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OUTONO 2022 – EDIÇÃO 7

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<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7<br />

Et cetera<br />

Gente com Bossa<br />

A missão da jornalista Aline Midlej<br />

Péricles e sua versatilidade musical<br />

A força de Aretha Duarte no Everest<br />

Bruno Assami, um gestor cultural nato<br />

Entrevista com a ativista indígena Txai Suruí<br />

Com a Palavra… o jogador de curling Sérgio Vilela<br />

O cinema mineiro de Gabriel Martins<br />

“Compreender as realidades diferentes<br />

da minha, a complexidade da nossa<br />

sociedade, é o que me move”<br />

Aline Midlej<br />

Distribuição gratuita


Caracteres tipográficos | foto: Getty Images<br />

Expediente<br />

Direção-geral Alessandra Lotufo | Direção Editorial e Edição: Daniela Macedo | Textos: Alessandra Lotufo, Daniel Motta,<br />

Daniela Macedo, Diego Braga Norte, Guilherme Dearo e Sérgio Martins | Arte e Diagramação: Alessandra Lotufo<br />

Produção: Danielle Pasqualoto | Revisão: Ronaldo Barbosa | Gráfica: Elyon<br />

Et cetera é uma publicação trimestral da Bossa.etc. Entre em contato conosco pelo revista@bossa.etc.br


Sumário<br />

Capa: Aline Midlej<br />

Foto: Wanezza Soares<br />

06 Roteiro<br />

Os melhores filmes, documentários, séries, discos,<br />

livros e passeios culturais da temporada.<br />

Prepare a pipoca, reúna os amigos e aproveite!<br />

10<br />

O X da Bossa<br />

A felicidade está no pessimismo que prepara para<br />

as frustrações inevitáveis da vida ou no olhar<br />

otimista para as adversidades? Daniel Motta busca<br />

respostas na filosofia, na religião e na literatura<br />

20<br />

Crônicas e Tal<br />

A diretora de comunicação e inovação da<br />

Bossa.etc, Alessandra Lotufo, convida o<br />

leitor para perceber as habilidades socioemocionais<br />

no cotidiano. O tema de estreia<br />

aborda a construção de narrativas<br />

22<br />

Gente com Bossa<br />

A sétima edição da Et cetera chega com uma série<br />

de novas seções, abrindo espaços para contar<br />

histórias de brasileiros que acumulam conquistas<br />

pessoais, vitórias coletivas e propósitos inspiradores<br />

24<br />

Q&A Etc<br />

Na entrevista desta edição, a ativista indígena<br />

Txai Suruí fala sobre o discurso na<br />

COP26, comenta a atual situação dos povos<br />

originários no Brasil e diz o que pensa sobre<br />

ser comparada a Greta Thunberg<br />

26<br />

Com a Palavra…<br />

Em depoimento à Et cetera, Sérgio Mitsuo<br />

Vilela conta como o interesse despertado pelo<br />

curling que ele assistia pela TV o impulsionou<br />

a se tornar jogador da seleção brasileira<br />

daquele esporte<br />

28<br />

Guarde Este Nome<br />

Aos 35 anos, o cineasta Gabriel Martins<br />

acumula três longas-metragens no currículo.<br />

O mais recente, Marte Um, estreou em janeiro<br />

no Festival Sundance, maior evento de cinema<br />

independente do mundo<br />

Foto: Wanezza Soares<br />

Foto: Rodolfo Magalhães<br />

Foto: Ju Coutinho<br />

Foto: reprodução redes sociais<br />

30<br />

Aline Midlej<br />

Âncora do Jornal das Dez, principal telejornal da GloboNews,<br />

a jornalista Aline Midlej confere espontaneidade<br />

e credibilidade ao noticiário, além de ocupar<br />

um importante papel de representatividade na TV<br />

38 Péricles<br />

Depois do sucesso do Exaltasamba, o cantor e compositor<br />

Péricles apostou na versatilidade musical, nas redes<br />

sociais e na autogestão para seguir uma bem-sucedida<br />

carreira solo que já soma dez anos de estrada<br />

46<br />

Aretha Duarte<br />

Primeira brasileira negra a alcançar o cume do Monte<br />

Everest, a montanhista Aretha Duarte coletou 130<br />

toneladas de materiais recicláveis para financiar o<br />

sonho de chegar ao topo do mundo<br />

54<br />

Bruno Assami<br />

Diretor executivo da Unibes Cultural, entidade<br />

que ajudou a idealizar, Bruno Assami contabiliza<br />

conquistas ao longo de quatro décadas de carreira<br />

dedicadas à cultura no Brasil<br />

62<br />

Um Cartum<br />

O cartunista Roberto Kroll traz um olhar<br />

bem-humorado para o retorno aos escritórios:<br />

a ansiedade de separação atinge mais<br />

cães e gatos ou humanos, que não conseguem<br />

mais deixar seus pets sozinhos?<br />

63<br />

Uma Palavra<br />

Um trecho do romance Em Carne Viva, em que a escritora<br />

americana Jacqueline Woodson conta a história de<br />

duas famílias negras, trazendo à tona o massacre racial<br />

de 1921 em Tulsa, Oklahoma<br />

64<br />

Um Sabor<br />

No chicken tikka masala: a chef Lena Mattar substitui<br />

o frango por ovos no tradicional e saboroso prato<br />

indiano (ou seria britânico?). Separe as especiarias<br />

e prepare-se para uma viagem gastronômica<br />

A revista Et cetera tem uma versão<br />

pocket: o Etc Pop-up! Para receber<br />

um boletim com notícias interessantes,<br />

fatos curiosos e dicas culturais<br />

toda semana no seu WhatsApp,<br />

cadastre-se pelo QR Code<br />

65<br />

Uma Tendência<br />

Os cuidados com a saúde mental chegam à<br />

arquitetura de interiores: do design de móveis<br />

que privilegiam a felicidade ao quarto<br />

inteiramente dedicado ao bem-estar<br />

66<br />

Uma Imagem<br />

Com uma série de imagens sobre o huka-huka, luta<br />

tradicional dos povos do Xingu, o fotógrafo brasileiro<br />

Ricardo Teles se tornou finalista da respeitada<br />

premiação Sony World Photography Awards <strong>2022</strong>


[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />

Para visitar<br />

Portinari para todos<br />

Há alguns anos as exposições no MIS<br />

vêm sendo as mais celebradas, visitadas<br />

e fotografadas de São Paulo. A<br />

atual, sobre a obra do pintor Candido<br />

Portinari, não é diferente. Com uma<br />

proposta lúdica, imersiva e interativa,<br />

a mostra não se limita aos quadros<br />

e biografia do autor. O público pode<br />

interagir com as instalações, incluindo<br />

até a possibilidade de “entrar” em<br />

seus quadros, projetados em escala<br />

monumental em uma das salas. Com<br />

curadoria de Marcello Dantas <strong>–</strong> responsável<br />

pela concepção criativa do<br />

Modernismo<br />

No ano do centenário da Semana de<br />

Arte Moderna de 1922, coube à Pinacoteca<br />

a realização da maior e mais<br />

completa exposição sobre a Semana<br />

e o modernismo brasileiro. São nada<br />

menos que mil obras expostas nos<br />

salões do belo palácio na Praça da Luz,<br />

sendo 134 de artistas ligados diretamente<br />

à Semana e aos seus desdobramentos,<br />

incluindo Anita Malfatti,<br />

Victor Brecheret, Tarsila do Amaral,<br />

Lasar Segall, Cícero Dias, Ismael Nery<br />

e outros. Dentre os destaques, há o<br />

inovador quadro Amigos, de Di Cavalcanti,<br />

exposto no saguão do Theatro<br />

Museu do Amanhã, no Rio, e do Museu<br />

da Língua Portuguesa, em São Paulo<br />

<strong>–</strong>, a experiência agrada a todas as<br />

idades e rende ótimos cliques para as<br />

redes sociais. Além disso, compõe um<br />

excelente panorama sobre a obra de<br />

um dos artistas mais importantes e representativos<br />

da cultura brasileira. Às<br />

terças, a entrada é gratuita e pode ser<br />

reservada com antecedência pelo site.<br />

MIS <strong>–</strong> Museu da Imagem<br />

e do Som / São Paulo<br />

Ingressos: mis-sp.org.br<br />

Municipal de São Paulo durante a<br />

famosa semana, além de dois quadros<br />

míticos de Tarsila: Antropofagia e São<br />

Paulo. O percurso ao longo das 19 salas<br />

se propõe a contar uma história do<br />

modernismo por meio de imagens,<br />

esculturas e textos de apoio, mostrando<br />

suas influências, sua consolidação<br />

e suas mutações posteriores. Aos sábados,<br />

a entrada é gratuita e pode ser<br />

reservada com antecedência pelo site.<br />

Pinacoteca / São Paulo<br />

Ingressos: pinacoteca.org.br<br />

Séries, filmes etc.<br />

Obra: Chorinho, Candido Portinari | foto: divulgação<br />

Obra: São Paulo, de Tarsila do Amaral |<br />

foto: divulgação<br />

Belfast<br />

Onde ver: cinemas<br />

Duração: 1h38m<br />

Lembranças em P&B<br />

Vencedor do Oscar de melhor roteiro<br />

original e com outras seis indicações,<br />

incluindo melhor filme, Belfast é inspirado<br />

na infância do diretor Kenneth<br />

Branagh, que nasceu e cresceu na<br />

capital da Irlanda do Norte. No fim da<br />

década de 1960, o garoto Buddy e sua<br />

família de classe baixa sonham com<br />

um futuro melhor enquanto vivenciam<br />

a escalada de violência entre católicos<br />

e protestantes. Seu pai (Jamie Dornan,<br />

da trilogia Cinquenta Tons de Cinza)<br />

Drive My Car<br />

Onde ver: cinemas e Mubi (a partir de 1º de abril)<br />

Duração: 2h59m<br />

Segredos de Murakami<br />

Baseado num conto do autor best-<br />

-seller Haruki Murakami, o Drive My<br />

Car conta a história do ator e diretor<br />

Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima,<br />

em ótima interpretação), que tenta se<br />

recuperar da perda de sua mulher,<br />

uma dramaturga vítima de um AVC.<br />

Convidado a encenar uma peça em<br />

um festival de teatro e impedido de<br />

dirigir, ele passa a conviver diariamente<br />

com a motorista Misaki (Tôko<br />

passa semanas trabalhando longe de<br />

casa, e sua mãe (Caitriona Balfe) vive<br />

angustiada com o futuro da família em<br />

meio aos conflitos. Mesmo com brigas<br />

e até carros explodindo na porta de<br />

casa, Buddy ainda mantém as preocupações<br />

típicas da infância, enquanto<br />

tenta entender a confusão ao redor.<br />

Apesar de ser filmado em branco e<br />

preto e num contexto de guerra civil, o<br />

filme é narrado sob o olhar do garoto,<br />

que consegue encontrar alegria e descontração<br />

em meio à violência.<br />

Miura). À medida que os ensaios<br />

avançam, um dos atores do espetáculo<br />

começa a revelar segredos sobre a<br />

vida íntima da mulher de Yusuke, que<br />

aos poucos vêm à tona. O convívio do<br />

viúvo com Misaki passa a ser o ponto<br />

de apoio do diretor para lidar com as<br />

descobertas. Desde seu lançamento,<br />

o filme do diretor japonês Ryûsuke<br />

Hamaguchi acumula prêmios importantes:<br />

levou o Oscar de melhor filme<br />

estrangeiro, Bafta, Cannes e Globo de<br />

Ouro, entre outros.<br />

3 Tonelada$: Assalto ao Banco Central<br />

Onde ver: Netflix<br />

Duração: 3 episódios de 50 minutos cada um (2h30m)<br />

Reconstituição de um<br />

crime<br />

No dia 8 de agosto de 2005, uma segunda-feira,<br />

os funcionários do Banco<br />

Central em Fortaleza, no Ceará, descobriram<br />

que cerca de 164 milhões de<br />

reais tinham sido roubados. O assalto,<br />

realizado por uma quadrilha no fim<br />

de semana, foi um dos maiores e mais<br />

audaciosos da história. Os criminosos<br />

alugaram um imóvel próximo ao banco<br />

e, ao longo de meses, construíram<br />

um túnel de 80 metros de comprimento,<br />

a 4 metros de profundidade, com<br />

luz e ar-condicionado, que o ligava<br />

ao banco. O assalto, que já rendeu um<br />

filme ficcional em 2011, ganha agora<br />

uma série documental com imagens<br />

de arquivo e depoimentos inéditos<br />

dos policiais e criminosos envolvidos.<br />

O documentário, dividido em três<br />

episódios, traz os detalhes de como os<br />

bandidos conseguiram entrar no cofre<br />

de altíssima segurança e levar 3 toneladas<br />

de cédulas, além de contar como<br />

foi a longa e tumultuada investigação,<br />

que envolveu sequestros, assassinatos,<br />

agentes infiltrados e muitas compras<br />

suspeitas em dinheiro vivo.<br />

This Is Us<br />

Onde ver: Amazon Prime Video (temp. 1 a 5) e Star+ (temp. 1 a 6)<br />

Duração: 6 temporadas<br />

Adeus aos Pearson<br />

Os fãs da saga dos irmãos Kevin,<br />

Kate e Randall (os Big 3, interpretados<br />

por Justin Hartley, Chrissy Metz<br />

e Sterling K. Brown) preparam-se<br />

para se despedir da família Pearson<br />

nesta sexta e última temporada da<br />

série This Is Us. O drama marcado por<br />

flashbacks reveladores e reviravoltas<br />

comoventes traz os altos e baixos de<br />

personagens complexos, que exibem<br />

seus defeitos e qualidades ao longo da<br />

vida, em uma trama sem mocinhos<br />

ou vilões. A temporada final promete<br />

novos momentos da montanha-russa<br />

de emoções característica da série que<br />

leva o público do riso às lágrimas em<br />

poucas cenas. Quem ainda não assistiu<br />

tem até o dia 24 de maio, quando<br />

será exibido o último episódio, para<br />

conhecer a história <strong>–</strong> e se envolver <strong>–</strong><br />

antes de se deparar com algum spoiler<br />

sobre o desfecho. A produção da NBC<br />

garantiu presença na lista de nomeados<br />

ao Emmy desde sua estreia, em<br />

2016, levando quatro estatuetas até<br />

agora <strong>–</strong> a edição <strong>2022</strong> da premiação<br />

será realizada em setembro.<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 7<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 6


[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />

Para ler<br />

80 páginas<br />

Editora Fósforo<br />

54,90 reais (livro) ou 32,90 (e-book)<br />

O Acontecimento<br />

Demorou, mas finalmente Annie Ernaux<br />

chega ao Brasil para ficar. Depois<br />

do lançamento dos títulos O Lugar e Os<br />

Anos, no ano passado, agora é a vez<br />

da publicação do livro mais íntimo da<br />

autora francesa de 81 anos. Lançado<br />

originalmente em 2000, o livro<br />

narra, na peculiar e magnética prosa<br />

pessoal de Ernaux, como aconteceu<br />

sua gravidez indesejada em 1963,<br />

224 páginas<br />

Editora Todavia<br />

69,90 reais (livro) ou<br />

49,90 reais (e-book)<br />

Os Órgãos dos Sentidos<br />

No ano de 1666, um astrônomo faz<br />

uma previsão inédita em seu tempo:<br />

exatamente ao meio-dia de 30<br />

de junho daquele ano, um eclipse<br />

solar deixaria a Europa na completa<br />

escuridão por alguns segundos.<br />

A revelação causa espanto, medo e<br />

inveja em outros astrônomos. Por ser<br />

supostamente cego <strong>–</strong> ele teria tido os<br />

quando ela tinha 23 anos. Sem poder<br />

contar com o apoio do namorado ou da<br />

própria família numa época em que o<br />

aborto era ilegal na França, ela decide<br />

interromper a gravidez que poderia<br />

interferir em seus estudos e carreira.<br />

Com a ajuda de memórias registradas<br />

em seu diário, a autora reconta o caso<br />

quase 40 anos depois. Pioneira no filão<br />

literário chamado autoficção, muito na<br />

moda hoje em dia, Ernaux reconstrói<br />

sua luta e sofrimento para realizar<br />

um aborto clandestino e aproveita a<br />

narrativa para fazer uma lúcida reflexão<br />

sobre a validade da autoridade do<br />

Estado sobre o corpo feminino.<br />

olhos arrancados em circunstâncias<br />

misteriosas <strong>–</strong>, o autor da descoberta<br />

passa a ser acusado de mentiroso.<br />

Seria um cientista sério, louco ou um<br />

visionário que mesmo cego é capaz<br />

de predizer o futuro? O romance<br />

histórico é propositalmente absurdo<br />

e hilário, com uma trama que envolve<br />

famílias reais, obsessão científica,<br />

loucura, filosofia e arte. Graduado em<br />

física e especializado em história da<br />

ciência, o autor americano Adam Ehrlich<br />

Sachs apoia-se em uma robusta<br />

pesquisa de época para construir uma<br />

fábula cômica verossímil, iluminando<br />

o Renascimento europeu de outros<br />

ângulos e embaçando os limites entre<br />

ciência e loucura.<br />

Para ouvir<br />

Violão e piano<br />

em família<br />

O violonista Sérgio Assad e sua filha,<br />

a pianista Clarice Assad, já têm uma<br />

carreira consolidada internacionalmente<br />

com interpretações e composições<br />

próprias que passeiam entre<br />

clássicos e contemporâneos. O álbum<br />

Archetypes parece ser um dos pontos<br />

altos da carreira dos músicos. Indicado<br />

em três categorias ao Grammy de<br />

<strong>2022</strong>, incluindo melhor performance<br />

e melhor produção de música clássica,<br />

o disco traz composições coletivas dos<br />

Assad com o quarteto americano de<br />

percussão Third Coast Percussion. As<br />

Caldeirão de black<br />

music<br />

Há pelo menos duas décadas, o<br />

americano Robert Glasper vem se<br />

consolidando como um dos nomes<br />

mais inventivos e versáteis do piano.<br />

Além de compor e tocar jazz, ele tem<br />

um projeto chamado Black Radio, que<br />

acaba de lançar seu terceiro álbum.<br />

O disco é estruturado como se fosse<br />

uma rádio de black music e traz um<br />

cardápio variado de opções: jazz<br />

contemporâneo, rap, soul, rhythm and<br />

blues, funk e outros, mas todas com o<br />

piano matador de Glasper. As muitas<br />

12 músicas <strong>–</strong> simbologia que remete<br />

aos 12 meses do ano, 12 signos do<br />

zodíaco e 12 trabalhos de Hércules,<br />

segundo Clarice <strong>–</strong>, têm diversidade<br />

sonora, mas resguardam uma unidade<br />

criativa. Não há excessos de virtuosismo<br />

exibicionista nem sonoridades<br />

fáceis, daquelas com refrãos. Algumas<br />

composições são explosivas (The<br />

Rebel), outras delicadas (a singela The<br />

Lover), mas todas belas e<br />

precisamente executadas.<br />

Archetypes<br />

Onde ouvir: Spotify, Deezer,<br />

iTunes e Tidal<br />

participações do disco contribuem<br />

para dar forma ao clima de rádio, com<br />

vozes e estilos se alternando. Entre os<br />

destaques há as cantoras Esperanza<br />

Spalding, H.E.R. e Meshell Ndegeocello;<br />

e ainda uma ótima leva de nomes<br />

do hip-hop americano pouco conhecidos<br />

do público brasileiro, incluindo<br />

rappers, DJs e produtores, como Amir<br />

Sulaiman, Posdnuos (do seminal grupo<br />

De La Soul), J. Dilla e outros.<br />

Black Radio III<br />

Onde ouvir: Spotify, Deezer,<br />

iTunes e Tidal<br />

232 páginas<br />

Editora Zahar<br />

74,90 reais<br />

44 Cartas do Mundo<br />

Líquido Moderno<br />

Mundialmente conhecido por seus conceitos<br />

sobre a “modernidade líquida”,<br />

o filósofo polonês Zygmunt Bauman<br />

(1925-2017) foi um pensador instigante<br />

e muito antenado no impacto das<br />

novas tecnologias em nossa sociedade.<br />

Este livro reúne uma seleção de 44 textos<br />

sobre múltiplos aspectos do que ele<br />

chama de “mundo líquido moderno”. O<br />

autor analisa temas culturais, políticos<br />

e sociais para mostrar como está sen-<br />

do a transição da modernidade “sólida”<br />

para sua versão “líquida”, muito mais<br />

dinâmica. Para isso, ele revela significados<br />

por trás de atos cotidianos corriqueiros,<br />

como uma chamada ao celular,<br />

a exposição de uma foto em uma rede<br />

social ou a leitura da fatura do cartão<br />

de crédito. Como o mundo líquido está<br />

em constante movimento, seus textos<br />

são flashes da vida contemporânea:<br />

Twitter, Facebook, moda, proliferação<br />

de doenças psiquiátricas, solidão, isolamento,<br />

terceirização do trabalho, dentre<br />

outros temas.<br />

Dança das fadas<br />

Desde o sucesso de Dog Days Are Over,<br />

single do álbum de estreia, Lungs, cada<br />

lançamento da banda britânica Florence<br />

+ The Machine é aguardado com<br />

ansiedade pelos fãs. Não foi diferente<br />

com Dance Fever, quinto álbum do grupo<br />

de indie rock liderado pela vocalista<br />

Florence Welch, que chega em 13 de<br />

maio às plataformas de streaming.<br />

Pelas palavras da própria Florence,<br />

Dance Fever é “um conto de fadas em<br />

14 músicas”. As referências são ecléticas,<br />

e incluem dance music, folk e Iggy<br />

Pop anos 1970 para as melodias, além<br />

de filmes de terror com elementos de<br />

folclore e ficção gótica para as letras.<br />

Uma curiosidade: o disco foi gravado<br />

em Londres durante o período de lockdown<br />

por causa da pandemia, mas os<br />

videoclipes dos singles King, Heaven Is<br />

Here e My Love, lançados no início do<br />

ano, foram filmados em Kiev, capital<br />

da Ucrânia, antes da invasão russa.<br />

Dance Fever<br />

Onde ouvir: Spotify, Deezer,<br />

iTunes e Tidal<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 9<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 8


