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Rapadura é doce, mas não é mole não
Daniel Marques Mota, Eucilene Alves Santana Porto, Jalma Araujo Costa,
Rosecler Fernandes Santos de França, Matheus de Paula Cerroni, Aglair Alves
da Nobrega, Jeremy Sobel. Distrito Federal
(...) Em seis de fevereiro de 2008, a Secretaria da Saúde de um município do
interior do Rio Grande do Norte notificou à Secretaria Estadual dois casos de
intoxicação por ingestão de rapadura em moradores da zona rural. No dia 28
de fevereiro, eu e mais outros técnicos fomos deslocados para lá. A equipe de
investigação foi formada por técnicos da esfera federal e estadual de vigilância
epidemiológica e sanitária.
Tudo começou quando um senhor de 68 anos de idade ingeriu
aproximadamente 155 gramas de rapadura adquirida em uma mercearia do
genro e em menos de 24 horas foi a óbito. Quatro dias depois, o genro, não
acreditando na possibilidade de a rapadura ter sido a causadora da morte do
sogro, comeu do mesmo alimento. Após 20 minutos, o genro apresentou
também sintomas característicos de intoxicação por organofosforado, foi
internado em unidade de terapia intensiva e, diferentemente do sogro, foi
tratado com atropina e sobreviveu. A filha do senhor que falecera referiu não
acreditar que representantes do Ministério da Saúde estavam ali para investigar
os casos de intoxicação por rapadura. Ela se viu surpresa!
Outros três casos prováveis de intoxicação com sintomas leves foram incluídos
no estudo. Essa situação fez com que nenhum morador da região e dos
municípios vizinhos tivesse coragem de comer qualquer tipo de rapadura, nem
mesmo nós! Ainda durante a investigação, descobrimos que três técnicas da
Vigilância Sanitária do nível regional e estadual apresentaram sintomas de
intoxicação por proximidade física/manuseio da rapadura. Acreditem, elas não
usaram equipamento de proteção individual! Um laudo elaborado por uma
médica, em três de março de 2008, referiu para uma das técnicas a presença de
conjuntivite alérgica em ambos os olhos e no olho esquerdo também duas
ulcerações corneanas. Em 10 de março, o quadro dessa paciente era estável,
com melhora significativa da conjuntivite alérgica e das ulcerações. As
rapaduras de coloração marrom exalavam odor forte e irritante para os olhos e
narinas, característico de produtos agrotóxicos, segundo relato de um técnico
da Vigilância Sanitária local.
Na tentativa de identificar em que sítio poderia ter ocorrido a contaminação da
rapadura, bem como o possível agente tóxico implicado, realizamos um
rastreamento da cadeia de produção e comercialização. Fizemos uma longa
viagem! Saímos do estado do Rio Grande do Norte, atravessamos a Paraíba e
chegamos ao município pernambucano produtor da rapadura. Não é que
descobrimos várias irregularidades? Entre elas, o uso de uma substância
denominada “branquite”, utilizada para o clareamento da rapadura. Essa
substância exalava cheiro muito forte e irritante para os olhos e narinas. As
amostras de rapadura apreendidas pela Vigilância Sanitária estavam
contaminadas por metamidofós (organofosforado) e sulfito (SO 2), tanto na
rapadura consumida pelos dois casos graves, quanto naquelas coletadas em
estabelecimentos comerciais da região. Outro achado importante para a
confirmação da intoxicação por organofosforado foi que o sangue total do
genro resultou alterado para acetilcolinesterase eritrocitária. Assim, ocorreu
um surto de intoxicação exógena por circunstância não-intencional e
ocupacional, cujo principal alimento implicado foi a rapadura, tanto por
ingestão, quanto por contato com proximidade física, com ou sem manuseio
da amostra ou embalagem contendo o alimento. A contaminação da rapadura
por metamidofós não ocorreu na mercearia do genro; pode ter acontecido
durante o transporte das rapaduras do local de produção até os pontos de
comercialização ou do comerciante “X” para a mercearia do genro ou até
mesmo nas mercearias do comerciante “X”, morador também da zona rural do
município potiguar. Em relação à contaminação por sulfito, pode ter ocorrido
durante a produção das rapaduras. A quantidade de metamidofós presente na
rapadura ingerida foi 465 vezes maior que a ingestão diária aceitável para esta
substância. Viram só? “A rapadura é doce, mas não é mole, não”! Ainda mais
envenenada.