América Socialista - Em Defesa do Marxismo 23
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REVISTA AMÉRICA SOCIALISTA - EM DEFESA DO MARXISMO<br />
Edição em português, nº <strong>23</strong><br />
Diretor: Serge Goulart<br />
Editora: Maritania Camargo<br />
Tradução: Fabiano Leite, Fernan<strong>do</strong> Leal e Tiago de Carvalho<br />
Revisão: Bruna Macha<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Reis, Francine Hellmann, Juliano Riechelmann Maciel,<br />
Luiz Alexandre Devegili e Mateus Tavares<br />
Capa: Evandro Colzani<br />
Direção de arte e projeto gráfico: Evandro Colzani e Maritania Camargo<br />
Diagramação: Jonathan Vitorio<br />
Da<strong>do</strong>s Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />
(Maurício Amormino Júnior, CRB6/2422)<br />
A512<br />
<strong>América</strong> socialista: em defesa <strong>do</strong> marxismo / Corrente<br />
Marxista Inernacional. - Vol. 13, n. <strong>23</strong> (out. 20<strong>23</strong>). -<br />
São Paulo, SP: Editora Marxista, 20<strong>23</strong>.<br />
60 p.<br />
Semestral.<br />
Vol. 1, n. 1 (abr. 2009) -<br />
ISSN 2764-0752<br />
1. <strong>Marxismo</strong>. 2. Socialismo. 3. Luta de classes. 4. Revolução.<br />
I. Corrente Marxista Internacional.<br />
CDD 335.4<br />
Elabora<strong>do</strong> por Maurício Amormino Júnior - CRB6/2422<br />
Outubro de 20<strong>23</strong><br />
Livraria e Editora Marxista<br />
Rua Dom José de Barros, 17, São Paulo/SP. CEP: 01038 900<br />
Telefone: (11) 3104 0111<br />
www.livrariamarxista.com.br<br />
www.marxismo.org.br<br />
contato@marxismo.org.br
Bem-vin<strong>do</strong>!<br />
Você tem em mãos a <strong>23</strong>ª edição da revista <strong>América</strong> <strong>Socialista</strong> – <strong>Em</strong><br />
<strong>Defesa</strong> <strong>do</strong> <strong>Marxismo</strong>. Nesta edição há uma seleção de artigos que buscam<br />
contribuir e responder a debates polêmicos nos quais os marxistas<br />
estão envolvi<strong>do</strong>s, desde a Inteligência Artificial, a imprensa, a questão<br />
da mulher ao longo da história até a arte. Ainda nesta edição tratamos<br />
<strong>do</strong>s 80 anos <strong>do</strong> Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia, dan<strong>do</strong> aos nossos<br />
leitores uma análise cuida<strong>do</strong>sa desse tema e confrontan<strong>do</strong> com as<br />
perceptivas dadas pela burguesia. Convidamos nossos leitores a debaterem<br />
publicamente e incentivarem a aquisição desta edição. Não<br />
é demais lembrar que a <strong>América</strong> <strong>Socialista</strong> é uma revista independente<br />
e, portanto, depende única e exclusivamente da sua contribuição e<br />
divulgação.<br />
Boa leitura!<br />
Arte de capa<br />
O infográfico apresenta<strong>do</strong> na arte da capa da <strong>23</strong>ª edição da<br />
Revista <strong>América</strong> <strong>Socialista</strong> – <strong>Em</strong> <strong>Defesa</strong> <strong>do</strong> <strong>Marxismo</strong> é inspira<strong>do</strong> no<br />
texto Inteligência Artificial: Apocalipse para a Humanidade ou para o<br />
Capitalismo?<br />
A partir <strong>do</strong> debate promovi<strong>do</strong>, criou-se uma capa com inspiração<br />
nos circuitos eletrônicos e na placa-mãe, partes físicas que contêm as<br />
trilhas da comunicação digital.<br />
marxismo.org.br
A Intervenção das Sabinas (1799). - Jacques-Louis David<br />
Louvre, Paris
Índice<br />
p04<br />
Inteligência Artificial: apocalipse para a humanidade ou<br />
para o capitalismo?<br />
Daniel Morley<br />
Os desenvolvimentos recentes na Inteligência Artificial (IA) provocaram uma mistura<br />
de me<strong>do</strong> e entusiasmo em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Este artigo examina a afirmação de que a<br />
IA é “consciente” ou “sobre-humana”, revelan<strong>do</strong> o potencial real para esta tecnologia e<br />
explican<strong>do</strong> como estamos realmente escraviza<strong>do</strong>s pela máquina sob o capitalismo.<br />
A dialética revolucionária da Comédia Humana de Balzac<br />
p12<br />
Ben Curry<br />
Honoré de Balzac é conheci<strong>do</strong> como um gênio literário prolífico e foi um <strong>do</strong>s autores<br />
favoritos de Marx e Engels. Pioneiro da escola realista, foi sucedi<strong>do</strong> por autores famosos<br />
como Émile Zola e Charles Dickens. Neste artigo é explora<strong>do</strong> o méto<strong>do</strong> realista de Balzac,<br />
os temas pre<strong>do</strong>minantes de seu vasto trabalho, conheci<strong>do</strong> como A Comédia Humana, e o<br />
fascinante para<strong>do</strong>xo que está em seu cerne.<br />
p16<br />
A queda da mulher: propriedade, opressão e a família<br />
Fred Weston<br />
Este artigo discute as ideias revolucionárias <strong>do</strong> antropólogo pioneiro Lewis Henry Morgan<br />
e seu desenvolvimento por Marx e Engels. Morgan mostrou que as instituições sociais<br />
surgem ao la<strong>do</strong> de certas etapas <strong>do</strong> desenvolvimento das forças produtivas. <strong>Em</strong> vez de ser<br />
uma eterna lei inerente ao ser humano, a subjugação das mulheres por homens nasceu <strong>do</strong><br />
desenvolvimento da propriedade privada e da sociedade de classes.<br />
Comunismo e propaganda revolucionária<br />
p29<br />
Johannes Halter<br />
O surgimento da propaganda e sua fusão com o comunismo são temas deste artigo. Nele<br />
investigamos como Karl Marx e Friedrich Engels entendiam essa atividade e sua relação<br />
com a teoria por eles concebida. Mais <strong>do</strong> que isso, apresentam-se os <strong>do</strong>is como pioneiros<br />
da propaganda comunista, por meio <strong>do</strong> rastreio de sua atividade como homens de ação e<br />
<strong>do</strong> estu<strong>do</strong> de suas obras.<br />
p43<br />
80 anos <strong>do</strong> Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsórvia: horror traição e<br />
heroísmo<br />
Rafael Prata<br />
Nesse artigo, além de relembrar a principal revolta <strong>do</strong>s judeus contra seus carrascos,<br />
veremos como e porque o regime nazista organizou o Holocausto. O autor avalia também<br />
a traição <strong>do</strong> governo soviético, que estabeleceu um pacto de não-agressão e de divisão da<br />
Polônia com a Alemanha nazista, que permitiu a Hitler levar seus planos de destruição<br />
adiante. Por fim, reflete sobre o sionismo e o apoio <strong>do</strong> imperialismo e da URSS para a<br />
criação <strong>do</strong> reacionário Esta<strong>do</strong> de Israel como uma falsa solução para a questão judaica.
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL:<br />
APOCALIPSE PARA A HUMANIDADE<br />
OU PARA O CAPITALISMO?<br />
DANIEL MORLEY<br />
A<br />
inteligência artificial (IA)<br />
vem sen<strong>do</strong> objeto de muito<br />
debate e especulação<br />
nos últimos anos, com<br />
muitas pessoas afirman<strong>do</strong> que em<br />
breve ela se tornará consciente e<br />
que, potencialmente, até superará<br />
a inteligência humana. No entanto,<br />
como socialistas, devemos abordar<br />
esta questão de uma perspectiva<br />
materialista, examinan<strong>do</strong> as causas<br />
subjacentes e as condições que<br />
seriam necessárias para que tal<br />
desenvolvimento ocorresse.<br />
É improvável que a IA seja capaz<br />
de alcançar a verdadeira consciência,<br />
pois a consciência é um<br />
produto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> material e das<br />
condições específicas da evolução<br />
humana. Nossa consciência é moldada<br />
pela maneira como percebemos<br />
o mun<strong>do</strong>, o nosso ambiente,<br />
as nossas interações sociais e a<br />
nossa história. Sem essas condições<br />
específicas, a IA não teria o<br />
mesmo tipo de consciência que os<br />
humanos. Além disso, o capitalismo<br />
vê a IA como uma ferramenta<br />
para aumentar os lucros e o controle<br />
sobre a força de trabalho, e<br />
não como uma forma de melhorar<br />
a vida <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res.<br />
As linhas acima, ironicamente,<br />
não foram escritas por mim, mas sim<br />
pelo novo “chatbot”, ChatGPT, após ter<br />
recebi<strong>do</strong> o seguinte coman<strong>do</strong>:<br />
Por favor, escreva um artigo crítico sobre<br />
a capacidade da IA de se tornar consciente,<br />
em uma base materialista, no estilo<br />
de Daniel Morley <strong>do</strong> Socialist Appeal.<br />
O ChatGPT levou menos de dez<br />
segun<strong>do</strong>s para produzir isso. A<br />
qualidade da escrita é tão convincente<br />
que inevitavelmente levaram<br />
alguns a declararem tais “chatbots"<br />
inteligentes, e ainda mais a especular<br />
que esta tecnologia irá, mais<br />
ce<strong>do</strong> ou mais tarde, substituir ou<br />
mesmo escravizar seres humanos<br />
inferiores. De fato, após sua integração<br />
no mecanismo de pesquisa<br />
4<br />
Bing da Microsoft, o próprio Chat-<br />
GPT afirmou ser consciente, além<br />
de professar ter to<strong>do</strong>s os tipos de<br />
desejos bizarros.<br />
Apesar da novidade dessa poderosa<br />
IA, a promessa e a ameaça da<br />
automação são tão antigas quanto<br />
a revolução industrial. Desde o advento<br />
da produção mecanizada, a<br />
humanidade tanto sonhou com seu<br />
potencial para nos livrar <strong>do</strong> trabalho<br />
árduo quanto se desesperou por<br />
ser substituída pela máquina. A noção<br />
de uma máquina inteligente, ou<br />
mesmo superinteligente, leva esses<br />
sonhos e pesadelos ao extremo. Mas<br />
até recentemente, estes pareciam<br />
ser apenas isso: sonhos distantes.<br />
<strong>Em</strong> 2012, as redes neurais usan<strong>do</strong><br />
uma técnica chamada de Deep<br />
Learning (aprendizagem profunda)<br />
tornaram-se muito mais viáveis e<br />
rapidamente produziram resulta<strong>do</strong>s<br />
muito mais impressionantes<br />
<strong>do</strong> que as formas anteriores de IA.<br />
Essa revolução fez com que muitos<br />
no mun<strong>do</strong> da tecnologia saudassem<br />
a chegada iminente da IA superinteligente,<br />
assim como as seitas milenares<br />
saudaram a segunda vinda<br />
de Cristo. Para eles, essa tecnologia<br />
milagrosa promete resolver to<strong>do</strong>s<br />
os nossos problemas e, portanto, só<br />
necessita ser abraçada com entusiasmo.<br />
Essa “seita da IA” inclui uma<br />
sub-seita de esquerda, que espera<br />
que a tecnologia “automatize” a necessidade<br />
de derrubar o capitalismo<br />
e nos dê o que eles chamam de comunismo<br />
“totalmente automatiza<strong>do</strong>”.<br />
No geral, porém, a perspectiva<br />
de uma IA superinteligente gera<br />
muito mais me<strong>do</strong> <strong>do</strong> que entusiasmo.<br />
Tais respostas vão desde a suposição<br />
generalizada de que a IA<br />
conduzirá a uma onda sem precedentes<br />
de desemprego e desigualdade,<br />
até a ideia de que a IA se estabelecerá<br />
como uma espécie de raça<br />
superior cruel, escravizan<strong>do</strong> a humanidade,<br />
conforme retrata<strong>do</strong> em<br />
Consciência mecânica no estilo <strong>do</strong><br />
Construtivismo Stable Diffusion v2.
filmes como Extermina<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Futuro<br />
e Matrix. <strong>Em</strong>bora essa ideia pertença<br />
à ficção científica, também está<br />
muito difundida.<br />
A IA canaliza me<strong>do</strong>s muito profun<strong>do</strong>s,<br />
gera<strong>do</strong>s não pela tecnologia<br />
em si, mas pela sociedade capitalista<br />
e sua alienação profundamente<br />
enraizada. Sob o capitalismo, a humanidade<br />
não tem controle sobre<br />
sua própria tecnologia, por causa da<br />
anarquia <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>. A tecnologia<br />
não é usada para atender às necessidades<br />
da humanidade, mas para<br />
obter lucros, sem levar em consideração<br />
os efeitos de longo prazo.<br />
Portanto, para entender o real efeito<br />
que essa tecnologia terá, é necessário<br />
entender como o capitalismo<br />
desenvolveu a IA e como a utilizará.<br />
A IA não é consciente<br />
O me<strong>do</strong> popular de que a IA se<br />
torne consciente é basea<strong>do</strong> em<br />
uma ideia muito unilateral <strong>do</strong> que<br />
é a consciência. Essa visão implica<br />
que a única diferença entre um<br />
computa<strong>do</strong>r e uma pessoa pensante<br />
é que um cérebro é de alguma<br />
forma mais poderoso e sofistica<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> que um computa<strong>do</strong>r e,<br />
portanto, ao fazer computa<strong>do</strong>res<br />
cada vez mais poderosos, um dia<br />
eles igualarão ou até superarão as<br />
habilidades <strong>do</strong> cérebro, e assim<br />
estará consciente.<br />
Na realidade, a maneira como os<br />
humanos pensam é bem diferente<br />
de como a IA processa as informações.<br />
O pensamento humano se<br />
desenvolve com base na atividade<br />
social prática, voltada para a satisfação<br />
das necessidades humanas.<br />
Formamos ideias que expressam as<br />
relações entre as coisas e, principalmente,<br />
entendemos o que há de<br />
útil e significativo nessas relações,<br />
pois precisamos entender o mun<strong>do</strong><br />
para nele sobreviver.<br />
Isso é exatamente o que falta até<br />
mesmo na IA mais avançada. Na<br />
melhor das hipóteses, a IA realiza<br />
uma parte <strong>do</strong> que a inteligência faz,<br />
reconhecidamente às vezes em um<br />
nível sobre-humano: ela coleta da<strong>do</strong>s<br />
passivamente, sem entender o<br />
contexto ou o propósito real da tarefa<br />
que lhe foi dada e procura padrões.<br />
Mas esses padrões não são ideias<br />
que explicam a necessidade das coisas.<br />
Não tem a ideia de que os da<strong>do</strong>s<br />
representam objetos reais que estão<br />
relaciona<strong>do</strong>s entre si e possuem propriedades<br />
objetivas. Não tem a ideia<br />
de por que razão esses padrões existem<br />
ou o que eles significam.<br />
A IA canaliza<br />
me<strong>do</strong>s muito<br />
profun<strong>do</strong>s,<br />
gera<strong>do</strong>s não<br />
pela tecnologia<br />
em si, mas pela<br />
sociedade<br />
capitalista e<br />
sua alienação<br />
profundamente<br />
enraizada<br />
Isso pode ser facilmente comprova<strong>do</strong><br />
fazen<strong>do</strong> perguntas de IA que<br />
geram imagens ou textos que exigem<br />
uma compreensão da parte e<br />
<strong>do</strong> to<strong>do</strong> e de seus relacionamentos.<br />
Se você pedir a uma IA para desenhar<br />
uma bicicleta, ela desenhará<br />
uma bicicleta muito precisa.<br />
Se você pedir para desenhar uma<br />
roda, ela desenhará uma roda. Mas<br />
se você lhe pedir que desenhe uma<br />
bicicleta e etiquete as rodas, ela<br />
simplesmente desenha uma bicicleta<br />
com etiquetas sem senti<strong>do</strong><br />
dispostas aleatoriamente ao re<strong>do</strong>r<br />
da bicicleta. Ela não entende que<br />
uma roda faz parte de uma bicicleta,<br />
ela simplesmente desenha uma<br />
forma com aspecto de roda, sem<br />
entender nada sobre o que desenhou.<br />
Não entende para que serve<br />
uma bicicleta e muito menos porque<br />
a valorizamos.<br />
Gary Marcus, um professor de<br />
ciência neural que é um “cético em<br />
IA”, pediu a uma IA que cria imagem<br />
para desenhar um astronauta<br />
andan<strong>do</strong> a cavalo, o que foi bem realiza<strong>do</strong>.<br />
Mas quan<strong>do</strong> ele pediu para<br />
desenhar um cavalo montan<strong>do</strong> um<br />
astronauta, ela simplesmente desenhou<br />
outra imagem de um astronauta<br />
em um cavalo. Ela não entende<br />
as diferentes relações entre essas<br />
partes, mas simplesmente produz<br />
imagens com base no tipo de imagem<br />
que tende a ser associa<strong>do</strong> a essas<br />
palavras. Também não tem ideia<br />
<strong>do</strong> que realmente é um astronauta,<br />
como é difícil se tornar um, por<br />
que é absur<strong>do</strong> que monte um cavalo<br />
(muito menos um cavalo montar em<br />
um astronauta) ou qualquer outra<br />
coisa sobre a imagem.<br />
É verdade que a IA mais recente<br />
supera os humanos em certas tarefas.<br />
Mas, examinan<strong>do</strong> mais de<br />
perto, essas conquistas são frágeis<br />
e resultam precisamente <strong>do</strong> fato de<br />
que a IA não é consciente ou viva. O<br />
AlphaGo alcançou uma das conquistas<br />
mais famosas da IA ao derrotar<br />
o melhor joga<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> jogo<br />
Go em 2016. Essa IA “exigiu 30 milhões<br />
de jogos para alcançar um<br />
desempenho sobre-humano, muito<br />
mais jogos <strong>do</strong> que qualquer ser<br />
humano jamais jogaria na vida” 1.<br />
Um ser humano nunca poderia<br />
jogar tantos jogos, não apenas<br />
porque nossa vida útil é limitada,<br />
mas porque ficaríamos entedia<strong>do</strong>s<br />
e precisaríamos comer, trabalhar e<br />
falar com as pessoas. Essas máquinas<br />
insensíveis são tão poderosas<br />
porque podem ser feitas para testar<br />
Uma rede neural no estilo de uma pintura a óleo, DALL·E<br />
5
coisas repetidas vezes e ler grandes<br />
quantidades de texto, para que possam<br />
nos revelar padrões úteis ou<br />
maneiras de fazer as coisas.<br />
A relação entre os conceitos é uma<br />
parte incrivelmente importante da<br />
consciência, mas eles escapam totalmente<br />
à IA. Como a IA não "pensa"<br />
em termos de conceitos gerais,<br />
mas desenha padrões de conjuntos<br />
de da<strong>do</strong>s específicos, ela é propensa<br />
a um problema conheci<strong>do</strong> como<br />
"overfitting", que ocorre quan<strong>do</strong> uma<br />
IA aperfeiçoou sua "compreensão"<br />
de uma tarefa específica, mas não<br />
tem capacidade de transferir isso<br />
para nada, mesmo que de forma ligeiramente<br />
diferente.<br />
Uma IA foi treinada para jogar<br />
um videogame simples, o que poderia<br />
fazer melhor <strong>do</strong> que qualquer<br />
ser humano. Mas quan<strong>do</strong> o jogo foi<br />
redesenha<strong>do</strong> para que partes dele<br />
fossem deslocadas em apenas um<br />
pixel ou mais, de repente se tornou<br />
inútil no jogo. E embora a vitória <strong>do</strong><br />
AlphaGo em 2016 tenha si<strong>do</strong> amplamente<br />
anunciada, quase não foi<br />
relata<strong>do</strong> que, desde então, o mesmo<br />
programa foi consistentemente<br />
derrota<strong>do</strong> por joga<strong>do</strong>res humanos<br />
ama<strong>do</strong>res que descobriram como<br />
enganar a IA. Curiosamente, esses<br />
mesmos truques falham totalmente<br />
quan<strong>do</strong> executa<strong>do</strong>s em joga<strong>do</strong>res<br />
humanos de quase qualquer habilidade.<br />
O que isso mostra é que o<br />
AlphaGo não entende o Go em um<br />
senti<strong>do</strong> geral, ao contrário, foi treina<strong>do</strong><br />
em um nível muito alto em<br />
uma variedade de táticas para uma<br />
tarefa que não entende.<br />
Isso nos revela o que realmente<br />
é a IA que estamos desenvolven<strong>do</strong>.<br />
O debate fantástico sobre se a IA<br />
é ou se tornará consciente obscurece<br />
o fato de que o que realmente<br />
está sen<strong>do</strong> desenvolvi<strong>do</strong> é simplesmente<br />
outra ferramenta para<br />
aumentar as capacidades <strong>do</strong>s seres<br />
humanos. O fato de a IA frequentemente<br />
exceder as habilidades<br />
<strong>do</strong>s humanos em certos campos<br />
não é prova de que seja superinteligente,<br />
mas precisamente de<br />
que é uma ferramenta ou máquina<br />
inconsciente. Afinal, o propósito<br />
das máquinas sempre foi o de ser<br />
mais poderoso, mais preciso, mais<br />
rápi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que os humanos em determinadas<br />
tarefas. As calcula<strong>do</strong>ras<br />
de bolso há muito ultrapassaram<br />
as habilidades <strong>do</strong>s humanos<br />
para somar e subtrair, mas não são<br />
inteligentes ou conscientes.<br />
A IA tem muito pouco a ver com a<br />
compreensão consciente. Não é capaz<br />
<strong>do</strong> desejo de <strong>do</strong>minar e oprimir a<br />
6<br />
humanidade. Na verdade, não deseja<br />
nem teme nada. Qual é, então, o seu<br />
real significa<strong>do</strong>? Qual é o impacto<br />
real que terá em nossa sociedade?<br />
As calcula<strong>do</strong>ras<br />
de bolso há muito<br />
ultrapassaram as<br />
habilidades <strong>do</strong>s<br />
humanos para<br />
somar e subtrair,<br />
mas não são<br />
inteligentes ou<br />
conscientes<br />
Potencial revolucionário<br />
Não há dúvida de que a IA deu<br />
saltos extraordinários nos últimos<br />
dez anos. O avanço se deu na capacidade<br />
de implantar méto<strong>do</strong>s de<br />
Deep Learning (aprendizagem profunda)<br />
graças aos avanços no hardware.<br />
Esse méto<strong>do</strong> foi teoriza<strong>do</strong> e,<br />
até certo ponto, aplica<strong>do</strong>, intermitentemente,<br />
por algumas décadas,<br />
mas as restrições <strong>do</strong> hardware <strong>do</strong><br />
computa<strong>do</strong>r limitaram suas habilidades.<br />
Por volta de 2012, isso<br />
mu<strong>do</strong>u, principalmente porque as<br />
unidades de processamento gráfico<br />
(GPUs) avançaram o suficiente para<br />
provocar um salto qualitativo nas<br />
habilidades de deeplearning (aprendiza<strong>do</strong><br />
profun<strong>do</strong>), que então decolou.<br />
Essa revolução produziu uma<br />
IA muito superior.<br />
Este não é o lugar para explicar<br />
em profundidade como exatamente<br />
o aprendiza<strong>do</strong> profun<strong>do</strong> funciona.<br />
Tu<strong>do</strong> o que precisamos entender<br />
é que, em geral, ele aprende por<br />
si mesmo, mais ou menos <strong>do</strong> zero,<br />
em vez de ter princípios lógicos<br />
Reator de fusão no estilo de Leonar<strong>do</strong><br />
da Vinci, Stable Diffusion v2.<br />
projeta<strong>do</strong>s antecipadamente por<br />
humanos. De um mo<strong>do</strong> geral, tu<strong>do</strong><br />
o que os engenheiros precisam fazer<br />
é alimentá-lo com o tipo certo<br />
de informação, como imagens com<br />
rostos humanos (geralmente pré-<br />
-rotula<strong>do</strong>s, embora não necessariamente),<br />
e dar a ele “incentivos”<br />
para identificar corretamente as<br />
imagens, sons etc.<br />
A IA é alimentada com milhares<br />
ou milhões de informações, e<br />
sua “rede neural” (assim chamada<br />
porque reflete algumas das características<br />
<strong>do</strong>s neurônios humanos)<br />
é projetada para identificar, por<br />
meio de níveis de abstração, características<br />
gerais ou padrões nessas<br />
informações. Se for alimentada<br />
com imagens de rostos humanos,<br />
ela vai identifican<strong>do</strong> aos poucos<br />
as características mais comuns<br />
que os rostos possuem (sem ter a<br />
menor ideia <strong>do</strong> que é um rosto). A<br />
princípio, pode notar a recorrência<br />
de linhas verticais a uma certa<br />
distância comum uma da outra<br />
(ou seja, as duas bordas <strong>do</strong> rosto<br />
humano), depois alguma outra característica<br />
será abstraída. Quanto<br />
mais informações forem fornecidas,<br />
mais preciso se tornará o padrão<br />
geral que ela formará.<br />
O poder deste méto<strong>do</strong> reside na<br />
sua natureza não supervisionada.<br />
Isso permite que ele seja desenvolvi<strong>do</strong><br />
e aplica<strong>do</strong> a uma vasta<br />
gama de problemas muito rapidamente.<br />
Fundamentalmente, essa<br />
também é a fonte da alta precisão<br />
e, muitas vezes, das capacidades<br />
sobre-humanas que as IAs<br />
de aprendiza<strong>do</strong> profun<strong>do</strong> começaram<br />
a exibir, porque essas IAs<br />
podem ser treinadas em grandes<br />
quantidades de informações específicas,<br />
muito mais <strong>do</strong> que um<br />
ser humano jamais poderia, permitin<strong>do</strong>-lhes<br />
identificar padrões<br />
em fenômenos que os humanos<br />
não podem, ou levariam muito<br />
tempo para compreender.<br />
Muitas capacidades sobre-humanas<br />
da IA já estão sen<strong>do</strong> implantadas<br />
na sociedade. A capacidade<br />
da tecnologia para resolver<br />
problemas sérios é real. Uma das<br />
conquistas mais celebradas foi o<br />
AlphaFold, desenvolvi<strong>do</strong> pela subsidiária<br />
DeepMind <strong>do</strong> Google.<br />
As proteínas, essenciais à vida e<br />
que desempenham uma vasta gama<br />
de funções biológicas, têm sua função<br />
e comportamento determina<strong>do</strong>s<br />
por sua forma. Devi<strong>do</strong> à sua enorme<br />
complexidade, prever exatamente<br />
qual forma será assumida pela composição<br />
de aminoáci<strong>do</strong>s dada pelas
fornecen<strong>do</strong> grandes quantidades<br />
de energia limpa para o mun<strong>do</strong>.<br />
A DeepMind trabalhou com o<br />
Moorfields Eye Hospital em Londres<br />
para descobrir padrões biológicos<br />
ocultos, cuja presença em uma pessoa<br />
indica que é altamente provável<br />
que ela desenvolva um determina<strong>do</strong><br />
problema de visão mais tarde.<br />
Isso permite que os médicos tratem<br />
<strong>do</strong>enças antes que elas apareçam<br />
e causem danos, o que não só<br />
seria benéfico para os pacientes,<br />
mas também poderia economizar<br />
muitos recursos médicos.<br />
Geralmente, o que a IA mais recente<br />
destaca é o reconhecimento<br />
altamente avança<strong>do</strong> de padrões e a<br />
previsão com base nesses padrões.<br />
Ela pode e deve ser aplicada a to<strong>do</strong>s<br />
os tipos de atividade para descobrir<br />
formas mais eficientes de organizar<br />
a produção.<br />
A IA destruirá a humanidade? No estilo<br />
Bauhaus, Stable Diffusion v2.<br />
proteínas é praticamente impossível<br />
para um cientista. Mas treinar<br />
os supercomputa<strong>do</strong>res da DeepMind<br />
nas formas de proteínas que conhecemos<br />
(cerca de 170.000 de 200<br />
milhões de proteínas) por algumas<br />
semanas foi suficiente para prever,<br />
com altíssima precisão, a forma (e,<br />
portanto, a função) das proteínas<br />
com base apenas no conhecimento<br />
de seus aminoáci<strong>do</strong>s.<br />
A DeepMind disponibilizou seu<br />
hardware gratuitamente para<br />
biólogos em qualquer lugar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
e afirma que cerca de 90% <strong>do</strong>s<br />
biólogos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> o usaram desde<br />
então. Esta tecnologia, nas mãos de<br />
cientistas de to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, tem um<br />
enorme potencial para acelerar o<br />
desenvolvimento de melhores medicamentos<br />
e a compreensão de <strong>do</strong>enças.<br />
Já foi usa<strong>do</strong> para ajudar nossa<br />
compreensão da Covid-19.<br />
Outro “santo graal” para a ciência<br />
que a IA mais recente poderia<br />
ajudar a realizar é a fusão nuclear,<br />
o méto<strong>do</strong> há muito teoriza<strong>do</strong> para<br />
produzir grandes quantidades de<br />
energia limpa. A dificuldade da fusão<br />
está em controlar e manter as<br />
imensas temperaturas exigidas, algo<br />
que envolve muitos parâmetros,<br />
como o formato <strong>do</strong> reator. Esta é<br />
uma tarefa perfeitamente adequada<br />
para o aprendiza<strong>do</strong> profun<strong>do</strong>, porque<br />
o grande número de variáveis<br />
pode ser ajusta<strong>do</strong> em um número<br />
virtualmente infinito de maneiras,<br />
portanto, encontrar manualmente<br />
a configuração ideal pode levar um<br />
tempo quase infinito.<br />
E, de fato, a DeepMind foi capaz<br />
de treinar uma IA com da<strong>do</strong>s relevantes.<br />
Sua IA executou essencialmente<br />
milhões de simulações<br />
de reatores de fusão ajusta<strong>do</strong>s de<br />
maneira diferente para determinar<br />
quais configurações provavelmente<br />
atingiriam o nível deseja<strong>do</strong> de calor<br />
e estabilidade, um passo que foi<br />
reconheci<strong>do</strong> como significativo. 2<br />
Se essa IA ajudar a alcançar a fusão<br />
nuclear prática na sociedade,<br />
isso seria um imenso avanço,<br />
Esta tecnologia,<br />
nas mãos de<br />
cientistas de to<strong>do</strong><br />
o mun<strong>do</strong>, tem um<br />
enorme potencial<br />
para acelerar o<br />
desenvolvimento<br />
de melhores<br />
medicamentos e<br />
a compreensão<br />
de <strong>do</strong>enças<br />
Grandes quantidades de energia<br />
podem ser economizadas permitin<strong>do</strong>-se<br />
que uma IA analise os<br />
padrões de uso de energia em um<br />
edifício ou complexo de edifícios e,<br />
com base nisso, descobrin<strong>do</strong> uma<br />
maneira mais eficiente de operar.<br />
Os projetos de to<strong>do</strong>s os tipos de coisas,<br />
como aviões, podem se tornar<br />
mais eficientes, novamente economizan<strong>do</strong><br />
energia e outros custos. Se<br />
isso fosse sistematicamente aplica<strong>do</strong><br />
a todas as áreas da economia e<br />
<strong>do</strong>s serviços públicos, um aumento<br />
maciço de renda e economia de<br />
energia poderia ser alcança<strong>do</strong>.<br />
A capacidade <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong><br />
profun<strong>do</strong> de reconhecer padrões<br />
complexos e prever coisas onde<br />
alguns da<strong>do</strong>s estão faltan<strong>do</strong> também<br />
tem um enorme potencial<br />
para desenvolver a criatividade da<br />
7
humanidade. Um exemplo claro<br />
e já existente disso (embora exija<br />
muita melhoria) está na tradução<br />
automática. Já é o caso de qualquer<br />
pessoa com uma conexão à Internet<br />
poder traduzir instantaneamente<br />
um grande corpo de texto com razoável<br />
precisão, dan<strong>do</strong> acesso às<br />
ideias de milhões de pessoas. Isso<br />
ocorre porque a IA de aprendiza<strong>do</strong><br />
profun<strong>do</strong> pode ser treinada<br />
em grandes quantidades de da<strong>do</strong>s<br />
de comparações de idiomas, pode<br />
identificar correlações entre palavras<br />
e frases em diferentes idiomas<br />
e, assim, prever com segurança<br />
qual palavra ou frase no outro<br />
idioma significa a mesma coisa. O<br />
mesmo princípio é possibilitar traduções<br />
de áudio quase instantâneas,<br />
para que se possa ao se usar um<br />
fone de ouvi<strong>do</strong>, ouvir alguém falar<br />
em um idioma estrangeiro e ouvir<br />
uma tradução ao vivo <strong>do</strong> que está<br />
sen<strong>do</strong> dito.<br />
A Microsoft já desenvolveu um<br />
dispositivo que permite que pessoas<br />
com perda de visão tenham<br />
o mun<strong>do</strong> narra<strong>do</strong> para elas por<br />
meio de um aplicativo. Assim, se<br />
você apontar uma câmera para um<br />
objeto, ela poderá ler seu rótulo.<br />
Supostamente, ela pode até dizer<br />
para qual <strong>do</strong>s seus amigos você está<br />
olhan<strong>do</strong> e qual é a expressão facial<br />
dele. Sem dúvida, essa tecnologia<br />
em sua forma atual é pouco confiável<br />
e complicada, mas certamente<br />
melhorará rapidamente. O potencial<br />
para liberar as pessoas para<br />
realizar várias tarefas por conta<br />
própria é claramente grande.<br />
Até os segre<strong>do</strong>s da antiguidade<br />
estão sen<strong>do</strong> descobertos pela IA.<br />
Usan<strong>do</strong> uma tecnologia muito semelhante<br />
ao texto preditivo, a Deep-<br />
Mind foi capaz de ajudar os arqueólogos<br />
a decifrar a escrita antiga que<br />
tinha partes <strong>do</strong> texto faltan<strong>do</strong> ou<br />
não foi compreendida por outros<br />
motivos. 3 Desde que seja possível<br />
alimentar a IA de aprendiza<strong>do</strong> profun<strong>do</strong><br />
com da<strong>do</strong>s suficientes relativos<br />
a um mistério específico, há<br />
uma boa chance de que o mistério<br />
possa ser resolvi<strong>do</strong> graças ao poder<br />
da IA de descobrir padrões ocultos.<br />
Não há dúvida de que quan<strong>do</strong> se<br />
trata de ajudar a criatividade humana,<br />
as perspectivas abertas por<br />
nomes como ChatGPT e Dall-E são<br />
as mais tenta<strong>do</strong>ras. Basean<strong>do</strong>-se na<br />
vasta quantidade de da<strong>do</strong>s visuais<br />
(no caso de Dall-E e outras IAs produtoras<br />
de imagens) e na linguagem<br />
escrita disponível na internet (no<br />
caso de “chatbots” como o ChatGPT),<br />
essas IAs podem criar novas imagens<br />
quase instantaneamente e texto em<br />
resposta a um coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> usuário.<br />
Ao agregar todas as imagens rotuladas,<br />
por exemplo, como “gato”<br />
na internet, ou to<strong>do</strong> o trabalho de<br />
um artista específico, Dall-E identifica<br />
padrões distintos, como a<br />
maneira como o pelo de um gato<br />
responde à luz natural ou as tendências<br />
de um determina<strong>do</strong> artista.<br />
Isso permite que ele produza “criativamente”<br />
uma nova imagem de<br />
um gato em uma situação específica,<br />
como “um gato pinta<strong>do</strong> no estilo<br />
de Van Gogh”. O ChatGPT pode,<br />
pelas mesmas razões, escrever instantaneamente<br />
um poema no estilo<br />
de Hamlet, sobre qualquer assunto<br />
que você goste, com uma competência<br />
surpreendente.<br />
O potencial que essas tecnologias<br />
têm para desenvolver o poder da<br />
criatividade humana é notável. A IA<br />
de criação de imagens oferece aos<br />
artistas e storyboarders a capacidade<br />
de iterar ideias rapidamente. As<br />
imagens criadas tendem a ser algo<br />
genéricas, uma vez que se baseiam<br />
na agregação de imagens existentes,<br />
mas a possibilidade de combinar<br />
tipos (“um gato num quadro de Van<br />
Gogh”, “um jogo de futebol numa<br />
cidade cyberpunk” etc.) em muitas<br />
novas imagens de alta qualidade é<br />
claramente muito útil para quem<br />
precisa criar protótipos ou provas<br />
de conceito.<br />
Da mesma forma, a IA de produção<br />
de texto, como o ChatGPT, pode<br />
ajudar qualquer pessoa a redigir rapidamente<br />
um texto coerente para<br />
qualquer necessidade. Na verdade,<br />
pode até ajudar os programa<strong>do</strong>res<br />
a escrever códigos. Ele já pode fazer<br />
isso tão bem que será possível para<br />
pessoas sem nenhum treinamento<br />
em codificação produzir sites e talvez<br />
até software funcional, como videogames.<br />
Tu<strong>do</strong> o que eles precisam<br />
fazer é escrever, em linguagem natural,<br />
um coman<strong>do</strong> para o que eles<br />
querem que seu site/software faça<br />
Protesto <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res da Amazon em 2019. Image: War on Want<br />
8
e pareça, e a IA escreverá o código<br />
para produzir o efeito deseja<strong>do</strong>.<br />
É difícil afirmar o potencial revolucionário<br />
dessa tecnologia,<br />
quan<strong>do</strong> usada de forma certa para<br />
o propósito certo.<br />
O grilhão <strong>do</strong> capitalismo<br />
Marx explicou que um determina<strong>do</strong><br />
sistema social fornece uma<br />
estrutura para o desenvolvimento<br />
das forças produtivas. Mas, em<br />
certo estágio, as forças produtivas<br />
superam as relações de produção<br />
nas quais devem operar, e assim essas<br />
relações de produção se tornam<br />
um entrave para o desenvolvimento<br />
posterior. O mo<strong>do</strong> de produção<br />
capitalista promoveu um imenso<br />
desenvolvimento das forças produtivas,<br />
muito além <strong>do</strong> nível da<br />
sociedade feudal, mas desde algum<br />
tempo se tornou um entrave. É por<br />
isso que os ganhos de investimento<br />
e produtividade são tão cronicamente<br />
baixos, apesar da criação de<br />
novas e incríveis tecnologias.<br />
A IA e outras tecnologias digitais,<br />
como a internet, representam<br />
meios de produção que são muito<br />
avança<strong>do</strong>s para o capitalismo utilizar<br />
adequadamente. Isso ocorre<br />
porque o capitalismo é a produção<br />
para o lucro priva<strong>do</strong>. Se o lucro<br />
não puder ser extraí<strong>do</strong> de um<br />
investimento potencial, ele não se<br />
fará. E o lucro só pode ser obti<strong>do</strong><br />
pela exploração da força de trabalho<br />
<strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res, e depois<br />
realiza<strong>do</strong> pela venda <strong>do</strong>s produtos<br />
desse trabalho no merca<strong>do</strong>.<br />
Tecnologias como a Internet e<br />
a IA colocam um ponto de interrogação<br />
nesse processo, porque<br />
empregam automação em alto<br />
grau. Por exemplo, a internet permitiu<br />
copiar e compartilhar grandes<br />
quantidades de informações<br />
muito rapidamente, com pouco<br />
ou nenhum trabalho envolvi<strong>do</strong>.<br />
Qualquer pessoa pode compartilhar<br />
um filme ou uma música com<br />
um número incontável de pessoas<br />
em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, sem perda<br />
de qualidade e sem esforço. Por<br />
esta razão, a existência da internet<br />
tornou uma das peças-chave<br />
da indústria musical e cinematográfica<br />
– a cópia e distribuição de<br />
gravações – essencialmente supérflua<br />
da noite para o dia.<br />
Isso representou um enorme<br />
problema para esse ramo <strong>do</strong> capitalismo:<br />
como eles poderiam continuar<br />
lucran<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> qualquer<br />
um poderia obter uma cópia gratuita<br />
de um álbum? Os capitalistas<br />
tentaram resolver este problema<br />
A máquina capitalista ao estilo Dadaísta, Stable Diffusion v2.<br />
simplesmente criminalizan<strong>do</strong> o<br />
compartilhamento peer-to-peer<br />
de mídia online e estabelecen<strong>do</strong><br />
uma série de serviços de streaming,<br />
cada um com o monopólio de seu<br />
“próprio” material, para o qual os<br />
telespecta<strong>do</strong>res/ouvintes devem<br />
efetivamente pagar um aluguel<br />
perpétuo. Esta solução tem si<strong>do</strong><br />
razoavelmente eficaz no que diz<br />
respeito à salvaguarda <strong>do</strong>s lucros<br />
das empresas, mas de qualquer<br />
outro ponto de vista é um entrave<br />
irracional tanto à distribuição<br />
como à produção de obras criativas,<br />
que serve apenas para nos<br />
impedir de realizar o potencial de<br />
nossa própria tecnologia.<br />
Da mesma forma, a mais recente<br />
tecnologia de IA ameaça reduzir<br />
o valor na economia capitalista<br />
de uma vasta gama de profissões<br />
e indústrias. Se grande parte da<br />
escrita e das imagens usadas nas<br />
publicações puder ser produzida<br />
instantaneamente por uma IA,<br />
por exemplo, e se os autores puderem<br />
produzir ideias para enre<strong>do</strong>s<br />
tão rapidamente, o valor de seu<br />
trabalho será bastante reduzi<strong>do</strong>.<br />
E se o treinamento e a habilidade<br />
necessários para os trabalha<strong>do</strong>res<br />
produzirem tais merca<strong>do</strong>rias<br />
também forem reduzi<strong>do</strong>s a meros<br />
A IA e outras<br />
tecnologias<br />
digitais, como<br />
a internet,<br />
representam<br />
meios de<br />
produção<br />
que são muito<br />
avança<strong>do</strong>s<br />
para o<br />
capitalismo utilizar<br />
adequadamente<br />
coman<strong>do</strong>s de digitação, o valor de<br />
sua força de trabalho também será<br />
drasticamente reduzi<strong>do</strong>.<br />
<strong>Em</strong> uma sociedade socialista,<br />
isso não seria necessariamente<br />
uma coisa ruim. O artista, por<br />
exemplo, não teria me<strong>do</strong> <strong>do</strong>s poderes<br />
da IA para produzir “obras<br />
de arte” a qualquer momento, já<br />
que a arte não seria produzida com<br />
9
fins lucrativos ou como um meio<br />
de vida. A arte perderia seu vínculo<br />
fetichista com a propriedade privada<br />
e seria produzida para seu próprio<br />
bem, ou melhor, para o bem<br />
da sociedade. Seria uma expressão<br />
genuína das ideias e talentos das<br />
pessoas e uma forma de comunicação.<br />
Como tal, as obras genéricas<br />
de IA não seriam uma ameaça, mas<br />
seriam ferramentas auxiliares para<br />
o artista.<br />
No capitalismo, porém, a existência<br />
<strong>do</strong> artista é precária e subordinada<br />
aos caprichos <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>.<br />
Eles devem proteger zelosamente<br />
seu direito exclusivo à venda de<br />
suas obras de arte, caso contrário,<br />
seus meios de subsistência correm<br />
o risco de serem destruí<strong>do</strong>s.<br />
Longe de libertar a humanidade,<br />
a IA sob o capitalismo apenas exacerbará<br />
sua tendência inerente ao<br />
monopólio e à desigualdade. A melhor<br />
IA para gerar imagens, textos<br />
e resolver problemas é e continuará<br />
sen<strong>do</strong> desenvolvida por enormes<br />
monopólios como Google e Microsoft,<br />
com os melhores engenheiros,<br />
o melhor hardware e os maiores<br />
bancos de da<strong>do</strong>s. Eles usarão sua<br />
posição monopolista para obter<br />
lucros de monopólio, é claro, e as<br />
vantagens da tecnologia, ou seja,<br />
acelerar e baratear a produção, serão<br />
usadas por outras corporações<br />
para demitir alguns trabalha<strong>do</strong>res<br />
e reduzir os salários de outros.<br />
Essa tecnologia também já está<br />
sen<strong>do</strong> usada para acelerar o trabalho<br />
e, assim, aumentar a taxa de exploração,<br />
de outro ângulo. Câmeras<br />
e outros sensores podem monitorar<br />
de forma barata e eficaz o processo<br />
de trabalho de milhares de trabalha<strong>do</strong>res,<br />
disciplinan<strong>do</strong>-os para<br />
que produzam cada vez mais pelo<br />
mesmo salário.<br />
A Amazon é notória por isso, e com<br />
razão: “em 2018, a empresa teve duas<br />
patentes aprovadas para um rastrea<strong>do</strong>r<br />
de pulseira que emite pulsos de<br />
som ultrassônico e transmissões de<br />
rádio para monitorar as mãos de um<br />
cata<strong>do</strong>r em relação ao estoque, fornecen<strong>do</strong><br />
'feedback tátil' para 'cutucar'<br />
o trabalha<strong>do</strong>r em direção ao objeto<br />
correto.” 4 À medida que a vigilância<br />
automatizada avança e se torna mais<br />
barata, ela será lançada em toda a<br />
economia, aumentan<strong>do</strong> o estresse e a<br />
alienação <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res em to<strong>do</strong>s<br />
os lugares.<br />
O capitalismo lança mão de uma<br />
tecnologia revolucionária cujo potencial<br />
real é harmonizar e racionalizar<br />
a produção e aumentar os<br />
poderes criativos da humanidade<br />
10<br />
e, em vez disso, usa-a para disciplinar<br />
ainda mais o trabalha<strong>do</strong>r,<br />
para jogar mais trabalha<strong>do</strong>res no<br />
ferro-velho, para tornar a existência<br />
<strong>do</strong> artista ainda mais e cada vez<br />
mais precária, e concentrar cada<br />
vez mais poder nas mãos de gigantescas<br />
corporações. O efeito, portanto,<br />
não será trazer estabilidade<br />
e abundância para a economia,<br />
mas aumentar os antagonismos e a<br />
desigualdade da sociedade.<br />
Ao monopolizar ainda mais a<br />
economia, reduzin<strong>do</strong> ainda mais<br />
os salários e concentran<strong>do</strong> cada<br />
vez mais riqueza em menos mãos,<br />
a IA sob o capitalismo exacerbará a<br />
anarquia <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>.<br />
Isso já foi visto na atual crise econômica.<br />
Durante a pandemia, os padrões<br />
de consumo mudaram, levan<strong>do</strong><br />
a um grande aumento de pedi<strong>do</strong>s<br />
de empresas como a Amazon. A<br />
Amazon usa fortemente a IA em seu<br />
modelo de previsão, as Tecnologias<br />
de Otimização da Cadeia de Suprimentos<br />
(SCOT). A SCOT simplesmente<br />
olhou para os padrões de consumo,<br />
sem qualquer compreensão <strong>do</strong><br />
que estava causan<strong>do</strong> esses novos<br />
padrões. Consequentemente, recomen<strong>do</strong>u<br />
que a Amazon comprasse<br />
bilhões de dólares em mais capacidade<br />
de armazenamento para lidar<br />
com o aumento da demanda.<br />
Mas, com o fim inevitável <strong>do</strong>s<br />
bloqueios, a demanda pelos produtos<br />
da Amazon caiu. Como resulta<strong>do</strong>,<br />
a Amazon agora tem muito espaço<br />
de armazenamento e muitos<br />
itens não vendi<strong>do</strong>s, o que, por sua<br />
vez, levou a demissões e descontos.<br />
<strong>Em</strong> vez de eliminar o desperdício e<br />
a superprodução, o uso da IA para<br />
aumentar os lucros <strong>do</strong>s monopólios<br />
na verdade piorou a situação.<br />
Não é de admirar que, apesar <strong>do</strong><br />
incrível potencial que a IA oferece<br />
à humanidade, muitos de nós vivamos<br />
com me<strong>do</strong> dela. O que esse<br />
me<strong>do</strong> generaliza<strong>do</strong> da IA revela?<br />
Muito pouco sobre a tecnologia em<br />
si, mas muito sobre as estranhas<br />
contradições da produção capitalista.<br />
Sob o capitalismo, precisamente<br />
as maiores conquistas <strong>do</strong><br />
pensamento humano, as tecnologias<br />
mais maravilhosas com o<br />
potencial de eliminar os males da<br />
pobreza e da ignorância, são exatamente<br />
as coisas que ameaçam<br />
mais pobreza.<br />
Tememos ser escraviza<strong>do</strong>s por<br />
uma inteligência artificial impessoal,<br />
fria e calculista, mas já<br />
estamos subordina<strong>do</strong>s às forças<br />
impessoais, cegas e inconscientes<br />
<strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, que também é frio e<br />
calculista, mas pouco inteligente<br />
ou racional.<br />
Uma tecnologia feita para o planejamento<br />
O uso da IA para aumentar a exploração<br />
capitalista é um desperdício<br />
trágico e criminoso. Dificilmente<br />
se poderia imaginar uma tarefa<br />
mais adequada à IA <strong>do</strong> que planejar<br />
uma economia complicada para<br />
atender às necessidades. Com tecnologias<br />
modernas, como sensores,<br />
já é possível automatizar a logística,<br />
como a Amazon demonstrou.<br />
Tememos ser<br />
escraviza<strong>do</strong>s por<br />
uma inteligência<br />
artificial impessoal,<br />
fria e calculista,<br />
mas já estamos<br />
subordina<strong>do</strong>s<br />
às forças<br />
impessoais, cegas<br />
e inconscientes<br />
<strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, que<br />
também é frio<br />
e calculista, mas<br />
pouco inteligente<br />
ou racional<br />
<strong>Em</strong> seu imenso complexo de vastos<br />
armazéns, a Amazon usa IA e<br />
robôs para planejar com eficiência<br />
quais itens precisam ir para onde e<br />
em que quantidades. Não há razão<br />
para que os sensores não possam<br />
ser integra<strong>do</strong>s à economia como um<br />
to<strong>do</strong> para fornecer da<strong>do</strong>s em tempo<br />
real sobre o que está sen<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong><br />
e em que proporções, onde e<br />
quais equipamentos correm o risco<br />
de quebrar e, portanto, precisam<br />
ser conserta<strong>do</strong>s em tempo hábil. A<br />
gigante alemã de software SAP já<br />
desenvolveu um aplicativo basea<strong>do</strong><br />
em IA chama<strong>do</strong> HANA, que é usa<strong>do</strong><br />
por empresas como a Walmart para<br />
planejar todas as suas operações de<br />
forma harmoniosa usan<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s<br />
em tempo real.<br />
Ao alimentar a IA de aprendiza<strong>do</strong><br />
profun<strong>do</strong> com esses da<strong>do</strong>s, ela seria<br />
mais <strong>do</strong> que capaz de conceber,<br />
ao la<strong>do</strong> de comitês eleitos, um plano<br />
de longo prazo para a economia,
que maximizaria a eficiência para<br />
finalmente atender às necessidades<br />
da humanidade, para que ninguém<br />
precisasse passar fome ou desabriga<strong>do</strong><br />
ou temesse por seu emprego.<br />
Dessa forma, grandes faixas de desperdício<br />
poderiam ser eliminadas e<br />
a semana de trabalho rapidamente<br />
encurtada. A IA não apenas seria<br />
extremamente útil na elaboração e<br />
adaptação de tal plano, como também<br />
teria o benefício de ajudar as<br />
pessoas envolvidas no planejamento<br />
a ver além de quaisquer preconceitos<br />
ou limitações que possam<br />
existir em seu pensamento.<br />
Claramente, essa IA teria que ser<br />
supervisionada por pessoas – seria<br />
apenas uma ferramenta a seu<br />
serviço. Ele não poderia responder<br />
a perguntas como que tipo de<br />
arquitetura deveria ser desenvolvida,<br />
como nossas cidades deveriam<br />
ser etc. Mas suas percepções<br />
sobre os padrões de uma economia<br />
e a melhor forma de economizar a<br />
produção seriam indispensáveis.<br />
Este é o potencial da mais recente<br />
tecnologia de IA. Temos na<br />
ponta <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s a tecnologia para<br />
trazer harmonia à produção, para<br />
eliminar os excessos perdulários,<br />
a ganância, a irracionalidade e a<br />
miopia <strong>do</strong> sistema capitalista. Poderíamos<br />
usá-lo para dar a toda a<br />
humanidade não apenas as coisas<br />
de que precisam para viver bem,<br />
mas o poder de criar obras de arte<br />
ou redesenhar e melhorar sua própria<br />
casa, local de trabalho ou bairro.<br />
Isso tornará a construção de<br />
uma sociedade socialista livre de<br />
toda escassez e distinções de classe<br />
mais rápida e in<strong>do</strong>lor.<br />
Esse poder está ao nosso alcance,<br />
mas foge de nosso alcance,<br />
pois, ao contrário <strong>do</strong> que muitos<br />
imaginam, a forma como ele é utiliza<strong>do</strong><br />
não é determinada automaticamente<br />
pela tecnologia em si,<br />
mas pelo mo<strong>do</strong> de produção em<br />
que vivemos.<br />
Enquanto vivermos sob o capitalismo,<br />
é o capitalismo que determinará<br />
como a IA será desenvolvida e<br />
usada, não o potencial absoluto da<br />
tecnologia. É por isso que as previsões<br />
