1. INTRODUÇÃO O presente tema, política criminal e ... - UniCEUB
1. INTRODUÇÃO O presente tema, política criminal e ... - UniCEUB
1. INTRODUÇÃO O presente tema, política criminal e ... - UniCEUB
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
PONTO 8 – POLÍTICA CRIMINAL E DIREITOS HUMANOS NO BRASIL<br />
<strong>1.</strong> <strong>INTRODUÇÃO</strong><br />
O <strong>presente</strong> <strong>tema</strong>, <strong>política</strong> <strong>criminal</strong> e Direitos Humanos no Brasil,<br />
nos leva, em primeiro lugar, a bem delimitar os Direitos Humanos, apontando<br />
suas características principais.<br />
Em seguida, passaremos a discorrer sobre a <strong>política</strong> <strong>criminal</strong>,<br />
diferenciando-a da criminologia, do Direito Processual e Penal. Após, será<br />
necessária a analise da teoria das penas e a verificação de sua pertinência ao<br />
sis<strong>tema</strong> de proteção de direitos fundamentais acolhidos na ordem<br />
constitucional brasileira.<br />
A análise, embora jurídica, trará alguns aspectos de<br />
multidisciplinaridade, pois a análise do Direito destituída de valores é<br />
inconcebível. Por isso, San Thiago Dantas afirmou, com maestria que “Quem<br />
sabe apenas o Direito, nem o Direito sabe”.<br />
Com efeito, a transdisciplinariedade e interdisciplinariedade de um<br />
determinado objeto resulta em um enriquecimento do mesmo, tendo em vista a<br />
contribuição de diversos pontos de vista do fenômeno social.<br />
Isso ocorre quanto à violência, que abrange diversas abordagens:<br />
jurídica, sociológica, psicológica, econômica, social, antropológica, urbanística,<br />
ambiental etc.<br />
2. OS DIREITOS HUMANOS<br />
O Brasil passou, nos anos 80, pelo período da redemocratização,<br />
lenta e gradual, com movimentos político-sociais como a abertura <strong>política</strong>, a Lei<br />
de Anistia, o Movimento pelas Diretas Já, culminando com a eleição de um<br />
presidente civil (1985) após décadas de Ditadura (desde 1964) e com a<br />
convocação para uma assembleia constituinte (1987).<br />
Com a promulgação da nova Constituição Federal, em outubro de<br />
1988, denominada de Constituição Cidadã, os direitos humanos foram alçados<br />
a outro patamar no Brasil.<br />
1
Com efeito, conforme Flávia Piovesan, a CF/88 institucionalizou<br />
os direitos humanos, confirmando aqueles constantes da Carta anterior – e que<br />
formam tão desrespeitados no período ditatorial – como também ampliando os<br />
direitos e garantias fundamentais, como nos casos do mandado de segurança<br />
coletivo, mandado de injunção, a ampliação do objeto das ações populares e<br />
ação civil pública etc.<br />
E quais são os direitos humanos? Estão situados em quais<br />
dispositivos constitucionais? Como conceitua-los? São sinônimos de Direitos<br />
Fundamentais?<br />
Ora, os direitos humanos possuem a características da<br />
historicidade, ou seja, foram conquistas históricas da humanidade, com<br />
destaque para diversos diplomas internacionais, como a Magna Carta de 1215,<br />
a Declaração dos Direitos de 1789, a Declaração Universal dos Direitos<br />
Humanos de 1948 e a nova Declaração de Viena de 1993, entre outros.<br />
Daí a enorme dificuldade em conceituar direitos humanos, pois se<br />
trata de um fenômeno complexo. Não se pode reduzi-los a uma soma de<br />
enunciados dos tratados e acordos internacionais, sob pena de atingir<br />
resultados desastrosos. Da mesma forma, não se pode aponta-los como<br />
aqueles enunciados na CF/88 à título de direitos e garantias fundamentais,<br />
direitos sociais, de nacionalidade e políticos (entre os arts. 5° e 17). O próprio<br />
STF enunciou, em decisão paradigmática, que o princípio da anterioridade<br />
tributária é garantia fundamental do contribuinte, sendo certo que o mesmo<br />
está enunciado no título da ordem tributária e financeira da Carta<br />
Constitucional.<br />
Assim, os direitos humanos decorrem do processo de luta<br />
(normativa, institucional, <strong>política</strong>) para seu reconhecimento, aquisição e<br />
aplicabilidade.<br />
Nesse sentido, Bobbio e Paulo Bonavides costumam elencar as<br />
gerações dos direitos humanos, da seguinte forma:<br />