[O X DA BOSSA]<br />

O otimismo<br />

A tolice<br />

A névoa<br />

Por Daniel Augusto Motta <strong>–</strong> Senior Tupinambá Maverick da Bossa<br />

Pessimismo e otimismo moldam a<br />

percepção da humanidade para os fatos<br />

da vida e determinam o modo de olhar<br />

para o futuro. Onde cabe a felicidade<br />

nesses comportamentos tão opostos?<br />

Foto: Getty Images<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 11<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 10


O<br />

otimismo carrega consigo certa dose de inconveniência: os otimistas surpreendem-se<br />

com a desgraça. Diante do inevitável rumo errático das coisas da<br />

vida que, pasmem, não atendem às esperanças mais puras e ingênuas, eles<br />

se frustram. Sim, a frustração do otimista é um fato.<br />

Os pessimistas trazem certa serenidade e prudência ao anteciparem cenários desfavoráveis<br />

logo mais adiante para, então, certificarem-se de que estão preparados<br />

para a jornada. Ao passo que os otimistas radicais se movimentam sôfregos em<br />

busca de prazeres sucessivos, sempre insatisfeitos com o presente, animados com<br />

o futuro necessariamente promissor. E é justamente tal espiral infinita de felicidade<br />

que traz certa tolice ao otimista empertigado.<br />

Acreditar que a vida nos reserva a felicidade plena é um ato de loucura ou ingenuidade.<br />

Algo inofensivo no âmbito individual do tolo e potencialmente desastroso na<br />

coletividade de indivíduos destinados a frustrações. Em realidade, a vida parece ser<br />

muito mais repleta de pequenos momentos especiais de poesia, intermitentes em<br />

um contexto muito menos satisfatório em nosso cotidiano. Nosso destino parece<br />

ser, portanto, mais dedicado a aumentar a frequência e prolongar cada poesia ao<br />

longo da dura epopeia do viver. Pessimista demais? Talvez sim, sob a ótica do senso<br />

comum. Mas não sob o ponto de vista da filosofia.<br />

Racionalismo celeste<br />

Na obra metafísica do filósofo alemão<br />

Arthur Schopenhauer, produzida no<br />

século XIX, a vida é o sofrimento pendular<br />

entre a dor da vontade insatisfeita<br />

e o tédio da felicidade realizada.<br />

Essa perspectiva realista-pessimista<br />

posiciona a felicidade como espasmos<br />

momentâneos durante um processo<br />

de infelicidade intrínseca a uma natureza<br />

humana insaciável em suas vontades,<br />

seus desejos e suas ambições.<br />

A sublimação de tamanho sofrimento<br />

pelas artes ou pelas religiões também<br />

apresentaria suas limitações diante da<br />

aspereza cotidiana, de modo que a experiência<br />

da vida humana não poderia<br />

ser otimista. Considerada um clímax<br />

pessimista na trajetória milenar da metafísica,<br />

a narrativa de Schopenhauer<br />

nos levaria a buscar incessantemente<br />

certa atenuação dos ímpetos da vontade<br />

individual em prol de uma vida mais<br />

equilibrada e prosaica, sem grandes arroubos,<br />

sem entusiasmos hiperbólicos.<br />

Algumas décadas antes de Schopenhauer,<br />

o também filósofo alemão<br />

Immanuel Kant fundava o idealismo<br />

transcendental em sua obra. Ele afirmava<br />

que, por meio de suas experiên-<br />

cias, os indivíduos trazem sempre suas<br />

formas e seus conceitos para as coisas<br />

interpretadas além de sua concretude<br />

essencial inacessível a todos. Em outras<br />

palavras, haveria as coisas em si e<br />

as coisas como são percebidas, sendo<br />

as primeiras as verdadeiras, e as segundas<br />

meras interpretações possíveis<br />

para uma realidade inacessível à racionalidade<br />

humana. Assim, pessimismo<br />

ou otimismo apresentavam-se no<br />

campo dos fenômenos percebidos pelo<br />

indivíduo em um fio condutor neutro.<br />

Ao imaginar o mundo das coisas percebidas<br />

como o universo de percepções<br />

cruzadas, Kant nos desafia a minimizar<br />

euforias e frustrações diante da imparcialidade<br />

das coisas concretas. Nosso<br />

desafio cognitivo e afetivo nos levaria a<br />

um processo consciente de autorregulação<br />

dos nossos sentimentos e pensamentos.<br />

No entanto, sem os rompantes<br />

otimistas emocionados e as descargas<br />

pessimistas, o caminhar inerte e cético<br />

não deixa de ser bastante desestimulante<br />

para o ser humano. Portanto, o<br />

olhar imparcial kantiano sobre os fenômenos<br />

traz uma perspectiva insossa<br />

para a trajetória individual.<br />

Foto: Getty Images<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 13<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 12


O melhor dos mundos possíveis<br />

No campo otimista, vale destacar o cenário idealizado pelo filósofo<br />

alemão Gottfried Wilhelm Leibniz: um mundo onde o<br />

Deus onipotente, onipresente e onisciente <strong>–</strong> e, essencialmente,<br />

bom e perfeito <strong>–</strong> assegura a melhor experiência de vida a<br />

todos, onde todos os acontecimentos são plenamente justificados<br />

pela intervenção divina. A crença na perfeição do processo<br />

de escolhas proferidas por Deus encaixa-se como uma<br />

luva na mitologia cristã vigente naqueles tempos europeus,<br />

sustentando a perspectiva otimista em relação à vida, mesmo<br />

diante de eventuais intempéries <strong>–</strong> afinal, tudo é desígnio divino,<br />

tudo é um complexo balanceamento entre o bem infinito e<br />

o mal diabólico limitado, tudo faz parte do caminho celestial.<br />

Mais um capítulo na batalha secular escolástica contra o empirismo<br />

causal.<br />

Leibniz enfrenta, muitos séculos à frente, a essência do Paradoxo<br />

de Epicuro, que vem da Grécia antiga. Segundo o trilema<br />

do filósofo grego, seria impossível encontrarmos verdade<br />

nas três características fundamentais do deus judaico (posteriormente,<br />

também deus cristão e islâmico): onipotência,<br />

onisciência e onibenevolência. De acordo com a visão epicurista,<br />

considerando duas das características verdadeiras, a<br />

terceira é, inevitavelmente, falsa.<br />

Assim sendo, temos que:<br />

• Um deus onisciente e onipotente tem conhecimento<br />

de todo o mal e pode exterminá-lo. Se não o faz,<br />

não é onibenevolente.<br />

• Um deus onipotente e onibenevolente consegue extinguir<br />

o mal e quer fazê-lo por sua bondade. Quando não o faz,<br />

é por desconhecimento, portanto não pode ser onisciente.<br />

• Um deus onisciente e onibenevolente conhece todo o mal<br />

e deseja exterminá-lo. Só não o elimina por ser incapaz,<br />

então não pode ser onipotente.<br />

O otimismo racional de Gottfried Leibniz reforça a teodiceia<br />

clássica de Santo Agostinho em resolver o paradoxo epicurista,<br />

argumentando que a existência do mal se relaciona com<br />

a necessidade de remissão dos pecados individuais acumulados<br />

e com o próprio equívoco individual ao empregar seu<br />

livre-arbítrio concedido por Deus. A maldade estaria, assim,<br />

intrínseca à ação humana, a despeito da bondade suprema divina.<br />

Haja otimismo celestial para tanta maldade na pequenez<br />

humana! Graças a Deus! Mas...<br />

Se, por acaso, Deus morresse, abrir-se-ia uma perspectiva<br />

verdadeiramente humana, liberta das amarras morais religiosas.<br />

O homem poderia, afinal, viver em seus próprios<br />

desígnios. Assim, proclamava o filósofo Friedrich Nietzsche<br />

na apresentação do seu Übermensch (traduzido como super-homem),<br />

o homem seria capaz de criar seus próprios<br />

valores, reconhecer-se verdadeiro neste mundo, aceitar de<br />

peito aberto a realidade, agir sobre o mundo no seu entorno<br />

e, principalmente, encontrar significado para a vida. Humanos<br />

medíocres deveriam abster-se de esperar que pessoas<br />

importunas fossem punidas nesta vida ou pela eternidade,<br />

tanto quanto deveriam desistir de serem recompensados por<br />

seus atos de bondade na vida após a morte. Entretanto, reconhecendo<br />

a presença de certa mediocridade na existência<br />

humana, o próprio Nietzsche posicionava a moralidade cristã<br />

como o esteio ou, melhor dizendo, o instinto de rebanho para<br />

indivíduos conviverem em suas fugas da realidade.<br />

Afresco O Eterno em Glória, por Luigi Garzi (1685),<br />

na Basílica de Santa Maria del Popolo, em Roma |<br />

foto: Getty Images<br />

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Otimismo da fé<br />

Filosofar sobre Deus, Natureza e Humano<br />

pode ser percebido como tergiversar<br />

sobre o âmago da questão que<br />

se coloca a respeito da superioridade<br />

do otimismo contra o pessimismo, e<br />

vice-versa. Ainda mais quando preciso<br />

viajar por séculos e milênios ao<br />

encontro de clássicos filósofos. No<br />

entanto, esse é o verdadeiro cerne da<br />

questão. Considerando-se que o mundo<br />

externo não se desenvolve exatamente<br />

conforme os desejos internos<br />

<strong>–</strong> e, mesmo se assim fosse, seria, em<br />

uma espiral paradoxal, motivo de tédio<br />

insuportável pela ausência de contraponto<br />

que proporcionasse significado<br />

positivo às eventuais conquistas valorizadas<br />

<strong>–</strong> apresenta-se, de modo inexorável,<br />

a questão fundamental: como<br />

lidamos com as frustrações diante<br />

das falhas, lacunas, adversidades,<br />

perspectivas e impossibilidades?<br />

Devemos ser otimistas para acreditar<br />

que seremos capazes de conviver<br />

com nossos dissabores, por estarmos<br />

diante de forças divinas incompreensíveis,<br />

resignados com nossa sina<br />

diante de tantas restrições e frustrações<br />

como parte de nosso caminho de<br />

evolução? Acreditemos em um campo<br />

de forças celestiais, orquestradoras de<br />

infinitas conexões e acontecimentos<br />

por um Deus bom, mesmo diante de<br />

tantas limitações, perdas e renúncias?<br />

Haverá otimismo possível perante a<br />

eternidade no paraíso proposta pela<br />

mitologia cristã?<br />

O otimismo apresenta-se, assim, na<br />

metafísica cristã, de modo inequívoco,<br />

como um ato de fé, uma prece a Deus,<br />

capaz de sobreviver a intempéries inimagináveis,<br />

a provações excruciantes.<br />

O pessimismo, de outro modo, seria<br />

como uma confissão herege, um ato de<br />

desistência, até mesmo uma rebeldia<br />

ingrata diante de tanta bondade divina.<br />

Otimismo e pessimismo seriam, assim,<br />

reflexos imediatos da intensidade da<br />

fé. Isso mesmo. Muito além da racionalidade,<br />

encarar a vida com otimismo é<br />

acreditar em Deus Todo-Poderoso. Assim<br />

sempre foi, assim seja!<br />

Kant Schopenhauer Nietzsche Spinoza<br />

Sanidade do pessimismo<br />

No encontro filosófico entre Kant, Schopenhauer e Nietzsche, longe das amarras divinas,<br />

permanece a tensão entre a busca incessante pela satisfação crescente e o conforto com a<br />

felicidade conquistada. Aqui, otimismo e pessimismo travam seus conflitos em outra arena.<br />

Um lugar onde a racionalidade nos leva a desafiar a espiral infinita em relação a algo<br />

inalcançável: a felicidade suprema. Um lugar onde prudência e tranquilidade servem como<br />

alavancas de compensação contra uma jornada sem rumo para um destino incerto. Ser pessimista<br />

nesse contexto metafísico é manter-se são e equilibrado diante daquilo que temos<br />

e vivemos: embora ainda buscando algo adicional que possa nos elevar, estamos cientes de<br />

que continuaremos encontrando percalços intransponíveis durante nossa jornada.<br />

Ainda antes de concluir esta digressão filosófica, vale a pena compartilhar a visão inspiradora<br />

de Baruch Spinoza, expoente holandês do Iluminismo europeu no século XVII.<br />

Segundo sua obra clássica, os corpos mantêm-se em repouso e em movimentações. Tais<br />

movimentações <strong>–</strong> denominadas por Spinoza como afetos <strong>–</strong> são verdadeiras potências para<br />

o pensar e o agir. Afetos de alegria são movimentações positivas de potência, afetos de<br />

tristeza são movimentações de perda de potência. Naturalmente, os corpos desejam de forma<br />

genuína e se esforçam muito para maximizar os afetos alegres e minimizar os afetos<br />

tristes. Concluímos por aqui que a vida é repleta de afetos que nos movimentam por meio<br />

de desejos pela alegria e combate à tristeza. Mesmo assim, a vida ainda não é tão simples.<br />

Pessoas iludidas acreditariam que suas ações seriam resultantes de livre-arbítrio, inconscientes<br />

sobre suas causalidades, inebriadas por suas ilusões e fantasias. Apenas pessoas<br />

conscientes sobre seus afetos dominam melhor suas ideias e ações, sem as distrações ilusórias<br />

dos impulsos inconsequentes. Haveria certa intencionalidade consciente e equilibrada<br />

sobre os movimentos otimistas.<br />

E, antes que essa reflexão se encaminhe para um desfecho niilista, recorro às artes, inspirado<br />

por Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Viremos a página.<br />

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Ingenuidade ou<br />

engenhosidade<br />

Cândido, Quixote e Pollyanna representaram<br />

a negação da própria realidade<br />

ao seu redor, como verdadeiros<br />

loucos desvairados em suas próprias<br />

distorções, ilusões e sonhos. Os personagens<br />

criados por Voltaire, Miguel de<br />

Cervantes e Eleanor H. Porter escolheram,<br />

deliberada ou inconscientemente,<br />

visualizar o mundo com otimismo infalível.<br />

Foram ingênuos em seus pensamentos,<br />

sentimentos e ações <strong>–</strong> eventualmente,<br />

frustrando-se com situações<br />

negativas inesperadas. Mas, mesmo<br />

Cândido e Quixote, antes de se resignarem,<br />

viveram sua vida com olhar<br />

apreciativo sobre as coisas, sobretudo<br />

a respeito de si mesmos.<br />

O jogo psicológico do contente tão bem<br />

praticado por Pollyanna não se restringiu<br />

a pensamentos positivos, mas<br />

também ao processo de reação diante<br />

de acontecimentos adversos. Otimistas<br />

e pessimistas diferenciam-se não apenas<br />

pelos pensamentos positivos ou<br />

negativos, mas, principalmente, pela<br />

forma como encontram explicações<br />

para os fatos adversos em sua vida.<br />

E não apenas isso. Segundo inúmeros<br />

estudos na psicologia positiva, os otimistas<br />

também esperam que coisas<br />

boas aconteçam no futuro com elevado<br />

senso de confiança e autoestima. Enquanto<br />

isso, os pessimistas enxergam<br />

apenas névoas pela frente, com baixo<br />

nível de confiança e autoestima. Nota-se<br />

que otimistas e pessimistas são,<br />

ambos, muito consistentes ao longo do<br />

tempo. Para os primeiros, eterno céu<br />

azul de brigadeiro; para os segundos,<br />

inferno astral permanente.<br />

Aparentemente, na psicologia positiva,<br />

ser otimista não parece ser tão inconsequente<br />

quanto na metafísica. A mente<br />

otimista torna-se capaz de reciclar e<br />

significar positivamente eventos presentes<br />

e passados de modo a alimentar<br />

a visão positiva a respeito do futuro:<br />

como um fluxo contínuo de energia filtrada<br />

por lentes positivas, são capazes<br />

de encontrar o lado bom das adversidades,<br />

enquanto se beneficiam dos acontecimentos<br />

positivos que ratificam a<br />

beleza e a bondade existentes nas trajetórias<br />

de vida.<br />

A ingenuidade pueril percebida no otimismo<br />

transformar-se-ia assim em<br />

uma engenhosidade neural na mente<br />

do otimista em benefício de si próprio,<br />

assegurando a ressignificação<br />

das contrariedades em lições positi-<br />

vas, regozijando-se diante das conquistas<br />

eventuais e concentrando-se<br />

na calibragem das lentes que decodificam<br />

as percepções sobre as coisas.<br />

Mais importante do que a iluminação<br />

da mente humana, estaria a própria<br />

sanidade sustentada por truques engenhosos<br />

que preservam pensamentos<br />

e sentimentos positivos a despeito<br />

das sucessivas adversidades e decepções.<br />

Em tempos difíceis, afinal, não<br />

dificultemos ainda mais as coisas, mas<br />

encontremos a rara beleza que reside<br />

nas poucas frestas de luz. Afinal, rir é<br />

melhor que chorar.<br />

Todos enfrentam dificuldades e traumas<br />

na vida, lidando com sentimentos<br />

fortes como ansiedade, ressentimento,<br />

agonia, persistência e superação. O<br />

equilíbrio entre sensações positivas e<br />

negativas está, naturalmente, relacionado<br />

a perspectivas otimistas e pessimistas,<br />

havendo evidências em estudos<br />

científicos recentes para a maior<br />

capacidade otimista em potencializar<br />

as sensações positivas e neutralizar<br />

as negativas. Além disso, otimistas<br />

apresentam maior capacidade para relações<br />

interpessoais, grande parte por<br />

sua maior autoestima e por sua resiliência<br />

diante de problemas sensíveis.<br />

Otimistas também demonstram maior<br />

confiança em relação à probabilidade<br />

de êxito em seus compromissos, com<br />

maior repertório cognitivo e social<br />

para adaptabilidade em situações desafiadoras.<br />

Em resumo, a psicologia<br />

positiva afirma que ser otimista está<br />

positivamente relacionado com melhor<br />

saúde física e mental, mesmo diante de<br />

inevitáveis visões distorcidas a respeito<br />

da realidade das coisas.<br />

Há realmente uma inversão de perspectivas.<br />

Para Arthur Schopenhauer,<br />

o pessimista realista apresentava-se<br />

como superior ao otimista ingênuo ao<br />

constatar que uma vida equilibrada e<br />

tranquila, sem tumultuadas montanhas-russas,<br />

seria mais prudente e<br />

efetiva do que uma trajetória otimista<br />

iludida prestes a ser frustrada inúmeras<br />

vezes. Para o psicólogo americano<br />

Martin Seligman, o otimista persistente<br />

presume que obstáculos possam ser<br />

superados com diligência e confiança,<br />

mesmo que o progresso seja lento.<br />

São séculos filosóficos contra algumas<br />

poucas décadas de psicologia positiva.<br />

Ainda assim, um embate intelectual<br />

relevante em tempos contemporâneos.<br />

Monumento a Don Quixote na Praça de<br />

Espanha, em Madri | foto: Getty Images<br />

Racionalidade limitada, impulsos<br />

pela sobrevivência<br />

Jornais destacam tragédias porque vendem mais do que<br />

notícias sobre bondade altruísta. E isso acontece porque as<br />

tragédias despertam nossos instintos essenciais para sobrevivência.<br />

Diante de tanta complexidade e hostilidade por<br />

todo ambiente externo, diante de tanta ambiguidade e ansiedade<br />

no universo interno de cada indivíduo, nossa mente<br />

está muito mais atenta a riscos, ameaças e problemas.<br />

Diariamente, precisamos equilibrar nossos impulsos primitivos<br />

e nossa racionalidade limitada diante de um contexto<br />

incompreensível e instável.<br />

Compreender o momento presente como favorável e decodificar<br />

o contexto futuro como promissor seriam duas<br />

características marcantes para alguém otimista. Mesmo<br />

diante de tantas adversidades e dificuldades, mesmo diante<br />

O meio do caminho<br />

de tantas incertezas e ameaças, a visão positiva é uma capacidade<br />

inerente ao otimista, que consegue ir em frente,<br />

renovando suas energias.<br />

O pessimista tem várias possibilidades viáveis. Pode antecipar<br />

um cenário futuro distópico, pode identificar inúmeros<br />

problemas e adversidades do contexto presente, pode ainda<br />

posicionar-se como saudosista em tempos outrora melhores<br />

do que os atuais. O pessimista pode ser totalmente realista e,<br />

ainda assim, não demonstrar superioridade intelectual diante<br />

do otimista, simplesmente porque a própria realidade seria<br />

algo incognoscível a todos nós. Diante da indiscutível racionalidade<br />

limitada e dos necessários impulsos instintivos, o<br />

pessimismo realista tem também sua utilidade. Não sobreviveremos<br />

apenas com ilusões e sonhos.<br />

Em tempos de tantas questões fundamentais para a humanidade, otimismo e pessimismo apresentam-se como duplas úteis<br />

no enfrentamento da dura realidade que nos desafia todos os dias. A evolução tecnológica, o progresso científico, as mudanças<br />

nos usos e costumes, os ciclos naturais do Universo, as questões transcendentais sem respostas, a tensa geopolítica global...<br />