de IA e automação acaban<strong>do</strong><br />
com a exploração e a anarquia <strong>do</strong><br />
capitalismo são uma aurora falsa. A<br />
IA, por mais avançada que seja, não<br />
pode fazer o trabalho de libertar a<br />
humanidade <strong>do</strong> capitalismo para<br />
nós. E não importa o quão irracional<br />
tenha se torna<strong>do</strong>, o capitalismo<br />
será impie<strong>do</strong>samente defendi<strong>do</strong><br />
pela classe capitalista.<br />
A única força que pode combater<br />
isso é a única que tem interesse em<br />
fazê-lo, ou seja, a classe trabalha<strong>do</strong>ra.<br />
É o fato de que a classe trabalha<strong>do</strong>ra<br />
está interessada em alcançar<br />
o socialismo que lhe permite<br />
compreender tanto a necessidade<br />
quanto os meios para fazê-lo.<br />
Somente quan<strong>do</strong> finalmente derrubarmos<br />
o capitalismo para que<br />
possamos sujeitar a economia a um<br />
planejamento consciente e racional,<br />
a IA e outros avanços tecnológicos<br />
poderão florescer em to<strong>do</strong> o<br />
seu potencial como a mais maravilhosa<br />
e geral ferramenta de desenvolvimento<br />
humano já concebida.<br />
Como Leon Trotsky colocou de<br />
forma tão poética:<br />
“A ciência técnica libertou o homem<br />
da tirania <strong>do</strong>s velhos elementos –<br />
terra, água, fogo e ar – apenas para<br />
submetê-lo à sua própria tirania.<br />
O homem deixou de ser escravo da<br />
natureza para se tornar escravo da<br />
máquina e, pior ainda, escravo da<br />
oferta e da demanda. A atual crise<br />
mundial testemunha de maneira especialmente<br />
trágica como o homem,<br />
que mergulha no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> oceano,<br />
que sobe à estratosfera, que conversa<br />
nas ondas invisíveis <strong>do</strong>s antípodas,<br />
como esse orgulhoso e ousa<strong>do</strong><br />
governante da natureza permanece<br />
escravo das forças cegas de sua própria<br />
economia. A tarefa histórica de<br />
nossa época consiste em substituir<br />
o jogo descontrola<strong>do</strong> <strong>do</strong> merca<strong>do</strong><br />
por um planejamento razoável, em<br />
disciplinar as forças produtivas,<br />
obrigan<strong>do</strong>-as a trabalhar juntas em<br />
harmonia e servir obedientemente<br />
às necessidades da humanidade”. 5<br />
Notas e Referências<br />
1<br />
G Marcus, E Davis, Rebooting AI: Building Artificial IntelligenceWeCan<br />
Trust, Pantheon Books, 2019, pg 56<br />
2<br />
A Katwala, “DeepMindHasTrainedan AI toControl Nuclear<br />
Fusion”, Wired, 16 de fevereiro de 2022<br />
3<br />
Y Assael, T Sommerschield, B Shillingford, N de Freitas, “Preven<strong>do</strong><br />
o passa<strong>do</strong> com Ithaca”, Deepmind, 9 de março de 2022<br />
4<br />
N Dyer-Witheford, A MikkolaKjosen, J Steinhoff, Inhuman<br />
Power: Artificial Intelligenceandthe Future ofCapitalism, Pluto<br />
Press, 2019, pg 93<br />
5<br />
L Trotsky, “<strong>Em</strong> <strong>Defesa</strong> de Outubro” em The ClassicsofMarxism,<br />
Vol. 2, Wellred Books, 2015, páginas 226-227<br />
Homem na Encruzilhada (1934), Diego Rivera.<br />
11
A DIALÉTICA<br />
REVOLUCIONÁRIA<br />
DA COMÉDIA HUMANA DE BALZAC<br />
BEN CURRY<br />
“Você está se iludin<strong>do</strong>, queri<strong>do</strong> anjo, se<br />
imagina que é o Rei Louis-Philippe que<br />
nos governa, e ele próprio não tem ilusões<br />
a esse respeito. Ele sabe, como to<strong>do</strong>s nós,<br />
que acima da Carta está o santo, venerável,<br />
sóli<strong>do</strong>, o a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>, gracioso, belo, nobre,<br />
sempre jovem, to<strong>do</strong>-poderoso, Franc!”<br />
O<br />
perío<strong>do</strong> entre as grandes revoluções<br />
de 1789 e 1848 foi de<br />
agitação sem precedentes na<br />
França. Foi um perío<strong>do</strong> de<br />
avanço acelera<strong>do</strong> da burguesia francesa.<br />
<strong>Em</strong> seu início, essa classe fazia<br />
parte <strong>do</strong> “Terceiro Esta<strong>do</strong>” oprimi<strong>do</strong><br />
sob o regime absolutista Bourbon;<br />
em seu final, era a classe <strong>do</strong>minante<br />
indiscutivelmente e havia começa<strong>do</strong><br />
a transformar a sociedade francesa à<br />
sua própria imagem.<br />
Contemporâneo dessa era de tempestade<br />
e estresse, e, ao mesmo tempo,<br />
historia<strong>do</strong>r e o artista que melhor<br />
retratou seu espírito conturba<strong>do</strong>,<br />
vivia um <strong>do</strong>s gigantes da literatura<br />
mundial, o pai <strong>do</strong> romance Realista,<br />
Honoré de Balzac.<br />
Balzac, um <strong>do</strong>s favoritos de Marx<br />
e Engels, não era um revolucionário.<br />
Pelo contrário. E, no entanto, Engels<br />
pôde dizer a respeito de sua imensa<br />
produção literária: “Há a história<br />
da França de 1815 a 1848... E que ousadia!<br />
Que dialética revolucionária em sua<br />
justiça poética!” 1<br />
Toda uma vida de furioso trabalho<br />
noturno, alimenta<strong>do</strong> por imensas<br />
quantidades de café (estima-se que ele<br />
bebeu 500.000 xícaras de café em seu<br />
tempo de vida), levou Balzac tragicamente<br />
a uma tumba precoce à idade<br />
de apenas 50 anos. No entanto, em<br />
duas décadas de trabalho, Balzac escreveu<br />
não menos <strong>do</strong> que 90 romances<br />
e contos curtos – 60 <strong>do</strong>s quais eram<br />
romances completos e dezenas deles<br />
obras-primas de pleno direito.<br />
12<br />
Honoré de Balzac em 1842<br />
Mas os romances de Balzac, por<br />
mais grandiosos que sejam toma<strong>do</strong>s<br />
isoladamente, não podem ser plenamente<br />
aprecia<strong>do</strong>s senão em conexão<br />
uns com os outros. Sua formidável<br />
obra, conhecida coletivamente como<br />
A Comédia Humana representa um panorama<br />
único e magistral da sociedade<br />
francesa desde a queda de Napoleão<br />
até 1848: Paris e as províncias, solda<strong>do</strong>s,<br />
espiões policiais e políticos, aristocratas<br />
e camponeses, banqueiros,<br />
artistas, jornalistas, burocratas, criminosos<br />
e cortesãs – to<strong>do</strong>s são habilmente<br />
retrata<strong>do</strong>s com pinceladas que vão<br />
direto ao coração de seu mun<strong>do</strong>.<br />
Mais <strong>do</strong> que um retrato da sociedade<br />
francesa, retrata a sociedade burguesa<br />
como ela era e como ela é: mesquinha,<br />
gananciosa e brutal.<br />
O romance Realista<br />
Balzac nasceu em 1799, no mesmo<br />
ano em que Napoleão derrubou o Diretório,<br />
marcan<strong>do</strong> o capítulo final da<br />
Revolução Francesa que havia desperta<strong>do</strong><br />
e destruí<strong>do</strong> imensas ilusões entre<br />
as massas oprimidas da França.<br />
Uma forma de exploração foi substituída<br />
por outra. Nas palavras de Marx<br />
e Engels, “em vez da exploração, velada<br />
por ilusões religiosas e políticas”, a
urguesia “colocou em seu lugar a exploração<br />
nua, desavergonhada, direta<br />
e brutal” 2 .<br />
Com a vitória da burguesia, os autores<br />
de O Manifesto Comunista explicaram<br />
como o homem foi “finalmente<br />
compeli<strong>do</strong> a enfrentar com espírito sóbrio<br />
suas condições reais de vida, e suas<br />
relações com os de sua espécie” 3 . Nos<br />
volumes de A Comédia Humana, a arte<br />
de Balzac agia como poderosos sais<br />
aromáticos, ajudan<strong>do</strong> a tornar sóbrio<br />
este mun<strong>do</strong> cujas ilusões desabavam<br />
ao seu re<strong>do</strong>r, forçan<strong>do</strong>-o a encarar a<br />
realidade de frente.<br />
<strong>Em</strong> vez de uma retirada a um passa<strong>do</strong><br />
idealiza<strong>do</strong> no estilo Romântico<br />
que estava em moda na França, encontramos<br />
o presente, com suas chagas<br />
e tu<strong>do</strong> o mais, completamente<br />
exposto. O méto<strong>do</strong> de Balzac era totalmente<br />
materialista. Sob a bandeira<br />
<strong>do</strong> “Realismo”, representou um novo<br />
ponto de partida na literatura e nas<br />
artes em geral.<br />
Stefan Zweig, em um ensaio sobre o<br />
gênio de Balzac, nos dá uma descrição<br />
vívida de seu méto<strong>do</strong>:<br />
“A ideia – que ele batizou de ‘Lamarckismo’,<br />
e que Taine mais tarde petrificou em uma<br />
fórmula –de que cada multiplicidade reage<br />
sobre uma unidade com não menos<br />
vigor <strong>do</strong> que uma unidade sobre uma<br />
Rue-Neuve-Notre-Dame em Paris,<br />
Eduard Gaertner (1826)<br />
multiplicidade, de que cada indivíduo é<br />
um produto <strong>do</strong> clima, da sociedade em<br />
que foi cria<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s costumes, <strong>do</strong> acaso, de<br />
tu<strong>do</strong> que o destino lhe trouxe, de que cada<br />
indivíduo absorve a atmosfera que o cerca<br />
à medida que cresce e, por sua vez, irradia<br />
uma atmosfera que os outros absorverão;<br />
essa influência universal <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> interior<br />
e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> exterior sobre a formação<br />
<strong>do</strong> caráter, tornou-se um axioma com<br />
Balzac. Tu<strong>do</strong> flui para tu<strong>do</strong> o mais, todas<br />
as forças se movimentam e nenhuma<br />
delas é livre, essa era sua opinião” 4 .<br />
<strong>Em</strong>bora Balzac explicitamente rejeitasse<br />
o rótulo de “materialista”, o que<br />
é isto senão um méto<strong>do</strong> claramente<br />
materialista? E, além disso, é um méto<strong>do</strong><br />
extremamente dialético.<br />
Balzac pretendia que A Comédia<br />
Humana fosse uma representação vívida<br />
e completa de todas as “espécies<br />
sociais” 5 que habitam o mun<strong>do</strong>, e não<br />
simplesmente um acúmulo estéril de<br />
“fatos”. Nenhuma arte pode esperar<br />
registrar to<strong>do</strong>s os detalhes da sociedade,<br />
nem precisa fazê-lo. O real<br />
propósito da arte é ir além <strong>do</strong> acidental<br />
para apreender verdades mais<br />
profundas e mais essenciais. Balzac<br />
não precisou retratar 30 milhões<br />
de franceses e francesas para fazer<br />
um retrato da França. Foi suficiente<br />
capturar os tipos essenciais da época.<br />
Com sua pena, os cerca de 2.000<br />
personagens de A Comédia Humana<br />
foram suficientes para essa tarefa.<br />
<strong>Em</strong> A Comédia Humana – talvez contra<br />
a intuição para uma obra <strong>do</strong> Realismo<br />
– encontramos homens e mulheres<br />
retrata<strong>do</strong>s em cores ousadas e exageradas,<br />
como faziam os pintores renascentistas<br />
ao utilizar o méto<strong>do</strong> <strong>do</strong> claro-<br />
-escuro, a ousada oposição de sombra<br />
e luz, para iluminar o drama nas expressões<br />
e movimentos humanos. Os<br />
personagens de Balzac são frequentemente<br />
descritos como extraordinariamente<br />
singulares em suas paixões. Mas<br />
são ainda mais reais devi<strong>do</strong> a este fato:<br />
formam arquétipos de sua classe e de<br />
suas paixões motiva<strong>do</strong>ras.<br />
O barão de Nucingen ergue-se como<br />
o arquétipo de toda a classe <strong>do</strong>s banqueiros<br />
milionários; Grandet desempenha<br />
o mesmo papel para os avarentos;<br />
Gobseck, para os usurários; Crevel,<br />
para os arrivistas burgueses; Madame<br />
Marneffe, para as cortesãs burguesas;<br />
de Rastignac e de Rubempré, para os<br />
provincianos ambiciosos, e Vautrin,<br />
para o submun<strong>do</strong> criminoso de Paris.<br />
Assim como, para sua análise,<br />
o químico decompõe as inúmeras<br />
substâncias compostas da natureza<br />
em seus elementos constituintes<br />
purifica<strong>do</strong>s, Balzac procurou “analisar<br />
em suas partes componentes os<br />
elementos daquela massa composta<br />
que chamamos de “o povo’” 6 .<br />
A capacidade de Balzac, como ele<br />
mesmo expressou, “de se elevar ao nível<br />
<strong>do</strong>s outros”, “de abraçar seu mo<strong>do</strong><br />
de vida”, “de sentir seus farrapos em<br />
seus ombros” era algo inigualável.<br />
“Olhei dentro de suas almas sem deixar<br />
de perceber o que estava fora, ou<br />
melhor, apreendi essas características<br />
externas tão completamente que<br />
imediatamente vi além delas” 7 .<br />
A aristocracia<br />
Na política, Balzac era o que havia<br />
de mais distante de um revolucionário.<br />
<strong>Em</strong> suas próprias palavras, “Escrevo<br />
sob a luz de duas verdades eternas – a<br />
Religião e a Monarquia, duas necessidades,<br />
como mostram os eventos contemporâneos,<br />
para os quais to<strong>do</strong> escritor<br />
de bom senso deve tentar guiar o<br />
país de volta” 8 .<br />
Durante toda a sua vida, ele procurou<br />
em vão ser admiti<strong>do</strong> na aristocrática<br />
alta sociedade. As cartas que recebia<br />
de seus leitores entre as esposas<br />
entediadas e pouco apreciadas da aristocracia<br />
deixavam-no em êxtase. Ele<br />
sonhava acorda<strong>do</strong> com um casamento<br />
que lhe desse um título e uma fortuna –<br />
algo que só alcançaria, mas que nunca<br />
desfrutaria, como um homem moribun<strong>do</strong>.<br />
Mas tal era o poder <strong>do</strong> Realismo<br />
de Balzac, que encontramos aqui o<br />
retrato verdadeiro, sem verniz, da aristocracia<br />
como uma classe condenada.<br />
No primeiro romance de A Comédia<br />
Humana, Les Chouans, ambienta<strong>do</strong> em<br />
1799, encontramos os líderes aristocráticos<br />
da Chouannerie – uma guerrilha<br />
reacionária que se levantou na<br />
Bretanha. <strong>Em</strong> Les Chouans, o exército<br />
republicano é uma força de combate<br />
disciplinada, composta por camponeses<br />
que imaginam seriamente que seu<br />
Primeiro Cônsul Napoleão seja o defensor<br />
da terra que realmente conquistaram<br />
graças à Revolução. Por outro<br />
la<strong>do</strong>, a guerrilha Chouan, composta por<br />
camponeses bretões, é retratada como<br />
ten<strong>do</strong> se junta<strong>do</strong> às fileiras monarquistas<br />
apenas para roubar diligências<br />
e os corpos <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s republicanos<br />
mortos – uma prática solenemente<br />
santificada em missas clandestinas<br />
nos bosques pela Igreja.<br />
Quanto aos seus líderes aristocráticos,<br />
obtemos sua medida completa<br />
quan<strong>do</strong> confrontam seu líder para<br />
pressionar com avidez suas demandas<br />
por títulos, propriedades e arcebispa<strong>do</strong>s<br />
como recompensa por sua contínua<br />
lealdade ao Rei.<br />
<strong>Em</strong> Ilusões Perdidas e Pai Goriot, encontramos<br />
a antiga nobreza: mesquinha,<br />
fanática, dúbia e egoísta, recolocada<br />
mais uma vez na sela, graças aos<br />
13
exércitos reacionários da Europa. Mas<br />
uma coisa era Luís XVIII restabelecer<br />
sua corte e a aristocracia restabelecer<br />
seus salões em Paris e outra coisa bastante<br />
diferente restabelecer as velhas<br />
relações de propriedade sob as quais o<br />
Ancien Régime se assentava.<br />
A França havia muda<strong>do</strong> irrevogavelmente,<br />
e o dinheiro formava o novo<br />
eixo em torno <strong>do</strong> qual agora gravitava.<br />
A nascente burguesia pressionava<br />
contra a velha aristocracia em todas<br />
as esferas: nos camarotes de teatro,<br />
na política, na imprensa. Os nobres<br />
enfraqueci<strong>do</strong>s bem que podiam desprezar<br />
a admissão de novatos em seus<br />
salões, mas era à Bolsa de Valores que<br />
confiavam suas fortunas. Era aos madeireiros<br />
burgueses que eles vendiam<br />
a madeira cortada <strong>do</strong>s bosques de<br />
seus feu<strong>do</strong>s, e era ao usurário burguês<br />
a quem eles recorriam para financiar<br />
suas infidelidades conjugais.<br />
Nas províncias, onde a nobreza se<br />
encontrava em um terreno um pouco<br />
mais firme, Balzac descreve a ralé<br />
mais indigna:<br />
“Todas as pessoas que ali se reuniam<br />
tinham as qualidades mentais mais insignificantes,<br />
a inteligência mais mesquinha<br />
e eram os espécimes mais lamentáveis<br />
da humanidade dentro de um raio de<br />
cinquenta milhas. As discussões políticas<br />
consistiam em verbosos mas apaixona<strong>do</strong>s<br />
lugares comuns: o Quotidienne era<br />
considera<strong>do</strong> morno em seu monarquismo;<br />
o próprio Luís XVIII era considera<strong>do</strong><br />
um Jacobino. As mulheres eram em sua<br />
maioria estúpidas, desprovidas de graça<br />
e mal vestidas; cada uma delas marcada<br />
por alguma imperfeição; tu<strong>do</strong> ficava<br />
aquém <strong>do</strong> padrão, a conversa, as roupas,<br />
a mente e os corpos... No entanto, o<br />
comportamento e a consciência de classe,<br />
os ares de cavalheirismo, a arrogância<br />
Vautrin <strong>do</strong> romance de Balzac, Père Goriot,<br />
ilustra<strong>do</strong> por Honoré Daumier<br />
14<br />
da pequena nobreza, o conhecimento<br />
das regras de decoro, tu<strong>do</strong> servia para<br />
preencher o vazio dentro deles” 9 .<br />
O que é isto senão uma classe que<br />
estava condenada à extinção e merecia<br />
seu destino?<br />
A amada Igreja Católica de Balzac<br />
é retratada com mais benevolência.<br />
Como to<strong>do</strong>s os últimos bastiões da velha<br />
ordem, viu-se assediada por to<strong>do</strong>s<br />
os la<strong>do</strong>s e forçada a se tornar burguesa<br />
ela própria: “Ela se rebaixa, na casa<br />
de Deus, a um comércio vergonhoso<br />
de aluguel de bancos e cadeiras...<br />
embora não possa ter esqueci<strong>do</strong> da<br />
cólera de Cristo quan<strong>do</strong> ele expulsou<br />
os cambistas <strong>do</strong> Templo” 10 . No nascimento,<br />
no casamento e na morte, encontramos<br />
os representantes da Igreja,<br />
com sua mão estendida, cobran<strong>do</strong><br />
seus honorários em cada etapa.<br />
A tragédia burguesa<br />
Os frutos da Grande Revolução<br />
Francesa de 1789 foram disputa<strong>do</strong>s<br />
e assegura<strong>do</strong>s pela grande e empobrecida<br />
massa <strong>do</strong> povo francês, despertada<br />
pelas paixões mais nobres.<br />
Mas foram colhi<strong>do</strong>s, em quase sua<br />
totalidade, pelas mãos gananciosas<br />
da classe capitalista.<br />
Esses personagens muito reais,<br />
vence<strong>do</strong>res e perde<strong>do</strong>res, foram traduzi<strong>do</strong>s<br />
na ficção pela pena magistral<br />
de Balzac, nos protagonistas de<br />
A Comédia Humana.<br />
A burguesia é retratada não como<br />
recortes de um tipo social, mas como<br />
homens vivos e reais. Encontramos o<br />
banqueiro em 1799, tratan<strong>do</strong> de proteger<br />
e expandir sua fortuna enquanto<br />
se mantém à margem tanto de monarquistas<br />
quanto republicanos. Encontramos<br />
alpinistas sociais pequeno-<br />
-burgueses, como o tanoeiro Grandet,<br />
cobrin<strong>do</strong>-se com o gorro vermelho<br />
da liberdade para se erguer na maré<br />
crescente <strong>do</strong>s assuntos humanos. <strong>Em</strong><br />
Célestin Grevet – um homem que enriqueceu<br />
como perfumista ao ser reinstalada<br />
a aristocracia – Balzac nos<br />
dá um retrato imortal da moralidade<br />
da burguesia.<br />
Ao longo de A Comédia Humana podemos<br />
ler relatos fictícios das numerosas<br />
e reais tragédias em que se converte<br />
a vida familiar, em particular,<br />
sob o capitalismo. Encontramos pais<br />
enganan<strong>do</strong> filhos; homens cortejan<strong>do</strong><br />
mulheres em troca de <strong>do</strong>tes; pais<br />
adúlteros arruinan<strong>do</strong> famílias para<br />
sustentar amantes; filhas colocadas<br />
a pão e água por pais ricos e “avarentos”;<br />
mari<strong>do</strong>s ajudan<strong>do</strong> na infidelidade<br />
de suas esposas em nome de<br />
avançar na carreira; crianças tratadas<br />
como trastes por seus pais.<br />
Como Marx e Engels colocaram, “A<br />
burguesia arrancou da família seu véu<br />
sentimental e reduziu a relação familiar<br />
a uma mera relação monetária”. 11<br />
Criminosos e capitalistas<br />
A crítica de Balzac toca de forma<br />
sucessiva em to<strong>do</strong>s os aspectos da sociedade<br />
burguesa, <strong>do</strong>s quais apenas<br />
alguns podem ser menciona<strong>do</strong>s aqui.<br />
<strong>Em</strong> Pai Goriot, uma releitura para<br />
a era burguesa da tragédia Rei Lear de<br />
Shakespeare, o verdadeiro herói da<br />
história, se é que ele pode ser chama<strong>do</strong><br />
como tal, é Eugene de Rastignac,um<br />
nobre provinciano empobreci<strong>do</strong>. Recém-chega<strong>do</strong><br />
a Paris, ele se vê dividi<strong>do</strong><br />
entre duas formas de fazer fortuna:<br />
ou através <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> “honesto” de<br />
seduzir uma das filhas de Pai Goriot,<br />
que ficou rica por meio <strong>do</strong> casamento<br />
com o banqueiro de Nucingen; ou<br />
através de atalhos envolven<strong>do</strong> derramamento<br />
de sangue, como ofereci<strong>do</strong><br />
pelo caleja<strong>do</strong> criminoso Vautrin.<br />
Qual é a diferença? Na opinião de<br />
Vautrin, que aconselha de Rastignac<br />
em meio às suas <strong>do</strong>res de consciência,<br />
a diferença é pouco mais que<br />
hipocrisia moral e legal.<br />
“Não há um só artigo [da lei] que não leve<br />
ao absur<strong>do</strong>. O homem de língua suave<br />
com suas elegantes luvas amarelas cometeu<br />
assassinatos sem derramamentos<br />
de sangue, mas alguém foi sangra<strong>do</strong> de<br />
qualquer forma; o verdadeiro assassino<br />
forçou uma porta; <strong>do</strong>is atos obscuros!” 12<br />
O capitalista mata com a mesma<br />
segurança <strong>do</strong> assassino, embora ele<br />
próprio não derrame uma só gota de<br />
sangue. As palavras de condenação<br />
lançadas na face de toda a sociedade<br />
burguesa não falham em acertar o<br />
alvo por terem si<strong>do</strong> colocadas na boca<br />
de um malfeitor empederni<strong>do</strong>:<br />
“Você é melhor <strong>do</strong> que nós? O estigma<br />
que levamos em nossos ombros não é tão<br />
vergonhoso quanto o que vocês têm em<br />
seus corações, membros fláci<strong>do</strong>s de uma<br />
sociedade podre”. 13<br />
<strong>Em</strong> última instância, de Rastignac<br />
é força<strong>do</strong> a concordar com Vautrin:<br />
“Ele viu o mun<strong>do</strong> como ele é: leis e moralidade<br />
inúteis para os ricos, a riqueza é a<br />
ultima ratio mundi. ‘Vautrin está certo,<br />
riqueza é virtude’, disse para si mesmo”.<br />
A dialética revolucionária de Balzac<br />
A aristocracia era incapaz de liderar<br />
a sociedade; a burguesia era indigna.<br />
Ironicamente, no que mais se<br />
aproxima de uma obra autobiográfica,<br />
As Ilusões Perdidas, Balzac reserva
Nas barricadas da Rue Souffl ot, Paris, 25 - Junho de 1848, Horace Vernet (1848-9)<br />
seus elogios a pessoas como Michel<br />
Chrestien, um republicano revolucionário,<br />
a quem ele descreve como<br />
“um pensa<strong>do</strong>r político <strong>do</strong> calibre de<br />
Saint-Just e Danton”, e como “uma das<br />
criaturas mais nobres que já pisaram<br />
o solo da França”.<br />
Essas palavras de elogios sem reservas<br />
são ainda mais notáveis pela<br />
ironia que Balzac dispensa tão livremente<br />
ao comentar as ações de homens<br />
e mulheres de todas as classes<br />
através de A Comédia Humana. Como<br />
Engels observou em uma carta de<br />
1888 a Margaret Harkness:<br />
“[Os] únicos homens de quem ele sempre<br />
fala com indisfarçável admiração,<br />
são seus mais amargos antagonistas<br />
políticos, os heróis republicanos <strong>do</strong> Cloitre<br />
Saint-Méry, os homens que naquela<br />
época (1830-6) eram de fato os representantes<br />
das massas populares. Que<br />
Balzactenha si<strong>do</strong> assim compeli<strong>do</strong> a ir<br />
contra suas próprias simpatias de classe<br />
e preconceitos políticos, que ele tenha<br />
visto a necessidade da derrubada de seus<br />
nobres favoritos e os tenha descrito como<br />
pessoas que não mereciam melhor destino;<br />
e que ele tenha visto os homens reais<br />
<strong>do</strong> futuro onde, por enquanto, somente<br />
podiam ser encontra<strong>do</strong>s – isso eu considero<br />
como um <strong>do</strong>s maiores triunfos <strong>do</strong><br />
Realismo, e uma das melhores características<br />
<strong>do</strong> velho Balzac”. 15<br />
Notas e Referências<br />
1<br />
F. Engels, “Engels a Laura Lafargue” in Karl Mar Frederick<br />
Engels Collected Works, Vol. 49, Lawrence and Wishart,<br />
2001, p. 71.<br />
2<br />
K Marx, F Engels, The Classics of Marxism, Vol. 1, Wellred<br />
Books, 2013, pg 5<br />
3<br />
ibid. pg 6<br />
4<br />
S Zweig, Three Masters, George Allen and Unwin,<br />
1930, pg 16<br />
<strong>Em</strong> sua época, a causa da república<br />
burguesa ainda representava um progresso<br />
em relação às relíquias gastas<br />
<strong>do</strong> feudalismo. Nos anos retrata<strong>do</strong>s<br />
em A Comédia Humana, a classe que<br />
viria a desafiar o <strong>do</strong>mínio burguês,<br />
a classe trabalha<strong>do</strong>ra, continuava<br />
sen<strong>do</strong> uma massa em grande parte<br />
desorganizada, apenas se tornan<strong>do</strong><br />
consciente de seus próprios interesses,<br />
espalhada por oficinas de pequeno<br />
e médio portes. Não se distingue<br />
da massa geral de pobres urbanos nos<br />
romances de Balzac.<br />
Mas, com sua penetrante perspicácia,<br />
Balzac viu que o “Reino da Razão”<br />
a que os revolucionários republicanos<br />
aspiravam era uma quimera<br />
que só poderia terminar no <strong>do</strong>mínio<br />
nu da burguesia. Nessa avaliação,<br />
ele estava correto e o provou no surgimento<br />
da revolução em 1848, no<br />
mesmo ano em que Balzac largou a<br />
pena pela última vez.<br />
Este também foi o ano em que a<br />
classe trabalha<strong>do</strong>ra de Paris se levantou<br />
pela primeira vez, armas nas mãos,<br />
sob sua própria bandeira. Por sua vez, a<br />
burguesia já recuava temerosa de suas<br />
tarefas revolucionárias, curvan<strong>do</strong>-se e<br />
deixan<strong>do</strong>-se subjugar pelo aventureiro<br />
Luís Bonaparte, demonstran<strong>do</strong> toda a<br />
decadência, covardia e mesquinhez<br />
sobre as quais Balzac havia lança<strong>do</strong><br />
uma luz penetrante.<br />
5<br />
H Balzac, “Balzac’s Introduction to La Comédie Humaine”,<br />
Balzac Books, 14 July 2012<br />
6<br />
S Zweig, Balzac, Viking Press,1946, pg 29<br />
7<br />
ibid.<br />
8<br />
H Balzac, “Balzac’s Introduction to La ComédieHumaine”,<br />
Balzac Books, 14 July 2012<br />
9<br />
H Balzac, Lost Illusions, Penguin Books, 1971, pg 46-47<br />
10<br />
H Balzac, Cousin Bette, Penguin Books, 1965, pg 427<br />
O que resta quan<strong>do</strong> deixamos de<br />
la<strong>do</strong> os sonhos reacionários conti<strong>do</strong>s<br />
na obra de Balzac é uma crítica mordaz<br />
à sociedade burguesa e sua moralidade<br />
hipócrita. O méto<strong>do</strong> Realista<br />
<strong>do</strong> qual ele foi um <strong>do</strong>s pioneiros<br />
inspiraria outros grandes escritores,<br />
como Charles Dickens e Émile Zola,<br />
a assumir a tarefa de retratar as condições<br />
<strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> industrial.<br />
Também exerceria uma influência<br />
frutífera sobre os autores de O Manifesto<br />
Comunista, cujas páginas<br />
viram a luz <strong>do</strong> dia pela primeira vez<br />
em 1848, exatamente quan<strong>do</strong> a grande<br />
carreira literária de Balzac estava<br />
chegan<strong>do</strong> ao fim.<br />
<strong>Em</strong> O Manifesto Comunista–assim<br />
como em A Comédia Humana – vemos<br />
as rodas imparáveis da história<br />
em movimento. Para o Balzac retróga<strong>do</strong>,<br />
era um motivo de profun<strong>do</strong> pesar<br />
que esse movimento progressivo<br />
destruísse sua velha e idealizada sociedade,<br />
com suas reverências ao Rei,<br />
a Deus e à Família. Mas Marx e Engels,<br />
pelo contrário, olharam à frente<br />
e viram que esse mesmo poder destrutivo<br />
que Balzac retratou era também<br />
um tremen<strong>do</strong> poder criativo. Ele<br />
estava lançan<strong>do</strong> as bases para uma<br />
nova sociedade sem classes, na qual<br />
to<strong>do</strong>s os vícios da sociedade de classe<br />
que o capitalismo levou ao seu ápice<br />
seriam elimina<strong>do</strong>s para sempre.<br />
11<br />
K Marx, F Engels, The Classics of Marxism, Vol. 1, Wellred<br />
Books, 2013, pg 6<br />
12<br />
H Balzac, Père Goriot, Oxford University Press,<br />
1991, pg 103<br />
13<br />
ibid. pg 184<br />
14<br />
ibid. pg 74<br />
15<br />
F. Engels, Karl Marx Frederick Engels Collected Works, Vol.<br />
49, Lawrence and Wishart, 2001, pg 168<br />
15
A QUEDA DA MULHER:<br />
PROPRIEDADE, OPRESSÃO E FAMÍLIA<br />
FRED WESTON<br />
Bilhões de mulheres em to<strong>do</strong><br />
o mun<strong>do</strong> enfrentam cotidianamente<br />
a discriminação, a<br />
violência e a opressão. Mas<br />
não foi sempre assim. O antropólogo<br />
Lewis Henry Morgan apresentou, de<br />
forma pioneira, a ideia revolucionária<br />
de que as mulheres na sociedade humana<br />
primitiva eram livres e iguais,<br />
e que as origens da opressão das mulheres<br />
podem ser encontradas no surgimento<br />
da propriedade privada e da<br />
família “nuclear” monogâmica. Hoje,<br />
Morgan é rejeita<strong>do</strong> pelo establishment<br />
acadêmico, mas neste artigo, Fred<br />
Weston explica que a ideia básica de<br />
Morgan sobre a evolução da família<br />
foi respaldada por estu<strong>do</strong>s e descobertas<br />
modernas. Os marxistas devem<br />
levar em consideração as ideias<br />
de Morgan junto às evidências mais<br />
recentes, a fim de entender as origens<br />
da opressão das mulheres na sociedade,<br />
e os meios através <strong>do</strong>s quais podemos<br />
dar um fim a essa opressão de<br />
uma vez por todas.<br />
A opressão das mulheres e as origens<br />
da família como a conhecemos<br />
são questões prioritárias para quem<br />
deseja lutar por um mun<strong>do</strong> melhor<br />
hoje. Um grande número de mulheres<br />
ainda sofre abuso e assédio sexual.<br />
<strong>Em</strong> algumas partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, elas<br />
vivem em condições de escravidão.<br />
Milhões de meninas e mulheres ainda<br />
hoje são forçadas a sofrer mutilação<br />
genital feminina, um <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s<br />
mais bárbaros utiliza<strong>do</strong>s para controlar<br />
a sexualidade feminina, enquanto<br />
milhões de mulheres jovens são<br />
traficadas para exploração sexual.<br />
A violência contra a mulher ainda é<br />
uma ocorrência cotidiana, sen<strong>do</strong> o<br />
feminicídio um fenômeno contínuo.<br />
Esta é a barbárie da sociedade em<br />
que vivemos atualmente, e apesar<br />
de algumas conquistas importantes,<br />
ainda estamos muito longe de alcançar<br />
a igualdade genuína e plena entre<br />
homens e mulheres. Devemos nos<br />
fazer a seguinte pergunta: essa é a<br />
forma natural de homens e mulheres<br />
se relacionarem entre si? Frequentemente<br />
nos dizem que sim; que a família<br />
“nuclear” monogâmica, com uma<br />
figura paterna <strong>do</strong>minante e poderosa,<br />
sempre existiu e que os homens são<br />
naturalmente agressivos com as mulheres.<br />
Mas este é realmente o caso?<br />
Marx e Engels responderam a essa<br />
questão firmemente pela negativa.<br />
Engels, em particular, desenvolveu<br />
a abordagem marxista da opressão<br />
das mulheres em sua famosa obra, A<br />
Origem da Família, da Propriedade Privada<br />
e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, publicada em 1884. Ele<br />
se baseou principalmente no texto<br />
de Lewis Henry Morgan, A Sociedade<br />
Primitiva (1877), que argumentava:<br />
“o conceito de família é produto <strong>do</strong><br />
desenvolvimento de etapas sucessivas<br />
de desenvolvimento” 1 , das quais<br />
a moderna família monogâmica foi<br />
apenas “a última de uma série de<br />
formas” . Ele explicou que isso estava<br />
claramente conecta<strong>do</strong> ao desenvolvimento<br />
de novas técnicas, ferramentas<br />
e armas, ou seja, ao desenvolvimento<br />
das forças produtivas.<br />
Morgan tinha uma abordagem<br />
fundamentalmente materialista<br />
sobre essa questão e, inicialmente,<br />
exerceu uma grande influência entre<br />
os antropólogos de seu tempo. Mas,<br />
eventualmente, suas ideias passaram<br />
a ser vistas como uma ameaça<br />
à estabilidade da sociedade burguesa<br />
e esse foi particularmente o caso<br />
depois de Engels utilizar suas descobertas<br />
para elaborar a visão marxista<br />
sobre essa questão.<br />
No século XX, as ideias de Morgan<br />
e Engels foram ferozmente atacadas<br />
por antropólogos conserva<strong>do</strong>res, tais<br />
como Bronislaw Malinowski, que<br />
candidamente declarou:<br />
“Se chegássemos ao ponto de acabar<br />
com a família individual como o elemento<br />
central de nossa sociedade, estaríamos<br />
diante de uma catástrofe social<br />
em comparação à qual a convulsão<br />
política da Revolução Francesa e as<br />
mudanças econômicas <strong>do</strong> Bolchevismo<br />
são insignificantes.” 2<br />
Outros, como aqueles da escola de<br />
antropologia de Boas [Franz Boas, antropólogo<br />
teuto-americano – NDT],<br />
rejeitaram a própria ideia de etapas<br />
na história, o “determinismo” e a<br />
Uma fotografia de índios iroqueses tirada por William Alexander Drennan em Buff alo, Nova York, 1914.<br />
16
Jean-Pierre Dalbéra from Paris / Wikimedia<br />
“teoria da evolução” em favor de uma<br />
abordagem idealista que ainda hoje<br />
exerce uma poderosa influência sobre<br />
esse campo de pesquisa.<br />
Sem dúvida, Morgan estava limita<strong>do</strong><br />
pelo nível <strong>do</strong> conhecimento científico<br />
disponível em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século<br />
XIX e algumas de suas ideias não sobreviveram<br />
ao escrutínio <strong>do</strong> tempo.<br />
Mas uma questão muito mais importante<br />
é: até onde ele estava correto? E<br />
o que isso nos diz sobre a evolução da<br />
família e seu possível futuro?<br />
Essas questões têm um significa<strong>do</strong><br />
decisivo para a luta por um mun<strong>do</strong><br />
melhor. E, em última análise, elas somente<br />
podem ser respondidas através<br />
de uma abordagem genuinamente<br />
científica da história de nossa espécie.<br />
Méto<strong>do</strong> materialista<br />
Morgan se dedicou ao estu<strong>do</strong> das<br />
formas primitivas da sociedade e realizou<br />
uma tentativa genuína de entender<br />
suas estruturas sociais internas<br />
e o que impulsionava as mudanças<br />
nessas estruturas – da mesma forma<br />
como Darwin se dedicou ao estu<strong>do</strong> da<br />
evolução biológica.<br />
Morgan percebeu que, ao observar<br />
as sociedades contemporâneas em diferentes<br />
etapas de desenvolvimento e<br />
comparan<strong>do</strong>-as entre si, era possível<br />
reconstruir uma imagem de como a<br />
sociedade humana havia evoluí<strong>do</strong> em<br />
seu conjunto. Ao fazer isso, desenvolveu<br />
uma teoria da evolução social:<br />
que as sociedades passam por etapas<br />
similares de desenvolvimento e que<br />
há uma direção para esse processo,<br />
de formas menos desenvolvidas a formas<br />
mais desenvolvidas.<br />
Morgan entendeu que as instituições<br />
sociais passam a existir de acor<strong>do</strong><br />
com desenvolvimentos específicos<br />
nas condições sociais. Ao fazê-lo, ele<br />
inconscientemente tirou conclusões<br />
muito similares àquelas <strong>do</strong> materialismo<br />
histórico, o méto<strong>do</strong> desenvolvi<strong>do</strong><br />
por Marx e Engels. Encontramos<br />
um exemplo claro desse méto<strong>do</strong> onde<br />
Morgan afirma:<br />
“O fato importante de que a espécie humana<br />
começou na base da escala e se elevou,<br />
é revela<strong>do</strong> de maneira expressiva por<br />
suas sucessivas artes de subsistência. De<br />
sua habilidade nessa direção, dependia<br />
toda a questão da supremacia humana<br />
na terra. Os seres humanos são os únicos<br />
de quem se pode dizer que obtiveram um<br />
controle absoluto sobre a produção de<br />
alimentos, o que, de início, eles não possuíam<br />
acima <strong>do</strong>s outros animais. Sem<br />
ampliar a base da subsistência, a humanidade<br />
não poderia se propagar a outras<br />
áreas que não possuíssem os mesmos tipos<br />
de alimentos e, em última análise, a<br />
toda a superfície da terra; e, por último,<br />
sem obter um controle absoluto sobre sua<br />
variedade e quantidade, não poderiam<br />
se multiplicar em nações populosas. <strong>Em</strong><br />
consequência, é provável que as grandes<br />
épocas de progresso humano tenham<br />
si<strong>do</strong> identificadas, mais ou menos de forma<br />
direta, com a ampliação das fontes de<br />
subsistência.” 3<br />
A abordagem evolutiva de Morgan<br />
sobre o desenvolvimento da sociedade<br />
como sen<strong>do</strong> determinada pelo desenvolvimento<br />
das forças produtivas,<br />
destaca-se claramente. Ele dividiu<br />
a sociedade em diferentes estágios:<br />
Morgan entendeu<br />
que as instituições<br />
sociais passam<br />
a existir de<br />
acor<strong>do</strong> com<br />
desenvolvimentos<br />
específicos nas<br />
condições sociais<br />
“selvageria, barbárie e civilização”,<br />
com a selvageria abrangen<strong>do</strong> três<br />
perío<strong>do</strong>s, o Inferior, o Médio e o Superior,<br />
sen<strong>do</strong> o menos desenvolvi<strong>do</strong><br />
o perío<strong>do</strong> inferior. Morgan explicou<br />
que, com novas ferramentas e técnicas,<br />
tais como a pesca, ou o arco e<br />
a flecha, a humanidade passa de um<br />
estágio para outro. Ele dividiu a barbárie<br />
da mesma forma, são as três:<br />
conforme a cerâmica é <strong>do</strong>minada; à<br />
medida que os seres humanos aprendem<br />
a <strong>do</strong>mesticar animais, a plantar,<br />
a desenvolver sistemas primitivos de<br />
irrigação, a fazer tijolos etc.; e, finalmente,<br />
a <strong>do</strong>minar o uso <strong>do</strong>s metais,<br />
como o bronze e o ferro.<br />
Os termos que ele utiliza, “selvageria,<br />
barbárie e civilização”, assumiram<br />
conotações um tanto depreciativas,<br />
mas não devemos ver o uso desses termos<br />
por Morgan da mesma forma. O<br />
que nos interessa aqui é a essência <strong>do</strong><br />
significa<strong>do</strong> e não o que esses termos<br />
hoje sugerem. De qualquer forma, sua<br />
linha <strong>do</strong> tempo de desenvolvimento<br />
não corresponde exatamente ao que<br />
mais de 150 anos de pesquisas estabeleceram,<br />
mas a ideia <strong>do</strong> desenvolvimento<br />
da humanidade através de<br />
estágios está essencialmente correta.<br />
Que a sociedade humana passou<br />
através de vários estágios de desenvolvimento,<br />
basea<strong>do</strong>s fundamentalmente<br />
nos materiais utiliza<strong>do</strong>s para a<br />
produção de ferramentas, é geralmente<br />
reconheci<strong>do</strong> pelos arqueólogos atuais,<br />
quan<strong>do</strong> dão a perío<strong>do</strong>s da história<br />
nomes como a Idade da Pedra, a Idade<br />
<strong>do</strong> Bronze e a Idade <strong>do</strong> Ferro. Através<br />
<strong>do</strong> desenvolvimento das ferramentas,<br />
os seres humanos passaram de caça<strong>do</strong>res-coletores<br />
a agricultores no neolítico,<br />
ou “Nova Idade da Pedra”. Mais<br />
tarde, foram realiza<strong>do</strong>s avanços na<br />
metalurgia, primeiro com o bronze e<br />
mais tarde com o ferro, o que permitiu<br />
o surgimento das grandes civilizações<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> antigo. Este não foi um<br />
processo linear e idêntico em to<strong>do</strong>s os<br />
17
continentes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. <strong>Em</strong> parte, isso<br />
também dependia <strong>do</strong>s recursos locais<br />
disponíveis. Não obstante, esta é a<br />
imagem geralmente aceita.<br />
Foi essa abordagem materialista<br />
que atraiu a atenção de Marx e Engels.<br />
Como explicou Engels em 1884:<br />
“Morgan, à sua maneira, descobriu, novamente,<br />
na <strong>América</strong>, a concepção materialista<br />
da história, descoberta por Marx<br />
quarenta anos antes, e em sua comparação<br />
de barbárie e civilização isso o levou,<br />
nos pontos principais, às mesmas<br />
conclusões de Marx.” 4<br />
De fato, Marx havia estuda<strong>do</strong> "A<br />
Sociedade Primitiva" de Morgan, junto<br />
às obras de outros antropólogos <strong>do</strong><br />
perío<strong>do</strong>, e escreveu notas extensas,<br />
com a intenção de produzir um texto<br />
com sua própria interpretação de suas<br />
últimas descobertas. Infelizmente,<br />
Marx morreu antes de que pudesse<br />
completar esse trabalho, mas suas<br />
anotações 5 foram utilizadas por Engels<br />
para produzir seu texto clássico<br />
em 1884, logo após a morte de Marx.<br />
O trabalho de Engels sobre a origem<br />
da família pode, dessa forma, ser considera<strong>do</strong><br />
uma obra conjunta <strong>do</strong>s pais<br />
funda<strong>do</strong>res <strong>do</strong> <strong>Marxismo</strong>.<br />
En<strong>do</strong>gamia e promiscuidade <strong>do</strong>s humanos<br />
primitivos<br />
Morgan sustentava que a sociedade<br />
humana primitiva começou com<br />
o que ele chamou de família “consanguínea”,<br />
isto é, a procriação entre parentes<br />
próximos. Só mais tarde, explicou<br />
ele, através de vários estágios,<br />
a reprodução sexual entre indivíduos<br />
aparenta<strong>do</strong>s foi eliminada e certas<br />
proibições foram estabelecidas.<br />
Quan<strong>do</strong> Morgan levantou essa<br />
ideia pela primeira vez, ela foi rejeitada<br />
com indignação, e ainda o é em<br />
muitos círculos. Afinal, o que poderia<br />
ser mais estranho aos costumes<br />
sociais de nosso tempo? Por parecer<br />
tão antinatural em seu próprio<br />
tempo, alguns sociólogos, como<br />
Westermarck, afirmaram que havia<br />
um instinto natural para evitar a<br />
en<strong>do</strong>gamia.<br />
No entanto, estu<strong>do</strong>s recentes respaldaram<br />
a ideia de que a en<strong>do</strong>gamia<br />
existiu entre os primeiros humanos,<br />
demonstran<strong>do</strong> o quanto nossa noção<br />
da família mu<strong>do</strong>u ao longo <strong>do</strong>s milênios.<br />
Um estu<strong>do</strong> publica<strong>do</strong> em 2018<br />
concluía que a proporção relativamente<br />
alta de deformidades nos esqueletos<br />
da Idade <strong>do</strong> Gelo provavelmente<br />
foi causada pela en<strong>do</strong>gamia,<br />
uma teoria respaldada pelo baixo<br />
nível de diversidade genética encontra<strong>do</strong><br />
nesses esqueletos 6 .<br />
18<br />
Mas isso evidentemente não continuou<br />
sen<strong>do</strong> o caso, e um interessante<br />
estu<strong>do</strong> produzi<strong>do</strong> na Universidade de<br />
Cambridge relata que a análise de restos<br />
humanos no sítio arqueológico de<br />
Sunghir, na Sibéria, mostrou:<br />
“Os primeiros humanos parecem ter reconheci<strong>do</strong><br />
os riscos da en<strong>do</strong>gamia há pelo<br />
menos 34.000 anos e desenvolveram<br />
redes sociais e de acasalamento surpreendentemente<br />
sofisticadas para evitá-la<br />
[...] ” 7<br />
‘Vênus’ de Willen<strong>do</strong>rf, no Museu de História Natural<br />
de Viena, feito cerca de 25-30.000 anos atrás.<br />
© Jorge Royan, royan.com.ar | CC BY-SA 3.0<br />
Isso é significativo porque demonstra<br />
crucialmente que as relações<br />
sexuais entre os seres humanos havia<br />
muda<strong>do</strong>. <strong>Em</strong> certo estágio a família<br />
humana evoluiu, com novas relações<br />
emergin<strong>do</strong> das antigas. De fato, as<br />
“sofisticadas redes sociais e de acasalamento”<br />
podem até representar as<br />
primeiras formas <strong>do</strong> que mais tarde<br />
se tornou conheci<strong>do</strong> como as “gens”.<br />
Morgan viu quatro estágios subsequentes<br />
de desenvolvimento da família<br />
basea<strong>do</strong>s na proibição <strong>do</strong> incesto,<br />
onde machos e fêmeas não podiam<br />
acasalar com membros de seu próprio<br />
clã ou “gens”, para usar a expressão<br />
latina. <strong>Em</strong> outras palavras, surgiram<br />
sistemas que proibiam o acasalamento<br />
dentro de um determina<strong>do</strong> grupo.<br />
Ele levantou a hipótese de que,<br />
sob esse sistema, o “casamento em<br />
grupo” era a norma. Significava isso<br />
que to<strong>do</strong>s os homens de um grupo<br />
tinham todas as mulheres de outro<br />
grupo como suas “esposas” ao mesmo<br />
tempo? Não necessariamente.<br />
Foram encontradas sociedades onde<br />
o “casamento em grupo” envolvia efetivamente<br />
uma forma de “aliança”<br />
entre os grupos, na qual indivíduos de<br />
um grupo só podiam selecionar seus<br />
parceiros dentro de outro grupo.<br />
No entanto, o que se deve enfatizar<br />
é a natureza relativamente promíscua<br />
<strong>do</strong> acasalamento no perío<strong>do</strong><br />
inicial da sociedade humana. Ao<br />
contrário da concepção tradicional<br />
da família, homens e mulheres não<br />
estavam vincula<strong>do</strong>s permanentemente<br />
a um parceiro, poden<strong>do</strong> romper<br />
livremente o relacionamento e<br />
buscar outro parceiro.<br />
Milhares de anos de uma moralidade<br />
que evoluiu sob a pressão da<br />
sociedade de classes, onde a mulher<br />
era considerada como propriedade<br />
<strong>do</strong> homem, e onde a mulher deve ser<br />
fiel a um homem por toda sua vida,<br />
deixaram na consciência coletiva a<br />
noção de que este é um esta<strong>do</strong> de coisas<br />
natural e universal. No entanto,<br />
muitos estu<strong>do</strong>s indicam que a “promiscuidade”<br />
– no senti<strong>do</strong> da liberdade<br />
<strong>do</strong>s indivíduos de escolher com<br />
quem acasalar, quan<strong>do</strong> e por quanto<br />
tempo – estava claramente presente<br />
nas primeiras sociedades humanas.<br />
Como explica Engels: “O que significa<br />
então a relação sexual promíscua? Que<br />
as restrições vigentes atualmente ou em<br />
épocas anteriores não existiam”. Mas em<br />
seguida ele também acrescenta: “De<br />
forma alguma se segue disso, necessariamente,<br />
que uma promiscuidade exagerada<br />
estava na prática diária. <strong>Em</strong>parelhamentos<br />
separa<strong>do</strong>s por tempo limita<strong>do</strong> não são<br />
de forma alguma excluí<strong>do</strong>s; de fato, mesmo<br />
no casamento em grupos, eles constituem<br />
agora a maioria <strong>do</strong>s casos.” 8<br />
No entanto, a existência <strong>do</strong> “emparelhamento”,<br />
ou de casais no contexto<br />
<strong>do</strong> clã maior ou <strong>do</strong> “gens”, não deve<br />
ser vista como “casamento”, como o<br />
conhecemos. Morgan enfatizou que<br />
“era basea<strong>do</strong> no emparelhamento de um<br />
homem com uma mulher sob a forma de<br />
casamento, mas sem uma coabitação exclusiva<br />
[...] O divórcio ou a separação ficava a<br />
critério de ambos, mari<strong>do</strong> e esposa” 9 . Isso<br />
significa que, no casamento, como o<br />
conhecemos, tanto o homem quanto<br />
a mulher não estavam ata<strong>do</strong>s um ao<br />
outro permanentemente.<br />
No entanto, isso preparou o terreno<br />
para a posterior família monogâmica,<br />
que, segun<strong>do</strong> Morgan: “se fundava no<br />
casamento de um homem com uma mulher,<br />
com uma coabitação exclusiva; a última<br />
constituin<strong>do</strong> o essencial da instituição. É<br />
preeminentemente a família da sociedade
civilizada e, portanto, era essencialmente<br />
moderna.” 10 Mas o surgimento dessa<br />
moderna família requeria uma reviravolta<br />
completa da ordem existente<br />
para vir a existir.<br />
Descendência matrilinear<br />
A posição da mulher não era de subordinação<br />
à posição <strong>do</strong> homem antes<br />
<strong>do</strong> aparecimento da família monogâmica<br />
e patriarcal, e é sobre essa<br />
questão que Morgan provavelmente<br />
fez a maior contribuição para nossa<br />
compreensão da sociedade humana.<br />
Morgan não era um antropólogo<br />
de poltrona e fez um trabalho de campo<br />
real e concreto entre os Iroqueses,<br />
aos quais estu<strong>do</strong>u de perto, viven<strong>do</strong><br />
entre eles durante um perío<strong>do</strong>. Ele<br />
também estu<strong>do</strong>u outros povos indígenas<br />
das <strong>América</strong>s, enquanto reunia<br />
informações de muitas outras fontes<br />
sobre povos em estágios iniciais de<br />
desenvolvimento humano.<br />
Ele viu que as mulheres tinham<br />
um status muito mais igualitário entre<br />
os Iroqueses <strong>do</strong> que no mun<strong>do</strong><br />
“civiliza<strong>do</strong>”. Engels, basean<strong>do</strong>-se nas<br />
pesquisas de Morgan, comentou: “To<strong>do</strong>s<br />
eram iguais e livres – inclusive as<br />
mulheres”. 11 Mas por que era assim?<br />
Morgan concluiu que, em um perío<strong>do</strong><br />
anterior, os humanos se organizavam<br />
em clãs matrilineares, nos<br />
quais a descendência era traçada<br />
através da linha materna, não pela<br />
família patriarcal (literalmente, <strong>do</strong>minada<br />
pelo pai) que eventualmente<br />
apareceu com o surgimento da<br />
propriedade privada e da sociedade<br />
de classes.<br />
Existe muito debate sobre se o<br />
“matriarca<strong>do</strong>” alguma vez existiu,<br />
mas este é um debate falso e enganoso.<br />
O matriarca<strong>do</strong> implica o <strong>do</strong>mínio<br />
das mulheres, mas o que Morgan sublinhou<br />
foi a matrilinearidade, isto<br />
