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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS<br />

ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS DE SÃO PAULO<br />

ANE KATRINE BLIKSTAD MARINO<br />

UM OLHAR MULTICULTURAL SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA<br />

INDÍGENAS NO GOVERNO FEDERAL<br />

SÃO PAULO<br />

2010


FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS<br />

ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS DE SÃO PAULO<br />

ANE KATRINE BLIKSTAD MARINO<br />

UM OLHAR MULTICULTURAL SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA<br />

INDÍGENAS NO GOVERNO FEDERAL<br />

Dissertação Apresentada à Escola <strong>de</strong><br />

Administração <strong>de</strong> Empresas <strong>de</strong> São Paulo<br />

da Fundação Getulio Vargas, como requisito<br />

para obtenção do título <strong>de</strong> Mestre em<br />

Administração Pública e Governo.<br />

Campo <strong>de</strong> Conhecimento:<br />

Transformação do Estado e Políticas Públicas<br />

Orientador: Profª. Dra. Ana Cristina Braga Martes<br />

SÃO PAULO<br />

2010


Blikstad Marino, Ane Katrine.<br />

Um Olhar Multicultural Sobre as Políticas Públicas Para Indígenas no Governo Fe<strong>de</strong>ral /<br />

Ane Katrine Blikstad Marino. – 2010.<br />

150 f.<br />

Orientador: Ana Cristina Braga Martes<br />

Dissertação (mestrado) - Escola <strong>de</strong> Administração <strong>de</strong> Empresas <strong>de</strong> São Paulo.<br />

1. Multiculturalismo. 2. Políticas Públicas. 3. Índios da América do Sul -- Brasil. 4.<br />

Educação intercultural. I. Martes, Ana Cristina Braga. II. Dissertação (mestrado) - Escola <strong>de</strong><br />

Administração <strong>de</strong> Empresas <strong>de</strong> São Paulo. III. Título.<br />

CDU 35(=87)


ANE KATRINE BLIKSTAD MARINO<br />

UM OLHAR MULTICULTURAL SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA<br />

INDÍGENAS NO GOVERNO FEDERAL<br />

Dissertação Apresentada à Escola <strong>de</strong><br />

Administração <strong>de</strong> Empresas <strong>de</strong> São Paulo da<br />

Fundação Getulio Vargas, como requisito para<br />

obtenção do título <strong>de</strong> Mestre em<br />

Administração Pública e Governo.<br />

Campo <strong>de</strong> Conhecimento:<br />

Transformação do Estado e Políticas Públicas<br />

Data <strong>de</strong> Aprovação<br />

__/__/____<br />

Banca examinadora:<br />

________________________<br />

Profª. Dra. Ana Cristina Braga Martes<br />

(Orientadora)<br />

FGV-EAESP<br />

________________________<br />

Prof. Dr. Luís Donisete Benzi Grupioni<br />

Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />

________________________<br />

Prof. Dr. Peter Kevin Spink<br />

FGV-EAESP


Para o meu indiozinho.


Agra<strong>de</strong>cimentos<br />

Esta po<strong>de</strong> parecer para muitos a parte mais fácil do trabalho, mas eu a consi<strong>de</strong>ro tão<br />

<strong>de</strong>licada quanto qualquer outra, posto que tive ajuda dos mais diversos tipos, subjetivos e<br />

objetivos. Assim, com o propósito <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong> todos que colaboraram, faço <strong>de</strong><br />

imediato um agra<strong>de</strong>cimento geral a qualquer pessoa que tenha passado por meus caminhos<br />

durante todo o processo <strong>de</strong>ste estudo.<br />

Começo pelos índios da al<strong>de</strong>ia Caçula <strong>de</strong> Canarana (MT) que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, foram muito<br />

receptivos comigo e permitiram-me a pesquisa <strong>de</strong> campo, ainda que eu não a tenha<br />

realizado, assim como os amigos da região urbana <strong>de</strong> Canarana que, por bom tempo<br />

buscaram as informações <strong>de</strong> que eu necessitava, já que havia limites físicos para a<br />

comunicação com a al<strong>de</strong>ia.<br />

Agra<strong>de</strong>ço também ao Prof. Carlos Fausto e a Cesar Gordon, que foram bastante receptivos<br />

com a minha proposta e me indicaram muitas leituras inspiradoras.<br />

Ainda com relação à primeira fase do projeto, que previa pesquisa <strong>de</strong> campo, agra<strong>de</strong>ço à<br />

confiança e à ajuda do Professor Senador Eduardo Suplicy, que escreveu uma carta <strong>de</strong><br />

apresentação sobre meu trabalho, enviada para a Funai com meu pedido <strong>de</strong> autorização <strong>de</strong><br />

ingresso em terras indígenas.<br />

Já no segundo momento, correspon<strong>de</strong>nte ao atual resultado, agra<strong>de</strong>ço a todos os<br />

entrevistados que me acolheram com solicitu<strong>de</strong>: Jurandir Siridiwê, Felipe Milanez, Jorge Luiz<br />

Teles, Ricardo Henriques e Kleber Gesteira Matos.<br />

Não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> mencionar alguns dos meus amigos e colegas <strong>de</strong> mestrado que<br />

conversavam comigo sobre o assunto e/ou me enviavam material que po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> alguma


valia para a dissertação, como a Cássia Roquetto Fernan<strong>de</strong>s, Maurício Silva Correia, Mariana<br />

Ferreti Lippi, Cristina Sydow, Ana Paula Rocha, Marcelo Maia.<br />

Agra<strong>de</strong>ço a toda a minha turma <strong>de</strong> mestrado TEPP, que esteve muito unida. Nós sempre<br />

apoiamos uns aos outros ao longo <strong>de</strong>sta jornada. Em especial, recordo o encontro do final<br />

do primeiro ano (2008) na casa do Beni.<br />

Minha gratidão à FGV como um todo, pela infraestrutura que me ofereceu, pela<br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> melhor pon<strong>de</strong>ração, especialmente com os créditos <strong>de</strong> “Métodos <strong>de</strong><br />

Pesquisa”, e também à equipe <strong>de</strong> funcionários da secretaria, da coor<strong>de</strong>nação e da biblioteca.<br />

Em suma, obrigada por toda a formação que tive nesses últimos dois anos.<br />

Agra<strong>de</strong>ço ao Núcleo <strong>de</strong> Pesquisa Gestão e Diversida<strong>de</strong> do Programa <strong>de</strong> Gestão Pública e<br />

Cidadania, <strong>de</strong> que participei <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início e que me proporcionou uma experiência única,<br />

especialmente pela compatibilida<strong>de</strong> do tema da minha dissertação com os estudados no<br />

Núcleo, o que favoreceu muitas reflexões para esta análise. Minhas amigas e colegas <strong>de</strong><br />

trabalho sempre foram muito interessadas em saber sobre o andamento da pesquisa: Rocío<br />

Alonso Lorenzo, Natalia Navarro dos Santos e Luciana Coentro.<br />

Preciso fazer uma referência especial à Cybele Giannini, que garantiu a flui<strong>de</strong>z <strong>de</strong>sta<br />

dissertação, com todas as correções, além da paciência que teve com os imprevistos que<br />

alteraram nosso cronograma.<br />

Obrigada à minha banca <strong>de</strong> qualificação do projeto, composta pelos Professores Peter K.<br />

Spink, Luís Donisete Benzi Grupioni, além <strong>de</strong> à minha orientadora. Não tenho palavras para<br />

expressar o quão valiosos eles foram para minha formação acadêmica. Foi um dos gran<strong>de</strong>s<br />

momentos <strong>de</strong> gratificação, porque só ouvi críticas construtivas e incentivos para dar


continuida<strong>de</strong> a este árduo trabalho. O modo como esses professores se portaram em<br />

relação à minha proposta <strong>de</strong> pesquisa só me fez admirar ainda mais essa área. Assim não<br />

houve dúvida em manter a mesma formação <strong>de</strong> banca para a apresentação final <strong>de</strong>sta<br />

dissertação.<br />

Meu reconhecimento à minha orientadora, Profª. Ana Cristina Braga Martes, que nunca<br />

“<strong>de</strong>ixou minha peteca cair”. Não po<strong>de</strong>ria ficar mais feliz com os esclarecimentos que recebi<br />

ao longo <strong>de</strong> todo o Mestrado. Ela soube com maestria incentivar-me nos momentos <strong>de</strong><br />

incerteza e angústia e impor o rigor da disciplina, necessário para este trabalho ser<br />

concluído. Também <strong>de</strong>vo fazer menção a seu marido, o Prof. Ronaldo Porto Macedo Júnior,<br />

que sempre procurou saber como andava minha pesquisa, me sugeriu leituras e participou<br />

<strong>de</strong> várias discussões sobre o tema quando eu ia à casa da Cris.<br />

Agra<strong>de</strong>ço a meus pais, Eric e Jussára, à minha irmã Rebeka, a meu cunhado Torstein e a<br />

meus irmãos, Mikhael e Nathan, que foram muito compreensivos com tantas ausências<br />

minhas em razão das <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong>ste trabalho. Não posso <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> elogiar o empenho <strong>de</strong><br />

minha mãe em sempre me trazer recortes <strong>de</strong> jornais e revistas que ela consi<strong>de</strong>rava<br />

interessante para este estudo.<br />

Enalteço meu marido e companheiro, Rodolfo, pelo apoio incondicional a minhas tomadas<br />

individuais <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão sobre o percurso que eu faria ao longo do mestrado, assim como pelo<br />

comprometimento com as <strong>de</strong>cisões familiares. Sua paciência e incentivo foram<br />

fundamentais para este projeto. Soube estimular-me a dar o melhor <strong>de</strong> mim e não mediu<br />

esforços para promover discussões bem embasadas (por muitas noites nossas conversas<br />

versavam somente sobre esse tema). Assim, faltam-me palavras para expressar toda a<br />

minha gratidão. Por fim, eu <strong>de</strong>veria fazer este último agra<strong>de</strong>cimento no parágrafo seguinte,


mas a situação permite que eu o faça neste mesmo: ao nosso querido filho, por estar<br />

proporcionando à sua mãe uma gestação tão tranquila durante todo o trabalho.


Resumo<br />

Este trabalho parte da premissa <strong>de</strong> que as políticas públicas universalistas não po<strong>de</strong>m ser<br />

concebidas uniformemente para uma população sem se consi<strong>de</strong>rarem as diferenças<br />

culturais, porque tal situação comprometeria os resultados <strong>de</strong>sejados.<br />

Para elucidarmos melhor tal premissa, selecionamos a questão indígena brasileira. A<br />

referência teórica <strong>de</strong>sta pesquisa, o multiculturalismo, é estrangeira, portanto não<br />

ignoramos as limitações e a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> adaptação <strong>de</strong> que necessita quando<br />

transportada para a realida<strong>de</strong> brasileira.<br />

De duas análises já existentes sobre o nível <strong>de</strong> políticas multiculturais nos países Latinos,<br />

comparamos a situação do Brasil com os outros países a fim <strong>de</strong> formar uma idéia geral sobre<br />

o contexto brasileiro em relação aos <strong>de</strong>mais.<br />

A pesquisa, então, parte da revisão das condições históricas dos indígenas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos<br />

1970 e é complementada com indicadores <strong>de</strong>mográficos das populações autóctones<br />

cotejadas com a nacional. Nesse momento já po<strong>de</strong>mos apontar as dificulda<strong>de</strong>s no aspecto<br />

normativo das políticas públicas multiculturais. Uma análise <strong>de</strong>talhada das propostas <strong>de</strong><br />

políticas públicas específicas para os indígenas, no Plano Plurianual <strong>de</strong> 2008-2011 do<br />

Governo Fe<strong>de</strong>ral, indica possíveis contradições entre diferentes programas e ações.<br />

Também verificamos a forma como o Ministério da Educação (MEC) e a sua Secretaria<br />

específica (SECAD/MEC) abordam a questão da diversida<strong>de</strong> cultural, na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> programas<br />

e ações sob perspectiva diferente dos do multiculturalismo.


Finalizamos com um estudo dos limites e das oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse tratamento na questão<br />

indígena no Brasil, do que se conclui que há um movimento incipiente pró-multiculturalismo<br />

no país.


Abstract<br />

This dissertation starts from the i<strong>de</strong>a that universal public policies cannot be conceived<br />

uniformly, without taking into consi<strong>de</strong>ration the cultural differences, since the results of<br />

those policies may compromise the <strong>de</strong>sired outcomes.<br />

In or<strong>de</strong>r to better explore this i<strong>de</strong>a, the issue of indigenous peoples in Brazil was selected.<br />

‘Multiculturalism’ is the theoretical approach adopted, but the research consi<strong>de</strong>rs its<br />

possible shortcomings and adaptations when applied to the Brazilian context.<br />

By two existent analyses, the Brazilian policies for indigenous people are compared to those<br />

of other Latin American countries in or<strong>de</strong>r to form a general view of the Brazilian context.<br />

Next, the history of the indigenous people in Brazil since 1970’s is reviewed and<br />

complemented by an analysis of the <strong>de</strong>mographic indicators, compared to those of the rest<br />

of the Brazilian population. At this point, the normative difficulties for crafting multicultural<br />

policies are highlighted. A <strong>de</strong>tailed analysis of Pluriannual Plan (2008-2011) of Brazilian<br />

fe<strong>de</strong>ral government fleshes out possible contradictions of different programs.<br />

The role of the Ministry of Education regarding its approach to cultural diversity is then<br />

analysed, including its differences with the “multicultural” approach.<br />

In the end, we approach the limits and opportunities of the theory to the Brazilian<br />

indigenous people, which lead us to conclu<strong>de</strong> that there is an incipient movement pro-<br />

multiculturalist in Brazil.


Lista <strong>de</strong> Tabelas, Figura e Quadro<br />

Tabela 1 – Os enfoques dos níveis <strong>de</strong> análise<br />

Tabela 2 – Os quatro instrumentos internacionais, vigentes na América Latina, sobre<br />

indígenas<br />

Tabela 3 – Países da América Latina que ratificaram tratados internacionais sobre a temática<br />

indígena<br />

Tabela 4 – Provisões constitucionais sobre os povos indígenas<br />

Tabela 5 – Políticas multiculturais para os indígenas na América Latina<br />

Tabela 6 – Ranking <strong>de</strong> adoção <strong>de</strong> políticas multiculturais dos países da América Latina<br />

Tabela 7 – Os objetivos <strong>de</strong> governo do PPA 2008-2011<br />

Tabela 8 – Objetivos <strong>de</strong> governo e os indígenas<br />

Tabela 9 – Fun<strong>de</strong>b: Coeficiente <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> recursos por modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ensino<br />

Figura 1 – A estrutura do PPA 2008-2011<br />

Quadro 1 – Multiculturalismo: Limites e Oportunida<strong>de</strong>s da Abordagem Para a Questão<br />

Indígena no Brasil


Glossário <strong>de</strong> Siglas e Abreviações<br />

Funai – Fundação Nacional do Índio;<br />

MEC – Ministério da Educação;<br />

INEP – Instituto Nacional <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira;<br />

IBGE – Instituto Brasileiro <strong>de</strong> Geografia e Estatísticas;<br />

ISA – Instituto Socioambiental<br />

UNESCO – United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization<br />

III – Instituto Indigenista Interamericano<br />

OIT – Organização Internacional do Trabalho<br />

AL – América Latina<br />

SPI – Serviço <strong>de</strong> Proteção ao Índio<br />

ONG – Organização Não Governamental<br />

Funasa – Fundação Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong><br />

OMS – Organização Mundial <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong><br />

PPA – Plano Plurianual<br />

SECAD – Secretaria <strong>de</strong> Educação Continuada, Alfabetização e Diversida<strong>de</strong><br />

MJ – Ministério da Justiça<br />

LDB – Lei das Diretrizes e Bases <strong>de</strong> Educação Nacional<br />

CNE – Conselho Nacional <strong>de</strong> Educação<br />

SIL – Summer Institute of Linguistics<br />

Fun<strong>de</strong>b – Fundo <strong>de</strong> Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e <strong>de</strong> Valorização<br />

dos Profissionais da Educação<br />

FNDE – Fundo Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento da Educação<br />

Prouni – Programa Universida<strong>de</strong> para Todos


Sumário<br />

1. Introdução...................................................................................................................... 16<br />

2. Metodologia ................................................................................................................... 21<br />

3. A Abordagem Multicultural ............................................................................................ 25<br />

3.1. Uma Definição Preliminar ................................................................................................ 28<br />

3.2. Ambiguida<strong>de</strong> e Obscurida<strong>de</strong> da Abordagem Multicultural ............................................... 31<br />

3.3. Três Autores, Duas Vertentes do Multiculturalismo ......................................................... 34<br />

3.3.1. Charles Taylor: Democracia e Multiculturalismo .......................................................... 34<br />

Reconhecimento e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> .................................................................................................. 37<br />

Políticas igualitárias inóspitas às diferenças .............................................................................. 40<br />

3.3.2. Will Kymlicka: E Como os Índios Entram Nessa História? .............................................. 43<br />

Os Conquistados-Colonizados e os Imigrantes .......................................................................... 44<br />

O Conflito Entre Direitos Individuais e Direitos Coletivos .......................................................... 48<br />

O Multiculturalism Policy In<strong>de</strong>x ................................................................................................. 51<br />

3.3.3. Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos: Referência “Oficial” no Brasil ......................................... 55<br />

Condições Para Uma Política Emancipatória ............................................................................. 57<br />

Os Direitos Humanos Como Culturas e a Globalização Como Formas <strong>de</strong> Manifestação da Cultura<br />

................................................................................................................................................. 58<br />

Premissas Para Uma Política Multicultural Emancipatória ......................................................... 60<br />

O Diálogo Intercultural ............................................................................................................. 62<br />

3.4. Uma Sistematização Possível ........................................................................................... 66<br />

4. O Brasil Indígena no Contexto Latino .............................................................................. 73<br />

4.1. No Cenário dos Tratados Internacionais e Declarações .................................................... 74<br />

4.2. A aplicação da abordagem: Multiculturalism Policy In<strong>de</strong>x ................................................ 82<br />

4.3. Comparações Possíveis .................................................................................................... 87<br />

5. O Brasil e a Questão Indígena ......................................................................................... 89<br />

5.1. Histórico .......................................................................................................................... 91<br />

5.2. População Indígena no Brasil: Alguns Indicadores ............................................................ 99<br />

6. O Plano Plurianual (PPA) 2008-2011 Incorpora Preocupações Multiculturais? .............. 106<br />

7. Educação na Diversida<strong>de</strong> ................................................................................................... 113<br />

7.1. Educação Escolar Indígena ............................................................................................. 120


7.1.1 Programas Educacionais com Recorte Específico Para Indígenas .................................... 128<br />

8. Conclusão ..................................................................................................................... 137<br />

Referências .......................................................................................................................... 143<br />

Anexos ................................................................................................................................. 148


1. Introdução<br />

O objetivo inicial aqui era o <strong>de</strong> estudar os impactos que políticas públicas <strong>de</strong> transferência <strong>de</strong><br />

renda, em particular o Programa Bolsa-Família, tinham sobre uma al<strong>de</strong>ia específica, após<br />

nossa visita informal ao lugar, que ocorreu rapidamente, em julho <strong>de</strong> 2008, à al<strong>de</strong>ia indígena<br />

Caçula, na região do Mato Grosso, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Canarana. Daí surgiu a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>sta proposta<br />

<strong>de</strong> pesquisa.<br />

A partir <strong>de</strong>sse insight, entramos em contato com pessoas que conheciam o Programa Bolsa-<br />

Família e al<strong>de</strong>ias indígenas. Tivemos as primeiras conversas com alguns cidadãos do<br />

município sobre a percepção pessoal da relação dos índios das al<strong>de</strong>ias vizinhas com os<br />

moradores da cida<strong>de</strong>.<br />

Maria Olga Reyes, que trabalhou como professora em uma al<strong>de</strong>ia indígena, narrou casos <strong>de</strong><br />

conflito entre índios e habitantes da cida<strong>de</strong>, o que indicava como essas relações eram<br />

influenciadas pelas diferenças culturais.<br />

Por termos graduação em Administração Pública, não pu<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pensar a respeito<br />

do que observamos naquela comunida<strong>de</strong>: índios que esperavam, no final do mês, receber o<br />

auxílio do Programa Bolsa-Família para comprar seus mantimentos em mercados locais. Isso<br />

criou neles uma relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência do Governo e do comércio local. Não <strong>de</strong>vemos<br />

generalizar essa mudança <strong>de</strong> padrão <strong>de</strong> consumo em função <strong>de</strong> um programa fe<strong>de</strong>ral, mas<br />

suspeitamos que projetos governamentais não atentam suficientemente para a cultura dos<br />

beneficiários, <strong>de</strong> modo que há interferências na lógica própria <strong>de</strong> organização social e<br />

econômica da comunida<strong>de</strong>; neste caso, a indígena.<br />

16


Realizamos aqui uma análise que antece<strong>de</strong> o questionamento dos efeitos <strong>de</strong> políticas<br />

públicas universalizadoras, aplicadas a distintos grupos populacionais, em particular aos<br />

indígenas, sem consi<strong>de</strong>rar seriamente as diferenças culturais dos beneficiários como variável<br />

fundamental para resultados.<br />

Nossa proposta é a <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r os limites e as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma abordagem<br />

multicultural nas políticas públicas fe<strong>de</strong>rais, relativamente aos indígenas. Em substituição à<br />

pesquisa <strong>de</strong> campo, esta dissertação tem, como base, documentos oficiais e estudos<br />

(acadêmicos) <strong>de</strong> diversos autores.<br />

Não há teoria que discorra sobre toda a complexida<strong>de</strong> das relações humanas, cercadas pelas<br />

próprias diversida<strong>de</strong>s culturais, sociais, religiosas, <strong>de</strong> gênero, <strong>de</strong> minorias como “verda<strong>de</strong><br />

absoluta”, mas selecionamos para este trabalho um tratamento especialmente relevante no<br />

que diz respeito à aplicabilida<strong>de</strong> em políticas públicas voltadas para as minorias.<br />

Assim, o foco <strong>de</strong>ste estudo está na questão indígena compreendida como minoria 1 e revê<br />

parte da literatura da Filosofia Política naquilo que po<strong>de</strong> ser agregado ao tema principal aqui<br />

examinado: políticas públicas, caso contrário, o mestrado não po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> Administração<br />

Pública – Transformações do Estado e Políticas Públicas.<br />

Pela proposição <strong>de</strong> que vários programas com que os índios são contemplados possuem<br />

abrangência nacional sem levar em conta as diferenças culturais da população brasileira, os<br />

resultados seriam consistentes com os objetivos, ou estariam comprometendo a eficácia das<br />

políticas?<br />

1 Como veremos ao longo <strong>de</strong>sta dissertação, a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> minoria sofrerá alterações significativas entre a<br />

teoria e a aplicação na realida<strong>de</strong> brasileira.<br />

17


Partimos do pressuposto <strong>de</strong> que tais políticas públicas, concebidas uniformemente para<br />

segmentos vulneráveis da população, não porque são pobres, mas porque são minorias,<br />

<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ram as especificida<strong>de</strong>s socioculturais <strong>de</strong>sses segmentos, mormente as <strong>de</strong> caráter<br />

étnico-cultural. Os indícios são <strong>de</strong> que os índios abandonam uma realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência<br />

da natureza, para se tornarem reféns <strong>de</strong> outra realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> extrema pobreza e <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>pendência do Governo. Em outras palavras,<br />

[d]e um lado, estabelecem laços permanentes <strong>de</strong> articulação e <strong>de</strong>pendência<br />

com o mercado, <strong>de</strong> outro, tornam-se <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes tanto da proteção do<br />

Estado (<strong>de</strong>marcação e garantia <strong>de</strong> territórios, atendimento à saú<strong>de</strong>, projetos<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômico, etc.) quanto <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s indigenistas civis<br />

e agências <strong>de</strong> outra or<strong>de</strong>m, com as quais po<strong>de</strong>m conjunturalmente<br />

estabelecer alianças. (ARRUDA, 2001, p.51)<br />

Tais relações são resultado <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> reor<strong>de</strong>nação sociocultural contraditório e<br />

ambíguo que ocorre nas socieda<strong>de</strong>s indígenas após a primeira fase <strong>de</strong> contato com a<br />

socieda<strong>de</strong> nacional. E, para melhor explicar esse cenário, a abordagem multicultural é<br />

analisada e avaliada como ferramenta para a revisão das políticas públicas atuais.<br />

Estudaremos três autores que nos fornecerão um embasamento teórico sobre o<br />

multiculturalismo, com a ressalva <strong>de</strong> que esta abordagem é estrangeira e precisa <strong>de</strong><br />

adaptações à realida<strong>de</strong> brasileira.<br />

Em seguida, situaremos o Brasil no contexto latino-americano multicultural <strong>de</strong> maneira<br />

ampla para facilitar nosso ingresso no indigenismo brasileiro. São dois estudos <strong>de</strong> autoras<br />

estrangeiras que se baseiam em previsões <strong>de</strong> direitos nas constituições e em documentos<br />

internacionais.<br />

18


Assim, entramos no Brasil e na questão indígena com um histórico dos movimentos <strong>de</strong>sses<br />

povos da década <strong>de</strong> 1970 até a atualida<strong>de</strong>. Essa contextualização se faz necessária para<br />

compreen<strong>de</strong>rmos a construção das políticas públicas e dos direitos diferenciados para os<br />

índios.<br />

Não po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> trazer dados estatísticos <strong>de</strong>sses grupos sobre saú<strong>de</strong> e educação e<br />

compará-los à situação nacional, para a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> tratamento dos aspectos culturais nos<br />

programas <strong>de</strong> governo.<br />

Por o multiculturalismo não aceitar a neutralida<strong>de</strong> do Estado, propomos uma avaliação do<br />

Planejamento Plurianual (2008-2011) para captarmos a visão do atual Governo sobre as<br />

questões indígenas sob o prisma da abordagem multicultural, isto é, relacionaremos<br />

algumas dúvidas e pontos relevantes para colaborar com o processo <strong>de</strong> conclusão sobre esse<br />

tratamento nas políticas públicas.<br />

Por fim, optamos pela educação, justamente pela relevância <strong>de</strong>sse setor na formação da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional e na das minorias.<br />

Primeiramente, tratamos da secretaria responsável pela Diversida<strong>de</strong> (Secretaria <strong>de</strong> Educação<br />

Continuada e Alfabetização, Diversida<strong>de</strong> - SECAD), exatamente para lhe compreen<strong>de</strong>rmos o<br />

posicionamento quanto à diversida<strong>de</strong> cultural do país. Em segundo lugar, i<strong>de</strong>ntificamos dois<br />

programas com recortes específicos para os indígenas: um que observa a questão cultural e<br />

outro, uma questão muito pertinente no Brasil, a da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social.<br />

Acreditamos que, ao estudar os indígenas, também estaremos esten<strong>de</strong>ndo o olhar à própria<br />

socieda<strong>de</strong> brasileira e verificando como ela se relaciona com suas minorias.<br />

19


Guardadas as proporções, este processo po<strong>de</strong>rá ser similar aos trabalhos <strong>de</strong> Roberto<br />

Cardoso <strong>de</strong> Oliveira e Florestan Fernan<strong>de</strong>s que, ao estudarem a “fricção interétnica” <strong>de</strong><br />

índios e brancos e a integração dos negros na socieda<strong>de</strong> respectivamente, criaram<br />

“indicadores sociológicos” para pensar e compreen<strong>de</strong>r com maior profundida<strong>de</strong> a socieda<strong>de</strong><br />

nacional 2 .<br />

2 Ver artigo <strong>de</strong> Bianca Wild (2007), disponível em: , acesso<br />

em 2010.<br />

20


2. Metodologia<br />

Este trabalho procura examinar como a abordagem teórica do multiculturalismo po<strong>de</strong><br />

contribuir (ou não) para iluminar a questão indígena brasileira do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> políticas<br />

públicas e, em particular, clarear as políticas e os programas <strong>de</strong> educação indígena no<br />

âmbito fe<strong>de</strong>ral.<br />

A fim <strong>de</strong> possibilitar um diálogo entre o nível abstrato da abordagem teórica (normativa) e<br />

as práticas (ver Tabela 1), optamos por aplicar a primeira às dimensões mais normativas das<br />

políticas públicas fe<strong>de</strong>rais indígenas, que incluem entrevistas com atores qualificados e<br />

documentos formais (ex: PPA, <strong>de</strong>cretos e resoluções) que exprimem claramente os objetivos<br />

dos programas, seu <strong>de</strong>senho e o impacto esperado.<br />

Sabemos, evi<strong>de</strong>ntemente, que, na prática, os projetos dificilmente são implantados da forma<br />

como foram concebidos e que inclusive sofrem ajustes localmente. Como nossa análise se<br />

dará em termos do governo fe<strong>de</strong>ral, as conclusões <strong>de</strong>sta dissertação <strong>de</strong>vem ser<br />

consi<strong>de</strong>radas com essa ressalva.<br />

Estudos futuros po<strong>de</strong>rão ser complementares a este se levar em conta os processos e as<br />

ambiguida<strong>de</strong>s existentes na formulação e na implementação das políticas.<br />

A pesquisa por documentos e informações oficiais que foi necessário realizar para<br />

contextualizar a situação dos povos indígenas brasileiros advém majoritariamente dos<br />

seguintes websites governamentais: Presidência, Fundação Nacional do Índio – FUNAI,<br />

Ministério da Educação – MEC, Instituto Nacional <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio<br />

Teixeira – INEP, Instituto Brasileiro <strong>de</strong> Geografia e Estatísticas – IBGE, Ministério do<br />

Planejamento, Orçamento e Gestão – MP, porém, em algumas ocasiões, as informações não<br />

21


estavam atualizadas, disponíveis ou não foi possível ter acesso a algumas páginas, daí a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outras serem extraídas <strong>de</strong> websites não governamentais, como o Instituto<br />

Socioambiental – ISA.<br />

Tabela 1 – Os enfoques dos níveis <strong>de</strong> análise<br />

Nível <strong>de</strong> Análise /<br />

Enfoque<br />

Multiculturalismo<br />

Políticas Públicas<br />

Programas<br />

Descritivo/Empírico Normativo<br />

Convivência <strong>de</strong> grupos<br />

diferenciados<br />

culturalmente num<br />

mesmo território<br />

Processo <strong>de</strong> disputas,<br />

marcado por<br />

ambiguida<strong>de</strong>s, entre<br />

órgãos, atores, esferas<br />

<strong>de</strong> governo<br />

Processo <strong>de</strong> efetiva<br />

implementação dos<br />

programas “na ponta”.<br />

Leva em consi<strong>de</strong>ração,<br />

p.ex. A percepção dos<br />

usuários e o street-level<br />

bureaucracy<br />

Fonte: elaboração própria, utilizando COLEBATCH (2002, p.62)<br />

Prescreve modos <strong>de</strong><br />

solucionar os<br />

“problemas” da<br />

convivência entre<br />

pessoas e entre<br />

diferentes grupos<br />

culturais nas socieda<strong>de</strong>s<br />

plurais<br />

Objetivos<br />

legitimamente<br />

<strong>de</strong>finidos e seguidos<br />

racionalmente (ex:<br />

PPA)<br />

Análise do <strong>de</strong>senho do<br />

programa (ex: públicoalvo,<br />

critérios <strong>de</strong><br />

elegibilida<strong>de</strong>, etc.) e<br />

sua coerência com<br />

objetivos mais gerais <strong>de</strong><br />

governo.<br />

Além disso, há elementos que po<strong>de</strong>riam estar mais atualizados e isso não se <strong>de</strong>ve a<br />

problemas <strong>de</strong> acesso. A seção População Indígena no Brasil: Alguns Indicadores é criada<br />

por meio <strong>de</strong> informações que po<strong>de</strong>riam ser mais atuais, mas que, na verda<strong>de</strong>, datam <strong>de</strong><br />

2005 e 2006. Decidimos consi<strong>de</strong>rá-las assim mesmo por não acreditarmos que o panorama<br />

tenha mudado significativamente nos últimos quatro anos e, <strong>de</strong>ssa forma, aproveitarmos<br />

trabalhos que já haviam manipulado os dados primários.<br />

22


No início do projeto, para melhor compreen<strong>de</strong>rmos a questão indígena no Brasil,<br />

entrevistamos Jurandir Siridiwê, presi<strong>de</strong>nte do Instituto das Tradições Indígenas – IDETI –, o<br />

que nos permitiu inferir, antes mesmo <strong>de</strong> sabermos qual seria o recorte mais preciso do<br />

trabalho, que o assunto (multiculturalismo) não só era interessante para nós, como estava<br />

presente nas <strong>de</strong>mandas indígenas por educação e saú<strong>de</strong> diferenciadas, entre outras.<br />

Felipe Milanez, assessor da presidência da Funai (2005-2007), também entrevistado,<br />

confirmou nossas expectativas <strong>de</strong> trabalho, além <strong>de</strong> contribuir para a reflexão sobre o papel<br />

da Funai.<br />

Todavia a não utilização do termo multiculturalismo nas leis, nos <strong>de</strong>cretos ou mesmo em<br />

documentos <strong>de</strong> políticas públicas no Brasil e a preferência pela palavra interculturalida<strong>de</strong>,<br />

além <strong>de</strong> os recortes dos programas da educação fugirem à abordagem multicultural,<br />

pu<strong>de</strong>ram ser mais bem compreendidos pelas conversas com Ricardo Henriques, secretário<br />

da SECAD (2004-2006), Kleber Gesteira Matos, coor<strong>de</strong>nador Geral <strong>de</strong> Apoio às Escolas<br />

Indígenas (2003-2007), e Jorge Luiz Teles, assessor do Secretário (2003 – 2006) e diretor <strong>de</strong><br />

políticas <strong>de</strong> Educação <strong>de</strong> Jovens e Adultos (2006-atualmente).<br />

Esta pesquisa contou com um informante qualificado, Rodolfo Villela Marino, que forneceu<br />

não só os contatos da SECAD, como documentos internos da Secretaria, que contribuíram<br />

<strong>de</strong>cisivamente para as análises <strong>de</strong>sta dissertação.<br />

O multiculturalismo tem suas especificida<strong>de</strong>s e é concebido num contexto muito diferente<br />

do do Brasil, principalmente no que tange aos números das “minorias” brasileiras em<br />

comparação com os dos países <strong>de</strong> origem da abordagem.<br />

23


Como será apresentado ao longo <strong>de</strong>sta dissertação, os negros e pardos brasileiros po<strong>de</strong>m<br />

ser enquadrados em políticas multiculturais, mas com mudanças significativas <strong>de</strong> resultados,<br />

uma vez que a abordagem multicultural prevê os efeitos apenas para grupos numericamente<br />

pequenos, entretanto acreditamos que essas limitações não impe<strong>de</strong>m a reflexão sobre<br />

políticas públicas multiculturais indigenistas.<br />

Uma importante e necessária observação é a <strong>de</strong> que este trabalho tem restrições <strong>de</strong> análises<br />

nas políticas educacionais indigenistas. Como já mencionado, não houve avaliação da<br />

eficácia dos programas educacionais abordados e os que foram escolhidos para relação com<br />

a abordagem multicultural não foram aprofundados. Estudos futuros po<strong>de</strong>rão fazer um<br />

levantamento geral dos programas e <strong>de</strong>talhar o funcionamento <strong>de</strong>les.<br />

Assim, nossa discussão centrou-se fundamentalmente na contribuição do multiculturalismo<br />

para políticas públicas diferenciadas no Brasil.<br />

No próximo capítulo, apresentaremos a abordagem multicultural com <strong>de</strong>finições<br />

preliminares e os três autores selecionados para essa discussão.<br />

24


3. A Abordagem Multicultural<br />

O termo multiculturalismo, em seu sentido estrito, po<strong>de</strong> ser usado tanto para <strong>de</strong>screver a<br />

coexistência <strong>de</strong> diferentes grupos culturais ou étnicos num mesmo território, como também<br />

para prescrever formas <strong>de</strong> equacionar as questões e problemas surgidos pela interação (ou<br />

não) entre as pessoas e esses diferentes grupos <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> pluralista. (MARTUCCELLI,<br />

