Alv<strong>en</strong>aria <strong>de</strong> terra *Célia Maria Martins Neves, <strong>en</strong>gª.“I<strong>de</strong> pois agora trabalhai: palha porém não sevos dará, contudo dareis a conta dos tijolos”(Éxodo 5, 18)Notas históricasA prática da alv<strong>en</strong>aria remonta a épocas em que o homem s<strong>en</strong>tiu a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construir seu abrigo, ao invés<strong>de</strong> usar ap<strong>en</strong>as os recursos oferecidos pela Natureza. Blocos <strong>de</strong> pedras, montados e alinhados, constituíram umadas formas mais primitivas para a execução <strong>de</strong> muros e pare<strong>de</strong>s. Em locais on<strong>de</strong> era difícil obter pedras, os murosforam erguidos com emprego dos materiais disponíveis, principalm<strong>en</strong>te a terra na forma <strong>de</strong> blocos preparados comuma mistura <strong>de</strong> terra e água e secados ao sol: o adobe.Existem evidências que seu uso data do final do Período Neolítico. No Antigo Testam<strong>en</strong>to, muitos séculos antes<strong>de</strong> Cristo, <strong>en</strong>contram-se referências sobre a fabricação <strong>de</strong> adobes, com os quais os egípcios levantaramprovavelm<strong>en</strong>te muito dos seus edifícios e monum<strong>en</strong>tos. Ainda no Egito, adobes foram usados pela primeira vezpara construção <strong>de</strong> arcos e domos.A técnica <strong>de</strong> fabricação variou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os adobes moldados <strong>de</strong> uma mistura plástica <strong>de</strong> terra e água, adobesmelhorados com asfalto natural, como <strong>en</strong>contrados em construções na Babilônia e Assíria, aos adobes com palhae bambu, como no caso do Egito.A arquitetura <strong>de</strong> terra tem mostrado sua versatilida<strong>de</strong> através dos séculos. Em todos os recantos do mundo, elasempre esteve pres<strong>en</strong>te, passando pelas <strong>de</strong>vidas adaptações técnicas e culturais para at<strong>en</strong><strong>de</strong>r às necessida<strong>de</strong>sdo homem e <strong>de</strong> seu ambi<strong>en</strong>te construído. Os antigos souberam bem explorar a terra como material <strong>de</strong> construção,melhorando suas proprieda<strong>de</strong>s com adição <strong>de</strong> outros materiais e proteg<strong>en</strong>do as superfícies exteriores da ação <strong>de</strong>ag<strong>en</strong>tes <strong>de</strong>gradantes. Várias <strong>de</strong> suas obras alcançaram nossos dias <strong>de</strong>safiando séculos <strong>de</strong> ação abrasiva <strong>de</strong>v<strong>en</strong>tos e chuvas.0 conhecim<strong>en</strong>to e habilida<strong>de</strong> necessários para construir com terra foram-se transmitindo gradativam<strong>en</strong>te para outrasregiões. Com a expansão do Império Romano, as técnicas construtivas alcançaram parte da França, Alemanha eP<strong>en</strong>ínsula Ibérica. Cytrin afirma em seu livro Construcción con <strong>Tierra</strong> que publicações <strong>de</strong> 1870 <strong>de</strong>screvem váriasestruturas <strong>de</strong> terra para fortificações na área <strong>de</strong> Val<strong>en</strong>cia, na Espanha, construídas há dois mil anos.Nas Américas, os métodos <strong>de</strong> construção com terra existiam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> épocas remotas, em forma totalm<strong>en</strong>tein<strong>de</strong>p<strong>en</strong><strong>de</strong>nte. As ruínas <strong>en</strong>contradas comprovam que a construção com terra era praticada em gran<strong>de</strong> escalanesta parte do mundo, especialm<strong>en</strong>te no Peru, México e no Sudoeste dos Estados Unidos, regiões maisfavorecidas por suas características <strong>de</strong> clima qu<strong>en</strong>te e seco.0 Brasil, on<strong>de</strong> as construções com terra constituem a gran<strong>de</strong> maioria da arquitetura colonial, teve o processoconstrutivo trazido seguram<strong>en</strong>te pelos portugueses e africanos, uma vez que não se tem notícia que o índio tivesseempregado a terra como material <strong>de</strong> construção.Com o <strong>de</strong>s<strong>en</strong>volvim<strong>en</strong>to das facilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> transporte, o surgim<strong>en</strong>to da produção industrial <strong>de</strong> outros materiais ea abolição da mão-<strong>de</strong>-obra escrava, a terra foi marginalizada nas gran<strong>de</strong>s obras públicas e privadas, on<strong>de</strong>começaram a concorrer o gosto estético ditado pelos novos materiais. No <strong>en</strong>tanto, <strong>en</strong>tre as populações m<strong>en</strong>os* Texto revisado pela autora em junho <strong>de</strong> 200348
