Jean-Baptiste Debret. Vista interior da Capela Real, desenhada do degrau superior do altar-mor, olhando para o lado da entrada da Igreja.A orquestra de músicos ocupa toda a parte superior do fundo. Do livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil.FUNDAÇÃO BIBLIOTECA <strong>NA</strong>CIO<strong>NA</strong>L – DIVISÃO DE ICONOGRAFIAA imaginação individual era canalizadaestritamente de acordo com o gosto dos patronos.No Brasil Colonial, a religião, através das irmandades,e por vezes o poder político, através dos Senados e dasCâmaras, ou de seus representantes mais ilustres,ditavam o gosto. Era preciso que o compositor tivessecomo princípio a funcionalidade da sua obra e a devidacorrespondência com os aspectos morais e espirituaispermitidos ou em uso no seu espaço social. A situaçãosocial do músico e a conseqüente estilística tomaram,a partir dos fins do século XVIII, um outro caminho:o interesse da coletividade cedeu lugar ao indivíduoe o fim paulatino do anonimato consagrou a estéticae o artista, agora com nome, endereço e personalidade.Na Áustria, Haydn passou quase a vida toda a serviçode príncipes, Mozart enfrentou-os e conquistou sualiberdade; Beethoven, aceito pela aristocracia, fez comque os príncipes admirassem sua arte; Neukommdesapontou a todos, aristocráticos e burgueses,e, embora tivesse a proteção de Charles Maurice deTalleyrand, preferiu uma vida mais ou menos nômade.No Brasil joanino, ser músico da Corte ainda erauma situação favorável, por três motivos básicos:melhores oportunidades de mostrar sua arte, de tomarcontato com músicos estrangeiros e linguagensmodernas e, por fim, de garantir um status sociale financeiro em parte suficiente para viver em colônias.A música praticada fora do círculo cortesão foi tãomultifacetada quanto a própria sociedade; e, aindamais, pode-se dizer que foi uma mistura de tradiçãoe novidade. Costumes e práticas de várias culturasconviveram no Brasil joanino. Negros e índioscompartilharam, de uma forma ou de outra, da culturado branco, imitaram-na, transformaram-na e, em algunsmomentos, procuram até se afastar dela. Nos tempos deD. Maria I e D. João, como foi em toda a vida colonial,os europeus tiveram de articular seus costumese hábitos com práticas autóctones ou que aqui seestabeleceram. Europeus eram dominadores, donos decolônias, e por isso mesmo tiveram um sentimentode cultura superior, de força e de retórica. Seu modode ver o mundo era melhor de que todos os outros, seu37
Deus era uno, trino e onipotente, e também por isso,mais verdadeiro que os dos outros. Entretanto, tratamosaqui de formas culturais, cada uma com sua força etradição, mas que, sustentada por indivíduos diferentes,entrecruzavam-se todas. Nesse sentido, seria oportunopensar em um mundo apolíneo nos domíniosde Dionísio, e que é nada mais que uma cultura escrita,normatizada, programada e cheia de sanções moraisem um ambiente onde ela era mais espontânea.As concepções de Nietzsche sobre os mitos deApolo e Dionísio podem se tornar úteis para introduzirtemas de culturas variadas nesses espaços comuns 6 .Numa outra dimensão da idéia que caracterizaos personagens, a música de Apolo é européia,encontra-se cultivada fora das camadas populares,levada para o ultramar como pressupostode modernidade e civilização, como um dispositivoimportante de uma cultura que cristianizou e sustentouo absolutismo de reis, príncipes e cortes. A músicade Dionisio é indígena, africana ou afro-ameríndia;encontra-se nas manifestações das culturas de tradiçãooral. No Brasil colonial, Apolo e DionísioDISCOGRAFIAO MÉTO<strong>DO</strong> DE PIANOFORTE <strong>DO</strong> PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA.Rio de Janeiro, UNIRIO, 1998, CD 002. Ruth Serrão (piano)MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA E SIGSMUND NEUKOMMRio de Janeiro, 1998, Independente. Pedro Persone(fortepiano). Luiza Sawaya (canto)GABRIEL FER<strong>NA</strong>NDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTESSão Paulo, PAULUS, 1995, CD 11100-7. Maria Ester Brandãoe Koiti Watanabe (violinos)<strong>MÚSICA</strong> PORTUGUESA E <strong>BRASIL</strong>EIRA <strong>DO</strong> SÉCULO XVIII PARA CRAVORio de Janeiro, Brascan, 1990. Marcelo Fagerlande (cravo)MATI<strong>NA</strong>S DE FI<strong>NA</strong><strong>DO</strong>S. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIARio de janeiro, Funarte, 1980, CD 07.Associação de CantoCoral. Direção: Cleofe Person de MatosMISSA DE SANTA CECILIA. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIARio de Janeiro, Funarte, 1980. Associação de Canto CoralOrquestra Sinfônica BrasileiraDireção: Edoardo de Guarnieri. 2vVENENO DE AGRADAR. MODINHASLisboa, 1998, CD LS-9801. Luiza Sawaya (canto)Achille Picchi (piano)MUSICA BARROCA <strong>BRASIL</strong>EIRACaracas, Centro de Estudios Brasileños, 1992, CD 2.72.0440Camerata Barroca de Caracas. Direção Isabel Palaciosse entrecruzaram entre lundus, modinhas, batuques,práticas de feitiçarias, alegorias e Te Deuns.Entretanto, em alguns momentos da vida socialda colônia, as ruas, praças, templos religiosos e, poralgumas vezes, os estabelecimentos de espetáculos setornavam espaços comuns. Neles, os vários estamentose grupos étnicos se reuniram para comemorar algumadata ou reverenciar algum nobre ou príncipee, de forma estratégica, esses encontros de todosserviram, mesmo que momentaneamente, para atenuaras diferenças sociais. Tudo que não estava na Corte,que não estava sujeito às regras de etiqueta e civilidade,que não seguia determinadas normas de tocar, cantar,compor e dançar, estava, conseqüentemente, sujeitoa ponderações muitas vezes preconceituosas.Ao contrário das práticas de corte, as manifestaçõesde características populares ou étnicas, como aquelasencontradas entre os brancos pobres, africanose indígenas, estiveram sujeitas a um outro tipode determinismo: a espontaneidade. Essas práticas,no caso de indígenas e africanos, estavam atreladasa cultos de deidades negras e a rituais animistas.A dos brancos pobres, os excluídos do processode corte, estavam sujeitas àquilo que chamamos aquide uma ‘articulação’ de culturas; pode-se dizer que elasabsorveram elementos de todas as outras, em menorescala, dos indígenas. Os negros também absorveram,através do catolicismo, formas miscigenadasdas práticas européias e deram uma outra roupagemàs suas tradições; preservaram-nas, fizeram comque elas sobrevivessem numa corte pitoresca queprocurava se impor 7 .Tudo isso era um espetáculo, uma misturade catolicismo com atividades autóctones, própriade negros, índios e mestiços. Um espetáculo à partedaquilo que acontecia na Corte, ou dentro dos templos,nos teatros ou nas casas mais abastadas. Tinha tantode sincrético quanto de propriedade. A palavrasincretismo vem designar não a simples e inevitávelmistura, ou absorção de uma cultura pela outra, comouma forma em que as culturas não européias deveriamaceitar a cultura do outro. Em propostas maisabrangentes, sincretismo significa aqui uma maneirade preservar a própria cultura em detrimento das38