São tantos os grandes temas que nos desafiam a escolher entre otimismo e pessimismo. Aliás, seria algo a ser escolhido a<br />

cada caso ou seria um traço intrínseco à personalidade individual? Eis mais uma reflexão essencial aos indivíduos hesitantes<br />

entre os dois polos.<br />

Todos precisamos, claro, de uma forte dose de pessimismo para compreendermos a realidade, mapearmos os riscos e os obstáculos,<br />

mantermos elevado nível de tensão e atenção. Mas também precisamos de um olhar otimista para nos mantermos sãos,<br />

leves e animados. Seria praticamente impossível enfrentarmos a dura realidade do cotidiano sem um frescor positivo em nossas<br />

expectativas e olhares. Seria ainda mais complexo imaginar a própria vida no longo prazo sem esperanças por dias melhores,<br />

tanto quanto seria muito improvável viver bem a vida no longo prazo sem prudência diligente ao longo do caminho.<br />

Ser otimista é ser ingênuo ou ser crédulo aos olhos clássicos da metafísica, mas também é manter-se são e confiante para cultivo<br />

de relações interpessoais positivas. Ser pessimista é ser esclarecido, independente ou genuinamente humano aos olhos clássicos<br />

da metafísica, mas também é conviver com olhares mais tristes e duros para as coisas que são, apenas, coisas.<br />

Manter-se otimista no objetivo e pessimista nas condições de contorno, sem subterfúgios ou atalhos biomédicos, talvez seja o<br />

equilíbrio humano necessário para nossa existência significativa neste plano da vida. Menos extremos, mais equilíbrios. Menos<br />

abismos, mais conexões. Afinal, todos precisamos de mais poesia.<br />

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[CRÔNICAS E TAL]<br />

Narrativas cativantes<br />

X dates desastrosos<br />

Rio de Janeiro | foto: Getty Images<br />

Quando o comediante Jerry Seinfeld foi convidado para formatar<br />

o piloto de uma série para a rede de TV americana NBC, decidiu<br />

mostrar o cotidiano de um apresentador de stand-up comedy e<br />

seu processo criativo, que se dava a partir da observação dos<br />

acontecimentos mais banais do dia a dia.<br />

Ele conta que começou suas pesquisas<br />

na deli que ficava perto do bar onde<br />

se apresentava, na Primeira Avenida,<br />

altura da Rua 78, em Manhattan. Ao<br />

percorrer os corredores do estabelecimento<br />

acompanhado do seu amigo e<br />

parceiro Larry David, começou a fazer<br />

graça com os produtos inusitados, fruto<br />

da curadoria totalmente nonsense<br />

do dono, um coreano que mal falava<br />

inglês e, provavelmente, passava longe<br />

de entender as necessidades dos moradores<br />

locais. Foi Larry quem matou<br />

a charada ao declarar: “Aí está o nosso<br />

show!” Seinfeld sorriu e, mesmo<br />

achando muito difícil que os executivos<br />

da NBC embarcassem na ideia,<br />

concordou em arriscar.<br />

Em pouco tempo, a série tornou-se<br />

sucesso internacional e Seinfeld se<br />

perguntava o que exatamente fazia<br />

com que a audiência prestasse atenção<br />

naquela narrativa tão prosaica. Certamente<br />

conseguiu tocar em algo universal,<br />

quando o grupo de quatro atores<br />

do núcleo principal da sitcom colocou<br />

uma lente de aumento nas questões<br />

comportamentais das pessoas que viviam<br />

em grandes centros urbanos em<br />

meados da década de 1990, com suas<br />

dores, facilidades do american way of<br />

life e idiossincrasias.<br />

Eu fazia parte do grupo de jovens adultos<br />

que se deleitava e gargalhava com<br />

as neuroses dos personagens, muitas<br />

delas recorrentes em meu próprio<br />

comportamento. E hoje, décadas depois,<br />

observo meus sobrinhos de 20 e<br />

poucos anos se divertindo com a série<br />

nas plataformas de streaming. Seinfeld<br />

é, definitivamente, atemporal. Mas por<br />

que estou falando de uma sitcom americana<br />

neste nosso primeiro encontro<br />

entre letras? Porque acho o sucesso de<br />

Seinfeld a prova cabal de quanto o comportamento<br />

humano provoca a nossa<br />

curiosidade, captura o nosso interesse.<br />

E este será o nosso assunto nestas páginas<br />

da Et cetera. Seinfeld ainda hoje<br />

faz um público global se reconhecer e<br />

se divertir ao projetar-se nas situações<br />

mais escalafobéticas vividas por Jerry,<br />

George, Kramer e Elaine. Estou longe<br />

de querer repetir o sucesso estrondoso<br />

do comediante americano, mas almejo,<br />

humildemente, contar histórias que<br />

criem, de alguma forma, rapport com<br />

você, leitor.<br />

Que possamos, juntos, fazer viagens<br />

descontraídas por situações que desafiem<br />

as capacidades humanas de<br />

tomada de decisão, relação com o diferente,<br />

enfrentamento de problemas ou<br />

a busca por algo novo e inusitado.<br />

Escrevo esta introdução à nova seção<br />

Crônicas e Tal. da revista diretamente<br />

da minha cidade natal, Rio de Janeiro.<br />

Do quiosque da praia, contemplo o<br />

dia indo embora da forma magistral<br />

como só ocorre no mar do Leblon (sou<br />

carioca expatriada, compreenda, por<br />

favor rsrs). Observo um casal que parou<br />

para tomar água de coco depois de<br />

uma aparente caminhada. Percebo um<br />

clima de conquista no ar, o que captura<br />

a minha atenção imediatamente. Ela,<br />

uma gata de seus 30 e poucos anos.<br />

Ele, um carioca expatriado como eu,<br />

que engata em uma narrativa surpreendentemente<br />

detalhada sobre como<br />

precisou voltar às pressas ao Rio depois<br />

do fim de férias e retorno ao trabalho<br />

em São Paulo, por causa de um<br />

acidente que obrigou a mãe a passar<br />

por uma cirurgia.<br />

Pedi uma porção de dadinhos de tapioca.<br />

Não perderia esse jogo de conquista<br />

por nada! A narrativa começava bem,<br />

enunciando um conflito interessante.<br />

Mas seria engajadora o suficiente?<br />

Teria todos os elementos para segurar<br />

a atenção da jovem, que, a essa altura,<br />

já pedia para o atendente abrir o coco<br />

<strong>–</strong> sinal de que a água já tinha acabado<br />

dentro da fruta. Já o papo... sei não!<br />

O rapaz continuava: descreveu os detalhes<br />

técnicos da colocação de uma prótese<br />

de quadril. Claramente havia feito<br />

o dever de casa e sabia tudo sobre os<br />

materiais, os possíveis reveses, tudo!<br />

Minha mãe passou por duas cirurgias<br />

análogas e pude comprovar que o moço<br />

sabia do que estava falando. Observei a<br />

mulher raspando o coco distraidamente,<br />

olhando o pôr do sol, que, naquele<br />

momento, obviamente, já ganhava de<br />

mil da narrativa do carioca expatriado.<br />

Por pouco não intervim, propondo<br />

uma guinada inesperada, um plot point,<br />

qualquer coisa que pudesse mudar o<br />

rumo daquela prosa. Talvez a cirurgia<br />

da mãe fosse apenas o início de uma<br />

epifania e ele surpreenderia a moça<br />

com uma mudança radical de vida: algo<br />

como morar no Tibete ou coisa parecida.<br />

Nada disso.<br />

Ele prosseguia, agora já na parte da<br />

recuperação da mãe, em casa. Confesso<br />

que me uni à moça por um tempo,<br />

contemplando o sol indo embora no<br />

mar. Me perdi pensando no que uma<br />

história precisa para não virar uma<br />

narrativa chata, ou, no caso em questão,<br />

insuportável. Um bom ponto de<br />

partida? Uma finalidade consistente?<br />

Propósito? E se ele seguisse a fórmula<br />

clássica de A Jornada do Herói, de Joseph<br />

Campbell? Afinal, ele foi chamado<br />

à aventura quando precisou cuidar da<br />

mãe convalescente, teve a ajuda de um<br />

mentor ao aprender tudo sobre próteses<br />

de quadril, mas o resto da jornada<br />

não trazia mensagem alguma, nenhuma<br />

lição. O que faltava ali? Certamente,<br />

ter levado em conta seu público-alvo<br />

teria ajudado um bocado.<br />

Quando me dei conta, avistei a moça<br />

atravessando a rua, sozinha. Você<br />

deve estar se perguntando: e o rapaz?<br />

Cerveja na mão, reclamando do pênalti<br />

perdido por algum jogador de algum<br />

time da liga europeia, que aparecia na<br />

tela da TV do quiosque. Minha alma<br />

feminina se revoltou com a virada de<br />

chave sem nenhuma frustração aparente.<br />

O que faz um ser humano ser tão<br />

insensível assim, gente?<br />

Mas isso é papo para outro dia. Por ora,<br />

ficamos com a reflexão sobre narrativas<br />

inspiradoras... ou como perder um<br />

date em 20 minutos.<br />

Alessandra Lotufo é diretora de comunicação<br />

e inovação da Bossa.etc<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 21<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 20


[GENTE COM BOSSA]<br />

Imagem: Getty Images<br />

Senta que lá vêm<br />

ótimas histórias<br />

Histórias de vida inspiradoras podem vir de personalidades<br />

cujas conquistas já ganharam o mundo ou de anônimos extraordinários<br />

que o público (ainda) não conhece. Contar essas<br />

histórias é a missão da Et cetera. Conhecer os altos e baixos<br />

no caminho de pessoas bem-sucedidas, aprender com as vitórias<br />

e os tropeços, se inspirar com seus propósitos. Nesta edição,<br />

a revista da Bossa estreia novas seções, criando espaços<br />

para que brasileiros notáveis conversem com nossos leitores.<br />

Nas próximas páginas, o leitor vai mergulhar na trajetória<br />

de brasileiros que souberam manter o passo firme para chegar<br />

aonde estão, como a jornalista Aline Midlej, que estampa<br />

nossa sétima capa. A âncora do Jornal das Dez, principal telejornal<br />

da GloboNews, acredita em um noticiário mais humanizado,<br />

que se conecta com a sociedade, e recorre à sua<br />

personalidade cativante para tirar o revestimento duro do<br />

jornalismo frio e formal.<br />

A montanhista Aretha Duarte é outra mulher cuja força, que<br />

ela chama de PIB (Poder Interno Bruto), a levou, literalmente,<br />

ao topo do mundo: em maio de 2021, após uma jornada<br />

de um ano para conseguir recursos financeiros para a expedição,<br />

ela se tornou a primeira negra latino-americana a<br />

alcançar o cume do Monte Everest. E o que dizer do Poder<br />

Interno Bruto da ativista indígena Txai Suruí, que discursou<br />

para líderes mundiais na 26ª Conferência das Nações Unidas<br />

sobre as Mudanças Climáticas (COP26)? Na infância,<br />

com a família jurada de morte por madeireiros e grileiros, ia<br />

para a escola acompanhada por seguranças armados. Txai<br />

inaugura a seção de entrevistas Q&A Etc., onde fala sobre<br />

sua vida no ativismo.<br />

Outro brasileiro que se destaca por sua determinação é o jogador<br />

de curling Sérgio Mitsuo Vilela, primeiro personagem<br />

da seção Com a Palavra..., que traz textos em primeira pessoa.<br />

Ele descobriu o esporte em 2010, assistindo à Olimpíada de<br />

Inverno pela TV, e se encantou. Em depoimento à Et cetera,<br />

o advogado conta sua trajetória de espectador a jogador da<br />

seleção brasileira de curling.<br />

O mundo das artes vem muito bem representado nesta edição.<br />

O cantor e compositor Péricles, que alcançou a fama com<br />

o grupo de pagode Exaltasamba, desenhou uma carreira solo<br />

de sucesso com música boa e visão de futuro. Com 40 anos<br />

de vida dedicados à cultura brasileira, o gestor cultural Bruno<br />

Assami soma conquistas profissionais como a Unibes Cultural,<br />

entidade que ajudou a criar e dirige atualmente. E o cineasta<br />

mineiro Gabriel Martins, que produz cinema de qualidade<br />

em Contagem, na Grande Belo Horizonte, é o convidado<br />

de Guarde Este Nome, seção que vai destacar jovens talentos.<br />

Em suma, é um encontro de grandes brasileiros, com excelentes<br />

histórias e bossa de sobra.<br />

Boa leitura!<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 23<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 22


[Q&A]<br />

Foto: reprodução Instagram<br />

“Não sou a Greta<br />

da Amazônia”<br />

Aos 25 anos, a ativista Walelasoetxeige Paiter Bandeira Suruí, conhecida por Txai<br />

Suruí, já discursou para os principais líderes do mundo, entre eles os presidentes<br />

Joe Biden, dos Estados Unidos, e Emmanuel Macron, da França, e o primeiro-ministro<br />

britânico, Boris Johnson. Desde que falou na abertura da 26ª Conferência<br />

das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26), em novembro do ano<br />

passado, ganhou projeção internacional e viu sua vida mudar completamente. Mas<br />

a estudante do último semestre da Faculdade de Direito da Universidade Federal<br />

de Rondônia (Unir) tira de letra, afinal seu nome significa “mulher inteligente” em<br />

tupi-mondé, a língua falada pelos paiter-suruí.<br />

Como foi sua infância?<br />

Eu cresci na minha aldeia, na Terra<br />

Indígena 7 de Setembro, e na Terra Indígena<br />

Uru-eu-wau-wau. As crianças<br />

se juntavam para brincar com arco e<br />

flecha, jogar futebol, andar na floresta,<br />

tomar banho de cachoeira e pescar.<br />

Cresci nadando em rios e adoro fazer<br />

isso. Tenho saudades de quando meu<br />

avô, meu pai e tios contavam histórias<br />

aos pequenos. Quando a noite estava<br />

fria, fazíamos fogueiras e eles falavam<br />

sobre nosso povo, nossa cultura e sobre<br />

os espíritos da floresta.<br />

Como você entrou no ativismo?<br />

Minha mãe é fundadora da ONG Kanindé,<br />

uma organização que há 30 anos<br />

trabalha com ações de fiscalização da<br />

terra indígena, acompanhamento de<br />

políticas públicas e defesa do meio ambiente.<br />

Por causa dos meus pais, ambos<br />

ativistas, cresci nesse meio, e, aos<br />

7 anos, já estava falando ao microfone,<br />

em eventos.<br />

Quais suas memórias mais<br />

marcantes dessa época?<br />

Minha família toda era jurada de morte<br />

por madeireiros e grileiros. Dos 12 aos<br />

14 anos, fui acompanhada pela Força<br />

Nacional. Ia pra escola com seguranças<br />

armados. As outras crianças tinham<br />

medo de mim. No fundo, passamos a<br />

vida inteira sob risco. Há alguns meses,<br />

tivemos uma invasão de grileiros<br />

e madeireiros aqui em Rondônia. Deram<br />

tiros nas placas da Funai que indicam<br />

que é território indígena e dispararam<br />

em direção à aldeia, onde há<br />

muitas crianças. É difícil para jovens<br />

e crianças indígenas crescerem constantemente<br />

ameaçados. Toda criança<br />

indígena cresce ameaçada, é traumatizante<br />

isso.<br />

Como foi o convite para falar na<br />

abertura da COP26?<br />

Os ativistas brasileiros se organizaram<br />

para levar um grupo de jovens lideranças,<br />

e fui convidada. Eu já trabalhava<br />

na Kanindé como coordenadora e na<br />

área jurídica e sou também conselheira<br />

da WWF. Lá em Glasgow, dois dias<br />

antes da abertura, minha amiga Paloma<br />

Costa, que é conselheira do secretário-geral<br />

da ONU, me convidou para<br />

falar diante de “alguns líderes”. Aceitei,<br />

claro, era uma chance de mostrar nossa<br />

luta e nossas reivindicações. Um dia<br />

antes, a Paloma me avisou que eu ia<br />

fazer a abertura. Quase não acreditei!<br />

Pensei que fosse falar em uma reunião<br />

fechada, mas era para falar diante dos<br />

principais líderes do mundo, e, ainda<br />

por cima, em inglês!<br />

A repercussão do seu discurso foi<br />

enorme. Você esperava por isso?<br />

Sinceramente, não esperava. Pouco<br />

depois do discurso, eu já estava sendo<br />

procurada pela BBC, pelo The New York<br />

Times, por jornalistas do mundo todo.<br />

Essa visibilidade é importante. Ninguém<br />

lá fora sabe o que acontece na<br />

Amazônia, nem aqui no Brasil sabem.<br />

Tudo é muito diluído, superficial, distante.<br />

A visibilidade fortalece nossas<br />

denúncias também. Ganhamos apoios<br />

e fizemos contatos importantes.<br />

Em muitas reportagens,<br />

sobretudo no exterior, você foi<br />

chamada de “Greta Thunberg<br />

indígena”. O que acha dessa<br />

comparação?<br />

Não gosto. Não sou a Greta da Amazônia,<br />

sou a Txai. Conheci a Greta na<br />

COP, ela é uma pessoa doce, atenciosa,<br />

me pareceu realmente preocupada<br />

e sensibilizada com a situação dos<br />

indígenas. Respeito o trabalho dela, é<br />

muito importante, mas, no nível local,<br />

nossa luta é diferente. No nível global, é<br />

a mesma batalha, nós duas lutamos por<br />

um mundo melhor.<br />

Aqui no Brasil, você já foi<br />

chamada de “índia de iPhone”.<br />

Você se incomoda com essas<br />

provocações?<br />

Tem muito estereótipo, nos veem<br />

como se fôssemos “atrasados” ou “ingênuos”.<br />

Até as pessoas informadas<br />

e bem-intencionadas cometem deslizes,<br />

como usar a palavra “índio”, por<br />

exemplo, quando há anos a designação<br />

correta é “indígena”. Ou “tribo”<br />

em vez de “etnia”. Mesmo quem quer<br />

ajudar tem conceitos preconcebidos e<br />

estereótipos. Ninguém aqui quer espelhinho.<br />

Nós queremos desenvolvimento<br />

sustentável, paz e uma vida digna.<br />

Para falar a verdade, comprei meu<br />

primeiro iPhone lá em Glasgow, que é<br />

mais barato. Esse rótulo bobo não me<br />

incomoda, sou uma indígena de iPhone<br />

mesmo. Ajuda no meu trabalho, que<br />

envolve comunicação e gestão de redes<br />

sociais. É uma ferramenta, só isso.<br />

O que você pensa dessa recente<br />

emergência de pensadores<br />

indígenas, como Ailton Krenak e<br />

Davi Kopenawa?<br />

Ailton Krenak não é só um líder e pensador<br />

indígena, é um dos maiores filósofos<br />

do Brasil. Acho importantíssimo<br />

que ele e outros pensadores indígenas<br />

estejam sendo ouvidos. É preciso reconhecer<br />

o saber milenar indígena. Ele<br />

está espalhando esse saber, esse modo<br />

de ver o mundo. É preciso descolonizar,<br />

recontar nossa história, a nossa versão.<br />

O que é preciso fazer para<br />

melhorar a vida dos povos<br />

indígenas no Brasil?<br />

Tudo no sentido contrário do que estamos<br />

fazendo hoje. O plano oficial é<br />

acabar com o desmatamento até 2030.<br />

É difícil acreditar que isso vá acontecer,<br />

basta ver os atuais índices de<br />

desmatamento. Os povos indígenas<br />

representam 6% da população mundial<br />

e sustentam 80% das florestas. As<br />

terras indígenas são ilhas de florestas<br />

cercadas por desmatamentos, invasões<br />

de grileiros e madeireiros. É preciso<br />

demarcar mais terras, proteger mais a<br />

floresta. Temos de fortalecer leis, decretos<br />

e órgãos ambientais, usar mais<br />

a inteligência e a tecnologia a favor da<br />

floresta, não contra. A política ambiental<br />

tem que ser encarada de forma suprapartidária,<br />

como um projeto de futuro<br />

para o país, não de um candidato<br />

ou de um partido.<br />

Entrevista concedida a Diego Braga Norte<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 25<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 24


