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ALVES, Ricardo Luiz Pedrosa. Musga, <strong>de</strong> Mário Domingues. Eletras,vol. 23, n.23, <strong>de</strong>z. 2011.<br />
www.utp.br/eletras<br />
MUSGA, DE MARIO DOMINGUES<br />
Eletras, vol. 23, n.23, <strong>de</strong>z.2011<br />
Ricardo Luiz Pedrosa Alves<br />
Doutorando em Estudos Literários pela UFPR<br />
Musga é um livro tenso e precioso. A tensão que o curitibano Mario Domingues<br />
impõe à criação poética é a da in<strong>de</strong>cidibilida<strong>de</strong> proposital entre escrita e reescrita (ou<br />
tradução). O procedimento é <strong>de</strong> extrema subversão aos conceitos <strong>de</strong> originalida<strong>de</strong> e <strong>de</strong><br />
gênio, tão caros aos lugares-comuns da poesia brasileira. A reescrita como processo<br />
operativo impõe a tensão através <strong>de</strong> três movimentos: reescrita <strong>de</strong> um poema <strong>de</strong> seu<br />
outro livro, Paisagem Transitória; reescrita por amplificação <strong>de</strong> poemas; tradução <strong>de</strong><br />
autores clássicos. Mas essa tensão é intestina, não vem à luz <strong>de</strong> imediato se olhamos<br />
superficialmente os poemas concisos, <strong>de</strong> dicção clássica e temática contemplativa com<br />
que Mario Domingues abre seu livro. A arte clássica <strong>de</strong> Domingues parece querer uma<br />
clareza suave. A concisão, magrura da síntese, quer afastar qualquer expressionismo. O<br />
poeta está-no-mundo para esculturas precárias, que ten<strong>de</strong>m a um tanto <strong>de</strong> dissolução<br />
oriental, esvaziamento como resultante da construção pausada e pensada, que parece já<br />
se apresentar como esvaecimento do eu. O zen não conclui e é uma das forças<br />
imprevistas diante do que parece ser um projeto <strong>de</strong> poesia em que o clássico latino tem<br />
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ALVES, Ricardo Luiz Pedrosa. Musga, <strong>de</strong> Mário Domingues. Eletras,vol. 23, n.23, <strong>de</strong>z. 2011.<br />
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proeminência. A ausência, marca <strong>de</strong>ceptiva dos finais <strong>de</strong> poemas <strong>de</strong> Musga, segundo<br />
livro <strong>de</strong> Domingues, po<strong>de</strong> estar imbricada já no projeto <strong>de</strong>ssa arte escrita aparentemente<br />
no osso da linguagem.<br />
Os poemas iniciais projetam um bestiário suave, <strong>de</strong> organização atmosférica: a<br />
reescrita aqui é a das poéticas do olhar. O estilo quer capturar o movimento <strong>de</strong> formas<br />
da natureza: lince, alce, andorinhas, gaivota, beija-flor, percevejo, lesma, gato,<br />
goiabeira, gelo, fonte; tudo na primeira parte <strong>de</strong> Musga é objeto <strong>de</strong> uma contemplação<br />
on<strong>de</strong> o esforço <strong>de</strong> forma – sintética, fluida – consegue ser apagado pela obtenção da<br />
leveza. Destaco os versos da metamorfose dinâmica do segundo poema: “As<br />
andorinhas,/todas várias juntas,/<strong>de</strong>senham outra andorinha,//ou uma tulipa,/que emerge<br />
do chão/e foge da chuva.” Os ricos dois últimos versos, <strong>de</strong> fato, não terminam o poema,<br />
<strong>de</strong>ixando o vazio (a fuga) como conclusão para o fluir <strong>de</strong> formas <strong>de</strong>senhado pelas<br />
andorinhas. Se no poema famoso <strong>de</strong> João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto, os galos teciam pelo<br />
canto conjunto uma manhã, aqui não há resultante ética (apenas <strong>de</strong> uma ética do fazer<br />
escritural), as andorinhas são a mutação <strong>de</strong> formas, captadas na sua própria dança<br />
interna <strong>de</strong> figuras: a tulipa (andorinhas) que emerge/foge do chão/da chuva. O poema<br />
