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O erudito e o que é popular Maria Lúcia - USP

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eterna indagação sobre o <strong>erudito</strong> e o <strong>que</strong> <strong>é</strong><br />

<strong>popular</strong>, interrogando-me sobre o significado<br />

desse trabalho em permanente oscilação<br />

entre a iminência da catástrofe e a esperança<br />

do impossível. Pois <strong>é</strong> nada menos<br />

<strong>que</strong> isso o <strong>que</strong> envolve o inimaginável esforço<br />

de coordenação necessário para pôr<br />

na rua, em 90 precisos minutos, o milagre<br />

da apresentação de uma escola de samba,<br />

este momento <strong>que</strong> põe em jogo as esperanças<br />

e o trabalho de todo um ano de centenas<br />

de pessoas e no qual, numa aposta alucinada,<br />

tudo se ganha ou tudo se perde no átimo de<br />

um instante, para a glória do efêmero.<br />

Que linguagem era a<strong>que</strong>la <strong>que</strong> permitia<br />

a qual<strong>que</strong>r um compreender, nesse tempo<br />

mágico, de extraordinária densidade, o <strong>que</strong><br />

me esforçaria em vão por transmitir, com<br />

um d<strong>é</strong>cimo de clareza, atrav<strong>é</strong>s de anos de<br />

trabalho acadêmico? Qual o significado de<br />

seus instrumentos de expressão e o segredo<br />

de sua eficácia? Pois então era necessário<br />

levar a s<strong>é</strong>rio a <strong>que</strong>stão da arte e a dimensão<br />

da criação envolvidas no <strong>que</strong> at<strong>é</strong> então<br />

considerara como um documento de outro<br />

tipo sobre a vida social das classes <strong>popular</strong>es?<br />

Percebia assim a cegueira a <strong>que</strong> se<br />

condena o olhar do cientista social, incapaz<br />

de dar conta da torrente de sensações, sentimentos<br />

e emoções envolvidos no mais<br />

deslumbrante espetáculo de uma escola de<br />

samba, assim como na mais singela dança<br />

de devoção num fundo de quintal de uma<br />

casa pobre de periferia.<br />

Então, humildemente, voltei aos mestres<br />

de congos, moçambi<strong>que</strong>s, batu<strong>que</strong>iros,<br />

foliões do Divino, brincantes de boi,<br />

dançadores de São Gonçalo, tocadores de<br />

Folias de Reis e à própria gente de carnaval,<br />

para tentar aprender com eles não a<br />

ordenar a percepção intelectual e a compreensão<br />

racional de sua arte, mas a refinar<br />

o olhar grosseiro, a sensação tosca, a emoção<br />

desencontrada e logo temerosamente<br />

descartada, sem o polimento dos quais,<br />

chegava agora a compreender, muito pouco<br />

valeria meu trabalho. Outros cientistas<br />

sociais, de atenção mais delicada,<br />

etnomusicólogos e antropólogos visuais<br />

sobretudo, já haviam encontrado o caminho<br />

e ajudaram-me a aprofundar um apren-<br />

dizado <strong>que</strong> se estenderia, depois, no trabalho<br />

dos últimos anos na Pinacoteca do Estado,<br />

inventariando com Emanoel Araujo<br />

as múltiplas faces da presença do negro nas<br />

artes no Brasil.<br />

É, pois, com base no cabedal dessas<br />

experiências <strong>que</strong> me proponho a abordar o<br />

carnaval enquanto espetáculo de massa em<br />

<strong>que</strong> de fato ele se transformou na atualidade<br />

e, simultaneamente, enquanto veículo<br />

de expressão de uma est<strong>é</strong>tica negra, procurando<br />

por este ângulo preciso recortar uma<br />

análise <strong>que</strong>, ainda uma vez, repõe em <strong>que</strong>stão<br />

as fronteiras <strong>que</strong> definem o <strong>erudito</strong> e o<br />

<strong>que</strong> <strong>é</strong> <strong>popular</strong>. E se aqui evoco alguns dos<br />

muitos mestres <strong>que</strong> me ensinaram a<br />

redescobrir o Brasil atrav<strong>é</strong>s da presença<br />

negra nas manifestações da sua cultura, <strong>é</strong><br />

menos para encobrir com a sua autoridade<br />

a análise tosca de uma recente aprendiz do<br />

<strong>que</strong> para invocar, atrav<strong>é</strong>s da presença de<br />

<strong>que</strong> a evocação se impregna, um pouco da<br />

fineza e da sabedoria <strong>que</strong> procuraram me<br />

infundir, e <strong>que</strong> são necessárias para tratar<br />

desses temas controversos. Sua licença meu<br />

pai, Preto Velho catimbozeiro! Agô<br />

Elegbara! Agô Ogum!<br />

A ARMADILHA DE UMA VISÃO<br />

“PURISTA” E AS FILIGRANAS<br />

DA HISTÓRIA<br />

A literatura clássica das ciências sociais,<br />

sobretudo de influência frankfurtiana,<br />

sempre procurou separar de maneira precisa,<br />

contrastando-as de modo radical, o <strong>que</strong><br />

ainda seriam resquícios de uma cultura<br />

<strong>popular</strong>, em oposição à cultura erudita, e<br />

sua versão bastarda, <strong>popular</strong>esca, <strong>que</strong> se<br />

produz e difunde quando a expansão dos<br />

meios de comunicação de massa transforma<br />

a cultura em mercadoria, dando origem<br />

à indústria cultural (Adorno,1963;<br />

Cohn,1977). Em <strong>que</strong> pese o impacto da<br />

crítica <strong>que</strong>, desde os anos 70, vem procurando<br />

relativizar o simplismo desses modelos<br />

explicativos (Cohn, 1973), pondo em<br />

xe<strong>que</strong>, portanto, a credibilidade de suas<br />

categorias analíticas, vez por outra, por sua<br />

facilidade mesma, elas voltam insidiosa-<br />

R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 2 ) : 6 - 2 5 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 6 - 9 7 13

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