You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7<br />
Et cetera<br />
Gente com Bossa<br />
A missão da jornalista Aline Midlej<br />
Péricles e sua versatilidade musical<br />
A força de Aretha Duarte no Everest<br />
Bruno Assami, um gestor cultural nato<br />
Entrevista com a ativista indígena Txai Suruí<br />
Com a Palavra… o jogador de curling Sérgio Vilela<br />
O cinema mineiro de Gabriel Martins<br />
“Compreender as realidades diferentes<br />
da minha, a complexidade da nossa<br />
sociedade, é o que me move”<br />
Aline Midlej<br />
Distribuição gratuita
Caracteres tipográficos | foto: Getty Images<br />
Expediente<br />
Direção-geral Alessandra Lotufo | Direção Editorial e Edição: Daniela Macedo | Textos: Alessandra Lotufo, Daniel Motta,<br />
Daniela Macedo, Diego Braga Norte, Guilherme Dearo e Sérgio Martins | Arte e Diagramação: Alessandra Lotufo<br />
Produção: Danielle Pasqualoto | Revisão: Ronaldo Barbosa | Gráfica: Elyon<br />
Et cetera é uma publicação trimestral da Bossa.etc. Entre em contato conosco pelo revista@bossa.etc.br
Sumário<br />
Capa: Aline Midlej<br />
Foto: Wanezza Soares<br />
06 Roteiro<br />
Os melhores filmes, documentários, séries, discos,<br />
livros e passeios culturais da temporada.<br />
Prepare a pipoca, reúna os amigos e aproveite!<br />
10<br />
O X da Bossa<br />
A felicidade está no pessimismo que prepara para<br />
as frustrações inevitáveis da vida ou no olhar<br />
otimista para as adversidades? Daniel Motta busca<br />
respostas na filosofia, na religião e na literatura<br />
20<br />
Crônicas e Tal<br />
A diretora de comunicação e inovação da<br />
Bossa.etc, Alessandra Lotufo, convida o<br />
leitor para perceber as habilidades socioemocionais<br />
no cotidiano. O tema de estreia<br />
aborda a construção de narrativas<br />
22<br />
Gente com Bossa<br />
A sétima edição da Et cetera chega com uma série<br />
de novas seções, abrindo espaços para contar<br />
histórias de brasileiros que acumulam conquistas<br />
pessoais, vitórias coletivas e propósitos inspiradores<br />
24<br />
Q&A Etc<br />
Na entrevista desta edição, a ativista indígena<br />
Txai Suruí fala sobre o discurso na<br />
COP26, comenta a atual situação dos povos<br />
originários no Brasil e diz o que pensa sobre<br />
ser comparada a Greta Thunberg<br />
26<br />
Com a Palavra…<br />
Em depoimento à Et cetera, Sérgio Mitsuo<br />
Vilela conta como o interesse despertado pelo<br />
curling que ele assistia pela TV o impulsionou<br />
a se tornar jogador da seleção brasileira<br />
daquele esporte<br />
28<br />
Guarde Este Nome<br />
Aos 35 anos, o cineasta Gabriel Martins<br />
acumula três longas-metragens no currículo.<br />
O mais recente, Marte Um, estreou em janeiro<br />
no Festival Sundance, maior evento de cinema<br />
independente do mundo<br />
Foto: Wanezza Soares<br />
Foto: Rodolfo Magalhães<br />
Foto: Ju Coutinho<br />
Foto: reprodução redes sociais<br />
30<br />
Aline Midlej<br />
Âncora do Jornal das Dez, principal telejornal da GloboNews,<br />
a jornalista Aline Midlej confere espontaneidade<br />
e credibilidade ao noticiário, além de ocupar<br />
um importante papel de representatividade na TV<br />
38 Péricles<br />
Depois do sucesso do Exaltasamba, o cantor e compositor<br />
Péricles apostou na versatilidade musical, nas redes<br />
sociais e na autogestão para seguir uma bem-sucedida<br />
carreira solo que já soma dez anos de estrada<br />
46<br />
Aretha Duarte<br />
Primeira brasileira negra a alcançar o cume do Monte<br />
Everest, a montanhista Aretha Duarte coletou 130<br />
toneladas de materiais recicláveis para financiar o<br />
sonho de chegar ao topo do mundo<br />
54<br />
Bruno Assami<br />
Diretor executivo da Unibes Cultural, entidade<br />
que ajudou a idealizar, Bruno Assami contabiliza<br />
conquistas ao longo de quatro décadas de carreira<br />
dedicadas à cultura no Brasil<br />
62<br />
Um Cartum<br />
O cartunista Roberto Kroll traz um olhar<br />
bem-humorado para o retorno aos escritórios:<br />
a ansiedade de separação atinge mais<br />
cães e gatos ou humanos, que não conseguem<br />
mais deixar seus pets sozinhos?<br />
63<br />
Uma Palavra<br />
Um trecho do romance Em Carne Viva, em que a escritora<br />
americana Jacqueline Woodson conta a história de<br />
duas famílias negras, trazendo à tona o massacre racial<br />
de 1921 em Tulsa, Oklahoma<br />
64<br />
Um Sabor<br />
No chicken tikka masala: a chef Lena Mattar substitui<br />
o frango por ovos no tradicional e saboroso prato<br />
indiano (ou seria britânico?). Separe as especiarias<br />
e prepare-se para uma viagem gastronômica<br />
A revista Et cetera tem uma versão<br />
pocket: o Etc Pop-up! Para receber<br />
um boletim com notícias interessantes,<br />
fatos curiosos e dicas culturais<br />
toda semana no seu WhatsApp,<br />
cadastre-se pelo QR Code<br />
65<br />
Uma Tendência<br />
Os cuidados com a saúde mental chegam à<br />
arquitetura de interiores: do design de móveis<br />
que privilegiam a felicidade ao quarto<br />
inteiramente dedicado ao bem-estar<br />
66<br />
Uma Imagem<br />
Com uma série de imagens sobre o huka-huka, luta<br />
tradicional dos povos do Xingu, o fotógrafo brasileiro<br />
Ricardo Teles se tornou finalista da respeitada<br />
premiação Sony World Photography Awards <strong>2022</strong>
[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />
Para visitar<br />
Portinari para todos<br />
Há alguns anos as exposições no MIS<br />
vêm sendo as mais celebradas, visitadas<br />
e fotografadas de São Paulo. A<br />
atual, sobre a obra do pintor Candido<br />
Portinari, não é diferente. Com uma<br />
proposta lúdica, imersiva e interativa,<br />
a mostra não se limita aos quadros<br />
e biografia do autor. O público pode<br />
interagir com as instalações, incluindo<br />
até a possibilidade de “entrar” em<br />
seus quadros, projetados em escala<br />
monumental em uma das salas. Com<br />
curadoria de Marcello Dantas <strong>–</strong> responsável<br />
pela concepção criativa do<br />
Modernismo<br />
No ano do centenário da Semana de<br />
Arte Moderna de 1922, coube à Pinacoteca<br />
a realização da maior e mais<br />
completa exposição sobre a Semana<br />
e o modernismo brasileiro. São nada<br />
menos que mil obras expostas nos<br />
salões do belo palácio na Praça da Luz,<br />
sendo 134 de artistas ligados diretamente<br />
à Semana e aos seus desdobramentos,<br />
incluindo Anita Malfatti,<br />
Victor Brecheret, Tarsila do Amaral,<br />
Lasar Segall, Cícero Dias, Ismael Nery<br />
e outros. Dentre os destaques, há o<br />
inovador quadro Amigos, de Di Cavalcanti,<br />
exposto no saguão do Theatro<br />
Museu do Amanhã, no Rio, e do Museu<br />
da Língua Portuguesa, em São Paulo<br />
<strong>–</strong>, a experiência agrada a todas as<br />
idades e rende ótimos cliques para as<br />
redes sociais. Além disso, compõe um<br />
excelente panorama sobre a obra de<br />
um dos artistas mais importantes e representativos<br />
da cultura brasileira. Às<br />
terças, a entrada é gratuita e pode ser<br />
reservada com antecedência pelo site.<br />
MIS <strong>–</strong> Museu da Imagem<br />
e do Som / São Paulo<br />
Ingressos: mis-sp.org.br<br />
Municipal de São Paulo durante a<br />
famosa semana, além de dois quadros<br />
míticos de Tarsila: Antropofagia e São<br />
Paulo. O percurso ao longo das 19 salas<br />
se propõe a contar uma história do<br />
modernismo por meio de imagens,<br />
esculturas e textos de apoio, mostrando<br />
suas influências, sua consolidação<br />
e suas mutações posteriores. Aos sábados,<br />
a entrada é gratuita e pode ser<br />
reservada com antecedência pelo site.<br />
Pinacoteca / São Paulo<br />
Ingressos: pinacoteca.org.br<br />
Séries, filmes etc.<br />
Obra: Chorinho, Candido Portinari | foto: divulgação<br />
Obra: São Paulo, de Tarsila do Amaral |<br />
foto: divulgação<br />
Belfast<br />
Onde ver: cinemas<br />
Duração: 1h38m<br />
Lembranças em P&B<br />
Vencedor do Oscar de melhor roteiro<br />
original e com outras seis indicações,<br />
incluindo melhor filme, Belfast é inspirado<br />
na infância do diretor Kenneth<br />
Branagh, que nasceu e cresceu na<br />
capital da Irlanda do Norte. No fim da<br />
década de 1960, o garoto Buddy e sua<br />
família de classe baixa sonham com<br />
um futuro melhor enquanto vivenciam<br />
a escalada de violência entre católicos<br />
e protestantes. Seu pai (Jamie Dornan,<br />
da trilogia Cinquenta Tons de Cinza)<br />
Drive My Car<br />
Onde ver: cinemas e Mubi (a partir de 1º de abril)<br />
Duração: 2h59m<br />
Segredos de Murakami<br />
Baseado num conto do autor best-<br />
-seller Haruki Murakami, o Drive My<br />
Car conta a história do ator e diretor<br />
Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima,<br />
em ótima interpretação), que tenta se<br />
recuperar da perda de sua mulher,<br />
uma dramaturga vítima de um AVC.<br />
Convidado a encenar uma peça em<br />
um festival de teatro e impedido de<br />
dirigir, ele passa a conviver diariamente<br />
com a motorista Misaki (Tôko<br />
passa semanas trabalhando longe de<br />
casa, e sua mãe (Caitriona Balfe) vive<br />
angustiada com o futuro da família em<br />
meio aos conflitos. Mesmo com brigas<br />
e até carros explodindo na porta de<br />
casa, Buddy ainda mantém as preocupações<br />
típicas da infância, enquanto<br />
tenta entender a confusão ao redor.<br />
Apesar de ser filmado em branco e<br />
preto e num contexto de guerra civil, o<br />
filme é narrado sob o olhar do garoto,<br />
que consegue encontrar alegria e descontração<br />
em meio à violência.<br />
Miura). À medida que os ensaios<br />
avançam, um dos atores do espetáculo<br />
começa a revelar segredos sobre a<br />
vida íntima da mulher de Yusuke, que<br />
aos poucos vêm à tona. O convívio do<br />
viúvo com Misaki passa a ser o ponto<br />
de apoio do diretor para lidar com as<br />
descobertas. Desde seu lançamento,<br />
o filme do diretor japonês Ryûsuke<br />
Hamaguchi acumula prêmios importantes:<br />
levou o Oscar de melhor filme<br />
estrangeiro, Bafta, Cannes e Globo de<br />
Ouro, entre outros.<br />
3 Tonelada$: Assalto ao Banco Central<br />
Onde ver: Netflix<br />
Duração: 3 episódios de 50 minutos cada um (2h30m)<br />
Reconstituição de um<br />
crime<br />
No dia 8 de agosto de 2005, uma segunda-feira,<br />
os funcionários do Banco<br />
Central em Fortaleza, no Ceará, descobriram<br />
que cerca de 164 milhões de<br />
reais tinham sido roubados. O assalto,<br />
realizado por uma quadrilha no fim<br />
de semana, foi um dos maiores e mais<br />
audaciosos da história. Os criminosos<br />
alugaram um imóvel próximo ao banco<br />
e, ao longo de meses, construíram<br />
um túnel de 80 metros de comprimento,<br />
a 4 metros de profundidade, com<br />
luz e ar-condicionado, que o ligava<br />
ao banco. O assalto, que já rendeu um<br />
filme ficcional em 2011, ganha agora<br />
uma série documental com imagens<br />
de arquivo e depoimentos inéditos<br />
dos policiais e criminosos envolvidos.<br />
O documentário, dividido em três<br />
episódios, traz os detalhes de como os<br />
bandidos conseguiram entrar no cofre<br />
de altíssima segurança e levar 3 toneladas<br />
de cédulas, além de contar como<br />
foi a longa e tumultuada investigação,<br />
que envolveu sequestros, assassinatos,<br />
agentes infiltrados e muitas compras<br />
suspeitas em dinheiro vivo.<br />
This Is Us<br />
Onde ver: Amazon Prime Video (temp. 1 a 5) e Star+ (temp. 1 a 6)<br />
Duração: 6 temporadas<br />
Adeus aos Pearson<br />
Os fãs da saga dos irmãos Kevin,<br />
Kate e Randall (os Big 3, interpretados<br />
por Justin Hartley, Chrissy Metz<br />
e Sterling K. Brown) preparam-se<br />
para se despedir da família Pearson<br />
nesta sexta e última temporada da<br />
série This Is Us. O drama marcado por<br />
flashbacks reveladores e reviravoltas<br />
comoventes traz os altos e baixos de<br />
personagens complexos, que exibem<br />
seus defeitos e qualidades ao longo da<br />
vida, em uma trama sem mocinhos<br />
ou vilões. A temporada final promete<br />
novos momentos da montanha-russa<br />
de emoções característica da série que<br />
leva o público do riso às lágrimas em<br />
poucas cenas. Quem ainda não assistiu<br />
tem até o dia 24 de maio, quando<br />
será exibido o último episódio, para<br />
conhecer a história <strong>–</strong> e se envolver <strong>–</strong><br />
antes de se deparar com algum spoiler<br />
sobre o desfecho. A produção da NBC<br />
garantiu presença na lista de nomeados<br />
ao Emmy desde sua estreia, em<br />
2016, levando quatro estatuetas até<br />
agora <strong>–</strong> a edição <strong>2022</strong> da premiação<br />
será realizada em setembro.<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 7<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 6
[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />
Para ler<br />
80 páginas<br />
Editora Fósforo<br />
54,90 reais (livro) ou 32,90 (e-book)<br />
O Acontecimento<br />
Demorou, mas finalmente Annie Ernaux<br />
chega ao Brasil para ficar. Depois<br />
do lançamento dos títulos O Lugar e Os<br />
Anos, no ano passado, agora é a vez<br />
da publicação do livro mais íntimo da<br />
autora francesa de 81 anos. Lançado<br />
originalmente em 2000, o livro<br />
narra, na peculiar e magnética prosa<br />
pessoal de Ernaux, como aconteceu<br />
sua gravidez indesejada em 1963,<br />
224 páginas<br />
Editora Todavia<br />
69,90 reais (livro) ou<br />
49,90 reais (e-book)<br />
Os Órgãos dos Sentidos<br />
No ano de 1666, um astrônomo faz<br />
uma previsão inédita em seu tempo:<br />
exatamente ao meio-dia de 30<br />
de junho daquele ano, um eclipse<br />
solar deixaria a Europa na completa<br />
escuridão por alguns segundos.<br />
A revelação causa espanto, medo e<br />
inveja em outros astrônomos. Por ser<br />
supostamente cego <strong>–</strong> ele teria tido os<br />
quando ela tinha 23 anos. Sem poder<br />
contar com o apoio do namorado ou da<br />
própria família numa época em que o<br />
aborto era ilegal na França, ela decide<br />
interromper a gravidez que poderia<br />
interferir em seus estudos e carreira.<br />
Com a ajuda de memórias registradas<br />
em seu diário, a autora reconta o caso<br />
quase 40 anos depois. Pioneira no filão<br />
literário chamado autoficção, muito na<br />
moda hoje em dia, Ernaux reconstrói<br />
sua luta e sofrimento para realizar<br />
um aborto clandestino e aproveita a<br />
narrativa para fazer uma lúcida reflexão<br />
sobre a validade da autoridade do<br />
Estado sobre o corpo feminino.<br />
olhos arrancados em circunstâncias<br />
misteriosas <strong>–</strong>, o autor da descoberta<br />
passa a ser acusado de mentiroso.<br />
Seria um cientista sério, louco ou um<br />
visionário que mesmo cego é capaz<br />
de predizer o futuro? O romance<br />
histórico é propositalmente absurdo<br />
e hilário, com uma trama que envolve<br />
famílias reais, obsessão científica,<br />
loucura, filosofia e arte. Graduado em<br />
física e especializado em história da<br />
ciência, o autor americano Adam Ehrlich<br />
Sachs apoia-se em uma robusta<br />
pesquisa de época para construir uma<br />
fábula cômica verossímil, iluminando<br />
o Renascimento europeu de outros<br />
ângulos e embaçando os limites entre<br />
ciência e loucura.<br />
Para ouvir<br />
Violão e piano<br />
em família<br />
O violonista Sérgio Assad e sua filha,<br />
a pianista Clarice Assad, já têm uma<br />
carreira consolidada internacionalmente<br />
com interpretações e composições<br />
próprias que passeiam entre<br />
clássicos e contemporâneos. O álbum<br />
Archetypes parece ser um dos pontos<br />
altos da carreira dos músicos. Indicado<br />
em três categorias ao Grammy de<br />
<strong>2022</strong>, incluindo melhor performance<br />
e melhor produção de música clássica,<br />
o disco traz composições coletivas dos<br />
Assad com o quarteto americano de<br />
percussão Third Coast Percussion. As<br />
Caldeirão de black<br />
music<br />
Há pelo menos duas décadas, o<br />
americano Robert Glasper vem se<br />
consolidando como um dos nomes<br />
mais inventivos e versáteis do piano.<br />
Além de compor e tocar jazz, ele tem<br />
um projeto chamado Black Radio, que<br />
acaba de lançar seu terceiro álbum.<br />
O disco é estruturado como se fosse<br />
uma rádio de black music e traz um<br />
cardápio variado de opções: jazz<br />
contemporâneo, rap, soul, rhythm and<br />
blues, funk e outros, mas todas com o<br />
piano matador de Glasper. As muitas<br />
12 músicas <strong>–</strong> simbologia que remete<br />
aos 12 meses do ano, 12 signos do<br />
zodíaco e 12 trabalhos de Hércules,<br />
segundo Clarice <strong>–</strong>, têm diversidade<br />
sonora, mas resguardam uma unidade<br />
criativa. Não há excessos de virtuosismo<br />
exibicionista nem sonoridades<br />
fáceis, daquelas com refrãos. Algumas<br />
composições são explosivas (The<br />
Rebel), outras delicadas (a singela The<br />
Lover), mas todas belas e<br />
precisamente executadas.<br />
Archetypes<br />
Onde ouvir: Spotify, Deezer,<br />
iTunes e Tidal<br />
participações do disco contribuem<br />
para dar forma ao clima de rádio, com<br />
vozes e estilos se alternando. Entre os<br />
destaques há as cantoras Esperanza<br />
Spalding, H.E.R. e Meshell Ndegeocello;<br />
e ainda uma ótima leva de nomes<br />
do hip-hop americano pouco conhecidos<br />
do público brasileiro, incluindo<br />
rappers, DJs e produtores, como Amir<br />
Sulaiman, Posdnuos (do seminal grupo<br />
De La Soul), J. Dilla e outros.<br />
Black Radio III<br />
Onde ouvir: Spotify, Deezer,<br />
iTunes e Tidal<br />
232 páginas<br />
Editora Zahar<br />
74,90 reais<br />
44 Cartas do Mundo<br />
Líquido Moderno<br />
Mundialmente conhecido por seus conceitos<br />
sobre a “modernidade líquida”,<br />
o filósofo polonês Zygmunt Bauman<br />
(1925-2017) foi um pensador instigante<br />
e muito antenado no impacto das<br />
novas tecnologias em nossa sociedade.<br />
Este livro reúne uma seleção de 44 textos<br />
sobre múltiplos aspectos do que ele<br />
chama de “mundo líquido moderno”. O<br />
autor analisa temas culturais, políticos<br />
e sociais para mostrar como está sen-<br />
do a transição da modernidade “sólida”<br />
para sua versão “líquida”, muito mais<br />
dinâmica. Para isso, ele revela significados<br />
por trás de atos cotidianos corriqueiros,<br />
como uma chamada ao celular,<br />
a exposição de uma foto em uma rede<br />
social ou a leitura da fatura do cartão<br />
de crédito. Como o mundo líquido está<br />
em constante movimento, seus textos<br />
são flashes da vida contemporânea:<br />
Twitter, Facebook, moda, proliferação<br />
de doenças psiquiátricas, solidão, isolamento,<br />
terceirização do trabalho, dentre<br />
outros temas.<br />
Dança das fadas<br />
Desde o sucesso de Dog Days Are Over,<br />
single do álbum de estreia, Lungs, cada<br />
lançamento da banda britânica Florence<br />
+ The Machine é aguardado com<br />
ansiedade pelos fãs. Não foi diferente<br />
com Dance Fever, quinto álbum do grupo<br />
de indie rock liderado pela vocalista<br />
Florence Welch, que chega em 13 de<br />
maio às plataformas de streaming.<br />
Pelas palavras da própria Florence,<br />
Dance Fever é “um conto de fadas em<br />
14 músicas”. As referências são ecléticas,<br />
