer afeiçoa<strong>da</strong><br />
rebuça<strong>do</strong>s com matizes de pie<strong>do</strong>sa. Bem mostravam as pren<strong>da</strong>s de seu juízo<br />
competirem parelhas com sua fermosura. Depois de eu com humilde inclinação<br />
de escravo lhe render as graças <strong>do</strong> grande favor que me fazia, quasi<br />
perturba<strong>do</strong> deste primeiro assalto <strong>da</strong> ventura, tanto mais poderoso para<br />
perturbar as eloquências, quanto menos espera<strong>do</strong>, nem <strong>do</strong> desejo presumi<strong>do</strong>,<br />
lhe respondi:<br />
- Não nasce, discreta e pie<strong>do</strong>sa senhora, a tristeza que em mim<br />
conheces de me ver priva<strong>do</strong> <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de no cativeiro em que assisto, que<br />
parecera ingrato à ventura de te ter por senhora, quan<strong>do</strong> formara queixas de<br />
me ver escravo. Quem a seus cativos tão pie<strong>do</strong>samente trata, duas vezes os<br />
prende: uma pela compra e outra pelo tratamento que experimento, sen<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>bra<strong>da</strong>s as cadeias com que me vejo cativo, uma <strong>da</strong> fortuna, outra <strong>da</strong><br />
cortesia; fico-te deven<strong>do</strong> mais, quan<strong>do</strong> à fortuna devo menos. A causa que<br />
pode fazer-me parecer a teus fermosos olhos triste é o não ter novas de meus<br />
pais, haven<strong>do</strong>-lhes por diversas vezes escrito sobre meu resgate, e a falta de<br />
resposta sua me faz recear possam ser mortos. Porque fio eu tanto de seu<br />
amor que enten<strong>do</strong> era impossível o não me haverem respondi<strong>do</strong> sen<strong>do</strong> vivos.
658 Padre Mateus Ribeiro<br />
E se o não forem, com razão posso dizer que ao golpe rigoroso <strong>da</strong> morte<br />
ficaram corta<strong>da</strong>s juntamente minhas esperanças e minhas alegrias, perden<strong>do</strong><br />
neste infortúnio to<strong>do</strong> o cabe<strong>da</strong>l de meu alívio e liber<strong>da</strong>de, não reservan<strong>do</strong> a<br />
fortuna poderes para mais despojar-me, pois rouban<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> a meus pais, me<br />
rouba tu<strong>do</strong>. Esta é, pie<strong>do</strong>sa Zelin<strong>da</strong>, a ocasião que eclipsa minhas alegrias,<br />
não pelo que cativo passo, mas pelo que infelice temo; e assim não me culpes<br />
se me consideras triste, pois sen<strong>do</strong> tal a causa, bem fica desculpan<strong>do</strong> os<br />
efeitos.<br />
Compassiva se mostrou Zelin<strong>da</strong> de ouvir-me, tratan<strong>do</strong> de aliviar-me a<br />
pena com a incerteza <strong>da</strong> causa dela; e continuan<strong>do</strong> a prática, me referiu como<br />
havia alguns anos que tivera uma cativa florentina que seus pais resgataram; a<br />
qual lhe ensinava muita parte <strong>da</strong> língua toscana e outras muitas cousas <strong>do</strong>s<br />
cristãos e de Itália que lhe referiu. Logo me fez várias perguntas sobre meus<br />
pais e pátria e discursos de minha vi<strong>da</strong> e a ocasião de meu cativeiro; de que<br />
lhe noticiei o que me pareceu que ela estimaria ouvir sem ofender-se. E<br />
despedin<strong>do</strong>-me, se mostrou satisfeita, tratan<strong>do</strong>-me <strong>da</strong>li ao diante com mais<br />
afabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> costuma<strong>do</strong>.<br />
Cap. XI.<br />
Dos motivos que Zelin<strong>da</strong> teve para querer ausentar-se de sua casa<br />
Havia em Constantinopla um poderoso turco que havia si<strong>do</strong> baxá ou<br />
governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Cairo, aonde havia adquiri<strong>do</strong> muitas riquezas que possuía, e<br />
chamava-se Hebraim. Tinha este um filho chama<strong>do</strong> Sultão Ali, bem disposto e<br />
valeroso mancebo, experimenta<strong>do</strong> nas armas em várias ocasiões, de que<br />
sempre havia consegui<strong>do</strong> vitórias que lhe granjearam aplausos de mui<br />
valeroso; porém tão feio de rosto e de vista tão melancólico e triste semblante<br />
que com a presença <strong>da</strong> pessoa desluzia a fama <strong>da</strong> estimação, pois nunca foi<br />
agradável o desairoso. Era Sultão Ali bem ajuiza<strong>do</strong> e avalia<strong>do</strong> por discreto.<br />
Porém com a desairosa presença tu<strong>do</strong> fazia pouco estimável para que nem<br />
pela riqueza, nem pelo valor e discrição fosse para esposo pretendi<strong>do</strong>. Este<br />
Sultão teve traça para poder ver a Zelin<strong>da</strong>, sem ela entender que era dele vista.<br />
Tu<strong>do</strong> facilita o amor e o poder. E ficou tão amante de sua vista, parecen<strong>do</strong>-lhe
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 659<br />
que era Zelin<strong>da</strong> muito superior à sua fama na beleza e prodigiosa admiração<br />
de Trácia na fermosura, que desse dia em diante se esqueceu de si mesmo,<br />
para empregar nela o vivo <strong>da</strong>s memórias com que na imagem que na alma<br />
estampa<strong>da</strong> tinha se revia. Pediu a seu pai com encareci<strong>do</strong>s extremos lha<br />
pedisse por esposa. E porque o pai tinha sabi<strong>do</strong> quanto Zelin<strong>da</strong> era resoluta<br />
em não admitir casamento, e a presença de Sultão levava consigo o despacho<br />
de rejeitar-se, valeu-se de Sinão, que era o primeiro vizir de Constantinopla, e<br />
to<strong>do</strong> o valimento de Amurathes, em quem ele descansava o grande peso de<br />
tão agiganta<strong>da</strong> monarquia. Era Sinão quem dispunha to<strong>do</strong> o governo <strong>do</strong><br />
império otomano, pon<strong>do</strong> e removen<strong>do</strong> governa<strong>do</strong>res <strong>da</strong>s províncias a seu<br />
arbítrio, generais <strong>do</strong> exército e arma<strong>da</strong>s, e to<strong>do</strong>s os cargos de paz e guerra<br />
com absoluto poder que Amurathes lhe havia concedi<strong>do</strong>.<br />
Falou pois Sinão a Zulema sobre o casamento de Zelin<strong>da</strong> com o filho de<br />
Hebraim, dizen<strong>do</strong>-lhe levaria gosto de que se efectuasse. Viu-se Zulema<br />
confuso com a proposta <strong>do</strong> vali<strong>do</strong>, conhecen<strong>do</strong> <strong>da</strong> condição de Zelin<strong>da</strong> que em<br />
nenhum mo<strong>do</strong> aceitaria tal casamento. E ven<strong>do</strong> tão empenha<strong>do</strong> ao vali<strong>do</strong>, que<br />
temia ficar com ele odia<strong>do</strong>; porque é tal a soberba <strong>do</strong>s turcos quan<strong>do</strong> se vem<br />
no valimento <strong>do</strong> monarca que afectam não só o serem obedeci<strong>do</strong>s, mas como<br />
bárbaros a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>s. Falou Zulema a sua filha Zelin<strong>da</strong> no casamento <strong>do</strong> Sultão<br />
Ali; mas achou nela notável resistência, pedin<strong>do</strong>-lhe com lágrimas que em tal<br />
matéria mais lhe não tratasse, porque nem esse esposo, nem outro algum<br />
havia de aceitar enquanto vivesse. Que sua inclinação era viver livre e não<br />
sujeita à vontade de outro, e que queria ser senhora que man<strong>da</strong>sse e não<br />
cativa que obedecesse. Amava o pai com extremos a Zelin<strong>da</strong> e não quisera<br />
<strong>da</strong>r-lhe desgosto, porque lhe queria muito; mas como se via com repeti<strong>da</strong>s<br />
lembranças, uma e outra vez importuna<strong>do</strong> <strong>do</strong> vali<strong>do</strong> Sinão, a quem to<strong>do</strong>s<br />
agra<strong>da</strong>r desejavam, porque to<strong>do</strong>s dele dependiam, não se deliberava Zulema<br />
no parti<strong>do</strong> que escolhesse, para nem desagra<strong>da</strong>r ao priva<strong>do</strong>, em quem sua<br />
ambiciosa condição fun<strong>da</strong>va suas melhoras, nem molestar a Zelin<strong>da</strong>, em quem<br />
o seu grande amor tinha o centro de seus desvelos. Com esta inquietação de<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, molestos para senti<strong>do</strong>s, rigorosos para imagina<strong>do</strong>s, neste labirinto<br />
sem saí<strong>da</strong> em que an<strong>da</strong>vam os desejos com os temores e o amor com a<br />
ambição, queren<strong>do</strong> o mesmo que não desejava e desejan<strong>do</strong> o que menos
660 Padre Mateus Ribeiro<br />
queria, quis um dia aliviar o penoso com me <strong>da</strong>r notícia de sua tristeza,<br />
consultan<strong>do</strong> meu parecer, e assim me disse:<br />
- Confio tanto, Hortênsio, de teu juízo, pelo que em algumas ocasiões<br />
tenho experimenta<strong>do</strong> o acerta<strong>do</strong> de teu discurso, que nesta ocasião em que me<br />
vejo, quero consultar teu parecer no remédio que me dás. O supremo vizir<br />
Sinão, em cujos ombros sustenta o grão senhor Amurathes, como em novo<br />
Alcides, a máquina poderosa de seu império, me tem por vezes pedi<strong>do</strong> com<br />
instância que case a Zelin<strong>da</strong>, minha filha, com Sultão Ali, filho de Hebraim,<br />
baxá que foi <strong>do</strong> grão Cairo: casamento que lhe não desconvém pela muita<br />
riqueza e valor <strong>do</strong> esposo, além de ser avalia<strong>do</strong> por mui cabal no juízo e<br />
discrição de que o <strong>do</strong>tou a natureza. Porém mostra-se Zelin<strong>da</strong> tão inexorável a<br />
meus rogos e tão contrária a meu desejo que me vejo confuso na<br />
determinação: toma escu<strong>do</strong> de cristal a corrente <strong>da</strong>s lágrimas de seus olhos,<br />
para rebater os incêndios de meu furor, quan<strong>do</strong> mais me apaixono em<br />
persuadi-la, sen<strong>do</strong> a imuni<strong>da</strong>de de seus olhos de mim respeita<strong>da</strong> e dela bem<br />
conheci<strong>da</strong>. Desistir de importuná-la é malquistar-me com Sinão, de quem hoje<br />
tu<strong>do</strong> pende; e ódios de vali<strong>do</strong>s são como contágios, que começan<strong>do</strong> em um,<br />
arruínam a muitos. Que a pedra quan<strong>do</strong> cai <strong>do</strong> mais alto, maior golpe executa,<br />
<strong>da</strong> sorte que o raio por baixar de tanta eminência a muitos mata e a to<strong>do</strong>s<br />
assombra. Ameaços de um pai nunca são temi<strong>do</strong>s, que o amor paternal é carta<br />
de seguro contra os rigores; e assim não sei que conselho siga nesta confusão<br />
em que me vejo, pois de uma parte me aperta o vali<strong>do</strong> e <strong>da</strong> outra me resiste<br />
Zelin<strong>da</strong>. Que me aconselhas, Hortênsio, que nisto faça? Que eu confesso que<br />
meu juízo não sabe resolver a saí<strong>da</strong> deste golfo proceloso em que navega meu<br />
discurso.<br />
Calou Zulema, e eu, depois de com humilde inclinação lhe render as<br />
graças <strong>do</strong> favor que me fazia em confiar de meu limita<strong>do</strong> talento o conselho em<br />
matérias de seu alívio, em que eu desejara acertar a remediar suas tristezas,<br />
lhe disse assim:<br />
- É, senhor, a vontade humana tão independente em seu querer e tão<br />
livre senhora de seu gosto que o mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong> não tem valor para violentá-la;<br />
porque como suas deliberações essencialmente hão-de ser livres, nunca<br />
admitem o serem violenta<strong>da</strong>s. Dão-se Zulema, em Zelin<strong>da</strong>, tua filha, grandes<br />
motivos para não obedecer-te neste casamento de que lhe tratas. O primeiro,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 661<br />
seu grande juízo, que como presume tanto de discreta, poucas vezes se rende<br />
ao parecer alheio quem vive tão satisfeita <strong>do</strong> seu próprio. Uma vez que saiu a<br />
campo sua repugnância com teu desejo, ela entende que acerta em não admiti-<br />
lo: é muito dificultoso o render, por não conceder que soubeste melhor ajuizar.<br />
Deixou Antíoco Magno, na cruel guerra que os romanos lhe faziam, de aceitar<br />
nem seguir os proveitosos conselhos que lhe <strong>da</strong>va o experimenta<strong>do</strong> capitão<br />
Aníbal Cartaginês, só porque não se presumisse que era Aníbal melhor<br />
ajuiza<strong>do</strong> que ele; e por isso se perdeu. Outro motivo é a singular fermosura de<br />
que a <strong>do</strong>tou a natureza. É próprio atributo que à beleza acompanha a<br />
vangloriosa presunção de seu merecimento, queren<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> senhorear e<br />
desprezar tu<strong>do</strong>, queren<strong>do</strong> que tu<strong>do</strong> se lhe ren<strong>da</strong> e a ninguém sujeitar-se,<br />
parecen<strong>do</strong>-lhe que sempre merece mais e que tu<strong>do</strong> o que se lhe oferece é<br />
menos. Roxanes Persiana pela grande fermosura foi mulher <strong>do</strong> grande<br />
Alexandre. Estratonica com Seleuco <strong>caso</strong>u pela beleza; Semíramis com Nino;<br />
Ebia com Antíoco Magno; Teo<strong>do</strong>fra com Constantino segun<strong>do</strong>; Hipsicrateia<br />
com Mitri<strong>da</strong>tes; sen<strong>do</strong> eles to<strong>do</strong>s reis soberanos e elas de inferior condição; e<br />
só pela beleza rara que tinham se coroaram como rainhas. Como a fermosura<br />
é mimo e <strong>do</strong>te singular <strong>da</strong> natureza, nela habilitou para os tronos a quem<br />
negou os sólios a fortuna de seu nascimento.<br />
Sen<strong>do</strong> pois a fermosura em Zelin<strong>da</strong>, tua filha, tão digna <strong>do</strong>s maiores<br />
aplausos, prodígio que a fama descreve e a ver<strong>da</strong>de confirma, achará que o<br />
esposo que lhe dás não emparelha com seu merecimento e que lhe abates as<br />
asas à ventura que pudera esperar de superiores sujeitos. Desenganar-se a<br />
esperança é violento sacrifício de um desejo. É este muitas vezes o maior<br />
contrário <strong>da</strong> razão, disse o grande ora<strong>do</strong>r Quintiliano; porque o desejar pode<br />
subir às eminências e sólios o que não aprovam os juízos <strong>da</strong> razão. Porém<br />
quan<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> há exemplos que conseguiram os quasi impossíveis que<br />
confia<strong>do</strong>s na fermosura desejavam, mal pode servir de desengano à presunção<br />
o que fizeram possíveis efectua<strong>do</strong>s exemplos na reali<strong>da</strong>de. As cousas que de<br />
si parecer árduas à primeira vista, diz o filósofo, se facilitam, haven<strong>do</strong> exemplos<br />
que as favoreçam, não parecen<strong>do</strong> impossível emprenderem uns o que<br />
venturosamente conseguiram outros. E como no mun<strong>do</strong> se tem visto os<br />
grandes esta<strong>do</strong>s a que muitas <strong>do</strong>nzelas subiram pela beleza, não é novi<strong>da</strong>de
662 Padre Mateus Ribeiro<br />
que admire que Zelin<strong>da</strong> este e outros casamentos estime em pouco, quan<strong>do</strong> o<br />
raro <strong>da</strong> fermosura a habilita para ela estimar-se em muito.<br />
Outro motivo que dificulta o casamento que lhe ofereces é não ser<br />
Zelin<strong>da</strong> amante deste esposo que tanto em pretendê-la se desvela; que<br />
quan<strong>do</strong> o fora, nem tu a experimentarias tão rebelde a teu intento, nem ela se<br />
mostrara tão isenta na presunção. Tem a simpatia natural grande valimento<br />
para persuadir a vontade: é ora<strong>do</strong>r eloquente que sem palavras advoga,<br />
intercessor que sem rogos patrocina, porque vive de portas adentro com o<br />
coração lembran<strong>do</strong>, para que não esqueça o que o sujeito tem de agradável, e<br />
fazen<strong>do</strong> que se risque <strong>da</strong> memória tu<strong>do</strong> o que pode parecer menos aceito.<br />
Obra de sorte que faz sempre os merecimentos luzi<strong>do</strong>s e os desaires em<br />
trevas: estes para que se ocultem e os outros para que brilhem. Porém como a<br />
Ali Sultão falta o poderoso desta valia para com Zelin<strong>da</strong>, pouca importa que<br />
Sinão, que o apadrinha, seja o vali<strong>do</strong> de Amurathes; pois para quem ama, nem<br />
obriga o poder, nem persuade a eloquência. É Sultão Ali mui ajuiza<strong>do</strong>, pelo que<br />
dizem; mas mui desairoso no parecer, pelo que mostra. Dos contrários disse<br />
Aristóteles que uns à vista <strong>do</strong>s outros só cabalmente se conhecem; porque se<br />
o ar não fora tão leve, não se julgara a terra por pesa<strong>da</strong>, nem a Cítia parecera<br />
tão fria, se a Líbia se não mostrara tão ardente. Este esposo, senhor, que tanto<br />
se mostra empenha<strong>do</strong> no casamento de tua filha, na<strong>da</strong> tem de gentileza, e<br />
Zelin<strong>da</strong> é o auge maior <strong>da</strong> fermosura. E tentar unir extremos tão contrários,<br />
parece querer vencer a distância mais oposta <strong>da</strong> natureza, sen<strong>do</strong> o feio e<br />
desairoso de si na<strong>da</strong> amável, intentar que seja ama<strong>do</strong> <strong>da</strong> beleza que lhe é<br />
oposta. Que Sultão Ali se mostre tão fino amante de Zelin<strong>da</strong>, crédito é de<br />
entendi<strong>do</strong>. Porque a beleza de si própria é merece<strong>do</strong>ra de ser ama<strong>da</strong>. Pois<br />
disse Aristóteles que seria pergunta de cego o perguntar por que se ama o<br />
fermoso. Porém que importam finezas sem ventura, quan<strong>do</strong> a ventura é a alma<br />
<strong>da</strong>s finezas? Da maneira que o sol costuma agigantar as sombras e diminui-<br />
las, fazen<strong>do</strong> que umas vezes exce<strong>da</strong>m aos corpos de que nascem e outras<br />
sejam menores, assim a ventura faz que uns merecimentos, sen<strong>do</strong> grandes,<br />
pareçam menos, e outros, sen<strong>do</strong> menores, pareçam mais.<br />
Não está o acerto só nas finezas <strong>do</strong> servir, mas em serem os serviços<br />
aceitos a quem há-de <strong>da</strong>r-lhes o galardão; que agra<strong>da</strong>r o merecimento a quem<br />
remunerá-lo não pode, é como moe<strong>da</strong> sem cunhos, que não lhe faltan<strong>do</strong> o fino
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 663<br />
<strong>do</strong> metal, em nenhuma parte corre. Por muito que Sultão Ali mereça na opinião<br />
<strong>do</strong>s outros, se nos olhos de Zelin<strong>da</strong> não são seus merecimentos aceitos, pouco<br />
lhe aproveitará, para ser premia<strong>do</strong>, o ser <strong>do</strong> vulgo seu valor e juízo aplaudi<strong>do</strong>.<br />
Pois se nesta empresa que Sultão Ali tão empenha<strong>do</strong> segue o não apadrinha o<br />
amor, nem favorece a ventura, frustra<strong>do</strong>s são os desvelos e infrutuosas as<br />
finezas para render a uma vontade tão senhora de seu próprio querer. Põe,<br />
senhor, em balança a vi<strong>da</strong> de tua filha com esse desejo que mostras de<br />
contentares ao vali<strong>do</strong> de Amurathes, e verás que tens mais obrigação de<br />
conservares a vi<strong>da</strong> a tua filha, pois lhe queres tanto, <strong>do</strong> que satisfazeres ao<br />
gosto de quem amas menos. Serve muitas vezes a porfia rigorosa de ser<br />
verdugo <strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s, e não se deve apurar o fino <strong>do</strong> sofrimento de sorte que se<br />
converta em desesperação o intolerável <strong>do</strong> aperto. Os infortúnios, se não se<br />
evitam com a prudência, não se remedeiam depois com a mágoa. Mais<br />
desengana<strong>do</strong> amor e ver<strong>da</strong>deiro hás-de achar sempre em tua filha que nos<br />
estranhos. E se eles pretendem que lhes faças o gosto no que desejam, mais<br />
conveniente parece que o faças a tua filha no que com lágrimas te pede.<br />
Muitas vezes se esconde o perigo no que parece proveitoso, e por não se<br />
moderar a importunação <strong>do</strong> que é odioso, se vem depois a lamentar o que é<br />
irremediável no sentimento. É a mulher mais digna de compaixão que de<br />
rigores: desigual conten<strong>da</strong> parece sair a desafio com seus olhos, pois são<br />
armas de vantagem suas lágrimas para tuas porfias. Casá-la contra seu gosto<br />
será sepultá-la em vi<strong>da</strong>; porque vi<strong>da</strong> com desgosto impropriamente tem título<br />
de vi<strong>da</strong>. Se a podes ter discretamente obriga<strong>da</strong>, para que procuras que sempre<br />
de ti viva queixosa? E que se mostre sempre no desgosto ofendi<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> a<br />
tens experimenta<strong>da</strong> no mais tão obediente e amorosa?<br />
Sultão Ali em amá-la pouco merece; pois amar a fermosura não é fineza<br />
que obrigue, pois se carecera de beleza, bem se pode inferir que a não amara.<br />
Alegar dívi<strong>da</strong>s nos próprios interesses, ou é descrédito <strong>da</strong> obra, ou ambição <strong>do</strong><br />
desejo. Tanto costuma ter o amor de fino, quanto tem de desinteressa<strong>do</strong>: e<br />
pedir prémios <strong>do</strong> que não são serviços, mais parece devaneio que justiça; pois<br />
se o obriga a amar seu próprio gosto, nem se lhe deve o amor, nem o cui<strong>da</strong><strong>do</strong>.<br />
Se Zelin<strong>da</strong> está resoluta em não aceitar este esposo, não te convém,<br />
Zulema, chegares ao último <strong>da</strong> experiência, arriscan<strong>do</strong> muito e interessan<strong>do</strong><br />
pouco, pois to<strong>da</strong>s as grandezas que pudestes alcançar, perden<strong>do</strong> a tua filha,
664 Padre Mateus Ribeiro<br />
na<strong>da</strong> valem. Os bens exteriores lisonjas são <strong>da</strong> fortuna, mas tua filha é mimo<br />
singular <strong>da</strong> natureza. E mal emparelha na estimação o que pende <strong>da</strong> fortuna<br />
com o que tem as bases no amor. São os filhos a metade <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s pais,<br />
pois neles se perpetua o que a morte lhes rouba. E não parece crédito de<br />
entendi<strong>do</strong>s aventurar ao escuro de um eclipse o que pode sempre luzir sem os<br />
desaires <strong>da</strong>s sombras. Se Zelin<strong>da</strong> te pedira que lhe desses esta<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong><br />
puderas ressentir-te de ver que antecipava seu desejo as horas a teu cui<strong>da</strong><strong>do</strong>,<br />
e que mostran<strong>do</strong>-se de seu casamento tão lembra<strong>da</strong>, te julgasse por pai em<br />
tuas obrigações esqueci<strong>do</strong>. Porém quan<strong>do</strong> ela se mostra tão satisfeita de<br />
acompanhar-te e tão cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa de servir-te, que é a lisonja maior de seu gosto<br />
o viver em tua companhia, não parece justo que, por satisfazer ao gosto de<br />
quem isso te pede, queiras violentar o gosto de quem não to merece. De<br />
vontades violenta<strong>da</strong>s muitas vezes nascem precipícios. Se a exalação se não<br />
vira <strong>da</strong>s nuvens e <strong>da</strong> região fria <strong>do</strong> ar tão oprimi<strong>da</strong>, não se convertera em raio,<br />
e deixara de ser fogoso executor a que era atenua<strong>da</strong> exalação, nem baixara<br />
como incêndio a que subiu sem se ver nem como fumo. Dá forças o aperto a<br />
quem as nega a natureza e nasce <strong>da</strong> resistência o valor sobre os desalentos<br />
<strong>da</strong> fraqueza.<br />
Poucas vezes se fazem pazes entre a ventura e a beleza; e sen<strong>do</strong><br />
Zelin<strong>da</strong> tão rara na fermosura, não a ponhas ao risco de poder ser desgraça<strong>da</strong>.<br />
Tens muito com que alegrar-te em sua vista, não queiras entristecer-te com<br />
sua per<strong>da</strong>: pois muitas vezes morre quem aos temores de um perigo vive. Não<br />
faças experiência <strong>do</strong>s <strong>da</strong>nos; contenta-te com temê-los. Porque em temê-los te<br />
asseguras e em experimentá-los te despenhas. São as resoluções o último<br />
degrau <strong>do</strong> precipício: pouca distância vai delas aos arrojos, não haven<strong>do</strong> mais<br />
divisão que ou a desistência de quem persegue, ou desesperação <strong>do</strong><br />
persegui<strong>do</strong>. Se desejas lograr a vi<strong>da</strong> de quem tanto estimas, deixa de ser<br />
imperioso e mostra-te compassivo; pois talvez <strong>do</strong> demasia<strong>do</strong> excesso no<br />
man<strong>da</strong>r, procede a repugnância no obedecer. Reprimir a corrente <strong>do</strong> rio<br />
cau<strong>da</strong>loso excede às forças humanas: porque em correr segue o natural e em<br />
voltar atrás ao violento. E se ain<strong>da</strong> nas cousas insensíveis o verem-se<br />
oprimi<strong>da</strong>s as faz in<strong>do</strong>máveis na resistência, quanto serão mais inflexíveis os<br />
sujeitos livres na resolução, por não se renderem à tirania <strong>da</strong> violência? As<br />
<strong>do</strong>nzelas de Simancas, em Espanha, ven<strong>do</strong>-se constrangi<strong>da</strong>s a serem
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 665<br />
entregues aos mouros no tirano tributo que se lhes pagava, se cortaram as<br />
mãos, para não serem força<strong>da</strong>s a tal entrega. O capitão Norbano, fugin<strong>do</strong> em<br />
Rodes <strong>do</strong> furor e cruel<strong>da</strong>de <strong>do</strong> dita<strong>do</strong>r Lúcio Sila, ven<strong>do</strong> que os rodianos em<br />
lugar de o ampararem, o queriam constranger a que a Sila se entregasse, se<br />
matou a punhala<strong>da</strong>s com suas próprias mãos na praça de Rodes, converten<strong>do</strong><br />
o terror com que fugia em desesperação por se não entregar. O filósofo Zeno,<br />
ven<strong>do</strong> que o cruel Fálaris, tirano de Agrigento, o man<strong>da</strong>va atormentar para que<br />
confessasse os conjura<strong>do</strong>s que conspiraram contra ele, com os dentes se<br />
cortou a própria língua, só por que o tirano visse quanto estava isento de ser<br />
constrangi<strong>do</strong> a publicar o que manifestar não queria. E de muitos trágicos<br />
exemplos causa<strong>do</strong>s <strong>da</strong> violência contra os privilégios livres <strong>da</strong> vontade tratam<br />
largamente as Histórias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
Sen<strong>do</strong> pois tão arrisca<strong>do</strong> o violento aos despenhos de um infortúnio,<br />
estra<strong>da</strong> fatal para o lamentável <strong>do</strong> <strong>da</strong>no, gravemente intolerável para o coração<br />
de tristezas combati<strong>do</strong>, lei que promulga a força contra os privilégios e foros<br />
naturais <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, como se pode esperar que sejam acerta<strong>do</strong>s os fins,<br />
sen<strong>do</strong> tão erra<strong>do</strong>s os meios? Tu, Zulema, podes viver sem favores de Sinão,<br />
pois tens tanto com que passar a vi<strong>da</strong>; mas, sem tua filha, de que te podem<br />
servir nem as riquezas que possuis, nem cargos que te prometam, que se para<br />
ela desejas tu<strong>do</strong>, sem ela para que queres na<strong>da</strong>? Com ela tu<strong>do</strong> te sobra e sem<br />
ela tu<strong>do</strong> te falta; e sen<strong>do</strong> o primeiro móvel de teu amor, para que queres<br />
retrogra<strong>da</strong>r seu movimento a que aceite contra seu gosto esposo que não<br />
condiz com sua vontade? E sempre podes <strong>da</strong>r por desculpa a quem o<br />
casamento te pede, que este depende <strong>da</strong> vontade alheia e não <strong>da</strong> tua.<br />
Cap. XII.<br />
Do que mais passou sobre o casamento de Zelin<strong>da</strong> e como ela se deliberou a<br />
fugir de casa com Hortênsio<br />
Suspenso me ouviu Zulema e conheceu que lhe aconselhava o mais<br />
conveniente, e com mostras de agradeci<strong>do</strong> me despediu. Porém temia tanto o<br />
ambicioso turco cair na desgraça <strong>do</strong> vali<strong>do</strong> que não se deliberava no que<br />
seguiria; e assim nesta confusão indetermina<strong>do</strong>, como nau combati<strong>da</strong> de
666 Padre Mateus Ribeiro<br />
contrários ventos, nem tinha sossego, nem admitia descanso. Soube Zelin<strong>da</strong> o<br />
útil conselho que eu a seu pai dera, de que se mostrou muito agradeci<strong>da</strong>. E<br />
falan<strong>do</strong> um dia comigo em ocasião que Zulema era fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, me disse<br />
entre outras cousas:<br />
- Que intento é o de meu pai em querer casar-me mais a sua<br />
conveniência que a meu gosto? Não considera que o viver sempre com pena<br />
não se julga por vi<strong>da</strong>, mas por castigo de uma dilata<strong>da</strong> morte? Eu conce<strong>do</strong> que<br />
Sultão Ali será discreto; mas é mui feio no parecer. E não me pago de<br />
sabe<strong>do</strong>rias tão desairosas. Se houvera de aprender lições, ain<strong>da</strong> o aceitara por<br />
mestre, mas de nenhum mo<strong>do</strong> para esposo. Porque não quero ter em outras<br />
que invejar, o que em meu alvedrio posso como livre escolher. Muitos<br />
casamentos tenho rejeita<strong>do</strong> de sujeitos mui gentis na presença e mui<br />
estima<strong>do</strong>s no valor, e nenhum achou entra<strong>da</strong> em minha vontade, ou fosse por<br />
dissonância de minha estrela, ou por decreto de minha eleição; e queria agora<br />
meu pai que eu aceitasse por seu gosto o que mais desagra<strong>da</strong> a meus olhos,<br />
para que, banha<strong>do</strong>s em lágrimas de magoa<strong>da</strong>, mostrassem to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> seu<br />
sentimento?<br />
Casano, empera<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s tártaros, foi invencível nas vitórias, mas tão feio<br />
no rosto que aplaudin<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s seu grande valor, nenhuma moça o desejou<br />
para esposo, porque perdia pela deformi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> rosto quanto merecia pela<br />
grandeza <strong>do</strong> coração. Se Sinão, o grão-vizir e vali<strong>do</strong> de Amurathes, se mostra<br />
por ela tão empenha<strong>do</strong>, pouco me importa, porque de seu valimento na<strong>da</strong><br />
preten<strong>do</strong>. E se meu pai pretende cargos, desapaixone sua ambição, que não<br />
parece justo que, sen<strong>do</strong> já ancião na i<strong>da</strong>de, queira que naveguem suas mal<br />
fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s esperanças no mar de minhas lágrimas. Ser verdugo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> não se<br />
amol<strong>da</strong> com ser pai, e ain<strong>da</strong> me queixara menos se me privara <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> que<br />
querer violentar-me o gosto. Porque a vi<strong>da</strong> a um golpe se acabava, mas o<br />
gosto constrangi<strong>do</strong> é mágoa tão mortal que para sempre dura. Se a natureza<br />
negou a Sultão a gentileza, para que se queixa de mim? Que eu não me<br />
obriguei a compensar suas faltas à custa de meus pesares. Se dizem que<br />
merece muito, procure outra esposa que saiba mais discreta conhecer seus<br />
merecimentos, que em mim não se terminou nem a beleza, nem a discrição.<br />
Para que faz desperdício <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s aonde são tão mal agradeci<strong>do</strong>s?<br />
Perseverar contra os desenganos não é crédito <strong>da</strong> discrição, porque para ser
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 667<br />
fineza é malogra<strong>da</strong> e para porfia desairosa; e assim me obriga menos, quan<strong>do</strong><br />
se persuade que me serve mais. Julgam-no por entendi<strong>do</strong> e é engano. Porque<br />
nunca um juízo grande intentou fazer violência ao gosto. E devia conhecer que<br />
o que se não concede ao amor, não o alcança a porfia: sen<strong>do</strong> o amor o maior<br />
serviço e a porfia o maior agravo; e assim é nece<strong>da</strong>de presumir que poderá<br />
alcançar ofenden<strong>do</strong>, o que não conseguiu obrigan<strong>do</strong>. Tenho por tão impossível<br />
render-se minha vontade a aceitá-lo por esposo que primeiro se verá o pra<strong>do</strong><br />
matiza<strong>do</strong> de estrelas e o céu esmalta<strong>do</strong> de flores, eterna constância no mar e<br />
contínuo movimento na terra, <strong>do</strong> que ver-me meu pai deste intento mu<strong>da</strong><strong>da</strong>,<br />
nem aos desacertos de sua eleição rendi<strong>da</strong>.<br />
Assim falan<strong>do</strong> e quasi chorosa se despediu Zelin<strong>da</strong>, deixan<strong>do</strong>-me em<br />
um mar de confusões, porque a pretensão de Sultão me <strong>da</strong>va notável pena e a<br />
discreta resolução de Zelin<strong>da</strong> excessiva alegria. Seus olhos mostravam indícios<br />
de querer-me; mas como havia eu de certificar-me, pois para eu declarar-me<br />
temia a ousadia e para calar-me vivia duvi<strong>do</strong>so; e assim nem o temor me <strong>da</strong>va<br />
confiança, nem as dúvi<strong>da</strong>s me concediam quietação. Para amá-la, sentia mil<br />
impossíveis; e para não amá-la, milhares de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Se a via era to<strong>do</strong> meu<br />
recreio e se a não via era to<strong>do</strong> o meu desvelo; assim não sei declarar neste<br />
labirinto sem saí<strong>da</strong> em que me via, se amava como quem não esperava ou se<br />
esperava como quem não queria.<br />
Instava neste tempo Sultão Ali com o vali<strong>do</strong>, e ele com Zulema, sobre<br />
este casamento dele tão deseja<strong>do</strong> como de Zelin<strong>da</strong> aborreci<strong>do</strong>. Desculpava-se<br />
Zulema com a condição de Zelin<strong>da</strong>, mas não se lhe admitiam as desculpas;<br />
porque estava Sultão tão senhorea<strong>do</strong> <strong>da</strong> fermosura de Zelin<strong>da</strong> que <strong>do</strong>s<br />
próprios desprezos com que o tratava, tomava maiores assuntos para querê-la.<br />
São os desprezos e esquivanças no amar ocasiona<strong>do</strong>s a <strong>do</strong>us extremos.<br />
Porque ou fazem de to<strong>do</strong> desistir <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se o amante por<br />
ofendi<strong>do</strong> <strong>da</strong> pouca estimação com que é trata<strong>do</strong>, ou se chega a beber-se o<br />
penoso trago <strong>do</strong> desprezo, sem desistir <strong>do</strong> querer, com <strong>do</strong>bra<strong>do</strong>s desvelos se<br />
empenha na pretensão. Uns fazem vingança <strong>do</strong> retiro e outros desagravo <strong>da</strong><br />
porfia. Deles era Sultão Ali, que com maiores instâncias continuava na<br />
pretensão de que tantas vezes era despedi<strong>do</strong>. Tornou Zulema de importuna<strong>do</strong><br />
a renovar as instâncias com Zelin<strong>da</strong>, já valen<strong>do</strong>-se de carícias, já ameaçan<strong>do</strong><br />
rigores. O que ela ven<strong>do</strong>, lhe pediu quinze dias de espaço para deliberar-se,
668 Padre Mateus Ribeiro<br />
com intento de nesse tempo ordenar sua fugi<strong>da</strong> com mais acerto. E porque não<br />
deixasse o último remédio para que Sultão desistisse de pretendê-la por<br />
esposa, sen<strong>do</strong> seu pai um dia fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, man<strong>do</strong>u chamar a seu aborreci<strong>do</strong><br />
amante, a quem em companhia só de uma cria<strong>da</strong>, falou desta sorte:<br />
- Mandei chamar-te, Sultão, sem meu pai ter notícia deste meu tão<br />
desusa<strong>do</strong> atrevimento; porque quan<strong>do</strong> as paixões excedem os limites de<br />
sofri<strong>da</strong>s, não será maravilha se passarem os termos de encobertas. Que mina<br />
há tão escondi<strong>da</strong> que ven<strong>do</strong>-se oprimi<strong>da</strong> <strong>do</strong> incêndio, não rebente voraz, se de<br />
antes se continha oculta? Ou quan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>r, sen<strong>do</strong> extremosa, fez indiscreto<br />
pun<strong>do</strong>nor de não queixar-se, se é desluzimento <strong>do</strong> excessivo <strong>da</strong> pena<br />
professar silêncio contra o desafogo <strong>da</strong> <strong>do</strong>r? Pretendes-me por esposa em<br />
tempo que vive meu coração empenha<strong>do</strong>, para não poder agradecer tuas<br />
finezas: que há serviços infelices, assim como pode haver agravos venturosos.<br />
E me parece que com desenganar-te me mostro agradeci<strong>da</strong>, pois não me é<br />
possível satisfazer-te amorosa. As mulheres como eu só uma vez se<br />
empenham em amar: mu<strong>da</strong>nças sempre foram desairosas e o diamante pelo<br />
firme tem justamente os aplausos de sua maior estimação. Quem primeiro<br />
mereceu meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s será sempre o senhor de meus desvelos. Se até<br />
agora me pretendeste engana<strong>do</strong>, tinhas desculpa em ignorar o que me não era<br />
<strong>da</strong><strong>do</strong> descobrir; mas de hoje adiante, se no intento prosseguires, nem te<br />
julgarei por entendi<strong>do</strong>, nem te avaliarei por brioso. Porque emprender<br />
impossíveis, sobre parecer delírio, é desluzimento de altivo. Quem confessa<br />
que ama a outro a quem a pretende por mulher, nem tem maior desengano que<br />
lhe <strong>da</strong>r, nem maior risco de que o advertir. E se desapaixona<strong>do</strong> o consideras,<br />
mais me ficas obriga<strong>do</strong> que ofendi<strong>do</strong>; pois ten<strong>do</strong> meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s a outro<br />
dedica<strong>do</strong>s, o admitir-te fora enganar-te e declarar-te meu peito é servir-te. Não<br />
há cousa para um desejo mais amarga que um desengano. To<strong>do</strong>s os remédios<br />
salutíferos que aos enfermos se aplicam são desabri<strong>do</strong>s ao gosto: aceita-os a<br />
razão, não a vontade; recebe-os o juízo e não o apetite. Consulta, Sultão, este<br />
meu desengano com teu juízo e acharás que nele te pago quanto por mim tens<br />
feito. E pois não posso pagar teu amor na moe<strong>da</strong> que queres, ao menos te<br />
pago na que pagar-te posso. Serena tuas porfias em procurar-me, nem me dês<br />
com meu pai mais desgostos <strong>do</strong>s que por teu respeito padeci<strong>do</strong> tenho, nem<br />
importunes ao vali<strong>do</strong> para apadrinhar-te. Porque na firmeza de meu amor só é
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 669<br />
poderoso quem teve o valimento em minha vontade, e será malograres as<br />
diligências empenhar-te em procurar o que é impossível poder-se conseguir.<br />
Admira<strong>do</strong> ficou Sultão Ali <strong>do</strong> resoluto desengano de Zelin<strong>da</strong>. Mu<strong>do</strong>u mil<br />
vezes as cores <strong>do</strong> rosto, já em páli<strong>da</strong>s com o sobressalto, já em cora<strong>da</strong>s com a<br />
paixão; os pulsos palpitantes, o alento apressa<strong>do</strong>, os senti<strong>do</strong>s confusos <strong>da</strong><br />
caí<strong>da</strong> precipita<strong>da</strong> de suas malogra<strong>da</strong>s esperanças, não caben<strong>do</strong> no breve<br />
<strong>do</strong>micílio de seu peito a inun<strong>da</strong>ção de suas mágoas, quan<strong>do</strong> via irem<br />
derrota<strong>do</strong>s de monte a monte seus desejos, sua confiança perdi<strong>da</strong> e seu<br />
grande amor tão mal premia<strong>do</strong>. Porém, como era discreto, cobran<strong>do</strong> ânimo <strong>do</strong>s<br />
próprios desmaios <strong>da</strong> ventura, pon<strong>do</strong> os olhos em sua ingrata Zelin<strong>da</strong>, lhe<br />
respondeu assim:<br />
- Não duvi<strong>do</strong>, cruel Zelin<strong>da</strong>, que à vista <strong>do</strong>s desenganos que me deste e<br />
<strong>do</strong>s rigores com que me tratas, te persua<strong>da</strong>s que desista meu desejo de<br />
pretender-te e meu ofendi<strong>do</strong> coração de amar-te; pois sen<strong>do</strong> as esperanças<br />
vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> querer, mal pode este viver quan<strong>do</strong> elas faltam. Pois sabe que vives<br />
engana<strong>da</strong>, se o imaginas; porque toma meu coração novos motivos de amar-te<br />
<strong>do</strong>s mesmos que me dás para aborrecer-te. Estimara eu nesta ocasião poder<br />
querer-te menos, só para poder subir meu amor a querer-te mais. Mas tem<br />
chega<strong>do</strong> meu amor a tão extremoso que assim como não pode subir a mais,<br />
assim não é possível baixar a menos. São os desenganos no princípio de amar<br />
remédios, porém agora venenos; porque se antes puderam fazer-me adverti<strong>do</strong>,<br />
hoje me conduzem a desespera<strong>do</strong>, ven<strong>do</strong> juntamente impossível o retiro e<br />
inacessível a esperança. Dizes-me que amas a outro. Não o creio; que como<br />
tens o coração de diamante, logras a estimação na dureza. E não me persua<strong>do</strong><br />
que pudesse outro abran<strong>da</strong>r a quem não demoveu tanto querer.<br />
Dous extremos fez em ti a natureza: um de fermosura e outro de<br />
cruel<strong>da</strong>de; e se algum destes declinasse, deixarias de ser em tu<strong>do</strong> extremo.<br />
Afirmas que tens amor: não me persua<strong>do</strong> que haja sujeito tão venturoso;<br />
porque ventura e merecimento raramente em um sujeito se unem. Donde infiro<br />
que quan<strong>do</strong> fosse ver<strong>da</strong>de que o amavas, seria quem menos ama<strong>do</strong><br />
merecesse, e em tua própria eleição terias teu castigo. Que é o flagelo de uma<br />
eleição desacerta<strong>da</strong>, o deixá-la na pena de seu mau gosto. Dizes-me que não<br />
hás-de mu<strong>da</strong>r-te deste amor primeiro. Bem conheço que não te mu<strong>da</strong>rás pelo<br />
que tens de dura, mas não pelo que tens de amante. Pois assegurar as
670 Padre Mateus Ribeiro<br />
venturas não é privilégio de quem te mereça: que nunca assegurou os logros,<br />
quem pode abonar merecimentos. Persuades-me a tirar-me, como se fora<br />
possível ver-te e não querer-te; e assim ou fias pouco de teu valor, ou de meu<br />
juízo; então só deixarei de amar-te quan<strong>do</strong> deixar de conhecer-te. Nem creias<br />
que possa faltar-me o amor enquanto me não saltar o juízo, pois navega minha<br />
vontade pelo norte de meu discurso e este está tão suborna<strong>do</strong> de teus olhos<br />
que não sabe guiar mais que a querer-te. Dizes que estan<strong>do</strong> empenha<strong>da</strong>, seria<br />
enganar-me o admitir-me. Não fui eu tão venturoso que chegasse a dever-te<br />
esse engano, que para um desditoso até nos enganos lhe fogem as venturas.<br />
Se ain<strong>da</strong> com enganos me quiseras, talvez o tempo os convertera em<br />
ver<strong>da</strong>des. Mas nem permitiste que te devesse meu amor uma alegria fingi<strong>da</strong>,<br />
senão este tormento ver<strong>da</strong>deiro.<br />
Pois eu me resolvo, ingrata Zelin<strong>da</strong>, a morrer na pretensão, por vingar<br />
nas moléstias que sentes as desesperações a que me conduziste. Eu cortarei<br />
as asas <strong>da</strong> ventura a teu amante para que abata o voo, pois eu só me fico com<br />
as penas. Verás se sou mais poderoso para derribá-lo <strong>do</strong> que foste poderosa<br />
para subi-lo. E por mais que intentes encobri-lo, maus linces ciúmes me farão<br />
conselho. Vive, Zelin<strong>da</strong>, desengana<strong>da</strong> de que ou hás-de ser minha, ou não<br />
hás-de ser sua. Sentirás o golpe de minha vingança conforme o que lhe<br />
quiseres: se o amas muito, não o sentirás pouco, e se o sentires pouco, certo é<br />
que lhe não queres muito. De beber desenganos e ciúmes na enfermi<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />
querer, não esperes senão delírios; e para tomar vingança de quem tanto me<br />
custa, a tomarei em quem não é culpa<strong>do</strong>, pois de ti me considero ofendi<strong>do</strong> e<br />
ele confessas ser de ti ama<strong>do</strong>.<br />
Assim desespera<strong>do</strong> e vingativo se despediu Sultão Ali <strong>da</strong> presença de<br />
Zelin<strong>da</strong>, ingrato objecto em que se cifravam seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Bem disse<br />
Quintiliano que o perder de to<strong>do</strong> as esperanças era a quinta-essência <strong>da</strong> <strong>do</strong>r<br />
para um desejo. Faz liga a desesperação, diz Hugo, com o mais arroja<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
furor. E como neste desengano que deu Zelin<strong>da</strong> a Sultão, cui<strong>da</strong>n<strong>do</strong> que o<br />
persuadisse a desistir de pretendê-la, pelo contrário publicavam seus<br />
desespera<strong>do</strong>s ciúmes viva guerra contra o sofrimento, nem ao turco ficou lugar<br />
de sossego, nem a Zelin<strong>da</strong> de segurança, entenden<strong>do</strong> que por to<strong>do</strong>s os meios<br />
havia de solicitar <strong>da</strong>r-lhe desgosto. Já culpava o haver-se declara<strong>do</strong>: porém<br />
imaginou que era meio para ele parar no desvelo como discreto e não para
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 671<br />
vingar-se como ofendi<strong>do</strong>. Chamou-me em segre<strong>do</strong>, e <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me notícia <strong>do</strong><br />
sucedi<strong>do</strong>, me disse que ela se determinava a fugir em minha companhia de<br />
casa de seu pai, para que eu, levan<strong>do</strong>-a à minha pátria, aonde intentava<br />
baptizar-se, a recebesse por esposa. Porque havia muitos dias que me tinha<br />
grande afeição, e não mentira a Sultão Ali em dizer-lhe tinha seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s em<br />
outra parte empenha<strong>do</strong>s, porque sabia eu ser filho de ilustres pais. Que ela<br />
levaria quantas jóias e riquezas tinha, que eram muitas e de grande valor, não<br />
só para meu resgate, mas para termos com que viver honra<strong>da</strong>mente. Que a<br />
execução deste seu desejo deixava a meu juízo, encomen<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me a<br />
brevi<strong>da</strong>de possível, antes que as ameaça<strong>da</strong>s vinganças de Sultão e os<br />
ambiciosos rigores de Zulema seu pai atalhassem os passos a este seu tão<br />
acerta<strong>do</strong> desejo. E com isto se despediu.<br />
Cap. XIII.<br />
De como Hortênsio dispôs a fugi<strong>da</strong> de Zelin<strong>da</strong>, até se embarcar em uma nau<br />
veneziana<br />
Alegre eu desta não espera<strong>da</strong> ventura, me dispus a segui-la, pois me<br />
batia à porta tão favorável, sen<strong>do</strong> que as dificul<strong>da</strong>des eram grandes e<br />
arrisca<strong>da</strong>s. Mas quan<strong>do</strong> se conseguiram felici<strong>da</strong>des sem perigos? Tinha o dia<br />
de antes chega<strong>do</strong> a Constantinopla uma nau veneziana de merca<strong>do</strong>res a<br />
fazerem seu comércio, e o capitão dela era um alenta<strong>do</strong> sol<strong>da</strong><strong>do</strong> e mui<br />
experimenta<strong>do</strong> no mar, que se chamava Flamínio; com este falei em particular<br />
para que tratasse com Zulema de meu resgate, para ficar eu mais livre para<br />
dispor a fugi<strong>da</strong> de Zelin<strong>da</strong>. Tratou o capitão o resgate e concor<strong>da</strong>ram o preço<br />
em três mil e quinhentos escu<strong>do</strong>s. Falei a Zelin<strong>da</strong> e ela me deu jóias de pérolas<br />
e diamantes de muito preço, com que o capitão Flamínio logo deu ordem a<br />
entregar-se o dinheiro; e ele me deu carta de liber<strong>da</strong>de, em que confessava<br />
estar cabalmente entregue e satisfeito de meu resgate, com que me <strong>da</strong>va por<br />
livre para me poder ir seguramente ca<strong>da</strong> vez que quisesse.<br />
Livre pois já <strong>da</strong>s moléstias de cativo, pelos meios que referi<strong>do</strong> tenho, se<br />
desvelava meu cui<strong>da</strong><strong>do</strong> em traçar a fugi<strong>da</strong> de Zelin<strong>da</strong>, a quem como amante,<br />
por sua rara beleza e como agradeci<strong>do</strong> à liber<strong>da</strong>de que lhe devia, e juntamente
672 Padre Mateus Ribeiro<br />
pelo pio intento de baptizar-se e ser minha esposa, com extremos queria. Era a<br />
empresa muito arrisca<strong>da</strong>, porque fugir por terra tinha por impossível, estan<strong>do</strong><br />
Constantinopla nos confins de Trácia, aonde além de atravessá-la e a to<strong>da</strong><br />
Macedónia e Grécia, to<strong>da</strong>s terras sujeitas ao grão turco, era a jorna<strong>da</strong> mui<br />
dilata<strong>da</strong> e perigosa, porque apenas seria senti<strong>da</strong> a fugi<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> seguin<strong>do</strong>-<br />
nos as tropas <strong>do</strong>s genizaros, que sempre estão prepara<strong>da</strong>s para acudirem<br />
aonde as man<strong>da</strong>m, era impossível escaparmos, sen<strong>do</strong> o caminho ao dilata<strong>do</strong> e<br />
to<strong>do</strong> por terras suas.<br />
O levá-la por mar, que era o mais factível, não se isentava de iguais<br />
dificul<strong>da</strong>des, porque havia de consentir nisso o capitão <strong>da</strong> nau, que não queria<br />
oferecer-se aos riscos de perder-se com quanto tinha. Além de que para se lhe<br />
<strong>da</strong>r passaporte para sair <strong>do</strong> porto de Constantinopla, haviam de ir nele<br />
nomea<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as pessoas que levava na embarcação, visitan<strong>do</strong>-se primeiro,<br />
e depois no porto <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Galipolis, que fica trinta e seis léguas abaixo de<br />
Constantinopla, na garganta <strong>do</strong> Propontide ou Bósforo de Trácia, se revem os<br />
passaportes e se visitam de novo as embarcações pelos turcos que estão de<br />
guar<strong>da</strong> no dito porto, para verem se levam alguns escravos fugitivos ou<br />
fazen<strong>da</strong>s pelo grão turco defesas, aonde corre grande risco qualquer<br />
embarcação que exceder no que o passaporte lhe permite. E quan<strong>do</strong> já ao fim<br />
de três ou quatro dias de dilação nestas diligências dispendi<strong>do</strong>s se lhes<br />
concede o poderem seguir sua viagem, em entran<strong>do</strong> no Helesponto tem as<br />
duas fortalezas de Sesto e Abi<strong>do</strong>, em quem Hero e Leandro deram tantos<br />
motivos aos poetas para formarem assuntos de seus trágicos amores, nas<br />
quais de novo as embarcações são visita<strong>da</strong>s e seus passaportes registra<strong>do</strong>s,<br />
diligências tão arrisca<strong>da</strong>s como molestas a quem navega; porque seus vagares<br />
é necessária remi-los com <strong>do</strong>nativos aos turcos, para se apressarem nas<br />
visitas, que sua ambição muitas vezes com esta cobiça de propósito retar<strong>da</strong>.<br />
To<strong>da</strong>s estas dificul<strong>da</strong>des, e outras mais que se ofereciam, venceu em<br />
mim o desejo e em Zelin<strong>da</strong> a ventura; pois comunican<strong>do</strong> eu ao capitão<br />
Flamínio em segre<strong>do</strong> o grande desejo que Zelin<strong>da</strong> tinha em vir a Itália para ser<br />
baptiza<strong>da</strong> e a muita riqueza que tinha para trazer, de que com ele partiria<br />
liberalmente, ele animoso se deliberou a recolhê-la em a nau a noite em que<br />
houvesse de partir, expon<strong>do</strong>-se a romper por to<strong>do</strong>s os perigos que houvesse.<br />
Alegre eu com esta nova que logo dei a Zelin<strong>da</strong>, e dela recebi<strong>da</strong> com grande
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 673<br />
gosto, logo secretamente começou a preparar-se para esta navegação tão<br />
arrisca<strong>da</strong>. Neste tempo o desespera<strong>do</strong> Sultão Ali fazia extraordinárias<br />
diligências para poder descobrir quem podia ser este venturoso amante de<br />
Zelin<strong>da</strong> que mereceu demover tanta isenção e merecer os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s de tanta<br />
altiveza. Ron<strong>da</strong>va de noite muitas vezes as paredes deste amoroso labirinto<br />
em que se via enlaça<strong>do</strong>, sem acertar entra<strong>da</strong> nem saí<strong>da</strong>; mas como notícias<br />
não achava, pois só no peito de Zelin<strong>da</strong> e no meu vivia deposita<strong>do</strong> este<br />
segre<strong>do</strong>, não foi possível nem à sua diligência, nem a seu incansável desvelo<br />
noticiar o que tão ansia<strong>do</strong> o trazia. Desespera<strong>do</strong> pois <strong>da</strong>s infrutuosas<br />
pesquisas, e tanto mais firme em amá-la quanto dela se via ca<strong>da</strong> vez mais<br />
esquiva<strong>do</strong> e aborreci<strong>do</strong>, fez tantas instâncias com seu pai e este, por contentar<br />
ao ansia<strong>do</strong> filho, com o vali<strong>do</strong>, que man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> chamar a Zulema, depois de se<br />
mostrar ressenti<strong>do</strong> de haver tanta dilação em efectuar-se um casamento que a<br />
sua filha era tão conveniente e de que ele levava tanto gosto, lhe disse resoluto<br />
que se dentro em quinze dias que de espaço lhe <strong>da</strong>va a não casasse com<br />
Sultão Ali, experimentaria nele as demonstrações de seu sentimento, de sorte<br />
que lhe pesasse de desgostá-lo. E sem mais o ouvir lhe voltou as costas<br />
colérico e carrega<strong>do</strong>.<br />
An<strong>da</strong> muitas vezes a soberba uni<strong>da</strong> ao poder, diz Plutarco, poden<strong>do</strong> mal<br />
disfarçar-se o imperioso no valimento; porque o soberano <strong>do</strong> governo quer ser<br />
obedeci<strong>do</strong> sem réplicas, que podia alegar a impossibili<strong>da</strong>de. Assim se<br />
manifestou em Sinão, que como bárbaro Atlante <strong>do</strong> peso de tão dilata<strong>da</strong><br />
monarquia se <strong>da</strong>va por ofendi<strong>do</strong> <strong>da</strong>quilo em que seu gosto não se satisfazia,<br />
não reparan<strong>do</strong> em que as vontades livres não podem ser violenta<strong>da</strong>s. Ficou<br />
Zulema tão assusta<strong>do</strong>, ven<strong>do</strong>-se na desgraça <strong>do</strong> vali<strong>do</strong> de seu senhor<br />
Amurathes, preven<strong>do</strong> as vexações que podiam seguir-se a seu desabrimento,<br />
que corta<strong>do</strong> <strong>do</strong> temor e atormenta<strong>do</strong> <strong>da</strong> mágoa com a veemência <strong>da</strong> pena que<br />
sentia, vin<strong>do</strong> para casa, se deitou na cama arden<strong>do</strong> não menos em febre que<br />
em ira, queixan<strong>do</strong>-se que Zelin<strong>da</strong> nascera para ser o verdugo de sua honra e<br />
de sua vi<strong>da</strong>. Não me pesou com a <strong>do</strong>ença de Zulema, porque a nau de<br />
Flamínio estava pronta para partir-se <strong>da</strong>í a <strong>do</strong>us dias; e assim ficava mais<br />
propicia<strong>da</strong> a ocasião para sem sua assistência se poder efectuar a fugi<strong>da</strong>,<br />
como sucedeu, porque Zelin<strong>da</strong> temen<strong>do</strong> os rigores <strong>do</strong> pai na violência que lhe<br />
havia de fazer para o casamento que ela tanto aborrecia, ajuntan<strong>do</strong> quantas
674 Padre Mateus Ribeiro<br />
jóias de valor tinha, que eram muitas, e o mais que <strong>da</strong> riqueza <strong>do</strong> pai pôde tirar,<br />
se partiu em minha companhia, no silêncio maior <strong>da</strong> noite, no batel <strong>da</strong> nau, que<br />
na praia nos esperava com o capitão Flamínio, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> as últimas despedi<strong>da</strong>s à<br />
sua pátria para mais não vê-la, entregan<strong>do</strong>-se aos perigos <strong>do</strong> mar com tal valor<br />
que pudera invejar-se o animoso ain<strong>da</strong> <strong>do</strong>s corações mais alenta<strong>do</strong>s.<br />
Cap. XIV.<br />
Da navegação que fez Hortênsio e como desembarcou em Taranto<br />
Apenas entrámos em a nau, quan<strong>do</strong> o capitão man<strong>do</strong>u largar ao inquieto<br />
<strong>do</strong>s ventos, que então se nos mostravam favoráveis, e a nau começou a surcar<br />
os golfos <strong>da</strong>s procelosas on<strong>da</strong>s entre as sombras <strong>da</strong> noite, que eu avaliava<br />
pelo mais alegre dia, e quanto mais me apartava <strong>da</strong> bárbara terra em que de<br />
antes tanto a fortuna me oprimira no dilata<strong>do</strong> <strong>do</strong> cativeiro, tanto mais se<br />
alegrava meu coração com as felici<strong>da</strong>des que esperava. Considerava-me livre<br />
<strong>da</strong> bárbara sujeição <strong>do</strong>s turcos, em que meu resgate julgava quasi por<br />
impossível, pois não tive novas de meu pai em tanto tempo e o subi<strong>do</strong> preço<br />
em que meu resgate se cortava com dificul<strong>da</strong>de podia vir-me junto, sen<strong>do</strong> meu<br />
pai mais rico de fazen<strong>da</strong>s vincula<strong>da</strong>s ao morga<strong>do</strong> <strong>do</strong> que de dinheiro; e<br />
compensan<strong>do</strong> os dispêndios de seu esta<strong>do</strong> com as ren<strong>da</strong>s que recebia, podia<br />
entesourar pouco quem dispendia tanto. Via-me em companhia de Zelin<strong>da</strong>,<br />
maravilha de Trácia na beleza, a quem devia tantas obrigações, como tenho<br />
referi<strong>do</strong>, com quem me avaliava tão feliz que podiam os mais contentes invejar<br />
o subi<strong>do</strong> de minhas alegrias e eu pelo contrário pouco que desejar suas<br />
venturas. Poucas vezes, disse Cassio<strong>do</strong>ro 570 , sabem os contentamentos ter<br />
medi<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> são grandes; pois nunca se ajustam tanto ao certo que deixem<br />
de exceder seu limite. Pesar as causas com as alegrias, disse Quintiliano 571<br />
que era dificultosa empresa; porque pesa mais o coração para solenizá-las no<br />
festejo <strong>do</strong> que o discurso para medi-las na estimação. Assim posso eu dizer<br />
Cassiod., 4. Ep.<br />
Quint., Decl. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 675<br />
que se adiantou em mim com tanto excesso a alegria ao discurso que me<br />
desconheci de contente, pelo que de antes me tinha avalia<strong>do</strong> de triste.<br />
Era a noite escura porque a cerração <strong>da</strong>s nuvens tinha embarga<strong>do</strong> o<br />
luzimento às estrelas: que há luzes tão limita<strong>da</strong>s que qualquer cortina é<br />
poderosa para encobri-las. Era eu hóspede <strong>do</strong> capitão Flamínio e Zelin<strong>da</strong> ia em<br />
um camarote retira<strong>da</strong>, a qual tinha <strong>da</strong><strong>do</strong> ao capitão algumas jóias de preço e<br />
lhe prometeu seis mil cruza<strong>do</strong>s no dia em que nos pusesse em Taranto; e ele<br />
prometeu de nos pôr em seguro, ain<strong>da</strong> que se aventurasse a perder a vi<strong>da</strong>,<br />
promessa que satisfez com to<strong>da</strong> a pontual ver<strong>da</strong>de. Que, como diz Cícero 572 , é<br />
obrigação de ânimos honra<strong>do</strong>s não faltarem na ver<strong>da</strong>de <strong>do</strong> que justamente se<br />
promete. Seguiu-se à tenebrosa cerração <strong>da</strong> noite a escura sombra <strong>do</strong> dia,<br />
prognóstico <strong>da</strong> tempestade futura, que logo sobreveio, que com ameaçar-nos<br />
perigo, nos serviu de remédio; pois na seguinte noite, entre os brami<strong>do</strong>s<br />
contínuos <strong>da</strong>s implacáveis on<strong>da</strong>s, rigorosa fúria <strong>do</strong>s ventos e escuras trevas de<br />
que a noite se vestia, passámos de largo à vista <strong>da</strong> marítima ci<strong>da</strong>de de<br />
Galipolis sem sermos senti<strong>do</strong>s. Com o que evitámos a arrisca<strong>da</strong> moléstia de<br />
registrar-se a nau e ser visita<strong>da</strong> com as demoras e perigos que referi<strong>do</strong> tenho.<br />
Era o capitão Flamínio mui experimenta<strong>do</strong> em as navegações e mui animoso<br />
para acometer qualquer empresa, por difícil que fosse; e por isso se aventurou<br />
a patrocinar esta arrisca<strong>da</strong> fugi<strong>da</strong> de Zelin<strong>da</strong>, a que outro de menos valor não<br />
se atrevera. Assim aproveitan<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> própria tormenta, que a outro intimi<strong>da</strong>ra,<br />
para navegar com ela, sem reparar no grande escuro e tormentoso vento que a<br />
tempestade causava, entrou pela boca <strong>do</strong> Helesponto, canal tão estreito que,<br />
ten<strong>do</strong> duas léguas de compri<strong>do</strong>, tem só uma milha de largo. Empenhou-se<br />
temerário ao risco de poder o furor <strong>da</strong> tormenta <strong>da</strong>r com a nau à costa, só a fim<br />
de evitar maior risco de registar nas duas fortalezas de Sesto e Abi<strong>do</strong>, em que<br />
se aventurava a poder Zelin<strong>da</strong> ser descoberta e ficarmos to<strong>do</strong>s perdi<strong>do</strong>s.<br />
Muitas vezes favorece a fortuna as ousadias, diz Xenofonte 573 , sen<strong>do</strong>,<br />
como costuma dizer Demócrito 574 , <strong>do</strong> valor o acometer e <strong>da</strong> fortuna o<br />
patrocinar. Correm no Helesponto as águas com tanta força e com tão<br />
Cie, 3. Offic.<br />
Xenophon., apud Stob.<br />
Dem., apud. Eund.
676 Padre Mateus Ribeiro<br />
impetuoso movimento para o mar Egeu que não há rio, por mais veloz que<br />
seja, que na líqui<strong>da</strong> esfera de sua cristalina corrente tão apressa<strong>do</strong> se mova;<br />
porque oprimi<strong>da</strong> a profun<strong>da</strong> inun<strong>da</strong>ção de suas águas com os montes<br />
penhascosos que de uma e outra parte lhe resistem, compensa o natural<br />
desejo de dilatar-se com a excessiva pressa com que foge <strong>da</strong>quele estreito<br />
cárcere de penhas, para estender-se ambicioso <strong>do</strong>s privilégios de mar, quem<br />
se dá como por afronta<strong>do</strong> de parecer tributário rio. Em to<strong>do</strong> o mar Euxino,<br />
Propontide e Helesponto não há mares que com o costuma<strong>do</strong> fluxo e refluxo<br />
tenham enchentes e vazantes, como refere Plínio, antes continua a corrente<br />
<strong>da</strong>s águas no Helesponto com tal ímpeto que a qualquer embarcação a árvore<br />
seca faz caminhar a força<strong>da</strong> corrente ca<strong>da</strong> dia mais de cem milhas.<br />
Neste sítio que digo estava o perigo mais vizinho, assim pela tormenta<br />
em passagem tão estreita poder ocasionar o tocar a nau em terra, impeli<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
rigor <strong>do</strong>s ventos impetuosos, como juntamente porque, a sermos senti<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s<br />
torres, nos aventurávamos ao destroço <strong>da</strong> artelharia nos meter no fun<strong>do</strong> ou<br />
arruinar os mastros e velas com que déssemos à costa e nos perdêssemos.<br />
Aqui, neste tão evidente perigo, invoquei o favor e patrocínio <strong>da</strong> Virgem<br />
Santíssima <strong>do</strong> Loreto, fazen<strong>do</strong>-lhe promessa de vir a pé à sua santa casa no<br />
mesmo traje de cativo com que de Constantinopla saíra, que é este em que me<br />
vedes, se deste tão evidente perigo nos livrara. Tem os peca<strong>do</strong>res nesta<br />
pie<strong>do</strong>sa Senhora para com Deus seguro sempre o valimento, diz o padre S.<br />
Bernar<strong>do</strong>, que quis fosse de to<strong>do</strong>s no mun<strong>do</strong> venera<strong>da</strong>, porque por seu meio<br />
decretou que to<strong>do</strong>s os favores recebessem. Passámos o arrisca<strong>do</strong> estreito <strong>do</strong><br />
Helesponto no mais rigoroso <strong>da</strong> tormenta, rebuça<strong>do</strong>s com o escuro tenebroso<br />
<strong>da</strong> noite, e não fomos senti<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s sentinelas <strong>da</strong>s torres, cousa raras vezes<br />
sucedi<strong>da</strong>, favor singular que eu atribuo à protecção milagrosa desta<br />
clementíssima Senhora, segura estrela <strong>do</strong> mar de nossa vi<strong>da</strong>, como a intitula S.<br />
Bernar<strong>do</strong> 575 . A quem rendemos as devi<strong>da</strong>s graças de tão particular favor na<br />
mais urgente necessi<strong>da</strong>de experimenta<strong>do</strong>.<br />
Saímos alegres ao largo <strong>do</strong> mar Egeu, passan<strong>do</strong> a ilha de Tene<strong>do</strong>s, que<br />
fica fora <strong>da</strong> boca <strong>do</strong> Helesponto, e ao romper <strong>da</strong>s primeiras luzes <strong>da</strong> manhã<br />
abran<strong>do</strong>u a fortuna <strong>da</strong> tormenta, trocan<strong>do</strong>-se o vento em bonançoso para a<br />
S. Bern., in Fest. S. Michael.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 677<br />
nossa viagem, que <strong>da</strong>í ao diante prosperamente seguimos, desassombra<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> temor que tanto nos tinha ameaça<strong>do</strong>. Chegámos finalmente ao célebre golfo<br />
de Taranto, de longe avistan<strong>do</strong> os muros de minha pátria, com lágrimas de<br />
alegria de me ver a ela tão vizinho, quanto em outras ocasiões me<br />
atormentaram as tristezas de me considerar dela priva<strong>do</strong>. É o amor à pátria tão<br />
justamente devi<strong>do</strong>, disse o Plutarco, que não se satisfaz esta obrigação com<br />
havê-la ama<strong>do</strong>, senão com sempre amá-la de presente. É a pátria mãe<br />
universal de seus filhos que, como diz Cícero 576 , desde pequenos os cria com<br />
os <strong>do</strong>us peitos de suas águas e de seus frutos, aonde bebem os primeiros<br />
alentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; e quan<strong>do</strong> nos faltam os pais, em lugar deles a pátria substitui,<br />
como diz Santo Agostinho 577 . É a memória <strong>da</strong> pátria sempre <strong>do</strong>ce, diz Tito<br />
Lívio 578 , agradável seu nome e amoroso o ameno de seu sítio, delícias de<br />
quem a logra, sau<strong>da</strong>des e mágoas nunca esqueci<strong>da</strong>s de quem a perde. E se<br />
em to<strong>da</strong>s as ocasiões é a vista <strong>da</strong> pátria suave a quem depois de dilata<strong>da</strong><br />
ausência a ela se avizinha, com razão direi que na vista alegre deste venturoso<br />
dia não houve cousa para meu coração mais deliciosa que sua vista; pois além<br />
<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de que lograva depois de tão dilata<strong>do</strong> cativeiro, tantos desgostos<br />
sofri<strong>do</strong>s e tantos riscos passa<strong>do</strong>s, me considerava haver de lograr a presença<br />
de meus pais na amorosa companhia de Zelin<strong>da</strong>, maior encarecimento <strong>da</strong><br />
beleza, e trazen<strong>do</strong> tão rico <strong>do</strong>te consigo para passar a vi<strong>da</strong> com o esta<strong>do</strong> e<br />
decência conveniente a quem eu era.<br />
Ancorou a nau no porto to<strong>da</strong> embandeira<strong>da</strong> com mil galhardetes de<br />
alegria, que tremulan<strong>do</strong> aos impulsos <strong>do</strong> vento, manifestavam na varie<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong>s cores o singular contentamento que os navegantes traziam. Deu salva<br />
repeti<strong>da</strong> com a artelharia, com que logo vieram a bor<strong>do</strong> alguns bergantins a<br />
saberem de quem era a nau e <strong>do</strong>nde vinha; <strong>do</strong>s quais informa<strong>do</strong> de como<br />
meus pais viviam combati<strong>do</strong>s de contínuas tristezas de não haverem ti<strong>do</strong> novas<br />
minhas, porque nenhuma carta minha lhes foi <strong>da</strong><strong>da</strong>, eu lhes mandei aviso de<br />
minha venturosa chama<strong>da</strong>, pedin<strong>do</strong>-lhes viessem com o coche à praia em que<br />
desembarcasse com Zelin<strong>da</strong>. O alvoroço <strong>da</strong>s alvíssaras que de tal nova<br />
Cie, De Orat.<br />
Aug., De lib. arb.<br />
Tit. Liv., Lib. 5. dec. 1.
678 Padre Mateus Ribeiro<br />
esperavam pôs asas ao desejo de quem primeiro a <strong>da</strong>ria. E logo vieram meu<br />
pai e irmão no coche, quan<strong>do</strong> eu e Zelin<strong>da</strong>, ricamente traja<strong>da</strong>, no batel <strong>da</strong> nau<br />
em terra saímos. Recebeu-nos meu pai com as lágrimas nos olhos e meu<br />
irmão com entranhável alegria; entrámos to<strong>do</strong>s quatro no coche e chegan<strong>do</strong> a<br />
casa, aonde minha mãe nos estava à porta esperan<strong>do</strong>, não referirei o que se<br />
passou, porque, como disse Plutarco, há cousas que declara mais o silêncio<br />
que as palavras.<br />
Admiraram-se to<strong>do</strong>s <strong>da</strong> fermosura de Zelin<strong>da</strong>, com cuja vista na<strong>da</strong> na<br />
ci<strong>da</strong>de de Taranto emparelhava, porque não só admitia não competências, mas<br />
antes à sua vista tu<strong>do</strong> se eclipsava. Despojou-se Zelin<strong>da</strong> logo <strong>do</strong> antigo traje<br />
que vestia e veio-lhe tão amol<strong>da</strong><strong>do</strong> o político cortesão <strong>da</strong> nossa Itália como se<br />
nele sempre se criara, sen<strong>do</strong> visita<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mais ilustres senhoras <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />
que to<strong>da</strong>s se despediam admira<strong>da</strong>s: que em na<strong>da</strong> parecia haver em Trácia<br />
nasci<strong>do</strong> e só na fermosura se mostrava peregrina, porque só nela parecia<br />
peregrina a fermosura. Enquanto cabalmente se ficava instruin<strong>do</strong> nos mistérios<br />
de nossa santa fé para receber o santo baptismo, e se preparavam os aprestos<br />
e galas para o recebimento (haven<strong>do</strong>-se despedi<strong>do</strong> de nós o capitão Flamínio,<br />
a quem além <strong>do</strong>s seis mil cruza<strong>do</strong>s que se lhe haviam prometi<strong>do</strong>, deram meus<br />
pais algumas peças de valor, agradeci<strong>do</strong>s ao muito favor que lhe devíamos,<br />
com que se deu não só por satisfeito, mas juntamente por muito obriga<strong>do</strong>); me<br />
lembrei <strong>da</strong> promessa que havia feito de vir a pé visitar este admirável santuário<br />
no mesmo traje de cativo em que vesti<strong>do</strong> estava quan<strong>do</strong> fiz o voto. E porque,<br />
como diz o padre Santo Agostinho 579 , quem vota ou promete ao desempenho<br />
se obriga, antes que vestisse as galas de noivo, quis tornar a vestir o pobre e<br />
humilde hábito de cativo; e assim despedin<strong>do</strong>-me de meus pais e de Zelin<strong>da</strong>,<br />
sem cria<strong>do</strong>s que me acompanhassem, a pé venho render as devi<strong>da</strong>s graças a<br />
esta milagrosa Senhora <strong>do</strong>s perigos que me livrou e <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de que me deu,<br />
e <strong>do</strong> remédio com que hoje me vejo, que Zelin<strong>da</strong> trouxe consigo, que chega ao<br />
valor de quarenta mil cruza<strong>do</strong>s.<br />
Esta é, senhores, a peregrina história <strong>do</strong>s vários progressos de minha<br />
vi<strong>da</strong>, em que como em espelho se podem ver suas mu<strong>da</strong>nças, colhen<strong>do</strong> alívios<br />
a aflição e consolação a pena, para que ninguém desanime no magoa<strong>do</strong> <strong>da</strong> <strong>do</strong>r<br />
Aug., De Arm. & Paul.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 679<br />
e no rigoroso <strong>do</strong> sentimento, pois pode abonançar a tormenta e melhorar-se a<br />
ventura, se não falta à vi<strong>da</strong> a esperança.<br />
Cap. XV.<br />
Do encontro que tiveram na Casa <strong>do</strong> Loreto os nossos romeiros com um<br />
força<strong>do</strong><br />
Admira<strong>do</strong>s ficaram Felisberto e Dionísio, seu companheiro, <strong>da</strong> agradável<br />
história <strong>do</strong> cativo Hortênsio, e lhe renderam as graças de os fazer participantes<br />
<strong>do</strong>s vários progressos de sua vi<strong>da</strong>, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe juntamente os parabéns de sua<br />
tão venturosa sorte, pois não só se via livre e rico em sua pátria, mas<br />
juntamente em vi<strong>da</strong> de seus pais, para serem em tu<strong>do</strong> cabais as suas alegrias,<br />
pois ficam participan<strong>do</strong> delas aqueles que mais nos querem e nós amamos.<br />
- É o bem de si comunicável (disse o Ermitão), e quanto é maior, mais<br />
se comunica. Os soberbos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, diz S. Bernar<strong>do</strong>, são solitários, porque<br />
de seus bens só eles se gozam, parecen<strong>do</strong>-lhes que só eles há no mun<strong>do</strong>; e é<br />
indiscreta alegria a que <strong>da</strong> sole<strong>da</strong>de se acompanha, pois só o contentamento é<br />
grande quan<strong>do</strong> <strong>da</strong>s felici<strong>da</strong>des o contente não é só. Assim participan<strong>do</strong> neste<br />
assunto e outros que se moveram, se recolheram a descansar o que <strong>da</strong> noite<br />
ficava, que não era muito, por serem então os dias os mais dilata<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ano e<br />
as noites as delícias mais alegres <strong>do</strong> tempo.<br />
Ao outro dia <strong>da</strong> manhã entrou o cativo a confessar-se, para visitar a<br />
santíssima Casa <strong>do</strong> Loreto, aonde comungou com muitas lágrimas de cordial<br />
devoção a que move a santi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> lugar em que o Divino Verbo se fez<br />
Homem. Entrou neste tempo na casa angélica <strong>da</strong> Senhora um mancebo em<br />
traje de forca<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s que an<strong>da</strong>m reman<strong>do</strong> nas galés, mas sem ferros, bem<br />
assombra<strong>do</strong> no parecer, mas na vista tão triste e choran<strong>do</strong> tão senti<strong>da</strong>mente<br />
que mostrava a quem o via que <strong>do</strong>minava mais nele o intenso <strong>da</strong> mágoa que o<br />
enterneci<strong>do</strong> <strong>da</strong> devoção. Eram tantos os suspiros com que se queixava e os<br />
extremos com que se afligia, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> comissão só aos olhos, para nas lágrimas,<br />
e aos gemi<strong>do</strong>s, para nos ecos, manifestarem o muito que sentia, mas não a<br />
causa por que penava; que lastiman<strong>do</strong> o Ermitão Felisberto, e com ele os <strong>do</strong>us<br />
companheiros, se chegaram a ele a consolá-lo; mas ele a na<strong>da</strong> <strong>do</strong> que lhe
680 Padre Mateus Ribeiro<br />
falavam respondia, mostran<strong>do</strong> estar tão incapaz de alívio como vivo só para o<br />
sentimento. Era o Ermitão de sua própria condição compassivo e prudente, e<br />
assim lhe pediu quisesse vir em sua companhia para o hospital aonde<br />
estavam, pois era o hospício próprio <strong>do</strong>s peregrinos e forasteiros, aonde<br />
poderia descansar e <strong>da</strong>r tréguas à pena que tanto o afligia. Aceitou a oferta o<br />
desconsola<strong>do</strong> mancebo; e assim se saíram <strong>da</strong> igreja para o hospital, aonde <strong>do</strong>s<br />
três foi agasalha<strong>do</strong> com grande cari<strong>da</strong>de, fazen<strong>do</strong>-o comer <strong>do</strong> que para o jantar<br />
prepara<strong>do</strong> tinham. E depois lhe disse Felisberto desta sorte:<br />
- Quisera, senhor, perguntar-vos a causa <strong>da</strong> excessiva pena que vos<br />
aflige, e não me atrevo, porque sei que quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>mina a <strong>do</strong>r ao coração que a<br />
padece, suspende as palavras para declarar-se e a linguagem para poder<br />
dizer-se. Lembra-me que o insigne poeta Sófocles Ateniense disse que os<br />
muito aflitos <strong>da</strong> <strong>do</strong>r e combati<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s adversi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> fortuna não só parecem<br />
sur<strong>do</strong>s ao que ouvem, mas juntamente cegos ao que vem. Donde infiro que<br />
com maior razão se podem chamar mu<strong>do</strong>s: pois se a eficácia <strong>da</strong> <strong>do</strong>r embarga<br />
os senti<strong>do</strong>s mais livres, como não embargará os órgãos <strong>da</strong> voz, ten<strong>do</strong>-os<br />
presos? Faz o costume de padecer hábito <strong>do</strong>s próprios males; e com serem tão<br />
violentos ao gosto, o costume de padecê-los os faz toleráveis ao sofrimento,<br />
sen<strong>do</strong>, como diz Euripides, uma como repeti<strong>da</strong> violência que se faz à natureza,<br />
rompen<strong>do</strong> pela inclinação a bateria incessável <strong>do</strong> costume, perden<strong>do</strong>-se o<br />
temor à vontade e os assombros <strong>do</strong> espanto ao rigor. Digo isto, senhor, porque<br />
se no princípio de vossos infortúnios mostrásseis tão viva a ro<strong>da</strong> de vosso<br />
sentimento, como hoje vemos, nem vossas lágrimas seriam motivos de<br />
admiração, pois nas tironices <strong>do</strong> mal traziam a desculpa <strong>do</strong> insólito <strong>da</strong><br />
passibili<strong>da</strong>de dele, nem seria maravilha que a força <strong>da</strong> <strong>do</strong>r não admitisse os<br />
alívios. Porém hoje, que pelo que podemos inferir estais reduzi<strong>do</strong> à vossa<br />
liber<strong>da</strong>de e livre <strong>do</strong> estron<strong>do</strong>so ruí<strong>do</strong> <strong>do</strong>s grilhões e cadeias com que vos vistes<br />
preso, como em lugar <strong>da</strong>s alegrias repetis tão intensas as tristezas? Parece<br />
que é mu<strong>da</strong>r os termos continuar o aflito, haven<strong>do</strong>-se de ostentar o alegre.<br />
Assim falou Felisberto, a quem o força<strong>do</strong> respondeu:<br />
- Confesso, senhores, que no magoa<strong>do</strong> de meu peito tem justo motivo<br />
vossa admiração, parecen<strong>do</strong> imprópria ao esta<strong>do</strong> presente a grandeza de<br />
minha tristeza. Porém se bem se conhecer a causa que me move a parecer<br />
excessivo na pena que sinto e se manifestar a causa de minha ânsia, julgareis
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 681<br />
que sinto pouco para o muito que sentir devo. Descobrir as raízes, se nas<br />
árvores é meio de secar-se o vistoso de suas folhas, mais descobrir a raiz <strong>da</strong><br />
<strong>do</strong>r é motivo de aumentar-se o sentimento dela, porque quan<strong>do</strong> os males<br />
carecem de remédio e se impossibilitaram a to<strong>do</strong> o alívio, serve só o repetir-lhe<br />
a origem de reverdecer o tormento. Porém vejo-me, senhores, tão obriga<strong>do</strong> à<br />
vossa cortesia no pesar que mostrais sentir de meus desgostos, que assim<br />
para mostrar-me agradeci<strong>do</strong>, como para desculpar o que em meu sentimento<br />
avaliais excesso <strong>da</strong> tristeza, <strong>da</strong>rei notícia de meus infortúnios, se, sen<strong>do</strong> estes<br />
tantos, puderem declarar-se pelas notícias.<br />
To<strong>do</strong>s lhe agradeceram o favor que lhes fazia. E ele, com um suspiro<br />
enterneci<strong>do</strong> por prelúdio de sua história, disse assim:<br />
- Meu nome é Polinar<strong>do</strong>, minha pátria a antigua e insigne ci<strong>da</strong>de de<br />
Perúsia, situa<strong>da</strong> nos confins <strong>da</strong> antigua Toscana. Bem disse Cleobulo 580 , um<br />
<strong>do</strong>s sete sábios de Grécia, que assim como a uns honra a política grandeza de<br />
sua pátria, assim outros, tão infelices como eu, são descrédito <strong>da</strong>s ilustres<br />
pátrias em que nasceram. Como eu hoje o sou de minha pátria, em que além<br />
de outras grandezas, está a universal academia de to<strong>da</strong>s as ciências, que nela<br />
se tem por insignes catedráticos e de que tem saí<strong>do</strong> excelentes sujeitos. Eram<br />
meus pais pobres de bens <strong>da</strong> fortuna e de família humilde, mas não abati<strong>da</strong>;<br />
porque se não eram <strong>da</strong>s ilustres, ficavam entre as medianas. Com serem as<br />
medianias, como disse Aristóteles 581 , as menos arrisca<strong>da</strong>s aos encontros <strong>da</strong><br />
fortuna, não pude isentar-me de passar pela inconstância de sua ro<strong>da</strong>, até<br />
chegar ao esta<strong>do</strong> em que me vedes. Tinha uma só irmã, que se chamava<br />
Estela, com a qual se mostrou tão liberal a natureza, quanto avara a fortuna na<br />
pobreza. Competiu em Estela a beleza <strong>do</strong> rosto com a delicadeza <strong>do</strong> juízo para<br />
ser em tu<strong>do</strong> maravilha, se maravilhas podem <strong>da</strong>r-se em pobres sujeitos. É a<br />
fermosura em quem não tem o esta<strong>do</strong> decente para ser estima<strong>da</strong> como a<br />
pedra preciosa quan<strong>do</strong> sai tosca <strong>da</strong> mina, que negan<strong>do</strong>-lhe as luzes o nativo<br />
de seu berço, perde a estimação por não ser conheci<strong>da</strong>. Tal foi a fermosura em<br />
sujeito pobre e não ilustre, sen<strong>do</strong> alvo a quem atiram muitos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, e perde<br />
a estimação ain<strong>da</strong> que tenha valor; porque encobertas as luzes com o tosco <strong>da</strong><br />
Cleob., apud Diog. Lib. 1.<br />
Arist., Physic. 2.
682 Padre Mateus Ribeiro<br />
pobreza e humilde <strong>da</strong> família, se era diamante na fermosura, não o ficava<br />
sen<strong>do</strong> na estimação.<br />
Cursava eu neste tempo os estu<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s Humanas Letras com muita<br />
satisfação e ain<strong>da</strong> com inveja de outros discípulos a quem se adiantava meu<br />
talento. Entrei na Filosofia, finalizei-a com aplauso e fruto de meus desvelos,<br />
em tempo que tinha vinte e <strong>do</strong>us anos de i<strong>da</strong>de; minha irmã Estela vinte. Havia<br />
em Perúsia um mancebo ilustríssimo no sangue e mui rico no morga<strong>do</strong> que<br />
possuía, chama<strong>do</strong> Salviano, filho único de uma senhora viúva, que se chamava<br />
Laurência, <strong>da</strong> mais ilustre e antigua fi<strong>da</strong>lguia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, que neste só filho, que<br />
de seu defunto esposo lhe ficara, consolava as sau<strong>do</strong>sas lembranças de seu<br />
defunto esposo. Era Salviano mui cortês e ajuiza<strong>do</strong>, mui liberal, com que tinha<br />
adquiri<strong>do</strong> muitos amigos. Que é a liberali<strong>da</strong>de, como diz Cícero, a arte com que<br />
as vontades se obrigam e os amigos se granjeiam. Seria Salviano de vinte e<br />
cinco anos de i<strong>da</strong>de quan<strong>do</strong> pôs os olhos em minha irmã Estela, fican<strong>do</strong> em<br />
Salviano limita<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os encarecimentos para exagerá-la; porque os<br />
maiores hipérboles eram pequenos panegíricos para louvá-la. Deixou-se ver<br />
Estela, quan<strong>do</strong> pudera encobrir-se, não preven<strong>do</strong> os perigos, e por isso não<br />
escondeu as luzes; levou-se <strong>da</strong>s lisonjas, ten<strong>do</strong> por crédito <strong>da</strong> fermosura o ser<br />
de tal sujeito corteja<strong>da</strong>, não advertin<strong>do</strong> que traz a desigual<strong>da</strong>de o abatimento<br />
no mesmo que se julga soberania. Ofereceu-se Salviano que seria seu esposo;<br />
mas duvi<strong>do</strong>sa se mostrou minha irmã <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, acção em que se mostrou o<br />
muito que era ajuiza<strong>da</strong>, não <strong>da</strong>n<strong>do</strong> crédito facilmente à ventura com escrúpulos<br />
de poder ser engana<strong>da</strong>. Respondeu-lhe que se os intentos que publicava eram<br />
ver<strong>da</strong>deiros, os tratasse com meu pai, porque sem seu consentimento<br />
nenhuma promessa admitia.<br />
Impaciente se mostrou Salviano <strong>da</strong>s dilações ao desejo; replicou uma<br />
vez e outra, mas sem fruto: porque foi mais poderosa em Estela a cautela de<br />
assegurar-se <strong>do</strong> que em Salviano a promessa repeti<strong>da</strong> para demovê-la.<br />
Resoluto enfim o amante a <strong>da</strong>r notícia a meu pai de seus intentos, e<br />
juntamente a mim, por parecer-lhe que meu pai não <strong>da</strong>ria resposta sem<br />
consultá-la comigo, nos man<strong>do</strong>u chamar um dia, para que em sua casa<br />
fossemos falar-lhe sobre um negócio que lhe importava comunicar connosco.<br />
Como era pessoa tão ilustre e de to<strong>do</strong>s tão respeita<strong>do</strong>, obedecemos a ir buscá-<br />
lo, duvi<strong>da</strong>n<strong>do</strong> que negócio poderia ser este, porque de seu amor estávamos
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 683<br />
ignorantes: amizade não havia pelo desigual; pendências nem agravos muito<br />
menos pelo pacífico; empréstimos não se entendiam na pobreza de nosso<br />
cabe<strong>da</strong>l, pois com limitações passávamos a vi<strong>da</strong>. Com a suspensão destas<br />
dúvi<strong>da</strong>s entrámos em sua casa, que era grandiosa. E depois de nos receber<br />
mui cortesmente, nos levou ao ameno de um jardim, flori<strong>da</strong> emulação <strong>da</strong><br />
Primavera. E assentan<strong>do</strong>-se connosco à sombra de copa<strong>da</strong>s árvores que de<br />
pavelhão verde serviam a uma fonte de alabastro, que vertia minas de cristal<br />
por <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s registos, Salviano falou assim:<br />
- Conheço, senhor Arnal<strong>do</strong> (que assim meu pai se chamava), que<br />
obrigação minha era o ir eu buscar-vos e ao senhor Polinar<strong>do</strong>; mas não o fiz<br />
por não <strong>da</strong>r motivos com o descostume a poder nascer alguma suspeita que<br />
pudesse ofender ou vossa fama, ou meu desejo. Por esta causa vos retirei a<br />
este sítio, cerran<strong>do</strong> as portas dele; porque para declarar meus pensamentos,<br />
ain<strong>da</strong> destas flores me não fio. Eu amo a senhora Estela com amor tão firme e<br />
ver<strong>da</strong>deiro que não pode subir a mais porque não é possível passar de<br />
extremos. É o raro de sua beleza para mim a primeira maravilha, que se lhe<br />
falta uma letra para estrela, sobram-lhe muitas para sol. Eu a tenho escolhi<strong>da</strong><br />
para esposa, ou o mun<strong>do</strong> me censure, ou me louve, que eu hei-de viver com<br />
ela e não com ele, e sempre acharei desculpa nos discretos, se achar censura<br />
no parecer <strong>do</strong>s néscios. Só me falta que vós aproveis meu acerta<strong>do</strong> intento e<br />
consultemos os meios idóneos para se efectuar sem publicar-se, pois tenho<br />
mãe e parentes poderosos que podem impedir-me a ventura que espero e não<br />
o amor que tenho.<br />
Calou Salviano, deixan<strong>do</strong>-nos suspensos a novi<strong>da</strong>de e assusta<strong>do</strong>s a<br />
pretensão. Bem disse Júlio César 582 que não havia coração tão esforça<strong>do</strong> que<br />
com o repentino de uma novi<strong>da</strong>de não espera<strong>da</strong> se isentasse <strong>do</strong>s assaltos <strong>da</strong><br />
perturbação. Sempre a novi<strong>da</strong>de, diz Ovídio 583 , traz duvi<strong>do</strong>sos os efeitos, por<br />
não poder o repentino assegurar o venturoso, que o passar de um a outro<br />
extremo tem mais de arrisca<strong>do</strong> que de seguro. Mais facilmente se acha a<br />
ventura <strong>do</strong> que se conserva; porque como nos desgraça<strong>do</strong>s parece que está<br />
fora de seu centro, foi o achar-se acidente que passa e o perder-se mágoa que<br />
Caesar, De bel. Gall. 16.<br />
Ovid., 3. De Ponto.
684 Padre Mateus Ribeiro<br />
eterniza<strong>da</strong> dura. Digo isto, senhores, porque à primeira vista, quem não julgaria<br />
ser esta proposta de Salviano o arbítrio mais feliz que pudera <strong>da</strong>r-se-nos?<br />
Porém eu, que vi a meu pai suspenso na indeterminação <strong>da</strong> resposta, fazen<strong>do</strong><br />
a Salviano a cortesia devi<strong>da</strong>, e pedin<strong>do</strong> a meu pai licença para responder-lhe,<br />
lhe disse:<br />
- É, senhor Salviano, tão subi<strong>do</strong> o favor que intentais fazer-nos que de<br />
sua própria grandeza nasce em meu pai o espanto para acertar a responder-<br />
vos. Conheço o muito que valeis por vossa pessoa, riqueza e fi<strong>da</strong>lguia, e o<br />
pouco que condiz com o nosso esta<strong>do</strong> este tão desigual casamento. Uma <strong>da</strong>s<br />
sentenças que deu o sábio Cleobulo, referi<strong>do</strong> por Diógenes, era que nos<br />
casamentos houvesse to<strong>da</strong> a igual<strong>da</strong>de; porque sen<strong>do</strong> a esposa muito inferior,<br />
não parecesse escrava de seu mari<strong>do</strong>. Bem disse Homero que não havia<br />
cousa mais suave que a concórdia <strong>do</strong> tálamo nupcial; e haven<strong>do</strong> neste tanta<br />
desigual<strong>da</strong>de, não me persua<strong>do</strong> que possa haver concórdia. Esposa sem <strong>do</strong>te,<br />
disse Euripides, não tem liber<strong>da</strong>de para falar; e se só por lhe faltar o <strong>do</strong>te a<br />
julgava o poeta por mu<strong>da</strong>, que será faltan<strong>do</strong>-lhe o <strong>do</strong>te e a quali<strong>da</strong>de? Ficará<br />
quasi parecen<strong>do</strong> cria<strong>da</strong> que serve e não senhora que igualmente man<strong>da</strong>. No<br />
presente esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> vai pouco a pessoa e muito a riqueza. Minha irmã é<br />
pobre; vós, senhor Salviano, sois morga<strong>do</strong> e rico; ela humilde e vós ilustre;<br />
nossos parentes poucos e desvali<strong>do</strong>s, os vossos muitos e poderosos; e de<br />
to<strong>do</strong>s ficaremos odia<strong>do</strong>s e persegui<strong>do</strong>s. Nos princípios, disse Demóstenes, se<br />
hão-de evitar as origens aos <strong>da</strong>nos; porque depois de criarem raízes, será<br />
pouco o remédio e a ruína muita. Nós, com a limitação de nosso pouco<br />
cabe<strong>da</strong>l, vivemos em paz, não sen<strong>do</strong> aborreci<strong>do</strong>s; porque não somos<br />
inveja<strong>do</strong>s, não tememos sermos ofendi<strong>do</strong>s, porque a ninguém ofendemos. E<br />
nem seria prudência granjear os perigos, poden<strong>do</strong> evitar as moléstias. A vós,<br />
senhor Salviano, não faltará esposa digna de merecer-vos, e a minha irmã,<br />
quan<strong>do</strong> mude de esta<strong>do</strong>, esposo igual à nossa esfera.<br />
Esta foi a resposta que eu dei, em que meu pai concor<strong>do</strong>u como mais<br />
segura. Ouviu-nos Salviano assusta<strong>do</strong> e replicou uma e outra vez, dissolven<strong>do</strong><br />
as dificul<strong>da</strong>des que lhe púnhamos quanto facilitá-las podia; mas ven<strong>do</strong> que<br />
meu pai perseverava em o primeiro parecer, com os olhos banha<strong>do</strong>s em<br />
lágrimas, rompeu nestas palavras:
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 685<br />
- É possível, senhor Arnal<strong>do</strong>, que de um golpe queirais cortar-me a mim<br />
a vi<strong>da</strong> e a vossa filha a ventura, deixan<strong>do</strong>-me queixoso, quan<strong>do</strong> cuidei que<br />
ficásseis obriga<strong>do</strong>? Pois não me levantarei de vossos pés sem que me<br />
conce<strong>da</strong>is este bem que procuro. Que quem chega a tais demonstrações é<br />
abono de que só deseja servir-vos e não ofender-vos. Meu amor, para voltar<br />
atrás, é cau<strong>da</strong>loso rio, que nenhuma violência poderá encontrá-lo. Seja eu<br />
esposo <strong>da</strong> senhora Estela e mais que se conjurem contra mim to<strong>do</strong>s os rigores;<br />
perca-se tu<strong>do</strong> o mais, que tu<strong>do</strong> em pouco estimo; que quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> me falte, só<br />
com ela viverei contente.<br />
Dizen<strong>do</strong> isto se quis arrojar aos pés de meu pai, que levantan<strong>do</strong>-o nos<br />
braços, e com lágrimas nos olhos, lhe deu palavra de que com Estela casaria:<br />
nova para ele tão alegre que pudera arriscar-se a tirar-lhe repentinamente a<br />
vi<strong>da</strong> o excesso <strong>da</strong> alegria. Com isto nos despedimos, fican<strong>do</strong> ao cui<strong>da</strong><strong>do</strong> de<br />
meu pai o tirar secretamente as licenças para se receberem.<br />
Cap. XVI.<br />
Do encontro que teve o casamento de Estela e como Arnal<strong>do</strong> com sua família<br />
se saiu de Perúsia<br />
Deu-se notícia a minha mãe e a Estela <strong>do</strong> que se havia trata<strong>do</strong>, de que<br />
ficou uma admira<strong>da</strong> e outra contente. E a novi<strong>da</strong>de era tal que podia<br />
juntamente produzir o espanto e a alegria. Deu meu pai logo ordem com to<strong>do</strong> o<br />
segre<strong>do</strong> a procurar as licenças. Mas quan<strong>do</strong> se guar<strong>do</strong>u segre<strong>do</strong> para um<br />
pobre? E mormente quan<strong>do</strong> em descobrir se vão interessa<strong>do</strong>s os poderosos. É<br />
o silêncio a alma <strong>da</strong>s empresas: to<strong>da</strong>s em se rompen<strong>do</strong> espiram e enquanto se<br />
observou só viveram. Lembra-me que intentan<strong>do</strong> o sena<strong>do</strong> de Cartago mover<br />
secretamente as armas contra Dionísio, tirano de Sicília, porque Juniaco<br />
Cartaginês o avisou por uma carta escrita em grego, com que ele se preparou<br />
para a defensa com to<strong>da</strong>s as forças de seu senhorio, ven<strong>do</strong>-se os cartagineses<br />
descobertos e contramina<strong>do</strong> seu intento, descobrin<strong>do</strong>-se quem fora o autor<br />
<strong>do</strong>nde nascera o aviso, além de o condenarem à morte como inimigo <strong>da</strong> pátria,<br />
fizeram uma lei em que proibiram com pena de morte que nenhum cartaginês
686 Padre Mateus Ribeiro<br />
estu<strong>da</strong>sse, falasse ou escrevesse a língua grega, o que tu<strong>do</strong> exactamente se<br />
observou.<br />
Rompeu-se, como disse, o segre<strong>do</strong> sobre o pretendi<strong>do</strong> casamento de<br />
minha irmã com Salviano, e tumultuan<strong>do</strong> logo to<strong>do</strong>s seus parentes, trataram de<br />
dissuadi-lo <strong>do</strong> intento, já com razões, já com ameaços. Porém ven<strong>do</strong> que se<br />
mostrava firme em seu primeiro intento, trouxeram para <strong>da</strong>r nova bataria à sua<br />
constância a Finar<strong>da</strong>, uma ilustre <strong>do</strong>nzela, filha de uma fi<strong>da</strong>lga viúva, igual a<br />
Salviano, se bem pobre nos bens <strong>da</strong> fortuna, moça na i<strong>da</strong>de e discreta no juízo,<br />
mas não que no parecer pudesse ter competências com Estela. A esta<br />
galanteava antiguamente Salviano com pretensões de casamento, de que<br />
adverti<strong>do</strong> por sua mãe e parentes, por ser pobre, se empenhou com minha<br />
irmã, como tenho dito, sem se lembrar de Finar<strong>da</strong>. Porém ven<strong>do</strong> sua mãe o<br />
muito que estava firme em o amor e casamento de Estela, que ela julgava por<br />
tão disforme a quem era, empenhou a Finar<strong>da</strong> a que vin<strong>do</strong> com sua mãe a<br />
visitá-la, visse se podia com to<strong>da</strong>s as veras empenhar a Salviano a que com<br />
ela casasse. Empenhou-se Finar<strong>da</strong>, estimula<strong>da</strong> de ciúmes e juntamente <strong>da</strong><br />
inveja de considerar a Estela mais venturosa e tão senhora <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s de<br />
Salviano. E entran<strong>do</strong> aonde estava, lhe disse:<br />
- Chegaram já, ó Salviano, minhas mágoas a não poderem encobrir-se<br />
e tuas sem-razões a não poderem tolerar-se. São os agravos para ocultos<br />
penosos e para publica<strong>do</strong>s insofríveis. A pena, enquanto se passa escondi<strong>da</strong>,<br />
será tormento de quem a padece; mas em chegan<strong>do</strong> a publicar-se, é mina que<br />
rebentan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> despenha e a na<strong>da</strong> per<strong>do</strong>a. Dizem-me, Salviano, que te casas<br />
com Estela, a filha de Arnal<strong>do</strong>; mal o crera meu amor, se to<strong>da</strong> a Perúsia o não<br />
dissera; e ain<strong>da</strong> assim imagino que te ofen<strong>do</strong> em o crer, e tu não te pejas de o<br />
intentares. Bem pudera dizer que ou te desconheces <strong>do</strong> que és, ou que<br />
arroja<strong>do</strong> te despenhas <strong>do</strong> que eras; porque arrojo tão indecoroso só pode<br />
desculpar a loucura, por não achar escusas no juízo. Empenhaste-te a amar<br />
fino a quem não te ama. Grande despenho para brioso, maior indecência para<br />
fi<strong>da</strong>lgo, sacrificares finezas a quem não as estimas, pois faz ludíbrios de teus<br />
desvelos, quem an<strong>da</strong> por outro desvela<strong>da</strong>: que como não soube estimar o que<br />
devia à ventura, assim não soube avaliar o muito que a ti te deve. Quem<br />
dissera, Salviano, que teria mais senhorio em teu peito Estela por venturosa
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 687<br />
que Finar<strong>da</strong> por amante? E que sen<strong>do</strong> sujeito tão indigno para poder merecer-<br />
te, fosse o sujeito mais felice para poder obrigar-te?<br />
Que dirá o mun<strong>do</strong>, com razão atrevi<strong>do</strong> ao venerável de teu decoro, se te<br />
viram (a) desluzi<strong>da</strong>mente emprega<strong>do</strong>? Pois quem se estima a si mesmo tão<br />
pouco, como será <strong>do</strong>s outros estima<strong>do</strong>? Recor<strong>da</strong>, ó Salviano, <strong>do</strong> profun<strong>do</strong><br />
letargo de teus devaneios. Que encanto é este de sereia que a<strong>do</strong>rmece teus<br />
senti<strong>do</strong>s? Se me conheces, como tão injusto me tratas? Como chegam minhas<br />
queixas a não serem de ti ouvi<strong>da</strong>s? Pois o que não abre brecha no coração<br />
raramente faz demora nos senti<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong> me deixasses por sujeito tão<br />
superior que pudesse exceder-me e igualar-te, ain<strong>da</strong> pudera meu sentimento<br />
admitir esse penoso alívio; porque a troco de te considerar mais altivamente<br />
empenha<strong>do</strong> ou mais decorosamente emprega<strong>do</strong>, suspendera a eterna ro<strong>da</strong> de<br />
minha <strong>do</strong>r talvez o movimento de sua pena, sen<strong>do</strong> o discreto de tua eleição<br />
desculpa ao desaire de tua mu<strong>da</strong>nça. Mas se vejo que tua escolha segue<br />
precipita<strong>da</strong> os ditames de teu gosto e não os de teu juízo, que esperas que<br />
diga Finar<strong>da</strong>, de antes lisonja de teu agra<strong>do</strong> e hoje esquecimento de tuas<br />
memórias, de antes pertendi<strong>da</strong> com tantas promessas de seres meu esposo e<br />
hoje com tantos motivos de seres meu tormento?<br />
Considera, ingrato Salviano, o estima<strong>do</strong> de meu crédito posto em<br />
opiniões por teu respeito, e que se me não per<strong>do</strong>ou o mun<strong>do</strong> com serem meus<br />
pensamentos em ti tão bem coloca<strong>do</strong>s, que não censurasse o cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, não<br />
murmurasse o desvelo, com ser eu tua igual para poder merecer-te; que dirá o<br />
mun<strong>do</strong> se te vir casa<strong>do</strong> com quem tão longe está para igualar-te e ain<strong>da</strong> tão<br />
descui<strong>da</strong><strong>da</strong> de querer-te? Confesso que Estela é fermosa; porém assenta essa<br />
beleza sobre fun<strong>da</strong>mentos tão humildes de nascimento e riqueza que, por mais<br />
que se desvele teu amor em levantá-la, nunca poderás subi-la, pois há-de<br />
pesar mais o nativo de sua baixeza que o desvelo de teu favor. Que a lua<br />
nunca se livra <strong>da</strong>s manchas que mostra porque nasceu com elas; e por muito<br />
que o sol lhe comunique as luzes, nunca lhe prateou as sombras. Não<br />
presumas, Salviano, que falam só meus ciúmes, porque fala também meu<br />
amor por acudir por teu crédito; pois mostrara que te amara pouco, quan<strong>do</strong> teu<br />
pun<strong>do</strong>nor me não custara muito, e mais sinto eu os ameaços <strong>do</strong> que a ti<br />
Com senti<strong>do</strong> de futuro imperfeito <strong>do</strong> conjuntivo: virem.
688 Padre Mateus Ribeiro<br />
molestam os golpes de tua fama; porque o amor de Estela te tem feito<br />
insensível, e assim as feri<strong>da</strong>s de teu crédito não sentes.<br />
Considera, Salviano, as mágoas de tua mãe, o desluzimento <strong>do</strong> antigo<br />
solar de tua casa, os desaires de tua pessoa, os motivos que dás ao vulgo para<br />
censurar-te e os agravos que me fazes para queixar-me. Em tempos estás<br />
para poderes livrar-te de tantas culpas contra o pun<strong>do</strong>nor intenta<strong>da</strong>s e contra<br />
meu amor cometi<strong>da</strong>s, se forem teus ouvi<strong>do</strong>s árbitros <strong>da</strong> razão e teu juízo<br />
atender a minhas ver<strong>da</strong>des, se for teu coração remunera<strong>do</strong>r justo de minhas<br />
finezas; pois nem tu ficarás desluzi<strong>do</strong>, nem tua mãe magoa<strong>da</strong>, nem teus<br />
parentes senti<strong>do</strong>s, nem meu amor tão ingratamente ofendi<strong>do</strong> por mal<br />
galar<strong>do</strong>a<strong>do</strong>. Considera que primeiro está teu crédito que teu desejo, e que<br />
mu<strong>da</strong>nças para o melhor se desculpam <strong>da</strong> censura de mu<strong>da</strong>nças: to<strong>do</strong>s te<br />
culpam de deixares a Finar<strong>da</strong> por Estela, mas não te culparão se deixares a<br />
Estela por Finar<strong>da</strong>. Pois se eu não te igualo na riqueza, na<strong>da</strong> te desmereço na<br />
fi<strong>da</strong>lguia. E se com Estela não emparelho na beleza e na ventura, muita<br />
vantagem lhe levo no amor. Foste, Salviano, o primeiro a quem dediquei meus<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e foi teu amor o morga<strong>do</strong> de minha vontade: bem merece justa paga<br />
amor tão bem nasci<strong>do</strong>, que aprendeu os rudimentos e tironices de amar em<br />
tuas memórias. Pelo contrário Estela, que tem si<strong>do</strong> alvo de mil cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e hoje<br />
não vive isenta deles, fazen<strong>do</strong> crédito <strong>da</strong> fermosura em ser ama<strong>da</strong>: ver<strong>da</strong>de<br />
que poderás conhecer se quiseres desenganar-te <strong>da</strong>s sombras em que te<br />
trazem teus pensamentos.<br />
Deu fim Finar<strong>da</strong> a suas queixas e princípio a suas lágrimas, mu<strong>da</strong> e<br />
poderosa eloquência para persuadir quanto procura. Pois, como disse<br />
Euripides,) são as lágrimas na mulher tão próprio atributo como a luz <strong>do</strong> sol e o<br />
calor <strong>do</strong> fogo. Saiu nesta ocasião a mãe de Salviano, que encoberta com a<br />
cortina que à porta servia de guar<strong>da</strong> to<strong>da</strong> a prática de Finar<strong>da</strong> ouvi<strong>do</strong> tinha, e<br />
com tantas razões, já senti<strong>da</strong> e já irosa, repreendeu ao filho e o persuadiu a<br />
que casasse com Finar<strong>da</strong>, pois era sua igual, reprovan<strong>do</strong> a minha irmã pela<br />
muita desigual<strong>da</strong>de e dizen<strong>do</strong> quanto a paixão lhe ensinava. É a ira, como diz<br />
Séneca 584 , tanto mais impetuosa, quanto mais retar<strong>da</strong><strong>da</strong>. E se os rios adquirem<br />
a grandeza com esconder-se, a ira pelo contrário granjeia maiores forças com<br />
Senec, De ira. lib. 3.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 689<br />
coarctar-se. Uma paixão excessiva, em chegan<strong>do</strong> a publicar-se, não repara em<br />
cortar pelos respeitos <strong>do</strong> que ama, quanto mais pela reputação <strong>do</strong> que<br />
aborrece. São as paixões <strong>da</strong> ira, diz Salústio 585 , não só reprova<strong>da</strong>s para<br />
conselheiras, mas juntamente incapazes para testemunhas; porque a fim de<br />
conseguirem o desafogo, não reparam em desluzir ao mais luzi<strong>do</strong>, nem em<br />
decompor ao mais respeita<strong>do</strong>. Isto digo, porque tanto se empenharam Finar<strong>da</strong><br />
e a mãe <strong>do</strong> combati<strong>do</strong> Salviano em decomporem injustamente o que minha<br />
irmã merecia, que Salviano se veio a <strong>da</strong>r por venci<strong>do</strong> <strong>da</strong> importunação para<br />
desistir <strong>do</strong> casamento de Estela e casar-se com Finar<strong>da</strong>, haven<strong>do</strong>-se em<br />
breves dias as licenças com que se efectuou o casamento. E quan<strong>do</strong> meu pai,<br />
ignorante desta mu<strong>da</strong>nça, solicitava as licenças, já Salviano estava com<br />
Finar<strong>da</strong> recebi<strong>do</strong>. Divulgou-se logo o casamento por Perúsia, desmaiou em<br />
Estela a esperança, em meu pai o sofrimento, em mim o pun<strong>do</strong>nor de ver-me<br />
despreza<strong>do</strong>, a minha irmã desluzi<strong>da</strong>, o vulgo dividi<strong>do</strong> em pareceres, uns<br />
desculpan<strong>do</strong> em Salviano a mu<strong>da</strong>nça, outros culpan<strong>do</strong> em Estela o<br />
desvanecimento de aspirar a casamento tão altivo, e finalmente to<strong>do</strong>s se<br />
punham <strong>da</strong> parte de quem vencia e nenhum defendia a quem valia menos.<br />
Era meu pai, suposto que pobre, brioso no pun<strong>do</strong>nor; eu, como cursava<br />
os estu<strong>do</strong>s, temen<strong>do</strong> as murmurações, via-me impaciente na ofensa; Estela<br />
sem alívio magoa<strong>da</strong>; minha mãe chorosa de senti<strong>da</strong>; e assim determinou meu<br />
pai de mu<strong>da</strong>r-se <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, meten<strong>do</strong> terra em meio de tantos desgostos, e eu<br />
deixan<strong>do</strong> o curso de meus estu<strong>do</strong>s por não me precipitar a algum perigo. Vivia<br />
uma irmã de minha mãe, viúva, na vila de Balena, edifica<strong>da</strong> junto ao famoso<br />
lago de Volsino, e distante de Perúsia seis léguas para o nascimento <strong>do</strong><br />
celebra<strong>do</strong> rio Tibre. Era esta nossa tia, que Lavínia se chamava, já na i<strong>da</strong>de<br />
anciã e sem filhos, bastantemente afazen<strong>da</strong><strong>da</strong> para passar a vi<strong>da</strong> conforme<br />
seu esta<strong>do</strong>, sem necessi<strong>da</strong>des, nem sombras. Era o sítio de Balena ameno na<br />
frescura e bem povoa<strong>do</strong> de gente, e Lavínia tinha casas bastantes para to<strong>do</strong>s<br />
como<strong>da</strong>mente morarmos. Aonde fomos com grande amor dela recebi<strong>do</strong>s e em<br />
um quarto <strong>da</strong>s casas aposenta<strong>do</strong>s.<br />
Dous anos eram já passa<strong>do</strong>s que estávamos em Balena, divertin<strong>do</strong> as<br />
mágoas com as mu<strong>da</strong>nças <strong>do</strong>s ares, terra e campo <strong>do</strong> ameno sítio em que<br />
Salust., in Bello Jugurthin.
690 Padre Mateus Ribeiro<br />
vivíamos, quan<strong>do</strong> um dia apareceu em Balena Salviano com seus cria<strong>do</strong>s, a<br />
título de vir à caça, hospe<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se em casa de um seu amigo, que nunca aos<br />
ricos e poderosos faltam em to<strong>da</strong> a parte hospe<strong>da</strong>gens. Apenas tivemos notícia<br />
de sua vin<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> Estela, fecha<strong>da</strong>s as janelas, cortou as ocasiões de poder<br />
ser dele vista, pagan<strong>do</strong> em lágrimas seus olhos tributo a seu tão vivo agravo.<br />
Desvelava-se ele com passeios, que Estela contraminava com recatos,<br />
queren<strong>do</strong> tomar discreta vingança de sua mu<strong>da</strong>nça com se retirar sem permitir<br />
ser dele vista, já que desagravar o sentimento em outra ocasião não podia.<br />
- Oh tirania grande <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (dizia ela choran<strong>do</strong>), que não baste a uma<br />
infelice o ver-se ofendi<strong>da</strong>, sem ser de novo persegui<strong>da</strong> e molesta<strong>da</strong>! Oh<br />
injustiça grande <strong>do</strong> poder, que não valha aos pequenos, sobre receberem a<br />
ofensa, desterrarem-se <strong>da</strong> pátria em que nasceram de senti<strong>do</strong>s, senão que de<br />
novo os venham provocar a magoa<strong>do</strong>s sobre tais agravos recebi<strong>do</strong>s! Não<br />
basta que os desvali<strong>do</strong>s dissimulem a ofensa, para que a não sintam <strong>do</strong>bra<strong>da</strong>?<br />
Que quer Salviano nesta terra? Se verme, é desaforo, e se <strong>do</strong>brar-me a pena,<br />
tirania.<br />
Assim se queixava Estela, de que to<strong>do</strong>s andávamos senti<strong>do</strong>s, cortan<strong>do</strong><br />
as ocasiões de [nos] encontramos com ele.<br />
Tinha eu saí<strong>do</strong> de casa ante manhã, a uma jorna<strong>da</strong> que fazia <strong>da</strong>í a duas<br />
léguas, e deixei as portas <strong>da</strong> casa cerra<strong>da</strong>s uma sobre a outra. Sucedeu pois<br />
que um famoso ban<strong>do</strong>leiro, assombro de Itália e terror de Europa, que se<br />
chamava Cursieto Sambuco, cruel, arroja<strong>do</strong> e temerário homem, a cuja fama<br />
de seu valor e insolência perdiam o nome o antigo Nar<strong>do</strong> António de Nápoles,<br />
Serralonga de Catalunha, capitão de duzentos ban<strong>do</strong>leiros, to<strong>do</strong>s tão<br />
criminosos e atrevi<strong>do</strong>s como sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s de tal capitão e discípulos imita<strong>do</strong>res de<br />
tal mestre, viesse a Balena, antes que rompesse a manhã, para matar a<br />
Salviano, de quem por espias sabia a casa aonde estava hospe<strong>da</strong><strong>do</strong>. A causa<br />
que se divulgou para querer <strong>da</strong>r-lhe morte, sen<strong>do</strong> assim que gente tão<br />
habitua<strong>da</strong> a homicídios e delitos não necessita de causa, ten<strong>do</strong> por costume<br />
derramar sangue e ser escân<strong>da</strong>lo <strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s, foi dizer-se que Salviano com<br />
seus tios tinham escrito a Roma contra Cursieto Sambuco, fazen<strong>do</strong> queixosas<br />
relações <strong>do</strong>s inumeráveis <strong>da</strong>nos que nas terras <strong>do</strong> senhorio <strong>da</strong> Igreja havia<br />
feito, e pedin<strong>do</strong> se apressasse o remédio para delas os afugentarem, antes que
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 691<br />
cobrassem tantas forças que os <strong>da</strong>nos não tivessem reparo, nem as<br />
insolências castigo.<br />
Destas cartas teve notícia Cursieto, porque no caminho sen<strong>do</strong> toma<strong>da</strong>s<br />
e morto o porta<strong>do</strong>r que as levava, foram trazi<strong>da</strong>s a Cursieto Sambuco, que<br />
arden<strong>do</strong> em ira contra Salviano e seus tiranos avisos, que assim os intitulava,<br />
determinou <strong>da</strong>r-lhe a morte e a seus tios se fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de os achasse. Teve<br />
notícia por suas espias e foragi<strong>da</strong>s sentinelas que estava em Balena; assim,<br />
antes que a manhã de to<strong>do</strong> rompesse, com cinquenta ban<strong>do</strong>leiros de cavalo,<br />
bem provi<strong>do</strong>s de armas de fogo, deu em Balena; e cercan<strong>do</strong> as casas em que<br />
Salviano assistia, quebran<strong>do</strong> as portas, não teve ele mais lugar de que<br />
saltan<strong>do</strong> pelo muro de um pomar que as casas tinham, meio vesti<strong>do</strong> com o<br />
susto e corren<strong>do</strong> como quem <strong>da</strong> morte fugia, e ven<strong>do</strong> que Cursieto lhe vinha no<br />
alcance à vista, se valeu de nossa casa; achan<strong>do</strong> a porta mal cerra<strong>da</strong>, entrou<br />
e, fechan<strong>do</strong>-a, subiu apressa<strong>do</strong> nas asas de seu temor, pedin<strong>do</strong> que pelo amor<br />
de Deus lhe valêssemos, porque vinha fugin<strong>do</strong> a Cursieto Sambuco e a seus<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, que o seguiam para tirar-lhe a vi<strong>da</strong>.<br />
Chegou Cursieto, e cercan<strong>do</strong> com sua esquadra em ro<strong>da</strong> as nossas<br />
casas, bra<strong>do</strong>u, dizen<strong>do</strong> lhe abrissem logo as portas, antes que pusessem fogo<br />
às casas com que abrasassem tu<strong>do</strong>. Era tão temi<strong>do</strong> o cruel nome de Cursieto<br />
em to<strong>da</strong> Itália que não houve em Balena porta que se não fechasse ou pessoa<br />
que ousasse aparecer à janela, nem ain<strong>da</strong> que falar se ouvisse, tão intimi<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
ficaram to<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s assombros que a fama publicava de sua cruel<strong>da</strong>de, quanto<br />
mais ten<strong>do</strong> presente sua vista. Aumenta o temor, diz Quintiliano, as<br />
representações de to<strong>da</strong> a sevícia hostil e facinorosa; porém posso afirmar que<br />
ain<strong>da</strong> em Cursieto Sambuco se adiantavam os insultos e hostili<strong>da</strong>des à própria<br />
fama que os divulgava. Não <strong>da</strong>va jamais Cursieto quartel à pie<strong>da</strong>de; porque o<br />
tinha nele feito o cruel hábito tão insolente que parecia mais fácil achar-se nos<br />
tigres e leões a pie<strong>da</strong>de <strong>do</strong> que em Cursieto a compaixão. De Ptolomeu Fiston,<br />
rei <strong>do</strong> Egipto, se conta ser tão excessivamente cruel em tirar a vi<strong>da</strong> a seus<br />
vassalos que, impacientes eles ao interminável rigor com que os tratava,<br />
despovoaram a ci<strong>da</strong>de de Alexandria, sua corte, e o deixaram solitário nela,<br />
fugin<strong>do</strong> para diversas partes, para que reinasse só nas paredes dela. Porém<br />
era tal o assombro <strong>da</strong> fama <strong>da</strong>s suas tiranias que de Cursieto Sambuco em<br />
Itália se estendia que desejavam os mora<strong>do</strong>res de muitas povoações
692 Padre Mateus Ribeiro<br />
desterrarem-se a remotas partes, para poderem viver seguros de seus terrores,<br />
parecen<strong>do</strong>-lhes que excediam aos <strong>do</strong> egípcio rei e a seu maior encarecimento.<br />
Levantou-se minha irmã sobressalta<strong>da</strong> <strong>do</strong>s golpes e vozes que o foragi<strong>do</strong><br />
capitão com seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong>vam, e meus pais corta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> temor, não<br />
acertan<strong>do</strong> o que fizessem, desejan<strong>do</strong> valer a quem de nossa casa se valia e<br />
temen<strong>do</strong> não poderem impedir a execução <strong>do</strong> <strong>da</strong>no em verdugo tão inexorável<br />
<strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s; desceu minha irmã animosa a abrir a porta a Cursieto Sambuco; a<br />
qual, cobran<strong>do</strong> ânimo <strong>do</strong>s sustos <strong>do</strong> próprio temor, falou desta sorte:<br />
- Confia<strong>da</strong>, valeroso capitão, na generosi<strong>da</strong>de de teu ânimo e cortesia,<br />
pois nunca encontrou a valentia nos desempenhos de cortês, desci a abrir-te a<br />
porta, esperan<strong>do</strong> que tenha esta casa em ti amparo para defendê-la e não<br />
inimigo para infestá-la. Não são as <strong>do</strong>nzelas objectos <strong>da</strong>s vinganças senão <strong>do</strong><br />
favor, dignas de compaixão enterneci<strong>da</strong> e não de hostili<strong>da</strong>des rigorosas, pois<br />
sen<strong>do</strong> incapazes para a defensa, nunca as sujeita a ira <strong>do</strong>s agravos. Confio eu<br />
de teu juízo e cortesia que não quebrarás a imuni<strong>da</strong>de que a meu esta<strong>do</strong> se<br />
deve, pois nem eu nem cousas minhas jamais te ofendemos. Aqui vivo com<br />
meus pais e irmão satisfeitos com os limites de nossa sorte; e não é justo que,<br />
quan<strong>do</strong> devemos tão poucos favores à fortuna, faças com ela liga em nosso<br />
<strong>da</strong>no: pois não é crédito <strong>do</strong> valor conspirar contra quem pouco pode. Se<br />
buscas quem te haja ofendi<strong>do</strong>, eu não conheço quem pudera agravar-te, pois<br />
esta casa é fraco castelo para poder defender-se de tuas armas, não ten<strong>do</strong><br />
mais balas que minhas lágrimas, nem maior resistência que teu próprio valor<br />
para obrigar-te. Esta, generoso Cursieto, é a muralha que assaltar intentas;<br />
considera se é poderosa defensa para tua ira a de minhas lágrimas para<br />
enternecer-te e de teu próprio valor para aplacar-te. Se te julgas agrava<strong>do</strong>,<br />
desapaixona o furor em atenderes não ser justo que sirva esta pobre casa de<br />
teatro a tua vingança e não intentes fazê-la a to<strong>do</strong>s odiosa com executares<br />
nela teu rigor: concede-lhe os privilégios de venturosa em mostrar-se rendi<strong>da</strong>,<br />
se outras tiveram o castigo de se mostrarem resistentes a teu valor. Aberta<br />
tens a porta, invencível Cursieto, que eu confio <strong>da</strong> grandeza de teu ânimo, que<br />
se para to<strong>do</strong>s foste sempre temi<strong>do</strong>, hoje tua cortesia <strong>da</strong>rá motivo ao benigno<br />
para seres com aplausos louva<strong>do</strong>.<br />
Calaram de Estela as vozes, mas não os olhos, continuan<strong>do</strong> em chorar o<br />
que as palavras terminavam no dizer: eloquência mu<strong>da</strong> que obriga muito,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 693<br />
quan<strong>do</strong> diz pouco; bataria sem estron<strong>do</strong> que abre no peito brechas sem se<br />
ouvirem os ecos <strong>do</strong> rumor; a cousa mais bran<strong>da</strong> e a mais forte; a arma mais<br />
poderosa e a mais fraca; chuva que cai e incêndios que sobem; mina que<br />
rebenta em cristal, ten<strong>do</strong> os efeitos de fogo: tais são as lágrimas em mulher<br />
moça, fermosa e magoa<strong>da</strong>. Suspenso ouviu Cursieto a Estela, reparan<strong>do</strong> não<br />
menos na vista <strong>do</strong> que atenden<strong>do</strong> às palavras: saíram em seu peito a desafio o<br />
vingativo e o pie<strong>do</strong>so, o agrava<strong>do</strong> e o enterneci<strong>do</strong>; mas como se interpôs em<br />
meio a fermosura, inclinou-se ao cortês e suspendeu o iroso; e assim, sem<br />
passar <strong>da</strong> porta <strong>da</strong>s casas, aonde minha irmã lhe tinha fala<strong>do</strong>, respondeu desta<br />
sorte:<br />
- Bem conheço, discreta senhora, o sagra<strong>do</strong> de que se avalia quem<br />
fugin<strong>do</strong> de minha vingança se escu<strong>do</strong>u em vossa casa, quan<strong>do</strong> em nenhuma<br />
outra parte se podia avaliar por seguro. Confesso que é mais poderosa vossa<br />
vista que meu agravo e vossa discrição que minha queixa; invejoso fico de sua<br />
ventura, pois teve em vós tal defensor. A vós pode justamente agradecer a vi<strong>da</strong><br />
que lhe <strong>do</strong>u e eu os motivos que me destes de servir-vos. Estai certa que não<br />
hei-de faltar-vos em tu<strong>do</strong> o que quiserdes de mim valer-vos.<br />
Rendeu-lhe Estela as graças <strong>do</strong> grande favor que lhe fazia. E ele,<br />
despedin<strong>do</strong>-se cortês, chamou a seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, de quem era notavelmente<br />
obedeci<strong>do</strong>, e montan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s a cavalo, levantaram o repentino sítio que à<br />
nossa casa tinham posto, e partin<strong>do</strong> de Balena desassombraram a vila <strong>do</strong><br />
temor e espanto com que sua presença a tinha temerosa. Admiraram-se seus<br />
mora<strong>do</strong>res de se haver mostra<strong>do</strong> Cursieto Sambuco tão comedi<strong>do</strong> e cortês,<br />
quan<strong>do</strong> sempre nas execuções de seus insultos e vinganças se havia mostra<strong>do</strong><br />
cruel e inexorável.<br />
To<strong>da</strong> a prática que Estela teve com Cursieto tinha ouvi<strong>do</strong> Salviano com<br />
tanta atenção, como quem dela esperava ou a sentença irreparável de sua<br />
morte ou na petição de Estela receberem-se os embargos de sua vi<strong>da</strong>. Em<br />
subin<strong>do</strong> minha irmã, fechan<strong>do</strong> a porta com a despedi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>leiros,<br />
Salviano se ajoelhou a seus pés com os olhos em lágrimas banha<strong>do</strong>s, e em<br />
presença de meus pais, mal poden<strong>do</strong> pela mágoa pronunciar as palavras, lhe<br />
disse:<br />
- Conheço, discreta e pie<strong>do</strong>sa Estela, que a morte que Cursieto queria<br />
<strong>da</strong>r-me eu a tenho justamente mereci<strong>da</strong>, não por ofendê-lo a ele, mas por
694 Padre Mateus Ribeiro<br />
haver-te ofendi<strong>do</strong> a ti. Oh força <strong>da</strong> desgraça minha, ver-me por tantas vias<br />
obriga<strong>do</strong>, sem poder desempenhar-me! Logro o juízo para reconhecer a dívi<strong>da</strong><br />
e falta-me o poder para pagá-la. Tu, Estela, obraste como generosa e eu<br />
procedi como mal aconselha<strong>do</strong>. Maior vingança tomaste hoje de mim com me<br />
assegurares a vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> que a puderas tomar com <strong>da</strong>r-me a morte: que esta fora<br />
satisfação de ofendi<strong>da</strong>, mas o interceder por minha vi<strong>da</strong> foi vingança de<br />
discreta. A mais generosa valentia é conservar a vi<strong>da</strong> ao ofendi<strong>do</strong>; porque a<br />
morte brevemente se passa, mas a lembrança <strong>do</strong> benefício recebi<strong>do</strong> para<br />
sempre dura. Vejo-me casa<strong>do</strong> e arrependi<strong>do</strong>; e assim nem mereço pelo<br />
impaciente <strong>da</strong> mágoa, nem vivo pelo rigoroso <strong>da</strong> <strong>do</strong>r. Não desejes hoje de mim<br />
maior vingança que o repeti<strong>do</strong> desgosto com que a vi<strong>da</strong> passo, impossibilita<strong>do</strong><br />
para o desempenho e vivo sempre para a obrigação. A teus pés me tens<br />
rendi<strong>do</strong>, confessan<strong>do</strong> que a vi<strong>da</strong> te devo, compra<strong>da</strong> ao preço de tuas lágrimas,<br />
para em mim ser a dívi<strong>da</strong> maior.<br />
Assim choran<strong>do</strong> falou Salviano, a quem Estela respondeu:<br />
- Levanta-te, ingrato Salviano, que não condizem essas escusa<strong>da</strong>s<br />
humil<strong>da</strong>des a quem tu desprezaste por humilde. Não te alcancei a vi<strong>da</strong> por<br />
fazer-te esse favor, senão por que não fosse a minha casa teatro de teu<br />
castigo; e assim na<strong>da</strong> me deves, pois respeitei mais meu crédito que teu<br />
perigo. Puderas contentar-te com ver-me e a meus pais desterra<strong>do</strong>s <strong>da</strong> pátria<br />
por teu respeito, sem que de novo viesses a renovar meu sentimento com tua<br />
presença: que é novo arbítrio <strong>da</strong> tirania duplicar as mágoas com aparecer ao<br />
ofendi<strong>do</strong>. Confessas dever-me muito, quan<strong>do</strong> tão mal me pagas. Não sei se o<br />
avalie erro de teu juízo, se rigor de minha desgraça, confessares a dívi<strong>da</strong> a<br />
tempo que não tens com que pagá-la. Vive com tua esposa, pois a quiseste, e<br />
deixa-me a mim, pois me deixaste; pois só com me não veres me <strong>da</strong>rei por<br />
paga e serei pie<strong>do</strong>sa acre<strong>do</strong>ra com deve<strong>do</strong>r tão impossibilita<strong>do</strong>.<br />
Assim falou Estela e se retirou a outra casa com os olhos humedeci<strong>do</strong>s,<br />
não sei se de enterneci<strong>da</strong>, se de magoa<strong>da</strong>. Despediu-se Salviano de meus pais<br />
choran<strong>do</strong>. E tornan<strong>do</strong> às casas aonde se hospe<strong>da</strong>va, apenas se compôs e<br />
despediu de quem o tinha agasalha<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> montan<strong>do</strong> a cavalo com bem<br />
notável tristeza no semblante se partiu para Perúsia. Em chegan<strong>do</strong>, referiu a<br />
sua mãe Laurência e a Finar<strong>da</strong> sua esposa o rigoroso trance em que se vira e<br />
o socorro que em nós achara, de que se via tão empenha<strong>do</strong> ao agradecimento
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 695<br />
que sempre se julgaria viver endivi<strong>da</strong><strong>do</strong>. Obriga<strong>da</strong>s com extremos se<br />
mostraram elas e to<strong>do</strong>s seus parentes a uma pie<strong>da</strong>de tão generosa, que<br />
realçava mais pois assentava sobre agravos recebi<strong>do</strong>s, para ser mais<br />
justamente aplaudi<strong>da</strong>. Eram Salviano e seus parentes em Perúsia pessoas de<br />
grande poder e valimento; e haven<strong>do</strong> vaga<strong>do</strong> na ci<strong>da</strong>de um ofício e cargo <strong>do</strong>s<br />
mais honrosos e ren<strong>do</strong>sos que entre os magistra<strong>do</strong>s <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de havia,<br />
empenharam tanto poder para que a meu pai se desse, sem nós termos disso<br />
notícia nem pensamento, que o alcançaram, e logo as provisões dele os tios de<br />
Salviano a meu pai trouxeram, para que com to<strong>da</strong> a brevi<strong>da</strong>de para Perúsia<br />
tornasse.<br />
Cap. XVII.<br />
Como tornámos outra vez para Perúsia e como enviuvan<strong>do</strong> Salviano de<br />
Finar<strong>da</strong> <strong>caso</strong>u com Estela, e <strong>do</strong> que mais passou<br />
Diz Aristóteles 586 que os cargos honrosos e autoriza<strong>do</strong>s geralmente são<br />
apeteci<strong>do</strong>s. Donde veio a dizer Valério Máximo 587 que valia mais a digni<strong>da</strong>de,<br />
faltan<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong>, <strong>do</strong> que a vi<strong>da</strong>, se lhe falta a digni<strong>da</strong>de. São as primeiras,<br />
quan<strong>do</strong> são honrosas, a esca<strong>da</strong> por onde se vai subin<strong>do</strong> às mais altivas. A<br />
primeira que Júlio César teve em Roma foi a de edil, que era o que ministrava<br />
as obras públicas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e fazia os públicos espectáculos e festas ao povo<br />
romano. E para consegui-la se empenhou com raro dispêndio. E depois veio a<br />
ser empera<strong>do</strong>r. É a honra <strong>do</strong>s cargos tão deseja<strong>da</strong> que Catão Uticense, com<br />
to<strong>da</strong> a modéstia de que era <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>, se empenhou em pretender o consula<strong>do</strong><br />
romano e não foi admiti<strong>do</strong> a ele. Daqui veio a dizer Platão 588 que avaliava por<br />
absur<strong>do</strong> o não aceitar os cargos <strong>do</strong> governo <strong>da</strong> pátria quan<strong>do</strong> ela chamava a<br />
seus filhos para eles. Empenharam-se Salviano e seus parentes em que meu<br />
pai aceitasse este cargo tão digno de receber-se, assim pelo honroso <strong>do</strong> lugar<br />
como pelo útil <strong>do</strong> rendimento, só a fim de o trazerem para a ci<strong>da</strong>de de que seus<br />
Arist., Top. 6.<br />
Valer. Max., Lib. 3.<br />
Plat., Epist. 9.
696 Padre Mateus Ribeiro<br />
desgostos voluntariamente desterran<strong>do</strong> traziam. E suposto que de parte de<br />
Estela não faltavam contradições, como tão magoa<strong>da</strong>, não queren<strong>do</strong> ficar a<br />
Salviano e seus parentes nesta dívi<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> deles vivia tão magoa<strong>da</strong>;<br />
contu<strong>do</strong> instou minha mãe, alegan<strong>do</strong> ser o cargo honroso e ela ver-se pobre e<br />
considerar meus estu<strong>do</strong>s impedi<strong>do</strong>s com o retiro de Balena; e assim fez tanta<br />
instância em voltarmos para Perúsia que meu pai o aceitou, e mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-nos<br />
para a ci<strong>da</strong>de, foi nossa vin<strong>da</strong> de muitos festeja<strong>da</strong>, porque <strong>do</strong> cargo de meu pai<br />
dependiam. Dito foi de Agesilau, referi<strong>do</strong> por Plutarco 589 que os homens<br />
autorizavam aos cargos e não os cargos aos homens. Porém eu vejo que o<br />
cargo que lhe deram honrou a meu pai, de sorte que foi logo visita<strong>do</strong> <strong>do</strong> mais<br />
luzi<strong>do</strong> de Perúsia e minha mãe e irmã de muitas senhoras, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhes as boas<br />
vin<strong>da</strong>s, e a nós tratan<strong>do</strong>-nos <strong>da</strong>í em diante com mui diferente esta<strong>do</strong>, assim em<br />
razão <strong>do</strong> cargo como porque os ordena<strong>do</strong>s dele o permitiam. Entrei no Direito<br />
Civil com grande desejo de aproveitar nele, se pudera aproveitar o cui<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
contra os assaltos <strong>da</strong> fortuna.<br />
Dous anos eram passa<strong>do</strong>s que estávamos em Perúsia, quan<strong>do</strong> veio a<br />
falecer Finar<strong>da</strong> de uma grave enfermi<strong>da</strong>de. Passaram com as exéquias<br />
funerais brevemente as lembranças <strong>da</strong> morte. E Salviano, repetin<strong>do</strong> a sua mãe<br />
as grandes obrigações que a Estela devia, lhe declarou como desejava casar<br />
com ela, pois sempre a amara e tanto lhe devia. Não se mostrou Laurência<br />
contrária a seu desejo, porque estávamos já em predicamento mais altivo e<br />
com esta<strong>do</strong> decoroso de cavalos e cria<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> visita<strong>do</strong>s <strong>do</strong> melhor <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de, que assim mu<strong>da</strong>m os cargos e os tempos. Apenas teve Salviano o<br />
consentimento de sua mãe ara o novo casamento, quan<strong>do</strong> veio buscar-nos um<br />
dia, e nos disse:<br />
- Repetir, senhor Arnal<strong>do</strong>, as acções para emendá-las antes se julga<br />
desejo de acertar <strong>do</strong> que a porfia de ofender, dizen<strong>do</strong> sabiamente o Séneca,<br />
parecer que aprova Quintiliano, que o confessar o erro era demonstração <strong>da</strong><br />
emen<strong>da</strong> dele. Bem conheço, senhor, que justamente merecia eu agora não ser<br />
ouvi<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> na primeira proposta fiquei tão mal desempenha<strong>do</strong>. Porém o<br />
que me faltou na satisfação de pontual, desculpará hoje a demonstração de<br />
agradeci<strong>do</strong>. Finar<strong>da</strong>, como sabeis, é faleci<strong>da</strong>: juízos são <strong>do</strong> céu que nossos<br />
Plut., in Apoph.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 697<br />
discursos não alcançam. Em esta<strong>do</strong> me vejo para poder pagar à senhora<br />
Estela a dívi<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, que em Balena lhe reconheço, com a receber por<br />
esposa, pois já de minha mãe tenho o consentimento; que estiman<strong>do</strong> hoje nela<br />
o muito que merece, me julga por venturoso em ver-me nela emprega<strong>do</strong>. Já<br />
não há quem minha eleição contradiga, e agora só me avalio feliz em poder<br />
conseguir esta ventura, sempre de mim deseja<strong>da</strong> e <strong>da</strong> fortuna impedi<strong>da</strong>, se<br />
merecer tanto bem como desejo, para que dê a meus corações os parabéns.<br />
Calou Salviano, e meus pais, para <strong>da</strong>rem a resposta, chamaram a<br />
Estela, pois de sua vontade a resolução pendia. Veio ela aonde estávamos e,<br />
sem mostrar no rosto sombras de alteração, respondeu:<br />
- Está hoje, Salviano, meu coração tão feri<strong>do</strong> de teus passa<strong>do</strong>s enganos<br />
que com razão se mostra duvi<strong>do</strong>so de tuas ver<strong>da</strong>des e, temeroso de poder ser<br />
engana<strong>da</strong>, não permite mostrar-me agradeci<strong>da</strong>. Faltaste-me quan<strong>do</strong> te merecia<br />
mais; pois como me assegurarei de tuas palavras quan<strong>do</strong> meu descui<strong>do</strong> te<br />
merece menos? E se não te compadeceste de mim quan<strong>do</strong> por tua causa vias<br />
meu crédito mais murmura<strong>do</strong>, como te mostras tão pie<strong>do</strong>so quan<strong>do</strong> hoje na<br />
clausura de meu recolhimento o considero mais seguro? Se imaginas que o<br />
buscar-me é favor que me fazes, eu por tal o não avalio; pois me procuras<br />
viúvo e me deixaste quan<strong>do</strong> vivias solteiro, e quan<strong>do</strong> me eram devi<strong>da</strong>s as<br />
premissas de teu cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, me ofereces o que <strong>do</strong> jogo <strong>da</strong> fortuna te sobra dele.<br />
Nem meu desvelo hoje te procura, nem de ti minhas memórias se lembram,<br />
que aprenderam de tuas sem-razões a esquecerem-se e minhas mágoas a<br />
lembrarem-se, umas por arrependi<strong>da</strong>s e outras por mal remunera<strong>da</strong>s. Dizes<br />
que te defendi a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> tirania <strong>do</strong>s foragi<strong>do</strong>s: estimo que me conhecesses<br />
pie<strong>do</strong>sa, quan<strong>do</strong> para comigo quebravas as leis de to<strong>da</strong> a humani<strong>da</strong>de em<br />
vires multiplicar-me os pesares ain<strong>da</strong> no próprio desterro em que vivia; pois<br />
viste que foi meu amor mais ver<strong>da</strong>deiro quan<strong>do</strong> ofendi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que o teu para<br />
mim quan<strong>do</strong> obriga<strong>do</strong>. Se an<strong>da</strong>ste acerta<strong>do</strong> em deixar-me, pouco tens de que<br />
arrepender-te. E se confessas que erraste, pouco tens com que obrigar-me.<br />
Dizes que a senhora Laurência dá seu consentimento para que sejas meu<br />
esposo: em outra ocasião lhe pudera dever mais minha ventura, pois derrotou<br />
as asas a minhas malogra<strong>da</strong>s esperanças. Porém por que não digas que<br />
procuro mostrar-me vingativa sobre queixosa, quan<strong>do</strong> ela me diga que o
698 Padre Mateus Ribeiro<br />
aprova, então aprovarei eu o que pretendes; porque de outra sorte nem tu tens<br />
mais que falar-me, nem eu que ouvir-te.<br />
Com esta resolução respondeu Estela a Salviano. E despedin<strong>do</strong>-se com<br />
a devi<strong>da</strong> cortesia, se retirou de sua vista, que mostrou ficar entre confuso e<br />
admira<strong>do</strong> de se considerar na memória de Estela tão esqueci<strong>do</strong>, que mostrava<br />
estimar em pouco o que em outro tempo ela avaliava em muito. Meus pais lhe<br />
disseram que Estela respondera como senti<strong>da</strong> e juntamente como acautela<strong>da</strong>.<br />
Porém em lhe constan<strong>do</strong> que a senhora Laurência era contente <strong>do</strong> casamento<br />
proposto, nós to<strong>do</strong>s o aceitaríamos e ela se asseguraria na ventura que<br />
alcançara em merecer ser esposa sua. E <strong>da</strong>n<strong>do</strong> notícias a sua mãe <strong>do</strong> que<br />
com Estela passara, ela, que o viu molesta<strong>do</strong> com a dilação e tão empenha<strong>do</strong><br />
no desejo <strong>do</strong> casamento, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> chamar a meu pai, lhe manifestou o<br />
grande gosto que tinha de que minha irmã com seu filho casasse. Com o que<br />
to<strong>do</strong>s alegres, em breves dias se celebraram os desposórios, que não pouco<br />
admiraram a Perúsia: pois <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se na primeira ocasião tantas contraditas,<br />
to<strong>da</strong>s agora se convertiam em aplausos.<br />
É a varie<strong>da</strong>de <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> o matiz que o faz pela novi<strong>da</strong>de mais vistoso.<br />
As cousas sempre no mesmo ser poderão ser testemunhas <strong>da</strong> firmeza, mas<br />
não objectos <strong>da</strong> admiração. A luz continua<strong>da</strong> no sol poucos olhos incita para<br />
ser vista; porém se se esconde nos desmaios de seu eclipse e no desusa<strong>do</strong><br />
rebuço de sua sombra, atrai logo aos olhos para ser visto no luzi<strong>do</strong>. É a<br />
mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> mortal vi<strong>da</strong>, disse Euripides 590 , incessável no acidente, sen<strong>do</strong> um<br />
dia nos favores mãe e outro nos disfavores madrasta, um que afugenta com o<br />
rigor e outro em que lisonjeia com as carícias. Ain<strong>da</strong> disse pouco em variar os<br />
dias, quan<strong>do</strong> em um mesmo dia se mostra tão vária a fortuna; disse Cícero 591<br />
que o que se via vence<strong>do</strong>r, de repente se considera venci<strong>do</strong>. Assim sucedeu<br />
ao francês Carlos, rei de Nápoles e Sicília, que sen<strong>do</strong> na cruel batalha o seu<br />
exército venci<strong>do</strong> e derrota<strong>do</strong> <strong>do</strong>s valerosos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>do</strong> contrário exército de<br />
Conradino, que rei de Nápoles se chamava, por se desordenarem os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
vence<strong>do</strong>res aos despojos <strong>do</strong>s já venci<strong>do</strong>s, refazen<strong>do</strong> Carlos as esquadras,<br />
repentinamente deu o novo sobre os vence<strong>do</strong>res e os desbaratou, prenden<strong>do</strong> a<br />
Eurip., in Hyp.<br />
Cicer., Phil. 5.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 699<br />
Conradino, que depois man<strong>do</strong>u degolar na praça de Nápoles. Igual foi o<br />
sucesso <strong>da</strong> batalha de Antíoco Magno com os romanos em Ásia, de que era<br />
general Domício, em ausência <strong>do</strong> cônsul Públio Cipião Africano; que<br />
alcançan<strong>do</strong> Antíoco vitória <strong>do</strong>s romanos, e in<strong>do</strong> inconsidera<strong>da</strong>mente em seu<br />
seguimento com as lisonjas <strong>do</strong> triunfo, quan<strong>do</strong> voltava de seguir a quem se<br />
retirava de venci<strong>do</strong>, achou ao seu exército de novo derrota<strong>do</strong> pelos romanos e<br />
se viu de sorte destruí<strong>do</strong> que pôs na ligeireza <strong>da</strong> fugi<strong>da</strong> o remédio de salvar a<br />
vi<strong>da</strong>, aceitan<strong>do</strong> depois <strong>do</strong>s vence<strong>do</strong>res romanos to<strong>da</strong>s as condições, por<br />
perigosas e indecentes que à sua muita soberba fossem, só a fim de lhe<br />
concederem a paz, sen<strong>do</strong> um mesmo dia, como refere Apiano Alexandrino,)<br />
árbitro de sua vitória e de seu tão repentino abatimento.<br />
Isto digo, senhores, porque se até aqui tendes ouvi<strong>do</strong> o auge a que<br />
subiram minhas felici<strong>da</strong>des, ven<strong>do</strong>-nos reduzi<strong>do</strong>s à nossa pátria, meu pai com<br />
cargo tão autoriza<strong>do</strong> e minha irmã Estela com casamento tão honroso e rico,<br />
tanto mais de Salviano estima<strong>da</strong>, quanto mais obriga<strong>do</strong> se lhe conhecia; eu<br />
continuan<strong>do</strong> os estu<strong>do</strong>s, servi<strong>do</strong> de cria<strong>do</strong>s, busca<strong>do</strong> de amigos e respeita<strong>do</strong><br />
de to<strong>do</strong>s, assim pelo cargo de meu como juntamente em razão de meu<br />
cunha<strong>do</strong>; ouvireis agora a grande baixa que deram estas venturas, até me<br />
verdes no esta<strong>do</strong> presente. Eram bens <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, lisonjas a fortuna, sonhos <strong>do</strong><br />
desejo, representações <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça, enganos <strong>da</strong> vai<strong>da</strong>de e fumo <strong>da</strong> glória <strong>da</strong><br />
terra que subiu apressa<strong>do</strong> para no ar desfazer-se.<br />
Cap. XVIII.<br />
Do que Polinar<strong>do</strong> refere que lhe sucedeu em Perúsia e como se ausentou para<br />
Pádua, e <strong>do</strong> que lá passou<br />
Tinha eu um dia saí<strong>do</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de quatro léguas a visitar a um amigo meu<br />
que estava enfermo em uma quinta; recolhen<strong>do</strong>-me ao seguinte dia para casa<br />
já alta noite, ouvi na rua em que morávamos uma música que se estava <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
ao som de acor<strong>da</strong><strong>do</strong>s instrumentos. Isto de <strong>da</strong>r músicas de noite é um<br />
desacerto que o mun<strong>do</strong> intitula serviço e fineza de quem ama erra<strong>da</strong>mente;<br />
porque não serve de mais que de romper o nome ao segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> sujeito a quem<br />
se dá, pôr em risco ao amante e <strong>da</strong>r que murmurar aos vizinhos, queren<strong>do</strong>
700 Padre Mateus Ribeiro<br />
ca<strong>da</strong> qual investigar com os discursos aonde se dirige a harmonia e talvez<br />
culpan<strong>do</strong> a quem vive inocente.<br />
Como minha irmã Estela vivia com Salviano em as casas de seu<br />
morga<strong>do</strong>, e juntamente em companhia de sua mãe, que eram grandiosas, em<br />
diferente sítio e no melhor <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, e eu com meus pais não tinha cousa que<br />
me desse cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e vinha molesta<strong>do</strong> <strong>do</strong> caminho, quis passar adiante para<br />
recolher-me em casa, quan<strong>do</strong> se me puseram diante três rebuça<strong>do</strong>s, dizen<strong>do</strong>-<br />
me imperiosamente voltasse por outra parte porque por aquela estava o<br />
caminho impedi<strong>do</strong>. Respondi-lhes cortesmente que eu morava na própria rua e<br />
vinha de jorna<strong>da</strong> dilata<strong>da</strong> a recolher-me, e assim me dessem licença para o<br />
fazer, que eu não impedia a quem cantava que o fizesse. Dizen<strong>do</strong> isto,<br />
esporeei o cavalo para passar adiante. A resposta que me deram foi <strong>da</strong>rem<br />
uma cutila<strong>da</strong> no cavalo, que jarreta<strong>do</strong> de uma mão caiu comigo em terra. Eu,<br />
que me vi descomposto sobre ofendi<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> a ira, como diz Aristóteles,<br />
impetuosa aos arrojos e pouco acautela<strong>da</strong> aos perigos, e ven<strong>do</strong> que as<br />
espa<strong>da</strong>s nuas me vinham acometen<strong>do</strong>, levan<strong>do</strong> ao rosto uma espingar<strong>da</strong> que<br />
trazia, a disparei colérico e entre o escuro <strong>da</strong> noite, guian<strong>do</strong> seu destino e<br />
minha desgraça, caiu um <strong>do</strong>s três em terra, dizen<strong>do</strong> que o haviam morto.<br />
Gritaram logo os companheiros que haviam morto ao senhor Pascásio<br />
Malatesta. Apenas ouvi eu os tristes anúncios, quan<strong>do</strong> com to<strong>da</strong> a pressa<br />
corren<strong>do</strong> tratei de evitar o evidente perigo, não queren<strong>do</strong> ir a casa de meus<br />
pais, que, como disse, na própria rua moravam; cheguei à de Salviano, meu<br />
cunha<strong>do</strong>, a quem <strong>da</strong>n<strong>do</strong> assusta<strong>da</strong> e breve relação <strong>do</strong> sucedi<strong>do</strong>, de que<br />
ficaram to<strong>do</strong>s bem senti<strong>do</strong>s, por ser a quali<strong>da</strong>de de Pascásio a mais ilustre e<br />
poderosa de Perúsia, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me um cavalo e algum dinheiro, na própria infelice<br />
noite me ausentei <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, por que a justiça com os irmãos e parentes <strong>do</strong><br />
morto me não atalhassem o caminho.<br />
Era Pascásio Malatesta ilustríssimo no sangue, <strong>da</strong>s famílias mais<br />
poderosas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, em que muitas vezes havia esta<strong>do</strong> o governo dela no<br />
tempo de suas várias mu<strong>da</strong>nças. Era filho segun<strong>do</strong>, mancebo <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de<br />
partes, valor e com extremo de seus pais queri<strong>do</strong>; tinha <strong>do</strong>us irmãos: o<br />
morga<strong>do</strong> e outro mais moço, filhos de Pompeu Malatesta, pessoa de grande<br />
respeito na ci<strong>da</strong>de, assim pelo antigo esplen<strong>do</strong>r de sua família como pelo rico<br />
esta<strong>do</strong> que possuía. Apenas se divulgou a desgraça<strong>da</strong> morte, quan<strong>do</strong> acudin<strong>do</strong>
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 701<br />
seu pai, irmãos e parentes com a justiça, fui pelo cavalo que em terra estava e<br />
pelos ditos <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s conheci<strong>do</strong> eu por mata<strong>do</strong>r; e <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a justiça nas casas<br />
de meu pai e meu cunha<strong>do</strong>, depois de muitas diligências que fizeram por<br />
descobrir-me, a requerimento <strong>da</strong>s partes prenderam a meu pai e Salviano, meu<br />
cunha<strong>do</strong>, pon<strong>do</strong>-os em aperta<strong>da</strong> prisão até exactamente se tirar a devassa <strong>do</strong><br />
homicídio: na qual se procedeu com tal rigor que, sen<strong>do</strong> tão casual e<br />
inopina<strong>da</strong>, como tenho dito, quiseram fazê-la de propósito, a fim de arruinarem<br />
a to<strong>do</strong>s.<br />
Deu motivos a esta presumi<strong>da</strong> culpa estar meu pai havia dias quebra<strong>do</strong><br />
com Pompeu Malatesta, sobre razões de seu cargo, e meu cunha<strong>do</strong> Salviano<br />
haver ti<strong>do</strong> havia já alguns meses certas palavras ásperas com o defunto; e<br />
sobre tão fracos fun<strong>da</strong>mentos, levantou o poder <strong>da</strong>s partes e o rigor <strong>da</strong> Justiça<br />
tantos edifícios de imagina<strong>da</strong>s presunções que, fazen<strong>do</strong> aperta<strong>do</strong> sequestro<br />
nas fazen<strong>da</strong>s, meu pai na prisão acabou a vi<strong>da</strong>, fican<strong>do</strong> minha mãe pobre,<br />
retira<strong>da</strong> em casa de minha irmã, e meu cunha<strong>do</strong> saiu desterra<strong>do</strong> de Perúsia<br />
por alguns anos, retiran<strong>do</strong>-se com sua casa a viver na vila de Toscanela,<br />
aonde tinha situa<strong>da</strong> muita parte de suas ren<strong>da</strong>s, <strong>da</strong>s quais muitas se<br />
diminuíram neste infortuna<strong>do</strong> sucesso que referi.<br />
Parti-me eu na própria noite com tanta pressa que nem de meus pais<br />
pude despedir-me, apartan<strong>do</strong>-me <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de o mais que o cavalo permitia,<br />
discursan<strong>do</strong> aonde havia de terminar-se meu retiro; e depois de vários dias de<br />
jorna<strong>da</strong>, vim parar à populosa ci<strong>da</strong>de de Pádua, <strong>do</strong> senhorio de Veneza,<br />
situa<strong>da</strong> poucas léguas distante <strong>do</strong> mar Adriático, aonde há uma <strong>da</strong>s três<br />
insignes universi<strong>da</strong>des gerais que fun<strong>do</strong>u o invicto empera<strong>do</strong>r Carlos Magno<br />
em sua vi<strong>da</strong>, que são as de Paris, de Bolonha e de Pádua.<br />
Comecei a continuar nela o Direito Civil que em Perúsia começara com<br />
diferente gosto, em tempo de minhas bonanças, avisan<strong>do</strong> por cartas a meu<br />
cunha<strong>do</strong> Salviano para que de lá me socorressem, ignoran<strong>do</strong> os apertos em<br />
que eles se viam, não temen<strong>do</strong> que seguissem os passos de minha fortuna no<br />
calamitoso, pois os não tinham segui<strong>do</strong> no culpável. Não se verificou aquilo<br />
que escreveu Plutarco 592 , quan<strong>do</strong> disse que a fortuna não causava as<br />
felici<strong>da</strong>des sem primeiro fazer liga com as culpas; pois estan<strong>do</strong> meu pai e<br />
592 Plut., De curiosit & De bello sanit.
702 Padre Mateus Ribeiro<br />
cunha<strong>do</strong> desta infelice morte inocentes e ignorantes <strong>do</strong>s dissabores, de meus<br />
infortúnios participaram. São os males mais facilmente contagiosos que as<br />
venturas. Muitos venturosos apenas serão bastantes para poderem facilitar a<br />
um desgraça<strong>do</strong>; e basta um infelice para despenhar <strong>do</strong> sólio <strong>da</strong>s grandezas a<br />
muitos venturosos.<br />
Continuava eu havia já alguns meses os estu<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> recolhen<strong>do</strong>-<br />
me para casa uma noite de casa de outro amigo que na academia por tal me<br />
tratava, ao <strong>do</strong>brar de uma rua me acometeram <strong>do</strong>us homens com as espa<strong>da</strong>s<br />
nuas, ou fosse que de propósito me buscassem, ou que engana<strong>do</strong>s por outro<br />
me tivessem. An<strong>da</strong>va eu, como quem se temia <strong>do</strong> poder <strong>do</strong>s Malatestas,<br />
sempre de duas pistolas preveni<strong>do</strong>, pois nunca chega a julgar-se por seguro<br />
quem tem a poderosos ofendi<strong>do</strong>. Requeri-lhes que parassem, porque me<br />
acometiam erra<strong>do</strong>s, pois os não havia ofendi<strong>do</strong>. Fizeram-se sur<strong>do</strong>s a minhas<br />
vozes. E ven<strong>do</strong> eu que sem lhes haver feito agravo não desistiam, suspeitei<br />
que de propósito vinham a matar-me, e disparan<strong>do</strong> uma <strong>da</strong>s pistolas caiu um<br />
deles mortalmente feri<strong>do</strong>. Quis o companheiro avançar a vingá-lo, mas eu,<br />
encaran<strong>do</strong> a outra pistola, o obriguei a desistir <strong>da</strong> vingança e leva<strong>do</strong> <strong>do</strong> próprio<br />
temor parar e retirar-se, deixan<strong>do</strong> na rua pedin<strong>do</strong> confissão ao companheiro.<br />
Com isto tive lugar de retirar-me antes que a gente acudisse, mas nem por ser<br />
a noite escura deixei de ser conheci<strong>do</strong>, que não é bastante o negro véu <strong>da</strong><br />
noite para encobrir a um persegui<strong>do</strong>.<br />
Ao dia seguinte faleceu o feri<strong>do</strong>, que era um mancebo nobre de Pádua,<br />
que se chamava Teo<strong>do</strong>ro, a quem a sua e minha desgraça trouxe a encontrar-<br />
se comigo, intentan<strong>do</strong> vingar-se de outro. Devassou a justiça e houve quem na<br />
voz, quan<strong>do</strong> falei, me conhecesse. Tive aviso em como me culpavam e, para<br />
assegurar-me <strong>da</strong> justiça, me vali <strong>da</strong> casa de Luís Orsino, que neste tempo em<br />
Pádua assistia, de que se originou minha total perdição. Era já morto a este<br />
tempo aquele grande terror e escân<strong>da</strong>lo de Itália, o famoso capitão de<br />
ban<strong>do</strong>leiros Cursieto Sambuco, de quem já me ouvistes tratar, que sen<strong>do</strong><br />
nasci<strong>do</strong> em Abruzo, região de Itália entre os intratáveis penhascos <strong>do</strong> monte<br />
Apenino e o mar Adriático, em limita<strong>do</strong> espaço de terreno de poucas léguas,<br />
que se determinam com os <strong>do</strong>us rios Tronto e Tortorio, foi antigamente a região<br />
<strong>do</strong>s samnitas, de gente tão indómita e áspera na natureza que, como refere
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 703<br />
Lúcio Floro 9 e Tito Lívio , cinquenta anos sustentaram guerra aos romanos,<br />
sem puderem <strong>do</strong>má-los, até que ultimamente debilita<strong>do</strong>s com várias rotas, os<br />
cônsules Valério Corvino, Cornélio Cosso, Fábio Rutiliano e Papiro Cursor, em<br />
o discurso de tão dilata<strong>do</strong>s anos se vieram a sujeitar ao jugo <strong>do</strong> senhorio<br />
romano, sen<strong>do</strong> os que mais tempo lhe resistiram e os que mais inflexíveis se<br />
mostraram.<br />
Aqui nasceu Cursieto Sambuco de medianos pais, que trazen<strong>do</strong><br />
retrata<strong>da</strong> na condição a dureza e aspereza <strong>do</strong>s penhascos fragosos em que se<br />
criara, homizian<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> pátria por alguns delitos cometi<strong>do</strong>s, juntamente com<br />
Marcos Sciarra, seu natural, não sei se ain<strong>da</strong> seu parente na pátria, na<br />
aspereza e na insolência, ajuntan<strong>do</strong>-se-lhe outros criminosos foragi<strong>do</strong>s que<br />
temiam serem puni<strong>do</strong>s rigorosamente por cometi<strong>do</strong>s insultos, cresceram em<br />
tanto número e poder que não só eram terror aos caminhantes, mas as<br />
povoações e vilas estavam em constante sentinela, temen<strong>do</strong> serem <strong>da</strong>s<br />
foragi<strong>da</strong>s esquadras de Cursieto Sambuco acometi<strong>da</strong>s. Não se isentaram<br />
muitas vilas e grandes povos de serem por ele e seus ban<strong>do</strong>leiros, que já<br />
passavam de trezentos, saltea<strong>do</strong>s e rouba<strong>do</strong>s com mortes cruéis executa<strong>da</strong>s:<br />
roubos, insultos e violências jamais vistas, porque tinha seu coração feito<br />
perpétuo divórcio com a compaixão e publica<strong>do</strong> guerra cruel contra a pie<strong>da</strong>de.<br />
Era neles tão desusa<strong>do</strong> o concederem vi<strong>da</strong>s como em outros o seria<br />
executarem as mortes.<br />
Por prodígio se podia avaliar o demover-se <strong>da</strong>s petições de minha irmã<br />
Estela para per<strong>do</strong>ar a vi<strong>da</strong> a Salviano em Balena; porque an<strong>da</strong>va Cursieto já<br />
tão banha<strong>do</strong> em sangue que, como fatal cometa, sempre se mostrava presente<br />
para o mal e nunca prognosticava nem permitia o esperar-se dele bem. Já os<br />
pobres caminhantes não se atreviam a emprender jorna<strong>da</strong>s, to<strong>do</strong>s se<br />
apartavam <strong>do</strong>s caminhos; porque muitas léguas de distância, em tocan<strong>do</strong><br />
clarim o nome de Cursieto Sambuco e suas esquadras, eram as covas <strong>do</strong>s<br />
montes mais escuras pequeno retiro para se esconderem <strong>da</strong>s insolências de<br />
seu furor e <strong>do</strong> cruento assombro de seu nome. Parecia só haver nasci<strong>do</strong> para<br />
flagelo <strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s, ruína prodigiosa <strong>do</strong>s povos e mora<strong>do</strong>res de Itália. A<br />
Flor., De gest. Rom.
704 Padre Mateus Ribeiro<br />
campanha de Roma e as vilas e ci<strong>da</strong>des <strong>do</strong> senhorio <strong>da</strong> Igreja foram as que<br />
mais sentiram as tempestades de seu indómito furor e o repeti<strong>do</strong> detrimento<br />
desta insolência; até que toman<strong>do</strong> posse <strong>da</strong> cadeira de S. Pedro o grande<br />
pontífice Xisto Quinto, a primeira cousa em que se empenhou foi em livrar a<br />
campanha de Roma e as terras <strong>do</strong> senhorio <strong>da</strong> Igreja, como bom e cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so<br />
pastor <strong>do</strong> bem de seu rebanho, <strong>da</strong>s cruéis invasões e insolências que de tão<br />
perdi<strong>da</strong> gente padecia. Despediu a cinco cardeais lega<strong>do</strong>s com supremo poder<br />
e plenária autori<strong>da</strong>de para executarem rigorosa justiça nestes desafora<strong>do</strong>s<br />
foragi<strong>do</strong>s, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a ca<strong>da</strong> lega<strong>do</strong> muita gente de armas, assim de cavalo como<br />
de infantaria, para os perseguirem, prenderem e justiçarem.<br />
Viu-se Cursieto atalha<strong>do</strong> com tão poderosa prevenção, e desconfian<strong>do</strong><br />
de poder mais sustentar-se em Itália, se passou disfarça<strong>do</strong> com poucos<br />
companheiros a Trieste, ci<strong>da</strong>de imperial, aonde sen<strong>do</strong> repentinamente preso<br />
pelo governa<strong>do</strong>r e com grilhões, algemas e cadeias embarca<strong>do</strong> com boas<br />
guar<strong>da</strong>s para o levarem a Roma, no meio <strong>do</strong> mar, de repente, assim cheio de<br />
ferros e grilhões como estava, se arrojou ao mar subitamente, aonde nunca<br />
mais apareceu vivo nem morto, porque o peso grande <strong>do</strong>s ferros o levou logo<br />
ao fun<strong>do</strong> <strong>da</strong>s águas que desespera<strong>do</strong> escolheu por sepulcro e juntamente<br />
sen<strong>do</strong> verdugo de sua execrável vi<strong>da</strong>. Seu grande amigo e companheiro, em<br />
tu<strong>do</strong> igual à sua tirania, feito capitão <strong>da</strong> maior parte destes foragi<strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
se passou aos confins de Nápoles, aonde haven<strong>do</strong> executa<strong>do</strong> mil insultos, foi<br />
morto com outros quatro ban<strong>do</strong>leiros à traição por Baptistela, um de seus<br />
próprios foragi<strong>do</strong>s, haven<strong>do</strong> recebi<strong>do</strong> segurança <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e perdão se o<br />
matasse, como fez. To<strong>do</strong>s os outros ban<strong>do</strong>leiros dividi<strong>do</strong>s por várias partes,<br />
muitos caíram nas mãos <strong>do</strong>s lega<strong>do</strong>s, que man<strong>da</strong>ram fazer deles rigorosa<br />
justiça, outros se ausentaram logo de Itália por diversos reinos e províncias, e<br />
finalmente outros se valeram em Pádua de Luís Orsino, para serem ruína de<br />
to<strong>do</strong>s, como referirei.<br />
Cap. XIX.<br />
Do que sucedeu em Pádua a Luís Orsino sobre a morte <strong>da</strong> duquesa Vitória
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 705<br />
Estava Luís Orsino bani<strong>do</strong> de Roma, sua pátria, por haver morto<br />
violentamente nela ao assistente <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, e assim fugitivo se<br />
retirou a Veneza, haven<strong>do</strong> diante man<strong>da</strong><strong>do</strong> lá sua mulher, que era uma ilustre<br />
senhora. Era Luís Orsino valeroso sol<strong>da</strong><strong>do</strong>, e por tal lhe deu a senhoria uma<br />
conduta de mestre de campo, para que fazen<strong>do</strong> gente nos esta<strong>do</strong>s e terras <strong>da</strong><br />
senhoria, passasse com o terço a Cândia em serviço <strong>da</strong> senhoria contra o<br />
turco, com quem então havia guerra. No tempo que eu estava em Pádua,<br />
estava nela assistente Luís Orsino fazen<strong>do</strong> a gente <strong>do</strong> seu terço, a quem se<br />
vieram oferecer alguns destes derrota<strong>do</strong>s companheiros <strong>do</strong> morto Cursieto<br />
Sambuco, que ele pouco acerta<strong>do</strong> por sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s recebeu para o<br />
acompanharem a Cândia, não consideran<strong>do</strong> que de gente tão deprava<strong>da</strong> na<br />
vi<strong>da</strong> se podia sempre temer muito <strong>da</strong>no, e não esperar-se bem. Assim disse<br />
Aristóteles 595 que um companheiro mau era o que impedir podia o comum bem.<br />
Escreve o Séneca 596 que não se havia de admitir a companhia de quem não se<br />
pudesse aprender algum bem: porque se o companheiro é dissoluto na vi<strong>da</strong>,<br />
em lugar de melhorar-se com a companhia <strong>do</strong> bom, muitas vezes vem a<br />
depravar o modesto com a nociva assistência <strong>do</strong> mau. Enquanto os<br />
empera<strong>do</strong>res Nero e Cómo<strong>do</strong> tiveram a seu la<strong>do</strong> aos sábios e prudentes por<br />
conselheiros, nunca se arrojaram aos desaforos que depois cometeram,<br />
quan<strong>do</strong> se acompanharam com os gladia<strong>do</strong>res e outros homens desafora<strong>do</strong>s<br />
que no paço admitiram, com que se desempenharam <strong>da</strong> majestade e política<br />
com que principiaram seus governos, ao escan<strong>da</strong>loso golpe de dissoluções<br />
com que as vi<strong>da</strong>s tragicamente acabaram.<br />
Retirei-me temeroso <strong>da</strong> justiça ao asilo <strong>da</strong> casa de Luís Orsino, que<br />
assim pelo ilustríssimo de seu sangue como pelo valor de sua pessoa e o<br />
cargo que tinha de mestre de campo <strong>da</strong> senhoria de Veneza, era então mui<br />
respeita<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s. Dava mesa franca e hospício na grandiosa casa em que<br />
vivia a muitos cabos e capitães reforma<strong>do</strong>s e outros sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s de muita<br />
experiência militar que tinha para levar consigo; e eu ven<strong>do</strong>-me persegui<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
fortuna por tantas via, quis seguir com ele as armas, já que me via<br />
impossibilita<strong>do</strong> de por então continuar as letras. E <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me a conhecer por<br />
Seneca, Ep. 7.
706 Padre Mateus Ribeiro<br />
cunha<strong>do</strong> de Salviano, ele me recebeu com muita vontade, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me em sua<br />
casa hospício e mesa liberalmente.<br />
Vivia nestes dias na ci<strong>da</strong>de de Pádua a duquesa Vitória, viúva que havia<br />
poucos meses tinha fica<strong>do</strong> <strong>do</strong> duque Paulo Jordão Orsino, duque de Barciano,<br />
ilustre vila situa<strong>da</strong> na Etrúria Mediterrânea, e primo de Luís Orsino. Era o<br />
defunto duque mancebo na flor <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, a quem na lisonja <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> roubou em<br />
breves dias a morte <strong>da</strong> vista e companhia <strong>da</strong> duquesa Vitória, sua esposa; foi<br />
esta antecipa<strong>da</strong> morte <strong>do</strong> duque com extremosos sentimentos <strong>da</strong> duquesa, sua<br />
esposa, senti<strong>da</strong>, como tão custosa per<strong>da</strong>. Ven<strong>do</strong>-se pois ansia<strong>da</strong> com as<br />
sau<strong>do</strong>sas lembranças de seu defunto esposo, se amparou <strong>da</strong> protecção <strong>da</strong><br />
senhoria de Veneza, vin<strong>do</strong> morar na ci<strong>da</strong>de de Pádua de assento, aonde vivia<br />
com tal clausura e recato em companhia de seu irmão, moço de grandes<br />
pren<strong>da</strong>s e juvenil i<strong>da</strong>de.<br />
Era a duquesa Vitória com tal extremo fermosa que podia copiar-se por<br />
assombro <strong>da</strong> beleza, por maravilha <strong>do</strong> parecer, pois era <strong>do</strong> parecer tão singular<br />
maravilha. Porém que pincel se atrevia a debuxá-la com seus rasgos, sen<strong>do</strong><br />
ela único rasgo em que se apurou o discreto pincel <strong>da</strong> natureza, não<br />
conceden<strong>do</strong> licença para ser imita<strong>do</strong> nem <strong>da</strong> arte mais poli<strong>da</strong>, o que era<br />
poderoso desmaio de to<strong>da</strong> a arte. As belezas que admitem competências na<br />
igual<strong>da</strong>de, pode presumir a pintura desejos de as copiar; pois aonde licenciou a<br />
natureza paralelos de semelhança, não seria espanto pretender a arte retratos<br />
de admiração. Porém era tal a fermosura <strong>da</strong> viúva duquesa Vitória que<br />
desenganava com a impossibili<strong>da</strong>de ao mais airoso para competir e à pintura<br />
para a retratar; porém quem nasceu para quinta essência <strong>da</strong> beleza, logo<br />
fechou as portas à imitação. Não faz em seu rosto a mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong> esta<strong>do</strong><br />
mu<strong>da</strong>nça; pois por mais repeti<strong>do</strong>s assaltos que os grandes desgostos lhe<br />
dessem ao coração, nunca tiveram jurisdição para mu<strong>da</strong>r-lhe a gala <strong>do</strong><br />
parecer. Assestaram os infortúnios to<strong>da</strong> a bataria a seu peito, mas não se<br />
atreveram a acometer o rosto; porque como tinha tão alenta<strong>do</strong> o valor, sofria a<br />
tempestade na alma e não a mostrava na vista. Passou <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de <strong>do</strong>nzela a<br />
casa<strong>da</strong>, e em breve termo de tempo se considerou viúva; mas <strong>da</strong> maneira que<br />
o sol, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> sítios, nunca em si mostra mu<strong>da</strong>nça, assim a duquesa Vitória,<br />
mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> esta<strong>do</strong>s, foi de suas mu<strong>da</strong>nças a vitória. Competia o juízo com a<br />
beleza: ficava duvi<strong>do</strong>so o triunfo, que não era fácil empresa o decidir os litígios
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 707<br />
que traziam em juízo o entendimento mais delica<strong>do</strong> com o parecer mais airoso.<br />
Não se determinava quem a via tão bizarra e quem a ouvia tão discreta, se<br />
<strong>da</strong>ria os aplausos ao entendi<strong>do</strong> ou se sentenciaria pelo fermoso; e com ser<br />
Vitória no nome, era crédito de sua maior estimação o ficar o litígio sem vitória.<br />
Tal era a viúva duquesa de Barciano, quan<strong>do</strong> Luís Orsino, primo <strong>do</strong><br />
defunto duque, em Pádua assistia na conduta <strong>da</strong> gente militar que fazia para<br />
levar a Cândia, e no tempo em que eu, culpan<strong>do</strong>-me a justiça na morte <strong>do</strong><br />
infelice Teo<strong>do</strong>ro, me retirei a sua casa, que foi a hora para mim mais infelice;<br />
<strong>da</strong>va ele, como disse, gasalho e mesa com grande franqueza a quasi cinquenta<br />
pessoas de muito valor e experiência <strong>da</strong>s armas, em que entravam alguns<br />
destes foragi<strong>do</strong>s de Cursieto Sambuco, <strong>do</strong>s quais to<strong>do</strong>s vivíamos descontentes<br />
e timoratos de alguma ruína que de tal companhia podia recear-se; mas como<br />
dependíamos to<strong>do</strong>s de Luís Orsino, e ele os tinha em casa recebi<strong>do</strong>, sentíamos<br />
o desgosto e não publicávamos a queixa.<br />
Retirava já o sol o brilhante de seus subi<strong>do</strong>s raios, queren<strong>do</strong> esconder-<br />
se nas inquietas on<strong>da</strong>s, que como a Fénix de resplan<strong>do</strong>res lhe fabricavam<br />
cristalina pira, não de incêndios, mas de neve. Retirava-se, digo, de magoa<strong>do</strong>,<br />
se mágoas puderam atrever-se ao sol, para se mostrar senti<strong>do</strong>, para não se<br />
achar presente à tragédia mais compassiva; pois ain<strong>da</strong> nas criaturas<br />
insensíveis parece que pudera mais facilmente achar-se o enterneci<strong>do</strong> <strong>do</strong> que<br />
em peitos tiranos o pie<strong>do</strong>so, a quem <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a natureza o ser humano para<br />
demover-se, negou o costume de matar o compassivo para não abran<strong>da</strong>r-se.<br />
Descui<strong>da</strong><strong>da</strong> estava a duquesa Vitória: que não presume a inocência os<br />
assaltos <strong>da</strong> tirania, sen<strong>do</strong> ela a mais segura confiança de não poder ser<br />
ofendi<strong>da</strong>. Mas não se isentou desta regra a pouco venturosa duquesa Vitória,<br />
pois quan<strong>do</strong> mais descui<strong>da</strong><strong>da</strong> deste cruel assalto vivia, entran<strong>do</strong> de repente em<br />
sua casa oito homens mascara<strong>do</strong>s com as espa<strong>da</strong>s nuas, ao tempo em que as<br />
primeiras sombras entre crepúsculos de fugitiva luz vinham por vanguar<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s<br />
escuras trevas <strong>da</strong> noite, se valeram <strong>da</strong>s ousadias e desaforo que elas aos<br />
insultos ocasionam.<br />
- E como, senhores (exclamou a duquesa), para uma mulher tantas<br />
espa<strong>da</strong>s? Em que vos ofendeu minha inocência? Eu nem temo, por mulher. Se<br />
procurais riquezas, essas poucas que possuo aí as tendes; pouco faço em<br />
largá-las, pois são poucas, estimara que para remediar-vos fossem muitas.