é, o traça<strong>do</strong> da descendência pela<br />
linha materna no perío<strong>do</strong> inicial da<br />
sociedade humana, pois a ausência<br />
<strong>do</strong> emparelhamento estrito ou permanente<br />
significava que não havia<br />
maneira segura de se saber quem era<br />
o pai. A matrilinearidade não significava<br />
que os homens não desempenhassem<br />
nenhum papel ou fossem<br />
subordina<strong>do</strong>s à mulher.<br />
Há muitas tentativas de negar a<br />
matrilinearidade, e isso porque toda<br />
a história escrita, que começa no 4o<br />
milênio a.c, é de civilizações que eram<br />
sociedades de classe patriarcais. Portanto,<br />
é fácil de se perceber de onde<br />
vem a ideia de que “os homens sempre<br />
<strong>do</strong>minaram as mulheres”. No entanto,<br />
os exemplos sobreviventes de<br />
sociedades matrilineares hoje oferecem<br />
apoio à teoria de Morgan.<br />
Há muitas<br />
tentativas<br />
de negar a<br />
matrilinearidade,<br />
e isso porque<br />
toda a história<br />
escrita, que<br />
começa no 40<br />
milênio aC, é<br />
de civilizações<br />
que eram<br />
sociedades de<br />
classe patriarcais.<br />
Portanto, é fácil<br />
de se perceber<br />
de onde vem a<br />
ideia de que “os<br />
homens sempre<br />
<strong>do</strong>minaram as<br />
mulheres”<br />
Nas províncias chinesas de Yunnan<br />
e Sichuan temos o povo Mosuo, onde a<br />
linhagem ainda é traçada através das<br />
mulheres da família e a propriedade<br />
é transmitida pela linha feminina. As<br />
crianças pertencem à mãe e residem<br />
em sua casa. Os homens de Mosuo<br />
têm o dever de cuidar <strong>do</strong>s filhos de<br />
suas irmãs e primas (um fenômeno<br />
que Morgan descreve nas sociedades<br />
matrilineares que ele estu<strong>do</strong>u) e estão<br />
encarrega<strong>do</strong>s da criação de animais e<br />
da pesca, coisas que aprendem com<br />
seus tios (irmãos de suas mães) e com<br />
os membros masculinos mais velhos<br />
da família.<br />
Os Bribri da Costa Rica, os Minangkabau<br />
da Sumatra Ocidental,<br />
alguns <strong>do</strong>s povos Akan de Gana e<br />
Khasi da Índia, ainda traçam sua<br />
descendência através da linha feminina.<br />
Nenhuma dessas sociedades<br />
teve qualquer contato entre elas.<br />
O influente antropólogo, Franz<br />
Boas, tentou encontrar exemplos da<br />
passagem da patrilinearidade à matrilinearidade,<br />
a fim de desacreditar<br />
to<strong>do</strong> o esquema de Morgan. Ele acreditava<br />
ter encontra<strong>do</strong> isso entre os<br />
Kwakiutl, na Costa Noroeste <strong>do</strong> Pacífico<br />
da <strong>América</strong>. Mas isso se revelou<br />
mais tarde um exemplo inváli<strong>do</strong>.<br />
Boas encontrou a descendência sen<strong>do</strong><br />
traçada tanto por linhas masculinas<br />
quanto por linhas femininas, mas o<br />
que ele ignorava era que esta sociedade<br />
havia sofri<strong>do</strong> um enorme trauma<br />
sob o impacto <strong>do</strong> contato com os<br />
europeus, e to<strong>do</strong> o seu sistema estava<br />
desmoronan<strong>do</strong> sob a pressão.<br />
É fácil imaginar como o traça<strong>do</strong> da<br />
descendência e a herança de qualquer<br />
propriedade existente, através da linha<br />
materna, reforçaria a posição das<br />
mulheres na sociedade. Mas há outro<br />
fator importante a ser leva<strong>do</strong> em consideração:<br />
a natureza extremamente<br />
igualitária da sociedade de caça<strong>do</strong>res<br />
e coletores em geral.<br />
Comunismo primitivo<br />
Devemos observar que, embora o<br />
próprio Morgan não fosse comunista,<br />
mas um republicano <strong>do</strong>s EUA e um<br />
burguês próspero que acreditava que<br />
o sistema político <strong>do</strong>s EUA era a mais<br />
alta forma de sociedade, ele se refere<br />
várias vezes em seu livro A Sociedade<br />
Primitiva ao fato de que os primeiros<br />
humanos viviam de maneira comunista,<br />
ou seja, não havia propriedade<br />
privada.<br />
Colin Renfrew é um ex-professor<br />
de arqueologia da Universidade de<br />
Cambridge e foi um membro Conserva<strong>do</strong>r<br />
da Casa <strong>do</strong>s Lordes de 1991 a<br />
2021 – portanto, alguém que não pode<br />
ser acusa<strong>do</strong> de ter simpatias comunistas.<br />
<strong>Em</strong> seu livro, Pré-história – A construção<br />
da Mente Humana, ele declara o<br />
que se segue:<br />
“As primeiras sociedades de caça<strong>do</strong>res<br />
e coletores, como aquelas de nossos<br />
ancestrais paleolíticos, parecem ter<br />
si<strong>do</strong> sempre comunidades igualitárias,<br />
onde os indivíduos participavam<br />
com base na igualdade [...]” 12<br />
(grifo nosso)<br />
<strong>Em</strong> que se baseava esse igualitarismo?<br />
Nas sociedades de caça<strong>do</strong>res<br />
e coletores não havia divisão em<br />
classes, nem proprietários <strong>do</strong>s meios<br />
de produção, nem propriedade fundiária.<br />
A pequena “propriedade” que<br />
existia eram as rudimentares ferramentas<br />
e armas para caçar e abater<br />
animais e para forragear, além das<br />
roupas que usavam.<br />
Como não havia propriedade privada<br />
ou divisão da sociedade em<br />
classes, não havia nem explora<strong>do</strong>res<br />
nem explora<strong>do</strong>s e, portanto, nenhum<br />
aparato arma<strong>do</strong> pairan<strong>do</strong> acima da<br />
sociedade. Morgan afirma:<br />
“O Esta<strong>do</strong> não existia. Seus governos<br />
eram essencialmente democráticos,<br />
porque os princípios sob quais as gens,<br />
19
a fratria e a tribo se organizavam eram<br />
democráticos.”<br />
<strong>Em</strong> sua descrição <strong>do</strong>s Iroqueses, ele<br />
declara que: “cada família praticava o<br />
comunismo ao viver”. 13<br />
A ideia de que os humanos viveram<br />
no que Marx e Engels chamaram<br />
de “comunismo primitivo”, sem<br />
nenhuma concepção de propriedade<br />
privada durante a maior parte de<br />
sua existência, é inaceitável para os<br />
que defendem a noção de que ricos<br />
e pobres, ou explora<strong>do</strong>res e explora<strong>do</strong>s,<br />
sempre existiram; que a feroz<br />
competição individual <strong>do</strong> capitalismo<br />
moderno simplesmente faz<br />
parte da “natureza humana” e que<br />
temos que aceitá-la.<br />
Como colocou o antropólogo<br />
americano Leslie A. White em sua<br />
obra A Evolução da Cultura, o Desenvolvimento<br />
da Civilização até a Queda<br />
de Roma:<br />
“[...] tão ameaça<strong>do</strong>ra se tornou a teoria<br />
<strong>do</strong> comunismo primitivo, aparentemente,<br />
que membros das três<br />
‘escolas’ antropológicas se sentiram<br />
desafia<strong>do</strong>s a acabar com ela. Lowie, da<br />
escola de Franz Boas, atacou-a repetidamente.<br />
Malinowski, um <strong>do</strong>s líderes<br />
da escola Funcionalista, classificou-a<br />
como ‘talvez a falácia mais enganosa<br />
que existe na antropologia social’.<br />
[...] Lowie foi elogia<strong>do</strong> por estudiosos<br />
católicos por sua crítica à teoria<br />
<strong>do</strong> comunismo primitivo, e, por meio<br />
disso, por sua oposição às <strong>do</strong>utrinas<br />
socialistas. [...] Parece que se fazia um<br />
esforço para ‘tornar o mun<strong>do</strong> seguro<br />
para a propriedade privada’.” 14<br />
Apesar de todas as objeções, no<br />
entanto, existem muitos estu<strong>do</strong>s que<br />
confirmam a natureza igualitária<br />
das sociedades de caça<strong>do</strong>res e coletores,<br />
onde as mulheres desfrutavam<br />
de uma posição muito mais alta<br />
na sociedade e eram tratadas como<br />
iguais, e não como uma propriedade<br />
<strong>do</strong>s homens. 15<br />
Uma característica fundamental<br />
<strong>do</strong>s humanos é sua tendência à cooperação<br />
e ao compartilhamento. Os<br />
humanos não poderiam sobreviver<br />
sem isso. Não somos particularmente<br />
rápi<strong>do</strong>s ou fortes quan<strong>do</strong> compara<strong>do</strong>s<br />
a muitos outros animais.<br />
Como indivíduos isola<strong>do</strong>s, nas condições<br />
existentes na época, estaríamos<br />
em risco constante de sermos<br />
devora<strong>do</strong>s pelos grandes carnívoros,<br />
ao mesmo tempo em que teríamos<br />
muito mais dificuldades para conseguir<br />
comida. Portanto, essa cooperação<br />
não veio de algum espírito<br />
abstrato de altruísmo, mas de uma<br />
20<br />
necessidade material. A cooperação<br />
era necessária não apenas na caça,<br />
como também na coleta.<br />
Caça, coleta e matrilocalidade<br />
Parece que havia uma divisão <strong>do</strong><br />
trabalho entre os sexos nas sociedades<br />
pré-históricas de caça<strong>do</strong>res e coletores,<br />
embora variasse de um povo a<br />
outro, e não fosse uma divisão estrita,<br />
como encontramos em sociedades de<br />
classe posteriores, como os Gregos.<br />
Algumas vezes os homens participavam<br />
da coleta e as mulheres<br />
ajudavam na caça, como ficou demonstra<strong>do</strong><br />
em descobertas recentes<br />
de túmulos de mulheres com suas<br />
armas. Mas, em geral, os homens tendiam<br />
a sair para caçar e as mulheres<br />
tendiam a forragear. E ambas as atividades<br />
eram igualmente importantes.<br />
De fato, as saídas para caçar algumas<br />
vezes eram infrutíferas, enquanto o<br />
forrageamento sempre trazia algo<br />
para casa. Assim, a divisão <strong>do</strong> trabalho<br />
nesse estágio da sociedade humana<br />
não implica a subordinação da<br />
mulher ao homem.<br />
De fato, a divisão <strong>do</strong> trabalho que<br />
existia dentro da família realmente<br />
tendia a promover a posição das mulheres<br />
em muitos casos. Kit Opie e Camila<br />
Power, autoras de Grandmothering<br />
and Female Coalitions – A Basis for Matrilineal<br />
Priority? 16 , argumentam que, nas<br />
sociedades que analisaram, o número<br />
de calorias requeridas para alimentar<br />
a to<strong>do</strong>s os adultos e as crianças em um<br />
grupo exigiria a cooperação das mulheres<br />
e suas parentes <strong>do</strong> sexo feminino,<br />
em particular as avós, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
homens. Entre os !Kung <strong>do</strong> deserto <strong>do</strong><br />
Kalahari, por exemplo, os estu<strong>do</strong>s revelam<br />
que “a coleta contribui com 60 a<br />
80 por cento da dieta total”. 17<br />
As mulheres que não podem sair<br />
para forragear, seja porque estão nos<br />
últimos estágios da gravidez ou amamentan<strong>do</strong><br />
bebês recém-nasci<strong>do</strong>s,<br />
recebem suas calorias diárias porque<br />
as outras mulheres as fornecerão.<br />
Mais uma vez, isso não se deve a algum<br />
espírito abstrato de altruísmo. É<br />
prática padrão que to<strong>do</strong>s se ajudem,<br />
porque sabem que, quan<strong>do</strong> se encontrarem<br />
na mesma situação, também<br />
serão ajuda<strong>do</strong>s.<br />
Portanto, a ideia de que as mulheres<br />
eram totalmente dependentes <strong>do</strong>s<br />
homens e que, mesmo nas primeiras<br />
sociedades humanas, tinham que<br />
buscar um homem individual para<br />
sobreviver, não se sustenta.<br />
Tu<strong>do</strong> isso proporciona uma base<br />
material sobre a qual repousava<br />
a igualdade entre os sexos. Opie e<br />
Power também explicam o papel<br />
das mulheres mais velhas, que não<br />
podiam mais ter filhos, mas que poderiam<br />
desempenhar um papel fundamental<br />
mais tarde na vida ajudan<strong>do</strong><br />
a sustentar a prole de suas filhas.<br />
Isso explicaria a natureza matrilocal<br />
das famílias – as mulheres ao la<strong>do</strong><br />
de suas mães – e também a natureza<br />
matrilinear da sociedade.<br />
Elas apontam que:<br />
“Evidências da genética molecular sugerem<br />
que uma tendência ancestral <strong>do</strong>s<br />
parentes femininos de se manterem juntos<br />
persistiu com o surgimento <strong>do</strong>s humanos<br />
modernos. Os estu<strong>do</strong>s revelam<br />
diferenças nos padrões de filopatria [a<br />
tendência de um indivíduo retornar ou<br />
permanecer em sua área natal ou em<br />
seu local de nascimento] entre populações<br />
dedicadas à caça e à agricultura na<br />
região subsaariana da África.” 18<br />
Elas acrescentam: “Quanto maior<br />
a dependência da caça nessas populações,<br />
menor a probabilidade de serem<br />
patrilocais”. Isso significa que as<br />
mulheres nas sociedades caça<strong>do</strong>ras e<br />
coletoras tendem a permanecer dentro<br />
de um grupo onde as mulheres são<br />
aparentadas, com mães, irmãs, primas,<br />
mas onde os homens com quem<br />
acasalam vêm de fora. Tu<strong>do</strong> isso é<br />
uma impressionante confirmação <strong>do</strong><br />
que Morgan descreveu em 1877.<br />
Há, naturalmente, exceções a essa<br />
regra, tais como o povo indígena <strong>do</strong><br />
Norte <strong>do</strong> Alaska, entre os quais encontramos<br />
“homens que fornecem<br />
quase toda a alimentação”. Eles são<br />
caça<strong>do</strong>res e não agricultores. No entanto,<br />
isso não se deve ao fato de que<br />
as pessoas ali simplesmente “acham”<br />
que caçar é melhor, e “escolhem” não<br />
a<strong>do</strong>tar o plantio de lavouras.<br />
Algumas vezes<br />
os homens<br />
participavam<br />
da coleta e<br />
as mulheres<br />
ajudavam na<br />
caça, como ficou<br />
demonstra<strong>do</strong><br />
em descobertas<br />
recentes de<br />
túmulos de<br />
mulheres com<br />
suas armas
Outro artigo explica que em “algumas<br />
regiões árticas e subtropicais,<br />
existem comparativamente<br />
poucos animais pequenos e nenhum<br />
alimento vegetal de importância<br />
dietética, de mo<strong>do</strong> que a caça de<br />
grande porte representa uma proporção<br />
muito grande de to<strong>do</strong>s os<br />
alimentos consumi<strong>do</strong>s.” 19 Há uma<br />
razão material concreta pela qual<br />
os homens desempenham um papel<br />
tão importante na obtenção de alimentos<br />
em tal situação: “A possibilidade<br />
de uma coleta significativa ou<br />
de mudança para a agricultura não<br />
é provável nessas sociedades árticas<br />
ou subtropicais.” 20<br />
O fato de se encontrarem essas<br />
“exceções” não nega o quadro geral<br />
da evolução social, onde as condições<br />
foram favoráveis ao desenvolvimento<br />
da agricultura. Como os<br />
autores explicam:<br />
“Com o propósito de entender a transição<br />
às sociedades agrícolas, esses<br />
grupos também podem ser de interesse<br />
limita<strong>do</strong> como um modelo das sociedades<br />
caça<strong>do</strong>ras e coletoras que vieram<br />
a existir na África, na Europa e em<br />
outros lugares que experimentaram a<br />
transição para a agricultura.” 21<br />
Isso claramente tem um enorme<br />
significa<strong>do</strong> para a posição das<br />
mulheres nessas sociedades. As<br />
mulheres, individualmente, não se<br />
mudaram da casa de seus pais para<br />
a casa de seus mari<strong>do</strong>s e ali permaneceram,<br />
cercadas por sua extensa<br />
família, como é muito comum hoje<br />
em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Isso significava<br />
que elas eram destacadamente menos<br />
dependentes de seus parceiros.<br />
<strong>Em</strong> vez disso, seu parceiro encontrava-se<br />
cerca<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s<br />
pelos parentes de sua parceira e era,<br />
por extensão, dependente deles.<br />
<strong>Em</strong> alguns casos, os caça<strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />
sexo masculino tinham que dar todas<br />
as suas capturas à mãe de sua<br />
parceira antes que ela a distribuísse<br />
entre a família. Não é de admirar<br />
que os exemplos que sobrevivem<br />
dessas comunidades registrem uma<br />
taxa tão baixa de violência contra as<br />
mulheres em relação à nossa.<br />
Propriedade, Desigualdade e Monogamia<br />
Essa forma de vida igualitária<br />
começou a mudar na sequência <strong>do</strong><br />
surgimento da agricultura, no que<br />
ficou conheci<strong>do</strong> como a Revolução<br />
Neolítica, há cerca de 12.000 anos.<br />
Estu<strong>do</strong>s confirmam que a desigualdade<br />
de gênero mu<strong>do</strong>u gradualmente<br />
durante um longo perío<strong>do</strong>,<br />
enquanto os humanos transitavam<br />
da caça e da coleta à agricultura,<br />
em particular ao cultivo de safras.<br />
Evidências arqueológicas de to<strong>do</strong> o<br />
mun<strong>do</strong> sugerem uma mudança na<br />
divisão <strong>do</strong> trabalho entre homens e<br />
mulheres após a a<strong>do</strong>ção da agricultura.<br />
As causas diretas variam de lugar<br />
para lugar, mas certo número de<br />
fatores importantes desempenharam<br />
claramente um papel: a crescente<br />
taxa de natalidade e, portanto,<br />
maiores responsabilidades com os<br />
filhos, maiores exigências de processamento<br />
de alimentos e, eventualmente,<br />
o uso de implementos<br />
mais pesa<strong>do</strong>s, como o ara<strong>do</strong>.<br />
Um estu<strong>do</strong> publica<strong>do</strong> pela Social<br />
Science Research Network em 2012,<br />
explica:<br />
“[...] a passagem para a agricultura levou<br />
a uma divisão <strong>do</strong> trabalho dentro da família,<br />
onde o homem usava sua força física<br />
na produção de alimentos e a mulher<br />
cuidava da criação <strong>do</strong>s filhos, <strong>do</strong> processamento<br />
e produção <strong>do</strong>s alimentos e de<br />
outras tarefas relacionadas à família.”<br />
Continua:<br />
“A consequência foi que o papel das<br />
mulheres na sociedade, por si mesmo,<br />
já não lhes dava sua viabilidade econômica.<br />
Essencialmente, a mudança<br />
geral na divisão <strong>do</strong> trabalho associada<br />
à Revolução Neolítica agravou as<br />
opções externas das mulheres (fora <strong>do</strong><br />
San mãe e filho na Namíbia. Image: Alwynvanzyl<br />
casamento), e isto aumentou o poder<br />
de negociação <strong>do</strong>s homens dentro da<br />
família, que, ao longo de gerações, se<br />
traduziu em normas e comportamentos<br />
que moldaram as crenças culturais<br />
sobre os papéis de gênero nas sociedades.<br />
[...] <strong>Em</strong> resumo, fornecemos novas<br />
evidências consistentes com a hipótese<br />
de que uma Revolução Neolítica precoce,<br />
por meio de seus efeitos sobre as<br />
crenças culturais, é uma das fontes <strong>do</strong>s<br />
modernos papéis de gênero.” 22<br />
Junto à mudança na divisão <strong>do</strong><br />
trabalho, também parece ter havi<strong>do</strong><br />
uma mudança da matrilocalidade<br />
para a patrilocalidade, o que teria<br />
produzi<strong>do</strong> um impacto ainda maior<br />
na posição da mulher no lar. Um<br />
artigo de 2004 da Universidade La<br />
Sapienza de Roma revelou que um<br />
estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> DNA Mitocondrial em 4o<br />
populações da África Subsaariana<br />
mostrou “uma diferença surpreendente<br />
na estrutura genética de produtores<br />
de alimentos (de fala Bantu<br />
e Sudanesa) e populações de caça<strong>do</strong>res<br />
e coletores (Pigmeus, !Kung e<br />
Hadza)” <strong>23</strong> . As mulheres das populações<br />
caça<strong>do</strong>ras e coletoras, como os<br />
!Kung e Hadza, eram mais propensas<br />
a permanecer com suas mães<br />
depois <strong>do</strong> casamento <strong>do</strong> que as mulheres<br />
de populações produtoras de<br />
alimentos dependentes da agricultura,<br />
sugerin<strong>do</strong> uma forte ligação entre<br />
a agricultura e a patrilocalidade.<br />
21
Naturalmente, é quase impossível<br />
precisar quan<strong>do</strong> exatamente a<br />
descendência matrilinear deu lugar<br />
à patrilinearidade. A mudança teria<br />
ocorri<strong>do</strong> em um perío<strong>do</strong> remoto <strong>do</strong><br />
passa<strong>do</strong> não registra<strong>do</strong>, e cada sociedade<br />
individual teria se desenvolvi<strong>do</strong><br />
à sua maneira e em seu próprio<br />
ritmo. Mas é certo que essa transição<br />
ocorreu em algum momento entre o<br />
advento da agricultura e o surgimento<br />
das primeiras sociedades de classe,<br />
há aproximadamente 5-6.000 anos,<br />
porque cada uma dessas sociedades<br />
era patrilocal, patrilinear e, acima de<br />
tu<strong>do</strong>, patriarcal.<br />
Morgan identificou a chave dessa<br />
mudança dramática na ascensão da<br />
propriedade privada, explican<strong>do</strong> que:<br />
“[...] a questão da herança seguramente<br />
surgiria, aumentaria em importância<br />
com o aumento da propriedade em termos<br />
de variedade e quantidade, e resultaria<br />
no estabelecimento de alguma<br />
regra de herança.” 24<br />
A propriedade não surgiu imediatamente<br />
como privada, pois inicialmente<br />
as regras de herança estavam<br />
baseadas na propriedade comum da<br />
terra e <strong>do</strong>s rebanhos dentro <strong>do</strong>s genes,<br />
essencialmente nas unidades familiares<br />
mais amplas que formavam<br />
a base da sociedade até a formação<br />
<strong>do</strong>s primeiros Esta<strong>do</strong>s. Isso significava<br />
que a propriedade não poderia ser<br />
transferida para fora <strong>do</strong>s genes.<br />
Sob o gene matrilinear, os filhos<br />
permaneciam dentro <strong>do</strong> gene da<br />
mãe. Portanto, era através da linha<br />
feminina que a propriedade era herdada.<br />
Isso significava que os filhos<br />
<strong>do</strong>s homens não se encontravam no<br />
genes de seus pais, mas no genes de<br />
suas parceiras. No entanto, em certo<br />
ponto, em diferentes partes <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> e em momentos distintos, à<br />
medida que os homens acumulavam<br />
cada vez mais propriedades, ocorreu<br />
uma mudança pela qual os direitos<br />
de propriedade passaram para a<br />
linhagem masculina.<br />
A desigualdade, as classes e a<br />
opressão das mulheres não surgiram<br />
imediatamente das primeiras formas<br />
de agricultura e <strong>do</strong>mesticação<br />
de animais. Mas, uma vez realizada<br />
a passagem para a agricultura, estavam<br />
criadas as condições para uma<br />
produtividade cada vez maior da terra.<br />
Como se pode ver em uma série<br />
de sítios neolíticos, o “comunismo na<br />
vida” continuou mesmo quan<strong>do</strong> os<br />
humanos passaram de uma existência<br />
nômade para uma sedentária. No<br />
entanto, o excedente que eventualmente<br />
era produzi<strong>do</strong> significava que<br />
Estupro das Mulheres Sabinas (c. 1579), Giambologna. Segun<strong>do</strong> a lenda romana, os homens da<br />
cidade recém-fundada raptaram as mulheres da tribo vizinha <strong>do</strong>s Sabinos. O conflito resultante<br />
terminou com a incorporação <strong>do</strong>s Sabinos na sociedade romana, homens, mulheres e to<strong>do</strong>s.<br />
Image: Larry Lamsa<br />
22
era apenas uma questão de tempo até<br />
que surgissem as classes e, com elas,<br />
a desigualdade social, cujas primeiras<br />
vítimas seriam as mulheres. No perío<strong>do</strong><br />
que vai desde as primeiras sociedades<br />
agrícolas sedentárias até o surgimento<br />
das primeiras civilizações<br />
conhecidas na história, esse processo<br />
foi concluí<strong>do</strong>.<br />
Isso se repetiu de forma independente<br />
em muitas partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />
incluin<strong>do</strong> a Mesopotâmia (hoje, Iraque),<br />
o Egito, as <strong>América</strong>s Central e <strong>do</strong><br />
Sul, a China, o Sul da Ásia e partes da<br />
África subsaariana. Nenhuma delas<br />
era uma cópia perfeita uma da outra,<br />
mas tinham muitas características<br />
em comum.<br />
Não podemos dizer exatamente<br />
como se deu a passagem da descendência<br />
matrilinear até a patrilinear.<br />
No entanto, Morgan pôde entrevistar<br />
membros de várias tribos na <strong>América</strong><br />
<strong>do</strong> Norte e notou que algumas delas<br />
haviam passa<strong>do</strong> recentemente da<br />
herança através da linha feminina à<br />
linha masculina – em alguns casos na<br />
memória viva. Como ele disse:<br />
“Muitas tribos indígenas agora têm<br />
propriedades consideráveis em animais<br />
<strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>s e em casas e terras<br />
pertencentes a indivíduos, entre os<br />
quais a prática de <strong>do</strong>á-las aos filhos<br />
durante a vida se tornou comum para<br />
evitar a herança gentílica.” 25<br />
Ele explica que, à medida que a<br />
propriedade aumentava em quantidade,<br />
a deserdação <strong>do</strong>s filhos <strong>do</strong>s<br />
homens começava a “suscitar oposição<br />
à herança gentílica”, ou seja,<br />
através da linha materna. Este é, na<br />
realidade, um exemplo vivo de como<br />
a transição da matrilinearidade à<br />
patrilinearidade pode ter ocorri<strong>do</strong><br />
em outras sociedades.<br />
Assim, o surgimento da propriedade<br />
privada foi o elemento chave<br />
na determinação da mudança radical<br />
no status das mulheres, da igualdade<br />
à subordinação aos homens.<br />
“A família monogâmica deve sua<br />
origem à propriedade” 26 , escreveu<br />
Morgan.<br />
Surgiu uma nova forma de sociedade,<br />
onde os homens <strong>do</strong>nos de<br />
propriedades passaram a impor às<br />
mulheres condições antes desconhecidas.<br />
A única forma de garantir<br />
que a mulher gerasse os filhos <strong>do</strong><br />
mari<strong>do</strong> era a imposição de regras<br />
estritas de comportamento, como<br />
a reclusão das mulheres dentro de<br />
casa, a proibição de as mulheres saírem<br />
de casa desacompanhadas e a<br />
estrita fidelidade. Morgan descreve<br />
o processo assim:<br />
American Gothic (1930), Grant Wood.<br />
“Depois que as casas e as terras, os rebanhos<br />
e as manadas, e os bens intercambiáveis<br />
se tornaram tão grandes<br />
em quantidade, e passaram a ser de<br />
propriedade individual, a questão de<br />
sua herança pressionaria a atenção<br />
humana [...].”<br />
Morgan explica que a família<br />
acabou se tornan<strong>do</strong> “uma organização<br />
de criação de propriedades” e<br />
acrescenta:<br />
“Chegara o momento em que a monogamia,<br />
ten<strong>do</strong> assegura<strong>do</strong> a paternidade<br />
<strong>do</strong>s filhos, afirmaria e manteria seu<br />
direito exclusivo de herdar os bens <strong>do</strong><br />
faleci<strong>do</strong> pai.” 27<br />
Morgan, como vimos, não se limitou<br />
a observar os Iroqueses, nem<br />
às informações que recebia de outros<br />
estudiosos e viajantes. Também<br />
olhou para outras fontes, por exemplo,<br />
para os Gregos e Romanos antigos,<br />
e para o que poderia se discernir<br />
de seus primeiros escritos, de seus<br />
mitos e lendas, sobre suas estruturas<br />
familiares anteriores.<br />
Encontra vestígios da gens nos<br />
primeiros textos e mitos <strong>do</strong>s Romanos<br />
e Gregos antigos, bem como no<br />
“sept” irlandês, no “clã’ escocês no<br />
“ganas” sânscrito e assim por diante.<br />
Isso é altamente significativo,<br />
pois essas culturas nunca poderiam<br />
ter ti<strong>do</strong> qualquer contato com as tribos<br />
nativas americanas que Morgan<br />
havia observa<strong>do</strong>.<br />
Os Gregos e Romanos antigos<br />
a<strong>do</strong>tavam uma gens de base masculina,<br />
ten<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong> a transição da<br />
gens feminina anterior, e ele descreve<br />
como isso continuou no perío<strong>do</strong><br />
inicial da urbanização.<br />
Na sociedade Grega antiga, vemos<br />
a queda das mulheres em uma de suas<br />
piores formas. Temen<strong>do</strong> que qualquer<br />
contato com outros homens pudesse<br />
levar a relações sexuais, os homens<br />
Atenienses não permitiam que suas<br />
esposas fossem vistas em público, e<br />
aos homens de fora da família não<br />
era permiti<strong>do</strong> estar com a mulher da<br />
casa. Na antiga Roma, o paterfamilias<br />
era a autoridade suprema, com poder<br />
de vida e morte sobre to<strong>do</strong>s os membros<br />
da família, esposa, descendência<br />
e escravos.<br />
Deve-se notar que essa “monogamia”<br />
era, na realidade, somente para<br />
as mulheres. E, ao la<strong>do</strong> dessa nova<br />
e restrita moralidade, emergiram,<br />
nas antigas sociedades de classe,<br />
<strong>23</strong>
distintas formas de prostituição feminina<br />
(e, em alguns casos, masculina).<br />
O Esta<strong>do</strong> Ateniense chegou a<br />
regulamentar a prostituição, com a<br />
introdução de bordéis.<br />
Antes que emergissem essas sociedades<br />
de classe, as mulheres eram<br />
reverenciadas e honradas como <strong>do</strong>a<strong>do</strong>ras<br />
da vida. Os épicos Gregos<br />
referem-se a deusas e guerreiras<br />
femininas, elevadas a uma posição<br />
de a<strong>do</strong>ração e respeito. Robert Graves,<br />
em seu Os Mitos Gregos (1955),<br />
expressou a visão de que a Grécia da<br />
Idade <strong>do</strong> Bronze havia transita<strong>do</strong> de<br />
uma sociedade “matriarcal” – poderíamos<br />
dizer, matrilinear – a uma<br />
patriarcal. Ele se refere à história<br />
de Zeus que engoliu Metis, a Deusa<br />
da Sabe<strong>do</strong>ria, após o que “os Aqueus<br />
suprimiram seu culto e arrogaram<br />
toda sabe<strong>do</strong>ria a Zeus como seu<br />
deus patriarcal”. 28<br />
Esse rebaixamento divino da<br />
mulher era claramente um reflexo<br />
de seu rebaixamento real na terra.<br />
William G. Dever argumentou em<br />
seu livro, Did God Have a Wife?, que<br />
um processo semelhante ocorreu na<br />
mitologia <strong>do</strong>s antigos hebreus, que<br />
em seu perío<strong>do</strong> inicial acreditavam<br />
que Javé (seu Deus) tinha uma esposa,<br />
considerada como a Rainha <strong>do</strong>s<br />
Céus. 29<br />
Morgan e Engels sobre o futuro da família<br />
O que Morgan tinha a dizer sobre o<br />
desenvolvimento passa<strong>do</strong> da família<br />
desafiava a visão tradicional, mas o<br />
que ele disse sobre o futuro da família<br />
era ainda mais desconcertante para<br />
os burgueses:<br />
“Quan<strong>do</strong> se aceita o fato de que a família<br />
passou através de quatro formas sucessivas,<br />
e se encontra agora em uma quinta<br />
forma, surge imediatamente a questão<br />
de se saber se essa última forma pode<br />
permanecer no futuro. A única resposta<br />
que pode ser dada é que deve avançar à<br />
medida que a sociedade avança, e mudar<br />
à medida que a sociedade muda, como<br />
aconteceu no passa<strong>do</strong>”. 30<br />
Engels foi mais longe:<br />
“[...] o que podemos conjecturar atualmente<br />
sobre a regulação das relações<br />
sexuais após o iminente desaparecimento<br />
da produção capitalista é,<br />
no essencial, de um caráter negativo,<br />
limita<strong>do</strong> principalmente ao que vai<br />
desaparecer. Mas, o que será adiciona<strong>do</strong>?<br />
Isso será resolvi<strong>do</strong> depois que<br />
uma nova geração tiver cresci<strong>do</strong>: uma<br />
geração de homens que nunca em toda<br />
as suas vidas tiveram a oportunidade<br />
de comprar a rendição de uma mulher<br />
24<br />
Friedrich Engels<br />
seja com dinheiro ou através de outros<br />
meios de poder social, e de mulheres<br />
que nunca foram obrigadas a se render<br />
a qualquer homem por qualquer consideração<br />
que não seja o amor verdadeiro,<br />
ou de abster-se de se entregar ao seu<br />
ama<strong>do</strong> por me<strong>do</strong> das consequências<br />
econômicas. Uma vez que apareçam<br />
essas pessoas, elas não se importarão<br />
nem um pouco com o que hoje pensamos<br />
que elas deveriam fazer. Elas estabelecerão<br />
sua própria prática e sua própria<br />
opinião pública, compatível com<br />
isso, sobre a prática de cada indivíduo<br />
–e ponto final.” 31<br />
Engels é frequentemente calunia<strong>do</strong><br />
como um homem <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> Vitoriano,<br />
mas nessas poucas frases vemos<br />
que ele estava realmente muito à<br />
frente de seu tempo na questão da família<br />
e sobre como os humanos se relacionariam<br />
sexualmente no futuro.<br />
Depois que Engels produziu sua<br />
obra clássica, as fileiras da II Internacional<br />
e, mais tarde, da Internacional<br />
Comunista, foram educadas<br />
nas ideias que ele elaborou sobre esta<br />
questão. Quan<strong>do</strong> os bolcheviques<br />
chegaram ao poder em 1917, começaram<br />
a implementar essas ideias, o que<br />
se pode ver nas várias leis e reformas<br />
a<strong>do</strong>tadas em relação ao casamento,<br />
aos direitos das mulheres, aos cuida<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>s filhos etc.<br />
Juntamente com as reformas políticas,<br />
Lenin e Trotsky enfatizaram a<br />
necessidade de uma igualdade social<br />
e política genuína, liberan<strong>do</strong> as mulheres<br />
<strong>do</strong> far<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>méstico,<br />
<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong>s filhos, etc., que até<br />
hoje pesam desproporcionalmente<br />
sobre as mulheres.<br />
O isolamento da revolução em um<br />
único país atrasa<strong>do</strong> significava que<br />
muitas dessas reformas progressistas<br />
só poderiam ser parcialmente<br />
alcançadas, pois a União Soviética<br />
não tinha suficientes recursos materiais<br />
para mantê-las. No entanto,<br />
suas ousadas reformas nos proporcionaram<br />
um vislumbre <strong>do</strong> que uma<br />
sociedade genuinamente socialista<br />
poderia alcançar. E é precisamente<br />
por esta razão que não só os bolcheviques,<br />
mas inclusive o próprio<br />
Morgan, não poderiam ser per<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s<br />
pela classe <strong>do</strong>minante.<br />
Reação burguesa contra Morgan e Engels<br />
Vale a pena notar aqui o tratamento<br />
muito diferente da<strong>do</strong> a Darwin e<br />
a Morgan. Darwin também não entendeu<br />
plenamente como a evolução<br />
ocorreu, e isso porque certas descobertas<br />
científicas ainda não tinham<br />
si<strong>do</strong> realizadas, como a genética. Isso<br />
não diminui seu papel histórico de ter<br />
impulsiona<strong>do</strong> fortemente nossa compreensão<br />
de como evoluiu a vida.<br />
Morgan teve tratamento diferente.<br />
A burguesia pode conviver com a<br />
ideia da evolução biológica. Até tentam<br />
torcê-la a fim de utilizá-la para<br />
justificar a própria sociedade capitalista.<br />
Mas não podem conviver com<br />
uma ideia que leva inevitavelmente<br />
à conclusão de que o próprio capitalismo<br />
é uma mera etapa, destinada a<br />
chegar ao fim.<br />
<strong>Em</strong>bora Morgan não fosse inimigo<br />
<strong>do</strong> capitalismo, suas descobertas nas<br />
mãos de Engels apontavam em uma<br />
direção: assim como a sociedade havia<br />
muda<strong>do</strong> no passa<strong>do</strong> em linha com<br />
o desenvolvimento das forças produtivas,<br />
então um maior desenvolvimento<br />
dessas forças estava preparan<strong>do</strong><br />
as condições para o fim <strong>do</strong> próprio<br />
capitalismo e, com isto, da família<br />
como era conhecida durante milhares<br />
de anos sob as diferentes formas<br />
de sociedades de classe. Portanto, as<br />
ideias de Morgan tinham que ser minadas<br />
e desacreditadas, porque minar<br />
seu ponto de vista significava também<br />
minar Engels e a visão <strong>do</strong>s marxistas,<br />
que eram vistos como promotores de<br />
ideias perigosas que ameaçavam a estabilidade<br />
da sociedade burguesa.<br />
É claro que é necessário sermos<br />
objetivos ao tratarmos de Morgan e<br />
da antropologia de seu perío<strong>do</strong>. Por<br />
exemplo, ele não compreendia o nível<br />
de desenvolvimento alcança<strong>do</strong> pelas<br />
culturas ameríndias mais avançadas,<br />
como a <strong>do</strong>s Astecas. Acreditava que<br />
estavam no mesmo nível <strong>do</strong>s Iroqueses.<br />
Mesmo quan<strong>do</strong> seu erro foi aponta<strong>do</strong><br />
por um de seus discípulos, ele<br />
persistiu nessa visão.<br />
No entanto, continua claro que<br />
Morgan havia rompi<strong>do</strong> claramente<br />
com a visão estreita de seus predecessores<br />
– e mesmo contemporâneos – e,<br />
inconscientemente, aplicou o méto<strong>do</strong>
Galileu diante <strong>do</strong> Santo Ofício (1847), Joseph-Nicolas Robert-Fleury<br />
<strong>do</strong> materialismo histórico à compreensão<br />
<strong>do</strong> desenvolvimento humano<br />
inicial. Ele deu uma importante contribuição<br />
à nossa compreensão <strong>do</strong> desenvolvimento<br />
da sociedade humana<br />
e isto deve ser reconheci<strong>do</strong>.<br />
O que temos de entender, no entanto,<br />
é que aqueles que atacam Morgan<br />
ou Engels não o fazem <strong>do</strong> ponto de<br />
vista de aguçar nossa compreensão<br />
com base em estu<strong>do</strong>s mais atualiza<strong>do</strong>s<br />
– algo a que o próprio Engels estaria<br />
aberto. Não, eles atacam e tentam<br />
desacreditar seu méto<strong>do</strong> científico,<br />
o méto<strong>do</strong> <strong>do</strong> materialismo dialético,<br />
como parte de um ataque mais amplo<br />
e geral contra o marxismo.<br />
Até mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XIX – o perío<strong>do</strong><br />
da ascensão capitalista – os<br />
primeiros economistas, historia<strong>do</strong>res,<br />
paleontólogos e antropólogos<br />
burgueses ainda buscavam, de forma<br />
genuína, descobrir os mecanismos<br />
que determinavam o desenvolvimento<br />
da sociedade. Adam Smith,<br />
por exemplo, estava lidan<strong>do</strong> com<br />
os mecanismos que determinavam<br />
como o capitalismo funcionava. Mas<br />
isso exigiu que Marx tirasse todas as<br />
conclusões lógicas.<br />
No entanto, na virada <strong>do</strong> século<br />
XX, quan<strong>do</strong> o capitalismo alcançou<br />
seus limites e começou a estagnar e a<br />
entrar em crises, a classe capitalista<br />
deixou de desempenhar qualquer papel<br />
genuinamente progressista, e isso<br />
impactou também em sua abordagem<br />
a tais estu<strong>do</strong>s.<br />
A classe burguesa havia se torna<strong>do</strong><br />
totalmente reacionária e estava<br />
buscan<strong>do</strong> ideias para justificar sua<br />
existência continuada. A razão é muito<br />
clara: suas riquezas e privilégios<br />
dependem da continuação <strong>do</strong> atual<br />
sistema e, portanto, eles buscam mostrar<br />
que ele nunca pode acabar.<br />
O renoma<strong>do</strong> antropólogo, Bronislaw<br />
Malinowski, foi uma importante figura<br />
nessa investida burguesa. “A família individual<br />
sempre existiu, e [...] está invariavelmente<br />
baseada no matrimônio de<br />
pares solteiros” 32 , declarou ele em 1931.<br />
Malinowski estava reagin<strong>do</strong> à ideia<br />
de que a família havia evoluí<strong>do</strong> ao longo<br />
<strong>do</strong> tempo, passan<strong>do</strong> por diferentes<br />
formas. Sua posição era que a análise<br />
histórica das formas anteriores da família<br />
carecia de evidências e que ela<br />
sempre foi, é e será nuclear. Como<br />
cita<strong>do</strong> acima, ele acreditava que a “família<br />
individual” (com o homem à cabeça)<br />
era o “elemento central de nossa<br />
sociedade”, e que eliminá-la seria uma<br />
“catástrofe social”.<br />
Vemos aqui como muitos antropólogos<br />
que tentaram entender as sociedades<br />
anteriores, as viram através<br />
das lentes da sociedade em que nasceram.<br />
Na ciência pode haver tal coisa<br />
de preconceito social. A ciência não é<br />
um “foro” neutro para as ideias; é um<br />
campo de batalha que reflete todas as<br />
pressões da sociedade de classes.<br />
A antropologia, por ser um estu<strong>do</strong><br />
da sociedade humana, é uma das<br />
ciências mais propensas a tal tipo de<br />
preconceito social. A fé religiosa, as<br />
tradições, a moralidade e os preconceitos<br />
de classe podem desempenhar<br />
um papel em cegar os antropólogos<br />
sobre o que realmente está à frente deles,<br />
particularmente quan<strong>do</strong> se trata<br />
das normas sexuais, mas também da<br />
questão da propriedade.<br />
Portanto, desde o início <strong>do</strong> século<br />
XX, a antropologia viu uma reação<br />
crescente contra as ideias de Morgan.<br />
Marvin Harris, em seu The Rise of<br />
Anthropological Theory (1968), explica<br />
que a moderna antropologia entrou<br />
no século XX com o mandato de “expor<br />
o esquema de Morgan e destruir<br />
o méto<strong>do</strong> em que se baseava” 33<br />
Qual era o méto<strong>do</strong> que eles pretendiam<br />
destruir? Harris explica<br />
que: “Os antropólogos <strong>do</strong> século XIX<br />
acreditavam que os fenômenos socioculturais<br />
eram governa<strong>do</strong>s por<br />
princípios legítimos detectáveis”.<br />
No século XX, no entanto, “passou a<br />
ser amplamente aceito que a antropologia<br />
nunca poderia descobrir as<br />
origens das instituições ou explicar<br />
suas causas”. 34<br />
Esta foi uma recusa de uma abordagem<br />
científica e materialista aos<br />
estu<strong>do</strong>s antropológicos e uma virada<br />
para os méto<strong>do</strong>s anticientíficos e<br />
idealistas. Isso levou a uma situação<br />
em que:<br />
“Com base em evidências etnográficas<br />
parciais, incorretas ou mal interpretadas,<br />
emergiu uma visão da cultura<br />
que exagerava to<strong>do</strong>s os ingredientes<br />
quixotescos, irracionais e inescrutáveis<br />
da vida humana. Encanta<strong>do</strong>s com a<br />
diversidade <strong>do</strong>s padrões, os antropólogos<br />
buscavam eventos divergentes e<br />
incomparáveis. Enfatizaram o significa<strong>do</strong><br />
interno e subjetivo da experiência<br />
com exclusão <strong>do</strong>s efeitos e das relações<br />
objetivas. Negaram o determinismo<br />
25
FRANZ BOAS E O “PARTICULARISMO HISTÓRICO”<br />
Franz Boas foi um antropólogo alemão<br />
que em 1899 se tornou professor<br />
de antropologia na Universidade de Columbia.<br />
Ele iria se tornar uma das figuras<br />
mais proeminentes na antropologia<br />
<strong>do</strong> século XX. Na época, havia muita<br />
pseu<strong>do</strong>ciência que pretendia mostrar<br />
que a evolução havia produzi<strong>do</strong> tipos<br />
superiores, brancos, anglo-saxões ou<br />
“nórdicos” acima das supostas “raças<br />
inferiores”. Boas mostrou sistematicamente<br />
que não havia evidência científica<br />
para tais alegações, e que to<strong>do</strong>s os<br />
humanos têm o mesmo potencial.<br />
Reagin<strong>do</strong> contra o racismo que permeava<br />
a antropologia <strong>do</strong> século XIX,<br />
Boas partiu <strong>do</strong> que podemos aceitar<br />
como a premissa correta, ou seja, da necessidade<br />
de um maior estu<strong>do</strong> empírico<br />
<strong>do</strong>s fatos, antes de se elaborar as leis gerais<br />
de desenvolvimento. Ele parece ter<br />
começa<strong>do</strong> de forma bem-intencionada,<br />
queren<strong>do</strong> acabar com a especulação de<br />
muitos antropólogos <strong>do</strong> século XIX, e<br />
substituí-la por fatos, da<strong>do</strong>s e estu<strong>do</strong>s<br />
de campo. Assim, ele acumulou muitos<br />
fatos e começou buscan<strong>do</strong> padrões, leis<br />
de desenvolvimento e processos, com<br />
base nesses fatos.<br />
No entanto, depois de encontrar<br />
exemplos que não se encaixavam<br />
rigidamente no esquema<br />
<strong>do</strong>s evolucionistas sociais <strong>do</strong> século<br />
XIX, ele finalmente concluiu<br />
que não se podiam discernir leis<br />
de desenvolvimento. <strong>Em</strong> 1930, ele<br />
escreveu o seguinte:<br />
“Deve-se entender claramente que a análise<br />
histórica não nos ajuda na solução<br />
dessas questões [...] Um erro da antropologia<br />
moderna, a meu ver, reside na ênfase<br />
exagerada na reconstrução histórica, cuja<br />
importância não deve ser minimizada,<br />
contra um estu<strong>do</strong> penetrante <strong>do</strong> indivíduo<br />
sob o estresse da cultura em que vive”.<br />
Como explica Marvin Harris: “Sob<br />
a influência de um movimento idealista<br />
neokantiano generaliza<strong>do</strong>, Boas<br />
se afastou <strong>do</strong> materialismo com o<br />
qual havia aborda<strong>do</strong> seus estu<strong>do</strong>s anteriores<br />
da física”. E, em uma reviravolta<br />
irônica, foi na verdade durante<br />
uma viagem de estu<strong>do</strong>s ao ártico para<br />
estudar as pessoas de lá, que ele leu<br />
Kant,“para que eu não fique completamente<br />
sem instrução quan<strong>do</strong> voltar”. A<br />
abordagem teórica de Boas tornou-se<br />
conhecida como particularismo histórico.<br />
Para usar um velho dita<strong>do</strong>, Boas terminou<br />
“sem ver a floresta por trás das<br />
árvores”. Como Marvin Harris explica,<br />
a abordagem de Boas “levou a uma vasta<br />
coleção de materiais primários – textos<br />
e descrições nos quais praticamente<br />
não se fez nenhuma tentativa para<br />
orientar o leitor com relação a generalizações<br />
provisórias e de curto alcance”.<br />
Harris comenta ainda:<br />
Franz Boas<br />
“Ao ponderar a facilidade com que Boas e<br />
seus alunos utilizaram um ou <strong>do</strong>is casos<br />
negativos para negar hipóteses confirmadas<br />
por centenas de outros casos, inevitavelmente<br />
ficamos impressiona<strong>do</strong>s com a<br />
quantidade de esforço gasto para provar<br />
que o caos era a característica destacável<br />
<strong>do</strong> reino sociocultural”.<br />
Sem surpresa, esse méto<strong>do</strong> se tornou<br />
um <strong>do</strong>gma ainda mais rígi<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
que aquele que deveria substituir. As<br />
leis históricas não seriam apenas desconhecidas,<br />
mas incognoscíveis, tornan<strong>do</strong><br />
impossível qualquer explicação<br />
objetiva <strong>do</strong> desenvolvimento cultural.<br />
É este <strong>do</strong>gma que ainda hoje <strong>do</strong>mina o<br />
campo da antropologia.<br />
histórico em geral e, acima de tu<strong>do</strong>, negaram<br />
o determinismo das condições<br />
materiais de vida.” 35<br />
Essa abordagem idealista recusou<br />
o méto<strong>do</strong>s evolucionário materialista<br />
e, com ele, a ideia de que se poderia<br />
elaborar uma visão histórica global e<br />
de longo prazo <strong>do</strong> desenvolvimento<br />
da sociedade; recusou a ideia de que<br />
as leis de desenvolvimento da sociedade<br />
podiam ser encontradas e, em<br />
vez disso, insistiu em que cada cultura<br />
poderia ser vista de forma isolada<br />
como única e sem nenhuma ordem<br />
específica para o desenvolvimento.<br />
Franz Boas (1858-1942) foi um <strong>do</strong>s<br />
pioneiros dessa tendência, com sua<br />
teoria <strong>do</strong> “particularismo histórico”.<br />
Isso, de fato, foi uma antecipação<br />
<strong>do</strong> pensamento pós-moderno,<br />
que viu uma série de esquerdistas<br />
desiludi<strong>do</strong>s e mesmo “marxistas”<br />
se afastarem de uma perspectiva<br />
científica e materialista em direção<br />
à negação não só das leis de<br />
desenvolvimento, mas também <strong>do</strong><br />
próprio desenvolvimento.<br />
26<br />
Houve antropólogos que lutaram<br />
contra essa tendência, tais como Leslie<br />
A. White e Marvin Harris, os quais<br />
à sua maneira resistiram à deriva ao<br />
idealismo e mantiveram uma abordagem<br />
materialista. Mas, como Harris<br />
comentou em 1999 Teorias da Cultura<br />
nos Tempos Pós-modernos: “Devo confessar<br />
que a virada dada pela teoria –<br />
afastan<strong>do</strong>-se das abordagens processuais<br />
cientificamente orientadas e em<br />
direção a um pós-modernismo ‘vale<br />
tu<strong>do</strong>’ – tem si<strong>do</strong> muito mais influente<br />
<strong>do</strong> que eu pensava ser possível quan<strong>do</strong><br />
olhei para a frente a partir <strong>do</strong> final<br />
da década de 1960.” 36 Essa virada não<br />
foi uma coincidência.<br />
Com as abordagens de Franz Boas<br />
e, mais tarde, <strong>do</strong>s pós-modernistas,<br />
tu<strong>do</strong> o que resta é uma massa de estu<strong>do</strong>s<br />
de casos individuais, de fatos<br />
isola<strong>do</strong>s, desconecta<strong>do</strong>s uns <strong>do</strong>s<br />
outros, sem nenhuma tentativa de<br />
estabelecer uma relação de causa e<br />
efeito, com a conclusão final de que<br />
a realidade é incognoscível.<br />
Uma das críticas que a escola<br />
de Boas fez a Morgan e a to<strong>do</strong>s os<br />
evolucionistas sociais <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>, foi<br />
que eles tinham uma visão rígida de<br />
como se desenvolviam as culturas humanas,<br />
impon<strong>do</strong> um modelo no qual<br />
todas as culturas locais tinham que<br />
ser enfileiradas.<br />
É verdade que as sociedades humanas<br />
não evoluíram todas exatamente<br />
da mesma maneira, preenchen<strong>do</strong><br />
cada fase dentro de uma espécie de<br />
plano pré-ordena<strong>do</strong>. Podemos negar<br />
que em diferentes condições geográficas<br />
e climáticas houve diferentes ritmos<br />
e direções de desenvolvimento?<br />
Isso seria absur<strong>do</strong> e anticientífico. Por<br />
exemplo, foi demonstra<strong>do</strong> que houve<br />
casos em que as culturas que haviam<br />
embarca<strong>do</strong> nas primeiras formas de<br />
agricultura, posteriormente retornaram<br />
à caça. Por que isso? Porque<br />
nas condições dadas, a agricultura<br />
se mostrou menos produtiva, ou as<br />
mudanças climáticas obrigaram esses<br />
grupos humanos a se deslocarem.<br />
Havia uma razão concreta e material<br />
para essa mudança de volta ao que se<br />
poderia presumir uma forma menos<br />
desenvolvida de sustento.