e incluem dance music, folk e Iggy<br />
Pop anos 1970 para as melodias, além<br />
de filmes de terror com elementos de<br />
folclore e ficção gótica para as letras.<br />
Uma curiosidade: o disco foi gravado<br />
em Londres durante o período de lockdown<br />
por causa da pandemia, mas os<br />
videoclipes dos singles King, Heaven Is<br />
Here e My Love, lançados no início do<br />
ano, foram filmados em Kiev, capital<br />
da Ucrânia, antes da invasão russa.<br />
Dance Fever<br />
Onde ouvir: Spotify, Deezer,<br />
iTunes e Tidal<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 9<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 8
[O X DA BOSSA]<br />
O otimismo<br />
A tolice<br />
A névoa<br />
Por Daniel Augusto Motta <strong>–</strong> Senior Tupinambá Maverick da Bossa<br />
Pessimismo e otimismo moldam a<br />
percepção da humanidade para os fatos<br />
da vida e determinam o modo de olhar<br />
para o futuro. Onde cabe a felicidade<br />
nesses comportamentos tão opostos?<br />
Foto: Getty Images<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 11<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 10
O<br />
otimismo carrega consigo certa dose de inconveniência: os otimistas surpreendem-se<br />
com a desgraça. Diante do inevitável rumo errático das coisas da<br />
vida que, pasmem, não atendem às esperanças mais puras e ingênuas, eles<br />
se frustram. Sim, a frustração do otimista é um fato.<br />
Os pessimistas trazem certa serenidade e prudência ao anteciparem cenários desfavoráveis<br />
logo mais adiante para, então, certificarem-se de que estão preparados<br />
para a jornada. Ao passo que os otimistas radicais se movimentam sôfregos em<br />
busca de prazeres sucessivos, sempre insatisfeitos com o presente, animados com<br />
o futuro necessariamente promissor. E é justamente tal espiral infinita de felicidade<br />
que traz certa tolice ao otimista empertigado.<br />
Acreditar que a vida nos reserva a felicidade plena é um ato de loucura ou ingenuidade.<br />
Algo inofensivo no âmbito individual do tolo e potencialmente desastroso na<br />
coletividade de indivíduos destinados a frustrações. Em realidade, a vida parece ser<br />
muito mais repleta de pequenos momentos especiais de poesia, intermitentes em<br />
um contexto muito menos satisfatório em nosso cotidiano. Nosso destino parece<br />
ser, portanto, mais dedicado a aumentar a frequência e prolongar cada poesia ao<br />
longo da dura epopeia do viver. Pessimista demais? Talvez sim, sob a ótica do senso<br />
comum. Mas não sob o ponto de vista da filosofia.<br />
Racionalismo celeste<br />
Na obra metafísica do filósofo alemão<br />
Arthur Schopenhauer, produzida no<br />
século XIX, a vida é o sofrimento pendular<br />
entre a dor da vontade insatisfeita<br />
e o tédio da felicidade realizada.<br />
Essa perspectiva realista-pessimista<br />
posiciona a felicidade como espasmos<br />
momentâneos durante um processo<br />
de infelicidade intrínseca a uma natureza<br />
humana insaciável em suas vontades,<br />
seus desejos e suas ambições.<br />
A sublimação de tamanho sofrimento<br />
pelas artes ou pelas religiões também<br />
apresentaria suas limitações diante da<br />
aspereza cotidiana, de modo que a experiência<br />
da vida humana não poderia<br />
ser otimista. Considerada um clímax<br />
pessimista na trajetória milenar da metafísica,<br />
a narrativa de Schopenhauer<br />
nos levaria a buscar incessantemente<br />
certa atenuação dos ímpetos da vontade<br />
individual em prol de uma vida mais<br />
equilibrada e prosaica, sem grandes arroubos,<br />
sem entusiasmos hiperbólicos.<br />
Algumas décadas antes de Schopenhauer,<br />
o também filósofo alemão<br />
Immanuel Kant fundava o idealismo<br />
transcendental em sua obra. Ele afirmava<br />
que, por meio de suas experiên-<br />
cias, os indivíduos trazem sempre suas<br />
formas e seus conceitos para as coisas<br />
interpretadas além de sua concretude<br />
essencial inacessível a todos. Em outras<br />
palavras, haveria as coisas em si e<br />
as coisas como são percebidas, sendo<br />
as primeiras as verdadeiras, e as segundas<br />
meras interpretações possíveis<br />
para uma realidade inacessível à racionalidade<br />
humana. Assim, pessimismo<br />
ou otimismo apresentavam-se no<br />
campo dos fenômenos percebidos pelo<br />
indivíduo em um fio condutor neutro.<br />
Ao imaginar o mundo das coisas percebidas<br />
como o universo de percepções<br />
cruzadas, Kant nos desafia a minimizar<br />
euforias e frustrações diante da imparcialidade<br />
das coisas concretas. Nosso<br />
desafio cognitivo e afetivo nos levaria a<br />
um processo consciente de autorregulação<br />
dos nossos sentimentos e pensamentos.<br />
No entanto, sem os rompantes<br />
otimistas emocionados e as descargas<br />
pessimistas, o caminhar inerte e cético<br />
não deixa de ser bastante desestimulante<br />
para o ser humano. Portanto, o<br />
olhar imparcial kantiano sobre os fenômenos<br />
traz uma perspectiva insossa<br />
para a trajetória individual.<br />
Foto: Getty Images<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 13<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 12
O melhor dos mundos possíveis<br />
No campo otimista, vale destacar o cenário idealizado pelo filósofo<br />
alemão Gottfried Wilhelm Leibniz: um mundo onde o<br />
Deus onipotente, onipresente e onisciente <strong>–</strong> e, essencialmente,<br />
bom e perfeito <strong>–</strong> assegura a melhor experiência de vida a<br />
todos, onde todos os acontecimentos são plenamente justificados<br />
pela intervenção divina. A crença na perfeição do processo<br />
de escolhas proferidas por Deus encaixa-se como uma<br />
luva na mitologia cristã vigente naqueles tempos europeus,<br />
sustentando a perspectiva otimista em relação à vida, mesmo<br />
diante de eventuais intempéries <strong>–</strong> afinal, tudo é desígnio divino,<br />
tudo é um complexo balanceamento entre o bem infinito e<br />
o mal diabólico limitado, tudo faz parte do caminho celestial.<br />
Mais um capítulo na batalha secular escolástica contra o empirismo<br />
causal.<br />
Leibniz enfrenta, muitos séculos à frente, a essência do Paradoxo<br />
de Epicuro, que vem da Grécia antiga. Segundo o trilema<br />
do filósofo grego, seria impossível encontrarmos verdade<br />
nas três características fundamentais do deus judaico (posteriormente,<br />
também deus cristão e islâmico): onipotência,<br />
onisciência e onibenevolência. De acordo com a visão epicurista,<br />
considerando duas das características verdadeiras, a<br />
terceira é, inevitavelmente, falsa.<br />
Assim sendo, temos que:<br />
• Um deus onisciente e onipotente tem conhecimento<br />
de todo o mal e pode exterminá-lo. Se não o faz,<br />
não é onibenevolente.<br />
• Um deus onipotente e onibenevolente consegue extinguir<br />
o mal e quer fazê-lo por sua bondade. Quando não o faz,<br />
é por desconhecimento, portanto não pode ser onisciente.<br />
• Um deus onisciente e onibenevolente conhece todo o mal<br />
e deseja exterminá-lo. Só não o elimina por ser incapaz,<br />
então não pode ser onipotente.<br />
O otimismo racional de Gottfried Leibniz reforça a teodiceia<br />
clássica de Santo Agostinho em resolver o paradoxo epicurista,<br />
argumentando que a existência do mal se relaciona com<br />
a necessidade de remissão dos pecados individuais acumulados<br />
e com o próprio equívoco individual ao empregar seu<br />
livre-arbítrio concedido por Deus. A maldade estaria, assim,<br />
intrínseca à ação humana, a despeito da bondade suprema divina.<br />
Haja otimismo celestial para tanta maldade na pequenez<br />
humana! Graças a Deus! Mas...<br />
Se, por acaso, Deus morresse, abrir-se-ia uma perspectiva<br />
verdadeiramente humana, liberta das amarras morais religiosas.<br />
O homem poderia, afinal, viver em seus próprios<br />
desígnios. Assim, proclamava o filósofo Friedrich Nietzsche<br />
na apresentação do seu Übermensch (traduzido como super-homem),<br />
o homem seria capaz de criar seus próprios<br />
valores, reconhecer-se verdadeiro neste mundo, aceitar de<br />
peito aberto a realidade, agir sobre o mundo no seu entorno<br />
e, principalmente, encontrar significado para a vida. Humanos<br />
medíocres deveriam abster-se de esperar que pessoas<br />
importunas fossem punidas nesta vida ou pela eternidade,<br />
tanto quanto deveriam desistir de serem recompensados por<br />
seus atos de bondade na vida após a morte. Entretanto, reconhecendo<br />
a presença de certa mediocridade na existência<br />
humana, o próprio Nietzsche posicionava a moralidade cristã<br />
como o esteio ou, melhor dizendo, o instinto de rebanho para<br />
indivíduos conviverem em suas fugas da realidade.<br />
Afresco O Eterno em Glória, por Luigi Garzi (1685),<br />
na Basílica de Santa Maria del Popolo, em Roma |<br />
foto: Getty Images<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 15<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 14
Otimismo da fé<br />
Filosofar sobre Deus, Natureza e Humano<br />
pode ser percebido como tergiversar<br />
sobre o âmago da questão que<br />
se coloca a respeito da superioridade<br />
do otimismo contra o pessimismo, e<br />
vice-versa. Ainda mais quando preciso<br />
viajar por séculos e milênios ao<br />
encontro de clássicos filósofos. No<br />
entanto, esse é o verdadeiro cerne da<br />
questão. Considerando-se que o mundo<br />
externo não se desenvolve exatamente<br />
conforme os desejos internos<br />
<strong>–</strong> e, mesmo se assim fosse, seria, em<br />
uma espiral paradoxal, motivo de tédio<br />
insuportável pela ausência de contraponto<br />
que proporcionasse significado<br />
positivo às eventuais conquistas valorizadas<br />
<strong>–</strong> apresenta-se, de modo inexorável,<br />
a questão fundamental: como<br />
lidamos com as frustrações diante<br />
das falhas, lacunas, adversidades,<br />
perspectivas e impossibilidades?<br />
Devemos ser otimistas para acreditar<br />
que seremos capazes de conviver<br />
com nossos dissabores, por estarmos<br />
diante de forças divinas incompreensíveis,<br />
resignados com nossa sina<br />
diante de tantas restrições e frustrações<br />
como parte de nosso caminho de<br />
evolução? Acreditemos em um campo<br />
de forças celestiais, orquestradoras de<br />
infinitas conexões e acontecimentos<br />
por um Deus bom, mesmo diante de<br />
tantas limitações, perdas e renúncias?<br />
Haverá otimismo possível perante a<br />
eternidade no paraíso proposta pela<br />
mitologia cristã?<br />
O otimismo apresenta-se, assim, na<br />
metafísica cristã, de modo inequívoco,<br />
como um ato de fé, uma prece a Deus,<br />
capaz de sobreviver a intempéries inimagináveis,<br />
a provações excruciantes.<br />
O pessimismo, de outro modo, seria<br />
como uma confissão herege, um ato de<br />
desistência, até mesmo uma rebeldia<br />
ingrata diante de tanta bondade divina.<br />
Otimismo e pessimismo seriam, assim,<br />
reflexos imediatos da intensidade da<br />
fé. Isso mesmo. Muito além da racionalidade,<br />
encarar a vida com otimismo é<br />
acreditar em Deus Todo-Poderoso. Assim<br />
sempre foi, assim seja!<br />
Kant Schopenhauer Nietzsche Spinoza<br />
Sanidade do pessimismo<br />
No encontro filosófico entre Kant, Schopenhauer e Nietzsche, longe das amarras divinas,<br />
permanece a tensão entre a busca incessante pela satisfação crescente e o conforto com a<br />
felicidade conquistada. Aqui, otimismo e pessimismo travam seus conflitos em outra arena.<br />
Um lugar onde a racionalidade nos leva a desafiar a espiral infinita em relação a algo<br />
inalcançável: a felicidade suprema. Um lugar onde prudência e tranquilidade servem como<br />
alavancas de compensação contra uma jornada sem rumo para um destino incerto. Ser pessimista<br />
nesse contexto metafísico é manter-se são e equilibrado diante daquilo que temos<br />
e vivemos: embora ainda buscando algo adicional que possa nos elevar, estamos cientes de<br />
que continuaremos encontrando percalços intransponíveis durante nossa jornada.<br />
Ainda antes de concluir esta digressão filosófica, vale a pena compartilhar a visão inspiradora<br />
de Baruch Spinoza, expoente holandês do Iluminismo europeu no século XVII.<br />
Segundo sua obra clássica, os corpos mantêm-se em repouso e em movimentações. Tais<br />
movimentações <strong>–</strong> denominadas por Spinoza como afetos <strong>–</strong> são verdadeiras potências para<br />
o pensar e o agir. Afetos de alegria são movimentações positivas de potência, afetos de<br />
tristeza são movimentações de perda de potência. Naturalmente, os corpos desejam de forma<br />
genuína e se esforçam muito para maximizar os afetos alegres e minimizar os afetos<br />
tristes. Concluímos por aqui que a vida é repleta de afetos que nos movimentam por meio<br />
de desejos pela alegria e combate à tristeza. Mesmo assim, a vida ainda não é tão simples.<br />
Pessoas iludidas acreditariam que suas ações seriam resultantes de livre-arbítrio, inconscientes<br />
sobre suas causalidades, inebriadas por suas ilusões e fantasias. Apenas pessoas<br />
conscientes sobre seus afetos dominam melhor suas ideias e ações, sem as distrações ilusórias<br />
dos impulsos inconsequentes. Haveria certa intencionalidade consciente e equilibrada<br />
sobre os movimentos otimistas.<br />
E, antes que essa reflexão se encaminhe para um desfecho niilista, recorro às artes, inspirado<br />
por Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Viremos a página.<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 17<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 16
Ingenuidade ou<br />
engenhosidade<br />
Cândido, Quixote e Pollyanna representaram<br />
a negação da própria realidade<br />
ao seu redor, como verdadeiros<br />
loucos desvairados em suas próprias<br />
distorções, ilusões e sonhos. Os personagens<br />
criados por Voltaire, Miguel de<br />
Cervantes e Eleanor H. Porter escolheram,<br />
deliberada ou inconscientemente,<br />
visualizar o mundo com otimismo infalível.<br />
Foram ingênuos em seus pensamentos,<br />
sentimentos e ações <strong>–</strong> eventualmente,<br />
frustrando-se com situações<br />
negativas inesperadas. Mas, mesmo<br />
Cândido e Quixote, antes de se resignarem,<br />
viveram sua vida com olhar<br />
apreciativo sobre as coisas, sobretudo<br />
a respeito de si mesmos.<br />
O jogo psicológico do contente tão bem<br />
praticado por Pollyanna não se restringiu<br />
a pensamentos positivos, mas<br />
também ao processo de reação diante<br />
de acontecimentos adversos. Otimistas<br />
e pessimistas diferenciam-se não apenas<br />
pelos pensamentos positivos ou<br />
negativos, mas, principalmente, pela<br />
forma como encontram explicações<br />
para os fatos adversos em sua vida.<br />
E não apenas isso. Segundo inúmeros<br />
estudos na psicologia positiva, os otimistas<br />
também esperam que coisas<br />
boas aconteçam no futuro com elevado<br />
senso de confiança e autoestima. Enquanto<br />
isso, os pessimistas enxergam<br />
apenas névoas pela frente, com baixo<br />
nível de confiança e autoestima. Nota-se<br />
que otimistas e pessimistas são,<br />
ambos, muito consistentes ao longo do<br />
tempo. Para os primeiros, eterno céu<br />
azul de brigadeiro; para os segundos,<br />
inferno astral permanente.<br />
Aparentemente, na psicologia positiva,<br />
ser otimista não parece ser tão inconsequente<br />
quanto na metafísica. A mente<br />
otimista torna-se capaz de reciclar e<br />
significar positivamente eventos presentes<br />
e passados de modo a alimentar<br />
a visão positiva a respeito do futuro:<br />
como um fluxo contínuo de energia filtrada<br />
por lentes positivas, são capazes<br />
de encontrar o lado bom das adversidades,<br />
enquanto se beneficiam dos acontecimentos<br />
positivos que ratificam a<br />
beleza e a bondade existentes nas trajetórias<br />
de vida.<br />
A ingenuidade pueril percebida no otimismo<br />
transformar-se-ia assim em<br />
uma engenhosidade neural na mente<br />
do otimista em benefício de si próprio,<br />
assegurando a ressignificação<br />
das contrariedades em lições positi-<br />
vas, regozijando-se diante das conquistas<br />
eventuais e concentrando-se<br />
na calibragem das lentes que decodificam<br />
as percepções sobre as coisas.<br />
Mais importante do que a iluminação<br />
da mente humana, estaria a própria<br />
sanidade sustentada por truques engenhosos<br />
que preservam pensamentos<br />
e sentimentos positivos a despeito<br />
das sucessivas adversidades e decepções.<br />
Em tempos difíceis, afinal, não<br />
dificultemos ainda mais as coisas, mas<br />
encontremos a rara beleza que reside<br />
nas poucas frestas de luz. Afinal, rir é<br />
melhor que chorar.<br />
Todos enfrentam dificuldades e traumas<br />
na vida, lidando com sentimentos<br />
fortes como ansiedade, ressentimento,<br />
agonia, persistência e superação. O<br />
equilíbrio entre sensações positivas e<br />
negativas está, naturalmente, relacionado<br />
a perspectivas otimistas e pessimistas,<br />
havendo evidências em estudos<br />
científicos recentes para a maior<br />
capacidade otimista em potencializar<br />
as sensações positivas e neutralizar<br />
as negativas. Além disso, otimistas<br />
apresentam maior capacidade para relações<br />
interpessoais, grande parte por<br />
sua maior autoestima e por sua resiliência<br />
diante de problemas sensíveis.<br />
Otimistas também demonstram maior<br />
confiança em relação à probabilidade<br />
de êxito em seus compromissos, com<br />
maior repertório cognitivo e social<br />
para adaptabilidade em situações desafiadoras.<br />
Em resumo, a psicologia<br />
positiva afirma que ser otimista está<br />
positivamente relacionado com melhor<br />
saúde física e mental, mesmo diante de<br />
inevitáveis visões distorcidas a respeito<br />
da realidade das coisas.<br />
Há realmente uma inversão de perspectivas.<br />
Para Arthur Schopenhauer,<br />
o pessimista realista apresentava-se<br />
como superior ao otimista ingênuo ao<br />
constatar que uma vida equilibrada e<br />
tranquila, sem tumultuadas montanhas-russas,<br />
seria mais prudente e<br />
efetiva do que uma trajetória otimista<br />
iludida prestes a ser frustrada inúmeras<br />
vezes. Para o psicólogo americano<br />
Martin Seligman, o otimista persistente<br />
presume que obstáculos possam ser<br />
superados com diligência e confiança,<br />
mesmo que o progresso seja lento.<br />
São séculos filosóficos contra algumas<br />
poucas décadas de psicologia positiva.<br />
Ainda assim, um embate intelectual<br />
relevante em tempos contemporâneos.<br />
Monumento a Don Quixote na Praça de<br />
Espanha, em Madri | foto: Getty Images<br />
Racionalidade limitada, impulsos<br />
pela sobrevivência<br />
Jornais destacam tragédias porque vendem mais do que<br />
notícias sobre bondade altruísta. E isso acontece porque as<br />
tragédias despertam nossos instintos essenciais para sobrevivência.<br />
Diante de tanta complexidade e hostilidade por<br />
todo ambiente externo, diante de tanta ambiguidade e ansiedade<br />
no universo interno de cada indivíduo, nossa mente<br />
está muito mais atenta a riscos, ameaças e problemas.<br />
Diariamente, precisamos equilibrar nossos impulsos primitivos<br />
e nossa racionalidade limitada diante de um contexto<br />
