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OGLOBO ● PROSA &VERSO ● PÁGINA 3-Edição: 16/01/2010 -Impresso: 13/01/2010 —22: 40 h AZUL MAGENTA AMARELO PRETO<br />

Sábado, 16 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2010 O GLOBO<br />

UMA CONTROVÉRSIA IMPERIAL<br />

ENTREVISTA<br />

Walter Mignolo<br />

PROSA &VERSO ● 3<br />

Desafios para um continente <strong>de</strong> muitas faces<br />

Autor <strong>de</strong> ‘A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> América Latina’ diz que povos indígenas precisam compartilhar protagonismo na região<br />

No momento em que os<br />

países hispanoamericanos<br />

celebram o bicente-<br />

nário do fim do colonialismo, o pesquisador argentino<br />

Walter Mignolo argumenta que o domínio ibérico <strong>de</strong>i-<br />

Guilherme Freitas<br />

O GLOBO: Em “A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> América<br />

Latina”, osenhor fala sobre<br />

os dois lados da “revolução colonial”:<br />

o lado dos agentes ibéricos<br />

e o dos indígenas. Quais são as<br />

diferenças entre eles?<br />

WALTER MIGNOLO: A maneira<br />

<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

como contamos ahistória. Se a<br />

contamos <strong>de</strong> forma linear, no<br />

horizonte da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, as<br />

in<strong>de</strong>pendências “superaram” e<br />

puseram fim ao colonialismo luso-hispânico<br />

ao longo do século<br />

XIX. Mas se a contamos <strong>de</strong> uma<br />

perspectiva históricoestrutural,<br />

então as in<strong>de</strong>pendências apenas<br />

rearticulam acolonialida<strong>de</strong>: a<br />

partir das in<strong>de</strong>pendências, são<br />

os criollos (<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> europeus)<br />

que mandam e fazem o<br />

mesmo que faziam os governos<br />

monárquicos imperiais. Os mecanismos<br />

permanecem os mesmos:<br />

a colonialida<strong>de</strong>, isto é, a estrutura<br />

ou matriz colonial <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />

gestada apartir do século<br />

XVI, seguiu operando. Da perspectiva<br />

europeia, a revolução<br />

colonial marcou um avanço na<br />

história que eles mesmos se<br />

contavam. Por sua vez, os aymaras<br />

e quechuas (indígenas da região<br />

andina) têm um termo, “pachakuti”,<br />

que significa uma violenta<br />

reviravolta no tempo eno<br />

espaço, ou “o mundo ao revés”.<br />

Isso foi o que a revolução colonial<br />

significou para eles: o caos,<br />

o mundo ao avesso. Para os habitantes<br />

<strong>de</strong> Tawantinsuyu,<br />

Anahuac e Abya Yala, essa não<br />

era sua história. O conto da cristianização<br />

edacivilização <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nou<br />

seu mundo, que agora,<br />

no século XXI, está em processo<br />

<strong>de</strong> reor<strong>de</strong>nação, sobretudo<br />

na Bolívia e no Equador, mas<br />

também em Chiapas, no sul do<br />

México, e na Guatemala.<br />

● O que são esses processos<br />

<strong>de</strong> reor<strong>de</strong>nação?<br />

MIGNOLO: Nestes países há<br />

um protagonismo indígena notável.<br />

Na Bolívia, há um presi<strong>de</strong>nte<br />

aymara. No Equador, as nações<br />

indígenas tiveram uma forte intervenção<br />

na nova constituição<br />

e conseguiram inserir artigos<br />

baseados em sua cosmovisão.<br />

Por exemplo: avisão indígena<br />

<strong>de</strong> “Pachamama”, termo traduzido<br />

como “Mãe Terra”, mas que<br />

po<strong>de</strong> ser interpretado também<br />

como “Pacha” (espaço/tempo) e<br />

“Mama” (vida), aparece na constituição<br />

sob a rubrica “direitos<br />

da natureza”. E aparece uma no-<br />

va rubrica chamada “o bom viver”<br />

(Sumak Kawsay), que se<br />

distingue do “viver melhor” oci<strong>de</strong>ntal,<br />

<strong>de</strong> sentido <strong>de</strong>senvolvimentista.<br />

Em Chiapas, arevolução<br />

teórica do zapatismo e sua<br />

continuida<strong>de</strong> com a fundação<br />

<strong>de</strong> Los Caracoles (Juntas <strong>de</strong><br />

Bom Governo), inci<strong>de</strong>m não só<br />

nos estados mexicanos <strong>de</strong> Oaxaca<br />

e Guerrero, mas também no<br />

sul da Guatemala.<br />

M. Á. Bastenier<br />

● Os 200 anos das primeiras<br />

<strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência<br />

latino-americanas espocam<br />

em 2010, com a Espanha<br />

como hóspe<strong>de</strong> <strong>de</strong> honra no<br />

banco dos réus. Os propósitos<br />

que animam os governantes<br />

latino-americanos nas comemorações<br />

são tão variados<br />

como sua procedência. A<br />

Colômbia do presi<strong>de</strong>nte Uribe,<br />

com muitos criollos no<br />

po<strong>de</strong>r, adoraria celebrações<br />

bucólicas sem pecadores<br />

nem carrascos, mas alguns<br />

fanfarrões <strong>de</strong> esquerda já se<br />

encarregaram <strong>de</strong> falar em genocídio;<br />

o mesmo se po<strong>de</strong> dizer<br />

do México, cuja classe dirigente<br />

émais hispânica que<br />

o sepulcro <strong>de</strong> El Cid, e on<strong>de</strong> a<br />

mestiçagem do país e a con-<br />

xou como herança uma “matriz <strong>de</strong> colonialida<strong>de</strong>” (“a<br />