708 Padre Mateus Ribeiro<br />
Que crédito <strong>do</strong> valor ou que desempenho de alenta<strong>do</strong>s adquiris com me<br />
matardes? Indecorosa empresa é para sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e desluzi<strong>da</strong> facção para<br />
destemi<strong>do</strong>s; e bem se mostra, pois o incidente vos obriga a encobrirdes os<br />
rostos para não serdes conheci<strong>do</strong>s. Compadecem-se os leões <strong>da</strong> fragili<strong>da</strong>de<br />
mulheril, vestin<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> compaixão e despojan<strong>do</strong>-se <strong>da</strong>s armas <strong>da</strong> fereza; e<br />
vós arrancais as armas para ofenderdes a uma mulher de quem nunca fostes<br />
ofendi<strong>do</strong>s? Se a necessi<strong>da</strong>de vos move, eu lhe <strong>da</strong>rei remédio. Se o furor,<br />
apague-se no mar de minhas lágrimas. Se vingança, não condiz com a<br />
inocência. Se desgraça, bem satisfeita está em minhas mágoas. Com a vi<strong>da</strong><br />
sempre poderei servir-vos, mas com minha morte nunca ficareis seguros:<br />
porque se na terra faltar o castigo <strong>da</strong> justiça, não faltará no Céu para a<br />
vingança.<br />
A estas vozes e às muitas que as cria<strong>da</strong>s <strong>da</strong>vam, veio corren<strong>do</strong> de outro<br />
quarto <strong>da</strong>s casas o malogra<strong>do</strong> irmão <strong>da</strong> duquesa, com a espa<strong>da</strong> nua na mão,<br />
mancebo bizarro no mais vistoso <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de; mas apenas saiu, quan<strong>do</strong> os<br />
desumanos mascara<strong>do</strong>s às estoca<strong>da</strong>s o mataram, cain<strong>do</strong> nos braços <strong>da</strong><br />
lastimosa irmã; a quem os truculentos foragi<strong>do</strong>s deram de punhala<strong>da</strong>s, sen<strong>do</strong> a<br />
primeira vez que a cruel<strong>da</strong>de não concedeu quartel ao raro <strong>da</strong> fermosura.<br />
Executa<strong>da</strong> a impie<strong>da</strong>de desta tão lamentável tragédia, fugiram os<br />
mascara<strong>do</strong>s verdugos sem haver quem a segui-los nem a reconhecê-los se<br />
atrevesse. Caiu morta a duquesa, mostran<strong>do</strong> que <strong>do</strong>s foros <strong>da</strong> morte não vive<br />
privilegia<strong>da</strong> a fermosura. Purpurizou com seu sangue o alcatifa<strong>do</strong> estra<strong>do</strong>,<br />
teatro fúnebre em que ela e seu malogra<strong>do</strong> irmão representaram tanto ao vivo<br />
as tragédias <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> humana vi<strong>da</strong>. Rendeu-se Vitória aos triunfos <strong>da</strong><br />
morte, pois foi sempre <strong>da</strong> morte invencível o triunfo. Desmaiaram as rosas no<br />
jardim flori<strong>do</strong> de seu rosto, trocou-se a púrpura em luto, perdeu a neve os<br />
receios de parecer menos cândi<strong>da</strong> à vista de seus alvores vivos, informou o<br />
cadáver a gala que vestia, que com ser luto <strong>da</strong> viuvez, tu<strong>do</strong> nele parecia gala,<br />
pois <strong>da</strong>va quan<strong>do</strong> anima<strong>da</strong> privilégios de gala ao que era luto. Suspendeu-se o<br />
garbo de senti<strong>do</strong>, pois na duquesa só lograva a estimação os aplausos.<br />
Rompeu-se logo a triste nova pela ci<strong>da</strong>de: pouco espaço havia mister<br />
para divulgar-se, sen<strong>do</strong> triste. Porém quem poderá explicar a geral lástima que<br />
to<strong>do</strong>s os <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de sentiram? Que como a defunta duquesa era de to<strong>do</strong>s<br />
igualmente estima<strong>da</strong> que bem quista, de to<strong>do</strong>s em geral era chora<strong>da</strong>. O ilustre
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 709<br />
<strong>do</strong> sangue, o raro <strong>da</strong> beleza, o flori<strong>do</strong> <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, o modesto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, o delica<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> juízo, o afável e cortês <strong>da</strong> condição e o ser na ci<strong>da</strong>de forasteira com seu<br />
irmão tão malogra<strong>do</strong>, e ambos com tanta cruel<strong>da</strong>de mortos, era o verdugo que<br />
os corações atormentava, quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>brar os sinos por tais mortos se ouviam.<br />
Quem execrava ser a tirania maior que a que os mouros antiguamente em<br />
Navarra usaram, quan<strong>do</strong> às lança<strong>da</strong>s mataram a rainha Dona Urraca, estan<strong>do</strong><br />
quasi em vésperas <strong>do</strong> parto, sem lhe quererem conceder quartel de vi<strong>da</strong>? Qual<br />
dizia que considerava renova<strong>da</strong> em Pádua a seva cruel<strong>da</strong>de <strong>do</strong> ímpio Encelino,<br />
exarco que foi <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Frederico e residente em Pádua, de que podiam<br />
aprender lições de tirania os Fálaris, os Neros, os mais jubila<strong>do</strong>s na cruel<strong>da</strong>de?<br />
Pois man<strong>da</strong>va cortar os peitos às mulheres e depois <strong>da</strong>r-lhes a morte com tão<br />
desusa<strong>do</strong> rigor que parece que os tigres puderam entemecer-se na fereza de<br />
magoa<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> Encelino com entranhas mais que de fera de na<strong>da</strong> se<br />
demovia. Assim era lamentável o sentimento desta lastimosa morte. Mas sobre<br />
to<strong>da</strong> a <strong>do</strong>r se mostraram por extremo magoa<strong>do</strong>s e impacientes os magistra<strong>do</strong>s<br />
<strong>da</strong> justiça, pois em uma ci<strong>da</strong>de tão ilustre e populosa e bem governa<strong>da</strong>,<br />
debaixo <strong>da</strong> inteireza <strong>da</strong> justiça <strong>da</strong> senhoria de Veneza, considerar-se um<br />
assassínio tão tirano cometi<strong>do</strong> não em penhascosas brenhas de Ardenia, nem<br />
nos densos e horríveis bosques de Moscovia, nem nos desertos <strong>da</strong> inculta<br />
Arábia, nem nas intratáveis serranias <strong>do</strong>s montes Rifeus, nem nos agrestes<br />
outeiros <strong>do</strong>s montes Cáspios, ásperos à vista pelo tenebroso e solitário; porém<br />
no coração <strong>da</strong> senhoria, no mais povoa<strong>do</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e em sua própria casa, a<br />
pessoas de tão grande quali<strong>da</strong>de, sem haverem a alguém ofendi<strong>do</strong>, antes a<br />
muitos obriga<strong>do</strong>, serem <strong>da</strong><strong>da</strong>s tão cruéis e injustas mortes à sua vista.<br />
Devassou-se logo delas com to<strong>do</strong> o rigor e foi-se indician<strong>do</strong> que na casa<br />
de Luís Orsino, já alta noite, se viram retirar os delinquentes; com o que a<br />
justiça com to<strong>do</strong> o segre<strong>do</strong>, sem se <strong>da</strong>r por entendi<strong>da</strong> <strong>do</strong> que ia descobrin<strong>do</strong>,<br />
pôs diversas sentinelas pelos caminhos que de Pádua saíam e a Veneza iam,<br />
aonde Luís Orsino tinha sua mulher e muitos amigos; colheu uma noite um<br />
mensageiro que as cartas para Veneza levava, ao qual deixan<strong>do</strong> preso em<br />
segre<strong>do</strong>, por que não pudesse <strong>da</strong>r aviso aos culpa<strong>do</strong>s, abertas as cartas, se<br />
mostrava delas com evidência como Luís Orsino fora o autor destas lastimosas<br />
mortes, que man<strong>da</strong>ra executar pelos foragi<strong>do</strong>s que consigo em casa tinha,
710 Padre Mateus Ribeiro<br />
suposto que o motivo que para isso teve não se declarava, nem jamais com<br />
certeza se soube.<br />
Venturosos chamou Plínio Júnior aos que de tal sorte escreviam que<br />
pudessem suas cartas de to<strong>do</strong>s ser vistas sem detrimento. São as cartas um<br />
mu<strong>do</strong> clarim que o segre<strong>do</strong> toca, um parto <strong>do</strong> coração em que se rasga a vi<strong>da</strong><br />
ao escondi<strong>do</strong>, uma nau em que se aventura às on<strong>da</strong>s <strong>da</strong> fortuna talvez a<br />
própria vi<strong>da</strong>; comissão que se dá a quem a lê com que em matérias perigosas<br />
tenha senhorio sobre quem a escreve; são um público testemunho de nossas<br />
obras e desejos que mal pode contradizer-se; são intérpretes <strong>da</strong> vontade que<br />
nelas se manifesta, cunhos <strong>do</strong> metal que corre em nosso juízo, testemunhas<br />
sem voz e acusa<strong>do</strong>res sem vi<strong>da</strong> de nossos procedimentos; e finalmente<br />
arrisca<strong>da</strong> confiança em que o mais estima<strong>do</strong> se aventura, pois nelas fica sen<strong>do</strong><br />
o interior descoberto e o encoberto público para ser de to<strong>do</strong>s conheci<strong>do</strong>.<br />
Trazen<strong>do</strong>-se um dia ao grande Pompeu, quan<strong>do</strong> an<strong>da</strong>va em Espanha<br />
nas guerras contra Sertório, um correio que seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s tomaram com cartas<br />
que de Roma a Sertório se escreviam, que como inimigo <strong>da</strong> pátria estava pelo<br />
sena<strong>do</strong> proscrito; porém ven<strong>do</strong> o generoso Pompeu a perturbação em que seu<br />
exército se via, toman<strong>do</strong> se nestas cartas viria escrita cousa que a eles e a<br />
seus pais, parentes e amigos que em Roma ficavam prejudicasse, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
vir um braseiro, sem as abrir, as queimou diante de to<strong>do</strong> o exército, queren<strong>do</strong><br />
desassombrar a seus capitães <strong>do</strong>s sustos em que se viam e obrigan<strong>do</strong>-os com<br />
esta maior benevolência à maior fideli<strong>da</strong>de. Este mesmo exemplo em outra<br />
ocasião semelhante seguiu o empera<strong>do</strong>r Augusto César, com que granjeou a<br />
maior benevolência e amor <strong>do</strong>s que se temiam, se as cartas se lessem, de se<br />
acharem culpa<strong>do</strong>s. Temen<strong>do</strong>-se já os lacedemónios deste perigo, para evitar<br />
que seus segre<strong>do</strong>s não viessem a ser <strong>do</strong>s inimigos descobertos, quan<strong>do</strong><br />
escreviam os capitães de seus exércitos o que importava que fizessem, lhes<br />
escreviam por cifras. Porém an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o tempo, se apurou tanto o desejo de<br />
virem em conhecimento <strong>do</strong>s segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s contrários, que necessitaram os<br />
lacedemónios de subtilizarem novos méto<strong>do</strong> para se encobrirem; por que<br />
descifran<strong>do</strong>-se a antigua capa de suas cifras, não se fun<strong>da</strong>sse à altura de seus<br />
segre<strong>do</strong>s. Não eram as cartas que Luís Orsino a Veneza man<strong>da</strong>va encobertas<br />
em cifras, senão de sua letra ordinária e final, com as quais se lhe fez evidente
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 711<br />
a prova, de mo<strong>do</strong> que nem ele pôde negar o delito, nem lhe custou menos que<br />
a vi<strong>da</strong>.<br />
Estas cartas se enviaram logo a Veneza pelos magistra<strong>do</strong>s de Pádua<br />
com grande segre<strong>do</strong>, de que a senhoria, por extremo senti<strong>da</strong> de um tal<br />
desaforo, expediu logo a um supremo auditor com to<strong>do</strong> o poder <strong>da</strong> senhoria,<br />
para que em companhia <strong>do</strong>s auditores e governa<strong>do</strong>res de Pádua executasse<br />
nos culpa<strong>do</strong>s rigorosa justiça. Chegou a Pádua o auditor e, convocan<strong>do</strong> a<br />
gente que lhe foi necessária, foi a prender a Luís Orsino e a quantos com ele<br />
estávamos, que seríamos quasi cinquenta pessoas.<br />
Assustou-se Luís Orsino, como quem se temia, com o repentino assalto<br />
<strong>da</strong> justiça, de que estava descui<strong>da</strong><strong>do</strong>, parecen<strong>do</strong>-lhe que sen<strong>do</strong> ele pessoa tão<br />
grande, se houvesse de proceder com diferente respeito. Porém foi indiscreta<br />
sua confiança haven<strong>do</strong> man<strong>da</strong><strong>do</strong> executar tão atroz delito. Resistiu com a<br />
gente que consigo tinha Luís Orsino; e houve de uma e outra parte peloura<strong>da</strong>s,<br />
de que houve alguns feri<strong>do</strong>s e <strong>da</strong> parte <strong>da</strong> justiça um ou <strong>do</strong>us mortos. Pelo que<br />
o auditor e magistra<strong>do</strong>s, não queren<strong>do</strong> arriscar-se a maior <strong>da</strong>no, formaram logo<br />
trincheiras em ro<strong>da</strong> <strong>da</strong>s casas em que vivíamos, que era palácio <strong>do</strong>s<br />
Contarenos; e convocan<strong>do</strong> sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s em grande número, nos sitiaram de sorte<br />
que mais representava arrisca<strong>do</strong> cerco que a castelo ou praça forte se punha<br />
<strong>do</strong> que prisão que se fazia a delinquentes. Era o cordão que nos lançaram tão<br />
esforça<strong>do</strong> e de tanta gente guarneci<strong>do</strong> e tão repara<strong>do</strong> a poderem os cerca<strong>do</strong>s<br />
ser ofendi<strong>do</strong>s que podiam eles muito a seu selvo ofender-nos e nós sitia<strong>do</strong>s<br />
não lhe podermos fazer <strong>da</strong>no, pelo que estavam de seguros. Crescia ca<strong>da</strong> hora<br />
nova gente de refresco <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, com desejos de verem castiga<strong>do</strong>s os<br />
delinquentes <strong>da</strong> injusta morte <strong>da</strong> duquesa, cuja memória renova os motivos de<br />
suas sau<strong>do</strong>sas lembranças, vin<strong>do</strong>-se muitos a oferecer antes de serem<br />
chama<strong>do</strong>s.<br />
Ansia<strong>do</strong> Luís Orsino <strong>do</strong> perigo em que se via, chamou a conselho a<br />
quantos com ele estávamos para que dessem seu parecer sobre o remédio.<br />
Foram estes vários, porque os foragi<strong>do</strong>s homici<strong>da</strong>s, e outros que por vários<br />
delitos se temiam, foram de parecer que nos defendêssemos até ao último <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>, trazen<strong>do</strong> o desespera<strong>do</strong> exemplo de Cursito Sambuco que quis antes<br />
acabar a vi<strong>da</strong>, arrojan<strong>do</strong>-se entre os golfos <strong>da</strong>s vorazes on<strong>da</strong>s, <strong>do</strong> que ver-se<br />
justiça<strong>do</strong> na praça de Roma. E prosseguin<strong>do</strong> a matéria o capitão Leonídio,
712 Padre Mateus Ribeiro<br />
valente e temerário sol<strong>da</strong><strong>do</strong>, em muitas guerras experimenta<strong>do</strong> muitos anos,<br />
continuou dizen<strong>do</strong> com uma notável cólera assim:<br />
- O grande capitão Alcibíades Ateniense, ven<strong>do</strong> que à petição de<br />
Lisandro, capitão geral <strong>do</strong>s lacedemónios, man<strong>da</strong>va Farnabazo, governa<strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong>s persas, a seu irmão Mugeu para que o matassem em um lugar de Frigia,<br />
aonde retira<strong>do</strong> estava, e ven<strong>do</strong> a casa cerca<strong>da</strong> <strong>da</strong>s esquadras persianas e que<br />
com muita lenha lhe punham fogo à casa, ele lançan<strong>do</strong> sobre as chamas<br />
quanta roupa em casa tinha, saltan<strong>do</strong> sobre ela com a espa<strong>da</strong> nua na mão,<br />
fazen<strong>do</strong> a golpes que os persas se apartassem temerosos de seu valor, sem<br />
dúvi<strong>da</strong> salvaria a vi<strong>da</strong> se eles de longe com repeti<strong>do</strong>s chuveiros de setas que<br />
despendiam lha não tirassem. Render-se a bom quartel, asseguran<strong>do</strong> as vi<strong>da</strong>s,<br />
em muitos e valerosos capitães se tem visto; porém render-se sem certeza de<br />
havermos de ser rigorosa e afrontosamente castiga<strong>do</strong>s, mais vai tragar a morte<br />
aos olhos fecha<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que ser miserável espectáculo à vista de tantos olhos.<br />
Lembra-me que cantaram os sicilianos aquelas tão afama<strong>da</strong>s vésperas aos<br />
franceses que em Sicília assistiam, de que estavam senhores, passan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s<br />
aos fios <strong>da</strong> espa<strong>da</strong> em um próprio dia; e vin<strong>do</strong> depois el-rei Carlos com<br />
poderoso exército para castigar e <strong>do</strong>mar aos rebela<strong>do</strong>s, pôs sítio apertadíssimo<br />
sobre a ci<strong>da</strong>de de Saragoça, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe tão repeti<strong>do</strong>s assaltos que estavam os<br />
cerca<strong>do</strong>s em termos de se renderem. Porém ouvin<strong>do</strong> os ameaços <strong>do</strong>s<br />
franceses de que não haviam de deixar em Saragoça pessoa viva, de sorte de<br />
novo se animaram que invencivelmente se defenderam sem jamais poderem<br />
ser entra<strong>do</strong>s, dizen<strong>do</strong> que se haviam de perder as vi<strong>da</strong>s rendi<strong>do</strong>s, queriam<br />
morrer antes defenden<strong>do</strong>-as vinga<strong>da</strong>s.<br />
Na cruenta batalha que o empera<strong>do</strong>r Trajano deu aos de Dácia, saiu<br />
dela um valente sol<strong>da</strong><strong>do</strong> mal feri<strong>do</strong> para curar-se, enquanto os outros an<strong>da</strong>vam<br />
pelejan<strong>do</strong>. Desenganou-o o cirurgião que as feri<strong>da</strong>s que trazia eram mortais de<br />
necessi<strong>da</strong>de. O que ele ouvin<strong>do</strong>, tornou a tomar a espa<strong>da</strong>, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Pois se de força hei-de morrer cura<strong>do</strong>, quero antes morrer vinga<strong>do</strong>.<br />
E entran<strong>do</strong> de novo na batalha, caiu, matan<strong>do</strong> muitos <strong>do</strong>s inimigos. Pois<br />
se renden<strong>do</strong>-nos nós aos ministros que nos cercam havemos de passar pelo<br />
rigoroso <strong>da</strong>s sentenças, arrisca<strong>da</strong>s as vi<strong>da</strong>s, quanto melhor parti<strong>do</strong> será que<br />
com as armas as defen<strong>da</strong>mos como sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que padecermos a morte como<br />
réus? E suposto que os <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de sejam muitos, os mais deles não vão em
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 713<br />
nossa prisão interessa<strong>do</strong>s, vin<strong>do</strong> mais por obedecerem às ordens de seus<br />
maiores que pelos moverem motivos <strong>da</strong> vontade; pois não sen<strong>do</strong> eles nestas<br />
mortes os ofendi<strong>do</strong>s, nunca em nossa prisão se mostrarão muito empenha<strong>do</strong>s.<br />
Para uma pessoa se aventurar aos perigos <strong>da</strong> morte ou o há-de mover a<br />
<strong>do</strong>r grande que sente, ou a grandeza <strong>do</strong> interesse que espera. Desta razão se<br />
moveu Júlio César, como escreve Lucano, para animar a seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, antes<br />
de <strong>da</strong>r a batalha <strong>do</strong>s campos farsálicos, para lhes tirar o pavoroso <strong>do</strong> assombro<br />
que <strong>da</strong> grande multidão <strong>do</strong> exército de Pompeu os atemorizava, dizen<strong>do</strong>-lhes<br />
que só aos romanos <strong>do</strong> contrário exército se empenhassem em vencer,<br />
pelejan<strong>do</strong> com invencível valor; porque to<strong>da</strong>s as outras nações que com seus<br />
reis Pompeu em seu exército trazia vinham conduzi<strong>da</strong>s mais por vergonha que<br />
por vontade, como tão pouco interessa<strong>da</strong>s em que houvessem de obedecer a<br />
César ou ao sena<strong>do</strong>; pois que haven<strong>do</strong> de ficar sempre sujeitos ao império de<br />
outro, pouco interessavam em que um ou outro fosse o senhor a quem<br />
pagassem o tributo; e como tais, mais tratariam em defenderem as próprias<br />
vi<strong>da</strong>s <strong>do</strong> que se empenhariam em tirarem as alheias. Que vai aos ci<strong>da</strong>dãos de<br />
Pádua em nossa prisão, não ten<strong>do</strong> parentesco com os defuntos? Ou que<br />
utili<strong>da</strong>des se lhes podem seguir de nossas mortes? Porventura deixariam de<br />
acudir ao governo de suas famílias e casas, para se precipitarem temerários a<br />
contender com quem leva já traga<strong>do</strong>s os horrores <strong>da</strong> morte nos desprezos <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>? Esta era a principal razão por que o grande Pompeu não queria <strong>da</strong>r a<br />
batalha de Farsália que seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s impacientes lhe pediam, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se por<br />
afronta<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s injúrias que os de César lhes diziam; porque via que, como<br />
desespera<strong>do</strong>s <strong>da</strong> cruel fome que padecen<strong>do</strong> estavam, desejavam venderem as<br />
vi<strong>da</strong>s a troco de executarem inumeráveis mortes nos pompeianos, que,<br />
abun<strong>da</strong>ntes de bastimentos, <strong>do</strong> seguro teatro de suas reforça<strong>da</strong>s trincheiras os<br />
viam com a fome cruel e com a morte li<strong>da</strong>n<strong>do</strong>. Assim nós podemos conseguir<br />
defender-nos, suposto que sitia<strong>do</strong>s de tanta gente nos vejamos; porque o valor<br />
é o que peleja e não o número, quan<strong>do</strong> lhe falta o valor, e a experiência militar<br />
que é a que dá as vitórias e não a tironice inexperta <strong>da</strong> multidão tumultuaria,<br />
como se viu na imortal batalha <strong>do</strong>s campos de Maratona, em que dez mil<br />
valerosos atenienses venceram e desbarataram a duzentos mil persianos, que<br />
com seu general Hípias vieram acometê-los. Estes ministros <strong>da</strong> justiça e<br />
magistra<strong>do</strong>s de Pádua entenderam só <strong>do</strong> governo político <strong>da</strong> república na paz,
714 Padre Mateus Ribeiro<br />
mas muito pouco <strong>do</strong> estron<strong>do</strong>so aparato <strong>da</strong> guerra. E se ao fim morrermos na<br />
defensa de nossas próprias vi<strong>da</strong>s, <strong>do</strong>s ânimos generosos é, como diz<br />
Quintiliano, o morrerem como valentes e não o renderem-se como cobardes.<br />
Cap. XX.<br />
Do que sucedeu até Polinar<strong>do</strong> com to<strong>do</strong>s os companheiros serem presos e <strong>da</strong><br />
justiça que se fez<br />
Assim falou o capitão Leonídio, parecer que Luís Orsino com os que<br />
estavam mais criminosos aprovaram. E eu bem conhecia que em segui-lo<br />
to<strong>do</strong>s nos perdíamos infalivelmente; mas como eu era nas armas tão pouco<br />
experimenta<strong>do</strong>, como quem havia tão poucos dias que <strong>da</strong>s academias tinha<br />
saí<strong>do</strong>, não me atrevi por então a <strong>da</strong>r meus pareceres, pois mo não pediam.<br />
Neste tempo, ressenti<strong>do</strong>s o auditor e magistra<strong>do</strong>s <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de<br />
quererem os delinquentes com tanta ousadia perseverar na resistência, não só<br />
em ci<strong>da</strong>de tão ilustre, mas no coração <strong>da</strong> senhoria de Veneza, ten<strong>do</strong>-se por<br />
desaforo indigno de tolerar-se o pouco respeito que à justiça se guar<strong>da</strong>va,<br />
man<strong>da</strong>ram baixar a artelharia <strong>do</strong> castelo, e levantan<strong>do</strong> <strong>do</strong>us fortins em<br />
brevíssimo espaço, começaram com ela a bater o grande palácio <strong>do</strong>s<br />
Contarenos em que estávamos, intentan<strong>do</strong> arruiná-lo de to<strong>do</strong> e deixar-nos<br />
sepulta<strong>do</strong>s debaixo de suas ruínas. Ficaram alguns feri<strong>do</strong>s e um <strong>do</strong>s foragi<strong>do</strong>s<br />
morto. E acudin<strong>do</strong> nós to<strong>do</strong>s ao reparo <strong>da</strong>s brechas, se deu de uma e outra<br />
parte uma carga cerra<strong>da</strong> de mosquetaria, com que ficaram <strong>do</strong>s cerca<strong>do</strong>res um<br />
morto e <strong>do</strong>s nossos muitos feri<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s balas e to<strong>do</strong>s intimi<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>do</strong> perigo.<br />
Continuava a bataria rigorosamente. Com que ven<strong>do</strong>-se Luís Orsino quasi<br />
perdi<strong>do</strong>, pediu duas horas de tréguas, que se lhe concederam só por uma.<br />
Ajuntou-nos nela a conselho sobre o que devíamos fazer no esta<strong>do</strong> em que<br />
nos víamos, sen<strong>do</strong> o perigo tão certo e o termo tão breve. Eu, já impaciente<br />
aos erros que se haviam cometi<strong>do</strong> em seguirem o temerário parecer <strong>do</strong> capitão<br />
Leonídio, fui o primeiro que me adiantei a falar, dizen<strong>do</strong>:<br />
- O considerar, senhores, o miserável esta<strong>do</strong> a que to<strong>do</strong>s nos vemos<br />
reduzi<strong>do</strong>s me move a <strong>da</strong>r meu parecer desengana<strong>do</strong>, antes que a porfia<strong>da</strong><br />
resistência seja de to<strong>do</strong>s a fatal ruína. Eu não vejo remédio algum para
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 715<br />
escaparmos <strong>da</strong> justiça, antes o julgo por impossível: porque de cinquenta<br />
companheiros que aqui estávamos, são já três mortos e outros feri<strong>do</strong>s.<br />
Bastimentos para nos sustentarmos já não os temos, nem esperanças <strong>do</strong>nde<br />
possam vir-nos, estan<strong>do</strong> nós em meio <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, toma<strong>do</strong>s os caminhos com<br />
trincheiras e fortins e inumerável gente de presídio que nos tem cerca<strong>do</strong>s e<br />
ca<strong>da</strong> hora crescem e nós diminuímos. Acabou-se a pólvora e gastaram-se as<br />
balas: não há já com que acudir nem ao sustento, nem à defensa, nem aos<br />
reparos. Perdermos as vi<strong>da</strong>s sem fruto é <strong>do</strong>brar o sentimento, quan<strong>do</strong> nem<br />
podemos reparar as vi<strong>da</strong>s, nem vingar as mortes. Estas aqui são indubitáveis e<br />
<strong>da</strong>s mãos <strong>da</strong> justiça contingentes. E sempre qualquer espaço que se dá à vi<strong>da</strong><br />
vem a ser de muita estimação. Por poucas horas que se dilatou a morte <strong>do</strong><br />
cônsul Caio Mário na tenebrosa lapa de Minturnas, se viu não só livre <strong>da</strong>s<br />
garras <strong>da</strong> morte, mas de novo a Septímio no consula<strong>do</strong> romano entroniza<strong>do</strong>.<br />
Por breve espaço que se dilatou a morte d'el-rei Cresso de Lídia, se viu de Ciro<br />
per<strong>do</strong>a<strong>do</strong> e livre dela. Dar vagares à execução é <strong>da</strong>r lugar à pie<strong>da</strong>de, que isso<br />
dizia Euripides, que muitas vezes na dilação consiste o remédio <strong>do</strong>s males.<br />
Com a dilação que Temístocles Ateniense pôs em Esparta, in<strong>do</strong> por<br />
embaixa<strong>do</strong>r de Atenas aos lacedemónios sobre eles impedirem o fazerem-se<br />
de novo os muros de Atenas que eles lhe tinham arrasa<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> hostilmente<br />
a entraram, deu lugar aos vários rodeios e demoras <strong>da</strong>s propostas de sua<br />
embaixa<strong>da</strong> com que entretanto os muros de sua pátria se acabassem e<br />
ficassem capazes para defender-se. Com dilação se sazoam os frutos, disse<br />
Ovídio 597 , quan<strong>do</strong> são verdes, fazen<strong>do</strong> que fiquem ao gosto suaves, sen<strong>do</strong> de<br />
antes desabri<strong>do</strong>s.<br />
É a dilação, diz Séneca 598 , o melhor freio <strong>da</strong> ira: aplaca o incêndio mais<br />
eficaz o meter-se tempo em meio <strong>da</strong> vingança. Nos termos <strong>da</strong> justiça ouve-se<br />
os direitos <strong>do</strong>s réus: nem se condena sem prova, nem sem razão se castiga.<br />
Dá o tempo lugar à defesa, põe intervalos à vingança e esperas ao castigo.<br />
Uma hora de vi<strong>da</strong> não é cara, ain<strong>da</strong> que se comprasse ao maior preço. Lá<br />
disse Diógenes 599 que o viver tinha tanto em si de bem, quanto tinha o mal<br />
Ovid., De remed. lib. 1.<br />
Senec, Lib. 2. De ira.
716 Padre Mateus Ribeiro<br />
viver de mal. Donde veio a dizer Cícero que não havia homem tão perverso<br />
na condição ou tão grosseiro no discurso a quem a própria vi<strong>da</strong> aborrecesse,<br />
sen<strong>do</strong> a cousa de que se devia fazer tão digna estimação. Pois, senhores, se<br />
nos vemos tão vizinhos ao último termo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, respiran<strong>do</strong> já entre as sombras<br />
<strong>da</strong> morte, que paixão nos escurece a razão ou que engano nos cega os<br />
discursos <strong>do</strong> juízo para que, poden<strong>do</strong> <strong>da</strong>r às vi<strong>da</strong>s qualquer espaço, queiramos<br />
abreviar-lhe os termos, e poden<strong>do</strong> esperar nós <strong>da</strong> justiça qualquer indulto de<br />
clemência, hajamos de fechar com tão infrutuosa resistência as portas de to<strong>do</strong><br />
à pie<strong>da</strong>de?<br />
Se Cursieto Sambuco quis na desesperação acabar a vi<strong>da</strong> como<br />
bárbaro, haven<strong>do</strong> como tal sempre vivi<strong>do</strong>, não é exemplo para haver de imitar-<br />
se nem o desaforo de sua vi<strong>da</strong>, nem o desespera<strong>do</strong> de sua morte. Somos<br />
cristãos, morramos como tais, quan<strong>do</strong> hajamos de morrer; e quan<strong>do</strong> em rigor<br />
não possamos salvar as vi<strong>da</strong>s, trabalhemos por salvarmos as almas. Peçamos<br />
aos magistra<strong>do</strong>s os parti<strong>do</strong>s mais convenientes para nos entregarmos<br />
prisioneiros. E aceitemos os que a justiça nos der, pois em tu<strong>do</strong> nos está tão<br />
superior. E não sejamos como os inconsidera<strong>do</strong>s embaixa<strong>do</strong>res de Atenas que,<br />
quan<strong>do</strong> Lúcio Sila a tinha sitia<strong>da</strong> com poderoso exército e os <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de se<br />
viram no maior aperto, lhe vieram arrogantes a pedir parti<strong>do</strong>s tão soberbos<br />
para se entregarem e lhe falaram com tão pouca humil<strong>da</strong>de que ele os não<br />
quis mais ouvir e os despediu com dizer-lhes que ele vinha a castigar a Atenas<br />
por rebela<strong>da</strong> ao império romano e não para receber dela leis como de senhora;<br />
e assim entran<strong>do</strong>-a por assalto a <strong>do</strong>mou e castigou asperamente.<br />
Suspensos me ouviram to<strong>do</strong>s, e vieram a seguir meu parecer como mais<br />
acerta<strong>do</strong> e ao risco em que se viam mais seguro. Escreveu logo Luís Orsino<br />
por um de seus cria<strong>do</strong>s uma carta aos magistra<strong>do</strong>s, em que desculpan<strong>do</strong>-se <strong>da</strong><br />
resistência, pedia vários parti<strong>do</strong>s, que to<strong>do</strong>s se lhe negaram, senão que logo<br />
sem mais dilação, despoja<strong>do</strong>s de to<strong>da</strong>s as armas, se entregassem prisioneiros<br />
à justiça, aonde seriam ouvi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que tivessem antes <strong>da</strong> final sentença, ou se<br />
continuaria a bataria.<br />
Entregámo-nos logo, despoja<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s armas, sen<strong>do</strong> Luís Orsino leva<strong>do</strong><br />
ao castelo com boa guar<strong>da</strong>, e to<strong>do</strong>s os mais que com ele estávamos<br />
Cicer., in Vatin.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 717<br />
carrega<strong>do</strong>s de ferros à pública cadeia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, aonde sumariamente<br />
processa<strong>do</strong>s os homicídios <strong>da</strong> duquesa Vitória e seu irmão, assim pelas cartas<br />
de Luís Orsino como pela confissão <strong>do</strong>s assassinos, foi ele publicamente<br />
degola<strong>do</strong> na praça <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Pádua, os assassinos arrasta<strong>do</strong>s e feitos em<br />
quartos, outros <strong>do</strong>s capitães e sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s enforca<strong>do</strong>s pela resistência e eu com<br />
outros seis menos culpa<strong>do</strong>s sentencia<strong>do</strong>s às galés <strong>da</strong> senhoria por oito anos,<br />
fican<strong>do</strong> só isentos <strong>do</strong> castigo os cria<strong>do</strong>s que Luís Orsino consigo tinha em seu<br />
serviço.<br />
Publicou a fama por to<strong>da</strong> a Itália a rectidão <strong>da</strong> justiça com que o sena<strong>do</strong><br />
veneziano por seus ministros se houve no castigo <strong>da</strong> morte <strong>da</strong> duquesa Vitória<br />
e seu irmão, sen<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s louva<strong>da</strong> a justiça com que se castigou e o termo<br />
com que nisso se procedeu. Considerai agora, senhores, esta mu<strong>da</strong>nça tão<br />
grande <strong>da</strong> inconstante ro<strong>da</strong> de minha fortuna na baixa a que desceram minhas<br />
venturas, pois estan<strong>do</strong> eu na morte <strong>da</strong> duquesa tão inocente e nas outras que<br />
me sucederam tão casuais a meu intento, mais por defender a vi<strong>da</strong> que por<br />
querer ofender a outrem que eu não conhecia, e sen<strong>do</strong> a resistência de Luís<br />
Orsino para mim tão violenta, pois não me era permiti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s companheiros o<br />
poder entregar-me à justiça, ain<strong>da</strong> que meu desejo o intentasse; e contu<strong>do</strong> me<br />
vi condena<strong>do</strong> ao remo, aonde passei a vi<strong>da</strong> três anos, dilata<strong>do</strong> espaço para tão<br />
penoso, eterniza<strong>do</strong> antes para um aflito.<br />
Meu cunha<strong>do</strong> Salviano, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se por afronta<strong>do</strong> de meu abatimento, não<br />
quis nem saber de mim, nem escrever-me; minha mãe, que com Estela em sua<br />
companhia vive, se algum socorro me man<strong>da</strong>va, tu<strong>do</strong> se consumia nos<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong> galé para os ter propícios, e ain<strong>da</strong> assim os não obrigava. Eu,<br />
ven<strong>do</strong>-me de to<strong>do</strong> desampara<strong>do</strong> na terra, vali-me <strong>do</strong> socorro <strong>do</strong> Céu,<br />
prometen<strong>do</strong>, se me via livre, de ser a primeira jorna<strong>da</strong> que fizesse a visitar esta<br />
santíssima imagem <strong>da</strong> Senhora <strong>do</strong> Loreto. E fazen<strong>do</strong> petição ao sena<strong>do</strong> de<br />
Veneza por meio de um religioso com quem me confessava, e dele informa<strong>do</strong>s<br />
alguns <strong>do</strong>s sena<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s vários progressos de minha fortuna, me per<strong>do</strong>aram<br />
os cinco anos que faltavam <strong>da</strong> sentença, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me tirar os ferros para que<br />
pudesse ir livremente para onde quisesse.<br />
Apenas saí deste lamentável cativeiro, quan<strong>do</strong> achan<strong>do</strong> uma<br />
embarcação que queria partir com merca<strong>do</strong>rias para esta célebre feira de<br />
Recanate, com desejos de satisfazer a promessa que tinha feito, me embarquei
718 Padre Mateus Ribeiro<br />
nela; e sain<strong>do</strong> hoje em terra, entrei nesta Santíssima Casa, aonde recor<strong>do</strong> as<br />
memórias de meu antigo esta<strong>do</strong>. E consideran<strong>do</strong>-me no presente em que me<br />
vedes tão incapaz de aparecer em minha pátria, nem diante de minha mãe,<br />
irmã e cunha<strong>do</strong> Salviano, pois ven<strong>do</strong>-me de antes venturoso, me vejo hoje <strong>da</strong><br />
fortuna persegui<strong>do</strong>, depois de padecer tantos trabalhos, rompeu meu<br />
sentimento em tantas lágrimas de magoa<strong>do</strong>: que tem desculpas o chorar,<br />
quan<strong>do</strong> os motivos são tão poderosos para demoverem. Chorou Eneias à vista<br />
<strong>da</strong>s ruínas de Tróia, sua pátria; chorou o grande Alexandre na morte de Clito e<br />
na de Heféstion; chorou Cipião Africano à vista <strong>do</strong>s incêndios de Cartago; e<br />
chorou el-rei D. Jaime de Aragão, o Conquista<strong>do</strong>r, de senti<strong>do</strong>, ven<strong>do</strong> que os<br />
ricos homens de seu exército o queriam deixar, e outros grandes <strong>do</strong> reino, com<br />
se partirem <strong>do</strong> sítio que tinha posto sobre a forte praça de Buriana que os<br />
mouros possuíam; e assim outros muitos choraram que deram asas à fama<br />
com seus triunfos. E à vista destes, que admiração pode causar que eu chore,<br />
ven<strong>do</strong>-me tão desluzi<strong>do</strong>? Bem disse Menandro 601 que mais se devia temer a<br />
menor afronta <strong>do</strong> que o maior perigo; porque este parava no corpo, porém a<br />
afronta na alma. O mesmo parecer seguiu Quintiliano 602 dizen<strong>do</strong> que podia<br />
antes tolerar-se a ira no rigor <strong>do</strong> que o vitupério na brandura.<br />
Lembra-me que refere Quinto Cúrcio 603 que ven<strong>do</strong>-se o brioso ateniense<br />
Dioxipo infama<strong>do</strong> diante <strong>do</strong> grande Alexandre de lhe levantarem que havia<br />
furta<strong>do</strong> <strong>da</strong> mesa <strong>do</strong> monarca uma riquíssima taça de ouro, que os invejosos<br />
inimigos de seu valor cautelosamente pelo desacreditarem esconderam,<br />
ven<strong>do</strong>-se ele sem culpa tão indecorosamente trata<strong>do</strong>, escreven<strong>do</strong> primeiro uma<br />
carta a Alexandre em que lhe manifestava sua inocência, não poden<strong>do</strong> sofrer o<br />
abatimento de sua fama, impaciente com um punhal se tirou a vi<strong>da</strong>. E lá disse<br />
o Plauto que durava mais a memória <strong>do</strong> vilipêndio <strong>do</strong> que a vi<strong>da</strong>: porque esta<br />
podia acabar-se em breve tempo, mas a memória <strong>da</strong> padeci<strong>da</strong> afronta ain<strong>da</strong><br />
depois <strong>da</strong> morte dura. Vive mais durável na lembrança <strong>do</strong>s homens o<br />
indecoroso de um infelice que o soberano de um generoso: porque as<br />
Menand., apud Stob.<br />
Quint., Decl. 15.<br />
Quint. Curt.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 719<br />
grandezas o tempo as diminui e o abati<strong>do</strong> talvez o acrescenta; e fica com mais<br />
estímulos na memória o alto de que se cai que o baixo de que sobe.<br />
Com isto calou Polinar<strong>do</strong>, derraman<strong>do</strong> copiosas lágrimas de senti<strong>do</strong>, nas<br />
quais enterneci<strong>do</strong>s os três pie<strong>do</strong>sos ouvintes o acompanharam. Quis o Ermitão<br />
Felisberto ver se podia consolar suas queixas e <strong>da</strong>r algum alívio à sua tristeza;<br />
e assim serenan<strong>do</strong> o rosto na mágoa quanto lhe foi possível, porque só<br />
consolará a um aflito quem a própria <strong>do</strong>r de sua pena sente, lhe disse desta<br />
sorte:<br />
Cap. XXI.<br />
Da prática que Felisberto teve com Polinar<strong>do</strong> e como ele se partiu para Taranto<br />
com Hortênsio<br />
- Se bem quiserdes, senhor Polinar<strong>do</strong>, considerar a raiz <strong>da</strong> pena que<br />
tanto vos molesta com o presente esta<strong>do</strong> em que vos vedes, porventura que<br />
nem avalieis vossa <strong>do</strong>r por tão incapaz de alívio, nem vossa pena por tão<br />
impossível de remédio. Primeiramente os reis, príncipes e respúblicas isentas e<br />
soberanas nas sentenças que dão por seus ministros não agravam, assim<br />
como as palavras <strong>do</strong>s reis e príncipes soberanos nos não ofendem; porque<br />
como pelo supremo e inviolável <strong>da</strong> digni<strong>da</strong>de são isentos de poderem ser<br />
ofendi<strong>do</strong>s, assim suas palavras, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> fossem injuriosas, não ofendem<br />
a seus vassalos. Tem aos ministros de sua justiça concedi<strong>do</strong> o supremo de seu<br />
poder para administrarem, e assim executan<strong>do</strong> a justiça não ofendem. A pena<br />
de galés é afrontosa quan<strong>do</strong> a causa a culpa com a vileza: que o cativo nas<br />
masmorras an<strong>da</strong> de grilhões e cadeias carrega<strong>do</strong> e o barqueiro no seu barco<br />
rema, e nem o cativo com o pesa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ferros, nem o barqueiro com o duro <strong>do</strong><br />
remo ficam abati<strong>do</strong>s, porque lhes falta a culpa; e assim não é afronta nem as<br />
cadeias que o cativo arrasta, nem o remo que o barqueiro empunha. Ovídio 604<br />
disse que menos <strong>do</strong>r causava o padecer a pena <strong>do</strong> que o merecê-la, porque a<br />
não ser justamente mereci<strong>da</strong> pela culpa, não se chamaria propriamente pena.<br />
Ovid., 2. De Pont.
720 Padre Mateus Ribeiro<br />
Vós, senhor Polinar<strong>do</strong>, pelo que tendes referi<strong>do</strong>, não fostes nem<br />
culpa<strong>do</strong>, nem sabe<strong>do</strong>r <strong>da</strong> lamentável morte <strong>da</strong> duquesa Vitória, que foi<br />
geralmente em to<strong>da</strong> Itália tão senti<strong>da</strong>, nem propriamente fostes culpa<strong>do</strong> na<br />
resistência de Luís Orsino, pois a não aprovastes, antes como a to<strong>do</strong>s tão<br />
arrisca<strong>da</strong> a desviastes e com vivas razões contradissestes. Pois em que<br />
consiste aqui a vileza <strong>da</strong> culpa, para que tanto sintais o abatimento <strong>da</strong> pena?<br />
Quem não degenerou no afrontoso, por que há-de sentir tanto o abatimento de<br />
castiga<strong>do</strong>? Nunca vistes pegar-se casualmente o fogo a uma casa e,<br />
aumentan<strong>do</strong>-se o vigor <strong>da</strong>s vorazes chamas entre as faíscas ardentes que o<br />
incêndio arroja, arderem muitas vezes as casas vizinhas; e sen<strong>do</strong> uma só a<br />
que deu motivo ao incêndio no descui<strong>do</strong>, serem muitas as que padecem a<br />
pena na desgraça? Pois desta sorte a culpa que cometeram os delinquentes,<br />
pela vizinhança <strong>da</strong> companhia vos fez participante <strong>da</strong> pena, sem haverdes<br />
<strong>da</strong><strong>do</strong> causa ao delinquin<strong>do</strong>. O haverdes-vos retira<strong>do</strong> à casa de Luís Orsino<br />
para vos assegurardes <strong>da</strong> justiça não foi culpa, foi desgraça; pois o prever<br />
antecipa<strong>da</strong>mente o que podia resultar-vos deste infortuna<strong>do</strong> asilo nem é<br />
empenho <strong>da</strong> providência humana descifrar os futuros, nem assunto <strong>do</strong> discurso<br />
poder acautelar tanto de antemão com os remédios. Pois aonde se não dão<br />
aparências <strong>do</strong> <strong>da</strong>no, quem poderá <strong>da</strong>r prevenções ao reparo?<br />
O ser nas empresas mal afronta<strong>do</strong> não é culpa que deslustre, pois nem<br />
sempre patrocina a fortuna o que com acertos se emprende. Só a Lisandro,<br />
capitão <strong>do</strong>s lacedemónios, por venturoso em to<strong>da</strong>s as batalhas que emprendia,<br />
foi a fortuna tão propícia que se dizia dele que a fortuna ganhava praça de<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong> em segui-lo, porque o acompanhava tão propícia a to<strong>da</strong> a parte que ia<br />
como se seu próprio sol<strong>da</strong><strong>do</strong> estipendiário fosse. Porém nem to<strong>do</strong>s podem ter<br />
a ventura de Lisandro no feliz. Quantos ilustres cavaleiros, sena<strong>do</strong>res e<br />
cônsules romanos padeceram cruéis e afrontosas mortes nas leves prescrições<br />
de Mário, Lúcio Sila, Augusto César, Lépi<strong>do</strong> e Marco António sem haverem<br />
cometi<strong>do</strong> vilezas, nem afrontosos delitos, como refere Apiano Alexandrino, nas<br />
guerras civis de Roma, e nem seus filhos e descendentes ficaram depois<br />
menos estima<strong>do</strong>s? Porque a pena não causa afronta, se não assenta sobre o<br />
afrontoso <strong>da</strong> culpa. Assim, senhor Polinar<strong>do</strong>, uma vez que não chegou a injúria<br />
a culpa, não incorrestes no indecoroso <strong>da</strong> pena.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 721<br />
Tem os planetas suas exaltações e abatimentos: uns se levantam,<br />
quan<strong>do</strong> os outros se abatem; mas como as esferas lhes não impossibilitam que<br />
<strong>do</strong>s abatimentos e que<strong>da</strong>s se levantem, não os privan<strong>do</strong> <strong>da</strong>s luzes, sempre<br />
ficam planetas. Caístes, senhor Polinar<strong>do</strong>, ao abatimento <strong>do</strong>s ferros e <strong>do</strong> remo,<br />
mas ain<strong>da</strong> vos fica tempo para levantar-vos; que o sol, posto que se eclipse<br />
nos raios à nossa vista, em breve espaço restaura os resplan<strong>do</strong>res. Se no<br />
castigo acabásseis a vi<strong>da</strong>, seria mágoa grande ficardes sepulta<strong>do</strong> no desairoso<br />
<strong>da</strong> pena. É a morte pedra de estancar desejos, golpe que corta as asas ao voo<br />
e termo em que param to<strong>do</strong>s os desvelos, oceano em que se sepultam as<br />
correntes mais ligeiras <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Os que morrem indecorosos pode-se<br />
dizer que duas vezes morrem: uma por terminarem a vi<strong>da</strong> e outra por morrerem<br />
entre o labéu <strong>da</strong> afronta. Porém quem pode, com a dilação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, pelas obras<br />
honrosas condecorar a morte, de novo autoriza<strong>do</strong> pela fama vive. Os outros<br />
companheiros que convosco se prenderam e acabaram as vi<strong>da</strong>s, afronta<strong>do</strong>s<br />
pelos deméritos <strong>da</strong> culpa, e ficaram sepulta<strong>do</strong>s com os epitáfios de seu maior<br />
descrédito, não lograram a ventura de poderem com as vi<strong>da</strong>s obran<strong>do</strong> bem<br />
riscarem nem a memória de sua afronta, nem os epitáfios odiosos de seu<br />
suplico. Porém vós, fican<strong>do</strong> vivo, podereis com os progressos <strong>do</strong> bom<br />
procedimento <strong>do</strong> presente riscar as lembranças <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Esta diferença se<br />
dá <strong>do</strong> presente ao passa<strong>do</strong>: que o passa<strong>do</strong> pende <strong>da</strong> memória, mas o presente<br />
<strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s; e como estes sejam mais poderosos e eficazes para moverem <strong>do</strong><br />
que a memória, como por experiência se mostra, bem se infere que o que<br />
vemos de presente nos há-de mover mais que o passa<strong>do</strong>.<br />
Na guerra que Marco António fez aos partos, fugin<strong>do</strong>-lhe <strong>da</strong> batalha<br />
seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, ele ressenti<strong>do</strong> dizimou algumas <strong>da</strong>s esquadras que na fugi<strong>da</strong><br />
mais culpa<strong>da</strong>s eram, condenan<strong>do</strong> à morte de ca<strong>da</strong> dez um e os outros privou<br />
<strong>da</strong>s insígnias e armas militares, que era naquele tempo o mais afrontoso<br />
castigo que podia <strong>da</strong>r-se, e por maior vitupério lhes man<strong>do</strong>u pôr diante ceva<strong>da</strong><br />
para comerem, como conta Apiano Alexandrino no livro <strong>da</strong> guerra pártica. Os<br />
que foram dizima<strong>do</strong>s na morte não puderam mais apagar o labéu injurioso <strong>da</strong><br />
afronta em que por cobardes morreram; mas os que ficaram vivos souberam<br />
depois emen<strong>da</strong>r de sorte o vilipêndio <strong>do</strong> castigo, que alcançan<strong>do</strong> gloriosas<br />
vitórias, mereceram louros e coroas honrosas com que foram premia<strong>do</strong>s seus<br />
insignes merecimentos. Também o romano cônsul Luculo, na guerra de
722 Padre Mateus Ribeiro<br />
Mitri<strong>da</strong>tes, aos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que se mostraram cobardes na batalha, despoja<strong>do</strong>s<br />
<strong>da</strong>s armas e traje militar, os man<strong>do</strong>u meios despi<strong>do</strong>s cavar à enxa<strong>da</strong> como<br />
gasta<strong>do</strong>res nos valos e estra<strong>da</strong>s, que era bem vil castigo, e depois muitos<br />
deles obraram feitos ilustres com que foram autoriza<strong>do</strong>s e com prémios<br />
grandes remunera<strong>do</strong>s.<br />
Esta estra<strong>da</strong>, senhor Polinar<strong>do</strong>, vos ficou franquea<strong>da</strong> com a vi<strong>da</strong>, pois se<br />
vos vistes com o desaire de abati<strong>do</strong>, vos ficou a vi<strong>da</strong>, para com ela poderdes<br />
melhorar a fortuna; pois se dizem que a Fénix morre, dizem que de suas<br />
próprias cinzas torna de novo a renascer com a nova gala, sen<strong>do</strong> de si própria<br />
mãe e filha.<br />
Porventura será no mun<strong>do</strong> novi<strong>da</strong>de o subir <strong>do</strong> abatimento ao templo <strong>da</strong><br />
fama, nem <strong>do</strong> auge <strong>da</strong>s glórias populares baixar ao abatimento? Assim disse<br />
Juvenal 605 que em breves horas, voltan<strong>do</strong>-se a ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> que chamamos fortuna<br />
com a veloci<strong>da</strong>de que costuma, o humilde se via cônsul e o cônsul se via<br />
humilde. Porventura o mun<strong>do</strong> encerrou-se em Pádua, em Perúsia ou em<br />
Veneza? Sem sairdes de Itália tendes Nápoles, Florença, Mântua, Módena,<br />
Urbino, Génova e Sabóia: reinos, duca<strong>do</strong>s e senhorios livres; em qualquer <strong>do</strong>s<br />
quais assistin<strong>do</strong> podeis melhorar tanto <strong>da</strong> sorte que os que hoje vos vem neste<br />
traje abati<strong>do</strong>, então vos desconheçam por grandioso. Nem sempre a memória,<br />
disse o padre Santo Agostinho 606 , é tesoureira fiel <strong>do</strong> que se lhe entrega, pois<br />
tantas vezes falta no que, <strong>do</strong> que se lhe deu em guar<strong>da</strong>, se lhe pede. Com o<br />
que recebe de novo, facilmente risca o que guar<strong>da</strong><strong>do</strong> tinha, e se diverte <strong>do</strong><br />
passa<strong>do</strong> com os fantasmas impressos <strong>do</strong> presente. São os sujeitos<br />
compara<strong>do</strong>s aos rios, que quanto mais se apartam <strong>da</strong>s fontes em que<br />
nasceram, mais grandiosos se fazem. Que talvez é o nativo terreno obstáculo<br />
emulativo <strong>da</strong> grandeza, o que se não dá em alheias terras: porque a planta que<br />
com outras nasce junta cresce pouco e sen<strong>do</strong> transplanta<strong>da</strong> avulta muito.<br />
No castigo que vos deram não fostes vós só o castiga<strong>do</strong>. E se a<br />
igual<strong>da</strong>de no valimento <strong>da</strong> privança dá motivos à inveja, ao contrário nas<br />
aflições é incentivo <strong>do</strong> alívio. O valimento tem o gosto na sole<strong>da</strong>de e a pena a<br />
consolação na companhia; porque a pena sofre mal que só se padeça e a<br />
Juven., Satyr. 7.<br />
Aug., Lib. 2. Contra Acad. cap. 9.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 723<br />
privança aceita mal que outro a iguale. Consolai-vos, senhor, que não fostes<br />
vós só o puni<strong>do</strong>, pois foram tantos os condena<strong>do</strong>s. Eles levaram o pior e vós o<br />
menos; e suposto que não fosse igual a causa, pudera ser igual no infortúnio a<br />
pena. À vista <strong>do</strong>s que na batalha ficam mortos tem alívio os prisioneiros e os<br />
feri<strong>do</strong>s; à vista <strong>do</strong>s submergi<strong>do</strong>s nas on<strong>da</strong>s admite consolação o naufragante<br />
derrota<strong>do</strong>. Pois se fora possível <strong>da</strong>r-se escolha, os mortos se julgariam<br />
venturosos com o mesmo que os outros se avaliavam desgraça<strong>do</strong>s. A troco de<br />
salvar a vi<strong>da</strong>, se arroja ao mar em uma hora tu<strong>do</strong> o que a ambição desvela<strong>da</strong><br />
an<strong>do</strong>u adquirin<strong>do</strong> em muitos anos, e não repara o navegante em ficar pobre,<br />
contanto que fique vivo. E a razão será porque considera que com a vi<strong>da</strong> pode<br />
de novo restaurar-se o que com a morte chega de to<strong>do</strong> a perder-se. Assim vós,<br />
senhor, podeis restaurar com a vi<strong>da</strong> o que sem ela não pudéreis melhorar <strong>da</strong><br />
ventura. Estais hoje, senhor, de vossa liber<strong>da</strong>de, pren<strong>da</strong> de grande valor, como<br />
disse Diógenes 607 ; estais na primavera <strong>do</strong>s anos e não no decrépito <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> a velhice com o inerte <strong>da</strong>s forças vos dissuadisse a prosseguirdes o<br />
heróico <strong>da</strong> empresa a que podíeis aspirar como entendi<strong>do</strong>. Suspendei as<br />
lágrimas de magoa<strong>do</strong>: que porventura algum dia, quan<strong>do</strong> vos virdes em<br />
diferente fortuna, servirão de aumentar-vos alegrias com as lembranças destas<br />
que hoje chorais e sentis calami<strong>da</strong>des, comparan<strong>do</strong> o aflito em que vos vistes<br />
com o esta<strong>do</strong> diferente em que vos conhecerdes.<br />
Atento ouviu Polinar<strong>do</strong> os alívios que Felisberto lhe deu, de que lhe<br />
rendeu as graças mais consola<strong>do</strong> em sua pena e de novo lhe pediu conselho<br />
no caminho que seguiria. Adiantou-se à resposta o cativo Hortênsio, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Esse, senhor Polinar<strong>do</strong>, com licença destes senhores, direi eu (a) , por<br />
me parecer na presente ocasião o mais acerta<strong>do</strong>. E é que mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> juntamente<br />
comigo de traje, venhais em minha companhia para Taranto, aonde em minha<br />
casa sereis hospe<strong>da</strong><strong>do</strong> e de mim em tu<strong>do</strong> favoreci<strong>do</strong>, pois sen<strong>do</strong> o senhorio <strong>do</strong><br />
reino de Nápoles, estais <strong>da</strong>s ordens de Perúsia seguro e em minha companhia<br />
livre de serdes de vossos contrários perturba<strong>do</strong>. Daí escrevereis a vossa mãe e<br />
cunha<strong>do</strong> para vos certificardes <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de vossos negócios, e com seu aviso<br />
resolvereis o que mais conveniente vos for. Eu espero hoje a meus cria<strong>do</strong>s<br />
Diog., apud Laert, Lib.7.<br />
Na edição de 1734 lê-se: Esse, senhores, direi eu.
724 Padre Mateus Ribeiro<br />
para nos acompanharem. E se estes senhores tem já satisfeita a romaria,<br />
receberei grande favor em que vamos to<strong>do</strong>s de companhia, por não perdermos<br />
o gosto que a to<strong>do</strong>s dela nos resulta.<br />
To<strong>do</strong>s aprovaram e se resolveram no parecer. E partin<strong>do</strong>-se logo<br />
Hortênsio e Polinar<strong>do</strong> para a feira de Recanate, comprou Hortênsio um rico<br />
vesti<strong>do</strong> para si e outro mui decente para Polinar<strong>do</strong> com to<strong>do</strong> o adereço<br />
necessário. E <strong>da</strong>n<strong>do</strong> aos pobres os vesti<strong>do</strong>s que de antes traziam, ca<strong>da</strong> um<br />
ficou vivamente representan<strong>do</strong> o político esta<strong>do</strong> em que de antes se viram.<br />
Chegaram nessa noite ao Loreto <strong>do</strong>us cria<strong>do</strong>s de Hortênsio, que traziam um<br />
cavalo bem adereça<strong>do</strong> para ele voltar <strong>da</strong> romaria, no qual ele não quis ir por<br />
acompanhar a pé aos romeiros. E assim na manhã seguinte, despedin<strong>do</strong>-se<br />
to<strong>do</strong>s <strong>da</strong> milagrosa imagem <strong>da</strong> Senhora <strong>do</strong> Loreto com cordiais sau<strong>da</strong>des que<br />
de sua vista levavam, se partiram em companhia, fazen<strong>do</strong> o gasto Hortênsio<br />
com grande largueza nos hospícios <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong>.<br />
Cap. XXII.<br />
Do encontro que Felisberto e Dionísio, seu companheiro, tiveram antes de<br />
chegarem ao sítio <strong>da</strong> sua ermi<strong>da</strong><br />
Discursan<strong>do</strong> os nossos caminhantes sobre a varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s contínuas<br />
mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, tão propriamente representa<strong>da</strong>s nos passa<strong>do</strong>s sucessos e<br />
em várias histórias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que repetiam, vieram por suas jorna<strong>da</strong>s<br />
costuma<strong>da</strong>s até à Apulha Capitanata, aonde despedin<strong>do</strong>-se deles os <strong>do</strong>us<br />
companheiros Hortênsio e Polinar<strong>do</strong> para seguirem o caminho direito de<br />
Taranto, com repeti<strong>da</strong>s sau<strong>da</strong>des de sua discreta companhia ficaram Felisberto<br />
e seu companheiro Dionísio sós. E porque com os desejos que tinham de<br />
chegarem já à sua ermi<strong>da</strong>, que poucas milhas distava, não reparavam em<br />
continuarem o caminho de noite por ser o tempo de Verão e calmoso. Cobriu-<br />
se o ar de espessa névoa, que subin<strong>do</strong> <strong>do</strong> mar veio empavesan<strong>do</strong> a terra; e<br />
fechan<strong>do</strong> a noite escura as portas aos senti<strong>do</strong>s, tu<strong>do</strong> parecia densas trevas,<br />
embargan<strong>do</strong> os passos a quem caminhar intentasse. Era isto bem molesto aos<br />
nossos romeiros por se acharem entre os penhascosos outeiros <strong>do</strong> monte<br />
Apenino e erra<strong>do</strong> o caminho que seguir deviam, porque o tenebroso não
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 725<br />
permitia aos olhos roteiro nem seguia os discursos. Suspenderam a jorna<strong>da</strong> até<br />
que a saí<strong>da</strong> <strong>da</strong> lua, que então era dilata<strong>da</strong>, ou o brilhante luzimento <strong>da</strong>s<br />
primeiras luzes <strong>da</strong> manhã lhes dessem passaporte franco para caminharem.<br />
Só um rio estron<strong>do</strong>so rompia ao silêncio o nome, porque não temia ser<br />
castiga<strong>do</strong> por rompê-lo. Eram as horas mu<strong>da</strong>s, o sítio solitário, o escuro<br />
pavoroso, o ruí<strong>do</strong> <strong>da</strong>s águas formidável, o lugar desconheci<strong>do</strong> e finalmente<br />
tu<strong>do</strong> ocasiona<strong>do</strong> para causar pena e não alívio.<br />
Mais <strong>da</strong> meia-noite seria já passa<strong>da</strong>, vagarosa para quem espera, ain<strong>da</strong><br />
que veloz na ligeireza de seu curso, quan<strong>do</strong> se ouviram uns gemi<strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s<br />
de pessoa que se queixava. Suspendeu-os o enterneci<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ecos; e<br />
obriga<strong>do</strong>s <strong>da</strong> cari<strong>da</strong>de, que, como diz S. Jerónimo 608 , rompe por to<strong>do</strong> o temor,<br />
parecen<strong>do</strong>-lhes que quem a tais horas e em tal sítio se queixava necessitaria<br />
de socorro, foram guian<strong>do</strong> os passos pelas vozes, rompen<strong>do</strong> pela dificul<strong>da</strong>de<br />
<strong>do</strong> áspero caminho e pelo assombro <strong>da</strong>s trevas <strong>da</strong> noite, que sempre foram<br />
arrisca<strong>da</strong>s a irreparáveis <strong>da</strong>nos, como se viu na batalha de Cremona entre<br />
Vespasiano e Vitélio, aonde por ser <strong>da</strong><strong>da</strong> de noite, se mataram pais e filhos e<br />
irmãos a irmãos sem se conhecerem. Algum espaço caminharam, servin<strong>do</strong>-<br />
Ihes de farol os gemi<strong>do</strong>s, até que chegaram a um vale em que o fecha<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
arvore<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> no dia mais luzi<strong>do</strong> pudera causar tristeza a quem nele se visse.<br />
Avizinhan<strong>do</strong>-se pois às vozes, viram em terra deita<strong>do</strong> quem nas intercadências<br />
<strong>da</strong> voz mostrava o quanto estava já enfraqueci<strong>do</strong>.<br />
Compadeci<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>us companheiros <strong>do</strong> lastimoso encontro em sítio<br />
tão impróprio para o remédio e tempo tão incomo<strong>do</strong> para o socorro, e<br />
conhecen<strong>do</strong> pelas queixas que estava mal feri<strong>do</strong>, mais palpan<strong>do</strong> <strong>do</strong> que ven<strong>do</strong>,<br />
descobriram três feri<strong>da</strong>s: uma na cabeça e duas nos braços. Trataram com os<br />
lenços de impedir-lhe o sangue o melhor que puderam, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe alento com<br />
que as feri<strong>da</strong>s não mostravam haver perigo e que já não podia dilatar-se muito<br />
o dia: que, como disse Euripides 609 , é a alegria geral de to<strong>do</strong>s os tristes.<br />
Cortaram alguns ramos <strong>da</strong>s fron<strong>do</strong>sas árvores, com que lhe fizeram um tosco<br />
leito em que se recostasse, e cobrin<strong>do</strong>-o com os seus mantos para que o<br />
sereno <strong>da</strong> noite o não molestasse, o consolaram o melhor que puderam.<br />
Div. Hier., De cust. Virg.<br />
Eurip., in Orest.
726 Padre Mateus Ribeiro<br />
Vinham já a este tempo batalhan<strong>do</strong> contra o escuro rigor <strong>da</strong>s trevas os<br />
resplan<strong>do</strong>res <strong>da</strong> lua, com que começou algum a aclarar-se o vale, e o feri<strong>do</strong><br />
mancebo, mais alenta<strong>do</strong> com a vizinhança <strong>da</strong> luz, pon<strong>do</strong> os olhos em os<br />
nossos romeiros, lhes disse:<br />
- Pague-vos Deus, cari<strong>do</strong>sos senhores, este tão pie<strong>do</strong>so socorro que<br />
me destes em ocasião tão aperta<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> me vejo tão aflito que as <strong>do</strong>res de<br />
minhas feri<strong>da</strong>s, com serem grandes, são um átomo se se comparam com as de<br />
minha alma e com as mágoas e sentimentos de meu coração. É deste o<br />
desafogo seu único alívio e neste considero seu maior tormento; pois o repetir<br />
mágoas é <strong>do</strong>brá-las pela repetição e o sofrê-las sem publicá-las é fazê-las<br />
intoleráveis pelo intenso <strong>da</strong> <strong>do</strong>r. Manifestar a <strong>do</strong>r é reparti-la com quem a ouve<br />
enterneci<strong>do</strong>; e o não publicá-la é descrédito <strong>do</strong> sofrimento de quem a padece,<br />
parecen<strong>do</strong> ser menos o animoso <strong>do</strong> valor <strong>do</strong> que a graveza <strong>do</strong> <strong>da</strong>no. E assim<br />
não sei qual destes extremos escolha, se o silêncio para não magoar-vos,<br />
conhecen<strong>do</strong>-me tão obriga<strong>do</strong>, se o declarar meu sentimento, por que não me<br />
julgueis por mal sofri<strong>do</strong>.<br />
Assim falou o feri<strong>do</strong> mancebo, e compadeci<strong>do</strong>s os romeiros de seu<br />
grande sentimento e juntamente desejosos de saberem a causa <strong>da</strong> pena que<br />
tanto exagerava, lhe pediram muito que enquanto se avizinhava o dia, se a<br />
fraqueza lho permitia, lhes desse notícia de seus pesares, pois talvez quan<strong>do</strong><br />
fosse incapaz seu sentimento de remédio, porventura que o não seria de alívio.<br />
E ele, queren<strong>do</strong> satisfazer a seus rogos, disse assim:<br />
- Tive por pátria a ilustre vila de Campobasso, situa<strong>da</strong> na planície que<br />
formam os vales entre os levanta<strong>do</strong>s outeiros <strong>do</strong> monte Apenino, e não muito<br />
distante <strong>da</strong> cau<strong>da</strong>losa corrente <strong>do</strong> rio Tortoro, que vizinho deste sítio em que<br />
estamos, saltean<strong>do</strong> aos arroios (a) que encontra o cabe<strong>da</strong>l <strong>da</strong>s águas que<br />
levam, a tiros de cristal inculpável ban<strong>do</strong>leiro os despoja delas. É esta vila,<br />
minha pátria, título de con<strong>da</strong><strong>do</strong> e de quem tem saí<strong>do</strong> insignes sujeitos, assim<br />
nas armas como nas letras. Nesta nasci de nobres e ricos pais e me puseram<br />
por nome Aureliano; fui filho único, falecen<strong>do</strong> meu pai <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> presente quan<strong>do</strong><br />
eu tinha de i<strong>da</strong>de nove anos. Fiquei na tutoria e cui<strong>da</strong><strong>do</strong> de minha mãe viúva,<br />
sen<strong>do</strong> o desvelo de seu amor e o báculo de suas esperanças. Estudei com<br />
(a) Sem qualquer alteração de senti<strong>do</strong>, a edição de 1734 regista <strong>ribeiro</strong>s no lugar de arroios.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 727<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong> enquanto não conheci outros que me divertissem, sen<strong>do</strong> o norte que<br />
seguia a lisonja de saber e o gosto de aos outros me adiantar. Teria eu já vinte<br />
anos de i<strong>da</strong>de, quan<strong>do</strong> a umas festas grandes que na vila se celebravam por<br />
espaço de alguns dias, veio assistir em casa de um seu tio, pessoa bem ilustre,<br />
rica e respeita<strong>da</strong>, uma moça forasteira, que não era possível ser natural, quem<br />
era em tu<strong>do</strong> peregrina.<br />
Era Leonisa, que assim se chamava esta <strong>do</strong>nzela, perigo para vista,<br />
áspide que entre as rosas de seu rosto para matar feria, sen<strong>do</strong> desafio <strong>da</strong><br />
neve, <strong>da</strong> púrpura desmaio, competência <strong>do</strong> sol, agravo de Abril e vitória de<br />
Maio. Só nela parecia que florecia o pra<strong>do</strong>, retiran<strong>do</strong>-se as açucenas de<br />
senti<strong>da</strong>s, porque Leonisa as despojou <strong>do</strong>s can<strong>do</strong>res. Encontrou-se com seus<br />
olhos o sol e desconheceu-se, porque se viu duplica<strong>do</strong> sen<strong>do</strong> só. Eram seus<br />
cabelos tão dilata<strong>do</strong>s como louros, e o cobrir-se com eles era vestir-se de raios.<br />
Se os entrançava, pareciam laços de ouro em que o sol se revia; e se os<br />
largava, eram dilúvios de luz de que o sol se receava. Compendiou nela a<br />
natureza tantos mares de fermosura que fez cifra <strong>do</strong> belo em seu <strong>do</strong>naire,<br />
porque o reparti<strong>do</strong> pelas mais fermosas se via epiloga<strong>do</strong> em Leonisa. Era a<br />
lisonja mais aplaudi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s olhos, se nas ver<strong>da</strong>des pudera haver lisonja, não<br />
queren<strong>do</strong> dever ao encareci<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> ficava curto para ela to<strong>do</strong> o<br />
encarecimento. Não se <strong>da</strong>va Leonisa por obriga<strong>da</strong> de quem à sua vista se<br />
rendia, porque avaliava por triunfos os que eram voluntários rendimentos, e<br />
não lhe competin<strong>do</strong> o senhorio por nascimento, o queria lograr por fermosa.<br />
Era enfim Leonisa prodigioso encanto <strong>da</strong>s vontades, se na beleza pudera haver<br />
prodígios, e quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> perigo fogem to<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>s amavam nela o perigo.<br />
Empenhei-me em amar a Leonisa com desejos que fosse minha esposa,<br />
saben<strong>do</strong> que era ilustríssima no sangue, <strong>da</strong>s famílias mais ilustres de Bolonha,<br />
aonde com sua mãe viúva assistia. Era filha única, e como tal era bem <strong>do</strong>ta<strong>da</strong>;<br />
na beleza admiração e mui discreta no juízo, para que fosse rara em tu<strong>do</strong>.<br />
Dilatou-se sua assistência em casa de seu tio alguns meses; porque como<br />
carecia de filhos e já <strong>da</strong>s esperanças de os ter, quis a ela perfilhá-la para a<br />
fazer de to<strong>do</strong>s seus bens herdeira. Tomou-se sua mãe para Bolonha e pediu<br />
meu gosto de sua assistência alvíssaras a meu desejo pelo venturoso de tal<br />
nova. Oh quantas vezes se celebra com alvoroços o motivo <strong>da</strong> futura pena!
728 Padre Mateus Ribeiro<br />
lnquietaram-se os sujeitos mais luzi<strong>do</strong>s <strong>da</strong> vila na pertensão de tão<br />
deseja<strong>da</strong>s bo<strong>da</strong>s; porém era tal nela a isenção que o muito mostrava estimar<br />
em pouco, fazen<strong>do</strong> desprezo <strong>da</strong>s venerações e ludíbrio <strong>do</strong>s mais cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sos<br />
desvelos. Desespera<strong>do</strong>s se viam os amantes, e quan<strong>do</strong> mais ofendi<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
isenção, se mostravam mais empenha<strong>do</strong>s no intento, quan<strong>do</strong> na balança de<br />
seu gosto os mais finos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s pesavam na<strong>da</strong>. Ente os queixosos fui eu o<br />
mais magoa<strong>do</strong>, seria por me sentir de seus olhos o mais feri<strong>do</strong>, pois aonde é<br />
maior a <strong>do</strong>r, dá motivos a ser maior a queixa. Nestas impaciências de amante,<br />
que a ser sofri<strong>do</strong> o amor não se pintara menino, em quem a queixa pende mais<br />
<strong>do</strong> gosto encontra<strong>do</strong> que <strong>da</strong> razão ofendi<strong>da</strong>, sucedeu que um dia saí no campo<br />
solitário, por ver se o divertimento <strong>do</strong> pra<strong>do</strong> poderia causar-me algum alívio,<br />
fazen<strong>do</strong> tréguas com meu cui<strong>da</strong><strong>do</strong>. Senta<strong>do</strong> estava no fresco de uma fonte,<br />
que entre copa<strong>do</strong>s freixos nasci<strong>da</strong> murmurava de meus desvelos bem<br />
nasci<strong>do</strong>s, porém mal premia<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> vi entre trémulas cores retrata<strong>da</strong> na<br />
fonte a Leonisa, não sen<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> poderoso só o bulício inquieto <strong>do</strong>s cristais<br />
para impedir o belo <strong>da</strong> pintura.<br />
Assustou-me a novi<strong>da</strong>de, parecen<strong>do</strong>-me ilusão <strong>da</strong> fantasia ver na fonte a<br />
ideia que na apreensão presente tinha. Levantei-me e chegou meu espanto ao<br />
mais subi<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> entre os freixos que a fonte cercavam vi a Leonisa, que<br />
acompanha<strong>da</strong> de uma cria<strong>da</strong> vinha ver a fonte, apartan<strong>do</strong>-se de seus tios e<br />
família, que em uma fresca alame<strong>da</strong> que vizinha estava, estavam logran<strong>do</strong> o<br />
vistoso de Abril na ameni<strong>da</strong>de <strong>do</strong> campo. Quis ela apressa<strong>da</strong> retirar-se antes<br />
de ser senti<strong>da</strong>, mas não lho permitiu meu antecipa<strong>do</strong> alvoroço, que antes que a<br />
ocasião se malograsse, lhe disse assim:<br />
- Não devo, ingrata Leonisa, à tua pie<strong>da</strong>de este não espera<strong>do</strong> encontro,<br />
mas só à minha ventura, para ti violenta<strong>da</strong> e para mim festiva, pois a tantos<br />
escritos não mereci resposta, nem a tantos desvelos galardão. Já sabes quem<br />
sou, pois em minha pátria vives, para seres minha esposa. Se me falta a<br />
ventura, tu<strong>do</strong> me falta, e se tem valia o amor, tu<strong>do</strong> nele me sobra. Amor contra<br />
a ventura mais é delito <strong>do</strong> desejo que acerto <strong>da</strong> razão. Mas em mim não tem<br />
lugar o discurso, porque [o] larguei to<strong>do</strong> à vontade. Fineza era esta que pudera<br />
ser agradeci<strong>da</strong>, se fora venturosa. Mas onde acharei a ventura, se tu me faltas,<br />
quan<strong>do</strong> tenho deposita<strong>do</strong> em ti minha cabal ventura?
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 729<br />
Não esperou Leonisa que mais dissesse, assinan<strong>do</strong> a púrpura <strong>do</strong> rosto<br />
no sobressalto de ouvi-las, e me respondeu brevemente estas palavras:<br />
- Se queres, Aureliano, abonar teu querer não com palavras, mas com<br />
finezas, convém que deixes a amizade de teu amigo Alexandre, pois seu pai foi<br />
sempre inimigo declara<strong>do</strong> de meu tio, como sabes, e não convém que tua<br />
amizade possa comunicar meus segre<strong>do</strong>s a quem é tão contrário à nossa<br />
família. Verei agora se estimas em mais sua amizade, se meu gosto.<br />
Dizen<strong>do</strong> isto, voltou as costas sem mais querer ouvir-me, porque a sua<br />
gente a buscá-la vinha. Considerai, senhores, a suspensão em que eu ficaria,<br />
ven<strong>do</strong>-me cerca<strong>do</strong> de <strong>do</strong>us extremos, para que por um deles cortasse. Era<br />
Alexandre meu grande amigo desde os prelúdios de nossa i<strong>da</strong>de na tironice<br />
<strong>do</strong>s anos, haven<strong>do</strong>-nos cria<strong>do</strong> como irmãos na escola e no esta<strong>do</strong>. Era <strong>da</strong><br />
principal família na nobreza e morga<strong>do</strong> rico nas possessões, mui visto nas<br />
letras humanas e finalmente o particular amigo que tinha. E haver de quebrar<br />
com ele sem causa, porque nenhuma havia, nem razão ao discurso de tantos<br />
anos de ver<strong>da</strong>deira amizade, parecia desairoso proceder, mais ocasiona<strong>do</strong> às<br />
censuras de to<strong>do</strong>s que às desculpas <strong>do</strong>s discretos. Por outra parte, via o<br />
rigoroso preceito de Leonisa, legisla<strong>do</strong>ra de meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, em que me<br />
ordenava sacrificasse nas aras de seu querer o estima<strong>do</strong> de meu pun<strong>do</strong>nor,<br />
em quebrar sem fun<strong>da</strong>mento com um amigo tão antigo e merece<strong>do</strong>r de ser<br />
preza<strong>do</strong>.<br />
Nestas tréguas penosas em que se ocupava meu discurso, sem<br />
deliberar-me no que faria, passei <strong>do</strong>us dias tão melancólico que veio Alexandre<br />
a reparar em minha tristeza pelo hábito em que estava de mostrar-me alegre.<br />
Importunou-me com rogos e perguntas os motivos que podiam <strong>da</strong>r-se de estar<br />
eu tão triste, e fez tanta instância que, ven<strong>do</strong> eu que o tempo ao fim havia de<br />
descifrar o oculto desta batalha que na oculta campanha de meu peito se <strong>da</strong>va<br />
entre a razão e o querer, pois persuadia ao mesmo que a razão condenava, lhe<br />
vim a manifestar ser a causa o que havia passa<strong>do</strong> com Leonisa. Ouviu-me<br />
atento Alexandre a inadverti<strong>da</strong> informação que lhe dei, mais arrojo de quem<br />
amava que discursa<strong>do</strong> acerto de quem entendia. E depois de suspender um<br />
pouco a resposta, me disse assim:
730 Padre Mateus Ribeiro<br />
- Admira<strong>do</strong> me deixa a novi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ocasião de vossa tristeza, e agora<br />
me lembra que discretamente falou Marcial 610 , quan<strong>do</strong> disse que a razão por<br />
que não aprovava serem as amizades muito grandes, era porque se viessem<br />
algum dia a quebrar, não houvesse tanto que na per<strong>da</strong> delas sentir. Se vós<br />
fôreis, Aureliano, tão ver<strong>da</strong>deiro amigo meu como eu o fui sempre vosso, nem<br />
vos mostráreis triste pelo que Leonisa vos man<strong>da</strong>va, nem chegáreis tão senti<strong>do</strong><br />
a declarar-me a condição odiosa que vos pedia. Que esperáveis de manifestar-<br />
me a causa de vosso sentimento, senão que eu me desse por perdi<strong>do</strong>?<br />
Porventura pretenderia eu que, por continuar na amizade, perdêsseis vós os<br />
interesses que julgais adquirirdes com Leonisa? Não me convinha a mim ser<br />
motivo de vossos desgostos, nem que por meu respeito perdêsseis a<br />
esperança <strong>da</strong> pretensão. Se bem consideráreis, mais foi em Leonisa esse<br />
preceito despedi<strong>da</strong> de discreta que fineza de amorosa. Amor, quan<strong>do</strong> é<br />
ver<strong>da</strong>deiro, não chega a apurar o cabe<strong>da</strong>l <strong>do</strong> sofri<strong>do</strong> com o excessivo <strong>do</strong><br />
experimenta<strong>do</strong>; porque aventurar o amante a poder faltar na execução <strong>do</strong><br />
pedi<strong>do</strong> é arriscar-lhe o empenho aos desaires de pouco pontual, e expor-me ao<br />
perigo é descrédito grande <strong>do</strong> amor. Daqui infiro eu que o man<strong>da</strong>r-vos Leonisa<br />
a deixar minha amizade mais foi desculpa para despedir-vos <strong>do</strong> que cautela<br />
preveni<strong>da</strong> para assegurar-se.<br />
Pusestes em balança seu amor com minha amizade e foram falsos os<br />
pesos em parecer-vos que Leonisa pesava mais. Porque, como diz Terêncio, o<br />
amigo, se é ver<strong>da</strong>deiro, sempre persevera, mas o amante brevemente pode<br />
mu<strong>da</strong>r-se e faltar. Cobristes o rosto <strong>da</strong> mais profun<strong>da</strong> tristeza, para que nela<br />
conhecessem a despedi<strong>da</strong> que me dáveis; mais vos devera se vos mostráreis<br />
alegre <strong>do</strong> que vos fico obriga<strong>do</strong> em vos manifestardes triste. Porque na alegria<br />
pudera entender que duvidáveis, porém na tristeza bem mostrais que me<br />
excluíeis. Antepusestes o desejo à razão, a novi<strong>da</strong>de ao antigo, o duvi<strong>do</strong>so ao<br />
experimenta<strong>do</strong> e finalmente uma esperança nas asas <strong>da</strong> ventura a um amigo<br />
tão ver<strong>da</strong>deiro desde o pueril prelúdio <strong>da</strong> criação. Muito vos devera se<br />
calásseis, na<strong>da</strong> vos fico a dever na locução com que declarastes o pesar, pois<br />
calan<strong>do</strong> me podíeis deixar duvi<strong>do</strong>so e agora me deixais desengana<strong>do</strong>. Da<br />
Mart., Lib. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 731<br />
dúvi<strong>da</strong> ficava apelação para a incerteza <strong>da</strong> causa, mas <strong>do</strong> desengano não se<br />
apela mais que para perpétua despedi<strong>da</strong>.<br />
Assim falou Alexandre, e sem esperar ouvir as desculpas que queria<br />
<strong>da</strong>r-lhe, se despediu ressenti<strong>do</strong>, de que eu fiquei bem pesaroso, advertin<strong>do</strong><br />
então o pouco que andei considera<strong>do</strong> em lhe haver descoberto a causa de<br />
minha tristeza. Os pouco venturosos sempre erram nas empresas, pois vai<br />
pouco o discursar a razão, se desfavorece a ventura. Desengana<strong>do</strong> já <strong>da</strong><br />
amizade de Alexandre, por não perder to<strong>da</strong>s as esperanças, intentei de<br />
prosseguir o empenho de Leonisa. Porém achei fecha<strong>da</strong>s as portas ao desejo:<br />
porque publican<strong>do</strong> Alexandre o que comigo passara, não sei se por desculpar a<br />
quebra <strong>da</strong> amizade, se por vingar-se <strong>da</strong> ofensa, de que Leonisa ressenti<strong>da</strong> não<br />
permitiu mais que papel meu a suas mãos chegasse. E sen<strong>do</strong> seu tio contrário<br />
<strong>do</strong> pai de Alexandre de muito tempo, foram tantos os empenhos que Alexandre<br />
fez por pessoas as mais principais e autoriza<strong>da</strong>s que nisso intervieram, que<br />
não só se fizeram as amizades entre eles, mas para maior firmeza delas se<br />
concluiu o casamento de Leonisa com Alexandre, porque ele era morga<strong>do</strong> e<br />
bem rico e ela mui ilustre, de seu tio bem <strong>do</strong>ta<strong>da</strong>.<br />
Apenas ouvi a certeza dessa para mim trágica nova, quan<strong>do</strong> impaciente<br />
ao tormento <strong>da</strong> mágoa, ven<strong>do</strong> que não podia vingar-me como ofendi<strong>do</strong>, porque<br />
me faltava o poder para ficar desagrava<strong>do</strong>, determinei ausentar-me de minha<br />
pátria com título de ir estu<strong>da</strong>r a Bolonha, para que não houvesse de ser<br />
violenta<strong>da</strong> testemunha <strong>da</strong>s alegrias de seu recebimento, e juntamente por ver<br />
se, meten<strong>do</strong> terra em meio, teriam algum divertimento meus tão vivos<br />
desgostos. Mandei diante a um cria<strong>do</strong> a que me preparasse a casa, e minha<br />
mãe, ansia<strong>da</strong> com as sau<strong>da</strong>des de minha ausência e conhecen<strong>do</strong> bem a causa<br />
dela, ven<strong>do</strong> que já queria partir-me de seus olhos, me disse:<br />
- Aonde, Aureliano, filho meu, te querem apartar de minha vista mais as<br />
mágoas que dissimulas <strong>do</strong> que os estu<strong>do</strong>s que publicas? Em que te ofendeu<br />
uma mãe que tanto te ama, para quereres que acabe a vi<strong>da</strong> em sau<strong>da</strong>des e<br />
que o único refúgio que me deixou a ventura seja hoje o verdugo que meu<br />
coração atormenta? Em desditosa hora veio Leonisa a esta terra para haver<br />
si<strong>do</strong> a inquietação de teus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e o motivo maior de minhas penas. A<br />
ausência pesa-se nas balanças <strong>do</strong> amor. Que pouco sentirá ela que te apartes,<br />
pois nunca estimou que lhe assistisses. Em ti próprio indiscreto tomas vingança
732 Padre Mateus Ribeiro<br />
de tua culpa, pois te desnaturalizas de tua pátria; e quan<strong>do</strong> ela, nascen<strong>do</strong> em<br />
Bolonha, destas se tem feito natural, tu queres ir ser em seu próprio natural<br />
forasteiro. Olha, Aureliano, que não hás-de achar mãe que tão cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa te<br />
ame, nem outros olhos que tão magoa<strong>do</strong>s te chorem. Nascem as lágrimas no<br />
centro <strong>do</strong> coração e deste tem o amor as chaves, e nunca chega a ser<br />
enterneci<strong>da</strong>mente chora<strong>do</strong> o que nunca chegou a ser com desvelos queri<strong>do</strong>.<br />
Como me deixas tão só, para ser em tu<strong>do</strong> só minha pena, quan<strong>do</strong> levas<br />
contigo to<strong>da</strong> a minha alegria? Repara bem no que emprendes, pois nunca<br />
conheceste os discómo<strong>do</strong>s que buscas, nem sabes avaliar o que inconsidera<strong>do</strong><br />
deixas.<br />
Assim choran<strong>do</strong> e sentin<strong>do</strong> procurava minha mãe embargar-me os<br />
passos com suas enterneci<strong>da</strong>s queixas, mas eu, que estava tão resoluto como<br />
magoa<strong>do</strong>, me despedi de sua vista, levan<strong>do</strong> os últimos ecos de suas vozes por<br />
companheiros de meus mal afortuna<strong>do</strong>s passos. Cheguei ao fragoso destas<br />
serras ao tempo que o sol ia já apressan<strong>do</strong> os passos para embarcar-se nos<br />
inquietos golfos <strong>da</strong>s pratea<strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s, quan<strong>do</strong> de repente me saíram três<br />
ban<strong>do</strong>leiros <strong>do</strong> mais espesso <strong>do</strong> bosque, dizen<strong>do</strong> que me apeasse <strong>do</strong> cavalo.<br />
Eu, como pouco experimenta<strong>do</strong> em tais encontros, pon<strong>do</strong>-lhe as esporas e<br />
arrancan<strong>do</strong> a espa<strong>da</strong>, pretendi defender-me; mas eles lançan<strong>do</strong> mão às<br />
rédeas, me derribaram dele, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me as feri<strong>da</strong>s que tendes visto; e<br />
despojan<strong>do</strong>-me <strong>da</strong>s armas e <strong>do</strong> dinheiro que levava, me deixaram desacor<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, mais com sombras de morto que com aparências de vivo. O meu<br />
cavalo, que não era de leal<strong>da</strong>de tão fina como o d'el-rei Nicomedes, que ven<strong>do</strong><br />
morto a seu senhor, sem mais querer comer, se deixou morrer junto dele de<br />
sentimento, ou fugiu intimi<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong>s golpes, ou eles porventura o levariam.<br />
Tornei em meu senti<strong>do</strong> já alta noite, e ven<strong>do</strong>-me no solitário deste sítio em tal<br />
esta<strong>do</strong>, dei os gemi<strong>do</strong>s que guiaram vossa cari<strong>da</strong>de a <strong>da</strong>r-me este tão<br />
oportuno socorro.<br />
Vede pois, senhores, nos discursos abrevia<strong>do</strong>s de minha vi<strong>da</strong>, se com<br />
razão posso dizer que são maiores os sentimentos de meu coração que o<br />
penoso de minhas feri<strong>da</strong>s. Vejo-me fora de minha casa e <strong>da</strong> amorosa<br />
companhia de minha mãe, cujas sau<strong>do</strong>sas e repeti<strong>da</strong>s lágrimas foram os<br />
anúncios de meus infortúnios; vejo-me outra vez obriga<strong>do</strong> a voltar a seus olhos,<br />
sen<strong>do</strong> novo motivo de sua <strong>do</strong>r, e a ser na assistência <strong>da</strong> pátria testemunha <strong>do</strong>s
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 733<br />
alegres desposórios de Alexandre e Leonisa, de quem me apartava por que<br />
não <strong>do</strong>brassem meus pesares suas festivas alegrias. E assim é tal minha<br />
tristeza que não sei se diga que sentia menos se os ban<strong>do</strong>leiros me<br />
acabassem de uma vez a vi<strong>da</strong> que tornar, com ficar vivo, a repetir o<br />
irremediável de tanta pena.<br />
Cap. último<br />
Da resposta que deu Felisberto a Aureliano e como se partiram em sua<br />
companhia<br />
Deu fim Aureliano à relação de seus desgostos e não ao sentimento de<br />
sua <strong>do</strong>r, e enterneci<strong>do</strong>s os nossos romeiros <strong>da</strong> pena que mostrava ser tão<br />
intensa, queren<strong>do</strong> Felisberto moderar-lhe o penoso, lhe respondeu:<br />
- Na ver<strong>da</strong>de, senhor, que se as <strong>do</strong>res de vossas feri<strong>da</strong>s são tão<br />
insofríveis como vossas queixas, e pudéreis consentir^ o agro <strong>da</strong> cura, assim<br />
como podeis evitar o vivo <strong>da</strong> mágoa, nem eu me empenhara em mostrar-vos o<br />
alívio, nem vós publicáreis tão intolerável o sentimento. Primeiramente sentis a<br />
quebra <strong>da</strong> amizade de Alexandre: o motivo em parte foi vosso, mas o<br />
rompimento seu. Muito de vidro é a amizade que ao primeiro toque quebra.<br />
Tanto tem a amizade de fina quanto tem de constante, pois como diz<br />
Cassio<strong>do</strong>ro, sempre a inconstância foi desluzimento <strong>do</strong> amor. Vós errastes em<br />
declarardes a causa de an<strong>da</strong>rdes triste, mas ele mostrou-se extremoso em<br />
ressentir-se. O mal, para ser contagioso, pela maior parte busca ao sujeito que<br />
está são o humor mais semelhante ao <strong>do</strong> enfermo; e sen<strong>do</strong>, como diz<br />
Aristóteles 611 , a amizade a maior semelhança, acomete a mágoa igualmente<br />
pela semelhança ao amigo, e fica sen<strong>do</strong> contágio <strong>do</strong> sentir o que era mal<br />
singelo no padecer. Enfim declarastes a causa: bem pudera ter desculpas na<br />
amizade, quan<strong>do</strong> para ofensas <strong>da</strong> amizade nem sempre se acham desculpas.<br />
Entendeu que deliberáveis antepores vosso gosto a seu merecimento: dura<br />
Na edição de 1688 lê-se não sentir. Atenden<strong>do</strong> ao contexto, julgamos preferível a lição <strong>da</strong><br />
edição de 1734, consentir.<br />
611 Arist., Ethic. 8.
734 Padre Mateus Ribeiro<br />
batalha é de sofrer-se, quan<strong>do</strong> a vontade castiga como culpa o que a razão<br />
abona como mérito. Não chegastes a declarar o que escolhíeis, e assim ficava<br />
vosso silêncio habilita<strong>do</strong> para expor-se no mais favorável senti<strong>do</strong>. Alexandre o<br />
descifrou como agrava<strong>do</strong> e vós pudéreis declará-lo de sorte que de vós não<br />
ficasse ofendi<strong>do</strong>.<br />
Pretendeu a Leonisa, dizeis que por vingar-se, e talvez não seria esse o<br />
motivo. Que se a fermosura era tão encareci<strong>da</strong>, não seria admiração o ser dele<br />
ama<strong>da</strong>. Em vós tem ele a desculpa pelo semelhante, não sen<strong>do</strong> digno de nele<br />
estranhardes o que sem motivos de vingança vós confessais quererdes. Se<br />
teve mais ventura em ser dela admiti<strong>do</strong>, e vós em seus olhos menos aceito, no<br />
tribunal <strong>do</strong> gosto não se atentam serviços. Quantas vezes no mun<strong>do</strong> se tem<br />
visto rejeitar-se o mais luzi<strong>do</strong> e escolher-se o menos vistoso, desprezar-se a<br />
discrição e admitir-se a nece<strong>da</strong>de, cortar pelo obriga<strong>do</strong> e receber-se o que não<br />
tem serviços? Não tem lugar a ofensa <strong>do</strong> que depende <strong>do</strong> gosto de outro, em<br />
quem pelo livre <strong>da</strong> vontade fica sen<strong>do</strong> a pretensão sorte que à ventura se lança<br />
e não dívi<strong>da</strong> que se pede.<br />
Se sentis perderdes o casamento, pouco abonais vossa pessoa, pois<br />
quem tem merecimentos de nenhuma per<strong>da</strong> se deve molestar queixoso. Se<br />
quem vos não aceitou para esposo vos privara <strong>do</strong> cabe<strong>da</strong>l <strong>da</strong> ventura, ain<strong>da</strong><br />
pudera desculpar-se vossa tristeza. Mas assim como em Leonisa não se cifrou<br />
a sorte de to<strong>da</strong> a felici<strong>da</strong>de, assim em vós não se compendiou o motivo de to<strong>da</strong><br />
a pena. Tão falto vive o mun<strong>do</strong> de fermosuras, de discrições e de riquezas que<br />
haja Leonisa de fechar as portas aos maiores acertos <strong>da</strong> ventura? Nunca vistes<br />
no jardim a primeira rosa, que morga<strong>da</strong> <strong>da</strong> beleza adianta<strong>da</strong> nasce, ser a<br />
lisonja <strong>da</strong> vista, carícia <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s e primogénita <strong>do</strong> gosto, aplauso <strong>da</strong><br />
admiração e recreio <strong>da</strong> vontade, parecen<strong>do</strong> que nela se cifra quanto de belo<br />
sem pincel debuxou Abril e sem o colori<strong>do</strong> <strong>da</strong>s tintas pintou Maio? Apareceram<br />
ao seguinte dia entre o aljofra<strong>do</strong> <strong>da</strong> aurora outras rosas e outras flores:<br />
competiram de vistosas nas academias <strong>do</strong> pra<strong>do</strong> certames <strong>da</strong> fermosura e em<br />
verde campanha saíram a desafios de beleza. E logo a primeira perdeu as<br />
admirações e a coroa de singular pelas competências <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de. Desta<br />
sorte, senhor Aureliano, virá a ser Leonisa, que haven<strong>do</strong>-vos pareci<strong>do</strong> extremo,<br />
não será prodígio, quan<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> terá tantas parelhas que pudera o juízo<br />
duvi<strong>da</strong>r, como o de Paris, em <strong>da</strong>r a sentença pela mais fermosa.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 735<br />
Vós não necessitais de suas riquezas nem de seu nome, pois sen<strong>do</strong> vós<br />
filho único, no que possuís tendes cabe<strong>da</strong>l antes para despenderdes <strong>do</strong> que<br />
para de bens alheios necessitardes. Pois que perdestes em ficardes senhor de<br />
vossa liber<strong>da</strong>de, poden<strong>do</strong> ter escolha <strong>do</strong> melhor, quan<strong>do</strong> se descobre, quem<br />
não está vincula<strong>do</strong> à vontade de outrem? E quanto mais o tempo em seus giros<br />
cursar, mais objectos descobrireis. Quan<strong>do</strong> se põem umas estrelas, nascem<br />
outras, e quanto mais os orbes vão giran<strong>do</strong>, nos vão sempre novas luzes<br />
descobrin<strong>do</strong>. Tu<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> passa, to<strong>da</strong> a novi<strong>da</strong>de envelhece, o que hoje<br />
nos rouba os olhos talvez em breve espaço nos desagra<strong>da</strong>, o único nos vem a<br />
parecer vulgar e só logram privilégios de serem únicos o sol nos raios e, pelo<br />
que se diz, a Fénix na vi<strong>da</strong>.<br />
Quereis deixar a casa e companhia de vossa mãe de ressenti<strong>do</strong>.<br />
Porventura que os ban<strong>do</strong>leiros que vos saltearam foram os vingativos<br />
executores que vossa sem-razão castigaram, sen<strong>do</strong> violento impedimento de<br />
vosso caminho, permitin<strong>do</strong> o Céu que fosse a insolente tirania <strong>do</strong>s foragi<strong>do</strong>s<br />
mais eficaz <strong>do</strong> que foram de vossa mãe os olhos magoa<strong>do</strong>s. Tornai, senhor,<br />
para vossa pátria, e achareis em vossa mãe os braços e o coração como de<br />
mãe abertos para receber-vos. Em irdes rouba<strong>do</strong> e feri<strong>do</strong>, não ides afronta<strong>do</strong>;<br />
pois <strong>da</strong> tirania de seus insultos nem as maiores digni<strong>da</strong>des se viram seguras. A<br />
Júlio César roubaram e cativaram os cossários piratas de Sicília. A el-rei<br />
Alexandre de Síria roubaram e prenderam os ban<strong>do</strong>leiros e por dinheiro<br />
venderam ata<strong>do</strong> a Grífio, rei <strong>do</strong> Egipto, seu inimigo, que lhe man<strong>do</strong>u tirar a<br />
vi<strong>da</strong>. Cursieto Sambuco com as esquadras de seus ban<strong>do</strong>leiros teve a ousadia<br />
de chegar até os muros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Roma, haven<strong>do</strong> em terras <strong>do</strong> senhorio <strong>da</strong><br />
Igreja morto e rouba<strong>do</strong> a muitas pessoas ilustres e cometi<strong>do</strong> inumeráveis<br />
insultos. Que gente com quem tem divórcio a pie<strong>da</strong>de e liga o desaforo e<br />
insolência fica sen<strong>do</strong> a maior admiração de suas mãos ficardes vivo.<br />
To<strong>do</strong> o engano de nossos sentimentos é pormos os olhos nos que nos<br />
vão adiante e não nos que nos ficam atrás. Sigamos com a vista os mais<br />
venturosos e apartemos os olhos <strong>do</strong>s desgraça<strong>do</strong>s. Quantos haverá, senhor<br />
Aureliano, que desejariam poderem igualar a sorte convosco? Os presos e<br />
cativos na liber<strong>da</strong>de, os humildes na nobreza, os pobres na riqueza, os<br />
persegui<strong>do</strong>s na segurança, os desterra<strong>do</strong>s no <strong>do</strong>micílio, os decrépitos na<br />
moci<strong>da</strong>de, os desampara<strong>do</strong>s no abrigo de tal mãe e finalmente tantos que em
736 Padre Mateus Ribeiro<br />
tu<strong>do</strong> vos ficam atrás; e apartan<strong>do</strong> os olhos de tantos, os pondes só com<br />
impaciência nos poucos que vos vão adiante. O sol com ser o monarca <strong>do</strong>s<br />
astros não sobe ao mais alto <strong>do</strong>s orbes celestes, contentan<strong>do</strong>-se com ter três<br />
planetas superiores que mais alto subam, porque tem outros três que mais<br />
abaixo descem. Os montes eminentes são mais frequentemente <strong>do</strong>s raios<br />
feri<strong>do</strong>s e combati<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s ventos impetuosos; os vales profun<strong>do</strong>s são pisa<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>s rios, cobertos <strong>da</strong>s inun<strong>da</strong>ções <strong>da</strong>s águas e sepulta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> furor <strong>da</strong>s<br />
correntes, sempre presos em prisões de cristal e a maior parte <strong>do</strong> ano cativos<br />
em masmorras de neve, não por inquietos, mas por desvali<strong>do</strong>s e despreza<strong>do</strong>s.<br />
Porém os outeiros, se não logram o desvanecimento <strong>da</strong> maior altura, também<br />
não padecem as opressões <strong>da</strong> maior baixeza. Primeiramente encontram os<br />
raios com as serras e primeiro avançam as inun<strong>da</strong>ções aos vales; mas aos<br />
outeiros nem dão tão repeti<strong>da</strong> bataria os raios, nem despojam as inun<strong>da</strong>ções<br />
impetuosas <strong>do</strong>s rios.<br />
Não pois de outra sorte, senhor Aureliano, quan<strong>do</strong> não logreis to<strong>da</strong>s as<br />
venturas que desejais, contentai-vos com as felici<strong>da</strong>des que possuís. Bem<br />
disse Tucídides que não era a maior ventura o alcançar quanto se desejava,<br />
mas o saber não desejar quanto escusar se pode. São os desejos, quan<strong>do</strong> são<br />
excessivos, verdugos <strong>do</strong> coração, martírios <strong>do</strong> sofrimento. É a <strong>do</strong>çura <strong>do</strong>s<br />
desejos, diz Valério Máximo, veneno <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>: tem o <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> na aparência e o<br />
mortal na eficácia. Esse casamento de Leonisa que tanto desejastes foi o<br />
instrumento <strong>do</strong> sossego que perdestes: pouco perdestes em haver-vos falta<strong>do</strong>,<br />
pois aonde há falta de amor tu<strong>do</strong> parece violento. Se ela vos amara, não<br />
pusera condição tão dura, pois quem achou a Alexandre idóneo para esposo,<br />
bem pudera permitir que fora vosso amigo. Pois com faltas de amor que<br />
pretendíeis? Asas de cera não asseguram voos, porque com o sol se derretem,<br />
mas as de vosso desejo na neve tiveram o perigo. Vivei alegre com vossa<br />
liber<strong>da</strong>de, que em Leonisa não tendes de que sentir-vos, pois na<strong>da</strong> perdestes.<br />
Calou Felisberto, quan<strong>do</strong> já <strong>da</strong> aurora falavam as luzes, e o feri<strong>do</strong><br />
Aureliano se manifestou que era mancebo de mui agradável presença e bem<br />
traja<strong>do</strong>, posto que <strong>da</strong> muita falta de sangue mostrava estar enfraqueci<strong>do</strong>,<br />
aumentan<strong>do</strong>-se-lhe as <strong>do</strong>ses com a névoa fria. Rendeu cortês as graças aos<br />
romeiros, não menos <strong>do</strong> socorros que <strong>do</strong>s alívios que discretamente Felisberto<br />
lhe dera, de que estava mui consola<strong>do</strong> e mui desejoso de ver a sua mãe. Ficou
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte IV 737<br />
Dionísio em sua companhia enquanto Felisberto foi ao primeiro casal que em<br />
alguma distância se descobria procurar um carro tol<strong>da</strong><strong>do</strong> em que o feri<strong>do</strong> fosse.<br />
E não tar<strong>do</strong>u em vir com ele; em o qual acomo<strong>da</strong><strong>do</strong> o melhor que então foi<br />
possível, e acompanhan<strong>do</strong>-o, foi cura<strong>do</strong> no primeiro lugar, que suposto não<br />
foram as feri<strong>da</strong>s julga<strong>da</strong>s por mortais, contu<strong>do</strong> pela demora que houve em<br />
serem cura<strong>da</strong>s, não se isentavam <strong>do</strong> perigo.<br />
Adiantou-se Felisberto a seu rogo a <strong>da</strong>r notícias a sua mãe, para que a<br />
vista em tal esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> filho a não assustasse de repente. O que ele fez,<br />
dispon<strong>do</strong>-a com tão discretas palavras e com tantos alívios, com lhe assegurar<br />
que não eram perigosas as feri<strong>da</strong>s e que tinha muito de que render graças a<br />
Deus de escapar <strong>da</strong>s mãos <strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>leiros com a vi<strong>da</strong>, que ela se lhe mostrou<br />
muito obriga<strong>da</strong>, levan<strong>do</strong> com paciência o amargoso deste trago. Entra<strong>da</strong> já a<br />
noite, chegou o carro em que Aureliano em companhia de Dionísio vinha.<br />
Quiseram eles despedir-se, mas nem ele, nem sua mãe o consentiram,<br />
hospe<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-os em um quarto <strong>da</strong>s casas, que grandiosas eram, aonde por <strong>da</strong>r<br />
alívio ao feri<strong>do</strong> assistiram alguns dias.<br />
Foi cura<strong>do</strong> com to<strong>do</strong> o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e visita<strong>do</strong> <strong>do</strong>s melhores <strong>da</strong> vila, não<br />
faltan<strong>do</strong> Alexandre a esta obrigação <strong>da</strong> fi<strong>da</strong>lguia, mostran<strong>do</strong> sentir muito seus<br />
desgostos, sem de uma nem outra parte se lembrar, nem repetir sombra <strong>do</strong><br />
passa<strong>do</strong>: discreto termo para quem visita a um aflito. Aureliano, melhora<strong>do</strong> com<br />
os remédios e perden<strong>do</strong> o sentimento com os alívios de Felisberto, que ven<strong>do</strong><br />
que a melhoria já com seguranças se mostrava, se despediram dele e de sua<br />
mãe com muitas sau<strong>da</strong>des que de sua conversação e companhia lhes ficaram.<br />
E como a sua ermi<strong>da</strong> distava deste lugar quatro léguas, chegaram a ela antes<br />
que o sol se escondesse; e diante <strong>do</strong> altar ajoelha<strong>do</strong>s, deram a Deus Nosso<br />
Senhor e a sua Santíssima Mãe muitas graças de haverem <strong>da</strong><strong>do</strong> fim tão<br />
felizmente à sua devota romaria. E eu o <strong>do</strong>u também a estes escritos em que<br />
compendiei os vários sucessos dela.<br />
LAUS DEO.
738 Padre Mateus Ribeiro
Cap. I.<br />
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 739<br />
ALIVIO DE TRISTES<br />
E<br />
CONSOLAÇÃO DE QUEIXOSOS<br />
V. PARTE<br />
Do encontro e prática que teve o Ermitão Felisberto junto <strong>da</strong> sua ermi<strong>da</strong> com<br />
um passageiro<br />
No retiro e solidão bonançosa <strong>da</strong> sua ermi<strong>da</strong>, porto seguro <strong>da</strong>s<br />
tempestades passa<strong>da</strong>s, tranquila habitação e discreto refúgio <strong>do</strong>s naufrágios<br />
padeci<strong>do</strong>s nas inquietas navegações <strong>da</strong> fortuna, passavam a vi<strong>da</strong> os <strong>do</strong>us<br />
ermitões, Felisberto e Dionísio, contentes de verem de longe o mar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e<br />
seus enganos, como quem <strong>do</strong> seguro <strong>da</strong> terra vê o proceloso <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s, para<br />
quem as navega temi<strong>da</strong>s, para quem não as surca agradáveis.<br />
Com razão chamou dilúvio ao mun<strong>do</strong> o padre Santo Agostinho 612 , pois<br />
to<strong>do</strong>s os que o seguem perigam nele. Bem conheceu seus enganos o<br />
empera<strong>do</strong>r de Constantinopla, Michael, quan<strong>do</strong> sen<strong>do</strong> venci<strong>do</strong> na batalha que<br />
deu aos búlgaros, junto à ci<strong>da</strong>de de Adrianópolis, se despojou voluntariamente<br />
<strong>do</strong> ceptro e coroa imperial, retiran<strong>do</strong>-se desengana<strong>do</strong> <strong>da</strong> inconstância <strong>da</strong><br />
fortuna, sem mais admitir as lisonjas de seu governo. O empera<strong>do</strong>r Lotário,<br />
2 S. Aug., De sub. dilect.
740 Padre Mateus Ribeiro<br />
renuncian<strong>do</strong> à coroa em seu filho, se fez monge, como escreve Sabélico 613 , e<br />
outros muitos monarcas e senhores deram de mão às esperanças <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>; e<br />
ain<strong>da</strong> aquele assombro <strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de e portentoso aborto <strong>da</strong> maior tirania,<br />
Diocleciano, oprimi<strong>do</strong> com o oneroso <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>do</strong> império, o largou dez<br />
anos antes de sua morte, retiran<strong>do</strong>-se a cultivar um pomar que em Nicomedia<br />
tinha. É a vi<strong>da</strong> humana caminho para a eterna, disse Santo Agostinho 614 , e<br />
assim se não deve aplaudir como último fim, mas como meio; o mesmo<br />
escreve S. Basílio Magno 615 , chaman<strong>do</strong> à vi<strong>da</strong> estra<strong>da</strong> por onde se caminha<br />
para a eterni<strong>da</strong>de.<br />
Bem adverti<strong>do</strong>s nesta experiência e cabalmente desengana<strong>do</strong>s nesta<br />
ver<strong>da</strong>de à custa de seus discómo<strong>do</strong>s, estavam os ermitães satisfeitos <strong>do</strong><br />
acerto de sua eleição, não desejan<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> nem as esperanças fugitivas,<br />
nem as felici<strong>da</strong>des vagarosas. Não há na vi<strong>da</strong> ventura sem pensão, sen<strong>do</strong> o<br />
logro <strong>da</strong>s venturas tão caduco.<br />
Conselho foi de Euripides 616 que os felices partissem as venturas com<br />
os desgraça<strong>do</strong>s e estes parte de seus trabalhos com os venturosos: para que<br />
assi os trabalhos ficassem mais leves com as venturas e estas menos<br />
desvaneci<strong>da</strong>s com os trabalhos. É certo que as felici<strong>da</strong>des não podem durar<br />
muito, sen<strong>do</strong> a ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> fortuna tão girante no movimento repeti<strong>do</strong>; e haven<strong>do</strong><br />
de voltar quan<strong>do</strong> menos se teme sua mu<strong>da</strong>nça, fica menos assusta<strong>do</strong> quem<br />
pela prevenção está desengana<strong>do</strong> <strong>do</strong> instantâneo de seu logro que quem se<br />
lisonjeia <strong>do</strong> aparente de seu favor.<br />
Nesta suspensão de armas com o mun<strong>do</strong>, com quem só pode ter paz<br />
quem na<strong>da</strong> dele deseja, passavam a vi<strong>da</strong> Felisberto e Dionísio tão satisfeitos<br />
de haverem lança<strong>do</strong> âncora segura no empório bonançoso <strong>da</strong> sua ermi<strong>da</strong> que<br />
não trocariam o remanso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que logravam e a tranquili<strong>da</strong>de em que se<br />
viam por to<strong>do</strong>s os interesses com que o mun<strong>do</strong> podia lisonjeá-los, quan<strong>do</strong> as<br />
maiores digni<strong>da</strong>des lhes oferecesse. Tinham navega<strong>do</strong> os golfos <strong>da</strong><br />
inconstância <strong>da</strong> fortuna com o arrisca<strong>do</strong> de suas tormentas, perigosas para<br />
3 Eneid. 9. lib. 1.<br />
4 S. Aug., Sup. Ps. 3.<br />
5 S. Basil., In Cone, de reb. temp.<br />
6 Eurip., in Or.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 741<br />
sofri<strong>da</strong>s, temerosas para imagina<strong>da</strong>s; e assi conhecen<strong>do</strong> o descanso (ain<strong>da</strong><br />
que tarde), só tinham a mágoa de o não adquirirem mais ce<strong>do</strong>. Tar<strong>do</strong>u em<br />
desenganá-los o tempo, porque em sua academia não se tem sem castigo os<br />
desenganos, e por isso fica a lição tão decora<strong>da</strong>, porque o tempo só<br />
castigan<strong>do</strong> ensina. É a punição, como diz Cícero 617 , eficaz meio para o ensino<br />
ser proveitoso; e as calami<strong>da</strong>des padeci<strong>da</strong>s, diz Santo Agostinho 618 , são<br />
remédios para se desestimar o arrisca<strong>do</strong> e se procurar o seguro.<br />
Consideran<strong>do</strong> discretamente na recor<strong>da</strong>ção de seus passa<strong>do</strong>s<br />
desgostos como tu<strong>do</strong> na vi<strong>da</strong> era aparente, breve na duração, frágil na posse,<br />
fugitivo no ser, sombra na ventura, relâmpago no altivo, obelisco que arruina,<br />
on<strong>da</strong> que impeli<strong>da</strong> <strong>do</strong> vento nas areias espumosa quebra. Com razão se ria<br />
Diógenes <strong>da</strong>s ambições de Alexandre, sen<strong>do</strong> <strong>do</strong>us pólos entre si os mais<br />
distantes: um que <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> na<strong>da</strong> queria e outro que conquistar o mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong><br />
procurava; e vemos que Diógenes viveu em seu retiro contente até o decrépito<br />
<strong>da</strong> i<strong>da</strong>de e Alexandre deixou em Babilónia a vi<strong>da</strong> na flor <strong>do</strong>s anos. Eram os<br />
ermitães vistos na lições <strong>do</strong>s livros, nas histórias <strong>da</strong>s monarquias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />
presentes nas humani<strong>da</strong>des, e assi passavam a vi<strong>da</strong> em discreta conversação,<br />
que é, como disse Séneca 619 , a iguaria com que ao temporal a alma se<br />
alimenta. Umas vezes discursavam na diferença que vai <strong>do</strong> temporal ao eterno,<br />
<strong>do</strong> transitório ao permanente, <strong>do</strong> mortal ao imortal, <strong>do</strong> caduco ao perdurável;<br />
outras vezes discorren<strong>do</strong> pelas histórias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ponderavam o mal que<br />
paga os méritos a quem os segue: tantos queixosos <strong>da</strong> ingratidão tão mal<br />
remunera<strong>do</strong>s, tantos desvela<strong>do</strong>s por ambição sem proveito arrependi<strong>do</strong>s,<br />
tantos despenha<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s esperanças com que voavam, e finalmente ser, como<br />
diz Santo Agostinho 620 , o mun<strong>do</strong> inimigo de quem o busca e contrário <strong>do</strong>s<br />
mesmos a quem levanta. É o mun<strong>do</strong> amargosa bebi<strong>da</strong> <strong>da</strong> ambição, prodígio<br />
dispenseiro <strong>da</strong> fortuna, para uns excessivo nas dádivas, para outros avaro nos<br />
favores, e no fim a to<strong>do</strong>s desengano, se soubessem dele desenganar-se to<strong>do</strong>s.<br />
7 Cicer., Pro Roscio.<br />
8 S.Aug., Lib. Conf.<br />
9 Senec, Ep. 75.<br />
0 S. Aug., Ser. 81. De temp.
742 Padre Mateus Ribeiro<br />
Um dia, nas despedi<strong>da</strong>s de Abril e vizinhanças de Maio, academia em<br />
que flora abria as portas ao estu<strong>do</strong> <strong>da</strong>s flores que tinha cerra<strong>do</strong> Dezembro com<br />
fechaduras de neve, quan<strong>do</strong> as árvores pareciam ramalhetes pelo flori<strong>do</strong> e<br />
outras verdes pavelhões pelo fron<strong>do</strong>so, quan<strong>do</strong> os músicos rouxinóis em<br />
competências de harmonia com o suave <strong>da</strong>s vozes serviam de alívio aos<br />
caminhantes com o divertimento de seu canto, muito agradável para ser<br />
queixoso, muito senti<strong>do</strong> para tão aceito; estavam Felisberto e Dionísio<br />
assenta<strong>do</strong>s junto a uma fonte que <strong>da</strong> ermi<strong>da</strong> pouco distante corria, assenta<strong>do</strong>s<br />
sobre a verde relva, a quem a vistosa infância <strong>do</strong> ano matizava de diversas<br />
boninas. A delícia <strong>do</strong> tempo, a vista <strong>do</strong> cristal, a melodia <strong>da</strong>s aves, o ameno <strong>do</strong><br />
pra<strong>do</strong>, jardim sem muros que o guar<strong>da</strong>ssem, vergel sem guar<strong>da</strong>s que o<br />
defendessem, retrato natural <strong>do</strong>s Elíseos, campos tão celebra<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s poetas,<br />
fazia a assistência tão jocun<strong>da</strong> e a conversação tão sazona<strong>da</strong> ao desejo que<br />
não trocara algum deles pelas maiores riquezas a voluntária pobreza em que<br />
viviam. Não há pobreza, diz Plutarco 621 , tão extrema<strong>da</strong> no padecimento a quem<br />
falte a suficiência para sustentar a vi<strong>da</strong>. E o Séneca 622 tem por riqueza a<br />
pobreza passa<strong>da</strong> com alegria. Não era a <strong>do</strong>s nossos ermitães tão excessiva<br />
que lhes faltasse o sustento, porque a cari<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s lavra<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s vizinhos<br />
lugares com abundância os provia e a fonte cau<strong>da</strong>losa em seu transparente e<br />
fugitivo cristal to<strong>do</strong> o ano e em to<strong>do</strong> o tempo lhes administrava a bebi<strong>da</strong>, com<br />
que passavam a vi<strong>da</strong> sem moléstia, antes com alegria.<br />
Culminante se mostrava o sol no hemisfério, subin<strong>do</strong> para descer, como<br />
to<strong>da</strong>s as grandezas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> montam para baixarem, recebem o louro para o<br />
despojo e a eminência para o humilde, quan<strong>do</strong> viram que pela estra<strong>da</strong> que à<br />
ermi<strong>da</strong> se dirigia vinha um cavaleiro, que chegan<strong>do</strong> junto aonde estavam,<br />
desmontou <strong>do</strong> cavalo, sau<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-os cortesmente, sen<strong>do</strong> com igual cortesia e<br />
urbani<strong>da</strong>de respondi<strong>do</strong>. Despojou o cavalo <strong>da</strong> moléstia <strong>do</strong> freio para pascer na<br />
relva, porque vinha cansa<strong>do</strong> <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> e ia o sol reforçan<strong>do</strong> a valentia <strong>do</strong>s<br />
raios. E convi<strong>da</strong><strong>do</strong> o passageiro de Felisberto para que viesse lograr o refúgio<br />
<strong>da</strong> fonte contra o rigoroso calor que ameaçava o dia, ele aceitou a oferta,<br />
assentan<strong>do</strong>-se com os ermitães ao sombrio <strong>da</strong>s árvores que à fonte de verde<br />
Plut., Decupi. divit.<br />
Senec, Ep. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 743<br />
tecto serviam. Era o passageiro de trinta anos de i<strong>da</strong>de ao que parecia, bem<br />
traja<strong>do</strong> e de agradável presença; porém na aparência <strong>do</strong> que manifestava<br />
melancólico e pensativo. É tal a mágoa aonde está que logo manifesta indícios<br />
de sua pena, disse Euripides 623 ; porque como a alma é a que sente a <strong>do</strong>r,<br />
to<strong>do</strong>s os exteriores acodem a vestir-se <strong>da</strong>s cores de seu sentimento. Poucas<br />
vezes se disfarça a pena interior na alegria <strong>do</strong> semblante, porque assi como o<br />
primeiro móvel com seu rapto movimento faz que to<strong>do</strong>s os orbes o sigam<br />
contra o vagaroso curso que ca<strong>da</strong> qual deles prosseguia, assi a alma com seu<br />
sentimento faz que to<strong>do</strong>s os exteriores senti<strong>do</strong>s participem <strong>do</strong> luto triste que de<br />
sua pena recebem. Enfim rompeu o silêncio o passageiro, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Que venturoso, senhores, pode chamar-se quem livre <strong>do</strong>s enganos <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> só pode dizer que vive. Amarga bebi<strong>da</strong>, diz S. Agostinho 624 , dá o mun<strong>do</strong><br />
aos que amam. E só caminha acerta<strong>do</strong> quem discreto retiran<strong>do</strong>-se dele o<br />
aborrece. Assi louvo, senhores ermitães, a prudente eleição de vossa vi<strong>da</strong>, pois<br />
passais pelo mun<strong>do</strong> sem lográ-lo, que é o que ensina S. Bernar<strong>do</strong> 625 , porque<br />
seu logro fugin<strong>do</strong> no melhor leva consigo o perigo. Lograr o recreio <strong>da</strong>s flores,<br />
a delícia <strong>do</strong>s campos, o ameno <strong>do</strong>s bosques, o cristalino <strong>da</strong>s fontes, sem<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s que desvelem, sem temores que sobressaltem, sem ambições que<br />
oprimam, sem invejas que atormentem, semelhanças pode ter com o terreal<br />
paraíso. Porém quan<strong>do</strong> as inquietações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> não permitem sossegar o<br />
ânimo <strong>do</strong> turbulento, nem separar-se <strong>do</strong>s incentivos <strong>da</strong> perpétua inquietação<br />
sem poder respirar <strong>do</strong> molesto, nem alcançar tranquili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> calamitoso, nem<br />
o flori<strong>do</strong> serve de feriar o cansaço intolerável, nem o ameno de divertir o<br />
oneroso <strong>do</strong> aborreci<strong>do</strong>.<br />
Lembra-me que disse Cícero 626 que o campo era a vi<strong>da</strong> mais alegre,<br />
mais agradável e mais deliciosa para os homens. Daqui veio que elegen<strong>do</strong>-se<br />
em Roma por supremo dita<strong>do</strong>r a Lúcio Quíncio Cincinato, o acharam no campo<br />
cultivan<strong>do</strong> um pomar que tinha, e com a toga consular que lhe levavam,<br />
enxugou o suor <strong>do</strong> rosto primeiro que a vestisse. Ab<strong>do</strong>lomino vivia em Sidónia<br />
Eurip., in Ascest.<br />
S. Aug., Serm. 120. De temp.<br />
S. Bern., Serm. 86. Super Cant.<br />
Cie, 1. De offic.
744 Padre Mateus Ribeiro<br />
de cultivar um pomar de que se sustentava, quan<strong>do</strong> o grande Alexandre o<br />
obrigou a que aceitasse a coroa <strong>do</strong> reino de Fenícia e Sidónia, que ele recebeu<br />
por obedecer ao monarca, desejan<strong>do</strong> mais o logro <strong>do</strong> pomar que deixava que o<br />
governo <strong>do</strong> reino que sem gosto recebia. Porém em mim ao contrário, que<br />
conhecen<strong>do</strong> os acertos, sigo os perigos, e suposto que vejo o remanso <strong>da</strong><br />
bonança, engolfa<strong>do</strong> navego os golfos mais arrisca<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s pun<strong>do</strong>nores <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>.<br />
Respondeu Felisberto ao desconheci<strong>do</strong> passageiro, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Se com vosso discurso conheceis, senhor, como o mun<strong>do</strong> engana a<br />
quem o busca, falta a quem o segue e castiga a quem o ama, como o seguis<br />
desengana<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o pudéreis desestimar conheci<strong>do</strong>? A ignorância <strong>do</strong> mal<br />
talvez pode servir de desculpa a quem o passa, suposto que Aristóteles 627 diz<br />
que pouca desculpa tem o ignorar-se o que de to<strong>do</strong>s é obrigação de saber-se;<br />
e diz Cícero 628 que ignorar-se o que tem no mun<strong>do</strong> sucedi<strong>do</strong> antes que<br />
nascemos é viver sempre nas tironices de menino e não lograr os atributos de<br />
varão. Porém como o mun<strong>do</strong> desde seu princípio com a revolução de seus<br />
perío<strong>do</strong>s tem <strong>da</strong><strong>do</strong> aos estudiosos tantos <strong>do</strong>cumentos de sua inconstância e<br />
tão frequentes lições de sua mu<strong>da</strong>nça, facilmente pode desenganar-se de seu<br />
despenho quem passar os olhos pelo que <strong>da</strong>s monarquias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> está<br />
escrito. Da monarquia <strong>do</strong>s assírios, a primeira que desde Nino até Sar<strong>da</strong>napalo<br />
teve o mun<strong>do</strong>, se vê o fim que teve com a violenta morte de seu possui<strong>do</strong>r,<br />
passan<strong>do</strong>-se a coroa aos persas e me<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> Ciro violentamente morto na<br />
cruel batalha que lhe deu Tómiris, rainha <strong>do</strong>s masságetas. Dário despoja<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
reino por Alexandre e morto aleivosamente por Besso e Nabarsanes, seus<br />
vali<strong>do</strong>s. Imperou Alexandre na terceira monarquia <strong>do</strong>s gregos, mas durou<br />
pouco, pois nele começou e acabou com sua breve vi<strong>da</strong>, morren<strong>do</strong> com<br />
veneno em Babilónia, depois de haver assombra<strong>do</strong> ao mun<strong>do</strong> com suas<br />
vitórias e triunfos.<br />
Sucedeu a quarta monarquia <strong>do</strong>s romanos, que começou em Rómulo<br />
cruento princípio com a morte de seu irmão Remo; porém depois de Túlio<br />
Hostílio morrer de fulminante raio abrasa<strong>do</strong>, em pouco tempo com as<br />
Arist., Rhet. 2.<br />
Cie, in Or. ad Brut.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 745<br />
insolências <strong>do</strong> soberbo Tarquínio se acabaram os reis de Roma e se<br />
governaram por cônsules, que era a suprema digni<strong>da</strong>de; porém tão sujeita às<br />
mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong> fortuna, que sen<strong>do</strong> Espúrio Cássio cônsul em Roma, no dia que<br />
acabou o consola<strong>do</strong>, o fizeram citar os tribunos <strong>do</strong> povo e questores de Roma,<br />
por dizerem que afectava a fazer-se senhor de Roma; e condena<strong>do</strong> à morte<br />
pelo povo, o despenharam <strong>da</strong> roca Tarpeia. Que conseguiu Júlio César de<br />
fazer-se empera<strong>do</strong>r, senão o ser morto no sena<strong>do</strong>, na conjuração de Cássio e<br />
Bruto? E no seguimento <strong>da</strong> coroa, o seguiram juntamente na morte violenta<br />
que tiveram Nero, Otão, Galba, Domiciano, Cómo<strong>do</strong>, Pertinaz, Antonino,<br />
Macrino, Alexandre, Maximino, Gordiano e outros inumeráveis, de sorte que<br />
parecia an<strong>da</strong>r avincula<strong>do</strong> o violento ao majestoso <strong>da</strong> imperial coroa.<br />
Pois se considerarmos a outras coroas e ceptros de outros reis<br />
particulares e príncipes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, que diremos de Mitri<strong>da</strong>tes, poderoso rei de<br />
Ponto e grande parte <strong>da</strong> Ásia; de Jugurta, rei de Numídia; de Filipe, rei de<br />
Macedónia; de Seleuco, rei de Ásia, companheiro <strong>do</strong> grande Alexandre; de<br />
Prusias, rei de Bitínia; de Agides, rei de Esparta; de Can<strong>da</strong>ules, rei de Lídia, e<br />
finalmente de outros inumeráveis reis, príncipes e potenta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que<br />
com veneno ou ferro acabaram miseravelmente as vi<strong>da</strong>s? Que firmeza pode<br />
prometer-se, quan<strong>do</strong> as digni<strong>da</strong>des <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tão lamentavelmente acabam?<br />
Não se isenta a sabe<strong>do</strong>ria, como se viu em Colístenes, Demóstenes, Cícero,<br />
Marco António, Prisco, Séneca e Lucano, to<strong>do</strong>s violentamente mortos; nem se<br />
isenta a fermosura, como testemunham Mariene em Palestina, Lucrécia em<br />
Roma, Cleópatra em Egipto, Sofonisba em Cartago, que ou por suas próprias<br />
mãos, ou por mãos alheias, violentamente perderam as vi<strong>da</strong>s; que como disse<br />
Euripides 629 , tem esta mortal nome de vi<strong>da</strong>, mas to<strong>da</strong> se pode com razão<br />
intitular trabalho e pena. Assi o diz S. Gregório Papa 630 que são tantas as<br />
moléstias, discómo<strong>do</strong>s e pesares <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que a morte lhe fica servin<strong>do</strong> de<br />
remédio, sen<strong>do</strong>, como disse o padre S. Agostinho 631 , to<strong>do</strong> o discurso de viver<br />
caminho para encontrar a morte.<br />
Eurip., apud Plut.<br />
S. Gerg., Ser. 14.<br />
S. Aug., Lib. 3. De civ.
746 Padre Mateus Ribeiro<br />
Pois se em na<strong>da</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> se pode achar firmeza, nem nas digni<strong>da</strong>des<br />
segurança, nem na sabe<strong>do</strong>ria privilégio, nem na fermosura isenção, nem na<br />
riqueza preminência, nem na valentia asilo contra as mu<strong>da</strong>nças <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, a<br />
ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> fortuna que não pára o lúbrico movimento que não cessa; parece-me a<br />
mim, senhor, que pouco tempo há mister para se conhecer o desengano de<br />
seus bens e para se manifestar o infausto de seus males.<br />
Cap. II.<br />
Em que o passageiro dá princípio à narração de sua vi<strong>da</strong><br />
Atento ouviu o passageiro as razões de Felisberto, e pareceu-lhe não só<br />
homem de vi<strong>da</strong> penitente e retira<strong>da</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, como seu hábito mostrava, mas<br />
juntamente pessoa <strong>do</strong>uta e versa<strong>da</strong> na lição <strong>do</strong>s livros e histórias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. E<br />
se, como disse Cícero 632 , a sabe<strong>do</strong>ria pudera com os olhos corporais ver se<br />
sem dúvi<strong>da</strong> de to<strong>do</strong>s fora ama<strong>da</strong> e de ninguém aborreci<strong>da</strong>, descobriu logo o<br />
passageiro na prática <strong>do</strong> Ermitão umas palavras tão ajusta<strong>da</strong>s com a vi<strong>da</strong> e<br />
uma vi<strong>da</strong> tão germina<strong>da</strong> com a prática que se resolveu em manifestar-lhe os<br />
dissabores de sua pena, para ver se quan<strong>do</strong> nela não descobrisse remédio, ao<br />
menos pudesse encontrar consolação.<br />
Lembrou-se <strong>da</strong>quele dito de Aristóteles 633 , que a erudição e a sabe<strong>do</strong>ria<br />
para as prosperi<strong>da</strong>des era troféu e para as adversi<strong>da</strong>des era consolação e<br />
refúgio. E suposto que o vivo de sua <strong>do</strong>r e o incessável de sua mágoa queria<br />
que no silêncio ficasse sepulta<strong>do</strong> seu tormento sem epitáfio que a conhecer o<br />
desse, julgou parecer cousa dura fazer tanto a vontade à pena que não só a<br />
sofresse, mas que de to<strong>do</strong> a encobrisse. Terminar a vi<strong>da</strong> de senti<strong>do</strong> será vitória<br />
<strong>da</strong> <strong>do</strong>r; porém deixar de publicar a causa é morrer de sofri<strong>do</strong> sem procurar nem<br />
título na vi<strong>da</strong>, nem fama na morte, como quem na região mais remota de seu<br />
nascimento em solitário deserto fica sem ser conheci<strong>do</strong> sepulta<strong>do</strong>, perden<strong>do</strong>-se<br />
a memória de quem foi. E como a fama e a perpetui<strong>da</strong>de <strong>do</strong> nome é, como diz<br />
Cie, 3. De Fin.<br />
Arist., apud Diog., Lib. 4.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 747<br />
Aristóteles , a mais durável vi<strong>da</strong> deste mun<strong>do</strong>, discretamente julgou ser<br />
excesso de tristeza padecer os extremos de triste nos efeitos e reconcentrar a<br />
causa no sofri<strong>do</strong>. E dizen<strong>do</strong> a Felisberto:<br />
- Bem conheço, senhor, que poderosa era a memória <strong>da</strong>s infelici<strong>da</strong>des<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para desenganar a quem o segue, se permitiram as lisonjas <strong>da</strong><br />
moci<strong>da</strong>de atender ao desengano quan<strong>do</strong> a experiência lhes falta. Por essa<br />
razão disse Aristóteles 635 que na moci<strong>da</strong>de não se podia <strong>da</strong>r cabal sabe<strong>do</strong>ria,<br />
por lhe faltar a experiência que com o discurso <strong>do</strong> tempo vem a alcançar-se.<br />
Discretamente comparou Cícero 636 a moci<strong>da</strong>de aos pães em erva e aos frutos<br />
em flor, porque está tão ofereci<strong>do</strong> às mu<strong>da</strong>nças <strong>do</strong> tempo e aos combates <strong>da</strong><br />
i<strong>da</strong>de que nunca com certeza se pode prometer se a erva chegará a ser trigo<br />
ou se chegará a ser fruto sazona<strong>do</strong> a lisonja aprazível <strong>da</strong> flor. Muita diferença<br />
vai de conhecer o útil a segui-lo, porque no conhecimento obra o juízo, porém<br />
no seguimento a vontade; e como esta tem tantos combates <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de que<br />
repugna, <strong>da</strong> amizade que aconselha, <strong>do</strong> exemplo contrário que persuade, <strong>da</strong><br />
esperança que lisonjeia e finalmente <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que inquieta para não discursar<br />
maduramente o juízo: sen<strong>do</strong> os contrários tantos, que segurança pode<br />
prometer-se quan<strong>do</strong> os inimigos por to<strong>da</strong>s as partes assaltam e a vontade tão<br />
debilmente resiste e tão suborna<strong>da</strong> combate? E suposto que meu sentimento<br />
não permitia por implacável na <strong>do</strong>r repetir a causa <strong>do</strong>nde tem a origem minha<br />
pena, não deixarei de noticiar o vivo de minha mágoa, para que me deis<br />
conselho com vossa prudência, a quem o reforma<strong>do</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e a anciani<strong>da</strong>de<br />
<strong>do</strong>s anos tem habilita<strong>do</strong> para se estimarem em muito conselho tão discretos,<br />
em que, como diz Plínio 637 , basta a autori<strong>da</strong>de por conselho.<br />
Renderam-lhe as graças Felisberto e Dionísio <strong>do</strong> favor que lhes fazia em<br />
lhes querer <strong>da</strong>r notícia <strong>do</strong>s discursos de sua vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> pena que o afligia,<br />
desejan<strong>do</strong> poderem moderar o vivo de sua ânsia, e ele começou a narração de<br />
sua história assi:<br />
Arist., Eth. 7.<br />
Arist., Eth. 6.<br />
Cicer., Pro Caelio.<br />
Plínio Júnior, Lib. 1.
748 Padre Mateus Ribeiro<br />
- A ci<strong>da</strong>de de Cesena, edifica<strong>da</strong> na Úmbria romana, ou Gália Togata,<br />
que to<strong>do</strong>s estes nomes tem esta décima quarta região de Itália, foi minha<br />
pátria. Está situa<strong>da</strong> na Via Emília, tão nomea<strong>da</strong> <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res antigos. Tem<br />
as bases de seu fun<strong>da</strong>mento em uma fértil planície, fican<strong>do</strong>-lhe fazen<strong>do</strong><br />
sombra os eminentes outeiros <strong>do</strong> monte Apenino. De seus edifica<strong>do</strong>res<br />
primeiros não consta com certeza, por sua antigui<strong>da</strong>de, suposto que<br />
Estrabão 638 , Plínio 639 , Procópio 640 e outros muitos autores dela façam menção<br />
em seus escritos. É ci<strong>da</strong>de bem povoa<strong>da</strong>, a quem o empera<strong>do</strong>r Frederico II<br />
fortaleceu com uma soberba fortaleza, edifica<strong>da</strong> em uma eminência, com que à<br />
ci<strong>da</strong>de se une. Teve várias mu<strong>da</strong>nças sua fortuna, como to<strong>da</strong>s as cousas <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> as padecem, umas vezes sen<strong>do</strong> sujeita ao romano império, depois<br />
assalta<strong>da</strong> pelos de Bretanha com grande mortan<strong>da</strong>de de seus naturais, por ser<br />
o assalto imprevisto de seu descui<strong>do</strong>. Passou depois a ser sujeita aos<br />
bolonheses, em cujo <strong>do</strong>mínio durou pouco, levantan<strong>do</strong>-se com ela Novelo<br />
Malatesta, que a deixou à Igreja. Não paran<strong>do</strong> aqui a ro<strong>da</strong> de sua fortuna, se<br />
levantaram os ban<strong>do</strong>s de Tibertos e Martelinos, que com grande mortan<strong>da</strong>de<br />
em guerras civis derramaram rios de sangue; até que ultimamente tornaram ao<br />
senhorio <strong>da</strong> Igreja, como ao presente estão. É ilustra<strong>da</strong> de nobres edifícios,<br />
ricos e poderosos ci<strong>da</strong>dãos, abun<strong>da</strong>nte de copiosos frutos, saudável nos ares,<br />
fértil nas terras, não lhe faltan<strong>do</strong> condição alguma <strong>da</strong>s que o filósofo refere na<br />
Política 641 para ser uma ci<strong>da</strong>de e república digna de estimação e preclara na<br />
fama que sua opulência publica.<br />
Nesta ci<strong>da</strong>de me deu o primeiro berço a natureza e o modelo de suas<br />
mu<strong>da</strong>nças a fortuna. Meu nome é Lisar<strong>do</strong> Martelino, ilustre família <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />
se bem pouco mimosa <strong>da</strong> ventura, por ficarem sempre desde as antigas<br />
guerras civis que com os Tibertos nossos antepassa<strong>do</strong>s tiveram deles<br />
aborreci<strong>do</strong>s, inimizades que parece se comunicam com o mesmo nascimento.<br />
Lá disse Cícero 642 que sempre se devem temer mais inimizades ocultas que as<br />
638 Strab., Lib. 5.<br />
639 Plin., in Oct. Régio.<br />
640 Procop., Lib. 2&3. Bel. Goth.<br />
641 Arist., Pol. 4.<br />
642 Cie, in y err.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 749<br />
manifestas; porém as <strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>s civis, parecen<strong>do</strong> que estão sepulta<strong>da</strong>s no<br />
exterior, estão sempre vivas pelo interior, monumento que recor<strong>da</strong> os recebi<strong>do</strong>s<br />
<strong>da</strong>nos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> tempo, cuja vingativa satisfação, se a impediu a pública paz,<br />
não a per<strong>do</strong>ou a mágoa, nem a risca <strong>da</strong> memória o aborrecimento. A poucos<br />
meses <strong>do</strong> nascimento fiquei órfão de pai, ten<strong>do</strong> outra irmã de tenra i<strong>da</strong>de,<br />
chama<strong>da</strong> Florisela. Não permitiram os anos infantis de nossa i<strong>da</strong>de sentir o<br />
muito que em nosso pai perdíamos, porque neste limbo natural tem<br />
sequestra<strong>do</strong> o tempo to<strong>da</strong>s as penas para não se sentirem e to<strong>da</strong>s as glórias<br />
para não se lograrem. É uma suspensão de armas entre a razão e os senti<strong>do</strong>s<br />
com que se estancam to<strong>da</strong>s as alegrias: ditoso tempo, se pudera conhecer-se<br />
quan<strong>do</strong> presente ou se pudera restaurar-se quan<strong>do</strong> foge. Com os sentimentos<br />
de se ver Ricar<strong>da</strong>, nossa mãe, no lutuoso <strong>da</strong> viuvez e no desamparo <strong>do</strong> favor,<br />
como diz São João Crisóstomo 643 , porque a falta de um mari<strong>do</strong> nobre com<br />
nenhuma cousa se restaura, antes, como escreve Euripides 644 , parece que é o<br />
mesmo que faltar a vi<strong>da</strong>, pois com a privação de um tal esposo to<strong>do</strong> o alívio<br />
falta, nos caiu nossa mãe com as lágrimas de sua <strong>do</strong>r, prelúdios de nossas<br />
futuras mágoas: pois quem teve as lágrimas por mestre, que lições podia<br />
aprender em que saísse erudito, senão no detrimento e lacrimável <strong>da</strong>s<br />
tristezas?<br />
Cresceu a i<strong>da</strong>de, tomou posse a razão <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s e manifestou-se em<br />
Florisela, minha irmã, o extremoso <strong>da</strong> beleza e o raro <strong>da</strong> discrição, pren<strong>da</strong>s que<br />
lhe <strong>do</strong>tou a natureza, para serem despojos <strong>da</strong> fortuna. Era em Florisela tão<br />
cabal a fermosura que a to<strong>do</strong>s causava admiração: que nunca as medianias<br />
foram assuntos de espanto, porque só ao extremoso tem por objecto a<br />
maravilha. Era neste tempo de vinte e três anos de i<strong>da</strong>de, e eu de pouco mais<br />
de vinte; estu<strong>da</strong>va eu em Bolonha, aonde um primo de minha mãe era lente de<br />
Cânones, em cuja companhia eu assistia. E como o morga<strong>do</strong> de meu pai, de<br />
que eu era sucessor, ficou por sua morte atenua<strong>do</strong> nas ren<strong>da</strong>s e endivi<strong>da</strong><strong>do</strong>,<br />
por ele haver si<strong>do</strong> franco nos dispêndios, sem reparar, por ostentar o<br />
sumptuoso, em que seus filhos haviam ao diante de sentir os <strong>da</strong>nos <strong>do</strong><br />
Chrys., Hom. 6. Super Joan.<br />
Eu ri p., apud Stob.
750 Padre Mateus Ribeiro<br />
supérfluo na falta <strong>do</strong> necessário, como disse Plutarco , e que os repeti<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>s dispêndios (como diz o filósofo 646 ) é certo que hão-de <strong>da</strong>r baixa grande ao<br />
cabe<strong>da</strong>l, tratei eu de empenhar-me no seguimento <strong>da</strong>s letras, pois tinha irmã a<br />
quem <strong>da</strong>r esta<strong>do</strong>, que era o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> que mais sentia e a lembrança que me<br />
desvelava.<br />
Vivia em Cesena, entre outras pessoas ilustres, um morga<strong>do</strong> rico e<br />
poderoso, <strong>da</strong> família <strong>do</strong>s Tibertos, inimigo ban<strong>do</strong> aos Martelinos <strong>da</strong> nossa<br />
família (como referi<strong>do</strong> tenho). Chamava-se Feliciano Tiberto, que era, como<br />
cabeça, mais respeita<strong>do</strong> deste ban<strong>do</strong>, por rico, poderoso e atrevi<strong>do</strong>. E suposto<br />
que estas parciali<strong>da</strong>des antiguas ao presente estavam em paz, contu<strong>do</strong> as<br />
memórias <strong>da</strong>s hostili<strong>da</strong>des antiguas talvez viviam interiormente no odioso<br />
clarim <strong>da</strong> guerra. Jamais os de um ban<strong>do</strong> se aparentaram por casamentos com<br />
o outro: viven<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> qual nesta desconfiança de que inimizades, que na<br />
criação com o leite parece se beberam, nunca podiam prometer amizade<br />
segura. Era Feliciano mancebo, galã, discreto, valeroso, muito estima<strong>do</strong> de<br />
to<strong>do</strong>s por sua riqueza e fi<strong>da</strong>lguia; não tinha pai nem mãe, que havia anos que<br />
eram faleci<strong>do</strong>s, e assi não tinha superior a quem tributasse respeitos, sen<strong>do</strong> só<br />
seu gosto o alcaide maior de sua vontade. Era corteja<strong>do</strong> de amigos, que nunca<br />
faltaram aos poderosos e liberais, qual Feliciano era, como escreve Ovídio 647 ,<br />
ten<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s por lisonja de sua própria estimação o admiti-los ele à sua<br />
companhia.<br />
Viu Feliciano a minha irmã Florisela em algumas ocasiões que em<br />
companhia de minha mãe à igreja saía, vista para ele tão agradável, motivo tão<br />
aprazível a seus olhos, encanto tão amoroso a seus senti<strong>do</strong>s, que sen<strong>do</strong><br />
Florisela por sua rara beleza delicioso agra<strong>do</strong> para quantos a viam, foi para<br />
Feliciano a mais celebra<strong>da</strong> maravilha e a mais superior admiração. As flores<br />
que no nome tinha só lhe pareciam flores, porque era Florisela em seus olhos o<br />
único jardim de seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s: o pra<strong>do</strong> mais ameno, o vergel mais vistoso, a<br />
primavera mais alegre e finalmente cifra em que se compendiava a fermosura,<br />
centro anima<strong>do</strong> em que se epilogava to<strong>da</strong> a beleza. Estava eu a este tempo em<br />
Plut., De vi verb.<br />
Arist., Pol. 5.<br />
Ovid., 2. De Pont.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 751<br />
Bolonha estu<strong>da</strong>n<strong>do</strong>, que como minha irmã assistia na companhia e cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa<br />
tutela de Ricar<strong>da</strong>, nossa mãe, em quem se <strong>da</strong>va maior prudência e a cautela<br />
mais vigilante, não me inquietava o cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, porque me não desvelava o temor.<br />
Fazia eu progressos em meu estu<strong>do</strong>, tão livre de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s como de receios,<br />
que são os <strong>do</strong>us contrários que podem divertir a estudiosa ocupação.<br />
Estava Florisela a este tempo com finezas servi<strong>da</strong> e com desvelos<br />
empenha<strong>da</strong> na afeição de um nobre mancebo de Cesena, que se chamava<br />
Silvério, bastantemente rico, ilustre no sangue e <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de muitas partes que o<br />
faziam amável: cortês, liberal, ajuiza<strong>do</strong>, alenta<strong>do</strong>, comedi<strong>do</strong>, pacífico no trato,<br />
discreto na conversação e sobretu<strong>do</strong> muito obediente a uma mãe viúva que<br />
tinha, que se chamava Dionísia, a quem com grandes obséquios venerava.<br />
Havia já <strong>do</strong>us anos que ocultamente se amavam com pretensão de casamento,<br />
que a ca<strong>da</strong> um deles, quan<strong>do</strong> tivesse efeito, conveniente ficava. Resoluto pois<br />
Silvério em alcançar o que tanto desejava no casamento de Florisela, a quem<br />
com finezas amava e de quem era não só seu cui<strong>da</strong><strong>do</strong> aceito, mas igualmente<br />
no querer correspondi<strong>do</strong>, deu notícia a Dionísia, sua mãe, de sua antigua<br />
afeição e honroso intento, para que ela a minha mãe falasse e o efeito de ser<br />
esposo de Florisela conseguisse, visto ser filho único, bastantemente rico, de<br />
partes <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> e seu amor para com Florisela tão antigo. Não cessava neste<br />
tempo Feliciano de solicitar cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so a minha irmã com passeios,<br />
mensageiros, escritos, músicas de noite, assistências de dia, e finalmente<br />
to<strong>da</strong>s as inquietações e diligências amorosas que acompanham a um amante e<br />
inventa o eficaz de um desejo. Porém como era <strong>do</strong> contrário ban<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
Tibertos, ao nosso tão infesto e ain<strong>da</strong> tão infausto pelo muito sangue que <strong>do</strong>s<br />
Martelinos derrama<strong>do</strong> tinha, nunca foram seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s de Florisela admiti<strong>do</strong>s,<br />
conhecen<strong>do</strong> que ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> a pretendesse para esposa, nem minha mãe,<br />
nem eu havíamos de <strong>da</strong>r consentimento a tão odioso casamento. Com isto se<br />
mostrava desespera<strong>do</strong> Feliciano, ven<strong>do</strong>-se tão mal correspondi<strong>do</strong>, cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
tão pouco aceitos, desvelos tão mal remunera<strong>do</strong>s.<br />
Assi como se diz que a ingratidão <strong>do</strong> senhor faz ao servo fiel, ven<strong>do</strong> que<br />
seus serviços ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> mais se apuram, em na<strong>da</strong> são estima<strong>do</strong>s, e que<br />
seu maior desvelo em merecer, tão pouco merece, como o maior descui<strong>do</strong> no<br />
servir; assi os extremosos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s de Feliciano, implacáveis ao desamor,<br />
impacientes ao desabri<strong>do</strong>, mal sofri<strong>do</strong> ao rigoroso, exaspera<strong>do</strong> ao infelice de
752 Padre Mateus Ribeiro<br />
sua pretensão, queixan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> inexpugnável <strong>da</strong> vontade de Florisela,<br />
resistência tão repeti<strong>da</strong>, recato tão importuno, que furtava to<strong>da</strong>s as ocasiões<br />
em que podia ser dele vista, para fechar as portas a suas esperanças, se<br />
julgava pelo mais desditoso e se queixava pelo mais mal premia<strong>do</strong>.<br />
- Que tribute eu (dizia ele) finezas à ingratidão, desvelos ao rigor,<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s ao desprezo, obséquios ao insensível, serviços a um diamante,<br />
queixas a um bronze e finalmente amantes incêndios à mesma neve? Como se<br />
uniu tanta dureza à maior fermosura? Quem vinculou tal rigor a tal beleza?<br />
Como no rosto lhe matizou a delícia e no peito a inclemência? Na vista o<br />
amável e na ingratidão o aborrecível? Se a esquivança é política razão para ser<br />
mais ama<strong>da</strong>, a que maiores extremos pode chegar meu querer, quan<strong>do</strong> de<br />
extremos não se passa? Se repara nas antiguas discórdias de nossos ban<strong>do</strong>s,<br />
as parciali<strong>da</strong>des são passa<strong>da</strong>s e meu amor é de presente, e sempre move<br />
mais o objecto presente que o passa<strong>do</strong>. Nem ela foi ofendi<strong>da</strong>, nem eu o<br />
ofensor, e se se pusera em balança o ser ela ama<strong>da</strong> e seus passa<strong>do</strong>s<br />
ofendi<strong>do</strong>s, sem dúvi<strong>da</strong> pesaria mais meu amor presente que seu agravo<br />
passa<strong>do</strong>; porque o amar nasce <strong>da</strong> vontade e o ofender <strong>da</strong> ira, e tem maior<br />
nobreza qualquer acto <strong>da</strong> vontade para obrigar <strong>do</strong> que to<strong>da</strong>s as hostili<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />
ira para com vingativos arrojos ofenderem.<br />
Assi dizem se queixava Feliciano a alguns amigos a quem tinha<br />
comunica<strong>do</strong> seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, e um deles, que se chama Antíoco, pessoa nobre<br />
e discreta, lhe respondeu desta sorte:<br />
Cap. III.<br />
Da prática que teve Antíoco com Feliciano e <strong>do</strong> que dela resultou<br />
- Suposto, amigo Feliciano, que foi dito <strong>do</strong> lírico poeta Simónides, como<br />
refere Plutarco 648 , que muitas vezes lhe pesou de haver fala<strong>do</strong>, porém nunca<br />
se arrependeu de haver cala<strong>do</strong>, e ain<strong>da</strong> que Aristóteles 649 diga que a nece<strong>da</strong>de<br />
sempre se adianta em responder, não consideran<strong>do</strong> que com uma só resposta<br />
Plut., De tuend. vai.<br />
Arist., Lib. n. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 753<br />
não pode satisfazer-se a muitas perguntas, assi como eu considero que com<br />
uma só locução não poderei cabalmente <strong>da</strong>r quietação a vossas queixas.<br />
Contu<strong>do</strong>, persuadi<strong>do</strong> <strong>da</strong> amizade que convosco tenho, quero antes incorrer na<br />
censura de falar desengana<strong>do</strong>, seguin<strong>do</strong> o dito de S. Agostinho 650 , que o amigo<br />
há-de ser como o médico, pon<strong>do</strong>-se contra as paixões para <strong>da</strong>r vi<strong>da</strong> ao amigo,<br />
<strong>do</strong> que permitir com o silêncio ver-vos enfermo na queixa e não cura<strong>do</strong> no<br />
remédio dela. E suposto que me possais dizer com Demóstenes 651 que há<br />
pessoas que melhor sabem <strong>da</strong>r a outras os conselhos <strong>do</strong> que tomá-los para si,<br />
eu o confesso, porque vejo que um ânimo apaixona<strong>do</strong> os aceita mal; porém<br />
quem está livre <strong>da</strong> paixão, muitas vezes os discursa bem. São as paixões os<br />
humores de que pode enfermar a razão, e disse Euripides 652 que mais tolerável<br />
pode ser talvez o sofrer o achaque que curar ao queixoso dele. Contu<strong>do</strong> não<br />
calarei o que sinto, porque em vossa liber<strong>da</strong>de fica quererdes usar <strong>do</strong> remédio.<br />
Não aceitar os conselhos quan<strong>do</strong> são proveitosos é efeito <strong>da</strong> infelici<strong>da</strong>de<br />
ou falta <strong>da</strong> ventura, quan<strong>do</strong> o fatal <strong>do</strong> destino persuade a não se receberem ao<br />
tempo que aproveitar podiam, como se viu em el-rei Antíoco que <strong>do</strong>minava na<br />
Assíria e Babilónia e era senhor de outras muitas províncias, quan<strong>do</strong> na guerra<br />
que lhe fizeram os romanos, não quis aceitar os últimos conselhos que lhe<br />
<strong>da</strong>va Aníbal, com que sem dúvi<strong>da</strong> sairia vence<strong>do</strong>r, só por que se não dissesse<br />
que dele aprendia os militares acertos, e no fim ficou <strong>do</strong>s romanos venci<strong>do</strong>s e<br />
tão destruí<strong>do</strong> que aceitou as indecorosas condições e vilipêndios parti<strong>do</strong>s que<br />
os vence<strong>do</strong>res romanos lhe impuseram, que tu<strong>do</strong> seria ao contrário se seguira<br />
o que lhe persuadia o belicoso e experimenta<strong>do</strong> cartaginês, como refere<br />
Apiano Alexandrino 653 . Queixais-vos, Feliciano, de que sen<strong>do</strong> amante de<br />
Florisela Martelino, não é vosso amor dela correspondi<strong>do</strong>, nem ain<strong>da</strong> estima<strong>do</strong>;<br />
e não advertis que serviços que nem se pedem, nem se aceitam, nunca<br />
induzem direito à obrigação, nem esperanças a serem agradeci<strong>do</strong>s. Porventura<br />
persuadiu-vos ela a que a amásseis? Rogou-vos que com finezas a servísseis?<br />
Pois para que lhe <strong>da</strong>is título de ingrata, quan<strong>do</strong> fica tão livre <strong>da</strong> obrigação? Pois<br />
S. Aug., in Ser.<br />
Dem., in 01.<br />
Eurip., in Hyp.<br />
Apian., in Bell. Antio.
754 Padre Mateus Ribeiro<br />
nunca merece nome de ingrata, quem se não sujeitou às leis <strong>da</strong> obrigação.<br />
Além disto, perguntara-vos eu que interesses lhe acumulam vossas finezas?<br />
Que aumentos recebe desses cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s ou que crédito mais subi<strong>do</strong> lhe acresce<br />
de vossas assistências, senão talvez o ser por vossa causa murmura<strong>da</strong> de<br />
juízos que censuram, discursos que condenam a quem em vossos devaneios<br />
não tem culpa?<br />
Dizem que a simpatia natural é o valimento maior e o suborno mais<br />
eficaz no querer, que na primeira lição de uma vista pela oculta conformi<strong>da</strong>de<br />
de estrelas dá bataria aos senti<strong>do</strong>s e golpes ao coração. Porém vós não só<br />
deveis de carecer desta simpatia natural, mas ain<strong>da</strong> pretendeis com<br />
contrarie<strong>da</strong>de discor<strong>da</strong>nte, sen<strong>do</strong> <strong>da</strong> família Tiberta tão odiosa à Martelina. Lá<br />
disse Horácio 654 que os contrários sempre se aborrecem por dissemelhante<br />
antipatia que os desune, como triste e alegres, coléricos e fleumáticos, e assi<br />
nos mais em que a contrarie<strong>da</strong>de desterra to<strong>da</strong> a semelhança e divide to<strong>da</strong> a<br />
união. Lembra-me aquele dito de Públio Mimo 655 que desconfiar <strong>do</strong> inimigo era<br />
conselho seguro, porque de sujeito odioso mal se podem esperar favores. Pois<br />
como pretendeis que Florisela possa persuadir-se que com finezas a amais,<br />
ten<strong>do</strong> tantos motivos para temer que a aborreceis? Como não presumirá que<br />
vossas assistências se dirigem a seu descrédito e não a seu decoro? Como<br />
não receará que vossos passeios repeti<strong>do</strong>s queiram motivar desaires a sua<br />
fama e baixas a seu pun<strong>do</strong>nor? Tão fácil é achar-se no contrário sujeição, no<br />
inimigo rendimento, no aborrecimento amor, no ódio vassalagem, no agravo<br />
afeição e finalmente no odioso agra<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> tantas hostili<strong>da</strong>des passa<strong>da</strong>s<br />
estarão mais presentes na memória que vossas finezas presentes na vista?<br />
Nunca se esquece a mágoa à vista <strong>do</strong> ofensor, porque os olhos<br />
recor<strong>da</strong>m a memória e esta renova a chaga no coração; e aonde imaginais que<br />
com serdes visto granjeais benevolência, originais desamor, fazen<strong>do</strong><br />
porventura que os agravos e sentimentos que o tempo parece ter sepulta<strong>do</strong>s<br />
com o inquieto de vossas assistências ressuscitem. Além disto, que sabeis vós<br />
se Florisela terá em outro sujeito os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s empenha<strong>do</strong>s? Que como o raro<br />
de sua fermosura é de Cesena o aplauso e ain<strong>da</strong> de Itália admira<strong>da</strong> maravilha,<br />
Horace, Lib. 2. Epist.<br />
Publ. Mim.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 755<br />
bem se pode presumir que é atributo <strong>da</strong> beleza o não estar sem senhorio, pois<br />
não deixa de ser queri<strong>do</strong> o que se admira <strong>da</strong> natureza tão <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>. Pois se<br />
Florisela viver empenha<strong>da</strong> no querer a quem fosse mais venturoso em a seus<br />
olhos agra<strong>da</strong>r, que a ventura muitas vezes não repara nos merecimentos, por<br />
ser favor <strong>da</strong> sorte o ser venturoso, que maravilha será que vossos desvelos<br />
dela não sejam estima<strong>do</strong>s, nem recebi<strong>do</strong>s? Antes ficará sen<strong>do</strong> o auge<br />
culminante <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de de um venturoso o considerar por seu respeito<br />
desestima<strong>da</strong>s as finezas de um desgraça<strong>do</strong>, e sen<strong>do</strong> o desempenho maior de<br />
sua alegria em se ver queri<strong>do</strong>, o ver a um infelice queixoso de não ser ama<strong>do</strong>.<br />
Se pretendeis a Florisela para esposa, declarai-vos com pedi-la, e<br />
conheça ela que vosso intento não é ofendê-la como contrário, senão honrá-la<br />
como esposo, unin<strong>do</strong> com seu casamento a veterana discórdia destas famílias,<br />
para com ela renascer a paz tantos tempos desterra<strong>da</strong> de Cesena. To<strong>da</strong> a<br />
pretensão vai dirigi<strong>da</strong> a algum fim, como diz Ovídio 656 ; se o fim com que vos<br />
desvelais por Florisela é adequa<strong>do</strong> a seu merecimento, já tar<strong>da</strong>is em<br />
manifestá-lo, que sen<strong>do</strong> vós a pessoa que hoje nesta ci<strong>da</strong>de logra a maior<br />
estimação, conhecera ela e sua mãe o muito que interessam em casamento<br />
tão digno de avaliar-se na maior ventura. E quan<strong>do</strong> (o que eu não presumo)<br />
não fosseis admiti<strong>do</strong> para esposo, ficáreis desengana<strong>do</strong>: como vos admitiria<br />
para amante quem se não julgasse por extremo venturosa em ser escolhi<strong>da</strong><br />
para vossa esposa? E se (o que eu não imagino) a discómo<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s a<br />
procurais com diferente intento, adverti que Lisar<strong>do</strong>, seu irmão, é muito brioso e<br />
mui aparenta<strong>do</strong> em Cesena, e seria <strong>da</strong>rdes ocasião a se renovarem os<br />
tumultos <strong>da</strong>s parciali<strong>da</strong>des passa<strong>da</strong>s, de que tantas hostili<strong>da</strong>des à nossa pátria<br />
resultarão, que maravilha é ficar sem uma total ruína. Nunca Numancia 657 se<br />
vira assola<strong>da</strong> depois de tantos anos que resistiu aos exércitos romanos, se as<br />
interiores guerras civis de seus ci<strong>da</strong>dãos não fossem mais poderosas para<br />
destruí-la <strong>do</strong> que os romanos assaltos o haviam si<strong>do</strong> para conquistá-la.<br />
Nunca Cartago se vira abrasa<strong>da</strong> em vorazes chamas, depois de tão<br />
porfia<strong>da</strong> e varonil resistência, se as intestinas discórdias e odiosos tumultos de<br />
seus defensores não houvesse si<strong>do</strong> o incêndio mais hostil de sua total ruína,<br />
Ovid., 2. Epist.<br />
Paul Oros., Lib. 5.
756 Padre Mateus Ribeiro<br />
como escreve Apiano Alexandrino . Contaram os censores de Roma o povo<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de depois de acaba<strong>da</strong>s as cruentas guerras civis, e acharam que de<br />
três partes de seus mora<strong>do</strong>res eram mortas as duas, porque sempre os males<br />
<strong>do</strong>mésticos foram no mun<strong>do</strong> os mais nocivos. Cinquenta batalhas deu Júlio<br />
César em sua vi<strong>da</strong> e nas mais delas saiu vence<strong>do</strong>r; e no fim, em o tempo de<br />
paz, foi morto no sena<strong>do</strong> pelos conjura<strong>do</strong>s.<br />
Florisela para vossa esposa é igual, mas muito desigual para <strong>da</strong>ma;<br />
enquanto não vos declarais, desestimou-vos para amante, porque só para<br />
pretendi<strong>da</strong> é muito superior a vossos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e para esposa ficará igual a<br />
vossos merecimentos. Igual<strong>da</strong>des procurava Cleobulo, um <strong>do</strong>s sete sábios de<br />
Grécia, nos casamentos, como refere Diógenes 659 , e não vi eu casamento mais<br />
adequa<strong>do</strong>: ela singular na fermosura e vós único na estimação. E sen<strong>do</strong> as<br />
pátrias muitas vezes madrastas <strong>do</strong>s merecimentos de seus filhos, como se viu<br />
em Cipião desterra<strong>do</strong> queixan<strong>do</strong>-se de Roma, em o poeta Hesío<strong>do</strong> queixan<strong>do</strong>-<br />
se <strong>do</strong>s disfavores de Ascra sua pátria, pequena povoação de Beócia, e em<br />
Homero tão ressenti<strong>do</strong> <strong>da</strong> sua que nunca quis declará-la, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> motivos a que<br />
sete insignes ci<strong>da</strong>des, depois de sua morte, contendessem sobre qual por filho<br />
o teria; vós e Florisela tendes tão superior a ventura e tão patrícia a estimação<br />
que na pátria possuis aplausos <strong>do</strong> mais benemérito e Florisela a estimação e<br />
panegíricos de to<strong>da</strong> a bizarria.<br />
Por Dário não receber os saudáveis conselhos que lhe <strong>da</strong>va Patro,<br />
capitão <strong>do</strong>s gregos, que em seu exército militava contra o Grande Alexandre,<br />
se viu aleivosamente morto por Besso e Nabarsanes, seus vali<strong>do</strong>s; porque<br />
rejeitar os conselhos proveitosos é ventura que foge a quem os não admite; e<br />
assi vos aconselho, como vosso ver<strong>da</strong>deiro amigo, que ou bem vos resolvais a<br />
casar com Florisela, ou bem punhais fim a vossas inquietas porfias se outro<br />
intento vos desvela, pois pela violência que uns mancebos de Messénia,<br />
ci<strong>da</strong>de de Peloponeso, fizeram a umas <strong>do</strong>nzelas de Esparta, os tiveram os<br />
lacedemónios sitia<strong>do</strong>s dez anos, até que entran<strong>do</strong> por assalto na ci<strong>da</strong>de,<br />
passaram a maior parte se seus mora<strong>do</strong>res à espa<strong>da</strong> e cativaram os outros,<br />
deixan<strong>do</strong>-os escravos de sua república para sempre. Pela violência de Lucrécia<br />
Apian., De bell. Carth.<br />
Diog., Lib. 1.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 757<br />
perderam os Tarquínios as coroas de Roma, pela violência de Helena se<br />
abrasou Tróia e pela de Florin<strong>da</strong> se perdeu Espanha.<br />
Suspenso ouviu Feliciano o conselho ajuiza<strong>do</strong> de seu amigo, e<br />
suspenden<strong>do</strong> a resposta um breve intervalo, em que a vontade fez suspensão<br />
de armas com o entendimento na inquieta guerra de seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, tréguas<br />
que pediu o discursar ao querer, breve espaço para batalha tão repeti<strong>da</strong> em<br />
que traziam a Feliciano seus desvelos, lhe respondeu assi:<br />
- Lembra-me, Antíoco amigo, que queren<strong>do</strong> os romanos mover guerra<br />
aos vejenses por ser termina<strong>da</strong> a trégua que com eles tinham, por não<br />
haverem restituí<strong>do</strong> no tempo que lhes deram o que Roma lhes pedia, foi tal a<br />
generosi<strong>da</strong>de e valor <strong>do</strong>s romanos que, contan<strong>do</strong>-lhes com certeza que os<br />
vejenses estavam entre si discordes e em ban<strong>do</strong>s parciais dividi<strong>do</strong>s,<br />
suspenderam o mover-lhes guerra até que as civis discórdias se acabassem; e<br />
na ocasião em que melhor podiam vencê-los pela desunião em que viviam,<br />
lhes deram espaço em que seus discordes ban<strong>do</strong>s tivessem fim. Está tão<br />
contrário meu discursar a meu desejo e tão desuni<strong>do</strong> meu juízo a meu amor<br />
que de larga trégua necessitavam meus interiores assaltos para poder<br />
responder-vos ao conselho discreto que me <strong>da</strong>is.<br />
Perguntais-me que intento prossigo neste querer, e não sei que resposta<br />
possa <strong>da</strong>r; só direi que se fora certo o <strong>da</strong>rem-se acções indiferentes que a<br />
nenhum certo fim se dirigissem, pudera <strong>da</strong>r título a meu querer de indiferente:<br />
porque não aspira nem a seu casamento, nem a ofensa sua. Não a ofensa sua<br />
porque a estimo em muito, não a casamento por ser ela Martelina e eu Tiberto:<br />
famílias tão encontra<strong>da</strong>s em Cesena que parece vai propagan<strong>do</strong> com a<br />
natureza a mesma desunião. Os <strong>do</strong>us irmãos Etéocles e Polinices, filhos <strong>do</strong><br />
infelice Édipo, se odiaram desde sua puerícia tão obstina<strong>da</strong>mente que, sain<strong>do</strong><br />
ambos a desafio sobre qual havia de reinar em Tebas, com tão implacável ira<br />
contenderam que ambos ficaram mortos e nenhum alcançou a coroa que<br />
desejava. Sobre a preminência e senhorio <strong>do</strong> governo desta ci<strong>da</strong>de, como já<br />
tendes sabi<strong>do</strong>, tiveram origem odiosa estes ban<strong>do</strong>s parciais entre meus<br />
antepassa<strong>do</strong>s e os de Florisela, que se bem o tempo os tem suspendi<strong>do</strong>,<br />
nunca teve poder para acabá-los.
758 Padre Mateus Ribeiro<br />
Pois como terei confiança para pedir a Florisela para esposa que não me<br />
saia escusa<strong>da</strong> a petição? Lembra-me aquele dito de Platão 660 que não convém<br />
pedir-se quanto deseja a vontade, mas acomo<strong>da</strong>r-se a vontade ao que é lícito<br />
pedir-se; e que diz Cícero 661 que um ânimo desabri<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> se mostra mais<br />
sen<strong>do</strong> roga<strong>do</strong>. Sen<strong>do</strong> pois o desabrimento desta contrarie<strong>da</strong>de tão antigo, a<br />
desunião tão veterana, tão remonta<strong>da</strong> a afeição e tão presente o<br />
aborrecimento, como se persuadirão Ricar<strong>da</strong> e Lisar<strong>do</strong>, seu filho, para <strong>da</strong>rem a<br />
Florisela por esposa a quem tem por adversário? Ou como ela se acomo<strong>da</strong>rá a<br />
sujeitar-se mulher de quem tem por inimigo? Pois para emprender o casamento<br />
e não alcançá-lo, será ficar eu desairoso na pretensão e eles mais gloriosos no<br />
repúdio, ficarem meus parentes ressenti<strong>do</strong>s de mim, porque a pedi, e deles,<br />
porque negan<strong>do</strong> mostrarão estimar-me em pouco, e com este novo motivo<br />
causar-se maior incentivo que desperte as a<strong>do</strong>rmeci<strong>da</strong>s paixões. Esta causa é<br />
porque <strong>do</strong> casamento não tratei, com receios de ficar frustra<strong>do</strong> meu intento.<br />
Quanto a ofendê-la, nunca tal propôs meu coração, porque no brioso de<br />
Florisela desmaia to<strong>da</strong> a esperança de conseguir favores. É ilustre, é com<br />
extremo fermosa e dizem que é discreta. São estes atributos três presídios<br />
inexpugnáveis de seu crédito e opinião. A fi<strong>da</strong>lguia a faz briosa, a fermosura<br />
esquiva e a discrição acautela<strong>da</strong>, e aonde se dá tanto valimento para defender-<br />
se, nunca pode animar-se a esperança de conquistar-se.<br />
Por esta razão vos disse que nenhum fim determina<strong>do</strong> tinha meu querer,<br />
mais que somente amar, porque a vi; nem se encaminha a ofendê-la por quem<br />
é, nem a procurá-la por quem sou: que se ela é altiva para ser ofendi<strong>da</strong>, eu sou<br />
grande para ficar desengana<strong>do</strong> e despedi<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> a pretendera por esposa.<br />
Amo a Florisela com tal extremo que me parece que nem sen<strong>do</strong> ama<strong>do</strong> pudera<br />
querer-lhe mais <strong>do</strong> que hoje lhe quero, quan<strong>do</strong> me avalio aborreci<strong>do</strong>. Da<br />
matéria prima disse Aristóteles que, com receber várias formas contrárias, ela<br />
em si nunca se mu<strong>da</strong>: tal considero eu meu amor, que como não faz mu<strong>da</strong>nça<br />
de senti<strong>do</strong>, também a não fará de obriga<strong>do</strong>. Creceu a tal extremo e subiu a tal<br />
eminência que não lhe fica Olimpo a que voar: porque na valentia <strong>da</strong>s asas<br />
to<strong>do</strong> o altivo venceu. A lua tem aumentos no luzir e depois baixas no brilhar,<br />
Plat., De leg.<br />
Cie, Ad Curt.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 759<br />
que como não pode resplandecer mais, logo desceu a luzir menos: porém este<br />
afecto de meu coração cresceu no auge <strong>do</strong> querer e nunca se considera<br />
arrisca<strong>do</strong> ao desaire de menos amar: sustenta-se nas esquivanças, alimenta-<br />
se nos disfavores, vive nos sentimentos e finalmente persevera nos próprios<br />
desenganos.<br />
- Suposto o que dizeis (replicou Antíoco), que nem vos resolveis ao<br />
casamento de Florisela, com receios de não serdes admiti<strong>do</strong>, nem a desistir<br />
desta inquieta paixão que vos desvela, fazen<strong>do</strong> intolerável a pena e<br />
impossibilitan<strong>do</strong> o remédio, me parece o mais eficaz que metais terra em meio,<br />
porque só os poderes <strong>da</strong> ausência serão eficazes para moderarem to<strong>do</strong>s os<br />
pesares que <strong>da</strong> vista se causam. Enquanto os olhos dão golpes à memória e<br />
esta assaltos ao coração, sempre está viva a guerra <strong>do</strong>s desejos, a batalha <strong>do</strong>s<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, o conflito <strong>do</strong>s desvelos; porém se a distância divide os senti<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
imaginação, em breve tempo se suspendem as armas, pois sen<strong>do</strong> a causa a<br />
vista e a presença, paran<strong>do</strong> a causa <strong>do</strong> <strong>da</strong>no, cessam os efeitos <strong>da</strong> <strong>do</strong>r.<br />
Tendes a vossa quinta tão celebra<strong>da</strong> por grandiosa nas ribeiras<br />
cau<strong>da</strong>losas <strong>do</strong> rio Sávio, a quem Sílio Itálico intitula Sápis, que descen<strong>do</strong><br />
estron<strong>do</strong>so <strong>do</strong> Apenino, quasi banhan<strong>do</strong> com seus cristais os muros de<br />
Cesena, nossa pátria, vai enriqueci<strong>do</strong> de arroios, a quem usurpa os cabe<strong>da</strong>is<br />
de suas desvaneci<strong>da</strong>s correntes, pagar tributárias pensões ao mar Adriático ou<br />
golfo de Veneza. A distância de oito léguas que vai desta ci<strong>da</strong>de à vossa quinta<br />
é retiro acomo<strong>da</strong><strong>do</strong> para divertimento de memórias que molestam, como diz<br />
Euripides 662 , e com razão; porque se <strong>da</strong>s cousas entre si contrárias são entre si<br />
encontra<strong>do</strong>s os efeitos, sen<strong>do</strong> a ausência e presença tão contrários, também o<br />
devem ser seus efeitos. A assistência <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de vos serve de moléstia por<br />
Florisela, a ausência de sua vista vos pode servir de alívio por vos<br />
descui<strong>da</strong>rdes dela. A vizinhança <strong>do</strong> nocivo logo perturba os senti<strong>do</strong>s, porém se<br />
está distante o perigo pouco ou na<strong>da</strong> inquieta. Achaques de que se desconfia o<br />
remédio remetem-se ao tribunal <strong>do</strong> tempo, que suposto que vagaroso, to<strong>da</strong>s as<br />
enfermi<strong>da</strong>des cura; e como esta que padeceis de presente não admite outro<br />
remédio, consenti que o tempo seja médico de vossa <strong>do</strong>r, que pois<br />
Eurip., in Joan.
760 Padre Mateus Ribeiro<br />
Aristóteles diz que o tempo tranquila as turbulências <strong>da</strong> ira, também poderá<br />
serenar os dissabores inquietos de vossos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. E se quiserdes que no<br />
retiro vos faça companhia, eu o farei.<br />
Feliciano).<br />
quinta.<br />
Cap. IV.<br />
- Pois com essa condição aceitarei o conselho que me <strong>da</strong>is (disse<br />
E ficaram de assento para ao seguinte dia se partirem de Cesena para a<br />
Como estan<strong>do</strong> ajusta<strong>do</strong> o casamento de Florisela com Silvério, foi rouba<strong>da</strong> por<br />
Feliciano<br />
Acerta<strong>do</strong> parecia o arbítrio de Antíoco para moderar a paixão amorosa<br />
de Feliciano, se facilmente recebem cura as inquietações que a alma sente;<br />
porém como o tempo era breve e o mal dilata<strong>do</strong>, o achaque grande e o espaço<br />
pouco, em lugar de abonançar a tormenta, veio a levantar mais rigorosa<br />
tempestade, como referirei.<br />
Neste tempo, a rogos de Silvério, foi sua mãe Dionísia visitar a minha<br />
mãe, como outras vezes costumava. E vin<strong>do</strong> a falar no muito que Florisela<br />
merecia, lhe falou no casamento de Silvério com tanta instância, exageran<strong>do</strong> o<br />
muito que desejava ver a seu filho venturoso em alcançá-la por esposa, sen<strong>do</strong><br />
o mais felice emprego a que podiam remontar o voo seus desejos, e de outra<br />
parte sen<strong>do</strong> ela interessa<strong>da</strong> cronista de seu filho, por ser ilustre no sangue,<br />
único no morga<strong>do</strong>, medianamente rico, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de singulares partes, de to<strong>do</strong>s<br />
por afável e cortês bem quisto e finalmente com extremos afeiçoa<strong>do</strong> a<br />
Florisela; e por mais que Ricar<strong>da</strong>, minha mãe, se desculpava com minha<br />
ausência em Bolonha, sem cujo parecer não podia ajustar casamento de sua<br />
filha, como ela havia tanto que secretamente amava a Silvério, obran<strong>do</strong> com<br />
calar tanto como se falara, que há silêncios que são intérpretes mu<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
própria locução, foi a petição de Dionísia tão poderosa que minha mãe veio a<br />
<strong>da</strong>r o consentimento ao casamento, contanto que esperassem <strong>do</strong>us meses, no<br />
Arist., fíhet. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 761<br />
fim <strong>do</strong>s quais eu avisara que havia de vir passar o tempo <strong>da</strong>s férias em<br />
Cesena, e porque então se celebrariam os desposórios com o decoro que<br />
convinha.<br />
Alegre por extremo se despediu Dionísia, levan<strong>do</strong> a seu filho os<br />
venturosos anúncios de haver de ser esposo de Florisela, que ele celebrou<br />
com excessivas demonstrações de alegria. Esta foi a causa por extremosa <strong>do</strong>s<br />
pesares e íntimos sentimentos que eu hoje no íntimo de meu coração padeço.<br />
Bem disse Aulo Gélio que observar silêncio no sublime <strong>da</strong>s alegrias era cousa<br />
mui dificultosa. Talvez a tristeza pode disfarçar-se; porém a alegria, se é<br />
grande, raramente pode encobrir-se. Maiores assaltos dá ao coração, diz<br />
Cassio<strong>do</strong>ro, a alegria pelo rui<strong>do</strong>so <strong>do</strong> contentamento <strong>do</strong> que a tristeza pelo<br />
pesaroso <strong>da</strong> <strong>do</strong>r; e a razão poderá ser porque a tristeza pode ocultar-se como<br />
quem se teme, mas a alegria trata de publicar-se como quem se aplaude. Não<br />
pôde Silvério esconder esta que ele reputava a maior ventura sem a comunicar<br />
a seus amigos, deitan<strong>do</strong> galas e acrescentan<strong>do</strong> cria<strong>do</strong>s aos que de antes tinha,<br />
para que em tu<strong>do</strong> se mostrasse seu contentamento. Rompeu-se logo a notícia<br />
deste casamento em Cesena, invejan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s a Silvério a ventura de sua<br />
sorte, antes inveja<strong>da</strong> que possuí<strong>da</strong>. Avisaram a Feliciano à quinta, aonde com<br />
Antíoco na caça se divertia, que impaciente ao odioso anúncio, queixan<strong>do</strong>-se<br />
(sem razão) <strong>do</strong> conselho que Antíoco lhe havia <strong>da</strong><strong>do</strong>, desespera<strong>do</strong> ao<br />
sofrimento, arroja<strong>do</strong> a to<strong>do</strong> o precipício, despenha<strong>do</strong> a qualquer infortúnio,<br />
voltan<strong>do</strong> as costas aos ditames <strong>da</strong> razão, se resolveu em que ou matan<strong>do</strong> a<br />
Silvério ou rouban<strong>do</strong> a Florisela havia de impedir tal casamento.<br />
- Como será possível (dizia Feliciano impaciente) que haja de lograr<br />
Silvério a ventura que a mim com tantos desvelos em procurá-la me deixa?<br />
Porventura merece mais? Bem conhece Cesena que em tu<strong>do</strong> o exce<strong>do</strong>: na<br />
fi<strong>da</strong>lguia, na riqueza e no valor. Consentirei eu que fiquem malogra<strong>do</strong>s tantos<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, frustra<strong>do</strong>s tantos desvelos? Sem gratidão tantos serviços? Sem<br />
remuneração tantas finezas? Despreza<strong>do</strong> meu amor e desluzi<strong>do</strong> o timbre de<br />
meus brios? Se to<strong>do</strong>s os perigos se me opusessem, se to<strong>do</strong>s os riscos me<br />
seguissem, se <strong>do</strong> que possuo a per<strong>da</strong>, que é o menos, e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que logro o<br />
fim mais lamentável, que é o mais, ou Florisela não há-de ser esposa de<br />
Silvério, ou Cesena há-de sentir o rigor <strong>da</strong>s passa<strong>da</strong>s discórdias e civis<br />
hostili<strong>da</strong>des mais cruentas.
762 Padre Mateus Ribeiro<br />
Assi dizen<strong>do</strong>, montou a cavalo sem querer atender às razões de<br />
Antíoco, com que pretendia aplacá-lo e persuadi-lo; porém ven<strong>do</strong> que tão<br />
resoluto se partia, foi obrigação de amigo acompanhá-lo, para ver se no<br />
discurso <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> poderia achar lugar a persuasão ou o conselho entra<strong>da</strong>.<br />
Porém era nele tão poderosa a paixão, tão assistente o desgosto, tão eficaz a<br />
mágoa, tão intoleráveis os ciúmes e tão implacável a inveja <strong>da</strong> ventura que em<br />
Silvério considerava que em to<strong>do</strong> o caminho não quis ouvir ao amigo, fazen<strong>do</strong>-<br />
se inexorável aos rogos, caliginoso à razão, tenebroso ao discurso e finalmente<br />
incapaz de ser nem persuadi<strong>do</strong>, nem aconselha<strong>do</strong> em sua pena. Lá se diz que<br />
os desgostos reparti<strong>do</strong>s são alívio na ânsia deles, pela participação que deles<br />
cabe a quem se compadece. Porém Feliciano, por padecer o extremoso <strong>do</strong><br />
penar, nem queria admitir companhia, nem fazer participável o tormento, por<br />
que quanto este fosse mais exagera<strong>do</strong>, fosse a vingança dele mais sem<br />
reparo.<br />
Entraram já alta noite em Cesena, porque Feliciano <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> <strong>da</strong> intensa<br />
paixão não quis ser visto, para mais como<strong>da</strong>mente efectuar o que pretendia.<br />
Saiu arma<strong>do</strong> de casa, sem permitir que Antíoco lhe fizesse companhia, nem<br />
cria<strong>do</strong> algum, dizen<strong>do</strong> que para qualquer sucesso a seus pesares lhe sobrava.<br />
Eram as horas solitárias, quan<strong>do</strong> a ci<strong>da</strong>de estava oprimi<strong>da</strong> <strong>do</strong> maior silêncio, a<br />
noite escura, os ares nubla<strong>do</strong>s, as ruas sem rumor, as praças sem tumulto,<br />
suspensos os senti<strong>do</strong>s e finamente ocasiona<strong>do</strong> o tempo para amotivar<br />
qualquer ousadia. Rodeou Feliciano uma e outra vez as casas de minha mãe,<br />
que eram grandes e com um delicioso jardim que as fazia mais vistosas, e<br />
estavam à saí<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />
Era o intento que Feliciano levava ver se encontraria Silvério, resoluto<br />
em <strong>da</strong>r-lhe a morte, que seus desespera<strong>do</strong>s ciúmes não permitiam mais<br />
pie<strong>do</strong>sa deliberação, sen<strong>do</strong> a paixão o fiscal e os ciúme os juízes. Não<br />
encontrou o que buscava com repetir as diligências, e tornan<strong>do</strong> ultimamente a<br />
rodear o jardim, viu que a porta <strong>do</strong> muro não estava bem fecha<strong>da</strong>: abriu-a com<br />
pouca força que nisso empenhou e outra porta que <strong>do</strong> jardim ia para as casas.<br />
Subiu com passos leves e viu que Florisela, minha irmã, estava ergui<strong>da</strong> e só,<br />
porque to<strong>do</strong>s <strong>da</strong> casa já <strong>do</strong>rmiam. Apenas viu a ocasião tão ajusta<strong>da</strong> a seu<br />
desejo e tão patrocinante a seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> delibera<strong>do</strong> a to<strong>do</strong> o<br />
encontro <strong>da</strong> fortuna, rebuçan<strong>do</strong> o rosto com um lenço e apagan<strong>do</strong> a luz, a
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 763<br />
tomou em braços, e descen<strong>do</strong> ligeiro ao jardim, aonde deixa<strong>do</strong> tinha a porta<br />
aberta, saiu com a violenta<strong>da</strong> pren<strong>da</strong> que levava; a qual desmaia<strong>da</strong> de tão<br />
inopina<strong>do</strong> atrevimento, sem conhecer quem era o insultuoso rouba<strong>do</strong>r,<br />
perdi<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s, embarga<strong>da</strong> a voz, intercadentes os impulsos, vagarosa a<br />
respiração, suspendi<strong>do</strong>s os vitais espíritos, anelante o coração com aparências<br />
de morta e com dúvi<strong>da</strong>s de viva ia nos braços de Feliciano, sem saber que ia,<br />
que o eclipse <strong>do</strong> desmaio roubou a luz à razão e prendeu as anima<strong>da</strong>s<br />
operações aos senti<strong>do</strong>s.<br />
Seria pouco mais de uma hora passa<strong>da</strong> depois <strong>da</strong> meia-noite, quan<strong>do</strong><br />
Feliciano, sem encontrar pessoa alguma, chegou a casa com a desmaia<strong>da</strong><br />
Florisela; que como ele estava fora, as portas estavam cerra<strong>da</strong>s, mas sem<br />
chave, para que não fosse senti<strong>do</strong> no bater quan<strong>do</strong> viesse. Apenas com a luz<br />
de um lampião que na sala ardia conheceu a desmaia<strong>da</strong> Antíoco, quan<strong>do</strong><br />
admira<strong>do</strong> <strong>da</strong> temeri<strong>da</strong>de de Feliciano, chaman<strong>do</strong> as cria<strong>da</strong>s de casa, que <strong>da</strong><br />
quinta em que estavam o dia de antes tinham vin<strong>do</strong>, lhes ordenou que em<br />
braços levassem a minha irmã a uma rica cama, que logo se adereçou, e lhe<br />
aplicassem to<strong>do</strong>s os remédios possíveis para que tornasse em seus senti<strong>do</strong>s; o<br />
que elas com grande cui<strong>da</strong><strong>do</strong> fizeram, enterneci<strong>da</strong>s assi <strong>do</strong> desmaio como<br />
admira<strong>da</strong>s <strong>da</strong> beleza: que suposto que o rigoroso acidente lhe tinha usurpa<strong>do</strong> o<br />
uso <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, não lhe tinha sequestra<strong>do</strong> os atributos <strong>da</strong> fermosura.<br />
Referiu sucintamente Feliciano a Antíoco o não espera<strong>do</strong> sucesso,<br />
sain<strong>do</strong> com deliberação de matar a Silvério, se o encontrasse, e ocasionar-lhe<br />
a ventura o poder roubar a Florisela, com que se abonançavam to<strong>do</strong>s seus<br />
pesares, pois já agora havia de ser sua.<br />
- Era César (continuou ele) vence<strong>do</strong>r capitão <strong>da</strong>s conquistas de França,<br />
e queren<strong>do</strong> vir a Roma com o exército que trazia, man<strong>do</strong>u-lhe notificar o<br />
sena<strong>do</strong> que não passasse o rio Rubicão; porém ele esporean<strong>do</strong> o cavalo, o<br />
lançou a atravessar a corrente, dizen<strong>do</strong> já está lança<strong>da</strong> a sorte; e com o<br />
temerário desta acção chegou a ser empera<strong>do</strong>r de Roma.<br />
Bem conheceu Antíoco que é a temeri<strong>da</strong>de reprova<strong>da</strong>, porque não tem<br />
comércio com a razão, como diz Cícero 664 ; porém também diz Quinto Cúrcio 665<br />
Cicer., Pro Mur.<br />
Quint. Curt., Lib. 9.