favorecidas, o uso da terra crua sobreviveu justam<strong>en</strong>te <strong>de</strong>vido aos custos elevados da construção com outrosmateriais.Atualm<strong>en</strong>te o uso da terra como material <strong>de</strong> construção po<strong>de</strong> ser distinguido em dois níveis: por um lado, asobrevivência dos sistemas construtivos mais primitivos gerados pela carência em que vivem algumas populações;por outro lado, pelas investigações e inc<strong>en</strong>tivos <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> pesquisas para o uso <strong>de</strong> técnicas innovadorase coer<strong>en</strong>tes, caracterizadas pela simplicida<strong>de</strong>, eficácia e baixo custo.Introdução técnica: do adobo ao blocoA terra po<strong>de</strong> ser usada basicam<strong>en</strong>te <strong>de</strong> dois modos: a terra embebida em água, constituindo uma massa <strong>de</strong>consistência plástica, própria para fabricação <strong>de</strong> adobes, ou uma mistura úmida <strong>de</strong> terra e água, compactada oupr<strong>en</strong>sada, própria para fabricação <strong>de</strong> tijolos e blocos.O adobe é fabricado por colocação manual da massa plástica no interior do mol<strong>de</strong>, proce<strong>de</strong>ndo-se a imediata<strong>de</strong>smoldagem no local <strong>de</strong> secagem. Em geral, a mistura é amassada com os pés. Empiricam<strong>en</strong>te, a impermeabilida<strong>de</strong>do adobe foi melhorada com a adição <strong>de</strong> asfalto natural à mistura <strong>de</strong> terra e água, a retração foi reduzida com aadição <strong>de</strong> palhas, difer<strong>en</strong>tes tipos <strong>de</strong> terra foram misturadas para obt<strong>en</strong>ção <strong>de</strong> um solo granulometricam<strong>en</strong>te maisapropriado e, a mistura foi compactada e pr<strong>en</strong>sada em mol<strong>de</strong>s para a produção <strong>de</strong> blocos mais resist<strong>en</strong>tes.Das inquietantes e saudáveis buscas para a melhoria do adobe e <strong>de</strong> seu processo <strong>de</strong> fabricação, resultaram osblocos compactados e blocos pr<strong>en</strong>sados nos quais se utilizam uma mistura úmida <strong>de</strong> terra e um esforço mecânicopara seu a<strong>de</strong>nsam<strong>en</strong>to em mol<strong>de</strong>s, geralm<strong>en</strong>te metálico. A quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> água, bastante inferior à quantida<strong>de</strong>usada na fabricação do adobe, diminui significativam<strong>en</strong>te os efeitos <strong>de</strong> retração por secagem e a porosida<strong>de</strong>,caracterizando-se um produto mais durável e mais resist<strong>en</strong>te mecanicam<strong>en</strong>te. Enquanto que os blocos compactadossão a<strong>de</strong>nsados manualm<strong>en</strong>te, com vários golpes <strong>de</strong> soquete, os blocos pr<strong>en</strong>sados são a<strong>de</strong>nsados <strong>de</strong> uma só vezcom uma força aplicada por meio <strong>de</strong> um mecanismo que promove pressão <strong>de</strong> a<strong>de</strong>nsam<strong>en</strong>to variando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1,5MPa até valores superiores a 20 MPa. A capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resistir a ação da água e a resistência mecânica dos blocossão bastante melhoradas com a adição <strong>de</strong> aglomerantes, notadam<strong>en</strong>te o cim<strong>en</strong>to e a cal.A execução da alv<strong>en</strong>aria <strong>de</strong> terra é semelhante a da alv<strong>en</strong>aria conv<strong>en</strong>cional: os compon<strong>en</strong>tes são unidos por meio<strong>de</strong> argamassa <strong>de</strong> consistência e plasticida<strong>de</strong> a<strong>de</strong>quadas, formando a pare<strong>de</strong> ou o muro alinhado e em prumo; asjuntas verticais são alternadas em cada fiada horizontal <strong>de</strong> modo a garantir a perfeita amarração dos compon<strong>en</strong>tesna alv<strong>en</strong>aria. A particularida<strong>de</strong> da alv<strong>en</strong>aria <strong>de</strong> terra consiste principalm<strong>en</strong>te no tipo da argamassa.Geralm<strong>en</strong>te usa-se uma argamassa preparada com os mesmos materiais empregados na fabricação docompon<strong>en</strong>te <strong>de</strong> terra para o ass<strong>en</strong>tam<strong>en</strong>to e, para o revestim<strong>en</strong>to em pare<strong>de</strong>s externas, costuma-se acresc<strong>en</strong>tarum aditivo <strong>de</strong> modo a tornar a alv<strong>en</strong>aria mais resist<strong>en</strong>te quanto aos efeitos do intemperismo.Situação atualA cresc<strong>en</strong>te e assustadora <strong>de</strong>manda habitacional dos países m<strong>en</strong>os <strong>de</strong>s<strong>en</strong>volvidos é um dos maiores <strong>de</strong>safios queo Po<strong>de</strong>r Público <strong>en</strong>fr<strong>en</strong>ta na área social. A América Latina, constituída por um conjunto <strong>de</strong> países com gran<strong>de</strong>sdifer<strong>en</strong>ças quanto ao clima, aos costumes e nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>en</strong>volvim<strong>en</strong>to, não difere muito quando se refere àcondição habitacional: gran<strong>de</strong> número das construções não merece ser <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> habitação.0 problema habitacional passa invariavelm<strong>en</strong>te por aspectos políticos, tecnológicos, econômicos e sociais.Embora sem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão, a variável tecnológica possibilita, através do uso racional <strong>de</strong> espaços, <strong>de</strong>materiais e processos a<strong>de</strong>quados, a produzir habitações mais dignas e <strong>de</strong> custo m<strong>en</strong>os elevado.A revitalização do uso da terra como material <strong>de</strong> construção é <strong>de</strong> extrema importância fr<strong>en</strong>te aos <strong>de</strong>safios que ospaíses em <strong>de</strong>s<strong>en</strong>volvim<strong>en</strong>to vêm <strong>en</strong>fr<strong>en</strong>tando, notadam<strong>en</strong>te porque a causa da gran<strong>de</strong> carência habitacional está49