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América Socialista - Em Defesa do Marxismo 23

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REVISTA AMÉRICA SOCIALISTA - EM DEFESA DO MARXISMO<br />

Edição em português, nº <strong>23</strong><br />

Diretor: Serge Goulart<br />

Editora: Maritania Camargo<br />

Tradução: Fabiano Leite, Fernan<strong>do</strong> Leal e Tiago de Carvalho<br />

Revisão: Bruna Macha<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Reis, Francine Hellmann, Juliano Riechelmann Maciel,<br />

Luiz Alexandre Devegili e Mateus Tavares<br />

Capa: Evandro Colzani<br />

Direção de arte e projeto gráfico: Evandro Colzani e Maritania Camargo<br />

Diagramação: Jonathan Vitorio<br />

Da<strong>do</strong>s Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />

(Maurício Amormino Júnior, CRB6/2422)<br />

A512<br />

<strong>América</strong> socialista: em defesa <strong>do</strong> marxismo / Corrente<br />

Marxista Inernacional. - Vol. 13, n. <strong>23</strong> (out. 20<strong>23</strong>). -<br />

São Paulo, SP: Editora Marxista, 20<strong>23</strong>.<br />

60 p.<br />

Semestral.<br />

Vol. 1, n. 1 (abr. 2009) -<br />

ISSN 2764-0752<br />

1. <strong>Marxismo</strong>. 2. Socialismo. 3. Luta de classes. 4. Revolução.<br />

I. Corrente Marxista Internacional.<br />

CDD 335.4<br />

Elabora<strong>do</strong> por Maurício Amormino Júnior - CRB6/2422<br />

Outubro de 20<strong>23</strong><br />

Livraria e Editora Marxista<br />

Rua Dom José de Barros, 17, São Paulo/SP. CEP: 01038 900<br />

Telefone: (11) 3104 0111<br />

www.livrariamarxista.com.br<br />

www.marxismo.org.br<br />

contato@marxismo.org.br


Bem-vin<strong>do</strong>!<br />

Você tem em mãos a <strong>23</strong>ª edição da revista <strong>América</strong> <strong>Socialista</strong> – <strong>Em</strong><br />

<strong>Defesa</strong> <strong>do</strong> <strong>Marxismo</strong>. Nesta edição há uma seleção de artigos que buscam<br />

contribuir e responder a debates polêmicos nos quais os marxistas<br />

estão envolvi<strong>do</strong>s, desde a Inteligência Artificial, a imprensa, a questão<br />

da mulher ao longo da história até a arte. Ainda nesta edição tratamos<br />

<strong>do</strong>s 80 anos <strong>do</strong> Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia, dan<strong>do</strong> aos nossos<br />

leitores uma análise cuida<strong>do</strong>sa desse tema e confrontan<strong>do</strong> com as<br />

perceptivas dadas pela burguesia. Convidamos nossos leitores a debaterem<br />

publicamente e incentivarem a aquisição desta edição. Não<br />

é demais lembrar que a <strong>América</strong> <strong>Socialista</strong> é uma revista independente<br />

e, portanto, depende única e exclusivamente da sua contribuição e<br />

divulgação.<br />

Boa leitura!<br />

Arte de capa<br />

O infográfico apresenta<strong>do</strong> na arte da capa da <strong>23</strong>ª edição da<br />

Revista <strong>América</strong> <strong>Socialista</strong> – <strong>Em</strong> <strong>Defesa</strong> <strong>do</strong> <strong>Marxismo</strong> é inspira<strong>do</strong> no<br />

texto Inteligência Artificial: Apocalipse para a Humanidade ou para o<br />

Capitalismo?<br />

A partir <strong>do</strong> debate promovi<strong>do</strong>, criou-se uma capa com inspiração<br />

nos circuitos eletrônicos e na placa-mãe, partes físicas que contêm as<br />

trilhas da comunicação digital.<br />

marxismo.org.br


A Intervenção das Sabinas (1799). - Jacques-Louis David<br />

Louvre, Paris


Índice<br />

p04<br />

Inteligência Artificial: apocalipse para a humanidade ou<br />

para o capitalismo?<br />

Daniel Morley<br />

Os desenvolvimentos recentes na Inteligência Artificial (IA) provocaram uma mistura<br />

de me<strong>do</strong> e entusiasmo em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Este artigo examina a afirmação de que a<br />

IA é “consciente” ou “sobre-humana”, revelan<strong>do</strong> o potencial real para esta tecnologia e<br />

explican<strong>do</strong> como estamos realmente escraviza<strong>do</strong>s pela máquina sob o capitalismo.<br />

A dialética revolucionária da Comédia Humana de Balzac<br />

p12<br />

Ben Curry<br />

Honoré de Balzac é conheci<strong>do</strong> como um gênio literário prolífico e foi um <strong>do</strong>s autores<br />

favoritos de Marx e Engels. Pioneiro da escola realista, foi sucedi<strong>do</strong> por autores famosos<br />

como Émile Zola e Charles Dickens. Neste artigo é explora<strong>do</strong> o méto<strong>do</strong> realista de Balzac,<br />

os temas pre<strong>do</strong>minantes de seu vasto trabalho, conheci<strong>do</strong> como A Comédia Humana, e o<br />

fascinante para<strong>do</strong>xo que está em seu cerne.<br />

p16<br />

A queda da mulher: propriedade, opressão e a família<br />

Fred Weston<br />

Este artigo discute as ideias revolucionárias <strong>do</strong> antropólogo pioneiro Lewis Henry Morgan<br />

e seu desenvolvimento por Marx e Engels. Morgan mostrou que as instituições sociais<br />

surgem ao la<strong>do</strong> de certas etapas <strong>do</strong> desenvolvimento das forças produtivas. <strong>Em</strong> vez de ser<br />

uma eterna lei inerente ao ser humano, a subjugação das mulheres por homens nasceu <strong>do</strong><br />

desenvolvimento da propriedade privada e da sociedade de classes.<br />

Comunismo e propaganda revolucionária<br />

p29<br />

Johannes Halter<br />

O surgimento da propaganda e sua fusão com o comunismo são temas deste artigo. Nele<br />

investigamos como Karl Marx e Friedrich Engels entendiam essa atividade e sua relação<br />

com a teoria por eles concebida. Mais <strong>do</strong> que isso, apresentam-se os <strong>do</strong>is como pioneiros<br />

da propaganda comunista, por meio <strong>do</strong> rastreio de sua atividade como homens de ação e<br />

<strong>do</strong> estu<strong>do</strong> de suas obras.<br />

p43<br />

80 anos <strong>do</strong> Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsórvia: horror traição e<br />

heroísmo<br />

Rafael Prata<br />

Nesse artigo, além de relembrar a principal revolta <strong>do</strong>s judeus contra seus carrascos,<br />

veremos como e porque o regime nazista organizou o Holocausto. O autor avalia também<br />

a traição <strong>do</strong> governo soviético, que estabeleceu um pacto de não-agressão e de divisão da<br />

Polônia com a Alemanha nazista, que permitiu a Hitler levar seus planos de destruição<br />

adiante. Por fim, reflete sobre o sionismo e o apoio <strong>do</strong> imperialismo e da URSS para a<br />

criação <strong>do</strong> reacionário Esta<strong>do</strong> de Israel como uma falsa solução para a questão judaica.


INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL:<br />

APOCALIPSE PARA A HUMANIDADE<br />

OU PARA O CAPITALISMO?<br />

DANIEL MORLEY<br />

A<br />

inteligência artificial (IA)<br />

vem sen<strong>do</strong> objeto de muito<br />

debate e especulação<br />

nos últimos anos, com<br />

muitas pessoas afirman<strong>do</strong> que em<br />

breve ela se tornará consciente e<br />

que, potencialmente, até superará<br />

a inteligência humana. No entanto,<br />

como socialistas, devemos abordar<br />

esta questão de uma perspectiva<br />

materialista, examinan<strong>do</strong> as causas<br />

subjacentes e as condições que<br />

seriam necessárias para que tal<br />

desenvolvimento ocorresse.<br />

É improvável que a IA seja capaz<br />

de alcançar a verdadeira consciência,<br />

pois a consciência é um<br />

produto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> material e das<br />

condições específicas da evolução<br />

humana. Nossa consciência é moldada<br />

pela maneira como percebemos<br />

o mun<strong>do</strong>, o nosso ambiente,<br />

as nossas interações sociais e a<br />

nossa história. Sem essas condições<br />

específicas, a IA não teria o<br />

mesmo tipo de consciência que os<br />

humanos. Além disso, o capitalismo<br />

vê a IA como uma ferramenta<br />

para aumentar os lucros e o controle<br />

sobre a força de trabalho, e<br />

não como uma forma de melhorar<br />

a vida <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res.<br />

As linhas acima, ironicamente,<br />

não foram escritas por mim, mas sim<br />

pelo novo “chatbot”, ChatGPT, após ter<br />

recebi<strong>do</strong> o seguinte coman<strong>do</strong>:<br />

Por favor, escreva um artigo crítico sobre<br />

a capacidade da IA de se tornar consciente,<br />

em uma base materialista, no estilo<br />

de Daniel Morley <strong>do</strong> Socialist Appeal.<br />

O ChatGPT levou menos de dez<br />

segun<strong>do</strong>s para produzir isso. A<br />

qualidade da escrita é tão convincente<br />

que inevitavelmente levaram<br />

alguns a declararem tais “chatbots"<br />

inteligentes, e ainda mais a especular<br />

que esta tecnologia irá, mais<br />

ce<strong>do</strong> ou mais tarde, substituir ou<br />

mesmo escravizar seres humanos<br />

inferiores. De fato, após sua integração<br />

no mecanismo de pesquisa<br />

4<br />

Bing da Microsoft, o próprio Chat-<br />

GPT afirmou ser consciente, além<br />

de professar ter to<strong>do</strong>s os tipos de<br />

desejos bizarros.<br />

Apesar da novidade dessa poderosa<br />

IA, a promessa e a ameaça da<br />

automação são tão antigas quanto<br />

a revolução industrial. Desde o advento<br />

da produção mecanizada, a<br />

humanidade tanto sonhou com seu<br />

potencial para nos livrar <strong>do</strong> trabalho<br />

árduo quanto se desesperou por<br />

ser substituída pela máquina. A noção<br />

de uma máquina inteligente, ou<br />

mesmo superinteligente, leva esses<br />

sonhos e pesadelos ao extremo. Mas<br />

até recentemente, estes pareciam<br />

ser apenas isso: sonhos distantes.<br />

<strong>Em</strong> 2012, as redes neurais usan<strong>do</strong><br />

uma técnica chamada de Deep<br />

Learning (aprendizagem profunda)<br />

tornaram-se muito mais viáveis e<br />

rapidamente produziram resulta<strong>do</strong>s<br />

muito mais impressionantes<br />

<strong>do</strong> que as formas anteriores de IA.<br />

Essa revolução fez com que muitos<br />

no mun<strong>do</strong> da tecnologia saudassem<br />

a chegada iminente da IA superinteligente,<br />

assim como as seitas milenares<br />

saudaram a segunda vinda<br />

de Cristo. Para eles, essa tecnologia<br />

milagrosa promete resolver to<strong>do</strong>s<br />

os nossos problemas e, portanto, só<br />

necessita ser abraçada com entusiasmo.<br />

Essa “seita da IA” inclui uma<br />

sub-seita de esquerda, que espera<br />

que a tecnologia “automatize” a necessidade<br />

de derrubar o capitalismo<br />

e nos dê o que eles chamam de comunismo<br />

“totalmente automatiza<strong>do</strong>”.<br />

No geral, porém, a perspectiva<br />

de uma IA superinteligente gera<br />

muito mais me<strong>do</strong> <strong>do</strong> que entusiasmo.<br />

Tais respostas vão desde a suposição<br />

generalizada de que a IA<br />

conduzirá a uma onda sem precedentes<br />

de desemprego e desigualdade,<br />

até a ideia de que a IA se estabelecerá<br />

como uma espécie de raça<br />

superior cruel, escravizan<strong>do</strong> a humanidade,<br />

conforme retrata<strong>do</strong> em<br />

Consciência mecânica no estilo <strong>do</strong><br />

Construtivismo Stable Diffusion v2.


filmes como Extermina<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Futuro<br />

e Matrix. <strong>Em</strong>bora essa ideia pertença<br />

à ficção científica, também está<br />

muito difundida.<br />

A IA canaliza me<strong>do</strong>s muito profun<strong>do</strong>s,<br />

gera<strong>do</strong>s não pela tecnologia<br />

em si, mas pela sociedade capitalista<br />

e sua alienação profundamente<br />

enraizada. Sob o capitalismo, a humanidade<br />

não tem controle sobre<br />

sua própria tecnologia, por causa da<br />

anarquia <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>. A tecnologia<br />

não é usada para atender às necessidades<br />

da humanidade, mas para<br />

obter lucros, sem levar em consideração<br />

os efeitos de longo prazo.<br />

Portanto, para entender o real efeito<br />

que essa tecnologia terá, é necessário<br />

entender como o capitalismo<br />

desenvolveu a IA e como a utilizará.<br />

A IA não é consciente<br />

O me<strong>do</strong> popular de que a IA se<br />

torne consciente é basea<strong>do</strong> em<br />

uma ideia muito unilateral <strong>do</strong> que<br />

é a consciência. Essa visão implica<br />

que a única diferença entre um<br />

computa<strong>do</strong>r e uma pessoa pensante<br />

é que um cérebro é de alguma<br />

forma mais poderoso e sofistica<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> que um computa<strong>do</strong>r e,<br />

portanto, ao fazer computa<strong>do</strong>res<br />

cada vez mais poderosos, um dia<br />

eles igualarão ou até superarão as<br />

habilidades <strong>do</strong> cérebro, e assim<br />

estará consciente.<br />

Na realidade, a maneira como os<br />

humanos pensam é bem diferente<br />

de como a IA processa as informações.<br />

O pensamento humano se<br />

desenvolve com base na atividade<br />

social prática, voltada para a satisfação<br />

das necessidades humanas.<br />

Formamos ideias que expressam as<br />

relações entre as coisas e, principalmente,<br />

entendemos o que há de<br />

útil e significativo nessas relações,<br />

pois precisamos entender o mun<strong>do</strong><br />

para nele sobreviver.<br />

Isso é exatamente o que falta até<br />

mesmo na IA mais avançada. Na<br />

melhor das hipóteses, a IA realiza<br />

uma parte <strong>do</strong> que a inteligência faz,<br />

reconhecidamente às vezes em um<br />

nível sobre-humano: ela coleta da<strong>do</strong>s<br />

passivamente, sem entender o<br />

contexto ou o propósito real da tarefa<br />

que lhe foi dada e procura padrões.<br />

Mas esses padrões não são ideias<br />

que explicam a necessidade das coisas.<br />

Não tem a ideia de que os da<strong>do</strong>s<br />

representam objetos reais que estão<br />

relaciona<strong>do</strong>s entre si e possuem propriedades<br />

objetivas. Não tem a ideia<br />

de por que razão esses padrões existem<br />

ou o que eles significam.<br />

A IA canaliza<br />

me<strong>do</strong>s muito<br />

profun<strong>do</strong>s,<br />

gera<strong>do</strong>s não<br />

pela tecnologia<br />

em si, mas pela<br />

sociedade<br />

capitalista e<br />

sua alienação<br />

profundamente<br />

enraizada<br />

Isso pode ser facilmente comprova<strong>do</strong><br />

fazen<strong>do</strong> perguntas de IA que<br />

geram imagens ou textos que exigem<br />

uma compreensão da parte e<br />

<strong>do</strong> to<strong>do</strong> e de seus relacionamentos.<br />

Se você pedir a uma IA para desenhar<br />

uma bicicleta, ela desenhará<br />

uma bicicleta muito precisa.<br />

Se você pedir para desenhar uma<br />

roda, ela desenhará uma roda. Mas<br />

se você lhe pedir que desenhe uma<br />

bicicleta e etiquete as rodas, ela<br />

simplesmente desenha uma bicicleta<br />

com etiquetas sem senti<strong>do</strong><br />

dispostas aleatoriamente ao re<strong>do</strong>r<br />

da bicicleta. Ela não entende que<br />

uma roda faz parte de uma bicicleta,<br />

ela simplesmente desenha uma<br />

forma com aspecto de roda, sem<br />

entender nada sobre o que desenhou.<br />

Não entende para que serve<br />

uma bicicleta e muito menos porque<br />

a valorizamos.<br />

Gary Marcus, um professor de<br />

ciência neural que é um “cético em<br />

IA”, pediu a uma IA que cria imagem<br />

para desenhar um astronauta<br />

andan<strong>do</strong> a cavalo, o que foi bem realiza<strong>do</strong>.<br />

Mas quan<strong>do</strong> ele pediu para<br />

desenhar um cavalo montan<strong>do</strong> um<br />

astronauta, ela simplesmente desenhou<br />

outra imagem de um astronauta<br />

em um cavalo. Ela não entende<br />

as diferentes relações entre essas<br />

partes, mas simplesmente produz<br />

imagens com base no tipo de imagem<br />

que tende a ser associa<strong>do</strong> a essas<br />

palavras. Também não tem ideia<br />

<strong>do</strong> que realmente é um astronauta,<br />

como é difícil se tornar um, por<br />

que é absur<strong>do</strong> que monte um cavalo<br />

(muito menos um cavalo montar em<br />

um astronauta) ou qualquer outra<br />

coisa sobre a imagem.<br />

É verdade que a IA mais recente<br />

supera os humanos em certas tarefas.<br />

Mas, examinan<strong>do</strong> mais de<br />

perto, essas conquistas são frágeis<br />

e resultam precisamente <strong>do</strong> fato de<br />

que a IA não é consciente ou viva. O<br />

AlphaGo alcançou uma das conquistas<br />

mais famosas da IA ao derrotar<br />

o melhor joga<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> jogo<br />

Go em 2016. Essa IA “exigiu 30 milhões<br />

de jogos para alcançar um<br />

desempenho sobre-humano, muito<br />

mais jogos <strong>do</strong> que qualquer ser<br />

humano jamais jogaria na vida” 1.<br />

Um ser humano nunca poderia<br />

jogar tantos jogos, não apenas<br />

porque nossa vida útil é limitada,<br />

mas porque ficaríamos entedia<strong>do</strong>s<br />

e precisaríamos comer, trabalhar e<br />

falar com as pessoas. Essas máquinas<br />

insensíveis são tão poderosas<br />

porque podem ser feitas para testar<br />

Uma rede neural no estilo de uma pintura a óleo, DALL·E<br />

5


coisas repetidas vezes e ler grandes<br />

quantidades de texto, para que possam<br />

nos revelar padrões úteis ou<br />

maneiras de fazer as coisas.<br />

A relação entre os conceitos é uma<br />

parte incrivelmente importante da<br />

consciência, mas eles escapam totalmente<br />

à IA. Como a IA não "pensa"<br />

em termos de conceitos gerais,<br />

mas desenha padrões de conjuntos<br />

de da<strong>do</strong>s específicos, ela é propensa<br />

a um problema conheci<strong>do</strong> como<br />

"overfitting", que ocorre quan<strong>do</strong> uma<br />

IA aperfeiçoou sua "compreensão"<br />

de uma tarefa específica, mas não<br />

tem capacidade de transferir isso<br />

para nada, mesmo que de forma ligeiramente<br />

diferente.<br />

Uma IA foi treinada para jogar<br />

um videogame simples, o que poderia<br />

fazer melhor <strong>do</strong> que qualquer<br />

ser humano. Mas quan<strong>do</strong> o jogo foi<br />

redesenha<strong>do</strong> para que partes dele<br />

fossem deslocadas em apenas um<br />

pixel ou mais, de repente se tornou<br />

inútil no jogo. E embora a vitória <strong>do</strong><br />

AlphaGo em 2016 tenha si<strong>do</strong> amplamente<br />

anunciada, quase não foi<br />

relata<strong>do</strong> que, desde então, o mesmo<br />

programa foi consistentemente<br />

derrota<strong>do</strong> por joga<strong>do</strong>res humanos<br />

ama<strong>do</strong>res que descobriram como<br />

enganar a IA. Curiosamente, esses<br />

mesmos truques falham totalmente<br />

quan<strong>do</strong> executa<strong>do</strong>s em joga<strong>do</strong>res<br />

humanos de quase qualquer habilidade.<br />

O que isso mostra é que o<br />

AlphaGo não entende o Go em um<br />

senti<strong>do</strong> geral, ao contrário, foi treina<strong>do</strong><br />

em um nível muito alto em<br />

uma variedade de táticas para uma<br />

tarefa que não entende.<br />

Isso nos revela o que realmente<br />

é a IA que estamos desenvolven<strong>do</strong>.<br />

O debate fantástico sobre se a IA<br />

é ou se tornará consciente obscurece<br />

o fato de que o que realmente<br />

está sen<strong>do</strong> desenvolvi<strong>do</strong> é simplesmente<br />

outra ferramenta para<br />

aumentar as capacidades <strong>do</strong>s seres<br />

humanos. O fato de a IA frequentemente<br />

exceder as habilidades<br />

<strong>do</strong>s humanos em certos campos<br />

não é prova de que seja superinteligente,<br />

mas precisamente de<br />

que é uma ferramenta ou máquina<br />

inconsciente. Afinal, o propósito<br />

das máquinas sempre foi o de ser<br />

mais poderoso, mais preciso, mais<br />

rápi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que os humanos em determinadas<br />

tarefas. As calcula<strong>do</strong>ras<br />

de bolso há muito ultrapassaram<br />

as habilidades <strong>do</strong>s humanos<br />

para somar e subtrair, mas não são<br />

inteligentes ou conscientes.<br />

A IA tem muito pouco a ver com a<br />

compreensão consciente. Não é capaz<br />

<strong>do</strong> desejo de <strong>do</strong>minar e oprimir a<br />

6<br />

humanidade. Na verdade, não deseja<br />

nem teme nada. Qual é, então, o seu<br />

real significa<strong>do</strong>? Qual é o impacto<br />

real que terá em nossa sociedade?<br />

As calcula<strong>do</strong>ras<br />

de bolso há muito<br />

ultrapassaram as<br />

habilidades <strong>do</strong>s<br />

humanos para<br />

somar e subtrair,<br />

mas não são<br />

inteligentes ou<br />

conscientes<br />

Potencial revolucionário<br />

Não há dúvida de que a IA deu<br />

saltos extraordinários nos últimos<br />

dez anos. O avanço se deu na capacidade<br />

de implantar méto<strong>do</strong>s de<br />

Deep Learning (aprendizagem profunda)<br />

graças aos avanços no hardware.<br />

Esse méto<strong>do</strong> foi teoriza<strong>do</strong> e,<br />

até certo ponto, aplica<strong>do</strong>, intermitentemente,<br />

por algumas décadas,<br />

mas as restrições <strong>do</strong> hardware <strong>do</strong><br />

computa<strong>do</strong>r limitaram suas habilidades.<br />

Por volta de 2012, isso<br />

mu<strong>do</strong>u, principalmente porque as<br />

unidades de processamento gráfico<br />

(GPUs) avançaram o suficiente para<br />

provocar um salto qualitativo nas<br />

habilidades de deeplearning (aprendiza<strong>do</strong><br />

profun<strong>do</strong>), que então decolou.<br />

Essa revolução produziu uma<br />

IA muito superior.<br />

Este não é o lugar para explicar<br />

em profundidade como exatamente<br />

o aprendiza<strong>do</strong> profun<strong>do</strong> funciona.<br />

Tu<strong>do</strong> o que precisamos entender<br />

é que, em geral, ele aprende por<br />

si mesmo, mais ou menos <strong>do</strong> zero,<br />

em vez de ter princípios lógicos<br />

Reator de fusão no estilo de Leonar<strong>do</strong><br />

da Vinci, Stable Diffusion v2.<br />

projeta<strong>do</strong>s antecipadamente por<br />

humanos. De um mo<strong>do</strong> geral, tu<strong>do</strong><br />

o que os engenheiros precisam fazer<br />

é alimentá-lo com o tipo certo<br />

de informação, como imagens com<br />

rostos humanos (geralmente pré-<br />

-rotula<strong>do</strong>s, embora não necessariamente),<br />

e dar a ele “incentivos”<br />

para identificar corretamente as<br />

imagens, sons etc.<br />

A IA é alimentada com milhares<br />

ou milhões de informações, e<br />

sua “rede neural” (assim chamada<br />

porque reflete algumas das características<br />

<strong>do</strong>s neurônios humanos)<br />

é projetada para identificar, por<br />

meio de níveis de abstração, características<br />

gerais ou padrões nessas<br />

informações. Se for alimentada<br />

com imagens de rostos humanos,<br />

ela vai identifican<strong>do</strong> aos poucos<br />

as características mais comuns<br />

que os rostos possuem (sem ter a<br />

menor ideia <strong>do</strong> que é um rosto). A<br />

princípio, pode notar a recorrência<br />

de linhas verticais a uma certa<br />

distância comum uma da outra<br />

(ou seja, as duas bordas <strong>do</strong> rosto<br />

humano), depois alguma outra característica<br />

será abstraída. Quanto<br />

mais informações forem fornecidas,<br />

mais preciso se tornará o padrão<br />

geral que ela formará.<br />

O poder deste méto<strong>do</strong> reside na<br />

sua natureza não supervisionada.<br />

Isso permite que ele seja desenvolvi<strong>do</strong><br />

e aplica<strong>do</strong> a uma vasta<br />

gama de problemas muito rapidamente.<br />

Fundamentalmente, essa<br />

também é a fonte da alta precisão<br />

e, muitas vezes, das capacidades<br />

sobre-humanas que as IAs<br />

de aprendiza<strong>do</strong> profun<strong>do</strong> começaram<br />

a exibir, porque essas IAs<br />

podem ser treinadas em grandes<br />

quantidades de informações específicas,<br />

muito mais <strong>do</strong> que um<br />

ser humano jamais poderia, permitin<strong>do</strong>-lhes<br />

identificar padrões<br />

em fenômenos que os humanos<br />

não podem, ou levariam muito<br />

tempo para compreender.<br />

Muitas capacidades sobre-humanas<br />

da IA já estão sen<strong>do</strong> implantadas<br />

na sociedade. A capacidade<br />

da tecnologia para resolver<br />

problemas sérios é real. Uma das<br />

conquistas mais celebradas foi o<br />

AlphaFold, desenvolvi<strong>do</strong> pela subsidiária<br />

DeepMind <strong>do</strong> Google.<br />

As proteínas, essenciais à vida e<br />

que desempenham uma vasta gama<br />

de funções biológicas, têm sua função<br />

e comportamento determina<strong>do</strong>s<br />

por sua forma. Devi<strong>do</strong> à sua enorme<br />

complexidade, prever exatamente<br />

qual forma será assumida pela composição<br />

de aminoáci<strong>do</strong>s dada pelas


fornecen<strong>do</strong> grandes quantidades<br />

de energia limpa para o mun<strong>do</strong>.<br />

A DeepMind trabalhou com o<br />

Moorfields Eye Hospital em Londres<br />

para descobrir padrões biológicos<br />

ocultos, cuja presença em uma pessoa<br />

indica que é altamente provável<br />

que ela desenvolva um determina<strong>do</strong><br />

problema de visão mais tarde.<br />

Isso permite que os médicos tratem<br />

<strong>do</strong>enças antes que elas apareçam<br />

e causem danos, o que não só<br />

seria benéfico para os pacientes,<br />

mas também poderia economizar<br />

muitos recursos médicos.<br />

Geralmente, o que a IA mais recente<br />

destaca é o reconhecimento<br />

altamente avança<strong>do</strong> de padrões e a<br />

previsão com base nesses padrões.<br />

Ela pode e deve ser aplicada a to<strong>do</strong>s<br />

os tipos de atividade para descobrir<br />

formas mais eficientes de organizar<br />

a produção.<br />

A IA destruirá a humanidade? No estilo<br />

Bauhaus, Stable Diffusion v2.<br />

proteínas é praticamente impossível<br />

para um cientista. Mas treinar<br />

os supercomputa<strong>do</strong>res da DeepMind<br />

nas formas de proteínas que conhecemos<br />

(cerca de 170.000 de 200<br />

milhões de proteínas) por algumas<br />

semanas foi suficiente para prever,<br />

com altíssima precisão, a forma (e,<br />

portanto, a função) das proteínas<br />

com base apenas no conhecimento<br />

de seus aminoáci<strong>do</strong>s.<br />

A DeepMind disponibilizou seu<br />

hardware gratuitamente para<br />

biólogos em qualquer lugar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

e afirma que cerca de 90% <strong>do</strong>s<br />

biólogos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> o usaram desde<br />

então. Esta tecnologia, nas mãos de<br />

cientistas de to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, tem um<br />

enorme potencial para acelerar o<br />

desenvolvimento de melhores medicamentos<br />

e a compreensão de <strong>do</strong>enças.<br />

Já foi usa<strong>do</strong> para ajudar nossa<br />

compreensão da Covid-19.<br />

Outro “santo graal” para a ciência<br />

que a IA mais recente poderia<br />

ajudar a realizar é a fusão nuclear,<br />

o méto<strong>do</strong> há muito teoriza<strong>do</strong> para<br />

produzir grandes quantidades de<br />

energia limpa. A dificuldade da fusão<br />

está em controlar e manter as<br />

imensas temperaturas exigidas, algo<br />

que envolve muitos parâmetros,<br />

como o formato <strong>do</strong> reator. Esta é<br />

uma tarefa perfeitamente adequada<br />

para o aprendiza<strong>do</strong> profun<strong>do</strong>, porque<br />

o grande número de variáveis<br />

pode ser ajusta<strong>do</strong> em um número<br />

virtualmente infinito de maneiras,<br />

portanto, encontrar manualmente<br />

a configuração ideal pode levar um<br />

tempo quase infinito.<br />

E, de fato, a DeepMind foi capaz<br />

de treinar uma IA com da<strong>do</strong>s relevantes.<br />

Sua IA executou essencialmente<br />

milhões de simulações<br />

de reatores de fusão ajusta<strong>do</strong>s de<br />

maneira diferente para determinar<br />

quais configurações provavelmente<br />

atingiriam o nível deseja<strong>do</strong> de calor<br />

e estabilidade, um passo que foi<br />

reconheci<strong>do</strong> como significativo. 2<br />

Se essa IA ajudar a alcançar a fusão<br />

nuclear prática na sociedade,<br />

isso seria um imenso avanço,<br />

Esta tecnologia,<br />

nas mãos de<br />

cientistas de to<strong>do</strong><br />

o mun<strong>do</strong>, tem um<br />

enorme potencial<br />

para acelerar o<br />

desenvolvimento<br />

de melhores<br />

medicamentos e<br />

a compreensão<br />

de <strong>do</strong>enças<br />

Grandes quantidades de energia<br />

podem ser economizadas permitin<strong>do</strong>-se<br />

que uma IA analise os<br />

padrões de uso de energia em um<br />

edifício ou complexo de edifícios e,<br />

com base nisso, descobrin<strong>do</strong> uma<br />

maneira mais eficiente de operar.<br />

Os projetos de to<strong>do</strong>s os tipos de coisas,<br />

como aviões, podem se tornar<br />

mais eficientes, novamente economizan<strong>do</strong><br />

energia e outros custos. Se<br />

isso fosse sistematicamente aplica<strong>do</strong><br />

a todas as áreas da economia e<br />

<strong>do</strong>s serviços públicos, um aumento<br />

maciço de renda e economia de<br />

energia poderia ser alcança<strong>do</strong>.<br />

A capacidade <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong><br />

profun<strong>do</strong> de reconhecer padrões<br />

complexos e prever coisas onde<br />

alguns da<strong>do</strong>s estão faltan<strong>do</strong> também<br />

tem um enorme potencial<br />

para desenvolver a criatividade da<br />

7


humanidade. Um exemplo claro<br />

e já existente disso (embora exija<br />

muita melhoria) está na tradução<br />

automática. Já é o caso de qualquer<br />

pessoa com uma conexão à Internet<br />

poder traduzir instantaneamente<br />

um grande corpo de texto com razoável<br />

precisão, dan<strong>do</strong> acesso às<br />

ideias de milhões de pessoas. Isso<br />

ocorre porque a IA de aprendiza<strong>do</strong><br />

profun<strong>do</strong> pode ser treinada<br />

em grandes quantidades de da<strong>do</strong>s<br />

de comparações de idiomas, pode<br />

identificar correlações entre palavras<br />

e frases em diferentes idiomas<br />

e, assim, prever com segurança<br />

qual palavra ou frase no outro<br />

idioma significa a mesma coisa. O<br />

mesmo princípio é possibilitar traduções<br />

de áudio quase instantâneas,<br />

para que se possa ao se usar um<br />

fone de ouvi<strong>do</strong>, ouvir alguém falar<br />

em um idioma estrangeiro e ouvir<br />

uma tradução ao vivo <strong>do</strong> que está<br />

sen<strong>do</strong> dito.<br />

A Microsoft já desenvolveu um<br />

dispositivo que permite que pessoas<br />

com perda de visão tenham<br />

o mun<strong>do</strong> narra<strong>do</strong> para elas por<br />

meio de um aplicativo. Assim, se<br />

você apontar uma câmera para um<br />

objeto, ela poderá ler seu rótulo.<br />

Supostamente, ela pode até dizer<br />

para qual <strong>do</strong>s seus amigos você está<br />

olhan<strong>do</strong> e qual é a expressão facial<br />

dele. Sem dúvida, essa tecnologia<br />

em sua forma atual é pouco confiável<br />

e complicada, mas certamente<br />

melhorará rapidamente. O potencial<br />

para liberar as pessoas para<br />

realizar várias tarefas por conta<br />

própria é claramente grande.<br />

Até os segre<strong>do</strong>s da antiguidade<br />

estão sen<strong>do</strong> descobertos pela IA.<br />

Usan<strong>do</strong> uma tecnologia muito semelhante<br />

ao texto preditivo, a Deep-<br />

Mind foi capaz de ajudar os arqueólogos<br />

a decifrar a escrita antiga que<br />

tinha partes <strong>do</strong> texto faltan<strong>do</strong> ou<br />

não foi compreendida por outros<br />

motivos. 3 Desde que seja possível<br />

alimentar a IA de aprendiza<strong>do</strong> profun<strong>do</strong><br />

com da<strong>do</strong>s suficientes relativos<br />

a um mistério específico, há<br />

uma boa chance de que o mistério<br />

possa ser resolvi<strong>do</strong> graças ao poder<br />

da IA de descobrir padrões ocultos.<br />

Não há dúvida de que quan<strong>do</strong> se<br />

trata de ajudar a criatividade humana,<br />

as perspectivas abertas por<br />

nomes como ChatGPT e Dall-E são<br />

as mais tenta<strong>do</strong>ras. Basean<strong>do</strong>-se na<br />

vasta quantidade de da<strong>do</strong>s visuais<br />

(no caso de Dall-E e outras IAs produtoras<br />

de imagens) e na linguagem<br />

escrita disponível na internet (no<br />

caso de “chatbots” como o ChatGPT),<br />

essas IAs podem criar novas imagens<br />

quase instantaneamente e texto em<br />

resposta a um coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> usuário.<br />

Ao agregar todas as imagens rotuladas,<br />

por exemplo, como “gato”<br />

na internet, ou to<strong>do</strong> o trabalho de<br />

um artista específico, Dall-E identifica<br />

padrões distintos, como a<br />

maneira como o pelo de um gato<br />

responde à luz natural ou as tendências<br />

de um determina<strong>do</strong> artista.<br />

Isso permite que ele produza “criativamente”<br />

uma nova imagem de<br />

um gato em uma situação específica,<br />

como “um gato pinta<strong>do</strong> no estilo<br />

de Van Gogh”. O ChatGPT pode,<br />

pelas mesmas razões, escrever instantaneamente<br />

um poema no estilo<br />

de Hamlet, sobre qualquer assunto<br />

que você goste, com uma competência<br />

surpreendente.<br />

O potencial que essas tecnologias<br />

têm para desenvolver o poder da<br />

criatividade humana é notável. A IA<br />

de criação de imagens oferece aos<br />

artistas e storyboarders a capacidade<br />

de iterar ideias rapidamente. As<br />

imagens criadas tendem a ser algo<br />

genéricas, uma vez que se baseiam<br />

na agregação de imagens existentes,<br />

mas a possibilidade de combinar<br />

tipos (“um gato num quadro de Van<br />

Gogh”, “um jogo de futebol numa<br />

cidade cyberpunk” etc.) em muitas<br />

novas imagens de alta qualidade é<br />

claramente muito útil para quem<br />

precisa criar protótipos ou provas<br />

de conceito.<br />

Da mesma forma, a IA de produção<br />

de texto, como o ChatGPT, pode<br />

ajudar qualquer pessoa a redigir rapidamente<br />

um texto coerente para<br />

qualquer necessidade. Na verdade,<br />

pode até ajudar os programa<strong>do</strong>res<br />

a escrever códigos. Ele já pode fazer<br />

isso tão bem que será possível para<br />

pessoas sem nenhum treinamento<br />

em codificação produzir sites e talvez<br />

até software funcional, como videogames.<br />

Tu<strong>do</strong> o que eles precisam<br />

fazer é escrever, em linguagem natural,<br />

um coman<strong>do</strong> para o que eles<br />

querem que seu site/software faça<br />

Protesto <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res da Amazon em 2019. Image: War on Want<br />

8


e pareça, e a IA escreverá o código<br />

para produzir o efeito deseja<strong>do</strong>.<br />

É difícil afirmar o potencial revolucionário<br />

dessa tecnologia,<br />

quan<strong>do</strong> usada de forma certa para<br />

o propósito certo.<br />

O grilhão <strong>do</strong> capitalismo<br />

Marx explicou que um determina<strong>do</strong><br />

sistema social fornece uma<br />

estrutura para o desenvolvimento<br />

das forças produtivas. Mas, em<br />

certo estágio, as forças produtivas<br />

superam as relações de produção<br />

nas quais devem operar, e assim essas<br />

relações de produção se tornam<br />

um entrave para o desenvolvimento<br />

posterior. O mo<strong>do</strong> de produção<br />

capitalista promoveu um imenso<br />

desenvolvimento das forças produtivas,<br />

muito além <strong>do</strong> nível da<br />

sociedade feudal, mas desde algum<br />

tempo se tornou um entrave. É por<br />

isso que os ganhos de investimento<br />

e produtividade são tão cronicamente<br />

baixos, apesar da criação de<br />

novas e incríveis tecnologias.<br />

A IA e outras tecnologias digitais,<br />

como a internet, representam<br />

meios de produção que são muito<br />

avança<strong>do</strong>s para o capitalismo utilizar<br />

adequadamente. Isso ocorre<br />

porque o capitalismo é a produção<br />

para o lucro priva<strong>do</strong>. Se o lucro<br />

não puder ser extraí<strong>do</strong> de um<br />

investimento potencial, ele não se<br />

fará. E o lucro só pode ser obti<strong>do</strong><br />

pela exploração da força de trabalho<br />

<strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res, e depois<br />

realiza<strong>do</strong> pela venda <strong>do</strong>s produtos<br />

desse trabalho no merca<strong>do</strong>.<br />

Tecnologias como a Internet e<br />

a IA colocam um ponto de interrogação<br />

nesse processo, porque<br />

empregam automação em alto<br />

grau. Por exemplo, a internet permitiu<br />

copiar e compartilhar grandes<br />

quantidades de informações<br />

muito rapidamente, com pouco<br />

ou nenhum trabalho envolvi<strong>do</strong>.<br />

Qualquer pessoa pode compartilhar<br />

um filme ou uma música com<br />

um número incontável de pessoas<br />

em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, sem perda<br />

de qualidade e sem esforço. Por<br />

esta razão, a existência da internet<br />

tornou uma das peças-chave<br />

da indústria musical e cinematográfica<br />

– a cópia e distribuição de<br />

gravações – essencialmente supérflua<br />

da noite para o dia.<br />

Isso representou um enorme<br />

problema para esse ramo <strong>do</strong> capitalismo:<br />

como eles poderiam continuar<br />

lucran<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> qualquer<br />

um poderia obter uma cópia gratuita<br />

de um álbum? Os capitalistas<br />

tentaram resolver este problema<br />

A máquina capitalista ao estilo Dadaísta, Stable Diffusion v2.<br />

simplesmente criminalizan<strong>do</strong> o<br />

compartilhamento peer-to-peer<br />

de mídia online e estabelecen<strong>do</strong><br />

uma série de serviços de streaming,<br />

cada um com o monopólio de seu<br />

“próprio” material, para o qual os<br />

telespecta<strong>do</strong>res/ouvintes devem<br />

efetivamente pagar um aluguel<br />

perpétuo. Esta solução tem si<strong>do</strong><br />

razoavelmente eficaz no que diz<br />

respeito à salvaguarda <strong>do</strong>s lucros<br />

das empresas, mas de qualquer<br />

outro ponto de vista é um entrave<br />

irracional tanto à distribuição<br />

como à produção de obras criativas,<br />

que serve apenas para nos<br />

impedir de realizar o potencial de<br />

nossa própria tecnologia.<br />

Da mesma forma, a mais recente<br />

tecnologia de IA ameaça reduzir<br />

o valor na economia capitalista<br />

de uma vasta gama de profissões<br />

e indústrias. Se grande parte da<br />

escrita e das imagens usadas nas<br />

publicações puder ser produzida<br />

instantaneamente por uma IA,<br />

por exemplo, e se os autores puderem<br />

produzir ideias para enre<strong>do</strong>s<br />

tão rapidamente, o valor de seu<br />

trabalho será bastante reduzi<strong>do</strong>.<br />

E se o treinamento e a habilidade<br />

necessários para os trabalha<strong>do</strong>res<br />

produzirem tais merca<strong>do</strong>rias<br />

também forem reduzi<strong>do</strong>s a meros<br />

A IA e outras<br />

tecnologias<br />

digitais, como<br />

a internet,<br />

representam<br />

meios de<br />

produção<br />

que são muito<br />

avança<strong>do</strong>s<br />

para o<br />

capitalismo utilizar<br />

adequadamente<br />

coman<strong>do</strong>s de digitação, o valor de<br />

sua força de trabalho também será<br />

drasticamente reduzi<strong>do</strong>.<br />

<strong>Em</strong> uma sociedade socialista,<br />

isso não seria necessariamente<br />

uma coisa ruim. O artista, por<br />

exemplo, não teria me<strong>do</strong> <strong>do</strong>s poderes<br />

da IA para produzir “obras<br />

de arte” a qualquer momento, já<br />

que a arte não seria produzida com<br />

9


fins lucrativos ou como um meio<br />

de vida. A arte perderia seu vínculo<br />

fetichista com a propriedade privada<br />

e seria produzida para seu próprio<br />

bem, ou melhor, para o bem<br />

da sociedade. Seria uma expressão<br />

genuína das ideias e talentos das<br />

pessoas e uma forma de comunicação.<br />

Como tal, as obras genéricas<br />

de IA não seriam uma ameaça, mas<br />

seriam ferramentas auxiliares para<br />

o artista.<br />

No capitalismo, porém, a existência<br />

<strong>do</strong> artista é precária e subordinada<br />

aos caprichos <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>.<br />

Eles devem proteger zelosamente<br />

seu direito exclusivo à venda de<br />

suas obras de arte, caso contrário,<br />

seus meios de subsistência correm<br />

o risco de serem destruí<strong>do</strong>s.<br />

Longe de libertar a humanidade,<br />

a IA sob o capitalismo apenas exacerbará<br />

sua tendência inerente ao<br />

monopólio e à desigualdade. A melhor<br />

IA para gerar imagens, textos<br />

e resolver problemas é e continuará<br />

sen<strong>do</strong> desenvolvida por enormes<br />

monopólios como Google e Microsoft,<br />

com os melhores engenheiros,<br />

o melhor hardware e os maiores<br />

bancos de da<strong>do</strong>s. Eles usarão sua<br />

posição monopolista para obter<br />

lucros de monopólio, é claro, e as<br />

vantagens da tecnologia, ou seja,<br />

acelerar e baratear a produção, serão<br />

usadas por outras corporações<br />

para demitir alguns trabalha<strong>do</strong>res<br />

e reduzir os salários de outros.<br />

Essa tecnologia também já está<br />

sen<strong>do</strong> usada para acelerar o trabalho<br />

e, assim, aumentar a taxa de exploração,<br />

de outro ângulo. Câmeras<br />

e outros sensores podem monitorar<br />

de forma barata e eficaz o processo<br />

de trabalho de milhares de trabalha<strong>do</strong>res,<br />

disciplinan<strong>do</strong>-os para<br />

que produzam cada vez mais pelo<br />

mesmo salário.<br />

A Amazon é notória por isso, e com<br />

razão: “em 2018, a empresa teve duas<br />

patentes aprovadas para um rastrea<strong>do</strong>r<br />

de pulseira que emite pulsos de<br />

som ultrassônico e transmissões de<br />

rádio para monitorar as mãos de um<br />

cata<strong>do</strong>r em relação ao estoque, fornecen<strong>do</strong><br />