não é um chamamento humanista, ele submete-se a ser um configurador <strong>de</strong><br />
sensibilida<strong>de</strong> para a dança metamórfica da percepção (modéstia estética que implica em<br />
outra ética, não representacional). A poesia do livro expressa uma força da modéstia, o<br />
que contribui para a autonomia do poético (sem a ambição <strong>de</strong> poesia como veículo<br />
discursivo). Trata-se <strong>de</strong> uma circularida<strong>de</strong> (Domingues tenta recusar arestas e vertigens,<br />
embora elas atuem como sintoma) operada pelo fragmento amaciado: o lince não<br />
<strong>de</strong>vora o alce, as andorinhas são metamorfoses, a gaivota “vai e volta”, o beija-flor<br />
brilha numa pisca<strong>de</strong>la do observador, o ver<strong>de</strong> verte psico<strong>de</strong>licamente do percevejo. A<br />
mutação é sempre sem história, ela é quase um milagre: “A goiabeira/(como se<br />
<strong>de</strong>scolasse/<strong>de</strong> si uma serpente/seca/ou só sua carcaça)/<strong>de</strong>scasca.” O poeta se vê obrigado<br />
aos símiles no processo milagroso do <strong>de</strong>scascar da goiabeira. Há algo <strong>de</strong> mofo, fungo,<br />
musgo, no procedimento. Um tempo-lesma, que <strong>de</strong> tão lento po<strong>de</strong> expressar melhor o<br />
instante, seu relâmpago, seu coração palpitante. Também uma recusa da fala, um<br />
alcance do silêncio dos seres: <strong>de</strong> um “céu-ressaca”, fórmula também da or<strong>de</strong>m da<br />
con<strong>de</strong>nsação vibrátil.<br />
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Em “Paisagem transitória revisitada”, Domingues reescreve um poema <strong>de</strong> seu<br />
primeiro livro (Paisagem Transitória), iniciando o projeto interno <strong>de</strong> reescrita que<br />
atravessa Musga: o procedimento agora é o do corte, sendo o resultado aquilo que o<br />
tempo entre os dois livros <strong>de</strong>purou na concepção <strong>de</strong> poesia do escritor. O poema é<br />
reduzido à meta<strong>de</strong>. Algumas mudanças, inversão <strong>de</strong> alguns versos, eliminando algo <strong>de</strong><br />
discursivo da primeira versão. Tudo <strong>de</strong>purado para um único foco: a ondulação das<br />
dunas, semoventes. Novamente, porém, como nos poemas já comentados, as dunas são<br />
reduzidas, no último poema, ao mais molecular da duna, seu grão <strong>de</strong> areia grávido <strong>de</strong><br />
cristal, repentina e violenta mudança <strong>de</strong> foco (o átomo). De fato, talvez não consiga ser<br />
tão arredondada a arte <strong>de</strong> Mario Domingues: arestas irrompem travando o gozo<br />
<strong>de</strong>sinteressado, da arte concebida como o prazer ekfrásico. Um exemplo <strong>de</strong>ssas arestas é<br />
o súbito corte no final <strong>de</strong>sse poema revisitado, em que se parte da ondulação da<br />
paisagem <strong>de</strong> larga escala para a imobilida<strong>de</strong> do grão mínimo; outro é o “corte diagonal<br />
da sombra” que faz <strong>de</strong>saparecer a lesma lenta e ondulante <strong>de</strong> outro poema. De fato, a<br />
tensão curva e reta aparece no próprio projeto gráfico do livro, particularmente na capa,<br />
na diagramação do título (arestas, M e A – esta letra, <strong>de</strong>itada, à maneira <strong>de</strong> uma seta –,<br />
nas pontas, e os redondos U, S e G, meio que encavalados no centro da palavra). Na<br />
contracapa, por sua vez, enquanto o poema fala em “insinuante e sinuosa”, os grafismos<br />
<strong>de</strong>senhados explicitam vértices e arestas. Batalha interna, incorporação naturalizada da<br />
contradição entre curva e reta.<br />
As duas partes seguintes do livro, “Relâmpagos” e “Noturnos”, explicitam outra<br />