a) 1ª geração – direitos de liberdade ou direitos civis – século<br />
XVIII e XIX – são direitos que impõe obrigações negativas por parte do Estado,<br />
como o respeito à propriedade, à vida, à intimidade, à liberdade de locomoção<br />
etc.;<br />
2
) 2ª geração – direitos sociais, econômicos e culturais – começo<br />
do século XX – são direitos que impõe obrigações positivas do Estado, em<br />
programas que deve cumprir e tutelar, correspondentes ao ideal de igualdade;<br />
c) 3ª geração – direitos de solidariedade – século XX – são os<br />
direitos à paz, ao meio ambiente, a comunicação, correspondentes ao ideal de<br />
fraternidade;<br />
d) 4ª geração - final do século XX e início do XXI – direito à<br />
informação, ao desenvolvimento tecnológico etc. – são direitos que<br />
correspondente aos novos desafios do mundo globalizado;<br />
e) 5ª geração – século XXI – direito à paz, que deixa de ser de 3ª<br />
geração para ser alçado a um novo patamar, diante de um mundo infestado de<br />
guerras e conflitos étnicos raciais (Paulo Bonavides),.<br />
Costume-se lembrar que as três primeiras gerações<br />
correspondem aos ideais iluministas da Revolução Francesa – liberdade,<br />
igualdade e fraternidade.<br />
Além disso, é importante destacar que as novas gerações não<br />
afastam ou apagam as gerações anteriores. Ao contrário, as reafirmam e as<br />
redimensionam (daí porque alguns preferem dimensões e não gerações). Por<br />
exemplo, os direitos sociais de segunda geração confirmaram os de primeira,<br />
mas também os redimensionaram, como aconteceu com a propriedade, que,<br />
embora refirmada no regime capitalista, passou a ter que cumprir uma função<br />
social. Princípio este, aliás, que teve origem na doutrina social da Igreja<br />
Católica (principalmente nas Encíclicas Rerum Novarum de 1891, do Papal<br />
Leão XIII, Mater Et Magistra do Papa João XXIII e Centesimus Annus, de 1991,<br />
do Papa João Paulo II) e na doutrina do jusfilósofo francês Leon Duguit.<br />
Convém assinalar ainda, que os direitos humanos tem<br />
aplicabilidade imediata, na forma do disposto no § 1° do art. 5° da CF e dos<br />
entendimentos doutrinários de Luis Roberto Barroso e Flávia Piovesan. Acerca<br />
do <strong>tema</strong>, outros autores, como José Afonso da Silva e Gilmar Mendes,<br />
entendem que alguns direitos fundamentais não são aplicáveis imediatamente,<br />
necessitando de disciplina legal, porém, com a máxima efetividade possível.<br />
Com relação à conceituação, alguns autores usam as expressões<br />
direitos humanos e direitos fundamentais como sinônimas. Outros salientam<br />
que os direitos fundamentais seriam os direitos humanos positivados na CF e<br />
3
tratados internacionais que o Brasil seja signatário e o Congresso Nacional<br />
ratifique. De qualquer modo, para além de qualquer questão de nomenclatura,<br />
o importante é o reconhecimento de que tais direitos são universais, tem<br />
historicidade, são complementares, interdependentes, imprescritíveis,<br />
irrenunciáveis e possuem aplicabilidade imediata.<br />
Por fim, no tocante à igualdade é imprescindível lembrar da<br />
doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello acerca do <strong>tema</strong>, exposta no seu<br />
magistral livro Conteúdo Jurídico do Principio da Igualdade. Tal autor, após<br />
relembrar que a igualdade normalmente é tratada pelos autores com a máxima<br />
aristotélica consistente em “dar tratamento igual aos iguais e desigual aos<br />
desiguais”, a qual Ruy Barbosa acrescentou “na medida de sua desigualdade”.<br />
Ocorre, porém, que tal máxima, conquanto válida à luz da filosofia, não resulta<br />
em um conteúdo jurídico semântico da qual possa se extrair qualquer<br />
consequência prática. Quem são os iguais? Quem são os desiguais? E qual a<br />
medida da desigualdade? São questões postas que não encontram resposta<br />
na filosofia de Aristóteles.<br />
Desta forma, Bandeira de Mello passa a estabelecer o conteúdo<br />
jurídico do principio da igualdade, isonomia ou impessoalidade (esta, para ele,<br />
corresponde ao dever de igualdade na Administração Pública – art. 37, caput,<br />
CF). Para tanto, inicia salientando que o art. 5°, caput, CF estabelece uma<br />
