O erudito e o que é popular Maria Lúcia - USP
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Todavia, para <strong>que</strong>m se debruça efetiva-<br />
mente sobre a realidade das escolas de samba<br />
e sua história, nada tem esta simplicidade<br />
<strong>que</strong> a visão purista supõe. Em primeiro<br />
lugar, por<strong>que</strong> as escolas de samba não nascem<br />
prontas, e o longo processo de sua<br />
formação <strong>é</strong> tamb<strong>é</strong>m um processo contínuo<br />
de transformação, implicando diálogos e<br />
intercâmbios múltiplos, onde se fundem<br />
tradições de origens as mais variadas, no<br />
bojo da evolução da celebração do carnaval,<br />
de <strong>que</strong> se tem registro pelo menos desde<br />
o s<strong>é</strong>culo XIX. Nesse sentido, a história<br />
transforma-se em elemento crucial para se<br />
avaliar o significado da escola de samba,<br />
sua arte e a est<strong>é</strong>tica do seu espetáculo. Em<br />
segundo lugar, por<strong>que</strong> falar da escola de<br />
samba e de uma possível est<strong>é</strong>tica negra <strong>que</strong><br />
nela se abriga <strong>é</strong> tamb<strong>é</strong>m falar do lugar do<br />
negro na sociedade brasileira, o <strong>que</strong>, reconhecemos<br />
todos, constitui <strong>que</strong>stão das mais<br />
espinhosas, frente à herança de uma sociedade<br />
escravocrata, o mito da democracia<br />
racial e as reivindicações dos movimentos<br />
negros contemporâneos: vista dessas diferentes<br />
perspectivas, a mesma História se<br />
reconta em diferentes versões, lida, no presente,<br />
à luz dos pressupostos <strong>que</strong> norteiam a<br />
organização diferencial dos sistemas de valores<br />
sobre os quais tais visões repousam.<br />
Entretanto, falar da escola de samba <strong>é</strong>,<br />
apesar de tudo, falar tamb<strong>é</strong>m de uma est<strong>é</strong>tica<br />
negra, e talvez este enfo<strong>que</strong> centrado<br />
na arte constitua um dos veios mais ricos e<br />
menos explorados em profundidade para<br />
se pensar o lugar do negro na sociedade<br />
brasileira, ou melhor, para se pensar o quanto<br />
em cada brasileiro existe de negritude<br />
inconfessada. O <strong>que</strong> talvez expli<strong>que</strong> o sucesso<br />
das escolas de samba e do candombl<strong>é</strong><br />
entre as classes m<strong>é</strong>dias e o seu racismo<br />
profundo, a vitória simbólica do escravo e<br />
a sua exclusão real, a mestiçagem racial e<br />
cultural brasileira e o apartheid social em<br />
<strong>que</strong> ela se funda, <strong>que</strong> constituem marcas<br />
distintivas da chamada <strong>que</strong>stão racial,<br />
quando vista a partir do Brasil. Tudo isso<br />
implica tamb<strong>é</strong>m redefinir as fronteiras do<br />
<strong>erudito</strong> e do <strong>que</strong> <strong>é</strong> <strong>popular</strong>, com relação à<br />
herança afro-brasileira na formação de<br />
nossa cultura.<br />
Por essa razão, pensar a est<strong>é</strong>tica negra<br />
das escolas de samba exige outro tipo de<br />
corte no tempo, transversal, capaz de recuperar<br />
as marcas de uma história de longa<br />
duração, <strong>que</strong> remetem à presença da mão<br />
afro-brasileira nas artes nacionais e, ao<br />
mesmo tempo, ao modelo da festa barroca<br />
colonial como matriz de uma cultura brasileira<br />
da festa, de <strong>que</strong> o carnaval, e sobretudo<br />
o carnaval das escolas de samba, restou<br />
como o grande avatar (Montes, 1995).<br />
As escolas de samba <strong>que</strong> se formam no<br />
Rio de Janeiro nos anos 20 são herdeiras de<br />
velhas tradições <strong>que</strong>, ao longo do s<strong>é</strong>culo<br />
XIX, vão definindo o multifacetado perfil<br />
do carnaval carioca. Este <strong>é</strong> um processo<br />
marcado sobretudo pela tentativa de civilizar<br />
a celebração tradicional de origem portuguesa<br />
do carnaval, o Entrudo, <strong>que</strong> se brinca<br />
desde o início do s<strong>é</strong>culo XVII no Brasil,<br />
mas tamb<strong>é</strong>m desde então regularmente<br />
proibido, pela violência a <strong>que</strong> dava lugar,<br />
com o uso abundante de água e farinha <strong>que</strong><br />
os desavisados transeuntes recebiam infalivelmente<br />
na cara, ao passar pelas ruas.<br />
Considerava-se sujo o mela-mela e chegouse<br />
mesmo a sugerir a mudança do carnaval<br />
para um mês mais conveniente, junho –<br />
<strong>que</strong>m diria!... pois não <strong>é</strong> <strong>que</strong> a história se<br />
repete? – em vista dos danos à saúde provocados<br />
pela molhança, de <strong>que</strong> viria inclusive<br />
a falecer, em 1850, Grandjean de<br />
Montigny, o arquiteto <strong>que</strong> chegara ao Rio<br />
de Janeiro com a Missão Francesa, em 1816,<br />
sendo responsável por algumas das obras<br />
de maior vulto na reforma da cidade <strong>que</strong><br />
então se seguiu.<br />
Tal processo civilizatório vai assim<br />
contrapor ao Entrudo o modelo dos carnavais<br />
europeus, sobretudo da Itália e da França,<br />
<strong>que</strong> estão na origem da nova forma de<br />
celebração atrav<strong>é</strong>s de bailes famosos, realizados<br />
nas casas das melhores famílias já<br />
desde 1825, e <strong>que</strong> se transfeririam, depois,<br />
para locais públicos. Assim, o Hotel Itália<br />
já em 1840 promove um baile aberto ao<br />
público e, mais tarde, em 1846, tamb<strong>é</strong>m o<br />
Teatro São Januário, onde a celebração<br />
exige o uso de máscaras e fantasia mas<br />
oferece, em contrapartida, boa música –<br />
valsa, habanera, quadrilha e schottische (no<br />
R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 2 ) : 6 - 2 5 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 6 - 9 7 15