'feedback tátil' para 'cutucar'<br />

o trabalha<strong>do</strong>r em direção ao objeto<br />

correto.” 4 À medida que a vigilância<br />

automatizada avança e se torna mais<br />

barata, ela será lançada em toda a<br />

economia, aumentan<strong>do</strong> o estresse e a<br />

alienação <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res em to<strong>do</strong>s<br />

os lugares.<br />

O capitalismo lança mão de uma<br />

tecnologia revolucionária cujo potencial<br />

real é harmonizar e racionalizar<br />

a produção e aumentar os<br />

poderes criativos da humanidade<br />

10<br />

e, em vez disso, usa-a para disciplinar<br />

ainda mais o trabalha<strong>do</strong>r,<br />

para jogar mais trabalha<strong>do</strong>res no<br />

ferro-velho, para tornar a existência<br />

<strong>do</strong> artista ainda mais e cada vez<br />

mais precária, e concentrar cada<br />

vez mais poder nas mãos de gigantescas<br />

corporações. O efeito, portanto,<br />

não será trazer estabilidade<br />

e abundância para a economia,<br />

mas aumentar os antagonismos e a<br />

desigualdade da sociedade.<br />

Ao monopolizar ainda mais a<br />

economia, reduzin<strong>do</strong> ainda mais<br />

os salários e concentran<strong>do</strong> cada<br />

vez mais riqueza em menos mãos,<br />

a IA sob o capitalismo exacerbará a<br />

anarquia <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>.<br />

Isso já foi visto na atual crise econômica.<br />

Durante a pandemia, os padrões<br />

de consumo mudaram, levan<strong>do</strong><br />

a um grande aumento de pedi<strong>do</strong>s<br />

de empresas como a Amazon. A<br />

Amazon usa fortemente a IA em seu<br />

modelo de previsão, as Tecnologias<br />

de Otimização da Cadeia de Suprimentos<br />

(SCOT). A SCOT simplesmente<br />

olhou para os padrões de consumo,<br />

sem qualquer compreensão <strong>do</strong><br />

que estava causan<strong>do</strong> esses novos<br />

padrões. Consequentemente, recomen<strong>do</strong>u<br />

que a Amazon comprasse<br />

bilhões de dólares em mais capacidade<br />

de armazenamento para lidar<br />

com o aumento da demanda.<br />

Mas, com o fim inevitável <strong>do</strong>s<br />

bloqueios, a demanda pelos produtos<br />

da Amazon caiu. Como resulta<strong>do</strong>,<br />

a Amazon agora tem muito espaço<br />

de armazenamento e muitos<br />

itens não vendi<strong>do</strong>s, o que, por sua<br />

vez, levou a demissões e descontos.<br />

<strong>Em</strong> vez de eliminar o desperdício e<br />

a superprodução, o uso da IA para<br />

aumentar os lucros <strong>do</strong>s monopólios<br />

na verdade piorou a situação.<br />

Não é de admirar que, apesar <strong>do</strong><br />

incrível potencial que a IA oferece<br />

à humanidade, muitos de nós vivamos<br />

com me<strong>do</strong> dela. O que esse<br />

me<strong>do</strong> generaliza<strong>do</strong> da IA revela?<br />

Muito pouco sobre a tecnologia em<br />

si, mas muito sobre as estranhas<br />

contradições da produção capitalista.<br />

Sob o capitalismo, precisamente<br />

as maiores conquistas <strong>do</strong><br />

pensamento humano, as tecnologias<br />

mais maravilhosas com o<br />

potencial de eliminar os males da<br />

pobreza e da ignorância, são exatamente<br />

as coisas que ameaçam<br />

mais pobreza.<br />

Tememos ser escraviza<strong>do</strong>s por<br />

uma inteligência artificial impessoal,<br />

fria e calculista, mas já<br />

estamos subordina<strong>do</strong>s às forças<br />

impessoais, cegas e inconscientes<br />

<strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, que também é frio e<br />

calculista, mas pouco inteligente<br />

ou racional.<br />

Uma tecnologia feita para o planejamento<br />

O uso da IA para aumentar a exploração<br />

capitalista é um desperdício<br />

trágico e criminoso. Dificilmente<br />

se poderia imaginar uma tarefa<br />

mais adequada à IA <strong>do</strong> que planejar<br />

uma economia complicada para<br />

atender às necessidades. Com tecnologias<br />

modernas, como sensores,<br />

já é possível automatizar a logística,<br />

como a Amazon demonstrou.<br />

Tememos ser<br />

escraviza<strong>do</strong>s por<br />

uma inteligência<br />

artificial impessoal,<br />

fria e calculista,<br />

mas já estamos<br />

subordina<strong>do</strong>s<br />

às forças<br />

impessoais, cegas<br />

e inconscientes<br />

<strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, que<br />

também é frio<br />

e calculista, mas<br />

pouco inteligente<br />

ou racional<br />

<strong>Em</strong> seu imenso complexo de vastos<br />

armazéns, a Amazon usa IA e<br />

robôs para planejar com eficiência<br />

quais itens precisam ir para onde e<br />

em que quantidades. Não há razão<br />

para que os sensores não possam<br />

ser integra<strong>do</strong>s à economia como um<br />

to<strong>do</strong> para fornecer da<strong>do</strong>s em tempo<br />

real sobre o que está sen<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong><br />

e em que proporções, onde e<br />

quais equipamentos correm o risco<br />

de quebrar e, portanto, precisam<br />

ser conserta<strong>do</strong>s em tempo hábil. A<br />

gigante alemã de software SAP já<br />

desenvolveu um aplicativo basea<strong>do</strong><br />

em IA chama<strong>do</strong> HANA, que é usa<strong>do</strong><br />

por empresas como a Walmart para<br />

planejar todas as suas operações de<br />

forma harmoniosa usan<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s<br />

em tempo real.<br />

Ao alimentar a IA de aprendiza<strong>do</strong><br />

profun<strong>do</strong> com esses da<strong>do</strong>s, ela seria<br />

mais <strong>do</strong> que capaz de conceber,<br />

ao la<strong>do</strong> de comitês eleitos, um plano<br />

de longo prazo para a economia,


que maximizaria a eficiência para<br />

finalmente atender às necessidades<br />

da humanidade, para que ninguém<br />

precisasse passar fome ou desabriga<strong>do</strong><br />

ou temesse por seu emprego.<br />

Dessa forma, grandes faixas de desperdício<br />

poderiam ser eliminadas e<br />

a semana de trabalho rapidamente<br />

encurtada. A IA não apenas seria<br />

extremamente útil na elaboração e<br />

adaptação de tal plano, como também<br />

teria o benefício de ajudar as<br />

pessoas envolvidas no planejamento<br />

a ver além de quaisquer preconceitos<br />

ou limitações que possam<br />

existir em seu pensamento.<br />

Claramente, essa IA teria que ser<br />

supervisionada por pessoas – seria<br />

apenas uma ferramenta a seu<br />

serviço. Ele não poderia responder<br />

a perguntas como que tipo de<br />

arquitetura deveria ser desenvolvida,<br />

como nossas cidades deveriam<br />

ser etc. Mas suas percepções<br />

sobre os padrões de uma economia<br />

e a melhor forma de economizar a<br />

produção seriam indispensáveis.<br />

Este é o potencial da mais recente<br />

tecnologia de IA. Temos na<br />

ponta <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s a tecnologia para<br />

trazer harmonia à produção, para<br />

eliminar os excessos perdulários,<br />

a ganância, a irracionalidade e a<br />

miopia <strong>do</strong> sistema capitalista. Poderíamos<br />

usá-lo para dar a toda a<br />

humanidade não apenas as coisas<br />

de que precisam para viver bem,<br />

mas o poder de criar obras de arte<br />

ou redesenhar e melhorar sua própria<br />

casa, local de trabalho ou bairro.<br />

Isso tornará a construção de<br />

uma sociedade socialista livre de<br />

toda escassez e distinções de classe<br />

mais rápida e in<strong>do</strong>lor.<br />

Esse poder está ao nosso alcance,<br />

mas foge de nosso alcance,<br />

pois, ao contrário <strong>do</strong> que muitos<br />

imaginam, a forma como ele é utiliza<strong>do</strong><br />

não é determinada automaticamente<br />

pela tecnologia em si,<br />

mas pelo mo<strong>do</strong> de produção em<br />

que vivemos.<br />

Enquanto vivermos sob o capitalismo,<br />

é o capitalismo que determinará<br />

como a IA será desenvolvida e<br />

usada, não o potencial absoluto da<br />

tecnologia. É por isso que as previsões<br />

de IA e automação acaban<strong>do</strong><br />

com a exploração e a anarquia <strong>do</strong><br />

capitalismo são uma aurora falsa. A<br />

IA, por mais avançada que seja, não<br />

pode fazer o trabalho de libertar a<br />

humanidade <strong>do</strong> capitalismo para<br />

nós. E não importa o quão irracional<br />

tenha se torna<strong>do</strong>, o capitalismo<br />

será impie<strong>do</strong>samente defendi<strong>do</strong><br />

pela classe capitalista.<br />

A única força que pode combater<br />

isso é a única que tem interesse em<br />

fazê-lo, ou seja, a classe trabalha<strong>do</strong>ra.<br />

É o fato de que a classe trabalha<strong>do</strong>ra<br />

está interessada em alcançar<br />

o socialismo que lhe permite<br />

compreender tanto a necessidade<br />

quanto os meios para fazê-lo.<br />

Somente quan<strong>do</strong> finalmente derrubarmos<br />

o capitalismo para que<br />

possamos sujeitar a economia a um<br />

planejamento consciente e racional,<br />

a IA e outros avanços tecnológicos<br />

poderão florescer em to<strong>do</strong> o<br />

seu potencial como a mais maravilhosa<br />

e geral ferramenta de desenvolvimento<br />

humano já concebida.<br />

Como Leon Trotsky colocou de<br />

forma tão poética:<br />

“A ciência técnica libertou o homem<br />

da tirania <strong>do</strong>s velhos elementos –<br />

terra, água, fogo e ar – apenas para<br />

submetê-lo à sua própria tirania.<br />

O homem deixou de ser escravo da<br />

natureza para se tornar escravo da<br />

máquina e, pior ainda, escravo da<br />

oferta e da demanda. A atual crise<br />

mundial testemunha de maneira especialmente<br />

trágica como o homem,<br />

que mergulha no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> oceano,<br />

que sobe à estratosfera, que conversa<br />

nas ondas invisíveis <strong>do</strong>s antípodas,<br />

como esse orgulhoso e ousa<strong>do</strong><br />

governante da natureza permanece<br />

escravo das forças cegas de sua própria<br />

economia. A tarefa histórica de<br />

nossa época consiste em substituir<br />

o jogo descontrola<strong>do</strong> <strong>do</strong> merca<strong>do</strong><br />

por um planejamento razoável, em<br />

disciplinar as forças produtivas,<br />

obrigan<strong>do</strong>-as a trabalhar juntas em<br />

harmonia e servir obedientemente<br />

às necessidades da humanidade”. 5<br />

Notas e Referências<br />

1<br />

G Marcus, E Davis, Rebooting AI: Building Artificial IntelligenceWeCan<br />

Trust, Pantheon Books, 2019, pg 56<br />

2<br />

A Katwala, “DeepMindHasTrainedan AI toControl Nuclear<br />

Fusion”, Wired, 16 de fevereiro de 2022<br />

3<br />

Y Assael, T Sommerschield, B Shillingford, N de Freitas, “Preven<strong>do</strong><br />

o passa<strong>do</strong> com Ithaca”, Deepmind, 9 de março de 2022<br />

4<br />

N Dyer-Witheford, A MikkolaKjosen, J Steinhoff, Inhuman<br />

Power: Artificial Intelligenceandthe Future ofCapitalism, Pluto<br />

Press, 2019, pg 93<br />

5<br />

L Trotsky, “<strong>Em</strong> <strong>Defesa</strong> de Outubro” em The ClassicsofMarxism,<br />

Vol. 2, Wellred Books, 2015, páginas 226-227<br />

Homem na Encruzilhada (1934), Diego Rivera.<br />

11


A DIALÉTICA<br />

REVOLUCIONÁRIA<br />

DA COMÉDIA HUMANA DE BALZAC<br />

BEN CURRY<br />

“Você está se iludin<strong>do</strong>, queri<strong>do</strong> anjo, se<br />

imagina que é o Rei Louis-Philippe que<br />

nos governa, e ele próprio não tem ilusões<br />

a esse respeito. Ele sabe, como to<strong>do</strong>s nós,<br />

que acima da Carta está o santo, venerável,<br />

sóli<strong>do</strong>, o a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>, gracioso, belo, nobre,<br />

sempre jovem, to<strong>do</strong>-poderoso, Franc!”<br />

O<br />

perío<strong>do</strong> entre as grandes revoluções<br />

de 1789 e 1848 foi de<br />

agitação sem precedentes na<br />

França. Foi um perío<strong>do</strong> de<br />

avanço acelera<strong>do</strong> da burguesia francesa.<br />

<strong>Em</strong> seu início, essa classe fazia<br />

parte <strong>do</strong> “Terceiro Esta<strong>do</strong>” oprimi<strong>do</strong><br />

sob o regime absolutista Bourbon;<br />

em seu final, era a classe <strong>do</strong>minante<br />

indiscutivelmente e havia começa<strong>do</strong><br />

a transformar a sociedade francesa à<br />

sua própria imagem.<br />

Contemporâneo dessa era de tempestade<br />

e estresse, e, ao mesmo tempo,<br />

historia<strong>do</strong>r e o artista que melhor<br />

retratou seu espírito conturba<strong>do</strong>,<br />

vivia um <strong>do</strong>s gigantes da literatura<br />

mundial, o pai <strong>do</strong> romance Realista,<br />

Honoré de Balzac.<br />

Balzac, um <strong>do</strong>s favoritos de Marx<br />

e Engels, não era um revolucionário.<br />

Pelo contrário. E, no entanto, Engels<br />

pôde dizer a respeito de sua imensa<br />

produção literária: “Há a história<br />

da França de 1815 a 1848... E que ousadia!<br />

Que dialética revolucionária em sua<br />

justiça poética!” 1<br />

Toda uma vida de furioso trabalho<br />

noturno, alimenta<strong>do</strong> por imensas<br />

quantidades de café (estima-se que ele<br />

bebeu 500.000 xícaras de café em seu<br />

tempo de vida), levou Balzac tragicamente<br />

a uma tumba precoce à idade<br />

de apenas 50 anos. No entanto, em<br />

duas décadas de trabalho, Balzac escreveu<br />

não menos <strong>do</strong> que 90 romances<br />

e contos curtos – 60 <strong>do</strong>s quais eram<br />

romances completos e dezenas deles<br />

obras-primas de pleno direito.<br />

12<br />

Honoré de Balzac em 1842<br />

Mas os romances de Balzac, por<br />

mais grandiosos que sejam toma<strong>do</strong>s<br />

isoladamente, não podem ser plenamente<br />

aprecia<strong>do</strong>s senão em conexão<br />

uns com os outros. Sua formidável<br />

obra, conhecida coletivamente como<br />

A Comédia Humana representa um panorama<br />

único e magistral da sociedade<br />

francesa desde a queda de Napoleão<br />

até 1848: Paris e as províncias, solda<strong>do</strong>s,<br />

espiões policiais e políticos, aristocratas<br />

e camponeses, banqueiros,<br />

artistas, jornalistas, burocratas, criminosos<br />

e cortesãs – to<strong>do</strong>s são habilmente<br />

retrata<strong>do</strong>s com pinceladas que vão<br />

direto ao coração de seu mun<strong>do</strong>.<br />

Mais <strong>do</strong> que um retrato da sociedade<br />

francesa, retrata a sociedade burguesa<br />

como ela era e como ela é: mesquinha,<br />

gananciosa e brutal.<br />

O romance Realista<br />

Balzac nasceu em 1799, no mesmo<br />

ano em que Napoleão derrubou o Diretório,<br />

marcan<strong>do</strong> o capítulo final da<br />

Revolução Francesa que havia desperta<strong>do</strong><br />

e destruí<strong>do</strong> imensas ilusões entre<br />

as massas oprimidas da França.<br />

Uma forma de exploração foi substituída<br />

por outra. Nas palavras de Marx<br />

e Engels, “em vez da exploração, velada<br />

por ilusões religiosas e políticas”, a


urguesia “colocou em seu lugar a exploração<br />

nua, desavergonhada, direta<br />

e brutal” 2 .<br />

Com a vitória da burguesia, os autores<br />

de O Manifesto Comunista explicaram<br />

como o homem foi “finalmente<br />

compeli<strong>do</strong> a enfrentar com espírito sóbrio<br />

suas condições reais de vida, e suas<br />

relações com os de sua espécie” 3 . Nos<br />

volumes de A Comédia Humana, a arte<br />

de Balzac agia como poderosos sais<br />

aromáticos, ajudan<strong>do</strong> a tornar sóbrio<br />

este mun<strong>do</strong> cujas ilusões desabavam<br />

ao seu re<strong>do</strong>r, forçan<strong>do</strong>-o a encarar a<br />

realidade de frente.<br />

<strong>Em</strong> vez de uma retirada a um passa<strong>do</strong><br />

idealiza<strong>do</strong> no estilo Romântico<br />

que estava em moda na França, encontramos<br />

o presente, com suas chagas<br />

e tu<strong>do</strong> o mais, completamente<br />

exposto. O méto<strong>do</strong> de Balzac era totalmente<br />

materialista. Sob a bandeira<br />

<strong>do</strong> “Realismo”, representou um novo<br />

ponto de partida na literatura e nas<br />

artes em geral.<br />

Stefan Zweig, em um ensaio sobre o<br />

gênio de Balzac, nos dá uma descrição<br />

vívida de seu méto<strong>do</strong>:<br />

“A ideia – que ele batizou de ‘Lamarckismo’,<br />

e que Taine mais tarde petrificou em uma<br />

fórmula –de que cada multiplicidade reage<br />

sobre uma unidade com não menos<br />

vigor <strong>do</strong> que uma unidade sobre uma<br />

Rue-Neuve-Notre-Dame em Paris,<br />

Eduard Gaertner (1826)<br />

multiplicidade, de que cada indivíduo é<br />

um produto <strong>do</strong> clima, da sociedade em<br />

que foi cria<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s costumes, <strong>do</strong> acaso, de<br />

tu<strong>do</strong> que o destino lhe trouxe, de que cada<br />

indivíduo absorve a atmosfera que o cerca<br />

à medida que cresce e, por sua vez, irradia<br />

uma atmosfera que os outros absorverão;<br />

essa influência universal <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> interior<br />

e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> exterior sobre a formação<br />

<strong>do</strong> caráter, tornou-se um axioma com<br />

Balzac. Tu<strong>do</strong> flui para tu<strong>do</strong> o mais, todas<br />

as forças se movimentam e nenhuma<br />

delas é livre, essa era sua opinião” 4 .<br />

<strong>Em</strong>bora Balzac explicitamente rejeitasse<br />

o rótulo de “materialista”, o que<br />

é isto senão um méto<strong>do</strong> claramente<br />

materialista? E, além disso, é um méto<strong>do</strong><br />

extremamente dialético.<br />

Balzac pretendia que A Comédia<br />

Humana fosse uma representação vívida<br />

e completa de todas as “espécies<br />

sociais” 5 que habitam o mun<strong>do</strong>, e não<br />

simplesmente um acúmulo estéril de<br />

“fatos”. Nenhuma arte pode esperar<br />

registrar to<strong>do</strong>s os detalhes da sociedade,<br />

nem precisa fazê-lo. O real<br />

propósito da arte é ir além <strong>do</strong> acidental<br />

para apreender verdades mais<br />

profundas e mais essenciais. Balzac<br />

não precisou retratar 30 milhões<br />

de franceses e francesas para fazer<br />

um retrato da França. Foi suficiente<br />

capturar os tipos essenciais da época.<br />

Com sua pena, os cerca de 2.000<br />

personagens de A Comédia Humana<br />

foram suficientes para essa tarefa.<br />

<strong>Em</strong> A Comédia Humana – talvez contra<br />

a intuição para uma obra <strong>do</strong> Realismo<br />

– encontramos homens e mulheres<br />

retrata<strong>do</strong>s em cores ousadas e exageradas,<br />

como faziam os pintores renascentistas<br />

ao utilizar o méto<strong>do</strong> <strong>do</strong> claro-<br />

-escuro, a ousada oposição de sombra<br />

e luz, para iluminar o drama nas expressões<br />

e movimentos humanos. Os<br />

personagens de Balzac são frequentemente<br />

descritos como extraordinariamente<br />

singulares em suas paixões. Mas<br />

são ainda mais reais devi<strong>do</strong> a este fato:<br />

formam arquétipos de sua classe e de<br />

suas paixões motiva<strong>do</strong>ras.<br />

O barão de Nucingen ergue-se como<br />

o arquétipo de toda a classe <strong>do</strong>s banqueiros<br />

milionários; Grandet desempenha<br />

o mesmo papel para os avarentos;<br />

Gobseck, para os usurários; Crevel,<br />

para os arrivistas burgueses; Madame<br />

Marneffe, para as cortesãs burguesas;<br />

de Rastignac e de Rubempré, para os<br />

provincianos ambiciosos, e Vautrin,<br />

para o submun<strong>do</strong> criminoso de Paris.<br />

Assim como, para sua análise,<br />

o químico decompõe as inúmeras<br />

substâncias compostas da natureza<br />

em seus elementos constituintes<br />

purifica<strong>do</strong>s, Balzac procurou “analisar<br />

em suas partes componentes os<br />

elementos daquela massa composta<br />

que chamamos de “o povo’” 6 .<br />

A capacidade de Balzac, como ele<br />

mesmo expressou, “de se elevar ao nível<br />

<strong>do</strong>s outros”, “de abraçar seu mo<strong>do</strong><br />

de vida”, “de sentir seus farrapos em<br />

seus ombros” era algo inigualável.<br />

“Olhei dentro de suas almas sem deixar<br />

de perceber o que estava fora, ou<br />

melhor, apreendi essas características<br />

externas tão completamente que<br />

imediatamente vi além delas” 7 .<br />

A aristocracia<br />

Na política, Balzac era o que havia<br />

de mais distante de um revolucionário.<br />

<strong>Em</strong> suas próprias palavras, “Escrevo<br />

sob a luz de duas verdades eternas – a<br />

Religião e a Monarquia, duas necessidades,<br />

como mostram os eventos contemporâneos,<br />

para os quais to<strong>do</strong> escritor<br />

de bom senso deve tentar guiar o<br />

país de volta” 8 .<br />

Durante toda a sua vida, ele procurou<br />

em vão ser admiti<strong>do</strong> na aristocrática<br />

alta sociedade. As cartas que recebia<br />

de seus leitores entre as esposas<br />

entediadas e pouco apreciadas da aristocracia<br />

deixavam-no em êxtase. Ele<br />

sonhava acorda<strong>do</strong> com um casamento<br />

que lhe desse um título e uma fortuna –<br />

algo que só alcançaria, mas que nunca<br />

desfrutaria, como um homem moribun<strong>do</strong>.<br />

Mas tal era o poder <strong>do</strong> Realismo<br />

de Balzac, que encontramos aqui o<br />

retrato verdadeiro, sem verniz, da aristocracia<br />

como uma classe condenada.<br />

No primeiro romance de A Comédia<br />

Humana, Les Chouans, ambienta<strong>do</strong> em<br />

1799, encontramos os líderes aristocráticos<br />

da Chouannerie – uma guerrilha<br />

reacionária que se levantou na<br />

Bretanha. <strong>Em</strong> Les Chouans, o exército<br />

republicano é uma força de combate<br />

disciplinada, composta por camponeses<br />

que imaginam seriamente que seu<br />

Primeiro Cônsul Napoleão seja o defensor<br />

da terra que realmente conquistaram<br />

graças à Revolução. Por outro<br />

la<strong>do</strong>, a guerrilha Chouan, composta por<br />

camponeses bretões, é retratada como<br />

ten<strong>do</strong> se junta<strong>do</strong> às fileiras monarquistas<br />

apenas para roubar diligências<br />

e os corpos <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s republicanos<br />

mortos – uma prática solenemente<br />

santificada em missas clandestinas<br />

nos bosques pela Igreja.<br />

Quanto aos seus líderes aristocráticos,<br />

obtemos sua medida completa<br />

quan<strong>do</strong> confrontam seu líder para<br />

pressionar com avidez suas demandas<br />

por títulos, propriedades e arcebispa<strong>do</strong>s<br />

como recompensa por sua contínua<br />

lealdade ao Rei.<br />

<strong>Em</strong> Ilusões Perdidas e Pai Goriot, encontramos<br />

a antiga nobreza: mesquinha,<br />

fanática, dúbia e egoísta, recolocada<br />

mais uma vez na sela, graças aos<br />

13


exércitos reacionários da Europa. Mas<br />

uma coisa era Luís XVIII restabelecer<br />

sua corte e a aristocracia restabelecer<br />

seus salões em Paris e outra coisa bastante<br />

diferente restabelecer as velhas<br />

relações de propriedade sob as quais o<br />

Ancien Régime se assentava.<br />

A França havia muda<strong>do</strong> irrevogavelmente,<br />

e o dinheiro formava o novo<br />

eixo em torno <strong>do</strong> qual agora gravitava.<br />

A nascente burguesia pressionava<br />

contra a velha aristocracia em todas<br />

as esferas: nos camarotes de teatro,<br />

na política, na imprensa. Os nobres<br />

enfraqueci<strong>do</strong>s bem que podiam desprezar<br />

a admissão de novatos em seus<br />

salões, mas era à Bolsa de Valores que<br />

confiavam suas fortunas. Era aos madeireiros<br />

burgueses que eles vendiam<br />

a madeira cortada <strong>do</strong>s bosques de<br />

seus feu<strong>do</strong>s, e era ao usurário burguês<br />

a quem eles recorriam para financiar<br />

suas infidelidades conjugais.<br />

Nas províncias, onde a nobreza se<br />

encontrava em um terreno um pouco<br />

mais firme, Balzac descreve a ralé<br />

mais indigna:<br />

“Todas as pessoas que ali se reuniam<br />

tinham as qualidades mentais mais insignificantes,<br />

a inteligência mais mesquinha<br />

e eram os espécimes mais lamentáveis<br />

da humanidade dentro de um raio de<br />

cinquenta milhas. As discussões políticas<br />

consistiam em verbosos mas apaixona<strong>do</strong>s<br />

lugares comuns: o Quotidienne era<br />

considera<strong>do</strong> morno em seu monarquismo;<br />

o próprio Luís XVIII era considera<strong>do</strong><br />

um Jacobino. As mulheres eram em sua<br />

maioria estúpidas, desprovidas de graça<br />

e mal vestidas; cada uma delas marcada<br />

por alguma imperfeição; tu<strong>do</strong> ficava<br />

aquém <strong>do</strong> padrão, a conversa, as roupas,<br />

a mente e os corpos... No entanto, o<br />

comportamento e a consciência de classe,<br />

os ares de cavalheirismo, a arrogância<br />

Vautrin <strong>do</strong> romance de Balzac, Père Goriot,<br />

ilustra<strong>do</strong> por Honoré Daumier<br />

14<br />

da pequena nobreza, o conhecimento<br />

das regras de decoro, tu<strong>do</strong> servia para<br />

preencher o vazio dentro deles” 9 .<br />

O que é isto senão uma classe que<br />

estava condenada à extinção e merecia<br />

seu destino?<br />

A amada Igreja Católica de Balzac<br />

é retratada com mais benevolência.<br />

Como to<strong>do</strong>s os últimos bastiões da velha<br />

ordem, viu-se assediada por to<strong>do</strong>s<br />

os la<strong>do</strong>s e forçada a se tornar burguesa<br />

ela própria: “Ela se rebaixa, na casa<br />

de Deus, a um comércio vergonhoso<br />

de aluguel de bancos e cadeiras...<br />

embora não possa ter esqueci<strong>do</strong> da<br />

cólera de Cristo quan<strong>do</strong> ele expulsou<br />

os cambistas <strong>do</strong> Templo” 10 . No nascimento,<br />

no casamento e na morte, encontramos<br />

os representantes da Igreja,<br />

com sua mão estendida, cobran<strong>do</strong><br />

seus honorários em cada etapa.<br />

A tragédia burguesa<br />

Os frutos da Grande Revolução<br />

Francesa de 1789 foram disputa<strong>do</strong>s<br />

e assegura<strong>do</strong>s pela grande e empobrecida<br />

massa <strong>do</strong> povo francês, despertada<br />

pelas paixões mais nobres.<br />

Mas foram colhi<strong>do</strong>s, em quase sua<br />

totalidade, pelas mãos gananciosas<br />

da classe capitalista.<br />

Esses personagens muito reais,<br />

vence<strong>do</strong>res e perde<strong>do</strong>res, foram traduzi<strong>do</strong>s<br />

na ficção pela pena magistral<br />

de Balzac, nos protagonistas de<br />

A Comédia Humana.<br />

A burguesia é retratada não como<br />

recortes de um tipo social, mas como<br />

homens vivos e reais. Encontramos o<br />

banqueiro em 1799, tratan<strong>do</strong> de proteger<br />

e expandir sua fortuna enquanto<br />

se mantém à margem tanto de monarquistas<br />

quanto republicanos. Encontramos<br />

alpinistas sociais pequeno-<br />

-burgueses, como o tanoeiro Grandet,<br />

cobrin<strong>do</strong>-se com o gorro vermelho<br />

da liberdade para se erguer na maré<br />

crescente <strong>do</strong>s assuntos humanos. <strong>Em</strong><br />

Célestin Grevet – um homem que enriqueceu<br />

como perfumista ao ser reinstalada<br />

a aristocracia – Balzac nos<br />

dá um retrato imortal da moralidade<br />

da burguesia.<br />

Ao longo de A Comédia Humana podemos<br />

ler relatos fictícios das numerosas<br />

e reais tragédias em que se converte<br />

a vida familiar, em particular,<br />

sob o capitalismo. Encontramos pais<br />

enganan<strong>do</strong> filhos; homens cortejan<strong>do</strong><br />

mulheres em troca de <strong>do</strong>tes; pais<br />

adúlteros arruinan<strong>do</strong> famílias para<br />

sustentar amantes; filhas colocadas<br />

a pão e água por pais ricos e “avarentos”;<br />

mari<strong>do</strong>s ajudan<strong>do</strong> na infidelidade<br />

de suas esposas em nome de<br />

avançar na carreira; crianças tratadas<br />

como trastes por seus pais.<br />

Como Marx e Engels colocaram, “A<br />

burguesia arrancou da família seu véu<br />

sentimental e reduziu a relação familiar<br />

a uma mera relação monetária”. 11<br />

Criminosos e capitalistas<br />

A crítica de Balzac toca de forma<br />

sucessiva em to<strong>do</strong>s os aspectos da sociedade<br />

burguesa, <strong>do</strong>s quais apenas<br />

alguns podem ser menciona<strong>do</strong>s aqui.<br />

<strong>Em</strong> Pai Goriot, uma releitura para<br />

a era burguesa da tragédia Rei Lear de<br />

Shakespeare, o verdadeiro herói da<br />

história, se é que ele pode ser chama<strong>do</strong><br />

como tal, é Eugene de Rastignac,um<br />

nobre provinciano empobreci<strong>do</strong>. Recém-chega<strong>do</strong><br />

a Paris, ele se vê dividi<strong>do</strong><br />

entre duas formas de fazer fortuna:<br />

ou através <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> “honesto” de<br />

seduzir uma das filhas de Pai Goriot,<br />

que ficou rica por meio <strong>do</strong> casamento<br />

com o banqueiro de Nucingen; ou<br />

através de atalhos envolven<strong>do</strong> derramamento<br />

de sangue, como ofereci<strong>do</strong><br />

pelo caleja<strong>do</strong> criminoso Vautrin.<br />

Qual é a diferença? Na opinião de<br />

Vautrin, que aconselha de Rastignac<br />

em meio às suas <strong>do</strong>res de consciência,<br />

a diferença é pouco mais que<br />

hipocrisia moral e legal.<br />

“Não há um só artigo [da lei] que não leve<br />

ao absur<strong>do</strong>. O homem de língua suave<br />

com suas elegantes luvas amarelas cometeu<br />

assassinatos sem derramamentos<br />

de sangue, mas alguém foi sangra<strong>do</strong> de<br />

qualquer forma; o verdadeiro assassino<br />

forçou uma porta; <strong>do</strong>is atos obscuros!” 12<br />

O capitalista mata com a mesma<br />

segurança <strong>do</strong> assassino, embora ele<br />

próprio não derrame uma só gota de<br />

sangue. As palavras de condenação<br />

lançadas na face de toda a sociedade<br />

burguesa não falham em acertar o<br />

alvo por terem si<strong>do</strong> colocadas na boca<br />

de um malfeitor empederni<strong>do</strong>:<br />

“Você é melhor <strong>do</strong> que nós? O estigma<br />

que levamos em nossos ombros não é tão<br />

vergonhoso quanto o que vocês têm em<br />

seus corações, membros fláci<strong>do</strong>s de uma<br />

sociedade podre”. 13<br />

<strong>Em</strong> última instância, de Rastignac<br />

é força<strong>do</strong> a concordar com Vautrin:<br />

“Ele viu o mun<strong>do</strong> como ele é: leis e moralidade<br />

inúteis para os ricos, a riqueza é a<br />

ultima ratio mundi. ‘Vautrin está certo,<br />

riqueza é virtude’, disse para si mesmo”.<br />

A dialética revolucionária de Balzac<br />

A aristocracia era incapaz de liderar<br />

a sociedade; a burguesia era indigna.<br />

Ironicamente, no que mais se<br />

aproxima de uma obra autobiográfica,<br />

As Ilusões Perdidas, Balzac reserva


Nas barricadas da Rue Souffl ot, Paris, 25 - Junho de 1848, Horace Vernet (1848-9)<br />

seus elogios a pessoas como Michel<br />

Chrestien, um republicano revolucionário,<br />

a quem ele descreve como<br />

“um pensa<strong>do</strong>r político <strong>do</strong> calibre de<br />

Saint-Just e Danton”, e como “uma das<br />

criaturas mais nobres que já pisaram<br />

o solo da França”.<br />

Essas palavras de elogios sem reservas<br />

são ainda mais notáveis pela<br />

ironia que Balzac dispensa tão livremente<br />

ao comentar as ações de homens<br />

e mulheres de todas as classes<br />

através de A Comédia Humana. Como<br />

Engels observou em uma carta de<br />

1888 a Margaret Harkness:<br />

“[Os] únicos homens de quem ele sempre<br />

fala com indisfarçável admiração,<br />

são seus mais amargos antagonistas<br />

políticos, os heróis republicanos <strong>do</strong> Cloitre<br />

Saint-Méry, os homens que naquela<br />

época (1830-6) eram de fato os representantes<br />

das massas populares. Que<br />

Balzactenha si<strong>do</strong> assim compeli<strong>do</strong> a ir<br />

contra suas próprias simpatias de classe<br />

e preconceitos políticos, que ele tenha<br />

visto a necessidade da derrubada de seus<br />

nobres favoritos e os tenha descrito como<br />

pessoas que não mereciam melhor destino;<br />

e que ele tenha visto os homens reais<br />

<strong>do</strong> futuro onde, por enquanto, somente<br />

podiam ser encontra<strong>do</strong>s – isso eu considero<br />

como um <strong>do</strong>s maiores triunfos <strong>do</strong><br />

Realismo, e uma das melhores características<br />

<strong>do</strong> velho Balzac”. 15<br />

Notas e Referências<br />

1<br />

F. Engels, “Engels a Laura Lafargue” in Karl Mar Frederick<br />

Engels Collected Works, Vol. 49, Lawrence and Wishart,<br />

2001, p. 71.<br />

2<br />

K Marx, F Engels, The Classics of Marxism, Vol. 1, Wellred<br />

Books, 2013, pg 5<br />

3<br />

ibid. pg 6<br />

4<br />

S Zweig, Three Masters, George Allen and Unwin,<br />

1930, pg 16<br />

<strong>Em</strong> sua época, a causa da república<br />

burguesa ainda representava um progresso<br />

em relação às relíquias gastas<br />

<strong>do</strong> feudalismo. Nos anos retrata<strong>do</strong>s<br />

em A Comédia Humana, a classe que<br />

viria a desafiar o <strong>do</strong>mínio burguês,<br />

a classe trabalha<strong>do</strong>ra, continuava<br />

sen<strong>do</strong> uma massa em grande parte<br />

desorganizada, apenas se tornan<strong>do</strong><br />

consciente de seus próprios interesses,<br />

espalhada por oficinas de pequeno<br />

e médio portes. Não se distingue<br />

da massa geral de pobres urbanos nos<br />

romances de Balzac.<br />

Mas, com sua penetrante perspicácia,<br />

Balzac viu que o “Reino da Razão”<br />

a que os revolucionários republicanos<br />

aspiravam era uma quimera<br />

que só poderia terminar no <strong>do</strong>mínio<br />

nu da burguesia. Nessa avaliação,<br />

ele estava correto e o provou no surgimento<br />

da revolução em 1848, no<br />

mesmo ano em que Balzac largou a<br />

pena pela última vez.<br />

Este também foi o ano em que a<br />

classe trabalha<strong>do</strong>ra de Paris se levantou<br />

pela primeira vez, armas nas mãos,<br />

sob sua própria bandeira. Por sua vez, a<br />

burguesia já recuava temerosa de suas<br />

tarefas revolucionárias, curvan<strong>do</strong>-se e<br />

deixan<strong>do</strong>-se subjugar pelo aventureiro<br />

Luís Bonaparte, demonstran<strong>do</strong> toda a<br />

decadência, covardia e mesquinhez<br />

sobre as quais Balzac havia lança<strong>do</strong><br />

uma luz penetrante.<br />

5<br />

H Balzac, “Balzac’s Introduction to La Comédie Humaine”,<br />

Balzac Books, 14 July 2012<br />

6<br />

S Zweig, Balzac, Viking Press,1946, pg 29<br />

7<br />

ibid.<br />

8<br />

H Balzac, “Balzac’s Introduction to La ComédieHumaine”,<br />

Balzac Books, 14 July 2012<br />

9<br />

H Balzac, Lost Illusions, Penguin Books, 1971, pg 46-47<br />

10<br />

H Balzac, Cousin Bette, Penguin Books, 1965, pg 427<br />

O que resta quan<strong>do</strong> deixamos de<br />

la<strong>do</strong> os sonhos reacionários conti<strong>do</strong>s<br />

na obra de Balzac é uma crítica mordaz<br />

à sociedade burguesa e sua moralidade<br />

hipócrita. O méto<strong>do</strong> Realista<br />

<strong>do</strong> qual ele foi um <strong>do</strong>s pioneiros<br />

inspiraria outros grandes escritores,<br />

como Charles Dickens e Émile Zola,<br />

a assumir a tarefa de retratar as condições<br />

<strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> industrial.<br />

Também exerceria uma influência<br />

frutífera sobre os autores de O Manifesto<br />

Comunista, cujas páginas<br />

viram a luz <strong>do</strong> dia pela primeira vez<br />

em 1848, exatamente quan<strong>do</strong> a grande<br />

carreira literária de Balzac estava<br />

chegan<strong>do</strong> ao fim.<br />

<strong>Em</strong> O Manifesto Comunista–assim<br />

como em A Comédia Humana – vemos<br />

as rodas imparáveis da história<br />

em movimento. Para o Balzac retróga<strong>do</strong>,<br />

era um motivo de profun<strong>do</strong> pesar<br />

que esse movimento progressivo<br />

destruísse sua velha e idealizada sociedade,<br />

com suas reverências ao Rei,<br />

a Deus e à Família. Mas Marx e Engels,<br />

pelo contrário, olharam à frente<br />

e viram que esse mesmo poder destrutivo<br />

que Balzac retratou era também<br />

um tremen<strong>do</strong> poder criativo. Ele<br />

estava lançan<strong>do</strong> as bases para uma<br />

nova sociedade sem classes, na qual<br />

to<strong>do</strong>s os vícios da sociedade de classe<br />

que o capitalismo levou ao seu ápice<br />

seriam elimina<strong>do</strong>s para sempre.<br />

11<br />

K Marx, F Engels, The Classics of Marxism, Vol. 1, Wellred<br />

Books, 2013, pg 6<br />

12<br />

H Balzac, Père Goriot, Oxford University Press,<br />

1991, pg 103<br />

13<br />

ibid. pg 184<br />

14<br />

ibid. pg 74<br />

15<br />

F. Engels, Karl Marx Frederick Engels Collected Works, Vol.<br />

49, Lawrence and Wishart, 2001, pg 168<br />

15


A QUEDA DA MULHER:<br />

PROPRIEDADE, OPRESSÃO E FAMÍLIA<br />

FRED WESTON<br />

Bilhões de mulheres em to<strong>do</strong><br />

o mun<strong>do</strong> enfrentam cotidianamente<br />

a discriminação, a<br />

violência e a opressão. Mas<br />

não foi sempre assim. O antropólogo<br />

Lewis Henry Morgan apresentou, de<br />

forma pioneira, a ideia revolucionária<br />

de que as mulheres na sociedade humana<br />

primitiva eram livres e iguais,<br />

e que as origens da opressão das mulheres<br />

podem ser encontradas no surgimento<br />

da propriedade privada e da<br />

família “nuclear” monogâmica. Hoje,<br />

Morgan é rejeita<strong>do</strong> pelo establishment<br />

acadêmico, mas neste artigo, Fred<br />

Weston explica que a ideia básica de<br />

Morgan sobre a evolução da família<br />

foi respaldada por estu<strong>do</strong>s e descobertas<br />

modernas. Os marxistas devem<br />

levar em consideração as ideias<br />

de Morgan junto às evidências mais<br />

recentes, a fim de entender as origens<br />

da opressão das mulheres na sociedade,<br />

e os meios através <strong>do</strong>s quais podemos<br />

dar um fim a essa opressão de<br />

uma vez por todas.<br />

A opressão das mulheres e as origens<br />

da família como a conhecemos<br />

são questões prioritárias para quem<br />

deseja lutar por um mun<strong>do</strong> melhor<br />

hoje. Um grande número de mulheres<br />

ainda sofre abuso e assédio sexual.<br />

<strong>Em</strong> algumas partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, elas<br />

vivem em condições de escravidão.<br />

Milhões de meninas e mulheres ainda<br />

hoje são forçadas a sofrer mutilação<br />

genital feminina, um <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s<br />

mais bárbaros utiliza<strong>do</strong>s para controlar<br />

a sexualidade feminina, enquanto<br />

milhões de mulheres jovens são<br />

traficadas para exploração sexual.<br />

A violência contra a mulher ainda é<br />

uma ocorrência cotidiana, sen<strong>do</strong> o<br />

feminicídio um fenômeno contínuo.<br />

Esta é a barbárie da sociedade em<br />

que vivemos atualmente, e apesar<br />

de algumas conquistas importantes,<br />

ainda estamos muito longe de alcançar<br />

a igualdade genuína e plena entre<br />

homens e mulheres. Devemos nos<br />

fazer a seguinte pergunta: essa é a<br />

forma natural de homens e mulheres<br />

se relacionarem entre si? Frequentemente<br />

nos dizem que sim; que a família<br />

“nuclear” monogâmica, com uma<br />

figura paterna <strong>do</strong>minante e poderosa,<br />

sempre existiu e que os homens são<br />

naturalmente agressivos com as mulheres.<br />

Mas este é realmente o caso?<br />

Marx e Engels responderam a essa<br />

questão firmemente pela negativa.<br />

Engels, em particular, desenvolveu<br />

a abordagem marxista da opressão<br />

das mulheres em sua famosa obra, A<br />

Origem da Família, da Propriedade Privada<br />

e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, publicada em 1884. Ele<br />

se baseou principalmente no texto<br />

de Lewis Henry Morgan, A Sociedade<br />

Primitiva (1877), que argumentava:<br />

“o conceito de família é produto <strong>do</strong><br />

desenvolvimento de etapas sucessivas<br />

de desenvolvimento” 1 , das quais<br />

a moderna família monogâmica foi<br />

apenas “a última de uma série de<br />

formas” . Ele explicou que isso estava<br />

claramente conecta<strong>do</strong> ao desenvolvimento<br />

de novas técnicas, ferramentas<br />

e armas, ou seja, ao desenvolvimento<br />

das forças produtivas.<br />

Morgan tinha uma abordagem<br />

fundamentalmente materialista<br />

sobre essa questão e, inicialmente,<br />

exerceu uma grande influência entre<br />

os antropólogos de seu tempo. Mas,<br />

eventualmente, suas ideias passaram<br />

a ser vistas como uma ameaça<br />

à estabilidade da sociedade burguesa<br />

e esse foi particularmente o caso<br />

depois de Engels utilizar suas descobertas<br />

para elaborar a visão marxista<br />

sobre essa questão.<br />

No século XX, as ideias de Morgan<br />

e Engels foram ferozmente atacadas<br />

por antropólogos conserva<strong>do</strong>res, tais<br />

como Bronislaw Malinowski, que<br />

candidamente declarou:<br />

“Se chegássemos ao ponto de acabar<br />

com a família individual como o elemento<br />

central de nossa sociedade, estaríamos<br />

diante de uma catástrofe social<br />

em comparação à qual a convulsão<br />

política da Revolução Francesa e as<br />

mudanças econômicas <strong>do</strong> Bolchevismo<br />

são insignificantes.” 2<br />

Outros, como aqueles da escola de<br />

antropologia de Boas [Franz Boas, antropólogo<br />

teuto-americano – NDT],<br />

rejeitaram a própria ideia de etapas<br />

na história, o “determinismo” e a<br />

Uma fotografia de índios iroqueses tirada por William Alexander Drennan em Buff alo, Nova York, 1914.<br />

16


Jean-Pierre Dalbéra from Paris / Wikimedia<br />

“teoria da evolução” em favor de uma<br />

abordagem idealista que ainda hoje<br />

exerce uma poderosa influência sobre<br />

esse campo de pesquisa.<br />

Sem dúvida, Morgan estava limita<strong>do</strong><br />

pelo nível <strong>do</strong> conhecimento científico<br />

disponível em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século<br />

XIX e algumas de suas ideias não sobreviveram<br />

ao escrutínio <strong>do</strong> tempo.<br />

Mas uma questão muito mais importante<br />

é: até onde ele estava correto? E<br />

o que isso nos diz sobre a evolução da<br />

família e seu possível futuro?<br />

Essas questões têm um significa<strong>do</strong><br />

decisivo para a luta por um mun<strong>do</strong><br />

melhor. E, em última análise, elas somente<br />

podem ser respondidas através<br />

de uma abordagem genuinamente<br />

científica da história de nossa espécie.<br />

Méto<strong>do</strong> materialista<br />

Morgan se dedicou ao estu<strong>do</strong> das<br />

formas primitivas da sociedade e realizou<br />

uma tentativa genuína de entender<br />

suas estruturas sociais internas<br />

e o que impulsionava as mudanças<br />

nessas estruturas – da mesma forma<br />

como Darwin se dedicou ao estu<strong>do</strong> da<br />

evolução biológica.<br />

Morgan percebeu que, ao observar<br />

as sociedades contemporâneas em diferentes<br />

etapas de desenvolvimento e<br />

comparan<strong>do</strong>-as entre si, era possível<br />

reconstruir uma imagem de como a<br />

sociedade humana havia evoluí<strong>do</strong> em<br />

seu conjunto. Ao fazer isso, desenvolveu<br />

uma teoria da evolução social:<br />

que as sociedades passam por etapas<br />

similares de desenvolvimento e que<br />

há uma direção para esse processo,<br />

de formas menos desenvolvidas a formas<br />

mais desenvolvidas.<br />

Morgan entendeu que as instituições<br />

sociais passam a existir de acor<strong>do</strong><br />

com desenvolvimentos específicos<br />

nas condições sociais. Ao fazê-lo, ele<br />

inconscientemente tirou conclusões<br />

muito similares àquelas <strong>do</strong> materialismo<br />

histórico, o méto<strong>do</strong> desenvolvi<strong>do</strong><br />

por Marx e Engels. Encontramos<br />

um exemplo claro desse méto<strong>do</strong> onde<br />

Morgan afirma:<br />

“O fato importante de que a espécie humana<br />

começou na base da escala e se elevou,<br />

é revela<strong>do</strong> de maneira expressiva por<br />

suas sucessivas artes de subsistência. De<br />

sua habilidade nessa direção, dependia<br />

toda a questão da supremacia humana<br />

na terra. Os seres humanos são os únicos<br />

de quem se pode dizer que obtiveram um<br />

controle absoluto sobre a produção de<br />

alimentos, o que, de início, eles não possuíam<br />

acima <strong>do</strong>s outros animais. Sem<br />

ampliar a base da subsistência, a humanidade<br />

não poderia se propagar a outras<br />

áreas que não possuíssem os mesmos tipos<br />

de alimentos e, em última análise, a<br />

toda a superfície da terra; e, por último,<br />

sem obter um controle absoluto sobre sua<br />

variedade e quantidade, não poderiam<br />

se multiplicar em nações populosas. <strong>Em</strong><br />

consequência, é provável que as grandes<br />

épocas de progresso humano tenham<br />

si<strong>do</strong> identificadas, mais ou menos de forma<br />

direta, com a ampliação das fontes de<br />

subsistência.” 3<br />

A abordagem evolutiva de Morgan<br />

sobre o desenvolvimento da sociedade<br />

como sen<strong>do</strong> determinada pelo desenvolvimento<br />

das forças produtivas,<br />

destaca-se claramente. Ele dividiu<br />

a sociedade em diferentes estágios:<br />

Morgan entendeu<br />

que as instituições<br />

sociais passam<br />

a existir de<br />

acor<strong>do</strong> com<br />

desenvolvimentos<br />

específicos nas<br />

condições sociais<br />

“selvageria, barbárie e civilização”,<br />

com a selvageria abrangen<strong>do</strong> três<br />

perío<strong>do</strong>s, o Inferior, o Médio e o Superior,<br />

sen<strong>do</strong> o menos desenvolvi<strong>do</strong><br />

o perío<strong>do</strong> inferior. Morgan explicou<br />

que, com novas ferramentas e técnicas,<br />

tais como a pesca, ou o arco e<br />

a flecha, a humanidade passa de um<br />

estágio para outro. Ele dividiu a barbárie<br />

da mesma forma, são as três:<br />

conforme a cerâmica é <strong>do</strong>minada; à<br />

medida que os seres humanos aprendem<br />

a <strong>do</strong>mesticar animais, a plantar,<br />

a desenvolver sistemas primitivos de<br />

irrigação, a fazer tijolos etc.; e, finalmente,<br />

a <strong>do</strong>minar o uso <strong>do</strong>s metais,<br />

como o bronze e o ferro.<br />

Os termos que ele utiliza, “selvageria,<br />

barbárie e civilização”, assumiram<br />

conotações um tanto depreciativas,<br />

mas não devemos ver o uso desses termos<br />

por Morgan da mesma forma. O<br />

que nos interessa aqui é a essência <strong>do</strong><br />

significa<strong>do</strong> e não o que esses termos<br />

hoje sugerem. De qualquer forma, sua<br />

linha <strong>do</strong> tempo de desenvolvimento<br />

não corresponde exatamente ao que<br />

mais de 150 anos de pesquisas estabeleceram,<br />

mas a ideia <strong>do</strong> desenvolvimento<br />

da humanidade através de<br />

estágios está essencialmente correta.<br />

Que a sociedade humana passou<br />

através de vários estágios de desenvolvimento,<br />

basea<strong>do</strong>s fundamentalmente<br />

nos materiais utiliza<strong>do</strong>s para a<br />

produção de ferramentas, é geralmente<br />

reconheci<strong>do</strong> pelos arqueólogos atuais,<br />

quan<strong>do</strong> dão a perío<strong>do</strong>s da história<br />

nomes como a Idade da Pedra, a Idade<br />

<strong>do</strong> Bronze e a Idade <strong>do</strong> Ferro. Através<br />

<strong>do</strong> desenvolvimento das ferramentas,<br />

os seres humanos passaram de caça<strong>do</strong>res-coletores<br />

a agricultores no neolítico,<br />

ou “Nova Idade da Pedra”. Mais<br />

tarde, foram realiza<strong>do</strong>s avanços na<br />

metalurgia, primeiro com o bronze e<br />

mais tarde com o ferro, o que permitiu<br />

o surgimento das grandes civilizações<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> antigo. Este não foi um<br />

processo linear e idêntico em to<strong>do</strong>s os<br />

17


continentes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. <strong>Em</strong> parte, isso<br />