igualdade formal ao apontar que todos têm direito a um tratamento igualitário<br />
perante a lei, sem distinção de qualquer forma, inclusive quanto a raça, sexo,<br />
idade etc. Socorre-se de Kelsen para salientar que a igualdade material,<br />
prevista na lei, não se confunde com a igualdade formal, que se opera ‘perante<br />
a lei’, ou seja, já feita a desigualdade. Por exemplo, todos os consumidores têm<br />
direito a tratamento isonômico perante o Código de Defesa do Consumidor<br />
(igualdade formal), mas a lei já fez uma distinção prévia de quem é consumidor<br />
(destinatário final do produto ou serviço) e quem não é, pois está enquadrado<br />
como fornecedor ou fora do sis<strong>tema</strong> que protege o hipossuficiente.<br />
Além disso, o jurista afirma que o art. 3°, IV, CF, ao estabelecer a<br />
proibição de discriminação, deve ser interpretado com razoabilidade, de modo<br />
a não levar a conclusões absurdas, conforme ensinamento do mestre maior<br />
dos exegetas do Brasil, Carlos Maximiliano. É que, se levada ao pé da letra, tal<br />
dispositivo conduziria à inconstitucionalidade de quase todas as leis ordinárias<br />
4
ou complementares no Brasil. Ao contrário do que possa parecer, a função de<br />
toda lei é trazer uma diferenciação. A lei civil aparta o que está de boa-fé<br />
daquele que não está de boa-fé, atribuindo tratamento diferenciado. O Direito<br />
de Família protege a mulher, determinando foro privilegiado na ação de<br />
divorcio. O ECA protege a criança e o adolescente em relação ao adulto,<br />
plenamente capaz. Ou seja, as leis em geral fazem discriminações de pessoas<br />
e situações. O grande problema é estabelecer quando tais diferenciações são<br />
constitucionais à luz da CF.<br />
Por isso, o ilustre administrativista propõe que o conteúdo jurídico<br />
da igualdade passe pelo crivo de três elementos ou requisitos cumulativos,<br />
quais sejam:<br />
a) estabelecer o fator de descrímen, apontando que situações<br />
que singularizem definitivamente um determinado destinatário<br />
no <strong>presente</strong> já significa ofensa ao principio da igualdade. Ex.:<br />
lei que estabeleça que um determinado político tenha isenção<br />
tributária;<br />
b) estabelecer uma adequação lógica abstrata entre o fator<br />
discriminatório apontado no item anterior e a desigualdade<br />
assinalado pela lei ou ato administrativo – trata-se da análise<br />
da razoabilidade e/ou proporcionalidade da disposição, ponto<br />
central da verificação da igualdade. Ex.: edital de concurso<br />
público para promotor de justiça que estabelece altura mínima<br />
para a inscrição dos candidatos;<br />
c) estabelecer se a relação encontrada no item anterior guarda<br />
pertinência lógica concreta com algum dos valores<br />
consagrados constitucionalmente. Ex.: lei que estabeleça<br />
isenção tributária para grandes empresas do setor de<br />
supermercados, ferindo a disposição constitucional que<br />
determina a proteção da pequena empresa.<br />
3. CRITICA AS TEORIAS DAS PENAS À LUZ DOS DIREITOS<br />
HUMANOS<br />
5
Convém assinalar, desde o início, que Direito Penal, Processual<br />
Penal, Política Criminal e Criminologia não se confundem, embora tenha<br />
estreita ligação pelo objeto.<br />
Sérgio Salomão Shecaira, criminologista da Usp, ensina que a<br />
criminologia, ciência empírica e que utiliza método cientifico indutivo, tem por<br />
objeto o estudo do crime, do criminoso, da vítima e do controle social do crime.<br />
O Direito Penal é o conjunto de normas jurídicas (entendida como<br />
princípios e regras) que tem por objeto o fato social descrito em uma lei penal<br />
prévia, enquanto necessário para adequação típica. Consiste, portanto, em<br />
uma ciência normativa-dedutiva. Na mesma linha, o Direito Processual Penal é<br />
o conjunto de normas jurídicas voltadas a aplicação da lei penal em concreto. A<br />
<strong>política</strong> <strong>criminal</strong> consiste em uma <strong>política</strong> pública voltada a fornecer,<br />
cientificamente, opções <strong>política</strong>s para o Estado estabelecer a <strong>criminal</strong>ização<br />
primária (legislação penal), secundária (aplicação concreta do jus puniendi) e<br />