incompreensível e instável.<br />
Compreender o momento presente como favorável e decodificar<br />
o contexto futuro como promissor seriam duas<br />
características marcantes para alguém otimista. Mesmo<br />
diante de tantas adversidades e dificuldades, mesmo diante<br />
O meio do caminho<br />
de tantas incertezas e ameaças, a visão positiva é uma capacidade<br />
inerente ao otimista, que consegue ir em frente,<br />
renovando suas energias.<br />
O pessimista tem várias possibilidades viáveis. Pode antecipar<br />
um cenário futuro distópico, pode identificar inúmeros<br />
problemas e adversidades do contexto presente, pode ainda<br />
posicionar-se como saudosista em tempos outrora melhores<br />
do que os atuais. O pessimista pode ser totalmente realista e,<br />
ainda assim, não demonstrar superioridade intelectual diante<br />
do otimista, simplesmente porque a própria realidade seria<br />
algo incognoscível a todos nós. Diante da indiscutível racionalidade<br />
limitada e dos necessários impulsos instintivos, o<br />
pessimismo realista tem também sua utilidade. Não sobreviveremos<br />
apenas com ilusões e sonhos.<br />
Em tempos de tantas questões fundamentais para a humanidade, otimismo e pessimismo apresentam-se como duplas úteis<br />
no enfrentamento da dura realidade que nos desafia todos os dias. A evolução tecnológica, o progresso científico, as mudanças<br />
nos usos e costumes, os ciclos naturais do Universo, as questões transcendentais sem respostas, a tensa geopolítica global...<br />
São tantos os grandes temas que nos desafiam a escolher entre otimismo e pessimismo. Aliás, seria algo a ser escolhido a<br />
cada caso ou seria um traço intrínseco à personalidade individual? Eis mais uma reflexão essencial aos indivíduos hesitantes<br />
entre os dois polos.<br />
Todos precisamos, claro, de uma forte dose de pessimismo para compreendermos a realidade, mapearmos os riscos e os obstáculos,<br />
mantermos elevado nível de tensão e atenção. Mas também precisamos de um olhar otimista para nos mantermos sãos,<br />
leves e animados. Seria praticamente impossível enfrentarmos a dura realidade do cotidiano sem um frescor positivo em nossas<br />
expectativas e olhares. Seria ainda mais complexo imaginar a própria vida no longo prazo sem esperanças por dias melhores,<br />
tanto quanto seria muito improvável viver bem a vida no longo prazo sem prudência diligente ao longo do caminho.<br />
Ser otimista é ser ingênuo ou ser crédulo aos olhos clássicos da metafísica, mas também é manter-se são e confiante para cultivo<br />
de relações interpessoais positivas. Ser pessimista é ser esclarecido, independente ou genuinamente humano aos olhos clássicos<br />
da metafísica, mas também é conviver com olhares mais tristes e duros para as coisas que são, apenas, coisas.<br />
Manter-se otimista no objetivo e pessimista nas condições de contorno, sem subterfúgios ou atalhos biomédicos, talvez seja o<br />
equilíbrio humano necessário para nossa existência significativa neste plano da vida. Menos extremos, mais equilíbrios. Menos<br />
abismos, mais conexões. Afinal, todos precisamos de mais poesia.<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 19<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 18
[CRÔNICAS E TAL]<br />
Narrativas cativantes<br />
X dates desastrosos<br />
Rio de Janeiro | foto: Getty Images<br />
Quando o comediante Jerry Seinfeld foi convidado para formatar<br />
o piloto de uma série para a rede de TV americana NBC, decidiu<br />
mostrar o cotidiano de um apresentador de stand-up comedy e<br />
seu processo criativo, que se dava a partir da observação dos<br />
acontecimentos mais banais do dia a dia.<br />
Ele conta que começou suas pesquisas<br />
na deli que ficava perto do bar onde<br />
se apresentava, na Primeira Avenida,<br />
altura da Rua 78, em Manhattan. Ao<br />
percorrer os corredores do estabelecimento<br />
acompanhado do seu amigo e<br />
parceiro Larry David, começou a fazer<br />
graça com os produtos inusitados, fruto<br />
da curadoria totalmente nonsense<br />
do dono, um coreano que mal falava<br />
inglês e, provavelmente, passava longe<br />
de entender as necessidades dos moradores<br />
locais. Foi Larry quem matou<br />
a charada ao declarar: “Aí está o nosso<br />
show!” Seinfeld sorriu e, mesmo<br />
achando muito difícil que os executivos<br />
da NBC embarcassem na ideia,<br />
concordou em arriscar.<br />
Em pouco tempo, a série tornou-se<br />
sucesso internacional e Seinfeld se<br />
perguntava o que exatamente fazia<br />
com que a audiência prestasse atenção<br />
naquela narrativa tão prosaica. Certamente<br />
conseguiu tocar em algo universal,<br />
quando o grupo de quatro atores<br />
do núcleo principal da sitcom colocou<br />
uma lente de aumento nas questões<br />
comportamentais das pessoas que viviam<br />
em grandes centros urbanos em<br />
meados da década de 1990, com suas<br />
dores, facilidades do american way of<br />
life e idiossincrasias.<br />
Eu fazia parte do grupo de jovens adultos<br />
que se deleitava e gargalhava com<br />
as neuroses dos personagens, muitas<br />
delas recorrentes em meu próprio<br />
comportamento. E hoje, décadas depois,<br />
observo meus sobrinhos de 20 e<br />
poucos anos se divertindo com a série<br />
nas plataformas de streaming. Seinfeld<br />
é, definitivamente, atemporal. Mas por<br />
que estou falando de uma sitcom americana<br />
neste nosso primeiro encontro<br />
entre letras? Porque acho o sucesso de<br />
Seinfeld a prova cabal de quanto o comportamento<br />
humano provoca a nossa<br />
curiosidade, captura o nosso interesse.<br />
E este será o nosso assunto nestas páginas<br />
da Et cetera. Seinfeld ainda hoje<br />
faz um público global se reconhecer e<br />
se divertir ao projetar-se nas situações<br />
mais escalafobéticas vividas por Jerry,<br />
George, Kramer e Elaine. Estou longe<br />
de querer repetir o sucesso estrondoso<br />
do comediante americano, mas almejo,<br />
humildemente, contar histórias que<br />
criem, de alguma forma, rapport com<br />
você, leitor.<br />
Que possamos, juntos, fazer viagens<br />
descontraídas por situações que desafiem<br />
as capacidades humanas de<br />
tomada de decisão, relação com o diferente,<br />
enfrentamento de problemas ou<br />
a busca por algo novo e inusitado.<br />
Escrevo esta introdução à nova seção<br />
Crônicas e Tal. da revista diretamente<br />
da minha cidade natal, Rio de Janeiro.<br />
Do quiosque da praia, contemplo o<br />
dia indo embora da forma magistral<br />
como só ocorre no mar do Leblon (sou<br />
carioca expatriada, compreenda, por<br />
favor rsrs). Observo um casal que parou<br />
para tomar água de coco depois de<br />
uma aparente caminhada. Percebo um<br />
clima de conquista no ar, o que captura<br />
a minha atenção imediatamente. Ela,<br />
uma gata de seus 30 e poucos anos.<br />
Ele, um carioca expatriado como eu,<br />
que engata em uma narrativa surpreendentemente<br />
detalhada sobre como<br />
precisou voltar às pressas ao Rio depois<br />
do fim de férias e retorno ao trabalho<br />
em São Paulo, por causa de um<br />
acidente que obrigou a mãe a passar<br />
por uma cirurgia.<br />
Pedi uma porção de dadinhos de tapioca.<br />
Não perderia esse jogo de conquista<br />
por nada! A narrativa começava bem,<br />
enunciando um conflito interessante.<br />
Mas seria engajadora o suficiente?<br />
Teria todos os elementos para segurar<br />
a atenção da jovem, que, a essa altura,<br />
já pedia para o atendente abrir o coco<br />
<strong>–</strong> sinal de que a água já tinha acabado<br />
dentro da fruta. Já o papo... sei não!<br />
O rapaz continuava: descreveu os detalhes<br />
técnicos da colocação de uma prótese<br />
de quadril. Claramente havia feito<br />
o dever de casa e sabia tudo sobre os<br />
materiais, os possíveis reveses, tudo!<br />
Minha mãe passou por duas cirurgias<br />
análogas e pude comprovar que o moço<br />
sabia do que estava falando. Observei a<br />
mulher raspando o coco distraidamente,<br />
olhando o pôr do sol, que, naquele<br />
momento, obviamente, já ganhava de<br />
mil da narrativa do carioca expatriado.<br />
Por pouco não intervim, propondo<br />
uma guinada inesperada, um plot point,<br />
qualquer coisa que pudesse mudar o<br />
rumo daquela prosa. Talvez a cirurgia<br />
da mãe fosse apenas o início de uma<br />
epifania e ele surpreenderia a moça<br />
com uma mudança radical de vida: algo<br />
como morar no Tibete ou coisa parecida.<br />
Nada disso.<br />
Ele prosseguia, agora já na parte da<br />
recuperação da mãe, em casa. Confesso<br />
que me uni à moça por um tempo,<br />
contemplando o sol indo embora no<br />
mar. Me perdi pensando no que uma<br />
história precisa para não virar uma<br />
narrativa chata, ou, no caso em questão,<br />
insuportável. Um bom ponto de<br />
partida? Uma finalidade consistente?<br />
Propósito? E se ele seguisse a fórmula<br />
clássica de A Jornada do Herói, de Joseph<br />
Campbell? Afinal, ele foi chamado<br />
à aventura quando precisou cuidar da<br />
mãe convalescente, teve a ajuda de um<br />
mentor ao aprender tudo sobre próteses<br />
de quadril, mas o resto da jornada<br />
não trazia mensagem alguma, nenhuma<br />
lição. O que faltava ali? Certamente,<br />
ter levado em conta seu público-alvo<br />
teria ajudado um bocado.<br />
Quando me dei conta, avistei a moça<br />
atravessando a rua, sozinha. Você<br />
deve estar se perguntando: e o rapaz?<br />
Cerveja na mão, reclamando do pênalti<br />
perdido por algum jogador de algum<br />
time da liga europeia, que aparecia na<br />
tela da TV do quiosque. Minha alma<br />
feminina se revoltou com a virada de<br />
chave sem nenhuma frustração aparente.<br />
O que faz um ser humano ser tão<br />
insensível assim, gente?<br />
Mas isso é papo para outro dia. Por ora,<br />
ficamos com a reflexão sobre narrativas<br />
inspiradoras... ou como perder um<br />
date em 20 minutos.<br />
Alessandra Lotufo é diretora de comunicação<br />
e inovação da Bossa.etc<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 21<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 20
[GENTE COM BOSSA]<br />
Imagem: Getty Images<br />
Senta que lá vêm<br />
ótimas histórias<br />
Histórias de vida inspiradoras podem vir de personalidades<br />
cujas conquistas já ganharam o mundo ou de anônimos extraordinários<br />
que o público (ainda) não conhece. Contar essas<br />
histórias é a missão da Et cetera. Conhecer os altos e baixos<br />
no caminho de pessoas bem-sucedidas, aprender com as vitórias<br />
e os tropeços, se inspirar com seus propósitos. Nesta edição,<br />
a revista da Bossa estreia novas seções, criando espaços<br />
para que brasileiros notáveis conversem com nossos leitores.<br />
Nas próximas páginas, o leitor vai mergulhar na trajetória<br />
de brasileiros que souberam manter o passo firme para chegar<br />
aonde estão, como a jornalista Aline Midlej, que estampa<br />
nossa sétima capa. A âncora do Jornal das Dez, principal telejornal<br />
da GloboNews, acredita em um noticiário mais humanizado,<br />
que se conecta com a sociedade, e recorre à sua<br />
personalidade cativante para tirar o revestimento duro do<br />
jornalismo frio e formal.<br />
A montanhista Aretha Duarte é outra mulher cuja força, que<br />
ela chama de PIB (Poder Interno Bruto), a levou, literalmente,<br />
ao topo do mundo: em maio de 2021, após uma jornada<br />
de um ano para conseguir recursos financeiros para a expedição,<br />
ela se tornou a primeira negra latino-americana a<br />
alcançar o cume do Monte Everest. E o que dizer do Poder<br />
Interno Bruto da ativista indígena Txai Suruí, que discursou<br />
para líderes mundiais na 26ª Conferência das Nações Unidas<br />
sobre as Mudanças Climáticas (COP26)? Na infância,<br />
com a família jurada de morte por madeireiros e grileiros, ia<br />
para a escola acompanhada por seguranças armados. Txai<br />
inaugura a seção de entrevistas Q&A Etc., onde fala sobre<br />
sua vida no ativismo.<br />
Outro brasileiro que se destaca por sua determinação é o jogador<br />
de curling Sérgio Mitsuo Vilela, primeiro personagem<br />
da seção Com a Palavra..., que traz textos em primeira pessoa.<br />
Ele descobriu o esporte em 2010, assistindo à Olimpíada de<br />
Inverno pela TV, e se encantou. Em depoimento à Et cetera,<br />
o advogado conta sua trajetória de espectador a jogador da<br />
seleção brasileira de curling.<br />
O mundo das artes vem muito bem representado nesta edição.<br />
O cantor e compositor Péricles, que alcançou a fama com<br />
o grupo de pagode Exaltasamba, desenhou uma carreira solo<br />
de sucesso com música boa e visão de futuro. Com 40 anos<br />
de vida dedicados à cultura brasileira, o gestor cultural Bruno<br />
Assami soma conquistas profissionais como a Unibes Cultural,<br />
entidade que ajudou a criar e dirige atualmente. E o cineasta<br />
mineiro Gabriel Martins, que produz cinema de qualidade<br />
em Contagem, na Grande Belo Horizonte, é o convidado<br />
de Guarde Este Nome, seção que vai destacar jovens talentos.<br />
Em suma, é um encontro de grandes brasileiros, com excelentes<br />
histórias e bossa de sobra.<br />
Boa leitura!<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 23<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 22
[Q&A]<br />
Foto: reprodução Instagram<br />
“Não sou a Greta<br />
da Amazônia”<br />
Aos 25 anos, a ativista Walelasoetxeige Paiter Bandeira Suruí, conhecida por Txai<br />
Suruí, já discursou para os principais líderes do mundo, entre eles os presidentes<br />
Joe Biden, dos Estados Unidos, e Emmanuel Macron, da França, e o primeiro-ministro<br />
britânico, Boris Johnson. Desde que falou na abertura da 26ª Conferência<br />
das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26), em novembro do ano<br />
passado, ganhou projeção internacional e viu sua vida mudar completamente. Mas<br />
a estudante do último semestre da Faculdade de Direito da Universidade Federal<br />
de Rondônia (Unir) tira de letra, afinal seu nome significa “mulher inteligente” em<br />
tupi-mondé, a língua falada pelos paiter-suruí.<br />
Como foi sua infância?<br />
Eu cresci na minha aldeia, na Terra<br />
Indígena 7 de Setembro, e na Terra Indígena<br />
Uru-eu-wau-wau. As crianças<br />
se juntavam para brincar com arco e<br />
flecha, jogar futebol, andar na floresta,<br />
tomar banho de cachoeira e pescar.<br />
Cresci nadando em rios e adoro fazer<br />
isso. Tenho saudades de quando meu<br />
avô, meu pai e tios contavam histórias<br />
aos pequenos. Quando a noite estava<br />
fria, fazíamos fogueiras e eles falavam<br />
sobre nosso povo, nossa cultura e sobre<br />
os espíritos da floresta.<br />
Como você entrou no ativismo?<br />
Minha mãe é fundadora da ONG Kanindé,<br />
uma organização que há 30 anos<br />
trabalha com ações de fiscalização da<br />
terra indígena, acompanhamento de<br />
políticas públicas e defesa do meio ambiente.<br />
Por causa dos meus pais, ambos<br />
ativistas, cresci nesse meio, e, aos<br />
7 anos, já estava falando ao microfone,<br />
em eventos.<br />
Quais suas memórias mais<br />
marcantes dessa época?<br />
Minha família toda era jurada de morte<br />
por madeireiros e grileiros. Dos 12 aos<br />
14 anos, fui acompanhada pela Força<br />
Nacional. Ia pra escola com seguranças<br />
armados. As outras crianças tinham<br />
medo de mim. No fundo, passamos a<br />
vida inteira sob risco. Há alguns meses,<br />
tivemos uma invasão de grileiros<br />
e madeireiros aqui em Rondônia. Deram<br />
tiros nas placas da Funai que indicam<br />
que é território indígena e dispararam<br />
em direção à aldeia, onde há<br />
muitas crianças. É difícil para jovens<br />
e crianças indígenas crescerem constantemente<br />
ameaçados. Toda criança<br />
indígena cresce ameaçada, é traumatizante<br />
isso.<br />
Como foi o convite para falar na<br />
abertura da COP26?<br />
Os ativistas brasileiros se organizaram<br />
para levar um grupo de jovens lideranças,<br />
e fui convidada. Eu já trabalhava<br />
na Kanindé como coordenadora e na<br />
área jurídica e sou também conselheira<br />
da WWF. Lá em Glasgow, dois dias<br />
antes da abertura, minha amiga Paloma<br />
Costa, que é conselheira do secretário-geral<br />
da ONU, me convidou para<br />
falar diante de “alguns líderes”. Aceitei,<br />
claro, era uma chance de mostrar nossa<br />
luta e nossas reivindicações. Um dia<br />
antes, a Paloma me avisou que eu ia<br />
fazer a abertura. Quase não acreditei!<br />
Pensei que fosse falar em uma reunião<br />
fechada, mas era para falar diante dos<br />
principais líderes do mundo, e, ainda<br />
por cima, em inglês!<br />
A repercussão do seu discurso foi<br />
enorme. Você esperava por isso?<br />
Sinceramente, não esperava. Pouco<br />
depois do discurso, eu já estava sendo<br />
procurada pela BBC, pelo The New York<br />
Times, por jornalistas do mundo todo.<br />
Essa visibilidade é importante. Ninguém<br />
lá fora sabe o que acontece na<br />
Amazônia, nem aqui no Brasil sabem.<br />
Tudo é muito diluído, superficial, distante.<br />
A visibilidade fortalece nossas<br />
denúncias também. Ganhamos apoios<br />
e fizemos contatos importantes.<br />
Em muitas reportagens,<br />
sobretudo no exterior, você foi<br />
chamada de “Greta Thunberg<br />
indígena”. O que acha dessa<br />
comparação?<br />
Não gosto. Não sou a Greta da Amazônia,<br />
sou a Txai. Conheci a Greta na<br />
COP, ela é uma pessoa doce, atenciosa,<br />
me pareceu realmente preocupada<br />
e sensibilizada com a situação dos<br />
indígenas. Respeito o trabalho dela, é<br />
muito importante, mas, no nível local,<br />
nossa luta é diferente. No nível global, é<br />
a mesma batalha, nós duas lutamos por<br />
um mundo melhor.<br />
Aqui no Brasil, você já foi<br />
chamada de “índia de iPhone”.<br />
Você se incomoda com essas<br />
provocações?<br />
Tem muito estereótipo, nos veem<br />
como se fôssemos “atrasados” ou “ingênuos”.<br />
Até as pessoas informadas<br />
e bem-intencionadas cometem deslizes,<br />
como usar a palavra “índio”, por<br />
exemplo, quando há anos a designação<br />
correta é “indígena”. Ou “tribo”<br />
em vez de “etnia”. Mesmo quem quer<br />
ajudar tem conceitos preconcebidos e<br />
estereótipos. Ninguém aqui quer espelhinho.<br />
Nós queremos desenvolvimento<br />
sustentável, paz e uma vida digna.<br />
Para falar a verdade, comprei meu<br />
primeiro iPhone lá em Glasgow, que é<br />
mais barato. Esse rótulo bobo não me<br />
incomoda, sou uma indígena de iPhone<br />
mesmo. Ajuda no meu trabalho, que<br />
envolve comunicação e gestão de redes<br />
sociais. É uma ferramenta, só isso.<br />
O que você pensa dessa recente<br />
emergência de pensadores<br />
indígenas, como Ailton Krenak e<br />
Davi Kopenawa?<br />
Ailton Krenak não é só um líder e pensador<br />
indígena, é um dos maiores filósofos<br />
do Brasil. Acho importantíssimo<br />
que ele e outros pensadores indígenas<br />
estejam sendo ouvidos. É preciso reconhecer<br />
o saber milenar indígena. Ele<br />
está espalhando esse saber, esse modo<br />
de ver o mundo. É preciso descolonizar,<br />
recontar nossa história, a nossa versão.<br />
O que é preciso fazer para<br />
melhorar a vida dos povos<br />
indígenas no Brasil?<br />
Tudo no sentido contrário do que estamos<br />
fazendo hoje. O plano oficial é<br />
acabar com o desmatamento até 2030.<br />