[COM A PALAVRA…]<br />

“Foi paixão<br />

à primeira<br />

pedrada”<br />

Em cinco anos,<br />

o advogado<br />

Sérgio Mitsuo<br />

Vilela passou de<br />

telespectador<br />

descobrindo<br />

o curling nas<br />

Olimpíadas de<br />

Inverno a jogador<br />

da seleção<br />

brasileira do<br />

esporte. Neste<br />

depoimento à<br />

Et cetera, ele<br />

descreve sua<br />

trajetória<br />

Em 2010, acompanhei as transmissões<br />

da Olimpíada de Inverno em Vancouver,<br />

no Canadá, e fiquei hipnotizado<br />

pelo curling. Eu tinha 29 anos. Naquele<br />

mesmo ano, uma campanha publicitária<br />

trouxe o time da Noruega ao Brasil,<br />

e a empresa montou uma pista de curling<br />

no Shopping Eldorado [em São Paulo].<br />

Fiquei seis horas na fila para jogar<br />

curling pela primeira vez na vida.<br />

Foi paixão à primeira pedrada. Quando<br />

era jovem, fui tetracampeão brasileiro<br />

de kenjutsu, aquela esgrima de samurais<br />

com espadas de bambu, mas essa<br />

experiência pouco adiantou no curling.<br />

Vendo pela TV, parece superfácil, mas<br />

a pedra de curling é um bloco de granito<br />

de 20 quilos. É como arremessar<br />

uma pia de cozinha numa pista de gelo<br />

com precisão suficiente para fazê-la<br />

parar em um local específico. No arremesso,<br />

a pedra gira em torno de si<br />

e acaba fazendo curvas, desviando do<br />

alvo <strong>–</strong> daí o nome no esporte vir de<br />

curl [girar, em inglês]. A vassoura serve<br />

para criar mais atrito na pista de gelo.<br />

Com o atrito provocado pela vassoura,<br />

a pedra diminui sua velocidade, gira<br />

menos e segue uma trajetória mais<br />

precisa. Coordenar a precisão do arremesso<br />

e corrigir sua rota com as vassouras<br />

é superdifícil! Mas essa mistura<br />

de gelo com força, precisão e técnica<br />

me cativou.<br />

Três anos depois dessa experiência<br />

no shopping, minha mulher foi transferida<br />

para o banco UBS de Zurique e<br />

nos mudamos para a Suíça. Entrei no<br />

doutorado em direito tributário internacional<br />

na Universidade de Zurique<br />

e descobri que a própria universidade<br />

tinha pista e uma equipe de curling.<br />

Comecei a frequentar o local e fiz um<br />

curso de iniciação lá mesmo. Aprendi<br />

as regras, técnicas, história do esporte,<br />

macetes e a ética do jogo. Pouca gente<br />

sabe, mas o curling é um esporte<br />

tremendamente social. Primeiro, só se<br />

joga em equipes formadas por quatro<br />

pessoas, em modalidades masculina,<br />

feminina ou mista. E a camaradagem<br />

já começa aí. Outra coisa é o incentivo<br />

à lealdade e à honestidade. Os atletas<br />

sinalizam suas próprias faltas, quando<br />

ultrapassam a faixa na hora de jogar a<br />

pedra, por exemplo. Mas o mais legal é<br />

a tradição de os ganhadores pagarem<br />

uma rodada de bebida para o time que<br />

perdeu. Na hora do jogo, todo mundo<br />

quer ganhar, claro, mas, quando termina,<br />

acaba a rivalidade e todos vão pro<br />

bar. Essa confraternização é mantida<br />

até em competições internacionais, inclusive<br />

as Olimpíadas de Inverno.<br />

Depois de algum tempo jogando com<br />

o pessoal da universidade, entrei em<br />

contato com a CBDG [Confederação Brasileira<br />

de Desportos no Gelo]. Disse que<br />

era praticante, treinava regularmente<br />

e gostaria de representar o Brasil em<br />

competições internacionais. Fui muito<br />

bem recebido, e me convidaram para<br />

participar da seletiva para o campeonato<br />

pan-americano de 2015. Passei<br />

na seletiva, realizada em Vancouver,<br />

e entrei na equipe brasileira de curling.<br />

Desde então, já participei de três<br />

campeonatos mundiais e quatro pan-<br />

-americanos. Deveriam ter sido cinco<br />

campeonatos mundiais, mas os dois<br />

últimos foram cancelados em função<br />

da pandemia.<br />

Em 2019, ganhamos da Dinamarca,<br />

que é uma das melhores equipes do<br />

mundo. Essa vitória foi um marco para<br />

o curling brasileiro, um sinal de que<br />

estamos no caminho certo. Temos a<br />

meta de classificar o Brasil para as<br />

Olimpíadas de Inverno de 2030. O objetivo<br />

é realista, mas sabemos da dificuldade.<br />

Não há tantos times de curling<br />

nas Américas, mas a gente disputa as<br />

duas vagas existentes com Canadá e<br />

Estados Unidos, potências do esporte.<br />

Hoje, a Federação Mundial de Curling<br />

tem 64 membros e o Brasil está na 30ª<br />

posição do ranking. Como são só dez<br />

vagas para as Olimpíadas, temos de<br />

melhorar ainda.<br />

A inauguração em São Paulo da Arena<br />

Ice Brasil, voltada para esportes de<br />

inverno, foi um passo enorme. Finalmente<br />

temos uma pista de curling no<br />

país. Antes, o Campeonato Brasileiro<br />

de Curling era disputado no Canadá, e<br />

por isso era muito restrito aos brasileiros<br />

que moram no exterior. Agora ele<br />

será disputado no Brasil, e isso é uma<br />

grande conquista. Podemos formar<br />

jogadores, manter uma rotina de treinamentos<br />

e competições. Temos cerca<br />

de 50 atletas federados em várias categorias,<br />

de jovens a adultos. Na Escócia,<br />

onde o esporte foi criado, joga-se<br />

curling há 500 anos. No Brasil, começamos<br />

há muito pouco tempo, mas a<br />

pista de São Paulo vai ajudar muito na<br />

formação de atletas.<br />

Hoje trabalho no banco Julius Baer,<br />

sou advogado e presto consultoria a<br />

clientes que querem investir no Brasil.<br />

O curling já deixou de ser um hobby<br />

ocasional para virar uma paixão <strong>–</strong> treino<br />

toda semana. Estamos fazendo um<br />

trabalho de formiguinha, com ações<br />

para divulgar o esporte e atrair mais<br />

gente. É muito fácil conseguir patrocínios<br />

para o futebol, mas para o curling<br />

é outra história. Eu me sinto como um<br />

desbravador e embaixador do curling,<br />

sou um dos investidores privados<br />

que ajudaram a construir a Arena Ice<br />

Brasil. E já iniciei meu filho no esporte.<br />

Comecei a jogar regularmente com<br />

mais de 30 anos, mas ele começou<br />

aos 3. Hoje ele tem 7 anos e já participa<br />

de competições. Quem sabe ele<br />

não estará com a camisa do Brasil nas<br />

Olimpíadas de 2030?<br />

Depoimento dado a Diego Braga Norte<br />

Foto: reprodução Instagram<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 26


[GUARDE ESTE NOME]<br />

Gabriel<br />

Martins:<br />

de Contagem para<br />

o mundo<br />

Foto: Isabela Martins<br />

O currículo do cineasta Gabriel Martins<br />

já soma cinco curtas-metragens e<br />

três longas, incluindo Marte Um, que estreou<br />

em janeiro no Festival Sundance,<br />

maior evento de cinema independente<br />

do mundo. Nada mal para o jovem de<br />

35 anos oriundo da periferia de Contagem,<br />

na Grande Belo Horizonte, em Minas<br />

Gerais. Na comunidade em que ele<br />

cresceu, não havia sequer uma sala de<br />

cinema, e foi pela TV que ele descobriu<br />

sua paixão pelos filmes. “Eu era pequeno<br />

e já me interessava por aqueles<br />

programas de making of, que mostram<br />

os bastidores. Vibrava vendo como as<br />

pessoas faziam filmes.” Aos 13 anos, foi<br />

levado pela mãe à Mostra de Cinema<br />

de Tiradentes, onde assistiu a Bicho de<br />

Sete Cabeças. “Eu nem sabia que existiam<br />

filmes brasileiros!” A partir dali,<br />

seu destino no cinema estava traçado.<br />

“Nunca mais desejei fazer outra coisa<br />

na vida”, diz. Preencheu cadastro nas<br />

videolocadoras do bairro e devorou,<br />

por anos a fio, pencas de fitas e DVDs.<br />

Gabriel integrou a primeira turma do<br />

primeiro curso de cinema em Belo Horizonte,<br />

no Centro Universitário UNA,<br />

inaugurado em 2006. Foi lá que ele conheceu<br />

Maurílio Martins, outro aluno<br />

que havia crescido na periferia de Contagem.<br />

Três anos depois, a dupla finalizava<br />

seu primeiro curta, Filme de Sábado,<br />

com Gabriel na direção e Maurílio<br />

responsável pela fotografia e câmera.<br />

O filme de 18 minutos teve um orçamento<br />

pra lá de modesto — 500 reais,<br />

100% bancados pelo diretor <strong>–</strong> e conta a<br />

história de um garoto que luta contra<br />

o tédio de um sábado nublado na periferia<br />

de Contagem e, para se divertir,<br />

resolve criar uma praia cenográfica no<br />

quintal de casa.<br />

Pouco tempo depois, Gabriel, Maurílio,<br />

Thiago Macêdo Correia e André<br />

Novais Oliveira fundaram a produtora<br />

Filmes de Plástico, que hoje já tem<br />

em seu portfólio 15 curtas, seis longas<br />

e dezenas de prêmios nacionais e internacionais.<br />

“Fui muito influenciado<br />

pelo cinema marginal brasileiro e<br />

aquela galera da Boca do Lixo, Rogério<br />

Sganzerla, Carlos Reichenbach, Carlos<br />

Alberto Prates Correia, Ana Carolina.<br />

Cineastas que me ensinaram a potência<br />

de fazer algo na nossa língua, que<br />

retrata a nossa vida”, explica. E, de fato,<br />

os filmes de Gabriel Martins transbordam<br />

brasilidade (e, no sotaque de alguns<br />

atores, mineirismo), com dramas<br />

de personagens e famílias brasileiras.<br />

A realidade em sua obra é tão presente<br />

que muitas delas situam-se transitando<br />

por limites difusos entre documentário<br />

e ficção. Alguns atores interpretam a si<br />

mesmos, todas as locações são reais e<br />

algumas cenas são quase registros jornalísticos<br />

ou documentais. “O cinema<br />

do Eduardo Coutinho sempre me fascinou<br />

muito, e, em alguns sentidos, ele é<br />

uma das minhas maiores influências”,<br />

diz Gabriel, em referência ao renomado<br />

documentarista brasileiro.<br />

O diretor mineiro leva a sério a máxima<br />

de Tolstói “Se queres ser universal,<br />

começa por pintar a tua aldeia”.<br />

Todos os seus filmes são gravados na<br />

periferia de BH, muitos dentro de seu<br />

próprio bairro em Contagem, Milanez.<br />

Além de atores amadores, ele convoca<br />

vizinhos, comerciantes locais e amigos<br />

para participar. “Nunca trabalhei com<br />

preparador de elenco. Eu mesmo faço<br />

o casting, escolhendo e ensaiando com<br />

todo mundo. Gosto muito dessa parte”,<br />

conta. Cícero Lucas, adolescente<br />

que protagoniza Marte Um, teve sua<br />

atuação elogiada em Sundance e em<br />

críticas especializadas internacionais.<br />

O jovem foi descoberto em uma roda<br />

de samba, tocando percussão. “Quando<br />

minha mulher [Rimenna Procópio],<br />

que é diretora de arte do filme, bateu<br />

o olho nele, disse que era exatamente<br />

a figura que veio em sua cabeça<br />

quando leu o roteiro.”<br />

Depois de realizar produções de baixíssimo<br />

orçamento, a turma da Filmes<br />

de Plástico passou a se inscrever nos<br />

editais públicos de fomento à cultura.<br />

“Praticamente todos os longas foram<br />

feitos com o dinheiro de editais, até<br />

os mais recentes foram filmados com<br />

verba que tinha sido aprovada lá atrás,<br />

mas demorou para ser liberada.” Hoje,<br />

por causa de cortes maciços no orçamento<br />

da cultura, alterações na Lei<br />

Rouanet e fim de vários programas de<br />

financiamento, a produtora está com<br />

diversos projetos parados. No entanto,<br />

a boa recepção de Marte Um em Sundance<br />

pode virar o jogo. “Fiquei muito<br />

surpreso com a quantidade de reportagens<br />

sobre o filme. O volume de<br />

repercussões positivas me espantou.”<br />

Ele não pode dar detalhes, mas revela<br />

que atualmente negocia com grupos de<br />

streaming internacionais. Vem trem bão<br />

por aí, sô.<br />

Foto: reprodução mídias sociais<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 29<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 28


Nome: Aline Alves Midlej<br />

Idade: 39 anos<br />

Profissão: jornalista<br />

Cidade onde nasceu: São Luís/MA<br />

Credibilidade<br />

com<br />

personalidade<br />

Por Daniela Macedo<br />

Impulsionada pelo propósito de humanizar o<br />

noticiário, a jornalista Aline Midlej imprime<br />

empatia e carisma ao Jornal das Dez, principal<br />

telejornal da GloboNews<br />

Foto: Wanezza Soares<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 31<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 30


Jornalismo mais<br />

humano<br />

Desde que se formou, em 2005, pela<br />

Universidade Metodista de São Paulo,<br />

Aline tem como missão humanizar o<br />

noticiário, mostrando que o papel do<br />

jornalista vai além da narração fria dos<br />

fatos. “Quando eu me preparo para dar<br />

uma notícia, reflito sobre a história que<br />

vou contar, sobre o impacto na vida<br />

dos envolvidos e da sociedade”, afirma.<br />

“Acho que o jornalismo brasileiro cresceu<br />

muito com a cobertura da pandemia,<br />

tirando a capa do distanciamento<br />

e do formalismo, que, pra mim, não têm<br />

nada a ver com credibilidade. Credibilidade<br />

tem a ver com verdade, com apuração,<br />

com compromisso”, pontua.<br />

A saúde mental de uma profissional<br />

cuja rotina envolve assuntos como pandemia,<br />

violência urbana, injustiça social<br />

e guerra <strong>–</strong> e absorve os sentimentos<br />

envolvidos nesse fluxo de acontecimentos<br />

impactantes <strong>–</strong> requer cuidados<br />

redobrados. Ela não abre mão dos<br />

exercícios físicos (ioga e musculação),<br />

medita e respira. Sim, respira. “Parece<br />

óbvio, mas não é. Várias vezes ao dia,<br />

paro para respirar fundo três vezes.<br />

Isso traz a gente de volta ao momento<br />

presente, ajuda a tomar decisões e a se<br />

relacionar melhor com as outras pessoas”,<br />

diz. Ela também recorre a mecanismos<br />

mentais de absorção das notícias.<br />

“Acho que o jornalismo brasileiro cresceu muito com a<br />

cobertura da pandemia, tirando a capa do distanciamento<br />

e do formalismo, que, pra mim, não têm nada a ver com<br />

credibilidade. Credibilidade tem a ver com verdade, com<br />

apuração, com compromisso”<br />

E<br />

Apresentando o J10, na GloboNews | foto: reprodução Instagram<br />

m janeiro deste ano, a jornalista Aline Midlej chorou ao vivo durante uma entrevista no Jornal das Dez (J10), exibido pela<br />

GloboNews. A apresentadora conversava por vídeo com o médico Rodolfo Aparecido da Silva, que perdeu a filha de 7<br />

anos para a Covid-19. A tela dividida mostrava, além do entrevistado, cenas da pequena Alícia, falecida em 2021. Quando<br />

a transmissão volta para o estúdio, o espectador encontra Aline emocionada, enxugando as lágrimas. “Eu sinto muito pelo seu<br />

relato. A sua filha tem a idade da minha sobrinha.” Faz uma pausa, respira fundo. “Desculpe”, diz, e então segue a entrevista<br />

sobre o início do processo de vacinação nas crianças.<br />

A atitude empática retrata a personalidade desta jornalista com 17 anos de carreira, reconhecida não só pelo profissionalismo<br />

mas também pelo carisma e espontaneidade. E não para por aí. Seu lado sensível, que a leva a se envolver com os fatos que<br />

noticia, segue fora do estúdio. “Falo com ele [Rodolfo Silva] até hoje pelo WhatsApp”, conta. Aline mantém contato com algumas<br />

vítimas de tragédias que cruzaram seu caminho. Pergunta como elas estão, comenta as fotos que enviam. “Não sei se isso faz<br />

alguma diferença pra elas, mas quero que saibam que a gente se importa”, diz Aline. “Às vezes, eu me sinto estranha por ter, de<br />

alguma forma, invadido a vida dessas pessoas que abrem suas dores pra gente.”<br />

“Eu me envolvo, isso é uma característica<br />

minha. No entanto, tenho que ter<br />

uma ‘gavetinha mental’, onde guardo<br />

as questões relacionadas ao trabalho.<br />

Claro que a gavetinha fica entreaberta,<br />

e eu penso sobre aqueles assuntos fora<br />

do trabalho, mas a missão de informar,<br />

que me move nessa profissão, me dá<br />

ferramentas para entender o que me<br />

pertence e o que não me pertence”, explica.<br />

“Quando as pessoas abrem espaço<br />

na vida delas pra mim e eu sinto que<br />

não pude fazer o que gostaria, procuro<br />

pensar na missão jornalística: não estou<br />

aqui para melhorar a vida das pessoas<br />

diretamente, mas, sim, para fazer<br />

do jornalismo um meio de aumentar o<br />

pensamento crítico da sociedade brasileira,<br />

para que a gente tenha um país<br />

melhor para viver. Então, de alguma<br />

forma, estou ajudando”, diz Aline.<br />

A busca pelo equilíbrio emocional é um<br />

desafio ininterrupto. Em fevereiro, logo<br />

após a tragédia das chuvas que matou<br />

mais de 200 pessoas em Petrópolis, na<br />

região serrana do Rio, Aline apresentou<br />

o J10 ao vivo da cidade fluminense,<br />

ainda durante o resgate de corpos nos<br />

escombros deixados pela enchente e<br />

deslizamentos de terra. Teve pouco<br />

tempo para absorver o cenário devastador<br />

que encontrou ao chegar à cidade,<br />

às 20h30, antes de o jornal entrar<br />

no ar, às 22h. “Foi tudo no improviso.<br />

Estava tudo escuro, eu estava sem TP<br />

[teleprompter, que exibe o texto na câmera,<br />

para ser lido pelo apresentador], sem nada.<br />

Tive menos de duas horas pra absorver<br />

aquilo tudo e falar sobre um tema tão<br />

delicado. Como usar sentimento sem<br />

ser piegas ou sensacionalista, mas ao<br />

mesmo tempo sem transformar aquela<br />

tragédia em meros números? Como<br />

fazer a conexão do espectador, que<br />

está em casa, com aquela realidade?”,<br />

diz Aline. Ao final do dia de trabalho, a<br />

tal gavetinha mental ficou mesmo entreaberta:<br />

“Passei dias sonhando com a<br />

tragédia em Petrópolis, com as pessoas<br />

que conheci lá”, conta. “Sempre me<br />

pergunto se honrei aquelas vítimas,<br />

sabe? Por mais que estivesse ali de coração,<br />

ao final do dia voltei pra minha<br />

casa, pra minha cama quente. Por mais<br />

que eu me envolva com projetos sociais,<br />

sempre volto pro meu conforto. E<br />

isso é mais difícil pra mim do que lidar<br />

com o ato de noticiar.”<br />

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<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 32