terciária (encarceramento do condenado). Faz, portanto, a ponte entre a<br />
criminologia e o Direito Penal, Processual Penal e Penitenciário.<br />
Maria Paula Dallari Bucci, especialista no <strong>tema</strong>, ensina que<br />
<strong>política</strong> pública consiste em um programa governamental que visa harmonizar<br />
as atividades públicas e privadas, tendo em vista a busca de resultados<br />
socialmente relevantes e politicamente adequados.<br />
Estabelecida as distinções necessárias, passa-se a análise das<br />
teorias da pena e sua respeitabilidade ou não aos direitos humanos.<br />
O doutrinador alemão Franz Von Liszt, por volta de 1886,<br />
estabeleceu a teoria integral das Ciências Penais, que procurava integrar,<br />
funcional e harmoniosamente, as diversas disciplinas que envolvem a questão<br />
penal (criminologia, Direito Penal, Direito Processual Penal e Política Criminal),<br />
sem que acarretasse ofensa à autonomia didática-cientifica de cada uma delas.<br />
Tal teoria serviu de base para todas as teorias repressivas do<br />
Direito Penal: Direito Penal do Autor, Tolerância Zero, Janelas Quebradas,<br />
Direito Penal Máximo e, mais recentemente, Direito Penal do Inimigo.<br />
Referida teoria parte de um requisito equivocado, de que a função<br />
do Direito Penal é a tutela de direitos subjetivos lesados pelo réu, ou seja, que<br />
a tutela de bens jurídicos é o fim último do Direito Penal.<br />
6
O equívoco reside, precisamente, em transformar um pressuposto<br />
de aplicação da pena em finalidade do Direito Penal. Isso decorre do debate da<br />
famosa inversão dos meios e fins, pois os meios (eficácia) justificam os fins<br />
(efetividade da aplicação da lei penal, controle da <strong>criminal</strong>idade). Com isso não<br />
há espaço para um Direito Penal e Processual Penal que respeite os direitos<br />
humanos, as garantias fundamentais que legitimam o processo (devido<br />
processo legal).<br />
Note-se que a pena, consequência da aplicação da lei penal, é o<br />
que distingue o Direito Penal das demais disciplinas jurídicas, notadamente<br />
Direito Administrativo e Civil, cujas sanções possuem outra natureza. No Direito<br />
Civil destaca-se a sanção indenizatória, em função do dever geral de<br />
responsabilidade civil, que, por sua vez, corresponde ao dever de ressarcir os<br />
danos (materiais, morais ou estéticos) causados a outrem. A regra, nesse ramo<br />
do Direito, é que a responsabilidade seja subjetiva, ou seja, que o elemento<br />
subjetivo seja imprescindível para fazer nascer o direito à indenização: dolo<br />
(intenção de causar o dano) ou culpa (violação do dever geral de cuidado<br />
objetivo, nas modalidades negligência, imperícia ou imprudência).<br />
Já a sanção administrativa consiste, em geral, na suspensão de<br />
direitos, tais como a proibição de participar de licitações, de ser contratado pelo<br />
Poder Público ou receber isenções ou verbas públicas.<br />
Assim, a análise das teorias da pena é imprescindível para<br />
compreensão da <strong>política</strong> <strong>criminal</strong> no Brasil e posterior verificação de<br />
atendimento, ou não, dos direitos fundamentais.<br />
Pode-se resumir as teorias da pena na celebre passagem de<br />
Basileu Garcia: pune-se porque pecou, pune-se para não pecar mais, ou pune-<br />
se porque pecou e para não pecar mais.<br />
Genericamente, temos:<br />
A) TEORIA ABSOLUTA ou retributiva<br />
B) RELATIVA ou prevencionista<br />
B1 – PREVENCIONISTA GERAL para a sociedade<br />
- geral negativa<br />
- geral positiva<br />
B2 – PREVENCIONISTA ESPECIAL para o réu<br />
7
- especial negativa<br />
- especial positiva<br />
C) MISTA<br />
D) AGNÓSTICA ou negativista<br />
Na teoria absoluta o réu é punido porque pecou. Trata-se de uma<br />
retribuição pelo mal causado. E a retribuição deve ser igual ou maior ao mal<br />
causado à sociedade. Assim, tal teoria admite a pena de morte para o<br />
cometimento do crime de homicídio doloso consumado. A crítica que se faz é<br />
que, com a civilização da sociedade e a humanização da pena, principalmente<br />
pela obra de Cesare Beccaria (Dos delitos e das penas), não se sustenta mais,<br />