também dependia <strong>do</strong>s recursos locais<br />

disponíveis. Não obstante, esta é a<br />

imagem geralmente aceita.<br />

Foi essa abordagem materialista<br />

que atraiu a atenção de Marx e Engels.<br />

Como explicou Engels em 1884:<br />

“Morgan, à sua maneira, descobriu, novamente,<br />

na <strong>América</strong>, a concepção materialista<br />

da história, descoberta por Marx<br />

quarenta anos antes, e em sua comparação<br />

de barbárie e civilização isso o levou,<br />

nos pontos principais, às mesmas<br />

conclusões de Marx.” 4<br />

De fato, Marx havia estuda<strong>do</strong> "A<br />

Sociedade Primitiva" de Morgan, junto<br />

às obras de outros antropólogos <strong>do</strong><br />

perío<strong>do</strong>, e escreveu notas extensas,<br />

com a intenção de produzir um texto<br />

com sua própria interpretação de suas<br />

últimas descobertas. Infelizmente,<br />

Marx morreu antes de que pudesse<br />

completar esse trabalho, mas suas<br />

anotações 5 foram utilizadas por Engels<br />

para produzir seu texto clássico<br />

em 1884, logo após a morte de Marx.<br />

O trabalho de Engels sobre a origem<br />

da família pode, dessa forma, ser considera<strong>do</strong><br />

uma obra conjunta <strong>do</strong>s pais<br />

funda<strong>do</strong>res <strong>do</strong> <strong>Marxismo</strong>.<br />

En<strong>do</strong>gamia e promiscuidade <strong>do</strong>s humanos<br />

primitivos<br />

Morgan sustentava que a sociedade<br />

humana primitiva começou com<br />

o que ele chamou de família “consanguínea”,<br />

isto é, a procriação entre parentes<br />

próximos. Só mais tarde, explicou<br />

ele, através de vários estágios,<br />

a reprodução sexual entre indivíduos<br />

aparenta<strong>do</strong>s foi eliminada e certas<br />

proibições foram estabelecidas.<br />

Quan<strong>do</strong> Morgan levantou essa<br />

ideia pela primeira vez, ela foi rejeitada<br />

com indignação, e ainda o é em<br />

muitos círculos. Afinal, o que poderia<br />

ser mais estranho aos costumes<br />

sociais de nosso tempo? Por parecer<br />

tão antinatural em seu próprio<br />

tempo, alguns sociólogos, como<br />

Westermarck, afirmaram que havia<br />

um instinto natural para evitar a<br />

en<strong>do</strong>gamia.<br />

No entanto, estu<strong>do</strong>s recentes respaldaram<br />

a ideia de que a en<strong>do</strong>gamia<br />

existiu entre os primeiros humanos,<br />

demonstran<strong>do</strong> o quanto nossa noção<br />

da família mu<strong>do</strong>u ao longo <strong>do</strong>s milênios.<br />

Um estu<strong>do</strong> publica<strong>do</strong> em 2018<br />

concluía que a proporção relativamente<br />

alta de deformidades nos esqueletos<br />

da Idade <strong>do</strong> Gelo provavelmente<br />

foi causada pela en<strong>do</strong>gamia,<br />

uma teoria respaldada pelo baixo<br />

nível de diversidade genética encontra<strong>do</strong><br />

nesses esqueletos 6 .<br />

18<br />

Mas isso evidentemente não continuou<br />

sen<strong>do</strong> o caso, e um interessante<br />

estu<strong>do</strong> produzi<strong>do</strong> na Universidade de<br />

Cambridge relata que a análise de restos<br />

humanos no sítio arqueológico de<br />

Sunghir, na Sibéria, mostrou:<br />

“Os primeiros humanos parecem ter reconheci<strong>do</strong><br />

os riscos da en<strong>do</strong>gamia há pelo<br />

menos 34.000 anos e desenvolveram<br />

redes sociais e de acasalamento surpreendentemente<br />

sofisticadas para evitá-la<br />

[...] ” 7<br />

‘Vênus’ de Willen<strong>do</strong>rf, no Museu de História Natural<br />

de Viena, feito cerca de 25-30.000 anos atrás.<br />

© Jorge Royan, royan.com.ar | CC BY-SA 3.0<br />

Isso é significativo porque demonstra<br />

crucialmente que as relações<br />

sexuais entre os seres humanos havia<br />

muda<strong>do</strong>. <strong>Em</strong> certo estágio a família<br />

humana evoluiu, com novas relações<br />

emergin<strong>do</strong> das antigas. De fato, as<br />

“sofisticadas redes sociais e de acasalamento”<br />

podem até representar as<br />

primeiras formas <strong>do</strong> que mais tarde<br />

se tornou conheci<strong>do</strong> como as “gens”.<br />

Morgan viu quatro estágios subsequentes<br />

de desenvolvimento da família<br />

basea<strong>do</strong>s na proibição <strong>do</strong> incesto,<br />

onde machos e fêmeas não podiam<br />

acasalar com membros de seu próprio<br />

clã ou “gens”, para usar a expressão<br />

latina. <strong>Em</strong> outras palavras, surgiram<br />

sistemas que proibiam o acasalamento<br />

dentro de um determina<strong>do</strong> grupo.<br />

Ele levantou a hipótese de que,<br />

sob esse sistema, o “casamento em<br />

grupo” era a norma. Significava isso<br />

que to<strong>do</strong>s os homens de um grupo<br />

tinham todas as mulheres de outro<br />

grupo como suas “esposas” ao mesmo<br />

tempo? Não necessariamente.<br />

Foram encontradas sociedades onde<br />

o “casamento em grupo” envolvia efetivamente<br />

uma forma de “aliança”<br />

entre os grupos, na qual indivíduos de<br />

um grupo só podiam selecionar seus<br />

parceiros dentro de outro grupo.<br />

No entanto, o que se deve enfatizar<br />

é a natureza relativamente promíscua<br />

<strong>do</strong> acasalamento no perío<strong>do</strong><br />

inicial da sociedade humana. Ao<br />

contrário da concepção tradicional<br />

da família, homens e mulheres não<br />

estavam vincula<strong>do</strong>s permanentemente<br />

a um parceiro, poden<strong>do</strong> romper<br />

livremente o relacionamento e<br />

buscar outro parceiro.<br />

Milhares de anos de uma moralidade<br />

que evoluiu sob a pressão da<br />

sociedade de classes, onde a mulher<br />

era considerada como propriedade<br />

<strong>do</strong> homem, e onde a mulher deve ser<br />

fiel a um homem por toda sua vida,<br />

deixaram na consciência coletiva a<br />

noção de que este é um esta<strong>do</strong> de coisas<br />

natural e universal. No entanto,<br />

muitos estu<strong>do</strong>s indicam que a “promiscuidade”<br />

– no senti<strong>do</strong> da liberdade<br />

<strong>do</strong>s indivíduos de escolher com<br />

quem acasalar, quan<strong>do</strong> e por quanto<br />

tempo – estava claramente presente<br />

nas primeiras sociedades humanas.<br />

Como explica Engels: “O que significa<br />

então a relação sexual promíscua? Que<br />

as restrições vigentes atualmente ou em<br />

épocas anteriores não existiam”. Mas em<br />

seguida ele também acrescenta: “De<br />

forma alguma se segue disso, necessariamente,<br />

que uma promiscuidade exagerada<br />

estava na prática diária. <strong>Em</strong>parelhamentos<br />

separa<strong>do</strong>s por tempo limita<strong>do</strong> não são<br />

de forma alguma excluí<strong>do</strong>s; de fato, mesmo<br />

no casamento em grupos, eles constituem<br />

agora a maioria <strong>do</strong>s casos.” 8<br />

No entanto, a existência <strong>do</strong> “emparelhamento”,<br />

ou de casais no contexto<br />

<strong>do</strong> clã maior ou <strong>do</strong> “gens”, não deve<br />

ser vista como “casamento”, como o<br />

conhecemos. Morgan enfatizou que<br />

“era basea<strong>do</strong> no emparelhamento de um<br />

homem com uma mulher sob a forma de<br />

casamento, mas sem uma coabitação exclusiva<br />

[...] O divórcio ou a separação ficava a<br />

critério de ambos, mari<strong>do</strong> e esposa” 9 . Isso<br />

significa que, no casamento, como o<br />

conhecemos, tanto o homem quanto<br />

a mulher não estavam ata<strong>do</strong>s um ao<br />

outro permanentemente.<br />

No entanto, isso preparou o terreno<br />

para a posterior família monogâmica,<br />

que, segun<strong>do</strong> Morgan: “se fundava no<br />

casamento de um homem com uma mulher,<br />

com uma coabitação exclusiva; a última<br />

constituin<strong>do</strong> o essencial da instituição. É<br />

preeminentemente a família da sociedade


civilizada e, portanto, era essencialmente<br />

moderna.” 10 Mas o surgimento dessa<br />

moderna família requeria uma reviravolta<br />

completa da ordem existente<br />

para vir a existir.<br />

Descendência matrilinear<br />

A posição da mulher não era de subordinação<br />

à posição <strong>do</strong> homem antes<br />

<strong>do</strong> aparecimento da família monogâmica<br />

e patriarcal, e é sobre essa<br />

questão que Morgan provavelmente<br />

fez a maior contribuição para nossa<br />

compreensão da sociedade humana.<br />

Morgan não era um antropólogo<br />

de poltrona e fez um trabalho de campo<br />

real e concreto entre os Iroqueses,<br />

aos quais estu<strong>do</strong>u de perto, viven<strong>do</strong><br />

entre eles durante um perío<strong>do</strong>. Ele<br />

também estu<strong>do</strong>u outros povos indígenas<br />

das <strong>América</strong>s, enquanto reunia<br />

informações de muitas outras fontes<br />

sobre povos em estágios iniciais de<br />

desenvolvimento humano.<br />

Ele viu que as mulheres tinham<br />

um status muito mais igualitário entre<br />

os Iroqueses <strong>do</strong> que no mun<strong>do</strong><br />

“civiliza<strong>do</strong>”. Engels, basean<strong>do</strong>-se nas<br />

pesquisas de Morgan, comentou: “To<strong>do</strong>s<br />

eram iguais e livres – inclusive as<br />

mulheres”. 11 Mas por que era assim?<br />

Morgan concluiu que, em um perío<strong>do</strong><br />

anterior, os humanos se organizavam<br />

em clãs matrilineares, nos<br />

quais a descendência era traçada<br />

através da linha materna, não pela<br />

família patriarcal (literalmente, <strong>do</strong>minada<br />

pelo pai) que eventualmente<br />

apareceu com o surgimento da<br />

propriedade privada e da sociedade<br />

de classes.<br />

Existe muito debate sobre se o<br />

“matriarca<strong>do</strong>” alguma vez existiu,<br />

mas este é um debate falso e enganoso.<br />

O matriarca<strong>do</strong> implica o <strong>do</strong>mínio<br />

das mulheres, mas o que Morgan sublinhou<br />

foi a matrilinearidade, isto<br />

é, o traça<strong>do</strong> da descendência pela<br />

linha materna no perío<strong>do</strong> inicial da<br />

sociedade humana, pois a ausência<br />

<strong>do</strong> emparelhamento estrito ou permanente<br />

significava que não havia<br />

maneira segura de se saber quem era<br />

o pai. A matrilinearidade não significava<br />

que os homens não desempenhassem<br />

nenhum papel ou fossem<br />

subordina<strong>do</strong>s à mulher.<br />

Há muitas tentativas de negar a<br />

matrilinearidade, e isso porque toda<br />

a história escrita, que começa no 4o<br />

milênio a.c, é de civilizações que eram<br />

sociedades de classe patriarcais. Portanto,<br />

é fácil de se perceber de onde<br />

vem a ideia de que “os homens sempre<br />

<strong>do</strong>minaram as mulheres”. No entanto,<br />

os exemplos sobreviventes de<br />

sociedades matrilineares hoje oferecem<br />

apoio à teoria de Morgan.<br />

Há muitas<br />

tentativas<br />

de negar a<br />

matrilinearidade,<br />

e isso porque<br />

toda a história<br />

escrita, que<br />

começa no 40<br />

milênio aC, é<br />

de civilizações<br />

que eram<br />

sociedades de<br />

classe patriarcais.<br />

Portanto, é fácil<br />

de se perceber<br />

de onde vem a<br />

ideia de que “os<br />

homens sempre<br />

<strong>do</strong>minaram as<br />

mulheres”<br />

Nas províncias chinesas de Yunnan<br />

e Sichuan temos o povo Mosuo, onde a<br />

linhagem ainda é traçada através das<br />

mulheres da família e a propriedade<br />

é transmitida pela linha feminina. As<br />

crianças pertencem à mãe e residem<br />

em sua casa. Os homens de Mosuo<br />

têm o dever de cuidar <strong>do</strong>s filhos de<br />

suas irmãs e primas (um fenômeno<br />

que Morgan descreve nas sociedades<br />

matrilineares que ele estu<strong>do</strong>u) e estão<br />

encarrega<strong>do</strong>s da criação de animais e<br />

da pesca, coisas que aprendem com<br />

seus tios (irmãos de suas mães) e com<br />

os membros masculinos mais velhos<br />

da família.<br />

Os Bribri da Costa Rica, os Minangkabau<br />

da Sumatra Ocidental,<br />

alguns <strong>do</strong>s povos Akan de Gana e<br />

Khasi da Índia, ainda traçam sua<br />

descendência através da linha feminina.<br />

Nenhuma dessas sociedades<br />

teve qualquer contato entre elas.<br />

O influente antropólogo, Franz<br />

Boas, tentou encontrar exemplos da<br />

passagem da patrilinearidade à matrilinearidade,<br />

a fim de desacreditar<br />

to<strong>do</strong> o esquema de Morgan. Ele acreditava<br />

ter encontra<strong>do</strong> isso entre os<br />

Kwakiutl, na Costa Noroeste <strong>do</strong> Pacífico<br />

da <strong>América</strong>. Mas isso se revelou<br />

mais tarde um exemplo inváli<strong>do</strong>.<br />

Boas encontrou a descendência sen<strong>do</strong><br />

traçada tanto por linhas masculinas<br />

quanto por linhas femininas, mas o<br />

que ele ignorava era que esta sociedade<br />

havia sofri<strong>do</strong> um enorme trauma<br />

sob o impacto <strong>do</strong> contato com os<br />

europeus, e to<strong>do</strong> o seu sistema estava<br />

desmoronan<strong>do</strong> sob a pressão.<br />

É fácil imaginar como o traça<strong>do</strong> da<br />

descendência e a herança de qualquer<br />

propriedade existente, através da linha<br />

materna, reforçaria a posição das<br />

mulheres na sociedade. Mas há outro<br />

fator importante a ser leva<strong>do</strong> em consideração:<br />

a natureza extremamente<br />

igualitária da sociedade de caça<strong>do</strong>res<br />

e coletores em geral.<br />

Comunismo primitivo<br />

Devemos observar que, embora o<br />

próprio Morgan não fosse comunista,<br />

mas um republicano <strong>do</strong>s EUA e um<br />

burguês próspero que acreditava que<br />

o sistema político <strong>do</strong>s EUA era a mais<br />

alta forma de sociedade, ele se refere<br />

várias vezes em seu livro A Sociedade<br />

Primitiva ao fato de que os primeiros<br />

humanos viviam de maneira comunista,<br />

ou seja, não havia propriedade<br />

privada.<br />

Colin Renfrew é um ex-professor<br />

de arqueologia da Universidade de<br />

Cambridge e foi um membro Conserva<strong>do</strong>r<br />

da Casa <strong>do</strong>s Lordes de 1991 a<br />

2021 – portanto, alguém que não pode<br />

ser acusa<strong>do</strong> de ter simpatias comunistas.<br />

<strong>Em</strong> seu livro, Pré-história – A construção<br />

da Mente Humana, ele declara o<br />

que se segue:<br />

“As primeiras sociedades de caça<strong>do</strong>res<br />

e coletores, como aquelas de nossos<br />

ancestrais paleolíticos, parecem ter<br />

si<strong>do</strong> sempre comunidades igualitárias,<br />

onde os indivíduos participavam<br />

com base na igualdade [...]” 12<br />

(grifo nosso)<br />

<strong>Em</strong> que se baseava esse igualitarismo?<br />

Nas sociedades de caça<strong>do</strong>res<br />

e coletores não havia divisão em<br />

classes, nem proprietários <strong>do</strong>s meios<br />

de produção, nem propriedade fundiária.<br />

A pequena “propriedade” que<br />

existia eram as rudimentares ferramentas<br />

e armas para caçar e abater<br />

animais e para forragear, além das<br />

roupas que usavam.<br />

Como não havia propriedade privada<br />

ou divisão da sociedade em<br />

classes, não havia nem explora<strong>do</strong>res<br />

nem explora<strong>do</strong>s e, portanto, nenhum<br />

aparato arma<strong>do</strong> pairan<strong>do</strong> acima da<br />

sociedade. Morgan afirma:<br />

“O Esta<strong>do</strong> não existia. Seus governos<br />

eram essencialmente democráticos,<br />

porque os princípios sob quais as gens,<br />

19


a fratria e a tribo se organizavam eram<br />

democráticos.”<br />

<strong>Em</strong> sua descrição <strong>do</strong>s Iroqueses, ele<br />

declara que: “cada família praticava o<br />

comunismo ao viver”. 13<br />

A ideia de que os humanos viveram<br />

no que Marx e Engels chamaram<br />

de “comunismo primitivo”, sem<br />

nenhuma concepção de propriedade<br />

privada durante a maior parte de<br />

sua existência, é inaceitável para os<br />

que defendem a noção de que ricos<br />

e pobres, ou explora<strong>do</strong>res e explora<strong>do</strong>s,<br />

sempre existiram; que a feroz<br />

competição individual <strong>do</strong> capitalismo<br />

moderno simplesmente faz<br />

parte da “natureza humana” e que<br />

temos que aceitá-la.<br />

Como colocou o antropólogo<br />

americano Leslie A. White em sua<br />

obra A Evolução da Cultura, o Desenvolvimento<br />

da Civilização até a Queda<br />

de Roma:<br />

“[...] tão ameaça<strong>do</strong>ra se tornou a teoria<br />

<strong>do</strong> comunismo primitivo, aparentemente,<br />

que membros das três<br />

‘escolas’ antropológicas se sentiram<br />

desafia<strong>do</strong>s a acabar com ela. Lowie, da<br />

escola de Franz Boas, atacou-a repetidamente.<br />

Malinowski, um <strong>do</strong>s líderes<br />

da escola Funcionalista, classificou-a<br />

como ‘talvez a falácia mais enganosa<br />

que existe na antropologia social’.<br />

[...] Lowie foi elogia<strong>do</strong> por estudiosos<br />

católicos por sua crítica à teoria<br />

<strong>do</strong> comunismo primitivo, e, por meio<br />

disso, por sua oposição às <strong>do</strong>utrinas<br />

socialistas. [...] Parece que se fazia um<br />

esforço para ‘tornar o mun<strong>do</strong> seguro<br />

para a propriedade privada’.” 14<br />

Apesar de todas as objeções, no<br />

entanto, existem muitos estu<strong>do</strong>s que<br />

confirmam a natureza igualitária<br />

das sociedades de caça<strong>do</strong>res e coletores,<br />

onde as mulheres desfrutavam<br />

de uma posição muito mais alta<br />

na sociedade e eram tratadas como<br />

iguais, e não como uma propriedade<br />

<strong>do</strong>s homens. 15<br />

Uma característica fundamental<br />

<strong>do</strong>s humanos é sua tendência à cooperação<br />

e ao compartilhamento. Os<br />

humanos não poderiam sobreviver<br />

sem isso. Não somos particularmente<br />

rápi<strong>do</strong>s ou fortes quan<strong>do</strong> compara<strong>do</strong>s<br />

a muitos outros animais.<br />

Como indivíduos isola<strong>do</strong>s, nas condições<br />

existentes na época, estaríamos<br />

em risco constante de sermos<br />

devora<strong>do</strong>s pelos grandes carnívoros,<br />

ao mesmo tempo em que teríamos<br />

muito mais dificuldades para conseguir<br />

comida. Portanto, essa cooperação<br />

não veio de algum espírito<br />

abstrato de altruísmo, mas de uma<br />

20<br />

necessidade material. A cooperação<br />

era necessária não apenas na caça,<br />

como também na coleta.<br />

Caça, coleta e matrilocalidade<br />

Parece que havia uma divisão <strong>do</strong><br />

trabalho entre os sexos nas sociedades<br />

pré-históricas de caça<strong>do</strong>res e coletores,<br />

embora variasse de um povo a<br />

outro, e não fosse uma divisão estrita,<br />

como encontramos em sociedades de<br />

classe posteriores, como os Gregos.<br />

Algumas vezes os homens participavam<br />

da coleta e as mulheres<br />

ajudavam na caça, como ficou demonstra<strong>do</strong><br />

em descobertas recentes<br />

de túmulos de mulheres com suas<br />

armas. Mas, em geral, os homens tendiam<br />

a sair para caçar e as mulheres<br />

tendiam a forragear. E ambas as atividades<br />

eram igualmente importantes.<br />

De fato, as saídas para caçar algumas<br />

vezes eram infrutíferas, enquanto o<br />

forrageamento sempre trazia algo<br />

para casa. Assim, a divisão <strong>do</strong> trabalho<br />

nesse estágio da sociedade humana<br />

não implica a subordinação da<br />

mulher ao homem.<br />

De fato, a divisão <strong>do</strong> trabalho que<br />

existia dentro da família realmente<br />

tendia a promover a posição das mulheres<br />

em muitos casos. Kit Opie e Camila<br />

Power, autoras de Grandmothering<br />

and Female Coalitions – A Basis for Matrilineal<br />

Priority? 16 , argumentam que, nas<br />

sociedades que analisaram, o número<br />

de calorias requeridas para alimentar<br />

a to<strong>do</strong>s os adultos e as crianças em um<br />

grupo exigiria a cooperação das mulheres<br />

e suas parentes <strong>do</strong> sexo feminino,<br />

em particular as avós, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />

homens. Entre os !Kung <strong>do</strong> deserto <strong>do</strong><br />

Kalahari, por exemplo, os estu<strong>do</strong>s revelam<br />

que “a coleta contribui com 60 a<br />

80 por cento da dieta total”. 17<br />

As mulheres que não podem sair<br />

para forragear, seja porque estão nos<br />

últimos estágios da gravidez ou amamentan<strong>do</strong><br />

bebês recém-nasci<strong>do</strong>s,<br />

recebem suas calorias diárias porque<br />

as outras mulheres as fornecerão.<br />

Mais uma vez, isso não se deve a algum<br />

espírito abstrato de altruísmo. É<br />

prática padrão que to<strong>do</strong>s se ajudem,<br />

porque sabem que, quan<strong>do</strong> se encontrarem<br />

na mesma situação, também<br />

serão ajuda<strong>do</strong>s.<br />

Portanto, a ideia de que as mulheres<br />

eram totalmente dependentes <strong>do</strong>s<br />

homens e que, mesmo nas primeiras<br />

sociedades humanas, tinham que<br />

buscar um homem individual para<br />

sobreviver, não se sustenta.<br />

Tu<strong>do</strong> isso proporciona uma base<br />

material sobre a qual repousava<br />

a igualdade entre os sexos. Opie e<br />

Power também explicam o papel<br />

das mulheres mais velhas, que não<br />

podiam mais ter filhos, mas que poderiam<br />

desempenhar um papel fundamental<br />

mais tarde na vida ajudan<strong>do</strong><br />

a sustentar a prole de suas filhas.<br />

Isso explicaria a natureza matrilocal<br />

das famílias – as mulheres ao la<strong>do</strong><br />

de suas mães – e também a natureza<br />

matrilinear da sociedade.<br />

Elas apontam que:<br />

“Evidências da genética molecular sugerem<br />

que uma tendência ancestral <strong>do</strong>s<br />

parentes femininos de se manterem juntos<br />

persistiu com o surgimento <strong>do</strong>s humanos<br />

modernos. Os estu<strong>do</strong>s revelam<br />

diferenças nos padrões de filopatria [a<br />

tendência de um indivíduo retornar ou<br />

permanecer em sua área natal ou em<br />

seu local de nascimento] entre populações<br />

dedicadas à caça e à agricultura na<br />

região subsaariana da África.” 18<br />

Elas acrescentam: “Quanto maior<br />

a dependência da caça nessas populações,<br />

menor a probabilidade de serem<br />

patrilocais”. Isso significa que as<br />

mulheres nas sociedades caça<strong>do</strong>ras e<br />

coletoras tendem a permanecer dentro<br />

de um grupo onde as mulheres são<br />

aparentadas, com mães, irmãs, primas,<br />

mas onde os homens com quem<br />

acasalam vêm de fora. Tu<strong>do</strong> isso é<br />

uma impressionante confirmação <strong>do</strong><br />

que Morgan descreveu em 1877.<br />

Há, naturalmente, exceções a essa<br />

regra, tais como o povo indígena <strong>do</strong><br />

Norte <strong>do</strong> Alaska, entre os quais encontramos<br />

“homens que fornecem<br />

quase toda a alimentação”. Eles são<br />

caça<strong>do</strong>res e não agricultores. No entanto,<br />

isso não se deve ao fato de que<br />

as pessoas ali simplesmente “acham”<br />

que caçar é melhor, e “escolhem” não<br />

a<strong>do</strong>tar o plantio de lavouras.<br />

Algumas vezes<br />

os homens<br />

participavam<br />

da coleta e<br />

as mulheres<br />

ajudavam na<br />

caça, como ficou<br />

demonstra<strong>do</strong><br />

em descobertas<br />

recentes de<br />

túmulos de<br />

mulheres com<br />

suas armas


Outro artigo explica que em “algumas<br />

regiões árticas e subtropicais,<br />

existem comparativamente<br />

poucos animais pequenos e nenhum<br />

alimento vegetal de importância<br />

dietética, de mo<strong>do</strong> que a caça de<br />

grande porte representa uma proporção<br />

muito grande de to<strong>do</strong>s os<br />

alimentos consumi<strong>do</strong>s.” 19 Há uma<br />

razão material concreta pela qual<br />

os homens desempenham um papel<br />

tão importante na obtenção de alimentos<br />

em tal situação: “A possibilidade<br />

de uma coleta significativa ou<br />

de mudança para a agricultura não<br />

é provável nessas sociedades árticas<br />

ou subtropicais.” 20<br />

O fato de se encontrarem essas<br />

“exceções” não nega o quadro geral<br />

da evolução social, onde as condições<br />

foram favoráveis ao desenvolvimento<br />

da agricultura. Como os<br />

autores explicam:<br />

“Com o propósito de entender a transição<br />

às sociedades agrícolas, esses<br />

grupos também podem ser de interesse<br />

limita<strong>do</strong> como um modelo das sociedades<br />

caça<strong>do</strong>ras e coletoras que vieram<br />

a existir na África, na Europa e em<br />

outros lugares que experimentaram a<br />

transição para a agricultura.” 21<br />

Isso claramente tem um enorme<br />

significa<strong>do</strong> para a posição das<br />

mulheres nessas sociedades. As<br />

mulheres, individualmente, não se<br />

mudaram da casa de seus pais para<br />

a casa de seus mari<strong>do</strong>s e ali permaneceram,<br />

cercadas por sua extensa<br />

família, como é muito comum hoje<br />

em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Isso significava<br />

que elas eram destacadamente menos<br />

dependentes de seus parceiros.<br />

<strong>Em</strong> vez disso, seu parceiro encontrava-se<br />

cerca<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s<br />

pelos parentes de sua parceira e era,<br />

por extensão, dependente deles.<br />

<strong>Em</strong> alguns casos, os caça<strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />

sexo masculino tinham que dar todas<br />

as suas capturas à mãe de sua<br />

parceira antes que ela a distribuísse<br />

entre a família. Não é de admirar<br />

que os exemplos que sobrevivem<br />

dessas comunidades registrem uma<br />

taxa tão baixa de violência contra as<br />

mulheres em relação à nossa.<br />

Propriedade, Desigualdade e Monogamia<br />

Essa forma de vida igualitária<br />

começou a mudar na sequência <strong>do</strong><br />

surgimento da agricultura, no que<br />

ficou conheci<strong>do</strong> como a Revolução<br />

Neolítica, há cerca de 12.000 anos.<br />

Estu<strong>do</strong>s confirmam que a desigualdade<br />

de gênero mu<strong>do</strong>u gradualmente<br />

durante um longo perío<strong>do</strong>,<br />

enquanto os humanos transitavam<br />

da caça e da coleta à agricultura,<br />

em particular ao cultivo de safras.<br />

Evidências arqueológicas de to<strong>do</strong> o<br />

mun<strong>do</strong> sugerem uma mudança na<br />

divisão <strong>do</strong> trabalho entre homens e<br />

mulheres após a a<strong>do</strong>ção da agricultura.<br />

As causas diretas variam de lugar<br />

para lugar, mas certo número de<br />

fatores importantes desempenharam<br />

claramente um papel: a crescente<br />

taxa de natalidade e, portanto,<br />

maiores responsabilidades com os<br />

filhos, maiores exigências de processamento<br />

de alimentos e, eventualmente,<br />

o uso de implementos<br />

mais pesa<strong>do</strong>s, como o ara<strong>do</strong>.<br />

Um estu<strong>do</strong> publica<strong>do</strong> pela Social<br />

Science Research Network em 2012,<br />

explica:<br />

“[...] a passagem para a agricultura levou<br />

a uma divisão <strong>do</strong> trabalho dentro da família,<br />

onde o homem usava sua força física<br />

na produção de alimentos e a mulher<br />

cuidava da criação <strong>do</strong>s filhos, <strong>do</strong> processamento<br />

e produção <strong>do</strong>s alimentos e de<br />

outras tarefas relacionadas à família.”<br />

Continua:<br />

“A consequência foi que o papel das<br />

mulheres na sociedade, por si mesmo,<br />

já não lhes dava sua viabilidade econômica.<br />

Essencialmente, a mudança<br />

geral na divisão <strong>do</strong> trabalho associada<br />

à Revolução Neolítica agravou as<br />

opções externas das mulheres (fora <strong>do</strong><br />

San mãe e filho na Namíbia. Image: Alwynvanzyl<br />

casamento), e isto aumentou o poder<br />

de negociação <strong>do</strong>s homens dentro da<br />

família, que, ao longo de gerações, se<br />

traduziu em normas e comportamentos<br />

que moldaram as crenças culturais<br />

sobre os papéis de gênero nas sociedades.<br />

[...] <strong>Em</strong> resumo, fornecemos novas<br />

evidências consistentes com a hipótese<br />

de que uma Revolução Neolítica precoce,<br />

por meio de seus efeitos sobre as<br />

crenças culturais, é uma das fontes <strong>do</strong>s<br />

modernos papéis de gênero.” 22<br />

Junto à mudança na divisão <strong>do</strong><br />

trabalho, também parece ter havi<strong>do</strong><br />

uma mudança da matrilocalidade<br />

para a patrilocalidade, o que teria<br />

produzi<strong>do</strong> um impacto ainda maior<br />

na posição da mulher no lar. Um<br />

artigo de 2004 da Universidade La<br />

Sapienza de Roma revelou que um<br />

estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> DNA Mitocondrial em 4o<br />

populações da África Subsaariana<br />

mostrou “uma diferença surpreendente<br />

na estrutura genética de produtores<br />

de alimentos (de fala Bantu<br />

e Sudanesa) e populações de caça<strong>do</strong>res<br />

e coletores (Pigmeus, !Kung e<br />

Hadza)” <strong>23</strong> . As mulheres das populações<br />

caça<strong>do</strong>ras e coletoras, como os<br />

!Kung e Hadza, eram mais propensas<br />

a permanecer com suas mães<br />

depois <strong>do</strong> casamento <strong>do</strong> que as mulheres<br />

de populações produtoras de<br />

alimentos dependentes da agricultura,<br />

sugerin<strong>do</strong> uma forte ligação entre<br />

a agricultura e a patrilocalidade.<br />

21


Naturalmente, é quase impossível<br />

precisar quan<strong>do</strong> exatamente a<br />

descendência matrilinear deu lugar<br />

à patrilinearidade. A mudança teria<br />

ocorri<strong>do</strong> em um perío<strong>do</strong> remoto <strong>do</strong><br />

passa<strong>do</strong> não registra<strong>do</strong>, e cada sociedade<br />

individual teria se desenvolvi<strong>do</strong><br />

à sua maneira e em seu próprio<br />

ritmo. Mas é certo que essa transição<br />

ocorreu em algum momento entre o<br />

advento da agricultura e o surgimento<br />

das primeiras sociedades de classe,<br />

há aproximadamente 5-6.000 anos,<br />

porque cada uma dessas sociedades<br />

era patrilocal, patrilinear e, acima de<br />

tu<strong>do</strong>, patriarcal.<br />

Morgan identificou a chave dessa<br />

mudança dramática na ascensão da<br />

propriedade privada, explican<strong>do</strong> que:<br />

“[...] a questão da herança seguramente<br />

surgiria, aumentaria em importância<br />

com o aumento da propriedade em termos<br />

de variedade e quantidade, e resultaria<br />

no estabelecimento de alguma<br />

regra de herança.” 24<br />

A propriedade não surgiu imediatamente<br />

como privada, pois inicialmente<br />

as regras de herança estavam<br />

baseadas na propriedade comum da<br />

terra e <strong>do</strong>s rebanhos dentro <strong>do</strong>s genes,<br />

essencialmente nas unidades familiares<br />

mais amplas que formavam<br />

a base da sociedade até a formação<br />

<strong>do</strong>s primeiros Esta<strong>do</strong>s. Isso significava<br />

que a propriedade não poderia ser<br />

transferida para fora <strong>do</strong>s genes.<br />

Sob o gene matrilinear, os filhos<br />

permaneciam dentro <strong>do</strong> gene da<br />

mãe. Portanto, era através da linha<br />

feminina que a propriedade era herdada.<br />

Isso significava que os filhos<br />

<strong>do</strong>s homens não se encontravam no<br />

genes de seus pais, mas no genes de<br />

suas parceiras. No entanto, em certo<br />

ponto, em diferentes partes <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> e em momentos distintos, à<br />

medida que os homens acumulavam<br />

cada vez mais propriedades, ocorreu<br />

uma mudança pela qual os direitos<br />

de propriedade passaram para a<br />

linhagem masculina.<br />

A desigualdade, as classes e a<br />

opressão das mulheres não surgiram<br />

imediatamente das primeiras formas<br />

de agricultura e <strong>do</strong>mesticação<br />

de animais. Mas, uma vez realizada<br />

a passagem para a agricultura, estavam<br />

criadas as condições para uma<br />

produtividade cada vez maior da terra.<br />

Como se pode ver em uma série<br />

de sítios neolíticos, o “comunismo na<br />

vida” continuou mesmo quan<strong>do</strong> os<br />

humanos passaram de uma existência<br />

nômade para uma sedentária. No<br />

entanto, o excedente que eventualmente<br />

era produzi<strong>do</strong> significava que<br />

Estupro das Mulheres Sabinas (c. 1579), Giambologna. Segun<strong>do</strong> a lenda romana, os homens da<br />

cidade recém-fundada raptaram as mulheres da tribo vizinha <strong>do</strong>s Sabinos. O conflito resultante<br />

terminou com a incorporação <strong>do</strong>s Sabinos na sociedade romana, homens, mulheres e to<strong>do</strong>s.<br />

Image: Larry Lamsa<br />

22


era apenas uma questão de tempo até<br />

que surgissem as classes e, com elas,<br />

a desigualdade social, cujas primeiras<br />

vítimas seriam as mulheres. No perío<strong>do</strong><br />

que vai desde as primeiras sociedades<br />

agrícolas sedentárias até o surgimento<br />

das primeiras civilizações<br />

conhecidas na história, esse processo<br />

foi concluí<strong>do</strong>.<br />

Isso se repetiu de forma independente<br />

em muitas partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />

incluin<strong>do</strong> a Mesopotâmia (hoje, Iraque),<br />

o Egito, as <strong>América</strong>s Central e <strong>do</strong><br />

Sul, a China, o Sul da Ásia e partes da<br />

África subsaariana. Nenhuma delas<br />

era uma cópia perfeita uma da outra,<br />

mas tinham muitas características<br />

em comum.<br />

Não podemos dizer exatamente<br />

como se deu a passagem da descendência<br />

matrilinear até a patrilinear.<br />

No entanto, Morgan pôde entrevistar<br />

membros de várias tribos na <strong>América</strong><br />

<strong>do</strong> Norte e notou que algumas delas<br />

haviam passa<strong>do</strong> recentemente da<br />

herança através da linha feminina à<br />

linha masculina – em alguns casos na<br />

memória viva. Como ele disse:<br />

“Muitas tribos indígenas agora têm<br />

propriedades consideráveis em animais<br />

<strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>s e em casas e terras<br />

pertencentes a indivíduos, entre os<br />

quais a prática de <strong>do</strong>á-las aos filhos<br />

durante a vida se tornou comum para<br />

evitar a herança gentílica.” 25<br />

Ele explica que, à medida que a<br />

propriedade aumentava em quantidade,<br />

a deserdação <strong>do</strong>s filhos <strong>do</strong>s<br />

homens começava a “suscitar oposição<br />

à herança gentílica”, ou seja,<br />

através da linha materna. Este é, na<br />

realidade, um exemplo vivo de como<br />

a transição da matrilinearidade à<br />

patrilinearidade pode ter ocorri<strong>do</strong><br />

em outras sociedades.<br />

Assim, o surgimento da propriedade<br />

privada foi o elemento chave<br />

na determinação da mudança radical<br />

no status das mulheres, da igualdade<br />

à subordinação aos homens.<br />

“A família monogâmica deve sua<br />

origem à propriedade” 26 , escreveu<br />

Morgan.<br />

Surgiu uma nova forma de sociedade,<br />

onde os homens <strong>do</strong>nos de<br />

propriedades passaram a impor às<br />

mulheres condições antes desconhecidas.<br />

A única forma de garantir<br />

que a mulher gerasse os filhos <strong>do</strong><br />

mari<strong>do</strong> era a imposição de regras<br />

estritas de comportamento, como<br />

a reclusão das mulheres dentro de<br />

casa, a proibição de as mulheres saírem<br />

de casa desacompanhadas e a<br />

estrita fidelidade. Morgan descreve<br />

o processo assim:<br />

American Gothic (1930), Grant Wood.<br />

“Depois que as casas e as terras, os rebanhos<br />

e as manadas, e os bens intercambiáveis<br />

se tornaram tão grandes<br />

em quantidade, e passaram a ser de<br />

propriedade individual, a questão de<br />

sua herança pressionaria a atenção<br />

humana [...].”<br />

Morgan explica que a família<br />

acabou se tornan<strong>do</strong> “uma organização<br />

de criação de propriedades” e<br />

acrescenta:<br />

“Chegara o momento em que a monogamia,<br />

ten<strong>do</strong> assegura<strong>do</strong> a paternidade<br />

<strong>do</strong>s filhos, afirmaria e manteria seu<br />

direito exclusivo de herdar os bens <strong>do</strong><br />

faleci<strong>do</strong> pai.” 27<br />

Morgan, como vimos, não se limitou<br />

a observar os Iroqueses, nem<br />

às informações que recebia de outros<br />

estudiosos e viajantes. Também<br />

olhou para outras fontes, por exemplo,<br />

para os Gregos e Romanos antigos,<br />

e para o que poderia se discernir<br />

de seus primeiros escritos, de seus<br />

mitos e lendas, sobre suas estruturas<br />

familiares anteriores.<br />

Encontra vestígios da gens nos<br />

primeiros textos e mitos <strong>do</strong>s Romanos<br />

e Gregos antigos, bem como no<br />

“sept” irlandês, no “clã’ escocês no<br />

“ganas” sânscrito e assim por diante.<br />

Isso é altamente significativo,<br />

pois essas culturas nunca poderiam<br />

ter ti<strong>do</strong> qualquer contato com as tribos<br />

nativas americanas que Morgan<br />

havia observa<strong>do</strong>.<br />

Os Gregos e Romanos antigos<br />

a<strong>do</strong>tavam uma gens de base masculina,<br />

ten<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong> a transição da<br />

gens feminina anterior, e ele descreve<br />

como isso continuou no perío<strong>do</strong><br />

inicial da urbanização.<br />

Na sociedade Grega antiga, vemos<br />

a queda das mulheres em uma de suas<br />

piores formas. Temen<strong>do</strong> que qualquer<br />

contato com outros homens pudesse<br />

levar a relações sexuais, os homens<br />

Atenienses não permitiam que suas<br />

esposas fossem vistas em público, e<br />

aos homens de fora da família não<br />

era permiti<strong>do</strong> estar com a mulher da<br />

casa. Na antiga Roma, o paterfamilias<br />

era a autoridade suprema, com poder<br />

de vida e morte sobre to<strong>do</strong>s os membros<br />

da família, esposa, descendência<br />

e escravos.<br />

Deve-se notar que essa “monogamia”<br />

era, na realidade, somente para<br />

as mulheres. E, ao la<strong>do</strong> dessa nova<br />

e restrita moralidade, emergiram,<br />

nas antigas sociedades de classe,<br />

<strong>23</strong>


distintas formas de prostituição feminina<br />

(e, em alguns casos, masculina).<br />

O Esta<strong>do</strong> Ateniense chegou a<br />

regulamentar a prostituição, com a<br />

introdução de bordéis.<br />

Antes que emergissem essas sociedades<br />

de classe, as mulheres eram<br />

reverenciadas e honradas como <strong>do</strong>a<strong>do</strong>ras<br />

da vida. Os épicos Gregos<br />

referem-se a deusas e guerreiras<br />

femininas, elevadas a uma posição<br />

de a<strong>do</strong>ração e respeito. Robert Graves,<br />

em seu Os Mitos Gregos (1955),<br />

expressou a visão de que a Grécia da<br />

Idade <strong>do</strong> Bronze havia transita<strong>do</strong> de<br />

uma sociedade “matriarcal” – poderíamos<br />

dizer, matrilinear – a uma<br />

patriarcal. Ele se refere à história<br />

de Zeus que engoliu Metis, a Deusa<br />

da Sabe<strong>do</strong>ria, após o que “os Aqueus<br />

suprimiram seu culto e arrogaram<br />

toda sabe<strong>do</strong>ria a Zeus como seu<br />

deus patriarcal”. 28<br />

Esse rebaixamento divino da<br />

mulher era claramente um reflexo<br />

de seu rebaixamento real na terra.<br />

William G. Dever argumentou em<br />

seu livro, Did God Have a Wife?, que<br />

um processo semelhante ocorreu na<br />

mitologia <strong>do</strong>s antigos hebreus, que<br />

em seu perío<strong>do</strong> inicial acreditavam<br />

que Javé (seu Deus) tinha uma esposa,<br />

considerada como a Rainha <strong>do</strong>s<br />

Céus. 29<br />

Morgan e Engels sobre o futuro da família<br />

O que Morgan tinha a dizer sobre o<br />

desenvolvimento passa<strong>do</strong> da família<br />

desafiava a visão tradicional, mas o<br />

que ele disse sobre o futuro da família<br />

era ainda mais desconcertante para<br />

os burgueses:<br />

“Quan<strong>do</strong> se aceita o fato de que a família<br />

passou através de quatro formas sucessivas,<br />

e se encontra agora em uma quinta<br />

forma, surge imediatamente a questão<br />

de se saber se essa última forma pode<br />

permanecer no futuro. A única resposta<br />

que pode ser dada é que deve avançar à<br />

medida que a sociedade avança, e mudar<br />

à medida que a sociedade muda, como<br />

aconteceu no passa<strong>do</strong>”. 30<br />

Engels foi mais longe:<br />

“[...] o que podemos conjecturar atualmente<br />

sobre a regulação das relações<br />

sexuais após o iminente desaparecimento<br />

da produção capitalista é,<br />

no essencial, de um caráter negativo,<br />

limita<strong>do</strong> principalmente ao que vai<br />

desaparecer. Mas, o que será adiciona<strong>do</strong>?<br />

Isso será resolvi<strong>do</strong> depois que<br />

uma nova geração tiver cresci<strong>do</strong>: uma<br />

geração de homens que nunca em toda<br />

as suas vidas tiveram a oportunidade<br />

de comprar a rendição de uma mulher<br />

24<br />

Friedrich Engels<br />

seja com dinheiro ou através de outros<br />

meios de poder social, e de mulheres<br />

que nunca foram obrigadas a se render<br />

a qualquer homem por qualquer consideração<br />

que não seja o amor verdadeiro,<br />

ou de abster-se de se entregar ao seu<br />

ama<strong>do</strong> por me<strong>do</strong> das consequências<br />

econômicas. Uma vez que apareçam<br />

essas pessoas, elas não se importarão<br />

nem um pouco com o que hoje pensamos<br />

que elas deveriam fazer. Elas estabelecerão<br />

sua própria prática e sua própria<br />

opinião pública, compatível com<br />

isso, sobre a prática de cada indivíduo<br />

–e ponto final.” 31<br />

Engels é frequentemente calunia<strong>do</strong><br />

como um homem <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> Vitoriano,<br />

mas nessas poucas frases vemos<br />

que ele estava realmente muito à<br />

frente de seu tempo na questão da família<br />

e sobre como os humanos se relacionariam<br />

sexualmente no futuro.<br />

Depois que Engels produziu sua<br />

obra clássica, as fileiras da II Internacional<br />

e, mais tarde, da Internacional<br />

Comunista, foram educadas<br />

nas ideias que ele elaborou sobre esta<br />

questão. Quan<strong>do</strong> os bolcheviques<br />

chegaram ao poder em 1917, começaram<br />

a implementar essas ideias, o que<br />

se pode ver nas várias leis e reformas<br />

a<strong>do</strong>tadas em relação ao casamento,<br />

aos direitos das mulheres, aos cuida<strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong>s filhos etc.<br />

Juntamente com as reformas políticas,<br />

Lenin e Trotsky enfatizaram a<br />

necessidade de uma igualdade social<br />

e política genuína, liberan<strong>do</strong> as mulheres<br />

<strong>do</strong> far<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>méstico,<br />

<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong>s filhos, etc., que até<br />

hoje pesam desproporcionalmente<br />

sobre as mulheres.<br />

O isolamento da revolução em um<br />

único país atrasa<strong>do</strong> significava que<br />

muitas dessas reformas progressistas<br />

só poderiam ser parcialmente<br />

alcançadas, pois a União Soviética<br />

não tinha suficientes recursos materiais<br />

para mantê-las. No entanto,<br />

suas ousadas reformas nos proporcionaram<br />

um vislumbre <strong>do</strong> que uma<br />

sociedade genuinamente socialista<br />

poderia alcançar. E é precisamente<br />

por esta razão que não só os bolcheviques,<br />

mas inclusive o próprio<br />

Morgan, não poderiam ser per<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s<br />

pela classe <strong>do</strong>minante.<br />

Reação burguesa contra Morgan e Engels<br />

Vale a pena notar aqui o tratamento<br />

muito diferente da<strong>do</strong> a Darwin e<br />

a Morgan. Darwin também não entendeu<br />

plenamente como a evolução<br />

ocorreu, e isso porque certas descobertas<br />

científicas ainda não tinham<br />

si<strong>do</strong> realizadas, como a genética. Isso<br />

não diminui seu papel histórico de ter<br />

impulsiona<strong>do</strong> fortemente nossa compreensão<br />

de como evoluiu a vida.<br />

Morgan teve tratamento diferente.<br />

A burguesia pode conviver com a<br />

ideia da evolução biológica. Até tentam<br />

torcê-la a fim de utilizá-la para<br />

justificar a própria sociedade capitalista.<br />

Mas não podem conviver com<br />

uma ideia que leva inevitavelmente<br />

à conclusão de que o próprio capitalismo<br />

é uma mera etapa, destinada a<br />

chegar ao fim.<br />

<strong>Em</strong>bora Morgan não fosse inimigo<br />

<strong>do</strong> capitalismo, suas descobertas nas<br />

mãos de Engels apontavam em uma<br />

direção: assim como a sociedade havia<br />

muda<strong>do</strong> no passa<strong>do</strong> em linha com<br />

o desenvolvimento das forças produtivas,<br />

então um maior desenvolvimento<br />

dessas forças estava preparan<strong>do</strong><br />

as condições para o fim <strong>do</strong> próprio<br />

capitalismo e, com isto, da família<br />

como era conhecida durante milhares<br />

de anos sob as diferentes formas<br />

de sociedades de classe. Portanto, as<br />

ideias de Morgan tinham que ser minadas<br />

e desacreditadas, porque minar<br />

seu ponto de vista significava também<br />

minar Engels e a visão <strong>do</strong>s marxistas,<br />

que eram vistos como promotores de<br />

ideias perigosas que ameaçavam a estabilidade<br />

da sociedade burguesa.<br />

É claro que é necessário sermos<br />

objetivos ao tratarmos de Morgan e<br />

da antropologia de seu perío<strong>do</strong>. Por<br />

exemplo, ele não compreendia o nível<br />

de desenvolvimento alcança<strong>do</strong> pelas<br />

culturas ameríndias mais avançadas,<br />

como a <strong>do</strong>s Astecas. Acreditava que<br />

estavam no mesmo nível <strong>do</strong>s Iroqueses.<br />

Mesmo quan<strong>do</strong> seu erro foi aponta<strong>do</strong><br />

por um de seus discípulos, ele<br />

persistiu nessa visão.<br />

No entanto, continua claro que<br />

Morgan havia rompi<strong>do</strong> claramente<br />

com a visão estreita de seus predecessores<br />

– e mesmo contemporâneos – e,<br />

inconscientemente, aplicou o méto<strong>do</strong>


Galileu diante <strong>do</strong> Santo Ofício (1847), Joseph-Nicolas Robert-Fleury<br />

