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DIGRAMACAO CORIGIDA ALTERADA ... - Galeno Alvarenga

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Brasileiros, Alerta!<br />

A Imbecilidade Cresce em<br />

Todo o País<br />

GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA<br />

www.galenoalvarenga.com.br<br />

Esse livro faz parte do acervo de publicações do Psiquiatra e Psicólogo<br />

<strong>Galeno</strong> <strong>Alvarenga</strong>. Disponibilizamos também a versão impressa, que<br />

pode ser adquirida através do site do autor.<br />

Visite www.galenoalvarenga.com.br e saiba mais sobre:<br />

Publicações do Autor<br />

Transtornos Mentais<br />

Testes Psicológicos<br />

Medicamentos<br />

Galeria de Pinturas de Pacientes<br />

Vídeos / Programas de TV com participação de <strong>Galeno</strong> <strong>Alvarenga</strong><br />

Tags: Comportamento / Condutas, Crenças antigas / Mitos / Superstições,<br />

Doenças Mentais (transtornos), Drogas / Medicamentos / Remédios, Educação e<br />

Conhecimento, Emoções Sentimentos Controle, Estresses Problemas e Adversidades,<br />

Família e Casamento, Festas populares e Lazeres, Informação Linguagem e<br />

comunicação, Livros Online Grátis, Livros Psicologia, Livros Psiquiatria, Pintura<br />

dos esquizofrênicos, Política: Políticos e Corrupção, Problemas Familiares, Sociedade:<br />

Valores e Cultura, Uso de Drogas (Consumo)


<strong>Galeno</strong> Procópio M. <strong>Alvarenga</strong><br />

BRASILEIROS, ALERTA!<br />

A IMBECILIDADE CRESCE EM TODO O PAÍS<br />

Belo Horizonte<br />

2009


COPyRIGHT © By GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA<br />

Supervisão Gráfica<br />

Sofia Lopes<br />

Edição Independente do Autor<br />

<strong>Galeno</strong> Procópio M. <strong>Alvarenga</strong><br />

Imagens capa e contracapa<br />

<strong>Galeno</strong> Procópio M. <strong>Alvarenga</strong><br />

Diagramação<br />

Marcos de Oliveira Lara<br />

Capa<br />

Max Guedes (Estagiário)<br />

Revisão<br />

Maria Isabel da Silva Lopes<br />

Impressão<br />

Sografe<br />

Contato c/ o Autor<br />

galenoalvarenga@terra.com.br<br />

www.galenoalvarenga.com.br<br />

<strong>Alvarenga</strong>, <strong>Galeno</strong> Procópio de Mendonça<br />

A473 Brasileiros, alerta! A imbecilidade cresce em<br />

todo país / <strong>Galeno</strong> Procópio de Mendonça<br />

<strong>Alvarenga</strong>. – Belo Horizonte: Ed. do autor, 2009.<br />

268 p.<br />

ISBN 978-85-907543-9-8<br />

1. Ensaios brasileiros. 2. Estupidez – Ensaios.<br />

I. Título.<br />

CDD: B869.45<br />

CDU: 869.0(81) – 4<br />

Elaborada por:<br />

Maria Aparecida Costa Duarte<br />

CRB/6-1047


AgrAdecimentoS<br />

Aos intelectuais terrestres que sonham ser<br />

sábios. O homem é idiota por natureza.<br />

A burrice atinge a todos os animais humanos,<br />

uns mais, outros menos, conforme as<br />

áreas do conhecimento.