1996; SILVA, 2006)<br />

Em seu sentido mais amplo, o multiculturalismo também incluiria os movimentos sociais<br />

feministas, o movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis), os raciais (ex:<br />

movimento negro), entre outros recortes sociais que sejam ou possam apresentar-se como<br />

legítimos ao restante da socieda<strong>de</strong>.<br />

Este trabalho vai concentrar-se na abordagem prescritiva (ou normativa) e estrita do<br />

multiculturalismo. Isso porque queremos estudar, sob a ótica <strong>de</strong> um dado arcabouço<br />

normativo, especificamente a questão dos grupos indígenas no Brasil.<br />

Por ter-se tornado uma palavra polissêmica pelos usos comuns, disseminados em vários<br />

países do mundo, é importante observar como seus principais teóricos (tanto em termos <strong>de</strong><br />

reconhecimento acadêmico como <strong>de</strong> aceitação por formuladores <strong>de</strong> políticas) o concebem.<br />

Para isso, serão examinados textos <strong>de</strong> três autores: Charles Taylor, Will Kymlicka e<br />

Boaventura <strong>de</strong> Souza Santos.<br />

Não obstante as diferenças i<strong>de</strong>ológicas e <strong>de</strong> ênfase entre esses autores, <strong>de</strong> maneira geral, o<br />

multiculturalismo busca questionar – seja pela ampliação ou pelo rompimento – os limites<br />

do pensamento teórico liberal.<br />

25


Inicialmente, é essencial situar o contexto histórico em que emergiu esse tema. Foi na<br />

década <strong>de</strong> 1960 que houve uma tendência mais clara <strong>de</strong> afirmação das características<br />

singulares entre os cidadãos no mundo oci<strong>de</strong>ntal, particularmente nos Estados Unidos.<br />

Como exemplos, po<strong>de</strong>mos citar a atuação <strong>de</strong> Martin Luther King Jr. em <strong>de</strong>fesa dos afro-<br />

americanos, os movimentos gays e o feminismo. Antes <strong>de</strong>sses, algumas décadas antes, o<br />

nazismo também já havia propugnado a diferença entre as pessoas. Exceto aqueles que<br />

foram superados pelo antirracismo, como o nazismo, todos os outros traziam à tona i<strong>de</strong>ias<br />

<strong>de</strong> direitos humanos e <strong>de</strong> cidadania universal e davam forma a políticas progressistas. Esse<br />

período das políticas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> foi chamado <strong>de</strong> multiculturalismo nos EUA (MODOOD,<br />

2007).<br />

O movimento multicultural espalhou-se primeiramente por países constituídos por<br />

imigrantes ao longo da História <strong>de</strong> sua formação, como os EUA, o Canadá e a Austrália, que<br />

são vistos como multiétnicos na composição e on<strong>de</strong> a assimilação era inevitável, apesar <strong>de</strong><br />

não obrigatória.<br />

A questão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, portanto, tradicionalmente legada à esfera da vida privada pelo<br />

liberalismo, passa a ocupar espaços da esfera pública. Dessa novida<strong>de</strong> histórica, surge a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> buscar nova articulação entre i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> individual ou <strong>de</strong> grupo e a política<br />

(MARTUCCELLI, 1996; SEMPRINI, 1999). Martuccelli (1996, p.19) argumenta<br />

persuasivamente que “é próprio à <strong>de</strong>mocracia [...] sua indiferença pelo problema i<strong>de</strong>ntitário:<br />

classicamente, sempre se consi<strong>de</strong>ra que ele se possa traduzir, via direitos universais, em<br />

problema civil ou em problema social”. A própria noção <strong>de</strong> cidadão é <strong>de</strong> um ser abstrato<br />

cujas necessida<strong>de</strong>s são universais e, portanto, não se trata <strong>de</strong> uma pessoa real, com<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> própria ou <strong>de</strong> grupo.<br />

26


Dessa forma, o que apresentaremos a seguir, <strong>de</strong> acordo com a proposta <strong>de</strong>ste trabalho, são<br />

três recortes <strong>de</strong>ssa abordagem multicultural, que afunilam o tema.<br />

O primeiro, Charles Taylor: Democracia e Multiculturalismo apresenta um panorama geral<br />

<strong>de</strong>sse assunto e trata <strong>de</strong> um embate característico <strong>de</strong> nossa época: universalismo versus<br />

particularismo. O segundo, Will Kymlicka: E Como os Índios Entram Nessa História?, focaliza<br />

a questão indígena e indica as especificida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas e direitos, segundo o autor. O<br />

último, Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos: Referência “Oficial” no Brasil, explica a fonte <strong>de</strong><br />

inspiração brasileira para a formulação das próprias políticas públicas multiculturais.<br />

Porém, antes <strong>de</strong> tratarmos do multiculturalismo, faz-se <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevância conceituarmos<br />

um termo anterior a ele: cultura. Nessa tentativa, fica claro que, apesar <strong>de</strong> adotarmos o<br />

conceito <strong>de</strong> apenas um autor, as dificulda<strong>de</strong>s para <strong>de</strong>terminar com precisão os limites do<br />

que é cultura são enormes. Ainda assim, consi<strong>de</strong>ramos o exercício válido e fundamental para<br />

a continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste trabalho.<br />

Nessa mesma parte <strong>de</strong>sta revisão <strong>de</strong> literatura, em Ambiguida<strong>de</strong> e Obscurida<strong>de</strong> da<br />

Abordagem Multicultural, procuramos situar os entraves no tratamento da questão, com o<br />

exemplo <strong>de</strong> um referendo <strong>de</strong> Massachusetts, EUA.<br />

27


3.1. Uma Definição Preliminar<br />

Antes <strong>de</strong> discutirmos o multiculturalismo, é necessário conceituar o termo cultura, anterior<br />

àquele. Dentre as inúmeras opções <strong>de</strong> conceitos, escolhemos a <strong>de</strong> Clifford Geertz ([1968]<br />

1989) pela <strong>de</strong>finição antropológica, coerente com esta dissertação, apesar <strong>de</strong> não nos<br />

preocupamos em discorrer como antropóloga, mas por reconhecermos que a Antropologia<br />

existe e que também há conceitos fundamentais para o campo:<br />

[A cultura] <strong>de</strong>nota um padrão <strong>de</strong> significados, transmitido historicamente,<br />

incorporado em símbolos, um sistema <strong>de</strong> concepções herdadas, expressas<br />

em formas simbólicas, por meio das quais os homens comunicam, perpetuam<br />

e <strong>de</strong>senvolvem seu conhecimento e suas ativida<strong>de</strong>s em relação à vida. (Ibid.,<br />

p.103)<br />

Ainda segundo o autor, “a cultura é pública porque o significado o é”. Porém não se trata <strong>de</strong><br />

um po<strong>de</strong>r que explica os comportamentos sociais. É no contexto que os comportamentos se<br />

tornam “inteligíveis”. No caso, trata-se <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> ações sociais em que as formas<br />

culturais encontram articulação.<br />

Isso nos leva a afirmar que a cultura tem algum grau <strong>de</strong> coerência para que haja alguma<br />

sistematização. O problema é que essa sistematização não é precisa nem rígida, e<br />

justamente aí está a sua riqueza.<br />

Todavia há que se chamar a atenção para um dos gran<strong>de</strong>s riscos da Antropologia: segundo<br />

Geertz (1989), essa ciência tem sido mo<strong>de</strong>lada para “justificar a mudança <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s locais<br />

para visões gerais”. Assim, em concordância com o autor, não <strong>de</strong>sejamos generalizar<br />

particularida<strong>de</strong>s culturais e tomamos o cuidado, neste projeto, <strong>de</strong> discutir a possibilida<strong>de</strong> da<br />

abordagem multicultural na elaboração e gestão das políticas públicas que incorporem ou<br />

respondam às particularida<strong>de</strong>s locais, para potencializar a eficácia <strong>de</strong>sses programas.<br />

28


Em contraposição àqueles que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m o pressuposto da universalida<strong>de</strong>, Geertz pon<strong>de</strong>ra<br />

que<br />

[...] permanece a questão <strong>de</strong> se tais universais <strong>de</strong>vem ser tomadas como<br />

elementos centrais na <strong>de</strong>finição do homem, se a perspectiva do mais baixo<br />

<strong>de</strong>nominador comum da humanida<strong>de</strong> é exatamente o que queremos.<br />

(GEERTZ, 1989, p.55)<br />

Compreen<strong>de</strong>r a cultura <strong>de</strong> um povo expõe sua “normalida<strong>de</strong>” sem reduzir seu aspecto<br />

particular (Ibid., p.24). Contudo, quanto mais se estuda uma cultura, mais nuances são<br />

encontradas e mais difícil é <strong>de</strong>terminá-la com precisão. Assim, transpondo o problema para<br />

a perspectiva <strong>de</strong>ste trabalho, propomos que, quanto maior clareza e consi<strong>de</strong>ração o Estado<br />

tiver em relação à diversida<strong>de</strong> dos brasileiros, maior lhe será a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> formular<br />

políticas a<strong>de</strong>quadas a seus beneficiários.<br />

É por meio das diferentes culturas que po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar o índio, o sertanista, o caiçara, o<br />

nor<strong>de</strong>stino, o sulista e tantos outros brasileiros, ou seja, além das culturas que diferenciam<br />

povos, nações, também há os vários tipos <strong>de</strong> indivíduos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada macrocultura.<br />

Ao consi<strong>de</strong>rar essa diversida<strong>de</strong> interna e a proposta <strong>de</strong> políticas públicas multiculturais,<br />

po<strong>de</strong>mos indagar qual é o resultado esperado <strong>de</strong> tais políticas como, por exemplo, se<br />

somente a preservação <strong>de</strong>ssas culturas seria o <strong>de</strong>sejado.<br />

Geertz argumenta que os padrões culturais são “mo<strong>de</strong>los” <strong>de</strong> duplo aspecto, isto é, tanto<br />

moldam situações, relações, como são moldados por elas. Po<strong>de</strong>-se esten<strong>de</strong>r seu raciocínio:<br />

esperar que as políticas públicas atuem somente na preservação das culturas é leviano,<br />

porque a cultura po<strong>de</strong> também influir muito nas políticas públicas. O gestor público lida com<br />

culturas e afeta-as por meio <strong>de</strong>ssas políticas, e os padrões culturais po<strong>de</strong>m influir na<br />

efetivida<strong>de</strong> dos programas e ações governamentais. É justamente sobre esse enfoque que<br />

29


este trabalho se <strong>de</strong>senvolve, ao buscar a compreensão da abordagem multicultural (ou seja,<br />

sob o aspecto da cultura) nas políticas públicas.<br />

Touraine (1997) também <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> esse ponto <strong>de</strong> vista ao afirmar que as socieda<strong>de</strong>s<br />

mo<strong>de</strong>rnas, mais constantemente abertas a mudanças, não possuem uma unida<strong>de</strong> cultural,<br />

porque estas são constantemente renovadas a partir <strong>de</strong> acontecimentos e experiências<br />

(nesse caso, po<strong>de</strong>mos incluir as políticas públicas).<br />

No próximo item, trataremos da ambiguida<strong>de</strong> em que questões culturais estão imersas, com<br />

o exemplo <strong>de</strong> como a obscurida<strong>de</strong> do termo po<strong>de</strong> gerar resultados <strong>de</strong> políticas aquém dos<br />

esperados. Isso porque há indícios <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>cisão final foi tomada sem muita reflexão<br />

sobre o assunto.<br />

30


3.2. Ambiguida<strong>de</strong> e Obscurida<strong>de</strong> da Abordagem Multicultural<br />

De modo geral, o termo cultura envolve ambiguida<strong>de</strong>s que, na abordagem multicultural,<br />

fazem-se muito presentes nos programas <strong>de</strong> governo e torna-os imprecisos.<br />

Maykel Verkuyten (2004), em seu artigo, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> dois pontos principais que ilustram essa<br />

imprecisão: (i) as mesmas idéias e visões que exaltam o multiculturalismo po<strong>de</strong>m ser vistas<br />

como críticas a ele, e (ii) a opinião pública tem pouco conhecimento e compreensão do<br />

multiculturalismo.<br />

No que diz respeito à ambiguida<strong>de</strong> das justificativas – prós e contras – quanto à exaltação do<br />

multiculturalismo, o exemplo dado é o da segurança e da estabilida<strong>de</strong>. Ambas as variáveis<br />

po<strong>de</strong>m ser utilizadas em discursos a favor da ou contrários à preservação da diversida<strong>de</strong><br />

cultural.<br />

Se, por um lado, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r que as diferenças <strong>de</strong>vam ser eliminadas (assimilação)<br />

por segurança, por outro, pelas mesmas razões, po<strong>de</strong>mos advogar que as diferenças <strong>de</strong>vam<br />

ser, tão-somente, i<strong>de</strong>ntificadas (multiculturalismo). Nos dois casos, o ponto em comum é a<br />

eliminação do <strong>de</strong>sconhecido, seja por assimilação, seja por i<strong>de</strong>ntificação e mapeamento.<br />

Já o segundo ponto <strong>de</strong> Verkuyten – sobre a falta <strong>de</strong> esclarecimento da população sobre o<br />

multiculturalismo – o artigo <strong>de</strong> Jorge Capetillo-Ponce (2004) elucida-o bem.<br />

Capetillo-Ponce (2004) narra o caso do referendum <strong>de</strong> Massachusetts, EUA, que exclui o<br />

sistema bilíngue (espanhol, inglês) das <strong>escola</strong>s públicas.<br />

31


No processo <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong>sse documento, a manipulação das massas aparece como<br />

ponto principal da polarização gerada entre maiorias e minorias 3 . Houve, em outro<br />

momento da História, um movimento a favor do multiculturalismo, mas esse referendum<br />

surgiu justamente por haver controvérsias quanto ao multiculturalismo aprovado nas<br />

décadas <strong>de</strong> 1960/70. Segundo o autor, o que suce<strong>de</strong>u foi falta <strong>de</strong> maior esclarecimento<br />

sobre o assunto, o que <strong>de</strong>svirtuou do verda<strong>de</strong>iro propósito, <strong>de</strong> forma ten<strong>de</strong>nciosa, os<br />

discursos.<br />

Entre os exemplos para tal afirmação, arrolam-se: (i) a propagação <strong>de</strong> que o inglês era<br />

atribuído a pessoas bem-sucedidas profissionalmente, aos que tinham melhores condições<br />

<strong>de</strong> vida; (ii) as críticas ao sistema bilíngue contribuiria para a segregação dos hispânicos,<br />

porque, à medida que se custasse mais apren<strong>de</strong>r inglês, piores seriam as condições <strong>de</strong> vida;<br />

(iii) esse sistema implicava maiores custos ao governo no sentido <strong>de</strong> manter professores<br />

bilíngues e, se o investimento não fosse suficiente, o resultado seria duvidoso; (iv) a massiva<br />

propaganda a favor do inglês como i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional nos EUA. (CAPETILLO-PONCE, 2004)<br />

Segundo o autor, mesmo que as pertinentes críticas fossem passíveis <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração, a<br />

maneira como o processo foi conduzido não permitiu a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se aperfeiçoar o<br />

sistema. As opções apresentadas eram: sim ou não. Fica claro que houve um movimento<br />

manipulado, reverso, do multiculturalismo ao não multiculturalismo. Mesmo os hispânicos,<br />

que <strong>de</strong>fendiam suas tradições e admitiam que o sistema bilíngue <strong>de</strong>ixava a <strong>de</strong>sejar, viram-se<br />

compelidos a referendar o outro, somente em língua inglesa.<br />

3<br />

A concepção comum <strong>de</strong> que a maioria prevalece sobre a minoria é equívoca, como sugere o autor, porque há<br />

casos <strong>de</strong> uma maioria e uma minoria não numéricas, mas uma minoria que <strong>de</strong>tém po<strong>de</strong>res políticos e<br />

econômicos e que vai manipular a maioria, a massa, como foi neste referendum.<br />

32


Outro ponto importante do autor versa sobre a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> os norte-<br />

-americanos aceitarem um sistema multicultural, porque está no i<strong>de</strong>al dos “nativos” que os<br />

imigrantes <strong>de</strong>vem autossustentar-se. É assim que eles compreen<strong>de</strong>m o self-ma<strong>de</strong>. Além<br />

disso, eles queixam-se <strong>de</strong> os imigrantes receberem mais atenção e assistência social do<br />

governo do que eles.<br />

A discussão centrou-se apenas na eficiência do programa quanto aos gastos e aos não<br />

resultados obtidos por <strong>escola</strong>s bilíngues, e não na importância do multiculturalismo. E isso<br />

indica o <strong>de</strong>sconhecimento do assunto por parte da opinião pública. Manipular a discussão<br />

levou a polarizar o tema, e não a refletir sobre ele.<br />

Assim, propomos uma reflexão sobre a abordagem multicultural, apresentando-a em três<br />

partes <strong>de</strong> acordo com três autores.<br />

33


3.3. Três Autores, Duas Vertentes do Multiculturalismo<br />

Esta subdivisão do capítulo apresenta três autores relevantes para o multiculturalismo, pelo<br />

menos no contexto brasileiro. Apesar <strong>de</strong> cada autor apresentar sua concepção da<br />

abordagem multicultural, Charles Taylor e Will Kymlicka, ambos filósofos políticos<br />

cana<strong>de</strong>nses, divi<strong>de</strong>m uma mesma linha <strong>de</strong> raciocínio do pensamento político liberal<br />

contemporâneo. Já Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos se apresenta como outra via, carregado <strong>de</strong><br />

um discurso bastante i<strong>de</strong>ológico.<br />

A proposta <strong>de</strong> apresentação do multiculturalismo está sob a seguinte formatação:<br />

primeiramente tratamos <strong>de</strong> Taylor cuja abrangência mais filosófica da abordagem lhe<br />

confere aspectos mais gerais. Em seguida, versamos sobre Kymlicka, porque o autor faz uma<br />

sistematização da abordagem, com a proposta <strong>de</strong> um índice sintético que avalie o grau <strong>de</strong><br />

multiculturalismo das políticas públicas dos países. Além, disso, há um tratamento específico<br />

da questão indígena. Por fim, acolhemos Santos, por ser referência no Brasil.<br />

3.3.1. Charles Taylor: Democracia e Multiculturalismo<br />

Trata-se <strong>de</strong> um autor que nos introduz no tema <strong>de</strong> maneira bastante filosófica, o que<br />

consi<strong>de</strong>ramos primordial para o fundamento da abordagem multicultural.<br />

Taylor aproxima-se do <strong>de</strong>bate sobre o multiculturalismo em razão <strong>de</strong> seu interesse pela<br />

influência da “mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” sobre as percepções das pessoas e grupos sobre as próprias<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Na sua visão, o reconhecimento ou o não reconhecimento <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s,<br />

antes tidos como restritos à esfera da vida privada, passam a ser questões legítimas e<br />

centrais no <strong>de</strong>bate público. Se antes o <strong>de</strong>bate político privilegiava a noção <strong>de</strong> exploração <strong>de</strong><br />

uma classe social por outra ou o embate entre igualda<strong>de</strong> e privilégios, com a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />

34


passaram-se a abordar os mesmos fatos como um problema <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> reconhecimento das<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s coletivas e individuais 4 .<br />

Um dos aspectos mais <strong>de</strong>licados e mais complexos das políticas <strong>de</strong> reconhecimento do<br />

multiculturalismo é a forma taxativa que elas po<strong>de</strong>m adquirir para grupos populacionais, o<br />

que impe<strong>de</strong> a expressão particular do ser humano <strong>de</strong> modo tal, que a vonta<strong>de</strong> e a opinião <strong>de</strong><br />

um indivíduo sejam ignoradas para sobressair a concebida para o grupo <strong>de</strong> que ele faz parte.<br />

Segundo Charles Taylor (1994), as políticas <strong>de</strong> reconhecimento realizam-se justamente pelo<br />

diálogo que <strong>de</strong>ve haver, nos Estados <strong>de</strong>mocráticos, entre as diferentes culturas. Ainda que<br />

exista uma visão geral <strong>de</strong> supremacia cultural entre elas, <strong>de</strong>ve haver um limite moral que<br />

impeça tal ação.<br />

Ao utilizar essa argumentação neste trabalho, sugerimos que se <strong>de</strong>fenda a cultura indígena<br />

diante da do branco, popularmente caracterizada como “mais evoluída”, para os índios<br />

serem beneficiados por uma política <strong>de</strong> reconhecimento que valorize a civilização local, ao<br />

mesmo tempo que não se abandone a configuração geral da socieda<strong>de</strong> brasileira.<br />

A teoria do multiculturalismo está longe <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quar-se ao propósito pela “simples” adoção<br />

da reforma dos currículos <strong>escola</strong>res no que tange, por exemplo, aos estudos <strong>de</strong> História, em<br />

relação às origens africanas.<br />

Segundo Taylor,<br />

“[e]nlarging and changing the curriculum is therefore essential not so much<br />

in the name of a broa<strong>de</strong>r culture for everyone as in or<strong>de</strong>r to give due<br />

recognition to the hitherto exclu<strong>de</strong>d. The background premise of these<br />

4 Disponível em: , acesso em 2010.<br />

35


<strong>de</strong>mands is that recognition forges i<strong>de</strong>ntity, particularly in its Fanonist<br />

application: dominant groups tend to entrench their hegemony by inculcating<br />

an image of inferiority in the subjugated”. (Ibid., p.65-66)<br />

Amy Gutmann (1994), comentando o trabalho <strong>de</strong> Taylor, reforça a proposta <strong>de</strong> uma<br />

socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática, que reconhece a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> individual constituída em parte por<br />

diálogos coletivos e sugere que a <strong>de</strong>mocracia liberal po<strong>de</strong> ser compreendida <strong>de</strong> duas formas:<br />

(i) a que trata todos como seres iguais e livres, (ii) outra, também universalista, mas que<br />

permite três condições no trato <strong>de</strong> culturas particulares pelas instituições públicas: (1)<br />

proteger os direitos básicos <strong>de</strong> todos os cidadãos – inclusa aí a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão, <strong>de</strong><br />

idéias, <strong>de</strong> religião e <strong>de</strong> associação, (2) não manipular (nem coagir) ninguém a aceitar valores<br />

culturais, representados por instituições públicas; (3) responsabilizar os servidores e as<br />

instituições públicas que fazem escolhas culturais (accountables <strong>de</strong>mocraticamente) não só<br />

por princípios, mas também pelas práticas.<br />

Na opinião <strong>de</strong> Gutmann, como na nossa, essa segunda perspectiva <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia liberal é<br />

mais <strong>de</strong>mocrática que a primeira e é na manifestação da <strong>de</strong>mocracia que o<br />

multiculturalismo mais transparece, porque, apesar <strong>de</strong> haver uma percepção universalista,<br />

há foco no que diz respeito às diferenças culturais dos cidadãos.<br />

Um cuidado que este trabalho preten<strong>de</strong> tomar é o <strong>de</strong> que a proteção ao multiculturalismo<br />

não entre no viés do apelo emocional. Para além da sensibilida<strong>de</strong> social e religiosa e do<br />

compromisso moral, há uma gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa dos pressupostos intelectuais e <strong>de</strong> seus<br />

<strong>de</strong>sdobramentos. Por outro lado, também <strong>de</strong> modo algum se <strong>de</strong>ve pensar que as<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s individuais aqui tratadas, como a étnica, possam estar hierarquicamente acima<br />

da humana, porque semelhante situação po<strong>de</strong> levar ao segregacionismo.<br />

36


Reconhecimento e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

Taylor faz um apanhado histórico que corrobora a suposição <strong>de</strong> que há um elo entre<br />

reconhecimento e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. A sua tese é a <strong>de</strong> que:<br />

[O]ur i<strong>de</strong>ntity is partly shaped by recognition or its absence, often by the<br />

misrecognition of others, and so a person or a group of people can suffer real<br />

damage, real distortion, if the people or society around them mirror back to<br />

them a confining or <strong>de</strong>meaning or contemptible picture of themselves.<br />

Nonrecognition or misrecognition can inflict harm, can be a form of<br />

oppression, imprisoning someone in false, distorted, and reduced mo<strong>de</strong> of<br />

being. (TAYLOR, 1994, p.25)<br />

Um dos argumentos que vai ao encontro <strong>de</strong>ssa tese é o <strong>de</strong> que houve falhas e<br />

consequências dramáticas no não reconhecimento dos povos indígenas e em geral dos<br />

colonizados que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1492, tiveram suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s corrompidas pelos europeus que<br />

projetavam a imagem <strong>de</strong>ssas populações como inferiores e não civilizadas 5 .<br />

Segundo Taylor (1994), a distinção entre civilizado e selvagem é característica <strong>de</strong> uma época<br />

em que a base do reconhecimento estava na honra, ou seja, num predicado <strong>de</strong> alguns.<br />

É numa socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática que surge a noção da “dignida<strong>de</strong> do ser humano”, isto é, <strong>de</strong><br />

um atributo <strong>de</strong> que todos compartilham e que transcen<strong>de</strong> a posição social.<br />

A construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social é um processo contínuo, <strong>de</strong> diálogo com concordâncias e<br />

discordâncias sobre o que pessoas essenciais para nós veem em nós, tal como se observa<br />

pela <strong>de</strong>finição do “[i]t is who we are, ‘where we’re coming from’. As such it is the<br />

background against which our tastes and <strong>de</strong>sires and opinions and aspirations make sense”.<br />

(Ibid., p.33)<br />

5<br />

Frantz Fanon, em seu trabalho Les Damnés <strong>de</strong> La Terre (Paris: Maspero, 1961), citado por Taylor, faz<br />

referência aos povos indígenas em geral. Neste trabalho há uma apresentação mais <strong>de</strong>talhada da história do<br />

reconhecimento dos povos indígenas no Brasil na seção Histórico.<br />

37


Assim, cotejando a visão <strong>de</strong> Taylor com a proposta <strong>de</strong>sta dissertação, a reflexão que fazemos<br />

é: Como as preferências, os <strong>de</strong>sejos, as opiniões e as aspirações indígenas, ou seja, os<br />

interesses <strong>de</strong>les po<strong>de</strong>m ser levados seriamente em conta na política pública, quando<br />

formulada?<br />

Essa pergunta se mostra ainda mais pertinente ao trazermos mais uma importante<br />

observação <strong>de</strong> Taylor, que propôs que se superasse a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecimento nos<br />

tempos mo<strong>de</strong>rnos por condições <strong>de</strong> reconhecimento que garantissem o sucesso <strong>de</strong>ssas<br />

políticas.<br />

Universalmente se conhece, <strong>de</strong> algum modo, o mérito do reconhecimento do outro.<br />

Apresentam-se duas percepções acerca disso: (i) no plano íntimo, com a boa ou má<br />

formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do ser humano <strong>de</strong>pois que nasce e entra em contato com pessoas<br />

significativas para ele, como, por exemplo, os pais ou tutores; (ii) no plano social, em<br />

políticas contínuas <strong>de</strong> promoção da igualda<strong>de</strong>. (TAYLOR, 1994, p.36)<br />

A compreensão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e da autenticida<strong>de</strong> individualizadas introduz uma nova<br />

dimensão nas políticas <strong>de</strong> reconhecimento igualitário e é nesse segundo aspecto que o<br />

presente trabalho se <strong>de</strong>tém, na abrangência que essa política adotará quanto à percepção<br />

dos graus <strong>de</strong>sse reconhecimento.<br />

As políticas públicas <strong>de</strong>vem ter uma base universal, contudo cada indivíduo <strong>de</strong>ve ser<br />

diferenciado pelo que o distingue dos <strong>de</strong>mais, por sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> única, mas, além <strong>de</strong>la, há a<br />

do grupo, e ambas não <strong>de</strong>vem ser ignoradas pela semelhança dominante ou majoritária.<br />

Essas políticas apresentam características mais orgânicas (cuja organização se assemelha,<br />

em sua complexida<strong>de</strong>, à dos seres vivos) que a tradicional (que generaliza a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

38


nacional e a universal) porque conferem maior complexida<strong>de</strong> às ações e,<br />

consequentemente, na nossa visão, maiores possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> polêmica. Um exemplo disso<br />

são os programas <strong>de</strong> redistribuição ou <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s, direcionados a certos grupos<br />

populacionais, o que po<strong>de</strong> adquirir conotação <strong>de</strong> favoritismo, segregacionismo.<br />

As políticas <strong>de</strong> cotas costumam ser justificadas pelo processo histórico <strong>de</strong> discriminação <strong>de</strong><br />

alguns povos naquela nação, como é o caso, no Brasil, dos negros, que compõem gran<strong>de</strong><br />

parte da população mais pobre e sem acesso ao Ensino Superior e que, em razão <strong>de</strong> uma lei<br />

fe<strong>de</strong>ral, têm assegurado um percentual <strong>de</strong> vagas nas universida<strong>de</strong>s públicas.<br />

A proposta <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong> reparação é interessante como medida temporária para<br />

possível correção das <strong>de</strong>svantagens que <strong>de</strong>terminado grupo possa ter sofrido, porém as<br />

políticas <strong>de</strong> reconhecimento, da teoria do multiculturalismo, na visão <strong>de</strong> Taylor, não<br />

partilham do mesmo princípio <strong>de</strong> correção, justamente por se promover, nas políticas <strong>de</strong><br />

reparação, uma prática temporária e ainda se correr o risco <strong>de</strong> ela se tornar permanente em<br />

vista da duração imprecisa do programa.<br />

Po<strong>de</strong>-se observar que Taylor aponta para a preocupação com a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, portanto para as<br />

aspirações como algo permanente, ou seja, algo que não <strong>de</strong>ve valer-se <strong>de</strong> programas<br />

temporários.<br />

Uma situação <strong>de</strong>licada das políticas <strong>de</strong> reconhecimento é a que se relaciona à abrangência<br />

que elas po<strong>de</strong>m adquirir. É fundamental que se pense se variações <strong>de</strong>ssas políticas são<br />

aceitáveis <strong>de</strong> acordo com o local da prática, isto é, se restrições po<strong>de</strong>m ser feitas pelo<br />

governo local em nome da meta coletiva <strong>de</strong> sobrevivência daquela comunida<strong>de</strong>, mesmo que<br />

essas políticas, em escala nacional, infrinjam a constituição fe<strong>de</strong>ral.<br />

39


Taylor (1994, p.53) apresenta sobre isso o exemplo, no Canadá, da província <strong>de</strong> Quebec, que<br />

estabeleceu a língua francesa na educação infantil e nas <strong>empresas</strong> locais em <strong>de</strong>trimento da<br />

língua inglesa, oficial nas <strong>de</strong>mais províncias cana<strong>de</strong>nses.<br />

Outro aspecto se refere à valorização dada à cultura dos não dominantes em uma socieda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>mocrática. Se transferirmos essa questão para a proposta <strong>de</strong>ste trabalho, po<strong>de</strong>mos<br />

consi<strong>de</strong>rar que a prática do infanticídio pelos povos indígenas, minoria cultural do país, é<br />

característica <strong>de</strong> sua comunida<strong>de</strong>.<br />

As dificulda<strong>de</strong>s surgem na aceitação <strong>de</strong>sse costume pela maioria dominante, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> os<br />

direitos humanos e, por isso, abomina o infanticídio. Como aceitar esse hábito e conviver<br />

pacificamente com o grupo minoritário que o pratica? Essa particularida<strong>de</strong> será respeitada<br />

como parte da cultura local? Dificilmente a resposta a isso será positiva. Então, o que temos<br />

no Brasil, atualmente, são políticas igualitárias inóspitas às diferenças?<br />

Políticas igualitárias inóspitas às diferenças<br />

A primeira pergunta que se faz neste subitem é em relação à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se igualarem<br />

as culturas no que diz respeito ao próprio valor; se isso é possível por esta análise ou, se não<br />

o for, nem mesmo <strong>de</strong>sejável, como se <strong>de</strong>ve lidar com o caráter universal ou particular das<br />

políticas públicas?<br />

Partindo da premissa <strong>de</strong> que não é possível garantir a prática <strong>de</strong> tratamento igualitário às<br />

diferentes culturas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mesmo Estado, Taylor sugere que há políticas igualitárias<br />

“inóspitas às diferenças” porque (a) insistem na aplicação uniforme <strong>de</strong> regras <strong>de</strong>finidas<br />

como direitos, sem exceção, (b) suas metas coletivas 6 são suspeitas. Assim, o autor conclui<br />

6<br />

Segundo o autor, essas metas coletivas são formuladas por um julgamento da socieda<strong>de</strong> majoritária com base<br />

em “what makes a good life”, apesar <strong>de</strong> as concepções <strong>de</strong>sse termo po<strong>de</strong>rem variar culturalmente.<br />

40


que tais políticas não são mo<strong>de</strong>los que procuram eliminar as diferenças culturais, mas, sim,<br />

“inóspitas às diferenças” porque não abarcam a aspiração <strong>de</strong> todos os membros <strong>de</strong><br />

socieda<strong>de</strong>s distintas, que é a sobrevivência <strong>de</strong> sua cultura. (TAYLOR, 1994, p.61)<br />

Apesar da simplicida<strong>de</strong> que se po<strong>de</strong> atribuir às políticas públicas tradicionais no seu sentido<br />

uniforme, o multiculturalismo oferece uma complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> abordagem que po<strong>de</strong> implicar<br />

sérios impedimentos práticos à sua adoção. Taylor argumenta que, por exemplo, várias<br />

distinções precisam ser feitas para haver neutralida<strong>de</strong> em certa medida e para as pessoas <strong>de</strong><br />

todas as culturas se encontrarem e coexistirem, a começar pela separação do que é público<br />

e do que é privado, ou <strong>de</strong> política e religião. O autor indaga como ficaria o islamismo diante<br />

<strong>de</strong>ssa situação, já que uma das principais características <strong>de</strong>sse segmento está na não<br />

separação <strong>de</strong> política e religião, diferentemente do esperado nas socieda<strong>de</strong>s liberais<br />

oci<strong>de</strong>ntais.<br />

Apesar <strong>de</strong> não oferecer uma resposta, o autor insiste, como solução, na política <strong>de</strong><br />

reconhecimento <strong>de</strong> todas as diferenças culturais pelo seu valor em cada comunida<strong>de</strong>. A<br />

Declaração Sobre os Princípios <strong>de</strong> Cooperação Cultural Internacional, da UNESCO (1996),<br />

trata exatamente <strong>de</strong>sta questão: a varieda<strong>de</strong> e a diversida<strong>de</strong> cultural são dignas e têm sua<br />

importância, e isso <strong>de</strong>ve ser respeitado e reconhecido como patrimônio da humanida<strong>de</strong>.<br />

Uma última anotação crítica <strong>de</strong> Taylor quanto aos problemas que políticas multiculturais<br />

po<strong>de</strong>m enfrentar é a <strong>de</strong> um julgamento con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte, até mesmo etnocêntrico, que a<br />

socieda<strong>de</strong> dominante po<strong>de</strong>rá fazer a respeito das <strong>de</strong>mais culturas, não pelo valor que elas<br />

possuem, ou seja, não como resultado <strong>de</strong> um estudo intensivo <strong>de</strong>las, mas simplesmente<br />

pelo parecer prematuro <strong>de</strong> que todas as culturas são válidas. Se isso ocorrer, estaremos<br />

classificando diferentes culturas <strong>de</strong> acordo com nosso padrão, isto é, haverá uma<br />