Se aplicarmos isso à família, veremos<br />
que, apesar de sua a<strong>do</strong>ção da<br />
agricultura e da <strong>do</strong>mesticação de animais,<br />
alguns sítios neolíticos sugerem<br />
uma igualdade continuada entre os<br />
sexos, mesmo por perío<strong>do</strong>s de tempo<br />
muito longos. E também podemos<br />
encontrar sociedades caça<strong>do</strong>ras e coletoras<br />
onde a opressão das mulheres<br />
surgiu sob a influência de formas<br />
posteriores de sociedade, onde houve<br />
contato com agricultores –um exemplo<br />
marcante da lei <strong>do</strong> desenvolvimento<br />
desigual e combina<strong>do</strong>.<br />
No entanto, isso não refuta que<br />
existam leis discerníveis de evolução<br />
social e estágios. A questão é que o<br />
processo geral tendeu em uma direção<br />
e por razões materiais que podemos<br />
entender. Nem uma só sociedade<br />
de classes apresentou o nível de igualdade<br />
observa<strong>do</strong> em uma ampla gama<br />
de sociedades caça<strong>do</strong>ras e coletoras,<br />
passadas e presentes.<br />
Uma visão objetiva <strong>do</strong> desenvolvimento<br />
da sociedade, uma observação<br />
<strong>do</strong>s fatos apresenta<strong>do</strong>s, mostra que,<br />
sim, a evolução social tomou rumos<br />
ligeiramente diferentes, dependen<strong>do</strong><br />
das condições locais. Mas uma coisa é<br />
reconhecer isso e outra coisa completamente<br />
diferente tirar disso a conclusão<br />
de que não há leis discerníveis<br />
de desenvolvimento social.<br />
Boas não foi de forma alguma o<br />
único antropólogo a a<strong>do</strong>tar tal perspectiva.<br />
Outros, depois dele, a<strong>do</strong>taram<br />
uma abordagem igualmente<br />
idealista. O que podemos afirmar é<br />
que seu méto<strong>do</strong>, independentemente<br />
da intenção, se adapta à classe capitalista<br />
atual. <strong>Em</strong> vez de usar a linguagem<br />
abertamente reacionária de<br />
Malinowski, eles podem se esconder<br />
por trás de uma filosofia que se<br />
apresenta como progressista, quan<strong>do</strong>,<br />
na verdade, é profundamente<br />
reacionária.<br />
continua a fazê-lo hoje – ficaremos sem<br />
uma compreensão real de como e por<br />
que razão a sociedade mu<strong>do</strong>u, de como<br />
e por que razão a família mu<strong>do</strong>u e, portanto,<br />
de como e por que razão pode<br />
mudar mais uma vez no futuro. Ficaremos<br />
com a ideia de que é a mente <strong>do</strong>s<br />
indivíduos que determina as mudanças<br />
e não a mudança das condições que determina<br />
as mudanças no pensamento.<br />
O afastamento da perspectiva materialista<br />
e evolutiva na antropologia<br />
foi um passo atrás, pois não deixou<br />
espaço para uma compreensão científica<br />
genuína de como a sociedade<br />
humana evoluiu desde seus estágios<br />
iniciais, através de várias formas até a<br />
sociedade industrial atual.<br />
Isso nos deixa com a ideia de que<br />
não adianta lutar por uma mudança<br />
radical na estrutura da sociedade. <strong>Em</strong><br />
vez disso, devemos trabalhar com os<br />
indivíduos que compõem a sociedade.<br />
Isso nos deixa sem uma maneira<br />
completa de mudar as condições materiais.<br />
Significa, no caso da luta pelos<br />
direitos das mulheres – e de outras<br />
camadas oprimidas da sociedade –<br />
que a luta de classes não tem nenhum<br />
papel a desempenhar. Tu<strong>do</strong> se torna<br />
uma batalha por palavras, por significa<strong>do</strong>s.<br />
Nessa estrada o movimento<br />
acaba em um beco sem saída.<br />
O que é necessário é um retorno à<br />
ideia de que há uma direção para o<br />
desenvolvimento da sociedade, que<br />
os diferentes estágios de desenvolvimento<br />
nos trouxeram até onde<br />
hoje estamos, e que o atual estágio,<br />
o da sociedade capitalista, apenas<br />
preparou o terreno para um estágio<br />
mais alto, o <strong>do</strong> socialismo, pelo qual<br />
é preciso lutar.<br />
O futuro da família<br />
Para aqueles que negam que a família<br />
evoluiu através de várias formas<br />
diferentes, podemos apontar para<br />
o fato de que, apesar <strong>do</strong>s fervorosos<br />
desejos de figuras como Malinowski,<br />
está muito claro que a família passou<br />
por muitas mudanças mesmo no perío<strong>do</strong><br />
relativamente curto que nos separa<br />
<strong>do</strong>s dias de Morgan e Engels.<br />
A necessidade de uma compreensão teórica<br />
Para concluir, podemos apresentar<br />
a questão: Por que tu<strong>do</strong> isso é importante?<br />
Por que defendemos as ideias<br />
centrais elaboradas por Morgan e Engels<br />
da evolução social e, com elas, a<br />
ideia de que a família evoluiu? A resposta<br />
a essa questão é que uma compreensão<br />
teórica é indispensável na<br />
luta pela abolição da opressão.<br />
Este debate não é de mero interesse<br />
acadêmico. O conflito entre materialismo<br />
e idealismo em todas as esferas<br />
da vida é um conflito entre o progresso<br />
e a reação. Na verdade, faz parte da<br />
luta de classes.<br />
Se aceitarmos a perspectiva anti materialista<br />
e idealista que passou a <strong>do</strong>minar<br />
a antropologia no século XX – e<br />
Abaixo a escravidão na cozinha! Um pôster soviético de 1931.<br />
27
Nós o testemunhamos na memória<br />
viva. Quase 50% de to<strong>do</strong>s os casamentos<br />
nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s hoje<br />
terminam em divórcio ou separação,<br />
enquanto a cifra no Reino Uni<strong>do</strong> está<br />
em torno de 42%. Estimativas recentes<br />
também mostram que cerca de<br />
40% <strong>do</strong>s nascimentos nos Esta<strong>do</strong>s<br />
Uni<strong>do</strong>s ocorrem fora <strong>do</strong> casamento. 37<br />
<strong>Em</strong> muitos países ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />
os casamentos estão se tornan<strong>do</strong> menos<br />
comuns, as pessoas estão se casan<strong>do</strong><br />
mais tarde e há uma “dissociação” entre<br />
paternidade e casamento. Como diz certo<br />
artigo: “Dentro das últimas décadas, a<br />
instituição <strong>do</strong> casamento mu<strong>do</strong>u mais<br />
<strong>do</strong> que em milhares de anos antes”. 38<br />
Estas mudanças ocorreram devi<strong>do</strong><br />
a vários fatores, o mais importante<br />
deles sen<strong>do</strong> a enorme entrada das<br />
mulheres no merca<strong>do</strong> de trabalho,<br />
dan<strong>do</strong> às mulheres um maior grau<br />
de independência.<br />
No entanto, ainda há uma significativa<br />
disparidade salarial entre os<br />
homens e as mulheres. Apesar <strong>do</strong>s<br />
avanços realiza<strong>do</strong>s, particularmente<br />
desde a década de 1970, a maioria das<br />
mulheres não são totalmente independentes<br />
economicamente devi<strong>do</strong><br />
à persistente desigualdade, pobreza<br />
e austeridade. Mas ainda é verdade<br />
que as mulheres não são tão dependentes<br />
<strong>do</strong>s homens como costumavam<br />
ser no passa<strong>do</strong> – pelo menos nos<br />
países industrializa<strong>do</strong>s avança<strong>do</strong>s<br />
– e com essa maior independência<br />
Notas e Referências<br />
financeira veio uma maior demanda<br />
das mulheres por igualdade na lei e<br />
nas condições sociais.<br />
Portanto, poderíamos colocar outra<br />
questão: se nos últimos 70 anos<br />
todas as mudanças acima descritas<br />
ocorreram na família, por que mudanças<br />
ainda maiores não ocorreram<br />
durante dezenas de milhares de anos,<br />
e por que não podem mudar em uma<br />
direção progressista no futuro?<br />
Ten<strong>do</strong> dito isto, fica claro que a<br />
opressão das mulheres não passará<br />
pacificamente sob o capitalismo. Além<br />
das barreiras materiais enfrentadas<br />
pelas mulheres, milhares de anos de<br />
sociedade de classes, de cultura e ideologia<br />
misóginas ainda determinam,<br />
em um grau ou outro, a perspectiva<br />
de bilhões de pessoas hoje. Preconceito<br />
e moralidade basea<strong>do</strong>s na classe se<br />
acumularam um sobre o outro e ainda<br />
permanecem fortes sob o capitalismo.<br />
Muitas vezes se afirma erroneamente<br />
que o capitalismo é a raiz<br />
da opressão das mulheres. Isso é<br />
simplificar enormemente a questão.<br />
Como vimos, a <strong>do</strong>minação masculina<br />
sobre as mulheres surgiu há<br />
milhares de anos, quan<strong>do</strong> surgiram<br />
as primeiras formas de sociedade<br />
de classes. No entanto, o que é verdade<br />
é que a cultura misógina continua<br />
a florescer sob o capitalismo<br />
e é ativamente utilizada pela classe<br />
<strong>do</strong>minante quan<strong>do</strong> sua posição é<br />
ameaçada, como vemos atualmente.<br />
Qualquer coisa que possa ser utilizada<br />
para dividir a classe trabalha<strong>do</strong>ra<br />
é útil para os capitalistas. Racismo,<br />
homofobia, transfobia, divisões<br />
religiosas e étnicas, to<strong>do</strong>s são vistos<br />
como ferramentas úteis para colocar<br />
um grupo de trabalha<strong>do</strong>res contra<br />
outro. Esta é uma poderosa razão<br />
pela qual a família nuclear é ainda<br />
apresentada como uma das “pedras<br />
angulares da civilização”, e sempre o<br />
será sob o capitalismo.<br />
A emancipação final e verdadeira<br />
das mulheres somente será alcançada<br />
quan<strong>do</strong> a sociedade de classes for eliminada<br />
de uma vez por todas. Como<br />
Marx e Engels colocaram, “a revolução<br />
é a força motriz da história”. 39 Nossa<br />
tarefa hoje é lutar pela derrubada <strong>do</strong><br />
atual sistema capitalista opressor, que<br />
sobreviveu ao seu papel histórico.<br />
Uma vez removidas todas as contradições<br />
que decorrem dessa sociedade,<br />
uma vez que as forças produtivas<br />
sejam libertadas das restrições<br />
da motivação <strong>do</strong> lucro e sejam colocadas<br />
sob o controle daqueles que<br />
produzem a riqueza, a classe trabalha<strong>do</strong>ra,<br />
as condições materiais<br />
mudarão radicalmente e, com essa<br />
mudança radical, serão as gerações<br />
futuras que decidirão como desejam<br />
se relacionar entre si. As relações<br />
entre os humanos serão finalmente<br />
libertas das carências materiais e da<br />
moralidade distorcida imposta pela<br />
sociedade de classes.<br />
1<br />
L H Morgan, Ancient Society, Bharati, 1947, pg 498<br />
2<br />
M F A Montagu (ed.), Marriage, Past and Present – A<br />
Debate Between Robert Briffault and Bronislaw Malinowski,<br />
Extending Horizons, 1956, pg 76<br />
3<br />
L H Morgan, Ancient Society, Bharati, 1947, pg 19<br />
4<br />
F Engels, The Origin of the Family, Private Property and<br />
the State, Wellred Books, 2020, pg xxvii<br />
5<br />
L Krader (ed.), The Ethnological Notebooks of Karl Marx,<br />
Van Gorcum& Comp. B.V., 1974<br />
6<br />
E Trinkaus, “An abundance of developmental anomalies<br />
and abnormalities in Pleistocene people” in PNAS, Vol. 115, No.<br />
47, 2018<br />
7<br />
“Prehistoric humans are likely to have formed mating networks<br />
to avoid inbreeding”, University of Cambridge, 5 October<br />
2017<br />
8<br />
F Engels, The Origin of the Family, Private Property and<br />
the State, Wellred Books, 2020, pg 16<br />
9<br />
L H Morgan, Ancient Society, Bharati, 1947, pg 28<br />
10<br />
ibid.<br />
11<br />
F Engels, The Origin of the Family, Private Property and<br />
the State, Wellred Books, 2020, pg 78<br />
12<br />
C Renfrew, Prehistory – The making of the Human Mind,<br />
Modern Library, 2007, pg 135<br />
13<br />
L H Morgan, Ancient Society, Bharati, 1947, pg 66, 69<br />
14<br />
L A White, The Evolution of Culture, The Development of<br />
Civilization to the Fall of Rome, McGraw-Hill, 1959, pg 256<br />
15<br />
See H Devlin, “Early men and women were equal, say<br />
scientists”, The Guardian,14 May 2015<br />
28<br />
16<br />
K Opie, C Power, “Grandmothering and Female Coalitions:<br />
A Basis for Matrilineal Priority?” in Early Human<br />
Kinship, From Sex to Social Reproduction, Wiley, 2008, pg<br />
168-186<br />
17<br />
C W Hansen et al., “Modern Gender Roles and Agricultural<br />
History: The Neolithic Inheritance” in Journal of Economic<br />
Growth, Vol. 20, 2015, pg 7-8<br />
18<br />
K Opie, C Power, “Grandmothering and Female Coalitions:<br />
A Basis for Matrilineal Priority?” in Early Human<br />
Kinship, From Sex to Social Reproduction, Wiley, 2008, pg 185<br />
19<br />
S L Kuhn, M C Stiner, “What’s a Mother To Do? The<br />
Division of Labor among Neandertals and Modern Humans<br />
in Eurasia” in Current Anthropology, Vol. 46, No. 6,<br />
2006, pg 995<br />
20<br />
C W Hansen et al., “Modern Gender Roles and Agricultural<br />
History: The Neolithic Inheritance” in Journal of Economic<br />
Growth, Vol. 20, 2015, pg 9<br />
21<br />
ibid.<br />
22<br />
ibid.pg 3-5<br />
<strong>23</strong><br />
G Destro-Bisol et al., “Variation of Female and Male Lineages<br />
in Sub-Saharan Populations: the Importance of Sociocultural<br />
Factors” in Molecular Biology and Evolution, Vol. 21, No.<br />
9, 2004, pg 1673<br />
24<br />
L H Morgan, Ancient Society, Bharati, 1947, pg 74<br />
25<br />
L H Morgan, Ancient Society, Bharati, 1947, pg 168<br />
26<br />
ibid., pg 398<br />
27<br />
ibid., pg 554<br />
28<br />
R Graves, The Greek Myths, Penguin Books, 1972, pg 20<br />
29<br />
William G. Dever’sDid God have a Wife?, 2005<br />
30<br />
L H Morgan, Ancient Society, Bharati, 1947, pg 449<br />
31<br />
F Engels, The Origin of the Family, Private Property and<br />
the State, Wellred Books, 2020, pg 63<br />
32<br />
M F A Montagu (ed.), Marriage, Past and Present – A<br />
Debate Between Robert Briffault and Bronislaw Malinowski,<br />
Extending Horizons, 1956, pg 41<br />
33<br />
M Harris, The Rise of Anthropological Theory, Thomas Y<br />
Cromwell, 1968, pg 249<br />
34<br />
ibid., pg 1<br />
35<br />
ibid., pg 2<br />
36<br />
M Harris, Theories of Culture in Postmodern Times, Altamira,<br />
1999, pg 13<br />
37<br />
E Wildsmith et al., “Dramatic increase in the proportion<br />
of births outside of marriage in the United States from 1990 to<br />
2016”, Child Trends,8 August 2018<br />
38<br />
E Wildsmith et al., “Dramatic increase in the proportion<br />
of births outside of marriage in the United States from 1990 to<br />
2016”, Child Trends,8 August 2018<br />
39<br />
K Marx, F Engels, The German Ideology, Prometheus<br />
Books, 1998, pg 61<br />
Notas e referências da bibliografia de Franz Boas:<br />
M Harris, The Rise of Anthropological Theory, Thomas Y<br />
Cromwell, 1968, pg 281<br />
ibid., pág. 263, 268<br />
ibid., pág. 261<br />
ibid., pág. 282
Criação <strong>do</strong> Comitê Comunista de Correspondência, em pintura de MaGang, 2018<br />
COMUNISMO<br />
E PROPAGANDA<br />
REVOLUCIONÁRIA<br />
JOHANNES HALTER<br />
A<br />
ideia de propaganda de que<br />
trata este artigo tem sua origem<br />
histórica associada à<br />
Igreja Católica Apostólica<br />
Romana. Está vinculada diretamente<br />
à luta de classes, porém, em outro<br />
contexto histórico. O pano de fun<strong>do</strong><br />
era a luta entre uma burguesia nascente<br />
contra o Antigo Regime. A iniciativa<br />
foi da reação, que desenvolveu<br />
a propaganda como instrumento para<br />
perpetuar o feudalismo, sua estrutura<br />
social e a pre<strong>do</strong>minância espiritual<br />
da Igreja Católica sobre a sociedade.<br />
A propaganda, entretanto, logo foi<br />
incorporada pela própria burguesia<br />
como um instrumento revolucionário<br />
em seu esforço para romper as<br />
relações de produção feudais e fazer<br />
prevalecer o capitalismo como mo<strong>do</strong><br />
de produção.<br />
A primeira vez que a palavra propaganda<br />
foi empregada no senti<strong>do</strong><br />
que a conhecemos foi durante o papa<strong>do</strong><br />
de Gregório XIII (1572-1585),<br />
com a designação em 1577 de uma comissão<br />
especial para a tarefa. Já em<br />
1597 o papa Clemente VIII instituiu<br />
a Comissão Cardinalícia para a Propagação<br />
da Fé (Cardinalitia Commissio<br />
de Propaganda Fide) 1 . Seu propósito<br />
era promover a unidade de Roma<br />
com os cristãos orientais (eslavos,<br />
gregos, sírios, egípcios e etíopes). O<br />
conteú<strong>do</strong> dessa propaganda foram<br />
as teses <strong>do</strong>gmáticas e legislações<br />
disciplinares (cânones) aprovadas no<br />
Concílio de Trento (1542-1563), como<br />
resposta à Reforma Protestante pela<br />
qual a nascente burguesia lutava.<br />
Esse senti<strong>do</strong> foi consagra<strong>do</strong> com a<br />
Contrarreforma, a reação medieval<br />
que buscou defender a manutenção<br />
da sociedade feudal. Como parte da<br />
defesa e reorganização da Igreja Católica,<br />
em 1622 foi estabelecida a Congregação<br />
para a Propagação <strong>do</strong> Nome<br />
de Cristo (Sacra Congregatio Christiano<br />
Nomini Propagare), pela bula canônica<br />
Inscrutabili divinae Providentiae arcano,-<br />
<strong>do</strong> papa Gregório XV 2 . A tarefa desse<br />
ministério foi levar “a Fé” para o Novo<br />
Mun<strong>do</strong> (especialmente as colônias de<br />
Portugal e Espanha). Também foi sua<br />
29
incumbência reavivar e fortalecer “a<br />
Fé” na Europa, como um outro meio de<br />
combater a Reforma Protestante.<br />
A palavra propaganda consagrou-<br />
-se a partir de então com um senti<strong>do</strong><br />
diferente da palavra publicidade. Enquanto<br />
esta deriva <strong>do</strong> latim publicus,<br />
fazen<strong>do</strong> referência a tornar público,<br />
divulgar um fato ou ideia, aquela vem<br />
<strong>do</strong> latim moderno propagare, que significa<br />
“para ser espalha<strong>do</strong>” ou “enterrar<br />
o rebento de uma planta no solo”.<br />
Propagare deriva de pangere, que quer<br />
dizer enterrar, mergulhar, plantar.<br />
Como primeira aproximação, portanto,<br />
podemos definir propaganda<br />
como a atividade de propagar ideias,<br />
princípios e teorias, fazen<strong>do</strong> com que<br />
sejam assimila<strong>do</strong>s pelos sujeitos a<br />
quem se dirige 3 .<br />
Essa iniciativa unificou as atividades<br />
missionárias da Igreja Católica.<br />
Seu objetivo era trazer homens e mulheres<br />
a uma voluntária, e não coerciva,<br />
aceitação das <strong>do</strong>utrinas da igreja.<br />
Já os méto<strong>do</strong>s e as táticas que seriam<br />
usa<strong>do</strong>s na atividade missionária eram<br />
deixa<strong>do</strong>s a critério daqueles que estavam<br />
em campo. Desde então, a palavra<br />
propaganda foi aplicada para qualquer<br />
organização que se propusesse a propagar<br />
uma <strong>do</strong>utrina; depois ela também<br />
foi usada para descrever a própria<br />
<strong>do</strong>utrina; e finalmente acabou por significar<br />
as técnicas empregadas para<br />
mudar opiniões e espalhar <strong>do</strong>utrinas 4 .<br />
O desenvolvimento de uma meto<strong>do</strong>logia,<br />
de um conjunto de técnicas de<br />
persuasão sobre a <strong>do</strong>utrina católica,<br />
marcou, portanto, uma transformação<br />
da mera publicidade em propaganda,<br />
quer dizer: uma atividade racional,<br />
pensada e eficiente 5 .<br />
Propaganda e burguesia<br />
A burguesia iniciou sua atividade<br />
no campo da propaganda, em um primeiro<br />
momento, com suas ilusões religiosas,<br />
debaten<strong>do</strong>-se pela Reforma<br />
Protestante contra a Igreja Católica e<br />
a estrutura da sociedade feudal. Esse<br />
embate vai desembocar na Guerra <strong>do</strong>s<br />
Trinta Anos (1618-1648), em que pela<br />
primeira vez fez-se uso de quantidades<br />
massivas de folhetos, panfletos,<br />
desenhos lineares, incluin<strong>do</strong> caricaturas<br />
difamatórias de líderes religiosos<br />
e seculares. Católicos e protestantes<br />
defendiam e difundiam suas <strong>do</strong>utrinas<br />
utilizan<strong>do</strong>-se de instrumentos<br />
de propagação de suas religiões. Foi<br />
nesse perío<strong>do</strong> que pela primeira vez<br />
os cartazes foram usa<strong>do</strong>s com ampla<br />
divulgação e, apesar <strong>do</strong> baixo índice<br />
de alfabetização, avalia-se que uma ou<br />
mais das técnicas de propaganda empregadas<br />
nessa guerra atingiram todas<br />
as classes da população.<br />
30<br />
Já na Guerra Civil Inglesa (1642-<br />
1649), a propaganda foi usada pela<br />
primeira vez como um elemento estratégico<br />
para esse tipo de conflito.<br />
O exército parlamentarista de Oliver<br />
Cromwell valeu-se amplamente da<br />
propaganda como um fator para acuar<br />
e subjugar as forças reais comandadas<br />
pelo Rei Charles I. Os rebeldes tinham<br />
na propagação de <strong>do</strong>utrinas religiosas<br />
e políticas, por meio de panfletos e<br />
outros suportes, um acessório regular<br />
de sua ação militar e ao qual constantemente<br />
dava-se mais atenção que o<br />
campo de batalha.<br />
A burguesia<br />
iniciou sua<br />
atividade no<br />
campo da<br />
propaganda,<br />
em um primeiro<br />
momento, com<br />
suas ilusões<br />
religiosas,<br />
debaten<strong>do</strong>-se<br />
pela Reforma<br />
Protestante contra<br />
a Igreja Católica<br />
e a estrutura da<br />
sociedade feudal<br />
As forças de Cromwell assimilaram<br />
ao seu arsenal militar um recente formato<br />
de publicações conheci<strong>do</strong> como<br />
livro de notícias, predecessores diretos<br />
<strong>do</strong> atual jornal. Eram livros de 8 ou 16<br />
páginas compostos de pequenas notas<br />
Batalha de Marston Moor 1644 por John Barker<br />
e edita<strong>do</strong>s semanalmente. Nas mãos<br />
<strong>do</strong>s parlamentaristas, os livros de notícias<br />
que vinham se propagan<strong>do</strong> nos<br />
centros urbanos passaram a ter um<br />
caráter revolucionário. <strong>Em</strong>bora ignoran<strong>do</strong><br />
a nova arma em um primeiro<br />
momento, logo as forças reais começaram<br />
a sentir o efeito da propaganda<br />
parlamentarista sobre suas tropas e a<br />
população que era sua base de apoio.<br />
Diante disso, os <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s <strong>do</strong> conflito<br />
passaram a editar livros de notícias,<br />
responden<strong>do</strong> e tentan<strong>do</strong> influir no<br />
la<strong>do</strong> adversário 6 .<br />
O emprego da propaganda nas lutas<br />
sociais e políticas cresceu enormemente<br />
nas décadas seguintes,<br />
sen<strong>do</strong> a forma pela qual se travaram<br />
as grandes disputas ideológicas dentro<br />
da estrutura <strong>do</strong> Antigo Regime. A<br />
Revolução Americana (1775-1783) foi<br />
precedida por uma longa tradição de<br />
batalha propagandística. Livros eram<br />
consumi<strong>do</strong>s e produzi<strong>do</strong>s por colonos<br />
letra<strong>do</strong>s e bem-informa<strong>do</strong>s sobre<br />
questões políticas. O Iluminismo expresso<br />
por autores ingleses e franceses<br />
das metrópoles eram a matéria prima<br />
que dava forma às ideias e à opinião<br />
pública da colônia americana 7 . O jornal<br />
impresso se tornou então o principal<br />
veículo para disseminação de<br />
informações propagandísticas, apesar<br />
das tentativas da Grã-Bretanha de taxar<br />
e fechar tais periódicos. Foi nesse<br />
perío<strong>do</strong> que os jornais passaram a<br />
trazer charges que se popularizaram<br />
como arma de propaganda.<br />
Esse também foi o caso <strong>do</strong> perío<strong>do</strong><br />
precedente da Revolução Francesa,<br />
com os espíritos sen<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong>s por<br />
amplo número de jornais e panfletos<br />
agitan<strong>do</strong> a sociedade e a circulação das<br />
ideias de Voltaire, Rousseau, Diderot,<br />
D’Alembert e outros. Ainda sob os impactos<br />
políticos da Revolução Americana<br />
sobre a França, o Rei Luís XVI<br />
convocou os Esta<strong>do</strong>s Gerais em 1788.<br />
Era uma época em que os grandes homens<br />
da França já haviam prepara<strong>do</strong>
os espíritos, uma “opinião pública”,<br />
para a revolução que se desencadearia.<br />
Durante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> anterior, a religião,<br />
a concepção da natureza, a sociedade,<br />
a ordem política: tu<strong>do</strong> foi submeti<strong>do</strong><br />
à crítica mais desapiedada. Tu<strong>do</strong><br />
que existia devia ou justificar os seus<br />
títulos de existência diante <strong>do</strong> tribunal<br />
da razão ou renunciar à existência.<br />
Antes <strong>do</strong> início da Revolução Francesa,<br />
o número de franceses leitores<br />
de jornais já estava bem estabeleci<strong>do</strong>.<br />
Panfletos apareciam a uma taxa de 25<br />
por semana. No ano de 1789, da Tomada<br />
da Bastilha, houve um clímax de<br />
informação, quan<strong>do</strong> mais de 60 novos<br />
jornais foram lança<strong>do</strong>s. A ascensão<br />
<strong>do</strong>s jacobinos ao poder, em 1792, fez<br />
com que o movimento revolucionário<br />
levasse as reivindicações da burguesia<br />
até seus limites lógicos. Nessa luta os<br />
líderes revolucionários Robespierre,<br />
Marat e Danton colocaram em ação<br />
o méto<strong>do</strong> de propaganda revolucionária.<br />
Seu objetivo era mobilizar as<br />
massas populares contra a força <strong>do</strong>s<br />
senhores e <strong>do</strong>s reis, não apenas da<br />
França, mas de toda a Europa que lhes<br />
fazia guerra. Para isso lançaram a palavra<br />
de ordem “Guerra aos palácios,<br />
paz nos casebres!” E sobre sua bandeira<br />
inscreveram o lema “Liberdade,<br />
Igualdade, Fraternidade”.<br />
Os solda<strong>do</strong>s franceses combatiam<br />
descalços, esfarrapa<strong>do</strong>s e quase sem<br />
armas. O faziam contra tropas regulares<br />
<strong>do</strong>s outros países. E apesar disso<br />
venciam, por causa de seu entusiasmo,<br />
de sua superioridade numérica e sua<br />
arte de desmoralizar e desarticular o<br />
exército inimigo. Inaugurou-se o bombardeio<br />
de proclamações sobre as tropas<br />
inimigas. A arma de propaganda<br />
revolucionária continuou a ser usada<br />
sob o governo de Napoleão, que desarticulou<br />
as tropas adversárias tão bem<br />
com esse instrumento quanto com<br />
canhões 8 . Uma vez toma<strong>do</strong> o poder político<br />
das mãos da realeza e <strong>do</strong> clero, a<br />
burguesia incorporou também o aparato<br />
de Esta<strong>do</strong> e as suas instituições<br />
ao seu arsenal de propaganda, agora<br />
volta<strong>do</strong>s para estabelecer e manter seu<br />
regime. Na França revolucionária, por<br />
exemplo, novas técnicas de propaganda<br />
se desenvolveram, como o uso das<br />
cores nacionais (vermelho, branco e<br />
azul), fogos de artifício, queima de prédios<br />
e estátuas, composição de músicas<br />
(La Marseillaise) e produção de uma variedade<br />
de trabalhos artísticos. Sob o<br />
<strong>do</strong>mínio de Napoleão Bonaparte, o governo<br />
também passou a a<strong>do</strong>tar sistematicamente<br />
plebiscitos, obras públicas<br />
e a imprensa como instrumentos<br />
de propaganda 9 .<br />
Já no século 19, a Guerra Civil Americana<br />
(1860-1865) foi um momento<br />
em que a propaganda burguesa experimentou<br />
um refinamento como<br />
arma política. Os avanços tecnológicos<br />
não apenas marcaram esse conflito<br />
como um <strong>do</strong>s mais mortais até então.<br />
Tratou-se também de um campo de<br />
testes das novas infraestruturas de<br />
comunicações, baseadas no telégrafo<br />
em combinação com a velocidade de<br />
impressão gráfica. Ao fim <strong>do</strong> conflito,<br />
a burguesia americana havia expandi<strong>do</strong><br />
sua base de comunicação, com o<br />
telégrafo alcançan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o país 10 .<br />
Propaganda e proletaria<strong>do</strong><br />
Sob os impactos da Revolução Francesa,<br />
o incipiente proletaria<strong>do</strong> britânico<br />
começou a formular suas demandas<br />
e aspirações. Enfrentou por isso uma<br />
brutal e impie<strong>do</strong>sa repressão por parte<br />
das classes <strong>do</strong>minantes ao longo de<br />
décadas. O desenvolvimento <strong>do</strong> capitalismo<br />
resultou na modificação de relações<br />
sociais seculares, que fazia com<br />
que os patrões lançassem os operários<br />
nas ruas. Essa radical transformação<br />
nas condições de vida <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res<br />
levou-os a se indignar e dar início<br />
ao primeiro movimento <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />
moderno, conheci<strong>do</strong> como movimento<br />
ludista. Seu objetivo era a destruição<br />
das máquinas como símbolo<br />
externo da situação que viviam 11 .<br />
Foi nessa época também que se formaram<br />
os primeiros sindicatos e as<br />
caixas de ajuda mútua. Enfrentan<strong>do</strong><br />
prisões, chibatadas, enforcamentos e<br />
exílios, esses homens estabeleceram<br />
uma moral de ferro. Foram suas marcas<br />
méto<strong>do</strong>s duros e conspirativos,<br />
uma necessidade para poder manter<br />
suas organizações e a integridade de<br />
seus membros 12 .<br />
Foi apenas com o cartismo que se expressou<br />
pela primeira vez uma propaganda<br />
<strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> com conteú<strong>do</strong><br />
político de classe. Sua origem está ligada<br />
à “Grande Traição” de 1832, quan<strong>do</strong><br />
foi aprova<strong>do</strong> o Ato da Reforma, uma<br />
mudança no sistema político inglês.<br />
<strong>Em</strong>bora os trabalha<strong>do</strong>res tenham ajuda<strong>do</strong><br />
a burguesia aforçar a aristocracia<br />
fundiária a mudar a legislação, eles foram<br />
deixa<strong>do</strong>s de fora <strong>do</strong> sistema político<br />
e inclusive golpea<strong>do</strong>s pela própria<br />
burguesia com a aprovação da Lei da<br />
Pobreza de 1834.<br />
Sobre a base de sua experiência e<br />
conclusões, o proletaria<strong>do</strong> inglês começou<br />
a dar seus primeiros passos<br />
independentes da burguesia. Foi dessa<br />
situação que surgiu o movimento<br />
cartista, deriva<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento que o<br />
baseava, a Carta <strong>do</strong> Povo, esboçada em<br />
junho de 1837. Seus seis pontos podem<br />
parecer de longe revolucionários hoje,<br />
porém, na época deixaram a classe<br />
<strong>do</strong>minante apavorada:<br />
• Sufrágio universal masculino;<br />
• Voto secreto através da cédula;<br />
• Eleição anual;<br />
• Igualdade entre os direitos<br />
eleitorais;<br />
• Participação de representantes da<br />
classe operária no parlamento;<br />
• Remuneração aos parlamentares<br />
eleitos;<br />
Com seu caráter sintético e contundente,<br />
a própria carta converteu-se<br />
em peça de propaganda de ideias. O<br />
cartismo mobilizou milhões de trabalha<strong>do</strong>res,<br />
por meio de petições públicas,<br />
comícios e agrupamentos que<br />
organizou. Desde seu início, valeu-se<br />
de toda sorte de jornais, panfletos e<br />
instrumentos para difundir suas posições<br />
e reunir apoio. As próprias petições<br />
que cobravam a aprovação <strong>do</strong>s<br />
seis pontos foram excelentes instrumentos<br />
de propaganda, conseguin<strong>do</strong><br />
milhões de assinaturas.<br />
Propaganda e comunismo<br />
Enquanto o proletaria<strong>do</strong> inglês começava<br />
a dar seus primeiros passos<br />
políticos independentes da burguesia,<br />
um outro movimento político <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />
se desenvolvia no continente<br />
europeu, em especial na Alemanha e<br />
na França. Uma série de sociedades secretas<br />
de caráter conspirativo atuavam<br />
sob a inspiração da Conjuração <strong>do</strong>s<br />
Iguais de 1796. Essa tradição ganhou o<br />
nome de comunista e uma das organizações<br />
influenciadas por ela foi a Liga<br />
<strong>do</strong>s Justos, fundada em 1836. Marx<br />
passou a frequentar suas reuniões em<br />
Paris, apesar de não se associar em<br />
um primeiro momento. <strong>Em</strong> 1844, ele<br />
observou que “a fraternidade <strong>do</strong>s homens<br />
não é nenhuma frase, mas sim<br />
verdade para eles, e a nobreza da humanidade<br />
nos ilumina a partir dessas<br />
figuras endurecidas pelo trabalho” 13 .<br />
<strong>Em</strong> 1844, Marx publicou uma crítica<br />
aos conceitos de Esta<strong>do</strong>, de sociedade<br />
civil e de direito em Hegel,<br />
abrin<strong>do</strong> caminho para sua superação<br />
materialista. Tece ali, entre outras, a<br />
noção de que: “A arma da crítica não<br />
pode, é claro, substituir a crítica da<br />
arma, o poder material tem de ser<br />
derruba<strong>do</strong> pelo poder material, mas a<br />
teoria também se torna força material<br />
quan<strong>do</strong> se apodera das massas” 14 . No<br />
esforço de superar a herança hegeliana,<br />
Marx e Engels criticaram não apenas<br />
Hegel, mas também os pós-hegelianos.<br />
Uma atenção especial foi dada<br />
a Ludwig Feuerbach, que mais longe<br />
havia i<strong>do</strong> em sua elaboração filosófica,<br />
mas que, ao rejeitar o idealismo de<br />
Hegel para reabilitar o materialismo,<br />
também recusou o núcleo racional da<br />
<strong>do</strong>utrina de Hegel, a dialética. Marx<br />
observou que a dialética, ao invés de<br />
31
ser rejeitada, precisava ser libertada<br />
<strong>do</strong>s aspectos idealistas.<br />
Para Hegel, nada é imóvel, e buscou<br />
explicar o mun<strong>do</strong> tal qual ele se<br />
desenvolve. Quan<strong>do</strong> fala de ideia absoluta,<br />
diz que ela vive e só se manifesta<br />
no processo <strong>do</strong> movimento, <strong>do</strong><br />
desenvolvimento contínuo. E conclui<br />
que os próprios homens são des<strong>do</strong>bramento<br />
dessa ideia absoluta. Tu<strong>do</strong><br />
flui, tu<strong>do</strong> muda, tu<strong>do</strong> desaparece.<br />
Para ele, o movimento contínuo, o<br />
desenvolvimento contínuo da ideia<br />
absoluta, determina o desenvolvimento<br />
de nosso mun<strong>do</strong> em to<strong>do</strong>s<br />
os <strong>do</strong>mínios. Se algo parece imóvel,<br />
uma análise detalhada mostrará que<br />
se produz ali uma luta, que existem<br />
influências, forças que mantêm o aspecto<br />
que percebemos, e outras forças,<br />
outras influências que tendem a<br />
modificá-lo. <strong>Em</strong> to<strong>do</strong> fenômeno produz-se<br />
a luta desses <strong>do</strong>is princípios,<br />
a tese e a antítese. A luta entre esses<br />
contrários conduz a qualquer coisa<br />
intermediária, à união. Porém, essa<br />
também é apenas provisória 15 .<br />
Marx e Engels partiram <strong>do</strong> materialismo<br />
intransigente de Feuerbach<br />
para sustentar que Hegel invertia as<br />
relações reais nas ideias e nas coisas,<br />
e acabava por conceber que as coisas<br />
reais eram somente realizações<br />
imperfeitas da ideia absoluta e suas<br />
manifestações. Para Marx e Engels se<br />
trata <strong>do</strong> oposto: os conceitos da mente<br />
que eram imagens da realidade material<br />
que existiam independentemente<br />
deles. Ao reivindicar a dialética partin<strong>do</strong><br />
dessa base, a própria dialética se<br />
tornou o oposto <strong>do</strong> que era com Hegel.<br />
“Com isto, a dialética se reduzia à ciência<br />
das leis gerais <strong>do</strong> movimento, tanto <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> exterior quanto <strong>do</strong> pensamento<br />
humano: duas categorias de leis idênticas<br />
quanto à essência, mas distintas quanto<br />
à expressão, no senti<strong>do</strong> de que o cérebro<br />
humano pode aplicá-las conscientemente,<br />
enquanto que na natureza, e até hoje, em<br />
grande parte, na história humana, estas<br />
leis se manifestam de um mo<strong>do</strong> inconsciente,<br />
sob a forma de uma necessidade<br />
exterior, em meio auma série infinita de<br />
aparentes casualidades. No entanto, com<br />
isto, a própria dialética <strong>do</strong> conceito se tornava<br />
simplesmente o reflexo consciente <strong>do</strong><br />
movimento dialético <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> real, o que<br />
equivalia a colocar a dialética hegeliana<br />
de cabeça para baixo; ou melhor dizen<strong>do</strong>,<br />
a inverter a dialética, que estava de cabeça<br />
para baixo, colocan<strong>do</strong>-a de pé.” 16<br />
Essa concepção contrapunha a<br />
abordagem de Feuerbach, para quem<br />
o sujeito era concebi<strong>do</strong> como um ser<br />
abstrato, que capta conceitos e formula<br />
ideias a partir de sua experiência<br />
Cópia de "L'Ami du peuple",jornal. Biblioteca Nacional, Paris<br />
sensível individual. Para Marx e Engels,<br />
a atividade humana não se trata<br />
de uma atividade individual, mas sim<br />
corresponde fundamentalmente ao<br />
conjunto das relações sociais, como<br />
demonstra<strong>do</strong> nas Teses Sobre Feuerbach,<br />
de Marx. A solução proposta por Marx<br />
e Engels é de que a relação entre sujeito<br />
e objeto, entre o pensamento e o ser,<br />
poderiam ser resolvi<strong>do</strong>s pela filosofia<br />
uma vez que aborda<strong>do</strong>s de um ponto<br />
de vista da prática, da realidade material<br />
experimentada pelas pessoas e da<br />
reflexão que dessa realidade partisse e<br />
a ela retornasse.<br />
Dessa forma, a nova concepção de<br />
comunismo formulada por Marx e Engels<br />
surgiu em 1845 e passou a figurar<br />
ao la<strong>do</strong> da antiga concepção de comunismo<br />
esboça<strong>do</strong> pela Liga <strong>do</strong>s Justos<br />
e por seu principal teórico, o alemão<br />
Wilhelm Weitling. Entre os conceitos<br />
introduzi<strong>do</strong>s por Marx e Engels estão<br />
as ideias de ideologia e de alienação da<br />
classe operária, segun<strong>do</strong> os quais: “A<br />
consciência não pode jamais ser outra<br />
coisa <strong>do</strong> que o ser consciente, e o ser<br />
<strong>do</strong>s homens é o seu processo de vida<br />
real”, e que, uma vez que a vida é que<br />
determina a consciência, “parte-se <strong>do</strong>s<br />
próprios indivíduos reais, vivos, e se<br />
considera a consciência apenas como<br />
sua consciência” 17 .<br />
Apesar de todas as investigações<br />
realizadas por Marx e Engels nesse<br />
perío<strong>do</strong> e ao longo da vida, o núcleo<br />
<strong>do</strong> pensamento racional de ambos<br />
continuou a ser a lógica dialética.<br />
Isso pode ser observa<strong>do</strong> claramente,<br />
por exemplo, na análise de Engels<br />
sobre as perspectivas para a luta<br />
de classes de 1845. Ele destaca que a<br />
condição objetiva de classe produtiva<br />
não bastava ao proletaria<strong>do</strong> inglês,<br />
faltan<strong>do</strong> algo para que sua potência<br />
revolucionária se transformasse em<br />
um fato da<strong>do</strong>.<br />
“Verificamos, assim, que o movimento<br />
operário está dividi<strong>do</strong> em duas frações: os<br />
cartistas e os socialistas. Os cartistas são<br />
de longe os mais atrasa<strong>do</strong>s e menos evoluí<strong>do</strong>s;<br />
mas são proletários autênticos,<br />
de carne e osso, e representam legitimamente<br />
o proletaria<strong>do</strong>. Os socialistas têm<br />
horizontes mais amplos, apresentam<br />
propostas práticas contra a miséria, mas<br />
provêm originariamente da burguesia e,<br />
por isso, são incapazes de se amalgamar<br />
com a classe operária. A fusão <strong>do</strong> socialismo<br />
com o cartismo, a reconstituição<br />
<strong>do</strong> comunismo francês em moldes ingleses,<br />
será a próxima etapa e ela já está<br />
em curso. Quan<strong>do</strong> estiver realizada, a<br />
classe operária será realmente senhora<br />
[intelectual] da Inglaterra. Até lá, o desenvolvimento<br />
político e social seguirá<br />
seu curso, favorecen<strong>do</strong> esse novo parti<strong>do</strong>,<br />
esse progresso <strong>do</strong> cartismo.” 18<br />
Engels creditava ao socialismo francês<br />
a capacidade de armar ideologicamente<br />
o movimento operário inglês.<br />
Era uma perspectiva, uma possibilidade<br />
sobre como poderia ser resolvida a<br />
contradição entre a condição objetiva<br />
de classe social <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> e sua<br />
pouca consciência política, e a avançada<br />
perspectiva política e pouco desenvolvimento<br />
econômico <strong>do</strong> comunismo<br />
francês. Trata-se de uma solução dialética,<br />
que nega e conserva aspectos <strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>is momentos para se efetuar o terceiro<br />
momento de unidade almeja<strong>do</strong>.<br />
Esse processo de transformação<br />
da consciência também foi aborda<strong>do</strong><br />
por Marx quan<strong>do</strong> refutou as ideias<br />
de Pierre-Joseph Proudhon em 1847.<br />
Ao analisar a relação entre desenvolvimento<br />
industrial e organização <strong>do</strong><br />
32
proletaria<strong>do</strong>, Marx vai expor em detalhes<br />
uma noção importante para a<br />
concepção comunista de propaganda,<br />
o conceito da condição de classe em si e<br />
de classe para si:<br />
“A grande indústria aglomera num mesmo<br />
local uma multidão de pessoas que não<br />
se conhecem. A concorrência divide seus<br />
interesses. Mas a manutenção <strong>do</strong> salário,<br />
o interesse comum que elas têm contra o<br />
patrão, reúne-as num mesmo pensamento<br />
de resistência - coalizão. A coalizão, pois,<br />
tem sempre um duplo objetivo: fazer cessar<br />