SUmÁrio<br />

UM NOVO PRODUTO À VENDA: O SEMIANALFABETO .............. 9<br />

TELEVISÃO E BURRICE ..................................................... 17<br />

UM CONTO QUASE DE FADAS ............................................ 21<br />

TV E PESQUISAS DE OPINIÕES: VOCÊ DECIDE .................... 27<br />

DUAS CLASSES: CULTOS E INCULTOS ................................ 35<br />

SALVE NOSSO GOVERNANTE............................................. 37<br />

A LIBERDADE DOS JOVENS ............................................... 39<br />

NOSSA LIBERDADE E OUTROS PODERES ............................ 45<br />

COMO ERA VERDE MEU VALE ............................................ 49<br />

AS CONSTITUIÇÕES QUE PASSEI NA VIDA .......................... 55<br />

INTUIÇÃO, RAZÃO E JULGAMENTO MORAL .......................... 61<br />

BICHOS OU SERES HUMANOS? ......................................... 65<br />

COMPUTADOR E FERRADURA ............................................ 69<br />

O MODELO DA LATA DE LIXO ............................................ 75<br />

REFERENDO: UMA DECISÃO IMPOSSÍVEL ........................... 79<br />

A MULTIDÃO SOLITÁRIA ................................................... 83<br />

GUERRA, HERÓIS E INOCÊNCIA ........................................ 87<br />

OS MAIORAIS ................................................................. 91<br />

A FABRICAÇÃO DO HOMEM FORA-DE-SÉRIE ........................ 99<br />

O QUE DESEJAM AS PESSOAS? ....................................... 103<br />

HOMEM: ANIMAL CONTRADITÓRIO .................................. 107<br />

A VERDADE DE CADA UM ............................................... 113<br />

AFIRMAÇÕES DUVIDOSAS .............................................. 117<br />

A LOUCURA: FABRICAÇÃO DA NORMALIDADE ................... 121<br />

O VASTO MUNDO DAS DROGAS ....................................... 127<br />

MÉDICO X CLIENTE ....................................................... 131<br />

AS DOENÇAS E OS JARGÕES MÉDICOS ............................ 135


CONFISSÕES DE UMA MÉDICA ........................................ 139<br />

O DIFÍCIL ENCONTRO:MÉDICO E PACIENTE ...................... 145<br />

A PROPÓSITO DE UMA GRIPE .......................................... 147<br />

TRANSTORNO MÉDICO-PSIQUIÁTRICO OU FICÇÃO? ........... 153<br />

LOUCOS X SEM-TETO ..................................................... 163<br />

A TESTEMUNHA DO PONTO DE VISTA PSIQUIÁTRICO ......... 169<br />

DUAS VERTENTES ......................................................... 175<br />

PLACEBO, A PÍLULA DOURADA ........................................ 179<br />

AIDS: VOCÊ TEM MEDO DA DOENÇA OU DO DOENTE? ....... 183<br />

AIDS: O PâNICO ESTÁ SOLTO ......................................... 187<br />

COMO CONTROLAR OS ACONTECIMENTOS ....................... 191<br />

O PREÇO DE UMA ESCOLHA:ADEUS ÀS ILUSÕES ............... 195<br />

DINHEIRO, NOSSA ATUAL DEVOÇÃO ................................ 203<br />

SENHORES DO PODER ................................................... 207<br />

OS NARCISISTAS MODERNOS ......................................... 211<br />

OS NOVOS DEUSES ....................................................... 215<br />

DISCURSO: O TOQUE SUTIL DOS SONS ........................... 217<br />

O QUE SE ESCONDE POR TRÁS DOS SLOGANS? ................ 221<br />

QUANDO AS PALAVRAS MENTEM ..................................... 227<br />

O CONHECIMENTO E AS DIVERSAS LÍNGUAS .................... 231<br />

UM LUGAR AO SOL ........................................................ 237<br />

A MENSAGEM ................................................................ 241<br />

VIDENTES: A PROSTITUIÇÃO DAS PALAVRAS .................... 245<br />

ADIVINHOS: ESSES DESADAPTADOS ............................... 251<br />

FÉ: UM PODEROSO MEDICAMENTO .................................. 255<br />

A SANTA QUE FALA PORTUGUÊS ...................................... 261<br />

O PODER DO BOATO ...................................................... 265


Um noVo ProdUto À VendA:<br />

o SemiAnALFABeto<br />

O analfabeto aos poucos tende a desaparecer e com<br />

ele termina um ciclo da cultura popular. No seu lugar nasce<br />

seu sucessor mais próximo e imediato, um novo indivíduo,<br />

fabricado para ser um consumidor fanático. O analfabeto<br />

está sendo transformado em semianalfabeto, para alguns,<br />

cerca de 90% da população do nosso querido Brasil.<br />

Os dois têm pontos em comum, mas têm suas diferenças.<br />

Os primeiros, nossos antepassados, livres do<br />

domínio de seus atuais donos, vivendo mais isolados em<br />

seus grupos - ainda não existia a “aldeia global” - foram<br />

mais criativos, inventaram as ciências e as religiões, as<br />

pinturas, canções, escritas e estabeleceram os valores. Os<br />

semianalfabetos, ao contrário, nada criaram, seguem cabisbaixos<br />

seus donos.<br />

Estes, ainda que possam parecer atraentes por fora,<br />

são vazios por dentro. Uma vez promovidos a semialfabetizados,<br />

prenderam-se nas redes preparadas pelos que os<br />

ensinaram a ler e a escrever, tornando-os presas fáceis de<br />

serem manipulados pelas classes empresariais que ajudaram<br />

a criá-lo e que passaram a ser o tutor desse grupo.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 9


Hoje o semialfabetizado representa o principal cidadão-alvo<br />

do comércio, é o homem comum, o medíocre, o fácil de<br />

ser manipulado.<br />

No lugar da cultura popular criada pelos analfabetos,<br />

seu antecessor nada produziu. Não temos e nem teremos<br />

uma cultura do semianalfabeto, vai morrendo a cultura popular,<br />

talvez enlaçada com a cultura sofisticada.<br />

O grupo dos semialfabetizados vai, pouco a pouco,<br />

aumentando seu número. Fabricado aos milhares sem cuidado<br />

ou técnica apurada, dentro do modelo usado na fabricação<br />

dos chinelos de liga ou da lata de lixo, eles diferem,<br />

tanto do seu irmão analfabeto livre e mais reflexivo, como<br />

do outro, o culto, o acostumado a ler, construído duramente,<br />

um a um, com cuidado e dedicação. Apesar disso,<br />

os semialfabetizados estão alegres, sorriem, mostrando os<br />

dentes claros e brilhantes para seus proprietários. É uma<br />

felicidade ingênua, estranha e servil.<br />

Seus senhores, principalmente os políticos, sempre<br />

bem acompanhados e protegidos pelos empresários, conhecedores<br />

do fim dos seus produtos e dos investimentos<br />

feitos, manipulam cuidadosamente estes infelizes para<br />

alcançarem seus objetivos. Fornecem-lhes cartilhas para<br />

lerem, textos simples, de fácil compreensão, nada de complicado,<br />

propositadamente preparados para eles. Os textos<br />

fáceis, digeríveis na primeira passagem, carregados<br />

de noções falsas, têm como finalidade básica impedi-los<br />

de pensar por si, isto é, de usar suas mentes num programa<br />

de benefício próprio. Mas a presença dos livros, a ida<br />

às aulas, as amizades formadas nas escolas conseguem<br />

diverti-los, bem como mantê-los unidos. Entretanto, dada<br />

a simplicidade do estudo lecionado, na maioria das vezes<br />

por pessoas não-sofisticadas, eles se transformam em<br />

pessoas ainda mais incapazes de fazer uso da inteligência<br />

e crítica. Como robôs, aprendem a comportar-se em blo-<br />

10 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


cos, não mais como indivíduos, a pertencer a um certo<br />

partido político e votar num determinado candidato, a seguir<br />

a religião em moda, a comprar certas mercadorias, a<br />

defender certas ideias desconhecidas, escondidas e nunca<br />

acessíveis a eles.<br />

Estes pseudoalfabetizados foram construídos para seguirem<br />

os comandos, não para pensarem, jamais refletirem<br />

e perguntarem: “o que quero, o que devo fazer com<br />

minha curta vida?“. Orgulhosamente, de modo semelhante<br />

a outros animais, mais abaixo na escala zoológica, como<br />

cães, galos e lagartos, eles buscam o fundamental da vida<br />

animal: alimentar-se, procriar e ter sua toca para lhes dar<br />

segurança contra os predadores, que são, principalmente,<br />

os próprios dirigentes aliados a eles.<br />

Eles vivem quase que exclusivamente o momento<br />

presente, o “aqui e agora”, transmitidos com orgulho, enquanto<br />

seus proprietários, desejando vender aparelhos e<br />

ideias, planejam o futuro onde eles são os consumidores<br />

cegos. Eles respondem aos estímulos do meio ambiente<br />

de forma direta, sem intermediação de seu “Eu”, pois<br />

este foi bloqueado, encontra-se enferrujado, incapaz de<br />

ser usado.<br />

Não possuindo planos individuais próprios, estes indivíduos<br />

agem como certas espécies de animal: formigas,<br />

abelhas, cupins. O indivíduo separado existente dentro<br />

dele, com história própria, foi assimilado pelo grupal, pelo<br />

social, que é valorizado acima de tudo. Todos têm as mesmas<br />

ideias, os mesmos ideais, os mesmos instrumentais<br />

para chegarem onde supõem querer, as mesmas alegrias<br />

e tristezas, todos seguem os mesmos planos do grupo coeso.<br />

Não há dissidentes. Num programa de auditório é fácil<br />

verificar este comportamento: a pessoa escolhida para<br />

opinar na roleta da sorte, antes de decidir a resposta a escolher,<br />

sempre ouve o auditório. É a voz do grupo, do qual<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 11


ela faz parte, que decide; o grupo sentencia se ela deve<br />

parar de apostar e ganhar um prêmio menor, ou continuar<br />

e arriscar-se a perder tudo.<br />

Seus ouvidos, estão presos ao auditório, este lhe ordena,<br />

na ausência do chefe, o que deve fazer. Ela obedece<br />

servilmente, com naturalidade e sorridente, ao comando<br />

externo.<br />

Os semialfabetizados, iguais na conduta, têm, entretanto,<br />

diferenças em algumas características, que são exibidas<br />

com orgulho, tais como a impressão digital, o CPF,<br />

a rua e o número da residência, o modo de escrever a<br />

primeira letra do seu nome e ainda o modo de pentear o<br />

cabelo e de fazer a macarronada.<br />

Eles não possuem uma mente crítica individual, baseada<br />

na sua história pessoal diferente dos seus outros irmãos<br />

da mesma espécie. No seu ingênuo modo de pensar,<br />

ignorante da própria ignorância, este indivíduo, confiante<br />

ao se julgar, percebe-se como bem informado e capaz, pois<br />

lê determinadas revistas, por sinal muito instrutivas. Sua<br />

mente pouco trabalhada e quase sem ser usada, permitiulhe<br />

decifrar, orgulhosamente, as instruções de manejo de<br />

cartões de banco, de instrumentos do seu trabalho rotineiro,<br />

de ligar o aparelho de televisão, de ir aos restaurantes<br />

e comer com os talheres apropriados, de conhecer as<br />

roupas que estão na moda, de conhecer e viajar para os<br />

lugares “badalados”, de usar a nova cueca lançada, o perfume<br />

moderno, a nova aplicação bancária e muitas outras<br />

atrações sedutoras do mesmo gênero, que indicam informações<br />

importantes para se viver. Coitado!<br />

Tudo nesse mundo de Deus tem suas vantagens. Proibidos<br />

de pensar, os semialfabetizados não se sentem culpados<br />

por possuir uma mente quase nula. Estão tranquilos,<br />

talvez não sofram infartos, hipertensão arterial, úlceras e<br />

insônia, como ocorre com seus donos, sempre preocupados<br />

com os sucessos e insucessos dos planos.<br />

12 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Com pouca ou nenhuma vontade própria, impedidos<br />