É difícil acreditar que isso vá acontecer,<br />
basta ver os atuais índices de<br />
desmatamento. Os povos indígenas<br />
representam 6% da população mundial<br />
e sustentam 80% das florestas. As<br />
terras indígenas são ilhas de florestas<br />
cercadas por desmatamentos, invasões<br />
de grileiros e madeireiros. É preciso<br />
demarcar mais terras, proteger mais a<br />
floresta. Temos de fortalecer leis, decretos<br />
e órgãos ambientais, usar mais<br />
a inteligência e a tecnologia a favor da<br />
floresta, não contra. A política ambiental<br />
tem que ser encarada de forma suprapartidária,<br />
como um projeto de futuro<br />
para o país, não de um candidato<br />
ou de um partido.<br />
Entrevista concedida a Diego Braga Norte<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 25<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 24
[COM A PALAVRA…]<br />
“Foi paixão<br />
à primeira<br />
pedrada”<br />
Em cinco anos,<br />
o advogado<br />
Sérgio Mitsuo<br />
Vilela passou de<br />
telespectador<br />
descobrindo<br />
o curling nas<br />
Olimpíadas de<br />
Inverno a jogador<br />
da seleção<br />
brasileira do<br />
esporte. Neste<br />
depoimento à<br />
Et cetera, ele<br />
descreve sua<br />
trajetória<br />
Em 2010, acompanhei as transmissões<br />
da Olimpíada de Inverno em Vancouver,<br />
no Canadá, e fiquei hipnotizado<br />
pelo curling. Eu tinha 29 anos. Naquele<br />
mesmo ano, uma campanha publicitária<br />
trouxe o time da Noruega ao Brasil,<br />
e a empresa montou uma pista de curling<br />
no Shopping Eldorado [em São Paulo].<br />
Fiquei seis horas na fila para jogar<br />
curling pela primeira vez na vida.<br />
Foi paixão à primeira pedrada. Quando<br />
era jovem, fui tetracampeão brasileiro<br />
de kenjutsu, aquela esgrima de samurais<br />
com espadas de bambu, mas essa<br />
experiência pouco adiantou no curling.<br />
Vendo pela TV, parece superfácil, mas<br />
a pedra de curling é um bloco de granito<br />
de 20 quilos. É como arremessar<br />
uma pia de cozinha numa pista de gelo<br />
com precisão suficiente para fazê-la<br />
parar em um local específico. No arremesso,<br />
a pedra gira em torno de si<br />
e acaba fazendo curvas, desviando do<br />
alvo <strong>–</strong> daí o nome no esporte vir de<br />
curl [girar, em inglês]. A vassoura serve<br />
para criar mais atrito na pista de gelo.<br />
Com o atrito provocado pela vassoura,<br />
a pedra diminui sua velocidade, gira<br />
menos e segue uma trajetória mais<br />
precisa. Coordenar a precisão do arremesso<br />
e corrigir sua rota com as vassouras<br />
é superdifícil! Mas essa mistura<br />
de gelo com força, precisão e técnica<br />
me cativou.<br />
Três anos depois dessa experiência<br />
no shopping, minha mulher foi transferida<br />
para o banco UBS de Zurique e<br />
nos mudamos para a Suíça. Entrei no<br />
doutorado em direito tributário internacional<br />
na Universidade de Zurique<br />
e descobri que a própria universidade<br />
tinha pista e uma equipe de curling.<br />
Comecei a frequentar o local e fiz um<br />
curso de iniciação lá mesmo. Aprendi<br />
as regras, técnicas, história do esporte,<br />
macetes e a ética do jogo. Pouca gente<br />
sabe, mas o curling é um esporte<br />
tremendamente social. Primeiro, só se<br />
joga em equipes formadas por quatro<br />
pessoas, em modalidades masculina,<br />
feminina ou mista. E a camaradagem<br />
já começa aí. Outra coisa é o incentivo<br />
à lealdade e à honestidade. Os atletas<br />
sinalizam suas próprias faltas, quando<br />
ultrapassam a faixa na hora de jogar a<br />
pedra, por exemplo. Mas o mais legal é<br />
a tradição de os ganhadores pagarem<br />
uma rodada de bebida para o time que<br />
perdeu. Na hora do jogo, todo mundo<br />
quer ganhar, claro, mas, quando termina,<br />
acaba a rivalidade e todos vão pro<br />
bar. Essa confraternização é mantida<br />
até em competições internacionais, inclusive<br />
as Olimpíadas de Inverno.<br />
Depois de algum tempo jogando com<br />
o pessoal da universidade, entrei em<br />
contato com a CBDG [Confederação Brasileira<br />
de Desportos no Gelo]. Disse que<br />
era praticante, treinava regularmente<br />
e gostaria de representar o Brasil em<br />
competições internacionais. Fui muito<br />
bem recebido, e me convidaram para<br />
participar da seletiva para o campeonato<br />
pan-americano de 2015. Passei<br />
na seletiva, realizada em Vancouver,<br />
e entrei na equipe brasileira de curling.<br />
Desde então, já participei de três<br />
campeonatos mundiais e quatro pan-<br />
-americanos. Deveriam ter sido cinco<br />
campeonatos mundiais, mas os dois<br />
últimos foram cancelados em função<br />
da pandemia.<br />
Em 2019, ganhamos da Dinamarca,<br />
que é uma das melhores equipes do<br />
mundo. Essa vitória foi um marco para<br />
o curling brasileiro, um sinal de que<br />
estamos no caminho certo. Temos a<br />
meta de classificar o Brasil para as<br />
Olimpíadas de Inverno de 2030. O objetivo<br />
é realista, mas sabemos da dificuldade.<br />
Não há tantos times de curling<br />
nas Américas, mas a gente disputa as<br />
duas vagas existentes com Canadá e<br />
Estados Unidos, potências do esporte.<br />
Hoje, a Federação Mundial de Curling<br />
tem 64 membros e o Brasil está na 30ª<br />
posição do ranking. Como são só dez<br />
vagas para as Olimpíadas, temos de<br />
melhorar ainda.<br />
A inauguração em São Paulo da Arena<br />
Ice Brasil, voltada para esportes de<br />
inverno, foi um passo enorme. Finalmente<br />
temos uma pista de curling no<br />
país. Antes, o Campeonato Brasileiro<br />
de Curling era disputado no Canadá, e<br />
por isso era muito restrito aos brasileiros<br />
que moram no exterior. Agora ele<br />
será disputado no Brasil, e isso é uma<br />
grande conquista. Podemos formar<br />
jogadores, manter uma rotina de treinamentos<br />
e competições. Temos cerca<br />
de 50 atletas federados em várias categorias,<br />
de jovens a adultos. Na Escócia,<br />
onde o esporte foi criado, joga-se<br />
curling há 500 anos. No Brasil, começamos<br />
há muito pouco tempo, mas a<br />
pista de São Paulo vai ajudar muito na<br />
formação de atletas.<br />
Hoje trabalho no banco Julius Baer,<br />
sou advogado e presto consultoria a<br />
clientes que querem investir no Brasil.<br />
O curling já deixou de ser um hobby<br />
ocasional para virar uma paixão <strong>–</strong> treino<br />
toda semana. Estamos fazendo um<br />
trabalho de formiguinha, com ações<br />
para divulgar o esporte e atrair mais<br />
gente. É muito fácil conseguir patrocínios<br />
para o futebol, mas para o curling<br />
é outra história. Eu me sinto como um<br />
desbravador e embaixador do curling,<br />
sou um dos investidores privados<br />
que ajudaram a construir a Arena Ice<br />
Brasil. E já iniciei meu filho no esporte.<br />
Comecei a jogar regularmente com<br />
mais de 30 anos, mas ele começou<br />
aos 3. Hoje ele tem 7 anos e já participa<br />
de competições. Quem sabe ele<br />
não estará com a camisa do Brasil nas<br />
Olimpíadas de 2030?<br />
Depoimento dado a Diego Braga Norte<br />
Foto: reprodução Instagram<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 26
[GUARDE ESTE NOME]<br />
Gabriel<br />
Martins:<br />
de Contagem para<br />
o mundo<br />
Foto: Isabela Martins<br />
O currículo do cineasta Gabriel Martins<br />
já soma cinco curtas-metragens e<br />
três longas, incluindo Marte Um, que estreou<br />
em janeiro no Festival Sundance,<br />
maior evento de cinema independente<br />
do mundo. Nada mal para o jovem de<br />
35 anos oriundo da periferia de Contagem,<br />
na Grande Belo Horizonte, em Minas<br />
Gerais. Na comunidade em que ele<br />
cresceu, não havia sequer uma sala de<br />
cinema, e foi pela TV que ele descobriu<br />
sua paixão pelos filmes. “Eu era pequeno<br />
e já me interessava por aqueles<br />
programas de making of, que mostram<br />
os bastidores. Vibrava vendo como as<br />
pessoas faziam filmes.” Aos 13 anos, foi<br />
levado pela mãe à Mostra de Cinema<br />
de Tiradentes, onde assistiu a Bicho de<br />
Sete Cabeças. “Eu nem sabia que existiam<br />
filmes brasileiros!” A partir dali,<br />
seu destino no cinema estava traçado.<br />
“Nunca mais desejei fazer outra coisa<br />
na vida”, diz. Preencheu cadastro nas<br />
videolocadoras do bairro e devorou,<br />
por anos a fio, pencas de fitas e DVDs.<br />
Gabriel integrou a primeira turma do<br />
primeiro curso de cinema em Belo Horizonte,<br />
no Centro Universitário UNA,<br />
inaugurado em 2006. Foi lá que ele conheceu<br />
Maurílio Martins, outro aluno<br />
que havia crescido na periferia de Contagem.<br />
Três anos depois, a dupla finalizava<br />
seu primeiro curta, Filme de Sábado,<br />
com Gabriel na direção e Maurílio<br />
responsável pela fotografia e câmera.<br />
O filme de 18 minutos teve um orçamento<br />
pra lá de modesto — 500 reais,<br />
100% bancados pelo diretor <strong>–</strong> e conta a<br />
história de um garoto que luta contra<br />
o tédio de um sábado nublado na periferia<br />
de Contagem e, para se divertir,<br />
resolve criar uma praia cenográfica no<br />
quintal de casa.<br />
Pouco tempo depois, Gabriel, Maurílio,<br />
Thiago Macêdo Correia e André<br />
Novais Oliveira fundaram a produtora<br />
Filmes de Plástico, que hoje já tem<br />
em seu portfólio 15 curtas, seis longas<br />
e dezenas de prêmios nacionais e internacionais.<br />
“Fui muito influenciado<br />
pelo cinema marginal brasileiro e<br />
aquela galera da Boca do Lixo, Rogério<br />
Sganzerla, Carlos Reichenbach, Carlos<br />
Alberto Prates Correia, Ana Carolina.<br />
Cineastas que me ensinaram a potência<br />
de fazer algo na nossa língua, que<br />
retrata a nossa vida”, explica. E, de fato,<br />
os filmes de Gabriel Martins transbordam<br />
brasilidade (e, no sotaque de alguns<br />
atores, mineirismo), com dramas<br />
de personagens e famílias brasileiras.<br />
A realidade em sua obra é tão presente<br />
que muitas delas situam-se transitando<br />
por limites difusos entre documentário<br />
e ficção. Alguns atores interpretam a si<br />
mesmos, todas as locações são reais e<br />
algumas cenas são quase registros jornalísticos<br />
ou documentais. “O cinema<br />
do Eduardo Coutinho sempre me fascinou<br />
muito, e, em alguns sentidos, ele é<br />
uma das minhas maiores influências”,<br />
diz Gabriel, em referência ao renomado<br />
documentarista brasileiro.<br />
O diretor mineiro leva a sério a máxima<br />
de Tolstói “Se queres ser universal,<br />
começa por pintar a tua aldeia”.<br />
Todos os seus filmes são gravados na<br />
periferia de BH, muitos dentro de seu<br />
próprio bairro em Contagem, Milanez.<br />
Além de atores amadores, ele convoca<br />
vizinhos, comerciantes locais e amigos<br />
para participar. “Nunca trabalhei com<br />
preparador de elenco. Eu mesmo faço<br />
o casting, escolhendo e ensaiando com<br />
todo mundo. Gosto muito dessa parte”,<br />
conta. Cícero Lucas, adolescente<br />
que protagoniza Marte Um, teve sua<br />
atuação elogiada em Sundance e em<br />
críticas especializadas internacionais.<br />
O jovem foi descoberto em uma roda<br />
de samba, tocando percussão. “Quando<br />
minha mulher [Rimenna Procópio],<br />
que é diretora de arte do filme, bateu<br />
o olho nele, disse que era exatamente<br />
a figura que veio em sua cabeça<br />
quando leu o roteiro.”<br />
Depois de realizar produções de baixíssimo<br />
orçamento, a turma da Filmes<br />
de Plástico passou a se inscrever nos<br />
editais públicos de fomento à cultura.<br />
“Praticamente todos os longas foram<br />
feitos com o dinheiro de editais, até<br />
os mais recentes foram filmados com<br />
verba que tinha sido aprovada lá atrás,<br />
mas demorou para ser liberada.” Hoje,<br />
por causa de cortes maciços no orçamento<br />
da cultura, alterações na Lei<br />
Rouanet e fim de vários programas de<br />
financiamento, a produtora está com<br />
diversos projetos parados. No entanto,<br />
a boa recepção de Marte Um em Sundance<br />
pode virar o jogo. “Fiquei muito<br />
surpreso com a quantidade de reportagens<br />
sobre o filme. O volume de<br />
repercussões positivas me espantou.”<br />
Ele não pode dar detalhes, mas revela<br />
que atualmente negocia com grupos de<br />
streaming internacionais. Vem trem bão<br />
por aí, sô.<br />
Foto: reprodução mídias sociais<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 29<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 28
Nome: Aline Alves Midlej<br />
Idade: 39 anos<br />
Profissão: jornalista<br />
Cidade onde nasceu: São Luís/MA<br />
Credibilidade<br />
com<br />
personalidade<br />
Por Daniela Macedo<br />
Impulsionada pelo propósito de humanizar o<br />
noticiário, a jornalista Aline Midlej imprime<br />
empatia e carisma ao Jornal das Dez, principal<br />
telejornal da GloboNews<br />
Foto: Wanezza Soares<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 31<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 30
Jornalismo mais<br />
humano<br />
Desde que se formou, em 2005, pela<br />
Universidade Metodista de São Paulo,<br />
Aline tem como missão humanizar o<br />
noticiário, mostrando que o papel do<br />
jornalista vai além da narração fria dos<br />
fatos. “Quando eu me preparo para dar<br />
uma notícia, reflito sobre a história que<br />
vou contar, sobre o impacto na vida<br />
dos envolvidos e da sociedade”, afirma.<br />
“Acho que o jornalismo brasileiro cresceu<br />
muito com a cobertura da pandemia,<br />
tirando a capa do distanciamento<br />
e do formalismo, que, pra mim, não têm<br />
nada a ver com credibilidade. Credibilidade<br />
tem a ver com verdade, com apuração,<br />
com compromisso”, pontua.<br />
A saúde mental de uma profissional<br />
cuja rotina envolve assuntos como pandemia,<br />
violência urbana, injustiça social<br />
e guerra <strong>–</strong> e absorve os sentimentos<br />
envolvidos nesse fluxo de acontecimentos<br />
impactantes <strong>–</strong> requer cuidados<br />
redobrados. Ela não abre mão dos<br />
exercícios físicos (ioga e musculação),<br />
medita e respira. Sim, respira. “Parece<br />
óbvio, mas não é. Várias vezes ao dia,<br />
paro para respirar fundo três vezes.<br />
Isso traz a gente de volta ao momento<br />
presente, ajuda a tomar decisões e a se<br />
relacionar melhor com as outras pessoas”,<br />
diz. Ela também recorre a mecanismos<br />
mentais de absorção das notícias.<br />
“Acho que o jornalismo brasileiro cresceu muito com a<br />
cobertura da pandemia, tirando a capa do distanciamento<br />
e do formalismo, que, pra mim, não têm nada a ver com<br />
credibilidade. Credibilidade tem a ver com verdade, com<br />
apuração, com compromisso”<br />
E<br />
Apresentando o J10, na GloboNews | foto: reprodução Instagram<br />
m janeiro deste ano, a jornalista Aline Midlej chorou ao vivo durante uma entrevista no Jornal das Dez (J10), exibido pela<br />
GloboNews. A apresentadora conversava por vídeo com o médico Rodolfo Aparecido da Silva, que perdeu a filha de 7<br />
anos para a Covid-19. A tela dividida mostrava, além do entrevistado, cenas da pequena Alícia, falecida em 2021. Quando<br />
a transmissão volta para o estúdio, o espectador encontra Aline emocionada, enxugando as lágrimas. “Eu sinto muito pelo seu<br />
relato. A sua filha tem a idade da minha sobrinha.” Faz uma pausa, respira fundo. “Desculpe”, diz, e então segue a entrevista<br />
sobre o início do processo de vacinação nas crianças.<br />
A atitude empática retrata a personalidade desta jornalista com 17 anos de carreira, reconhecida não só pelo profissionalismo<br />
mas também pelo carisma e espontaneidade. E não para por aí. Seu lado sensível, que a leva a se envolver com os fatos que<br />
noticia, segue fora do estúdio. “Falo com ele [Rodolfo Silva] até hoje pelo WhatsApp”, conta. Aline mantém contato com algumas<br />
vítimas de tragédias que cruzaram seu caminho. Pergunta como elas estão, comenta as fotos que enviam. “Não sei se isso faz<br />
alguma diferença pra elas, mas quero que saibam que a gente se importa”, diz Aline. “Às vezes, eu me sinto estranha por ter, de<br />
alguma forma, invadido a vida dessas pessoas que abrem suas dores pra gente.”<br />
“Eu me envolvo, isso é uma característica<br />
minha. No entanto, tenho que ter<br />
uma ‘gavetinha mental’, onde guardo<br />
as questões relacionadas ao trabalho.<br />
Claro que a gavetinha fica entreaberta,<br />
e eu penso sobre aqueles assuntos fora<br />
do trabalho, mas a missão de informar,<br />
que me move nessa profissão, me dá<br />
ferramentas para entender o que me<br />
pertence e o que não me pertence”, explica.<br />
“Quando as pessoas abrem espaço<br />
na vida delas pra mim e eu sinto que<br />
não pude fazer o que gostaria, procuro<br />
pensar na missão jornalística: não estou<br />
aqui para melhorar a vida das pessoas<br />
diretamente, mas, sim, para fazer<br />
do jornalismo um meio de aumentar o<br />
pensamento crítico da sociedade brasileira,<br />
para que a gente tenha um país<br />
melhor para viver. Então, de alguma<br />
forma, estou ajudando”, diz Aline.<br />
A busca pelo equilíbrio emocional é um<br />
desafio ininterrupto. Em fevereiro, logo<br />
após a tragédia das chuvas que matou<br />
mais de 200 pessoas em Petrópolis, na<br />
região serrana do Rio, Aline apresentou<br />
o J10 ao vivo da cidade fluminense,<br />
ainda durante o resgate de corpos nos<br />
escombros deixados pela enchente e<br />
deslizamentos de terra. Teve pouco<br />
tempo para absorver o cenário devastador<br />
que encontrou ao chegar à cidade,<br />
às 20h30, antes de o jornal entrar<br />
no ar, às 22h. “Foi tudo no improviso.<br />
Estava tudo escuro, eu estava sem TP<br />
[teleprompter, que exibe o texto na câmera,<br />
para ser lido pelo apresentador], sem nada.<br />
Tive menos de duas horas pra absorver<br />
aquilo tudo e falar sobre um tema tão<br />
delicado. Como usar sentimento sem<br />
ser piegas ou sensacionalista, mas ao<br />
mesmo tempo sem transformar aquela<br />
tragédia em meros números? Como<br />
fazer a conexão do espectador, que<br />
está em casa, com aquela realidade?”,<br />
diz Aline. Ao final do dia de trabalho, a<br />
tal gavetinha mental ficou mesmo entreaberta:<br />
“Passei dias sonhando com a<br />
tragédia em Petrópolis, com as pessoas<br />
que conheci lá”, conta. “Sempre me<br />
pergunto se honrei aquelas vítimas,<br />
sabe? Por mais que estivesse ali de coração,<br />
ao final do dia voltei pra minha<br />
casa, pra minha cama quente. Por mais<br />
que eu me envolva com projetos sociais,<br />
sempre volto pro meu conforto. E<br />
isso é mais difícil pra mim do que lidar<br />
com o ato de noticiar.”<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 33<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 32
Sangue nos olhos<br />
Incomodada<br />
Aline Midlej começou a carreira como estagiária na TV Globo<br />
e já passou pela Rede Record, TV Brasil e Band, onde<br />
comandou o Café com Jornal, antes de entrar para o time da<br />
GloboNews, em 2016 <strong>–</strong> primeiro no Edição das 10, dividindo<br />
a apresentação do programa com a jornalista Raquel Novaes,<br />
e, desde setembro de 2021, à frente do J10. Na noite de 18 de<br />
setembro de 2021, estreou como apresentadora do time de<br />
plantonistas do Jornal Nacional, o maior telejornal do país.<br />