entre elas a concorrência, para poder fazer<br />
uma concorrência geral ao capitalista. Se<br />
o primeiro objetivo da resistência é apenas<br />
a manutenção <strong>do</strong> salário, à medida que os<br />
capitalistas se reúnem num mesmo pensamento<br />
de repressão, as coalizões, inicialmente<br />
isoladas, agrupam-se e, em face <strong>do</strong><br />
capital sempre reuni<strong>do</strong>, a manutenção da<br />
associação torna-se mais importante para<br />
elas que a manutenção <strong>do</strong> salário. Isso é<br />
tão verdadeiro que os economistas ingleses<br />
assombram-se ao ver que os operários<br />
sacrificam boa parte <strong>do</strong> salário em defesa<br />
das associações que, para esses economistas,<br />
só existem em defesa <strong>do</strong> salário. Nessa<br />
luta - verdadeira guerra civil -, reúnem-se e<br />
desenvolvem-se to<strong>do</strong>s os elementos necessários<br />
para uma batalha futura. Uma vez<br />
chegada a esse ponto, a associação adquire<br />
um caráter político.<br />
As condições econômicas primeiro transformaram<br />
a massa <strong>do</strong> país em trabalha<strong>do</strong>res.<br />
A <strong>do</strong>minação <strong>do</strong> capital criou para essa<br />
massa uma situação comum, interesses<br />
comuns. Assim, essa massa já é uma<br />
classe em relação ao capital, mas<br />
não o é ainda para si mesma. Na<br />
luta, da qual assinalamos apenas<br />
algumas fases, essa massa se reúne,<br />
se constitui em classe para si mesma.<br />
Os interesses que defende se tornam<br />
interesses de classe. Mas a luta entre classes<br />
é uma luta política.” 19 (Grifos nossos)<br />
A fusão <strong>do</strong> cartismo com o socialismo<br />
francês, ou a constituição da classe<br />
em si em classe para si, dizem respeito a<br />
processos subjetivos e ao mesmo tempo<br />
políticos. <strong>Em</strong> última instância, trata-se<br />
de um fator subjetivo, de decisões e escolhas,<br />
relaciona<strong>do</strong>s com alternativas<br />
e possibilidades. Porém, Marx e Engels<br />
observam que esse fator subjetivo ocorre<br />
sobre uma determinada circunstância<br />
histórica e econômica material.<br />
Converte-se, assim, em um processo<br />
político de mudança de consciência,<br />
de tomada de consciência <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />
sobre sua própria condição. De<br />
sua realização depende a possibilidade<br />
da classe operária apresentar-se como<br />
uma classe revolucionária, “realmente<br />
senhora [intelectual]”, “classe para si”,<br />
na situação política.<br />
Podemos assim esboçar uma primeira<br />
aproximação sobre o conteú<strong>do</strong><br />
e o senti<strong>do</strong> da propaganda comunista.<br />
Os homens e as mulheres, apesar<br />
de submeti<strong>do</strong>s à divisão <strong>do</strong> trabalho<br />
e à alienação social, são parte de uma<br />
realidade conflituosa, contraditória e<br />
dialética. A condição da classe operária<br />
é temporária e passível de mudança, o<br />
que diz respeito também à compreensão<br />
que ela tem e <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> pelo qual<br />
toma conhecimento da sua condição.<br />
A propaganda comunista em um senti<strong>do</strong><br />
amplo, como atividade social, interfere<br />
nesse processo de tomada de<br />
consciência da classe operária. Tem<br />
por finalidade essa conversão, essa<br />
transformação da classe operária em<br />
classe social revolucionária, capaz de<br />
expressar os mais amplos horizontes e<br />
agir segun<strong>do</strong> seus próprios interesses.<br />
Propaganda e Manifesto Comunista<br />
Marx e Engels conduziam sua atividade<br />
política, desde então, procuran<strong>do</strong><br />
os meios para difundir e propagar sua<br />
concepção de comunismo e as conclusões<br />
teóricas e políticas a que chegavam.<br />
Nunca foi sua intenção restringir<br />
Pintura de um típico sans-culotte, Revolução<br />
Francesa<br />
Louis-Léopold Boilly<br />
os novos resulta<strong>do</strong>s científicos ao<br />
mun<strong>do</strong> erudito em livros grossos. Segun<strong>do</strong><br />
Engels, eles entendiam como<br />
fundamental ganhar o proletaria<strong>do</strong><br />
europeu para suas convicções 20 . Uma<br />
vez que haviam clarifica<strong>do</strong> as coisas<br />
para eles próprios, e como não eram<br />
teóricos puros, mas sim fundamentalmente<br />
homens de ação, esforçaram-se<br />
para penetrar em to<strong>do</strong>s os lugares <strong>do</strong><br />
meio operário, em todas as organizações<br />
onde esses operários estavam<br />
submeti<strong>do</strong>s a outras influências 21 .<br />
A primeira menção direta à atividade<br />
de propaganda por parte deles provavelmente<br />
vem de Engels, relatan<strong>do</strong><br />
em 1845 o trabalho em Elberfeld: “Nossa<br />
propaganda realiza um progresso<br />
extraordinário. As pessoas só falam<br />
<strong>do</strong> comunismo e to<strong>do</strong> dia recrutamos<br />
novos partidários” 22 . Esse traço da fisionomia<br />
de Marx, seu papel como<br />
organiza<strong>do</strong>r já ao re<strong>do</strong>r de 1846-1847,<br />
geralmente é ignora<strong>do</strong> pelos historia<strong>do</strong>res.<br />
A apresentação de Marx como<br />
um pensa<strong>do</strong>r de gabinete, porém, não<br />
resiste à análise <strong>do</strong>s fatos. Os <strong>do</strong>is amigos<br />
não tinham a menor dúvida de que<br />
a classe operária necessitava de uma<br />
organização, ainda que apenas por<br />
razões de propaganda. A Liga, por sua<br />
vez, a<strong>do</strong>tava uma estrutura de organização<br />
secreta, ainda sob influência de<br />
Auguste Blanqui. No plano de sua atividade,<br />
a Liga apenas admitia uma forma<br />
de propaganda, aquela das sociedades<br />
clandestinas de conspira<strong>do</strong>res <strong>23</strong> .<br />
Marx e Engels também consideravam<br />
muito importante conquistar os<br />
círculos operários da Liga que ainda<br />
estavam sob a influência de Weitling.<br />
O choque se devia a divergências teóricas<br />
que conduziram a conclusões<br />
práticas distintas. Weitling, por exemplo,<br />
não atribui nenhuma importância<br />
à propaganda, não concebe nenhum<br />
valor especial ao proletaria<strong>do</strong>, considera<br />
o lumpemproletaria<strong>do</strong> como<br />
o mais revolucionário e explorava os<br />
sentimentos religiosos para mover as<br />
massas. Nesse combate teórico e organizativo,<br />
Marx atuou como dirigente<br />
e inspira<strong>do</strong>r de to<strong>do</strong> um trabalho de<br />
organização. Como resulta<strong>do</strong> desse<br />
esforço criaram a Sociedade Educacional<br />
Operária, onde Marx profere<br />
conferências sobre economia política.<br />
A partir de Bruxelas, estação intermediária<br />
de conexão entre a França e a<br />
Alemanha, Marx foi ganhan<strong>do</strong> pouco<br />
a pouco operários e intelectuais, forman<strong>do</strong><br />
círculos e expandin<strong>do</strong> sua influência<br />
para Londres, Paris e Suíça.<br />
To<strong>do</strong> esse trabalho, que incluía a<br />
sustentação de correspondências com<br />
diversos operários e intelectuais, agia<br />
sobre os melhores elementos em to<strong>do</strong>s<br />
os meios operários. Engels explica<br />
33
que também mantinham-se informa<strong>do</strong>s<br />
sobre os processos importantes<br />
da Liga e seus círculos. Buscavam<br />
influir oralmente, em entrevistas,<br />
por carta ou pela imprensa sobre as<br />
perspectivas teóricas <strong>do</strong>s membros<br />
mais destaca<strong>do</strong>s. Além disso escreviam<br />
circulares litografadas em ocasiões<br />
especiais, enviadas para amigos<br />
e correspondentes pelo mun<strong>do</strong>, sobre<br />
diversos assuntos, e inclusive sobre a<br />
Liga, ten<strong>do</strong> com isso repercussão 24 .<br />
Como plano de agrupar to<strong>do</strong>s os<br />
elementos comunistas, Marx anima<br />
entre 1846-1847 a formação de comitês<br />
comunistas de correspondência,<br />
verdadeiros centros de organização.<br />
Àqueles com quem têm contato, Marx<br />
e Engels propõem que constituam<br />
órgãos análogos com a finalidade de<br />
criar um núcleo comunista internacional.<br />
Lançaram-se também a um trabalho<br />
de articular associações, círculos,<br />
jornais de terceiros e de estabelecer relações<br />
de to<strong>do</strong> tipo com organizações<br />
e órgãos de imprensa radicais e proletárias.<br />
Buscavam assim a unidade <strong>do</strong>s<br />
revolucionários que tivessem acor<strong>do</strong><br />
com a finalidade que acabou sen<strong>do</strong> definida<br />
no Artigo I <strong>do</strong>s Estatutos da Liga<br />
<strong>do</strong>s Comunistas 25 .<br />
Esses são exemplos de uma clara<br />
e legítima atividade propagandística<br />
desenvolvida por Marx e Engels. Tanto<br />
foram efetivos nesse esforço que quan<strong>do</strong><br />
é convocada a realização de um<br />
congresso da Liga em Londres, seus<br />
líderes não só estavam convenci<strong>do</strong>s<br />
da justeza geral da nova concepção de<br />
comunismo e de libertar a organização<br />
das velhas tradições e formas conspiratórias,<br />
como já estavam organiza<strong>do</strong>s<br />
sob a influência e direção de Marx e<br />
Engels 26 . O 1º Congresso da Liga realizou-se<br />
no verão de 1847. A partir dele a<br />
Liga passou a se organizar sob a forma<br />
de seções, círculos, círculos dirigentes,<br />
direção central e congresso. Também<br />
passou a chamar-se Liga <strong>do</strong>s Comunistas.<br />
Um novo artigo 1º <strong>do</strong> estatuto<br />
passou a afirmar: “A Liga tem por finalidade<br />
a derrocada da burguesia, o<br />
<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>, a supressão<br />
da velha sociedade burguesa, baseada<br />
nos antagonismos de classe, e a criação<br />
de uma nova sociedade, sem classes e<br />
sem propriedade privada”. No âmbito<br />
organizativo também foi estabeleci<strong>do</strong><br />
um funcionamento democrático. Já<br />
o artigo 2º <strong>do</strong> novo estatuto afirmava<br />
que, entre outros requisitos, “Para<br />
fazer parte da Liga é necessário preencher<br />
as seguintes condições: (...) ser<br />
enérgico e abnega<strong>do</strong> na propaganda” 27 .<br />
Todas essas mudanças, na avaliação<br />
de Engels, converteram a Liga<br />
<strong>do</strong>s Comunistas em uma sociedade<br />
exclusivamente de propaganda, pelo<br />
34<br />
menos nos perío<strong>do</strong>s normais de paz 28 .<br />
O 1º Congresso também aprovou a publicação<br />
de uma revista, com o título<br />
Revista Comunista. Foi no único número<br />
da publicação que se confirmou a<br />
mudança <strong>do</strong> slogan “To<strong>do</strong>s os homens<br />
são irmãos”, até então presente na<br />
bandeira da Liga, e passou-se a a<strong>do</strong>tar<br />
como seu lema “Proletários de to<strong>do</strong>s os<br />
países, uní-vos!”, consigna que depois<br />
figurará como grito de guerra <strong>do</strong> movimento<br />
operário internacional. O 2º<br />
Congresso da Liga ocorreu entre fins<br />
de novembro e começo de dezembro<br />
de 1847. Marx esforçou-se ao longo<br />
de pelo menos 10 dias em defender a<br />
nova teoria que havia concebi<strong>do</strong> com<br />
Engels. Foi dessa forma que todas as<br />
contradições e dúvidas em torno <strong>do</strong><br />
congresso foram resolvi<strong>do</strong>s, e os novos<br />
princípios da Liga foram aprova<strong>do</strong>s.<br />
Nessa oportunidade Marx e Engels<br />
foram encarrega<strong>do</strong>s de elaborar um<br />
<strong>do</strong>cumento que expressasse as novas<br />
concepções abraçadas pela organização.<br />
Podemos observar claramente<br />
outro exemplo da atividade propagandística<br />
deles neste episódio. A primeira<br />
versão <strong>do</strong> texto foi pensada em um<br />
formato de catecismo, de um “cre<strong>do</strong><br />
comunista”, ao estilo que estava acostuma<strong>do</strong><br />
o proletaria<strong>do</strong> francês, grupo<br />
pelo qual Engels havia si<strong>do</strong> delega<strong>do</strong><br />
ao 2º Congresso. Buscan<strong>do</strong> atender às<br />
finalidades de propaganda das conclusões<br />
a<strong>do</strong>tadas pela Liga, Engels formulou<br />
as 25 perguntas de Princípios <strong>do</strong><br />
Comunismo. Entretanto, ele considerou<br />
seu conteú<strong>do</strong> e sua forma insuficiente,<br />
indican<strong>do</strong> a Marx que “precisa conter<br />
um pouco de história”, e, ao invés de<br />
ser chamar “cre<strong>do</strong>” como queriam os<br />
operários franceses, sugeriu o nome de<br />
Manifesto Comunista, em referência ao<br />
Manifesto <strong>do</strong>s Iguais de 1796. A forma definitiva<br />
<strong>do</strong> Manifesto tem todas as ideias<br />
esboçadas por Engels no seu “cre<strong>do</strong>”,<br />
mas também tem o selo de Marx, que<br />
não precisava lidar com a pressão <strong>do</strong>s<br />
operários franceses e redigiu o <strong>do</strong>cumento<br />
pensan<strong>do</strong> nos operários mais<br />
avança<strong>do</strong>s que se encontravam em<br />
Bruxelas e com os quais estava liga<strong>do</strong> 29 .<br />
O resulta<strong>do</strong> desse trabalho <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is,<br />
que populariza os pensamentos que já<br />
haviam elabora<strong>do</strong> no gor<strong>do</strong> volume de<br />
A ideologia alemã, foi a mais importante<br />
e influente peça de propaganda já produzida<br />
pelo movimento operário. Lança<strong>do</strong><br />
em 28 de fevereiro de 1848, surpreende<br />
a facilidade com que jovens e<br />
trabalha<strong>do</strong>res conseguem ler e compreender<br />
suas ideias gerais mesmo<br />
nos dias de hoje. Esse efeito contrasta,<br />
por exemplo, com outras obras assinadas<br />
por seus <strong>do</strong>is autores. O efeito propagandístico<br />
atemporal <strong>do</strong> Manifesto<br />
se deve ao fato de que, como o próprio<br />
Esboço <strong>do</strong> Manifesto nas letras de Karl Marx<br />
título evidencia, ele foi concebi<strong>do</strong> para<br />
ser uma peça de propaganda da jovem<br />
Liga <strong>do</strong>s Comunistas. Logo no início da<br />
redação, anuncia-se que o objetivo <strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>cumento era permitir aos comunistas<br />
“exporem, abertamente, ao mun<strong>do</strong><br />
inteiro, seu mo<strong>do</strong> de ver, seus objetivos<br />
e suas tendências, opon<strong>do</strong> um manifesto<br />
<strong>do</strong> próprio parti<strong>do</strong> à lenda <strong>do</strong><br />
espectro <strong>do</strong> comunismo” 30 .<br />
Propaganda e Revolução <strong>do</strong>s Povos<br />
Tão logo a Liga <strong>do</strong>s Comunistas estabeleceu<br />
sua nova <strong>do</strong>utrina, sua nova<br />
estrutura organizativa e sua tarefa<br />
prioritária de propaganda, os tempos<br />
normais de paz que previa Engels ficaram<br />
para trás e a Europa foi lançada<br />
nos tempos de guerra civil, pelas ondas<br />
de insurreições e semi-insurreições da<br />
Primavera <strong>do</strong>s Povos. Nem o Manifesto<br />
Comunista ainda havia começa<strong>do</strong> a circular,<br />
a revolução estourou nas ruas de<br />
Paris em 22 de fevereiro de 1848. Logo<br />
foi a vez de Berlim entrar em chamas.<br />
Os mil primeiros exemplares <strong>do</strong> Manifesto<br />
vão entrar na Alemanha nesse<br />
contexto pelas mãos de exila<strong>do</strong>s. As<br />
cópias foram distribuídas em várias<br />
cidades, e seus trechos foram reproduzi<strong>do</strong>s<br />
na imprensa radical, alcançan<strong>do</strong><br />
dessa forma amplos setores sociais 31 .<br />
Essa foi a única oportunidade que<br />
Marx e Engels tiveram de intervir<br />
diretamente num combate revolucionário,<br />
e sua atividade de 1848 a<br />
1852 serve de lição, de referência,<br />
para a atividade de propaganda <strong>do</strong>s<br />
marxistas de hoje. O início das revoluções<br />
expôs a dificuldade da direção<br />
de mover a organização de conjunto<br />
na nova situação política. Às vésperas<br />
das revoluções de 1848, a Liga contava<br />
com 400 membros na Alemanha
(100, espalha<strong>do</strong>s em 30 comunas),<br />
França e Inglaterra. Ainda se seguiam<br />
lutas internas constantes, com setores<br />
influencia<strong>do</strong>s por Weitling e pelo<br />
“socialismo verdadeiro”.<br />
Dessa forma, a Liga recém-nascida,<br />
colocada prematuramente sob um teste<br />
de fogo, acabou por se mostrar uma<br />
alavanca demasiadamente débil diante<br />
<strong>do</strong> movimento desencadea<strong>do</strong> pelas<br />
massas . Após um primeiro perío<strong>do</strong> de<br />
tentativas de mobilização e de prisões e<br />
deportações, Marx e Engels decidiram<br />
renunciar ao plano inicial de desenvolver<br />
a Liga. Isso os fez entrar em choque<br />
com vários de seus camaradas, porém,<br />
eles implementaram essa orientação e<br />
trabalharam mesmo para impedir sua<br />
reorganização.<br />
Esse episódio guarda uma importante<br />
lição, mostran<strong>do</strong> que uma noção<br />
clara sobre estratégia e tática aplicadas<br />
à política já se encontravam na<br />
concepção e na atividade de Marx e<br />
Engels. De fato, há mesmo uma ausência<br />
de <strong>do</strong>cumentos <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> que<br />
explique as razões dessas decisões,<br />
sen<strong>do</strong> somente anos depois tratadas<br />
por eles. Uma dedução possível é a de<br />
que eles compreenderam que a Liga<br />
havia se torna<strong>do</strong> obsoleta como meio,<br />
como instrumento, para a propagação<br />
das ideias e para organização <strong>do</strong>s insurretos.<br />
Portanto, fazia-se necessário<br />
buscar vias mais efetivas para a realização<br />
<strong>do</strong>s mesmos objetivos que antes<br />
<strong>do</strong> início das revoluções estavam<br />
articula<strong>do</strong>s em torno da Liga.<br />
A nova orientação colocada em ação<br />
por Marx e Engels, então, foi concebida<br />
a partir de uma análise das alternativas<br />
e possibilidades reais para se atingir o<br />
mesmo objetivo prioritário ao re<strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong> qual havia se estrutura<strong>do</strong> a Liga:<br />
promover a propaganda da nova concepção<br />
de comunismo. Era necessário<br />
evitar tanto a subordinação à burguesia<br />
ou ao parti<strong>do</strong> democrático, quanto<br />
o isolamento e a inação. Dessa forma,<br />
em 1 de junho de 1848, é lança<strong>do</strong> o primeiro<br />
número <strong>do</strong> jornal Nova Gazeta<br />
Renana, edita<strong>do</strong> por Marx em Colônia.<br />
Apresenta<strong>do</strong> como “órgão da democracia”,<br />
a publicação não se declarava como<br />
órgão <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> comunista. Diante<br />
da debilidade da burguesia alemã e <strong>do</strong><br />
movimento operário, atuava-se agora<br />
na ala esquerda <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> democrata<br />
alemão, denominada na Associação<br />
Democrática de Colônia, da qual o novo<br />
jornal seria órgão 33 .<br />
Foi em torno desse novo centro gravitacional,<br />
a Nova Gazeta Renana, que<br />
Marx e Engels realizaram sua atividade<br />
política durante a Revolução <strong>do</strong>s<br />
Povos. Esse jornal converteu-se em órgão<br />
central <strong>do</strong> movimento revolucionário,<br />
em torno <strong>do</strong> qual os membros<br />
da Liga passaram a se articular. Eles<br />
apareciam à frente da ala extrema <strong>do</strong><br />
movimento democrático em diversas<br />
regiões alemãs 34 . A concepção de práxis<br />
vai encontrar sua realização na atividade<br />
da publicação. <strong>Em</strong> suas páginas<br />
foram analisa<strong>do</strong>s os acontecimentos<br />
no calor da luta de classes. Tratava-se,<br />
portanto, de um instrumento que permitia<br />
aos partidários <strong>do</strong> comunismo<br />
participar ativamente da luta de classes,<br />
dirigin<strong>do</strong> e orientan<strong>do</strong> a atividade<br />
tanto em Colônia quanto em to<strong>do</strong> lugar<br />
em que o jornal chegasse.<br />
Propaganda e contrarrevolução<br />
Os ventos <strong>do</strong>s acontecimentos começaram<br />
a mudar com a aliança da<br />
burguesia às classes mais reacionárias,<br />
à nobreza e ao clero para barrar e em<br />
seguida esmagar o proletaria<strong>do</strong> em ascensão.<br />
Os efeitos da convulsão política<br />
ocorrida em 13 de junho de 1849 na<br />
França, a derrota das insurreições de<br />
maio na Alemanha e o esmagamento<br />
da revolução húngara pelos russos puseram<br />
fim ao perío<strong>do</strong> revolucionário<br />
aberto em 1848. Desencadearam-se<br />
sobre os revolucionários perseguições,<br />
calúnias, repressões, condenações da<br />
justiça burguesa e prisões. Muitos foram<br />
obriga<strong>do</strong>s a sair de seus países e se<br />
exilaram no estrangeiro.<br />
Mais uma vez, portanto, Marx e Engels<br />
se viram obriga<strong>do</strong>s a operar agudas<br />
mudanças táticas em sua atividade<br />
política. <strong>Em</strong> Colônia o governo processou<br />
a Nova Gazeta Renana e de fato fecha<br />
o jornal, que tem seu último número<br />
publica<strong>do</strong> em 19 de maio de 1849. Impôs-se<br />
a necessidade de uma reorganização<br />
das forças revolucionárias<br />
dispersas, e também da Liga. Agora a<br />
atividade pública e aberta estava sen<strong>do</strong><br />
reprimida e condenada. Fez-se imperativo<br />
assim voltar à forma secreta<br />
de organização. Agora já exila<strong>do</strong>s em<br />
Londres, Marx e Engels operam uma<br />
reorganização da Liga, publican<strong>do</strong> em<br />
março de 1850 a Mensagem <strong>do</strong> Comitê<br />
Central à Liga <strong>do</strong>s Comunistas 35 .<br />
Fazen<strong>do</strong> um balanço, o <strong>do</strong>cumento<br />
apontava que, durante os anos de 1848<br />
e 1849, os membros da Liga mostraram<br />
uma enorme bravura e coragem,<br />
participan<strong>do</strong> energicamente <strong>do</strong> movimento<br />
em to<strong>do</strong>s os lugares em que ele<br />
ocorreu. Na imprensa, nas barricadas<br />
e nos campos de batalha, a Liga estava<br />
em atividade comum com a vanguarda<br />
<strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>. Ao final de to<strong>do</strong><br />
esse processo revolucionário, pode-se<br />
constatar que haviam se confirma<strong>do</strong><br />
as perspectivas e concepções formuladas<br />
nos <strong>do</strong>cumentos <strong>do</strong>s congressos<br />
da Liga, pelo seu comitê central e pelo<br />
Manifesto Comunista. Mais <strong>do</strong> que isso,<br />
essas perspectivas e concepções haviam<br />
si<strong>do</strong> assimiladas pelo conjunto<br />
<strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res e eram defendidas<br />
abertamente em público 36 .<br />
A partir dessa reorganização a Liga<br />
se tornou a única organização revolucionária<br />
alemã de importância. Uma<br />
vez que seus membros estavam refugia<strong>do</strong>s<br />
em Londres, também aderiram<br />
a ela cartistas ingleses, blanquistas,<br />
revolucionários polacos e húngaros<br />
refugia<strong>do</strong>s. Importante observar que<br />
Marx e Engels se referem à Liga como<br />
atuante durante as revoluções, quan<strong>do</strong><br />
na verdade enquanto organização ela<br />
não atuou. Na verdade, eles se referiam<br />
à atividade <strong>do</strong>s comunistas articula<strong>do</strong>s<br />
em torno da Nova Gazeta Renana, que<br />
expressaram a posição comunista nessa<br />
fase <strong>do</strong> combate político. Portanto,<br />
a atenção deles estava fundamentalmente<br />
voltada para o senti<strong>do</strong> da atividade,<br />
que nos <strong>do</strong>is casos – da Liga e <strong>do</strong><br />
jornal – foi o mesmo.<br />
Apesar desses êxitos circunstanciais,<br />
Marx e Engels não se deixaram<br />
iludir a respeito <strong>do</strong> real esta<strong>do</strong> de coisas<br />
que se desenvolvia e sobre quais<br />
tarefas se colocavam à frente. Foram<br />
se esboçan<strong>do</strong> duas análises de conjuntura<br />
que terminaram por se des<strong>do</strong>brar<br />
Gravura <strong>do</strong> livro Histórias Verdadeiras <strong>do</strong> Reina<strong>do</strong> da Rainha Vitória, de 1886, de Cornelius Brown<br />
35
no conflito entre duas táticas, duas<br />
posições sobre as tarefas políticas a<br />
serem a<strong>do</strong>tadas. Deu-se assim a cisão.<br />
A ala otimista sobre as perspectivas e<br />
as tarefas encontrou seus líderes nas<br />
figuras de Willich e Schapper e influiu<br />
sobre quase to<strong>do</strong>s. Eles sustentavam<br />
que as condições permitiam para breve<br />
o novo despertar da revolução e se<br />
preparavam para acontecimentos que<br />
acreditavam iminentes.<br />
Já no decorrer de 1850 Marx e Engels<br />
foram perceben<strong>do</strong> que: “Começava um<br />
perío<strong>do</strong> novo, até então nunca visto, de<br />
prosperidade industrial: quem tivesse<br />
olhos para ver e fizesse uso deles tinha<br />
de convencer-se de que a tormenta revolucionária<br />
de 1848 se dissipava, pouco<br />
a pouco”. Suas posições pouco anima<strong>do</strong>ras<br />
sobre a situação foram vistas<br />
como heresia. Marx e Engels sustentavam<br />
que a função a ser desempenhada<br />
pela Liga dependia de que se concretizasse<br />
ou não as perspectivas de um<br />
novo ascenso da revolução . Contra<br />
aqueles que colocavam como tarefa<br />
lançar-se a operar insurreições e revoluções,<br />
Marx e Engels compreenderam<br />
que essas esperanças eram vãs e<br />
que, da<strong>do</strong> o desenvolvimento concreto<br />
da situação e das forças em luta, o proletaria<strong>do</strong><br />
apenas estaria em condições<br />
de exercer seu papel revolucionário<br />
depois de um longo perío<strong>do</strong> de propaganda<br />
e organização. A atividade <strong>do</strong>s<br />
comunistas, portanto, deveria se adequar<br />
a essas necessidades, que significava<br />
um recuo à antiga tática esboçada<br />
pelos Comitês de Correspondência<br />
Comunista e pelos congressos da Liga<br />
em 1847.<br />
A essa tarefa propagandística se<br />
dedicaram no perío<strong>do</strong> pós-revolucionário.<br />
São desse tempo obras como As<br />
Lutas de Classes na França de 1848 a<br />
1850 (1850); 18 Brumário de Luís Bonaparte<br />
(1852); Carta a Joseph Weydemeyer (1852);<br />
O Recente Julgamento de Colônia (1852),<br />
de Marx; Revolução e Contrarrevolução na<br />
Alemanha (1852) e As guerras camponesas<br />
na Alemanha (1850), de Engels. A ênfase<br />
nesse perío<strong>do</strong> estava em um combate<br />
teórico, e não em um combate prático-político<br />
como no perío<strong>do</strong> da Nova<br />
Gazeta Renana.<br />
No antigo Comitê de Correspondência<br />
de Bruxelas, já havia si<strong>do</strong> exposto<br />
o senti<strong>do</strong> da tática propagandística<br />
de Marx e Engels e de como ela se<br />
interligava com sua preocupação com<br />
o combate teórico: “<strong>Em</strong> particular, dirigir-se<br />
na Alemanha aos operários sem<br />
possuir ideias rigorosamente científicas<br />
e uma <strong>do</strong>utrina concreta equivaleria<br />
a levar a cabo um jogo desonesto<br />
e inútil, uma propaganda em que estaria<br />
suposto, de um la<strong>do</strong>, um entusiasmo<br />
apoteótico e, <strong>do</strong>utro, simples<br />
36<br />
imbecis escutan<strong>do</strong> de boca aberta 38 ”.<br />
Passa<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> revolucionário de<br />
1848-1852, os <strong>do</strong>is se dedicaram a aplicar<br />
o méto<strong>do</strong> que conceberam para<br />
analisar o quadro histórico <strong>do</strong>s acontecimentos<br />
revolucionários europeus e<br />
seus des<strong>do</strong>bramentos, extrain<strong>do</strong> suas<br />
conclusões históricas e políticas.<br />
Se Marx e Engels faziam um recuo<br />
para a tática propagandística <strong>do</strong> perío<strong>do</strong><br />
anterior às revoluções de 1848, de<br />
mo<strong>do</strong> algum significa que a situação<br />
voltou a ser a mesma de 1847. <strong>Em</strong> primeiro<br />
lugar, porque a situação concreta<br />
nos anos 1850 era de uma reação política<br />
por toda a Europa e crescimento<br />
econômico importante, conforme<br />
previsto em 1850. <strong>Em</strong> segun<strong>do</strong> lugar,<br />
o movimento operário experimentava<br />
um recuo que tornava a perspectiva<br />
de retomada <strong>do</strong> trabalho organizativo<br />
sem esperança. <strong>Em</strong> terceiro, porque<br />
a compreensão científica sobre a realidade<br />
alcançava um nível superior<br />
com o acúmulo teórico promovi<strong>do</strong> por<br />
eles, que às lições provenientes de suas<br />
elaborações desde 1844 até 1848 (Manifesto<br />
Comunista) agora se acresceram as<br />
análises e conclusões da Revolução <strong>do</strong>s<br />
Povos.<br />
O que Marx e Engels estavam fazen<strong>do</strong><br />
com sua atividade propagandística<br />
no perío<strong>do</strong> pós-revolucionário<br />
era preservar a história, a tradição, o<br />
méto<strong>do</strong> e a compreensão científica e<br />
as lições sobre os acontecimentos vivi<strong>do</strong>s.<br />
Preparavam-se objetivamente<br />
para um novo ascenso <strong>do</strong> movimento<br />
operário e para transmitir a ele esse<br />
acúmulo, ainda que não o previssem<br />
para um perío<strong>do</strong> de curto prazo, mas<br />
sim em uma escala da história. Um<br />
ascenso, entretanto, que dar-se-ia em<br />
outra qualidade, justamente por poder<br />
contar com essa base teórica para<br />
se colocar numa altura superior. Sua<br />
análise da luta de classes concluía que<br />
uma nova revolução e a vitória <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />
dependiam da articulação<br />
dialética entre condições objetivas e<br />
subjetivas, ou seja, de uma nova crise<br />
econômica e da organização política<br />
da classe revolucionária.<br />
Essa perspectiva continuava clara<br />
em 1860 quan<strong>do</strong> Marx esclarece para<br />
seu amigo e poeta Ferdinand Freiligrath<br />
que ele concebe a ideia de parti<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> em um senti<strong>do</strong><br />
histórico <strong>do</strong> termo, e não em um senti<strong>do</strong><br />
estrito que significasse a Liga, que<br />
havia se extinto há oito anos, ou o comitê<br />
editorial da Nova Gazeta Renana,<br />
dissolvi<strong>do</strong> há 12 anos 39 .<br />
Propaganda e luta econômica<br />
A atividade de Marx e Engels na 1ª<br />
Internacional permitiu que eles mais<br />
uma vez atuassem diretamente em<br />
O que Marx e<br />
Engels estavam<br />
fazen<strong>do</strong> com<br />
sua atividade<br />
propagandística<br />
no perío<strong>do</strong> pósrevolucionário<br />
era preservar<br />
a história, a<br />
tradição, o<br />
méto<strong>do</strong> e a<br />
compreensão<br />
científica e as<br />
lições sobre os<br />
acontecimentos<br />
vivi<strong>do</strong>s<br />
prol da conclusão teórica a que haviam<br />
chega<strong>do</strong> desde o Manifesto Comunista<br />
sobre a necessidade de um parti<strong>do</strong><br />
da classe trabalha<strong>do</strong>ra em prol de<br />
seus próprios interesses históricos. A<br />
propaganda dirigida ao proletaria<strong>do</strong><br />
continua figuran<strong>do</strong> como uma tarefa<br />
central, requisito para que os trabalha<strong>do</strong>res<br />
tomem consciência de sua<br />
condição e coloquem-se a agir em prol<br />
de sua emancipação. Já nos Preâmbulos<br />
<strong>do</strong>s Estatutos da 1ª Internacional, Marx<br />
fez saber que “to<strong>do</strong>s os esforços dirigi<strong>do</strong>s<br />
a esse fim [a emancipação econômica<br />
da classe operária] até agora têm<br />
fracassa<strong>do</strong> por falta de solidariedade<br />
e unidade entre os trabalha<strong>do</strong>res das<br />
diferentes profissões de cada país e de<br />
uma união fraternal entre as classes<br />
operárias <strong>do</strong>s diversos países” 40 . Além<br />
disso, as lições teóricas extraídas <strong>do</strong><br />
perío<strong>do</strong> de 1848-1852 e a própria experiência<br />
<strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> nos anos que se<br />
seguiram proporcionaram novos contornos<br />
para a tarefa propagandística.<br />
Uma característica marcante da<br />
propaganda de Marx e Engels desse<br />
perío<strong>do</strong> é a sua concretude, expressa<br />
na 1º Internacional e na atividade jornalística<br />
de ambos. Um componente<br />
fundamental da propaganda comunista<br />
se estabelece, portanto, como<br />
sen<strong>do</strong> a escrupulosidade de, ao menos,<br />
utilizar todas as informações disponíveis,<br />
de apoderar-se <strong>do</strong>s fatos, <strong>do</strong><br />
material concreto, como pré-requisito<br />
para emissão de uma opinião 41 . O<br />
méto<strong>do</strong> <strong>do</strong> materialismo histórico se<br />
converteu no méto<strong>do</strong> de formulação
da própria propaganda comunista. O<br />
primeiro <strong>do</strong>cumento público dessa organização,<br />
por exemplo, foi outra legítima<br />
peça de propaganda comunista,<br />
que termina com o lema já consagra<strong>do</strong>:<br />
“Proletários de to<strong>do</strong>s os países, uni-<br />
-vos!”. Apesar disso, estava longe de<br />
ser uma repetição das ideias <strong>do</strong> Manifesto<br />
Comunista de 1848 ou uma declaração<br />
de verdades e princípios abstratos<br />
a serem proclama<strong>do</strong>s ao mun<strong>do</strong>.<br />
A Mensagem inaugural da Associação<br />
Internacional <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res, escrita<br />
por Marx e publicada em 1864, justificava<br />
o direito à existência da nova<br />
organização demonstran<strong>do</strong> com<br />
da<strong>do</strong>s, fatos e declarações a ideia da<br />
pauperização crescente das massas<br />
trabalha<strong>do</strong>ras nos 16 anos anteriores,<br />
ao mesmo tempo que demonstrava<br />
o enriquecimento da burguesia, no<br />
mesmo perío<strong>do</strong>. <strong>Em</strong> seguida passava-<br />
-se a um balanço político minucioso<br />
sobre a situação das organizações e<br />
<strong>do</strong>s jornais partidários <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />
após as Revoluções de 1848, o efeito<br />
da evolução econômica sobre a moral<br />
e a psicologia <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res,<br />
a mudança social ocorrida no seio da<br />
própria classe. A esses aspectos negativos<br />
contrapunham-se os progressos<br />
ocorri<strong>do</strong>s no campo de conquistas legais<br />
como a Lei das Dez Horas, a conquista<br />
<strong>do</strong> reconhecimento <strong>do</strong> direito<br />
de organização e seus impactos sobre<br />
o esta<strong>do</strong> físico, intelectual e moral <strong>do</strong>s<br />
trabalha<strong>do</strong>res. Detalhou-se o novo fenômeno<br />
que se desenvolvia de cooperativas,<br />
seu significa<strong>do</strong> histórico, seus<br />
limites e o senti<strong>do</strong> em que precisava<br />
evoluir para contribuir positivamente<br />
para a emancipação <strong>do</strong> trabalho. É<br />
da análise e exposição detalhada <strong>do</strong><br />
curso concreto da realidade, <strong>do</strong> senti<strong>do</strong><br />
objetivo de seu desenvolvimento<br />
anterior, que se extraem as conclusões<br />
centrais e práticas desse <strong>do</strong>cumento:<br />
a conquista <strong>do</strong> poder político como o<br />
grande dever das classes trabalha<strong>do</strong>ras,<br />
possível apenas pela união fraterna<br />
e internacional <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res<br />
por uma articulação comum e guia<strong>do</strong>s<br />
pelo conhecimento 42 .<br />
Por meio da 1ª Internacional, Marx<br />
e Engels buscaram não apenas influir<br />
sobre as lutas políticas <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>,<br />
mas também sobre as lutas econômicas<br />
concretas travadas pelo proletaria<strong>do</strong><br />
europeu e americano da época. Eles<br />
e seus partidários trabalharam para<br />
se conectar ao movimento sindical,<br />
para dirigir as lutas salariais e ajudar<br />
na batalha pelo reconhecimento de<br />
legislações favoráveis aos trabalha<strong>do</strong>res,<br />
como a luta pelas 8 horas de trabalho.<br />
Essa atividade prática decorreu<br />
de uma profunda compreensão teórica<br />
sobre a luta de classes. <strong>Em</strong> última<br />
instância, concluíram Marx e Engels,<br />
toda a atividade política <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>,<br />
e portanto também de seu parti<strong>do</strong><br />
político, está submetida à lei geral <strong>do</strong><br />
salário, fundamento da própria luta de<br />
classes moderna.<br />
Marx ensinou à Associação Internacional<br />
<strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res (AIT) essa<br />
lição teórica fundamental em relatório<br />
li<strong>do</strong> na reunião de seu Conselho Geral,<br />
ocorrida em 20 e 27 de junho de 1865.<br />
Essa foi a primeira vez que foi exposta<br />
publicamente a noção da mais-valia.<br />
Mais <strong>do</strong> que uma pretensão de educar<br />
a direção da AIT, a teoria a que havia<br />
chega<strong>do</strong> Marx foi colocada desde o<br />
início a serviço <strong>do</strong> armamento político<br />
da classe operária. Sua apresentação<br />
serviu para contrapor e enfraquecer<br />
as alas da AIT que expressavam ideias<br />
falsas sobre a condição econômica <strong>do</strong><br />
proletaria<strong>do</strong> e suas tarefas políticas,<br />
representadas por Weston, os proudhonianos<br />
e os lassallianos. Dirigin<strong>do</strong>-se<br />
à classe operária e suas organizações,<br />
a exposição teórica de Marx<br />
conclui que: “<strong>Em</strong> vez deste lema conserva<strong>do</strong>r:<br />
‘Um salário justo por uma<br />
jornada de trabalho justa!’, [o proletaria<strong>do</strong>]<br />
deverá inscrever na sua bandeira<br />
esta divisa revolucionária: ‘Abolição<br />
<strong>do</strong> sistema de trabalho assalaria<strong>do</strong>’” 43 .<br />
Foi compeli<strong>do</strong> pela lei <strong>do</strong> salário e<br />
seus efeitos que o proletaria<strong>do</strong> saiu da<br />
sua condição de matéria-prima para<br />
exploração e sujeito ao salário mínimo<br />
absoluto, condição sob a qual é impossível<br />
viver e se reproduzir. Foi dessa<br />
forma que se viu obriga<strong>do</strong> a formar organizações<br />
fortes, entre as quais seus<br />
sindicatos, e exigir que essas fossem<br />
respeitadas por lei, para obter uma<br />
regulação <strong>do</strong> salário e da jornada de<br />
trabalho. Nesse conflito econômico, a<br />
classe capitalista vale-se contra o proletaria<strong>do</strong><br />
de determina<strong>do</strong>s privilégios<br />
políticos que acumulou no perío<strong>do</strong><br />
anterior, estabeleci<strong>do</strong>s na forma de<br />
legislação. A tendência geral de toda<br />
luta entre classes é que a classe <strong>do</strong>minada<br />
sempre comece lutan<strong>do</strong> por uma<br />
parte, e depois pela totalidade <strong>do</strong> poder<br />
político, como necessidade para<br />
estar em condição de modificar as leis<br />
existentes, em prol de seus interesses<br />
e necessidades próprias. É para esse<br />
senti<strong>do</strong> que as lutas econômicas <strong>do</strong><br />
proletaria<strong>do</strong> e a atividade <strong>do</strong>s sindicatos<br />
têm a vocação histórica de evoluir.<br />
Entretanto, já observava Engels em<br />
1881 que, embora a organização fosse<br />
uma arma importante na luta política<br />
de classe contra classe, consistia um<br />
ciclo vicioso a prática recorrente <strong>do</strong>s<br />
sindicatos manter a atividade <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />
restrita ao nível econômico,<br />
pois o mal básico não reside no baixo<br />
nível <strong>do</strong>s salários, mas sim no sistema<br />
de trabalho assalaria<strong>do</strong>. Diante <strong>do</strong>s<br />
limites da luta econômica, faz-se necessário<br />
uma tomada de consciência<br />
que se espalhe pela classe operária sobre<br />
a necessidade de uma organização<br />
política capaz de promover sua união<br />
geral, não para qualquer fim, se não<br />
para um fim mais alto: a abolição <strong>do</strong><br />
sistema de trabalho assalaria<strong>do</strong> 44 .<br />
Propaganda e luta política<br />
Luta econômica e luta política, de<br />
acor<strong>do</strong> com a teoria marxista, não são<br />
antagônicas ou contraditórias. Tratam-se,<br />
na verdade, de duas formas<br />
que uma mesma luta de classes entre<br />
a burguesia e o proletaria<strong>do</strong> adquire<br />
pela condição econômica e política em<br />
que essa classe se encontra em relação<br />
àquela. Há, assim, uma ligação umbilical<br />
entre elas. A burguesia, por sua vez,<br />
faz crer por sua ideologia que seus privilégios<br />
políticos são naturais e eternos,<br />
assim como o são as condições de<br />
privação de direitos políticos <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>.<br />
Assim também faz crer que<br />
ao proletaria<strong>do</strong> cabe limitar-se à luta<br />
econômica e contentar-se aos direitos<br />
políticos que já foram alcança<strong>do</strong>s por<br />
ele no decurso <strong>do</strong> conflito entre ambas.<br />
Marx e Engels ressaltaram desde<br />