41


homogeneização <strong>de</strong> todas elas em função da dominante. Nas palavras do autor, “[b]y<br />

implicity invoking our standards to judge all civilizations and cultures, the politics of<br />

difference can end up making everyone the same”. (TAYLOR, 1994, p.71)<br />

Susan Wolf (1994, p.75) chama a atenção, em vista do trabalho <strong>de</strong> Taylor, sobre as possíveis<br />

falhas das políticas <strong>de</strong> reconhecimento justamente pelo prejuízo da i<strong>de</strong>ntificação das<br />

culturas e dos danos que surgem em razão <strong>de</strong>sses erros. Dentre eles, ela distingue dois não<br />

reconhecimentos: (a) o literal, <strong>de</strong> que membros <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> minorias ou <strong>de</strong>sprivilegiados<br />

têm uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural com diferentes conjuntos <strong>de</strong> tradições, práticas,<br />

intelectualida<strong>de</strong> e história; (b) o <strong>de</strong> que essa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural tem gran<strong>de</strong> importância e<br />

valor.<br />

Essa proposta po<strong>de</strong> ser compreendida sob o prisma <strong>de</strong> que todos temos o mesmo grau <strong>de</strong><br />

importância e <strong>de</strong> que não há diferenciação entre as culturas no que diz respeito à igualda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> significado atribuído a si próprio. Wolf reforça que apesar <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rarem todas as<br />

culturas igualmente, não se negam as diferenças entre elas:<br />

[I]t is a mistake to <strong>de</strong>mand that works of every culture be evaluated, prior to<br />

inspection and appreciation, as equally good works, which equally display<br />

human accomplishment, and which make equal contributions to the world’s<br />

store of beauty and brilliance. (WOLF, 1994, p.78)<br />

A solução da autora é que se po<strong>de</strong> mudar a justificativa da igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> valoração das<br />

culturas, porque a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> correção do prejuízo às minoritárias não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da<br />

pressuposição – ou mesmo da confirmação – <strong>de</strong> que uma particular é invariavelmente<br />

imprescindível para pessoas <strong>de</strong> fora <strong>de</strong>ssa cultura. Trata-se <strong>de</strong> uma visão holística das<br />

culturas, igualmente importantes, e, portanto, passíveis <strong>de</strong> avaliação quanto à necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> outros grupos compartilharem <strong>de</strong>ssas características peculiares, mas não que todos<br />

42


precisem adotar o estilo <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>las porque todas são igualmente<br />

necessárias.<br />

A<strong>de</strong>quando isso a este trabalho, nosso ponto <strong>de</strong> vista é não <strong>de</strong> que brasileiros comuns<br />

aprendam a viver como os índios, mas que a cultura indígena seja compreendida e<br />

preservada para fazer parte ativamente da formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> brasileira e para ser<br />

mantida pela sua comunida<strong>de</strong> como mecanismo <strong>de</strong> sobrevivência.<br />

Nossa cultura é algo maior do que muitas vezes concebemos. Na formação recebe<br />

influências externas <strong>de</strong> outras culturas, direta ou indiretamente, o que, somadas as partes,<br />

adquire significado maior, como com os retalhos que formam uma colcha. Isso exige o<br />

engran<strong>de</strong>cimento da nossa sensibilida<strong>de</strong> no sentido <strong>de</strong> reconhecer essa beleza <strong>de</strong> que a<br />

nossa comunida<strong>de</strong>-nação é constituída.<br />

3.3.2. Will Kymlicka: E Como os Índios Entram Nessa História?<br />

Em todas as <strong>de</strong>mocracias liberais, um dos principais mecanismos <strong>de</strong> acomodação das<br />

diferenças culturais internas é o <strong>de</strong> proteção aos direitos civis e políticos dos indivíduos e aos<br />

direitos humanos. O senso comum supõe que tais direitos sejam suficientes, mas o<br />

surgimento do multiculturalismo indica que muitos locais começam a aceitar que a<br />

acomodação <strong>de</strong>sses grupos culturais diferenciados se dará por meio <strong>de</strong> medidas<br />

constitucionais específicas.<br />

Assim, po<strong>de</strong>mos dizer que há várias possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> abordagem: (i) sob a perspectiva das<br />

instituições nacionais que versam sobre o multiculturalismo e, por possuírem uma<br />

constituição lógica própria, adotam políticas diferentes com concepções, também<br />

diferentes, da diversida<strong>de</strong>; (ii) sob a perspectiva das organizações internacionais, pelo<br />

43


mesmo motivo; (iii) sob a perspectiva dos grupos sociais que compõem as chamadas<br />

“minorias” e enxergam as próprias <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> acordo com as particularida<strong>de</strong>s.<br />

Kymlicka (1995) trata <strong>de</strong>ssa última opção com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> classificar a origem das<br />

minorias e os tipos <strong>de</strong> <strong>de</strong>manda por direitos coletivos (discutidos no subitem seguinte) como<br />

divergentes dos individuais, <strong>de</strong> acordo com a proposta <strong>de</strong> uma dialética inexistente entre<br />

eles. Assim, a subdivisão <strong>de</strong> capítulo <strong>de</strong>sta dissertação Will Kymlicka: E Como os Índios<br />

Entram Nessa História? procura compreen<strong>de</strong>r a questão indígena <strong>de</strong>ntro do quadro geral<br />

das minorias.<br />

Os Conquistados-Colonizados e os Imigrantes<br />

O termo multiculturalismo abarca as variadas formas <strong>de</strong> pluralismo cultural, cada qual com<br />

especificida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>safios. Historicamente, segundo o autor, essa multiplicida<strong>de</strong>, na forma<br />

como as minorias são incorporadas à Nação, ocorre por: (1) conquista e colonização <strong>de</strong><br />

socieda<strong>de</strong>s que anteriormente tinham autogoverno; (2) imigração, voluntária ou não, <strong>de</strong><br />

pessoas e famílias. Os diferentes modos <strong>de</strong> agregação <strong>de</strong>ssas minorias afetarão a natureza<br />

<strong>de</strong>sses grupos e as relações que elas manterão com a socieda<strong>de</strong> nacional. (KYMLICKA, 1995)<br />

Ao mesmo tempo, há três possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Estado, resultantes <strong>de</strong>ssa pluralida<strong>de</strong>: o<br />

multinacional, o poliétnico e o multinacional-poliétnico.<br />

O multinacional é aquele que, em sua formação, possuiu grupos conquistados ou<br />

colonizados, <strong>de</strong> modo que po<strong>de</strong>mos observar várias culturas coexistirem no mesmo país.<br />

Esse Estado só sobreviverá se os vários grupos nacionais forem leais a essa socieda<strong>de</strong>.<br />

(KYMLICKA: 1995)<br />

44


Assim, Kymlicka (1995, p.13) diferencia patriotismo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional. O primeiro é o<br />

sentimento <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao Estado; o segundo, o senso <strong>de</strong> pertencer a um grupo nacional.<br />

Um exemplo <strong>de</strong> país multicultural é a Suíça, que não tem uma única i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional,<br />

mas a <strong>de</strong> fe<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> povos distintos. Lá, a lealda<strong>de</strong> do povo para com o Estado advém do<br />

reconhecimento e respeito das diversas comunida<strong>de</strong>s nacionais ao Estado Maior.<br />

O Estado poliétnico tem, em sua constituição, pessoas que imigraram, voluntariamente ou<br />

não. O país que aceitou significativo número <strong>de</strong> pessoas e famílias <strong>de</strong> outras culturas como<br />

imigrantes, permitiu que eles mantivessem algumas <strong>de</strong> suas particularida<strong>de</strong>s étnicas. Esses<br />

grupos não são nações, não estão na terra natal e não esperam direitos similares aos das<br />

minorias nacionais. (KYMLICKA: 1995) De acordo com o autor, não há rejeição às políticas <strong>de</strong><br />

assimilação por esses imigrantes porque não almejam uma socieda<strong>de</strong> paralela, como as<br />

minorias nacionais. Muitas vezes, o <strong>de</strong>sejo é só o <strong>de</strong> manter alguns dos seus hábitos, tais<br />

como a religião, a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> associação, a alimentação, etc.<br />

O caso <strong>de</strong> Quebec, no Canadá, é diferente, porque os colonizados não se enxergavam como<br />

“imigrantes”, mas, sim, esperavam reproduzir a socieda<strong>de</strong> original naquela nova terra. Já os<br />

hispânicos, nos EUA, vão além do mo<strong>de</strong>lo poliétnico, porque não são uma única categoria:<br />

há os chicanos e os porto-riquenhos (minoria nacional); há os latinos, que migraram mais<br />

recentemente em busca <strong>de</strong> novas oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho e há os mexicanos ilegais e os<br />

cubanos refugiados. Cada grupo tem necessida<strong>de</strong>s específicas. Aqueles que imigraram para<br />

os EUA com intenção <strong>de</strong> ficar e <strong>de</strong> se tornar cidadãos <strong>de</strong>monstram estar comprometidos em<br />

apren<strong>de</strong>r inglês e em querer participar da socieda<strong>de</strong> nacional. (Ibid., p.15-16)<br />

O Estado multinacional-poliétnico apresenta ambas as composições na população, como é o<br />

caso do Canadá, dos EUA e do Brasil.<br />

45


Em vista das críticas que o termo multiculturalismo gera, como a alegação <strong>de</strong> que segrega ou<br />

permite a formação <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s paralelas, o autor diz que usará outros termos menos<br />

polêmicos, como Estados multinacionais e poliétnicos, mas ambos com o mesmo significado<br />

do multiculturalismo. Num outro trabalho, Kymlicka (2007, p.18) vai além nos sinônimos:<br />

“for those who dislike the term [multiculturalism], and who prefer another one, such as<br />

‘minority rights’, ‘diversity policies’, ‘interculturalism’, ‘cultural rights’, or ‘differentiated<br />

citizenship’, feel free to substitute it as you go along”.<br />

Entretanto mais divergências quanto aos resultados do multiculturalismo advêm da<br />

amplitu<strong>de</strong> que ele po<strong>de</strong> ter para alguns, que consi<strong>de</strong>ram além da questão étnica, como a<br />

categoria <strong>de</strong> marginalizados da socieda<strong>de</strong> pelos mais variados motivos. Segundo Kymlicka,<br />

[...] in the United States, where advocates of a ‘multicultural’ curriculum are<br />

often referring to efforts to reverse the historical exclusion of groups such as<br />

the disabled, gays and lesbians, women, the working class, atheists, and<br />

Communists. (KYMLICKA, 1995, p.18)<br />

Por essa abrangência, no limite, po<strong>de</strong>mos classificar como multicultural qualquer país<br />

segundo os diferentes estilos <strong>de</strong> vida, postura política, gênero, religião, etc. Obviamente,<br />

essa não é a vertente predominante no multiculturalismo, mas há alguma semelhança<br />

<strong>de</strong>sses grupos em relação a ele: as reivindicações <strong>de</strong> todos esses movimentos por justiça,<br />

inclusive dos grupos étnicos, porque todos estão excluídos em função <strong>de</strong> suas “diferenças”.<br />

Para Kymlicka (1995), etnia é o critério para o multiculturalismo e ele salienta a importância<br />

<strong>de</strong> discernir as minorias nacionais, que buscam integrar o autogoverno <strong>de</strong> suas socieda<strong>de</strong>s<br />

ao Estado, dos grupos étnicos <strong>de</strong> imigrantes, que <strong>de</strong>ixaram as próprias nações para entrar<br />

em uma nova socieda<strong>de</strong>. Afirma que a maioria dos países que tem, na composição, minorias<br />

46


nacionais não se sente preparada para reconhecê-las, especialmente no que diz respeito às<br />

<strong>de</strong>mandas por direitos constitucionais especiais.<br />

O autor (KYMLICKA, 1995, p.27-33) apresenta três direitos específicos <strong>de</strong> grupos: (i) <strong>de</strong><br />

autogoverno; (ii) poliétnicos; (iii) <strong>de</strong> representação especial.<br />

Os direitos <strong>de</strong> autogoverno, autoexplicativo e característico das minorias nacionais, parecem<br />

mais simples <strong>de</strong> ocorrer em sistemas <strong>de</strong> fe<strong>de</strong>ralismo, justamente pela <strong>de</strong>scentralização,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que essa minoria se torne maioria em uma subunida<strong>de</strong> nacional.<br />

Entre os direitos poliétnicos, característicos dos imigrantes, citamos três: (1) a “<strong>de</strong>manda da<br />

política separada da nacionalida<strong>de</strong> – como já ocorria com a religião” (Walzer, 1982 apud<br />

Kymlicka, 1995, p.30); (2) a reivindicação por fundos públicos para a prática cultural <strong>de</strong>sses<br />

grupos, em igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> condições na valorização das culturas da nação; (3) – o mais<br />

controverso – a solicitação por exceções em leis e regulamentações que os prejudiquem em<br />

razão das práticas religiosas, como os Sikh policiais, com permissão <strong>de</strong> não usar capacetes<br />

por causa do turbante, ou, conforme recentemente noticiado, meninas muçulmanas na<br />

França usarem o xador com o uniforme <strong>escola</strong>r.<br />

Já os direitos <strong>de</strong> representação especial abarcam as minorias, os grupos étnicos e outros<br />

grupos sociais não étnicos, preocupados com a falta <strong>de</strong> representação da diversida<strong>de</strong> da<br />

população na política. Para solucionar esse problema, há propostas <strong>de</strong> se adotar um sistema<br />

proporcional e/ou <strong>de</strong> tornar os partidos políticos mais inclusivos.<br />

Esses três tipos <strong>de</strong> direito po<strong>de</strong>m sobrepor-se uns aos outros. Por exemplo, grupos indígenas<br />

po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sejar representação especial no governo central em vista da <strong>de</strong>svantagem em que<br />

47


se encontram na socieda<strong>de</strong>, como também po<strong>de</strong>m solicitar direitos <strong>de</strong> autogoverno em<br />

razão <strong>de</strong> seu status <strong>de</strong> povo ou nação. (Ibid., p.33)<br />

O Conflito Entre Direitos Individuais e Direitos Coletivos<br />

Neste subitem fica explícita a visão liberal 7 <strong>de</strong> Kymlicka quanto ao multiculturalismo. O autor<br />

procura <strong>de</strong>monstrar a inexistência <strong>de</strong> conflito entre os direitos individuais e os coletivos por<br />

dois raciocínios: (i) as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> grupos sociais por restrições internas e/ou proteção<br />

externa; (ii) a ambiguida<strong>de</strong> gerada pela expressão “direitos coletivos”.<br />

A primeira linha <strong>de</strong> raciocínio leva à tentativa <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r as <strong>de</strong>mandas dos grupos<br />

étnicos ou minoritários. De acordo com o autor, há oposições <strong>de</strong> grupos aos próprios<br />

membros e <strong>de</strong> outros, à socieda<strong>de</strong> nacional, respectivamente <strong>de</strong>mandas por restrições<br />

internas e por proteções externas. (KYMLICKA, 1995)<br />

Essas “restrições internas” existem em diferentes níveis <strong>de</strong> or<strong>de</strong>namento social. Estados<br />

<strong>de</strong>mocráticos as impõem a seus cidadãos para manter a or<strong>de</strong>m cívica no país, como no caso<br />

da obrigatorieda<strong>de</strong> do serviço militar, da votação nas eleições, dos serviços comunitários,<br />

etc. Para o autor, as minorias solicitam essas limitações para garantir a conservação <strong>de</strong> sua<br />

comunida<strong>de</strong> contra os dissi<strong>de</strong>ntes locais. Por exemplo: e se a condição das mulheres <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong>sse grupo ou minoria for diferente da comum na socieda<strong>de</strong> nacional e isso entrar em<br />

conflito com os diretos civis ou políticos e elas começarem a exigir igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> direitos,<br />

7<br />

A saber, <strong>de</strong> acordo com Heywood, (2000, p.60) “Liberalism is a political i<strong>de</strong>ology whose central theme is a<br />

commitment to the individual and to the construction of a society in which individuals can satisfy their interests<br />

or achieve fulfilment. The core values of liberalism are individualism, rationalism, freedom, justice and<br />

toleration. The liberal belief that human begins are, first and foremost, individuals, endowed with reason,<br />

implies that each individual should enjoy the maximum possible freedom consistent with a like freedom for all.<br />

However, although individuals are ‘born equal’ in the sense that they are of equal moral worth and should<br />

enjoy formal equality and equal opportunities, liberals differing levels of talent willingness to work, and<br />

therefore favour the principle of meritocracy. A liberal society is characterized by diversity and pluralism and is<br />

organized politically around the twin values of consent and constitutionalism, combined to form the structures<br />

of liberal <strong>de</strong>mocracy”.<br />

48


como <strong>de</strong> fato po<strong>de</strong> ocorrer na socieda<strong>de</strong> nacional oci<strong>de</strong>ntal? Um Estado <strong>de</strong>mocrático não<br />

po<strong>de</strong>ria permitir tal tipo <strong>de</strong> limitação, porque os indivíduos <strong>de</strong>ssa comunida<strong>de</strong> têm os<br />

direitos garantidos por ele, embora os direitos poliétnicos e <strong>de</strong> autogoverno possam ter por<br />

finalida<strong>de</strong> estabelecer restrições internas, o que gera conflito <strong>de</strong> opinião com o governo<br />

nacional no que se refere o atendimento <strong>de</strong>ssas <strong>de</strong>mandas. (KYMLICKA, 1995)<br />

Já a proteção externa é menos polêmica, porque visa a reduzir a vulnerabilida<strong>de</strong> dos grupos<br />

minoritários em função <strong>de</strong> pressões econômicas e <strong>de</strong>cisões políticas da socieda<strong>de</strong> nacional.<br />

Segundo o autor:<br />

Un<strong>de</strong>r these circumstances, there is no necessary conflict between external<br />

protections and the individual rights of group members. The existence of<br />

such external protections tells us about the relationship between the<br />

majority and minority groups; it does not yet tell us about the relationship<br />

between the ethnic or national group and its own members. (KYMLICKA,<br />

1995, p.38)<br />

Desse modo, essas proteções não comprometem o respeito aos direitos políticos e civis <strong>de</strong><br />

seus membros, enquanto as restrições internas po<strong>de</strong>m apresentar ameaças reais 8 . Todavia<br />

as políticas <strong>de</strong> multiculturalismo existem para favorecer a expressão das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

culturais das minorias sem prejudicar os direitos individuais e humanos previstos pela<br />

Constituição Maior. Além do mais, essas <strong>de</strong>mandas por restrições internas, segundo o autor,<br />

precisam ser mencionadas porque existem, mas o apoio a elas, inclusive dos membros das<br />

comunida<strong>de</strong>s minoritárias, normalmente é baixo, como o dos Estados <strong>de</strong>mocráticos:<br />

While most of liberal <strong>de</strong>mocracies have, over the last twenty years, ma<strong>de</strong><br />

some efforts to accommodate ethnic and national differences, this shift<br />

88<br />

Kymlicka (1995, p.41) exemplifica com casos <strong>de</strong> clitori<strong>de</strong>ctomia, ou <strong>de</strong> mulheres que apanham dos maridos<br />

que alegam ser essa uma prática aceitável em sua terra natal; ou <strong>de</strong> crianças cuja educação <strong>escola</strong>r é<br />

interrompida antes do permitido por lei (16 anos nos EUA) para garantir aos pais que se reduzam as<br />

oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> elas quererem <strong>de</strong>ixar a comunida<strong>de</strong>.<br />

49


toward a more ‘multicultural’ public policy has almost entirely been a matter<br />

of accepting certain external protections, not internal restrictions.<br />

(KYMLICKA, 1995, p.42)<br />

Já a ambiguida<strong>de</strong> da expressão direitos coletivos se encontraria justamente na dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

se diferenciarem as restrições internas das proteções externas, além <strong>de</strong> uma falsa dicotomia<br />

entre direitos individuais e coletivos. (KYMLICKA, 1995, 2007)<br />

Há também o embate entre os individualistas e os coletivistas. Aqueles argumentam que os<br />

indivíduos compõem a comunida<strong>de</strong>, portanto não haveria motivo para garantir direitos<br />

coletivos; estes inferem que a comunida<strong>de</strong> precisa ser preservada como organismo, com<br />

interesses in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes dos individuais.<br />

A conclusão <strong>de</strong> Kymlicka é que o ponto <strong>de</strong> vista dos coletivistas só se justifica pelas<br />

restrições internas porque essa discussão é irrelevante na <strong>de</strong>mocracia liberal. Os direitos<br />

coletivos são garantidos a indivíduos; logo, po<strong>de</strong>mos dizer que se trata <strong>de</strong> direitos<br />

individuais, ainda que restritos ao grupo. Assim, a principal questão é: por que alguns<br />

direitos, como a língua, a terra, a representação, etc., são garantidos a grupos diferenciados,<br />

enquanto outros não os têm?<br />

Os membros da maioria da nação po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>terminar a língua ensinada nas <strong>escola</strong>s, as leis,<br />

as formas <strong>de</strong> burocracia, etc., já os da minoria, não, portanto o multiculturalismo é<br />

apresentado como solução para esses conflitos e po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado liberal enquanto<br />

“ensure that there is equality between groups, and freedom and equality within groups”.<br />

(KYMLICKA, 1995, p.194)<br />

50


O Multiculturalism Policy In<strong>de</strong>x<br />

Tanto as metas quanto as consequências do multiculturalismo são muitas, <strong>de</strong> forma que é<br />

impossível fornecer um panorama das diferentes formas que ele po<strong>de</strong> assumir. Mesmo que<br />

pareça contraditório tentar sistematizá-lo, para haver alguma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> observarmos<br />

a abordagem nas práticas em diferentes países, é necessário <strong>de</strong>senvolver critérios para<br />

i<strong>de</strong>ntificar as políticas multiculturais. Assim, aproveitamos um Multiculturalism Policy In<strong>de</strong>x,<br />

<strong>de</strong>senvolvido por Banting & Kymlicka (2006,) que, <strong>de</strong>ntre as limitações, é aplicável somente<br />

ao contexto dos países oci<strong>de</strong>ntais.<br />

O pressuposto é que as políticas multiculturais, geralmente, estão voltadas para<br />

necessida<strong>de</strong>s específicas <strong>de</strong> três grupos: (a) povos indígenas; (b) subestados/minorias<br />

nacionais; (c) imigrantes.<br />

a) Povos Indígenas<br />

Os países oci<strong>de</strong>ntais têm, em sua História, políticas <strong>de</strong> assimilação e integração dos<br />

indígenas à socieda<strong>de</strong> nacional, ou pela redução <strong>de</strong> terras, ou pelas alterações na<br />

organização social interna da al<strong>de</strong>ia, ou por restrições <strong>de</strong> práticas culturais, como língua,<br />

religião, etc.<br />

A partir da década <strong>de</strong> 1970, em diferentes graus, os países perceberam que a existência dos<br />

indígenas não é tão passageira quanto se imaginava e iniciou-se um movimento <strong>de</strong><br />

“<strong>de</strong>scolonização”, com o reconhecimento <strong>de</strong> direitos que lhes possibilitem a preservação<br />

pelo acesso a terra, pela preservação das práticas culturais, etc., todos itens característicos<br />

do multiculturalismo, porém, sob a tutela do Estado.<br />

51


Os autores relacionaram nove políticas que po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>radas multiculturais<br />

(BANTING & KYMLICKA, 2006, p.62):<br />

1. Reconhecimento <strong>de</strong> direito a terra/título;<br />

2. Reconhecimento <strong>de</strong> direito a autogoverno;<br />

3. Defesa <strong>de</strong> tratados históricos e/ou assinatura <strong>de</strong> novos;<br />

4. Reconhecimento <strong>de</strong> direitos culturais (língua, caça/pesca);<br />

5. Reconhecimento <strong>de</strong> direitos consuetudinários (costumes);<br />

6. Garantias <strong>de</strong> representação/consulta no Governo Fe<strong>de</strong>ral/Central;<br />

7. Afirmação constitucional ou legislativa do status <strong>de</strong> povo;<br />

8. Suporte/ratificação dos instrumentos internacionais sobre os direitos;<br />

9. Ações afirmativas para os membros da comunida<strong>de</strong>.<br />

E, para qualificar os países, esses autores <strong>de</strong>terminaram que aqueles que adotam seis ou<br />

mais <strong>de</strong>ssas políticas po<strong>de</strong>m ser classificados como os <strong>de</strong> forte abordagem multicultural; os<br />

que implementam mudanças significativas, porém mo<strong>de</strong>stas, utilizam-se <strong>de</strong> três a cinco<br />

<strong>de</strong>ssa lista e os que pouco ou nada mudaram empregam duas ou menos.<br />

b) Subestado/Minorias Nacionais<br />

Esses grupos se encontram em situação similar à dos indígenas. São os conquistados e<br />

colonizados que se consi<strong>de</strong>ram nação <strong>de</strong>ntro do Estado-Maior. Também por muitos anos<br />

foram submetidos a políticas <strong>de</strong> assimilação e integração, mas resistiram até serem<br />

reconhecidos, apesar <strong>de</strong> não em todos os países oci<strong>de</strong>ntais que os admitem nos territórios<br />

quando se agrupam e formam a maioria local – para isso é preciso que sejam<br />

numericamente consi<strong>de</strong>ráveis –, mas vários <strong>de</strong>sses países já adotaram alguma política<br />

multicultural.<br />

52


Segundo Banting & Kymlicka (2006), essas minorias nacionais também não utilizam o termo<br />

multiculturalismo. Preferem língua da nação, auto<strong>de</strong>terminação, fe<strong>de</strong>ralismo e divisão <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r. Para Estados com políticas multiculturais, os autores classificaram seis práticas<br />

(BANTING & KYMLICKA, 2006, p.60):<br />

1. Autonomia territorial fe<strong>de</strong>ral ou quase fe<strong>de</strong>ral;<br />

2. Status <strong>de</strong> língua oficial na região ou nacionalmente;<br />

3. Garantia <strong>de</strong> representação no governo central ou nos tribunais constitucionais;<br />

4. Fundo público para língua minoritária nas universida<strong>de</strong>s/<strong>escola</strong>s/mídia;<br />

5. Afirmação constitucional ou parlamentar do “multiculturalismo” (termo similar);<br />

6. Acordos internacionais pessoais (p. ex. permissão para o subestado da minoria<br />

nacional pleitear ca<strong>de</strong>iras em organismos internacionais, assinar tratados ou ter o<br />

próprio time olímpico).<br />

Segundo os autores, para minorias nacionais numericamente baixas, o tratamento <strong>de</strong>verá<br />

ser diferente, mas isso não será abordado neste trabalho. E a classificação dos países em<br />

forte, mo<strong>de</strong>rado e fraco em políticas multiculturais tem como resultado, respectivamente, a<br />

adoção <strong>de</strong> quatro ou mais, duas a três, ou <strong>de</strong> menos <strong>de</strong> duas políticas citadas anteriormente.<br />

c) Grupos <strong>de</strong> Imigrantes<br />

Esses grupos, até a década <strong>de</strong> 1960, eram admitidos nos países oci<strong>de</strong>ntais com restrições<br />

raciais e culturais e permitida somente a entrada daqueles que tivessem melhores condições<br />

<strong>de</strong> se adaptar à cultura nacional <strong>de</strong>sses países, normalmente os europeus e seus<br />

<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, todavia, após esse período, o critério <strong>de</strong> aceitação dos imigrantes abrandou-<br />

se, com a inclusão dos não europeus e, ao mesmo tempo, com a abertura para uma<br />

abordagem mais “multicultural”.<br />

53


Como já mencionado, os grupos <strong>de</strong> imigrantes têm necessida<strong>de</strong>s diferentes das das minorias<br />

nacionais e das dos povos indígenas. Banting & Kymlicka (2006, p.56) enumera as oito<br />

principais políticas que caracterizam um país com tratamento multicultural:<br />

1. Afirmação constitucional, legislativa ou parlamentar do “multiculturalismo” nos<br />

níveis central e/ou estadual e municipal;<br />

2. Adoção do “multiculturalismo” no currículo <strong>escola</strong>r;<br />

3. Inclusão da representação, ou ao menos <strong>de</strong> sensibilização, <strong>de</strong> grupos étnicos nos<br />

mandatos públicos e nos meios <strong>de</strong> comunicação;<br />

4. Isenção no código <strong>de</strong> vestimenta e na legislação para, por exemplo, não se trabalhar<br />

em <strong>de</strong>terminados dias da semana por questões religiosas, etc., por lei ou <strong>de</strong>cisão<br />

judicial;<br />

5. Permissão para dupla cidadania;<br />

6. Fundos para organizações <strong>de</strong> grupos étnicos apoiarem ativida<strong>de</strong>s culturais;<br />

7. Fundos para educação bilíngue ou instrução em língua materna;<br />

8. Ações afirmativas para grupos <strong>de</strong> imigrantes em <strong>de</strong>svantagem.<br />

Novamente, se um país adota seis ou mais <strong>de</strong>ssas políticas, é consi<strong>de</strong>rado com forte<br />

abordagem multicultural; <strong>de</strong> três a cinco, com mo<strong>de</strong>rada e até três, fraca.<br />

Não foi possível termos acesso à metodologia, <strong>de</strong> modo que não fica claro se somente a<br />

adoção <strong>de</strong> uma única política <strong>de</strong>ssas listas, mesmo que municipal, já consi<strong>de</strong>raria um ponto<br />

na avaliação do país. Também não há informações <strong>de</strong> que todas as políticas têm o mesmo<br />

peso 9 . Assim, apesar das enormes limitações ao apresentarmos um índice sintético sem<br />

informações sobre o grau quantitativo e qualitativo <strong>de</strong> avaliação <strong>de</strong>ssas políticas, além do<br />

9<br />

No trabalho <strong>de</strong> Van Cott (2006), apresentado no capítulo 4, sobre as políticas multiculturais para os indígenas,<br />

a autora afirma que os pesos são os mesmos nesta proposta <strong>de</strong> In<strong>de</strong>x.<br />

54


grau <strong>de</strong> implementação, consi<strong>de</strong>ramos válida a indicação <strong>de</strong> uma tentativa <strong>de</strong> sistematizar a<br />

abordagem multicultural.<br />

Para darmos melhor finalida<strong>de</strong> a esse índice sintético, apresentarmos, no capítulo O Brasil<br />

Indígena no Contexto Latino, uma avaliação <strong>de</strong> Van Cott (2006) sobre os países da América<br />

Latina em que ela situa o Brasil entre outros países quanto ao grau <strong>de</strong> adoção do<br />

multiculturalismo com relação à questão indígena.<br />

3.3.3. Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos: Referência “Oficial” no Brasil<br />

Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos, ao que tudo indica, é o autor dos “livros <strong>de</strong> cabeceira” dos<br />

formuladores <strong>de</strong> políticas do governo Lula sobre a abordagem multicultural das políticas<br />

públicas 10 .<br />

Neste capítulo preten<strong>de</strong>mos apresentar a concepção do autor. Sociólogo português ligado à<br />

esquerda, participou <strong>de</strong> Fóruns Sociais Mundial, aumentando sua popularida<strong>de</strong> em alguns<br />

setores i<strong>de</strong>ológicos do Brasil.<br />

Segundo Santos & Nunes (2003), o multiculturalismo po<strong>de</strong> ser concebido tanto como uma<br />

teoria <strong>de</strong>scritiva, como um projeto. Por teoria <strong>de</strong>scritiva, enten<strong>de</strong>-se o reconhecimento <strong>de</strong><br />

diferentes culturas no mundo, a coexistência <strong>de</strong>las em um mesmo Estado-nação e a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> influência que uma po<strong>de</strong> ter sobre a outra; por projeto, as políticas públicas<br />

que salientam ou reconhecem essas diferenças e que muitas vezes são vistas com ceticismo<br />

por setores da socieda<strong>de</strong>.<br />

10<br />

Sousa é o único autor/teórico/acadêmico mencionado em toda a mensagem presi<strong>de</strong>ncial do Plano Plurianual<br />

2004-2007. Para conferir: , acesso<br />

em 2010.<br />

55


Há dois principais tipos <strong>de</strong> multiculturalismo como projetos 11 : o conservador e o<br />

emancipatório. O conservador vai ressaltar as diferenças e favorecer uma cultura em<br />

<strong>de</strong>trimento das outras – é integracionista –, enquanto o emancipatório vai reconhecer, <strong>de</strong><br />

maneira igualitária, as diferenças, as várias i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. (SANTOS & NUNES, 2003)<br />

Algumas críticas conservadoras ao multiculturalismo afirmam que seria uma teoria com<br />

projeto “antieuropeu”, isto é, com a pretensão <strong>de</strong> substituir os valores oci<strong>de</strong>ntais por<br />

realizações “inferiores”, sem critério algum, além <strong>de</strong> fragmentar a socieda<strong>de</strong> e ameaçar a<br />

coesão social da nação, na tentativa <strong>de</strong> promover a autoestima das minorias por elas não<br />

terem <strong>de</strong>sempenho a<strong>de</strong>quado no grupo majoritário. (SANTOS & NUNES, 2003, p.29)<br />

Já as críticas da “esquerda” quanto à atual manifestação da teoria <strong>de</strong>claram ser um projeto<br />

eurocêntrico, formulado na concepção das socieda<strong>de</strong>s “mo<strong>de</strong>rnas”, para avaliar as <strong>de</strong>mais<br />

culturas. É racista por manter a própria superiorida<strong>de</strong>, mesmo que não se oponha ao outro,<br />

e os “direitos coletivos são reconhecidos apenas enquanto subordinados à hegemonia da<br />

or<strong>de</strong>m constitucional do Estado-nação” (Ibid., p.31), ou seja, um multiculturalismo<br />

conservador.<br />

Porém, <strong>de</strong> acordo com os autores, o multiculturalismo emancipatório não gera ambiguida<strong>de</strong>,<br />

mas exige o reconhecimento e promove uma “criação <strong>de</strong> políticas sociais voltadas para a<br />

redução das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, a redistribuição <strong>de</strong> recursos e a inclusão” (SANTOS & NUNES,<br />

2003, p.34), porque reconhece as diferenças, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que isso não gere, dê continuida<strong>de</strong> ou<br />

reproduza distinções, o que torna mais preciso o conceito <strong>de</strong> “cidadania multicultural” 12 .<br />

11 Para outros tipos <strong>de</strong> multiculturalismo, ver Faustino (2006).<br />

12 Este conceito é introduzido pela primeira vez por Kymlicka, próxima vertente a ser apresentada.<br />

56


E, re<strong>de</strong>finida a socieda<strong>de</strong> nacional como “socieda<strong>de</strong> multicultural”, haverá condições para se<br />

estabelecerem os direitos coletivos, entretanto isso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá <strong>de</strong> uma mudança na<br />

concepção dos direitos humanos. (SANTOS & NUNES, 2003)<br />

Condições Para Uma Política Emancipatória<br />

Santos (2003) argumenta que as condições <strong>de</strong> utilização dos direitos humanos po<strong>de</strong>m<br />

contribuir para a formulação <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira “política emancipatória”, dado que estão no<br />

centro <strong>de</strong> tensões que afetam a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal.<br />

Sob essa perspectiva, o autor (2003) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> três tensões dialéticas para essa crise: (i) a<br />

entre regulação social e emancipação social; (ii) a entre o Estado e a socieda<strong>de</strong> civil; (iii) a<br />

entre Estado-nação e globalização.<br />

A primeira refere-se à simultaneida<strong>de</strong> que ocorre entre a regulação social e a emancipação<br />

social, <strong>de</strong> modo que a política dos direitos humanos po<strong>de</strong> ser caracterizada pelas duas<br />

variáveis, quando antigamente se po<strong>de</strong>ria dizer apenas que a crise da regulação social<br />

fortalecia as políticas emancipatórias.<br />

A segunda apresenta o Estado e a socieda<strong>de</strong> não como pressupostos, mas como resultantes<br />

da luta política mo<strong>de</strong>rna, <strong>de</strong> forma que a tensão passa a existir entre grupos <strong>de</strong> interesses,<br />

que ora se reproduzem sob a forma <strong>de</strong> um, ora sob a forma <strong>de</strong> outra. Assim, notamos a<br />

troca <strong>de</strong> papéis na História, quando<br />

nos países do Norte Atlântico não a primeira geração <strong>de</strong> direitos humanos (os<br />

direitos cívicos e políticos) foi concebida como uma luta da socieda<strong>de</strong> civil<br />

contra o Estado, consi<strong>de</strong>rado o principal violador potencial dos direitos<br />

humanos, e a segunda e terceira gerações (direitos econômicos e sociais e<br />

direitos culturais, da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida etc.) foram concebidas como atuações<br />