Aos 22 anos, quando ainda era produtora da TV Record, teve<br />
o primeiro vislumbre da escalada que poderia experimentar<br />
na carreira. Ela foi chamada para integrar a equipe da repórter<br />
Adriana Araújo em uma grande matéria sobre desigualdade<br />
social. Era sua primeira reportagem especial. Passava<br />
o dia pensando no tema, ia falar com as pessoas na rua fora<br />
do horário de trabalho. Adriana avisou que queria gravar<br />
uma passagem, jargão jornalístico para o momento em que<br />
o repórter aparece diante da câmera, em uma varanda de um<br />
dos edifícios luxuosos do bairro do Morumbi, em São Paulo,<br />
com a comunidade de Paraisópolis ao fundo. Para gravar<br />
a passagem, que retrataria dois extremos do Brasil, Aline<br />
precisava convencer um morador a ceder o espaço à equipe<br />
de TV e seus equipamentos. “Fui até o prédio que ela havia<br />
indicado. A cada morador que chegava, eu me apresentava<br />
e explicava a situação. Fiquei umas cinco horas na porta do<br />
prédio até convencer uma moradora a deixar a gente gravar<br />
na varanda dela. Quando cheguei à redação, superanimada,<br />
falei: ‘Adriana, vamos gravar!’ E ela disse: ‘Não acredito<br />
que você conseguiu!’ Aquilo me marcou muito, e foi minha<br />
grande virada”, conta.<br />
Atualmente, a âncora do J10 se dedica a imprimir sua personalidade<br />
ao principal telejornal da GloboNews. Lê jornais logo<br />
que acorda e passa o dia se atualizando entre uma e outra<br />
tarefa do dia a dia, e, às 13h, mergulha no noticiário para a<br />
reunião de pauta, às 16h, que vai definir os assuntos que terão<br />
espaço no J10. Nas oito horas em que está na emissora, dedica<br />
toda a sua energia ao trabalho, principalmente pensando em<br />
caminhos para que o telejornal tenha uma identidade própria<br />
da “gestão Aline”. “É o jornal mais antigo e tradicional do canal,<br />
e que já passou por muitas fases. A gente quer sempre<br />
trazer frescor, um jeito ‘solar’, um jeito J10 de noticiar, que<br />
faça o espectador querer saber qual vai ser nosso olhar pra<br />
determinado assunto”, diz Aline.<br />
Apresentando o Café com Jornal, na<br />
Band | foto: reprodução Instagram<br />
“A percepção de negritude não estava nem na minha<br />
família, onde a maioria tem a pele clara. Minha irmã tem<br />
a pele mais escura e o cabelo liso, e eu já tenho a pele um<br />
pouco mais clara e o cabelo enrolado. É uma construção<br />
de identidade complexa e, ao mesmo tempo, muito bonita.<br />
Hoje, tenho muito orgulho da minha identidade”<br />
Não é só a vontade de se destacar que<br />
impulsiona Aline: ela é motivada por<br />
propósitos. Em suas redes sociais, a<br />
jornalista se autodefine “incomodada”.<br />
Uma mulher desperta para o que está<br />
acontecendo ao redor, sempre observando<br />
tudo, segundo ela. “Esse interesse<br />
pelo externo, por compreender<br />
as realidades diferentes da minha, é o<br />
que me move. E não só nas questões<br />
ligadas a justiça social, mas na complexidade<br />
da nossa sociedade”, explica.<br />
Essa inquietação para entender e<br />
transformar o mundo lhe indicava diferentes<br />
caminhos na juventude, quando<br />
ainda escolhia entre seguir carreira<br />
no direito, na diplomacia ou no jornalismo.<br />
“Essas três áreas se encontram<br />
num ponto comum que envolve arbitrar,<br />
lidar com questões do mundo. São<br />
carreiras que, em alguma medida, têm<br />
certa dose de idealismo.” A decisão veio<br />
quando ela aliou o propósito ao dom<br />
para a comunicação, identificado logo<br />
cedo pela família e professores. “Nas<br />
reuniões de pais na escola, os professores<br />
diziam que ela gostava de liderar,<br />
de argumentar, de falar, de comentar<br />
tudo. Em casa, ela fingia que os brinquedos<br />
eram máquinas de escrever,<br />
ficava datilografando, brincando com<br />
envelopes e papéis”, conta Cida, mãe de<br />
Aline. “Ela sempre foi muito determinada,<br />
e resolveu seguir esse caminho<br />
lindo, que nos dá tanto orgulho”, derrete-se<br />
a mãe da jornalista.<br />
Esse propósito a acompanha quando<br />
ela reconhece seu importante papel de<br />
representatividade, como uma mulher<br />
miscigenada em posição de destaque.<br />
Aline é a caçula dos três filhos de um<br />
casal de nordestinos: Cida, dona de<br />
casa pernambucana, e Ronaldo, engenheiro<br />
nascido no sul da Bahia, filho de<br />
um imigrante libanês que se casou com<br />
uma baiana (daí o sobrenome Midlej).<br />
Nasceu no dia 4 de fevereiro de 1983<br />
em São Luís, durante o curto período<br />
em que a família morou no Maranhão.<br />
Embora tenha se mudado para São<br />
Paulo quando tinha 4 anos, ela cresceu<br />
em meio às tradições nordestinas<br />
da família, mantendo vínculo com os<br />
parentes na Bahia e em Pernambuco <strong>–</strong><br />
até a adolescência, chamava a mãe de<br />
“mainha”.<br />
Os Midlej moravam em Perdizes, bairro<br />
de classe média alta, e Ronaldo fazia<br />
questão de investir na educação dos filhos,<br />
que frequentavam bons colégios.<br />
“Eu tinha um pouco de receio de dizer<br />
que era nordestina porque não tinha<br />
nenhum outro nordestino na minha<br />
escola. E havia um certo preconceito<br />
dos paulistas contra os nordestinos naquela<br />
época”, lembra. Nos anos 1980,<br />
muitos paulistas usavam a palavra<br />
“baiano” de maneira pejorativa. “Aquilo<br />
me causava certa confusão. Eu pensava:<br />
‘Como assim? Baiano é meu pai’”,<br />
conta, entre risos.<br />
Com a chegada à pré-adolescência <strong>–</strong> e<br />
o consequente despertar da autoestima,<br />
da comparação do próprio corpo<br />
com o das amigas <strong>–</strong>, Aline passou a<br />
se reconhecer negra. “Eram detalhes<br />
da autoimagem, como o cabelo pós-<br />
-praia, por exemplo, que eu só comecei<br />
a perceber nessa época”, conta. A<br />
miscigenação familiar, que implicava<br />
diferentes tons de pele e tipos de cabelo,<br />
contribuiu para que essa descoberta<br />
fosse tardia. “A percepção de negritude<br />
não estava nem na minha família, onde<br />
a maioria tem a pele clara. Minha irmã<br />
tem a pele mais escura e o cabelo liso, e<br />
eu já tenho a pele um pouco mais clara<br />
e o cabelo enrolado. É uma construção<br />
de identidade complexa e, ao mesmo<br />
tempo, muito bonita. Hoje, tenho muito<br />
orgulho da minha identidade.”<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 35<br />
Com os irmãos | foto: reprodução Instagram<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 34
Raízes africanas<br />
Foi como repórter que Aline teve a<br />
oportunidade de estreitar os laços com<br />
sua ancestralidade. Por quase dois<br />
anos, em 2009 e 2010, viajou por mais<br />
de 20 países africanos produzindo a<br />
série de reportagens Nova África, pela<br />
TV Brasil. Enquanto contava a história<br />
daqueles países sob o ponto de vista<br />
dos africanos, Aline mergulhou na realidade<br />
do continente. Visitou campos<br />
de refugiados, esteve na guerra civil<br />
no Congo, entrevistou a ambientalista<br />
queniana Wangari Muta Maathai, primeira<br />
mulher africana a ganhar o Nobel<br />
da Paz, em 2004.<br />
Se, na infância, a origem nordestina<br />
era alvo de preconceito, foi na vida<br />
adulta que Aline lidou com o racismo.<br />
“Sempre foram atitudes sutis, mas<br />
não menos dolorosas. Se eu alisava o<br />
cabelo, por exemplo, um diretor elogiava:<br />
‘Ficou melhor assim’”, lembra.<br />
Hoje, Aline sente-se segura para reagir<br />
“com uma boa risada”, garante, a<br />
comentários desse tipo. E mais: abraça<br />
sua ancestralidade inclusive quando<br />
veste branco em homenagem ao dia de<br />
Oxalá. Seguidora do candomblé, a âncora<br />
do J10 exibe um look 100% branco<br />
(e sempre impecável) às sextas-feiras.<br />
“Precisamos reforçar o respeito e a tolerância<br />
religiosa”, diz. “E essa decisão<br />
não tem a ver com afrontar, tem a ver<br />
com ser eu mesma. Quando visto branco<br />
às sextas, estou sendo a versão mais<br />
plena da Aline, que é um ser complexo,<br />
que traz muitas coisas em si.” Sendo<br />
sua versão mais verdadeira para todo o<br />
Brasil, a jornalista contribui ainda mais<br />
com seu papel na representatividade.<br />
“Recebo fotos de meninas em frente<br />
à TV, miscigenadas como eu, que não<br />
sabem muito bem o que são. Também<br />
recebo perguntas dos espectadores sobre<br />
vestir branco, e gosto de responder<br />
para explicar. Acho importante levar<br />
informação e ajudar a quebrar o preconceito<br />
decorrente da ignorância com<br />
as religiões de matriz africana.”<br />
Uma Aline só<br />
Aline é casada com o diretor de TV e documentarista Rodrigo Cebrian, e o interesse<br />
mútuo se deu, em um primeiro momento, graças à personalidade espontânea<br />
da jornalista. Em 2019, ele participou do jornal que ela apresentava com Raquel<br />
Novaes para divulgar o programa Que Mundo É Esse?. Rodrigo estava no estúdio do<br />
Rio e ficou desnorteado quando Aline, que apresentava o jornal de São Paulo, fez<br />
uma pergunta sem aparecer no telão diante dele. Enquanto ele procurava a dona da<br />
voz, ela brincou: “Estou aqui, a voz do além”. Pronto, estava estabelecida a conexão.<br />
Ela se separou do então companheiro<br />
para viver uma história de amor: o relacionamento<br />
a distância se transformou<br />
na vida a dois no Rio de Janeiro<br />
quando ela se mudou definitivamente<br />
para a cidade do marido, em 2020.<br />
O casal mora na Lagoa de segunda a<br />
sexta e, nos fins de semana, se refugia<br />
num pequeno apartamento de frente<br />
para o mar na Praia da Macumba. De<br />
pés descalços, como ela adora estar. “A<br />
jornalista que a gente vê na TV, espontânea<br />
e que de fato sente a notícia, é a<br />
Aline que fica na Macumba conectada<br />
com o mar, com a praia, com a natureza,<br />
com as pessoas. É uma Aline só”,<br />
diz Rodrigo.<br />
Como toda mulher que trabalha em televisão<br />
e aparece diante das câmeras,<br />
Aline está habituada a ouvir palpites<br />
e comentários não solicitados sobre<br />
sua imagem. “Quando estou sem ma-<br />
quiagem, sempre tem alguém pra dizer<br />
‘Nossa, você tá cansada’. Eu respondo<br />
‘Não, essa é a minha cara sem maquiagem<br />
mesmo’. Sempre que posso, apareço<br />
de cara limpa porque isso é quem<br />
eu sou.” Com 39 anos de um processo<br />
constante de autoconhecimento, sendo<br />
12 em frente às câmeras, Aline abraçou<br />
sua ancestralidade, sente orgulho<br />
de seu visual, compreende a importância<br />
de exibir seus cachos na TV e,<br />
justamente por tudo isso, tem liberdade<br />
para aparecer com o visual que bem<br />
entende. “Eu sou crespa, já quebrei padrões<br />
em função disso. Mas hoje, se eu<br />
quiser usar o cabelo liso, uso numa boa.<br />
Me deixa ser o que eu quiser. A construção<br />
do feminino negro também tem<br />
a ver com isso: não ter que se esconder<br />
e poder ser quem quiser, quando<br />
quiser”, diz. Parafraseando Rodrigo<br />
Cebrian, Aline é única: uma só na essência<br />
e plural nas virtudes.<br />
Durante as filmagens no Congo, para a série de reportagens Nova África, pela TV Brasil | foto: arquivo pessoal<br />
Que dica daria à jovem Aline:<br />
“Acredite em você, no que você pode fazer. E<br />
não se cobre tanto, vá no fluxo e está tudo certo”<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 37<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 36
Nome: Péricles Aparecido Fonseca de Faria<br />
Idade: 52 anos<br />
Profissão: cantor e compositor<br />
Cidade onde nasceu: Santo André/SP<br />
Alma<br />
musical<br />
Por Sérgio Martins<br />
Antes do sucesso do Exaltasamba, Péricles<br />
quase seguiu a profissão de cabeleireiro.<br />
Aos 52 anos e uma década de carreira<br />
solo, o cantor e compositor vive o auge de<br />
sua versatilidade artística<br />
Foto: Rodolfo Magalhães<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 39<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 38
Fartura musical<br />
Nascido em Santo André, cidade do<br />
ABC paulista, no dia 22 de junho de<br />
1969 <strong>–</strong> “Sou um canceriano que ama<br />
a família e os amigos”, diz <strong>–</strong>, Péricles<br />
é o rebento mais velho dos quatro filhos<br />
de João Cândido Fonseca de Faria<br />
e Célia Aparecida de Faria. A família<br />
sempre viveu com as contas na ponta<br />
do lápis, o que fez Péricles largar a<br />
escola antes do ensino médio para ajudar<br />
no orçamento da casa. “Sinto uma<br />
falta danada dos estudos”, desabafa.<br />
Mas, na casa dos Faria, a música sempre<br />
foi farta. Além do Projeto Minerva,<br />
um programa de educação criado<br />
pelo governo militar nos anos 1970 e<br />
transmitido pelo rádio, Péricles e o avô<br />
escutavam cantores do início do século<br />
XX, entre eles Orlando Silva, Francisco<br />
Alves e Silvio Caldas. “Meu avô<br />
era fascinado por um clarinetista chamado<br />
Pitanga”, diz ele, referindo-se<br />
ao músico Octaviano Plácido Pitanga,<br />
que fez carreira no pós-guerra com o<br />
nome de Sargento Pitanga (ele, aliás,<br />
havia integrado a Força Expedicionária<br />
Brasileira na tomada de Monte Castelo,<br />
na Itália) e era um especialista no<br />
repertório de chorinhos.<br />
Infância no ABC paulista | foto: arquivo pessoal<br />
E<br />
m um dos empregos que teve antes da fama, o paulista<br />
Péricles Aparecido Fonseca de Faria, mais conhecido<br />
pelo apelido de Pericão, trabalhou como inspetor escolar.<br />
Era um caso exemplar de vida dupla: passava o dia pedindo<br />
compostura aos alunos do colégio e, à noite, quando ia<br />
para os bailes, tudo o que ele menos queria era ver uma turma<br />
comportada. “Às vezes encontro pessoas que me conheceram<br />
nos tempos de colégio e se lembram de como eu era<br />
um sujeito sisudo”, diz o cantor e compositor, em tom de brincadeira.<br />
Péricles largou a vida dupla depois que as aparições<br />
em programas de TV <strong>–</strong> entre eles o de Ana Maria Braga e o<br />
de Raul Gil, ainda na Rede Record <strong>–</strong> engordaram sua agenda<br />
de shows e transformaram seu grupo, o Exaltasamba, num<br />
dos principais fenômenos do pagode em todos os tempos. Em<br />
duas décadas de carreira, eles lançaram 17 álbuns e quatro<br />
DVDs, que venderam mais de 8 milhões de cópias. Iniciada<br />
após o término das atividades do grupo, em 2012 (o Exalta-<br />
Com Thiaguinho e Chrigor, em 2016 | foto: divulgação<br />
samba retornou quatro anos depois, mas sem Péricles e sem<br />
o vocalista Thiaguinho), a carreira solo vai bem, obrigado. São<br />
sete álbuns e dois DVDs <strong>–</strong> o terceiro registro ao vivo seria<br />
gravado em janeiro, mas a pandemia empurrou o evento para<br />
o dia 6 de maio, no Recife.<br />
“A gente sabe que é nóis contra a rapa, temos sempre de fazer<br />
o melhor”, explica Péricles, com o tom professoral que faz<br />
lembrar seus tempos de bedel. A escalação do show segue<br />
à risca a versatilidade com que o sambista é conhecido nos<br />
meios musicais. Se por um lado recruta Thiaguinho e Chrigor,<br />
cantores com quem dividiu o microfone nos tempos de Exaltasamba,<br />
por outro emenda um dueto com Geraldo Azevedo,<br />
um dos mestres da música nordestina nos anos 1970, o contemporâneo<br />
Xande de Pilares e a cantora Marvvila, intérprete<br />
da nova geração. “Ela tem uma voz grave, o que é diferente do<br />
samba atual, que tem adotado um vocal mais agudo”, explica.<br />
A rádio FM, que chegou ao Brasil no ano de 1955, passou a fazer parte da vida do primogênito da família<br />
Faria nas décadas de 1970 e 1980. Foi a descoberta da soul music e do funk de artistas como James<br />
Brown, Earth Wind & Fire, Marvin Gaye e Stevie Wonder e do balanço samba-rock-funk dos brasileiros<br />
Carlos Dafé, Cassiano, Djavan, Trio Mocotó e Jorge Ben Jor. “Em toda casa de um adolescente negro<br />
daquela época tinha de ter uma cópia de A Tábua de Esmeralda, do Jorge”, comenta Péricles. Os bailes foram<br />
outra extensão das músicas que escutou nas rádios e nos discos. “Eu, minha família e meus amigos<br />
íamos dançar em bailes como Kaskata’s e voltávamos para casa andando a pé por alguns quilômetros.<br />
Era praticamente um ritual deixar cada um na sua residência e seguir viagem”, conta o sambista. Péricles<br />
lembra ainda de absorver o linguajar e os cumprimentos típicos da turma que ia a essas festas <strong>–</strong> os<br />
tais Mandamentos Black, eternizados em canção de Gerson King Combo, cantor carioca de funk e soul<br />
music que rivalizou com Tim Maia e Tony Tornado na década de 1970.<br />
Em uma das primeiras formações do Exaltasamba | foto: arquivo pessoal<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 41<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 40
Sacolejo paulista<br />
Segunda profissão<br />
O envolvimento profissional com a<br />
música se deu no mesmo período da<br />
peregrinação pelas noitadas black.<br />
Ele passou a frequentar uma escola de<br />
samba na região do ABC e pensou na<br />
carreira musical como segunda profissão<br />
<strong>–</strong> além de inspetor escolar, Péricles<br />
trabalhou como cabeleireiro e metalúrgico.<br />
Como não tinha educação acadêmica,<br />
tirava de ouvido o que escutava<br />
nas rádios, em especial as composições<br />
do Fundo de Quintal, grupo carioca que<br />
mudou a cara do gênero ao introduzir<br />
instrumentos como o banjo, o repique<br />
de mão e o tantã, e se tornou criadouro<br />
de nomes como Almir Guineto e<br />
Jorge Aragão.<br />
Nos anos 1980, o samba passou por um<br />
dos períodos de maior popularidade.<br />
O disco No Pagode, que a cantora Beth<br />
Carvalho lançou em 1979, teve suces-<br />
so tão estrondoso que o termo <strong>–</strong> que<br />
na época era usado para definir uma<br />
reunião de sambistas <strong>–</strong> passou a ser<br />
empregado na denominação de um estilo<br />
musical. Em 1982, os irmãos Clóvis<br />
e Claudinei Batista da Silva criaram o<br />
Exaltasamba. A princípio, eles tocavam<br />
versões de sucessos de grupos como<br />
Demônios da Garoa, em animadas noitadas<br />
pelos bares de Santo André. Com<br />
o passar do tempo, começaram a criar<br />
material próprio e receberam novos integrantes.<br />
Quando sentiram a necessidade<br />
de recrutar um outro cantor e violonista,<br />
ouviram falar de um rapaz que<br />
cantava num bar chamado Guanabara.<br />
Era Péricles.<br />
“Pericão tinha novas ideias musicais<br />
desde aquela época”, diz Clóvis. “Levou<br />
a mim e ao meu irmão à casa dele para<br />
assistir ao laserdisc de um show do<br />
Exaltasamba com Thiaguinho na formação | foto: divulgação<br />
Take 6, conjunto de religiosos que cantavam<br />
soul music.” O cantor, contudo,<br />
não tinha tanta certeza se deveria seguir<br />
a carreira musical. “Péricles achou<br />
que teria mais chance de progresso se<br />
continuasse na profissão de cabeleireiro”,<br />
entrega Clóvis. Mas, segundo os<br />
irmãos, ele era mais hábil no cavaquinho<br />
do que na tesoura. “Péricles fazia<br />
aqueles penteados black power. Certa<br />
vez se empolgou e quase furou a orelha<br />
de um cliente”, lembra Claudinei.<br />
Os dois irmãos saíram do grupo ainda<br />