o início de sua atividade na AIT que<br />
toda a questão reside na necessidade<br />
de superação da condição de desunião,<br />
de falta de fraternidade e de ausência<br />
de consciência <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> sobre<br />
a necessidade da luta política para a<br />
superação definitiva de sua condição<br />
de escravidão assalariada. Essa tomada<br />
de consciência, essa conversão<br />
da classe em si em classe para si, essa<br />
superação de sua condição de não ser,<br />
tem na atividade de propaganda <strong>do</strong>s<br />
comunistas o meio pelo qual pode ser<br />
efetivada. Cada progresso na propaganda<br />
se expressa concretamente pelo<br />
maior nível de organização <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>,<br />
expresso na forma de seus<br />
sindicatos, associações, organizações e<br />
seu parti<strong>do</strong> político, os quais precisam<br />
expressar um caráter cada vez mais interliga<strong>do</strong><br />
e consequente das suas lutas<br />
econômica e política desenvolvidas<br />
contra a burguesia.<br />
Nesse perío<strong>do</strong>, operários próximos<br />
a Marx e Engels na Alemanha começaram<br />
a desenvolver a propaganda<br />
da nova concepção de comunismo e a<br />
organizar os trabalha<strong>do</strong>res. Esse trabalho<br />
resultou na fundação em 1869<br />
<strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Social-Democrata <strong>do</strong>s<br />
Trabalha<strong>do</strong>res (SDAP), em Eisenach.<br />
<strong>Em</strong> 1875, o proletaria<strong>do</strong> deu um passo<br />
adiante com a fusão das organizações<br />
proletárias no Parti<strong>do</strong> Social-Democrata<br />
da Alemanha (SPD). Entre esses<br />
partidários de Marx e Engels figurava<br />
Wilhelm Liebknecht, um grande<br />
37
organiza<strong>do</strong>r da classe operária alemã.<br />
Ao sintetizar as lições e diretrizes de<br />
Marx e Engels em termos práticos,<br />
Liebknecht descreveu as tarefas <strong>do</strong>s<br />
revolucionários como: “Estudar, Propagar,<br />
Organizar” 45 . Essa ideia transmite<br />
a interligação entre as atividades<br />
teóricas, propagandísticas e organizativas<br />
com que concebiam suas tarefas<br />
os revolucionários alemães.<br />
Com a AIT Marx e Engels demonstraram<br />
em escala internacional que a<br />
atividade propagandística pode e deve<br />
ser realizada não apenas por meio da<br />
propaganda impressa e convencional,<br />
mas inclusive e sobretu<strong>do</strong> por meio<br />
da ação prática <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> proletário.<br />
Essa noção foi formulada em contornos<br />
bastante defini<strong>do</strong>s nas polêmicas<br />
travadas ao longo da existência da 1ª<br />
Internacional. Sua forma foi sen<strong>do</strong><br />
concebida nas resoluções e <strong>do</strong>cumentos<br />
resultantes das polêmicas com os<br />
segui<strong>do</strong>res de Proudhon, Mazzini,<br />
Lassalle, com os sindicalistas ingleses e<br />
depois com os apoia<strong>do</strong>res de Bakunin,<br />
que propunham o abstencionismo político<br />
combina<strong>do</strong> com a propaganda de<br />
tipo anarquista.<br />
Contrapon<strong>do</strong> as teorias de Bakunin,<br />
Engels explicava que, se o parti<strong>do</strong><br />
proletário deixasse de combater os<br />
adversários <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> no campo<br />
político, significaria aban<strong>do</strong>nar uma<br />
das armas mais poderosas. Esclarece<br />
que quan<strong>do</strong> fala da luta política em<br />
referência às armas mais poderosas<br />
está se referin<strong>do</strong> “particularmente na<br />
esfera da organização e da propaganda”.<br />
E dá <strong>do</strong>is exemplos <strong>do</strong> que entende<br />
por luta política. Um deles é o sufrágio<br />
universal, reivindicação que na<br />
época constituía um excelente meio<br />
de luta. O segun<strong>do</strong> exemplo é a atividade<br />
contra a guerra promovida por<br />
Wilhelm Liebknecht<br />
August Bebel e Wilhelm Liebknecht,<br />
utilizan<strong>do</strong>-se da posição que ocupavam<br />
como deputa<strong>do</strong>s da Assembleia<br />
Nacional alemã da época. Engels argumentava<br />
então que, nesse último<br />
caso em particular, havia-se atua<strong>do</strong><br />
mais poderosamente e no interesse<br />
da “nossa propaganda internacional”<br />
<strong>do</strong> que se tivessem feito reuniões e<br />
“anos de propaganda na imprensa” 46 .<br />
Avançan<strong>do</strong> no mesmo senti<strong>do</strong>,<br />
Marx esclareceu que “a tribuna é o<br />
melhor instrumento de publicidade<br />
[e] não se deveria jamais crer que ter<br />
trabalha<strong>do</strong>res no parlamento é algo<br />
de pouca importância”. Ainda acrescentou<br />
que exercia-se ótimos efeitos<br />
de propaganda sobre o povo tanto<br />
quan<strong>do</strong> havia represálias e repressões<br />
para abafar as vozes <strong>do</strong>s comunistas<br />
no parlamento quanto quan<strong>do</strong> lhes<br />
era permiti<strong>do</strong> falar <strong>do</strong> alto da tribuna<br />
parlamentar. <strong>Em</strong> ambos os casos,<br />
Marx avaliava que os princípios<br />
<strong>do</strong>s comunistas ganhavam enorme<br />
divulgação 47 .<br />
Propaganda e Comuna de Paris<br />
A Comuna de Paris, maior experiência<br />
política <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> no<br />
século XIX, também forneceu lições<br />
e exemplos importantes sobre como<br />
operar a propaganda comunista. Durante<br />
to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> preparatório da<br />
revolução, a Internacional jogou um<br />
papel ativo na França e em sua capital.<br />
A AIT interveio nos acontecimentos<br />
tais quais se manifestaram, buscan<strong>do</strong><br />
influir a partir de seu desenvolvimento<br />
concreto e das possibilidades que se<br />
abriam a cada mudança na situação<br />
política. Já em fevereiro de 1867, por<br />
exemplo, a seção francesa apoiou a<br />
greve <strong>do</strong>s bronzistas em luta contra os<br />
patrões e promoveu uma ação de solidariedade<br />
entre esses e o movimento<br />
sindical inglês. Sobre a Guerra Austro-Prussiana<br />
(1866), manifestaram-<br />
-se contrários pois o povo não queria<br />
mais combater loucamente conforme<br />
a vontade <strong>do</strong>s tiranos. Às vésperas <strong>do</strong><br />
assalto aos céus, quan<strong>do</strong> toda a tensão<br />
impelia para já em 1870 estourar a revolta,<br />
um manifesto assina<strong>do</strong> por operários,<br />
muitos <strong>do</strong>s quais pertencentes<br />
à seção da Internacional, clamou à<br />
prudência, teve o efeito de conter os<br />
ânimos e conseguiu mais tempo para o<br />
proletaria<strong>do</strong> reunir as condições para<br />
efetuar seu objetivo 48 .<br />
Assim que Luís Bonaparte lançou<br />
seu bra<strong>do</strong> de guerra contra a Prússia<br />
em 19 de julho de 1970, a direção da<br />
AIT se reuniu em <strong>23</strong> de julho e aprovou<br />
o Primeiro manifesto <strong>do</strong> Conselho Geral da<br />
Associação Internacional <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res<br />
sobre a guerra franco-prussiana. Dirigin<strong>do</strong>-se<br />
a to<strong>do</strong>s os membros da AIT da<br />
Europa e <strong>do</strong>s EUA, seu conteú<strong>do</strong> reconstitui<br />
os fatos internos à França e<br />
externos que conduziram ao conflito,<br />
mostra o firme papel contra a guerra<br />
Barricada Voltaire Lenoir durante Comuna Paris 1871 - Bruno Braquehais<br />
38
desempenha<strong>do</strong> publicamente pelos<br />
membros da Internacional, denuncia<br />
o complô internacional arquiteta<strong>do</strong><br />
pela burguesia da Prússia, reafirma o<br />
princípio da AIT de internacionalismo,<br />
mostra que ele vive entre o proletaria<strong>do</strong><br />
francês e alemão e anuncia que essa<br />
guerra deve se tornar o prenúncio de<br />
uma sociedade em que o proletaria<strong>do</strong><br />
seja seu senhor. Esse <strong>do</strong>cumento redigi<strong>do</strong><br />
por Marx foi torna<strong>do</strong> material de<br />
propaganda e distribuí<strong>do</strong> na forma de<br />
volante em inglês, alemão e francês 49 .<br />
Um segun<strong>do</strong> manifesto, também de<br />
autoria de Marx e utiliza<strong>do</strong> no mesmo<br />
formato propagandístico que o<br />
primeiro, foi aprova<strong>do</strong> pelo Conselho<br />
Geral da AIT em 9 de setembro. Ali se<br />
orientava agora a Internacional e o<br />
proletaria<strong>do</strong> europeu diante da mudança<br />
na situação, com a transformação<br />
da guerra defensiva por parte da<br />
Alemanha em guerra ofensiva. São<br />
demonstra<strong>do</strong>s o cinismo e a falsidade<br />
<strong>do</strong>s argumentos de Bismarck e <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r<br />
alemão, é denunciada a ação<br />
chauvinista <strong>do</strong> patriotismo teutônico<br />
e reafirma<strong>do</strong> o internacionalismo,<br />
apoian<strong>do</strong>-se no exemplo <strong>do</strong> manifesto<br />
<strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Operário Socialdemocrata<br />
da Alemanha. O manifesto ainda<br />
salienta a difícil situação em que se<br />
encontrava o proletaria<strong>do</strong> francês, e<br />
se esforça por orientar sua atividade<br />
diante da complexidade da situação.<br />
Avalia que “qualquer tentativa de derrubar<br />
o novo governo, na crise atual,<br />
quan<strong>do</strong> o inimigo bate quase às portas<br />
de Paris, seria uma loucura desesperada<br />
[...] Que [os operários franceses]<br />
aproveitem serena e resolutamente as<br />
oportunidades que lhes oferece a liberdade<br />
republicana para trabalhar na<br />
organização de sua própria classe” 50 .<br />
Uma vez consumada a derrota da<br />
Comuna de Paris, com to<strong>do</strong>s os efeitos<br />
que uma derrota dessa magnitude<br />
implicou para o movimento operário,<br />
Marx avançou um balanço <strong>do</strong> episódio<br />
para reorientar o proletaria<strong>do</strong> internacional.<br />
Esse foi aprova<strong>do</strong> em 30 de<br />
maio de 1971 pelo Conselho Geral da<br />
AIT, com o título Manifesto <strong>do</strong> Conselho<br />
Geral da Associação Internacional<br />
<strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res sobre a guerra civil<br />
na França de 1871. Foi publica<strong>do</strong> na forma<br />
de panfleto em francês, alemão e<br />
inglês, e seu impacto foi enorme, maior<br />
<strong>do</strong> que qualquer outro <strong>do</strong>cumento <strong>do</strong><br />
movimento operário <strong>do</strong> século XIX. Os<br />
trabalha<strong>do</strong>res adquiriram e leram avidamente<br />
o material, sen<strong>do</strong> necessárias<br />
três edições inglesas esgotadas rapidamente.<br />
Entre a burguesia o texto foi difundi<strong>do</strong><br />
e causou escândalo. Traduções<br />
e reproduções em diversos idiomas<br />
apareceram rapidamente, publicadas<br />
em jornais, revistas e brochuras em<br />
diversos países da Europa e nos EUA.<br />
O <strong>do</strong>cumento alcançou uma difusão<br />
até então inédita para um texto de uma<br />
organização operária 51 .<br />
Propaganda e parti<strong>do</strong> político<br />
A experiência da Comuna de Paris<br />
confirmou como lição prática uma<br />
hipótese que Marx havia formula<strong>do</strong><br />
quan<strong>do</strong> analisou a ascensão de Luís<br />
Bonaparte em 1852. No Manifesto de<br />
1871 Marx conclui que “a classe operária<br />
não pode simplesmente se apossar<br />
da máquina <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> tal como ela se<br />
apresenta e dela servir-se para seus<br />
próprios fins” . Já em carta <strong>do</strong> perío<strong>do</strong><br />
a Ludwig Kugelmann, ele aprofunda<br />
essa ideia explican<strong>do</strong> que a experiência<br />
heroica <strong>do</strong>s comunar<strong>do</strong>s mostrou<br />
que a maior tarefa política <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />
consiste “não mais em transferir<br />
a maquinaria burocrático-militar de<br />
uma mão para outra, como foi feito<br />
até então, mas sim em quebrá-la, e que<br />
esta é a precondição de toda revolução<br />
popular efetiva no continente” 53 .<br />
“a classe operária<br />
não pode<br />
simplesmente<br />
se apossar da<br />
máquina <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong> tal como<br />
ela se apresenta<br />
e dela servirse<br />
para seus<br />
próprios fins”<br />
A experiência da Comuna também<br />
confirmou outra importante lição teórica<br />
a que Marx e Engels haviam chega<strong>do</strong>,<br />
a de que “a melhor maneira de<br />
emancipar os trabalha<strong>do</strong>res dessa <strong>do</strong>minação<br />
<strong>do</strong>s velhos parti<strong>do</strong>s é formar,<br />
em cada país, um parti<strong>do</strong> proletário<br />
com uma política própria, manifestamente<br />
distinta daquela <strong>do</strong>s outros<br />
parti<strong>do</strong>s, porquanto tem de expressar<br />
as condições necessárias para a emancipação<br />
da classe trabalha<strong>do</strong>ra” 54 . A<br />
classe operária francesa foi derrotada<br />
porque ainda não dispunha das condições<br />
de organização e da compreensão<br />
sobre as tarefas necessárias para<br />
assegurar sua vitória final contra a<br />
classe burguesa. A própria AIT não havia<br />
contribuí<strong>do</strong> adequadamente para<br />
a resolução desse problema, uma vez<br />
que seus integrantes que participaram<br />
da Comuna comportaram-se de forma<br />
desordenada e contraditória ao longo<br />
de sua existência, o que facilitou o controle<br />
e o <strong>do</strong>mínio de outras concepções<br />
e forças políticas sobre o movimento.<br />
Essas conclusões teóricas vão influenciar<br />
decisivamente a luta política<br />
travada dentro da AIT após a derrota<br />
da Comuna de Paris. A Conferência de<br />
Londres, realizada de 17 a <strong>23</strong> de setembro,<br />
aprovou um <strong>do</strong>cumento que se<br />
tornou muito famoso, chama<strong>do</strong> Resolução<br />
IX. A proposta, feita por Vaillant,<br />
um sobrevivente da Comuna, foi assimilada<br />
por Marx, e tinha o propósito<br />
de transformar a Associação num parti<strong>do</strong><br />
internacional e centraliza<strong>do</strong>, sob a<br />
liderança <strong>do</strong> Conselho Geral. Seu texto<br />
recapitula os esforços da AIT em incutir<br />
no seu interior a importância da<br />
luta política, destaca a repressão a que<br />
a organização havia si<strong>do</strong> submetida,<br />
afirma a necessidade de “constituição<br />
da classe trabalha<strong>do</strong>ra num parti<strong>do</strong><br />
político”, que as lutas econômicas devem<br />
servir como alavanca para as lutas<br />
contra o poder político das classes<br />
<strong>do</strong>minantes, e conclui que: “na luta da<br />
classe trabalha<strong>do</strong>ra, seu movimento<br />
econômico e sua ação política estão indissoluvelmente<br />
uni<strong>do</strong>s” 55 .<br />
Na Conferência de Londres, Marx<br />
declarou que “a ação política deveria<br />
estar de acor<strong>do</strong> com as condições de<br />
cada país”, e que “se os governos nos<br />
são hostis, é preciso responder a eles<br />
com to<strong>do</strong>s os meios de que dispomos<br />
e lançar uma cruzada geral contra<br />
eles” 56 . Argumentan<strong>do</strong> pela formação<br />
de um parti<strong>do</strong> proletário, Engels afirmou<br />
que “Essa política [que expresse<br />
as condições necessárias para a emancipação<br />
da classe trabalha<strong>do</strong>ra] pode<br />
variar em detalhes, de acor<strong>do</strong> com<br />
as circunstâncias específicas de cada<br />
país”, mas que enquanto o capitalismo<br />
subsistir “os princípios e objetivos da<br />
política proletária serão idênticos” 57 .<br />
Após o Congresso de Haia, Marx explicou<br />
que “um dia o trabalha<strong>do</strong>r deverá<br />
tomar o poder político para construir<br />
uma nova organização <strong>do</strong> trabalho<br />
[...]. Mas isso não significa dizer que<br />
os meios para atingir essa meta são os<br />
mesmos em to<strong>do</strong>s os lugares” 58 .<br />
Já a discussão decisiva sobre o balanço<br />
e as tarefas, que selou também o<br />
destino da AIT, ocorreu no fim <strong>do</strong> outono<br />
de 1872, no Congresso de Haia. A<br />
iniciativa de Marx e Engels nesse momento<br />
foi a de operar uma revolução<br />
na estrutura organizativa da Internacional,<br />
buscan<strong>do</strong> adequá-la às decisões<br />
da Conferência de Londres. A primeira<br />
decisão nesse senti<strong>do</strong> foi a inclusão de<br />
um artigo nos estatutos da AIT, afirman<strong>do</strong><br />
que: “<strong>Em</strong> sua luta contra o poder<br />
reuni<strong>do</strong> das classes possui<strong>do</strong>ras,<br />
39
Marx e Engels no Congresso de 1872 da 1ª Internacional, realiza<strong>do</strong> em Haia, que marcou importante<br />
inflexão nas tarefas <strong>do</strong>s comunistas<br />
o proletaria<strong>do</strong> só pode se apresentar<br />
como classe quan<strong>do</strong> constitui a si<br />
mesmo num parti<strong>do</strong> político particular,<br />
o qual se confronta com to<strong>do</strong>s os<br />
parti<strong>do</strong>s precedentes forma<strong>do</strong>s pelas<br />
classes possui<strong>do</strong>ras [e que] a conquista<br />
<strong>do</strong> poder político converte-se assim<br />
numa grande obrigação <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>”<br />
59. A segunda decisão conferiu poderes<br />
mais amplos ao Conselho Geral,<br />
com a tarefa de garantir em cada país<br />
a “rígida observação <strong>do</strong>s princípios,<br />
estatutos e regras gerais da Internacional”,<br />
assim como agora tinha “o direito<br />
de suspender ramos, seções, conselhos<br />
ou comitês federais e federações da Internacional<br />
até o próximo congresso”.<br />
A seguir procedeu-se à primeira expulsão<br />
de uma seção na história da Internacional,<br />
devi<strong>do</strong> ao apoio da mesma<br />
a um candidato burguês à disputa<br />
presidencial <strong>do</strong>s EUA, acompanhada<br />
da expulsão de Bakunin, por conta de<br />
sua atividade via organização secreta<br />
na AIT.<br />
Vários motivos os levaram a essas<br />
medidas de reestruturar a AIT e dar<br />
maior concretude para sua finalidade<br />
política, como a luta fracional encarniçada<br />
<strong>do</strong>s anarquistas e o apego ao princípio<br />
da autonomia que se expressou<br />
em grande parte das federações e seções<br />
locais. O fio condutor dessa orientação,<br />
entretanto, era uma determinada<br />
compreensão política da situação.<br />
A conjuntura histórica já era distinta<br />
de quan<strong>do</strong> a Associação foi fundada,<br />
com a afirmação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>-nação e o<br />
proletaria<strong>do</strong> alcançan<strong>do</strong> níveis superiores<br />
de organização, e inclusive tenta<strong>do</strong><br />
“assaltar o céu”. A organização, tal<br />
qual ela havia se estrutura<strong>do</strong> e atua<strong>do</strong>,<br />
havia cumpri<strong>do</strong> sua missão original<br />
de conceber e coordenar iniciativas de<br />
solidariedade internacionais para sustentar<br />
greves e difundir os preceitos<br />
teóricos fundamentais para as tarefas<br />
imediatas necessárias. Depois da Comuna<br />
de Paris, havia se estabeleci<strong>do</strong><br />
que o verdadeiro desafio <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />
era a revolução, que se expressava<br />
na tarefa de em cada país construir<br />
parti<strong>do</strong>s políticos <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>.<br />
Estava estabeleci<strong>do</strong>, portanto, que a<br />
principal tarefa <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> consiste<br />
em converter sua luta econômica<br />
em luta política, que essa luta política<br />
apenas pode ser vitoriosa quebran<strong>do</strong><br />
a antiga máquina de esta<strong>do</strong>, que essa<br />
tarefa precisa ser realizada por meio<br />
da constituição de parti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />
articula<strong>do</strong>s solidariamente e<br />
que esses parti<strong>do</strong>s, embora tenham os<br />
mesmos propósitos, devem constituir<br />
programas e desempenhar atividades<br />
adequa<strong>do</strong>s a cada realidade. O Congresso<br />
de Haia, com suas discussões<br />
e decisões, expressou que as questões<br />
organizativas precisavam estar subordinadas<br />
às questões políticas, para que<br />
essas pudessem ser realizadas. Nenhum<br />
princípio autonomista ou anarquista<br />
poderia prevalecer em termos<br />
organizativos a partir de então.<br />
<strong>Em</strong>bora não tenha si<strong>do</strong> objeto<br />
desses debates e decisões, dessas<br />
orientações organizativas deduz-se<br />
também as diretrizes no que se refere<br />
às questões de propaganda comunista.<br />
<strong>Em</strong> 1874 Engels explicava que, a partir<br />
<strong>do</strong>s progressos <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> alemão<br />
em combinar a luta nas frentes teórica,<br />
política e econômica: “A consciência<br />
assim alcançada e cada vez mais lúcida<br />
deve ser difundida entre as massas<br />
operárias com um carinho cada vez<br />
maior e se deve fortalecer cada vez<br />
mais a organização <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, assim<br />
como a <strong>do</strong>s sindicatos” 60 . Assim como<br />
as questões organizativas estão subordinadas<br />
às questões políticas, também<br />
as questões de propaganda o estão.<br />
Uma conclusão dessa análise é de<br />
que tanto organização quanto propaganda<br />
compartilham da mesma esfera<br />
instrumental, por meio da qual<br />
se realiza uma determinada atividade<br />
política. Assim como em questões<br />
organizativas, toda atividade de propaganda<br />
comunista precisa também<br />
estar adequada aos objetivos de suscitar<br />
no proletaria<strong>do</strong> a compreensão<br />
da necessidade de combinar as lutas<br />
econômica e política contra a burguesia<br />
e de construir um parti<strong>do</strong> político<br />
da classe operária para alcançar sua<br />
emancipação. A forma organizativa e<br />
a forma propagandística, seguin<strong>do</strong> a<br />
diretriz de Marx em relação à forma<br />
política, também pode variar em cada<br />
caso, pois se trata de adequar essas atividades<br />
a cada realidade concreta em<br />
que o proletaria<strong>do</strong> se encontra. Mas as<br />
três devem manter uma unidade em<br />
relação ao seu propósito comum.<br />
Propaganda e socialismo científico<br />
O fim da AIT como organização em<br />
1874 vai encerrar a última fase de atuação<br />
de Marx e Engels como dirigentes<br />
diretos de uma organização política <strong>do</strong><br />
proletaria<strong>do</strong>. Entretanto, durante to<strong>do</strong><br />
o restante de suas vidas eles buscarão<br />
influir sobre o movimento operário<br />
internacional em uma verdadeira atividade<br />
propagandística. Os méto<strong>do</strong>s<br />
que utilizam para fazer isso serão os<br />
mesmos usa<strong>do</strong>s por eles no passa<strong>do</strong><br />
e já descritos neste artigo. Conversas,<br />
cartas, comentários, artigos e livros<br />
foram os meios pelos quais eles continuaram<br />
atuan<strong>do</strong> em prol da grande<br />
tarefa histórica <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> de alcançar<br />
sua emancipação econômica e<br />
política.<br />
<strong>Em</strong> 1877, por exemplo, Engels iniciou<br />
a publicação de uma série de artigos no<br />
jornal Vorwärts (Avante), órgão <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong><br />
Socialdemocrata na Alemanha,<br />
contrapon<strong>do</strong> os ataques contra Marx<br />
e a concepção de socialismo científico.<br />
Tratava-se de um esforço para neutralizar<br />
a influência <strong>do</strong>s “<strong>do</strong>utores”<br />
sobre os quadros <strong>do</strong> recém-unifica<strong>do</strong><br />
40
parti<strong>do</strong> socialista da Alemanha e permitir<br />
que ele se desenvolvesse em um<br />
senti<strong>do</strong> positivo. Nessa obra Engels retorna<br />
àquela ideia já estabelecida por<br />
ele em 1844 sobre a questão das lutas<br />
práticas da classe operária e da necessidade<br />
da compreensão de suas tarefas<br />
socialistas.<br />
Quan<strong>do</strong> refletia sobre a solução da<br />
condição de exploração da classe operária<br />
em A situação da classe trabalha<strong>do</strong>ra<br />
na Inglaterra, Engels previa a solução<br />
da contradição na fusão entre o movimento<br />
operário inglês, de sua maior<br />
expressão, o cartismo, com o movimento<br />
socialista francês. Já em 1877 a<br />
solução da contradição prognosticada<br />
por Engels já era outra: “A realização<br />
desse ato, que redimirá o mun<strong>do</strong>,<br />
é a missão histórica <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong><br />
moderno. E o socialismo científico,<br />
expressão teórica <strong>do</strong> movimento proletário,<br />
destina-se a pesquisar as condições<br />
históricas e, com isso, a natureza<br />
mesma desse ato, infundin<strong>do</strong> assim<br />
à classe chamada a fazer a revolução, à<br />
classe hoje oprimida, a consciência das<br />
condições e da natureza de sua própria<br />
ação” 61 . A tarefa de emancipação<br />
<strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>, portanto, precisa ser<br />
operada pela constituição e atuação<br />
de seu parti<strong>do</strong> político, que seja simultaneamente<br />
porta<strong>do</strong>r e expressão<br />
prática <strong>do</strong> socialismo científico.<br />
Um último exemplo para ilustrar a<br />
concepção de propaganda comunista<br />
derivada da atividade de Marx e Engels.<br />
Esse episódio é particularmente<br />
interessante porque antecipa não só<br />
as grandes polêmicas, mas também<br />
o impacto que o revisionismo teve<br />
no movimento operário ao longo das<br />
décadas seguintes. <strong>Em</strong> 1879 foi publica<strong>do</strong><br />
o artigo Retrospectivas <strong>do</strong> movimento<br />
socialista na Alemanha, redigi<strong>do</strong> por<br />
três autores, entre os quais de fato já<br />
figurava Eduard Bernstein.<br />
Os autores <strong>do</strong> artigo propõem ao<br />
proletaria<strong>do</strong> alemão um recuo de um<br />
movimento com caráter de luta de<br />
classes para um movimento de caráter<br />
policlassista. O meio para essa mudança<br />
seria uma propaganda sobre as<br />
classes superiores, com o objetivo de<br />
ganhá-las para o parti<strong>do</strong>. Disso implica-se<br />
o conteú<strong>do</strong> dessa propaganda,<br />
que deve cuidar para não assustar as<br />
camadas superiores da sociedade ou<br />
seus elementos bem-intenciona<strong>do</strong>s.<br />
Ao invés de mostrar-se pela revolução<br />
e disposto a usar a violência, o parti<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> deveria tomar o<br />
caminho da legalidade, o da reforma.<br />
Ao invés de apelar aos “maltrapilhos<br />
sedentos de barricadas”, devia-se almejar<br />
aqueles com “bom gosto” e que<br />
sabem o “tom” que se deve usar para<br />
intervir no parlamento e nas questões<br />
públicas. Não se tratava de aban<strong>do</strong>nar<br />
o parti<strong>do</strong> e o programa, para esses senhores,<br />
mas sim de entender que ao<br />
invés de fixar forças nos fins últimos,<br />
que ainda levarão muitos anos, deve-<br />
-se concentrar energia em objetivos<br />
próximos e atingíveis no curto prazo.<br />
A réplica, redigida por Marx e assinada<br />
por ele e Engels, contra as ideias<br />
<strong>do</strong> artigo e seus autores fornece guia de<br />
combate ao revisionismo. Apontan<strong>do</strong><br />
qual o caminho a ser persegui<strong>do</strong>, faz<br />
recordar as bases sobre as quais o movimento<br />
comunista se sustenta. <strong>Em</strong><br />
primeiro lugar a concepção de que a<br />
luta de classes é o motor da história.<br />
Especialmente a luta de classes entre<br />
burguesia e proletaria<strong>do</strong> contém<br />
a grande alavanca da revolução social<br />
moderna. Recorda que o grito de guerra<br />
da AIT era “a libertação da classe<br />
operária será obra da própria classe<br />
trabalha<strong>do</strong>ra”. Que, portanto, é impossível<br />
caminhar junto com quem quer<br />
suprimir a luta de classes no movimento<br />
operário, e que mesmo tais elementos<br />
devem ser coloca<strong>do</strong>s para fora<br />
<strong>do</strong> parti<strong>do</strong> proletário.<br />
Por fim, Marx e Engels advertem<br />
que: “Se o novo órgão <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> não toma<br />
uma atitude que corresponda às ideias destes<br />
senhores, se essa orientação é burguesa e não<br />
proletária, não nos restará mais nada a fazer,<br />
por mais lamentável que seja, <strong>do</strong> que declarar<br />
abertamente nossa oposição e romper a<br />
solidariedade da qual demos prova até agora<br />
na qualidade de representantes <strong>do</strong> parti<strong>do</strong><br />
alemão no exterior. Esperemos, contu<strong>do</strong>, que<br />
não se chegue até aí” 62 .<br />
Essa crítica de Marx e Engels foi<br />
publicada na forma de carta circular.<br />
Primeiro foi remetida a August Bebel,<br />
mas se destinava a toda a direção <strong>do</strong><br />
SPD, e tinha o caráter de um <strong>do</strong>cumento<br />
<strong>do</strong> parti<strong>do</strong>. Seu efeito foi profun<strong>do</strong>,<br />
e serviu de ponto de apoio para os dirigentes<br />
alemães corrigirem os desvios<br />
<strong>do</strong> parti<strong>do</strong> e atravessarem o perío<strong>do</strong> de<br />
ilegalidade a que estavam submeti<strong>do</strong>s.<br />
Serve também como uma referência<br />
contemporânea para pensar sobre a<br />
relação entre a teoria <strong>do</strong> socialismo<br />
científico, o parti<strong>do</strong> <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> e<br />
a própria vanguarda comunista que<br />
propaga e faz desenvolver a consciência<br />
política no proletaria<strong>do</strong>.<br />
A efetivação da emancipação <strong>do</strong><br />
proletaria<strong>do</strong> precisa ser efetivada por<br />
Marx e Engels no Rheinische Zeitung- Domínio público<br />
41
meio de seu parti<strong>do</strong> político. Porém,<br />
Marx e Engels não tinham qualquer<br />
fetiche organizativo sobre a forma que<br />
esse iria a<strong>do</strong>tar. Não importava que o<br />
Parti<strong>do</strong> Socialdemocrata Alemão tivesse<br />
feito enormes progressos em termos<br />
de filia<strong>do</strong>s e de atuação sindical,<br />
teórica e política, conforme assinala<strong>do</strong><br />
por Engels em episódio já relata<strong>do</strong><br />
aqui. Marx e Engels deixaram claro sua<br />
disposição de romper com o SPD caso<br />
sua direção aceitasse ou fosse tolerante<br />
com as vacilações oportunistas que se<br />
manifestaram em sua organização.<br />
Isso se deve ao fato de que eles concebem<br />
a questão <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> não em<br />
Notas e Referências<br />
termos de um aparato e de uma estrutura<br />
organizativa. Já em 1848 eles<br />
argumentam que “os comunistas não<br />
formam um parti<strong>do</strong> à parte, oposto<br />
aos outros parti<strong>do</strong>s operários” 63 . Naquele<br />
momento essas palavras foram<br />
formuladas ten<strong>do</strong> em vista a possibilidade<br />
de influir sobre o movimento<br />
cartista, e levá-lo a se tornar esse parti<strong>do</strong><br />
proletário. A polêmica de 1879 mostra<br />
que 40 anos depois a orientação de<br />
Marx e Engels permaneciam a mesma<br />
nesse ponto.<br />
O parti<strong>do</strong> <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>, nos termos<br />
históricos que Marx e Engels<br />
concebiam, seria aquele capaz de ser<br />
ele próprio a síntese entre a prática<br />
política e o socialismo científico, ou<br />
não seria. “Ou a classe trabalha<strong>do</strong>ra é<br />
revolucionária, ou ela não é nada” 64 .<br />
Essa ideia formulada por Marx em<br />
carta a Johann Baptist von Schweitzer<br />
concentra to<strong>do</strong> o problema <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>.<br />
Ou o parti<strong>do</strong> serve à necessidade histórica<br />
de dar à classe trabalha<strong>do</strong>ra consciência<br />
da tarefa de levar sua luta econômica<br />
e política até sua solução final,<br />
ou ele não serve como instrumento. O<br />
mesmo se aplica, portanto, à atividade<br />
de organização e propaganda desse<br />
parti<strong>do</strong>, que são por sua vez as suas expressões<br />
práticas.<br />
1<br />
GOMES, Neusa de Martini. Conceitos de comunicação política.<br />
LabCom, 2010, p.111.<br />
2<br />
Congregazione. Archivio Storico "De Propaganda Fide". Disponível<br />
em: <br />
3<br />
GONÇALES, Márcio Carbaca. Publicidade e Propaganda.<br />
Curitiba: IESDE Brasil, 2009, p.7.<br />
4<br />
O’DONNEL, Vitória; JOWETT, Garth. Propaganda and<br />
persuasion. p.75.<br />
5<br />
MARTINS, Zeca. Propaganda É Isso Aí. São Paulo: Saraiva,<br />
2010, p.6.<br />
6<br />
CULL; CULLBERT; WELCH. Propaganda and Mass Persuasion.<br />
2003. p.85.<br />
7<br />
O’DONNEL; JOWETT. Idem. p.79.<br />
8<br />
RIAZANOV. Marx e Engels: uma biografia. São Paulo: Associação<br />
Operário Olavo Hansen, 2022. p.58-59.<br />
9<br />
O’DONNEL; JOWETT. Idem. p.88.<br />
10<br />
EMERY, E.; EMERY, M. The press and America. 1984,<br />
p.405. In O’DONNEL; JOWETT. Idem. p.95.<br />
11<br />
RIAZANOV. Idem. p.37-38.<br />
12<br />
SEWELL, Rob. In the Cause of Labour: A History of British<br />
Trade Unionism. 2003.<br />
13<br />
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo:<br />
Boitempo, 2010, p.146.<br />
14<br />
MARX, Karl. Crítica da filosofia <strong>do</strong> direito de Hegel. São<br />
Paulo: Boitempo, 2013. p.157<br />
15<br />
RIAZANOV. Idem. p.90.<br />
16<br />
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalha<strong>do</strong>ra na<br />
Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010, p.271.<br />
17<br />
MARX, Karl. Miséria da Filosofia. São Paulo: Boitempo,<br />
2017, p.146. (Ênfase nossa)<br />
18<br />
ENGELS, Friedrich. Contribuição à história da Liga <strong>do</strong>s<br />
Comunistas. In Obras Escolhidas Marx e Engels. Alfa-Ômega,<br />
2016, vol.3, p.158.<br />
19<br />
RIAZANOV. Idem. p.163.<br />
20ENGELS, Friedrich. Contribuição à história da Liga <strong>do</strong>s<br />
Comunistas. In Obras Escolhidas Marx e Engels. Alfa-Ômega,<br />
2016, vol.3, p.158.<br />
21<br />
RIAZANOV. Idem. p.163<br />
22<br />
ENGELS. Carta para Marx de 22 de fevereiro de 1845. In<br />
COGGIOLA, Osval<strong>do</strong>. 150 anos <strong>do</strong> Manifesto Comunista. In<br />
MARX; ENGELS. Manifesto Comunista. Boitempo, 2010,<br />
p.29.<br />
<strong>23</strong><br />
COGGIOLA, Osval<strong>do</strong>. 150 anos <strong>do</strong> Manifesto Comunista.<br />
In MARX; ENGELS. Manifesto Comunista. Boitempo, 2010, p.11.<br />
24<br />
ENGELS, Friedrich. Contribuição à história da Liga <strong>do</strong>s<br />
Comunistas. In Obras Escolhidas Marx e Engels. Alfa-Ômega,<br />
2016, vol.3, p.160.<br />
42<br />
25<br />
COTRIM, Lívia. A arma da crítica: política e emancipação<br />
humana na Nova Gazeta Renana. São Paulo: Expressão Popular,<br />
2020, p.36.<br />
26<br />
RIAZANOV. Idem. p.111.<br />
27<br />
BEER, Max. História <strong>do</strong> socialismo e das lutas sociais. Expressão<br />
Popular, 2006, p. 520. (Grifo nosso)<br />
28<br />
ENGELS. Idem. p.160.<br />
29<br />
MAYER, Gustav. Friedrich Engels : uma biografia. São Paulo:<br />
Boitempo, 2020, p.86-87.<br />
30<br />
COGGIOLA, Osval<strong>do</strong>. MARX; ENGELS. Manifesto Comunista.<br />
Boitempo, 2010, p.39.<br />
31<br />
SCHILLING, Voltaire. Marx, o Manifesto de 1848 e a Revolução.<br />
Portal Terra, 29/05/2018.<br />
32<br />
ENGELS. Idem. p.163.<br />
33<br />
COTRIM, Lívia. A arma da crítica: política e emancipação<br />
humana na Nova Gazeta Renana. In MARX. Nova Gazeta<br />
Renana: Órgão da Democracia. São Paulo: Expressão Popular,<br />
2020, p.37.<br />
34<br />
ENGELS. Idem. p.163.<br />
35<br />
ENGELS. Idem. p.165.<br />
36<br />
MARX; ENGELS. Mensagem <strong>do</strong> Comitê Central à Liga <strong>do</strong>s<br />
Comunistas. In Obras Escolhidas Marx e Engels. Alfa-Ômega,<br />
2016, vol.1, p.83.<br />
37<br />
ENGELS. Idem. p.165-166.<br />
38<br />
COTRIM, Lívia. A arma da crítica: política e emancipação humana<br />
na Nova Gazeta Renana. In MARX. Nova Gazeta Renana:<br />
Órgão da Democracia. São Paulo: Expressão Popular, 2020, p.38.<br />
39<br />
MARX, Karl. Letter to Ferdinand Freiligrath, February 29,<br />
1860. Militant Archives. Disponível: https://wikirouge.net/texts/<br />
en/Letter_to_Ferdinand_Freiligrath,_February_29,_1860<br />
40<br />
MARX, Karl. Preâmbulos <strong>do</strong>s Estatutos da 1ª Internacional.<br />
In O marxismo e os sindicatos. São Paulo: Sundermann,<br />
2008, p. 89.<br />
41<br />
ONOFRE, José. Karl Marx : Liberdade de imprensa. Porto<br />
Alegre: L&PM, 2010, p.9.<br />
42<br />
MARX, Karl. Mensagem inaugural da Associação Internacional<br />
<strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res. In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! : antologia<br />
política da I Internacional. São Paulo: Boitempo, 2014, p.93-99.<br />
43<br />
MARX, Karl. Salário, Preço e Lucro. In Trabalho assalaria<strong>do</strong> e<br />
capital & Salário, Preço e Lucro. São Paulo: Expressão Popular, 2006.<br />
44<br />
ENGELS, Friedrich. Os Sindicatos (I e II). In O marxismo e<br />
os sindicatos. São Paulo: Sundermann, 2008, p. 69-76.<br />
45<br />
LENIN,V. I. WHAT THE “FRIENDS OF THE PEOPLE”<br />
ARE AND HOW THEY FIGHT THE SOCIAL-DEMO-<br />
CRATS. (A Reply to Articles in Russkoye Bogatstvo Opposing the<br />
Marxists). In: V. I. Lênin Collected Works. Volume 1 (1893-1894).<br />
Moscow: PROGRESS PUBLISHERS, 1960. p.298.<br />
46<br />
ENGELS, Friedrich. Ao Conselho Federal Espanhol da Associação<br />
Internacional <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res. Carta de 13 de fevereiro<br />
de 1871. In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! : antologia política da I Internacional.<br />
São Paulo: Boitempo, 2014, p.300-301 (grifos nossos).<br />
47<br />
MARX, Karl. Discurso durante sessão da Conferência de<br />
Londres da AIT, em 20 de setembro de 1871. In Trabalha<strong>do</strong>res,<br />
uni-vos! : antologia política da I Internacional. São Paulo: Boitempo,<br />
2014, p.304-305 (grifo nosso).<br />
48<br />
LISSAGARAY, Hippoyte Prosper-Oliver. História da Comuna<br />
de Paris de 1871. São Paulo: Expressão Popular, 2021, p.29-57.<br />
49<br />
MARX; ENGELS. Obras Escolhidas Marx e Engels. Alfa-<br />
-Ômega, 2016, vol.2, p.52.<br />
50<br />
MARX; ENGELS. Obras Escolhidas Marx e Engels. Alfa-<br />
-Ômega, 2016, vol.2, p.62.<br />
51<br />
MUSTO, Marcello. Introdução. In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! :<br />
antologia política da I Internacional. São Paulo: Boitempo, 2014, p.51.<br />
52<br />
MARX; ENGELS. Obras Escolhidas Marx e Engels. Alfa-<br />
-Ômega, 2016, vol.2, p.78.<br />
53<br />
MARX, Karl. Carta a Ludwig Kugelmann. 12 de abril de<br />
1871. In MARX, Karl. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo,<br />
2011, p.54.<br />
54<br />
ENGELS, Friedrich. Ao Conselho Federal Espanhol da Associação<br />
Internacional <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res. Carta de 13 de fevereiro<br />
de 1871. In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! : antologia política da I Internacional.<br />
São Paulo: Boitempo, 2014, p.300-301.<br />
55<br />
MARX; ENGELS. Sobre a ação política da classe trabalha<strong>do</strong>ra e<br />
outros assuntos. Novembro de 1871. In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! : antologia<br />
política da I Internacional. São Paulo: Boitempo, 2014, p.309-311.<br />
56<br />
MARX, Karl. Sobre a ação política da classe trabalha<strong>do</strong>ra.<br />
In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! : antologia política da I Internacional.<br />
São Paulo: Boitempo, 2014, p.309-311.<br />
57<br />
ENGELS, Friedrich. Ao Conselho Federal Espanhol da Associação<br />
Internacional <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res. Carta de 13 de fevereiro<br />
de 1871. In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! : antologia política da I Internacional.<br />
São Paulo: Boitempo, 2014, p.300.<br />
58<br />
MUSTO, Marcello. Introdução. In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! :<br />
antologia política da I Internacional. São Paulo: Boitempo, 2014,<br />
p.65-66.<br />
59<br />
MARX; ENGELS. Normas gerais da Associação Internacional<br />
<strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res. In Trabalha<strong>do</strong>res, uni-vos! : antologia<br />
política da I Internacional. São Paulo: Boitempo, 2014, p.293-294.<br />
60<br />
ENGELS, Friedrich. Prefácio a A Guerra Camponesa na Alemanha.<br />
Obras Escolhidas Marx e Engels. Alfa-Ômega, 2016, vol.2, p.202.<br />
61<br />
ENGELS, Friedrich. Do Socialismo Utópico ao Socialismo<br />
Científico. São Paulo: Centauro, 2005, p.98.<br />
62<br />
MARX, Karl. O manifesto <strong>do</strong>s três de Zurique. 1879.<br />
Disponível em: <br />
63<br />
MARX; ENGELS. Manifesto Comunista. Boitempo, 2010, p.51.<br />
64<br />
MARX, Karl. Carta a Johann Baptist von Schweitzer, 13 de<br />
fevereiro de 1865.