764 Padre Mateus Ribeiro<br />
que a consolação que pode ter a temeri<strong>da</strong>de é a ventura, se propícia ao arrojo<br />
favorece. Nos <strong>caso</strong>s desespera<strong>do</strong>s de remédio, alguma vez se originam<br />
alentos <strong>da</strong> própria desconfiança, como a candeia que nas intercadências <strong>do</strong><br />
espirar cobra forças para <strong>da</strong>r luz <strong>do</strong>s próprios desmaios com que se vai<br />
terminan<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> no luzir. Via-me conduzi<strong>do</strong> ao último quartel <strong>do</strong> sofrimento,<br />
intolerável a <strong>do</strong>r, implacável a pena, derrota<strong>da</strong> a esperança, combati<strong>do</strong> o<br />
coração <strong>do</strong>s ciúmes, ven<strong>do</strong> que Silvério por mais feliz, não por maiores<br />
méritos, havia de ser esposo <strong>do</strong> que mais amo, venturoso possui<strong>do</strong>r <strong>do</strong> que<br />
mais estimo; e assi frenético <strong>do</strong> desprezo, intentei com sua morte cortar-lhe o<br />
fio à ventura. Esta o favoreceu em o não encontrar; porque mal pudera evitar<br />
um descui<strong>da</strong><strong>do</strong> a vingança de um invejoso preveni<strong>do</strong>.<br />
Rodean<strong>do</strong> algumas vezes as casas de Florisela, por ver se como a<br />
centro de sua ventura viria Silvério a parar nele, vim a achar a porta <strong>do</strong> jardim<br />
tão mal fecha<strong>da</strong> que me deu suspeita se porventura Silvério estaria dentro; e<br />
como só a ele meu sentimento buscava, com pouca violência que fiz à porta, a<br />
vi aberta ou por descui<strong>do</strong> de quem a fechou a deixar mal segura, ou porque a<br />
fortuna quis nisto favorecer-me. O escuro <strong>da</strong> noite com o denso <strong>da</strong>s árvores me<br />
serviu de rebuço ao atrevimento: dirigi os passos para o quarto que ao jardim<br />
saía e vi à luz de uma vela a maior luz na beleza de Florisela, que vesti<strong>da</strong> com<br />
um livro se divertia, ou fosse espiritual ou entreteni<strong>do</strong>. Atendi se ouvia alguma<br />
voz de quem com ela estivesse, mas tu<strong>do</strong> estava mu<strong>do</strong>. Não há persuasão<br />
mais eloquente, disse Demóstenes 666 , <strong>do</strong> que a oportuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ocasião; desta<br />
disse Vegécio 667 ser mais poderosa nas batalhas que o valor; e assi nesta<br />
pendência <strong>do</strong> amar discursei brevemente comigo, que com roubar a Florisela, a<br />
ela por esposa conseguia e juntamente, impedin<strong>do</strong> o casamento de Silvério, de<br />
sua ventura me vingava. Representou-se-me de passagem o perigo a que me<br />
expunha, mas respondi ao discurso que empresas grandes nunca se<br />
conseguiram sem riscos; e sem reparar em mais, atan<strong>do</strong> um lenço ao rosto<br />
para não ser conheci<strong>do</strong>, dei tão de repente na casa que, apagan<strong>do</strong>-se a luz,<br />
com o susto inopina<strong>do</strong> caiu Florisela desmaia<strong>da</strong>, faltan<strong>do</strong>-lhe a voz para gritar,<br />
porque a equivocação que fez a vi<strong>da</strong> com a morte lhe suspendeu os ecos para<br />
Dem., in Ol.<br />
Vegec, Lib.5.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 765<br />
a queixa, desamparan<strong>do</strong> os senti<strong>do</strong>s e acudin<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o vital ao coração, para<br />
não se extinguir o anima<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> desfalecia o animoso. Enterneci<strong>do</strong> a tomei<br />
nos braços, e se contente <strong>da</strong> presa, pesaroso <strong>da</strong> aflição de quem eu tanto<br />
queria, e sain<strong>do</strong> ao jardim em que deixava franquea<strong>da</strong> a porta a meu<br />
atrevimento, me pus na rua; e qual outro troiano Eneias com a pie<strong>do</strong>sa carga<br />
de seu pai Anquises, sem encontrar pessoa alguma que me visse, nem<br />
reconhecer-me intentasse, que não foi pouca ventura, entrei nesta casa,<br />
trazen<strong>do</strong> a ela quem me mata com acidentais equivocações de viva.<br />
Com atenção cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa ouviu Antíoco a relação de Feliciano, admiran<strong>do</strong><br />
a ousadia <strong>do</strong> emprender e a brevi<strong>da</strong>de de conseguir o casamento de Florisela,<br />
pois no esta<strong>do</strong> presente já não julgava que pudesse ter outro fim tão temerária<br />
empresa. Discursava o escân<strong>da</strong>lo <strong>do</strong>s Martelinos, infestos sempre à família <strong>do</strong>s<br />
Tibertos, quan<strong>do</strong> a fama publicasse o atrevi<strong>do</strong> rapto de minha irmã, o<br />
sentimento de Silvério, a quem estava prometi<strong>da</strong>, e o casamento por to<strong>da</strong><br />
Cesena divulga<strong>do</strong>, e outros muitos inconvenientes que desta temeri<strong>da</strong>de se<br />
seguiam. Porém como já no feito não havia remédio para deixar de se haver<br />
cometi<strong>do</strong>, não quis molestar a Feliciano, senão tratarem com to<strong>do</strong> o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
remédio para aplacar o desmaio de Florisela. Empenhavam-se as cria<strong>da</strong>s em<br />
despertá-la <strong>do</strong> letargo em que a privação <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s a tinha, já com rociá-la<br />
com o<strong>do</strong>ríferas águas que na casa de Feliciano abun<strong>da</strong>vam, já com outros<br />
remédios que aplicavam ao rigoroso parocismo; até que finalmente, quan<strong>do</strong> as<br />
confusas luzes <strong>da</strong> aurora vinham <strong>da</strong>n<strong>do</strong> duvi<strong>do</strong>sos anúncios <strong>da</strong>s alegrias <strong>do</strong><br />
dia, abriu Florisela os olhos como quem recor<strong>da</strong> de um pesa<strong>do</strong> sono, e<br />
desconhecen<strong>do</strong> a casa em que se achava e as cria<strong>da</strong>s que lhe assistiam, com<br />
um profun<strong>do</strong> suspiro, testemunho de suas penosas ânsias, perguntou às<br />
cria<strong>da</strong>s de quem era a casa e quem a ela a trouxera fora <strong>da</strong> companhia de sua<br />
mãe. Entrou neste tempo Feliciano, alegre de ver nela acções de vi<strong>da</strong>, e dizem<br />
lhe falou assi:<br />
- Suspende, fermosa Florisela, o intenso rigor dessa tristeza que te<br />
oprime, dilata o coração, não intentes encarcerá-lo em tua pena, nem<br />
atormentes o meu com teus pesares, que a casa em que estás é tua e tu só<br />
hás-de ser dela senhora. Culparas-me de atrevi<strong>do</strong>, mas aonde se achará amor<br />
grande nos extremos que seja reporta<strong>do</strong> nos discursos? Por isso o amor se<br />
pinta cego: porque discursa pouco, obran<strong>do</strong> muito. Meu intento nunca estu<strong>do</strong>u
766 Padre Mateus Ribeiro<br />
lições de ofender-te, quan<strong>do</strong> sempre se desvelou em servir-te; bem te<br />
manifestei esta vontade, em mim tão bem nasci<strong>da</strong> como em ti desestima<strong>da</strong>.<br />
Procurava-te meu desejo para esposa só por quem eras, avalian<strong>do</strong>-te amor<br />
pela maior ventura, se por ventura se dá ventura nos desejos; mas sem dúvi<strong>da</strong><br />
me julgaste por inimigo, sen<strong>do</strong> amante, sen<strong>do</strong> tão distantes amante e inimigo.<br />
Divulgou-se que te casavas com Silvério, e porque deveras o amavas,<br />
deveras a mim me aborrecias: injusto galardão para meu cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, <strong>do</strong>nde<br />
esperava amor, tirar aborrecimento. Sempre a ingratidão foi odiosa, mas nos<br />
empenhos de amar intolerável; porque faltar a remuneração talvez ao<br />
merecimento pode ser impossibili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> cabe<strong>da</strong>l, mas em ti foi só falta <strong>do</strong><br />
querer, pois nunca a vontade está pobre para pagar, quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> amor está rica<br />
para agradecer as finezas. Bem sabes que o mais <strong>do</strong> tempo me criei e assisti<br />
na minha quinta fora de Cesena, poucos meses há que nela assisto de<br />
mora<strong>da</strong>: amei-te no dia em que te vi, que se mais ce<strong>do</strong> te vira, mais antecipa<strong>do</strong><br />
te amara. Foi Silvério em querer-te mais antigo, porque se adiantou em verte,<br />
mas não mais fino em amar-te: nos extremos consiste a i<strong>da</strong>de <strong>do</strong> amor e não<br />
nos dias. Em trinta [dias] corre a lua to<strong>da</strong> a estrela<strong>da</strong> cinta <strong>do</strong> Zodíaco, para o<br />
que outros planetas necessitam de anos; não põe preço ao amor o vagaroso<br />
<strong>do</strong> tempo, mas o fino <strong>da</strong> vontade; to<strong>do</strong> outro querer fica atrás de meu amar,<br />
porque para comigo chegou a não lhe ser possível passar adiante. Se deixas,<br />
Florisela, o esposo que buscavas, em mim acharás outro que te busca; Silvério<br />
só me podia exceder na ventura, porém eu o avantajo no merecimento: em<br />
mu<strong>da</strong>res de empenho perdes pouco e eu em ganhar-te interesso muito.<br />
- Não passes adiante, Feliciano (respondeu choran<strong>do</strong> Florisela), que tão<br />
temerária ousadia só em ti pudera achar-se; nem imagines que possas com<br />
lisonjas disfarçar meus agravos ou divertir o intenso de minha <strong>do</strong>r, porque<br />
antes me verias morta que rendi<strong>da</strong>. Queres porventura com meu descrédito<br />
tomar injusta vingança <strong>do</strong>s Martelinos e desafogar o hostil <strong>do</strong>s Tibertos com o<br />
injusto roubo de Florisela? Confesso que amei a Silvério para ser meu esposo:<br />
achou agra<strong>do</strong> em meus olhos, se foi ventura o ser correspondi<strong>do</strong>; por que me<br />
culpas como se te ofendera? Porventura animei tua esperança? Dei-me por<br />
obriga<strong>da</strong> a teus desvelos? Ou fiz-te alguma promessa de ser tua? Pois se foi<br />
estrela que me fugiu ou sorte que te faltou, para que me criminas não amar-te<br />
como se fora obrigação o querer-te? Dizes que me queres por esposa, e é
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 767<br />
desaire de entendi<strong>do</strong> imaginares que podias conseguir por insolente o que não<br />
alcançaste por amante ou que poderiam obrigar-me teus agravos ao que não<br />
puderam avançar tuas finezas. Não sabes, Feliciano, que a vontade não pode<br />
padecer violência? E sen<strong>do</strong> o amor acto livre que <strong>da</strong> vontade nasce, não podia<br />
ser acto imperioso que a vontade tributa? Só em uma cousa mostras ser<br />
amante, pelo que tem o amor de cego, e é em me quereres por esposa quan<strong>do</strong><br />
confesso que amo a Silvério. Como, sen<strong>do</strong> tu ilustre, mostras o pun<strong>do</strong>nor tão<br />
abati<strong>do</strong>? Aonde está teu juízo? Quem te roubou o discurso? Confias de uma<br />
vontade empenha<strong>da</strong> o desempeno de teu crédito e a segurança de tua<br />
estimação? Certo é que depois de ouvir-me hás-de viver com receios, e nunca<br />
me convém que desconfie de minha fideli<strong>da</strong>de quem tiver a superiori<strong>da</strong>de de<br />
meu mari<strong>do</strong>.<br />
Roubaste-me desmaia<strong>da</strong> <strong>do</strong> susto de tua insolência, porque te<br />
franqueou o eclipse de meus senti<strong>do</strong>s: vitória foi <strong>da</strong> tirania e não <strong>do</strong> valor, pois<br />
trazer-me desmaia<strong>da</strong> a tua casa foi levar um cadáver ao sepulcro. Se<br />
presumes que hei-de amar-te ofendi<strong>da</strong>, é ignorância confiares <strong>do</strong> agravo o que<br />
não conseguiu a cortesia: pouco mostras de entendi<strong>do</strong> na eleição, pois poderás<br />
tirar-me a vi<strong>da</strong>, mas não mu<strong>da</strong>r-me a vontade. Amargoso te parecerá o<br />
desengano, mas para curar enfermi<strong>da</strong>des to<strong>da</strong>s as bebi<strong>da</strong>s no gosto são<br />
desabri<strong>da</strong>s: bebe o desengano como discreto e não como arroja<strong>do</strong>;<br />
desapaixona o coração e verás que, suposto que ofendi<strong>da</strong>, te aconselho o mais<br />
decoroso e o mais seguro.<br />
Considera, Feliciano, que não estás isento de um perigo: que tem brios<br />
Lisar<strong>do</strong>, meu irmão, e alentos tão bizarros Silvério, meu prometi<strong>do</strong> esposo,<br />
para tomarem satisfação desta ofensa a to<strong>do</strong> o risco de suas vi<strong>da</strong>s; que não há<br />
torre tão inexpugnável, obelisco tão altivo ou castelo tão reforça<strong>do</strong> que <strong>da</strong> terra<br />
um tremor ou um raio à violência arruinar não possa. Dá-me lugar para que<br />
restitua à minha desconsola<strong>da</strong> mãe esta pren<strong>da</strong> infelice que lhe roubastes, e<br />
ficar-te-ei deven<strong>do</strong> esta pie<strong>da</strong>de sobre as queixas <strong>da</strong> ofensa recebi<strong>da</strong>. E se<br />
dizes que meus olhos te fizeram ser insolente por amante, movam-te minhas<br />
lágrimas a seres pie<strong>do</strong>so por enterneci<strong>do</strong>: ain<strong>da</strong> podes <strong>do</strong>urar a ousadia com a<br />
cordura, a ofensa com a generosi<strong>da</strong>de, a demência com a prudência, o arrojo<br />
com o aviso. Seja para ti a valia maior tua própria fi<strong>da</strong>lguia, pois nunca esta<br />
sabe negar o favor a quem com lágrimas lho pede.
768 Padre Mateus Ribeiro<br />
Cap. V.<br />
Como Florisela foi restituí<strong>da</strong> a sua mãe e o que nisso passou<br />
Assi dizem que falou minha irmã a seu tirano rouba<strong>do</strong>r, continuan<strong>do</strong> as<br />
lágrimas o que as palavras termina<strong>do</strong> tinham; porque como a mágoa que<br />
estava no coração era a fonte <strong>do</strong>nde as lágrimas nasciam, deu perene<br />
comissão aos olhos para manifestarem a pena e limita<strong>da</strong> licença às vozes para<br />
publicarem a <strong>do</strong>r. E suposto que diga Quintiliano 668 que a cousa que mais<br />
facilmente se enxuga são as lágrimas de mulher, não se entende quan<strong>do</strong> a<br />
mágoa é excessiva e irremediável a <strong>do</strong>r. E como o fracasso era tão grande, o<br />
crédito arrisca<strong>do</strong> a um desaire indecoroso, que nas pessoas ilustres é o motivo<br />
mais digno de sentir-se, pouco seria serem seus olhos cau<strong>da</strong>losos rios, quan<strong>do</strong><br />
seu coração ficava sen<strong>do</strong> de penas dilata<strong>do</strong> mar. Também as cria<strong>da</strong>s de<br />
Feliciano que a minha irmã assistiam de vê-la chorar choravam; que são as<br />
lágrimas desafio que provocam aos olhos que as vem para imitá-los, ain<strong>da</strong> que<br />
seja na causa diferente a <strong>do</strong>r. Já os matutinos resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol vinham<br />
comunican<strong>do</strong> ao mun<strong>do</strong> a luzi<strong>da</strong> infância de seus raios no purpúreo berço <strong>do</strong><br />
horizonte, quan<strong>do</strong> Feliciano, demovi<strong>do</strong> <strong>da</strong>s palavras e lágrimas de Florisela, lhe<br />
disse que ele a queria restituir à sua mãe, e diante dela diria o que agora<br />
calava. Man<strong>do</strong>u aos cria<strong>do</strong>s que preparassem logo o coche e às cria<strong>da</strong>s que<br />
pusessem os mantos, e ele se vestiu <strong>da</strong> melhor gala.<br />
Perguntou-lhe Antíoco, seu amigo, como intentava, depois <strong>do</strong> primeiro<br />
despenho de sua ousadia, querer-se oferecer a outro maior precipício, in<strong>do</strong><br />
pessoalmente levar Florisela à presença de sua ofendi<strong>da</strong> mãe. E respondeu-<br />
Ihe que o primeiro foi delírio de amante e sucesso <strong>da</strong> ventura, mas o segun<strong>do</strong><br />
era empenho <strong>da</strong> fi<strong>da</strong>lguia e generosi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> valor; que como estava seguro de<br />
não havê-la ofendi<strong>do</strong> e havê-la trata<strong>do</strong> com respeitos de irmã, como ele era<br />
testemunha, queria <strong>da</strong>r satisfação de que, se como quem amava emprendeu a<br />
ousadia, como fi<strong>da</strong>lgo que era soube respeitar o decoro de quem com lágrimas<br />
lhe pedia o favor de não violar o acrisola<strong>do</strong> timbre e laurea<strong>da</strong> palma de sua<br />
Quint., Lib. 9.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 769<br />
pureza; e por <strong>da</strong>r satisfação <strong>do</strong> respeito de seu fi<strong>da</strong>lgo proceder, não estimava<br />
aventurar a vi<strong>da</strong> a qualquer perigo.<br />
Calou Antíoco, ven<strong>do</strong> nele tão generosa resolução, condigna de um<br />
coração tão fi<strong>da</strong>lgo e ânimo tão valeroso como Feliciano tinha. É a valentia,<br />
como diz Aristóteles 669 , uma generosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> parte sensitiva que despreza os<br />
receios <strong>da</strong> morte quan<strong>do</strong> se encontram com os empenhos honrosos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. E<br />
como Feliciano se prezava não menos de valeroso que de ilustre, quis nesta<br />
acção mostrar que, a fim de que se conhecesse a generosi<strong>da</strong>de com que a<br />
Florisela, sem ofendê-la, a restituía, não receava expor-se a to<strong>do</strong> o risco que<br />
incorrer pudesse. E suposto que eu de seu valor confiava muito, era esta<br />
acção, disse Antíoco, tão resoluta e nas circunstâncias tão duvi<strong>do</strong>sa que não<br />
me consentiu a amizade deixar de acompanhá-lo, suposto que ele o não pedia.<br />
Entrou minha irmã no coche com duas cria<strong>da</strong>s de Feliciano, e com as<br />
cortinas corri<strong>da</strong>s, e Antíoco e Feliciano montan<strong>do</strong> a cavalo junto aos estribos<br />
<strong>do</strong> coche, caminharam para casa de minha mãe.<br />
Estava to<strong>da</strong> a gente de casa tão chorosa e tão inquieta com a <strong>do</strong>r <strong>da</strong><br />
falta de Florisela, não saben<strong>do</strong> se ela própria de casa voluntariamente se fora,<br />
porque a ser violenta<strong>da</strong>mente leva<strong>da</strong>, não podiam alcançar como sem o rumor<br />
<strong>do</strong>s gritos e vozes podia deixar de uma tal insolência ser senti<strong>da</strong>. E se, como<br />
diz o filósofo 670 , concedi<strong>do</strong> um inconveniente, dele resultam outros muitos,<br />
fican<strong>do</strong> mais duvi<strong>do</strong>sos quanto mais argui<strong>do</strong>s, <strong>da</strong>qui mesmo inferiam que<br />
motivos podia ter minha irmã para ir-se secretamente de casa, estan<strong>do</strong> a<br />
Silvério para esposa prometi<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> dele com tanto afecto ama<strong>da</strong> e a quem,<br />
pelo que as cria<strong>da</strong>s diziam, dias havia e ain<strong>da</strong> anos que seus escritos e finezas<br />
admitia; e não havia causa alguma para que estan<strong>do</strong> <strong>do</strong> prometi<strong>do</strong> casamento<br />
tão satisfeita, houvesse de emprender uma fugi<strong>da</strong> tão indecorosa, sen<strong>do</strong> quem<br />
era e estan<strong>do</strong> por esposa prometi<strong>da</strong>. Paixão alguma, nem desgosto não havia<br />
precedi<strong>do</strong> para uma resolução tão indecente ao ilustre <strong>do</strong> sangue, ao crédito de<br />
<strong>do</strong>nzela, à modéstia de seu recolhimento e ao preclaro de sua estimação e<br />
lustrosa fama. Viam as portas <strong>do</strong> jardim abertas, prova de que pelo jardim<br />
saíra; e entre tanta confusão de discursos, sem puderem <strong>da</strong>r saí<strong>da</strong> a tão<br />
Arist., De virt. & vit.<br />
Arist., Phys. 1.
770 Padre Mateus Ribeiro<br />
escuro labirinto, tu<strong>do</strong> era remeter às lágrimas o desaforo de uma tão íntima <strong>do</strong>r<br />
e o lastimoso de tão implacável pena, qual o coração de minha mãe padecia.<br />
Para se publicar a falta era <strong>da</strong>r motivos a que na ci<strong>da</strong>de se divulgasse o<br />
abatimento deste descrédito, em que ca<strong>da</strong> um discursaria conforme seu juízo e<br />
mais ou menos afeição que nos tivesse, aumentan<strong>do</strong> o desluzimento com os<br />
pareceres vários <strong>da</strong> ocasião; pois, como disse Plínio 671 , assim como a fama<br />
publican<strong>do</strong> o feito não especula o mo<strong>do</strong>, parecer que Cícero 672 já tinha escrito,<br />
assi ca<strong>da</strong> um quer investigar a causa sem conhecê-la, e com isso origina a<br />
uma própria desgraça multiplica<strong>do</strong>s descréditos. Com esta suspensão tão<br />
coarcta<strong>da</strong> para encobrir-se ou manifestar-se o extremoso <strong>da</strong> mágoa, sen<strong>do</strong> as<br />
lágrimas só as que denunciavam a ânsia e não a fonte <strong>do</strong>nde procedia sua<br />
corrente, estava a casa de minha mãe quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> coche se apearam Florisela<br />
com as cria<strong>da</strong>s que a acompanhavam; e desmontan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s cavalos Feliciano e<br />
Antíoco, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> que o coche se tornasse, subiram juntamente acima com<br />
Florisela, que com lágrimas abraçan<strong>do</strong> a sua lastima<strong>da</strong> mãe, que entre alegre e<br />
triste estava, com equívocas <strong>do</strong>minações indiferente para festejar o acha<strong>do</strong> e<br />
para sentir os pesares <strong>da</strong> per<strong>da</strong> de tal filha, ela lhe pediu ouvisse a Feliciano e<br />
a Antíoco como testemunhas de vista de seus sucessos. Assentaram-se to<strong>do</strong>s<br />
e Feliciano dizem que desta sorte falou:<br />
- Por escusa<strong>do</strong> tenho, senhora Ricar<strong>da</strong>, o repetir a veterana discórdia<br />
que tem passa<strong>do</strong> nos cruentos ban<strong>do</strong>s de nossos progenitores os Tibertos e<br />
Martelinos, as famílias principais desta ci<strong>da</strong>de, cujas memórias ain<strong>da</strong> hoje<br />
lastimosa sente. Suspenderam-se as hostili<strong>da</strong>des depois de padeci<strong>do</strong>s tantos<br />
<strong>da</strong>nos, que então tiveram tréguas, quan<strong>do</strong> não havia já sangue nas veias que<br />
derramar a espa<strong>da</strong>. Vieram os descendentes destes ban<strong>do</strong>s a her<strong>da</strong>rem os<br />
dissabores até o tempo presente, não rompen<strong>do</strong> em guerras manifestas, mas<br />
fican<strong>do</strong> em uma tíbia paz; falan<strong>do</strong>-se por razão de esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> cortesia, mas com<br />
o tédio e desabrimento <strong>do</strong> nativo desamor em que se criaram os que destes<br />
parciais ban<strong>do</strong>s descenderam. Também tereis sabi<strong>do</strong> em como eu, que nasci<br />
em Cesena, o mais <strong>do</strong> tempo vivi com eles e me criei na nossa quinta <strong>do</strong> rio<br />
Sávio, aonde meus pais, enquanto lhes durou a vi<strong>da</strong>, quasi sempre assistiam.<br />
Plínio Júnior, Lib. 4.<br />
Cicer., Proleg. Man.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 771<br />
Fiquei por sua morte herdeiro <strong>do</strong> morga<strong>do</strong> e cabeça principal <strong>da</strong> família e título<br />
<strong>do</strong>s Tibertos, como meu pai tinha si<strong>do</strong>. Vim a assistir em Cesena há poucos<br />
meses, na casas de nosso antigo solar, e vi a senhora Florisela Martelino, que<br />
está presente, e me fiz Martelino na afeição, sen<strong>do</strong> até essa hora Tiberto na<br />
natureza. To<strong>do</strong> o encarecimento foi pouco para louvá-la; porque jamais chegou<br />
a encareci<strong>da</strong> quem foi maior que o maior encarecimento; e sen<strong>do</strong> estes <strong>da</strong><br />
fermosura o voo mais subi<strong>do</strong>, a Olimpo tão superior abateu as asas o mais<br />
confia<strong>do</strong> voo.<br />
Desde esse dia a dediquei para esposa minha, tratan<strong>do</strong> de servi-la com<br />
tanto empenho que os desvelos em poder vê-la eram meu maior alívio, porque<br />
de dia e de noite to<strong>do</strong>s os meus desejos paravam só em vê-la. Prossegui o<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, mas com pouca ventura, que o ser Tiberto parece me fazia a seus<br />
olhos odioso, quan<strong>do</strong> merecia mais por tão amante; que finezas de um infelice<br />
nunca são cri<strong>da</strong>s e méritos de um desditoso nunca são estima<strong>do</strong>s. Desconfiei<br />
de pedi-la por esposa, parecen<strong>do</strong>-me que me seria nega<strong>da</strong>: pois nunca a meus<br />
serviços se mostrou agradeci<strong>da</strong>, com lhe constar com certeza quanto de mim<br />
era ama<strong>da</strong>; e assi desespera<strong>do</strong> <strong>da</strong> ventura, quasi desengana<strong>do</strong> <strong>da</strong> esperança,<br />
me retirei à quinta para ver se na ausência acharia remédio, pois que na<br />
presença não mereci galardão.<br />
Vencen<strong>do</strong> ia o rigor <strong>da</strong>s sau<strong>da</strong>des com a cura desabri<strong>da</strong> <strong>do</strong> desengano,<br />
violento remédio de um queixoso, quan<strong>do</strong> me chegaram as novas de que se<br />
casava com Silvério, a quem amava com antigua correspondência. Duvidei ser<br />
ver<strong>da</strong>de pelo que a tinha experimenta<strong>do</strong> esquiva, porém ao fim me vim a<br />
desenganar de que nunca os anúncios infelices são duvi<strong>do</strong>sos. Impaciente ao<br />
trágico de meus repeti<strong>do</strong>s desvelos, tão desestima<strong>do</strong>s por serem meus, pois<br />
sen<strong>do</strong> tão ver<strong>da</strong>deiros, jamais foram conheci<strong>do</strong>s, cioso <strong>do</strong>s favores de Silvério<br />
Albertino, por ser mais venturoso e não mais benemérito, ven<strong>do</strong> que havia de<br />
levar por esposa a quem eu com tantas veras amava, desespera<strong>do</strong> aos<br />
pesares e arroja<strong>do</strong> aos desgostos, consultei o desagravo com minha intolerável<br />
ânsia e, leva<strong>do</strong> de um vingativo furor, de uma impaciência ciosa e de uma<br />
mágoa ofendi<strong>da</strong>, me parti logo a Cesena, aonde entran<strong>do</strong> já bem de noite, por<br />
não ser visto, saí arma<strong>do</strong> em companhia só de meus vingativos pesares, que<br />
não procura testemunhas quem leva o coração homici<strong>da</strong>.
772 Padre Mateus Ribeiro<br />
Rodeei esta casa várias vezes, por ver se encontrava ao venturoso<br />
Silvério, delibera<strong>do</strong> em <strong>da</strong>r-lhe a morte; porém guar<strong>do</strong>u-o sua ventura, que sem<br />
ron<strong>da</strong>r os muros deste jardim, de quantas noites de antes eu os rondei, quan<strong>do</strong><br />
me lisonjeava a esperança, alcançou melhor prémio com o descui<strong>do</strong> <strong>do</strong> que eu<br />
avancei com o cui<strong>da</strong><strong>do</strong>. Mais de meia-noite seria quan<strong>do</strong> a<strong>caso</strong> pon<strong>do</strong> a mão<br />
na porta <strong>do</strong> jardim, a vi tão debilmente fecha<strong>da</strong> que sem estron<strong>do</strong>sa violência<br />
pude abri-la; entrei pensativo se dentro estaria Silvério, mas não estava: vi à<br />
luz de uma vela a senhora Florisela, de antes to<strong>do</strong> meu recreio e então to<strong>da</strong><br />
minha mágoa, e desejoso não de ofendê-la, mas de obrigá-la a que fosse<br />
minha esposa, cortan<strong>do</strong> os flori<strong>do</strong>s ramos à ventura de Silvério, entrei<br />
rebuça<strong>do</strong> tão repentinamente aonde estava que, apagan<strong>do</strong>-se a luz, caiu em<br />
terra desmaia<strong>da</strong> <strong>do</strong> susto. Tomei-a nos braços sem senti<strong>do</strong>s, e entran<strong>do</strong> em<br />
casa, aonde estava o senhor Antíoco, meu singular amigo, bem descui<strong>da</strong><strong>do</strong> de<br />
tal sucesso, chaman<strong>do</strong> as cria<strong>da</strong>s que estão presentes, lhes entreguei a<br />
desanima<strong>da</strong> presa para que com to<strong>do</strong>s os possíveis remédios a confortassem<br />
até tornar a cobrar os embarga<strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s; como tornou a respirar já no raiar<br />
<strong>da</strong> primeira luz <strong>da</strong> aurora. Pediu-me com lágrimas que a sua mãe a restituísse,<br />
e quis obrar como eu era em haven<strong>do</strong>-a trata<strong>do</strong> tão continente como se fora eu<br />
seu próprio irmão, o senhor Lisar<strong>do</strong>, que está ausente, conduzi-la a sua casa e<br />
à vossa presença, como vedes.<br />
Bem sei que por atrevi<strong>do</strong> me não isento de castigo; mas também pelo<br />
molesto não desmereço o galardão. Muito louva Quinto Cúrcio 673 a grande<br />
continência <strong>do</strong> grande Alexandre com que se houve com a mulher e filhas d'el-<br />
rei Dário, ten<strong>do</strong>-as prisioneiras em seu poder e sen<strong>do</strong> por maravilha fermosas,<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong> imortais aplausos à fama o extremoso <strong>da</strong> modéstia com o portentoso <strong>da</strong><br />
fermosura; e parece-me a mim que em paralelo igual fica hoje este<br />
desempenho de minha fi<strong>da</strong>lguia, pois nem a mulher de Dário seria mais<br />
fermosa que a senhora Florisela, sen<strong>do</strong> o aplauso que admira esta ci<strong>da</strong>de, nem<br />
eu obrei menos heróica continência que Alexandre: porque ele à mulher de<br />
Dário não a amava e só a viu no dia em que to<strong>do</strong>s celebraram este triunfo de<br />
sua modéstia; porém aman<strong>do</strong> eu com tais finezas à senhora Florisela e ten<strong>do</strong>-a<br />
em minha casa, ser para suas lágrimas tão cortês e tão rigoroso para meu<br />
Quint. Curt., Lib. 3.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 773<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, e poden<strong>do</strong> vingar-me de Silvério, tratar com tal respeito a quem<br />
estava dedica<strong>da</strong> para ser sua, valentia foi de quem eu sou e triunfo foi de quem<br />
ela é, porque só ela pudera tão discretamente obrigar-me e só eu tão<br />
fi<strong>da</strong>lgamente obedecer-lhe como eu a seu rogo obedeci.<br />
Podereis culpar-me que a tirei de sua casa violenta<strong>da</strong>; bem pudera eu<br />
desfazer o criminoso desta culpa mostran<strong>do</strong> com Aristóteles que aonde se não<br />
dá movimento natural que repugne não se pode <strong>da</strong>r movimento contrário que<br />
violente, pois aonde não se dá resistência não tem lugar o violento. E como a<br />
senhora Florisela tinha com o sobressalto perdi<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s, que o desmaio<br />
lhe sequestrou, mal podia repugnar a ser leva<strong>da</strong> quem não podia conhecer<br />
nem o lugar em que estava, nem ter sentimento <strong>do</strong> para onde a trasla<strong>da</strong>va<br />
quem em seus braços a levou. Daqui pudera inferir que aonde faltava a<br />
repugnância também faltaria a violência. Porém pon<strong>do</strong> isto à parte, como razão<br />
especulativa, digo, senhora Ricar<strong>da</strong>, que meu intento neste rapto <strong>da</strong> senhora<br />
Florisela foi só para ser minha esposa, porque ela ain<strong>da</strong> não está casa<strong>da</strong>,<br />
ain<strong>da</strong> que a tenhais a Silvério Albertino prometi<strong>da</strong> por esposa. Bem conheceis<br />
que em mu<strong>da</strong>r de esposo na<strong>da</strong> fica perden<strong>do</strong>, antes ganhan<strong>do</strong>, e as<br />
circunstâncias muitas vezes obrigam a mu<strong>da</strong>r os intentos. Quan<strong>do</strong> Roma se viu<br />
nos temores de ser assalta<strong>da</strong> <strong>da</strong>s armas de Aníbal, faltan<strong>do</strong> as armas aos<br />
romanos, se valeram <strong>da</strong>s armas que nos templos estavam pendura<strong>da</strong>s por<br />
insígnias de suas passa<strong>da</strong>s vitórias; e o que se tinha ofereci<strong>do</strong> por dedicação<br />
de seus triunfos serviu para defensa de seus presentes perigos.<br />
O grande Pompeu, como escreve Apiano Alexandrino, se empenhou a<br />
favorecer a Júlio César com to<strong>do</strong> o valimento de seu poder, sen<strong>do</strong> o patrocínio<br />
e o apoio principal de ele chegar a tanta grandeza; e depois, ven<strong>do</strong> que<br />
aspirava César ao império, se pôs <strong>da</strong> parte <strong>do</strong> sena<strong>do</strong> romano e o perseguiu.<br />
Mu<strong>da</strong>m as circunstâncias os primeiros movimentos e fazem divórcio <strong>da</strong>s<br />
primeiras intenções quan<strong>do</strong> as circunstâncias os requerem e o pun<strong>do</strong>nor o<br />
persuade.<br />
Eu estou pronto para receber a senhora Florisela por esposa, se ela for<br />
disso contente e vós, senhora Ricar<strong>da</strong>, o aprovardes, para que seu crédito<br />
nunca possa padecer sombra de algum deslustre, porque muitas vezes<br />
consiste mais o crédito no recato <strong>do</strong> que na obra e na fama que na reali<strong>da</strong>de.<br />
Quem pode assegurar que se este meu repentino atrevimento chegasse à
774 Padre Mateus Ribeiro<br />
notícia de Silvério Albertino, possa ele persuadir-se que teve o libidinoso em<br />
mim tão decoroso respeito à fi<strong>da</strong>lguia e que na lisonja de meus anos pôde<br />
vencer a moléstia os combates <strong>do</strong> apetite? Quem facilmente crerá que sen<strong>do</strong><br />
meu amor tão grande e a senhora Florisela tão bela, pesasse mais meu<br />
pun<strong>do</strong>nor que meu desejo? E que ten<strong>do</strong>-a em minha casa a respeitasse como<br />
irmã, queren<strong>do</strong>-lhe como amante? Sem dúvi<strong>da</strong> poria escrúpulos à ver<strong>da</strong>de o<br />
subi<strong>do</strong> desta fineza! E mais quan<strong>do</strong> estava de permeio o desengano de estar a<br />
outro prometi<strong>da</strong> por esposa, poden<strong>do</strong> provocar-me o repeti<strong>do</strong> <strong>do</strong> desprezo ao<br />
incentivo <strong>da</strong> vingança.<br />
Presente está a senhora Florisela como abona<strong>da</strong> testemunha desta<br />
ver<strong>da</strong>de, o senhor Antíoco e estas cria<strong>da</strong>s, sen<strong>do</strong> que minha ver<strong>da</strong>de era<br />
bastante abono <strong>do</strong> que manifesto. Agora, senhora Ricar<strong>da</strong>, em vossa escolha<br />
fica o fazer-me venturoso, se merecer ser esposo <strong>da</strong> senhora Florisela; porque<br />
ain<strong>da</strong> que empenhasse o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> em Silvério, a quem queria por esposo, bem<br />
fio eu de sua discrição e fi<strong>da</strong>lguia que se não soube estimar-me quan<strong>do</strong><br />
amante, saberá estimar-me quan<strong>do</strong> esposo.<br />
Assi falou Feliciano, sen<strong>do</strong> ouvintes de sua prática em Ricar<strong>da</strong> e<br />
Florisela mais os olhos pelas lágrimas que derramavam <strong>do</strong> que os ouvi<strong>do</strong>s<br />
pelas palavras que ouviam; que como se representava a trágica memória de<br />
suas penas, mal se ouvia a relação sem os olhos testemunharem a <strong>do</strong>r que a<br />
repetição comovia. Depois de alguma suspensão em que os olhos choran<strong>do</strong><br />
responderam, pon<strong>do</strong>-os em Feliciano, lhe disse assi minha mãe:<br />
- Ofendi<strong>da</strong> e obriga<strong>da</strong>, agrava<strong>da</strong> e agradeci<strong>da</strong>, não alcanço, senhor<br />
Feliciano, como possa responder-vos, quan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>r me impede a obrigação e<br />
a fineza se encontra com a ofensa. O não sentir o agravo seria ser insensível,<br />
faltan<strong>do</strong> ao justo <strong>da</strong> queixa, e o não agradecer o benefício seria ingratidão,<br />
faltan<strong>do</strong> às razões <strong>do</strong> conhecimento no justo <strong>da</strong> obrigação; e postos em<br />
balança tão contrários respeitos, o que posso agradecer pesa menos e o que<br />
devo sentir pesa mais. Sen<strong>do</strong> tão escan<strong>da</strong>losa a culpa que cometestes contra<br />
a imuni<strong>da</strong>de decorosa desta casa tão ilustre, como vós bem sabeis, em<br />
entrardes nela pelo jardim ao maior silêncio <strong>da</strong> noite a roubar-me minha filha<br />
Florisela, insulto tão detestável, pretendeis agradecimento de vosso próprio<br />
delito, porque levan<strong>do</strong>-a desmaia<strong>da</strong> a vossa casa, não vos despenhastes a<br />
mais? Assi como sobre a cor negra nenhuma outra cor pode assentar-se,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 775<br />
porque o escuro nenhuma outra cousa admite por mais vistosa que seja, por<br />
não ser o negro capaz de receber outra cor; assi sobre um rapto tão<br />
desafora<strong>do</strong> no atrevi<strong>do</strong>, nenhuma fineza pode luzir, nem favor algum produzir<br />
obrigação. Tem maior poder o agravo para causar aborrecimento <strong>do</strong> que o<br />
obséquio para originar afeição; porque a ofensa primeiro ocupa o lugar pelo<br />
senti<strong>do</strong>, e assi não deixa espaço em que possa o benefício assistir ao<br />
obriga<strong>do</strong>.<br />
Dizeis que pretendíeis a minha filha para esposa: intentos mal se<br />
descifram quan<strong>do</strong> se ocultam; pudéreis haver fala<strong>do</strong> a tempo em que se<br />
conhecesse essa ventura e não quan<strong>do</strong> se chorasse esta mágoa; e poden<strong>do</strong><br />
de antes ter a pretensão remédio, hoje tem o remédio só na queixa, se queixas<br />
podem servir de remédio. No atrevimento degenerastes de quem sois e em vos<br />
reportardes usastes de quem éreis: a vós mesmo agradecei o modesto, que eu<br />
sempre me queixarei <strong>do</strong> atrevi<strong>do</strong>. Dizeis que será dificultoso o crédito de fineza<br />
tão desusa<strong>da</strong> como a que usastes com Florisela, e eu digo que facilmente<br />
podia crer-se, pois de seus brios prometia o juízo que mais facilmente sofreria<br />
o golpe <strong>da</strong> morte <strong>do</strong> que o labéu <strong>da</strong> desonra quem sustentou sempre a honra<br />
sem labéus. Dizeis que mude de casamento, pois ain<strong>da</strong> se pode mu<strong>da</strong>r,<br />
deixan<strong>do</strong> o de Silvério Albertino: indiscreta eleição fora deixar a quem sabe<br />
estimar por quem a pode ofender e haver de pagar tributos de sujeição a quem<br />
a pretendeu, quan<strong>do</strong> tão livre era, ter nela tão injusto senhorio. Nem a <strong>do</strong>r me<br />
permite dilatar-me mais na resposta, nem o passa<strong>do</strong> desmaio de Florisela pede<br />
maior demora em acudir a seu reparo, nem posso <strong>da</strong>r resolução sem maduro<br />
conselho de Lisar<strong>do</strong> e meus parentes: pois quan<strong>do</strong> a minha filha falte esposo,<br />
nunca lhe faltará o retiro de um convento em que <strong>da</strong>s lisonjas e infortúnios <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> desengana<strong>da</strong> viva.<br />
Dizen<strong>do</strong> isto se ergueu, e toman<strong>do</strong> <strong>da</strong> mão a Florisela, de quem as<br />
cria<strong>da</strong>s de Feliciano chorosas se despediram, se recolheram para outra casa,<br />
deixan<strong>do</strong> a Feliciano e Antíoco admira<strong>do</strong>s <strong>do</strong> brioso de sua resolução e<br />
obriga<strong>do</strong>s de sua cortesia, porque nem por ofendi<strong>da</strong> faltou ao cortês, nem por<br />
obriga<strong>da</strong> ao resoluto.
776 Padre Mateus Ribeiro<br />
Cap. VI.<br />
Do que sucedeu a Lisar<strong>do</strong> sain<strong>do</strong> de Bolonha para vir para Cesena<br />
Suspensos se partiram Feliciano e Antíoco de casa de Florisela com uns<br />
longes de esperanças e com uns pertos de desenganos, nem de to<strong>do</strong><br />
desconfia<strong>do</strong>s, nem de to<strong>do</strong> satisfeitos. Por uma parte animava a Feliciano para<br />
conseguir o casamento a modéstia com que se ouve com minha irmã até ser a<br />
minha mãe restituí<strong>da</strong>, de que Florisela era abona<strong>da</strong> testemunha. É a modéstia<br />
guar<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, como lhe chamou Platão 674 ; virtude que modera o impetuoso<br />
<strong>do</strong> desejo, como a definiu Aristóteles 675 ; espelho <strong>da</strong> razão, lhe chamou<br />
Cícero 676 , em que se vê o justo e se reprova o odioso; carta de seguro <strong>da</strong> paz,<br />
concórdia <strong>da</strong> razão com o apetite, luz que desvia <strong>do</strong>s perigos, regra sem a<br />
qual, como diz Valério Máximo 677 , nem o preclaro se estima, nem a<br />
generosi<strong>da</strong>de se mostra; vitória com que triunfa o valor <strong>do</strong>s incentivos <strong>do</strong>s<br />
afectos, moderação que ensina a seguir a magnanimi<strong>da</strong>de e não o temor <strong>da</strong><br />
punição, como Séneca 678 escreve. Assi não carecia de louvor o romper quem<br />
amava pela ocasião e pelo desejo por não faltar ao heróico <strong>do</strong> generoso.<br />
Por outra parte, havia si<strong>do</strong> tão odioso o atrevimento <strong>do</strong> rapto de<br />
Florisela, quan<strong>do</strong> o lustroso <strong>da</strong> honra não só nos sujeitos ilustres <strong>da</strong>s obras<br />
insolentes se mancha, mas ain<strong>da</strong> <strong>do</strong>s pensamentos se ofende, queren<strong>do</strong> (se<br />
possível lhe fora) pôr leis à própria vontade para que não ame e proibições ao<br />
entendimento para que não pense o que presume ser abatimento, desejan<strong>do</strong><br />
ter jurisdição nos interiores para puni-los, se pudera certificar-se que deles<br />
estava a fi<strong>da</strong>lguia agrava<strong>da</strong>. É esta pela maior parte tão escrupulosa <strong>do</strong>s<br />
desaires <strong>da</strong> estimação que parece fazer-se quasi incapaz de ser ofendi<strong>da</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> com a ofensa sempre, como disse Demóstenes 679 , se pode temer a<br />
maior vingança e está propínquo o mais certo perigo. Um <strong>do</strong>s motivos que se<br />
674 Plat., in Char.<br />
675 Arist., De virt. & vit. divis.<br />
676 Cicer., De fin.<br />
677 Val. Maxim., Lib. 3.<br />
678 Sen., Ep. 5.<br />
679 Dem., in Ep.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 777<br />
podem considerar para ser o agravo nela tão cruento nos desvelos <strong>da</strong><br />
satisfação porventura será que assi como os eclipses <strong>do</strong> sol são mais para<br />
admira<strong>do</strong>s que os <strong>da</strong> lua, assi por ser o luminar mais brilhante de to<strong>do</strong>s como<br />
juntamente por achar despertos to<strong>do</strong>s os olhos, por ser de dia, para verem o<br />
desmaio <strong>da</strong> luz que o escurece, o que não é na lua, que além de ser planeta<br />
inferior, muitos olhos estão <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> que não são testemunhas de sua falta,<br />
por padecer esta intercadência de seus resplan<strong>do</strong>res de noite; assi os agravos<br />
feitos ao ilustre <strong>da</strong> pessoa são eclipses de to<strong>do</strong>s vistos e censura<strong>do</strong>s, o que<br />
nas esferas mais humildes ou se nota menos ou se encobre mais.<br />
De tu<strong>do</strong> o que passava em Cesena estava eu em Bolonha bem<br />
descui<strong>da</strong><strong>do</strong>, por nem se haver <strong>da</strong><strong>do</strong> notícias nem <strong>do</strong> contrato <strong>do</strong> casamento de<br />
Silvério Albertino, de que Ricar<strong>da</strong>, minha mãe, não me havia escrito, por eu<br />
estar de parti<strong>da</strong> para Cesena, nem <strong>do</strong> agravo de Feliciano por estar oculto e<br />
ser incapaz de confiar-se de escrito, quan<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> com grande cautela era<br />
idóneo para na presença fiar-se <strong>da</strong>s palavras. Chegou-se o tempo <strong>da</strong> parti<strong>da</strong>:<br />
despedi-me <strong>do</strong>s amigos que em Bolonha tinha, e entre sau<strong>do</strong>so <strong>da</strong> casa de<br />
meu tio que deixava e entre os desejos de ver a minha mãe e a pátria que<br />
havia anos não via, e assi com encontra<strong>do</strong>s afectos me parti por uma parte<br />
alegre e outra triste uma madruga<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> as músicas aves <strong>da</strong>vam as boas<br />
vin<strong>da</strong>s com seu canto ao berço de topázios em que a aurora nascia. Mal se<br />
diferençava ain<strong>da</strong> o tenebroso <strong>da</strong>s sombras <strong>do</strong>s assomos <strong>da</strong> luzes,<br />
equivocan<strong>do</strong>-se a noite com o dia, queren<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> algumas estrelas sustentar<br />
a campanha <strong>do</strong>s ares pela noite e pretenden<strong>do</strong> as rebuça<strong>da</strong>s luzes aclamar a<br />
vitória pelo dia; ce<strong>do</strong> para conhecer-se o triunfo <strong>da</strong> luz e tarde para restaurar-se<br />
a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> sombra.<br />
Caminhava eu com meus cria<strong>do</strong>s pelos vistosos campos que a Bolonha<br />
se avizinham, fértil terreno, delicioso sítio e sau<strong>do</strong>so rio que murmuran<strong>do</strong> de<br />
passagem, porque não tem lugar para deter-se, corre tão sereno que parece<br />
que pára e caminha tão bran<strong>do</strong> que parece não se move. Pouco mais de meia<br />
légua me teria aparta<strong>do</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, em que já o dia manifestava sua alegria e o<br />
sol rompia o horizonte com raios <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s, a purpúrea cortina de que havia<br />
si<strong>do</strong> sumilher à aurora, quan<strong>do</strong> no mais condenso de um bosque que através<br />
<strong>da</strong> estra<strong>da</strong> que eu seguia ficava, ouvi vozes de mulher que parecia queixar-se<br />
e voz juntamente de homem que lhe respondia.
778 Padre Mateus Ribeiro<br />
Bem disse Euripides que a supérflua curiosi<strong>da</strong>de talvez é inimiga <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>, parecer que seguiu Cícero 681 quan<strong>do</strong> disse que bastante era a ca<strong>da</strong> qual<br />
o governo de suas cousas, sem ter curiosi<strong>da</strong>de de intentar registrar as alheias.<br />
Porém oferece a fortuna ocasiões tão arroja<strong>da</strong>s que aos senti<strong>do</strong>s menos<br />
ocupa<strong>do</strong>s os persuadem a investigar o que depois se arrependem de saber.<br />
Bem é ver<strong>da</strong>de que mais me incitou o desejo de poder evitar algum perigo<br />
alheio <strong>do</strong> que me moveu a curiosi<strong>da</strong>de própria; e assi com este pie<strong>do</strong>so afecto<br />
me apeei <strong>do</strong> cavalo, que entreguei aos cria<strong>do</strong>s, e sem querer que me<br />
acompanhassem, entrei pelo bosque, que sombrio e fecha<strong>do</strong> de arvore<strong>do</strong> era,<br />
e com cautela de não ser visto escutei a voz de um homem que assi dizia:<br />
- Tem chega<strong>do</strong>, ó Lívia, meus pesares a esta<strong>do</strong> que rompem o muro de<br />
meu sofrimento, tão dilata<strong>do</strong> para ser agora mais executivo, pois fingir<br />
ignorância de agravo é meio de assegurar mais a vingança dele. Infelice foi<br />
para mi tua beleza, no nome de Lívia te pôs minha fortuna, ó liviana, como a<br />
outra Lívia romana, nora de Tibério e mulher <strong>do</strong> príncipe Druso, seu filho, que<br />
ten<strong>do</strong> tanto de fermosa como de liviana, ocasionou a morte a seu mari<strong>do</strong><br />
depois de havê-lo ofendi<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> a ponte o haver si<strong>do</strong> adúltera, para passar<br />
delibera<strong>da</strong> a ser homici<strong>da</strong>.<br />
Deu-te meu amor senhorio sobre meu gosto: nece<strong>da</strong>de grande descobrir<br />
à sujeição a quem pode usar mal <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio; e bem se viu, pois tomaste<br />
motivo para ofender-me <strong>do</strong> que te pudera obrigar a teres eterniza<strong>do</strong>s desvelos<br />
para amar-me. Excesso de ingratidão amotivar-te o extremo de querer-te,<br />
incentivos de agravar-me. Pouco deve um honra<strong>do</strong> ao felice <strong>da</strong> ventura, se lhe<br />
deu a honra para perdê-la: pois uma vi<strong>da</strong> deslustra<strong>da</strong> é cadáver <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de<br />
e sepulcro <strong>do</strong> pun<strong>do</strong>nor; tem aparências de vi<strong>da</strong>, mas é morta, porque só nos<br />
livros <strong>da</strong> honra se registram os privilégios <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Casei-me contigo lisonjea<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong> fermosura, não movi<strong>do</strong> de interesses; que nunca atende a interessa<strong>do</strong> amor<br />
que se presa de tão fino. Eras no <strong>do</strong>te pobre e na beleza rica, e esta foi só para<br />
mim o maior <strong>do</strong>te; e com ter-te por esposa sempre te tratei com desvelos de<br />
amante. Jamais diminuiu meu amor por possuir-te, antes subiu a mais querer-<br />
Eur., in Hyp.<br />
Cicer., in Lœl.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 779<br />
te, e quan<strong>do</strong> na posse pudera mostrar-se descui<strong>da</strong><strong>do</strong>, então se mostrou mais<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so.<br />
Veio estu<strong>da</strong>r a Bolonha Teodósio, o segun<strong>do</strong> filho <strong>do</strong> marquês Octávio,<br />
viu-te e de ver-te se seguiu amar-te: grande perigo para ele o de ver-te e para<br />
mi o de amar-te, pois se inferia de amar-te o procurar ofender-me. Avisei-te<br />
uma vez e outra de meu desgosto; não tiveram valia meus avisos, porque pôde<br />
mais contigo o desvanecimento de te veres ama<strong>da</strong> que o desgosto de me<br />
veres queixoso, nem a pena de me veres senti<strong>do</strong>. Se foras feia e te viras<br />
estima<strong>da</strong> e pretendi<strong>da</strong>, pudera-se dizer que te subornava a novi<strong>da</strong>de; porém<br />
sen<strong>do</strong> fermosa, que triunfo era para <strong>da</strong>r-te cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s que outro se mostrasse<br />
rendi<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> tinhas em mi tão antigo triunfo? Achei escritos que te<br />
man<strong>da</strong>va, ouvi músicas que de noite se <strong>da</strong>vam, passeios de dia e ron<strong>da</strong>s de<br />
noite, e por fim saltar dentro <strong>do</strong> meu jardim: ataques que pôs seu inquieto<br />
desvelo para avizinhar-se ao castelo de minha honra, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> ocasiões a<br />
murmurar-se em Bolonha meu sofrimento e tua livian<strong>da</strong>de, meu crédito<br />
deslustra<strong>do</strong>, meu respeito desluzi<strong>do</strong>, profana<strong>do</strong> o decoroso de minha<br />
estimação, rouban<strong>do</strong>-me a fortuna em um dia a fama que meus passa<strong>do</strong>s nas<br />
militares empresas com imortal valor adquiri<strong>do</strong> tinham.<br />
Conheço, Lívia trai<strong>do</strong>ra, que jamais Teodósio se precipitara a tantos<br />
atrevimentos se tuas livian<strong>da</strong>des não admitissem seu desaforo: não há amante<br />
tão néscio a quem não faça parar um desengano. Se tu, Lívia, te houveras<br />
mostra<strong>do</strong> qual devias, nunca Teodósio tão atrevi<strong>do</strong> fora. Sua ousadia fun<strong>do</strong>u<br />
as bases em tua livian<strong>da</strong>de para levantar tão ruinoso edifício de seus mal<br />
nasci<strong>do</strong>s desejos, gigante que quis opor-se ao Olimpo sublime de minha honra,<br />
confian<strong>do</strong> em que podias abrir-lhe a porta a tão injusta conquista; porém hoje<br />
este punhal abrirá brecha em teu falso peito por onde saia minha desonra e<br />
entre minha vingança.<br />
Ouvin<strong>do</strong> eu tão cruenta deliberação, me fui avizinhan<strong>do</strong> mais para poder<br />
impedi-la, quan<strong>do</strong> ouvi que Lívia ansia<strong>da</strong> lhe respondia desta sorte:<br />
- Suspende o injusto furor, esposo Roberto, que não merece minha<br />
inocência tão tirana resolução, pois padecer sem culpa para mi é mágoa e para<br />
ti não é vingança. Que tire sangue a lanceta na enfermi<strong>da</strong>de pode ser alívio <strong>da</strong><br />
pena, porém ferir na saúde, como se livrará de parecer tirania? Eu não dei<br />
ocasião a atrevimentos desse insolente Teodósio, que <strong>do</strong> tronco de que nasci
780 Padre Mateus Ribeiro<br />
nunca aprendi livian<strong>da</strong>des, e bastava o ser eu quem sou para teres de mi mais<br />
segura confiança, pois sempre te venerei como esposo e respeitei como<br />
senhor.<br />
Dizes que por fermosa ocasionei teus sentimentos: injusta queixa seria<br />
(quan<strong>do</strong> eu o fora) culpares o que a natureza me deu no nascimento; se esta<br />
era perigosa, não me buscaras, e se esta te agravou, por que me culpas?<br />
Achaste porventura em meu poder algum papel desse atrevi<strong>do</strong>? Levantei-me a<br />
ouvir suas músicas ou apareci a seus passeios? Na<strong>da</strong> disto poderás com<br />
ver<strong>da</strong>de afirmar; dizes que o viram de noite saltar <strong>do</strong> muro <strong>do</strong> jardim: em que<br />
sou eu nessa insolência culpa<strong>da</strong>, estan<strong>do</strong> com as cria<strong>da</strong>s retira<strong>da</strong> em minha<br />
casa, sem saber o que passava no jardim? Tu só o dizes, e agora que o<br />
publicas o sei. Considera Roberto, quanto estou longe de culpa<strong>da</strong>, pois nem de<br />
tal ousadia fui sabe<strong>do</strong>ra. Dizes-me por que não desenganei seus devaneios?<br />
Que maior desengano que desprezar seus pensamentos, cerrar as janelas à<br />
sua vista, fazer-me sur<strong>da</strong> a suas músicas, não aceitar papel algum que me<br />
enviasse? E sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> (por impossível) não te respeitara por quem és,<br />
bastara para abono o proceder como quem sou.<br />
Se temes, esposo, desse néscio os desaforos, retira-me <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de ao<br />
lugar mais remoto que quiseres e verás se nas ausências se afina mais meu<br />
querer e se apura mais meu recato: não te despenhes sem razão a quereres<br />
vingar em mi, estan<strong>do</strong> inocente, o insulto em que outro é culpa<strong>do</strong>; desapaixona<br />
o coração, dá lugar a que possa abonançar teu juízo a tormenta que levantou<br />
minha desgraça, não minha culpa; e verás, esposo e senhor, que mais te<br />
merece meu amor louvores que vinganças, pois nunca te ofendi, nem com<br />
pensamentos, e que sentirei mais que o perder a vi<strong>da</strong> o ver que seja quem me<br />
dê a morte um esposo que me devia mais quan<strong>do</strong> tal rigor lhe merecia menos.<br />
Calou Lívia e falaram seus olhos com a inun<strong>da</strong>ção de suas lágrimas,<br />
poderosas armas para demover os mais inexoráveis peitos à pie<strong>da</strong>de. Assi<br />
como ao rio cau<strong>da</strong>loso se não pode estancar o perene de sua corrente, por ser<br />
nasci<strong>da</strong> de viva fonte que seu cristal fugitivo sustenta, assi as lágrimas que tem<br />
no coração a fonte <strong>da</strong> mágoa e a origem na <strong>do</strong>r mal podem reprimir-se<br />
enquanto a pena não tem remédio, nem a <strong>do</strong>r alívio. Suspenso a ouviu<br />
Roberto, porém na<strong>da</strong>, nem de suas desculpas persuadi<strong>do</strong>, nem enterneci<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong>s lágrimas, nem compadeci<strong>do</strong> <strong>da</strong> fermosura (que era grande) mostrou que
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 781<br />
desistia <strong>da</strong> paixão e intento de tirar-lhe a vi<strong>da</strong>, dizen<strong>do</strong>-lhe que vinha resoluto a<br />
<strong>da</strong>r fim com sua morte a seus pesares e sacrificar sua vi<strong>da</strong> nas aras de sua<br />
honra. Viu Lívia que lançava mão ao punhal, e ven<strong>do</strong>-se sem socorro que em<br />
sítio tão solitário lhe valesse, deu vozes fugin<strong>do</strong> por entre as árvores, seguin<strong>do</strong>-<br />
a ele com o punhal na mão, quan<strong>do</strong> eu arrancan<strong>do</strong> a espa<strong>da</strong> e tiran<strong>do</strong> na outra<br />
mão <strong>da</strong> cinta uma pistola, com a ligeireza possível me pus em meio de Roberto<br />
e <strong>da</strong> senhora Lívia, que pon<strong>do</strong>-se a meu la<strong>do</strong> me pedia a amparasse; e eu<br />
toman<strong>do</strong> o patrocínio de livrá-la, falei desta sorte a seu cruel esposo:<br />
- Indigna acção de cavalheiro é, senhor Roberto Bentivolhe, sen<strong>do</strong> vós<br />
tão ilustre, o quererdes tirar a vi<strong>da</strong> a vossa esposa sem vos haver ofendi<strong>do</strong>.<br />
Matar nos campos solitários mais é empresa de foragi<strong>do</strong>s insolentes que de<br />
corações animosos; trazerdes cautelosamente a vossa esposa a este lugar<br />
para tirar-lhe a vi<strong>da</strong> tem mais de fraude cavilosa que de ofensa conheci<strong>da</strong>. Se<br />
Teodósio vos agravava, tomáreis dele a vingança como ofendi<strong>do</strong> e não de<br />
vossa esposa sem ofender-vos, que a primeira seria acção de valor e esta foi<br />
arrojo <strong>da</strong> cobardia: um bom mo<strong>do</strong> pode <strong>do</strong>urar uma ousadia e um mau desluzir<br />
uma prudência. Quereis com o indecoroso desta morte fazer público ao mun<strong>do</strong><br />
um agravo imagina<strong>do</strong> como se fora cometi<strong>do</strong>? Não sabeis que o vulgo imagina<br />
o pior e a fama acrescenta sempre as cousas mais <strong>do</strong> que são? Muitas faltas<br />
com o recato ficam sepulta<strong>da</strong>s e com a publici<strong>da</strong>de talvez ficam bons<br />
procedimentos censura<strong>do</strong>s. Lívia há-de viver porque não vos tem ofendi<strong>do</strong> e<br />
permitiu o Céu chegar eu em ocasião que pudesse defender sua vi<strong>da</strong>; e não<br />
an<strong>da</strong>reis bem aconselha<strong>do</strong> em quererdes intentar outra cousa, porque ou<br />
haveis de tirar-me a vi<strong>da</strong>, ou aventurar-vos a perdê-la, porque os homens como<br />
eu, uma vez empenha<strong>do</strong>s, só desta sorte se costumam desempenhar.<br />
Enquanto eu falava, Lívia, a meu la<strong>do</strong>, só com as balas de cristal <strong>da</strong>s<br />
lágrimas que de seus fermosos olhos corriam, juntamente defendia sua<br />
inocência e tributava sentimentos à sua pouca ventura. Viu-se confuso Roberto<br />
e não sabia deliberar o parti<strong>do</strong> que seguisse, porque o <strong>do</strong>minava a paixão e o<br />
reportava minha presença. Conhecia-me de Bolonha, aonde assistia, e<br />
avaliava-me por delibera<strong>do</strong> por algumas pendências em que eu em várias<br />
ocasiões me tinha visto, e assim bem previa que se arriscava a evidente perigo<br />
se intentasse contra Lívia algum arrojo. Desistir <strong>da</strong> vingança pudera julgar mais<br />
decoroso se só tivera a origem nos motivos <strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de e presunções <strong>da</strong>
782 Padre Mateus Ribeiro<br />
inocência; porém estan<strong>do</strong> eu de escolta à sua vi<strong>da</strong>, era manifesto que se havia<br />
de atribuir mais a temor que à compaixão a pie<strong>da</strong>de que mostrasse, e que<br />
ficava Lívia mais obriga<strong>da</strong> a quem a defendia que a quem mostrasse ou pláci<strong>do</strong><br />
ficar satisfeito de não ter culpa ou de pie<strong>do</strong>so per<strong>do</strong>ar-lhe a ofensa que haver<br />
cometi<strong>do</strong> presumira. Além disto discursava que Lívia já não poderia confiar-se<br />
dele, pois lhe vira na mão o punhal para lhe tirar a vi<strong>da</strong>, porque, como disse o<br />
sábio Bias 682 , são os inimigos incapazes de se fazer deles confiança, e como o<br />
temor de tu<strong>do</strong> se receia, como diz Quintiliano 683 , fazen<strong>do</strong> as cousas mais feias<br />
e horríveis <strong>do</strong> que ain<strong>da</strong> são, bem previa Roberto que já Lívia havia de<br />
desconfiar de sua companhia, uma vez que intentou sua morte.<br />
Tu<strong>do</strong> se representou a seu ingrato esposo, que achou o desacerto no<br />
fim por haver discursa<strong>do</strong> mal no princípio; e assi escolheu por parti<strong>do</strong><br />
embainhar o punhal e, sem responder palavra, caminhar pelo bosque dentro,<br />
pesaroso de o haver seu inconsidera<strong>do</strong> arrojo conduzi<strong>do</strong> a esta<strong>do</strong> que nem seu<br />
arrependimento tivesse merecimento por pie<strong>do</strong>so, nem sua precipita<strong>da</strong><br />
vingança conseguisse desafogo por desagrava<strong>da</strong>.<br />
Fiquei eu só com Lívia, cuja beleza era tão peregrina que não podia<br />
evitar o ser <strong>da</strong> fortuna persegui<strong>da</strong> quem foi <strong>da</strong> natureza com tais extremos<br />
<strong>do</strong>ta<strong>da</strong>. Era na moci<strong>da</strong>de a flor <strong>do</strong>s anos, que se criaram para lhe aperfeiçoar a<br />
fermosura, logo parece que pararam para que não perdesse a admiração,<br />
caminharam para subir ao auge <strong>da</strong> beleza e fizeram alto para ficar no mais alto<br />
laurea<strong>da</strong> a maravilha e entroniza<strong>da</strong> a estimação. Pudera a neve em seu rosto<br />
estu<strong>da</strong>r can<strong>do</strong>res se se vira livre <strong>da</strong> emulação, pois nunca se confessa<br />
discípula quem presume ensinar e não aprender. De tal sorte se disfarçou a<br />
púrpura em seu rosto com os rebuços cândi<strong>do</strong>s <strong>da</strong> neve que parecia rosa sem<br />
perder os atributos de açucena. Rasgava os olhos em negro sobre tal alvura<br />
por que os olhos que a vissem não desmaiassem e servisse à vista de refúgio<br />
o negro <strong>da</strong> cor para conservá-la, se a candides era poderosa para enfraquecê-<br />
la. Mas quem dissera que estava no remédio encoberto o maior perigo?<br />
Douravam seus cabelos a anima<strong>da</strong> esfera de seu rosto como o sol o hemisfério<br />
com seus raios; se bem o sol só os manifesta de dia, mas os cabelos de Lívia<br />
Plut., in Conv. 7. Sap.<br />
Quin., Decl. 11.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 783<br />
brilhavam de dia e mais de noite. Cifravam os beiços compêndios de rubi, que<br />
a natureza em tu<strong>do</strong> com Lívia liberal, só neles se mostrou avara, porque lhe<br />
deu pouco rubi na quanti<strong>da</strong>de e muito no valor, sen<strong>do</strong> coral pela cor e rubi pelo<br />
breve; porque sempre a estimação no raro vive e no breve compendia<strong>da</strong><br />
sustenta o requinta<strong>do</strong> valor. Era finalmente Lívia tão bela que para retratá-la os<br />
mais delica<strong>do</strong>s pincéis sentiriam desmaios e a maior eloquência para descrevê-<br />
la padeceria confusão.<br />
Era órfã de pai e mãe, ilustres na família de seu antigo solar, ficou pobre<br />
por sua morte, e pelo admirável <strong>do</strong> parecer e discrição a solicitou para esposa<br />
este Roberto Bentivolhe, fi<strong>da</strong>lgo <strong>do</strong>s principais de Bolonha e morga<strong>do</strong> rico; e<br />
haven<strong>do</strong> <strong>do</strong>us anos que com ela era casa<strong>do</strong>, com a vin<strong>da</strong> de Teodósio a<br />
estu<strong>da</strong>r em Bolonha, entrou em Roberto a desconfiança e em Teodósio a<br />
inquietação, haven<strong>do</strong> visto a Lívia, em que ele, como poderoso e respeita<strong>do</strong>,<br />
procedeu pouco respeitoso com tanto excesso que, incita<strong>do</strong> Roberto de<br />
repeti<strong>da</strong>s desconfianças, haven<strong>do</strong> despedi<strong>do</strong> de sua casa quantas cria<strong>da</strong>s e<br />
cria<strong>do</strong>s tinha, com presunção de serem a sua honra pouco confidentes por<br />
alguns indícios de papéis cerra<strong>do</strong>s, em que cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so e vigilante os tinha<br />
acha<strong>do</strong>, se deliberou sem mais prova que seus ciúmes em <strong>da</strong>r a morte a Lívia,<br />
que o não tinha ofendi<strong>do</strong>.<br />
Esta noite, duas horas antes de amanhecer, lhe disse se vestisse e<br />
viesse com ele para uma quinta que tinha légua e meia distante <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />
porque se resolvia a não viver em Bolonha. Lívia, que inocente estava de<br />
ofendê-lo, obedecen<strong>do</strong> ao que ordenava, saiu com ele descui<strong>da</strong><strong>da</strong> de seu<br />
intento, como quem na<strong>da</strong> temia, porque em na<strong>da</strong> tinha mereci<strong>do</strong> o castigo<br />
quem de culpa não se conhecia mancha<strong>da</strong>. Como caminhavam a pé, foi a<br />
jorna<strong>da</strong> de chegarem àquele solitário lugar mais vagarosa, de sorte que rasgou<br />
a luz <strong>da</strong> aurora para ser testemunha que descobrisse esta tragédia tão<br />
lastimosa que os ciúmes de Roberto pretendiam executar.<br />
Cap. VII.<br />
Em que se prosseguem os sucessos de Lívia
784 Padre Mateus Ribeiro<br />
Parou em Lívia em parte o repentino temor com minha assistência a seu<br />
amparo, mas não se estancou a corrente de suas lágrimas em seus fermosos<br />
olhos; porque o temor tinha a raiz no perigo, porém as lágrimas tinham a fonte<br />
na mágoa, e como esta perseverava tão viva, mal podiam suspender-se as<br />
lágrimas quan<strong>do</strong> estava tão presente a fonte delas. Tinha Lívia sempre<br />
experimenta<strong>do</strong> favorável a ventura, porque tu<strong>do</strong> se rendia ao invencível de sua<br />
beleza: fican<strong>do</strong> órfã e com pouco cabe<strong>da</strong>l, era de muitos pretendi<strong>da</strong> para<br />
esposa sem procurarem outro <strong>do</strong>te mais que sua fermosura, que avaliavam<br />
pela maior riqueza; e entre tantos pretendentes de seus esposórios foi Roberto<br />
o mais poderoso em alcançá-la, e como esta para ela havia si<strong>do</strong> a primeira<br />
lição que de infelice aprendia, depois de se haver gradua<strong>do</strong> de venturosa, certo<br />
era, como diz Quinto Cúrcio 684 , que havia de ser por extremo penosa a lição de<br />
infortúnio tão desusa<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o costume de padecer só pode, como disse<br />
Euripides 685 , servir de alívio ao penar. E como importava tomar resolução no<br />
que convinha em negócio tão árduo para assegurar a vi<strong>da</strong> de Lívia, porque o<br />
mo<strong>do</strong> com que seu esposo Roberto se ausentou causava maior suspensão <strong>do</strong><br />
motivo que teria, porque enfim era honra<strong>do</strong> e imaginava-se ofendi<strong>do</strong>, falei eu a<br />
Lívia desta sorte:<br />
- Se as lágrimas que derramais, senhora Lívia, sen<strong>do</strong> tão preciosas no<br />
valor, fossem tão poderosas para o remédio <strong>do</strong> presente perigo, nem eu vos<br />
persuadira que as moderásseis, nem que à mágoa <strong>do</strong>nde manam désseis<br />
alívio. Porém vejo que se chorais para persuadir-me vossa inocência, são as<br />
lágrimas muitas, porque estou certo de que a vosso esposo não haveis<br />
ofendi<strong>do</strong>, e se chorais para persuadi-lo a ele desta ver<strong>da</strong>de, to<strong>da</strong>s as lágrimas<br />
que derramais ficam sen<strong>do</strong> poucas, porque para enternecer um coração que na<br />
honra se presume ofendi<strong>do</strong> um oceano de lágrimas ain<strong>da</strong> é pouco. Eu me parti<br />
a Cesena, minha pátria, a ver a minha mãe e irmã de que há anos que estou<br />
ausente por continuar o curso de meus estu<strong>do</strong>s em Bolonha. Meu nome é<br />
Lisar<strong>do</strong> Martelino, <strong>da</strong> mais ilustre família de Cesena, vossa inocência e vossa<br />
ventura me induziram a que deixan<strong>do</strong> o cavalo e os cria<strong>do</strong>s que por mi<br />
esperavam, ouvin<strong>do</strong> as vozes de Roberto e vossas, se bem de mim então<br />
Curt., Lib. 4.<br />
Eur., in Hec.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 785<br />
desconheci<strong>da</strong>s, entrasse neste sítio tão oculto que mais que bosque representa<br />
labirinto de arvore<strong>do</strong>: ouvi as queixas de vosso esposo e vossas desculpas<br />
bem ajusta<strong>da</strong>s, suposto que mal recebi<strong>da</strong>s. Ultimamente desviei o executivo de<br />
seu furor em vos livrar a vi<strong>da</strong>, agora importa tratar de assegurar o feito com<br />
levar-vos onde ordenardes, parte conveniente em que vos deis por segura: que<br />
eu já que me empenhei em defender-vos, empenharei minha própria vi<strong>da</strong>,<br />
expon<strong>do</strong>-a a to<strong>do</strong> o risco, por assegurar a vossa.<br />
- Se nas palavras (respondeu Lívia) pudera desempenhar-se meu justo<br />
agradecimento ao favor recebi<strong>do</strong>, ficara limita<strong>da</strong> to<strong>da</strong> a erudição para<br />
reconhecer a obrigação que vos devo; porém pagar-vos-á Deus, senhor<br />
Lisar<strong>do</strong>, o pie<strong>do</strong>so desta obra em que com tanto valor socorrestes a esta<br />
infelice, quan<strong>do</strong> só o Céu que vos guiou pudera amparar minha inocência tão<br />
injustamente persegui<strong>da</strong>. São as aflições de meu coração tais que para<br />
discursar me perturbam os senti<strong>do</strong>s, que mal pode ter livre o discurso quem<br />
tem a alma tão ansia<strong>da</strong>.<br />
Eu, como sou órfã, perden<strong>do</strong> a meus pais no melhor <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, não tenho<br />
irmãos que de mim se compadeçam, não tenho hoje em Bolonha de quem me<br />
possa valer, sen<strong>do</strong> nela tão poderoso Roberto, meu tirano esposo. Procurar<br />
socorro de Teodósio, esse inquieta<strong>do</strong>r de minha vi<strong>da</strong> e injusto perturba<strong>do</strong>r de<br />
meu sossego, seria <strong>da</strong>r prova às calúnias de Roberto e fazer-me culpa<strong>da</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> estou inocente, ven<strong>do</strong> que me defendia quem meu esposo tem por<br />
delinquente em seu agravo. Julgai vós agora, como mais entendi<strong>do</strong>, o que nisto<br />
devo fazer; e pois emprendestes meu remédio com o valor de quem sois, não<br />
me falte o pie<strong>do</strong>so de vossa nobreza em ocasião tão digna de vosso amparo e<br />
de minha compaixão. Principiar o bem e não segui-lo não é empresa <strong>da</strong><br />
generosi<strong>da</strong>de, antes será mostrar ou arrependimento de o haver emprendi<strong>do</strong><br />
ou falta de valor para cabalmente aperfeiçoá-lo.<br />
Que importará, senhor Lisar<strong>do</strong>, que a vi<strong>da</strong> me amparásseis, se me<br />
deixardes com o risco de perdê-la? A compaixão tem por objecto a ânsia e o<br />
amparo a necessi<strong>da</strong>de. Sou moça órfã, aflita, persegui<strong>da</strong> injustamente,<br />
desampara<strong>da</strong> de socorro, desfavoreci<strong>da</strong> <strong>da</strong> ventura em lugar tão solitário, sem<br />
mais refúgio que minhas lágrimas, pois se não dá crédito a minha inocência;<br />
pois aonde pode empregar-se melhor a comiseração de vosso peito e o valor<br />
de vosso ânimo que em segurardes uma vi<strong>da</strong> de tantas penas combati<strong>da</strong>, de
786 Padre Mateus Ribeiro<br />
tantas ânsias cerca<strong>da</strong>, para que vos fique obriga<strong>da</strong> enquanto puder dizer que é<br />
minha?<br />
Assi falou a fermosa Lívia, choran<strong>do</strong> para ser a petição mais poderosa,<br />
empenhan<strong>do</strong>-se nela com lágrimas uma beleza magoa<strong>da</strong> e uma fermosura<br />
chorosa. Não sei eu que maior encanto podem ter os senti<strong>do</strong>s para demoverem<br />
um coração <strong>do</strong> que lágrimas em olhos tão rasga<strong>do</strong>s pelo belo e tão<br />
humedeci<strong>do</strong>s pela <strong>do</strong>r. Deixá-la no bosque não convinha pelo perigo que<br />
corria, levá-la comigo era conheci<strong>do</strong> risco a que me aventurava; mas resolvi-<br />
me finalmente a arriscar-me a mim por assegurar a ela. Via-me empenha<strong>do</strong> em<br />
defendê-la, pois me descobri a Roberto auxilia<strong>do</strong>r para ampará-la; e assi<br />
cerran<strong>do</strong> os olhos ao receoso, resolvi o coração a seguir os ditames de<br />
destemi<strong>do</strong>. É muitas vezes o muito discursar meio de impedir o generoso. Se o<br />
grande Alexandre se levara <strong>do</strong>s discursos <strong>da</strong> pouca gente que tinha contra o<br />
grande poder de Dário, nunca fora senhor <strong>do</strong> império <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Prever com o<br />
juízo os riscos nas empresas que podem escusar-se de se acometerem é<br />
prudência, porém no que é preciso tem o primeiro voto o valor e o segun<strong>do</strong> o<br />
discurso. Antes de se emprender o arrisca<strong>do</strong> tem lugar o juízo, porém depois<br />
de se haver emprendi<strong>do</strong> só tem discurso o valor; pois quem protestou de na<strong>da</strong><br />
temer já se deliberou a romper por tu<strong>do</strong>.<br />
Disse a Lívia me seguisse, e chegan<strong>do</strong> aonde meus cria<strong>do</strong>s com o<br />
cavalo estavam esperan<strong>do</strong>, tiran<strong>do</strong> um sen<strong>da</strong>l azul com que me cingia, lhe pedi<br />
que rebuçasse o rosto para não ser conheci<strong>da</strong>, o que ela logo fez; mas que<br />
importava esta nuvem azul em tanta neve, se se manifestava o cândi<strong>do</strong> sobre<br />
as safiras <strong>da</strong> nuvem? É o azul a gala brilhante de que se veste o céu, a quem<br />
talvez sobreveste branca neve; porém quem viu que o azul viesse a servir de<br />
neve a quem no radiante can<strong>do</strong>r parecia copiar os astros cintilantes <strong>do</strong> céu?<br />
Enfim bem rebuça<strong>da</strong>, porém mal encoberta, sen<strong>do</strong> mui rara a nuvem para tanta<br />
luz, defeituoso o disfarce para tanta beleza, abrevia<strong>da</strong> cortina para tanto sol, a<br />
subi nas ancas <strong>do</strong> cavalo e com to<strong>da</strong> a brevi<strong>da</strong>de, desvian<strong>do</strong>-me <strong>da</strong>s estra<strong>da</strong>s<br />
segui<strong>da</strong>s como quem leva furta<strong>da</strong> a melhor jóia, se bem com ânimo de<br />
assegurar sua vi<strong>da</strong> e não de tirá-la a seu esposo, senão enquanto sua paixão<br />
desse espaço a melhor discurso, fui caminhan<strong>do</strong> por apartar-me <strong>da</strong>s<br />
vizinhanças de Bolonha, aonde me parecia estava o maior perigo.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 787<br />
Levavam meus cria<strong>do</strong>s espingar<strong>da</strong>s e eu nos coldres pistolas, armas<br />
com que costumava caminhar quan<strong>do</strong> fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de saía; receava eu que<br />
Roberto me seguisse ou que Teodósio, ten<strong>do</strong> notícias <strong>do</strong> sucesso, com<br />
deliberação de amante intentasse com pretexto de livrá-la <strong>da</strong> morte, tirá-la<br />
violentamente e levá-la consigo: com que ficaria a fama de Lívia indecorosa<br />
para o mun<strong>do</strong> e mais irremediável para com seu esposo. Em qualquer destes<br />
encontros que pudesse suceder previa eu o risco; mas lembrava-me o dito de<br />
Plutarco 686 que nos perigos se conhece a valentia e que, como disse Públio<br />
Mimo, um perigo não se vence sem outro. Não são as cousas seguras objectos<br />
<strong>do</strong> valor, pois aonde não há que recear, não há glória de vencer. To<strong>da</strong>s as<br />
empresas heróicas a que foi envia<strong>do</strong> o tebano Hércules por Euristeio, rei de<br />
Argos, levavam vincula<strong>do</strong>s grandes e evidentes perigos, porém, sain<strong>do</strong><br />
vence<strong>do</strong>r, eternizou o nome e imortalizou a glória de invencível.<br />
Grandes e perigosas guerras moveram os romanos a Mitri<strong>da</strong>tes e a<br />
Antíoco, poderosos reis <strong>da</strong> Ásia, só com o motivo de que desistissem de<br />
perseguirem com hostili<strong>da</strong>des aos smirnios e lampsacenos, povos de Grécia, e<br />
a Átalo, rei de Pérgamo: aos quais o sena<strong>do</strong> e povo de Roma tinha recebi<strong>do</strong> na<br />
protecção de seu amparo. Pois se o amparar aos persegui<strong>do</strong>s ain<strong>da</strong> a to<strong>do</strong> o<br />
risco é a generosi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> valor de que tanto os antigos romanos se gloriaram,<br />
como temeria eu algum perigo por defender a quem de mi se amparava,<br />
quan<strong>do</strong> ou viesse seu esposo a querer ser verdugo de sua vi<strong>da</strong> ou Teodósio a<br />
intentar ser injusto tirano de sua fama?<br />
Com esta resolução, destemi<strong>do</strong> aos perigos, aventuran<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> a to<strong>do</strong><br />
encontro <strong>da</strong> fortuna, intrépi<strong>do</strong> aos receios, solícito só <strong>do</strong> património em que me<br />
havia empenha<strong>do</strong> e descui<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong>s sucessos de minha própria vi<strong>da</strong>, to<strong>do</strong> o<br />
meu desvelo era assegurá-la a ela e meu maior descui<strong>do</strong> assegurar-me a mi.<br />
Chegámos a horas de meio-dia a um casal que bem desvia<strong>do</strong> <strong>do</strong> caminho<br />
ficava, aonde apean<strong>do</strong>-nos, dei ordem a buscar-se para jantarmos tu<strong>do</strong> o que<br />
de regalo o campo oferecia; porém estava Lívia tão corta<strong>da</strong> <strong>do</strong> sentimento e<br />
tão lastima<strong>da</strong> <strong>da</strong> mágoa <strong>do</strong> trance em que se havia visto que, não lhe pedin<strong>do</strong><br />
a vontade admitir o sustento, foi necessário duplicar eu os rogos para que<br />
Plut., De fort.
788 Padre Mateus Ribeiro<br />
alguma cousa comesse. São os manjares, diz Plutarco , remédio contra os<br />
desmaios <strong>da</strong> fome e alimento para a conservação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Assi disse<br />
Séneca 688 que procurar esquisitas iguarias era delírio <strong>da</strong> vai<strong>da</strong>de e deixar as<br />
que são bastantes para alimentar a vi<strong>da</strong> era inconsideração <strong>da</strong> nece<strong>da</strong>de.<br />
Enfim, mais por fazer-me a vontade que porque sua pena o sustento pedisse,<br />
comeu Lívia alguma cousa, servin<strong>do</strong>-lhe de bebi<strong>da</strong> as lágrimas que derramava.<br />
Admira<strong>da</strong>s estavam as lavra<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> casal de verem em Lívia tão rara a<br />
fermosura e a tristeza tão viva: porque sen<strong>do</strong> tão encontra<strong>da</strong>s a beleza com a<br />
<strong>do</strong>r e a gentileza com a mágoa no coração, parecia maravilha que seus olhos<br />
choran<strong>do</strong> não perdessem a graça e olhan<strong>do</strong> tão alegres não perdessem a cor.<br />
Porém como ignoravam quem ela era e juntamente a origem <strong>do</strong>nde procedia<br />
seu sentimento, consolavam-na sem saber de quê e talvez a acompanhavam<br />
nas lágrimas sem terem mais motivo de chorarem que verem que de Lívia os<br />
olhos as vertiam.<br />
Discursei sobre o mo<strong>do</strong> com que devia prosseguir esta jorna<strong>da</strong> com<br />
maior acerto, e me pareceu que Lívia de traje mu<strong>da</strong>sse para melhor encobrir-<br />
se: comuniquei-lhe o parecer e o julgou conveniente. Pediu-se um às<br />
lavra<strong>do</strong>ras a troco <strong>do</strong> que Lívia trazia, e facilmente vieram no concerto, porque<br />
nele interessavam: porque os de Lívia eram custosos e os seus montanheses.<br />
Vestiu-se Lívia de campo, mas que muito, se era flor? Trajou-se de<br />
montanhesa e pareceu cortesã, que não consiste a gala no vesti<strong>do</strong>, mas no<br />
<strong>do</strong>naire e brio de quem o veste. Pouco importava mu<strong>da</strong>r o traje para<br />
desconhecer-se quem se não despojava <strong>da</strong> fermosura para mu<strong>da</strong>r-se; porque<br />
havia de <strong>da</strong>r cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s aos pastores quem tinha com seus olhos ocasiona<strong>do</strong><br />
tantos desvelos aos cortesãos? Encontrava-se o rosto com o vesti<strong>do</strong> e desdizia<br />
o tosco <strong>da</strong> beleza, como se dissera, ca<strong>da</strong> qual, não condiz o grosseiro com o<br />
alinha<strong>do</strong>, nem emparelha o brioso com o aldeão; e em tão discreta<br />
competência posso dizer que a ci<strong>da</strong>de se queixava <strong>do</strong> que em Lívia perdia e o<br />
monte se gloriava <strong>do</strong> que em Lívia lograva: porque a ci<strong>da</strong>de, em perdê-la,<br />
muito perdia e o monte, em possuí-la, tu<strong>do</strong> ganhava. Disfarçava-se Aquiles em<br />
traje de mulher para se escusar de ir à guerra de Tróia; porém se pôde<br />
Plut., in Conv. cap. 7.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 789<br />
acomo<strong>da</strong>r-se ao vesti<strong>do</strong>, não pôde desmentir a inclinação: por ele o conheceu<br />
o sagaz Ulisses e o fez embarcar sem lhe valer a astúcia <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça. Tal<br />
podia dizer-se por Lívia, que no rosto manifestava o que era, suposto que o<br />
vesti<strong>do</strong> o desdizia.<br />
Despediu-se <strong>da</strong>s compassivas lavra<strong>do</strong>ras com recíprocas lágrimas e<br />
duplica<strong>da</strong>s invejas: porque elas lhe invejavam a beleza e Lívia a elas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> a<br />
tranquila segurança. Elas fiavam no seu casal contentes e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> seguras e<br />
Lívia ia a terras estranhas com a ventura duvi<strong>do</strong>sa; e pon<strong>do</strong>-se em balança<br />
uma fermosura atribula<strong>da</strong> ou a falta de uma beleza sem receios segura, não sei<br />
eu se pesaria mais uma balança com o contrapeso de tantos pesares, se outra<br />
com os logros alegres de uma vi<strong>da</strong> segura. Partimos enfim com desejos de sair<br />
<strong>do</strong>s termos de Bolonha e avizinhar-me aos de Imola, ci<strong>da</strong>de que com Bolonha<br />
o distrito de sua jurisdição reparte, sen<strong>do</strong> sua fun<strong>da</strong>ção obra <strong>do</strong>s longobar<strong>do</strong>s<br />
quan<strong>do</strong> a Itália possuíram. Tomou o nome <strong>da</strong> fortaleza e é ci<strong>da</strong>de bem<br />
populosa, de ricos e ilustres mora<strong>do</strong>res e de que tem saí<strong>do</strong> grandes sujeitos<br />
em letras e nas armas. De longe descobrimos seus muros e castelo, porque a<br />
espaçosa campanha de seu sítio franqueava a vista para manifestar-se a quem<br />
a busca. Já a este tempo ia o sol recolhen<strong>do</strong> as <strong>do</strong>ura<strong>da</strong>s redes de seus raios<br />
com que tinha enlaça<strong>da</strong> a terra e a lua começava a reforçar a luz com seu<br />
retiro, que para quem caminha é alívio por não se expor ao molesto <strong>da</strong>s<br />
escuras sombras <strong>da</strong> noite.<br />
Seriam duas horas passa<strong>da</strong>s depois <strong>do</strong> crepúsculo <strong>do</strong> dia quan<strong>do</strong><br />
chegámos a Imola; e porque o tumulto popular <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, ven<strong>do</strong>-me entrar com<br />
Lívia, não ocasionasse motivos a ser conheci<strong>do</strong> se nos sentissem, não<br />
deliberei de entrar na ci<strong>da</strong>de, mas passan<strong>do</strong> adiante, pedi gasalho em um<br />
casal que distante ficava pouco mais de uma milha. Receberam-nos os que<br />
nele moravam com cortesia, admiran<strong>do</strong>-se de verem a disfarça<strong>da</strong> lavra<strong>do</strong>ra<br />
que me acompanhava quan<strong>do</strong> tirou o rebuço, que foi como descobrir o sol<br />
quan<strong>do</strong> o véu <strong>da</strong>s nuvens lhe desembarga os resplan<strong>do</strong>res.<br />
Poucas horas depois de estarmos no casal eram passa<strong>da</strong>s, quan<strong>do</strong><br />
vimos que para o casal vinham pessoas a cavalo e outras a pé, que seriam ao<br />
que pareciam mais de vinte, porque aos raios <strong>da</strong> lua se divisava tu<strong>do</strong>.<br />
Assustou-se Lívia com o sobressalto, apelan<strong>do</strong> ao tribunal de seus olhos nas<br />
lágrimas <strong>do</strong> rigor que temia, porém eu como temia menos e como na<strong>da</strong> devia,
790 Padre Mateus Ribeiro<br />
man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> aos cria<strong>do</strong>s tivessem as armas prepara<strong>da</strong>s para o que sucedesse,<br />
lhe disse:<br />
- Não temas, Lívia, nem enterneças teus olhos a buscarem pie<strong>do</strong>sos<br />
afectos no que imaginas perigo, que te prometo que primeiro me vejas morto<br />
<strong>do</strong> que te consideres ofendi<strong>da</strong>. Tomei por minha conta teu amparo, empenhei<br />
em segurar-te meu patrocínio: sou nobre e não hei-de faltar enquanto me durar<br />
a vi<strong>da</strong>.<br />
Chegaram neste tempo dez de cavalo bem arma<strong>do</strong>s e perguntaram aos<br />
<strong>do</strong> casal por mi e por uma mulher que comigo vinha. Dei ordem a que Lívia se<br />
retirasse com as lavra<strong>do</strong>ras, que estavam ansia<strong>da</strong>s com o sobressalto, e eu,<br />
chegan<strong>do</strong> à porta, confia<strong>do</strong> perguntei o que queriam. Tirou um deles a máscara<br />
que trazia e conheci que era Roberto, o mari<strong>do</strong> de Lívia, que acompanha<strong>do</strong> de<br />
oito parentes seus autoriza<strong>do</strong>s vinha em meu seguimento, e apean<strong>do</strong>-se to<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>s cavalos, Roberto me falou desta sorte:<br />
- O amparo nas aflições, senhor Lisar<strong>do</strong>, <strong>da</strong><strong>do</strong> a quem o pede, ou com<br />
vozes ou com lágrimas, acção é digna de louvar-se, como diz Plínio 689 , nem eu<br />
o reprovo, nem o mun<strong>do</strong> o condena. Porém exceder no patrocínio o lícito, para<br />
que passan<strong>do</strong> de socorro venha a ser manifesto agravo, não há razão que o<br />
aprove, nem lei que o permita. Confesso que a Lívia, minha mulher, intentei <strong>da</strong>r<br />
a morte por me imaginar dela ofendi<strong>do</strong>, ou fosse persuasão de meus ciúmes,<br />
ou fosse desgraça sua, ou infelici<strong>da</strong>de minha. Acudistes a socorrê-la: acção foi<br />
pie<strong>do</strong>sa e empenho de ânimo nobre e valeroso. Porém intentardes<br />
ausentardes-vos com ela excede os limites <strong>do</strong> amparo e passa aos desaires de<br />
ofensa. Se dentro em Bolonha tratásseis de assegurá-la, ela vos deveria o<br />
patrocínio e eu a cortesia; porém no termo que usastes em pretenderdes que a<br />
Cesena vos siga, nem a ela assegurais a vi<strong>da</strong> nem a reputação, nem a mi<br />
guar<strong>da</strong>stes o respeito devi<strong>do</strong> a quem sou. Eu venho com estes parentes meus<br />
que me acompanham delibera<strong>do</strong> a levá-la comigo, e se o intentardes impedir,<br />
as armas o julgarão, pois a justiça me abona e a vós a sem-razão condena.<br />
A esta proposta respondi eu, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Com menos resolução, senhor Roberto, vos vi eu esta manhã junto a<br />
Bolonha, aonde pudéreis sem inquietar a estes senhores que vos acompanham<br />
Plin. Sen, Lib. 15.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 791<br />
litigar comigo esta causa. Eu casualmente vin<strong>do</strong> para Cesena acedi às vozes<br />
enterneci<strong>da</strong>s <strong>da</strong> senhora Lívia, vossa esposa, a quem injustamente intentáveis<br />
tirar a vi<strong>da</strong> sem vos ter ofendi<strong>do</strong>. O defendê-la foi acção pie<strong>do</strong>sa, o assegurá-la<br />
de vossa paixão foi dívi<strong>da</strong> <strong>da</strong> prudência, pois livrá-la de um perigo sem lhe<br />
procurar a segurança, deixan<strong>do</strong>-a no mesmo risco, não era desempenho de<br />
socorrê-la, seria cobardia de desampará-la. Se, como disse o filósofo 690 , mais<br />
se louva a segurança <strong>do</strong>s fins <strong>do</strong> que a eleição <strong>do</strong>s mesmos para alcançar-se,<br />
pouco importava que eu então sua vi<strong>da</strong> defendesse, se em assegurá-la me não<br />
empenhasse. Perguntei-lhe se em Bolonha tinha aonde a pudesse levar que a<br />
defendesse; disse-me que não tinha de quem confiasse por serdes vós muito<br />
aparenta<strong>do</strong>, poderoso, e ela órfã e só. À vista deste desamparo, tratei de a<br />
levar comigo, para na companhia de minha mãe e irmã assistir até que o tempo<br />
que, como diz Licurgo 691 , é o mais qualifica<strong>do</strong> descobri<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des,<br />
manifeste sua inocência e desapaixone vossa injusta ira. Tenho <strong>da</strong><strong>do</strong> cortês<br />
satisfação à vossa queixa e mostra<strong>do</strong> o sincero de minha tenção. Se agora<br />
pretendeis levar a Lívia, estai certo de que hei-de defender sua vi<strong>da</strong> com to<strong>do</strong> o<br />
risco <strong>da</strong> minha, e que suposto que vindes tão acompanha<strong>do</strong> destes senhores,<br />
não há para as empresas honrosas melhor companhia que a razão e um<br />
coração honroso e de seus próprios alentos assisti<strong>do</strong>.<br />
Assi falei, e ficaram suspensos de minha resolução, ven<strong>do</strong> que o<br />
empenho lhes havia de ser mais custoso <strong>do</strong> que imaginavam. São as cousas<br />
mais dificultosas de conseguir <strong>do</strong> que as representa o desejo ou de que as<br />
retrata a esperança. Pouca resistência é poderosa para retar<strong>da</strong>r a maior<br />
empresa: como se viu em Filipe macedónio, pai <strong>do</strong> grande Alexandre, que<br />
sen<strong>do</strong> invencível no valor e haven<strong>do</strong> entra<strong>do</strong> com seus exércitos<br />
poderosamente pela Cítia, conseguin<strong>do</strong> gloriosos triunfos e despojos de que<br />
seus exércitos vinham ricos, queren<strong>do</strong> passar com eles para Grécia pela<br />
província <strong>do</strong>s tribalos, povos <strong>da</strong> Missia Inferior, eles lhe negaram a passagem<br />
por sua terra se com eles <strong>da</strong> presa que <strong>do</strong>s citas trazia não repartisse. Negou-<br />
Ihes ele o que pediam, e como vinha de tantas batalhas vence<strong>do</strong>r, quis passar<br />
por força; porém eles se puseram a resistir-lhe com tal valor que ficou <strong>da</strong><br />
Lie, apud Plut, in Apop.
792 Padre Mateus Ribeiro<br />
batalha mal feri<strong>do</strong>, o exército derrota<strong>do</strong> e lhe roubaram to<strong>da</strong> a riqueza que <strong>da</strong><br />
Cítia trazia, sen<strong>do</strong> poderosa uma ténue resistência para desluzir seus triunfos e<br />
o despojarem de quanta presa pelas armas tinham adquiri<strong>do</strong>.<br />
São as cousas fáceis de debuxar ao desejo, porém mui diferentes de<br />
conseguir à execução. Viram-me resoluto a defender a Lívia <strong>do</strong> rigor de<br />
Roberto, que só se mostrava deveras interessa<strong>do</strong> na vingança de seu<br />
imagina<strong>do</strong> agravo, e não queriam com tanto risco fazer escolta ao desejo<br />
precipita<strong>do</strong> de seu parente, pois de estar ofendi<strong>do</strong> com certeza não constava.<br />
Ciúmes não são prova de agravos, pois não excedem o foro de receios. São<br />
arroja<strong>do</strong>s no imaginar o que muitas vezes vem a ver<strong>da</strong>de a dissuadir,<br />
mostran<strong>do</strong> que foram ilusões <strong>do</strong> temor e não ofensas <strong>da</strong> desleal<strong>da</strong>de.<br />
Entre os parentes que a Roberto acompanhavam, era um deles Mário<br />
Bentivolhe, pessoa já provecta na i<strong>da</strong>de, discreto e a quem to<strong>do</strong>s respeitavam<br />
pelo estima<strong>do</strong> de seu juízo. Este, desejan<strong>do</strong> <strong>da</strong>r algum meio conveniente entre<br />
minha resolução e a paixão de Roberto, falou assi:<br />
Cap. VIII.<br />
Da prática que Mário teve com Lisar<strong>do</strong> e <strong>da</strong> fugi<strong>da</strong> de Lívia<br />
- Se, como disse Plutarco 692 , o ofício <strong>da</strong> razão é o agradável <strong>da</strong> paz e,<br />
como diz Séneca 693 , o triunfo <strong>da</strong> justiça é a vitória <strong>da</strong> razão, parece-me, senhor<br />
Roberto, que sem o juízo <strong>da</strong>s armas se pode dissolver esta conten<strong>da</strong> em que<br />
vossa mercê e o senhor Lisar<strong>do</strong> empenha<strong>do</strong>s se mostram, porque contra os<br />
ditames <strong>da</strong> razão não é justo que tenha lugar a porfia, sen<strong>do</strong> ambos pessoas<br />
ilustres, e de uma província, e em Bolonha tanto tempo residentes. Não quis o<br />
empera<strong>do</strong>r Septímio Severo triunfar nem de Pescenio Níger, nem de Albino,<br />
haven<strong>do</strong> venci<strong>do</strong> a ambos em arrisca<strong>da</strong>s batalhas, oferecen<strong>do</strong>-lhe o sena<strong>do</strong> o<br />
triunfo, só porque eram ci<strong>da</strong>dãos de Roma, parecen<strong>do</strong>-lhe indecoroso o triunfar<br />
de vitórias em que os romanos tão insignes tinham perdi<strong>da</strong>s as vi<strong>da</strong>s. É esta<br />
questão em que estamos, senhor Lisar<strong>do</strong>, por uma parte honrosa e por outra<br />
Plut., De virt. & vit.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 793<br />
parece indecente: tem muito de pun<strong>do</strong>nor de uma e outra parte; e foi dito de<br />
Alexandre, como refere Plutarco 694 , que guerras que pela honra se empenham,<br />
ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> percam a vitória, sempre ficam livres de censura. Porém se eu<br />
descobrir meio tão proporciona<strong>do</strong> ao conflito presente que nem Roberto perca<br />
a estimação, nem vós, senhor Lisar<strong>do</strong>, arrisqueis o crédito <strong>do</strong> patrocínio, e que<br />
sem desaires <strong>da</strong> opinião fiqueis um e outro em paz, sem o risca<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
pendência, parece-me a mi que com este arbítrio ambos ficareis satisfeitos e<br />
to<strong>do</strong>s os que estamos presentes de nossa obrigação desempenha<strong>do</strong>s.<br />
Aprovámos ambos o parecer de Mário por acerta<strong>do</strong>, se se descobrisse o<br />
meio que ele dizia, e ele prosseguiu, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Para tirar o equívoco desta conten<strong>da</strong> é necessário explicar os motivos<br />
com que Roberto a Lívia, sua esposa, procura e a razão com que vós, senhor<br />
Lisar<strong>do</strong>, duvi<strong>da</strong>is de lha entregar. Ele busca-a com título de ofendi<strong>do</strong>, razão<br />
com que intentou <strong>da</strong>r-lhe a morte, e vós a levais com intento de assegurar-lhe a<br />
vi<strong>da</strong>. Nem eu me persua<strong>do</strong> que ela o haja ofendi<strong>do</strong>, pois, como diz<br />
Aristóteles 695 , nem tu<strong>do</strong> o que parece provável pode provar-se, e a fama que<br />
sempre teve de honesta o encontra, como escreve Euripides 696 , nem há outra<br />
prova mais que só devaneios de Teodósio, nos quais ela pode não ter culpa,<br />
como a casta Penélope a não tinha nas importunas pretensões de seus<br />
amantes nas ausências de Ulisses, seu mari<strong>do</strong>. O ser ama<strong>da</strong> não é culpa, por<br />
ser acção <strong>da</strong> vontade alheia que Lívia não podia evitar; o ser pretendi<strong>da</strong> não<br />
parece ofensa, pois os desvelos de outro, quem neles não tem senhorio, como<br />
pode emendá-los? As acções extrínsecas pendem só de quem as obra e não<br />
tem nelas jurisdição quem as reprova e aborrece. Pois especular pensamentos<br />
e descifrar o oculto <strong>da</strong> vontade não é empenho <strong>do</strong> humano juízo, pois aonde<br />
presume acertar, pode enganar-se. E como para provar-se um delito tão grave<br />
é necessário prova mui cabal e evidente, pois a satisfação dele não pende<br />
menos que <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, mal discursou o senhor Roberto em querer, leva<strong>do</strong> só de<br />
suas ciosas suspeitas, sem outra prova de estar ofendi<strong>do</strong>, intentar com a vi<strong>da</strong><br />
de sua esposa mostrar-se desagrava<strong>do</strong>; quan<strong>do</strong> o aplicar remédios sem haver<br />
Plut., De fort. Rom.<br />
Arist., Top. 1.<br />
Eurip., in Oly.
794 Padre Mateus Ribeiro<br />
chaga que se cure é ocasionar a descomporem-se os humores, chama<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
escusa<strong>do</strong> medicamento. Pende muitas vezes a fama mais <strong>do</strong> recato que <strong>da</strong><br />
obra; e quan<strong>do</strong> <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de de uma vingança se presume o crédito<br />
restaura<strong>do</strong>, <strong>da</strong>í mesmo se precipita para ficar mais perdi<strong>do</strong>, como neste<br />
fracasso presente se mostra, em que por não consultardes, senhor Roberto, a<br />
vossos parentes desapaixona<strong>do</strong>s e só seguirdes os arrojos de vossa ira,<br />
chegastes a termos de pedirdes parti<strong>do</strong>s que pudéreis haver escusa<strong>do</strong>.<br />
Em quanto a vós, senhor Lisar<strong>do</strong>, haverdes socorri<strong>do</strong> a Lívia, ventura foi<br />
sua e valor vosso trazê-la convosco até assegurá-la, visto manifestar ela seu<br />
desamparo para ficar em Bolonha: acção seria pie<strong>do</strong>sa, porém <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> com<br />
dúvi<strong>da</strong>s julga<strong>da</strong>. Sois mancebo na i<strong>da</strong>de, Lívia moça e fermosa, a distância de<br />
Cesena grande, ela obriga<strong>da</strong> ao favor e socorro que lhe destes, circunstâncias<br />
to<strong>da</strong>s que bem considera<strong>da</strong>s podem pôr em perigo a honra de Lívia e o crédito<br />
de Roberto nas línguas <strong>do</strong> vulgo, que irreverente quer julgar mais <strong>do</strong> que pode<br />
entender, como diz o Séneca 697 e parecer que seguiu Cícero 698 . Isto<br />
pressuposto, eu, como sabeis, sou casa<strong>do</strong> e tenho duas filhas <strong>do</strong>nzelas em<br />
minha casa, companhia decente para Lívia assistir com elas e com minha<br />
mulher; e suposto que sou parente de Roberto, seguirei o dito de Santo<br />
Ambrósio 699 em que o ver<strong>da</strong>deiro parentesco é o <strong>da</strong> virtude. Eu tomarei Lívia à<br />
minha conta para a ter como própria filha e como tal guardá-la e defendê-la<br />
com tão vivo cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e vigilante zelo como o que hoje de sua vi<strong>da</strong> vos assiste;<br />
e isto até que Roberto desapaixona<strong>do</strong> desta desconfiança que suas<br />
imaginações lhe representam, arrependi<strong>do</strong> <strong>do</strong> trance em que a pôs mal<br />
aconselha<strong>do</strong>, pedin<strong>do</strong>-lhe perdão em sua casa como de antes a receba,<br />
conhecen<strong>do</strong> que foram enganosas suas desconfianças. Com isto seu crédito<br />
não ficará desluzi<strong>do</strong>, a vi<strong>da</strong> de Lívia em minha companhia segura, vosso<br />
patrocínio livre de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, seu esposo carecen<strong>do</strong> de suspeitas e eu com<br />
novos desvelos de defendê-la como pai e tratá-la com o mesmo amor que trato<br />
a minhas filhas.<br />
Sen., De Vit. Beat.<br />
Cicer., Pro Rose.<br />
S. Ambras., Super Malac.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 795<br />
Assi deu fim o prudente Mário à sua prática, que a to<strong>do</strong>s agra<strong>do</strong>u por ser<br />
o parti<strong>do</strong> tão conveniente para a perturbação presente, e eu o aceitei, por que<br />
Roberto não suspeitasse que me movia a levá-la comigo outro intento mais que<br />
o de assegurá-la <strong>do</strong> rigor de Roberto. Consenti no parti<strong>do</strong> com duas condições:<br />
e eram a primeira que Lívia se desse por contente e segura <strong>da</strong> casa e<br />
companhia de Mário, e a segun<strong>da</strong> que a havia de levar e pessoalmente deixá-<br />
la em sua casa, de que ele para minha satisfação me havia de passar um<br />
escrito jura<strong>do</strong> em que a recebia em sua tutela e guar<strong>da</strong>, para <strong>da</strong>r ao<br />
governa<strong>do</strong>r de Bolonha to<strong>da</strong>s as vezes que se pedisse conta dela. Em to<strong>da</strong>s as<br />
condições veio Mário, porque na ver<strong>da</strong>de desejava a paz e o bem de Lívia e<br />
Roberto, e os mais companheiros não encontraram as condições propostas.<br />
Entrei eu dentro nas casas para falar com Lívia sobre o parti<strong>do</strong> que<br />
assenta<strong>do</strong> estava, porém não se achou em to<strong>da</strong>s as casas, de que desgosta<strong>do</strong><br />
chamei a Mário e a Roberto para entrarem a ser testemunhas de minha<br />
ver<strong>da</strong>de em como Lívia não aparecia, com se especularem to<strong>da</strong>s as casas e os<br />
lugares mais remotos e ocultos delas; nem as lavra<strong>do</strong>ras <strong>da</strong>vam mais razão<br />
senão que desde que conheceu a voz de Roberto, choran<strong>do</strong> se retirara dentro,<br />
que não advertiram se por uma porta que para um cerra<strong>do</strong> saía, que ficava<br />
encoberto nas costas <strong>da</strong> frontaria <strong>do</strong> casal, se havia i<strong>do</strong>, o que fazia provável<br />
por se achar a porta aberta. E como a lua ia já encobrin<strong>do</strong>-se no horizonte, por<br />
ser de pouca i<strong>da</strong>de na luz, suposto que tão antigua nos anos, ficava com as<br />
árvores fazen<strong>do</strong> sombra para com ela se encobrir quem pretendesse ocultar-<br />
se, sen<strong>do</strong> a noite mãe <strong>da</strong> confusão, assi como <strong>da</strong> distinção o é o dia.<br />
Mal poderei explicar o desgosto e geral pena que to<strong>do</strong>s com esta fugi<strong>da</strong><br />
de Lívia recebemos, sen<strong>do</strong> os motivos vários e o sentimento igual. Eu sentia o<br />
desconfiar Lívia de meu patrocínio, parecen<strong>do</strong>-lhe que podia fraquejar meu<br />
brioso valor em defendê-la à vista <strong>do</strong>s muitos que a vinham buscar, como se<br />
não emparelhara um ânimo resoluto e destemi<strong>do</strong> com o número <strong>do</strong>s<br />
agressores quan<strong>do</strong> a ocasião arrisca<strong>da</strong> o pede. Sentia eu juntamente o<br />
poderem presumir Roberto e Mário que o ausentar-se Lívia tão repentinamente<br />
seria conselho ou ordem de indústria minha por não entregá-la, o que resultava<br />
em descrédito de minha ver<strong>da</strong>de e desluzimento <strong>do</strong> sincero de meu ânimo e <strong>do</strong><br />
conserto que havíamos trata<strong>do</strong>. Mário sentia o quão inutilmente tinha
796 Padre Mateus Ribeiro<br />
empenha<strong>do</strong> sua palavra e pessoa à segurança de Lívia, pois tão de repente<br />
desaparecera.<br />
Roberto sentia com extremos o labéu que mancharia sua fama quan<strong>do</strong><br />
se publicasse a fugi<strong>da</strong> de sua esposa, que até essa hora estava oculta, pois só<br />
a seus parentes essa manhã a tinha comunica<strong>do</strong> para virem em seu<br />
seguimento, sem que outra pessoa alguma pudesse conhecê-lo, porque, como<br />
disse Ovídio 700 , favor <strong>da</strong> fortuna é quan<strong>do</strong> os desaires <strong>da</strong> fama podem<br />
encobrir-se; e agora com este retiro inconsidera<strong>do</strong> de sua fermosa esposa<br />
podia divulgar-se seu descrédito e promulgar-se a ocasião desta fugi<strong>da</strong>, que<br />
sua estimação des<strong>do</strong>urasse nas línguas e juízos <strong>do</strong>s que o soubessem. To<strong>do</strong>s<br />
pesarosos e desabri<strong>do</strong>s <strong>do</strong> sucesso montámos a cavalo para a buscarmos<br />
quanto o discómo<strong>do</strong> <strong>da</strong> noite permitia, porque já a lua tinha escondi<strong>do</strong> seus<br />
resplan<strong>do</strong>res. Além <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s que a pé nos seguiam, levámos os lavra<strong>do</strong>res<br />
<strong>do</strong> casal como mais práticos na terra, e fomos descobrin<strong>do</strong> com grande<br />
diligência quantos bosques e arvore<strong>do</strong>s tem os arrabaldes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Imola,<br />
sem podermos adquirir indícios de Lívia, nem que estra<strong>da</strong> seguisse, nem que<br />
caminho levasse. Entrámos na ci<strong>da</strong>de seria já quasi meia-noite, quan<strong>do</strong> o<br />
silêncio mais profun<strong>do</strong> ocupava os senti<strong>do</strong>s e o sono feriava o gravame <strong>do</strong>s<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s: discorremos por diversas ruas, batemos a algumas portas de<br />
pessoas conheci<strong>da</strong>s perguntan<strong>do</strong> se viram uma mulher entrar na ci<strong>da</strong>de, sem<br />
declarar quem era; porém ninguém deu notícias de havê-la visto.<br />
Impacientes ao frustra<strong>do</strong> <strong>da</strong>s diligências e ao inútil <strong>da</strong>s perguntas, sem<br />
se ouvir resposta que nosso sentimento moderasse, admira<strong>do</strong>s como sen<strong>do</strong><br />
Lívia tão mimosa, em espaço tão breve pudesse haver caminha<strong>do</strong> de sorte que<br />
nenhuns indícios de seu caminho se descobrissem, nem vestígios de seu retiro<br />
se achassem, voltámos com to<strong>da</strong> a pressa a Bolonha para ver se nesse<br />
caminho podíamos ter alguma informação deste confuso labirinto a que não<br />
achávamos saí<strong>da</strong>. Quis eu de propósito acompanhá-los a Bolonha, por que<br />
Roberto não presumisse de mi desconfianças, imaginan<strong>do</strong> que por traça minha<br />
Lívia estivesse escondi<strong>da</strong> para, prosseguin<strong>do</strong> o caminho, poder levá-la; e assi<br />
por este motivo, como juntamente porque me atormentava o coração a <strong>do</strong>r de<br />
deixar a Lívia perdi<strong>da</strong> e arrisca<strong>da</strong> a um infortúnio, quan<strong>do</strong> por defendê-la tinha<br />
Ov„ 3. De Trist.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 797<br />
aventura<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> a perigos tão evidentes. Neste caminho de Bolonha se<br />
moveu uma questão, em que Roberto disse assi:<br />
- Se, como diz Quintiliano 701 , a chaga escondi<strong>da</strong> desacredita a inocência<br />
quan<strong>do</strong> o temor mostra que deve quem muito se receia, à vista desta fugi<strong>da</strong> de<br />
Lívia, que certeza posso eu admitir de não me haver ofendi<strong>do</strong>? É o temor a<br />
primeira prova de um delito, pois nunca tem o coração seguro quem tem a<br />
consciência pela culpa inquieta, porque diz Homero 702 que nunca tem o temor<br />
jurisdição no inculpável. É a inocência <strong>do</strong> delito mar em calma que não padece<br />
tormenta, estanque tranquilo que não levanta on<strong>da</strong>s, aura bonançosa que não<br />
admite nuvem, estra<strong>da</strong> pratea<strong>da</strong> em que ninguém tropeça, sol de Primavera<br />
que a ninguém ofende, muro inexpugnável que a to<strong>do</strong>s assegura. Porém se eu<br />
vejo em Lívia tão excessivo termo que ain<strong>da</strong> na companhia de quem a defende<br />
foge, não reparan<strong>do</strong> no decoro por livrar-se, que direi? Tão impossível tinha a<br />
pie<strong>da</strong>de nos corações tão nobres que me acompanham que duvi<strong>da</strong>va achar<br />
intercessor para ser ouvi<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> os condena<strong>do</strong>s não carecem de<br />
intercessor? E quereis, senhor Lisar<strong>do</strong>, que à vista de tão eficazes indícios me<br />
não julgue eu por ofendi<strong>do</strong>?<br />
Oh fermosura enganosa, rosa de espinhos cerca<strong>da</strong>, pírula <strong>do</strong>ura<strong>da</strong> que<br />
encobres o desabri<strong>do</strong> nos fulgores <strong>do</strong> ouro, áspide que entre as flores disfarça<br />
o veneno, sol de Inverno: fermoso na aparência e breve na duração, espa<strong>da</strong> de<br />
ouro e verdugo <strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s, canto de rouxinol com garras de harpia, lisonja <strong>do</strong>s<br />
olhos e martírio <strong>do</strong> coração, adulação <strong>da</strong> vontade e esfinge <strong>do</strong> juízo, labirinto<br />
enganoso com entra<strong>da</strong> e sem saí<strong>da</strong>, que nunca te vira, porque agora com<br />
tantos excessos não penara! Com esta fugi<strong>da</strong> quisestes <strong>da</strong>r prova a meus<br />
receios e fazeres certo o que, se não fugiras, puderas pôr em suspensão de<br />
duvi<strong>do</strong>so meu agravo; porém nesta fugi<strong>da</strong> que hei-de inferir senão que o<br />
remorso de tua culpa foi o ministro de teu temor e a fonte que originou teu<br />
receio? Pretendi-te por esposa sen<strong>do</strong> tu <strong>do</strong>s bens <strong>da</strong> fortuna pobre, se nos<br />
<strong>do</strong>tes <strong>da</strong> natureza rica: fez-te meu amor senhora de minha vontade, que era o<br />
mais, e de minhas riquezas, que era o menos; tinha-te coloca<strong>do</strong> minha<br />
estimação no culminante de minhas glórias, no Olimpo superior de minha<br />
Quint., Decl. 13.<br />
Horn., Plut. De vir. mor.
798 Padre Mateus Ribeiro<br />
alegria, fazen<strong>do</strong> obséquios meu desejo às sombras de teu gosto, não saben<strong>do</strong><br />
definir o amplia<strong>do</strong> de minha sorte por considerar sem igual minha ventura,<br />
parecen<strong>do</strong>-me que a to<strong>do</strong>s podia causar inveja o bonançoso de minha vi<strong>da</strong> e<br />
serem feu<strong>da</strong>tários de meu contentamento os mais alegres. Mas, ai <strong>do</strong>r, que<br />
hoje me considero em tal esta<strong>do</strong> na baixa que tem <strong>da</strong><strong>do</strong> minhas bonanças, nos<br />
eclipses que padecem os antigos aplausos de minha estimação, que desejara<br />
que nunca o sol nascera e que sempre fora noite caliginosa para mi, para que<br />
não vira o mun<strong>do</strong> meus pesares, nem os homens neste esta<strong>do</strong> me pudessem<br />
ver a mi!<br />
Desta sorte se ia queixan<strong>do</strong> o lastima<strong>do</strong> Roberto, e sem dúvi<strong>da</strong><br />
acompanhavam seus olhos suas penosas queixas, que suposto que o escuro<br />
<strong>da</strong> noite não concedia à vista licença para descobrir quanto deseja, supriam os<br />
ouvi<strong>do</strong>s o que nos olhos faltava. Entemeceu-nos o magoa<strong>do</strong> de sua ânsia, e<br />
eu, como a ele caminhava mais vizinho, assi para aliviar-lhe a pena como por<br />
acudir por Lívia, a quem tanto culpava, me lembra que lhe falei assi:<br />
- Na ver<strong>da</strong>de, senhor Roberto, que se a fugi<strong>da</strong> esta noite de vossa<br />
esposa é o agrega<strong>do</strong> <strong>do</strong>s motivos que mais oprimem vosso coração e que mais<br />
estimulam vosso sentimento, bem me atrevo eu a mostrar que excedem vossos<br />
pesares os limites <strong>do</strong> sentir, queren<strong>do</strong> o extremoso <strong>da</strong> <strong>do</strong>r representar-vos<br />
maiores os efeitos <strong>do</strong> que a causa deles. É a causa, como diz Aristóteles 703 ,<br />
sempre primeiro que seus efeitos, e assi não devem os efeitos nem adiantar-<br />
se, nem exceder a causa. Ausentar-se vossa esposa com temor de lhe tirardes<br />
a vi<strong>da</strong>, ven<strong>do</strong>-vos destes senhores e parentes vossos tão acompanha<strong>do</strong>, em<br />
na<strong>da</strong> desacredita sua inocência de não vos haver ofendi<strong>do</strong>; porque quan<strong>do</strong> o<br />
direito faz suspeitosa a fugi<strong>da</strong> no delinquente, como disse Demóstenes 704 , é<br />
quan<strong>do</strong> se vê a fugi<strong>da</strong> sem a ela haver precedi<strong>do</strong> causa; porém à vista <strong>do</strong><br />
terror, se ain<strong>da</strong> nos homens o retiro carece de censura, e sen<strong>do</strong> poderoso o<br />
me<strong>do</strong> que cai sobre varão constante para anular to<strong>do</strong>s os contratos celebra<strong>do</strong>s<br />
com ele, e sen<strong>do</strong> a morte <strong>do</strong>s temores o maior, como diz o filósofo 705 e escreve<br />
Dem., in Arg. lib.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 799<br />
Séneca , que admiração podia causar que uma moça mimosa e bem cria<strong>da</strong>,<br />
consideran<strong>do</strong> desembainha<strong>da</strong> a espa<strong>da</strong> sobre si, intimi<strong>da</strong><strong>da</strong> fugisse e se<br />
escondesse? É a mulher, como diz Aristóteles 707 e mostra a experiência,<br />
menos animosa que o homem; e se estes fugin<strong>do</strong> <strong>do</strong> perigo evidente <strong>da</strong> morte<br />
não são censura<strong>do</strong>s, como o será uma mulher, que na etimologia <strong>do</strong> nome tem<br />
a brandura, o desmaio no coração e o desalento <strong>da</strong> natureza?<br />
Escondeu-se o cônsul Mário <strong>do</strong>s que o seguiam, por man<strong>da</strong><strong>do</strong> de Sila,<br />
para <strong>da</strong>r-lhe a morte, nas lapas subterrâneas de Minturnas, haven<strong>do</strong> si<strong>do</strong> eleito<br />
seis vezes cônsul e sen<strong>do</strong> <strong>da</strong>s armas capitão invicto; e depois desta fugi<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
morte foi a sétima vez eleito cônsul. Na cruel proscrição que Augusto, Marco<br />
António e Lépi<strong>do</strong> fizeram <strong>do</strong>s sena<strong>do</strong>res e cavaleiros romanos que julgavam<br />
ser contrários, fugiu (como refere Apiano Alexandrino 708 ) Minúcio, sen<strong>do</strong> pretor<br />
de Roma, e em hábito disfarça<strong>do</strong>, se pudera o disfarce assegurar-lhe a vi<strong>da</strong>.<br />
Fugiu Cícero para Cápua, esconden<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> morte a que o tinha sentencia<strong>do</strong><br />
Marco António, e não lhe aproveitou o esconder-se para lhe não <strong>da</strong>r a morte o<br />
ingrato Públio Lenas, a quem oran<strong>do</strong> tinha livra<strong>do</strong> dela. Fugiu ao terror <strong>da</strong><br />
morte Lúcio Messana, fugiu Varrão, que tinha si<strong>do</strong> cônsul, Ópio, Rufo e outros<br />
insignes romanos, porque o temor <strong>da</strong> morte a to<strong>do</strong>s atemoriza. Que o fugir por<br />
decliná-la à vista de seu rigor não diminua o sincero <strong>da</strong> inocência, pois esta<br />
não isenta de seus temores se viu, como refere Quinto Cúrcio 709 , nos <strong>do</strong>us<br />
macedónios irmãos Polémon e Amintas, que na conjuração que contra o<br />
grande Alexandre intentaram Dimno e outros conjura<strong>do</strong>s, à vista <strong>do</strong>s rigores<br />
que neles e em Pilotas se executavam de mortes violentas, fugiu Polémon<br />
ven<strong>do</strong> preso a seu irmão Amintas, e depois foram ambos julga<strong>do</strong>s por<br />
inocentes e por não haverem ti<strong>do</strong> culpa, nem serem sabe<strong>do</strong>res <strong>da</strong> odiosa<br />
conjuração.<br />
Viu ontem vossa esposa o punhal arranca<strong>do</strong> em vossa mão com<br />
deliberação de lhe tirardes a vi<strong>da</strong>, e ven<strong>do</strong>-vos agora com tanta companhia<br />
procurar por ela, que admiração seria que, duvi<strong>da</strong>n<strong>do</strong> de poder eu defendê-la,<br />
Sen., Ep. 36.<br />
Ar., 8. De anim.<br />
Apian., Lib. 4. De bel civ.<br />
Quint. Curt., Lib. 7.
800 Padre Mateus Ribeiro<br />
fugisse desalenta<strong>da</strong>, suposto que estivesse inocente? Além disto, neste <strong>caso</strong><br />
não se foge só à morte, mas ao labéu e descrédito dela, que é o mais<br />
intolerável para a inocência. Não temeu a casta Lucrécia o punhal na mão <strong>do</strong><br />
libidinoso Tarquínio, pois com outro ela própria rasgan<strong>do</strong> o casto peito se tirou<br />
a vi<strong>da</strong>, porém receou a infâmia <strong>do</strong> testemunho com que ele a ameaçou, que lhe<br />
<strong>da</strong>ria a morte para desacreditar sua honesta vi<strong>da</strong>; e sentiu mais os ameaços de<br />
a terem por adúltera <strong>do</strong> que <strong>do</strong>s rigores de perder a vi<strong>da</strong>, porque em ânimos<br />
ilustres pesa mais a fama <strong>do</strong> que a morte. Dito foi <strong>do</strong> sábio Quílon<br />
Lacedemónio que sustentar a paciência nos agravos que escurecem a honra<br />
era o empenho mais difícil de executar-se. E como vossa vingança (quan<strong>do</strong> ao<br />
mun<strong>do</strong> pudesse parecer justa) havia de ser com tanto desluzimento <strong>da</strong> fama de<br />
vossa esposa, morren<strong>do</strong> sem poder manifestar sua inocência, que maravilha<br />
fica sen<strong>do</strong> que ansia<strong>da</strong> se ausentasse, combati<strong>da</strong> de <strong>do</strong>us tão rigorosos<br />
assaltos, quais eram a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> honra e a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>? Não há no mun<strong>do</strong><br />
cousa tão forte que possa viver isenta de um perigo: o ferro se gasta <strong>da</strong><br />
humi<strong>da</strong>de, os roche<strong>do</strong>s com os terremotos se arruínam, os rios ficam em areias<br />
com a secura, as nuvens se derretem com os ventos, as neves se derretem<br />
com o sol e a honra pode eclipsar-se ou com a calúnia de uma língua, ou com<br />
uma suspeita mal fun<strong>da</strong><strong>da</strong>. Pois quan<strong>do</strong> se não concede lugar para uma honra<br />
acrisola<strong>da</strong>, que novi<strong>da</strong>de fica sen<strong>do</strong> que o retiro procure tempo para poder<br />
ouvir-se e que a fugi<strong>da</strong> peça esferas para poder livrar-se?<br />
Que culpa tem nos delitos alheios quem lhes não dá causa? Que culpa<br />
na pretensão indecente quem a não admite? Que delito comete nos devaneios<br />
de outro quem os não aprova? Que gravame tem o objecto nos delírios <strong>do</strong><br />
pensamento? Porventura não se há-de ouvir a razão, não se há-de admitir a<br />
desculpa? Intentáveis, senhor Roberto, tirar a vi<strong>da</strong> a vossa esposa e<br />
juntamente o crédito de seu bom procedimento com imaginações de ofendi<strong>do</strong>,<br />
sem ela haver delinqui<strong>do</strong> em vossa ofensa. Assi se tira uma vi<strong>da</strong>? Assi se<br />
mancha uma fama? Assi se eclipsa uma honra, sen<strong>do</strong> esta, como lhe chama o<br />
filósofo 710 , o prémio que se dá à virtude? Pretendíeis cortar de um golpe os<br />
<strong>do</strong>us pólos <strong>do</strong> que mais se estima, quais são a honra e a vi<strong>da</strong>. E agora culpais<br />
a vossa esposa porque fugiu como mulher e porque se ausentou como<br />
0 Ar., Eth. 4.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 801<br />
inocente? Aos réus juridicamente condena<strong>do</strong>s à morte com a prova cabal de<br />
seu delito não os culpam de fugirem à execução, se em fazê-lo lhes foi<br />
favorável a ventura; porque ao temor <strong>da</strong> morte fugiu Macrino, sen<strong>do</strong> eleito<br />
empera<strong>do</strong>r e confirma<strong>do</strong> <strong>do</strong> sena<strong>do</strong>, segui<strong>do</strong> <strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s bandi<strong>do</strong>s por Hélio<br />
Gabalo, e cortan<strong>do</strong> a barba e mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o traje por não ser conheci<strong>do</strong>, fugia<br />
temeroso: a morte que o seguia lhe servia de desculpa, e culpais que fugisse<br />
sem ter culpa quem, sem lhe provardes a ofensa, se via no perigo de vossa<br />
execução? Quem lhe assegurava que sairia eu vence<strong>do</strong>r de tantos que a<br />
buscavam tão bem arma<strong>do</strong>s e resolutos, e que, suposto que eu a defendesse,<br />
não pudesse ficar na empresa morto? Ou quem abonava depois de minha<br />
morte segurança à sua vi<strong>da</strong>?<br />
Sempre as cousas incertas causam dúvi<strong>da</strong>s à confiança. Nem o que<br />
muito se deseja dá seguranças de alcançar-se, porque a eficácia <strong>do</strong> desejo<br />
produz escrúpulos à certeza de possuir, nem o excessivo <strong>do</strong> temor permite<br />
tréguas aos combates de recear. Empera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> romano império era Cláudio,<br />
porém tão temeroso de o poderem matar que não consentia que pessoa<br />
alguma entrasse em sua presença para falar-lhe sem que primeiro fosse visto<br />
com diligência e grande cui<strong>da</strong><strong>do</strong> se trazia algumas armas ocultas que<br />
pudessem causar receio à sua vi<strong>da</strong>, e com armas ninguém era admiti<strong>do</strong> a<br />
poder falar-lhe; e ten<strong>do</strong> consigo a guar<strong>da</strong> imperial para defender-se, ain<strong>da</strong> assi<br />
se não <strong>da</strong>va por seguro de seus temores. Pois que maravilha pode causar que<br />
vossa esposa, senhor Roberto, à vista de tantas armas fugisse, quan<strong>do</strong> em<br />
vossa presença tinha visto que sua inocência não era admiti<strong>da</strong> para seu abono,<br />
nem suas lágrimas poderosas para seu amparo?<br />
Tenho mostra<strong>do</strong> que nesta ocasião o fugir vossa esposa não é por se<br />
considerar culpa<strong>da</strong>, mas por natural temor mulheril, com que a morte de to<strong>do</strong>s<br />
faz temer-se, sen<strong>do</strong> ditame natural o defender a vi<strong>da</strong>, que, como diz<br />
Euripides 711 , sempre deseja sua conservação pelo que tem de amável; pois se<br />
para despedir-se <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> mal se desengana o decrépito <strong>do</strong>s anos e o inútil <strong>da</strong><br />
i<strong>da</strong>de, que fará a lisonja <strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de, a flor <strong>do</strong> campo, a primavera <strong>do</strong>s anos,<br />
as primícias <strong>do</strong> século e o agra<strong>do</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>? Da qual, como diz Demóstenes 712 , é<br />
711 Eur., in Ale.<br />
712 Dem., in 01.
802 Padre Mateus Ribeiro<br />
a moci<strong>da</strong>de a melhor parte. Vossas desconfianças vos enganaram em vos<br />
avaliardes ofendi<strong>do</strong> sem o serdes, e intentardes vingar-vos de quem estava<br />
inocente de ofender-vos, desacerto de que se originaram tão repeti<strong>do</strong>s<br />
desgostos para ela, para vós e para to<strong>do</strong>s; mas o tempo virá a descobrir a<br />
ver<strong>da</strong>de, pois tu<strong>do</strong> com seu discurso manifesta: e então considerareis que nem<br />
eu vos agravei em defender-lhe a vi<strong>da</strong>, pois vos livrei de um mal irremediável,<br />
que sempre padeceríeis de haver-lhe <strong>da</strong><strong>do</strong> a morte injustamente: acção tão<br />
indigna que antes se deve per<strong>do</strong>ar aos culpa<strong>do</strong>s que expor-se ao risco de<br />
condenar a um inocente, e a mágoa de um tal homicídio sempre na memória<br />
para atormentar o coração imortaliza<strong>da</strong> dura. Nem pela mesma razão vossa<br />
esposa em ocultar-se vos fez ofensa, pois deu desvio a vossa paixão e<br />
interstício a vossa precipita<strong>da</strong> ira, para que com o discurso mais sossega<strong>do</strong> e<br />
juízo mais livre <strong>do</strong> furor vingativo que vos incita, possais considerar e ver sem<br />
as cores <strong>da</strong> paixão a pouca causa com que vos movestes a querer tirar-lhe a<br />
vi<strong>da</strong> e conheçais que foi mais ilusão imagina<strong>da</strong> a causa de vosso arrojo <strong>do</strong> que<br />
motivo de ofensa que para isso vos desse.<br />
- Eu sou <strong>do</strong> mesmo parecer (respondeu Mário (a) ) e o mais não tem<br />
fun<strong>da</strong>mento. O que importa é que Lívia apareça, que eu segurarei seus<br />
temores, como tenho prometi<strong>do</strong>; porém parece-me que não seguimos acerta<strong>do</strong><br />
caminho em vir procurá-la em Bolonha, <strong>do</strong>nde se tinha ausenta<strong>do</strong> e aonde<br />
Roberto tem sua assistência; nem é possível que em tão breves horas pudesse<br />
caminhar uma moça mimosa e tão pouco costuma<strong>da</strong> a caminhos jorna<strong>da</strong> de<br />
tanta distância, e mais tornan<strong>do</strong> a buscar o lugar de que fugira e aonde menos<br />
assegurar-se pode. E assi sou de parecer que só Roberto, eu e o senhor<br />
Lisar<strong>do</strong> voltemos a Imola e seus limites a buscá-la, e os mais senhores se<br />
partam a Bolonha por não causarmos tanto rumor com esta tropa, rompen<strong>do</strong> a<br />
luz <strong>do</strong> dia, que será <strong>da</strong>r motivos a divulgar-se o que até agora não passa os<br />
limites <strong>do</strong> silêncio.<br />
A to<strong>do</strong>s pareceu acerta<strong>do</strong> o conselho para se obviar o inconveniente <strong>da</strong><br />
publici<strong>da</strong>de nesta diligência que se fazia; e assi despedin<strong>do</strong>-se os mais <strong>do</strong>s<br />
la) Embora as duas edições atribuam esta fala a Maurício, é claramente um engano. Trata-se<br />
de Mário, parente de Roberto Bentivolhe, que se propusera anteriormente para hospe<strong>da</strong>r Lívia<br />
em sua casa, procuran<strong>do</strong> assim resolver o conflito que separara este casal.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 803<br />
três que ficámos, eles se partiram a Bolonha e nós voltámos outra vez para<br />
Imola antes que amanhecesse, com grande desejo de descobrirmos a Lívia, a<br />
quem com excessivo desvelo procurávamos.<br />
Cap. IX.<br />
Do que sucedeu a Lívia na fugi<strong>da</strong><br />
Ansia<strong>da</strong> <strong>do</strong> temor, queixosa <strong>da</strong> ventura, senti<strong>da</strong> de suas desgraças e<br />
persegui<strong>da</strong> de seu esposo sem havê-lo ofendi<strong>do</strong>, que é o sentimento maior,<br />
nem lhe valer a inocência, nem acharem compaixão as lágrimas, nem<br />
enternecimento a fermosura, ven<strong>do</strong> para se duplicar a mágoa <strong>da</strong> ânsia<br />
fecha<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as portas ao alívio, duvi<strong>da</strong>n<strong>do</strong> de eu poder defendê-la por ser<br />
só, quan<strong>do</strong> via os contrários serem tantos, enquanto eu na porta <strong>do</strong> casal a<br />
entra<strong>da</strong> aos que a buscavam com as palavras e com as armas defender<br />
pretendia, sain<strong>do</strong> por outra porta que nas costas <strong>do</strong> casal ficava e encobrin<strong>do</strong>-<br />
se com as sombras o mais que a noite permitia se ausentou.<br />
Como a guiava o temor e não notícia que na terra tivesse, e mais sen<strong>do</strong><br />
de noite, deixan<strong>do</strong> as estra<strong>da</strong>s que com a lua se viam, foi-se avizinhan<strong>do</strong> ao rio<br />
Santermo, que nascen<strong>do</strong> de um espesso bosque no monte Apenino, sai como<br />
saltea<strong>do</strong>r com sua corrente a despojar <strong>da</strong>s águas os arroios que encontra,<br />
queren<strong>do</strong> enriquecer com roubos de cristal tão malogra<strong>do</strong>s como violentamente<br />
adquiri<strong>do</strong>s, vai perder o nome e a corrente no cau<strong>da</strong>loso lago que formam as<br />
abun<strong>da</strong>ntes águas <strong>do</strong> rio Pó, antes de entrarem a competir com as inquietas<br />
on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mar Adriático. A seguir as ribeiras deste rio guiou a Lívia o ditame de<br />
seu temor e o farol de sua fortuna, que como suas ribeiras são tão sombrias<br />
com o arvore<strong>do</strong> que as ocupa, julgou que para ocultar-se era o caminho mais<br />
conveniente. Encobriu-se o radiante farol <strong>da</strong> lua e ficaram as árvores mais<br />
sombrias, o rio mais escuro, os campos mais temerosos e o caminho mais<br />
árduo. Porém o calamitoso de sua <strong>do</strong>r, não reparan<strong>do</strong> nos discómo<strong>do</strong>s com os<br />
receios de poder ser acha<strong>da</strong> se a seguissem, de sorte a incitou a prosseguir o<br />
caminho que, tiran<strong>do</strong> alentos <strong>do</strong> temor e <strong>do</strong> débil forças, continuou o caminho<br />
sem saber por onde, repetiu os passos sem advertir por onde se<br />
encaminhavam, nem a que porto se dirigiam, servin<strong>do</strong>-lhe de A<strong>da</strong>il que a
804 Padre Mateus Ribeiro<br />
guiava o rio que sem parar nem descansar se movia; que com bastante pena e<br />
grande moléstia <strong>do</strong> cansaço, como tão pouco habitua<strong>da</strong> a tais jorna<strong>da</strong>s, ao<br />
romper <strong>da</strong> manhã se achou junto ao famoso lago em que o Santermo perden<strong>do</strong><br />
o nome se sepulta.<br />
Descansou Lívia <strong>do</strong> penoso caminho junto àquele recompila<strong>do</strong> mar, pois<br />
para rio era excessivo e para mar pequeno. Purpuriza<strong>da</strong>s as rosas de seu rosto<br />
com o cansaço, ao tempo que a aurora pretendia argentá-las de aljôfar, se<br />
adiantaram as lágrimas de seus olhos a cobri-las de finas pérolas que vertiam.<br />
- Oh Lívia sem ventura (dizia ela choran<strong>do</strong>), que no berço pobre em que<br />
te criaste tomaste a primeira lição de infelice, e quanto melhor te fora se <strong>do</strong><br />
berço passaras ao sepulcro, pois com isso evitaras o saber que eras<br />
desgraça<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> puderas morrer venturosa! Ai de mi desampara<strong>da</strong> e em<br />
terra alheia! Da natureza tão lisonjea<strong>da</strong> e <strong>da</strong> fortuna tão persegui<strong>da</strong>! Oh ingrato<br />
esposo, que tão mal me pagas, quan<strong>do</strong> tanto me deves, pois te arrojas como<br />
cioso e não como entendi<strong>do</strong>! Preferes tuas desconfianças a minhas ver<strong>da</strong>des,<br />
teus ciúmes a meus extremos? Mas quan<strong>do</strong> extremos lograrão o galardão de<br />
se verem agradeci<strong>do</strong>s? Nunca te ofenderam meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s porque te amava<br />
muito, e não tem parentesco o amar com ofender; e presumes que te podia<br />
ofender quem tão finamente te soube amar. Se se pusera em balança teu<br />
aborrecimento com meu amor, ain<strong>da</strong> pesaria mais o que hoje te amo magoa<strong>da</strong><br />
que o que tu me aborreces sem haver-te ofendi<strong>do</strong>. Para que me pretendeste<br />
para esposa? Eu não te procurei, tu me buscaste; por ti despedi tantos<br />
casamentos que me pediam, que como havias de ser meu verdugo, aprovou<br />
meu infelice destino a eleição de que havia de resultar-me o maior <strong>da</strong>no.<br />
Puseste-me sem razão em termo de padecer minha leal<strong>da</strong>de perigo nas<br />
opiniões, quan<strong>do</strong> devias granjear-me o decoro, e que seja Lívia censura<strong>da</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> devia por leal e constante ser aplaudi<strong>da</strong>. Como com minha morte<br />
intentas disfarçar a cruel<strong>da</strong>de com aparências de vingança? Pois aonde não se<br />
dão ofensas, são as vinganças injustiças, e não se <strong>da</strong>n<strong>do</strong> agravos são as<br />
satisfações tiranias. Como te livrarás de que te culpe quem souber a causa que<br />
não te culpe de ingrato, que não te murmure de injusto, que não te censure de<br />
tirano? Mas como eu sou a que infelice padeço, faltará para mi o favor e para ti<br />
o castigo.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 805<br />
Assi choran<strong>do</strong> de magoa<strong>da</strong> se queixava a fermosa Lívia nas ribeiras<br />
desertas <strong>do</strong> cristalino lago em que o Pó ia dilatan<strong>do</strong> sua corrente e, com<br />
ambições de ser mar, descui<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s atributos de rio. Tão<br />
insensivelmente movia suas on<strong>da</strong>s que parece que por ouvir o discreto de suas<br />
queixas parava de compassivo, para imóvel atender a elas.<br />
Chegava neste tempo ao lago uma barca de pesca<strong>do</strong>res vizinhos de<br />
Veneza, que navegan<strong>do</strong> para o porto <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Ancona, entraram a fazer<br />
agua<strong>da</strong> neste famoso lago, em uma cau<strong>da</strong>losa fonte que distava pouco <strong>do</strong> sítio<br />
em que Lívia choran<strong>do</strong> estava suas mágoas. Saíram em terra e o patrão <strong>da</strong><br />
barca, que era mancebo de boa presença e que antes de se aplicar ao<br />
exercício <strong>da</strong> pescaria tinha cursa<strong>do</strong> alguns anos o estu<strong>do</strong> e depois<br />
experimenta<strong>do</strong> os perigos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> militar, escolas uma e outra em que se<br />
aprende to<strong>da</strong> a política, que, como a definiu Aristóteles 713 , é a regra <strong>do</strong>s<br />
mora<strong>do</strong>res de uma ci<strong>da</strong>de ou república em que se governa o man<strong>da</strong>r e se<br />
ensina a urbani<strong>da</strong>de de obedecer. Era o patrão <strong>da</strong> barca, que Antonino se<br />
chamava, casa<strong>do</strong> em Veneza, limita<strong>do</strong> nas possessões, pois a maior que tinha<br />
era o móvel <strong>da</strong> barca, em que se cifravam to<strong>do</strong>s os seus móveis, e umas casas<br />
humildes em que, em Veneza, junto à ribeira <strong>do</strong> mar vivia, em que no móvel e<br />
raiz a fortuna lhe repartiu o património. Vivia <strong>da</strong> pescaria e de algumas breves<br />
navegações que pela costa <strong>do</strong> mar Adriático fazia, já em passar algumas<br />
pessoas de umas terras a outras, já levan<strong>do</strong> ou trazen<strong>do</strong> algumas merca<strong>do</strong>rias,<br />
como nesta ocasião levava de Veneza para a marítima ci<strong>da</strong>de de Ancona, que<br />
edificaram nesta costa <strong>do</strong> mar os antigos sicilianos, fugin<strong>do</strong> <strong>da</strong>s cruel<strong>da</strong>des de<br />
Dionísio, tirano de Sicília. Tem Ancona seu sítio em um promontório <strong>do</strong>s<br />
navegantes bem conheci<strong>do</strong>, e para onde agora Antonino com merca<strong>do</strong>rias<br />
navegava.<br />
Saía com seus companheiros em terra, pela causa que disse de se<br />
proverem de água <strong>da</strong> fonte que vizinha corria, e em que Lívia não tinha<br />
adverti<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> tão perenes fontes em seus olhos de que tão copiosas<br />
lágrimas caíam. Apenas os pesca<strong>do</strong>res viram a Lívia como lavra<strong>do</strong>ra vesti<strong>da</strong> e<br />
como cortesã briosa, na vista tão fermosa e nas lágrimas tão triste, solitário o<br />
lugar, areoso o sítio, as horas tão antecipa<strong>da</strong>s aos resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol e aos<br />
3 Ar., Pol. 3.
806 Padre Mateus Ribeiro<br />
privilégios <strong>do</strong> dia, indícios de que as sombras <strong>da</strong> noite haviam já si<strong>do</strong><br />
companheiras de sua <strong>do</strong>r e lôbregas testemunhas de sua pena, admira<strong>do</strong>s<br />
juntamente e enterneci<strong>do</strong>s, postos nela os olhos, lhe disse Antonino assi:<br />
- Que desgraça ou que ventura, fermosa pastora, vos trouxe a tão<br />
deserto lugar? Se chorais sau<strong>da</strong>des, será paixão <strong>da</strong> ausência, se ingratidões, é<br />
tirania. Como no tosco <strong>da</strong>s serras se deu tal flor? Porém se são rega<strong>da</strong>s com<br />
tais olhos, os montes são pra<strong>do</strong>s, pois tais lágrimas derrama<strong>da</strong>s produzem<br />
rosas ain<strong>da</strong> entre as areias mais secas a quem o orvalho fertiliza pouco,<br />
porque só tais lágrimas as regam muito. Que causa tão poderosa <strong>do</strong>s roche<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> Apenino vos guiaram às on<strong>da</strong>s deste lago? Se para nelas vos verdes, é<br />
tosco o espelho para retratar tanta beleza, pois não presume o grosseiro copiar<br />
o portentoso e debuxar no móvel de suas on<strong>da</strong>s o firme que em tal fermosura<br />
pôs a natureza por admiração. Se fugistes por ofendi<strong>da</strong>, como teve ousadia o<br />
agravo para atrever-se à imuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> beleza? Como a ofensa ousou profanar<br />
o celeste de tal rosto, as luzes de tais olhos, o sublime de tal brio? Dizei-me<br />
quem foi o autor de vossas mágoas, que eu vos prometo vingar inteiramente<br />
vosso sentimento, pois não é justo que se glorie de ofensor, quem pudera só<br />
gloriar-se de ser amante.<br />
- Peço-vos, senhor, pois a ventura a este lago vos trouxe, me digais que<br />
terra é esta em que estou, quem sois e para onde navegais.<br />
Ao que Antonino respondeu assi:<br />
- O lago, fermosa senhora, que mereceu a felici<strong>da</strong>de de lograr vossa<br />
vista é o lago <strong>da</strong> antiga ci<strong>da</strong>de de Ferrara, em que as águas <strong>do</strong> famoso rio Pó,<br />
não caben<strong>do</strong> no coarcta<strong>do</strong> de seu leito e achan<strong>do</strong> espaçosa campanha para se<br />
dilatarem, formam este grande lago que vai a terminar-se ao mar, junto ao<br />
porto <strong>da</strong> ínclita ci<strong>da</strong>de de Ravena. Neste lago entram vários rios, que<br />
despenhan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s roche<strong>do</strong>s e densos bosques <strong>do</strong> monte Apenino, buscam<br />
nele para si a diminuição e para o lago os aumentos, indiscreto arbítrio,<br />
desluzir-se a si para que outro com seus desluzimentos cresça. É este areoso<br />
sítio algumas milhas deserto, e só junto ao casal <strong>do</strong> Pó e no marítimo em que o<br />
mar com o lago se encontra tem algumas povoações pequenas.<br />
Eu sou pesca<strong>do</strong>r, meu nome é Antonino, fui bem cria<strong>do</strong> e, depois de<br />
despender alguns anos no estu<strong>do</strong> <strong>da</strong>s letras e na vi<strong>da</strong> militar de sol<strong>da</strong><strong>do</strong>, me<br />
casei pobre em Veneza, aonde tenho mulher e filhos. A necessi<strong>da</strong>de me
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 807<br />
obrigou a lançar mão desta barca para o remédio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, aonde com estes<br />
companheiros, umas vezes pescan<strong>do</strong> e outras levan<strong>do</strong> passageiros e<br />
merca<strong>do</strong>rias a várias partes, granjeio a vi<strong>da</strong>, pois a fortuna se mostrou tão<br />
pouco favorável a meus intentos. Agora levo algumas merca<strong>do</strong>rias que se me<br />
entregaram para levar à ci<strong>da</strong>de de Ancona, marítimo porto deste mar Adriático,<br />
para onde navegan<strong>do</strong>, por irmos desprovi<strong>do</strong>s de água, entrámos neste lago<br />
para nos provermos dela nessa fonte que bran<strong>da</strong> corre e sem estron<strong>do</strong>so<br />
rumor ao lago sua débil corrente encaminha. Aqui me trouxe a ventura de ver-<br />
vos e o destino de servir-vos. Vede, senhora, em que quereis que mostre o<br />
sincero desta vontade, que vos prometo empenhá-la mui deveras em procurar<br />
o alívio de vossas lágrimas e a consolação de vossas queixas.<br />
Agradeci<strong>da</strong> lhe respondeu Lívia, e lhe perguntou se para onde navegava<br />
ficava muito distante <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Cesena.<br />
- Suposto, respondeu Antonino, que a ci<strong>da</strong>de de Cesena não é<br />
marítima, o rio Sávio que seus muros banha em poucas léguas de distância,<br />
depois que <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de se aparta, paga censo cristalino ao mar na rasa<br />
campanha que com sua corrente tem de relva vesti<strong>da</strong> e de flores coberta. Eu<br />
para ancorar no porto de Ancona, primeiro hei-de avistar a foz <strong>do</strong> rio Sávio, por<br />
me ficar no direito caminho <strong>da</strong> navegação que sigo; e assi se vos importa o<br />
irdes a Cesena e quiserdes que nesta barca vos leve, eu vos porei em parte<br />
que vos fique o caminho <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de abrevia<strong>do</strong>, e se for necessário acompanhar-<br />
vos por terra até os amenos campos que seus muros divisam, eu me ofereço a<br />
acompanhar-vos.<br />
Com mui discretas palavras se mostrou Lívia reconheci<strong>da</strong> ao favor que<br />
nisso lhe fazia, e delibera<strong>da</strong> já a seguir a derrota <strong>do</strong>s rumos encontra<strong>do</strong>s de<br />
sua mudável fortuna, se embarcou na barca de Antonino, o que ele estiman<strong>do</strong><br />
com grande alegria se gloriava de que o pobre pesca<strong>do</strong>r Amiclas não levou a<br />
navegação tão felice, levan<strong>do</strong> a ventura de César em sua barca, como ele<br />
levan<strong>do</strong> a fermosura de Lívia, pois não podia recear perigo quem levava por<br />
norte as estrelas de seus fermosos olhos. Preparou o peixe que de noite<br />
pesca<strong>do</strong> tinha, e com repeti<strong>do</strong>s rogos lhe pediu que comesse: o que Lívia fez,<br />
mais por se mostrar agradeci<strong>da</strong> à vontade que porque a mágoa de seu<br />
atormenta<strong>do</strong> coração outro sustento que o de suas lágrimas pedisse. Largou as<br />
velas ao vento o compassivo pesca<strong>do</strong>r, depois que fez agua<strong>da</strong> na fresca e
808 Padre Mateus Ribeiro<br />
fugitiva fonte, que liberal de seus cristais a to<strong>do</strong>s os franqueia e a ninguém os<br />
nega.<br />
Deixemos agora navegan<strong>do</strong> a Lívia ofereci<strong>da</strong> aos perigos <strong>do</strong> mar, quem<br />
tão arrisca<strong>do</strong>s os tinha experimenta<strong>do</strong>s na terra: rigores no esposo e pie<strong>do</strong>sos<br />
afectos nos estranhos, na pátria disfavores e na ausência dela carícias, em<br />
Bolonha perseguições e nos golfos <strong>do</strong> mar obséquios. Tornarei a continuar a<br />
jorna<strong>da</strong> que fiz com Roberto e Mário, quan<strong>do</strong> nos despedimos <strong>da</strong> mais<br />
companhia no caminho entre Bolonha e Imola. To<strong>do</strong>s ressenti<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
desaparecimento de Lívia, voltámos para Imola especulan<strong>do</strong> nas estra<strong>da</strong>s e<br />
exploran<strong>do</strong> com grande cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, por nós e pelos cria<strong>do</strong>s que nos<br />
acompanhavam, to<strong>do</strong>s os lugares, bosques e arvore<strong>do</strong>s por onde passávamos<br />
quanto as sombras <strong>da</strong> noite permitiam, que depois <strong>do</strong> retiro <strong>da</strong> lua ficou entre<br />
clara e escura: porque ao brilhante resplan<strong>do</strong>r que as estrelas cintilantes<br />
despediam, serviam a intervalos de par<strong>do</strong> véu algumas nuvens que as luzes<br />
lhe embargavam.<br />
Chegámos a Imola a tempo em que as músicas aves madrugavam para<br />
<strong>da</strong>rem com seu canto as boas vin<strong>da</strong>s à aurora, que derraman<strong>do</strong> lágrimas sobre<br />
o purpúreo matiz <strong>da</strong> rosa e o neva<strong>do</strong> can<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s açucenas, broslava de fino<br />
aljôfar, parecen<strong>do</strong> que em verde basti<strong>do</strong>r broslava para gala <strong>do</strong> sol as folhas<br />
mais mimosas <strong>da</strong>s flores. Caminhámos logo ao casal <strong>do</strong>nde Lívia se tinha<br />
ausenta<strong>do</strong> para procurar se dela alguma notícia se descobria; porém, por mais<br />
perguntas que fizemos, não souberam <strong>da</strong>r mais razão que a que de antes<br />
tinham dito. Sentença foi de Platão 714 que a muitos se havia de perguntar,<br />
porém a poucos responder: porque em perguntar a ninguém se ofende e no<br />
responder pode haver perigo. Não souberam as lavra<strong>do</strong>ras e pastores <strong>do</strong> casal<br />
<strong>da</strong>r mais notícia de que sem dúvi<strong>da</strong> Lívia havia saí<strong>do</strong> pela porta <strong>do</strong> cerra<strong>do</strong>,<br />
pela acharem aberta; porém como não se advertiu em que se ausentasse, não<br />
puderam divulgar o caminho que seguia quem de noite caminhava. Saímos <strong>do</strong><br />
casal para a ci<strong>da</strong>de, aonde Roberto e Mário alguns parentes e alguns<br />
conheci<strong>do</strong>s tinham: fingimos buscar-se uma cria<strong>da</strong> que de Bolonha com<br />
algumas jóias a noite de antes saíra e se disse que para Imola o caminho<br />
levava. Fizeram-se na ci<strong>da</strong>de as possíveis diligências por sua via, toman<strong>do</strong>-se<br />
4 Plat., De scient.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 809<br />
informações <strong>da</strong>s pessoas que de vários lugares de madruga<strong>da</strong> entraram em<br />
Imola, se por algumas <strong>da</strong>s estra<strong>da</strong>s que seguiram tinham avista<strong>do</strong> a pessoa<br />
que se procurava; porém não se acharam indícios que pudessem serenar o<br />
caliginoso de nossa confusão, o cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so de nossa pesquisa.<br />
Repetiram-se as diligências, duplicaram-se as perguntas, cresceram<br />
com as dúvi<strong>da</strong>s os desvelos, e sen<strong>do</strong>, como disse Aristóteles 715 , a solução <strong>da</strong>s<br />
dúvi<strong>da</strong>s o descobrimento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, neste sucesso, por não se poder<br />
manifestar a ver<strong>da</strong>de, ficaram ca<strong>da</strong> vez mais esforça<strong>da</strong>s as dúvi<strong>da</strong>s. Dous dias<br />
estivemos em Imola tiran<strong>do</strong> inquirições várias de quantas pessoas de fora <strong>do</strong>s<br />
circunvizinhos lugares à ci<strong>da</strong>de vinham, e de outras partes mais distantes;<br />
porém frustra<strong>da</strong>s as diligências, pois de nenhuma se colheu fruto. Sentia<br />
Roberto como tão empenha<strong>do</strong>, eu como pesaroso de ver baratea<strong>do</strong> e quasi<br />
bal<strong>da</strong><strong>do</strong> o afectuoso de meu tão pie<strong>do</strong>so patrocínio, Mário como interessa<strong>do</strong> no<br />
sossego de seu sobrinho Roberto, que com esta para to<strong>do</strong>s penosa fugi<strong>da</strong> se<br />
mostrava sobre pesaroso quasi desespera<strong>do</strong>, ven<strong>do</strong> que neste confuso<br />
labirinto em que to<strong>do</strong>s estávamos enre<strong>da</strong><strong>do</strong>s nem se conhecia saí<strong>da</strong>, nem se<br />
sabia eleger meio que esta implacável tormenta abonançasse.<br />
Desengana<strong>do</strong>s pois de podermos em Imola explorar o que a fortuna<br />
encobria, nos partimos outra vez para Bolonha para tomar conselho com<br />
madureza no que ao crédito de Roberto neste <strong>caso</strong> convinha; porque a paixão<br />
que em seu coração <strong>do</strong>minava não permitia ter o juízo tão sazona<strong>do</strong> que<br />
pudesse discursar com acerto em matéria em que o acerto tão remoto an<strong>da</strong>va<br />
<strong>do</strong> juízo. Entrámos em Bolonha já de noite, que a pena de Roberto era tal que<br />
não lhe consentia entrar de dia; fomos desmontar os três em casa <strong>do</strong> insigne<br />
jurisconsulto Cláudio Lambertas, casa<strong>do</strong> com uma tia de Roberto e seu<br />
particular amigo. Não tinha este ain<strong>da</strong> notícias de seus desgostos, porque o<br />
tempo havia si<strong>do</strong> tão breve. Deu-lhe Roberto relação inteira de quanto com<br />
Lívia e comigo tinha passa<strong>do</strong> desde o dia de antes, mostran<strong>do</strong> sua mágoa e o<br />
discreto de seu pun<strong>do</strong>nor e pedin<strong>do</strong>-lhe conselho no que faria; ao que Cláudio<br />
Lambertas, depois que com atenção ouviu a ocasião de seu grande<br />
sentimento, respondeu neste mo<strong>do</strong>:<br />
5 Ar., Et. 3.
810 Padre Mateus Ribeiro<br />
Cap. X.<br />
Da prática que Cláudio teve com Roberto e determinação que sobre Lívia se<br />
tomou<br />
- Se, como diz Aristóteles 716 , os objectos <strong>do</strong>s conselhos são os meios e<br />
não os fins, porque o discurso humano bem pode eleger os meios, mas não<br />
assegurar os fins, não sei, senhor Roberto, como possa aconselhar-vos em um<br />
negócio que de si é incapaz de conselho. Reprovou o Séneca 717 como discreto<br />
a quem pedia o conselho depois de com a espa<strong>da</strong> entrar no desafio, quan<strong>do</strong> a<br />
ocasião <strong>do</strong> conflito não dá esferas à consulta. Assi diz Cícero 718 que nas<br />
cousas de grande importância hão-de preceder os conselhos maduros aos<br />
sucessos contingentes. É, amigo Roberto, o presente em que me consultais tão<br />
árduo para o conselho e tão intempestivo para o remédio que não alcanço<br />
mo<strong>do</strong> com que possa repreender o obra<strong>do</strong>, nem remediar o futuro. São os<br />
ciúmes umas desconfianças mal fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s, uns escrúpulos <strong>da</strong> honra aparentes,<br />
que parecem ver<strong>da</strong>des sen<strong>do</strong> ilusões, e que sen<strong>do</strong> imaginações, veste a ira em<br />
trajes de ofensas. As on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mar nunca tem luzimento de dia, e quan<strong>do</strong> a<br />
noite mais escura se mostra, então com seu movimento resplandecem,<br />
parecen<strong>do</strong> pérolas que brilham as pingas que os remos com seu corte<br />
despedem. A razão é porque de dia a luz <strong>do</strong> sol lhes impede o luzimento e a<br />
noite com o escuro de seu manto lhes franqueia a confiança para<br />
representarem o que não são e para fingirem o que não tem de natureza. Tais<br />
são os ciúmes que parecem agravos enquanto a maior luz <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de os não<br />
convence de enganos.<br />
Vós, senhor Roberto, deixastes-vos levar <strong>da</strong>s aparências e não <strong>da</strong><br />
ver<strong>da</strong>de, condenan<strong>do</strong> à morte com fracos fun<strong>da</strong>mentos a vossa esposa:<br />
rigorosa sentença para quem estava inocente, desumana resolução para quem<br />
não estava culpa<strong>da</strong>. É a morte violenta o maior <strong>do</strong>s castigos e requer tão<br />
severa punição uma culpa mui cabalmente prova<strong>da</strong>, e mais, como disse<br />
" Ar., Ret 2.<br />
7 Sen., Ep. 22.<br />
8 Cie, 1. De Or.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 811<br />
Ovídio 719 , quan<strong>do</strong> o castigo se faz mais odioso, sobre a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, pela<br />
per<strong>da</strong> <strong>da</strong> fama e opinião de quem padece. Duas guar<strong>da</strong>s tem as leis para se<br />
observarem, diz Platão 720 , que são o temor de perder-se a vi<strong>da</strong> e o pejo de<br />
desluzir-se a honra: o terror pertence aos pequenos e o pejo aos ilustres e<br />
grandes. Porém vós, senhor Roberto, condenáveis a vossa esposa não só a<br />
perder a vi<strong>da</strong> sem ofender-vos, mas juntamente o decoroso <strong>da</strong> fama sem<br />
agravar-vos? Porventura achastes em seu poder alguns escritos de Teodósio?<br />
Vistes que com ele ou <strong>da</strong>s janelas falava, ou que a seus importunos passeios e<br />
nocturnas músicas cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa assistia? Soubestes com certeza que ela lhe<br />
escrevia ou com ele se carteava? Achastes algum dia em vossa casa a<br />
Teodósio, de que coligísseis que havia mancha<strong>do</strong> vossa honra?<br />
Experimentastes ou nela pouco amor, ou em outro mais cui<strong>da</strong><strong>do</strong>? Pois se na<strong>da</strong><br />
disto achastes, como tão precipita<strong>do</strong> quisestes ser verdugo cruel de sua vi<strong>da</strong> e<br />
cego despenho de vossa honra? Quem pode na terra prescrever leis à<br />
vontade, sen<strong>do</strong> tão livre? Se Teodósio a quis amar, que culpa cometeu ela em<br />
ser ama<strong>da</strong>? Mostrou-se porventura soberba com as lisonjas de ser queri<strong>da</strong>?<br />
Com as vanglorias de ser ama<strong>da</strong>? Queríeis acriminar-lhe a fermosura, ou a<br />
discrição, ou a ventura, sem com ela ofender-vos? E intentardes <strong>da</strong>r-lhe o<br />
maior castigo, sem fazer-vos a maior ofensa? Se emprendéreis vingança de<br />
Teodósio por inquieta<strong>do</strong>r de vosso sossego, por perturba<strong>do</strong>r de vossa paz, por<br />
atrevi<strong>do</strong> pretensor de vosso descrédito, teria a vingança desculpas na bizarria e<br />
acharia a satisfação apoios no sentimento; porém quererdes satisfazer a<br />
mágoa com derramar o sangue de uma inocente e <strong>da</strong>r-lhes mais crédito ao<br />
imagina<strong>do</strong> que ao ver<strong>da</strong>deiro tem as raízes na injustiça e as bases na sem-<br />
razão.<br />
Chegou a senhora Lívia entre as ânsias a desculpar-se, sen<strong>do</strong> as<br />
lágrimas em seus olhos testemunhas de sua <strong>do</strong>r e assalto contra vossa ira para<br />
enternecer-vos: cerrastes os ouvi<strong>do</strong>s ao justifica<strong>do</strong> <strong>da</strong>s desculpas e as portas<br />
<strong>do</strong> coração à pie<strong>da</strong>de. Com as armas nas mãos, coléricos combatiam os<br />
ofendi<strong>do</strong>s sabinos com os romanos: estes por se defenderem e os sabinos por<br />
se vingarem; porém meten<strong>do</strong>-se em meio as sabinas choran<strong>do</strong>, foram suas<br />
9 Ov., 1. De Pont.<br />
10 Plat., De Rep.
812 Padre Mateus Ribeiro<br />
lágrimas tão poderosas que não só suspenderam a cruel batalha, mas ain<strong>da</strong><br />
estabeleceram entre eles uma paz firme e segura com suas lágrimas em seus<br />
corações escritas. Porém a vós não puderam reportar-vos <strong>do</strong> furor nem as<br />
lágrimas, nem a fermosura. Muitas vezes Herodes Ascalonita, o cruel, leva<strong>do</strong><br />
de ciúmes imagina<strong>do</strong>s foi para tirar a vi<strong>da</strong> a Mariene, sua esposa; porém<br />
quan<strong>do</strong> ia para ela com o punhal e a via tão fermosa, embargavam a execução<br />
de seu injusto furor os poderosos valimentos de sua vista, e in<strong>do</strong> com<br />
desconfianças de ofendi<strong>do</strong>, voltava com rendimentos de amante. Da própria<br />
boca sai o sopro que resfria e o vapor cáli<strong>do</strong> que aquenta, e sen<strong>do</strong> os efeitos<br />
tão contrários, em um mesmo instrumento se vem uni<strong>do</strong>s. Que levásseis vossa<br />
esposa para lhe <strong>da</strong>r a morte, acção foi <strong>da</strong>s injustas imaginações que vos<br />
moviam; mas que vos não demovesse sua beleza, nem suas lágrimas, sem<br />
estardes dela ofendi<strong>do</strong>, não sei se diga que foi excessiva paixão vossa ou se<br />
seria maior desgraça sua.<br />
Nunca o acelera<strong>do</strong> nas execuções trouxe outro fruto que os pesares <strong>do</strong><br />
arrependimento. Condenaram apressa<strong>da</strong>mente os juízes areopagitas de<br />
Atenas o filósofo Sócrates à morte, sen<strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> falsamente por Melito e<br />
outros conjura<strong>do</strong>s de que desprezava os deuses <strong>da</strong> pátria e intentava introduzir<br />
novos ritos e sacrifícios em Atenas. Apressaram-se os juízes com o título <strong>da</strong><br />
impie<strong>da</strong>de, e sem examinarem com vagaroso espaço as quali<strong>da</strong>des <strong>do</strong>s<br />
acusa<strong>do</strong>res e a continente inteireza <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong>, o condenaram à morte,<br />
man<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe beber no cárcere o veneno. Morreu Sócrates inocente <strong>do</strong> que o<br />
culpavam, e descobrin<strong>do</strong>-se em pouco tempo a falsi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> conjuração e a<br />
inocência <strong>do</strong> morto, de sorte se arrependeram os juízes <strong>da</strong> injusta condenação<br />
que haviam tão acelera<strong>da</strong>mente executa<strong>do</strong> que man<strong>da</strong>ram fechar as escolas<br />
públicas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de em demonstração de sentimento, condenan<strong>do</strong> à morte a<br />
Melito, seu principal acusa<strong>do</strong>r, e desterran<strong>do</strong> aos outros condena<strong>do</strong>s para<br />
sempre de Atenas. Matou Periandro, tirano de Corinto, a couces apaixona<strong>do</strong> a<br />
sua mulher, sem outra causa mais que sua ira; e porque seu filho chorava<br />
magoa<strong>do</strong> a injusta morte que dera a sua mãe, <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> <strong>do</strong> indiscreto<br />
furor, o desterrou de Corinto. Porém depois que o discurso deu tréguas à<br />
paixão e a ira entra<strong>da</strong> ao sentimento, as lágrimas que no filho estranhou de<br />
apaixona<strong>do</strong>, veio ele depois a derramar de arrependi<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> não tirou fruto
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 813<br />
<strong>do</strong> pesar, nem remédio <strong>do</strong> sentimento. Cresce ca<strong>da</strong> dia, diz Quintiliano , mais<br />
a <strong>do</strong>r com a lembrança <strong>do</strong> erro, e na memória lastimosa <strong>do</strong> injusto delito<br />
cometi<strong>do</strong> se aumenta o pesar de ver impossível o remédio <strong>do</strong> <strong>da</strong>no.<br />
Acudiu o senhor Lisar<strong>do</strong> a evitá-lo, acção generosa de quem era, pois,<br />
como disse o Séneca 722 , o socorrer aos aflitos é empenho <strong>da</strong> grandeza e<br />
generosi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> coração; assi costumava dizer o valeroso Cipião Africano que<br />
mais estimara conservar a vi<strong>da</strong> a um romano <strong>do</strong> que tirar muitas vi<strong>da</strong>s aos<br />
inimigos. A razão é, a meu parecer, porque o tirar as vi<strong>da</strong>s, obra poderia ser de<br />
qualquer sol<strong>da</strong><strong>do</strong>, porém o conservar e defender as vi<strong>da</strong>s era superior<br />
desempeno <strong>da</strong> generosi<strong>da</strong>de e <strong>do</strong> valor. Para executar uma morte qualquer<br />
pode servir de instrumento, mas para patrocinar a uma vi<strong>da</strong> no perigo,<br />
aventuran<strong>do</strong> a própria por defender a alheia, além de ser animoso o coração, é<br />
necessário que se alente com imortal resolução à pie<strong>da</strong>de. Dá facul<strong>da</strong>de e<br />
concede o evidente aperto <strong>do</strong> perigo licença para se explorar socorro ain<strong>da</strong> nos<br />
próprios inimigos. Assi se viu nos samaritanos sitia<strong>do</strong>s por Aristobulo, filho de<br />
Hircano, que ven<strong>do</strong>-se reduzi<strong>do</strong>s ao maior aperto, ameaçan<strong>do</strong>-lhes sua<br />
extrema necessi<strong>da</strong>de não só cativeiro às liber<strong>da</strong>des, mas fatal castigo às vi<strong>da</strong>s,<br />
pediram socorro a Antíoco, seu inimigo; e ele movi<strong>do</strong> de pie<strong>da</strong>de e ânimo real<br />
lho deu e os livrou. Impediu o senhor Lisar<strong>do</strong> tanto a tempo um homicídio tão<br />
injusto que causaria em Bolonha o maior escân<strong>da</strong>lo, a vós o maior<br />
aborrecimento e a to<strong>do</strong>s em geral a mais enterneci<strong>da</strong> compaixão, assi pela<br />
inocência de vossa esposa, sen<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s tão notório o honesto e decoroso de<br />
sua vi<strong>da</strong>, como por juntamente por sua beleza ser tal que ficaria sem sucessora<br />
que pudesse levar (faltan<strong>do</strong> ela) o morga<strong>do</strong> singular <strong>da</strong> fermosura. Muito<br />
tendes que agradecer-lhe o suspender-vos a tirania <strong>do</strong> punhal, para não terdes<br />
ao presente motivos de tantos pesares que sentir e nós to<strong>do</strong>s que culpar. O<br />
levá-la consigo foi assegurar o patrocínio: pois importaria pouco o livrar-lhe<br />
então a vi<strong>da</strong> e, deixan<strong>do</strong>-a no próprio perigo, ausentar-se. Seria principiar o<br />
favor e não prossegui-lo: <strong>do</strong>nde veio Platão 723 a chamar ao princípio meia obra.<br />
Bem principiou Nero seu império, se soubera prossegui-lo. O fim dá o valor à<br />
Quint., Decl. 12.<br />
Sen., De Ciem.<br />
Plat., De leg.
814 Padre Mateus Ribeiro<br />
obra como cunho à moe<strong>da</strong>: que por essa razão chamou Aristóteles ao fim<br />
não só <strong>da</strong> obra o último, mas juntamente o melhor.<br />
A pressa com que o seguistes deu a causa ao <strong>da</strong>no que agora<br />
consultais sobre o remédio. Há cousas que na celeri<strong>da</strong>de se arriscam e outras<br />
que na demora se ganham. Quinto Fábio Máximo com os vagares venceu as<br />
astúcias e bélica fortuna de Aníbal, e Sexto Pompeu com a pressa indiscreta<br />
de <strong>da</strong>r a batalha naval a Augusto ficou destruí<strong>do</strong>. Era excessiva a brevi<strong>da</strong>de de<br />
irdes logo e tão acompanha<strong>do</strong> em seguimento de vossa esposa, quan<strong>do</strong> nas<br />
auroras <strong>do</strong> próprio dia se tinha visto nos riscos <strong>do</strong> punhal e nos horizontes <strong>da</strong><br />
morte. É a memória desta tão terrível, a sombra tão triste e a lembrança tão<br />
odiosa que não digo eu no próprio dia, mas em muitos, deixa assombra<strong>do</strong> o<br />
coração para temê-la e desalenta<strong>do</strong> o espírito para receá-la; porque, como<br />
disse o Séneca 725 , em to<strong>da</strong>s as i<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é temerosa sua representação.<br />
Ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> fôsseis só, talvez poderia vossa esposa persuadir-se que ou<br />
arrependi<strong>do</strong> a buscáveis, ou quan<strong>do</strong> perseveráveis no vingativo furor ain<strong>da</strong><br />
teria a defensa segura no patrono que a amparava. Porém ven<strong>do</strong> que a<br />
seguíeis tão arma<strong>do</strong> e com tão duplica<strong>da</strong> companhia, como deixaria de temer<br />
que vos guiava o vingativo e não o pesaroso?<br />
Mais é a multidão indício de guerra que de paz, demonstração de<br />
conten<strong>da</strong> que de concórdia, escolta para a peleja que socie<strong>da</strong>de para a união.<br />
Não teve a senhora Lívia culpa em fugir, ten<strong>do</strong> tantos motivos de recear. O ver<br />
repetir o oneroso é causa de repugnar a sujeição, e quanto com a companhia<br />
vos via mais forte, tanto seu temor se considerava mais vivo: como <strong>do</strong> parti<strong>do</strong><br />
que com o senhor Lisar<strong>do</strong> se havia feito a ela lhe não constava, julgou pelo<br />
passa<strong>do</strong> o perigo outra vez presente, pois quem teme os desaires de um perigo<br />
certo, mal chega a assustar-se <strong>do</strong>s receios que o coração lhe representa.<br />
Naquele odioso tributo que Minos, rei de Creta, pôs aos atenienses, em<br />
vingança <strong>da</strong> morte de seu filho Androgeu que em Atenas mataram, de que<br />
to<strong>do</strong>s os anos lhe pagassem de tributo sete mancebos e sete <strong>do</strong>nzelas, <strong>do</strong>s<br />
quais nenhum a Atenas tornava, porque mortos nos insolúveis enre<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
labirinto ficavam, coube a sorte fatal de ir Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas.<br />
Ar., Phis. 2.<br />
Sen., Ep. 12.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 815<br />
Man<strong>do</strong>u ele por sentimento empavesar de velas negras a funesta embarcação<br />
em que o príncipe ia, queren<strong>do</strong> com a <strong>do</strong>r celebrar antecipa<strong>da</strong>s vésperas ao<br />
lamentável de sua morte, ordenan<strong>do</strong> aos marinheiros que se porventura, o que<br />
duvi<strong>da</strong>va, o príncipe Teseu voltasse vivo, amaina<strong>da</strong>s as negras velas,<br />
arvorassem outras brancas, para que ele, que ficava entre as sombras<br />
fúnebres <strong>da</strong> tristeza e o ténue <strong>da</strong>s desconfia<strong>da</strong>s esperança, pudesse de longe<br />
ou festejar sua ventura, ou lamentar sua desgraça. Descui<strong>da</strong><strong>do</strong>s os<br />
marinheiros com o festejo de trazerem ao príncipe vitorioso e vivo em mu<strong>da</strong>rem<br />
as infortuna<strong>da</strong>s velas, ven<strong>do</strong> de longe o rei os tristes anúncios de sua mágoa,<br />
como vivia nos temores de ser morto seu ama<strong>do</strong> filho, impaciente à <strong>do</strong>r e<br />
desespera<strong>do</strong> à pena, se despenhou nas vorazes on<strong>da</strong>s, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> com sua morte<br />
trágico nome ao mar que de seu princípio tomou o nome.<br />
Que importava, senhores, o acerta<strong>do</strong> <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> que o senhor Mário<br />
propôs, se a ela <strong>da</strong> conveniência não constava? Foi mais poderoso o temor<br />
que a esperança, o presságio mal que o esperar bem, a presença <strong>da</strong>s armas<br />
que os ditames <strong>do</strong> discurso, e finalmente temer como mulher persegui<strong>da</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> pudera ser, como inocente, louva<strong>da</strong>. Consultais, senhor Roberto, meu<br />
parecer sobre o como deveis proceder neste <strong>caso</strong>: poucas consultas são<br />
necessárias para a resolução, porque qualquer bom juízo conhecerá que o<br />
silêncio é o meio mais proporciona<strong>do</strong> e não o estron<strong>do</strong>so, nem a publici<strong>da</strong>de.<br />
Mal que meu vizinho não sabe, por grande que seja, não se julga por mal.<br />
Assim como qualquer eclipse <strong>do</strong>s luminares celestes provoca to<strong>do</strong>s os olhos<br />
para serem vistos nos desmaios e intercadências de sua luz, assim qualquer<br />
desaire na honra incita as línguas <strong>do</strong> povo para ajuizarem sempre o pior, e<br />
talvez sen<strong>do</strong> na<strong>da</strong>, nos juízos <strong>do</strong> vulgo avulta muito. E se ain<strong>da</strong> à fama mais<br />
indecorosa não sabe guar<strong>da</strong>r respeitos o atrevimento de uma calúnia, que seria<br />
se achasse algum motivo em vossa queixa para pressagiar ofensas aonde não<br />
há delito? Vós não estais ofendi<strong>do</strong>, e publicar a fugi<strong>da</strong> de vossa esposa seria<br />
desacreditar sua inocência e amotivardes labéus à vossa estimação. É o<br />
respeito a vi<strong>da</strong> que anima a fi<strong>da</strong>lguia, e se este se perde, ficará sen<strong>do</strong> ludíbrio<br />
o que foi decorosa estimação. A senhora Lívia escondeu-a o temor, manifestá-<br />
la-á a segurança; nem aterra a tragou, nem o mar a submergiu em seu centro:<br />
o tempo tu<strong>do</strong> aclara e é o médico que to<strong>da</strong>s as enfermi<strong>da</strong>des cura, e as cousas<br />
que pareciam impossíveis, vem a fazer tratáveis.