de tomar decisões particulares, sem responsabilidade por<br />

suas ações, eles caminham, moribundos, para seu fim.<br />

Descartando o complicado, evitando aprofundar-se nas tarefas<br />

e soluções que exigem cadeias de raciocínios longas<br />

e tortuosas, eles vivem felizes na sua gaiola de bambu,<br />

onde existe cama, sexo e comida, desfrutando da liberdade<br />

imaginada e que eles não têm.<br />

Estão sempre esperando alguém: “as autoridades”,<br />

os mais “inteligentes”, os espertos pensarem e resolverem<br />

seus problemas, decidirem por eles. Sabem, como princípio<br />

fundamental, que alguém é capaz de pensar melhor<br />

do que eles, por isso estão sempre pedindo ajuda, para<br />

verificar se seu cabelo está bem, se aquele batom recentemente<br />

lançado realmente é o melhor para ela, se deve fazer<br />

aquele curso ou o outro. Como sua autoestima é baixa,<br />

eles amam mais o próximo do que a si mesmos.<br />

Seu amor romântico é imbecil. Para este grupo,<br />

“amar” significa a posse da pessoa amada. Quando estes<br />

indivíduos dizem “eu te amo”, a frase indica ”eu preciso de<br />

você, sem você minha vida será uma desgraça, pois não<br />

tenho mais ninguém para pensar por mim, para ajudarme,<br />

encostar-me, estou perdido, nada tenho para dar, preciso<br />

receber seu apoio e sua piedade”.<br />

No amor este grupo nada oferece, nada dá, exige do outro<br />

responsabilidade por sua vida, que eles não têm. Mas chamam<br />

tudo isto de “amor”, de “gostar” muito do outro. Quando<br />

percebem que não podem receber do amado o apoio desejado,<br />

o amor que ele próprio não tem dentro de si, que terá<br />

de dar algo que ele jamais pensou em possuir, este indivíduo<br />

retira-se frustrado por não ter sido amado. Na sua mente ele<br />

amou muito, deu muito de si: deu o nada para o outro.<br />

Este grupo tem como lema fundamental: “É preciso<br />

aproveitar a vida”. Tal afirmativa significa: distrair-se o<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 13


mais que puder, esquecer que está vivo, que não comanda<br />

suas ações, que não manda na sua vida. Eles precisam se<br />

divertir, continuamente, com as brincadeiras fornecidas e<br />

preparadas pelo mundo externo a ele. Ler o livro mais vendido,<br />

ir ao parque no domingo, dançar no baile dos idosos<br />

ou do carnaval, comprar o bilhete da loto, ir ao jogo ou<br />

vê-lo na TV. Estas diversões são organizadas com precisão<br />

matemática pelos senhores do poder, governo e empresários,<br />

de modo a dar tudo certo. As autoridades sabem o<br />

que é melhor para ele, mais do que ele próprio, pois lhe<br />

faltam os instrumentais capazes de fornecer um retrato de<br />

si mesmo, de se autoexaminar com alguma precisão, seu<br />

diagnóstico é sempre dado pelos de fora.<br />

Lamentável e criminosamente sua mente foi lacrada,<br />

muito bem fechada ainda muito cedo, impedindo a invasão<br />

de incômodas ideias capazes de fazerem desmoronar crenças<br />

firmes, pilares vindos de longe, infelizmente muitos<br />

deles já podres. Nada de ideias novas, principalmente as<br />

diferentes das costumeiras, das antigas e repetidas pelas<br />

suas sábias mães virtuosas e dignas de crédito. Estes indivíduos<br />

fogem como podem da intromissão de teorias contrárias<br />

às suas, que poderiam desmoronar, abruptamente,<br />

tudo o acreditado, destruir para sempre seu frágil sistema<br />

de pensamentos mal arranjados, sua instável estrutura<br />

mental mal elaborada e mal pregada em estruturas tortas,<br />

em princípios duvidosos, muitas vezes mágicos.<br />

Apoiado em fundamentos adquiridos na cultura onde<br />

foi educado, sem dúvidas, o semianalfabeto recusa submeter-se<br />

a investigações internas, a reflexões acerca da validade<br />

ou não dos pilares que deram origem ao seu raciocínio.<br />

Sua segurança está fora dele, apoia-se nos outros - “o<br />

presidente falou”, “meu chefe me disse”, “li no jornal” - nos<br />

proprietários de suas ideias, ou mesmo nos seus amigos<br />

de infortúnios ludibriados pelas mesmas crenças: - “tenho<br />

14 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


certeza disso, todos nós pensamos assim”. Como ele está<br />

bem acompanhado, pela maioria da população, confiantes<br />

no falso princípio de que a “maioria tem razão”, ou que “a<br />

voz do povo é a voz de Deus”, o semi-analfabeto sente-se<br />

protegido, confortável e até feliz. Não perderá seu precioso<br />

tempo com bobagens, tais como refletir acerca de si ou<br />

do mundo em que vive. Precisa, sim, divertir-se, assistir à<br />

novela das oito. Semimorto como indivíduo, vivendo apenas<br />

como espécie, o semianalfabeto não tem forças para<br />

examinar se sua vida vale a pena ser vivida como está, ou<br />

se deve ser destruída, mudada, para construir outra mais<br />

digna do homem que ele poderá vir a ser.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 15


teLeViSÃo e BUrrice<br />

Muitos pensam que alguns programas da televisão<br />

tornam as pessoas idiotas. Nada mais errado. A TV jamais<br />

conseguiu transformar um cão, uma pulga, uma pedra ou<br />

até mesmo um cavalo num burro. Também não imbecilizou<br />

quem não a vê. Para que um evento como esse aconteça,<br />

é necessário que certos comportamentos existam nos dois<br />

lados. Sempre há necessidade de um certo compromisso<br />

entre as duas partes envolvidas, para que a consequência<br />

ocorra. Em outras palavras, para que haja o emburrecimento<br />

do telespectador, é necessário que haja também<br />

uma prontidão, talvez um desejo do telespectador para<br />

facilitar a tarefa da TV. Não é possível o poder ser exercido<br />

através apenas de um lado, isto é, da TV.<br />

Por outro lado, também sempre se acreditou que os<br />

meios de comunicação, principalmente a TV, têm servido<br />

de instrumento de domínio político. Antigamente acusaram<br />

certos livros como perigosos. A idéia do efeito negativo da<br />

TV sobre a mente pressupõe a existência de um telespectador<br />

de mente vazia, um folha de papel em branco, à<br />

mercê do poder da TV. Esta ideia é falsa. A “página” que<br />

assiste TV já foi marcada ou rascunhada muito antes.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 17