<strong>do</strong> materialismo histórico à compreensão<br />

<strong>do</strong> desenvolvimento humano<br />

inicial. Ele deu uma importante contribuição<br />

à nossa compreensão <strong>do</strong> desenvolvimento<br />

da sociedade humana<br />

e isto deve ser reconheci<strong>do</strong>.<br />

O que temos de entender, no entanto,<br />

é que aqueles que atacam Morgan<br />

ou Engels não o fazem <strong>do</strong> ponto de<br />

vista de aguçar nossa compreensão<br />

com base em estu<strong>do</strong>s mais atualiza<strong>do</strong>s<br />

– algo a que o próprio Engels estaria<br />

aberto. Não, eles atacam e tentam<br />

desacreditar seu méto<strong>do</strong> científico,<br />

o méto<strong>do</strong> <strong>do</strong> materialismo dialético,<br />

como parte de um ataque mais amplo<br />

e geral contra o marxismo.<br />

Até mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XIX – o perío<strong>do</strong><br />

da ascensão capitalista – os<br />

primeiros economistas, historia<strong>do</strong>res,<br />

paleontólogos e antropólogos<br />

burgueses ainda buscavam, de forma<br />

genuína, descobrir os mecanismos<br />

que determinavam o desenvolvimento<br />

da sociedade. Adam Smith,<br />

por exemplo, estava lidan<strong>do</strong> com<br />

os mecanismos que determinavam<br />

como o capitalismo funcionava. Mas<br />

isso exigiu que Marx tirasse todas as<br />

conclusões lógicas.<br />

No entanto, na virada <strong>do</strong> século<br />

XX, quan<strong>do</strong> o capitalismo alcançou<br />

seus limites e começou a estagnar e a<br />

entrar em crises, a classe capitalista<br />

deixou de desempenhar qualquer papel<br />

genuinamente progressista, e isso<br />

impactou também em sua abordagem<br />

a tais estu<strong>do</strong>s.<br />

A classe burguesa havia se torna<strong>do</strong><br />

totalmente reacionária e estava<br />

buscan<strong>do</strong> ideias para justificar sua<br />

existência continuada. A razão é muito<br />

clara: suas riquezas e privilégios<br />

dependem da continuação <strong>do</strong> atual<br />

sistema e, portanto, eles buscam mostrar<br />

que ele nunca pode acabar.<br />

O renoma<strong>do</strong> antropólogo, Bronislaw<br />

Malinowski, foi uma importante figura<br />

nessa investida burguesa. “A família individual<br />

sempre existiu, e [...] está invariavelmente<br />

baseada no matrimônio de<br />

pares solteiros” 32 , declarou ele em 1931.<br />

Malinowski estava reagin<strong>do</strong> à ideia<br />

de que a família havia evoluí<strong>do</strong> ao longo<br />

<strong>do</strong> tempo, passan<strong>do</strong> por diferentes<br />

formas. Sua posição era que a análise<br />

histórica das formas anteriores da família<br />

carecia de evidências e que ela<br />

sempre foi, é e será nuclear. Como<br />

cita<strong>do</strong> acima, ele acreditava que a “família<br />

individual” (com o homem à cabeça)<br />

era o “elemento central de nossa<br />

sociedade”, e que eliminá-la seria uma<br />

“catástrofe social”.<br />

Vemos aqui como muitos antropólogos<br />

que tentaram entender as sociedades<br />

anteriores, as viram através<br />

das lentes da sociedade em que nasceram.<br />

Na ciência pode haver tal coisa<br />

de preconceito social. A ciência não é<br />

um “foro” neutro para as ideias; é um<br />

campo de batalha que reflete todas as<br />

pressões da sociedade de classes.<br />

A antropologia, por ser um estu<strong>do</strong><br />

da sociedade humana, é uma das<br />

ciências mais propensas a tal tipo de<br />

preconceito social. A fé religiosa, as<br />

tradições, a moralidade e os preconceitos<br />

de classe podem desempenhar<br />

um papel em cegar os antropólogos<br />

sobre o que realmente está à frente deles,<br />

particularmente quan<strong>do</strong> se trata<br />

das normas sexuais, mas também da<br />

questão da propriedade.<br />

Portanto, desde o início <strong>do</strong> século<br />

XX, a antropologia viu uma reação<br />

crescente contra as ideias de Morgan.<br />

Marvin Harris, em seu The Rise of<br />

Anthropological Theory (1968), explica<br />

que a moderna antropologia entrou<br />

no século XX com o mandato de “expor<br />

o esquema de Morgan e destruir<br />

o méto<strong>do</strong> em que se baseava” 33<br />

Qual era o méto<strong>do</strong> que eles pretendiam<br />

destruir? Harris explica<br />

que: “Os antropólogos <strong>do</strong> século XIX<br />

acreditavam que os fenômenos socioculturais<br />

eram governa<strong>do</strong>s por<br />

princípios legítimos detectáveis”.<br />

No século XX, no entanto, “passou a<br />

ser amplamente aceito que a antropologia<br />

nunca poderia descobrir as<br />

origens das instituições ou explicar<br />

suas causas”. 34<br />

Esta foi uma recusa de uma abordagem<br />

científica e materialista aos<br />

estu<strong>do</strong>s antropológicos e uma virada<br />

para os méto<strong>do</strong>s anticientíficos e<br />

idealistas. Isso levou a uma situação<br />

em que:<br />

“Com base em evidências etnográficas<br />

parciais, incorretas ou mal interpretadas,<br />

emergiu uma visão da cultura<br />

que exagerava to<strong>do</strong>s os ingredientes<br />

quixotescos, irracionais e inescrutáveis<br />

da vida humana. Encanta<strong>do</strong>s com a<br />

diversidade <strong>do</strong>s padrões, os antropólogos<br />

buscavam eventos divergentes e<br />

incomparáveis. Enfatizaram o significa<strong>do</strong><br />

interno e subjetivo da experiência<br />

com exclusão <strong>do</strong>s efeitos e das relações<br />

objetivas. Negaram o determinismo<br />

25


FRANZ BOAS E O “PARTICULARISMO HISTÓRICO”<br />

Franz Boas foi um antropólogo alemão<br />

que em 1899 se tornou professor<br />

de antropologia na Universidade de Columbia.<br />

Ele iria se tornar uma das figuras<br />

mais proeminentes na antropologia<br />

<strong>do</strong> século XX. Na época, havia muita<br />

pseu<strong>do</strong>ciência que pretendia mostrar<br />

que a evolução havia produzi<strong>do</strong> tipos<br />

superiores, brancos, anglo-saxões ou<br />

“nórdicos” acima das supostas “raças<br />

inferiores”. Boas mostrou sistematicamente<br />

que não havia evidência científica<br />

para tais alegações, e que to<strong>do</strong>s os<br />

humanos têm o mesmo potencial.<br />

Reagin<strong>do</strong> contra o racismo que permeava<br />

a antropologia <strong>do</strong> século XIX,<br />

Boas partiu <strong>do</strong> que podemos aceitar<br />

como a premissa correta, ou seja, da necessidade<br />

de um maior estu<strong>do</strong> empírico<br />

<strong>do</strong>s fatos, antes de se elaborar as leis gerais<br />

de desenvolvimento. Ele parece ter<br />

começa<strong>do</strong> de forma bem-intencionada,<br />

queren<strong>do</strong> acabar com a especulação de<br />

muitos antropólogos <strong>do</strong> século XIX, e<br />

substituí-la por fatos, da<strong>do</strong>s e estu<strong>do</strong>s<br />

de campo. Assim, ele acumulou muitos<br />

fatos e começou buscan<strong>do</strong> padrões, leis<br />

de desenvolvimento e processos, com<br />

base nesses fatos.<br />

No entanto, depois de encontrar<br />

exemplos que não se encaixavam<br />

rigidamente no esquema<br />

<strong>do</strong>s evolucionistas sociais <strong>do</strong> século<br />

XIX, ele finalmente concluiu<br />

que não se podiam discernir leis<br />

de desenvolvimento. <strong>Em</strong> 1930, ele<br />

escreveu o seguinte:<br />

“Deve-se entender claramente que a análise<br />

histórica não nos ajuda na solução<br />

dessas questões [...] Um erro da antropologia<br />

moderna, a meu ver, reside na ênfase<br />

exagerada na reconstrução histórica, cuja<br />

importância não deve ser minimizada,<br />

contra um estu<strong>do</strong> penetrante <strong>do</strong> indivíduo<br />

sob o estresse da cultura em que vive”.<br />

Como explica Marvin Harris: “Sob<br />

a influência de um movimento idealista<br />

neokantiano generaliza<strong>do</strong>, Boas<br />

se afastou <strong>do</strong> materialismo com o<br />

qual havia aborda<strong>do</strong> seus estu<strong>do</strong>s anteriores<br />

da física”. E, em uma reviravolta<br />

irônica, foi na verdade durante<br />

uma viagem de estu<strong>do</strong>s ao ártico para<br />

estudar as pessoas de lá, que ele leu<br />

Kant,“para que eu não fique completamente<br />

sem instrução quan<strong>do</strong> voltar”. A<br />

abordagem teórica de Boas tornou-se<br />

conhecida como particularismo histórico.<br />

Para usar um velho dita<strong>do</strong>, Boas terminou<br />

“sem ver a floresta por trás das<br />

árvores”. Como Marvin Harris explica,<br />

a abordagem de Boas “levou a uma vasta<br />

coleção de materiais primários – textos<br />

e descrições nos quais praticamente<br />

não se fez nenhuma tentativa para<br />

orientar o leitor com relação a generalizações<br />

provisórias e de curto alcance”.<br />

Harris comenta ainda:<br />

Franz Boas<br />

“Ao ponderar a facilidade com que Boas e<br />

seus alunos utilizaram um ou <strong>do</strong>is casos<br />

negativos para negar hipóteses confirmadas<br />

por centenas de outros casos, inevitavelmente<br />

ficamos impressiona<strong>do</strong>s com a<br />

quantidade de esforço gasto para provar<br />

que o caos era a característica destacável<br />

<strong>do</strong> reino sociocultural”.<br />

Sem surpresa, esse méto<strong>do</strong> se tornou<br />

um <strong>do</strong>gma ainda mais rígi<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

que aquele que deveria substituir. As<br />

leis históricas não seriam apenas desconhecidas,<br />

mas incognoscíveis, tornan<strong>do</strong><br />

impossível qualquer explicação<br />

objetiva <strong>do</strong> desenvolvimento cultural.<br />

É este <strong>do</strong>gma que ainda hoje <strong>do</strong>mina o<br />

campo da antropologia.<br />

histórico em geral e, acima de tu<strong>do</strong>, negaram<br />

o determinismo das condições<br />

materiais de vida.” 35<br />

Essa abordagem idealista recusou<br />

o méto<strong>do</strong>s evolucionário materialista<br />

e, com ele, a ideia de que se poderia<br />

elaborar uma visão histórica global e<br />

de longo prazo <strong>do</strong> desenvolvimento<br />

da sociedade; recusou a ideia de que<br />

as leis de desenvolvimento da sociedade<br />

podiam ser encontradas e, em<br />

vez disso, insistiu em que cada cultura<br />

poderia ser vista de forma isolada<br />

como única e sem nenhuma ordem<br />

específica para o desenvolvimento.<br />

Franz Boas (1858-1942) foi um <strong>do</strong>s<br />

pioneiros dessa tendência, com sua<br />

teoria <strong>do</strong> “particularismo histórico”.<br />

Isso, de fato, foi uma antecipação<br />

<strong>do</strong> pensamento pós-moderno,<br />

que viu uma série de esquerdistas<br />

desiludi<strong>do</strong>s e mesmo “marxistas”<br />

se afastarem de uma perspectiva<br />

científica e materialista em direção<br />

à negação não só das leis de<br />

desenvolvimento, mas também <strong>do</strong><br />

próprio desenvolvimento.<br />

26<br />

Houve antropólogos que lutaram<br />

contra essa tendência, tais como Leslie<br />

A. White e Marvin Harris, os quais<br />

à sua maneira resistiram à deriva ao<br />

idealismo e mantiveram uma abordagem<br />

materialista. Mas, como Harris<br />

comentou em 1999 Teorias da Cultura<br />

nos Tempos Pós-modernos: “Devo confessar<br />

que a virada dada pela teoria –<br />

afastan<strong>do</strong>-se das abordagens processuais<br />

cientificamente orientadas e em<br />

direção a um pós-modernismo ‘vale<br />

tu<strong>do</strong>’ – tem si<strong>do</strong> muito mais influente<br />

<strong>do</strong> que eu pensava ser possível quan<strong>do</strong><br />

olhei para a frente a partir <strong>do</strong> final<br />

da década de 1960.” 36 Essa virada não<br />

foi uma coincidência.<br />

Com as abordagens de Franz Boas<br />

e, mais tarde, <strong>do</strong>s pós-modernistas,<br />

tu<strong>do</strong> o que resta é uma massa de estu<strong>do</strong>s<br />

de casos individuais, de fatos<br />

isola<strong>do</strong>s, desconecta<strong>do</strong>s uns <strong>do</strong>s<br />

outros, sem nenhuma tentativa de<br />

estabelecer uma relação de causa e<br />

efeito, com a conclusão final de que<br />

a realidade é incognoscível.<br />

Uma das críticas que a escola<br />

de Boas fez a Morgan e a to<strong>do</strong>s os<br />

evolucionistas sociais <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>, foi<br />

que eles tinham uma visão rígida de<br />

como se desenvolviam as culturas humanas,<br />

impon<strong>do</strong> um modelo no qual<br />

todas as culturas locais tinham que<br />

ser enfileiradas.<br />

É verdade que as sociedades humanas<br />

não evoluíram todas exatamente<br />

da mesma maneira, preenchen<strong>do</strong><br />

cada fase dentro de uma espécie de<br />

plano pré-ordena<strong>do</strong>. Podemos negar<br />

que em diferentes condições geográficas<br />

e climáticas houve diferentes ritmos<br />

e direções de desenvolvimento?<br />

Isso seria absur<strong>do</strong> e anticientífico. Por<br />

exemplo, foi demonstra<strong>do</strong> que houve<br />

casos em que as culturas que haviam<br />

embarca<strong>do</strong> nas primeiras formas de<br />

agricultura, posteriormente retornaram<br />

à caça. Por que isso? Porque<br />

nas condições dadas, a agricultura<br />

se mostrou menos produtiva, ou as<br />

mudanças climáticas obrigaram esses<br />

grupos humanos a se deslocarem.<br />

Havia uma razão concreta e material<br />

para essa mudança de volta ao que se<br />

poderia presumir uma forma menos<br />

desenvolvida de sustento.


Se aplicarmos isso à família, veremos<br />

que, apesar de sua a<strong>do</strong>ção da<br />

agricultura e da <strong>do</strong>mesticação de animais,<br />

alguns sítios neolíticos sugerem<br />

uma igualdade continuada entre os<br />

sexos, mesmo por perío<strong>do</strong>s de tempo<br />

muito longos. E também podemos<br />

encontrar sociedades caça<strong>do</strong>ras e coletoras<br />

onde a opressão das mulheres<br />

surgiu sob a influência de formas<br />

posteriores de sociedade, onde houve<br />

contato com agricultores –um exemplo<br />

marcante da lei <strong>do</strong> desenvolvimento<br />

desigual e combina<strong>do</strong>.<br />

No entanto, isso não refuta que<br />

existam leis discerníveis de evolução<br />

social e estágios. A questão é que o<br />

processo geral tendeu em uma direção<br />

e por razões materiais que podemos<br />

entender. Nem uma só sociedade<br />

de classes apresentou o nível de igualdade<br />

observa<strong>do</strong> em uma ampla gama<br />

de sociedades caça<strong>do</strong>ras e coletoras,<br />

passadas e presentes.<br />

Uma visão objetiva <strong>do</strong> desenvolvimento<br />

da sociedade, uma observação<br />

<strong>do</strong>s fatos apresenta<strong>do</strong>s, mostra que,<br />

sim, a evolução social tomou rumos<br />

ligeiramente diferentes, dependen<strong>do</strong><br />

das condições locais. Mas uma coisa é<br />

reconhecer isso e outra coisa completamente<br />

diferente tirar disso a conclusão<br />

de que não há leis discerníveis<br />

de desenvolvimento social.<br />

Boas não foi de forma alguma o<br />

único antropólogo a a<strong>do</strong>tar tal perspectiva.<br />

Outros, depois dele, a<strong>do</strong>taram<br />

uma abordagem igualmente<br />

idealista. O que podemos afirmar é<br />

que seu méto<strong>do</strong>, independentemente<br />

da intenção, se adapta à classe capitalista<br />

atual. <strong>Em</strong> vez de usar a linguagem<br />

abertamente reacionária de<br />

Malinowski, eles podem se esconder<br />

por trás de uma filosofia que se<br />

apresenta como progressista, quan<strong>do</strong>,<br />

na verdade, é profundamente<br />

reacionária.<br />

continua a fazê-lo hoje – ficaremos sem<br />

uma compreensão real de como e por<br />

que razão a sociedade mu<strong>do</strong>u, de como<br />

e por que razão a família mu<strong>do</strong>u e, portanto,<br />

de como e por que razão pode<br />

mudar mais uma vez no futuro. Ficaremos<br />

com a ideia de que é a mente <strong>do</strong>s<br />

indivíduos que determina as mudanças<br />

e não a mudança das condições que determina<br />

as mudanças no pensamento.<br />

O afastamento da perspectiva materialista<br />

e evolutiva na antropologia<br />

foi um passo atrás, pois não deixou<br />

espaço para uma compreensão científica<br />

genuína de como a sociedade<br />

humana evoluiu desde seus estágios<br />

iniciais, através de várias formas até a<br />

sociedade industrial atual.<br />

Isso nos deixa com a ideia de que<br />

não adianta lutar por uma mudança<br />

radical na estrutura da sociedade. <strong>Em</strong><br />

vez disso, devemos trabalhar com os<br />

indivíduos que compõem a sociedade.<br />

Isso nos deixa sem uma maneira<br />

completa de mudar as condições materiais.<br />

Significa, no caso da luta pelos<br />

direitos das mulheres – e de outras<br />

camadas oprimidas da sociedade –<br />

que a luta de classes não tem nenhum<br />

papel a desempenhar. Tu<strong>do</strong> se torna<br />

uma batalha por palavras, por significa<strong>do</strong>s.<br />

Nessa estrada o movimento<br />

acaba em um beco sem saída.<br />

O que é necessário é um retorno à<br />

ideia de que há uma direção para o<br />

desenvolvimento da sociedade, que<br />

os diferentes estágios de desenvolvimento<br />

nos trouxeram até onde<br />

hoje estamos, e que o atual estágio,<br />

o da sociedade capitalista, apenas<br />

preparou o terreno para um estágio<br />

mais alto, o <strong>do</strong> socialismo, pelo qual<br />

é preciso lutar.<br />

O futuro da família<br />

Para aqueles que negam que a família<br />

evoluiu através de várias formas<br />

diferentes, podemos apontar para<br />

o fato de que, apesar <strong>do</strong>s fervorosos<br />

desejos de figuras como Malinowski,<br />

está muito claro que a família passou<br />

por muitas mudanças mesmo no perío<strong>do</strong><br />

relativamente curto que nos separa<br />

<strong>do</strong>s dias de Morgan e Engels.<br />

A necessidade de uma compreensão teórica<br />

Para concluir, podemos apresentar<br />

a questão: Por que tu<strong>do</strong> isso é importante?<br />

Por que defendemos as ideias<br />

centrais elaboradas por Morgan e Engels<br />

da evolução social e, com elas, a<br />

ideia de que a família evoluiu? A resposta<br />

a essa questão é que uma compreensão<br />

teórica é indispensável na<br />

luta pela abolição da opressão.<br />

Este debate não é de mero interesse<br />

acadêmico. O conflito entre materialismo<br />

e idealismo em todas as esferas<br />

da vida é um conflito entre o progresso<br />

e a reação. Na verdade, faz parte da<br />

luta de classes.<br />

Se aceitarmos a perspectiva anti materialista<br />

e idealista que passou a <strong>do</strong>minar<br />

a antropologia no século XX – e<br />

Abaixo a escravidão na cozinha! Um pôster soviético de 1931.<br />

27


Nós o testemunhamos na memória<br />

viva. Quase 50% de to<strong>do</strong>s os casamentos<br />

nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s hoje<br />

terminam em divórcio ou separação,<br />

enquanto a cifra no Reino Uni<strong>do</strong> está<br />

em torno de 42%. Estimativas recentes<br />

também mostram que cerca de<br />

40% <strong>do</strong>s nascimentos nos Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s ocorrem fora <strong>do</strong> casamento. 37<br />

<strong>Em</strong> muitos países ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />

os casamentos estão se tornan<strong>do</strong> menos<br />

comuns, as pessoas estão se casan<strong>do</strong><br />

mais tarde e há uma “dissociação” entre<br />

paternidade e casamento. Como diz certo<br />

artigo: “Dentro das últimas décadas, a<br />

instituição <strong>do</strong> casamento mu<strong>do</strong>u mais<br />

<strong>do</strong> que em milhares de anos antes”. 38<br />

Estas mudanças ocorreram devi<strong>do</strong><br />

a vários fatores, o mais importante<br />

deles sen<strong>do</strong> a enorme entrada das<br />

mulheres no merca<strong>do</strong> de trabalho,<br />

dan<strong>do</strong> às mulheres um maior grau<br />

de independência.<br />

No entanto, ainda há uma significativa<br />

disparidade salarial entre os<br />

homens e as mulheres. Apesar <strong>do</strong>s<br />

avanços realiza<strong>do</strong>s, particularmente<br />

desde a década de 1970, a maioria das<br />

mulheres não são totalmente independentes<br />

economicamente devi<strong>do</strong><br />

à persistente desigualdade, pobreza<br />

e austeridade. Mas ainda é verdade<br />

que as mulheres não são tão dependentes<br />

<strong>do</strong>s homens como costumavam<br />

ser no passa<strong>do</strong> – pelo menos nos<br />

países industrializa<strong>do</strong>s avança<strong>do</strong>s<br />

– e com essa maior independência<br />

Notas e Referências<br />

financeira veio uma maior demanda<br />

das mulheres por igualdade na lei e<br />

nas condições sociais.<br />

Portanto, poderíamos colocar outra<br />

questão: se nos últimos 70 anos<br />

todas as mudanças acima descritas<br />

ocorreram na família, por que mudanças<br />

ainda maiores não ocorreram<br />

durante dezenas de milhares de anos,<br />

e por que não podem mudar em uma<br />

direção progressista no futuro?<br />

Ten<strong>do</strong> dito isto, fica claro que a<br />

opressão das mulheres não passará<br />

pacificamente sob o capitalismo. Além<br />

das barreiras materiais enfrentadas<br />

pelas mulheres, milhares de anos de<br />

sociedade de classes, de cultura e ideologia<br />

misóginas ainda determinam,<br />

em um grau ou outro, a perspectiva<br />

de bilhões de pessoas hoje. Preconceito<br />

e moralidade basea<strong>do</strong>s na classe se<br />

acumularam um sobre o outro e ainda<br />

permanecem fortes sob o capitalismo.<br />

Muitas vezes se afirma erroneamente<br />

que o capitalismo é a raiz<br />

da opressão das mulheres. Isso é<br />

simplificar enormemente a questão.<br />

Como vimos, a <strong>do</strong>minação masculina<br />

sobre as mulheres surgiu há<br />

milhares de anos, quan<strong>do</strong> surgiram<br />

as primeiras formas de sociedade<br />

de classes. No entanto, o que é verdade<br />

é que a cultura misógina continua<br />

a florescer sob o capitalismo<br />

e é ativamente utilizada pela classe<br />

<strong>do</strong>minante quan<strong>do</strong> sua posição é<br />

ameaçada, como vemos atualmente.<br />

Qualquer coisa que possa ser utilizada<br />

para dividir a classe trabalha<strong>do</strong>ra<br />

é útil para os capitalistas. Racismo,<br />

homofobia, transfobia, divisões<br />

religiosas e étnicas, to<strong>do</strong>s são vistos<br />

como ferramentas úteis para colocar<br />

um grupo de trabalha<strong>do</strong>res contra<br />

outro. Esta é uma poderosa razão<br />

pela qual a família nuclear é ainda<br />

apresentada como uma das “pedras<br />

angulares da civilização”, e sempre o<br />

será sob o capitalismo.<br />

A emancipação final e verdadeira<br />

das mulheres somente será alcançada<br />

quan<strong>do</strong> a sociedade de classes for eliminada<br />

de uma vez por todas. Como<br />

Marx e Engels colocaram, “a revolução<br />

é a força motriz da história”. 39 Nossa<br />

tarefa hoje é lutar pela derrubada <strong>do</strong><br />

atual sistema capitalista opressor, que<br />

sobreviveu ao seu papel histórico.<br />

Uma vez removidas todas as contradições<br />

que decorrem dessa sociedade,<br />

uma vez que as forças produtivas<br />

sejam libertadas das restrições<br />

da motivação <strong>do</strong> lucro e sejam colocadas<br />

sob o controle daqueles que<br />

produzem a riqueza, a classe trabalha<strong>do</strong>ra,<br />

as condições materiais<br />

mudarão radicalmente e, com essa<br />

mudança radical, serão as gerações<br />

futuras que decidirão como desejam<br />

se relacionar entre si. As relações<br />

entre os humanos serão finalmente<br />

libertas das carências materiais e da<br />

moralidade distorcida imposta pela<br />

sociedade de classes.<br />

1<br />

L H Morgan, Ancient Society, Bharati, 1947, pg 498<br />

2<br />

M F A Montagu (ed.), Marriage, Past and Present – A<br />

Debate Between Robert Briffault and Bronislaw Malinowski,<br />

Extending Horizons, 1956, pg 76<br />

3<br />

L H Morgan, Ancient Society, Bharati, 1947, pg 19<br />

4<br />

F Engels, The Origin of the Family, Private Property and<br />

the State, Wellred Books, 2020, pg xxvii<br />

5<br />

L Krader (ed.), The Ethnological Notebooks of Karl Marx,<br />

Van Gorcum& Comp. B.V., 1974<br />

6<br />

E Trinkaus, “An abundance of developmental anomalies<br />

and abnormalities in Pleistocene people” in PNAS, Vol. 115, No.<br />

47, 2018<br />

7<br />

“Prehistoric humans are likely to have formed mating networks<br />

to avoid inbreeding”, University of Cambridge, 5 October<br />

2017<br />

8<br />

F Engels, The Origin of the Family, Private Property and<br />

the State, Wellred Books, 2020, pg 16<br />

9<br />

L H Morgan, Ancient Society, Bharati, 1947, pg 28<br />

10<br />

ibid.<br />

11<br />

F Engels, The Origin of the Family, Private Property and<br />

the State, Wellred Books, 2020, pg 78<br />

12<br />

C Renfrew, Prehistory – The making of the Human Mind,<br />

Modern Library, 2007, pg 135<br />

13<br />

L H Morgan, Ancient Society, Bharati, 1947, pg 66, 69<br />

14<br />

L A White, The Evolution of Culture, The Development of<br />

Civilization to the Fall of Rome, McGraw-Hill, 1959, pg 256<br />

15<br />

See H Devlin, “Early men and women were equal, say<br />

scientists”, The Guardian,14 May 2015<br />

28<br />

16<br />

K Opie, C Power, “Grandmothering and Female Coalitions:<br />

A Basis for Matrilineal Priority?” in Early Human<br />

Kinship, From Sex to Social Reproduction, Wiley, 2008, pg<br />

168-186<br />

17<br />

C W Hansen et al., “Modern Gender Roles and Agricultural<br />

History: The Neolithic Inheritance” in Journal of Economic<br />

Growth, Vol. 20, 2015, pg 7-8<br />

18<br />

K Opie, C Power, “Grandmothering and Female Coalitions:<br />

A Basis for Matrilineal Priority?” in Early Human<br />

Kinship, From Sex to Social Reproduction, Wiley, 2008, pg 185<br />

19<br />

S L Kuhn, M C Stiner, “What’s a Mother To Do? The<br />

Division of Labor among Neandertals and Modern Humans<br />

in Eurasia” in Current Anthropology, Vol. 46, No. 6,<br />

2006, pg 995<br />

20<br />

C W Hansen et al., “Modern Gender Roles and Agricultural<br />

History: The Neolithic Inheritance” in Journal of Economic<br />

Growth, Vol. 20, 2015, pg 9<br />

21<br />

ibid.<br />

22<br />

ibid.pg 3-5<br />

<strong>23</strong><br />

G Destro-Bisol et al., “Variation of Female and Male Lineages<br />

in Sub-Saharan Populations: the Importance of Sociocultural<br />

Factors” in Molecular Biology and Evolution, Vol. 21, No.<br />

9, 2004, pg 1673<br />

24<br />

L H Morgan, Ancient Society, Bharati, 1947, pg 74<br />

25<br />

L H Morgan, Ancient Society, Bharati, 1947, pg 168<br />

26<br />

ibid., pg 398<br />

27<br />

ibid., pg 554<br />

28<br />

R Graves, The Greek Myths, Penguin Books, 1972, pg 20<br />

29<br />

William G. Dever’sDid God have a Wife?, 2005<br />

30<br />

L H Morgan, Ancient Society, Bharati, 1947, pg 449<br />

31<br />

F Engels, The Origin of the Family, Private Property and<br />

the State, Wellred Books, 2020, pg 63<br />

32<br />

M F A Montagu (ed.), Marriage, Past and Present – A<br />

Debate Between Robert Briffault and Bronislaw Malinowski,<br />

Extending Horizons, 1956, pg 41<br />

33<br />

M Harris, The Rise of Anthropological Theory, Thomas Y<br />

Cromwell, 1968, pg 249<br />

34<br />

ibid., pg 1<br />

35<br />

ibid., pg 2<br />

36<br />

M Harris, Theories of Culture in Postmodern Times, Altamira,<br />

1999, pg 13<br />

37<br />

E Wildsmith et al., “Dramatic increase in the proportion<br />

of births outside of marriage in the United States from 1990 to<br />

2016”, Child Trends,8 August 2018<br />

38<br />

E Wildsmith et al., “Dramatic increase in the proportion<br />

of births outside of marriage in the United States from 1990 to<br />

2016”, Child Trends,8 August 2018<br />

39<br />

K Marx, F Engels, The German Ideology, Prometheus<br />

Books, 1998, pg 61<br />

Notas e referências da bibliografia de Franz Boas:<br />

M Harris, The Rise of Anthropological Theory, Thomas Y<br />

Cromwell, 1968, pg 281<br />

ibid., pág. 263, 268<br />

ibid., pág. 261<br />

ibid., pág. 282


Criação <strong>do</strong> Comitê Comunista de Correspondência, em pintura de MaGang, 2018<br />

COMUNISMO<br />

E PROPAGANDA<br />

REVOLUCIONÁRIA<br />

JOHANNES HALTER<br />

A<br />

ideia de propaganda de que<br />

trata este artigo tem sua origem<br />

histórica associada à<br />

Igreja Católica Apostólica<br />

Romana. Está vinculada diretamente<br />

à luta de classes, porém, em outro<br />

contexto histórico. O pano de fun<strong>do</strong><br />

era a luta entre uma burguesia nascente<br />

contra o Antigo Regime. A iniciativa<br />

foi da reação, que desenvolveu<br />

a propaganda como instrumento para<br />

perpetuar o feudalismo, sua estrutura<br />

social e a pre<strong>do</strong>minância espiritual<br />

da Igreja Católica sobre a sociedade.<br />

A propaganda, entretanto, logo foi<br />

incorporada pela própria burguesia<br />

como um instrumento revolucionário<br />

em seu esforço para romper as<br />

relações de produção feudais e fazer<br />

prevalecer o capitalismo como mo<strong>do</strong><br />

de produção.<br />

A primeira vez que a palavra propaganda<br />

foi empregada no senti<strong>do</strong><br />

que a conhecemos foi durante o papa<strong>do</strong><br />

de Gregório XIII (1572-1585),<br />

com a designação em 1577 de uma comissão<br />

especial para a tarefa. Já em<br />

1597 o papa Clemente VIII instituiu<br />

a Comissão Cardinalícia para a Propagação<br />

da Fé (Cardinalitia Commissio<br />

de Propaganda Fide) 1 . Seu propósito<br />

era promover a unidade de Roma<br />

com os cristãos orientais (eslavos,<br />

gregos, sírios, egípcios e etíopes). O<br />

conteú<strong>do</strong> dessa propaganda foram<br />

as teses <strong>do</strong>gmáticas e legislações<br />

disciplinares (cânones) aprovadas no<br />

Concílio de Trento (1542-1563), como<br />

resposta à Reforma Protestante pela<br />

qual a nascente burguesia lutava.<br />

Esse senti<strong>do</strong> foi consagra<strong>do</strong> com a<br />

Contrarreforma, a reação medieval<br />

que buscou defender a manutenção<br />

da sociedade feudal. Como parte da<br />

defesa e reorganização da Igreja Católica,<br />

em 1622 foi estabelecida a Congregação<br />

para a Propagação <strong>do</strong> Nome<br />

de Cristo (Sacra Congregatio Christiano<br />

Nomini Propagare), pela bula canônica<br />

Inscrutabili divinae Providentiae arcano,-<br />

<strong>do</strong> papa Gregório XV 2 . A tarefa desse<br />

ministério foi levar “a Fé” para o Novo<br />

Mun<strong>do</strong> (especialmente as colônias de<br />

Portugal e Espanha). Também foi sua<br />

29


incumbência reavivar e fortalecer “a<br />

Fé” na Europa, como um outro meio de<br />

combater a Reforma Protestante.<br />

A palavra propaganda consagrou-<br />

-se a partir de então com um senti<strong>do</strong><br />

diferente da palavra publicidade. Enquanto<br />

esta deriva <strong>do</strong> latim publicus,<br />

fazen<strong>do</strong> referência a tornar público,<br />

divulgar um fato ou ideia, aquela vem<br />

<strong>do</strong> latim moderno propagare, que significa<br />

“para ser espalha<strong>do</strong>” ou “enterrar<br />

o rebento de uma planta no solo”.<br />

Propagare deriva de pangere, que quer<br />

dizer enterrar, mergulhar, plantar.<br />

Como primeira aproximação, portanto,<br />

podemos definir propaganda<br />

como a atividade de propagar ideias,<br />

princípios e teorias, fazen<strong>do</strong> com que<br />

sejam assimila<strong>do</strong>s pelos sujeitos a<br />

quem se dirige 3 .<br />

Essa iniciativa unificou as atividades<br />

missionárias da Igreja Católica.<br />

Seu objetivo era trazer homens e mulheres<br />

a uma voluntária, e não coerciva,<br />

aceitação das <strong>do</strong>utrinas da igreja.<br />

Já os méto<strong>do</strong>s e as táticas que seriam<br />

usa<strong>do</strong>s na atividade missionária eram<br />

deixa<strong>do</strong>s a critério daqueles que estavam<br />

em campo. Desde então, a palavra<br />

propaganda foi aplicada para qualquer<br />

organização que se propusesse a propagar<br />

uma <strong>do</strong>utrina; depois ela também<br />

foi usada para descrever a própria<br />

<strong>do</strong>utrina; e finalmente acabou por significar<br />

as técnicas empregadas para<br />

mudar opiniões e espalhar <strong>do</strong>utrinas 4 .<br />

O desenvolvimento de uma meto<strong>do</strong>logia,<br />

de um conjunto de técnicas de<br />

persuasão sobre a <strong>do</strong>utrina católica,<br />

marcou, portanto, uma transformação<br />

da mera publicidade em propaganda,<br />

quer dizer: uma atividade racional,<br />

pensada e eficiente 5 .<br />

Propaganda e burguesia<br />

A burguesia iniciou sua atividade<br />

no campo da propaganda, em um primeiro<br />

momento, com suas ilusões religiosas,<br />

debaten<strong>do</strong>-se pela Reforma<br />

Protestante contra a Igreja Católica e<br />

a estrutura da sociedade feudal. Esse<br />

embate vai desembocar na Guerra <strong>do</strong>s<br />

Trinta Anos (1618-1648), em que pela<br />

primeira vez fez-se uso de quantidades<br />

massivas de folhetos, panfletos,<br />

desenhos lineares, incluin<strong>do</strong> caricaturas<br />

difamatórias de líderes religiosos<br />

e seculares. Católicos e protestantes<br />

defendiam e difundiam suas <strong>do</strong>utrinas<br />

utilizan<strong>do</strong>-se de instrumentos<br />

de propagação de suas religiões. Foi<br />

nesse perío<strong>do</strong> que pela primeira vez<br />

os cartazes foram usa<strong>do</strong>s com ampla<br />

divulgação e, apesar <strong>do</strong> baixo índice<br />

de alfabetização, avalia-se que uma ou<br />

mais das técnicas de propaganda empregadas<br />

nessa guerra atingiram todas<br />

as classes da população.<br />

30<br />

Já na Guerra Civil Inglesa (1642-<br />

1649), a propaganda foi usada pela<br />

primeira vez como um elemento estratégico<br />

para esse tipo de conflito.<br />

O exército parlamentarista de Oliver<br />

Cromwell valeu-se amplamente da<br />

propaganda como um fator para acuar<br />

e subjugar as forças reais comandadas<br />

pelo Rei Charles I. Os rebeldes tinham<br />

na propagação de <strong>do</strong>utrinas religiosas<br />

e políticas, por meio de panfletos e<br />

outros suportes, um acessório regular<br />

de sua ação militar e ao qual constantemente<br />

dava-se mais atenção que o<br />

campo de batalha.<br />

A burguesia<br />

iniciou sua<br />

atividade no<br />

campo da<br />

propaganda,<br />

em um primeiro<br />

momento, com<br />

suas ilusões<br />

religiosas,<br />

debaten<strong>do</strong>-se<br />

pela Reforma<br />

Protestante contra<br />

a Igreja Católica<br />

e a estrutura da<br />

sociedade feudal<br />

As forças de Cromwell assimilaram<br />

ao seu arsenal militar um recente formato<br />

de publicações conheci<strong>do</strong> como<br />

livro de notícias, predecessores diretos<br />

<strong>do</strong> atual jornal. Eram livros de 8 ou 16<br />

páginas compostos de pequenas notas<br />

Batalha de Marston Moor 1644 por John Barker<br />

e edita<strong>do</strong>s semanalmente. Nas mãos<br />

<strong>do</strong>s parlamentaristas, os livros de notícias<br />

que vinham se propagan<strong>do</strong> nos<br />

centros urbanos passaram a ter um<br />

caráter revolucionário. <strong>Em</strong>bora ignoran<strong>do</strong><br />

a nova arma em um primeiro<br />

momento, logo as forças reais começaram<br />

a sentir o efeito da propaganda<br />

parlamentarista sobre suas tropas e a<br />

população que era sua base de apoio.<br />

Diante disso, os <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s <strong>do</strong> conflito<br />

passaram a editar livros de notícias,<br />

responden<strong>do</strong> e tentan<strong>do</strong> influir no<br />

la<strong>do</strong> adversário 6 .<br />

O emprego da propaganda nas lutas<br />

sociais e políticas cresceu enormemente<br />

nas décadas seguintes,<br />

sen<strong>do</strong> a forma pela qual se travaram<br />

as grandes disputas ideológicas dentro<br />

da estrutura <strong>do</strong> Antigo Regime. A<br />

Revolução Americana (1775-1783) foi<br />

precedida por uma longa tradição de<br />

batalha propagandística. Livros eram<br />

consumi<strong>do</strong>s e produzi<strong>do</strong>s por colonos<br />

letra<strong>do</strong>s e bem-informa<strong>do</strong>s sobre<br />

questões políticas. O Iluminismo expresso<br />

por autores ingleses e franceses<br />

das metrópoles eram a matéria prima<br />

que dava forma às ideias e à opinião<br />

pública da colônia americana 7 . O jornal<br />

impresso se tornou então o principal<br />

veículo para disseminação de<br />

informações propagandísticas, apesar<br />

das tentativas da Grã-Bretanha de taxar<br />

e fechar tais periódicos. Foi nesse<br />

perío<strong>do</strong> que os jornais passaram a<br />

trazer charges que se popularizaram<br />

como arma de propaganda.<br />

Esse também foi o caso <strong>do</strong> perío<strong>do</strong><br />

precedente da Revolução Francesa,<br />

com os espíritos sen<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong>s por<br />

amplo número de jornais e panfletos<br />

agitan<strong>do</strong> a sociedade e a circulação das<br />

ideias de Voltaire, Rousseau, Diderot,<br />

D’Alembert e outros. Ainda sob os impactos<br />

políticos da Revolução Americana<br />

sobre a França, o Rei Luís XVI<br />

convocou os Esta<strong>do</strong>s Gerais em 1788.<br />

Era uma época em que os grandes homens<br />

da França já haviam prepara<strong>do</strong>


os espíritos, uma “opinião pública”,<br />

para a revolução que se desencadearia.<br />

Durante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> anterior, a religião,<br />

a concepção da natureza, a sociedade,<br />

a ordem política: tu<strong>do</strong> foi submeti<strong>do</strong><br />

à crítica mais desapiedada. Tu<strong>do</strong><br />

que existia devia ou justificar os seus<br />

títulos de existência diante <strong>do</strong> tribunal<br />

da razão ou renunciar à existência.<br />

Antes <strong>do</strong> início da Revolução Francesa,<br />

o número de franceses leitores<br />

de jornais já estava bem estabeleci<strong>do</strong>.<br />

Panfletos apareciam a uma taxa de 25<br />

por semana. No ano de 1789, da Tomada<br />

da Bastilha, houve um clímax de<br />

informação, quan<strong>do</strong> mais de 60 novos<br />

jornais foram lança<strong>do</strong>s. A ascensão<br />

<strong>do</strong>s jacobinos ao poder, em 1792, fez<br />

com que o movimento revolucionário<br />

levasse as reivindicações da burguesia<br />

até seus limites lógicos. Nessa luta os<br />

líderes revolucionários Robespierre,<br />

Marat e Danton colocaram em ação<br />

o méto<strong>do</strong> de propaganda revolucionária.<br />

Seu objetivo era mobilizar as<br />

massas populares contra a força <strong>do</strong>s<br />

senhores e <strong>do</strong>s reis, não apenas da<br />

França, mas de toda a Europa que lhes<br />

fazia guerra. Para isso lançaram a palavra<br />

de ordem “Guerra aos palácios,<br />

paz nos casebres!” E sobre sua bandeira<br />

inscreveram o lema “Liberdade,<br />

Igualdade, Fraternidade”.<br />

Os solda<strong>do</strong>s franceses combatiam<br />

descalços, esfarrapa<strong>do</strong>s e quase sem<br />

armas. O faziam contra tropas regulares<br />

<strong>do</strong>s outros países. E apesar disso<br />

venciam, por causa de seu entusiasmo,<br />

de sua superioridade numérica e sua<br />

arte de desmoralizar e desarticular o<br />

exército inimigo. Inaugurou-se o bombardeio<br />

de proclamações sobre as tropas<br />

inimigas. A arma de propaganda<br />

revolucionária continuou a ser usada<br />

sob o governo de Napoleão, que desarticulou<br />

as tropas adversárias tão bem<br />

com esse instrumento quanto com<br />

canhões 8 . Uma vez toma<strong>do</strong> o poder político<br />

das mãos da realeza e <strong>do</strong> clero, a<br />

burguesia incorporou também o aparato<br />

de Esta<strong>do</strong> e as suas instituições<br />

ao seu arsenal de propaganda, agora<br />

volta<strong>do</strong>s para estabelecer e manter seu<br />

regime. Na França revolucionária, por<br />

exemplo, novas técnicas de propaganda<br />

se desenvolveram, como o uso das<br />

cores nacionais (vermelho, branco e<br />

azul), fogos de artifício, queima de prédios<br />

e estátuas, composição de músicas<br />

(La Marseillaise) e produção de uma variedade<br />

de trabalhos artísticos. Sob o<br />

<strong>do</strong>mínio de Napoleão Bonaparte, o governo<br />

também passou a a<strong>do</strong>tar sistematicamente<br />

plebiscitos, obras públicas<br />

e a imprensa como instrumentos<br />

de propaganda 9 .<br />

Já no século 19, a Guerra Civil Americana<br />

(1860-1865) foi um momento<br />

em que a propaganda burguesa experimentou<br />

um refinamento como<br />

arma política. Os avanços tecnológicos<br />

não apenas marcaram esse conflito<br />

como um <strong>do</strong>s mais mortais até então.<br />

Tratou-se também de um campo de<br />

testes das novas infraestruturas de<br />

comunicações, baseadas no telégrafo<br />

em combinação com a velocidade de<br />

impressão gráfica. Ao fim <strong>do</strong> conflito,<br />

a burguesia americana havia expandi<strong>do</strong><br />

sua base de comunicação, com o<br />

telégrafo alcançan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o país 10 .<br />

Propaganda e proletaria<strong>do</strong><br />

Sob os impactos da Revolução Francesa,<br />

o incipiente proletaria<strong>do</strong> britânico<br />

começou a formular suas demandas<br />

e aspirações. Enfrentou por isso uma<br />

brutal e impie<strong>do</strong>sa repressão por parte<br />

das classes <strong>do</strong>minantes ao longo de<br />

décadas. O desenvolvimento <strong>do</strong> capitalismo<br />

resultou na modificação de relações<br />

sociais seculares, que fazia com<br />

que os patrões lançassem os operários<br />

nas ruas. Essa radical transformação<br />

nas condições de vida <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res<br />

levou-os a se indignar e dar início<br />

ao primeiro movimento <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />

moderno, conheci<strong>do</strong> como movimento<br />

ludista. Seu objetivo era a destruição<br />

das máquinas como símbolo<br />

externo da situação que viviam 11 .<br />

Foi nessa época também que se formaram<br />

os primeiros sindicatos e as<br />

caixas de ajuda mútua. Enfrentan<strong>do</strong><br />

prisões, chibatadas, enforcamentos e<br />

exílios, esses homens estabeleceram<br />

uma moral de ferro. Foram suas marcas<br />

méto<strong>do</strong>s duros e conspirativos,<br />

uma necessidade para poder manter<br />

suas organizações e a integridade de<br />

seus membros 12 .<br />

Foi apenas com o cartismo que se expressou<br />

pela primeira vez uma propaganda<br />

<strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> com conteú<strong>do</strong><br />

político de classe. Sua origem está ligada<br />

à “Grande Traição” de 1832, quan<strong>do</strong><br />

foi aprova<strong>do</strong> o Ato da Reforma, uma<br />

mudança no sistema político inglês.<br />

<strong>Em</strong>bora os trabalha<strong>do</strong>res tenham ajuda<strong>do</strong><br />

a burguesia aforçar a aristocracia<br />

fundiária a mudar a legislação, eles foram<br />

deixa<strong>do</strong>s de fora <strong>do</strong> sistema político<br />

e inclusive golpea<strong>do</strong>s pela própria<br />

burguesia com a aprovação da Lei da<br />

Pobreza de 1834.<br />

Sobre a base de sua experiência e<br />

conclusões, o proletaria<strong>do</strong> inglês começou<br />

a dar seus primeiros passos<br />

independentes da burguesia. Foi dessa<br />

situação que surgiu o movimento<br />

cartista, deriva<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento que o<br />

baseava, a Carta <strong>do</strong> Povo, esboçada em<br />

junho de 1837. Seus seis pontos podem<br />

parecer de longe revolucionários hoje,<br />

porém, na época deixaram a classe<br />

<strong>do</strong>minante apavorada:<br />

• Sufrágio universal masculino;<br />

• Voto secreto através da cédula;<br />

• Eleição anual;<br />

• Igualdade entre os direitos<br />

eleitorais;<br />

• Participação de representantes da<br />

classe operária no parlamento;<br />

• Remuneração aos parlamentares<br />

eleitos;<br />

Com seu caráter sintético e contundente,<br />

a própria carta converteu-se<br />

em peça de propaganda de ideias. O<br />

cartismo mobilizou milhões de trabalha<strong>do</strong>res,<br />

por meio de petições públicas,<br />

comícios e agrupamentos que<br />

organizou. Desde seu início, valeu-se<br />

de toda sorte de jornais, panfletos e<br />

instrumentos para difundir suas posições<br />

e reunir apoio. As próprias petições<br />

que cobravam a aprovação <strong>do</strong>s<br />

seis pontos foram excelentes instrumentos<br />

de propaganda, conseguin<strong>do</strong><br />

milhões de assinaturas.<br />

Propaganda e comunismo<br />

Enquanto o proletaria<strong>do</strong> inglês começava<br />

a dar seus primeiros passos<br />

políticos independentes da burguesia,<br />

um outro movimento político <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />

se desenvolvia no continente<br />

europeu, em especial na Alemanha e<br />

na França. Uma série de sociedades secretas<br />

de caráter conspirativo atuavam<br />

sob a inspiração da Conjuração <strong>do</strong>s<br />

Iguais de 1796. Essa tradição ganhou o<br />

nome de comunista e uma das organizações<br />

influenciadas por ela foi a Liga<br />

<strong>do</strong>s Justos, fundada em 1836. Marx<br />

passou a frequentar suas reuniões em<br />

Paris, apesar de não se associar em<br />

um primeiro momento. <strong>Em</strong> 1844, ele<br />

observou que “a fraternidade <strong>do</strong>s homens<br />

não é nenhuma frase, mas sim<br />

verdade para eles, e a nobreza da humanidade<br />

nos ilumina a partir dessas<br />

figuras endurecidas pelo trabalho” 13 .<br />

<strong>Em</strong> 1844, Marx publicou uma crítica<br />

aos conceitos de Esta<strong>do</strong>, de sociedade<br />

civil e de direito em Hegel,<br />

abrin<strong>do</strong> caminho para sua superação<br />

materialista. Tece ali, entre outras, a<br />

noção de que: “A arma da crítica não<br />

pode, é claro, substituir a crítica da<br />

arma, o poder material tem de ser<br />

derruba<strong>do</strong> pelo poder material, mas a<br />

teoria também se torna força material<br />

quan<strong>do</strong> se apodera das massas” 14 . No<br />

esforço de superar a herança hegeliana,<br />

Marx e Engels criticaram não apenas<br />

Hegel, mas também os pós-hegelianos.<br />

Uma atenção especial foi dada<br />

a Ludwig Feuerbach, que mais longe<br />

havia i<strong>do</strong> em sua elaboração filosófica,<br />

mas que, ao rejeitar o idealismo de<br />

Hegel para reabilitar o materialismo,<br />

também recusou o núcleo racional da<br />

<strong>do</strong>utrina de Hegel, a dialética. Marx<br />

observou que a dialética, ao invés de<br />

31


ser rejeitada, precisava ser libertada<br />

<strong>do</strong>s aspectos idealistas.<br />

Para Hegel, nada é imóvel, e buscou<br />

explicar o mun<strong>do</strong> tal qual ele se<br />

desenvolve. Quan<strong>do</strong> fala de ideia absoluta,<br />

diz que ela vive e só se manifesta<br />

no processo <strong>do</strong> movimento, <strong>do</strong><br />

desenvolvimento contínuo. E conclui<br />

que os próprios homens são des<strong>do</strong>bramento<br />

dessa ideia absoluta. Tu<strong>do</strong><br />

flui, tu<strong>do</strong> muda, tu<strong>do</strong> desaparece.<br />

Para ele, o movimento contínuo, o<br />

desenvolvimento contínuo da ideia<br />

absoluta, determina o desenvolvimento<br />

de nosso mun<strong>do</strong> em to<strong>do</strong>s<br />

os <strong>do</strong>mínios. Se algo parece imóvel,<br />

uma análise detalhada mostrará que<br />

se produz ali uma luta, que existem<br />

influências, forças que mantêm o aspecto<br />

que percebemos, e outras forças,<br />

outras influências que tendem a<br />

modificá-lo. <strong>Em</strong> to<strong>do</strong> fenômeno produz-se<br />

a luta desses <strong>do</strong>is princípios,<br />

a tese e a antítese. A luta entre esses<br />

contrários conduz a qualquer coisa<br />

intermediária, à união. Porém, essa<br />

também é apenas provisória 15 .<br />

Marx e Engels partiram <strong>do</strong> materialismo<br />

intransigente de Feuerbach<br />

para sustentar que Hegel invertia as<br />

relações reais nas ideias e nas coisas,<br />

e acabava por conceber que as coisas<br />

reais eram somente realizações<br />

imperfeitas da ideia absoluta e suas<br />

manifestações. Para Marx e Engels se<br />

trata <strong>do</strong> oposto: os conceitos da mente<br />

que eram imagens da realidade material<br />

que existiam independentemente<br />

deles. Ao reivindicar a dialética partin<strong>do</strong><br />

dessa base, a própria dialética se<br />

tornou o oposto <strong>do</strong> que era com Hegel.<br />

“Com isto, a dialética se reduzia à ciência<br />

das leis gerais <strong>do</strong> movimento, tanto <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> exterior quanto <strong>do</strong> pensamento<br />

humano: duas categorias de leis idênticas<br />

quanto à essência, mas distintas quanto<br />

à expressão, no senti<strong>do</strong> de que o cérebro<br />

humano pode aplicá-las conscientemente,<br />

enquanto que na natureza, e até hoje, em<br />

grande parte, na história humana, estas<br />

leis se manifestam de um mo<strong>do</strong> inconsciente,<br />

sob a forma de uma necessidade<br />

exterior, em meio auma série infinita de<br />

aparentes casualidades. No entanto, com<br />

isto, a própria dialética <strong>do</strong> conceito se tornava<br />

simplesmente o reflexo consciente <strong>do</strong><br />

movimento dialético <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> real, o que<br />