nos anos 1980 e deixaram o nome para<br />
os integrantes que ficaram. O próprio<br />
Péricles chegou a largar o Exaltasamba<br />
por três anos <strong>–</strong> de 1986 a 1989 <strong>–</strong> e<br />
retornou quando o conjunto assumiu<br />
uma nova identidade musical e visual.<br />
“Eles passaram a usar roupas coloridas<br />
e fazer coreografias”, explica Clóvis.<br />
“Uma das<br />
prediletas da<br />
noite era Ray<br />
Charles 45,<br />
canção do Ray<br />
tocada em 45<br />
rotações. Era<br />
praticamente um<br />
samba-rock”<br />
O batuque de São Paulo nunca foi similar<br />
ao do Rio, como aponta o jornalista<br />
Julio César de Barros, um estudioso na<br />
arte do gênero. “Pelo Telefone, primeiro<br />
samba da história, era um maxixe. Passado<br />
esse período, o molejo carioca assimilou<br />
influências nordestinas, como<br />
o coco e o samba de roda do recôncavo<br />
baiano; africanas, como o candomblé<br />
das tias baianas; e europeias, como violão,<br />
harmonias e samba-canção. O resultado<br />
final é mais urbano. O batuque<br />
paulista é mais rural, com influência do<br />
jongo do Vale do Paraíba, mais pesado<br />
e grave que o do Rio”, explica Barros.<br />
Outro elemento que acentuou essas diferenças<br />
foram os bailes black, comuns<br />
nas duas capitais, mas absorvidos de<br />
modo diferente pelos jovens dessas cidades.<br />
“As festas de soul e funk eram<br />
comuns no Rio, mas nunca se transferiram<br />
para o samba”, diz Paulão Sete<br />
Cordas, violonista e diretor musical<br />
de Zeca Pagodinho. “A parte melódica<br />
e harmônica de bandas como o Exaltasamba<br />
e o Sem Compromisso, para<br />
ficar em outro grupo daquele período,<br />
tem mais a ver com a música americana.”<br />
Em São Paulo, essas festas eram<br />
promovidas nas quadras das escolas<br />
de samba, que tinham uma programação<br />
democrática. O repertório de Zeca<br />
e Fundo de Quintal era intercalado por<br />
hits do balanço americano. “Uma das<br />
prediletas da noite era Ray Charles 45,<br />
canção do Ray tocada em 45 rotações.<br />
Era praticamente um samba-rock”,<br />
explica Péricles, referindo-se ao cruzamento<br />
de samba com o gênero<br />
americano, eternizado no Brasil com<br />
os sucessos dos cantores Jorge Ben e<br />
Bebeto e pelo Trio Mocotó. O Exaltasamba,<br />
assim como o inspetor Péricles,<br />
fazia uma rodada dupla: ora tocava seu<br />
repertório original nas quadras de escolas<br />
de samba e bares, ora assumia o<br />
papel de banda acompanhando intérpretes<br />
cariocas que se apresentavam<br />
em São Paulo. Uma delas foi Jovelina<br />
Pérola Negra. “Ela nos deu muito<br />
apoio, fazia questão de apresentar e<br />
saudar a banda. Mas, em compensação,<br />
quando se irritava, disparava uns<br />
palavrões que eu nunca tinha escutado<br />
na vida”, diverte-se.<br />
O molejo paulistano, que já era diferente<br />
do carioca, adquiriu uma nova<br />
linguagem depois do advento desses<br />
bailes diversificados. Ele passou a ter<br />
características românticas, e o repertório<br />
dos grupos agregou sucessos do sacolejo<br />
americano. “Era comum você assistir<br />
a uma banda tocar samba ao lado<br />
de sucessos de Stevie Wonder”, lembra<br />
Péricles. O novo sacolejo paulistano tinha<br />
como criadouro casas noturnas da<br />
capital, como Só pra Contrariar, Biro’s<br />
Bar e Sambarilove, e a Choppapo, em<br />
São Bernardo do Campo. Foi ali que<br />
bandas como Exaltasamba, Art Popular,<br />
Negritude Junior e Katinguelê despontaram<br />
para o monstruoso sucesso<br />
obtido nos anos 1990. “A gente praticamente<br />
começou junto, acompanhando<br />
sambistas cariocas e tocando nosso<br />
repertório nesses bares”, lembra Leandro<br />
Lehart, do Art Popular. O vocalista<br />
se recorda de um episódio engraçado<br />
em relação ao amigo. Um dos primeiros<br />
hits do grupo foi Agamamou, que tinha<br />
como inspiração a versão do tecladista<br />
americano Jimmy Smith para o hit<br />
de blues I’ve Got My Mojo Working (que,<br />
para os paulistas, era um típico samba-<br />
-rock). Quando ia para as emissoras de<br />
TV, o Art Popular usava uma peruca<br />
black power. Péricles, naquele período,<br />
tinha o mesmo tipo de visual. “Ele<br />
me contou que o público o chamava de<br />
Agamamou, não de Péricles. E o mandava<br />
cortar a cabeleira”, diz Lehart.<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 43<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 42
Do pau-de-sebo à TV<br />
O Exaltasamba fez seu nome no circuito de bares e depois<br />
partiu para o primeiro disco. Na verdade, um pau-de-sebo,<br />
nome dado aos LPs com repertório dividido entre vários artistas,<br />
normalmente do mesmo estilo musical. O primeiro disco<br />
por inteiro do Exaltasamba foi Eterno Amanhecer, de 1992.<br />
O sucesso do chamado pagode paulista <strong>–</strong> jocosamente batizado<br />
de “pagode mauricinho” por jornalistas preconceituosos<br />
do Rio de Janeiro <strong>–</strong> fez com que o grupo se bandeasse para a<br />
EMI-Odeon, gravadora multinacional, em 1996. Eles também<br />
passaram a ser empresariados por Franco Scornavacca, então<br />
responsável pela carreira das duplas Zezé Di Camargo &<br />
Luciano e Leandro & Leonardo. “Franco nos ajudou a desenvolver<br />
um show completo: olhar de frente pra plateia, desenvolver<br />
o ritmo da apresentação”, lembra o sambista.<br />
Outro trunfo do conjunto foi sempre ter um time de vocalistas<br />
em vez de apenas um solista. E quando Chrigor deixou a<br />
banda, no início dos anos 2000, o Exaltasamba encontrou seu<br />
novo cantor num reality show. “Eu e o Pina, um dos líderes do<br />
grupo, ficamos interessados num cantor do programa Fama<br />
que sempre se destacava entre os concorrentes.” O cantor era<br />
Thiaguinho, que acentuou ainda mais o namoro do conjunto<br />
com a música black dos Estados Unidos. “Ele era de Mogi das<br />
Nos bastidores do programa Esquenta, com Regina Casé | foto: reprodução Instagram<br />
Cruzes e o trouxemos para São Paulo a fim de tocar no grupo.<br />
Thiaguinho chegou até a morar na casa de integrantes<br />
do Exaltasamba.” A nova adição mudou também o estilo de<br />
pagode do grupo, que passou a flertar com o rock dos anos<br />
1980 e 1990 <strong>–</strong> Esquema Novo, de 2005, tem releituras de Comida,<br />
dos Titãs, e Meu Esquema, do Mundo Livre S/A, um dos<br />
precursores do manguebit. Outro diferencial do Exaltasamba<br />
está nos temas de suas canções, que sempre evitavam linguajar<br />
e comportamento chulos.<br />
Um dos pontos altos da nova fase do Exaltasamba se deu em<br />
2010, no Parque Antártica (atual Allianz Parque), num DVD<br />
que contou com a apresentação da atriz Regina Casé e participação<br />
de artistas do funk carioca e da música sertaneja.<br />
O grupo encerrou as atividades em 2012, e Péricles passou<br />
a integrar o elenco do Esquenta, programa de variedades musicais<br />
comandado pela mesma Casé. “Pude mostrar minha<br />
diversidade a um público mais amplo”, comenta o sambista,<br />
que no seu aniversário em 2020 ganhou uma linda homenagem<br />
da “madrinha”. “Amo esse cara. Mas quem não ama o<br />
Péricles? Que vontade de voar no seu colo, como sempre faço<br />
quando a gente se encontra”, escreveu ela.<br />
Voando solo<br />
O artista Péricles tem diversificado<br />
seus talentos para fora do mundo do<br />
pagode. Em 2018, ele foi dirigido por<br />
Lázaro Ramos no show Em Sua Direção.<br />
O repertório incluiu canções de Paul<br />
McCartney e Stevie Wonder (Ebony<br />
& Ivory) e o combinado de Havana, de<br />
Camila Cabello, com Oye Como Va, do<br />
repertório do guitarrista mexicano<br />
Carlos Santana. “Péricles é uma das<br />
maiores vozes do Brasil e um artista<br />
que está sempre se reinventando.<br />
Me senti lisonjeado ao ser chamado<br />
para dirigi-lo. Foi emocionante trabalhar<br />
com um sujeito tão elegante e talentoso”,<br />
diz o ator. Em 2019, Péricles<br />
lançou outro projeto, O Pagode do Pericão,<br />
que trazia clássicos do samba e<br />
canções autorais.<br />
Péricles era notoriamente avesso a<br />
redes sociais, mas entrou nesse universo<br />
por sugestão do amigo Thiaguinho.<br />
Hoje é quem melhor usufrui delas.<br />
O Canal do Pericão, no YouTube,<br />
contabiliza 2,3 milhões de inscritos.<br />
Seu perfil no Instagram está perto da<br />
marca de 5 milhões de seguidores, e o<br />
do TikTok soma 1,3 milhão de fãs. São<br />
quase 4 milhões de ouvintes mensais<br />
no Spotify <strong>–</strong> o cantor saiu de uma gravadora,<br />
digamos, convencional para<br />
a ONErpm, companhia especializada<br />
em conteúdo para as plataformas de<br />
streaming. “Péricles é um artista que<br />
entendeu que o digital é um aliado.<br />
Muito além de cantor, é um compositor<br />
e instrumentista que se aliou ao processo<br />
de influência digital com campanhas<br />
e engajamento dos seus fãs, em<br />
todas as redes”, diz Arthur Fitzgibbon,<br />
presidente da ONErpm.<br />
O sambista também faz uso da autogestão.<br />
Em 2018, criou a Faria Produções,<br />
que cuida exclusivamente de sua<br />
Que dica daria ao jovem Péricles?<br />
carreira. Quem comanda a empresa é<br />
a pedagoga Lidiane Santos, esposa de<br />
Péricles desde julho de 2017. O casal<br />
tem uma filha, Maria Helena, de 2 anos<br />
<strong>–</strong> ele também é pai de Lucas Morato, de<br />
27 anos, fruto de uma relação anterior.<br />
O primogênito seguiu o mesmo caminho<br />
do samba, também inspirado pelo<br />
ambiente doméstico. “Nós dois sempre<br />
vivemos numa atmosfera muito musical.<br />
Na casa da minha avó sempre tocou<br />
samba bom. Desde cedo, já tocava<br />
cavaquinho e criava novas melodias e<br />
composições”, diz Lucas.<br />
Embora nunca tenha voltado à escola,<br />
Péricles é um estudioso: aprimorou<br />
seus conhecimentos musicais em aulas<br />
de piano, canto e teoria musical. A<br />
versatilidade se mostra presente em<br />
tudo o que faz. Em outubro de 2021, ele<br />
se uniu ao cantor e compositor Nando<br />
Reis para uma releitura de Na Estrada,<br />
gravada anteriormente pela cantora<br />
Marisa Monte, e Vou Te Encontrar, que<br />
o ex-titã escreveu para o amigo Paulo<br />
Miklos em 2017. “Conheço Péricles<br />
desde os tempos do Exaltasamba. A<br />
beleza de sua voz e a doçura de sua<br />
figura sempre chamaram minha atenção.<br />
Nossa relação se resumia a encontros<br />
breves em aeroportos, festivais e<br />
programas de televisão até o ano passado,<br />
quando ele me convidou para<br />
gravar Na Estrada. O arranjo certeiro e<br />
a interpretação matadora confirmaram<br />
a impressão que tinha a respeito de<br />
sua incrível musicalidade. Mas foi na<br />
gravação de Vou Te Encontrar que ficou<br />
clara a natureza maior e a essência de<br />
sua voz”, diz Reis, que completa o elogio:<br />
“Péricles é um soulman: canta com<br />
a alma, revela a alma de toda canção. É<br />
um artista magistral; tudo o que canta,<br />
encantado, ressoa como eterno”.<br />
“Não tenha medo de errar, mesmo sabendo que<br />
você é um jovem negro, de classe média baixa,<br />
em um país onde isso não quer dizer muito e em<br />
um mundo que maltrata quem não é igual. Siga<br />
os ensinamentos adquiridos, honre sua família e<br />
nunca deixe ninguém dizer que você não é capaz.<br />
Você pode tudo”<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 45<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 44
Nome: Aretha Duarte Freitas<br />
Idade: 38 anos<br />
Profissão: educadora física e montanhista<br />
Cidade onde nasceu: Campinas/SP<br />
No topo<br />
do mundo<br />
Por Daniela Macedo<br />
Para realizar o sonho de escalar o Monte<br />
Everest, a montanhista Aretha Duarte<br />
coletou 130 toneladas de material reciclável,<br />
organizou bazares e participou de jogo de<br />
conhecimentos gerais em programa de TV<br />
Foto: Lana Pinho<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 47<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 46
“Eu acredito que a força que eu<br />
chamo de PIB, o Poder Interno<br />
Bruto, está presente na vida de<br />
qualquer pessoa. Todo mundo tem<br />
a capacidade de sonhar e realizar,<br />
independentemente do contexto.<br />
Todo mundo tem seu Everest pra<br />
conquistar, sua missão pra cumprir”<br />
Perfil de justiceira<br />
Foto: Ju Coutinho<br />
Os primeiros passos naquele novo universo do montanhismo vieram com os cursos<br />
de escalada que ela fez na própria Grade6. “Aproveitei esse período como cliente<br />
para me aproximar dos guias, montar uma rede de contatos”, lembra Aretha. Logo<br />
começaram a surgir os contratos como profissional freelancer na área de treinamento<br />
corporativo da empresa. Nesse início de carreira, chegou a acumular várias<br />
atividades diferentes na mesma época. Trabalhou com recreação em hotel, clube<br />
esportivo e colônia de férias, foi operadora numa fábrica de celulares, atendente<br />
de call center e revendedora de produtos de beleza. Sofreu quando precisou deixar<br />
o emprego em uma creche <strong>–</strong> “Foi muito difícil porque eu estava apaixonada pelas<br />
crianças”. Depois de três meses frequentando a academia da Polícia Militar, passou<br />
na prova do concurso para se tornar policial, mas reprovou no teste psicológico por<br />
“inadequação para porte de armas”. “Na avaliação do psicólogo, se eu presenciasse<br />
algum tipo de injustiça, não teria condição de raciocinar e analisar a situação porque<br />
tenho um perfil de justiceira”, conta.<br />
O<br />
s estragos que o ar rarefeito<br />
provoca no organismo são devastadores.<br />
O coração acelera<br />
para compensar a falta de oxigênio,<br />
aumentando o risco de ataque cardíaco.<br />
Dois míseros passos são suficientes<br />
para deixar a respiração ofegante.<br />
Atividades banais, como comer, beber<br />
água ou conversar, exigem esforço<br />
físico e mental. Edemas cerebrais e<br />
pulmonares são uma preocupação real<br />
e constante. E tudo isso tentando driblar<br />
a hipotermia e as lesões por congelamento<br />
em um frio extremo, abaixo<br />
dos 15 graus negativos, com rajadas de<br />
vento cruéis. A partir dos 8 mil metros<br />
de altitude, com ou sem oxigênio suplementar,<br />
o corpo começa a morrer lentamente.<br />
Daí o nome, zona da morte.<br />
Nesse ambiente hostil, chegar ao cume<br />
do Monte Everest, aos 8.848 metros<br />
de altitude, é um feito hercúleo. Para<br />
a atleta Aretha Duarte, a primeira mulher<br />
negra latino-americana a alcançar<br />
o topo do mundo, em maio de 2021, as<br />
adversidades da expedição começaram<br />
ao nível do mar.<br />
Aretha se apaixonou pelo montanhismo<br />
em 2005. Estava no 2º ano da faculdade<br />
de educação física, na Pontifícia<br />
Universidade Católica de Campinas,<br />
cidade onde vive, quando um dos professores<br />
levou a turma para uma palestra<br />
na Grade6, empresa que promove<br />
expedições a altas montanhas. Como a<br />
grande maioria dos jovens que vivem<br />
nas periferias, Aretha nunca havia<br />
ouvido falar em montanhismo até ali.<br />
Ela nasceu e cresceu no Jardim Capivari,<br />
caçula dos três filhos do casal de<br />
migrantes pernambucanos Euleide e<br />
Ailton. Aluna exemplar, foi a primeira<br />
pessoa da família a concluir o ensino<br />
superior. Escolheu o curso de educação<br />
física porque adorava praticar esportes,<br />
desde a infância, e acreditava<br />
que esse seria um bom instrumento<br />
para gerar transformação na periferia.<br />
“É uma linguagem fácil para se<br />
comunicar com os jovens”, diz. Mas,<br />
apesar da afinidade com as atividades<br />
esportivas, subir uma montanha nunca<br />
esteve em seu radar.<br />
Em 2011, começou a atuar no segmento de montanhismo: primeiro como consultora<br />
de viagem, depois como assistente de guia e, finalmente, como guia de alta montanha.<br />
Passou a viajar para diversos países, levando alpinistas às maiores montanhas<br />
do mundo. Subiu os montes Aconcágua (6.961 metros), na Argentina; Kilimanjaro<br />
(5.895 metros), na Tanzânia: Elbrus (5.642 metros), na Rússia; Huayna Potosi<br />
(6.088 metros), na Bolívia, entre outros. “Adoro trabalhar com iniciantes. Faço<br />
questão de deixar claro que o montanhismo não é uma modalidade exclusiva de<br />
superatletas. Claro que algumas montanhas são mais acessíveis, e outras, menos.<br />
Mas todo mundo pode praticar o esporte”, garante Aretha.<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 49<br />
Foto: Rosita Belinky<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 48
Novo cume no horizonte<br />
Enquanto liderava expedições pelo mundo, ouvia dos colegas<br />
montanhistas que deveria tentar o Everest. O amigo Carlos<br />
Canellas, a quem ela chama de “meu guru”, era um dos incentivadores.<br />
“Ela tem duas das principais características para<br />
qualquer alpinista vitorioso: persistência e resiliência”, diz<br />
Canellas. Para o também escalador Carlos Santalena, como<br />
leva à exaustão física e mental, a montanha proporciona uma<br />
experiência espiritual. “Ela já tinha atingido todos os pré-requisitos<br />
físicos e técnicos da preparação. Eu queria que ela<br />
tivesse essa experiência de autoconhecimento também.” As<br />
conversas, no entanto, acabavam sempre da mesma forma:<br />
“Não é pra mim”. “Nunca pensei em subir o Everest porque<br />
sempre associei ao risco de morte, e como sou apaixonada<br />
pela vida não queria arriscar a minha numa montanha”, diz.<br />
Um receio com fundamento, já que mais de 200 cadáveres de<br />
pessoas que morreram tentando alcançar o cume permanecem<br />
lá até hoje.<br />
A chama acendeu em dezembro de 2019, quando Aretha viu<br />
uma foto do arquivo pessoal do amigo Santalena. Era o Vale<br />
do Silêncio, que vai de 6.100 até 6.400 metros de altitude. “É<br />
um vale muito extenso, coberto de neve, todo branquinho, e<br />
cercado de montanhas de mais de 7 mil metros. A foto mostrava<br />
pessoas e barracas, tudo muito pequenino na grandiosidade<br />
daquela paisagem. Essa imagem me impactou muito<br />
porque reflete quanto somos pequenos em relação à natureza”,<br />
afirma. “E o nome também chamou minha atenção. Por<br />
que Vale do Silêncio? Enfim, essa imagem virou a chavinha<br />
na minha cabeça.” No dia 15 de março de 2020, ela levaria um<br />
grupo de alpinistas ao acampamento-base, no Nepal, mas a<br />
pandemia fechou as fronteiras e ela tomou uma decisão importante:<br />
sua próxima ida ao Everest seria para alcançar o<br />
cume. Nascia o projeto #ArethaNoEverest.<br />
A preparação para subir a montanha mais alta do mundo envolve<br />
cinco etapas: alcançar excelente condicionamento físico,<br />
adquirir conhecimento em escalada em rocha, aprender<br />
escalada em gelo, acumular experiência em alta montanha e<br />
escalar ao menos uma montanha com mais de 7 mil metros<br />
de altitude. Quando Aretha decidiu que embarcaria naquela<br />
aventura, lhe faltava apenas o que ela chamou de sexta etapa:<br />
dinheiro. A viagem custaria cerca de 400 mil reais, mas, nos<br />
últimos cinco anos, toda a sua renda era aplicada na construção<br />
da casa da família.<br />
“Passei 54 dias num ambiente hostil. Nessas situações,<br />
é imprescindível acessar recursos mentais que te façam<br />