à luz da proteção dos direitos humanos, tal tipo de vingança estatal. Além<br />
disso, a partir do momento que o Estado assumiu o monopólio da força (que,<br />
diga-se de passagem, está na base da teoria do controle da violência de Max<br />
Weber), a questão que surge é exatamente estabelecer quem controla o<br />
Estado para evitar o retorno a lei do mais forte, à Lei do Talião (olho por olho,<br />
dente por dente). E qual o limite desse poder punitivo do Estado? Veja que até<br />
mesmo na hipótese que remanesceu como autotutela no direito civil brasileiro,<br />
qual seja, a retomada ou manutenção da posse esbulhada ou turbada, se faz<br />
com as próprias forças do particular, desde que o faça logo, mas os atos de<br />
desforço imediato não podem ir além do imprescindível para recuperação ou<br />
manutenção da posse. Isso significa que até mesmo nesta hipótese<br />
excepcional de uso legítimo da força pelo particular, o limite da atuação é o<br />
princípio da proporcionalidade, que evita que a medida vá além do necessário<br />
para tutela efetiva do direito. De forma semelhante, no Direito Administrativo, a<br />
Lei n° 9.784/99 (Lei Geral de Processo Administrativo Federal) prescreve que<br />
as medidas sancionatórias ou que imponham restrições por parte da<br />
Administração Pública não podem ir além do estritamente necessário para a<br />
proteção do interesse público. O excesso de conduta administrativa, portanto, é<br />
abuso de poder, não exercício legítimo do poder.<br />
A CF/88, definitivamente, não acolheu teoria absoluta da pena na<br />
medida em que veda as penas cruéis, desumanas, de tortura, de morte etc.<br />
Nesse sentido, inexiste, no Brasil, infelizmente, a observância dos direitos mais<br />
básicos do encarcerado. O Alto Comissiariado da ONU vem, constantemente,<br />
8
denunciando a falta de respeito aos direitos fundamentais dos presos no Brasil,<br />
pois muitas cadeias não respeitam os direitos constitucionais e legais (com<br />
destaque para Lei de Execuções Penais) dos presos. São cadeias<br />
superlotadas, sem salubridade, metragem mínima exigida em lei etc.<br />
Na segunda teoria, relativa, pune-se o réu para que não peque<br />
mais. Trata-se de uma prevenção contra aquele que causou um mal grave e<br />
injusto a outrem.<br />
A teoria prevencionista se biparte em geral e especial.<br />
A teoria prevencionista geral justifica a pena para outrem que não<br />
o autor do delito. Assim, a pena serve para dissuadir a outros, principalmente<br />
aqueles que estão próximos do fato imputado, para que não cometam o crime<br />
(aspecto negativo). Tal teoria sofre diversas críticas. Em primeiro lugar, não<br />
existe comprovação científica de que a punição exemplar de alguém evite que<br />
outrem cometa crimes, por dissuasão. Isso é absolutamente questionável. Em<br />
segundo lugar, punir exemplarmente alguém que cometeu o crime para servir<br />
de exemplos para outros é desumaniza-lo, ou seja, torna-lo objeto e não sujeito<br />
de direitos, o que vai contra toda sistemática jurídico-constitucional de proteção<br />
dos direitos humanos.<br />
Outro aspecto da teoria prevencionista geral (positivo) justifica a<br />
pena a partir da ideia de poder simbólico que ela representa. O delito seria uma<br />
ofensa ao Estado e a aplicação da pena seria uma autopromoção do Estado. É<br />
o Estado mostrando o quanto é eficaz. Tal teoria peca completamente se<br />
levarmos em consideração a seletividade do sis<strong>tema</strong> <strong>criminal</strong> brasileiro.<br />
Nesse sentido, a Pastoral Carcerária, em pesquisa recente,<br />
afirmou que quase 70% dos presos brasileiros tem um mesmo perfil sócio-<br />
econômico: negros ou pardos, baixa ou nenhuma escolaridade e pertencem às<br />
classes sociais mais desprivilegiadas econômica e socialmente (pobreza e<br />
miséria). Além disso, são homens entre 18 e 25 anos de idade. Note-se que<br />
esse grupo, pela sua condição da vulneralidade, comete mais “crimes toscos”,<br />
para usar a nomenclatura de Raul Eugênio Zaffaroni. O que se quer dizer com<br />
isso? É que são estigmatizados, perseguidos pelas polícias militares e civis e<br />