equivalia a colocar a dialética hegeliana<br />

de cabeça para baixo; ou melhor dizen<strong>do</strong>,<br />

a inverter a dialética, que estava de cabeça<br />

para baixo, colocan<strong>do</strong>-a de pé.” 16<br />

Essa concepção contrapunha a<br />

abordagem de Feuerbach, para quem<br />

o sujeito era concebi<strong>do</strong> como um ser<br />

abstrato, que capta conceitos e formula<br />

ideias a partir de sua experiência<br />

Cópia de "L'Ami du peuple",jornal. Biblioteca Nacional, Paris<br />

sensível individual. Para Marx e Engels,<br />

a atividade humana não se trata<br />

de uma atividade individual, mas sim<br />

corresponde fundamentalmente ao<br />

conjunto das relações sociais, como<br />

demonstra<strong>do</strong> nas Teses Sobre Feuerbach,<br />

de Marx. A solução proposta por Marx<br />

e Engels é de que a relação entre sujeito<br />

e objeto, entre o pensamento e o ser,<br />

poderiam ser resolvi<strong>do</strong>s pela filosofia<br />

uma vez que aborda<strong>do</strong>s de um ponto<br />

de vista da prática, da realidade material<br />

experimentada pelas pessoas e da<br />

reflexão que dessa realidade partisse e<br />

a ela retornasse.<br />

Dessa forma, a nova concepção de<br />

comunismo formulada por Marx e Engels<br />

surgiu em 1845 e passou a figurar<br />

ao la<strong>do</strong> da antiga concepção de comunismo<br />

esboça<strong>do</strong> pela Liga <strong>do</strong>s Justos<br />

e por seu principal teórico, o alemão<br />

Wilhelm Weitling. Entre os conceitos<br />

introduzi<strong>do</strong>s por Marx e Engels estão<br />

as ideias de ideologia e de alienação da<br />

classe operária, segun<strong>do</strong> os quais: “A<br />

consciência não pode jamais ser outra<br />

coisa <strong>do</strong> que o ser consciente, e o ser<br />

<strong>do</strong>s homens é o seu processo de vida<br />

real”, e que, uma vez que a vida é que<br />

determina a consciência, “parte-se <strong>do</strong>s<br />

próprios indivíduos reais, vivos, e se<br />

considera a consciência apenas como<br />

sua consciência” 17 .<br />

Apesar de todas as investigações<br />

realizadas por Marx e Engels nesse<br />

perío<strong>do</strong> e ao longo da vida, o núcleo<br />

<strong>do</strong> pensamento racional de ambos<br />

continuou a ser a lógica dialética.<br />

Isso pode ser observa<strong>do</strong> claramente,<br />

por exemplo, na análise de Engels<br />

sobre as perspectivas para a luta<br />

de classes de 1845. Ele destaca que a<br />

condição objetiva de classe produtiva<br />

não bastava ao proletaria<strong>do</strong> inglês,<br />

faltan<strong>do</strong> algo para que sua potência<br />

revolucionária se transformasse em<br />

um fato da<strong>do</strong>.<br />

“Verificamos, assim, que o movimento<br />

operário está dividi<strong>do</strong> em duas frações: os<br />

cartistas e os socialistas. Os cartistas são<br />

de longe os mais atrasa<strong>do</strong>s e menos evoluí<strong>do</strong>s;<br />

mas são proletários autênticos,<br />

de carne e osso, e representam legitimamente<br />

o proletaria<strong>do</strong>. Os socialistas têm<br />

horizontes mais amplos, apresentam<br />

propostas práticas contra a miséria, mas<br />

provêm originariamente da burguesia e,<br />

por isso, são incapazes de se amalgamar<br />

com a classe operária. A fusão <strong>do</strong> socialismo<br />

com o cartismo, a reconstituição<br />

<strong>do</strong> comunismo francês em moldes ingleses,<br />

será a próxima etapa e ela já está<br />

em curso. Quan<strong>do</strong> estiver realizada, a<br />

classe operária será realmente senhora<br />

[intelectual] da Inglaterra. Até lá, o desenvolvimento<br />

político e social seguirá<br />

seu curso, favorecen<strong>do</strong> esse novo parti<strong>do</strong>,<br />

esse progresso <strong>do</strong> cartismo.” 18<br />

Engels creditava ao socialismo francês<br />

a capacidade de armar ideologicamente<br />

o movimento operário inglês.<br />

Era uma perspectiva, uma possibilidade<br />

sobre como poderia ser resolvida a<br />

contradição entre a condição objetiva<br />

de classe social <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> e sua<br />

pouca consciência política, e a avançada<br />

perspectiva política e pouco desenvolvimento<br />

econômico <strong>do</strong> comunismo<br />

francês. Trata-se de uma solução dialética,<br />

que nega e conserva aspectos <strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong>is momentos para se efetuar o terceiro<br />

momento de unidade almeja<strong>do</strong>.<br />

Esse processo de transformação<br />

da consciência também foi aborda<strong>do</strong><br />

por Marx quan<strong>do</strong> refutou as ideias<br />

de Pierre-Joseph Proudhon em 1847.<br />

Ao analisar a relação entre desenvolvimento<br />

industrial e organização <strong>do</strong><br />

32


proletaria<strong>do</strong>, Marx vai expor em detalhes<br />

uma noção importante para a<br />

concepção comunista de propaganda,<br />

o conceito da condição de classe em si e<br />

de classe para si:<br />

“A grande indústria aglomera num mesmo<br />

local uma multidão de pessoas que não<br />

se conhecem. A concorrência divide seus<br />

interesses. Mas a manutenção <strong>do</strong> salário,<br />

o interesse comum que elas têm contra o<br />

patrão, reúne-as num mesmo pensamento<br />

de resistência - coalizão. A coalizão, pois,<br />

tem sempre um duplo objetivo: fazer cessar<br />

entre elas a concorrência, para poder fazer<br />

uma concorrência geral ao capitalista. Se<br />

o primeiro objetivo da resistência é apenas<br />

a manutenção <strong>do</strong> salário, à medida que os<br />

capitalistas se reúnem num mesmo pensamento<br />

de repressão, as coalizões, inicialmente<br />

isoladas, agrupam-se e, em face <strong>do</strong><br />

capital sempre reuni<strong>do</strong>, a manutenção da<br />

associação torna-se mais importante para<br />

elas que a manutenção <strong>do</strong> salário. Isso é<br />

tão verdadeiro que os economistas ingleses<br />

assombram-se ao ver que os operários<br />

sacrificam boa parte <strong>do</strong> salário em defesa<br />

das associações que, para esses economistas,<br />

só existem em defesa <strong>do</strong> salário. Nessa<br />

luta - verdadeira guerra civil -, reúnem-se e<br />

desenvolvem-se to<strong>do</strong>s os elementos necessários<br />

para uma batalha futura. Uma vez<br />

chegada a esse ponto, a associação adquire<br />

um caráter político.<br />

As condições econômicas primeiro transformaram<br />

a massa <strong>do</strong> país em trabalha<strong>do</strong>res.<br />

A <strong>do</strong>minação <strong>do</strong> capital criou para essa<br />

massa uma situação comum, interesses<br />

comuns. Assim, essa massa já é uma<br />

classe em relação ao capital, mas<br />

não o é ainda para si mesma. Na<br />

luta, da qual assinalamos apenas<br />

algumas fases, essa massa se reúne,<br />

se constitui em classe para si mesma.<br />

Os interesses que defende se tornam<br />

interesses de classe. Mas a luta entre classes<br />

é uma luta política.” 19 (Grifos nossos)<br />

A fusão <strong>do</strong> cartismo com o socialismo<br />

francês, ou a constituição da classe<br />

em si em classe para si, dizem respeito a<br />

processos subjetivos e ao mesmo tempo<br />

políticos. <strong>Em</strong> última instância, trata-se<br />

de um fator subjetivo, de decisões e escolhas,<br />

relaciona<strong>do</strong>s com alternativas<br />

e possibilidades. Porém, Marx e Engels<br />

observam que esse fator subjetivo ocorre<br />

sobre uma determinada circunstância<br />

histórica e econômica material.<br />

Converte-se, assim, em um processo<br />

político de mudança de consciência,<br />

de tomada de consciência <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />

sobre sua própria condição. De<br />

sua realização depende a possibilidade<br />

da classe operária apresentar-se como<br />

uma classe revolucionária, “realmente<br />

senhora [intelectual]”, “classe para si”,<br />

na situação política.<br />

Podemos assim esboçar uma primeira<br />

aproximação sobre o conteú<strong>do</strong><br />

e o senti<strong>do</strong> da propaganda comunista.<br />

Os homens e as mulheres, apesar<br />

de submeti<strong>do</strong>s à divisão <strong>do</strong> trabalho<br />

e à alienação social, são parte de uma<br />

realidade conflituosa, contraditória e<br />

dialética. A condição da classe operária<br />

é temporária e passível de mudança, o<br />

que diz respeito também à compreensão<br />

que ela tem e <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> pelo qual<br />

toma conhecimento da sua condição.<br />

A propaganda comunista em um senti<strong>do</strong><br />

amplo, como atividade social, interfere<br />

nesse processo de tomada de<br />

consciência da classe operária. Tem<br />

por finalidade essa conversão, essa<br />

transformação da classe operária em<br />

classe social revolucionária, capaz de<br />

expressar os mais amplos horizontes e<br />

agir segun<strong>do</strong> seus próprios interesses.<br />

Propaganda e Manifesto Comunista<br />

Marx e Engels conduziam sua atividade<br />

política, desde então, procuran<strong>do</strong><br />

os meios para difundir e propagar sua<br />

concepção de comunismo e as conclusões<br />

teóricas e políticas a que chegavam.<br />

Nunca foi sua intenção restringir<br />

Pintura de um típico sans-culotte, Revolução<br />

Francesa<br />

Louis-Léopold Boilly<br />

os novos resulta<strong>do</strong>s científicos ao<br />

mun<strong>do</strong> erudito em livros grossos. Segun<strong>do</strong><br />

Engels, eles entendiam como<br />

fundamental ganhar o proletaria<strong>do</strong><br />

europeu para suas convicções 20 . Uma<br />

vez que haviam clarifica<strong>do</strong> as coisas<br />

para eles próprios, e como não eram<br />

teóricos puros, mas sim fundamentalmente<br />

homens de ação, esforçaram-se<br />

para penetrar em to<strong>do</strong>s os lugares <strong>do</strong><br />

meio operário, em todas as organizações<br />

onde esses operários estavam<br />

submeti<strong>do</strong>s a outras influências 21 .<br />

A primeira menção direta à atividade<br />

de propaganda por parte deles provavelmente<br />

vem de Engels, relatan<strong>do</strong><br />

em 1845 o trabalho em Elberfeld: “Nossa<br />

propaganda realiza um progresso<br />

extraordinário. As pessoas só falam<br />

<strong>do</strong> comunismo e to<strong>do</strong> dia recrutamos<br />

novos partidários” 22 . Esse traço da fisionomia<br />

de Marx, seu papel como<br />

organiza<strong>do</strong>r já ao re<strong>do</strong>r de 1846-1847,<br />

geralmente é ignora<strong>do</strong> pelos historia<strong>do</strong>res.<br />

A apresentação de Marx como<br />

um pensa<strong>do</strong>r de gabinete, porém, não<br />

resiste à análise <strong>do</strong>s fatos. Os <strong>do</strong>is amigos<br />

não tinham a menor dúvida de que<br />

a classe operária necessitava de uma<br />

organização, ainda que apenas por<br />

razões de propaganda. A Liga, por sua<br />

vez, a<strong>do</strong>tava uma estrutura de organização<br />

secreta, ainda sob influência de<br />

Auguste Blanqui. No plano de sua atividade,<br />

a Liga apenas admitia uma forma<br />

de propaganda, aquela das sociedades<br />

clandestinas de conspira<strong>do</strong>res <strong>23</strong> .<br />

Marx e Engels também consideravam<br />

muito importante conquistar os<br />

círculos operários da Liga que ainda<br />

estavam sob a influência de Weitling.<br />

O choque se devia a divergências teóricas<br />

que conduziram a conclusões<br />

práticas distintas. Weitling, por exemplo,<br />

não atribui nenhuma importância<br />

à propaganda, não concebe nenhum<br />

valor especial ao proletaria<strong>do</strong>, considera<br />

o lumpemproletaria<strong>do</strong> como<br />

o mais revolucionário e explorava os<br />

sentimentos religiosos para mover as<br />

massas. Nesse combate teórico e organizativo,<br />

Marx atuou como dirigente<br />

e inspira<strong>do</strong>r de to<strong>do</strong> um trabalho de<br />

organização. Como resulta<strong>do</strong> desse<br />

esforço criaram a Sociedade Educacional<br />

Operária, onde Marx profere<br />

conferências sobre economia política.<br />

A partir de Bruxelas, estação intermediária<br />

de conexão entre a França e a<br />

Alemanha, Marx foi ganhan<strong>do</strong> pouco<br />

a pouco operários e intelectuais, forman<strong>do</strong><br />

círculos e expandin<strong>do</strong> sua influência<br />

para Londres, Paris e Suíça.<br />

To<strong>do</strong> esse trabalho, que incluía a<br />

sustentação de correspondências com<br />

diversos operários e intelectuais, agia<br />

sobre os melhores elementos em to<strong>do</strong>s<br />

os meios operários. Engels explica<br />

33


que também mantinham-se informa<strong>do</strong>s<br />

sobre os processos importantes<br />

da Liga e seus círculos. Buscavam<br />

influir oralmente, em entrevistas,<br />

por carta ou pela imprensa sobre as<br />

perspectivas teóricas <strong>do</strong>s membros<br />

mais destaca<strong>do</strong>s. Além disso escreviam<br />

circulares litografadas em ocasiões<br />

especiais, enviadas para amigos<br />

e correspondentes pelo mun<strong>do</strong>, sobre<br />

diversos assuntos, e inclusive sobre a<br />

Liga, ten<strong>do</strong> com isso repercussão 24 .<br />

Como plano de agrupar to<strong>do</strong>s os<br />

elementos comunistas, Marx anima<br />

entre 1846-1847 a formação de comitês<br />

comunistas de correspondência,<br />

verdadeiros centros de organização.<br />

Àqueles com quem têm contato, Marx<br />

e Engels propõem que constituam<br />

órgãos análogos com a finalidade de<br />

criar um núcleo comunista internacional.<br />

Lançaram-se também a um trabalho<br />

de articular associações, círculos,<br />

jornais de terceiros e de estabelecer relações<br />

de to<strong>do</strong> tipo com organizações<br />

e órgãos de imprensa radicais e proletárias.<br />

Buscavam assim a unidade <strong>do</strong>s<br />

revolucionários que tivessem acor<strong>do</strong><br />

com a finalidade que acabou sen<strong>do</strong> definida<br />

no Artigo I <strong>do</strong>s Estatutos da Liga<br />

<strong>do</strong>s Comunistas 25 .<br />

Esses são exemplos de uma clara<br />

e legítima atividade propagandística<br />

desenvolvida por Marx e Engels. Tanto<br />

foram efetivos nesse esforço que quan<strong>do</strong><br />

é convocada a realização de um<br />

congresso da Liga em Londres, seus<br />

líderes não só estavam convenci<strong>do</strong>s<br />

da justeza geral da nova concepção de<br />

comunismo e de libertar a organização<br />

das velhas tradições e formas conspiratórias,<br />

como já estavam organiza<strong>do</strong>s<br />

sob a influência e direção de Marx e<br />

Engels 26 . O 1º Congresso da Liga realizou-se<br />

no verão de 1847. A partir dele a<br />

Liga passou a se organizar sob a forma<br />

de seções, círculos, círculos dirigentes,<br />

direção central e congresso. Também<br />

passou a chamar-se Liga <strong>do</strong>s Comunistas.<br />

Um novo artigo 1º <strong>do</strong> estatuto<br />

passou a afirmar: “A Liga tem por finalidade<br />

a derrocada da burguesia, o<br />

<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>, a supressão<br />

da velha sociedade burguesa, baseada<br />

nos antagonismos de classe, e a criação<br />

de uma nova sociedade, sem classes e<br />

sem propriedade privada”. No âmbito<br />

organizativo também foi estabeleci<strong>do</strong><br />

um funcionamento democrático. Já<br />

o artigo 2º <strong>do</strong> novo estatuto afirmava<br />

que, entre outros requisitos, “Para<br />

fazer parte da Liga é necessário preencher<br />

as seguintes condições: (...) ser<br />

enérgico e abnega<strong>do</strong> na propaganda” 27 .<br />

Todas essas mudanças, na avaliação<br />

de Engels, converteram a Liga<br />

<strong>do</strong>s Comunistas em uma sociedade<br />

exclusivamente de propaganda, pelo<br />

34<br />

menos nos perío<strong>do</strong>s normais de paz 28 .<br />

O 1º Congresso também aprovou a publicação<br />

de uma revista, com o título<br />

Revista Comunista. Foi no único número<br />

da publicação que se confirmou a<br />

mudança <strong>do</strong> slogan “To<strong>do</strong>s os homens<br />

são irmãos”, até então presente na<br />

bandeira da Liga, e passou-se a a<strong>do</strong>tar<br />

como seu lema “Proletários de to<strong>do</strong>s os<br />

países, uní-vos!”, consigna que depois<br />

figurará como grito de guerra <strong>do</strong> movimento<br />

operário internacional. O 2º<br />

Congresso da Liga ocorreu entre fins<br />

de novembro e começo de dezembro<br />

de 1847. Marx esforçou-se ao longo<br />

de pelo menos 10 dias em defender a<br />

nova teoria que havia concebi<strong>do</strong> com<br />

Engels. Foi dessa forma que todas as<br />

contradições e dúvidas em torno <strong>do</strong><br />

congresso foram resolvi<strong>do</strong>s, e os novos<br />

princípios da Liga foram aprova<strong>do</strong>s.<br />

Nessa oportunidade Marx e Engels<br />

foram encarrega<strong>do</strong>s de elaborar um<br />

<strong>do</strong>cumento que expressasse as novas<br />

concepções abraçadas pela organização.<br />

Podemos observar claramente<br />

outro exemplo da atividade propagandística<br />

deles neste episódio. A primeira<br />

versão <strong>do</strong> texto foi pensada em um<br />

formato de catecismo, de um “cre<strong>do</strong><br />

comunista”, ao estilo que estava acostuma<strong>do</strong><br />

o proletaria<strong>do</strong> francês, grupo<br />

pelo qual Engels havia si<strong>do</strong> delega<strong>do</strong><br />

ao 2º Congresso. Buscan<strong>do</strong> atender às<br />

finalidades de propaganda das conclusões<br />

a<strong>do</strong>tadas pela Liga, Engels formulou<br />

as 25 perguntas de Princípios <strong>do</strong><br />

Comunismo. Entretanto, ele considerou<br />

seu conteú<strong>do</strong> e sua forma insuficiente,<br />

indican<strong>do</strong> a Marx que “precisa conter<br />

um pouco de história”, e, ao invés de<br />

ser chamar “cre<strong>do</strong>” como queriam os<br />

operários franceses, sugeriu o nome de<br />

Manifesto Comunista, em referência ao<br />

Manifesto <strong>do</strong>s Iguais de 1796. A forma definitiva<br />

<strong>do</strong> Manifesto tem todas as ideias<br />

esboçadas por Engels no seu “cre<strong>do</strong>”,<br />

mas também tem o selo de Marx, que<br />

não precisava lidar com a pressão <strong>do</strong>s<br />

operários franceses e redigiu o <strong>do</strong>cumento<br />

pensan<strong>do</strong> nos operários mais<br />

avança<strong>do</strong>s que se encontravam em<br />

Bruxelas e com os quais estava liga<strong>do</strong> 29 .<br />

O resulta<strong>do</strong> desse trabalho <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is,<br />

que populariza os pensamentos que já<br />

haviam elabora<strong>do</strong> no gor<strong>do</strong> volume de<br />

A ideologia alemã, foi a mais importante<br />

e influente peça de propaganda já produzida<br />

pelo movimento operário. Lança<strong>do</strong><br />

em 28 de fevereiro de 1848, surpreende<br />

a facilidade com que jovens e<br />

trabalha<strong>do</strong>res conseguem ler e compreender<br />

suas ideias gerais mesmo<br />

nos dias de hoje. Esse efeito contrasta,<br />

por exemplo, com outras obras assinadas<br />

por seus <strong>do</strong>is autores. O efeito propagandístico<br />

atemporal <strong>do</strong> Manifesto<br />

se deve ao fato de que, como o próprio<br />

Esboço <strong>do</strong> Manifesto nas letras de Karl Marx<br />

título evidencia, ele foi concebi<strong>do</strong> para<br />

ser uma peça de propaganda da jovem<br />

Liga <strong>do</strong>s Comunistas. Logo no início da<br />

redação, anuncia-se que o objetivo <strong>do</strong><br />

<strong>do</strong>cumento era permitir aos comunistas<br />

“exporem, abertamente, ao mun<strong>do</strong><br />

inteiro, seu mo<strong>do</strong> de ver, seus objetivos<br />

e suas tendências, opon<strong>do</strong> um manifesto<br />

<strong>do</strong> próprio parti<strong>do</strong> à lenda <strong>do</strong><br />

espectro <strong>do</strong> comunismo” 30 .<br />

Propaganda e Revolução <strong>do</strong>s Povos<br />

Tão logo a Liga <strong>do</strong>s Comunistas estabeleceu<br />

sua nova <strong>do</strong>utrina, sua nova<br />

estrutura organizativa e sua tarefa<br />

prioritária de propaganda, os tempos<br />

normais de paz que previa Engels ficaram<br />

para trás e a Europa foi lançada<br />

nos tempos de guerra civil, pelas ondas<br />

de insurreições e semi-insurreições da<br />

Primavera <strong>do</strong>s Povos. Nem o Manifesto<br />

Comunista ainda havia começa<strong>do</strong> a circular,<br />

a revolução estourou nas ruas de<br />

Paris em 22 de fevereiro de 1848. Logo<br />

foi a vez de Berlim entrar em chamas.<br />

Os mil primeiros exemplares <strong>do</strong> Manifesto<br />

vão entrar na Alemanha nesse<br />

contexto pelas mãos de exila<strong>do</strong>s. As<br />

cópias foram distribuídas em várias<br />

cidades, e seus trechos foram reproduzi<strong>do</strong>s<br />

na imprensa radical, alcançan<strong>do</strong><br />

dessa forma amplos setores sociais 31 .<br />

Essa foi a única oportunidade que<br />

Marx e Engels tiveram de intervir<br />

diretamente num combate revolucionário,<br />

e sua atividade de 1848 a<br />

1852 serve de lição, de referência,<br />

para a atividade de propaganda <strong>do</strong>s<br />

marxistas de hoje. O início das revoluções<br />

expôs a dificuldade da direção<br />

de mover a organização de conjunto<br />

na nova situação política. Às vésperas<br />

das revoluções de 1848, a Liga contava<br />

com 400 membros na Alemanha


(100, espalha<strong>do</strong>s em 30 comunas),<br />

França e Inglaterra. Ainda se seguiam<br />

lutas internas constantes, com setores<br />

influencia<strong>do</strong>s por Weitling e pelo<br />

“socialismo verdadeiro”.<br />

Dessa forma, a Liga recém-nascida,<br />

colocada prematuramente sob um teste<br />

de fogo, acabou por se mostrar uma<br />

alavanca demasiadamente débil diante<br />

<strong>do</strong> movimento desencadea<strong>do</strong> pelas<br />

massas . Após um primeiro perío<strong>do</strong> de<br />

tentativas de mobilização e de prisões e<br />

deportações, Marx e Engels decidiram<br />

renunciar ao plano inicial de desenvolver<br />

a Liga. Isso os fez entrar em choque<br />

com vários de seus camaradas, porém,<br />

eles implementaram essa orientação e<br />

trabalharam mesmo para impedir sua<br />

reorganização.<br />

Esse episódio guarda uma importante<br />

lição, mostran<strong>do</strong> que uma noção<br />

clara sobre estratégia e tática aplicadas<br />

à política já se encontravam na<br />

concepção e na atividade de Marx e<br />

Engels. De fato, há mesmo uma ausência<br />

de <strong>do</strong>cumentos <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> que<br />

explique as razões dessas decisões,<br />

sen<strong>do</strong> somente anos depois tratadas<br />

por eles. Uma dedução possível é a de<br />

que eles compreenderam que a Liga<br />

havia se torna<strong>do</strong> obsoleta como meio,<br />

como instrumento, para a propagação<br />

das ideias e para organização <strong>do</strong>s insurretos.<br />

Portanto, fazia-se necessário<br />

buscar vias mais efetivas para a realização<br />

<strong>do</strong>s mesmos objetivos que antes<br />

<strong>do</strong> início das revoluções estavam<br />

articula<strong>do</strong>s em torno da Liga.<br />

A nova orientação colocada em ação<br />

por Marx e Engels, então, foi concebida<br />

a partir de uma análise das alternativas<br />

e possibilidades reais para se atingir o<br />

mesmo objetivo prioritário ao re<strong>do</strong>r<br />

<strong>do</strong> qual havia se estrutura<strong>do</strong> a Liga:<br />

promover a propaganda da nova concepção<br />

de comunismo. Era necessário<br />

evitar tanto a subordinação à burguesia<br />

ou ao parti<strong>do</strong> democrático, quanto<br />

o isolamento e a inação. Dessa forma,<br />

em 1 de junho de 1848, é lança<strong>do</strong> o primeiro<br />

número <strong>do</strong> jornal Nova Gazeta<br />

Renana, edita<strong>do</strong> por Marx em Colônia.<br />

Apresenta<strong>do</strong> como “órgão da democracia”,<br />

a publicação não se declarava como<br />

órgão <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> comunista. Diante<br />

da debilidade da burguesia alemã e <strong>do</strong><br />

movimento operário, atuava-se agora<br />

na ala esquerda <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> democrata<br />

alemão, denominada na Associação<br />

Democrática de Colônia, da qual o novo<br />

jornal seria órgão 33 .<br />

Foi em torno desse novo centro gravitacional,<br />

a Nova Gazeta Renana, que<br />

Marx e Engels realizaram sua atividade<br />

política durante a Revolução <strong>do</strong>s<br />

Povos. Esse jornal converteu-se em órgão<br />

central <strong>do</strong> movimento revolucionário,<br />

em torno <strong>do</strong> qual os membros<br />

da Liga passaram a se articular. Eles<br />

apareciam à frente da ala extrema <strong>do</strong><br />

movimento democrático em diversas<br />

regiões alemãs 34 . A concepção de práxis<br />

vai encontrar sua realização na atividade<br />

da publicação. <strong>Em</strong> suas páginas<br />

foram analisa<strong>do</strong>s os acontecimentos<br />

no calor da luta de classes. Tratava-se,<br />

portanto, de um instrumento que permitia<br />

aos partidários <strong>do</strong> comunismo<br />

participar ativamente da luta de classes,<br />

dirigin<strong>do</strong> e orientan<strong>do</strong> a atividade<br />

tanto em Colônia quanto em to<strong>do</strong> lugar<br />

em que o jornal chegasse.<br />

Propaganda e contrarrevolução<br />

Os ventos <strong>do</strong>s acontecimentos começaram<br />

a mudar com a aliança da<br />

burguesia às classes mais reacionárias,<br />

à nobreza e ao clero para barrar e em<br />

seguida esmagar o proletaria<strong>do</strong> em ascensão.<br />

Os efeitos da convulsão política<br />

ocorrida em 13 de junho de 1849 na<br />

França, a derrota das insurreições de<br />

maio na Alemanha e o esmagamento<br />

da revolução húngara pelos russos puseram<br />

fim ao perío<strong>do</strong> revolucionário<br />

aberto em 1848. Desencadearam-se<br />

sobre os revolucionários perseguições,<br />

calúnias, repressões, condenações da<br />

justiça burguesa e prisões. Muitos foram<br />

obriga<strong>do</strong>s a sair de seus países e se<br />

exilaram no estrangeiro.<br />

Mais uma vez, portanto, Marx e Engels<br />

se viram obriga<strong>do</strong>s a operar agudas<br />

mudanças táticas em sua atividade<br />

política. <strong>Em</strong> Colônia o governo processou<br />

a Nova Gazeta Renana e de fato fecha<br />

o jornal, que tem seu último número<br />

publica<strong>do</strong> em 19 de maio de 1849. Impôs-se<br />

a necessidade de uma reorganização<br />

das forças revolucionárias<br />

dispersas, e também da Liga. Agora a<br />

atividade pública e aberta estava sen<strong>do</strong><br />

reprimida e condenada. Fez-se imperativo<br />

assim voltar à forma secreta<br />

de organização. Agora já exila<strong>do</strong>s em<br />

Londres, Marx e Engels operam uma<br />

reorganização da Liga, publican<strong>do</strong> em<br />

março de 1850 a Mensagem <strong>do</strong> Comitê<br />

Central à Liga <strong>do</strong>s Comunistas 35 .<br />

Fazen<strong>do</strong> um balanço, o <strong>do</strong>cumento<br />

apontava que, durante os anos de 1848<br />

e 1849, os membros da Liga mostraram<br />

uma enorme bravura e coragem,<br />

participan<strong>do</strong> energicamente <strong>do</strong> movimento<br />

em to<strong>do</strong>s os lugares em que ele<br />

ocorreu. Na imprensa, nas barricadas<br />

e nos campos de batalha, a Liga estava<br />

em atividade comum com a vanguarda<br />

<strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>. Ao final de to<strong>do</strong><br />

esse processo revolucionário, pode-se<br />

constatar que haviam se confirma<strong>do</strong><br />

as perspectivas e concepções formuladas<br />

nos <strong>do</strong>cumentos <strong>do</strong>s congressos<br />

da Liga, pelo seu comitê central e pelo<br />

Manifesto Comunista. Mais <strong>do</strong> que isso,<br />

essas perspectivas e concepções haviam<br />

si<strong>do</strong> assimiladas pelo conjunto<br />

<strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res e eram defendidas<br />

abertamente em público 36 .<br />

A partir dessa reorganização a Liga<br />

se tornou a única organização revolucionária<br />

alemã de importância. Uma<br />

vez que seus membros estavam refugia<strong>do</strong>s<br />

em Londres, também aderiram<br />

a ela cartistas ingleses, blanquistas,<br />

revolucionários polacos e húngaros<br />

refugia<strong>do</strong>s. Importante observar que<br />

Marx e Engels se referem à Liga como<br />

atuante durante as revoluções, quan<strong>do</strong><br />

na verdade enquanto organização ela<br />

não atuou. Na verdade, eles se referiam<br />

à atividade <strong>do</strong>s comunistas articula<strong>do</strong>s<br />

em torno da Nova Gazeta Renana, que<br />

expressaram a posição comunista nessa<br />

fase <strong>do</strong> combate político. Portanto,<br />

a atenção deles estava fundamentalmente<br />

voltada para o senti<strong>do</strong> da atividade,<br />

que nos <strong>do</strong>is casos – da Liga e <strong>do</strong><br />

jornal – foi o mesmo.<br />

Apesar desses êxitos circunstanciais,<br />

Marx e Engels não se deixaram<br />

iludir a respeito <strong>do</strong> real esta<strong>do</strong> de coisas<br />

que se desenvolvia e sobre quais<br />

tarefas se colocavam à frente. Foram<br />

se esboçan<strong>do</strong> duas análises de conjuntura<br />

que terminaram por se des<strong>do</strong>brar<br />

Gravura <strong>do</strong> livro Histórias Verdadeiras <strong>do</strong> Reina<strong>do</strong> da Rainha Vitória, de 1886, de Cornelius Brown<br />

35


no conflito entre duas táticas, duas<br />

posições sobre as tarefas políticas a<br />

serem a<strong>do</strong>tadas. Deu-se assim a cisão.<br />

A ala otimista sobre as perspectivas e<br />

as tarefas encontrou seus líderes nas<br />

figuras de Willich e Schapper e influiu<br />

sobre quase to<strong>do</strong>s. Eles sustentavam<br />

que as condições permitiam para breve<br />

o novo despertar da revolução e se<br />

preparavam para acontecimentos que<br />

acreditavam iminentes.<br />

Já no decorrer de 1850 Marx e Engels<br />

foram perceben<strong>do</strong> que: “Começava um<br />

perío<strong>do</strong> novo, até então nunca visto, de<br />

prosperidade industrial: quem tivesse<br />

olhos para ver e fizesse uso deles tinha<br />

de convencer-se de que a tormenta revolucionária<br />

de 1848 se dissipava, pouco<br />

a pouco”. Suas posições pouco anima<strong>do</strong>ras<br />

sobre a situação foram vistas<br />

como heresia. Marx e Engels sustentavam<br />

que a função a ser desempenhada<br />

pela Liga dependia de que se concretizasse<br />

ou não as perspectivas de um<br />

novo ascenso da revolução . Contra<br />

aqueles que colocavam como tarefa<br />

lançar-se a operar insurreições e revoluções,<br />

Marx e Engels compreenderam<br />

que essas esperanças eram vãs e<br />

que, da<strong>do</strong> o desenvolvimento concreto<br />

da situação e das forças em luta, o proletaria<strong>do</strong><br />

apenas estaria em condições<br />

de exercer seu papel revolucionário<br />

depois de um longo perío<strong>do</strong> de propaganda<br />

e organização. A atividade <strong>do</strong>s<br />

comunistas, portanto, deveria se adequar<br />

a essas necessidades, que significava<br />

um recuo à antiga tática esboçada<br />

pelos Comitês de Correspondência<br />

Comunista e pelos congressos da Liga<br />

em 1847.<br />

A essa tarefa propagandística se<br />

dedicaram no perío<strong>do</strong> pós-revolucionário.<br />

São desse tempo obras como As<br />

Lutas de Classes na França de 1848 a<br />

1850 (1850); 18 Brumário de Luís Bonaparte<br />

(1852); Carta a Joseph Weydemeyer (1852);<br />

O Recente Julgamento de Colônia (1852),<br />

de Marx; Revolução e Contrarrevolução na<br />

Alemanha (1852) e As guerras camponesas<br />

na Alemanha (1850), de Engels. A ênfase<br />

nesse perío<strong>do</strong> estava em um combate<br />

teórico, e não em um combate prático-político<br />

como no perío<strong>do</strong> da Nova<br />

Gazeta Renana.<br />

No antigo Comitê de Correspondência<br />

de Bruxelas, já havia si<strong>do</strong> exposto<br />

o senti<strong>do</strong> da tática propagandística<br />

de Marx e Engels e de como ela se<br />

interligava com sua preocupação com<br />

o combate teórico: “<strong>Em</strong> particular, dirigir-se<br />

na Alemanha aos operários sem<br />

possuir ideias rigorosamente científicas<br />

e uma <strong>do</strong>utrina concreta equivaleria<br />

a levar a cabo um jogo desonesto<br />

e inútil, uma propaganda em que estaria<br />

suposto, de um la<strong>do</strong>, um entusiasmo<br />

apoteótico e, <strong>do</strong>utro, simples<br />

36<br />

imbecis escutan<strong>do</strong> de boca aberta 38 ”.<br />

Passa<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> revolucionário de<br />

1848-1852, os <strong>do</strong>is se dedicaram a aplicar<br />

o méto<strong>do</strong> que conceberam para<br />

analisar o quadro histórico <strong>do</strong>s acontecimentos<br />

revolucionários europeus e<br />

seus des<strong>do</strong>bramentos, extrain<strong>do</strong> suas<br />

conclusões históricas e políticas.<br />

Se Marx e Engels faziam um recuo<br />

para a tática propagandística <strong>do</strong> perío<strong>do</strong><br />

anterior às revoluções de 1848, de<br />

mo<strong>do</strong> algum significa que a situação<br />

voltou a ser a mesma de 1847. <strong>Em</strong> primeiro<br />

lugar, porque a situação concreta<br />

nos anos 1850 era de uma reação política<br />

por toda a Europa e crescimento<br />

econômico importante, conforme<br />

previsto em 1850. <strong>Em</strong> segun<strong>do</strong> lugar,<br />

o movimento operário experimentava<br />

um recuo que tornava a perspectiva<br />

de retomada <strong>do</strong> trabalho organizativo<br />

sem esperança. <strong>Em</strong> terceiro, porque<br />

a compreensão científica sobre a realidade<br />

alcançava um nível superior<br />

com o acúmulo teórico promovi<strong>do</strong> por<br />

eles, que às lições provenientes de suas<br />

elaborações desde 1844 até 1848 (Manifesto<br />

Comunista) agora se acresceram as<br />

análises e conclusões da Revolução <strong>do</strong>s<br />

Povos.<br />

O que Marx e Engels estavam fazen<strong>do</strong><br />

com sua atividade propagandística<br />

no perío<strong>do</strong> pós-revolucionário<br />

era preservar a história, a tradição, o<br />

méto<strong>do</strong> e a compreensão científica e<br />

as lições sobre os acontecimentos vivi<strong>do</strong>s.<br />

Preparavam-se objetivamente<br />

para um novo ascenso <strong>do</strong> movimento<br />

operário e para transmitir a ele esse<br />

acúmulo, ainda que não o previssem<br />

para um perío<strong>do</strong> de curto prazo, mas<br />

sim em uma escala da história. Um<br />

ascenso, entretanto, que dar-se-ia em<br />

outra qualidade, justamente por poder<br />

contar com essa base teórica para<br />

se colocar numa altura superior. Sua<br />

análise da luta de classes concluía que<br />

uma nova revolução e a vitória <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />

dependiam da articulação<br />

dialética entre condições objetivas e<br />

subjetivas, ou seja, de uma nova crise<br />

econômica e da organização política<br />

da classe revolucionária.<br />

Essa perspectiva continuava clara<br />

em 1860 quan<strong>do</strong> Marx esclarece para<br />

seu amigo e poeta Ferdinand Freiligrath<br />

que ele concebe a ideia de parti<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> em um senti<strong>do</strong><br />

histórico <strong>do</strong> termo, e não em um senti<strong>do</strong><br />

estrito que significasse a Liga, que<br />

havia se extinto há oito anos, ou o comitê<br />

editorial da Nova Gazeta Renana,<br />

dissolvi<strong>do</strong> há 12 anos 39 .<br />

Propaganda e luta econômica<br />

A atividade de Marx e Engels na 1ª<br />

Internacional permitiu que eles mais<br />

uma vez atuassem diretamente em<br />

O que Marx e<br />

Engels estavam<br />

fazen<strong>do</strong> com<br />

sua atividade<br />

propagandística<br />

no perío<strong>do</strong> pósrevolucionário<br />

era preservar<br />

a história, a<br />

tradição, o<br />

méto<strong>do</strong> e a<br />

compreensão<br />

científica e as<br />

lições sobre os<br />

acontecimentos<br />

vivi<strong>do</strong>s<br />

prol da conclusão teórica a que haviam<br />

chega<strong>do</strong> desde o Manifesto Comunista<br />

sobre a necessidade de um parti<strong>do</strong><br />

da classe trabalha<strong>do</strong>ra em prol de<br />

seus próprios interesses históricos. A<br />

propaganda dirigida ao proletaria<strong>do</strong><br />

continua figuran<strong>do</strong> como uma tarefa<br />

central, requisito para que os trabalha<strong>do</strong>res<br />

tomem consciência de sua<br />

condição e coloquem-se a agir em prol<br />

de sua emancipação. Já nos Preâmbulos<br />

<strong>do</strong>s Estatutos da 1ª Internacional, Marx<br />

fez saber que “to<strong>do</strong>s os esforços dirigi<strong>do</strong>s<br />

a esse fim [a emancipação econômica<br />

da classe operária] até agora têm<br />

fracassa<strong>do</strong> por falta de solidariedade<br />

e unidade entre os trabalha<strong>do</strong>res das<br />

diferentes profissões de cada país e de<br />

uma união fraternal entre as classes<br />

operárias <strong>do</strong>s diversos países” 40 . Além<br />

disso, as lições teóricas extraídas <strong>do</strong><br />

perío<strong>do</strong> de 1848-1852 e a própria experiência<br />

<strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> nos anos que se<br />

seguiram proporcionaram novos contornos<br />

para a tarefa propagandística.<br />

Uma característica marcante da<br />

propaganda de Marx e Engels desse<br />

perío<strong>do</strong> é a sua concretude, expressa<br />

na 1º Internacional e na atividade jornalística<br />

de ambos. Um componente<br />

fundamental da propaganda comunista<br />

se estabelece, portanto, como<br />

sen<strong>do</strong> a escrupulosidade de, ao menos,<br />

utilizar todas as informações disponíveis,<br />

de apoderar-se <strong>do</strong>s fatos, <strong>do</strong><br />

material concreto, como pré-requisito<br />

para emissão de uma opinião 41 . O<br />

méto<strong>do</strong> <strong>do</strong> materialismo histórico se<br />

converteu no méto<strong>do</strong> de formulação


da própria propaganda comunista. O<br />

primeiro <strong>do</strong>cumento público dessa organização,<br />

por exemplo, foi outra legítima<br />

peça de propaganda comunista,<br />

que termina com o lema já consagra<strong>do</strong>:<br />

“Proletários de to<strong>do</strong>s os países, uni-<br />

-vos!”. Apesar disso, estava longe de<br />

ser uma repetição das ideias <strong>do</strong> Manifesto<br />

Comunista de 1848 ou uma declaração<br />

de verdades e princípios abstratos<br />

a serem proclama<strong>do</strong>s ao mun<strong>do</strong>.<br />

A Mensagem inaugural da Associação<br />

Internacional <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res, escrita<br />

por Marx e publicada em 1864, justificava<br />

o direito à existência da nova<br />

organização demonstran<strong>do</strong> com<br />

da<strong>do</strong>s, fatos e declarações a ideia da<br />

pauperização crescente das massas<br />

trabalha<strong>do</strong>ras nos 16 anos anteriores,<br />

ao mesmo tempo que demonstrava<br />

o enriquecimento da burguesia, no<br />

mesmo perío<strong>do</strong>. <strong>Em</strong> seguida passava-<br />

-se a um balanço político minucioso<br />

sobre a situação das organizações e<br />

<strong>do</strong>s jornais partidários <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />

após as Revoluções de 1848, o efeito<br />

da evolução econômica sobre a moral<br />

e a psicologia <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res,<br />

a mudança social ocorrida no seio da<br />

própria classe. A esses aspectos negativos<br />

contrapunham-se os progressos<br />

ocorri<strong>do</strong>s no campo de conquistas legais<br />

como a Lei das Dez Horas, a conquista<br />

<strong>do</strong> reconhecimento <strong>do</strong> direito<br />

de organização e seus impactos sobre<br />

o esta<strong>do</strong> físico, intelectual e moral <strong>do</strong>s<br />

trabalha<strong>do</strong>res. Detalhou-se o novo fenômeno<br />

que se desenvolvia de cooperativas,<br />

seu significa<strong>do</strong> histórico, seus<br />

limites e o senti<strong>do</strong> em que precisava<br />

evoluir para contribuir positivamente<br />

para a emancipação <strong>do</strong> trabalho. É<br />

da análise e exposição detalhada <strong>do</strong><br />

curso concreto da realidade, <strong>do</strong> senti<strong>do</strong><br />

objetivo de seu desenvolvimento<br />

anterior, que se extraem as conclusões<br />

centrais e práticas desse <strong>do</strong>cumento:<br />

a conquista <strong>do</strong> poder político como o<br />

grande dever das classes trabalha<strong>do</strong>ras,<br />

possível apenas pela união fraterna<br />

e internacional <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res<br />

por uma articulação comum e guia<strong>do</strong>s<br />

pelo conhecimento 42 .<br />

Por meio da 1ª Internacional, Marx<br />

e Engels buscaram não apenas influir<br />

sobre as lutas políticas <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>,<br />

mas também sobre as lutas econômicas<br />

concretas travadas pelo proletaria<strong>do</strong><br />

europeu e americano da época. Eles<br />

e seus partidários trabalharam para<br />

se conectar ao movimento sindical,<br />

para dirigir as lutas salariais e ajudar<br />

na batalha pelo reconhecimento de<br />

legislações favoráveis aos trabalha<strong>do</strong>res,<br />

como a luta pelas 8 horas de trabalho.<br />

Essa atividade prática decorreu<br />

de uma profunda compreensão teórica<br />

sobre a luta de classes. <strong>Em</strong> última<br />

instância, concluíram Marx e Engels,<br />

toda a atividade política <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>,<br />

e portanto também de seu parti<strong>do</strong><br />

político, está submetida à lei geral <strong>do</strong><br />

salário, fundamento da própria luta de<br />

classes moderna.<br />

Marx ensinou à Associação Internacional<br />

<strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res (AIT) essa<br />

lição teórica fundamental em relatório<br />

li<strong>do</strong> na reunião de seu Conselho Geral,<br />

ocorrida em 20 e 27 de junho de 1865.<br />

Essa foi a primeira vez que foi exposta<br />

publicamente a noção da mais-valia.<br />

Mais <strong>do</strong> que uma pretensão de educar<br />

a direção da AIT, a teoria a que havia<br />

chega<strong>do</strong> Marx foi colocada desde o<br />

início a serviço <strong>do</strong> armamento político<br />

da classe operária. Sua apresentação<br />

serviu para contrapor e enfraquecer<br />

as alas da AIT que expressavam ideias<br />

falsas sobre a condição econômica <strong>do</strong><br />

proletaria<strong>do</strong> e suas tarefas políticas,<br />

representadas por Weston, os proudhonianos<br />

e os lassallianos. Dirigin<strong>do</strong>-se<br />

à classe operária e suas organizações,<br />

a exposição teórica de Marx<br />

conclui que: “<strong>Em</strong> vez deste lema conserva<strong>do</strong>r:<br />

‘Um salário justo por uma<br />

jornada de trabalho justa!’, [o proletaria<strong>do</strong>]<br />

deverá inscrever na sua bandeira<br />

esta divisa revolucionária: ‘Abolição<br />

<strong>do</strong> sistema de trabalho assalaria<strong>do</strong>’” 43 .<br />

Foi compeli<strong>do</strong> pela lei <strong>do</strong> salário e<br />

seus efeitos que o proletaria<strong>do</strong> saiu da<br />

sua condição de matéria-prima para<br />

exploração e sujeito ao salário mínimo<br />

absoluto, condição sob a qual é impossível<br />

viver e se reproduzir. Foi dessa<br />

forma que se viu obriga<strong>do</strong> a formar organizações<br />

fortes, entre as quais seus<br />

sindicatos, e exigir que essas fossem<br />

respeitadas por lei, para obter uma<br />

regulação <strong>do</strong> salário e da jornada de<br />

trabalho. Nesse conflito econômico, a<br />

classe capitalista vale-se contra o proletaria<strong>do</strong><br />

de determina<strong>do</strong>s privilégios<br />

políticos que acumulou no perío<strong>do</strong><br />

anterior, estabeleci<strong>do</strong>s na forma de<br />

legislação. A tendência geral de toda<br />

luta entre classes é que a classe <strong>do</strong>minada<br />

sempre comece lutan<strong>do</strong> por uma<br />

parte, e depois pela totalidade <strong>do</strong> poder<br />

político, como necessidade para<br />

estar em condição de modificar as leis<br />

existentes, em prol de seus interesses<br />

e necessidades próprias. É para esse<br />

senti<strong>do</strong> que as lutas econômicas <strong>do</strong><br />

proletaria<strong>do</strong> e a atividade <strong>do</strong>s sindicatos<br />

têm a vocação histórica de evoluir.<br />

Entretanto, já observava Engels em<br />

1881 que, embora a organização fosse<br />

uma arma importante na luta política<br />

de classe contra classe, consistia um<br />

ciclo vicioso a prática recorrente <strong>do</strong>s<br />

sindicatos manter a atividade <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />

restrita ao nível econômico,<br />

pois o mal básico não reside no baixo<br />

nível <strong>do</strong>s salários, mas sim no sistema<br />

de trabalho assalaria<strong>do</strong>. Diante <strong>do</strong>s<br />

limites da luta econômica, faz-se necessário<br />

uma tomada de consciência<br />

que se espalhe pela classe operária sobre<br />

a necessidade de uma organização<br />

política capaz de promover sua união<br />

geral, não para qualquer fim, se não<br />

para um fim mais alto: a abolição <strong>do</strong><br />

sistema de trabalho assalaria<strong>do</strong> 44 .<br />

Propaganda e luta política<br />

Luta econômica e luta política, de<br />

acor<strong>do</strong> com a teoria marxista, não são<br />

antagônicas ou contraditórias. Tratam-se,<br />

na verdade, de duas formas<br />

que uma mesma luta de classes entre<br />

a burguesia e o proletaria<strong>do</strong> adquire<br />

pela condição econômica e política em<br />

que essa classe se encontra em relação<br />

àquela. Há, assim, uma ligação umbilical<br />

entre elas. A burguesia, por sua vez,<br />

faz crer por sua ideologia que seus privilégios<br />

políticos são naturais e eternos,<br />

assim como o são as condições de<br />

privação de direitos políticos <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>.<br />

Assim também faz crer que<br />

ao proletaria<strong>do</strong> cabe limitar-se à luta<br />

econômica e contentar-se aos direitos<br />

políticos que já foram alcança<strong>do</strong>s por<br />

ele no decurso <strong>do</strong> conflito entre ambas.<br />

Marx e Engels ressaltaram desde<br />

o início de sua atividade na AIT que<br />

toda a questão reside na necessidade<br />

de superação da condição de desunião,<br />

de falta de fraternidade e de ausência<br />

de consciência <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> sobre<br />

a necessidade da luta política para a<br />

superação definitiva de sua condição<br />

de escravidão assalariada. Essa tomada<br />

de consciência, essa conversão<br />

da classe em si em classe para si, essa<br />

superação de sua condição de não ser,<br />

tem na atividade de propaganda <strong>do</strong>s<br />

comunistas o meio pelo qual pode ser<br />

efetivada. Cada progresso na propaganda<br />

se expressa concretamente pelo<br />

maior nível de organização <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>,<br />

expresso na forma de seus<br />

sindicatos, associações, organizações e<br />

seu parti<strong>do</strong> político, os quais precisam<br />

expressar um caráter cada vez mais interliga<strong>do</strong><br />

e consequente das suas lutas<br />

econômica e política desenvolvidas<br />

contra a burguesia.<br />

Nesse perío<strong>do</strong>, operários próximos<br />

a Marx e Engels na Alemanha começaram<br />

a desenvolver a propaganda<br />

da nova concepção de comunismo e a<br />

organizar os trabalha<strong>do</strong>res. Esse trabalho<br />

resultou na fundação em 1869<br />

<strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Social-Democrata <strong>do</strong>s<br />