lógica <strong>de</strong> repressão, opressão, <strong>de</strong>spossessão, racismo”)<br />

que opera na região até hoje. Autor <strong>de</strong> “A i<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong> América Latina” (inédito no Brasil), no qual <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />

que o termo é uma construção i<strong>de</strong>ológica que não<br />

● É só <strong>de</strong>pois das in<strong>de</strong>pendências<br />

que aparece o termo<br />

“América Latina”, <strong>de</strong> origem<br />

francesa. Como ele surge?<br />

MIGNOLO: Até cerca <strong>de</strong> 1850, o<br />

termo usado pelos criollos é<br />

“América”. Todos se sentiam<br />

americanos. “Latina” e“Latinida<strong>de</strong>”<br />

emergem a partir <strong>de</strong> 1850<br />

e são uma consequência do Tratado<br />

Guadalupe-Hidalgo, <strong>de</strong><br />

1848, mediante o qual os Esta-<br />

AFP/Aizar Ral<strong>de</strong>s/16-07-2009<br />

dos Unidos se apropriaram <strong>de</strong><br />

enormes extensões <strong>de</strong> terra que<br />

pertenciam ao México. Os franceses,<br />

que planejavam assumir<br />

a li<strong>de</strong>rança dos países “latinos”<br />

do sul da Europa (Itália, Espanha,<br />

Portugal), passaram a empregar<br />

o termo para distinguirse<br />

e confrontar-se com Inglaterra<br />

eAlemanha. Eoexportaram<br />

para as Américas, aliando-se aos<br />

criollos “in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntistas” para<br />

Pirotecnias do Bicentenário<br />

veniente lembrança <strong>de</strong> Hernán<br />

Cortés criarão tensões<br />

em todo o espectro político.<br />

E a Argentina, suposta Europa<br />

do Cone Sul, governada<br />

pela dinastia Fernán<strong>de</strong>z —<br />

ou seria Kirchner? — dançará<br />

qualquer música para sobreviver<br />

a uma socieda<strong>de</strong> cada<br />

vez mais indócil em sua<br />

proliferação <strong>de</strong> peronismos.<br />

O bolivariano Hugo Chávez<br />

concebe as celebrações<br />

como um aquecimento para<br />

as eleições legislativas <strong>de</strong> setembro,<br />

nas quais, segundo<br />

pesquisas, tem motivos para<br />

se preocupar. Já ocorreu algo<br />

parecido no início do século<br />

XX, quando oditador Juan<br />

Gómez se valeu do primeiro<br />

centenário para se blindar <strong>de</strong><br />

nacionalismo, mas hoje a Venezuela,<br />

apesar <strong>de</strong> ter instituições<br />

<strong>de</strong> baixa octanagem,<br />

não é uma ditadura.<br />

A gran<strong>de</strong> crucificação vem<br />

da Bolívia. O presi<strong>de</strong>nte Evo<br />

Morales, índio aymara, dá o toque<br />

final: “Não houve colonização,<br />

e sim invasão para pilhar<br />

nossos recursos”, disse. Se é<br />

para festejar, consi<strong>de</strong>ra muito<br />

mais legítimas algumas revoltas<br />

indígenas do século XVIII<br />

do que o torpor com que La<br />

Paz enfocou a in<strong>de</strong>pendência,<br />

mais preocupada que estava<br />

em se livrar <strong>de</strong> Buenos Aires<br />

do que <strong>de</strong> Madrid, razão pela<br />

qual não houve grito <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência<br />

até 1825.<br />

abarca a diversida<strong>de</strong> social e cultural da região, ele<br />

afirma que é preciso restituir um papel relevante às<br />

populações indígenas do continente: “A li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong>scolonial<br />