57


do Estado, então consi<strong>de</strong>rado a principal garantia dos direitos humanos.<br />

(SANTOS, 2003, p.431)<br />

A conclusão é que não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scartada a hipótese <strong>de</strong> que, em outros contextos<br />

históricos, possa haver uma sequência oposta ou mesmo ausência <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong> que<br />

contribua para os direitos humanos.<br />

A terceira tensão dialética – entre Estado-nação e globalização – ocorre pela fragilização do<br />

Estado-nação, tido historicamente como o guardião dos direitos humanos com referência à<br />

globalização e à aspiração ao reconhecimento mundial dos direitos humanos, hoje<br />

manifestos na questão cultural e religiosa.<br />

Em função das tensões, Santos (2003) propõe que os direitos humanos sejam repensados<br />

como universais, expressos nesse novo contexto mundial em que se dá a globalização.<br />

Os Direitos Humanos Como Culturas e a Globalização Como Formas <strong>de</strong><br />

Manifestação da Cultura<br />

Para enten<strong>de</strong>rmos melhor a proposta <strong>de</strong> Santos, iniciemos por <strong>de</strong>finir a globalização como<br />

diferentes conjuntos <strong>de</strong> relações sociais “num processo pelo qual <strong>de</strong>terminada condição ou<br />

entida<strong>de</strong> local esten<strong>de</strong> a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, <strong>de</strong>senvolve a capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar como sendo local outra condição social ou entida<strong>de</strong> rival” (SANTOS, 2003,<br />

p.433), ou seja, há imposição das mesmas localida<strong>de</strong>s em diferentes regiões do planeta.<br />

São quatro os modos <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> globalização i<strong>de</strong>ntificados por Santos (2003):<br />

1. Localismo Globalizado<br />

2. Globalismo Localizado<br />

3. Cosmopolitismo<br />

58


4. Patrimônio Comum da Humanida<strong>de</strong><br />

O primeiro, próprio dos países centrais, consiste num fenômeno local globalizado com<br />

sucesso. Como exemplo, po<strong>de</strong>mos citar o fast food americano ou a importância da língua<br />

inglesa no cenário mundial.<br />

O segundo, característico dos países periféricos, são práticas transnacionais em condições<br />

locais, <strong>de</strong> modo que há uma <strong>de</strong>sestruturação e uma reestruturação local para acomodar<br />

essas novas práticas. Como exemplo, temos o artesanato e a vida selvagem, presentes na<br />

indústria global do turismo.<br />

Essas duas formas são consi<strong>de</strong>radas formas <strong>de</strong> “globalização hegemônica”, “neoliberal”, no<br />

sentido top-down (<strong>de</strong> cima para baixo) e vão ao encontro do multiculturalismo conservador.<br />

O “cosmopolitismo” abarca as iniciativas mais diversas e amplas por meio <strong>de</strong> articulações<br />

transnacionais que combatem a exclusão e a discriminação social e a <strong>de</strong>struição ambiental,<br />

provocadas pelas “globalizações hegemônicas”, como, por exemplo, as lutas pelos direitos<br />

indígenas e o Fórum Social Mundial.<br />

O “patrimônio comum da humanida<strong>de</strong>” é relativo somente ao planeta, como a<br />

sustentabilida<strong>de</strong> da vida humana na Terra e temas ambientais, como a camada <strong>de</strong> ozônio, a<br />

biodiversida<strong>de</strong>, a exploração do espaço.<br />

Essas duas últimas formas são <strong>de</strong>nominadas “globalizações contra-hegemônicas”,<br />

“solidárias”, no sentido bottom-up (<strong>de</strong> baixo para cima), que vão ao encontro do<br />

multiculturalismo emancipatório.<br />

59


A <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> Santos (2003), por essa classificação, é a <strong>de</strong> que os direitos humanos universais<br />

precisam ser transformados pelo multiculturalismo emancipatório 13 , porque, enquanto<br />

forem concebidos como universais, reproduzirão um localismo globalizado com prejuízo <strong>de</strong><br />

um “choque <strong>de</strong> civilizações”.<br />

A crítica ao universalismo <strong>de</strong>sses direitos <strong>de</strong>ve-se justamente ao fato <strong>de</strong> eles serem<br />

oci<strong>de</strong>ntais, a saber, são quatro os regimes internacionais <strong>de</strong> aplicação dos direitos humanos:<br />

o europeu, o interamericano, o africano e o asiático. Como o autor argumenta, “a<br />

Declaração Universal <strong>de</strong> 1948, [foi] elaborada sem a participação da maioria dos povos do<br />

mundo”. (SANTOS, 2003, p.439) 14<br />

Assim, a proposta é a <strong>de</strong> pensarmos em uma transformação do conceito e das práticas dos<br />

direitos humanos como política emancipatória, com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> adquirir a forma <strong>de</strong> um<br />

projeto cosmopolita. Santos (2003) aponta cinco premissas para essa transformação, como<br />

veremos a seguir.<br />

Premissas Para Uma Política Multicultural Emancipatória<br />

A primeira é a superação do <strong>de</strong>bate sobre universalismo e relativismo cultural. Apesar <strong>de</strong><br />

todas as culturas serem relativas, filosoficamente não se po<strong>de</strong> conceber tal raciocínio, <strong>de</strong><br />

modo que a preocupação central <strong>de</strong>vem ser os diálogos interculturais com convergências<br />

(“interesses isomórficos”), provavelmente expressas em linguagens distintas, segundo<br />

universos culturais diferentes.<br />

13<br />

Santos (2003) <strong>de</strong>ixa claro que vai enfocar essa transformação dos direitos humanos somente sob o aspecto<br />

cultural, daí valer-se do multiculturalismo (emancipatório).<br />

14<br />

Com relação a esse tipo <strong>de</strong> divergência entre a teoria e a prática, há um caso muito interessante narrado por<br />

Garzón e Valle (2006) sobre os povos indígenas colombianos que, por meio da Organização Nacional Indígena<br />

<strong>de</strong> Colômbia (Onic), entraram com uma ação no Conselho <strong>de</strong> Estado para anulação <strong>de</strong> um <strong>de</strong>creto do Governo<br />

que previa a consulta prévia aos povos indígenas da Colômbia para assuntos que afetassem suas terras, modos<br />

<strong>de</strong> vida ou meios <strong>de</strong> sobrevivência. Isso porque, contraditoriamente, o <strong>de</strong>creto havia sido elaborado e<br />

aprovado sem essa consulta.<br />

60


A segunda premissa é a <strong>de</strong> que “todas as culturas possuem concepções <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong><br />

humana, mas nem sempre todas elas a concebem em termos <strong>de</strong> direitos humanos”.<br />

(SANTOS, 2003, p.442)<br />

A terceira atesta que “todas as culturas são incompletas e problemáticas nas suas<br />

concepções <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> humana”. Se houvesse alguma cultura completa, somente ela<br />

existiria. Assim, “aumentar a consciência <strong>de</strong> incompletu<strong>de</strong> cultural é uma das tarefas prévias<br />

para a construção <strong>de</strong> uma concepção multicultural <strong>de</strong> direitos humanos”. (Ibid., p.442)<br />

A quarta versa sobre os diversos pontos <strong>de</strong> vista que cada cultura tem em relação à<br />

dignida<strong>de</strong> humana e po<strong>de</strong> ser mais ampla ou mais restrita, além <strong>de</strong> apresentar variações <strong>de</strong><br />

reciprocida<strong>de</strong> entre as culturas e graus <strong>de</strong> abertura <strong>de</strong> uma com a outra, variações essas que<br />

precisam ser i<strong>de</strong>ntificadas.<br />

A última trata <strong>de</strong> dois princípios competitivos <strong>de</strong> vínculo hierárquico a que todas as culturas<br />

<strong>de</strong>stinam homens e grupos sociais: o da igualda<strong>de</strong>, ou seja, <strong>de</strong> uma hierarquia entre<br />

unida<strong>de</strong>s homogêneas, como os estratos socioeconômicos, e o da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> entre<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, diferenças únicas.<br />

A importância da distinção <strong>de</strong>sses dois princípios justifica-se pela afirmação <strong>de</strong> que “uma<br />

política emancipatória <strong>de</strong> direitos humanos <strong>de</strong>ve saber distinguir entre a luta pela igualda<strong>de</strong><br />

e a luta pelo reconhecimento igualitário das diferenças a fim <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r travar ambas as lutas<br />

eficazmente”. (SANTOS, 2003, p.443) Essa eficácia será garantida pelo diálogo intercultural.<br />

61


Um exemplo muito feliz, a título <strong>de</strong> comparação com o que Taylor 15 sugere, é a separação <strong>de</strong><br />

política e religião. Santos (2003b) argumenta que essa divisão assume contornos muito<br />

específicos na cultura oci<strong>de</strong>ntal e que <strong>de</strong>vemos comparar os direitos humanos <strong>de</strong>sta cultura<br />

com o dharma da cultura hindu e a umma da cultura islâmica, sob a perspectiva das cinco<br />

premissas apresentadas anteriormente para o diálogo intercultural ser eficiente.<br />

Por um lado, expõem-se as críticas das culturas orientais à oci<strong>de</strong>ntal:<br />

A concepção oci<strong>de</strong>ntal dos direitos humanos está contaminada por uma<br />

simetria muito simplista e mecanicista entre direitos e <strong>de</strong>veres. Apenas<br />

garante direitos àqueles dos quais po<strong>de</strong> exigir <strong>de</strong>veres. Isto explica por que<br />

razão, na concepção oci<strong>de</strong>ntal dos direitos humanos, a natureza não tem<br />

direitos: porque não lhe po<strong>de</strong>m ser impostos <strong>de</strong>veres. Pelo mesmo motivo é<br />

impossível garantir direitos às gerações futuras: não têm direitos porque não<br />

têm <strong>de</strong>veres. (SANTOS, 2003, p.446)<br />

Por outro lado, as críticas às culturas orientais pelas oci<strong>de</strong>ntais estão no viés não dialético a<br />

favor da harmonia, pela <strong>de</strong>spreocupação com os princípios <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>mocrática com a<br />

liberda<strong>de</strong> e a autonomia, mas por uma percepção somente da coletivida<strong>de</strong>, que<br />

<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra o sofrimento do indivíduo. A solução para essas diferenças estaria no diálogo<br />

intercultural <strong>de</strong> acordo com as cinco premissas mencionadas, que resultariam no<br />

multiculturalismo emancipatório.<br />

O Diálogo Intercultural<br />

A expectativa <strong>de</strong> resultado <strong>de</strong> políticas multiculturais emancipatórias é <strong>de</strong> “uma concepção<br />

culturalmente híbrida da dignida<strong>de</strong> humana e, por isso, também uma concepção mestiça e<br />

multicultural dos direitos humanos”. (SANTOS, 2003, p.450) Dessa forma, mesmo a reflexão<br />

15<br />

Enquanto Taylor apresenta o dilema da necessida<strong>de</strong> da separação da política da religião e a impossibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> tal proposta nos países islâmicos, Sousa propõe a sua “solução”.<br />

62


mais ampla <strong>de</strong> uma única pessoa sobre o assunto não po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada como resultado,<br />

porque é preciso haver alguém do outro lado para garantir a pon<strong>de</strong>ração ser completa.<br />

Trata-se <strong>de</strong> um processo diferente <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> conhecimento, <strong>de</strong> “produção <strong>de</strong><br />

conhecimento coletiva, participativa, interativa, intersubjetiva e reticular, uma produção<br />

baseada em trocas cognitivas e afetivas que avançam por intermédio do aprofundamento da<br />

reciprocida<strong>de</strong> entre elas”. (Ibid., p.451)<br />

Um dos pontos críticos <strong>de</strong>ssa proposta <strong>de</strong> Santos é a dúvida quanto à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> superar<br />

a subordinação <strong>de</strong> certas culturas a uma única dominante, no momento <strong>de</strong> um diálogo<br />

intercultural. A argumentação que Santos (2003) exibe – e afirma ser convincente – para os<br />

povos indígenas versa sobre a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> culturas que historicamente foram<br />

massacradas assumirem sua incompletu<strong>de</strong>, o que po<strong>de</strong> acarretar na sua dissolução,<br />

enquanto as dominantes po<strong>de</strong>m auto<strong>de</strong>clarar-se incompletas sem correr o risco <strong>de</strong> extinção.<br />

Diante <strong>de</strong>sse dilema, segundo o autor, há duas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> resultado: o fechamento ou<br />

a conquista cultural. Na verda<strong>de</strong>, o primeiro é auto<strong>de</strong>strutivo e o segundo favorece o<br />

primeiro, o que resulta num círculo vicioso. Com receio <strong>de</strong> haver uma conquista cultural, as<br />

exigências para um diálogo intercultural po<strong>de</strong>riam ser tão altas, que impossibilitariam tal<br />

situação e contribuiriam para o fechamento e, consequentemente, para a conquista. (Ibid.,<br />

p.454)<br />

Por fim, <strong>de</strong>vemos verificar as possibilida<strong>de</strong>s da existência <strong>de</strong> um multiculturalismo<br />

emancipatório. Elas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rão do contexto em que as culturas estão envolvidas, das<br />

relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, do espaço, etc., com condições universais que muito se assemelham às<br />

premissas apresentadas anteriormente (Ibid., p.455-458):<br />

63


1. Da completu<strong>de</strong> à incompletu<strong>de</strong>, ou seja, a completu<strong>de</strong> é o ponto <strong>de</strong> partida<br />

(concepção errônea das culturas), não o <strong>de</strong> chegada. Esse processo <strong>de</strong> consciência se<br />

dá pela autorreflexão dos grupos sociais que <strong>de</strong>verão aceitar a incompletu<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas<br />

culturas.<br />

2. Das versões culturais estreitas às versões amplas, porque as culturas têm gran<strong>de</strong><br />

varieda<strong>de</strong> interna no grau <strong>de</strong> flexibilida<strong>de</strong> para compreen<strong>de</strong>r umas às outras. Deve<br />

ser escolhida para o diálogo intercultural aquela que irá mais longe no<br />

reconhecimento da outra.<br />

3. De tempos unilaterais a tempos partilhados, ou seja, a falácia da completu<strong>de</strong> impe<strong>de</strong><br />

que as culturas compreendam que os momentos <strong>de</strong> disposição para o diálogo<br />

intercultural não necessariamente ocorrem ao mesmo tempo em todas as<br />

envolvidas. É preciso que os tempos <strong>de</strong> maturação sejam partilhados, não unilaterais.<br />

4. De parceiros e temas unilaterais impostos a parceiros e temas escolhidos por mútuo<br />

acordo, em que a convergência aos temas ten<strong>de</strong> a ser muito difícil entre os grupos<br />

sociais, <strong>de</strong> modo que <strong>de</strong>ve limitar-se a preocupações isomórficas, expressas em<br />

linguagens distintas.<br />

5. De igualda<strong>de</strong> ou diferença à igualda<strong>de</strong> e diferença, ou seja, o princípio da igualda<strong>de</strong><br />

precisa ser utilizado com o princípio do reconhecimento da diferença.<br />

Como o próprio autor explica, essa proposta <strong>de</strong> multiculturalismo emancipatório ten<strong>de</strong> a ser<br />

muito abstrato e exige uma nova concepção <strong>de</strong> práticas e posturas muitas vezes não viáveis<br />

em todas as culturas envolvidas no mesmo momento, todavia, do mesmo modo, ele afirma,<br />

“certamente é, tão utópico quanto o respeito universal pela dignida<strong>de</strong> humana. E nem por<br />

64


isso este último <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser uma exigência ética séria”. (SANTOS, 2003, p.458) Assim o autor<br />

justifica sua vertente e a consi<strong>de</strong>ração que ela precisa ter no tratamento da abordagem<br />

multicultural <strong>de</strong> políticas públicas.<br />

65


3.4. Uma Sistematização Possível<br />

O multiculturalismo possui algumas vertentes, mas optamos por focalizar apenas as que<br />

consi<strong>de</strong>ramos pertinentes a este trabalho.<br />

Taylor foi selecionado pela abordagem filosófica e abrangente; Kymlicka, por ser um marco<br />

no multiculturalismo e por ter muita influência com políticos/gestores em diversos países do<br />

mundo 16 e Sousa, por ser o mais conhecido, além <strong>de</strong> usado como referência no tema das<br />

políticas públicas fe<strong>de</strong>rais que tratam da diversida<strong>de</strong> no Brasil 17 .<br />

Taylor, filósofo cana<strong>de</strong>nse consi<strong>de</strong>rado republicano-liberal, apresenta o multiculturalismo<br />

justamente pelo aspecto filosófico. Como o <strong>de</strong>bate que ele trava está em alto nível <strong>de</strong><br />

abstração, o leitor po<strong>de</strong>rá dizer que isso dificulta a i<strong>de</strong>ntificação e a sistematização <strong>de</strong><br />

políticas públicas multiculturais, mas a proposta é tratar <strong>de</strong> uma discussão mais teórica, que<br />

resulte em questionamentos.<br />

Há uma passagem em que ele critica a mudança dos currículos <strong>escola</strong>res como ação pontual,<br />

ou seja, afirma que simplesmente essa ação não implicará transformações necessárias, mas<br />

que um conjunto <strong>de</strong>las po<strong>de</strong>rá caracterizar-se como política multicultural.<br />

Quais seriam as outras ações? E essa não seria importante como passo inicial em direção a<br />

um novo conceito <strong>de</strong> políticas públicas?<br />

16<br />

Há um artigo muito interessante em The Wall Street Journal (Zachary, G. Pascal. 2000. "A Philosopher in Red<br />

Sneakers Gains Influence as a Global Guru." Wall Street Journal, March 28, 2000: at B1 – B4) que versa sobre a<br />

popularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Kymlicka, chamado para ajudar políticos e gestores a refletir sobre a formulação <strong>de</strong> políticas<br />

públicas multiculturais em diversos países.<br />

17<br />

Em entrevista, Ricardo Henriques, ex-secretário (2004 a 2006) da Secretaria <strong>de</strong> Educação Continuada,<br />

Alfabetização e Diversida<strong>de</strong> – SECAD –, menciona esses dois autores como referência, no MEC, para a<br />

formulação <strong>de</strong> políticas públicas.<br />

66


Para Taylor, as políticas <strong>de</strong> reparação são um equívoco, porque são concebidas como<br />

temporárias, e o multiculturalismo não o é. Essa argumentação faz sentido, mas quais<br />

seriam as essenciais para consi<strong>de</strong>rarmos um país pleno em políticas multiculturais? As <strong>de</strong><br />

reparação não po<strong>de</strong>m contribuir para a conscientização mais clara das minorias sobre a<br />

própria condição na socieda<strong>de</strong> nacional, dado que por muitos anos foram submetidas a<br />

políticas <strong>de</strong> integração?<br />

O que vemos, por meio <strong>de</strong>sse autor, é uma balança com dois pratos que se equilibram: num,<br />

há propostas <strong>de</strong> políticas multiculturais, como a separação <strong>de</strong> política e religião; noutro,<br />

consi<strong>de</strong>rações imprescindíveis ao multiculturalismo, o reconhecimento das diferenças<br />

culturais, como ocorre com o Islamismo, que não separa política <strong>de</strong> religião.<br />

Já Will Kymlicka, filósofo político cana<strong>de</strong>nse, auto<strong>de</strong>nominado liberal, arrisca-se na<br />

elaboração <strong>de</strong> um Multiculturalism Policy In<strong>de</strong>x, publicado em 2006. É consi<strong>de</strong>rado o<br />

primeiro estudioso a lançar um livro – marco na teoria do multiculturalismo –, intitulado<br />

Multicultural Citizenship (1995), em que reflete sobre a concepção <strong>de</strong> políticas multiculturais<br />

como forma <strong>de</strong> promover a cidadania sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado a questão cultural.<br />

A perspectiva <strong>de</strong>le são os indivíduos, classificados em grupos distintos (colonizados,<br />

imigrantes) que formarão Estados (multinacional, poliétnico, multinacional-poliétnico). Ele<br />

recusa veementemente a tentativa <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s se imporem aos próprios membros por<br />

meio <strong>de</strong> restrições internas, porque tal situação daria oportunida<strong>de</strong> à supressão <strong>de</strong><br />

indivíduos, confinados a um regime não <strong>de</strong>mocrático. Alega também que os direitos<br />

coletivos justificam essas restrições e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> os direitos individuais estendidos à<br />

coletivida<strong>de</strong>, como, por exemplo, todos po<strong>de</strong>rem <strong>de</strong>cidir em qual língua será o ensino nas<br />

<strong>escola</strong>s. Como não haverá consenso nacional em razão da diversida<strong>de</strong> cultural <strong>de</strong> um país, a<br />

67


proposta é que alguns direitos individuais sejam oferecidos a <strong>de</strong>terminados grupos e<br />

comunida<strong>de</strong>s, para as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>les, como a exemplificada, serem atendidas, porém<br />

sempre em consonância com os direitos civis, políticos e humanos do Estado-Maior, o que<br />

muitas vezes po<strong>de</strong> gerar conflitos.<br />

Sousa, sociólogo português, contrapõe-se ao liberalismo <strong>de</strong> Kymlicka, ao alegar que há<br />

políticas multiculturais conservadoras, produzidas em conformida<strong>de</strong> com conceitos<br />

oci<strong>de</strong>ntais, como o individualismo, e que, por isso, oprimem e massacram culturas não<br />

dominantes.<br />

Deixamos <strong>de</strong> lado seu discurso <strong>de</strong> esquerda “radical”, em que acusa o capitalismo <strong>de</strong><br />

responsável por tanta submissão e miséria no mundo, por não consi<strong>de</strong>rarmos <strong>de</strong> relevância<br />

para este trabalho, mas citamos a existência <strong>de</strong>le nessas consi<strong>de</strong>rações, porque ele é o autor<br />

tido como referência no atual governo, o que nos leva a julgar que as administrações são<br />

norteadas por teóricos com viés i<strong>de</strong>ológico similar ao do partido da situação.<br />

O multiculturalismo emancipatório <strong>de</strong> Sousa está nas diversas manifestações <strong>de</strong> um mesmo<br />

tema no mundo. O argumento é o <strong>de</strong> tomarmos consciência <strong>de</strong>ssa varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> concepções,<br />

como, por exemplo, a <strong>de</strong> direitos humanos, que tem aumentado o grau <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong><br />

diante da globalização.<br />

O dilema do fechamento ou da conquista cultural sugere ser inevitável a assimilação e a<br />

integração das culturas minoritárias se as premissas <strong>de</strong> Sousa, necessárias ao<br />

multiculturalismo emancipatório, não forem atingidas. Porém, se atentarmos bem, a<br />

concepção <strong>de</strong>ssas premissas espera do movimento multicultural o sentido bottom-up, o que<br />

exclui, ao menos inicialmente, a responsabilida<strong>de</strong> do governo e dos gestores na formulação<br />

68


das políticas públicas multiculturais. A<strong>de</strong>pto da i<strong>de</strong>ologia esquerdista, o autor parece<br />

aguardar que os movimentos sociais assumam o controle <strong>de</strong>ssa abordagem.<br />

A participação da socieda<strong>de</strong> é fundamental no Estado <strong>de</strong>mocrático, mas, pela complexida<strong>de</strong><br />

do multiculturalismo, já apresentada, por exemplo, no subitem Ambiguida<strong>de</strong> e Obscurida<strong>de</strong><br />

da Abordagem Multicultural, se o assunto não for muito bem esclarecido para a socieda<strong>de</strong>,<br />

ele levará mais à polarização do que à reflexão.<br />

Um aspecto comum aos três autores é a visão do multiculturalismo intimamente ligada à<br />

<strong>de</strong>mocracia, aos direitos e à cidadania, que adquire o significado <strong>de</strong> inclusão <strong>de</strong> populações<br />

excluídas, porque, nas palavras <strong>de</strong> Ruth Cardoso, “os direitos garantidos a um indivíduo<br />

abstrato – o cidadão – continua a encobrir todas as diferenças” 18 culturais, <strong>de</strong> costume, <strong>de</strong><br />

tradições. Muitas vezes os direitos são previstos para as minorias, mas não exercidos por<br />

elas.<br />

A gran<strong>de</strong> diferença entre essas correntes é que os liberais (Taylor e Kymlicka) nos convidam<br />

a olhar para as diferenças, enquanto o socialista (Sousa) se recusa a aceitar as diferenças e<br />

propõe a superação das contradições do mo<strong>de</strong>lo dos liberais (porém sabemos que todos os<br />

mo<strong>de</strong>los têm contradições), por intermédio da igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecimento das diferenças.<br />

Este capítulo, Uma Abordagem Multicultural, apresentou uma visão para se refletir sobre a<br />

formulação <strong>de</strong> políticas públicas. O questionamento que suscitou este estudo foi a<br />

homogeneização das políticas públicas para beneficiários tão distintos culturalmente, em<br />

especial os indígenas brasileiros.<br />

18<br />

Aula <strong>de</strong> Ruth Cardoso num simpósio, com o título “Cidadania em Socieda<strong>de</strong>s Multiculturais”. In: O<br />

Preconceito. Júlio Lerner editor, Imprensa Oficial do Estado, 1996/1997, p.19/20. Disponível em:<br />

, acesso em janeiro <strong>de</strong> 2010.<br />

69


No próximo capítulo, situaremos essa questão no Brasil com a previsão e/ou implementação<br />

<strong>de</strong> políticas públicas multiculturais indigenistas.<br />

Porém, antes do próximo capítulo, apesar <strong>de</strong> não ser esse o objetivo <strong>de</strong>sta dissertação,<br />

<strong>de</strong>vemos mencionar os significados da ciência versus a política <strong>de</strong> Weber (2004), isto é,<br />

observar brevemente a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consonância entre os aspectos práticos e os teóricos<br />

na adoção <strong>de</strong> políticas públicas.<br />

Acreditamos que a intelectualização e a racionalização não equivalem ao conhecimento<br />

geral crescente a respeito das condições em que vivemos, ao mesmo tempo que não<br />

diminuem o conhecimento do “selvagem”, que sabe agir perfeitamente, <strong>de</strong> acordo com as<br />

próprias necessida<strong>de</strong>s e conhece os meios <strong>de</strong> favorecer-se.<br />

Weber (2004) <strong>de</strong>finirá, <strong>de</strong> modo extremamente lúcido, a posição pessoal do homem <strong>de</strong><br />

ciência diante <strong>de</strong> sua vocação:<br />

Diz-nos ele que se <strong>de</strong>dica à ciência ‘pela ciência’ e não apenas para que da<br />

ciência possam outros retirar vantagens comerciais ou técnicas ou para que<br />

os homens possam melhor nutrir-se, vestir-se, iluminar-se ou locomover-se.<br />

(Ibid., p.37)<br />

Po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r disso que a ciência, como teoria pura, não é formulada para se<br />

obterem resultados práticos, isto é, o resultado do trabalho científico do acadêmico é<br />

importante em si e por isso merece ser conhecido.<br />

Po<strong>de</strong>mos perceber tal postura em Taylor, Kymlicka e Sousa, com relação à abordagem<br />

multicultural, posto que a tese é a <strong>de</strong> que as diferentes culturas precisam ser respeitadas, e<br />

aí po<strong>de</strong>mos analisar inclusive o infanticídio praticado em al<strong>de</strong>ias indígenas 19 , o que entra em<br />

19<br />

A prática <strong>de</strong> infanticídio em al<strong>de</strong>ias indígenas ocorre com bebês que nascem com alguma <strong>de</strong>formida<strong>de</strong> física.<br />

70


conflito com questões com que o gestor público <strong>de</strong>verá lidar quando se <strong>de</strong>parar com essas<br />

diferenças culturais.<br />

O gestor público, <strong>de</strong>finido por Weber como “homem político”, colocará em prática sua<br />

“vocação” e influirá sobre outros seres humanos, com a consciência <strong>de</strong> que tem em mãos<br />

um elemento importante da História.<br />

São três as suas qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>terminantes: paixão, senso <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong><br />

proporção. Weber explica que (i) paixão tem o “sentido <strong>de</strong> ‘propósito a realizar’, ou seja, <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>voção apaixonada a uma ‘causa’”, mas é preciso ter (ii) responsabilida<strong>de</strong> para não se<br />

per<strong>de</strong>r no vazio, isto é, não haver uma “revolução”. E para garantir que esse homem se<br />

transforme em lí<strong>de</strong>r político, é necessário (iii) senso <strong>de</strong> proporção, que permite “que os fatos<br />

ajam sobre si no recolhimento e na calma do interior do espírito, sabendo, por conseguinte,<br />

manter a distância dos homens e das coisas.” (WEBER, 2004, p.107-108).<br />

Por esse apontamento <strong>de</strong> Weber, po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r que o gestor público (homem<br />

político) tem a difícil missão <strong>de</strong> equilibrar a “paixão ar<strong>de</strong>nte” com o “frio senso <strong>de</strong><br />

proporção”, enquanto o acadêmico (cientista, intelectual) trabalha somente com a primeira.<br />

Outra característica que, em ambas as personagens aqui citadas, repercute <strong>de</strong> maneira<br />

diferente é a vaida<strong>de</strong>. Segundo Weber, “ela é inimiga mortal <strong>de</strong> qualquer <strong>de</strong>voção a uma<br />

causa, inimiga do recolhimento e, no caso em questão, do afastamento <strong>de</strong> si mesmo” (Ibid.,<br />

p.107) que o gestor precisa ter. Essa “moléstia profissional”, por mais que provoque<br />

antipatia no acadêmico, não o atrapalha na ativida<strong>de</strong> científica; já, no gestor, po<strong>de</strong> fazê-lo<br />

per<strong>de</strong>r o senso <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> ou levá-lo a não <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r causa alguma, cego pela se<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />

71


E um fato incontestável, que contribui para a dificulda<strong>de</strong> do trabalho do gestor, é que “o<br />

resultado da ativida<strong>de</strong> política raramente correspon<strong>de</strong> à intenção original do agente”<br />

(WEBER, 2004, p.109), ou seja, os efeitos <strong>de</strong> políticas não são previstos com tanta clareza.<br />

Ao transferir essa dialética para este trabalho, concluímos que, enquanto os teóricos do<br />

multiculturalismo <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m apaixonadamente a preservação e o respeito às culturas, os<br />

gestores públicos precisarão lidar com questões práticas que questionam a ética, como no<br />

infanticídio praticado em al<strong>de</strong>ias indígenas brasileiras, citado inicialmente.<br />

Lembramos que este parêntese foi feito com o intuito <strong>de</strong> apresentarmos uma importante<br />

discussão, mas não preten<strong>de</strong>mos aprofundar-nos no assunto.<br />

72


4. O Brasil Indígena no Contexto Latino<br />

Este capítulo apresenta duas análises classificatórias dos países da América Latina com<br />

relação à questão indígena. Aproveitaremos ambas para <strong>de</strong>stacar o Brasil no contexto latino,<br />

como forma <strong>de</strong> contribuir para a melhor compreensão sobre a situação das políticas<br />

multiculturais no Brasil.<br />

O primeiro item situa o Brasil no contexto latino ao utilizar, como parâmetro, três tratados e<br />

uma <strong>de</strong>claração. Não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar a influência que as agências<br />

internacionais <strong>de</strong> cooperação para o <strong>de</strong>senvolvimento tiveram e têm sobre países em<br />

<strong>de</strong>senvolvimento e sobre os sub<strong>de</strong>senvolvidos quanto à <strong>de</strong>finição da adoção <strong>de</strong> políticas<br />

multiculturais. Assim, discutimos o estudo <strong>de</strong> Fajardo (2009), que i<strong>de</strong>ntifica quatro gran<strong>de</strong>s<br />

marcos mundiais (alguns <strong>de</strong> cunho multicultural) na história dos povos tribais e semitribais e<br />

o tempo <strong>de</strong> maturação dos países para a<strong>de</strong>rir ou ratificar e incorporar esses instrumentos às<br />

respectivas constituições.<br />

Na segunda seção, com proposta <strong>de</strong> aplicação do índice sintético <strong>de</strong>scrito em O<br />

Multiculturalism Policy In<strong>de</strong>x, há o resultado <strong>de</strong> uma estimativa, por Van Cott (2006), <strong>de</strong><br />

ranking dos países que têm adotado a abordagem multicultural. Essa sistematização se dá<br />

pela comparação da lista <strong>de</strong> políticas multiculturais <strong>de</strong> Banting & Kymlicka (2006) com os<br />

textos das constituições dos países latinos.<br />

Apesar das limitações <strong>de</strong> ambos os estudos – que apenas investigam a existência <strong>de</strong> políticas<br />

multiculturais nas cartas constitucionais –, este capítulo proporciona, ainda que com<br />

significativo grau <strong>de</strong> comprometimento, um panorama da situação na América Latina e,<br />

principalmente, no Brasil em cotejo com os <strong>de</strong>mais países.<br />

73


4.1. No Cenário dos Tratados Internacionais e Declarações<br />

Como mencionado, Fajardo (2009) situa os países da América Latina em três gran<strong>de</strong>s<br />

convenções internacionais e na Declaração das Nações Unidas, o que perfaz os quatro<br />

gran<strong>de</strong>s marcos nas políticas indigenistas <strong>de</strong>sses países nas últimas décadas, a saber:<br />

• Convenção sobre o Instituto Indigenista Interamericano (III), <strong>de</strong> 1940;<br />

• Convenção 107 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) sobre Populações<br />

Indígenas e Tribais em Países In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong> 1957;<br />

• Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais em Países In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong><br />

1989;<br />

• Declaração das Nações Unidas Sobre os Direitos dos Povos Indígenas, <strong>de</strong> 2007.<br />

Os três primeiros instrumentos são tratados internacionais passíveis <strong>de</strong> ratificação, já o<br />

último não é apenas sujeito a a<strong>de</strong>são.<br />

De acordo com as datas <strong>de</strong> criação, as duas primeiras são apresentadas numa época em que<br />

a visão dos Estados a respeito dos índios era a <strong>de</strong> integrá-los e, assim, acreditava-se estar<br />

promovendo-se <strong>de</strong>senvolvimento. Já a Convenção 169 tem, como base, um mo<strong>de</strong>lo<br />

pluralista, no momento em que o multiculturalismo já estava institucionalizado em países do<br />

hemisfério Norte, como o Canadá. A Declaração segue a mesma linha: reconhece o direito<br />

<strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos os povos. A tabela 2 apresenta um quadro resumido<br />

<strong>de</strong>ssa situação.<br />

74


Tabela 2 – Os quatro instrumentos internacionais, vigentes na América Latina, sobre indígenas<br />