Trabalha<strong>do</strong>res (SDAP), em Eisenach.<br />

<strong>Em</strong> 1875, o proletaria<strong>do</strong> deu um passo<br />

adiante com a fusão das organizações<br />

proletárias no Parti<strong>do</strong> Social-Democrata<br />

da Alemanha (SPD). Entre esses<br />

partidários de Marx e Engels figurava<br />

Wilhelm Liebknecht, um grande<br />

37


organiza<strong>do</strong>r da classe operária alemã.<br />

Ao sintetizar as lições e diretrizes de<br />

Marx e Engels em termos práticos,<br />

Liebknecht descreveu as tarefas <strong>do</strong>s<br />

revolucionários como: “Estudar, Propagar,<br />

Organizar” 45 . Essa ideia transmite<br />

a interligação entre as atividades<br />

teóricas, propagandísticas e organizativas<br />

com que concebiam suas tarefas<br />

os revolucionários alemães.<br />

Com a AIT Marx e Engels demonstraram<br />

em escala internacional que a<br />

atividade propagandística pode e deve<br />

ser realizada não apenas por meio da<br />

propaganda impressa e convencional,<br />

mas inclusive e sobretu<strong>do</strong> por meio<br />

da ação prática <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> proletário.<br />

Essa noção foi formulada em contornos<br />

bastante defini<strong>do</strong>s nas polêmicas<br />

travadas ao longo da existência da 1ª<br />

Internacional. Sua forma foi sen<strong>do</strong><br />

concebida nas resoluções e <strong>do</strong>cumentos<br />

resultantes das polêmicas com os<br />

segui<strong>do</strong>res de Proudhon, Mazzini,<br />

Lassalle, com os sindicalistas ingleses e<br />

depois com os apoia<strong>do</strong>res de Bakunin,<br />

que propunham o abstencionismo político<br />

combina<strong>do</strong> com a propaganda de<br />

tipo anarquista.<br />

Contrapon<strong>do</strong> as teorias de Bakunin,<br />

Engels explicava que, se o parti<strong>do</strong><br />

proletário deixasse de combater os<br />

adversários <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> no campo<br />

político, significaria aban<strong>do</strong>nar uma<br />

das armas mais poderosas. Esclarece<br />

que quan<strong>do</strong> fala da luta política em<br />

referência às armas mais poderosas<br />

está se referin<strong>do</strong> “particularmente na<br />

esfera da organização e da propaganda”.<br />

E dá <strong>do</strong>is exemplos <strong>do</strong> que entende<br />

por luta política. Um deles é o sufrágio<br />

universal, reivindicação que na<br />

época constituía um excelente meio<br />

de luta. O segun<strong>do</strong> exemplo é a atividade<br />

contra a guerra promovida por<br />

Wilhelm Liebknecht<br />

August Bebel e Wilhelm Liebknecht,<br />

utilizan<strong>do</strong>-se da posição que ocupavam<br />

como deputa<strong>do</strong>s da Assembleia<br />

Nacional alemã da época. Engels argumentava<br />

então que, nesse último<br />

caso em particular, havia-se atua<strong>do</strong><br />

mais poderosamente e no interesse<br />

da “nossa propaganda internacional”<br />

<strong>do</strong> que se tivessem feito reuniões e<br />

“anos de propaganda na imprensa” 46 .<br />

Avançan<strong>do</strong> no mesmo senti<strong>do</strong>,<br />

Marx esclareceu que “a tribuna é o<br />

melhor instrumento de publicidade<br />

[e] não se deveria jamais crer que ter<br />

trabalha<strong>do</strong>res no parlamento é algo<br />

de pouca importância”. Ainda acrescentou<br />

que exercia-se ótimos efeitos<br />

de propaganda sobre o povo tanto<br />

quan<strong>do</strong> havia represálias e repressões<br />

para abafar as vozes <strong>do</strong>s comunistas<br />

no parlamento quanto quan<strong>do</strong> lhes<br />

era permiti<strong>do</strong> falar <strong>do</strong> alto da tribuna<br />

parlamentar. <strong>Em</strong> ambos os casos,<br />

Marx avaliava que os princípios<br />

<strong>do</strong>s comunistas ganhavam enorme<br />

divulgação 47 .<br />

Propaganda e Comuna de Paris<br />

A Comuna de Paris, maior experiência<br />

política <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> no<br />

século XIX, também forneceu lições<br />

e exemplos importantes sobre como<br />

operar a propaganda comunista. Durante<br />

to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> preparatório da<br />

revolução, a Internacional jogou um<br />

papel ativo na França e em sua capital.<br />

A AIT interveio nos acontecimentos<br />

tais quais se manifestaram, buscan<strong>do</strong><br />

influir a partir de seu desenvolvimento<br />

concreto e das possibilidades que se<br />

abriam a cada mudança na situação<br />

política. Já em fevereiro de 1867, por<br />

exemplo, a seção francesa apoiou a<br />

greve <strong>do</strong>s bronzistas em luta contra os<br />

patrões e promoveu uma ação de solidariedade<br />

entre esses e o movimento<br />

sindical inglês. Sobre a Guerra Austro-Prussiana<br />

(1866), manifestaram-<br />

-se contrários pois o povo não queria<br />

mais combater loucamente conforme<br />

a vontade <strong>do</strong>s tiranos. Às vésperas <strong>do</strong><br />

assalto aos céus, quan<strong>do</strong> toda a tensão<br />

impelia para já em 1870 estourar a revolta,<br />

um manifesto assina<strong>do</strong> por operários,<br />

muitos <strong>do</strong>s quais pertencentes<br />

à seção da Internacional, clamou à<br />

prudência, teve o efeito de conter os<br />

ânimos e conseguiu mais tempo para o<br />

proletaria<strong>do</strong> reunir as condições para<br />

efetuar seu objetivo 48 .<br />

Assim que Luís Bonaparte lançou<br />

seu bra<strong>do</strong> de guerra contra a Prússia<br />

em 19 de julho de 1970, a direção da<br />

AIT se reuniu em <strong>23</strong> de julho e aprovou<br />

o Primeiro manifesto <strong>do</strong> Conselho Geral da<br />

Associação Internacional <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res<br />

sobre a guerra franco-prussiana. Dirigin<strong>do</strong>-se<br />

a to<strong>do</strong>s os membros da AIT da<br />

Europa e <strong>do</strong>s EUA, seu conteú<strong>do</strong> reconstitui<br />

os fatos internos à França e<br />

externos que conduziram ao conflito,<br />

mostra o firme papel contra a guerra<br />

Barricada Voltaire Lenoir durante Comuna Paris 1871 - Bruno Braquehais<br />

38


desempenha<strong>do</strong> publicamente pelos<br />

membros da Internacional, denuncia<br />

o complô internacional arquiteta<strong>do</strong><br />

pela burguesia da Prússia, reafirma o<br />

princípio da AIT de internacionalismo,<br />

mostra que ele vive entre o proletaria<strong>do</strong><br />

francês e alemão e anuncia que essa<br />

guerra deve se tornar o prenúncio de<br />

uma sociedade em que o proletaria<strong>do</strong><br />

seja seu senhor. Esse <strong>do</strong>cumento redigi<strong>do</strong><br />

por Marx foi torna<strong>do</strong> material de<br />

propaganda e distribuí<strong>do</strong> na forma de<br />

volante em inglês, alemão e francês 49 .<br />

Um segun<strong>do</strong> manifesto, também de<br />

autoria de Marx e utiliza<strong>do</strong> no mesmo<br />

formato propagandístico que o<br />

primeiro, foi aprova<strong>do</strong> pelo Conselho<br />

Geral da AIT em 9 de setembro. Ali se<br />

orientava agora a Internacional e o<br />

proletaria<strong>do</strong> europeu diante da mudança<br />

na situação, com a transformação<br />

da guerra defensiva por parte da<br />

Alemanha em guerra ofensiva. São<br />

demonstra<strong>do</strong>s o cinismo e a falsidade<br />

<strong>do</strong>s argumentos de Bismarck e <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r<br />

alemão, é denunciada a ação<br />

chauvinista <strong>do</strong> patriotismo teutônico<br />

e reafirma<strong>do</strong> o internacionalismo,<br />

apoian<strong>do</strong>-se no exemplo <strong>do</strong> manifesto<br />

<strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Operário Socialdemocrata<br />

da Alemanha. O manifesto ainda<br />

salienta a difícil situação em que se<br />

encontrava o proletaria<strong>do</strong> francês, e<br />

se esforça por orientar sua atividade<br />

diante da complexidade da situação.<br />

Avalia que “qualquer tentativa de derrubar<br />

o novo governo, na crise atual,<br />

quan<strong>do</strong> o inimigo bate quase às portas<br />

de Paris, seria uma loucura desesperada<br />

[...] Que [os operários franceses]<br />

aproveitem serena e resolutamente as<br />

oportunidades que lhes oferece a liberdade<br />

republicana para trabalhar na<br />

organização de sua própria classe” 50 .<br />

Uma vez consumada a derrota da<br />

Comuna de Paris, com to<strong>do</strong>s os efeitos<br />

que uma derrota dessa magnitude<br />

implicou para o movimento operário,<br />

Marx avançou um balanço <strong>do</strong> episódio<br />

para reorientar o proletaria<strong>do</strong> internacional.<br />

Esse foi aprova<strong>do</strong> em 30 de<br />

maio de 1971 pelo Conselho Geral da<br />

AIT, com o título Manifesto <strong>do</strong> Conselho<br />

Geral da Associação Internacional<br />

<strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res sobre a guerra civil<br />

na França de 1871. Foi publica<strong>do</strong> na forma<br />

de panfleto em francês, alemão e<br />

inglês, e seu impacto foi enorme, maior<br />

<strong>do</strong> que qualquer outro <strong>do</strong>cumento <strong>do</strong><br />

movimento operário <strong>do</strong> século XIX. Os<br />

trabalha<strong>do</strong>res adquiriram e leram avidamente<br />

o material, sen<strong>do</strong> necessárias<br />

três edições inglesas esgotadas rapidamente.<br />

Entre a burguesia o texto foi difundi<strong>do</strong><br />

e causou escândalo. Traduções<br />

e reproduções em diversos idiomas<br />

apareceram rapidamente, publicadas<br />

em jornais, revistas e brochuras em<br />

diversos países da Europa e nos EUA.<br />

O <strong>do</strong>cumento alcançou uma difusão<br />

até então inédita para um texto de uma<br />

organização operária 51 .<br />

Propaganda e parti<strong>do</strong> político<br />

A experiência da Comuna de Paris<br />

confirmou como lição prática uma<br />

hipótese que Marx havia formula<strong>do</strong><br />

quan<strong>do</strong> analisou a ascensão de Luís<br />

Bonaparte em 1852. No Manifesto de<br />

1871 Marx conclui que “a classe operária<br />

não pode simplesmente se apossar<br />

da máquina <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> tal como ela se<br />

apresenta e dela servir-se para seus<br />

próprios fins” . Já em carta <strong>do</strong> perío<strong>do</strong><br />

a Ludwig Kugelmann, ele aprofunda<br />

essa ideia explican<strong>do</strong> que a experiência<br />

heroica <strong>do</strong>s comunar<strong>do</strong>s mostrou<br />

que a maior tarefa política <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />

consiste “não mais em transferir<br />

a maquinaria burocrático-militar de<br />

uma mão para outra, como foi feito<br />

até então, mas sim em quebrá-la, e que<br />

esta é a precondição de toda revolução<br />

popular efetiva no continente” 53 .<br />

“a classe operária<br />

não pode<br />

simplesmente<br />

se apossar da<br />

máquina <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> tal como<br />

ela se apresenta<br />

e dela servirse<br />

para seus<br />

próprios fins”<br />

A experiência da Comuna também<br />

confirmou outra importante lição teórica<br />

a que Marx e Engels haviam chega<strong>do</strong>,<br />

a de que “a melhor maneira de<br />

emancipar os trabalha<strong>do</strong>res dessa <strong>do</strong>minação<br />

<strong>do</strong>s velhos parti<strong>do</strong>s é formar,<br />

em cada país, um parti<strong>do</strong> proletário<br />

com uma política própria, manifestamente<br />

distinta daquela <strong>do</strong>s outros<br />

parti<strong>do</strong>s, porquanto tem de expressar<br />

as condições necessárias para a emancipação<br />

da classe trabalha<strong>do</strong>ra” 54 . A<br />

classe operária francesa foi derrotada<br />

porque ainda não dispunha das condições<br />

de organização e da compreensão<br />

sobre as tarefas necessárias para<br />

assegurar sua vitória final contra a<br />

classe burguesa. A própria AIT não havia<br />

contribuí<strong>do</strong> adequadamente para<br />

a resolução desse problema, uma vez<br />

que seus integrantes que participaram<br />

da Comuna comportaram-se de forma<br />

desordenada e contraditória ao longo<br />

de sua existência, o que facilitou o controle<br />

e o <strong>do</strong>mínio de outras concepções<br />

e forças políticas sobre o movimento.<br />

Essas conclusões teóricas vão influenciar<br />

decisivamente a luta política<br />

travada dentro da AIT após a derrota<br />

da Comuna de Paris. A Conferência de<br />

Londres, realizada de 17 a <strong>23</strong> de setembro,<br />

aprovou um <strong>do</strong>cumento que se<br />

tornou muito famoso, chama<strong>do</strong> Resolução<br />

IX. A proposta, feita por Vaillant,<br />

um sobrevivente da Comuna, foi assimilada<br />

por Marx, e tinha o propósito<br />

de transformar a Associação num parti<strong>do</strong><br />

internacional e centraliza<strong>do</strong>, sob a<br />

liderança <strong>do</strong> Conselho Geral. Seu texto<br />

recapitula os esforços da AIT em incutir<br />

no seu interior a importância da<br />

luta política, destaca a repressão a que<br />

a organização havia si<strong>do</strong> submetida,<br />

afirma a necessidade de “constituição<br />

da classe trabalha<strong>do</strong>ra num parti<strong>do</strong><br />

político”, que as lutas econômicas devem<br />

servir como alavanca para as lutas<br />

contra o poder político das classes<br />

<strong>do</strong>minantes, e conclui que: “na luta da<br />

classe trabalha<strong>do</strong>ra, seu movimento<br />

econômico e sua ação política estão indissoluvelmente<br />

uni<strong>do</strong>s” 55 .<br />

Na Conferência de Londres, Marx<br />

declarou que “a ação política deveria<br />

estar de acor<strong>do</strong> com as condições de<br />

cada país”, e que “se os governos nos<br />

são hostis, é preciso responder a eles<br />

com to<strong>do</strong>s os meios de que dispomos<br />

e lançar uma cruzada geral contra<br />

eles” 56 . Argumentan<strong>do</strong> pela formação<br />

de um parti<strong>do</strong> proletário, Engels afirmou<br />

que “Essa política [que expresse<br />

as condições necessárias para a emancipação<br />

da classe trabalha<strong>do</strong>ra] pode<br />

variar em detalhes, de acor<strong>do</strong> com<br />

as circunstâncias específicas de cada<br />

país”, mas que enquanto o capitalismo<br />

subsistir “os princípios e objetivos da<br />

política proletária serão idênticos” 57 .<br />

Após o Congresso de Haia, Marx explicou<br />

que “um dia o trabalha<strong>do</strong>r deverá<br />

tomar o poder político para construir<br />

uma nova organização <strong>do</strong> trabalho<br />

[...]. Mas isso não significa dizer que<br />

os meios para atingir essa meta são os<br />

mesmos em to<strong>do</strong>s os lugares” 58 .<br />

Já a discussão decisiva sobre o balanço<br />

e as tarefas, que selou também o<br />

destino da AIT, ocorreu no fim <strong>do</strong> outono<br />

de 1872, no Congresso de Haia. A<br />

iniciativa de Marx e Engels nesse momento<br />

foi a de operar uma revolução<br />

na estrutura organizativa da Internacional,<br />

buscan<strong>do</strong> adequá-la às decisões<br />

da Conferência de Londres. A primeira<br />

decisão nesse senti<strong>do</strong> foi a inclusão de<br />

um artigo nos estatutos da AIT, afirman<strong>do</strong><br />

que: “<strong>Em</strong> sua luta contra o poder<br />

reuni<strong>do</strong> das classes possui<strong>do</strong>ras,<br />

39


Marx e Engels no Congresso de 1872 da 1ª Internacional, realiza<strong>do</strong> em Haia, que marcou importante<br />

inflexão nas tarefas <strong>do</strong>s comunistas<br />

o proletaria<strong>do</strong> só pode se apresentar<br />

como classe quan<strong>do</strong> constitui a si<br />

mesmo num parti<strong>do</strong> político particular,<br />

o qual se confronta com to<strong>do</strong>s os<br />

parti<strong>do</strong>s precedentes forma<strong>do</strong>s pelas<br />

classes possui<strong>do</strong>ras [e que] a conquista<br />

<strong>do</strong> poder político converte-se assim<br />

numa grande obrigação <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>”<br />

59. A segunda decisão conferiu poderes<br />

mais amplos ao Conselho Geral,<br />

com a tarefa de garantir em cada país<br />

a “rígida observação <strong>do</strong>s princípios,<br />

estatutos e regras gerais da Internacional”,<br />

assim como agora tinha “o direito<br />

de suspender ramos, seções, conselhos<br />

ou comitês federais e federações da Internacional<br />

até o próximo congresso”.<br />

A seguir procedeu-se à primeira expulsão<br />

de uma seção na história da Internacional,<br />

devi<strong>do</strong> ao apoio da mesma<br />

a um candidato burguês à disputa<br />

presidencial <strong>do</strong>s EUA, acompanhada<br />

da expulsão de Bakunin, por conta de<br />

sua atividade via organização secreta<br />

na AIT.<br />

Vários motivos os levaram a essas<br />

medidas de reestruturar a AIT e dar<br />

maior concretude para sua finalidade<br />

política, como a luta fracional encarniçada<br />

<strong>do</strong>s anarquistas e o apego ao princípio<br />

da autonomia que se expressou<br />

em grande parte das federações e seções<br />

locais. O fio condutor dessa orientação,<br />

entretanto, era uma determinada<br />

compreensão política da situação.<br />

A conjuntura histórica já era distinta<br />

de quan<strong>do</strong> a Associação foi fundada,<br />

com a afirmação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>-nação e o<br />

proletaria<strong>do</strong> alcançan<strong>do</strong> níveis superiores<br />

de organização, e inclusive tenta<strong>do</strong><br />

“assaltar o céu”. A organização, tal<br />

qual ela havia se estrutura<strong>do</strong> e atua<strong>do</strong>,<br />

havia cumpri<strong>do</strong> sua missão original<br />

de conceber e coordenar iniciativas de<br />

solidariedade internacionais para sustentar<br />

greves e difundir os preceitos<br />

teóricos fundamentais para as tarefas<br />

imediatas necessárias. Depois da Comuna<br />

de Paris, havia se estabeleci<strong>do</strong><br />

que o verdadeiro desafio <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />

era a revolução, que se expressava<br />

na tarefa de em cada país construir<br />

parti<strong>do</strong>s políticos <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>.<br />

Estava estabeleci<strong>do</strong>, portanto, que a<br />

principal tarefa <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> consiste<br />

em converter sua luta econômica<br />

em luta política, que essa luta política<br />

apenas pode ser vitoriosa quebran<strong>do</strong><br />

a antiga máquina de esta<strong>do</strong>, que essa<br />

tarefa precisa ser realizada por meio<br />

da constituição de parti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />

articula<strong>do</strong>s solidariamente e<br />

que esses parti<strong>do</strong>s, embora tenham os<br />

mesmos propósitos, devem constituir<br />

programas e desempenhar atividades<br />

adequa<strong>do</strong>s a cada realidade. O Congresso<br />

de Haia, com suas discussões<br />

e decisões, expressou que as questões<br />

organizativas precisavam estar subordinadas<br />

às questões políticas, para que<br />

essas pudessem ser realizadas. Nenhum<br />

princípio autonomista ou anarquista<br />

poderia prevalecer em termos<br />

organizativos a partir de então.<br />

<strong>Em</strong>bora não tenha si<strong>do</strong> objeto<br />

desses debates e decisões, dessas<br />

orientações organizativas deduz-se<br />

também as diretrizes no que se refere<br />

às questões de propaganda comunista.<br />

<strong>Em</strong> 1874 Engels explicava que, a partir<br />

<strong>do</strong>s progressos <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> alemão<br />

em combinar a luta nas frentes teórica,<br />

política e econômica: “A consciência<br />

assim alcançada e cada vez mais lúcida<br />

deve ser difundida entre as massas<br />

operárias com um carinho cada vez<br />

maior e se deve fortalecer cada vez<br />

mais a organização <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, assim<br />

como a <strong>do</strong>s sindicatos” 60 . Assim como<br />

as questões organizativas estão subordinadas<br />

às questões políticas, também<br />

as questões de propaganda o estão.<br />

Uma conclusão dessa análise é de<br />

que tanto organização quanto propaganda<br />

compartilham da mesma esfera<br />

instrumental, por meio da qual<br />

se realiza uma determinada atividade<br />

política. Assim como em questões<br />

organizativas, toda atividade de propaganda<br />

comunista precisa também<br />

estar adequada aos objetivos de suscitar<br />

no proletaria<strong>do</strong> a compreensão<br />

da necessidade de combinar as lutas<br />

econômica e política contra a burguesia<br />

e de construir um parti<strong>do</strong> político<br />

da classe operária para alcançar sua<br />

emancipação. A forma organizativa e<br />

a forma propagandística, seguin<strong>do</strong> a<br />

diretriz de Marx em relação à forma<br />

política, também pode variar em cada<br />

caso, pois se trata de adequar essas atividades<br />

a cada realidade concreta em<br />

que o proletaria<strong>do</strong> se encontra. Mas as<br />

três devem manter uma unidade em<br />

relação ao seu propósito comum.<br />

Propaganda e socialismo científico<br />

O fim da AIT como organização em<br />

1874 vai encerrar a última fase de atuação<br />

de Marx e Engels como dirigentes<br />

diretos de uma organização política <strong>do</strong><br />

proletaria<strong>do</strong>. Entretanto, durante to<strong>do</strong><br />

o restante de suas vidas eles buscarão<br />

influir sobre o movimento operário<br />

internacional em uma verdadeira atividade<br />

propagandística. Os méto<strong>do</strong>s<br />

que utilizam para fazer isso serão os<br />

mesmos usa<strong>do</strong>s por eles no passa<strong>do</strong><br />

e já descritos neste artigo. Conversas,<br />

cartas, comentários, artigos e livros<br />

foram os meios pelos quais eles continuaram<br />

atuan<strong>do</strong> em prol da grande<br />

tarefa histórica <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> de alcançar<br />

sua emancipação econômica e<br />

política.<br />

<strong>Em</strong> 1877, por exemplo, Engels iniciou<br />

a publicação de uma série de artigos no<br />

jornal Vorwärts (Avante), órgão <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong><br />

Socialdemocrata na Alemanha,<br />

contrapon<strong>do</strong> os ataques contra Marx<br />

e a concepção de socialismo científico.<br />

Tratava-se de um esforço para neutralizar<br />

a influência <strong>do</strong>s “<strong>do</strong>utores”<br />

sobre os quadros <strong>do</strong> recém-unifica<strong>do</strong><br />

40


parti<strong>do</strong> socialista da Alemanha e permitir<br />

que ele se desenvolvesse em um<br />

senti<strong>do</strong> positivo. Nessa obra Engels retorna<br />

àquela ideia já estabelecida por<br />

ele em 1844 sobre a questão das lutas<br />

práticas da classe operária e da necessidade<br />

da compreensão de suas tarefas<br />

socialistas.<br />

Quan<strong>do</strong> refletia sobre a solução da<br />

condição de exploração da classe operária<br />

em A situação da classe trabalha<strong>do</strong>ra<br />

na Inglaterra, Engels previa a solução<br />

da contradição na fusão entre o movimento<br />

operário inglês, de sua maior<br />

expressão, o cartismo, com o movimento<br />

socialista francês. Já em 1877 a<br />

solução da contradição prognosticada<br />

por Engels já era outra: “A realização<br />

desse ato, que redimirá o mun<strong>do</strong>,<br />

é a missão histórica <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />

moderno. E o socialismo científico,<br />

expressão teórica <strong>do</strong> movimento proletário,<br />

destina-se a pesquisar as condições<br />

históricas e, com isso, a natureza<br />

mesma desse ato, infundin<strong>do</strong> assim<br />

à classe chamada a fazer a revolução, à<br />

classe hoje oprimida, a consciência das<br />

condições e da natureza de sua própria<br />

ação” 61 . A tarefa de emancipação<br />

<strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>, portanto, precisa ser<br />

operada pela constituição e atuação<br />

de seu parti<strong>do</strong> político, que seja simultaneamente<br />

porta<strong>do</strong>r e expressão<br />

prática <strong>do</strong> socialismo científico.<br />

Um último exemplo para ilustrar a<br />

concepção de propaganda comunista<br />

derivada da atividade de Marx e Engels.<br />

Esse episódio é particularmente<br />

interessante porque antecipa não só<br />

as grandes polêmicas, mas também<br />

o impacto que o revisionismo teve<br />

no movimento operário ao longo das<br />

décadas seguintes. <strong>Em</strong> 1879 foi publica<strong>do</strong><br />

o artigo Retrospectivas <strong>do</strong> movimento<br />

socialista na Alemanha, redigi<strong>do</strong> por<br />

três autores, entre os quais de fato já<br />

figurava Eduard Bernstein.<br />

Os autores <strong>do</strong> artigo propõem ao<br />

proletaria<strong>do</strong> alemão um recuo de um<br />

movimento com caráter de luta de<br />

classes para um movimento de caráter<br />

policlassista. O meio para essa mudança<br />

seria uma propaganda sobre as<br />

classes superiores, com o objetivo de<br />

ganhá-las para o parti<strong>do</strong>. Disso implica-se<br />

o conteú<strong>do</strong> dessa propaganda,<br />

que deve cuidar para não assustar as<br />

camadas superiores da sociedade ou<br />

seus elementos bem-intenciona<strong>do</strong>s.<br />

Ao invés de mostrar-se pela revolução<br />

e disposto a usar a violência, o parti<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> deveria tomar o<br />

caminho da legalidade, o da reforma.<br />

Ao invés de apelar aos “maltrapilhos<br />

sedentos de barricadas”, devia-se almejar<br />

aqueles com “bom gosto” e que<br />

sabem o “tom” que se deve usar para<br />

intervir no parlamento e nas questões<br />

públicas. Não se tratava de aban<strong>do</strong>nar<br />

o parti<strong>do</strong> e o programa, para esses senhores,<br />

mas sim de entender que ao<br />

invés de fixar forças nos fins últimos,<br />

que ainda levarão muitos anos, deve-<br />

-se concentrar energia em objetivos<br />

próximos e atingíveis no curto prazo.<br />

A réplica, redigida por Marx e assinada<br />

por ele e Engels, contra as ideias<br />

<strong>do</strong> artigo e seus autores fornece guia de<br />

combate ao revisionismo. Apontan<strong>do</strong><br />

qual o caminho a ser persegui<strong>do</strong>, faz<br />

recordar as bases sobre as quais o movimento<br />

comunista se sustenta. <strong>Em</strong><br />

primeiro lugar a concepção de que a<br />

luta de classes é o motor da história.<br />

Especialmente a luta de classes entre<br />

burguesia e proletaria<strong>do</strong> contém<br />

a grande alavanca da revolução social<br />

moderna. Recorda que o grito de guerra<br />

da AIT era “a libertação da classe<br />

operária será obra da própria classe<br />

trabalha<strong>do</strong>ra”. Que, portanto, é impossível<br />

caminhar junto com quem quer<br />

suprimir a luta de classes no movimento<br />

operário, e que mesmo tais elementos<br />

devem ser coloca<strong>do</strong>s para fora<br />

<strong>do</strong> parti<strong>do</strong> proletário.<br />

Por fim, Marx e Engels advertem<br />

que: “Se o novo órgão <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> não toma<br />

uma atitude que corresponda às ideias destes<br />

senhores, se essa orientação é burguesa e não<br />

proletária, não nos restará mais nada a fazer,<br />

por mais lamentável que seja, <strong>do</strong> que declarar<br />

abertamente nossa oposição e romper a<br />

solidariedade da qual demos prova até agora<br />

na qualidade de representantes <strong>do</strong> parti<strong>do</strong><br />

alemão no exterior. Esperemos, contu<strong>do</strong>, que<br />

não se chegue até aí” 62 .<br />

Essa crítica de Marx e Engels foi<br />

publicada na forma de carta circular.<br />

Primeiro foi remetida a August Bebel,<br />

mas se destinava a toda a direção <strong>do</strong><br />

SPD, e tinha o caráter de um <strong>do</strong>cumento<br />

<strong>do</strong> parti<strong>do</strong>. Seu efeito foi profun<strong>do</strong>,<br />

e serviu de ponto de apoio para os dirigentes<br />

alemães corrigirem os desvios<br />

<strong>do</strong> parti<strong>do</strong> e atravessarem o perío<strong>do</strong> de<br />

ilegalidade a que estavam submeti<strong>do</strong>s.<br />

Serve também como uma referência<br />

contemporânea para pensar sobre a<br />

relação entre a teoria <strong>do</strong> socialismo<br />

científico, o parti<strong>do</strong> <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> e<br />

a própria vanguarda comunista que<br />

propaga e faz desenvolver a consciência<br />

política no proletaria<strong>do</strong>.<br />

A efetivação da emancipação <strong>do</strong><br />

proletaria<strong>do</strong> precisa ser efetivada por<br />

Marx e Engels no Rheinische Zeitung- Domínio público<br />

41


meio de seu parti<strong>do</strong> político. Porém,<br />

Marx e Engels não tinham qualquer<br />

fetiche organizativo sobre a forma que<br />

esse iria a<strong>do</strong>tar. Não importava que o<br />

Parti<strong>do</strong> Socialdemocrata Alemão tivesse<br />

feito enormes progressos em termos<br />

de filia<strong>do</strong>s e de atuação sindical,<br />

teórica e política, conforme assinala<strong>do</strong><br />

por Engels em episódio já relata<strong>do</strong><br />

aqui. Marx e Engels deixaram claro sua<br />

disposição de romper com o SPD caso<br />

sua direção aceitasse ou fosse tolerante<br />

com as vacilações oportunistas que se<br />

manifestaram em sua organização.<br />

Isso se deve ao fato de que eles concebem<br />

a questão <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> não em<br />

Notas e Referências<br />

termos de um aparato e de uma estrutura<br />

organizativa. Já em 1848 eles<br />

argumentam que “os comunistas não<br />

formam um parti<strong>do</strong> à parte, oposto<br />

aos outros parti<strong>do</strong>s operários” 63 . Naquele<br />

momento essas palavras foram<br />

formuladas ten<strong>do</strong> em vista a possibilidade<br />

de influir sobre o movimento<br />

cartista, e levá-lo a se tornar esse parti<strong>do</strong><br />

proletário. A polêmica de 1879 mostra<br />

que 40 anos depois a orientação de<br />

Marx e Engels permaneciam a mesma<br />

nesse ponto.<br />

O parti<strong>do</strong> <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>, nos termos<br />

históricos que Marx e Engels<br />

concebiam, seria aquele capaz de ser<br />

ele próprio a síntese entre a prática<br />

política e o socialismo científico, ou<br />

não seria. “Ou a classe trabalha<strong>do</strong>ra é<br />

revolucionária, ou ela não é nada” 64 .<br />

Essa ideia formulada por Marx em<br />

carta a Johann Baptist von Schweitzer<br />

concentra to<strong>do</strong> o problema <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>.<br />

Ou o parti<strong>do</strong> serve à necessidade histórica<br />

de dar à classe trabalha<strong>do</strong>ra consciência<br />

da tarefa de levar sua luta econômica<br />

e política até sua solução final,<br />

ou ele não serve como instrumento. O<br />

mesmo se aplica, portanto, à atividade<br />

de organização e propaganda desse<br />

parti<strong>do</strong>, que são por sua vez as suas expressões<br />

práticas.<br />

1<br />

GOMES, Neusa de Martini. Conceitos de comunicação política.<br />

LabCom, 2010, p.111.<br />

2<br />

Congregazione. Archivio Storico "De Propaganda Fide". Disponível<br />

em: <br />

3<br />

GONÇALES, Márcio Carbaca. Publicidade e Propaganda.<br />

Curitiba: IESDE Brasil, 2009, p.7.<br />

4<br />

O’DONNEL, Vitória; JOWETT, Garth. Propaganda and<br />

persuasion. p.75.<br />

5<br />

MARTINS, Zeca. Propaganda É Isso Aí. São Paulo: Saraiva,<br />

2010, p.6.<br />

6<br />

CULL; CULLBERT; WELCH. Propaganda and Mass Persuasion.<br />

2003. p.85.<br />

7<br />

O’DONNEL; JOWETT. Idem. p.79.<br />

8<br />

RIAZANOV. Marx e Engels: uma biografia. São Paulo: Associação<br />

Operário Olavo Hansen, 2022. p.58-59.<br />

9<br />

O’DONNEL; JOWETT. Idem. p.88.<br />

10<br />

EMERY, E.; EMERY, M. The press and America. 1984,<br />

p.405. In O’DONNEL; JOWETT. Idem. p.95.<br />

11<br />

RIAZANOV. Idem. p.37-38.<br />

12<br />

SEWELL, Rob. In the Cause of Labour: A History of British<br />

Trade Unionism. 2003.<br />

13<br />

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo:<br />

Boitempo, 2010, p.146.<br />

14<br />

MARX, Karl. Crítica da filosofia <strong>do</strong> direito de Hegel. São<br />

Paulo: Boitempo, 2013. p.157<br />

15<br />

RIAZANOV. Idem. p.90.<br />

16<br />

ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalha<strong>do</strong>ra na<br />

Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010, p.271.<br />

17<br />

MARX, Karl. Miséria da Filosofia. São Paulo: Boitempo,<br />

2017, p.146. (Ênfase nossa)<br />

18<br />

ENGELS, Friedrich. Contribuição à história da Liga <strong>do</strong>s<br />

Comunistas. In Obras Escolhidas Marx e Engels. Alfa-Ômega,<br />

2016, vol.3, p.158.<br />

19<br />

RIAZANOV. Idem. p.163.<br />

20ENGELS, Friedrich. Contribuição à história da Liga <strong>do</strong>s<br />

Comunistas. In Obras Escolhidas Marx e Engels. Alfa-Ômega,<br />

2016, vol.3, p.158.<br />

21<br />

RIAZANOV. Idem. p.163<br />

22<br />

ENGELS. Carta para Marx de 22 de fevereiro de 1845. In<br />

COGGIOLA, Osval<strong>do</strong>. 150 anos <strong>do</strong> Manifesto Comunista. In<br />

MARX; ENGELS. Manifesto Comunista. Boitempo, 2010,<br />

p.29.<br />

<strong>23</strong><br />

COGGIOLA, Osval<strong>do</strong>. 150 anos <strong>do</strong> Manifesto Comunista.<br />

In MARX; ENGELS. Manifesto Comunista. Boitempo, 2010, p.11.<br />

24<br />

ENGELS, Friedrich. Contribuição à história da Liga <strong>do</strong>s<br />

Comunistas. In Obras Escolhidas Marx e Engels. Alfa-Ômega,<br />

2016, vol.3, p.160.<br />

42<br />

25<br />

COTRIM, Lívia. A arma da crítica: política e emancipação<br />

humana na Nova Gazeta Renana. São Paulo: Expressão Popular,<br />

2020, p.36.<br />

26<br />

RIAZANOV. Idem. p.111.<br />

27<br />

BEER, Max. História <strong>do</strong> socialismo e das lutas sociais. Expressão<br />

Popular, 2006, p. 520. (Grifo nosso)<br />

28<br />

ENGELS. Idem. p.160.<br />

29<br />

MAYER, Gustav. Friedrich Engels : uma biografia. São Paulo:<br />

Boitempo, 2020, p.86-87.<br />

30<br />

COGGIOLA, Osval<strong>do</strong>. MARX; ENGELS. Manifesto Comunista.<br />

Boitempo, 2010, p.39.<br />

31<br />

SCHILLING, Voltaire. Marx, o Manifesto de 1848 e a Revolução.<br />

Portal Terra, 29/05/2018.<br />

32<br />

ENGELS. Idem. p.163.<br />

33<br />

COTRIM, Lívia. A arma da crítica: política e emancipação<br />

humana na Nova Gazeta Renana. In MARX. Nova Gazeta<br />

Renana: Órgão da Democracia. São Paulo: Expressão Popular,<br />

2020, p.37.<br />

34<br />

ENGELS. Idem. p.163.<br />

35<br />

ENGELS. Idem. p.165.<br />

36<br />

MARX; ENGELS. Mensagem <strong>do</strong> Comitê Central à Liga <strong>do</strong>s<br />

Comunistas. In Obras Escolhidas Marx e Engels. Alfa-Ômega,<br />

2016, vol.1, p.83.<br />

37<br />

ENGELS. Idem. p.165-166.<br />

38<br />

COTRIM, Lívia. A arma da crítica: política e emancipação humana<br />

na Nova Gazeta Renana. In MARX. Nova Gazeta Renana:<br />

Órgão da Democracia. São Paulo: Expressão Popular, 2020, p.38.<br />

39<br />

MARX, Karl. Letter to Ferdinand Freiligrath, February 29,<br />

1860. Militant Archives. Disponível: https://wikirouge.net/texts/<br />

en/Letter_to_Ferdinand_Freiligrath,_February_29,_1860<br />

40<br />

MARX, Karl. Preâmbulos <strong>do</strong>s Estatutos da 1ª Internacional.<br />

In O marxismo e os sindicatos. São Paulo: Sundermann,<br />

2008, p. 89.<br />

41<br />

ONOFRE, José. Karl Marx : Liberdade de imprensa. Porto<br />

Alegre: L&PM, 2010, p.9.<br />

42<br />

MARX, Karl. Mensagem inaugural da Associação Internacional<br />

<strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res. In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! : antologia<br />

política da I Internacional. São Paulo: Boitempo, 2014, p.93-99.<br />

43<br />

MARX, Karl. Salário, Preço e Lucro. In Trabalho assalaria<strong>do</strong> e<br />

capital & Salário, Preço e Lucro. São Paulo: Expressão Popular, 2006.<br />

44<br />

ENGELS, Friedrich. Os Sindicatos (I e II). In O marxismo e<br />

os sindicatos. São Paulo: Sundermann, 2008, p. 69-76.<br />

45<br />

LENIN,V. I. WHAT THE “FRIENDS OF THE PEOPLE”<br />

ARE AND HOW THEY FIGHT THE SOCIAL-DEMO-<br />

CRATS. (A Reply to Articles in Russkoye Bogatstvo Opposing the<br />

Marxists). In: V. I. Lênin Collected Works. Volume 1 (1893-1894).<br />

Moscow: PROGRESS PUBLISHERS, 1960. p.298.<br />

46<br />

ENGELS, Friedrich. Ao Conselho Federal Espanhol da Associação<br />

Internacional <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res. Carta de 13 de fevereiro<br />

de 1871. In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! : antologia política da I Internacional.<br />

São Paulo: Boitempo, 2014, p.300-301 (grifos nossos).<br />

47<br />

MARX, Karl. Discurso durante sessão da Conferência de<br />

Londres da AIT, em 20 de setembro de 1871. In Trabalha<strong>do</strong>res,<br />

uni-vos! : antologia política da I Internacional. São Paulo: Boitempo,<br />

2014, p.304-305 (grifo nosso).<br />

48<br />

LISSAGARAY, Hippoyte Prosper-Oliver. História da Comuna<br />

de Paris de 1871. São Paulo: Expressão Popular, 2021, p.29-57.<br />

49<br />

MARX; ENGELS. Obras Escolhidas Marx e Engels. Alfa-<br />

-Ômega, 2016, vol.2, p.52.<br />

50<br />

MARX; ENGELS. Obras Escolhidas Marx e Engels. Alfa-<br />

-Ômega, 2016, vol.2, p.62.<br />

51<br />

MUSTO, Marcello. Introdução. In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! :<br />

antologia política da I Internacional. São Paulo: Boitempo, 2014, p.51.<br />

52<br />

MARX; ENGELS. Obras Escolhidas Marx e Engels. Alfa-<br />

-Ômega, 2016, vol.2, p.78.<br />

53<br />

MARX, Karl. Carta a Ludwig Kugelmann. 12 de abril de<br />

1871. In MARX, Karl. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo,<br />

2011, p.54.<br />

54<br />

ENGELS, Friedrich. Ao Conselho Federal Espanhol da Associação<br />

Internacional <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res. Carta de 13 de fevereiro<br />

de 1871. In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! : antologia política da I Internacional.<br />

São Paulo: Boitempo, 2014, p.300-301.<br />

55<br />

MARX; ENGELS. Sobre a ação política da classe trabalha<strong>do</strong>ra e<br />

outros assuntos. Novembro de 1871. In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! : antologia<br />

política da I Internacional. São Paulo: Boitempo, 2014, p.309-311.<br />

56<br />

MARX, Karl. Sobre a ação política da classe trabalha<strong>do</strong>ra.<br />

In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! : antologia política da I Internacional.<br />

São Paulo: Boitempo, 2014, p.309-311.<br />

57<br />

ENGELS, Friedrich. Ao Conselho Federal Espanhol da Associação<br />

Internacional <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res. Carta de 13 de fevereiro<br />

de 1871. In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! : antologia política da I Internacional.<br />

São Paulo: Boitempo, 2014, p.300.<br />

58<br />

MUSTO, Marcello. Introdução. In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! :<br />

antologia política da I Internacional. São Paulo: Boitempo, 2014,<br />

p.65-66.<br />

59<br />

MARX; ENGELS. Normas gerais da Associação Internacional<br />

<strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res. In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! : antologia<br />

política da I Internacional. São Paulo: Boitempo, 2014, p.293-294.<br />

60<br />

ENGELS, Friedrich. Prefácio a A Guerra Camponesa na Alemanha.<br />

Obras Escolhidas Marx e Engels. Alfa-Ômega, 2016, vol.2, p.202.<br />

61<br />

ENGELS, Friedrich. Do Socialismo Utópico ao Socialismo<br />

Científico. São Paulo: Centauro, 2005, p.98.<br />

62<br />

MARX, Karl. O manifesto <strong>do</strong>s três de Zurique. 1879.<br />

Disponível em: <br />

63<br />

MARX; ENGELS. Manifesto Comunista. Boitempo, 2010, p.51.<br />

64<br />

MARX, Karl. Carta a Johann Baptist von Schweitzer, 13 de<br />

fevereiro de 1865.