cometem crimes sem elaboração e requinte e, portanto, são alvos mais fáceis<br />
para o sis<strong>tema</strong> <strong>criminal</strong> capturar.<br />
9
É preciso que se diga, ainda, que o grupo do sexo masculino<br />
entre 14 e 25 anos de idade é também o mais vitimizado. Ou seja, o mesmo<br />
grupo que sofre maior encarceiramento no Brasil é também o que mais sofre<br />
com a violência homicida. Há, certamente, alguma coisa de muito errada na<br />
<strong>política</strong> <strong>criminal</strong> brasileira, que pune, duplamente, a população mais pobre, que<br />
sofre segregação urbana. São os mais encarceirados e ao mesmo tempo as<br />
maiores vítimas do crime por excelência, homicídio doloso. Não é por outra<br />
razão que a CF/88 estabeleceu competência absoluta para tais crimes para o<br />
Tribunal do Júri, a fim de que o cidadão seja julgado pelos seus pares (art. 5°).<br />
A seletividade do sis<strong>tema</strong> <strong>criminal</strong> passa pela análise da<br />
<strong>criminal</strong>ização primária, pois o legislador elege quais as condutas que<br />
merecem uma reprimenda penal. Aqui, verifica-se a desproporcionalidade das<br />
penas, a tutela exagerada do patrimônio, a tipificação exagerada de condutas<br />
que poderiam ser resolvidas com sanções de natureza administrativa ou civil,<br />
como se o Direito Penal fosse a salvação para resolver todos os conflitos de<br />
interesse que surgem na sociedade.<br />
O papel da mídia tem servido para aprofundar, ainda mais, essa<br />
questão, principalmente em tempos de globalização e de tecnologias cada vez<br />
mais desenvolvidas. Ora, boa parte da mídia (TV, rádio, jornais, internet) tem<br />
causado enorme violência simbólica (conforme descrita por Pierre Bourdieu).<br />
São programas sensacionalistas, que buscam na banalização da violência um<br />
meio de “ibope” e, com isso, de patrocionadores, pois a curiosidade humana<br />
parece ser infinita. Note-se o efeito perverso (denominado pela doutrina<br />
especializada “efeito lúcifer”) que isso produz: quanto mais a mídia banaliza a<br />
violência, mais as pessoas deixam de se importar com isso (porque vira noticia<br />
do cotidiano) ou as pessoas clamam por justiça exemplar, quase uma<br />
vingança. Não é a toa que, no Brasil, pela deficiência do sis<strong>tema</strong> <strong>criminal</strong>,<br />
ocorra tantos espancamentos de pessoas detidas pela própria população, que<br />
está sedenta por justiça, por qualquer justiça contra aquele que pecou.<br />
Ao contrário, o sis<strong>tema</strong> <strong>criminal</strong> deve servir de garantia para<br />
aquele que cometeu um delito. A garantia que será tratado com dignidade<br />
(aquela que é inerente a todo e qualquer ser humano); que terá direito ao<br />
contraditório, a ampla defesa, de ser comunicado a razão de sua prisão (e<br />
quantas são os flagrantes policiais que não se preocupam com a nota de<br />
10
culpa!), de entrar em contato com um familiar e/ou advogado; direito ao<br />
silêncio, do direito de não ser acusado com base em provas ilícitas ou<br />
derivadas das ilícitas, direito de ser tratado com respeito e urbanidade pelas<br />
autoridades, direito que será apenado, após regular processo, com a pena<br />
prevista previamente e não com penas arbitrárias etc.<br />
autor do delito.<br />
Por outro lado, a teoria da prevenção especial volta-se para ao<br />
Assim, pune-se o réu para que ele não volte mais a pecar, em<br />
primeiro lugar para proteção da sociedade (aspecto negativo da teoria),<br />
retirando a pessoa do convívio social para que ela não cometa mais crimes.<br />
Corre-se o risco, nesses casos, da adoção de sis<strong>tema</strong>s penais repressivos que<br />
busquem a condenação do réu a todo custo, por proteção da ordem pública.<br />
Tal teorização é muito aceita e aplicação pela jurisprudência <strong>criminal</strong> brasileira,<br />
pois nada justifica que cerca de 40% dos nossos presos estejam encarcerados<br />
cautelarmente, com prisões preventivas ou temporárias. O número é<br />
assustador e, ao mesmo tempo, flexibiliza o princípio constitucional da<br />
presunção de inocência, garantia fundamental em um Estado Democrático de<br />
Direito, tal como preconizado na nossa Carta Magna, desde suas primeiras<br />