Sangue nos olhos<br />

Incomodada<br />

Aline Midlej começou a carreira como estagiária na TV Globo<br />

e já passou pela Rede Record, TV Brasil e Band, onde<br />

comandou o Café com Jornal, antes de entrar para o time da<br />

GloboNews, em 2016 <strong>–</strong> primeiro no Edição das 10, dividindo<br />

a apresentação do programa com a jornalista Raquel Novaes,<br />

e, desde setembro de 2021, à frente do J10. Na noite de 18 de<br />

setembro de 2021, estreou como apresentadora do time de<br />

plantonistas do Jornal Nacional, o maior telejornal do país.<br />

Aos 22 anos, quando ainda era produtora da TV Record, teve<br />

o primeiro vislumbre da escalada que poderia experimentar<br />

na carreira. Ela foi chamada para integrar a equipe da repórter<br />

Adriana Araújo em uma grande matéria sobre desigualdade<br />

social. Era sua primeira reportagem especial. Passava<br />

o dia pensando no tema, ia falar com as pessoas na rua fora<br />

do horário de trabalho. Adriana avisou que queria gravar<br />

uma passagem, jargão jornalístico para o momento em que<br />

o repórter aparece diante da câmera, em uma varanda de um<br />

dos edifícios luxuosos do bairro do Morumbi, em São Paulo,<br />

com a comunidade de Paraisópolis ao fundo. Para gravar<br />

a passagem, que retrataria dois extremos do Brasil, Aline<br />

precisava convencer um morador a ceder o espaço à equipe<br />

de TV e seus equipamentos. “Fui até o prédio que ela havia<br />

indicado. A cada morador que chegava, eu me apresentava<br />

e explicava a situação. Fiquei umas cinco horas na porta do<br />

prédio até convencer uma moradora a deixar a gente gravar<br />

na varanda dela. Quando cheguei à redação, superanimada,<br />

falei: ‘Adriana, vamos gravar!’ E ela disse: ‘Não acredito<br />

que você conseguiu!’ Aquilo me marcou muito, e foi minha<br />

grande virada”, conta.<br />

Atualmente, a âncora do J10 se dedica a imprimir sua personalidade<br />

ao principal telejornal da GloboNews. Lê jornais logo<br />

que acorda e passa o dia se atualizando entre uma e outra<br />

tarefa do dia a dia, e, às 13h, mergulha no noticiário para a<br />

reunião de pauta, às 16h, que vai definir os assuntos que terão<br />

espaço no J10. Nas oito horas em que está na emissora, dedica<br />

toda a sua energia ao trabalho, principalmente pensando em<br />

caminhos para que o telejornal tenha uma identidade própria<br />

da “gestão Aline”. “É o jornal mais antigo e tradicional do canal,<br />

e que já passou por muitas fases. A gente quer sempre<br />

trazer frescor, um jeito ‘solar’, um jeito J10 de noticiar, que<br />

faça o espectador querer saber qual vai ser nosso olhar pra<br />

determinado assunto”, diz Aline.<br />

Apresentando o Café com Jornal, na<br />

Band | foto: reprodução Instagram<br />

“A percepção de negritude não estava nem na minha<br />

família, onde a maioria tem a pele clara. Minha irmã tem<br />

a pele mais escura e o cabelo liso, e eu já tenho a pele um<br />

pouco mais clara e o cabelo enrolado. É uma construção<br />

de identidade complexa e, ao mesmo tempo, muito bonita.<br />

Hoje, tenho muito orgulho da minha identidade”<br />

Não é só a vontade de se destacar que<br />

impulsiona Aline: ela é motivada por<br />

propósitos. Em suas redes sociais, a<br />

jornalista se autodefine “incomodada”.<br />

Uma mulher desperta para o que está<br />

acontecendo ao redor, sempre observando<br />

tudo, segundo ela. “Esse interesse<br />

pelo externo, por compreender<br />

as realidades diferentes da minha, é o<br />

que me move. E não só nas questões<br />

ligadas a justiça social, mas na complexidade<br />

da nossa sociedade”, explica.<br />

Essa inquietação para entender e<br />

transformar o mundo lhe indicava diferentes<br />

caminhos na juventude, quando<br />

ainda escolhia entre seguir carreira<br />

no direito, na diplomacia ou no jornalismo.<br />

“Essas três áreas se encontram<br />

num ponto comum que envolve arbitrar,<br />

lidar com questões do mundo. São<br />

carreiras que, em alguma medida, têm<br />

certa dose de idealismo.” A decisão veio<br />

quando ela aliou o propósito ao dom<br />

para a comunicação, identificado logo<br />

cedo pela família e professores. “Nas<br />

reuniões de pais na escola, os professores<br />

diziam que ela gostava de liderar,<br />

de argumentar, de falar, de comentar<br />

tudo. Em casa, ela fingia que os brinquedos<br />

eram máquinas de escrever,<br />

ficava datilografando, brincando com<br />

envelopes e papéis”, conta Cida, mãe de<br />

Aline. “Ela sempre foi muito determinada,<br />

e resolveu seguir esse caminho<br />

lindo, que nos dá tanto orgulho”, derrete-se<br />

a mãe da jornalista.<br />

Esse propósito a acompanha quando<br />

ela reconhece seu importante papel de<br />

representatividade, como uma mulher<br />

miscigenada em posição de destaque.<br />

Aline é a caçula dos três filhos de um<br />

casal de nordestinos: Cida, dona de<br />

casa pernambucana, e Ronaldo, engenheiro<br />

nascido no sul da Bahia, filho de<br />

um imigrante libanês que se casou com<br />

uma baiana (daí o sobrenome Midlej).<br />

Nasceu no dia 4 de fevereiro de 1983<br />

em São Luís, durante o curto período<br />

em que a família morou no Maranhão.<br />

Embora tenha se mudado para São<br />

Paulo quando tinha 4 anos, ela cresceu<br />

em meio às tradições nordestinas<br />

da família, mantendo vínculo com os<br />

parentes na Bahia e em Pernambuco <strong>–</strong><br />

até a adolescência, chamava a mãe de<br />

“mainha”.<br />

Os Midlej moravam em Perdizes, bairro<br />

de classe média alta, e Ronaldo fazia<br />

questão de investir na educação dos filhos,<br />

que frequentavam bons colégios.<br />

“Eu tinha um pouco de receio de dizer<br />

que era nordestina porque não tinha<br />

nenhum outro nordestino na minha<br />

escola. E havia um certo preconceito<br />

dos paulistas contra os nordestinos naquela<br />

época”, lembra. Nos anos 1980,<br />

muitos paulistas usavam a palavra<br />

“baiano” de maneira pejorativa. “Aquilo<br />

me causava certa confusão. Eu pensava:<br />

‘Como assim? Baiano é meu pai’”,<br />

conta, entre risos.<br />

Com a chegada à pré-adolescência <strong>–</strong> e<br />

o consequente despertar da autoestima,<br />

da comparação do próprio corpo<br />

com o das amigas <strong>–</strong>, Aline passou a<br />

se reconhecer negra. “Eram detalhes<br />

da autoimagem, como o cabelo pós-<br />

-praia, por exemplo, que eu só comecei<br />

a perceber nessa época”, conta. A<br />

miscigenação familiar, que implicava<br />

diferentes tons de pele e tipos de cabelo,<br />

contribuiu para que essa descoberta<br />

fosse tardia. “A percepção de negritude<br />

não estava nem na minha família, onde<br />

a maioria tem a pele clara. Minha irmã<br />

tem a pele mais escura e o cabelo liso, e<br />

eu já tenho a pele um pouco mais clara<br />

e o cabelo enrolado. É uma construção<br />

de identidade complexa e, ao mesmo<br />

tempo, muito bonita. Hoje, tenho muito<br />

orgulho da minha identidade.”<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 35<br />

Com os irmãos | foto: reprodução Instagram<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 34


Raízes africanas<br />

Foi como repórter que Aline teve a<br />

oportunidade de estreitar os laços com<br />

sua ancestralidade. Por quase dois<br />

anos, em 2009 e 2010, viajou por mais<br />

de 20 países africanos produzindo a<br />

série de reportagens Nova África, pela<br />

TV Brasil. Enquanto contava a história<br />

daqueles países sob o ponto de vista<br />

dos africanos, Aline mergulhou na realidade<br />

do continente. Visitou campos<br />

de refugiados, esteve na guerra civil<br />

no Congo, entrevistou a ambientalista<br />

queniana Wangari Muta Maathai, primeira<br />

mulher africana a ganhar o Nobel<br />

da Paz, em 2004.<br />

Se, na infância, a origem nordestina<br />

era alvo de preconceito, foi na vida<br />

adulta que Aline lidou com o racismo.<br />

“Sempre foram atitudes sutis, mas<br />

não menos dolorosas. Se eu alisava o<br />

cabelo, por exemplo, um diretor elogiava:<br />

‘Ficou melhor assim’”, lembra.<br />

Hoje, Aline sente-se segura para reagir<br />

“com uma boa risada”, garante, a<br />

comentários desse tipo. E mais: abraça<br />

sua ancestralidade inclusive quando<br />

veste branco em homenagem ao dia de<br />

Oxalá. Seguidora do candomblé, a âncora<br />

do J10 exibe um look 100% branco<br />

(e sempre impecável) às sextas-feiras.<br />

“Precisamos reforçar o respeito e a tolerância<br />

religiosa”, diz. “E essa decisão<br />

não tem a ver com afrontar, tem a ver<br />

com ser eu mesma. Quando visto branco<br />

às sextas, estou sendo a versão mais<br />

plena da Aline, que é um ser complexo,<br />

que traz muitas coisas em si.” Sendo<br />

sua versão mais verdadeira para todo o<br />

Brasil, a jornalista contribui ainda mais<br />

com seu papel na representatividade.<br />

“Recebo fotos de meninas em frente<br />

à TV, miscigenadas como eu, que não<br />

sabem muito bem o que são. Também<br />

recebo perguntas dos espectadores sobre<br />

vestir branco, e gosto de responder<br />

para explicar. Acho importante levar<br />

informação e ajudar a quebrar o preconceito<br />

decorrente da ignorância com<br />

as religiões de matriz africana.”<br />

Uma Aline só<br />

Aline é casada com o diretor de TV e documentarista Rodrigo Cebrian, e o interesse<br />

mútuo se deu, em um primeiro momento, graças à personalidade espontânea<br />

da jornalista. Em 2019, ele participou do jornal que ela apresentava com Raquel<br />

Novaes para divulgar o programa Que Mundo É Esse?. Rodrigo estava no estúdio do<br />

Rio e ficou desnorteado quando Aline, que apresentava o jornal de São Paulo, fez<br />

uma pergunta sem aparecer no telão diante dele. Enquanto ele procurava a dona da<br />

voz, ela brincou: “Estou aqui, a voz do além”. Pronto, estava estabelecida a conexão.<br />

Ela se separou do então companheiro<br />

para viver uma história de amor: o relacionamento<br />

a distância se transformou<br />

na vida a dois no Rio de Janeiro<br />

quando ela se mudou definitivamente<br />

para a cidade do marido, em 2020.<br />

O casal mora na Lagoa de segunda a<br />

sexta e, nos fins de semana, se refugia<br />

num pequeno apartamento de frente<br />

para o mar na Praia da Macumba. De<br />

pés descalços, como ela adora estar. “A<br />

jornalista que a gente vê na TV, espontânea<br />

e que de fato sente a notícia, é a<br />

Aline que fica na Macumba conectada<br />

com o mar, com a praia, com a natureza,<br />

com as pessoas. É uma Aline só”,<br />

diz Rodrigo.<br />

Como toda mulher que trabalha em televisão<br />

e aparece diante das câmeras,<br />

Aline está habituada a ouvir palpites<br />

e comentários não solicitados sobre<br />

sua imagem. “Quando estou sem ma-<br />

quiagem, sempre tem alguém pra dizer<br />

‘Nossa, você tá cansada’. Eu respondo<br />

‘Não, essa é a minha cara sem maquiagem<br />

mesmo’. Sempre que posso, apareço<br />

de cara limpa porque isso é quem<br />

eu sou.” Com 39 anos de um processo<br />

constante de autoconhecimento, sendo<br />

12 em frente às câmeras, Aline abraçou<br />

sua ancestralidade, sente orgulho<br />

de seu visual, compreende a importância<br />

de exibir seus cachos na TV e,<br />

justamente por tudo isso, tem liberdade<br />

para aparecer com o visual que bem<br />

entende. “Eu sou crespa, já quebrei padrões<br />

em função disso. Mas hoje, se eu<br />

quiser usar o cabelo liso, uso numa boa.<br />

Me deixa ser o que eu quiser. A construção<br />

do feminino negro também tem<br />

a ver com isso: não ter que se esconder<br />

e poder ser quem quiser, quando<br />

quiser”, diz. Parafraseando Rodrigo<br />

Cebrian, Aline é única: uma só na essência<br />

e plural nas virtudes.<br />

Durante as filmagens no Congo, para a série de reportagens Nova África, pela TV Brasil | foto: arquivo pessoal<br />

Que dica daria à jovem Aline:<br />

“Acredite em você, no que você pode fazer. E<br />

não se cobre tanto, vá no fluxo e está tudo certo”<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 37<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 36


Nome: Péricles Aparecido Fonseca de Faria<br />

Idade: 52 anos<br />

Profissão: cantor e compositor<br />

Cidade onde nasceu: Santo André/SP<br />

Alma<br />

musical<br />

Por Sérgio Martins<br />

Antes do sucesso do Exaltasamba, Péricles<br />

quase seguiu a profissão de cabeleireiro.<br />

Aos 52 anos e uma década de carreira<br />

solo, o cantor e compositor vive o auge de<br />

sua versatilidade artística<br />

Foto: Rodolfo Magalhães<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 39<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 38


Fartura musical<br />

Nascido em Santo André, cidade do<br />

ABC paulista, no dia 22 de junho de<br />

1969 <strong>–</strong> “Sou um canceriano que ama<br />

a família e os amigos”, diz <strong>–</strong>, Péricles<br />

é o rebento mais velho dos quatro filhos<br />

de João Cândido Fonseca de Faria<br />

e Célia Aparecida de Faria. A família<br />

sempre viveu com as contas na ponta<br />

do lápis, o que fez Péricles largar a<br />

escola antes do ensino médio para ajudar<br />

no orçamento da casa. “Sinto uma<br />

falta danada dos estudos”, desabafa.<br />

Mas, na casa dos Faria, a música sempre<br />

foi farta. Além do Projeto Minerva,<br />

um programa de educação criado<br />

pelo governo militar nos anos 1970 e<br />

transmitido pelo rádio, Péricles e o avô<br />

escutavam cantores do início do século<br />

XX, entre eles Orlando Silva, Francisco<br />

Alves e Silvio Caldas. “Meu avô<br />

era fascinado por um clarinetista chamado<br />

Pitanga”, diz ele, referindo-se<br />

ao músico Octaviano Plácido Pitanga,<br />

que fez carreira no pós-guerra com o<br />

nome de Sargento Pitanga (ele, aliás,<br />

havia integrado a Força Expedicionária<br />

Brasileira na tomada de Monte Castelo,<br />

na Itália) e era um especialista no<br />

repertório de chorinhos.<br />

Infância no ABC paulista | foto: arquivo pessoal<br />

E<br />

m um dos empregos que teve antes da fama, o paulista<br />

Péricles Aparecido Fonseca de Faria, mais conhecido<br />

pelo apelido de Pericão, trabalhou como inspetor escolar.<br />

Era um caso exemplar de vida dupla: passava o dia pedindo<br />

compostura aos alunos do colégio e, à noite, quando ia<br />

para os bailes, tudo o que ele menos queria era ver uma turma<br />

comportada. “Às vezes encontro pessoas que me conheceram<br />

nos tempos de colégio e se lembram de como eu era<br />

um sujeito sisudo”, diz o cantor e compositor, em tom de brincadeira.<br />

Péricles largou a vida dupla depois que as aparições<br />

em programas de TV <strong>–</strong> entre eles o de Ana Maria Braga e o<br />

de Raul Gil, ainda na Rede Record <strong>–</strong> engordaram sua agenda<br />

de shows e transformaram seu grupo, o Exaltasamba, num<br />

dos principais fenômenos do pagode em todos os tempos. Em<br />

duas décadas de carreira, eles lançaram 17 álbuns e quatro<br />

DVDs, que venderam mais de 8 milhões de cópias. Iniciada<br />

após o término das atividades do grupo, em 2012 (o Exalta-<br />

Com Thiaguinho e Chrigor, em 2016 | foto: divulgação<br />

samba retornou quatro anos depois, mas sem Péricles e sem<br />

o vocalista Thiaguinho), a carreira solo vai bem, obrigado. São<br />

sete álbuns e dois DVDs <strong>–</strong> o terceiro registro ao vivo seria<br />

gravado em janeiro, mas a pandemia empurrou o evento para<br />

o dia 6 de maio, no Recife.<br />

“A gente sabe que é nóis contra a rapa, temos sempre de fazer<br />

o melhor”, explica Péricles, com o tom professoral que faz<br />

lembrar seus tempos de bedel. A escalação do show segue<br />

à risca a versatilidade com que o sambista é conhecido nos<br />

meios musicais. Se por um lado recruta Thiaguinho e Chrigor,<br />

cantores com quem dividiu o microfone nos tempos de Exaltasamba,<br />

por outro emenda um dueto com Geraldo Azevedo,<br />

um dos mestres da música nordestina nos anos 1970, o contemporâneo<br />

Xande de Pilares e a cantora Marvvila, intérprete<br />

da nova geração. “Ela tem uma voz grave, o que é diferente do<br />

samba atual, que tem adotado um vocal mais agudo”, explica.<br />

A rádio FM, que chegou ao Brasil no ano de 1955, passou a fazer parte da vida do primogênito da família<br />

Faria nas décadas de 1970 e 1980. Foi a descoberta da soul music e do funk de artistas como James<br />

Brown, Earth Wind & Fire, Marvin Gaye e Stevie Wonder e do balanço samba-rock-funk dos brasileiros<br />

Carlos Dafé, Cassiano, Djavan, Trio Mocotó e Jorge Ben Jor. “Em toda casa de um adolescente negro<br />

daquela época tinha de ter uma cópia de A Tábua de Esmeralda, do Jorge”, comenta Péricles. Os bailes foram<br />

outra extensão das músicas que escutou nas rádios e nos discos. “Eu, minha família e meus amigos<br />

íamos dançar em bailes como Kaskata’s e voltávamos para casa andando a pé por alguns quilômetros.<br />

Era praticamente um ritual deixar cada um na sua residência e seguir viagem”, conta o sambista. Péricles<br />

lembra ainda de absorver o linguajar e os cumprimentos típicos da turma que ia a essas festas <strong>–</strong> os<br />

tais Mandamentos Black, eternizados em canção de Gerson King Combo, cantor carioca de funk e soul<br />

music que rivalizou com Tim Maia e Tony Tornado na década de 1970.<br />

Em uma das primeiras formações do Exaltasamba | foto: arquivo pessoal<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 41<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 40