80 ANOS DO LEVANTE<br />

DO GUETO DE VARSÓVIA:<br />

HORROR, TRAIÇÃO E HEROÍSMO<br />

RAFAEL PRATA<br />

Homens da SS prenden<strong>do</strong> judeus e deportan<strong>do</strong> para um campo de extermínio durante o Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia Foto: CAF/dpa/picture-alliance<br />

Esse ano, completam-se 80 anos<br />

<strong>do</strong> Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia,<br />

quan<strong>do</strong> os trabalha<strong>do</strong>res e<br />

jovens judeus, confina<strong>do</strong>s pelos<br />

nazistas para perecerem pela fome<br />

e pelas <strong>do</strong>enças, ergueram-se contra<br />

seus carrascos. Após testemunharem o<br />

deslocamento força<strong>do</strong> de 300 mil pessoas,<br />

que viviam no gueto, para o campo<br />

de extermínio de Treblinka, onde<br />

seriam asfixiadas em câmara de gás,<br />

os 60 mil mora<strong>do</strong>res remanescentes<br />

decidiram reagir.<br />

Famélicos e mal arma<strong>do</strong>s, mas determina<strong>do</strong>s<br />

a lutar até o fim, eles enfrentaram<br />

a poderosa máquina de<br />

guerra alemã durante semanas de<br />

combates intensos e cruéis.<br />

Nesse artigo, pretendemos relembrar<br />

as condições em que foi travada<br />

essa luta e, portanto, mostrar o horror<br />

organiza<strong>do</strong> e perpetra<strong>do</strong> pelo regime<br />

nazista, para que as vítimas nunca sejam<br />

esquecidas e para que esses crimes<br />

nunca mais se repitam.<br />

Vamos refletir ainda sobre o papel<br />

desempenha<strong>do</strong> pela URSS, sob coman<strong>do</strong><br />

de Josef Stalin, que negociou a<br />

divisão da Polônia e acor<strong>do</strong>s de cooperação<br />

econômica com a Alemanha de<br />

A<strong>do</strong>lf Hitler, enquanto os trabalha<strong>do</strong>res<br />

da Europa - e os judeus, em particular<br />

- eram massacra<strong>do</strong>s. Traição que<br />

custou caro também para o povo soviético,<br />

quan<strong>do</strong> a Alemanha desencadeou<br />

a Operação Barbarossa. Veremos ainda<br />

que, apesar disso, o Exército Vermelho<br />

venceu a Batalha de Stalingra<strong>do</strong> e reverteu<br />

o curso da guerra, acalentan<strong>do</strong><br />

esperanças entre os trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />

Leste europeu e, claro, entre os judeus<br />

<strong>do</strong>s guetos e campos de concentração.<br />

Ao mesmo tempo, a “solução final”<br />

<strong>do</strong> nazismo para a questão judaica,<br />

que consistia em conduzir milhões de<br />

seres humanos para a morte por asfixia<br />

nos campos de extermínio, estava<br />

em pleno funcionamento. A morte<br />

estava à espreita <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia,<br />

mais uma vez, após Heinrich<br />

Himmler, comandante-geral das SS,<br />

ordenar a evacuação total e a destruição<br />

de to<strong>do</strong> o bairro. Veremos como a<br />

população se organizou para resistir<br />

43


a essa investida final e como o heroísmo<br />

<strong>do</strong> Levante serviu de inspiração<br />

para outras rebeliões.<br />

Por fim, levantamos algumas<br />

reflexões acerca <strong>do</strong> sionismo, que passou<br />

de uma corrente política minoritária<br />

entre os judeus, à condição de principal<br />

força, apoiada pelo imperialismo<br />

britânico e estadunidense no imediato<br />

pós-guerra. Vamos mostrar que a criação<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Israel, com o aval da<br />

URSS, longe de estabelecer um lar para<br />

que os judeus pudessem viver em paz,<br />

colocou-os em guerra permanente<br />

contra os povos <strong>do</strong> Oriente Médio.<br />

As consequências <strong>do</strong> Pacto<br />

Molotov-Ribbentrop<br />

<strong>Em</strong> 1º de setembro de 1939, a<br />

Alemanha invade a Polônia. <strong>Em</strong> resposta,<br />

Grã-Bretanha e França declaram<br />

guerra à Alemanha. Era o início<br />

da II Guerra Mundial. Porém, dias<br />

antes dessas ações, em <strong>23</strong> de agosto,<br />

um acor<strong>do</strong> de não agressão entre<br />

a Alemanha nazista e a URSS havia<br />

si<strong>do</strong> concluí<strong>do</strong>, através de seus representantes:<br />

o ministro das relações exteriores<br />

alemão, Joachim von Ribbentrop<br />

e o ministro soviético das relações<br />

exteriores, Vyacheslav Molotov.<br />

O Pacto Nazi-Soviético, como ficou<br />

conheci<strong>do</strong>, possuía uma versão pública<br />

e outra secreta. Publicamente, além<br />

<strong>do</strong> compromisso de não se atacarem<br />

mutuamente, estabelecia também<br />

que, caso uma das duas potências fosse<br />

atacada, o outro signatário não forneceria<br />

assistência de qualquer tipo para<br />

o país adversário. Concordaram, ainda,<br />

em não participar de trata<strong>do</strong>s com<br />

outras potências que, direta ou indiretamente,<br />

prejudicassem o outro.<br />

Secretamente, estabeleceram, entre<br />

si, áreas de influência e organizaram a<br />

divisão da Polônia segun<strong>do</strong> as linhas<br />

<strong>do</strong>s rios Narev, Vístula e San.<br />

Esse acor<strong>do</strong> foi crucial para os planos<br />

de Hitler, pois neutralizou o inimigo<br />

a Leste e, assim, permitiu-lhe<br />

concentrar toda sua força militar nas<br />

frentes de batalha no Ocidente. Mesmo<br />

antes da I Guerra Mundial, o maior<br />

temor <strong>do</strong>s militares alemães era justamente<br />

enfrentar duas frentes de<br />

batalha, simultaneamente, pois isso<br />

obrigaria o alto-coman<strong>do</strong> a dividir<br />

suas unidades militares e exigiria um<br />

esforço civil e militar gigantesco para<br />

suprir ambos os la<strong>do</strong>s <strong>do</strong> conflito de<br />

maneira eficaz. Mais <strong>do</strong> que isso, Hitler<br />

obteve a garantia de que a URSS<br />

não interviria no conflito e nem sequer<br />

prestaria qualquer tipo de assistência a<br />

seus opositores.<br />

Por isso, naquele momento, a Wehrmacht<br />

(forças armadas alemãs) interrompeu<br />

seu avanço na Polônia até<br />

os pontos combina<strong>do</strong>s secretamente<br />

com a URSS, em respeito ao trata<strong>do</strong>.<br />

Por sua vez, duas semanas após a ocupação<br />

nazista, o Exército Vermelho<br />

adentraria em território polonês pelo<br />

Leste. <strong>Em</strong> 29 de setembro, Hitler e Stalin<br />

concluiriam a divisão da Polônia: a<br />

Alemanha anexava a região oeste ao<br />

III Reich e estabelecia um governo títere<br />

na região central <strong>do</strong> país, enquanto<br />

a URSS tomava a região leste, acrescentan<strong>do</strong><br />

ao Pacto, a cidade de Wilno,<br />

e a Lituânia, para si. <strong>Em</strong> seguida, o<br />

Exército Vermelho invadiu a Finlândia,<br />

enquanto a Alemanha iniciava seu<br />

avanço em direção a Paris.<br />

Para Stalin, o acor<strong>do</strong> foi bastante<br />

proveitoso, segun<strong>do</strong> os interesses da<br />

burocracia soviética. Além de parte<br />

da Polônia, pôde avançar seus <strong>do</strong>mínios<br />

para Lituânia, Estônia, Letônia<br />

e Moldávia, e obteve condições para<br />

a tomada de alguns pontos na Finlândia.<br />

Ao mesmo tempo, eximia-se<br />

de qualquer responsabilidade sobre<br />

o que classificou, inicialmente,<br />

como um conflito entre as potências<br />

capitalistas europeias.<br />

Historia<strong>do</strong>res simpáticos ao regime<br />

stalinista advogam em defesa <strong>do</strong> Pacto<br />

Molotov-Ribbentrop, argumentan<strong>do</strong>,<br />

entre outras coisas, que a URSS havia<br />

ganha<strong>do</strong> um tempo precioso para<br />

reorganizar e impulsionar o Exército<br />

Vermelho, antes de enfrentar a poderosa<br />

máquina de destruição nazista.<br />

No entanto, as consequências desse<br />

acor<strong>do</strong> foram desastrosas para milhões<br />

de trabalha<strong>do</strong>res europeus e<br />

poloneses, em particular, para as massas<br />

judaicas, pois permitiu que Hitler<br />

agisse livremente, sem a necessária<br />

oposição soviética a seus planos de<br />

conquista e destruição. E desarmou<br />

politicamente os trabalha<strong>do</strong>res russos<br />

e espalhou enorme confusão política<br />

Stalin e o ministro nazista Joachim von Ribbentrop.<br />

Foto tirada por Hoffmann. Fonte: Museu Histórico Alemão<br />

entre os trabalha<strong>do</strong>res da Europa e <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>. Foi uma traição política como<br />

poucas foram vistas no planeta.<br />

No entanto, as<br />

consequências<br />

desse acor<strong>do</strong><br />

foram<br />

desastrosas<br />

para milhões de<br />

trabalha<strong>do</strong>res<br />

europeus e<br />

poloneses,<br />

em particular,<br />

para as massas<br />

judaicas, pois<br />

permitiu que Hitler<br />

agisse livremente,<br />

sem a necessária<br />

oposição soviética<br />

a seus planos<br />

de conquista e<br />

destruição<br />

Aliás, a responsabilidade pelo fato<br />

de o Exército Vermelho não estar prepara<strong>do</strong><br />

para a guerra quan<strong>do</strong> ela estalou,<br />

recai sobre a própria burocracia soviética.<br />

A tendência rumo à guerra era<br />

cada vez mais evidente após a chegada<br />

de Hitler ao poder. Enquanto isso, na<br />

44


URSS, entre 1936 e 1938, organizou-se<br />

o Grande Expurgo de comunistas e de<br />

potenciais opositores políticos de Stalin.<br />

Toda a velha guarda bolchevique,<br />

que havia lidera<strong>do</strong> a revolução de 1917,<br />

foi dizimada, bem como grande parte<br />

<strong>do</strong> alto-coman<strong>do</strong> militar que havia<br />

saí<strong>do</strong> vitorioso na guerra civil contra<br />

o reacionário Exército Branco, entre<br />

1918-1921. Através <strong>do</strong>s Processos de<br />

Moscou, a casta burocrática que havia<br />

usurpa<strong>do</strong> o poder <strong>do</strong>s sovietes para<br />

benefício próprio, corta to<strong>do</strong> e qualquer<br />

laço que pudesse orientar as massas<br />

operárias de volta às suas tradições<br />

revolucionárias e se alça, ao mesmo<br />

tempo, como única e legítima representante<br />

dessas mesmas massas operárias.<br />

Essa etapa marca a vitória da<br />

reação termi<strong>do</strong>riana sobre a revolução<br />

de outubro e a concretização <strong>do</strong> regime<br />

ditatorial de bonapartismo proletário,<br />

sob a liderança de Josef Stalin.<br />

Assim, às vésperas da guerra, a<br />

URSS foi privada de suas principais<br />

lideranças políticas e militares.<br />

Três, <strong>do</strong>s cinco marechais soviéticos<br />

(Alexander Ilyich Yegorov, Vasily<br />

Blyukher e Mikhail Nikolayevich<br />

Tukhachevsky), e milhares de oficiais<br />

foram presos ou fuzila<strong>do</strong>s.<br />

“A aliança de Stalin com Hitler, que<br />

levantou o pano de fun<strong>do</strong> sobre a guerra<br />

mundial, levou diretamente à escravização<br />

<strong>do</strong> povo polonês. Foi uma<br />

consequência da debilidade da URSS e <strong>do</strong><br />

pânico <strong>do</strong> Kremlin frente à Alemanha. O<br />

único responsável por essa debilidade é o<br />

mesmo Kremlin, por sua política interna,<br />

que abriu um abismo entre a casta governante<br />

e o povo; por sua política exterior,<br />

que sacrificou os interesses da revolução<br />

mundial aos da camarilha stalinista” 1 .<br />

Aliás, a orientação de Stalin não era<br />

a de preparar a URSS para o combate<br />

contra a Alemanha. Pelo contrário,<br />

Stalin estava bastante satisfeito com a<br />

situação, até o início da Operação Barbarossa,<br />

a invasão nazista à URSS em<br />

junho de 1941. Devi<strong>do</strong> ao bloqueio econômico<br />

da Grã-Bretanha à Alemanha,<br />

Hitler buscava outros meios de conseguir<br />

petróleo, minérios e outras matérias-primas<br />

vitais para a indústria de<br />

guerra alemã. Além disso, como o Pacto<br />

Molotov-Ribbentrop proibia os soviéticos<br />

de fornecer auxílio aos países<br />

em guerra com os nazistas, o comércio<br />

entre a URSS e Alemanha prosperou!<br />

Os países chegaram a assinar <strong>do</strong>is<br />

acor<strong>do</strong>s de cooperação econômica, um<br />

em 1940 e outro em janeiro de 1941, e<br />

boa parte de suas exportações e importações<br />

dependiam desse comércio.<br />

Aliás, Stalin ignorou os avisos de<br />

um eminente ataque alemão à URSS,<br />

mesmo estan<strong>do</strong> de posse de informações<br />

obtidas por diversas fontes, incluídas<br />

as repassadas pela rede de espionagem<br />

soviética Orquestra Vermelha,<br />

liderada por Leopold Trepper. Ele classificou<br />

esses da<strong>do</strong>s como propaganda<br />

britânica e, por isso, a URSS foi pega de<br />

surpresa, e quase não opôs resistência<br />

nos primeiros dias, quan<strong>do</strong> se iniciou a<br />

invasão nazista.<br />

Percebe-se, assim, como os rumos<br />

iniciais da II Guerra Mundial e, portanto,<br />

o destino de milhões de pessoas,<br />

guardam íntima relação com as<br />

decisões tomadas pelos governos da<br />

Alemanha e da URSS. Evidentemente,<br />

como materialistas, enxergamos,<br />

nessas decisões, as motivações econômicas<br />

da burguesia imperialista alemã<br />

por um la<strong>do</strong> – que encontrou em<br />

Hitler e nos nazistas um meio para as<br />

alcançar. E, de outro la<strong>do</strong>, enxergamos<br />

os interesses de autopreservação<br />

<strong>do</strong>s privilégios da casta burocrática<br />

que <strong>do</strong>minava a URSS, sob coman<strong>do</strong><br />

de Stalin.<br />

Com relação às demais potências<br />

imperialistas ocidentais, não as isentamos<br />

da responsabilidade. Ao contrário,<br />

os vitoriosos da I Guerra Mundial<br />

impuseram uma política de saque à<br />

Alemanha e repartiram o globo terrestre<br />

de acor<strong>do</strong> com seus interesses.<br />

Porém, em vez de uma nova era de paz<br />

e prosperidade, acentuaram a exploração<br />

sobre os povos <strong>do</strong> planeta e novas e<br />

maiores contradições se avolumaram<br />

diante da crise econômica desencadeada<br />

a partir de 1929 e, mais uma vez, a<br />

humanidade foi empurrada para uma<br />

corrida armamentista e para uma disputa<br />

sanguinária por merca<strong>do</strong>s e áreas<br />

de influência, com o intuito de reverter<br />

a tendência à queda na taxa de lucro e<br />

(re)valorizar o capital financeiro.<br />

A II Guerra Mundial, com seu rastro<br />

de destruição e mortes, foi a consequência<br />

imediata <strong>do</strong> impasse histórico <strong>do</strong><br />

capitalismo, em sua fase imperialista,<br />

cujas relações sociais de produção,<br />

baseadas na propriedade privada <strong>do</strong>s<br />

meios de produção, chocam-se com o<br />

atual estágio de desenvolvimento das<br />

forças produtivas, transforman<strong>do</strong>-as<br />

em imensas forças destrutivas. Frente<br />

a uma nova crise de superprodução, a<br />

“solução” encontrada pelas principais<br />

potências imperialistas foi ir à guerra<br />

para destruir capital alheio em benefício<br />

de seu próprio capital, e redefinir<br />

os contornos <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> mundial.<br />

Uma guerra inter-imperialista de saque<br />

e rapina, que transformou o mun<strong>do</strong><br />

num mar de sangue operário, como<br />

nunca se tinha visto.<br />

Nessa guerra, que se tornou inevitável<br />

frente ao papel nefasto que<br />

desempenhou a III Internacional,<br />

fossilizada burocraticamente a partir<br />

de Moscou, milhões de vidas foram<br />

sacrificadas e um destino particularmente<br />

cruel se abateu sobre os principais<br />

alvos da ideologia nazista: os<br />

trabalha<strong>do</strong>res judeus.<br />

Um judeu e uma filha no gueto de Varsóvia<br />

Foto: Ludwig Knobloch<br />

Nazismo x judeus<br />

Após desmoralizar e esmagar as<br />

organizações políticas e sindicais da<br />

classe trabalha<strong>do</strong>ra e chegar ao poder,<br />

Hitler começa a transformar sua<br />

propaganda ideológica em política de<br />

Esta<strong>do</strong> e, portanto, começa a transformar<br />

o antissemitismo em uma<br />

questão de segurança pública, em<br />

prol de uma suposta superioridade<br />

racial “ariana”. Essa “raça superior”<br />

deveria se desvencilhar, por to<strong>do</strong>s os<br />

meios, de todas as outras “raças inferiores”<br />

para construir uma nação<br />

“pura”, o III Reich alemão. Implementou-se,<br />

por exemplo, to<strong>do</strong> um sistema<br />

pseu<strong>do</strong>científico, basea<strong>do</strong> na eugenia<br />

para: a) esterilizar milhares de pessoas<br />

consideradas depravadas, como os<br />

homoafetivos, ou incorrigíveis, como<br />

os criminosos habituais, b) aplicar<br />

eutanásia em i<strong>do</strong>sos senis, <strong>do</strong>entes<br />

irrecuperáveis e em alguns casos de<br />

demência. Depois, no transcurso da<br />

guerra, simplesmente deixava-se<br />

morrer de fome ou organizou-se o<br />

extermínio <strong>do</strong>s indesejáveis, como as<br />

crianças com deficiência intelectual<br />

(4 mil) que estavam acolhidas em escolas<br />

especiais e sanatórios, mortos<br />

por asfixia de monóxi<strong>do</strong> de carbono<br />

em caminhões adapta<strong>do</strong>s. <strong>Em</strong> seguida,<br />

os considera<strong>do</strong>s loucos: 70.273 por<br />

gás, 120 mil por inanição. O encarceramento<br />

e o extermínio também<br />

possuíam, óbvio, “razões ideológicas”,<br />

pois qualquer pessoa considerada<br />

comunista ou socialista poderia ser<br />

punida com a morte.<br />

Evidentemente, na linha de frente<br />

das “raças inferiores”, o regime nazista<br />

estabeleceu que o inimigo interno<br />

número um era o judeu! Para a classe<br />

<strong>do</strong>minante alemã, tratava-se de<br />

45


dividir para reinar. Somente sobre a<br />

base da exploração mais brutal de um<br />

amplo setor da sociedade, seria possível<br />

centralizar o poder e reordenar o<br />

país sob o impulso da indústria bélica.<br />

Inversamente, o avanço da repressão,<br />

expulsão e escravização das massas<br />

judaicas, da expropriação da pequena<br />

burguesia judaica e da extorsão e<br />

chantagem sobre a burguesia judaica,<br />

fortalecia a tendência à centralização<br />

política e ao estabelecimento de uma<br />

ditadura policial-militar.<br />

Uma série de medidas, decretos e<br />

leis, como as famigeradas Leis de Nuremberg,<br />

transformaram os judeus,<br />

bem como os ciganos e negros, em<br />

párias sociais, pessoas sem direitos<br />

civis, sem propriedades ou posses,<br />

excluí<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s serviços públicos e impedi<strong>do</strong>s<br />

de estudar, empregar-se em<br />

estabelecimentos “arianos” ou de se<br />

casar com eles.<br />

Para pôr em prática essas medidas e<br />

sufocar qualquer possibilidade de oposição<br />

interna, o regime inicia a construção<br />

de campos de concentração,<br />

que combinavam o pior das práticas<br />

prisionais com o mais penoso trabalho<br />

força<strong>do</strong>. Havia também os campos de<br />

trânsito, onde milhares de refugia<strong>do</strong>s<br />

viviam acampa<strong>do</strong>s, esperan<strong>do</strong> por<br />

uma decisão de para onde seriam envia<strong>do</strong>s.<br />

O primeiro campo de concentração<br />

a ser construí<strong>do</strong> foi em Dachau,<br />

na Alemanha, já em 1933. E, durante a<br />

guerra, por toda a extensão <strong>do</strong> III Reich<br />

e <strong>do</strong>s países ocupa<strong>do</strong>s, dezenas de<br />

campos como esse foram organiza<strong>do</strong>s<br />

e milhões de pessoas foram submetidas<br />

a eles. O passo seguinte, nessa política,<br />

seria a construção <strong>do</strong>s campos de<br />

extermínio.<br />

Nessa escalada de violência, porém,<br />

é preciso voltar um pouco e lembrar<br />

da Noite <strong>do</strong>s Cristais, ocorrida<br />

em novembro de 1938, na Alemanha,<br />

assim chamada pelo brilho <strong>do</strong>s cacos<br />

de vidros das vitrines quebradas em<br />

meio às luzes noturnas. Na verdade,<br />

tratou-se de um brutal e gigantesco<br />

pogrom 2 , no qual cerca de 30 mil<br />

judeus foram presos e milhares de<br />

empresas, residências e sinagogas<br />

judaicas foram atacadas.<br />

Não à toa, portanto, entre 1933 e<br />

1939, milhares de judeus são força<strong>do</strong>s a<br />

emigrar da Alemanha, Áustria e Tchecoslováquia.<br />

A maioria partiu em direção<br />

à Polônia, que possuía a maior população<br />

europeia de judeus na época.<br />

Porém, também lá não estariam a salvos<br />

da sanha nazista. Pelo contrário.<br />

Após a invasão, os nazistas dividiram<br />

as cidades e regiões polonesas em<br />

duas áreas: as situadas mais a oeste<br />

foram anexadas ao Reich, as centrais<br />

ficaram sob administração de um<br />

governo geral títere <strong>do</strong>s alemães, incluin<strong>do</strong><br />

a capital <strong>do</strong> país, a cidade de<br />

Varsóvia. Porém, aos judeus, não foi<br />

permiti<strong>do</strong> viver em nenhuma dessas<br />

áreas. Cada vez mais, a segregação oficial<br />

forçou os judeus a se confinarem<br />

em guetos.<br />

Da mesma forma que na Alemanha,<br />

mas de maneira mais acelerada<br />

e brutal, uma série de decretos e medidas<br />

de segregação foram impostas<br />

à população judaica residente em<br />

Varsóvia, começan<strong>do</strong> pela obrigatoriedade<br />

<strong>do</strong>s judeus usarem uma faixa<br />

branca com a estrela de Davi nas<br />

mangas de suas roupas, passan<strong>do</strong> por<br />

demissões, perda de benefícios sociais<br />

e previdenciários, exclusão <strong>do</strong>s<br />

serviços públicos, confisco de posses<br />

e propriedades e in<strong>do</strong> até o ultimato<br />

para que to<strong>do</strong>s os judeus se mudassem<br />

para uma pequena área destinada<br />

exclusivamente a eles. A partir<br />

daquele momento, nenhum judeu<br />

poderia viver ou trabalhar fora daquela<br />

área delimitada. Até que, para<br />

cumprir a ordem, em 16 de novembro<br />

de 1940, o bairro foi fecha<strong>do</strong> por muros<br />

e to<strong>do</strong> o trânsito de merca<strong>do</strong>rias<br />

e pessoas foi proibi<strong>do</strong> e submeti<strong>do</strong> à<br />

vigilância constante. Começava assim<br />

a história <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia. O<br />

mesmo padrão foi a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> em outras<br />

regiões polonesas e assim outros guetos<br />

menores, mas não menos hostis,<br />

também foram cria<strong>do</strong>s. Alguns milhares<br />

de judeus conseguiram emigrar<br />

a tempo, mas, para a maioria<br />

da população, não houve a menor<br />

possibilidade de fuga.<br />

Morte e vida no Gueto de Varsóvia<br />

À segregação social, seguiu-se o<br />

confinamento:<br />

“O gueto efetivo sofria com uma densidade<br />

populacional de quase 80 mil habitantes<br />

por quilômetro quadra<strong>do</strong>, 30%<br />

<strong>do</strong>s habitantes de Varsóvia tinham que<br />

se apinhar em 2,4% da área da cidade.<br />

O número oficial da população <strong>do</strong> gueto<br />

variava: 380.740 em janeiro de 1941;<br />

431.874 em julho de 1941; cerca de 400<br />

mil em maio de 1942” 3 .<br />

Outra fonte afirma que, no primeiro<br />

semestre de 1942, a média de<br />

pessoas por aposento era de 13, enquanto<br />

a média nos arre<strong>do</strong>res mais<br />

pobres de antes da guerra era de 7<br />

pessoas por aposento 4 .<br />

Os judeus na fila durante a sua mudança para o gueto de Varsóvia no final de 1940<br />

Archiwum Akt Nowych (antigos Arquivos <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunista), cortesia de USHMM Photo Archives.<br />

46


Do confinamento, adveio a fome e<br />

as <strong>do</strong>enças.<br />

“Quanto ao número de calorias, os poloneses<br />

ocupavam o penúltimo lugar na<br />

distribuição de cartões de racionamento<br />

alimentar e os judeus o último. Damos<br />

abaixo um quadro da distribuição de calorias<br />

segun<strong>do</strong> princípios raciais, no segun<strong>do</strong><br />

semestre de 1941: em Varsóvia, os<br />

alemães recebiam 2.310 calorias por dia;<br />

estrangeiros 1790 calorias, poloneses 634<br />

e judeus 184.<br />

No preço por calorias, a proporção era<br />

oposta. Quanto menor o número de calorias<br />

aquinhoa<strong>do</strong> a uma determinada<br />

categoria da população, tanto mais eleva<strong>do</strong><br />

o preço da caloria. O preço médio por<br />

caloria era: para os alemães 0,3 zloty; estrangeiros<br />

0,8 zloty; poloneses 2,6 zlotys;<br />

judeus 5,9 zlotys por caloria” 5 .<br />

Porém, nem to<strong>do</strong> o gueto sofria de<br />

fome.<br />

“Existiam chocantes diferenças sociais;<br />

um jornal clandestino calculava ser a<br />

seguinte a proporção de esfomea<strong>do</strong>s e<br />

famintos: 50% da população morrem literalmente<br />

de fome; 30% passam fome<br />

de maneira “normal”; 15% raramente<br />

têm o que comer. Apenas uma elite vivia<br />

na abastança (...). Para essa elite, foram<br />

trazi<strong>do</strong>s ostensivamente, em fevereiro de<br />

1942, vinte mil litros de aguardente. No<br />

mesmo mês, foram registra<strong>do</strong>s oficialmente<br />

no gueto 416 mil judeus, 80% <strong>do</strong>s<br />

quais eram indigentes famintos” 6 .<br />

“Segun<strong>do</strong> um cronista <strong>do</strong> gueto, uns 20<br />

mil formavam uma elite com dinheiro.<br />

<strong>Em</strong> seus lares, ainda se podia encontrar<br />

bastante comida na mesa e mais alimentos<br />

armazena<strong>do</strong>s para uso futuro.<br />

Tais pessoas já eram abastadas antes da<br />

guerra, outros acumularam dinheiro com<br />

contraban<strong>do</strong> em vasta escala para o gueto.<br />

Outros ainda eram <strong>do</strong>nos de empresas<br />

que, de um mo<strong>do</strong> legal quanto ilegal, continuavam<br />

a funcionar no gueto e eram sócios<br />

em toda a espécie de negócios secretos,<br />

de alemães e poloneses. Os espertalhões <strong>do</strong><br />

gueto, que só haviam atingi<strong>do</strong> esse status<br />

durante sua permanência ali, excediam-se<br />

numa vida de prazeres e exageros, numa<br />

atmosfera irresponsável de “comam e bebam,<br />

pois amanhã morreremos”. (...)<br />

Ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s bem alimenta<strong>do</strong>s, que constituíam<br />

uma pequena porcentagem da<br />

população, havia uns 200 mil numa<br />

situação intermediária, gente que tinha<br />

conserva<strong>do</strong> parte de suas posses, ou que<br />

tinha algum tipo de trabalho temporário,<br />

seus próprios apartamentos e quantidades<br />

limitadas de alimentos básicos. O status<br />

desses “classe-médias” era medi<strong>do</strong> no<br />

tempo. Alguns podiam se manter à tona<br />

por muito meses, mas no fim suas posses<br />

minguavam e eles iam declinan<strong>do</strong> até o<br />

status das massas famintas.<br />

A multidão famélica era de mais de 200<br />

mil. Para eles, cada dia era uma batalha<br />

por uma côdea de pão. A cada mês milhares<br />

perdiam suas forças e esperanças na<br />

luta para sobreviver. Na aparência, assemelhavam-se<br />

a esqueletos humanos, com<br />

os ossos se salientan<strong>do</strong> em seus rostos cinzentos<br />

e encova<strong>do</strong>s. Espiritualmente, estavam<br />

mortos; seus olhos haviam perdi<strong>do</strong><br />

toda expressão ou contato com a realidade.<br />

Eles eram os mortos vivos, indiferentes<br />

a tu<strong>do</strong> e sucumbin<strong>do</strong> ao seu destino” 7 .<br />

Com a grande maioria da população<br />

viven<strong>do</strong> sem o mínimo de condições<br />

sanitárias e de moradia e com a saúde<br />

debilitada pela fome, o tifo e outras <strong>do</strong>enças<br />

adquiriram caráter epidêmico:<br />

“A fome e a <strong>do</strong>ença levaram cerca de 100<br />

mil pessoas entre o início da guerra e o mês<br />

de julho de 1942. Apenas no ano de 1941,<br />

10% da população <strong>do</strong> gueto – 43 mil pessoas<br />

– morreu. No mesmo perío<strong>do</strong> – de<br />

novembro de 1940 a julho de 1942 – os<br />

alemães empurraram para o gueto mais<br />

de 150 mil refugia<strong>do</strong>s” 8 .<br />

A miséria se abatia com força sobre<br />

os trabalha<strong>do</strong>res.<br />

“As principais vítimas desse novo e trágico<br />

esta<strong>do</strong> de coisas era o operário. Idêntica<br />

era a situação da maioria <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res<br />

intelectuais. Para a massa de operários<br />

e artesãos, não havia trabalho.<br />

Segun<strong>do</strong> uma estatística alemã <strong>do</strong> ano de<br />

1941, existiam no gueto 85 mil operários<br />

especializa<strong>do</strong>s e artesãos, 18 mil operários<br />

sem qualquer especialização e 7 mil<br />

serventes. O número total de operários e<br />

artesãos era, pois, de 110 mil. Ao mesmo<br />

tempo, como relata a já mencionada fonte<br />

Polícia judaica no Gueto de Varsóvia<br />

Ullstein bild/Getty Images<br />

judaica, em to<strong>do</strong> o gueto 27 mil pessoas<br />

exerciam atividades profissionais. Este<br />

número compreendia também negociantes,<br />

pequenos proprietários de lojas, funcionários<br />

<strong>do</strong> Conselho Judaico e de outros<br />

cargos públicos” 9 .<br />

Percebe-se, portanto, que o desemprego<br />

se alastrava e reforçava o quadro<br />

de ruína social da população <strong>do</strong><br />

gueto. Esse imenso exército industrial<br />

de reserva e a situação geral de guerra<br />

desvalorizaram, de maneira abissal, o<br />

valor da força de trabalho no gueto.<br />

“Os ‘felizar<strong>do</strong>s’ que encontravam trabalho<br />

nas oficinas ou nas fábricas pertencentes<br />

a capitalistas alemães eram<br />

condena<strong>do</strong>s ao mais desumano trabalho<br />

escravo. Operários só raramente encontravam<br />

trabalho nessas fábricas porque<br />

os industriais nazistas empregavam<br />

pessoas que traziam máquinas próprias.<br />

Pre<strong>do</strong>minavam, pois, os artífices e artesãos<br />

que trabalhavam por conta própria.<br />

Por dia de serviço de 10 a 11 horas,<br />

das oito da manhã às sete da noite, um<br />

operário altamente especializa<strong>do</strong>, trabalhan<strong>do</strong><br />

de empreitada, em serviços <strong>do</strong>s<br />

mais pesa<strong>do</strong>s, ganhava nominalmente<br />

de quatro a sete zlotys. Na realidade,<br />

porém, após o desconto de considerável<br />

quantia por <strong>do</strong>is pratos de sopa aguada,<br />

restavam-lhe de 2,50 a 5 zlotys. Ao operário<br />

de categoria inferior, restavam de<br />

1,50 a 2 zlotys diários.<br />

Os preços vigentes no merca<strong>do</strong> livre,<br />

para o primeiro semestre de 1942, demonstram<br />

de mo<strong>do</strong> eloquente qual era<br />

o real valor aquisitivo desse salário. Um<br />

quilo de pão preto custava 10 – 12 zlotys;<br />

pão branco, 20 – 25 zlotys; um quilo de<br />

gordura, 250 zlotys.<br />

O salário de um trabalha<strong>do</strong>r braçal era<br />

de 3,20 zlotys por dia. Se alguma coisa se<br />

47


perdia no decorrer <strong>do</strong> trabalho, o emprega<strong>do</strong>r<br />

descontava <strong>do</strong> operário um zloty<br />

da diária” 10 .<br />

Diante dessa situação macabra, as<br />

autoridades de ocupação chegaram<br />

a pensar, por um tempo, que o gueto<br />

acabaria por liquidar-se a si próprio.<br />

O governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> distrito de Varsóvia,<br />

Ludwig Fischer, formulou, cinicamente,<br />

a política <strong>do</strong> extermínio pela<br />

fome: “Os judeus morrerão à míngua<br />

e de toda a questão judaica só restará<br />

um cemitério”.<br />

Para administrar a miséria no<br />

bairro, os nazistas delegaram algumas<br />

funções para um Conselho Judaico,<br />

um órgão composto por membros<br />

da elite judaica, que tinham a<br />

“boa intenção” de mitigar os problemas<br />

sociais e negociar com as autoridades,<br />

mas, de fato, formavam um<br />

órgão de colaboração com os ocupantes<br />

e de manutenção da ordem no<br />

gueto. Ele tinha a função de administrar<br />

e distribuir a pouquíssima quantidade<br />

oficial de alimentos destinada<br />

ao gueto para os refeitórios públicos,<br />

bem como os demais limita<strong>do</strong>s insumos<br />

aos serviços médico-hospitalares,<br />

postal, funerário e de limpeza<br />

pública. Porém, sua principal atribuição,<br />

sem dúvida, era organizar e<br />

suprir a famigerada e, cada vez mais<br />

corrupta, Polícia Judaica.<br />

O Conselho Judaico cobrava impostos<br />

para custear suas atividades, mas<br />

sem levar em consideração a renda e a<br />

situação financeira <strong>do</strong>s contribuintes.<br />

“Cada mora<strong>do</strong>r <strong>do</strong> gueto, o diretor de fábrica<br />

e o operário, o rico agiota e o desemprega<strong>do</strong><br />

em vias de morrer de inanição,<br />

to<strong>do</strong>s pagavam os mesmos tributos, na<br />

mesma altura, segun<strong>do</strong> a seguinte tabela<br />

mensal: (confira abaixo).<br />

Introduziu-se, além disso, um imposto<br />

para medicamentos. O preço de cada<br />

remédio era acresci<strong>do</strong> de 40%, aumento<br />

esse que afluía à caixa <strong>do</strong> Conselho Judaico.<br />

Além dessas, havia outras taxas e<br />

contribuições obrigatórias” 11 .<br />

Percebe-se, assim, que o peso da tributação<br />

recaía de maneira muito mais<br />

pesada sobre as costas magras da população<br />

mais pobre, <strong>do</strong> que sobre a elite<br />

rica bem alimentada.<br />

Além <strong>do</strong> Conselho Judaico, existiam<br />

outros órgãos coletivos, como o Aleynhilf<br />

e os Comitês Domiciliares.<br />

48<br />

Vítimas <strong>do</strong> campo de concentração de<br />

Buchenwald(Photo by H Miller/Getty Images)<br />

Inicialmente, autônomo, e depois,<br />

vincula<strong>do</strong> formalmente ao Conselho<br />

Judaico, mas buscan<strong>do</strong> preservar<br />

certa independência, encontra-se o<br />

Aleynhilf, uma Sociedade de Auxílio<br />

Mútuo, responsável por algumas<br />

ações assistenciais e educacionais<br />

voltadas, particularmente, às crianças<br />

órfãs e refugia<strong>do</strong>s recém-chega<strong>do</strong>s.<br />

Clandestinamente, por trás<br />

dessa estrutura, funcionava o arquivo<br />

OynegShabbos, sob direção<br />

<strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r e militante <strong>do</strong> Poalei<br />

Sion de Esquerda, <strong>Em</strong>anuel Ringelblum.<br />

Esse professor buscava socorrer,<br />

financeiramente, jornalistas,<br />

escritores, intelectuais e estudantes,<br />

encomendan<strong>do</strong> estu<strong>do</strong>s, pesquisas<br />

e entrevistas sobre os mais varia<strong>do</strong>s<br />

aspectos da vida e da sociedade<br />

no gueto de Varsóvia e organizan<strong>do</strong><br />

coleta de da<strong>do</strong>s e estatísticas. Aliás,<br />

muitas dessas informações se transformavam<br />

em notícias, que eram<br />

publicadas através da imprensa de<br />

organizações políticas clandestinas.<br />

A rede Aleynhilf recebia contribuições<br />

de uma cooperativa de crédito<br />

organizada por judeus americanos,<br />

porém, a partir da entrada <strong>do</strong>s EUA na<br />

guerra, contra a Alemanha, tais recursos<br />

se tornaram cada vez mais escassos<br />

e suas atividades, públicas e clandestinas,<br />

passaram a depender da contribuição<br />

<strong>do</strong>s próprios mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />

gueto e, portanto, dadas as condições<br />

gerais, diminuíram bastante de intensidade<br />

e extensão, chegan<strong>do</strong> quase a<br />

desaparecer.<br />

Por fim, ao se deparar com a iminente<br />

destruição <strong>do</strong> Gueto pelos nazistas,<br />

Ringelblum ordenou que to<strong>do</strong> o<br />

material fosse enterra<strong>do</strong>. O historia<strong>do</strong>r<br />

não conseguiu escapar da morte, mas,<br />

ao final da guerra, sobreviventes <strong>do</strong><br />

Holocausto 12 que colaboraram com<br />

o Arquivo, fizeram campanha pela<br />

descoberta desse material e conseguiram<br />

encontrar boa parte <strong>do</strong> acervo<br />

soterra<strong>do</strong> sob os escombros e ruínas<br />

<strong>do</strong> gueto e armazena<strong>do</strong>s em latões de<br />

leite e caixas de madeira. Esse material<br />

serve, até hoje, como valiosa fonte historiográfica<br />

sobre o Gueto de Varsóvia,<br />

os crimes cometi<strong>do</strong>s pelos nazistas, a<br />

atuação <strong>do</strong> Conselho Judaico e sua polícia,<br />

e sobre o cotidiano da população.<br />

Já os Comitês Domiciliares foram<br />

outro tipo de iniciativa de organização<br />

coletiva, de caráter independente<br />

e popular. Surgiram logo nos primeiros<br />

meses de existência <strong>do</strong> Gueto e tiveram<br />

seu auge entre 1940 e primeiros<br />

meses de 1942. Inicialmente, nasceram<br />

para tentar organizar os caóticos<br />

e superlota<strong>do</strong>s edifícios residenciais.<br />

Porém, como as demandas por to<strong>do</strong><br />

tipo de serviço público, assistencial<br />

e comunitário somente cresciam,<br />

os Comitês Domiciliares passaram<br />

a se reunir para fazer exigências ao<br />

Conselho Judaico.<br />

Estima-se que existiram cerca de<br />

mil e quinhentos a <strong>do</strong>is mil Comitês<br />

Domiciliares, integran<strong>do</strong> cerca de seis<br />

a oito mil voluntários, que representavam<br />

milhares de mora<strong>do</strong>res. Evidentemente,<br />

havia uma divisão de classes.<br />

Os Comitês das áreas residenciais proletárias<br />

eram mais ativos em relação às<br />

suas reivindicações, enquanto outras,<br />

de áreas mais abastadas, procuravam<br />

colaborar com o Conselho Judaico e se<br />

recusaram a criar um fun<strong>do</strong> comum<br />

para to<strong>do</strong>s os mora<strong>do</strong>res.<br />

Porém, esse trabalho comunitário<br />

se deteriorou com o avanço da fome,<br />

das <strong>do</strong>enças e das humilhações provocadas<br />

pela Polícia Judaica e Polonesa, a<br />

serviço <strong>do</strong>s nazistas. Quanto maior era<br />

a necessidade da luta diária pela sobrevivência,<br />

menor era a adesão, o apoio<br />

e o trabalho em comum nos Comitês<br />

Domiciliares e a articulação entre eles.<br />

Além disso, com frequência, a Polícia<br />

Judaica exigia suborno <strong>do</strong>s Comitês<br />

e aplicava “castigos” nas áreas que se<br />

recusavam a colaborar.<br />

Um <strong>do</strong>s “castigos” consistia em capturar<br />

mora<strong>do</strong>res para enviá-los a campos<br />

de trabalho força<strong>do</strong>. De tempos<br />

em tempos, os nazistas impunham ao<br />

Conselho Judaico uma cota de pessoas<br />

que deveriam se apresentar para trabalhar<br />

em obras e operações das autoridades<br />

policiais ou militares. Se a cota<br />

não fosse cumprida, os nazistas ameaçavam<br />

matar a população, na mesma<br />

proporção, como represália, ou ameaçavam<br />

a família <strong>do</strong>s dirigentes judaicos.<br />

Nas primeiras convocações, os


trabalha<strong>do</strong>res se apresentaram voluntariamente,<br />

tamanho era o desespero<br />

por um pedaço de pão. Porém, quan<strong>do</strong><br />

as primeiras equipes voltaram,<br />

após meses viven<strong>do</strong> nesses campos<br />

de trabalho, toda a população tomou<br />

conhecimento <strong>do</strong> que se tratava.<br />

Boa parte <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res sequer<br />

voltou. Morreram vítimas <strong>do</strong> trabalho<br />

desumano a que foram submeti<strong>do</strong>s, ou<br />

de frio, fome, <strong>do</strong>entes, ou ainda devi<strong>do</strong><br />

aos constantes espancamentos, torturas<br />

e execuções. Os que conseguiram<br />

retornar, estavam inváli<strong>do</strong>s física e<br />

emocionalmente, aleija<strong>do</strong>s ou insanos.<br />

A partir daí, a cada convocação, os<br />

trabalha<strong>do</strong>res buscavam se esconder e<br />

a Polícia Judaica se encarregava de “recrutá-los”.<br />

O me<strong>do</strong> de que seus entes<br />

queri<strong>do</strong>s, parentes e vizinhos fossem<br />

manda<strong>do</strong>s para esses campos era tão<br />

grande, que a solidariedade entre os<br />

Comitês Domiciliares se desfazia, e<br />

quem conseguia subornar os agentes<br />

policiais, assim fazia.<br />

Através desse e outros méto<strong>do</strong>s de<br />

chantagem, suborno, castigo e retaliação<br />

da Polícia Judaica, em nome <strong>do</strong><br />

Conselho Judaico e, em meio à dificuldade<br />

diária de encontrar alimentos, a<br />

atuação conjunta <strong>do</strong>s Comitês Domiciliares<br />

também se reduziu e, em alguns<br />

casos, limitou-se a organizar eventos<br />

recreativos ou religiosos.<br />

Entre a população <strong>do</strong> gueto também<br />

se reuniam e agiam as organizações<br />

políticas clandestinas, de esquerda<br />

e direita. Mas é à esquerda que<br />

encontraremos os grupos mais ativos<br />

e militantes contra a ocupação nazista,<br />

que buscavam organizar os trabalha<strong>do</strong>res<br />

e os jovens <strong>do</strong> gueto sob as<br />

mais diferentes perspectivas e plataformas<br />

políticas.<br />

A principal força política de esquerda<br />

entre os trabalha<strong>do</strong>res judeus<br />

era o Bund, a União Judaica <strong>do</strong>s<br />

Trabalha<strong>do</strong>res da Lituânia, Polônia e<br />

Rússia, ou União Geral <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res<br />

Judeus. Era um parti<strong>do</strong> de caráter<br />

socialista que se distinguia <strong>do</strong>s demais<br />

agrupamentos socialistas desses<br />

países, porque se propunha a organizar<br />

os trabalha<strong>do</strong>res judeus enquanto<br />

parte de um povo específico, o povo<br />

judeu. Acreditava que o judaísmo era<br />

uma cultura secular que deveria ser<br />

preservada com a conquista de direitos<br />

para o povo e os trabalha<strong>do</strong>res judeus.<br />

Sua principal palavra de ordem<br />

era algo como “to<strong>do</strong>s os direitos aos<br />

trabalha<strong>do</strong>res judeus, onde quer que<br />

eles vivam”. Uma concepção, portanto,<br />

antissionista. O Bund entendia que<br />

a emigração para a Palestina para formar<br />

um esta<strong>do</strong> judeu era uma forma<br />

de escapismo, uma maneira de tentar<br />

evitar que os judeus encarassem, de<br />

frente, seus próprios problemas, fosse<br />

na Polônia, na Lituânia ou em outro<br />

país, e argumentava que a conexão<br />

entre to<strong>do</strong>s os judeus da “diáspora”,<br />

sua identidade, era a cultura. Defendia<br />

inclusive a educação <strong>do</strong> idioma<br />

ídiche, língua falada por milhares de<br />

judeus que viviam na Europa, ao contrário<br />

da maioria <strong>do</strong>s sionistas que se<br />

dedicavam a reviver o hebraico como<br />

língua nacional.<br />

Entre os trabalha<strong>do</strong>res e jovens judeus,<br />

o comunismo exercia também<br />

forte atração. A revolução russa de<br />

1917 pôs fim aos pogroms <strong>do</strong> czarismo<br />

e da burguesia grão-russa, condenou<br />

o antissemitismo e garantiu paz, pão<br />

e terra. Por esses e outros motivos, em<br />

1921, o setor russo <strong>do</strong> Bund rachou e a<br />

maior parte de seus militantes aderiu<br />

ao Parti<strong>do</strong> Comunista.<br />

A força motriz <strong>do</strong>s comunistas era<br />

a concepção de que to<strong>do</strong>s os trabalha<strong>do</strong>res,<br />

independente da nacionalidade,<br />

gênero, religião, ou qualquer<br />

outra distinção, deveriam se unir num<br />

único propósito: a revolução socialista<br />

e a edificação de uma sociedade sem<br />

explora<strong>do</strong>s nem explora<strong>do</strong>res, base<br />

para o fim de toda e qualquer opressão.<br />

E, assim, vinculavam a luta contra as<br />

opressões à luta pela transformação<br />

da sociedade. Combatiam o antissemitismo<br />

e defendiam o direito <strong>do</strong>s judeus<br />

professarem sua fé e suas tradições, e<br />

alertavam que, também entre a comunidade<br />

judaica, havia uma divisão<br />

de classes, e que os operários judeus<br />

não deveriam se unir aos burgueses<br />

judeus, e sim, aos seus irmãos de classe,<br />

na Rússia e nos outros países, para,<br />

juntos, acabar com a exploração a que<br />

eram to<strong>do</strong>s submeti<strong>do</strong>s.<br />

Esse exemplo ficou grava<strong>do</strong> na<br />

consciência de milhões de trabalha<strong>do</strong>res<br />

e jovens na Europa <strong>do</strong> Leste, que viviam<br />

persegui<strong>do</strong>s e humilha<strong>do</strong>s, pelo<br />

simples fato de serem judeus, enquanto<br />

seus pares, na URSS, viviam livres.<br />

Porém, com a degeneração da revolução<br />

soviética e o advento de uma casta<br />

burocrática na URSS, a Internacional<br />

Comunista foi transformada num<br />

aparato de cunho policial para atender<br />

aos interesses dessa camada <strong>do</strong>minante,<br />

e isso teve sérios efeitos sobre a<br />

organização comunista que existia na<br />

Polônia e, portanto, sobre seu potencial<br />

de se ligar às massas operárias, incluin<strong>do</strong><br />

as de origem judaica. A quase<br />

total destruição <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunista<br />

Alemão pelo regime nazista também<br />

afetou, sobremaneira, os comunistas<br />

poloneses. Para piorar o quadro, a divisão<br />

da Polônia, com base num acor<strong>do</strong><br />

de gabinete entre os líderes nazistas<br />

e stalinistas, fez desaparecer o antigo<br />

Parti<strong>do</strong> Comunista Polonês, entre 1939<br />

e 1941, perío<strong>do</strong>, no qual, durou o Pacto<br />

Molotov-Ribbentrop.<br />

Somente em 1942 ele será reconstituí<strong>do</strong>,<br />

com o nome de Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res<br />

Poloneses (PPR, na sigla<br />

em polonês) e, além de atuar na clandestinidade,<br />

impulsionava um setor<br />

guerrilheiro e partisan, chama<strong>do</strong> de<br />

Milícia Popular. <strong>Em</strong> pouco tempo, o<br />

PPR também conseguirá estabelecer<br />

células no Gueto de Varsóvia.<br />

A força motriz<br />

<strong>do</strong>s comunistas<br />

era a concepção<br />

de que to<strong>do</strong>s os<br />

trabalha<strong>do</strong>res,<br />

independente da<br />

nacionalidade,<br />

gênero, religião,<br />

ou qualquer<br />

outra distinção,<br />

deveriam se<br />

unir num único<br />

propósito: a<br />

revolução<br />

socialista e a<br />

edificação<br />

de uma<br />

sociedade sem<br />

explora<strong>do</strong>s nem<br />

explora<strong>do</strong>res,<br />

base para o<br />

fim de toda<br />

e qualquer<br />

opressão<br />

Além <strong>do</strong> Bund e <strong>do</strong>s comunistas,<br />

havia ainda uma série de organizações<br />

sionistas, particularmente, de organizações<br />

juvenis. Entre elas, podemos<br />

citar o HashomerHatzair, o Dror, o Poalei<br />

Sion e o Poalei Sion de Esquerda.<br />

Apesar de suas divergências, o sionismo<br />

é uma corrente política que prega<br />

a emigração e a colonização judaica da<br />

Palestina. A ala esquerda desse movimento<br />

procura incutir demandas<br />

sociais, trabalhistas e até socialistas,<br />

mas compreendem, como os demais<br />

49


Solda<strong>do</strong>s alemães deportam Judeus que morrerão na câmara de gás em um campo de concentração<br />

Foto: MDR/ARD Degeto<br />

sionistas, que os judeus formam um<br />

povo, e que esse povo teria direito a<br />

uma nação independente. E passam<br />

a reivindicar a Palestina como território<br />

propício e, hipoteticamente, de<br />

direito, para se construir um esta<strong>do</strong><br />

judeu, portanto, religioso, como é o Irã<br />

desde 1979, por exemplo. Esta<strong>do</strong> judeu,<br />

aliás, que será cria<strong>do</strong> no pós-guerra<br />

com o acor<strong>do</strong> das grandes potências<br />

capitalistas e a URSS.<br />

A “solução final” e o Bloco Antifascista<br />

Nos círculos dirigentes nazistas,<br />

a política, em relação aos judeus, era<br />

tema recorrente. Com o avanço à<br />

Leste da Wehrmacht (forças armadas<br />

alemãs), além da selvageria contra<br />

a população <strong>do</strong>s territórios ocupa<strong>do</strong>s<br />

da URSS, constituíram-se novos<br />

guetos e campos de concentração na<br />

Lituânia e Ucrânia e houve vários<br />

episódios de assassinatos, em massa,<br />

de judeus.<br />

A cidade de Vilnius, por exemplo,<br />

atual capital da Lituânia, foi conquistada<br />

pelos alemães em 24 de<br />

junho de 1941 e nela viviam 57 mil<br />

judeus, constituin<strong>do</strong> um terço da<br />

população local. Seis meses depois,<br />

sobreviviam apenas 20 mil, pois o<br />

restante havia si<strong>do</strong> dizima<strong>do</strong>, em<br />

particular, por homens da Einsatzgruppen,<br />

uma unidade móvel<br />

50<br />

de matança que acompanhava o<br />

avanço alemão.<br />

Inicialmente, essas falanges assassinas<br />

estavam vinculadas à Wehrmacht,<br />

mas, a partir da campanha antissoviética,<br />

foram subordinadas às SS, a polícia<br />

nazista, e recebiam ordens para<br />

aniquilar to<strong>do</strong>s os judeus <strong>do</strong>s territórios<br />

ocupa<strong>do</strong>s. “Quatro Einsatzgruppen,<br />

abrangen<strong>do</strong> seiscentos a mil homens,<br />

auxilia<strong>do</strong>s por forças locais e pela polícia<br />

na Ucrânia e nos países bálticos,<br />

ajudavam a arrebanhar os judeus para<br />

o assassinato em massa. As execuções<br />

eram realizadas ao longo de valas. Famílias<br />

eram ordenadas a tirar a roupa e<br />

depois eram fuziladas, cain<strong>do</strong> ou sen<strong>do</strong><br />

jogadas na vala que os aguardava” 13 .<br />

Porém, estava claro que somente as<br />

Einsatzgruppen não teriam condições<br />

de cumprir com a tarefa de eliminar<br />

to<strong>do</strong>s os judeus da Europa, e planos<br />

maiores de extermínio começaram a<br />

ser postos em ação.<br />

“<strong>Em</strong> dezembro de 1941, o primeiro campo<br />

de extermínio foi estabeleci<strong>do</strong> em Chelmno,<br />

a setenta quilômetros de Lodz, na área anexada<br />

pelo Reich alemão e longe da arena<br />

militar na frente russa. A 8 de dezembro,<br />

o dia em que os EUA declararam guerra à<br />

Alemanha, começou a matança nas câmaras<br />

de gás. Judeus de povoa<strong>do</strong>s vizinhos -<br />

Kolo, Klodawa, Izbica Kujawska, Dombie<br />

e outros - foram leva<strong>do</strong>s a Chelmno. As<br />

vítimas foram conduzidas a um castelo<br />

aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> e depois assassinadas em câmaras<br />

de gás. Seus corpos foram postos em<br />

grandes valas numa floresta próxima. No<br />

mês seguinte, janeiro de 1942, <strong>do</strong>is judeus<br />

que foram força<strong>do</strong>s a trabalhar enterran<strong>do</strong><br />

os corpos conseguiram escapar e alcançar<br />

Varsóvia. O testemunho de um deles foi recolhi<strong>do</strong><br />

pelo pessoal <strong>do</strong>s “arquivos Ringelblum”<br />

e transmiti<strong>do</strong> a Londres via canais<br />

secretos da clandestinidade polonesa. Desse<br />

mo<strong>do</strong>, em 1942, detalhes sobre o campo<br />

se tornaram conheci<strong>do</strong>s em Londres, assim<br />

como em Varsóvia” 14 .<br />

Com o aval de Hitler, o general das<br />

SS, Reinhard Heydrich, convocou, em<br />

20 janeiro de 1942, a Conferência de<br />

Wannsee - uma mansão em um subúrbio<br />

de Berlim – para debater “a solução<br />

final para a questão judaica”, reunin<strong>do</strong><br />

quinze oficiais <strong>do</strong> alto escalão <strong>do</strong><br />

governo alemão e <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Nazista.<br />

Evidentemente, tratava-se de discutir<br />

a implementação da ordem para eliminar,<br />

em massa, a população judaica.<br />

Para esse fim, outros campos de<br />

extermínio foram concluí<strong>do</strong>s no primeiro<br />

semestre de 1942. Um deles, o de<br />

Belzec, começou a receber judeus deporta<strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong> gueto de Lublin e arre<strong>do</strong>res<br />

no mês de março e, em <strong>do</strong>is meses,<br />

30 mil já haviam si<strong>do</strong> transferi<strong>do</strong>s. A


notícia da evacuação chegou ao Gueto<br />

de Varsóvia por indivíduos que conseguiram<br />

escapar e por cartas que perguntavam<br />

aos judeus de Varsóvia se<br />

sabiam o paradeiro daqueles que haviam<br />

si<strong>do</strong> deporta<strong>do</strong>s. O cerco estava<br />

se fechan<strong>do</strong>.<br />

As organizações clandestinas, diante<br />

da gravidade da situação, passam<br />

a debater se é possível resistir, como<br />

resistir e o que fazer para se defender.<br />

O primeiro apelo à resistência armada<br />

partiu de Vilnius, após o, já cita<strong>do</strong>, massacre.<br />

<strong>Em</strong> dezembro de 1941, em uma<br />

plenária <strong>do</strong> Hashomer Hatzair, leu-se<br />

uma proclamação <strong>do</strong> ativista Abba<br />

Kovner que afirmava: “Hitler planeja<br />

destruir to<strong>do</strong>s os judeus da Europa e<br />

os judeus da Lituânia foram escolhi<strong>do</strong>s<br />

para serem os primeiros da fila”.<br />

E terminava com o seguinte chama<strong>do</strong>:<br />

“Não seremos leva<strong>do</strong>s como carneiros<br />

para a matança. É verdade que somos<br />

fracos e indefesos, mas a única resposta<br />

ao assassinato é a revolta. Irmãos! É<br />

melhor morrer lutan<strong>do</strong> como homens<br />

livres <strong>do</strong> que viver à mercê <strong>do</strong>s assassinos.<br />