816 Padre Mateus Ribeiro<br />
Buscardes a vossa esposa em Bolonha tenho por desacerto, assi porque<br />
como dela saiu tão magoa<strong>da</strong> até o nome <strong>da</strong> pátria lhe será odioso, quanto mais<br />
o <strong>do</strong>micílio, como juntamente porque como ela em Bolonha se considera sem<br />
parentes em quem espere o favor, e vós nela sois tão aparenta<strong>do</strong>, não seria<br />
ela tão indiscreta que viesse expor-se ao perigo em lugar aonde não conseguia<br />
o socorro. Que cativo foge <strong>da</strong>s cadeias odiosas <strong>da</strong> masmorra, ou que preso<br />
<strong>do</strong>s grilhões e algemas que no cárcere o detinham, que torne a avizinhar-se<br />
aos horizontes <strong>do</strong>nde teve perdi<strong>da</strong> a liber<strong>da</strong>de, a vi<strong>da</strong> com o risco, o coração<br />
com sustos e a alma com mágoas? To<strong>do</strong>s os lugares são infaustos em que a<br />
vi<strong>da</strong> experimentou pesares e sofreu detrimentos. Mas que, digo eu, os lugares,<br />
ain<strong>da</strong> os dias, em que os romanos padeciam calami<strong>da</strong>des, lhes ficaram por<br />
odiosos e infelices. Quan<strong>do</strong> os alemães mataram a Quintiliano Varro, passan<strong>do</strong><br />
à espa<strong>da</strong> três legiões <strong>do</strong>s melhores sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s romanos que o império tinha,<br />
ordenou Augusto que o dia desta lamentável per<strong>da</strong> fosse para sempre aos<br />
romanos infausto, odioso e infelice: para que nele jamais se obrasse, nem<br />
emprendesse cousa alguma de importância. Assi lhes foram odiosas as ribeiras<br />
<strong>do</strong> rio Allia, aonde foram venci<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s franceses sénones, e o lugar de Canas,<br />
em que foram por Aníbal cruelmente derrota<strong>do</strong>s.<br />
Suposto pois que em Bolonha fica sen<strong>do</strong> frustra<strong>da</strong> a esperança de que<br />
nela, nem em seus limites, a senhora Lívia se descubra, me parece que mais<br />
ao longe se deve procurar; porque o temor não sabe parar em distâncias<br />
breves, nem vizinhas ao perigo de que foge. E pois o senhor Lisar<strong>do</strong> ia de<br />
caminho para Cesena, sua pátria, quan<strong>do</strong> acudiu a suas vozes e para casa de<br />
sua mãe a levava, quan<strong>do</strong> essa noite <strong>do</strong> casal junto a Imola pavorosa fugiu e<br />
intimi<strong>da</strong><strong>da</strong> se escondeu, sou de parecer que acompanhan<strong>do</strong> Roberto ao senhor<br />
Lisar<strong>do</strong>, com to<strong>do</strong> o segre<strong>do</strong> e cautela possível, em Cesena e seu distrito se<br />
procurem notícias dela, porque como via ao senhor Lisar<strong>do</strong> empenha<strong>do</strong> em<br />
socorrê-la e entretanto segurá-la na companhia <strong>da</strong>s senhoras sua mãe e irmã,<br />
porventura que para Cesena dirigiria seu caminho, como a lugar que podia<br />
servir-lhe de asilo no flutuoso de seus temores. Assim como são odiosos os<br />
lugares aonde se receia o <strong>da</strong>no para serem evita<strong>do</strong>s, assim pelo contrário são<br />
busca<strong>do</strong>s os lugares aonde se espera o amparo para serem procura<strong>do</strong>s,<br />
porque assim como o rigor afugenta, assim o favor obriga. Este é o meu<br />
parecer neste <strong>caso</strong>, salvo o melhor juízo a que sempre o sujeito.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 817<br />
Assim deu Cláudio fim a seu discurso, de que to<strong>do</strong>s ficámos satisfeitos<br />
pelo acerta<strong>do</strong> no conselho e bem fun<strong>da</strong><strong>do</strong> nas razões. Rendeu-lhe Roberto as<br />
graças dele, e antes que amanhecesse, despedin<strong>do</strong>-nos de Mário, eu e<br />
Roberto nos partimos para Cesena, minha pátria, com grandes desejos de<br />
chegarmos a ela para ver se havia notícia de Lívia, cujo oculto retiro nos tinha<br />
posto em notável confusão. Crescia esta com a dificul<strong>da</strong>de de não se poder<br />
com certeza ajuizar como uma moça tão mimosa e não costuma<strong>da</strong> a caminhos<br />
dilata<strong>do</strong>s pudesse em tão breve tempo de tal sorte esconder-se que nem<br />
vestígios de seu caminho se achassem, nem indícios alguns se vissem, nem<br />
com tantas diligências feitas novas algumas se descobrissem. Com essa pena<br />
apressan<strong>do</strong> a jorna<strong>da</strong>, chegámos a Cesena, minha pátria, à casa de minha<br />
mãe, de quem e de minha irmã fui com grande alegria recebi<strong>do</strong> e Roberto com<br />
a devi<strong>da</strong> cortesia aceito, hospe<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se comigo no meu quarto.<br />
Cap. XI.<br />
Do que se passou sobre o casamento de Florisela e como veio a casar com<br />
Feliciano<br />
Três dias eram passa<strong>do</strong>s de minha chega<strong>da</strong> a Cesena, em que<br />
descansei <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> e fui visita<strong>do</strong> <strong>do</strong>s parentes e amigos por haver alguns<br />
anos que tinha assisti<strong>do</strong> em Bolonha sem avistar a pátria. Veio Silvério<br />
Albertino a <strong>da</strong>r-me as boas vin<strong>da</strong>s de tão dilata<strong>da</strong> ausência e entre outras<br />
práticas me deu notícias em como minha mãe dera sua palavra de haver de ser<br />
Florisela, minha irmã, sua esposa: ventura dele com singular alegria celebra<strong>da</strong><br />
e que estimava e colocava por timbre de suas glórias e de sua maior<br />
estimação. Assustou-me a novi<strong>da</strong>de como quem estava tão descui<strong>da</strong><strong>do</strong> dela.<br />
Há cousas, diz Aristóteles, que é mais certo o ignorá-las que o sabê-las. Nem<br />
to<strong>da</strong>s as cousas, disse Cícero, podem saber-se, porque a umas faz a distância<br />
ignoráveis e a outras o divertimento esqueci<strong>da</strong>s. Como eu estava em Bolonha<br />
assistente havia anos, e não tinha notícias <strong>da</strong> pretensão de Silvério, nem minha<br />
mãe me tinha avisa<strong>do</strong> sobre tal casamento, achou-me a nova descui<strong>da</strong><strong>do</strong>, e<br />
assi lhe respondi alegre:
818 Padre Mateus Ribeiro<br />
- Suposto, senhor Silvério Albertino, que vossa mercê mereça muito por<br />
quem é, contu<strong>do</strong> me fica justa razão de queixar-me de que, sen<strong>do</strong> eu o<br />
morga<strong>do</strong> desta casa, sem meu consentimento, nem se me fazer presente a<br />
pretensão de vossa mercê, minha mãe se adiantasse a <strong>da</strong>r essa palavra <strong>do</strong><br />
casamento de Florisela, quan<strong>do</strong> para se tratar de seu esta<strong>do</strong> nem obrigavam<br />
os anos, nem a conveniência o persuadia. Porque minha irmã é muito moça e<br />
minha mãe não escusa sua companhia, nem eu tenho pretensão de mu<strong>da</strong>r de<br />
esta<strong>do</strong> com brevi<strong>da</strong>de e sem acabar meus estu<strong>do</strong>s, e não parece justo o ficar<br />
minha mãe sem sua filha.<br />
São os casamentos apartamento, e o apartar-se Florisela de sua mãe<br />
não tem conveniência, estan<strong>do</strong> eu ausente: porque muitas vezes, como diz<br />
Plutarco 726 , com os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>do</strong> novo esta<strong>do</strong> se descui<strong>da</strong>m os filhos <strong>do</strong> amor e<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong> tão devi<strong>do</strong> a suas mães. Cativeiro chamaram os antigos ao<br />
casamento, porque não lhes concede a facul<strong>da</strong>de que de antes possuíam para<br />
se mostrarem os esposa<strong>do</strong>s ain<strong>da</strong> com seus pais tão cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sos como requer<br />
a filial obrigação; pois, como escreveu Euripides, tanto que a esposa sai <strong>da</strong><br />
casa de seus pais em que adquiriu os primeiros alentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, já não é de<br />
seus pais, mas fica sen<strong>do</strong> só de seu mari<strong>do</strong>. Isto pressuposto, nem minha mãe<br />
an<strong>do</strong>u bem aconselha<strong>da</strong> em prometer, nem eu an<strong>da</strong>rei se o permitir, porque<br />
não há urgente causa que obrigue, nem razão que persua<strong>da</strong> a que minha irmã<br />
se case tão antecipa<strong>da</strong>mente, sen<strong>do</strong> o único alívio que minha mãe em minhas<br />
ausência tem. Além <strong>do</strong> que não é estilo <strong>da</strong> nobreza haver casamento sem<br />
primeiro se consultar com os parentes e ouvir-se seu parecer. Na<strong>da</strong> se deve<br />
obrar, disse, Demóstenes 727 , sem preceder conselho; porque escreve<br />
Erasmo 728 que deste pende as mais <strong>da</strong>s vezes o sucesso venturoso. E se em<br />
qualquer outra matéria é tão necessário o consultar-se, quanto mais o deve ser<br />
no casamento, em que depois o pesar não dá ao sentimento remédio.<br />
Ain<strong>da</strong> em razão <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> e <strong>da</strong> política <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> se deve nos<br />
casamentos <strong>da</strong>s pessoas ilustres consultar o parecer de seus parentes, porque<br />
seria justa razão de queixa e motivo de agravo o não lhes <strong>da</strong>r notícia de um tal<br />
Plut., De praec. conn.<br />
Dem., Ex. 19.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 819<br />
empenho. Seria o contrário mostrar que ou se desconfiava de seu juízo, ou se<br />
fazia pouca estimação de seu afecto: e em qualquer destas suspeitas perigava<br />
o pun<strong>do</strong>nor e se arriscava a benevolência que ao parentesco se deve.<br />
Duvi<strong>da</strong>va Plutarco 729 de poder amar aos pais quem aos parentes propínquos<br />
aborrecia; pois como de um próprio tronco fazem a origem de que são ramos,<br />
juntamente se lhes comunica o amor com as influências <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Assi que,<br />
senhor Silvério, eu me resolvo a não <strong>da</strong>r consentimento de presente ao<br />
casamento de minha irmã, enquanto eu me não resolver a mu<strong>da</strong>r de esta<strong>do</strong>; e<br />
se minha mãe, sem adverti-lo, deu essa palavra, obraria nela a importunação e<br />
não o desejo de haver de separar sua filha, quan<strong>do</strong> em minhas ausências dela<br />
mais necessitava.<br />
Atento me ouviu Silvério a resolução de seu proposto casamento, tão<br />
encontra<strong>da</strong> com seu gosto como senti<strong>da</strong> de sua lisonjea<strong>da</strong> esperança. É um<br />
desengano ao intenso de um afecto a quinta-essência <strong>da</strong> amargura, desabri<strong>do</strong><br />
para beber-se e áspera medicina para aceitar-se. É um desengano violento<br />
remédio que ou de to<strong>do</strong> dá vi<strong>da</strong>, ou de to<strong>do</strong> a perde. É procelosa tormenta que<br />
de repente faz amainar as velas <strong>da</strong> esperança. É homici<strong>da</strong> bala que de sulfúrea<br />
espingar<strong>da</strong> despedi<strong>da</strong> embarga o voo à ave mais ligeira, derrotan<strong>do</strong>-lhes as<br />
asas com que nas regiões <strong>do</strong>s ares se movia. E finalmente é um desengano a<br />
um amante sepulcro em que seus desvelos dão as últimas despedi<strong>da</strong>s à<br />
esperança, fican<strong>do</strong> em seu epitáfio escondi<strong>do</strong>s no esquecimento quantos<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s lisonjeou o pensamento e quantos desejos abortivos mal logrou a<br />
vontade.<br />
Suspenso Silvério <strong>da</strong> não espera<strong>da</strong> resposta e assusta<strong>do</strong> <strong>da</strong> inopina<strong>da</strong><br />
resolução, mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> as cores com o susto, que como sintoma <strong>da</strong> alma não só<br />
as cores ao rosto rouba, mas ain<strong>da</strong> aos vitais espíritos descompõem, me<br />
respondeu perturba<strong>do</strong>:<br />
- Não presumia eu, senhor Lisar<strong>do</strong>, que ten<strong>do</strong>-me a senhora Ricar<strong>da</strong>,<br />
vossa mãe, <strong>da</strong><strong>do</strong> palavra de ser vossa irmã minha esposa, acharia em vós<br />
essa repugnância à sua e minha vontade. Se por merecimentos se há-de<br />
alcançar a posse desta ventura, bem sei que ninguém em Cesena é capaz de<br />
merecê-la, porque a fez a natureza tão superior a to<strong>do</strong> o merecimento que tu<strong>do</strong><br />
Plut., De amor frat.
820 Padre Mateus Ribeiro<br />
fica sem valor se com seus merecimentos se pesa; porém, se sem igual<strong>da</strong>de<br />
há-de casar-se, parecia-me a mi que só eu podia ser admiti<strong>do</strong> a conseguir esta<br />
ventura, pois há <strong>do</strong>us anos que este bem preten<strong>do</strong>, aman<strong>do</strong>-a ca<strong>da</strong> vez mais<br />
com tal extremo que não pode meu querer subir mais alto, porque não pode a<br />
vontade aspirar a mais extremo.<br />
- E quem vos segurou a vós (respondi eu) que o amar a minha irmã em<br />
minha ausência era merecer e não agravar? Esse só motivo que houvera era<br />
bastante para eu me <strong>da</strong>r por ofendi<strong>do</strong> e não por obriga<strong>do</strong>: em minha ausência<br />
pretender o que só comigo se havia de tratar, foi perder-se-me o respeito,<br />
fazen<strong>do</strong> mais confianças no solitário <strong>do</strong> que no decoroso. As mulheres como<br />
Florisela não casam por afeição, que seria aventurar-se uma inobediência a um<br />
desacerto e talvez a um descrédito, pon<strong>do</strong> a perigo a vontade de seguir os<br />
arrojos <strong>da</strong> afeição e não os ditames <strong>da</strong> nobreza, de que podiam seguir-se<br />
dilata<strong>do</strong>s desgostos e irreparáveis <strong>da</strong>nos. Sobre esta matéria tenho já<br />
respondi<strong>do</strong> e <strong>da</strong><strong>do</strong> a última resolução.<br />
Com isto me levantei pesaroso e ele se despediu descontente <strong>do</strong><br />
despacho, porém bem mereci<strong>do</strong> de quem em minha presença publicou que<br />
amava a minha irmã estan<strong>do</strong> eu ausente, como se fora meio de merecer, o<br />
indecente de não me saber respeitar. Aprovou Roberto, que presente estava,<br />
minha resolução por briosa, porque como estava tão magoa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s indiscretos<br />
devaneios de Teodósio que originaram seus desgostos, julgou por atrevi<strong>do</strong>s<br />
desacertos os com que Silvério a minha irmã por esposa pretendia.<br />
Apaixona<strong>do</strong>, depois de ele despedir-se, entrei a falar com minha mãe e<br />
irmã, referin<strong>do</strong>-lhes o que com Silvério passara e estranhan<strong>do</strong>-lhes a uma a<br />
palavra que inconsidera<strong>da</strong> dera e a outra os motivos que a Silvério havia <strong>da</strong><strong>do</strong><br />
para ele, em minha presença, pouco respeitoso manifestar como havia <strong>do</strong>us<br />
anos que amante a pretendia; <strong>do</strong> que ambas o censuraram de indiscreto em<br />
manifestar o que mais podia desluzir seu intento <strong>do</strong> que abonar a pretensão.<br />
Desculparam-se minha mãe em haver <strong>da</strong><strong>do</strong> a palavra de importunos rogos <strong>da</strong><br />
mãe de Silvério persuadi<strong>da</strong>, porém reservan<strong>do</strong> sempre o direito à minha<br />
aprovação e consentimento, e minha irmã não se <strong>da</strong>n<strong>do</strong> por sabe<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s de Silvério, antes mostran<strong>do</strong>-se ofendi<strong>da</strong> de ele se declarar em minha<br />
presença por seu amante. E movi<strong>da</strong>s uma e outra com a ocasião presente, me<br />
veio minha mãe a <strong>da</strong>r notícia <strong>do</strong> que Feliciano Tiberto usara, assi no desaforo
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 821<br />
<strong>do</strong> roubo como na restituição de Florisela, mostran<strong>do</strong>-se no rapto tão arroja<strong>do</strong><br />
como no mais procedimento comedi<strong>do</strong>: como a pediu por esposa e <strong>da</strong> resposta<br />
que minha mãe lhe dera. Que estavam esperan<strong>do</strong> a minha vin<strong>da</strong> para consultar<br />
o que neste <strong>caso</strong> devia fazer-se.<br />
Não sei, discretos senhores, se saberei manifestar o excesso <strong>da</strong> pena, o<br />
vivo <strong>da</strong> <strong>do</strong>r e o requinta<strong>do</strong> <strong>da</strong> paixão que nesta ocasião feriu meu coração,<br />
atormentou minha alma e soçobrou meus senti<strong>do</strong>s. Bem me persua<strong>do</strong> que na<br />
pena presente não haveria alguém que me invejasse, se, como diz Plutarco 730 ,<br />
ninguém chega a ter inveja <strong>do</strong>s aflitos. Quem pode diminuir o intenso <strong>da</strong> <strong>do</strong>r,<br />
disse Quintiliano 731 , em vésperas está de a deixar de to<strong>do</strong>, porque <strong>do</strong>r e pena<br />
que pode moderar-se, não é pena nem <strong>do</strong>r que perseverança prometa.<br />
Publicar a <strong>do</strong>r era indecoroso a meu brio e encerrá-la no silêncio<br />
impossível, como diz Cícero 732 , ao sofrimento <strong>da</strong> pena: o agravo pedia-me<br />
vingança e a quali<strong>da</strong>de dele não permitia publici<strong>da</strong>de; era a ofensa grande para<br />
encobrir-se e maior para divulgar-se; e suspensos os discursos entre tão<br />
antípo<strong>da</strong>s desejos, nem sabia exprimir a <strong>do</strong>r, nem me atrevia a sepultar a pena.<br />
Aumentava os motivos <strong>do</strong> sentimento ser Feliciano <strong>da</strong> família <strong>do</strong>s Tibertos e eu<br />
<strong>do</strong>s Martelinos, ban<strong>do</strong>s encontra<strong>do</strong>s e opostos sempre em Cesena, de que<br />
tantos escân<strong>da</strong>los se tinham executa<strong>do</strong> nas civis discórdias de nossa pátria<br />
com tanta efusão de sangue, e nesta ocasião previa renova<strong>da</strong>s as passa<strong>da</strong>s<br />
hostili<strong>da</strong>des que estavam a<strong>do</strong>rmeci<strong>da</strong>s com o tempo; e sen<strong>do</strong> Feliciano o<br />
principal <strong>do</strong>s Tibertos, poderoso e muito rico, chegan<strong>do</strong> este agravo a pedir<br />
pública satisfação, seria promover a armas to<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de, reduzi<strong>da</strong> às<br />
calami<strong>da</strong>des de antes padeci<strong>da</strong>s, o que a to<strong>do</strong>s seria odioso; pois, como diz<br />
Séneca 733 , é naturalmente aborreci<strong>do</strong> aquilo que fica sen<strong>do</strong> oneroso, e<br />
gravame pesa<strong>do</strong> nunca pode ser bem recebi<strong>do</strong>.<br />
Com esta pena fiquei melancólico e pensativo sobre o mo<strong>do</strong> com que<br />
devia tratar <strong>da</strong> satisfação deste agravo que Feliciano Tiberto me tinha feito.<br />
Reparou Roberto em minha tristeza, perguntan<strong>do</strong>-me a causa. E como ele era<br />
Plut., De inv.<br />
Qui., Lib. 11.<br />
Cie, Pro SU.<br />
Sen., Ep. 99.
822 Padre Mateus Ribeiro<br />
em Cesena forasteiro e meu hóspede, e sen<strong>do</strong> as leis <strong>do</strong> hospício tão<br />
privilegia<strong>da</strong>s, que, como diz Euripides 734 , não se há-de mostrar o rosto triste<br />
diante <strong>da</strong> pessoa hospe<strong>da</strong><strong>da</strong>, para que não venha a presumir que o<br />
melancólico <strong>da</strong> presença é mostrar tédio ou pesar de hospedá-lo, sen<strong>do</strong>, como<br />
escreve Ovídio 735 , menos airosa a despedi<strong>da</strong> <strong>do</strong> que seria no princípio o negar-<br />
se-lhe o hospício; assi por esta razão, como porque se consolasse em parte <strong>do</strong><br />
penoso sentimento que na fugi<strong>da</strong> de Lívia, sua esposa, sentia, pois diz<br />
Quintiliano 736 que a comparação de um desgosto suaviza a ânsia <strong>do</strong> outro que<br />
o sofre, lhe dei inteira notícia <strong>do</strong> sucesso de Florisela, de que nesta hora se me<br />
tinha <strong>da</strong><strong>do</strong> conta, pedin<strong>do</strong>-lhe seu parecer sobre isso.<br />
Admira<strong>do</strong> se mostrou Roberto, assi <strong>do</strong> atrevimento de Feliciano como <strong>da</strong><br />
modéstia rara com que depois procedera, sen<strong>do</strong> mancebo poderoso, amante, e<br />
minha irmã com extremos fermosa. Culpa grande o rapto, louvor grande o<br />
desempenho dela. A culpa teve os motivos no querer, porém a desculpa na<br />
generosi<strong>da</strong>de. E assi, depois de considerar um breve intervalo no parecer que<br />
<strong>da</strong>ria, falou desta sorte:<br />
- As cousas, senhor Lisar<strong>do</strong>, que podem sem o rigor <strong>da</strong>s armas<br />
remediar-se, me parece que não devem com excesso sentir-se, pois aonde não<br />
tem lugar o perigo <strong>da</strong> invasão, parece-me que não tem lugar o gravame <strong>do</strong><br />
sentimento. Tu<strong>do</strong> o que pode remediar-se com a paz, seria desacerto querer<br />
aventurá-lo ao duvi<strong>do</strong>so <strong>da</strong> guerra, que esta só tem lugar nos empenhos em<br />
que a honra com a paz periga e sem as armas na<strong>da</strong> se consegue. Confessais,<br />
senhor, que Feliciano Tiberto é ilustre, poderoso e rico, e desejan<strong>do</strong> ser esposo<br />
<strong>da</strong> senhora Florisela se arrojou à insolência que tanto mostrais sentir.<br />
Perguntara-vos eu se, depois de roubá-la, lhe fizera violência e a não quisera<br />
por esposa, que maior sentimento mostraríeis? Então seriam as armas árbitras<br />
<strong>da</strong> satisfação, renovan<strong>do</strong>-se as hostili<strong>da</strong>des <strong>do</strong>s passa<strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>s, publican<strong>do</strong>-<br />
se o agravo com a vingança; porém ao presente a ofensa está em silêncio e o<br />
negócio em termos de se poder efectuar uma permanente paz. Queixais-vos <strong>do</strong><br />
Eur., in Ale.<br />
Ov., 3. De Trist.<br />
Quint., Decl. 3.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 823<br />
pouco respeito que vos guar<strong>do</strong>u em levá-la e não reparais no decoro com que<br />
vos respeitou em tão honrosamente restituí-la.<br />
Ser poderoso e mostrar-se tão comedi<strong>do</strong> foi encontrar o dito de<br />
Aristóteles, na Política 737 , aonde escreve que os muito ricos e poderosos com<br />
dificul<strong>da</strong>de se sujeitam a obedecerem às leis <strong>da</strong> razão quan<strong>do</strong> se consideram<br />
executores de seu desejo. Era mancebo no flori<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anos, no juvenil <strong>da</strong><br />
i<strong>da</strong>de, e com dificul<strong>da</strong>des, diz Plutarco 738 , se modera o petulante <strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de<br />
a abster-se <strong>do</strong> incentivo <strong>do</strong> desejo, mostran<strong>do</strong>-se respeitoso quan<strong>do</strong> a ocasião<br />
o persuade a ser desafora<strong>do</strong>. Era de contrário ban<strong>do</strong> ao vosso: grande fineza,<br />
arrependi<strong>do</strong> Feliciano, fazer obséquios, quan<strong>do</strong> pudera procurar vinganças;<br />
antes <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a entender com a bizarria de que usava que pretendia seguir o<br />
conselho de Quintiliano 739 : que os ban<strong>do</strong>s se devem terminar nos mesmos por<br />
onde começaram. Foi vosso pai cabeça <strong>do</strong>s Martelinos e o de Feliciano <strong>do</strong>s<br />
Tibertos: pois quem duvi<strong>da</strong> que, pedin<strong>do</strong> a senhora Florisela por esposa,<br />
intenta que com este casamento se acabe em perpétua paz o que o discurso<br />
<strong>do</strong>s anos passou em tão odiosas guerras. De que com casamentos entre<br />
contrárias parciali<strong>da</strong>des contraí<strong>do</strong>s se estabeleceu uma dilata<strong>da</strong> paz, estão<br />
cheias as histórias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>; e por isso não as refiro, pois suponho que vós,<br />
como tão estudioso, as tereis sabi<strong>do</strong>.<br />
No esta<strong>do</strong> em que esse <strong>caso</strong> ao presente se considera, já não convém à<br />
senhora vossa irmã receber outro esposo que a Feliciano, nem a ele é decente<br />
aceitar outra esposa que a senhora Florisela; porque me lembra que<br />
Can<strong>da</strong>ules, quarto rei de Lídia e riquíssimo, se <strong>caso</strong>u com a mais fermosa<br />
moça que naquele tempo tinha a Ásia, na presença de cuja portentosa beleza<br />
os maiores encarecimentos ficavam sen<strong>do</strong> ver<strong>da</strong>des, se ain<strong>da</strong> não disser que<br />
estas excediam ao hiperbolizar <strong>do</strong>s mais panegíricos encarecimentos.<br />
Escolheu o rei, não só como senhor, mas como riquíssimo que era, esposa que<br />
fosse de seus olhos o maior recreio e de seu coração a maior delícia; que<br />
pudesse ser de to<strong>do</strong>s inveja<strong>do</strong> e que a ninguém tivesse que invejar. Esposa<br />
que fosse admiração pela vista e que fosse o maior aplauso pela fama; que<br />
Ar., Pol. 3.<br />
Plut., De ed. lib.<br />
Qui., Dec. 9.
824 Padre Mateus Ribeiro<br />
desse mate a to<strong>do</strong>s na ventura, assi como os excedia na riqueza. Que pudesse<br />
gloriar-se de ser único no possuir o em que ninguém pudesse emparelhar.<br />
Igualou o amor que o rei lhe tinha com a fermosa esposa que escolhera; pois<br />
podia só ter igual<strong>da</strong>de nas finezas <strong>do</strong> querer com os extremos <strong>da</strong> beleza que a<br />
rainha por singular chegava a ostentar.<br />
Era tal o excesso <strong>da</strong> alegria que no coração de Can<strong>da</strong>ules se <strong>da</strong>va, que<br />
não caben<strong>do</strong> em tão estreito <strong>do</strong>micílio, quis romper os muros <strong>do</strong> coração para<br />
sair a público. Assi disse Cassio<strong>do</strong>ro 740 que a alegria que redun<strong>da</strong> sobre a<br />
capaci<strong>da</strong>de <strong>do</strong> coração não sabe guar<strong>da</strong>r mo<strong>do</strong> para publicar-se. É uma alegria<br />
repeti<strong>da</strong> na duração, diz Cícero 741 , a que chega a descompor a razão e a<br />
desordenar os ditames <strong>do</strong> juízo; pois fazia que o indiscreto rei em qualquer<br />
ocasião, e ain<strong>da</strong> sem ela, an<strong>da</strong>sse divulgan<strong>do</strong> louvores <strong>da</strong> rara fermosura de<br />
sua esposa. É o excesso <strong>do</strong> louvor, diz Plutarco 742 , incentivo grande <strong>da</strong> inveja.<br />
Se Tarquínio Collatino não intentara nos louvores <strong>da</strong> beleza, gravi<strong>da</strong>de e<br />
honesto recolhimento louvar tanto a Lucrécia, sua esposa, não ocasionara<br />
motivos a que Sexto Tarquínio, filho de Tarquínio o Soberbo, se empenhasse<br />
em querer ver desluzi<strong>da</strong> de seu esposo a confiança e de Lucrécia o louvor. E<br />
assi como louvar-se a si mesmo, diz Valério Máximo 743 , é efeito de vai<strong>da</strong>de<br />
néscia, assi o louvar publicamente um mari<strong>do</strong> a fermosura de sua mulher é<br />
desluzimento de entendi<strong>do</strong> e manifesto perigo de se poder ver pesaroso de não<br />
haver si<strong>do</strong> acautela<strong>do</strong>.<br />
Não parou a indiscreta alegria <strong>do</strong> inadverti<strong>do</strong> rei nos repeti<strong>do</strong>s encómios<br />
que à rainha sua esposa <strong>da</strong>va, sen<strong>do</strong> que só sua vista era o abono mais firme<br />
de seu louvor: pois sem ele ser o ora<strong>do</strong>r que seus panegíricos manifestasse,<br />
em o raro de sua beleza se descobria que excedia seu merecimento ao<br />
exagera<strong>do</strong> <strong>do</strong> maior louvor; quis o rei a Giges, seu vali<strong>do</strong> e seu maior amigo,<br />
fazer tão delirante favor de lhe mostrar descomposta a rainha, estan<strong>do</strong> na<br />
cama <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>. Escusava-se Giges desta tão indecorosa vista, pressagian<strong>do</strong><br />
que depois ou o rei arrependi<strong>do</strong> havia de aborrecê-lo, ou a rainha de irosa<br />
Cie, 1. Par.<br />
Plut., De Pol.<br />
Val. Maxim., Lib. 7.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 825<br />
havia de persegui-lo. Porém quis o rei que a título de maior favor prevalecesse<br />
seu gosto, e levan<strong>do</strong> ocultamente a Giges ao leito em que sua esposa, com<br />
disfarces <strong>do</strong> sono, acor<strong>da</strong><strong>da</strong> estava, quis fazer patentes a seu vali<strong>do</strong> os<br />
neva<strong>do</strong>s can<strong>do</strong>res que de dia a riqueza <strong>da</strong>s galas encobria e de noite a<br />
holan<strong>da</strong> e bor<strong>da</strong><strong>do</strong>s cobertores ocultavam.<br />
Tem a amizade suas raias de que não é lícito passar, tem seus termos<br />
de que não é prudência exceder, disse Aulo Gélio 744 . Nem ao amigo se hão-de<br />
manifestar os defeitos próprios, porque é regra que se exceptua <strong>do</strong>s privilégios<br />
<strong>da</strong> amizade, nem se hão-de revelar as cousas que vem a redun<strong>da</strong>r em<br />
descrédito de quem incauto vulgariza a seu amigo, o que depois há-de resultar<br />
em seu próprio abatimento. Nem se há-de confiar segre<strong>do</strong> de cousa que depois<br />
se cause o pesar irreparável de a ter comunica<strong>do</strong>, nem fazer pública<br />
demonstração <strong>do</strong> que se produza desaire à estimação e vilipêndio ao<br />
respeitoso. A razão dá Valério Máximo 745 : porque poden<strong>do</strong> suceder que se<br />
rompa o vínculo <strong>da</strong> amizade com as mu<strong>da</strong>nças <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, nem <strong>do</strong> segre<strong>do</strong> que<br />
de teu defeito descobriste fique sen<strong>do</strong> árbitro teu inimigo para manifestá-lo,<br />
nem <strong>da</strong> indiscreta confiança que dele em teu desluzimento fizeste fique tua<br />
estimação sujeita ao movimento violento de sua vontade. Deve-se pressupor<br />
que a maior amizade pode converter-se em aborrecimento, e assi se exceptua<br />
de suas regras, ain<strong>da</strong> no mais fervoroso <strong>da</strong> recíproca correspondência e<br />
benévola união, o que pode ser detrimento ao decoro e ruína caluniante à<br />
estimação.<br />
Ressentiu-se a rainha como quem estava acor<strong>da</strong><strong>da</strong> (posto que com<br />
simulações de a<strong>do</strong>rmeci<strong>da</strong>) <strong>da</strong> demente indicação que o mal aconselha<strong>do</strong> rei<br />
dela a seu vali<strong>do</strong> fizera; julgou ao rei por homem de pouco juízo e por incapaz<br />
<strong>da</strong> coroa. Era poderosa e rica, e, como diz Juvenal 746 , mulher poderosa e<br />
ofendi<strong>da</strong>, quem podia duvi<strong>da</strong>r de que havia de vingar-se, pois podia fazê-lo?<br />
Chamou em ausência <strong>do</strong> rei à sua presença a Giges, e fican<strong>do</strong> só com ele, lhe<br />
falou desta sorte:<br />
Aul. Gel., Lib. 2.<br />
Val. Maxim., Lib. 7.<br />
Juv., Sat. 6.
826 Padre Mateus Ribeiro<br />
- Nasceste, ó Giges, em duvi<strong>do</strong>sa estrela, pois no mesmo tempo te<br />
ameaça ou a ruína mais fatal, ou te promete a ventura mais altiva. Nem a to<strong>do</strong>s<br />
concede seu destino o poderem ser artífices de sua grandeza e arbítrios de sua<br />
felici<strong>da</strong>de; porém hoje em tua escolha consiste ou perderes a vi<strong>da</strong> com<br />
abatimento, ou subires ao trono com a maior ventura. Considera agora qual te<br />
será melhor. Se o viveres coroa<strong>do</strong> ou se o morreres abati<strong>do</strong>? Viste-me por<br />
ordem e consentimento de Can<strong>da</strong>ules descomposta em meu leito, cui<strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
que eu <strong>do</strong>rmia: engano foi de néscio presumir sono no vigilante de meu brio,<br />
pois quan<strong>do</strong> o sono me ocupara para ignorar tal agravo, me despertara o<br />
pun<strong>do</strong>nor para senti-lo; pois sentem as majestades as ofensas sonha<strong>da</strong>s,<br />
quanto mais cometi<strong>da</strong>s. Quis Can<strong>da</strong>ules fazer de ti a confiança mais indiscreta<br />
a título de favor e de mim o maior desprezo com pretexto de louvar-me: como<br />
se no mun<strong>do</strong> não pudessem <strong>da</strong>r-se abonos que sirvam de descrédito e pelo<br />
contrário agravos que possam servir de abonos. Ele obrou como néscio e tu<br />
como atrevi<strong>do</strong> em pores descompostos os olhos aonde não era lícito colocares<br />
os pensamentos irreverentes, quanto mais empregares os senti<strong>do</strong>s lascivos.<br />
Viste-me enfim descomposta, e presumias o poderes viver, haven<strong>do</strong>-me<br />
ofendi<strong>do</strong>? Se bem conheceras o vivo de minha mágoa, nunca seguraras os<br />
logros de tua vi<strong>da</strong>. Profanaram teus olhos a imuni<strong>da</strong>de de meu decoro, e não<br />
temias que havia de fulminar raios de vingança meu sentimento? Não sabes<br />
que a majestade ofendi<strong>da</strong> se arrisca pelo decoroso que sofre e se conserva<br />
pelo castigo que desagravan<strong>do</strong>-se executa? Pois ou escolhe o matares a<br />
Can<strong>da</strong>ules e ficares sen<strong>do</strong> meu esposo e rei de Lídia, ou haveres de perder<br />
infalivelmente a vi<strong>da</strong> com rigorosa morte, pois quem me viu descomposta ou<br />
há-de de ser meu esposo, ou não há-de ficar vivo, e para esposo já tar<strong>da</strong>s e<br />
para meu desagravo muito vives.<br />
Com esta resolução, sem esperar mais resposta, se retirou de sua vista.<br />
Suspenso a ouviu e assusta<strong>do</strong> ficou Giges, consideran<strong>do</strong> os <strong>do</strong>us extremos de<br />
sua resolução com a final sentença de sua morte se duvi<strong>da</strong>sse executar o em<br />
que lhe punha as condições <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Matar ao rei que o tinha levanta<strong>do</strong> ao<br />
zénite <strong>do</strong> favor, ao auge <strong>da</strong> privança, ao culminante <strong>do</strong> valimento e ao insólito<br />
extremo <strong>da</strong> amizade era condição dura, odiosa e execrável, exemplo intolerável<br />
<strong>da</strong> maior ingratidão, última raia <strong>da</strong> perfídia e singular portento <strong>da</strong> desleal<strong>da</strong>de.<br />
De outra parte o estimulava o temor, o incitava o receio, ven<strong>do</strong> sua vi<strong>da</strong> no
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 827<br />
perigo mais propínquo na resoluta deliberação de uma rainha ofendi<strong>da</strong> tão<br />
poderosa, de cuja vontade de Can<strong>da</strong>ules pendia, sen<strong>do</strong> o menor aceno de seu<br />
gosto o primeiro móvel de seu querer, e que ou com seu consentimento ou sem<br />
ele havia de executar o que ameaça<strong>do</strong> lhe havia; porém de mulher fermosa,<br />
poderosa e resoluta não há escu<strong>do</strong> ou asilo que defender possa. Considerava<br />
<strong>da</strong> rainha a singular beleza que para ser sua esposa se oferecia, um reino que<br />
por <strong>do</strong>te com ela alcançava, o passar de vassalo a ser senhor, de vali<strong>do</strong> a rei,<br />
de particular a soberano, e sen<strong>do</strong> os prémios que se esperam, como diz<br />
Cícero 747 , a maior lisonja que suaviza os trabalhos, e, como disse Juvenal 748 , a<br />
carícia mais eficaz para persuadir as empresas. E sen<strong>do</strong> de outra parte o temor<br />
de perder a vi<strong>da</strong>, como diz Aristóteles 749 , o que a olhos fecha<strong>do</strong>s faz muitas<br />
vezes resolver a acções indecorosas que reprova a razão e está reclaman<strong>do</strong> o<br />
brio, persuadi<strong>do</strong> Giges destes <strong>do</strong>us estímulos, prémio e temor, e suborna<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
fermosura <strong>da</strong> vingativa rainha, se resolveu com tirar a vi<strong>da</strong> ao rei em assegurar<br />
a sua.<br />
Foi-lhe fácil a execução desta perfídia, porque o rei em na<strong>da</strong> dele se<br />
temia, antes tinha sempre para Giges as portas franquea<strong>da</strong>s em qualquer hora.<br />
Entrou Giges quan<strong>do</strong> Can<strong>da</strong>ules <strong>do</strong>rmia e fez que o sono, que é imagem<br />
própria <strong>da</strong> morte, como lhe chama Platão 750 , nele perseverasse eterno com<br />
privá-lo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, fruto que colheu de ser tão fácil no que convinha ser mais<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so. Casou Giges com a rainha e ficou sen<strong>do</strong> rei de Lídia, cuja história<br />
escrevem Heró<strong>do</strong>to e Trogo em seus livres e outros vários autores. Daqui infiro<br />
eu, senhor Lisar<strong>do</strong>, que já à senhora Florisela não convém receber outro<br />
esposo que a Feliciano Tiberto, nem a ele outra esposa que a senhora vossa<br />
irmã, pois a chegou a ter em sua casa, suposto que a tratasse com singular<br />
decoro, como ela confessa; porque se este excesso chegasse a divulgar-se,<br />
sen<strong>do</strong> em si tão ver<strong>da</strong>deiro, talvez faria escrupulosos à creduli<strong>da</strong>de de quem o<br />
ouvisse, não presumin<strong>do</strong> tão rara continência em um mancebo tão amante e<br />
Cie, Pro Rab.<br />
Juv., Sat. 10.<br />
Ar., Eth. 2.<br />
Plat., De leg.
828 Padre Mateus Ribeiro<br />
tão poderoso; que haven<strong>do</strong> vós de <strong>da</strong>r esta<strong>do</strong> a essa senhora por eleição, não<br />
podereis escolher acerto melhor <strong>do</strong> que lhe adquiriu a ventura.<br />
Se ele por esposa a pretende, não é justo que intervenham as armas,<br />
quan<strong>do</strong> sem elas podem ter satisfação decorosa as ofensas. Vós e Feliciano<br />
sois as duas principais pessoas de Cesena, em quem tem a ci<strong>da</strong>de postos os<br />
olhos, ou para dizer melhor, ambos sois os <strong>do</strong>us olhos de Cesena, e nunca<br />
convinha que qualquer de vós se expusesse a perigo de ficar morto. Lembra-<br />
me que reduzi<strong>da</strong> Atenas a miserável esta<strong>do</strong> pelos lacedemónios, e outras<br />
repúblicas poderosas de Grécia que com eles tinham feito liga a ficarem ao<br />
arbítrio <strong>do</strong>s vence<strong>do</strong>res, e tratan<strong>do</strong>-se em conselho se se havia de destruir de<br />
to<strong>do</strong> a ci<strong>da</strong>de de Atenas, os mais <strong>do</strong>s alia<strong>do</strong>s eram de parecer que de to<strong>do</strong> se<br />
arruinasse; porém os lacedemónios, que eram na vitória os principais, não<br />
quiseram que se destruísse, dizen<strong>do</strong>, como refere Paulo Orósio 751 , que não<br />
queriam consentir, nem era justo que de <strong>do</strong>us olhos que Grécia tinha, quais<br />
eram a ci<strong>da</strong>de de Atenas e a de Esparta, um deles totalmente se extinguisse, e<br />
que poden<strong>do</strong> o tempo ocasionar que Esparta viesse a faltar, ficasse Grécia às<br />
escuras e sem nome. Assi, senhor Lisar<strong>do</strong>, aventurar os <strong>do</strong>us olhos de Cesena<br />
ao conflito <strong>da</strong>s armas com evidente risco, quan<strong>do</strong> o crédito pode sem isso<br />
restaurar-se, seria desacerta<strong>do</strong> conselho <strong>da</strong> paixão e não <strong>da</strong> prudência<br />
emprender litígios, quan<strong>do</strong> sem eles se está oferecen<strong>do</strong> a cabal satisfação.<br />
Cap. XII.<br />
Em que se prossegue o que passou no casamento de Florisela e a notícia que<br />
houve de Lívia<br />
Deu fim Roberto a seu consulta<strong>do</strong> parecer, com que fiquei persuadi<strong>do</strong> a<br />
segui-lo, como maduro no discurso em que o fun<strong>da</strong>va. Sempre nas acções<br />
alheias se ajuíza melhor <strong>do</strong> que nas próprias, por ficar o juízo mais livre <strong>da</strong>s<br />
paixões que cegam a razão e impedem o discurso. Bem se viu no arroja<strong>do</strong> que<br />
se mostrou com Lívia e no prudente que se manifestou neste sucesso de<br />
Florisela. Repliquei-lhe eu que acomo<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me ao seu parecer, como<br />
751 Or., 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 829<br />
acerta<strong>do</strong>, só lhe achava uma dificul<strong>da</strong>de, e era que estan<strong>do</strong> Feliciano ao<br />
presente retira<strong>do</strong> na sua quinta, e não tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong> casamento de Florisela,<br />
minha irmã, parecia cousa dura que sen<strong>do</strong> eu o agrava<strong>do</strong>, houvesse de<br />
cometer parti<strong>do</strong>s, fazen<strong>do</strong> a meu ofensor árbitro deles. Concedeu Roberto na<br />
razão, porém não desconfian<strong>do</strong> <strong>do</strong> efeito, me disse ordenássemos uma caça<strong>da</strong><br />
para onde Feliciano tinha a quinta, e que ele tomava a seu cargo, sem eu<br />
intervir em <strong>da</strong>r-me por sabe<strong>do</strong>r <strong>do</strong> que se tinha passa<strong>do</strong>, buscar conveniente<br />
mo<strong>do</strong> com que este negócio se efectuasse.<br />
Comuniquei a minha mãe e irmã o intento que tinha, e ambas se<br />
mostraram satisfeitas <strong>do</strong> casamento de Feliciano, assi para efeito <strong>da</strong> paz, que<br />
era seu maior desejo, como também porque estava Florisela de to<strong>do</strong> esqueci<strong>da</strong><br />
de Silvério, por me haver indiscretamente declara<strong>do</strong> sua afeição, cousa<br />
merece<strong>do</strong>ra de to<strong>da</strong> a censura <strong>do</strong>s discretos a condenarem por nece<strong>da</strong>de,<br />
quan<strong>do</strong> a não julgassem por loucura. Muitas vezes a loquaci<strong>da</strong>de origina <strong>da</strong>no<br />
e poucas causa proveito, disse-o Plutarco 752 . Há tempo de falar, diz Hugo 753 , e<br />
tempo de calar, mas nunca há tempo de to<strong>do</strong> se dizer. E como Silvério quis<br />
alegar por merecimento galanteios de afeiçoa<strong>do</strong>, deu-se minha irmã por<br />
ofendi<strong>da</strong> de que fizesse relação <strong>do</strong> que devia sepultar no silêncio. Além de que<br />
estava afeiçoa<strong>da</strong> ao bizarro termo que com ela usou Feliciano, ao primoroso de<br />
sua condição e ao esplen<strong>do</strong>r e grandeza de sua casa e sobretu<strong>do</strong> ao grande<br />
amor que lhe tinha mostra<strong>do</strong>: razões to<strong>da</strong>s por que desejava ela e minha mãe<br />
se efectuasse com minha aprovação o casamento.<br />
Dei ordem a aprestar-se o expediente para a caça<strong>da</strong>, e <strong>da</strong>í a <strong>do</strong>us dias<br />
nos partimos de manhã eu e Roberto para as ribeiras <strong>do</strong> rio Sávio, para onde<br />
ficava a grandiosa quinta de Feliciano Tibério, que assi no sumptuoso como no<br />
dilata<strong>do</strong> <strong>da</strong>va ao cau<strong>da</strong>loso rio assunto de retratar sua grandeza no cristalino<br />
espelho de sua corrente. É a vizinhança <strong>do</strong> rio sau<strong>do</strong>sa pelo ameno <strong>do</strong> campo<br />
que com suas águas de verde gala veste, de várias cores matiza e de<br />
fron<strong>do</strong>sas árvores se cerca. Ao bran<strong>do</strong> murmurar de seus cristais respondia<br />
<strong>da</strong>s aves a harmonia em solfa sem letra, mais festeja<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> menos<br />
entendi<strong>da</strong>: que talvez há cousas que então se estimam mais, quan<strong>do</strong> se<br />
Plut., Prob. 7.<br />
Hugo, De Disc. Mon.
830 Padre Mateus Ribeiro<br />
alcançam menos. À vista <strong>da</strong> sole<strong>da</strong>de <strong>do</strong> sítio, repetia Roberto na memória<br />
suas mágoas nas ausências de Lívia, a quem um cioso furor fabrica<strong>do</strong> na<br />
aparência, e não na ver<strong>da</strong>de, ausentou de seus olhos, com dúvi<strong>da</strong>s de jamais<br />
vê-la. Tem o arrependimento seu tribunal aonde se revê o que<br />
precipita<strong>da</strong>mente sentenciou a ira, aonde se emen<strong>da</strong>m os erros <strong>da</strong> paixão e se<br />
revogam os processos <strong>da</strong> suspeita, aonde se apuram as ver<strong>da</strong>des e se<br />
desterram os enganos, e finalmente se conhece no pesar intrínseco que<br />
atormenta o coração que foram falsos os pesos <strong>da</strong> justiça, pois só deles<br />
ficaram os pesares. É o arrependimento de uma acção injusta, de um furor<br />
violento, de uma ingratidão não mereci<strong>da</strong>, de uma inocência sem razão<br />
persegui<strong>da</strong> e de uma leal<strong>da</strong>de mal premia<strong>da</strong> tão eficaz que, para que o<br />
coração com a mágoa não rebente, se apela para as lágrimas enterneci<strong>da</strong>s:<br />
como fez o grande Alexandre na inconsidera<strong>da</strong> morte que deu apaixona<strong>do</strong> a<br />
Clito, seu aio, de quem tinha recebi<strong>do</strong> tão leais serviços, que choran<strong>do</strong> de<br />
magoa<strong>do</strong> e suspiran<strong>do</strong> de pesaroso, determinava acabar a vi<strong>da</strong> de senti<strong>do</strong>, se<br />
seus capitães lhe não estorvaram.<br />
Assi Roberto, oprimi<strong>do</strong> <strong>da</strong>s sau<strong>do</strong>sas lembranças de sua esposa Lívia,<br />
por sua causa perdi<strong>da</strong>, agora na memória com a presença <strong>do</strong> cau<strong>da</strong>loso rio<br />
retrata<strong>da</strong>, foi tal seu sentimento que sem o pretender mostrar, tomaram os<br />
olhos violento conhecimento de sua <strong>do</strong>r, para não desfalecer o coração com o<br />
intenso <strong>da</strong> pena. Advertiu-me o lacrimável a fonte <strong>do</strong>nde manava tão viva<br />
ânsia, que não pôde ocultá-lo o disfarce <strong>do</strong> brioso, nem encobri-lo o rebuça<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> alenta<strong>do</strong>; e porque o sol <strong>da</strong>va mostras de duplicar os calores mais ardentes<br />
ao dia, apean<strong>do</strong>-nos <strong>do</strong>s cavalos ao ameno asilo <strong>da</strong>s ribeiras <strong>do</strong> rio, servin<strong>do</strong>-<br />
nos de verde cortina contra os raios <strong>do</strong> sol as fron<strong>do</strong>sas árvores que a sua<br />
margem assistem, assenta<strong>do</strong>s na verde relva me lembra que assi lhe disse:<br />
- Bem sei, senhor Roberto, que o extremoso de uma pena é tormento<br />
que faz confessar aos olhos o que quer negar a voz, sen<strong>do</strong> a mágoa mais<br />
poderosa que o brio e o enterneci<strong>do</strong> que o valor. Conheço que a memória é o<br />
verdugo e o coração o que padece; pois talvez não sentiria se a memória não<br />
lembrara. Porém quisera perguntar-vos se esse sentimento que de vossa<br />
esposa tendes nasce amotiva<strong>do</strong> <strong>do</strong> que obrastes ou porque ao presente não<br />
aparece?
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 831<br />
- De uma e outra causa nasce (respondeu Roberto): <strong>do</strong> que obrei estou<br />
arrependi<strong>do</strong> e de não aparecer vivo magoa<strong>do</strong>.<br />
- Pois se assi é (respondi eu), culparei por demasia<strong>da</strong> a <strong>do</strong>r para ser tão<br />
limita<strong>da</strong> a causa. Sentir o que não se efectua é discor<strong>da</strong>r a causa <strong>do</strong>s efeitos; e<br />
sen<strong>do</strong> esta primeiro que os efeitos, aonde não se dão os efeitos, também não<br />
se pode <strong>da</strong>r existência na causa, como diz Aristóteles 754 . Intentastes arroja<strong>do</strong><br />
matar a vossa esposa, não teve efeito a injusta paixão: pois se sem a<br />
ofenderdes ficou viva, para que a chorais como se ao rigor <strong>do</strong> punhal ficara<br />
morta? Que demonstrações de sentimento guardáveis para o injusto <strong>do</strong><br />
homicídio, se tanto vos atormenta a representação? Se tanto vos magoa a<br />
memória <strong>da</strong> tragédia sem sangue executa<strong>da</strong>, que eterna <strong>do</strong>r vos não causaria<br />
a vista <strong>do</strong> punhal banha<strong>do</strong> no inocente sangue de quem ofendi<strong>do</strong> vos não<br />
tinha? Quereis que corram parelhas no penalizar a <strong>do</strong>r <strong>da</strong> representação com a<br />
mágoa irreparável <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de? Com que lágrimas celebraríeis a pena de ver<br />
no campo desmaia<strong>da</strong> a flor de Bolonha mais fermosa, no parecer delícia, no<br />
juízo admiração, purpuriza<strong>da</strong> a neve com seu sangue e para to<strong>do</strong>s a lástima<br />
mais viva, ven<strong>do</strong> sem razão a maior beleza morta, para to<strong>do</strong>s mágoa nunca<br />
cabalmente senti<strong>da</strong> e para vós descrédito nunca cabalmente esqueci<strong>do</strong>? Com<br />
que arrependimento teríeis justa causa de derramardes cau<strong>da</strong>losas lágrimas de<br />
pesaroso, mais bem mereci<strong>da</strong>s que as que Ovídio 755 diz que derramava em<br />
seu desterro, ven<strong>do</strong> por vossa causa queixosa Bolonha de que desterrastes<br />
dela nos eclipses funerais <strong>da</strong> morte a melhor filha que respirou com seus ares,<br />
que alimentou com seus frutos, que aplaudiu com seus louvores, pois de to<strong>do</strong>s<br />
a louvarem era tão digna? Diriam que conspirastes com a inveja, que fizestes<br />
liga coma tirania, que unistes parciali<strong>da</strong>de com a crueza, que celebrastes<br />
parentesco com a inumani<strong>da</strong>de, quan<strong>do</strong> sem ser culpa<strong>da</strong> vossa esposa, com<br />
coração diamantino abristes brecha moral no peito em que ela vos trazia por<br />
imagem de seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s copia<strong>do</strong> e por alvo de seus desvelos assisti<strong>do</strong>.<br />
Estas, senhor Roberto, seriam as justas causas <strong>da</strong> maior <strong>do</strong>r, o devi<strong>do</strong><br />
sentimento <strong>da</strong> maior mágoa que provocasse a lágrimas sem fim, pois nunca<br />
seriam meio para o remédio. Aqui podia subir a pena ao requinta<strong>do</strong>, a <strong>do</strong>r ao<br />
Ar., Post. 1.<br />
Ov., Lib. 1. De Pont.
832 Padre Mateus Ribeiro<br />
extremoso, a ânsia ao culminante, as sau<strong>da</strong>des ao exagera<strong>do</strong>, o sentir ao<br />
sofrível, ven<strong>do</strong> que o arrependimento não era poderoso para restaurar o<br />
perdi<strong>do</strong>, pois nunca com o repeti<strong>do</strong> <strong>do</strong> pesar ficava restaura<strong>do</strong>. Havia algumas<br />
árvores a que os romanos <strong>da</strong>vam título de infelices e de cujos troncos usavam<br />
para as execuções <strong>da</strong> morte, as quais eram, como escrevem Tarquínio<br />
Benavides 756 , Plínio 757 , Macróbio 758 e outros autores, as árvores que nunca<br />
<strong>da</strong>vam fruto. Tais ficam sen<strong>do</strong> os arrependimentos com que não pode<br />
restaurar-se o <strong>da</strong>no infelice e sem fruto, pois não pode com eles ter lenitivos a<br />
pena, e assi incapazes de aplacarem o remorso interminável <strong>da</strong> <strong>do</strong>r. Porém se<br />
permitiu o Céu que vossa esposa, assi como não estava culpa<strong>da</strong>, não ficasse<br />
ofendi<strong>da</strong> e como inocente <strong>do</strong> delito ficasse sem o gravame <strong>da</strong> ofensa, vosso<br />
arroja<strong>do</strong> furor sem publicar-se, ela viva e vós desengana<strong>do</strong> de que foi sempre a<br />
que na reali<strong>da</strong>de devia ser e não a que a ilusão de vossas desconfianças<br />
criminavam, que motivos tendes para a <strong>do</strong>r, se a causa à vossa <strong>do</strong>r não dá<br />
motivos? É a tristeza um agrega<strong>do</strong> de <strong>do</strong>res, como lhe chama Euripides 759 , e<br />
deve-se evitar quan<strong>do</strong> é possível pelo nocivo com que acomete a vi<strong>da</strong>; pois<br />
como sen<strong>do</strong> a causa tão incapaz de sentir-se, intentais vós <strong>da</strong>r-lhe forças para<br />
atormentar-vos? E se me disseres que sentis o presente <strong>da</strong> fugi<strong>da</strong> de vossa<br />
esposa e não o rigor <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, pois o rigor não chegou a execução? A isso<br />
responderei que servirá este retiro para saberdes ao diante estimar em mais<br />
sua presença. É a ausência catedrática <strong>da</strong> estimação, assi como a assistência<br />
<strong>do</strong> desprezo; não separa, diz Aristóteles 760 , a distância o amor, mas só impede<br />
o repeti<strong>do</strong> <strong>da</strong> vista, e como a repetição muitas vezes seja tediosa ao desejo, e<br />
este não tenha o centro na posse, senão na esperança, <strong>da</strong>qui vem o <strong>da</strong>r-se<br />
menor estimação naquilo em que não milita a aspiração <strong>do</strong> desejo. É este um<br />
voo de que se alimenta a vontade <strong>do</strong>ce e amargo: <strong>do</strong>ce lhe chamou<br />
Aristóteles 761 , agro lhe deu por título Platão 762 . Esta diferença vai <strong>da</strong> fruição ao<br />
Tar. Ben., Lib. 1. c. 4.<br />
Plin., Lib. 16. c. 27.<br />
Mac, Lib. 3. Sat.<br />
Eur.,in Ale.<br />
Arist., Eth. 8.<br />
Arist., Dean.<br />
Plat., De tranq. anim.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 833<br />
desejo, que a fruição tem a segurança e o desejo a incerteza, e contu<strong>do</strong> mais<br />
se lisonjeia o gosto <strong>do</strong> que duvi<strong>do</strong>so afecta <strong>do</strong> que, como disse Ausónio 763 ,<br />
pacífico logra. Nunca descansa a vontade, diz o Séneca 764 , no que alcança<br />
nesta vi<strong>da</strong>, porque a capaci<strong>da</strong>de <strong>do</strong> coração humano não se dá por satisfeita<br />
com o possuir muito, senão com desejar tu<strong>do</strong>. Nas conquistas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que o<br />
grande Alexandre prosseguia a morte lhe embargou os passos, mas não os<br />
desejos. Sustenta-se a vi<strong>da</strong> com a perpetui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> respiração, com que o<br />
coração se refrigera em seu incêndio, e o mesmo é para a aura organiza<strong>da</strong><br />
com que vive que avizinhar-se a morte com que acaba. Tais são os desejos,<br />
diz Cícero 765 , que nascen<strong>do</strong> com a puerícia <strong>do</strong>s anos, começamos a desejar<br />
desde que começamos a viver. É o desejo o que põe o preço à estimação, que<br />
nunca se chega a avaliar em muito o que o desejo estima pouco.<br />
Man<strong>do</strong>u Cambises, rei de Pérsia, embaixa<strong>do</strong>res aos reis <strong>do</strong>s macróbios,<br />
povos <strong>da</strong> Etiópia, e entre outras peças que em sinal de amizade presentearam<br />
ao rei, foi um rico colar e manilhas de ouro, de que o rei fez ludíbrio e nenhuma<br />
estimação, e man<strong>do</strong>u que fossem mostrar aos embaixa<strong>do</strong>res o cárcere em que<br />
tinha reclusos os delinquentes, os quais estavam ata<strong>do</strong>s com grossas cadeias<br />
e grilhões de ouro; porque como no ouro não avançavam seus desejos, não<br />
tinha para com eles alguma estimação, o que para os persianos era a maior<br />
valia <strong>do</strong> desejo. Sen<strong>do</strong> pois o desejo o arbítrio aprecia<strong>do</strong>r <strong>da</strong> estimação e a<br />
posse <strong>do</strong> injusto desprezo <strong>do</strong> valor <strong>da</strong> cousa possuí<strong>da</strong>, o desejo, senhor<br />
Roberto, que hoje tendes de ver a vossa esposa vos causará duplica<strong>da</strong>s<br />
alegrias quan<strong>do</strong> a vejais e será nova estimação de seu singular merecimento a<br />
falta que hoje sentis de sua vista.<br />
São a saúde e a liber<strong>da</strong>de <strong>do</strong>us bens grandes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, se bem pouco<br />
estima<strong>do</strong>s por pouco adverti<strong>do</strong>s, que o divertimento <strong>do</strong> que se logra<br />
desconhece o valor <strong>do</strong> bem que se possui. Porém perdi<strong>da</strong> na enfermi<strong>da</strong>de a<br />
saúde e no cativeiro a liber<strong>da</strong>de, despoja<strong>da</strong>s as forças pela <strong>do</strong>ença, queixoso o<br />
sofrimento pela <strong>do</strong>r, como diz o Séneca 766 , desabri<strong>do</strong>s os remédios ao apetite,<br />
Aus., in Eglo.<br />
Sen., Ep. 119.<br />
Cie, 5. De fin.<br />
Sen., De ira. lib. 3.
834 Padre Mateus Ribeiro<br />
censura<strong>da</strong> a cura por dilata<strong>da</strong>, duvi<strong>do</strong>sa a esperança pelo desejo, então<br />
reconhece <strong>da</strong> saúde o valor que o diverti<strong>do</strong> <strong>do</strong> logro desconhecia. O cativo ou<br />
preso sujeito ao alheio arbítrio, ao querer de quem o man<strong>da</strong>, impedi<strong>do</strong>s os<br />
passos <strong>da</strong>s cadeias, <strong>da</strong>s chaves a saí<strong>da</strong> e, como diz Quintiliano 767 , ven<strong>do</strong> a<br />
outros com quem se criou tão senhores de sua vontade an<strong>da</strong>rem sem registrar<br />
seu caminho, passearem sem depender nem de licença que escusam, nem<br />
<strong>do</strong>s obséquios que evitam, independentes <strong>do</strong> temor, inofensos ao perigo, no<br />
mesmo tempo alegres quan<strong>do</strong> o preso triste, então vem a conhecer o precioso<br />
<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de quan<strong>do</strong> a vê perdi<strong>da</strong>, para saber estimá-la quan<strong>do</strong> a tiver<br />
restaura<strong>da</strong>.<br />
Não de outra sorte, senhor Roberto, o carecerdes agora <strong>da</strong> presença de<br />
vossa esposa, tanto para estima<strong>da</strong>, vos servirá de motivo de maior alegria,<br />
experimentan<strong>do</strong> o desgosto presente para ser superlativo o contentamento<br />
futuro. Se sentis a dúvi<strong>da</strong> de que vossa esposa apareça, temor é <strong>do</strong> desejo<br />
mais que impossibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> esperança. Nunca advertistes em um ban<strong>do</strong> de<br />
pombas, quan<strong>do</strong> nas frescas margens de um rio sobre os ver<strong>do</strong>res <strong>da</strong> relva,<br />
sobre os debuxos <strong>da</strong>s flores, an<strong>da</strong>m cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sas buscan<strong>do</strong> o sustento com que<br />
se criam, descui<strong>da</strong><strong>da</strong>s <strong>do</strong> perigo que a sinceri<strong>da</strong>de não prevê para a cautela e<br />
que a inocência não teme para o asilo? Porém apenas <strong>do</strong> caça<strong>do</strong>r se ouviu o<br />
fogoso trovão <strong>da</strong> homici<strong>da</strong> espingar<strong>da</strong>, relâmpago e raio juntos para verdugo<br />
<strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s, quan<strong>do</strong> intimi<strong>da</strong><strong>da</strong>s <strong>do</strong> estron<strong>do</strong> e explora<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> risco buscam na<br />
ligeireza <strong>da</strong>s asas refúgio ao receio, subsídio ao temor e segurança ao funesto,<br />
desamparan<strong>do</strong> o sustento que cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sas repetiam. Passou o trágico susto <strong>do</strong><br />
ameaço que despediu a pólvora, talvez aplica<strong>da</strong> a outro fim, serenou o ar a<br />
fumosa nuvem, abonançou o inquieto movimento <strong>da</strong> trepi<strong>da</strong>ção repentina,<br />
respirou o receio <strong>do</strong> assalto presumi<strong>do</strong>, parou em tréguas o bélico fracasso,<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong> lugar a sossegar a desconfiança acidental <strong>da</strong> volátil esquadra<br />
columbina, e logo tornam ao pasto que deixaram, trocan<strong>do</strong> a região <strong>do</strong> ar pela<br />
ameni<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s verdes margens <strong>do</strong> cristalino rio.<br />
Fugiu, senhor Roberto, vossa esposa à evidência <strong>da</strong> morte, ven<strong>do</strong> que<br />
não era ouvi<strong>da</strong> a inocência no severo tribunal de vossa ira. Assombrou-se <strong>do</strong><br />
rigor não mereci<strong>do</strong>, largou as asas ao receio, ven<strong>do</strong> que a não assegurava a<br />
Qin., Decl. 13.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 835<br />
justiça, nem se <strong>da</strong>va quartel à pie<strong>da</strong>de. Porém não duvideis que torne a<br />
manifestar-se uma vez que considerar o campo de vossas desconfianças<br />
seguro. Apareceu a ilustre matrona Teopista, mulher de S. Estrácio, depois de<br />
tantos anos de ausência, sen<strong>do</strong> rouba<strong>da</strong> <strong>da</strong> vista de seu esposo por um<br />
cossário egípcio, que barbaramente a ocultou aos olhos e companhia de seu<br />
mari<strong>do</strong>, como refere o bispo Equilino 768 , meten<strong>do</strong>-se de permeio tantas terras e<br />
tantos anos, e desconfiareis vós de que brevemente apareça vossa esposa?<br />
Pois nem a submergiu o mar em seus golfos, nem a tragou a terra em seu<br />
centro. Desde o duca<strong>do</strong> de Ferrara até a Romania é a distância tão breve que<br />
não admite cortinas ao mais oculto, quanto mais segre<strong>do</strong>s ao procura<strong>do</strong>. Ain<strong>da</strong><br />
há tão poucos dias que se ausentou que podem numerar-se por horas mais<br />
que computar-se por tempo, e já vos parecem prorroga<strong>do</strong>s meses, já os<br />
reduzis a dilata<strong>do</strong>s anos?<br />
Dar tempo ao tempo, diz Cícero 769 , é empenho de varão prudente. Não<br />
consiste na brevi<strong>da</strong>de o acerto, que se os frutos não são sazona<strong>do</strong>s nunca se<br />
colhem com perfeição: pois nem servem de <strong>da</strong>r proveito, nem podem saborear<br />
ao gosto. Aplaca o tempo a ira, despede os motivos <strong>do</strong> temor, dá lugar a<br />
ponderar os acertos, faz discursos sobre os ditames <strong>da</strong> razão, suspende o<br />
apaixona<strong>do</strong>, desterra o enganoso e por fim com ele se alcança tu<strong>do</strong> o que com<br />
aceleração se dificulta. Estai certo, senhor Roberto, que hei-de empenhar to<strong>do</strong><br />
o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> em descobrir novas suas, pois se a vós vos compete o desvelo como<br />
a esposo, a mi me compete igualmente como a seu primeiro vale<strong>do</strong>r.<br />
Obriga<strong>do</strong> a esta vontade se mostrou Roberto e com estas esperanças<br />
mais alivia<strong>do</strong> nos pesares que sentia, que são as esperanças <strong>do</strong>ce manjar <strong>do</strong>s<br />
aflitos, como disse Euripides 770 . Com a âncora simbolizavam os antigos o valor<br />
<strong>da</strong> esperança, como disse Diógenes 771 , porque assi como a nau combati<strong>da</strong> <strong>do</strong>s<br />
mares, persegui<strong>da</strong> <strong>do</strong>s ventos, assalta<strong>da</strong> <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s só no firme <strong>da</strong> âncora<br />
sustenta o proceloso combate para resistir ao violento <strong>do</strong> naufrágio que a<br />
tormenta lhe ameaça, ao arrisca<strong>da</strong> com que a borrasca a perturba, assi na<br />
Cicer., Ad Mar.<br />
Eurip., in Here. fur.<br />
Diog., apud Stob.
836 Padre Mateus Ribeiro<br />
tempestade <strong>da</strong>s aflições não há âncora mais segura que alentar o coração<br />
possa <strong>do</strong> que o refúgio <strong>da</strong> esperança. Abran<strong>do</strong>u o sol o impetuoso de seus<br />
raios, refrescou o dia com a viração, e nos partimos com os cria<strong>do</strong>s e<br />
caça<strong>do</strong>res que levávamos, seguin<strong>do</strong> os vales <strong>do</strong> monte Apenino, que em to<strong>da</strong><br />
a jorna<strong>da</strong> nos assistiu. Tem o Apenino sua origem entre os eminentes roche<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>s montes Alpes, a quem deram tal nome os perpétuos alvores de sua neve.<br />
Daqui, como de pátrio solar de seu nascimento, desce este soberbo monte a<br />
Itália, entran<strong>do</strong> pela Ligúria, como escreve Estrabão 772 , e a divide pelo meio,<br />
ocupan<strong>do</strong> com seus braços os <strong>do</strong>us mares, o Mediterrâneo e o Adriático, a<br />
cujas on<strong>da</strong>s se avizinha. Continuámos a caça, e não sem aproveitar o tempo,<br />
porque a destreza <strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res sindicava <strong>da</strong> lebre mais escondi<strong>da</strong> e <strong>da</strong><br />
perdiz no voo mais arroja<strong>da</strong>, la já o dia declinan<strong>do</strong> aos últimos sintomas de sua<br />
luz, indican<strong>do</strong> os breves perío<strong>do</strong>s de seus resplan<strong>do</strong>res nos desmaios que<br />
seus raios padeciam, quan<strong>do</strong> avistámos a sumptuosa quinta de Feliciano, que<br />
em companhia de Antíoco, seu grande amigo, passeavam em uma fermosa<br />
varan<strong>da</strong> que para o rio caía. Ao estron<strong>do</strong> que os caça<strong>do</strong>res fizeram disparan<strong>do</strong><br />
e os cães que levávamos latin<strong>do</strong>, acudiram ambos a ver quem os <strong>da</strong> caça<br />
eram, e conhecen<strong>do</strong> a Roberto, de quem Antíoco era amigo, e conhecen<strong>do</strong>-me<br />
a mi, nos saíram ao caminho a oferecer-nos o hospício, porque começavam já<br />
os ares a pardejar o diáfano com as vizinhanças <strong>da</strong> noite.<br />
Aceitámos o oferecimento, vista a ocasião e o irmos de caça com<br />
abundância provi<strong>do</strong>s, e ain<strong>da</strong> que o não fôramos, a riqueza de Feliciano e o<br />
esta<strong>do</strong> com que se tratava era tal que para tu<strong>do</strong> estava sempre apercebi<strong>do</strong>.<br />
Desmontámos na quinta e subimos acima; confesso que com a vista de<br />
Feliciano me saíram novas cores ao rosto: traje de que costuma a paixão <strong>da</strong><br />
ofensa rebuçar o agrava<strong>do</strong> na presença <strong>do</strong> ofensor. To<strong>do</strong>s os ofendi<strong>do</strong>s, diz<br />
Cícero 773 , podem padecer invasões <strong>da</strong> ira, e mais ten<strong>do</strong> por objecto <strong>da</strong> vista a<br />
pessoa de quem se queixa a memória que o agravou. Também Feliciano se<br />
mostrou ao repentino de minha vin<strong>da</strong> perturba<strong>do</strong>, pois o remorso de uma<br />
ofensa, como diz Quintiliano 774 , vem a ser mil testemunhas de um delito. É a<br />
Stra., Lib. 5.<br />
Cie, Pro Lael.<br />
Qui., Dec. 9.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 837<br />
consciência que acrimina a um agravo, disse Cícero , o mais incomparável<br />
peso e o gravame mais oneroso. Dissimulei o sentimento o mais que pude no<br />
semblante, sen<strong>do</strong> hipócrita <strong>da</strong> alegria, ten<strong>do</strong> o vivo <strong>da</strong> mágoa no coração.<br />
Disfarçou também Feliciano no urbano <strong>da</strong> cortesia o interior de culpa, suprin<strong>do</strong><br />
com o excesso <strong>do</strong> agasalho com que nos hospe<strong>do</strong>u os deméritos que a<br />
consciência fiscal de sua ousadia lhe culpava. É prudência o <strong>da</strong>r-se por<br />
desentendi<strong>do</strong> <strong>do</strong> agravo quan<strong>do</strong> dele se espera oculta satisfação; porque<br />
talvez a queixa serve de exasperar o que a vontade deseja satisfazer sem<br />
conten<strong>da</strong>s.<br />
Passou-se a maior parte <strong>da</strong> noite em vária conversação e no esplêndi<strong>do</strong><br />
aparato com que nos banqueteou e aos caça<strong>do</strong>res que nos acompanhavam,<br />
porque tinha tanto de liberal como de rico, vencen<strong>do</strong> a impossibili<strong>da</strong>de que<br />
Aristóteles 776 escreve, dizen<strong>do</strong> não ser possível o ser rico aquele que é liberal:<br />
porque a riqueza consiste em conservá-la e a liberali<strong>da</strong>de tem por objecto o<br />
despendê-la. Contu<strong>do</strong> exceptuava-se Feliciano desta regra, porque quanto<br />
mais gastava, mais enriqueci<strong>do</strong> se via. Para divertir o tempo em discreta<br />
conversação, que é o político divertimento <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, introduziu Antíoco a<br />
prática seguinte:<br />
- Na ci<strong>da</strong>de de Sarafina, que <strong>da</strong>qui poucas léguas se vê situa<strong>da</strong> nas<br />
raízes <strong>do</strong> monte Apenino, pátria de Plauto, poeta cómico que com o engenhoso<br />
de seus poemas a ilustrou tanto, sen<strong>do</strong> de sítio pequena, que foi maior a fama<br />
de seus versos <strong>do</strong> que o circuito limita<strong>do</strong> de seus muros, de quem tratam<br />
Políbio 777 , Plínio 778 e outros autores; veio há poucos dias a ser mora<strong>do</strong>ra uma<br />
moça forasteira, pastora no traje e cortesã no brio.<br />
Dizem que se chama Jacinta, e com razão, pois quanto tem de pedra na<br />
dureza, tanto tem de preciosa na vista. Empenhou-se Abril em copiar seu rosto<br />
e desmaiaram os pincéis de suas flores, sen<strong>do</strong> grosseiras as tintas para o fino<br />
e aprendiz o pintor para o retrato; porém que muito, se nunca pode o terreno<br />
com cores mortas copiar os extremos de fermosura tão viva? O traje não<br />
Cie, Lib. 3. Denat. Deor.<br />
Ar., Eth. 5.<br />
Pol., Lib. 2.<br />
Plin., in Reg. 6.
838 Padre Mateus Ribeiro<br />
condiz com a beleza, nem o garbo com o montanhês, porque parece nela<br />
violenta<strong>do</strong> o tosco de que se traja e o <strong>do</strong>naire de que se veste natural. Tem<br />
tantas aparências de senhora e tantos disfarces de aldeã que duvi<strong>do</strong>sa a vista<br />
neste anima<strong>do</strong> enigma <strong>da</strong> beleza erra quan<strong>do</strong> quer conhecê-la e acerta quan<strong>do</strong><br />
presume ignorá-la. Representa o montanhês e encobre o afi<strong>da</strong>lga<strong>do</strong>: e o tosco<br />
e o cortesão estan<strong>do</strong> nela tão uni<strong>do</strong>s, vivem de to<strong>do</strong> separa<strong>do</strong>s. Parece que<br />
guar<strong>do</strong>u respeitos o sol a sua candidez, pois nunca se atreveu a ofendê-la, que<br />
como tem simpatia com seus raios, sempre foi privilegia<strong>da</strong> quem deles nunca<br />
se temeu ser ofendi<strong>da</strong>. Veio Jacinta a Sarafina guia<strong>da</strong> de sua fortuna, pois<br />
sobrava o ser tão bela para não ser venturosa, veio, digo, a <strong>da</strong>r inveja às<br />
pastoras, aos lavra<strong>do</strong>res cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e aos cortesãos desvelos: grandes atributos<br />
<strong>da</strong> fermosura, ocupar no mesmo tempo tantos juízos que a admirem e tantas<br />
vontades que a amem. Nunca se vê alegre e muitas vezes chorosa: singular<br />
privilégio <strong>da</strong> beleza, nem a tristeza lhe roubar a admiração, nem as lágrimas<br />
lhe embargarem os triunfos.<br />
Raras vezes deixa ver-se, não sei se por homizia<strong>da</strong> <strong>do</strong>s que mata, se<br />
por não compadecer-se <strong>do</strong>s que morrem; regateiam seus olhos suas luzes,<br />
sen<strong>do</strong> para pastora excessivo o recato e para cortesã muita clausura. Não diz<br />
de que pátria é, ou por grande ou por pequena; sen<strong>do</strong> assi que o declará-la, se<br />
pequena, a fazia grande e, se grande, com tal filha ficava sen<strong>do</strong> maior. Sobre a<br />
pátria <strong>do</strong> poeta Homero sete ci<strong>da</strong>des de Grécia contenderam sobre qual por<br />
filho o tinha, e sobre Jacinta pode contender to<strong>da</strong> Itália sobre qual por filha a<br />
tem. Dizem que desembarcou de uma barca passageira nas areias <strong>do</strong>ura<strong>da</strong>s,<br />
aonde o Adriático mar quebra o empola<strong>do</strong> furor de suas on<strong>da</strong>s; e se fingiram<br />
que Vénus nasceu de escuma, que muito que Jacinta saia <strong>do</strong> mar? Porque<br />
nem Vénus foi mais bela na pintura <strong>do</strong> que Jacinta o fica sen<strong>do</strong> na ver<strong>da</strong>de.<br />
Cobria com um véu azul o belo rosto; mas que importava encobrir-se a<br />
fermosura, quan<strong>do</strong> o sol entre nuvens fere mais e o azul entre luzes cobre<br />
menos?<br />
Dizem que caminhou solitária até Sarafina ao tempo que ia recolhen<strong>do</strong> o<br />
sol seus resplan<strong>do</strong>res, conhecen<strong>do</strong> que aonde estavam os olhos de Jacinta,<br />
ficavam sen<strong>do</strong> desperdícios ao dia os maiores calibres de seus raios. Saiu a<br />
lua por vê-la, que sempre a novi<strong>da</strong>de traz por companheiro ao alvoroço;<br />
novi<strong>da</strong>de, digo, de ver ensaian<strong>do</strong> a representação <strong>da</strong> pastora forasteira quem
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 839<br />
tinha tanto garbo de senhora. Pediu gasalho em um casal que fica pouco<br />
distante de Sarafina: saíram a recebê-la e se admiraram quantas pessoas no<br />
casal assistiam, ven<strong>do</strong> reduzi<strong>do</strong> ao pastoril a mais rara lindeza cortesã! Era<br />
<strong>do</strong>no <strong>do</strong> casal um lavra<strong>do</strong>r rico e ancião e tinha uma filha que se chamava<br />
Doroteia, com fama de bem pareci<strong>da</strong>, enquanto Jacinta não apareceu. Há<br />
cousas que tem ousadia para luzirem enquanto maior resplan<strong>do</strong>r não se<br />
descobre; porque nas ausências <strong>do</strong> sol ain<strong>da</strong> a estrela mais pequena tem<br />
confiança para brilhar de noite, e de dia nem a lua, com to<strong>da</strong> a esfera de sua<br />
luz, a mostrar que é luminar se atreve.<br />
Recebeu Doroteia a Jacinta com admiração e com inveja: sempre esta<br />
an<strong>da</strong> uni<strong>da</strong> à admiração, diz Séneca 779 , nunca sen<strong>do</strong> motivo de emulação o<br />
que não causa incentivos ao espanto. Porém foi vitória <strong>da</strong> fermosura em<br />
Jacinta o ser inveja<strong>da</strong> e o ser queri<strong>da</strong>. To<strong>da</strong>s as pastoras a invejaram e to<strong>da</strong>s<br />
por amiga a quiseram, pedin<strong>do</strong>-lhe não se ausentasse de seus campos, pois<br />
era deles a gala mais vistosa. O profun<strong>do</strong> <strong>da</strong> tristeza e as lágrimas que a<br />
intervalos indicavam sua <strong>do</strong>r, o nunca se ver alegre quem parece que só podia<br />
viver com a alegria, trazia desvela<strong>do</strong>s os juízos, não acertan<strong>do</strong> o discurso<br />
investigan<strong>do</strong> a causa sem cautela. O raro <strong>do</strong> aparecer, o desprezar os<br />
louvores, o não atender aos encómios com que os pastores a celebram, se<br />
bem versos montanheses com conceitos cortesãos, toscos para lima<strong>do</strong>s e<br />
amantes para encareci<strong>do</strong>s, o não responder a casamentos que se lhe tem<br />
ofereci<strong>do</strong>, que outras julgariam por ventura e ela avalia por agravos, o estar<br />
sempre com desejos de partir-se, violentan<strong>do</strong> o gosto à assistência, o não<br />
declarar quem é mais que o que se deixa conjecturar de sua vista, extremos no<br />
parecer e insólito portento no sentir, de sorte traz enlea<strong>do</strong>s os juízos e<br />
vacilantes os discursos <strong>da</strong> pastoril academia destes campos que os faz o<br />
desejo estudiosos de puderem definir o que não conhecem deste anima<strong>do</strong><br />
labirinto a quem saí<strong>da</strong> não alcançam. Tantos encarecimentos publica<strong>do</strong>s,<br />
tantas exagerações repeti<strong>da</strong>s me obrigaram a ver este portento, pois breve<br />
distância desta quinta a Sarafina havia.<br />
Informei-me <strong>do</strong> casal, que vizinho à ci<strong>da</strong>de fica, cheguei a pedir nele<br />
água, e vi de repente mais <strong>do</strong> que pudera ver cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so, se bem descen<strong>do</strong> o<br />
Sen., De vit. beat.
840 Padre Mateus Ribeiro<br />
véu com pressa ao rosto, só deixou descobertos os olhos, e neles manifestou<br />
to<strong>do</strong> o agra<strong>do</strong>, pois a beleza to<strong>da</strong> está nos olhos. Fiz-lhe algumas perguntas e<br />
respondeu a poucas, porém com rodeios tão discretos que bem se via neles<br />
seu juízo, pois deixan<strong>do</strong>-me nas dúvi<strong>da</strong>s com que fui em desejar saber quem<br />
era, conheci só que o traje era rebuço de uma alma mui senhoril. Despediu-se<br />
cortês, dizen<strong>do</strong> a Doroteia me viesse <strong>da</strong>r a água que pedia, a quem perguntei o<br />
que dela sabia e me deu só as notícias que referi<strong>do</strong> tenho.<br />
Cap. XIII.<br />
Como Lisar<strong>do</strong> conheceu que Jacinta era Lívia, a esposa de Roberto, e <strong>do</strong> que<br />
nisso sucedeu e se ajustou o casamento de Feliciano com Florisela<br />
Com a relação que Antíoco fez <strong>da</strong> fermosura de Jacinta houve em mim e<br />
em Roberto diferentes efeitos, porque eu logo entendi que era Lívia, que assi<br />
como havia mu<strong>da</strong><strong>do</strong> de traje, mu<strong>da</strong>ria de nome para encobrir-se melhor. E se,<br />
como disse Platão 780 , se devem escolher os nomes mais fermosos e<br />
agradáveis, boa eleição fez Lívia no de Jacinta, pois lhe competia não menos<br />
pela beleza <strong>do</strong> que pela constância. É a Jacinta pedra mui preciosa que tomou<br />
o nome na flor a quem retrata nas cores. De suas proprie<strong>da</strong>des escrevem<br />
vários autores, como são Aristóteles 781 , Plínio 782 , Solino 783 , Alberto 784 e outros.<br />
Abaixo <strong>do</strong> diamante é <strong>da</strong>s pedras preciosas a mais firme, desterra as tristezas,<br />
afugenta as suspeitas e ilusões <strong>da</strong> fantasia e incita a serem bem recebi<strong>do</strong>s nos<br />
hospícios os que a trazem. To<strong>da</strong>s estas proprie<strong>da</strong>des competiam a Lívia no<br />
suposto nome de Jacinta. Da flor a fermosura, <strong>da</strong> pedra o airoso <strong>da</strong> cor e a<br />
firmeza <strong>do</strong> amor para com Roberto, seu esposo, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> dele mais<br />
ofendi<strong>da</strong>, o desterrar as suspeitas ciosas de Roberto, de que já se mostrava<br />
780 Plat., De sap.<br />
781 Ar., De lap.<br />
782 Plin., Lib.17.c.9.<br />
783 Sol., c. 42.<br />
784 Alb., Lib .2. c. 8.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 841<br />
desengana<strong>do</strong> e pesaroso, e ser bem recebi<strong>da</strong> de quem a hospe<strong>da</strong>va; mas<br />
quan<strong>do</strong> foi menos aceita a discrição e a fermosura?<br />
Bem conheci eu logo que sem dúvi<strong>da</strong> era Lívia disfarça<strong>da</strong> Jacinta,<br />
porque to<strong>da</strong>s as proprie<strong>da</strong>des que Antíoco referia só nela condiziam. O ser<br />
com extremos bela, a discrição, o traje pastoril em que se tinha disfarça<strong>do</strong>, o<br />
sen<strong>da</strong>l azul que lhe servia de véu e de rebuço, o não manifestar a pátria <strong>do</strong>nde<br />
fosse, a tristeza tão profun<strong>da</strong>, as lágrimas que chorava, o fazer ludíbrio <strong>do</strong>s<br />
casamentos que se lhe ofereciam, o recatar-se tanto de ser vista, sen<strong>do</strong><br />
assombrosa admiração <strong>do</strong> parecer: to<strong>do</strong>s estes atributos em quem podiam<br />
achar-se senão em Lívia? Pastora tão senhoril na bizarria ou senhora tão<br />
disfarça<strong>da</strong> em montanhesa, para aldeã tão poli<strong>da</strong> e para cortesã tão<br />
camponesa, tirar tanto ao nativo de briosa em tão tosco traje montanhês não<br />
podia achar-se senão em Lívia, a quem o nascimento fez senhora e a fortuna<br />
tinha conduzi<strong>do</strong> a aldeã.<br />
Assi como Antíoco deu fim a sua prática, lhe respondi eu:<br />
- Na ver<strong>da</strong>de, senhor Antíoco, que se os encarecimentos que dessa<br />
pastora referis igualam com a reali<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s merecimentos <strong>da</strong> pastora que<br />
tanto louvais, com razão fica sen<strong>do</strong> enigma para os juízos e labirinto para os<br />
discursos. Porém como se costuma dizer que <strong>da</strong>s exagerações que entram<br />
pelos ouvi<strong>do</strong>s se deve apelar para o tribunal <strong>do</strong>s olhos, para que determine a<br />
vista os escrúpulos que se oferecem à razão e ver se condizem a experiência<br />
com a fama, bem desejara eu desenganar-me se os louvores foram hipérboles<br />
<strong>da</strong> cortesia ou testemunhas <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Encontram-se os atributos tanto entre<br />
si que parece que fazem duvi<strong>do</strong>sa a ver<strong>da</strong>de. Tu<strong>do</strong> Jacinta tem de senhora e<br />
só o traje de montanhesa? Tanto de fermosura para manifestar-se e tanta<br />
cautela em esconder-se? Nos mesmos olhos, tanto <strong>do</strong>naire e tantas lágrimas<br />
nos olhos? O brio tão senhoril e o traje tão abati<strong>do</strong>? Tão queixosa <strong>da</strong> ventura e<br />
tão despreza<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s acertos que a ventura lhe oferece? De to<strong>do</strong>s inveja<strong>da</strong> e<br />
ser de to<strong>do</strong>s queri<strong>da</strong>? Padece tantas contradições esta ver<strong>da</strong>de que ou se ha<br />
de crer por cortesia de quem a diz, ou se há-de confirmar pela vista de quem a<br />
ouve. E assi eu e o senhor Roberto, pois an<strong>da</strong>mos no divertimento desta<br />
caça<strong>da</strong>, iremos de manhã continuan<strong>do</strong>-a até Sarafina para vermos essa<br />
maravilha, pois to<strong>da</strong> a novi<strong>da</strong>de leva consigo a admiração por companhia.
842 Padre Mateus Ribeiro<br />
- Não se perderá pela nossa (respondeu Antíoco), que eu e o senhor<br />
Feliciano vos acompanharemos a Sarafina e vereis por desengano o que<br />
duvi<strong>da</strong>is por referi<strong>do</strong>.<br />
cortesia.<br />
Agradecemos-lhes a oferta, pois o rejeitá-la encontrava os ditames <strong>da</strong><br />
Depois de nesta e outras conversações se despender grande parte <strong>da</strong><br />
noite, nos retirámos eu e Roberto ao quarto que nos estava prepara<strong>do</strong>, que em<br />
tu<strong>do</strong> mostrava a riqueza e o esta<strong>do</strong> de Feliciano. Retira<strong>do</strong> eu e Roberto, lhe<br />
disse assi:<br />
- Bem posso, senhor Roberto, pedir-vos as alvíssaras <strong>do</strong> aparecimento<br />
<strong>da</strong> senhora Lívia, vossa esposa, encoberta no disfarce de pastora Jacinta, em<br />
quem mu<strong>do</strong>u o nome com o traje. Sempre as venturas vem quan<strong>do</strong> menos<br />
espera<strong>da</strong>s, que não costuma a fortuna fazer proémios aos favores, nem as<br />
desgraças. Inopina<strong>da</strong>mente arruina e sem que se solicite levanta. Talvez esta<br />
seria a razão por que o Séneca 785 chamou à ventura inquieta, porque de súbito<br />
vem e improvisamente outras vezes se ausenta. Proveitosa cousa é, diz<br />
Plínio 786 , quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s infortúnios se passa às alegrias, porque a entra<strong>da</strong> mais<br />
segura para perseverarem é quan<strong>do</strong> a porta tem as bases nas tristezas. A vós<br />
e a vossa esposa compete esta sentença: a ela pelos sustos e mágoas que<br />
com ânimo invicto tem padeci<strong>do</strong> e a vós pelos pesares e sentimentos que<br />
tendes experimenta<strong>do</strong>. É a memória <strong>do</strong>s trabalhos passa<strong>do</strong>s deliciosa lisonja<br />
<strong>da</strong>s alegrias quan<strong>do</strong> se possuem presentes, diz Cícero 787 ; porque para se<br />
saberem estimar as bonanças, servem de palestra à estimação os naufrágios<br />
padeci<strong>do</strong>s. Assi na posse de seu e vosso descanso serão repeti<strong>do</strong>s os<br />
aplausos no logro <strong>da</strong>s seguras alegrias. Nestas vos espero ver em breves<br />
horas com o favor divino, para que vossa esposa tome porto no mar de sua<br />
ânsia e vós no proceloso de vossos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s.<br />
- Quan<strong>do</strong> assi seja (respondeu Roberto), sempre vos ficarei deve<strong>do</strong>r<br />
dessa ventura. Porém considero tantas dificul<strong>da</strong>des para a certeza que mal<br />
posso admiti-la sem receios de que Jacinta possa ser Lívia. Pastora no traje e<br />
Sen., Ep. 119.<br />
Plin. Jun., in Pan.<br />
Cie, Ad. Luc.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 843<br />
Jacinta no nome, vin<strong>do</strong> a desembarcar nas ribeiras <strong>do</strong> mar Adriático uma moça<br />
tão mimosa para os caminhos, quanto mais para navegações marítimas, para<br />
as quais, como disse Horácio 788 , é necessário peito de ferro e coração de aço.<br />
E Plínio 789 chama ao atrevimento <strong>da</strong> navegação temerária ousadia e delírio <strong>da</strong><br />
natureza humana, pois, como diz Lucrécio 790 , ca<strong>da</strong> dia arroja o mar em suas<br />
praias mil naufragantes despojos em castigo de iguais atrevimentos. O assistir<br />
no casal de Sarafina, sem passar a procurar-vos em Cesena, lugar para onde<br />
apelavam minhas derrota<strong>da</strong>s esperanças em tão repeti<strong>da</strong>s diligências, são<br />
motivos to<strong>do</strong>s que me não concedem celebrar os festivos aplausos deste<br />
acha<strong>do</strong>, por me escrupulizarem a ventura que vós abonais por tão cabal.<br />
- Vós vereis (disse eu), senhor Roberto, em como não me engana o<br />
coração no que vos afirmo e que esta Jacinta é vossa esposa, e que tu<strong>do</strong> o<br />
mais são reparos <strong>do</strong> temor, de que amanhã vereis claro o desengano.<br />
Oh quem pudera aligeirar os luzi<strong>do</strong>s passos à aurora e desterrar <strong>da</strong> noite<br />
a caliginosa duração, adiantar os privilégios ao dia e que, sem as demoras e<br />
odiosos vagares que retar<strong>da</strong>m seus resplan<strong>do</strong>res, usurpasse à noite a lôbrega<br />
jurisdição de alojar tão demorosa neste hemisfério o enluta<strong>do</strong> esquadrão de<br />
suas trevas! Os poucos que <strong>da</strong> noite restavam intervalos careci<strong>do</strong>s de luz,<br />
porque o alvoroço de to<strong>do</strong> repudiou o sono, despendemos em traçar o como<br />
Lívia, sem <strong>da</strong>r-se a conhecer a Feliciano e Antíoco, pudesse vir a casa de<br />
minha mãe, para <strong>da</strong>í com o decoro devi<strong>do</strong> em minha companhia e a de seu<br />
esposo pudesse vir para Bolonha sem se divulgar o trágico de seu retiro.<br />
Apenas a equívoca luz <strong>do</strong>s primeiros assomos <strong>da</strong> aurora deu lugar a<br />
ponderar-se se o que ao nascente se via eram sombras traja<strong>da</strong>s de luzes ou<br />
eram luzes enluta<strong>da</strong>s de sombras, se era engano <strong>da</strong> vista uma sombra que mal<br />
se conhece ou uma luz que mal se divisa, uma retira<strong>da</strong> sem batalha ou uma<br />
vitória sem guerra, um descui<strong>do</strong> nas atalaias de estrelas já de tanto velar<br />
enfraqueci<strong>da</strong>s ou um assalto repentino que acometia ao exército <strong>da</strong>s sombras,<br />
e finalmente uma questão indecisa se o que se via eram as despedi<strong>da</strong>s com<br />
que marchava desaloja<strong>da</strong> a noite ou eram os brosla<strong>do</strong>s reposteiros com que se<br />
Hor., Lib. 1. Ode 3.<br />
Plin., Lib. 9. in Proe.<br />
Luc, Lib. 2. De nat. rerum.
844 Padre Mateus Ribeiro<br />
avizinhava o dia; eu e Roberto, que desvela<strong>do</strong>s estávamos, chamámos aos<br />
caça<strong>do</strong>res para que se apressassem para partirmos, a cujas vozes<br />
despertan<strong>do</strong> Antíoco e Feliciano fizeram o mesmo, e em breve montan<strong>do</strong> a<br />
cavalo os quatro, segui<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res e assisti<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s que eram<br />
<strong>do</strong>ze, antes que a aurora tivesse de to<strong>do</strong> aclama<strong>do</strong> o triunfo de seus matutinos<br />
resplan<strong>do</strong>res, começámos a caminhar pelas fragosas raízes <strong>do</strong> monte Apenino,<br />
penhascoso sítio, sempre ocasiona<strong>do</strong> em Itália a ser asilo de temerários<br />
atrevimentos, como em tantas ocasiões se tem visto e nesta presente<br />
confirmou o sucesso que direi.<br />
Diverti<strong>do</strong>s com os reclamos <strong>da</strong> caça que os caça<strong>do</strong>res buscavam, lisonja<br />
<strong>do</strong> caminho para sentir-se menos, íamos seguin<strong>do</strong> o de Sarafina, que as raízes<br />
<strong>do</strong> eminente monte em partes atravessa, quan<strong>do</strong> de repente ouvimos umas<br />
vozes lastimosas de mulher que se queixava e socorro pedia. Apressámos os<br />
cavalos para o lugar <strong>do</strong>nde as vozes saíam e os caça<strong>do</strong>res e cria<strong>do</strong>s em nosso<br />
seguimento, quan<strong>do</strong> no profun<strong>do</strong> de um vale de arvore<strong>do</strong> silvestre sitia<strong>do</strong> e<br />
com o denso de seus teci<strong>do</strong>s ramos escondi<strong>do</strong>s vimos oito homens que no<br />
traje <strong>da</strong>s armas e desaforo logo pareciam ban<strong>do</strong>leiros que com violência<br />
traziam duas pastoras, obrigan<strong>do</strong>-as a que caminhassem e elas já com<br />
lágrimas, já com vozes, aos odiosos passos resistin<strong>do</strong>. À vista desta insolência,<br />
foragi<strong>do</strong> insulto e detestável tirania, a to<strong>do</strong> o correr <strong>do</strong>s cavalos e prepara<strong>da</strong>s<br />
as espingar<strong>da</strong>s os investimos e a <strong>do</strong>us deles, que mais vizinhos às pastoras<br />
estavam e parece que com mais violenta instância a caminhar as impeliam, mal<br />
feri<strong>do</strong>s de <strong>do</strong>us tiros caíram logo em terra. Queriam os seus companheiros pôr-<br />
se em resistência; porém ven<strong>do</strong> acudir a tropa <strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res e cria<strong>do</strong>s,<br />
trataram de porem na ligeireza <strong>da</strong> fugi<strong>da</strong> a esperança de escaparem com vi<strong>da</strong>,<br />
que de outra sorte não lhes assegurava o temor, nem o insultuoso de seus<br />
delitos. Emboscaram-se pelo fragoso <strong>do</strong> monte e não tratámos de os seguir por<br />
atender às duas pastoras que desalenta<strong>da</strong>s estavam <strong>do</strong> susto em que se<br />
tinham visto, pois, como diz Ovídio 791 , um temor grande to<strong>da</strong>s as forças rouba<br />
e o alenta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s vitais espíritos perturba. Uma <strong>da</strong>s pastoras lançou um sen<strong>da</strong>l<br />
azul sobre o rosto ao tempo que aos ban<strong>do</strong>leiros investimos, por onde conheci<br />
Ovid., Ep. 13.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 845<br />
logo e pelo traje que era Lívia; a outra companheira foi logo de Antíoco<br />
conheci<strong>da</strong> ser Doroteia, a filha <strong>do</strong> lavra<strong>do</strong>r aonde a disfarça<strong>da</strong> Jacinta estava.<br />
Mal se pudera explicar com palavras a admiração que a to<strong>do</strong>s ocupou a<br />
novi<strong>da</strong>de presente, sen<strong>do</strong> <strong>do</strong> próprio espanto diversos os motivos que o<br />
causavam. Suspendem-se as palavras, diz Quintiliano 792 , na presença <strong>da</strong>s<br />
admirações, negan<strong>do</strong> a alma absorta no espanto as operações à voz para<br />
produzir a locução. O primeiro que desmontou <strong>do</strong> cavalo fui eu, e chegan<strong>do</strong> a<br />
Lívia, em submissa voz lhe disse se não desse a conhecer senão por Jacinta,<br />
como se nomeava, porque assi convinha, nem temesse ser ofendi<strong>da</strong>, porque<br />
Roberto, seu esposo, arrependi<strong>do</strong> <strong>da</strong>s passa<strong>da</strong>s desconfianças, em minha<br />
companhia para lhe pedir perdão de seu indiscreto furor a buscava.<br />
Desmontou ele com os <strong>do</strong>us companheiros, e perguntan<strong>do</strong> às pastoras<br />
se os ban<strong>do</strong>leiros lhes haviam feito alguma outra ofensa mais que o roubá-las<br />
de sua casa, responderam ambas que não; mas que ven<strong>do</strong> com a luz <strong>da</strong><br />
manhã o fragoso <strong>do</strong> monte por onde as iam levan<strong>do</strong>, determinaram perderem<br />
antes a vi<strong>da</strong>s <strong>do</strong> que passarem adiante; e assi deram vozes por ver se alguém<br />
as socorria nesta honrosa resolução, como permitiu Deus socorrê-las com sua<br />
chega<strong>da</strong> em ocasião tão propícia a perigo tão evidente de serem mortas antes<br />
que viola<strong>da</strong>s <strong>da</strong>queles atrevi<strong>do</strong>s, porque com eles não haviam de <strong>da</strong>r mais<br />
passos adiante. Quisemos vingar o desaforo com acabar as vi<strong>da</strong>s nos <strong>do</strong>us<br />
foragi<strong>do</strong>s que <strong>da</strong>s balas estavam jarreta<strong>do</strong>s em terra, como eram os principais<br />
cabeças <strong>do</strong> insulto e <strong>da</strong> quadrilha <strong>do</strong>s que fugiram; e arrancan<strong>do</strong> as espa<strong>da</strong>s,<br />
fomos para lhes <strong>da</strong>r a morte, quan<strong>do</strong> um deles pon<strong>do</strong>-se de joelhos, me disse<br />
estas palavras:<br />
- Suspendei, senhor Lisar<strong>do</strong> Martelino, a espa<strong>da</strong> que o braço rigoroso<br />
move e ouvi ao infelice Constantino que já convosco cursou os estu<strong>do</strong>s em<br />
Bolonha há poucos anos.<br />
A estas palavras abaixan<strong>do</strong> a espa<strong>da</strong>, reparei no rosto <strong>do</strong> foragi<strong>do</strong>; e<br />
suposto que descora<strong>do</strong> pela falta <strong>do</strong> sangue que <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s corria, vim a<br />
conhecer que era Constantino Tibúrcio, natural de Bolonha, que acabava quasi<br />
os últimos anos de Direito Civil quan<strong>do</strong> eu <strong>da</strong>va princípios aos primeiros de<br />
meu estu<strong>do</strong>. Também o conheceu Roberto como natural de Bolonha, que<br />
Qui., Dec. 9.
846 Padre Mateus Ribeiro<br />
suposto havia tempo que dela faltava, não tínhamos notícia que em tão odioso<br />
exercício diverti<strong>do</strong> an<strong>da</strong>sse. Levantámo-lo em braços para que se assentasse,<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe <strong>do</strong>ces e vinho que <strong>do</strong> provimento que na repostaria para os dias <strong>da</strong><br />
caça<strong>da</strong> levávamos, apertan<strong>do</strong>-lhe as feri<strong>da</strong>s a ele e ao companheiro para se<br />
lhes estancar o sangue que as feri<strong>da</strong>s copiosamente derramavam; e ven<strong>do</strong> que<br />
se mostrava com mais alento, assenta<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s junto dele, lhe falei assi:<br />
- É o desconhecimento a ocasião e a desculpa <strong>do</strong>s perigos. Ignorar, diz<br />
Aristóteles 793 , o que a to<strong>do</strong>s convém saber é culpa, porque é mostrar descui<strong>do</strong><br />
no que de to<strong>do</strong> é preciso que se conheça. Porém mostrar ignorância no que<br />
não é conhecível à obrigação, diz Cícero 794 , não admite censura por não saber-<br />
se. Quem havia de avisar-me a mi, Constantino, que haven<strong>do</strong>-vos visto nas<br />
escolas de Bolonha tão estudioso, vos encontrasse nos fragosos penhascos <strong>do</strong><br />
Apenino, monte tão dissoluto? Que simpatia tem as leis que estu<strong>da</strong>stes com as<br />
insolências que seguis? O estu<strong>da</strong>r para castigar delitos com o cometê-los? O<br />
pacífico <strong>da</strong>s academias com o saltear as estra<strong>da</strong>s? A profissão <strong>da</strong>s letras com<br />
roubar passageiros? E finalmente o des<strong>do</strong>urar a vossos pais e desautorizardes<br />
vossa pátria, poden<strong>do</strong> com o que estu<strong>da</strong>stes servir a ela de lustre e a eles de<br />
honra? Não vos lembra que diz Cícero 795 que ao saltea<strong>do</strong>r e ao trai<strong>do</strong>r to<strong>da</strong> a<br />
morte que se lhes der é justamente mereci<strong>da</strong>? Porque é tão odioso o vício de<br />
roubar que lhe atribui Aristóteles 796 to<strong>do</strong>s os vícios; e disse Santo Agostinho 797<br />
que se o furto sempre é aborreci<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> o rouba<strong>do</strong> o ignora, que será<br />
quan<strong>do</strong> violentamente se executa? Para tão vil exercício vos desvelastes nos<br />
livros, resistin<strong>do</strong> ao sono <strong>da</strong> noite e aos frios e calmas de dia? Para tal fruto<br />
despendestes o flori<strong>do</strong> <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de em decorar as leis, em explorar <strong>do</strong>s textos o<br />
senti<strong>do</strong>, em investigar <strong>do</strong>s legisla<strong>do</strong>res a tenção, em explicar <strong>do</strong>s imperiais<br />
decretos o direito, em copiardes <strong>da</strong>s <strong>do</strong>ze tábuas que os romanos de Atenas<br />
trouxeram o justo estabelecimento <strong>da</strong>s leis que aos atenienses deu Sólon?<br />
Ver<strong>da</strong>deiramente que ao considerardes como a razão o pede, mais poderoso<br />
Arist., Rhetor. 2.<br />
Cie, 3. Tusc.<br />
Cicer., Pro Mil.<br />
Arist., Rhetor. 2.<br />
S. Aug., in Serm.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 847<br />
podia ser o pesar para tirar-vos a vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> que foram poderosas as balas para<br />
ocasionar-vos a morte.<br />
É a recor<strong>da</strong>ção, diz Platão 798 , uma palestra em que os discursos argúem<br />
com a memória sobre as operações bem ou mal emprega<strong>da</strong>s, comparan<strong>do</strong> o<br />
tempo presente com o passa<strong>do</strong>; e seria bastante para causar a mais intolerável<br />
pena a recor<strong>da</strong>ção <strong>do</strong> que no estu<strong>do</strong> despendestes e o mal que o<br />
empregastes. E quan<strong>do</strong> não vos excitasse à emen<strong>da</strong> de vi<strong>da</strong> tão distraí<strong>da</strong>, ao<br />
menos o pejo de obras tão indecorosas vos movesse a não executar, como diz<br />
Séneca 799 , o vilipêndio escan<strong>da</strong>loso <strong>da</strong> fama de vossos pais e de vossa pátria.<br />
Honrar aos pais é preceito divino e mal os pode honrar quem os desautoriza<br />
com suas obras, queren<strong>do</strong> que sejam odiosos ao povo e estima<strong>do</strong>s com<br />
desprezo por pais de tão infama<strong>do</strong> filho. Man<strong>do</strong>u o sena<strong>do</strong>r romano Lúcio<br />
Antonino matar a seu próprio filho Fúlvio por se ajuntar ao sedicioso Lúcio<br />
Catilina na conjuração que contra Roma intentou, dizen<strong>do</strong> que se pelos insultos<br />
de seu filho ele se havia de ver desonra<strong>do</strong> e entre os sena<strong>do</strong>res abati<strong>do</strong>, mais<br />
decoroso lhe era o carecer de um filho perverso e desobediente <strong>do</strong> que viver<br />
de to<strong>do</strong>s mal visto e despreza<strong>do</strong> por conservar a vi<strong>da</strong> de um filho escan<strong>da</strong>loso.<br />
É a pátria a segun<strong>da</strong> mãe que nos cria e a quem devemos as obrigações<br />
mais dignas de a respeitarmos, defendermos e honrarmos. Poderoso e<br />
favoreci<strong>do</strong> <strong>do</strong> monarca Artaxerxes vivia em Pérsia Temístocles desterra<strong>do</strong> de<br />
Atenas, sua ingrata pátria; e porque o persiano rei lhe man<strong>do</strong>u se preparasse<br />
para vir por general de seu exército a fazer guerra a Atenas, de quem tão<br />
justamente agrava<strong>do</strong> vivia, ele se matou com veneno por não vir hostilmente a<br />
ofender sua pátria, conhecen<strong>do</strong> que era obrigação de filho autorizá-la e não<br />
oprimi-la. Entran<strong>do</strong> Augusto César por conquista na ci<strong>da</strong>de de Alexandria, e<br />
levan<strong>do</strong> pela mão ao filósofo Ario, disse que por amor de tal filho a não destruía<br />
e per<strong>do</strong>ava as vi<strong>da</strong>s aos alexandrinos. E o grande Alexandre man<strong>do</strong>u edificar<br />
de novo a arruina<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Estagirites, aonde Aristóteles nasceu, por honra<br />
e memória <strong>do</strong> filósofo seu mestre. Valério Máximo 800 diz que é emparelha<strong>do</strong><br />
empenho <strong>da</strong> generosi<strong>da</strong>de ou acrescentar à pátria o esplen<strong>do</strong>r e majestade ou,<br />
Plat., in Defin.<br />
Senec, Ep. 25.<br />
Vai. Maxim., Lib. 2.
848 Padre Mateus Ribeiro<br />
ain<strong>da</strong> com recebê-lo em si mesmo, desejar desviar-lhe o nocivo <strong>do</strong> perigo, ou o<br />
desaire <strong>do</strong> risco, ou abatimento que lhe ameaça: como se viu em Múcio<br />
Cévola, Horácio Codes, Marco Atílio Régulo e outros muitos que pelo bem de<br />
sua pátria não temeram exporem as vi<strong>da</strong>s a to<strong>do</strong> o risco; porque, como diz<br />
Cícero 801 , assi como <strong>da</strong> pátria to<strong>da</strong>s as comodi<strong>da</strong>des se tiram, assi pelo bem<br />
<strong>da</strong> pátria nenhum discómo<strong>do</strong> se deve avaliar por grave. Dela disse Santo<br />
Agostinho 802 que há-de ter para com seus filhos título de mãe; e assi como a<br />
quem a seus peitos nos criou devemos obrigações nunca cabalmente pagas,<br />
assi à pátria devemos respeitos a que sempre vivemos obriga<strong>do</strong>s.<br />
Mal pagastes, Constantino, a vossos pais e a vossa pátria as dívi<strong>da</strong>s de<br />
honra<strong>do</strong> filho proceden<strong>do</strong> com vi<strong>da</strong> tão infama<strong>da</strong>. Para vossos pais lágrimas<br />
contínuas e para vossa pátria mágoa incessável. Para vós o maior risco e para<br />
quem vos conheceu nos estu<strong>do</strong>s senti<strong>da</strong> admiração. Vem os trabalhos <strong>da</strong>s<br />
letras tão inutilmente despendi<strong>do</strong>s, e quan<strong>do</strong> com elas os outros se autorizam e<br />
a sua pátria ilustram, vós a ela aviltais e a vós próprio tão arroja<strong>da</strong>mente<br />
desluzis. Ain<strong>da</strong> não satisfeito de roubardes aos passageiros nas estra<strong>da</strong>s,<br />
emprendestes roubar as descui<strong>da</strong><strong>da</strong>s pastoras em seus montes? E as que na<br />
tutela e guar<strong>da</strong> de seus pais se julgavam de desaforos seguras, quisestes que<br />
conhecessem em vós o mais atrevi<strong>do</strong> desaforo? Não advertíeis que para<br />
delitos tão escan<strong>da</strong>losos havia castigos no Céu e justiça na terra? Em que<br />
fundáveis tão cega confiança, quan<strong>do</strong> tantos exemplos se tem visto de castigos<br />
executa<strong>do</strong>s em semelhantes atrevimentos? Em que fim veio a parar Estêvão<br />
Corso, capitão de homizia<strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>leiros, com os quais ocupan<strong>do</strong><br />
violentamente os castelos de Montalto e de Ponticulo, ambos nas terras <strong>da</strong><br />
Igreja, <strong>do</strong>nde com seus facinorosos companheiros saíam pelas estra<strong>da</strong>s e<br />
terras vizinhas a cometerem mil insultos, mortes e latrocínios, até que<br />
ultimamente persegui<strong>do</strong>s pelos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que Roma enviou a seu castigo,<br />
pagaram os que não puderam fugir com violenta e abati<strong>da</strong> morte os desaforos<br />
execráveis que cometi<strong>do</strong> tinham? Em que parou Leão Vetrano, aquele tão<br />
temi<strong>do</strong> cossário e pirata <strong>do</strong> Mediterrâneo e Adriático, <strong>do</strong>s navegantes terror e<br />
<strong>do</strong>s passageiros marítimo assombro, os latrocínios e piratagens que<br />
Cie, 1. De Or.<br />
S.Aug., Lib. 2. De lib. arb.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 849<br />
hostilmente executou nas desprovi<strong>da</strong>s embarcações que os mares surcavam,<br />
sen<strong>do</strong> seu odioso nome horror aos que o ouviam e desmaio aos que o<br />
encontravam, senão em que sen<strong>do</strong> pela arma<strong>da</strong> <strong>da</strong> senhoria de Veneza<br />
desbarata<strong>do</strong> e preso, foi com seus insolentes companheiros enforca<strong>do</strong><br />
afrontosamente nas marítimas praias de Corsira? Estes são os lucros que <strong>da</strong>s<br />
insolências se tiram, estes os frutos que <strong>do</strong>s desaforos se colhem, como vós e<br />
vosso companheiro hoje tivéreis recebi<strong>do</strong> se tão oportunamente vos não dáveis<br />
a conhecer por condiscípulo de meu estu<strong>do</strong> e a cortesia destes senhores me<br />
não fizera o favor de per<strong>do</strong>ar-vos as vi<strong>da</strong>s, que se é para as melhorardes, não<br />
é pequeno benefício.<br />
Ansia<strong>do</strong> atendeu Constantino à minha exortação, não menos com as<br />
<strong>do</strong>res <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s que com a mágoa de se ver reduzi<strong>do</strong> a esta<strong>do</strong> tão miserável<br />
que desculpar-se não pudesse, nem de minha presença ausentar-se; porque o<br />
insultuoso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em que o achei não admitia desculpa e para se ausentar<br />
estava incapaz, ten<strong>do</strong> um joelho e um braço jarreta<strong>do</strong> <strong>da</strong>s balas com que foi<br />
feri<strong>do</strong> e o companheiro passa<strong>do</strong> pelo peito e por um braço: e a <strong>do</strong> peito era<br />
feri<strong>da</strong> penetrante, que em poucas horas lhe acabou a vi<strong>da</strong> em um casal<br />
vizinho, aonde o deixámos para se acudir ao remédio de sua alma, pois para a<br />
vi<strong>da</strong> o não tinha. Dizem que era natural de Ravena e havia si<strong>do</strong> sol<strong>da</strong><strong>do</strong> nas<br />
guerras de Milão, <strong>do</strong>nde com o deprava<strong>do</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e repeti<strong>da</strong>s insolências veio<br />
a <strong>da</strong>r em ban<strong>do</strong>leiro com outros criminosos que se lhe ajuntaram, entre os<br />
quais foi Constantino, que foi o autor de roubarem aquela noite a Jacinta e<br />
Doroteia <strong>da</strong> companhia e casa de seu pai.<br />
Ouviu-me Constantino e chorou, não sei se de ver-se tão abati<strong>do</strong> e<br />
feri<strong>do</strong> em minha presença, quan<strong>do</strong> eu em Bolonha em tão diferente esta<strong>do</strong> o<br />
tinha visto, e agora receber a vi<strong>da</strong> de favor, ou se chorava de colérico de não<br />
poder vingar-se, pois para tu<strong>do</strong> as lágrimas equivocaram motivos ao discurso<br />
de quem as via em sujeito tão pouco costuma<strong>do</strong> a compaixão e que pelo<br />
detestável <strong>do</strong>s latrocínios tinha feito divórcio com a pie<strong>da</strong>de; e assi me disse:<br />
- São tantas, senhor Lisar<strong>do</strong>, as calúnias e tribulações que oprimem<br />
meu coração, que para responder me não concedem alento e bem abonam<br />
minhas lágrimas o vivo de minha pena e o extremoso de minha <strong>do</strong>r. Muito tinha<br />
que dizer, não em desculpar o distraí<strong>do</strong> de minha vi<strong>da</strong>, que bem conheço que<br />
não tem desculpa, mas em referir a infausta ocasião que deu motivo a minhas
850 Padre Mateus Ribeiro<br />
desgraças. Porém nem vós, nem estes senhores, em tal sítio podeis com vagar<br />
ouvir-me, nem o aperto em que me vejo me dá lugar para poder declarar os<br />
rodeios por onde se originaram meus infelices pesares. Peço-vos que pois em<br />
vosso peito achou a pie<strong>da</strong>de lugar para me concederes a vi<strong>da</strong>, me mandeis<br />
levar <strong>da</strong>qui aonde se possa assegurar o remédio e respirar meu temor, e então<br />
com mais espaço vos referirei minha vi<strong>da</strong>, esperan<strong>do</strong> de quem sois me não<br />
faltareis com o conselho e com o favor para procurar reduzir-me ao grémio de<br />
que errante me apartou meu protervo discurso e meu inconsidera<strong>do</strong> devaneio.<br />
Assi falou Constantino, e porque a pressa que tínhamos de <strong>da</strong>r<br />
expediência a voltarmos com as pastoras nos esporeava o desejo, as quais<br />
neste intervalo não cessavam de chorar, dei ordem a que um <strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res<br />
tomasse no seu cavalo a Constantino e os outros levassem em braços ao<br />
companheiro até ao primeiro casal que se via, porque a vi<strong>da</strong> se ia a intervalos,<br />
despedin<strong>do</strong> aonde o deixaram para que se lhe acudisse ao remédio <strong>da</strong> alma,<br />
deixan<strong>do</strong> aos <strong>do</strong> casal esmola para seu enterro. E toman<strong>do</strong> Roberto nas ancas<br />
<strong>do</strong> cavalo a Jacinta e eu a Doroteia, nos partimos para a quinta de Feliciano,<br />
sem se declarar na<strong>da</strong> <strong>da</strong> disfarça<strong>da</strong> Lívia, nem seu esposo se <strong>da</strong>r por sabe<strong>do</strong>r<br />
de conhecê-la até a oportuna ocasião de declarar-se. Despediu-se um cria<strong>do</strong><br />
ao lavra<strong>do</strong>r pai de Doroteia, em que avisávamos como sua filha ficava livre <strong>do</strong>s<br />
foragi<strong>do</strong>s na quinta de Feliciano Tiberto, aonde podia vir buscá-la quan<strong>do</strong><br />
quisesse: nova com que o desconsola<strong>do</strong> pai recebeu tão inopina<strong>da</strong> alegria que<br />
pudera o repentino prazer ser verdugo de sua vi<strong>da</strong> mais brevemente <strong>do</strong> que o<br />
pesaroso <strong>da</strong> mágoa o havia si<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> o coração mais incapaz de admitir o<br />
intenso de uma alegria não espera<strong>da</strong> <strong>do</strong> que a de sofrer uma tristeza vagarosa.<br />
Chegámos à quinta de Feliciano pelas onze horas <strong>do</strong> dia, man<strong>do</strong>u logo<br />
fazer uma cama para o feri<strong>do</strong> Constantino e chamar quem o curasse <strong>da</strong>s<br />
feri<strong>da</strong>s que mostravam serem dilata<strong>da</strong>s no tempo, por ter quebra<strong>do</strong>s os olhos<br />
<strong>do</strong> joelho com a violência <strong>da</strong>s balas. A feri<strong>da</strong> <strong>do</strong> braço também chegou a<br />
ofender-lhe a cana, mas não com tanto excesso. Retiraram-se Jacinta e<br />
Doroteia a uma casa que com as janela sobre um fresco jardim <strong>da</strong> quinta caía,<br />
deliciosa e agradável vista para quem <strong>do</strong>s passa<strong>do</strong>s fracassos vinha tão<br />
molesta<strong>da</strong>. To<strong>do</strong>s se admiraram quan<strong>do</strong> sem o véu viram descoberta no<br />
pastoril ensaio <strong>da</strong> fermosa Lívia a beleza, a cuja vista Doroteia, com ser moça<br />
e muito no parecer aprazível, era rascunho de sombra ou quadro <strong>da</strong> primeira
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 851<br />
mão de morta cor, a quem faltavam os realces e matizes mais finos <strong>da</strong>s cores<br />
vivas; era flor <strong>do</strong> campo à vista <strong>da</strong> mais bela rosa a quem a aurora em basti<strong>do</strong>r<br />
de esmeral<strong>da</strong>s broslou cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa de aljôfar as encarna<strong>da</strong>s folhas. Nem era<br />
maravilha, se em Doroteia era o montanhês natural e em Lívia o brioso <strong>do</strong>naire<br />
tão nativo, que ain<strong>da</strong> no tosco rebuço camponês, quan<strong>do</strong> presumia poder<br />
encobrir-se, mais sem o pretender queria manifestar-se.<br />
Roberto, seu esposo, a admirava, parecen<strong>do</strong>-lhe ca<strong>da</strong> vez mais bela;<br />
porque assi como a per<strong>da</strong> de uma jóia rica a sobe ain<strong>da</strong> a maior estimação<br />
para <strong>do</strong>brar a mágoa de perdi<strong>da</strong>, assim quan<strong>do</strong> acha<strong>da</strong> lhe aumenta o precioso<br />
<strong>do</strong> valor, consideran<strong>do</strong>-a venturosamente restituí<strong>da</strong>. Sen<strong>do</strong> que era Lívia com<br />
tal extremo fermosa que perdi<strong>da</strong> era prodígio <strong>da</strong> <strong>do</strong>r para senti<strong>da</strong> e restaura<strong>da</strong><br />
extremo <strong>da</strong> alegria para aplaudi<strong>da</strong>. Não se satisfaziam seus olhos com vê-la,<br />
hidrópicos <strong>da</strong> sede de admirá-la e pesaroso <strong>do</strong> trance a que a conduziram seus<br />
enganosos ciúmes, ficava sen<strong>do</strong> seu arrependimento o maior encontro de suas<br />
alegrias, ven<strong>do</strong> com quanta razão se mostraria queixosa quem padeci<strong>do</strong> tinha<br />
por sua causa tão repeti<strong>do</strong>s trabalhos, tão contínuos desgostos e moléstias tão<br />
pouco mereci<strong>da</strong>s. Lívia, com a vista de seu ingrato esposo, mal podia reprimir<br />
as perenes fontes de seus olhos, em outro tempo dele tão aplaudi<strong>do</strong>s pela<br />
beleza e hoje dela tão humedeci<strong>do</strong>s na consideração de seus trágicos<br />
desgostos e repeti<strong>do</strong>s perigos a que se viu exposta sua leal<strong>da</strong>de, por se haver<br />
mostra<strong>do</strong> Roberto tanto sem razão desconfia<strong>do</strong> dela.<br />
Imprimem-se na memória mais duráveis os agravos <strong>do</strong> que os<br />
benefícios, e fica sen<strong>do</strong> mais poderosa a queixa de uma ofensa <strong>do</strong> que o<br />
agradecimento de um favor: porque <strong>da</strong> queixa e ofensa é a memória acre<strong>do</strong>ra<br />
para senti-la e <strong>do</strong> benefício acre<strong>do</strong>ra para pagá-lo, e mais facilmente pode<br />
esquecer-se o que se deve para satisfazê-lo <strong>do</strong> que se olvi<strong>da</strong> o em que é o<br />
sentimento acre<strong>do</strong>r para cobrá-lo. Desejava Roberto poder enxugar as lágrimas<br />
a sua ofendi<strong>da</strong> Lívia, com manifestar-lhe seu arrependimento, abonan<strong>do</strong> as<br />
finezas de sua leal<strong>da</strong>de e confessan<strong>do</strong> os erros de seu indiscreto furor que o<br />
precipitou cioso a presumir ofensas aonde não havia culpas; porém com a<br />
presença de Feliciano e Antíoco não lhe era possível, por não manifestar o que<br />
sobretu<strong>do</strong> mais desejava poder encobrir. Violentava o pun<strong>do</strong>nor os afectos<br />
mais impacientes <strong>da</strong> vontade: pena grande quan<strong>do</strong> se proíbe à vontade o<br />
poder manifestar que ama e ao sentimento ofendi<strong>do</strong> se embarga o desafogo <strong>da</strong>
852 Padre Mateus Ribeiro<br />
queixa. Assi convinha na presente ocasião a seu decoro compensar o deseja<strong>do</strong><br />
com o silêncio de respeitoso.<br />
Chamou-o à parte Feliciano, e Antíoco, e enquanto eu ficava diverti<strong>do</strong><br />
com a cura de Constantino, pois me empenhara em livrá-lo, descen<strong>do</strong> os três<br />
ao ameno <strong>da</strong> quinta, que tinha tanto de recreativa como de lucrosa, e<br />
assentan<strong>do</strong>-se ao sau<strong>do</strong>so murmurar de uma fonte que <strong>da</strong> embosca<strong>da</strong> de<br />
agiganta<strong>do</strong>s loureiros como saltea<strong>do</strong>ra de cristal saía a intimi<strong>da</strong>r as flores que<br />
dela defender-se não podiam, porque as deixava imóveis o temor, lançan<strong>do</strong>-lhe<br />
aos pés o corre<strong>do</strong>r arroio grilhões de neve, Feliciano falou a Roberto assi:<br />
- A muita amizade, senhor Roberto, que tendes com Lisar<strong>do</strong> Martelino,<br />
como assistente há tanto tempo em Bolonha, sua pátria, me obriga a tomar-vos<br />
por valia para que queira <strong>da</strong>r-me por esposa a Florisela, sua irmã, por quem<br />
vivem desvela<strong>do</strong>s meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e a quem dedica minha vontade os mais<br />
custosos afectos. E suposto que os Tibertos e Martelinos sempre em Cesena<br />
seguiram opostas parciali<strong>da</strong>des e encontra<strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>s, tu<strong>do</strong> com o tempo teve<br />
fim, porque a tu<strong>do</strong> veio a pôr fim o mesmo tempo; e o que antiguamente era<br />
uma incessável guerra, hoje vem a ser uma tranquila paz. E neste casamento<br />
de Florisela comigo ficará sen<strong>do</strong> para sempre a concórdia mais segura e mais<br />
firme a união; e, como diz Quintiliano 803 , é acerto que tenha origem o pacífico<br />
nas próprias famílias aonde teve princípio o belicoso. Dito foi de Xenofonte,<br />
como refere Plutarco 804 , que a prudência sabia <strong>da</strong> própria inimizade tomar<br />
proveitos. Este casamento em que tanto se empenha meu desejo ficará sen<strong>do</strong><br />
para ambas as famílias <strong>da</strong>s utili<strong>da</strong>des a mais lustrosa, fican<strong>do</strong> eu sen<strong>do</strong> esposo<br />
de Florisela, que é o que mais estimo, e ela, sen<strong>do</strong> senhora de quanto possuo,<br />
que só para ela quero. Já em Cesena pessoalmente em companhia <strong>do</strong> senhor<br />
Antíoco, que presente está, a pedi por esposa a sua mãe e diferiu a resolução<br />
<strong>da</strong> resposta para a vin<strong>da</strong> de Lisar<strong>do</strong>, a quem brevemente de Bolonha<br />
esperan<strong>do</strong> estava. Estimarei muito, senhor Roberto, que como amigo de<br />
ambos vos queirais empenhar em patrocinar este meu intento em que vai<br />
empenha<strong>da</strong> to<strong>da</strong> a minha alegria, pois eu vou interessa<strong>do</strong> em alcançar tão<br />
benemérita esposa e ela em ter-me por esposo, sen<strong>do</strong> quem sou, na<strong>da</strong> perde.<br />
Qui., Decl. 9.<br />
Plut., De util. capt. ab inim.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 853<br />
Com particular alegria ouviu Roberto a proposta de Feliciano, como<br />
quem tão interessa<strong>do</strong> estava em efectuar-se, pois só com esse intento se<br />
ordenou a caça<strong>da</strong>; porém dissimulan<strong>do</strong> a alegria para que Feliciano lhe ficasse<br />
deve<strong>do</strong>r <strong>da</strong> diligência, prometeu que faria nisso logo to<strong>do</strong> o possível por <strong>da</strong>r-lhe<br />
gosto. Despediu-se deles, que na quinta ficavam, e subin<strong>do</strong> às casas em que<br />
eu com Constantino estava, chaman<strong>do</strong>-me à parte me referiu em como o<br />
casamento de minha irmã estava ajusta<strong>do</strong> com Feliciano, que o tomara por<br />
valia para comigo. Fiquei por extremo satisfeito em ver que ficava (sem<br />
publicar-se) meu agravo cabalmente satisfeito, sen<strong>do</strong> Feliciano no ilustre e rico<br />
e na grandeza <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> com que se tratava o em que Cesena trazia mais na<br />
vista <strong>da</strong> estimação e porque com este casamento ficavam uni<strong>da</strong>s tão opostas<br />
famílias para uma perpétua paz. Detivemo-nos um espaço, para fazer mais<br />
vendável a intercessão de Roberto, e descen<strong>do</strong> ambos abaixo aonde Antíoco e<br />
Feliciano estavam, viemos a ajustar o casamento e nos demos os braços como<br />
cunha<strong>do</strong>s, com grande alegria de Feliciano e parabéns de Antíoco e Roberto e<br />
alegria de to<strong>da</strong> a casa.<br />
Cap. XIV.<br />
Em que o ban<strong>do</strong>leiro Constantino começa a referir seus sucessos<br />
Tratava-se com cui<strong>da</strong><strong>do</strong> por meu respeito <strong>da</strong> cura de Constantino, o<br />
ban<strong>do</strong>leiro, e entrámos os quatro a visitá-lo por lhe <strong>da</strong>rmos algum alívio nas<br />
<strong>do</strong>res que padecia com o rigor <strong>da</strong> cura e gravame <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s, em que, como<br />
diz Homero 805 , se aprende a cautela de não se aventurar a outras pela custosa<br />
experiência <strong>da</strong>s recebi<strong>da</strong>s, pois estas mal podem, diz o Séneca, tocar-se sem<br />
nova <strong>do</strong>r. Quis Constantino 806 satisfazer ao desejo que conhecia teriam os<br />
quatro amigos de ouvirem os infortúnios de sua vi<strong>da</strong>, agora que se via mais<br />
desassombra<strong>do</strong> <strong>do</strong> temor e mais próximo ao remédio; e assi por adquirir<br />
agra<strong>do</strong> nas vontades de quem o amparava, pois referir as misérias é buscar<br />
Horn., Illiad. 3.<br />
Sen., De ira. lib. 3.
854 Padre Mateus Ribeiro<br />
valias à compaixão e advoga<strong>do</strong>s ao enternecimento de quem as ouve, falou<br />
assi:<br />
- Se o ser geralmente aborreci<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s se julga ser o maior castigo<br />
temporal e o requinta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s disfavores <strong>da</strong> fortuna, com razão pudera dizer,<br />
ilustres senhores, que ain<strong>da</strong> meus infortúnios não chegam a <strong>da</strong>r-me título de<br />
sumamente infelice, pois acho na pie<strong>da</strong>de de vossos ânimos tão propício o<br />
refúgio, tão nativa a compaixão e tão generoso o remédio. Só <strong>da</strong> pedra que foi<br />
precipita<strong>da</strong> ao profun<strong>do</strong> centro <strong>da</strong>s brama<strong>do</strong>ras on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> vasto mar se perdem<br />
as esperanças de tornar a ver-se apresenta<strong>da</strong> aos brilhantes raios <strong>do</strong> sol, pois<br />
em ser despenha<strong>da</strong> deu as últimas despedi<strong>da</strong>s a ver-se mais exposta sobre a<br />
terra, quan<strong>do</strong> se engolfava a ser perpétua mora<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> mar; porém eu, que<br />
distraí<strong>do</strong> no oceano de minhas desgraças tornei a tomar porto em casa tão<br />
ilustre, em ânimos tão generoso e em asilo tão benigno, não posso desconfiar<br />
<strong>do</strong> remédio, servin<strong>do</strong>-me de empório seguro contra o naufragante de minha<br />
derrota<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> o grémio pie<strong>do</strong>so de vossa nobreza.<br />
Para referir os perío<strong>do</strong>s de minha fortuna era necessário vagaroso<br />
tempo, sen<strong>do</strong> que, como disse Séneca 807 , nunca se numera o tempo ao que se<br />
diz, quan<strong>do</strong> jamais se pode de to<strong>do</strong> cabalmente dizer; e por moroso que o<br />
tempo se mostrara, não igualara ao extenso <strong>do</strong> assunto de meus devaneios.<br />
Estes compendiarei, por não ser molesto, como quem em grande mapa<br />
descreve grande mun<strong>do</strong>, acomo<strong>da</strong>n<strong>do</strong> minhas palavras mais ao decoroso que<br />
se deve a quem as ouve <strong>do</strong> que ao abatimento de quem as diz.<br />
Já tendes conheci<strong>do</strong> como nasci na ci<strong>da</strong>de de Bolonha de pais<br />
honra<strong>do</strong>s, se bem nos bens <strong>da</strong> fortuna pobres. Criaram-me com limitações<br />
conforme a possibili<strong>da</strong>de de seu cabe<strong>da</strong>l e indústria, que nunca o cabe<strong>da</strong>l pode<br />
ser muito quan<strong>do</strong> suas raízes se lançam sobre pouco. Tive uma irmã que se<br />
chamou Diana, nome que parece lhe convinha não menos pelo casto <strong>da</strong><br />
honesti<strong>da</strong>de que pelo raro <strong>da</strong> fermosura, queren<strong>do</strong> compensar-lhe a natureza<br />
nos extremos <strong>da</strong> beleza quanto lhe tinha nega<strong>do</strong> a sorte nas faltas <strong>da</strong> ventura.<br />
Era Diana as delícias de meus pais em que seus olhos se reviam e em que<br />
suas memórias se desvelavam: porque além <strong>do</strong> amor natural que os pais tem a<br />
Sen., Ep. 27.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 855<br />
seus filhos, como disse Aristóteles , como partes suas, as pren<strong>da</strong>s de<br />
fermosura e honesti<strong>da</strong>de que Diana tinha a faziam para com to<strong>do</strong>s amável,<br />
quanto mais para com meus pais. Cresceu Diana na i<strong>da</strong>de e eu nos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s,<br />
e com intento de poder <strong>da</strong>r-lhe esta<strong>do</strong> me apliquei às letras com tantos desejos<br />
de aproveitar-me que estava no penúltimo ano de Direito Civil, que com<br />
grandes desvelos estu<strong>da</strong>va, quan<strong>do</strong> a fortuna me encontrou a aura <strong>do</strong><br />
valimento que desejava, pelo mo<strong>do</strong> que agora referirei.<br />
No meio <strong>da</strong> Via Emília se descobre situa<strong>da</strong> a antigua ci<strong>da</strong>de de Faencia,<br />
ou Favencia, como antiguamente se chamava, como se colhe de Sabélico,<br />
Sílio Itálico 809 , Apiano Alexandrino 810 , Agacio 811 e outros autores. Divide a<br />
ci<strong>da</strong>de em duas partes o cau<strong>da</strong>loso rio Lamão, apartan<strong>do</strong> o burgo ou arrabalde<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, que tornam a unir-se com uma espaçosa ponte de pedra com duas<br />
torres sobre o rio, obra bem vistosa e opulenta. Tem o rio a fonte, como os<br />
mais, nos penhascos <strong>do</strong> monte Apenino, que enfermo <strong>da</strong> hidrópica abundância<br />
de suas águas vai sangran<strong>do</strong> em rios para desopilar o excesso de cristal que<br />
nas entranhas encerra, fazen<strong>do</strong> a cópia onerosa que sem lanceta rebentem tão<br />
cau<strong>da</strong>losas sangrias em tantas partes de Itália, com que seus campos fertiliza.<br />
Vai o rio Lamão com apressa<strong>da</strong> corrente parar no lago de Ferrara, aonde<br />
registran<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o cristal que leva perde o nome e a ambição; pois como diz<br />
Ovídio 812 , quem aos menores excede, aos maiores se humilha. É a ci<strong>da</strong>de<br />
populosa e rica, com um castelo que lhe man<strong>do</strong>u edificar o empera<strong>do</strong>r<br />
Frederico Segun<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> a rendeu, para a ter sujeita.<br />
Nesta antigua e nobre ci<strong>da</strong>de, de que tem saí<strong>do</strong> eminentes sujeitos, saiu<br />
a causa de meu <strong>da</strong>no e a ocasião <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> miserável em que me vejo. Camilo<br />
Rizar<strong>do</strong>, morga<strong>do</strong> rico de Faença, veio a Bolonha mais com desejos de vê-la<br />
que de aplicar-se aos estu<strong>do</strong>s. Tomou casas defronte <strong>da</strong>s em que meus pais<br />
viviam. Da vizinhança procedem muitas vezes os bens e os males: os bens,<br />
como disse Hesío<strong>do</strong> 813 , sen<strong>do</strong> o vizinho bom; os males, como disseram<br />
,M Sil. Ital., Lib. 8.<br />
°Ap.AL, Lib. 1.<br />
1 Ag., De bell. Got. lib. 1.<br />
2 Ov., 3. De art.<br />
3 Hes., apud Stob.
856 Padre Mateus Ribeiro<br />
Demóstenes 814 e Plauto 815 , sen<strong>do</strong> o vizinho mau. Falávamos de cortesia por<br />
razão <strong>da</strong> vizinhança, e por maior recato que punha Diana em esconder-se, não<br />
foi possível o poder encobrir-se de seus vigilantes olhos, por ficarem tão<br />
fronteiros a nossas janelas como o espelho mais cristalino está ao diâmetro <strong>do</strong><br />
rosto que nele se vê, como o sol fica fronteiro ao globo radiante <strong>da</strong> lua no dia<br />
de sua oposição.<br />
Com a diligência que pôs Camilo em ver a minha irmã venceu o recluso<br />
de seu recato, e em ocasião de visitas de algumas parentas nossas que a<br />
vinham visitar, a quem não era decente cerrar as janelas, nem explorar motivos<br />
de as cerrar, veio Camilo Rizar<strong>do</strong> a ver a minha irmã Diana, e foi para ele a<br />
vista tão agradável que desde esse dia to<strong>do</strong> o tempo em que carecia de vê-la<br />
avaliava por escura noite. Sentiu Diana a inquietação que em Camilo originou<br />
sua vista e propôs não aparecer mais aonde fosse objecto de seus olhos, como<br />
fez; e foi a privação agu<strong>do</strong> estímulo para esporear ao desejo e nova cadeia<br />
para aprisionar a vontade. Representa a memória mais eficazmente a cousa<br />
perdi<strong>da</strong>, dá-lhe as cores mais vivas, as tintas mais finas com pincel mais<br />
delica<strong>do</strong>, com os realces mais subi<strong>do</strong>s, e faz com que seja maior gravame ao<br />
desejo o impedimento que o prende <strong>do</strong> que a lisonja mais aplaudi<strong>da</strong> à vista que<br />
o agra<strong>do</strong>u.<br />
Eu, com a ocupação contínua de meus estu<strong>do</strong>s, não era sabe<strong>do</strong>r desta<br />
bataria em que se desafiava Diana com Camilo: ela com ocultar-se e ele com<br />
querer descobri-la. Meu pai com os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>do</strong> sustento de sua vi<strong>da</strong> poucas<br />
horas assistia em casa, e assi não lhe eram presentes nem de Diana os retiros,<br />
nem de Camilo os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Só minha mãe como assistente teve de tu<strong>do</strong><br />
notícia, mas confia<strong>da</strong> na modéstia e juízo de Diana, porque era bem discreta<br />
minha irmã, não quis comunicar-me na<strong>da</strong> <strong>do</strong>s devaneios de Camilo, por me<br />
não aventurar a um desgosto. Só man<strong>do</strong>u fazer zelosias bem densas para as<br />
janelas to<strong>da</strong>s, dizen<strong>do</strong>-me que por razão <strong>do</strong> sol e para ficar a casa mais fresca.<br />
Aqui desesperou o sofrimento em Camilo, ven<strong>do</strong> tão densas nuvens opostas<br />
ao sol de seu desejo, cortinas de que não podia ser sumilher seu cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, véus<br />
que lhe encobriam a imagem a quem obsequiava seu pensamento, velas que<br />
Dem., in Ol.<br />
5 Plaut., in Mer.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 857<br />
em lugar de poder navegar com elas, encontravam o vento ao frágil baixel de<br />
suas derrota<strong>da</strong>s esperanças, e finalmente eclipses que lhe usurpavam os<br />
resplan<strong>do</strong>res ao sol em que seus olhos se reviam. Com este sentimento<br />
assistia pouco em casa, sain<strong>do</strong>-se ao campo com amigos para ver se podia<br />
divertir a pena; porém era a tristeza tão eficaz que nenhum alívio recebia, nem<br />
o alegravam os pra<strong>do</strong>s com seus ver<strong>do</strong>res, nem as flores o agra<strong>da</strong>vam com<br />
seus matizes, o murmurar <strong>da</strong>s fontes o entristecia, a corrente <strong>do</strong> rio o<br />
molestava, sem descobrir a causa <strong>do</strong>nde tanta tristeza procedia.<br />
Tomou por último remédio o tratar-me com particular amizade com o<br />
pretexto <strong>da</strong> vizinhança, levan<strong>do</strong>-me muitas vezes a sua casa e obrigan<strong>do</strong>-me<br />
com cortesia de amigo a que jantasse com ele; o que eu por ver-me<br />
importuna<strong>do</strong> <strong>da</strong> instância de seus rogos aceitei algumas vezes e outras me<br />
escusava, fingin<strong>do</strong> ocupações que mo impediam. Com esta familiari<strong>da</strong>de<br />
recíproca que entre nós havia (sem eu ser sabe<strong>do</strong>r de seus intentos), teve ele<br />
confiança de ir buscar-me algumas vezes a minha casa, com divertimentos de<br />
escolástica conversação em que passavam os dias de sueto e os que os<br />
estu<strong>do</strong>s feriavam, com que ao descui<strong>do</strong> teve oportuni<strong>da</strong>de de ver a Diana sem<br />
a clausura <strong>da</strong>s zelosias lho dificultarem, que sempre o difícil faz parecer as<br />
cousas mais agradáveis aos olhos, sen<strong>do</strong> que Diana sempre era muito para ser<br />
vista.<br />
Viu, como digo, a Diana, porém sempre a furto, e foi de Diana visto de<br />
propósito, e nesta segun<strong>da</strong> vista esteve o <strong>da</strong>no, porque na primeira não era<br />
grande o perigo. Bem disse Quintiliano 816 que não havia cousa mais arrisca<strong>da</strong><br />
que os afectos <strong>do</strong> querer: porque, como nascem <strong>da</strong> vontade, tem neles débil<br />
voto o juízo. Era Camilo mancebo e mui galã, trajava custosamente, tinha <strong>do</strong>us<br />
pajens que o serviam e, como era rico, muitos amigos que o buscavam por<br />
liberal e <strong>da</strong>divoso: assistia aos estu<strong>do</strong>s mais por curiosi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> que por<br />
necessi<strong>da</strong>de de os seguir. Conhecia Diana ser dele ama<strong>da</strong>, evidente perigo em<br />
mulher fermosa, moça e sem <strong>do</strong>te, em terra aonde não se observam as<br />
antiguas leis que Licurgo deu aos lacedemónios, em que proibiu que nenhuma<br />
filha se <strong>do</strong>tasse para que ca<strong>da</strong> uma se apurasse em seus merecimentos. E<br />
sen<strong>do</strong> de antes Diana tão honesta e recolhi<strong>da</strong>, como tenho referi<strong>do</strong>, veio<br />
6 Quint., Lib. 2. Decl.
858 Padre Mateus Ribeiro<br />
secretamente a lisonjear-se <strong>do</strong>s desvelos de Camilo com esperanças de ter<br />
nele rico e nobre esposo. Minha mãe, pela experiência que tinha de seu recato,<br />
ain<strong>da</strong> que pressagiava em Camilo os intentos de amante, não presumia em<br />
Diana o menor pensamento de admitir cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s que a pudessem inquietar; e<br />
assi eu de tu<strong>do</strong> sem suspeita e meu pai de na<strong>da</strong> sabe<strong>do</strong>r, não chegámos a<br />
obviar o nocivo, senão sen<strong>do</strong> violento o remédio.<br />
Carteava-se ocultamente Camilo com Diana: nunca faltam aos ricos<br />
mensageiras interessa<strong>da</strong>s; pagou-se Camilo não menos <strong>do</strong> juízo de Diana nos<br />
escritos <strong>do</strong> que se tinha pago <strong>da</strong> femosura. Assi como a beleza é a melhor<br />
iguaria que se põe na mesa <strong>do</strong>s olhos, assi o entendimento é o manjar melhor<br />
que se apresenta ao juízo. Tu<strong>do</strong> em Diana se achava, e por isso, como diz<br />
Aristóteles 817 , teve tão pouca ventura. É a boa opinião escu<strong>do</strong> contra as<br />
suspeitas, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> seja enganosa; porque, como diz Aristóteles 818 , para<br />
com a própria consciência val a ver<strong>da</strong>de, porém para os de fora tem grande<br />
valimento a opinião decorosa.<br />
Lisonjeiam-se os juízos de boa fama, não se atreven<strong>do</strong> a sentenciar o<br />
que a boa opinião chega a contradizer. Dizer que Platão foi idiota, Cícero<br />
néscio, Alexandre cobarde, César pusilânime, Sila pavoroso e Pompeu tími<strong>do</strong>,<br />
seria temeri<strong>da</strong>de política quan<strong>do</strong> sua fama convence to<strong>da</strong> a contrária opinião.<br />
Tal era a opinião que <strong>do</strong> recolhimento e honesta modéstia de minha irmã se<br />
tinha; não só para com meus pais, mas ain<strong>da</strong> para quantos de Diana tinham<br />
notícias de sua vi<strong>da</strong> podia abonar to<strong>da</strong> a virtude e desmentir to<strong>do</strong> o contrário<br />
pensamento que alguém imaginar presumisse.<br />
Foi esta confiança que to<strong>do</strong>s dela fazíamos a ocasião de to<strong>do</strong>s os seus<br />
desgostos e meus infortúnios, que se menos lugar em nós tivera, fora a cautela<br />
maior e o <strong>da</strong>no não fora lamentável como tem si<strong>do</strong>. Celebravam-se em Módena<br />
umas festas grandes ao nascimento <strong>do</strong> filho duque, primogénito e sucessor<br />
que havia de ser <strong>do</strong> duca<strong>do</strong>, e man<strong>do</strong>u-nos convi<strong>da</strong>r para irmos vê-las a mi e a<br />
meu pai um irmão de minha mãe que em Módena vivia. Determinámos ir vê-las<br />
e convidei Camilo para ir connosco a elas, ao que ele se escusou por<br />
indisposto para o caminho, agradecen<strong>do</strong>-me muito a vontade deste alívio que<br />
7 Ar., De bon. fort.<br />
8 Idem ap. Stob.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 859<br />
lhe procurava. Era seu caviloso intento neste tempo de nossa ausência<br />
efectuar seu engano. Não se enganam os homens, diz Aristóteles 819 , senão<br />
naquilo que ignoram, porque no que conhecem não cabe engano. Mais astuto<br />
é, disse Demóstenes 820 , o que engana <strong>do</strong> que o engana<strong>do</strong>, porque este não<br />
prevê a malícia que não professa, e assi não pode rebater os golpes que não<br />
alcança. Sempre os enganos, diz Séneca 821 , vem disfarça<strong>do</strong>s com coberta<br />
diferente <strong>do</strong> que são para não serem conheci<strong>do</strong>s bem, assi como o farpante<br />
anzol se encobre com a isca para que o peixe incauto o apeteça, porque a<br />
conhecê-lo não o tragara. É a dissimulação, disse Cícero 822 , a cousa mais<br />
perniciosa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, poden<strong>do</strong> mal descifrar-se o interior que não deixa construir-<br />
se. Debaixo <strong>da</strong> amizade matou Perpena ao lusitano Viriato, induzi<strong>do</strong> a cometer<br />
tal traição pelo procônsul Servílio Cepião. Debaixo <strong>da</strong> amizade, convi<strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
Teo<strong>do</strong>ro, príncipe de Epiro, ao empera<strong>do</strong>r de Constantinopla Pedro<br />
Antestarense a que fosse seu hóspede, navegan<strong>do</strong> de Roma para<br />
Constantinopla aleivosamente lhe tirou a vi<strong>da</strong>. A Alexandre de Médices, duque<br />
de Florença, deu morte aleivosamente seu parente, vali<strong>do</strong> e maior amigo<br />
Lourenço de Médices, confian<strong>do</strong>-se o duque de sua amizade na ocasião <strong>da</strong><br />
mais sincera demonstração de fideli<strong>da</strong>de. Aonde se pode achar confiança,<br />
quan<strong>do</strong> esta na amizade se não acha? O Séneca 823 diz que tem parelhas o<br />
erro de confiar-se de to<strong>do</strong>s com o mostrar-se de to<strong>do</strong>s desconfia<strong>do</strong>; porque o<br />
primeiro será expor-se a perigo de ser engana<strong>do</strong> e o segun<strong>do</strong> expor-se ao risco<br />
de não ter algum amigo: e o viver de to<strong>do</strong> despoja<strong>do</strong> de amigos é o mesmo,<br />
moran<strong>do</strong> em povoa<strong>do</strong>, que viver no deserto. Bem disse Salústio 824 que os<br />
desgraça<strong>do</strong>s nunca tem amigos, porque sen<strong>do</strong> os leais o maior bem, estes lhe<br />
não permite possuir a ventura.<br />
Disse eu a Camilo, que pois ele se achava indisposto para acompanhar-<br />
me, que man<strong>da</strong>ria escusar-me de ir ver as festas de Módena; o que ele em<br />
nenhum mo<strong>do</strong> concedeu, antes instan<strong>do</strong> que pois eu e meu pai éramos<br />
819 Ar., El. 2.<br />
820 Dem., Exor. 54.<br />
821 Sen., Ep. 7.<br />
822 Cie, 3. Of.<br />
823 Sen., Ep. 3.<br />
824 Sal., in Conj. Cat.
860 Padre Mateus Ribeiro<br />
convi<strong>da</strong><strong>do</strong>s, não deixássemos de aceitar o favor de quem nos chamava,<br />
porque parecia desagradecer a vontade que se nos oferecia, perden<strong>do</strong> o logro<br />
de festas tão principais que seus achaques lhe impediam lograr.<br />
Com isto eu e meu pai nos partimos para Módena a ver estas festas,<br />
que para minha honra foram trágicas, pois fican<strong>do</strong> Diana só na companhia de<br />
minha mãe e de uma cria<strong>da</strong>, que Camilo tinha suborna<strong>da</strong> com dádivas, ven<strong>do</strong><br />
que ficava o alcaçar de minha reputação <strong>da</strong>s principais sentinelas e guarnição<br />
mais poderosa desprovi<strong>do</strong>, valen<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> promessa de ser seu esposo, moe<strong>da</strong><br />
falsa de amantes que parece de ouro e é de cobre, porque ten<strong>do</strong> o cunho <strong>da</strong><br />
promessa, lhe falta o valor <strong>do</strong> ouro que é a ver<strong>da</strong>de de satisfação, teve no<br />
maior silêncio <strong>da</strong> noite, por meio <strong>da</strong> desleal cria<strong>da</strong>, entra<strong>da</strong> em nossa casa e<br />
logrou o fim de seus trai<strong>do</strong>res desejos com <strong>da</strong>r a minha irmã a mão e promessa<br />
de ser seu esposo: obrigação que jamais intentou satisfazer, dívi<strong>da</strong> que nunca<br />
pretendeu pagar. O caminhante mais oprimi<strong>do</strong> <strong>da</strong> sede, mais anelante na<br />
respiração nos abrasa<strong>do</strong>s calores <strong>do</strong> ardente estio, a quem o cansaço <strong>do</strong><br />
caminho serve de chama que lhe abrasa o peito, a quem o rio mais cau<strong>da</strong>loso<br />
se representa no desejo <strong>da</strong> água pequena taça para satisfazê-lo, abrevia<strong>do</strong><br />
púcaro para refrigerá-lo, se no seco <strong>do</strong> areal ou no deserto <strong>do</strong> campo divisou a<br />
fonte cristalina, que sem murmurar, por pequena, e sem estron<strong>do</strong>so arroio, por<br />
pobre no cabe<strong>da</strong>l, de débil rasgo <strong>da</strong> penha como a furto nasce e entre verdes<br />
mantilhas de relva se esconde, sequioso se apressou e ansia<strong>do</strong> correu a<br />
mitigar o ar<strong>do</strong>r no líqui<strong>do</strong> cristal que apetitoso procura. Satisfez a sede com a<br />
bebi<strong>da</strong>, mitigou o calor com a frescura, satisfez o desejo com o cristal, e<br />
apenas cobrou o alento com o descanso, quan<strong>do</strong> sem <strong>da</strong>r à fonte as<br />
despedi<strong>da</strong>s ingrato se ausenta mais pesaroso <strong>do</strong> que tem demora<strong>do</strong> <strong>do</strong> que<br />
agradeci<strong>do</strong> ao que tem recebi<strong>do</strong>. Tal se mostrou o ingrato Camilo, que perjuro<br />
à promessa, esqueci<strong>do</strong> à obrigação, tedioso a pagar a dívi<strong>da</strong> e fementi<strong>do</strong> às<br />
leis <strong>da</strong> amizade que comigo tinha, se ausentou para Faença, sua pátria, antes<br />
que nós <strong>da</strong>s infaustas festas tornássemos.<br />
Viemos eu e meu pai para Bolonha bem descui<strong>da</strong><strong>do</strong>s de tal desgraça,<br />
que mal se pode conhecer o que nunca se chegou a recear. Perguntei por<br />
Camilo para lhe referir por narração as festas em que ele se escusou de<br />
assistir por vista, e disseram que era parti<strong>do</strong> havia seis dias para Faença para<br />
curar-se de seus achaques. Pesou-me de sua ausência, porque ignorava meus
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 861<br />
pesares e sentia sua indisposição, quan<strong>do</strong> ele tão pouco sentia minha honra.<br />
Passaram alguns dias e sempre Diana se mostrava triste; continuou a<br />
discórdia, atribuía-se à enfermi<strong>da</strong>de o que tinha as raízes na ocasião.<br />
Chamaram-se médicos; porém como podiam curar o mal que não se deixava<br />
conhecer?<br />
O empenho <strong>da</strong> medicina, disse Cassio<strong>do</strong>ro 825 , é fazer ao enfermo<br />
alegre; mas como a melancolia era tão profun<strong>da</strong> como a causa, ca<strong>da</strong> vez<br />
crescia mais e os remédios aproveitavam menos. Passaram alguns meses<br />
nesta suspensão de inúteis remédios e duplica<strong>da</strong>s tristezas de Diana, sem em<br />
to<strong>do</strong> este tempo nem Camilo tornar em Bolonha, nem me escrever uma carta.<br />
As lágrimas em minha irmã eram contínuas, e sen<strong>do</strong> de antes seu rosto tão<br />
alegre, agora se mostrava sempre triste: nem as amigas com visitá-la a<br />
divertiam, nem festejos a alegravam, nenhuma cousa lhe dilatava o coração,<br />
nenhum remédio lhe suspendia o sentimento, com que meus pais an<strong>da</strong>vam<br />
magoa<strong>do</strong>s e eu confuso. Desafiou o pesar a meu discurso para ajuizar a causa<br />
que podia ocasionar tão excessiva tristeza e ocorreu-me a consideração <strong>do</strong><br />
tempo em que Diana começou a mostrar-se tão triste, que foi desde que de<br />
Módena eu e meu pai viemos, tempo em que tinha Camilo falta<strong>do</strong> em Bolonha;<br />
o não querer acompanhar-nos na jorna<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> que seu maior recreio era ver<br />
festas, o não me haver escrito duas regras de Faença por cortesia, quan<strong>do</strong> o<br />
não obrigasse a urbana correspondência <strong>da</strong> amizade, o não voltar a Bolonha,<br />
estan<strong>do</strong> em sua pátria, como tinham informa<strong>do</strong>, bem disposto, nem repetir os<br />
estu<strong>do</strong>s, nem em Diana estancarem as lágrimas a corrente e finalmente tantos<br />
remédios medicinais sem efeito e tantos divertimentos sem remédio, <strong>do</strong> que<br />
vim a suspeitar se haveria si<strong>do</strong> minha desgraça mais poderosa <strong>do</strong> que em<br />
Diana a opinião <strong>da</strong> modéstia presumi<strong>da</strong>.<br />
Com este pensamento esperan<strong>do</strong> a ocasião em que minha mãe era na<br />
missa, e fican<strong>do</strong> só com ela em casa, lhe vim a declarar minha suspeita,<br />
dizen<strong>do</strong>-lhe que se Camilo a havia ofendi<strong>do</strong> mo declarasse, antes que o<br />
encobri-lo impossibilitasse o remédio. Viu-se Diana confusa e mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> as<br />
cores deu o primeiro indício de culpa<strong>da</strong>: que por muito que queira disfarçar-se<br />
a culpa, não consente o rosto na mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong>r patrocínio ao delito. Respondeu<br />
825 Cas., 2. Ep.
862 Padre Mateus Ribeiro<br />
com as lágrimas; porém como eram nela tão contínuas, mais indiciaram a culpa<br />
<strong>do</strong> que apoiaram a inocência; e ven<strong>do</strong>-se de mi aperta<strong>da</strong> a confessar o desaire<br />
de sua e minha ofendi<strong>da</strong> honra, deitan<strong>do</strong>-se a meus pés, me disse desta sorte:<br />
- Bem conheço, meu irmão Constantino, que juntamente mereço a<br />
morte, pois infelice sobre to<strong>da</strong>s as mulheres abati de meus pais o crédito e de<br />
vossos estu<strong>do</strong>s as esperanças. Oh prouvera a Deus que os primeiros ensaios<br />
de minha vi<strong>da</strong> fossem as últimas despedi<strong>da</strong>s dela e que <strong>da</strong>s ignorâncias <strong>do</strong><br />
berço passara aos olvi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> sepulcro, porque nem a fortuna me perseguira,<br />
nem meus pais tiveram que sentir, nem eu eternamente que chorar! Fora a<br />
infância para mi a i<strong>da</strong>de mais decrépita, não conhecera <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> os enganos,<br />
pois havia de ficar tão engana<strong>da</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>! Como podia perseverar edifício<br />
fun<strong>da</strong><strong>do</strong> sobre sua própria ruína, quan<strong>do</strong> o artífice que o erigiu foi o próprio que<br />
o desfez? É a pobreza ocasiona<strong>da</strong> a ser objecto <strong>do</strong>s atrevimentos e <strong>do</strong>s<br />
enganos, pois se nascera rica, nem esse trai<strong>do</strong>r fora atrevi<strong>do</strong> para inquietar<br />
meu sossego, nem estu<strong>da</strong>ra lições para enganar-me. A igual<strong>da</strong>de nos bens<br />
pode ser motivo <strong>da</strong> inveja, mas não <strong>do</strong> desprezo; porém a pobreza é empório<br />
em que vem a surgir as ousadias; é porto que buscam para ancorarem as<br />
fraudes e vilipêndios.<br />
Viu-me Camilo, por meu mal, retirei-me o possível de sua vista; e ven<strong>do</strong>-<br />
se impossibilita<strong>do</strong> de inquietar-me, valeu-se de vossa amizade para com título<br />
de amigo poder ser mais a seu salvo trai<strong>do</strong>r, que nunca o tiro se emprega mais<br />
seguro que quan<strong>do</strong> se conhece o objecto mais descui<strong>da</strong><strong>do</strong>. Com ter entra<strong>da</strong><br />
nesta casa facilitou o poder casualmente algumas vezes ver-me: foi a vista a<br />
primeira mensageira de meu <strong>da</strong>no, escreveu-me fraudes disfarça<strong>da</strong>s em<br />
carícias, <strong>do</strong>urou as pírulas que haviam de ser-me depois de traga<strong>da</strong>s tão<br />
amargas, ofereceu-se que seria meu esposo, última bataria para o rendimento<br />
ven<strong>do</strong>-me pobre e ele rico, nobre, discreto e galã, que era tu<strong>do</strong> o a que podia<br />
aspirar meu desejo e o culminante a que no esta<strong>do</strong> presente podia subir minha<br />
ventura, se pudera uma infelice assegurá-la; fez extremos em servir-me e<br />
disfarçou os enganos nos extremos, que então se mostra mais requinta<strong>da</strong> a<br />
malícia quan<strong>do</strong> se usa <strong>do</strong>s meios mais próprios para induzir obrigação.<br />
Triunfou de meu recato com promessa de esposo e logo se ausentou<br />
sem procurar-me mais, que como não tinha mais que pretender, mostrou que<br />
sua assistência era cautela e não amor. Ai de mi, que como tão pouco
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 863<br />
experimenta<strong>da</strong> nos enganos, não conheci o fraudulento, senão quan<strong>do</strong> foi<br />
irremediável o nocivo! Caem os enganos sobre as desgraça<strong>da</strong>s e não sobre as<br />
venturosas. Viu-me pobre, e se de antes lhe pareci fermosa, a pobreza faz<br />
agora que lhe pareça feia. Sofrer o agravo sem produzir a queixa é tomar<br />
postila para aprender a insensível. No centro se vem a igualar to<strong>da</strong>s as linhas,<br />
e no amor, se é ver<strong>da</strong>deiro, tu<strong>do</strong> se iguala; que importava o eu ser pobre e ele<br />
rico, quan<strong>do</strong> o amor iguala tu<strong>do</strong>? Se me considerou pobre, para que me<br />
pretendia? E se nisso lhe parecia desigual, para que me inquietava? Para que<br />
fazia ponte de vossa amizade para passar a minha desonra? E sen<strong>do</strong> vós, meu<br />
irmão, a mais cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa sentinela de meu honesto proceder, viestes a ser, sem<br />
o advertir, o meio mais propínquo de meu crédito se despenhar. Aqui estou a<br />
vossos pés: se meus erra<strong>do</strong>s pensamentos vos merecerem a morte, ou me tirai<br />
a vi<strong>da</strong>, ou procurai o remédio a minha eterna <strong>do</strong>r.<br />
Cap. XV.<br />
Em que Constantino prossegue o que passou com Camilo<br />
Deu fim Diana a sua queixa, mas não a seu tormento, que a queixa tinha<br />
a origem na voz, mas a pena a origem no coração. Continuou as lágrimas de<br />
magoa<strong>da</strong>, porque tinha a fonte nos pesares e são estes os aquedutos que<br />
nunca param enquanto a ânsia não cessa. Ouvi, e não sei como pude ouvir<br />
narração para mi tão odiosa, que desejara haver nasci<strong>do</strong> sur<strong>do</strong>; e suposto que<br />
Aristóteles 826 diz que os ouvi<strong>do</strong>s são as estra<strong>da</strong>s de aprender, eu desejara<br />
nunca antes chegar a aprender a troco de sucesso tão desgraça<strong>do</strong> não poder<br />
ouvir. Lá disse Plutarco 827 que <strong>da</strong>s cousas indecorosas e inhonestas se deviam<br />
apartar os ouvi<strong>do</strong>s; e era esta para meu crédito tão indecente que se lá<br />
fingiram os poetas que por não ouvir Ulisses o suave e enganoso canto <strong>da</strong>s<br />
marítimas sereias, se tapou os ouvi<strong>do</strong>s com cera por que a harmónica melodia<br />
o não fizesse naufragar, eu tomara ter impedi<strong>da</strong>s as orelhas por não<br />
desesperar com o que ouvia. Para vingar em Diana minha ira não o consentiam<br />
Ar., De sesu. & sens.<br />
Plut., Deaud. Poet.
864 Padre Mateus Ribeiro<br />
suas lágrimas, para consolá-la não mo consentia o excesso de minha <strong>do</strong>r, pela<br />
culpa que lhe punha a desculpava o enganoso <strong>da</strong> promessa e contra a<br />
desculpa arguia o crédito <strong>da</strong> opinião; e assi combati<strong>do</strong> de uma e outra parte,<br />
entre a pie<strong>da</strong>de e o rigor escolhi o sair-me de casa sem responder-lhe, que era<br />
a melhor resposta que em tal tempo lhe podia <strong>da</strong>r um rigor apie<strong>da</strong><strong>do</strong> e uma<br />
clemência rigorosa.<br />
- Oh valha-me Deus (dizia eu, sain<strong>do</strong> de casa com esta pena insofrível)!<br />
Aonde se há-de achar ver<strong>da</strong>de, se na amizade falta to<strong>da</strong> a fideli<strong>da</strong>de, to<strong>da</strong> a<br />
ver<strong>da</strong>de e to<strong>do</strong> o primor? Já se acabaram no mun<strong>do</strong> os Dámon e Pítias, os<br />
Pílades e Orestes, os Castor e Pólux, os Nisos e Euríalos, que celebrou a<br />
antigui<strong>da</strong>de por admiração <strong>do</strong> amor, por prodígios <strong>da</strong> leal<strong>da</strong>de? Que hoje o que<br />
parece amizade é fingimento <strong>da</strong> conveniência própria e não <strong>da</strong> utili<strong>da</strong>de<br />
recíproca. Para que te deu Plutarco 828 nome de santa, ó amizade? Para que te<br />
intitulou Aristóteles 829 alma a <strong>do</strong>us amigos comum? Para que te chamou<br />
Cícero 830 a maior conveniência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>? Para que te julgou Valério Máximo 831<br />
vínculo mais estreito que o <strong>do</strong> sangue? Se já Ovídio 832 se queixava que eras<br />
interessa<strong>da</strong>, enganosa, simula<strong>da</strong>, fraudulenta.<br />
Com capa de amizade, ingrato Camilo, entraste em minha casa para<br />
roubar-me a honra; e quan<strong>do</strong> minha pobreza não possuía outros bens, nem<br />
lograva mais possessões que a honesti<strong>da</strong>de e recolhimento de Diana, ten<strong>do</strong><br />
meus pais pela maior riqueza o possuírem tal filha tanto para estimar-se por<br />
virtuosa, tu desleal profanaste seu decoro, ofendeste a meus pais no que só<br />
possuíam, que era a honra, e a mi desluziste na opinião, que é a vi<strong>da</strong> política<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> com que os homens se animam para aparecerem diante <strong>do</strong>s outros.<br />
Imaginas, trai<strong>do</strong>r, que por ser mais rico e poderoso viverás seguro, cometen<strong>do</strong><br />
tal injustiça? Não consideras que <strong>do</strong> mais pequeno inimigo não vive segura a<br />
maior grandeza? O signo de câncer, que os astrólogos colocaram nas estrelas,<br />
escreveram dele os poetas que, sain<strong>do</strong> <strong>da</strong> embosca<strong>da</strong> de um lago, mordera a<br />
828 Plut., De amie. & adul.<br />
829 Ar.,apudDiog., Lib. 5.<br />
830 Cie, in Lasl.<br />
831 Vai. Maxim., Lib. 4.<br />
832 Ov., 2. De Pont.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 865<br />
Hércules num pé quan<strong>do</strong> ia mais resoluto a <strong>da</strong>r a morte à hidra Lerneia; que<br />
nem a valentia <strong>do</strong> tebano Hércules pôde evitar o ser mordi<strong>do</strong> de marisco tão<br />
despreza<strong>do</strong> e pica<strong>do</strong> <strong>da</strong>s presas de animal tão pequeno. A grandeza de um<br />
elefante, que parece monte com alma ou penhasco com vi<strong>da</strong>, é ofendi<strong>da</strong> e<br />
persegui<strong>da</strong> <strong>do</strong> animal mais humilde e mais pequeno. A ninguém isentou a<br />
natureza de um perigo e a ninguém livra a ofensa de uma vingança, diz o<br />
Séneca 833 . Tem seu estímulo o agravo, disse Cícero 834 , que incita a procurar o<br />
castigo. Acaba-se com a morte talvez a memória <strong>do</strong> heróico, diz Plauto 835 , mas<br />
<strong>do</strong> ofensor ain<strong>da</strong> depois de morto sempre dura no coração <strong>do</strong> agrava<strong>do</strong> a<br />
lembrança <strong>da</strong> ofensa.<br />
Aqui deu fim meu estu<strong>do</strong>, aqui tiveram princípio meus trabalhos,<br />
terminou-se meu sossego e desmaiou minha esperança, que mal podiam<br />
perseverar meus bem nasci<strong>do</strong>s pensamentos, pois lhes faltava a ventura. Que<br />
importa a um desgraça<strong>do</strong> largar as velas <strong>do</strong> desejo para navegar ao porto mais<br />
honroso, se se há-de ver derrota<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> imagina que navega mais seguro?<br />
Que importou o haver procedi<strong>do</strong> bem, desvelan<strong>do</strong>-me por estu<strong>da</strong>r, se no tempo<br />
em que pudera colher de meus trabalhos o fruto, de meus desvelos o prémio,<br />
para meus pais o alívio, para esta infelice irmã o remédio, ela se despenhou a<br />
si e me precipitou a mi? Quem há-de assegurar a um desditoso o edifício de<br />
suas esperanças? Que como não lançou os cimentos e bases na ventura,<br />
como podia permanecer obelisco que não tinha seguro o fun<strong>da</strong>mento?<br />
Oh falso amigo, que profanaste os privilégios <strong>da</strong> amizade, que violaste<br />
<strong>da</strong> leal<strong>da</strong>de as leis, que prevaricaste <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de os <strong>do</strong>cumentos, <strong>da</strong><br />
desconfiança os foros, <strong>da</strong> cortesia os primores e a imuni<strong>da</strong>de <strong>do</strong> hospício com<br />
que em minha casa entravas! Que vingança não receias, que castigo não<br />
temes de um desgraça<strong>do</strong> tão sem razão ofendi<strong>do</strong>? Se te fias na riqueza, pouco<br />
aproveitou a Cresto o possuí-la; se na valentia, que importou a Filipe<br />
Macedónio o invencível valor quan<strong>do</strong> o ofendi<strong>do</strong> moço Pausânias lhe tirou a<br />
vi<strong>da</strong>? Se confias na nobreza, mais ilustre era Cómo<strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r quan<strong>do</strong> seus<br />
Sen., De ir. lib 3.<br />
Cie, 5. Act. in Ver.<br />
Piau., in Per.
866 Padre Mateus Ribeiro<br />
próprios cria<strong>do</strong>s o mataram; e se confias na ventura, mais venturoso foi César<br />
e no fim violenta e cruelmente perdeu no sena<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong>.<br />
Assi queixoso, sem tornar a casa, nem ver a meus pais e irmã, por não<br />
ter de novo maiores pesares que sentir, pedin<strong>do</strong> duas pistolas a um amigo para<br />
fazer uma jorna<strong>da</strong> de breves dias, me parti para Faença tão senti<strong>do</strong> de meus<br />
infortúnios, tão aborreci<strong>do</strong> <strong>da</strong> própria vi<strong>da</strong>, tão molesta<strong>do</strong> de meus pesares que<br />
nem me lembrava de comer para alimentar a vi<strong>da</strong>. Cheguei enfim a Faença<br />
acompanha<strong>do</strong> de desgostos, que são a companhia de um triste. Eram as horas<br />
em que o sol seus raios escondia, quan<strong>do</strong> entrei em sua casa, receben<strong>do</strong>-me<br />
sobressalta<strong>do</strong> como quem devia, ven<strong>do</strong> tão de repente em sua casa o acre<strong>do</strong>r;<br />
mas dissimulan<strong>do</strong> o susto, mostrou no exterior alegria de ver-me e admiração<br />
de tão improvisa chega<strong>da</strong>. Perguntou-me a causa e eu lhe propus que tivera<br />
em Bolonha uma pendência arrisca<strong>da</strong>, com que fora forçoso o retirar-me<br />
alguns dias em sua casa. Ofereceu-me quanto tinha e necessário me fosse<br />
para assegurar-me. Mostrei razões aparentes por que me não convinha<br />
aparecer de dia na ci<strong>da</strong>de por que não se noticiasse minha assistência em<br />
Faença; e como a noite fechou o escuro de seu manto, lhe pedi que saíssemos<br />
pelas ribeiras <strong>do</strong> cau<strong>da</strong>loso rio Lamão a gozar a frescura de sua corrente, que<br />
eu de dia não podia lograr. Saímos fora <strong>do</strong> arrabalde, e no sítio que me<br />
pareceu mais solitário, lhe falei assi:<br />
- Com capa de amizade, aleivoso e falso Camilo, entraste em minha<br />
casa e sem respeitares o temor <strong>da</strong> justiça divina, a quem ofendias as santas<br />
leis <strong>da</strong> amizade que violavas, o castigo que podia <strong>da</strong>r-te Deus e a conta que<br />
haviam de pedir-te os homens, ofendeste a honra <strong>da</strong> infelice Diana, minha<br />
irmã, enganan<strong>do</strong>-a cauteloso com a palavra fraudulenta de seres seu esposo.<br />
Conseguiste o injusto intento e logo te ausentaste, como se não tiveras acre<strong>do</strong>r<br />
que te pedisse a satisfação de tão justa dívi<strong>da</strong>, engano tão desleal, falsi<strong>da</strong>de<br />
tão execrável, fé rompi<strong>da</strong> e calúnia de inconfidência de mim não mereci<strong>da</strong>.<br />
Fiavas-te em seres rico e meus pais pobres, como se os bens <strong>da</strong> natureza com<br />
que nasceram honra<strong>do</strong>s ficassem desluzi<strong>do</strong>s com a falta <strong>do</strong>s favores <strong>da</strong><br />
fortuna; engano grande, porque um pobre honra<strong>do</strong> e ofendi<strong>do</strong> na honra é o<br />
inimigo mais para temer-se, pois como tem tão pouco que perder, fica mais<br />
expedito para a to<strong>da</strong> a vingança se aventurar. Saí de Bolonha só para matar-te,<br />
que não se lavam as manchas que em a fama e honesti<strong>da</strong>de de minha irmã
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 867<br />
puseste senão com teu próprio sangue derrama<strong>do</strong>, para que a outros sejas<br />
memorável exemplo de não enganarem as <strong>do</strong>nzelas castas e honra<strong>da</strong>s, nem<br />
ofenderem aos amigos tão ver<strong>da</strong>deiros, como eu fui, com escan<strong>da</strong>losos<br />
insultos com capa de amizade tão perjura.<br />
Isto dito, arranquei a espa<strong>da</strong> e sem querer-lhe ouvir resposta alguma,<br />
que é, como diz Plutarco 836 , a ira cega e sur<strong>da</strong>, como leão ofendi<strong>do</strong> me arrojei<br />
a ele e com três estoca<strong>da</strong>s penetrantes no peito recebi<strong>da</strong>s o deixei no campo<br />
sem fala, lutan<strong>do</strong> com os assombros <strong>da</strong> morte. Bem pudera meu vingativo furor<br />
de to<strong>do</strong> logo acabar-lhe a vi<strong>da</strong>, pois Aristóteles 837 lhe chama impetuosíssima<br />
tormenta que levanta as on<strong>da</strong>s sobre os penhascos mais altivos, insólito e<br />
furioso vento que arranca os troncos mais valentes, desterran<strong>do</strong> <strong>do</strong> centro as<br />
mais firmes raízes, que arruina os edifícios mais soberbos, deixan<strong>do</strong> em<br />
míseros despojos caí<strong>do</strong>s sobre a terra o que foi obelisco competi<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s<br />
Olimpos, mas quis deixar-lhe lugar a que pudesse confessar-se <strong>do</strong>s enganos<br />
de sua mal gasta<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Assustei-me com temor que as justiças me buscassem pelos<br />
penhascoso outeiros e profun<strong>do</strong>s vales <strong>do</strong> Apenino, que com o fragoso de seus<br />
roche<strong>do</strong>s é carta de seguro <strong>do</strong>s homizios. Aí tive notícias de alguns lavra<strong>do</strong>res<br />
que a Faença iam como Camilo ao seguinte dia falecera em sua casa,<br />
declaran<strong>do</strong> que eu lhe dera a morte, e <strong>da</strong>s muitas diligências que a justiça fazia<br />
por prender-me por ser o defunto pessoa tão principal, aparenta<strong>da</strong> e rica; que<br />
como ignoravam o motivo de minha vingança, a to<strong>do</strong>s parecia detestável o<br />
homicídio. Três dias passei nesta sole<strong>da</strong>de, discursan<strong>do</strong> o caminho que<br />
seguiria para assegurar-me, quan<strong>do</strong> deram comigo uns ban<strong>do</strong>leiros; e<br />
declaran<strong>do</strong>-lhes eu a ânsia que homizia<strong>do</strong> me trazia, me julgaram por homem<br />
de valor e me convi<strong>da</strong>ram a ser seu companheiro para viver <strong>do</strong>s assaltos <strong>da</strong><br />
justiça seguro. Aceitei o odioso parti<strong>do</strong> mais por assegurar-me que por aboná-<br />
lo: vi<strong>da</strong> em que há três anos que assisto.<br />
Era capitão desta quadrilha Leopol<strong>do</strong>, destemi<strong>do</strong> e valente mancebo a<br />
quem semelhantes infortúnios aos meus tinham conduzi<strong>do</strong> a tão arrisca<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Viu este, passan<strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong> por junto a Sarafina, haverá três dias, a rara<br />
Plut., De virt. mor.<br />
Ar., Eth. 2.
868 Padre Mateus Ribeiro<br />
fermosura <strong>da</strong> pastora Jacinta que em casa <strong>do</strong> rico e ancião lavra<strong>do</strong>r Arnal<strong>do</strong><br />
com Doroteia, sua filha, em uma fonte <strong>do</strong> casal se divertia. Foi sua vista a<br />
primeira maravilha de seus olhos, por quem esqueci<strong>da</strong>s ficaram as antiguas<br />
sete maravilhas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tão celebra<strong>da</strong>s e na memória <strong>do</strong>s homens<br />
aplaudi<strong>da</strong>s. Admirou-se de ver em traje camponês tanta beleza, tanto brio na<br />
serra, tanta corte no monte; tal cara sem ser <strong>do</strong> sol ofendi<strong>da</strong>, sem ser <strong>da</strong> neve<br />
assalta<strong>da</strong>, bizarra para pastora, senhoril para serrana, sen<strong>do</strong> discreta inveja <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de e a gala mais deliciosa <strong>do</strong> monte.<br />
Chegou a beber na fonte, quan<strong>do</strong> elas apressa<strong>da</strong>s se retiraram dela,<br />
meten<strong>do</strong>-se no casal que vizinho estava. Hidrópico Leopol<strong>do</strong> com a bebi<strong>da</strong>,<br />
não <strong>da</strong> água, mas de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, ven<strong>do</strong> impossível a vista e sem recurso o<br />
remédio, retiran<strong>do</strong>-se com esta pena de repente ocasiona<strong>da</strong> e grave para<br />
padeci<strong>da</strong>, me chamou a mi e aos outros sete companheiros de quem mais<br />
confiava para que nessa noite, quan<strong>do</strong> o maior silêncio às ousadias<br />
patrocinasse, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> bem arma<strong>do</strong>s no casal <strong>do</strong> descui<strong>da</strong><strong>do</strong> Arnal<strong>do</strong>, a Jacinta e<br />
Doroteia lhe trouxéssemos, prometen<strong>do</strong> ricos prémios em remuneração desta<br />
empresa. Era já passa<strong>da</strong> a meia-noite, quan<strong>do</strong> assaltámos as fracas muralhas<br />
<strong>do</strong> desprovi<strong>do</strong> casal: estavam ain<strong>da</strong> as pastoras ergui<strong>da</strong>s, o lavra<strong>do</strong>r deita<strong>do</strong>,<br />
os abegões tími<strong>do</strong>s; e sem valerem as lágrimas que as pastoras choravam,<br />
que para mi sobravam se meus companheiros se mostrassem enterneci<strong>do</strong>s,<br />
nem as lástimas que o pai choran<strong>do</strong> dizia, as trouxemos até o lugar em que o<br />
monte começa a levantar sua eminência. Ven<strong>do</strong>-se elas que as retirávamos <strong>da</strong><br />
estra<strong>da</strong> trilha<strong>da</strong>, aonde podiam <strong>do</strong>s passageiros que viessem esperar socorro,<br />
e que caminhávamos com elas para o fragoso <strong>do</strong> monte, de cuja aspereza e<br />
solidão perdiam as esperanças de poderem ver-se socorri<strong>da</strong>s, avinculan<strong>do</strong> às<br />
lágrimas as vozes propuseram antes morrerem <strong>do</strong> que serem ao monte<br />
conduzi<strong>da</strong>s.<br />
Acudistes, senhores, ao compassivo de suas vozes e ao enterneci<strong>do</strong> de<br />
suas lágrimas, e sucedeu o que tendes visto. E posso afirmar que com me ver<br />
feri<strong>do</strong>, como me vejo, estimei muito acudir vosso socorro a tempo tão propício<br />
que amparásseis as vi<strong>da</strong>s a estas tão honra<strong>da</strong>s lavra<strong>do</strong>ras, que nas aras de<br />
sua honesti<strong>da</strong>de não estimavam perder ca<strong>da</strong> qual a vi<strong>da</strong>, antes que <strong>da</strong>r um<br />
passo adiante pelo fragoso <strong>do</strong> monte; principalmente Jacinta, em quem a<br />
fermosura, sen<strong>do</strong> rara, igualava com a honesti<strong>da</strong>de que era sem par; e sen<strong>do</strong> a
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 869<br />
beleza para a honesti<strong>da</strong>de o mais próximo risco, como diz Ovídio 838 , fizera liga<br />
nesta discreta pastora o extremo maior <strong>do</strong> parecer com o extremoso de sua<br />
honesti<strong>da</strong>de, ain<strong>da</strong> com evidentes riscos de a conservar.<br />
Esta é, nobres senhores, a trágica história de minha vi<strong>da</strong>, a causa de<br />
desamparar meus estu<strong>do</strong>s e de me ver hoje no odioso nome de ban<strong>do</strong>leiro,<br />
tu<strong>do</strong> causa<strong>do</strong> <strong>da</strong> perfídia de um falso amigo e <strong>da</strong> confiança que fez em suas<br />
palavras esta infelice irmã, para meu mal nasci<strong>da</strong>. Caí a vossos pés: venturosa<br />
foi minha que<strong>da</strong>, felice minha ruína, pois com a pie<strong>da</strong>de que de mim tivestes e<br />
com o favor de vossa nobreza espero poder levantar-me deste lapso de minha<br />
adversa fortuna em que me vi até agora submergi<strong>do</strong>.<br />
Deu fim Constantino aos trágicos perío<strong>do</strong>s de sua vi<strong>da</strong>, e não sem<br />
lágrimas em que depuseram seus olhos seu sentimento. A quem respondeu<br />
Roberto assim:<br />
- Para serdes estu<strong>da</strong>nte e nas escolas tão versa<strong>do</strong>, em na<strong>da</strong>,<br />
Constantino, vos mostrastes prudente, antes em tu<strong>do</strong> precipita<strong>do</strong>; e de errardes<br />
no princípio viestes a errar em tu<strong>do</strong>, que por isso Platão 839 chamou ao princípio<br />
a cousa principal, título que também lhe deu Aristóteles 840 ; porque erran<strong>do</strong>-se<br />
ele, tu<strong>do</strong> o mais se erra. Conce<strong>do</strong> que Camilo Rizar<strong>do</strong> obrou mal e prevaricou<br />
as leis <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira amizade, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a vossa irmã palavra de ser seu esposo.<br />
Porém antes de vos desenganardes se estava disposto para satisfazê-la,<br />
an<strong>da</strong>stes imprudente em lhe tirar a vi<strong>da</strong>. Primeiro se devem experimentar os<br />
lenitivos <strong>do</strong> que usar <strong>do</strong> rigor <strong>do</strong> ferro, que este é o último remédio quan<strong>do</strong> as<br />
branduras não aproveitam. Sempre para a vingança dá o discurso <strong>do</strong> tempo<br />
lugar quan<strong>do</strong> os outros meios o não admitem.<br />
Nas bélicas empresas e marciais conflitos nunca se chega a <strong>da</strong>r assalto,<br />
sem primeiro se ouvirem os parti<strong>do</strong>s, para se render o castelo sitia<strong>do</strong>; porque<br />
para a invasão sempre há tempo quan<strong>do</strong> os parti<strong>do</strong>s <strong>da</strong> paz não se<br />
ajustassem. Que sabeis vós, Constantino, se o intento de Camilo era receber a<br />
Diana, vossa irmã, como lhe tinha prometi<strong>do</strong>? Que prova evidente tínheis de<br />
que faltava na palavra que lhe tinha <strong>da</strong><strong>do</strong>? Pressagiar os intentos e descifrar as<br />
Plat., De Rep.