Sacolejo paulista<br />

Segunda profissão<br />

O envolvimento profissional com a<br />

música se deu no mesmo período da<br />

peregrinação pelas noitadas black.<br />

Ele passou a frequentar uma escola de<br />

samba na região do ABC e pensou na<br />

carreira musical como segunda profissão<br />

<strong>–</strong> além de inspetor escolar, Péricles<br />

trabalhou como cabeleireiro e metalúrgico.<br />

Como não tinha educação acadêmica,<br />

tirava de ouvido o que escutava<br />

nas rádios, em especial as composições<br />

do Fundo de Quintal, grupo carioca que<br />

mudou a cara do gênero ao introduzir<br />

instrumentos como o banjo, o repique<br />

de mão e o tantã, e se tornou criadouro<br />

de nomes como Almir Guineto e<br />

Jorge Aragão.<br />

Nos anos 1980, o samba passou por um<br />

dos períodos de maior popularidade.<br />

O disco No Pagode, que a cantora Beth<br />

Carvalho lançou em 1979, teve suces-<br />

so tão estrondoso que o termo <strong>–</strong> que<br />

na época era usado para definir uma<br />

reunião de sambistas <strong>–</strong> passou a ser<br />

empregado na denominação de um estilo<br />

musical. Em 1982, os irmãos Clóvis<br />

e Claudinei Batista da Silva criaram o<br />

Exaltasamba. A princípio, eles tocavam<br />

versões de sucessos de grupos como<br />

Demônios da Garoa, em animadas noitadas<br />

pelos bares de Santo André. Com<br />

o passar do tempo, começaram a criar<br />

material próprio e receberam novos integrantes.<br />

Quando sentiram a necessidade<br />

de recrutar um outro cantor e violonista,<br />

ouviram falar de um rapaz que<br />

cantava num bar chamado Guanabara.<br />

Era Péricles.<br />

“Pericão tinha novas ideias musicais<br />

desde aquela época”, diz Clóvis. “Levou<br />

a mim e ao meu irmão à casa dele para<br />

assistir ao laserdisc de um show do<br />

Exaltasamba com Thiaguinho na formação | foto: divulgação<br />

Take 6, conjunto de religiosos que cantavam<br />

soul music.” O cantor, contudo,<br />

não tinha tanta certeza se deveria seguir<br />

a carreira musical. “Péricles achou<br />

que teria mais chance de progresso se<br />

continuasse na profissão de cabeleireiro”,<br />

entrega Clóvis. Mas, segundo os<br />

irmãos, ele era mais hábil no cavaquinho<br />

do que na tesoura. “Péricles fazia<br />

aqueles penteados black power. Certa<br />

vez se empolgou e quase furou a orelha<br />

de um cliente”, lembra Claudinei.<br />

Os dois irmãos saíram do grupo ainda<br />

nos anos 1980 e deixaram o nome para<br />

os integrantes que ficaram. O próprio<br />

Péricles chegou a largar o Exaltasamba<br />

por três anos <strong>–</strong> de 1986 a 1989 <strong>–</strong> e<br />

retornou quando o conjunto assumiu<br />

uma nova identidade musical e visual.<br />

“Eles passaram a usar roupas coloridas<br />

e fazer coreografias”, explica Clóvis.<br />

“Uma das<br />

prediletas da<br />

noite era Ray<br />

Charles 45,<br />

canção do Ray<br />

tocada em 45<br />

rotações. Era<br />

praticamente um<br />

samba-rock”<br />

O batuque de São Paulo nunca foi similar<br />

ao do Rio, como aponta o jornalista<br />

Julio César de Barros, um estudioso na<br />

arte do gênero. “Pelo Telefone, primeiro<br />

samba da história, era um maxixe. Passado<br />

esse período, o molejo carioca assimilou<br />

influências nordestinas, como<br />

o coco e o samba de roda do recôncavo<br />

baiano; africanas, como o candomblé<br />

das tias baianas; e europeias, como violão,<br />

harmonias e samba-canção. O resultado<br />

final é mais urbano. O batuque<br />

paulista é mais rural, com influência do<br />

jongo do Vale do Paraíba, mais pesado<br />

e grave que o do Rio”, explica Barros.<br />

Outro elemento que acentuou essas diferenças<br />

foram os bailes black, comuns<br />

nas duas capitais, mas absorvidos de<br />

modo diferente pelos jovens dessas cidades.<br />

“As festas de soul e funk eram<br />

comuns no Rio, mas nunca se transferiram<br />

para o samba”, diz Paulão Sete<br />

Cordas, violonista e diretor musical<br />

de Zeca Pagodinho. “A parte melódica<br />

e harmônica de bandas como o Exaltasamba<br />

e o Sem Compromisso, para<br />

ficar em outro grupo daquele período,<br />

tem mais a ver com a música americana.”<br />

Em São Paulo, essas festas eram<br />

promovidas nas quadras das escolas<br />

de samba, que tinham uma programação<br />

democrática. O repertório de Zeca<br />

e Fundo de Quintal era intercalado por<br />

hits do balanço americano. “Uma das<br />

prediletas da noite era Ray Charles 45,<br />

canção do Ray tocada em 45 rotações.<br />

Era praticamente um samba-rock”,<br />

explica Péricles, referindo-se ao cruzamento<br />

de samba com o gênero<br />

americano, eternizado no Brasil com<br />

os sucessos dos cantores Jorge Ben e<br />

Bebeto e pelo Trio Mocotó. O Exaltasamba,<br />

assim como o inspetor Péricles,<br />

fazia uma rodada dupla: ora tocava seu<br />

repertório original nas quadras de escolas<br />

de samba e bares, ora assumia o<br />

papel de banda acompanhando intérpretes<br />

cariocas que se apresentavam<br />

em São Paulo. Uma delas foi Jovelina<br />

Pérola Negra. “Ela nos deu muito<br />

apoio, fazia questão de apresentar e<br />

saudar a banda. Mas, em compensação,<br />

quando se irritava, disparava uns<br />

palavrões que eu nunca tinha escutado<br />

na vida”, diverte-se.<br />

O molejo paulistano, que já era diferente<br />

do carioca, adquiriu uma nova<br />

linguagem depois do advento desses<br />

bailes diversificados. Ele passou a ter<br />

características românticas, e o repertório<br />

dos grupos agregou sucessos do sacolejo<br />

americano. “Era comum você assistir<br />

a uma banda tocar samba ao lado<br />

de sucessos de Stevie Wonder”, lembra<br />

Péricles. O novo sacolejo paulistano tinha<br />

como criadouro casas noturnas da<br />

capital, como Só pra Contrariar, Biro’s<br />

Bar e Sambarilove, e a Choppapo, em<br />

São Bernardo do Campo. Foi ali que<br />

bandas como Exaltasamba, Art Popular,<br />

Negritude Junior e Katinguelê despontaram<br />

para o monstruoso sucesso<br />

obtido nos anos 1990. “A gente praticamente<br />

começou junto, acompanhando<br />

sambistas cariocas e tocando nosso<br />

repertório nesses bares”, lembra Leandro<br />

Lehart, do Art Popular. O vocalista<br />

se recorda de um episódio engraçado<br />

em relação ao amigo. Um dos primeiros<br />

hits do grupo foi Agamamou, que tinha<br />

como inspiração a versão do tecladista<br />

americano Jimmy Smith para o hit<br />

de blues I’ve Got My Mojo Working (que,<br />

para os paulistas, era um típico samba-<br />

-rock). Quando ia para as emissoras de<br />

TV, o Art Popular usava uma peruca<br />

black power. Péricles, naquele período,<br />

tinha o mesmo tipo de visual. “Ele<br />

me contou que o público o chamava de<br />

Agamamou, não de Péricles. E o mandava<br />

cortar a cabeleira”, diz Lehart.<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 43<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 42


Do pau-de-sebo à TV<br />

O Exaltasamba fez seu nome no circuito de bares e depois<br />

partiu para o primeiro disco. Na verdade, um pau-de-sebo,<br />

nome dado aos LPs com repertório dividido entre vários artistas,<br />

normalmente do mesmo estilo musical. O primeiro disco<br />

por inteiro do Exaltasamba foi Eterno Amanhecer, de 1992.<br />

O sucesso do chamado pagode paulista <strong>–</strong> jocosamente batizado<br />

de “pagode mauricinho” por jornalistas preconceituosos<br />

do Rio de Janeiro <strong>–</strong> fez com que o grupo se bandeasse para a<br />

EMI-Odeon, gravadora multinacional, em 1996. Eles também<br />

passaram a ser empresariados por Franco Scornavacca, então<br />

responsável pela carreira das duplas Zezé Di Camargo &<br />

Luciano e Leandro & Leonardo. “Franco nos ajudou a desenvolver<br />

um show completo: olhar de frente pra plateia, desenvolver<br />

o ritmo da apresentação”, lembra o sambista.<br />

Outro trunfo do conjunto foi sempre ter um time de vocalistas<br />

em vez de apenas um solista. E quando Chrigor deixou a<br />

banda, no início dos anos 2000, o Exaltasamba encontrou seu<br />

novo cantor num reality show. “Eu e o Pina, um dos líderes do<br />

grupo, ficamos interessados num cantor do programa Fama<br />

que sempre se destacava entre os concorrentes.” O cantor era<br />

Thiaguinho, que acentuou ainda mais o namoro do conjunto<br />

com a música black dos Estados Unidos. “Ele era de Mogi das<br />

Nos bastidores do programa Esquenta, com Regina Casé | foto: reprodução Instagram<br />

Cruzes e o trouxemos para São Paulo a fim de tocar no grupo.<br />

Thiaguinho chegou até a morar na casa de integrantes<br />

do Exaltasamba.” A nova adição mudou também o estilo de<br />

pagode do grupo, que passou a flertar com o rock dos anos<br />

1980 e 1990 <strong>–</strong> Esquema Novo, de 2005, tem releituras de Comida,<br />

dos Titãs, e Meu Esquema, do Mundo Livre S/A, um dos<br />

precursores do manguebit. Outro diferencial do Exaltasamba<br />

está nos temas de suas canções, que sempre evitavam linguajar<br />

e comportamento chulos.<br />

Um dos pontos altos da nova fase do Exaltasamba se deu em<br />

2010, no Parque Antártica (atual Allianz Parque), num DVD<br />

que contou com a apresentação da atriz Regina Casé e participação<br />

de artistas do funk carioca e da música sertaneja.<br />

O grupo encerrou as atividades em 2012, e Péricles passou<br />

a integrar o elenco do Esquenta, programa de variedades musicais<br />

comandado pela mesma Casé. “Pude mostrar minha<br />

diversidade a um público mais amplo”, comenta o sambista,<br />

que no seu aniversário em 2020 ganhou uma linda homenagem<br />

da “madrinha”. “Amo esse cara. Mas quem não ama o<br />

Péricles? Que vontade de voar no seu colo, como sempre faço<br />

quando a gente se encontra”, escreveu ela.<br />

Voando solo<br />

O artista Péricles tem diversificado<br />

seus talentos para fora do mundo do<br />

pagode. Em 2018, ele foi dirigido por<br />

Lázaro Ramos no show Em Sua Direção.<br />

O repertório incluiu canções de Paul<br />

McCartney e Stevie Wonder (Ebony<br />

& Ivory) e o combinado de Havana, de<br />

Camila Cabello, com Oye Como Va, do<br />

repertório do guitarrista mexicano<br />

Carlos Santana. “Péricles é uma das<br />

maiores vozes do Brasil e um artista<br />

que está sempre se reinventando.<br />

Me senti lisonjeado ao ser chamado<br />

para dirigi-lo. Foi emocionante trabalhar<br />

com um sujeito tão elegante e talentoso”,<br />

diz o ator. Em 2019, Péricles<br />

lançou outro projeto, O Pagode do Pericão,<br />

que trazia clássicos do samba e<br />

canções autorais.<br />

Péricles era notoriamente avesso a<br />

redes sociais, mas entrou nesse universo<br />

por sugestão do amigo Thiaguinho.<br />

Hoje é quem melhor usufrui delas.<br />

O Canal do Pericão, no YouTube,<br />

contabiliza 2,3 milhões de inscritos.<br />

Seu perfil no Instagram está perto da<br />

marca de 5 milhões de seguidores, e o<br />

do TikTok soma 1,3 milhão de fãs. São<br />

quase 4 milhões de ouvintes mensais<br />

no Spotify <strong>–</strong> o cantor saiu de uma gravadora,<br />

digamos, convencional para<br />

a ONErpm, companhia especializada<br />

em conteúdo para as plataformas de<br />

streaming. “Péricles é um artista que<br />

entendeu que o digital é um aliado.<br />

Muito além de cantor, é um compositor<br />

e instrumentista que se aliou ao processo<br />

de influência digital com campanhas<br />

e engajamento dos seus fãs, em<br />

todas as redes”, diz Arthur Fitzgibbon,<br />

presidente da ONErpm.<br />

O sambista também faz uso da autogestão.<br />

Em 2018, criou a Faria Produções,<br />

que cuida exclusivamente de sua<br />

Que dica daria ao jovem Péricles?<br />

carreira. Quem comanda a empresa é<br />

a pedagoga Lidiane Santos, esposa de<br />

Péricles desde julho de 2017. O casal<br />

tem uma filha, Maria Helena, de 2 anos<br />

<strong>–</strong> ele também é pai de Lucas Morato, de<br />

27 anos, fruto de uma relação anterior.<br />

O primogênito seguiu o mesmo caminho<br />

do samba, também inspirado pelo<br />

ambiente doméstico. “Nós dois sempre<br />

vivemos numa atmosfera muito musical.<br />

Na casa da minha avó sempre tocou<br />

samba bom. Desde cedo, já tocava<br />

cavaquinho e criava novas melodias e<br />

composições”, diz Lucas.<br />

Embora nunca tenha voltado à escola,<br />

Péricles é um estudioso: aprimorou<br />

seus conhecimentos musicais em aulas<br />

de piano, canto e teoria musical. A<br />

versatilidade se mostra presente em<br />

tudo o que faz. Em outubro de 2021, ele<br />

se uniu ao cantor e compositor Nando<br />

Reis para uma releitura de Na Estrada,<br />

gravada anteriormente pela cantora<br />

Marisa Monte, e Vou Te Encontrar, que<br />

o ex-titã escreveu para o amigo Paulo<br />

Miklos em 2017. “Conheço Péricles<br />

desde os tempos do Exaltasamba. A<br />

beleza de sua voz e a doçura de sua<br />

figura sempre chamaram minha atenção.<br />

Nossa relação se resumia a encontros<br />

breves em aeroportos, festivais e<br />

programas de televisão até o ano passado,<br />

quando ele me convidou para<br />

gravar Na Estrada. O arranjo certeiro e<br />

a interpretação matadora confirmaram<br />

a impressão que tinha a respeito de<br />

sua incrível musicalidade. Mas foi na<br />

gravação de Vou Te Encontrar que ficou<br />

clara a natureza maior e a essência de<br />

sua voz”, diz Reis, que completa o elogio:<br />

“Péricles é um soulman: canta com<br />

a alma, revela a alma de toda canção. É<br />

um artista magistral; tudo o que canta,<br />

encantado, ressoa como eterno”.<br />

“Não tenha medo de errar, mesmo sabendo que<br />

você é um jovem negro, de classe média baixa,<br />

em um país onde isso não quer dizer muito e em<br />

um mundo que maltrata quem não é igual. Siga<br />

os ensinamentos adquiridos, honre sua família e<br />

nunca deixe ninguém dizer que você não é capaz.<br />

Você pode tudo”<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 45<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 44


Nome: Aretha Duarte Freitas<br />

Idade: 38 anos<br />

Profissão: educadora física e montanhista<br />

Cidade onde nasceu: Campinas/SP<br />

No topo<br />

do mundo<br />

Por Daniela Macedo<br />

Para realizar o sonho de escalar o Monte<br />

Everest, a montanhista Aretha Duarte<br />

coletou 130 toneladas de material reciclável,<br />

organizou bazares e participou de jogo de<br />

conhecimentos gerais em programa de TV<br />

Foto: Lana Pinho<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 47<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 46


“Eu acredito que a força que eu<br />

chamo de PIB, o Poder Interno<br />

Bruto, está presente na vida de<br />

qualquer pessoa. Todo mundo tem<br />

a capacidade de sonhar e realizar,<br />

independentemente do contexto.<br />

Todo mundo tem seu Everest pra<br />

conquistar, sua missão pra cumprir”<br />

Perfil de justiceira<br />

Foto: Ju Coutinho<br />

Os primeiros passos naquele novo universo do montanhismo vieram com os cursos<br />

de escalada que ela fez na própria Grade6. “Aproveitei esse período como cliente<br />

para me aproximar dos guias, montar uma rede de contatos”, lembra Aretha. Logo<br />

começaram a surgir os contratos como profissional freelancer na área de treinamento<br />

corporativo da empresa. Nesse início de carreira, chegou a acumular várias<br />

atividades diferentes na mesma época. Trabalhou com recreação em hotel, clube<br />

esportivo e colônia de férias, foi operadora numa fábrica de celulares, atendente<br />

de call center e revendedora de produtos de beleza. Sofreu quando precisou deixar<br />

o emprego em uma creche <strong>–</strong> “Foi muito difícil porque eu estava apaixonada pelas<br />

crianças”. Depois de três meses frequentando a academia da Polícia Militar, passou<br />

na prova do concurso para se tornar policial, mas reprovou no teste psicológico por<br />

“inadequação para porte de armas”. “Na avaliação do psicólogo, se eu presenciasse<br />

algum tipo de injustiça, não teria condição de raciocinar e analisar a situação porque<br />

tenho um perfil de justiceira”, conta.<br />

O<br />

s estragos que o ar rarefeito<br />

provoca no organismo são devastadores.<br />

O coração acelera<br />

para compensar a falta de oxigênio,<br />

aumentando o risco de ataque cardíaco.<br />

Dois míseros passos são suficientes<br />

para deixar a respiração ofegante.<br />

Atividades banais, como comer, beber<br />

água ou conversar, exigem esforço<br />

físico e mental. Edemas cerebrais e<br />

pulmonares são uma preocupação real<br />

e constante. E tudo isso tentando driblar<br />

a hipotermia e as lesões por congelamento<br />

em um frio extremo, abaixo<br />

dos 15 graus negativos, com rajadas de<br />

vento cruéis. A partir dos 8 mil metros<br />

de altitude, com ou sem oxigênio suplementar,<br />

o corpo começa a morrer lentamente.<br />

Daí o nome, zona da morte.<br />

Nesse ambiente hostil, chegar ao cume<br />

do Monte Everest, aos 8.848 metros<br />

de altitude, é um feito hercúleo. Para<br />

a atleta Aretha Duarte, a primeira mulher<br />

negra latino-americana a alcançar<br />

o topo do mundo, em maio de 2021, as<br />

adversidades da expedição começaram<br />

ao nível do mar.<br />

Aretha se apaixonou pelo montanhismo<br />

em 2005. Estava no 2º ano da faculdade<br />

de educação física, na Pontifícia<br />

Universidade Católica de Campinas,<br />

cidade onde vive, quando um dos professores<br />

levou a turma para uma palestra<br />

na Grade6, empresa que promove<br />

expedições a altas montanhas. Como a<br />

grande maioria dos jovens que vivem<br />

nas periferias, Aretha nunca havia<br />

ouvido falar em montanhismo até ali.<br />

Ela nasceu e cresceu no Jardim Capivari,<br />

caçula dos três filhos do casal de<br />

migrantes pernambucanos Euleide e<br />

Ailton. Aluna exemplar, foi a primeira<br />

pessoa da família a concluir o ensino<br />

superior. Escolheu o curso de educação<br />

física porque adorava praticar esportes,<br />

desde a infância, e acreditava<br />

que esse seria um bom instrumento<br />

para gerar transformação na periferia.<br />

“É uma linguagem fácil para se<br />

comunicar com os jovens”, diz. Mas,<br />

apesar da afinidade com as atividades<br />

esportivas, subir uma montanha nunca<br />

esteve em seu radar.<br />

Em 2011, começou a atuar no segmento de montanhismo: primeiro como consultora<br />

de viagem, depois como assistente de guia e, finalmente, como guia de alta montanha.<br />

Passou a viajar para diversos países, levando alpinistas às maiores montanhas<br />

do mundo. Subiu os montes Aconcágua (6.961 metros), na Argentina; Kilimanjaro<br />

(5.895 metros), na Tanzânia: Elbrus (5.642 metros), na Rússia; Huayna Potosi<br />

(6.088 metros), na Bolívia, entre outros. “Adoro trabalhar com iniciantes. Faço<br />

questão de deixar claro que o montanhismo não é uma modalidade exclusiva de<br />

superatletas. Claro que algumas montanhas são mais acessíveis, e outras, menos.<br />

Mas todo mundo pode praticar o esporte”, garante Aretha.<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 49<br />

Foto: Rosita Belinky<br />

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Novo cume no horizonte<br />