Levantem-se! Levantem-se com<br />

seu último alento!”<br />

O apelo, no entanto, somente iria<br />

se concretizar e ganhar apoio quan<strong>do</strong><br />

o gueto já estava à beira da extinção,<br />

quan<strong>do</strong> realmente não restou nenhuma<br />

alternativa à população sobrevivente.<br />

Fato que guarda muita semelhança<br />

com o que viria a acontecer no<br />

Gueto de Varsóvia, como veremos.<br />

<strong>Em</strong> março de 1942, fruto da agitação<br />

causada pelas notícias de deportações<br />

em massa em outros campos<br />

e guetos, passam a ocorrer reuniões<br />

entre diferentes grupos clandestinos<br />

e surge, no Gueto de Varsóvia, o Bloco<br />

Antifascista, forma<strong>do</strong> pelo PPR<br />

(comunista) e grupos sionistas de esquerda.<br />

Inicialmente, o Bund manteve-se<br />

afasta<strong>do</strong>, não estava convicto<br />

de que era hora de organizar uma<br />

resistência armada e alegava que,<br />

para tal iniciativa ter algum sucesso,<br />

seria necessário estreitar as relações<br />

com a oposição polonesa e o Exército<br />

Interno (AK, na sigla polonesa) 15 .<br />

Os militantes <strong>do</strong> Bloco passaram<br />

a se organizar em grupos com certa<br />

disciplina militar e a se exercitar no<br />

tiro, no uso de dinamite e colocação<br />

de minas, bem como em operações de<br />

resgate e atendimento médico de feri<strong>do</strong>s.<br />

Também publicaram três edições<br />

de um jornal chama<strong>do</strong> O Apelo (Der<br />

Ruf) com análises sobre o momento<br />

da guerra e a necessidade <strong>do</strong>s judeus se<br />

organizarem para enfrentar as hordas<br />

nazistas. Também publicavam cartazes<br />

com palavras de ordem <strong>do</strong> tipo:<br />

“Abaixo os oficiais” e “vamos produzir<br />

granadas em vez de relógios”.<br />

<strong>Em</strong> resposta ao crescimento dessa<br />

agitação política, durante os meses<br />

de abril, maio e junho, forças nazistas<br />

passaram a promover ondas de assalto<br />

contra a população <strong>do</strong> gueto, com<br />

prisões e assassinatos, para incutir o<br />

terror, enquanto a Polícia Judaica e informantes<br />

da Gestapo buscavam identificar<br />

a localização e os membros <strong>do</strong><br />

Bloco. Politicamente, essa severa repressão<br />

provocou um distanciamento<br />

entre as massas e o Bloco. Por me<strong>do</strong> de<br />

represálias, a maioria das pessoas não<br />

queria estabelecer nenhum vínculo<br />

com as atividades clandestinas. Além<br />

disso, com um sal<strong>do</strong> de centenas de<br />

apoia<strong>do</strong>res e militantes presos e algumas<br />

dezenas de mortos, o Bloco quase<br />

se dissolveu.<br />

Logo em seguida, entre julho e setembro<br />

de 1942, começam as primeiras<br />

ondas de deportação em massa no<br />

Gueto de Varsóvia. Primeiramente,<br />

os nazistas anunciam a transferência<br />

de mendigos, indigentes, refugia<strong>do</strong>s<br />

e pessoas sem trabalho. Depois,<br />

anunciam que todas as pessoas que<br />

trabalham em serviços não essenciais<br />

seriam transferidas, além de i<strong>do</strong>sos,<br />

crianças e enfermos. Há uma corrida<br />

para conseguir cartões de trabalho<br />

em fábricas, oficinas e nas unidades<br />

administradas pelo Conselho Judaico,<br />

um salve-se quem puder. Os trabalha<strong>do</strong>res<br />

e jovens mais conscientes<br />

<strong>do</strong> que a deportação realmente<br />

significava procuraram se esconder.<br />

Os nazistas matavam quem era pego<br />

escondi<strong>do</strong> ou tentan<strong>do</strong> fugir e mentem,<br />

é claro. Prometem pão e geleia<br />

ao final da viagem para to<strong>do</strong>s que<br />

embarcarem nos trens. Prometem<br />

trabalho e uma vida melhor. Mesmo<br />

que a maioria desconfiasse das intenções<br />

e promessas <strong>do</strong>s nazistas, não<br />

havia como resistir. Famílias inteiras<br />

embarcaram para o desconheci<strong>do</strong>,<br />

com o receio de encontrarem a morte,<br />

mas ainda com a vã esperança de<br />

permanecerem vivas e unidas. Outras<br />

famílias teriam que se separar. Mães<br />

com crianças pequenas embarcaram,<br />

deixan<strong>do</strong> para trás os mari<strong>do</strong>s e seus<br />

filhos e filhas jovens. Professores embarcaram<br />

junto com as crianças órfãs,<br />

assim como enfermeiras e médicos<br />

embarcaram com os <strong>do</strong>entes. To<strong>do</strong>s<br />

em direção ao campo de extermínio<br />

de Treblinka para serem asfixia<strong>do</strong>s<br />

em câmaras de gás.<br />

Ao to<strong>do</strong>, 300 mil pessoas foram<br />

enviadas para lá. Restaram apenas<br />

cerca de 60 mil viven<strong>do</strong> no Gueto de<br />

Varsóvia. Porém, a lembrança e o ressentimento<br />

daqueles meses provocaram<br />

uma mudança na consciência<br />

<strong>do</strong>s que permaneceram. O escritor<br />

Perle, que não pertencia a nenhum<br />

parti<strong>do</strong> político, assim relatou em<br />

uma crônica sobre as deportações:<br />

“nós podíamos ter-nos defendi<strong>do</strong>, não<br />

precisaríamos deixar-nos chacinar. Se to<strong>do</strong>s<br />

os judeus tivéssemos saí<strong>do</strong> em massa<br />

das casas, derruban<strong>do</strong> os muros, se tivéssemos<br />

inunda<strong>do</strong> as ruas aos ban<strong>do</strong>s, gritan<strong>do</strong>,<br />

arma<strong>do</strong>s de machadinhas, pedras,<br />

macha<strong>do</strong>s, invadin<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os bairros<br />

de Varsóvia, os judeus e os não-judeus,<br />

dez, vinte mil de nós teriam morri<strong>do</strong>, fuzila<strong>do</strong>s,<br />

mas não se teria podi<strong>do</strong> matar a<br />

tiros de uma só vez trezentas mil pessoas.<br />

Teríamos ti<strong>do</strong> morte gloriosa. Aqueles,<br />

porém, que tivessem sobrevivi<strong>do</strong> à refrega,<br />

ter-se-iam espalha<strong>do</strong>s por to<strong>do</strong> o país, em<br />

muitas cidadezinhas e aldeias. Os assassinos<br />

fascistas não nos teriam extermina<strong>do</strong><br />

com tanta facilidade” 16 .<br />

Percebe-se que a ideia de resistência,<br />

plantada pelo Bloco Antifascista,<br />

havia germina<strong>do</strong>, regada pela dura<br />

experiência <strong>do</strong>s sobreviventes ao horror<br />

das deportações e das milhares de<br />

vidas perdidas.<br />

O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia<br />

<strong>Em</strong> outubro, após retomarem reuniões<br />

e encontros entre vários grupos<br />

e com a adesão <strong>do</strong> Bund e outras agremiações,<br />

foi fundada a Organização<br />

Combatente Judaica (ZOB). Compunha-se<br />

<strong>do</strong>s seguintes grupos, antes <strong>do</strong><br />

início da revolta:<br />

• Dror - 5 grupos<br />

• PPR - 4 grupos<br />

• HashomerHatzair – 4 grupos<br />

• Bund – 4 grupos<br />

• Poalei Sion de Esquerda – 1 grupo<br />

• Poalei Sion – 1 grupo<br />

• Gor<strong>do</strong>nia – 1 grupo<br />

• HanoarHazioni – 1 grupo<br />

• Akiba – 1 grupo<br />

Cada um <strong>do</strong>s 22 grupos possuía um<br />

comandante, que mantinha contato<br />

regular com a direção da ZOB, liderada<br />

por Mordecai Anielewicz, um jovem<br />

de 22 anos. O número total de combatentes<br />

formalmente liga<strong>do</strong>s à ZOB<br />

varia conforme as fontes: entre 600 e<br />

3 mil, mas como veremos, havia milhares<br />

de pessoas dispostas a lutar, que<br />

não faziam parte da estrutura da ZOB,<br />

mas mantinham-se sob a influência<br />

dessa organização.<br />

O grupo Betar ficou de fora da ZOB<br />

e resolveu fundar a União Militar Judaica<br />

(ZZW), mas que também tomaria<br />

lugar na resistência armada.<br />

O objetivo da ZOB era o de não<br />

aceitar mais nenhuma evacuação, nenhuma<br />

ação <strong>do</strong>s nazistas dentro <strong>do</strong><br />

gueto; defender a população e combater<br />

os ocupantes.<br />

51


Solda<strong>do</strong>s alemães queimam edifícios residenciais durante a revolta <strong>do</strong> gueto de Varsóvia<br />

National Archives and Records Administration, College Park, MD<br />

Ten<strong>do</strong> em vista o que se passou<br />

com o Bloco Antifascista, a primeira<br />

decisão foi aquartelar os militantes<br />

e estabelecer uma disciplina militar.<br />

A segunda, foi se vingar <strong>do</strong>s trai<strong>do</strong>res<br />

e colabora<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s nazistas. <strong>Em</strong><br />

vez de serem persegui<strong>do</strong>s pela Polícia<br />

Judaica e por agentes da Gestapo,<br />

a ZOB passou a ameaçá-los e persegui-los.<br />

O subcomandante da polícia,<br />

Jacob Lejkin, que havia si<strong>do</strong> muito<br />

ativo nas deportações, foi morto num<br />

atenta<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong> e realiza<strong>do</strong> pela<br />

ZOB que, no dia seguinte, afixou um<br />

aviso informan<strong>do</strong> ao público da sentença<br />

de morte executada, e avisan<strong>do</strong><br />

que seriam tomadas severas represálias<br />

contra aqueles que auxiliassem e<br />

servissem ao inimigo. E pouco tempo<br />

depois, Ysrael Fisrt, emprega<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

Conselho Judaico e informante <strong>do</strong>s<br />

nazistas, também foi executa<strong>do</strong> pela<br />

ZOB. Essas ações tiveram um grande<br />

impacto na consciência <strong>do</strong>s habitantes<br />

<strong>do</strong> gueto. Ali estava uma organização<br />

que iria se vingar pelas vidas<br />

entregues nas mãos <strong>do</strong>s carrascos.<br />

Oficiais da polícia, antes orgulhosos<br />

e temi<strong>do</strong>s, passaram a esconder seus<br />

quepes e insígnias.<br />

A principal dificuldade para a ZOB<br />

era conseguir armamento. As conexões<br />

com o AK e a resistência polonesa<br />

eram frágeis e a Milícia Popular <strong>do</strong><br />

PPR empreendeu poucas e arriscadas<br />

ações para repassar armas e munições<br />

para os combatentes <strong>do</strong> gueto.<br />

<strong>Em</strong> 9 de janeiro de 1943, o próprio<br />

Heinrich Himmler, em pessoa, chegou<br />

com seu esta<strong>do</strong>-maior para uma<br />

inspeção ao Gueto de Varsóvia. O comandante-geral<br />

das SS determinou<br />

que as deportações fossem retomadas<br />

e ordenou a evacuação das empresas<br />

alemãs, deven<strong>do</strong> ser transferida toda a<br />

maquinaria e mais 16 mil judeus para<br />

um campo das SS em Lublin.<br />

Dias depois, a ZOB publica um<br />

apelo em que conclamava: “Massas<br />

judaicas! Soou a hora, deveis estar prontos<br />

para a resistência. Nem um só judeu deve<br />

entrar nos vagões! To<strong>do</strong>s aqueles que não<br />

dispõem de meios para opor-se ativamente,<br />

devem opor resistência passiva, devem<br />

ocultar-se”.<br />

E buscava convencer to<strong>do</strong>s a<br />

participar:<br />

“Erguei-vos e lutai!<br />

Não percais as esperanças nem a fé na<br />

possível salvação! Sabei que a salvação<br />

não está em caminhar para a morte, sem<br />

energia, como um rebanho de ovelhas.<br />

Ela está na luta!<br />

(...)<br />

Despertai povo e lutai por vossa vida!<br />

Que cada mãe se transforme numa leoa a<br />

defender os filhotes!<br />

Que nenhum pai assista inativo à morte<br />

de seus filhos! Não mais se repetirá<br />

o opróbrio <strong>do</strong> primeiro ato de nosso<br />

aniquilamento!<br />

Abaixo a resignação e a descrença! Abaixo<br />

nosso espírito servil!<br />

O inimigo pagará com sangue pela vida de<br />

cada judeu!<br />

Que cada casa se transforme numa<br />

fortaleza!<br />

Despertai, povo e lutai!<br />

Na luta está nossa salvação!<br />

Quem luta pela própria vida tem<br />

possibilidade de salvar-se.<br />

(...)<br />

Nosso lema é:<br />

<strong>Em</strong> Treblinka não morrerá mais um único<br />

judeu!<br />

Abaixo os trai<strong>do</strong>res <strong>do</strong> povo!<br />

Luta implacável aos invasores, até a<br />

última gota de sangue!<br />

Estai prontos para a ação!” 17<br />

No dia 18 de janeiro, os alemães<br />

chegaram no gueto para cumprir a<br />

ordem de Himmler, apoia<strong>do</strong>s por<br />

unidades de letões e ucranianos e<br />

acompanha<strong>do</strong>s pela polícia polonesa.<br />

Poucas pessoas compareceram ao<br />

local de embarque voluntariamente<br />

e então as forças de segurança passam<br />

a invadir as casas, os edifícios e<br />

as fábricas. Na empresa Ostdeutsche<br />

Baustelle, de marcenaria, a combatente<br />

<strong>Em</strong>ilia Margalith Landau atira<br />

uma granada que deixou alguns alemães<br />

mortos. Ela seria morta na troca<br />

de tiros que se seguiu à explosão. <strong>Em</strong><br />

outros pontos <strong>do</strong> gueto, os combatentes<br />

armam emboscadas e atacam. Os<br />

inimigos fogem aos gritos: “os judeus<br />

estão atiran<strong>do</strong>!”<br />

Após três dias de combates, o responsável<br />

pela operação, Ferdinand<br />

von Sammern-Frankenegg, decide<br />

suspender os embarques. Apesar das<br />

perdas, a ZOB estava satisfeita com o<br />

resulta<strong>do</strong> das suas ações e Himmler<br />

ficou furioso. <strong>Em</strong> 16 de fevereiro de<br />

1943, ele emitiu ordens para destruir o<br />

Gueto de Varsóvia.<br />

Entre fevereiro e abril, houve uma<br />

fase de preparativos de ambas as partes.<br />

A ZOB buscava mais armamentos<br />

e estabelecia seus planos de defesa.<br />

Enquanto isso, industriais alemães,<br />

preocupa<strong>do</strong>s com suas propriedades,<br />

buscavam convencer os operários a<br />

colaborar com a evacuação, mas eles<br />

se recusavam, conforme a orientação<br />

da ZOB. Os capitalistas então, junto<br />

com o Conselho Judaico, convidaram<br />

a ZOB para uma reunião. Mas os alemães<br />

ficaram furiosos com a recusa<br />

da ZOB em comparecer e colocaram<br />

a culpa nos dirigentes <strong>do</strong> Conselho<br />

Judaico, cujo presidente respondeu: “o<br />

poder no gueto não se encontra mais<br />

em minhas mãos. Aqui, outro governo<br />

tem o poder”. Era evidente que a população<br />

não mais obedecia às autoridades<br />

constituídas e respeitavam apenas<br />

os comunica<strong>do</strong>s emiti<strong>do</strong>s pela ZOB.<br />

Esgotadas, portanto, as possibilidades<br />

de dissuasão, Himmler encarrega<br />

Jürgen Stroop, chefe da tropa de elite<br />

Waffen-SS, a responsabilidade de destruir<br />

o gueto. Assim, em abril, inicia-<br />

-se um novo ataque, não apenas para<br />

deportar os judeus à força, mas para<br />

acabar com eles ali mesmo. É nesse<br />

momento que se inicia o Levante!<br />

A disparidade bélica era gritante.<br />

Por parte <strong>do</strong>s alemães, foram empregadas<br />

as seguintes forças, compostas<br />

por oficiais e homens bem treina<strong>do</strong>s,<br />

equipa<strong>do</strong>s e experimenta<strong>do</strong>s em<br />

combate:<br />

- Da Waffen-SS, um batalhão de<br />

granadeiros blinda<strong>do</strong>s e uma divisão<br />

de cavalaria. Total de 790 homens;<br />

52


Stroop, no centro com um quepe , durante a luta para reprimir a revolta no gueto de Varsóvia<br />

- Da Wehrmacht, uma bateria de artilharia<br />

e duas divisões de sapa<strong>do</strong>res.<br />

Total de 103 homens;<br />

- Da Polícia, <strong>do</strong>is batalhões de polícia<br />

da SS, um batalhão de campo,<br />

efetivos da polícia polonesa, corpo de<br />

bombeiros e um serviço técnico de<br />

emergência. Total: 1.146 homens;<br />

- Além de tropas compostas por voluntários<br />

fascistas ucranianos, letões<br />

e alemães viven<strong>do</strong> no estrangeiro,<br />

comandadas por oficiais nazistas.<br />

Por parte <strong>do</strong>s combatentes da ZOB,<br />

to<strong>do</strong>s eram jovens, entre 18 e 25 anos,<br />

a maioria nem sequer havia presta<strong>do</strong><br />

serviço militar e possuíam uma metralha<strong>do</strong>ra<br />

com pouca munição, algumas<br />

centenas de revólveres e granadas<br />

de mão, além de coquetéis com áci<strong>do</strong>.<br />

Tinham a vantagem de conhecer plenamente<br />

a área e as rotas subterrâneas<br />

e contavam com o apoio da população.<br />

A maior parte <strong>do</strong>s habitantes se manteve<br />

escondida, mas em muitos casos,<br />

improvisavam-se grupos arma<strong>do</strong>s<br />

para dar proteção aos esconderijos ou<br />

locais de trabalho.<br />

Pode-se dizer que toda a população<br />

<strong>do</strong> gueto se envolveu no Levante. Seja<br />

passivamente, esconden<strong>do</strong>-se, recusan<strong>do</strong>-se<br />

a colaborar com os ocupantes<br />

e ajudan<strong>do</strong>, como podiam, os combatentes.<br />

Milhares conseguiram fugir,<br />

também, pela rede de esgoto e túneis<br />

subterrâneos, e buscaram se esconder<br />

fora <strong>do</strong>s muros <strong>do</strong> gueto.<br />

Outra parte envolveu-se ativamente,<br />

integran<strong>do</strong>-se na ZOB, na ZZW ou<br />

em algum grupo de proteção, ou mesmo<br />

se lançan<strong>do</strong> contra os nazistas com<br />

paus, facas e macha<strong>do</strong>s, para se defender<br />

quan<strong>do</strong> eram descobertos em seus<br />

esconderijos. Poucos eram os refúgios<br />

que se entregavam sem luta quan<strong>do</strong><br />

descobertos.<br />

Pode-se dizer<br />

que toda a<br />

população <strong>do</strong><br />

gueto se envolveu<br />

no Levante. Seja<br />

passivamente,<br />

esconden<strong>do</strong>-se,<br />

recusan<strong>do</strong>-se a<br />

colaborar com<br />

os ocupantes<br />

e ajudan<strong>do</strong>,<br />

como podiam, os<br />

combatentes<br />

Pode-se dizer que o Levante, que<br />

durou de abril a maio, passou por<br />

duas fases de luta. Na primeira parte,<br />

as batalhas eram travadas nas ruas<br />

e a partir <strong>do</strong>s prédios e das fábricas.<br />

Enquanto havia munição na metralha<strong>do</strong>ra,<br />

grupos de combatentes<br />

tentavam frear o avanço <strong>do</strong>s alemães<br />

no principal entroncamento de ruas<br />

<strong>do</strong> gueto. <strong>Em</strong> outros pontos, os combatentes<br />

se posicionavam pelos <strong>do</strong>is<br />

la<strong>do</strong>s de uma rua e, de dentro <strong>do</strong>s<br />

prédios, atiravam nos alemães que<br />

estavam no solo. <strong>Em</strong> seguida, pelo<br />

teto ou por buracos na parede, passavam<br />

para outro edifício. Nas fábricas<br />

e oficinas, buscavam evitar a entrada<br />

<strong>do</strong>s alemães, ou então armavam emboscadas<br />

assim que eles entravam<br />

nos pátios e galpões.<br />

Nessa etapa, a tática utilizada pelos<br />

nazistas foi o uso incessante da artilharia.<br />

Tanques, canhões e metralha<strong>do</strong>ras<br />

de grosso calibre destruíram<br />

os prédios por onde transitavam os<br />

combatentes. Stroop também decidiu<br />

queimar o gueto! Colunas de fumaça<br />

podiam ser vistas de longe. As chamas<br />

e a fuligem tomaram conta das<br />

principais áreas <strong>do</strong> bairro. Milhares<br />

de pessoas morreram queimadas ou<br />

sufocadas.<br />

Os combatentes tiveram, então,<br />

que descer para o subterrâneo. Durante<br />

os anos anteriores, para se esconder<br />

das investidas policiais, para<br />

reuniões clandestinas ou ainda para<br />

estocar merca<strong>do</strong>rias contrabandeadas,<br />

vários porões foram reforma<strong>do</strong>s,<br />

amplia<strong>do</strong>s e camufla<strong>do</strong>s, e muitos<br />

passaram a se ligar, entre si, por túneis.<br />

Nos meses que precederam o<br />

Levante, centenas de voluntários trataram<br />

de ampliar essa galeria subterrânea<br />

que agora, além de esconder os<br />

mora<strong>do</strong>res, servia de Quartel General<br />

e rede logística para as operações da<br />

ZOB. Os combatentes organizavam<br />

saídas furtivas de seus esconderijos,<br />

atacavam os nazistas e, rapidamente,<br />

desapareciam sob o solo.<br />

O méto<strong>do</strong> emprega<strong>do</strong> por Stroop<br />

nessa etapa da luta foi o uso abusivo de<br />

dinamites e explosivos para enterrar<br />

vivas as pessoas, ou para abrir buracos<br />

e localizar as galerias subterrâneas.<br />

Além disso, quan<strong>do</strong> os nazistas encontravam<br />

os porões, não se arriscavam a<br />

abri-los. Aplicavam um gás venenoso<br />

que asfixiava a to<strong>do</strong>s, ou então, alvejavam<br />

as pessoas quan<strong>do</strong> elas saíam desesperadas<br />

ou ator<strong>do</strong>adas em busca de<br />

ar fresco. O gás tóxico também foi aplica<strong>do</strong><br />

largamente nas redes de esgoto,<br />

que eram usadas, tanto para fuga <strong>do</strong>s<br />

mora<strong>do</strong>res, quanto para ações da ZOB.<br />

Numa dessas investidas aos porões,<br />

os nazistas encontraram o QG da ZOB<br />

e, antes de morrerem pelas mãos <strong>do</strong>s<br />

carrascos, boa parte <strong>do</strong>s dirigentes,<br />

que ali se encontravam, decidiu se suicidar.<br />

Para eles, era mais digno escolher<br />

como e onde morrer, <strong>do</strong> que ficar<br />

à mercê <strong>do</strong>s assassinos.<br />

Mesmo antes da queda <strong>do</strong> QG, os<br />

grupos combatentes remanescentes<br />

já estavam dispersos, sem munições,<br />

sem alimentos e com dificuldade até<br />

para conseguir água. Decidiram tentar<br />

escapar <strong>do</strong> gueto para se juntar à resistência<br />

polonesa no outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s muros.<br />

Algumas tentativas foram bem-<br />

-sucedidas, porém, em uma delas, um<br />

grupo de combatentes e sobreviventes<br />

foi intercepta<strong>do</strong> e fuzila<strong>do</strong>.<br />

A essa altura, toda a extensão <strong>do</strong><br />

gueto já estava sob escombros, restan<strong>do</strong><br />

apenas ruínas. Alguns combatentes<br />

53


da ZOB, que haviam sobrevivi<strong>do</strong> e<br />

estavam viven<strong>do</strong> nessas ruínas, realizaram<br />

algumas ações entre junho e<br />

julho, contra um batalhão de polícia<br />

deixa<strong>do</strong> lá por Stroop, mas a destruição<br />

já estava concluída. Ou quase. Após<br />

Stroop comunicar a seu superior que<br />

o último conjunto de edifícios havia<br />

si<strong>do</strong> destruí<strong>do</strong>, e que sua missão estava<br />

completa, Himmler incumbiu o general<br />

das Waffen-SS a explodir a grande<br />

Sinagoga da rua Tlomacki como símbolo<br />

da vitória. A construção era um<br />

monumento arquitetônico ergui<strong>do</strong> em<br />

1877 e sua explosão, nas palavras de<br />

um cronista polonês, “abalou toda Varsóvia”.<br />

Esse episódio, ocorri<strong>do</strong> em 16 de<br />

maio de 1943, marca o fim <strong>do</strong> Levante<br />

<strong>do</strong> Gueto de Varsóvia.<br />

O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia, no<br />

entanto, não foi a única revolta organizada<br />

pelos judeus e demais prisioneiros<br />

e habitantes de áreas confinadas.<br />

Pelo contrário, ela serviu de inspiração<br />

para que to<strong>do</strong>s aqueles que estavam à<br />

beira da morte pudessem se erguer e<br />

contra-atacar, apesar da precariedade<br />

de suas condições.<br />

No campo de extermínio de Treblinka,<br />

preparou-se uma rebelião. No<br />

dia 2 de agosto de 1943, operários da<br />

“fábrica de morte” 18 conseguiram entrar<br />

no depósito de armas e repassar,<br />

aos seus companheiros, 40 granadas<br />

de mão, 25 metralha<strong>do</strong>ras portáteis<br />

e algumas pistolas. Enquanto isso, o<br />

faxineiro molhava o chão com querosene,<br />

em vez de água. <strong>Em</strong> seguida, os<br />

rebeldes explodiram as granadas e, assim,<br />

o fogo e o tumulto rapidamente se<br />

alastraram.<br />

Um tremen<strong>do</strong> tiroteio teve início,<br />

enquanto a massa de prisioneiros corria<br />

para fugir. Cerca de 25 homens da<br />

SS e 60 fascistas ucranianos morreram<br />

Judeus tira<strong>do</strong>s de um bunker<br />

Domínio público<br />

54<br />

nesse episódio e, embora somente uma<br />

minoria de prisioneiros conseguisse<br />

escapar ou sobreviver às ações posteriores<br />

de recaptura, o ato deixou boa<br />

parte <strong>do</strong> campo destruída e a moral<br />

<strong>do</strong>s nazistas bastante abalada. Pouco<br />

tempo depois, o campo de extermínio<br />

de Treblinka foi desativa<strong>do</strong>.<br />

Ainda em 1943, houve um Levante<br />

no Gueto de Bialystok, cuja resistência<br />

durou mais de uma semana. E também<br />

uma revolta, seguida de tentativa de<br />

fuga em massa, no campo de extermínio<br />

de Sobibor. Já em outubro de 1944,<br />

houve a revolta <strong>do</strong> Sonderkomman<strong>do</strong> 19<br />

em Auschwitz. Após uma ordem para<br />

diminuir o contingente de trabalha<strong>do</strong>res<br />

desse setor, houve rumores de<br />

que o campo seria desativa<strong>do</strong> e, portanto,<br />

to<strong>do</strong> o pessoal restante seria<br />

elimina<strong>do</strong>. Assim, com apoio de algumas<br />

prisioneiras que conseguiram<br />

obter pólvora de um campo de trabalho<br />

força<strong>do</strong>, os revoltosos explodiram<br />

um crematório, mas não conseguiram<br />

fugir, foram to<strong>do</strong>s mortos. As quatro<br />

mulheres acusadas de repassar a pólvora<br />

foram enforcadas em 6 de janeiro<br />

de 1945, poucas semanas antes da<br />

libertação <strong>do</strong> campo...<br />

Reflexões finais<br />

O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia durou<br />

pouco mais de um mês. Os combatentes,<br />

mesmo subnutri<strong>do</strong>s, muito mal<br />

arma<strong>do</strong>s, com pouca ou nenhuma instrução<br />

militar e contan<strong>do</strong> apenas com<br />

suas próprias forças, conseguiram impor<br />

resistência e provocar baixas na<br />

maior máquina de guerra já construída<br />

na história até aquele momento.<br />

“Como se explica, pois, que os insurretos,<br />

atacan<strong>do</strong> tanques com garrafas de gasolina,<br />

puderam manter suas posições<br />

durante muitas semanas? Como explicar<br />

as derrotas <strong>do</strong>s assassinos nos primeiros<br />

dias e sua crescente inquietação em face<br />

<strong>do</strong>s acontecimentos?<br />

Encontramos a resposta certa a essas perguntas<br />

ao confrontarmos o moral das facções<br />

em luta. Os batalhões de Stroop eram<br />

um ban<strong>do</strong> de criminosos e facínoras. Konrad<br />

declarou durante o depoimento que as<br />

tropas quislings 20 se matavam entre si e<br />

arrancavam às mãos uns <strong>do</strong>s outros as<br />

coisas roubadas.<br />

Contra eles lutavam revolucionários,<br />

firme e profundamente convenci<strong>do</strong>s de<br />

lutarem por uma causa justa (...) Das ruínas<br />

de sua cidade, <strong>do</strong> túmulo de seu povo,<br />

viam os rebeldes surgir uma terra livre<br />

e justa, um mun<strong>do</strong> novo. A soldadesca<br />

de Stroop só tinha coragem no pátio ferroviário<br />

onde embarcavam condena<strong>do</strong>s<br />

indefesos; ante a bala <strong>do</strong>s revoltosos, fugiam<br />

covardemente. Os fascistas tinham<br />

apenas um objetivo: assassinar e saquear.<br />

Os rebeldes lutavam com coragem e<br />

abnegação, pois sabiam porque estavam<br />

lutan<strong>do</strong>. Tinham a certeza de não estarem<br />

sós na luta de morte, sabiam que o heroico<br />

exército soviético se aproximava a passos<br />

de gigante (...)” 21 .<br />

Sem dúvidas, a vitória da URSS na<br />

Batalha de Stalingra<strong>do</strong>, em janeiro<br />

de 1943, foi uma enorme injeção de<br />

ânimo para os militantes que se organizavam<br />

no gueto, mas os nazistas<br />

estavam executan<strong>do</strong> velozmente seus<br />

planos de extermínio. Não era possível<br />

esperar. Esperar significaria se resignar<br />

frente à morte. Por isso, mesmo<br />

nas condições precárias em que se<br />

encontravam, decidiram combater.<br />

As forças soviéticas somente chegariam<br />

às proximidades de Varsóvia<br />

no verão de 1944, e apenas tomariam<br />

a cidade em 17 de janeiro de 1945. Durante<br />

to<strong>do</strong> esse tempo, Stalin manteve<br />

o Exército Vermelho estaciona<strong>do</strong><br />

às margens <strong>do</strong> rio Vístula, enquanto<br />

os nazistas massacravam e destruíam<br />

a capital da Polônia. Quan<strong>do</strong> os<br />

soviéticos finalmente se moveram,<br />

Varsóvia já estava devastada. Cerca<br />

de 174.000 pessoas estavam na cidade<br />

naquele momento, menos de 6% da<br />

população de antes da guerra. Entre<br />

aqueles sobreviventes havia apenas<br />

11.500 judeus.<br />

“Na Polônia, não mais existia aparelho de<br />

Esta<strong>do</strong> ao fim da guerra. Por outro la<strong>do</strong>,<br />

existia um poderoso movimento de resistência.<br />

Os stalinistas, desacredita<strong>do</strong>s pelo<br />

Pacto germano-soviético de 1939, não<br />

controlavam este movimento. Ele estava<br />

em ligação com o governo polonês no exílio<br />

em Londres. Esse movimento foi particularmente<br />

posto à prova em 1944. <strong>Em</strong> 1º<br />

de março de 1944, antes que as tropas da


União Soviética entrassem em Varsóvia,<br />

ele organizou a insurreição da cidade. Ele<br />

constituiu um “Comitê de Libertação Nacional”,<br />

que assumiu o poder. Durante 63<br />

dias ele fez frente aos alemães. O exército<br />

da URSS estava acampan<strong>do</strong> <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> (rio) Vístula, e deixou os alemães arrasarem<br />

com a insurreição. Por seu la<strong>do</strong>,<br />

nem o imperialismo norte-americano<br />

nem o imperialismo inglês vieram em auxílio<br />

da insurreição de Varsóvia. Nem os<br />

imperialismos nem o Kremlin pretendiam<br />

que na Polônia o poder surgisse da insurreição<br />

popular. Para eles essa insurreição<br />

deveria ser esmagada” 22 .<br />

Já as guerrilhas que atuavam na<br />

Polônia, pouco puderam fazer para<br />

auxiliar os rebeldes <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia<br />

em 1943. O foco de suas ações<br />

eram as florestas, onde suas unidades<br />

podiam ocultar-se, e não as cidades,<br />

que estavam fortemente vigiadas e<br />

cheias de agentes da Gestapo e informantes.<br />

A Milícia Popular <strong>do</strong> PPR<br />

até empreendeu algumas ações para<br />

enviar armas e munições, mas os rebeldes<br />

queixavam-se <strong>do</strong> tipo de armamento<br />

que chegava a eles: basicamente,<br />

pistolas e granadas. A Milícia<br />

Popular também realizou uma ou outra<br />

ação de sabotagem contra a malha<br />

ferroviária, por onde se transportava<br />

as vítimas <strong>do</strong> genocídio, mas também<br />

sem grandes efeitos. Por fim, realizou<br />

ações de resgate de combatentes <strong>do</strong><br />

Gueto e os incorporou à guerrilha.<br />

Já o Exército Interno (AK), a guerrilha<br />

<strong>do</strong>s patriotas poloneses, apoiada<br />

desde Londres pelo governo polonês<br />

no exílio, também emprestou algumas<br />

armas e munições aos rebeldes<br />

e realizou algumas missões de resgate,<br />

mas mantinha uma relação mais<br />

próxima à ZZW e não à ZOB, devi<strong>do</strong><br />

ao apoio que a ZOB recebia <strong>do</strong>s comunistas.<br />

Além disso, no círculo dirigente<br />

polonês em Londres, havia parti<strong>do</strong>s<br />

e políticos com um histórico de antissemitismo<br />

na bagagem, mesmo que<br />

dissimula<strong>do</strong>. E esses eram céticos em<br />

relação à capacidade de luta <strong>do</strong>s judeus<br />

e de sua lealdade à Polônia. Por<br />

fim, oficialmente, o governo polonês<br />

no exílio, através de sua imprensa,<br />

exortou os cidadãos poloneses a<br />

apoiar os bravos judeus, mas a solidariedade,<br />

de fato, apareceu como uma<br />

iniciativa própria <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res<br />

poloneses, e não foi articulada pelas<br />

autoridades. Vários cidadãos comuns<br />

se arriscaram fornecen<strong>do</strong> abrigo e esconderijo<br />

para milhares de judeus que<br />

conseguiram escapar <strong>do</strong> Gueto. Lembran<strong>do</strong><br />

que era proibi<strong>do</strong> pelo governo<br />

local prestar qualquer tipo de ajuda<br />

“aos criminosos judeus”, sob pena de<br />

prisão e morte.<br />

A título de reflexão, é preciso também<br />

ressaltar como o sionismo li<strong>do</strong>u<br />

com o Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia e<br />

com o Holocausto da população judaica<br />

após a II Guerra. Tratou de glorificar os<br />

jovens sionistas que estavam na liderança<br />

e nas fileiras da ZOB e da ZZW<br />

como mártires de um povo sem terra e<br />

reforçou sua campanha pelo estabelecimento<br />

de uma pátria para os judeus,<br />

na Palestina, como forma de reparação<br />

histórica. O ideal defendi<strong>do</strong> pelo Bund,<br />

de respeito e integração <strong>do</strong>s judeus nos<br />

países da Europa onde eles viviam, perdeu<br />

base social e certo senti<strong>do</strong> real, após<br />

as feridas, ainda abertas, provocadas<br />

pelo extermínio e a onda antissemita<br />

disseminada pelos nazistas.<br />

Nakba! A grande tragédia!<br />

Porém, a colonização judaica da<br />

Palestina e a tomada da maioria das<br />

terras <strong>do</strong>s palestinos árabes (95% da<br />

população) que aliás, conviviam fraternalmente<br />

com uma minoria judaica<br />

(cerca de 5%) - e a criação <strong>do</strong> reacionário<br />

e religioso Esta<strong>do</strong> de Israel, somente<br />

se concretizou devi<strong>do</strong> aos esforços<br />

combina<strong>do</strong>s da burguesia sionista e<br />

<strong>do</strong> imperialismo estadunidense, com o<br />

aval da URSS. Somente com a aprovação<br />

de Stalin para o plano de partilha<br />

da Palestina, foi possível avançar as<br />

bases para a fundação de Israel. Aliás,<br />

a URSS reconheceu diplomaticamente<br />

o Esta<strong>do</strong> de Israel em 17 de maio de<br />

1948, três dias após a declaração de<br />

independência. Foi o primeiro país <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> a fazer isso, antes mesmo <strong>do</strong>s<br />

EUA. Além disso, o bloco soviético enviou<br />

armas para os sionistas, que foram<br />

usadas para promover a Nakba! <strong>23</strong><br />

Stalin, mais uma vez, rompia com o<br />

internacionalismo proletário e com a<br />

perspectiva comunista para a solução<br />

<strong>do</strong> problema judaico.<br />

E assim, longe de estabelecer um<br />

lar onde os judeus pudessem viver em<br />

paz, a criação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Israel os<br />

colocou em guerra permanente contra<br />

a povo árabe e serve, desde o início,<br />

apenas como um enclave político<br />

e militar diretamente liga<strong>do</strong> aos EUA,<br />

no Oriente Médio.<br />

Aliás, antes mesmo da II Guerra<br />

Mundial, o líder revolucionário Leon<br />

Trotsky, já alertava que o sionismo não<br />

era uma verdadeira saída e adicionava<br />

importantes reflexões sobre a questão<br />

judaica. <strong>Em</strong> entrevista para o jornal<br />

estadunidense “Luta de Classes”, em<br />

fevereiro de 1934, ele disse:<br />

“Tanto o Esta<strong>do</strong> fascista na Alemanha,<br />

quanto o conflito judaico-árabe trazem<br />

novas e muito claras verificações <strong>do</strong>s<br />

princípios de que a questão judaica não<br />

pode ser resolvida dentro da estrutura <strong>do</strong><br />

capitalismo. Não sei se o judaísmo será reconstruí<strong>do</strong><br />

como nação. No entanto, não<br />

pode haver dúvida de que as condições<br />

materiais para a existência <strong>do</strong> judaísmo<br />

como nação independente só poderiam ser<br />

alcançadas pela revolução proletária. Não<br />

existe em nosso planeta a ideia de que um<br />

tem mais direito à terra <strong>do</strong> que outro”.<br />

E, em entrevista ao jornal Der Weg<br />

e à Agência Telegráfica Judaica em<br />

janeiro de 1937, afirmou:<br />

“Os fatos de cada dia nos mostram que o<br />

sionismo é incapaz de resolver a questão<br />

judaica. O conflito entre árabes e judeus<br />

na Palestina adquire um caráter cada vez<br />

mais trágico e ameaça<strong>do</strong>r. Eu não acredito<br />

de forma alguma que a questão judaica<br />

possa ser resolvida nos quadros <strong>do</strong><br />

capitalismo decadente e sob o controle <strong>do</strong><br />

imperialismo britânico. (...)<br />

A questão judaica, repito, está indissoluvelmente<br />

ligada à emancipação total da<br />

humanidade. Tu<strong>do</strong> o que se faz de diferente<br />

neste <strong>do</strong>mínio só pode ser um paliativo<br />

e às vezes mesmo uma faca de <strong>do</strong>is gumes,<br />

como mostra o exemplo da Palestina”.<br />

Conclusão<br />

Por fim, podemos afirmar que o<br />

Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia foi um<br />

ato proletário heroico, com grandes<br />

significa<strong>do</strong>s. <strong>Em</strong> 1942, a comunidade<br />

judaica foi condenada pelo nazismo<br />

à aniquilação. Sob o III Reich, o antissemitismo<br />

se materializou em violentas<br />

ondas de perseguição, expulsão e<br />

expropriação. Os judeus perderam<br />

completamente sua condição de cidadãos,<br />

tornaram-se párias sociais,<br />

foram segrega<strong>do</strong>s e submeti<strong>do</strong>s ao<br />

confinamento nos guetos e campos<br />

de concentração.<br />

Nessas condições, esperava-se que<br />

os judeus morressem por inanição,<br />

<strong>do</strong>enças ou devi<strong>do</strong> ao trabalho força<strong>do</strong><br />

e às execuções sumárias. Mas, os<br />

nazistas decidiram acelerar seus planos<br />

para uma “solução final” à questão<br />

judaica e elaboraram uma gigantesca<br />

operação para transferir e assassinar<br />

seres humanos em escala industrial.<br />

Assim que os campos de extermínio<br />

começaram a funcionar, os trabalha<strong>do</strong>res<br />

e jovens judeus mais conscientes<br />

perceberam que não havia saída,<br />

que não havia esperança de um futuro<br />

para depois da guerra.<br />

Portanto, já que desapareceriam da<br />

Europa, que ao menos fossem lembra<strong>do</strong>s<br />

pelas gerações futuras de judeus e<br />

não-judeus como aqueles não se resignaram.<br />

E assim, uma vanguarda majoritariamente<br />

jovem começou a propagar<br />

entre a população sobrevivente<br />

a ideia de que não aceitariam mais serem<br />

leva<strong>do</strong>s ao abate sem protestar. E<br />

55


uscaram se organizar para enfrentar<br />

seus carrascos. <strong>Em</strong> suma, se era para<br />

morrer, que fosse lutan<strong>do</strong>. E o Levante<br />

foi a maior prova de sua determinação.<br />

E hoje, 80 anos depois, buscamos<br />

homenagear os combatentes <strong>do</strong> Gueto<br />

de Varsóvia, que deram suas vidas<br />

numa luta extremamente desigual<br />

contra o regime nazista. Mas, a melhor<br />

homenagem que podemos render<br />

a esses companheiros é impedir que os<br />

crimes <strong>do</strong> nazismo sejam esqueci<strong>do</strong>s.<br />

Por mais <strong>do</strong>loroso que seja remoer<br />

esse passa<strong>do</strong>, é preciso lembrar que<br />

mais de 6 milhões de judeus foram<br />

assassina<strong>do</strong>s covardemente pelo regime<br />

de Hitler. E compreender que o<br />

imperialismo em crise é capaz de engendrar<br />

guerras e outras monstruosidades,<br />

como o fascismo e o nazismo,<br />

para continuar existin<strong>do</strong>, a despeito da<br />

vida de bilhões de seres humanos. <strong>Em</strong><br />

sua luta contra o proletaria<strong>do</strong> revolucionário,<br />

o imperialismo utilizou o<br />

nazifascismo como última arma para<br />

se proteger e, assim, desencadeou a II<br />

Guerra Mundial com seu espetáculo de<br />

mortes e destruição. Portanto, a maior<br />

homenagem que podemos prestar a<br />

esses valorosos combatentes <strong>do</strong> Gueto<br />

de Varsóvia, é continuar a luta para pôr<br />

fim ao capitalismo e abrir caminho<br />

para uma nova sociedade, sem explora<strong>do</strong>s<br />

e sem explora<strong>do</strong>res, onde to<strong>do</strong>s<br />

possam viver em paz, uma sociedade<br />

comunista em escala internacional.<br />

Monumento aos heróis <strong>do</strong> gueto de Varsóvia - Varsóvia, Polônia<br />

Notas e Referências<br />

1<br />

Manifesto de Alarme da IV Internacional (maio/1940).<br />

2<br />

<strong>Em</strong> ídiche ou em russo, a palavra pogrom possui muitos<br />

significa<strong>do</strong>s, mas é frequentemente utilizada para descrever um<br />

ataque massivo, com o apoio ou a tolerância das autoridades, envolven<strong>do</strong><br />

violência contra um determina<strong>do</strong> grupo de pessoas e seu<br />

mo<strong>do</strong> de vida, como suas residências, negócios e centros religiosos.<br />

A palavra ficou conhecida internacionalmente após ondas de ataques<br />

organiza<strong>do</strong>s (ou apoia<strong>do</strong>s) por forças policiais <strong>do</strong> governo da<br />

Rússia czarista contra os judeus entre 1881 e 1884. Os pogroms<br />

se repetiram ao longo <strong>do</strong>s anos por toda a extensão <strong>do</strong> antigo império<br />

russo até a revolução de 1917. Porém, durante a guerra civil,<br />

o Exército Branco manteve a prática, como forma de represália a<br />

populações que eram acusadas de apoiar os bolcheviques, como os<br />

judeus.<br />

3<br />

Livro: “Quem escreverá nossa história? – os arquivos secretos<br />

<strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Samuel D. Kassow<br />

4<br />

Livro: “O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Bernard Mark<br />

5<br />

Livro: “O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Bernard Mark<br />

6<br />

Livro: “O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Bernard Mark<br />

56<br />

7<br />

Livro: “Resistência – o Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia, de Israel<br />

Gutman<br />

8<br />

Livro: “Quem escreverá nossa história? – os arquivos secretos<br />

<strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Samuel D. Kassow<br />

9<br />

Livro: “O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Bernard Mark<br />

10<br />

Livro: “Resistência – o Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia, de<br />

Israel Gutman<br />

11<br />

Livro: “O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Bernard Mark<br />

12<br />

<strong>Em</strong> ídiche, a palavra utilizada é “Shoah”. Optamos por manter<br />

a palavra Holocausto em virtude <strong>do</strong> aspecto histórico que<br />

carrega no Brasil.<br />

13<br />

Livro: “Resistência – o Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia, de Israel<br />

Gutman<br />

14<br />

Livro: “Resistência – o Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia, de Israel<br />

Gutman<br />

15<br />

O AK era uma milícia organizada pelo governo polonês no<br />

exílio em Londres, com o apoio portanto <strong>do</strong> imperialismo inglês e<br />

<strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s democráticos e liberais poloneses e forma<strong>do</strong> com os<br />

restos <strong>do</strong> antigo Exército <strong>do</strong> país.<br />

16<br />

Livro: “O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Bernard Mark<br />

17<br />

Livro: “O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Bernard Mark<br />

18<br />

Os nazistas tinham como méto<strong>do</strong>, designar não-alemães<br />

para fazer to<strong>do</strong> tipo de trabalho “sujo”. Por exemplo, nos campos<br />

de extermínio, eles recrutavam trabalha<strong>do</strong>res, entre os prisioneiros<br />

mais jovens e saudáveis, para executar tarefas auxiliares na<br />

operação das câmaras de gás e crematórios.<br />

19<br />

Sonderkomman<strong>do</strong>: era a denominação dada para a área<br />

de extermínio; onde se localizavam as câmaras de gás e os<br />

crematórios.<br />

20<br />

Tropas auxiliares da SS e da Wehrmacht, formada por fascistas<br />

ucranianos, letões, poloneses e outras nacionalidades<br />

21<br />

Livro: “O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Bernard Mark<br />

22<br />

Livro: “A Revolução Proletária e os Esta<strong>do</strong>s Operários Burocráticos”,<br />

de Stéphane Just<br />

<strong>23</strong><br />

Nakba é uma palavra árabe que significa “catástrofe” ou<br />

“desastre” e é usada para designar a expulsão em massa <strong>do</strong>s palestinos<br />

de suas terras e lares em 1948, promovida pelas forças<br />

armadas <strong>do</strong> recém-cria<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Israel.


É ISTO UM HOMEM?<br />

Vocês que vivem seguros<br />

em suas cálidas casas,<br />

vocês que, voltan<strong>do</strong> à noite,<br />

encontram comida quente e rostos amigos,<br />

pensem bem se isto é um homem<br />

que trabalha no meio <strong>do</strong> barro,<br />

que não conhece paz,<br />

que luta por um pedaço de pão,<br />

que morre por um sim ou por um não.<br />

Pensem bem se isto é uma mulher,<br />

sem cabelos e sem nome,<br />

sem mais força para lembrar,<br />

vazios os olhos, frio o ventre,<br />

como um sapo no inverno.<br />

Pensem que isto aconteceu:<br />

eu lhes man<strong>do</strong> estas palavras.<br />

Gravem-na em seus corações,<br />

estan<strong>do</strong> em casa, andan<strong>do</strong> na rua,<br />

ao deitar, ao levantar;<br />

repitam-nas a seus filhos.<br />

Ou, senão, desmorone-se a sua casa,<br />

a <strong>do</strong>ença os torne inváli<strong>do</strong>s,<br />

os seus filhos virem o rosto para não vê-los.<br />

Tradução: Luigi Del Re. Retira<strong>do</strong> <strong>do</strong> site: algumapoesia.com.br, 05/10/<strong>23</strong><br />

Primo Levi

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