Instrumento Natureza Política na qual se inscreve<br />

Número <strong>de</strong> países que o têm<br />

adotado<br />

Integracionismo 17 <strong>de</strong>pósitos<br />

Convenção sobre o III<br />

(1940)<br />

Convenção 107 da OIT<br />

sobre populações<br />

indígenas (1957)<br />

Convenção 169 da OIT<br />

sobre povos indígenas (PI)<br />

(1989)<br />

Declaração da ONU sobre<br />

os direitos dos povos<br />

indígenas (2007)<br />

Fonte: Fajardo (2009, p.16)<br />

Tratado<br />

vinculante<br />

Tratado<br />

vinculante<br />

Tratado<br />

vinculante<br />

Declaração<br />

Coor<strong>de</strong>nação para políticas 1 país apenas assina, sem<br />

indigenistas<br />

Institucionalização do<br />

<strong>de</strong>pósito<br />

indigenismo (total: 18 países)<br />

Vigente<br />

Estado ou ação<br />

pen<strong>de</strong>nte<br />

Integracionismo<br />

Direitos Indígenas<br />

14 ratificações<br />

Já não está aberto a<br />

ratificações<br />

Vigente ainda em cinco<br />

Estado Tutelar<br />

países da AL e no Caribe<br />

Fim do integracionismo<br />

Promoção <strong>de</strong> controle por PI <strong>de</strong><br />

Aberto a ratificações<br />

suas instituições próprias e<br />

participação <strong>de</strong> povos no Estado<br />

(Base <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo pluralista)<br />

14 ratificações<br />

Requer aplicação<br />

Assimilação e fim do genocídio Não requer ratificações<br />

Adotado pela ONU com voto<br />

Reconhecimento <strong>de</strong> igual<br />

favorável <strong>de</strong> todos os países Compromisso dos<br />

dignida<strong>de</strong> dos povos e <strong>de</strong> livre<br />

latino-americanos, exceto da Estados e da ONU para<br />

<strong>de</strong>terminação; aprofundamento<br />

Colômbia (abstenção)<br />

torná-lo efetivo<br />

<strong>de</strong> direitos<br />

75


A Convenção sobre o III, <strong>de</strong> 1940, fez uma revisão crítica das políticas assimilacionistas<br />

que, por muitos séculos, foram adotadas na região latina, dado que os índios estavam<br />

em condições próximas aos “servos <strong>de</strong> fazenda, marginalizados do Estado e dos<br />

benefícios sociais”. (FAJARDO, 2009, p.17-8) Assim, a proposta era efetivar-se a<br />

integração dos índios aos respectivos Estados, e estes <strong>de</strong>finiriam o mo<strong>de</strong>lo mais<br />

apropriado. Na tabela 1, o país que apenas assina é Cuba.<br />

A Convenção 107, <strong>de</strong> 1957, distinguiu dificulda<strong>de</strong>s indígenas em lidar com as relações<br />

trabalhistas, como os casos <strong>de</strong> trabalho forçado e <strong>de</strong> exploração da mão <strong>de</strong> obra nos<br />

sistemas <strong>de</strong> contratação, e concluiu que isso se <strong>de</strong>via à <strong>de</strong>sapropriação territorial<br />

indígena, <strong>de</strong> modo que esse convênio trata também dos direitos a terra e a costumes.<br />

Caberia ao Estado as <strong>de</strong>cisões sobre essas questões sob a forma <strong>de</strong> tutela. Os cinco<br />

países on<strong>de</strong> ainda vigora esse convênio são: Cuba, El Salvador, Haiti, Panamá e<br />

República Dominicana.<br />

A Convenção 169, <strong>de</strong> 1989, contou com a participação <strong>de</strong> alguns povos indígenas e<br />

aboliu <strong>de</strong>finitivamente as políticas integracionistas ao optar por um novo mo<strong>de</strong>lo<br />

pluricultural.<br />

Entre outros, a Convenção 169 reconhece direitos a terra e território, e<br />

o acesso aos recursos naturais; reconhece o próprio direito<br />

consuetudinário, assim como direitos relativos ao trabalho, saú<strong>de</strong>,<br />

comunicações, o <strong>de</strong>senvolvimento das próprias línguas, educação<br />

bilíngue intercultural, etc. (FAJARDO, 2009, p.21)<br />

O Chile foi o último país a ratificar essa convenção, em 2008. No Brasil, isso só ocorreu<br />

em 2002. Segundo Kymlicka (1995), o Brasil <strong>de</strong>morou a a<strong>de</strong>rir por ter insistido na tese<br />

<strong>de</strong> que no país não havia minorias, mas que se tratava <strong>de</strong> um país multirracial, quando<br />

76


o tratado reconhecia justamente a existência <strong>de</strong> vários povos no interior <strong>de</strong> um<br />

mesmo Estado.<br />

De acordo com Fajardo (2009, p.21), em toda a América Latina, “a aplicação efetiva da<br />

Convenção, no entanto, <strong>de</strong>ixa muito a <strong>de</strong>sejar e os Estados seguem funcionando, em<br />

gran<strong>de</strong> parte, pela inércia burocrática <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los integracionistas e autoritários em<br />

matéria indígena”.<br />

A Declaração das Nações Unidas, <strong>de</strong> 2007, foi adotada por sua Assembléia Geral, com<br />

cento e quarenta e três votos a favor, quatro contra e onze abstenções. Segundo<br />

Fajardo (2009, p.23), o resultado do escrutínio “sintetiza os avanços realizados no<br />

direito internacional dos direitos dos povos indígenas, aprofunda e amplia direitos que<br />

estão na Convenção 169, da OIT, recolhe os princípios <strong>de</strong>senvolvidos na jurisprudência<br />

da Corte Interamericana, e incorpora <strong>de</strong>mandas indígenas”. Po<strong>de</strong>mos dizer que um<br />

dos aspectos mais importantes <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>claração e que vai ao encontro da abordagem<br />

apresentada neste trabalho <strong>de</strong> mestrado, é a transformação que sobrevém com o<br />

clássico princípio dos direitos individuais em coletivos.<br />

A Tabela 3, a seguir, apresenta um histórico dos quatro marcos com as respectivas<br />

datas <strong>de</strong> ratificação ou a<strong>de</strong>são. Um fato a ser consi<strong>de</strong>rado acerca <strong>de</strong>sta tabela é que o<br />

Uruguai não entra na classificação porque a influência indígena nessa região é<br />

praticamente nula.<br />

O que limita essa classificação é o fato <strong>de</strong> somente se indicarem as datas <strong>de</strong> ratificação<br />

<strong>de</strong>ssas convenções, sem estudo qualitativo ou verificação do que foi implementado.<br />

77


O Brasil não foi pioneiro na assinatura <strong>de</strong> nenhum dos tratados. Na Convenção III, ele<br />

foi o décimo sétimo dos <strong>de</strong>zoito países a a<strong>de</strong>rirem, à frente somente do Chile; na<br />

Convenção 107, o décimo <strong>de</strong> catorze, antes apenas do Paraguai, <strong>de</strong> El Salvador, da<br />

Colômbia e do Panamá, e, no 169, o décimo segundo entre os treze, novamente à<br />

frente do Chile. O tempo <strong>de</strong> maturação do Brasil até a ratificação <strong>de</strong> cada um dos<br />

tratados foi, respectivamente, <strong>de</strong> treze, <strong>de</strong>zoito e treze anos. Essas são algumas das<br />

inferências que po<strong>de</strong>mos fazer, mas, por esses dados, não po<strong>de</strong>mos concluir que o<br />

Brasil tenha <strong>de</strong>morado mais para assinar, que tenha a<strong>de</strong>rido <strong>de</strong> forma mais enfática<br />

(até mais que os <strong>de</strong>mais). A princípio, não parece ser esse caso.<br />

78


Tabela 3 – Países da América Latina que ratificaram tratados internacionais sobre a temática indígena<br />

País<br />

Convenção III (1940)<br />

Depósitos<br />

Convenção 107<br />

(1957) ratificações<br />

Convenção 169<br />

(1989) ratificações<br />

Convenção OIT<br />

vigente até hoje<br />

Argentina 16/1/48 18/1/1960 3/7/2000 Convenção 169<br />

Bolívia 28/4/45 12/1/1965 11/12/1991 Convenção 169<br />

Brasil 24/11/53 18/6/1965 25/7/2002 Convenção 169<br />

Chile 3/1/68 15/9/2008 Convenção 169<br />

Colômbia 10/4/44 4/3/1969 7/8/1991 Convenção 169<br />

Costa Rica 19/11/44<br />

29/11/40 (apenas<br />

4/5/1959 2/4/1993 Convenção 169<br />

Cuba<br />

assina, sem <strong>de</strong>pósito) 2/6/1958 Convenção 107<br />

El Salvador 30/7/41 3/10/1969 Convenção 107<br />

Equador 13/12/41 18/11/1958 15/5/1998 Convenção 169<br />

Guatemala 1º/8/47 5/6/1996 Convenção 169<br />

Haití 4/3/1958 Convenção 107<br />

Honduras 29/7/41 28/3/1995 Convenção 169<br />

México 2/5/41 1º/6/1959 5/9/1990 Convenção 169<br />

Nicarágua 10/3/42 Sem registro<br />

Panamá 27/7/43 4/6/1971 Convenção 107<br />

Paraguai 17/6/41 20/2/1969 10/8/1993 Convenção 169<br />

Peru 19/11/43 6/12/1960 2/2/1994 Convenção 169<br />

República Dominicana 10/8/44 23/6/1958 Convenção 107<br />

Venezuela 4/10/48 22/5/2002 Convenção 169<br />

Total<br />

17 <strong>de</strong>pósitos<br />

14 ratificações<br />

1 assinatura<br />

14 ratificações<br />

Fonte: Fajardo (2009, p.24)<br />

79


Não vamos entrar em <strong>de</strong>talhes sobre a próxima tabela (4 – Provisões constitucionais<br />

sobre os povos indígenas), mas Fajardo <strong>de</strong>monstra em que medida existem normas<br />

nas constituições dos países sobre os direitos indígenas 20 . Nessa tabela (4), o Brasil<br />

está em sexto lugar e, se <strong>de</strong>finíssemos faixas <strong>de</strong> variação <strong>de</strong>sse percentual (0%-15%,<br />

16%-35%, 36%-50%), estaria no meio, isto é, nem tão forte, nem tão fraco em relação<br />

à adoção <strong>de</strong> normas, na Constituição, sobre os direitos indígenas.<br />

Tabela 4 – Provisões constitucionais sobre os povos indígenas<br />

Legislação % <strong>de</strong> indicadores<br />

Constitucional<br />

cobertos<br />

1 México 47%<br />

2 Venezuela 45%<br />

3 Equador 45%<br />

4 Colômbia 33%<br />

5 Nicarágua 25%<br />

6 Brasil 18%<br />

7 Paraguai 18%<br />

8 Bolívia 16%<br />

9 Argentina 16%<br />

10 Guatemala 14%<br />

11 Peru 14%<br />

12 Panamá 12%<br />

13 Honduras 4%<br />

14 Guiana 3%<br />

15 El Salvador 3%<br />

16 Costa Rica 2%<br />

17 Suriname 2%<br />

18 Belize 1%<br />

19 Chile 0%<br />

20 Uruguai 0%<br />

Fonte: Fajardo (2009, p.30)<br />

A importância <strong>de</strong>sses tratados está na relevância que as instituições internacionais <strong>de</strong><br />

cooperação para o <strong>de</strong>senvolvimento têm na América Latina no que se refere às<br />

20 A autora expressa essas normas em porcentagem <strong>de</strong> incidência num total <strong>de</strong> cento e quarenta e cinco<br />

indicadores. Para algumas informações adicionais, ver Fajardo. (2009)<br />

80


políticas indigenistas <strong>de</strong> cada país, especialmente a partir da década <strong>de</strong> 1990. Nas<br />

palavras <strong>de</strong> Verdum:<br />

[E]ssas instituições passaram a atuar não somente como agentes<br />

financeiros e <strong>de</strong> assistência técnica, mas também como agentes<br />

políticos, influindo na <strong>de</strong>finição das políticas setoriais e como um<br />

“aliado” do movimento indígena no sentido da flexibilização dos<br />

mecanismos <strong>de</strong> tutela e controle governamental. (VERDUM, 2009,<br />

p.100)<br />

Dessa forma, mesmo que esse panorama não seja embasado em um trabalho <strong>de</strong><br />

profundida<strong>de</strong> – porque a classificação dos países se dá somente pela ratificação e<br />

previsão <strong>de</strong> direitos indígenas na Constituição – a apresentação é válida, assim como a<br />

próxima classificação, <strong>de</strong> Van Cott (2006), porque permite situar o Brasil no contexto<br />

latino. Assim, po<strong>de</strong>mos ter uma visão geral da situação brasileira, em comparação com<br />

outros países latinos em contextos mais similares ao brasileiro do que o Canadá e os<br />

EUA, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> a abordagem multicultural é originária.<br />

81


4.2. A aplicação da abordagem: Multiculturalism Policy In<strong>de</strong>x<br />

Van Cott (2006) avalia o multiculturalismo nas questões indígenas da América Latina<br />

relativamente ao Multiculturalism Policy In<strong>de</strong>x, <strong>de</strong> Banting & Kymlicka (2006) e leva em<br />

conta as informações obtidas nas constituições dos diversos países.<br />

Posto que, na América Latina, as legislações muitas vezes não são executadas, a<br />

classificação dos países apenas pela previsão <strong>de</strong> políticas multiculturais nas<br />

constituições representa sério comprometimento.<br />

Segundo Van Cott, as políticas multiculturais nessa região são relativas às duas últimas<br />

décadas e estão quase que exclusivamente ligadas à questão dos índios e dos negros.<br />

A percepção <strong>de</strong>ssa autora é que os indígenas ganharam muita visibilida<strong>de</strong> na América<br />

Latina em razão da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mobilização nos 1980 e 1990, conforme o relatado<br />

na seção Histórico do capítulo O Brasil e a Questão Indígena.<br />

De acordo com a avaliação <strong>de</strong> Van Cott (2006) sobre o índice sintético no contexto<br />

latino-americano, há duas variáveis não passíveis <strong>de</strong> análise: (3) <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> tratados<br />

históricos e/ou assinatura <strong>de</strong> novos; (9) ações afirmativas para os membros da<br />

comunida<strong>de</strong> indígena.<br />

A primeira, porque não era habitual que indígenas fizessem tratados com potências<br />

europeias e houvesse algum histórico <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reivindicação atualmente, e,<br />

além disso, os países latinos obtiveram sua in<strong>de</strong>pendência tardiamente, se<br />

comparados à América do Norte (origem <strong>de</strong>sse índice sintético), daí tais tratados não<br />

existirem. A segunda, porque ações afirmativas voltadas para populações indígenas<br />

são muito escassas na América Latina. A ênfase que o Brasil começou a dar<br />

82


ecentemente foi à questão do negro (sistema <strong>de</strong> cotas para universida<strong>de</strong>s,<br />

telenovelas, eventos <strong>de</strong> moda, etc.) 21 .<br />

A outra proposta <strong>de</strong> mudança do índice sintético, por Van Cott, alu<strong>de</strong> ao peso igual<br />

dado às diferentes políticas multiculturais por Banting & Kymlicka (2006). Aquela<br />

autora atribui peso maior à política <strong>de</strong> autogoverno, que confere po<strong>de</strong>r jurisdicional e<br />

recursos econômicos para a al<strong>de</strong>ia, por julgar esses itens peças-chave para qualquer<br />

al<strong>de</strong>ia indígena ter oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sobreviver. O resultado <strong>de</strong>ssa pesquisa (Tabela 5)<br />

fica incompleto por não termos acesso à metodologia <strong>de</strong> cálculo do índice sintético.<br />

21 A autora po<strong>de</strong>ria consi<strong>de</strong>rar que as ações afirmativas no Brasil ainda são mo<strong>de</strong>stas ou fracas, mas não<br />

nulas. Ela justifica com um trabalho <strong>de</strong> Hunt <strong>de</strong> 2004, que parece não consi<strong>de</strong>rar programas <strong>de</strong> cotas<br />

para os indígenas nas universida<strong>de</strong>s, formação <strong>de</strong> professores indígenas, ou leis estaduais <strong>de</strong> acesso <strong>de</strong><br />

indígenas a universida<strong>de</strong>s.<br />

83


Tabela 5 – Políticas multiculturais para os indígenas na América Latina 22<br />

País<br />

Data da Constituição/<br />

Reconhecimento<br />

Direitos Coletivos <strong>de</strong><br />

Terra<br />

Direitos <strong>de</strong><br />

autogoverno<br />

Direitos<br />

Culturais<br />

Leis <strong>de</strong><br />

Costumes<br />

Representação no<br />

Governo Central<br />

Afirmação<br />

do status <strong>de</strong><br />

diferente<br />

Ratificação da<br />

Convenção 169<br />

Ações<br />

Afirmativas Pontuação<br />

Argentina 1994 s n s s n s 2000 n 5<br />

Belize 1981 n n n n n n n n 0<br />

Bolívia 1995 s s, limitado s s n s 1991 n 5.5<br />

Brasil 1988 s n s s n s 2002 y 6<br />

Chile 1993 por estatuto n n n s, limitado n n n n 1<br />

Colômbia 1991 s s s s s s 1991 y 8<br />

Costa Rica leis aprovadas em 1977/93/99 s n s s n n 1993 n 3<br />

Equador 1998 s s s s s s 1998 n 7<br />

El Salvador 1983/91-2 s n n n n n n n 1<br />

Guatemala 1986 s n s s n s 1996 n 5<br />

Guiana 1980/96 s n n n n n n n 1<br />

Honduras 1982 s n s s n n 1995 n 4<br />

México 1917/92/2001 s s s s n s 1990 n 6<br />

Nicarágua 1987/95 s s s s n s n n 5<br />

Panamá 1972/83/93-4 s s s s s s n n 6<br />

Paraguai 1992 s s s s n s 1993 n 6<br />

Peru 1993/2003-4 s, enfraquecidos em 1993 s s s n s 1994 n 5<br />

Suriname 1987 n n n n n n n n 0<br />

Venezuela 1999 s s s s s s 2002 n 7<br />

Fonte: Van Cott (2006, p.274) - tradução nossa; legenda: s - sim, n - não<br />

22 Como já foi abordado na apresentação do estudo <strong>de</strong> Fajardo (2009), o Chile ratificou a Convenção 169 em 2008.<br />

84


Uma vez que duas das nove políticas do índice não estão presentes nessa classificação,<br />

a autora <strong>de</strong>termina, respectivamente, a seguinte pontuação para qualificar os países<br />

entre “fortes”, “mo<strong>de</strong>rados” e “fracos”: 6 a 7, 2 a 5, e 0 a 1. A próxima tabela (6)<br />

or<strong>de</strong>na a classificação dos países.<br />

Tabela 6 – Ranking <strong>de</strong> adoção <strong>de</strong> políticas multiculturais dos países da América Latina<br />

Grau <strong>de</strong> adoção Países<br />

Forte Colômbia, Equador, Panamá, Venezuela<br />

Mo<strong>de</strong>rado<br />

Argentina, Bolívia, Brasil, Costa Rica, Guatemala, Honduras,<br />

México, Nicarágua, Paraguai, Peru<br />

Fraco Belize, Chile, El Salvador, Guiana, Suriname<br />

fonte: Van Cott (2006, p.276) - tradução nossa<br />

Uma das características comuns aos países classificados como fortes é que todos<br />

reconhecem algum tipo <strong>de</strong> autonomia para os povos indígenas: direito a terras,<br />

direitos consuetudinários e culturais. Assim, apesar <strong>de</strong> o Brasil e <strong>de</strong> o Paraguai terem<br />

nota 6, o respeito ao direito a terras e ao <strong>de</strong> autogoverno são reputados como fracos<br />

quando comparados aos fortes, mas não explicita os dados para o julgamento,<br />

portanto eles estão entre os países com atuação mo<strong>de</strong>rada em políticas multiculturais<br />

para os indígenas. Isso limita a avaliação <strong>de</strong>sses resultados e também não justifica a<br />

classificação do México entre os mo<strong>de</strong>rados, apesar <strong>de</strong> também ter obtido nota 6.<br />

Observamos que, na estimativa geral, há uma relação inversa entre os países que mais<br />

adotam políticas multiculturais (Colômbia, Venezuela e Panamá) e os que possuem<br />

alto percentual <strong>de</strong> população indígena (Bolívia, Guatemala, México e Peru).<br />

85


A autora justifica isso pela perda <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r político que os países sofreriam, caso<br />

concebessem políticas multiculturais proporcionalmente à população. Se<br />

consi<strong>de</strong>rarmos a situação dos índios colombianos – cerca <strong>de</strong> 3% da população –, suas<br />

reservas autônomas constituem ¼ do território nacional. O mesmo não po<strong>de</strong>ria ser<br />

feito com a população indígena boliviana, que representa 65% do país. E a questão não<br />

se restringe à extensão <strong>de</strong> terras, mas à proporção nas representações no governo<br />

central, nos custos <strong>de</strong> políticas afirmativas, etc. (VAN COTT, 2006)<br />

Van Cott (2006) afirma que o reconhecimento dos direitos indígenas na América Latina<br />

começou a ganhar força na década <strong>de</strong> 1990, com as reformas <strong>de</strong> Estado. Por<br />

incrementos <strong>de</strong> países vizinhos, os próximos a fazer reformas acabam indo além no<br />

assunto, daí esse avanço progressivo na questão indígena.<br />

A autora conclui que o multiculturalismo existente na América do Norte é próprio <strong>de</strong><br />

um contexto específico em que as minorias indígenas são <strong>de</strong> fato minorias e não há<br />

tanta <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social internamente, enquanto, na América Latina, além <strong>de</strong> alguns<br />

países terem como maioria a população indígena (Guatemala e Bolívia) ou um número<br />

significativo <strong>de</strong>la (entre 10 a 40%), políticas redistribuidoras que as beneficiariam<br />

também são <strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> populações pobres não indígenas.<br />

86


4.3. Comparações Possíveis<br />

Ao confrontarmos o resultado dos dois panoramas apresentados, notamos algumas<br />

coerências, assim como incongruências. Na tabela 6, <strong>de</strong> Van Cott, Colômbia, Equador,<br />

Panamá e Venezuela são consi<strong>de</strong>rados países com forte adoção <strong>de</strong> políticas<br />

multiculturais, porém, se comparados com os dados apresentados na tabela 4, <strong>de</strong><br />

Fajardo, sobre o percentual <strong>de</strong> indicadores <strong>de</strong> direitos indígenas, coberto pelas<br />

constituições, exceto pela do Panamá, os <strong>de</strong>mais países estão nos primeiros lugares (2,<br />

3 e 4).<br />

É curioso que, pela pontuação do México (6) no índice sintético aplicado por Van Cott,<br />

esse país seria julgado forte, mas, pela tabela da própria autora, sem explicação<br />

alguma ele está entre os mo<strong>de</strong>rados. Já na tabela 4, <strong>de</strong> Fajardo, ele ocupa o primeiro<br />

lugar. Por sua vez o Panamá, forte para Van Cott, está em décimo segundo para<br />

Fajardo (Tabela 4). Os <strong>de</strong>mais países têm classificações similares para as duas autoras,<br />

ambas baseadas nas previsões das constituições.<br />

Se continuarmos com o ranking <strong>de</strong> Van Cott, da tabela 6, e traçarmos um paralelo com<br />

parte da tabela 3, <strong>de</strong> Fajardo, que relaciona as datas <strong>de</strong> ratificação dos tratados pelos<br />

países, no caso da Convenção 169, parece não haver analogia alguma. Somente<br />

Colômbia, Equador e Venezuela, países fortes, segundo Van Cott, ratificaram a<br />

Convenção em segundo, nono e décimo primeiro lugar respectivamente. O Panamá,<br />

também reputado forte por Van Cott, tem em vigência a Convenção 107, <strong>de</strong> cunho<br />

assimilacionista e integracionista.<br />

Desse modo, fica claro que ambos os trabalhos são estimativas ainda rudimentares,<br />

com comprometimentos significativos, o que indica a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estudos sobre<br />

87


essa questão. De modo genérico, po<strong>de</strong>-se afirmar que o Brasil está numa posição<br />

mediana em ambas as classificações, <strong>de</strong> Van Cott (Tabela 6) e <strong>de</strong> Fajardo (Tabela 4).<br />

Deve-se alertar para a suspeita <strong>de</strong> vários autores <strong>de</strong> que a existência <strong>de</strong> legislações<br />

favoráveis aos indígenas po<strong>de</strong> significar, meramente, uma tentativa <strong>de</strong> acalmar as<br />

tensões geradas pela <strong>de</strong>manda <strong>de</strong>ssa população, que po<strong>de</strong>m ter seus direitos<br />

formalmente previstos, mas nunca exercidos 23 . (KYMLICKA, 1995; VERDUM, 2009;<br />

WALSH, 2002 apud VERDUM 2009)<br />

No próximo capítulo, O Brasil e a Questão Indígena, apresentamos uma retrospectiva<br />

sobre o as políticas promovidas pelo Estado brasileiro para essa população, a partir da<br />

década <strong>de</strong> 1960, com algumas informações sobre os movimentos indígenas. Também<br />

abordamos a participação das organizações da socieda<strong>de</strong> civil e a relação com o<br />

Estado, na tentativa <strong>de</strong> mapear conquistas e avanços no processo <strong>de</strong> reconhecimento<br />

das diferenças culturais e, finalmente, oferecemos alguns indicadores <strong>de</strong>mográficos,<br />

com o propósito <strong>de</strong> dimensionar a situação.<br />

23 Não menos relevante é uma informação que compromete a legitimida<strong>de</strong> da OIT em vista <strong>de</strong> sua<br />

estrutura. Apesar <strong>de</strong> a publicação <strong>de</strong> suas observações não ter caráter jurisdicional, mas compor uma<br />

forma <strong>de</strong> controle relevante, sua estrutura não permite que os povos indígenas tenham legitimida<strong>de</strong><br />

processual direta, tampouco tenham voz institucional na OIT, apesar <strong>de</strong> ser “a instituição que zela pelo<br />

único tratado <strong>de</strong> direitos indígenas, [...] somente admitindo a apresentação <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s,<br />

reclamações ou queixas <strong>de</strong> seus mandantes, entre os quais não estão os povos indígenas” (FAJARDO,<br />

2009, p.60-61).<br />

88


5. O Brasil e a Questão Indígena<br />

O objetivo <strong>de</strong>ste capítulo é enfatizar a importância que a contextualização histórica da<br />

questão indígena adquire, quando tratamos <strong>de</strong> políticas públicas multiculturais. Nas<br />

palavras <strong>de</strong> Kymlicka (1995, p.11), “we cannot begin to un<strong>de</strong>rstand and evaluate the<br />

politics of multiculturalism unless we see how the historical incorporation of minority<br />

groups shapes their collective institutions, i<strong>de</strong>ntities, and aspirations”.<br />

Diferentemente <strong>de</strong> países on<strong>de</strong> a maioria dos habitantes tem ascendência indígena,<br />

como, a Bolívia, no Brasil trata-se do assunto como uma questão <strong>de</strong> minorias, e as<br />

políticas do Estado são traçadas em gran<strong>de</strong> parte pelos brancos, daí a expressão<br />

políticas indigenistas, isto é, “<strong>de</strong> branco para índio”.<br />

No Brasil, sob a perspectiva do multiculturalismo, o termo minoria adquire a<br />

conotação daqueles que sofrem restrição aos direitos políticos, econômicos e sociais, o<br />

que nos permite classificar nelas tanto os índios quanto os negros e pardos, mesmo<br />

que quantitativamente estes sejam maioria numérica. Por isso, <strong>de</strong>ve haver cuidado ao<br />

transferir para a realida<strong>de</strong> brasileira uma abordagem concebida inicialmente para<br />

outros países e voltadas para públicos-alvo e culturas diferentes.<br />

Outra diferença importante entre os países que <strong>de</strong>ram origem ao multiculturalismo e o<br />

Brasil e que <strong>de</strong>ve ocupar lugar central nesta discussão é a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social. A<br />

América do Norte lida principalmente com a diversida<strong>de</strong>, enquanto o Brasil precisa<br />

também lidar com a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, muitas vezes confundidas, ou tomadas como<br />

sinônimo <strong>de</strong> diferenças.<br />

89


Neste capítulo, <strong>de</strong>stacamos alguns pontos da história indígena brasileira,<br />

principalmente a partir da ditadura militar, cujo viés integracionista e assimilacionista<br />

se contrapôs ao multiculturalismo que emergiu, nos EUA, na década <strong>de</strong> 1960, e<br />

institucionalizou-se no Brasil com a Constituição <strong>de</strong> 1988 e a Convenção 169 da OIT, <strong>de</strong><br />

1989.<br />

Para complementar o panorama, em População Indígena no Brasil: Alguns<br />

Indicadores, oferecemos uma perspectiva das condições <strong>de</strong> educação e saú<strong>de</strong><br />

indígenas <strong>de</strong> acordo com dados do IBGE e os comparamos com os da população<br />

nacional, <strong>de</strong> modo a dimensionar sucintamente não só a situação específica dos povos<br />

indígenas entre si, mas também sua posição no contexto nacional, para auxiliar e<br />

embasar a elaboração das políticas públicas para os índios.<br />

90


5.1. Histórico<br />

A situação das populações tribais e semitribais no cenário mundial, no começo da<br />

década <strong>de</strong> 1960, variava em função da Convenção 107, <strong>de</strong> 1957, da OIT, que versava,<br />

em países in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, sobre proteger e integrar essas populações, mas por<br />

integrar entenda-se que tratava somente <strong>de</strong> direitos individuais, inclusive no Brasil.<br />

Fugindo um pouco à linha cronológica, as condições <strong>de</strong> vida das populações indígenas<br />

por muitos anos estiveram sob a tutela do Estado, pelo Código Civil <strong>de</strong> 1916 24 ,<br />

substituído apenas em 2002. Gomes (2003, p.434) explica os motivos da concepção<br />

daquele código: “[p]ara os juristas [daquela] época, só <strong>de</strong>ssa forma po<strong>de</strong>r-se-ia<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os índios das injustiças que lhes fossem cometidas, inclusive da con<strong>de</strong>nação<br />

por crimes que supostamente eles não estariam consciente(s) <strong>de</strong> ter cometido”.<br />

Durante a ditadura militar (1964 - 1985), a questão indígena era consi<strong>de</strong>rada <strong>de</strong><br />

“segurança nacional”. A territorialida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse povo, como manifestação <strong>de</strong> direitos<br />

coletivos, era vista como ameaça à segurança e à integrida<strong>de</strong> do território nacional,<br />

especialmente nas regiões <strong>de</strong> fronteira. (SOUZA FILHO, 2003)<br />

Mais complicada ainda é a superposição <strong>de</strong> Estados nacionais na América do Sul a uma<br />

única socieda<strong>de</strong> indígena, em razão das fronteiras, criadas no processo histórico <strong>de</strong><br />

formação <strong>de</strong>sses países <strong>de</strong> tal forma, que há al<strong>de</strong>ias sob até quatro jurisdições político-<br />

24 O Código Civil Brasileiro, <strong>de</strong> 1916:<br />

Art. 6º - São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira <strong>de</strong> os exercer:<br />

I – os maiores <strong>de</strong> 16 (<strong>de</strong>zesseis) anos e os menores <strong>de</strong> 21 (vinte e um) anos;<br />

II – os pródigos;<br />

III – os silvícolas.<br />

Parágrafo Único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos<br />

especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do País.<br />

“Os índios ficaram equiparados, do ponto <strong>de</strong> vista da capacida<strong>de</strong> civil, aos adolescentes e aos pródigos.<br />

E os seus direitos ficaram caracterizados como provisórios e, assim, cessantes, na medida da sua<br />

integração. Vale registrar o caráter pejorativo da <strong>de</strong>signação ‘silvícola’ e a ênfase no projeto civilizatório<br />

nacional dada no velho Código.” Ricardo et. al. (2004, p.4)<br />

91


administrativas diferentes, o que, se pensarmos nas políticas multiculturais, torna-as<br />

ainda mais complexas nesse cenário.<br />

Em 1967, sob acusações <strong>de</strong> <strong>de</strong>sleixo e corrupção do Serviço <strong>de</strong> Proteção ao Índio – SPI<br />

– relativamente à população indígena, o governo militar extinguiu-o, criou a Fundação<br />

Nacional do Índio – Funai – e também promulgou o Estatuto do Índio em 1973 25 ,<br />

ambos com o intuito <strong>de</strong> acelerar-lhes o processo <strong>de</strong> assimilação e integração à<br />

socieda<strong>de</strong> nacional (GOMES, 2003), <strong>de</strong> modo que a atuação da Funai foi <strong>de</strong> apoio<br />

incondicional às ativida<strong>de</strong>s governamentais, o que contrariava os interesses indígenas.<br />

Ao mesmo tempo, os anos 1970 ficaram marcados pelas <strong>de</strong>scobertas e trocas <strong>de</strong><br />

informação sobre os contextos interétnicos, o que, em algum grau, conscientizou cada<br />

povo dos problemas que enfrentavam, numa verda<strong>de</strong>ira “comunhão nacional” com<br />

projetos <strong>de</strong> “retradicionalização” (ISA, 2006) 26 , que resultaram nas “assembléias<br />

indígenas”. De acordo com Neves,<br />

[o] gran<strong>de</strong> feito <strong>de</strong>ssas assembléias foi a tomada <strong>de</strong> consciência da<br />

situação <strong>de</strong> dominação e discriminação a que estavam sujeitas todas as<br />

etnias, o que levou as populações indígenas a buscar formas <strong>de</strong><br />

organização política e <strong>de</strong> mobilização em suas disputas e embates com<br />

a socieda<strong>de</strong> brasileira. (NEVES, 2003, p.116)<br />

25<br />

Do Estatuto do Índio (1973), Título II – Dos Direitos Civis, Cap. II – Da Assistência ou Tutela (website<br />

FUNAI):<br />

Art.7º - Os índios e as comunida<strong>de</strong>s indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeitos<br />

ao regime tutelar estabelecido nesta Lei.<br />

§1º - Ao regime tutelar estabelecido nesta Lei aplicam-se no que couber, os princípios e as normas da<br />

tutela do direito comum, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo, todavia, o exercício da tutela da especialização <strong>de</strong> bens<br />

imóveis em hipoteca legal, bem como da prestação <strong>de</strong> caução real ou fi<strong>de</strong>jussória.<br />

§2º - Incumbe a tutela à União, que a exercerá através do competente órgão fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> assistência aos<br />

silvícolas.<br />

§8º - São nulos os atos praticados entre índios não integrados e qualquer pessoa estranha à comunida<strong>de</strong><br />

indígena quando não tenha havido assistência do órgão tutelar competente.<br />

Parágrafo Único. Não se aplica a regra <strong>de</strong>ste artigo no caso em que o índio revele consciência e<br />

conhecimento do ato praticado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não lhe seja prejudicial, e da extensão dos seus efetivos.<br />

26<br />

Entrevista <strong>de</strong> Eduardo Viveiros <strong>de</strong> Castro ao ISA em 2006.<br />

92


Esses confrontos se <strong>de</strong>ram principalmente com a Funai e os militares. Estes, em 1978,<br />

publicaram o “Projeto <strong>de</strong> Emancipação” <strong>de</strong> modo provocativo, porque aproveitaram o<br />

último termo, muito utilizado pelos indígenas, no entanto com outra conotação: a <strong>de</strong><br />

que essas populações não teriam mais dispositivos legais especiais que normatizassem<br />

sua condição. Como <strong>de</strong>sfecho, essa repressão favoreceu uma aliança entre os índios e<br />

setores da socieda<strong>de</strong> civil. (NEVES, 2003; RAMOS 2004 apud OLIVEIRA, 2006)<br />

Já na década <strong>de</strong> 1980 – período <strong>de</strong> re<strong>de</strong>mocratização –, ficou clara a discriminação<br />

étnica em relação às populações indígenas, o que resultou em expectativas <strong>de</strong><br />

reconhecimento e maior potencial <strong>de</strong> mobilização social. (VAN COTT, 2006; SORJ &<br />