870 Padre Mateus Ribeiro<br />
vontades não é empenho em que não possam errar os humanos discursos.<br />
Soubéreis primeiro sua resolução e conforme a ela vos deliberáveis no que<br />
dever e obrar mais decente era. Porém com o arrojo de vossa ira privastes a<br />
vossa irmã de esposo, a vossos pais de consolação, a vós <strong>do</strong> útil de vossos<br />
estu<strong>do</strong>s, <strong>do</strong> sossego <strong>da</strong> pátria e <strong>da</strong> boa opinião que em Bolonha de vós se<br />
tinha.<br />
- Dá maior força a esta razão (disse eu então) o estar o lapso de vossa<br />
irmã totalmente neste tempo oculto; e mal que os vizinhos não alcançam, na<br />
política <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> não se pode chamar mal. Tanto tem este de oneroso, quanto<br />
tem de divulga<strong>do</strong>; e foi prolóquio de Platão 841 que não se tire a público o <strong>da</strong>no<br />
que está encoberto, porque sen<strong>do</strong> antes mal singelo, tanto que se divulgou fica<br />
sen<strong>do</strong> um agrega<strong>do</strong> de males. Se o <strong>da</strong>no fora sabi<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> pudéreis ter mais<br />
desculpa no acelera<strong>do</strong> <strong>da</strong> ira com o gravame <strong>da</strong> perdi<strong>da</strong> fama, a ignomínia<br />
trivia<strong>da</strong> <strong>do</strong>s juízes, o descrédito volátil não só na pátria, mas ain<strong>da</strong> em<br />
povoações diferentes, aonde ca<strong>da</strong> um julga conforme o afeiçoa<strong>do</strong> ou o<br />
inficiona<strong>do</strong> de sua natural inclinação, não <strong>da</strong>n<strong>do</strong> talvez quartel ao desculpável,<br />
antes acriminan<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a culpa a um infelice. Porém estan<strong>do</strong> o agravo em<br />
silêncio, a ofensa sem vozes, o engano imperceptível, o descrédito ignora<strong>do</strong> e<br />
finalmente a injúria para com o mun<strong>do</strong> sem título por onde a conhecer, excesso<br />
foi <strong>da</strong> paixão e estímulo indiscreto <strong>da</strong> ira tratardes tão de repente <strong>da</strong> vingança,<br />
sem esperardes meio à satisfação.<br />
Sobre isto, pois cometestes o homicídio de noite, porque não vos<br />
assegurastes em outra parte em que não pudésseis ser preso: não havia<br />
Módena, Pádua, Veneza e Nápoles para onde pudésseis retirar-vos? Que<br />
pretendíeis nos eminentes roche<strong>do</strong>s e condensos vales <strong>do</strong> Apenino, só de<br />
criminosos insolentes e foragi<strong>do</strong>s insultuosos habita<strong>do</strong>s? Como vos haviam de<br />
assegurar os que <strong>do</strong> temor <strong>do</strong> castigo jamais vivem seguros? Que remédio vos<br />
haviam de <strong>da</strong>r os que vivem desespera<strong>do</strong>s <strong>do</strong> remédio? Que conselhos<br />
esperáveis receber <strong>do</strong>s que em seus insultos nunca tomaram conselho? E<br />
sen<strong>do</strong> vós tão severo vingativo <strong>da</strong> honra de vossa irmã, como tanto abatestes a<br />
vossa própria e de vossos pais em an<strong>da</strong>rdes feito ban<strong>do</strong>leiro na esquadra de<br />
Leopol<strong>do</strong>, cruento capitão de foragi<strong>do</strong>s, rouban<strong>do</strong> por seu man<strong>da</strong><strong>do</strong> injusto as<br />
Plat., De sum. bon.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 871<br />
inocentes lavra<strong>do</strong>ras, para serem presa de seu libidinoso apetite, se Deus,<br />
compadeci<strong>do</strong> <strong>do</strong> lamentável de suas lágrimas, não as socorrera? Pudéreis<br />
perder a vi<strong>da</strong> em esta<strong>do</strong> tão arrisca<strong>do</strong> à salvação, odioso aos homens e<br />
abominável ao mun<strong>do</strong>. E pois foi Deus servi<strong>do</strong> que escapásseis vivo, sabei<br />
aproveitar-vos de tão favorável ocasião para conhecerdes o deprava<strong>do</strong> a que<br />
procedestes, o labéu que contraístes, a fama que manchastes, o bem que<br />
perdestes e o mal que obrastes, arrependen<strong>do</strong>-vos de tão mal gasta<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; e<br />
pois vos valestes de mim, não vos hei-de faltar com o remédio no que mais<br />
conveniente e útil vos for.<br />
Cap. XVI.<br />
Como Jacinta e Doroteia se partiram para Cesena e <strong>do</strong> que se passou até os<br />
desposórios de Florisela com Feliciano<br />
Confuso de seus desacertos cometi<strong>do</strong>s e convenci<strong>do</strong> de tão<br />
concludentes razões de seus erros ouviu Constantino a Lisar<strong>do</strong>, sem ter mais<br />
desculpa que <strong>da</strong>r que confessarem seus olhos nas lágrimas de arrependi<strong>do</strong> o<br />
que calavam as vozes de magoa<strong>do</strong>. São as lágrimas substitutas <strong>da</strong>s palavras e<br />
intérpretes <strong>da</strong> <strong>do</strong>r, que mais explicam talvez sen<strong>do</strong> mu<strong>da</strong>s <strong>do</strong> que as locuções<br />
mais eloquentes. São as lágrimas, como diz Quinto Cúrcio 842 , demonstrações<br />
<strong>do</strong> arrependimento e, quan<strong>do</strong> se segue a emen<strong>da</strong>, dignas de muita estimação.<br />
Por tal as estimaram enterneci<strong>do</strong>s seus pie<strong>do</strong>sos benfeitores, desejan<strong>do</strong><br />
poderem <strong>da</strong>r-lhe remédio, pois em livrá-lo <strong>do</strong> perigo empenha<strong>do</strong>s se viam.<br />
Bateram nisto à porta <strong>da</strong> quinta a horas que a noite se avizinhava, e era o<br />
ancião lavra<strong>do</strong>r Arnal<strong>do</strong>, que com os felices anúncios que recebera de estarem<br />
sua filha Doroteia e Jacinta livres <strong>da</strong> foragi<strong>da</strong> insolência na quinta de Feliciano,<br />
vinha buscá-las e a desenganar-se com a vista <strong>do</strong> que ain<strong>da</strong> duvi<strong>da</strong>va sua<br />
ventura pela fama.<br />
Tem as alegrias grandes muito de escrupulosas para serem cri<strong>da</strong>s; por<br />
isso Demócrito Abderita de tu<strong>do</strong> quanto via se ria e o filósofo Heraclito Efesino,<br />
pelo contrário, de tu<strong>do</strong> quanto via chorava, porque tu<strong>do</strong> o <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> lhes<br />
Quint. Curt., Lib. 5.
872 Padre Mateus Ribeiro<br />
parecia sonho e fantástica representação pelo breve que dura e tragédia pelo<br />
muito que atormenta. Man<strong>do</strong>u Feliciano fechar a porta <strong>da</strong> casa em que<br />
Constantino estava, para que Arnal<strong>do</strong> o não visse e pudesse <strong>da</strong>r notícias dele<br />
às justiças de Sarafina, e saímos to<strong>do</strong>s a recebê-lo, que ajoelha<strong>do</strong> em terra nos<br />
queria render as graças (se lho consentíramos); levantamo-lo nos braços e<br />
levan<strong>do</strong>-o à casa em que a filha com Jacinta estavam, que chorosas saíram a<br />
recebê-lo, ele banhan<strong>do</strong> em lágrimas as veneráveis cãs, tanto agora de alegria,<br />
como a passa<strong>da</strong> noite de triste, falou assim:<br />
- Quem me dissera a mi, rouba<strong>da</strong>s pren<strong>da</strong>s, que poderia a anciani<strong>da</strong>de<br />
de meus anos, o decrépito de minha i<strong>da</strong>de e o fugitivo termo de minha vi<strong>da</strong><br />
tornar a ver-vos, quan<strong>do</strong> a morte a passos largos vai cortan<strong>do</strong> os alentos e<br />
aceleran<strong>do</strong> os termos ao prazo de minha infelice vi<strong>da</strong>? Aonde deram tão<br />
grande baixa minhas malogra<strong>da</strong>s alegrias, quem pode assegurar-se <strong>da</strong> ânsia<br />
<strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>deiras tristezas? E quan<strong>do</strong> an<strong>da</strong> a malícia tão desperta para o <strong>da</strong>no,<br />
como viverá seguro um descui<strong>da</strong><strong>do</strong> para a defensa? Nunca as desgraças<br />
costumam man<strong>da</strong>r avisos: juntamente se ouve o estron<strong>do</strong>so <strong>do</strong> trovão e se<br />
despede o cruento <strong>do</strong> raio; vem tão uni<strong>da</strong> a causa com a <strong>do</strong>r que nunca pode o<br />
efeito acautelar-se <strong>da</strong> causa. Ai de mi, queri<strong>da</strong> Doroteia, luz de meus olhos,<br />
glória de minha vi<strong>da</strong>, desvelo de meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e único alívio de minha<br />
desconsola<strong>da</strong> velhice, centro de meu amor e alento singular de minha<br />
debilita<strong>da</strong> esperança! Foste de tua defunta mãe com extremos encomen<strong>da</strong><strong>da</strong> a<br />
meu cui<strong>da</strong><strong>do</strong> nos horizontes de sua morte e nas últimas despedi<strong>da</strong>s de sua<br />
vi<strong>da</strong>; quem me dissera a mim, ó pren<strong>da</strong> cara, que poderia atrever-se o desaforo<br />
ou presumir a insolência de foragi<strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>leiros não nas públicas estra<strong>da</strong>s e<br />
trivia<strong>do</strong>s caminhos de Sarafina, não no fragoso <strong>do</strong>s montes e sombrio sítio <strong>do</strong>s<br />
vales, não nas embosca<strong>da</strong>s ocultas, nem nos retiros condensos a quem as<br />
copa<strong>da</strong>s árvores com sua sombra servem de sombra inculpável para<br />
encobrirem seus odiosos atrevimentos; mas <strong>do</strong> interior de minha própria casa,<br />
<strong>do</strong> pacífico retiro de meu <strong>do</strong>micílio te haviam de roubar de minha vista, arrancar<br />
de meus braços e tirar <strong>do</strong> centro de meu coração? Sente a inocente ovelha o<br />
levantarem-lhe de seus olhos o simples cordeirinho, a pomba o filho que<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa alimenta, e to<strong>da</strong> a ave e animal que de razão carece impaciente<br />
geme e com arrulhos por suspiros busca a pren<strong>da</strong> que lhe roubaram,<br />
mostran<strong>do</strong> nas sau<strong>da</strong>des de sua ausência o natural amor que de seu despojo a
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 873<br />
restituição solicita. Pois que sentiria eu, sen<strong>do</strong> racional? Um roubo tão violento,<br />
um insulto tão execrável cometi<strong>do</strong> de minhas portas adentro, com tão pouco<br />
respeito destas cãs, com tão pouco decoro a meu afecto?<br />
Oh noite para mim tão infausta, em tu<strong>do</strong> tenebrosa para minha ventura!<br />
Com quanta razão te pudera intitular sepulcro de minhas alegrias: parece que o<br />
sol, por não ver o vivo de minhas lágrimas e atender ao senti<strong>do</strong> de minhas<br />
queixas, te largou o campo para que fossem tuas sombras mais dilata<strong>da</strong>s; pois<br />
nunca dura menos para um triste tu<strong>do</strong> o que de ânsia lhe pode servir. Se minha<br />
pena tivera desafogo na morte, venturoso fora eu se então morrera, se estes<br />
tiranos que te levavam no mesmo tempo me tirassem a vi<strong>da</strong>, pois me<br />
despojavam de to<strong>do</strong> o alento dela; e pois me roubavam o que mais amava, me<br />
privassem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que aborrecia; e pois que em levar-te se mostravam tiranos,<br />
em me matarem se mostrariam compassivos. E pois me levavam o vital, para<br />
que me deixavam o sensitivo? E sen<strong>do</strong> os sentimentos poderoso veneno para<br />
acabar-se uma vi<strong>da</strong>, quiseram que esta se alimentasse <strong>do</strong>s próprios<br />
sentimentos.<br />
Mal posso referir o que passei, porque não dá o coração tão cabal<br />
comissão à voz para poder declará-lo, pois o encarecimento maior <strong>do</strong><br />
publica<strong>do</strong> fica sen<strong>do</strong> o átomo menor <strong>do</strong> padeci<strong>do</strong>. Avizinhava-se o dia depois<br />
de tão penosa e triste noite, e disse eu ao sol choran<strong>do</strong> de senti<strong>do</strong>:<br />
- Pois te escondeste, oh sol, para meu <strong>da</strong>no, como agora madrugas<br />
para seres testemunha de minha pena? Deixaste-me acompanha<strong>do</strong> e achas-<br />
me sem companhia, deixaste-me contente e achas-me triste, deixaste-me<br />
honra<strong>do</strong> e vês-me abati<strong>do</strong>. Ou não te esconderas por não <strong>da</strong>res ocasião a<br />
minhas sau<strong>do</strong>sas mágoas, ou não apareceras para não publicares minha<br />
ânsia; e pois com teu retiro me amotivaste a per<strong>da</strong>, para que me visitas depois<br />
de recebi<strong>da</strong> a mágoa? Retiraras teus raios de meus desgostos, já que os<br />
escondeste para meus infortúnios.<br />
Assi me queixava <strong>do</strong> sol como se fora culpa<strong>do</strong>, porém quan<strong>do</strong> em um<br />
peito aflito se censurou a queixa, manifestan<strong>do</strong>-se a <strong>do</strong>r? Porque seguem mais<br />
as vozes a um coração que pena <strong>do</strong> que a um entendimento que<br />
desapaixona<strong>do</strong> discursa. No intenso deste pesar, no mais vivo desta ânsia, no<br />
mais sau<strong>do</strong>so desta mágoa, quan<strong>do</strong> os pesares iam fazen<strong>do</strong> liga com minha<br />
morte e quan<strong>do</strong> a morte parece que fazia divórcio com minha vi<strong>da</strong>, me chegou
874 Padre Mateus Ribeiro<br />
a venturosa nova, ilustres senhores, de que vosso invicto valor, nativa nobreza<br />
e pie<strong>da</strong>de se puseram <strong>da</strong> parte de minha <strong>do</strong>r para libertardes compassivos<br />
essas rouba<strong>da</strong>s pren<strong>da</strong>s e castigardes o desaforo <strong>do</strong>s insolentes foragi<strong>do</strong>s que<br />
as levavam prisioneiras. Meteu-se a dúvi<strong>da</strong> em meio <strong>da</strong> ventura para não me<br />
matar repentinamente a alegria, pois no fracasso não me tirou a vi<strong>da</strong> o pesar.<br />
Nascia o duvi<strong>da</strong>r de consultar minha ventura na ocasião em que vivia tão<br />
queixoso dela, porque passar de um extremo a outro é salto tão desusa<strong>do</strong> que<br />
raras vezes se consegue e por admiração se julga. Põe escrúpulos ao que se<br />
refere sua própria grandeza ou a contrarie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> repentina mu<strong>da</strong>nça; porque<br />
passar em breve intervalo <strong>da</strong> noite ao dia, <strong>do</strong> Inverno ao estio, <strong>da</strong> sombra ao<br />
sol, <strong>da</strong> pobreza à riqueza, de abati<strong>do</strong> ao excesso e <strong>da</strong> tristeza à alegria excede<br />
a creduli<strong>da</strong>de de quem o ouve e põe dúvi<strong>da</strong>s à ver<strong>da</strong>de de quem o diz.<br />
Pediam-me as alvíssaras <strong>do</strong> felice anúncio, e em <strong>da</strong>r-lhe a própria vi<strong>da</strong>, <strong>da</strong>va<br />
pouco, porque a desestimava minha <strong>do</strong>r, e quanto no casal tenho é pequeno<br />
prémio se se compara com meu amor, que não tem preço.<br />
Vim a desenganar-me com a vista desta para mi alegria tão duvi<strong>do</strong>sa e<br />
agora que vejo o desengano, vejo que a obra foi digna de vosso valor, de que<br />
Deus Nosso Senhor vos <strong>da</strong>rá o prémio de uma pie<strong>da</strong>de tão heróica de seu<br />
poderoso braço guia<strong>da</strong>, que eu só com arrojar-me a vossos pés posso<br />
protestar meu eterno agradecimento a tão generosa dívi<strong>da</strong>.<br />
Deu fim Arnal<strong>do</strong> com copiosas lágrimas a sua discreta locução, em que<br />
Doroteia e Jacinta o acompanharam, assi de enterneci<strong>da</strong>s, como <strong>da</strong><br />
consideração <strong>do</strong> rigoroso perigo em que com os foragi<strong>do</strong>s se tinham visto. Foi<br />
hospe<strong>da</strong><strong>do</strong> Arnal<strong>do</strong> com grandeza aquela noite, em que sobre prática se<br />
informou Roberto como Jacinta viera ter no seu casal e como tão assistente<br />
estava nele, ao que o discreto lavra<strong>do</strong>r satisfez, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Seriam as quatro horas <strong>da</strong> tarde, quan<strong>do</strong> o sol ia engrandecen<strong>do</strong> as<br />
sombras aos troncos <strong>da</strong>s árvores, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhes maior estatura <strong>da</strong> que lhes<br />
comunicou a natureza, e queren<strong>do</strong> nas despedi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> luz, quan<strong>do</strong> se retirava<br />
granjear aplausos de rei em fazer grandes. Já a valentia de seus raios<br />
abrasava menos, diminuin<strong>do</strong> o rigor para deixar sau<strong>da</strong>des, que mal pode<br />
causá-las quem de severi<strong>da</strong>des usa. Já permitia que os olhos a vê-lo com<br />
menos perigo se atrevessem, se de antes a brilhante guar<strong>da</strong> de seus luzi<strong>do</strong>s<br />
resplan<strong>do</strong>res a to<strong>do</strong>s proibia sua vista, sen<strong>do</strong> cortina e tarima de seu respeito a
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 875<br />
mesma luz com que cegava; finalmente quan<strong>do</strong> os pastores que estiveram até<br />
então diverti<strong>do</strong>s e <strong>da</strong>s sombras ampara<strong>do</strong>s, começaram a juntar seus rebanhos<br />
para os guiarem ao conheci<strong>do</strong> aprisco, para que não corressem risco <strong>da</strong><br />
invasão <strong>do</strong>s cruentos lobos se por descui<strong>do</strong> no campo a noite com suas<br />
sombras os encontrasse.<br />
Estava eu e Doroteia, minha filha, a este tempo assenta<strong>do</strong>s à porta <strong>do</strong><br />
casal, debaixo <strong>da</strong> sombra de um antigo álamo, que de sua i<strong>da</strong>de só as<br />
inquietas folhas lhe ficaram por cabe<strong>da</strong>l para móveis de sua herança, pois não<br />
tinha outros bens de raízes mais que as suas próprias, com que se sustentava<br />
pobre de frutos e rico de folhas. Advertiu neste tempo Doroteia que pela<br />
estra<strong>da</strong> que ao casal encaminhava vinha uma pastora tão briosa no an<strong>da</strong>r e tão<br />
<strong>do</strong>nairosa nos passos com que se movia que fez reparar o descostume no<br />
airoso com vir ain<strong>da</strong> distante <strong>do</strong> casal. Levou os olhos de Doroteia o agra<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
primeira apreensão <strong>da</strong> vista, sem ain<strong>da</strong> se divisar mais que o talhe, esperan<strong>do</strong><br />
que chegasse mais ao perto para ver se amol<strong>da</strong>va o rosto com o brio: que nem<br />
sempre a natureza junta tu<strong>do</strong> em um sujeito.<br />
Chegou enfim ao casal e foi recebê-la nos braços Doroteia: suborno<br />
natural é a beleza para atrair as vontades em qualquer parte. Era tal na<br />
forasteira a fermosura que se os longes adquiriam tanto agra<strong>do</strong>, os pertos<br />
produziam admiração; pois sen<strong>do</strong> nela a beleza natural, ficou por sem igual<br />
sen<strong>do</strong> nela peregrina. Vinha triste ao que mostrava e foi excesso atrever-se a<br />
tristeza à fermosura, pois acrescentava o espanto sen<strong>do</strong> os seus olhos para<br />
quem os via tão alegres, mostrarem que para si estavam tristes. Vinha<br />
molesta<strong>da</strong> <strong>do</strong> caminho como tão pouco costuma<strong>da</strong> a ele, que ain<strong>da</strong> que o<br />
vesti<strong>do</strong> se cortou amol<strong>da</strong><strong>do</strong> para a serra, o brio foi ajusta<strong>do</strong> para a corte, e<br />
desmentia o cansaço o testemunho camponês. Perguntou se lhe <strong>da</strong>riam<br />
gasalho essa noite, a quem Doroteia ofereceu a alma, pois achava para<br />
hospedá-la ser pequeno <strong>do</strong>micílio o coração. Agradeceu a vontade com grande<br />
cortesia e chorou, com que a to<strong>do</strong>s <strong>do</strong> casal promoveu a lágrimas, ven<strong>do</strong> que<br />
<strong>da</strong>va motivos de sentir, quem <strong>da</strong>va a to<strong>do</strong>s tanto em sua vista que admirar.<br />
Perguntou que distância havia até a ci<strong>da</strong>de de Cesena, para onde<br />
caminhava. Levou-a Doroteia para dentro para que descansasse, ofereceram-<br />
Ihe os mimos que no casal havia; tu<strong>do</strong> agradeceu, porém de pouco gostou,<br />
porque o cansaço e a pena o não permitiam. Disse que se chamava Jacinta,
876 Padre Mateus Ribeiro<br />
nunca declarou a pátria em que nascera, nem os perío<strong>do</strong>s de sua vi<strong>da</strong>: e com o<br />
ocultar-se tanto, ca<strong>da</strong> vez o ser bem nasci<strong>da</strong> se declarava mais. Quis ao<br />
seguinte dia partir-se, mas nem Doroteia, nem eu, nem to<strong>do</strong>s os cria<strong>do</strong>s e<br />
pastoras <strong>do</strong> meu casal lho consentimos, pedin<strong>do</strong>-lhe que alguns dias<br />
descansasse em nossa vontade, que era mui grande, suposto que o tosco <strong>do</strong><br />
casal para servi-la era pequeno hospício para merecê-la. A rogos importunos<br />
de Doroteia, que com grande amor lhe assistia, concedeu deter-se mais alguns<br />
dias em sua companhia, favor que minha filha julgou por singular. Divulgou-se<br />
a fama <strong>da</strong> famosa pastora não só nos campos, mas na ci<strong>da</strong>de; vieram três<br />
mancebos <strong>do</strong>s mais afazen<strong>da</strong><strong>do</strong>s lavra<strong>do</strong>res a oferecer-se para esposos, mas<br />
a na<strong>da</strong> deferiu, fazen<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong> pouco porque seu brio era muito.<br />
Raras vezes aparecia aonde pudesse ser vista e repeti<strong>da</strong>s vezes<br />
chorava, sen<strong>do</strong> duplica<strong>do</strong> tormento de seus olhos a clausura com que os<br />
retirava e as lágrimas com que os afligia. Qualquer pequena estrela trata de<br />
luzir na noite escura e com ténues raios descobrir-se, e sen<strong>do</strong> de Jacinta os<br />
olhos as mais vivas estrelas, to<strong>do</strong> o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> punha em ocultá-los. Se tal vez<br />
estan<strong>do</strong> com Doroteia de algum passageiro ou caça<strong>do</strong>r era de súbito vista e<br />
queriam em seu louvor celebrar encómios, era a resposta o retiro, porque só<br />
com se esconder <strong>da</strong>va resposta. Tanta cautela com tanta fermosura, tal<br />
isenção com tal beleza, a to<strong>do</strong>s punha admiração, parecen<strong>do</strong> novo e insólito<br />
prodígio <strong>do</strong>s campos de Sarafina na humil<strong>da</strong>de de um traje montanhês cobrir-<br />
se tanta lindeza e achar-se tanta isenção. Muitas vezes se quis ausentar e a<br />
detiveram de minha filha as lágrimas que chorava e os sentimentos sau<strong>do</strong>sos<br />
que dizia, dilatan<strong>do</strong> ao preço de carícias amorosas com que a aprisionava os<br />
assaltos <strong>da</strong> ausência que antecipa<strong>da</strong> sentia.<br />
Se lhe perguntavam a causa que a Cesena a levava, dizia que a ver a<br />
Florisela, uma ilustre e fermosa <strong>do</strong>nzela, ia; e eu lhe disse que se ia a desafio<br />
de belezas, bem podia desde logo <strong>da</strong>r por recebi<strong>da</strong> a palma, que suposto que<br />
eu não tinha visto essa senhora, em ver a Jacinta via tu<strong>do</strong>: porque quem havia<br />
visto o sol, não tinha que admirar nos mais planetas. Chegou por meu mal a<br />
fama <strong>da</strong> peregrina pastora aos insolentes ban<strong>do</strong>leiros, que nos penhascosos<br />
roche<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Apenino, fugin<strong>do</strong> ao castigo de seus delitos, fazem fronteira para<br />
acometerem aos passageiros descui<strong>da</strong><strong>do</strong>s; talvez lhe <strong>da</strong>ria a notícia algum <strong>do</strong>s<br />
assalta<strong>do</strong>s de seu rigor, para demovê-los a pie<strong>da</strong>de, que no meu casal se
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 877<br />
encerrava na desconheci<strong>da</strong> Jacinta o maior tesouro <strong>da</strong> lindeza pastoril, o maior<br />
prodígio <strong>do</strong> garbo cortesão. É o foragi<strong>do</strong> Leopol<strong>do</strong> insolente cabeça desta<br />
esquadra: lisonjeou-se <strong>da</strong> fama e quis desconheci<strong>do</strong> desenganar-se pela vista.<br />
Estava Jacinta com Doroteia uma tarde junto à fonte <strong>do</strong> casal, quan<strong>do</strong> chegou<br />
um homem em traje de peregrino a beber e pon<strong>do</strong> os olhos em Jacinta se<br />
esqueceu <strong>da</strong> água só por vê-la; e reparan<strong>do</strong> Jacinta na excessiva atenção com<br />
que a olhava, apressa<strong>da</strong> com Doroteia se recolheram ao casal. Ficou o<br />
peregrino suspenso <strong>do</strong> improviso retiro e se lhe entendeu que assusta<strong>do</strong> dizia:<br />
mais longe.<br />
- Pode ser que algum dia não tenhais o casal tão perto e tenhais a fonte<br />
Não nessa, mas na outra sucessiva noite, ten<strong>do</strong> já os galos indica<strong>do</strong> as<br />
horas com seu cântico, rústico relógio <strong>do</strong>s montes, assaltaram improvisamente<br />
os ban<strong>do</strong>leiros o casal, rouban<strong>do</strong> dele com violência a Jacinta e a Doroteia,<br />
aonde lhe acudiu vosso valor e as livrou vossa pie<strong>da</strong>de. Esta é, senhores, a<br />
informação que vos posso <strong>da</strong>r desta peregrina lavra<strong>do</strong>ra, porque sua pátria e<br />
sucessos nem ela os manifestou, nem eu os sei.<br />
Por extremo se mostraram to<strong>do</strong>s satisfeitos de ouvirem a relação <strong>do</strong><br />
discreto Arnal<strong>do</strong>, para lavra<strong>do</strong>r, tão político no estilo com que falava; porém<br />
continuan<strong>do</strong>-se a prática, vieram a conhecer que no juvenil de sua i<strong>da</strong>de fora<br />
alguns anos sol<strong>da</strong><strong>do</strong> nas guerras de Milão e França, em cuja militar academia<br />
e campanhas que várias vezes cursara se havia adestra<strong>do</strong> na política com que<br />
falava, junto com o bom juízo que tinha. Alegre se mostrou Roberto de haver<br />
entendi<strong>do</strong> a admirável modéstia <strong>do</strong>s louváveis procedimentos de sua esposa,<br />
pesaroso <strong>do</strong>s infortúnios a que tão arroja<strong>do</strong> a havia conduzi<strong>do</strong>, desejan<strong>do</strong> com<br />
extremos que chegasse já a hora em que poder com ela reconciliar-se e pedir-<br />
Ihe perdão de seu engano.<br />
Apenas o seguinte dia mostrou a aurora, que vinha vestin<strong>do</strong> de luzes o<br />
mun<strong>do</strong> para triunfar <strong>do</strong> sol que se avizinhava <strong>do</strong> <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> carro de sua esfera, a<br />
quem o efeito de só luzir deu de sol o nome, quan<strong>do</strong> Arnal<strong>do</strong> madrugou para<br />
partir-se com Doroteia. Também Jacinta, que estava de Lisar<strong>do</strong> avisa<strong>da</strong>,<br />
mostran<strong>do</strong>-se alegre de que Lisar<strong>do</strong> fosse irmão de Florisela, a quem só<br />
buscar dizia, lhe pediu que a Cesena a levasse porque lhe importava muito vê-<br />
la. Deliberou Lisar<strong>do</strong> com Roberto e os caça<strong>do</strong>res partirem-se logo com<br />
Jacinta, enquanto Feliciano e Antíoco na quinta ficavam assistin<strong>do</strong> à cura de
878 Padre Mateus Ribeiro<br />
Constantino e preparan<strong>do</strong> jóias e novas galas para vir a Cesena ver a Florisela<br />
e <strong>da</strong>r ordem ao sumptuoso de suas tão deseja<strong>da</strong>s bo<strong>da</strong>s. Na despedi<strong>da</strong> de<br />
Doroteia e Jacinta foram tantas as lágrimas sau<strong>do</strong>sas que mal podiam<br />
entender-se as palavras que diziam, e deu Jacinta a Doroteia um rico anel de<br />
diamantes que no de<strong>do</strong> trazia para consolar seu sentimento, com muitas<br />
promessas de ain<strong>da</strong> se verem, com que mais algum tanto consola<strong>da</strong> se<br />
despediu com seu pai, choran<strong>do</strong>, que não se estancam as lágrimas de repente<br />
a quem leva no coração a <strong>do</strong>r presente. Despediu-se Lisar<strong>do</strong> de Constantino,<br />
aconselhan<strong>do</strong>-o que em melhoran<strong>do</strong> <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s lhe <strong>da</strong>ria dinheiro para partir-<br />
se a Flandres, aonde escolhesse ou seguir-se as armas, ou acabar seus<br />
estu<strong>do</strong>s em Lovaina, que eram os <strong>do</strong>us caminhos com que os homens chegam<br />
a honrar-se.<br />
Tomou Roberto nas ancas <strong>do</strong> cavalo a disfarça<strong>da</strong> Lívia, sua esposa, e<br />
acompanha<strong>do</strong> de caça<strong>do</strong>res e cria<strong>do</strong>s nos partimos para Cesena com grande<br />
contentamento de to<strong>do</strong>s; entrámos já de noite na ci<strong>da</strong>de, que de propósito não<br />
apressámos a jorna<strong>da</strong> por razão de não ser vista Jacinta. Chegámos a casa, e<br />
quan<strong>do</strong> minha mãe e Florisela viram a Jacinta tão humilde no traje e tão<br />
admirável no rosto, fizeram a própria admiração que to<strong>do</strong>s quantos a viam<br />
faziam. Saiu a campo Florisela de senhora com Jacinta de pastora e ficou<br />
duvi<strong>do</strong>so o parecer porque eram os <strong>do</strong>us pólos <strong>da</strong> beleza, não sen<strong>do</strong> poderoso<br />
o disfarce para usurpar-lhe a justiça, por se mostrar tão senhora em o mesmo<br />
rebuço de aldeã. Assentaram-se to<strong>da</strong>s no estra<strong>do</strong> e ca<strong>da</strong> qual se admirou de<br />
ver a outra: uma ven<strong>do</strong> que as galas não lhe <strong>da</strong>vam vantagem para exceder,<br />
outra ven<strong>do</strong> que o saial não lhe <strong>da</strong>va temores de em menos se estimar. Ca<strong>da</strong><br />
uma era espelho em que a outra se via, e se falam ver<strong>da</strong>de sempre os<br />
espelhos, nenhuma se <strong>da</strong>va por venci<strong>da</strong>, mas nenhuma presumia ser<br />
vence<strong>do</strong>ra. Viram na prática de Jacinta o discreto, o político e o ajuiza<strong>do</strong>, e<br />
logo inferiram que não produziam os montes tanto aviso, nem conservavam as<br />
serras tanta beleza.<br />
Despedi<strong>do</strong>s os caça<strong>do</strong>res, entrámos eu e Roberto aonde Jacinta com<br />
minha mãe e irmã estavam, e lhes referi to<strong>da</strong> a história de Lívia desde seu<br />
princípio até o presente esta<strong>do</strong>, que ela ouviu com lágrimas copiosas, em que<br />
to<strong>da</strong>s a acompanharam de ver os trances rigorosos em que se tinha visto tão<br />
sem culpa. Levantou-se nisto seu esposo Roberto, e choran<strong>do</strong> de magoa<strong>do</strong>,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 879<br />
que não é descrédito <strong>do</strong> valor o chorar de enterneci<strong>do</strong>, pois Eneias, Alexandre,<br />
Augusto e Júlio César choraram, se pôs de joelhos, pedin<strong>do</strong>-lhe perdão; a<br />
quem ela, levantan<strong>do</strong>-o nos braços e fazen<strong>do</strong> se assentasse, com as lágrimas<br />
nos olhos disse assi:<br />
- Pedes-me, ó Roberto, perdão <strong>da</strong> tirania que tens usa<strong>do</strong> comigo,<br />
apuran<strong>do</strong>-me a paciência e pon<strong>do</strong>-me a vi<strong>da</strong> ao maior perigo de teu rigor: não<br />
sei eu que maior cruel<strong>da</strong>de podia censurar-se que pores meu sofrimento ao<br />
maior risco de perder-se e minha vi<strong>da</strong> aos ameaços executivos de um punhal.<br />
Oh que tarde chega um desengano a favorecer uma infelice! Como te<br />
desenganaste tarde <strong>do</strong>s méritos de minha fé, <strong>da</strong> leal<strong>da</strong>de de meu coração e<br />
<strong>da</strong>s finezas de meu amor! Obraste como cioso e não como entendi<strong>do</strong>, pôde<br />
mais contigo um pensamento engana<strong>do</strong> <strong>do</strong> que uma vontade ver<strong>da</strong>deira!<br />
Puderas considerar, antes de precipitar-te a querer ofender-me, que não<br />
podia desvelar-se por cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s alheios quem te tinha por alvo de seus<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Não admite um coração <strong>do</strong>us empenhos, nem uma vontade <strong>do</strong>us<br />
senhores; para que sacrificaste finezas a quem aborrecia, quan<strong>do</strong> eu só a ti as<br />
dedicava, a quem com extremos amava? Puderas, Roberto, considerar que<br />
interesses me poderiam persuadir a ofender-te. Se interesses? Tu<strong>do</strong> me<br />
sobrava, tiran<strong>do</strong> a ventura. Se dádivas? De tu<strong>do</strong> o que possuis era eu senhora.<br />
Se gentileza? Dela te <strong>do</strong>tou liberal a natureza. Se honra? Como podia <strong>da</strong>r-se<br />
em tal desaire, fican<strong>do</strong> perden<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a estimação, pois como se persuadiria<br />
um amante que podia guar<strong>da</strong>r-lhe fé quem não guar<strong>da</strong>va fé a seu mari<strong>do</strong>? Não<br />
bastou o ter-te tão obriga<strong>do</strong> para considerar-te agradeci<strong>do</strong>? Não foi bastante a<br />
clausura de meu recolhimento para desfazer a névoa de tua desconfiança?<br />
Não pôde o sincero de meu coração desterrar o aparente de teus receios? Oh<br />
sorte cruel! Oh adversa estrela! Que não pôde Lívia com a buril de suas<br />
lágrimas lavrar o diamanta<strong>do</strong> de teu peito, nem com a lima de minhas finezas<br />
aclarar o escuro de teus rigores! Deras, Roberto, tempo a poder desenganar-te<br />
o mesmo tempo, fizeras tréguas com teus devaneios, desapaixonaras o rigor<br />
até se manifestar a ver<strong>da</strong>de e vieras a conhecer o muito que me devias e o mal<br />
que me pagavas. Considera a grande baixa que vieram a <strong>da</strong>r minhas venturas,<br />
mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> nome e trocan<strong>do</strong> traje, peregrina por terras alheias, com a vi<strong>da</strong> a mil<br />
discómo<strong>do</strong>s e perigos ofereci<strong>da</strong>, assusta<strong>da</strong> de temores, combati<strong>da</strong> de
880 Padre Mateus Ribeiro<br />
desgraças, estan<strong>do</strong> inocente de ofender-te, como se houvera si<strong>do</strong> a mais<br />
culpa<strong>da</strong> em agravar-te.<br />
Tu<strong>do</strong> me causaste sem razão, pois a razão pedia o mais vivo<br />
agradecimento, a correspondência mais amorosa e o enternecimento mais<br />
compassivo. Agora me pedes o perdão, quan<strong>do</strong> te desenganou minha<br />
inocência? Ai de mi, e que tarde viste o precipício a que me conduziste por<br />
obrares tão cego <strong>da</strong> paixão! Agora te asseguras, quan<strong>do</strong> te arrependes? Agora<br />
me conheces leal, quan<strong>do</strong> me vistes abati<strong>da</strong>? Agora desistes de perseguir-me,<br />
quan<strong>do</strong> me não conheces deve<strong>do</strong>ra? Pouco crédito te deve meu amor, quan<strong>do</strong><br />
nunca a minhas ver<strong>da</strong>des deste crédito. Dificultaste o crer-me que te amava,<br />
porque era a maior prova de que não te ofendia; pois jamais chega a ofender-<br />
se o que com extremos chega a amar-se. Se foi fazeres prova de minhas<br />
finezas, custosa experiência buscaste para teu desengano, quereres tanto ao<br />
custo de meus pesares certificar-te de minha firmeza, tantas vezes acredita<strong>da</strong><br />
em querer-te e com tanta constância abona<strong>da</strong> em saber amar-te. Pedes enfim<br />
perdão como culpa<strong>do</strong>, último refúgio de quem não tem desculpa: aceitarei teu<br />
arrependimento em satisfação, pois não permite meu amor <strong>da</strong>r-te castigo, que<br />
ata as mãos ao severo quem sabe apadrinhar-se <strong>do</strong> pie<strong>do</strong>so.<br />
Assi choran<strong>do</strong>, deu fim a magoa<strong>da</strong> Lívia a seu discreto falar, e to<strong>do</strong>s lhe<br />
fizeram nas lágrimas companhia, pois deplorar tão justos sentimentos é<br />
provocar socie<strong>da</strong>de na compaixão. Apenas se havia reconcilia<strong>do</strong> com seu<br />
esposo <strong>do</strong> divórcio que tinha feito a ciosa desconfiança de Roberto, quan<strong>do</strong><br />
Florisela foi buscar a melhor gala <strong>da</strong>s que tinha e com rogos a fez vestir a Lívia,<br />
dizen<strong>do</strong> que pois estavam feitas as pazes, não parecia justo verem-se mais os<br />
indícios que testemunhassem sua passa<strong>da</strong> guerra. Obedeceu-lhe Lívia de<br />
cortês, e ficou parecen<strong>do</strong> duas vezes bela, tornan<strong>do</strong> a <strong>da</strong>r à vista nova<br />
suspensão para duvi<strong>da</strong>r se <strong>da</strong>ria a sentença com justiça pelo <strong>do</strong>nairoso de<br />
Lívia ou pelo brioso de Florisela, porque de gala a gala e de beleza a beleza<br />
escrupulizava o juízo receios de sentenciar.<br />
Assistia Lívia com minha irmã na sua camera e Roberto comigo no meu<br />
quarto, ven<strong>do</strong>-se tão alegre de se ver na graça de Lívia admiti<strong>do</strong>, como de a<br />
ver tão felizmente restaura<strong>da</strong>. Divulgaram-se as novas <strong>do</strong> contrata<strong>do</strong><br />
casamento com Feliciano Tiberto, de que to<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de se mostrou contente,<br />
ven<strong>do</strong> que com estes desposórios se estabelecia uma firme paz entre famílias
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 881<br />
opostas que de antes tinham <strong>da</strong><strong>do</strong> a Cesena motivos de tantas guerras.<br />
Desejávamos eu e Roberto ouvir de Lívia o caminho que seguira aquela<br />
funesta noite em que se ausentou <strong>do</strong> casal, que com tantas diligências não<br />
pôde ser acha<strong>da</strong>, e o que lhe sucedeu até chegar ao casal <strong>do</strong> ancião Arnal<strong>do</strong><br />
em Sarafina; e assi ao outro dia sobre mesa lhe pedi nos referisse o caminho<br />
de sua fugi<strong>da</strong>, ao que ela satisfez, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Quan<strong>do</strong> naquela infelice noite que sucedeu ao mais penoso dia em<br />
que Roberto intentou minha injusta morte e vós, senhor Lisar<strong>do</strong>, me<br />
socorrestes, vi que ele chegava ao casal com seus parentes e cria<strong>do</strong>s de<br />
armas tão provi<strong>do</strong>s e delibera<strong>do</strong>s, temi não como culpa<strong>da</strong>, mas como pouco<br />
venturosa, que por mais que vosso pie<strong>do</strong>so valor quisesse aventurar-se em<br />
defender-me, se pusesse a vitória (como de ordinário sucede) <strong>da</strong> parte <strong>do</strong>s<br />
muitos. Ansia<strong>da</strong> com esta pena e assusta<strong>da</strong> com o temor, enquanto vós os<br />
definheis para que no casal não entrassem e os lavra<strong>do</strong>res e abegões estavam<br />
com o repentino sobressalto diverti<strong>do</strong>s, vi outra porta cerra<strong>da</strong> que nas costas<br />
<strong>do</strong> casal a outra parte saía. Deu-me forças para abri-la o receio em que me via,<br />
e amparan<strong>do</strong>-me <strong>da</strong> sombra que as árvores contra os raios <strong>da</strong> lua faziam, não<br />
saben<strong>do</strong> que caminho emprendesse que não me seguissem, fui <strong>da</strong>r no rio; e<br />
aventuran<strong>do</strong>-me a to<strong>do</strong> o risco fui seguin<strong>do</strong> sua corrente, que com minhas<br />
lágrimas mais cau<strong>da</strong>losa se mostrava.<br />
Era o caminho trabalhoso pelo muito arvore<strong>do</strong> que o vestia, estreitos<br />
passos que o dificultavam, quebra<strong>da</strong>s que suas inun<strong>da</strong>ções causa<strong>do</strong> tinham,<br />
escuro e sombrio para temer-se, solitário para implorar socorro quan<strong>do</strong> minhas<br />
desgraças me seguissem. É um pavor médico de um receio, que com ele se<br />
cura o temeroso; e assi com o me<strong>do</strong> de perder a vi<strong>da</strong> com os desaires <strong>da</strong><br />
afronta, me aventurei ao perigo de poder receber a morte sem desaires.<br />
Caminhei to<strong>da</strong> a noite com esta pena, ten<strong>do</strong> a ca<strong>da</strong> passo um susto, fazen<strong>do</strong>-<br />
me atrevi<strong>da</strong> o próprio temor que me levava; que não parece novi<strong>da</strong>de no<br />
mun<strong>do</strong> nascer uma ousadia <strong>da</strong>s mesmas desconfianças <strong>do</strong> remédio. Assomou<br />
a aurora com crepúsculas luzes a minha pena, e achei-me vizinha a um<br />
espaçoso lago, se pequeno para mar, muito grande para rio. O que com sua<br />
corrente guia<strong>do</strong> até ali me havia, molesta<strong>do</strong> de ouvir minhas queixas, ou por<br />
não ver-me mais penar, ou por não querer ouvir-me, se entrou no lago arroja<strong>do</strong>
882 Padre Mateus Ribeiro<br />
na<strong>da</strong><strong>do</strong>r, pois não apareceu mais, fican<strong>do</strong> só dele por memória o nome e<br />
perden<strong>do</strong> no golfo o cristalino <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Vi-me impedi<strong>da</strong> <strong>do</strong> lago para prosseguir mais o caminho, considerei<br />
minhas penas, larguei as velas a minhas mágoas, o vento a meus suspiros e o<br />
mar a minhas lágrimas; e assenta<strong>da</strong> junto ao dilata<strong>do</strong> golfo que servia de<br />
rémora a meu caminho, me queixei <strong>da</strong> fortuna, se pudera a fortuna atender<br />
compassiva a minhas queixas. São estas desafogo <strong>do</strong> penar, se admitiram<br />
meus peares desafogo; mas era tal minha ânsia que tinha muito para queixar-<br />
se, mas na<strong>da</strong> para diminuir-se. Aportou nisto ao lago uma barca de<br />
pesca<strong>do</strong>res; saíram em terra para fazerem agua<strong>da</strong> em uma fonte que ficava<br />
vizinha, em que eu advertia mal, porque as fontes de meus olhos na<strong>da</strong> viam.<br />
O patrão <strong>da</strong> barca me perguntou a causa <strong>da</strong>s lágrimas que meu rosto<br />
humedeciam: dei por motivo minha pouca ventura, sem declarar-me mais, e<br />
nisto tu<strong>do</strong> dizia; porque se fora mais venturosa, vivera menos senti<strong>da</strong>.<br />
Perguntei-lhe que lago era aquele, e disse-me que o lago de Ferrara, e que era<br />
pesca<strong>do</strong>r em Veneza, casa<strong>do</strong> e pobre e se chamava Antonino, e ia descarregar<br />
no porto <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Ancona algumas merca<strong>do</strong>rias que freta<strong>do</strong> de Veneza<br />
para lá levava. Perguntei-lhe pelo caminho de Cesena, disse-me ficava<br />
desvia<strong>do</strong>, mas que se quisesse embarcar-me, me poria no marítimo mais<br />
vizinho a Sarafina, <strong>do</strong>nde fácil me seria poder chegar a Cesena. Vi nele tanta<br />
cortesia, e nos companheiros, que aceitei a oferta, pois outro remédio não<br />
havia. Largou as velas ao mar, que em popa o vento a pequena barca movia, e<br />
vi-me engolfa<strong>da</strong> no mar, pois tinha tão pouca dita na terra; ofereceram-me <strong>da</strong><br />
comi<strong>da</strong> que levavam e enfim fizeram tanta instância que comi por não<br />
desagradecer-lhes a vontade que mostravam. Seriam duas horas depois <strong>do</strong><br />
meio-dia, quan<strong>do</strong> lançaram âncora em uma praia que disseram ser a mais<br />
vizinha a Sarafina. Saiu em terra o patrão e lançan<strong>do</strong> a prancha me pôs em<br />
terra, ensinan<strong>do</strong>-me o caminho um bom espaço; rendi-lhe as graças <strong>do</strong> favor e<br />
lhe dei um anel de rubi de <strong>do</strong>us que levava, que seria para <strong>da</strong>r a sua esposa<br />
quan<strong>do</strong> para Veneza voltasse, com que se despediu agradeci<strong>do</strong>.<br />
Caminhei para Sarafina, e quan<strong>do</strong> cheguei à vista dela, porque o sol se<br />
ia já pon<strong>do</strong>, não queren<strong>do</strong> entrar na ci<strong>da</strong>de, cheguei ao casal de Arnal<strong>do</strong> a<br />
pedir me gasalhassem, sen<strong>do</strong> dele e de Doroteia, sua filha, com grande amor<br />
recebi<strong>da</strong>, aonde estive alguns dias por mo pedirem com repeti<strong>do</strong>s rogos, até
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 883<br />
que sucedeu o repentino assalto <strong>do</strong>s ban<strong>do</strong>leiros que tendes ouvi<strong>do</strong>. Esta é a<br />
peregrina narração de minhas penas, breve para relata<strong>da</strong> e imensa para<br />
padeci<strong>da</strong>.<br />
To<strong>do</strong>s se enterneceram <strong>do</strong>s desgostos que Lívia padeci<strong>do</strong> havia em<br />
espaço de tão pouco tempo, e minha mãe e irmã a acompanharam nas<br />
lágrimas e Roberto seu esposo não ficou com os olhos enxutos, como quem<br />
havia <strong>da</strong><strong>do</strong> a ocasião a sua ânsia. Pediu Florisela a Lívia, que pois em Cesena<br />
estava, havia de ser a madrinha de seus desposórios; o que ela concedeu e<br />
Roberto estimou por favor. E discursan<strong>do</strong> que saí<strong>da</strong> <strong>da</strong>riam a Feliciano e<br />
Antíoco <strong>da</strong> pastora Jacinta que visto tinham, para que não presumissem que<br />
era Lívia, respondeu Florisela que além <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong> traje e <strong>do</strong> nome, o<br />
verem que Lívia era esposa de Roberto ficava desfazen<strong>do</strong> a presunção de<br />
poder ser Jacinta; porque suposto que a fermosura era a mesma, as mu<strong>da</strong>nças<br />
sobreditas e a presente alegria a mostravam mui diferente <strong>do</strong> que as passa<strong>da</strong>s<br />
tristezas e aflições a faziam na representação parecer, se bem sempre fican<strong>do</strong><br />
aos olhos fermosa, porém com as pensões e sombras de magoa<strong>da</strong>.<br />
É a alegria o realce <strong>da</strong> beleza e o matiz mais airoso que dá alma à<br />
fermosura. Sem a alegria parece imagem o que com a alegria parece vi<strong>da</strong>. É a<br />
alegria como fonte segun<strong>da</strong> <strong>do</strong>s espíritos vitais, que assim como estes são os<br />
que alimentam a vi<strong>da</strong>, assim a alegria parece que sustenta a perfeição <strong>da</strong>s<br />
cores e o <strong>do</strong>nairoso <strong>da</strong>s feições de que a lindeza pende. É a alegria como a<br />
saúde e a tristeza como a enfermi<strong>da</strong>de: em uma e outra sen<strong>do</strong> o rosto e as<br />
feições as mesmas, se mostram com diferença nos logros <strong>da</strong> saúde ou nas<br />
pensões <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença. É a alegria a saúde e a tristeza a enfermi<strong>da</strong>de de que a<br />
alma se vê ocupa<strong>da</strong>, e <strong>da</strong>qui nasce o agra<strong>do</strong> <strong>da</strong>s cores na alegria e os<br />
desmaios dela na tristeza, pois raras vezes se dá triste que agrade, nem alegre<br />
que não contente. Ao empera<strong>do</strong>r Tito chamaram sau<strong>do</strong>sas delícias <strong>do</strong> povo<br />
romano pela contínua alegria com que a to<strong>do</strong>s falava, e ao empera<strong>do</strong>r Septímio<br />
Severo acreditou o sobrenome a severa condição e melancólico aspecto que<br />
nele sempre se via. Este o fazia ser aborreci<strong>do</strong> e a alegria de Tito o habilitava<br />
para ser ama<strong>do</strong>. Fermosa iria por extremo Lívia, ain<strong>da</strong> que de seus infortúnios<br />
persegui<strong>da</strong>; porém agora que se via na sereni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> bonança, se quan<strong>do</strong><br />
Jacinta causava admiração, sen<strong>do</strong> Lívia subiu sua beleza ao maior espanto.
884 Padre Mateus Ribeiro<br />
Despediu logo Roberto a Bolonha um cria<strong>do</strong> confidente com as chaves<br />
para que trouxesse as mais ricas galas e preciosas jóias que Lívia tinha, pois<br />
havia de ser madrinha <strong>da</strong>s bo<strong>da</strong>s de Florisela, enquanto se esperava a<br />
chega<strong>da</strong> de Feliciano, que nestes dias to<strong>do</strong> o seu divertimento era em man<strong>da</strong>r<br />
preparar custosas librés para os cria<strong>do</strong>s, galas para ele e jóias ricas para sua<br />
esposa: a tu<strong>do</strong> <strong>da</strong>va lugar sua riqueza e seu amor, e como este franqueava os<br />
dispêndios que fazia, nunca poderiam ser pequenos quan<strong>do</strong> era o amor tão<br />
grande. Põe o amor os pesos à balança <strong>da</strong> vontade e tu<strong>do</strong> faz medir ao maior<br />
peso, que como a riqueza igualava com o querer e com a liberali<strong>da</strong>de de<br />
Feliciano, em tu<strong>do</strong> queria mostrar que eram suas bo<strong>da</strong>s generosas, assi como<br />
o era seu querer. Tinha muitos parentes e amigos em Cesena, e to<strong>do</strong>s se<br />
preparavam de gala para esse dia, porque aplaudiam to<strong>do</strong>s o verem entre<br />
estas opostas famílias essas nupciais pazes confirma<strong>da</strong>s.<br />
Entre tantos contentes que em Cesena esperavam estes tão deseja<strong>do</strong>s<br />
desposórios, só Silvério Albertino era o descontente e o pesaroso de ver que<br />
com tantos anos de amante ficavam tão frustra<strong>do</strong>s seus desejos, levan<strong>do</strong><br />
Feliciano por mais felice e poderoso, o que ele julgava que merecia pelo antigo<br />
<strong>da</strong> pretensão e pelo incessável <strong>do</strong> cui<strong>da</strong><strong>do</strong>. Apurava sua mágoa a paciência,<br />
parecen<strong>do</strong>-lhe insofrível a mu<strong>da</strong>nça de Florisela, que de antes se mostrava tão<br />
contente, a palavra quebra<strong>da</strong> que Ricar<strong>da</strong>, minha mãe, havia <strong>da</strong><strong>do</strong> à sua em<br />
minha ausência. Queixava-se de mi que havia si<strong>do</strong> verdugo de to<strong>da</strong> sua<br />
alegria, precipício de suas esperanças e rigoroso encontro de sua ventura. Era<br />
tão onerosa a pena que sentia, que não queren<strong>do</strong> achar-se presente à vin<strong>da</strong> de<br />
Feliciano, nem ao festivo de seu casamento, se retirou para uma quinta seis<br />
léguas distante de Cesena, em que vivia um seu grande amigo que se<br />
chamava Valério, pessoa <strong>do</strong>uta e que depois de várias experiências com que a<br />
fortuna o tinha persegui<strong>do</strong>, se retirou a viver com sua família no remanso desta<br />
quinta, herança que de seus pais lhe ficara, fazen<strong>do</strong> nela tranquilo empório às<br />
navegações turbulentas com que o mun<strong>do</strong> o trouxe inquieto largo tempo. Era<br />
Valério de cinquenta anos de i<strong>da</strong>de, parte <strong>do</strong>s quais despendeu nos estu<strong>do</strong>s e<br />
outros na milícia, com sucessos já prósperos, já adversos; até que o<br />
desenganou o tempo <strong>da</strong> inquietação de seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, e com mulher e filhos<br />
fez assento nesta quinta retira<strong>da</strong> em que vivia, que era de saudáveis ares,<br />
ren<strong>do</strong>sa nos frutos e amena no sítio.
Cap. XVII.<br />
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 885<br />
Da prática de Valério com Silvério Albertino e casamento de Feliciano com<br />
Florisela<br />
Com grande alegria foi recebi<strong>do</strong> Silvério Albertino de seu amigo, porque<br />
havia alguns meses se não tinham visita<strong>do</strong>. Porém reparan<strong>do</strong> em o ver tão<br />
melancólico no aspecto, quan<strong>do</strong> de antes era aprazível e afável na<br />
conversação, receou algum <strong>da</strong>no que lhe houvesse sucedi<strong>do</strong> ou perigo grande<br />
de que se retirava com temor <strong>da</strong> justiça. Corre por conta de um ver<strong>da</strong>deiro<br />
amigo o sentir ou o alegrar-se ou com os pesares, ou com os aumentos de seu<br />
amigo, que por isso Horácio 843 chamou ao amigo a metade <strong>da</strong> alma, que<br />
suposto que em <strong>do</strong>us corpos se divi<strong>da</strong>, para o sentimento em ca<strong>da</strong> parte vive<br />
inteira. O mesmo tinha dito o filósofo 844 e o seguiu Cícero 845 . Bem o<br />
simbolizaram os antigos nos <strong>do</strong>is irmãos Castor e Pólux que colocaram no<br />
signo de Geminis, de quem cantou Horácio que Pólux, sen<strong>do</strong> imortal, partira a<br />
vi<strong>da</strong> com Castor para que com ela dividi<strong>da</strong> vivesse.<br />
Perguntou Valério a seu amigo o motivo que o trazia triste. Ele com o<br />
gravame de seu sentimento lhe manifestou to<strong>da</strong> a causa de seus pesares, mais<br />
interiormente senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que com as palavras manifestos; que nunca chega a<br />
expressar cabalmente a voz o intenso <strong>da</strong> mágoa que sofre o coração.<br />
Exagerou de Florisela a fermosura, culpou a inconstância com que, depois de<br />
<strong>do</strong>us anos de servi-la e com tantos desvelos para esposa pretendê-la, se<br />
mu<strong>do</strong>u ao casamento de Feliciano, por mais rico e poderoso, a palavra que a<br />
sua mãe se dera quebra<strong>da</strong>, a repugnância que eu fizera a seu intento e<br />
finalmente a mágoa de perdê-la e para maior pena e inveja de Feliciano levá-la:<br />
<strong>do</strong>r a que não achava desafogo por ser ânsia que não admitia esperança de<br />
remédio.<br />
Hoc, Lib. 1. Ode.<br />
Ar., Eth. 4& Rhetor. 1.<br />
Cie, in Lœl. Horn.
886 Padre Mateus Ribeiro<br />
Ouviu com atenção Valério as senti<strong>da</strong>s queixas de seu amigo, pesou-lhe<br />
de o ter tão magoa<strong>do</strong>, que assenta mal o alívio sobre as bases <strong>da</strong> mais intensa<br />
<strong>do</strong>r, e enquanto esta não aplaca, mal a consolação se aceita. Considerou um<br />
intervalo o meio que acharia para serem suas persuasões bem ouvi<strong>da</strong>s e foi<br />
pôr-se no princípio <strong>da</strong> parte <strong>do</strong> sentimento de Silvério, mostran<strong>do</strong> o quanto<br />
participava de sua pena, pois, como diz o padre S. Gregório 846 , é grande alívio<br />
para quem pena, o ver que participa quem lhe assiste <strong>da</strong> ânsia de seus<br />
pesares; porque não há eloquência mais eficaz para persuadir <strong>do</strong> que ver sócio<br />
em sua própria mágoa quem trata de lha evitar. E depois lhe falou assi:<br />
- Com ser, amigo Valério, tão ocasiona<strong>da</strong> vossa pena ao desgosto em<br />
que vos vejo, se por outra parte a considero menos tem de onerosa para<br />
divertir-se. O sol com as distâncias no próprio tempo que para uns a par<strong>da</strong><br />
cortina de seu eclipse em um horizonte o mostra tenebroso, em outro o mostra<br />
radiante. A estrela de Vénus umas vezes se adianta ao sol e outras o segue, e<br />
a quem um tempo foi matutino esplen<strong>do</strong>r e vanguar<strong>da</strong> (a) brilhante de suas<br />
luzes, outras vezes é retroguar<strong>da</strong> de seu carro, umas vezes anuncian<strong>do</strong> o sol e<br />
outras a noite. Não estão as cousas sempre no mesmo esta<strong>do</strong>, variam-se com<br />
o tempo, mu<strong>da</strong>m-se com os dias, divertem-se <strong>do</strong> que eram com as ocasiões.<br />
Queixais-vos que se mu<strong>do</strong>u Florisela? Para mulher durou muito e para<br />
amante durou pouco. Já Virgílio e Propércio censura<strong>do</strong> tinham sua mu<strong>da</strong>nça e<br />
sua inconstância nativa. E como em Florisela era o mudável natural e o amor<br />
acidente, que admiração fica sen<strong>do</strong> que fosse mais poderoso o natural para a<br />
mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong> que o amor para a firmeza? Tem o tempo seu tribunal em que se<br />
apuram as cousas que o entendimento julga, e nele se reprova o que parecia<br />
firme e se condena o que se julgava seguro. Das constantes os exemplos são<br />
numera<strong>do</strong>s, porém os <strong>da</strong>s mudáveis não tem número. Uma Lucrécia houve que<br />
derramou o sangue, uma Pórcia que se matou comen<strong>do</strong> vivas brasas, uma<br />
Cornélia que rejeitou ser rainha <strong>do</strong> Egipto. Porém <strong>da</strong>s que se mu<strong>da</strong>ram com o<br />
tempo, to<strong>do</strong> o tempo seria pouco para referi-las; e quan<strong>do</strong> Florisela não<br />
mu<strong>da</strong>sse a vontade que vos tinha, mas por obedecer a sua mãe, irmão e<br />
parentes com Feliciano se casasse, não vos fez agravo, quan<strong>do</strong> as<br />
' S. Greg., 4. Mor.<br />
Na edição de 1734 lê-se vanglória.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 887<br />
obediências pela vontade cortam. No que repugna mais ao gosto, diz Plínio ,<br />
consiste o crédito de obedecer: são os preceitos <strong>do</strong>s pais os ataques mais<br />
forçosos que se põem ao castelo de uma vontade livre para render-se.<br />
Estava Florisela sujeita ao gosto de Ricar<strong>da</strong>, sua mãe, e de Lisar<strong>do</strong>, seu<br />
irmão que estava em lugar de pai, pois era o morga<strong>do</strong>, e de seus parentes, os<br />
Martelinos, a quem se devia comunicar o seu casamento; e queríeis, Silvério,<br />
que cortan<strong>do</strong> por tão justos respeitos se casasse? Se vos antepusessem outro<br />
de menos merecimentos aos vossos, ain<strong>da</strong> mais justamente tivéreis que sentir;<br />
porém Feliciano Tiberto é mais rico, mais poderoso e mais que to<strong>do</strong>s em<br />
Cesena estima<strong>do</strong>; e assi nem vós perdeis a estimação, nem Florisela o acerto.<br />
Se dizem que o fazem com fim de se perpetuar a paz e união, eles tem justa<br />
causa e vós injusta queixa; porque só a fim de se estabelecer a firmeza de uma<br />
segura paz se continuaram anos repeti<strong>da</strong>s guerras, porque, como diz Cícero 848 ,<br />
o fim que se intenta na guerra há-de ser o viver em paz. Assi o ensina o padre<br />
Santo Agostinho 849 . Não há cousa, diz Platão 850 , mais nociva e odiosa à<br />
república <strong>do</strong> que a guerra civil. Com esta começaram as ruínas <strong>do</strong> romano<br />
império, de Numância e <strong>da</strong>s repúblicas de Itália. É a paz o nome mais suave,<br />
diz Cícero 851 , e é para to<strong>do</strong>s o tempo mais felice, como foi em Roma o de<br />
Numa Pompílio e o de César Augusto. Costume era <strong>do</strong>s sena<strong>do</strong>res e<br />
cavaleiros ricos de Roma terem seus erários guar<strong>da</strong><strong>do</strong>s no templo <strong>da</strong> Paz,<br />
como <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a entender que só na paz estavam as riquezas seguras. O signo<br />
<strong>da</strong> Virgem fingiram os poetas que fora filha de Astreu e <strong>da</strong> Aurora e que an<strong>do</strong>u<br />
na terra no século <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> os homens sem ambição de suas<br />
cultiva<strong>da</strong>s terras em paz e união viviam. Porém ven<strong>do</strong> que entrava no mun<strong>do</strong> o<br />
século de ferro, em que com o desejo de <strong>do</strong>minar convertiam as fouces em<br />
espa<strong>da</strong>s para a guerra, não poden<strong>do</strong> sofrer ver bramar o belicoso parche, nem<br />
suar o militar clarim, se tornara para o Céu e fizera mora<strong>da</strong> em as estrelas.<br />
Plin. Jun., in Paneg.<br />
Cie, 1. De offic.<br />
S. Aug., Ad Bon.<br />
Plat., De republ.<br />
Cicero, Phil. 3.
888 Padre Mateus Ribeiro<br />
Se pois com o pretexto <strong>da</strong> paz se consertou o casamento, para fim <strong>da</strong>s<br />
veteranas discórdias de Cesena, não tendes razão de vos queixardes: pois<br />
mais deve<strong>do</strong>r sois ao bem de vossa pátria <strong>do</strong> que à conveniência de vosso<br />
gosto. É o bem público maior que o bem particular, e se há-de solicitar ain<strong>da</strong><br />
com os discómo<strong>do</strong>s próprios, porque o tronco bem pode sustentar-se vivo sem<br />
os ramos, porém estes não podem viver e sustentar-se sem o tronco que os<br />
alimenta. O bem de vossa pátria é bem de to<strong>do</strong>s, de que no sossego <strong>da</strong> paz<br />
to<strong>do</strong>s participam e nas hostili<strong>da</strong>des to<strong>do</strong>s as per<strong>da</strong>s, os <strong>da</strong>nos e as moléstias<br />
sentem; e mais justo é que vosso gosto falte <strong>do</strong> que Cesena por sua quietação,<br />
por vossa causa, corte.<br />
Isto pressuposto, que ficastes perden<strong>do</strong> em não casardes com Florisela,<br />
ou se mu<strong>da</strong>sse como mulher, ou a obrigasse a mu<strong>da</strong>r de parecer como filha?<br />
Era mais que uma mulher que como mortal podia acabar a vi<strong>da</strong> em breves<br />
dias? A quem uma enfermi<strong>da</strong>de podia despojar <strong>da</strong> beleza, um acidente<br />
suspender a fermosura? Uma desgraça sequestrar o <strong>do</strong>naire, um achaque<br />
deslustrar a lindeza e finalmente a morte ser rigorosa executora de to<strong>da</strong> a<br />
perfeição que nela vosso amor debuxa e vosso desejo suspira? Pois o que<br />
podia tiranizar o breve <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, o caduco <strong>do</strong> tempo, o frágil <strong>da</strong> condição e o<br />
funesto <strong>da</strong> mortali<strong>da</strong>de, por que não o efectuará o discurso? Por que o não<br />
obrará a razão? São os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s os maiores discómo<strong>do</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e a pensão<br />
maior <strong>da</strong> natureza, verdugos de portas adentro incessáveis no atormentar,<br />
implacáveis no afligir. Que ro<strong>da</strong> de Ixion tão inquieta se move? Que oceano<br />
inquieto tão flutuante se mostra, tão empola<strong>do</strong> brama, que no impetuoso com<br />
maior estron<strong>do</strong> <strong>da</strong>s eminentes cataratas <strong>do</strong>s roche<strong>do</strong>s se despenha? Do que<br />
os contínuos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s acometem a um coração, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> assaltos à memória?<br />
Porém vós, Silvério, tendes uma mãe que vos ama, amigos que vos<br />
estimam, bastantes ren<strong>da</strong>s com que passar a vi<strong>da</strong> com decência, sem as<br />
vanglorias <strong>do</strong>s mais ricos e sem os dissabores <strong>do</strong>s mais pobres. Não vos<br />
desvela a guerra, nem vos inquieta o mar, porque nem vos chama <strong>do</strong>s lugares<br />
a ambição, nem <strong>do</strong>s mares os arrisca<strong>do</strong>s interesses: podeis levar a mais alegre<br />
vi<strong>da</strong>, se souberdes avaliar o vosso esta<strong>do</strong>. Considerai quantos mancebos<br />
nobres tem Cesena que desejariam o ser de Florisela esposos, e não<br />
empenhan<strong>do</strong> nessa pretensão os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, nenhuma moléstia lhes dão esses<br />
desejos. Compõe-se ca<strong>da</strong> qual com sua sorte e com ela passa a vi<strong>da</strong> contente;
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 889<br />
pois se nem to<strong>do</strong>s podem ser iguais na ventura, to<strong>do</strong>s podem ser iguais em<br />
não aventurar-se a pretendê-la. Entre tantos que com Florisela não casam,<br />
sabei vós ser um deles; e pois tantos não sentem seu casamento, sabei ser um<br />
deles em não senti-lo.<br />
Dous efeitos tem, como diz Aristóteles 852 , o sensitivo, que são tristeza e<br />
alegria: a alegria <strong>da</strong> conveniência que busca, a tristeza <strong>da</strong> desconveniência<br />
que padece; tu<strong>do</strong> o que se deseja, diz Séneca 853 , é menor que o afecto com<br />
que se procura, parecer que aprovou Plínio 854 e mostra a experiência. Pois se<br />
tu<strong>do</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> mortal avulta pouco e desengana o possuí<strong>do</strong> <strong>da</strong>s grandezas <strong>do</strong><br />
imagina<strong>do</strong>, vin<strong>do</strong> a ser assomo o que parecia edifício, sombra o que se<br />
representava sol, espinhos o que semelhava flor, gravame o que avultava<br />
alívio, cadáver o que aludia vi<strong>da</strong> e pena o que alegorizava glória, para que vos<br />
dá tanta mágoa não haverdes alcança<strong>do</strong> o que só tinha estimação no desejo e<br />
a grandeza na imaginação?<br />
Poupai a vi<strong>da</strong> e não façais verdugos dela aos desgostos, nem<br />
sacrifiqueis penali<strong>da</strong>des a quem não pode pagar-vos esta ânsia; porque como<br />
diz Cícero 855 , sem esperanças de remuneração, ninguém se empenha aos<br />
perigos, nem se arrisca aos trabalhos, nem se oferece aos discómo<strong>do</strong>s, nem<br />
sofre os dissabores, nem emprende o oneroso, pois sem esperanças de<br />
galardão to<strong>da</strong>s as potências mostram tibieza e recusam a eficácia de suas<br />
operações. Que utili<strong>da</strong>de tínheis dessa tristeza? Nem Florisela a sabe, nem a<br />
sente; e ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> a soubera e a sentira, que remédio podia <strong>da</strong>r-vos, ten<strong>do</strong><br />
esposo? Pois ela alegre com seus propínquos desposórios e vós triste, ela<br />
contente e vós desgostoso, não é parelha para sofrer-se. A ingratidão faz parar<br />
o merecimento, perigar a leal<strong>da</strong>de <strong>do</strong> servo, tentar-se a fideli<strong>da</strong>de <strong>do</strong> amigo e<br />
arriscar-se a benevolência <strong>do</strong> amante. Se Florisela se mu<strong>do</strong>u, ingrata ficou<br />
sen<strong>do</strong>, e será ignorância dedicar tormentos a quem nem os estima, nem<br />
remunerá-los pode. Que perdestes, Silvério amigo, neste casamento para o<br />
Ar., Rhet. 2.<br />
Senec, Ep. 119.<br />
Plinio Júnior, Lib. 2.<br />
Cie, 1. De offic.
890 Padre Mateus Ribeiro<br />
sentirdes tanto? Que digni<strong>da</strong>de vos acrescia? Que morga<strong>do</strong> acrescentáveis?<br />
Que riqueza agregáveis? A que maior esta<strong>do</strong> subíeis?<br />
Na<strong>da</strong> disto podeis dizer. Não digni<strong>da</strong>de ou título, porque o não há;<br />
morga<strong>do</strong>s menos, porque Lisar<strong>do</strong> só é morga<strong>do</strong>; riquezas, as que a Florisela<br />
ficam são como limitação, pois o melhor <strong>da</strong> casa no morga<strong>do</strong> se inclui; esta<strong>do</strong><br />
mais subi<strong>do</strong> não se alcança, porque em to<strong>do</strong>s fica sen<strong>do</strong> igual a nobreza com<br />
mais ou menos opulência nas ren<strong>da</strong>s: e assi na<strong>da</strong> perdestes que a sentimento<br />
vos obrigasse. Não perdestes crédito em não casardes, que muitos<br />
casamentos se tratam e não se efectuam, ou porque se mu<strong>da</strong>m as vontades,<br />
ou porque fazem mu<strong>da</strong>nça maiores conveniências.<br />
São os árbitros <strong>do</strong>s contratos os primeiros móveis <strong>da</strong>s vontades, os<br />
acre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> gosto, os executores <strong>do</strong>s discursos, o alvo a que tiram os<br />
pretendentes, o centro em que param os desejos e finalmente a política que<br />
governa a república <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. E como as razões <strong>da</strong>s conveniências<br />
variam, logo fica ro<strong>da</strong>n<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a esfera <strong>da</strong>s pretensões. E se me instardes que<br />
perdestes esposa <strong>da</strong> maior beleza, direi e com razão que não é Florisela o<br />
primeiro registro <strong>da</strong> fermosura, nem o estanque em que só se repartiu a beleza,<br />
que a poderosa mão <strong>do</strong> autor <strong>da</strong> natureza que lhe deu o <strong>do</strong>naire <strong>do</strong> parecer<br />
comunica suas dádivas sem limites. Porventura cria só uma rosa ou produz só<br />
uma flor? Não atendeis quantas matizam os jardins, quantas debuxam os<br />
pra<strong>do</strong>s, quantas vestem os campos?<br />
Só a Fénix se tem por única, porque ela só no mun<strong>do</strong> é singular, sen<strong>do</strong><br />
de si própria mãe e filha, causa e efeito, progenitora e primogénita, sepulcro e<br />
vi<strong>da</strong>, como dela escrevem Tertuliano 856 , S. Zeno Veronense 857 , Santo<br />
Ambrósio 858 , S. Gregório Nazianzeno 859 e outros padres, e <strong>do</strong>s autores<br />
profanos Euripides 860 , Ovídio 861 , Plínio 862 , Lucrécio 863 e outros. Só a Fénix, que<br />
856 Vet., Lib. 1. De Resur. earn.<br />
857 S. Zen., Ser. De Resur.<br />
858 S. Amb., Lib. 15 & 23. Hexam.<br />
859 S. Greg. Naz., in Carm. de preecept. ad Virg.<br />
860 ■-<br />
Eunp.<br />
861 Ov., Lib. 5. Metam.<br />
862 Plin., Lib. 10. c. 2.<br />
863 Luc, in Fect.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 891<br />
em Arábia nasce e em Arábia morre, se pode chamar única e em tu<strong>do</strong> singular,<br />
que na Arábia felice entre a suavi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s aromas mais fragrantes quinhentos<br />
anos de vi<strong>da</strong>, como diz S. Zeno, dilata os perío<strong>do</strong>s <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, e a mesma pira de<br />
cheiros em que o<strong>do</strong>rífera se sepulta lhe serve de aromático berço em que com<br />
vi<strong>da</strong> nova renasce. Só esta generosa ave é no mun<strong>do</strong> única: logra os<br />
privilégios de singular no encarna<strong>do</strong> e <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> <strong>do</strong>s penachos com que a<br />
afermoseou a natureza para admiração. Porém to<strong>da</strong>s as mais fermosuras são<br />
como as flores que se parecem tanto que apenas se diferençam: é nelas a<br />
beleza tão reparti<strong>da</strong> que não julgam os olhos de qual mais se agrade pela<br />
igual<strong>da</strong>de com que as produziu a natureza.<br />
Se não casais com Florisela, não vos faltará outro casamento, que não<br />
se cifram neste to<strong>da</strong>s as venturas. E enquanto não mu<strong>da</strong>rdes de esta<strong>do</strong>, mais<br />
livre de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s viveis. Quanto mais as linhas se apartam <strong>do</strong> centro, maiores<br />
se fazem, porque as que no centro são pequenas, dividi<strong>da</strong>s dele se fazem<br />
grandes. Os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s reconcentra<strong>do</strong>s em vós próprio são limita<strong>do</strong>s, porém<br />
dividi<strong>do</strong>s na mulher e nos filhos são excessivos. Registrardes os passos de<br />
vossa vi<strong>da</strong> só com vossa vontade não é penoso, porém o sindicarem deles a<br />
mulher, sogra e cunha<strong>do</strong>, pensão é onerosa, haven<strong>do</strong> de satisfazer a tantos<br />
juízos e haven<strong>do</strong> de contentar tantas vontades.<br />
Enquanto eles em seus desposórios se ocupam, divertir-vos-eis comigo<br />
no exercício <strong>da</strong> caça em ver a astúcia com que o falcão ligeiro ou o nebli<br />
atrevi<strong>do</strong> ganham o vento à garça para prendê-la, e fingin<strong>do</strong> que seguem o<br />
contrário voo com que dela se descui<strong>da</strong>m, só empenham o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> em<br />
persegui-la. Vereis <strong>da</strong> corre<strong>do</strong>ra lebre o desafio com os galgos mais<br />
corre<strong>do</strong>res, que não se valen<strong>do</strong> <strong>do</strong> inculto <strong>do</strong>s matos, pela estra<strong>da</strong> segui<strong>da</strong> põe<br />
asas aos pés para voar por terra, mostran<strong>do</strong> que é nela o temor mais poderoso<br />
para livrar-se <strong>do</strong> que no galgo o furor para prendê-la. Vereis o veloz gamo e o<br />
ligeiro corso segui<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s sabujos corre<strong>do</strong>res quantas vezes os deixam<br />
frustra<strong>do</strong>s na carreira, ensinan<strong>do</strong> aos libréus verdugos irracionais de sua vi<strong>da</strong><br />
lições de ligeireza na campanha, porque a ousadia com que os seguem não<br />
iguala ao veloz que a natureza pôs em quem lhes foge. Com estes<br />
divertimentos, nesta quinta vos irão esquecen<strong>do</strong> esses cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, e estan<strong>do</strong> na<br />
posse de vossa liber<strong>da</strong>de, sem rendê-la a outro arbítrio, brevemente
892 Padre Mateus Ribeiro<br />
conhecereis que to<strong>do</strong>s os interesses são poucos, como dizem os juristas , se<br />
com o preço inestimável <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de se comparam.<br />
Lamentava o poeta Euripides 865 a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de nos homens, pois<br />
nascen<strong>do</strong> livres, uns por amor, outros por ambição, outros por interesses a<br />
liber<strong>da</strong>de perdiam, sujeitan<strong>do</strong>-se inconsidera<strong>da</strong>mente ao arbítrio de outrem,<br />
quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu próprio eram senhores. Daqui, como diz Demóstenes 866 ,<br />
procedeu o serem os tiranos sempre odia<strong>do</strong>s e persegui<strong>do</strong>s, como os Dionisos,<br />
Periandros, Pisístratos, Trasibulos, Polícrates e outros muitos que sempre <strong>do</strong>s<br />
povos viveram aborreci<strong>do</strong>s por quererem <strong>do</strong>minar nas liber<strong>da</strong>des, sen<strong>do</strong> estas,<br />
como diz o Séneca 867 , cousa tão preciosa que to<strong>da</strong>s as riquezas à vista <strong>da</strong><br />
liber<strong>da</strong>de se perdem de vista.<br />
Alivia<strong>do</strong> se mostrou Silvério Albertino <strong>da</strong> <strong>do</strong>r que o afligia com a discreta<br />
persuasão de seu amigo, sen<strong>do</strong> esta quan<strong>do</strong> <strong>da</strong> eloquência se a<strong>do</strong>rna, como<br />
disse Cícero 868 , desterro <strong>da</strong>s tristezas, brandura <strong>da</strong> ira, lenitivo <strong>da</strong>s paixões e<br />
reconcilia<strong>do</strong>ra de perdi<strong>da</strong>s amizades. Ficou Silvério na quinta com seu amigo já<br />
mais consola<strong>do</strong> e menos senti<strong>do</strong>. Preparavam-se entretanto os aprestos para<br />
as bo<strong>da</strong>s de minha irmã com grande cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, chegaram de Bolonha as galas e<br />
jóias de Lívia por extremo ricas e esperava-se só a vin<strong>da</strong> de Feliciano, que<br />
tar<strong>do</strong>u vinte dias em aprestar librés custosas para os cria<strong>do</strong>s, jóias para<br />
Florisela e galas para si. Tinha já despedi<strong>do</strong> ao ban<strong>do</strong>leiro Constantino com<br />
bastante dinheiro a cavalo, em razão <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s não estarem cabalmente<br />
cura<strong>da</strong>s, com cria<strong>do</strong> que o acompanhasse até o deixar em lugar seguro de<br />
poder ser preso. Entrou [Feliciano] nas suas casas, que eram as principais de<br />
Cesena, acompanha<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu grande amigo Antíoco, às três horas <strong>da</strong> tarde; e<br />
mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> os vesti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> caminho, veio buscar-me e a ver a minha mãe e a<br />
Florisela, a quem ofereceu o anel de esposa e mui ricas rosas de rubis e<br />
diamantes para o peito e touca<strong>do</strong>. Estava em companhia de minha irmã Lívia<br />
tão ricamente traja<strong>da</strong> como bela. E saben<strong>do</strong> que era mulher de Roberto, que à<br />
L. libertas ff. de reg. juris.<br />
Eur., in Hecub.<br />
Dem., in Phil. or. 4.<br />
Sen., Ep. 105.<br />
Cic, 1. De Or.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 893<br />
petição e rogos de Florisela a fora buscar a Bolonha para ser sua madrinha de<br />
casamento, depois de render a Roberto e a Lívia as graças <strong>da</strong> honra e a mercê<br />
que lhe faziam, ele e Antíoco se admiravam <strong>da</strong> semelhança que mostrava <strong>da</strong><br />
pastora Jacinta, suposto que os trajes e riqueza os fazia duvi<strong>da</strong>r <strong>da</strong> própria<br />
semelhança que viam.<br />
Não há cousa no mun<strong>do</strong>, diz Quinto Cúrcio 869 , que tão igual no parecer<br />
seja que em alguma cousa diferente se não mostre. Contu<strong>do</strong>, diz Cícero 870 , há<br />
cousas à primeira vista tão semelhantes na apreensão que dificultam o <strong>da</strong>r<br />
sentença o juízo. Tais se viam Antíoco e Feliciano, que o que os olhos queriam<br />
afirmar, chegava o juízo a contradizer. Perguntaram por Jacinta, e não faltou<br />
saí<strong>da</strong> que lhe <strong>da</strong>r, porque estava já estu<strong>da</strong><strong>da</strong> a resposta para quan<strong>do</strong> se<br />
fizesse a pergunta. Com isto ficaram satisfeitos e admira<strong>do</strong>s: satisfeitos <strong>da</strong><br />
dúvi<strong>da</strong> primeira em que se enlearam os senti<strong>do</strong>s e admira<strong>do</strong>s de verem entre<br />
Florisela e Lívia tão competi<strong>do</strong>ra a beleza e tão sem vantagens a fermosura.<br />
Para diferençar o feio <strong>do</strong> fermoso, o grosseiro <strong>do</strong> delica<strong>do</strong>, o rústico <strong>do</strong><br />
urbano, o néscio <strong>do</strong> discreto e finalmente o desalinha<strong>do</strong> <strong>do</strong> brioso, pouco<br />
discurso há mister para <strong>da</strong>r a sentença; porém de tanto bom diferençar o<br />
melhor, empenho é de valentia <strong>do</strong> juízo e <strong>da</strong> subtileza <strong>do</strong> discurso. Entre<br />
Florisela e Lívia se <strong>da</strong>va tanta igual<strong>da</strong>de no parecer, tão ajusta<strong>do</strong> o brio, tão<br />
<strong>do</strong>nairoso o garbo, tão germana a beleza e tanto ao olivel o agra<strong>do</strong> a quem as<br />
via que com dificul<strong>da</strong>de podia sentenciar o juízo, nem julgar o discurso a quem<br />
preferiria na eleição.<br />
Chegou enfim o dia de seus desposórios e prepararam-se para<br />
acompanhá-los os parentes de ambos, to<strong>do</strong>s a cavalo, vesti<strong>do</strong>s de gala que de<br />
quantas vezes antiguamente montavam nos cavalos para as guerras civis<br />
destes ban<strong>do</strong>s contrários, neste dia se viram to<strong>do</strong>s juntos, uni<strong>do</strong>s e conformes<br />
os Tibertos e os Martelinos para a paz. Iam em coche a noiva e a madrinha<br />
com tanto a<strong>do</strong>rno e riqueza que se duvi<strong>da</strong>va qual delas era a que a receber-se<br />
com Feliciano ia, equivocan<strong>do</strong>-se os olhos na suspensão de vê-las e <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
to<strong>do</strong>s mil festivos parabéns a tão acerta<strong>do</strong> casamento, pois com ele se viam<br />
uni<strong>do</strong>s corações que nestas famílias viveram tão antárcticos, vontades tão<br />
Qui. Curt., Dec!. 8.<br />
Cie, De nat. Deor.
894 Padre Mateus Ribeiro<br />
antípo<strong>da</strong>s e afectos tão distantes. Foi este dia de geral alegria para Cesena,<br />
que não é pouca ventura quan<strong>do</strong> o contentamento é geral. Depois de recebi<strong>do</strong>s<br />
foram para as nobres casas de Feliciano, aonde estava prepara<strong>do</strong> um<br />
esplêndi<strong>do</strong> banquete em que to<strong>do</strong>s os seus e nossos parentes assistiram; não<br />
faltou boa música que fizesse os manjares mais saborosos com o suave <strong>da</strong><br />
harmonia, iguaria sobre to<strong>da</strong>s a mais deliciosa. Com que aplauso tão diferente<br />
entrou minha irmã em casa de Feliciano neste dia ou na noite em que a levou<br />
furta<strong>da</strong>, desmaia<strong>da</strong> <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, com mais aparências de morta <strong>do</strong> que<br />
certeza de vi<strong>da</strong>! E <strong>do</strong> agravo que pudera ser origem <strong>da</strong> mais cruenta guerra,<br />
teve princípio a tranquili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mais perseverante paz.<br />
Daí a oito dias, em que Lívia assistiu com minha mãe, tratou Roberto de<br />
voltar-se com ela para Bolonha para a sua quinta, porque ao presente não<br />
tinha gosto de assistir na ci<strong>da</strong>de, pelas passa<strong>da</strong>s inquietações de que se<br />
causaram tantos desgostos. Tratei de acompanhá-los nas alegrias, pois os<br />
tinha acompanha<strong>do</strong> nos pesares. Despediu-se ela de minha mãe e de Florisela<br />
com excessivas sau<strong>da</strong>des e particulares extremos de amizade, e nos partimos<br />
para Bolonha, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> aviso diante a Mário Bentivolhe, tio de Roberto, para<br />
que viesse esperar-nos à quinta e a man<strong>da</strong>sse adereçar como era necessário.<br />
Tu<strong>do</strong> se aprestou, e quan<strong>do</strong> chegámos estava o nobre Mário com duas filhas<br />
na quinta esperan<strong>do</strong> por Lívia para a receberem, como com grande amor<br />
fizeram; e ouvin<strong>do</strong>-lhe referir a tragédia de sua fortuna e o papel de lavra<strong>do</strong>ra<br />
que nela tanto ao custoso de suas penas experimentara, o risco <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em<br />
que se viu com os ban<strong>do</strong>leiros e as lágrimas que na terra e no mar tinha<br />
derrama<strong>do</strong>, a acompanharam to<strong>do</strong>s nas lastimosas lágrimas de sentimento,<br />
ven<strong>do</strong> que uma moça tão fermosa e de tantas pren<strong>da</strong>s, sem causa <strong>da</strong> fortuna<br />
tão persegui<strong>da</strong> [fora]; e assi o discreto Mário, não sem lágrimas, disse a<br />
Roberto seu sobrinho assi:<br />
- Se <strong>do</strong>s males muitas vezes se tiram bens e <strong>do</strong>s trabalhos os lucros <strong>do</strong><br />
descanso, como disse Platão 871 , sen<strong>do</strong> no capitão o prémio <strong>do</strong>s bélicos riscos<br />
a vitória e no lavra<strong>do</strong>r os frutos que <strong>da</strong> molesta agricultura colhe, e sen<strong>do</strong>,<br />
como diz Plutarco 872 , o valor e a paciência o sujeito em que os trabalhos se<br />
Plat., De scient.<br />
Plut., De fort.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte V 895<br />
exercitam, vós, senhora, Lívia mostrastes bem nos padeci<strong>do</strong>s trabalhos o<br />
invicto de vosso valor e o louvável de vosso sofrimento. São o trabalho e o<br />
descanso, diz Tito Lívio 873 , em tu<strong>do</strong> contrários, porém mui vizinhos, porque o<br />
meio mais certo de se conseguir o descanso é mostrar invencível o rosto ao<br />
trabalho. Agradecei, senhora Lívia, a vossos infortúnios o haverem <strong>da</strong><strong>do</strong> motivo<br />
para se conhecer o acrisola<strong>do</strong> de vossa honra, o firme de vossa constância e o<br />
invicto de vosso valor. Para uma cabal experiência, disse Aristóteles 874 que era<br />
necessário largo tempo; porém vós em tempo tão breve destes a experiência<br />
mais dilata<strong>da</strong>, que se não fossem os perigos, nunca se conhecera. E vós,<br />
sobrinho Roberto, conhecereis de hoje em diante a jóia singular <strong>do</strong> preço e<br />
sem igual no merecimento que por esposa vos deu a sorte, para que saibais tê-<br />
la na maior estimação que à prova de sua virtude é devi<strong>da</strong>, com a qual vos<br />
deixe Deus lograr venturosos anos.<br />
Com isto se despediu, fican<strong>do</strong> suas filhas com Lívia na quinta para lhe<br />
fazerem companhia algum tempo.<br />
Aqui chegava Lisar<strong>do</strong> com a história <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, de que Felisberto e<br />
Dionísio estavam eleva<strong>do</strong>s na varie<strong>da</strong>de de seus perío<strong>do</strong>s como no agradável<br />
<strong>do</strong> estilo com que os relatava, quan<strong>do</strong> chegaram <strong>do</strong>us cria<strong>do</strong>s de Lisar<strong>do</strong>, a<br />
quem ele esperava, com reca<strong>do</strong> para partir-se; o que Felisberto não consentiu<br />
porque o sol se ia já pon<strong>do</strong> no horizonte, e com corteses rogos o obrigou a ficar<br />
essa noite em sua companhia, acomo<strong>da</strong>n<strong>do</strong> aos cria<strong>do</strong>s e cavalo<br />
convenientemente e <strong>da</strong>n<strong>do</strong> ordem a preparar-se a ceia com o que no hospício<br />
tinha, desejoso de ouvir o que de sua história faltava. Enfim aceitou Lisar<strong>do</strong> o<br />
caritativo oferecimento, aonde agora o deixaremos descansar até nova<br />
oportuni<strong>da</strong>de de se referir o que agora não há lugar de relatar.<br />
Liv., Dec. 2. lib. 4<br />
Ar., Eth. 6.<br />
LAUS DEO.
896 Padre Mateus Ribeiro
Cap. I.<br />
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 897<br />
ALIVIO DE TRISTES<br />
E<br />
CONSOLAÇÃO DE QUEIXOSOS<br />
VI. PARTE<br />
Em que Lisar<strong>do</strong> continua os discursos de sua história<br />
Obriga<strong>do</strong> <strong>do</strong>s corteses rogos <strong>do</strong>s ermitães Felisberto e Dionísio, que em<br />
ouvirem os perío<strong>do</strong>s vários de sua vi<strong>da</strong> e estilo com que os relatava estavam<br />
admira<strong>do</strong>s e desejosos de ouvirem o que dela faltava por referir, aceitou<br />
Lisar<strong>do</strong> o ficar esta noite por seu hóspede, pois com tantas instâncias lho<br />
pediam. Poderoso valimento é, como diz Séneca 875 , o de uma discreta<br />
conversação para roubar os senti<strong>do</strong>s e para conciliar os afectos ain<strong>da</strong> na<br />
primeira vista, como nesta de Lisar<strong>do</strong> sucedeu, em que o discurso de seu juízo<br />
e eloquente <strong>da</strong> locução prendeu as vontades e suspendeu os senti<strong>do</strong>s de seus<br />
caritativos ouvintes, para com corteses rogativas o obrigarem a não se partir<br />
essa noite (como intentava) sem <strong>da</strong>r fim à história que principia<strong>do</strong> tinha.<br />
Aceitou o hospício de cortês, por não faltar à urbani<strong>da</strong>de política com que se<br />
criara, que é o que Platão 876 mais encomen<strong>da</strong> na educação <strong>do</strong>s filhos; e depois<br />
<strong>da</strong> ceia com que cari<strong>do</strong>sos o hospe<strong>da</strong>ram, conhecen<strong>do</strong> seu desejo em ouvirem<br />
Sen., Epist. 76.<br />
Plat., De sapient.
898 Padre Mateus Ribeiro<br />
o que de sua história para finalizá-la ficava, quis de agradeci<strong>do</strong> desempenhar<br />
des os desejos em referi-la, por ser o melhor manjar de que costuma<br />
alimentar-se o juízo na varie<strong>da</strong>de <strong>do</strong> que ouve, como diz Quintiliano 877 , quan<strong>do</strong><br />
os perío<strong>do</strong>s são eruditos e os sucessos <strong>da</strong> história vários. Renderam os<br />
ermitães as graças a seu hóspede <strong>do</strong> favor que lhes fazia, e ele continuou<br />
dizen<strong>do</strong> desta sorte:<br />
- Deixei, senhores, o seguimento <strong>do</strong>s perío<strong>do</strong>s vários de minha vi<strong>da</strong><br />
com ficarem Roberto e Lívia, sua esposa, em recíproco amor e firme paz<br />
uni<strong>do</strong>s, depois de ela padecer as tempestades arrisca<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s injustas<br />
desconfianças e penosos crimes de seu esposo, fican<strong>do</strong> ele desengana<strong>do</strong> e<br />
ajusta<strong>do</strong> em tu<strong>do</strong> ao equilíbrio <strong>da</strong> razão e bem pesaroso <strong>do</strong>s mal mereci<strong>do</strong>s<br />
desgostos que ela padecia, que a ver<strong>da</strong>de manifesta censurou por injustos,<br />
compensan<strong>do</strong>-lhe ele no amor e estimação os sustos por seu respeito sofri<strong>do</strong>s.<br />
Deixei a Florisela, minha irmã, casa<strong>da</strong> com Feliciano Tiberto, o principal<br />
morga<strong>do</strong> de Cesena, com aplauso universal de to<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de, sen<strong>do</strong> Florisela<br />
dele com extremos ama<strong>da</strong>, como ela por sua nobreza, fermosura e o muito que<br />
os estimava lhe merecia. Deixei a seu antigo pretendente Silvério Albertino na<br />
quinta de seu amigo Valério ain<strong>da</strong> que nunca cabalmente de sua mágoa<br />
cura<strong>do</strong>, ao menos com os alívios que Valério lhe <strong>da</strong>va em parte diverti<strong>do</strong>,<br />
fazen<strong>do</strong> o discurso se não pazes, ao menos tréguas com os pesares,<br />
consideran<strong>do</strong> ser o seu casamento com Florisela impossível. Neste remanso<br />
<strong>do</strong> tempo, calmoso mar <strong>da</strong> fortuna, aonde as on<strong>da</strong>s de suas mu<strong>da</strong>nças não<br />
alteravam meu descanso, nem inquietavam meu cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, vivia eu em minha<br />
pátria seguro e contente, quan<strong>do</strong> me deram desejos de ir a Bolonha a <strong>da</strong>r fim a<br />
meus estu<strong>do</strong>s: que se neles vai empenha<strong>do</strong> o gosto, não há, como diz<br />
Cícero 878 , ocupação mais deliciosa.<br />
Preparei-me para a parti<strong>da</strong>, com ma contradizerem meu cunha<strong>do</strong>, minha<br />
irmã e meus amigos, que to<strong>do</strong>s ma dissuadiram, dizen<strong>do</strong>-me quanto escusa<strong>do</strong><br />
me era o prosseguimento <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s, pois nas ren<strong>da</strong>s <strong>do</strong> morga<strong>do</strong> tinha para<br />
sustentar-me com o esta<strong>do</strong> e decência que a quem eu era competia e ain<strong>da</strong><br />
sobrava largamente para não ter que invejar aos mais ricos. Aumentavam as<br />
Quint., Lib. 8.<br />
Cicer., 5. De fin.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 899<br />
persuasões com dizerem que o fim a que aspira quem estu<strong>da</strong> ou é remediar<br />
necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> pobreza, ou pretender despachos e cargos autoriza<strong>do</strong>s com<br />
que a maiores digni<strong>da</strong>des subisse, que são os interesses que <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s se<br />
colhem depois <strong>da</strong>s moléstias e desvelos em o discurso <strong>do</strong>s anos padeci<strong>do</strong>s.<br />
Porém que em mim não se <strong>da</strong>va esse motivo, pois nos bens <strong>da</strong> fortuna tinha<br />
sobras para viver com o decoroso que a quem era convinha e para pretender<br />
maiorias era escusa<strong>do</strong>, pois no ilustre de meu antigo solar tinha a lustrosa<br />
estimação com que to<strong>do</strong>s em Cesena me respeitavam, conhecen<strong>do</strong>-me por<br />
cabeça <strong>do</strong>s Martelinos (a) , de cujos progenitores tantas vezes Cesena foi<br />
governa<strong>da</strong> e por suas memórias me tributavam obsequiosas venerações.<br />
Com estas e outras razões os parentes e amigos intentavam divertir-me<br />
para que <strong>da</strong> pátria não me ausentasse; porém eu, renden<strong>do</strong>-lhes as graças <strong>do</strong>s<br />
conselhos que com demonstrações de tanto amor me <strong>da</strong>vam, que como disse<br />
Platão 879 sempre os conselhos são dignos de estimar-se, a uns e outros<br />
respondia que eu não me movia a prosseguir os estu<strong>do</strong>s por nenhum <strong>do</strong>s fins<br />
que apontavam, mas que somente o desejo de saber mais era o primeiro móvel<br />
que me levava; porque como diz Aristóteles 880 , to<strong>do</strong>s os homens naturalmente<br />
desejam saber, porque os bens <strong>da</strong> fortuna podem perder-se com a<br />
inconstância de suas mu<strong>da</strong>nças, porém a sabe<strong>do</strong>ria nunca se perde, pois a<br />
quem a tem em to<strong>do</strong> o esta<strong>do</strong> assiste. Bem se viu esta ver<strong>da</strong>de no sábio Bias,<br />
que sen<strong>do</strong> assalta<strong>da</strong> Priene, sua pátria, e in<strong>do</strong>-lhe <strong>da</strong>n<strong>do</strong> saque os inimigos,<br />
quan<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res ia fugin<strong>do</strong> com as peças que ao ombro levar<br />
podia, e ven<strong>do</strong> que ele só sem cousa alguma fugia, estranhan<strong>do</strong>-lhe o<br />
descui<strong>do</strong> em tal conflito, ele lhes respondeu que tu<strong>do</strong> quanto possuía consigo<br />
levava, aludin<strong>do</strong> à sabe<strong>do</strong>ria de que os inimigos despojá-lo nunca podiam.<br />
- Eu nunca no estu<strong>da</strong>r venho a perder, antes sempre vou a interessar<br />
em ter <strong>da</strong>s ciências maior conhecimento, mais presentes notícias, mais<br />
estudioso cabe<strong>da</strong>l. Uma cousa é, disse Platão 881 , ter a sabe<strong>do</strong>ria e outra cousa<br />
Tanto a edição de 1688 como a de 1734 registam o nome Martinelos. Optámos no entanto<br />
pela forma Martelinos, nome atribuí<strong>do</strong> à família de Lisar<strong>do</strong> na V Parte.<br />
879 Plat., De sapient.<br />
880 Arist., Metaph. 1.<br />
881 Plat., De scient.
900 Padre Mateus Ribeiro<br />
o usar dela. O ter a ciência é sempre bom e louvável, o usar dela nem sempre<br />
é necessário. Enquanto eu não me disponho a mu<strong>da</strong>r de esta<strong>do</strong>, me parece a<br />
mais segura ocupação a de continuar os estu<strong>do</strong>s, pois vou já no fim deles, e<br />
não é certo quem continuou com o mais, retirar-me quan<strong>do</strong> me falta o menos.<br />
Com esta resolução não me fizeram mais instâncias. Despedi<strong>do</strong> enfim<br />
de minha mãe, parentes e amigos, bem acompanha<strong>do</strong> de cria<strong>do</strong>s e provi<strong>do</strong> de<br />
dinheiro, que é prudente prevenção para quem de sua pátria sai, me parti para<br />
Bolonha uma madruga<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> começavam as aves com seu canto a<br />
despertarem <strong>do</strong> sono aos descui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, que no pláci<strong>do</strong> divertimento desta<br />
suspensão <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s feriava <strong>do</strong>s desvelos <strong>do</strong> dia, onerosa pensão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
humana. Ao clarim <strong>da</strong>s harmónicas vozes que chamavam reconduzia ca<strong>da</strong><br />
qual seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s como sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s ao som no estron<strong>do</strong>so parche para a<br />
marcha <strong>da</strong> milícia <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, como lhe chamou Job 882 e a intitula S. João<br />
Crisóstomo 883 . Porém na viva guerra deste mun<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> se pode <strong>da</strong>r<br />
suspensão de armas mais que nas breves horas que o sono dura? Acode ao<br />
chama<strong>do</strong> <strong>da</strong> aurora o lavra<strong>do</strong>r ao ara<strong>do</strong>, o jornaleiro ao trabalho, o pastor ao<br />
desvelo, o pretendente ao cortejo, o litigante ao juízo, o ban<strong>do</strong>leiro ao assalto,<br />
o pobre à esmola, o rico ao comércio, o sol<strong>da</strong><strong>do</strong> à resenha, o adula<strong>do</strong>r à lisonja<br />
e finalmente o caminhante à jorna<strong>da</strong>, como eu a Bolonha, aonde me levava<br />
mais a curiosi<strong>da</strong>de que de estu<strong>da</strong>r tinha <strong>do</strong> que a necessi<strong>da</strong>de que a seguir a<br />
academia me obrigasse. Aponta a fortuna o golpe ao desejo conforme sua<br />
natural inclinação, disfarçan<strong>do</strong> a mu<strong>da</strong>nça de sua inconstante ro<strong>da</strong> no que<br />
parece mais apetecível; e seguin<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> qual o incógnito rumo de seu próprio<br />
destino, lisonjea<strong>do</strong> incorre no que menos desejava, como <strong>da</strong>s sereias fingiu a<br />
antigui<strong>da</strong>de no suave <strong>da</strong> música e no mortal <strong>do</strong> naufrágio.<br />
A uns chama a fortuna pelas armas, como a César, a Pompeu e a Marco<br />
António, a outros leva pelas letras, como a Cícero, a Séneca e a Lucano, e a<br />
to<strong>do</strong>s com violência privou <strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s, porque debaixo <strong>da</strong> natural inclinação que<br />
seguiam, ocultou a espa<strong>da</strong> que prever não puderam. Cheguei a Bolonha, entrei<br />
logo em casa de meu amigo Roberto Bentivolhe, que ele e Lívia, sua esposa,<br />
me receberam com excessiva alegria, lembra<strong>do</strong>s <strong>do</strong> muito que por eles fizera,<br />
Chrys., Super Luc.
Alivio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 901<br />
dívi<strong>da</strong> que sempre confessaram como tão presente em suas memórias; pois<br />
quan<strong>do</strong> <strong>da</strong> lembrança o assento <strong>da</strong>s obrigações se risca, ficam os benefícios<br />
recebi<strong>do</strong>s como às escuras e impossibilita<strong>do</strong> o agradecimento deles. Com<br />
repeti<strong>da</strong>s instâncias me persuadiram a assistir em sua casa o tempo que em<br />
Bolonha estu<strong>da</strong>sse, o que eu não admiti, desculpan<strong>do</strong>-me com que de contínuo<br />
haviam de buscar-me e visitar-me amigos, que eu não podia evitar por me não<br />
mostrar singular no trato que de antes com eles tinha, o que seria para eles<br />
grande moléstia quan<strong>do</strong> eu lhes desejava grandes alívios, e outras muitas<br />
razões que lhes apontei com que finalmente me consentiram que tomasse<br />
casas, como <strong>da</strong>í a <strong>do</strong>us dias tomei, grandiosas e em bom sítio, vizinhas às<br />
saí<strong>da</strong>s <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, porém com promessas de que os mais <strong>do</strong>s dias ou Roberto<br />
havia de buscar-me ou eu a ele. Apenas na ci<strong>da</strong>de se noticiou minha vin<strong>da</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> me visitaram to<strong>do</strong>s os amigos <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> e os melhores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me as boas vin<strong>da</strong>s e os parabéns <strong>do</strong> casamento de minha irmã com<br />
Feliciano Tiberto e pazes <strong>do</strong>s antigos ban<strong>do</strong>s e parciali<strong>da</strong>des tão nocivas que a<br />
Cesena tantos tempos inquietaram.<br />
Passa<strong>do</strong>s seriam pouco mais de vinte dias de minha chega<strong>da</strong> e em que<br />
eu continuava a academia, se bem com tanto divertimento de visitas e amigos<br />
que só as precisas horas de estu<strong>do</strong> me deixavam, e ain<strong>da</strong> estas intercadentes<br />
ao sério <strong>da</strong> atenção com as pensões de não faltar à urbana cortesia <strong>do</strong>s que<br />
cortejar-me vinham, quan<strong>do</strong> chegou <strong>da</strong> corte de Módena com casa mu<strong>da</strong><strong>da</strong> um<br />
ilustre fi<strong>da</strong>lgo modenês, que se chamava Frederico Manfre<strong>do</strong>, pessoa de até<br />
cinquenta anos, de grande respeito, com grande séquito de cria<strong>do</strong>s e cria<strong>da</strong>s,<br />
no coche e liteiras em que ele, sua mulher e filhos vinham, e muita gente de pé<br />
e de cavalo que os acompanhavam.<br />
Era Frederico parente em grau propínquo <strong>do</strong> cardeal Colalto, lega<strong>do</strong> e<br />
governa<strong>do</strong>r de Bolonha, pessoa mui respeita<strong>da</strong>, que com grande prudência e<br />
inteireza de justiça a governava. Tinha Frederico <strong>do</strong>us filhos, o morga<strong>do</strong> que se<br />
chamava Carlos, que seria mancebo de vinte e cinco anos, e outro que se<br />
chamava Constantino, que era estu<strong>da</strong>nte, e uma filha de até vinte anos, se<br />
porventura chegar pode a numerar i<strong>da</strong>de a fermosura; porque como as<br />
impressões sublunares não se atrevem ao celeste por lhe ficar tão superior,<br />
assim em certo mo<strong>do</strong> parece que ao superior <strong>da</strong> fermosura não se atrevem os<br />
perío<strong>do</strong>s <strong>do</strong> tempo. Era Fenisa o seu nome, que parece que só ela pelo único e
902 Padre Mateus Ribeiro<br />
singular competia com ser Fénix no parecer; porque assim como esta não<br />
admite parelha, compendian<strong>do</strong> em si própria <strong>da</strong> Arábia a admiração, <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
o espanto, <strong>da</strong> creduli<strong>da</strong>de o escrúpulo mais aparente, pois as próprias<br />
aromáticas cinzas que lhe servem de sepulcro, são o<strong>do</strong>rífero berço em que<br />
renasce, assim Fenisa parecia tão única na beleza, tão singular na fermosura,<br />
que punha suspensão aos olhos que a viam para outra igual fermosura não<br />
verem e um reverente temor aos mais delica<strong>do</strong>s pincéis para não se atreverem<br />
a imitá-la, pois o que nasceu para assombro não concede lugar à imitação.<br />
Era Fenisa tão alva como o dia mais luzi<strong>do</strong> e seus rasga<strong>do</strong>s olhos tão<br />
negros como a noite mais escura: ajuntan<strong>do</strong>-se para fazê-la em tu<strong>do</strong> singular<br />
os mais distantes contrários em seu rosto, e sen<strong>do</strong> antípo<strong>da</strong>s no hemisfério as<br />
luzes com as sombras, fizeram pazes para <strong>da</strong>r-lhe fermosura, ten<strong>do</strong> neva<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>micílio to<strong>da</strong>s as luzes no cândi<strong>do</strong> <strong>da</strong> cara e to<strong>da</strong>s as sombras no vivo escuro<br />
<strong>do</strong>s olhos que se rasgavam liberais para receberem tão airosas sombras. E<br />
como na noite escura cintilam mais as estrelas, estrelas pareciam seus belos<br />
olhos, pois entre o escuro cintilavam tanto. Retratou em seu rosto Abril as<br />
rosas mais encarna<strong>da</strong>s, que se as <strong>do</strong> pra<strong>do</strong> ou <strong>do</strong> jardim mais flori<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong><br />
carinhoso mimo <strong>da</strong> aurora que de aljôfar as veste, são na tarde âmagos <strong>do</strong> sol<br />
que com seus raios as murcha, as rosas naturais que a Fenisa eram em seu<br />
rosto tão constantes nos encarna<strong>do</strong>s matizes, que to<strong>do</strong> o ano se via nelas Abril<br />
e em to<strong>do</strong> o tempo as debuxava Maio.<br />
Formavam a boca pérolas em prisões de rubis, pequeno cárcere para<br />
assegurar tão ricos presos; porém como guar<strong>da</strong>vam homenagens a Fenisa,<br />
não ousavam exceder o prometi<strong>do</strong>, e com ser a prisão tão estreita em que os<br />
tinha, se contentavam só com ver a luz quan<strong>do</strong> falava. Chovia o ouro mais fino<br />
sobre seus cabelos, pois ca<strong>da</strong> um deles era um fio de ouro; que nunca os rios<br />
de Lídia mais precioso entre suas areias o levaram com que a seu rei Cresto<br />
enriqueceram. Era Fenisa tão <strong>do</strong>nairosa no talhe, tão briosa nas acções, tão<br />
fi<strong>da</strong>lga no brio e em tu<strong>do</strong> tão amol<strong>da</strong><strong>da</strong> aos atributos <strong>da</strong> fermosura que tu<strong>do</strong><br />
nela parecia admiração, porque sua vista era o maior assombro de to<strong>do</strong>s.<br />
Competia a discrição <strong>do</strong> juízo com sua própria gentileza, e não fico<br />
encarecen<strong>do</strong> pouco seu aviso, porque assim como na beleza fechou a porta à<br />
imitação, assim parece que deixou sem parelhas ao juízo.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 903<br />
Dilatei-me, senhores, em descrever a Fenisa porque como nela tiveram<br />
princípio to<strong>do</strong>s os meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s de que se originaram meus infortúnios, fica<br />
sen<strong>do</strong> desculpa <strong>do</strong> risco de meus arrojos o ser tão sublime a causa de meu<br />
empenho. Dizen<strong>do</strong>-se ao grande Alexandre, em Macedónia, se havia de ir<br />
contender aos desafios <strong>do</strong>s jogos olímpicos, respondeu ele, como refere Quinto<br />
Cúrcio 884 , se fora, se tivesse reis por opositores neles, mostran<strong>do</strong><br />
discretamente que em tanto as vitórias eram dignas de estimação, enquanto os<br />
venci<strong>do</strong>s eram mais sublimes no respeito. A causa final diz Aristóteles 885 que é<br />
a mais nobre de to<strong>da</strong>s, e quanto esta fica sen<strong>do</strong> mais ilustre, ficam sen<strong>do</strong> mais<br />
condecora<strong>do</strong>s os meios que a ela se dirigem, porque aventurar-se muito por<br />
fim de pouco valer, leva consigo a censura de reprovar-se por nece<strong>da</strong>de.<br />
Cap. II.<br />
Em que Lisar<strong>do</strong> prossegue a história de Fenisa<br />
Com pincel tosco e grosseiras tintas, trémula a mão e estilo tironício<br />
descrevi a Fenisa, que para cabalmente retratá-la as eloquências de<br />
Demóstenes, de Cícero e de Hortênsio pareciam limita<strong>da</strong>s e os pincéis de<br />
Timantes e Apeles ain<strong>da</strong> se avaliavam por grosseiros. Eram seu pai Frederico<br />
Manfre<strong>do</strong> e sua mãe Aurélia Miran<strong>do</strong>lina, ilustríssima na fi<strong>da</strong>lguia e muito ricos<br />
no esta<strong>do</strong> e ren<strong>da</strong>s grandiosas que no duca<strong>do</strong> de Módena possuíam. Ambos<br />
os filhos, assim Carlos, o morga<strong>do</strong>, como Constantino, que seguia as letras,<br />
eram de agradável presença, afáveis na cortesia e ajuiza<strong>do</strong>s na conversação:<br />
nem pelo ilustre se mostravam altivos, nem pelo rico soberbos, saben<strong>do</strong> <strong>da</strong>r-se<br />
a estimar sem agravarem e a serem respeita<strong>do</strong>s sem desprezos alheios. A<br />
causa desta mu<strong>da</strong>nça de Módena para Bolonha, ten<strong>do</strong> a origem no parentesco<br />
com o cardeal Colalto, que como lega<strong>do</strong> a Bolonha governava, era além de o<br />
visitarem como parente, querer Frederico que seu filho Constantino em<br />
Bolonha os estu<strong>do</strong>s continuasse, pois sempre à vista <strong>do</strong> cardeal governa<strong>do</strong>r,<br />
seu parente, se aplicaria às letras com maior cui<strong>da</strong><strong>do</strong>. Tomaram-se logo casas<br />
884 Quint. Curt., Lib.<br />
885 Arist., Topic. 3. ,
904 Padre Mateus Ribeiro<br />
grandes para Frederico assistir, que se a<strong>do</strong>rnaram com custosas armações e<br />
ricas tapeçarias que trazia; eram os cria<strong>do</strong>s muitos e as cria<strong>da</strong>s e aias que a<br />
Fenisa e sua mãe serviam em número igual, com que se ostentou em Bolonha<br />
uma casa em tu<strong>do</strong> ilustre, rica e grandiosa. A primeira vez que Fenisa<br />
apareceu em público, sain<strong>do</strong> com sua mãe a ver uma festa grande que em<br />
Bolonha se fazia, deu sua vista assunto às admirações, desvelos aos juízos e<br />
assaltos poderosos às vontades, pois quantos se empenharam em vê-la se<br />
desvelaram em amá-la. Divulgou a fama os encómios <strong>da</strong> fermosura, laureou a<br />
beleza, encareceu o <strong>do</strong>naire, ampliou a discrição, aplaudiu os brios, exagerou a<br />
gravi<strong>da</strong>de e finalmente ficaram sen<strong>do</strong> os hipérboles mais subi<strong>do</strong>s de seus<br />
louvores prelúdios que se dedicavam ao que merecia, proémios que<br />
começavam a dizer e nunca terminavam o muito que desejavam louvar sua<br />
beleza.<br />
Empenhavam-se <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de os juízos mais sublimes, os engenhos<br />
mais cultos, as musas mais eleva<strong>da</strong>s na subtileza <strong>do</strong> verso em celebrarem com<br />
poemas este novo assombro que a Bolonha viera para <strong>da</strong>r assunto às<br />
eloquências nos louvores, às mulheres assombroso eclipse com sua vista, pois<br />
na presença <strong>do</strong> sol não presume luzir alguma estrela aos ilustres os mais vivos<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e aos inferiores o mais insólito espanto. Vi eu a Fenisa nesta primeira<br />
vista e nas que possível me foi vê-la, e confesso que a amei com tantas veras<br />
que só então conheci o que era o amor, porque até essa hora só por fama o<br />
conhecia. Vi a Fenisa e julguei que não tinham meus olhos mais que ver: fora<br />
de sua esfera, na<strong>da</strong> sem grande violência se move; foi a vista de Fenisa para<br />
meus olhos a mais luzi<strong>da</strong> esfera, e assim na<strong>da</strong> podiam ver que os agra<strong>da</strong>sse,<br />
porque só em sua vista ficavam satisfeitos.<br />
- Porventura, Lisar<strong>do</strong>, (dizia eu) não fostes até agora livre? Não eras<br />
isento no querer e potenta<strong>do</strong> soberano de tua própria vontade? Pois que<br />
cativeiro é este? Que prisões te detêm? Que cadeias te prendem? Que Argel te<br />
oprime? Não reparas em que é devaneio aproxima<strong>do</strong> à loucura emprender<br />
impossíveis que estão contradizen<strong>do</strong> o coração? Pretendes como ignorante<br />
mariposa morrer ao cutelo <strong>da</strong>s luzes, quan<strong>do</strong> os que nasceram com maiores<br />
asas param no voo por não se avizinharem ao perigo?<br />
O ser gigante no amar não engrandece, nem habilita as limitações <strong>do</strong><br />
próprio ser; porque o amar tem seu princípio na vontade que pode mu<strong>da</strong>r-se,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 905<br />
porém o ser tem as raízes na natureza que persevera. É ver<strong>da</strong>de que<br />
nascestes fi<strong>da</strong>lgo, porém Fenisa muito superior; tuas ren<strong>da</strong>s não são grandes,<br />
as de Frederico são grandiosas; Fenisa pela fermosura mui altiva e pela<br />
riqueza mui soberana: se a pretendes por esposa, julgar-te-á por atrevi<strong>do</strong>, e se<br />
para galanteios, avaliar-te-á por louco, pois quem não se presa de ti para<br />
mari<strong>do</strong>, como te admitiria para amante? Que intentes obrigá-la com serviços é<br />
delírio <strong>da</strong> esperança, pois nunca chegar pode a remunerar-se o que a vontade<br />
não solicita, nem o desejo procura, e será <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> fazer pouca estimação,<br />
empenhar as esperanças no que está ameaçan<strong>do</strong> precipícios. Que te desveles<br />
em amá-la, não é fineza que mereça galardão; pois a fermosura de si mesmo é<br />
tão amável como fica sen<strong>do</strong> o extremo <strong>da</strong> feal<strong>da</strong>de aborrecível à vista e tedioso<br />
ao coração; e assim como o não ser esta objecto de ser ama<strong>da</strong> não merece<br />
castigo, assim o amar o raro <strong>da</strong> fermosura não merece remuneração.<br />
Assim discursava eu com o juízo, se pudera então persuadir a que o<br />
seguisse a vontade, que evitara tantas moléstias, como depois senti, sem<br />
colher delas mais fruto que meus pesares. Porém o que julgava com os<br />
discursos, encontrava a vontade com os afectos, sen<strong>do</strong> prerrogativa <strong>da</strong><br />
fermosura, que sem palavras persuade, sem eloquências move, sem cadeias<br />
prende, sem armas cativa e sem batalhas triunfa. Respondiam a meus bem<br />
forma<strong>do</strong>s discursos meus inconsidera<strong>do</strong>s desejos:<br />
- Que te intimi<strong>da</strong>, Lisar<strong>do</strong>? Não sabes que os perigos são a pedra de<br />
toque em que se provam os quilates <strong>do</strong> valor? Já antes de entrar na batalha te<br />
retiras? Queres conseguir as venturas sem pores <strong>da</strong> tua parte mais cabe<strong>da</strong>l<br />
que os desejos de alcançá-la? Já te queixas de despreza<strong>do</strong> sem pretenderes<br />
ser admiti<strong>do</strong>? Arrependeste <strong>da</strong> navegação antes de surcares os golfos <strong>do</strong><br />
oceano e sem veres as tormentas te acovar<strong>da</strong>m imagina<strong>do</strong>s receios? Para que<br />
te queixas <strong>da</strong> fortuna sem experimentares seu disfavor? Pouco decoro se deve<br />
a quem se não desvela por adquirir aumentos a sua estimação. O pretender<br />
nunca subir é o primeiro degrau para nos pun<strong>do</strong>nores descer. Se pretendes a<br />
Fenisa para esposa, com que ficarás tão grandioso, que temores te<br />
acovar<strong>da</strong>m? Se o ilustre solar de seu pai e antigos progenitores, tu fi<strong>da</strong>lgo<br />
nascestes; se o altivo de seu esta<strong>do</strong> e riqueza, tu não nascestes pobre: ren<strong>da</strong>s<br />
bastantes tens para sustentares a vi<strong>da</strong> ao pun<strong>do</strong>nor e os alentos ao decoro; se<br />
a julgas ingrata pelo sublime <strong>da</strong> estimação, quem lhe deu os privilégios de ser
906 Padre Mateus Ribeiro<br />
mais fermosa não a isentou <strong>da</strong>s pensões de ser mulher: deixa a dureza <strong>da</strong><br />
pedra lavrar-se <strong>da</strong> repetição de um escopo, o metal <strong>do</strong>s assaltos de um buril, o<br />
diamante deixa polir-se na indústria <strong>do</strong> lapidário; e duvi<strong>da</strong>s que sen<strong>do</strong> Florisela<br />
mulher e pretendi<strong>da</strong> para ser esposa tua, se vir que com finezas é ama<strong>da</strong> e<br />
com desvelos servi<strong>da</strong>, não deponha o endureci<strong>do</strong>, não modere o esquivo e<br />
desterre a ingratidão? Da ventura não tens até agora motivos de queixar-te;<br />
pois que razão tens para desanimar as esperanças? Em que desmaiam teus<br />
alentos? Em que se acobar<strong>da</strong>m teus brios? É Fenisa no ilustre o mais sublime,<br />
na fermosura a admiração, na riqueza grandiosa, dizem que no aviso mui<br />
discreta, em tu<strong>do</strong> Fénix por singular: pois à vista de tantas pren<strong>da</strong>s alenta os<br />
espíritos, anima o coração a tão generoso empenho, pois quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> se<br />
mostre contrário a teu desejo, mais vai que te queixes de desgraça<strong>do</strong> <strong>do</strong> que<br />
viveres sempre arrependi<strong>do</strong> de não fazeres prova <strong>da</strong> ventura, e parece mais<br />
brioso assunto a teus pensamentos despenharem-se por atrevi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que<br />
viverem sempre acovar<strong>da</strong><strong>do</strong>s.<br />
Nesta controvérsia de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e neste labirinto de discursos passaram<br />
alguns dias meus desejos e meus temores, até que com resolução venceu a<br />
fermosura que em minha memória tão esculpi<strong>da</strong> estava: porque o único nunca<br />
se esquece e o que é vulgar com facili<strong>da</strong>de se apaga. Das sete maravilhas <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> jamais se perdeu a fama por serem em tu<strong>do</strong> singulares; e de outros<br />
muitos obeliscos que no mun<strong>do</strong> houve pereceu a memória com o tempo por<br />
terem parelhas na grandeza: porque a igual<strong>da</strong>de diminui a estimação e o que é<br />
singular vive eterniza<strong>do</strong> na lembrança. Tratei logo no estu<strong>do</strong> de <strong>da</strong>r-me por<br />
particular amigo de seu irmão Constantino, que como eu era na universi<strong>da</strong>de<br />
tão antigo e a quem to<strong>do</strong>s os melhores mostravam tanto respeito, ten<strong>do</strong> nela o<br />
séquito <strong>do</strong>s mais alenta<strong>do</strong>s, estimou muito Constantino, como forasteiro na<br />
ci<strong>da</strong>de e na academia, minha amizade e oferecimentos que de servi-lo nela lhe<br />
fiz. Assisti-lhe eu com grande cui<strong>da</strong><strong>do</strong> não só nos estu<strong>do</strong>s, mas em visitá-lo em<br />
sua casa e presenteá-lo de vários regalos que dizia me haviam chega<strong>do</strong> de<br />
Cesena, man<strong>da</strong><strong>do</strong>s de minha mãe, o que ele me agradecia muito,<br />
presentean<strong>do</strong>-me com outros em ocasiões que lhe vinham e visitan<strong>do</strong>-me<br />
algumas vezes em minha casa por compensar as muitas que eu lhe fazia; e por<br />
seu meio Carlos, seu irmão, que era o sucessor <strong>do</strong> morga<strong>do</strong>, me visitava<br />
também, com que veio a ter comigo a mesma familiari<strong>da</strong>de que Constantino
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 907<br />
tinha, com que alcancei entra<strong>da</strong> em sua casa para buscá-los em qualquer<br />
tempo. Com esta familiar comunicação que com seus familiares tinha se<br />
ocasionava tal vez o poder ver a Fenisa, ain<strong>da</strong> que de passagem, que era meu<br />
transitório recreio e o melhor estu<strong>do</strong> em que se desvelavam meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s.<br />
Conheci eu que Constantino algumas vezes sobre prática que com ela e seus<br />
pais tinha lhes referia algumas acções minhas, o muito respeito que to<strong>do</strong>s me<br />
guar<strong>da</strong>vam, o liberal que me mostrava, o alenta<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> na ocasião o<br />
pediam, o séquito grande que tinha, sen<strong>do</strong> para to<strong>do</strong>s afável e cortês, e outros<br />
encarecimentos, parte <strong>do</strong> que via e parte <strong>do</strong> que ouvia contar a outros <strong>da</strong><br />
universi<strong>da</strong>de. Estas relações na presença de Fenisa e estes louvores faziam<br />
que em mim reparasse com algum cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, não de afeição, mas de<br />
curiosi<strong>da</strong>de: acção natural em mulheres, que ten<strong>do</strong> as raízes no nativo recato,<br />
querem desenganar-se com a vista <strong>do</strong> mesmo que ouvem, quan<strong>do</strong> na<strong>da</strong> lhes<br />
importa mais que a novi<strong>da</strong>de de conhecer se condizem as relações com o<br />
sujeito de quem se dizem. Por essa razão Platão 886 a man<strong>da</strong> evitar e<br />
Plutarco 887 lhe chama inútil, Euripides 888 perniciosa e Cícero 889 molesta.<br />
Desta curiosi<strong>da</strong>de nascia que muitas vezes in<strong>do</strong> eu buscar a<br />
Constantino a sua casa pudesse Fenisa ver-me sem ser de mim vista, valen<strong>do</strong>-<br />
se <strong>do</strong> recato de poder desenganar o desejo sem que pudesse eu conhecer que<br />
ela me via, porque sabia disfarçar o curioso com o recata<strong>do</strong>. Entre as pessoas<br />
que em sua casa assistiam era um mestre em Artes, que se chamava Adriano,<br />
homem mui perito e que em Nápoles haven<strong>do</strong> cursa<strong>do</strong> alguns anos o Direito,<br />
por vários desvios <strong>da</strong> fortuna saiu de sua pátria e depois de vários sucessos se<br />
veio a acomo<strong>da</strong>r com Frederico para ser mestre de Constantino, seu filho, a<br />
quem repetia as lições, explican<strong>do</strong> as dificul<strong>da</strong>des delas. Era Adriano bem<br />
<strong>do</strong>uto e versa<strong>do</strong> nas histórias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e a quem Frederico sabia estimar no<br />
muito que merecia; pois o poder ensinar é, como diz Aristóteles 890 , exame<br />
aprova<strong>do</strong> <strong>do</strong> saber. E aquele, diz Valério Máximo 891 , é mais rico de sabe<strong>do</strong>ria<br />
886 Plat., Depulchri.<br />
887 Plutarch., De curiosit.<br />
888 Eu ri p., Hyppol.<br />
889 Cicer., in Laeli.<br />
890 Arist., Metaph. 1.<br />
891 Valer. Max., Lib. 6.
908 Padre Mateus Ribeiro<br />
para ensinar, que <strong>do</strong>s bens <strong>da</strong> fortuna parece mais pobre para os possuir. Não<br />
menos, diz S. Bernar<strong>do</strong> 892 , necessitamos nesta vi<strong>da</strong> de guia que nos<br />
encaminhe ao bem que de mestre que nos desvie <strong>do</strong> mal; e tal era Adriano no<br />
exemplar <strong>do</strong>s costumes e no científico <strong>da</strong>s letras. Por esta razão chamou<br />
Cícero 893 à sabe<strong>do</strong>ria saúde <strong>da</strong>s ignorâncias, que são os achaques de que<br />
pode enfermar o entendimento; parecer que Ovídio 894 seguiu e que a<br />
experiência manifesta. Era Adriano bem autoriza<strong>do</strong> na pessoa e erudito no falar<br />
com que acreditava as letras <strong>do</strong>s anos que nas academias despendeu; ele me<br />
visitava algumas vezes em companhia de Constantino, a quem de ordinário<br />
assistia, e um dia que sem ele se ofereceu visitar-me, buscan<strong>do</strong> eu ocasião<br />
para lhe perguntar a causa ou motivo que Frederico tivera para <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de<br />
Módena, aonde tinha situa<strong>da</strong>s suas ren<strong>da</strong>s, vir com casa mu<strong>da</strong><strong>da</strong> a ser<br />
mora<strong>do</strong>r em Bolonha, ele me disse assim:<br />
Cap. III.<br />
Em que se dá princípio à ver<strong>da</strong>deira história de Manfre<strong>do</strong> e de sua esposa<br />
Eurides<br />
- Para, senhor Lisar<strong>do</strong>, satisfazer à pergunta que me fizestes, é<br />
necessário tomar o princípio <strong>da</strong> cau<strong>da</strong>losa fonte <strong>do</strong>nde tiveram origem e se<br />
derivaram os generosos rios que ao presente a maior parte de Itália<br />
engrandecem. O ilustre solar de Frederico Manfre<strong>do</strong>, em cuja casa assisto por<br />
mestre de seu filho Constantino, tem as raízes heróicas no empera<strong>do</strong>r<br />
Constâncio, filho <strong>do</strong> grande empera<strong>do</strong>r Constantino que deixan<strong>do</strong> a ci<strong>da</strong>de de<br />
Roma ao sumo pontífice S. Silvestre, passou a corte imperial para<br />
Constantinopla, a quem intitulou de seu nome, que de antes se chamava<br />
Bizâncio. Nesta mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong> império de Itália para Trácia, entre os ilustres<br />
senhores e cavaleiros principais que passaram com o empera<strong>do</strong>r para servi-lo,<br />
foi um deles Manfre<strong>do</strong>, mancebo bizarro, de flori<strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, invencível valor,<br />
S. Bernar., in Ep.<br />
Cicer., Tusc. 3.<br />
Ovid., 2. De Pont.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 909<br />
grande juízo, rico no esta<strong>do</strong> e mui aceito ao empera<strong>do</strong>r, que dele em empresas<br />
mui honrosas se servia. Por morte <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r deixou a seu segun<strong>do</strong> filho<br />
Constâncio, na repartição que a seus filhos tinha feito, o senhorio de Itália,<br />
compensan<strong>do</strong>-lhe com sua grandeza outras mais ricas províncias e reinos que<br />
aos outros <strong>do</strong>us filhos Constantino Segun<strong>do</strong> e a Constâncio lhes ficavam. E na<br />
ver<strong>da</strong>de não ficava Constâncio desigual na repartição, se bem se considerar a<br />
polícia, os esta<strong>do</strong>s e senhorios que em Itália se encerram, de cujos valores e<br />
excelências tratam Virgílio 895 , Estrabão 896 , Dionísio Alicarnásio 897 , Políbio 898 e<br />
outros muitos que de seus amplia<strong>do</strong>s louvores escreveram. Antes que<br />
Constâncio a tomar posse de seus esta<strong>do</strong>s viesse, como Manfre<strong>do</strong> na corte de<br />
Constantinopla sobre to<strong>do</strong>s luzisse no esta<strong>do</strong>, na riqueza, na liberali<strong>da</strong>de e no<br />
valor, veio a pôr nele os olhos a princesa Eurides, filha de Constâncio, <strong>do</strong>nzela<br />
que para fermosa era assombro <strong>da</strong> beleza e para discreta admiração <strong>do</strong> juízo.<br />
Parecia haver nela compendia<strong>do</strong> a natureza quanto nas outras repartiu<br />
de fermosura e clausula<strong>do</strong>, quanto em to<strong>da</strong>s dividiu de discrição. Era de muitos<br />
principais para esposa pretendi<strong>da</strong>, mas nunca quis deliberar-se a aceitar<br />
esposo; porque Narciso de sua própria beleza afeiçoa<strong>do</strong>, ela era o assunto<br />
cabal de seu próprio amor, desvaneci<strong>da</strong> em que tal fermosura a to<strong>do</strong> o<br />
merecimento ficava desluzin<strong>do</strong> a maior estimação. Esta pois isenção nativa,<br />
esta esquivança natural, este desprezo desdenhoso com que na<strong>da</strong> em seus<br />
olhos avultava, este eleva<strong>do</strong> desdém com que a tantos príncipes que a pediam<br />
desdizia, e finalmente esta superiori<strong>da</strong>de com que tu<strong>do</strong> avaliava inferior veio a<br />
render as chaves <strong>do</strong> coração à bizarria de Manfre<strong>do</strong>, que na corte assistia e<br />
sobre to<strong>do</strong>s senhoril no fausto, no esta<strong>do</strong> e no valor; que costuma muitas vezes<br />
igualar o amor aos que não quis emparelhar a fortuna na grandeza. Era<br />
Eurides senhora e Manfre<strong>do</strong> vassalo; porém <strong>da</strong>vam-se nele tantos <strong>do</strong>tes e<br />
merecimentos que o engrandeciam que pôde na vontade de Eurides não só<br />
igualar-se a tantos príncipes que a pretendiam, mais ain<strong>da</strong> preferir a to<strong>do</strong>s em<br />
sua eleição e pesar na balança <strong>do</strong> amor mais seu agra<strong>do</strong> <strong>do</strong> que sua fortuna.<br />
Virg., Georg. 2.<br />
Strab., Lib. 6.<br />
Alicarnas., in /n/f. Hist. Rom.<br />
Polib., Lib. 2. Histor.
910 Padre Mateus Ribeiro<br />
Concertaram entre si de fugirem <strong>da</strong> corte em traje desconheci<strong>do</strong> para Itália:<br />
perigosa ausência, sen<strong>do</strong> Eurides princesa, filha de um empera<strong>do</strong>r, <strong>da</strong><br />
fermosura espanto e de seu pai o amoroso desvelo; porém nas academias <strong>do</strong><br />
amor, raras vezes se tomam postilas de temer. Só nesta tão arrisca<strong>da</strong> fugi<strong>da</strong><br />
fizeram cúmplices confidentes para os acompanharem ele a um cria<strong>do</strong> de<br />
quem confiava muito e Eurides a uma aia de quem só seus segre<strong>do</strong>s fiava.<br />
Preparou Eurides para levar to<strong>da</strong>s as jóias mais preciosas que tinha, e em uma<br />
noite escura em que apenas as cintilantes estrelas se viam descobrir seus<br />
resplan<strong>do</strong>res, toman<strong>do</strong> Manfre<strong>do</strong> a Eurides nas ancas de um cavalo, que na<br />
ligeireza com desprezos de parecer raio presumia atributos de pensamento, e o<br />
fidelíssimo cria<strong>do</strong> nas ancas <strong>do</strong> seu cavalo a aia de Eurides, se ofereceram a<br />
confiar <strong>da</strong> ventura o sucesso ou felice ou infausto deste seu tão arrisca<strong>do</strong> e<br />
duvi<strong>do</strong>so retiro.<br />
Deixemos na consideração agora os sentimentos e mágoas que<br />
Constâncio sentiria, ven<strong>do</strong> desapareci<strong>da</strong> de seus olhos a uma filha dele com<br />
extremos ama<strong>da</strong>, a jóia mais estima<strong>da</strong> de seus desvelos, a glória temporal de<br />
seus senti<strong>do</strong>s, a delícia de seus olhos, corta<strong>da</strong> em flor sua esperança de a ver<br />
emprega<strong>da</strong> no monarca mais soberano. Deixemos as iras vingativas de tão<br />
insólito atrevimento, seu real decoro viola<strong>do</strong>, o paço ofendi<strong>do</strong>, a majestade<br />
lesa, despedin<strong>do</strong> por to<strong>da</strong>s as partes tropas de cavalaria ligeira que cortassem<br />
caminhos, atalhassem estra<strong>da</strong>s, subissem os montes mais eminentes, ain<strong>da</strong> o<br />
Olimpo mais inacessível, que à segun<strong>da</strong> região <strong>do</strong> ar presume avantajar-se na<br />
altiveza com que as nuvens despreza e os ventos não teme. Que<br />
investigassem aos vales mais profun<strong>do</strong>s, alunos <strong>do</strong> centro <strong>da</strong> terra de quem<br />
tomam lições de ocultar-se nas sombras mais escuras, sen<strong>do</strong> peregrinos à luz<br />
e émulos ao dia, a quem o sol apenas se atreve a mostrar com seus raios se<br />
são colonos ou não deste hemisfério. Deixemos <strong>da</strong> corte a confusa divisão de<br />
pareceres, a varie<strong>da</strong>de de opiniões, a diversi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s juízos, as invejas à<br />
ventura de Manfre<strong>do</strong>, que se de antes era ama<strong>do</strong>, agora por inveja<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s<br />
era aborreci<strong>do</strong>. To<strong>do</strong> o invejoso, diz Plínio Júnior 899 , é menor que o inveja<strong>do</strong>,<br />
porque, como escreve Salústio 900 , nasce a inveja <strong>da</strong> opulência maior que em<br />
Plin. Jun., Lib. 6.<br />
Salust., in Conjur. Catil.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 911<br />
outro se considera; e como to<strong>do</strong>s tinham a Manfre<strong>do</strong> por sumamente<br />
venturoso, assi era de to<strong>do</strong>s sumamente inveja<strong>do</strong> e igualmente aborreci<strong>do</strong>, que<br />
costuma a inveja mu<strong>da</strong>r as guar<strong>da</strong>s ao amor em aborrecimento. Deixarei as<br />
mágoas de tantos príncipes pretendentes e opositores ao casamento <strong>da</strong><br />
princesa Eurides, ven<strong>do</strong>-se para sempre excluí<strong>do</strong>s de suas esperanças e<br />
consideran<strong>do</strong> que um vassalo conseguisse por venturoso o que eles não<br />
puderam avançar por desgraça<strong>do</strong>s; poden<strong>do</strong> mais um sopro <strong>da</strong> ventura <strong>do</strong> que<br />
muitos assaltos <strong>do</strong> poder. Enfim pon<strong>do</strong> de parte tantos e tão intensos<br />
sentimentos que em to<strong>da</strong>s as partes desta fugi<strong>da</strong> se seguiram, acompanharei a<br />
Manfre<strong>do</strong> que com sua ama<strong>da</strong> Eurides de Trácia para Itália caminhavam, que<br />
pisan<strong>do</strong> em ca<strong>da</strong> passo <strong>da</strong> morte as sombras e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> os sustos na formidável<br />
jorna<strong>da</strong> que seguiam, ocultan<strong>do</strong>-se de dia e caminhan<strong>do</strong> de noite, desvian<strong>do</strong>-<br />
se <strong>do</strong>s caminhos de passageiros cursa<strong>do</strong>s e fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s bosques e selvas<br />
mais incultas novas estra<strong>da</strong>s de seu temor cobertas, vieram venturosamente<br />
sem serem encontra<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s esquadras que os buscavam a parar no lugar em<br />
que ao presente agora se vê situa<strong>da</strong> a ilustre vila e castelo de Mirân<strong>do</strong>la, na<br />
Lombardia, pouco distante <strong>da</strong> cau<strong>da</strong>losa corrente <strong>do</strong> tão celebra<strong>do</strong> rio Pó, sítio<br />
que naquele tempo era o mais inculto, fecha<strong>do</strong> de mui espesso arvore<strong>do</strong>, vale<br />
sombrio e solitário, distante <strong>da</strong>s povoações e que mais parecia idóneo para ser<br />
habita<strong>do</strong> de feras silvestres que de homens.<br />
Neste sítio tão deserto, a quem só as aves conheciam, julgou Manfre<strong>do</strong><br />
que só lhe convinha fazer habitação com Eurides e seus cria<strong>do</strong>s para não<br />
serem descobertos, que sabem a necessi<strong>da</strong>de e o temor avaliarem por<br />
<strong>do</strong>micílio vistoso e alegre o sítio que de si mesmo era triste e assombroso,<br />
como diz o Séneca 901 e escreve Cícero 902 . Era o sítio em tu<strong>do</strong> solitário e falto<br />
de alívio que só podiam fazer tolerável os assaltos <strong>do</strong> temor; porém a<br />
companhia de Eurides, a quem Manfre<strong>do</strong> com finezas amava, fazia parecer-lhe<br />
o deserto jardim delicioso, ten<strong>do</strong> sua fermosura atributos <strong>do</strong> sol que no jardim e<br />
no deserto igualmente brilha. Assistiam-lhe os <strong>do</strong>us fidelíssimos cria<strong>do</strong> e<br />
cria<strong>da</strong>, com cuja companhia e indústria fabricaram umas pastoris cabanas<br />
Senec, Epist. 120.<br />
Cicer., De Or.
912 Padre Mateus Ribeiro<br />
teci<strong>da</strong>s de verdes ramos em que moravam tão contentes como nos palácios<br />
mais soberbos que em Constantinopla tinham.<br />
Vinham em alguns dias alguns pastores <strong>da</strong>s aldeias vizinhas às ribeiras<br />
<strong>do</strong> cau<strong>da</strong>loso Pó e <strong>do</strong>s confins <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Módena, que já neste tempo era<br />
sumptuosa e havia si<strong>do</strong> colónia <strong>do</strong>s romanos, como referem Tito Lívio 903 ,<br />
Estrabão 904 , Pompónio Mella 905 , Cornélio Tácito 906 , Plínio 907 e outros autores<br />
que dela tratam desde o mais antigo <strong>do</strong>s anais de Roma. Com o trato e<br />
conversação destes pastores que <strong>do</strong>s campos e arrabaldes a Módena vizinhos<br />
a repastar seus rebanhos a estes bosques vinham pela fertili<strong>da</strong>de de seu<br />
terreno, como Manfre<strong>do</strong> e Eurides quan<strong>do</strong> saíram de Constantinopla tinham<br />
mu<strong>da</strong><strong>do</strong> o traje ao camponês e o cria<strong>do</strong> e cria<strong>da</strong> em o de pastores, não foi<br />
dificultoso o contraírem amizade com os que <strong>do</strong>s campos vinham; que a<br />
semelhança, diz Cícero 908 , move muito e costuma conciliar amizades.<br />
Admiravam a singular beleza <strong>da</strong> desconheci<strong>da</strong> pastora Eurides e o<br />
garbo, brio e gentileza de Manfre<strong>do</strong>, seu esposo, sen<strong>do</strong> Eurides <strong>do</strong>s pastores a<br />
mais nova admiração e <strong>da</strong>s pastoras a mais venera<strong>da</strong> inveja<strong>da</strong>; vieram alguns<br />
pastores e pastoras a edificarem suas cabanas no mesmo sítio em que<br />
Manfre<strong>do</strong> com Eurides moravam, movi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> discreto de sua conversação e <strong>da</strong><br />
liberali<strong>da</strong>de que com to<strong>do</strong>s usavam. Com isto atrain<strong>do</strong> uns aos outros e<br />
crescen<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> dia mais as camponesas cabanas e os verdes e fron<strong>do</strong>sos<br />
edifícios de seus <strong>do</strong>micílios, parecia já o solitário <strong>do</strong> bosque e o rústico <strong>da</strong><br />
inculta selva vistosa povoação que de repente ao bosque se mu<strong>da</strong>ra ou nova<br />
colónia que de Módena a conduzir-se viera. Entretanto secretamente por meio<br />
<strong>do</strong> cria<strong>do</strong> se desfez Manfre<strong>do</strong> de algumas jóias de preço, que reduzi<strong>da</strong>s em<br />
dinheiro, socorren<strong>do</strong> com ele aos que via necessita<strong>do</strong>s e a outros compran<strong>do</strong><br />
parte <strong>do</strong>s rebanhos que traziam, se veio a fazer de to<strong>do</strong>s ama<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong>s<br />
servi<strong>do</strong>, com o que crescen<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> dia mais em poder e estimação e<br />
aumentan<strong>do</strong>-se o vale em habita<strong>do</strong>res que à fama de sua liberali<strong>da</strong>de a serem<br />
903 Tito Liv.,/_/£>. 39.<br />
904 Strab., Lib. 3.<br />
905 Pomp. Mella, Lib. 2.<br />
906 Cornel. Tacit., Lib. 17.<br />
907 Plin., Lib.2.<br />
908 Cic, Ad Quint fratr.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 913<br />
seus vizinhos vinham, ficou o solitário sítio povoa<strong>do</strong> de pastores e pastoras que<br />
por lograrem a vista e companhia <strong>da</strong> fermosa Eurides vinham, a quem to<strong>do</strong>s<br />
como a senhores respeitavam pelas franquezas que deles recebiam.<br />
Neste lugar assim desconheci<strong>do</strong>s, se bem por extremo de to<strong>do</strong>s<br />
estima<strong>do</strong>s, passaram Eurides e Manfre<strong>do</strong> muitos anos, mostran<strong>do</strong>-se ca<strong>da</strong> dia<br />
mais ricos com se irem desfazen<strong>do</strong> de várias jóias com que compravam muitas<br />
terras, muitos ga<strong>do</strong>s e foros, com que lhe ficavam quasi to<strong>do</strong>s os lavra<strong>do</strong>res<br />
<strong>do</strong>s lugares vizinhos foreiros e obriga<strong>do</strong>s, que com as ren<strong>da</strong>s que lhes traziam<br />
sustentavam um esta<strong>do</strong> para quem no campo passava bastantemente<br />
autoriza<strong>do</strong>. Edificaram casas grandiosas aonde foi o seu primeiro <strong>do</strong>micílio,<br />
aonde viviam contentes por desconheci<strong>do</strong>s, que para quem entre temores vive<br />
é a maior ventura.<br />
Neste sítio viveram muitos anos, aonde Manfre<strong>do</strong> teve de Eurides oito<br />
filhos e duas filhas: a uma delas chamou Eurides de seu nome e à segun<strong>da</strong><br />
Constança, em memória <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Constâncio, seu avô. Aos filhos pôs<br />
diversos nomes e ao mais velho chamou Manfre<strong>do</strong>, <strong>do</strong> nome de seu esposo,<br />
de cuja direita sucessão descende o ilustre Frederico Manfre<strong>do</strong>, em cuja casa<br />
assisto. No discurso destes anos, sobre a repartição <strong>do</strong>s senhorios que o<br />
grande Constantino por sua morte a seus filhos deixa<strong>do</strong> tinha, romperam eles<br />
em cruéis guerras, que, como refere Marco António Sabélico 909 , durara muitos<br />
anos, porque a ambição nem ao parentesco mais propínquo, nem à amizade<br />
mais antiga costuma guar<strong>da</strong>r respeitos, como diz Cícero 910 . Nestas guerras<br />
ocupa<strong>do</strong> Constâncio com seus irmãos, que com vária fortuna prosseguia em<br />
diversas províncias <strong>da</strong> Ásia e <strong>da</strong> Europa, veio finalmente vence<strong>do</strong>r, com<br />
poderoso exército a vencer e triunfar já habitua<strong>do</strong>, a avizinhar-se a Itália para<br />
tomar posse dela, que com llírico e África se lhe rendiam. Chegou à ci<strong>da</strong>de de<br />
Aquileia, aonde assentou o seu exército formidável e vitorioso de tão várias<br />
nações que sujeita<strong>do</strong> havia. Man<strong>da</strong>ram logo to<strong>da</strong>s as ci<strong>da</strong>des e príncipes de<br />
Itália por seus embaixa<strong>do</strong>res a <strong>da</strong>r-lhe a devi<strong>da</strong> obediência e a reconhecê-lo<br />
por seu empera<strong>do</strong>r e senhor, aos quais ele em Aquileia com benevolência<br />
recebia. A ci<strong>da</strong>de de Módena, haven<strong>do</strong> de man<strong>da</strong>r embaixa<strong>do</strong>r que em seu<br />
19 Sabei., Lib. 8. Enn. 7.<br />
0 Cicer., in Lael.
914 Padre Mateus Ribeiro<br />
nome o reconhecesse por seu empera<strong>do</strong>r e lhe rendesse a obediência e lhe<br />
pedisse a confirmação de seus antigos privilégios, como Manfre<strong>do</strong> naquelas<br />
partes tinha granjea<strong>do</strong> tanta fama de prudente, de discreto, de rico e de liberal,<br />
que como Aristóteles 911 a liberali<strong>da</strong>de define é virtude que nos dispêndios<br />
honestos e honrosos sabe gastar e despender francamente os bens que<br />
possui; fizeram os magistra<strong>do</strong>s de Módena discreta eleição de Manfre<strong>do</strong> para<br />
lhe encarregarem o honroso desta função de ser o embaixa<strong>do</strong>r que fosse<br />
render ao empera<strong>do</strong>r a obediência desta tão antigua e populosa ci<strong>da</strong>de.<br />
Empenhou-se Módena na eleição <strong>da</strong> pessoa de Manfre<strong>do</strong>, confian<strong>do</strong> de<br />
seu juízo o melhor acerto e que em tu<strong>do</strong> conseguiria os despachos mais<br />
favoráveis; porém Manfre<strong>do</strong> se escusava de aceitar o favor, desculpan<strong>do</strong>-se<br />
com que se não achava idóneo para receber a honra que lhe ofereciam,<br />
haven<strong>do</strong> em Módena outros sujeitos mais versa<strong>do</strong>s nos negócios <strong>da</strong>s cortes e<br />
razões de esta<strong>do</strong>, e não encarregarem empenhos de tanto peso a quem entre<br />
a sole<strong>da</strong>de <strong>do</strong> campo não tinha experiência de tratar com os monarcas para<br />
solicitar os despachos e privilégios que aos ci<strong>da</strong>dãos de Módena convinham.<br />
Porém os <strong>do</strong> governo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, que de seu grande juízo e talento<br />
conhecimento tinham, entenden<strong>do</strong> que o escusar-se nascia de modéstia, a<br />
quem Santo Agostinho 912 deduziu o nome <strong>do</strong> bom mo<strong>do</strong> com que a prudência<br />
sabe moderar as honras e felici<strong>da</strong>des, e a quem S. João Crisóstomo 913 chamou<br />
riqueza <strong>da</strong> alma e a quem Platão 914 intitulou presídio e guar<strong>da</strong> fiel <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, não<br />
receben<strong>do</strong> as escusas de Manfre<strong>do</strong>, persistiram no ordinário de sua eleição,<br />
que foi sempre a esca<strong>da</strong> mais segura para subir o saber-se uma pessoa<br />
humilhar. Não se escusava Manfre<strong>do</strong> por modéstia, como os modeneses<br />
presumiam, de querer ceder essa honra a outro, ma o temor evidente que em<br />
seu peito se ocultava de poder ser <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r conheci<strong>do</strong> e ficar exposto ao<br />
perigo certo de ver tão malogra<strong>do</strong>s em um dia tantos trabalhos padeci<strong>do</strong>s,<br />
tantas cautelas infrutuosas, tantos retiros escondi<strong>do</strong>s, arrisca<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, que<br />
1 Arist., De virtut. & vit. divis.<br />
2 Aug., Lib. de brev. vit.<br />
3 Chris., Horn. 12. Super Epist. Ad Colos.<br />
4 Plat., in Char.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 915<br />
ele avaliava em menos, porém a de Eurides, sua esposa, e de seus filhos, que<br />
ele estimava em mais.<br />
- De que me aproveitou, cruel fortuna (dizia o ansia<strong>do</strong> Manfre<strong>do</strong>), que te<br />
mostrasses propícia a minha amorosa e arrisca<strong>da</strong> fugi<strong>da</strong>, tantos anos viven<strong>do</strong><br />
desconheci<strong>do</strong> em terra alheia, se no melhor tempo de meu inquieto descanso<br />
de novo me manifestas? Já te arrependes <strong>do</strong> favor? Já te cansa meu sossego?<br />
Já te parece muita minha pastoril felici<strong>da</strong>de? Exordiaste os favores para me<br />
deixares no melhor tempo infelice? Mas quan<strong>do</strong>, fortuna, foi tua ro<strong>da</strong> constante,<br />
se de seres mudável vives? Que escolherá minha pena em trance tão cruel, em<br />
que em ir e ficar sempre encontro o perigo? E em um e outro extremo não<br />
descubro o remédio? Insistir em escusar-me, sobre parecer desprezo, que<br />
como diz Demóstenes 915 é cousa feia fazer desestimação <strong>do</strong> que muitos<br />
desejam tanto, é fazer-me aborreci<strong>do</strong> aos mesmos que me amavam, que não é<br />
pequena desgraça o vir a experimentar o ódio nos próprios em quem conheci<br />
tantas vezes o amor, sen<strong>do</strong> o ódio, como disse Plutarco 916 , mais cego para<br />
ofender <strong>do</strong> que o amor para subornar. Além disto é <strong>da</strong>r motivos de suspeitar<br />
quem quiser son<strong>da</strong>r a altura e o profun<strong>do</strong> <strong>da</strong> causa de que podem nascer<br />
minhas escusas; porque nem a inocência vive isenta de ocasionar uma<br />
suspeita em ânimos odiosos e pouco afectos, porque a inocência pende <strong>da</strong>s<br />
obras próprias, porém a suspeita nasce <strong>do</strong>s juízos alheios; e que discursan<strong>do</strong><br />
os mo<strong>do</strong>neses sobre os retiros de minha vi<strong>da</strong> e a repeti<strong>da</strong> escusa de ir<br />
aparecer diante <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r, não possam vir a inferir que quem tanto se<br />
retira dá indícios de que deve. Oh mágoa grande, que entre Cila e Caribdis<br />
sempre navegue arrisca<strong>da</strong> minha ventura!<br />
Com este sentimento veio Manfre<strong>do</strong> consultar com Eurides, sua esposa,<br />
o penoso de seu cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e o oneroso <strong>da</strong> <strong>do</strong>r que em seu coração vivia,<br />
confian<strong>do</strong> de seu bom juízo lhe <strong>da</strong>ria o mais acerta<strong>do</strong> parecer no que destes<br />
extremos seguiria. Assusta<strong>da</strong> com a impensa<strong>da</strong> nova se mostrou Eurides,<br />
roubou-lhe o sobressalto as rosas mais vivas de seu rosto, não a beleza, que a<br />
pena lhe socrestou o encarna<strong>do</strong>, mas não a despojou <strong>da</strong> neve, passan<strong>do</strong> de<br />
rosa a ser açucena. Assomou-se às janelas de seus fermosos olhos o receio,<br />
5 Demosth., in Olynth.<br />
6 Plut., De utilit. ab inim.
916 Padre Mateus Ribeiro<br />
quis chorar e suspendeu-lho o intenso <strong>da</strong> mágoa que congelou as lágrimas na<br />
corrente e estancou a fonte nativa no coração, por que não apelasse para o<br />
alívio <strong>do</strong>s olhos o requinta<strong>do</strong> de tão perene <strong>do</strong>r. Quis a voz romper a<br />
suspensão ao silêncio e embargou-lho a pena, que na música Filomena (a)<br />
parece maravilha que possa cantar tão bem, quem padece tanto mal.<br />
Perturbou-se o discurso, sain<strong>do</strong> a controvérsia a aflição com o juízo e o penar<br />
com o entender, um apontan<strong>do</strong> o perigo e o outro não descobrin<strong>do</strong> o remédio,<br />
ven<strong>do</strong> que era arrisca<strong>da</strong> a ousadia, quan<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> não ficava segura. Para<br />
aventurar-se seu esposo, confiava pouco <strong>da</strong> ventura que tantas vezes se<br />
mostra desleal a quem dela se fia; para faltar em aceitar a eleição <strong>do</strong> sena<strong>do</strong><br />
de Módena, que com instâncias repeti<strong>da</strong>s lho pediam, era mostrar-se<br />
inexorável aos rogos, rústico à cortesia e ingrato ao favor que eles avaliavam<br />
que lhe faziam e sobretu<strong>do</strong> indiciar suspeitas a discursos odiosos de quererem<br />
investigar os motivos de tanta renitência sem justa causa que desculpável<br />
fosse. Enfim entre tanta confusão de sustos, tanta varie<strong>da</strong>de de juízos e tantas<br />
representações de perigos, não lhe <strong>da</strong>n<strong>do</strong> o temor crepúsculo de luz em que<br />
pudesse avistar algum remédio, dizem que Eurides rompeu o silêncio, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Chegou já, Manfre<strong>do</strong>, esposo meu, o prazo preciso à minha vi<strong>da</strong>, pois<br />
não se satisfazen<strong>do</strong> o incessável rigor de minha fortuna com me ver desterra<strong>da</strong><br />
por terras estranhas há tantos anos, depois de padecer tantos perigos, de<br />
sofrer meu coração tão repeti<strong>do</strong>s sustos, tantas sombras <strong>da</strong> morte em tantos<br />
riscos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, agora de novo na ocasião presente quis cifrar quanto tenho<br />
padeci<strong>do</strong> em um compêndio breve para os olhos, mas sem limites para a alma,<br />
que nele suas mágoas estu<strong>da</strong> e seus tormentos decora. Começam as<br />
infelici<strong>da</strong>des com aparências de venturas para ser a tragédia mais lastimosa,<br />
porque se tivera o exórdio em rigor, tivera o trágico <strong>do</strong> fim, gosta<strong>do</strong> os agros <strong>do</strong><br />
princípio e não estranhara o amargo por ter experimenta<strong>do</strong> o desabri<strong>do</strong>. Como<br />
intentas, Manfre<strong>do</strong>, deixar a tua Eurides em terra estranha, quan<strong>do</strong> eu deixei a<br />
minha pátria por seguir-te? Assim, ingrato, se pagam tais finezas? Não<br />
consideras que se de meu pai fores conheci<strong>do</strong>, há-de antecipar a ira de<br />
(a) Filomena designa o rouxinol: de acor<strong>do</strong> com a len<strong>da</strong>, esta personagem teria si<strong>do</strong><br />
transforma<strong>da</strong> pelos deuses em ave para escapar à fúria de Teseu.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 917<br />
ofendi<strong>do</strong> o golpe vingativo à desculpa? E se porventura depois se<br />
arrependesse, mal pode um arrependimento sério restaurar um <strong>da</strong>no padeci<strong>do</strong>.<br />
Pois, Manfre<strong>do</strong>, ou te resolve a não ires fazer nova experiência <strong>da</strong><br />
ventura, ou a levar-me contigo corra minha vi<strong>da</strong> o próprio risco <strong>da</strong> tua. Não<br />
preten<strong>do</strong> que a fortuna queira compensar-me o implacável de minha <strong>do</strong>r com<br />
deixar-me viva e a ti morto; seja seu rigor cabal para que seja cabal em tu<strong>do</strong><br />
minha enterneci<strong>da</strong> queixa, pois fica sen<strong>do</strong> a consolação de um triste desafogar<br />
a <strong>do</strong>r nas lágrimas que derrama e nas queixas que publica.<br />
Assim choran<strong>do</strong> a fermosa Eurides pretendia demover com suas<br />
lágrimas a seu esposo para que de ir à presença <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r, seu pai, se<br />
escusasse, saben<strong>do</strong> que não há petar<strong>do</strong> tão eficaz para abrir as portas de um<br />
coração como lágrimas que derrama a fermosura magoa<strong>da</strong> aos combates <strong>da</strong><br />
<strong>do</strong>r. Suspenso a ouviu Manfre<strong>do</strong> e pensativo quisera conceder-lhe o que pedia,<br />
mas no próprio conceder temia que se arriscava a arruinar: considerava o<br />
perigo em partir e ponderava a desgraça em ficar; não sabia aonde voltasse os<br />
olhos que assegurasse seu cui<strong>da</strong><strong>do</strong>. Suspendeu por um intervalo a resposta<br />
em que vários discursos o combatiam, e finalmente lhe disse:<br />
- Pedes-me, queri<strong>da</strong> Eurides, o risco mais certo na petição mais<br />
pie<strong>do</strong>sa, e cui<strong>da</strong>n<strong>do</strong> que me isentas <strong>do</strong> perigo, me avizinhas ao maior <strong>da</strong>no. Se<br />
eu te levar comigo, logo serei conheci<strong>do</strong>, que se em mim mu<strong>da</strong>ram os anos o<br />
parecer, em ti na<strong>da</strong> demu<strong>do</strong>u o tempo a fermosura; e assim como por essa<br />
eras entre to<strong>da</strong>s as mulheres por singular conheci<strong>da</strong> e de to<strong>da</strong>s pela beleza<br />
inveja<strong>da</strong>, assim serias logo de to<strong>do</strong>s conheci<strong>da</strong> e que tão rara fermosura só em<br />
Eurides <strong>da</strong>r-se podia, porque igualar em nenhuma outra podia achar-se. Em<br />
mim fizeram mu<strong>da</strong>nça os perío<strong>do</strong>s <strong>do</strong> tempo e os trabalhos padeci<strong>do</strong>s, com<br />
que mal me conhecerão os mesmos que se criaram comigo; em ti não adquiriu<br />
o tempo jurisdição, pois se tua fermosura pudera admitir aumentos, parecera<br />
que o tempo aumentou seus aplausos e que em na<strong>da</strong> diminuiu os auges de<br />
sua maior estimação. Em sermos conheci<strong>do</strong>s duas vi<strong>da</strong>s se aventuram e em<br />
ser eu só conheci<strong>do</strong> uma vi<strong>da</strong> só se arrisca; com viveres tu asseguras as vi<strong>da</strong>s<br />
de tantos filhos, e mais acerto parece assegurar com tua ausência o evitarem<br />
muitos <strong>do</strong> que aventurar com tua morte o acabarem to<strong>do</strong>s. O pouco que dura a<br />
aurora a faz ser mais deseja<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> aparece: instantes tem si<strong>do</strong> para mim
918 Padre Mateus Ribeiro<br />
os anos que contigo assisto, caliginosa noite é para mim o deixar-te; e só terei<br />
por aurora quan<strong>do</strong> logre a ventura de tornar a ver-te.<br />
Eu, se não partir com este cargo à presença de teu pai, <strong>da</strong>rei motivos ao<br />
aborrecimento <strong>do</strong>s que com tanto afecto me elegeram, queren<strong>do</strong> confiar de<br />
mim o felice despacho de sua embaixa<strong>da</strong>, antes que o moroso <strong>da</strong> dilação em<br />
renderem a seu senhor a devi<strong>da</strong> obediência possa provocar em seu <strong>da</strong>no o<br />
formidável <strong>da</strong>s armas imperiais tantas vezes vence<strong>do</strong>ras; e com o escusar-me<br />
eu tantas vezes de uma embaixa<strong>da</strong> tão justa, poderão julgar minhas escusas<br />
terem a origem no temor de aparecer à vista <strong>do</strong> monarca, de que se podem<br />
seguir maiores riscos se a outro elegerem, que talvez em sua presença possa<br />
noticiar nossa peregrina assistência neste sítio; e maior acerto parece o ser eu<br />
quem possa com prudência encobrir-me <strong>do</strong> que expor-me ao arbítrio de outro,<br />
que talvez sem o procurar incautamente manifestar-me possa. Pelo que,<br />
Eurides, a sorte lançou a conveniência, não o desejo; tirou a sorte a<br />
necessi<strong>da</strong>de e não o gosto, pois este em ti como em seu centro vive, não ten<strong>do</strong><br />
inveja ao maior monarca, nem ao trono mais altivo quan<strong>do</strong> contigo vivo, sen<strong>do</strong><br />
tu só a majestade que meu amor venera.<br />
Muitas vezes entretém em uma vi<strong>da</strong> com a incerteza o penoso de uma<br />
mágoa; para que é celebrar vésperas de sentimento ao que pode suceder ser<br />
festivo dia de alegria? Se César intimi<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong>s protestos rigorosos <strong>do</strong> sena<strong>do</strong><br />
não passara a corrente <strong>do</strong> rio Rubicão que lhe estava proibi<strong>do</strong>, nunca chegara<br />
a ser o primeiro empera<strong>do</strong>r <strong>da</strong> monarquia romana. Até agora não temos de que<br />
nos queixar <strong>da</strong> ventura; permite, Eurides, ver o fim com que nos trata: que<br />
quan<strong>do</strong> suce<strong>da</strong> ser com os disfavores que temes, o que Deus não permita,<br />
sempre nos ficará livre o cabe<strong>da</strong>l <strong>da</strong>s vozes para queixar-nos, que é o alívio em<br />
que não tem a fortuna poder para dele despojar a um persegui<strong>do</strong> de seus<br />
rigores e mu<strong>da</strong>nças.<br />
Cap. IV.<br />
Em que Adriano continua o que sucedeu a Manfre<strong>do</strong> com o empera<strong>do</strong>r<br />
Constâncio
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 919<br />
Ouviu Eurides as razões de seu esposo e pareceram-lhe justas;<br />
suspendeu as vozes para replicar-lhe, mas não as lágrimas que derramava:<br />
porque as vozes nasciam <strong>da</strong> razão e esta ficou venci<strong>da</strong>, porém as lágrimas<br />
nasciam <strong>do</strong> amor e esse não se confessou rendi<strong>do</strong>. Enfim mais alivia<strong>da</strong> na<br />
pena, não no temor, fazen<strong>do</strong> com ele mais suspensão de sentir que tréguas de<br />
não chorar, consentin<strong>do</strong> que Manfre<strong>do</strong> aceitasse a comissão, de que os<br />
sena<strong>do</strong>res de Módena se mostraram por extremo satisfeitos, conhecen<strong>do</strong> que<br />
no grande juízo e prudência de tal embaixa<strong>do</strong>r asseguravam as felici<strong>da</strong>des de<br />
seus despachos; que muitas vezes sucede que pelos arrojos ou arrogâncias<br />
imprudentes <strong>do</strong>s embaixa<strong>do</strong>res se arruínam os fins que quem os envia<br />
procurava, com fatal detrimento <strong>da</strong> república. Bem se experimentou esta<br />
calami<strong>da</strong>de no exemplo <strong>do</strong> romano Marco Fábio Augusto, um <strong>do</strong>s três<br />
embaixa<strong>do</strong>res que os romanos enviaram aos franceses sénones quan<strong>do</strong><br />
tinham sitia<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de de Chiosa, para que <strong>do</strong> sítio desistissem; o que não<br />
admitin<strong>do</strong> os franceses, antes preparan<strong>do</strong> o assalto, o incauto embaixa<strong>do</strong>r<br />
rebuçan<strong>do</strong>-se com o elmo para não ser conheci<strong>do</strong>, entrou na batalha contra os<br />
franceses, matan<strong>do</strong> a um capitão francês <strong>do</strong>s mais valerosos que no exército<br />
vinham, e sen<strong>do</strong> logo conheci<strong>do</strong> ser o mata<strong>do</strong>r o embaixa<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s romanos que<br />
com proposta de fazer pazes tinha vin<strong>do</strong>, de tal sorte se deram por ofendi<strong>do</strong>s<br />
que voltan<strong>do</strong> logo as armas contra Roma não desistiram <strong>da</strong> vingança até a<br />
assolarem e abrasarem em chamas com grande mortan<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s romanos,<br />
sen<strong>do</strong> adusto espectáculo ao mun<strong>do</strong> a ci<strong>da</strong>de que depois <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> havia de<br />
vir a ser senhora.<br />
Exemplo de jactância imprudente foram os embaixa<strong>do</strong>res <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de<br />
Atenas man<strong>da</strong><strong>do</strong>s a Lúcio Sila Romano quan<strong>do</strong> a tinha sitia<strong>da</strong> aperta<strong>da</strong>mente,<br />
por se haver rebela<strong>do</strong> aos romanos; e em lugar <strong>do</strong>s embaixa<strong>do</strong>res com<br />
humildes deprecações lhe pedirem perdão <strong>da</strong> rebelião cometi<strong>da</strong>, falaram com<br />
tal jactância e soberba <strong>do</strong>s triunfos e vitórias <strong>do</strong>s antigos atenienses que Lúcio<br />
Sila lhes atalhou a embaixa<strong>da</strong>, despedin<strong>do</strong>-os com dizer que ele vinha a<br />
castigar rebeldes e não a ouvir panegíricos de suas antigui<strong>da</strong>des, e assaltan<strong>do</strong>-<br />
os hostilmente os destruiu. Exemplo de soberba se viu nos embaixa<strong>do</strong>res que<br />
o rei de Pérsia man<strong>do</strong>u ao romano empera<strong>do</strong>r Alexandre, estan<strong>do</strong> com<br />
poderoso exército no Oriente, a quem eles deram a embaixa<strong>da</strong> com soberba<br />
tão pouco respeitosa e tão descomedi<strong>da</strong> à majestade imperial, que ofendi<strong>do</strong> o
920 Padre Mateus Ribeiro<br />
empera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> petulante desaforo, conceden<strong>do</strong>-lhes as vi<strong>da</strong>s por não faltar aos<br />
privilégios <strong>da</strong> imuni<strong>da</strong>de aos embaixa<strong>do</strong>res pelo direito <strong>da</strong>s gentes concedi<strong>da</strong>s,<br />
os man<strong>do</strong>u prender; e despoja<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s ricos vesti<strong>do</strong>s que como embaixa<strong>do</strong>res<br />
traziam, os desterrou para Frigia, aonde à Pérsia tornar jamais pudessem,<br />
como refere Herodiano 917 .<br />
E suposto que Manfre<strong>do</strong> não era propriamente embaixa<strong>do</strong>r, porque só<br />
era envia<strong>do</strong> <strong>do</strong>s sena<strong>do</strong>res de Módena a render a obediência e reconhecer por<br />
senhor a Constâncio, como to<strong>do</strong>s os príncipes, ci<strong>da</strong>des e repúblicas de Itália<br />
faziam, e juntamente a impetrar dele a confirmação de seus privilégios e<br />
antigas isenções e novas mercês e favores que o empera<strong>do</strong>r generosamente<br />
confirmava e concedia, haven<strong>do</strong> respeito à brevi<strong>da</strong>de com que a obediência lhe<br />
rendiam e obsequiosos a seu império se mostravam: necessário era um<br />
envia<strong>do</strong> discreto, ajuiza<strong>do</strong> e prudente, que soubesse cautamente agenciar e<br />
conseguir o que a ci<strong>da</strong>de pretendia, responder e facilitar as dúvi<strong>da</strong>s que se<br />
movessem na pretensão, e por isso os <strong>do</strong> governo de Módena fizeram tão<br />
acerta<strong>da</strong> eleição de Manfre<strong>do</strong>, quasi pressagian<strong>do</strong> de seu talento a felici<strong>da</strong>de<br />
<strong>do</strong>s despachos de sua pretensão.<br />
Resoluto Manfre<strong>do</strong> a emprender jorna<strong>da</strong> tanto ao custo de suas ânsias<br />
como ao dispêndio <strong>da</strong>s lágrimas de sua esposa, de cuja fermosura era o maior<br />
abono o ver-se agora de novo tão persegui<strong>da</strong> <strong>da</strong> ventura, tratou ele de<br />
preparar-se com to<strong>da</strong> a ostentação de cria<strong>do</strong>s custosamente vesti<strong>do</strong>s, cavalos<br />
com ricos jaezes orna<strong>do</strong>s, galas preciosas para sua pessoa que ostentassem<br />
grandeza e bizarria, desfazen<strong>do</strong>-se para esta ocasião de algumas jóias de<br />
muito valor que reserva<strong>da</strong>s tinha, conhecen<strong>do</strong> que consiste muitas vezes o<br />
crédito felice de uma embaixa<strong>da</strong> na bizarra ostentação de quem a leva.<br />
Despediu-se de Eurides sua esposa, sen<strong>do</strong> mais loquazes as lágrimas que as<br />
vozes, pois nas ausências e sentimentos grandes apelar costuma o coração<br />
para o tribunal <strong>do</strong>s olhos, aonde se desagrava a <strong>do</strong>r <strong>do</strong> silêncio a que a<br />
condenam as sau<strong>da</strong>des.<br />
Nestas deixaremos a Eurides delas bem feri<strong>da</strong> e mal cura<strong>da</strong> no<br />
apartamento de seu esposo, combati<strong>da</strong> <strong>do</strong>s temores de poder ser de seu pai<br />
conheci<strong>do</strong>, arrisca<strong>da</strong> navegação de suas esperanças, pequenas âncoras para<br />
7 Herod., Lib. 6.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 921<br />
tanta tormenta, duvi<strong>do</strong>sa aventura para tal empenho; e sigamos a Manfre<strong>do</strong>,<br />
que com o nome mu<strong>da</strong><strong>do</strong> em outro em que desde de sua fugi<strong>da</strong> de<br />
Constantinopla se chamava, com os cabelos que de antes <strong>do</strong>urara o sol com<br />
os anos e os trabalhos em muita parte transforma<strong>do</strong>s em prata, com<br />
ostentação tomou casas grandiosas em Aquileia, aonde o empera<strong>do</strong>r residia.<br />
Chegou o dia de falar ao monarca, e pon<strong>do</strong> à parte o temor para que<br />
com o repeti<strong>do</strong> de seus assaltos o não perturbassem, serenou o rosto quanto<br />
pôde permitir seu evidente perigo, por que na mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong>s cores não tivesse<br />
um mu<strong>do</strong> testemunho que a consciência oferece <strong>do</strong> delito. Vestiu-se <strong>da</strong> gala<br />
mais rica, porque faz o a<strong>do</strong>rno exterior, quan<strong>do</strong> se acompanha com o garbo,<br />
mais aceita a presença e mais propícia a atenção para a pessoa ser ouvi<strong>da</strong> e<br />
favoravelmente despacha<strong>da</strong>. Ajoelha<strong>do</strong> Manfre<strong>do</strong> aos pés <strong>do</strong> poderoso<br />
monarca, lhe rendeu a devi<strong>da</strong> obediência <strong>da</strong> parte <strong>do</strong> sena<strong>do</strong> <strong>da</strong> antigua ci<strong>da</strong>de<br />
de Módena, colónia que foi <strong>do</strong>s romanos, como dela escreve Tito Lívio 918 ,<br />
referin<strong>do</strong> brevemente algumas notícias de suas antigui<strong>da</strong>des, como tinha li<strong>do</strong><br />
em Pompónio Mello 919 , Apiano Alexandrino 920 , Comélio Tácito 921 e outros<br />
autores que dela escreveram, com que infere serem seus primeiros fun<strong>da</strong><strong>do</strong>res<br />
os toscanos, que havia si<strong>do</strong> arruina<strong>da</strong> nas guerras civis <strong>do</strong> triunvirato de Marco<br />
António, Lépi<strong>do</strong> e Augusto e depois restaura<strong>da</strong>, possuí<strong>da</strong> depois <strong>do</strong>s<br />
longobar<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> senhorearam Itália largo tempo, e finalmente as guerras<br />
que tiveram com os de Bolonha sobre os limites e jurisdições, privilégios que os<br />
senhores de Itália a Módena concederam, com outras muitas particulares<br />
notícias que a Constâncio deu sobre sua embaixa<strong>da</strong>. Com tal juízo, tanta<br />
erudição e tal prudência e cortesia lhe rendeu a obediência conforme os<br />
amplíssimos poderes que para isso levava, que o empera<strong>do</strong>r, sem o haver<br />
conheci<strong>do</strong>, não só lhe concedeu quanto para os modeneses lhe pediu de<br />
privilégios e favores, porém o fez cavaleiro de sua casa e lhe deu no paço um<br />
cargo honroso, chaman<strong>do</strong>-o muitas vezes para consultar com ele negócios<br />
importantes sobre Itália e outros <strong>do</strong> império, em que experimentou nele razões<br />
Titus Liv., Lib. 39.<br />
Pomp. Mell., Lib. 2.<br />
Apian. Alex., Lib. 3. De bel. civil.<br />
Tacit., Lib. 17. Hist. Rom.
922 Padre Mateus Ribeiro<br />
tão prudentes e efeitos tão felices de seus conselhos que, conhecen<strong>do</strong> de seu<br />
grande talento méritos para ocupar maiores cargos, o deixou ficar na corte em<br />
seu serviço, não permitin<strong>do</strong> que <strong>do</strong> paço saísse, acrescentan<strong>do</strong>-lhe às honras<br />
a maior digni<strong>da</strong>de. Avisou logo Manfre<strong>do</strong> a sua esposa <strong>do</strong> muito que o<br />
empera<strong>do</strong>r o estimava, ocupan<strong>do</strong>-o em seu serviço, e man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> a Módena os<br />
favoráveis privilégios que para seus mora<strong>do</strong>res impetra<strong>do</strong> havia, de que to<strong>do</strong>s<br />
por extremo contentes se mostraram.<br />
Só Eurides nos crepúsculos de alegre e temerosa, que, como disse<br />
Euripides 922 , não há leito acomo<strong>da</strong><strong>do</strong> a descansar quem vive aman<strong>do</strong> e<br />
temen<strong>do</strong>, nem haven<strong>do</strong> alegria tão grande que possa assegurar-se nas bases<br />
de um temor, vivia receosa de sua ventura, ten<strong>do</strong> por suspeitos tantos favores<br />
de seu pai em tão breve tempo a seu esposo dirigi<strong>do</strong>s, que a muita pressa com<br />
que vinham prognosticava neles breve duração ou apressa<strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça.<br />
Julgava que suposto que em seu esposo os merecimentos eram grandes e<br />
dignos de to<strong>do</strong>s os favores, contu<strong>do</strong> na pouqui<strong>da</strong>de <strong>do</strong> tempo eram meninos<br />
em quem não podia mostrar-se agiganta<strong>da</strong> estátua para serem por grandes<br />
conheci<strong>do</strong>s. E suposto que com os avisos de Manfre<strong>do</strong> que ca<strong>da</strong> dia chegavam<br />
procurava divertir seus temores e enganar a seus pesares, respiran<strong>do</strong> nas<br />
esperanças de brevemente tornar a ver a seu esposo, contu<strong>do</strong> mal se<br />
assegura de um infortúnio quem não tem fia<strong>do</strong>res na ventura.<br />
Dilatava Manfre<strong>do</strong> o despedir-se, porque o empera<strong>do</strong>r o não consentia<br />
com negócios importantes em que ca<strong>da</strong> dia o ocupava, de que lhe <strong>da</strong>va tão<br />
venturosa expedição que o empera<strong>do</strong>r não só de seu juízo, mas juntamente <strong>da</strong><br />
felice fortuna que o acompanhava no que emprendia se deliberou a o ter<br />
consigo no paço para servir-se dele nas consultas e matérias <strong>do</strong> governo de<br />
sua monarquia. Pediu-lhe Manfre<strong>do</strong> licença para tornar a sua casa a ver a sua<br />
mulher e filhos, a quem havia já meses que com esta função deixa<strong>do</strong> tinha;<br />
porém Constâncio o persuadiu que convinha a seu serviço que na corte<br />
assistisse, pois confiava dele os acertos de suas empresas, e que man<strong>da</strong>sse<br />
vir sua mulher e filhos de mora<strong>da</strong> para Aquileia, para que na corte vivessem,<br />
aonde lhe acrescentaria maiores honras e ren<strong>da</strong>s; pois, como diz Aristóteles 923<br />
Eurip., in Ion.<br />
Arist., Pol. 5.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 923<br />
na Política, consiste talvez a vi<strong>da</strong> de uma monarquia em ter um príncipe vali<strong>do</strong>s<br />
confidentes e leais a quem comunique os acertos de suas ordens e o<br />
expediente de seus decretos. Via-se Manfre<strong>do</strong> assusta<strong>do</strong> com tal novi<strong>da</strong>de,<br />
aonde não podia resistir à vontade de um monarca de quem tinha recebi<strong>do</strong><br />
tantos favores e que o tratava como amigo, ao serviço <strong>do</strong> qual faltar não era<br />
decente, sen<strong>do</strong> seu senhor. Viu o risco que em vir Eurides à corte sua vi<strong>da</strong><br />
correr podia, sen<strong>do</strong> conheci<strong>da</strong> por sua singular fermosura, e pois via a<br />
Constâncio tão empenha<strong>do</strong> em sua assistência, quis discretamente empenhá-<br />
lo ao perdão: que ele se temia muito na corte de uma pessoa mui poderosa<br />
que dele se <strong>da</strong>va por ofendi<strong>da</strong>, de quem se sua majestade lhe assegurasse o<br />
não ser ofendi<strong>do</strong>, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe por seguro sua real palavra, ele prometia com<br />
casa mu<strong>da</strong><strong>da</strong> ficar enquanto vivesse assistin<strong>do</strong> sempre a seu serviço. Deu-lhe<br />
a palavra o empera<strong>do</strong>r de lhe haver o perdão de qualquer ofensa e de o<br />
defender com to<strong>do</strong> o seu poder de qualquer pessoa por mais poderosa que<br />
fosse, para que nenhum castigo ou vingança padecesse. Beijou-lhe Manfre<strong>do</strong> a<br />
mão por tanta mercê e ajoelhan<strong>do</strong>-se a seus pés com as lágrimas nos olhos,<br />
falou assim:<br />
- Tu só, invictíssimo senhor, podeis assegurar meus receios e serenar o<br />
proceloso mar de meus temores, porque tu só nesta vi<strong>da</strong> és o poderoso<br />
contrário de quem an<strong>da</strong>va fugitivo meu coração e que trazias em balança os<br />
instantes de minha vi<strong>da</strong>. Eu sou, poderoso monarca, o venturoso e infelice<br />
Manfre<strong>do</strong>, indigno esposo <strong>da</strong> princesa Eurides, tua filha, de quem no discurso<br />
de tantos anos tenho oito filhos e duas filhas, que são netos e poderosas valias<br />
para enternecerem tua clemência, impetran<strong>do</strong> dez inocentes o perdão para um<br />
pai culpa<strong>do</strong>. Grandes vitórias e imortais triunfos tem alcança<strong>do</strong> teu heróico<br />
valor que o mun<strong>do</strong> aplaude e a fama coroa; porém hoje este perdão será de<br />
tuas vitórias a mais ilustre e de teus triunfos o mais glorioso, chegan<strong>do</strong> a<br />
vencer-te a ti para seres em tu<strong>do</strong> invencível; porque o vencer inimigos com as<br />
armas não excede os limites de ser acção humana, porém o per<strong>do</strong>ar ofensas é<br />
acção tão imita<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de divina que até o poeta Ovídio 924 a decantou em<br />
seus versos como tal, sen<strong>do</strong> as culpas o objecto <strong>da</strong> clemência que per<strong>do</strong>an<strong>do</strong>-<br />
as se manifeste seu valor.<br />
Ovid., 3. De Pont.
