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Pedra e cal: freiráticos na sátira luso-brasileira do século XVII - USP

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Em seu tempo, a <strong>sátira</strong> não é “crítica”,<br />

pois não prescreve superação <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de<br />

coisas que vitupera, mas propõe o costume<br />

antigo, defenden<strong>do</strong> a manutenção <strong>do</strong>s privilégios.<br />

O alvo principal da sua vituperação<br />

são ações que, por ameaçar e destruir a<br />

coesão pressuposta no conceito de “bem<br />

comum”, são constituídas como abusos<br />

contra <strong>na</strong>turam, vício moral, erro político,<br />

heresia religiosa, que corrompem os bons<br />

usos estabeleci<strong>do</strong>s. Evidentemente, são<br />

ple<strong>na</strong>mente possíveis as recepções diferenciadas,<br />

que produzem valores de uso<br />

iluministas, românticos, realistas, modernos<br />

e pós-modernos não previstos pela primeira<br />

normatividade retórica e teológicopolítica<br />

dessa poesia. Em seu tempo, contu<strong>do</strong>,<br />

ela obviamente desconhece a distinção<br />

iluminista-liberal de público/ priva<strong>do</strong>,<br />

que não existe ou não é nítida. Em seu tempo,<br />

a não-distinção de público/priva<strong>do</strong> especifica<br />

os critérios corporativos que definem<br />

o trinômio autor/obra/público, regen<strong>do</strong>-o<br />

por uma teleologia outra, diferente da<br />

teleologia <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista das histórias literárias<br />

caudatárias <strong>do</strong> idealismo alemão produzidas<br />

a partir <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX, que lêem a<br />

<strong>sátira</strong> e mais discursos desse tempo como<br />

“manifestação literária” ou etapa para a<br />

literatura <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />

Os poetas seiscentistas têm a posse, no<br />

senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> Ticiano fecit, da pintura <strong>do</strong> tempo,<br />

mas não a propriedade das obras: <strong>na</strong><br />

Bahia <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XVII</strong>, inexiste o merca<strong>do</strong><br />

como livre-concorrência das merca<strong>do</strong>rias<br />

“origi<strong>na</strong>lidade”, “direitos autorais” e “plágio”,<br />

não haven<strong>do</strong> controle <strong>do</strong>s autores<br />

sobre a publicação manuscrita, a cópia, a<br />

pirataria e a circulação <strong>do</strong>s poemas que<br />

inventam; assim, também não existe o “artista”<br />

ou o “escritor”, como tipos sociais<br />

defini<strong>do</strong>s pela autonomia crítico-estética,<br />

expressão subjetivada, propriedade autoral<br />

e consciência infeliz.<br />

Produzida em circunstâncias cerimoniais<br />

e polêmicas, a poesia não se autonomiza,<br />

nos seus usos, como objeto de contemplação<br />

desinteressada, mas integra-se imediatamente<br />

aos decoros das ocasiões solenes e<br />

conflitivas da hierarquia. Fundamentada <strong>na</strong><br />

mímesis aristotélica, não tem autonomia de<br />

“objeto estético”, pois não existem a divisão<br />

<strong>do</strong> trabalho intelectual e o trabalho intelectual<br />

da divisão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> burguês e as<br />

especializações <strong>do</strong>s regimes discursivos<br />

que o caracterizam. Principalmente, nunca<br />

se autonomiza <strong>do</strong> princípio metafísico, a<br />

luz <strong>na</strong>tural da Graça i<strong>na</strong>ta, cujo senti<strong>do</strong><br />

providencialista então subentende a experiência<br />

da história, a concepção de linguagem,<br />

a definição de pessoa e as operações<br />

<strong>do</strong> juízo <strong>do</strong>s autores<br />

E o público não é, como a partir <strong>do</strong><br />

Iluminismo, a “opinião pública” <strong>do</strong>tada de<br />

representatividade democrática e iniciativa<br />

crítica específicas <strong>do</strong> interesse contraditório<br />

de uma particularidade ideológica. O<br />

público figura<strong>do</strong> <strong>na</strong> <strong>sátira</strong> é a totalidade<br />

mística <strong>do</strong> corpo político <strong>do</strong> Império<br />

metaforizada como “bem comum” ou a<br />

esfera da manifestação pública <strong>do</strong> “corpo<br />

místico” <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> em que a liberdade <strong>do</strong>s<br />

indivíduos e grupos se define como subordi<strong>na</strong>ção<br />

à cabeça real e à hierarquia <strong>do</strong>s<br />

privilégios.<br />

O “público” é constituí<strong>do</strong> e figura<strong>do</strong><br />

pela representação como representação de<br />

posições sociais subordi<strong>na</strong>das que, ao testemunharem<br />

a mensagem que lhes é endereçada,<br />

ratificam a hierarquia como membros<br />

subordi<strong>na</strong><strong>do</strong>s, ou seja, também como<br />

representação subordi<strong>na</strong>da ao sistema hierárquico<br />

<strong>do</strong>s decoros.<br />

Incluí<strong>do</strong> nessa totalidade mística como<br />

membro subordi<strong>na</strong><strong>do</strong>, cada desti<strong>na</strong>tário<br />

produzi<strong>do</strong> <strong>na</strong> representação deve re-conhecer<br />

sua posição subordi<strong>na</strong>da como representação.<br />

A <strong>sátira</strong> reproduz metaforicamente<br />

aquilo que cada membro <strong>do</strong> corpo místico<br />

<strong>do</strong> Império já é, prescreven<strong>do</strong>, simul-<br />

taneamente, que ele deve ser, ou seja, persuadin<strong>do</strong>-o<br />

a permanecer como o que já é.<br />

O espaço público assim figura<strong>do</strong> como totalidade<br />

mística de “bem comum” é como<br />

um teatro corporativista em que se ence<strong>na</strong><br />

a subordi<strong>na</strong>ção hierárquica <strong>na</strong> qual se revela<br />

o próprio público para o desti<strong>na</strong>tário particular<br />

como totalidade jurídico-mística de<br />

desti<strong>na</strong>tários (3) integra<strong>do</strong>s em ordens e<br />

estamentos subordi<strong>na</strong><strong>do</strong>s. Em decorrência,<br />

impõe-se à <strong>sátira</strong> e mais artes desse tempo<br />

a rígida normatividade ética e retórica, que<br />

3 Hélène Merlin, Public et<br />

Littérature en France au <strong>XVII</strong> e<br />

Siècle, Paris, Belles Lettres,<br />

1994, pp. 385-8.<br />

REVISTA <strong>USP</strong>, São Paulo, n.57, p. 68-85, março/maio 2003 71

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