se sentir confiante e forte. Por mais que tenha o preparo<br />
físico e técnico, é o emocional que vai determinar se você<br />
vai ser bem-sucedido ou não”<br />
Arregaçando as mangas<br />
Para tornar o sonho realidade, Aretha foi buscar inspiração<br />
na infância. Aos 10 anos de idade, a aluna da 4ª série do ensino<br />
fundamental cismou que queria um par de patins, brinquedo<br />
que a família não podia comprar. “Eu tomei a iniciativa<br />
de juntar latinhas para vender por alguns meses, até ter o dinheiro<br />
de que precisava. Era como se fosse uma brincadeira.<br />
Era um jogo lúdico, não um trabalho”, conta. A maratona para<br />
reunir o recurso do #ArethaNoEverest seria maior do que a<br />
gincana dos patins, mas ela não se deixou intimidar.<br />
Contando com uma rede de apoio, Aretha coletava 500 quilos<br />
de resíduo reciclável por dia. “Era um trabalho pesadíssimo,<br />
que ajudou a desenvolver inclusive meu lado emocional”, diz.<br />
Recolheu 130 toneladas de material reciclável, que lhe renderam<br />
110 mil reais <strong>–</strong> ela também doou uma parte: centenas<br />
de brinquedos coletados foram para crianças da periferia de<br />
Campinas e mais de mil livros acabaram na biblioteca comunitária<br />
da cidade. Participou do quadro The Wall, no programa<br />
Caldeirão do Huck, de onde saiu com mais 59.690 reais. Organizou<br />
bazar de roupas e móveis, leilão de equipamentos e<br />
campanha de arrecadação pela internet. O restante veio dos<br />
patrocinadores Moove, Dardak Jeans, The North Face, Horas<br />
a Fio pelo Mundo, Spot, Monte Bravo Investimentos e Farmácia<br />
Saint Germain.<br />
Enquanto lidava com a corrida financeira (trabalho e recolha<br />
de resíduos) nos 12 meses e meio de preparação para a viagem,<br />
a montanhista intercalava treinamento físico (pilates,<br />
natação e personal trainer) com mental (terapia, mentoria e<br />
osteopatia), graças aos seis profissionais que se voluntariaram<br />
para ajudá-la. No dia 1º de abril de 2021, Aretha embarcou<br />
para Katmandu, dando início à expedição ao cume do<br />
Monte Everest pela face sul, no lado nepalês da Cordilheira<br />
do Himalaia <strong>–</strong> a outra maneira de alcançar o topo é pela face<br />
norte, do outro lado da fronteira com a China. Após sete dias<br />
de quarentena, um voo doméstico levou Aretha e outros montanhistas<br />
brasileiros para a cidade de Lukla, a 2.860 metros<br />
de altitude. Esse é o ponto de partida para o trekking de dez<br />
dias até o acampamento-base, pouco mais de 5.300 metros<br />
acima do nível do mar, onde começam os ciclos de aclimatação<br />
que ensinam o corpo a funcionar em altitude elevada.<br />
Corpo em<br />
descompasso<br />
“São três ciclos de aclimatação e um<br />
ciclo de cume”, explica Aretha. Nesse<br />
processo de aclimatação, o montanhista<br />
sobe para altitudes maiores e volta<br />
a descer. No primeiro ciclo, que vai<br />
até o acampamento 1, a 6.100 metros<br />
de altitude, Aretha chegou bastante<br />
debilitada. “Foi um trajeto de dez horas<br />
de caminhada, com dificuldade<br />
respiratória, muita tosse e secreção<br />
com sangue, dores na região peitoral,<br />
dificuldade pra tomar água, comer,<br />
descansar e dormir”, conta. Ela precisou<br />
usar a suplementação de oxigênio<br />
antes do previsto, já que a ideia inicial<br />
era recorrer ao oxigênio apenas aos<br />
7.500 metros de altitude.<br />
Com os sintomas que indicavam princípio<br />
de edema pulmonar, Aretha viu-<br />
-se, pela primeira vez, diante da possibilidade<br />
de ser obrigada a desistir da<br />
expedição. As opções no dia seguinte<br />
eram continuar a aclimatação, ou seja,<br />
subir ao acampamento 2 e só depois retornar<br />
ao acampamento-base, ou descer<br />
direto. Se descesse e não se recu-<br />
No programa Caldeirão do Huck | foto: divulgação/TV Globo<br />
perasse, teria de voltar para casa sem<br />
conhecer pessoalmente a paisagem<br />
que despertou o sonho de estar ali. Estando<br />
tão perto do Vale do Silêncio, localizado<br />
entre os acampamentos 1 e 2, a<br />
atleta escolheu a primeira opção.<br />
“Fui com muita dificuldade até o início<br />
do Vale do Silêncio e entendi o porquê<br />
do nome. É um silêncio total, em que<br />
você só ouve os sons do próprio corpo.<br />
Sua respiração, seus batimentos cardíacos.<br />
É impressionante. Foi uma grande<br />
realização pessoal”, afirma. Nesse<br />
dia, Aretha não conseguiu concluir a<br />
subida ao acampamento 2, nem seus<br />
problemas no processo de aclimatação<br />
cessaram como acontece nos filmes,<br />
em que a sorte do protagonista muda<br />
após uma epifania. O princípio de edema<br />
pulmonar foi tratado com medicamentos<br />
e dois dias de repouso, mas a<br />
montanhista também sofreu queimadura<br />
na retina e, no dia do ataque ao<br />
cume, congelamento do dedo anelar<br />
da mão esquerda.<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 51<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 50
Dia D<br />
Às 23h30 de 22 de maio, Aretha seguiu<br />
com seu guia, da etnia sherpa,<br />
rumo ao topo. Com duas horas e meia<br />
de subida, o guia começou a se sentir<br />
mal por causa do frio extremo <strong>–</strong> fazia<br />
20 graus negativos <strong>–</strong> e avisou que iria<br />
desistir. Ela insistiu que tinha condições<br />
de subir e pediu para seguir sozinha,<br />
mas ele não autorizou. Com um<br />
misto de sentimentos, da frustração<br />
pelo fim do sonho à culpa por pensar<br />
mais em seu objetivo do que na saúde<br />
do sherpa, a atleta começou a chorar.<br />
Tirou os óculos de proteção e a máscara<br />
de oxigênio para se desculpar, mas o<br />
guia se comoveu com a emoção da alpinista,<br />
enxugou suas lágrimas e apontou<br />
para o alto da montanha.<br />
A dupla alcançou o cume às 10h24 do<br />
horário local, manhã de 23 de maio.<br />
Ao lado do altar com uma estátua e<br />
as bandeiras coloridas, fotos e objetos<br />
pessoais deixados por outros montanhistas,<br />
Aretha abraçou seu guia,<br />
se ajoelhou, pensou em Deus e agradeceu<br />
mentalmente às pessoas que a<br />
ajudaram a chegar ali. “E senti muita<br />
gratidão e empoderamento. Me senti<br />
muito forte. Entendi que meu limite<br />
estava muito além do que minha cabeça<br />
estava dizendo”, lembra. Passou<br />
15 minutos naquele cenário indescritível,<br />
acima das nuvens, cercada pelas<br />
montanhas do Himalaia.<br />
Aretha trouxe poucos registros em<br />
imagens da experiência no ponto mais<br />
alto do planeta porque “ninguém quer<br />
tirar a luva para fazer fotos”. Quando<br />
desembarcou no aeroporto de Guarulhos,<br />
retornando da expedição, encontrou<br />
a mãe com a marmita contendo o<br />
tão esperado arroz com chuchu refogado<br />
e bacon da dona Euleide. Entre os<br />
diversos reconhecimentos pelo feito,<br />
venceu o Prêmio Inspiradoras 2021, do<br />
UOL e do Instituto Avon, na categoria<br />
Esporte e Cultura, e ganhou uma homenagem<br />
da Turma da Mônica, com a<br />
personagem Melina.<br />
Novos Everests<br />
Foto: Gabriel Tarso<br />
Mente a favor<br />
Durante o processo de aclimatação,<br />
Aretha se preparava psicologicamente<br />
para a possibilidade de ser obrigada<br />
a desistir. “Eu pensava: ‘Se eu não me<br />
curar [do edema pulmonar e da queimadura<br />
na retina], aceito a situação porque<br />
não está sob meu comando, fugiu do<br />
meu controle’”, conta. E não são raros<br />
os montanhistas que não conseguem<br />
se recuperar de problemas de altitude e<br />
precisam voltar ao nível do mar o mais<br />
rápido possível. Não bastassem as<br />
questões típicas de altas montanhas,<br />
Aretha ainda encarou um complicador<br />
extra: o método anticoncepcional que<br />
ela usou para não menstruar falhou, e<br />
a atleta teve de lidar com os inconvenientes<br />
do sangramento em todos os<br />
dias da expedição. “Para as mulheres,<br />
a escalada em alta montanha é mais<br />
desafiadora. Temos uma sensibilidade<br />
e uma visão do mundo diferente dos<br />
homens”, diz a montanhista com uma<br />
década de experiência levando pessoas<br />
a grandes altitudes. “O lado bom é que<br />
nós, mulheres, lidamos melhor com<br />
situações adversas, somos mais resistentes.<br />
A impressão que eu tenho, com<br />
a minha experiência, é que as mulheres<br />
suportam melhor as adversidades.”<br />
Para não desistir diante de tantos obstáculos,<br />
a questão emocional é um fator<br />
determinante. “Passei 54 dias num<br />
ambiente hostil”, diz Aretha. “Nessas<br />
situações, é imprescindível acessar recursos<br />
mentais que te façam se sentir<br />
confiante e forte. Por mais que tenha<br />
o preparo físico e técnico, é o emocional<br />
que vai determinar se você vai ser<br />
bem-sucedido ou não.” Além de rezar<br />
<strong>–</strong> “A oração funciona como uma meditação<br />
pra mim”, diz <strong>–</strong>, Aretha falava<br />
com a mãe pelo telefone. E aproveitava<br />
para fazer um pedido especial. “Todos<br />
os dias eu pensava na comida da minha<br />
mãe, que é cozinheira aposentada. Pedia<br />
pra ela preparar meu prato favorito<br />
quando eu voltasse.”<br />
Além de retornar ao maior desafio que<br />
já enfrentou em sua vida como montanhista<br />
<strong>–</strong> “Se eu tivesse recursos financeiros,<br />
voltaria amanhã”, brinca <strong>–</strong>,<br />
Aretha tem outros projetos. Vai continuar<br />
seus trabalhos anteriores, como<br />
palestrante e guia de alta montanha,<br />
a fim de terminar de construir a casa<br />
da família. O projeto interrompido em<br />
março de 2020 foi retomado e, depois<br />
de tantos anos de obra, a nova moradia<br />
deve finalmente ficar pronta nos<br />
próximos meses. Pretende também<br />
publicar um livro em que narra sua<br />
conquista. “Quero deixar minha história<br />
registrada, nem que seja para as<br />
próximas gerações da minha família.<br />
Tenho muita dificuldade em descobrir<br />
a história dos meus ancestrais, negros<br />
que foram trazidos sem registro ao<br />
Brasil”, diz. Para dispor do dinheiro necessário<br />
para a publicação da obra, rifou<br />
a caminhonete usada na coleta dos<br />
resíduos recicláveis. A previsão é lançar<br />
o livro em maio deste ano e, futuramente,<br />
publicar uma versão infantil,<br />
em quadrinhos.<br />
Aretha também se dedica a causas socioambientais.<br />
Ministra cursos e oficinas<br />
para disseminar o conceito de reciclagem<br />
como responsabilidade civil<br />
e social, e atualmente busca patrocínio<br />
para um projeto de democratização<br />
do montanhismo, instalando paredes<br />
de escalada nas periferias brasileiras.<br />
“Quero que os jovens conheçam<br />
o esporte. Quando você tem acesso às<br />
opções, pode escolher melhor seu destino”,<br />
diz. O projeto-piloto vai instalar<br />
uma parede de escalada indoor em um<br />
dos parques lineares de Campinas. E se<br />
dedica a incentivar o mundo a sonhar.<br />
“Eu acredito que a força que eu chamo<br />
de PIB, o Poder Interno Bruto, está presente<br />
na vida de qualquer pessoa. Todo<br />
mundo tem a capacidade de sonhar e<br />
realizar, independentemente do contexto.<br />
Todo mundo tem seu Everest pra<br />
conquistar, sua missão pra cumprir. É<br />
preciso acreditar e seguir em frente,<br />
sem desistir.”<br />
Que dica daria à<br />
jovem Aretha?<br />
“Como nunca me encaixei<br />
nos padrões de beleza<br />
e me achava feia, eu<br />
diria: ‘Aretha, você é<br />
maravilhosa do jeito que<br />
você é, acredite nisso’.<br />
Mas hoje eu sei que sou<br />
fantástica! [risos]”<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 53<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 52
Cultura<br />
no DNA<br />
Por Guilherme Dearo<br />
Atual diretor executivo da Unibes Cultural, entidade<br />
que ajudou a idealizar e a transformar em referência,<br />
o gestor cultural Bruno Assami completa quatro<br />
décadas de carreira dedicadas à arte brasileira<br />
Nome: Bruno Assami<br />
Idade: 56 anos<br />
Profissão: gestor cultural<br />
Cidade onde nasceu: São Paulo/SP<br />
Foto: Juan Esteves<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 55<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 54
.<br />
“O jovem que quer trabalhar com<br />
arte precisa saber que está ajudando<br />
a construir uma agenda simbólica.<br />
Quando você tem clareza no seu<br />
papel, você caminha com firmeza”<br />
Projeto de salvamento<br />
Unibes Cultural | foto: divulgação<br />
O<br />
setor cultural foi um dos mais duramente afetados pela pandemia. Em março de 2020, quando a Covid-19 obrigou governadores<br />
a adotarem medidas para conter a disseminação do coronavírus, cinemas, casas de espetáculos e museus<br />
tiveram de fechar as portas, sem saber por quanto tempo ficariam sem público. A Unibes Cultural, que ocupa um prédio<br />
de quase 5 mil metros quadrados e cinco andares no número 2500 da Rua Oscar Freire, em São Paulo, não foi exceção. Funcionando<br />
desde 2015 no edifício que abrigou por mais de uma década o Centro da Cultura Judaica, a instituição atraía 200 mil<br />
visitantes anualmente, promovendo mais de 2 mil exposições, palestras e cursos presenciais. Com tudo fechado, era preciso se<br />
reinventar. E rápido.<br />
Uma plataforma digital foi criada para oferecer mais de 400 conteúdos online, entre cursos e lives. O projeto deu certo, e a Unibes<br />
Cultural conseguiu 1 milhão de visitantes mensais em suas bases digitais, marca bastante comemorada. Após a reabertura,<br />
mais de um ano depois, a instituição manteve as atividades online em paralelo às presenciais. Um dos responsáveis pela rápida<br />
(e eficiente) resposta da entidade foi Bruno Assami, 56 anos, diretor executivo da instituição desde sua abertura e um de seus<br />
idealizadores. “A primeira preocupação foi manter a estrutura do prédio, e a segunda era manter nosso compromisso com a<br />
população. Era preciso preservar o público que tínhamos conquistado ao longo dos anos”, conta.<br />
Nas últimas quatro décadas, Assami tem sido um dos principais nomes da gestão cultural no Brasil, deixando uma marca de<br />
excelentes resultados colhidos nas principais instituições de São Paulo, como Itaú Cultural, Masp e Instituto Tomie Ohtake.<br />
“Eu me posiciono como um dirigente cultural que é reconhecido e identificado como uma pessoa de conceituação, concepção,<br />
planejamento e implementação de novos modelos. Sou chamado quando uma instituição necessita de um reposicionamento ou<br />
precisa ser vocacionada. Sempre firmo um modelo contratual independente e focado no resultado. E minha grande prerrogativa,<br />
claro, é a formação da cultura no Brasil”, esclarece.<br />
A Unibes Cultural surgiu como um braço<br />
da Unibes (União Brasileiro-Israelita<br />
do Bem-Estar Social), instituição fundada<br />
em 1915 com o objetivo de auxiliar<br />
a comunidade judaica que vinha da Europa<br />
para o Brasil, fugindo da Primeira<br />
Guerra Mundial, e que posteriormente<br />
ampliou sua atuação para outros setores<br />
da sociedade, com projetos de<br />
educação e desenvolvimento social. Já<br />
a Unibes Cultural ganhou espaço na<br />
concorrida cena cultural paulistana ao<br />
promover atividades em torno de eixos<br />
temáticos contemporâneos como tecnologia,<br />
mídia, expressões culturais e<br />
empreendedorismo.<br />
A história de Assami com a Unibes<br />
começou em 2014, a partir do contato<br />
com Célia Parnes, então presidente<br />
da organização. Ela chamou o gestor<br />
cultural para uma conversa sobre o futuro<br />
incerto do prédio que abrigava o<br />
Centro da Cultura Judaica. A construção<br />
projetada pelo arquiteto Roberto<br />
Loeb é icônica: erguida em um ponto<br />
nobre da capital paulista, a estrutura<br />
de concreto tem formato que lembra<br />
o Torá, livro sagrado do judaísmo.<br />
Naquele momento, devido a questões<br />
administrativas, havia a possibilidade<br />
de o prédio deixar de ser usado como<br />
espaço cultural. “Fiquei muito tomado<br />
pela situação. Era questão de cidadania<br />
não deixar que aquele prédio sofresse.<br />
Começamos a conversar sobre<br />
o tipo de destino que poderíamos dar<br />
ao espaço e amadurecemos uma visão.<br />
Surgiu a ideia de criar a Unibes Cultu-<br />
ral”, explica. O local abriu as portas ao<br />
público em agosto de 2015. Para criá-<br />
-lo, o desafio era encontrar um novo rol<br />
de investidores, diferente daquele que<br />
apoiava a centenária Unibes, e evitar<br />
a dependência exclusiva de incentivos<br />
fiscais. “Era um novo player que surgia,<br />
sem iniciativa governamental por trás<br />
ou uma empresa privada ancorando.<br />
Mas tinha uma tradição de um século,<br />
bebia de um capital social”, conta.<br />
Abrir e manter um aparelho cultural é<br />
tarefa árdua no Brasil. Para Assami, o<br />
ponto mais urgente da pauta nacional<br />
está relacionado ao acesso aos bens<br />
culturais. “É evidente que a formação<br />
cultural do indivíduo é vital. Ele se<br />
tornará um ser humano melhor com<br />
cultura e vai adquirir uma visão mais<br />
aprofundada do seu pertencimento no<br />
século XXI”, reflete. Para ele, o hábito<br />
cultural não pode estar atrelado somente<br />
às instituições, pois outros fatores<br />
ajudam a construir a cultura de um<br />
povo. Ele explica: “A pessoa não precisa<br />
achar que sua formação cultural existe<br />
só para ela frequentar espaços culturais.<br />
Na verdade, é o ambiente cultural<br />
que fortalece seu vínculo com a cultura.<br />
É a sociedade como um todo que<br />
forma tal identidade. Frequentar museus<br />
é uma consequência de um povo<br />
que já gosta de arte, de uma sociedade<br />
que construiu sua identidade e seus<br />
valores e quer fortalecer isso. O Brasil<br />
ainda está em um momento embrionário<br />
nesse sentido”. Para Assami, o contato<br />
com a arte começou bem cedo.<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 57<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 56
Prazer em aprender<br />
Assami nasceu em 1965, em São Paulo,<br />
em uma proeminente família de<br />
imigrantes japoneses que haviam se<br />
estabelecido no Brasil desde o começo<br />
do século XX. Os dois lados da família<br />
estavam ligados ao mundo empresarial<br />
e das artes e participavam das questões<br />
da comunidade nipo-brasileira. O<br />
avô materno era dono do jornal Diário<br />
Nippak, enquanto o padrinho, do lado<br />
paterno da família, era um dos fundadores<br />
do Banco América do Sul. O<br />
pai, engenheiro e economista de formação,<br />
trabalhava como alto executivo<br />
em uma multinacional americana e<br />
ajudava a trazer empreendimentos industriais<br />
para o Brasil. A mãe, grande<br />
apreciadora de arte, participava ativamente<br />
de atividades do meio artístico.<br />
Cercado por uma família que valorizava<br />
a cultura, desde criança ele foi instigado<br />
a desbravar o mundo artístico. O<br />
avô era mecenas dos artistas do Grupo<br />
Seibi, cujo nome vinha das iniciais em<br />
japonês de “Grupo de Artistas Plásticos<br />
de São Paulo” e que, desde 1935, unia<br />
artistas imigrantes do Japão. Eram frequentes<br />
as reuniões na casa dos avós<br />
maternos de Assami, que cresceu ouvindo<br />