924 Padre Mateus Ribeiro<br />
Dous motivos, poderoso senhor, teve a ofensa que te fiz, que foram na<br />
princesa, minha senhora, extremos de fermosura e em meu coração requintas<br />
extremosas de amor, e trazem consigo extremos de amante delírios de<br />
entendi<strong>do</strong>. Cegou-me o portentoso <strong>da</strong> beleza; que maravilha que um cego se<br />
despenhasse, pois an<strong>da</strong>n<strong>do</strong> às escuras não conhece o caminho? Foi minha<br />
eleição discreta e meu arrojo louco; teve dilúci<strong>do</strong>s intervalos meu discurso,<br />
subomou-se <strong>da</strong> vontade e não temeu o perigo. Favoreceu-me a ventura porque<br />
me faltavam méritos, e por isso consegui tão felice sorte. Só me fica a mágoa<br />
de ser adquiri<strong>do</strong> tanto bem com ofensa tua, pois sem tu ficares ofendi<strong>do</strong> era<br />
impossível ficar eu sen<strong>do</strong> venturoso. Já, clementíssimo senhor, me<br />
asseguraste o perdão, já tua pie<strong>da</strong>de me concedeu o indulto: pois, senhor, tua<br />
real palavra seja meu escu<strong>do</strong>, tua grandeza minha defensa, tua benigni<strong>da</strong>de<br />
meu patrocínio para me concederes o perdão que me prometeste, que com as<br />
lágrimas de meus olhos a teus pés prostra<strong>do</strong> arrependi<strong>do</strong> te peço.<br />
Com grande atenção ouviu o clemente empera<strong>do</strong>r a humilde prática de<br />
Manfre<strong>do</strong>, a quem e à princesa Eurides avaliava serem mortos, pois tantas<br />
diligências em tantos anos feitas nunca deles puderam descobrir notícias<br />
algumas; e alvoroça<strong>do</strong> com os anúncios de ser Eurides viva, pôs os olhos nas<br />
copiosas lágrimas que Manfre<strong>do</strong> derramava e lhe respondeu, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Minha palavra pesa tanto na estimação como minha coroa; e pois<br />
tiveste a ventura de assegurar-te o perdão, eu te per<strong>do</strong>o.<br />
Foi Manfre<strong>do</strong> a querer beijar-lhe os pés, mas Constâncio o levantou nos<br />
braços e acompanhou nas lágrimas de enterneci<strong>do</strong>, a quem Manfre<strong>do</strong> referiu<br />
os largos discursos de sua peregrinação até o esta<strong>do</strong> presente, de que<br />
admira<strong>do</strong> o empera<strong>do</strong>r ordenou que logo Eurides com seus filhos à corte<br />
viessem, despachan<strong>do</strong> com Manfre<strong>do</strong> muitos ilustres senhores de seu paço<br />
para os acompanharem com a decência devi<strong>da</strong>.<br />
Descui<strong>da</strong><strong>da</strong> de tanta ventura estava Eurides, antes receosa de algum<br />
infortúnio, passava sau<strong>do</strong>sa a vi<strong>da</strong> com seus filhos, esperan<strong>do</strong> novas de seu<br />
esposo, duvi<strong>da</strong>n<strong>do</strong> em que viria a parar o valimento que lhe avisava que com o<br />
empera<strong>do</strong>r tinha, confian<strong>do</strong> pouco <strong>da</strong>s privanças a quem vão no paço seguin<strong>do</strong><br />
sempre as invejas como inimigas <strong>da</strong>s maiorias. De repente, neste cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so<br />
descui<strong>do</strong> em que ansia<strong>da</strong> vivia, viu as tropas <strong>da</strong> cavalaria que com coches se<br />
avizinhavam à solitária selva e retira<strong>do</strong> bosque em que vivia e a Manfre<strong>do</strong> que
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 925<br />
a cavalo a to<strong>do</strong>s se adiantava para lhe evitar o susto e ganhar as alegres<br />
alvíssaras de tão sublime ventura. Desmontou <strong>do</strong> cavalo e com rosto risonho<br />
lhe referiu em breves palavras tão dilata<strong>da</strong>s venturas, que um e outro com<br />
lágrimas de intensa alegria celebraram. Apearam-se os senhores e cavaleiros<br />
que o empera<strong>do</strong>r enviou para os irem acompanhan<strong>do</strong>, e fazen<strong>do</strong> à princesa as<br />
devi<strong>da</strong>s cortesias como a filha <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r, lhe deram os parabéns de sua<br />
felice fortuna, a quem ela respondeu como tão discreta. Correu logo a fama<br />
deste acha<strong>do</strong> pelos lugares vizinhos, que como admira<strong>do</strong>s corriam to<strong>do</strong>s a ver<br />
este prodígio e a se despedirem <strong>do</strong>s ínclitos vizinhos que em tantos anos<br />
desconheci<strong>do</strong>s tiveram. Vieram logo os sena<strong>do</strong>res de Módena e os principais<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de a ver a Manfre<strong>do</strong> e a Eurides, veneran<strong>do</strong>-a como a princesa e<br />
oferecen<strong>do</strong>-se para como tão obriga<strong>do</strong>s os acompanharem até à corte <strong>do</strong><br />
empera<strong>do</strong>r, como fizeram. Partiram to<strong>do</strong>s ao seguinte dia com grande<br />
acompanhamento, Manfre<strong>do</strong> e Eurides em um coche e os filhos em outro e as<br />
duas infantas em liteira, com tão luzi<strong>do</strong> acompanhamento que por to<strong>da</strong>s as<br />
ci<strong>da</strong>des, vilas e lugares que passavam saíam a vê-los por espanto e a recebê-<br />
los e hospedá-los com admiração de seus passa<strong>do</strong>s trabalhos e de suas<br />
felici<strong>da</strong>des presentes.<br />
Chegaram à corte e presença de Constâncio, e ajoelha<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s diante<br />
<strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r, ele os recebeu com demonstrações benignas, toman<strong>do</strong> a seus<br />
netos nos braços enterneci<strong>do</strong>s e <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a Manfre<strong>do</strong> o título de marquês de to<strong>do</strong><br />
o sítio e terreno que se encerra entre os <strong>do</strong>us rios, o Pó e o Panaro, com<br />
licença de poderem edificar ci<strong>da</strong>des, vilas e castelos debaixo <strong>da</strong> obediência <strong>do</strong><br />
sacro império. Concedeu-lhes mui amplos privilégios e isenções e deu-lhes por<br />
armas para eles e seus descendentes a mesma águia negra imperial para a<br />
poderem pôr e trazer em seus pendões e bandeiras. Man<strong>do</strong>u que na inculta<br />
selva em que seus netos nasceram se edificasse uma vila ou ci<strong>da</strong>de que se<br />
chamasse Miran<strong>da</strong>, <strong>da</strong>s ocultas maravilhas que nela sucederam, que é a que<br />
hoje se chama Mirân<strong>do</strong>la, que Manfre<strong>do</strong> edificou com outras muitas vilas e<br />
castelos que se vem hoje situa<strong>do</strong>s entre o rio Pó e o Panaro, viven<strong>do</strong> com<br />
Eurides em Mirân<strong>do</strong>la largos anos. Seus filhos, depois de sua morte, com as<br />
várias mu<strong>da</strong>nças <strong>do</strong> tempo e <strong>da</strong> fortuna, com diversos casamentos que tiveram<br />
eles e seus descendentes, com guerras que moveu o ambicioso desejo de
926 Padre Mateus Ribeiro<br />
mais <strong>do</strong>minar, obran<strong>do</strong> seus efeitos o tempo, de quem disse Diógenes 925<br />
discretamente que costuma fazer palácios e obeliscos sumptuosos <strong>do</strong> que de<br />
antes eram pobres cabanas pastoris, e pelo contrário converter em ruinosos<br />
vestígios o que já foram edifícios soberbos e palácios imperiais. Dividi<strong>do</strong>s entre<br />
si os descendentes destes tão ilustres progenitores com vários cargos e<br />
honrosos senhorios que tiveram em Ferrara, Parma, Módena, Mirân<strong>do</strong>la,<br />
Faença e outras diversas ci<strong>da</strong>des, vilas e castelos, veio ultimamente Frederico<br />
Manfre<strong>do</strong> a casar em Módena com uma principal senhora <strong>da</strong> família <strong>do</strong>s<br />
Miran<strong>do</strong>lanos, de quem teve a Carlos, a Constantino e a Fenisa, sen<strong>do</strong> no<br />
ilustre <strong>do</strong> solar e nas ren<strong>da</strong>s a principal pessoa que Módena estima e respeita<br />
pelo faustoso esta<strong>do</strong> com que se tratava e a prudência e cortesia que para com<br />
to<strong>do</strong>s mostrava, pelo que de to<strong>do</strong>s era estima<strong>do</strong> em muito; que a benigni<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> condição nos poderosos é mais eficaz suborno para cativar vontades que a<br />
franqueza <strong>do</strong>s <strong>do</strong>nativos, como diz Santo Ambrósio 926 , quan<strong>do</strong> pelo contrário a<br />
falta desta, como escreve Platão 927 , desterra o amor e impede os amigos.<br />
Com esta tranquili<strong>da</strong>de respeitosa, de to<strong>do</strong>s corteja<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong>s<br />
queri<strong>do</strong>, vivia em Módena Frederico Manfre<strong>do</strong> com sua família seguro de ouvir<br />
queixas, porque a ninguém ofendia, como disse Diógenes 928 , e seguro de ser<br />
ofendi<strong>do</strong>, porque a ninguém agravava, como escreve o Séneca 929 . Porém<br />
quem nesta vi<strong>da</strong> mortal, sen<strong>do</strong> mar tão inquieto e inconstante, como lhe<br />
chamou Plutarco 930 , pode largar as velas com confiança de poder lograr<br />
bonança durável, nem porto seguro? Dous filhos tem o duque de Módena,<br />
potenta<strong>do</strong> e soberano senhor que antiguamente se intitulava de Ferrara e ao<br />
presente mu<strong>do</strong>u o título em o de Módena, pelas razões que sabi<strong>do</strong> tereis. O<br />
filho mais velho e sucessor que há-de ser <strong>do</strong> duca<strong>do</strong> se chama Alexandre de<br />
Este, mas tão persegui<strong>do</strong> de contínuos achaques e repeti<strong>da</strong>s indisposições que<br />
se malogram as esperanças de ser muito durável sua vi<strong>da</strong>, combati<strong>da</strong> de<br />
tantas <strong>do</strong>res e quasi incuráveis moléstias que padece. O segun<strong>do</strong> filho,<br />
925 Diog., ExArg. lib.<br />
926 S. Ambr. 1. De offic.<br />
927 Plat. Ep. 4.<br />
928 Diog., Lib. 1.<br />
929 Senec, De ira. lib. 3.<br />
930 Plut., De tranq. anim.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 927<br />
Raimun<strong>do</strong> de Este, é mancebo <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de grande valor, juízo e discrição, de<br />
to<strong>do</strong>s ama<strong>do</strong> e para to<strong>do</strong>s benévolo, que são as partes que sabiamente<br />
Demóstenes 931 nos príncipes procura.<br />
Viu Raimun<strong>do</strong> a Fenisa em algumas ocasiões que cedeu seu grande<br />
recolhimento à precisa ocasião de aparecer, e se de antes a fama publicava os<br />
maiores encómios <strong>da</strong> fermosura, a vista excedeu à fama nos panegíricos <strong>da</strong><br />
beleza de tal sorte que <strong>do</strong>s antecedentes de havê-la visto se podia inferir a<br />
consequência de com extremos amá-la. Era Fenisa alma <strong>da</strong> fermosura e<br />
anima<strong>do</strong> assombro <strong>da</strong> beleza, para a fama desempenho <strong>da</strong> admiração e para<br />
vista perigoso suborno <strong>da</strong>s vontades, porém tão senhora de sua liber<strong>da</strong>de e tão<br />
filha de sua própria estimação que de tu<strong>do</strong> fazia pouca, porque só merecimento<br />
preferia a tu<strong>do</strong>. É Fenisa, como já ouvistes, por seus pais ilustríssima, pela<br />
fermosura Fénix, que não se achará segun<strong>da</strong> por ser em tu<strong>do</strong> singular. Em<br />
poucos anos de i<strong>da</strong>de a <strong>do</strong>tou de tal juízo e discrição a natureza que pode <strong>da</strong>r<br />
quinaus de entendi<strong>da</strong> às que tem presunções de mais discretas. É o <strong>do</strong>te que<br />
seus pais tem para <strong>da</strong>r-lhe esta<strong>do</strong> grandioso, porque emparelha com seu amor,<br />
que nela, como espelho, se estão reven<strong>do</strong> suas memórias, sen<strong>do</strong> sua vista seu<br />
maior recreio.<br />
Conheceu Fenisa o novo empenho de Raimun<strong>do</strong>, que tem amor de<br />
menino o não guar<strong>da</strong>r segre<strong>do</strong>s. Desvelava-se Raimun<strong>do</strong> em querer<br />
manifestar-lhe seu cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, porém Fenisa fugia no possível com a vista a que<br />
se desvelava para vê-la. Traz a maior estimação por companhia a dificul<strong>da</strong>de:<br />
nunca o fácil soube agigantar o preço de seu valor, porque a própria facili<strong>da</strong>de<br />
corta as asas à estimação. Contraminar as astúcias <strong>do</strong> contrário é conseguir<br />
vitória de seus intentos e desluzir o afectuoso de seus desígnios. Bem previa<br />
Fenisa, como discreta, que Raimun<strong>do</strong> para poder ser seu esposo não condizia,<br />
sen<strong>do</strong> filho de um príncipe potenta<strong>do</strong>, de quem ela e seus pais eram vassalos;<br />
e como na escola <strong>do</strong> temor se ensina a lição <strong>da</strong> cautela aos perigos, quis<br />
prevenir Fenisa com a prudência o evitar a seus pais os desgostos e a sua<br />
fama a censura que podia profanar a nativa modéstia de seu recolhimento.<br />
Assim não se <strong>da</strong>n<strong>do</strong> por entendi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s pensamentos de Raimun<strong>do</strong>,<br />
desprezava seus devaneios e com se não deixar ver lhe causava o serem seus<br />
Demosth., in Olynth.
928 Padre Mateus Ribeiro<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s malogra<strong>do</strong>s, suas esperanças ruinosas, seus passeios sem frutos,<br />
seus desvelos sem proveito e finalmente tempo perdi<strong>do</strong> seus amantes intentos.<br />
Porém quanto em Fenisa era maior o retiro de ser vista, tanto em Raimun<strong>do</strong> se<br />
duplicava a ambição cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa de poder vê-la. Fez a mesma dificul<strong>da</strong>de novo<br />
incentivo ao desejo com repetir na memória os visos <strong>da</strong> fermosura juntamente<br />
com a repugnância, consideran<strong>do</strong> não só o agradável, mas juntamente o<br />
esquivo.<br />
Impaciente pois ao sofrimento de competirem em Fenisa os Alpes mais<br />
neva<strong>do</strong>s em que habitava com os Etnas mais abrasa<strong>do</strong>s que por ela em seu<br />
peito viviam, sain<strong>do</strong> a desafio nela o maior descui<strong>do</strong> e nele to<strong>do</strong> o amoroso,<br />
não poden<strong>do</strong> alcançar resposta de quantos escritos lhe enviava, que nunca aos<br />
príncipes faltam ministros que os sirvam no que afectuosos pretendem ain<strong>da</strong><br />
por extraordinárias vias, deliberou-se, pois de dia não podia vê-la, a ron<strong>da</strong>r de<br />
noite o sítio de suas casas e os muros <strong>do</strong> seu jardim, ou por desafogar o<br />
sentimento em ver o obelisco em que se encerrava sua maior tirania, ou por<br />
certificar-se se outro mais felice cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so a divertia. Lá disse o Séneca 932 que<br />
o variar de remédios na cura de um mal era o remédio menos idóneo para<br />
conseguir a saúde, sen<strong>do</strong> que Plínio 933 na mesma varie<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s<br />
medicamentos afirma consistir talvez o remédio <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença. Assim Raimun<strong>do</strong>,<br />
mal sofri<strong>do</strong> ao rigor de Fenisa, intentava variar de remédios por ver se variava<br />
de ventura.<br />
Ressentiu-se Fenisa <strong>da</strong> odiosa assistência de Raimun<strong>do</strong>, com que<br />
reconhecia de noite a quem pela rua <strong>da</strong>s casas de seu pai passava,<br />
amotivan<strong>do</strong> juízos ao decoroso de seu recato e escrupulosas conjecturas a seu<br />
crédito e ain<strong>da</strong> perigosos riscos à sua própria vi<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> a noite o luto de que<br />
se vestem as desgraças. Deu notícias a seus pais <strong>do</strong>s inquietos desvelos de<br />
Raimun<strong>do</strong>, com quem já seus irmãos sem o conhecerem se tinham de noite<br />
encontra<strong>do</strong> e ain<strong>da</strong> arrisca<strong>do</strong>. Louvaram seus pais em Fenisa o honroso desvio<br />
a tão arroja<strong>do</strong>s pensamentos de Raimun<strong>do</strong>, culpan<strong>do</strong>-o de inconsidera<strong>do</strong> nos<br />
intentos, seguin<strong>do</strong> as juvenis ousadias de seus anos, pois arriscava de noite<br />
disfarça<strong>do</strong> sua própria vi<strong>da</strong> aos desaires <strong>da</strong> fortuna. E porque já entrava a<br />
Senec, Ep. 2.<br />
Plin. Sénior, Lib. 29.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 929<br />
primavera, sen<strong>do</strong> a moci<strong>da</strong>de mais flori<strong>da</strong> <strong>do</strong> ano, <strong>do</strong>s campos a mais vistosa<br />
gala, <strong>do</strong>s pra<strong>do</strong>s a beleza e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> a alegria, assentaram de retirar-se com<br />
vagarosa assistência para uma sumptuosa quinta que tem aonde a corrente <strong>do</strong><br />
cau<strong>da</strong>loso canal de Módena se vai unir ao celebra<strong>do</strong> rio Panaro e se chama<br />
Bom <strong>Porto</strong>, que de Módena fica distante algumas milhas. Era a quinta não<br />
menos grandiosa nos edifícios que agradável no ameno pelas fores e flori<strong>do</strong>s<br />
jardins que dentro encerrava e pela vista <strong>do</strong> rio que vizinho lhe ficava. Tinha<br />
lugares e casais vizinhos que os mais deles eram tributários a Frederico nos<br />
foros e ren<strong>da</strong>s que em réditos anuais lhe pagavam.<br />
No delicioso desta quinta, palácio de flora, lisonja de Abril e delícias de<br />
Maio, retira<strong>da</strong> com seus pais, irmãos e cria<strong>da</strong>s, visita<strong>da</strong> de pastores que nela<br />
admiravam prodígios <strong>da</strong> maior beleza e assombros <strong>da</strong> mais senhoril fermosura,<br />
passava Fenisa diverti<strong>da</strong> <strong>do</strong>s incompetentes cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s de Raimun<strong>do</strong>, sain<strong>do</strong> às<br />
vezes com suas cria<strong>da</strong>s aos casais mais vizinhos a ver as lavra<strong>do</strong>ras, que<br />
avaliavam por singular favor sua visita, cuja discrição as admirava e cuja vista<br />
ca<strong>da</strong> vez mais sem cadeias as prendia. De tu<strong>do</strong> tinha particulares notícias seu<br />
despreza<strong>do</strong> amante Raimun<strong>do</strong>, com tão incessáveis memórias dela lembra<strong>do</strong><br />
como ele vivia nas de Fenisa esqueci<strong>do</strong>. Era nele grande o amor e não admitia<br />
sofrimento o ver-se despreza<strong>do</strong> sobre desfavoreci<strong>do</strong>, conhecen<strong>do</strong> que deste<br />
retiro de Fenisa era ele a causa. Bem pudera talvez obrar a ausência seus<br />
efeitos em esquecê-la, se a memória não estivera tão suborna<strong>da</strong> <strong>da</strong> fermosura,<br />
que quan<strong>do</strong> vingativo intentava divertir os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, então de novo em amá-la<br />
suas memórias renasciam. Via-se desespera<strong>do</strong> <strong>da</strong>s esquivanças e combati<strong>do</strong><br />
de novo <strong>da</strong> beleza, queria dissimular e não podia, pretendia ostentar-se<br />
ressenti<strong>do</strong> e não ousava; pois quan<strong>do</strong> pudesse esquecê-la pelo que de<br />
fermosura tinha, não podia riscar <strong>da</strong> lembrança o que tinha de ingrata, para<br />
nunca ser dele esqueci<strong>da</strong>. Bem via ele que o soberano de seu esta<strong>do</strong> era o<br />
maior contrário que seu padecimento tinha, pois se fora a Fenisa igual<br />
porventura fora a seus olhos mais aceito e se mostrara Fenisa mais obriga<strong>da</strong>;<br />
porém a quem desigualou a ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> fortuna, como há-de conceder quartel o<br />
amor?<br />
Por último remédio de seus pesares se deliberou a buscar meio de<br />
poder falar-lhe. Saiu à caça com seus costuma<strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res para o sítio <strong>da</strong><br />
quinta de Bom <strong>Porto</strong>, aonde Fenisa com seus pais assistia, em ocasião que ela
930 Padre Mateus Ribeiro<br />
com suas cria<strong>da</strong>s era i<strong>da</strong> a um <strong>do</strong>s casais vizinhos, junto às ribeiras <strong>do</strong> rio, que<br />
por não perder a delícia de ser <strong>da</strong> fermosura de Fenisa espelho em que se<br />
retratava, fazia de suas on<strong>da</strong>s cristalino estanque, por ao vivo ser insensível<br />
Apeles <strong>da</strong> maior beleza. De tu<strong>do</strong> tinha contínuos avisos Raimun<strong>do</strong>, porque<br />
dentro em casa de Frederico havia confidente cria<strong>do</strong> que ocultamente de tu<strong>do</strong><br />
o noticiava. Retirou-se ao arvore<strong>do</strong> de uma fonte que no caminho ficava,<br />
desmontan<strong>do</strong> <strong>do</strong> cavalo que deu a um cria<strong>do</strong>, esperan<strong>do</strong> que Fenisa para a<br />
quinta voltasse, a quem sain<strong>do</strong> <strong>da</strong> verde embosca<strong>da</strong> de repente lhe atravessou<br />
o caminho. Assustou-se Fenisa <strong>do</strong> não espera<strong>do</strong> encontro, cobriu de púrpura a<br />
neve e <strong>da</strong> grã mais fina os can<strong>do</strong>res <strong>do</strong> cristal, e antes aumentou a fermosura<br />
<strong>do</strong> que diminuísse a beleza, sen<strong>do</strong> desta singular privilégio com to<strong>do</strong>s os<br />
ventos sempre navegar segura em quem parece que as sublunares impressões<br />
<strong>do</strong>minar não se atrevem. Perturbou-se Raimun<strong>do</strong> ven<strong>do</strong> ao perto quem o feriu<br />
de longe e na campanha arma<strong>da</strong> de desdém quem ao longe o matava a<br />
esquivanças; e sen<strong>do</strong> tal de Raimun<strong>do</strong> o valor que não o podia intimi<strong>da</strong>r o<br />
muito perigo, chegou a desanimar a maior fermosura de tal sorte seus senti<strong>do</strong>s<br />
com sua vista, que absorto no belo que via e na esquivança que receava,<br />
empenhan<strong>do</strong> os olhos só em vê-la parece que só com eles falava e com a voz<br />
na<strong>da</strong> dizia. Porém tornan<strong>do</strong> em si desta suspensão amorosa, por não perder a<br />
ocasião que lhe ofereceu a ventura, entre assusta<strong>do</strong> e eloquente, dizem que<br />
lhe falou desta sorte:<br />
Cap. V.<br />
Da prática que Raimun<strong>do</strong> teve com Fenisa e <strong>do</strong> que dela resultou<br />
- Com ver<strong>da</strong>de posso afirmar, ingrata Fenisa, que este breve espaço de<br />
me ouvirdes deverei à obrigação <strong>da</strong> cortesia mais <strong>do</strong> que ao desempenho <strong>do</strong><br />
teu amor. Infelice quem ama aborreci<strong>do</strong>, pois pretenden<strong>do</strong> merecer, na<strong>da</strong><br />
merece; venturosa tu que alcançaste o senhorio de meu coração para fazeres<br />
ludíbrio de meu padecimento, castigan<strong>do</strong> ao rigor de esquivanças tuas minhas<br />
finezas, como se o querer-te bem fora fazer-te mal. Como se permite fazeres<br />
ponte de ser queri<strong>da</strong> para passar o rio <strong>do</strong> esquecimento tua ingratidão? Não<br />
condizem os visos de tua fermosura com os desaires de cruel, porque em
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 931<br />
seres queri<strong>da</strong> na<strong>da</strong> perdes e em seres ingrata na<strong>da</strong> ganhas. Foi meu amor<br />
para contigo o primogénito de minha vontade, como morga<strong>do</strong> com aplausos<br />
nasci<strong>do</strong>, por seres a primeira a quem se rendeu minha isenção e a quem<br />
dedicou desvelos meu alvedrio; porém que conseguiu meu rendimento? Que<br />
prémios alcançaram tantos obséquios de querer-te? Só o viver queixoso de teu<br />
desprezo, ofendi<strong>do</strong> de tua esquivança e desespera<strong>do</strong> de teu rigor; que como<br />
eu era aluno nas tironices de amar, faltou-me a experiência porque me faltava<br />
a ventura.<br />
Mu<strong>da</strong>ste-te <strong>da</strong> corte para o monte, e a quem não pôde demover-te<br />
cortesã, como poderá abran<strong>da</strong>r-te camponesa? Mu<strong>da</strong>ste de <strong>do</strong>micílio sem<br />
mu<strong>da</strong>r-te, que nunca mu<strong>da</strong>m os ares o esquivo <strong>da</strong> condição a quem se presa<br />
de ser desagradeci<strong>da</strong>; considera, Fenisa, se há ain<strong>da</strong> mais rigores que<br />
executes, que no peito de um infelice ain<strong>da</strong> a fortuna deixa desocupa<strong>do</strong> lugar<br />
para lhe acrescentar maiores mágoas, duplica<strong>do</strong>s pesares e avantaja<strong>da</strong>s<br />
penas.<br />
Deu fim Raimun<strong>do</strong> ao dizer, mas não ao sentir; pôs clausura à solução<br />
mais a pena que o desejo de terminar suas queixas, corren<strong>do</strong> por conta <strong>do</strong><br />
coração quanto faltava na voz. Atendeu Fenisa entre o sobressalto que lhe<br />
causou a improvisa presença e prática de Raimun<strong>do</strong>, mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> as cores sem<br />
mu<strong>da</strong>r a beleza, e entre cortês e resoluta lhe deu esta resposta:<br />
- Com razão conheceu vossa excelência que só a cortesia que se deve<br />
a sua pessoa pudera obrigar-me a <strong>da</strong>r atenção e agora resposta a suas<br />
queixas; que quan<strong>do</strong> estas fossem justas, podiam servir de alívio ao<br />
sentimento de uma ofensa. Queixa-se vossa excelência sem razão de que por<br />
ver-me me amou: a culpa foi de seus olhos, que os objectos não ofendem aos<br />
senti<strong>do</strong>s. Amar-me foi erro de sua eleição, haven<strong>do</strong> tanta desigual<strong>da</strong>de, pois<br />
não sen<strong>do</strong> proporciona<strong>do</strong> para ser meu esposo, desacerto era professar ser<br />
meu amante, pois nunca as desigual<strong>da</strong>des asseguraram venturas. Vossa<br />
excelência é filho de um príncipe soberano, de quem meus pais são vassalos:<br />
outros esposórios avantaja<strong>do</strong>s lhe competem, que eu como nasci vassala, não<br />
aspiro a impossíveis, contento-me com minha sorte, siga vossa excelência os<br />
empenhos mais altivos <strong>da</strong> sua. Em Mântua ouvi dizer que pretende sua alteza<br />
casar a vossa excelência: aí achará vossa excelência as grandezas que<br />
condizem com seus merecimentos. Se vossa excelência diz que me ama, veja-
932 Padre Mateus Ribeiro<br />
se esse amor em deixar-me e não <strong>da</strong>r motivos a que línguas licenciosas<br />
censurem seus atrevimentos por minha causa; porque é tão senhoril minha<br />
vontade que nem há-de agradecer suas finezas, nem abrir brecha em meu<br />
peito nem seu poder, nem sua porfia; e é mais de louvar uma retira<strong>da</strong> prudente<br />
<strong>do</strong> que uma porfia infrutuosa.<br />
Com estas últimas palavras se quis despedir Fenisa com suas cria<strong>da</strong>s,<br />
porém Raimun<strong>do</strong> lhe replicou, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Imaginas, Fenisa, com teu retiro deixares-me às escuras sem tua<br />
vista? Queres imitar os privilégios <strong>da</strong> aurora, a quem o espaço que dura a faz<br />
ser de to<strong>do</strong>s mais deseja<strong>da</strong>? Pois hás-de ouvir-me, ain<strong>da</strong> que mortifiques à<br />
vontade de ausentar-te o fim a que aspira meu amor, por que mereça crédito<br />
contigo meu generoso cui<strong>da</strong><strong>do</strong>. Eu, Fenisa, hei-de ser teu esposo e com este<br />
intento te amei desde o dia em que te vi. Foste para mim o mais queri<strong>do</strong><br />
desdém e a mais ama<strong>da</strong> esquivança; e sen<strong>do</strong> a ingratidão de si tão odiosa, foi<br />
tua ingratidão o maior incentivo de querer-te e teu desabrimento o maior motivo<br />
de amar-te. Mu<strong>da</strong>ste-te de Módena para fazeres meu amor mais firme; quem<br />
poderia conhecer que de tua mu<strong>da</strong>nça fosse meu querer mais confiante, sen<strong>do</strong><br />
uma mu<strong>da</strong>nça antípo<strong>da</strong> <strong>da</strong> maior firmeza? Por briosa nasceste para senhora,<br />
pelo singular <strong>da</strong> fermosura e pelo generoso de tua estimação quis <strong>do</strong>tar-te a<br />
natureza no que te negou a fortuna, sen<strong>do</strong> maior lauro para ti o conseguires<br />
por merecimento o que no nascimento não alcançaste. O duque pode casar a<br />
meu irmão a seu gosto, pois há-de ser seu sucessor, que eu só preten<strong>do</strong> casar<br />
ao meu casan<strong>do</strong> contigo, e julgarei ser o primeiro na ventura, sen<strong>do</strong> o segun<strong>do</strong><br />
no nascimento. Eu te peço, Fenisa, que dês notícia a teus pais desta minha<br />
honrosa resolução, pois ain<strong>da</strong> que o mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong> contra mim se conjurasse ou<br />
hei-de perder a vi<strong>da</strong>, ou hás-de ser minha esposa.<br />
Não teve lugar Fenisa para responder à proposta de Raimun<strong>do</strong>, porque<br />
apareceu Frederico com seus filhos e cria<strong>do</strong>s que <strong>da</strong> caça vinham, com que<br />
Fenisa assusta<strong>da</strong> se retirou e Raimun<strong>do</strong>, montan<strong>do</strong> no cavalo que o cria<strong>do</strong> lhe<br />
tinha, se ausentou para o lugar em que os seus caça<strong>do</strong>res an<strong>da</strong>vam. Não<br />
deixou Frederico de ver e conhecer a Raimun<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> que de longe, quan<strong>do</strong><br />
falava com Fenisa; e chegan<strong>do</strong> à quinta em presença de sua mãe e irmãos lhe<br />
perguntou que prática fora a que com Raimun<strong>do</strong> tivera, que ela lhe referiu na
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 933<br />
ver<strong>da</strong>de e como resolutamente se oferecia para ser seu esposo, pedin<strong>do</strong>-lhe<br />
que este seu intento a seus pais dissesse. Ao que Frederico respondeu assim:<br />
- Bem pudera eu dizer que um infelice na própria defensa vem a<br />
encontrar os <strong>da</strong>nos. Por tua causa, Fenisa, me ausentei <strong>da</strong> corte, deixan<strong>do</strong> o<br />
sossego de minha casa e sujeitan<strong>do</strong>-me a viver no monte, para desviar os<br />
juvenis intentos de Raimun<strong>do</strong> e com as distâncias impedir-lhe o ver-te,<br />
cortan<strong>do</strong>-lhe os passeios de dia e as ron<strong>da</strong>s indecorosas <strong>da</strong> noite, e o poder<br />
<strong>da</strong>r motivos à censura de escrupulosos juízos e línguas atrevi<strong>da</strong>s poderem<br />
desluzir o purifica<strong>do</strong> de meu pun<strong>do</strong>nor e de teu louvável recolhimento. Porém<br />
quan<strong>do</strong> me empenho em evitar um perigo, declinar a opressão e contraminar<br />
um arrojo, me vejo oprimi<strong>do</strong> de outro.<br />
Bem conheço, Fenisa, que a culpa não é tua, senão desgraça minha. Tu<br />
foste a queixosa de seus devaneios, conhecen<strong>do</strong> discretamente que a fama<br />
honrosa com um desaire pode perder-se e com dificul<strong>da</strong>de se restaura, sen<strong>do</strong><br />
uma livian<strong>da</strong>de bastante para desluzir muitos merecimentos. Muitas vitórias<br />
tinha alcança<strong>do</strong> o grande Pompeu e uma só perdi<strong>da</strong> nos campos farsálicos<br />
bastou para eclipsar a generosa fama a quem tantos triunfos enobreceram.<br />
Não é, diz Cícero 934 , acção de bom juízo por lisonjas <strong>da</strong> fermosura que pode<br />
perder-se, aventurar a fama que pode imortalizar-se. Não te culpo em ouvires<br />
seus enganos, pois o encontro foi tão repentino; porém não louvo o ficarem<br />
suas palavras e lisonjas tão impressas em tua memória, porque o que não se<br />
deseja nunca faz na lembrança impressão. Entre to<strong>do</strong>s os frutos só a romã<br />
nasce com coroa, sen<strong>do</strong> a mesma árvore que lhe serve de berço sólio em que<br />
se coroa. Quem, Fenisa, em seu nascimento não nasceu de pais soberanos,<br />
logo perdeu as esperanças de aspirar à coroa pela fermosura. São hoje nos<br />
príncipes as razões de esta<strong>do</strong> a alma que costuma animar a vi<strong>da</strong> de seu<br />
senhorio, a temporal coluna que sustenta o edifício de sua estimação. Ao<br />
governo político <strong>da</strong> república chamou Aristóteles 935 a principal <strong>da</strong>s artes.<br />
Sempre o príncipe que governa leva grande e superior vantagem a seus<br />
súbditos e vassalos, porque lhe hão-de obedecer e eles não reconhecem outro<br />
superior a quem obedeçam, que por isso se chamam soberanos. Assim não<br />
Cicer., 4. Ad Heren.<br />
Arist., Eth. 1. & Poly. c. 1.
934 Padre Mateus Ribeiro<br />
costumam casar a seus filhos com vassalas de seu senhorio, por não<br />
reconhecerem por iguais a quem a fortuna com eles não igualou.<br />
Uma <strong>da</strong>s culpas que os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e cabos <strong>do</strong>s macedónios <strong>da</strong>vam ao<br />
grande Alexandre foi que haven<strong>do</strong> rejeita<strong>do</strong> o casamento que el-rei Dário lhe<br />
oferecera com a princesa sua filha com inestimável <strong>do</strong>te, viesse depois a<br />
receber por mulher a Roxanes por fermosa, uma moça persiana vassala sua,<br />
pois era <strong>da</strong>r-lhe superiori<strong>da</strong>de e man<strong>do</strong> sobre to<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> ela e seus pais<br />
persianos e vassalos. Com que fun<strong>da</strong>mento Raimun<strong>do</strong> se oferecia para ser teu<br />
esposo, senão para depois aborrecer-te? O caminhante que nos ar<strong>do</strong>res <strong>do</strong> sol<br />
e no mais calmoso <strong>do</strong> dia ou pelo campo mais seco, ou areal mais estéril,<br />
abrasa<strong>do</strong> com os raios <strong>do</strong> sol an<strong>da</strong> investigan<strong>do</strong> com o desejo descobrir<br />
alguma fonte em que sequioso e anelante refrigere a sede, respire <strong>do</strong> cansaço,<br />
socorra o coração com a epítima <strong>do</strong> líqui<strong>do</strong> cristal que apetece, apenas<br />
descobriu a fonte para logro de seu desejo, alívio de seu cansaço, refrigério de<br />
sua pena, quan<strong>do</strong> em satisfazen<strong>do</strong> a sede que o molestava, voltan<strong>do</strong> as costas<br />
à fonte por quem tanto suspirava antes de possuí<strong>da</strong>, continua a jorna<strong>da</strong> não se<br />
lembran<strong>do</strong> mais <strong>da</strong> fonte como se a não vira. Além disto, quem nos livraria <strong>da</strong>s<br />
iras <strong>do</strong> duque, seu pai, de quem somos vassalos, nem em Módena, nem em<br />
to<strong>do</strong> o seu dilata<strong>do</strong> senhorio? Ain<strong>da</strong> fora dele em qualquer parte ficaríamos<br />
arrisca<strong>do</strong>s, que os príncipes soberanos tem os braços mui dilata<strong>do</strong>s para<br />
poderem alcançar com eles aonde procuram. Nem tu viverias com Raimun<strong>do</strong><br />
quieta, antes sempre desterra<strong>da</strong> e em qualquer parte com sustos, eu e teus<br />
irmãos sem sossego e <strong>do</strong> duque aborreci<strong>do</strong>s, as ren<strong>da</strong>s sequestra<strong>da</strong>s e a<br />
minha casa perdi<strong>da</strong>.<br />
Nunca o excessivo assegurou a duração, nem quem promete as<br />
venturas pode alcançar perseveranças, porque o prometê-las é fácil, mas o<br />
aboná-las difícil. Para eu <strong>da</strong>r notícias ao duque <strong>da</strong>s inquietações de seu filho é<br />
diligência arrisca<strong>da</strong>, porque pouco se satisfazem os pais de ouvirem queixas de<br />
seus filhos, e será malquistar-me com o filho e não admitir a graça de seu pai.<br />
É Raimun<strong>do</strong> mancebo, e para ser repreendi<strong>do</strong> de seu pai levará agramente as<br />
censuras e quererá desagravar-se em quem deu o motivo à queixa e à<br />
repreensão; e com os príncipes há-de proceder-se com uma cautela muito<br />
respeitosa, com que de seus vassalos se querem trata<strong>do</strong>s. Arrisca-se no falar e<br />
no silêncio, e entre <strong>do</strong>us extremos <strong>do</strong> perigo não é fácil escolher um meio que
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 935<br />
possa servir de remédio a um empenho que tanto de remédio carece; pois<br />
calan<strong>do</strong> me aventuro às iras <strong>do</strong> pai e falan<strong>do</strong> me exponho às juvenis vinganças<br />
e odiosas calami<strong>da</strong>des <strong>do</strong> filho.<br />
Contraminar as iras de um poderoso é embotar os fios à espa<strong>da</strong> de seu<br />
poder, que fica sen<strong>do</strong> como a espa<strong>da</strong> preta que aponta as feri<strong>da</strong>s, mas não as<br />
executa; mostra os cortes, mas não magoa. Para eu atalhar os arrojos de<br />
Raimun<strong>do</strong>, antes que as temeri<strong>da</strong>des sirvam de ruína à tranquili<strong>da</strong>de de minha<br />
casa, sou de parecer de mudá-la para Bolonha secretamente, pois meu primo,<br />
o cardeal Colalto, é o lega<strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r dela e de to<strong>do</strong> seu senhorio pela Sé<br />
Apostólica, cujo é. Desta mu<strong>da</strong>nça se poderão seguir muitos acertos: o<br />
primeiro com esta ausência em alheio senhorio cessar Raimun<strong>do</strong> em seus<br />
devaneios tão propínquos o infausto de uma desgraça. O segun<strong>do</strong> continuar<br />
Constantino seus estu<strong>do</strong>s na florentíssima universi<strong>da</strong>de de Bolonha, nova<br />
Atenas de Itália, de que tem saí<strong>do</strong> inumeráveis <strong>do</strong>utores no Direito Canónico e<br />
Civil, teólogos insignes, filósofos eminentes, escritores de várias ciências e<br />
assuntos sem conto, cujas obras tem ilustra<strong>do</strong> não só a Itália, mas grande<br />
parte <strong>da</strong> Europa. O terceiro acerto termos ao cardeal governa<strong>do</strong>r sempre em<br />
nosso favor para a protecção, e quan<strong>do</strong> a Fenisa se ofereça algum esposo<br />
titular que a mereça, poder-se efectuar seu casamento à sombra <strong>do</strong> cardeal<br />
lega<strong>do</strong> em lugar seguro e sem contradições de Raimun<strong>do</strong>; que em seu próprio<br />
senhorio e terras anima o poder a insolências, como <strong>do</strong> gigante Anteu, que<br />
faziam ser <strong>da</strong> terra filho, fingiram os antigos que no desafio que com o tebano<br />
Hércules teve, tanto que na terra com os pés tocava, novo alento cobrava e<br />
maiores forças contra Hércules lhe nasciam.<br />
Deu fim Frederico a seu prudente conselho, que to<strong>do</strong>s aprovaram pelo<br />
mais acerta<strong>do</strong> e proveitoso, pedin<strong>do</strong>-lhe que com to<strong>do</strong> o silêncio e brevi<strong>da</strong>de<br />
possível o pusesse em execução, pois diz Ovídio 936 que enquanto o silêncio<br />
não se rompe, pode facilmente ter efeito a deliberação. Receavam que à menor<br />
notícia que Raimun<strong>do</strong> tivesse, como amante e poderoso pudesse impedir seu<br />
retiro para Bolonha. Escreveu logo Frederico ao cardeal governa<strong>do</strong>r que lhe<br />
importava mu<strong>da</strong>r-se para Bolonha, que lhe pedia lhe man<strong>da</strong>sse tomar casas<br />
em que pudesse decentemente morar com sua família; o que logo o cardeal<br />
Ovid., 3. De trist.
936 Padre Mateus Ribeiro<br />
man<strong>do</strong>u fazer, que são bem nobres e grandiosas, em que ao presente<br />
assistimos. Como a quinta de Frederico ficava tão vizinha ao lugar <strong>do</strong> rio<br />
Panara, que se chama Bom <strong>Porto</strong>, aonde com barcas se navega perto de<br />
Bolonha, começou secretamente a enviar o móvel de maior preço, e uma noite<br />
com coche e liteira se mu<strong>do</strong>u com to<strong>da</strong> a família, sem ser conheci<strong>da</strong> sua<br />
mu<strong>da</strong>nça, senão depois de estar nesta ci<strong>da</strong>de. Foi visita<strong>do</strong> <strong>do</strong> cardeal seu<br />
parente, a quem em particular noticiou os motivos que ocasionaram sua<br />
mu<strong>da</strong>nça, que o cardeal aprovou por acerta<strong>da</strong> e digna de seu juízo; porque,<br />
como diz Cícero 937 , o poder grande que não se precipita às insolências, nem se<br />
arroja aos devaneios <strong>do</strong> apetite, tem muito que louvar e muito mais que<br />
agradecer. Deu o cardeal repeti<strong>do</strong>s louvores a Fenisa <strong>da</strong> generosa modéstia de<br />
seu procedimento, engrandeceu com encómios o emparelhar nela o raro<br />
prodígio <strong>da</strong> beleza com o singular portento <strong>da</strong> modéstia, sen<strong>do</strong> a virtude tanto<br />
mais digna de louvores, quanto mais assenta o sólio de sua estimação sobre a<br />
fermosura, com quem diz Ovídio 938 que an<strong>da</strong> em desafio a pureza, sen<strong>do</strong> tanto<br />
mais aplaudi<strong>da</strong> a vitória, quanto mais repeti<strong>do</strong>s os assaltos ficam venci<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
virtude. Prometeu-lhe o cardeal que por sua conta correria o seu casamento<br />
quan<strong>do</strong> se oferecesse pessoa tão benemérita e titular tão ilustre que a<br />
merecesse. Com isto ficou Frederico contente de sua mu<strong>da</strong>nça, Fenisa de seu<br />
generoso procedimento e to<strong>do</strong>s de se verem isentos <strong>do</strong> senhorio <strong>do</strong> duque de<br />
Módena e <strong>do</strong>s licenciosos pensamentos de Raimun<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> <strong>do</strong> cardeal<br />
governa<strong>do</strong>r ampara<strong>do</strong>s como parentes de quem ele muito se prezava pelo que<br />
mereciam.<br />
Cap. VI.<br />
Em que se refere o que Raimun<strong>do</strong> fez quan<strong>do</strong> soube <strong>da</strong> ausência de Fenisa<br />
Poucos dias eram passa<strong>do</strong>s que Frederico Manfre<strong>do</strong> com sua família<br />
assistia nesta ci<strong>da</strong>de de Bolonha, partin<strong>do</strong> com tal segre<strong>do</strong> <strong>da</strong> sua quinta que o<br />
Cicer., 3. De Orat.<br />
Ovid., Ep. 15.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 937<br />
não pôde alcançar Raimun<strong>do</strong> com ser amante, de quem disse Plínio Júnior 939<br />
que parecia cousa incrível o amar muito e <strong>do</strong> sujeito ama<strong>do</strong> saber pouco. Quis<br />
Raimun<strong>do</strong> intentar outra caça<strong>da</strong>, para com este disfarce ou poder ver ou falar<br />
com Fenisa, de cuja condição com as ofertas de ser seu esposo presumia que<br />
estaria mais benévola para ouvir e atender a suas finezas e mais propícia em<br />
estimar as ofertas de ser seu esposo que com ver<strong>da</strong>deira vontade lhe havia<br />
feito. Porém em tu<strong>do</strong> se enganou sua esperança, como pela maior parte<br />
desfalecem as que se põem nas criaturas, como escreve Cícero 940 , quan<strong>do</strong> se<br />
certificou que Frederico com to<strong>da</strong> a casa se mu<strong>da</strong>ra de assento para Bolonha,<br />
senhorio de outra jurisdição, qual é a <strong>da</strong> Igreja, e em que o duque seu pai<br />
nenhuma tinha; pouco lhe faltou para tornar-se louco, se porventura quem<br />
afectuosamente ama se isenta de loucura, haven<strong>do</strong> uma só letra de diferença<br />
entre amente e amante, <strong>do</strong>nde veio a dizer Menandro, tirano de Samos, que há<br />
loucuras que se tomam por vontade, e sem dúvi<strong>da</strong> o entendeu <strong>do</strong> amor, pois o<br />
filósofo 941 lhe chamou furor ou aparente insânia. Aqui renunciou Raimun<strong>do</strong> ao<br />
sofrimento, desesperou <strong>da</strong> ventura, julgou por infelice sua sorte, avaliou por<br />
implacável seu tormento, censurou por infausta sua estrela, por calamitoso seu<br />
destino e finalmente sentenciou por malogra<strong>do</strong> o culminante de seu requinta<strong>do</strong><br />
amor, tão fino nos extremos como nos prémios desgraça<strong>do</strong>.<br />
- Mas que importa (exclamava ele), se é infelice a obrigação de<br />
merecer, aman<strong>do</strong> sem ventura! Ausentou-se Fenisa, poden<strong>do</strong> acabar com seu<br />
coração, o que eu não posso conseguir com a memória; porque nasce o amor<br />
<strong>do</strong> coração, mas o esquecimento <strong>da</strong> memória, e vive ela na minha tão<br />
eficazmente viva como eu na sua assisti sempre morto. São as sau<strong>da</strong>des filhas<br />
<strong>do</strong> amor e <strong>da</strong> memória, porque nem pode produzi-las o que está esqueci<strong>do</strong>,<br />
nem causá-las o que nunca foi ama<strong>do</strong>. Fenisa nenhumas de mim tem, porque<br />
a memória nunca comigo a ocupou e o amor jamais em mim o colocou sua<br />
dureza; porém em mim viverão eterniza<strong>da</strong>s, porque um e outro me sobram.<br />
Porém <strong>da</strong>s esquivanças com que me trata, apelará meu sentimento para a<br />
vingança em que só respira minha <strong>do</strong>r. Já o estu<strong>do</strong> de meu sofrimento é inútil<br />
Plin. Jun., Lib. 4.<br />
Cicer., 3. De Orat.<br />
Arist., apud Stob.
938 Padre Mateus Ribeiro<br />
para o reparo, quebra<strong>do</strong> a tão repeti<strong>do</strong>s golpes de ingratidões, já desmaiou o<br />
tolerável com os desalentos <strong>do</strong> desprezo que meu amor padece, mostran<strong>do</strong>-se<br />
tantas vezes obsequioso ao dispor de sua vontade, ao menor aceno de seu<br />
gosto. Ninguém pois se admire se me vir vingativo a tão mal mereci<strong>do</strong>s<br />
desprezos, a tão tirano desdém, a tão injusta esquivança, que para um<br />
desespera<strong>do</strong> nem há mal que atemorize, nem bem que o lisonjeie. Se aos<br />
antípo<strong>da</strong>s, ingrata Fenisa, te mu<strong>da</strong>ras, lá iria buscar-te minha mágoa, lá te<br />
descobriria minha <strong>do</strong>r: já meu ofendi<strong>do</strong> amor se veste <strong>da</strong>s cores <strong>do</strong><br />
pensamento na veloci<strong>da</strong>de para buscar-te, será raio sem trovão, exalação sem<br />
chama, relâmpago sem luz, que me hás-de achar presente sem me veres,<br />
porque ou hás-de ser minha, ou outro não há-de lograr a ventura de seres sua,<br />
quan<strong>do</strong> esquiva desprezas o seres esposa minha.<br />
Assim ressenti<strong>do</strong> e quasi desespera<strong>do</strong> se queixava Raimun<strong>do</strong>, e<br />
retiran<strong>do</strong>-se ao paço passou em cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s to<strong>da</strong> a noite, que mal pode<br />
descansar um coração ansia<strong>do</strong>, queixoso de ingratidões e sau<strong>do</strong>so de<br />
ausências. É a noite odiosa aula para um triste apaixona<strong>do</strong> ou ofendi<strong>do</strong>, em<br />
que o discurso lê postilas de desagravos e lições penosas de vinganças; pois<br />
como o intenso <strong>da</strong> <strong>do</strong>r não permite férias ao divertimento <strong>do</strong> sono, com que a<br />
imaginação faz tréguas com a pena no breve espaço que dura, razão por que<br />
S. Agostinho 942 ao sono chamou esquecimento, descansam os senti<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
pena e o juízo de vacilar <strong>do</strong>cumentos que pela maior parte em aumentá-la<br />
resultam. Porém era em Raimun<strong>do</strong> tão eficaz a mágoa de ver a Fenisa ausente<br />
e de considerar-se não só aborreci<strong>do</strong>, mas juntamente despreza<strong>do</strong>, que nem o<br />
sono pôde ter entra<strong>da</strong> para diverti-lo, nem a noite lugar para aplacá-lo.<br />
Suspirava de impaciente, gemia de queixoso e porventura talvez chorava<br />
[lágrimas] (a) de magoa<strong>do</strong>, que não encontra ao muito valor que nele se <strong>da</strong>va<br />
romper a pena neste desafogo, como disse Euripides 943 , principalmente<br />
quan<strong>do</strong> não há quem as veja e quan<strong>do</strong> o desagravo é de pessoa incapaz de<br />
vingança. Justamente choran<strong>do</strong> se vingava de seus olhos, pois eles haviam<br />
^ Aug., Super Ps. 4.<br />
(a> Embora não apareça em nenhuma <strong>da</strong>s edições, esta palavra é necessária para identificar o<br />
antecedente <strong>do</strong>s pronomes conti<strong>do</strong>s nas expressões as veja e derramá-las.<br />
943 Eurip., in Troad.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 939<br />
si<strong>do</strong> a ocasião de agora derramá-las. O dilata<strong>do</strong> <strong>da</strong> noite, que ao jornaleiro<br />
molesta<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong> dia parece que voa, a Raimun<strong>do</strong> parecia eterna,<br />
porque em seu coração tu<strong>do</strong> era noite. Bem manifestava Raimun<strong>do</strong> o muito<br />
que a Fenisa amava no muito que por ela padecia.<br />
Rompeu enfim a estrela de Vénus, brilhante embaixa<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> sol, o<br />
primeiro rasgo ao escuro manto <strong>da</strong> noite, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> indícios que não tar<strong>da</strong>ria a<br />
deseja<strong>da</strong> aurora que de to<strong>do</strong> a despojasse <strong>do</strong> luto com seus rosa<strong>do</strong>s<br />
resplan<strong>do</strong>res. Com este primeiro anúncio se levantou Raimun<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> entre as<br />
suspensões mais indecisas <strong>do</strong> dia, pois com pouco se contenta um ansia<strong>do</strong>, e<br />
man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> aos cria<strong>do</strong>s selar o cavalo e reca<strong>do</strong> a seu secretário e vali<strong>do</strong><br />
Bernardino Marascoto, que o esperava já monta<strong>do</strong> a cavalo, para partirem ao<br />
campo a negócio que importava acompanhá-lo, apenas ouviu Bernardino o<br />
reca<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> vestin<strong>do</strong>-se com to<strong>da</strong> a brevi<strong>da</strong>de e montan<strong>do</strong> a cavalo veio a<br />
assistir-lhe. Era Bernardino Marascoto mancebo discreto, versa<strong>do</strong> nos estu<strong>do</strong>s<br />
enquanto foi filho segun<strong>do</strong>; porém falecen<strong>do</strong> o que era o morga<strong>do</strong>, veio ele a<br />
suceder com copiosa ren<strong>da</strong>, assistin<strong>do</strong> em Módena em companhia de sua mãe<br />
viúva, que pai já não o tinha. Aqui o escolheu Raimun<strong>do</strong> por seu secretário e<br />
seu amigo, e se entre os príncipes e vassalos se pode chamar amizade o<br />
valimento, era Bernardino o único priva<strong>do</strong> e amigo de Raimun<strong>do</strong>, o secretário<br />
de seu peito, o consultor de seus segre<strong>do</strong>s e a quem tinha por companheiro<br />
nas jorna<strong>da</strong>s que emprendia, por achar nele juízo discreto, valor sem<br />
temeri<strong>da</strong>des e cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so desvelo em assistir-lhe.<br />
Sau<strong>do</strong>u a Raimun<strong>do</strong>, admiran<strong>do</strong>-se de tão repentina madruga<strong>da</strong>, pois<br />
ain<strong>da</strong> mal se divisava o crepúsculo indetermina<strong>do</strong> <strong>da</strong> aurora com luzes escuras<br />
e com sombras claras. Raimun<strong>do</strong> lhe disse que mais de espaço saberia a<br />
causa, e esporean<strong>do</strong> os cavalos saíram <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, seguin<strong>do</strong> a corrente <strong>do</strong><br />
cau<strong>da</strong>loso rio que com passos, sem atender ao fim de seu caminho, ia<br />
precipitar-se no Pó, perden<strong>do</strong> nele os cabe<strong>da</strong>is e o nome. Começavam a este<br />
tempo os músicos rouxinóis a queixar-se, cantan<strong>do</strong> venturosa queixa, pois<br />
ten<strong>do</strong> tantos ouvintes, de to<strong>do</strong>s era aplaudi<strong>da</strong> e estima<strong>da</strong>, poden<strong>do</strong> a ofensa<br />
achar desculpas pela suavi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s efeitos; pois ain<strong>da</strong> que a queixa não<br />
conseguisse o castigo, pelo menos granjeou de to<strong>do</strong>s a aceitação. Com o<br />
castigo <strong>do</strong> agravo tivera silêncio a voz, pois puni<strong>da</strong> a culpa não fica lugar à<br />
queixa; e parecera menos agradável um delito castiga<strong>do</strong> <strong>do</strong> que na senti<strong>da</strong>
940 Padre Mateus Ribeiro<br />
Filomena uma tão <strong>do</strong>ce queixa humedeci<strong>da</strong>. Apareceu o sol vibran<strong>do</strong> raios não<br />
menos no luzi<strong>do</strong> que no ardente, prognostican<strong>do</strong> ser implacável ao meio-dia<br />
seu rigor. Quasi três léguas teriam caminha<strong>do</strong> sem em to<strong>do</strong> este espaço ter<br />
Raimun<strong>do</strong> declara<strong>do</strong> a Bernardino o intento que trazia; porém porque o dia se<br />
mostrava por extremo calmoso, chegan<strong>do</strong> a um pra<strong>do</strong> que junto à estra<strong>da</strong> se<br />
via, a quem cortava um pequeno arroio que mais no interior de uma fonte<br />
nascia, desmontan<strong>do</strong> ambos <strong>do</strong>s cavalos que os cria<strong>do</strong>s receberam, retiran<strong>do</strong>-<br />
se Raimun<strong>do</strong> com Bernardino ao refúgio <strong>da</strong> fonte que coberta de árvores se<br />
via, e assenta<strong>do</strong>s à verde sombra que <strong>do</strong>s raios <strong>do</strong> sol os defendia, Raimun<strong>do</strong><br />
falou assim:<br />
- Na certeza vivo, Bernardino, que minha improvisa jorna<strong>da</strong> e meu<br />
dilata<strong>do</strong> silêncio vos terá suspenso, não conhecen<strong>do</strong> o fim a que meus passos<br />
se encaminham; porém para desagravar meu opila<strong>do</strong> coração de tantas<br />
mágoas padeci<strong>da</strong>s e desta implacável <strong>do</strong>r que me oprime, e para vos livrar <strong>da</strong><br />
suspensão que em vós conheço, escolhi o retiro deste sítio em que estamos<br />
para nele vos manifestar o que padeço, o intento que trago e o fim que sigo.<br />
Dizer que vi a Fenisa bastava para dizer que a amei, sen<strong>do</strong> amá-la a<br />
consequência de vê-la; porque tão rara e singular fermosura, assim como é a<br />
admiração mais aplaudi<strong>da</strong> <strong>do</strong> juízo, assim fica sen<strong>do</strong> o perigo mais valente <strong>da</strong><br />
vontade. Não me parece que Itália logrou jamais tal prodígio de beleza em<br />
muitos séculos passa<strong>do</strong>s, pois o que neste nasceu para assombrosa<br />
admiração, suspendeu a memória de tu<strong>do</strong> o que tem si<strong>do</strong> até o tempo presente<br />
e ain<strong>da</strong> parece faz duvi<strong>do</strong>sa a imitação para copiá-lo o futuro. Fiz-lhe presente<br />
meu cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, mas nunca se quis <strong>da</strong>r por entendi<strong>da</strong> por não se confessar<br />
obriga<strong>da</strong>, que é política razão de ânimos ingratos desconhecer as finezas por<br />
se isentarem <strong>da</strong> remuneração. Cortou de to<strong>do</strong> a ponte à esperança para deixar<br />
inacessíveis as pretensões, e nos golfos de suas repeti<strong>da</strong>s esquivanças<br />
impossíveis as posses aos desejos, malogra<strong>do</strong>s os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, desespera<strong>do</strong>s os<br />
desvelos e queixosas as finezas. Que discreto fora eu se soubera aproveitar-<br />
me <strong>do</strong> ingrato de seu desdém para os acertos de um retiro; mas foi tão<br />
poderosa sua vista que me persuadiu a que a amasse mais, quan<strong>do</strong> seu rigor<br />
movia a querer-lhe menos. Que de vezes lhe escrevi sem ter resposta; quantas<br />
de dia fiz de suas janelas horizontes sem poder ver suas luzes, quantas noites
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 941<br />
rondei as suas casas sem poder ouvir sua voz nem por descui<strong>do</strong>, porque<br />
parece que em encontrar meu desejo punha o maior cui<strong>da</strong><strong>do</strong>.<br />
Ven<strong>do</strong> pois tão repeti<strong>do</strong> seu desdém como firme minha vontade, nela a<br />
ingratidão mais tirana e em mim o querer mais constante, quan<strong>do</strong> pudera<br />
cessar minha porfia, tomei por timbre a maior perseverança. Desta que pudera<br />
ser estima<strong>da</strong>, parece que se deu por ofendi<strong>da</strong>; e não me admiro, porque<br />
amantes desgraça<strong>do</strong>s com as finezas ofendem. Persuadiu a seus pais que<br />
com to<strong>da</strong> a casa se mu<strong>da</strong>ssem para a quinta de Bom <strong>Porto</strong>, para que com os<br />
motivos <strong>da</strong> ausência fizesse termo meu amor, não advertin<strong>do</strong> que o olvi<strong>da</strong>r nas<br />
ausências é para amor de i<strong>da</strong>de pouca e primeiros rudimentos <strong>do</strong> querer: o que<br />
em mim se não <strong>da</strong>va, sen<strong>do</strong> tão antigo em amá-la como foram meus olhos em<br />
vê-la. Fingi caça<strong>da</strong>s para vê-la e cheguei em uma a poder falar-lhe; ofereci-me<br />
para seu esposo, que era de minha vontade a demonstração mais ver<strong>da</strong>deira,<br />
e o que resultou de uma fineza tão excessiva, de uma fé tão amante e de um<br />
querer tão fi<strong>da</strong>lgo foi que secretamente com seus pais e irmãos se ausentou<br />
para Bolonha por viverem <strong>do</strong> senhorio de meu pai isentos, quan<strong>do</strong> eu de seu<br />
senhorio não posso isento viver, pelo <strong>do</strong>mínio que alcançaram seus olhos<br />
sobre meu coração.<br />
Parece-vos, amigo Bernardino, que é esta esquivança para sofrer-se,<br />
desprezo para tolerar-se, ofensa para dissimular-se ou ingratidão para admitir-<br />
se? Como não apostará meu sentimento vinganças com a mesma tirania? Pois<br />
a espa<strong>da</strong> de sua ingratidão tem embota<strong>do</strong>s já os fios de tão incessável cortar<br />
por meu generoso sofrimento. Pouco estimula um agravo quan<strong>do</strong> a vingança<br />
descui<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>do</strong>rme. É escusa<strong>da</strong> pretensão buscar à ingratidão motivos para<br />
demovê-la, porque <strong>do</strong>s próprios serviços faz agravos que a ofendem, por que<br />
quem a considerar tirana, a possa desculpar como ofendi<strong>da</strong>. Não devem<br />
minhas finezas à sua memória nem a menor lembrança, nem a seu<br />
pensamento nem por descui<strong>do</strong> um cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, nem por acidente um desvelo. Só<br />
para mim se fecharam as portas <strong>do</strong> galardão, perdeu-se a estra<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
agradecimento e sobretu<strong>do</strong> soçobrou-se o baixel <strong>da</strong> ventura, porque não me<br />
assistiu a de César, e em tu<strong>do</strong> naufragou minha esperança. To<strong>da</strong> esta noite me<br />
desvelaram sentimentos padeci<strong>do</strong>s, iras imagina<strong>da</strong>s, vinganças apeteci<strong>da</strong>s;<br />
porém ao fim é sempre meu amor para a queixa mui eficaz e para a vingança<br />
mui tíbio; porque se a vingança se veste <strong>da</strong>s cores <strong>do</strong> agravo, logo o amor o
942 Padre Mateus Ribeiro<br />
sobreveste <strong>da</strong>s cores de compassivo. Resolvi pois em partir-me a Bolonha<br />
disfarça<strong>do</strong>, e para este intento venho bem provi<strong>do</strong> de ouro e jóias de valor, e<br />
quero, sem ser conheci<strong>do</strong>, especular de perto de Fenisa os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, com que<br />
intento solicitou esta mu<strong>da</strong>nça: se porventura outros empenhos a divertem, se<br />
outro mais mimoso <strong>da</strong> ventura é a seus olhos mais aceito, se os ares de<br />
Bolonha a tem mu<strong>da</strong><strong>do</strong>. Pois dizem que os ares mu<strong>da</strong>m, ain<strong>da</strong> que para um<br />
infelice não há mu<strong>da</strong>nça. Peço-vos, Bernardino, me acompanheis nesta<br />
jorna<strong>da</strong>, pois sois meu secretário e meu amigo, e confio de vosso juízo o bom<br />
sucesso desta empresa em que vai tão empenha<strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong> e meu desejo.<br />
Suspenso ficou Bernardino de ouvir a resolução de Raimun<strong>do</strong>, tão<br />
arroja<strong>da</strong> como seu desejo e tão precipita<strong>da</strong> como seu amor. Considerava que<br />
para reprovar-lhe o intento era desgostar a um príncipe que seu peito lhe<br />
descobria como amigo e não como filho de seu senhor. E sen<strong>do</strong> os<br />
desenganos serviços pela maior parte sem galardão e mal aceitos ao desejo,<br />
para aprovar-lhe a jorna<strong>da</strong> e segui-lo a ambos ameaçava perigos, pois, como<br />
diz Quinto Cúrcio 944 , não se dá poder tão independente no mun<strong>do</strong> a quem não<br />
possa sobrevir um perigo, ain<strong>da</strong> <strong>do</strong> sujeito mais despreza<strong>do</strong>. To<strong>do</strong> o excessivo<br />
ou é nocivo ou inútil, como ensina Aristóteles 945 , porque as cousas sublunares<br />
tem o ser tão ajusta<strong>do</strong> às simetrias <strong>da</strong>s quatro primeiras quali<strong>da</strong>des que não<br />
admitem excesso sem detrimento; e como o amor de Raimun<strong>do</strong> tão excessivo<br />
era para com Fenisa, nunca poderia prometer-se bom sucesso <strong>do</strong> que tão<br />
inconsidera<strong>do</strong> se mostrava. Para aconselhar a quem estava tão suborna<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
paixão como sobrevenci<strong>do</strong> <strong>do</strong> querer, arriscava-se a não ser ouvi<strong>do</strong> com<br />
atenção, nem com gosto, sen<strong>do</strong> dito <strong>do</strong> sábio Sólon 946 que aos príncipes se ha<br />
de aconselhar o útil e não o delicioso, sen<strong>do</strong> raro o ouvinte, diz Plínio 947 , a<br />
quem o desabri<strong>do</strong> possa agra<strong>da</strong>r como o deleitável ao gosto. No fim de um<br />
breve entreparêntesis que fez a suspensão com o discurso, dizem que lhe<br />
respondeu assim:<br />
Quint. Curs., Lib. 9.<br />
Arist., Pol. 7<br />
Apud Diog, Lib. 1.<br />
Plin. Jun., Lib. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 943<br />
- Estimara eu, ínclito senhor, poder ser tão sábio que pudera minha<br />
resposta manifestar a vossa excelência meu coração na candura de servi-lo,<br />
sen<strong>do</strong> juntamente discreto conselheiro e leal cria<strong>do</strong>, para que minhas palavras<br />
nem se desviassem <strong>do</strong> útil a seu maior decoro, nem faltassem ao afectuoso de<br />
seu desejo. Porém sen<strong>do</strong> efeitos tão encontra<strong>do</strong>s a decência com o apetite e a<br />
utili<strong>da</strong>de com o gosto, quem navega entre Cila e Caribdis quan<strong>do</strong> não perigue<br />
em ambos, mal se livra de naufragar em algum. Que vossa excelência amasse<br />
a fermosura de Fenisa não é maravilha, sen<strong>do</strong> ela o maior aplauso de si<br />
mesma; pois to<strong>do</strong> o louvor fica sen<strong>do</strong> menos, quan<strong>do</strong> ela de seus encómios<br />
fica sen<strong>do</strong> sempre o mais. Conheço que os monarcas, os reis e os príncipes<br />
soberanos não são na enti<strong>da</strong>de de diferente natureza que seus vassalos para<br />
poderem amar e aborrecer, que são objecto em que a vontade humana<br />
livremente se exercita, como ensinam Aristóteles 948 e Santo Agostinho 949 e S.<br />
Bernar<strong>do</strong> 950 . Nem é admiração que amante a pretendeste, sen<strong>do</strong> lisonjas <strong>da</strong><br />
afeição e arrojos <strong>da</strong> a<strong>do</strong>lescência, que nem sempre atendem ao mais decoroso<br />
e louvável. Nem me admira que Fenisa tão honrosamente resistisse a tão<br />
repeti<strong>da</strong>s finezas, porque sen<strong>do</strong> tão ilustre como sabemos que é e tão ajuiza<strong>da</strong><br />
como fermosa, mal podia admitir galanteios de um príncipe que não condizia<br />
para seu esposo.<br />
Retirou-se de Módena para a quinta de Bom <strong>Porto</strong>, furtan<strong>do</strong> a vista à<br />
inquietação e meten<strong>do</strong> terra em meio aos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s: acção foi de discreta e<br />
empenho de decorosa em que não merece censura sua modéstia, antes<br />
louvor. Fugir aos perigos é meio eficaz para vencê-los, diz o Séneca 951 , porque<br />
com dificul<strong>da</strong>de os evita quem de rosto os espera. Viu-se Fenisa com as<br />
instâncias de vossa excelência persegui<strong>da</strong>, tão repeti<strong>da</strong> a bataria de dia com<br />
cartas e passeios e de noite com ron<strong>da</strong>r as ruas e as casas, de que eu sou <strong>da</strong>s<br />
mais testemunha, como quem lhe assistia; que escolheu por remédio o retirar-<br />
se para evitar em seus pais o cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, em seus irmãos o perigo e em seu<br />
crédito o desluzimento que ocasionar-se podia, fazen<strong>do</strong> <strong>da</strong> ausência escu<strong>do</strong><br />
Arist., Rhet. 2.<br />
Aug., Ser. de verb. Apost.<br />
Bern., De lib. orbit.<br />
Senec, Epist. 117.
944 Padre Mateus Ribeiro<br />
em que tantos golpes juntos reparasse, de que ela podia ser a ocasião, mas<br />
não a causa. Assim que no retiro <strong>da</strong> quinta nem ela cometeu culpa, nem vossa<br />
excelência tem justa razão de queixa. A que vossa excelência publica é que<br />
haven<strong>do</strong>-se ofereci<strong>do</strong> para ser seu esposo, o estimou em tão pouco que<br />
persuadiu a seus pais que com to<strong>da</strong> a casa se mu<strong>da</strong>sse para Bolonha; e o que<br />
vossa excelência julga pela ofensa maior, avalio eu por grande serviço que ela<br />
e seus pais a vossa excelência fizeram, se bem se considerar o decoroso e o<br />
incensurável.<br />
É vossa excelência filho de um príncipe potenta<strong>do</strong> e soberano; e suposto<br />
que filho segun<strong>do</strong>, não faltam indícios de poder subir a ser primeiro, tais são as<br />
contínuas enfermi<strong>da</strong>des <strong>do</strong> senhor Alexandre, primogénito e senhor; e não<br />
condizem casamentos de príncipes com vassalas, haven<strong>do</strong> tão manifesta<br />
diferença <strong>do</strong> vassalo ao senhor como vai <strong>do</strong> monte ao vale. Daqui nasce a<br />
razão de esta<strong>do</strong> e política de não costumarem casar os príncipes soberanos a<br />
seus filhos senão com filhas de príncipes de outros senhorios, como tantas<br />
vezes se tem visto em Sabóia, Mântua, Florença, Parma, Urbino e Ferrara e<br />
outros muitos que sempre desta sorte casaram com filhas de príncipes iguais;<br />
porque além <strong>do</strong>s socorros que podem <strong>da</strong>r-se uns aos outros quan<strong>do</strong><br />
necessitem deles nas ocasiões precisas, são filhas de pais soberanos que a<br />
seus vassalos sempre man<strong>da</strong>ram e nunca viveram a obedecer sujeitos. A<br />
dissonância nas vozes descompõe a melodia <strong>da</strong> música, fazen<strong>do</strong> que<br />
desagrade aos ouvi<strong>do</strong>s o que a ser concorde levava consigo a maior aceitação;<br />
assim a dissonância <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s não pode soli<strong>da</strong>r amor no <strong>do</strong>micílio <strong>da</strong>s<br />
vontades; e talvez essa será a causa por que Fenisa nunca se mostrou<br />
afeiçoa<strong>da</strong>, nem deu indícios mais que de parecer ofendi<strong>da</strong>. E como esta oferta<br />
de vossa excelência a procurar para esposa leva consigo por companhia tantos<br />
discómo<strong>do</strong>s e temores dela, e de seus pais e irmãos justamente previstos,<br />
nunca, como diz Plutarco 952 , podia ser aceito nem ama<strong>do</strong> o que leva os<br />
dissabores de temi<strong>do</strong>.<br />
Retiraram-se a Bolonha discretamente, porque o rejeitarem a oferta que<br />
vossa excelência lhes fazia parecia desprezo de sua grandeza, e aceitarem o<br />
favor que lhes fazia era exporem-se a mil desgostos <strong>da</strong>s iras <strong>do</strong> senhor duque,<br />
Plut., De ódio & invid.
Alivio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 945<br />
com que os perseguiria enquanto vivessem; e assim com este retiro nem<br />
mostravam ofenderem a um, nem agravarem a outro, pois não publicaram a<br />
causa por respeitarem a vossa excelência e guar<strong>da</strong>rem a sua filha a candura<br />
<strong>da</strong> fama, que, como diz Séneca 953 , se arruina muitas vezes nos juízos mais<br />
com uma publici<strong>da</strong>de rumorosa <strong>do</strong> que com um desaire oculto. A notorie<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> fama mais é verdugo que executa <strong>do</strong> que juiz que sentencia; e a razão é<br />
porque o juiz não excede <strong>do</strong> que se prova e a fama muitas vezes pode<br />
vulgarizar o que se não comete, como diz Ovídio 954 . Assim que os pais de<br />
Fenisa an<strong>da</strong>ram mui prudentes em se retirarem a Bolonha, porque a vossa<br />
excelência o decoro devi<strong>do</strong> observaram e a sua filha asseguraram a fama.<br />
No intento que vossa excelência traz de ir disfarça<strong>do</strong> a Bolonha, pudera<br />
dizer que é temeri<strong>da</strong>de de quem ama e não acerto de quem discursa, porque<br />
seria divulgar-se sem fruto o que até agora ninguém chega a presumir. Sem<br />
fruto, digo, porque a vontade de Fenisa em qualquer lugar é livre, e quem tão<br />
senhora dela se mostrou em Módena, parece que muito mais o mostrará em<br />
Bolonha. Nem se pode confiar que a mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong>s ares fizessem em sua<br />
vontade mu<strong>da</strong>nça, porque as mulheres <strong>da</strong>quela quali<strong>da</strong>de e pren<strong>da</strong>s nem pelo<br />
nome chegam a conhecer que cousa seja mu<strong>da</strong>nça. São as mulheres que<br />
nascem com tantas obrigações, como Fenisa, <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> monte Olimpo<br />
de Grécia, que nem chuvas, nem nuvens, nem ventos se atrevem a inquietar o<br />
culminante de sua eminência. Correm os anos, terminam-se os séculos,<br />
passam os lustros e o Olimpo no próprio esta<strong>do</strong> permanece. Querer perseverar<br />
contra os desenganos conheci<strong>do</strong>s é mais que porfiar contra a água e contra o<br />
vento e sobretu<strong>do</strong> contra os desaires <strong>da</strong> ventura, que é a mais arrisca<strong>da</strong><br />
navegação, pois dela mais se podem temer naufrágios <strong>do</strong> que prometer-se<br />
bonanças. Enganar a uma esperança pode talvez servir de epítima saudável a<br />
um coração atormenta<strong>do</strong> com o desengano de um desejo; porém nesta<br />
empresa de Fenisa nunca pode enganar-se a esperança, pois no primeiro<br />
crepúsculo de seu nascimento morreu de desengana<strong>da</strong>, espirou de<br />
desfaleci<strong>da</strong>. A vi<strong>da</strong> de uma pretensão é a esperança em que se alimenta,<br />
Senec, Epist. 14.<br />
Ovid., Met. 9.
946 Padre Mateus Ribeiro<br />
porque raras vezes se chega a pretender o que se julga por impossível de<br />
alcançar.<br />
Que pretende vossa excelência com esta jorna<strong>da</strong> a Bolonha? É por<br />
ventura só o fim de ver a Fenisa? Pouco prémio seria para caminho tão<br />
desairoso a um príncipe <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de tanto juízo e pren<strong>da</strong>s, como vossa<br />
excelência, se como disse Juvenal se devem colocar em igual balança os<br />
trabalhos com os prémios. Ain<strong>da</strong> essa vista de Fenisa seria dificultosa, se ela<br />
chegasse a conhecer que vossa excelência em Bolonha assistia, porque até<br />
em aparecer-lhe se mostraria esquiva quem jamais se lhe mostrou obriga<strong>da</strong>.<br />
Seguem os olhos os ditames <strong>da</strong> vontade, e como a de Fenisa nunca viveu<br />
empenha<strong>da</strong>, sempre se mostrou avarenta de sua vista, porque como esta<br />
pendia de sua vontade, quem nela nunca teve lugar, nunca achou franquea<strong>da</strong><br />
a vista. Para ocultar-se uma estrela qualquer átomo de nuvem basta; porque<br />
como tem débil a luz e o corpo à nossa vista representa tão pequeno, o menor<br />
vapor que se condensa é cortina para encobri-la e máscara bastante para<br />
rebuçá-la. Um vassalo, senhor, é como estrela que em pouco espaço se<br />
esconde; porque como a falta de sua vista e assistência é limita<strong>da</strong>, poucos<br />
olhos reparam em descobri-la, nenhum juízo se desvela por alcançá-la. Porém<br />
um príncipe é como o sol, que ain<strong>da</strong> que intentara ocultar-se, não pudera: não<br />
se podem <strong>da</strong>r nuvens tão densas, nem nubla<strong>do</strong> tão escuro ou cerração tão<br />
lôbrega que disfarçar possam sua presença; porque como o sol é alma <strong>da</strong> luz e<br />
vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> dia, bem se conhece estar presente quan<strong>do</strong> o dia vive e bem se<br />
manifesta sua ausência quan<strong>do</strong> o dia, faltan<strong>do</strong>-lhe a luz com que respira,<br />
desalenta<strong>do</strong> morre.<br />
Vossa excelência é como o sol, que se faltar na corte, no mesmo<br />
instante se publica e sente sua ausência, quan<strong>do</strong> com a decência e<br />
acompanhamento costuma<strong>do</strong> de cria<strong>do</strong>s e caça<strong>do</strong>res não sai à caça.<br />
Divulgan<strong>do</strong>-se esta ausência e improviso retiro, que confusão seria no paço?<br />
Que descobri<strong>do</strong>res por man<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong> duque, meu senhor, não sairiam em seu<br />
seguimento? Que vilas ou lugares não explorariam cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sos? Que<br />
passageiros deixariam passar sem reconhecerem e perguntarem com exacta<br />
diligência se a vossa excelência viram ou encontraram em seus caminhos,<br />
empenhan<strong>do</strong>-se em quererem neste descobrimento granjearem e merecerem o<br />
agra<strong>do</strong> de seu príncipe? Além disto ficaria sen<strong>do</strong> esta jorna<strong>da</strong> assunto de tão
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 947<br />
vários juízos, objecto <strong>do</strong>s discursos mais dissonantes, vulgariza<strong>da</strong> a fama por<br />
to<strong>da</strong>s as partes desta ausência, ignora<strong>do</strong> o motivo, escondi<strong>da</strong> a causa, oculta a<br />
ocasião e manifesto o efeito, admiração para to<strong>do</strong>s e desluzimento para vossa<br />
excelência quan<strong>do</strong> se descobrisse o intento. Se esta ausência fora para servir<br />
ao império nas guerras contra o turco, sen<strong>do</strong> aluno de Marte na bélica<br />
campanha, desculpa honrosa seria, como disse o grande Alexandre, referi<strong>do</strong><br />
por Plutarco 955 ; e ain<strong>da</strong> os mortos na guerra, diz Demóstenes 956 , se costumam<br />
numerar entre os lauros <strong>do</strong>s vence<strong>do</strong>res. Porém emprender vossa excelência<br />
tão repentina ausência, persuadi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s motivos de uma vista, suposto que tão<br />
fermosa seja, expon<strong>do</strong>-se à censura <strong>do</strong>s discursos, inevitáveis legisla<strong>do</strong>res <strong>da</strong>s<br />
acções alheias, nem tem escusa louvável, nem desculpa decorosa.<br />
Conce<strong>do</strong> que Fenisa é mui fermosa, porém é juntamente muito ingrata; e<br />
é tal o desaire de uma ingratidão que excede muito a to<strong>do</strong> o <strong>do</strong>naire <strong>da</strong> beleza.<br />
Faz o odioso de uma ingratidão agravos <strong>do</strong>s mesmos serviços que se lhes<br />
fazem, delitos <strong>da</strong>s próprias finezas com que a servem: ao agiganta<strong>do</strong> de uma<br />
condição ingrata fica parecen<strong>do</strong> pigmeu o maior merecimento. Parece que<br />
intentam os ingratos mu<strong>da</strong>r as enti<strong>da</strong>des às cousas; pois fazen<strong>do</strong> <strong>da</strong>s finezas<br />
ofensas e <strong>do</strong> amor agravo, parece que <strong>do</strong>s próprios agravos virá a fazer<br />
serviços e <strong>da</strong>s ofensas lisonjas quem <strong>da</strong>s maiores finezas costuma fazer<br />
ofensas. É Fenisa sobre to<strong>da</strong>s fermosa e mais que to<strong>da</strong>s ingrata. É na beleza<br />
como imagem de cristal, que faltan<strong>do</strong>-lhe a alma, na<strong>da</strong> conhece e na<strong>da</strong> estima,<br />
nem <strong>do</strong>s serviços se paga, nem <strong>do</strong>s rogos se demove, nem <strong>do</strong>s extremos se<br />
obriga, nem <strong>do</strong> padecer se enternece; e dedicar desvelos a um cristal pareceria<br />
delírios de entendi<strong>do</strong>s. Há penas de tal quali<strong>da</strong>de que vem a ser mais custoso<br />
o publicá-las <strong>do</strong> que o sofrê-las; pois quan<strong>do</strong> o manifestá-las não promete em<br />
quem as ouve nem remédio, nem compaixão, antes censura em padecê-las,<br />
mais acerta<strong>do</strong> seria um padecer mu<strong>do</strong> <strong>do</strong> que uma publicação a um descrédito<br />
arrisca<strong>da</strong>. Vossa excelência padece uma pena voluntária, que pode ocultá-la<br />
no depósito de seu peito, e não parece adequa<strong>do</strong> à sua grandeza que com<br />
este excesso queira pôr editais na praça <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e na política de Itália que<br />
deixou o paço e a corte por ir em seguimento de uns olhos que de propósito lhe<br />
Plut., De fortitud. Rom.<br />
Demosthen., Exord. 6. [Edição de 1734: Exor. 2.]
948 Padre Mateus Ribeiro<br />
fogem para que os não veja e de uma moça que cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa se retira para que a<br />
não ame. Vossa excelência não tem motivo que o obrigue a tanto excesso:<br />
nem invejas, nem ofensas, nem ciúmes. Invejas não podem <strong>da</strong>r-se, porque na<br />
presença de Fenisa não há quem tenha ventura de lhe ser aceito, porque é na<br />
própria estimação como a flor anima<strong>da</strong> de Narciso que de si só se agra<strong>da</strong>;<br />
ciúmes não os pode ter, porque Fenisa a ninguém ama, sen<strong>do</strong> sua esquivança<br />
verdugo universal que tu<strong>do</strong> desdenha. Ofensas não as recebe, porque ninguém<br />
está obriga<strong>do</strong> a satisfazer o que nem procura, nem recebe, pois se porfermosa<br />
a ama, na<strong>da</strong> disso lhe deve: se sen<strong>do</strong> feia a amara, poderia dever-lhe o<br />
empregar os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>do</strong> amor no que pudera causar o aborrecimento; porque<br />
diz Plutarco 957 que mal pode amar-se o que a natureza fez na feal<strong>da</strong>de incapaz<br />
de querer-se. Porém sen<strong>do</strong> Fenisa <strong>da</strong> fermosura o maior assombro, acre<strong>do</strong>ra<br />
podia intitular-se <strong>do</strong> amor e não deve<strong>do</strong>ra.<br />
Se pois o empenho de Fenisa é que to<strong>do</strong>s padeçam quantos a viram e<br />
que ela por nenhum receba o menor cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, para que intenta vossa<br />
excelência que a pena seja to<strong>da</strong> sua e de Fenisa o triunfo? Que ela <strong>do</strong> empório<br />
mais seguro veja naufragá-lo na maior tormenta? Que <strong>do</strong>s montes Alpes de<br />
sua esquivança veja os incêndios <strong>do</strong> Etna em que seu peito se abrasa? Se<br />
Leandro por amante se aventurava a passar a na<strong>do</strong> os golfos empola<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
Helesponto e que seus braços rompen<strong>do</strong> a corrente formidável <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s<br />
formassem ponte para ajuntar a Ásia com a Europa, Hero lho merecia, pois<br />
nele i<strong>do</strong>latrava, aman<strong>do</strong>-o com tais finezas que, se lhe sacrificava as memórias<br />
mais amantes na vi<strong>da</strong>, lhe fez companhia com as finezas mais trágicas na<br />
morte. Merecia-lhe que por ela às inconstantes on<strong>da</strong>s aventurasse a vi<strong>da</strong>,<br />
quem de senti<strong>da</strong> e magoa<strong>da</strong> por não viver sem ele nas próprias on<strong>da</strong>s se<br />
despenhou na morte. Porém vossa excelência quer aventurar-se por quem por<br />
ele a na<strong>da</strong> se aventura? Quer que triunfe a vontade de seu juízo? O amor de<br />
seu pun<strong>do</strong>nor? O querer de sua autori<strong>da</strong>de por quem de tais finezas e<br />
extremos na<strong>da</strong> obriga<strong>da</strong> se mostra? Há-de vossa excelência rogar tantas vezes<br />
com a paz a quem por to<strong>da</strong>s as vias lhe publica guerra? Porventura faltam no<br />
mun<strong>do</strong> fermosuras? Ou sequestrou Fenisa só para si os foros <strong>da</strong> beleza? Não<br />
é a fermosura acidente a quem pode eclipsar um desmaio, des<strong>do</strong>urar uma<br />
Plut., De Poet.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 949<br />
<strong>do</strong>ença, desbaratar um desgosto e arruinar um perigo? Pois de uma cousa tão<br />
frágil, para que é fazer tão excessiva estimação que por ela se aventure a vi<strong>da</strong>,<br />
que se arrisque o crédito, que se desluza a grandeza e que se despreze o<br />
pun<strong>do</strong>nor?<br />
Se Fenisa estu<strong>do</strong>u lições de ingrata, se tomou postila de soberba, se<br />
aprendeu <strong>do</strong>cumentos de endureci<strong>da</strong>, use vossa excelência <strong>da</strong>s lições de<br />
discreto, contraminan<strong>do</strong> com a razão as minas de seu desagradecimento.<br />
Deixe lugar para entrarem no coração as memórias de sua tão repeti<strong>da</strong><br />
cruel<strong>da</strong>de e logo se riscarão as de sua fermosura. Vossa excelência nenhuma<br />
utili<strong>da</strong>de tem de Fenisa ser fermosa, que isso é privilégio de que só ela logra e<br />
que a outro não se comunica: o proveitoso era ser ela agradeci<strong>da</strong> aos extremos<br />
de quem ama; e pois lhe faltou o saber reconhecer as obrigações de ser<br />
ama<strong>da</strong>, deixe-a vossa excelência ficar com os desvanecimentos de ser<br />
fermosa, que esta vanglória de sua beleza o tempo com seus giros ca<strong>da</strong> dia a<br />
vai diminuin<strong>do</strong> com os assaltos <strong>do</strong>s anos, e a ínclita fama de vossa excelência<br />
aspira a ser imortal contra as durações <strong>do</strong> tempo sobre os perío<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s i<strong>da</strong>des,<br />
sobre a perseverança <strong>do</strong>s anos.<br />
Cap. VII.<br />
Do que se seguiu <strong>da</strong> prática de Bernardino, e como Raimun<strong>do</strong> se tornou para<br />
Módena e Bernardino se partiu para Bolonha, e <strong>do</strong> que lhe sucedeu<br />
Com atenção sossega<strong>da</strong> ouviu Raimun<strong>do</strong> a resposta que Bernardino<br />
deu a sua arroja<strong>da</strong> deliberação, e não foi pouco aplicar o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> a ouvi-lo,<br />
porque, como diz Quintiliano 958 , a atenção no ouvir é caminho de se demover;<br />
porque como as paixões que inquietam a alma perturbam os senti<strong>do</strong>s<br />
divertin<strong>do</strong>-os de suas naturais operações, pouco atende à persuasão de quem<br />
fala, quem no interior padece as moléstias <strong>do</strong> que sente. Muito sentia<br />
Raimun<strong>do</strong> as ausências e esquivanças de Fenisa, parecen<strong>do</strong>-lhe ca<strong>da</strong> instante<br />
de seu retiro um século de sau<strong>da</strong>des a que o condenavam suas memórias:<br />
eram impaciências <strong>do</strong> querer, o carecer <strong>da</strong> vista de quem tanto desdém lhe<br />
Quint., Lib. 8.
950 Padre Mateus Ribeiro<br />
costumava mostrar. Contu<strong>do</strong> discursou um intervalo breve, que a pena não<br />
permite demoras largas sobre o que o coração padece, e fazen<strong>do</strong> neste<br />
espaço tréguas o coração com o discurso, lhe respondeu desta sorte:<br />
- Ouvi, Bernardino, os acertos de vosso juízo em que mostrais vossa<br />
leal<strong>da</strong>de e discrição. Quanto estimara eu poder aproveitar-me de vossos<br />
prudentes conselhos, assim como conheço o zelo com que mos <strong>da</strong>is. Porém<br />
esta incessável pena que me assiste, estas memórias que me não largam e<br />
estas sau<strong>da</strong>des que me atormentam são tão molestas a meu coração que sou<br />
sábio para conhecê-las e idiota para declará-las. Bem desejara eu poder dever<br />
mais a meu descui<strong>do</strong> <strong>do</strong> que a meu cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, porque o descui<strong>do</strong> seria meu<br />
alívio, quan<strong>do</strong> é o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> meu tormento. Envi<strong>do</strong>u to<strong>do</strong> o cabe<strong>da</strong>l meu<br />
sofrimento por ver se podia ganhar por sofri<strong>do</strong>, e ca<strong>da</strong> vez saí mais perdi<strong>do</strong>so:<br />
porque como nasceu meu cui<strong>da</strong><strong>do</strong> de uma causa tão sublime, que não posso<br />
aborrecê-la por mais que me maltrata, não acho meio de que me valha entre os<br />
extremos de amá-la ou aborrecê-la, porque se a tirania a faz odiosa, a<br />
fermosura singular a faz amável; e assim sempre de mi é ama<strong>da</strong> e nunca<br />
aborreci<strong>da</strong>.<br />
Eu me resolvo em voltar-me outra vez a Módena e por hora pôr<br />
suspensão à oferta de ser seu esposo, que são os <strong>do</strong>us assuntos de vosso<br />
conselho. Mas haveis de prometer-me de irdes vós a Bolonha a saberdes com<br />
to<strong>do</strong> o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> novas de Fenisa e certificardes-vos em que se diverte, se há<br />
outro que seja mais venturoso em ser aceito a seus olhos e se porventura vive<br />
em suas memórias minha lembrança. E se é atributo nas mulheres a mu<strong>da</strong>nça,<br />
como lhe chama Virgílio 959 e a Glossa <strong>do</strong> Direito Civil 960 , se como planta de<br />
novo em Bolonha transplanta<strong>da</strong> fez mu<strong>da</strong>nça sua condição no desabrimento <strong>da</strong><br />
ingratidão e esquivança que sempre para mim manifestou, vede se podeis por<br />
alguma via falar-lhe e manifestar as sau<strong>da</strong>des que padeço, as finezas com que<br />
a amo; que se ela bem as conhecera, porventura se mostrara menos esquiva.<br />
Isto confio de vós como de fiel amigo a quem só descobri os secretos de meu<br />
peito, que de outro não confiara ain<strong>da</strong> que a vi<strong>da</strong> perdera.<br />
Gloss. In c. For. de verb, signif.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 951<br />
Viu-se Bernardino empenha<strong>do</strong> a condescender ao que Raimun<strong>do</strong> lhe<br />
pedia como amigo, sen<strong>do</strong> filho <strong>do</strong> duque, seu senhor, e assim lhe prometeu de<br />
ao seguinte dia se partir para Bolonha e com to<strong>do</strong> o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> obrar quanto lhe<br />
ordenava no que lhe fosse possível. Com isto se partiram para Módena, e<br />
Bernardino provi<strong>do</strong> de dinheiro e cria<strong>do</strong>s para o tempo que em Bolonha<br />
assistisse, ao seguinte dia se partiu para Bolonha, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> a um <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s<br />
diante a tomar casas na ci<strong>da</strong>de convenientes para quan<strong>do</strong> chegasse poder<br />
recolher-se nelas. Chegou enfim a Bolonha, e depois de descansar <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong><br />
e mu<strong>da</strong>r o vesti<strong>do</strong> de caminho em custosa gala de corte, foi visitar a Frederico<br />
Manfre<strong>do</strong> e a seus filhos como seus naturais e patrícios de Módena, aonde<br />
to<strong>do</strong>s se haviam cria<strong>do</strong>. Foi dele recebi<strong>do</strong> com grande cortesia, e depois de lhe<br />
perguntarem pela saúde de sua alteza e de seus filhos, o príncipe Alexandre e<br />
Raimun<strong>do</strong>, lhe perguntaram a causa que a Bolonha o trazia. A que ele satisfez<br />
com fingir alguns negócios que na ci<strong>da</strong>de e universi<strong>da</strong>de tinha. Pediu licença<br />
para visitar a Aurélia e a Fenisa. Man<strong>do</strong>u Frederico aviso dentro primeiro e<br />
depois entran<strong>do</strong> com Bernardino, viu ele de perto a Fenisa e foi para ele sua<br />
vista a maior admiração. Então desculpou em Raimun<strong>do</strong> os excessos que de<br />
antes censurava por desacertos. Viu que era o portentoso <strong>da</strong> beleza, o mais<br />
sonoro clarim que publicava guerras às liber<strong>da</strong>des. Nos senhorios <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
faz-se obedecer o monarca com o estron<strong>do</strong>so <strong>da</strong>s armas e com o temor <strong>do</strong>s<br />
exércitos; porém no império <strong>da</strong> fermosura sem bélico aparato se aclama, sem<br />
batalhas se vence e sem violências se coroa. É a fermosura uma tirania<br />
hipócrita <strong>da</strong> brandura que mostra que a tem e é cruel<strong>da</strong>de de quem ninguém se<br />
acautela porque não presume rigor nos avisos <strong>da</strong> beleza; e assi cativa sem<br />
parecer cativeiro, fere sem parecer espa<strong>da</strong> e talvez mata sem se ter por mortal<br />
o airoso <strong>da</strong> vista.<br />
Dilatou-se a vista por ser a primeira, ouviu falar a Fenisa com a rara<br />
discrição de que é <strong>do</strong>ta<strong>da</strong> e ficou venci<strong>do</strong> com a vista e com a voz. Reparou<br />
Bernardino com atenção em seus olhos, e se nos golpes <strong>da</strong> espa<strong>da</strong> é<br />
necessário o reparo para desviar-lhe a feri<strong>da</strong>, o muito reparar na vista <strong>da</strong><br />
beleza é o meio mais certo de receber o <strong>da</strong>no. Enfim despediu-se Bernardino<br />
por não parecer molesto com a dilação <strong>da</strong> visita, não porque os olhos despedir-<br />
se desejassem, mas fez a reputação violência ao desejo. Saiu de Fenisa<br />
amante o que <strong>da</strong>s eleições de Raimun<strong>do</strong> era censor, experimentan<strong>do</strong> em si
952 Padre Mateus Ribeiro<br />
mesmo os desvelos que em Raimun<strong>do</strong> ouvia, mas não experimentava,<br />
conhecen<strong>do</strong>-os de antes só pela voz e não pela pena. Foi dilatan<strong>do</strong> a<br />
assistência em Bolonha mais tempo <strong>do</strong> que a seu cargo tinha, para lograr em<br />
várias ocasiões a vista de Fenisa, que de tais pensamentos notícias não<br />
presumia.<br />
Dissimulou Bernardino enquanto pôde seus desvelos, até que ven<strong>do</strong> que<br />
o silêncio era o adversário maior de seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, veio a buscar-me um dia e<br />
referiu-me tu<strong>do</strong> o que com Raimun<strong>do</strong> tinha passa<strong>do</strong>, <strong>da</strong> sorte que tendes<br />
ouvi<strong>do</strong>, e o intento com que por ordem sua a Bolonha viera, não com intento de<br />
falar a Fenisa em Raimun<strong>do</strong>, mas para poder <strong>da</strong>r-lhe novos desenganos,<br />
constan<strong>do</strong>-lhe como a Bolonha viera. Referiu como haven<strong>do</strong> agora visto a<br />
Fenisa ao perto, na visita que a seus pais fizera, a julgou pela maravilha de<br />
Itália primeira e pela oitava <strong>da</strong>s sete que admiraram o mun<strong>do</strong>. Que desejava<br />
pedi-la por esposa, porém que não se atrevia, com temores de não ser<br />
admiti<strong>do</strong>. E que suposto que ele confessava ser ela superior ao maior<br />
merecimento, contu<strong>do</strong> queria confiar esta empresa <strong>da</strong> ventura, sen<strong>do</strong> eu o<br />
medianeiro que sua petição propusesse, pois conhecia a muita estimação que<br />
estes senhores de mim faziam e o predicamento em que para com eles estava.<br />
A minha fi<strong>da</strong>lguia é em Módena bem notória, o meu morga<strong>do</strong> ren<strong>do</strong>so e<br />
de pensões livre, pois hoje sou filho único, sem irmãos a quem haja de <strong>da</strong>r<br />
esta<strong>do</strong>: meus procedimentos são notórios e me parece que de censura isentos.<br />
O esta<strong>do</strong> é a quem sou adequa<strong>do</strong>, sem que falte na<strong>da</strong> ao decoroso, de sua<br />
alteza ca<strong>da</strong> vez mais honra<strong>do</strong> e a seu agra<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> dia mais aceito e de to<strong>do</strong>s<br />
estima<strong>do</strong>. E suposto que Fenisa só pode emparelhar consigo mesma, pois<br />
além de ser filha de tais pais, é pela fermosura de seu rosto o agravo de Abril<br />
mais aplaudi<strong>do</strong> e a inveja de Maio mais queri<strong>da</strong>, Fénix em tu<strong>do</strong>, no parecer<br />
única e no aviso singular, sen<strong>do</strong> Narciso que só podia contentar-se de si<br />
mesma se retrata<strong>da</strong> se vira; contu<strong>do</strong> parecia-me a mi que haven<strong>do</strong> de<br />
empregar-se em escolher esposo, podia eu preferir por amá-la com extremos a<br />
outros, que sem tantas finezas em querê-la se opusessem à pretensão de<br />
alcançá-la por esposa. Nisso, senhor Adriano, me venho valer de vosso favor,<br />
a que me reconhecerei obriga<strong>do</strong> enquanto me durar a vi<strong>da</strong>.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 953<br />
Terminou Bernardino sua proposta, que eu ouvi atento por<br />
demonstração <strong>da</strong> cortesia; porém como ensina Demóstenes 961 , não só se ha<br />
de atender às palavras de quem fala, porém às utili<strong>da</strong>des ou <strong>da</strong>nos que <strong>da</strong>í<br />
resultar podem, a que o desejo muitas vezes não discursa, e assim lhe<br />
respondi:<br />
- É, senhor Bernardino, o assunto de que tratais por muitas causas a<br />
meu talento improporciona<strong>do</strong> e a vós nocivo, como mostrarei. A mi digo<br />
impróprio porque estes senhores confiaram de mi o magistério e educação de<br />
seus filhos, mas não o intervir eu em seus casamentos, para o que não me<br />
concederam licença, nem me é permiti<strong>do</strong> falar, que seria exceder eu a<br />
facul<strong>da</strong>de que me é concedi<strong>da</strong>. O consultar e tratar <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de seus filhos,<br />
empenho é só <strong>do</strong>s pais, e sen<strong>do</strong> Fenisa seu singular desvelo, lisonja de seu<br />
amor e cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so centro de suas memórias. É ela tão altiva na presunção e tão<br />
senhoril nos pensamentos que ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> mesma eleição de seus pais parece<br />
não se <strong>da</strong>ria por satisfeita, quan<strong>do</strong> o eminente de seu merecimento de na<strong>da</strong> se<br />
satisfaz. Tem o culminante <strong>da</strong> fermosura o sólio em seu próprio pensamento:<br />
tu<strong>do</strong> abaixo desta esfera julga por sublunar, que não se atreve a presumir voo<br />
o atrevi<strong>do</strong> ao eminente de sua estimação.<br />
Bem se viu esta ver<strong>da</strong>de em desprezar os oferecimentos de Raimun<strong>do</strong><br />
para ser seu esposo, fazen<strong>do</strong> com seus pais que logo para Bolonha se<br />
mu<strong>da</strong>ssem; e quan<strong>do</strong> um filho de um potenta<strong>do</strong> tão sublime não achou na<br />
altiveza de Fenisa aceitação, como se podia presumir que se <strong>da</strong>ria por<br />
satisfeita <strong>do</strong> casamento de um vassalo que a seu serviço assiste? Intolerável<br />
de sofrer, disse Juvenal 962 de uma esposa rica e poderosa; pois que será<br />
sen<strong>do</strong> rica, poderosa, mui fermosa e muito altiva? Presume a mulher<br />
superiori<strong>da</strong>des quan<strong>do</strong> se vê igual, pois como não presumirá exceder em tu<strong>do</strong><br />
a que por tantos títulos se imagina superior?<br />
É Fenisa muito ilustre, muito rica, muito moça, muito fermosa e muito<br />
discreta; e com tantos muitos que a lisonjeiam mal se pagariam seus<br />
pensamentos menos que de um titular poderoso que para esposa a pedisse; se<br />
ain<strong>da</strong> assim por satisfeita se desse, <strong>do</strong> que ain<strong>da</strong> posso duvi<strong>da</strong>r, consideran<strong>do</strong><br />
Demosth., in Olynth.<br />
Juven., Satyr. 6.
954 Padre Mateus Ribeiro<br />
o eleva<strong>do</strong> de sua condição, quem pelo raro atributo <strong>da</strong> beleza imagina poder<br />
deixar ao sol cadáver <strong>da</strong> luz e riscar os resplan<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s astros mais brilhantes<br />
com sua vista.<br />
O essencial de Fenisa é ser mulher, mas o acidental é ser prodígio,<br />
porque nela tu<strong>do</strong> parece admiração. Deixa-se ver raras vezes, porque receia<br />
que os olhos a ofen<strong>da</strong>m com a vista; e <strong>da</strong> sorte que o sol castiga aos olhos que<br />
em seu globo se põem com flagelo de raios, assim ela com mortificar a vista<br />
não concede lugar para que goze a de seus olhos quem a deseja, porque<br />
avarenta de favores, ninguém pode gloriar-se de que a viu menos esquiva,<br />
poden<strong>do</strong> ser talvez o repentino de sua vista objecto improviso <strong>da</strong> apreensão,<br />
porém nunca vagaroso juízo <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s.<br />
Sobretu<strong>do</strong> o cardeal lega<strong>do</strong> de Bolonha, seu tio, lhe tem prometi<strong>do</strong><br />
correr por sua conta seu esta<strong>do</strong>, se houvesse titular que a merecesse, sem<br />
cujo aplauso e vontade nem ela, nem seus pais aceitarão esposo algum, por<br />
muitos que se lhe ofereçam. Nem a vós, senhor Bernardino, convinha jamais<br />
emprender tal casamento, porque quan<strong>do</strong> um príncipe confiou de vós seu<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, espécie de infideli<strong>da</strong>de era dissuadi-lo a ele <strong>do</strong> que procuráveis para<br />
vós. Lá disse Plínio Júnior 963 que os procedimentos nos cargos mostram se<br />
foram erra<strong>da</strong>s ou acerta<strong>da</strong>s as eleições que <strong>do</strong>s sujeitos se fazem; como logo,<br />
senhor Bernardino, intentáveis deixar a Raimun<strong>do</strong> tão justamente queixoso e<br />
tão justamente senti<strong>do</strong> de haver erra<strong>do</strong> na escolha que de vossa pessoa fez<br />
para descobrir-vos seus pensamentos, quan<strong>do</strong> procurásseis para vós a esposa<br />
que ele para si com tantas veras pretendia? Lá disse Aristóteles 964 que era<br />
perigoso a um príncipe <strong>da</strong>r a um vassalo honras excessivas, porque talvez<br />
desvaneci<strong>do</strong> delas, não presumisse igual<strong>da</strong>des aonde pelo sublime <strong>do</strong> favor<br />
maior obediência e sujeição devia. Não sei eu que maior confiança podia<br />
Raimun<strong>do</strong> de vós fazer <strong>do</strong> que manifestar-vos seu coração, confian<strong>do</strong> de vós o<br />
que só fiava de seu peito. Nunca as pren<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s príncipes condizem a seus<br />
vassalos. Dorilau, capitão de Mitri<strong>da</strong>tes, rei de Ponto, refere Nicéforo Calisto 965<br />
que foi morto na batalha que os romanos lhe deram por levar vesti<strong>da</strong> a púrpura<br />
Plin. Jun., in Paneg.<br />
Arist., Pol. 1.<br />
Niceph. Callis., Lib. 10. Histor. Rom.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 955<br />
de seu rei, cui<strong>da</strong>n<strong>do</strong> os romanos que era Mitri<strong>da</strong>tes. Cain<strong>do</strong> ao grande<br />
Alexandre, passan<strong>do</strong> o rio Eufrates, nele a diadema que na cabeça levava, que<br />
um marinheiro lançan<strong>do</strong>-se às procelosas on<strong>da</strong>s foi buscar cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so e pon<strong>do</strong>-<br />
a na cabeça inadverti<strong>da</strong>mente para lhe ficarem livres os braços na<strong>da</strong>n<strong>do</strong>, lhe<br />
man<strong>do</strong>u o monarca tirar a vi<strong>da</strong> pelo atrevimento, que des<strong>do</strong>ura muito às<br />
obrigações de um vassalo o profanar as pren<strong>da</strong>s e insígnias de seu príncipe,<br />
cujas iras, diz o Séneca 966 , como tormentas no mar, devem fingir-se na terra.<br />
Além disto, quan<strong>do</strong> este casamento de Fenisa a que aspiráveis pudesse<br />
ter efeito (o que julgo impossível), aonde podíeis assegura-vos <strong>da</strong>s iras de um<br />
príncipe poderoso e ofendi<strong>do</strong>? Com dificul<strong>da</strong>de, disse Euripides 967 , abonançam<br />
as iras <strong>do</strong>s poderosos, sen<strong>do</strong> tempestade que ca<strong>da</strong> vez mais cresce e nunca<br />
serena. Quan<strong>do</strong>, diz Ovídio 968 , escaparam os gigantes <strong>do</strong>s raios fulminantes de<br />
Júpiter ofendi<strong>do</strong>? Em que montes Hiperbórios, em que desertos paramos de<br />
Arábia? Ou em que antípo<strong>da</strong>s remonta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s foros deste hemisfério superior,<br />
alunos <strong>da</strong> incógnita região, colónia de desconheci<strong>do</strong>s astros, parêntesis de<br />
<strong>do</strong>us mun<strong>do</strong>s a quem o centro <strong>da</strong> terra serve de raia que os divide, de muro<br />
que os aparta e de linha nunca vista que os desune; a que antípo<strong>da</strong>s, digo,<br />
podeis apelar para evitardes os assaltos, para vos escusardes <strong>do</strong>s perigos,<br />
para vos amparardes <strong>da</strong>s vinganças de Raimun<strong>do</strong>, se vos considerasse<br />
possui<strong>do</strong>r <strong>da</strong> pren<strong>da</strong> que mais amava, e por ser tão grande, chega a não<br />
alcançar por esposa sua? Esperáveis porventura alcançardes perdão de uma<br />
culpa que deixa cerra<strong>da</strong>s as portas à pie<strong>da</strong>de humana para poder enternecer-<br />
se? Dous caminhos deixa abertos uma ofensa cometi<strong>da</strong>, que são nos<br />
desvali<strong>do</strong>s a queixa e nos poderosos a vingança; ambos estes ficariam abertos<br />
a Raimun<strong>do</strong>, o <strong>da</strong> queixa, como ofendi<strong>do</strong>, e o <strong>da</strong> vingança, como tão poderoso.<br />
São os ciúmes em quem ama, enquanto ciúmes, umas fantasias que<br />
produz o receio, umas desconfianças que faz duvi<strong>do</strong>sas o amor, umas<br />
aparências que fabrica a imaginação, umas invejas sem enti<strong>da</strong>de de outra<br />
maior ventura, um agravo sem prova, um delírio sem manifesta loucura, um<br />
desmaio <strong>da</strong> razão, um eclipse <strong>do</strong> juízo, uma névoa <strong>do</strong> discurso, umas sombras<br />
Senec, Epist. 14.<br />
Eurip., in Med.<br />
Ovid., 1. De remed. amor.
956 Padre Mateus Ribeiro<br />
que escurecem a memória e riscam dela os assentos de to<strong>da</strong>s as obrigações.<br />
Pois se só uns ciúmes imagina<strong>do</strong>s são tão penosos em quem ama, que sentiria<br />
Raimun<strong>do</strong> se com Fenisa casa<strong>do</strong> vos visse? Aonde asseguráveis a vi<strong>da</strong> de seu<br />
rigor? A posse de seus assaltos? A quietação de seu poder? O perdão de sua<br />
ira? A paz de sua mágoa? E finalmente muito grande ofensa em muito pouca<br />
desculpa?<br />
Advertência minha é, senhor Bernardino, que vos não cegue o desejo,<br />
nem vos persua<strong>da</strong> a afeição a uma empresa tão impossível como arrisca<strong>da</strong>;<br />
porque só pode largar to<strong>da</strong>s as velas à esperança quem tem to<strong>do</strong>s os favores<br />
seguros na ventura. Desapaixonai o coração dessa inquietação que vos move<br />
a tão nocivo cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, e pois até agora lograis a tranquili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> paz em seguro<br />
empório, não vos aventureis aos golfos in<strong>do</strong>máveis <strong>da</strong> fortuna, porque haveis<br />
de arribar de tão infausta navegação derrota<strong>do</strong> e perdi<strong>do</strong>so. Está um desejo<br />
grande ocasiona<strong>do</strong> ao maior perigo, porque o afectuoso mal se aplica a tomar<br />
as lições de um desengano saudável, como diz Plutarco 969 ; e por isso vimos<br />
muitos no mun<strong>do</strong> tarde e sem proveito arrependi<strong>do</strong>s, porque a tempo não<br />
ouviram na academia <strong>da</strong> experiência os aforismos de desengana<strong>do</strong>s, as regras<br />
de segurança e tomaram postilas <strong>da</strong> prudência. Não procureis o antí<strong>do</strong>to no<br />
próprio lugar aonde descobristes o veneno, nem é acerto resistir aos golpes<br />
pegan<strong>do</strong> pelos fios corta<strong>do</strong>res à espa<strong>da</strong>, quero dizer, se na vista de Fenisa<br />
encontrastes o perigo, fazei de sua ausência a segurança. Dai a Raimun<strong>do</strong><br />
desenganos como leal, para que desista de alimentar-se de esperanças<br />
impossíveis, que uma ausência que com seus pais fez Fenisa para Bolonha é o<br />
escolho mais certo, em que há-de perigar seu poder quan<strong>do</strong> intente prosseguir<br />
em navegação tão arrisca<strong>da</strong>.<br />
Cap. VIII.<br />
De como Raimun<strong>do</strong> veio a Bolonha sobre o casamento de Fenisa e <strong>do</strong> que<br />
sucedeu<br />
Plut., De tranquil, anim.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 957<br />
Com esta resposta confuso, mas agradeci<strong>do</strong> ao desengano, que não é<br />
pouco haver desengano que seja agradeci<strong>do</strong>, se despediu Bernardino resoluto<br />
em voltar-se a Módena, pois em Bolonha achava tão encontra<strong>do</strong>s os caminhos<br />
não menos para amante que para medianeiro. Fingin<strong>do</strong> ter <strong>da</strong><strong>do</strong> fim aos<br />
negócios a que viera, se despediu de Manfre<strong>do</strong> e de seus filhos e filha, para<br />
lograr esse breve espaço de sua vista, pois ia tão desengana<strong>do</strong> de merecê-la.<br />
Se to<strong>do</strong>s os pretendentes souberam estimar o benefício de um desengano,<br />
porventura que houvera menos queixosos; porém são os desenganos tão<br />
pouco aceitos aos arrojos de um desejo e tão odiosos verdugos de uma<br />
esperança que ninguém os procura e poucos os recebem.<br />
Não há quem melhor saiba desenganar que o discurso <strong>do</strong> tempo; porém<br />
as lições <strong>do</strong> tempo chegam tarde, depois de despendi<strong>do</strong> o cabe<strong>da</strong>l <strong>do</strong>s<br />
desvelos e cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Não duvi<strong>do</strong> que Bernardino <strong>da</strong>ria eficazes desenganos a<br />
Raimun<strong>do</strong>, assim por tão desengana<strong>do</strong> como ia, como porque ele jamais<br />
chegasse a conseguir o que ele para esposa não era possível alcançar; sen<strong>do</strong><br />
alívio comum de um desgraça<strong>do</strong> ver a outros no mesmo empenho infelices,<br />
para que <strong>da</strong> ventura de um não se aumente o sentimento <strong>da</strong>s desgraças no<br />
outro, pois diz Aristóteles 970 que um contrário mais se manifesta à vista <strong>do</strong><br />
outro.<br />
Aqui, senhor Lisar<strong>do</strong>, vos dei cabal relação assim <strong>do</strong> antigo solar de<br />
Frederico Manfre<strong>do</strong>, tão ilustre nos progenitores como quem tem as raízes no<br />
empera<strong>do</strong>r Constâncio, filho <strong>do</strong> grande Constantino. Referi os motivos que o<br />
persuadiram a mu<strong>da</strong>r-se de Módena para esta ci<strong>da</strong>de de Bolonha, por causa<br />
<strong>da</strong>s amantes inquietações de Raimun<strong>do</strong>, para que à sombra <strong>do</strong> cardeal lega<strong>do</strong>,<br />
seu parente, em alheio senhorio, nem receia de Raimun<strong>do</strong> os arrojos, nem<br />
teme de seu poder as ousadias, sen<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s nesta ci<strong>da</strong>de estima<strong>do</strong> como<br />
ele por sua pessoa e cortesia merece, porque sen<strong>do</strong> a honra o prémio <strong>da</strong><br />
virtude, como diz Plínio Sénior 971 , e a Frederico por seus louváveis<br />
procedimentos to<strong>da</strong> a estimação é devi<strong>da</strong>. Emparelha nele a fi<strong>da</strong>lguia com a<br />
riqueza, o esta<strong>do</strong> com o ilustre, a gravi<strong>da</strong>de com a estimação, e finalmente se<br />
acha nele abaixo <strong>do</strong> título de príncipe quanto se pode <strong>da</strong>r em um vassalo<br />
Arist., Rhet. 2.<br />
Plin. Senior, Lib. 5.
958 Padre Mateus Ribeiro<br />
grande. É Fenisa, sua filha, o centro de seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, o desvelo de seu amor<br />
e o mimo de seu desejo, e com razão colocaram seus pais nela to<strong>do</strong> o<br />
empenho de seu querer, porque nela se acha uni<strong>do</strong> quantos <strong>do</strong>tes e perfeições<br />
em outras vivem separa<strong>da</strong>s. É <strong>da</strong> fermosura anima<strong>da</strong> admiração e em vinte<br />
anos de i<strong>da</strong>de o juízo mais ancião, a discrição mais subi<strong>da</strong>, o discurso mais<br />
acerta<strong>do</strong>; na modéstia rara maravilha, pois em tanta beleza se retira de ser<br />
vista e em tão singular aviso obriga-a só a falar o respeito que a seus pais se<br />
deve. Tão briosa e senhoril na condição e de opinião tão altiva que à sua vista<br />
na<strong>da</strong> avultam as riquezas, nem os esta<strong>do</strong>s, não lhe servin<strong>do</strong> de suborno à<br />
vontade, porque tu<strong>do</strong> estima em pouco quem a si se estima em mais.<br />
Deu fim Adriano a sua relação, de que eu lhe rendi as graças, julgan<strong>do</strong><br />
no estilo de seu discurso o selecto de seu juízo, merece<strong>do</strong>r <strong>do</strong> muito em que<br />
Frederico o estimava por suas letras, prudência e bons procedimentos. E<br />
porque era já a noite entra<strong>da</strong>, me despedi bem cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so <strong>do</strong> que ouvi<strong>do</strong> tinha<br />
<strong>da</strong>s notícias que me havia <strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>da</strong>s pretensões de Raimun<strong>do</strong>.<br />
Passei a noite desvela<strong>do</strong>, e sen<strong>do</strong> o sono, como diz Aristóteles 972 , <strong>da</strong><strong>do</strong><br />
aos mortais para alívio <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e férias <strong>do</strong>s trabalhos <strong>do</strong> dia, em mim,<br />
pelo contrário, foi um repeti<strong>do</strong> cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e um contínuo desvelo, sen<strong>do</strong> as<br />
imaginações estímulos <strong>do</strong> discurso que o incitam a fabricar vários<br />
pensamentos que a memória lhe propõe. Via-me empenha<strong>do</strong> em amar Fenisa,<br />
ain<strong>da</strong> que sem manifestar-lhe este cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, por não poder descobrir ocasião<br />
em que falar-lhe pudesse, sen<strong>do</strong>, como diz Demóstenes 973 , a voz <strong>da</strong> ocasião<br />
oportuna a mais eficaz; porém o retiro de seu recolhimento e a companhia de<br />
sua mãe e cria<strong>da</strong>s e o receio de que pudessem seus irmãos presumir meus<br />
pensamentos cortavam em flor meus desejos, sen<strong>do</strong> abortos que antes de<br />
saírem à luz mortos ficavam, morren<strong>do</strong> de cobardes, sen<strong>do</strong> nasci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> amor,<br />
que é mestre <strong>da</strong>s ousadias, como lhe chama Platão 974 . Porém com as notícias<br />
que Adriano me deu <strong>da</strong>s causas <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça de Frederico para Bolonha,<br />
intentos de Raimun<strong>do</strong> e desengana<strong>da</strong>s pretensões de Bernardino, posso<br />
afirmar que vi minhas esperanças quasi desespera<strong>da</strong>s.<br />
Arist., De son. & vig.<br />
Dem., Exargum. lib.<br />
Plat., in Tim.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 959<br />
- Como é possível (dizia eu), atrevi<strong>do</strong> Lisar<strong>do</strong>, que com asas tão<br />
pequenas intentes remontar o voo de teus pensamentos ao mais eleva<strong>do</strong><br />
Olimpo? Pretendes ser colono <strong>da</strong> esfera mais sublime? Avizinhar-te a seres<br />
registro <strong>do</strong> sol quan<strong>do</strong> mais brilhante nos resplan<strong>do</strong>res se mostra? Queres ser<br />
temerário investiga<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s cristalinos raios <strong>da</strong>s estrelas? E o que só concede<br />
às águias mais altivas, que tem o globo <strong>do</strong> sol por alvo de seus olhos, queres<br />
tu imitar tão falto de asas?<br />
Como pretendes o casamento de Fenisa, que <strong>do</strong> filho de um príncipe<br />
soberano tão pouca estimação fez <strong>do</strong> casamento? Como quem a Raimun<strong>do</strong><br />
ofereci<strong>do</strong> para ser seu esposo nunca franqueou a vista, nem lhe deve o menor<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, nem lhe permitiu a lisonja de uma esperança, pagan<strong>do</strong>-lhe com os<br />
agros de um desengano os obséquios <strong>da</strong>s maiores finezas, confias tu abrir<br />
brecha em seu coração? Esperas render uma vontade tão idiota em amar que<br />
nunca tomou postila de querer? Como há-de sentir tuas penas a que parece<br />
insensível no penar? Não consideras que a neve <strong>do</strong> rosto se comunicou ao<br />
peito para ficar sen<strong>do</strong> to<strong>da</strong> neve? Que esperas de uma condição tão cruel que<br />
de na<strong>da</strong> se demove, fazen<strong>do</strong>-se desentendi<strong>da</strong> ao mal, por não lhe aplicar o<br />
remédio a quem padece? Se são as esperanças os espíritos vitais de que se<br />
alimenta o amor, cortan<strong>do</strong> em flor to<strong>da</strong>s as esperanças, corta a vi<strong>da</strong> no berço a<br />
to<strong>do</strong> o amor.<br />
E pon<strong>do</strong> à parte tantos impossíveis, que consideras que pretendes sem<br />
declarar-te? Queres que ela adivinhe teus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s? Se aos que vê manifestos<br />
faz que os não conhece, como aos ocultos se mostrará conheci<strong>da</strong>? Este<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong> sepulta<strong>do</strong> em meu peito para conhecer-se é morto e para atormentar-<br />
me vivo. Como pode obrigar quem às escuras serve? Que remédio espera<br />
quem não publica a <strong>do</strong>r? Como pode pagar quem a dívi<strong>da</strong> ignora? Com os<br />
receios <strong>do</strong> perigo, parecem abortivos mil generosos intentos; pois eu me<br />
resolvo a fazer prova <strong>da</strong> ventura, antes que queixar-me de infelice <strong>do</strong> que<br />
morrer de cobarde. Sen<strong>do</strong> os cometas quan<strong>do</strong> aparecem fogosos sustos <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>, ameaços prodigiosos <strong>do</strong> céu e assombrosos espantos <strong>da</strong> terra, nem a<br />
to<strong>da</strong>s as ci<strong>da</strong>des igualmente atemorizam, porque nem to<strong>do</strong>s os reinos e<br />
ci<strong>da</strong>des o mesmo rigor experimentam. Que to<strong>do</strong>s experimentem de Fenisa a<br />
ingratidão e eu dela não faça prova, é manifesta cobardia. Se sair com vitória<br />
minha ousadia, terei mais de que poder gloriar-me; e quan<strong>do</strong> experimente a
960 Padre Mateus Ribeiro<br />
ingratidão, direi que entre tantos desgraça<strong>do</strong>s não é maravilha haver mais um<br />
infelice.<br />
Tu<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> pode com o tempo ter mu<strong>da</strong>nça. O rio mais cau<strong>da</strong>loso<br />
pode descobrir as areias, se com os perío<strong>do</strong>s <strong>do</strong> tempo se secar a fonte <strong>do</strong><br />
cristalino solar <strong>do</strong>nde nasce; pode arruinar-se o monte mais altivo, fican<strong>do</strong><br />
sen<strong>do</strong> vale o que jubilava de monte. Se Fenisa é insensível, para que logra os<br />
foros de mulher? E se é mulher, possível é mu<strong>da</strong>r-se. Os repentes nos<br />
venturosos tem mais valor <strong>do</strong> que os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s vagarosos nos desgraça<strong>do</strong>s. Eu<br />
na<strong>da</strong> venho a perder em fazer prova <strong>da</strong> ventura. No dificultoso consiste o preço<br />
<strong>da</strong> estimação, disse Quinto Cúrcio 975 , porque na facili<strong>da</strong>de desfalece to<strong>do</strong> o<br />
desejo, como escreve Plínio 976 . Em emprender o que é mais eleva<strong>do</strong> se mostra<br />
a grandeza <strong>do</strong> coração, que a águia generosa nunca voa ao humilde <strong>da</strong> terra,<br />
mas ao remonta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ares; e quan<strong>do</strong> não avance meu desejo ao eminente a<br />
que aspiro, antes quero queixar-me com razão que viver com cobardias.<br />
Com estes e outros solilóquios passei a noite desvela<strong>do</strong>, e apenas a<br />
aurora deu os primeiros indícios de se avizinhar o dia, quan<strong>do</strong> me resolvi a<br />
escrever-lhe, toman<strong>do</strong> a pena para declarar as minhas, dizen<strong>do</strong> assim:<br />
De Cesena, minha pátria, me trouxeram a Bolonha os desejos de<br />
ver-te, e foi tua vista maior que tua fama. Muito deves, Fenisa, à natureza<br />
em te formar tão fermosa, que só em confessar que te vi, chego a<br />
professar amar-te, sen<strong>do</strong> tua vista o mais belo suborno <strong>da</strong>s vontades.<br />
Sou morga<strong>do</strong>, ilustre e rico; não me trouxe a Bolonha necessi<strong>da</strong>de de<br />
estu<strong>da</strong>r, mas de aprender em teus olhos lições de mais querer-te, se<br />
pudera ser possível poder mais amar-te, que o que sobe ao auge não<br />
pode mais subir, se de novo <strong>da</strong> eleva<strong>da</strong> eminência não descer. E como<br />
meu amor é impossível que desça a menos, assim julgo ser impossível<br />
que possa subir a mais. Foste o primeiro empenho que teve nesta vi<strong>da</strong><br />
meu cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e meu amor o primogénito de minha vontade, e como<br />
primícias merece ser a teus olhos aceito. E pois foi tão em nasci<strong>do</strong>, não<br />
Quint. Curt., Lib. 7.<br />
Plin. Jun., Lib. 8.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 961<br />
permitas que seja desgraça<strong>do</strong>, pois consiste em tua mão o fazê-lo<br />
venturoso.<br />
Isto continha o escrito que lhe enviei por via de uma cria<strong>da</strong>, que<br />
prometeu <strong>da</strong>r-lho na sua mão, promessa que facilitou o ouro que liberal lhe dei.<br />
Afirmou-me que o lera, mas nenhuma resposta deu. Segundei com outro, mas<br />
não houve resposta. Repetia eu as visitas a seu irmão Constantino, buscan<strong>do</strong>-<br />
o em sua casa e ele vin<strong>do</strong> à minha como costumava, que, como diz<br />
Aristóteles 977 , mal se conserva a amizade aonde falta a comunicação. Esperei<br />
alguns dias se Fenisa respondia, mas foi esperança sem fruto; fiz diligência por<br />
vê-la, mas de propósito parece se ocultava. Lembra-me que disse Platão 978<br />
que o não <strong>da</strong>r resposta era falta <strong>da</strong> urbana cortesia, e suposto que nas<br />
<strong>do</strong>nzelas não tinha este prolóquio lugar, pois a modéstia as exime de<br />
responderem a amorosos escritos, mas adverti em dizer Euripides 979 que o<br />
silêncio nos entendi<strong>do</strong>s se podia avaliar por resposta; e como a fama publicava<br />
tantas discrições em Fenisa como panegíricos de fermosa, julguei que o negar<br />
reposta aos escritos era despedir-me sem voz <strong>da</strong> pretensão de ser esposa<br />
minha e sem letras sentenciar-me a perpétuo desterro de sua vista, pois jamais<br />
aparecia aonde eu vê-la pudesse.<br />
Sempre imagina o pior quem vive desconfia<strong>do</strong> <strong>da</strong> ventura: são os<br />
vagares, dizem Lactan<strong>do</strong> 980 , Firmiano e Quintiliano 981 , uns desenganos<br />
rebuça<strong>do</strong>s na dilação, umas despedi<strong>da</strong>s encobertas na demora.<br />
- Pois se assim é, dizia eu, que tenho que esperar já em Bolonha? Deu<br />
hoje fim meu voluntário estu<strong>do</strong> com minha infelice pretensão. Porventura<br />
esperarei mu<strong>da</strong>r-se quem tem de diamante a fermosura e a dureza? Ou<br />
deixará o diamante de ser pedra, por mais quilates que se atribuam a seu<br />
valor? Ficarei eu em Bolonha sen<strong>do</strong> ludíbrio de seus olhos, quan<strong>do</strong> sua<br />
presunção de quantos olhos a viram faz ludíbrio? Dedicarei extremosas finezas<br />
977 Arist., Eth. 8.<br />
978 Plat., De scient.<br />
979 Eurip., apud Plut. De vitios. vere.<br />
980 Lact., Lib. 1.<br />
981 Quint., Dec!. 2.
962 Padre Mateus Ribeiro<br />
à própria ingratidão? Obséquios ao mesmo desprezo? Mais seria nece<strong>da</strong>de<br />
que loucura: porque um louco nem ajuíza, nem conhece o que faz, e assim nos<br />
erros tem desculpa, mas um néscio nenhuma desculpa tem, pois conhecen<strong>do</strong> o<br />
que faz, em tu<strong>do</strong> desacerta, e presumin<strong>do</strong> que navega em popa, se acha<br />
derrota<strong>do</strong> <strong>da</strong> ignorância. Infelice jorna<strong>da</strong> foi esta a Bolonha para mim a ver este<br />
basilisco que nos olhos traz o veneno e o encanto: o veneno para matar e o<br />
encanto para <strong>da</strong>r-se a querer. Não vi cousa tão bela e tão ingrata: com ela<br />
nasceram juntas a soberba e a fermosura, a ingratidão e a beleza, a bizarria e<br />
a cruel<strong>da</strong>de, pois apurar o sofrimento sempre se julgou ser a maior tirania.<br />
Aqui deu fim minha pretensão, fez cláusula meu intento em procurá-la<br />
para esposa, desenganou-se minha esperança, terminou-se minha assistência<br />
em Bolonha: mu<strong>da</strong>rei de sítio por mu<strong>da</strong>r de ventura, pois já não me convém<br />
fazer <strong>do</strong> amor porfia, pois não há porfia contra a ventura. Voltarei para Cesena<br />
à presença de minha mãe, irmão, parentes e amigos, e verei se mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> de<br />
terras, posso mu<strong>da</strong>r de memórias, pois uma vez que a vista não as renovar,<br />
virão a desfalecer, pois como diz Cícero 982 , consta a memória <strong>do</strong>s vestígios<br />
que nela imprimiu a vista e não há pincel mais idóneo para pintá-los que a<br />
ausência carecen<strong>do</strong> de ver e a tinta de uma ingratidão não mereci<strong>da</strong>.<br />
Com esta resolução saí de casa para tratar <strong>do</strong> apresto de minha parti<strong>da</strong><br />
e despedir-me de Lívia e de Roberto, seu esposo, quan<strong>do</strong> me encontrou<br />
Constantino, irmão de Fenisa, a quem comuniquei que ao seguinte dia me<br />
partia para Cesena, chama<strong>do</strong> de minha mãe a negócios precisos, em que era<br />
necessária minha presença. E como ele se <strong>da</strong>va por meu particular amigo, se<br />
mostrou de meu retiro bem pesaroso, intentan<strong>do</strong> com razões dissuadir-me a<br />
ausência; porém como eu estava resoluto em sair de Bolonha, propus-lhe<br />
aparentes razões tão eficazes que não teve que replicar-me, porém muito que<br />
sentir em meu apartamento; porque na universi<strong>da</strong>de, assim por quem ele era,<br />
como juntamente por meu respeito, era mui estima<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s. Recolheu-se<br />
Constantino para casa tão melancólico na presença e tão pesaroso na vista<br />
que reparan<strong>do</strong> Fenisa na tristeza que mostrava, lhe perguntou a causa <strong>do</strong><br />
desgosto que mostrava sentir, pois, como diz Cícero 983 , as paixões <strong>da</strong> alma de<br />
Cicer., Tusc. 1.<br />
Cicer., De pet. Cons.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 963<br />
ordinário se manifestam no rosto como em janelas a que aparecem as mágoas<br />
interiores; ele lhe respondeu que estava pesaroso de minha ausência, por<br />
perder em mim a companhia de um amigo honra<strong>do</strong> e proveitoso, que na<br />
academia lhe tinha granjea<strong>do</strong> muitos e assistin<strong>do</strong>-lhe com grande satisfação, e<br />
que a chama<strong>do</strong> de sua mãe intentava partir-se na manhã seguinte. Logo como<br />
discreta entendeu Fenisa que os motivos desta ausência eram tomar uma<br />
desespera<strong>da</strong> vingança de seu ingrato desdém, com que se havia mostra<strong>do</strong> tão<br />
esquiva às finezas que em meus escritos publicava.<br />
Consolou a seu irmão <strong>do</strong> pesar que mostrava com dizer-lhe que<br />
porventura não estaria minha parti<strong>da</strong> tão apressa<strong>da</strong> como dizia e que podia<br />
chegar-me novo aviso para que me dilatasse, porque de uma hora para outra<br />
se mu<strong>da</strong>m os pareceres e variam as ocasiões. Com isto se retirou e<br />
secretamente pela cria<strong>da</strong> que havia si<strong>do</strong> mensageira <strong>do</strong>s meus escritos, me<br />
man<strong>do</strong>u um reca<strong>do</strong> em que dizia que sem falta essa noite lhe viesse falar ao pé<br />
de um janela que caía sobre o muro <strong>do</strong> seu jardim. Sempre costuma seguir a<br />
admiração ao não espera<strong>do</strong>: escrupulizava o desusa<strong>do</strong> favor, o crédito à<br />
ver<strong>da</strong>de, arguin<strong>do</strong> instâncias ao felice, porque a um desgraça<strong>do</strong> não é fácil de<br />
crer uma ventura. Informei-me <strong>da</strong> mensageira se era sonho com que queria<br />
divertir-me ou se era ver<strong>da</strong>de com que pretendia obrigar-me. Porém confirmou<br />
ser o reca<strong>do</strong> que Fenisa lhe dera assim como o referia. Lá disse Quintiliano 984<br />
que há ver<strong>da</strong>des a quem fazem suspeitosas ou a enti<strong>da</strong>de ou o árduo <strong>do</strong>s<br />
acidentes, e que nunca alcançam cabal crédito senão depois de executa<strong>da</strong>s,<br />
parecer que seguiu também Plínio 985 .<br />
Quem havia de crer que Fenisa, a gala mais singular <strong>da</strong> beleza, a<br />
isenção maior <strong>da</strong> tirania, o mais senhoril desprezo <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, o mais altivo<br />
desdém <strong>da</strong> fi<strong>da</strong>lguia, o escân<strong>da</strong>lo mais belo <strong>da</strong> ingratidão, to<strong>da</strong> rosa pela<br />
fermosura e to<strong>da</strong> espinhos pelo rigor, e que em poucos anos de i<strong>da</strong>de lograva<br />
em seu rosto as flores <strong>da</strong>s despedi<strong>da</strong>s de Abril e as primícias <strong>da</strong>s entra<strong>da</strong>s de<br />
Maio, e finalmente quem suspendia as ousadias ao mais delica<strong>do</strong> pincel, ain<strong>da</strong><br />
que o de Apeles fosse, para poder copiar assombros de fermosura que não<br />
tem imitação, depois de tantas esquivanças havia de querer falar-me e de novo<br />
Quint., Lib. 4.<br />
Plin. Sen., Lib. 8.
964 Padre Mateus Ribeiro<br />
ouvir-me? Havia de render a altiveza jamais rendi<strong>da</strong> a chamar-me quan<strong>do</strong> eu<br />
mais desespera<strong>do</strong> de ser ouvi<strong>do</strong>? Quem cabalmente creria tal novi<strong>da</strong>de? Enfim<br />
despedin<strong>do</strong> a mensageira bem premia<strong>da</strong> <strong>do</strong> reca<strong>do</strong> e com resposta que sem<br />
falta iria à meia-noite, que era a hora que apontava, ao sítio que me dizia, fiquei<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong> os parabéns à minha ventura de se mostrar tão propícia, quan<strong>do</strong> menos<br />
espera<strong>da</strong>. Comecei a queixar-me <strong>do</strong> dia porque caminhava tão moroso,<br />
parecen<strong>do</strong>-me que o primeiro móvel, violento impulso <strong>da</strong>s esferas, perdera o<br />
seu antigo movimento e que o sol, por não perder a vista de Fenisa, cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so<br />
de vê-la se mostrava em seu curso descui<strong>da</strong><strong>do</strong>.<br />
Nunca foi o dia de mim tão aborreci<strong>do</strong> como aquele me pareceu tedioso,<br />
nunca mais odiosas as luzes, nem deseja<strong>da</strong>s as sombras, sen<strong>do</strong> os<br />
vespertinos crepúsculos de mim tão espera<strong>do</strong>s como para os tristes são os<br />
matutinos visos <strong>da</strong> aurora apeteci<strong>do</strong>s. Os relógios to<strong>do</strong>s me pareciam erra<strong>do</strong>s,<br />
seus pesos tinha por pesadelos que me oprimiam, seu cursar por suspeitoso: a<br />
tu<strong>do</strong> punha contraditas meu desejo, porque em tu<strong>do</strong> achava contradição minha<br />
esperança. Ensaiava os prelúdios <strong>do</strong> que havia de dizer-lhe, como me<br />
queixaria sem ofendê-la, como a poderia obrigar sem desgostá-la: nunca lição<br />
de ponto foi tão decora<strong>da</strong> como esta introdução de amor para mim estudiosa.<br />
Era a oposição de meus senti<strong>do</strong>s em que ia empenha<strong>da</strong> minha esperança e<br />
tu<strong>do</strong> quanto me ocorria para dizer-lhe me parecia mal, porque só Fenisa me<br />
parecia bem. Tu<strong>do</strong> avaliava por inculto, porque só a ela julgava por discreta.<br />
Seriam já passa<strong>da</strong>s as dez horas <strong>da</strong> noite, para meu alvoroço as mais<br />
vagarosas, quan<strong>do</strong> eu queria preparar-me para esta saí<strong>da</strong> para mim tão<br />
festiva, que nunca chega a reparar nos perigos quem leva o coração<br />
acompanha<strong>do</strong> <strong>da</strong>s esperanças, quan<strong>do</strong> senti passos de cavalos que na logea (a)<br />
<strong>da</strong>s casas entravam, e subin<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s meus cria<strong>do</strong>s, me deu reca<strong>do</strong> que <strong>do</strong>us<br />
cavaleiros emascara<strong>do</strong>s se haviam apea<strong>do</strong> e man<strong>da</strong>vam aviso que lhes<br />
importava falarem comigo. Assustou-me o reca<strong>do</strong> pelo tempo em que me<br />
buscavam, quan<strong>do</strong> eu estava para sair ao chama<strong>do</strong> de Fenisa, hora de mim<br />
tão pretendi<strong>da</strong> como parecia malogra<strong>da</strong>, e porque não diziam quem eram,<br />
antes me buscavam emascara<strong>do</strong>s; mas como não podia negar-me à cortesia e<br />
(a ' Loja <strong>da</strong> casa nobre: pátio coberto que serve de entra<strong>da</strong>, onde os lacaios assistem e entram<br />
as seges.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 965<br />
ain<strong>da</strong> ao pun<strong>do</strong>nor, pon<strong>do</strong> sobre um bofete um estoque, um broquel e uma<br />
pistola, que eram as armas que para essa noite sair fora prepara<strong>da</strong>s tinha,<br />
mandei reca<strong>do</strong> que entrassem. Entraram os <strong>do</strong>us emascara<strong>do</strong>s, pedin<strong>do</strong>-me<br />
man<strong>da</strong>sse sair para fora a <strong>do</strong>us cria<strong>do</strong>s meus que os entraram acompanhan<strong>do</strong><br />
diante, porque para me falarem assim lhes convinha; e eu com demonstrações<br />
de brioso, por que de mim não presumissem receios ou covardia, não só os<br />
mandei sair, mas fechan<strong>do</strong> a porta por dentro com <strong>da</strong>r volta à chave; fican<strong>do</strong><br />
sós eu e os <strong>do</strong>us desconheci<strong>do</strong>s, à luz de um lampião grande que na casa<br />
havia, vi que os trajes eram custosos. E se como diz Terêncio a preciosi<strong>da</strong>de e<br />
cultura <strong>do</strong>s vesti<strong>do</strong>s publicam a estimação de quem os veste, bem indicavam<br />
não serem pessoas de humilde esfera. Haven<strong>do</strong>-se assegura<strong>do</strong> que só de mim<br />
podiam ser ouvi<strong>do</strong>s, e assenta<strong>do</strong>s os três, tiraram os <strong>do</strong>us as máscaras e um<br />
deles falou assim:<br />
- Bem conheço, senhor Lisar<strong>do</strong>, que o improviso de minha vin<strong>da</strong> e a tais<br />
horas, suposto que ao vosso valor nunca podia causar receio, não deixará de<br />
haver causa<strong>do</strong> a vosso juízo admiração. Nasce esta, como diz Aristóteles 986 ,<br />
<strong>da</strong> incerteza, <strong>do</strong> desuso e <strong>do</strong> desconhecimento <strong>do</strong>s fins. E para que a<br />
suspensão não prossiga com desconhecerdes a quem vos busca, eu sou<br />
Raimun<strong>do</strong> de Este, filho segun<strong>do</strong> <strong>do</strong> duque de Módena, que bem deveis<br />
conhecer ser potenta<strong>do</strong> e senhor soberano em Itália.<br />
Ouvin<strong>do</strong> isto me levantei <strong>da</strong> cadeira, e fazen<strong>do</strong>-lhe a devi<strong>da</strong> cortesia,<br />
que a tão grande pessoa era obrigação, lhe disse:<br />
- A maior admiração fica sen<strong>do</strong> hoje para mim o dignar-se vossa<br />
excelência de honrar e autorizar com sua presença o limita<strong>do</strong> hospício desta<br />
casa, que <strong>da</strong>qui a diante será o timbre mais lustroso de nossa família,<br />
reconheci<strong>da</strong> a este grande favor com que vossa excelência quis autorizar e<br />
honrar a este seu menor cria<strong>do</strong>, a quem ofereço uma vontade mui pronta para<br />
empregá-la em seu serviço.<br />
Levantou-se Raimun<strong>do</strong> e com grande cortesia, levan<strong>do</strong>-me nos braços,<br />
me assentou na cadeira e prosseguiu dizen<strong>do</strong>:<br />
- Por ter sabi<strong>do</strong>, senhor Lisar<strong>do</strong>, o ilustre de vossa família e o valor que<br />
assiste em vossa pessoa e a muita amizade que tens com Carlos e<br />
Arist., Met. 1.
966 Padre Mateus Ribeiro<br />
Constantino, filhos de Frederico Manfre<strong>do</strong>, agora assistente nesta ci<strong>da</strong>de de<br />
Bolonha, vos escolhi para, assim disfarça<strong>do</strong> como venho, ser um par de dias<br />
vosso hóspede com meu amigo e secretário Bernardino Marascoto, que me<br />
acompanha, confian<strong>do</strong> por vosso meio conseguir o fim de uma empresa que<br />
me obrigou a deixar a corte e, sem meu pai o saber, partir-me desconheci<strong>do</strong> a<br />
esta ci<strong>da</strong>de. Do empenho que me traz vos <strong>da</strong>rei notícia a mais epiloga<strong>da</strong> que<br />
me for possível, como quem descreve o dilata<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em breve mapa.<br />
Já me persua<strong>do</strong>, que pois residia nesta ci<strong>da</strong>de, tereis visto a Fenisa,<br />
filha de Frederico Manfre<strong>do</strong>; porque só para mim, que lhe mereço mais,<br />
regateou a vista para que a visse menos. Poucas vezes a vi quan<strong>do</strong> morava<br />
em Módena: a primeira vista de seu garbo foi poderosa para vencer-me e a<br />
segun<strong>da</strong> eficaz com sua fermosura para matar-me. Com proprie<strong>da</strong>de<br />
chamavam à fermosura olhos de basilisco. To<strong>do</strong>s os animais nocivos, como o<br />
leão, o tigre, o lobo, verdugos inexoráveis <strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s, cruentos executores <strong>da</strong>s<br />
mortes, empenham para se mostrarem cruéis ou as garras homici<strong>da</strong>s ou as<br />
presas odiosas; a víbora mais nociva, o áspide mais venenoso valem-se <strong>da</strong>s<br />
mordeduras, deixan<strong>do</strong> na pequena sangria que imprimem muitas estra<strong>da</strong>s à<br />
morte e nenhumas esperanças à vi<strong>da</strong>. Só o basilisco, sem avizinhar-se, de<br />
longe como seta com os olhos fere e com a vista mata. Assim a fermosura,<br />
ten<strong>do</strong> na vista to<strong>do</strong> o perigo, se procura a mesma vista como se nela consistira<br />
o remédio, e beben<strong>do</strong>-se nos olhos o veneno, nos mesmos olhos se procura o<br />
antí<strong>do</strong>to. São as palavras essencialmente vozes, porém acidentalmente podem<br />
ser ou encómios que louvem, ou opróbrios que ofen<strong>da</strong>m, ou panegíricos que<br />
autorizem, ou injúrias que deslustrem. Assim os olhos <strong>da</strong> beleza, sen<strong>do</strong><br />
essencialmente olhos que vem, são acidentalmente ou setas que matam, ou<br />
lisonjas que obrigam.<br />
Soube Fenisa que era de mim com extremos ama<strong>da</strong> e professou outro<br />
extremo em aborrecer-me. Sofrível pudera ser o não amar-me, mas intolerável<br />
o chegar a aborrecer-me. Se o fazia por me considerar tão superior, sen<strong>do</strong><br />
seus pais de meus pais vassalos, advertira que a morte e o amor iguala a<br />
to<strong>do</strong>s. Sen<strong>do</strong> Clódio Romano de ilustríssima família, renunciou à fi<strong>da</strong>lguia com<br />
que havia nasci<strong>do</strong> e se fez plebeu só por ódio vingativo, para que sen<strong>do</strong> tribuno<br />
<strong>do</strong> povo, pudesse perseguir a Cícero e desafogar o intrínseco sentimento que<br />
dele tinha. Pois se o ódio fez a Clódio plebeu, como não faria o amor a Fenisa
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 967<br />
senhora? E se o ódio o fez desmontar <strong>da</strong> fi<strong>da</strong>lguia, como o amor não faria subir<br />
Fenisa à maior grandeza, sen<strong>do</strong> o amor, como diz Ovídio 987 , tão despreza<strong>do</strong>r<br />
<strong>da</strong>s majestades? É Fenisa por seus pais muito ilustre e por sua fermosura<br />
muito mais. Não pode queixar-se <strong>da</strong> natureza, porque tu<strong>do</strong> o melhor lhe deu,<br />
nem formar queixas <strong>da</strong> fortuna, porque se lhe negou nascer princesa, cuja<br />
soberania consiste em poderem a seus vassalos man<strong>da</strong>r e a nenhum monarca<br />
obedecer, privilégios em seus olhos tem Fenisa para que de quantos a viram<br />
se fazer amar e obedecer. Fiz-lhe presente por escritos esta vontade, este<br />
desvelo por vê-la, este padecimento por amá-la, porém nunca deu resposta,<br />
nem de palavra, quanto mais por pena; que mal podia tomar a pena para<br />
escrever, quem jamais conheceu penas que pudesse sentir.<br />
Impaciente meu desejo a ver-se tão despreza<strong>do</strong>, que como diz<br />
Quintiliano 988 é um desprezo duro flagelo para sofrer-se, rigoroso golpe para<br />
sentir-se, áspero castigo para aceitar-se, dei em passear de dia e de ron<strong>da</strong>r de<br />
noite as suas casas, consolan<strong>do</strong>-me com vê-las, pois a ela ver não podia;<br />
porém de sorte se retirou de poder de mim ser vista que, sen<strong>do</strong> as janelas de<br />
antes horizontes <strong>do</strong> sol, ficaram sen<strong>do</strong> crepúsculos nubla<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s sombras para<br />
meus olhos mais escuras. Perseverou no esquivo e eu no constante, e não<br />
desmaiei no desdém porque quis morrer de firme. Fez com seus pais se<br />
mu<strong>da</strong>ssem para a quinta <strong>do</strong> Bom <strong>Porto</strong>, junto às ribeiras <strong>do</strong> rio Panaro; com as<br />
novas desta mu<strong>da</strong>nça deram novo assalto as sau<strong>da</strong>des, mostrei-me queixoso<br />
pelo padecimento que sentia e sau<strong>do</strong>so pelas finezas com que amava, sen<strong>do</strong><br />
ausências para os olhos mágoa e para o coração tormento. Fingi caça<strong>da</strong>s para<br />
ver se a via, e ocasionou-se um dia achar a ocasião que em tantos procurava,<br />
ven<strong>do</strong> de perto a quem me matou de longe. O susto de ver-me lhe aumentou a<br />
beleza, trocan<strong>do</strong> a neve mais cândi<strong>da</strong> na púrpura mais fina, de sorte que podia<br />
agradecer-se ao improviso <strong>do</strong> sobressalto que mostrava o duplicar os<br />
acidentes à beleza. Ouviu-me as palavras que lhe disse, chegan<strong>do</strong> a oferecer-<br />
me para ser seu esposo, que era o maior abono e o mais certo que podia<br />
afiançar minha vontade; porém foi a resposta tão equívoca que nem mostrava<br />
aceitar-me, nem despedir-me, disfarçan<strong>do</strong> com as intercadências de assusta<strong>da</strong><br />
Ovid., 2. Metam.<br />
Quint., Decl. 13.
968 Padre Mateus Ribeiro<br />
as resoluções de agradeci<strong>da</strong>, com que nem fiquei desengana<strong>do</strong>, nem satisfeito<br />
<strong>da</strong> resposta, que por aparecer seu pai à vista, ficou a minha proposta<br />
malogra<strong>da</strong> e sua resolução indecisa.<br />
Retirei-me senti<strong>do</strong> de ver nela tão viva a ingratidão e em seus olhos tão<br />
cadáver meu merecimento, que nem vestígios deixava <strong>do</strong> que era, quan<strong>do</strong> os<br />
obeliscos maiores <strong>do</strong> tempo arruina<strong>do</strong>s sempre costumam deixar memórias<br />
indeléveis <strong>do</strong> que foram. Com esta mágoa no coração me retirei a Módena,<br />
deixan<strong>do</strong> passar <strong>do</strong>ze dias para ver se respondia; mas a resposta que tive<br />
foram novas de com seus pais e to<strong>da</strong> a casa se haverem mu<strong>da</strong><strong>do</strong> para esta<br />
ci<strong>da</strong>de de Bolonha, dizem que a visitar o cardeal lega<strong>do</strong>, primo de Frederico,<br />
mas o certo era para ficarem de assento fora <strong>do</strong> senhorio de meu pai, em<br />
jurisdição alheia. Com o repentino deste anúncio desanimou meu sofrimento,<br />
ven<strong>do</strong> tão dissonante o prémio ao merecimento, o galardão ao cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, como<br />
se o amar fora culpa, os extremos agravos e as finezas ofensas, retiran<strong>do</strong>-se<br />
de quem tão obsequioso a buscava como se fora inimigo de quem fugia. Quis<br />
delibera<strong>do</strong> partir-me logo a Bolonha, que mal se acomo<strong>da</strong> aos vagares o<br />
sentimento de uma ingratidão não mereci<strong>da</strong>, pois em ser Fenisa minha esposa<br />
ia muito a interessar e na<strong>da</strong> vinha a perder; porém dissuadiu-me a jorna<strong>da</strong> meu<br />
amigo Bernardino, que está presente, com razões dignas de seu juízo, com<br />
condição de ele primeiro vir a Bolonha a informar-se <strong>da</strong> ocasião desta<br />
mu<strong>da</strong>nça, se viviam em sua memória meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, se os ares forasteiros lhe<br />
tinham mu<strong>da</strong><strong>do</strong> a condição, e finalmente sem saber-se tirar oculta residência<br />
de seus mais encobertos pensamentos, quanto deles pudesse conhecer pelos<br />
efeitos e investigar a diligência e o discurso <strong>do</strong> juízo humano.<br />
Partiu-se Bernardino a esta ci<strong>da</strong>de, aonde assistiu dilata<strong>do</strong>s dias:<br />
explorou o mais escondi<strong>do</strong>, fez incessável diligência por descifrar o mais<br />
secreto, e por fim alcançou que em Fenisa só a nativa esquivança em seu peito<br />
vivia e que to<strong>do</strong>s os meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s em sua memória sem epitáfios sepulta<strong>do</strong>s<br />
estavam e na neve de seu desdém minha esperança morta. Com esta infausta<br />
informação, maravilha foi o sustentar os alentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, faltan<strong>do</strong> a respiração<br />
à esperança, não atribuin<strong>do</strong> aos efeitos <strong>da</strong> ausência o rigor, pois jamais na<br />
presença experimentei ventura. O morrer na lisonja de um engano ou no<br />
dilata<strong>do</strong> de uma esperança prometi<strong>da</strong> e anima<strong>da</strong> é morte suave, porque nunca<br />
chegou a conhecer os agros e os dissabores de um desengano. É um limbo
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 969<br />
aonde se não possui glória, não se conhece a pena. Porém acabar a vi<strong>da</strong> ao<br />
rigor perpétuo de uma esquivança não mereci<strong>da</strong>, aos golpes incessáveis de um<br />
desdém, às tiranias de uma ingratidão, parece um inferno temporal em que<br />
to<strong>da</strong>s as penas se padecem e em que to<strong>do</strong>s os alívios faltam.<br />
Impaciente pois o coração ao intolerável de tantos sentimentos, à<br />
inun<strong>da</strong>ção de tão insofríveis pesares, ao agrega<strong>do</strong> de tão contínuos desgostos,<br />
resolvi-me em vir pessoalmente a Bolonha encoberto; suposto que minha<br />
ausência em Módena seja censura<strong>da</strong> <strong>do</strong>s juízos, se bem não conheci<strong>da</strong> a<br />
causa dela, trago constante resolução de que ou hei-de perder a vi<strong>da</strong>, ou<br />
Fenisa há-de ser minha esposa. Da assistência que Bernardino fez nesta<br />
ci<strong>da</strong>de me deu notícias, senhor Lisar<strong>do</strong>, <strong>da</strong> particular amizade que tendes com<br />
os irmãos de Fenisa e <strong>da</strong> grande estimação com que to<strong>do</strong>s vos tratam, e com<br />
razão, porque <strong>do</strong> mais ilustre <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Cesena; e como de tal sujeito quis<br />
confiar de vós o que só de meu amigo Bernardino confiou meu peito. Elegi<br />
hospe<strong>da</strong>r-me em vossa casa encoberto por breves dias, até conseguir o intento<br />
que me traz a esta terra peregrino, com que me deixareis tão obriga<strong>do</strong> que<br />
corra meu agradecimento parelhas com minha vi<strong>da</strong>.<br />
Cap. IX.<br />
Em que Lisar<strong>do</strong> prossegue os sucessos de Raimun<strong>do</strong> sobre o casamento de<br />
Fenisa e como se tornou para Módena<br />
Assim falou Raimun<strong>do</strong>, de que fiquei admira<strong>do</strong> e tão suspenso que<br />
podeis, senhores, considerar na baixa que de repente deu minha tão próxima<br />
esperança no encontro que sobreveio a minha imagina<strong>da</strong> ventura. As flores e<br />
os frutos <strong>da</strong> terra em chegan<strong>do</strong> à sua última perfeição, logo declinam na cor, na<br />
fragrância, no suave, no sabor e nas mais quali<strong>da</strong>des de que os tinha <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> a<br />
natureza, porque o mesmo tempo é inimigo universal de tu<strong>do</strong>, como lhe<br />
chamou Cícero 989 . Pois se a minha engana<strong>da</strong> esperança ou minha<br />
desengana<strong>da</strong> ventura se queixava antes <strong>do</strong> reca<strong>do</strong> em que Fenisa me<br />
chamava, e em tão breve espaço vi derrota<strong>do</strong> este favor duvi<strong>do</strong>so, esta<br />
Cicer., Pro Marc.
970 Padre Mateus Ribeiro<br />
felici<strong>da</strong>de presumi<strong>da</strong>, como não me queixaria de pouco afortuna<strong>do</strong> em ver,<br />
antes de aparecer a flor corta<strong>da</strong>, a esperança com a oposição presente,<br />
sentin<strong>do</strong> já o fim antes de ver o princípio?<br />
- Aqui (dizia eu entre mi) deram fim meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, terminou-se meu<br />
desvelo, naufragou para sempre minha esperança, oprimiu-se meu desejo e<br />
fez divórcio para sempre a ventura com minha esperança. Empenhou-se um<br />
príncipe como Raimun<strong>do</strong> em ser esposo de Fenisa: dela foi a ventura e minha<br />
a desgraça. Confiou-se de mim como de amigo, obrigação me fica de assistir-<br />
Ihe: primeiro está meu pun<strong>do</strong>nor que meu desejo e meu crédito que minha<br />
estimação. Eu bem posso passar sem o casamento de Fenisa, mas não sem<br />
obrar conforme às obrigações com que nasci, pois é abono <strong>do</strong> ilustre o fi<strong>da</strong>lgo<br />
procedimento. Este príncipe se valeu de mim em se hospe<strong>da</strong>r em minha casa e<br />
em manifestar-me seu intento: este é honroso, pois aspira a casar com Fenisa,<br />
ela tu<strong>do</strong> merece, por quem é, e ele pelo que eu obrar me ficará sempre<br />
obriga<strong>do</strong>, pois como disse Aristóteles 990 , mais vai um bom amigo que as<br />
riquezas, porque estas podem faltar e o amigo fica.<br />
E assim lhe respondi:<br />
- Eu, senhor, estava quasi de caminho para Cesena, minha pátria,<br />
chama<strong>do</strong> de minha mãe a negócios que importavam, porém a to<strong>do</strong>s prefiro a<br />
honra que vossa excelência me faz em se servir deste limita<strong>do</strong> hospício, tão<br />
incapaz para sua grandeza; porém caberá na esfera de meu desejo o que não<br />
pode receber tão abrevia<strong>do</strong> <strong>do</strong>micílio. A vontade de Fenisa, como tão livre, não<br />
pende de meu arbítrio, porém tem ela fama de tão discreta como de fermosa,<br />
que bem se pode esperar de seu juízo que conhecerá a grande felici<strong>da</strong>de que<br />
em ser esposa de vossa excelência sua estrela lhe oferece, e mais com esta<br />
fineza de buscá-la em Bolonha com tão honroso intento. E porque <strong>da</strong> noite a<br />
maior parte é passa<strong>da</strong>, com licença de vossa excelência quero <strong>da</strong>r ordem a<br />
preparar as camas e quarto para que descanse, e o senhor secretário, <strong>da</strong><br />
moléstia <strong>do</strong> caminho, aonde suprirá a grandeza de meu desejo as limitações de<br />
um estu<strong>da</strong>nte forasteiro de sua pátria.<br />
Com palavras de grande cortesia me deu as graças Raimun<strong>do</strong> desta<br />
vontade que mostrava e eu saí a preparar um quarto <strong>da</strong>s casas com o melhor<br />
990 Arist., Top. 8.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 971<br />
adereço que em casa havia, de que estava bastante provi<strong>da</strong>, aonde ele e<br />
Bernardino se recolheram a repousar o que <strong>da</strong> noite restava.<br />
Mal pude eu descansar com o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong> encontro que a fortuna me<br />
havia ocasiona<strong>do</strong>, e se como diz Aristóteles 991 o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> que tem um só<br />
empenho por objecto é mais eficaz que o que se diverte a muitos, porque<br />
impedin<strong>do</strong>-se uns aos outros, nenhum alcança valor de eficaz, contu<strong>do</strong> eu tinha<br />
<strong>do</strong>us cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, ca<strong>da</strong> qual deles poderoso a desvelar-me, ain<strong>da</strong> que vivera no<br />
maior descui<strong>do</strong>. Lima sur<strong>da</strong> <strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s chamou Ovídio 992 aos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, porque<br />
atenuam as vi<strong>da</strong>s e não se sentem, e eu tinha ocupa<strong>do</strong> a memória com <strong>do</strong>us<br />
desvelos, ca<strong>da</strong> um deles eficaz a <strong>da</strong>r-me muita guerra. Um era o hóspede que<br />
em casa tinha e outro o amor que em meu peito morava: a grandeza <strong>do</strong><br />
hóspede para os ciúmes e a grandeza <strong>do</strong> amor para o tormento. Considerava<br />
que na própria noite perdia a ventura de poder falar a Fenisa e na própria noite<br />
sobreveio to<strong>da</strong> a oposição à minha esperança; e o que em tantos meses não<br />
pôde efectuar meu cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, que era ter uma resposta de Fenisa, me ofereceu<br />
a fortuna para não lográ-la. Com o vivo destes pesares na memória presentes<br />
e na mágoa insofríveis, fazen<strong>do</strong> violento divórcio com o sono meus senti<strong>do</strong>s,<br />
passei o que ficava <strong>da</strong> noite, desejan<strong>do</strong> só a luz <strong>do</strong> dia para sair a queixar-me<br />
ao campo, aonde não tivesse mais ouvintes que as verdes árvores que só com<br />
o movimento de suas folhas respondem aos aflitos.<br />
Apenas rompeu a aurora o enluta<strong>do</strong> manto com que a noite se cobria,<br />
rasgan<strong>do</strong> de um golpe muitas distâncias de sombras que o hemisfério vestiam,<br />
quan<strong>do</strong> entrei a <strong>da</strong>r a meus hóspedes os alegres dias. Estavam já vesti<strong>do</strong>s, e<br />
porque Raimun<strong>do</strong> me tinha pedi<strong>do</strong> na noite, quan<strong>do</strong> queria recolher-se, que<br />
pois tinha particular amizade com Constantino, quisesse comunicar-lhe os<br />
intentos com que a Bolonha viera, pedi-lhe agora licença para ir tratar com ele<br />
o que sua excelência me encomen<strong>da</strong>ra, ou se lhe parecesse mais conveniente<br />
chamá-los a minha casa, que a ele e a seu irmão Carlos chamaria. Consultou<br />
Raimun<strong>do</strong> o parecer com Bernardino, e ele respondeu assim:<br />
- Suposto, senhor, que meu discurso não pode avançar ao melhor<br />
acerto deste empenho que vossa excelência procura, não deixarei de advertir o<br />
Ovid., 3. Metam.
972 Padre Mateus Ribeiro<br />
meio que me parece mais seguro e expediente, se bem Aristóteles disse que<br />
os meios de acertar não estão sempre subordina<strong>do</strong>s seus efeitos à nossa<br />
eleição, assim como o médico com aplicar os meios à saúde nem sempre o<br />
enfermo a alcança. É Frederico Manfre<strong>do</strong> mui prudente, e sem o consultar com<br />
o cardeal lega<strong>do</strong>, seu parente, nunca se resolverá a <strong>da</strong>r assento ao casamento<br />
de Fenisa, sua filha, assim em razão <strong>do</strong> parentesco como pelo respeito que se<br />
deve a um cardeal lega<strong>do</strong> e governa<strong>do</strong>r de Bolonha, a cuja sombra e amparo<br />
hoje assiste. Não são os filhos ain<strong>da</strong> na i<strong>da</strong>de juvenil para tratarem empenhos<br />
de casamentos; e suposto que neles possa <strong>da</strong>r-se muito juízo, dificulta a<br />
moci<strong>da</strong>de o crédito que deve <strong>da</strong>r-se à sabe<strong>do</strong>ria, como ensina Aristóteles 994 na<br />
Ética, em razão de faltar a experiência, que, como diz Manílio 995 , com o<br />
conhecimento de vários <strong>caso</strong>s e diversos sucessos com os anos se alcança o<br />
que com a a<strong>do</strong>lescência mal se compadece. Levam os conselhos já provectos<br />
na i<strong>da</strong>de, diz Euripides 996 , consigo a autori<strong>da</strong>de para serem bem ouvi<strong>do</strong>s e<br />
muitas vezes aceitos, principalmente quan<strong>do</strong> são pessoas <strong>do</strong>utas em quem os<br />
encómios <strong>da</strong> fama correm parelhas com os perío<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos. Despendem os<br />
anciãos o melhor tempo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, que é a moci<strong>da</strong>de, em aprenderem, diz o<br />
Séneca 997 , para colherem os frutos de seus trabalhos no crédito e estimação<br />
que de seus estu<strong>do</strong>s conseguiram. Parecia-me a mim, senhor, que o<br />
catedrático Justiniano, que hoje não só na universi<strong>da</strong>de, mas em to<strong>da</strong> esta<br />
ci<strong>da</strong>de tão respeita<strong>do</strong> assiste, houvera de tratar deste casamento, sen<strong>do</strong> por<br />
vossa excelência chama<strong>do</strong>; porque suas letras, i<strong>da</strong>de e fama de eloquente o<br />
fazem merece<strong>do</strong>r de to<strong>do</strong> o respeito, e que às dificul<strong>da</strong>des que se oferecerem<br />
saberá <strong>da</strong>r cabal resposta e solução. Porque o tratar-se este negócio com os<br />
filhos de Frederico Manfre<strong>do</strong> é, ao que me parece, meio desacerta<strong>do</strong>, pois nem<br />
a i<strong>da</strong>de, nem o saber os habilita, nem o pai de suas razões fará muita<br />
estimação, nem eles se atreverão a replicar ao que seu pai resolver; porque<br />
Arist., Top. 1.<br />
Arist., Ethic, cap. 6.<br />
Man., Lib. 1.<br />
Eu rip., in Olynth.<br />
Senec, Epist. 19.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 973<br />
como disse Sófocles , aos filhos convém para com seus pais usarem de<br />
palavras muito ajusta<strong>da</strong>s, e essas poucas.<br />
Aprovou Raimun<strong>do</strong> o parecer de Bernardino e eu o julguei por acerta<strong>do</strong><br />
e proveitoso, e me ofereci a trazer essa noite o <strong>do</strong>utor Justiniano a casa,<br />
porque tinha com ele particular amizade. Era ele homem já de meia i<strong>da</strong>de e<br />
natural <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Ferrara, de nobre família, por suas letras e muita erudição<br />
respeita<strong>do</strong> e a to<strong>do</strong>s aceito. Agradeceu-me muito Raimun<strong>do</strong> a diligência e lhe<br />
prometi de nessa noite o trazer à sua presença, por que sua vin<strong>da</strong> de dia não<br />
desse motivos a qualquer suspeita. Com isto me despedi de casa, deixan<strong>do</strong><br />
ordem para que se preparasse o jantar qual à grandeza de tais hóspedes<br />
convinha. Saí de casa melancólico, que a companhia que me assistia era a<br />
mais profun<strong>da</strong> tristeza, porque não podia evitar a causa dela. E sen<strong>do</strong> que diz<br />
Aristóteles 999 que ninguém sustenta igual desvelo nos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s próprios e nos<br />
alheios, porque os próprios como o primeiro móvel <strong>da</strong>s potências levam após si<br />
to<strong>do</strong>s os outros como violenta<strong>do</strong>s, contu<strong>do</strong> eu, cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so <strong>do</strong>s próprios, não me<br />
divertia <strong>do</strong>s alheios.<br />
Saí ao campo, ribeiras <strong>do</strong> cau<strong>da</strong>loso rio, para respirar <strong>da</strong> opressão desta<br />
pena com a sole<strong>da</strong>de; porém que importa a sole<strong>da</strong>de exterior quan<strong>do</strong> tantas<br />
mágoas no interior assistem? Não há na vi<strong>da</strong>, diz Santo Agostinho 1000 , maior<br />
sole<strong>da</strong>de que a falta <strong>do</strong>s amigos, pois viver sem eles é viver como no desterro,<br />
<strong>do</strong>s quais disse Aristóteles 1001 que ninguém escolhera o viver sem eles por<br />
maiores riquezas que lograsse. Bem me lembra que diz Euripides 1002 que era<br />
desejo natural nos amigos saberem os pesares de seus amigos para poderem<br />
aliviar o penoso deles; porém com ter muitos em Bolonha, não eram estes de<br />
quali<strong>da</strong>de que me franqueassem licença para <strong>da</strong>r notícia deles, porque de<br />
meus pensamentos até este dia só eu era secretário confidente, só em meu<br />
peito cabiam, porque de ninguém os confiava. E <strong>do</strong>s intentos de Raimun<strong>do</strong> era<br />
eu seu fiel carcereiro, pois só de mim os fiava.<br />
Soph., apud Stob.<br />
Arist., in Econ.<br />
'Aug., Deamic. cap. 5.<br />
' Arist., Ethic. 8.<br />
1 Eurip., in Helen.
974 Padre Mateus Ribeiro<br />
Com esta pena saí, como digo, ao campo, junto à verde margem <strong>do</strong><br />
cristalino rio, a desafogar meu sentimento; e pon<strong>do</strong> os olhos nas sau<strong>do</strong>sas<br />
on<strong>da</strong>s que apressa<strong>da</strong>s se ausentavam <strong>da</strong> fonte, de quem com título de<br />
pequeno arroio nasceram, iam em lugar de buscar ventura, sepultar seu<br />
sepulcro no cau<strong>da</strong>loso Pó que as esperava, rompi em semelhantes queixas:<br />
- Que retar<strong>da</strong><strong>da</strong>s vejo em vós, sau<strong>do</strong>sas on<strong>da</strong>s, o lúbrico de minha<br />
ventura, o ruinoso de minha sorte e o ro<strong>da</strong>nte de meu altivo pensamento! Não<br />
se conhecem os privilégios <strong>do</strong> bem senão depois de perdi<strong>do</strong>, nem os desaires<br />
de um mal senão depois de experimenta<strong>do</strong>. Em pouco se estima o bem<br />
quan<strong>do</strong> se logra, pouco se teme o mal quan<strong>do</strong> longe se considera. Quem deixa<br />
o pátrio <strong>do</strong>micílio caminha a buscar sepulcro em terra alheia e em reino<br />
estranho. Que sepulta<strong>da</strong>s considero minhas alegrias com que vivia de antes<br />
tão consente em Cesena! Empenhei-me em amar a Fenisa, porque a vi em<br />
Bolonha; se de minha pátria não me ausentara, não a vira, e se não a vira, não<br />
a amara, pois foi em mim o amá-la a consequência de vê-la, e se a não amara,<br />
não penara. Intentei ausentar-me de senti<strong>do</strong> por ver igual a ingratidão à<br />
fermosura, emparelha<strong>da</strong> a soberania com a soberba, meu padecimento com<br />
seu <strong>do</strong>naire, pois fazia <strong>do</strong>naire de meu padecimento, as portas sempre abertas<br />
ao desdém e fecha<strong>da</strong>s de to<strong>do</strong> à esperança, com que desanima<strong>do</strong> meu<br />
coração, ven<strong>do</strong>-se tão feri<strong>do</strong> e mal cura<strong>do</strong>, intentei ausentar-me para ver se<br />
podia a distância <strong>da</strong>s terras remover <strong>da</strong> memória a quem tão retrata<strong>da</strong> vivia na<br />
lembrança, que nem a ingratidão a esquecia, nem a esquivança a olvi<strong>da</strong>va.<br />
Porém quan<strong>do</strong> solicitava o retiro apesar de meus afectos, tópico remédio para<br />
o penar, se bem agra bebi<strong>da</strong> para o querer, de repente apareceu nova luz à<br />
minha desconfia<strong>da</strong> esperança em seu chamamento para que falar-lhe fosse,<br />
quan<strong>do</strong> o maior silêncio <strong>da</strong>s trevas o mun<strong>do</strong> ocupasse com a noite.<br />
Duvi<strong>da</strong>va minha improvisa alegria de serem ver<strong>da</strong>deiros os anúncios<br />
desta não espera<strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de, pequena para o que lhe merecia, mas grande<br />
para o pouco que esperava, e sempre o passar de um extremo a outro leva<br />
consigo ou a pouca duração ou o perigo. Bem se viu ser assim, pois para que<br />
não durasse muito a lisonja desta aparente alegria, chegou Raimun<strong>do</strong> a ser<br />
verdugo desta abortiva esperança, cortan<strong>do</strong> em flor os assomos de minha<br />
malogra<strong>da</strong> ventura. Que haja de ser eu mesmo o corretor de minhas penas, o<br />
artífice de minhas mágoas e o solicita<strong>do</strong>r de meus desgostos e o medianeiro de
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 975<br />
meus anos, em que juízo ou discurso cabe? Avaliam-se em quem ama os<br />
ciúmes pelo maior tormento, e que eu na pretensão de Raimun<strong>do</strong> não só<br />
padeça os ciúmes, mas ain<strong>da</strong> que solicite a meu opositor a posse <strong>do</strong> bem que<br />
perco só o poderá crer quem me vê, mas mal o creria quem o ouvisse! Que me<br />
despoje eu <strong>da</strong>s esperanças para que outro delas se vista? Qual verde planta<br />
desta margem sofreu maior tirania, ven<strong>do</strong>-se rouba<strong>da</strong> <strong>do</strong> traje de que nos<br />
ramos fron<strong>do</strong>sos e folha<strong>do</strong> vesti<strong>do</strong> a quis enriquecer a natureza? Sem dúvi<strong>da</strong><br />
que a ser capaz de senti<strong>do</strong>, suspiran<strong>do</strong> se queixava, e eu com tantos senti<strong>do</strong>s<br />
e discursos como deixarei de queixar-me, quan<strong>do</strong> não posso isentar-me de<br />
senti<strong>do</strong>?<br />
Pois se uma planta insensível tivera conhecimento de se ver despoja<strong>da</strong><br />
se queixara, por que o sofrerei eu ten<strong>do</strong> discurso? Vim eu porventura a<br />
Bolonha a estu<strong>da</strong>r lições de insensível? Sou eu de pedra ou de bronze para<br />
que não abram brecha em meu peito golpes <strong>da</strong> fortuna tão repeti<strong>do</strong>s, tantas<br />
balas de pesares e petar<strong>do</strong>s tão reforça<strong>do</strong>s de desgostos? Que haja de ocultar<br />
meu coração os Etnas mais abrasa<strong>do</strong>s em incêndios sem desafogar a <strong>do</strong>r, sem<br />
buscar alívio à pena, sem contraminar o <strong>da</strong>no? Para quan<strong>do</strong> se guar<strong>da</strong> o<br />
escu<strong>do</strong>, se não há-de resistir ao golpe? Para que são os amigos, diz Cícero 1003 ,<br />
senão para o alívio <strong>da</strong> pena? Para que intitula Santo Agostinho 1004 ao amigo<br />
medicina <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, senão para socorrer a aflição <strong>do</strong> amigo no mais vivo <strong>da</strong> <strong>do</strong>r?<br />
Roberto é meu maior amigo, bem ajuiza<strong>do</strong> e nos sucessos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> visto: a<br />
ele quero comunicar meu sentimento, agora enquanto o <strong>da</strong>no pode receber<br />
remédio, antes que sem remédio me queixe de não haver procura<strong>do</strong> com<br />
tempo remédio a tão manifesto <strong>da</strong>no.<br />
Com esta resolução deixan<strong>do</strong> as cristalinas on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> rio, que por<br />
atenderem a minhas queixas parece que mais dilata<strong>da</strong>s se moviam, entrei na<br />
ci<strong>da</strong>de e em casa de Roberto, meu amigo, que admira<strong>do</strong> de me ver tão<br />
demu<strong>da</strong><strong>do</strong> na cor e melancólico no aspecto, indícios de algum pesar que me<br />
oprimia, me perguntou a causa. Encerrei-me com ele no seu escritório e lhe dei<br />
notícias <strong>do</strong>s progressos desde a primeira hora que vi em Bolonha a Fenisa até<br />
o esta<strong>do</strong> presente, e como Raimun<strong>do</strong> por hóspede em minha casa ficava. Pedi-<br />
Aug., L 6. De Civit. Dei.
