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Pedra e cal: freiráticos na sátira luso-brasileira do século XVII - USP

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que digam que tem freira, venderá a camisa<br />

por uma hora no ralo”; e, ainda, “[…] fica<br />

muito satisfeito quan<strong>do</strong> tem a ocasião de<br />

conversar com a servente” (23).<br />

Na maior parte <strong>do</strong>s poemas <strong>freiráticos</strong><br />

da <strong>sátira</strong> baia<strong>na</strong>, contu<strong>do</strong>, a perso<strong>na</strong><br />

freirática é um velho desagradável ou maledicente,<br />

um bufão que se dirige à freira<br />

com ameaças, agressões e insultos. Por<br />

exemplo, quan<strong>do</strong>, acusan<strong>do</strong>-a de fazer pouco<br />

de sua fome, deseja sua morte e a entrega<br />

ao diabo, simulan<strong>do</strong> a excomunhão católica,<br />

que põe o peca<strong>do</strong>r para fora <strong>do</strong> “corpo<br />

místico”:<br />

“Rogo ao demo, que vos tome,<br />

por deixar morrer à fome<br />

um pobre faminto velho:<br />

rogo ao demo, que ao seu relho<br />

vos prenda com força tanta,<br />

que nunca arredeis a planta,<br />

e que a espinha muita, ou pouca,<br />

que me tirastes da boca,<br />

se vos crave <strong>na</strong> garganta”<br />

(OC, IV, p. 875).<br />

Conveniência moral, interdição legal e<br />

ilicitude transgressiva são temas complementares,<br />

assim, explicitan<strong>do</strong>-se como elementos<br />

constitutivos das tensões ridículas e<br />

maledicentes, jocosas e obsce<strong>na</strong>s, virtuosas<br />

e viciosas da perso<strong>na</strong> que as dramatiza segun<strong>do</strong><br />

várias perspectivas hierárquicas.<br />

O que é o “amor freirático”? Por definição,<br />

como se lê nos poemas, um amor político,<br />

uma relação erótica excludente, que<br />

reitera a hierarquia reafirman<strong>do</strong> nos laços<br />

que unem freira e freirático os privilégios<br />

e a distinção <strong>do</strong>s “melhores” ainda quan<strong>do</strong><br />

a desestabiliza, aparentemente, com o vício<br />

contra <strong>na</strong>turam. Não entram no “convento<br />

conversativo” os tipos e os mo<strong>do</strong>s da<br />

“gente baixa”, plebeus <strong>do</strong>s ofícios mecânicos<br />

e mais não-fidalgos, e “sujos de sangue”,<br />

judeus, cristãos-novos, negros, mulatos,<br />

índios e mais tipos classifica<strong>do</strong>s como<br />

“não-brancos”. Além das razões institucio<strong>na</strong>is,<br />

como o estatuto jurídico e a “limpeza<br />

de sangue” das mulheres de véu preto, <strong>na</strong><br />

<strong>sátira</strong> que circula <strong>na</strong> Bahia o fator econômico<br />

é representa<strong>do</strong> como determi<strong>na</strong>nte da<br />

exclusão de não-fidalgos e, principalmente,<br />

de não-fidalgos pobres: é extremamente<br />

dispendioso fazer a corte às freiras. Como<br />

diz a perso<strong>na</strong> sempre virtuosa <strong>do</strong> texto de<br />

frei Lucas de Santa Catari<strong>na</strong>: “[…] se o<br />

freirático tem faltas de respiração <strong>na</strong> bolsa,<br />

ou se é esfaimia<strong>do</strong> de algibeira, não é fácil<br />

de admitir-se, nem tem feição” (24). As<br />

freiras têm a representação de discretas e<br />

fazem contínuos petitórios que a reforçam:<br />

exigem que o freirático vá visitá-las com<br />

chapéus de plumas, cabeleiras de polvilhos,<br />

capas de camelão, casacas inglesas<br />

agaloadas para comédias, brincos de barrocos,<br />

gorjeiras, golas de renda de fi<strong>na</strong> volta,<br />

correntes de ouro, luvas de passamanes,<br />

fitas, lenços, espadim, <strong>cal</strong>ções afivela<strong>do</strong>s,<br />

ligas encar<strong>na</strong>das, sapatões de tacão alto,<br />

etc. Na Quaresma, o freirático tem que<br />

contribuir para capelas de anjos, espadas<br />

para penitentes, vestes para as irmandades,<br />

alimentos (25), etc. O amor da freira, rica<br />

e afidalgada, modula-se com o ritmo das<br />

trocas simbólicas da discrição cortesã: mesuras,<br />

salamaleques, agudezas da aparência<br />

e da dicção em que gesto e palavra têm<br />

duplo senti<strong>do</strong> e dissimulam o desejo e o<br />

interesse brutos, enovelan<strong>do</strong>-os em galanterias,<br />

mimos, presentes, <strong>do</strong><strong>na</strong>ires, lembranças,<br />

agradinhos.<br />

Na <strong>sátira</strong> baia<strong>na</strong>, a perso<strong>na</strong> freirática<br />

toma posição fidalga, defenden<strong>do</strong> a exclusividade<br />

da presença <strong>do</strong> “secular entendi<strong>do</strong>”<br />

no convento. Com a expressão, propõe<br />

o leigo discreto, caracteriza<strong>do</strong> pela engenhosidade<br />

das falas agudas e comedimento<br />

das finezas corteses, desqualifican<strong>do</strong> como<br />

vulgaridade a concorrência <strong>do</strong>s eclesiásticos<br />

que fizeram votos de abstinência :<br />

“O secular entendi<strong>do</strong>,<br />

encolhi<strong>do</strong> e mesura<strong>do</strong>,<br />

não pede de envergonha<strong>do</strong>,<br />

não toma de comedi<strong>do</strong>:<br />

cortesmente de adverti<strong>do</strong>,<br />

e de humilde cortesão<br />

declara a sua afeição,<br />

e como se agravo fora,<br />

chama-lhe sua Senhora,<br />

chama-lhe, e pede perdão”<br />

(OC, IV, p. 857)<br />

23 Frei Lucas de Santa Catari<strong>na</strong>,<br />

“Carta 14 de Frei Lucas de<br />

Santa Catheri<strong>na</strong> em que<br />

persuade aos Freiráticos, que<br />

o não sejão. Quartel de Desenganos,<br />

e Advertencias<br />

Freiraticas, para to<strong>do</strong> o<br />

Padecente de Grade, Martir<br />

de Roda, e Paciente <strong>do</strong> Rallo.<br />

Pelo Inventor <strong>do</strong>s Sonhos, e<br />

Reve<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s Alentos”, in Graça<br />

Almeida Rodrigues (org.),<br />

Literatura e Sociedade <strong>na</strong> Obra<br />

de Frei Lucas de Santa Catari<strong>na</strong><br />

(1660-1740), Lisboa, Imprensa<br />

Nacio<strong>na</strong>l/Casa da Moeda,<br />

1983, p. 189.<br />

24 Idem, ibidem, p. 200.<br />

25 Idem, ibidem, p. 190.<br />

REVISTA <strong>USP</strong>, São Paulo, n.57, p. 68-85, março/maio 2003 81

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