Alguns falam que a TV difunde opiniões e anúncios<br />

enganadores e, por isso mesmo, gera uma consciência<br />

falsa.<br />

Os defensores da mente dos telespectadores acreditam<br />

que a TV, ao criar um deslumbramento na pessoa,<br />

penetra subtilmente na mente do distraído telespectador e<br />

aí coloca o que quiser. Ora, não é bem assim.<br />

Como é sabido, durante a história do homem, os pais,<br />

a igreja, os professores, os companheiros e outros educadores<br />

difundiram condutas, ideias e princípios na mente<br />

dos educandos, desde o nascimento. Muitos desses fundamentos,<br />

que são falsos, apesar disso continuam a ser<br />

ensinados como certos. São estes princípios que formam<br />

a base da mente que permitem a entrada, a aceitação e a<br />

assimilação das informações vindas de fora, da TV, supostamente<br />

novas. Sem esta base adquirida geralmente no<br />

meio familiar e dos companheiros, a informação “nociva”<br />

fatalmente seria rejeitada. Não é fácil para ninguém se livrar<br />

de ideias errôneas postas cedo na vida, mesmo quando<br />

elas trazem sofrimento para seu possuidor.<br />

A ideia do poder da TV sobre as pessoas utiliza um<br />

fundamento equivocado. Acreditou-se que o ser humano é<br />

passivo, e não ativo, diante dos estímulos do meio, e que<br />

esses atingem uma mente sem nada. Na verdade, nossa<br />

mente filtra e seleciona nossas percepções. Todos telespectadores,<br />

sem exceção, têm uma participação ativa na<br />

escolha e na interpretação do que é transmitido. Em outras<br />

palavras, a “vítima”, o telespectador, antes de ligar<br />

o aparelho de TV, já tem sua mente pronta para receber<br />

as informações carregadas de mitos, crendices, desejos e<br />

sonhos. Qualquer pessoa tem ideias e especulações mais<br />

ou menos adequadas acerca do início do mundo, do que as<br />

pessoas estão fazendo aqui, do amor, da justiça, das relações<br />

entre as pessoas, da honestidade, etc.<br />

18 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Junto a estas diversas suposições, ajuntam-se outras<br />

crenças: dos poderes mágicos dos cristais, duendes, gnomos,<br />

santos, espíritos, almas de outro mundo e outros habitantes<br />

fantasmagóricos que estão inculcados nas mentes<br />

confusas.<br />

Numa cabeça assim, previamente bem preparada<br />

pela educação, fundamentada numa visão de um mundo<br />

mágico, não fica difícil, para os embusteiros e charlatães,<br />

introduzir novelas e programas de mau gosto, discursos<br />

políticos idiotas, conselhos enganadores, condutas e tratamentos<br />

estranhos ou qualquer outro programa absurdamente<br />

estranho e grosseiro.<br />

As televisões que mostram essas programações trabalham<br />

de mãos dadas com essas cabeças modeladas pelos<br />

pais ou outros educadores. Só assim elas são capazes<br />

de assimilar e apreciar as bobagens ali mostradas. A TV,<br />

portanto, nada mais faz do que manter o que foi plantado<br />

antes. Ela nada acrescenta ou modifica à mente da maioria<br />

dos seus usuários. Seus programas são preparados, para<br />

manter como estão, as ideias e ilusões existentes na mente<br />

do pobre telespectador.<br />

Esses encantamentos são oferecidos não só pelas TVs,<br />

mas também por outros usuários da ingenuidade humana,<br />

dos atraídos pelo mágico. Livros, geralmente os mais vendidos,<br />

relatam métodos fáceis de viver melhor, horóscopos<br />

nos mostram o futuro, talismãs nos protegem, fórmulas<br />

fáceis são oferecidas para tornarem bonitos os feios, terapias<br />

espetaculares são oferecidas para esses consumidores<br />

de sonhos. Ora, no meio de tanta fantasia (burrice), fica<br />

fácil a TV introduzir seus produtos: “o sabor que refresca”,<br />

“torne sua pele natural” e muito mais...<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 19


Um conto QUASe de FAdAS<br />

Há mais de um ano minha ajudante largou-me - não<br />

gosto do termo empregada doméstica. Fui obrigado a arrumar<br />

uma outra que também não deu certo. Mais outra,<br />

outra mais, e elas foram passando... As idades variavam<br />

de 20 a 30 anos, portanto, todas jovens. Todas, também,<br />

haviam terminado o segundo grau em colégios públicos.<br />

Tinham boa caligrafia, melhor, e muito, do que a minha,<br />

conversavam bem, quase sem erros de concordância graves<br />

e tinham uma boa pronúncia.<br />

Contando com minha grande experiência nesse campo,<br />

como curioso e chato, alguns fatos passaram a chamar<br />

minha atenção com respeito a esse grupo. Como a ajudante<br />

antiga ficou muitos anos na minha casa, eu nada<br />

mais percebia acerca de suas ações e ideias. Tudo passou<br />

a ser esperado e natural. Houve uma tolerância. Acostumamo-nos<br />

com os que estão muito perto e, assim, ficamos<br />

incapazes de observá-los com atenção. É um barulho<br />

continuado, sempre na mesma altura e timbre, sem que a<br />

gente note sua presença. Deixei de ouvir, observar e julgar<br />

minha ex- ajudante. Ela foi, aos poucos, desaparecendo da<br />

minha consciência e, pior, de meu interesse.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 21


As que foram contratadas, ao contrário, uma a uma,<br />

motivaram-me e excitaram-me: tudo era novidade. Passei<br />

a observar os olhos e o nariz, os cabelos e os penteados,<br />

as frases, o corpo, o andar, o modo de se alimentar, as<br />

crenças, as roupas, os perfumes, os casos – sempre semelhantes<br />

com respeito aos namorados - e a família. Interessei-me<br />

também pela vida e relações de cada uma delas:<br />

ouvia seus planos e fracassos. Era como se assistisse a um<br />

novo filme, lesse um romance nunca lido. Todo começo<br />

tem seu encanto, como disse o poeta. Toda novidade estimula<br />

nossa atenção. Mas, o que começa, acaba...<br />

Animado pela experiência, imaginei trocar de ajudante<br />

a cada seis meses, pois, como pensei, assim eu ficaria<br />

sempre animado com as novidades. Verifiquei, fazendo<br />

diversas análises pormenorizadas e criteriosas, que seis<br />

meses depois, o interesse e a curiosidade começam a diminuir.<br />

Não sei se esse desinteresse é igual para todos<br />

ou se varia com cada observador e com cada ajudante.<br />

Um amigo meu, que já se casou diversas vezes, contoume<br />

algo semelhante. Para ele, quando moramos por muito<br />

tempo com uma mesma pessoa – até quando temos um<br />

mesmo amigo por um longo período – não temos mais o<br />

que conversar. Tudo já foi falado, geralmente o mesmo<br />

caso foi reprisado diversas vezes, e, quase sempre, “não<br />

vale a pena ouvir de novo”.<br />

Entretanto, quando arrumamos uma nova companhia,<br />

segundo ele, podemos contar, sem medo de estar<br />

repetindo, quando e onde nascemos, as brigas antigas e<br />

atuais, como é a família, o primeiro emprego, as namoradas<br />

existentes, os cursos, as vitórias e derrotas, etc. Nossa<br />

amiga, namorada ou nova esposa, de modo semelhante,<br />

contaria os casos nunca ouvidos e a conversa ficaria interessante<br />

e poderia durar algum tempo. Achei boa a ideia e<br />

tenho pensado nela.<br />

22 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Todos nós, à medida que vamos convivendo com<br />

pessoas antes desconhecidas, querendo ou não, passamos<br />

a observá-las. Aos poucos, após saber seu nome,<br />

onde nasceu, em que lugar trabalhou, se sabe fazer arroz<br />

solto e bife mal passado, descobrimos, mais devagar, é<br />

claro, que cada uma delas tem certas formas de agir e de<br />

pensar que se repetem, ou seja, apresentam um padrão<br />

que pouco muda, que inclui uma grande parte das ações e<br />

emoções, fáceis de serem detectadas e entendidas.<br />

Em resumo: apresentam uma redundância, sinais<br />

já conhecidos. Assim, elas, como todos nós, apresentam<br />

certas maneiras constantes de interpretar, de se emocionar<br />

e de classificar as situações agradáveis e penosas<br />

que enfrentam. Aos poucos aprendemos como cada uma<br />

“joga” o jogo das relações humanas, quais lances são os<br />

mais frequentes, diante de quais situações as diversas jogadas<br />

aparecem, as estratégias usadas, as intenções veladas<br />

e as explicitadas, quais são os valores fundamentais<br />

e os termos básicos que dão nascimentos às principais<br />

ideias. Os padrões percebidos, de cada uma delas, são<br />

os mesmos que emergem quando colocamos um observador,<br />

que jamais viu um jogo de xadrez, diante deste.<br />

Ele, ao assistir vários jogos, vai descobrindo que cada<br />

peça possui alguns, e somente alguns, movimentos possíveis,<br />

que certas peças são mais importantes que outras,<br />

que uma delas, uma vez perdida, leva o jogo a terminar,<br />

etc. Do mesmo modo, se prestarmos atenção aos pontoschaves,<br />

às repetições, às reações emocionais diante disso<br />

ou daquilo, nós formamos uma ideia bastante exata do<br />

comportamento da ajudante quanto à economia, amor,<br />

religião, política, às vezes melhor do que a que ela tem<br />

de si mesma.<br />

Observando o tabuleiro de xadrez das ajudantes, ou<br />

mais exatamente, examinando as ajudantes no meu ta-<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 23