as histórias de figuras impor-<br />
Bruno com pai (em memória), mãe e marido | foto: arquivo pessoal<br />
tantes como a artista plástica Tomie<br />
Ohtake e os pintores Manabu Mabe e<br />
Tomoo Handa. “Não era um evento especial<br />
para mim, era uma programação<br />
normal”, lembra. “Não somos de uma<br />
cultura de celebridade. Para mim, eram<br />
pessoas normais. Mas era um ambiente<br />
de pensadores, repleto de pessoas<br />
interessantes, e havia laços afetivos.”<br />
Para ele, duas características familiares<br />
moldaram seu modo de enxergar<br />
o mundo. A primeira é que ambos os<br />
lados da família eram de imigrantes<br />
que tinham vindo para o Brasil com o<br />
intuito de se fixar por aqui, diferentemente<br />
de japoneses que vinham para<br />
enriquecer e voltar para a terra natal.<br />
“Por isso, eles eram muito receptivos<br />
à cultura brasileira, se interessavam<br />
pelo que acontecia ao redor”, completa.<br />
A segunda característica diz respeito<br />
à valorização do conhecimento como<br />
hábito diário. “Eles tinham prazer em<br />
conhecer o mundo, em aprender. A<br />
curiosidade era essencial. Isso está<br />
muito forte no DNA das famílias. Em<br />
casa, tinha que gostar tanto de matemática<br />
quanto de língua portuguesa.<br />
Apatia e conformidade nunca foram<br />
toleradas”, conta.<br />
“A minha agenda<br />
é a do interesse<br />
público, e isso é<br />
um privilégio”<br />
Carreira precoce<br />
Por causa dessa combinação de acesso a bens culturais com<br />
os valores familiares que prezavam o desenvolvimento intelectual,<br />
trabalhar com arte foi um caminho natural para o<br />
jovem Assami. “Foi sem muito planejamento. O ingresso nesse<br />
mundo foi facilitado, e o reconhecimento foi rápido, então<br />
transformar isso em um projeto de carreira foi algo automático”,<br />
explica. Aos 16 anos, Assami foi convidado por Pietro Maria<br />
Bardi, imigrante italiano que ajudou a fundar o Museu de<br />
Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), para trabalhar<br />
no museu, organizando exposições. “Tive o privilégio de<br />
começar a corrida muito cedo e com vantagem. O ambiente de<br />
colecionismo das artes já era muito presente na família”, diz.<br />
A oportunidade precoce no Masp e o convívio com artistas<br />
de vanguarda traçaram o trajeto para o estudante. “O Grupo<br />
Seibi foi a minha iniciação estética. Também me interessei<br />
pelo impressionismo como processo de ruptura. Sempre acabei<br />
me pautando pelas rupturas. Gosto dos movimentos que<br />
rompam com o status quo da arte”, afirma. “Arte, para mim, só<br />
interessa no contexto da inovação e da criatividade.” Os cinemas<br />
italiano e japonês também influenciaram Assami, principalmente<br />
os cineastas japoneses anteriores a Akira Kurosawa<br />
(1910-1998), como o diretor e roteirista Kenji Mizoguchi<br />
(1898-1956). “Minha avó materna gostava muito de cinema,<br />
e eu sempre ia com ela. Éramos convidados para as noites de<br />
lançamento de filmes japoneses que chegavam a São Paulo”,<br />
recorda.<br />
Após a experiência no Masp, que conciliou com a formação<br />
em comunicação social seguida de pós-graduação em admi-<br />
Monumento em homenagem aos 80 anos da imigração japonesa, em São Paulo | foto: Carlos Alkmin<br />
nistração, Assami trabalhou em instituições como Unicamp<br />
e Associação Brasileira dos Designers Gráficos. Logo depois,<br />
começou a construir seu nome de gestor cultural em São Paulo.<br />
Entre 1996 e 2002, ajudou o Itaú Cultural em seu processo<br />
de reposicionamento frente ao público e aos investidores. Em<br />
seguida, de 2002 a 2011, contribuiu para a criação do Instituto<br />
Tomie Ohtake. Assami, claro, já tinha uma relação próxima<br />
com Tomie e Ricardo Ohtake. “Lá, encontrei uma organização<br />
independente, uma outsider do sistema tradicional de financiamento.<br />
Ela precisava criar um papel de relevância para<br />
além do nome de Tomie Ohtake. E conseguimos atingir esse<br />
objetivo”, explica. Nesse período, dividia o trabalho no instituto<br />
com as salas de aula, como professor universitário. E retornou<br />
ao Masp por um breve período como superintendente,<br />
entre 2011 e 2012, quando o museu carecia de um reposicionamento<br />
e enfrentava desafios financeiros.<br />
Hoje, Assami está em uma fase conclusiva na Unibes Cultural.<br />
“O objetivo traçado inicialmente está próximo de ser cumprido.<br />
É um sentimento de gratificação inenarrável. A população<br />
de São Paulo adora aquele espaço, e o colocou definitivamente<br />
na sua agenda”, diz. Ele não vê problemas em elencar suas<br />
conquistas profissionais, mas é avesso a vaidades e culto à<br />
personalidade. “Minha visão é que a organização cultural precisa<br />
ser forte. Ela não pode se prender a uma personalidade,<br />
a um único gestor, por décadas. No Museu do Louvre, por<br />
exemplo, as transições envolvem um processo de três anos<br />
que integra o atual e o futuro gestor. Isso é de grande requinte<br />
organizacional. Há um compromisso máximo com a preservação<br />
da instituição”, analisa.<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 59<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 58
Agenda plural<br />
Museus e instituições culturais não são<br />
os únicos interesses e campos de atuação<br />
de Bruno Assami. Há cinco anos é<br />
conselheiro do Instituto Adus, em São<br />
Paulo, que promove a integração socioeconômica<br />
e cultural de imigrantes e<br />
refugiados. Ele também é conselheiro<br />
do Consulado Geral de Portugal em São<br />
Paulo desde 2013 e cuida da criação da<br />
Arena Cultural do Hospital do Câncer de<br />
Barretos. A pauta que envolve envelhecimento<br />
e longevidade também ocupa<br />
lugar em sua agenda. Desde 2018, ele<br />
é conselheiro do Aging 2.0, rede global<br />
que conecta líderes com projetos em<br />
inovação e terceira idade, e é membro<br />
do conselho do Centro Internacional da<br />
Longevidade no Brasil.<br />
A pauta da longevidade surgiu com urgência<br />
há sete anos, quando uma pesquisa<br />
sobre o tema chamou sua atenção.<br />
Ler pesquisas, sobre qualquer tema, é<br />
um hobby do gestor. “Se me der uma<br />
pesquisa na mão, vou ler. Sou um ser<br />
curioso por conhecer pessoas, e elas<br />
sempre trazem uma reflexão a respeito<br />
do comportamento humano”, diz. Em<br />
uma delas, cruzou com dados interessantes<br />
sobre envelhecimento e, desde<br />
então, vem inserindo a questão em<br />
seus trabalhos. “A pesquisa mostrava<br />
como a maioria das pessoas com mais<br />
de 60 anos no Brasil ainda era a principal<br />
fonte de sustento para a família e<br />
gerava renda para diferentes gerações.<br />
Estamos falando de um desafio social<br />
no futuro, já que, demograficamente,<br />
seremos um país mais velho. Então<br />
precisamos criar um campo de valores<br />
e reconhecimentos que enalteça esses<br />
indivíduos. Que tipo de envelhecimento<br />
nós queremos apresentar como<br />
valor para a sociedade?” Na Unibes<br />
Cultural, há linhas de trabalho específicas<br />
para a terceira idade, do mesmo<br />
modo que museus trazem conteúdos e<br />
atividades pensadas para as crianças.<br />
“Cultura é um dos pilares para envelhecer<br />
bem. Cultura é pertencimento.<br />
Indivíduos com mais de 60 anos não<br />
podem ter sua identidade excluída<br />
da sociedade”, afirma.<br />
“A pesquisa mostrava como a maioria das pessoas com<br />
mais de 60 anos no Brasil ainda era a principal fonte de<br />
sustento para a família e gerava renda para diferentes<br />
gerações. Estamos falando de um desafio social no futuro,<br />
já que, demograficamente, seremos um país mais velho”<br />
Theatro Municipal de São Paulo em programação do evento<br />
Experimenta Portugal, em 2017 | foto: divulgação<br />
Dever cumprido<br />
Com 40 anos de trabalho dedicados à<br />
cultura brasileira, Assami ainda está<br />
longe de pendurar as chuteiras, mas já<br />
tem um projeto desenhado para desfrutar<br />
de sua aposentadoria. Ele é casado<br />
há 12 anos com o suíço Matthias Meier,<br />
que conheceu no Brasil quando este<br />
veio ao país como diretor de uma escola<br />
suíça e para ajudar na implementação<br />
de projetos de grupos educacionais. As<br />
viagens eram mais frequentes antes da<br />
pandemia, mas o casal ainda mantém<br />
uma agenda anual dividida entre Brasil<br />
e Europa. “Matthias e eu temos o projeto<br />
de, no futuro próximo, nos desligar<br />
da vida corporativa e passar alguns<br />
anos vivendo em alguns países antes<br />
de uma aposentadoria oficial. Vamos<br />
aproveitar esses anos em que teremos<br />
saúde e uma situação econômica privilegiada<br />
para viajar pelo mundo até escolhermos<br />
finalmente o país onde queremos<br />
envelhecer. Sonhamos em viver<br />
novas culturas. Vamos começar com<br />
países mais desafiadores, do Sudeste<br />
Asiático”, revela Assami. O casal decidiu<br />
não ter filhos. “Deixamos em testamento<br />
que uma parte de nossos bens<br />
será destinada a algumas organizações<br />
internacionais. É um compromisso até<br />
o final da nossa vida com a busca pelo<br />
bem comum. São nossos valores e é coerente<br />
com a nossa existência. Isso nos<br />
faz sentir parte de um todo.”<br />
Enquanto a aposentadoria não chega,<br />
Assami segue na Unibes Cultural. “Dos<br />
15 macrodesafios que estabeleci no início<br />
da minha gestão, faltam três a serem<br />
cumpridos”, diz. Mesmo que haja<br />
muito trabalho pela frente, é possível<br />
olhar para trás com orgulho, sem cometer<br />
o pecado da vaidade. “Tem sido<br />
uma jornada de muito prazer. Apesar<br />
de ter trabalhado na iniciativa privada<br />
do terceiro setor, meu objetivo sempre<br />
foi obter resultados de interesse<br />
público. Estou feliz com minha independência.<br />
Sem relações partidárias e<br />
políticas, sem relação com um grupo<br />
empresarial com interesses específicos.<br />
A minha agenda é a do interesse<br />
público, e isso é um privilégio”, reflete.<br />
Ele também está feliz com a evolução<br />
do setor cultural no Brasil nas últimas<br />
décadas. “Lá atrás, em 1982, eu estava<br />
entrando para um setor sem estrutura<br />
e sem grandes equipamentos culturais,<br />
e um campo de trabalho para<br />
poucos. Eu me sinto realizado porque<br />
hoje temos um ecossistema artístico<br />
muito maior que há 40 anos”, afirma.<br />
Aos profissionais que querem trilhar o<br />
caminho da cultura, Assami pede ousadia<br />
e consciência. “O jovem que quer<br />
trabalhar com arte precisa saber que<br />
está ajudando a construir uma agenda<br />
simbólica. Quando você tem clareza no<br />
seu papel, você caminha com firmeza.”<br />
Que dica daria ao jovem Bruno?<br />
“O Brasil necessita urgentemente de uma agenda de<br />
inovação. Portanto, trabalhe com ousadia”<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 61<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 60
Um cartum<br />
Uma tendência<br />
Arquitetura do bem-estar<br />
O cuidado com a saúde mental ganha cada vez mais espaço<br />
não só nas discussões no ambiente de trabalho mas também<br />
dentro de casa. E a ideia é dedicar, literalmente, um espaço<br />
em nosso lar para estimular o bem-estar. O Pinterest Predicts<br />
<strong>2022</strong>, relatório anual que antecipa tendências de consumo e<br />
comportamento, sinaliza algumas mudanças no design de interiores<br />
que refletem uma busca mais objetiva por tranquilidade,<br />
inspiração e felicidade.<br />
Cada vez mais pessoas terão um quarto ou um canto da casa<br />
para dar um reset no estresse. E esse ambiente temático não<br />
precisa, necessariamente, se restringir ao silêncio meditativo.<br />
O escape room pode ser uma sala de música, um cantinho dos<br />
cristais, uma minibiblioteca, uma área para fazer artesanato<br />
ou um quarto de brincadeiras, com jogos, balanço e tudo. Há<br />
quem prefira uma descompressão express, no quarto da raiva,<br />
encarnando o personagem William Foster, interpretado por<br />
Michael Douglas no filme Um Dia de Fúria.<br />
Trazer a natureza para dentro de casa é outra maneira de investir<br />
no bem-estar mental. O design biofílico (de biofilia, que<br />
significa amor à vida) vem com força total, incorporando elementos<br />
naturais como água, plantas, madeira e pedra aos espaços<br />
internos. E nada de linhas retas. Nos projetos biofílicos,<br />
sofás e afins ganham formato arredondado, mais orgânico.<br />
A tendência wellness na arquitetura ganha ainda o toque divertido<br />
e inusitado dos móveis e acessórios voltados para os<br />
pets. Dos millennials aos boomers, diferentes gerações encontram<br />
no conforto e na diversão de seus cães e gatos a própria<br />
felicidade. Segundo o Pinterest, o país pioneiro nessa tendência<br />
de cama de luxo para o cachorro ou quarto para os gatinhos<br />
brincarem é, adivinhe, o Brasil!<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 63<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 62<br />
Foto: Getty images
Um sabor<br />
A origem do frango tikka masala é controversa. Alguns especialistas dizem que ele é indiano. Outros garantem que surgiu das<br />
mãos de um chef de Bangladesh em um restaurante de Glasgow, na Escócia. Para a Et cetera, o que importa é a perfeita combinação<br />
de sabor e aromas intensos nessa iguaria. Na versão da chef Lena Mattar, que presta consultoria a diversos restaurantes,<br />
o prato tradicionalmente servido com frango leva ovos em vez de carne. Pode ser consumido com um bom pão ou arroz branco.<br />
OVOS TIKKA MASALA<br />
Chef Lena Mattar<br />
Uma palavra<br />
Os brancos de Tulsa incendiaram o cabeleireiro da<br />
minha mãe até não sobrar nada. Incendiaram a escola<br />
que minha mãe teria frequentado e o restaurante<br />
do pai dela. Quase incendiaram minha própria<br />
mãe, que tinha uma cicatriz em forma de coração no<br />
rosto até o dia em que a enterraram. Imagine tentarem<br />
pôr fogo em uma criança de dois anos. Era a<br />
idade da minha mãe <strong>–</strong> dois anos e mal andava quando<br />
atearam fogo nela. O próprio pai a salvou, mas<br />
antes um pedaço de madeira do salão caiu sobre o<br />
rosto dela, marcando-a por toda a vida. Dois anos.<br />
Os brancos tentaram matar cada corpo preto vivo<br />
em toda Greenwood, minha mãe incluída. Cada um.<br />
Isso foi em 1921. A história tenta chamar de rebelião,<br />
mas foi um massacre. Os homens brancos vieram<br />
em seus aviões de guerra e lançaram bombas no<br />
bairro da minha mãe. Que Deus a tenha, mas se ela<br />
fosse viva contaria a história para qualquer um ouvir.<br />
Até a idade de ir para a escola, devo ter ouvido<br />
umas cem vezes. Eu sabia. Fiz questão de que Iris<br />
soubesse. E vou fazer questão de contar para Melody<br />
porque para um corpo ser lembrado alguém tem<br />
que contar sua história. Se eles tivessem incendiado<br />
minha mãe, eu não estaria aqui. Mas só digo isso <strong>–</strong><br />
se eu vivesse até os cento e noventa e nove anos,<br />
nunca iria para esse estado, Deus é testemunha,<br />
meu salvador, minha fortaleza.<br />
INGREDIENTES<br />
• 1 colher (sopa) de garam masala*<br />
• 1 colher (sopa) de gengibre em pó<br />
• 4 colheres (chá) de cúrcuma em pó<br />
• 2 colheres (chá) de cominho em pó<br />
• 1 colher (sopa) de páprica picante<br />
• 3 colheres (sopa) de extrato de tomate<br />
• 1 lata de tomate sem pele<br />
• 1 xícara (chá) de água<br />
• 1 xícara (chá) de creme de leite fresco<br />
• 4 a 6 ovos (de preferência orgânicos e caipiras)<br />
• 1 cebola<br />
• 3 dentes de alho<br />
• 4 colheres (sopa) de óleo vegetal<br />
• Sal a gosto<br />
• Coentro a gosto<br />
• Iogurte grego sem açúcar ou iogurte natural<br />
para finalizar<br />
* É possível encontrar em lojas online<br />
ou em mercados especializados.<br />
MODO DE PREPARO<br />
1. Descasque a cebola e corte-a em cubinhos<br />
pequenos. Rale os dentes de alho no<br />
ralador e reserve. Se for usar uma frigideira<br />
de ferro, preaqueça o forno a 180 °C.<br />
2. Em fogo médio/baixo, aqueça uma frigideira<br />
de ferro que possa ir ao forno ou<br />
uma frigideira de outro material, mas que<br />
tenha tampa. Aqueça o óleo e adicione a<br />
cebola e uma pitada de sal. Cozinhe até<br />
que a cebola fique translúcida, sem deixar<br />
queimar. Adicione o alho, cozinhe<br />
por 2 minutos e acrescente o extrato de<br />
tomate, o garam masala, o gengibre, a<br />
cúrcuma, o cominho e a páprica. Misture<br />
bem e deixe cozinhar por aproximadamente<br />
3 minutos.<br />
3. Acrescente os tomates pelados e seu<br />
suco, esmagando-os conforme for adi-<br />
cionando, e a xícara de água. Misture bem,<br />
baixe o fogo e deixe cozinhar até que o molho<br />
engrosse e a água seque quase toda.<br />
4. Salgue a gosto e acrescente o creme de leite<br />
fresco. Misture bem e deixe cozinhar por<br />
mais 3 minutos. Com a ajuda de uma colher<br />
de pau, cave pequenos buracos no molho<br />
e quebre um ovo dentro de cada um. Se a<br />
frigideira for de ferro, leve-a ao forno por<br />
aproximadamente 10 minutos. Para quem<br />
não tem frigideira de ferro: mantenha o<br />
fogo ligado e tampe a frigideira para que os<br />
ovos cozinhem no vapor.<br />
5. Na hora de servir, coloque algumas colheradas<br />
de iogurte entre os ovos e finalize com o<br />
coentro picado.<br />
Rendimento: 3 a 4 porções<br />
Jacqueline Woodson<br />
Trecho de Em Carne Viva<br />
Tradução de Claudia Ribeiro Mesquita<br />
Editora Todavia<br />
Foto: Bruno Geraldi<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 65<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 64
Uma imagem<br />
Foto: Ricardo Teles<br />
Os tons marrons e terrosos do ambiente emolduram a explosão<br />
de cores que saltam da pintura corporal e da indumentária<br />
dos indígenas da etnia kuikuro. É dia de comemoração<br />
na aldeia Afukuri, no Xingu, terra indígena no norte de Mato<br />
Grosso. Homens adultos e crianças praticam o huka-huka,<br />
uma competição que fecha o quarup, a grande festa dos mortos<br />
dos povos do Xingu <strong>–</strong> em 2021, os homenageados foram<br />
as vítimas da Covid-19. Os campeões de cada aldeia se enfrentam<br />
e, após o combate entre os adultos, grupos de jovens também<br />
lutam para provar sua virilidade. O objetivo da arte marcial<br />
consiste em levantar o seu adversário e levá-lo ao chão.<br />
A imagem <strong>–</strong> repleta de cores, simbolismo e movimento <strong>–</strong> é<br />
de autoria do fotógrafo brasileiro Ricardo Teles. Sua série sobre<br />
o huka-huka é uma das finalistas de um dos prêmios mais<br />
conceituados da fotografia mundial, o Sony World Photography<br />
Awards <strong>2022</strong>. Ricardo, único brasileiro que já venceu<br />
essa premiação (em 2014, na categoria Travel), pode agora<br />
levar seu segundo troféu, desta vez na categoria Esportes.<br />
“Neste ano, o concurso bateu recorde, com mais de 360 mil<br />
fotógrafos profissionais inscritos. Na verdade, só o fato de ser<br />
novamente finalista já é uma honra”, disse à Et cetera. O resultado<br />
sai em abril, e, se depender da torcida dos kuikuros, o<br />
brasileiro leva de novo.<br />
<strong>OUTONO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 7 • PÁG. 66