disposições. O percentual apontado mostra ainda a deficiência e morosidade<br />
do judiciário brasileiro.<br />
Outro argumento utilizado pela teoria da prevenção especial<br />
(positivo) é que a pena é um remédio para o réu, que é doente, pois comete<br />
ilícito mais grave previsto no sis<strong>tema</strong> jurídico. Ora, a prisão não pode ser<br />
remédio para ninguém, pois a prisão ensina, apenas, a viver na prisão (e não a<br />
viver em sociedade). Foucalt, por exemplo, afirma que a prisão é um mal<br />
necessário, pois não inventaram, ainda, algo melhor para retirar do convívio<br />
social alguém que causou um mal injusto a outrem. Tal teoria fere, de morte, os<br />
direitos humanos, pois sustenta que o “remédio” seja proporcional e necessário<br />
para recuperação do “doente”. Com isso, chega-se ao absurdo da sentença<br />
não fixar a pena do acusado, deixando esse “problema” para os órgãos de<br />
execução penal. Assim, seria possível a aplicação de pena gravíssima (de<br />
morte ou perpétua) para criminoso que cometeu delito de menor potencial<br />
ofensivo, diante de sua periculosidade intrínseca. Trata-se de um Direito Penal<br />
11
do Autor e não um Direito Penal do Cidadão, fazendo tabula rasa dos limites<br />
quantitativos, qualitativos ou estruturantes da aplicação da pena.<br />
Explico. O limite quantitativo da aplicação da pena é informado<br />
pelo princípio da bagatela ou insignificância, pois para condutas que não<br />
ofendem bens jurídicos significativos, a pena deixa de ter sua justificativa. O<br />
limite qualitativo diz respeito à adequação social da pena, pois se a sociedade<br />
já aceita aquela conduta típica como normal, a pena não deve ser aplicada, já<br />
que inexiste tipicidade material da conduta, embora exista tipicidade formal<br />
(subsunção da conduta ao tipo penal). Por fim, o limite estruturante de<br />
aplicação da pena determina que a mesma não incida em hipóteses de<br />
excludente de ilicitude (legítima defesa, por exemplo), quando o crime for<br />
impossível ou o objeto inidôneo, que uma circunstância agravante não seja<br />
transformada em tipo autônomo, ou que sejam tipificadas condutas de perigo<br />
abstrato.<br />
Dito por outras palavras, a pena <strong>criminal</strong> só faz sentido se houver<br />
lesividade e necessidade de sua aplicação.<br />
Assim, todas as teorias clássicas da pena – absoluta e relativa –<br />
não atendem a um Direito Penal que corresponda aos ditames constitucionais<br />
de proteção plena dos direitos humanos.<br />
Peguemos um exemplo. A teoria do Direito Penal do Inimigo<br />
prescreve que o Direito Penal somente pode reconhecer garantias para o<br />
cidadão, aquele que rompeu com a legalidade, mas que não quer fugir do<br />
pacto social ou destruí-lo. Para este, o “inimigo”, as favas para as garantias<br />
mínimas. Assim, justificam-se as torturas para conseguir a confissão, as<br />
prisões e processos de exceção (não há como se esquecer de Guantanamo).<br />
Ora, como estabelecer quem é o inimigo? Isso parte de tal<br />
subjetivismo arbitrário, que o inimigo pode ser hoje o terrorista, amanhã o<br />
morador da favela, depois de amanhã, o torcedor de determinado time etc.<br />
E quem vai dizer quem é o inimigo? Com que legitimidade o<br />
Estado, que não cumpre seu papel social estabelecido na CF, elege alguém<br />
como inimigo e parte para sua destruição-controle-aniquilamento.<br />
Isso é bem típico de teorias etiológicas do crime, tal como a teoria<br />
do homem delinquente de Lombroso, que media tamanho do crânio para<br />
determinar a possibilidade daquele individuo se tornar violento.<br />
12
Da mesma forma, o regime nazista de Hitler que produziu o horror<br />
holocausto em nome de uma suposta supremacia da raça ariana, em total<br />
desrespeito aos direitos mais comezinhos do ser humano, invertendo a lógica<br />
da dignidade da pessoa humana. A teoria desenvolvida por Hannah Arendt<br />
sobre a banalização da violência, ela que foi contemporânea do nazismo, bem<br />
explica o fenômeno e chama a atenção para que isso nunca mais volte a<br />
ocorrer.<br />
Veja que, desde Freud, já se sabe que o homem é, raramente,<br />