uleiro de xadrez, notei que certas jogadas se repetiam,<br />

certas palavras eram mais pronunciadas, certas emoções<br />

mais comuns, certas críticas e elogios eram mais frequentes.<br />

Até aí nada demais, assim pensará o leitor que chegou<br />

a esse ponto da crônica. Mas fui notando também, e<br />

é isso que quero contar, que todas elas tinham uma vida<br />

mais virtual que real. Vou explicar melhor, pedindo desculpas<br />

por estar generalizando muito. Todas elas, apesar<br />

da boa saúde mental e física, jamais tiveram poder econômico<br />

alto, status social elevado, beleza tipo Miss Brasil,<br />

ou mesmo tipo Miss Estados Unidos, inteligência e cultura<br />

de chamar a atenção de outros e capacidade de concorrer<br />

a concursos e vestibulares de altíssima dificuldade. Todas<br />

elas faziam parte desse exército que constitui a grande<br />

parte da população do planeta, pessoas simples e dedicadas<br />

e geralmente exploradas.<br />

A maioria - não sei bem se isso é certo - foi empurrada<br />

pelo grupo do meio, dos colocados no centro, para<br />

a margem da sociedade, quase sem possibilidade de alcançar<br />

uma posição de respeitabilidade pelos valores da<br />

sociedade em que vivemos: beleza, dinheiro, habilidades<br />

sociais e poder valorizados pela nossa cultura.<br />

Vamos ao que interessa, pois acho que fui longe demais.<br />

Todas elas, apesar de estarem colocadas pela população<br />

mais poderosa e cruel, empurradas pela sociedade<br />

para o extremo inferior, imaginam, segundo minhas observações,<br />

casar-se com rapazes lindos e maravilhosos -<br />

quase príncipes - jovens, ricos, poderosos, de preferência<br />

artistas bastantes conhecidos e que aparecem constantemente<br />

nas TVs e, engasgados, dão adeusinhos a elas.<br />

Elas foram bem treinadas e colonizadas, muito cedo,<br />

pelas palavras e imagens da mídia, principalmente novelas<br />

e músicas “caipiras”.<br />

24 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


A indústria do espírito as possuiu e as engravidou. E<br />

deu no que deu. A técnica, apontada para o intelecto da<br />

mulher simples, penetrou fundo na mente moldável das<br />

ajudantes desse Brasil, depositando ali, naquele campo<br />

fértil e ingênuo, mercadorias ditas culturais: músicas, palavras<br />

apropriadas com grande conotação emocional (amor<br />

ardente e separação trágica, casamento, família, mãe, jovem,<br />

passeio, etc.), formas padronizadas de relacionar-se<br />

com os namorados (tipos e técnicas de dar beijos, trejeitos,<br />

lugares para passear, transar, roupas da moda, etc.).<br />

Deixei de propósito um espaço especial para os cabelos,<br />

eles merecem isso. Os cabelos foram eleitos os atributos<br />

físicos preferenciais dessas jovens trabalhadoras. Tornaram-se<br />

preciosidades para todas as estudadas na minha<br />

amostragem. Elas seguram os cabelos o tempo todo, esses<br />

são jogados para um e outro lado, levados para frente da<br />

testa, depois para trás. As mesmas frases acerca dos cabelos<br />

são ouvidas: “Preciso clareá-lo um pouco”, “Vou deixar<br />

crescer as pontas”, “Agora vou cortar um pouco, assim fica<br />

mais adaptado ao formato do meu rosto”, “Preciso deixá-lo<br />

conforme a moda que vi na revista desse verão”, “Agora<br />

só uso o xampu X e o condicionador Y, são caros, mas<br />

fantásticos, deixam meu cabelo lindo e solto”. Os cabelos<br />

são arrumados, penteados, pintados, cortados, alongados,<br />

alisados, ondulados, desarrumados, conforme a moda tirânica<br />

das revistas. O pelo do homem primitivo, aos poucos,<br />

tornou-se cabelo, transformando-se na parte mais importante<br />

do corpo, muito mais do que o intelecto.<br />

Gasta-se um tempo imenso com os cabelos: molhar,<br />

ensaboar, condicionar, pintar, enxugar, secar, por rolinhos,<br />

tirá-los, pentear, etc.<br />

Mas tem mais, tirei algumas outras conclusões com<br />

minha pequena amostra: notei que todas ajudantes foram<br />

inoculadas pelos vírus dos amores romanceados, isto é, do<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 25


amor existente nos filmes, novelas e romances adocicados:<br />

um amor poderoso, que luta e vence tudo. Lindo! Os<br />

canais de informação desenvolveram, projetaram, invadiram<br />

e dominaram todas as áreas culturais clássicas, religiosas,<br />

humanistas e, finalmente, destruiu o que restava<br />

das culturas nacional e regionais.<br />

Todas minhas ajudantes nasceram e foram criadas<br />

em pequenas cidades do interior de Minas. Todas, quando<br />

lá moravam, possuíam, além de um nome, uma identidade<br />

própria e adequada ao meio ambiente que as cercava.<br />

Usavam maneiras de raciocinar, emocionar-se, resolver<br />

problemas e, também, palavras do seu ambiente sociocultural<br />

ou do seu ninho. Nas grandes cidades, todas elas se<br />

metamorfosearam, tornaram-se, sem perceberem, massas<br />

sociais. O que fazer? Nada?<br />

26 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


tV e PeSQUiSAS de oPiniÕeS:<br />

VocÊ decide<br />

Todos sabem que a compreensão de afirmações simples<br />

exige basicamente uma proposição com um sujeito e<br />

um predicado. O sujeito refere-se a um exemplar específico<br />

ou a um ou mais membros de uma categoria (José, no<br />

primeiro caso, um médico ou os médicos, os livros, etc., no<br />

segundo). O predicado pode se referir a uma ação específica<br />

(atendeu um paciente, apresentou um programa de<br />

auditório), ou a uma relação entre o sujeito e um atributo<br />

dele (é gordo, tem o cabelo preto).<br />

A frase “um ator apresentou um programa” exige mais<br />

dificuldade e também maior tempo para ser assimilada e<br />

compreendida do que “Sílvio Santos apresentou um programa”.<br />

Nesse último caso, há uma ativação de imagens,<br />

noções ou modelos já formados e conhecidos na mente do<br />

ouvinte, portanto mais fáceis de serem ativados. Ficará<br />

mais difícil ainda assimilar a afirmativa: “um gato apresentou<br />

um programa”. Tente, meu caro leitor, imaginar o<br />

que essa proposição quer informar. É melhor lembrar de<br />

“Ratinho”. Por isso mesmo é difícil e chato conversar com<br />

intelectuais, pois sua fala dificilmente ativa algum fato já<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 27