tensão: parece haver uma consciência <strong>de</strong> que a escrita é quase impossível. Persiste a<br />
secura tensa nas duas partes, só rompida em “A vinha da baleia”, <strong>de</strong> resto, uma bela<br />
anomalia em seu gozo da dobra e da dilatação sonora num livro <strong>de</strong> opção pelo<br />
<strong>de</strong>scarnado, uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> respiro melódico num livro <strong>de</strong> leveza “bossa nova”<br />
austera. Noutro poema, embora haja “respiros fortes”, a corporalida<strong>de</strong> volta ser reduzida<br />
a “uma ossada <strong>de</strong> sonhos”. Em “Relâmpagos”, um mundo que gira por si mesmo, num<br />
vazio da rotina cuja manifestação é vibrátil: “peixes faca/feixes prata”. Em “Noturnos”,<br />
porém, os verbos anunciam a presença <strong>de</strong> um corpo: “abre/e vibra/a carne <strong>de</strong> fogo.” O<br />
poeta está ali, afinal (“Sinto o cheiro:”). Os poemas parecem seguir uma respiração<br />
corporal, contraindo-se e dilatando-se. O processo é visível nos poemas das páginas,<br />
talvez as melhores do livro, 49-51 e 53-55. O segundo poema <strong>de</strong> cada conjunto <strong>de</strong>ssas<br />
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páginas amplifica e dilata o primeiro poema, como se o reescrevesse, operando<br />
palimpsestos, anunciando, portanto, as traduções com que Domingues fecha seu livro.<br />
Luis Dolhnikoff, em texto <strong>de</strong> apresentação, aponta o caráter contrastante das<br />
paisagens <strong>de</strong>scritas em Lucrécio com relação às fanopeias <strong>de</strong> Domingues (insinuando,<br />
assim, outra reescrita): paisagem clássica <strong>de</strong> nuvens retumbantes e paisagem cansada do<br />
poeta contemporâneo. Além disso, fica mais nítido, com as traduções, o projeto <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>spersonalização como condição do poético presente no texto <strong>de</strong> Domingues. São<br />
traduzidos poemas <strong>de</strong> Catulo e Lucrécio. Nos poemas do primeiro, do Cancioneiro <strong>de</strong><br />
Lésbia, as opções <strong>de</strong> Domingues ten<strong>de</strong>m à síntese e a uma urgência do oral que as<br />
traduções <strong>de</strong> Paulo Sérgio <strong>de</strong> Vasconcellos não têm. Os poemas ganham em agilida<strong>de</strong>,<br />
atualizados para a concisão <strong>de</strong> Mario Domingues. Nos <strong>de</strong> Lucrécio, a tensão retorna sob<br />
a forma <strong>de</strong> poemas que se querem, simultaneamente, proposições <strong>de</strong> ciência e obras <strong>de</strong><br />
arte. O que reitera o caráter extremamente vivo <strong>de</strong> Musga, uma vez que o transe <strong>de</strong><br />
matéria e linguagem e o trânsito entre escrita e reescrita mostram que a ossificação e o<br />
mínimo (a melancolia, por exemplo, é rebatida pelos poemas <strong>de</strong> Catulo) não são a única<br />
marca do livro (aquela “unida<strong>de</strong> ultra discreta” apontada por Dolhnikoff). Deve-se<br />
atentar, além disso, para a saudável proposta <strong>de</strong> fazer equivaler criação e tradução, em<br />
dia com a eliminação do expressionismo. O livro faz sentido, portanto, como projeto <strong>de</strong><br />
constelação <strong>de</strong> tensões operadas pelo rigor da reescrita, procedimento potencializado<br />
pelas várias partes e pelo hibridismo que traz a presença <strong>de</strong> algumas traduções: é<br />
naquela rigorosa tensão interna que os poemas trazem seu maior valor.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS:<br />
DOMINGUES, Mário. Musga. 1a ed. Primeiro <strong>de</strong> Maio - PR: Edições Mirabilia, 2010.<br />
Eletras, vol. 23, n.23, <strong>de</strong>z.2011<br />
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