Enquanto liderava expedições pelo mundo, ouvia dos colegas<br />

montanhistas que deveria tentar o Everest. O amigo Carlos<br />

Canellas, a quem ela chama de “meu guru”, era um dos incentivadores.<br />

“Ela tem duas das principais características para<br />

qualquer alpinista vitorioso: persistência e resiliência”, diz<br />

Canellas. Para o também escalador Carlos Santalena, como<br />

leva à exaustão física e mental, a montanha proporciona uma<br />

experiência espiritual. “Ela já tinha atingido todos os pré-requisitos<br />

físicos e técnicos da preparação. Eu queria que ela<br />

tivesse essa experiência de autoconhecimento também.” As<br />

conversas, no entanto, acabavam sempre da mesma forma:<br />

“Não é pra mim”. “Nunca pensei em subir o Everest porque<br />

sempre associei ao risco de morte, e como sou apaixonada<br />

pela vida não queria arriscar a minha numa montanha”, diz.<br />

Um receio com fundamento, já que mais de 200 cadáveres de<br />

pessoas que morreram tentando alcançar o cume permanecem<br />

lá até hoje.<br />

A chama acendeu em dezembro de 2019, quando Aretha viu<br />

uma foto do arquivo pessoal do amigo Santalena. Era o Vale<br />

do Silêncio, que vai de 6.100 até 6.400 metros de altitude. “É<br />

um vale muito extenso, coberto de neve, todo branquinho, e<br />

cercado de montanhas de mais de 7 mil metros. A foto mostrava<br />

pessoas e barracas, tudo muito pequenino na grandiosidade<br />

daquela paisagem. Essa imagem me impactou muito<br />

porque reflete quanto somos pequenos em relação à natureza”,<br />

afirma. “E o nome também chamou minha atenção. Por<br />

que Vale do Silêncio? Enfim, essa imagem virou a chavinha<br />

na minha cabeça.” No dia 15 de março de 2020, ela levaria um<br />

grupo de alpinistas ao acampamento-base, no Nepal, mas a<br />

pandemia fechou as fronteiras e ela tomou uma decisão importante:<br />

sua próxima ida ao Everest seria para alcançar o<br />

cume. Nascia o projeto #ArethaNoEverest.<br />

A preparação para subir a montanha mais alta do mundo envolve<br />

cinco etapas: alcançar excelente condicionamento físico,<br />

adquirir conhecimento em escalada em rocha, aprender<br />

escalada em gelo, acumular experiência em alta montanha e<br />

escalar ao menos uma montanha com mais de 7 mil metros<br />

de altitude. Quando Aretha decidiu que embarcaria naquela<br />

aventura, lhe faltava apenas o que ela chamou de sexta etapa:<br />

dinheiro. A viagem custaria cerca de 400 mil reais, mas, nos<br />

últimos cinco anos, toda a sua renda era aplicada na construção<br />

da casa da família.<br />

“Passei 54 dias num ambiente hostil. Nessas situações,<br />

é imprescindível acessar recursos mentais que te façam<br />

se sentir confiante e forte. Por mais que tenha o preparo<br />

físico e técnico, é o emocional que vai determinar se você<br />

vai ser bem-sucedido ou não”<br />

Arregaçando as mangas<br />

Para tornar o sonho realidade, Aretha foi buscar inspiração<br />

na infância. Aos 10 anos de idade, a aluna da 4ª série do ensino<br />

fundamental cismou que queria um par de patins, brinquedo<br />

que a família não podia comprar. “Eu tomei a iniciativa<br />

de juntar latinhas para vender por alguns meses, até ter o dinheiro<br />

de que precisava. Era como se fosse uma brincadeira.<br />

Era um jogo lúdico, não um trabalho”, conta. A maratona para<br />

reunir o recurso do #ArethaNoEverest seria maior do que a<br />

gincana dos patins, mas ela não se deixou intimidar.<br />

Contando com uma rede de apoio, Aretha coletava 500 quilos<br />

de resíduo reciclável por dia. “Era um trabalho pesadíssimo,<br />

que ajudou a desenvolver inclusive meu lado emocional”, diz.<br />

Recolheu 130 toneladas de material reciclável, que lhe renderam<br />

110 mil reais <strong>–</strong> ela também doou uma parte: centenas<br />

de brinquedos coletados foram para crianças da periferia de<br />

Campinas e mais de mil livros acabaram na biblioteca comunitária<br />

da cidade. Participou do quadro The Wall, no programa<br />

Caldeirão do Huck, de onde saiu com mais 59.690 reais. Organizou<br />

bazar de roupas e móveis, leilão de equipamentos e<br />

campanha de arrecadação pela internet. O restante veio dos<br />

patrocinadores Moove, Dardak Jeans, The North Face, Horas<br />

a Fio pelo Mundo, Spot, Monte Bravo Investimentos e Farmácia<br />

Saint Germain.<br />

Enquanto lidava com a corrida financeira (trabalho e recolha<br />

de resíduos) nos 12 meses e meio de preparação para a viagem,<br />

a montanhista intercalava treinamento físico (pilates,<br />

natação e personal trainer) com mental (terapia, mentoria e<br />

osteopatia), graças aos seis profissionais que se voluntariaram<br />

para ajudá-la. No dia 1º de abril de 2021, Aretha embarcou<br />

para Katmandu, dando início à expedição ao cume do<br />

Monte Everest pela face sul, no lado nepalês da Cordilheira<br />

do Himalaia <strong>–</strong> a outra maneira de alcançar o topo é pela face<br />

norte, do outro lado da fronteira com a China. Após sete dias<br />

de quarentena, um voo doméstico levou Aretha e outros montanhistas<br />

brasileiros para a cidade de Lukla, a 2.860 metros<br />

de altitude. Esse é o ponto de partida para o trekking de dez<br />

dias até o acampamento-base, pouco mais de 5.300 metros<br />

acima do nível do mar, onde começam os ciclos de aclimatação<br />

que ensinam o corpo a funcionar em altitude elevada.<br />

Corpo em<br />

descompasso<br />

“São três ciclos de aclimatação e um<br />

ciclo de cume”, explica Aretha. Nesse<br />

processo de aclimatação, o montanhista<br />

sobe para altitudes maiores e volta<br />

a descer. No primeiro ciclo, que vai<br />

até o acampamento 1, a 6.100 metros<br />

de altitude, Aretha chegou bastante<br />

debilitada. “Foi um trajeto de dez horas<br />

de caminhada, com dificuldade<br />

respiratória, muita tosse e secreção<br />

com sangue, dores na região peitoral,<br />

dificuldade pra tomar água, comer,<br />

descansar e dormir”, conta. Ela precisou<br />

usar a suplementação de oxigênio<br />

antes do previsto, já que a ideia inicial<br />

era recorrer ao oxigênio apenas aos<br />

7.500 metros de altitude.<br />

Com os sintomas que indicavam princípio<br />

de edema pulmonar, Aretha viu-<br />

-se, pela primeira vez, diante da possibilidade<br />

de ser obrigada a desistir da<br />

expedição. As opções no dia seguinte<br />

eram continuar a aclimatação, ou seja,<br />

subir ao acampamento 2 e só depois retornar<br />

ao acampamento-base, ou descer<br />

direto. Se descesse e não se recu-<br />

No programa Caldeirão do Huck | foto: divulgação/TV Globo<br />

perasse, teria de voltar para casa sem<br />

conhecer pessoalmente a paisagem<br />

que despertou o sonho de estar ali. Estando<br />

tão perto do Vale do Silêncio, localizado<br />

entre os acampamentos 1 e 2, a<br />

atleta escolheu a primeira opção.<br />

“Fui com muita dificuldade até o início<br />

do Vale do Silêncio e entendi o porquê<br />

do nome. É um silêncio total, em que<br />

você só ouve os sons do próprio corpo.<br />

Sua respiração, seus batimentos cardíacos.<br />

É impressionante. Foi uma grande<br />

realização pessoal”, afirma. Nesse<br />

dia, Aretha não conseguiu concluir a<br />

subida ao acampamento 2, nem seus<br />

problemas no processo de aclimatação<br />

cessaram como acontece nos filmes,<br />

em que a sorte do protagonista muda<br />

após uma epifania. O princípio de edema<br />

pulmonar foi tratado com medicamentos<br />

e dois dias de repouso, mas a<br />

montanhista também sofreu queimadura<br />

na retina e, no dia do ataque ao<br />

cume, congelamento do dedo anelar<br />

da mão esquerda.<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 51<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 50


Dia D<br />

Às 23h30 de 22 de maio, Aretha seguiu<br />

com seu guia, da etnia sherpa,<br />

rumo ao topo. Com duas horas e meia<br />

de subida, o guia começou a se sentir<br />

mal por causa do frio extremo <strong>–</strong> fazia<br />

20 graus negativos <strong>–</strong> e avisou que iria<br />

desistir. Ela insistiu que tinha condições<br />

de subir e pediu para seguir sozinha,<br />

mas ele não autorizou. Com um<br />

misto de sentimentos, da frustração<br />

pelo fim do sonho à culpa por pensar<br />

mais em seu objetivo do que na saúde<br />

do sherpa, a atleta começou a chorar.<br />

Tirou os óculos de proteção e a máscara<br />

de oxigênio para se desculpar, mas o<br />

guia se comoveu com a emoção da alpinista,<br />

enxugou suas lágrimas e apontou<br />

para o alto da montanha.<br />

A dupla alcançou o cume às 10h24 do<br />

horário local, manhã de 23 de maio.<br />

Ao lado do altar com uma estátua e<br />

as bandeiras coloridas, fotos e objetos<br />

pessoais deixados por outros montanhistas,<br />

Aretha abraçou seu guia,<br />

se ajoelhou, pensou em Deus e agradeceu<br />

mentalmente às pessoas que a<br />

ajudaram a chegar ali. “E senti muita<br />

gratidão e empoderamento. Me senti<br />

muito forte. Entendi que meu limite<br />

estava muito além do que minha cabeça<br />

estava dizendo”, lembra. Passou<br />

15 minutos naquele cenário indescritível,<br />

acima das nuvens, cercada pelas<br />

montanhas do Himalaia.<br />

Aretha trouxe poucos registros em<br />

imagens da experiência no ponto mais<br />

alto do planeta porque “ninguém quer<br />

tirar a luva para fazer fotos”. Quando<br />

desembarcou no aeroporto de Guarulhos,<br />

retornando da expedição, encontrou<br />

a mãe com a marmita contendo o<br />

tão esperado arroz com chuchu refogado<br />

e bacon da dona Euleide. Entre os<br />

diversos reconhecimentos pelo feito,<br />

venceu o Prêmio Inspiradoras 2021, do<br />

UOL e do Instituto Avon, na categoria<br />

Esporte e Cultura, e ganhou uma homenagem<br />

da Turma da Mônica, com a<br />

personagem Melina.<br />

Novos Everests<br />

Foto: Gabriel Tarso<br />

Mente a favor<br />

Durante o processo de aclimatação,<br />

Aretha se preparava psicologicamente<br />

para a possibilidade de ser obrigada<br />

a desistir. “Eu pensava: ‘Se eu não me<br />

curar [do edema pulmonar e da queimadura<br />

na retina], aceito a situação porque<br />

não está sob meu comando, fugiu do<br />

meu controle’”, conta. E não são raros<br />

os montanhistas que não conseguem<br />

se recuperar de problemas de altitude e<br />

precisam voltar ao nível do mar o mais<br />

rápido possível. Não bastassem as<br />

questões típicas de altas montanhas,<br />

Aretha ainda encarou um complicador<br />

extra: o método anticoncepcional que<br />

ela usou para não menstruar falhou, e<br />

a atleta teve de lidar com os inconvenientes<br />

do sangramento em todos os<br />

dias da expedição. “Para as mulheres,<br />

a escalada em alta montanha é mais<br />

desafiadora. Temos uma sensibilidade<br />

e uma visão do mundo diferente dos<br />

homens”, diz a montanhista com uma<br />

década de experiência levando pessoas<br />

a grandes altitudes. “O lado bom é que<br />

nós, mulheres, lidamos melhor com<br />

situações adversas, somos mais resistentes.<br />

A impressão que eu tenho, com<br />

a minha experiência, é que as mulheres<br />

suportam melhor as adversidades.”<br />

Para não desistir diante de tantos obstáculos,<br />

a questão emocional é um fator<br />

determinante. “Passei 54 dias num<br />

ambiente hostil”, diz Aretha. “Nessas<br />

situações, é imprescindível acessar recursos<br />

mentais que te façam se sentir<br />

confiante e forte. Por mais que tenha<br />

o preparo físico e técnico, é o emocional<br />

que vai determinar se você vai ser<br />

bem-sucedido ou não.” Além de rezar<br />

<strong>–</strong> “A oração funciona como uma meditação<br />

pra mim”, diz <strong>–</strong>, Aretha falava<br />

com a mãe pelo telefone. E aproveitava<br />

para fazer um pedido especial. “Todos<br />

os dias eu pensava na comida da minha<br />

mãe, que é cozinheira aposentada. Pedia<br />

pra ela preparar meu prato favorito<br />

quando eu voltasse.”<br />

Além de retornar ao maior desafio que<br />

já enfrentou em sua vida como montanhista<br />

<strong>–</strong> “Se eu tivesse recursos financeiros,<br />

voltaria amanhã”, brinca <strong>–</strong>,<br />

Aretha tem outros projetos. Vai continuar<br />

seus trabalhos anteriores, como<br />

palestrante e guia de alta montanha,<br />

a fim de terminar de construir a casa<br />

da família. O projeto interrompido em<br />

março de 2020 foi retomado e, depois<br />

de tantos anos de obra, a nova moradia<br />

deve finalmente ficar pronta nos<br />

próximos meses. Pretende também<br />

publicar um livro em que narra sua<br />

conquista. “Quero deixar minha história<br />

registrada, nem que seja para as<br />

próximas gerações da minha família.<br />

Tenho muita dificuldade em descobrir<br />

a história dos meus ancestrais, negros<br />

que foram trazidos sem registro ao<br />

Brasil”, diz. Para dispor do dinheiro necessário<br />

para a publicação da obra, rifou<br />

a caminhonete usada na coleta dos<br />

resíduos recicláveis. A previsão é lançar<br />

o livro em maio deste ano e, futuramente,<br />

publicar uma versão infantil,<br />

em quadrinhos.<br />

Aretha também se dedica a causas socioambientais.<br />

Ministra cursos e oficinas<br />

para disseminar o conceito de reciclagem<br />

como responsabilidade civil<br />

e social, e atualmente busca patrocínio<br />

para um projeto de democratização<br />

do montanhismo, instalando paredes<br />

de escalada nas periferias brasileiras.<br />

“Quero que os jovens conheçam<br />

o esporte. Quando você tem acesso às<br />

opções, pode escolher melhor seu destino”,<br />

diz. O projeto-piloto vai instalar<br />

uma parede de escalada indoor em um<br />

dos parques lineares de Campinas. E se<br />

dedica a incentivar o mundo a sonhar.<br />

“Eu acredito que a força que eu chamo<br />

de PIB, o Poder Interno Bruto, está presente<br />

na vida de qualquer pessoa. Todo<br />

mundo tem a capacidade de sonhar e<br />

realizar, independentemente do contexto.<br />

Todo mundo tem seu Everest pra<br />

conquistar, sua missão pra cumprir. É<br />

preciso acreditar e seguir em frente,<br />

sem desistir.”<br />

Que dica daria à<br />

jovem Aretha?<br />

“Como nunca me encaixei<br />

nos padrões de beleza<br />

e me achava feia, eu<br />

diria: ‘Aretha, você é<br />

maravilhosa do jeito que<br />

você é, acredite nisso’.<br />

Mas hoje eu sei que sou<br />

fantástica! [risos]”<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 53<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 52


Cultura<br />

no DNA<br />

Por Guilherme Dearo<br />

Atual diretor executivo da Unibes Cultural, entidade<br />

que ajudou a idealizar e a transformar em referência,<br />

o gestor cultural Bruno Assami completa quatro<br />

décadas de carreira dedicadas à arte brasileira<br />

Nome: Bruno Assami<br />

Idade: 56 anos<br />

Profissão: gestor cultural<br />

Cidade onde nasceu: São Paulo/SP<br />

Foto: Juan Esteves<br />

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<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 54


.<br />

“O jovem que quer trabalhar com<br />

arte precisa saber que está ajudando<br />

a construir uma agenda simbólica.<br />

Quando você tem clareza no seu<br />

papel, você caminha com firmeza”<br />

Projeto de salvamento<br />

Unibes Cultural | foto: divulgação<br />

O<br />

setor cultural foi um dos mais duramente afetados pela pandemia. Em março de 2020, quando a Covid-19 obrigou governadores<br />

a adotarem medidas para conter a disseminação do coronavírus, cinemas, casas de espetáculos e museus<br />

tiveram de fechar as portas, sem saber por quanto tempo ficariam sem público. A Unibes Cultural, que ocupa um prédio<br />

de quase 5 mil metros quadrados e cinco andares no número 2500 da Rua Oscar Freire, em São Paulo, não foi exceção. Funcionando<br />

desde 2015 no edifício que abrigou por mais de uma década o Centro da Cultura Judaica, a instituição atraía 200 mil<br />

visitantes anualmente, promovendo mais de 2 mil exposições, palestras e cursos presenciais. Com tudo fechado, era preciso se<br />

reinventar. E rápido.<br />

Uma plataforma digital foi criada para oferecer mais de 400 conteúdos online, entre cursos e lives. O projeto deu certo, e a Unibes<br />

Cultural conseguiu 1 milhão de visitantes mensais em suas bases digitais, marca bastante comemorada. Após a reabertura,<br />

mais de um ano depois, a instituição manteve as atividades online em paralelo às presenciais. Um dos responsáveis pela rápida<br />

(e eficiente) resposta da entidade foi Bruno Assami, 56 anos, diretor executivo da instituição desde sua abertura e um de seus<br />

idealizadores. “A primeira preocupação foi manter a estrutura do prédio, e a segunda era manter nosso compromisso com a<br />

população. Era preciso preservar o público que tínhamos conquistado ao longo dos anos”, conta.<br />

Nas últimas quatro décadas, Assami tem sido um dos principais nomes da gestão cultural no Brasil, deixando uma marca de<br />

excelentes resultados colhidos nas principais instituições de São Paulo, como Itaú Cultural, Masp e Instituto Tomie Ohtake.<br />

“Eu me posiciono como um dirigente cultural que é reconhecido e identificado como uma pessoa de conceituação, concepção,<br />

planejamento e implementação de novos modelos. Sou chamado quando uma instituição necessita de um reposicionamento ou<br />

precisa ser vocacionada. Sempre firmo um modelo contratual independente e focado no resultado. E minha grande prerrogativa,<br />

claro, é a formação da cultura no Brasil”, esclarece.<br />

A Unibes Cultural surgiu como um braço<br />

da Unibes (União Brasileiro-Israelita<br />

do Bem-Estar Social), instituição fundada<br />

em 1915 com o objetivo de auxiliar<br />

a comunidade judaica que vinha da Europa<br />

para o Brasil, fugindo da Primeira<br />

Guerra Mundial, e que posteriormente<br />

ampliou sua atuação para outros setores<br />

da sociedade, com projetos de<br />

educação e desenvolvimento social. Já<br />

a Unibes Cultural ganhou espaço na<br />

concorrida cena cultural paulistana ao<br />

promover atividades em torno de eixos<br />

temáticos contemporâneos como tecnologia,<br />

mídia, expressões culturais e<br />

empreendedorismo.<br />

A história de Assami com a Unibes<br />

começou em 2014, a partir do contato<br />

com Célia Parnes, então presidente<br />

da organização. Ela chamou o gestor<br />

cultural para uma conversa sobre o futuro<br />

incerto do prédio que abrigava o<br />

Centro da Cultura Judaica. A construção<br />

projetada pelo arquiteto Roberto<br />

Loeb é icônica: erguida em um ponto<br />

nobre da capital paulista, a estrutura<br />

de concreto tem formato que lembra<br />

o Torá, livro sagrado do judaísmo.<br />

Naquele momento, devido a questões<br />

administrativas, havia a possibilidade<br />

de o prédio deixar de ser usado como<br />

espaço cultural. “Fiquei muito tomado<br />

pela situação. Era questão de cidadania<br />

não deixar que aquele prédio sofresse.<br />

Começamos a conversar sobre<br />

o tipo de destino que poderíamos dar<br />

ao espaço e amadurecemos uma visão.<br />

Surgiu a ideia de criar a Unibes Cultu-<br />

ral”, explica. O local abriu as portas ao<br />

público em agosto de 2015. Para criá-<br />

-lo, o desafio era encontrar um novo rol<br />

de investidores, diferente daquele que<br />

apoiava a centenária Unibes, e evitar<br />

a dependência exclusiva de incentivos<br />

fiscais. “Era um novo player que surgia,<br />

sem iniciativa governamental por trás<br />

ou uma empresa privada ancorando.<br />

Mas tinha uma tradição de um século,<br />

bebia de um capital social”, conta.<br />

Abrir e manter um aparelho cultural é<br />

tarefa árdua no Brasil. Para Assami, o<br />

ponto mais urgente da pauta nacional<br />

está relacionado ao acesso aos bens<br />

culturais. “É evidente que a formação<br />

cultural do indivíduo é vital. Ele se<br />

tornará um ser humano melhor com<br />

cultura e vai adquirir uma visão mais<br />

aprofundada do seu pertencimento no<br />

século XXI”, reflete. Para ele, o hábito<br />

cultural não pode estar atrelado somente<br />

às instituições, pois outros fatores<br />

ajudam a construir a cultura de um<br />

povo. Ele explica: “A pessoa não precisa<br />

achar que sua formação cultural existe<br />

só para ela frequentar espaços culturais.<br />

Na verdade, é o ambiente cultural<br />

que fortalece seu vínculo com a cultura.<br />

É a sociedade como um todo que<br />

forma tal identidade. Frequentar museus<br />

é uma consequência de um povo<br />

que já gosta de arte, de uma sociedade<br />

que construiu sua identidade e seus<br />

valores e quer fortalecer isso. O Brasil<br />

ainda está em um momento embrionário<br />

nesse sentido”. Para Assami, o contato<br />

com a arte começou bem cedo.<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 57<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 56