976 Padre Mateus Ribeiro<br />
lhe conselho no que faria para nem faltar à cortesia que a Raimun<strong>do</strong> devia,<br />
nem perder a Fenisa, a quem eu com extremos amava. Admira<strong>do</strong> me ouviu<br />
Roberto e ain<strong>da</strong> em parte senti<strong>do</strong> de que, sen<strong>do</strong> ele tão particular amigo meu,<br />
lhe houvesse oculta<strong>do</strong> tanto tempo os empenhos que tinha ao casamento de<br />
Fenisa, em que ele por meio de Lívia, sua esposa, de quem Fenisa se <strong>da</strong>va por<br />
amiga, pudera ter obra<strong>do</strong> serem dela minhas finezas conheci<strong>da</strong>s. E prosseguiu,<br />
dizen<strong>do</strong>:<br />
- Não é fácil, amigo Lisar<strong>do</strong>, o poder ajustar o útil de um conselho a uma<br />
controvérsia tão implica<strong>da</strong>, em que vejo indeciso vosso crédito com vosso<br />
amor, sen<strong>do</strong> que este, como diz Ovídio 1005 , em tu<strong>do</strong> se encontra com a<br />
majestade. Aprovo vossa eleição em pretenderdes a Fenisa para esposa, que<br />
bem se mostra o selecto de vosso juízo, que Aristóteles 1006 abona a fineza de<br />
um discurso no acerto de uma eleição e Plutarco 1007 dá por empenho de um<br />
bom juízo o saber acertar uma eleição. Vós, amigo Lisar<strong>do</strong>, soubestes escolher<br />
o melhor no objecto de Fenisa, porque ela de to<strong>da</strong>s é a melhor: <strong>da</strong> beleza a<br />
primeira maravilha, <strong>da</strong> discrição o maior espanto em pouca i<strong>da</strong>de, e o ilustre <strong>do</strong><br />
sangue e o altivo <strong>do</strong> <strong>do</strong>te a fazem merece<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> maior ventura. O intentardes<br />
ausentar-vos desta ci<strong>da</strong>de por vos considerardes dela pouco queri<strong>do</strong> eram<br />
queixas de mal sofri<strong>do</strong> e impaciências de pouco experimenta<strong>do</strong>, que a<br />
tolerância na pretensão é o meio mais certo de poder consegui-la. Mal pode,<br />
diz Cícero 1008 , esperar-se a causa cuja dilação não chega a sofrer-se. Mal se<br />
alcançam vitórias sem batalhas, nem os romanos costumavam conceder<br />
triunfos aos capitães, que sem grande mortan<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s inimigos os venciam,<br />
nem se habilita para possuir as grandezas, disse Plauto 1009 , quem nas<br />
esperanças desanima. É Fenisa tão sublime na estimação e na presunção tão<br />
eleva<strong>da</strong> que podia avaliar-se por favor o não se <strong>da</strong>r por ofendi<strong>da</strong> de ser ama<strong>da</strong>.<br />
Quem aspira às superiori<strong>da</strong>des mais eminentes <strong>do</strong> Olimpo, que são duvi<strong>do</strong>sas<br />
competências <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> região <strong>do</strong> ar com os vales <strong>da</strong> terra, que por colonos<br />
Ovid., Met. 2.<br />
Arist., Eth. 2. [Eth. 1. na edição de 1734]<br />
Plut., De vitios. verec.<br />
Cicer., Pro Sext.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 977<br />
<strong>da</strong>s nuvens querem ser explora<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>s primeiros rasgos <strong>da</strong> aurora antes que<br />
se descubra ao hemisfério, que nos poemas se equivoca com o céu pelo altivo,<br />
que parece se desnaturaliza <strong>da</strong> terra pelo eleva<strong>do</strong>, qual considero a Fenisa no<br />
imperioso, pudera facilmente ressentir-se de que pequenos montes igualá-la<br />
presumissem. E pois, pelo que referis, obraram nela as vésperas de vossa<br />
ausência o man<strong>da</strong>r chamar-vos para ouvir-vos, muito navegastes em breve<br />
tempo, pois nunca chega a chamar para o deter, quem não sente cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s em<br />
outro sujeito se partir. E suposto que com a improvisa chega<strong>da</strong> de Raimun<strong>do</strong><br />
se mal logrou o oportuno <strong>da</strong> ocasião, esta falta leva consigo a desculpa quan<strong>do</strong><br />
se saiba.<br />
Pretende Raimun<strong>do</strong> com instâncias casar-se com Fenisa: não seria este<br />
o maior espanto, que outras maravilhas maiores e em príncipes mais<br />
soberanos foram no mun<strong>do</strong> triunfos <strong>da</strong> fermosura, como tantas histórias<br />
referem, de Semíramis em Ásia, Ebia em Calcedónia, Roxanes em Babilónia,<br />
Valeria em Roma, Teo<strong>do</strong>ra em Constantinopla e outras sem número que referir<br />
pudera. Assim que fazer eleição Raimun<strong>do</strong> <strong>da</strong>s muitas pren<strong>da</strong>s de Fenisa mais<br />
me parece abono de seu juízo <strong>do</strong> que o julgo por censura de seu poder. Nos<br />
casamentos por contratos em alheios senhorios, aonde o duque de Módena<br />
seu pai terá intentos de casá-lo, mais se respeitam as conveniências <strong>do</strong> que o<br />
gosto, mais se atende ao útil que à vontade. Porém Raimun<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> <strong>da</strong>s<br />
conveniências pouca estimação, escolhe o melhor que podia achar-se para<br />
esposa, que aonde tem votos o desejo não se admitem conveniências que tem<br />
os fun<strong>da</strong>mentos na razão. O intentardes desistir <strong>da</strong> pretensão <strong>do</strong> casamento de<br />
Fenisa por verdes a Raimun<strong>do</strong> tão alenta<strong>do</strong> opositor? Para valor de amante<br />
tinha muito o retiro de covardia e para título de amizade tinha pouco de<br />
obrigação; pois com Raimun<strong>do</strong> até o presente nenhuma tivestes para que ela<br />
vos persuadisse a essa fineza, que deixásseis de procurardes esposa de tão<br />
supremo valor por verdes empenha<strong>do</strong> a outro na pretensão. Não se acha ca<strong>da</strong><br />
dia uma ventura igual, pois esta perdi<strong>da</strong>, nenhuma outra a pode restaurar, que<br />
emparelhar com Fenisa ela só pode igualar consigo mesma. Para que quereis<br />
depois arrepender-vos de fechardes as portas à ventura, quan<strong>do</strong> o pesar não<br />
traz remédio ao <strong>da</strong>no? Para que intentáveis viver desespera<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> tendes
978 Padre Mateus Ribeiro<br />
na mão a esperança? À desesperação chamou Santo Agostinho 1010 morte e S.<br />
João Crisóstomo 1011 a intitulou covardia; pois como intentáveis incorrer em tais<br />
censuras, poden<strong>do</strong> viver no remanso tranquilo <strong>da</strong>s esperanças?<br />
Vós, Lisar<strong>do</strong>, não sois vassalo de Raimun<strong>do</strong>, nem lhe conheceis<br />
obrigações, nem com ele professais correspondências de amizade antigua,<br />
pois esta foi a vez primeira que o vistes; pois que vos desanima a quererdes<br />
ceder o que mais deveis estimar? Que finezas reservais para os amigos mais<br />
singulares, se a quem menos deveis largais o mais? Que dependência tendes<br />
vós de Módena? Que necessitais <strong>do</strong>s favores de Raimun<strong>do</strong>? Vós não<br />
nascestes vassalo de seu pai, nem tendes juros ou ren<strong>da</strong>s em seu senhorio, e<br />
mais perto estais de poderdes alcançar o casamento de Fenisa <strong>do</strong> que ele por<br />
desigual na grandeza, pois Cleobulo, um <strong>do</strong>s sete sábios, como refere<br />
Laércio 1012 , o que mais louvava nos casamentos era a igual<strong>da</strong>de; e como com<br />
Raimun<strong>do</strong> esta não tem lugar, distância grande fica para alcançar a Fenisa por<br />
esposa. Além disto, tenho por certo que Fenisa não ama a Raimun<strong>do</strong>, pois<br />
para evitar o importuno de seus desvelos fez com seus pais que de Módena se<br />
ausentassem, e assim como discreta mostrou o pouco em que avaliava sua<br />
grandeza, porque como tão altiva na opinião lhe pareceria abatimento de seu<br />
pun<strong>do</strong>nor o entender que o duque teria por ofensa o ver a Raimun<strong>do</strong> com ela<br />
casa<strong>do</strong>. E <strong>da</strong>qui infiro eu que jamais Fenisa admitirá tal casamento, nem seus<br />
pais nele consentirão, porque quan<strong>do</strong> houvessem de consentir nesse cui<strong>da</strong><strong>do</strong>,<br />
não havia ocasião de se mu<strong>da</strong>rem para Bolonha, deixan<strong>do</strong> o pátrio <strong>do</strong>micílio<br />
em que nasceram. Nem vos desanime o terdes em Raimun<strong>do</strong> tão poderoso<br />
competi<strong>do</strong>r, porque além de ser abono <strong>da</strong> rara fermosura de Fenisa o ser de<br />
um tal sujeito ama<strong>da</strong> e de tantos pretendi<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> ela tem as portas <strong>do</strong><br />
coração tão fecha<strong>da</strong>s ao importuno de seu poder, sem fruto pretende obrigar<br />
com finezas a quem <strong>da</strong>s mesmas finezas faz agravos.<br />
No que dizeis de não faltardes à cortesia, eu o aprovo que lhe assistais<br />
ao cortejo possível, pois veio buscar-vos e é um príncipe, filho de um potenta<strong>do</strong><br />
grande no senhorio. Levai ao <strong>do</strong>utor Justiniano para que com ele fale e que<br />
0 Aug., Super Psal. 50<br />
1 Joan. Chris., Super Math.<br />
2 Diog. Laerc, Lib. 6.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 979<br />
com to<strong>da</strong>s as veras seu casamento proponha e que com to<strong>da</strong> a eloquência se<br />
empenhe, que por certo tenho que tu<strong>do</strong> ficará sem efeito; porque como a<br />
eloquência maior para persuadir é a oportuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ocasião e a disposição<br />
<strong>da</strong>s vontades no benévolo <strong>do</strong> ouvir, e tu<strong>do</strong> falta em Fenisa e em seus pais,<br />
pouco pode efectuar a eloquência, como diz Demóstenes 1013 , quan<strong>do</strong> estes<br />
requisitos, sen<strong>do</strong> tão poderosos, faltam. Há retóricas, disse Quintiliano 1014 , que<br />
chegam aos ouvi<strong>do</strong>s, mas não penetram ao íntimo <strong>do</strong> coração. Eu farei que<br />
Lívia vá hoje visitar a Fenisa e eu falarei com Adriano, e buscan<strong>do</strong> ocasião de<br />
sorte lhe proporei este negócio, que ele o comunique a Frederico e a seus<br />
filhos, com que o despacho <strong>da</strong> petição de Raimun<strong>do</strong> fique sem conseguir o<br />
efeito que pretende. Quanto mais que por certo tenho que ten<strong>do</strong> notícias o<br />
duque de Módena <strong>do</strong> intento de Raimun<strong>do</strong> no casamento de Fenisa, como me<br />
parece o terá já com sua ausência <strong>da</strong> corte conheci<strong>do</strong>, se empenhará com<br />
to<strong>da</strong>s as veras em impedi-lo, assim por via de Frederico, como seu vassalo,<br />
como por via <strong>do</strong> lega<strong>do</strong>, com que ficarão as diligências de Raimun<strong>do</strong> sem<br />
efectuarem a pretensão que tão afectuoso solicita e vosso intento sen<strong>do</strong> mais<br />
venturoso.<br />
Agora assiste-lhe com a cortesia que professais e ao respeito de sua<br />
pessoa se deve, e deixai o mais por conta de minha obrigação e de meu<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong> em procurar servir-vos como devo, como vosso amigo e tão<br />
reconheci<strong>do</strong> ao muito que vos devo.<br />
Assim falou Roberto e eu lhe rendi as graças <strong>da</strong> vontade que mostrava e<br />
<strong>do</strong> favor em que tão certo vivia. Despedi-me com alentos de novas esperanças<br />
em que respirou meu sentimento, e fui pedir a Juliano que importava a meu<br />
crédito em um negócio de muita importância, que só com ele intentava<br />
consultar, que à prima noite quisesse fazer-me favor de vir a minha casa,<br />
aonde o esperava, por ser o empenho de tal quali<strong>da</strong>de que não podia tratar-se<br />
fora dela. Era Justiniano meu amigo e prezava-se de tão cortês como de<br />
discreto e <strong>do</strong>uto, e prometeu que sem falta alguma às horas que apontava a<br />
buscar-me viria. Com esta resposta me recolhi a casa para assistir ao jantar de<br />
Raimun<strong>do</strong>, que lhe ofereci com a grandeza que me foi possível, de que se<br />
3 Dem., Ex argum. lib.<br />
4 Quint., Lib.1.
980 Padre Mateus Ribeiro<br />
mostrou agradeci<strong>do</strong> e alegre <strong>da</strong>s novas que lhe dei de que Justiniano estava<br />
certo para em se retiran<strong>do</strong> o dia vir buscar-me.<br />
Cap. X.<br />
Do que passou Justiniano sobre o casamento de Raimun<strong>do</strong> com Fenisa e<br />
como não teve efeito<br />
Passámos a tarde em diversas práticas por divertir o tempo, que à<br />
conversação com agra<strong>do</strong> chamou Aristóteles 1015 luz <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, e Euripides 1016 a<br />
intitulou estra<strong>da</strong> pratea<strong>da</strong> <strong>da</strong> sabe<strong>do</strong>ria, porque suspende a erudição os giros<br />
dilata<strong>do</strong>s <strong>do</strong> tempo, para que seu curso não se avalie molesto. Teve tanto que<br />
dizer Raimun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s empenhos em que por Fenisa vivia, que bem se podia<br />
dizer dele o que Séneca 1017 escreve, que dizen<strong>do</strong> muito, ficava dizen<strong>do</strong> pouco.<br />
Com repeti<strong>da</strong> mágoa interior ouvia eu a Raimun<strong>do</strong> referir os extremos com que<br />
amava e as finezas com que o casamento de Fenisa pretendia; que, como<br />
escreve Plutarco, sempre o amor em louvar é exagerático. E como ele ignorava<br />
meus ocultos pensamentos, no mesmo em que ele presumia me causava<br />
divertimento, me ocasionava moléstias. Era a cortesia ouvinte, não o desejo,<br />
assistia à sua locução a urbani<strong>da</strong>de mais que os senti<strong>do</strong>s, pois costuma a alma<br />
retirar-se quanto pode <strong>do</strong> penoso com a atenção, e só esta aplica ao que julga<br />
útil ou agradável.<br />
Referiu Bernardino vários sucessos <strong>da</strong>s memórias <strong>do</strong>s passa<strong>do</strong>s séculos<br />
e alguns <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de presente, com que se divertiu o que Raimun<strong>do</strong> mal divertir<br />
desejava. Chegou a noite de to<strong>do</strong>s deseja<strong>da</strong> a tomar posse <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Não<br />
tar<strong>do</strong>u Justiniano em desempenhar a promessa de buscar-me. Entran<strong>do</strong>, ficou<br />
suspenso ven<strong>do</strong> a Raimun<strong>do</strong>, que ele bem conhecia como quem nascera em<br />
Ferrara vassalo de seu pai, o duque. Quis abraçá-lo pelos pés, e Raimun<strong>do</strong> o<br />
levou nos braços e o fez assentar com grandes demonstrações de amor e<br />
cortesia. Admirou-se Justiniano de ver em Bolonha a Raimun<strong>do</strong> tão abrevia<strong>do</strong><br />
5 Arist., in Ep. ad Alex.<br />
6 Eurip., in Phœn.<br />
7 Senec, Epist. 27.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 981<br />
no esta<strong>do</strong> e tão encoberto. Raimun<strong>do</strong>, para responder à admiração que nele<br />
considerava, lhe falou assim:<br />
- Não deve, senhor Justiniano, causar a vossa mercê admiração o<br />
improviso deste não espera<strong>do</strong> encontro, porque com ouvir-me cessará a<br />
novi<strong>da</strong>de e com ela o espanto, pois conheci<strong>da</strong> a causa, logo se suspende a<br />
admiração <strong>do</strong>s efeitos, como o filósofo 1018 ensina.<br />
Com isto lhe referiu to<strong>do</strong> o progresso desde o princípio, desde a primeira<br />
vista de Fenisa até o dia presente. O intento com que viera hospe<strong>da</strong>r-se em<br />
minha casa, o fim para que o chamara, para que ele, como quem tão eminente<br />
nas letras e tão acredita<strong>do</strong> na fama e autori<strong>da</strong>de com que to<strong>da</strong> Bolonha o<br />
respeitava, quisesse empenhar-se em propor este casamento aos pais de<br />
Fenisa e ain<strong>da</strong> ao cardeal lega<strong>do</strong>, se necessário fosse, de sorte que o<br />
casamento se efectuasse, prometen<strong>do</strong>-lhe grande satisfação se se via por seu<br />
meio esposo de Fenisa.<br />
Admira<strong>do</strong> ficou Justiniano <strong>do</strong> intento de Raimun<strong>do</strong>, poden<strong>do</strong> dizer com<br />
Plínio 1019 que há cousas de tal quali<strong>da</strong>de que quanto mais se consideram,<br />
maior espanto causam. Calou por um espaço, que, como escreve<br />
Quintiliano 1020 , é suspensão <strong>da</strong>s vozes o duvi<strong>do</strong>so <strong>da</strong> resposta a uma proposta<br />
difícil. Considerava a Raimun<strong>do</strong> de Este, filho segun<strong>do</strong> <strong>do</strong> duque de Módena e<br />
Ferrara, potenta<strong>do</strong> soberano, que por morte <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Alberto se<br />
levantaram seus maiores com o senhorio de Ferrara, a quem governavam<br />
debaixo <strong>do</strong> império; e fazen<strong>do</strong>-se Nicolau Estense nas guerras formidável e na<br />
fortuna venturoso, conquistan<strong>do</strong> a Módena e outras ci<strong>da</strong>des e praças, se fez<br />
senhor soberano, em que lhe sucederam seus descendentes, como refere<br />
Marco António Sabélico 1021 . E ven<strong>do</strong> agora a Raimun<strong>do</strong> em Bolonha como<br />
peregrino vir seguin<strong>do</strong> as ingratas luzes de Fenisa, primeiro móvel de seus<br />
passos, tão custosos para seu brio e tão indecorosos para sua grandeza, lhe<br />
disse assim:<br />
Arist., Post. 1.<br />
9 Plin. Jun., Lib. 9.<br />
'° Quint., Decl. 9.<br />
:1 Sabei., Eneid. 9.1. 8.
982 Padre Mateus Ribeiro<br />
- Empenha-me, senhor, vossa excelência com me manifestar seus<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s a intentar emprender um negócio quasi moralmente impossível, que<br />
se porventura, o que duvi<strong>do</strong>, chegar a conseguir-se, será mais por ventura sua<br />
que por efeito de minhas letras, nem eloquência; e sen<strong>do</strong> nele Fenisa a mais<br />
interessa<strong>da</strong>, fica sen<strong>do</strong> de persuadir a mais difícil em seus próprios aumentos e<br />
felici<strong>da</strong>des. São os impérios <strong>da</strong> vontade humana tão senhores de sua liber<strong>da</strong>de<br />
que nem a movem grandezas, nem a persuadem temores, nem o mais senhoril<br />
pode obrigá-la, nem o mais abati<strong>do</strong> demovê-la. Persuadir a quem não mostra<br />
repugnância, efeito pode ser <strong>da</strong> eloquência, como disse Euripides 1022 , porém<br />
mui dificultoso a quem na própria resistência leva consigo o não deixar-se<br />
obrigar para se demover.<br />
Se Fenisa, senhor, conhecera bem o custoso que a vossa excelência<br />
saem seus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e finezas, sen<strong>do</strong> as maiores que um tal príncipe podia<br />
manifestar por seu respeito e a grande ventura que neste casamento a chama<br />
para levantá-la, o sublime de quem para esposa a procura e o eminente <strong>do</strong><br />
esta<strong>do</strong> que consegue, sem dúvi<strong>da</strong> que ela se mostrara ambiciosa <strong>do</strong> acerto,<br />
desvela<strong>da</strong> <strong>do</strong> logro e cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa de não se malograr tão venturosa sorte. Porém<br />
se ela <strong>da</strong> mesma ventura foge como ofendi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> própria grandeza se retira<br />
como agrava<strong>da</strong>, se desconhece as finezas de vossa excelência, fechan<strong>do</strong>-lhe<br />
os olhos como a perigos, voltan<strong>do</strong>-lhe as costas como a dissabores <strong>do</strong> gosto e<br />
finalmente como ingrata a tantas demonstrações de um humor tão fino se dá<br />
por menos obriga<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> se vê mais queri<strong>da</strong>, que eloquência será<br />
poderosa, ain<strong>da</strong> que fosse a de Demóstenes, Quintiliano, Cícero e Hortênsio,<br />
para poder persuadir a quem a mesma persuasão é lisonja que a engana ou<br />
engano que a ofende? Com faltas de amor tu<strong>do</strong> o que se emprende vai<br />
arrisca<strong>do</strong>, porque só o querer é a eloquência mais discreta que sem retóricas<br />
demove e sem palavras persuade.<br />
Na<strong>da</strong> disto que refiro me encontra, senhor, nem me suspende o desejo<br />
de servir a vossa excelência com to<strong>da</strong>s as veras, pois quis ocupar-me nesta<br />
empresa; porém entro nela receoso e desconfia<strong>do</strong>: receoso para orar a quem o<br />
não deseja ouvir e desconfia<strong>do</strong> de conseguir o que de alheia vontade se há-de<br />
conceder. A maior eloquência parece inculta locução e barbarismo a quem está<br />
Eurip., in Helen.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 983<br />
firme em não demover-se, <strong>do</strong>nde veio a dizer Plutarco 1023 que a eloquência<br />
aju<strong>da</strong>, mas só por si na<strong>da</strong> obra. Ain<strong>da</strong> se só de seu arbítrio pendera a vitória<br />
desta empresa, ain<strong>da</strong> não me atemoriza tanto o difícil de render uma vontade,<br />
que enfim como mulher podia vir a conhecer que não podia alcançar outra<br />
ventura mais altiva que a que de presente no tálamo nupcial vossa excelência<br />
lhe oferece; porém como nisso hão-de concor<strong>da</strong>r seus pais, irmão e o cardeal<br />
lega<strong>do</strong> seu parente, sem cujo parecer e aprovação é certo se não resolverão a<br />
<strong>da</strong>rem resposta, quem pode assegurar de tantos juízos e vontades despacho<br />
favorável ao intento, quan<strong>do</strong> Aristóteles 1024 diz que o amor, o ódio e o interesse<br />
próprio não são idóneos para juízes, e eu acrescentara que o temor tu<strong>do</strong><br />
perturba e a na<strong>da</strong> se resolve, como escreve Plutarco 1025 ?<br />
É vossa excelência filho, ain<strong>da</strong> que segun<strong>do</strong> de um potenta<strong>do</strong> soberano<br />
e grande, que sem dúvi<strong>da</strong> pretenderá casá-lo não com vassala sua, mas <strong>da</strong>r-<br />
Ihe esposa a seu esta<strong>do</strong> igual em tu<strong>do</strong>, e se mostrará ressenti<strong>do</strong> e julgará por<br />
ofendi<strong>do</strong> deste casamento, e as iras <strong>do</strong>s mui poderosos, diz Euripides 1026 , com<br />
facili<strong>da</strong>de se movem e com grande dificul<strong>da</strong>de se aplacam; porque talvez ca<strong>da</strong><br />
dia mais crescem, como se viu em Alexandre quan<strong>do</strong> matou a Clito, seu aio, e<br />
a Pilotas, seu priva<strong>do</strong>, e no romano dita<strong>do</strong>r Lúcio Sila quan<strong>do</strong> matou a Quinto<br />
Lucrécio, seu amigo, por lhe repetir a petição de um favor que lhe negava.<br />
Nenhum ofendi<strong>do</strong> se deve avaliar por esqueci<strong>do</strong> para a vingança, quanto mais<br />
sen<strong>do</strong> poderosos, disse Demóstenes 1027 , de quem se deve recear o desaire de<br />
qualquer ofensa ou sentimento.<br />
Bem conheço que o casamento de vossa excelência com Fenisa será<br />
para ela a maior ventura, mas para o senhor duque será o maior desgosto, que<br />
parece atributo <strong>da</strong> fermosura o ser <strong>da</strong> ventura encontra<strong>da</strong> e persegui<strong>da</strong>. São os<br />
pais de Fenisa vassalos <strong>do</strong> senhor duque não só por nascimento, mas por<br />
terem o principal de suas ren<strong>da</strong>s situa<strong>da</strong>s em seu senhorio, e poden<strong>do</strong> deste<br />
casamento haver-se por mal servi<strong>do</strong> e ofendi<strong>do</strong> deles, despojá-los de tu<strong>do</strong> o<br />
Plut., De Polit.<br />
Arist., Rhet. 1.<br />
Plut., De virtut. & fort. Alex.<br />
Eurip., in Med.<br />
Dem., in Epist.
984 Padre Mateus Ribeiro<br />
que em Módena e suas terras possuem e fazer de seus bens <strong>do</strong>nativo aos que<br />
em seu serviço assistem.<br />
Propus a vossa excelência o que esta empresa tem de arrisca<strong>da</strong> e de<br />
dificultosa em conseguir-se, mas não para isentar-me de servi-lo nela, pois<br />
vossa excelência fez eleição de mim para tratá-la, confian<strong>do</strong> de meu peito seus<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s; não faltará <strong>da</strong> minha parte to<strong>da</strong> a diligência possível para empenhar-<br />
me em propor este negócio. Amanhã irei visitar a Frederico Manfre<strong>do</strong> e<br />
proporei o casamento com to<strong>da</strong>s as flores que a retórica costuma e a<br />
eloquência ensina e com as razões que minhas letras acertar puderem, e <strong>do</strong><br />
que nisso se resolver virei <strong>da</strong>r aviso a vossa excelência.<br />
Com isto se despedia Justiniano, quan<strong>do</strong> Raimun<strong>do</strong> lhe deu um anel de<br />
muito preço e valor, dizen<strong>do</strong>-lhe que porque ao grau <strong>do</strong>utoral an<strong>da</strong>va vincula<strong>do</strong><br />
o trazer anel no de<strong>do</strong>, queria que aquele trouxesse por ser pren<strong>da</strong> de seu<br />
ânimo e vontade. Recebeu Justiniano o anel com a cortesia que era justo, que<br />
<strong>do</strong>nativos de príncipes não se rejeitam, que seria ofender a digni<strong>da</strong>de de quem<br />
liberal o oferece por sua própria grandeza. Prometeu Justiniano de obsequioso<br />
e agradeci<strong>do</strong> obrar quanto avançar pudesse seu talento por servi-lo, e com isso<br />
se despediu. Ficou Raimun<strong>do</strong> contente de ter para seu intento tão <strong>do</strong>uto<br />
advoga<strong>do</strong>, tão eloquente ora<strong>do</strong>r e tão prudente medianeiro, porém eu fiquei<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so e pensativo de que Justiniano com suas letras e eloquência pudesse<br />
conseguir a pretensão <strong>do</strong> casamento de Raimun<strong>do</strong>, em que tão empenha<strong>do</strong> ia.<br />
Desejava poder falar a Roberto para saber se Lívia, sua esposa, na visita que<br />
prometeu fazer a Fenisa tinha efectua<strong>do</strong> o que eu desejava em haver de<br />
resistir ao assalto <strong>da</strong>s retóricas de Justiniano que se preparavam; porém não o<br />
fiz, assi por não faltar aos obséquios que na minha assistência a Frederico se<br />
deviam, como juntamente por não lhe causar alguma suspeita de minha<br />
ausência nesta ocasião. Sacrifiquei meu desejo nas aras <strong>do</strong> pun<strong>do</strong>nor e <strong>do</strong><br />
político brio, que talvez costuma cortar pelos interesses maiores. Apenas<br />
sucedeu o dia ao penoso <strong>da</strong> noite, que para quem cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so a passa sempre<br />
parece vagarosa, e pelo que depois me referiu Adriano <strong>do</strong> sucesso de<br />
Justiniano no empenho <strong>do</strong> casamento de Fenisa, passou desta sorte.
Cap. XI.<br />
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 985<br />
Do que passou sobre o casamento de Raimun<strong>do</strong><br />
Entrou Justiniano em casa de Frederico Manfre<strong>do</strong>, e avisan<strong>do</strong> que tinha<br />
que tratar com ele e com a senhora Aurélia um negócio de importância, saiu a<br />
recebê-lo Adriano enquanto eles se preparavam para saírem a ouvi-lo. Saiu <strong>da</strong>í<br />
a pouco espaço Frederico com Aurélia, sua mulher, e depois <strong>da</strong>s costuma<strong>da</strong>s<br />
cortesias que se deviam a Justiniano pela autori<strong>da</strong>de de sua pessoa, de seus<br />
cargos e letras e os aplausos que em Bolonha tinha, assentan<strong>do</strong>-se to<strong>do</strong>s e<br />
Adriano juntamente, assim falou:<br />
- Alvíssaras venho pedir-vos, senhor Frederico Manfre<strong>do</strong> e senhora<br />
Aurélia, <strong>da</strong> venturosa nova que vos trago, pois quan<strong>do</strong> o anúncio não fora tão<br />
felice e tão honroso, não aceitara eu o cargo de ser dele embaixa<strong>do</strong>r. Porém<br />
porque o negócio é digno <strong>da</strong> maior estimação e agradecimento, quis eu ser o<br />
primeiro em manifestá-lo e que outro não se adiantasse em predizê-lo, pois<br />
quan<strong>do</strong> as novas são venturosas sempre o primeiro que declara merece to<strong>da</strong> a<br />
benevolência de quem as recebe e to<strong>do</strong> o agra<strong>do</strong> de quem as ouve.<br />
É o duca<strong>do</strong> de Módena e Ferrara não menos grandioso no esta<strong>do</strong> e<br />
senhorio <strong>do</strong> que no ilustríssimo solar de seu príncipe, desde o invicto Hércules<br />
de Este, primeiro duque de Ferrara, de que referirei alguma cousa de<br />
passagem, porque vós, senhores, enten<strong>do</strong> que estareis no mais bem vistos. No<br />
tempo que os longobar<strong>do</strong>s senhorearam Itália com seu valeroso rei Berengário,<br />
que alenta<strong>do</strong> com ter Itália sujeita a seu <strong>do</strong>mínio se nomeou empera<strong>do</strong>r, um<br />
senhor longobar<strong>do</strong> que se chamava Sigisberto de Este se levantou com as<br />
ci<strong>da</strong>des de Parma e Rezzo e outras terras mais que governava, levantan<strong>do</strong><br />
bandeira pelo empera<strong>do</strong>r Otão Segun<strong>do</strong>, que então era empera<strong>do</strong>r de<br />
Alemanha, e legítimo empera<strong>do</strong>r, a quem Sigisberto man<strong>do</strong>u seu filho a <strong>da</strong>r-lhe<br />
a obediência <strong>da</strong>s terras que debaixo de seu nome contra Berengário<br />
sustentava. Foi ele de Otão com aceitação recebi<strong>do</strong> e por suas pren<strong>da</strong>s e juízo<br />
tão aceito que o <strong>caso</strong>u com Al<strong>da</strong>, sua filha natural, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe em <strong>do</strong>te com ela<br />
a ci<strong>da</strong>de de Ferrara e outras terras com título de marquês, com que o enviou<br />
para Itália com Al<strong>da</strong>, sua esposa. Destes, proceden<strong>do</strong> o tempo descendeu<br />
Hércules de Este, que foi o primeiro que logrou o título de duque de Ferrara e
986 Padre Mateus Ribeiro<br />
Módena, e dele se continuou em seus descendentes com título de potenta<strong>do</strong><br />
de Itália e senhor livre e soberano, até o duque de Módena presente.<br />
Com o sublime de tais progenitores, cujo esplen<strong>do</strong>r em to<strong>da</strong> Europa é<br />
tão manifesto, venho hoje, senhores, a trazer-vos um altivo casamento para a<br />
senhora Fenisa, vossa filha, a quem a ventura destinou para tão generosas<br />
bo<strong>da</strong>s e a quem a natureza quis <strong>do</strong>tar de tão singular fermosura e discrição<br />
que merece ser pretendi<strong>da</strong> para a maior grandeza. Costuma o mun<strong>do</strong> dizer que<br />
o testemunho mais abona<strong>do</strong> <strong>da</strong> fermosura era o ser <strong>da</strong> fortuna persegui<strong>da</strong>, e é<br />
engano esta queixa, porque sen<strong>do</strong> na senhora Fenisa sem imitação o único <strong>da</strong><br />
beleza, a mesma fortuna lhe oferece to<strong>do</strong>s os favores para sublimá-la, e se <strong>da</strong><br />
fortuna se podia recear o encontro, dela mesma se conhece o maior aplauso.<br />
Do bem espera<strong>do</strong> se diz que muitas vezes falta e que o mal não se esperan<strong>do</strong><br />
de repente chega; porém neste dia o bem sem esperar-se não faltou, porque<br />
com as felici<strong>da</strong>des de repente veio. Dizia-se que o merecer as venturas talvez<br />
era o meio de perdê-las; porém na senhora Fenisa vejo que o merecê-las é a<br />
estra<strong>da</strong> mais segura de lográ-las. As eminências, por grandes que sejam, se as<br />
desfavorece a ventura, facilmente se arruínam, que o excessivo <strong>da</strong> grandeza<br />
com seu próprio peso abre brechas para o despenho; porém como a eminência<br />
deste casamento nasce nas mãos <strong>da</strong> ventura, ela mesma, como nas mãos lhe<br />
nasce, com elas mesmas as sustenta.<br />
Extremos de entendi<strong>do</strong> costuma dizer-se que raras vezes se unem com<br />
extremos de amante; porém nesta ocasião, no sujeito de quem a tratar venho,<br />
posso dizer que igualmente se acredita <strong>do</strong> muito que entende pelo muito que<br />
ama. O bem de si próprio é amável, como ensina o filósofo 1028 , e Platão 1029<br />
chamou à fermosura grande bem; logo bem se infere que se o bem para ser<br />
ama<strong>do</strong> primeiro há-de ser conheci<strong>do</strong>, aquele que ao portentoso <strong>da</strong> fermosura<br />
mais ama é o que melhor a conhece, e assim tanto de extremos de entendi<strong>do</strong>,<br />
quanto tiver de mais extremos de amante.<br />
Dous filhos tem o duque de Módena, Alexandre, que é o príncipe<br />
imediato sucessor <strong>do</strong> duca<strong>do</strong>, porém este tão enfermo que parece tem as<br />
indisposições contínuas feito hábito em molestá-lo desde seu nascimento. O<br />
Plat., De natur Num.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 987<br />
segun<strong>do</strong> filho é Raimun<strong>do</strong>, que no valor e disposição muito a seu irmão<br />
excede. Este ama à senhora Fenisa com tais extremos que não se atreve a<br />
eloquência a declará-los, pois os encómios mais subi<strong>do</strong>s ficam rasteiros se<br />
intentarem exagerar o que a pena mal pode encarecer. Segue o girassol<br />
amante os luzi<strong>do</strong>s raios <strong>do</strong> maior planeta e o caminho que o sol descreve com<br />
léguas segue esta amante flor com os desejos; e pon<strong>do</strong> à parte o imóvel de ser<br />
flor, o que não pode com passos, segue com os olhos, ain<strong>da</strong> que para o verem<br />
cegos, mas para o sentirem vivos. Ausentou-se a senhora Fenisa com vossas<br />
mercês para Bolonha, sen<strong>do</strong> de Módena o sol pela beleza, que se ao sol<br />
material se deu o nome de sol, porque ele com resplan<strong>do</strong>res próprios luz, com<br />
razão posso dizer que era esta senhora de Módena o sol, pois entre to<strong>da</strong>s ela<br />
só luzia; não sofreu as tiranias <strong>da</strong> ausência quem com tantas veras como<br />
Raimun<strong>do</strong> a amava, pois a quem se esconde o sol, logo fica às escuras, e veio<br />
como girassol seguin<strong>do</strong> as luzes que lhe faltavam, buscan<strong>do</strong> ao dia nas<br />
auroras de seus olhos, que se lá se lhe mostraram o mais anima<strong>do</strong> desdém<br />
para serem vistos, agora em Bolonha espera se mostrem mais favoráveis para<br />
neles amanhecer sua ventura.<br />
Pede a senhora Fenisa para esposa, que tal pren<strong>da</strong> ninguém melhor a<br />
merece, pois pelo ilustre é o que manifesta<strong>do</strong> tenho, trazen<strong>do</strong> pela princesa<br />
Al<strong>da</strong> <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Otão seu primeiro solar; se por senhor, filho de um<br />
potenta<strong>do</strong> soberano; se por discreto, ninguém mais discreto, sen<strong>do</strong> juntamente<br />
tão senhor; se por valeroso, nenhum é nas armas mais alenta<strong>do</strong>; se por galã,<br />
nenhum é mais bizarro; se por liberal, quem pode competir com ele de<br />
generoso?; e se por amante, é singular nas finezas com que a ama e nos<br />
desvelos com que a busca. Pode suceder vir a faltar na vi<strong>da</strong> seu irmão<br />
Alexandre, conforme suas repeti<strong>da</strong>s enfermi<strong>da</strong>des, e vir Raimun<strong>do</strong> a suceder<br />
no duca<strong>do</strong> de Módena, fican<strong>do</strong> senhor soberano e a senhora Fenisa duquesa<br />
com seu casamento; e é tal a digni<strong>da</strong>de de ser suprema senhora que por não<br />
querer Lucila, irmã mais velha <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Cómo<strong>do</strong>, perdê-la em sujeitar-se<br />
à emperatriz Crispina, sua cunha<strong>da</strong>, quis antes perder a vi<strong>da</strong>, como refere<br />
Herodiano 1030 . E Agripina, mãe de Nero, por ver a seu filho supremo empera<strong>do</strong>r<br />
1030 Herod., Lib. 1.
988 Padre Mateus Ribeiro<br />
de Roma, não receou a morte que lhe vaticinaram, que havia de padecer por<br />
seu man<strong>da</strong><strong>do</strong>.<br />
Mas para que sou eu ora<strong>do</strong>r <strong>do</strong> que Raimun<strong>do</strong> merece, quan<strong>do</strong> vós,<br />
senhores, sois as testemunhas mais abona<strong>da</strong>s <strong>do</strong> que eu publico? Quem em<br />
Módena mais venerou suas pren<strong>da</strong>s que vós mesmos? Aonde se viu príncipe<br />
mais afável? Ânimo mais benévolo? Senhor mais benigno? E <strong>da</strong> sorte que <strong>do</strong><br />
empera<strong>do</strong>r Tito to<strong>do</strong>s lhe <strong>da</strong>vam título de delícias de Roma quan<strong>do</strong> vivo e<br />
sau<strong>da</strong>des <strong>do</strong> povo romano quan<strong>do</strong> morto, pela admirável afabili<strong>da</strong>de com que a<br />
to<strong>do</strong>s tratava, assi podemos chamar em Módena a Raimun<strong>do</strong> pelo agradável<br />
que a to<strong>do</strong>s se mostra. E que ventura maior podia, senhores, <strong>da</strong>r-se se<br />
haven<strong>do</strong> de <strong>da</strong>r esta<strong>do</strong> à senhora Fenisa, se intentasse que vir a casá-la com<br />
um príncipe, com quem fica em contingência o poder vir a ser senhora<br />
soberana e na pátria que a criou vassala por nascimento pode vir a ser senhora<br />
por sucessão <strong>do</strong> senhorio? To<strong>do</strong>s vivemos por instantes, que uns aos outros<br />
sucedem: os que passaram já não são e os que vem ain<strong>da</strong> não chegam. To<strong>do</strong><br />
o peso de nossa vi<strong>da</strong> se move no instante presente. É o príncipe Alexandre, o<br />
imediato sucessor por natureza, muito enfermo e podem o contínuo de tantas<br />
indisposições, cortan<strong>do</strong> o fio à vi<strong>da</strong> mortal, pon<strong>do</strong> a morte ao padecer de seus<br />
onerosos achaques e juntamente às esperanças <strong>da</strong> sucessão, fican<strong>do</strong> sen<strong>do</strong> o<br />
primeiro porventura o que a natureza fez segun<strong>do</strong> por nascimento, e virdes,<br />
senhores, a ver vossa filha duquesa de Módena, com que o ilustre solar de<br />
vossa família suba ao auge eminente <strong>do</strong> maior esplen<strong>do</strong>r que desde o tempo<br />
<strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Constâncio possuiu até o século presente.<br />
Mas pon<strong>do</strong> à parte estes contingentes futuros, que Deus Senhor Nosso<br />
tem escondi<strong>do</strong>s nos secretos inscrutáveis de sua sabe<strong>do</strong>ria infinita, e falan<strong>do</strong><br />
só no esta<strong>do</strong> presente <strong>da</strong>s cousas que temos à vista, nem a senhora Fenisa<br />
podia alcançar melhor esposo, se bem se consideram as pren<strong>da</strong>s de<br />
Raimun<strong>do</strong>. Primeiramente não é forasteiro: ele e a senhora Fenisa são na<br />
mesma ci<strong>da</strong>de de Módena nasci<strong>do</strong>s, ambos patrícios e naturais, nenhum deles<br />
estrangeiro, cuja diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem mal entendi<strong>da</strong>, como diz<br />
Quintiliano 1031 , talvez faz tíbio ao amor e a diversi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s costumes faz<br />
muitas vezes divórcio no querer; como se viu na rainha de Nápoles, Joana, a<br />
Quint., Lib. 8.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 989<br />
quem, como escreve Marco António Sabélico 1032 , Ladislau, seu irmão, deixou<br />
nomea<strong>da</strong> por sucessora <strong>do</strong> reino por sua morte, que casan<strong>do</strong> com Jacobo<br />
Francês, conde de Marchia, pela diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s línguas e costumes tão<br />
desuni<strong>do</strong>s viveram que, ven<strong>do</strong>-se o francês priva<strong>do</strong> <strong>do</strong> governo <strong>do</strong> reino por<br />
ocultas traças <strong>da</strong> rainha sua esposa, se tomou para França e em hábito de<br />
ermitão acabou a vi<strong>da</strong> solitário e descontente.<br />
São ambos <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de mais flori<strong>da</strong>, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> a lisonja mais agradável,<br />
delícia <strong>do</strong>s anos e primavera <strong>do</strong> tempo, <strong>do</strong>micílio <strong>da</strong>s esperanças, equinócio<br />
perpétuo <strong>da</strong> alegria, aonde não tem lugar o Inverno <strong>da</strong>s tristezas, porque a<br />
moci<strong>da</strong>de causa união e socie<strong>da</strong>de nos casa<strong>do</strong>s: a que mal se deu em Gala<br />
Pláci<strong>da</strong>, irmã <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Honório, com seu mari<strong>do</strong> Ataulfo, rei <strong>do</strong>s go<strong>do</strong>s. É<br />
a senhora Fenisa com extremos fermosa, que ain<strong>da</strong> o pincel mais subtil <strong>do</strong><br />
afama<strong>do</strong> Apeles não se atreveria a copiar tanta beleza, sen<strong>do</strong> ela só retrato de<br />
si própria, a quem imitar não presumiram Pânfilo, Protógenes, nem Timantes;<br />
porque o que nasceu para assombrosa admiração <strong>da</strong> fermosura, fechou as<br />
portas à arte, para não se atrever a debuxar o pincel o que só quis debuxar a<br />
natureza. Donde infiro que será de Raimun<strong>do</strong> a mais queri<strong>da</strong> e a mais<br />
estima<strong>da</strong> pelo que merece, porque aonde pode mais assegurar-se a estimação<br />
que nos extremos <strong>da</strong> beleza que ela logra e nos auges de amor com que ele a<br />
pede para esposa? Lá se conta que entre Cipião Africano e Semprónia, sua<br />
esposa, houve sempre discórdias e desamor, entanto que, como refere<br />
Sabélico 1033 , houve suspeitas de ela haver conjura<strong>do</strong> em sua morte. A razão<br />
desta desunião <strong>da</strong>s vontades e deste divórcio <strong>do</strong> amor dá o mesmo autor,<br />
dizen<strong>do</strong> que Semprónia, sobre ser em extremo feia, era pouco ajuiza<strong>da</strong>, e com<br />
tais faltas não me admiro que fosse de Cipião aborreci<strong>da</strong>, porque a feal<strong>da</strong>de<br />
não é amável e a ignorância de si é odiosa e mal aceita, como disse Sócrates,<br />
referi<strong>do</strong> por Diógenes 1034 . Porém a senhora Fenisa, em quem se mostrou tão<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa a natureza em a fazer extremo na discrição e prodígio na fermosura,<br />
leva consigo aprisiona<strong>do</strong> o amor para ser queri<strong>da</strong> e o aplauso para ser<br />
estima<strong>da</strong>.<br />
Sabei., Eneid. 10.1. 1.<br />
Marc. Ant. Sabei., Eneid. 6.1. 1.
990 Padre Mateus Ribeiro<br />
Lá disse Demóstenes 1035 que a maior vitória e glória <strong>do</strong> vence<strong>do</strong>r<br />
consistia na digni<strong>da</strong>de e autori<strong>da</strong>de <strong>do</strong> venci<strong>do</strong>; pois que vitória maior pode<br />
publicar o clarim sonoro <strong>da</strong> fermosura nos ecos imortais <strong>da</strong> fama que haver<br />
venci<strong>do</strong> a senhora Fenisa com seus merecimentos a um príncipe como<br />
Raimun<strong>do</strong>, em quem se dão tantas pren<strong>da</strong>s que o ilustram e que com tal<br />
rendimento se manifesta seu prisioneiro ao quartel de sua vontade? Que assim<br />
como a pedra íman pela natural simpatia que tem com a estrela <strong>do</strong> norte, como<br />
refere Plínio 1036 e escreve Galeno 1037 , ou esteja fecha<strong>da</strong> ou à vista manifesta,<br />
sempre em seguir ao norte está firme e por mais varie<strong>da</strong>des de sítio em que a<br />
ponham, nunca <strong>do</strong> intento desiste, antes nele persevera e permanece<br />
constante em to<strong>do</strong> o tempo; assim Raimun<strong>do</strong> seguin<strong>do</strong> as luzes <strong>da</strong> senhora<br />
Fenisa em to<strong>da</strong> a parte se mostra afectuoso amante. E suposto que diz<br />
Cícero 1038 que fácil é vencer a quem não se defende, com isso está que a<br />
maior valentia <strong>da</strong> fermosura é deixar despoja<strong>do</strong> <strong>do</strong> valor e desarma<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
alentos a quem sobrava o ânimo e valor para resistir e defender-se de muitos<br />
contrários na campanha. Quem nas armas mais destemi<strong>do</strong> que Raimun<strong>do</strong>?<br />
Quem nas empresas se viu mais alenta<strong>do</strong> que nunca viu a cara ao me<strong>do</strong>, nem<br />
o páli<strong>do</strong> ao temor, que nunca conheceu ao receio nem por fama, nem de longe<br />
ouviu os ecos <strong>do</strong> pavor; e com ser invencível pelo animoso, foi bastante uma<br />
vista para render-se, foram poderosos uns olhos para desarmá-lo, foi uma<br />
fermosura eficaz para vencê-lo. Oh maravilha grande! Oh portentoso triunfo! De<br />
Raimun<strong>do</strong> só senti<strong>do</strong> e <strong>da</strong> senhora Fenisa executa<strong>do</strong>; pois quan<strong>do</strong> com fugir<br />
soube vencer, bem se pode inferir que se parara, pudera a to<strong>do</strong>s matar, pois<br />
quem com o retiro rende, se fizera alto não assegura as vi<strong>da</strong>s.<br />
Tenho, senhores, com o dilata<strong>do</strong> desta proposta, mostra<strong>do</strong> as<br />
conveniências grandes que deste casamento de Raimun<strong>do</strong> com a senhora<br />
Fenisa podem seguir-se, a vós, senhor Frederico, <strong>da</strong> maior honra em<br />
alcançardes genro tão poderoso, unin<strong>do</strong> o ilustre solar <strong>do</strong>s Manfre<strong>do</strong>s com a<br />
régia casa <strong>do</strong>s Estes; à senhora Fenisa de alcançar um esposo a quem<br />
Dem., Exarg. libr.<br />
Plin., L 36. c. 16.<br />
Galen., Lib. 92.<br />
Cicer., Tusc. 1.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 991<br />
(suposto que com duvi<strong>do</strong>sas esperanças) talvez pode suceder com os<br />
discursos de tempo vir a ser duque e ela de Módena duquesa, sen<strong>do</strong> o<br />
supremo e soberano senhorio, como disse Tito Lívio 1039 , a cousa mais honrosa,<br />
a digni<strong>da</strong>de mais respeita<strong>da</strong>.<br />
Só me poderão em contrário dizer haver de ser este tão venturoso<br />
casamento contra a vontade <strong>do</strong> duque de Módena, que terá a Raimun<strong>do</strong><br />
destina<strong>do</strong> para o casar em Mântua, Parma ou outro alheio senhorio; e que<br />
ressenti<strong>do</strong> de ver casa<strong>do</strong> a Raimun<strong>do</strong> sem seu consentimento com vassala<br />
sua, poderá rigoroso e vingativo solicitar satisfações em que desafogar seu<br />
ressentimento, que de príncipe tão poderoso devem temer-se os enojos para<br />
se evitarem as vinganças. Porém esta objecção não é bastante para intimi<strong>da</strong>r o<br />
efectuar-se tão oportuno casamento, porque as iras <strong>do</strong>s pais, diz Tito Lívio 1040 ,<br />
são pouco para temer-se, porque tem no amor paternal o mais seguro escu<strong>do</strong>.<br />
Dá a razão Aristóteles 1041 de ser o amor <strong>do</strong>s pais mais vigoroso, dizen<strong>do</strong> que o<br />
amor <strong>do</strong>s pais para com os filhos é mais antigo, porque começaram a amar<br />
seus filhos desde que os filhos nasceram, e os filhos amam aos pais desde que<br />
com o uso <strong>da</strong> razão por pais os conheceram; e por isso nos pais é o amor mais<br />
vigoroso como tão antigo e nos filhos menos afectuoso como mais moderno.<br />
Bem se experimentou esta ver<strong>da</strong>de em vários sucessos, que deixo por<br />
abreviar, referin<strong>do</strong> só <strong>do</strong>us empera<strong>do</strong>res de quem as filhas se casaram contra<br />
seu gosto, fugin<strong>do</strong> <strong>do</strong> paço com seus amantes e casan<strong>do</strong>-se com eles, sen<strong>do</strong><br />
vassalos <strong>do</strong> império. A princesa Alasia, filha <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Otão Segun<strong>do</strong>, que<br />
se ausentou <strong>do</strong> paço com Almaro, filho desconheci<strong>do</strong> <strong>do</strong> duque de Saxónia, e<br />
depois de largo espaço de tempos, foram conheci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r e os fez os<br />
primeiros marqueses de Monferrato. Semelhante foi a fugi<strong>da</strong> <strong>da</strong> princesa<br />
Eurides, filha <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r Constâncio, com o ilustre Manfre<strong>do</strong>, de quem vós,<br />
senhor Frederico, descendeis, que depois de conheci<strong>do</strong> <strong>do</strong> pie<strong>do</strong>so pai, os fez<br />
os primeiros marqueses de Ferrara, de quem os duques de Módena tiveram<br />
origem.<br />
Tito Liv., 3. Deca. lib. 6.<br />
Tito Liv., 3. Deca. lib. 6.<br />
Arist., Eth. 8.
992 Padre Mateus Ribeiro<br />
Destes exemplos que na nossa Itália vimos, e outros vários de diversos<br />
reinos, estão escritos em que se experimentou o amor pie<strong>do</strong>so <strong>do</strong>s pais para<br />
com seus filhos, sen<strong>do</strong> as iras <strong>do</strong>s pais venci<strong>da</strong>s <strong>do</strong> afectuoso <strong>do</strong> querer, bem<br />
se infere, como diz Plínio 1042 , que os rogos e petições <strong>da</strong> cousa ama<strong>da</strong> são<br />
para impetrar as valias mais poderosas, os ora<strong>do</strong>res mais eloquentes. E se,<br />
como disse Ovídio 1043 , sabe a nativa feroci<strong>da</strong>de de um leão embainhar as<br />
farpantes garras, embotar as presas, depor a cruel<strong>da</strong>de, despojar-se <strong>do</strong> rigor e<br />
vestir-se <strong>da</strong> brandura, como se viu no leão de Andronico em Roma, como<br />
escreve Aulo Gélio 1044 ; que se pode temer <strong>do</strong> amor de um pai, em quem o<br />
amor em seu peito tem tão antigo <strong>do</strong>micílio para um filho de tantas pren<strong>da</strong>s<br />
<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> e com esposa tão digna <strong>da</strong> maior estimação? Assi como o centro iguala<br />
e une em si to<strong>da</strong>s as linhas que na circunferência <strong>do</strong> círculo desuni<strong>da</strong>s se vem,<br />
assi o amor costuma igualar to<strong>do</strong>s os esta<strong>do</strong>s que entre si desiguais se<br />
mostram; e se, como diz Aristóteles na Política 45 , <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />
riquezas ou esta<strong>do</strong>s costumam no mun<strong>do</strong> originar-se as discórdias, assi pelo<br />
contrário o amor com igualar a tu<strong>do</strong> sabe conciliar desuniões e planiciar<br />
dificul<strong>da</strong>des, como <strong>do</strong>s <strong>do</strong>us irmão Castor e Pólux pelo muito que se amaram<br />
exemplificou a antigui<strong>da</strong>de.<br />
Estais hoje, senhores, residentes em o senhorio <strong>da</strong> Igreja e não de<br />
Módena, aonde sem receio (quan<strong>do</strong> algum haver pudera) podeis aceitar as<br />
ofertas <strong>da</strong> ventura com que vos chama tão propícia, para verdes a senhora<br />
Fenisa no grandioso esta<strong>do</strong> que merece; e não parece acerta<strong>do</strong> dilatar a<br />
aceitação que a oportuni<strong>da</strong>de obsequiosa vos mostra, que as imortais vitórias e<br />
aplaudi<strong>do</strong>s triunfos <strong>do</strong> grande Alexandre e de Júlio César na brevi<strong>da</strong>de tiveram<br />
a origem, porque nunca deixaram para o dia seguinte o que puderam<br />
emprender no dia presente, pois quan<strong>do</strong> a fortuna se mostra favorável, então<br />
se devem aproveitar <strong>do</strong> que risonha promete. Agora que a esperança está<br />
flori<strong>da</strong>, o Abril mais vistoso para lográ-la e o Maio mais alegre para conhecê-la,<br />
pois ao muito que Raimun<strong>do</strong> ama a senhora Fenisa, a menor demora será para<br />
Plin. Jun., Lib. 9.<br />
Ovid., 2. De Trist.<br />
Aui. Gelio, Lib. 5. cap. 4.<br />
Arist., Pol. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 993<br />
ele o maior tormento, temen<strong>do</strong> que quanto seu desejo se dilata, tem por inimiga<br />
a fortuna que o encontra, e não merece desejo tão bem nasci<strong>do</strong> ver-se nas<br />
dilações tão malogra<strong>do</strong>, nem minha vin<strong>da</strong> ser tão pouco proveitosa que não<br />
persua<strong>da</strong> um bem tão honroso, uma ventura tão segura que pode de muitas<br />
senhoras ser inveja<strong>da</strong> e a senhora Fenisa não ter que poder invejar a outra<br />
igual ventura.<br />
Deu fim Justiniano a seu dizer e princípio à nova suspensão em que os<br />
ouvintes ficaram em ouvi-lo, assi no assunto de sua prosa, como no estilo com<br />
que em manifestá-la se empenhou. Dilataram por um breve intervalo a<br />
resposta, que nos negócios de tanto peso não é fácil o responder com acerto<br />
sem consultar a razão. Enfim ven<strong>do</strong> Frederico que a ele pertencia o responder,<br />
depois de render as graças a Justiniano <strong>da</strong> embaixa<strong>da</strong> que deste casamento<br />
para sua filha Fenisa lhe trazia, a que se mostrava mui obriga<strong>do</strong>, disse que<br />
necessitava de o consultar com ela, pois ela era a que para o casamento havia<br />
de <strong>da</strong>r seu livre consentimento, e juntamente consultar o parecer <strong>do</strong> eminente<br />
cardeal lega<strong>do</strong> e governa<strong>do</strong>r de Bolonha, seu parente, sem cujo parecer nem<br />
era decente, nem podia tomar resolução em negócio tão importante, pois<br />
estavam em seu senhorio e ele tinha a Fenisa em seu amparo; e <strong>do</strong> que se<br />
ajustasse lhe <strong>da</strong>ria a resposta ao outro dia. Pouco satisfeito ficou Justiniano de<br />
haver de consultar-se o cardeal neste casamento, recean<strong>do</strong> que não havia de<br />
aprová-lo pelas razões que já previa e juntamente por não odiar-se com o<br />
duque de Módena, a quem não queria desgostar; porém como a resposta de<br />
Frederico era mais ajusta<strong>da</strong> à razão e cortesia <strong>do</strong> que a seu desejo, não teve<br />
que replicar-lhe. Só à despedi<strong>da</strong> lhe encomen<strong>do</strong>u a brevi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> resposta,<br />
advertin<strong>do</strong>-lhe que as venturas só uma vez batem à porta, e que se tar<strong>da</strong>m em<br />
lhe abrirem, passam de largo e raras vezes tornam. Despedi<strong>do</strong> Justiniano,<br />
entraram os pais de Fenisa a <strong>da</strong>r-lhe notícias <strong>do</strong> casamento que Justiniano<br />
lhes propusera; porém ela, que estava já de Lívia avisa<strong>da</strong> e persuadi<strong>da</strong> a não<br />
consentir no casamento, dizem lhes respondeu desta sorte:<br />
- Bem conheço, senhores, o amor que vossas mercês me tem, que me<br />
desejaram to<strong>da</strong>s as felici<strong>da</strong>des e venturas possíveis a seu amor, se estas se<br />
pudessem lograr com segurança. Porém faltan<strong>do</strong> esta, não é felici<strong>da</strong>de a que<br />
tem aparências de ventura. É um cui<strong>da</strong><strong>do</strong> pensão tão onerosa, é um receio tão<br />
amarga bebi<strong>da</strong> que pode dissaborear to<strong>da</strong> a <strong>do</strong>çura e desassonar to<strong>da</strong> a
994 Padre Mateus Ribeiro<br />
suavi<strong>da</strong>de que as venturas prometem. Se Raimun<strong>do</strong> fora meu igual, pren<strong>da</strong>s<br />
tinha para o estimar em muito. Porém casar a furto e a desgosto <strong>do</strong> duque seu<br />
pai, sen<strong>do</strong> um príncipe potenta<strong>do</strong> de Itália e senhor tão poderoso no esta<strong>do</strong> e<br />
em tantos reinos vali<strong>do</strong> e sobretu<strong>do</strong> de quem nascemos vassalos, em cujo<br />
senhorio estão situa<strong>da</strong>s nossas ren<strong>da</strong>s e possessões, quem não temerá<br />
desgostá-lo, quanto mais ofendê-lo? Quem duvi<strong>da</strong> que tenha os baços tão<br />
dilata<strong>do</strong>s para vingar-se como o ânimo tão pronto para ressentir-se? Nunca as<br />
desigual<strong>da</strong>des asseguraram bonanças, antes sempre ameaçaram perigos.<br />
Nunca as venturas <strong>da</strong>riam tantas baixas se a ambição se satisfizera com<br />
menores eminências. Ventura que não promete duração, para que se chama<br />
ventura? Pois é maior a mágoa de a ver perdi<strong>da</strong> <strong>do</strong> que foi a alegria de lográ-la<br />
por espaço tão breve, para ser a pena depois tão dilata<strong>da</strong>. Que alegria podia<br />
eu ter de ver-me esposa de Raimun<strong>do</strong>, se por meu respeito visse a vossas<br />
mercês e a meus irmãos, a quem tanto amo, persegui<strong>do</strong>s e arrisca<strong>do</strong>s? Que<br />
contentamento podia assistir em meu coração, estan<strong>do</strong> de temores tão<br />
justamente ocupa<strong>do</strong>? É a mágoa antípo<strong>da</strong> <strong>do</strong> gosto e mal podem unir-se, é a<br />
tristeza noite escura <strong>do</strong> coração e mal pode ajuntar-se com o dia de alegria; e<br />
assim tu<strong>do</strong> em mim seria pena, por considerar que em vossas mercês tu<strong>do</strong><br />
seriam moléstias por minha causa.<br />
Já quan<strong>do</strong> na quinta assistia me oferecia Raimun<strong>do</strong> o ser meu esposo,<br />
cousa de que nunca fiz aceitação, como então a vossas mercês referi; porque<br />
não se desempenhava o brioso de meu pun<strong>do</strong>nor em poder dizer-se que era<br />
Raimun<strong>do</strong> em mim mal emprega<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> eu filha de tão ilustres pais, quan<strong>do</strong><br />
eu rejeita<strong>do</strong> tinha tantos casamentos que me pretenderam. Case Raimun<strong>do</strong><br />
aonde seu pai levar gosto e deixe-me a mim com minha sorte, que meu desejo<br />
não solicita suas maiorias para eu e ele vivermos desterra<strong>do</strong>s, <strong>da</strong>s iras <strong>do</strong><br />
duque seu pai persegui<strong>do</strong>s e vossas mercês odia<strong>do</strong>s por meu respeito e<br />
inquietos quan<strong>do</strong> eu os amo e estimo em mais que a própria via. Este é o meu<br />
parecer e nele concor<strong>da</strong> a minha vontade, que eu não me ausentei de Módena<br />
para Bolonha para cá vir a aceitar o que lá não admiti; pois quan<strong>do</strong> não haja de<br />
casar com titular que de ser meu esposo muito se preze, não faltará a clausura<br />
de um convento aonde me recolha, pois tenho irmãos tão honra<strong>do</strong>s em quem o<br />
solar ilustre <strong>do</strong>s Manfre<strong>do</strong>s perpetuar-se pode.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 995<br />
Terminou-se Fenisa seu ajuiza<strong>do</strong> parecer, que seus pais e irmãos como<br />
tal louvaram, parecen<strong>do</strong>-lhes a to<strong>do</strong>s a mais discreta resolução e a mais<br />
segura. Partiu-se logo Frederico com seus filhos a <strong>da</strong>rem conta ao cardeal<br />
governa<strong>do</strong>r, que aprovou a prudente resolução de Fenisa, como tão digna <strong>do</strong>s<br />
aplausos que de seu juízo a fama publicava, e que essa resposta se devia <strong>da</strong>r<br />
a Justiniano para que desenganasse a Raimun<strong>do</strong>, e com isso de Bolonha se<br />
despedisse. Assim o fez Frederico, in<strong>do</strong> buscar a Justiniano a sua casa, como<br />
lhe prometera, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe inteira relação em como nem Fenisa, nem o cardeal<br />
lega<strong>do</strong> vinham no casamento de Raimun<strong>do</strong>, pelos manifestos inconvenientes<br />
que aí podiam seguir-se.<br />
Melancólico ficou Justiniano de seu estu<strong>do</strong> e eloquência lograr tão<br />
contrários efeitos ao que esperava. Porém como estava em meio a livre<br />
vontade de Fenisa que no casamento não convinha, não teve que replicar a<br />
sua resolução, ouvin<strong>do</strong> as razões em que se fun<strong>da</strong>va, que ele antes de<br />
empenhar-se na proposta antevia. Despediu-se Frederico, e Justiniano,<br />
magoa<strong>do</strong> de haver si<strong>do</strong> ora<strong>do</strong>r tão pouco venturoso, foi a minha casa <strong>da</strong>r a<br />
Raimun<strong>do</strong> as desengana<strong>da</strong>s notícias <strong>da</strong> resposta de Frederico e de Fenisa,<br />
encarecen<strong>do</strong>-lhe o quanto se havia empenha<strong>do</strong> por servi-lo, porém que contra<br />
uma vontade resoluta de mulher de pensamentos tão subi<strong>do</strong>s não puderam<br />
conseguir efeito as eloquências. Confesso que interiormente senti notável<br />
alegria em ver frustra<strong>do</strong>s os intentos de Raimun<strong>do</strong> e os empenhos de<br />
Justiniano, suposto que no exterior o não mostrava. Aqui reconheci em Fenisa<br />
a grandeza de seu juízo, pois nem a desvaneciam altezas, nem a demoveram<br />
esperanças, nem a lisonjearam adulações, nem a venceram finezas para ceder<br />
<strong>do</strong>s brios de a ter <strong>do</strong> duque por indigna <strong>do</strong> casamento de seu filho e que não<br />
julgasse que era ela merece<strong>do</strong>ra de ser de qualquer príncipe mulher.<br />
Assusta<strong>do</strong> Raimun<strong>do</strong> com os anúncios que ele não esperava <strong>da</strong> repugnância<br />
<strong>da</strong> vontade de Fenisa para haver de ser sua esposa, como com tantos<br />
desvelos pretendia, depois que por um intervalo suspendeu o falar com o<br />
gravame <strong>da</strong> pena que sentia, não poden<strong>do</strong> já a tolerância <strong>da</strong> <strong>do</strong>r com o intenso<br />
<strong>do</strong>s pesares sem procurar desafogo na queixa, o alívio na voz, o antí<strong>do</strong>to nas<br />
palavras ao veneno de um desengano que no íntimo <strong>do</strong> coração sentia, assim<br />
falou:
996 Padre Mateus Ribeiro<br />
- Que pouco venturoso posso dizer que nasci, pois não ten<strong>do</strong> que<br />
formar queixas <strong>da</strong> natureza, tive por madrasta a fortuna; e quan<strong>do</strong> pudera ser<br />
de muitos inveja<strong>do</strong>, venho a ficar agora de to<strong>do</strong>s invejoso. Que seja poderosa<br />
uma moça vassala de meu pai para desprezar-me! Que haja eu de perder por<br />
grande, o que outro poderá alcançar por ser menos! Que quan<strong>do</strong> se costuma<br />
dizer que à grandeza tu<strong>do</strong> é possível, ache eu to<strong>do</strong> o impossível na grandeza!<br />
Oh pena incapaz de ser cri<strong>da</strong>! Oh <strong>do</strong>r impossível de publicar-se! Que montes<br />
Rifeus produziram esta neve com alma, este penhasco duro com vi<strong>da</strong>? Tão<br />
altiva para nascer vassala que chega com seu brio a avassalar ao mais altivo?<br />
Que não fossem poderosas tantas finezas para lavrarem a dureza deste<br />
diamante? Que não bastasse tão vivo rendimento de minha vontade para<br />
render uma vontade tão cruel? Que estu<strong>da</strong>sse na academia de sua isenção<br />
lições de tão briosa e tão tirana que fiquem meus brios parecen<strong>do</strong> as mais<br />
humildes sujeições? Que com oferecer-me para ser seu esposo, me desestime<br />
como se fora escravo, e que sen<strong>do</strong> filho de um potenta<strong>do</strong>, me julgue por<br />
incapaz de ser seu esposo? Se me reprova por grande, por que não me teme<br />
ofendi<strong>do</strong>? Não receia que se converta em aborrecimento por despreza<strong>do</strong> um<br />
querer que foi tão fino por amante? E que chegue a parecer delírio, o que de<br />
antes eleição de ajuiza<strong>do</strong>?<br />
Ela não há-de casar com outro, pois se não prezou de casar comigo;<br />
bem poderei considerá-la religiosa, mas não casa<strong>da</strong>, pois em pouco estimará a<br />
vi<strong>da</strong> quem chegar a pretendê-la por esposa, que não se diferençará o tálamo<br />
<strong>do</strong> sepulcro. Vingarei meu sentimento em suas esperanças, curarei minhas<br />
penas com suas mágoas e meus desgostos com seus pesares. Não imagine<br />
esta tirana que há-de fazer maior minha desgraça com acrescentar em outro a<br />
ventura, porque não há-de gloriar-se outro de possuir com segurança o que eu<br />
não pude alcançar com merecimentos. Pois considere que quanto subi<br />
aman<strong>do</strong>, posso descer de um salto aborrecen<strong>do</strong>; porque o amor sobe por<br />
degraus e o aborrecimento de um golpe desce tu<strong>do</strong>. Acerto foi que não me<br />
visse Bolonha descoberto, senão desconheci<strong>do</strong>, porque não me visse agora<br />
retirar tão desluzi<strong>do</strong>, que só <strong>da</strong>s sombras escuras <strong>da</strong> noite posso confiar meus<br />
pesares; porque as luzes <strong>do</strong> dia são teatro e proscénio para quem venturoso<br />
representa suas alegrias, e não para quem sente em seu coração tão vivas<br />
tristezas. Esta noite me partirei a Módena, mas meu sentimento <strong>da</strong>rá depois
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 997<br />
sinais de meu agravo; pois quanto mais dilata<strong>da</strong> tem si<strong>do</strong> no mar a bonança,<br />
diz Aristóteles 1046 , tanto mais vivinha se pode recear a tormenta.<br />
Assi impaciente se queixava Raimun<strong>do</strong> <strong>da</strong>s ingratidões de Fenisa e de<br />
se ver de seus pais desengana<strong>do</strong> <strong>do</strong> casamento que com tantos desvelos<br />
pretendia, mortas as esperanças em que seu desejo se alimentava e seu amor<br />
vivia, beben<strong>do</strong> a quinta essência <strong>do</strong>s pesares na desabri<strong>da</strong> taça de um<br />
desengano poderoso a converter em fel a to<strong>da</strong> a <strong>do</strong>çura. Assi brotava<br />
incêndios de ira <strong>do</strong> fogoso Etna que em seu peito ardia. Porém Justiniano,<br />
desejan<strong>do</strong> poder moderar a pena que o oprimia, suposto que a paixão o<br />
<strong>do</strong>minava tanto, sen<strong>do</strong> tão intenso o sentimento e tão presente a mágoa que<br />
não permitia confianças à locução para poder servir de desafogo à pena, sen<strong>do</strong><br />
empenho <strong>do</strong> ora<strong>do</strong>r, como disse Plutarco 1047 , medir o tempo e son<strong>da</strong>r a<br />
ocasião se é oportuna para poder persuadir; porque quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>minam as<br />
paixões, mal atende o ouvinte aos lenitivos <strong>da</strong> voz, nem ao eloquente <strong>do</strong><br />
ora<strong>do</strong>r. Contu<strong>do</strong> Justiniano, pedin<strong>do</strong> a Raimun<strong>do</strong> licença para falar, e confia<strong>do</strong><br />
na razão, lhe disse assi:<br />
Cap. XII.<br />
Da resposta que Justiniano deu a Raimun<strong>do</strong> e <strong>do</strong> que dela resultou<br />
- Suposto, senhor, que o tempo de falar pareça ser impróprio para as<br />
ocasiões <strong>do</strong> sentir desgostos, a mi me parece que no mais rigoroso <strong>do</strong> sentir é<br />
o tempo mais oportuno de falar; porque depois de declinar a pena e abonançar<br />
a <strong>do</strong>r, já parece se escusa o falar, assi como depois de sarar a chaga ou a<br />
feri<strong>da</strong> são escusa<strong>do</strong>s os remédios dela, como diz Plutarco 1048 , porque quan<strong>do</strong><br />
a <strong>do</strong>r é mais onerosa e intolerável, então se deve aplicar o remédio mais eficaz.<br />
Nunca sem serem as partes ouvi<strong>da</strong>s pode parecer justa a sentença, como<br />
disse Platão 1049 e o Direito ensina. E como Fenisa e seus pais não são ouvi<strong>do</strong>s,<br />
1046 Arist., Eth. 8.<br />
1047 Plut., in Apoph.<br />
1048 Ubi Supra.<br />
1049 Plat., De Consul.
998 Padre Mateus Ribeiro<br />
o caírem na indignação de vossa excelência bem poderá ser desgraça, mas<br />
não justiça.<br />
Queixa-se vossa excelência de que amou a Fenisa com extremos e<br />
finezas grandes: bem se prova essa ver<strong>da</strong>de nos efeitos de que duvi<strong>da</strong>r-se não<br />
pode, pois sen<strong>do</strong> vossa excelência filho de um potenta<strong>do</strong> tão grande,<br />
disfarça<strong>do</strong> fora de seu senhorio a busca, oferecen<strong>do</strong>-se para ser seu esposo.<br />
Agora, perguntara eu (se lícito me fora), se porventura Fenisa fora feia, se com<br />
essas finezas vossa excelência a amara? Bem podemos afirmar que não,<br />
porque se conforme ensina Aristóteles, <strong>do</strong>s contrários se dá a mesma ciência<br />
que os considera, sen<strong>do</strong> a fermosura amável, como diz Platão, ao contrário a<br />
feal<strong>da</strong>de não pode ser amável de si mesma. Daqui se infere que se vossa<br />
excelência amou a Fenisa por ser <strong>da</strong> beleza anima<strong>da</strong> admiração e vivo espanto<br />
de maior fermosura, a não amara se fora feia; e assim pouco tem Fenisa<br />
obrigação de se mostrar obriga<strong>da</strong> aos desvelos de que não foi causa, suposto<br />
que sua vista ser pudesse deles ocasião. A ingratidão não assenta senão sobre<br />
serviços aceitos e não remunera<strong>do</strong>s e sobre obrigações mal correspondi<strong>da</strong>s.<br />
Porém em quem nem as procura, nem finezas aceita, como pode cair<br />
ingratidão? É o amor acção livre <strong>da</strong> vontade que por nenhum humano, nem<br />
cria<strong>do</strong> poder jamais pode ser violenta<strong>da</strong>; se vossa excelência voluntariamente<br />
a Fenisa amou, pudera livremente não amá-la, como outros muitos haverá que<br />
a não amem; e assim não induz obrigação o que de si foi contingente e pudera<br />
não ser. Assi como se vossa excelência a não amara, não pudera Fenisa de<br />
não ser ama<strong>da</strong> formar queixas com razão, sen<strong>do</strong> o amor tão voluntário e livre;<br />
assi vossa excelência não pode justamente culpá-la de não ser dela<br />
correspondi<strong>do</strong>, porque o que não induz obrigação, nunca se sujeita às<br />
censuras <strong>da</strong> injustiça.<br />
Queixa-se vossa excelência que perde por ser tão grande no esta<strong>do</strong> e<br />
na pessoa o casamento de Fenisa, que outro talvez virá a conseguir sen<strong>do</strong> em<br />
tu<strong>do</strong> inferior. Assim o conce<strong>do</strong>; mas que culpa tem Fenisa, se a fortuna lhe<br />
negou o esta<strong>do</strong> tão altivo com que pudesse igualar ao de vossa excelência; e<br />
pelo venerar tão superior o não aceita, que a ser seu igual o recebera? Lá<br />
disse Plutarco 1050 que nem a natureza, nem a fortuna consentem que tu<strong>do</strong> seja<br />
Plut., De amie. mult.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 999<br />
igual, parecer que seguiu Quintiliano 1051 e o mostra a experiência. Logo não<br />
será maravilha que se vossa excelência menos sublime houvera nasci<strong>do</strong> que<br />
Fenisa o amara e por esposo o recebera, porque as semelhanças são<br />
conciliativas <strong>do</strong> amor, como diz Platão 1052 . Não vemos que a águia-real ame ao<br />
pavão pela vistosa fermosura <strong>da</strong>s penas, nem ao rouxinol pela suavi<strong>da</strong>de<br />
melodia de sua voz, o harmónico de seu canto, o agradável acento de sua<br />
música. A razão me parece que o serem tão desiguais nas naturezas e a águia<br />
tão altiva na estimação, que quer descrever os raios <strong>do</strong> sol no cristalino livro de<br />
seus olhos, entre tanta desigual<strong>da</strong>de nem a fermosura, nem a melodia mais<br />
sonora de nenhuma parte pode produzir afeição.<br />
Vossa excelência nasceu para príncipe e Fenisa para vassala; e suposto<br />
que seja tão ilustre no solar, tão singular na beleza e tão rica no <strong>do</strong>te e<br />
descrição, a fazem merece<strong>do</strong>ra de ser esposa de um titular e senhor de<br />
esta<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong> não a habilitou a fortuna para ser nora de um príncipe<br />
soberano, sen<strong>do</strong> ela e seus pais por nascimento seus vassalos. Bem se mostra<br />
nisto o acredita<strong>do</strong> de seu entendimento e o aplaudi<strong>do</strong> de seu juízo, pois<br />
quan<strong>do</strong> ela conhecera que podia com segurança aspirar a essa grandeza,<br />
nunca ela a recusara, nem de esposo de tantas pren<strong>da</strong>s como se dão em<br />
vossa excelência se eximira, sen<strong>do</strong> natural desejo nas mulheres ilustres e tão<br />
<strong>do</strong>ta<strong>da</strong>s o aspirarem sempre a subirem a mais. Porém se o senhor duque tão<br />
mal havia de receber este casamento, contra seu gosto e sem sua licença<br />
executa<strong>do</strong>, e com to<strong>do</strong> o rigor mostran<strong>do</strong>-se ofendi<strong>do</strong>, os pais de Fenisa se<br />
veriam de seu senhorio para sempre desterra<strong>do</strong>s, sequestra<strong>da</strong>s as ren<strong>da</strong>s que<br />
nele possuem e de seu poder persegui<strong>do</strong>s em to<strong>da</strong> a parte; como havia de<br />
aceitar Fenisa uma felici<strong>da</strong>de que a seus pais e irmãos havia de custar tantas<br />
calami<strong>da</strong>des, perpétuos desgostos, incessáveis infortúnios e repeti<strong>do</strong>s<br />
pesares?<br />
Estes inconvenientes tão dignos de ponderar-se não os considera quem<br />
ama, que por isso se pintava o amor com os olhos ven<strong>da</strong><strong>do</strong>s, porque nem vê<br />
os despenhos, nem atende aos perigos, nem receia os discómo<strong>do</strong>s que seguir<br />
se podem. Como culpa vossa excelência a Fenisa de cruel porque o não ama,<br />
Quint., Decl. 8.<br />
Plat., De leg. Dial. 6.
1000 Padre Mateus Ribeiro<br />
de ingrata porque de suas finezas não se obriga e de tirana porque a seus<br />
extremos não se demove? Eu a culpara também, se a não desculpara o temor<br />
e se a não absolvera o receio. Dous temores ou receios considero em Fenisa:<br />
o primeiro em sujeitar-se a amar poden<strong>do</strong> depois ser aborreci<strong>da</strong>, e o segun<strong>do</strong> o<br />
ver-se venturosa, consideran<strong>do</strong> nesta própria ventura o ficarem seus pais e<br />
irmãos desgraça<strong>do</strong>s. No primeiro temor obrou como discreta e no segun<strong>do</strong><br />
temor obra como filha. É o amor um voluntário cativeiro, disfarça<strong>do</strong> argel <strong>da</strong>s<br />
liber<strong>da</strong>des, como lhe chamou Propércio 1053 ; mal de difícil cura, como o intitula<br />
Ovídio 1054 ; frenético acidente <strong>da</strong> razão lhe dá por nome Apuleio 1055 ; e<br />
finalmente violenta paixão <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s o descreve Erasmo 1056 , que como<br />
primeiro móvel com violência os arrebata. É, se bem se considera, prisão <strong>do</strong><br />
coração, martírio <strong>da</strong> alma, desconheci<strong>do</strong> saltea<strong>do</strong>r, ingrato para servir-se,<br />
desumano para seguir-se e dificultoso para deixar-se.<br />
Sen<strong>do</strong> pois estes os atributos <strong>do</strong> amor, bem mostrou Fenisa o raro de<br />
seu juízo em não pretender segui-lo, porque consideran<strong>do</strong>-se incapaz de tão<br />
altivo casamento e emprego tão sublime, poderia vossa excelência, avalian<strong>do</strong>-<br />
se por mal emprega<strong>do</strong> no consórcio de uma vassala, vir a mostrar-se<br />
arrependi<strong>do</strong>, chegan<strong>do</strong> de pesaroso a aborrecer o que agora com extremos<br />
mostra amar; porque, como diz Plutarco 1057 , tão cego é o aborrecimento como<br />
o amor. Sempre o bem depois de possuí<strong>do</strong> se representa menos e o não<br />
logra<strong>do</strong> se considera mais. Podia vossa excelência, depois de casa<strong>do</strong> com<br />
Fenisa, considerar avantaja<strong>do</strong>s casamentos que em outros senhorios se lhe<br />
puderam oferecer com filhas de senhores soberanos, diferentes esta<strong>do</strong>s e<br />
grandiosos <strong>do</strong>tes; e descen<strong>do</strong> de pesaroso a melancólico, vir a mostrar-se<br />
aborreci<strong>do</strong> <strong>da</strong> eleição que agora fazia e desprezar de senti<strong>do</strong> o mesmo de que<br />
agora faz a maior estimação, passan<strong>do</strong> de um a outro extremo, o que para<br />
Fenisa ficaria sen<strong>do</strong> a maior pena, indivisível mágoa e incessável <strong>do</strong>r; pois,<br />
Ovid., in Ep.<br />
Apul., Lib. 6.<br />
Erasm., in Ep.<br />
Plut., De utilit. capien ab inimic.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1001<br />
J058<br />
como disse Euripides , é intolerável tristeza passar <strong>da</strong> ventura à desgraça e<br />
de ser com extremos ama<strong>do</strong> a considerar-se aborreci<strong>do</strong>.<br />
Quanto ao segun<strong>do</strong> temor, como filha que tanto ama a seus pais, bem a<br />
desculpa o receio, pois to<strong>do</strong>s receiam as iras <strong>do</strong>s poderosos, como se diz nos<br />
Provérbios 1059 , que as indignações <strong>do</strong>s reis são embaixa<strong>do</strong>res <strong>da</strong> morte, e<br />
Homero 1060 escreve que as iras <strong>do</strong>s poderosos, ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> parecem que<br />
serenam, nunca se asseguram. Em que corte, pergunta o Séneca 1061 , pode<br />
faltar prisão e verdugo para o castigo? Não há príncipe tão distraí<strong>do</strong>, diz<br />
Plínio 1062 , que de to<strong>do</strong> deponha a severi<strong>da</strong>de para que deixe de usar dela<br />
quan<strong>do</strong> queira, porque ao senhorio para ser venera<strong>do</strong> an<strong>da</strong> sempre uni<strong>do</strong> o<br />
respeitoso. Pois quem se atreverá a aparecer na presença de um príncipe<br />
soberano quan<strong>do</strong> dele se der por ofendi<strong>do</strong>? Que vassalo se pode <strong>da</strong>r por<br />
seguro quan<strong>do</strong> seu príncipe se mostrar dele descontente e agrava<strong>do</strong>? Teria<br />
coração Frederico Manfre<strong>do</strong> para assistir em Módena com seus filhos, para<br />
entrar no paço ou aparecer na presença <strong>do</strong> senhor duque, quan<strong>do</strong> vossa<br />
excelência casasse com sua filha contra seu gosto? Quem o asseguraria <strong>do</strong><br />
odioso de sua indignação, sen<strong>do</strong> o menor castigo de sentir-se um voluntário e<br />
perpétuo desterro de suas terras, um perdimento de suas ren<strong>da</strong>s e bens, que<br />
Euripides 1063 julga por pena tão excessiva que parece lhe faltam palavras para<br />
defini-la?<br />
É o desterro perpétuo, como diz Cícero 1064 , punição grave <strong>do</strong>s<br />
criminosos mais culpa<strong>do</strong>s; e estranha vossa excelência em Frederico Manfre<strong>do</strong><br />
o temer ver-se desterra<strong>do</strong> e de suas principais ren<strong>da</strong>s destituí<strong>do</strong>? Ain<strong>da</strong> neste<br />
desterro não viveriam seguros, pois quan<strong>do</strong> os potenta<strong>do</strong>s perseguem como<br />
ofendi<strong>do</strong>s, em nenhuma parte pode um desterra<strong>do</strong> avaliar-se seguro.<br />
Sequestra<strong>da</strong>s as possessões e as ren<strong>da</strong>s que her<strong>da</strong><strong>do</strong> tinha Frederico de seus<br />
progenitores no duca<strong>do</strong> de Módena, que lhe ficava para sustentar-se com sua<br />
1058 Eu ri p., in Here, furent.<br />
1059 Prov. 16.<br />
1060 Horn., Elia 1.<br />
1061 Senec, De tranquil, anim.<br />
1062 Plin. Jun., in Paneg.<br />
1063 Eurip., in Phœn.<br />
1064 Cic, 4. Parad.
1002 Padre Mateus Ribeiro<br />
família? Porventura possuiria em terras estranhas o que perdia na sua? Como<br />
sustentariam o fausto <strong>da</strong> fi<strong>da</strong>lguia com que sempre se trataram, quan<strong>do</strong> talvez<br />
em alheias terras careceriam <strong>do</strong> necessário sustento? Bem disse Simónides 1065<br />
que antes queria ter riquezas que a seus inimigos deixasse <strong>do</strong> que obrigá-lo a<br />
pobreza a que pedisse a seus maiores amigos.<br />
Assim disse Ovídio 1066 que aos ricos to<strong>do</strong>s cortejam e respeitam, mas<br />
que a pobreza vive no mun<strong>do</strong> solitária, porque ninguém a busca. São os bens<br />
enquanto possuí<strong>do</strong>s como atractivos <strong>da</strong> veneração e incentivos <strong>do</strong> respeitoso,<br />
porque em estes faltan<strong>do</strong> é seu despojo cadáver <strong>da</strong> estimação e sombra sem<br />
enti<strong>da</strong>de <strong>do</strong> que de antes foi obsequioso culto <strong>do</strong> respeito. A família <strong>do</strong>s<br />
Manfre<strong>do</strong>s em Módena e em seu senhorio tão ilustre como rica, e por uma e<br />
outra razão tão respeita<strong>da</strong>; se se visse Frederico com sua família pobre, de sua<br />
pátria desterra<strong>do</strong>, as possessões impedi<strong>da</strong>s, as ren<strong>da</strong>s embarga<strong>da</strong>s,<br />
necessitan<strong>do</strong> o sustento <strong>da</strong>s vontades alheias quem com grandeza podia<br />
sustentar a muitos de seus bens próprios, haveria para ele maior <strong>do</strong>r, poderia<br />
sentir maior tormento?<br />
À necessi<strong>da</strong>de chamou Cícero 1067 <strong>do</strong>ença gravíssima, e se em geral se<br />
considera tão grande, nas pessoas ilustres quanto será maior? É a pobreza<br />
nos honra<strong>do</strong>s amiga <strong>da</strong> noite, porque com ela se encobrem os desaires que<br />
com as luzes <strong>do</strong> dia se manifestam. Miserável palavra chamou Plauto 1068 ao<br />
dizer-se teve muito e na<strong>da</strong> tem, porque o passar de um extremo ao outro é,<br />
sobre difícil, arrisca<strong>do</strong>. Esta é, senhor, a razão de Frederico Manfre<strong>do</strong> parecer<br />
a vossa excelência que desconhece a mercê que neste tão sublime casamento<br />
vossa excelência lhe fazia e de Fenisa não aceitar o eminente <strong>da</strong> ventura que<br />
alcançava: não pela desconhecerem, nem pela desprezarem, que o<br />
desconhecerem tão grande favor fora ignorância de néscios e o não o<br />
estimarem fora agravos de ingratos.<br />
Não desconhece Fenisa a ventura pelo que tem de entendi<strong>da</strong>, nem seu<br />
pai a despreza pelo que tem de prudente e ajuiza<strong>do</strong>, mas pelo que temem ao<br />
Apud Stob.<br />
Ovid., Fast. 1.<br />
Cicer., Contra Catil.<br />
Plaut., in Rudent.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1003<br />
senhor duque <strong>da</strong>r-se por ofendi<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> tem em sua mão to<strong>do</strong>s os cabe<strong>da</strong>is<br />
com que eles conservam o lustroso de seu esta<strong>do</strong>. Assegure-lhes vossa<br />
excelência o agra<strong>do</strong> e aprovação <strong>do</strong> senhor duque para este casamento que<br />
eu me obrigo a que logo viessem aos pés de vossa excelência a render-lhe as<br />
graças de fazer tão felice sua ventura com casamento tão superior a seu<br />
merecimento, acrescentan<strong>do</strong> tantos resplan<strong>do</strong>res a seu solar e tantos<br />
laurea<strong>do</strong>s troféus a sua família. Porém se os oprime o temor, se os ameaça o<br />
receio, se os acovar<strong>da</strong> o reverente, se os intimi<strong>da</strong> o fatal e finalmente os<br />
dissuade a grandeza de seu príncipe desgosta<strong>do</strong> e ofendi<strong>do</strong>, assombran<strong>do</strong>-os<br />
com o poder, avisan<strong>do</strong>-os com os enojos vingativos que em seu desgosto<br />
consideram, que culpa se pode acriminar a quem falta a culpa ou que pena<br />
pode merecer quem não comete delito?<br />
Considere vossa excelência desapaixona<strong>do</strong> esta razão tão ajusta<strong>da</strong> não<br />
a seu gosto, mas a seu grande juízo; não a seu desejo, mas a sua grandeza;<br />
não a seu amor, mas a sua estimação; e achará que Frederico não é culpa<strong>do</strong><br />
mais que em ser pouco venturoso e que Fenisa vive inocente <strong>do</strong> que a vossa<br />
excelência ou parece desprezo ou julga ingratidão; pois a ser sua igual na<br />
grandeza ou vossa excelência emparelhar com ela na vassalagem com que<br />
nasceu súbdita e não soberana, então pudera a queixa ter lugar, quan<strong>do</strong> não<br />
considerasse a vontade ser tão livre nas eleições, que na<strong>da</strong> <strong>do</strong> poder cria<strong>do</strong><br />
obrigá-la pode. Porém sen<strong>do</strong> hoje seu esta<strong>do</strong> tão inferior ao de vossa<br />
excelência, não é culpa o retirar-se quem no avançar se não livrara <strong>da</strong> censura<br />
de atrevi<strong>da</strong> ou temerária. É a temeri<strong>da</strong>de, como ensina o <strong>do</strong>utor angélico 1069 ,<br />
uma desordena<strong>da</strong> presunção e jactância própria que <strong>da</strong> razão se desvia. E o<br />
padre Santo Agostinho 1070 escreve que ninguém deve presumir o que não pode<br />
alcançar. Pois se Fenisa considerou o impossível, não presumin<strong>do</strong> de si<br />
ousadias, nem confianças para aspirar a ser esposa <strong>do</strong> filho <strong>do</strong> duque seu<br />
senhor, de quem seus pais nasceram vassalos, sem que <strong>da</strong>í resultassem<br />
grandes discómo<strong>do</strong>s e moléstias para ela, para seus pais e ain<strong>da</strong> para vossa<br />
excelência, mais digna parece de louvar em seu discreto retiro <strong>do</strong> que fora<br />
culpável sua arroja<strong>da</strong> confiança.<br />
Thom., 2.2. q. 53. art. 3.<br />
Aug., Contra Manich.
1004 Padre Mateus Ribeiro<br />
Tenho, senhor, mostra<strong>do</strong> as desculpas que tem por sua parte os sujeitos<br />
de quem vossa excelência tão ofendi<strong>do</strong> se mostra, que justa desculpa fica<br />
ten<strong>do</strong> quem sabe acautelar aos perigos, pois príncipes soberanos ofendi<strong>do</strong>s<br />
raramente concedem quartel aos de quem se mostram agrava<strong>do</strong>s. Temen<strong>do</strong> as<br />
vingativas iras de sua alteza não se atreverão a abrir as portas à ventura,<br />
porque com ela não entrassem juntamente as desgraças, pois na companhia<br />
<strong>do</strong>s temores não pode haver ventura que o pareça. Perguntemos a Dâmocles<br />
quem lhe embargava as mãos, quem lhe suspendia o gosto para não comer os<br />
manjares mais deliciosos <strong>da</strong> real mesa de Dionísio, tirano de Sicília, e<br />
responderá que a homici<strong>da</strong> espa<strong>da</strong> que de um fio ténue e frágil sobre a cabeça<br />
pendura<strong>da</strong> via, ameaçan<strong>do</strong> a caí<strong>da</strong> por instantes, lhe dessazonou o gosto <strong>do</strong>s<br />
manjares, lhe suspendeu a alegria <strong>do</strong> convite régio que diante tinha, bastan<strong>do</strong><br />
o agro de um temor para fazer amarga to<strong>da</strong> a <strong>do</strong>çura <strong>da</strong>s mais preciosas<br />
iguarias. Só a segurança, diz Séneca 1071 , é mar em calma, pláci<strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s,<br />
maré de rosas, tempo sereno, navegação sem temores e baixel sem perigos.<br />
Exagera vossa excelência com excessivos encómios de Fenisa a<br />
fermosura, perdem os encarecimentos o nome para descreverem sua bizarria,<br />
para compararem seu <strong>do</strong>naire. Eu quero conceder que assim será em Módena<br />
e em Bolonha, mas não em to<strong>da</strong> Itália e em to<strong>da</strong> a Europa. A primeira flor que<br />
aparece ou no jardim brota<strong>da</strong>, ou no rosal nasci<strong>da</strong>, elevou os senti<strong>do</strong>s,<br />
senhoreou as esperanças nos desejos de admirá-la, lisonjeou a vista nos<br />
desvelos de vê-la. Parou na vista o desejo, terminou-se o cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, parou a<br />
esperança no alvoroço e ficou sen<strong>do</strong> única no cui<strong>da</strong><strong>do</strong>. Porém como o ameno<br />
jardim ou o fecun<strong>do</strong> rosal produziu outras, perdeu a primeira a admiração por<br />
ter tantas parelhas na beleza. Ain<strong>da</strong> vossa excelência não viu Itália to<strong>da</strong>, nem<br />
<strong>da</strong> Europa a maior parte. Não se ocupou o subtil pincel <strong>da</strong> natureza só em<br />
debuxar uma flor, nem em matizar uma rosa. E se no mun<strong>do</strong> são mais as<br />
queixosas <strong>da</strong> fortuna que os que dela se mostram favoreci<strong>da</strong>s, bem se pode<br />
inferir que no mun<strong>do</strong> são as fermosas muitas, pois nele há tantas <strong>da</strong> fortuna<br />
queixosas.<br />
Não se persua<strong>da</strong> vossa excelência que só hoje em Bolonha se<br />
compendiou a beleza, se cifrou a bizarria, se epilogou a discrição, se terminou<br />
Senec, Epist. 60.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1005<br />
o aviso: nas outras cortes de Itália, de França e Espanha haverá tantas belezas<br />
como flores no pra<strong>do</strong>, como no jardim rosas e como no céu estrelas. Dilate<br />
vossa excelência o coração, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> lugar a que respire a mágoa, conce<strong>da</strong><br />
tréguas à pena, desapaixone o desejo, que se Fenisa não nasceu tão<br />
venturosa que merecesse alcançar tão sublime esposo, haverá outra mais feliz<br />
que, com aprovação <strong>do</strong> senhor duque, sem temores essa ventura mereça,<br />
esse favor estime e tanta digni<strong>da</strong>de discreta aplau<strong>da</strong> e obsequiosa tal esposo<br />
venere.<br />
respondeu:<br />
Com atenção ouviu Raimun<strong>do</strong> a prática de Justiniano e assim lhe<br />
- Se tanto, senhor Justiniano, vossa mercê se empenhou por mim com<br />
Frederico Manfre<strong>do</strong> como aqui por ele se mostrou ora<strong>do</strong>r por defendê-lo, bem<br />
posso dizer que foi efeito de minha desgraça o não persuadir-se a conceder-<br />
me Fenisa para esposa, envi<strong>da</strong>n<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o cabe<strong>da</strong>l de sua erudição em<br />
pretendê-la. Se eu para com o duque meu pai tivera tão eloquente ora<strong>do</strong>r para<br />
que o beneplácito deste casamento me outorgasse, não duvi<strong>do</strong> que sua licença<br />
conseguisse. Eu me parto hoje para Módena como pretendente desengana<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> despacho, e só lhe peço diga <strong>da</strong> minha parte a Frederico que não se<br />
apresse em <strong>da</strong>r esta<strong>do</strong> a Fenisa, até eu ver se posso persuadir a meu pai que<br />
para este casamento me conce<strong>da</strong> licença; e se eu a vossa mercê man<strong>da</strong>r<br />
chamar para que nisto lhe fale, não se escuse de vir, porque de seu talento<br />
confio muito.<br />
Prometeu-lhe Justiniano de em tu<strong>do</strong> obedecer-lhe, de que ele se<br />
mostrou agradeci<strong>do</strong>; e man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> a seus cria<strong>do</strong>s selar os cavalos para partir-se<br />
com Bernardino, mandei eu selar o meu para acompanhá-lo sequer uma légua<br />
fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, como era obrigação <strong>da</strong> cortesia que a tal hóspede se devia,<br />
obséquio que ele admitiu por não me impedir o gosto que eu de acompanhá-lo<br />
mostrava, la já o sol descen<strong>do</strong> <strong>do</strong> sólio de suas luzes a banhar-se <strong>do</strong> excessivo<br />
calor nas serenas on<strong>da</strong>s <strong>do</strong> mar Adriático, quan<strong>do</strong> os <strong>do</strong>us se rebuçaram com<br />
as máscaras para não serem conheci<strong>do</strong>s, e montan<strong>do</strong> eu e eles nos cavalos,<br />
saímos de Bolonha seguin<strong>do</strong> a cristalina corrente <strong>do</strong> rio Reno que por Bolonha<br />
passa cau<strong>da</strong>loso, de quem Plínio 1072 faz menção em seus escritos com<br />
Plin., Lib. 3. c. 16.
1006 Padre Mateus Ribeiro<br />
louvores de suas on<strong>da</strong>s alegres para vistas e sau<strong>do</strong>sas para ausentes. E<br />
chegan<strong>do</strong> nós ao lugar de Cortisela e ponte de Casalecchio, três milhas<br />
distante de Bolonha, não consentiu Raimun<strong>do</strong> que adiante passasse,<br />
despedin<strong>do</strong>-se de mim com demonstrações de mui agradeci<strong>do</strong> ao cortês<br />
hospício com que o recebera e acompanhara e oferecen<strong>do</strong>-se para tu<strong>do</strong> o em<br />
que dele valer-me quisesse em Módena, que sempre o acharia com uma<br />
vontade muito certa. Com a mesma cortesia se despediu Bernardino, e eu me<br />
voltei para Bolonha, desejoso de buscar a meu amigo Roberto para saber o<br />
que Lívia, sua esposa, com Fenisa passara na visita que lhe fizera.<br />
Cap. XIII.<br />
Do que sucedeu a Lisar<strong>do</strong> no caminho de Bolonha<br />
Era entra<strong>da</strong> a noite com o luto de suas sombras, que vestia por ver<br />
sepulta<strong>do</strong> ao sol tão brevemente, suposto que não deixavam a rasgos <strong>da</strong><br />
cerração de luzirem as estrelas <strong>da</strong> maior grandeza, porque sempre a grandeza<br />
em qualquer parte luz. Era o tempo mais ocasiona<strong>do</strong> aos perigos e o sítio por<br />
solitário ocasiona<strong>do</strong> aos atrevimentos por distanciar-se <strong>do</strong> povoa<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> no<br />
espesso de um bosque, natural labirinto que as árvores teciam, ouvi golpes de<br />
espa<strong>da</strong>s e uma voz que clamava, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Aonde se permite traição tão manifesta, trato tão <strong>do</strong>ble, que<br />
desafian<strong>do</strong>-me para só, tragais convosco sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s conjura<strong>do</strong>s para matar-me?<br />
Apenas ouvi a confusa queixa, quan<strong>do</strong> desmontan<strong>do</strong> <strong>do</strong> cavalo que dei<br />
ao cria<strong>do</strong> para que com ele me seguisse, levan<strong>do</strong> nas mãos uma clavina que<br />
trazia, me pus ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> queixoso sem haver a nenhum deles conheci<strong>do</strong>,<br />
dizen<strong>do</strong> aos contrários se retirassem se morrer não pretendiam, porque tal<br />
insolência não se pretendia. Conheceu-me na voz Carlos, irmão de Fenisa, que<br />
era o queixoso, e me disse:<br />
- Oh, amigo Lisar<strong>do</strong>, eu sou Carlos, que tenho recebi<strong>do</strong> duas estoca<strong>da</strong>s<br />
penetrantes, valei-me contra estes trai<strong>do</strong>res.<br />
Apenas o conheci e vi que os contrários não se retiravam de acometê-lo<br />
ousa<strong>da</strong>mente, quan<strong>do</strong> disparei a clavina: caiu em terra um, dizen<strong>do</strong> que o<br />
havia morto, e não falou mais palavra, porque logo espirou. Arrojei-me aos
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1007<br />
outros com a espa<strong>da</strong> e o meu cria<strong>do</strong> fez o mesmo; e como estavam cansa<strong>do</strong>s<br />
<strong>da</strong> infortuna<strong>da</strong> pendência e ambos feri<strong>do</strong>s, além de outro cria<strong>do</strong> que não<br />
brigava, retiraram-se os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s feri<strong>do</strong>s, ven<strong>do</strong> morto em terra quem<br />
conduzi<strong>do</strong> os tinha e ven<strong>do</strong> o socorro que Carlos em mim e no meu cria<strong>do</strong><br />
tivera, fican<strong>do</strong> só o cria<strong>do</strong> <strong>do</strong> defunto, acompanhan<strong>do</strong> o corpo de seu morto<br />
senhor.<br />
Cheguei a ver as feri<strong>da</strong>s de Carlos quanto permitia o luar, que a este<br />
tempo já a luz aparecia desterran<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> o denso pavelhão <strong>da</strong> névoa com<br />
seus raios, e vi que eram penetrantes no peito e ele pelo muito sangue que<br />
delas corria mui debilita<strong>do</strong> de forças; e ven<strong>do</strong> que o seu cavalo não aparecia,<br />
aju<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong> meu cria<strong>do</strong> o montámos no meu e eu nas ancas para sustentá-lo e<br />
governá-lo, que ele pela grande debilitação mal podia sustentar-se na sela,<br />
nem regê-lo podia; e assim caminhan<strong>do</strong> para a ci<strong>da</strong>de, não atendemos mais ao<br />
defunto que no campo ficava, nem aos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s feri<strong>do</strong>s que se haviam<br />
retira<strong>do</strong>, sem se ouvirem mais vozes que as com que o cria<strong>do</strong> <strong>do</strong> defunto sua<br />
apressa<strong>da</strong> morte enterneci<strong>do</strong> sentia.<br />
Mais seria <strong>da</strong> meia-noite quan<strong>do</strong> entrámos na ci<strong>da</strong>de, bateu o meu<br />
cria<strong>do</strong> à porta de Frederico Manfre<strong>do</strong>, que logo se abriram, porque Carlos se<br />
não tinha recolhi<strong>do</strong>, estavam to<strong>do</strong>s desvela<strong>do</strong>s, não saben<strong>do</strong> a causa de tão<br />
não usa<strong>da</strong> dilação em recolher-se. Desmontámos nos braços a Carlos quasi<br />
sem senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> copioso sangue que <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s vertia, de que os lenços com<br />
que elas tinha aperta<strong>do</strong> vinham to<strong>do</strong>s tintos, porque sua corrente não<br />
estancava. Saíram seus pais magoa<strong>do</strong>s a recebê-lo e Constantino, seu irmão,<br />
enterneci<strong>do</strong> e Fenisa choran<strong>do</strong>, derraman<strong>do</strong> de seus fermosos olhos pérolas<br />
por lágrimas, que me pareceu que a aurora já nascia, pois sobre as<br />
encarna<strong>da</strong>s rosas de seu rosto tão rico aljôfar caía que as broslava. Bem<br />
pudera nesta ocasião a madruga<strong>do</strong>ra abelha desvelar-se em vir piratear<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa o orvalho nas mais belas flores de seu rosto, pelo purpúreo rosas e<br />
pelo neva<strong>do</strong> jasmins, mas não presumiu tanta ventura quem não sabia merecê-<br />
la, e por isso não se desvelou por encontrá-la, julgan<strong>do</strong> ser impossível o<br />
possuí-la. Desejava Fenisa por extremo enterneci<strong>da</strong> lavar com a corrente de<br />
suas lágrimas o sangue que Carlos <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s vertia. Nunca tão de perto<br />
cheguei a ver a Fenisa como nesta ocasião em que a desgraça de Carlos me<br />
franqueou esta ventura; e como incauta mariposa que quanto à luz mais se
1008 Padre Mateus Ribeiro<br />
avizinha, mais seus incêndios sente, assim posso dizer que à sua vista subiu<br />
ao auge meu amor, ven<strong>do</strong> tão vizinho o risco e tão distante o remédio, se bem<br />
com o presente socorro que a seu irmão Carlos havia <strong>da</strong><strong>do</strong> no conflito de seu<br />
maior perigo, confiava eu poder obrigar a quem com tantas finezas obrigar não<br />
podia.<br />
Tornou Carlos a seus senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> rigoroso parocismo em que<br />
desmaia<strong>do</strong> esteve pelo dispêndio copioso <strong>do</strong> sangue, e disse a seus pais e<br />
irmãos, que com lágrimas e notável sentimento lhe assistiam, que abaixo de<br />
Deus, só a mim devia o chegar vivo à sua vista, porque se eu a tal hora<br />
casualmente pelo lugar em que matá-lo queriam não passara, sem dúvi<strong>da</strong> no<br />
campo fiaria morto às mãos de seus inimigos que <strong>da</strong>r-lhe a morte pretendiam.<br />
Porém que eu o socorrera com tal valor que não só lhe livrara a vi<strong>da</strong>, mas que<br />
o contrário ficava no campo morto: favor tão grande e em tal ocasião <strong>da</strong><strong>do</strong> que<br />
me ficava deve<strong>do</strong>r o tempo que lhe durasse a vi<strong>da</strong> que me devia. A isto<br />
respondeu Fenisa, suspenden<strong>do</strong> as lágrimas, assim:<br />
- É tão grande, senhor Lisar<strong>do</strong>, este favor que a Carlos, meu irmão,<br />
destes em ocasião dele tão necessita<strong>da</strong> e perigosa que só de vosso valor<br />
podia esperar-se. Meus pais, irmãos e eu nos confessamos vossos mui<br />
obriga<strong>do</strong>s deve<strong>do</strong>res, que confessar a dívi<strong>da</strong> é para ânimos generosos parte<br />
de satisfazê-la, assim como o dilatar o publicá-la é tíbio agradecimento aos<br />
benefícios recebi<strong>do</strong>s, e este é tão grande que fica superior ao maior<br />
agradecimento.<br />
Calou Fenisa choran<strong>do</strong>, que foram as lágrimas substitutas <strong>da</strong> locução. O<br />
mesmo me disseram seus pais, e quan<strong>do</strong> eu responder intentava, entraram os<br />
cirurgiões, que foram chama<strong>do</strong>s a to<strong>da</strong> a pressa os mais peritos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, que<br />
ven<strong>do</strong> as feri<strong>da</strong>s e tentean<strong>do</strong>-as bem, entre receios <strong>do</strong> que delas suceder<br />
podia, deram umas duvi<strong>do</strong>sas esperanças de não serem de to<strong>do</strong> mortais; com<br />
que os pais e irmão <strong>do</strong> feri<strong>do</strong> se mostraram mais consola<strong>do</strong>s na aflição que<br />
sentiam. Assisti à primeira cura, que foi bem molesta ao feri<strong>do</strong> por estarem já<br />
as feri<strong>da</strong>s agrava<strong>da</strong>s com o sereno <strong>da</strong> noite que até casa trouxe desde o lugar<br />
<strong>da</strong> pendência. E ven<strong>do</strong> que ficava Carlos mais sossega<strong>do</strong> nas <strong>do</strong>res, me<br />
despedi dele e de seus pais e irmãos, prometen<strong>do</strong> de voltar ao seguinte dia a<br />
visitá-lo, de que se mostraram mui agradeci<strong>do</strong>s. Até este tempo não tinha eu<br />
notícias de quem era o morto que na pendência com a clavina matara, porque
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1009<br />
Carlos pelo caminho com as <strong>do</strong>res e fraqueza nem podia falar, nem eu por não<br />
molestá-lo lhe perguntei sobre isto cousa alguma, vin<strong>do</strong> mais cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so de<br />
assegurá-lo a ele <strong>do</strong> que desejoso de informar-me a mim, nem com a cura <strong>do</strong>s<br />
cirurgiões houve lugar para tratar disto. Assim que nem eu sabia a causa, nem<br />
<strong>do</strong>s agressores tinha notícias, determinan<strong>do</strong> no seguinte dia na visita que lhe<br />
fizesse tomar informação de tu<strong>do</strong>. Com esta suspensão me retirei a casa, que<br />
seriam duas horas antes de amanhecer, não me lembran<strong>do</strong> com os alvoroços<br />
alegres de tornar a lograr a deliciosa vista de Fenisa, que era to<strong>do</strong> o meu<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, que me descui<strong>da</strong>va de to<strong>do</strong> o meu perigo, como agora ouvireis.<br />
Entre as famílias mais antigas e ilustres <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Bolonha são os<br />
Bentivolhes, como descendentes <strong>da</strong>queles insignes varões Hércules e Galeaço<br />
Bentivolhes, nos quais e em cuja descendência tantas vezes esteve o governo<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, sen<strong>do</strong> geração dilata<strong>da</strong> e aparenta<strong>da</strong> com muitas casas ilustres.<br />
Vivia na ci<strong>da</strong>de Petrónio Bentivolhe, fi<strong>da</strong>lgo principal e nela bem conheci<strong>do</strong> e<br />
rico e de to<strong>do</strong>s bem respeita<strong>do</strong> por poderoso e rico. Tinha uma filha que se<br />
chama Júlia, moça e bem pareci<strong>da</strong>, e um filho que se chamava Octávio<br />
Bentivolhe, mancebo soberbo e arroja<strong>do</strong>, na condição mal sofri<strong>do</strong>, mais<br />
inclina<strong>do</strong> a pendências que a viver pacífico e quieto, desconfia<strong>do</strong> na condição,<br />
desabri<strong>do</strong> nas palavras, e por isso mal quisto de seus iguais e temi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
menores por insolente. Tinha muitos parentes e poucos amigos, porque, como<br />
disse Platão 1073 , a severi<strong>da</strong>de afugenta os amigos e a benevolência os granjeia<br />
e conserva; e ain<strong>da</strong> <strong>do</strong>s parentes era pouco busca<strong>do</strong>, e ain<strong>da</strong> mais por cortesia<br />
de seus pais que por vontade de o buscarem a ele. Como era morga<strong>do</strong>, rico e<br />
liberal, não faltavam necessita<strong>do</strong>s que a título de valentes lhe assistissem pelo<br />
que dele recebiam, principalmente sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s forasteiros que ou fugitivos, ou<br />
desgarra<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s guerras de Itália o buscavam como patrono, aos quais ele<br />
liberalmente favorecia e eles interessa<strong>do</strong>s o acompanhavam e lhe assistiam.<br />
Neste tempo, como Júlia, sua irmã, era moça, bem pareci<strong>da</strong> e bem<br />
<strong>do</strong>ta<strong>da</strong>, acertou de pôr os olhos em Carlos, que muitas vezes passava pela rua,<br />
umas em coche, muitas a cavalo e algumas a pé, julgan<strong>do</strong> a seu parecer que<br />
nele se lhe oferecia esposo ilustre, morga<strong>do</strong> rico e mui galã, porque Carlos o<br />
era e ao juízo de Júlia o que suas dificul<strong>da</strong>des representar podia, se<br />
1073 Plat., Ep. 4.
1010 Padre Mateus Ribeiro<br />
representava factível, pon<strong>do</strong> ela de sua parte a diligência, como disse<br />
Demóstenes 1074 e parecer que Plutarco 1075 segue. Reparou Carlos na<br />
assistência cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa com que nas ocasiões que por ali passava Júlia na<br />
janela lhe assistia, sen<strong>do</strong> seu desvelo o relógio mais certo que as horas de<br />
seus passeios apontava, e veio a reparar em sua vista, multiplican<strong>do</strong> as<br />
passagens por experimentar se se multiplicavam tão repeti<strong>da</strong>s as assistências,<br />
e conheceu que se ajustavam nele o curioso e nela o cui<strong>da</strong><strong>do</strong>. Com esta<br />
diversão de intentos, suposto que encontra<strong>do</strong>s os fins, que em Carlos não<br />
excediam <strong>da</strong> cortesia e em Júlia de procurar casamento, duplicava ele os<br />
passeios e ele sem perder ocasião lhe franqueava as vistas, que como se<br />
julgava por fermosa, sen<strong>do</strong> que não excedia os limites de bem pareci<strong>da</strong>, sobre<br />
ser moça na i<strong>da</strong>de, queria com aparecer-lhe induzi-lo a que ele lhe escrevesse,<br />
cousa que ele fazer não intentava por aspirar a superiores Olimpos quan<strong>do</strong><br />
pretendesse mu<strong>da</strong>r de esta<strong>do</strong>, o que então não intentava. Como as passagens<br />
de Carlos eram tão repeti<strong>da</strong>s e as assistências de Júlia tão pontuais em vê-lo,<br />
veio Octávio, seu irmão, a reparar cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so no frequente de seus passeios e<br />
na pontual assistência com que Júlia acudia ao reclamo de sua vista; e como<br />
era de condição mal sofri<strong>do</strong> e soberbo, em uma destas passagens de Carlos,<br />
sain<strong>do</strong>-lhe ao encontro, lhe falou assim:<br />
- Tenho repara<strong>do</strong>, senhor Carlos Manfre<strong>do</strong>, na demasia<strong>da</strong> frequência<br />
com que passais por esta rua em que vivo com os olhos nas janelas de minhas<br />
casas. Tenho minha irmã <strong>do</strong>nzela em companhia de meus pais, e não parece<br />
justo que a vizinhança censure intentos que possam ofender o decoroso de sua<br />
modéstia com motivos de tantos passeios. Se a procurais para esposa, já<br />
tar<strong>da</strong>is em declarar-vos com meu pai; e se a passeais com outro intento, já eu<br />
tar<strong>do</strong> em castigar pensamentos tão atrevi<strong>do</strong>s. De <strong>do</strong>us parti<strong>do</strong>s podeis escolher<br />
um: ou falardes logo com meus pais, se intentais casardes com minha irmã, ou<br />
de hoje adiante o não passardes mais por esta rua, se porventura não receais<br />
que eu me mostre ofendi<strong>do</strong> e que as armas evitem os juízos de quem murmura<br />
vossos passeios com descrédito meu e desluzimentos <strong>do</strong> respeito que a minha<br />
casa se deve.<br />
Dem., in Olynth.<br />
Plut., De lib. educ.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1011<br />
Suspenso e melancólico ouviu Carlos as resolutas palavras e<br />
ameaça<strong>do</strong>ra prática de Octávio, dita<strong>da</strong> de sua petulante condição e costuma<strong>da</strong><br />
soberba; e como Carlos em Bolonha era de to<strong>do</strong>s tão respeita<strong>do</strong> por ser filho<br />
de tão ilustres pais, por parente <strong>do</strong> cardeal governa<strong>do</strong>r e por sua própria<br />
pessoa e cortesia, estranhou muito a liber<strong>da</strong>de com que lhe falou Octávio, e<br />
assim exaspera<strong>do</strong> <strong>do</strong> termo indecente com que se considerou trata<strong>do</strong>, lhe<br />
respondeu:<br />
- Se com palavras mais comedi<strong>da</strong>s e termo mais decoroso me<br />
houvéreis pedi<strong>do</strong>, senhor Octávio, o que com desabri<strong>da</strong> arrogância intentastes<br />
persuadir-me, porventura que facilmente vos concedera o escusar de passar<br />
por esta rua, pois nisso perdia pouco e vós dizeis a vós vai muito. Porém como<br />
com ameaços escusa<strong>do</strong>s intentastes obrigar-me ao que só a cortesia<br />
persuadir-me podia, mostran<strong>do</strong>-vos pouco respeitoso ao decoro que a quem eu<br />
sou se devia, respon<strong>do</strong> que por esta rua passarei quan<strong>do</strong> me importe como<br />
pelas mais <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de passo, que vós, senhor Octávio, não haveis de ser o<br />
registo em que meus passos se matriculem para me pedirdes conta deles. Eu<br />
<strong>da</strong> senhora vossa irmã na<strong>da</strong> sei, nem lhe estou em dívi<strong>da</strong>, nem obrigação<br />
alguma para me man<strong>da</strong>rdes que a peça por esposa, sen<strong>do</strong> o tomar esta<strong>do</strong><br />
acção mui voluntária e não constrangi<strong>da</strong>, queren<strong>do</strong> vós ser o árbitro de minha<br />
livre eleição, empenho tão alheio de meu brios; que quan<strong>do</strong> eu tal pensamento<br />
tivera, o não executara, só por vós mo man<strong>da</strong>rdes tão imperiosamente. E esta<br />
resposta que aqui vos <strong>do</strong>u, a sustentarei com a mesma resolução em to<strong>da</strong> a<br />
parte que ma pedirdes.<br />
Deu fim Carlos a seu dizer com valerosa resolução e fi<strong>da</strong>lgo pun<strong>do</strong>nor,<br />
de que Octávio, como tão soberbo, ficou assusta<strong>do</strong> e arroja<strong>da</strong>mente logo o<br />
desafiou para esse dia ao sol posto se ver com ele meia légua fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />
que foi o sítio em que eu os achei pendencian<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> voltava de haver<br />
acompanha<strong>do</strong> a Raimun<strong>do</strong>. E porque Octávio tar<strong>do</strong>u em vir mais tempo <strong>do</strong> que<br />
aponta<strong>do</strong> havia, quan<strong>do</strong> já Carlos <strong>do</strong> lugar sinala<strong>do</strong> intentava partir-se, chegou<br />
Octávio com um cria<strong>do</strong> e os <strong>do</strong>us sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que sustentava a título de valentes,<br />
no que logo reparou Carlos ser contra o costume <strong>do</strong>s desafios, pois ele, porque<br />
seus pais de tal empenho notícias não tivessem, nem cria<strong>do</strong> quis trazer<br />
consigo. E não há dúvi<strong>da</strong> de que Carlos Manfre<strong>do</strong> era mancebo nas armas mui<br />
destro e mui brioso e comedi<strong>do</strong> na cortesia. Reparou no acompanhamento <strong>do</strong>s
1012 Padre Mateus Ribeiro<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s com que Octávio vinha, sobre o que houve várias controvérsias,<br />
dúvi<strong>da</strong>s e repostas em que se despendeu o tempo, e por última resolução se<br />
apartaram os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e o cria<strong>do</strong> algum espaço, mas fican<strong>do</strong> sempre em<br />
distância de verem e ouvirem e acudirem à voz de quem para esse efeito a<br />
escolta de suas armas trazia.<br />
Empenharam-se Carlos e Octávio na pendência, ca<strong>da</strong> qual como<br />
agrava<strong>do</strong> e como vingativo, que an<strong>da</strong>m como uni<strong>do</strong>s os agravos e as<br />
vinganças. Os agravos <strong>do</strong>s mais poderosos sofrem-se por mais não poder ser,<br />
disse Euripides 1076 , porém nos que se julgam iguais nos bens <strong>da</strong> fortuna e no<br />
poder, remetem-se às armas as queixas <strong>da</strong> honra, como diz Cícero 1077 . Era<br />
Carlos nas armas mui destro, e suposto que raras vezes havia <strong>da</strong><strong>do</strong> ocasião<br />
para exercitá-las em pendências, pelo muito que tinha de cortês e benévolo<br />
com to<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> o suborno <strong>da</strong> cortesia, como escreve Quinto Cúrcio 1078 , o<br />
maior atractivo <strong>da</strong>s vontades. Octávio não tinha tanta destreza na espa<strong>da</strong>,<br />
ten<strong>do</strong> mais de arroja<strong>do</strong> pela soberba com que mais pretendia vingar-se <strong>do</strong> que<br />
procurava defender-se, sen<strong>do</strong> ignorância grande desamparar a conservação <strong>da</strong><br />
própria vi<strong>da</strong> com imprudentes desejos de tirar a vi<strong>da</strong> alheia. Assim sucedeu a<br />
Octávio, que com os arroja<strong>do</strong>s desejos de matar a Carlos, recebeu uma<br />
estoca<strong>da</strong> no peito que Carlos lhe deu. Ven<strong>do</strong>-se assim feri<strong>do</strong>, em lugar de<br />
vingança, gritou pelos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que o acompanhavam, que pouco estavam<br />
distantes <strong>do</strong> lugar <strong>da</strong> pendência, que acudin<strong>do</strong>-lhe e ven<strong>do</strong>-o feri<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s<br />
juntos com o cria<strong>do</strong> se arrojaram com as espa<strong>da</strong>s a Carlos com intento de o<br />
matarem, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe de estoca<strong>da</strong>s, de que tinha duas penetrantes já recebi<strong>da</strong>s<br />
e já podia mal defender-se de cansa<strong>do</strong> e de enfraqueci<strong>do</strong> <strong>do</strong> sangue que <strong>da</strong>s<br />
feri<strong>da</strong>s corria, em lugar solitário e de quatro inimigos infesta<strong>do</strong> com desumana<br />
porfia. Queixou-se a vozes <strong>da</strong> aleivosia enganosa <strong>do</strong> trato <strong>do</strong>ble, <strong>do</strong><br />
fraudulento duelo com que o matavam, ao tempo que eu passava, que movi<strong>do</strong><br />
de seus clamores, sem conhecê-lo na voz, nem a Octávio, lhe dei o socorro<br />
que ouvistes. Caiu Octávio morto com as balas <strong>da</strong> clavina, que guiou de noite<br />
sua demasia<strong>da</strong> soberba para castigo de sua perfídia, insolente condição e<br />
Eurip., in Med.<br />
Cicer., act. 5. in Verr.<br />
Quint. Curt., Lib. 8.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1013<br />
arroja<strong>do</strong>s procedimentos; que o padecer censura de mal quisto nas opiniões de<br />
uma república, é embaixa<strong>da</strong> de se aproximar o castigo.<br />
Cap. XIV.<br />
Em que Lisar<strong>do</strong> prossegue seus sucessos<br />
Morto Octávio e eu ausentan<strong>do</strong>-me com Carlos, como referi<strong>do</strong> tenho,<br />
levan<strong>do</strong>-o mais com aparências de morto que com demonstrações de vivo,<br />
consultaram entre si os <strong>do</strong>us sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que lhes não convinha voltarem a<br />
Bolonha, como o cria<strong>do</strong> <strong>do</strong> defunto queria, para serem testemunhas <strong>do</strong><br />
sucesso diante de seu pai e <strong>da</strong> justiça. Lá disse o Séneca 1079 que uma<br />
consciência boa seguramente aparece nas luzes <strong>do</strong> mais claro dia, porém uma<br />
consciência criminosa <strong>da</strong>s próprias trevas <strong>da</strong> noite se receia; por isso lhe<br />
chamou Cícero 1080 peso intolerável com que os culpa<strong>do</strong>s estão oprimi<strong>do</strong>s.<br />
Diziam os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s:<br />
- Levar tão funestas notícias aos pais <strong>do</strong> defunto não convém, que dirão<br />
que esse fruto lutuoso foi o que colheu Octávio de nossa companhia e <strong>do</strong>s<br />
dispêndios que connosco prodigamente fazia; que se o acompanhamos,<br />
porque o não defendemos ou que feri<strong>da</strong>s em sua defensa mostramos? Como o<br />
não acompanhámos na morte, assim como lhe assistíamos tantas vezes na<br />
vi<strong>da</strong>? Como só ele ficou morto e nós seguros? Se disse Euripides 1081 que<br />
quem aos companheiros no perigo não socorre ou <strong>da</strong> inveja, ou <strong>da</strong> malícia<br />
procede.<br />
- Lembra<strong>do</strong> estou eu (dizia um deles) que o romano cônsul Metelo<br />
man<strong>do</strong>u degolar ao capitão Turpílio Colatino, porque estan<strong>do</strong> no presídio de<br />
África com seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, a quem os vacenses, rebelan<strong>do</strong>-se, passaram to<strong>do</strong>s<br />
à espa<strong>da</strong> sem ficar vivo mais que só o capitão, o cônsul o condenou à morte,<br />
dizen<strong>do</strong> que quem com seus sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s não morrera ou mostrava muita perfídia<br />
em desampará-los, ou muita covardia em não segui-los. Tal se poderá dizer<br />
Senec, Epist. 98.<br />
Cie, 3. De natur. Deor.<br />
Eurip., in Res.
1014 Padre Mateus Ribeiro<br />
por nós, ven<strong>do</strong>-nos isentos de feri<strong>da</strong>s, que ou o desamparámos de covardes,<br />
ou o entregámos de fraudulentos; e sen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> contrário <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, hão-de<br />
presumir o mais funesto para nosso <strong>da</strong>no. Nós em Bolonha temos alguns<br />
crimes que por servir a Octávio fazíamos e à sua sombra se dissimulavam,<br />
porque com to<strong>do</strong> o empenho nos favorecia, sem reparar em dispêndios para<br />
assegurar-nos; porém hoje quem nos há-de patrocinar, senão perseguir, ten<strong>do</strong><br />
tão poderosos contrários não só em seus pais e parentes, mas juntamente nos<br />
de Carlos, cujas mortais feri<strong>da</strong>s nós lhe demos por vingar as que dele Octávio<br />
recebi<strong>do</strong> tinha? Pois com tantos inimigos e poderosos, e nós desfavoreci<strong>do</strong>s<br />
em Bolonha, que temos lá que buscar mais que os perigos, que, como diz o<br />
Séneca 1082 , devem evitar os prudentes? Aventurar-se aos perigos de que pode<br />
resultar ou a honra ou o proveito, ou será empenho <strong>da</strong> ambição, ou<br />
desempenho <strong>do</strong>s brios bem nasci<strong>do</strong>s; porém aventurar-se ao rigor de uma<br />
prisão e ao fatal de uma sentença, por faltar a prudência na cautela, sem<br />
esperanças de utili<strong>da</strong>de alguma, seria nece<strong>da</strong>de manifesta, estan<strong>do</strong> em nossa<br />
mão a liber<strong>da</strong>de segura. Pelo que sou de parecer, companheiro e amigo, que<br />
<strong>do</strong> lugar em que estamos caminhemos para Módena e <strong>da</strong>í nos passemos a<br />
Florença, terras to<strong>da</strong>s de alheios senhorios nos quais Bolonha não tem<br />
jurisdição, e voltan<strong>do</strong> as costas ao perigo, caminhemos ao seguro.<br />
Pedia-lhes com instâncias o cria<strong>do</strong> <strong>do</strong> defunto Octávio que o não<br />
desamparassem e lhe dessem favor para poder tirar <strong>da</strong>quele lugar o corpo de<br />
seu defunto senhor; porém estava o temor de serem presos neles tão presente<br />
que, sem lhe <strong>da</strong>rem resposta, se ausentaram com to<strong>da</strong> a pressa para Módena.<br />
Ficou o cria<strong>do</strong> solitário com o cadáver, e ven<strong>do</strong>-se sem outro remédio, de noite<br />
e em o espesso <strong>da</strong>quele bosque, se partiu para um casal que quasi um quarto<br />
de légua <strong>do</strong> bosque ficava, no qual com mais lágrimas que palavras pediu aos<br />
lavra<strong>do</strong>res quisessem em necessi<strong>da</strong>de tão precisa com o seu carro virem levar<br />
para o casal o corpo <strong>do</strong> infelice Octávio, tão corteja<strong>do</strong> na vi<strong>da</strong> por <strong>da</strong>divoso e<br />
tão desampara<strong>do</strong> na morte por desgraça<strong>do</strong>. Vieram os lavra<strong>do</strong>res com o carro<br />
e ven<strong>do</strong> ao defunto to<strong>do</strong> banha<strong>do</strong> em seu próprio sangue, choravam com o<br />
cria<strong>do</strong> de enterneci<strong>do</strong>s; que, como disse Quintiliano 1083 , é a compaixão natural<br />
Senec, Epist. 117.<br />
Quint., Decl. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1015<br />
ain<strong>da</strong> aos próprios inimigos, como chorou César à vista <strong>da</strong> corta<strong>da</strong> cabeça de<br />
Pompeu e Augusto, ven<strong>do</strong> o corpo morto e banha<strong>do</strong> em sangue, de Marco<br />
António, como escreve Marco António Sabélico e Apiano Alexandrino nas<br />
guerras civis de Roma.<br />
Levaram o defunto ao casal, enquanto o cria<strong>do</strong> se partiu a Bolonha a <strong>da</strong>r<br />
as trágicas novas aos pais de Octávio. Apenas o cria<strong>do</strong> na lastimosa narração<br />
descobriu que sobre o desafio de Carlos eu o matara com as balas <strong>da</strong> clavina<br />
que disparara em favor de Carlos, que estava mortalmente feri<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o<br />
magoa<strong>do</strong> Petrónio, pai <strong>do</strong> defunto, choran<strong>do</strong> rios de lágrimas sem poder<br />
reprimi-las, que mal as pode enxugar quem só acha o alívio em derramá-las,<br />
saiu impaciente a queixar-se ao auditor geral de mim e de Carlos que lhe<br />
matámos a seu filho Octávio, requeren<strong>do</strong> a grandes vozes que logo nos<br />
prendesse. Levantou-se o auditor ao clamoroso de suas queixas e como era<br />
pessoa tão ilustre e poderosa e o <strong>caso</strong> de morte, toman<strong>do</strong> o testemunho <strong>do</strong><br />
cria<strong>do</strong> como testemunha de vista, que depôs eu o haver morto, acrescentan<strong>do</strong><br />
que vinha em favor de Carlos para esse efeito, como as horas eram antes de<br />
amanhecer, an<strong>da</strong>ram convocan<strong>do</strong> os ministros <strong>da</strong> justiça para acompanharem<br />
ao auditor; o que ouvin<strong>do</strong> um de meus cria<strong>do</strong>s, me deu aviso, com que eu<br />
sain<strong>do</strong> de casa apressa<strong>do</strong> só com a espa<strong>da</strong> e uma pistola, e dizen<strong>do</strong> aos<br />
cria<strong>do</strong>s me fossem esperar em Cesena. Apenas de casa tinha saí<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> a<br />
justiça chegou, que quebran<strong>do</strong> as portas e buscan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> sem me acharem,<br />
nem cria<strong>do</strong>s, sequestran<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que em casa havia, fecharam as portas,<br />
lançan<strong>do</strong>-lhes travessas, e foram a casa de Frederico Manfre<strong>do</strong> a prender a<br />
Carlos, seu filho, que mortalmente na cama feri<strong>do</strong> estava.<br />
Neste esta<strong>do</strong>, em uma liteira o queria o auditor levar a uma torre a<br />
requerimento <strong>do</strong> pai <strong>do</strong> morto, que o requeria, ao que opon<strong>do</strong>-se os pais de<br />
Carlos com grandes instâncias, alegan<strong>do</strong> o evidente risco que a vi<strong>da</strong> de seu<br />
filho corria se o mu<strong>da</strong>ssem, por serem as feri<strong>da</strong>s que tinha penetrantes e<br />
mortais, e foram tantos de sua parte os protestos e de Petrónio Bentivolhe os<br />
requerimentos que o auditor, deixan<strong>do</strong> a casa to<strong>da</strong> cerca<strong>da</strong> <strong>da</strong> justiça, foi <strong>da</strong>r<br />
conta ao lega<strong>do</strong> cardeal Colalto, governa<strong>do</strong>r de Bolonha, in<strong>do</strong> juntamente com<br />
ele o pai <strong>do</strong> morto e Frederico Manfre<strong>do</strong>, pai de Carlos. Pensativo e suspenso<br />
se mostrou o lega<strong>do</strong>, desejan<strong>do</strong> poder favorecer a seu parente, e não ousan<strong>do</strong><br />
por ser o morto tão aparenta<strong>do</strong> e seu pai tão poderoso na ci<strong>da</strong>de. E como o
1016 Padre Mateus Ribeiro<br />
cardeal se prezava de ser tão recto na justiça e não desejava mostrar-se<br />
apaixona<strong>do</strong>, depois de muitos debates e controvérsias, resolveu que ou<br />
Frederico Manfre<strong>do</strong> fosse fiel carcereiro de Carlos, seu filho, assinan<strong>do</strong> termo<br />
obrigatório de o entregar preso quan<strong>do</strong> lhe fosse pela justiça a entrega pedi<strong>da</strong>,<br />
ou em liteira levassem preso a Carlos à torre de Asineis, que era a mais segura<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />
Já a este tempo concorriam muitos parentes <strong>do</strong> morto a favorecer a<br />
Petrónio em casa <strong>do</strong> cardeal, pedin<strong>do</strong>-lhe man<strong>da</strong>sse logo tropas de cavalaria<br />
em meu seguimento, porquanto era fugi<strong>do</strong>, o que logo se expediu; e ven<strong>do</strong><br />
Manfre<strong>do</strong> as cousas tão revoltas e o cardeal mostrar-se tão pouco favorável,<br />
assinou os termos diante dele de se obrigar a ser fiel carcereiro de seu filho<br />
Carlos com to<strong>da</strong>s as cláusulas e rigores que os parentes <strong>do</strong> morto apontar<br />
quiseram, e a seu pedimento se despediram justiças para serem presos os<br />
fugitivos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que na morte se acharam, como o cria<strong>do</strong> <strong>do</strong> morto dito tinha;<br />
porém eles tinham caminha<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a noite com tal pressa que entraram no<br />
senhorio <strong>do</strong> duque de Módena antes que amanhecesse, no qual já as justiças<br />
de Bolonha não tinham jurisdição.<br />
Meus cria<strong>do</strong>s derrama<strong>do</strong>s ca<strong>da</strong> qual por sua parte, sem de mim<br />
saberem, por vários caminhos embosca<strong>do</strong>s de dia e caminhan<strong>do</strong> de noite se<br />
partiram para Cesena, cui<strong>da</strong>n<strong>do</strong> que já lá me achassem pelo que eu lhes havia<br />
dito quan<strong>do</strong> de casa saí, mas deram em Cesena as notícias de meus<br />
sucessos, de que minha mãe e irmã receberam não pequeno susto, com<br />
temores se me prenderiam, por conhecerem ser o pai <strong>do</strong> morto muito<br />
aparenta<strong>do</strong> e poderoso em Bolonha e ouvin<strong>do</strong> dizer <strong>da</strong>s tropas de cavalo que<br />
em meu seguimento por várias estra<strong>da</strong>s eram expedi<strong>da</strong>s. Saí eu de casa<br />
apressa<strong>do</strong> com a espa<strong>da</strong> só e uma pistola, que foram só as armas que pude<br />
tomar com o susto de poder cercar-me a justiça se mais me detivesse, e<br />
caminhan<strong>do</strong> em horas tão intempestivas pelas ruas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, sem atender a<br />
que parte me conduzisse, que, como diz Plutarco 1084 , o sobressalto de um<br />
temor perturba não só os senti<strong>do</strong>s, mas ain<strong>da</strong> impede os discursos. Discorri por<br />
diversas ruas, e em uma delas vi aberta a porta <strong>da</strong> casa térrea de um homem<br />
pobre, jornaleiro, que vivia de seu quotidiano trabalho e tinha madruga<strong>do</strong> para<br />
Plut., De virt. & fortit. Alex.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1017<br />
antes de romper a manhã se partir ao granjeio de sua vi<strong>da</strong>. Entrei pela porta<br />
que aberta estava, de que ele e a mulher sobressalta<strong>do</strong>s se mostraram, porém<br />
eu lhes disse não se atemorizassem, que eu vinha-me retiran<strong>do</strong> <strong>da</strong> justiça.<br />
Com estas palavras e <strong>da</strong>r-lhe algum dinheiro <strong>do</strong> que trazia, que para gente<br />
pobre e necessita<strong>da</strong> é o <strong>do</strong>nativo o suborno mais eficaz e a eloquência mais<br />
erudita, ofereceu-se este pobre homem não só a ter-me em sua casa oculto<br />
to<strong>do</strong> o tempo que nela assistir quisesse, porém a solicitar confidente tu<strong>do</strong> o que<br />
lhe ordenasse.<br />
- Breve (lhe disse eu) será minha assistência nesta casa, que não será<br />
mais que enquanto chegar a noite, porque assim me convém. Este dia não<br />
saiais fora de casa, porque importa a minha segurança.<br />
Assim o prometeu e o cumpriu. Neste dia à tarde trouxeram <strong>do</strong> casal em<br />
uma liteira coberta de luto a Bolonha o corpo <strong>do</strong> malogra<strong>do</strong> Octávio Bentivolhe<br />
a casa de seus lastima<strong>do</strong>s pais para ser sepulta<strong>do</strong>, acompanhan<strong>do</strong> seu enterro<br />
to<strong>do</strong>s seus parentes, que era o lustroso de Bolonha. Dividiu-se o povo <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de em vários discursos e juízos sobre sua morte, conforme as obrigações<br />
ou os agravos que dele recebi<strong>do</strong> tinham, e sen<strong>do</strong>, como diz Demóstenes 1085 , o<br />
julgar <strong>do</strong> povo inconstante, pois o que uma vez aplaude, outra vez condena,<br />
como se viu em Mânlio Capitolino, tantas vezes <strong>do</strong> povo romano com imortais<br />
victores aclama<strong>do</strong> e depois, por uma suspeita mal prova<strong>da</strong>, por sentença <strong>do</strong><br />
mesmo povo condena<strong>do</strong> a ser despenha<strong>do</strong> <strong>do</strong> mesmo Capitólio que ele com<br />
tanta glória de seu nome contra a invasão repentina <strong>do</strong>s franceses defendi<strong>do</strong><br />
tinha. É o povo, disse Cícero 1086 , o que de ordinário pela ver<strong>da</strong>de julga o<br />
menos e pelos rumores julga o mais. Divulgou a fama o homicídio e como se<br />
referia por vários mo<strong>do</strong>s, sobre mim e sobre Carlos <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se diversos<br />
pareceres, raros eram os que com a ver<strong>da</strong>de acertavam e ao que era engano<br />
os mais que queriam ajuizar arroja<strong>do</strong>s seguiam.<br />
Chegou-se a noite por extremos escura, que era o que eu então mais<br />
desejava, com cerração de névoa que aos astros servia de cortina lutuosa, e<br />
despedin<strong>do</strong>-me eu <strong>do</strong>s hóspedes que em sua casa com tanta leal<strong>da</strong>de esse dia<br />
me haviam recebi<strong>do</strong> e oculta<strong>do</strong>, não ten<strong>do</strong> eu por seguro o ausentar-me <strong>da</strong><br />
Dem., in Olynth.<br />
Cicer., Pro Rose.
1018 Padre Mateus Ribeiro<br />
ci<strong>da</strong>de, por receio de me encontrarem as tropas que em meu seguimento se<br />
tinham expedi<strong>do</strong>, fui valer-me de casa de meu amigo Roberto, sen<strong>do</strong> dele e de<br />
Lívia, sua esposa, com grande amor recebi<strong>do</strong>, mostran<strong>do</strong>-se pesarosos de<br />
meus desgostos. E suposto que o morto Octávio era parente de Roberto<br />
Bentivolhe, contu<strong>do</strong> a ver<strong>da</strong>deira amizade, como diz Valério Máximo 1087 , tem<br />
vínculo superior ao mesmo sangue, porque o parentesco foi continuação<br />
forçosa <strong>da</strong> natureza, que não esteve em nosso poder o evitá-la, porém a<br />
amizade foi livre eleição de nossa vontade e os ditames de nosso juízo, e<br />
sempre o voluntário parece preferir ao que é forçoso. E como Octávio pelo<br />
soberbo <strong>da</strong> condição de poucos era ama<strong>do</strong>, assim sua morte de poucos foi<br />
senti<strong>da</strong>.<br />
Dei a Roberto inteira informação e a Lívia de to<strong>do</strong> o sucesso desde que<br />
saí de Bolonha acompanhan<strong>do</strong> a Raimun<strong>do</strong>, e como se eu com tanta pressa<br />
aos clamores e queixas de Carlos não acudira, sem dúvi<strong>da</strong> ficaria morto. Guiou<br />
seu infelice destino as balas <strong>da</strong> clavina, sem eu conhecer a quem tirava pelo<br />
escuro <strong>da</strong> noite, a ser seu coração o alvo delas, que sen<strong>do</strong> tão encontra<strong>do</strong>s o<br />
alvo e o escuro, para ter efeito uma desgraça parece que se unem os<br />
contrários mais distantes, que eu então não conheci com quem Carlos<br />
pendenciava, ven<strong>do</strong>-o acometi<strong>do</strong> de quatro espa<strong>da</strong>s, mal feri<strong>do</strong> e que<br />
intentavam <strong>da</strong>r-lhe a morte com demasia<strong>da</strong> porfia. Exasperou-me a<br />
desigual<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pendência, incitou-me o trato <strong>do</strong>ble, provocou-me a porfia em<br />
o acometerem, apaixonou-me o pouco respeito que se me guar<strong>da</strong>va,<br />
persuadiu-me a sole<strong>da</strong>de <strong>do</strong> lugar e o tempo tão impróprio para o remédio e<br />
finalmente o ver a Carlos, meu amigo, pedin<strong>do</strong>-me socorro e mortalmente<br />
feri<strong>do</strong>; e se, como diz Euripides 1088 , o socorro <strong>da</strong><strong>do</strong> fora de tempo fica sen<strong>do</strong><br />
não só infrutuoso, mas juntamente aborreci<strong>do</strong>, e sen<strong>do</strong>, como diz Cícero 1089 , o<br />
defender a vi<strong>da</strong> de outro a melhor fortuna, obrei como honra<strong>do</strong> em amparar a<br />
um amigo no conflito mais rigoroso e no perigo mais evidente de sua vi<strong>da</strong>.<br />
- Bem sei, amigo Roberto, que o defunto Octávio é ain<strong>da</strong> parente vosso<br />
e pelos Bentivolhes aparenta<strong>do</strong> com o melhor de Bolonha, mas confio eu tanto<br />
Valer. Max., Lib. 4.<br />
Eurip., in Res.<br />
Cicer., Pro Marc.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1019<br />
de vossa amizade que tomei ao presente a vossa casa por seguro, esperan<strong>do</strong><br />
que fareis mais por mim <strong>do</strong> que por ele. Eu intento partir-me a Cesena, como<br />
se recolherem as tropas que a me prenderem partiram, que é força que se<br />
recolham não me achan<strong>do</strong>, e antes de ausentar-me desejara visitar a Carlos e<br />
ver a Fenisa, que a confiança para poder fazê-lo me franqueou a desgraça<br />
presente; e sen<strong>do</strong> a desgraça e aventura entre si tão opostas, nasceu desta<br />
desdita minha maior ventura, e quisera nesta última despedi<strong>da</strong> son<strong>da</strong>r os<br />
baixos ou a altura de minha sorte. Desejo que esta noite me acompanheis a<br />
sua casa, porque se nos encontrarmos com a justiça, falareis vós, pois sois tão<br />
conheci<strong>do</strong> por parente <strong>do</strong> defunto, e eu passarei por cria<strong>do</strong> vosso que vos<br />
acompanho, com que tu<strong>do</strong> ficará seguro.<br />
Com grandes demonstrações de amizade se ofereceu Roberto a ir<br />
comigo a casa de Fenisa e tornar-me seguro a sua casa, aonde estaria oculto<br />
até se assegurar o poder partir-me para Cesena, minha pátria. Os mesmos e<br />
ain<strong>da</strong> maiores oferecimentos me fez Lívia, sua esposa, mostran<strong>do</strong> ter sempre<br />
presente na memória o muito que eu por ela havia feito quan<strong>do</strong> de meu favor<br />
necessitava. Também me disse que quan<strong>do</strong> falara com Fenisa sobre a<br />
pretensão com que Raimun<strong>do</strong> a Bolonha viera, se mostrara estar-me<br />
afeiçoa<strong>da</strong>, e que entendia que agora com este sucesso <strong>do</strong> que por Carlos, seu<br />
irmão, fizera, sem dúvi<strong>da</strong> o estaria mais. Assim que não desistisse de<br />
pretendê-la para esposa, porque na fi<strong>da</strong>lguia, fermosura, discrição e riqueza <strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>te lhe parecia que em Itália não se acharia casamento igual e que ela <strong>da</strong> sua<br />
parte não perderia o cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> a visitasse, de lhe fazer presentes<br />
minhas memórias. Rendi-lhe as graças <strong>do</strong> favor que me fazia, que é a primeira<br />
paga com que se reconhece a obrigação de um benefício recebi<strong>do</strong>.<br />
Cap. XV.<br />
Da prática que Lisar<strong>do</strong> teve com Carlos e seus pais e como partiu para Cesena<br />
Já seriam <strong>da</strong><strong>da</strong>s as onze horas <strong>da</strong> noite, quan<strong>do</strong> eu e Roberto nos<br />
preparámos para ir a casa de Frederico Manfre<strong>do</strong>, aprestan<strong>do</strong> as armas para o
1020 Padre Mateus Ribeiro<br />
que suceder pudesse. É a noite, diz Quintiliano 1090 , sempre suspeitosa,<br />
costuman<strong>do</strong> as trevas engrandecer ao menor ruí<strong>do</strong>, agigantan<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> as<br />
vozes mais ténues, fazen<strong>do</strong>-se suspeita à mesma fideli<strong>da</strong>de por desconheci<strong>da</strong><br />
e censuran<strong>do</strong> de inconfidência quanto encontra principalmente quem se teme.<br />
São na noite os longes duvi<strong>do</strong>sos e os pertos arrisca<strong>do</strong>s, em ca<strong>da</strong> sombra se<br />
imagina um perigo e em ca<strong>da</strong> passo pode temer-se um assalto.<br />
An<strong>da</strong>va a ci<strong>da</strong>de inquieta com a presente morte de Octávio, e não era<br />
maravilha que ou por parte <strong>da</strong> justiça, ou de seus parentes pudesse o infausto<br />
de um encontro ou o acidental de uma desgraça ocasionar uma ruína. Tu<strong>do</strong><br />
isto eu previa, mas como eu não podia aparecer de dia e desejava ver a Fenisa<br />
para despedir-me dela e de seus pais e irmãos, pois minha parti<strong>da</strong> para<br />
Cesena estava tão propínqua que pendia de horas, quis aventurar ao temor de<br />
um perigo o desempenho de um desejo. Chamou Roberto à porta, que, sen<strong>do</strong><br />
conheci<strong>do</strong>, se lhe abriu, sain<strong>do</strong>-nos a receber à primeira fala os pais de Carlos,<br />
admiran<strong>do</strong>-se de ver-me em Bolonha, saben<strong>do</strong> as grandes diligências que se<br />
faziam para prender-me. Entrámos to<strong>do</strong>s ao aposento de Carlos, aonde<br />
estavam com ele Constantino e Fenisa, tão fermosa como sempre, e Carlos<br />
queixoso <strong>da</strong>s <strong>do</strong>res que as feri<strong>da</strong>s e o rigor <strong>da</strong> cura causa<strong>do</strong> tinham.<br />
Consolámos sua aflição com a esperança de alcançar a deseja<strong>da</strong> saúde, que,<br />
como diz Demóstenes 1091 , é para os enfermos o maior alívio de suas penas.<br />
Continuou-se a prática sobre o sucesso presente, em que eu falei assim:<br />
- Expon<strong>do</strong>-me, senhores, a to<strong>do</strong> o perigo que suceder-me pudesse, vim<br />
despedir-me antes de minha parti<strong>da</strong> para Cesena, minha pátria, porque em<br />
Bolonha não há esperanças de poder mais assistir nem eu, nem o senhor<br />
Frederico com sua família pelas razões que apontarei. Eu matei a Octávio<br />
Bentivolhe por livrar <strong>da</strong> morte ao senhor Carlos, meu amigo; os motivos com<br />
que o fiz e o trato <strong>do</strong>ble com que o morto o desafiou para só, levan<strong>do</strong> consigo o<br />
cria<strong>do</strong> arma<strong>do</strong> e os fugitivos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s a fim de tirar-lhe a vi<strong>da</strong>, não consta,<br />
porque o cria<strong>do</strong> depôs o que quis, lançan<strong>do</strong>-me a mim e ao senhor Carlos a<br />
culpa que Octávio, seu senhor, tinha; e nesta forma se vai acriminan<strong>do</strong> a morte<br />
nas rigorosas devassas que se tiram, como me informou o senhor Roberto,<br />
Dem., in Olynth.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1021<br />
meu fiel amigo. A ver<strong>da</strong>de <strong>do</strong> que passou só eu e o senhor Carlos a sabemos,<br />
mas esta para conhecer-se, diz Aristóteles 1092 , é necessário manifestar o<br />
engano <strong>da</strong> falsi<strong>da</strong>de. Porém quem em noite escura, solitário o lugar,<br />
intempestivas as horas, no maior silêncio pode arguir a falsi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> que o<br />
cria<strong>do</strong> <strong>do</strong> defunto testemunha? É Petrónio Bentivolhe, seu pai, muito rico e<br />
aparenta<strong>do</strong> com o melhor de Bolonha, com que nele ficamos ten<strong>do</strong> um inimigo<br />
mui poderoso e em seus parentes muitos contrários e to<strong>do</strong>s mui vali<strong>do</strong>s;<br />
desgraça grande, como disse Plutarco 1093 , quan<strong>do</strong> os melhores de uma ci<strong>da</strong>de<br />
se tem por inimigos. Litigar com os desvali<strong>do</strong>s, disse Ovídio 1094 , não dá grande<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, porque a queixa que vai <strong>da</strong> pobreza acompanha<strong>da</strong> talvez é pouco<br />
ouvi<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> o pobre, como alude Juvenal 1095 , pouco aceito e ain<strong>da</strong> mal<br />
ouvi<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> o ofendi<strong>do</strong> fora pobre, que ou molesta<strong>do</strong> <strong>do</strong> vagaroso <strong>do</strong> litígio<br />
desistisse de prossegui-lo, ou viesse a <strong>da</strong>r perdão movi<strong>do</strong> <strong>do</strong> interesse, como<br />
disse Platão 1096 , que não se podia chamar homem rico o que muito possuía,<br />
senão o que quan<strong>do</strong> lhe importava sabia tu<strong>do</strong> despender. Porém, senhores,<br />
neste infortúnio presente não se pode achar esta esperança, pois os pais <strong>do</strong><br />
morto Octávio, sobre serem muito ricos, são muito vali<strong>do</strong>s e muito aparenta<strong>do</strong>s.<br />
Pois de partes tão aparenta<strong>da</strong>s, com o criminoso <strong>da</strong>s devassas que se<br />
tiram, tão eclipsa<strong>da</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de a luz e tão aparente <strong>do</strong> engano o fingimento,<br />
que se pode esperar em Bolonha? É a queixa de um poderoso sempre ouvi<strong>da</strong>,<br />
o clamor aceito e o requerimento respeita<strong>do</strong>, e mais na morte de um filho único,<br />
morga<strong>do</strong> e de seus pais com extremos ama<strong>do</strong>. Bolonha para mim hoje deu fim,<br />
que não é pequena ventura o poder isentar-me de ser preso. Irei para Cesena,<br />
minha pátria, aonde sou mais vali<strong>do</strong> e meu cunha<strong>do</strong> mais poderoso <strong>do</strong> que o<br />
pai de Octávio o é em Bolonha. Agora importa, senhor Frederico Manfre<strong>do</strong>,<br />
tratar-se <strong>da</strong> segurança <strong>do</strong> senhor Carlos e de vossa mercê. Dele, digo, porque<br />
pela justiça está preso, e de vossa mercê porque, como fiel carcereiro e a<br />
quem se entregou em guar<strong>da</strong>, há-de <strong>da</strong>r conta dele à justiça, tanto que lhe for<br />
Plut., De ódio & invid.<br />
Ovid., 3. De am.<br />
Juv., Sat. 3.<br />
Plat., De Pol.
1022 Padre Mateus Ribeiro<br />
pedi<strong>do</strong>, para o meterem na torre bem guar<strong>da</strong><strong>do</strong>. São os que se encarregam de<br />
guar<strong>da</strong>r a outros, diz Cícero 1097 , tão exactamente observantes no oneroso a<br />
que se obrigaram que com razão se pode deles dizer que guar<strong>da</strong>m sua própria<br />
vi<strong>da</strong> no incessável cui<strong>da</strong><strong>do</strong> de haver de guar<strong>da</strong>r as alheias. Assim disse<br />
Plutarco 1098 que devem ser os a quem a guar<strong>da</strong> de algum preso se entrega<br />
observantíssimos no desvelo para o entregarem seguro. Está vossa mercê<br />
obriga<strong>do</strong> a entregar à prisão ao senhor Carlos, seu filho morga<strong>do</strong>, pon<strong>do</strong> sua<br />
vi<strong>da</strong> em manifesto perigo, sen<strong>do</strong> a acusação criminal e capital, com partes tão<br />
poderosas e de tanto valimento, estan<strong>do</strong> a defesa tão escura e improvável pela<br />
falta de quem a ver<strong>da</strong>de declarar possa.<br />
Deixan<strong>do</strong> de o entregar conforme as obrigações e termos exactíssimos<br />
que assinou, tanto que a justiça pedir a entrega dele, será ser vossa mercê<br />
preso em aperta<strong>da</strong> prisão, pon<strong>do</strong>-lhe guar<strong>da</strong>s à sua custa com estipêndios<br />
diários, ca<strong>da</strong> dia acrescenta<strong>do</strong>s, e a prisão mais estreita; porque o cardeal<br />
lega<strong>do</strong> de Bolonha, ain<strong>da</strong> que como parente o deseje, não pode favorecer a<br />
causa em mo<strong>do</strong> algum. A primeira razão, por se prezar de tão observa<strong>do</strong>r <strong>da</strong><br />
justiça, em que consiste o respeito de sua autori<strong>da</strong>de, como diz<br />
Demóstenes 1099 , e talvez obrará contra o que deseja, porque com os clamores<br />
de partes poderosas e ofendi<strong>da</strong>s não pode quem governa obrar menos que<br />
executar o rigor <strong>da</strong> justiça.<br />
Bem se viu esta ver<strong>da</strong>de em Roma, quan<strong>do</strong> o cônsul Marco Júnio,<br />
sen<strong>do</strong> juiz <strong>da</strong>s criminosas acusações que os macedónios vieram capitular<br />
contra seu filho Júnio Silano <strong>da</strong>s ofensas e agravos que dele tinham recebi<strong>do</strong>,<br />
o man<strong>do</strong>u prender em tão áspera prisão, proceden<strong>do</strong> contra ele com tão<br />
severo rigor que o filho desespera<strong>do</strong> se matou a si mesmo na prisão em que<br />
estava por não experimentar a sentença executiva de seu rigoroso pai. Vai<br />
grande distância <strong>do</strong> amor à justiça. Faz divórcio o parentesco com a rectidão e<br />
o favor com a obrigação de quem governa; porque, como disse Plínio 1100 , a<br />
justiça há-de mostrar-se igual aos naturais, assim aos de fora como aos<br />
Plut., Prob. Dec. 1.<br />
Dem., Com. Mid.<br />
Plin. Jun., Lib. 1.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1023<br />
<strong>do</strong>mésticos de casa. E em faltan<strong>do</strong> nesta igual<strong>da</strong>de quem a justiça administra,<br />
to<strong>da</strong>s as queixas são justas. Transformou-se o que governa em pessoa<br />
pública, diz S. Gregório 1101 , e deixa de parecer a pessoa particular que de<br />
antes era para se mostrar a to<strong>do</strong>s comum, suspenden<strong>do</strong> o mostrar-se parente<br />
quem se há-de mostrar juiz. São os queixosos tão poderosos que ain<strong>da</strong> que o<br />
cardeal governa<strong>do</strong>r quisera favorecer ao senhor Carlos, nunca poderá obrar o<br />
que deseja; porque como as respúblicas, como escreve Santo Agostinho 1102 ,<br />
com a justiça se conservam e sustentam, parecer que já tinha insinua<strong>do</strong><br />
Aristóteles 1103 , atribuin<strong>do</strong> a conservação política <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des à igual<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
justiça em quem as governa, mal poderá o cardeal governa<strong>do</strong>r no crime <strong>da</strong><br />
morte de pessoa tão aparenta<strong>da</strong> suspender a execução <strong>da</strong> justiça, haven<strong>do</strong><br />
tantos que com instâncias lhe peçam a execução.<br />
Nem a vossa mercê, senhor Frederico, nem ao senhor Carlos convém o<br />
entrarem na prisão. A ele nunca pelo risco que corre sua vi<strong>da</strong>, nem a vossa<br />
mercê pelo dilata<strong>do</strong> tempo com que nela estaria com grande detrimento desta<br />
casa e de tão ilustre família, arrisca<strong>da</strong> às invasões e insolências de tantos<br />
contrários ricos, aparenta<strong>do</strong>s e poderosos. Vossa mercê é em Bolonha<br />
forasteiro: nela não tem ren<strong>da</strong>s, nem juros, nem quintas que hajam de<br />
sequestrar-se, pois tu<strong>do</strong> está sito no duca<strong>do</strong> de Módena. Suposto isto, que há-<br />
de esperar em Bolonha? Não aumentos de esta<strong>do</strong>, pois a grandeza deste é<br />
inveja<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s; sen<strong>do</strong> vossa mercê inveja<strong>do</strong> de muitos, infere-se que de<br />
poucos será ama<strong>do</strong>, porque invejar e amar não se compadecem, porque o<br />
amor alegra-se com os aumentos <strong>do</strong> que ama e a inveja com os<br />
acrescentamentos <strong>do</strong> inveja<strong>do</strong> se entristece. Está hoje cerca<strong>do</strong> de inimigos, e<br />
esses poderosos e ofendi<strong>do</strong>s. E se em a navegação é forçoso sofrer-se a<br />
assistência <strong>do</strong>s inimigos e desafeiçoa<strong>do</strong>s pelo coarcta<strong>do</strong> <strong>do</strong> baixel e prisão<br />
precisa <strong>do</strong>s mares, para onde não pode retirar-se o desejo <strong>da</strong> vista ou<br />
socie<strong>da</strong>de <strong>do</strong> que o molesta na campanha livre, desacerto seria estar por alvo<br />
de tantos olhos desafeiçoa<strong>do</strong>s, de tantos encontros inimigos, só por não<br />
Greg., Moral 19.<br />
Aug., 2. De civit. Dei.<br />
Arist., Pol. 3.
1024 Padre Mateus Ribeiro<br />
desalojar de uma ci<strong>da</strong>de forasteira aonde não há cousa que obrigue a assistir,<br />
antes muitas que persua<strong>da</strong>m a não estar como em fronteira de contrários.<br />
Não há-de parar a prudência só na consideração <strong>do</strong> presente, diz<br />
Demóstenes 1104 , mas há-de conjecturar e ajuizar ao futuro, parecer que<br />
Euripides 1105 tinha <strong>da</strong><strong>do</strong>, acautelan<strong>do</strong>-se no presente com discursar ao futuro.<br />
Alegran<strong>do</strong>-se excessivamente o povo romano de haver o sena<strong>do</strong><br />
decreta<strong>do</strong> que <strong>da</strong>li ao diante nenhum romano fosse obriga<strong>do</strong> a militar à sua<br />
custa, como até então se costumava, e fazen<strong>do</strong> o povo grandes festas ao tal<br />
decreto, clamavam os tribunos <strong>do</strong> povo que para que festejavam o decreto<br />
presente, que era enganoso, por não considerarem ao futuro; porque estan<strong>do</strong> o<br />
erário de Roma consumi<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong> exausto <strong>da</strong>s guerras passa<strong>da</strong>s, e sen<strong>do</strong><br />
força<strong>do</strong> alistar-se novo exército para as que se moviam de presente, era<br />
infalível que o sena<strong>do</strong> havia de lançar tributos ao povo romano para pagamento<br />
<strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, como com efeito lançou; e assim, aonde imaginavam que<br />
ficavam isentos <strong>do</strong>s dispêndios que de antes faziam, com os novos tributos<br />
eles mesmos de suas próprias fazen<strong>da</strong>s se pagavam. Se considerarmos,<br />
senhores, ao presente e atentarmos ao futuro, nenhum esta<strong>do</strong> temos de que<br />
possamos receber alívio. Porém ponderan<strong>do</strong> com a razão o esta<strong>do</strong> presente,<br />
dele podemos fazer ponte para passarmos com segurança a diferente senhorio<br />
aonde nos demos por seguros. Aonde o perpétuo temor <strong>da</strong> justiça nos não<br />
inquiete, nem a contínua presença de inimigos poderosos nos perturbe; aonde<br />
possamos respirar <strong>do</strong> oneroso gravame de seus clamores e <strong>da</strong> infausta<br />
moléstia de sua intolerável perseguição. É o ódio <strong>do</strong>s poderosos ofendi<strong>do</strong>s a<br />
quem, diz Cícero 1106 , não podem resistir to<strong>da</strong>s as riquezas por maiores que<br />
sejam; porque com se despenderem to<strong>da</strong>s, não costuma diminuir-se o intenso<br />
<strong>do</strong> aborrecimento, antes como <strong>da</strong> hidra se multiplicam ca<strong>da</strong> dia novas cabeças<br />
ao infesto de perseguir ou em razão <strong>do</strong> parentesco, ou por empenhos <strong>da</strong><br />
pretensão.<br />
É a irmã <strong>do</strong> defunto Octávio moça e a quem dizem passa o morga<strong>do</strong> por<br />
não haver nele cláusula que <strong>da</strong> sucessão a exclua; e como fica tão rica e bem<br />
Dem., in Olynth.<br />
Eurip., in Hyppol.<br />
Cicer., 2. De offic.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1025<br />
<strong>do</strong>ta<strong>da</strong>, quantos pretendentes houver a seu casamento intentarão merecê-la<br />
com perseguir-nos, mostran<strong>do</strong> mais obséquios ao pretender os que em nosso<br />
<strong>da</strong>no se mostrarem mais empenha<strong>do</strong>s, fican<strong>do</strong> sen<strong>do</strong> nossas vi<strong>da</strong>s o interesse<br />
de poderem conseguir seu casamento; e sen<strong>do</strong> ela o prémio a que aspiram,<br />
seremos nós a fronteira em que a mereçam, intentan<strong>do</strong> fazerem serviços ou <strong>da</strong><br />
vingança, ou <strong>do</strong> castigo. Suposto pois, senhores, que o assistir em Bolonha<br />
não convém por to<strong>do</strong>s os motivos, parecia-me a mim, por não se exporem as<br />
vi<strong>da</strong>s ao gravame de um infortúnio a tempo que não possa remediar-se, que<br />
pois em Bolonha não há bens, possessões, nem ren<strong>da</strong>s que obriguem, era<br />
necessário ausentar <strong>do</strong> lugar em que estamos pelas razões e fun<strong>da</strong>mentos que<br />
aponta<strong>do</strong> tenho.<br />
Para o senhor Frederico voltar a Módena será incorrer de novo nas<br />
moléstias de que se retirou para evitá-las, e diz Plínio 1107 que é infelice<br />
repetição cair no próprio perigo de que ausentar-se pretende, quem se retirou<br />
para evitá-lo. Assim era meu parecer que, com o segre<strong>do</strong> e cautela possível, o<br />
senhor Frederico com to<strong>da</strong> a sua casa se mu<strong>da</strong>ssem para Cesena, minha<br />
pátria, aonde eu e Feliciano, meu cunha<strong>do</strong>, somos os principais como cabeças<br />
<strong>do</strong>s Martelinos e Tibertos, que são as famílias mais poderosas e respeita<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de e às quais se reduz to<strong>do</strong> o séquito dela. É a ci<strong>da</strong>de mui populosa, nos<br />
edifícios nobre, nos ares sadia, nos campos muito fértil, no sítio agradável e<br />
vistosa, como sabe o senhor Roberto, que já nela esteve. Nesta ci<strong>da</strong>de fica o<br />
senhor Carlos seguro e o senhor Frederico isento <strong>da</strong>s opressões <strong>do</strong> senhorio<br />
de Bolonha; e quan<strong>do</strong> os pais ou parentes <strong>do</strong> morto quisessem lá seguir a<br />
acusação de sua morte, seria com tanto risco seu que não me persua<strong>do</strong> que<br />
prosseguissem tal litígio, porque os alentos que em Bolonha mostram não lhes<br />
assistirão em Cesena. Nela tu<strong>do</strong> estará à disposição de vosso gosto, porque<br />
em Bolonha os que podem mais são inimigos e em Cesena tereis to<strong>do</strong>s os<br />
grandes por defensores a quem o povo segue; e assim ficareis nos grandes e<br />
pequenos ten<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s.<br />
Se se aceitar este meu arbítrio que no tempo presente me parece<br />
acerta<strong>do</strong> e ain<strong>da</strong> precisamente necessário à segurança <strong>do</strong> conflito em que nos<br />
vemos, eu me parto antes que amanheça a Cesena, aonde em chegan<strong>do</strong><br />
Plin. Jun., Lib. 3.
1026 Padre Mateus Ribeiro<br />
procurarei as casas mais nobres para que estejam prepara<strong>da</strong>s como convém<br />
para receber-vos, e ficará ao cui<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong> senhor Roberto, meu singular amigo,<br />
o avisar-vos <strong>do</strong> tempo mais oportuno e <strong>da</strong> ocasião mais cómo<strong>da</strong> para se<br />
executar esta mu<strong>da</strong>nça e acompanhar-vos nela, pois sabe bem os caminhos<br />
de Cesena; e quan<strong>do</strong> nela estiverdes, corra por minha conta tu<strong>do</strong>, que eu me<br />
empenho a desfazer to<strong>da</strong>s estas trovoa<strong>da</strong>s e ameaços que aqui prognosticam<br />
tempestades rigorosas de vinganças e castigos: porque aqui os contrários<br />
podem muito e fora <strong>da</strong>qui serão poucos e na<strong>da</strong> podem.<br />
Com isto dei fim à minha proposta, que to<strong>do</strong>s aprovaram por acerta<strong>da</strong> e<br />
ao tempo a mais útil e conveniente; porque como o temor os trazia tão<br />
pensativos, pouco repara um coração <strong>do</strong>s receios combati<strong>do</strong> em fazer eleição<br />
<strong>do</strong> que mais seguro parece, diz Euripides 1108 . Também obrou muito nesta<br />
resolução Roberto com lhes propor a evidência <strong>do</strong>s perigos que <strong>da</strong> assistência<br />
em Bolonha podiam ocasionar-se e em confirmar a segurança com que podiam<br />
viver em Cesena, ci<strong>da</strong>de deliciosa e abun<strong>da</strong>nte, aonde tu<strong>do</strong> a Feliciano, meu<br />
cunha<strong>do</strong>, obedecia. Finalmente concor<strong>da</strong>ram to<strong>do</strong>s em a mu<strong>da</strong>nça para<br />
Cesena, pois Bolonha lhes havia si<strong>do</strong> tão contrária e de que já não podiam<br />
nem esperar felici<strong>da</strong>de, nem prometer-se segurança alguma. Empenhou-se<br />
Roberto a levá-los a Cesena com to<strong>do</strong> o segre<strong>do</strong> possível, tanto que as feri<strong>da</strong>s<br />
de Carlos permitissem poder ir em liteira nesta jorna<strong>da</strong>. Assim o resolveram<br />
Frederico e Carlos, como os mais interessa<strong>do</strong>s neste retiro, e assim o<br />
aprovaram Constantino, Fenisa e sua mãe, desejan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s de se verem já<br />
fora de Bolonha e livres <strong>do</strong> temor que os oprimia. Pediram encareci<strong>da</strong>mente a<br />
Roberto que de noite os avisasse <strong>do</strong> que fazer deviam, por de dia não motivar<br />
suspeitas, o que ele prometeu fazer com a cautela possível. E porque passava<br />
já <strong>da</strong>s duas horas depois <strong>da</strong> meia-noite, e eu havia de partir-me para Cesena<br />
antes que os primeiros rasgos <strong>da</strong> manhã descobrir-me pudessem, me despedi<br />
de Fenisa, que se mostrou sau<strong>do</strong>sa, encomen<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-me que lhes procurasse<br />
em Cesena as casas que fossem as mais vistosas e alegres que achar-se<br />
pudessem e as mais vizinhas às em que minha mãe assistia, pois iam para<br />
terra alheia, leva<strong>do</strong>s de seus pesares. Assomaram-se as lágrimas a seus<br />
fermosos olhos, ain<strong>da</strong> que não rasgaram as cortinas de suas luzes, porque não<br />
Eurip., in Phœnis.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1027<br />
parecesse que tinha a aurora saí<strong>do</strong> antes de tempo, derraman<strong>do</strong> aljôfar sobre<br />
as mais belas rosas.<br />
Prometi fazer excessos em Cesena para que tu<strong>do</strong> lhe desse agra<strong>do</strong> em<br />
seu desejo, com que eu e Roberto nos despedimos e chegámos a sua casa<br />
sem acharmos encontro em que reparar pudéssemos. Deu-me Roberto de<br />
<strong>do</strong>us cavalos que tinha o mais ligeiro para a jorna<strong>da</strong>, com boas pistolas<br />
reforça<strong>da</strong>s nos coldres, carreguei a clavina com balas <strong>do</strong>bra<strong>da</strong>s, ofereceu-me<br />
to<strong>do</strong> o dinheiro que levar quisesse, o que eu não aceitei, porque para tão breve<br />
jorna<strong>da</strong> estava bastantemente provi<strong>do</strong>, e despedin<strong>do</strong>-me de Lívia, sua esposa,<br />
lhe pedi quisesse visitar a Fenisa e a sua mãe, o que ela me prometeu que<br />
faria e que as acompanharia quan<strong>do</strong> partissem para Cesena, pelos desejos<br />
grandes que tinha de ver a Florisela, minha irmã, a quem tanto estimavam suas<br />
memórias. A Roberto encomendei o segre<strong>do</strong> e o cui<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça de<br />
Frederico com sua casa.<br />
E com isto despedin<strong>do</strong>-me, montei no cavalo e me parti de Bolonha para<br />
a não tornar a ver em minha vi<strong>da</strong>. Serviram-me de companhia as contínuas<br />
sau<strong>da</strong>des que <strong>da</strong> vista de Fenisa levava, assistência penosa e socie<strong>da</strong>de<br />
onerosa para quem ama como eu a amava: martírio <strong>do</strong>s olhos que não vem o<br />
que a memória jamais cessa de representar ao desejo; impossível logro <strong>da</strong><br />
vista; batalha repeti<strong>da</strong> <strong>do</strong> coração que quer ter presente o objecto que o<br />
combate, o que as distância não permitem, cortan<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> ao remédio. Só me<br />
serviam de alívio no gravame desta ausência as esperanças de ver de assento<br />
em Cesena a Fenisa, que era o júbilo aplaudi<strong>do</strong>, o espírito vital que alentava<br />
meu coração e o centro em que só admitia descanso meu cui<strong>da</strong><strong>do</strong>; que a não<br />
a<strong>do</strong>çarem as esperanças, diz Cícero 1109 , o gravame <strong>da</strong>s moléstias e riscos<br />
presentes, mal se sofreriam as moléstias e perigos, sen<strong>do</strong> tão certos e o alívio<br />
<strong>da</strong>s esperanças duvi<strong>do</strong>so.<br />
Cap. XVI.<br />
Em que Lisar<strong>do</strong> refere o que lhe sucedeu no caminho de Cesena<br />
Cie, in Catil.
1028 Padre Mateus Ribeiro<br />
Caminhei com tal veloci<strong>da</strong>de por sair <strong>do</strong> senhorio de Bolonha, aonde o<br />
perigo de poder ser preso era tão provável, desvian<strong>do</strong>-me sempre <strong>da</strong>s estra<strong>da</strong>s<br />
segui<strong>da</strong>s por diferentes rodeios e atalhos que eu bem sabia (que foi sempre o<br />
temor o mais destro a<strong>da</strong>il para investigar novos caminhos), que quan<strong>do</strong> a<br />
primeira luz <strong>da</strong> manhã rompeu o cordão <strong>da</strong>s trevas em que a noite se defendia<br />
<strong>do</strong>s radiantes assaltos <strong>do</strong> dia, já eu divisava os altos muros e baluartes <strong>do</strong><br />
soberbo castelo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Imola, com quem Bolonha divide a jurisdição e<br />
parte o senhorio. Alegre em me considerar tão vizinho a lugar seguro em que<br />
pudessem ter férias meus receios <strong>do</strong>s sobressaltos que passa<strong>do</strong> tinha e<br />
respirar <strong>do</strong> apressa<strong>do</strong> caminho que levava, caminhei para a ci<strong>da</strong>de, na qual<br />
tinha um particular amigo que se chamava Bonifácio, morga<strong>do</strong> de bastante<br />
ren<strong>da</strong>, mancebo de muitas pren<strong>da</strong>s, que vivia em companhia de Hortênsia, sua<br />
mãe viúva, e era <strong>da</strong>s ilustres famílias <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Imola e bem quisto pelo<br />
muito cortês que para com to<strong>do</strong>s se mostrava, sen<strong>do</strong> a cortesia urbana<br />
emprego que sem risco no agra<strong>do</strong> universal rende muito. Daqui veio a dizer<br />
Cícero 1110 que era uma ci<strong>da</strong>de campo aberto para adquirir o louvor de seus<br />
patrícios, quem sabe conhecer a benevolência e cortesia de tratá-los.<br />
Era Bonifácio, digo, de to<strong>do</strong>s estima<strong>do</strong> porque sabia discretamente fazer<br />
estimação de to<strong>do</strong>s e a to<strong>do</strong>s favorecia no que seu valimento alcançava,<br />
segun<strong>do</strong> o parecer sentencioso de Séneca 1111 , que para uma pessoa viver bem<br />
para si, é necessário viver também para os outros, <strong>do</strong>nde veio a dizer<br />
Cícero 1112 que o melhor assunto <strong>da</strong> fortuna era o poder auxiliar e favorecer aos<br />
outros. Tal era Bonifácio, que em Bolonha tinha estu<strong>da</strong><strong>do</strong> alguns anos, aonde<br />
eu o conheci e tratei. Festejou minha vin<strong>da</strong>, referi-lhe os trágicos anúncios <strong>da</strong><br />
causa de meu retiro e total deixação de meus estu<strong>do</strong>s, e ele se mostrou em<br />
parte pesaroso de me ver desterra<strong>do</strong> e em parte alegre de ver-me em<br />
liber<strong>da</strong>de, que não era limita<strong>da</strong> ventura o livrar-me de ser preso, ten<strong>do</strong><br />
contrários tão poderosos e a justiça tão rui<strong>do</strong>sa com tropas a buscar-me.<br />
- Porém, Lisar<strong>do</strong> amigo (prosseguiu ele), to<strong>da</strong>s vossas moléstias são<br />
mui entrínsecas, se se comparam com as interiores que eu padeço; e porque<br />
1110 Cicer., Phil. 4.<br />
1111 Senec, Epist. 43.<br />
1112 Cicer., Pro Marc.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1029<br />
conheçais que quan<strong>do</strong> eu publico a pena que sinto excede já os limites de<br />
tolerar-se, passan<strong>do</strong> as raias <strong>do</strong> sofrimento, quero com manifestá-la que sejais<br />
árbitro de minha aflição, para que julgueis se é poderosa a causa que me<br />
obriga aos pesares que me atormentam e juntamente me aconselheis o<br />
remédio que siga, se pode admitir minha pena remédio.<br />
Haverá perto de ano e meio que <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Ferrara se mu<strong>do</strong>u para<br />
esta de Imola a ser nela mora<strong>do</strong>r com sua casa e família um fi<strong>da</strong>lgo que se<br />
chama Salviano com sua mulher e uma filha que se chama Doroteia, com<br />
extremos fermosa. Pelo atributo <strong>da</strong> fermosura, nenhuma mais bela; se pelo <strong>do</strong><br />
aviso, nenhuma tão discreta; se pelo brioso, nenhuma que eu visse mais<br />
<strong>do</strong>nairosa; e pelo inconstante, nenhuma mais ingrata. Que mal condiz a<br />
condição com o delicioso <strong>da</strong> vista, pois se com esta cativa, com a inconstância<br />
mata. Que venturoso fora eu se no rosto lhe debuxara a natureza a ingratidão,<br />
ou neste se escondera a fermosura, para que os olhos não se enganassem<br />
com o belo ou a vontade não se rendesse com o esquivo; porque a ingratidão<br />
de si não é amável e a fermosura de si não é aborrecível.<br />
É Doroteia na perfeição tão cabal que é sua vista para os corações o<br />
petar<strong>do</strong> mais reforça<strong>do</strong> e para os olhos o veneno que sem ruí<strong>do</strong> mata. To<strong>do</strong>s<br />
fogem <strong>da</strong> cousa venenosa com temor de morrerem, como <strong>do</strong> áspide, <strong>da</strong> víbora,<br />
<strong>do</strong> basilisco e <strong>da</strong> serpente, em quem a natureza depositou tantas mortes,<br />
quantos venenos epilogou em seus toques tantos mortais sintomas; e com ser<br />
tão arrisca<strong>da</strong> <strong>da</strong> fermosura a vista, ninguém foge de seus encontros, nem de<br />
seus perigos se retira. Fui eu o primeiro que na vista de Doroteia experimentei<br />
o veneno, porque não devia desenganos às lições <strong>da</strong> experiência em que<br />
pudesse aprender cautelas minha ignorância. Empenhei-me em amá-la,<br />
desvelei-me em querê-la, apurei-me em servi-la, escrevi-lhe e tive respostas<br />
em que mostrava desempenhos de seu grande juízo; que aspirava meu desejo<br />
a pedi-la a seu pai por esposa, conhecen<strong>do</strong> que em alcançar este favor, subia<br />
minha ventura ao sólio mais altivo a que aspirar podia minha esperança.<br />
Navegava meu cui<strong>da</strong><strong>do</strong> sem cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, se na derrota <strong>do</strong> amor houvera<br />
bonança segura, porque o que pende <strong>da</strong> vontade alheia, sempre vai arrisca<strong>do</strong><br />
na perseverança. Mudável é a condição <strong>da</strong> mulher, disse Virgílio 1113 , pois não<br />
1113 Virg., /En. 4.
1030 Padre Mateus Ribeiro<br />
dá abona<strong>do</strong>s fia<strong>do</strong>res à firmeza. Perseverou esta em Doroteia enquanto só de<br />
mim se viu queri<strong>da</strong>, foi constante enquanto de outro mais poderoso se não viu<br />
ama<strong>da</strong> e por fim mostrou ser sublunar na enti<strong>da</strong>de quem nos visos <strong>da</strong> beleza<br />
tinha as aparências de celeste. Há nesta ci<strong>da</strong>de um mancebo morga<strong>do</strong>, muito<br />
rico e poderoso, que se chama Hortênsio, <strong>do</strong> solar mais ilustre e antigo dela, a<br />
quem a maior parte <strong>do</strong>s lavra<strong>do</strong>res destes montes são pensionários nas ren<strong>da</strong>s<br />
copiosas que lhe pagam. É filho único de uma senhora viúva que se chama<br />
Jacinta, a quem pela fi<strong>da</strong>lguia e riqueza to<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de respeita e estima em<br />
muito. É Hortênsio mancebo de flori<strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, na pessoa mui galã, no esta<strong>do</strong><br />
com que se trata majestoso e que, a tomar posse de outro morga<strong>do</strong> que de um<br />
tio seu her<strong>da</strong>ra, havia <strong>do</strong>us anos que estava em Florença quan<strong>do</strong> Doroteia com<br />
seus pais veio a Imola. Viu na igreja a Doroteia, por desgraça minha, e foi dela<br />
com atenção visto, perigo grande <strong>da</strong> firmeza quan<strong>do</strong> se repete a intenção e se<br />
multiplica a curiosi<strong>da</strong>de que franqueiam os olhos, pois com se pintar o amor<br />
cego, é certo que pelos olhos entra no coração.<br />
Empenhou-se Hortênsio em servi-la, porque se desvelou em amá-la; e<br />
consideran<strong>do</strong> ela poder ter nele avantaja<strong>do</strong> esposo na riqueza e no esta<strong>do</strong>,<br />
manifestou-me ser de Hortênsio ama<strong>da</strong>, porque faz a beleza razão de esta<strong>do</strong><br />
de render a muitos, mas encobriu-me que ela amava, por não padecer<br />
censuras na firmeza que eu tão confia<strong>do</strong> nela presumia. Quis picar-me com o<br />
novo opositor, não sei se por obrigar-me a que mais brevemente a seus pais<br />
por esposa a pedisse, ou para desenganar-me de pretendê-la. Com este<br />
anúncio desanimou minha confiança, temeu naufrágio minha ventura que eu<br />
qualificava tão propícia, igualaram os ciúmes com meu amor, que nunca se dão<br />
com pouco amor muitos ciúmes; culpei-a de inconstante, censurei-a de<br />
mudável, mostrei-me ressenti<strong>do</strong> em não continuar o vê-la, nem escrever-lhe, e<br />
foi esta diversão a ruína de to<strong>da</strong> minha esperança, achan<strong>do</strong> o perigo no que<br />
considerava remédio. Como ela tinha em Hortênsio tão fino amante que com<br />
extremos a servia e com desvelos a amava, deu-se por ofendi<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> ela a<br />
culpa<strong>da</strong>, e por agrava<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> eu era o ofendi<strong>do</strong> em sua mu<strong>da</strong>nça. Fechou<br />
as portas a ver-me, retirou-se de receber papel meu por castigar-me, fez<br />
divórcio com as janelas em que de antes me assistia, não me sen<strong>do</strong> possível o<br />
poder vê-la nem por descui<strong>do</strong>, nem por cui<strong>da</strong><strong>do</strong>.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1031<br />
Considerei-me cioso e despreza<strong>do</strong>, ponderei a baixa que tinham <strong>da</strong><strong>do</strong><br />
minhas fugitivas alegrias, reparei na mudável condição de Doroteia e que se<br />
Quintiliano 1114 disse que a varie<strong>da</strong>de era agradável, mas no amor é nociva. Se<br />
escrevia a Doroteia, não aceitava os escritos; se pretendia falar-lhe, não<br />
permitia ocasião de ouvir-me; se procurava vê-la, não aparecia, não sen<strong>do</strong><br />
poderosa a repetição <strong>da</strong>s diligências para vencerem os desvios em que bem<br />
manifestava quanto de minhas finezas esqueci<strong>da</strong> vivia, empenha<strong>da</strong> em outro<br />
querer em que só Hortênsio era lembra<strong>do</strong> e eu com tanto amar aborreci<strong>do</strong>.<br />
Quem dissera que tal ingratidão se disfarçava em tão belo rosto e tanta<br />
mu<strong>da</strong>nça se ocultava em tão rara fermosura? Oh nunca Salviano de Ferrara a<br />
esta ci<strong>da</strong>de viera! Nunca meus olhos a Doroteia viram, para sentir minha alma<br />
tantos pesares e padecer meu coração mágoas tão indizíveis! Desejo esquecê-<br />
la e não o sofre a <strong>do</strong>r, procuro olvidá-la e não o permite a ingratidão, pois ten<strong>do</strong><br />
esta tão presente, também o fica a causa, e quem se lembra <strong>do</strong> agravo mal<br />
pode esquecer-se <strong>do</strong> ofensor. Sofro juntamente ciúmes, ingratidões e<br />
desprezos, e não sei eu que maiores martírios podia investigar a cruel<strong>da</strong>de<br />
para atormentar!<br />
O que nunca foi ama<strong>do</strong> não dá motivos à <strong>do</strong>r quan<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong>, pois em<br />
tanto se avalia a per<strong>da</strong>, em quanto se pondera a estimação: julgo a Doroteia<br />
por perdi<strong>da</strong>, depois de tão ama<strong>da</strong>, e é tão excessiva minha pena como foi sem<br />
paralelos meu amor. Remonta-se Doroteia de ver-me, de ouvir-me e de falar-<br />
me; e como ao proibi<strong>do</strong> mais se empenha o desejo, na mesma desculpa<br />
encontro a <strong>do</strong>r e na própria proibição acho o tormento. Com suspeitas<br />
improváveis, disse Terêncio 1115 , e com receios tími<strong>do</strong>s pode viver um amante,<br />
porque o mesmo querer de tu<strong>do</strong> desconfia; porém quan<strong>do</strong> as suspeitas e os<br />
receios chegam a ser ciúmes declara<strong>do</strong>s e ofensas conheci<strong>da</strong>s, ficou sen<strong>do</strong><br />
infausto cadáver o que de antes era amor, não <strong>da</strong>n<strong>do</strong> quartel de vi<strong>da</strong> às finezas<br />
que de antes existiam, porque tu<strong>do</strong> fica morto.<br />
Tenho, amigo Lisar<strong>do</strong>, manifesto meu sentimento, os pesares que me<br />
oprimem, os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s que me atormentam, a impaciência que me desvela, a<br />
<strong>do</strong>r que me combate, e ain<strong>da</strong> de tu<strong>do</strong> disse o menos, deixan<strong>do</strong> em silêncio o<br />
1114 Quint., Lib. 1.<br />
1115 Ter., m And.
1032 Padre Mateus Ribeiro<br />
mais, pois limites tem a pena quan<strong>do</strong> to<strong>da</strong> junta nas palavras cabe. Peço-vos<br />
que me aconselheis como amigo o que farei nesta aflição que padeço, que eu,<br />
como quem a sofre, confesso que por mais que discurso nem lhe descubro<br />
remédio, nem lhe encontro alivio. Só quem está no empório seguro <strong>da</strong> terra vê<br />
com sossego as tempestades <strong>do</strong> mar: quem no frágil de um baixel engolfa<strong>do</strong><br />
nas on<strong>da</strong>s com os ventos combate, com procurar o remédio, raras vezes com o<br />
remédio encontra; porque os senti<strong>do</strong>s impedi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> temor, o discurso diverti<strong>do</strong><br />
com o susto, o juízo vacilante com a mágoa presente, aonde imagina que<br />
acerta, muitas vezes periga.<br />
Cap. XVII.<br />
Em que Lisar<strong>do</strong> refere os conselhos que deu a Bonifácio e como ambos se<br />
partiram para Cesena<br />
Calou Bonifácio na locução de suas mágoas, mas não no sentimento de<br />
suas tristezas, porque as palavras tinham as raízes na voz, porém as tristezas<br />
tinham a origem no coração, a quem eu respondi assim:<br />
- Na ver<strong>da</strong>de, Bonifácio amigo, que me admiro de ver-vos tão<br />
implacavelmente pesaroso por cousas que podem ter remédio facilmente. Há<br />
remédios que consistem na brevi<strong>da</strong>de, como escreve Quinto Cúrcio 1116 , e<br />
outros que pendem <strong>do</strong>s vagares, como diz Euripides 1117 . Há alguns que na<br />
celeri<strong>da</strong>de <strong>do</strong> reparo sabem desviar a tirania <strong>do</strong> golpe e há outros que deixam<br />
embotar os fios <strong>da</strong> espa<strong>da</strong> inimiga no que importa menos, para que cortar não<br />
possa, quan<strong>do</strong> importa mais. Encarecestes de Doroteia os aplausos <strong>da</strong> beleza,<br />
porque a vistes, mas a firmeza não a experimentastes. Considerastes-vos nas<br />
lisonjas de que éreis ama<strong>do</strong> e não reparastes em que podia mu<strong>da</strong>r-se com o<br />
tempo a aura <strong>do</strong> favor, não sen<strong>do</strong> a vontade humana base tão segura, nem<br />
fun<strong>da</strong>mento tão sóli<strong>do</strong> para nela se levantarem edifícios duráveis, como diz<br />
Ausónio 1118 e como escreve Plínio. Queixais-vos <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça: não sei se foi<br />
1116 Quint. Curt.,/.*. 6.<br />
1117 Euripid., in Here. fur.<br />
1118 Auson., inEg/.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1033<br />
excesso de mal sofri<strong>do</strong>. Pois por não se chegar a uma quebra descoberta,<br />
parece que se podia dissimular com uma livian<strong>da</strong>de aparente e que ofende<br />
pouco. É o imperioso muitas vezes aborreci<strong>do</strong>, pudéreis aceitar qualquer<br />
desculpa de Doroteia, pois estava senhora de seu alvedrio, que talvez com<br />
esta se acautelara quem afirmava que vos queria.<br />
Nunca se deve romper com a pessoa a quem depois haveis de rogar,<br />
porque sobre a quebra ficam os rogos à discrição de não serem admiti<strong>do</strong>s; e o<br />
que se rejeitou por desculpa, veio a declarar-se por ofensa. Dizeis que está<br />
Doroteia empenha<strong>da</strong> com Hortênsio: talvez que o repeti<strong>do</strong> de vossa queixa<br />
veio a ser causa de sua resolução, pois nunca chegaria a declarar-se por<br />
amante de vosso competi<strong>do</strong>r, se primeiro se não mostrara de vossas<br />
desconfianças ofendi<strong>da</strong>; queren<strong>do</strong> vingar-se com a ver<strong>da</strong>de <strong>do</strong> que só parava<br />
em aparentes presunções. São as mulheres, diz Juvenal 1119 , vingativas, e quis<br />
Doroteia com o rigor <strong>da</strong> vingança acreditar-se de não ser culpa<strong>da</strong>, mostran<strong>do</strong><br />
que a injustiça de vosso agravo não pedia menor castigo. Nunca foi prudência<br />
apurar tanto o sofrimento que chegue a romper em desesperação. Quisestes<br />
replicar tanto às desculpas que as que nela o pareciam, passaram a vinganças,<br />
sen<strong>do</strong> desgraça que a que culpáveis de ofensora viesse a vestir-se de<br />
ofendi<strong>da</strong>, e que pon<strong>do</strong> à parte as desculpas, se mostrasse empenha<strong>da</strong> nas<br />
vinganças.<br />
Pudéreis <strong>da</strong>r-vos por satisfeito se Doroteia confessava que vos amava,<br />
pois quem deveras ama, não ofende, e mais aspiran<strong>do</strong> em ter em vós esposo,<br />
que é carta de seguro para evitar ofensas, a que pretende casamento que tanto<br />
lhe competia; e suposto que vosso competi<strong>do</strong>r se empenhasse em querê-la e<br />
servi-la sen<strong>do</strong> mais rico, coração que está ocupa<strong>do</strong> não recebe novo mora<strong>do</strong>r,<br />
e no tribunal <strong>do</strong> gosto não preferem as riquezas, nem muitas vezes se aceita o<br />
que julga o discurso por melhor. Enfim o passa<strong>do</strong> já não tem remédio e para<br />
sol<strong>da</strong>r-se um erro, muitos acertos são necessários, e talvez não aproveitam por<br />
chegarem tarde. Bebestes o veneno <strong>do</strong>s ciúmes arroja<strong>da</strong>mente: mortal era a<br />
bebi<strong>da</strong>, venenoso o trago; declinou seu rigor em deixar-vos tristes, não vos<br />
admireis, que pudera ser pior. Pedis-me conselho para o remédio, desejara eu<br />
acertar a dá-lo, mas direi o que enten<strong>do</strong> nesta matéria.<br />
Juv., Satyr. 6.