MARTUCCELLI, 2008) Foi também nessa década que a expectativa <strong>de</strong> extinção dos<br />

povos indígenas foi superada, ou seja, iniciou-se um processo <strong>de</strong> discussão, com<br />

participação da socieda<strong>de</strong> civil e <strong>de</strong> organizações indígenas, oriundas, na década <strong>de</strong><br />

1970, dos movimentos étnicos em <strong>de</strong>fesa dos direitos coletivos, baseados no<br />

reconhecimento da diversida<strong>de</strong> do país.<br />

Um importante acontecimento foi, em 1980, a criação da primeira organização<br />

indígena a ter credibilida<strong>de</strong> nacionalmente: a União das Nações Indígenas – UNI. Nas<br />

palavras <strong>de</strong> Neves (2003:117), “a UNI assumiu <strong>de</strong> imediato o papel <strong>de</strong> porta-voz do<br />

movimento indígena, organizando e coor<strong>de</strong>nando por muitos anos as manifestações<br />

indígenas em todo o país”. Ao mesmo tempo, um esvaziamento político e financeiro<br />

da Funai, com <strong>de</strong>scentralização das políticas indigenistas, redundou na gestão <strong>de</strong><br />

vários órgãos do governo ao lado <strong>de</strong> ONGs indígenas e indigenistas.<br />

Diferentemente do restante da América Latina, on<strong>de</strong> a mobilização indígena se <strong>de</strong>u<br />

primeiramente local e regionalmente, no Brasil isso só ocorreu após a <strong>fundação</strong> da<br />

93


UNI, quando as assembléias indígenas começaram a mobilizar-se, com melhor<br />

compreensão dos problemas por parte da população indígena como um todo. Segundo<br />

Neves (2003, p.121), essa “fragmentação” não <strong>de</strong>ve ser concebida como perda <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r, mas como “multiplicação” que gera “maior mobilização, mantendo ligações<br />

entre si <strong>de</strong> modo a criar estratégias e realizar ações locais <strong>de</strong>ntro da perspectiva global<br />

do movimento indígena”.<br />

Mas o marco político histórico dos movimentos indígenas <strong>de</strong>u-se em 1987 com a “II<br />

Assembléia dos Povos Indígena do Alto Rio Negro”, em São Gabriel da Cachoeira (AM),<br />

“pois, pela primeira vez, as autorida<strong>de</strong>s governamentais sentaram à mesa para<br />

negociar a questão das terras indígenas com li<strong>de</strong>ranças da região”. (BARBOSA E SILVA,<br />

1995, p.21 apud NEVES, 2003, p.118) Nesse encontro pleiteou-se que as <strong>de</strong>cisões<br />

governamentais não fossem mais top-down (<strong>de</strong> cima para baixo) e que as <strong>de</strong>mandas<br />

locais tivessem visibilida<strong>de</strong> nas negociações interétnicas.<br />

Essa mobilização se concretizou quando se formulou a Constituição brasileira um ano<br />

antes da Convenção 169 e reconheceram-se algumas das concepções <strong>de</strong>ssa<br />

Convenção, com enormes possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> avanço com referência à questão indígena,<br />

o que eliminou a perspectiva assimilacionista, prevista em textos anteriores.<br />

Ressaltaram-se as condições sociais <strong>de</strong>sses povos ao se <strong>de</strong>stinar um capítulo específico<br />

à proteção dos direitos coletivos <strong>de</strong>les, além <strong>de</strong> julgar-lhes a vida não mais como<br />

transitória. Segundo Souza Filho (2004 apud OLIVEIRA, 2006, p.46; grifos no original),<br />

“com a Constituição <strong>de</strong> 1988, passam a ser reconhecidos aos povos indígenas o direito<br />

<strong>de</strong> ser índio, <strong>de</strong> manter-se como índio, com sua organização social, costumes e língua”.<br />

94


Em entrevista ao ISA (2006, p.43), o antropólogo Eduardo Viveiros <strong>de</strong> Castro afirma<br />

que “com a Constituição, consagrou-se o princípio <strong>de</strong> que as comunida<strong>de</strong>s indígenas<br />

constituem-se em sujeitos coletivos <strong>de</strong> direitos coletivos”.<br />

A partir daí, as “terras indígenas” são direito <strong>de</strong>sses povos, ou seja, cabe ao Estado<br />

somente a legalização <strong>de</strong>sse direito. Nas palavras <strong>de</strong> Santos & Nunes (2003, p.45),<br />

A territorialida<strong>de</strong> é, sem dúvida, uma dimensão fundamental da<br />

afirmação <strong>de</strong>sses direitos coletivos, que se choca com as concepções<br />

liberais <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>. É nela que resi<strong>de</strong> a garantia do<br />

reconhecimento <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> coletiva e dos direitos coletivos<br />

dos povos indígenas.<br />

Porém, uma vez que essas terras são reputadas como direito coletivo, isto é, que a<br />

titularida<strong>de</strong> <strong>de</strong>las não é individualizada, isso abre brecha para a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> os<br />

invasores e pretensos invasores contestarem as <strong>de</strong>marcações. (NEVES, 2003)<br />

Além disso, há ainda uma enorme lacuna entre os direitos adquiridos e o exercício<br />

efetivo <strong>de</strong>les. O prazo constitucional <strong>de</strong> <strong>de</strong>marcação <strong>de</strong> terras indígenas estava<br />

previsto para 1993, todavia, como ainda po<strong>de</strong> ser notado, muitos conflitos existem<br />

sobre essa questão em vista <strong>de</strong> pendências no processo das terras. São quatro as fases<br />

<strong>de</strong>sse processo: i<strong>de</strong>ntificação e <strong>de</strong>limitação; <strong>de</strong>marcação; homologação; regularização<br />

fundiária. Para cada uma <strong>de</strong>las, há probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contestação <strong>de</strong> terceiros.<br />

Na década <strong>de</strong> 1990, os movimentos indígenas per<strong>de</strong>ram força diante <strong>de</strong> medidas legais<br />

impostas pelo Estado, como, por exemplo, a mudança na sistemática <strong>de</strong> <strong>de</strong>marcação<br />

<strong>de</strong> terras, o que limitou a atuação <strong>de</strong>sses povos e lhes reduziu a participação no<br />

processo. (VALLE, 2006)<br />

95


Fajardo (2009) chama a atenção para a complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse período, visto que as<br />

reformas neoliberais ocorrem ao mesmo tempo, porque há o “reconhecimento<br />

simultâneo <strong>de</strong> direitos indígenas <strong>de</strong> um lado, e, <strong>de</strong> outro, políticas que permitem novas<br />

formas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapropriação territorial indígena como não havia ocorrido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século<br />

XIX”. (Ibid., p.26)<br />

Atualmente, por <strong>de</strong>cisões do Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral (STF) sobre a territorialida<strong>de</strong>,<br />

antes sob responsabilida<strong>de</strong> da Funai, que se baseava em provas antropológicas da<br />

existência <strong>de</strong> territorialida<strong>de</strong> indígena no local para <strong>de</strong>marcações, configurou-se<br />

jurisprudência que proíbe o alargamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>marcações <strong>de</strong> terras indígenas após a<br />

Constituição <strong>de</strong> 1988. Isso significa que essa população, expulsa <strong>de</strong> suas terras no<br />

passado ou com elas reduzidas em razão <strong>de</strong> invasões, não po<strong>de</strong>riam reivindicá-las se<br />

não as estivessem ocupando até 5 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong> 1988 e, por esse raciocínio, qualquer<br />

região ocupada por não indígenas após essa data, automaticamente é <strong>de</strong>squalificada<br />

como território indígena. (Cultural Survival, 2009)<br />

Po<strong>de</strong>mos concluir, então, que, ao mesmo tempo em que houve avanços no<br />

reconhecimento das diferenças culturais e dos direitos (como os coletivos) dos<br />

indígenas, com a Carta <strong>de</strong> 1988, a relação com o Estado não é muito clara, porque há<br />

brechas para contestação <strong>de</strong>sses direitos, até mesmo em situações nas quais a atuação<br />

da FUNAI tem sido fundamentalmente assistencialista ao efetuar repasse <strong>de</strong> verbas<br />

que levam a relações <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência, como, por exemplo, quando não há ausência do<br />

Estado, a situação da agricultura local indígena é <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência ou, então, <strong>de</strong><br />

assistencialismo:<br />

96


O apoio que a FUNAI oferece à agricultura é insuficiente, pois não<br />

chega à maioria das comunida<strong>de</strong>s, e incompetente, pois há frequentes<br />

atrasos na compra e distribuição <strong>de</strong> sementes em relação ao<br />

calendário agrícola, não há prestação <strong>de</strong> assistência técnica e nem<br />

apoio à comercialização. E até este tipo <strong>de</strong> cobertura tem cedido<br />

espaço à pura e simples distribuição <strong>de</strong> alimentos, com efeitos<br />

<strong>de</strong>vastadores sobre o ânimo <strong>de</strong> trabalho dos índios. (RICARDO et. al.,<br />

2004, p.34)<br />

As conquistas que permitiram políticas públicas não assimilacionistas, ou seja, com<br />

perspectivas multiculturais, começaram a ser adotadas a partir da década <strong>de</strong> 1990,<br />

com referência aos indígenas como povos originários do Brasil. É nesse período que<br />

eles exercem os direitos coletivos em algum grau, como o da educação bilíngue, o da<br />

regulamentação <strong>de</strong> territórios, o da preservação dos costumes, etc. (NEVES, 2003)<br />

Além disso, diminui o controle da Funai sobre as políticas indigenistas, agora divididas<br />

em setores e transferidas para a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diferentes órgãos do governo<br />

fe<strong>de</strong>ral, estadual e municipal, como a educação indígena, para o Ministério da<br />

Educação (MEC) e a saú<strong>de</strong>, para o da Saú<strong>de</strong> (MS), em 1991.<br />

Em 2002, o novo Código Civil 27 , que substituiu o <strong>de</strong> 1916, reafirmou o tratamento<br />

diferenciado que os indígenas <strong>de</strong>vem receber em relação à capacida<strong>de</strong> sobre os<br />

próprios atos, ao mesmo tempo em que pôs fim a qualquer discussão a respeito do<br />

27 “Em 11 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2002, foi promulgado o novo Código Civil Brasileiro, que tramitou durante mais<br />

<strong>de</strong> 40 anos no Congresso Nacional, e alterou o tratamento aos índios <strong>de</strong> forma sutil, porém relevante,<br />

enquadrando-os sob o conceito <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> e não <strong>de</strong> incapacida<strong>de</strong>, adotando o conceito <strong>de</strong> ‘índios’<br />

no lugar <strong>de</strong> ‘silvícolas’, e suprimindo a antiga referência à provisorieda<strong>de</strong> dos seus direitos. Ficou assim:<br />

‘Art. 4º. São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira <strong>de</strong> os exercer:<br />

I – os maiores <strong>de</strong> 16 e os menores <strong>de</strong> 18;<br />

II – os ébrios habituais, os viciados tóxicos, e os que, por <strong>de</strong>ficiência mental, tenham o discernimento<br />

reduzido;<br />

III – os excepcionais, sem <strong>de</strong>senvolvimento mental completo;<br />

IV – os pródigos.<br />

Parágrafo Único. A capacida<strong>de</strong> dos índios será regulada por legislação especial.’” Ricardo et. al. (2004,<br />

p.4)<br />

97


egime tutelar sobre esses povos. Mas, como ressaltamos, muitas vezes a previsão<br />

legislativa <strong>de</strong> direitos não garante que eles sejam praticados. O próprio presi<strong>de</strong>nte da<br />

Funai, Mércio Gomes, em 2006, numa entrevista ao ISA, afirmou: “A tutela é a mais<br />

antiga instituição <strong>de</strong> interferência do Estado para com os povos indígenas. Bem ou<br />

mal, ela permite a intervenção das várias instâncias do Estado, especialmente o<br />

Executivo e o Judiciário, em <strong>de</strong>fesa dos povos indígenas”. (ISA, 2006, p.114)<br />

Diante <strong>de</strong> todas essas mudanças <strong>de</strong> concepção e <strong>de</strong> tratamento do Estado brasileiro<br />

com referência aos indígenas, Oliveira (2006) pontua, <strong>de</strong> maneira clara, o aumento na<br />

complexida<strong>de</strong> das relações dos índios com o Governo, no que diz respeito ao acesso a<br />

serviços públicos e a políticas públicas específicas:<br />

[S]e antes o foco da análise era apenas do Serviço <strong>de</strong> Proteção ao Índio<br />

(SPI) ou a Fundação Nacional do Índio (Funai), atualmente não é<br />

possível estudar essas relações sem consi<strong>de</strong>rar as interfaces entre os<br />

povos indígenas e municípios, Estados e <strong>de</strong> diferentes instâncias do<br />

governo fe<strong>de</strong>ral. (Ibid., p.16)<br />

Desse modo, compreen<strong>de</strong>r essas relações se faz necessário para pensarmos nas<br />

políticas públicas multiculturais, matéria do próximo capítulo, Educação na<br />

Diversida<strong>de</strong>. Antes, porém, como já citado, no próximo item apresentaremos, com a<br />

mesma importância, alguns indicadores sobre a situação em que essas populações<br />

vivem no contexto nacional.<br />

98


5.2. População Indígena no Brasil: Alguns Indicadores<br />

É bastante conhecida a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se mapear com exatidão a situação dos povos<br />

indígenas no Brasil. Ainda assim, para efeito <strong>de</strong> contextualização do objeto,<br />

apresentamos alguns dados sobre eles, principalmente por um estudo do IBGE, <strong>de</strong><br />

2005, intitulado Tendências Demográficas: Uma análise dos Indígenas com Base nos<br />

Resultados da Amostra dos Censos Demográficos 1991 e 2000.<br />

Um obstáculo inicial é o <strong>de</strong> precisarmos o número <strong>de</strong> indígenas no Brasil. Segundo<br />

dados da FUNAI (site), órgão do Governo Fe<strong>de</strong>ral brasileiro que estabelece e executa a<br />

política indigenista do país, esses povos ocupam, irregularmente, 12,5% do território<br />

nacional e representam 0,25% da população brasileira, a maioria no Amazonas. Os<br />

quatrocentos e sessenta mil índios que vivem em al<strong>de</strong>ias – afora os que moram em<br />

áreas urbanas – divi<strong>de</strong>m-se em duzentas e vinte e cinco etnias e utilizam cento e<br />

oitenta línguas, o que compõe um quadro complexo, <strong>de</strong> enorme diversida<strong>de</strong>, até para<br />

se mensurar.<br />

Paralelamente à estimativa da Funai, o ISA (site) contabiliza cerca <strong>de</strong> seiscentas mil<br />

pessoas das quais quatrocentas e cinquenta mil vivem em terras indígenas e em<br />

núcleos urbanos próximos; e cento e cinquenta mil, em gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s. Já o IBGE<br />

(2005) avalia que setecentas e trinta e quatro mil pessoas se auto<strong>de</strong>nominam<br />

indígenas. Há uma enorme barreira para se saber sobre toda essa diversida<strong>de</strong> e,<br />

quando há algum conhecimento, restringe-se a círculos acadêmicos especializados.<br />

Surpreen<strong>de</strong>ntemente, o reconhecimento <strong>de</strong>sses povos foi bastante tardio, porque a<br />

categoria “indígena” foi incorporada ao censo <strong>de</strong>mográfico somente em 1991. Após<br />

esse censo e o <strong>de</strong> 2000, po<strong>de</strong>mos observar algumas informações interessantes. O<br />

99


crescimento <strong>de</strong>mográfico indígena <strong>de</strong> 1991 a 2000 apresenta taxas que variam <strong>de</strong> 3% a<br />

5% ao ano, se levarmos em conta a heterogeneida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas socieda<strong>de</strong>s. Se<br />

compararmos esse aumento, no mesmo período, com o anual do país (1,6%), po<strong>de</strong>mos<br />

dizer que as populações indígenas cresceram, ao menos, o dobro da média nacional.<br />

Uma instigante questão <strong>de</strong>mográfica é o significativo aumento do número <strong>de</strong> pessoas<br />

que se <strong>de</strong>clararam indígenas nos censos do IBGE <strong>de</strong> 1991 e <strong>de</strong> 2000, respectivamente<br />

duzentos e noventa e quatro mil e setecentos e trinta e quatro mil, o que representa<br />

uma taxa média geométrica anual <strong>de</strong> 10,8% <strong>de</strong>ssa população. (IBGE, 2005)<br />

Não há estudos que <strong>de</strong>terminem o motivo disso, mas, quando se sabe que a taxa <strong>de</strong><br />

crescimento dos índios por ano é inferior a esse crescimento absoluto <strong>de</strong><br />

autoi<strong>de</strong>ntificados, inferimos que há problemas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m metodológica e conceitual.<br />

Também po<strong>de</strong> ter ocorrido a valorização da raça e incentivos para as pessoas se<br />

reconhecerem como tais 28 .<br />

A avaliação dos níveis educacionais indígenas aponta para gran<strong>de</strong> avanço na década <strong>de</strong><br />

1990. No Censo Demográfico <strong>de</strong> 1991, o grau <strong>de</strong> alfabetização estava abaixo <strong>de</strong> 50%<br />

(49,2%), já, no cálculo <strong>de</strong> 2000, cresceu 50,2% (73,9%). Contudo, se compararmos os<br />

percentuais <strong>de</strong> alfabetizados do total da população brasileira, <strong>de</strong> 79,9% e 86,4%, em<br />

1991 e 2000 respectivamente, notamos diferenças significativas, que refletem alto<br />

índice <strong>de</strong> analfabetismo entre os indígenas no cenário nacional.<br />

28 A explicação para essa valorização da etnia po<strong>de</strong> ser tanto a vergonha, que levou grupos indígenas por<br />

anos a ocultar as origens, mas hoje <strong>de</strong>cidiram reivindicar tanto o reconhecimento das próprias<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s diferenciadas (GRUPIONI, 2006) quanto o aproveitamento por não índios das ações<br />

afirmativas <strong>de</strong>stinadas aos indígenas. (ver caso ProUni na subdivisão do capítulo Educação Indígena por<br />

Moura Guarany, 2006)<br />

100


Além disso, a pesquisa evi<strong>de</strong>ncia que, nas populações indígenas, os jovens possuem<br />

alta taxa <strong>de</strong> alfabetização, mas há uma explosão nas <strong>de</strong> analfabetismo a partir dos 40<br />

anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> (IBGE, 2005): o grupo etário <strong>de</strong> 60 anos ou mais, 55%, enquanto aqueles<br />

que estão entre 25 e 59 anos, 25,2%; os <strong>de</strong> 15 a 24 somam 15,6% e os <strong>de</strong> 5 a 14,<br />

42,9%. (HENRIQUES et. al., 2006)<br />

Outro dado essencial é o número <strong>de</strong> <strong>escola</strong>s indígenas que funcionam em prédios<br />

<strong>escola</strong>res. Em 2005, eram 0,62% em relação à população total (75,18%). Não há<br />

informações disponíveis para <strong>de</strong>duzirmos se a baixa taxa <strong>de</strong> <strong>escola</strong>s indígenas em<br />

prédios se dá por questões culturais, mas po<strong>de</strong>mos supor que essas <strong>escola</strong>s sejam<br />

muito precárias em infraestrutura, além <strong>de</strong> na formação <strong>de</strong> professores. Por exemplo,<br />

os que ministram aulas na primeira parte do Ensino Fundamental – 6,15% para os<br />

indígenas e 43,12% para a população total brasileira – possuem Ensino Superior.<br />

(HENRIQUES et. al., 2006)<br />

Ainda baseados nos estudos <strong>de</strong> Henriques et. al. (2006) sobre os dados do IBGE, se<br />

seguirmos o padrão nacional, os índices <strong>de</strong> alfabetização indígena mais elevados estão<br />

nas regiões Su<strong>de</strong>ste e Sul, com 87,2% e 80,1% respectivamente. O mais baixo é <strong>de</strong><br />

56,8%, na região Norte, mas é também nessa região que há o maior número <strong>de</strong><br />

<strong>escola</strong>s, dada a alta concentração da população indígena: 63,3% (1.472) para 53%<br />

(113.391) <strong>de</strong> indígenas brasileiros.<br />

Outra informação importante se refere à melhora da média <strong>de</strong> <strong>escola</strong>rização indígena,<br />

que aumentou 95,8% entre 1991 e 2000. “Em 1991, as pessoas indígenas <strong>de</strong> 10 anos<br />

ou mais <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> <strong>de</strong>tinham uma média <strong>de</strong> 2,0 anos <strong>de</strong> estudo, passando para 3,9 anos<br />

101


<strong>de</strong> estudo em 2000, enquanto que para o conjunto das pessoas brasileiras é <strong>de</strong> 5,9<br />

anos <strong>de</strong> estudo.” (IBGE, 2005, p.61)<br />

Outro aspecto da qualida<strong>de</strong> da educação indígena é o afunilamento do ensino <strong>escola</strong>r:<br />

<strong>de</strong> cada cinco estudantes indígenas que chegam a concluir o Ensino Fundamental,<br />

apenas um tem oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cursar o Ensino Médio. Uma explicação para essa<br />

redução drástica é que essas <strong>escola</strong>s estão localizadas longe das al<strong>de</strong>ias, o que<br />

condiciona os jovens a migrar. Já a proporção para os que frequentam a universida<strong>de</strong> é<br />

<strong>de</strong>sconhecida, visto que o número <strong>de</strong> alunos indígenas no ensino superior é somente<br />

uma estimativa bastante duvidosa 29 . (LUCIANO BANIWA, 2006a, p.142-143)<br />

Os dados revelam aumento expressivo na taxa <strong>de</strong> alfabetização e na média <strong>de</strong> anos <strong>de</strong><br />

estudo, <strong>de</strong> modo que po<strong>de</strong>mos aventar que a a<strong>de</strong>quação do sistema <strong>de</strong> ensino da<br />

educação <strong>escola</strong>r indígena tem abrangência suficiente para gerar gran<strong>de</strong>s impactos<br />

relativamente à formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural <strong>de</strong>les.<br />

Cabe ressaltar que essas informações dos recenseamentos <strong>de</strong> 1991 e 2000 foram<br />

obtidas após a Constituição Brasileira (1988), em torno da qual se formou um forte<br />

consenso acerca da contribuição fundamental que se <strong>de</strong>u para o reconhecimento dos<br />

povos indígenas e <strong>de</strong> seus direitos.<br />

Com relação à saú<strong>de</strong> indígena, no primeiro censo, realizado em 1991, a pirâmi<strong>de</strong> etária<br />

tinha formato retangular e era dividida entre a proporção <strong>de</strong> crianças e adolescentes<br />

(0 a 14 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>) e a <strong>de</strong> adultos (15 a 64 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>), em que os idosos (65<br />

anos ou mais) representavam 4,7% da população total <strong>de</strong> indígenas.<br />

29 Luciano Baniwa (2006a) cita a estimativa da FUNAI <strong>de</strong> dois mil índios no Ensino Superior em 2004, já<br />

no site do ProUni, o cômputo (não necessariamente <strong>de</strong> bolsistas do programa) é <strong>de</strong> mil e quinhentos.<br />

102


Em 2000, houve <strong>de</strong>clínio entre crianças e adolescentes em 22,1% e aumento dos<br />

adultos em 15,3% e dos <strong>de</strong> idosos (5,8% naquele momento), o que sugere um processo<br />

<strong>de</strong> envelhecimento também da população indígena, isto é, <strong>de</strong> melhoria das condições<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />

Muitos <strong>de</strong>sses dados precisam ser examinados com uma informação adicional, qual<br />

seja a da significativa influência que os resultados das populações indígenas rurais ou<br />

urbanas po<strong>de</strong>m ter sobre o geral, como, por exemplo, a diminuição da taxa <strong>de</strong><br />

fecundida<strong>de</strong> total das mulheres auto<strong>de</strong>claradas indígenas em quase 30% nessa<br />

década, o que, na verda<strong>de</strong>, ocorreu <strong>de</strong> forma muito consistente na população <strong>de</strong> áreas<br />

urbanas (2,7 filhos) e <strong>de</strong>sprezível, na da área rural (5,7 filhos), on<strong>de</strong> não há controle da<br />

fertilida<strong>de</strong> ou das práticas contraceptivas tradicionais. (IBGE, 2005)<br />

Outro indicador das condições <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>ssa população é a mortalida<strong>de</strong> infantil.<br />

Segundo os dados fornecidos pelo Censo Demográfico <strong>de</strong> 2000, há faixas <strong>de</strong> taxa <strong>de</strong><br />

mortalida<strong>de</strong> infantil para classificar os grupos 30 :<br />

O primeiro inclui as categorias amarela (18,0 por mil) e branca (22,9<br />

por mil); o segundo, as categorias parda (33,0 por mil) e preta (34,9<br />

por mil); e o terceiro, a categoria indígena (51,4 por mil). Em geral,<br />

para todas as categorias <strong>de</strong> cor ou raça, o nível <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> infantil<br />

po<strong>de</strong> ser classificado como “médio”, com exceção dos indígenas, cuja<br />

classificação seria “alta”, segundo os mesmos critérios. (IBGE, 2005,<br />

p.85)<br />

A taxa <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> infantil dos indígenas em 2000 (51,4 por mil) é<br />

significativamente mais elevada que a nacional (30,1 por mil). E mesmo nas regiões<br />

30 De acordo com a classificação da Organização Mundial <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (OMS) fornecida pelo IBGE, as taxas<br />

<strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> infantil são classificadas em altas (50 por mil ou mais), médias (20 a 49 por mil) e baixas<br />

(menos <strong>de</strong> 20 por mil).<br />

103


socioeconômicas mais <strong>de</strong>senvolvidas do país (Su<strong>de</strong>ste e Sul), elas persistem elevadas<br />

(42,3 por mil e 48,3 por mil, respectivamente). Nas áreas urbanas <strong>de</strong> algumas regiões<br />

do Brasil (Norte e Centro-Oeste), ela é <strong>de</strong> 52,2 por mil, superior à das rurais (47,0 por<br />

mil).<br />

Esse conjunto <strong>de</strong> informações precisa ser observado com ressalvas, porque há<br />

problemas no método e na estimativa <strong>de</strong> indicadores, em razão <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s na<br />

apuração. (FUNASA site e IBGE, 2005) Além disso, os fatores que explicariam esse<br />

cenário são <strong>de</strong>sconhecidos, pela escassez <strong>de</strong> estudos específicos no campo da<br />

<strong>de</strong>mografia dos povos indígenas.<br />

Dentro do escopo <strong>de</strong>ste trabalho, fizemos levantamentos, em termos fe<strong>de</strong>rais, das<br />

políticas educacionais indígenas, que <strong>de</strong> alguma forma adotam a abordagem das<br />

políticas multiculturais. Po<strong>de</strong>mos inferir, com base nos dados dos dois censos<br />

realizados pelo IBGE em 1991 e 2000, que a política <strong>de</strong> educação voltada<br />

especificamente para essa população, mais do que a <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, tem tido abrangência<br />

positiva.<br />

Alguns motivos para as crescentes taxas <strong>de</strong> expansão <strong>de</strong> oferta <strong>de</strong> educação indígena<br />

são: (i) o elevado crescimento populacional; (ii) a conquista por <strong>de</strong>marcações <strong>de</strong> terras,<br />

que resultou em esforços subsequentes em Educação, Saú<strong>de</strong>, autossustentação<br />

econômica, etc.; (iii) a existência <strong>de</strong> cursos específicos <strong>de</strong> magistério indígena; (iv)<br />

pressões dos índios para se aplicar a legislação sobre a universalização do Ensino<br />

Fundamental em todo o país, inclusive para eles. (LUCIANO BANIWA, 2006a, p.141)<br />

Portanto a a<strong>de</strong>quação do ensino <strong>escola</strong>r para promoção da cidadania, com respeito<br />

aos valores culturais, é essencial.<br />

104


Como continuida<strong>de</strong> a esta dissertação, após elucidarmos brevemente a situação<br />

indígena como minoria tanto na Educação quanto na Saú<strong>de</strong>, seguimos com a proposta<br />

<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar o tratamento do Planejamento Plurianual dispensado à questão indígena<br />

e, concomitantemente, enten<strong>de</strong>r o diálogo que po<strong>de</strong> haver com a abordagem<br />

multicultural.<br />

105


6. O Plano Plurianual (PPA) 2008-2011 Incorpora<br />

Preocupações Multiculturais?<br />

O PPA 2008-2011 fornece uma oportunida<strong>de</strong> única para se analisarem os elos entre as<br />

ações e os programas do Governo Fe<strong>de</strong>ral, ambos <strong>de</strong>stinados aos indígenas e às<br />

teorias multiculturalistas, porque esse é o primeiro PPA a explicitar o enca<strong>de</strong>amento<br />

lógico: objetivos <strong>de</strong> governo objetivos setoriais programas. Estes, por sua vez,<br />

<strong>de</strong>sdobram-se em ações. Na figura 1 (abaixo) temos visão mais ampla <strong>de</strong>ssa ca<strong>de</strong>ia.<br />

Devemos enten<strong>de</strong>r que o programa é um “instrumento <strong>de</strong> organização da ação<br />

governamental que articula um conjunto <strong>de</strong> ações visando à concretização do objetivo<br />

nele estabelecido”, e a ação, um “instrumento <strong>de</strong> programação que contribui para<br />

aten<strong>de</strong>r ao objetivo <strong>de</strong> um programa, po<strong>de</strong>ndo ser orçamentária ou não-<br />

orçamentária”. (BRASIL, 2007, p. 9-10)<br />

Figura 1 – A estrutura do PPA 2008-2011<br />

Fonte: Filippeto (2007, p.7)<br />

106


a) Objetivos <strong>de</strong> Governo<br />

Se no PPA 2004-2007 se estabeleceram apenas três “megaobjetivos”, no seguinte<br />

(2008-2011) houve mais preocupação – talvez pela maior experiência burocrática das<br />

equipes do governo Lula, agora num segundo mandato, como parte da estratégia – em<br />

<strong>de</strong>talhar <strong>de</strong>z “objetivos <strong>de</strong> governo” <strong>de</strong>scritos na Tabela 6.<br />

Tabela 7 – Os objetivos <strong>de</strong> governo do PPA 2008-2011<br />

• Promover a inclusão social e a redução das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s.<br />

Promover o crescimento econômico ambientalmente sustentável, com geração<br />

•<br />

<strong>de</strong> emprego e distribuição <strong>de</strong> renda.<br />

Propiciar o acesso da população brasileira à educação e ao conhecimento com<br />

•<br />

equida<strong>de</strong>, qualida<strong>de</strong> e valorização da diversida<strong>de</strong>.<br />

Fortalecer a <strong>de</strong>mocracia, com igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero, raça e etnia, e a cidadania<br />

•<br />

com transparência, diálogo social e garantia dos direitos humanos.<br />

• Implantar uma infra-estrutura eficiente e integradora do território nacional.<br />

Reduzir as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s regionais a partir das potencialida<strong>de</strong>s locais do<br />

•<br />

território nacional.<br />

• Fortalecer a inserção soberana internacional e a integração sul-americana.<br />

• Elevar a competitivida<strong>de</strong> sistêmica da economia, com inovação tecnológica.<br />

• Promover um ambiente social pacífico e garantir a integrida<strong>de</strong> dos cidadãos.<br />

Promover o acesso com qualida<strong>de</strong> à securida<strong>de</strong> social, sob a perspectiva da<br />

• universalida<strong>de</strong> e da equida<strong>de</strong>, assegurando-se o seu caráter <strong>de</strong>mocrático e a<br />

<strong>de</strong>scentralização.<br />

Fonte: Filippeto (2007)<br />

A partir <strong>de</strong>ssa lista inicial, na Tabela 8 classificamos, por or<strong>de</strong>m numérica, cada uma<br />

das finalida<strong>de</strong>s, conforme a presença ou não <strong>de</strong> programas e ações voltados<br />

(exclusivamente ou não) para indígenas.<br />

107


Tabela 8 – Objetivos <strong>de</strong> governo e os indígenas<br />

COM PROGRAMA ESPECÍFICO PARA INDÍGENAS<br />

1- Fortalecer a <strong>de</strong>mocracia, com igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero, raça e etnia e propiciar<br />

cidadania com transparência, diálogo social e garantia dos direitos humanos.<br />

COM AÇÃO ESPECÍFICA PARA INDÍGENAS<br />

2- Promover o acesso, com qualida<strong>de</strong>, à segurida<strong>de</strong> social, sob a perspectiva da<br />

universalida<strong>de</strong> e da equida<strong>de</strong>, assegurado o caráter <strong>de</strong>mocrático e a <strong>de</strong>scentralização.<br />

3- Fomentar o crescimento econômico ambientalmente sustentável, com geração <strong>de</strong><br />

empregos e distribuição <strong>de</strong> renda.<br />

4- Proporcionar o acesso da população brasileira à Educação e ao conhecimento, com<br />

equida<strong>de</strong>, qualida<strong>de</strong> e valorização da diversida<strong>de</strong>.<br />

INDÍGENAS COMO APENAS UM DOS PÚBLICOS-ALVO DE AÇÕES<br />

5- Promover a inclusão social e a redução das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s.<br />

6- Reduzir as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s regionais <strong>de</strong> acordo com as potencialida<strong>de</strong>s locais do<br />

Território Nacional.<br />

7- Desenvolver ambiente social pacífico e garantir a integrida<strong>de</strong> dos cidadãos.<br />

INDÍGENAS NÃO MENCIONADOS<br />

8- Elevar a competitivida<strong>de</strong> sistêmica da economia, com inovação tecnológica.<br />

9- Fortalecer a inserção soberana internacional e a integração sul-americana.<br />

10- Implantar infraestrutura eficiente e integradora do Território Nacional.<br />

Fonte: elaboração própria, utilizando<br />

<br />

Se relacionarmos a Figura 1 com a Tabela 8, po<strong>de</strong>remos compreen<strong>de</strong>r que há, no PPA,<br />

um programa (dimensão tática-operacional), específico para os indígenas, constante<br />

no nº1 (dimensão estratégica). Há ações particulares (dimensão tática-operacional)<br />

para os povos autóctones nos nºs 2, 3 e 4 e três objetivos <strong>de</strong> governo (5, 6 e 7), com<br />

108


ativida<strong>de</strong>s em que os indígenas compõem o quadro <strong>de</strong> público-alvo, mas não são<br />

exclusivos <strong>de</strong>sses povos, portanto não diferenciados especificamente para eles.<br />

Finalmente, os três últimos objetivos não apresentam qualquer menção aos índios.<br />

Após essa breve explicação na Tabela 8, em primeiro lugar, nota-se que, dos <strong>de</strong>z<br />

objetivos <strong>de</strong> governo, apenas três não fazem qualquer alusão aos indígenas. Não por<br />

acaso, os programas relacionados a esses objetivos (exceto o 9, que trata <strong>de</strong> assuntos<br />

<strong>de</strong> política externa) ten<strong>de</strong>m a gerar maiores conflitos, atualmente, com os povos<br />

indígenas, como o caso dos ligados ao Programa <strong>de</strong> Aceleração do Crescimento, o PAC.<br />

Em segundo lugar, cumpre <strong>de</strong>stacar que o adjetivo multicultural (ou multiculturalismo<br />

ou multiculturalida<strong>de</strong>) não é citado em nenhum momento nem no PPA nem mesmo<br />

nos objetivos dos programas. Consoante com alguns dos entrevistados, é possível que<br />

essa ausência se <strong>de</strong>va à rejeição que esse “rótulo” carrega por ter origem nas<br />

abordagens teóricas, advindas <strong>de</strong> países <strong>de</strong>senvolvidos, muitas vezes i<strong>de</strong>ntificadas com<br />

o neoliberalismo ou com uma visão ancorada no pensamento político <strong>de</strong> tradição<br />

liberal, o que para alguns po<strong>de</strong> significar conservadorismo. Resta indagar então se e<br />

como – não obstante a ausência do rótulo - o conteúdo dos objetivos, dos programas e<br />

das ações po<strong>de</strong>m entrosar-se com o multiculturalismo. Nota-se, no Objetivo 4, por<br />

exemplo, que o termo diversida<strong>de</strong>, praticamente sinônimo <strong>de</strong> multiculturalida<strong>de</strong>,<br />

encontra-se lá.<br />

Em terceiro lugar, chama-nos a atenção que o único programa exclusivamente voltado<br />

aos indígenas tem como propósito maior <strong>de</strong> governo fortalecer a <strong>de</strong>mocracia e a<br />

cidadania, além <strong>de</strong> garantir os direitos humanos. Como se viu na revisão da literatura<br />

sobre multiculturalismo, há extensos <strong>de</strong>bates, nos campos da Filosofia Política, da<br />