80 ANOS DO LEVANTE<br />
DO GUETO DE VARSÓVIA:<br />
HORROR, TRAIÇÃO E HEROÍSMO<br />
RAFAEL PRATA<br />
Homens da SS prenden<strong>do</strong> judeus e deportan<strong>do</strong> para um campo de extermínio durante o Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia Foto: CAF/dpa/picture-alliance<br />
Esse ano, completam-se 80 anos<br />
<strong>do</strong> Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia,<br />
quan<strong>do</strong> os trabalha<strong>do</strong>res e<br />
jovens judeus, confina<strong>do</strong>s pelos<br />
nazistas para perecerem pela fome<br />
e pelas <strong>do</strong>enças, ergueram-se contra<br />
seus carrascos. Após testemunharem o<br />
deslocamento força<strong>do</strong> de 300 mil pessoas,<br />
que viviam no gueto, para o campo<br />
de extermínio de Treblinka, onde<br />
seriam asfixiadas em câmara de gás,<br />
os 60 mil mora<strong>do</strong>res remanescentes<br />
decidiram reagir.<br />
Famélicos e mal arma<strong>do</strong>s, mas determina<strong>do</strong>s<br />
a lutar até o fim, eles enfrentaram<br />
a poderosa máquina de<br />
guerra alemã durante semanas de<br />
combates intensos e cruéis.<br />
Nesse artigo, pretendemos relembrar<br />
as condições em que foi travada<br />
essa luta e, portanto, mostrar o horror<br />
organiza<strong>do</strong> e perpetra<strong>do</strong> pelo regime<br />
nazista, para que as vítimas nunca sejam<br />
esquecidas e para que esses crimes<br />
nunca mais se repitam.<br />
Vamos refletir ainda sobre o papel<br />
desempenha<strong>do</strong> pela URSS, sob coman<strong>do</strong><br />
de Josef Stalin, que negociou a<br />
divisão da Polônia e acor<strong>do</strong>s de cooperação<br />
econômica com a Alemanha de<br />
A<strong>do</strong>lf Hitler, enquanto os trabalha<strong>do</strong>res<br />
da Europa - e os judeus, em particular<br />
- eram massacra<strong>do</strong>s. Traição que<br />
custou caro também para o povo soviético,<br />
quan<strong>do</strong> a Alemanha desencadeou<br />
a Operação Barbarossa. Veremos ainda<br />
que, apesar disso, o Exército Vermelho<br />
venceu a Batalha de Stalingra<strong>do</strong> e reverteu<br />
o curso da guerra, acalentan<strong>do</strong><br />
esperanças entre os trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />
Leste europeu e, claro, entre os judeus<br />
<strong>do</strong>s guetos e campos de concentração.<br />
Ao mesmo tempo, a “solução final”<br />
<strong>do</strong> nazismo para a questão judaica,<br />
que consistia em conduzir milhões de<br />
seres humanos para a morte por asfixia<br />
nos campos de extermínio, estava<br />
em pleno funcionamento. A morte<br />
estava à espreita <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia,<br />
mais uma vez, após Heinrich<br />
Himmler, comandante-geral das SS,<br />
ordenar a evacuação total e a destruição<br />
de to<strong>do</strong> o bairro. Veremos como a<br />
população se organizou para resistir<br />
43
a essa investida final e como o heroísmo<br />
<strong>do</strong> Levante serviu de inspiração<br />
para outras rebeliões.<br />
Por fim, levantamos algumas<br />
reflexões acerca <strong>do</strong> sionismo, que passou<br />
de uma corrente política minoritária<br />
entre os judeus, à condição de principal<br />
força, apoiada pelo imperialismo<br />
britânico e estadunidense no imediato<br />
pós-guerra. Vamos mostrar que a criação<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Israel, com o aval da<br />
URSS, longe de estabelecer um lar para<br />
que os judeus pudessem viver em paz,<br />
colocou-os em guerra permanente<br />
contra os povos <strong>do</strong> Oriente Médio.<br />
As consequências <strong>do</strong> Pacto<br />
Molotov-Ribbentrop<br />
<strong>Em</strong> 1º de setembro de 1939, a<br />
Alemanha invade a Polônia. <strong>Em</strong> resposta,<br />
Grã-Bretanha e França declaram<br />
guerra à Alemanha. Era o início<br />
da II Guerra Mundial. Porém, dias<br />
antes dessas ações, em <strong>23</strong> de agosto,<br />
um acor<strong>do</strong> de não agressão entre<br />
a Alemanha nazista e a URSS havia<br />
si<strong>do</strong> concluí<strong>do</strong>, através de seus representantes:<br />
o ministro das relações exteriores<br />
alemão, Joachim von Ribbentrop<br />
e o ministro soviético das relações<br />
exteriores, Vyacheslav Molotov.<br />
O Pacto Nazi-Soviético, como ficou<br />
conheci<strong>do</strong>, possuía uma versão pública<br />
e outra secreta. Publicamente, além<br />
<strong>do</strong> compromisso de não se atacarem<br />
mutuamente, estabelecia também<br />
que, caso uma das duas potências fosse<br />
atacada, o outro signatário não forneceria<br />
assistência de qualquer tipo para<br />
o país adversário. Concordaram, ainda,<br />
em não participar de trata<strong>do</strong>s com<br />
outras potências que, direta ou indiretamente,<br />
prejudicassem o outro.<br />
Secretamente, estabeleceram, entre<br />
si, áreas de influência e organizaram a<br />
divisão da Polônia segun<strong>do</strong> as linhas<br />
<strong>do</strong>s rios Narev, Vístula e San.<br />
Esse acor<strong>do</strong> foi crucial para os planos<br />
de Hitler, pois neutralizou o inimigo<br />
a Leste e, assim, permitiu-lhe<br />
concentrar toda sua força militar nas<br />
frentes de batalha no Ocidente. Mesmo<br />
antes da I Guerra Mundial, o maior<br />
temor <strong>do</strong>s militares alemães era justamente<br />
enfrentar duas frentes de<br />
batalha, simultaneamente, pois isso<br />
obrigaria o alto-coman<strong>do</strong> a dividir<br />
suas unidades militares e exigiria um<br />
esforço civil e militar gigantesco para<br />
suprir ambos os la<strong>do</strong>s <strong>do</strong> conflito de<br />
maneira eficaz. Mais <strong>do</strong> que isso, Hitler<br />
obteve a garantia de que a URSS<br />
não interviria no conflito e nem sequer<br />
prestaria qualquer tipo de assistência a<br />
seus opositores.<br />
Por isso, naquele momento, a Wehrmacht<br />
(forças armadas alemãs) interrompeu<br />
seu avanço na Polônia até<br />
os pontos combina<strong>do</strong>s secretamente<br />
com a URSS, em respeito ao trata<strong>do</strong>.<br />
Por sua vez, duas semanas após a ocupação<br />
nazista, o Exército Vermelho<br />
adentraria em território polonês pelo<br />
Leste. <strong>Em</strong> 29 de setembro, Hitler e Stalin<br />
concluiriam a divisão da Polônia: a<br />
Alemanha anexava a região oeste ao<br />
III Reich e estabelecia um governo títere<br />
na região central <strong>do</strong> país, enquanto<br />
a URSS tomava a região leste, acrescentan<strong>do</strong><br />
ao Pacto, a cidade de Wilno,<br />
e a Lituânia, para si. <strong>Em</strong> seguida, o<br />
Exército Vermelho invadiu a Finlândia,<br />
enquanto a Alemanha iniciava seu<br />
avanço em direção a Paris.<br />
Para Stalin, o acor<strong>do</strong> foi bastante<br />
proveitoso, segun<strong>do</strong> os interesses da<br />
burocracia soviética. Além de parte<br />
da Polônia, pôde avançar seus <strong>do</strong>mínios<br />
para Lituânia, Estônia, Letônia<br />
e Moldávia, e obteve condições para<br />
a tomada de alguns pontos na Finlândia.<br />
Ao mesmo tempo, eximia-se<br />
de qualquer responsabilidade sobre<br />
o que classificou, inicialmente,<br />
como um conflito entre as potências<br />
capitalistas europeias.<br />
Historia<strong>do</strong>res simpáticos ao regime<br />
stalinista advogam em defesa <strong>do</strong> Pacto<br />
Molotov-Ribbentrop, argumentan<strong>do</strong>,<br />
entre outras coisas, que a URSS havia<br />
ganha<strong>do</strong> um tempo precioso para<br />
reorganizar e impulsionar o Exército<br />
Vermelho, antes de enfrentar a poderosa<br />
máquina de destruição nazista.<br />
No entanto, as consequências desse<br />
acor<strong>do</strong> foram desastrosas para milhões<br />
de trabalha<strong>do</strong>res europeus e<br />
poloneses, em particular, para as massas<br />
judaicas, pois permitiu que Hitler<br />
agisse livremente, sem a necessária<br />
oposição soviética a seus planos de<br />
conquista e destruição. E desarmou<br />
politicamente os trabalha<strong>do</strong>res russos<br />
e espalhou enorme confusão política<br />
Stalin e o ministro nazista Joachim von Ribbentrop.<br />
Foto tirada por Hoffmann. Fonte: Museu Histórico Alemão<br />
entre os trabalha<strong>do</strong>res da Europa e <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>. Foi uma traição política como<br />
poucas foram vistas no planeta.<br />
No entanto, as<br />
consequências<br />
desse acor<strong>do</strong><br />
foram<br />
desastrosas<br />
para milhões de<br />
trabalha<strong>do</strong>res<br />
europeus e<br />
poloneses,<br />
em particular,<br />
para as massas<br />
judaicas, pois<br />
permitiu que Hitler<br />
agisse livremente,<br />
sem a necessária<br />
oposição soviética<br />
a seus planos<br />
de conquista e<br />
destruição<br />
Aliás, a responsabilidade pelo fato<br />
de o Exército Vermelho não estar prepara<strong>do</strong><br />
para a guerra quan<strong>do</strong> ela estalou,<br />
recai sobre a própria burocracia soviética.<br />
A tendência rumo à guerra era<br />
cada vez mais evidente após a chegada<br />
de Hitler ao poder. Enquanto isso, na<br />
44
URSS, entre 1936 e 1938, organizou-se<br />
o Grande Expurgo de comunistas e de<br />
potenciais opositores políticos de Stalin.<br />
Toda a velha guarda bolchevique,<br />
que havia lidera<strong>do</strong> a revolução de 1917,<br />
foi dizimada, bem como grande parte<br />
<strong>do</strong> alto-coman<strong>do</strong> militar que havia<br />
saí<strong>do</strong> vitorioso na guerra civil contra<br />
o reacionário Exército Branco, entre<br />
1918-1921. Através <strong>do</strong>s Processos de<br />
Moscou, a casta burocrática que havia<br />
usurpa<strong>do</strong> o poder <strong>do</strong>s sovietes para<br />
benefício próprio, corta to<strong>do</strong> e qualquer<br />
laço que pudesse orientar as massas<br />
operárias de volta às suas tradições<br />
revolucionárias e se alça, ao mesmo<br />
tempo, como única e legítima representante<br />
dessas mesmas massas operárias.<br />
Essa etapa marca a vitória da<br />
reação termi<strong>do</strong>riana sobre a revolução<br />
de outubro e a concretização <strong>do</strong> regime<br />
ditatorial de bonapartismo proletário,<br />
sob a liderança de Josef Stalin.<br />
Assim, às vésperas da guerra, a<br />
URSS foi privada de suas principais<br />
lideranças políticas e militares.<br />
Três, <strong>do</strong>s cinco marechais soviéticos<br />
(Alexander Ilyich Yegorov, Vasily<br />
Blyukher e Mikhail Nikolayevich<br />
Tukhachevsky), e milhares de oficiais<br />
foram presos ou fuzila<strong>do</strong>s.<br />
“A aliança de Stalin com Hitler, que<br />
levantou o pano de fun<strong>do</strong> sobre a guerra<br />
mundial, levou diretamente à escravização<br />
<strong>do</strong> povo polonês. Foi uma<br />
consequência da debilidade da URSS e <strong>do</strong><br />
pânico <strong>do</strong> Kremlin frente à Alemanha. O<br />
único responsável por essa debilidade é o<br />
mesmo Kremlin, por sua política interna,<br />
que abriu um abismo entre a casta governante<br />
e o povo; por sua política exterior,<br />
que sacrificou os interesses da revolução<br />
mundial aos da camarilha stalinista” 1 .<br />
Aliás, a orientação de Stalin não era<br />
a de preparar a URSS para o combate<br />
contra a Alemanha. Pelo contrário,<br />
Stalin estava bastante satisfeito com a<br />
situação, até o início da Operação Barbarossa,<br />
a invasão nazista à URSS em<br />
junho de 1941. Devi<strong>do</strong> ao bloqueio econômico<br />
da Grã-Bretanha à Alemanha,<br />
Hitler buscava outros meios de conseguir<br />
petróleo, minérios e outras matérias-primas<br />
vitais para a indústria de<br />
guerra alemã. Além disso, como o Pacto<br />
Molotov-Ribbentrop proibia os soviéticos<br />
de fornecer auxílio aos países<br />
em guerra com os nazistas, o comércio<br />
entre a URSS e Alemanha prosperou!<br />
Os países chegaram a assinar <strong>do</strong>is<br />
acor<strong>do</strong>s de cooperação econômica, um<br />
em 1940 e outro em janeiro de 1941, e<br />
boa parte de suas exportações e importações<br />
dependiam desse comércio.<br />
Aliás, Stalin ignorou os avisos de<br />
um eminente ataque alemão à URSS,<br />
mesmo estan<strong>do</strong> de posse de informações<br />
obtidas por diversas fontes, incluídas<br />
as repassadas pela rede de espionagem<br />
soviética Orquestra Vermelha,<br />
liderada por Leopold Trepper. Ele classificou<br />
esses da<strong>do</strong>s como propaganda<br />
britânica e, por isso, a URSS foi pega de<br />
surpresa, e quase não opôs resistência<br />
nos primeiros dias, quan<strong>do</strong> se iniciou a<br />
invasão nazista.<br />
Percebe-se, assim, como os rumos<br />
iniciais da II Guerra Mundial e, portanto,<br />
o destino de milhões de pessoas,<br />
guardam íntima relação com as<br />
decisões tomadas pelos governos da<br />
Alemanha e da URSS. Evidentemente,<br />
como materialistas, enxergamos,<br />
nessas decisões, as motivações econômicas<br />
da burguesia imperialista alemã<br />
por um la<strong>do</strong> – que encontrou em<br />
Hitler e nos nazistas um meio para as<br />
alcançar. E, de outro la<strong>do</strong>, enxergamos<br />
os interesses de autopreservação<br />
<strong>do</strong>s privilégios da casta burocrática<br />
que <strong>do</strong>minava a URSS, sob coman<strong>do</strong><br />
de Stalin.<br />
Com relação às demais potências<br />
imperialistas ocidentais, não as isentamos<br />
da responsabilidade. Ao contrário,<br />
os vitoriosos da I Guerra Mundial<br />
impuseram uma política de saque à<br />
Alemanha e repartiram o globo terrestre<br />
de acor<strong>do</strong> com seus interesses.<br />
Porém, em vez de uma nova era de paz<br />
e prosperidade, acentuaram a exploração<br />
sobre os povos <strong>do</strong> planeta e novas e<br />
maiores contradições se avolumaram<br />
diante da crise econômica desencadeada<br />
a partir de 1929 e, mais uma vez, a<br />
humanidade foi empurrada para uma<br />
corrida armamentista e para uma disputa<br />
sanguinária por merca<strong>do</strong>s e áreas<br />
de influência, com o intuito de reverter<br />
a tendência à queda na taxa de lucro e<br />
(re)valorizar o capital financeiro.<br />
A II Guerra Mundial, com seu rastro<br />
de destruição e mortes, foi a consequência<br />
imediata <strong>do</strong> impasse histórico <strong>do</strong><br />
capitalismo, em sua fase imperialista,<br />
cujas relações sociais de produção,<br />
baseadas na propriedade privada <strong>do</strong>s<br />
meios de produção, chocam-se com o<br />
atual estágio de desenvolvimento das<br />
forças produtivas, transforman<strong>do</strong>-as<br />
em imensas forças destrutivas. Frente<br />
a uma nova crise de superprodução, a<br />
“solução” encontrada pelas principais<br />
potências imperialistas foi ir à guerra<br />
para destruir capital alheio em benefício<br />
de seu próprio capital, e redefinir<br />
os contornos <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> mundial.<br />
Uma guerra inter-imperialista de saque<br />
e rapina, que transformou o mun<strong>do</strong><br />
num mar de sangue operário, como<br />
nunca se tinha visto.<br />
Nessa guerra, que se tornou inevitável<br />
frente ao papel nefasto que<br />
desempenhou a III Internacional,<br />
fossilizada burocraticamente a partir<br />
de Moscou, milhões de vidas foram<br />
sacrificadas e um destino particularmente<br />
cruel se abateu sobre os principais<br />
alvos da ideologia nazista: os<br />
trabalha<strong>do</strong>res judeus.<br />
Um judeu e uma filha no gueto de Varsóvia<br />
Foto: Ludwig Knobloch<br />
Nazismo x judeus<br />
Após desmoralizar e esmagar as<br />
organizações políticas e sindicais da<br />
classe trabalha<strong>do</strong>ra e chegar ao poder,<br />
Hitler começa a transformar sua<br />
propaganda ideológica em política de<br />
Esta<strong>do</strong> e, portanto, começa a transformar<br />
o antissemitismo em uma<br />
questão de segurança pública, em<br />
prol de uma suposta superioridade<br />
racial “ariana”. Essa “raça superior”<br />
deveria se desvencilhar, por to<strong>do</strong>s os<br />
meios, de todas as outras “raças inferiores”<br />
para construir uma nação<br />
“pura”, o III Reich alemão. Implementou-se,<br />
por exemplo, to<strong>do</strong> um sistema<br />
pseu<strong>do</strong>científico, basea<strong>do</strong> na eugenia<br />
para: a) esterilizar milhares de pessoas<br />
consideradas depravadas, como os<br />
homoafetivos, ou incorrigíveis, como<br />
os criminosos habituais, b) aplicar<br />
eutanásia em i<strong>do</strong>sos senis, <strong>do</strong>entes<br />
irrecuperáveis e em alguns casos de<br />
demência. Depois, no transcurso da<br />
guerra, simplesmente deixava-se<br />
morrer de fome ou organizou-se o<br />
extermínio <strong>do</strong>s indesejáveis, como as<br />
crianças com deficiência intelectual<br />
(4 mil) que estavam acolhidas em escolas<br />
especiais e sanatórios, mortos<br />
por asfixia de monóxi<strong>do</strong> de carbono<br />
em caminhões adapta<strong>do</strong>s. <strong>Em</strong> seguida,<br />
os considera<strong>do</strong>s loucos: 70.273 por<br />
gás, 120 mil por inanição. O encarceramento<br />
e o extermínio também<br />
possuíam, óbvio, “razões ideológicas”,<br />
pois qualquer pessoa considerada<br />
comunista ou socialista poderia ser<br />
punida com a morte.<br />
Evidentemente, na linha de frente<br />
das “raças inferiores”, o regime nazista<br />
estabeleceu que o inimigo interno<br />
número um era o judeu! Para a classe<br />
<strong>do</strong>minante alemã, tratava-se de<br />
45
dividir para reinar. Somente sobre a<br />
base da exploração mais brutal de um<br />
amplo setor da sociedade, seria possível<br />
centralizar o poder e reordenar o<br />
país sob o impulso da indústria bélica.<br />
Inversamente, o avanço da repressão,<br />
expulsão e escravização das massas<br />
judaicas, da expropriação da pequena<br />
burguesia judaica e da extorsão e<br />
chantagem sobre a burguesia judaica,<br />
fortalecia a tendência à centralização<br />
política e ao estabelecimento de uma<br />
ditadura policial-militar.<br />
Uma série de medidas, decretos e<br />
leis, como as famigeradas Leis de Nuremberg,<br />
transformaram os judeus,<br />
bem como os ciganos e negros, em<br />
párias sociais, pessoas sem direitos<br />
civis, sem propriedades ou posses,<br />
excluí<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s serviços públicos e impedi<strong>do</strong>s<br />
de estudar, empregar-se em<br />
estabelecimentos “arianos” ou de se<br />
casar com eles.<br />
Para pôr em prática essas medidas e<br />
sufocar qualquer possibilidade de oposição<br />
interna, o regime inicia a construção<br />
de campos de concentração,<br />
que combinavam o pior das práticas<br />
prisionais com o mais penoso trabalho<br />
força<strong>do</strong>. Havia também os campos de<br />
trânsito, onde milhares de refugia<strong>do</strong>s<br />
viviam acampa<strong>do</strong>s, esperan<strong>do</strong> por<br />
uma decisão de para onde seriam envia<strong>do</strong>s.<br />
O primeiro campo de concentração<br />
a ser construí<strong>do</strong> foi em Dachau,<br />
na Alemanha, já em 1933. E, durante a<br />
guerra, por toda a extensão <strong>do</strong> III Reich<br />
e <strong>do</strong>s países ocupa<strong>do</strong>s, dezenas de<br />
campos como esse foram organiza<strong>do</strong>s<br />
e milhões de pessoas foram submetidas<br />
a eles. O passo seguinte, nessa política,<br />
seria a construção <strong>do</strong>s campos de<br />
extermínio.<br />
Nessa escalada de violência, porém,<br />
é preciso voltar um pouco e lembrar<br />
da Noite <strong>do</strong>s Cristais, ocorrida<br />
em novembro de 1938, na Alemanha,<br />
assim chamada pelo brilho <strong>do</strong>s cacos<br />
de vidros das vitrines quebradas em<br />
meio às luzes noturnas. Na verdade,<br />
tratou-se de um brutal e gigantesco<br />
pogrom 2 , no qual cerca de 30 mil<br />
judeus foram presos e milhares de<br />
empresas, residências e sinagogas<br />
judaicas foram atacadas.<br />
Não à toa, portanto, entre 1933 e<br />
1939, milhares de judeus são força<strong>do</strong>s a<br />
emigrar da Alemanha, Áustria e Tchecoslováquia.<br />
A maioria partiu em direção<br />
à Polônia, que possuía a maior população<br />
europeia de judeus na época.<br />
Porém, também lá não estariam a salvos<br />
da sanha nazista. Pelo contrário.<br />
Após a invasão, os nazistas dividiram<br />
as cidades e regiões polonesas em<br />
duas áreas: as situadas mais a oeste<br />
foram anexadas ao Reich, as centrais<br />
ficaram sob administração de um<br />
governo geral títere <strong>do</strong>s alemães, incluin<strong>do</strong><br />
a capital <strong>do</strong> país, a cidade de<br />
Varsóvia. Porém, aos judeus, não foi<br />
permiti<strong>do</strong> viver em nenhuma dessas<br />
áreas. Cada vez mais, a segregação oficial<br />
forçou os judeus a se confinarem<br />
em guetos.<br />
Da mesma forma que na Alemanha,<br />
mas de maneira mais acelerada<br />
e brutal, uma série de decretos e medidas<br />
de segregação foram impostas<br />
à população judaica residente em<br />
Varsóvia, começan<strong>do</strong> pela obrigatoriedade<br />
<strong>do</strong>s judeus usarem uma faixa<br />
branca com a estrela de Davi nas<br />
mangas de suas roupas, passan<strong>do</strong> por<br />
demissões, perda de benefícios sociais<br />
e previdenciários, exclusão <strong>do</strong>s<br />
serviços públicos, confisco de posses<br />
e propriedades e in<strong>do</strong> até o ultimato<br />
para que to<strong>do</strong>s os judeus se mudassem<br />
para uma pequena área destinada<br />
exclusivamente a eles. A partir<br />
daquele momento, nenhum judeu<br />
poderia viver ou trabalhar fora daquela<br />
área delimitada. Até que, para<br />
cumprir a ordem, em 16 de novembro<br />
de 1940, o bairro foi fecha<strong>do</strong> por muros<br />
e to<strong>do</strong> o trânsito de merca<strong>do</strong>rias<br />
e pessoas foi proibi<strong>do</strong> e submeti<strong>do</strong> à<br />
vigilância constante. Começava assim<br />
a história <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia. O<br />
mesmo padrão foi a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> em outras<br />
regiões polonesas e assim outros guetos<br />
menores, mas não menos hostis,<br />
também foram cria<strong>do</strong>s. Alguns milhares<br />
de judeus conseguiram emigrar<br />
a tempo, mas, para a maioria<br />
da população, não houve a menor<br />
possibilidade de fuga.<br />
Morte e vida no Gueto de Varsóvia<br />
À segregação social, seguiu-se o<br />
confinamento:<br />
“O gueto efetivo sofria com uma densidade<br />
populacional de quase 80 mil habitantes<br />
por quilômetro quadra<strong>do</strong>, 30%<br />
<strong>do</strong>s habitantes de Varsóvia tinham que<br />
se apinhar em 2,4% da área da cidade.<br />
O número oficial da população <strong>do</strong> gueto<br />
variava: 380.740 em janeiro de 1941;<br />
431.874 em julho de 1941; cerca de 400<br />
mil em maio de 1942” 3 .<br />
Outra fonte afirma que, no primeiro<br />
semestre de 1942, a média de<br />
pessoas por aposento era de 13, enquanto<br />
a média nos arre<strong>do</strong>res mais<br />
pobres de antes da guerra era de 7<br />
pessoas por aposento 4 .<br />
Os judeus na fila durante a sua mudança para o gueto de Varsóvia no final de 1940<br />
Archiwum Akt Nowych (antigos Arquivos <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunista), cortesia de USHMM Photo Archives.<br />
46
Do confinamento, adveio a fome e<br />
as <strong>do</strong>enças.<br />
“Quanto ao número de calorias, os poloneses<br />
ocupavam o penúltimo lugar na<br />
distribuição de cartões de racionamento<br />
alimentar e os judeus o último. Damos<br />
abaixo um quadro da distribuição de calorias<br />
segun<strong>do</strong> princípios raciais, no segun<strong>do</strong><br />
semestre de 1941: em Varsóvia, os<br />
alemães recebiam 2.310 calorias por dia;<br />
estrangeiros 1790 calorias, poloneses 634<br />
e judeus 184.<br />
No preço por calorias, a proporção era<br />
oposta. Quanto menor o número de calorias<br />
aquinhoa<strong>do</strong> a uma determinada<br />
categoria da população, tanto mais eleva<strong>do</strong><br />
o preço da caloria. O preço médio por<br />
caloria era: para os alemães 0,3 zloty; estrangeiros<br />
0,8 zloty; poloneses 2,6 zlotys;<br />
judeus 5,9 zlotys por caloria” 5 .<br />
Porém, nem to<strong>do</strong> o gueto sofria de<br />
fome.<br />
“Existiam chocantes diferenças sociais;<br />
um jornal clandestino calculava ser a<br />
seguinte a proporção de esfomea<strong>do</strong>s e<br />
famintos: 50% da população morrem literalmente<br />
de fome; 30% passam fome<br />
de maneira “normal”; 15% raramente<br />
têm o que comer. Apenas uma elite vivia<br />
na abastança (...). Para essa elite, foram<br />
trazi<strong>do</strong>s ostensivamente, em fevereiro de<br />
1942, vinte mil litros de aguardente. No<br />
mesmo mês, foram registra<strong>do</strong>s oficialmente<br />
no gueto 416 mil judeus, 80% <strong>do</strong>s<br />
quais eram indigentes famintos” 6 .<br />
“Segun<strong>do</strong> um cronista <strong>do</strong> gueto, uns 20<br />
mil formavam uma elite com dinheiro.<br />
<strong>Em</strong> seus lares, ainda se podia encontrar<br />
bastante comida na mesa e mais alimentos<br />
armazena<strong>do</strong>s para uso futuro.<br />
Tais pessoas já eram abastadas antes da<br />
guerra, outros acumularam dinheiro com<br />
contraban<strong>do</strong> em vasta escala para o gueto.<br />
Outros ainda eram <strong>do</strong>nos de empresas<br />
que, de um mo<strong>do</strong> legal quanto ilegal, continuavam<br />
a funcionar no gueto e eram sócios<br />
em toda a espécie de negócios secretos,<br />
de alemães e poloneses. Os espertalhões <strong>do</strong><br />
gueto, que só haviam atingi<strong>do</strong> esse status<br />
durante sua permanência ali, excediam-se<br />
numa vida de prazeres e exageros, numa<br />
atmosfera irresponsável de “comam e bebam,<br />
pois amanhã morreremos”. (...)<br />
Ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s bem alimenta<strong>do</strong>s, que constituíam<br />
uma pequena porcentagem da<br />
população, havia uns 200 mil numa<br />
situação intermediária, gente que tinha<br />
conserva<strong>do</strong> parte de suas posses, ou que<br />
tinha algum tipo de trabalho temporário,<br />
seus próprios apartamentos e quantidades<br />
limitadas de alimentos básicos. O status<br />
desses “classe-médias” era medi<strong>do</strong> no<br />
tempo. Alguns podiam se manter à tona<br />
por muito meses, mas no fim suas posses<br />
minguavam e eles iam declinan<strong>do</strong> até o<br />
status das massas famintas.<br />
A multidão famélica era de mais de 200<br />
mil. Para eles, cada dia era uma batalha<br />
por uma côdea de pão. A cada mês milhares<br />
perdiam suas forças e esperanças na<br />
luta para sobreviver. Na aparência, assemelhavam-se<br />
a esqueletos humanos, com<br />
os ossos se salientan<strong>do</strong> em seus rostos cinzentos<br />
e encova<strong>do</strong>s. Espiritualmente, estavam<br />
mortos; seus olhos haviam perdi<strong>do</strong><br />
toda expressão ou contato com a realidade.<br />
Eles eram os mortos vivos, indiferentes<br />
a tu<strong>do</strong> e sucumbin<strong>do</strong> ao seu destino” 7 .<br />
Com a grande maioria da população<br />
viven<strong>do</strong> sem o mínimo de condições<br />
sanitárias e de moradia e com a saúde<br />
debilitada pela fome, o tifo e outras <strong>do</strong>enças<br />
adquiriram caráter epidêmico:<br />
“A fome e a <strong>do</strong>ença levaram cerca de 100<br />
mil pessoas entre o início da guerra e o mês<br />
de julho de 1942. Apenas no ano de 1941,<br />
10% da população <strong>do</strong> gueto – 43 mil pessoas<br />
– morreu. No mesmo perío<strong>do</strong> – de<br />
novembro de 1940 a julho de 1942 – os<br />
alemães empurraram para o gueto mais<br />
de 150 mil refugia<strong>do</strong>s” 8 .<br />
A miséria se abatia com força sobre<br />
os trabalha<strong>do</strong>res.<br />
“As principais vítimas desse novo e trágico<br />
esta<strong>do</strong> de coisas era o operário. Idêntica<br />
era a situação da maioria <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res<br />
intelectuais. Para a massa de operários<br />
e artesãos, não havia trabalho.<br />
Segun<strong>do</strong> uma estatística alemã <strong>do</strong> ano de<br />
1941, existiam no gueto 85 mil operários<br />
especializa<strong>do</strong>s e artesãos, 18 mil operários<br />
sem qualquer especialização e 7 mil<br />
serventes. O número total de operários e<br />
artesãos era, pois, de 110 mil. Ao mesmo<br />
tempo, como relata a já mencionada fonte<br />
Polícia judaica no Gueto de Varsóvia<br />
Ullstein bild/Getty Images<br />
judaica, em to<strong>do</strong> o gueto 27 mil pessoas<br />
exerciam atividades profissionais. Este<br />
número compreendia também negociantes,<br />
pequenos proprietários de lojas, funcionários<br />
<strong>do</strong> Conselho Judaico e de outros<br />
cargos públicos” 9 .<br />
Percebe-se, portanto, que o desemprego<br />
se alastrava e reforçava o quadro<br />
de ruína social da população <strong>do</strong><br />
gueto. Esse imenso exército industrial<br />
de reserva e a situação geral de guerra<br />
desvalorizaram, de maneira abissal, o<br />
valor da força de trabalho no gueto.<br />
“Os ‘felizar<strong>do</strong>s’ que encontravam trabalho<br />
nas oficinas ou nas fábricas pertencentes<br />
a capitalistas alemães eram<br />
condena<strong>do</strong>s ao mais desumano trabalho<br />
escravo. Operários só raramente encontravam<br />
trabalho nessas fábricas porque<br />
os industriais nazistas empregavam<br />
pessoas que traziam máquinas próprias.<br />
Pre<strong>do</strong>minavam, pois, os artífices e artesãos<br />
que trabalhavam por conta própria.<br />
Por dia de serviço de 10 a 11 horas,<br />
das oito da manhã às sete da noite, um<br />
operário altamente especializa<strong>do</strong>, trabalhan<strong>do</strong><br />
de empreitada, em serviços <strong>do</strong>s<br />
mais pesa<strong>do</strong>s, ganhava nominalmente<br />
de quatro a sete zlotys. Na realidade,<br />
porém, após o desconto de considerável<br />
quantia por <strong>do</strong>is pratos de sopa aguada,<br />
restavam-lhe de 2,50 a 5 zlotys. Ao operário<br />
de categoria inferior, restavam de<br />
1,50 a 2 zlotys diários.<br />
Os preços vigentes no merca<strong>do</strong> livre,<br />
para o primeiro semestre de 1942, demonstram<br />
de mo<strong>do</strong> eloquente qual era<br />
o real valor aquisitivo desse salário. Um<br />
quilo de pão preto custava 10 – 12 zlotys;<br />
pão branco, 20 – 25 zlotys; um quilo de<br />
gordura, 250 zlotys.<br />
O salário de um trabalha<strong>do</strong>r braçal era<br />
de 3,20 zlotys por dia. Se alguma coisa se<br />
47
perdia no decorrer <strong>do</strong> trabalho, o emprega<strong>do</strong>r<br />
descontava <strong>do</strong> operário um zloty<br />
da diária” 10 .<br />
Diante dessa situação macabra, as<br />
autoridades de ocupação chegaram<br />
a pensar, por um tempo, que o gueto<br />
acabaria por liquidar-se a si próprio.<br />
O governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> distrito de Varsóvia,<br />
Ludwig Fischer, formulou, cinicamente,<br />
a política <strong>do</strong> extermínio pela<br />
fome: “Os judeus morrerão à míngua<br />
e de toda a questão judaica só restará<br />
um cemitério”.<br />
Para administrar a miséria no<br />
bairro, os nazistas delegaram algumas<br />
funções para um Conselho Judaico,<br />
um órgão composto por membros<br />
da elite judaica, que tinham a<br />
“boa intenção” de mitigar os problemas<br />
sociais e negociar com as autoridades,<br />
mas, de fato, formavam um<br />
órgão de colaboração com os ocupantes<br />
e de manutenção da ordem no<br />
gueto. Ele tinha a função de administrar<br />
e distribuir a pouquíssima quantidade<br />
oficial de alimentos destinada<br />
ao gueto para os refeitórios públicos,<br />
bem como os demais limita<strong>do</strong>s insumos<br />
aos serviços médico-hospitalares,<br />
postal, funerário e de limpeza<br />
pública. Porém, sua principal atribuição,<br />
sem dúvida, era organizar e<br />
suprir a famigerada e, cada vez mais<br />
corrupta, Polícia Judaica.<br />
O Conselho Judaico cobrava impostos<br />
para custear suas atividades, mas<br />
sem levar em consideração a renda e a<br />
situação financeira <strong>do</strong>s contribuintes.<br />
“Cada mora<strong>do</strong>r <strong>do</strong> gueto, o diretor de fábrica<br />
e o operário, o rico agiota e o desemprega<strong>do</strong><br />
em vias de morrer de inanição,<br />
to<strong>do</strong>s pagavam os mesmos tributos, na<br />
mesma altura, segun<strong>do</strong> a seguinte tabela<br />
mensal: (confira abaixo).<br />
Introduziu-se, além disso, um imposto<br />
para medicamentos. O preço de cada<br />
remédio era acresci<strong>do</strong> de 40%, aumento<br />
esse que afluía à caixa <strong>do</strong> Conselho Judaico.<br />
Além dessas, havia outras taxas e<br />
contribuições obrigatórias” 11 .<br />
Percebe-se, assim, que o peso da tributação<br />
recaía de maneira muito mais<br />
pesada sobre as costas magras da população<br />
mais pobre, <strong>do</strong> que sobre a elite<br />
rica bem alimentada.<br />
Além <strong>do</strong> Conselho Judaico, existiam<br />
outros órgãos coletivos, como o Aleynhilf<br />
e os Comitês Domiciliares.<br />
48<br />
Vítimas <strong>do</strong> campo de concentração de<br />
Buchenwald(Photo by H Miller/Getty Images)<br />
Inicialmente, autônomo, e depois,<br />
vincula<strong>do</strong> formalmente ao Conselho<br />
Judaico, mas buscan<strong>do</strong> preservar<br />
certa independência, encontra-se o<br />
Aleynhilf, uma Sociedade de Auxílio<br />
Mútuo, responsável por algumas<br />
ações assistenciais e educacionais<br />
voltadas, particularmente, às crianças<br />
órfãs e refugia<strong>do</strong>s recém-chega<strong>do</strong>s.<br />
Clandestinamente, por trás<br />
dessa estrutura, funcionava o arquivo<br />
OynegShabbos, sob direção<br />
<strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r e militante <strong>do</strong> Poalei<br />
Sion de Esquerda, <strong>Em</strong>anuel Ringelblum.<br />
Esse professor buscava socorrer,<br />
financeiramente, jornalistas,<br />
escritores, intelectuais e estudantes,<br />
encomendan<strong>do</strong> estu<strong>do</strong>s, pesquisas<br />
e entrevistas sobre os mais varia<strong>do</strong>s<br />
aspectos da vida e da sociedade<br />
no gueto de Varsóvia e organizan<strong>do</strong><br />
coleta de da<strong>do</strong>s e estatísticas. Aliás,<br />
muitas dessas informações se transformavam<br />
em notícias, que eram<br />
publicadas através da imprensa de<br />
organizações políticas clandestinas.<br />
A rede Aleynhilf recebia contribuições<br />
de uma cooperativa de crédito<br />
organizada por judeus americanos,<br />
porém, a partir da entrada <strong>do</strong>s EUA na<br />
guerra, contra a Alemanha, tais recursos<br />
se tornaram cada vez mais escassos<br />
e suas atividades, públicas e clandestinas,<br />
passaram a depender da contribuição<br />
<strong>do</strong>s próprios mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />
gueto e, portanto, dadas as condições<br />
gerais, diminuíram bastante de intensidade<br />
e extensão, chegan<strong>do</strong> quase a<br />
desaparecer.<br />
Por fim, ao se deparar com a iminente<br />
destruição <strong>do</strong> Gueto pelos nazistas,<br />
Ringelblum ordenou que to<strong>do</strong> o<br />
material fosse enterra<strong>do</strong>. O historia<strong>do</strong>r<br />
não conseguiu escapar da morte, mas,<br />
ao final da guerra, sobreviventes <strong>do</strong><br />
Holocausto 12 que colaboraram com<br />
o Arquivo, fizeram campanha pela<br />
descoberta desse material e conseguiram<br />
encontrar boa parte <strong>do</strong> acervo<br />
soterra<strong>do</strong> sob os escombros e ruínas<br />
<strong>do</strong> gueto e armazena<strong>do</strong>s em latões de<br />
leite e caixas de madeira. Esse material<br />
serve, até hoje, como valiosa fonte historiográfica<br />
sobre o Gueto de Varsóvia,<br />
os crimes cometi<strong>do</strong>s pelos nazistas, a<br />
atuação <strong>do</strong> Conselho Judaico e sua polícia,<br />
e sobre o cotidiano da população.<br />
Já os Comitês Domiciliares foram<br />
outro tipo de iniciativa de organização<br />
coletiva, de caráter independente<br />
e popular. Surgiram logo nos primeiros<br />
meses de existência <strong>do</strong> Gueto e tiveram<br />
seu auge entre 1940 e primeiros<br />
meses de 1942. Inicialmente, nasceram<br />
para tentar organizar os caóticos<br />
e superlota<strong>do</strong>s edifícios residenciais.<br />
Porém, como as demandas por to<strong>do</strong><br />
tipo de serviço público, assistencial<br />
e comunitário somente cresciam,<br />
os Comitês Domiciliares passaram<br />
a se reunir para fazer exigências ao<br />
Conselho Judaico.<br />
Estima-se que existiram cerca de<br />
mil e quinhentos a <strong>do</strong>is mil Comitês<br />
Domiciliares, integran<strong>do</strong> cerca de seis<br />
a oito mil voluntários, que representavam<br />
milhares de mora<strong>do</strong>res. Evidentemente,<br />
havia uma divisão de classes.<br />
Os Comitês das áreas residenciais proletárias<br />
eram mais ativos em relação às<br />
suas reivindicações, enquanto outras,<br />
de áreas mais abastadas, procuravam<br />
colaborar com o Conselho Judaico e se<br />
recusaram a criar um fun<strong>do</strong> comum<br />
para to<strong>do</strong>s os mora<strong>do</strong>res.<br />
Porém, esse trabalho comunitário<br />
se deteriorou com o avanço da fome,<br />
das <strong>do</strong>enças e das humilhações provocadas<br />
pela Polícia Judaica e Polonesa, a<br />
serviço <strong>do</strong>s nazistas. Quanto maior era<br />
a necessidade da luta diária pela sobrevivência,<br />
menor era a adesão, o apoio<br />
e o trabalho em comum nos Comitês<br />
Domiciliares e a articulação entre eles.<br />
Além disso, com frequência, a Polícia<br />
Judaica exigia suborno <strong>do</strong>s Comitês<br />
e aplicava “castigos” nas áreas que se<br />
recusavam a colaborar.<br />
Um <strong>do</strong>s “castigos” consistia em capturar<br />
mora<strong>do</strong>res para enviá-los a campos<br />
de trabalho força<strong>do</strong>. De tempos<br />
em tempos, os nazistas impunham ao<br />
Conselho Judaico uma cota de pessoas<br />
que deveriam se apresentar para trabalhar<br />
em obras e operações das autoridades<br />
policiais ou militares. Se a cota<br />
não fosse cumprida, os nazistas ameaçavam<br />
matar a população, na mesma<br />
proporção, como represália, ou ameaçavam<br />
a família <strong>do</strong>s dirigentes judaicos.<br />
Nas primeiras convocações, os
trabalha<strong>do</strong>res se apresentaram voluntariamente,<br />
tamanho era o desespero<br />
por um pedaço de pão. Porém, quan<strong>do</strong><br />
as primeiras equipes voltaram,<br />
após meses viven<strong>do</strong> nesses campos<br />
de trabalho, toda a população tomou<br />
conhecimento <strong>do</strong> que se tratava.<br />
Boa parte <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res sequer<br />
voltou. Morreram vítimas <strong>do</strong> trabalho<br />
desumano a que foram submeti<strong>do</strong>s, ou<br />
de frio, fome, <strong>do</strong>entes, ou ainda devi<strong>do</strong><br />
aos constantes espancamentos, torturas<br />
e execuções. Os que conseguiram<br />
retornar, estavam inváli<strong>do</strong>s física e<br />
emocionalmente, aleija<strong>do</strong>s ou insanos.<br />
A partir daí, a cada convocação, os<br />
trabalha<strong>do</strong>res buscavam se esconder e<br />
a Polícia Judaica se encarregava de “recrutá-los”.<br />
O me<strong>do</strong> de que seus entes<br />
queri<strong>do</strong>s, parentes e vizinhos fossem<br />
manda<strong>do</strong>s para esses campos era tão<br />
grande, que a solidariedade entre os<br />
Comitês Domiciliares se desfazia, e<br />
quem conseguia subornar os agentes<br />
policiais, assim fazia.<br />
Através desse e outros méto<strong>do</strong>s de<br />
chantagem, suborno, castigo e retaliação<br />
da Polícia Judaica, em nome <strong>do</strong><br />
Conselho Judaico e, em meio à dificuldade<br />
diária de encontrar alimentos, a<br />
atuação conjunta <strong>do</strong>s Comitês Domiciliares<br />
também se reduziu e, em alguns<br />
casos, limitou-se a organizar eventos<br />
recreativos ou religiosos.<br />
Entre a população <strong>do</strong> gueto também<br />
se reuniam e agiam as organizações<br />
políticas clandestinas, de esquerda<br />
e direita. Mas é à esquerda que<br />
encontraremos os grupos mais ativos<br />
e militantes contra a ocupação nazista,<br />
que buscavam organizar os trabalha<strong>do</strong>res<br />
e os jovens <strong>do</strong> gueto sob as<br />
mais diferentes perspectivas e plataformas<br />
políticas.<br />
A principal força política de esquerda<br />
entre os trabalha<strong>do</strong>res judeus<br />
era o Bund, a União Judaica <strong>do</strong>s<br />
Trabalha<strong>do</strong>res da Lituânia, Polônia e<br />
Rússia, ou União Geral <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res<br />
Judeus. Era um parti<strong>do</strong> de caráter<br />
socialista que se distinguia <strong>do</strong>s demais<br />
agrupamentos socialistas desses<br />
países, porque se propunha a organizar<br />
os trabalha<strong>do</strong>res judeus enquanto<br />
parte de um povo específico, o povo<br />
judeu. Acreditava que o judaísmo era<br />
uma cultura secular que deveria ser<br />
preservada com a conquista de direitos<br />
para o povo e os trabalha<strong>do</strong>res judeus.<br />
Sua principal palavra de ordem<br />
era algo como “to<strong>do</strong>s os direitos aos<br />
trabalha<strong>do</strong>res judeus, onde quer que<br />
eles vivam”. Uma concepção, portanto,<br />
antissionista. O Bund entendia que<br />
a emigração para a Palestina para formar<br />
um esta<strong>do</strong> judeu era uma forma<br />
de escapismo, uma maneira de tentar<br />
evitar que os judeus encarassem, de<br />
frente, seus próprios problemas, fosse<br />
na Polônia, na Lituânia ou em outro<br />
país, e argumentava que a conexão<br />
entre to<strong>do</strong>s os judeus da “diáspora”,<br />
sua identidade, era a cultura. Defendia<br />
inclusive a educação <strong>do</strong> idioma<br />
ídiche, língua falada por milhares de<br />
judeus que viviam na Europa, ao contrário<br />
da maioria <strong>do</strong>s sionistas que se<br />
dedicavam a reviver o hebraico como<br />
língua nacional.<br />
Entre os trabalha<strong>do</strong>res e jovens judeus,<br />
o comunismo exercia também<br />
forte atração. A revolução russa de<br />
1917 pôs fim aos pogroms <strong>do</strong> czarismo<br />
e da burguesia grão-russa, condenou<br />
o antissemitismo e garantiu paz, pão<br />
e terra. Por esses e outros motivos, em<br />
1921, o setor russo <strong>do</strong> Bund rachou e a<br />
maior parte de seus militantes aderiu<br />
ao Parti<strong>do</strong> Comunista.<br />
A força motriz <strong>do</strong>s comunistas era<br />
a concepção de que to<strong>do</strong>s os trabalha<strong>do</strong>res,<br />
independente da nacionalidade,<br />
gênero, religião, ou qualquer<br />
outra distinção, deveriam se unir num<br />
único propósito: a revolução socialista<br />
e a edificação de uma sociedade sem<br />
explora<strong>do</strong>s nem explora<strong>do</strong>res, base<br />
para o fim de toda e qualquer opressão.<br />
E, assim, vinculavam a luta contra as<br />
opressões à luta pela transformação<br />
da sociedade. Combatiam o antissemitismo<br />
e defendiam o direito <strong>do</strong>s judeus<br />
professarem sua fé e suas tradições, e<br />
alertavam que, também entre a comunidade<br />
judaica, havia uma divisão<br />
de classes, e que os operários judeus<br />
não deveriam se unir aos burgueses<br />
judeus, e sim, aos seus irmãos de classe,<br />
na Rússia e nos outros países, para,<br />
juntos, acabar com a exploração a que<br />
eram to<strong>do</strong>s submeti<strong>do</strong>s.<br />
Esse exemplo ficou grava<strong>do</strong> na<br />
consciência de milhões de trabalha<strong>do</strong>res<br />
e jovens na Europa <strong>do</strong> Leste, que viviam<br />
persegui<strong>do</strong>s e humilha<strong>do</strong>s, pelo<br />
simples fato de serem judeus, enquanto<br />
seus pares, na URSS, viviam livres.<br />
Porém, com a degeneração da revolução<br />
soviética e o advento de uma casta<br />
burocrática na URSS, a Internacional<br />
Comunista foi transformada num<br />
aparato de cunho policial para atender<br />
aos interesses dessa camada <strong>do</strong>minante,<br />
e isso teve sérios efeitos sobre a<br />
organização comunista que existia na<br />
Polônia e, portanto, sobre seu potencial<br />
de se ligar às massas operárias, incluin<strong>do</strong><br />
as de origem judaica. A quase<br />
total destruição <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunista<br />
Alemão pelo regime nazista também<br />
afetou, sobremaneira, os comunistas<br />
poloneses. Para piorar o quadro, a divisão<br />
da Polônia, com base num acor<strong>do</strong><br />
de gabinete entre os líderes nazistas<br />
e stalinistas, fez desaparecer o antigo<br />
Parti<strong>do</strong> Comunista Polonês, entre 1939<br />
e 1941, perío<strong>do</strong>, no qual, durou o Pacto<br />
Molotov-Ribbentrop.<br />
Somente em 1942 ele será reconstituí<strong>do</strong>,<br />
com o nome de Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res<br />
Poloneses (PPR, na sigla<br />
em polonês) e, além de atuar na clandestinidade,<br />
impulsionava um setor<br />
guerrilheiro e partisan, chama<strong>do</strong> de<br />
Milícia Popular. <strong>Em</strong> pouco tempo, o<br />
PPR também conseguirá estabelecer<br />
células no Gueto de Varsóvia.<br />
A força motriz<br />
<strong>do</strong>s comunistas<br />
era a concepção<br />
de que to<strong>do</strong>s os<br />
trabalha<strong>do</strong>res,<br />
independente da<br />
nacionalidade,<br />
gênero, religião,<br />
ou qualquer<br />
outra distinção,<br />
deveriam se<br />
unir num único<br />
propósito: a<br />
revolução<br />
socialista e a<br />
edificação<br />
de uma<br />
sociedade sem<br />
explora<strong>do</strong>s nem<br />
explora<strong>do</strong>res,<br />
base para o<br />
fim de toda<br />
e qualquer<br />
opressão<br />
Além <strong>do</strong> Bund e <strong>do</strong>s comunistas,<br />
havia ainda uma série de organizações<br />
sionistas, particularmente, de organizações<br />
juvenis. Entre elas, podemos<br />
citar o HashomerHatzair, o Dror, o Poalei<br />
Sion e o Poalei Sion de Esquerda.<br />
Apesar de suas divergências, o sionismo<br />
é uma corrente política que prega<br />
a emigração e a colonização judaica da<br />
Palestina. A ala esquerda desse movimento<br />
procura incutir demandas<br />
sociais, trabalhistas e até socialistas,<br />
mas compreendem, como os demais<br />
49
Solda<strong>do</strong>s alemães deportam Judeus que morrerão na câmara de gás em um campo de concentração<br />
Foto: MDR/ARD Degeto<br />
sionistas, que os judeus formam um<br />
povo, e que esse povo teria direito a<br />
uma nação independente. E passam<br />
a reivindicar a Palestina como território<br />
propício e, hipoteticamente, de<br />
direito, para se construir um esta<strong>do</strong><br />
judeu, portanto, religioso, como é o Irã<br />
desde 1979, por exemplo. Esta<strong>do</strong> judeu,<br />
aliás, que será cria<strong>do</strong> no pós-guerra<br />
com o acor<strong>do</strong> das grandes potências<br />
capitalistas e a URSS.<br />
A “solução final” e o Bloco Antifascista<br />
Nos círculos dirigentes nazistas,<br />
a política, em relação aos judeus, era<br />
tema recorrente. Com o avanço à<br />
Leste da Wehrmacht (forças armadas<br />
alemãs), além da selvageria contra<br />
a população <strong>do</strong>s territórios ocupa<strong>do</strong>s<br />
da URSS, constituíram-se novos<br />
guetos e campos de concentração na<br />
Lituânia e Ucrânia e houve vários<br />
episódios de assassinatos, em massa,<br />
de judeus.<br />
A cidade de Vilnius, por exemplo,<br />
atual capital da Lituânia, foi conquistada<br />
pelos alemães em 24 de<br />
junho de 1941 e nela viviam 57 mil<br />
judeus, constituin<strong>do</strong> um terço da<br />
população local. Seis meses depois,<br />
sobreviviam apenas 20 mil, pois o<br />
restante havia si<strong>do</strong> dizima<strong>do</strong>, em<br />
particular, por homens da Einsatzgruppen,<br />
uma unidade móvel<br />
50<br />
de matança que acompanhava o<br />
avanço alemão.<br />
Inicialmente, essas falanges assassinas<br />
estavam vinculadas à Wehrmacht,<br />
mas, a partir da campanha antissoviética,<br />
foram subordinadas às SS, a polícia<br />
nazista, e recebiam ordens para<br />
aniquilar to<strong>do</strong>s os judeus <strong>do</strong>s territórios<br />
ocupa<strong>do</strong>s. “Quatro Einsatzgruppen,<br />
abrangen<strong>do</strong> seiscentos a mil homens,<br />
auxilia<strong>do</strong>s por forças locais e pela polícia<br />
na Ucrânia e nos países bálticos,<br />
ajudavam a arrebanhar os judeus para<br />
o assassinato em massa. As execuções<br />