experimentado ou visto por nós. O mundo deles não é o<br />

meu, talvez não seja também o seu. Tudo indica que as<br />

afirmações repetidas são mais fáceis de serem julgadas e,<br />

além disso, acreditamos mais nelas, pela repetição, do que<br />

as ouvidas ou lidas pela primeira vez.<br />

A compreensão de uma informação utiliza-se do lido,<br />

ouvido ou experimentado. O estoque de informações existentes<br />

em cada mente servirá de base para se fazer novos<br />

julgamentos, a probabilidade de um acontecimento ocorrer,<br />

emitir qualquer opinião sobre o assunto X ou Y. Assim,<br />

interpretamos a frase “João é mau”, ou “Maria é simpática”,<br />

em função de modelos ou ideias que possuímos, aprendidas<br />

anteriormente.<br />

Serão elas que servirão de “processadores” para a informação<br />

recebida. Por isso mesmo, fica difícil, ou impossível,<br />

assimilarmos uma frase ou imagem: “Hitler e Stalin<br />

amavam as crianças e os pássaros”. Não temos processadores<br />

mentais para isso.<br />

ACONTECIMENTOS FAMILIARES E NÃO-FAMILIARES.<br />

A descrição dos eventos que ouvimos, na sua maioria,<br />

se constitui de situações familiares e, por isso mesmo,<br />

fáceis de serem entendidas, também fáceis de serem esquecidas,<br />

como a que servirá de exemplo: “Na noite de<br />

sexta-feira, fui ao restaurante Luar do Inferno. Lá, pedi um<br />

bife com batatas e um copo de vinho. Terminei, veio a conta,<br />

paguei e saí”. Todos os fatos são comuns, talvez o nome<br />

do restaurante possa ser novo. Poderiam ter ocorrido fatos<br />

mais excitantes: “encontrei um conhecido..., discutimos...,<br />

ele ficou nervoso, pegou o garfo, avançou, etc.” Nessa última<br />

descrição, possivelmente, o ouvinte ficará um pouco<br />

mais curioso com a cena mostrada, podendo retê-la um<br />

pouco mais. Além disso, ao ouvir a narrativa, talvez se<br />

lembre de fatos e emoções semelhantes já vividas.<br />

28 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Uma premissa fundamental para a informação é que<br />

ela deve fornecer para o receptor algum conhecimento que<br />

ele ainda não possuía. Deve, ainda, convencê-lo de ser<br />

verdadeira. Nada mais chato do que ouvir uma “informação”<br />

conhecida:<br />

— “Os atleticanos odeiam os cruzeirenses”, ou seja,<br />

ouvir uma não-informação.<br />

Outro aspecto importante: as pessoas são mais facilmente<br />

influenciadas por informações que permitem a elas,<br />

sem dificuldade, construírem uma ideia, imagem ou modelo<br />

concreto do acontecimento que está sendo descrito.<br />

As ideias ou padrões mais utilizados pelas pessoas consistem<br />

em representações mentais de situações, envolvendo<br />

pessoas e acontecimentos particulares e ou concretos. Os<br />

modelos mais utilizados podem ser formados de diversas<br />

maneiras: devido a experiências diretas, por ouvirmos relatos<br />

de outras pessoas, lendo jornais, revistas, etc. e, por<br />

último, assistindo TVs.<br />

Segundo as estatísticas, um americano médio vê 4<br />

horas de TV por dia. Como foi dito, adquirimos modelos do<br />

mundo de diversos modos, um deles é quando assistirmos<br />

TVs. Portanto, muitas de nossas ideias a respeito da moda,<br />

da conduta sexual, da educação de crianças, acerca da ciência,<br />

etc., são formadas através dessa “leitura” fácil e preguiçosa<br />

que é a TV. Lamentavelmente, os modelos observados,<br />

aprendidos, incorporados e utilizados pelo indivíduo<br />

nas televisões, frequentemente baseiam-se em comportamentos<br />

de pessoas fictícias ou raras, vivendo acontecimentos<br />

pouco prováveis e em situações não-comuns. Por tudo<br />

isso, podemos supor que o modo de enxergar e lidar com<br />

o mundo, do americano médio, ao incorporar suas ideias<br />

básicas com os ensinamentos da TV, assenta-se em fundamentos<br />

falsos ou não-usuais. Desse modo, ele irá compreender<br />

ou assimilar os fatos concretos e reais do mundo<br />

através de estacas podres e fincadas no lamaçal.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 29


Como compreendemos os fatos, e nos expressamos<br />

conforme os modelos de condutas existentes e armazenados<br />

em nossa mente, e como muitos de nossos modelos<br />

situacionais são formados através de programas de auditório<br />

do Gugu, Leão, Faustão e muitos outros, bem como das<br />

novelas de TV, podemos compreender como anda a mente<br />

do telespectador fanático e como funciona o que tem sido<br />

vulgarmente chamada de “formadora de opiniões”.<br />

Como se sabe, quase a totalidade dos programas de<br />

TV tem como meta o seguinte: um patrocinador, uma audiência,<br />

muita movimentação e provocação de emoções.<br />

Para que se cumpra esse objetivo, enfatizam-se inúmeras<br />

“ficções” sensacionalistas e teatrais. O ouvinte distraído,<br />

tendo sua mente preparada para assimilar o que está sendo<br />

exibido, com o programa incorpora, lentamente, essas<br />

ideias. Elas penetram sorrateiramente: os costumes, o<br />

modo de se expressar, o jeito teatral, os cabelos, as roupas,<br />

os namoros, a forma de beijar e tudo mais visto na<br />

magnífica TV.<br />

Mais tarde, as mesmas TVs, apostando na plasticidade<br />

da mente já semiformada, imprimem na mente plástica<br />

do telespectador julgamentos e valores para eventos e fatos,<br />

parâmetros para julgá-los, executa suas “pesquisas”<br />

de opiniões. Nestas, o telespectador inconsciente, quase<br />

dormindo, é perguntado para “estimar as taxas de crimes<br />

no Brasil”, “quem é mais inteligente, se o homem ou a<br />

mulher”, “quem fez o gol mais bonito”, “quem deverá ser<br />

escalado”, etc.<br />

Ora, o respondedor, como um cão bem ensinado, não<br />

mais rosnando, soltando gotas de saliva, irá responder utilizando-se<br />

das “informações” ou “conhecimento” ditado e<br />

inoculado anteriormente pelos senhores do poder e dos programas<br />

preferidos: jogos, novelas, pegadinhas, etc., isto é,<br />

os mesmos que fazem a “pesquisa de opinião” do povo.<br />

30 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


O leitor deve lembrar que a mente do telespectador ao<br />

assistir a TV já está, na sua maioria, pronta para assimilar<br />

e adotar as infiltrações dos programas. Mais tarde, feliz, o<br />

telespectador e seu repórter preferido comemoram o resultado<br />

das pesquisas de “opiniões”. O que o telespectador<br />

responde - nos Ibopes da vida – a perguntas tais como:<br />

“você decide”, “se você é a favor disque...”, “em quem você<br />

votaria se a eleição fosse hoje”, “sua opinião sobre o novo<br />

presidente”, nada mais é do que a opinião mais ouvida,<br />

mais pronunciada pelos atores, locutores mais simpáticos<br />

e bonitos, pelas TVs, jornais e rádios mais ouvidos, vistos,<br />

lidos e queridos e, também, dos companheiros do telespectador<br />

que seguem o mesmo tipo de vida.<br />

Vou lhes contar um caso. Há alguns anos, antes da<br />

eleição do F. Collor, numa tarde, eu estava no barbeiro.<br />

Num certo momento do papo, perguntei a ele - um ilustre<br />

senhor de cabelos brancos - em quem iria votar. Ele ficou<br />

sério, compenetrado. Demorou um pouco e, de repente,<br />

dando uma de pensador profundo, respondeu-me num tom<br />

de voz baixo, ao pé do ouvido, quase inaudível: “Doutor,<br />

estão dizendo aí, TVs e rádios, que Collor vai ganhar. Vou<br />

votar nele”. Ele mostrou o discutido acima: o voto no possível<br />

ganhador, segundo os orientados pelos rumores...<br />

As TVs, lançando certo tipo de notícia e não outras, ou<br />

seja, informando algumas áreas e não informando outras<br />

- o modo de falar em público, de alourar os cabelos das<br />

morenas e mulatas, mais recentemente das mais “idosas”,<br />

de se vestir e agir, etc. - levam as pessoas que a veem, a<br />

imaginar que o costume, o lazer, a compra a crédito e os<br />

costumes de modo geral mostrados são os certos para todas<br />

as pessoas, em todos os lugares. Nada mais absurdo!<br />

Lamentavelmente, muitos só têm a TV como fonte<br />

de informação e amigos que assistem a mesma TV. Nesse<br />

caso as informações só são transmitidas por essas fontes:<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 31