Prazer em aprender<br />

Assami nasceu em 1965, em São Paulo,<br />

em uma proeminente família de<br />

imigrantes japoneses que haviam se<br />

estabelecido no Brasil desde o começo<br />

do século XX. Os dois lados da família<br />

estavam ligados ao mundo empresarial<br />

e das artes e participavam das questões<br />

da comunidade nipo-brasileira. O<br />

avô materno era dono do jornal Diário<br />

Nippak, enquanto o padrinho, do lado<br />

paterno da família, era um dos fundadores<br />

do Banco América do Sul. O<br />

pai, engenheiro e economista de formação,<br />

trabalhava como alto executivo<br />

em uma multinacional americana e<br />

ajudava a trazer empreendimentos industriais<br />

para o Brasil. A mãe, grande<br />

apreciadora de arte, participava ativamente<br />

de atividades do meio artístico.<br />

Cercado por uma família que valorizava<br />

a cultura, desde criança ele foi instigado<br />

a desbravar o mundo artístico. O<br />

avô era mecenas dos artistas do Grupo<br />

Seibi, cujo nome vinha das iniciais em<br />

japonês de “Grupo de Artistas Plásticos<br />

de São Paulo” e que, desde 1935, unia<br />

artistas imigrantes do Japão. Eram frequentes<br />

as reuniões na casa dos avós<br />

maternos de Assami, que cresceu ouvindo<br />

as histórias de figuras impor-<br />

Bruno com pai (em memória), mãe e marido | foto: arquivo pessoal<br />

tantes como a artista plástica Tomie<br />

Ohtake e os pintores Manabu Mabe e<br />

Tomoo Handa. “Não era um evento especial<br />

para mim, era uma programação<br />

normal”, lembra. “Não somos de uma<br />

cultura de celebridade. Para mim, eram<br />

pessoas normais. Mas era um ambiente<br />

de pensadores, repleto de pessoas<br />

interessantes, e havia laços afetivos.”<br />

Para ele, duas características familiares<br />

moldaram seu modo de enxergar<br />

o mundo. A primeira é que ambos os<br />

lados da família eram de imigrantes<br />

que tinham vindo para o Brasil com o<br />

intuito de se fixar por aqui, diferentemente<br />

de japoneses que vinham para<br />

enriquecer e voltar para a terra natal.<br />

“Por isso, eles eram muito receptivos<br />

à cultura brasileira, se interessavam<br />

pelo que acontecia ao redor”, completa.<br />

A segunda característica diz respeito<br />

à valorização do conhecimento como<br />

hábito diário. “Eles tinham prazer em<br />

conhecer o mundo, em aprender. A<br />

curiosidade era essencial. Isso está<br />

muito forte no DNA das famílias. Em<br />

casa, tinha que gostar tanto de matemática<br />

quanto de língua portuguesa.<br />

Apatia e conformidade nunca foram<br />

toleradas”, conta.<br />

“A minha agenda<br />

é a do interesse<br />

público, e isso é<br />

um privilégio”<br />

Carreira precoce<br />

Por causa dessa combinação de acesso a bens culturais com<br />

os valores familiares que prezavam o desenvolvimento intelectual,<br />

trabalhar com arte foi um caminho natural para o<br />

jovem Assami. “Foi sem muito planejamento. O ingresso nesse<br />

mundo foi facilitado, e o reconhecimento foi rápido, então<br />

transformar isso em um projeto de carreira foi algo automático”,<br />

explica. Aos 16 anos, Assami foi convidado por Pietro Maria<br />

Bardi, imigrante italiano que ajudou a fundar o Museu de<br />

Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), para trabalhar<br />

no museu, organizando exposições. “Tive o privilégio de<br />

começar a corrida muito cedo e com vantagem. O ambiente de<br />

colecionismo das artes já era muito presente na família”, diz.<br />

A oportunidade precoce no Masp e o convívio com artistas<br />

de vanguarda traçaram o trajeto para o estudante. “O Grupo<br />

Seibi foi a minha iniciação estética. Também me interessei<br />

pelo impressionismo como processo de ruptura. Sempre acabei<br />

me pautando pelas rupturas. Gosto dos movimentos que<br />

rompam com o status quo da arte”, afirma. “Arte, para mim, só<br />

interessa no contexto da inovação e da criatividade.” Os cinemas<br />

italiano e japonês também influenciaram Assami, principalmente<br />

os cineastas japoneses anteriores a Akira Kurosawa<br />

(1910-1998), como o diretor e roteirista Kenji Mizoguchi<br />

(1898-1956). “Minha avó materna gostava muito de cinema,<br />

e eu sempre ia com ela. Éramos convidados para as noites de<br />

lançamento de filmes japoneses que chegavam a São Paulo”,<br />

recorda.<br />

Após a experiência no Masp, que conciliou com a formação<br />

em comunicação social seguida de pós-graduação em admi-<br />

Monumento em homenagem aos 80 anos da imigração japonesa, em São Paulo | foto: Carlos Alkmin<br />

nistração, Assami trabalhou em instituições como Unicamp<br />

e Associação Brasileira dos Designers Gráficos. Logo depois,<br />

começou a construir seu nome de gestor cultural em São Paulo.<br />

Entre 1996 e 2002, ajudou o Itaú Cultural em seu processo<br />

de reposicionamento frente ao público e aos investidores. Em<br />

seguida, de 2002 a 2011, contribuiu para a criação do Instituto<br />

Tomie Ohtake. Assami, claro, já tinha uma relação próxima<br />

com Tomie e Ricardo Ohtake. “Lá, encontrei uma organização<br />

independente, uma outsider do sistema tradicional de financiamento.<br />

Ela precisava criar um papel de relevância para<br />

além do nome de Tomie Ohtake. E conseguimos atingir esse<br />

objetivo”, explica. Nesse período, dividia o trabalho no instituto<br />

com as salas de aula, como professor universitário. E retornou<br />

ao Masp por um breve período como superintendente,<br />

entre 2011 e 2012, quando o museu carecia de um reposicionamento<br />

e enfrentava desafios financeiros.<br />

Hoje, Assami está em uma fase conclusiva na Unibes Cultural.<br />

“O objetivo traçado inicialmente está próximo de ser cumprido.<br />

É um sentimento de gratificação inenarrável. A população<br />

de São Paulo adora aquele espaço, e o colocou definitivamente<br />

na sua agenda”, diz. Ele não vê problemas em elencar suas<br />

conquistas profissionais, mas é avesso a vaidades e culto à<br />

personalidade. “Minha visão é que a organização cultural precisa<br />

ser forte. Ela não pode se prender a uma personalidade,<br />

a um único gestor, por décadas. No Museu do Louvre, por<br />

exemplo, as transições envolvem um processo de três anos<br />

que integra o atual e o futuro gestor. Isso é de grande requinte<br />

organizacional. Há um compromisso máximo com a preservação<br />

da instituição”, analisa.<br />

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<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 58


Agenda plural<br />

Museus e instituições culturais não são<br />

os únicos interesses e campos de atuação<br />

de Bruno Assami. Há cinco anos é<br />

conselheiro do Instituto Adus, em São<br />

Paulo, que promove a integração socioeconômica<br />

e cultural de imigrantes e<br />

refugiados. Ele também é conselheiro<br />

do Consulado Geral de Portugal em São<br />

Paulo desde 2013 e cuida da criação da<br />

Arena Cultural do Hospital do Câncer de<br />

Barretos. A pauta que envolve envelhecimento<br />

e longevidade também ocupa<br />

lugar em sua agenda. Desde 2018, ele<br />

é conselheiro do Aging 2.0, rede global<br />

que conecta líderes com projetos em<br />

inovação e terceira idade, e é membro<br />

do conselho do Centro Internacional da<br />

Longevidade no Brasil.<br />

A pauta da longevidade surgiu com urgência<br />

há sete anos, quando uma pesquisa<br />

sobre o tema chamou sua atenção.<br />

Ler pesquisas, sobre qualquer tema, é<br />

um hobby do gestor. “Se me der uma<br />

pesquisa na mão, vou ler. Sou um ser<br />

curioso por conhecer pessoas, e elas<br />

sempre trazem uma reflexão a respeito<br />

do comportamento humano”, diz. Em<br />

uma delas, cruzou com dados interessantes<br />

sobre envelhecimento e, desde<br />

então, vem inserindo a questão em<br />

seus trabalhos. “A pesquisa mostrava<br />

como a maioria das pessoas com mais<br />

de 60 anos no Brasil ainda era a principal<br />

fonte de sustento para a família e<br />

gerava renda para diferentes gerações.<br />

Estamos falando de um desafio social<br />

no futuro, já que, demograficamente,<br />

seremos um país mais velho. Então<br />

precisamos criar um campo de valores<br />

e reconhecimentos que enalteça esses<br />

indivíduos. Que tipo de envelhecimento<br />

nós queremos apresentar como<br />

valor para a sociedade?” Na Unibes<br />

Cultural, há linhas de trabalho específicas<br />

para a terceira idade, do mesmo<br />

modo que museus trazem conteúdos e<br />

atividades pensadas para as crianças.<br />

“Cultura é um dos pilares para envelhecer<br />

bem. Cultura é pertencimento.<br />

Indivíduos com mais de 60 anos não<br />

podem ter sua identidade excluída<br />

da sociedade”, afirma.<br />

“A pesquisa mostrava como a maioria das pessoas com<br />

mais de 60 anos no Brasil ainda era a principal fonte de<br />

sustento para a família e gerava renda para diferentes<br />

gerações. Estamos falando de um desafio social no futuro,<br />

já que, demograficamente, seremos um país mais velho”<br />

Theatro Municipal de São Paulo em programação do evento<br />

Experimenta Portugal, em 2017 | foto: divulgação<br />

Dever cumprido<br />

Com 40 anos de trabalho dedicados à<br />

cultura brasileira, Assami ainda está<br />

longe de pendurar as chuteiras, mas já<br />

tem um projeto desenhado para desfrutar<br />

de sua aposentadoria. Ele é casado<br />

há 12 anos com o suíço Matthias Meier,<br />

que conheceu no Brasil quando este<br />

veio ao país como diretor de uma escola<br />

suíça e para ajudar na implementação<br />

de projetos de grupos educacionais. As<br />

viagens eram mais frequentes antes da<br />

pandemia, mas o casal ainda mantém<br />

uma agenda anual dividida entre Brasil<br />

e Europa. “Matthias e eu temos o projeto<br />

de, no futuro próximo, nos desligar<br />

da vida corporativa e passar alguns<br />

anos vivendo em alguns países antes<br />

de uma aposentadoria oficial. Vamos<br />

aproveitar esses anos em que teremos<br />

saúde e uma situação econômica privilegiada<br />

para viajar pelo mundo até escolhermos<br />

finalmente o país onde queremos<br />

envelhecer. Sonhamos em viver<br />

novas culturas. Vamos começar com<br />

países mais desafiadores, do Sudeste<br />

Asiático”, revela Assami. O casal decidiu<br />

não ter filhos. “Deixamos em testamento<br />

que uma parte de nossos bens<br />

será destinada a algumas organizações<br />

internacionais. É um compromisso até<br />

o final da nossa vida com a busca pelo<br />

bem comum. São nossos valores e é coerente<br />

com a nossa existência. Isso nos<br />

faz sentir parte de um todo.”<br />

Enquanto a aposentadoria não chega,<br />

Assami segue na Unibes Cultural. “Dos<br />

15 macrodesafios que estabeleci no início<br />

da minha gestão, faltam três a serem<br />

cumpridos”, diz. Mesmo que haja<br />

muito trabalho pela frente, é possível<br />

olhar para trás com orgulho, sem cometer<br />

o pecado da vaidade. “Tem sido<br />

uma jornada de muito prazer. Apesar<br />

de ter trabalhado na iniciativa privada<br />

do terceiro setor, meu objetivo sempre<br />

foi obter resultados de interesse<br />

público. Estou feliz com minha independência.<br />

Sem relações partidárias e<br />

políticas, sem relação com um grupo<br />

empresarial com interesses específicos.<br />

A minha agenda é a do interesse<br />

público, e isso é um privilégio”, reflete.<br />

Ele também está feliz com a evolução<br />

do setor cultural no Brasil nas últimas<br />

décadas. “Lá atrás, em 1982, eu estava<br />

entrando para um setor sem estrutura<br />

e sem grandes equipamentos culturais,<br />

e um campo de trabalho para<br />

poucos. Eu me sinto realizado porque<br />

hoje temos um ecossistema artístico<br />

muito maior que há 40 anos”, afirma.<br />

Aos profissionais que querem trilhar o<br />

caminho da cultura, Assami pede ousadia<br />

e consciência. “O jovem que quer<br />

trabalhar com arte precisa saber que<br />

está ajudando a construir uma agenda<br />

simbólica. Quando você tem clareza no<br />

seu papel, você caminha com firmeza.”<br />

Que dica daria ao jovem Bruno?<br />

“O Brasil necessita urgentemente de uma agenda de<br />

inovação. Portanto, trabalhe com ousadia”<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 61<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 60


Um cartum<br />

Uma tendência<br />

Arquitetura do bem-estar<br />

O cuidado com a saúde mental ganha cada vez mais espaço<br />

não só nas discussões no ambiente de trabalho mas também<br />

dentro de casa. E a ideia é dedicar, literalmente, um espaço<br />

em nosso lar para estimular o bem-estar. O Pinterest Predicts<br />

<strong>2022</strong>, relatório anual que antecipa tendências de consumo e<br />

comportamento, sinaliza algumas mudanças no design de interiores<br />

que refletem uma busca mais objetiva por tranquilidade,<br />

inspiração e felicidade.<br />

Cada vez mais pessoas terão um quarto ou um canto da casa<br />

para dar um reset no estresse. E esse ambiente temático não<br />

precisa, necessariamente, se restringir ao silêncio meditativo.<br />

O escape room pode ser uma sala de música, um cantinho dos<br />

cristais, uma minibiblioteca, uma área para fazer artesanato<br />

ou um quarto de brincadeiras, com jogos, balanço e tudo. Há<br />

quem prefira uma descompressão express, no quarto da raiva,<br />

encarnando o personagem William Foster, interpretado por<br />

Michael Douglas no filme Um Dia de Fúria.<br />

Trazer a natureza para dentro de casa é outra maneira de investir<br />

no bem-estar mental. O design biofílico (de biofilia, que<br />

significa amor à vida) vem com força total, incorporando elementos<br />

naturais como água, plantas, madeira e pedra aos espaços<br />

internos. E nada de linhas retas. Nos projetos biofílicos,<br />

sofás e afins ganham formato arredondado, mais orgânico.<br />

A tendência wellness na arquitetura ganha ainda o toque divertido<br />

e inusitado dos móveis e acessórios voltados para os<br />

pets. Dos millennials aos boomers, diferentes gerações encontram<br />

no conforto e na diversão de seus cães e gatos a própria<br />

felicidade. Segundo o Pinterest, o país pioneiro nessa tendência<br />

de cama de luxo para o cachorro ou quarto para os gatinhos<br />

brincarem é, adivinhe, o Brasil!<br />

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Foto: Getty images


Um sabor<br />

A origem do frango tikka masala é controversa. Alguns especialistas dizem que ele é indiano. Outros garantem que surgiu das<br />

mãos de um chef de Bangladesh em um restaurante de Glasgow, na Escócia. Para a Et cetera, o que importa é a perfeita combinação<br />

de sabor e aromas intensos nessa iguaria. Na versão da chef Lena Mattar, que presta consultoria a diversos restaurantes,<br />

o prato tradicionalmente servido com frango leva ovos em vez de carne. Pode ser consumido com um bom pão ou arroz branco.<br />

OVOS TIKKA MASALA<br />

Chef Lena Mattar<br />

Uma palavra<br />

Os brancos de Tulsa incendiaram o cabeleireiro da<br />

minha mãe até não sobrar nada. Incendiaram a escola<br />

que minha mãe teria frequentado e o restaurante<br />

do pai dela. Quase incendiaram minha própria<br />

mãe, que tinha uma cicatriz em forma de coração no<br />

rosto até o dia em que a enterraram. Imagine tentarem<br />

pôr fogo em uma criança de dois anos. Era a<br />

idade da minha mãe <strong>–</strong> dois anos e mal andava quando<br />

atearam fogo nela. O próprio pai a salvou, mas<br />

antes um pedaço de madeira do salão caiu sobre o<br />

rosto dela, marcando-a por toda a vida. Dois anos.<br />

Os brancos tentaram matar cada corpo preto vivo<br />

em toda Greenwood, minha mãe incluída. Cada um.<br />

Isso foi em 1921. A história tenta chamar de rebelião,<br />

mas foi um massacre. Os homens brancos vieram<br />

em seus aviões de guerra e lançaram bombas no<br />

bairro da minha mãe. Que Deus a tenha, mas se ela<br />

fosse viva contaria a história para qualquer um ouvir.<br />

Até a idade de ir para a escola, devo ter ouvido<br />

umas cem vezes. Eu sabia. Fiz questão de que Iris<br />

soubesse. E vou fazer questão de contar para Melody<br />

porque para um corpo ser lembrado alguém tem<br />

que contar sua história. Se eles tivessem incendiado<br />

minha mãe, eu não estaria aqui. Mas só digo isso <strong>–</strong><br />

se eu vivesse até os cento e noventa e nove anos,<br />

nunca iria para esse estado, Deus é testemunha,<br />

meu salvador, minha fortaleza.<br />

INGREDIENTES<br />

• 1 colher (sopa) de garam masala*<br />

• 1 colher (sopa) de gengibre em pó<br />

• 4 colheres (chá) de cúrcuma em pó<br />

• 2 colheres (chá) de cominho em pó<br />

• 1 colher (sopa) de páprica picante<br />

• 3 colheres (sopa) de extrato de tomate<br />

• 1 lata de tomate sem pele<br />

• 1 xícara (chá) de água<br />

• 1 xícara (chá) de creme de leite fresco<br />

• 4 a 6 ovos (de preferência orgânicos e caipiras)<br />

• 1 cebola<br />

• 3 dentes de alho<br />

• 4 colheres (sopa) de óleo vegetal<br />

• Sal a gosto<br />

• Coentro a gosto<br />

• Iogurte grego sem açúcar ou iogurte natural<br />

para finalizar<br />

* É possível encontrar em lojas online<br />

ou em mercados especializados.<br />

MODO DE PREPARO<br />

1. Descasque a cebola e corte-a em cubinhos<br />

pequenos. Rale os dentes de alho no<br />

ralador e reserve. Se for usar uma frigideira<br />

de ferro, preaqueça o forno a 180 °C.<br />

2. Em fogo médio/baixo, aqueça uma frigideira<br />

de ferro que possa ir ao forno ou<br />

uma frigideira de outro material, mas que<br />

tenha tampa. Aqueça o óleo e adicione a<br />

cebola e uma pitada de sal. Cozinhe até<br />

que a cebola fique translúcida, sem deixar<br />

queimar. Adicione o alho, cozinhe<br />

por 2 minutos e acrescente o extrato de<br />

tomate, o garam masala, o gengibre, a<br />

cúrcuma, o cominho e a páprica. Misture<br />

bem e deixe cozinhar por aproximadamente<br />

3 minutos.<br />

3. Acrescente os tomates pelados e seu<br />

suco, esmagando-os conforme for adi-<br />

cionando, e a xícara de água. Misture bem,<br />

baixe o fogo e deixe cozinhar até que o molho<br />

engrosse e a água seque quase toda.<br />

4. Salgue a gosto e acrescente o creme de leite<br />

fresco. Misture bem e deixe cozinhar por<br />

mais 3 minutos. Com a ajuda de uma colher<br />

de pau, cave pequenos buracos no molho<br />

e quebre um ovo dentro de cada um. Se a<br />

frigideira for de ferro, leve-a ao forno por<br />

aproximadamente 10 minutos. Para quem<br />

não tem frigideira de ferro: mantenha o<br />

fogo ligado e tampe a frigideira para que os<br />

ovos cozinhem no vapor.<br />

5. Na hora de servir, coloque algumas colheradas<br />

de iogurte entre os ovos e finalize com o<br />

coentro picado.<br />

Rendimento: 3 a 4 porções<br />

Jacqueline Woodson<br />

Trecho de Em Carne Viva<br />

Tradução de Claudia Ribeiro Mesquita<br />

Editora Todavia<br />

Foto: Bruno Geraldi<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 65<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 64


Uma imagem<br />

Foto: Ricardo Teles<br />

Os tons marrons e terrosos do ambiente emolduram a explosão<br />

de cores que saltam da pintura corporal e da indumentária<br />

dos indígenas da etnia kuikuro. É dia de comemoração<br />

na aldeia Afukuri, no Xingu, terra indígena no norte de Mato<br />

Grosso. Homens adultos e crianças praticam o huka-huka,<br />

uma competição que fecha o quarup, a grande festa dos mortos<br />

dos povos do Xingu <strong>–</strong> em 2021, os homenageados foram<br />

as vítimas da Covid-19. Os campeões de cada aldeia se enfrentam<br />

e, após o combate entre os adultos, grupos de jovens também<br />

lutam para provar sua virilidade. O objetivo da arte marcial<br />

consiste em levantar o seu adversário e levá-lo ao chão.<br />

A imagem <strong>–</strong> repleta de cores, simbolismo e movimento <strong>–</strong> é<br />

de autoria do fotógrafo brasileiro Ricardo Teles. Sua série sobre<br />

o huka-huka é uma das finalistas de um dos prêmios mais<br />

conceituados da fotografia mundial, o Sony World Photography<br />

Awards <strong>2022</strong>. Ricardo, único brasileiro que já venceu<br />

essa premiação (em 2014, na categoria Travel), pode agora<br />

levar seu segundo troféu, desta vez na categoria Esportes.<br />

“Neste ano, o concurso bateu recorde, com mais de 360 mil<br />

fotógrafos profissionais inscritos. Na verdade, só o fato de ser<br />

novamente finalista já é uma honra”, disse à Et cetera. O resultado<br />

sai em abril, e, se depender da torcida dos kuikuros, o<br />

brasileiro leva de novo.<br />

<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 66

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