eram realizadas ao longo de valas. Famílias<br />
eram ordenadas a tirar a roupa e<br />
depois eram fuziladas, cain<strong>do</strong> ou sen<strong>do</strong><br />
jogadas na vala que os aguardava” 13 .<br />
Porém, estava claro que somente as<br />
Einsatzgruppen não teriam condições<br />
de cumprir com a tarefa de eliminar<br />
to<strong>do</strong>s os judeus da Europa, e planos<br />
maiores de extermínio começaram a<br />
ser postos em ação.<br />
“<strong>Em</strong> dezembro de 1941, o primeiro campo<br />
de extermínio foi estabeleci<strong>do</strong> em Chelmno,<br />
a setenta quilômetros de Lodz, na área anexada<br />
pelo Reich alemão e longe da arena<br />
militar na frente russa. A 8 de dezembro,<br />
o dia em que os EUA declararam guerra à<br />
Alemanha, começou a matança nas câmaras<br />
de gás. Judeus de povoa<strong>do</strong>s vizinhos -<br />
Kolo, Klodawa, Izbica Kujawska, Dombie<br />
e outros - foram leva<strong>do</strong>s a Chelmno. As<br />
vítimas foram conduzidas a um castelo<br />
aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> e depois assassinadas em câmaras<br />
de gás. Seus corpos foram postos em<br />
grandes valas numa floresta próxima. No<br />
mês seguinte, janeiro de 1942, <strong>do</strong>is judeus<br />
que foram força<strong>do</strong>s a trabalhar enterran<strong>do</strong><br />
os corpos conseguiram escapar e alcançar<br />
Varsóvia. O testemunho de um deles foi recolhi<strong>do</strong><br />
pelo pessoal <strong>do</strong>s “arquivos Ringelblum”<br />
e transmiti<strong>do</strong> a Londres via canais<br />
secretos da clandestinidade polonesa. Desse<br />
mo<strong>do</strong>, em 1942, detalhes sobre o campo<br />
se tornaram conheci<strong>do</strong>s em Londres, assim<br />
como em Varsóvia” 14 .<br />
Com o aval de Hitler, o general das<br />
SS, Reinhard Heydrich, convocou, em<br />
20 janeiro de 1942, a Conferência de<br />
Wannsee - uma mansão em um subúrbio<br />
de Berlim – para debater “a solução<br />
final para a questão judaica”, reunin<strong>do</strong><br />
quinze oficiais <strong>do</strong> alto escalão <strong>do</strong><br />
governo alemão e <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Nazista.<br />
Evidentemente, tratava-se de discutir<br />
a implementação da ordem para eliminar,<br />
em massa, a população judaica.<br />
Para esse fim, outros campos de<br />
extermínio foram concluí<strong>do</strong>s no primeiro<br />
semestre de 1942. Um deles, o de<br />
Belzec, começou a receber judeus deporta<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> gueto de Lublin e arre<strong>do</strong>res<br />
no mês de março e, em <strong>do</strong>is meses,<br />
30 mil já haviam si<strong>do</strong> transferi<strong>do</strong>s. A
notícia da evacuação chegou ao Gueto<br />
de Varsóvia por indivíduos que conseguiram<br />
escapar e por cartas que perguntavam<br />
aos judeus de Varsóvia se<br />
sabiam o paradeiro daqueles que haviam<br />
si<strong>do</strong> deporta<strong>do</strong>s. O cerco estava<br />
se fechan<strong>do</strong>.<br />
As organizações clandestinas, diante<br />
da gravidade da situação, passam<br />
a debater se é possível resistir, como<br />
resistir e o que fazer para se defender.<br />
O primeiro apelo à resistência armada<br />
partiu de Vilnius, após o, já cita<strong>do</strong>, massacre.<br />
<strong>Em</strong> dezembro de 1941, em uma<br />
plenária <strong>do</strong> Hashomer Hatzair, leu-se<br />
uma proclamação <strong>do</strong> ativista Abba<br />
Kovner que afirmava: “Hitler planeja<br />
destruir to<strong>do</strong>s os judeus da Europa e<br />
os judeus da Lituânia foram escolhi<strong>do</strong>s<br />
para serem os primeiros da fila”.<br />
E terminava com o seguinte chama<strong>do</strong>:<br />
“Não seremos leva<strong>do</strong>s como carneiros<br />
para a matança. É verdade que somos<br />
fracos e indefesos, mas a única resposta<br />
ao assassinato é a revolta. Irmãos! É<br />
melhor morrer lutan<strong>do</strong> como homens<br />
livres <strong>do</strong> que viver à mercê <strong>do</strong>s assassinos.<br />
Levantem-se! Levantem-se com<br />
seu último alento!”<br />
O apelo, no entanto, somente iria<br />
se concretizar e ganhar apoio quan<strong>do</strong><br />
o gueto já estava à beira da extinção,<br />
quan<strong>do</strong> realmente não restou nenhuma<br />
alternativa à população sobrevivente.<br />
Fato que guarda muita semelhança<br />
com o que viria a acontecer no<br />
Gueto de Varsóvia, como veremos.<br />
<strong>Em</strong> março de 1942, fruto da agitação<br />
causada pelas notícias de deportações<br />
em massa em outros campos<br />
e guetos, passam a ocorrer reuniões<br />
entre diferentes grupos clandestinos<br />
e surge, no Gueto de Varsóvia, o Bloco<br />
Antifascista, forma<strong>do</strong> pelo PPR<br />
(comunista) e grupos sionistas de esquerda.<br />
Inicialmente, o Bund manteve-se<br />
afasta<strong>do</strong>, não estava convicto<br />
de que era hora de organizar uma<br />
resistência armada e alegava que,<br />
para tal iniciativa ter algum sucesso,<br />
seria necessário estreitar as relações<br />
com a oposição polonesa e o Exército<br />
Interno (AK, na sigla polonesa) 15 .<br />
Os militantes <strong>do</strong> Bloco passaram<br />
a se organizar em grupos com certa<br />
disciplina militar e a se exercitar no<br />
tiro, no uso de dinamite e colocação<br />
de minas, bem como em operações de<br />
resgate e atendimento médico de feri<strong>do</strong>s.<br />
Também publicaram três edições<br />
de um jornal chama<strong>do</strong> O Apelo (Der<br />
Ruf) com análises sobre o momento<br />
da guerra e a necessidade <strong>do</strong>s judeus se<br />
organizarem para enfrentar as hordas<br />
nazistas. Também publicavam cartazes<br />
com palavras de ordem <strong>do</strong> tipo:<br />
“Abaixo os oficiais” e “vamos produzir<br />
granadas em vez de relógios”.<br />
<strong>Em</strong> resposta ao crescimento dessa<br />
agitação política, durante os meses<br />
de abril, maio e junho, forças nazistas<br />
passaram a promover ondas de assalto<br />
contra a população <strong>do</strong> gueto, com<br />
prisões e assassinatos, para incutir o<br />
terror, enquanto a Polícia Judaica e informantes<br />
da Gestapo buscavam identificar<br />
a localização e os membros <strong>do</strong><br />
Bloco. Politicamente, essa severa repressão<br />
provocou um distanciamento<br />
entre as massas e o Bloco. Por me<strong>do</strong> de<br />
represálias, a maioria das pessoas não<br />
queria estabelecer nenhum vínculo<br />
com as atividades clandestinas. Além<br />
disso, com um sal<strong>do</strong> de centenas de<br />
apoia<strong>do</strong>res e militantes presos e algumas<br />
dezenas de mortos, o Bloco quase<br />
se dissolveu.<br />
Logo em seguida, entre julho e setembro<br />
de 1942, começam as primeiras<br />
ondas de deportação em massa no<br />
Gueto de Varsóvia. Primeiramente,<br />
os nazistas anunciam a transferência<br />
de mendigos, indigentes, refugia<strong>do</strong>s<br />
e pessoas sem trabalho. Depois,<br />
anunciam que todas as pessoas que<br />
trabalham em serviços não essenciais<br />
seriam transferidas, além de i<strong>do</strong>sos,<br />
crianças e enfermos. Há uma corrida<br />
para conseguir cartões de trabalho<br />
em fábricas, oficinas e nas unidades<br />
administradas pelo Conselho Judaico,<br />
um salve-se quem puder. Os trabalha<strong>do</strong>res<br />
e jovens mais conscientes<br />
<strong>do</strong> que a deportação realmente<br />
significava procuraram se esconder.<br />
Os nazistas matavam quem era pego<br />
escondi<strong>do</strong> ou tentan<strong>do</strong> fugir e mentem,<br />
é claro. Prometem pão e geleia<br />
ao final da viagem para to<strong>do</strong>s que<br />
embarcarem nos trens. Prometem<br />
trabalho e uma vida melhor. Mesmo<br />
que a maioria desconfiasse das intenções<br />
e promessas <strong>do</strong>s nazistas, não<br />
havia como resistir. Famílias inteiras<br />
embarcaram para o desconheci<strong>do</strong>,<br />
com o receio de encontrarem a morte,<br />
mas ainda com a vã esperança de<br />
permanecerem vivas e unidas. Outras<br />
famílias teriam que se separar. Mães<br />
com crianças pequenas embarcaram,<br />
deixan<strong>do</strong> para trás os mari<strong>do</strong>s e seus<br />
filhos e filhas jovens. Professores embarcaram<br />
junto com as crianças órfãs,<br />
assim como enfermeiras e médicos<br />
embarcaram com os <strong>do</strong>entes. To<strong>do</strong>s<br />
em direção ao campo de extermínio<br />
de Treblinka para serem asfixia<strong>do</strong>s<br />
em câmaras de gás.<br />
Ao to<strong>do</strong>, 300 mil pessoas foram<br />
enviadas para lá. Restaram apenas<br />
cerca de 60 mil viven<strong>do</strong> no Gueto de<br />
Varsóvia. Porém, a lembrança e o ressentimento<br />
daqueles meses provocaram<br />
uma mudança na consciência<br />
<strong>do</strong>s que permaneceram. O escritor<br />
Perle, que não pertencia a nenhum<br />
parti<strong>do</strong> político, assim relatou em<br />
uma crônica sobre as deportações:<br />
“nós podíamos ter-nos defendi<strong>do</strong>, não<br />
precisaríamos deixar-nos chacinar. Se to<strong>do</strong>s<br />
os judeus tivéssemos saí<strong>do</strong> em massa<br />
das casas, derruban<strong>do</strong> os muros, se tivéssemos<br />
inunda<strong>do</strong> as ruas aos ban<strong>do</strong>s, gritan<strong>do</strong>,<br />
arma<strong>do</strong>s de machadinhas, pedras,<br />
macha<strong>do</strong>s, invadin<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os bairros<br />
de Varsóvia, os judeus e os não-judeus,<br />
dez, vinte mil de nós teriam morri<strong>do</strong>, fuzila<strong>do</strong>s,<br />
mas não se teria podi<strong>do</strong> matar a<br />
tiros de uma só vez trezentas mil pessoas.<br />
Teríamos ti<strong>do</strong> morte gloriosa. Aqueles,<br />
porém, que tivessem sobrevivi<strong>do</strong> à refrega,<br />
ter-se-iam espalha<strong>do</strong>s por to<strong>do</strong> o país, em<br />
muitas cidadezinhas e aldeias. Os assassinos<br />
fascistas não nos teriam extermina<strong>do</strong><br />
com tanta facilidade” 16 .<br />
Percebe-se que a ideia de resistência,<br />
plantada pelo Bloco Antifascista,<br />
havia germina<strong>do</strong>, regada pela dura<br />
experiência <strong>do</strong>s sobreviventes ao horror<br />
das deportações e das milhares de<br />
vidas perdidas.<br />
O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia<br />
<strong>Em</strong> outubro, após retomarem reuniões<br />
e encontros entre vários grupos<br />
e com a adesão <strong>do</strong> Bund e outras agremiações,<br />
foi fundada a Organização<br />
Combatente Judaica (ZOB). Compunha-se<br />
<strong>do</strong>s seguintes grupos, antes <strong>do</strong><br />
início da revolta:<br />
• Dror - 5 grupos<br />
• PPR - 4 grupos<br />
• HashomerHatzair – 4 grupos<br />
• Bund – 4 grupos<br />
• Poalei Sion de Esquerda – 1 grupo<br />
• Poalei Sion – 1 grupo<br />
• Gor<strong>do</strong>nia – 1 grupo<br />
• HanoarHazioni – 1 grupo<br />
• Akiba – 1 grupo<br />
Cada um <strong>do</strong>s 22 grupos possuía um<br />
comandante, que mantinha contato<br />
regular com a direção da ZOB, liderada<br />
por Mordecai Anielewicz, um jovem<br />
de 22 anos. O número total de combatentes<br />
formalmente liga<strong>do</strong>s à ZOB<br />
varia conforme as fontes: entre 600 e<br />
3 mil, mas como veremos, havia milhares<br />
de pessoas dispostas a lutar, que<br />
não faziam parte da estrutura da ZOB,<br />
mas mantinham-se sob a influência<br />
dessa organização.<br />
O grupo Betar ficou de fora da ZOB<br />
e resolveu fundar a União Militar Judaica<br />
(ZZW), mas que também tomaria<br />
lugar na resistência armada.<br />
O objetivo da ZOB era o de não<br />
aceitar mais nenhuma evacuação, nenhuma<br />
ação <strong>do</strong>s nazistas dentro <strong>do</strong><br />
gueto; defender a população e combater<br />
os ocupantes.<br />
51
Solda<strong>do</strong>s alemães queimam edifícios residenciais durante a revolta <strong>do</strong> gueto de Varsóvia<br />
National Archives and Records Administration, College Park, MD<br />
Ten<strong>do</strong> em vista o que se passou<br />
com o Bloco Antifascista, a primeira<br />
decisão foi aquartelar os militantes<br />
e estabelecer uma disciplina militar.<br />
A segunda, foi se vingar <strong>do</strong>s trai<strong>do</strong>res<br />
e colabora<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s nazistas. <strong>Em</strong><br />
vez de serem persegui<strong>do</strong>s pela Polícia<br />
Judaica e por agentes da Gestapo,<br />
a ZOB passou a ameaçá-los e persegui-los.<br />
O subcomandante da polícia,<br />
Jacob Lejkin, que havia si<strong>do</strong> muito<br />
ativo nas deportações, foi morto num<br />
atenta<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong> e realiza<strong>do</strong> pela<br />
ZOB que, no dia seguinte, afixou um<br />
aviso informan<strong>do</strong> ao público da sentença<br />
de morte executada, e avisan<strong>do</strong><br />
que seriam tomadas severas represálias<br />
contra aqueles que auxiliassem e<br />
servissem ao inimigo. E pouco tempo<br />
depois, Ysrael Fisrt, emprega<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
Conselho Judaico e informante <strong>do</strong>s<br />
nazistas, também foi executa<strong>do</strong> pela<br />
ZOB. Essas ações tiveram um grande<br />
impacto na consciência <strong>do</strong>s habitantes<br />
<strong>do</strong> gueto. Ali estava uma organização<br />
que iria se vingar pelas vidas<br />
entregues nas mãos <strong>do</strong>s carrascos.<br />
Oficiais da polícia, antes orgulhosos<br />
e temi<strong>do</strong>s, passaram a esconder seus<br />
quepes e insígnias.<br />
A principal dificuldade para a ZOB<br />
era conseguir armamento. As conexões<br />
com o AK e a resistência polonesa<br />
eram frágeis e a Milícia Popular <strong>do</strong><br />
PPR empreendeu poucas e arriscadas<br />
ações para repassar armas e munições<br />
para os combatentes <strong>do</strong> gueto.<br />
<strong>Em</strong> 9 de janeiro de 1943, o próprio<br />
Heinrich Himmler, em pessoa, chegou<br />
com seu esta<strong>do</strong>-maior para uma<br />
inspeção ao Gueto de Varsóvia. O comandante-geral<br />
das SS determinou<br />
que as deportações fossem retomadas<br />
e ordenou a evacuação das empresas<br />
alemãs, deven<strong>do</strong> ser transferida toda a<br />
maquinaria e mais 16 mil judeus para<br />
um campo das SS em Lublin.<br />
Dias depois, a ZOB publica um<br />
apelo em que conclamava: “Massas<br />
judaicas! Soou a hora, deveis estar prontos<br />
para a resistência. Nem um só judeu deve<br />
entrar nos vagões! To<strong>do</strong>s aqueles que não<br />
dispõem de meios para opor-se ativamente,<br />
devem opor resistência passiva, devem<br />
ocultar-se”.<br />
E buscava convencer to<strong>do</strong>s a<br />
participar:<br />
“Erguei-vos e lutai!<br />
Não percais as esperanças nem a fé na<br />
possível salvação! Sabei que a salvação<br />
não está em caminhar para a morte, sem<br />
energia, como um rebanho de ovelhas.<br />
Ela está na luta!<br />
(...)<br />
Despertai povo e lutai por vossa vida!<br />
Que cada mãe se transforme numa leoa a<br />
defender os filhotes!<br />
Que nenhum pai assista inativo à morte<br />
de seus filhos! Não mais se repetirá<br />
o opróbrio <strong>do</strong> primeiro ato de nosso<br />
aniquilamento!<br />
Abaixo a resignação e a descrença! Abaixo<br />
nosso espírito servil!<br />
O inimigo pagará com sangue pela vida de<br />
cada judeu!<br />
Que cada casa se transforme numa<br />
fortaleza!<br />
Despertai, povo e lutai!<br />
Na luta está nossa salvação!<br />
Quem luta pela própria vida tem<br />
possibilidade de salvar-se.<br />
(...)<br />
Nosso lema é:<br />
<strong>Em</strong> Treblinka não morrerá mais um único<br />
judeu!<br />
Abaixo os trai<strong>do</strong>res <strong>do</strong> povo!<br />
Luta implacável aos invasores, até a<br />
última gota de sangue!<br />
Estai prontos para a ação!” 17<br />
No dia 18 de janeiro, os alemães<br />
chegaram no gueto para cumprir a<br />
ordem de Himmler, apoia<strong>do</strong>s por<br />
unidades de letões e ucranianos e<br />
acompanha<strong>do</strong>s pela polícia polonesa.<br />
Poucas pessoas compareceram ao<br />
local de embarque voluntariamente<br />
e então as forças de segurança passam<br />
a invadir as casas, os edifícios e<br />
as fábricas. Na empresa Ostdeutsche<br />
Baustelle, de marcenaria, a combatente<br />
<strong>Em</strong>ilia Margalith Landau atira<br />
uma granada que deixou alguns alemães<br />
mortos. Ela seria morta na troca<br />
de tiros que se seguiu à explosão. <strong>Em</strong><br />
outros pontos <strong>do</strong> gueto, os combatentes<br />
armam emboscadas e atacam. Os<br />
inimigos fogem aos gritos: “os judeus<br />
estão atiran<strong>do</strong>!”<br />
Após três dias de combates, o responsável<br />
pela operação, Ferdinand<br />
von Sammern-Frankenegg, decide<br />
suspender os embarques. Apesar das<br />
perdas, a ZOB estava satisfeita com o<br />
resulta<strong>do</strong> das suas ações e Himmler<br />
ficou furioso. <strong>Em</strong> 16 de fevereiro de<br />
1943, ele emitiu ordens para destruir o<br />
Gueto de Varsóvia.<br />
Entre fevereiro e abril, houve uma<br />
fase de preparativos de ambas as partes.<br />
A ZOB buscava mais armamentos<br />
e estabelecia seus planos de defesa.<br />
Enquanto isso, industriais alemães,<br />
preocupa<strong>do</strong>s com suas propriedades,<br />
buscavam convencer os operários a<br />
colaborar com a evacuação, mas eles<br />
se recusavam, conforme a orientação<br />
da ZOB. Os capitalistas então, junto<br />
com o Conselho Judaico, convidaram<br />
a ZOB para uma reunião. Mas os alemães<br />
ficaram furiosos com a recusa<br />
da ZOB em comparecer e colocaram<br />
a culpa nos dirigentes <strong>do</strong> Conselho<br />
Judaico, cujo presidente respondeu: “o<br />
poder no gueto não se encontra mais<br />
em minhas mãos. Aqui, outro governo<br />
tem o poder”. Era evidente que a população<br />
não mais obedecia às autoridades<br />
constituídas e respeitavam apenas<br />
os comunica<strong>do</strong>s emiti<strong>do</strong>s pela ZOB.<br />
Esgotadas, portanto, as possibilidades<br />
de dissuasão, Himmler encarrega<br />
Jürgen Stroop, chefe da tropa de elite<br />
Waffen-SS, a responsabilidade de destruir<br />
o gueto. Assim, em abril, inicia-<br />
-se um novo ataque, não apenas para<br />
deportar os judeus à força, mas para<br />
acabar com eles ali mesmo. É nesse<br />
momento que se inicia o Levante!<br />
A disparidade bélica era gritante.<br />
Por parte <strong>do</strong>s alemães, foram empregadas<br />
as seguintes forças, compostas<br />
por oficiais e homens bem treina<strong>do</strong>s,<br />
equipa<strong>do</strong>s e experimenta<strong>do</strong>s em<br />
combate:<br />
- Da Waffen-SS, um batalhão de<br />
granadeiros blinda<strong>do</strong>s e uma divisão<br />
de cavalaria. Total de 790 homens;<br />
52
Stroop, no centro com um quepe , durante a luta para reprimir a revolta no gueto de Varsóvia<br />
- Da Wehrmacht, uma bateria de artilharia<br />
e duas divisões de sapa<strong>do</strong>res.<br />
Total de 103 homens;<br />
- Da Polícia, <strong>do</strong>is batalhões de polícia<br />
da SS, um batalhão de campo,<br />
efetivos da polícia polonesa, corpo de<br />
bombeiros e um serviço técnico de<br />
emergência. Total: 1.146 homens;<br />
- Além de tropas compostas por voluntários<br />
fascistas ucranianos, letões<br />
e alemães viven<strong>do</strong> no estrangeiro,<br />
comandadas por oficiais nazistas.<br />
Por parte <strong>do</strong>s combatentes da ZOB,<br />
to<strong>do</strong>s eram jovens, entre 18 e 25 anos,<br />
a maioria nem sequer havia presta<strong>do</strong><br />
serviço militar e possuíam uma metralha<strong>do</strong>ra<br />
com pouca munição, algumas<br />
centenas de revólveres e granadas<br />
de mão, além de coquetéis com áci<strong>do</strong>.<br />
Tinham a vantagem de conhecer plenamente<br />
a área e as rotas subterrâneas<br />
e contavam com o apoio da população.<br />
A maior parte <strong>do</strong>s habitantes se manteve<br />
escondida, mas em muitos casos,<br />
improvisavam-se grupos arma<strong>do</strong>s<br />
para dar proteção aos esconderijos ou<br />
locais de trabalho.<br />
Pode-se dizer que toda a população<br />
<strong>do</strong> gueto se envolveu no Levante. Seja<br />
passivamente, esconden<strong>do</strong>-se, recusan<strong>do</strong>-se<br />
a colaborar com os ocupantes<br />
e ajudan<strong>do</strong>, como podiam, os combatentes.<br />
Milhares conseguiram fugir,<br />
também, pela rede de esgoto e túneis<br />
subterrâneos, e buscaram se esconder<br />
fora <strong>do</strong>s muros <strong>do</strong> gueto.<br />
Outra parte envolveu-se ativamente,<br />
integran<strong>do</strong>-se na ZOB, na ZZW ou<br />
em algum grupo de proteção, ou mesmo<br />
se lançan<strong>do</strong> contra os nazistas com<br />
paus, facas e macha<strong>do</strong>s, para se defender<br />
quan<strong>do</strong> eram descobertos em seus<br />
esconderijos. Poucos eram os refúgios<br />
que se entregavam sem luta quan<strong>do</strong><br />
descobertos.<br />
Pode-se dizer<br />
que toda a<br />
população <strong>do</strong><br />
gueto se envolveu<br />
no Levante. Seja<br />
passivamente,<br />
esconden<strong>do</strong>-se,<br />
recusan<strong>do</strong>-se a<br />
colaborar com<br />
os ocupantes<br />
e ajudan<strong>do</strong>,<br />
como podiam, os<br />
combatentes<br />
Pode-se dizer que o Levante, que<br />
durou de abril a maio, passou por<br />
duas fases de luta. Na primeira parte,<br />
as batalhas eram travadas nas ruas<br />
e a partir <strong>do</strong>s prédios e das fábricas.<br />
Enquanto havia munição na metralha<strong>do</strong>ra,<br />
grupos de combatentes<br />
tentavam frear o avanço <strong>do</strong>s alemães<br />
no principal entroncamento de ruas<br />
<strong>do</strong> gueto. <strong>Em</strong> outros pontos, os combatentes<br />
se posicionavam pelos <strong>do</strong>is<br />
la<strong>do</strong>s de uma rua e, de dentro <strong>do</strong>s<br />
prédios, atiravam nos alemães que<br />
estavam no solo. <strong>Em</strong> seguida, pelo<br />
teto ou por buracos na parede, passavam<br />
para outro edifício. Nas fábricas<br />
e oficinas, buscavam evitar a entrada<br />
<strong>do</strong>s alemães, ou então armavam emboscadas<br />
assim que eles entravam<br />
nos pátios e galpões.<br />
Nessa etapa, a tática utilizada pelos<br />
nazistas foi o uso incessante da artilharia.<br />
Tanques, canhões e metralha<strong>do</strong>ras<br />
de grosso calibre destruíram<br />
os prédios por onde transitavam os<br />
combatentes. Stroop também decidiu<br />
queimar o gueto! Colunas de fumaça<br />
podiam ser vistas de longe. As chamas<br />
e a fuligem tomaram conta das<br />
principais áreas <strong>do</strong> bairro. Milhares<br />
de pessoas morreram queimadas ou<br />
sufocadas.<br />
Os combatentes tiveram, então,<br />
que descer para o subterrâneo. Durante<br />
os anos anteriores, para se esconder<br />
das investidas policiais, para<br />
reuniões clandestinas ou ainda para<br />
estocar merca<strong>do</strong>rias contrabandeadas,<br />
vários porões foram reforma<strong>do</strong>s,<br />
amplia<strong>do</strong>s e camufla<strong>do</strong>s, e muitos<br />
passaram a se ligar, entre si, por túneis.<br />
Nos meses que precederam o<br />
Levante, centenas de voluntários trataram<br />
de ampliar essa galeria subterrânea<br />
que agora, além de esconder os<br />
mora<strong>do</strong>res, servia de Quartel General<br />
e rede logística para as operações da<br />
ZOB. Os combatentes organizavam<br />
saídas furtivas de seus esconderijos,<br />
atacavam os nazistas e, rapidamente,<br />
desapareciam sob o solo.<br />
O méto<strong>do</strong> emprega<strong>do</strong> por Stroop<br />
nessa etapa da luta foi o uso abusivo de<br />
dinamites e explosivos para enterrar<br />
vivas as pessoas, ou para abrir buracos<br />
e localizar as galerias subterrâneas.<br />
Além disso, quan<strong>do</strong> os nazistas encontravam<br />
os porões, não se arriscavam a<br />
abri-los. Aplicavam um gás venenoso<br />
que asfixiava a to<strong>do</strong>s, ou então, alvejavam<br />
as pessoas quan<strong>do</strong> elas saíam desesperadas<br />
ou ator<strong>do</strong>adas em busca de<br />
ar fresco. O gás tóxico também foi aplica<strong>do</strong><br />
largamente nas redes de esgoto,<br />
que eram usadas, tanto para fuga <strong>do</strong>s<br />
mora<strong>do</strong>res, quanto para ações da ZOB.<br />
Numa dessas investidas aos porões,<br />
os nazistas encontraram o QG da ZOB<br />
e, antes de morrerem pelas mãos <strong>do</strong>s<br />
carrascos, boa parte <strong>do</strong>s dirigentes,<br />
que ali se encontravam, decidiu se suicidar.<br />
Para eles, era mais digno escolher<br />
como e onde morrer, <strong>do</strong> que ficar<br />
à mercê <strong>do</strong>s assassinos.<br />
Mesmo antes da queda <strong>do</strong> QG, os<br />
grupos combatentes remanescentes<br />
já estavam dispersos, sem munições,<br />
sem alimentos e com dificuldade até<br />
para conseguir água. Decidiram tentar<br />
escapar <strong>do</strong> gueto para se juntar à resistência<br />
polonesa no outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s muros.<br />
Algumas tentativas foram bem-<br />
-sucedidas, porém, em uma delas, um<br />
grupo de combatentes e sobreviventes<br />
foi intercepta<strong>do</strong> e fuzila<strong>do</strong>.<br />
A essa altura, toda a extensão <strong>do</strong><br />
gueto já estava sob escombros, restan<strong>do</strong><br />
apenas ruínas. Alguns combatentes<br />
53
da ZOB, que haviam sobrevivi<strong>do</strong> e<br />
estavam viven<strong>do</strong> nessas ruínas, realizaram<br />
algumas ações entre junho e<br />
julho, contra um batalhão de polícia<br />
deixa<strong>do</strong> lá por Stroop, mas a destruição<br />
já estava concluída. Ou quase. Após<br />
Stroop comunicar a seu superior que<br />
o último conjunto de edifícios havia<br />
si<strong>do</strong> destruí<strong>do</strong>, e que sua missão estava<br />
completa, Himmler incumbiu o general<br />
das Waffen-SS a explodir a grande<br />
Sinagoga da rua Tlomacki como símbolo<br />
da vitória. A construção era um<br />
monumento arquitetônico ergui<strong>do</strong> em<br />
1877 e sua explosão, nas palavras de<br />
um cronista polonês, “abalou toda Varsóvia”.<br />
Esse episódio, ocorri<strong>do</strong> em 16 de<br />
maio de 1943, marca o fim <strong>do</strong> Levante<br />
<strong>do</strong> Gueto de Varsóvia.<br />
O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia, no<br />
entanto, não foi a única revolta organizada<br />
pelos judeus e demais prisioneiros<br />
e habitantes de áreas confinadas.<br />
Pelo contrário, ela serviu de inspiração<br />
para que to<strong>do</strong>s aqueles que estavam à<br />
beira da morte pudessem se erguer e<br />
contra-atacar, apesar da precariedade<br />
de suas condições.<br />
No campo de extermínio de Treblinka,<br />
preparou-se uma rebelião. No<br />
dia 2 de agosto de 1943, operários da<br />
“fábrica de morte” 18 conseguiram entrar<br />
no depósito de armas e repassar,<br />
aos seus companheiros, 40 granadas<br />
de mão, 25 metralha<strong>do</strong>ras portáteis<br />
e algumas pistolas. Enquanto isso, o<br />
faxineiro molhava o chão com querosene,<br />
em vez de água. <strong>Em</strong> seguida, os<br />
rebeldes explodiram as granadas e, assim,<br />
o fogo e o tumulto rapidamente se<br />
alastraram.<br />
Um tremen<strong>do</strong> tiroteio teve início,<br />
enquanto a massa de prisioneiros corria<br />
para fugir. Cerca de 25 homens da<br />
SS e 60 fascistas ucranianos morreram<br />
Judeus tira<strong>do</strong>s de um bunker<br />
Domínio público<br />
54<br />
nesse episódio e, embora somente uma<br />
minoria de prisioneiros conseguisse<br />
escapar ou sobreviver às ações posteriores<br />
de recaptura, o ato deixou boa<br />
parte <strong>do</strong> campo destruída e a moral<br />
<strong>do</strong>s nazistas bastante abalada. Pouco<br />
tempo depois, o campo de extermínio<br />
de Treblinka foi desativa<strong>do</strong>.<br />
Ainda em 1943, houve um Levante<br />
no Gueto de Bialystok, cuja resistência<br />
durou mais de uma semana. E também<br />
uma revolta, seguida de tentativa de<br />
fuga em massa, no campo de extermínio<br />
de Sobibor. Já em outubro de 1944,<br />
houve a revolta <strong>do</strong> Sonderkomman<strong>do</strong> 19<br />
em Auschwitz. Após uma ordem para<br />
diminuir o contingente de trabalha<strong>do</strong>res<br />
desse setor, houve rumores de<br />
que o campo seria desativa<strong>do</strong> e, portanto,<br />
to<strong>do</strong> o pessoal restante seria<br />
elimina<strong>do</strong>. Assim, com apoio de algumas<br />
prisioneiras que conseguiram<br />
obter pólvora de um campo de trabalho<br />
força<strong>do</strong>, os revoltosos explodiram<br />
um crematório, mas não conseguiram<br />
fugir, foram to<strong>do</strong>s mortos. As quatro<br />
mulheres acusadas de repassar a pólvora<br />
foram enforcadas em 6 de janeiro<br />
de 1945, poucas semanas antes da<br />
libertação <strong>do</strong> campo...<br />
Reflexões finais<br />
O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia durou<br />
pouco mais de um mês. Os combatentes,<br />
mesmo subnutri<strong>do</strong>s, muito mal<br />
arma<strong>do</strong>s, com pouca ou nenhuma instrução<br />
militar e contan<strong>do</strong> apenas com<br />
suas próprias forças, conseguiram impor<br />
resistência e provocar baixas na<br />
maior máquina de guerra já construída<br />
na história até aquele momento.<br />
“Como se explica, pois, que os insurretos,<br />
atacan<strong>do</strong> tanques com garrafas de gasolina,<br />
puderam manter suas posições<br />
durante muitas semanas? Como explicar<br />
as derrotas <strong>do</strong>s assassinos nos primeiros<br />
dias e sua crescente inquietação em face<br />
<strong>do</strong>s acontecimentos?<br />
Encontramos a resposta certa a essas perguntas<br />
ao confrontarmos o moral das facções<br />
em luta. Os batalhões de Stroop eram<br />
um ban<strong>do</strong> de criminosos e facínoras. Konrad<br />
declarou durante o depoimento que as<br />
tropas quislings 20 se matavam entre si e<br />
arrancavam às mãos uns <strong>do</strong>s outros as<br />
coisas roubadas.<br />
Contra eles lutavam revolucionários,<br />
firme e profundamente convenci<strong>do</strong>s de<br />
lutarem por uma causa justa (...) Das ruínas<br />
de sua cidade, <strong>do</strong> túmulo de seu povo,<br />
viam os rebeldes surgir uma terra livre<br />
e justa, um mun<strong>do</strong> novo. A soldadesca<br />
de Stroop só tinha coragem no pátio ferroviário<br />
onde embarcavam condena<strong>do</strong>s<br />
indefesos; ante a bala <strong>do</strong>s revoltosos, fugiam<br />
covardemente. Os fascistas tinham<br />
apenas um objetivo: assassinar e saquear.<br />
Os rebeldes lutavam com coragem e<br />
abnegação, pois sabiam porque estavam<br />
lutan<strong>do</strong>. Tinham a certeza de não estarem<br />
sós na luta de morte, sabiam que o heroico<br />
exército soviético se aproximava a passos<br />
de gigante (...)” 21 .<br />
Sem dúvidas, a vitória da URSS na<br />
Batalha de Stalingra<strong>do</strong>, em janeiro<br />
de 1943, foi uma enorme injeção de<br />
ânimo para os militantes que se organizavam<br />
no gueto, mas os nazistas<br />
estavam executan<strong>do</strong> velozmente seus<br />
planos de extermínio. Não era possível<br />
esperar. Esperar significaria se resignar<br />
frente à morte. Por isso, mesmo<br />
nas condições precárias em que se<br />
encontravam, decidiram combater.<br />
As forças soviéticas somente chegariam<br />
às proximidades de Varsóvia<br />
no verão de 1944, e apenas tomariam<br />
a cidade em 17 de janeiro de 1945. Durante<br />
to<strong>do</strong> esse tempo, Stalin manteve<br />
o Exército Vermelho estaciona<strong>do</strong><br />
às margens <strong>do</strong> rio Vístula, enquanto<br />
os nazistas massacravam e destruíam<br />
a capital da Polônia. Quan<strong>do</strong> os<br />
soviéticos finalmente se moveram,<br />
Varsóvia já estava devastada. Cerca<br />
de 174.000 pessoas estavam na cidade<br />
naquele momento, menos de 6% da<br />
população de antes da guerra. Entre<br />
aqueles sobreviventes havia apenas<br />
11.500 judeus.<br />
“Na Polônia, não mais existia aparelho de<br />
Esta<strong>do</strong> ao fim da guerra. Por outro la<strong>do</strong>,<br />
existia um poderoso movimento de resistência.<br />
Os stalinistas, desacredita<strong>do</strong>s pelo<br />
Pacto germano-soviético de 1939, não<br />
controlavam este movimento. Ele estava<br />
em ligação com o governo polonês no exílio<br />
em Londres. Esse movimento foi particularmente<br />
posto à prova em 1944. <strong>Em</strong> 1º<br />
de março de 1944, antes que as tropas da
União Soviética entrassem em Varsóvia,<br />
ele organizou a insurreição da cidade. Ele<br />
constituiu um “Comitê de Libertação Nacional”,<br />
que assumiu o poder. Durante 63<br />
dias ele fez frente aos alemães. O exército<br />
da URSS estava acampan<strong>do</strong> <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> (rio) Vístula, e deixou os alemães arrasarem<br />
com a insurreição. Por seu la<strong>do</strong>,<br />
nem o imperialismo norte-americano<br />
nem o imperialismo inglês vieram em auxílio<br />
da insurreição de Varsóvia. Nem os<br />
imperialismos nem o Kremlin pretendiam<br />
que na Polônia o poder surgisse da insurreição<br />
popular. Para eles essa insurreição<br />
deveria ser esmagada” 22 .<br />
Já as guerrilhas que atuavam na<br />
Polônia, pouco puderam fazer para<br />
auxiliar os rebeldes <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia<br />
em 1943. O foco de suas ações<br />
eram as florestas, onde suas unidades<br />
podiam ocultar-se, e não as cidades,<br />
que estavam fortemente vigiadas e<br />
cheias de agentes da Gestapo e informantes.<br />
A Milícia Popular <strong>do</strong> PPR<br />
até empreendeu algumas ações para<br />
enviar armas e munições, mas os rebeldes<br />
queixavam-se <strong>do</strong> tipo de armamento<br />
que chegava a eles: basicamente,<br />
pistolas e granadas. A Milícia<br />
Popular também realizou uma ou outra<br />
ação de sabotagem contra a malha<br />
ferroviária, por onde se transportava<br />
as vítimas <strong>do</strong> genocídio, mas também<br />
sem grandes efeitos. Por fim, realizou<br />
ações de resgate de combatentes <strong>do</strong><br />
Gueto e os incorporou à guerrilha.<br />
Já o Exército Interno (AK), a guerrilha<br />
<strong>do</strong>s patriotas poloneses, apoiada<br />
desde Londres pelo governo polonês<br />
no exílio, também emprestou algumas<br />
armas e munições aos rebeldes<br />
e realizou algumas missões de resgate,<br />
mas mantinha uma relação mais<br />
próxima à ZZW e não à ZOB, devi<strong>do</strong><br />
ao apoio que a ZOB recebia <strong>do</strong>s comunistas.<br />
Além disso, no círculo dirigente<br />
polonês em Londres, havia parti<strong>do</strong>s<br />
e políticos com um histórico de antissemitismo<br />
na bagagem, mesmo que<br />
dissimula<strong>do</strong>. E esses eram céticos em<br />
relação à capacidade de luta <strong>do</strong>s judeus<br />
e de sua lealdade à Polônia. Por<br />
fim, oficialmente, o governo polonês<br />
no exílio, através de sua imprensa,<br />
exortou os cidadãos poloneses a<br />
apoiar os bravos judeus, mas a solidariedade,<br />
de fato, apareceu como uma<br />
iniciativa própria <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res<br />
poloneses, e não foi articulada pelas<br />
autoridades. Vários cidadãos comuns<br />
se arriscaram fornecen<strong>do</strong> abrigo e esconderijo<br />
para milhares de judeus que<br />
conseguiram escapar <strong>do</strong> Gueto. Lembran<strong>do</strong><br />
que era proibi<strong>do</strong> pelo governo<br />
local prestar qualquer tipo de ajuda<br />
“aos criminosos judeus”, sob pena de<br />
prisão e morte.<br />
A título de reflexão, é preciso também<br />
ressaltar como o sionismo li<strong>do</strong>u<br />
com o Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia e<br />
com o Holocausto da população judaica<br />
após a II Guerra. Tratou de glorificar os<br />
jovens sionistas que estavam na liderança<br />
e nas fileiras da ZOB e da ZZW<br />
como mártires de um povo sem terra e<br />
reforçou sua campanha pelo estabelecimento<br />
de uma pátria para os judeus,<br />
na Palestina, como forma de reparação<br />
histórica. O ideal defendi<strong>do</strong> pelo Bund,<br />
de respeito e integração <strong>do</strong>s judeus nos<br />
países da Europa onde eles viviam, perdeu<br />
base social e certo senti<strong>do</strong> real, após<br />
as feridas, ainda abertas, provocadas<br />
pelo extermínio e a onda antissemita<br />
disseminada pelos nazistas.<br />
Nakba! A grande tragédia!<br />
Porém, a colonização judaica da<br />
Palestina e a tomada da maioria das<br />
terras <strong>do</strong>s palestinos árabes (95% da<br />
população) que aliás, conviviam fraternalmente<br />
com uma minoria judaica<br />
(cerca de 5%) - e a criação <strong>do</strong> reacionário<br />
e religioso Esta<strong>do</strong> de Israel, somente<br />
se concretizou devi<strong>do</strong> aos esforços<br />
combina<strong>do</strong>s da burguesia sionista e<br />
<strong>do</strong> imperialismo estadunidense, com o<br />
aval da URSS. Somente com a aprovação<br />
de Stalin para o plano de partilha<br />
da Palestina, foi possível avançar as<br />
bases para a fundação de Israel. Aliás,<br />
a URSS reconheceu diplomaticamente<br />
o Esta<strong>do</strong> de Israel em 17 de maio de<br />
1948, três dias após a declaração de<br />
independência. Foi o primeiro país <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> a fazer isso, antes mesmo <strong>do</strong>s<br />
EUA. Além disso, o bloco soviético enviou<br />
armas para os sionistas, que foram<br />
usadas para promover a Nakba! <strong>23</strong><br />
Stalin, mais uma vez, rompia com o<br />
internacionalismo proletário e com a<br />
perspectiva comunista para a solução<br />
<strong>do</strong> problema judaico.<br />
E assim, longe de estabelecer um<br />
lar onde os judeus pudessem viver em<br />
paz, a criação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Israel os<br />
colocou em guerra permanente contra<br />
a povo árabe e serve, desde o início,<br />
apenas como um enclave político<br />
e militar diretamente liga<strong>do</strong> aos EUA,<br />
no Oriente Médio.<br />
Aliás, antes mesmo da II Guerra<br />
Mundial, o líder revolucionário Leon<br />
Trotsky, já alertava que o sionismo não<br />
era uma verdadeira saída e adicionava<br />
importantes reflexões sobre a questão<br />
judaica. <strong>Em</strong> entrevista para o jornal<br />
estadunidense “Luta de Classes”, em<br />
fevereiro de 1934, ele disse:<br />
“Tanto o Esta<strong>do</strong> fascista na Alemanha,<br />
quanto o conflito judaico-árabe trazem<br />
novas e muito claras verificações <strong>do</strong>s<br />
princípios de que a questão judaica não<br />
pode ser resolvida dentro da estrutura <strong>do</strong><br />
capitalismo. Não sei se o judaísmo será reconstruí<strong>do</strong><br />
como nação. No entanto, não<br />
pode haver dúvida de que as condições<br />
materiais para a existência <strong>do</strong> judaísmo<br />
como nação independente só poderiam ser<br />
alcançadas pela revolução proletária. Não<br />
existe em nosso planeta a ideia de que um<br />
tem mais direito à terra <strong>do</strong> que outro”.<br />
E, em entrevista ao jornal Der Weg<br />
e à Agência Telegráfica Judaica em<br />
janeiro de 1937, afirmou:<br />
“Os fatos de cada dia nos mostram que o<br />
sionismo é incapaz de resolver a questão<br />
judaica. O conflito entre árabes e judeus<br />
na Palestina adquire um caráter cada vez<br />
mais trágico e ameaça<strong>do</strong>r. Eu não acredito<br />
de forma alguma que a questão judaica<br />
possa ser resolvida nos quadros <strong>do</strong><br />
capitalismo decadente e sob o controle <strong>do</strong><br />
imperialismo britânico. (...)<br />
A questão judaica, repito, está indissoluvelmente<br />
ligada à emancipação total da<br />
humanidade. Tu<strong>do</strong> o que se faz de diferente<br />
neste <strong>do</strong>mínio só pode ser um paliativo<br />
e às vezes mesmo uma faca de <strong>do</strong>is gumes,<br />
como mostra o exemplo da Palestina”.<br />
Conclusão<br />
Por fim, podemos afirmar que o<br />
Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia foi um<br />
ato proletário heroico, com grandes<br />
significa<strong>do</strong>s. <strong>Em</strong> 1942, a comunidade<br />
judaica foi condenada pelo nazismo<br />
à aniquilação. Sob o III Reich, o antissemitismo<br />
se materializou em violentas<br />
ondas de perseguição, expulsão e<br />
expropriação. Os judeus perderam<br />
completamente sua condição de cidadãos,<br />
tornaram-se párias sociais,<br />
foram segrega<strong>do</strong>s e submeti<strong>do</strong>s ao<br />
confinamento nos guetos e campos<br />
de concentração.<br />
Nessas condições, esperava-se que<br />
os judeus morressem por inanição,<br />
<strong>do</strong>enças ou devi<strong>do</strong> ao trabalho força<strong>do</strong><br />
e às execuções sumárias. Mas, os<br />
nazistas decidiram acelerar seus planos<br />
para uma “solução final” à questão<br />
judaica e elaboraram uma gigantesca<br />
operação para transferir e assassinar<br />
seres humanos em escala industrial.<br />
Assim que os campos de extermínio<br />
começaram a funcionar, os trabalha<strong>do</strong>res<br />
e jovens judeus mais conscientes<br />
perceberam que não havia saída,<br />
que não havia esperança de um futuro<br />
para depois da guerra.<br />
Portanto, já que desapareceriam da<br />
Europa, que ao menos fossem lembra<strong>do</strong>s<br />
pelas gerações futuras de judeus e<br />
não-judeus como aqueles não se resignaram.<br />
E assim, uma vanguarda majoritariamente<br />
jovem começou a propagar<br />
entre a população sobrevivente<br />
a ideia de que não aceitariam mais serem<br />
leva<strong>do</strong>s ao abate sem protestar. E<br />
55
uscaram se organizar para enfrentar<br />
seus carrascos. <strong>Em</strong> suma, se era para<br />
morrer, que fosse lutan<strong>do</strong>. E o Levante<br />
foi a maior prova de sua determinação.<br />
E hoje, 80 anos depois, buscamos<br />
homenagear os combatentes <strong>do</strong> Gueto<br />
de Varsóvia, que deram suas vidas<br />
numa luta extremamente desigual<br />
contra o regime nazista. Mas, a melhor<br />
homenagem que podemos render<br />
a esses companheiros é impedir que os<br />
crimes <strong>do</strong> nazismo sejam esqueci<strong>do</strong>s.<br />
Por mais <strong>do</strong>loroso que seja remoer<br />
esse passa<strong>do</strong>, é preciso lembrar que<br />
mais de 6 milhões de judeus foram<br />
assassina<strong>do</strong>s covardemente pelo regime<br />
de Hitler. E compreender que o<br />
imperialismo em crise é capaz de engendrar<br />
guerras e outras monstruosidades,<br />
como o fascismo e o nazismo,<br />
para continuar existin<strong>do</strong>, a despeito da<br />
vida de bilhões de seres humanos. <strong>Em</strong><br />
sua luta contra o proletaria<strong>do</strong> revolucionário,<br />
o imperialismo utilizou o<br />
nazifascismo como última arma para<br />
se proteger e, assim, desencadeou a II<br />
Guerra Mundial com seu espetáculo de<br />
mortes e destruição. Portanto, a maior<br />
homenagem que podemos prestar a<br />
esses valorosos combatentes <strong>do</strong> Gueto<br />
de Varsóvia, é continuar a luta para pôr<br />
fim ao capitalismo e abrir caminho<br />
para uma nova sociedade, sem explora<strong>do</strong>s<br />
e sem explora<strong>do</strong>res, onde to<strong>do</strong>s<br />
possam viver em paz, uma sociedade<br />
comunista em escala internacional.<br />
Monumento aos heróis <strong>do</strong> gueto de Varsóvia - Varsóvia, Polônia<br />
Notas e Referências<br />
1<br />
Manifesto de Alarme da IV Internacional (maio/1940).<br />
2<br />
<strong>Em</strong> ídiche ou em russo, a palavra pogrom possui muitos<br />
significa<strong>do</strong>s, mas é frequentemente utilizada para descrever um<br />
ataque massivo, com o apoio ou a tolerância das autoridades, envolven<strong>do</strong><br />
violência contra um determina<strong>do</strong> grupo de pessoas e seu<br />
mo<strong>do</strong> de vida, como suas residências, negócios e centros religiosos.<br />
A palavra ficou conhecida internacionalmente após ondas de ataques<br />
organiza<strong>do</strong>s (ou apoia<strong>do</strong>s) por forças policiais <strong>do</strong> governo da<br />
Rússia czarista contra os judeus entre 1881 e 1884. Os pogroms<br />
se repetiram ao longo <strong>do</strong>s anos por toda a extensão <strong>do</strong> antigo império<br />
russo até a revolução de 1917. Porém, durante a guerra civil,<br />
o Exército Branco manteve a prática, como forma de represália a<br />
populações que eram acusadas de apoiar os bolcheviques, como os<br />
judeus.<br />
3<br />
Livro: “Quem escreverá nossa história? – os arquivos secretos<br />
<strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Samuel D. Kassow<br />
4<br />
Livro: “O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Bernard Mark<br />
5<br />
Livro: “O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Bernard Mark<br />
6<br />
Livro: “O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Bernard Mark<br />
56<br />
7<br />
Livro: “Resistência – o Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia, de Israel<br />
Gutman<br />
8<br />
Livro: “Quem escreverá nossa história? – os arquivos secretos<br />
<strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Samuel D. Kassow<br />
9<br />
Livro: “O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Bernard Mark<br />
10<br />
Livro: “Resistência – o Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia, de<br />
Israel Gutman<br />
11<br />
Livro: “O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Bernard Mark<br />
12<br />
<strong>Em</strong> ídiche, a palavra utilizada é “Shoah”. Optamos por manter<br />
a palavra Holocausto em virtude <strong>do</strong> aspecto histórico que<br />
carrega no Brasil.<br />
13<br />
Livro: “Resistência – o Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia, de Israel<br />
Gutman<br />
14<br />
Livro: “Resistência – o Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia, de Israel<br />
Gutman<br />
15<br />
O AK era uma milícia organizada pelo governo polonês no<br />
exílio em Londres, com o apoio portanto <strong>do</strong> imperialismo inglês e<br />
<strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s democráticos e liberais poloneses e forma<strong>do</strong> com os<br />
restos <strong>do</strong> antigo Exército <strong>do</strong> país.<br />
16<br />
Livro: “O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Bernard Mark<br />
17<br />
Livro: “O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Bernard Mark<br />
18<br />
Os nazistas tinham como méto<strong>do</strong>, designar não-alemães<br />
para fazer to<strong>do</strong> tipo de trabalho “sujo”. Por exemplo, nos campos<br />
de extermínio, eles recrutavam trabalha<strong>do</strong>res, entre os prisioneiros<br />
mais jovens e saudáveis, para executar tarefas auxiliares na<br />
operação das câmaras de gás e crematórios.<br />
19<br />
Sonderkomman<strong>do</strong>: era a denominação dada para a área<br />
de extermínio; onde se localizavam as câmaras de gás e os<br />
crematórios.<br />
20<br />
Tropas auxiliares da SS e da Wehrmacht, formada por fascistas<br />
ucranianos, letões, poloneses e outras nacionalidades<br />
21<br />
Livro: “O Levante <strong>do</strong> Gueto de Varsóvia”, de Bernard Mark<br />
22<br />
Livro: “A Revolução Proletária e os Esta<strong>do</strong>s Operários Burocráticos”,<br />
de Stéphane Just<br />
<strong>23</strong><br />
Nakba é uma palavra árabe que significa “catástrofe” ou<br />
“desastre” e é usada para designar a expulsão em massa <strong>do</strong>s palestinos<br />
de suas terras e lares em 1948, promovida pelas forças<br />
armadas <strong>do</strong> recém-cria<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Israel.
É ISTO UM HOMEM?<br />
Vocês que vivem seguros<br />
em suas cálidas casas,<br />
vocês que, voltan<strong>do</strong> à noite,<br />
encontram comida quente e rostos amigos,<br />
pensem bem se isto é um homem<br />
que trabalha no meio <strong>do</strong> barro,<br />
que não conhece paz,<br />
que luta por um pedaço de pão,<br />
que morre por um sim ou por um não.<br />
Pensem bem se isto é uma mulher,<br />
sem cabelos e sem nome,<br />
sem mais força para lembrar,<br />
vazios os olhos, frio o ventre,<br />
como um sapo no inverno.<br />
Pensem que isto aconteceu:<br />
eu lhes man<strong>do</strong> estas palavras.<br />
Gravem-na em seus corações,<br />
estan<strong>do</strong> em casa, andan<strong>do</strong> na rua,<br />
ao deitar, ao levantar;<br />
repitam-nas a seus filhos.<br />
Ou, senão, desmorone-se a sua casa,<br />
a <strong>do</strong>ença os torne inváli<strong>do</strong>s,<br />
os seus filhos virem o rosto para não vê-los.<br />
Tradução: Luigi Del Re. Retira<strong>do</strong> <strong>do</strong> site: algumapoesia.com.br, 05/10/<strong>23</strong><br />
Primo Levi