tem que ser compartilhada”, diz Mignolo, professor<br />

da Universida<strong>de</strong> Duke (EUA).<br />

INDÍGENAS DO POVO AYMARA<br />

(à esquerda) durante as<br />

celebrações dos 200 anos<br />

da in<strong>de</strong>pendência da Bolívia, em<br />

2009: colonização espanhola foi<br />

uma ruptura no modo <strong>de</strong> vida das<br />

populações nativas do continente,<br />

que começam a ensaiar novas<br />

formas <strong>de</strong> articulação no<br />

século XXI, argumenta o<br />

pesquisador argentino Walter<br />

Mignolo (no alto)<br />

Divulgação<br />

combater a expansão dos Estados<br />

Unidos em direção ao sul. Já<br />

se vê como opera a colonialida<strong>de</strong>:<br />

as in<strong>de</strong>pendências forjam<br />

outra forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência —<br />

da Inglaterra na economia eda<br />

França na política enaeducação.<br />

É preciso distinguir “colonialismo”<br />

(espanhol, inglês, português,<br />

francês) <strong>de</strong> “colonialida<strong>de</strong>”.<br />

Colonialismo se refere a<br />

momentos históricos específi-<br />

O que será da Espanha no<br />

papel <strong>de</strong> acompanhante? Celebrar,<br />

financiar enão tomar<br />

qualquer iniciativa sem consultar<br />

México, Colômbia, Argentina,<br />

Peru e Chile; dialogar<br />

com Bolívia e Venezuela, pois<br />

com o Equador <strong>de</strong> Rafael Correa,<br />

apesar <strong>de</strong> seu bolivarianismo,<br />

não há problema. E explorar<br />

como po<strong>de</strong> reconhecer<br />

sua responsabilida<strong>de</strong>,<br />

mas só em conjunto com o<br />

criollo que foi braço executor<br />

<strong>de</strong> tanto abuso e crime contra<br />

o indígena e o escravo na colônia<br />

e na in<strong>de</strong>pendência,<br />

pois os pecados do passado<br />

não são esquecidos e a Espanha<br />

precisa quitar suas dívidas<br />

e começar <strong>de</strong> novo.<br />

M. Á. BASTENIER é colunista do<br />

El País.<br />

cos, enquanto colonialida<strong>de</strong> éa<br />

lógica <strong>de</strong> repressão, opressão,<br />

<strong>de</strong>spossessão, racismo.<br />

● Quais são os problemas do<br />

termo “América Latina”?<br />

MIGNOLO: “Latinida<strong>de</strong>” satisfaz<br />

as populações brancas, <strong>de</strong><br />

origem europeia. Por que as nações<br />

indígenas teriam que se<br />

alegar latinos/as? O mesmo com<br />

as nações africanas. O que estamos<br />

vendo nos bicentenários é<br />

que a formação das Américas,<br />

incluindo a do Norte, é um complexo<br />

heterogêneo, formado pela<br />

diversida<strong>de</strong> das nações indígenas,<br />

pela diversida<strong>de</strong> das nações<br />

africanas e pela diversida<strong>de</strong><br />

das nações europeias. Estas<br />

últimas controlaram o saber e tiveram<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão. Os bicentenários<br />

lembram a reorganização<br />

do po<strong>de</strong>r após as in<strong>de</strong>pendências<br />

do século XIX, que<br />

estabeleceram uma espécie <strong>de</strong><br />

“colonialismo interno” nos países<br />

da América. Mas, ao contrário<br />

daquela época, os processos<br />

<strong>de</strong> hoje são <strong>de</strong> <strong>de</strong>scolonização,<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sprendimento da colonialida<strong>de</strong><br />

do po<strong>de</strong>r.<br />

● O que ainda precisa ser feito<br />

para <strong>de</strong>sarmar essa lógica da<br />

colonialida<strong>de</strong>?<br />

MIGNOLO: Ainda há muito por<br />

fazer. Os últimos duzentos anos<br />

foram dominados pela lógica da<br />

colonialida<strong>de</strong> controlada pelos<br />

criollos e imigrantes assimilados<br />

ao espírito criollo. Há um<br />

passado <strong>de</strong> turbulência que<br />

não é parte da história oficial,<br />

mas é parte da história e do espírito<br />

<strong>de</strong>scolonial. Sem ir muito<br />

longe, digamos que Tupac Amaru<br />

e Tupac Catari (lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong> rebeliões<br />

indígenas no Peru ena<br />

Bolívia, respectivamente), até<br />

1780, e a Revolução Haitiana,<br />

que culmina em 1804 mas começa<br />

por volta <strong>de</strong> 1790, são indicadores<br />

muito claros <strong>de</strong> processos<br />

<strong>de</strong>scoloniais. A teoria da<br />

<strong>de</strong>pendência e ateologia da libertação<br />

foram momentos <strong>de</strong><br />

dissidência <strong>de</strong>scolonial no seio<br />

da população branca <strong>de</strong> origem<br />

europeia (criollos e imigrantes).<br />

A influência <strong>de</strong> Frantz Fanon e<br />

Aimé Césaire, esfumada durante<br />

a Guerra Fria e o auge do pósestruturalismo,<br />

está retornando<br />

hoje em paralelo aos processos<br />

indígenas <strong>de</strong> <strong>de</strong>scolonização.<br />

Isso é oque já está sendo<br />

feito, e a li<strong>de</strong>rança já não é nossa,<br />

dos(as) brancos(as). A li<strong>de</strong>rança<br />

<strong>de</strong>scolonial tem que ser<br />

compartilhada. ■

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