109


Filosofia do Direito, da Sociologia e dos Direitos Humanos, sobre como e se esses<br />

conceitos são compatíveis com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> multiculturalismo.<br />

Por último, a explicitação <strong>de</strong> indígenas como parte do público-alvo <strong>de</strong> algumas ações<br />

parece indicar preocupação das políticas públicas associadas às particularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sses<br />

povos, mesmo se julgarmos tratar-se <strong>de</strong> políticas “universais” como, por exemplo, a <strong>de</strong><br />

inclusão e a <strong>de</strong> redução <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, políticas essas que possuem um corte na<br />

renda, mas não <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse universo <strong>de</strong> grupos étnico-raciais.<br />

b) Objetivos Setoriais<br />

Este item aborda a dimensão estratégica dos Ministérios, ou seja, a vinculação dos<br />

escopos aos Ministérios. O cuidado com a “diversida<strong>de</strong>” aparece no PPA em<br />

praticamente todos os objetivos setoriais (ou <strong>de</strong> governo) <strong>de</strong> programas cujos<br />

responsáveis são o Ministérios da Educação e o da Cultura, além <strong>de</strong> um programa do<br />

do Planejamento, Orçamento e Gestão (“Gestão do Patrimônio Imobiliário da União”),<br />

todavia não há a mesma clareza nos programas sob responsabilida<strong>de</strong> do Ministério da<br />

Saú<strong>de</strong> ou do Ministério do Desenvolvimento Social, entre outros.<br />

Haveria alguma razão para a “diversida<strong>de</strong>” ter entrado mais fortemente na agenda do<br />

Ministério da Educação, por exemplo, do que na do Ministério da Saú<strong>de</strong>?<br />

c) Programa “Proteção e Promoção dos Povos Indígenas”:<br />

110


Esse programa é o único exclusivamente <strong>de</strong>dicado aos indígenas, como consta no<br />

objetivo nº 1, e é resultado da união <strong>de</strong> dois outros do PPA anterior (2004-2007) 31 ,<br />

quais sejam:<br />

• 0150 - I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> Étnica e Patrimônio Cultural dos Povos Indígenas<br />

• 0151 - Proteção <strong>de</strong> Terras Indígenas, Gestão Territorial e Etno<strong>de</strong>senvolvimento<br />

O intuito <strong>de</strong>sse programa é garantir “aos povos indígenas a manutenção ou<br />

recuperação das condições objetivas <strong>de</strong> reprodução <strong>de</strong> seus modos <strong>de</strong> vida e<br />

proporcionar-lhes oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> superação das assimetrias observadas em relação<br />

à socieda<strong>de</strong> brasileira em geral”.<br />

A justificativa para esse objetivo provém da inserção dos índios na socieda<strong>de</strong> nacional<br />

e da gran<strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> ou do contato com comunida<strong>de</strong>s não indígenas, o que cria<br />

situações <strong>de</strong> risco à integrida<strong>de</strong> física e sociocultural <strong>de</strong>les.<br />

De acordo com as diretrizes programáticas da Funai sobre o PPA (2008-2011), o<br />

processo <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong> terras é vital para a sobrevivência da diversida<strong>de</strong><br />

étnica, porém a avaliação é que cerca <strong>de</strong> uma centena <strong>de</strong> terras, ainda em estágio<br />

inicial <strong>de</strong> estudo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação e <strong>de</strong> <strong>de</strong>limitação, seja necessária para diminuir o<br />

atual <strong>de</strong>sequilíbrio, além <strong>de</strong> se reverem algumas terras já <strong>de</strong>marcadas <strong>de</strong> maneira<br />

insuficiente.<br />

A estratégia para a implementação <strong>de</strong>sse objetivo <strong>de</strong>ve-se dar por “ações <strong>de</strong><br />

prevenção e repressão a invasões das terras indígenas e ao uso ilícito <strong>de</strong> seus recursos<br />

naturais e conhecimento tradicional” (FUNAI, 2007, p.17), o que <strong>de</strong>mandará<br />

31 Ver anexos 1 e 2.<br />

111


mudanças, isto é, com a previsão da própria FUNAI <strong>de</strong> que é preciso aperfeiçoar e<br />

a<strong>de</strong>quar as estruturas ao quadro atual das relações <strong>de</strong>mocráticas não tutelares entre o<br />

Estado e as comunida<strong>de</strong>s indígenas do Brasil, além <strong>de</strong> dar prosseguimento aos <strong>de</strong>mais<br />

direitos adquiridos, mas não exercidos plenamente pelos indígenas.<br />

Apesar <strong>de</strong> não haver referência explícita a Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos no documento<br />

da Funai, é possível distinguir similarida<strong>de</strong>s, mencionadas nesta dissertação, entre ele<br />

e os textos daquele autor, tais como “diálogo <strong>de</strong> civilizações”, “trocas simétricas” e até<br />

a afirmação i<strong>de</strong>ológica, não reproduzida neste trabalho, <strong>de</strong> que “os países<br />

‘<strong>de</strong>senvolvidos’ não o conseguiram”:<br />

Cada povo indígena constitui uma civilização própria, diferente da dos<br />

outros e com uma história <strong>de</strong> contato específica com a civilização<br />

oci<strong>de</strong>ntal. O diálogo <strong>de</strong> civilizações é sempre possível e positivo, mas<br />

<strong>de</strong>ve levar em conta trocas simétricas, no tempo e no espaço,<br />

a<strong>de</strong>quadas em cada caso, e enriquecedoras para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />

ambas. Esse é o <strong>de</strong>safio do século XXI, no qual o Brasil tem papel<br />

<strong>de</strong>stacado, pois ainda tem a chance <strong>de</strong> mostrar ao mundo (a<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrou que os países “<strong>de</strong>senvolvidos” não o<br />

conseguiram) que esse diálogo é possível. (FUNAI, 2007, p.8)<br />

No PPA, formalizou-se um conjunto <strong>de</strong> ações voltado para os indígenas, com a própria<br />

Funai como unida<strong>de</strong> responsável. O texto mantém um discurso afinado com a<br />

abordagem multicultural, haja vista as propostas para <strong>de</strong>marcar e regularizar as terras<br />

indígenas, fomentar e valorizar os processos educativos e patrimônios culturais <strong>de</strong>sses<br />

povos, além <strong>de</strong> preservar o conhecimento tradicional e a proteção social dos<br />

autóctones para assegurar o exercício da igualda<strong>de</strong>.<br />

112


7. Educação na Diversida<strong>de</strong><br />

Para darmos continuida<strong>de</strong> ao argumento <strong>de</strong> observar a educação indígena no contexto<br />

do multiculturalismo, precisamos esclarecer melhor a opinião do MEC sobre a<br />

diversida<strong>de</strong> cultural do país do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> políticas públicas <strong>de</strong> Educação no<br />

âmbito fe<strong>de</strong>ral.<br />

Um importante passo em direção à valorização da diversida<strong>de</strong> no Brasil pelo MEC é a<br />

criação da Secretaria <strong>de</strong> Educação Continuada, Alfabetização e Diversida<strong>de</strong> (SECAD),<br />

em 2004, com o propósito <strong>de</strong> “fazer com que a política pública consiga compatibilizar<br />

o conteúdo universal da educação com o conteúdo diferencialista”. (SECAD, 2006, p.6)<br />

A finalida<strong>de</strong> da SECAD era ser um órgão que facilitasse a articulação das diferenças, <strong>de</strong><br />

modo a abarcar todas as minorias e diferenças culturais. Os <strong>de</strong>ficientes não foram<br />

inclusos aí porque já havia uma secretaria especial para eles e, politicamente, seria um<br />

erro esvaziar essa secretaria, mas, conceitualmente, eles também <strong>de</strong>veriam figurar na<br />

SECAD, como reconhece Ricardo Henriques, secretário da SECAD (2004-2006), durante<br />

entrevista.<br />

Desse modo, a proposta da SECAD é calcada em uma dimensão específica da<br />

socieda<strong>de</strong> brasileira que antece<strong>de</strong> a multicultural, porque esta abordagem tem sido<br />

concebida em países que possuem uma realida<strong>de</strong> bem distinta da brasileira. Se<br />

compararmos o Brasil ao Canadá, po<strong>de</strong>mos observar que neste é dispensado um<br />

tratamento exclusivamente focado na diversida<strong>de</strong>; naquele, contudo, a <strong>de</strong>marcação<br />

dos grupos étnico-raciais não coinci<strong>de</strong> necessariamente com a <strong>de</strong>marcação das<br />

populações pobres, porque aqui a pobreza muitas vezes aparece como critério<br />

fundamental <strong>de</strong> diferenciação e, portanto, sobrepõe-se às especificida<strong>de</strong>s culturais.<br />

113


Após nossa consulta a um dos gestores da SECAD, a revista, publicada pela Secretaria,<br />

Diferentes Diferenças, foi i<strong>de</strong>ntificada como o documento marcante, no âmbito<br />

fe<strong>de</strong>ral, sobre a importância <strong>de</strong> políticas públicas direcionadas à diversida<strong>de</strong> cultural<br />

na área da Educação. Há outros também relevantes, porém são, em verda<strong>de</strong>, textos <strong>de</strong><br />

estudiosos do assunto, selecionados pela SECAD/MEC, com apoio da UNESCO para<br />

publicação, mas não elaborados por gestores públicos 32 .<br />

Segundo Henriques, por um lado, a educação <strong>de</strong>ve ser universal, para a garantia a<br />

todos, mas, por outro, diferenciada <strong>de</strong> acordo com as necessida<strong>de</strong>s específicas <strong>de</strong> cada<br />

local. Nas palavras <strong>de</strong>le,<br />

“[...] a tese <strong>de</strong> se assegurar a educação como um direito <strong>de</strong> todos<br />

somente por estratégias universais é falsa. Necessitamos produzir uma<br />

agenda <strong>de</strong> ações afirmativas que vá ao encontro <strong>de</strong> compatibilizar os<br />

conteúdos universais com os diferencialistas. Ou seja, a universalização<br />

do ensino, hoje, não seria suficiente para reduzir o quadro <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>”. (SECAD, 2006, p.8)<br />

A SECAD tentou i<strong>de</strong>ntificar as semelhanças nas diferenças, para abranger negros,<br />

índios, mulheres, e temas como violência doméstica, educação prisional, etc. numa<br />

única secretaria, mas seria preciso assegurar-se que cada <strong>de</strong>manda específica não<br />

resultasse no esfacelamento a secretaria, porque uma coisa seria focalizar as<br />

<strong>de</strong>mandas dos negros, as dos homossexuais e as das mulheres; outra seria ter como<br />

alvo essas <strong>de</strong>mandas e ainda as dos negros homossexuais, as das mulheres<br />

homossexuais e as das mulheres negras homossexuais, por exemplo. Assim, foi preciso<br />

recortes concretos para afiançar a execução <strong>de</strong> políticas públicas.<br />

32 Utilizamos vários <strong>de</strong>sses materiais (Ca<strong>de</strong>rnos Educação para Todos) nesta dissertação.<br />

114


Um exemplo da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse recorte vem <strong>de</strong> experiências empíricas, como o<br />

caso <strong>de</strong> a secretaria saber da dificulda<strong>de</strong> da educação prisional, cuja diferenciação,<br />

com agenda própria, foi imprescindível, caso contrário, com políticas <strong>de</strong> educação<br />

diluídas, não haveria resultado algum nesse sistema.<br />

Diante <strong>de</strong>ssa postura sobre garantir educação universal sem per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista a<br />

importância das diferenças locais, algumas das ações, citadas pelo MEC como<br />

diferenciadas, são relacionadas a seguir. E, apesar <strong>de</strong> muitas <strong>de</strong>las serem<br />

originalmente estaduais ou municipais com apoio <strong>de</strong> organismos internacionais, como<br />

a UNESCO e o Banco Interamericano <strong>de</strong> Desenvolvimento – BID –, a relevância que<br />

damos é por o MEC ter reconhecido e dado visibilida<strong>de</strong> a tais iniciativas.<br />

(i) Escola Aberta - <strong>escola</strong>s são mantidas abertas no final <strong>de</strong> semana em bairros<br />

pobres <strong>de</strong> Recife, para jovens fazerem alguma ativida<strong>de</strong> artística ou esportiva,<br />

<strong>de</strong> modo que o ócio e, consequentemente, a violência, as drogas e os roubos<br />

diminuam entre esses grupos vulneráveis e os potenciais dos bairros sejam<br />

i<strong>de</strong>ntificados, para se a<strong>de</strong>quar a oferta à <strong>de</strong>manda da região (SECAD, 2006, p.9-<br />

10);<br />

(ii) Programa Bairro-Escola – ocorre em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense,<br />

on<strong>de</strong> houve integração do programa Escola Aberta com a comunida<strong>de</strong>; assim,<br />

por convênios com organizações sociais locais, as <strong>escola</strong>s trabalham com os<br />

jovens em tempo integral, nas mais diversas áreas, como esporte, arte, cultura,<br />

informática, lazer e aprendizado, o que reduz a evasão <strong>escola</strong>r (SECAD, 2006,<br />

p.11-12);<br />

115


(iii) Ações Sobre a Homossexualida<strong>de</strong> – preten<strong>de</strong> formar profissionais <strong>de</strong><br />

Educação com vistas à cidadania e à diversida<strong>de</strong> sexual, além <strong>de</strong> formular<br />

políticas educacionais <strong>de</strong> respeito à diversida<strong>de</strong> sexual e combater a homofobia<br />

(SECAD, 2006, p.13-15);<br />

(iv) Alfabetização – com enfoque nas especificida<strong>de</strong>s do público-alvo, há, por<br />

exemplo, voltado para pescadores das margens do rio São Francisco, o<br />

programa Saberes das Águas, que levou em conta temas do cotidiano como “o<br />

rio, o tempo, as fases da lua, o meio ambiente, a confecção <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s, a<br />

comercialização dos peixes, o <strong>de</strong>feso e a época <strong>de</strong> reprodução dos peixes”<br />

(SECAD, 2006, p.18);<br />

(v) Escola que Protege – o programa visa a orientar os educadores a perceber<br />

sinais, como mudanças <strong>de</strong> comportamento dos alunos, a encaminhá-los para<br />

atendimento especializado e a prevenir casos <strong>de</strong> violência física ou psicológica,<br />

abandono ou negligência, abuso e exploração sexual comercial e exploração do<br />

trabalho infantil (SECAD, 2006, p.23);<br />

(vi) Programa Reconhecer – trabalha para apoiar a constituição <strong>de</strong> uma cultura<br />

jurídica que incentive os cursos <strong>de</strong> Direito a refletir sobre a estrutura curricular<br />

e contemple espaços <strong>de</strong> formação que se <strong>de</strong>diquem às necessida<strong>de</strong>s dos<br />

grupos mais vulneráveis da população brasileira e à autonomia e<br />

sustentabilida<strong>de</strong> das comunida<strong>de</strong>s (SECAD, 2006, p.24);<br />

(vii) Educação Quilombola – atua na formação específica <strong>de</strong> professores para<br />

essas áreas, em fóruns estaduais, para articulação e acompanhamento, in loco,<br />

116


<strong>de</strong>ssa formação; na ampliação e melhoria da re<strong>de</strong> física <strong>escola</strong>r; na produção e<br />

aquisição <strong>de</strong> material didático (SECAD, 2006, p.28);<br />

(viii) Saberes da Terra – o objetivo é elevar a <strong>escola</strong>rida<strong>de</strong> com qualificação<br />

profissional e social por meio <strong>de</strong> um projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sustentável e<br />

solidário no campo, a fim <strong>de</strong> valorizar as diferentes formas <strong>de</strong> aprendizado no<br />

processo <strong>de</strong> ensino, que vincula a <strong>escola</strong> à realida<strong>de</strong> do aluno e adota o<br />

trabalho como princípio educativo. O currículo segue a pedagogia da<br />

alternância, a qual respeita os ciclos da ativida<strong>de</strong> rural e admite a divisão do<br />

tempo <strong>de</strong> estudo entre <strong>escola</strong> e casa/proprieda<strong>de</strong> rural (SECAD, 2006, p.32);<br />

(xix) Conexões <strong>de</strong> Saberes – nas palavras do secretário Ricardo Henriques,<br />

“representa uma política <strong>de</strong> permanência qualificada que contribui para os<br />

estudantes universitários <strong>de</strong> origem popular permanecerem e concluírem com<br />

êxito a graduação nas universida<strong>de</strong>s públicas. Além disso, amplia a relação<br />

entre a universida<strong>de</strong> e os moradores <strong>de</strong> espaços populares, suas instituições e<br />

organizações, promovendo o encontro e a troca <strong>de</strong> saberes e fazeres entre<br />

esses dois territórios” (SECAD, 2006, p.34);<br />

(x) Educação Escolar Indígena – faz-se mais presente <strong>de</strong>pois da elaboração <strong>de</strong><br />

políticas educacionais específicas que contemplam as necessida<strong>de</strong>s das<br />

comunida<strong>de</strong>s. Para se ter i<strong>de</strong>ia da dimensão <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> educação, “[o]s<br />

dados do Censo Escolar 2005 apontam a existência <strong>de</strong> 2.324 <strong>escola</strong>s em<br />

funcionamento em terras indígenas, on<strong>de</strong> são atendidos 164 mil estudantes.<br />

Nessas <strong>escola</strong>s, trabalham aproximadamente 9,1 mil professores, 88% <strong>de</strong>les<br />

indígenas”. (SECAD, 2006, p.38) Entre as ações estão: (a) aumento ou<br />

117


econhecimento <strong>de</strong> <strong>escola</strong>s indígenas; (b) merenda <strong>escola</strong>r, que recebeu, por<br />

aluno, valor superior ao das <strong>escola</strong>s não indígenas, o que propiciou a<br />

permanência <strong>de</strong>les na <strong>escola</strong>; (c) cursos <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> professores indígenas,<br />

que também se tornam pesquisadores das próprias culturas e autores <strong>de</strong> livros<br />

didáticos específicos; (d) uso da língua materna na alfabetização.<br />

São vários os programas indicados pela SECAD/MEC, como os <strong>de</strong> promoção da<br />

diversida<strong>de</strong>, porém os números apresentados quanto aos beneficiários indicam que<br />

tais projetos estão em estágios iniciais, com amplitu<strong>de</strong> limitada, se consi<strong>de</strong>rarmos a<br />

dimensão continental do Brasil e o número <strong>de</strong> habitantes. Alguns exemplos: em<br />

“Saberes das Águas”, da Bahia, na segunda fase, houve três mil pescadores<br />

alfabetizados em cento e quarenta e cinco turmas <strong>de</strong> quatro municípios; a “Escola que<br />

Protege” está presente em noventa e três municípios <strong>de</strong> <strong>de</strong>zessete Estados; o<br />

“Programa Reconhecer” obteve aprovação <strong>de</strong> catorze projetos em sua primeira edição<br />

e o programa “Saberes da Terra” tem beneficiado pouco mais <strong>de</strong> cinco mil jovens e<br />

adultos do campo.<br />

Mas po<strong>de</strong>mos, ainda assim, inferir que há um movimento por políticas multiculturais e<br />

inclusivas. De acordo com Henriques, respeitar as diferenças é incluir e, por mais que<br />

alguns teóricos do multiculturalismo não consi<strong>de</strong>rem com bons olhos as ações<br />

afirmativas diante do contexto <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, é necessário haver tais ações<br />

cujo resultado é a inclusão. O limite entre esta e a segregação é tênue, portanto as<br />

discussões sobre opiniões favoráveis ou contrárias às ações afirmativas são <strong>de</strong>licadas.<br />

Elucidada a concepção <strong>de</strong> políticas multiculturais da SECAD/MEC, propomos um<br />

levantamento do histórico da educação <strong>escola</strong>r indígena <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Constituição <strong>de</strong> 1988,<br />

118


com vistas à abordagem multicultural, para algumas das atuais ações que tratam<br />

especificamente dos indígenas ou os divi<strong>de</strong>m em categorias.<br />

119


7.1. Educação Escolar Indígena<br />

A educação entra na agenda nacional como um dos principais instrumentos para<br />

promover melhores condições <strong>de</strong> vida para a população brasileira, principalmente por<br />

sermos um dos países no mundo com maior <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social. Não po<strong>de</strong>ria ser<br />

diferente com os movimentos indígenas, que, atualmente, têm a educação indígena<br />

como uma das principais <strong>de</strong>mandas, se não a principal, para a conquista da tão<br />

almejada autonomia.<br />

Dentre os aspectos da educação indígena abarcados pela Constituição Brasileira <strong>de</strong><br />

1988 (grifo nosso), está previsto que:<br />

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental,<br />

<strong>de</strong> maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores<br />

culturais e artísticos, nacionais e regionais.<br />

[...] § 2º - O ensino fundamental regular será ministrado em língua<br />

portuguesa, assegurada às comunida<strong>de</strong>s indígenas também a<br />

utilização <strong>de</strong> suas línguas maternas e processos próprios <strong>de</strong><br />

aprendizagem.<br />

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos<br />

culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará<br />

a valorização e a difusão das manifestações culturais.<br />

§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,<br />

indígenas e afro-brasileiras, e das <strong>de</strong> outros grupos participantes do<br />

processo civilizatório nacional.<br />

Desse modo, po<strong>de</strong>mos afirmar que o Brasil prevê, na Constituição, manter a<br />

diversida<strong>de</strong> cultural indígena, porém os meios <strong>de</strong> sua manifestação são incertos. Como<br />

Taylor <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, em sua abordagem multicultural, o atual momento não trata da<br />

120


importância do reconhecimento da diversida<strong>de</strong>, porque ele já ocorreu, mas das<br />

“condições” em que essas políticas <strong>de</strong> reconhecimento se realizam. Por isso, os<br />

direitos às <strong>escola</strong>s diferenciadas vêm sendo <strong>de</strong>talhados e consolidados ao longo dos<br />

anos, como veremos neste texto.<br />

Mesmo com a Constituição, a educação <strong>escola</strong>r indígena continuou a ser <strong>de</strong><br />

competência da Funai. Somente com o <strong>de</strong>creto nº 26/1991, a responsabilida<strong>de</strong> foi<br />

transferida para o MEC, que coor<strong>de</strong>na as ações, enquanto Estados e municípios as<br />

executam. E, em consonância com os princípios da Constituição, <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralizar e<br />

levar a participar, formou-se, pela Portaria Interministerial MJ/MEC nº 559, <strong>de</strong><br />

16.4.1991, a Coor<strong>de</strong>nação Nacional <strong>de</strong> Educação Indígena, constituída por técnicos do<br />

Ministério, especialistas <strong>de</strong> órgãos governamentais, indígenas, organizações não<br />

governamentais e universida<strong>de</strong>s.<br />

Estava previsto, para a Coor<strong>de</strong>nação, criarem-se os Núcleos <strong>de</strong> Educação Indígena nas<br />

Secretarias Estaduais <strong>de</strong> Educação, com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apoiar e assessorar as <strong>escola</strong>s<br />

indígenas. Além disso, a preferência pelos programas permanentes <strong>de</strong> capacitação dos<br />

professores <strong>de</strong>veria dada aos índios (Art. 7º, §2º).<br />

Ainda assim, foi apenas no governo <strong>de</strong> Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) que a<br />

<strong>de</strong>scentralização e a institucionalização da educação se materializaram. A Lei das<br />

Diretrizes e Bases <strong>de</strong> Educação Nacional (LDB), também conhecida como Lei Darcy<br />

Ribeiro, promulgada em 20 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1996, reafirmou os direitos das<br />

populações indígenas e contribuiu um pouco para esclarecer as responsabilida<strong>de</strong>s, ao<br />

<strong>de</strong>terminar o regime <strong>de</strong> “colaboração” entre Estados, municípios e União.<br />

121


Nas palavras <strong>de</strong> Grupioni (2006, p.58), a LDB “menciona, pela primeira vez, <strong>de</strong> forma<br />

explícita a educação <strong>escola</strong>r para os povos indígenas”. Ela também prevê a oferta <strong>de</strong><br />

educação <strong>escola</strong>r bilíngue e intercultural a esses povos, <strong>de</strong> forma a recuperar-lhes a<br />

memória histórica, reafirmar-lhes as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s étnicas e valorizar-lhes as línguas e<br />

ciências. Há inclusive a garantia <strong>de</strong> acesso a informações, conhecimentos técnicos e<br />

científicos da socieda<strong>de</strong> nacional e das <strong>de</strong>mais socieda<strong>de</strong>s indígenas e não índias. E<br />

tudo isso é planejado com a participação das comunida<strong>de</strong>s. (Art. 78 e 79, LDB, 1996)<br />

Po<strong>de</strong>mos dizer que, neste momento, existem elementos <strong>de</strong>cisivos para<br />

caracterizarmos um Estado que, em teoria, promove políticas públicas multiculturais.<br />

Mas Luciano Baniwa (2006a, 2006b) contesta os resultados práticos e afirma que, após<br />

a inclusão do tema educação indígena na agenda <strong>de</strong> discussão do MEC, por pressões<br />

<strong>de</strong>ssa população <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1970, o ensino <strong>escola</strong>r indígena acabou<br />

homogeneizando-se ao ser reconhecido e fomentado pelo Estado na década <strong>de</strong> 1990.<br />

Antes disso, na década <strong>de</strong> 1980, havia poucas experiências <strong>de</strong> “projetos-pilotos”,<br />

resultado da “emergência do movimento articulado <strong>de</strong> professores indígenas aliado ao<br />

movimento maior dos povos indígenas, [que] criou condições para o surgimento das<br />

primeiras <strong>escola</strong>s indígenas diferenciadas”. (LUCIANO BANIWA, 2006a, p.146) E, na<br />

década seguinte, as <strong>escola</strong>s foram incorporadas ao MEC, além <strong>de</strong> se formarem novas,<br />

porém, sem as especificida<strong>de</strong>s que possuíam antes.<br />

Parece que os direitos adquiridos pelos povos indígenas vêm tornando-se<br />

normatizadores, o que contribui para um “enquadramento <strong>de</strong> experiências que <strong>de</strong>vem<br />

ser únicas em mo<strong>de</strong>los já estruturados, sedimentados e burocratizados” (GRUPIONI,<br />

2001, p.90), o que transforma o direito em obrigação.<br />

122


Em 1999, com a Resolução nº 3, da Câmara <strong>de</strong> Educação Básica do Conselho Nacional<br />

<strong>de</strong> Educação, há importantes <strong>de</strong>finições <strong>de</strong> mecanismos que garantem ensino<br />

diferenciado:<br />

Art. 1º Estabelecer, no âmbito da educação básica, a estrutura e o<br />

funcionamento das Escolas Indígenas, reconhecendo-lhes a condição<br />

<strong>de</strong> <strong>escola</strong>s com normas e or<strong>de</strong>namento jurídico próprios, e fixando as<br />

diretrizes curriculares do ensino intercultural e bilíngue, visando à<br />

valorização plena das culturas dos povos indígenas e à afirmação e<br />

manutenção <strong>de</strong> sua diversida<strong>de</strong> étnica.<br />

Art.2º Constituirão elementos básicos para a organização, a estrutura e<br />

o funcionamento da <strong>escola</strong> indígena:<br />

I - sua localização em terras habitadas por comunida<strong>de</strong>s indígenas,<br />

ainda que se estendam por territórios <strong>de</strong> diversos Estados ou<br />

Municípios contíguos;<br />

II – exclusivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atendimento a comunida<strong>de</strong>s indígenas;<br />

III – o ensino ministrado nas línguas maternas das comunida<strong>de</strong>s<br />

atendidas, como uma das formas <strong>de</strong> preservação da realida<strong>de</strong><br />

sociolinguística <strong>de</strong> cada povo;<br />

IV – a organização <strong>escola</strong>r própria.<br />

Parágrafo Único. A <strong>escola</strong> indígena será criada em atendimento à<br />

reivindicação ou por iniciativa <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> interessada, ou com a<br />

anuência da mesma, respeitadas suas formas <strong>de</strong> representação.<br />

Como po<strong>de</strong>mos notar, além <strong>de</strong> “or<strong>de</strong>namento jurídico próprio”, que confere maior<br />

autonomia às <strong>escola</strong>s indígenas, a resolução prevê várias particularida<strong>de</strong>s das al<strong>de</strong>ias e<br />

respeita-lhes a cultura, os “processos próprios e métodos <strong>de</strong> ensino-aprendizagem;<br />

suas ativida<strong>de</strong>s econômicas; o uso <strong>de</strong> materiais didático-pedagógicos produzidos <strong>de</strong><br />

acordo com o contexto sociocultural <strong>de</strong> cada povo indígena”. (Art 3º)<br />

123


Além disso, somente com a Resolução nº 3/99, fica clara a estrutura <strong>de</strong> funcionamento<br />

das <strong>escola</strong>s indígenas sob responsabilida<strong>de</strong> dos governos estaduais, com a ressalva <strong>de</strong><br />

que os municípios po<strong>de</strong>m oferecer educação <strong>escola</strong>r indígena em regime <strong>de</strong><br />

colaboração com os respectivos Estados, mas que, se as amparadas pelos municípios<br />

não aten<strong>de</strong>rem às exigências, ouvidas as comunida<strong>de</strong>s interessadas, passarão a ser<br />

obrigação dos Estados.<br />

Um motivo <strong>de</strong> empecilho é a lacuna, do Art. 9, II a, <strong>de</strong> que aos Estados competirá<br />

responsabilizar-se pela oferta e execução da educação <strong>escola</strong>r indígena, diretamente<br />

ou por meio <strong>de</strong> regime <strong>de</strong> colaboração com seus municípios, mas há Estados que<br />

contestam que isso caiba apenas a eles 33 . Além disso, já que se trata <strong>de</strong><br />

responsabilida<strong>de</strong> dos Estados, distancia-se da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pressões e da<br />

participação das comunida<strong>de</strong>s indígenas.<br />

E, enquanto os níveis <strong>de</strong> governo têm dificulda<strong>de</strong> para lidar com esses compromissos,<br />

os povos indígenas reivindicam que a União assuma a responsabilida<strong>de</strong> direta pela<br />

educação, porque alegam que Estados e municípios não <strong>de</strong>monstram interesse ou boa<br />

vonta<strong>de</strong> para seguir as diretrizes fixadas pela CNE e dificultam o repasse <strong>de</strong> recursos<br />

que recebem da União especificamente para esse fim. (Araújo, 2006) Como afirma<br />

Araújo,<br />

Boa parte <strong>de</strong>ssa falta <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> política dos Estados <strong>de</strong>corre do fato<br />

<strong>de</strong> que os po<strong>de</strong>res locais são aqueles que mais se opõem a um<br />

tratamento digno para os povos indígenas, em razão dos conflitos <strong>de</strong><br />

interesses e das disputas efetivas que ganham materialida<strong>de</strong> no plano<br />

local. (Ibid., p.67)<br />

33 Para maiores informações, veja Oliveira, 2006.<br />

124


Assim, concomitantemente à dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se assumirem responsabilida<strong>de</strong>s,<br />

homogeneiza-se a educação <strong>escola</strong>r indígena, que <strong>de</strong>veria ser diferenciada. E, se<br />

lembrarmos os dados apresentados no item População Indígena no Brasil: Alguns<br />

Indicadores, como o elevado nível <strong>de</strong> <strong>escola</strong>rização indígena (73,9%), não nos resta<br />

dúvida sobre a relevância quantitativa dos efeitos negativos que políticas<br />

homogeneizadoras po<strong>de</strong>m ter sobre as al<strong>de</strong>ias.<br />

Não obstante os problemas enfrentados nas práticas <strong>de</strong> educação <strong>escola</strong>r indígena<br />

diante da divisão <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s do Estado, <strong>de</strong>vemos alertar para o fato <strong>de</strong> que<br />

há o outro lado da história, o que diz respeito à dificulda<strong>de</strong> que jovens índios acabam<br />

enfrentando, em parte justamente pela ausência <strong>de</strong> reflexão das comunida<strong>de</strong>s sobre o<br />

papel <strong>de</strong>ssas <strong>escola</strong>s.<br />

As <strong>escola</strong>s <strong>de</strong> Ensino Médio continuam sendo as principais<br />

responsáveis pelo afastamento espacial e sociocultural dos jovens<br />

indígenas, em gran<strong>de</strong> medida porque são instaladas por pressão dos<br />

índios, sem nenhuma reflexão sobre seu papel social na vida presente<br />

e futura das comunida<strong>de</strong>s. As <strong>escola</strong>s seguem à risca, na maioria das<br />

vezes, o mo<strong>de</strong>lo urbano <strong>de</strong> Ensino Médio – disciplinar,<br />

profissionalizante para o mundo branco e centrado exclusivamente nos<br />

conhecimentos dos brancos. É muito comum ouvir dos estudantes<br />

indígenas <strong>de</strong> Ensino Médio que o Ensino Fundamental é o lugar on<strong>de</strong><br />

se “estudam as culturas indígenas” e o Ensino Médio é o lugar <strong>de</strong><br />

“apren<strong>de</strong>r conhecimentos importantes”. O que preocupa é que esta<br />

fase <strong>de</strong> ensino e <strong>de</strong> vivência individual (adulta) representa um<br />

momento <strong>de</strong>cisivo na vida do jovem indígena, uma vez que o<br />

encaminhará para uma <strong>de</strong>terminada perspectiva pessoal e social.<br />

(LUCIANO BANIWA, 2006a, p.161)<br />

Tal relato revela diferenças significativas <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação cultural entre as fases<br />

<strong>escola</strong>res, especialmente no Ensino Médio. Mesmo o ensino bilíngue é ministrado<br />

125


somente nas primeiras quatro séries iniciais do Ensino Fundamental, o que nos<br />

possibilita inferir a falta <strong>de</strong> consistência das políticas educacionais indígenas, não só<br />

quantitativa 34 , como também qualitativamente.<br />

Ainda assim, diante <strong>de</strong>sses percalços, <strong>de</strong>ve-se reconhecer que há progressos. Se antes<br />

a <strong>escola</strong> era vista pelos indígenas como “um meio exclusivo <strong>de</strong> aculturação e havia<br />

certa <strong>de</strong>sconfiança e repulsa quanto à <strong>escola</strong>rização”, atualmente ela é encarada por<br />

muitos <strong>de</strong>sses povos como meio para fortalecer as culturas e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e conquistar<br />

a cidadania. (LUCIANO BANIWA, 2006a, p.129)<br />

Outro aspecto valioso que <strong>de</strong>ve ser tratado ainda nesta subdivisão do capítulo<br />

Educação na Diversida<strong>de</strong> é o termo interculturalida<strong>de</strong>. Diferentemente do viés<br />

i<strong>de</strong>ológico e político que políticas públicas tenham no Brasil, o termo<br />

interculturalida<strong>de</strong>, muito utilizado nos documentos oficiais, <strong>de</strong>cretos e portarias do<br />

Estado, originou-se em 1928, nos EUA, com o Relatório Merian, que <strong>de</strong>fendia a<br />

manutenção do modo <strong>de</strong> vida indígena. O princípio fundamental da educação<br />

intercultural é a “retórica da troca <strong>de</strong> conhecimento entre índios e não índios.”<br />