TV, amigos e familiares que assistem os mesmos programas.<br />

Existindo apenas um único professor, a maneira de<br />

pensar, avaliar e concluir desse infeliz telespectador, diante<br />

das perguntas feitas nas pesquisas das TVs, fatalmente<br />

será a ensinada nessas “escolas” conforme as receitas e<br />

modas passageiras transmitidas. O telespectador, animado,<br />

não percebe que vomita o alimento deteriorado doado<br />

pela TV para seu organismo submisso e complacente,<br />

bem preparado para engolir todo e qualquer lixo. Solitário,<br />

cansado e corrompido, mais tarde, deslizando na sua<br />

poltrona desbotada e rasgada, exalta-se satisfeito por ter<br />

“opinado” o que todos opinaram. Sorri por ter contribuído<br />

para a “pesquisa”, principalmente, porque sua avaliação<br />

foi a “certa”, ou seja, estava de acordo com a maioria dos<br />

seus iguais, como disse solenemente meu barbeiro.<br />

Algumas vezes assisti a um programa de TV que finge<br />

ser sério: “O Globo Repórter”. Estava curioso acerca<br />

de certo assunto anunciado. Pude perceber, na área que<br />

conheço um pouco, que inúmeras “informações” fornecidas<br />

estavam erradas, outras enfatizavam aspectos de<br />

pouca ou nenhuma importância em detrimento de outras<br />

e, muitas vezes, anunciava-se uma “grande e moderna<br />

descoberta da ciência” que eu tinha lido há vinte anos<br />

atrás. Para meu azar, muitos clientes amigos e interessados<br />

no meu conhecimento, telefonavam-me ou escreviam-me,<br />

antes ou depois do programa, para comunicarme<br />

os “novos dados científicos” que foram transmitidos<br />

em “primeira mão”.<br />

Já recebi de clientes recortes de jornais e de revistas<br />

leigas, descrevendo artigos mal entendidos pelo repórter<br />

articulista. Logicamente, se ele não entendeu o assunto<br />

que lera, jamais poderia escrevê-lo adequadamente. Os<br />

artigos recebidos continham informações confusas e erradas<br />

acerca de novos tratamentos para a esquizofrenia,<br />

32 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


depressão, ansiedade, doença de pânico, etc... O médico<br />

ou o leigo, que imagina aprender através dessa fonte<br />

de informação, estará redondamente enganado e perdido<br />

nesse atoleiro.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 33


dUAS cLASSeS: cULtoS e incULtoS<br />

A lei proíbe a segregação racial, entretanto a segregação<br />

cultural ocorre em todo o mundo e ninguém reclama<br />

contra ela. Poucos a percebem, ou talvez não desejem vêla.<br />

Assistimos, continuamente, à formação de grupos segregados<br />

quanto ao nível e profundidade dos conhecimentos<br />

adquiridos. Com este desnível, cada grupo apresenta<br />

sensibilidade diferente quanto aos estímulos e acontecimentos<br />

do mundo. A divisão intelectual separa os indivíduos<br />

de forma semelhante à existente com respeito às<br />

posses materiais.<br />

Para indicar melhor a separação entre as castas, certas<br />

cerimônias são usadas pelos diferentes grupos. Alguns realizam<br />

reuniões ou festividades semanais ou mensais, fazendo<br />

uso de roupas especiais, onde apenas entram os “irmãos”,<br />

outros grupos têm sua própria imprensa, jornais e revistas<br />

especializadas, sua linguagem e jargões como a Associação<br />

Médica, a dos Engenheiros, do Banco do Brasil, dos Gays,<br />

das Mulheres Nuas, da Agricultura, etc. Além disso, excursões<br />

e passeios são organizados e adaptados para as pessoas<br />

do grupo. Até as praias do país tem sido divididas conforme<br />

as classes: média, rica, dos artistas e dos farofeiros.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 35