totalmente bom ou totalmente mal. A grande maioria das pessoas, explica o pai<br />
da psicanálise, é boa para algumas coisas ou em certas situações e má para<br />
outras. Assim, não se sustenta, cientificamente, as teses etiológicas do crime.<br />
O Direito Penal não resolve o problema da violência e da<br />
<strong>criminal</strong>idade. Deve ser a ultima ratio e não a prima ratio.<br />
Convém assinalar que violência e <strong>criminal</strong>idade não se<br />
confundem. Renato Posterli ensina que a violência é o constrangimento moral<br />
ou físico que atinge a pessoa, causando-lhe danos físicos, psicológicos,<br />
morais, simbólicos ou institucionais, privando o ser humano do seu legítimo<br />
direito à vida, à salubridade física ou moral.<br />
Crime, basicamente, ocorre quando alguém realiza a conduta<br />
descrita na lei penal. O conjunto de crimes ocorridos em determinado período<br />
pode ser ma<strong>tema</strong>tizado, ou seja, transformado em um índice (de<br />
<strong>criminal</strong>idade). Por exemplo, o índice internacional para aferir homicídios,<br />
utilizado pela ONU e pela maioria dos países, é o número de homicídios<br />
dividido por 100 mil habitantes.<br />
Voltando ao <strong>tema</strong> central, o Direito Penal não vem resolvendo o<br />
aumento assustador da violência urbana no Brasil e no mundo. E não vai<br />
resolver, principalmente nos países que não respeitam os direitos humanos.<br />
Trata-se da questão que envolve Direito Penal Máximo X Direito Penal Mínimo<br />
ou garantismo penal, como designa Ferrajioli.<br />
Ora, no Direito Penal Máximo existe uma inflação legislativa<br />
penal, tipificando condutas que não ofendem a bem jurídico relevante, bem<br />
como uma tentativa de condenação da ré a todo custo, passando por cima de<br />
todos os direitos que um acusado tem assegurado na CF e tratados<br />
internacionais constitucionalizados.<br />
13
Nesse ponto, há que se destacar o papel atual do Direito<br />
Processual Penal, que ainda está regido por um CPP da década de 40,<br />
notadamente com inspiração fascista italiana. É bem verdade que o CPP<br />
passou, recentemente, por reformas importantes, mas tais modificações foram<br />
parciais e pontuais. O sis<strong>tema</strong> ainda continua, em grande parte, inquisitorial.<br />
Veja que o magistrado penal ainda possui competência para se opor contra<br />
arquivamento de inquérito, pode decretar preventiva de oficio, pode requisitar<br />
pessoas ou documentos que achar conveniente para a instrução <strong>criminal</strong> etc.<br />
Assim, o Direito Processual Penal resta apenas como um<br />
garantidor da efetividade da aplicação da lei penal, quando deveria ser,<br />
sobretudo, garantidor dos direitos fundamentais daquele que é acusado.<br />
Da mesma forma, ocorre com o Direito Penal que, por influencia<br />
de teoria da pena já ultrapassada, fica adstrito a tutela de bem jurídico lesado,<br />
quando, na verdade, deveria ser instrumento de limitação do poder punitivo do<br />
Estado, garantindo direitos humanos basilares do Estado Democrático de<br />
Direito e não com práticas lesivas do Estado Polícia.<br />
Por isso, adota-se a teoria negativista ou agnóstica da pena. Ou<br />
seja, não se sabe ao certo para que serve a pena <strong>criminal</strong>, mas se sabe que<br />
ela não serve para punir aquele que pecou, evitar que ele volte a pecar<br />
(enorme falácia), dissuadir outros de pecar (elemento psicológico<br />
imponderável) ou como força simbólica do Estado.<br />
Com a adoção dessa teoria da pena, o Direito Penal passa a ser<br />
Mínimo, atingindo apenas as condutas mais graves e de forma subsidiária dos<br />
demais sis<strong>tema</strong>s punitivos do Direito.<br />
Enfim, se pena restritiva da liberdade resolvesse o problema da<br />
<strong>criminal</strong>idade e da violência urbana, os brasileiros deveriam estar em estado de<br />
plena paz, pois de 1980 a 2008, o Brasil aumentou consideravelmente sua<br />
população carcerária: de 90 mil para 500 mil detentos, com uma defasagem de<br />
200 mil vagas no sis<strong>tema</strong>. Trata-se da quarta maior população carcerária no<br />
mundo, atrás apenas dos EUA, China e Rússia.<br />
14