(COLLET, 2006, p.118), além <strong>de</strong> ser base para o projeto intercultural a educação<br />

bilíngue, o que se contrapõe aos mo<strong>de</strong>los integracionista e assimilacionista. Porém a<br />

efetivação <strong>de</strong> tal proposta ocorreu nos EUA somente na década <strong>de</strong> 1970.<br />

Na América Latina, o termo chegou com a Convenção do III (1940), pela instituição<br />

missionária americana Summer Institute of Linguistics – SIL, que, mais tar<strong>de</strong>, recebeu<br />

34 De acordo com dados do Censo Escolar 2008 (INEP), a proporção é <strong>de</strong> quase doze <strong>escola</strong>s no Ensino<br />

Fundamental para cada <strong>escola</strong> no Ensino Médio, o que indica a disparida<strong>de</strong> quantitativa.<br />

126


da Funai a responsabilida<strong>de</strong> pela educação indígena brasileira, com resquícios <strong>de</strong>sse<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> catequização até os dias <strong>de</strong> hoje. (CRAVEIRO, 2004; COLLET, 2006)<br />

Uma possível diferenciação entre as práticas integracionistas e assimilacionistas é a<br />

apresentada por Collet que, valendo-se <strong>de</strong> Losada (1992 apud COLLET, 2006), refere a<br />

prática integracionista como integração gradual do indivíduo à cultura da unida<strong>de</strong><br />

nacional, enquanto a assimilacionista, segundo Havighurst e Juliano (1976 e 1993 apud<br />

COLLET, 2006), é voltada para segmentos da socieda<strong>de</strong>, como uma tentativa <strong>de</strong><br />

a<strong>de</strong>quar as minorias aos valores nacionais, por meio da comunicação e da <strong>escola</strong>.<br />

Nesse caso, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>duzir que o tratamento dispensado à questão indígena<br />

brasileira utiliza os dois termos e é possível classificá-lo primeiramente como<br />

assimilacionista (os índios “domesticados” separados dos “selvagens”) e <strong>de</strong>pois como<br />

integracionista (com regime tutelar). Em ambos os casos, o objetivo era eliminar as<br />

diferenças.<br />

A autora também se propõe a distinguir as noções <strong>de</strong> interculturalida<strong>de</strong> e<br />

multiculturalismo em conformida<strong>de</strong> com alguns autores (JULIANO, 1993; FALTERI,<br />

1998; GIACALONE, 1998 apud COLLET, 2006, p.123):<br />

“multicultural” se referiria a um dado objetivo, à coexistência <strong>de</strong><br />

diversas culturas, sem entretanto enfatizar o aspecto da troca ou da<br />

relação, po<strong>de</strong>ndo este termo ser usado, inclusive, com referência a<br />

contextos em que socieda<strong>de</strong>s e culturas são mantidas separadas.<br />

“Intercultural”, por outro lado, daria ênfase ao contato, ao diálogo<br />

entre as culturas, à interação e à interlocução, à reciprocida<strong>de</strong> e ao<br />

confronto entre i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e diferença.<br />

127


Essa possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o multiculturalismo resultar em isolamento é prevista por Taylor<br />

(TAYLOR & BOUCHARD, 2008) e por Santos (2003), mas somente como alternativa à<br />

falta <strong>de</strong> uma política multicultural eficaz.<br />

Fizemos diferenciação entre interculturalida<strong>de</strong> e multiculturalismo somente como<br />

proposta introdutória para compreen<strong>de</strong>rmos o porquê <strong>de</strong> os documentos do Governo<br />

utilizarem exclusivamente o primeiro termo. Para nós, não há interesse em<br />

aprofundarmos essa discussão, porque esse não é nosso objetivo. Como o próprio<br />

Kymlicka (2007) sugere, chame do que quiser o termo multiculturalismo, inclusive <strong>de</strong><br />

interculturalismo.<br />

De acordo com o apresentado, a educação <strong>escola</strong>r indígena não parece adaptar-se a<br />

essa situação. Ao contrário, a abertura, quando não é acompanhada <strong>de</strong> um<br />

planejamento mais acurado por parte do Estado e das al<strong>de</strong>ias, tem levado a situações<br />

<strong>de</strong>licadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>scaracterização da cultura indígena local.<br />

No próximo item, analisaremos dois Programas Educacionais com Recorte Específico<br />

Para Indígenas com a intenção <strong>de</strong> relacionar as políticas multiculturais previstas na<br />

parte teórica <strong>de</strong>sta dissertação às do Governo, como continuação do trabalho <strong>de</strong> situar<br />

o Brasil no contexto <strong>de</strong>ssa abordagem.<br />

7.1.1 Programas Educacionais com Recorte Específico Para Indígenas<br />

O propósito <strong>de</strong>ste item é estudar as justificativas <strong>de</strong>sses programas, principalmente<br />

quando esses recortes favorecem os povos autóctones. Suspeita-se que a persistência<br />

em políticas públicas cuja proposta inicial é valorizar as diferenças muitas vezes não<br />

obtém, na prática, o resultado <strong>de</strong>sejado.<br />

128


1. Fun<strong>de</strong>b<br />

O Fundo <strong>de</strong> Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e <strong>de</strong> Valorização dos<br />

Profissionais da Educação (Fun<strong>de</strong>b) – que aten<strong>de</strong> toda a Educação Básica (da Creche ao<br />

Ensino Médio) – substitui o Fundo <strong>de</strong> Manutenção e Desenvolvimento do Ensino<br />

Fundamental e <strong>de</strong> Valorização do Magistério (Fun<strong>de</strong>f) – que só atentava ao<br />

Fundamental. Este vigorou <strong>de</strong> 1997 a 2006; aquele tem a previsão <strong>de</strong> viger <strong>de</strong> janeiro<br />

<strong>de</strong> 2007 até 2020.<br />

A estratégia do Fun<strong>de</strong>b é (re)distribuir recursos pelo país, <strong>de</strong> acordo com o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento social e econômico das regiões. Esses recursos, vinculados por lei à<br />

educação, são obtidos principalmente pela arrecadação <strong>de</strong> impostos e por<br />

transferências dos Estados e municípios, com alguma complementação <strong>de</strong> verba<br />

fe<strong>de</strong>ral, caso não se tenha atingido o patamar mínimo por aluno ao ano.<br />

Então, os recursos são repassados aos Estados e municípios em conformida<strong>de</strong> com o<br />

número <strong>de</strong> alunos na Educação Básica, com fundamento no censo <strong>escola</strong>r do ano<br />

anterior, ou seja, para os municípios, <strong>de</strong> acordo com o número <strong>de</strong> alunos da Educação<br />

Infantil e do Ensino Fundamental e, para os Estados, com o número <strong>de</strong> alunos do<br />

Ensino Fundamental e Médio. Há conselhos criados especificamente para acompanhar<br />

e controlar a distribuição e a aplicação <strong>de</strong>ssa verba nos três âmbitos do governo.<br />

Além disso, <strong>de</strong>terminaram-se os coeficientes <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> recursos (Tabela 8)<br />

para as diferentes modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ensino, tendo, como referência (fator 1), as séries<br />

iniciais do Ensino Fundamental urbano. A justificativa para a existência <strong>de</strong>sse<br />

129


coeficiente é baseada nos diferentes graus <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> investimentos<br />

tecnológicos e <strong>de</strong> professores em cada modalida<strong>de</strong> 35 .<br />

Esses coeficientes variam <strong>de</strong> 0,7 a 1,3. Assim, por exemplo, a educação indígena (e<br />

quilombola) tem coeficiente 1,20, o que implica que os Estados <strong>de</strong>vem aplicar, nessa<br />

etapa <strong>de</strong> ensino, no mínimo, 20% a mais <strong>de</strong> recursos nos alunos do Ensino<br />

Fundamental urbano.<br />

O valor <strong>de</strong>sse coeficiente é justificado por uma Nota Técnica da SEACD/MEC sobre<br />

Fatores <strong>de</strong> Diferenciação do Fun<strong>de</strong>b <strong>de</strong> 2005, cuja principal alegação é<br />

[A] riqueza sócio-cultural, política, linguística [dos povos indígenas],<br />

[que] acarreta a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construirmos projetos <strong>escola</strong>res<br />

específicos para cada etnia. Essa é a principal razão pela qual a <strong>escola</strong><br />

indígena necessita <strong>de</strong> mecanismos diferenciados <strong>de</strong> financiamento.<br />

(SECAD, 2005, p.7).<br />

Portanto o fator <strong>de</strong>cisivo para a educação <strong>escola</strong>r indígena (e quilombola) ter o<br />

terceiro coeficiente mais alto entre <strong>de</strong>z inicialmente foi a questão do<br />

multiculturalismo, o respeito à diferenciação na educação, já previsto nos mecanismos<br />

<strong>de</strong> incentivo à autonomia <strong>de</strong>sses povos, como vimos.<br />

Além disso, há os fatores <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m prática (SECAD, 2005, p.8):<br />

35 Não temos a pretensão <strong>de</strong> entrar em <strong>de</strong>talhes, mas há valores per capita/dia do Programa Nacional<br />

<strong>de</strong> Alimentação Escolar (PNAE), também abarcados pelo FNDE (Fundo Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento da<br />

Educação), que diferenciam os indígenas para valorização dos padrões alimentares próprios às tradições<br />

das comunida<strong>de</strong>s e para aquisição dos alimentos da produção comunitária. As categorias e os valores<br />

são os seguintes: para Pré-Escola, Ensino Fundamental, Médio e Educação <strong>de</strong> Jovens e Adultos, R$0,30;<br />

para Creches Públicas e Filantrópicas, Escolas Indígenas e Escolas Quilombolas, R$0,60 e para <strong>escola</strong>s em<br />

período integral do Programa Mais Educação, R$0,90. (sites: www.fn<strong>de</strong>.gov.br e<br />

www.coneei.mec.gov.br – acessos em 2010)<br />

130


• A baixa razão professor/aluno (1/16) – Isso ocorre porque as al<strong>de</strong>ias<br />

normalmente têm populações não muito superiores a uma centena <strong>de</strong><br />

indivíduos.<br />

• Transporte Escolar Precário – Quando as crianças indígenas atingem o segundo<br />

segmento do Ensino Fundamental e precisam <strong>de</strong>slocar-se para <strong>escola</strong>s mais<br />

próximas, muitas vezes afastadas das al<strong>de</strong>ias, geralmente elas o fazem por<br />

estradas <strong>de</strong> terra (ônibus) ou por rios e igarapés (pequenas embarcações).<br />

• Necessida<strong>de</strong>s Específicas <strong>de</strong> Investimentos<br />

o Formação inicial para professores indígenas e técnicos governamentais<br />

exige investimentos mais elevados que os da média das <strong>escola</strong>s<br />

nacionais, em razão da proposta <strong>de</strong> educação intercultural.<br />

o Especificida<strong>de</strong>s sociais e linguísticas tornam necessário haver assessoria<br />

especial <strong>de</strong> cientistas sociais, antropólogos e linguistas para o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento do ensino <strong>escola</strong>r.<br />

Tabela 8 – Fun<strong>de</strong>b: Coeficiente <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> recursos por modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ensino<br />

131


Nível <strong>de</strong> Ensino<br />

2007<br />

(Resolução nº 1,<br />

<strong>de</strong> 15/2/2007)<br />

2008<br />

(Portaria nº 41,<br />

<strong>de</strong> 27/12/2007)<br />

2009<br />

(Portaria nº 932,<br />

<strong>de</strong> 30/7/2008)<br />

2009<br />

(Portaria nº 777,<br />

<strong>de</strong> 10/8/2009)<br />

Creche 0,8 - - -<br />

Creche em tempo integral - 1,1 1,1 1,1<br />

Creche em tempo parcial - 0,8 0,8 0,8<br />

Pré-<strong>escola</strong> 0,9 - - -<br />

Pré-<strong>escola</strong> em tempo integral - 1,15 1,2 1,25<br />

Pré-<strong>escola</strong> em tempo parcial - 0,9 1 1<br />

Séries iniciais do ensino<br />

fundamental urbano<br />

1 1 1 1<br />

Séries iniciais do ensino<br />

fundamental rural<br />

1,05 1,05 1,05 1,15<br />

Séries finais do ensino<br />

fundamental urbano<br />

1,1 1,1 1,1 1,1<br />

Séries finais do ensino<br />

fundamental rural<br />

1,15 1,15 1,15 1,2<br />

Ensino fundamental em tempo<br />

integral<br />

1,25 1,25 1,25 1,25<br />

Ensino médio urbano 1,2 1,2 1,2 1,2<br />

Ensino médio rural 1,25 1,25 1,25 1,25<br />

Ensino médio em tempo<br />

integral<br />

1,3 1,3 1,3 1,3<br />

Ensino médio integrado à<br />

educação profissional<br />

1,3 1,3 1,3 1,3<br />

Educação especial 1,2 1,2 1,2 1,2<br />

Educação indígena e<br />

quilombola<br />

1,2 1,2 1,2 1,2<br />

Educação <strong>de</strong> jovens e adultos<br />

com avaliação no processo<br />

Educação <strong>de</strong> jovens e adultos<br />

0,7 0,7 0,8 0,8<br />

integrada à educação<br />

profissional <strong>de</strong> nível médio,<br />

com avaliação no processo<br />

0,7 0,7 1 1<br />

Creche conveniada em tempo<br />

integral<br />

- 0,95 0,95 1,1<br />

Creche conveniada em tempo<br />

parcial<br />

- 0,8 0,8 0,8<br />

Pré-<strong>escola</strong> conveniada em<br />

tempo integral<br />

- 1,15 1,2 1,2<br />

Pré-<strong>escola</strong> conveniada em<br />

tempo parcial<br />

- 0,9 1 1<br />

Fonte: www.fn<strong>de</strong>.gov.br - acesso em 2010, com atualização nossa<br />

o Produção <strong>de</strong> material didático-pedagógico – Uma forma <strong>de</strong> promover a<br />

educação intercultural e diferenciada é confeccionar esse material,<br />

132


editado com recursos públicos, para valorizar os conhecimentos<br />

tradicionais indígenas e da socieda<strong>de</strong> nacional.<br />

o Dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> acompanhamento das <strong>escola</strong>s por parte do Estado, já que<br />

muitas al<strong>de</strong>ias são <strong>de</strong> difícil acesso, o que onera esse trabalho e a<br />

assessoria do ensino.<br />

Todos esses fundamentos corroboram com a conclusão <strong>de</strong> que há a<strong>de</strong>quações<br />

previstas na educação indígena por meio <strong>de</strong> uma abordagem multicultural no Fun<strong>de</strong>b.<br />

Não po<strong>de</strong>mos tratar <strong>de</strong> todos os itens característicos do multiculturalismo, porque a<br />

proposta do coeficiente do Fun<strong>de</strong>b é clara: apenas repasse <strong>de</strong> recursos diferenciados<br />

<strong>de</strong> acordo com as modalida<strong>de</strong>s.<br />

Apesar do aumento que outros tipos tiveram nos últimos anos, mas a indígena não,<br />

esta ainda está com um valor expressivo <strong>de</strong> coeficiente, com somente cinco<br />

modalida<strong>de</strong>s acima e quatro com o mesmo valor, o que perfaz vinte e um no total.<br />

2. ProUni<br />

O Programa Universida<strong>de</strong> para Todos – ProUni – do Governo Fe<strong>de</strong>ral, pela Lei<br />

11.096/2005, oferece bolsas parciais e integrais <strong>de</strong> estudo para alunos <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong><br />

graduação e sequenciais <strong>de</strong> formação específica <strong>de</strong> Instituições <strong>de</strong> Ensino Superior<br />

Privadas (IESP), pela renúncia ou isenção fiscal e isso ajuda a regulamentar a<br />

filantropia na educação superior privada (o terceiro <strong>de</strong> três objetivos).<br />

133


O primeiro é parte do Plano Nacional <strong>de</strong> Educação (PNE), cuja meta é ter ao menos<br />

30% dos jovens com ida<strong>de</strong> entre <strong>de</strong>zoito e vinte e quatro anos no Ensino Superior em<br />

2011, o que contribuirá para “<strong>de</strong>mocratizar o acesso à educação superior no país”.<br />

O segundo, que visa a propiciar “inclusão social no Ensino Superior”, tem como<br />

premissa que muitos alunos do Ensino Médio não concorriam às vagas <strong>de</strong> faculda<strong>de</strong>s<br />

privadas porque não tinham condições econômicas, nem <strong>de</strong> financiamento para tal,<br />

portanto o acesso é <strong>de</strong>stinado a jovens <strong>de</strong> baixa renda 36 . Não entraremos em <strong>de</strong>talhes<br />

sobre os <strong>de</strong>mais pré-requisitos <strong>de</strong> concorrência ao Programa por ser irrelevante para<br />

este trabalho.<br />

O ProUni reserva bolsas para os portadores <strong>de</strong> <strong>de</strong>ficiência e os estudantes<br />

auto<strong>de</strong>clarados negros, pardos ou índios, porém eles <strong>de</strong>vem enquadrar-se nos <strong>de</strong>mais<br />

critérios <strong>de</strong> seleção do programa para concorrer a elas. De acordo com o site do<br />

ProUni, atualmente, estão sendo utilizadas cerca <strong>de</strong> trezentas e oitenta e cinco mil<br />

bolsas, das quais novecentas e sessenta e uma, reservadas para indígenas (0,2% do<br />

total). As necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse grupo apontam para o acesso a cursos superiores e<br />

superiores interculturais.<br />

No que diz respeito à reserva <strong>de</strong> vagas para “minorias” – na concepção brasileira –, a<br />

proposta <strong>de</strong>sse programa é válida sob a perspectiva do multiculturalismo, por<br />

promover a valorização dos indígenas, negros e pardos, em <strong>de</strong>svantagem política,<br />

social e econômica em relação à socieda<strong>de</strong> nacional. Apesar <strong>de</strong> os portadores <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ficiência não fazerem parte da “minoria” da abordagem multicultural, como já<br />

mencionamos no capítulo Educação na Diversida<strong>de</strong>, a realida<strong>de</strong> brasileira exigiu outro<br />

36 Para maiores informações sobre os pré-requisitos dos candidatos, acesse o site:<br />

http://siteprouni.mec.gov.br/<br />

134


ecorte do tema e, com isso, acabou mudando conceitualmente o que <strong>de</strong>veria ser o<br />

multiculturalismo brasileiro.<br />

O ponto crítico <strong>de</strong>sse programa é que tem, como critério para reserva <strong>de</strong> bolsas para<br />

os indígenas, os auto<strong>de</strong>clarados, ou seja, basta que o indivíduo afirme ser autóctone,<br />

sem necessida<strong>de</strong> alguma <strong>de</strong> comprovação, que, se ele preencher os <strong>de</strong>mais requisitos,<br />

po<strong>de</strong>rá concorrer a uma das bolsas <strong>de</strong>stinadas a índios. Moura Guarany (2006)<br />

exemplifica:<br />

Indígenas <strong>de</strong> outros Estados [do DF] têm <strong>de</strong>nunciado à FUNAI o<br />

ingresso <strong>de</strong> não índios nas vagas <strong>de</strong>stinadas aos índios, também os<br />

estudantes universitários <strong>de</strong> Brasília, ao tomarem conhecimento <strong>de</strong> um<br />

gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> índios que teriam ingressado nas universida<strong>de</strong>s<br />

nesta capital, entraram em contato com estes últimos para conhecê-<br />

los. Com isso, <strong>de</strong>scobriram que quase todos não eram indígenas, e eles<br />

explicavam: “Eu só disse que era índio por não saber minha origem. E<br />

como não me consi<strong>de</strong>ro branco ou negro, me <strong>de</strong>clarei índio para ter<br />

acesso ao programa”. Outros assim diziam: “Quando fomos nos<br />

inscrever, os funcionários das universida<strong>de</strong>s nos incentivaram a nos<br />

inscrevermos como índios e assim fizemos. Mas não somos índios e<br />

nem conhecemos nenhuma comunida<strong>de</strong>. (Ibid., p.154)<br />

A solução dada por Moura Guarany tem características multiculturais, já que se trata<br />

da <strong>de</strong>fesa do reconhecimento <strong>de</strong> um índio pela coletivida<strong>de</strong> da mesma etnia, da<br />

auto<strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> um povo, <strong>de</strong> modo que o indivíduo seja i<strong>de</strong>ntificado por seu<br />

grupo ou nação.<br />

A argumentação do autor é clara: “O Brasil não po<strong>de</strong> ser obrigado a aceitar, em função<br />

da vonta<strong>de</strong> exclusiva do interessado, que ele se autoi<strong>de</strong>ntifique como brasileiro”.<br />

(MOURA GUARANY, 2006, p.155) Isso sugere que o programa precisa a<strong>de</strong>quar-se a<br />

essa questão. Nos mol<strong>de</strong>s da abordagem multicultural, o raciocínio <strong>de</strong> Moura Guarany<br />

135


é muito pertinente. O programa reserva vagas para os indígenas, que precisam <strong>de</strong><br />

autonomia e <strong>de</strong> autogoverno 37 para <strong>de</strong>liberar sobre o próprio povo, especialmente no<br />

que tange à distinção <strong>de</strong>le.<br />

O direito a autogoverno juntamente com o da terra são <strong>de</strong> fato os itens mais difíceis<br />

no que se refere à promoção do multiculturalismo, porque, quando não permitem a<br />

classificação étnico-racial por auto<strong>de</strong>terminação, fazem-no pela carteira da Funai. Daí,<br />

se houver mudança na forma <strong>de</strong> reconhecimento da raça, nossa impressão é <strong>de</strong> que<br />

ela ocorrerá primeiramente pela carteira <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação do órgão indigenista, antes<br />

que os povos indígenas adquiram autonomia para se autoi<strong>de</strong>ntificarem coletivamente.<br />

37 Aproveitamos a oportunida<strong>de</strong> para conceituar autonomia e autogoverno. De acordo com Heywood<br />

(2000), os termos são sinônimos, porém nós nos valemos do termo autogoverno para a parte teórica<br />

<strong>de</strong>ste trabalho, justamente por ela o utilizar, e para as questões indígenas no Brasil foi mencionado<br />

autonomia, por ser essa a palavra que se encontra nos documentos e nas <strong>de</strong>mais fontes <strong>de</strong> pesquisa. A<br />

impressão que temos para a divergência <strong>de</strong> uso <strong>de</strong>sses termos é que autogoverno tem conotação mais<br />

política, como se conferisse in<strong>de</strong>pendência da Nação aos povos indígenas, da mesma forma que, por<br />

muitos anos, o Estado não aceitou o termo povos para os indígenas, porque sugeriria a existência <strong>de</strong><br />

outra Nação.<br />

136


8. Conclusão<br />

Chegamos ao ponto em que é preciso refletir sobre os achados <strong>de</strong>ste trabalho. Visto<br />

que há diferenças significativas entre as teorias sobre o multiculturalismo e o uso <strong>de</strong>le<br />

nas políticas públicas brasileiras, propomos uma análise sobre limites e oportunida<strong>de</strong>s<br />

específicos <strong>de</strong>ssa abordagem no Brasil. O quadro 1, abaixo, procura resumir os<br />

aspectos mais importantes <strong>de</strong>ssa questão.<br />

Quadro 1 – Multiculturalismo: Limites e Oportunida<strong>de</strong>s da Abordagem Para a Questão<br />

Indígena no Brasil<br />

1<br />

2<br />

3<br />

4<br />

5<br />

6<br />

Limites Oportunida<strong>de</strong>s<br />

O alto nível <strong>de</strong> abstração das abordagens<br />

dificulta a operacionalida<strong>de</strong> das políticas<br />

Risco <strong>de</strong> isolamento e "conservantismo<br />

cultural" (guetos)<br />

Dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> recortar públicos-alvo <strong>de</strong>ntro<br />

dos conceitos mais amplos <strong>de</strong> "cultura" e<br />

"multiculturalismo"<br />

A agregação da causa indígena com a <strong>de</strong><br />

outras minorias po<strong>de</strong> enfraquecer o<br />

“indigenismo”<br />

A busca por abordagem “universal” <strong>de</strong><br />

multiculturalismo (principalmente pelos<br />

organismos internacionais) po<strong>de</strong> tolher<br />

abordagens locais diferentes<br />

O contexto brasileiro <strong>de</strong> aguda<br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> é diferente daquele em que<br />

foram formuladas originalmente as<br />

vertentes do multiculturalismo<br />

Fonte: resultado da análise <strong>de</strong>sta pesquisa.<br />

Possibilitar base conceitual/teórica mais<br />

sólida, para ligar conceitualmente esta com<br />

outras abordagens<br />

A integração com direitos humanos facilita<br />

proteção externa aos indivíduos que<br />

queiram seguir trajetórias individuais na<br />

socieda<strong>de</strong> nacional<br />

A "imprecisão conceitual" po<strong>de</strong> propiciar a<br />

agregação <strong>de</strong> interesses <strong>de</strong> diversas<br />

minorias numa mesma agenda política<br />

Agregar a causa indígena com a <strong>de</strong> outras<br />

minorias po<strong>de</strong> levar todas a mutuamente se<br />

fortalecer e, ao mesmo tempo, po<strong>de</strong><br />

promover a diversida<strong>de</strong><br />

Legitimar a atuação <strong>de</strong> organismos<br />

internacionais por meio das “melhores<br />

práticas” e ajudar a <strong>de</strong>finir a agenda das<br />

políticas públicas no Brasil<br />

Proporcionar o ataque da questão da<br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> por outras visões/linguagens<br />

137


Como pô<strong>de</strong> ser visto no Quadro 1, são seis os principais pontos observados. O primeiro<br />

diz respeito ao alto nível <strong>de</strong> abstração que o multiculturalismo possui como mo<strong>de</strong>lo<br />

teórico, o que lhe dificulta a operacionalida<strong>de</strong>, ou seja, a transformação em práticas <strong>de</strong><br />

ação governamental. Essa insuficiência po<strong>de</strong> ser notada no ProUni, pelo relato <strong>de</strong><br />

Moura Guarany sobre as “frau<strong>de</strong>s” no sistema <strong>de</strong> bolsas em razão do critério <strong>de</strong><br />

autoi<strong>de</strong>ntificação dos candidatos.<br />

Como garantir que haja uma operacionalida<strong>de</strong> congruente com a abordagem<br />

multicultural no caso <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação dos membros do grupo? Esse autor propõe que<br />

a i<strong>de</strong>ntificação étnica seja objeto <strong>de</strong> avaliação das comunida<strong>de</strong>s indígenas, respaldada<br />

no direito <strong>de</strong> autogoverno. Nesse caso e no <strong>de</strong> outros programas que apresentam<br />

impedimentos quanto à prática operacionalização, uma mudança no plano do<br />

programa sanaria os problemas ou não haveria como garantir que o multiculturalismo<br />

se manifestasse como previsto na teoria?<br />

Não consi<strong>de</strong>ramos esse tipo <strong>de</strong> formalismo <strong>de</strong> Moura Guarany como solução<br />

a<strong>de</strong>quada, porque as minorias são muito fluidas, ainda mais no caso brasileiro, que<br />

tem elevada miscigenação populacional. Mesmo assim, não estamos afirmando que o<br />

sistema <strong>de</strong> cotas (um aspecto da abordagem multicultural) seja impraticável. Po<strong>de</strong>mos<br />

consi<strong>de</strong>rar o multiculturalismo como uma oportunida<strong>de</strong> para dar base conceitual mais<br />

sólida aos arranjos das políticas. Por não existir uma teoria completa, essa po<strong>de</strong>rá<br />

complementar as <strong>de</strong>mais, como a da <strong>de</strong>mocratização e a dos direitos humanos.<br />

As limitações do segundo ponto são uma continuação das do primeiro, porque a<br />

proposta <strong>de</strong> autogoverno, embora esteja <strong>de</strong> acordo com o multiculturalismo, po<strong>de</strong><br />

levar indiretamente, por exemplo, às “restrições internas” <strong>de</strong> Kymlicka, ou seja, a<br />

138


abordagem multicultural po<strong>de</strong> incorrer no risco <strong>de</strong> se tornar apenas uma retórica dos<br />

lí<strong>de</strong>res das minorias para a conquista <strong>de</strong> direitos coletivos, com o intuito <strong>de</strong><br />

“conservantismo cultural” e reforçar a coerção ou o isolamento dos seus membros.<br />

Porém, como oportunida<strong>de</strong>, se houver <strong>de</strong> fato uma articulação da cultura minoritária<br />

indígena com os direitos humanos e os <strong>de</strong>mais direitos individuais nacionais, políticas<br />

multiculturais po<strong>de</strong>rão garantir mais autonomia a esses grupos e, ao mesmo tempo,<br />

zelar pela proteção dos direitos individuais <strong>de</strong>les no que se refere à escolha das<br />

próprias trajetórias <strong>de</strong>ntro ou fora da comunida<strong>de</strong>.<br />

O terceiro ponto remete-nos a certa imprecisão dos termos cultura e<br />

multiculturalismo. Para esta dissertação, foi necessário optar por um autor (Geertz)<br />

que nos <strong>de</strong>sse um conceito preliminar <strong>de</strong> cultura. Como mostramos ao longo do<br />

trabalho, apesar <strong>de</strong> a base dos três outros autores selecionados (Taylor, Kymlicka e<br />

Sousa) ser a mesma (o respeito às diferenças culturais e o reconhecimento <strong>de</strong>las), eles<br />

apresentam distintas compreensões sobre o multiculturalismo.<br />

Mas a imprecisão que po<strong>de</strong> gerar muitas divergências também po<strong>de</strong> facilitar a reunião<br />

<strong>de</strong> diversas minorias na mesma agenda política. O gran<strong>de</strong> argumento <strong>de</strong>sta abordagem<br />

é reconhecer uma socieda<strong>de</strong> multicultural, ou seja, aquela em que as diferenças sejam<br />

consi<strong>de</strong>radas, mas não gerem segregação, e em que a a<strong>de</strong>são <strong>de</strong> diferentes grupos<br />

possa, inclusive, fortalecer o movimento multicultural.<br />

Isso nos leva ao quarto ponto, porque não temos como garantir que os resultados <strong>de</strong><br />

políticas públicas voltadas para grupos diferenciados (com várias <strong>de</strong>mandas) sejam<br />

139


melhores do que os voltados para grupos específicos (necessida<strong>de</strong>s particulares), isto<br />

é, entramos na discussão <strong>de</strong> políticas multiculturais versus políticas indigenistas.<br />

No período <strong>de</strong> criação da SECAD/MEC, pu<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar (por meio das entrevistas<br />

para esta dissertação) que houve, ao menos inicialmente, resistência dos indígenas a<br />

serem inclusos numa secretaria que cuidaria <strong>de</strong> “toda” a diversida<strong>de</strong> brasileira. A<br />

proposta <strong>de</strong> que haveria uma ban<strong>de</strong>ira comum não agradou a eles, que <strong>de</strong>sejavam – e<br />

em muitos momentos ainda <strong>de</strong>sejam – reivindicar as próprias <strong>de</strong>mandas. A restrição<br />

<strong>de</strong>veu-se ao temor <strong>de</strong> que, ao entrarem para um grupo maior, suas especificida<strong>de</strong>s<br />

pu<strong>de</strong>ssem ser diluídas diante das diferentes posturas e interesses i<strong>de</strong>ológicos das<br />

várias minorias.<br />

Portanto po<strong>de</strong>mos afirmar que, no caso dos índios brasileiros – e também po<strong>de</strong>ríamos<br />

esten<strong>de</strong>r isso para outros grupos do Brasil que pe<strong>de</strong>m políticas diferenciadas –, a<br />

busca pela afirmação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> peculiar do grupo, e não por uma que<br />

promova uma espécie <strong>de</strong> coesão social, po<strong>de</strong> resultar num aumento das<br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s. Devemos ressaltar que estamos no “campo das possibilida<strong>de</strong>s e<br />

especulações” e, por isso, não temos como prever as consequências das políticas, mas<br />

a conveniência numa eventual mudança <strong>de</strong> paradigma, baseada em políticas<br />

multiculturais (indigenista com outras minorias), também po<strong>de</strong> fortalecer as minorias.<br />

O quinto ponto está relacionado ao contexto brasileiro e latino-<br />

-americano. Um empecilho da abordagem multicultural é que ela tem a tendência <strong>de</strong><br />

ser apresentada, em especial pelos organismos internacionais, como “universal” ou,<br />

em outras palavras, aplicável a vários países, o que po<strong>de</strong> tolher a probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

tratamentos locais diferenciados.<br />

140


Mas a universalida<strong>de</strong> também po<strong>de</strong> contribuir para a legitimação dos organismos<br />

internacionais no sentido <strong>de</strong> introduzirem as “melhores práticas” em vários países que<br />

as adaptarão localmente. Como pô<strong>de</strong> ser examinado, os países da América Latina que<br />

ratificaram os mesmos tratados tiveram resultados diferentes, em parte pelo contexto<br />

distinto em que suas minorias se inserem. Um exemplo foi o tamanho populacional<br />

dos indígenas da Colômbia (3%) e da Bolívia (65%), que permitiram diferentes<br />

proporções <strong>de</strong> terras concedidas.<br />

O sexto ponto complementa o anterior, porque sua concepção se dá no Hemisfério<br />

Norte, com países cujas minorias estão em situação muito diversa das do Brasil. Aqui a<br />

questão do multiculturalismo parece precisar ser antecedida por ações que tratem das<br />

diferenças sociais e da pobreza. É o caso do tema da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social como fator<br />

<strong>de</strong>terminante da formação da agenda.<br />

Essa variável é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> influência no resultado das políticas multiculturais. Nos EUA,<br />

berço do multiculturalismo, as ações voltadas para uma minoria têm reflexo<br />

homogêneo no país justamente por ele possuir população mais igualitária, enquanto<br />

no Brasil temos pirâmi<strong>de</strong>s socioeconômicas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um grupo minoritário. Seria<br />

oportuno perguntar, portanto, se políticas multiculturais no Brasil po<strong>de</strong>riam produzir<br />

elites no interior das minorias.<br />

Não obstante esse conjunto <strong>de</strong> pon<strong>de</strong>rações, a abordagem multicultural, mesmo<br />

diante das limitações mencionadas, po<strong>de</strong> contribuir para a redução das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<br />

por uma perspectiva diferente das convencionais políticas assistencialistas,<br />

reformistas, etc., ou seja, o multiculturalismo po<strong>de</strong>rá alcançar outros beneficiários<br />

além das populações cujo recorte <strong>de</strong>corre apenas da renda, por exemplo, ao introduzir<br />

141


a dimensão das <strong>de</strong>ssemelhanças culturais na elaboração das políticas públicas. Além<br />

disso, essa abordagem po<strong>de</strong>rá completar atuais políticas públicas ao refinar a<br />

tratamento dado aos públicos-alvo do ponto <strong>de</strong> vista da dimensão cultural.<br />

Diante <strong>de</strong>sse quadro (1), po<strong>de</strong>mos inferir que o multiculturalismo tem muito a<br />

proporcionar não só nas relações entre o Estado e as minorias, como também entre a<br />

socieda<strong>de</strong> nacional e as minorias.<br />

Há muitas “oportunida<strong>de</strong>s” para o Brasil reconhecer e aceitar a própria diversida<strong>de</strong><br />

cultural, mas também para isso não acontecer (os limites).<br />

A pergunta a ser feita é: Há verda<strong>de</strong>iro comprometimento do país com a realização <strong>de</strong><br />

políticas multiculturais ou trata-se apenas <strong>de</strong> um discurso para apaziguar os ânimos<br />

dos grupos “minoritários” com relação às próprias <strong>de</strong>mandas?<br />

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147


Anexos<br />

Anexo 1 – PPA 2004-2007<br />

148


Anexo 2 – PPA 2008-2011<br />

149


150

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