1034 Padre Mateus Ribeiro<br />
Dous remédios considero para vosso alívio na tristeza que manifestais e<br />
eu conheço: um é breve e outro mais vagaroso. O breve é que pois Salviano, o<br />
pai de Doroteia, é tão fi<strong>da</strong>lgo como dizeis, que lhe peçais a sua filha para<br />
esposa, que ain<strong>da</strong> que não seja rico, a ingenui<strong>da</strong>de <strong>do</strong> solar, como disse<br />
Plutarco 1120 , iguala com to<strong>da</strong>s as riquezas. E sen<strong>do</strong> tão fermosa, a fermosura<br />
para to<strong>da</strong>s as grandezas habilita. É moça na i<strong>da</strong>de, que é a melhor parte <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>, como diz Demóstenes 1121 . É discreta, como afirmais, e um bom juízo,<br />
como diz Aristóteles 1122 , é <strong>do</strong>m superior, e sobretu<strong>do</strong> manifestais o muito que<br />
lhe quereis, que é ora<strong>do</strong>r mais eloquente para persuadir nesta eleição. Com a<br />
pedirdes a seu pai por esposa, desterrais os sentimentos, assegurais a<br />
esperança, remontais os temores, impedis a vosso competi<strong>do</strong>r a pretensão,<br />
encontrais-lhe as auras favoráveis <strong>da</strong> ventura com que navega, serenais a<br />
tempestade <strong>do</strong>s ciúmes que vos afligem, que é intolerável pensão o viver em<br />
desconfianças. Nem eu me persua<strong>do</strong> que vós com diferente intento menos que<br />
para serdes seu esposo a servísseis, sen<strong>do</strong> ela no nascimento tão ilustre,<br />
porque o fi<strong>da</strong>lgo de solar nunca aspira a desaires de pun<strong>do</strong>nor, como diz<br />
Euripides, que possam purpurizar o rosto pelo indecoroso <strong>da</strong>s acções<br />
cometi<strong>da</strong>s em que o brioso se despenhasse. Que de outro seja ama<strong>da</strong>, atributo<br />
é <strong>da</strong> fermosura: que assim como o sol nasce para de to<strong>do</strong>s ser visto, sem disso<br />
receber agravo em seus resplan<strong>do</strong>res, assim a beleza, se é grande, de muitos<br />
pode ser ama<strong>da</strong>, sem receber ofensas. Que culpa tem o sol em ser visto, se o<br />
radiante de seus resplan<strong>do</strong>res o manifestam? Que culpa em ser busca<strong>do</strong>,<br />
ama<strong>do</strong> e deseja<strong>do</strong>, se a fermosura com que se mostra <strong>do</strong>s olhos galã, <strong>da</strong>s<br />
flores delícia, <strong>do</strong>s pra<strong>do</strong>s lisonja e <strong>do</strong>s campos agra<strong>do</strong>, o fazem ser ama<strong>do</strong> e<br />
pretendi<strong>do</strong>? Sem que ele, como insensível, nem o deseje, nem o procure, nem<br />
o agradeça, nem o conheça, nem o estime.<br />
Mais glorioso triunfo será para vós o conseguirdes o logro <strong>do</strong> que muitos<br />
ficam com os desejos e impossível a possessão, deixan<strong>do</strong> frustra<strong>da</strong>s as<br />
esperanças de Hortênsio e seus desvelos, e cantan<strong>do</strong> vós a vitória quan<strong>do</strong> ele<br />
sinta seu desengano. Este remédio, amigo Bonifácio, me parecia o mais breve,<br />
11 dU P\ut, De lib. educ.<br />
1121 Dem., in Olynth.<br />
1122 Arist., Rhet.2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1035<br />
que o evitar uma pena ou uma <strong>do</strong>r é o remédio que na aflição se procura, e<br />
quanto este for mais apressa<strong>do</strong> em remediar o <strong>da</strong>no, tanto se terá em maior<br />
estima; e casan<strong>do</strong> vós com Doroteia, não só declinais a mágoa, mas lisonjeais<br />
o gosto, que fica sen<strong>do</strong> ventura que nem to<strong>do</strong>s alcançam. Passar de um<br />
extremo a outro, raras vezes se passa com segurança, porque os sujeitos em<br />
que se recebem não estão igualmente dispostos para aceitarem um e outro,<br />
como ensina Aristóteles 1123 . Só a luz não tem contrário que haja de remover<br />
para luzir, porque as trevas são privação e não contrário; e por isso apenas o<br />
primeiro crepúsculo <strong>da</strong> aurora nos horizontes <strong>do</strong> horizonte se descobre,<br />
quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o hemisfério fica luzi<strong>do</strong> e claro. Vós, Bonifácio, manifestais o<br />
maior sentimento em perderdes de Doroteia os antigos favores de escrever-vos<br />
e falar-vos e de sofrerdes hoje o esquivo de seu desdém; logo, bem se infere<br />
que se a alcançardes por esposa, conseguireis o extremo <strong>da</strong> maior alegria, se<br />
hoje vos considerais no centro <strong>da</strong> maior tristeza; e assim passareis de um a<br />
outro extremo, quan<strong>do</strong> o abrevia<strong>do</strong> deste remédio aceiteis.<br />
- Assim o confessara (respondeu Bonifácio) quan<strong>do</strong> meu sentimento<br />
pudera no esta<strong>do</strong> presente admitir este remédio; porém quis minha fortuna que<br />
dele não possa valer-me, porque sobre ciúmes que não excedem a enti<strong>da</strong>de de<br />
suspeitas imaginárias, representações que fabrica a fantasia, receios que<br />
origina o querer, não se asseguran<strong>do</strong> <strong>da</strong> ventura, bem se podia aspirar a<br />
casamento, porque, como diz Aristóteles 1124 , nem tu<strong>do</strong> o que parece é certo,<br />
nem tu<strong>do</strong> o que se suspeita é ver<strong>da</strong>de; e nestes termos ain<strong>da</strong> podia ter lugar o<br />
casamento de Doroteia para pedi-la a seus pais para esposa, pois aonde não<br />
se dá evidência <strong>da</strong> culpa, pode uma desculpa desterrar uma suspeita, desfazer<br />
um receio, desmentir uma aparência e condenar um engano. Porém se eu sei<br />
de certo que Hortênsio se carteia com Doroteia, que ela lhe escreve, que ele<br />
com desvelos a serve e que ela com esperanças de ser sua esposa com<br />
extremos o ama, parece-vos, Lisar<strong>do</strong>, que competia a meu pun<strong>do</strong>nor o<br />
casamento de quem me deixou por outro, empregan<strong>do</strong> nele não só os<br />
senti<strong>do</strong>s, mas to<strong>do</strong>s os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s? Destes em outro tempo era eu só o centro<br />
em que paravam, só o objecto a quem se dirigiam. Não há, como disse<br />
Arist., Top. 2.<br />
Arist., Metaph. 4.
1036 Padre Mateus Ribeiro<br />
Euripides 1125 , maior pena que sofrer a uma mulher de cuja leal<strong>da</strong>de não pode<br />
viver seguro e confia<strong>do</strong> seu mari<strong>do</strong>. Pois que confianças poderia eu ter de<br />
quem, deixan<strong>do</strong>-me a mim, se empenhou com tantas veras em amar a outro?<br />
De quem, esqueci<strong>da</strong> <strong>do</strong>s desvelos que me devia, chegou por outro a desvelar-<br />
se? Confiaria eu que as memórias de Hortênsio que ao presente lhe assistem,<br />
ao diante lhe não lembrassem? São os hábitos, como diz Aristóteles 1126 ,<br />
quali<strong>da</strong>des de difícil expulsão por serem como alunos <strong>da</strong> natureza, como o<br />
mesmo filósofo o confirma no segun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Físicos 1127 ; e como hoje Doroteia<br />
está tão habitua<strong>da</strong> a amar a Hortênsio e tão obriga<strong>da</strong> ao obsequioso de seus<br />
galanteios e serviços, quem poderia assegurar-me que quan<strong>do</strong> sucedesse o<br />
ser minha esposa, arrancaria tão facilmente <strong>da</strong> memória as lembranças que<br />
hoje a trazem tão obsequiosa a quem menos obrigações devia? Ain<strong>da</strong> quan<strong>do</strong><br />
Hortênsio vivera desta ci<strong>da</strong>de ausente, pudera a distância <strong>da</strong>r um fia<strong>do</strong>r à<br />
desconfiança de meus receios, se bem não de to<strong>do</strong> seguro, ao menos de<br />
diversão ao incessável escrúpulo de meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s; porém estan<strong>do</strong> presente<br />
não só para ver a Doroteia, mas juntamente para poder ser dela visto, sen<strong>do</strong><br />
rico, galã e tão estima<strong>do</strong>, poderia <strong>do</strong>rmir descansa<strong>do</strong> meu coração ou<br />
suspender as armas meu cioso receio? Viveria nas presenças com sustos e<br />
nas ausências com inquietos sobressaltos, duvi<strong>da</strong>n<strong>do</strong> de minha ventura por ter<br />
hoje certezas <strong>do</strong> muito que Doroteia por Hortênsio se mostra desvela<strong>da</strong>. Assim<br />
que, Lisar<strong>do</strong> amigo, esse conselho que em outro tempo pudera ser meu<br />
remédio, na ocasião presente só seria meu tormento, porque é hoje tão<br />
perseverante minha queixa como meu agravo e minha mágoa como minha<br />
ofensa.<br />
- Aprovo, Bonifácio, vosso parecer (disse eu), porque é discurso de<br />
vosso bom juízo, sen<strong>do</strong> assi que não seria empenho dificultoso mu<strong>da</strong>r Doroteia<br />
os pensamentos se convosco casa<strong>da</strong> se vira; pois quem vos deixou por outro<br />
tão facilmente, também saberia deixar a outro por vós, se fora esposa vossa,<br />
antepon<strong>do</strong> a obrigação presente ao desvelo passa<strong>do</strong>. Porém que importa o<br />
mu<strong>da</strong>r ela de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, se vós não mudáveis <strong>da</strong> desconfiança? E por muito que<br />
Eurip., in Alces.<br />
Arist., Rhet. 1.<br />
Phisic. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1037<br />
ela soubesse estimar-vos como esposo, vós não havíeis de satisfazer-vos<br />
como cioso. Que talvez a presunção <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> se mostra ingrata e<br />
desconheci<strong>da</strong> às finezas presentes, sen<strong>do</strong> tormento grande para quem bem<br />
procede o não ser cri<strong>da</strong> sua inocência por lembrarem seus passa<strong>do</strong>s<br />
descui<strong>do</strong>s. E pois este remédio não é poderoso a desterrar vossas<br />
desconfianças, nem a serenar vossos temores, o segun<strong>do</strong> remédio é que<br />
meten<strong>do</strong> em meio de vossos desgostos a ingratidão de Doroteia e o mudável<br />
de sua condição, metais juntamente terra em meio, que é o segun<strong>do</strong> remédio<br />
vagaroso, vin<strong>do</strong> estar comigo em Cesena o tempo que quiserdes, e<br />
experimentareis como a ausência é poderosa para curar os achaques que na<br />
memória tendes tão presentes. É uma ausência poderoso remédio para riscar<br />
<strong>da</strong> memória as mágoas que causa a vista. Costuma o mun<strong>do</strong> dizer: olhos que<br />
não vem, coração que não sente; porque o que não se vê, não magoa.<br />
Enquanto assistis em Imola, é certo que os olhos hão-de ver e a memória ha<br />
de lembrar e o coração há-de sentir. A vista há-de encontrar com vosso<br />
opositor, a memória há-de repetir o agravo e o coração há-de sentir o golpe e<br />
juntamente a <strong>do</strong>r. Daqui veio a dizer Homero 1128 que ca<strong>da</strong> qual era o artífice de<br />
sua própria pena e de sua <strong>do</strong>r. Porém estan<strong>do</strong> ausente, diverte-se a vista com<br />
a varie<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s horizontes, diversos campos, diferentes sujeitos, e vem a obrar<br />
o costume de não ver aos ofensores o refúgio de as penas não sentir.<br />
Com a ausência talvez periga a recor<strong>da</strong>ção <strong>do</strong> benefício recebi<strong>do</strong>,<br />
descui<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se o agradecimento por ser a ausência eclipse <strong>da</strong> lembrança, e<br />
com a própria ausência se suspende o gravame <strong>da</strong> ingratidão e o memorial<br />
oneroso <strong>da</strong> ofensa, porque tão idónea é a memória para se nela imprimirem as<br />
dívi<strong>da</strong>s de obriga<strong>da</strong> como os gravames de ofendi<strong>da</strong>; e se a distância é<br />
poderosa para pôr a risco a remuneração <strong>do</strong> bem, como não terá o vigor para<br />
apagar as recor<strong>da</strong>ções odiosas <strong>do</strong> mal? É ver<strong>da</strong>de que diz Cícero 1129 que mais<br />
facilmente se escreve na memória o sentimento <strong>do</strong> agravo <strong>do</strong> que a lembrança<br />
<strong>do</strong> benefício; porém isso se entende não mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> de lugar, porque com uma<br />
mu<strong>da</strong>nça tu<strong>do</strong> se mu<strong>da</strong>. Com a repetição se conserva a memória, pois sem o<br />
Horn., Odyss. lib. 11.<br />
Cicer., 2. De fini.
1038 Padre Mateus Ribeiro<br />
exercício com facili<strong>da</strong>de desfalece, e assim tu<strong>do</strong> o que não se vê continua<strong>do</strong><br />
vem a ser esqueci<strong>do</strong>.<br />
O olvi<strong>do</strong> <strong>da</strong>s infelici<strong>da</strong>des, diz Euripides 1130 , é mimo com que a ventura<br />
consola aos tristes; porque se sempre se lembrassem de seus infortúnios<br />
padeci<strong>do</strong>s, pouco durável seria a vi<strong>da</strong>, combati<strong>da</strong> de repeti<strong>do</strong>s sentimentos.<br />
Esta ver<strong>da</strong>de se vê experimenta<strong>da</strong> na morte <strong>da</strong>s pessoas mais ama<strong>da</strong>s e <strong>da</strong>s<br />
pren<strong>da</strong>s mais queri<strong>da</strong>s, cujo apartamento parece intolerável ao amor,<br />
parecen<strong>do</strong> impossível divórcio a união <strong>do</strong> querer. Vemos contu<strong>do</strong> que o<br />
costume forçoso de não ver, o repeti<strong>do</strong> de não ouvir, a continuação de não<br />
falar, a carência <strong>da</strong> vista que foi tão ama<strong>da</strong>, o impossível de ouvir a voz que foi<br />
tão aplaudi<strong>da</strong>, vem a causar esquecimento <strong>do</strong> amável, suspenden<strong>do</strong>-se a<br />
mágoa de perder o que parecia <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> o maior alento. Pois se ain<strong>da</strong> em o que<br />
foi mais amável obra tão poderosamente a falta <strong>da</strong> costuma<strong>da</strong> comunicação, a<br />
privação <strong>da</strong> vista, a suspensão <strong>do</strong> trato, que em breves perío<strong>do</strong>s <strong>do</strong> tempo se<br />
perde a lembrança e se apaga a impressão que tinha na memória o amor com<br />
o costume grava<strong>da</strong>, a imagem mais queri<strong>da</strong> se risca, o objecto mais estima<strong>do</strong><br />
se escurece na névoa <strong>do</strong> esquecimento; com quanta maior razão será a<br />
ausência eficaz para riscar <strong>da</strong> memória o odioso gravame <strong>da</strong> ingratidão, os<br />
desaires <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça e as ofensas recebi<strong>da</strong>s de quem tão obriga<strong>da</strong> estava a<br />
mostrar-se constante? Desmaia muitas vezes o vital com as opressões de um<br />
acidente, fazen<strong>do</strong> duvi<strong>do</strong>sas equivocações <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> com a morte; e duvi<strong>da</strong>reis<br />
que com a privação de verdes os sujeitos que vos ofendem desmaie a<br />
memória, fazen<strong>do</strong> divórcio com a estampa <strong>do</strong> que hoje vos julgais ofendi<strong>do</strong>?<br />
Não se isentan<strong>do</strong> o amor de padecer esquecimento nas ausências, como se<br />
poderá livrar o aborrecimento de nas ausências não ficar esqueci<strong>do</strong>?<br />
Menos magoa, diz Cícero 1131 , o que se ouve <strong>do</strong> que o que com os olhos<br />
se vê, porque assim como a vista é mais subtil que o ouvir, como se vê no<br />
relâmpago, que sen<strong>do</strong> parto gémeo <strong>da</strong> nuvem com o trovão, primeiro o<br />
relâmpago se vê <strong>do</strong> que o trovão se ouça, assim o que se vê dura muito na<br />
imaginação e o que se ouve chega tarde e dura menos, porque o sonoro não<br />
tem a duração como o visível. Com a distância <strong>da</strong> ausência vos livrais de ca<strong>da</strong><br />
Euripid., apud Plut.<br />
Cicer., Ad Curió.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1039<br />
dia veres maiores incentivos <strong>da</strong> <strong>do</strong>r, e não é esta ci<strong>da</strong>de campanha para nela<br />
se apurar o sofrimento, nem fronteira em que pela aflição <strong>da</strong>s mágoas se<br />
chegue a merecer. Se Doroteia com esse novo cui<strong>da</strong><strong>do</strong> vive contente,<br />
ignorância fora o viverdes vós triste. Desapaixonai o coração, serenai o<br />
discurso, desenevoai o juízo para considerardes que quem para convosco se<br />
mostrou mudável, pouco tempo para com Hortênsio se mostrará constante. Lá<br />
disse Plutarco 1132 que quem com os parentes quebra o vínculo <strong>da</strong> amizade,<br />
mal a conservará com os estranhos; porque o amor <strong>do</strong>s parentes é natural e o<br />
<strong>do</strong>s estranhos acidente, e sempre o natural é mais forçoso que o acidental, por<br />
ser este menos firme. E eu dissera que quem por outro empenho deixou o<br />
primeiro (e vós porventura o fostes), com a mesma facili<strong>da</strong>de deixará o<br />
segun<strong>do</strong>, se tiver motivos para fazê-lo. O princípio, diz Aristóteles 1133 , leva por<br />
companhia o mais dificultoso, e quan<strong>do</strong> o mais difícil chega a vencer-se, to<strong>do</strong>s<br />
os mais se facilitam. É o primeiro empenho no amar o primogénito <strong>da</strong> vontade,<br />
o morga<strong>do</strong> <strong>do</strong>s cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, o primeiro debuxo <strong>da</strong>s finezas; e quan<strong>do</strong> este chega<br />
a deixar-se, parece que com mais facili<strong>da</strong>de se deixará o segun<strong>do</strong>: porque o<br />
primeiro não teve imitação na mu<strong>da</strong>nça e o segun<strong>do</strong> teve exemplo no primeiro<br />
para poder seguir-se. E suposto que diz Cícero 1134 que a imitação e exemplo<br />
há-de ser <strong>do</strong> bem e não <strong>do</strong> mal, parecer que o Séneca 1135 seguiu, contu<strong>do</strong><br />
Aristóteles 1136 diz que mais facilmente se chega a imitar o mal <strong>do</strong> que a seguir-<br />
se o bem. Assim o trazem Quintiliano 1137 , Juvenal 1138 e outros muitos autores.<br />
E bem se viu em Nero, que ten<strong>do</strong> por mestre a prudência de Séneca, imitou os<br />
vícios deprava<strong>do</strong>s de companheiros flagiciosos, e em Cómo<strong>do</strong>, que <strong>da</strong><br />
prudência de seu pai Marco Aurélio, nem <strong>do</strong>s prudentes anciãos que lhe deixou<br />
por mestres, na<strong>da</strong> quis seguir e só imitou os execráveis e abomináveis<br />
costumes de mancebos perversos e turbulentos que lhe assistiram.<br />
Plut., De frat. bencu.<br />
Arist., Bene. 2.<br />
Cicer., 2. De offic.<br />
Senec, Epist. 11.<br />
Arist., Eth. 2.<br />
Quint., Decl. 2.<br />
Juven., Satyr. 14.
1040 Padre Mateus Ribeiro<br />
Este sentimento e mágoa que hoje vos oprime porventura que em breve<br />
tempo <strong>da</strong>rá assaltos penosos a vosso competi<strong>do</strong>r, que ninguém tem a ventura<br />
tão propícia que possa evitar com segurança os motivos de to<strong>do</strong>s os<br />
desgostos. Se Doroteia quis disfarçar a mu<strong>da</strong>nça com o rebuço de ofendi<strong>da</strong> e,<br />
por não ter desculpas que <strong>da</strong>r ao justo de vossa queixa, fechou as portas a<br />
ouvir-vos para que quem a julgar tão desabri<strong>da</strong> na reclusão a avalie por<br />
justamente agrava<strong>da</strong>, pon<strong>do</strong> em dúvi<strong>da</strong>s o juízo de quem quiser discursar a<br />
queixa, ven<strong>do</strong>-a a ela senti<strong>da</strong> e a vós queixoso, sabei adverti<strong>do</strong> perseverardes<br />
na queixa <strong>da</strong> ingratidão, e ficará a sentença <strong>do</strong> melhor juízo por vossa parte<br />
justifica<strong>da</strong>. Que maior vingança desejais de Hortênsio que empenhar-se em<br />
querer a quem faz <strong>do</strong> querer tão débil estimação? E que quan<strong>do</strong> presuma que<br />
tem avança<strong>do</strong> ao maior voo, achar as asas sem penas e as penas juntas na<br />
alma, não para com elas voar, mas só para to<strong>da</strong>s as sentir?<br />
Vinde, amigo, para Cesena, e dela como de empório seguro vereis a<br />
tormenta que outros padecem no mar proceloso de que vos livrastes: deixai<br />
que outro navegue o tormentoso <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça, que outro sulque os golfos <strong>da</strong><br />
ingratidão, que vós tereis companhia no sentir assim como a tivestes no querer.<br />
Este, Bonifácio, é o remédio mais eficaz de vossos desgostos: pordes terra de<br />
permeio <strong>da</strong> mágoa que sentis, que como não virdes a causa, logo terá<br />
interstícios a <strong>do</strong>r, riscar-se-á <strong>da</strong> memória o penoso; e com a mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong>s ares<br />
e <strong>do</strong> sítio fará mu<strong>da</strong>nça a memória para esquecer <strong>da</strong> ingratidão, porque<br />
enquanto a lembrança com o objecto <strong>do</strong> agravo presente vive mal pode o<br />
coração isentar-se de padecer. Tem Cesena os ares mais saudáveis, os<br />
horizontes alegres, nobres edifícios, os ci<strong>da</strong>dãos ricos e discretos e hoje em<br />
amizade concordes, que é <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des o maior bem, como ensina<br />
Aristóteles 1139 , sen<strong>do</strong>, como diz Plauto 1140 , as ci<strong>da</strong>des tanto mais defensáveis<br />
quanto a união e costumes de seus habita<strong>do</strong>res são melhores. Ali, com a<br />
conversação <strong>do</strong>s mais discretos, que como diz Séneca 1141 são os que devem<br />
procurar-se, divertireis os pesares, suspendereis os desgostos, ouvin<strong>do</strong> talvez<br />
Arist., Pol. 2.<br />
Plaut., in Pers.<br />
Senec, Epist. 57.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1041<br />
exemplos de outros a quem remediou a ausência e curou a distância ain<strong>da</strong> de<br />
maiores sentimentos <strong>do</strong>s que hoje padeceis.<br />
To<strong>do</strong>s os males se costumam curar no mun<strong>do</strong> com contrários<br />
medicamentos, diz o Papa S. Gregório 1142 . Causaram-se vossas mágoas com<br />
a vista, pois o remédio mais acerta<strong>do</strong> é a ausência. Consiste a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> neve na<br />
frial<strong>da</strong>de nativa com que se conserva, que se admitira calor, logo se resolvera,<br />
porque nenhuma cousa pode perpetuar-se em seu contrário, como a água e o<br />
fogo, a humi<strong>da</strong>de e a secura, o que mostra a Filosofia com evidência. Dous<br />
extremos vos causam a vista de Doroteia, que são muito amor e muita pena: o<br />
amor pelo que a louvais de fermosa, a pena pelo que a culpais de mudável.<br />
Pois se foram vossos olhos os motivos em sua vista antes de a amardes e hoje<br />
de sentirdes, pois se vos não lisonjeara a beleza, não vos empenhareis na<br />
afeição, e se não vireis a mu<strong>da</strong>nça, não vos atormentara o sentimento. Pois<br />
com esta ausência de um e outro extremo vos livrais, fazen<strong>do</strong> cláusula o querer<br />
e receben<strong>do</strong> termo o penar. Estes são os <strong>do</strong>us pólos em que se move a esfera<br />
incessável de vossa aflição: amardes a quem se mostrou tão ingrata e<br />
sentirdes as mágoas de sua mu<strong>da</strong>nça; de um e outro <strong>da</strong>no consiste o remédio<br />
na distância. O temor de pendenciar aprendeu na postila <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s recebi<strong>da</strong>s,<br />
como diz Quintiliano 1143 , que sair <strong>da</strong> pendência verten<strong>do</strong> sangue não é motivo<br />
para se desejar repetição, porque o penoso não é apeteci<strong>do</strong> e o cruento fica<br />
sempre lembra<strong>do</strong>. Não experimentastes a fortuna benévola no primeiro<br />
empenho a que vos arriscastes: feriram-vos os desaires <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça,<br />
desenganou-vos a ingratidão com sair a campanha outro mais venturoso em<br />
ser aos olhos de Doroteia mais aceito e, se não mais destro em servi-la, mais<br />
bem afortuna<strong>do</strong> em agradá-la; cortou de um golpe as raízes à esperança, que<br />
foi acabar malogra<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o merecimento, descobrin<strong>do</strong> a competência que era<br />
falsa a moe<strong>da</strong> com que Doroteia vos pagava as finezas que mostráveis em<br />
servi-la. Pois sobre conhecerdes o engano, já não seria crédito na discrição,<br />
nem abono de vosso juízo intentardes prosseguir uma porfia sem fruto e um<br />
assunto a quem desampara de to<strong>do</strong> a esperança. Não se acredita menos no<br />
militar exercício um capitão com saber <strong>da</strong>r uma batalha em tempo oportuno<br />
Greg., 23. Mor.<br />
Quint., Decl. 11.
1042 Padre Mateus Ribeiro<br />
para a vitória <strong>do</strong> que em saber uma retira<strong>da</strong> segura quan<strong>do</strong> a ocasião o<br />
persuade para declinar o perigo; porque, como diz Plutarco 1144 , o bom capitão<br />
há-de ter os olhos não somente no rosto, mas também nas costas. No rosto<br />
para ver as ocasiões de acometer, mas também para se saber retirar.<br />
A vós, Bonifácio, se vos faltou a ventura no emprender, não vos falta o<br />
juízo para vos saberdes retirar. Confessais que Doroteia pelo afectuoso<br />
divertimento de Hortênsio e mu<strong>da</strong>nça de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s não vos convém para<br />
esposa, pois indiscrição seria o padecer pelo que não haveis de possuir.<br />
Desvele-se quem há-de ser seu esposo, que grande ignorância seria sentir<br />
desgostos por pren<strong>da</strong>s alheias. Qualquer homem, diz Cícero 1145 , pode errar,<br />
mas perseverar no erro cometi<strong>do</strong> é desaire de néscios: porque o primeiro erro<br />
pode ter a desculpa em enganar-se, mas a perseverança depois <strong>do</strong> engano<br />
manifesto é fazer <strong>do</strong> erro porfia e ficar sen<strong>do</strong> antípo<strong>da</strong> <strong>do</strong>s discretos e<br />
descrédito <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de <strong>do</strong> juízo em querer insistir no que a razão está<br />
reprovan<strong>do</strong>. Nunca o engano chega a ser velho, porque no melhor o atalha o<br />
tempo com o descobrir: ain<strong>da</strong> de Doroteia alcançastes o desengano a tempo<br />
para saberdes fazer <strong>do</strong> mesmo tempo desengano; e suposto que este seja<br />
bebi<strong>da</strong> pouco gostosa no desejo, é salutífera ao coração enfermo de mágoas e<br />
opila<strong>do</strong> de ingratidões. O que na cozinha tempera as iguarias, diz<br />
Aristóteles 1146 , deseja fazê-las as mais agradáveis ao gosto; mas o médico<br />
aplica o manjar ao gosto desabri<strong>do</strong>, porém à saúde proveitoso. Assim eu na<br />
ocasião presente vos aconselho como amigo não o delicioso rnas o útil; não o<br />
agradável, mas o decoroso; não o aceito ao desejo, mas o côngruo ao<br />
desempenho <strong>do</strong> pun<strong>do</strong>nor; não o solicita<strong>do</strong> <strong>do</strong> desvelo, mas o lenitivo <strong>da</strong><br />
mágoa; e finalmente o que convém para riscardes <strong>da</strong> memória a Doroteia com<br />
a tinta de sua odiosa ingratidão, que é o pincel mais certo para riscar memórias<br />
a não mereci<strong>da</strong> ingratidão aos serviços.<br />
Ouviu-me Bonifácio com atenção o conselho que lhe <strong>da</strong>va e conheceu<br />
que de seus pesares consistia o remédio na ausência. Rendeu-me as graças<br />
<strong>do</strong> conselho e se deliberou a mu<strong>da</strong>r os ares para mu<strong>da</strong>r de penas, preparan<strong>do</strong>-<br />
Plut., in Apoph.<br />
Cicer., Phil. 2.<br />
Arist., Metaph. 5.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1043<br />
se logo para de manhã partir-se comigo para Cesena, toman<strong>do</strong> licença de sua<br />
mãe para assistir lá por alguns dias, que como não tinha outro filho e o via tão<br />
triste, e não ignorava os motivos <strong>da</strong> tristeza, estimou que em minha companhia<br />
fosse divertir-se <strong>da</strong> pena que pouco a pouco parece que o consumia. Apenas<br />
as músicas aves como isentas de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s deram salva com seu canto aos<br />
purpúreos resplan<strong>do</strong>res <strong>da</strong> aurora, rosa<strong>da</strong> na cor e brilhante nos raios, quan<strong>do</strong><br />
eu e Bonifácio montan<strong>do</strong> nos cavalos demos à ci<strong>da</strong>de despedi<strong>da</strong>, caminhan<strong>do</strong><br />
na volta de Cesena.<br />
Cap. XVIII.<br />
Como Frederico Manfre<strong>do</strong> com sua casa e família foram tira<strong>do</strong>s de Bolonha por<br />
ordem de Raimun<strong>do</strong> e trazi<strong>do</strong>s à sua quinta de Bom <strong>Porto</strong>, e <strong>do</strong> que nisso<br />
passou<br />
Com alegria caminhámos para minha pátria, suposto que os fins eram<br />
diversos, porém o contentamento desigual. Bonifácio ia alegre com o motivo de<br />
divertir seus pesares e eu por ver a minha mãe, irmã e parentes, de quem<br />
disse Euripides 1147 ser o parentesco preclara consolação e superior a to<strong>da</strong> a<br />
amizade, la juntamente alegre por me assegurar <strong>do</strong>s sustos <strong>da</strong>s tropas que me<br />
buscavam e <strong>do</strong>s parentes <strong>do</strong> defunto que não se atreveriam a buscar-me em<br />
Cesena, aonde eu me julgava por seguro. Chegámos à minha pátria nos<br />
vespertinos crepúsculos <strong>do</strong> dia, sen<strong>do</strong> de minha mãe recebi<strong>do</strong>s com festivos<br />
alvoroços e alegria, se bem acompanha<strong>da</strong> <strong>do</strong>s sobressaltos de minha<br />
inopina<strong>da</strong> vin<strong>da</strong>, sem haver avisa<strong>do</strong> dela, porque os meus cria<strong>do</strong>s com os<br />
rodeios e vagares de se emboscarem e esconderem <strong>da</strong>s tropas e <strong>da</strong> justiça,<br />
não haviam chega<strong>do</strong> a Cesena senão depois de eu estar em casa quatro dias.<br />
Dei notícias a minha mãe, irmã e cunha<strong>do</strong> de meus sucessos, que em parte<br />
com o sentimento pensionaram a alegria com que foi minha vin<strong>da</strong> festeja<strong>da</strong>;<br />
porém como me viram livre <strong>do</strong>s infortúnios que experimentar podia se por<br />
desgraça me prendessem em Bolonha, ten<strong>do</strong> partes contrárias tão vali<strong>da</strong>s,<br />
puseram à parte os duvi<strong>do</strong>sos receios aplaudin<strong>do</strong> a ventura presente em me<br />
Eurip., in And.
1044 Padre Mateus Ribeiro<br />
verem em minha pátria seguro e livre. Chegaram depois os meus cria<strong>do</strong>s, ca<strong>da</strong><br />
qual notician<strong>do</strong> os sustos de sua fugi<strong>da</strong>, os atalhos que buscaram para<br />
esconder-se, como se emboscavam de dia e caminharam de noite para se<br />
ocultarem às tropas que cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sas me seguiam, as quais viam passar de<br />
longe algumas vezes.<br />
Divulga<strong>da</strong> em Cesena a minha vin<strong>da</strong>, concorreram logo os parentes e<br />
amigos a visitar-me e a Bonifácio, sen<strong>do</strong> Feliciano, meu cunha<strong>do</strong>, o mais<br />
empenha<strong>do</strong> em festejá-lo por quem ele era e por meu respeito. Dei notícias a<br />
minha mãe, irmã e cunha<strong>do</strong> ao seguinte dia <strong>do</strong>s empenhos de Fenisa, por cuja<br />
causa tiveram origem meus infortúnios presentes e a quem sem dúvi<strong>da</strong><br />
esperava que com seus pais e irmãos por mora<strong>do</strong>ra a Cesena viesse, pelo que<br />
com eles concerta<strong>do</strong> ficava, e com meu amigo Roberto, de que minha mãe e<br />
irmã se mostraram alegres, moderan<strong>do</strong> com esta esperança o sentimento de<br />
me considerarem criminoso na morte de Octávio Bentivolhe e tantos e tão<br />
poderosos parentes por inimigos; porém como me viam haver livra<strong>do</strong><br />
venturosamente de tantos riscos e em Cesena estava seguro <strong>da</strong>s invasões <strong>da</strong><br />
justiça e <strong>do</strong>s acometimentos de seus parentes, serenaram a aflição com os<br />
desejos de verem a Fenisa e a seus pais nesta ci<strong>da</strong>de, de quem eu tantas<br />
grandezas referia e a fama <strong>da</strong>s excelências e a fermosura de Fenisa tantos<br />
encómios publicava. Tratei logo de buscar casas as mais convenientes e no<br />
mais vistoso sítio <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de para a vin<strong>da</strong> de Frederico Manfre<strong>do</strong>, que não<br />
poderia a meu parecer dilatar-se muito tempo pelo que deixávamos concerta<strong>do</strong><br />
e pelas instâncias que os pais e parentes <strong>do</strong> morto haviam de fazer para que<br />
Carlos ou seu pai fossem presos. Achei as casas em sítio salutífero e de<br />
espaçosa vista, conformes a meu desejo na grandeza, jardim, fonte de água,<br />
pomar e vergel ameno com que se enobreciam, que a se edificarem de novo<br />
parece não sairiam mais ajusta<strong>da</strong>s ao debuxo de minha vontade, nem à de<br />
quem havia de habitar nelas e que podiam clausular os acertos <strong>da</strong> melhor<br />
eleição.<br />
Bonifácio, meu hóspede e amigo, com a mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> terra, novos<br />
horizontes conhecia, novos ares com que respirava, conversação <strong>do</strong>s amigos<br />
que me buscavam, sen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mais nobres e discretos de Cesena, começava a<br />
divertir a memória de seus desgostos, que é a conversação <strong>do</strong>s discretos,
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1045<br />
como diz Séneca 1148 , alívio medicinal de to<strong>da</strong>s as mágoas. Outras vezes nos<br />
divertíamos com a caça, exercício alegre, como diz Euripides 1149 , quan<strong>do</strong> com<br />
a abundância dela se diverte a moléstia <strong>do</strong> cansaço. Outras vezes nos<br />
divertíamos com saí<strong>da</strong>s ao ameno <strong>do</strong> campo e ao sau<strong>do</strong>so <strong>do</strong> rio: ven<strong>do</strong> no<br />
campo tanta diversi<strong>da</strong>de de flores, tanta varie<strong>da</strong>de de árvores, tanta melodia<br />
<strong>da</strong>s aves; ven<strong>do</strong> no rio as on<strong>da</strong>s cristalinas como apresa<strong>da</strong>s se mostram, sem<br />
saberem para onde caminham. Só entre tantos divertimentos sentia eu o<br />
vagaroso <strong>da</strong> esperança <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça de Fenisa, como com seus pais<br />
assenta<strong>do</strong> tinha; porque depois que me apartei de Roberto não tive mais algum<br />
aviso <strong>do</strong> que podia haver sucedi<strong>do</strong>, e a um ânimo ansia<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> se representa<br />
calamitoso. Agiganta as cousas o temor, aumenta as desconfianças o receio,<br />
qualquer demora para uma desconfiança é nociva e qualquer encontro para um<br />
desejo é perigoso. Já eram passa<strong>do</strong>s trinta dias de minha assistência em<br />
Cesena, tempo em que me parecia que as feri<strong>da</strong>s de Carlos podiam <strong>da</strong>r lugar a<br />
seu retiro, não só por conveniência, mas por necessi<strong>da</strong>de de se livrar de partes<br />
tão poderosas e inexoráveis como nos pais e parentes <strong>do</strong> morto tinha,<br />
principalmente estan<strong>do</strong> as devassas de sua morte tira<strong>da</strong>s com tal rigor. Não<br />
sabia a que pudesse atribuir tanto descui<strong>do</strong> em negócio tão importante e em<br />
que era necessário empenhar-se tanto cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> chegou Roberto a<br />
Cesena, que sen<strong>do</strong> com grande alegria recebi<strong>do</strong>, que perguntan<strong>do</strong>-lhe por<br />
Lívia sua esposa, por Carlos, seus pais e por Fenisa, ele com rosto pesaroso<br />
respondeu assim:<br />
- São, amigo Lisar<strong>do</strong>, tão inconstantes os sucessos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, como diz<br />
Euripides 1150 , e a ro<strong>da</strong> sobre que a fortuna costuma pintar-se tão voltaria em<br />
seu rápi<strong>do</strong> movimento que, como diz Séneca 1151 , de hora para hora nos<br />
lisonjeia e aflige, e, como diz Tito Lívio 1152 , quanto se adquire em muito tempo,<br />
a fortuna arrebata em uma hora. Deixastes ajusta<strong>do</strong> com Frederico Manfre<strong>do</strong> e<br />
sua família de se mu<strong>da</strong>rem ocultamente para esta ci<strong>da</strong>de de Cesena antes que<br />
Senec, Epist. 75.<br />
Eu rip., in Med.<br />
Eurip., in Hyppol.<br />
Senec, Epist. 91.<br />
Tit. Liv., 3. Dec. I. 10.
1046 Padre Mateus Ribeiro<br />
a melhoria <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s em Carlos se publicasse e à notícia <strong>da</strong>s partes tão<br />
poderosas chegar pudesse, sen<strong>do</strong> este conselho para eles o mais útil e<br />
necessário e para vós o mais deseja<strong>do</strong> e oportuno. Havia eu de ser o<br />
medianeiro que interviesse nesta mu<strong>da</strong>nça para acompanhá-los no caminho, e<br />
não sabia meu desejo quan<strong>do</strong> havia de ver chega<strong>da</strong> a hora de ver a Carlos<br />
livre, entran<strong>do</strong> por esta ci<strong>da</strong>de vitorioso de haver livra<strong>do</strong> a Carlos de ser preso<br />
e a seu pai de <strong>da</strong>r à justiça exactíssima conta dele, sen<strong>do</strong>-lhe pedi<strong>da</strong>, e<br />
juntamente em trazer Fenisa a Cesena para aplaudi<strong>do</strong> assombro <strong>da</strong> maior<br />
fermosura, como já havia si<strong>do</strong> singular admiração de Módena e de Bolonha.<br />
Era este acerto para eles o maior seguro e para vós o mais felice; porém que<br />
importa a aprovação <strong>do</strong> conselho se esquerdeia a fortuna nos acertos <strong>da</strong><br />
execução? Pois o conciliar muitas vontades parece efeito mais <strong>da</strong> ventura que<br />
<strong>do</strong> ajuiza<strong>do</strong> <strong>da</strong> eleição. Solicitava eu, visitan<strong>do</strong> a Carlos e a Frederico, os<br />
aprestos desta mu<strong>da</strong>nça com a cautela possível, que eles desejavam ver<br />
executa<strong>da</strong> para verem serena sua inquietação, porque ia melhoran<strong>do</strong> Carlos<br />
<strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s, ain<strong>da</strong> que vagarosamente, e os pais <strong>do</strong> morto traziam contínuas<br />
sentinelas para o levarem à prisão em as feri<strong>da</strong>s o consentin<strong>do</strong>.<br />
Neste tempo em que com to<strong>da</strong> a cautela se ia dispon<strong>do</strong> este retiro, teve<br />
notícias Raimun<strong>do</strong> <strong>do</strong> aperto em que Carlos e seu pai se viam, por ocultos<br />
explora<strong>do</strong>res que em Bolonha tinha que de tu<strong>do</strong> <strong>da</strong>s cousas de Fenisa e seus<br />
pais o avisavam; e como <strong>do</strong> amor que lhe tinha estavam tão presentes as<br />
memórias, empenhou-se em socorrê-los, ou fosse como a vassalos <strong>do</strong> duque<br />
seu pai, pois, como diz Ovídio 1153 , é empresa de ânimo real socorrer aos<br />
aflitos, ou que o persuadisse, como imagino, o ser tão amante de Fenisa, por<br />
quem quis obrar esta fineza em testemunho de sua vontade obsequiosa.<br />
Preparou secretamente, sem que seu pai o soubesse, cinquenta sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s de<br />
cavalo <strong>da</strong>s tropas <strong>da</strong> cavalaria <strong>do</strong> duque, escolhen<strong>do</strong> os mais destemi<strong>do</strong>s,<br />
gente to<strong>da</strong> de valor para qualquer empresa, e to<strong>do</strong>s bem provi<strong>do</strong>s de armas,<br />
dizen<strong>do</strong>-lhes que queria fazer uma caça<strong>da</strong> de importância; man<strong>do</strong>u diante com<br />
outros cria<strong>do</strong>s um coche com bons cavalos e uma liteira, dizen<strong>do</strong>-lhes o<br />
esperassem uma légua antes de Bolonha, junto ao rio, no sítio que lhes<br />
declarou em segre<strong>do</strong>.<br />
Ovid., 2. De Ponto.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1047<br />
Partiu ele com Bernardino, seu secretário, com esta lustrosa cavalaria à<br />
meia-noite de Bolonha, dividin<strong>do</strong> em troços de cinco e oito sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s a cavalaria<br />
que levava, para por onde passava não <strong>da</strong>r motivo aos juízos discursarem<br />
sobre sua jorna<strong>da</strong>, levan<strong>do</strong> juntamente os seus caça<strong>do</strong>res com falcões, açores<br />
e galgos para disfarçar mais seu intento, que ele só de si e de seu secretário<br />
confiava. Chegou já quan<strong>do</strong> se punha o sol a uma légua <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Bolonha,<br />
ao sítio em que o coche e a liteira esperavam. Era o sítio solitário e nele<br />
man<strong>do</strong>u desmontar a cavalaria e descansarem <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong>, enquanto os<br />
cavalos pasciam na relva copiosa que as ribeiras <strong>do</strong> cau<strong>da</strong>loso rio produziram,<br />
man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> tirar <strong>da</strong> liteira vários refrescos que repartiu com os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
liberalmente, para os ter, quan<strong>do</strong> importasse, propícios. Passou a tarde ao<br />
senhorio <strong>da</strong> noite e despediu a seu secretário Bernardino a Bolonha com aviso<br />
a Frederico para lhe relatar em como por man<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong> duque seu pai, ten<strong>do</strong><br />
notícias <strong>do</strong> aperto em que se via, o vinha buscar, para que em <strong>da</strong>n<strong>do</strong> meia-<br />
noite o levar com to<strong>da</strong> sua família à sua quinta de Bom <strong>Porto</strong>, para que <strong>da</strong>í<br />
pudesse, quan<strong>do</strong> o chamasse, assistir a seu serviço, queren<strong>do</strong> o duque como a<br />
seu vassalo livrá-lo <strong>do</strong> evidente perigo em que o via, sen<strong>do</strong> as partes em<br />
Bolonha tão poderosas e Frederico forasteiro, referin<strong>do</strong>-lhe mais as tropas de<br />
valentes sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que para este efeito Raimun<strong>do</strong> trazia.<br />
Com este aviso de Bernardino ficou Frederico suspenso e sua mulher e<br />
filhos vários nos pareceres, pela brevi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> tempo que lhes ficava para<br />
consultarem a determinação desta mu<strong>da</strong>nça repentina. Instava Bernardino com<br />
muitas razões de conveniência que desta mu<strong>da</strong>nça se lhes seguiam, e por fim<br />
quiseram que Adriano desse seu parecer, como pessoa tão <strong>do</strong>uta, o qual falou<br />
assim:<br />
- A consulta, como ensina Aristóteles 1154 , não deve ser sobre cousas<br />
que são precisamente necessárias, nem sobre as que se julgam impossíveis. O<br />
negócio presente é tão precisamente necessário que mais necessita de<br />
apressa<strong>da</strong> execução que de conselho vagaroso. Bem disse Plutarco 1155 que o<br />
conselho pode ser logo executa<strong>do</strong> no oportuno <strong>da</strong> ocasião, porque talvez o<br />
dilata<strong>do</strong> fica sen<strong>do</strong> nocivo, quan<strong>do</strong>, se fora abrevia<strong>do</strong>, pudera ser proveitoso;<br />
Arist., Rhet. 2.<br />
Plut., De amic. & adulât.
1048 Padre Mateus Ribeiro<br />
porque quan<strong>do</strong> a oportuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ocasião se malogra, dificultosamente se<br />
restaura. É este espaço, senhores, mui breve para consultar pareceres<br />
dilata<strong>do</strong>s: só direi epiloga<strong>da</strong>mente o que sinto. O senhor Carlos Manfre<strong>do</strong> está<br />
em esta casa preso, por morte de pessoa mui principal, e seu pai obriga<strong>do</strong> a<br />
entregá-lo à justiça de Bolonha como fiel carcereiro de seu filho. Entregá-lo não<br />
convém, por não arriscar-lhe a vi<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> as partes nesta ci<strong>da</strong>de tão<br />
poderosas como sabemos e nós nela forasteiros, de quem diz Séneca 1156 que<br />
tem poucos amigos os forasteiros, porque sua habitação já não é segura, antes<br />
hoje muito arrisca<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> tantos os parentes <strong>do</strong> morto queixosos e<br />
ofendi<strong>do</strong>s. O cardeal governa<strong>do</strong>r não pode obrar o que deseja, porque o cargo<br />
que exercita não dá asas ao favor, ten<strong>do</strong> no poderoso <strong>da</strong>s partes tão valente<br />
oposição para o voo.<br />
O fim a que aspiramos é livrar ao senhor Carlos <strong>do</strong> perigo que pode<br />
correr sua vi<strong>da</strong> e a seu pai <strong>da</strong>s moléstias de uma perpétua prisão que corra<br />
parelhas com a duração <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Isto pressuposto, que meio podia achar-se<br />
mais conveniente para evitar um e outro perigo que o que temos presente?<br />
Chama-nos o duque como a seus vassalos para seu serviço, que o são estes<br />
senhores por nascimento, por homenagem e pelas ren<strong>da</strong>s e morga<strong>do</strong> que em<br />
seu senhorio possuem como feu<strong>da</strong>tários. Tem os vassalos obrigação de<br />
acudirem ao chama<strong>do</strong> de seu príncipe. Pois se o senhor duque nos chama e<br />
com tão valerosa escolta nos assegura o retiro de Bolonha, aonde nos<br />
consideramos tão arrisca<strong>do</strong>s, quanto melhor é irmos logo para o <strong>do</strong>micílio<br />
próprio <strong>do</strong> que experimentarmos os discómo<strong>do</strong>s e perigos em terras alheias?<br />
Para irmos a Cesena, como de antes se tratava, havia inconvenientes grandes,<br />
se bem os consideramos. O primeiro, o poder romper-se o segre<strong>do</strong> deste retiro<br />
com a contínua vigilância <strong>da</strong>s partes e ficar tu<strong>do</strong> frustra<strong>do</strong>, cativa a liber<strong>da</strong>de e<br />
em perigo a vi<strong>da</strong>. O segun<strong>do</strong>, em <strong>caso</strong> que para Cesena partíssemos, poder-<br />
nos seguir a justiça com tropa poderosa, ser atalha<strong>do</strong>s no caminho, de sorte<br />
que tornássemos prisioneiros a Bolonha ou se com resistência quiséssemos<br />
prosseguir a jorna<strong>da</strong> seria, multiplican<strong>do</strong> os perigos, agravar novas queixas de<br />
resistência às primeiras culpas, com que tu<strong>do</strong> ficaria em manifesta ruína. O<br />
terceiro inconveniente é o havermos de ir para terra alheia, com o discómo<strong>do</strong><br />
Senec, Ep. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1049<br />
de vivermos entre gente estranha, aonde naturalmente falta o amor que se dá<br />
entre os naturais.<br />
To<strong>da</strong> a divisão, diz Aristóteles 1157 , é causa de diversi<strong>da</strong>de nos ânimos,<br />
porque as amizades e uniões em pátria diversa com o largo discurso <strong>do</strong> tempo<br />
se conciliam. Por estes e outros discómo<strong>do</strong>s disse Cícero 1158 que o desterro <strong>da</strong><br />
pátria se <strong>da</strong>va por castigo de culpas, e pareceria ignorância escolher por<br />
vontade o que costuma <strong>da</strong>r-se por castigo aos delinquentes. Bem se tem<br />
experimenta<strong>do</strong> em Bolonha os disfavores de ser terra alheia nos perigos e<br />
discómo<strong>do</strong>s padeci<strong>do</strong>s, e assim me parece escusa<strong>do</strong> o emprender novas<br />
experiências em outras terras, quan<strong>do</strong> o meio presente é o mais seguro para<br />
não só o senhor Carlos se ver livre <strong>da</strong> prisão arrisca<strong>da</strong>, porém juntamente para<br />
lograr os favores <strong>da</strong> própria terra de seu nascimento. O que importa é ser logo<br />
o intento executa<strong>do</strong>; porque diz Euripides 1159 que Marte aborrece as dilações e<br />
Quintiliano 1160 que as dilações morosas vem a fazer talvez <strong>do</strong>s próprios<br />
remédios encontros e obstáculos <strong>da</strong>s venturas que estavam mais vizinhas.<br />
Calou Adriano e to<strong>do</strong>s aprovaram seu parecer, e despedin<strong>do</strong> a<br />
Bernardino com as graças <strong>do</strong> socorro que em tal tempo lhes trazia, começaram<br />
logo a preparar para a parti<strong>da</strong>, recolhen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> de jóias, ouro e prata, galas e<br />
vesti<strong>do</strong>s ricos, tapeçarias custosas e outras cousas de valor que em trouxas<br />
dividiram, enquanto Bernardino com excessiva veloci<strong>da</strong>de tornava com a<br />
resposta a Raimun<strong>do</strong>. Mostrou-se ele por extremo alegre de se lograr seu<br />
generoso intento, em lhe ficar Fenisa na memória desta fineza que a seu<br />
respeito fazia, livran<strong>do</strong> a seu pai e irmão em ocasião tão arrisca<strong>da</strong>.<br />
Man<strong>do</strong>u logo montar as tropas a cavalo e que o seguissem com silêncio,<br />
exortan<strong>do</strong>-os a que, se necessário fosse, se portassem nesta facção a que os<br />
levava com to<strong>do</strong> o valor, pois ia nela empenha<strong>do</strong> seu crédito, pois ele<br />
pessoalmente ia por seu capitão, o que to<strong>do</strong>s lhe prometeram. Deixou no<br />
mesmo lugar a to<strong>do</strong>s os caça<strong>do</strong>res que trazia para que nele o esperassem,<br />
porque os galgos, sabujos e açores não motivassem algum ruí<strong>do</strong>. Caminharam<br />
Arist., Pol. 5.<br />
Cicer., 4. Parad.<br />
Eurip., in Stera.<br />
Quint., Decl. 2.
1050 Padre Mateus Ribeiro<br />
apressa<strong>do</strong>s para a ci<strong>da</strong>de com to<strong>do</strong> o silêncio que a noite, sen<strong>do</strong> escura e já a<br />
horas intempestivas, favorecia, por ser já perto <strong>da</strong> meia-noite; e chegan<strong>do</strong> à<br />
entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, se adiantou com trinta cavalos, deixan<strong>do</strong> os mais a que ali<br />
esperassem seu aviso.<br />
Chegou a casa de Frederico, sen<strong>do</strong> de Frederico recebi<strong>do</strong> como filho <strong>do</strong><br />
duque de Módena, seu senhor, renden<strong>do</strong>-lhe as devi<strong>da</strong>s graças <strong>do</strong> generoso<br />
empenho em que se pusera por livrá-los; e não queren<strong>do</strong> mais dilatar-se, antes<br />
que na ci<strong>da</strong>de algum rui<strong>do</strong>so alvoroço se ouvisse, aju<strong>da</strong>n<strong>do</strong> Raimun<strong>do</strong><br />
pessoalmente e Constantino a Carlos a meter-se na liteira que trazia, por estar<br />
ain<strong>da</strong> mui debilita<strong>do</strong>, e entran<strong>do</strong> no coche Frederico com sua mulher, Fenisa e<br />
seu irmão Constantino, e carregan<strong>do</strong> os cria<strong>do</strong>s as trouxas nas bestas de<br />
serviço que em casa havia e montan<strong>do</strong> Adriano no cavalo de Carlos, à uma<br />
hora depois <strong>da</strong> meia-noite, quan<strong>do</strong> apenas a lua por an<strong>da</strong>r no decrépito <strong>da</strong> luz<br />
aparecia, saíram de Bolonha com tal silêncio que felizmente efectuaram o<br />
retiro, não consentin<strong>do</strong> Raimun<strong>do</strong> que clarim algum se tocasse, por guar<strong>da</strong>r<br />
este respeito ao cardeal governa<strong>do</strong>r que pela Igreja a governava e juntamente<br />
por não ocasionar algum estron<strong>do</strong> com que a perigo se pusesse a empresa<br />
que com tanta sagaci<strong>da</strong>de e valor principia<strong>do</strong> tinha. É a sagaci<strong>da</strong>de nas<br />
empresas meio caminho <strong>da</strong> vitória, disse Aristóteles 1161 ; sen<strong>do</strong>, como ensina<br />
Platão 1162 , a mais solércia na eleição e brevi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> tempo. Em tu<strong>do</strong> se<br />
mostrou Raimun<strong>do</strong> prudente para efectuar o que emprendia, na cautela e no<br />
valor, na solércia e no silêncio.<br />
Foram com este caminhan<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a noite e parte <strong>da</strong> manhã, e em<br />
chegan<strong>do</strong> à raia em que os senhorios de Bolonha e Módena se dividem, termo<br />
que o rio Panaro com sua corrente corta e juiz árbitro julga com letras de cristal<br />
e com margens de flores, então man<strong>do</strong>u Raimun<strong>do</strong> tocar as trombetas e com a<br />
salva <strong>do</strong>s sonoros clarins festejar o felice desempenho desta jorna<strong>da</strong>, que a ser<br />
de antes senti<strong>da</strong>, pudera ser arrisca<strong>da</strong>. Adiantou-se Bernardino a trazer <strong>do</strong>s<br />
casais circunvizinhos quanto pôde descobrir para <strong>da</strong>r com grandeza de comer<br />
a quantos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s nesta empresa assistiram, com que to<strong>do</strong>s satisfeitos<br />
ficaram. Pouco se detiveram pelos desejos que Frederico mostrava de chegar<br />
Arist., Pol. 1.<br />
Pillât., De Temp.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1051<br />
à sua quinta de Bom <strong>Porto</strong>, que não muito distante aparecia, para que Carlos<br />
descansasse <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> que apressa<strong>da</strong> trouxeram, e Raimun<strong>do</strong> expediu os<br />
caça<strong>do</strong>res para caçarem e que levassem à quinta de Frederico to<strong>da</strong> a caça que<br />
colhessem. Com isto montaram as tropas caminhan<strong>do</strong> para a quinta, que com<br />
tornea<strong>do</strong>s obeliscos e <strong>do</strong>ura<strong>da</strong>s grimpas em que o sol reverberava se<br />
descobria alterosa na vista e deliciosa nos verdes arvore<strong>do</strong>s que a cercavam, à<br />
qual chegaram às três horas depois <strong>do</strong> meio-dia.<br />
Desmontaram <strong>do</strong>s cavalos Raimun<strong>do</strong> e Bernardino e aju<strong>da</strong>ram a Carlos<br />
a sair <strong>da</strong> liteira em que vinha, que tu<strong>do</strong> nesta ocasião foram demonstrações de<br />
finezas, porque o amor de Fenisa sabia humilhar os timbres <strong>da</strong>s grandezas e a<br />
soberania <strong>da</strong>s majestades, como diz Ovídio 1163 . Quiseram Frederico e sua<br />
mulher ajoelhar-se aos pés de Raimun<strong>do</strong> para lhe renderem as graças de tão<br />
repeti<strong>da</strong>s mercês e duplica<strong>do</strong>s favores que lhes havia feito, mas ele, levan<strong>do</strong>-<br />
os nos braços, o não permitiu, oferecen<strong>do</strong>-se de novo para obrar por eles<br />
outros empenhos maiores em tu<strong>do</strong> o que seu valimento pudesse igualar com<br />
seu desejo. Fenisa, já menos esquiva, antes mais agradeci<strong>da</strong> às finezas de um<br />
príncipe tão cortês e tão amante, que bem reconhecia ela que por seu respeito<br />
obrava Raimun<strong>do</strong> tantos extremos, dizem que ao despedir-se lhe falou assim:<br />
- Estimara eu, senhor, ser tão eloquente que pudessem minhas palavras<br />
render a vossa excelência as devi<strong>da</strong>s graças <strong>da</strong>s mercês que temos recebi<strong>do</strong>,<br />
assim como sei conhecê-las para saber estimá-las. Mas esta memória ficará<br />
sempre presente em meus senti<strong>do</strong>s para desejar a vossa excelência<br />
felicíssimos anos de vi<strong>da</strong> com os aumentos que to<strong>do</strong>s seus vassalos lhe<br />
queremos.<br />
Correu o carmim mais fino a purpúrea cortina ao belo rosto ao<br />
pronunciar estas palavras, passan<strong>do</strong> de anima<strong>da</strong> açucena a parecer viva rosa,<br />
porque em to<strong>do</strong> o tempo nunca deixou de ser flor. Suspenso Raimun<strong>do</strong> na<br />
fermosura que via e nas palavras que ouvia, saíram à controvérsia <strong>do</strong>us<br />
senti<strong>do</strong>s sobre qual ficava mais venturoso: se os olhos pela beleza que com a<br />
vista logravam, se os ouvi<strong>do</strong>s pelo suave <strong>da</strong> voz que percebiam. E dizem que<br />
lhe respondeu:<br />
Ovid., 2. Metam.
1052 Padre Mateus Ribeiro<br />
- É tão pouco, discreta Fenisa, o que fiz para o que obrar desejo que<br />
mais necessito de perdão pelo pouco <strong>do</strong> que mereço agradecimento quan<strong>do</strong><br />
obrara muito; porque o render graças sobre limitações parece lisonja <strong>da</strong><br />
cortesia. Porém vivei segura que deveis muito à minha vontade e que nunca as<br />
obras poderão chegar a igualar sua grandeza.<br />
Com isto se despediu para Módena, deixan<strong>do</strong> vinte sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong> tropa<br />
em guar<strong>da</strong> <strong>da</strong> quinta, por assegurar a Carlos de alguma invasão repentina, se<br />
os parentes <strong>do</strong> morto intentassem ao descui<strong>do</strong> virem alguma noite tomar<br />
vingança dele, com que tu<strong>do</strong> ficou seguro e Carlos e seus pais de sustos e<br />
receios alivia<strong>do</strong>s, mostran<strong>do</strong>-se mui obriga<strong>do</strong>s ao generoso proceder com que<br />
Raimun<strong>do</strong> se havia empenha<strong>do</strong> a pô-los em liber<strong>da</strong>de e na sua própria quinta<br />
de Bom <strong>Porto</strong>, aonde podiam descansar de tantos sobressaltos padeci<strong>do</strong>s. Deu<br />
Raimun<strong>do</strong> notícias em chegan<strong>do</strong> a Módena a seu pai, o duque, <strong>do</strong> que tinha<br />
obra<strong>do</strong> por livrar a Carlos <strong>da</strong> morte e a seu pai Frederico de acabar em prisão a<br />
vi<strong>da</strong>, pois eram vassalos tão principais de sua alteza e porque estava<br />
certifica<strong>do</strong> que Carlos não tivera culpa na morte <strong>do</strong> defunto, antes o morto com<br />
trato <strong>do</strong>ble, desafian<strong>do</strong>-o para só, levara sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s foragi<strong>do</strong>s para o matarem,<br />
como sem dúvi<strong>da</strong> o fariam se um amigo de Carlos que passava ao a<strong>caso</strong> pela<br />
estra<strong>da</strong>, conhecen<strong>do</strong>-o na voz com que <strong>da</strong> traição se queixava, o não<br />
socorrera, que ven<strong>do</strong>-o tão mal feri<strong>do</strong> e os contrários com a insolência de<br />
quererem matá-lo, disparan<strong>do</strong> a clavina que levava, acertaram as balas no<br />
agressor, porventura em castigo <strong>da</strong> perfídia, com que caiu morto, fican<strong>do</strong><br />
Carlos mortalmente feri<strong>do</strong>.<br />
- Os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s, que viram morto a quem os conduzira, como eram<br />
criminosos, fugiram para esta ci<strong>da</strong>de e na estalagem em que pousaram<br />
manifestaram to<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong>de <strong>do</strong> sucesso referi<strong>do</strong> e logo se passaram a<br />
Florença. Constou-me desta ver<strong>da</strong>de, e ouvin<strong>do</strong> eu a instância com que os pais<br />
<strong>do</strong> morto e seus parentes requeriam a morte de Carlos, empenhei-me em tirá-<br />
los de Bolonha, socorren<strong>do</strong>-os como a vassalos de vossa alteza, a cuja<br />
grandeza é justa obrigação auxiliar aos aflitos, como diz Cícero 1164 , sen<strong>do</strong> a<br />
melhor fortuna <strong>do</strong> poder, o poder socorrer aos oprimi<strong>do</strong>s. Carlos e seu pai são<br />
vassalos naturais de vossa alteza e como tais obriga<strong>do</strong>s a acudirem a seu<br />
Cicer., Pro Marc.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1053<br />
chama<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> que estejam em alheios reinos e senhorios. Em nome de<br />
vossa alteza os chamei para seu próprio senhorio, aonde as partes <strong>do</strong> morto<br />
(se alguma justiça tiverem) podem vir alegá-la diante de vossa alteza e <strong>do</strong>s<br />
ministros de sua justiça, e não em Bolonha, mancomuna<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os<br />
Bentivolhes contra Carlos e seu pai para quererem contra razão oprimi-los, por<br />
serem nela Carlos e seu pai forasteiros e seus contrários muitos, vali<strong>do</strong>s e<br />
poderosos.<br />
Atento ouviu o duque a Raimun<strong>do</strong> e pela grande estimação que de<br />
Frederico Manfre<strong>do</strong> fazia, como pelo prudente e valeroso mo<strong>do</strong> com que<br />
Raimun<strong>do</strong> nesta facção se houvera, aprovou tu<strong>do</strong> o que estava feito,<br />
man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> <strong>da</strong> sua parte visitar a Carlos como se achava <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s e que o<br />
avisasse de tu<strong>do</strong> de que necessitasse <strong>da</strong> corte. Este favor estimaram to<strong>do</strong>s<br />
muito, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se por mui obriga<strong>do</strong>s à benevolência de seu príncipe, que<br />
man<strong>do</strong>u ao seguinte dia os melhores médicos e cirurgiões <strong>da</strong> corte para<br />
assistirem a sua cura e muitos regá-los para seu alívio.<br />
Cap. XIX.<br />
Como se divulgou em Bolonha a fugi<strong>da</strong> de Carlos e seu pai e família, e <strong>do</strong> que<br />
nisso houve<br />
Apenas a estrela <strong>da</strong> lua nascen<strong>do</strong> entre névoas rebuça<strong>da</strong>s tinha<br />
desenvolto o rebuço para ser conheci<strong>da</strong> pelo cristalino de suas luzes, quan<strong>do</strong><br />
se divulgou em Bolonha a nova <strong>da</strong> fugi<strong>da</strong> de Carlos e seus pais e família e<br />
como Raimun<strong>do</strong> com as tropas de cavalaria o tirara de casa e levara para<br />
Módena. Começou o povo com as notícias <strong>do</strong> retiro a formar vários juízos,<br />
conforme a afeição ou aborrecimento que ao morto tinham, sen<strong>do</strong> <strong>do</strong> vulgo<br />
pela maior parte os pareceres inconstantes, como diz Quintiliano 1165 , julgan<strong>do</strong>,<br />
como diz Cícero 1166 , muitas vezes mais pelo rumor <strong>do</strong> que pela ver<strong>da</strong>de.<br />
Estavam Frederico e seus filhos tão bem quistos pela cortesia com que a to<strong>do</strong>s<br />
tratavam, e pelo contrário o morto tão odia<strong>do</strong> pelo intolerável de sua soberba e<br />
Quint., Decl. 11.<br />
Cicer., Pro Rose.
1054 Padre Mateus Ribeiro<br />
arrogância, que assim como sua morte foi em geral <strong>do</strong> povo pouco senti<strong>da</strong>,<br />
assim a fugi<strong>da</strong> de Carlos com seu pai foi desculpa<strong>da</strong> e ain<strong>da</strong> de muitos<br />
festeja<strong>da</strong>. O ser louva<strong>do</strong> <strong>do</strong> povo pende <strong>da</strong>s obras heróicas que em benefício<br />
<strong>da</strong> república o louva<strong>do</strong> faz; porém o ser <strong>do</strong> povo ama<strong>do</strong> tem origem na<br />
afabili<strong>da</strong>de e cortesia com que os corações se cativam, como se viu nesta<br />
ocasião. E não é felici<strong>da</strong>de pequena saber com o que custa tão pouco adquirir<br />
o geral aplauso de uma ci<strong>da</strong>de e república, que talvez importa muito.<br />
Foi logo o pai <strong>do</strong> morto com o séquito de seus parentes com grandes<br />
clamores queixar-se ao cardeal governa<strong>do</strong>r <strong>da</strong> improvisa fugi<strong>da</strong> de Carlos e<br />
seu pai. Mostrou no exterior o cardeal sentimento, e não duvi<strong>do</strong> que no interior<br />
a estimasse, por ser a melhor saí<strong>da</strong> que podia <strong>da</strong>r-se para livrar a seu parente.<br />
É no mun<strong>do</strong> uma política hipocrisia o vender uma alegria com a capa exterior<br />
<strong>da</strong> tristeza e dissimular o gosto com acidentes exteriores de pena, como em<br />
César chorar na morte de Pompeu e Augusto na de Marco António, sen<strong>do</strong> que<br />
para ficarem absolutos senhores <strong>do</strong> império romano lhas desejavam. Mostrou-<br />
se o cardeal senti<strong>do</strong> aos clamores <strong>da</strong>s partes em razão de seu governo,<br />
man<strong>da</strong>n<strong>do</strong> logo chamar a conselho para se determinar o que convinha fazer-<br />
se; e se noutros negócios o conselho deve ser precisamente necessário, como<br />
disse Demóstenes 1167 , contu<strong>do</strong> nesta ocasião repentina mais parece que devia<br />
aplicar-se abrevia<strong>do</strong> remédio <strong>do</strong> que vagaroso conselho. Assim diz Séneca 1168 ,<br />
que no lugar <strong>do</strong> desafio com espa<strong>da</strong>s arranca<strong>da</strong>s já o conselho se escusa.<br />
To<strong>da</strong> esta dilação foi, pelo que depois alguns ajuizaram, em favor <strong>do</strong>s<br />
fugitivos, para que tivessem lugar de chegarem à raia que divide o senhorio de<br />
Módena com Bolonha, enquanto se consultavam os pareceres <strong>do</strong>s<br />
conselheiros, que muitas vezes se dividem em controvérsias e várias opiniões.<br />
Outros julgavam por necessário o conselho, porque como o filho <strong>do</strong> duque de<br />
Módena, com quem Bolonha tinha pazes assenta<strong>da</strong>s de muitos anos, tinha<br />
entra<strong>do</strong> com tropas arma<strong>da</strong>s em o senhorio de Bolonha sem licença <strong>do</strong> cardeal<br />
governa<strong>do</strong>r, era necessário em conselho assentar-se com madureza se se<br />
haviam de julgar as pazes por quebra<strong>da</strong>s ou se haviam de ficar em seu vigor, o<br />
que sem conselho não podia ajustar-se. Começaram os conselheiros a <strong>da</strong>r<br />
Dem., Exord. 19.<br />
Senec, Ep. 22.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1055<br />
seus pareceres, dizen<strong>do</strong> uns que pela repentina invasão de Raimun<strong>do</strong> e suas<br />
tropas ficavam as pazes em suspensão e se deviam logo seguir com gente<br />
arma<strong>da</strong> os fugitivos a to<strong>do</strong> o risco, por conservar o esta<strong>do</strong> de Bolonha sua<br />
autori<strong>da</strong>de, pois estava lesa e abati<strong>da</strong> no <strong>caso</strong> presente, e que devia desforçar-<br />
se logo <strong>da</strong> ofensa que se lhe fizera. A este parecer seguiam outros, até que<br />
chegou a votar Justiniano, que como se reconhecia a Raimun<strong>do</strong> tão obriga<strong>do</strong>,<br />
como vós sabeis, e era tão eminente nas letras e no dizer eloquente, dizem<br />
que com grande confiança assim falou:<br />
- Vejo, eminentíssimo senhor, os pareceres neste conselho para que<br />
fomos chama<strong>do</strong>s tão diversos ao que a razão <strong>da</strong> prudência e o útil <strong>da</strong> razão de<br />
esta<strong>do</strong> está mostran<strong>do</strong> que obriga o zelo a que com mais dilações exponha os<br />
fun<strong>da</strong>mentos deste assunto, para que com to<strong>da</strong> a clareza se conheçam os<br />
<strong>da</strong>nos ou utili<strong>da</strong>des que dele podem seguir-se. E o que se julgar mais acerta<strong>do</strong><br />
e conveniente se siga.<br />
Queixou-se o pai <strong>do</strong> morto que Carlos e Lisar<strong>do</strong> lhe mataram a seu filho<br />
morga<strong>do</strong> uma noite em que o levaram engana<strong>do</strong> a desafio e aos clamores <strong>do</strong><br />
queixoso acudiu o auditor geral a prender a Carlos e Lisar<strong>do</strong>, que fugiu; e a<br />
Carlos prendeu, porém tão mal feri<strong>do</strong> que se receava sua vi<strong>da</strong> se o levassem à<br />
prisão. Deu o auditor conta a vossa eminência, que de seu consentimento se<br />
lhe deu a casa por prisão, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se seu pai Frederico por fiel carcereiro <strong>do</strong><br />
preso, para o entregar à justiça ca<strong>da</strong> vez que lhe pedisse a entrega dele.<br />
Perguntara eu agora em que castelo forte o aprisionaram ou que esquadras de<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s de guar<strong>da</strong> lhe puseram? Com que sentinelas à vista o asseguraram?<br />
Para se estranhar tanto que sen<strong>do</strong> seu pai Frederico Manfre<strong>do</strong> um fi<strong>da</strong>lgo<br />
ilustre, mas em Bolonha forasteiro, e sem ter nesta ci<strong>da</strong>de nem ren<strong>da</strong>, nem<br />
possessões, se ausentasse com seu filho e família pois em Bolonha na<strong>da</strong> tinha<br />
que perder? Em que torre forte <strong>do</strong>s Asineis ao preso ou a seu pai fecharam?<br />
Que fia<strong>do</strong>res ricos e abona<strong>do</strong>s desta ci<strong>da</strong>de afiançaram a segurança de se não<br />
ausentarem dela? Mal se achará, diz o Séneca 1169 , quem possa viver seguro<br />
com a porta aberta, porque com porta aberta nem se asseguram as invasões<br />
<strong>do</strong>s inimigos, nem as prisões <strong>do</strong>s que se tem por prisioneiros; e, como diz<br />
Senec, Ep. 43.
1056 Padre Mateus Ribeiro<br />
Plínio 1170 , não pode estabelecer-se segurança no que fica no alvedrio alheio<br />
duvi<strong>do</strong>so.<br />
Nas adversi<strong>da</strong>des grandes, disse Vegécio 1171 , a fideli<strong>da</strong>de periga,<br />
parecer que foi já de Ovídio 1172 . Já em Roma se acabou a memória de Marco<br />
Atílio Régulo e em Sicília a de Dámon e Pítias, <strong>da</strong> fideli<strong>da</strong>de prodígio e oitava<br />
maravilha <strong>da</strong> amizade, que antepon<strong>do</strong> a fideli<strong>da</strong>de às próprias vi<strong>da</strong>s,<br />
generosos se expuseram à morte. É a liber<strong>da</strong>de grande porção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, disse<br />
Aristóteles 1173 , e como tal, sen<strong>do</strong> incentivo tão poderoso para demover, não se<br />
devia confiar tão facilmente de quem em Bolonha não tinha situa<strong>do</strong>s juros,<br />
ren<strong>da</strong>s ou possessões que perder. Alcibíades Ateniense estan<strong>do</strong> preso em<br />
Sardis, ci<strong>da</strong>de de Líbia, enganan<strong>do</strong> aos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que o guar<strong>da</strong>vam, fugiu <strong>da</strong><br />
prisão em que o tinham. O empera<strong>do</strong>r Justiniano, preso pelo rebela<strong>do</strong> Leôncio<br />
em Chersona, enganan<strong>do</strong> aos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que o guar<strong>da</strong>vam, fugiu para Baviera e<br />
tornou segun<strong>da</strong> vez a imperar. O conde Fernão Gonçalves, senhor de Castela,<br />
preso na forte torre de Castro Viejo, aonde por man<strong>da</strong><strong>do</strong> d'el-rei de Navarra D.<br />
Garcia, seu cunha<strong>do</strong>, estava prisioneiro, enganan<strong>do</strong> aos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sos lhe assistiam, fugiu <strong>da</strong> torre e se livrou. Pois se Carlos e seu pai<br />
Frederico em sua própria casa e sem guar<strong>da</strong>s estavam, receben<strong>do</strong> visitas ca<strong>da</strong><br />
hora, que admiração pode causar sua fugi<strong>da</strong>, pois não tinham guar<strong>da</strong>s a quem<br />
enganar, nem muros que saltar, mais que a porta aberta para poderem sair?<br />
Fica agora por resolver a questão se vin<strong>do</strong> Raimun<strong>do</strong>, filho <strong>do</strong> duque de<br />
Módena, a buscá-lo com tropas de cavalaria como a vassalos que eram de seu<br />
pai, príncipe e senhor soberano por nascimento, por homenagem e pelas<br />
copiosas ren<strong>da</strong>s que em seu senhorio logram e possuem, ficou ofendi<strong>da</strong> ou<br />
não a autori<strong>da</strong>de <strong>do</strong> senhorio de Bolonha, para que por armas com título de<br />
hostili<strong>da</strong>de manifesta se haja de ir em seu seguimento ao desagravo <strong>da</strong> ofensa<br />
recebi<strong>da</strong>? Porém eu digo que nem a este senhorio fez agravo, nem deu<br />
motivos para se procurar justa satisfação, e seria grande imprudência, sem<br />
causa mui notória e manifesta, o fazer <strong>do</strong> vínculo firme e união amável <strong>da</strong> paz<br />
Plin. Sen., in Frees.<br />
Vegec, Lib. 3.<br />
Ovid., Ep. 16 & 3. De Pont.<br />
Arist., apud Diog., Lib. 7. & Pol. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1057<br />
duro e odioso motivo de guerra; sen<strong>do</strong> que, como diz Salústio, a paz é melhor<br />
que to<strong>da</strong>s as vitórias juntas. É certo que Frederico e seu filho são vassalos <strong>do</strong><br />
duque de Módena e a quem devem obedecer quan<strong>do</strong> os chama, ain<strong>da</strong> que<br />
assistam em alheio senhorio, como se colhe de vários lugares <strong>do</strong> Direito Civil e<br />
Canónico 1174 . E assim pode o príncipe e senhor soberano chamar de qualquer<br />
parte a seu vassalo quan<strong>do</strong> importa assistir a seu serviço. Pois se com porta<br />
aberta, franca e livre saí<strong>da</strong> que logravam puderam Carlos e seu pai ter-se<br />
ausenta<strong>do</strong> de Bolonha ao chama<strong>do</strong> <strong>do</strong> duque seu senhor, que agravo fez<br />
Raimun<strong>do</strong> em lhe fazer segura companhia? Rompeu porventura hostilmente<br />
alguma prisão em que estivesse recluso? Desmantelou algum castelo que o<br />
guar<strong>da</strong>sse? Matou ou feriu algumas guar<strong>da</strong>s que lhe resistissem? E se na<strong>da</strong><br />
disto houve, nem que consentisse tocar-se clarim ou soarem bélicas trombetas<br />
em to<strong>do</strong> este distrito de Bolonha, aonde está o agravo? Aonde a ofensa <strong>da</strong><br />
autori<strong>da</strong>de? Pois sem alguém <strong>da</strong>r notícias de sua vin<strong>da</strong>, no escuro <strong>da</strong> noite<br />
entrou e no mais escuro <strong>da</strong> noite com to<strong>do</strong> o silêncio desta ci<strong>da</strong>de saiu. Em<br />
tu<strong>do</strong> se mostrou Raimun<strong>do</strong> respeitoso e prudente, pois nenhum motivo quis <strong>da</strong>r<br />
para que o tivessem por insolente, nem por descomedi<strong>do</strong>. Socorrer aos aflitos<br />
é acção própria de ânimos reais e generosos, como diz Euripides 1175 e escreve<br />
Quintiliano 1176 ; e <strong>do</strong> grande monarca Artaxerxes refere Plutarco 1177 que<br />
costumava dizer que o <strong>da</strong>r e socorrer era a lição própria que estu<strong>da</strong>vam os<br />
príncipes.<br />
Há porventura alguém que se queixe de resistência? Ninguém, porque<br />
ninguém o seguiu. Há alguém que se <strong>do</strong>a de oprimi<strong>do</strong>? Não, porque ninguém o<br />
buscou. Ouve-se alguém que clame de ser dele feri<strong>do</strong> ou mal trata<strong>do</strong>? Não,<br />
porque ninguém o encontrou e só de longe o viu. Pois, oh Deus imortal, aonde<br />
está aqui a ofensa, se ninguém se queixa? O agravo, se ninguém se sente?<br />
Aonde a injúria, se a ninguém magoa? Havemos porventura, não haven<strong>do</strong><br />
delitos na reali<strong>da</strong>de, fabricar os delitos na imaginação? Muitas vezes sucede,<br />
Ex L. Mercatores. Cod. de com. & mercim. Covar. q. pract. c.11 & in cap. De Rapt. & in c.<br />
fin. de for. compel<br />
1175 Eurip., in Herad.<br />
1176 Quint., Decl.9.<br />
1177 Plut., in Apoph.
1058 Padre Mateus Ribeiro<br />
de se aplicarem medicamentos aonde não há chaga, nem <strong>do</strong>r, chamarem os<br />
humores a causarem a chaga e a <strong>do</strong>r que não havia. E quem pode saber com<br />
certeza que essas tropas de cavalos com que Raimun<strong>do</strong> acompanha<strong>do</strong> vinha<br />
tinha servi<strong>do</strong> à caça<strong>da</strong> que fazia, pois a cópia de caça<strong>do</strong>res, aves e sabujos<br />
com que o encontraram, que o seguiam, não condizem com empenhos<br />
arrisca<strong>do</strong>s, nem são idóneos divertimentos para facções heróicas. O trazer<br />
sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s de cavalo que na caça<strong>da</strong> o acompanhassem é autori<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s<br />
príncipes, como lemos de Mitri<strong>da</strong>tes, Alexandre, Artaxerxes e outros muitos<br />
potenta<strong>do</strong>s que a caça exercitavam com grandes demonstrações e séquito.<br />
Que correios se tomaram, que avisos ou cartazes se colheram em que<br />
manifestasse que a livrar a Carlos sua vin<strong>da</strong> se dirigia? Só nossa imaginação<br />
há-de ser a prova? Havemos de julgar por fantasias e não por ver<strong>da</strong>des?<br />
Se o vingativo <strong>da</strong> satisfação se costuma no mun<strong>do</strong> honestar com o<br />
odioso <strong>do</strong> insulto cometi<strong>do</strong>, aonde não há insulto que agrave, como pode<br />
honestar-se a satisfação que se procura? Que prova certa se dá à culpa para<br />
ficar a vingança desculpável? Porventura havemos de fazer delitos <strong>do</strong> que o<br />
Direito o não faz? E por uma presunção duvi<strong>do</strong>sa emprender-se uma facção<br />
militar tão arrisca<strong>da</strong>? Assim se quebram as pazes tão antigas com os duques<br />
de Módena firma<strong>da</strong>s? Doce chamou Cícero 1178 ao nome <strong>da</strong> paz, e a paz<br />
desejam, diz Tito Lívio 1179 , ain<strong>da</strong> os que podem ficar vitoriosos na guerra. As<br />
portas de Jano, em Roma, no tempo que estiveram fecha<strong>da</strong>s constituíam os<br />
tempos mais felices. Mas pon<strong>do</strong> à parte to<strong>da</strong>s as conveniências e tratan<strong>do</strong> só<br />
<strong>da</strong>s razões propostas de se sair em seguimento de Carlos e Frederico, não só<br />
me parece o conselho inútil, mas o julgo por mui arrisca<strong>do</strong>. Não pode ser útil<br />
por ser tarde para executar-se, que já a estas horas estarão no senhorio de<br />
Módena seguros, que como em senhorio alheio e livre, não convém entrar com<br />
hostili<strong>da</strong>des, pois as pazes de Bolonha estão em seu antigo vigor, e abrir a<br />
porta a guerras é grande infelici<strong>da</strong>de, como disse Demóstenes 1180 , porque é<br />
dissipação <strong>da</strong>s ren<strong>da</strong>s <strong>da</strong> república, carestia <strong>do</strong>s campos, penúria <strong>do</strong>s<br />
mantimentos, invasão <strong>do</strong>s inimigos, morte <strong>do</strong>s naturais, alojamentos odiosos<br />
Cicer., Phil. 3.<br />
Tit. Li v., Lib. 1. Dec. 1.<br />
Dem., Exarg. lib.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1059<br />
de sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s auxiliares e estrangeiros, com detrimento de povos, insolências<br />
licenciosas <strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s nos atrevimentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> militar e outros mil<br />
discómo<strong>do</strong>s que tem mostra<strong>do</strong> a experiência com <strong>da</strong>nos intoleráveis. Já<br />
passou o feliz tempo em que os sete cônsules que antiguamente governavam o<br />
senhorio de Bolonha guerreavam com os modeneses, em tempo <strong>do</strong> empera<strong>do</strong>r<br />
Frederico Barbarroxa, conquistan<strong>do</strong>-lhes várias praças e vilas, que depois<br />
tornaram a perder pelos ban<strong>do</strong>s civis <strong>do</strong>s Lambertases e outros parciais e<br />
alia<strong>do</strong>s, com que declinou a grandeza desta ci<strong>da</strong>de e seu senhorio ao esta<strong>do</strong><br />
presente.<br />
E, por terminar meu parecer, é meu voto que em nenhum mo<strong>do</strong> convém<br />
já seguir a Carlos, porque já agora estará no senhorio de Módena. Nem de<br />
repente, quan<strong>do</strong> se intentasse, se podia ajuntar sol<strong>da</strong>desca superior à de<br />
Raimun<strong>do</strong>, que à vista <strong>do</strong> filho <strong>do</strong> duque, seu senhor, haviam de empenhar as<br />
vi<strong>da</strong>s na defensa por assegurarem a Frederico e a Carlos de serem presos;<br />
que como tão pouco interessa<strong>do</strong>s nas empresas <strong>da</strong> justiça, os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que a<br />
seguissem se mostrariam tíbios no acometerem o que pouco os persuade, e<br />
mais quan<strong>do</strong> é com risco próprio e interesses alheios. O pai <strong>do</strong> morto pode (se<br />
lhe parecer) diante <strong>do</strong> duque de Módena seguir a justiça que tiver, pois vive<br />
debaixo <strong>da</strong>s leis imperiais e, como diz Séneca 1181 , a obrigação <strong>do</strong>s reis e<br />
príncipes soberanos é observar a justiça a quem a pede, o que Salústio 1182<br />
confirma.<br />
Deu fim Justiniano a seu parecer, com que to<strong>do</strong>s os conselheiros se<br />
conformaram e o seguiram, concor<strong>da</strong>n<strong>do</strong> em que não convinha mostrar<br />
ressentimento por tal causa, nem <strong>da</strong>r motivo a se quebrarem as pazes firma<strong>da</strong>s<br />
de tantos anos, pois Raimun<strong>do</strong> nenhuma hostili<strong>da</strong>de usa<strong>do</strong> tinha. E<br />
dissolven<strong>do</strong>-se com isto o conselho, se deu em resposta ao pai <strong>do</strong> morto e a<br />
seus parentes o assento que tinha toma<strong>do</strong>, que diante <strong>do</strong> duque de Módena<br />
podiam seguir sua justiça contra Carlos e seu pai, pois eram seus vassalos e<br />
estavam em seu senhorio. Ficaram eles com esta resolução impacientes e<br />
desespera<strong>do</strong>s, ten<strong>do</strong> por cousa infrutuosa o tratar-se em Módena acusação<br />
contra Carlos. E assim descontentes os pais <strong>do</strong> morto se saíram fora de<br />
Sen., Declam.<br />
Salust., Pro Cotta ad pop.
1060 Padre Mateus Ribeiro<br />
Bolonha algumas léguas para uma quinta a sentirem seus pesares, aonde<br />
agora assistem, sentin<strong>do</strong> duplica<strong>da</strong>s as tristezas, assim pela per<strong>da</strong> <strong>do</strong> filho<br />
como por verem impossibilita<strong>do</strong> o castigo que desejavam.<br />
Ven<strong>do</strong> eu as cousas reduzi<strong>da</strong>s à sereni<strong>da</strong>de presente, me parti para a<br />
quinta de Bom <strong>Porto</strong> para visitar a Carlos e a Frederico e ver se descobria<br />
alguma mu<strong>da</strong>nça de que pudesse avisar-vos, pois como diz Demóstenes 1183 ,<br />
tu<strong>do</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> a mu<strong>da</strong>nça está sujeito. Fui recebi<strong>do</strong> deles com grande alegria, e<br />
mais quan<strong>do</strong> lhes referi o assento que no conselho de Bolonha se tomara<br />
sobre o seu retiro, de que se mostraram mui contentes. Estava Carlos<br />
melhoran<strong>do</strong> <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s com a contínua assistência que os cirurgiões de<br />
Módena lhe faziam e por se ver contente e alegre em sua liber<strong>da</strong>de na sua<br />
própria quinta, pois a alegria é grande parte para adquirir a saúde. Algumas<br />
vezes o tinha visita<strong>do</strong> Raimun<strong>do</strong> pessoalmente, man<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe regalos<br />
contínuos <strong>da</strong> corte, celebran<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s não menos seu grande valor na empresa<br />
<strong>do</strong> que a cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa liberali<strong>da</strong>de com que lhes assistia, e eu, pelo que sabia de<br />
seu amor para com Fenisa, assim o cria. No dia que eu cheguei à quinta de<br />
Bom <strong>Porto</strong>, vin<strong>do</strong> Bernardino visitar a Carlos <strong>da</strong> parte de Raimun<strong>do</strong>, de quem<br />
tive cabal informação de quanto no retiro de Carlos referi<strong>do</strong> tenho, e a quem eu<br />
noticiei o assento que pelo voto <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor Justiniano no conselho, em presença<br />
<strong>do</strong> cardeal governa<strong>do</strong>r, se tinha decreta<strong>do</strong>, de que Bernardino se mostrou<br />
contente e a Justiniano obriga<strong>do</strong>, assistíamos ambos na camera de Carlos com<br />
Constantino e Fenisa, em quem a mu<strong>da</strong>nça <strong>do</strong>s ares em na<strong>da</strong> tinha ofendi<strong>do</strong><br />
os atributos incomparáveis <strong>da</strong> beleza. Louvou tanto Bernardino o valor singular<br />
de Raimun<strong>do</strong> e o empenho a que se arriscara por livrá-los que to<strong>do</strong>s aplaudiam<br />
e a que se confessavam mui deve<strong>do</strong>res, que vin<strong>do</strong> eu a falar em vós, que a<br />
Carlos a vi<strong>da</strong> livrastes, matan<strong>do</strong> a seu contrário, perden<strong>do</strong> a Bolonha para<br />
sempre e cobran<strong>do</strong> tão poderosos contrários, respondeu Fenisa:<br />
- Ele em Bolonha pouco tinha que perder, e se seus contrários são<br />
poderosos, mais poderoso é o príncipe Raimun<strong>do</strong>, que assim como nos livrou a<br />
nós, também poderá livrá-lo a ele.<br />
Esta foi a resposta de Fenisa. Pareceu-me a resposta duvi<strong>do</strong>sa, por se<br />
avaliar a meu juízo por mais agradeci<strong>da</strong> <strong>do</strong> que afeiçoa<strong>da</strong>. Dous dias estive na<br />
Dem., in Arg. lib.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1061<br />
quinta à instância de Carlos e, com desejos de ver-vos, me despedi. Estimara,<br />
amigo Lisar<strong>do</strong>, que as novas que vos trago igualassem a meu desejo, para que<br />
com ela recebêsseis muita alegria; porém, porque estaríeis esperan<strong>do</strong> a vin<strong>da</strong><br />
de Frederico, como com ele ajusta<strong>do</strong> ficava, e sem se prevenir esta repentina<br />
mu<strong>da</strong>nça, vim a <strong>da</strong>r-vos inteira relação <strong>do</strong> sucedi<strong>do</strong>, para que com vossa<br />
prudência discurseis, no esta<strong>do</strong> em que as cousas ao presente se mostram, o<br />
que vos convém seguirdes, estan<strong>do</strong> certo que hei-de assistir-vos como amigo<br />
que to<strong>do</strong> o bem vos deseja.<br />
Cap. XX.<br />
De como Lisar<strong>do</strong> se partiu com seus amigos para a quinta de Frederico e <strong>do</strong><br />
que nela passou<br />
Com a infausta narração de Roberto, fiquei tão senti<strong>do</strong> em considerar os<br />
disfavores e encontros de minha fortuna no mais alegre de minhas esperanças,<br />
no mais flori<strong>do</strong> de meus desejos, tão mal remunera<strong>do</strong>s os serviços, tão<br />
esqueci<strong>do</strong>s os riscos, tão desvali<strong>do</strong>s os perigos em que por Fenisa me tinha<br />
visto e finalmente tão derrota<strong>da</strong>s as navegações infelices de meus desvelos,<br />
que oprimi<strong>do</strong> meu coração <strong>do</strong> oneroso gravame de tão duplica<strong>do</strong>s pesares, mal<br />
podia respirar de senti<strong>do</strong>, quanto mais responder de ansia<strong>do</strong>. Emudeceu-me a<br />
voz o assalto <strong>da</strong> pena e a ingratidão de Fenisa, e foi mais poderosa a mágoa<br />
para suspender-me <strong>do</strong> que a mesma razão para queixar-me. Advertiu Roberto<br />
na suspensão em que me via e lembra-me que me falou desta sorte:<br />
- Agora, Lisar<strong>do</strong>, vos suspendeis como aluno nas tironices <strong>da</strong> fortuna?<br />
Agora que como veterano podíeis <strong>da</strong>r <strong>do</strong>cumentos de valor aos queixosos <strong>da</strong><br />
fortuna, vos mostrais tão desconfia<strong>do</strong> <strong>da</strong> sorte como se não estudáreis nas<br />
letras lições de desenganos que o mun<strong>do</strong> <strong>da</strong>r costuma? Já um descui<strong>do</strong> de<br />
Fenisa sentis pelo maior agravo? E sem terdes justa causa <strong>da</strong> queixa, já largais<br />
as armas como venci<strong>do</strong>? Estan<strong>do</strong> Fenisa com seus pais e com seus irmãos em<br />
porto seguro, e já vos <strong>da</strong>is por desengana<strong>do</strong>? Que Raimun<strong>do</strong> visite a Carlos<br />
por enfermo pode ser mais empenho de cortês que de afeiçoa<strong>do</strong>. Se Fenisa<br />
sabe reconhecer obrigações, não se exime de reconhecer as vossas; porque<br />
assi como um ânimo ingrato de na<strong>da</strong> se mostra obriga<strong>do</strong>, assim um coração
1062 Padre Mateus Ribeiro<br />
agradeci<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong> sabe fazer estimação. Louvar a Raimun<strong>do</strong> nas ausências,<br />
livra-se <strong>da</strong>s dúvi<strong>da</strong>s de adulação, como diz Aristóteles 1184 ; e a que a outro por<br />
seu valor e generosi<strong>da</strong>de em ausência louva quan<strong>do</strong> o merece, não me ofende<br />
a mim. Não deixa Fenisa de entender que a seu respeito se empenhou<br />
Raimun<strong>do</strong> em livrar a Carlos e a seu pai <strong>do</strong> perigo em que se viam e<br />
juntamente conhece o que vós a seu respeito obrastes, e quem agradeci<strong>da</strong><br />
sabe os benefícios conhecer, também na balança de seu juízo os sabe pesar.<br />
Na noite escura e serena to<strong>da</strong>s as estrelas luzem, mas a vista não se engana<br />
para julgar que to<strong>da</strong>s sejam iguais, porque no limita<strong>do</strong> não tem poderes a luz<br />
para adular a vista. Fenisa tu<strong>do</strong> conhece e não deve enganar-se quem de<br />
discreta se presa.<br />
Uma <strong>da</strong>s condições que Cícero 1185 no agradecimento procura é a<br />
ponderação <strong>do</strong>s favores recebi<strong>do</strong>s, para que os pequenos não se julguem por<br />
maiores. Louvais a Fenisa por discreta e duvi<strong>da</strong>is de seu juízo? Vós retira<strong>do</strong><br />
em Cesena na<strong>da</strong> obrais e aparecen<strong>do</strong> talvez podeis obrar muito, porque a<br />
presença costuma lembrar o que a distância pode fazer esquecer. Antecipar a<br />
queixa ao agravo é receio de mal sofri<strong>do</strong>; porque sem se <strong>da</strong>r ofensa<br />
ver<strong>da</strong>deira, rompe a voz a queixa no imagina<strong>do</strong>, e parece desaire de<br />
melindroso o que não chaga a ser mágoa de ofendi<strong>do</strong>. E pois até agora na<strong>da</strong><br />
vos inquieta, fazei experiência <strong>da</strong> ventura, e enquanto a fortuna não vos<br />
motivar causas à tristeza, <strong>da</strong>i quartel aos receios, <strong>da</strong>i passagem franca aos<br />
temores, porque pressagiar os desgostos é vaticinar as contingências que de<br />
ordinário são falíveis.<br />
Assim falou Roberto e Bonifácio aprovou seu parecer por prudente,<br />
confirman<strong>do</strong>-o com outras razões que apontou ao mesmo intento, com que me<br />
resolvi a partir à quinta de Frederico com título de visitar a Carlos e a Fenisa e<br />
de perto explorar o que de longe não podia conhecer. Quiseram acompanhar-<br />
me Roberto e Bonifácio, e despedin<strong>do</strong>-me ao seguinte dia de minha mãe, irmã<br />
e cunha<strong>do</strong>, com os meus cria<strong>do</strong>s e os de meus amigos, e to<strong>do</strong>s bem arma<strong>do</strong>s<br />
pelo que no caminho suceder pudesse, pois não me faltavam inimigos, e estes<br />
Arist., Rhet. 2.<br />
Cicer., De offic. 2.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1063<br />
poderosos, montan<strong>do</strong> a cavalo nos partimos de Cesena, deixan<strong>do</strong> a minha<br />
mãe de minha ausência bem senti<strong>da</strong> e sau<strong>do</strong>sa.<br />
Entra<strong>da</strong> era já a noite, porém serena e clara pelo luar que fazia, quan<strong>do</strong><br />
chegámos à quinta de Frederico Manfre<strong>do</strong>, a quem os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que Raimun<strong>do</strong><br />
em guar<strong>da</strong> deixara faziam cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa sentinela, sain<strong>do</strong>-nos ao encontro a<br />
reconhecer-nos, e foi necessário <strong>da</strong>r aviso de quem eu era e meus<br />
companheiros, que notician<strong>do</strong>-se a Frederico, nos saiu a receber com<br />
Constantino, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-nos passagem os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Fomos recebi<strong>do</strong>s com grande<br />
cortesia e leva<strong>do</strong>s ao aposento de Carlos, que ain<strong>da</strong> estava de cama, e com<br />
ele assistiam Fenisa e sua mãe. Festejou ele muito o ver-me, porque desde<br />
que dele me despedi em Bolonha não teve aviso meu. Reconhecia bem Carlos<br />
as obrigações que me tinha e os riscos em que por seu respeito an<strong>da</strong>va, e<br />
como lembra<strong>do</strong> desejava poder em alguma parte desendivi<strong>da</strong>r-se para mostrar-<br />
me seu agradecimento no que lhe fosse possível. É para um ânimo ilustre e<br />
generoso em parte motivo de pena o ser seu bem feitor tão independente que<br />
nenhuma remuneração necessite. Era eu fi<strong>da</strong>lgo, morga<strong>do</strong>, filho único e com<br />
conveniente ren<strong>da</strong> a meu esta<strong>do</strong>, que de na<strong>da</strong> de Carlos, nem de seu pai<br />
necessitava, e só na pren<strong>da</strong> de Fenisa, com que em <strong>da</strong>r-ma por esposa pagar-<br />
me cabalmente podia quanto por ele tinha feito e muito mais que fizera, não<br />
ousava eu falar com receios de não ser admiti<strong>do</strong>, e assim ele tinha<br />
embarga<strong>do</strong>s os desejos de poder comigo desempenhar-se.<br />
Várias práticas se moveram, assim sobre o retiro de Bolonha<br />
venturosamente consegui<strong>do</strong>, como novas que esse dia haviam chega<strong>do</strong> de que<br />
o príncipe Alexandre, primogénito <strong>do</strong> duque e sucessor imediato ao duca<strong>do</strong> de<br />
Módena, ficava sem fala desconfia<strong>do</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de to<strong>do</strong>s os médicos, e viria a<br />
sucessão a Raimun<strong>do</strong> falecen<strong>do</strong> ele, como por certo se tinha não poder<br />
escapar <strong>do</strong> mortal sintoma que padecia, e Frederico estava para partir-se de<br />
manhã a assistir ao duque neste desgosto tão preciso. Nestas e outras práticas<br />
se despendeu parte <strong>da</strong> noite. Estava prepara<strong>da</strong> a ceia com grandeza, porque a<br />
quinta estava de tu<strong>do</strong> com abundância provi<strong>da</strong>; depois <strong>da</strong> ceia fomos (a) leva<strong>do</strong>s<br />
Embora as duas edições coteja<strong>da</strong>s registem a forma verbal foram, optámos por utilizar a<br />
primeira pessoa <strong>do</strong> plural, visto que o próprio narra<strong>do</strong>r, Lisar<strong>do</strong>, é uma <strong>da</strong>s personagens<br />
hospe<strong>da</strong><strong>da</strong>s em casa de Carlos Manfre<strong>do</strong>.
1064 Padre Mateus Ribeiro<br />
a um <strong>do</strong>s quartos <strong>da</strong>s grandiosas casas que a quinta tinha, bem adereça<strong>do</strong> de<br />
custosos leitos, camas e armações que para os hóspedes serviam, e retira<strong>do</strong><br />
eu com os <strong>do</strong>us amigos lhes falei assim:<br />
- Quem poderá, senhores e amigos meus, declarar com as palavras a<br />
vária fortuna em que a minha se considera na inconstante navegação de<br />
minhas alegrias e as crescentes e minguantes de minha ventura? Estou<br />
hospe<strong>da</strong><strong>do</strong> na casa <strong>do</strong> que mais amo e na presença <strong>do</strong> que mais estimo e por<br />
quem tenho padeci<strong>do</strong> tantas moléstias e arrisca<strong>do</strong> a tantos perigos a vi<strong>da</strong>,<br />
perdi<strong>da</strong> minha quietação, sem tranquili<strong>da</strong>de meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, sem sereni<strong>da</strong>de<br />
meus desvelos; e que não me assista confiança para pedi-la a seus pais por<br />
esposa, com prováveis receios de não ser admiti<strong>do</strong> e ficar sem fruto meu<br />
atrevimento? Que alegria para mim maior que ver a Fenisa, compêndio<br />
anima<strong>do</strong> <strong>da</strong> maior beleza, em quem cifrou a natureza o assombro <strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>naires, a gala <strong>do</strong>s brios, a maravilha <strong>da</strong> discrição e o selecto <strong>da</strong>s perfeições;<br />
e que maior pesar <strong>do</strong> que considerar quasi impossível o poder, sen<strong>do</strong> minha<br />
esposa, alcançar a posse deste bem? Que importa o ter a Carlos obriga<strong>do</strong>, se<br />
fica o galardão tão duvi<strong>do</strong>so? Que importa merecer, se a Fenisa não mereço?<br />
Nem to<strong>do</strong>s os atrevi<strong>do</strong>s ficam sen<strong>do</strong> nas empresas venturosos, pois muitas<br />
vezes castiga a fortuna os arrojos imprudentes de atrevi<strong>do</strong>s. Nunca nas causas<br />
próprias fica o juízo tão livre <strong>da</strong>s paixões interiores que possa utilizar os<br />
discursos aos acertos. E assim vos peço, como amigos, me aconselheis como<br />
nisto proce<strong>da</strong>, pois estamos ao presente nesta casa e não sei quan<strong>do</strong> tornarei<br />
a ver-me nela.<br />
Roberto e Bonifácio se suspenderam em ouvir-me, que não é tão fácil<br />
encargo em matérias duvi<strong>do</strong>sas conseguir um conselho proveitoso e seguro,<br />
sen<strong>do</strong>, como escreve Plutarco 1186 , a to<strong>do</strong>s usarem de um bom conselho<br />
necessário enquanto vivem. Adiantou-se Roberto a responder, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Dificultosa proposta, amigo Lisar<strong>do</strong>, nos ofereceis e que só podia<br />
confiar-se <strong>do</strong> maior juízo, e ain<strong>da</strong> deste tal disse Demóstenes 1187 que primeiro<br />
o deve considerar com grande madureza, porque penden<strong>do</strong> seus efeitos de<br />
vontades livres, mal se pode prometer com segurança o efeito que pende de<br />
Plut., De amic. & adul.<br />
Dem., in Olynth.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1065<br />
um alvedrio tão livre. Porém seguirei o dito de Tito Lívio 1188 que ninguém chega<br />
a aconselhar melhor <strong>do</strong> que quem aconselha o que ele próprio em semelhante<br />
<strong>caso</strong> fizera. Perguntais o como vos havereis neste empenho <strong>do</strong> casamento de<br />
Fenisa a que aspirais: de vós conheço eu bem os desvelos com que a amais,<br />
porém dela ignoro se desse querer se dá por obriga<strong>da</strong> para se mostrar<br />
agradeci<strong>da</strong>. Vai grande distância de amar a ser ama<strong>do</strong>, porque o coração<br />
alheio não nos é com certeza conheci<strong>do</strong>. Até agora não tendes certeza <strong>da</strong><br />
vontade de Fenisa, porque talvez alguma afabili<strong>da</strong>de que mostra, podem ser<br />
efeitos ou de agradecimento, ou de cortesia. O intentardes pedi-la por esposa<br />
sem terdes dela certeza de que é contente é aventurar-vos a navegar sem<br />
agulha de marear ou roteiros que vos guiem. Se é certo que ela vos ama, não<br />
encontrará que a peçais por esposa. Porém se ela não tem tal pensamento, de<br />
que servirá o intentardes a seus pais e irmãos pedi-la? O que eu neste negócio<br />
fizera, fora pedir-lhe que em uma <strong>da</strong>s janelas que sobre esta quinta saem, vos<br />
quisesse <strong>da</strong>r uma palavra em negócio que importava ouvir-vos e referir-lhe o<br />
intento que tendes, e de sua resposta alcançaríamos o que mais convém para<br />
ficardes sen<strong>do</strong> ou bem venturoso, ou bem de to<strong>do</strong> desengana<strong>do</strong>.<br />
Este conselho de Roberto aprovou Bonifácio pelo mais conveniente e eu<br />
me resolvi a segui-lo, falan<strong>do</strong> a uma cria<strong>da</strong> sua que em Bolonha lhe havia por<br />
vezes leva<strong>do</strong> alguns escritos meus, por quem lhe mandei dizer que <strong>da</strong>s janelas<br />
que junto <strong>da</strong> fonte saiam me importava muito me fizesse favor de ouvir-me uma<br />
palavra, quan<strong>do</strong> seus pais recolhi<strong>do</strong>s estivessem, porque havia de partir-me ao<br />
outro dia. A resposta foi que depois <strong>da</strong> meia-noite chegaria à janela, como se<br />
recolhesse a lua. Com esta resposta por extremo alegre, apenas o quartea<strong>do</strong><br />
resplan<strong>do</strong>r <strong>da</strong> lua se ia retiran<strong>do</strong> a outro hemisfério, quan<strong>do</strong> baixei à quinta e<br />
junto à cau<strong>da</strong>losa fonte que a troco de cristal cobrava flores <strong>do</strong>s amenos<br />
jardins, que na quinta com sua corrente fertilizava, estive esperan<strong>do</strong> se abriria<br />
a janela que de horizonte ao sol de Fenisa servia. Já o relógio <strong>da</strong>s estrelas <strong>da</strong><br />
meia-noite passava quan<strong>do</strong> senti que a janela se abria. Cheguei o mais vizinho<br />
à fonte que então de espelho servia, se para tal beleza podia achar-se espelho,<br />
e <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe as graças <strong>do</strong> favor que me fazia, me lembra que prossegui,<br />
dizen<strong>do</strong>:<br />
Tit. Liv., Lib. 7.
1066 Padre Mateus Ribeiro<br />
- Não sei, fermosa Fenisa, de quem possa com razão queixar-me, se de<br />
ti ou se de minha fortuna. De ti, porque conhecen<strong>do</strong> as finezas com que te<br />
amo, me trazes duvi<strong>do</strong>so de teu agra<strong>do</strong>; <strong>da</strong> fortuna, porque me dilata a<br />
felici<strong>da</strong>de de poder gloriar-se minha esperança de poder chamar-te esposa<br />
minha. Vi-te, amei-te e servi-te, que não houve dilação nestes efeitos, porque<br />
tua vista levou consigo de companhia os extremos de querer-te e os desvelos<br />
de servir-te. Por reparar a vi<strong>da</strong> a Carlos, teu irmão, me vejo hoje de Bolonha<br />
ausente, desterra<strong>do</strong> e criminoso com partes poderosas e tão vali<strong>da</strong>s. Já estive<br />
com pensamentos de aventurar-me a pedir-te a teus pais por esposa, pois<br />
conhecem que sou ilustre, morga<strong>do</strong> e filho único e de Cesena o principal;<br />
porém não me atrevi sem teu consentimento. Nunca dilata<strong>da</strong> navegação se<br />
julgou por venturosa. Queres, Fenisa, que ten<strong>do</strong> as vi<strong>da</strong>s tão breve a duração,<br />
se eternizem as esperanças? Como queres que as vi<strong>da</strong>s corram duração com<br />
os astros, quan<strong>do</strong> apenas podem admitir parelhas com as flores?<br />
Que esperas, discreta Fenisa, para fazer-me venturoso? Se querer-te<br />
mais? É impossível, porque <strong>do</strong> auge não pode a mais subir-se, e meu querer<br />
tem subi<strong>do</strong> ao mais altivo auge. Bem merecem crédito estas ver<strong>da</strong>des, pois só<br />
a fim de ver-te, deixan<strong>do</strong> minha pátria aonde estava seguro, nem temen<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
morte os assaltos, nem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> estiman<strong>do</strong> os logros, cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so te busco como<br />
centro em que só meus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s param e meus desvelos descansam.<br />
Mais prosseguira, se Fenisa me não atalhara, dizen<strong>do</strong>:<br />
- Que cousa fácil é, Lisar<strong>do</strong>, a quem diz que ama o publicar finezas sem<br />
obrá-las: pouco custa o dizer, muito o sentir. Quem com extremos quer, não<br />
mostra impaciências no esperar. Já com menos de onze meses pretendias que<br />
fosse tua esposa? Não consideras que de titulares tenho rejeita<strong>do</strong> casamentos,<br />
porque me não deliberei a tomar esta<strong>do</strong>? Querias que a filha de Frederico<br />
Manfre<strong>do</strong> com um estu<strong>da</strong>nte se casasse, sen<strong>do</strong> para meu brio ain<strong>da</strong> pouco o<br />
que o mun<strong>do</strong> costuma avaliar em muito? Que títulos grandiosos possuis? Que<br />
riquezas te sobram? Que grandeza de esta<strong>do</strong> manifestas, para a meus pais<br />
pedir-me? Se eras tão rico, para que estu<strong>da</strong>vas? E se o não eras, com que<br />
confianças me pretendias? Como caberia nos limites de Cesena quem não se<br />
satisfaz <strong>do</strong> dilata<strong>do</strong> de Módena? Agradece-me este desengano e sabe colocar<br />
teus cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s aonde te possam ser agradeci<strong>do</strong>s, que eu não preten<strong>do</strong> mu<strong>da</strong>r<br />
<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> que tenho, nem mais esperes ouvir-me, nem falar-me.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1067<br />
Com esta resolução se ausentou <strong>da</strong> janela, que a cria<strong>da</strong> fechou, e eu<br />
fiquei como às escuras, a quem entre as trevas <strong>da</strong> noite de repente a luz se<br />
apaga. Foi minha ânsia tão excessiva e a pena tão intensa que sentiu meu<br />
coração de magoa<strong>do</strong>, que nem para falar teve alentos a voz, sain<strong>do</strong> pelos<br />
olhos lágrimas violenta<strong>da</strong>s de magoa<strong>do</strong>. Assentei-me junto à fonte,<br />
acompanhan<strong>do</strong> seus fugitivos cristais com meus permanentes pesares, a voz<br />
para falar emudeci<strong>da</strong>, a pena para a sentir intolerável, sen<strong>do</strong> delas<br />
testemunhas só as plantas que me viam e as estrelas que <strong>do</strong> céu com<br />
cintilantes resplan<strong>do</strong>res me acompanhavam. Levantei-me a passear pelo<br />
jardim, por ver se podia <strong>da</strong>r algum desafogo à <strong>do</strong>r ou algum desvio à pena, por<br />
não esperar a pé que<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a esquadra de meus pesares, e <strong>da</strong>í a um espaço<br />
subi acima, aonde meus amigos desvela<strong>do</strong>s me esperavam, que de minha<br />
tristeza arguiram logo em me ven<strong>do</strong> o vivo de meu sentimento, aos quais eu<br />
referi quanto sucedi<strong>do</strong> me havia, de que se mostraram não menos pesarosos<br />
que admira<strong>do</strong>s, consultan<strong>do</strong> que de manhã nos partíssemos para Cesena, no<br />
que eu concordei; e para em parte desafogar a paixão que me oprimia,<br />
toman<strong>do</strong> a pena lhe escrevi esta carta, que por última despedi<strong>da</strong> deixei à<br />
cria<strong>da</strong> que a carta lhe desse:<br />
Ingratíssima Fenisa, por despedi<strong>da</strong>, para jamais tornar a ver-te, nem<br />
a ouvir-te, cui<strong>da</strong>n<strong>do</strong> que a tua casa fosse para mim refúgio, me serviu de<br />
fúnebre teatro <strong>da</strong> morte. Para que, quan<strong>do</strong> quis ausentar-me de Bolonha,<br />
me impediste a jorna<strong>da</strong>? Deixaras-me, cruel, partir-me de tua vista,<br />
quan<strong>do</strong> em Bolonha tantos amigos deixava e não quan<strong>do</strong> por cousas tuas<br />
tantos juntos inimigos tenho. Se havias de desenganar-me tão tarde, por<br />
que não me desenganavas mais ce<strong>do</strong>? Quan<strong>do</strong> livrei a Carlos, teu irmão,<br />
<strong>da</strong> morte, trazen<strong>do</strong>-o como em meus braços de tão larga distância a tua<br />
casa, rompen<strong>do</strong> por mil perigos por livrá-lo de to<strong>do</strong>s, então te mostraste<br />
obriga<strong>da</strong>, então deste indícios de agradeci<strong>da</strong>, então aprovavas o retiro de<br />
Cesena; quan<strong>do</strong> vias tão próximo o perigo, o risco tão vizinho e o <strong>da</strong>no<br />
tão sem reparo, julgavas minha pátria por ci<strong>da</strong>de oportuna para teu<br />
refúgio; e agora que de porto seguro consideras minha tormenta no mais<br />
arrisca<strong>do</strong> <strong>da</strong> fortuna, fazes <strong>do</strong>s lustrosos edifícios de Cesena ludíbrio <strong>da</strong><br />
estimação para em sua grandeza poder receber-te e hospe<strong>da</strong>r-te?
1068 Padre Mateus Ribeiro<br />
Culpas-me por que estudei, se era o meu morga<strong>do</strong> rico? To<strong>da</strong>s as<br />
riquezas tiveram origem ou <strong>da</strong>s armas, ou <strong>da</strong>s letras; porém eu vim a<br />
estu<strong>da</strong>r a Bolonha só a saber conhecer tua ingratidão, toman<strong>do</strong> até agora<br />
postila de saber querer-te e lições de saber amar-te: este estu<strong>do</strong> puderas<br />
justamente censurar por mal emprega<strong>do</strong>, pois havia de ser tão pouco<br />
agradeci<strong>do</strong>. Mas com tantos anos de estu<strong>do</strong> nunca pude conhecer, senão<br />
agora, que debaixo <strong>da</strong> beleza de teu rosto se encobria tão viva ingratidão<br />
em teu peito, que se a natureza estivera no rosto retrata<strong>da</strong> a ninguém<br />
agra<strong>da</strong>ras, antes to<strong>do</strong>s de ti fugiram. Já por te avaliares de Raimun<strong>do</strong><br />
queri<strong>da</strong>, com as ambições de duquesa me desprezas? Não te<br />
desvaneças tão ce<strong>do</strong> pelo que pode chegar mui tarde; pois raras vezes<br />
se viu voar ao sólio mais sublime só fia<strong>da</strong> nas asas <strong>da</strong> beleza, e o que<br />
pende de alheia vontade nunca assegurou venturas, como em ti<br />
experimento. Quiseste quebrar com o que me devias por ser tanto, que<br />
me negaste conhecer a obrigação por não poder desendivi<strong>da</strong>r-te dela. E<br />
ain<strong>da</strong> que eu para sempre me despi<strong>do</strong> de ser acre<strong>do</strong>r, tu sempre ficarás<br />
sen<strong>do</strong> a mais ingrata deve<strong>do</strong>ra.<br />
Isto continha a carta que, antes de a fechar, li a meus amigos, que a<br />
aprovaram por bem ajusta<strong>da</strong> ao intento de minha queixa e de sua ingratidão.<br />
Com ansioso desejo esperava que rompesse a aurora o negro manto <strong>da</strong> noite<br />
para me despedir de Carlos e me ver livre <strong>da</strong> casa <strong>do</strong>nde tão agrava<strong>do</strong> meu<br />
infelice amor saía. Enfim rompeu a luz ao assombro <strong>da</strong>s trevas, dei a carta à<br />
cria<strong>da</strong> para que a Fenisa a desse, mandei aos cria<strong>do</strong>s selassem logo os<br />
cavalos e entran<strong>do</strong> a despedir-nos de Frederico Manfre<strong>do</strong> e de seus filhos, que<br />
se admiraram <strong>da</strong> brevi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> parti<strong>da</strong>, porém demos-lhes por desculpa<br />
importava nesse dia tornar-nos a Cesena, com que de Bom <strong>Porto</strong>, para o não<br />
vermos mais, nos despedimos.<br />
Cap. XXI.<br />
Da resolução de esta<strong>do</strong> que escolheu Lisar<strong>do</strong> e como se despediu <strong>do</strong>s<br />
ermitães
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1069<br />
Caminhámos com desejo de chegarmos nesse dia a Cesena e no<br />
caminho nos deram novas <strong>da</strong> morte <strong>do</strong> príncipe Alexandre, primogénito <strong>do</strong><br />
duque de Módena, a quem suas contínuas indisposições privaram <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> na<br />
flor <strong>do</strong>s anos, nas esperanças mais agradáveis <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de. Assunto nos deu sua<br />
morte, com a imediata sucessão em que Raimun<strong>do</strong> ficava, para discursarmos<br />
sobre as ambições de Fenisa, que sem dúvi<strong>da</strong> agora se consideraria já<br />
duquesa, pois tantas vezes [a] pretenden<strong>do</strong> Raimun<strong>do</strong> por esposa o não<br />
aceitara. Largo motivo tivemos para divertir a moléstia <strong>do</strong> caminho, se minha<br />
tão presente mágoa divertimento tivera, estan<strong>do</strong> tão viva na memória a<br />
ingratidão como a pena. Chegámos a Cesena e eu, desengana<strong>do</strong> <strong>do</strong> muito que<br />
Fenisa obrei e <strong>da</strong> ingrata remuneração que recebi, me resolvi em tomar esta<strong>do</strong><br />
sacer<strong>do</strong>tal, pois tinha estu<strong>da</strong><strong>do</strong> tantos anos, e assistir na companhia de minha<br />
mãe, que por minhas repeti<strong>da</strong>s ausências tantos sobressaltos padeci<strong>do</strong> tinha.<br />
Com excessiva alegria aprovaram to<strong>do</strong>s meu parecer pelo mais acerta<strong>do</strong> e<br />
mais seguro, e como tão feri<strong>do</strong> <strong>da</strong>s ingratidões <strong>da</strong> soberba Fenisa, não quis<br />
fazer novas experiências de condições tão presumptosas e pouco agradeci<strong>da</strong>s.<br />
Passaram-se alguns dias em resoluções <strong>do</strong>s meios que, suposta a<br />
morte que por defender a vi<strong>da</strong> a Carlos me havia sucedi<strong>do</strong>, havia de buscar<br />
para poder ordenar-me, em que meus amigos se detiveram em Cesena por<br />
divertir-me; me chegou uma carta de Adriano, meu amigo, em que me avisava<br />
como Fenisa se resolvera em ser religiosa, causan<strong>do</strong>-se o improviso de sua<br />
resolução <strong>do</strong> sentimento grande <strong>da</strong> resposta que Raimun<strong>do</strong> lhe man<strong>da</strong>ra a<br />
uma sua que recebera, em que lhe <strong>da</strong>va os pêsames <strong>da</strong> morte <strong>do</strong> príncipe<br />
Alexandre, seu irmão, e juntamente os parabéns de ser ele o sucessor imediato<br />
ao duca<strong>do</strong>, com algumas palavras que equivocamente mostravam que por<br />
culpa de seu tio, o cardeal governa<strong>do</strong>r de Bolonha, não aceitaram seus pais a<br />
mercê que sua alteza lhe fazia, com dificul<strong>da</strong>des que ao presente não teriam<br />
vigor quan<strong>do</strong> sua alteza mostrasse o mesmo cui<strong>da</strong><strong>do</strong> em favorecê-la que de<br />
antes publicava. Isto continha a carta com outras palavras em que sem<br />
declarar-se muito, indiciava a aspirar a seu casamento, ao que o discreto<br />
príncipe, dizem, respondeu:<br />
Já, Fenisa, chegaram tarde teus favores, porque costuma<strong>do</strong> meu<br />
coração a sentir tuas esquivanças, to<strong>do</strong> o alívio julga por estranho.
1070 Padre Mateus Ribeiro<br />
Quan<strong>do</strong> te mandei pedir a teus pais para esposa, rejeitaram-me por<br />
grande, e agora desaire foi de discreta o aspirares a casamento quan<strong>do</strong><br />
me consideras maior. Se tanto receavas os sentimentos de meu pai se<br />
contigo casara sen<strong>do</strong> filho segun<strong>do</strong>, quem te assegurava de seu<br />
sentimento se contigo me casara sen<strong>do</strong> eu seu imediato sucessor?<br />
Confesso que com tua vista pudeste vencer-me, mas não soubeste<br />
aproveitar-te <strong>da</strong> vitória, porque quem tu<strong>do</strong> quer, tu<strong>do</strong> perde. Há muitas<br />
vezes receios que <strong>da</strong>nam e confianças que asseguram: se tu então não<br />
recearas tanto, porventura que te asseguraras mais. Tem os rios mais<br />
liber<strong>da</strong>de que o mar, porque eles podem discorrer por várias terras e o<br />
mar nunca costuma mu<strong>da</strong>r-se de seu lugar. Quan<strong>do</strong> te pretendia por<br />
esposa ain<strong>da</strong> era rio, mas hoje estou nas sucessões de ser mar.<br />
Nunca teu desamor tomou conselho com minha ânsia, senão com<br />
tua esquivança; e não me maravilho que agora te arrepen<strong>da</strong>s, porque os<br />
pesares, como alunos <strong>da</strong> dureza, nunca seguem os acertos <strong>da</strong> brandura.<br />
Quiseste-te mostrar tão soberana que perdeste então, por mostrar-te tão<br />
altiva, o poderes hoje ser alteza. A culpa foi tua, pois se então aceitaras o<br />
favor que a sorte te oferecia, talvez puderas conseguir o que hoje a<br />
ventura ofendi<strong>da</strong> te nega. Não te faltará esposo teu igual que te mereça,<br />
que nenhuma esfera pode ser sólio <strong>do</strong>s maiores planetas e se se ajustar<br />
aos pequenos não pode condizer aos grandes: ca<strong>da</strong> uma tem seus pólos<br />
em que se move. E quan<strong>do</strong> acertes na eleição, saberei estimar tua<br />
escolha, que para honrara teu esposo nunca lhe faltará meu favor.<br />
Isto continha o escrito de Raimun<strong>do</strong>, de que Fenisa dizem que recebeu<br />
tão repeti<strong>do</strong>s pesares que, além de lhe custarem tão copiosas lágrimas em que<br />
derrota<strong>da</strong>s navegaram as luzes de seus fermosos olhos alguns dias, disse a<br />
seus pais que em nenhum casamento lhe falassem, porque se resolvia em ser<br />
religiosa, dedican<strong>do</strong>-se a Cristo por esposa, para que Raimun<strong>do</strong> conhecesse<br />
que não havia de honrar a esposo que ela recebesse, pois só ao Esposo <strong>da</strong>s<br />
Virgens e Rei <strong>da</strong> Glória se desposava, e que nesta resolução, que seus pais e<br />
irmãos lhe louvaram e aprovaram, ficava firme e segura.<br />
Com este aviso de Adriano ficou alivia<strong>da</strong> minha tristeza, ven<strong>do</strong> que outro<br />
nesta vi<strong>da</strong> não alcançava por esposa a quem eu com tantos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e riscos
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1071<br />
pretendia e que <strong>da</strong> soberba com que me deu tão não espera<strong>do</strong> desengano,<br />
ficou igualmente com o desengano de Raimun<strong>do</strong> castiga<strong>da</strong>. Nem de sua altiva<br />
presunção se podia esperar pretendesse menos que aspirar a ser duquesa de<br />
Módena, nem, excluí<strong>da</strong> desta generosa pretensão, haver de abater os brios a<br />
outro empenho sublunar, senão dedicar-se ao Rei <strong>da</strong> Glória para ficar coroa<strong>da</strong><br />
por esposa sua.<br />
Sobre isto discursaram meus amigos tantas razões e tão discretas que<br />
de to<strong>do</strong> ficaram alivia<strong>do</strong>s meus sentimentos. Então dei mais louvores à eleição<br />
de meu esta<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> vi de Fenisa tão aplaudi<strong>do</strong>s os acertos de sua tão feliz<br />
eleição, e logo determinei partir-me pessoalmente a Roma para alcançar de<br />
Sua Santi<strong>da</strong>de dispensação <strong>da</strong> morte de Octávio, visto haver si<strong>do</strong> tão casual,<br />
como referi<strong>do</strong> tenho, em noite escura, acudin<strong>do</strong> aos clamores de um amigo por<br />
defender-lhe a vi<strong>da</strong>, que com trato <strong>do</strong>ble intentavam matá-lo. E despedin<strong>do</strong>-me<br />
<strong>do</strong>s amigos caminhei para Roma com estes cria<strong>do</strong>s, que erran<strong>do</strong> o caminho<br />
vim ter a esta ermi<strong>da</strong> que foi para mim o maior acerto <strong>da</strong> ventura, pois a<br />
companhia de pessoas na vi<strong>da</strong> reforma<strong>da</strong>s, na conversação discretas e <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> desengana<strong>da</strong>s traz grandes utili<strong>da</strong>des a quem a logra. Bem disse o<br />
Séneca 1189 que um dia <strong>do</strong>s sábios val mais que a i<strong>da</strong>de mais dilata<strong>da</strong> <strong>do</strong>s que<br />
o não são. Só, diz Cícero 1190 , podemos gloriar-nos <strong>do</strong> que sabemos e não <strong>do</strong><br />
que possuímos, sentença que tinha colhi<strong>do</strong> de Platão 1191 : porque as riquezas e<br />
bens que se possuem estão sujeitas, como diz Juvenal 1192 , ao rui<strong>do</strong>so voltar <strong>da</strong><br />
inconstante ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> fortuna, ao que as ciências não se sujeitam, porque nelas<br />
a fortuna não <strong>do</strong>mina. Agora <strong>do</strong>u por bem emprega<strong>do</strong>s os desvelos, os<br />
cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e as jorna<strong>da</strong>s em os anos de meu estu<strong>do</strong> justamente dispendi<strong>do</strong>s,<br />
pois são as letras que com eles adquiri o prémio de meus suores, que, como<br />
diz o Séneca 1193 , não deve um ânimo generoso recear os suores, quan<strong>do</strong> deles<br />
se segue o honroso e o aplaudi<strong>do</strong>. Em meus desgostos acho alívios, em meus<br />
pesares nos livros consolação, porque tu<strong>do</strong> quem estu<strong>do</strong>u achou nos livros, ou<br />
Senec, Epist. 10.<br />
Cicer., 3. De Orat.<br />
Plat., De amic.<br />
Juv., Sat. 7.<br />
Senec, Ep. 30.
1072 Padre Mateus Ribeiro<br />
o remédio contra os dissabores <strong>da</strong> fortuna, ou nos discretos o conselho que é<br />
grande ventura.<br />
- A ventura foi nossa, senhor Lisar<strong>do</strong>, (disse o Ermitão Felisberto) pois<br />
sempre o encontrar com discretos é grande felici<strong>da</strong>de. Dias há que eu e meu<br />
companheiro Dionísio não tivemos dia tão bem logra<strong>do</strong> como este, em ouvir-<br />
vos referir os vários discursos de vossa vi<strong>da</strong>, tão vária nos sucessos como<br />
venturosa nos fins a que dirigis vossa jorna<strong>da</strong>. Bem disse Plutarco 1194 que mal<br />
agradecia o descanso quem não tinha experimenta<strong>do</strong> o penoso <strong>do</strong>s trabalhos.<br />
Vós, senhor Lisar<strong>do</strong>, em poucos anos tivestes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> grandes experiências;<br />
e penden<strong>do</strong> estas, como diz Aristóteles 1195 , de largos discursos <strong>do</strong> tempo, vós<br />
conseguistes na moci<strong>da</strong>de largas experiências <strong>da</strong> velhice. Sentistes a<br />
ingratidão de Fenisa: nunca costuma o mun<strong>do</strong> premiar melhor a quem com<br />
desvelos o serve, se bem ela não vos enganou, pois nunca casar-se convosco<br />
prometeu; e assim a queixa mais nasceu de se rejeitarem vossos intentos <strong>do</strong><br />
que de haver ela falta<strong>do</strong> à palavra que de ser vossa esposa nunca vos deu.<br />
Vós ficastes satisfeito com seus desgostos e melhor satisfeito com o<br />
discreto de sua eleição, pois quem se dedica a Deus a to<strong>do</strong>s agra<strong>da</strong> e a<br />
ninguém ofende. Ela escolheu com a maior discrição e vós elegestes com a<br />
maior prudência, ela como magoa<strong>da</strong> e vós como senti<strong>do</strong>, e não sei eu que<br />
melhor pudesse ajuizar a paz mais serena <strong>do</strong> que em ambos decretou a<br />
vingativa paixão de magoa<strong>do</strong>s. É o esta<strong>do</strong> de religiosa para as mulheres o<br />
mais honroso, como se tem visto em o grande número de rainhas, princesas e<br />
infantes de duquesas, marquesas e senhoras que voluntariamente em várias<br />
religiões o tem toma<strong>do</strong>, que poden<strong>do</strong> ser no mun<strong>do</strong> grandes, em escolherem a<br />
Deus por seu esposo ficaram sen<strong>do</strong> maiores.<br />
É o esta<strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>tal que vós, senhor Lisar<strong>do</strong>, escolheis e alcançar<br />
pretendeis <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> o mais honroso, como lhe chamam S. João<br />
Crisóstomo 1196 , S. Jerónimo 1197 , S. Gregório 1198 , S. Basílio 1199 e finalmente<br />
1194 Plut., De log.<br />
1195 Arist., Ethic. 6.<br />
1196 Chrys., Horn. 2. Super 2. ad Tim.<br />
1197 S. Hieron., Super Aggae. 2.<br />
1198 S. Greg., Lib. Reg. c. 30.<br />
1199 S. Bas., Super Ps. 28.
Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte VI 1073<br />
to<strong>do</strong>s os Santos Padres engrandecem suas excelências, louvam sua digni<strong>da</strong>de<br />
e com encómios repeti<strong>do</strong>s aplaudem suas prerrogativas e a magnificência que<br />
em si encerra. É o esta<strong>do</strong> mais apropria<strong>do</strong> para poderes assistir em vossa<br />
pátria e na companhia <strong>da</strong> senhora vossa mãe o mais pacífico, em quem tendes<br />
sempre o amor seguro no nome suave de mãe, como diz Aristóteles 1200 e a<br />
experiência manifesta. Se, como pretendíeis, sucedera casardes com Fenisa,<br />
sen<strong>do</strong> sua condição tão altiva pela fermosura e riqueza <strong>do</strong> <strong>do</strong>te, seria por sua<br />
grande presunção intolerável, como diz Juvenal 1201 . E podia Raimun<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong><br />
tal príncipe, ressentir-se desgosta<strong>do</strong> de que haven<strong>do</strong> si<strong>do</strong> vosso hóspede em<br />
Bolonha e comunican<strong>do</strong>-vos seus pensamentos, vós intentásseis vir a alcançar<br />
por esposa a quem ele então para esposa com desvelos pedia. E suposto que<br />
ao presente a não aceitasse, nunca sofreria bem o ver-vos com Fenisa casa<strong>do</strong>,<br />
haven<strong>do</strong>-vos feito participante de sua pretensão. E seria odiardes-vos com um<br />
príncipe poderoso que hoje tendes por obriga<strong>do</strong> e casa<strong>do</strong> teríeis por inimigo<br />
descoberto, e, como diz Euripides 1202 , são as inimizades <strong>do</strong>s reis muito para se<br />
evitarem e suas iras para se temerem. Tu<strong>do</strong> o que podia <strong>da</strong>r-vos moléstias<br />
evitastes e o que pode assegurar-vos escolhestes, sen<strong>do</strong> abono de vosso juízo<br />
o discreto acerto de vossa eleição.<br />
Assim falou Felisberto, de que Lisar<strong>do</strong> lhe rendeu as graças de haver<br />
aprova<strong>do</strong> a boa sorte <strong>da</strong> escolha que fizera de seu esta<strong>do</strong>, e despedin<strong>do</strong>-se<br />
dele e de seu companheiro com grande alívio na tristeza que trazia, mui<br />
agradeci<strong>do</strong>, montan<strong>do</strong> no cavalo que seus cria<strong>do</strong>s já prepara<strong>do</strong> lhe tinham,<br />
bem informa<strong>do</strong> <strong>do</strong> caminho que havia de seguir para Roma, a quem chamou<br />
Cícero 1203 luz <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, mestra e arte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> política <strong>da</strong>s gentes, se ausentou<br />
<strong>da</strong> ermi<strong>da</strong>, deixan<strong>do</strong> aos ermitães sau<strong>do</strong>sos de sua discreta conversação e<br />
companhia.<br />
Arist., Ethic. 8.<br />
Juv., Sat. 6.<br />
Eurip., in Med.<br />
Laus Deo & Virgini Matri Mariae.<br />
Omnia sub censura Sanctaa Matris Ecclesiae.
1074 Padre Mateus Ribeiro
mais notáveis 1075<br />
I N D E X<br />
DAS COUSAS MAIS NOTÁVEIS E<br />
sentenciosas que se contém nesta Quarta,<br />
Quinta e Sexta Parte.<br />
O P. grande vai parte; o p. piqueno, página.<br />
Os mais breves não são tão essenciais. NB<br />
Nas edições consulta<strong>da</strong>s lê-se: O P. grande, vai Parte; o p. piqueno, pagina; o c. piqueno,<br />
columna; / e o & seqq e as seguintes. Os mais breves não são tão essenciaes. Suprimimos a<br />
indicação de coluna, pois a transcrição que apresentamos não contém essa divisão textual.<br />
A<br />
Acções. Vide verbo Juízo.<br />
Admiração.?A. p.654.H P.5. p.839.H<br />
P.6. p.963;p.965;p.981.<br />
Adulação. P.6. p.1062.<br />
Afabili<strong>da</strong>de. Vide verbo<br />
Benigni<strong>da</strong>de.<br />
Aflição. Vide verbo Pena.<br />
Afronta. P.4. p.649; p.717; p.718.H<br />
P.5. p.849;p.881.<br />
Agradecimento. P.4. p.590; 599.H<br />
P.6.p.901;p.1008; p.1062.<br />
Agravo. P.5. p.774; p.777; p.781 ;<br />
p.790; p.810; p.826; p.829; p.851;<br />
p.865.H P.6. p.1012; p.1037. Vide<br />
verbo Ofensa.<br />
Alegria. P.4. p.637; p.638; p.651 ;<br />
p.671 ; p.723.1! P.5. p.754; p.756;<br />
p.807; p.842; p.861; p.871; p.883;<br />
p.888.H P.6. p.918; p.922; p.1054.<br />
Alívio. PA. p.718; p.719; p.722. H<br />
P.5. p.606; p.766; p.886.H P.6.<br />
p.1020.<br />
Ambição. PA. p.649.H P.5. p.741;<br />
P.887.HP.6. p.913.<br />
Amigo. PA. p.682; p.728; p.730.H<br />
P.5. p.750; p.752; p.884; p.888. H<br />
P.6. p.926; p.939; p.970; p.973;<br />
p.975; p.1002; p.1009; p.1048.<br />
Amizade. PA. p.616; p.728; p.730.U<br />
P.5. p.750; p.752; p.829; p.859;<br />
p.864; p.866; p.892.H P.6. p.912;<br />
p.913; p.961;p.1018;p.1019;
1076 Index <strong>da</strong>s cousas<br />
p.1039;p.1040;p.1049. Vide<br />
verbo Inimizade.<br />
Amor. P.4. p.594; p.598; p.601;<br />
p.620; p.639; p.652; p.655; p.665;<br />
p.683. 750; p.752;H P.5. p.765;<br />
p.794; p.881; p.818; p.832;<br />
P.888.H P.6. p.915; p.926; p.930;<br />
p.937; p.966; p.976; p.980; p.983;<br />
p.998; p.999; p.1031; p.1051.<br />
Amparo. P.5. P.790; p.814.H P.6.<br />
p.1018;p.1028;p.1062. Vide<br />
verbo Socorro.<br />
Âncora. P.5. p.835. Vide verbo<br />
Esperança.<br />
Ânimo. P.4. p.645; p.675; p.713.H<br />
P.5. p.758;p.785;p.813.HP.6.<br />
p.1049; p.1071. Vide verbo<br />
Valentia.<br />
Antipatia. P.5. p.754.<br />
Armas. P.5. p.792; p.811; p.814;<br />
p.822; p.878.11 P.6. p.900; p.951;<br />
p.1011;p.1012;p.1046;p.1054.<br />
Vide verbo Guerra.<br />
Arrependimento. P.5. p.812; p.830;<br />
p.871.<br />
Assistência. P.5. p.832.<br />
Atrevimento. P.4. p.714.H P.5.<br />
p.763; p.764; p.779.H P.6. p.958.<br />
Aurora. P.4. p.624; p.626; p.630;<br />
P.734.H P.5. p.765; p.768; p.777;<br />
p.804; p.843; p.844.H P.6. p.900;<br />
p.917;p.939;p.971;p.1007;<br />
p.1043.<br />
Ausência. P.4. p.652.H P.5. p.780;<br />
p.876; p.832.H P.6. p.937; p.962;<br />
p. 1037; p. 1040.<br />
Azul. P.5. p.786.<br />
B<br />
Ban<strong>do</strong>leiros. P.4. p.690; p.702;<br />
p.703; p.708; p.732.j| P.5. p.844;<br />
p.848; p.867; p.872; p.876.<br />
Ban<strong>do</strong>s. P.4. p.600; p.607; p.609;<br />
p.610; p.631; p.651.11 P.5. p.748;<br />
p.750; p.757; p.770; p.821; p.822;<br />
p.852.<br />
Batalha. PA. p.698; p.712; p.713.H<br />
P.5. p.856.<br />
Beleza. P.4. p.594.H P.5. p.749.<br />
Vide verbo Fermosura.<br />
Benefício. P.5. p.851 .H P.6. p.901 ;<br />
p.1037;p.1062.<br />
Benevolência. P.6. p.1009.<br />
Benigni<strong>da</strong>de. P.6. p.926; p.988.<br />
Bens. P.5. p.855; p.862; p.888;<br />
P.894.HP.6. p.908;p.1001;<br />
p.1002;p.1012; p.1071.<br />
Bo<strong>da</strong>s. Vide verbo Desposórios.<br />
Bonança. P.6. p.1029.<br />
Brevi<strong>da</strong>de. P.4. p.604.H P.6. p.992;<br />
c<br />
p.1032; p. 1047; p. 1050.<br />
Caça. P.5. p.836; p.844; p.891.H<br />
P.6. p.1045;p.1058.<br />
Calami<strong>da</strong>de. Vide verbo Trabalhos.
Calar. P.5. p.751 ; p.829.<br />
Caminho. PA. p.386.H P.5. p.881.<br />
Campo. P.5. p.743.H P.6. p.1045.<br />
Cara. Vide verbo Rosto.<br />
Cargo. P.4. p.694.H P.6. p.954.<br />
Cari<strong>da</strong>de. P.4. p.725.<br />
Carta. P.4. p.709.H P.6. p.960;<br />
p.1067.<br />
Casa. PA. p.622; p.626.H P.6.<br />
p.1064.<br />
Casamento. P.4. p.600; p.606;<br />
p.614; p.636; p.646; p.648; p.660;<br />
p.664; p.684.H P.5. p.755; p.817;<br />
p.852; p.893.H P.6. p.934; p.953;<br />
p.984;p.1033.<br />
Castigo. PA. p.716; p.719.H P.5.<br />
p.741; p.810.11 P.6. p.1001. Vide<br />
verbo Culpa.<br />
Cativeiro. PA. p.626; p.655; p.717.H<br />
P.5. p.756;p.818;p.833.<br />
Cativo. Vide verbo Cativeiro.<br />
Causa. P.5. p.798; p.831; p.872.H<br />
P.6. p.903.<br />
Cautela. PA. p.604.H P.5. p.853.<br />
Celeri<strong>da</strong>de.<br />
Ceptro. Vide Coroa.<br />
Cerco. PA. p.711.<br />
Ci<strong>da</strong>de. PA. p.591; p.594; p.631;<br />
p.678; p.699.11 P.5. p.748; p.789;<br />
p.805; p.837.H P.6. p.908; p.912;<br />
p.1021;p.1023;p.1028. Vide<br />
verbo República.<br />
Ciência. Vide verbo Sabe<strong>do</strong>ria.<br />
Circunstância. P.5. p.773.<br />
mais notáveis 1077<br />
Ciúmes. P.5. p.778; p.783; p.790;<br />
p.792; p.810; p.812.H P.6. p.955;<br />
p. 1030; p. 1033. Vide verbo<br />
Queixas.<br />
Clavina. Vide verbo Espingar<strong>da</strong>.<br />
Cometa. P.6. p.959.<br />
Comércio. PA. p.589.<br />
Comunhão. PA. p.587.<br />
Compaixão. P.5. p.854; p.880.H P.6.<br />
p.1014.<br />
Companheiro. PA. p.702.<br />
Companhia. P.5. p.750.<br />
Confiança. P.5. p.859.<br />
Confissão. PA. p.587.<br />
Conjuração. P.5. p.812.<br />
Consciência. P.5. p.858.H P.6.<br />
p.1013.<br />
Conselheiro. PA. p.688; p.705;<br />
p.711; p.7141 P.6. p.942. Vide<br />
verbo Conselho.<br />
Conselho. PA. p.635; p.660; p.711 ;<br />
p.7141 P.5. p.747; p.753; p.756;<br />
p.810; p.818.U P.6. p.899; p.942;<br />
p.972;p.976;p.1033;<br />
p.1047P.1064;p.1065.<br />
Consolação. Vide verbo Alívio.<br />
Constância. PA. p.7331 P.5. p.886.<br />
Consulta. Vide verbo Conselho.<br />
Conten<strong>da</strong>. P.5. p.7921 P.6. p.903.<br />
Contentamento. PA. p.588; p.673.<br />
Continência. P.5. p.772. Vide verbo<br />
Modéstia.<br />
Contrário. PA. p.592; p.661 1 P.5.<br />
p.754; p.759.11 P.6. p.998 ; p.1041.
1078 Index <strong>da</strong>s cousas<br />
Contratos. P.5. p.890.<br />
Conversação. P.5. p.741 ; p.837.H<br />
P.6. p.897; p.980; p.1040; p.1044;<br />
p.1071.<br />
Coroa. P.5. p.744; p.745. Vide verbo<br />
Príncipe.<br />
Correio. Vide verbo Carta.<br />
Cortesia. P.6. p.897; p.916; p.930;<br />
p.957; p.971; p.976; p.1005;<br />
p.1012.<br />
Cossário. Vide verbo Ban<strong>do</strong>leiros.<br />
Costume. P.4. p.655; p.675.H P.6.<br />
p.988.<br />
Crédito. Vide verbo Honra.<br />
Cruel<strong>da</strong>de. P.4. p.691; p.703; p.708;<br />
p.709.<br />
Cui<strong>da</strong><strong>do</strong>. P.5. p.818; p.888.H P.6.<br />
p.904;p.971;p.973;p.1021.<br />
Culpa. P.4. p.701; p.718.H P.5.<br />
p.846.<br />
Curiosi<strong>da</strong>de. P.5. p.778.H P.6.<br />
D<br />
p.907.<br />
Danos. P.4. p.684.H P.5. p.870.<br />
Defensa. Vide verbo Amparo.<br />
Delito. P.5. p.797; p.800; p.813.<br />
Demora. Vide verbo Vagar.<br />
Dependência. P.4. p.651; p.696.<br />
Descanso. P.5. p.894. H P.6.<br />
p.1072.<br />
Desconfiança. P.5. p.802; p.804;<br />
p.810; p.859. Vide verbo Ciúmes.<br />
Descortesia. P.6. p.915.<br />
Descrição. Por serem muitas, se<br />
não põem aqui; vejam-se em seus<br />
próprios lugares.<br />
Desejos. PA. p.624; p.659; p.736. H<br />
P.5. p.791; p.823; p.829; p.888.H<br />
P.6. p.905; p.933; p.953.<br />
Desengano. P.4. p.636.H P.5. p.747;<br />
p.819; p.879.H P.6. p.942; p.945;<br />
p.956; p.995; p.1066; p.1071. Vide<br />
verbo Mu<strong>da</strong>nça & verbo Mun<strong>do</strong>.<br />
Desesperação. P.4. p.670.H P.5.<br />
P.764.H P.6. p.978.<br />
Desestimação. P.6. p.915.<br />
Desgostos. P.5. p.762; p.779; p.795;<br />
p.809; p.883; p.886; p.889; p.894.<br />
Desposórios. P.5. p.883; p.892.<br />
Vide verbo Esposo.<br />
Desprezo. P.6. p.967.<br />
Desterro. P.6. p.1001.<br />
Detença. Vide verbo Vagar.<br />
Devoção. P.4. p.587.<br />
Dia. P.4. p.723.H P.5. p.795; p.810;<br />
p.816; p.836; p.843; p.877;<br />
p.886.H P.6. p.900; p.938; p.939;<br />
p.943; p.958; p.983; p.1071.<br />
Difícil. Vide verbo Impossível.<br />
Digni<strong>da</strong>de. P.4. p.695.H P.5. p.890.H<br />
P.6. p.987; 990.<br />
Dilação. P.4. p.715.H P.6. p.976;<br />
p.990;p.1049; p.1066.<br />
Dinheiro. P.6. 900; p.1017.<br />
Discórdias. P.4. p.608; p.613.H P.5.<br />
p.755.11 P.6. p.942.
Discrição. Vide verbo Prudência.<br />
Desculpa. P.5. p.849.<br />
Discurso. P.4. p.602; p.605.H P.5.<br />
p.786; p.873.H P.6. p.953; p.975;<br />
p.997;p.1024;p.1032.<br />
Dispêndio. Vide verbo Gastos.<br />
Dissimulação. P.5. p.859.<br />
Dito P.5. p.829; p.854.H P.6. p.979.<br />
Vide verbo Conselho & verbo<br />
Discurso.<br />
Divisão. P.6. p.1049.<br />
Dor. P.4. p.639; p.641; p.678; p.712;<br />
p.718;p.725.HP.5. p.743;<br />
p.815;p.817; p.821; p.849.H P.6.<br />
p.997; p.1037. Vide verbo Pena,<br />
verbo Sofrimento & verbo<br />
Sentimento.<br />
Efeitos. Vide verbo Causa.<br />
Eleição. P.6. p.914; p.954; p.972;<br />
p.976;p.1026;p.1050.<br />
Eloquência. P.4. p.606; p.621;<br />
p.647.H P.5. p.764; p.871; p.886;<br />
p.892. H P.6. p.903; p.979; p.982;<br />
p.995;p.1051.<br />
Embaixa<strong>do</strong>r. P.6. p.913; p.918.<br />
Emen<strong>da</strong>. Vide verbo<br />
Arrependimento.<br />
Emparo. Vide verbo Amparo.<br />
Empera<strong>do</strong>r. Vide verbo Príncipe.<br />
Empresa. P.5. p.791. Vide verbo<br />
Resistência.<br />
mais notáveis 1079<br />
Engano. P.4. p.630.H P.5. p.859;<br />
P.862.H P.6. p.968.<br />
Ensinar. P.6. p.907.<br />
Entendimento. P.4. p.658.H P.5.<br />
P.886.H P-6. p.908.<br />
Envia<strong>do</strong>. Vide verbo Embaixa<strong>do</strong>r.<br />
Erro. P.4. p.694. HP.5. p.813;<br />
p.869.HP.6. p.1042.<br />
Erudição. Vide verbo Sabe<strong>do</strong>ria.<br />
Esperança. P.4. p.605; p.622.H P.5.<br />
p.p.791; p.815; p.832; p.834;<br />
p.889.11 P.6. p.037; p.964; p.970;<br />
p.1027.<br />
Espingar<strong>da</strong>. P.4. p.625. H P.5.<br />
p.819; p.834.<br />
Esposa. Vide verbo Esposo.<br />
Esposo. P.5. p.749; p.751 ; p.766;<br />
p.778; p.781; p.791; p.796; p.810;<br />
p.817; p.821; p.822; p.860;<br />
P.884.HP.6. p.953; p.1033;<br />
p.1035.<br />
Esquecimento. P.4. p.598.<br />
Estrela. P.5. p.886.H P.6. p.939.<br />
Estu<strong>do</strong>. P.6. p.898; p. 1071. Vide<br />
verbo Armas & verbo Letras.<br />
Excesso. P.6. p.942.<br />
Execução. P.5. p.812.<br />
Exemplo. P.4. p.661; p.710; p.716.H<br />
P.6. p.1039.<br />
Experiência. P.5. p.747; p.853;<br />
P.895.H P.6. p.972; p.1073. Vide<br />
verbo Tempo.
1080 Index <strong>da</strong>s cousas<br />
F<br />
Fábula. P.5. p.863; p.864; p.865.<br />
Falar. P.5. p.763; p.839.H P.6.<br />
p.988; p.995.<br />
Falsi<strong>da</strong>de. P.6. p.1021. Vide verbo<br />
Ver<strong>da</strong>de.<br />
Fama. P.5. p.746; p.796; p.811;<br />
p.815; p.823; p.858.H P.6. p.906;<br />
p.933; p.945.<br />
Favor. Vide verbo Amparo.<br />
Feal<strong>da</strong>de. PA. p.658; p.666.H P.6.<br />
p.948; p.989; p.998.<br />
Felici<strong>da</strong>de. Vide verbo Fortuna.<br />
Fénix. P.4. p.707; p.721; p.734.H<br />
P.5. p.890.11 P.6. p.902; p.927.<br />
Feri<strong>da</strong>. P.5. p.853.H P.6. p.1007;<br />
p.1012; p.1013.<br />
Fermosura. P.4. p.594; p.603;<br />
p.616; p.625; .630; p.644; p.654;<br />
p.658; p.687; p.706; p.727.H P.5.<br />
p.745;p.772;p.824;p.831;<br />
p.883.11 P.6. p.909; p.927; p.936;<br />
p.947;p.950;p.986;p.1034;<br />
p.1073.<br />
Fi<strong>da</strong>lgo. PA. p.634. Vide verbo<br />
Fi<strong>da</strong>lguia.<br />
Fi<strong>da</strong>lguia. PA. p.634. H P.5. p.768;<br />
p.772; p.776; p.815; p.865.H P.6.<br />
p.966;p.1034.<br />
Fideli<strong>da</strong>de. P.5. p.826; p.864.H P.6.<br />
p.1056.<br />
Filho. P.4. P.661.HP.6. p.972;<br />
p.1029.<br />
Fim. PA. p.604.11 P.5. p.755; p.791;<br />
p.813;p.817.HP.6. p.1023.<br />
Flor. PA. p.734. H P.5. p.742; p.743;<br />
P.890.H P.6. p.902.<br />
Fonte. PA. p.683.H P.5. p.742;<br />
p.743; p.807; p.808; p.852; p.855;<br />
p.860.11 P.6. p.934; p.940; p.974;<br />
p.1065.<br />
Foragi<strong>do</strong>s. Vide verbo Ban<strong>do</strong>leiros.<br />
Fortuna. PA. p.674; p.680; p.696;<br />
p.717; p.732. H P.5. p.739; p.778;<br />
p.782; p.796; p.814; p.842;<br />
P.854.H P.6. p.900; p.907; p.913;<br />
p.992;p.999;p.1004; p.1012;<br />
1045;p.1061;p.1071.<br />
Freira. Vide verbo Religiosa.<br />
Fruição. P.5. p.832.<br />
Fugi<strong>da</strong>. P.5. p.795; p.798; p.814;<br />
p.816; p.834; p.881. H P.6. p.910;<br />
p.943; p.1044; p.1056.<br />
Furto. P.5. p.846.<br />
Futuro. Vide verbo Fim.<br />
G<br />
Galas. P.5. p.788; p.878; p.884;<br />
P.892.H P.6. p.920; p.921; p.963.<br />
Gasto. P.5. p.749.<br />
Generosi<strong>da</strong>de. Vide verbo Fi<strong>da</strong>lguia.<br />
Girassol. P.6. p.987.<br />
Governo. P.6. p.933; p.1023.<br />
Graças. PA. p.590; p.605; p.607;<br />
p.612; p.653.
Grandeza. P.5. p.865.H P.6. p.976;<br />
p.1051.<br />
Guar<strong>da</strong>. P.6. p.1021.<br />
Guerra. P.4. p.605; p.608; p.614;<br />
P.651.H P.5. p.755; p.787; p.814;<br />
p.822; p.823; p.852; p.887.H P.6.<br />
p.900;p.947;p.971;p.1057;<br />
p.1058.<br />
Guerra Civil. Vide verbo Ban<strong>do</strong>s e<br />
H<br />
verbo Guerra.<br />
História. P.6. p.897.<br />
Homem. P.5. p.750; p.751. Vide<br />
verbo Mancebo.<br />
Honesti<strong>da</strong>de. P.5. p.868.<br />
Honra. P.4. p.695.H P.5. p.793;<br />
p.800; p.811; p.815; p.864.H P.6.<br />
p.954;p.957;p.985;p.1012.<br />
Hospício. Vide verbo Hospitali<strong>da</strong>de.<br />
Hospitali<strong>da</strong>de. P.4. p.588; p.590.H<br />
I<br />
P.5. p.822.<br />
Ignorância. P.5. p.744; p.767; p.817;<br />
p.826; p.846; p.859; p.889.H P.6.<br />
p.908;p.991;p.1042;p.1071.<br />
Igual<strong>da</strong>de. P.6. p.978; p.992; p.994;<br />
p.999;p.1018.<br />
Iguarias. P.5. p.788.H P.6. p.1042.<br />
fman. P.5. p.831.<br />
Imitação. P.6. p.1039.<br />
Importância. P.5. p.810.<br />
mais notáveis 1081<br />
Impossível. P.4. p.610; p.643;<br />
p.645; p.661; p.667; p.668.H P.5.<br />
p.837.11 P.6. p.945; p.956; p.1047.<br />
Inadvertência. P.5. p.814.<br />
Inconstância. Vide verbo Fortuna e<br />
verbo Mu<strong>da</strong>nça.<br />
Infâmia. Vide verbo Afronta.<br />
Infelici<strong>da</strong>de. P.5. p.753; p.825;<br />
p.832; p.862; p.865.H P.6. p.916;<br />
p. 1038; p.1058.<br />
Infortúnio. P.5. p.853. Vide verbo<br />
Fortuna.<br />
Ingratidão. P.5. p.751 ; p.766; p.806;<br />
p.826; p.889.11 P.6. p.941; p.947;<br />
p.998.<br />
Inimigo. P.4. p.648; p.649.H P.5.<br />
p.782; p.813; p.864.H P.6. p.976;<br />
p.1002; p.1021; p.1023. Vide<br />
verbo Inimizade.<br />
Inimizade. P.4. p.648; p.649.H P.5.<br />
p.748; p.750; p.852; p.864 Vide<br />
verbo Amizade.<br />
Injustiça. P.5. p.811.H P.6. p.998.<br />
Vide verbo Razão.<br />
Inocência. P.5. p.797; p.799; p.810.<br />
Interesse. P.6. p.983.<br />
Inveja. P.4. p.722. H P.5. p.821;<br />
p.824; p.839. U P.6. p.910; p.1013.<br />
Ira. P.4. p.688; p.700; p.715.H P.5.<br />
p.812; p.867.H P.6. p.935; p.941;<br />
p.983; p.991; p.1001.<br />
Irmão. P.4. p.592; p.611 .H P.5.<br />
p.757.
1082 Index <strong>da</strong>s cousas<br />
J<br />
Jacinta. P.5. p.840.<br />
Jardim. P.4. p.683; p.734. H P.5.<br />
p.742; p.850; p.890.<br />
Juiz. P.6. p.897; p.933; p.976;<br />
p.1034;p.1064.<br />
Juízo. P.4. p.660; p.681 .H P.5.<br />
p.747; p.786; p.792; p.825 p.828.n<br />
P.6. p.983;p.1023.<br />
Justiça. P.4. p.625.H P.5. p.793. P.6.<br />
L<br />
p.897; p.933; p.976; p.1034;<br />
P.1064.HP.6. p.998;p.1022;<br />
p.1059.<br />
Lágrimas. P.4. p.611 ; p.688; p.692;<br />
p.718; p.732. H P.5. p.749; p.768;<br />
p.812; p.831; p.871; p.878;<br />
P.882.HP.6. p.938;p.1026.<br />
Leis. P.5. p.811; p.822; p.846. H P.6.<br />
p.1059. Vide verbo Letras.<br />
Letras. P.5. p.806; p.846.H P.6.<br />
p.900; p.908; p.972; p.981; p.982;<br />
p.984;p.1050.<br />
Liberal. Vide verbo Liberali<strong>da</strong>de.<br />
Liberali<strong>da</strong>de. P.4. p.682.H P.5.<br />
p.837.HP.6. p.914;p.960.<br />
Liber<strong>da</strong>de. P.4. p.723.H P.5. p.816;<br />
p.833;p.891.HP.6. p.1056.<br />
Língua. Vide verbo Falar.<br />
Locução. Vide verbo Eloquência.<br />
Loucura. P.6. p.937. Vide verbo<br />
Amor.<br />
Louvor. P.5. p.824.H P.6. p.980;<br />
p.1062.<br />
Lua. P.4. p.592; p.687; p.725;<br />
p.726.H P.5. p.758; 766; 777;<br />
p.789; p.795; p.803; p.808; p.838.<br />
HP.6. p. 107; p. 1053.<br />
Lugar. P.4. p.649.H P.5. p.816. Vide<br />
M<br />
verbo Dilação e verbo Vagar.<br />
Mágoa. Vide verbo Lágrimas.<br />
Males. P.4. p.653.H P.5. p.746;<br />
p.815; p.855; p.894.H P.6. p.908;<br />
p.928;p.1039;p.1030.<br />
Malícia. P.5. p.859.H P.6. p.1013.<br />
Mancebo. P.5. p.750; p.751 ; p.756;<br />
p.857H P.6. p.918; p.927; p.939;<br />
p.1030.<br />
Manhã. P.4. p.628; p.783.H P.5.<br />
p.768; p.783.H P.6. p.899; p.962.<br />
Manjares. P.5. p.788.<br />
Mar. P.4. p.674.H P.5. p.843.<br />
Maravilhas. P.6. p.906; p.952.<br />
Mari<strong>do</strong>. Vide verbo Esposo.<br />
Masmorra. Vide verbo Cativeiro.<br />
Matrimónio. P.4. p.611; p.612. Vide<br />
verbo Casamento.<br />
Mediania. P.4. p.681.<br />
Medicina. P.5. p.861.<br />
Me<strong>do</strong>. Vide verbo Temor.<br />
Meio. P.5. p.792; p.793; p.910;<br />
p.820; p.831.11 P.6. p.903; p.972.<br />
Vide verbo Fim.
Memória. P.4. p.721.^1 P.5. p.814;<br />
p.830; p.838; p.842.H P.6. p.906;<br />
p.958.<br />
Merecimento. P.4. p.607.U P.5.<br />
p.819; p.889.<br />
Mestre. P.6. p.908.<br />
Milícia. P.6. p.900. Vide verbo<br />
Armas.<br />
Miséria. P.5. p.853; p.880; p.885.H<br />
P.6. p.1028.<br />
Moci<strong>da</strong>de. P. 5. p.747; p.801 ; p.823.<br />
H P.6. p.972; p.989; p.1034. Vide<br />
verbo Mancebo e verbo<br />
Sabe<strong>do</strong>ria.<br />
Modéstia. P.5. p.776.H P.6. p.914.<br />
Vide verbo Continência.<br />
Mulher. P.4. p.593; p.601 ; p.603;<br />
p.612; p.616; p.621; p.622; p.651;<br />
p.661 ; p.707.H P.5. p.745; p.799;<br />
p.825; p.886.11 P.6. p.906; p.907;<br />
p.934;p.945;p.983;p.1029;<br />
p.1033; p. 1035; p. 1072. Vide<br />
verbo Fermosura, verbo Lágrimas<br />
e verbo Rapto.<br />
Monarquia. P.5. p.744. j| P.6. p.923.<br />
Morte. P.4. p.606; p.614; p.706;<br />
p.708; p.712; p.718; p.720.H P-5.<br />
p.744 p.745; p.746; p.798; p.810;<br />
p.812; p.826; p.827; p.830; p.865;<br />
P.873.HP.6. p.966;p.1013;<br />
p.1029. Vide verbo Morte.<br />
Mortos. P.4. p.615; p.723.H P.5.<br />
p.744 p.745; p.746. Vide verbo<br />
Morte.<br />
mais notáveis 1083<br />
Mu<strong>da</strong>nça. P.4. p.698; p.711; p.740.H<br />
P.5. p.744; p.745; p.748; p.886. H<br />
P.6. p.950; p. 1030; p. 1031;<br />
p.1032;p.1060.<br />
Multidão. Vide verbo Guerra.<br />
Mun<strong>do</strong>. P.4. p.643; p.645; p.698;<br />
p.734.11 P.5. p.739; p.743; p.748;<br />
p.871;p.887.HP.6. p.900; 906;<br />
p.907; p.1045. Vide verbo<br />
Mu<strong>da</strong>nça e verbo Novi<strong>da</strong>de.<br />
Música. P.4. p.699.H P.5. p.751;<br />
N<br />
p.779; p.894.H P.6. p.939; p.944.<br />
Natureza. P.6. p.998; p.1036;<br />
p.1039.<br />
Nau. P.4. p.591 ; p.675.H P.5. p.814;<br />
p.835.<br />
Navegação. P.5. p.843.<br />
Nece<strong>da</strong>de. P.5. p.752; p.829. Vide<br />
verbo Ignorância.<br />
Necessi<strong>da</strong>de. P.4. p.644.H P.6.<br />
p.911;p.1002.<br />
Negócio. P.5. p.822.H P.6. p.985;<br />
p.1047; p.1054. Vide verbo<br />
Conselho.<br />
Nobreza. Vide verbo Fi<strong>da</strong>lguia.<br />
Noite. P.4. p.589; p.626; p.672;<br />
p.673; p.699; p.724.H P.5. p.762;<br />
p.783;p.789;p.795;p.816;<br />
p.836.H P.6. p.938; p.939; p.979;<br />
p.994;p.1006.
1084 Index <strong>da</strong>s cousas<br />
Nome. PA. p.608.H P.5. p.746;<br />
p.840. Vide verbo Fama.<br />
Novas. P.6. p.985; p.1015.<br />
Novi<strong>da</strong>de. P.4. p.683; p.698; p.735.<br />
O<br />
Obediência. P.5. p.887.<br />
Obrigação. P.5. p.774.H P.6. p.998;<br />
p.1022; p. 1036; p. 1048.<br />
Obséquio. P.5. p.775; p.851 .H P.6.<br />
p.1037. Vide verbo Benefício.<br />
Ocasião. P5. p.764; p.776; p.779;<br />
p.810.11 P.6. p.958; p.984; p.986;<br />
p. 1047; p. 1054.<br />
Ociosi<strong>da</strong>de. PA. p.650.<br />
Ódio. PA. p.648.H P.5. p.754; p.821;<br />
p.892 H P.6. p.915; p.966; p.983;<br />
p.1024.H P.6. p.923; p.924; p.983;<br />
p.1022 Vide verbo Vingança.<br />
Ofensa. PA. p.649.H P.5. p.774;<br />
p.777; p.832; p.865. Vide verbo<br />
Agravo.<br />
Olhos. P.5. p.815; p.838; p.851;<br />
p.876.H P.6. p.902; p.960; p.1038;<br />
p.1041.<br />
Opinião. P.5. p.858. Vide verbo<br />
Fama.<br />
Oportuni<strong>da</strong>de. Vide verbo Ocasião.<br />
Oração. PA. p.593; p.599; p.606;<br />
p.611;p.613;p.621.<br />
Ora<strong>do</strong>res. P.6. p.904; p.984. Vide<br />
verbo Eloquência e verbo Letras.<br />
Ouro. P.5. P.833.H P.6. p.902.<br />
Ousadia. Vide verbo Atrevimento.<br />
Ouvi<strong>do</strong>s. P.5. p.863.11 P.6. p.1038.<br />
P<br />
Pais. PA. P.664.Ï1 P.5. p.819; p.846;<br />
p.854; p.870; p.884.H P.6. p.991.<br />
Paixão. PA. p.606; p.688.H P.5.<br />
p.753; p.762; p.812; p.828.H P.6.<br />
p.962.<br />
Palavra. PA. p.641.H P.5. p.845;<br />
P.866.H P.6. p.952; p.970.<br />
Parciali<strong>da</strong>des. PA. p.648. Vide<br />
verbo Ban<strong>do</strong>s.<br />
Parecer. P.6. p.1035. Vide verbo<br />
Conselho.<br />
Parentes. P.5. p.819.H P.6. p.1018;<br />
p. 1039; p. 1043.<br />
Parentesco. P.5. p.794.H P.6.<br />
p.1043.<br />
Pátria. PA. p.609; p.613; p.614;<br />
p.674; p.679; p.694; p.726.H P.5.<br />
p.756; p.847; p.888.H P.6. p.899.<br />
Paz. PA. p.606; p.613; p.615;<br />
P.648.H P.5. p.793; p.811; p.822;<br />
p.852; p.887.11 P.6. p.1056;<br />
p.1058.<br />
Pejo. P.5. p.811; p.847.<br />
Pena. PA. p.640; p.678; p.719;<br />
p.720; p.721, p.722.H P.5. p.743;<br />
p.746; p.784; p.788; p.804; p.821;<br />
p.873; p.884.11 P.6. p.973; p.975;<br />
p.1035; p.1037; p.1041.
Perdão. PA. p.607; p.610; p.612.H<br />
P.5. p.879.11 P.6. p.923.<br />
Peregrino. PA. p.588; p.590.<br />
Pergunta. P.5. p.808.<br />
Perigo. P.4. p.603.H P.5. p.787;<br />
P.799H P.6. p.942; p.943; p.1013;<br />
p.1022.<br />
Pérola. PA. p.649.H P.6. p.902.<br />
Perpetui<strong>da</strong>de. Vide verbo Fama e<br />
verbo Nome.<br />
Perseverança. PA. p.588<br />
Persuasão. P.6. p.949; p.982. Vide<br />
verbo Eloquência.<br />
Pertensão. P.5. p.755; p.793.<br />
Pesar. PA. p.639; p.641 .U P.5.<br />
p.812.11 P.6. p.971; p.975. Vide<br />
verbo Dor, verbo Pena e verbo<br />
Sentimento.<br />
Petição. PA. p.590; p.594.H P.5.<br />
P.758.HP.6. p.917.<br />
Pie<strong>da</strong>de. PA. p.735.^1 P.5. p.811 .H<br />
P.6. p.923.<br />
Pintores. Vide verbo Pintura.<br />
Pintura. PA. p.597; p.622.H P.6.<br />
p.903; p.963; p.989.<br />
Pirata. Vide verbo Ban<strong>do</strong>leiros.<br />
Pobreza. PA. p.593. H P.5. p.742;<br />
p.862; p.866.H P.6. p.1002;<br />
p.1021.<br />
Poder. P.6. p.936. Vide verbo<br />
Poderosos.<br />
Poderosos. P.5. p.822; p.827.H P.6.<br />
p.955;p.966;p.1001;p.1012;<br />
mais notáveis 1085<br />
p.1021; p.1024. Vide verbo<br />
Príncipe.<br />
Política. P.6. p.1054.<br />
Pomba. P.5. p.834.<br />
Posse. P.5. p.832; p.891.<br />
Povo. P.6. p. 1017; p.1054.<br />
Prática. Vide verbo Conversação.<br />
Prazer. Vide verbo Alegria.<br />
Prémio. P.5. p.827; p.894.<br />
Presente. PA. p.719; p.721.<br />
Preso. P.6. p.1056.<br />
Pressa. P.5. p.812; p.814.^1 P.6.<br />
p.1034.<br />
Presunção. P.6. p.1003; p.1073.<br />
Primavera. PA. p.623; p.683.H P.5.<br />
p.750.H P-6. p.928.<br />
Primor. P.5. p.864.<br />
Príncipe. PA. p.640; p.719H P.5.<br />
p.739; p.745. H P.6. p.903; p.923;<br />
p.927; p.933; p.939; p.942; p.943;<br />
p.950; p.977; p.978; p.982; p.990;<br />
p.1056; p.1058; p.1073.<br />
Princípio. PA. p.591; p.684.H P.5.<br />
p.785; p.813; p.869.H P.6. p.1039.<br />
Prisioneiro. PA. p.639; p.716; p.736.<br />
Privança. P.1. Vide verbo<br />
Valimento.<br />
Promessas. P.5. p.860; p.862.<br />
Prova. P.5. p.793.<br />
Prudência. PA. p.645.H P.5. p.837;<br />
p.852.H P.6. p.914; p.1014; 1024;<br />
1033; p. 1050; p.1055; p. 1072.<br />
Prudentes. Vide verbo Prudência.<br />
Punição. Vide verbo Castigo.
1086 Index <strong>da</strong>s cousas<br />
Pureza. P.6. p.936.<br />
Q<br />
Queixas. PA. p.609; p.624; p.732.H<br />
P.5. p.752; p.761; p.767; p.777;<br />
p.788; p.798; p.863; p.886.H P.6.<br />
p.905; p.931; p.967; p.986;<br />
p. 1006; p. 1066.<br />
Quinta. P.4. p.599; p.624.H P.5.<br />
R<br />
p.759; p.829; p.836; p.850; p.852;<br />
p.884; p.891.1] P.6. p.929; p.1051.<br />
Rapto. P.4. p.603.H P.5. p.763;<br />
p.774.<br />
Razão. P.5. p.761 ; p.763; p.790;<br />
p.823.<br />
Recor<strong>da</strong>ção. P.5. p.847.<br />
Rei. Vide verbo Príncipe.<br />
Relação. PA. p.591.<br />
Religiosa. P.6. p.1072.<br />
Remédio. P.4. p.629.H P.5. p.741 ;<br />
p.810.H P.6. p.928; p.997; p.1018;<br />
p. 1049; p. 1054.<br />
Repente. P.4. p.600.<br />
República. PA. p.615.H P.5. p.805;<br />
p.828. H P.6. p.933;p.1054.<br />
Resistência. PA. p.714l P.5. p.755;<br />
p.781;p.791.<br />
Resposta. PA. p.601 ; p.602.H P.5.<br />
p.752; p.808; p.819l P.6. p.960;<br />
p.972;p.981; p.997.<br />
Retira<strong>da</strong>. Vide verbo Fi<strong>da</strong>lguia.<br />
Retiro. P.5. p.739; p.759; p.832.H<br />
P.6. p.914.<br />
Retórica. Vide verbo Eloquência e<br />
verbo Sabe<strong>do</strong>ria.<br />
Ricos. P.5. p.822; p.837; p.866. U<br />
P.6. p.1002;p.1021.<br />
Rigor. PA. p.718.<br />
Rio. PA. p.593; p.598; p.725.D P.5.<br />
p.759; 777; p.806; p.807; p.829;<br />
p.855. H P.6. p.939; p.967; p.1050.<br />
Riqueza. P.5. p.887; p.890.H P.6.<br />
p.970;p.973;p.992;p.1002;<br />
p.1019; p.1071.<br />
Rosa. PA. p.734.H P.5. p.890.H P.6.<br />
p.902.<br />
Rosto. PA. p.599; p.640.H P.5.<br />
p.788; p.895.11 P.6. p.962; p.1042.<br />
Vide verbo Fermosura.<br />
Roubo. PA. p.603. Vide verbo<br />
S<br />
Rapto.<br />
Sabe<strong>do</strong>ria. P.5. p.741 ; p.745; p.746;<br />
p.817.H P.6. p.989; p.907; p.980.<br />
Sábios. Vide verbo Sabe<strong>do</strong>ria.<br />
Sacer<strong>do</strong>te. P.6. p.1072.<br />
Sagaci<strong>da</strong>de. P.6. p.1050. Vide<br />
verbo Prudência.<br />
Saltea<strong>do</strong>r. Vide verbo Ban<strong>do</strong>leiros.<br />
Sau<strong>da</strong>des. P.5. p.771 ; p.806; 832.j|<br />
P.6. p.937. Vide verbo Amor e<br />
verbo Lágrimas.
Saúde. P.5. p.833.U P.6. p.1020;<br />
p.1042.<br />
Secretário. P.6. p.939. Vide verbo<br />
Segre<strong>do</strong>.<br />
Sede. P.5. p.860. Vide verbo Fonte.<br />
Segre<strong>do</strong>. P.4. p.685; p.709; p.729.<br />
|P.5. p.605; p.760; p.826.H P.6.<br />
p.936; p.939.<br />
Segurança. P.6. p.1004; p.1056.<br />
Vide verbo Fim.<br />
Semelhança. P.5. p.893.H P.6.<br />
p.912; p.999.<br />
Sem-razão. P.5. p.813. Vide verbo<br />
Razão.<br />
Senhorio. P.6. p.987; p.991.<br />
Sentença. P.6. p.997.<br />
Senti<strong>do</strong>. P.4. p.638.<br />
Sentimento. P.4. p.606; p.610;<br />
p.613; p.640; p.646; p.652; p.679;<br />
p.706;p.718;p.726;p.730;<br />
P.735.H P.5. p.743; p.759; p.885.H<br />
P.6. p.969; p.974.<br />
Serviços. P.5. p.753.<br />
Severi<strong>da</strong>de. P.6. p.1009.<br />
Silêncio. Vide verbo Segre<strong>do</strong>.<br />
Simpatia. P.4. p.662.H P.5. p.754.H<br />
P.6. p.990.<br />
Singulari<strong>da</strong>de. Vide verbo Único.<br />
Soberba. P.6. p.919.<br />
Socorro. P.4. p.644; p.725.H P.5.<br />
P.813.HP.6. p.1013; p.1018;<br />
p.1028;p.1046;p.1049.<br />
Sofrimento. P.4. p.615; p.639.H P.5.<br />
p.764; p.895.<br />
mais notáveis 1087<br />
Sol. Seu nascimento P.5. p.768;<br />
p.777; p.877.11 P.6. p.939; p.1034.<br />
Seu maior auge em o meio-dia.<br />
P.4. p.735.11 P.5. p.742; p.830. H<br />
P.6. p.934.<br />
Seu o<strong>caso</strong>. P.4. p.589; p.592;<br />
p.593; p.594; p.635; p.649;<br />
p.721.11 P.5. p.789; p.836; p.838;<br />
p.873; p.876.11 P.6. p.1005.<br />
Várias considerações <strong>do</strong> sol. P.4.<br />
p.596; p.662; p.698; p.736.H P.5.<br />
p.774; p.798; p.815; p.838; p.873;<br />
p.876; p.886.11 P.6. p.946; p.987;<br />
p.1034.<br />
Sole<strong>da</strong>de. P.6. p.973. Vide verbo<br />
Retiro e verbo Sau<strong>da</strong>des.<br />
Sono. P.4. p.624.H P.5. p.826; 827.H<br />
P.6. p.938; p.958.<br />
Suspeita. Vide verbo Ciúmes.<br />
T<br />
Temeri<strong>da</strong>de. P.5. p.763.H P.6.<br />
p.1003.<br />
Temor. P.4. p.712.H P.5. p.782;<br />
p.792; p.797; p.798; p.803; p.811;<br />
p.816; p.844; p.881 .H P.6. p.911 ;<br />
p.923;p.990;p.1001; p.1004;<br />
p.1014; p.1024; p.1026; p.1034.<br />
Tempo. P.4. p.597; p.604; p.643;<br />
p.647; p.718; p.724; p.729.H P.5.<br />
p.741; p.759; p.791; p.800; p.812;<br />
p.835; p.854; p.886; p.895.H P.6.
1088 índex <strong>da</strong>s cousas<br />
p.906; p.925; p.969; p.997;<br />
p.1016;p.1045;p.1049.<br />
Termo. Vide verbo Fim.<br />
Tirania. P.5. p.892. Vide verbo<br />
Cruel<strong>da</strong>de.<br />
Tiranos. PA. p.691 ; p.709.<br />
Trabalhos. P.5 p.740; p.827; p.842;<br />
p.889; p.894.11 P.6. p.1072.<br />
Traje. P.5. p.788. Vide verbo Galas.<br />
Tributo. P.5. p.814.H P.6. p.1024.<br />
Tristeza. P.4. p.638; p.656; p.725;<br />
p.730. H P.5. p.747; p.761; p.765;<br />
p.832; p.861; p.883; p.889.H P.6.<br />
p.962; p.1032; p.1035; p.1054.<br />
Triunfo. P.5. p.792.H P.6. p.976;<br />
U<br />
p.990.<br />
União. P.4. p.616.11 P.5. p.852;<br />
P.893.H P.6. p.989; p.1038; p.1040<br />
p.1056.<br />
Único. P.4. p.597.11 P.5. p.890.H P.6.<br />
p.906.<br />
Universi<strong>da</strong>de. P.4. p.592; p.681;<br />
p.701.<br />
Urbani<strong>da</strong>de política. Vide verbo<br />
V<br />
Cortesia.<br />
Vagar. PA. p.605; p.644;p.715.H<br />
P.6. p.961; p.1032; p.1057;<br />
p.1059.<br />
Valentia. P.4. p.692.H P.5. p.769;<br />
p.773;p.787;p.813;p.865.<br />
Vali<strong>do</strong>. P.6. p.923; p.939.<br />
Valimento. P.4. p.722.H P.5. p.773.H<br />
P.6. p.924; p.939; p.1028.<br />
Valor. P.5. p.786; p.787; p.813;<br />
p.894.<br />
Varão. P.4. p.645.<br />
Varie<strong>da</strong>de. Vide verbo Mu<strong>da</strong>nça.<br />
Vassalo. P.6. p.946; p.953; p.1056.<br />
Velhos. P.6. p.972.<br />
Ventura. P.4. p.601 ; p.642; p.645;<br />
p.661; p.718; p.720.H P.5. p.740;<br />
p.753; p.763; p.781; p.826; p.841;<br />
p.862.11 P.6. p.910; p.915; p.986;<br />
p.992.<br />
Ver<strong>da</strong>de. P.4. p.675.H P.5. p.791;<br />
p.804; p.806; p.860; p.863.H P.6.<br />
p.963;p.1020; p.1035.<br />
Vergonha. Vide verbo Pejo.<br />
Vesti<strong>do</strong>s. Vide verbo Galas.<br />
Vi<strong>da</strong>. P.4. p.641;p.703;p.713;<br />
p.722 p.726.H P.5. p.740; p.742;<br />
p.799; p.811; p.815; p.826; p.833;<br />
P.873.HP.6. p.988;p.1013;<br />
p.1018;p.1034;p.1060;p.1071.<br />
Vilipêndio. Vide verbo Vitupério.<br />
Vingança. PA. p.614; p.649; p.715.H<br />
P.5. p.779;p.800; p.811; p.821;<br />
p.826; p.865.H P.6. p.983; p.1012;<br />
p.1033.<br />
Violência. PA. p.601 ; p.602; p.664;<br />
p.680; p.703.11 P.5. p.744; 745;<br />
p.756; p.763; p.764; p.773.
Virtude. P.5. p.794; p.800.H P.6.<br />
p.936.<br />
Vizinhança. P.5. p.855.<br />
Vista. Vide Olhos.<br />
Vitória. P.4. p.696.H P.6. p.903;<br />
p.976;p.990;p.992;p.1050.<br />
mais notáveis 1089<br />
LAUS DEO.<br />
Vitupério. PA. p.718; p.721.<br />
Vontade. PA. p.605; p.662; p.734.H<br />
P.5. p.747; p.793; p.832; p.857;<br />
P.890.H P.6. p.904; p.948; p.1012;<br />
p.1039.<br />
Voto. PA. p.678.
INDICE<br />
Entre a moralização e o deleite: a discreta conversação e a<br />
exemplari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s narrativas 3<br />
Bibliografia 81<br />
Critérios de edição <strong>do</strong> texto 89<br />
ALÍVIO DE TRISTES E CONSOLAÇÃO DE QUEIXOSOS<br />
Primeiro Volume<br />
Fac-símile <strong>da</strong> capa 97<br />
Dedicatória 101<br />
Prólogo ao leitor 103<br />
índex <strong>do</strong>s capítulos de to<strong>da</strong>s astrês partes deste livro 105<br />
Licenças 111<br />
Parte 1 115<br />
Parte II 219<br />
Parte III 379<br />
índex <strong>da</strong>s cousas mais notáveis 561<br />
Segun<strong>do</strong> Volume<br />
índex <strong>do</strong>s capítulos que se contém neste segun<strong>do</strong> volume 581<br />
Parte IV 587<br />
Parte V 739<br />
Parte VI 897<br />
índex <strong>da</strong>s cousas mais notáveis 1075<br />
1091