Para aumentar ainda mais a separação, cada grupo<br />

processa, assimila e expressa as informações do meio<br />

através de conhecimentos e raciocínios diferentes.<br />

De outro modo, as premissas ou suposições básicas<br />

com que um grupo raciocina, bem como as formas de atribuir<br />

causalidade aos acontecimentos, diferem frontalmente<br />

entre os cultos e incultos.<br />

Um pequeno grupo raciocina seguindo as normas da<br />

lógica formal, já o grande grupo usa e abusa do antropomorfismo,<br />

do animismo e do pensamento mágico para<br />

compreender e explicar os acontecimentos. O resultado<br />

prático disso é que os incultos falham mais nas previsões<br />

dos acontecimentos. A “lógica” dos incultos, afastada das<br />

regras tradicionais, extrai conclusões esdrúxulas, liga informações<br />

que jamais estiveram associadas, como disse<br />

minha faxineira: “Maria é esperta, porque nasceu em São<br />

Paulo”.<br />

No exercício da profissão médica nota-se facilmente<br />

essa diferença ao examinar um paciente de um grupo e<br />

outro. A maneira de descrever o aparecimento da doença,<br />

sua evolução, bem como os possíveis fatores a ela associados,<br />

ou seja, suas possíveis “causas”, são descritas de<br />

forma totalmente diversa pelos dois grupos. O “diálogo”,<br />

quando existe, entre essas diferentes “castas”, é quase impossível,<br />

pois um imenso vão os separa.<br />

Não há projeto para diminuir essa divisão. Tudo indica<br />

que, com o passar do tempo, o espaço entre os dois modos<br />

de pensar tende a aumentar. O prejuízo é imenso para todos.<br />

Os fatores, econômico e término de curso “superior”,<br />

não são os únicos responsáveis pela diferença. Existem<br />

pessoas ricas, outras formadas no terceiro grau, que estão<br />

culturalmente segregadas, fazendo parte do imenso grupo<br />

dos analfabetos ou semianalfabetos.<br />

36 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


SALVe noSSo goVernAnte<br />

Há uma grande variedade de intenções e valores, há<br />

diversas culturas e temperamentos. Cada um de nós busca<br />

valores diferentes e, alguns, semelhantes. Nós todos<br />

consideramos ruim sermos obrigados a conviver com determinado<br />

valor, caso isso ocorra tendemos a atacar os<br />

valores indesejáveis. Se um homem possuir uma educação<br />

bastante extravagante, falsa e ilusória, ele acreditará num<br />

ou outro valor diferentes dos usuais e aceitos, correndo o<br />

risco de cometer crimes absurdos.<br />

Há ideólogos que acreditam existir uma única forma<br />

de verdade. Conforme essa crença, algumas pessoas especiais<br />

sabem as respostas certas para os grandes problemas<br />

da humanidade. Por isso, elas devem comandar os<br />

que desconhecem os maravilhosos caminhos a que só eles<br />

têm acesso. Portanto, esses líderes (chefes, ditadores, intelectuais),<br />

para essa crença, devem ser obedecidos. Somente<br />

eles sabem como a sociedade deve ser organizada,<br />

como a vida de Maria ou de José deve ser vivida, como<br />

a cultura deve ser desenvolvida. Essa é a antiga crença<br />

platônica dos reis-filósofos, que tinham o direito de dar<br />

ordens aos outros.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 37


Sempre apareceram pensadores dispostos a defender<br />

que, se os cientistas - ou pessoas cientificamente treinadas<br />

- pudessem ser encarregadas das coisas, o mundo seria<br />

imensamente melhorado. Esses faziam ou fazem parte<br />

do grupo escolhido. Antigamente os homens e as mulheres<br />

eram entregues ao sacrifício a uma variedade de deuses,<br />

os antigos donos da verdade única. A era moderna gerou<br />

novos ídolos: os“ismos”da atualidade.<br />

Causar dor, matar o mais fraco, torturar são, em geral,<br />

corretamente condenados. Entretanto, transformam-se<br />

em ações corretas caso essas não sejam feitas em beneficio<br />

pessoal, mas sim obedecendo a um conjunto de ideias,<br />

ou seja, aos “ismos”: socialismo, nacionalismo, fascismo,<br />

comunismo, brasileirismo, sanismo, cientificismo, indianismo,<br />

crença religiosa fanática, progresso ou leis da história.<br />

A maioria dos revolucionários políticos e religiosos (bem<br />

como alguns médicos) acredita, secreta ou abertamente,<br />

que para criar o mundo melhor e ideal, não precisamos,<br />

nem devemos pensar em Maria e José - simples indivíduos<br />

sem prestígio - mas sim no conjunto, na população ou no<br />

país. Seguindo esse modo de pensar, tudo deve ser feito<br />

para “melhorar” a vida dos homens em geral, portanto, o<br />

cliente. Pedro ou Ilda, devem obedecer aos “sábios”, aos<br />

governantes, médicos e intelectuais, pois eles sabem o que<br />

é bom para nós, muito mais que nós mesmos.<br />

38 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


A LiBerdAde doS JoVenS<br />

Muito se tem discutido acerca do problema da maior<br />

ou menor liberdade dos jovens. Quando e como devemos<br />

dar-lhes a liberdade e em que grau essa deve ser concedida?<br />

O termo emancipação, que se assemelha à libertação,<br />

significa “aquisição da capacidade civil”, ou “libertação do<br />

pátrio poder” ou ainda “conquista de independência”. Ao<br />

falarmos deste tema, forçosamente penetramos num terreno<br />

difícil e de grande importância para o ser humano,<br />

que é sua liberdade e esta tem, como seus opostos, o<br />

determinismo e a coação.<br />

Não discutirei as duas posições extremas e radicais,<br />

ou seja, determinismo absoluto ou liberdade total, pois<br />

creio que estes não fazem parte da conduta humana. O<br />

homem carrega pré-determinações absolutas: não pode<br />

voar, trocar de sexo e assim por diante, mas pode alcançar<br />

uma liberdade relativa como trocar de emprego,<br />

casar ou descasar, ir ao cinema ou ver TV e fingir trocar<br />

de sexo.<br />

A liberdade, ainda que limitada, é conseguida ou<br />

conquistada através da decisão do indivíduo de construir<br />

a si mesmo, de acordo com seus valores. Esta constru-<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 39


ção surge através da ação. O homem não se torna livre<br />

pensando apenas, precisa agir. Ele encontra-se cercado<br />

de grandes dilemas, um deles é o determinado por duas<br />

tendências fundamentais e, em certo sentido, opostas:<br />

1) a autoafirmação, que corresponde à autonomia individual;<br />

2) a integração, que leva à dependência. Ao mesmo<br />

tempo existe em todos nós – desde o nascimento - uma<br />

força ou tendência no sentido de torná-lo autônomo ou<br />

livre. Essa é adquirida, em grande parte, através da outra<br />

tendência humana, a de estar ligado, integrado, a outros<br />

seres humanos, ou seja, estar dependente e não-livre.<br />

Como escapar ao dilema de buscar a liberdade através<br />

da não-liberdade? O menino aprende a ser livre privandose<br />

de sua liberdade, preso ao grupo social, geralmente o<br />

de sua família e, mais tarde, dos companheiros, cônjuge,<br />

membros de igreja, etc.<br />

A estabilidade dos organismos individuais e da sociedade,<br />

assim como seu bem-estar, dependem basicamente<br />

do equilíbrio próprio entre essas duas tendências conflitantes<br />

e necessárias ao desenvolvimento. Durante o estado<br />

de “saúde” dos dois sistemas - individual e social – há uma<br />

relativa integração entre eles: uma relativa liberdade individual<br />

e, ao mesmo tempo, um sistema familiar e social<br />

integrado, funcional e estável dinamicamente. Nesse caso,<br />

ambos os sistemas estão satisfeitos.<br />

Durante as crises, ocorre o contrário: ambos os sistemas<br />

estão em sofrimento - “doentes” - por desequilíbrio<br />

entre suas tendências básicas. Neste caso, ou a família<br />

hipertrofiou a integração em detrimento do crescimento<br />

da individualidade de seus membros, ou o jovem exagerou<br />

sua autonomia, provocando a quebra da integração familiar,<br />

num momento de sua vida no qual a ligação ainda era<br />

de vital importância.<br />

40 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


O sistema individual do jovem é extremamente fluido,<br />

dotado de ainda poucos recursos, sendo facilmente controlado<br />

por outros sistemas.<br />

Quando o jovem abandona precocemente o sistema<br />

familiar, é comum ligar-se e “nutrir-se” de outros sistemas<br />

ao seu redor, que podem ser melhores ou piores para ele do<br />

que o anterior. O jovem poderá ligar-se ao grupo de escoteiros<br />

ou ao de assaltantes. Em nossa cultura americanizada,<br />

propagada pelos filmes de Hollywood e por outras influências,<br />

existe uma pressão para que as pessoas se agreguem<br />

em grupos não-familiares, em detrimento de liberdade individual.<br />

Esta “cultura” vai contra a dos nossos antepassados,<br />

na qual a ligação familiar era a buscada e elogiada.<br />

A agregação diminui ou elimina a autonomia individual, a<br />

orientação interna de cada pessoa. Ao mesmo tempo ocorre<br />

a hipertrofia da “boa relação” com o grupo, ou o “bem-estar<br />

grupal”. Culturas diferentes enfatizam diferentes posturas:<br />

maior ênfase no indivíduo, na sua liberdade ou maior importância<br />

aos grupos familiares, políticos ou religiosos.<br />

Os valores e as atitudes transmitidos ao jovem pela<br />

própria família funcionam assentados em regras, moldes ou<br />

padrões de conduta que são aceitos como certos. Ensina-se<br />

o que é sério e o que não o é, o que é bom e o que é mau, a<br />

forma apropriada de comer e a inadequada, as formas corretas<br />

e incorretas de demonstrar carinho, quais são os amigos<br />

e os que não o são e milhares de modelos semelhantes.<br />

Portanto, nos primeiros anos de vida, a família, que<br />

já possui os seus padrões assimilados, os impõe ao filho. À<br />

medida que o menino cresce, ele vai recebendo outros modelos<br />

ou padrões: dos amigos, dos colegas, dos professores,<br />

da imprensa, dos partidos políticos, da Igreja, etc. Pouco<br />

a pouco desenvolve-se o padrão do indivíduo, produto<br />

da organização dada às milhares de experiências vitoriosas<br />

e de fracasso, dos vários modelos recebidos e recriados.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 41


Aparentemente ocorre uma situação de liberdade,<br />

quando o jovem escolhe uma profissão, um cônjuge ou<br />

um grupo de amigos. Mas, de fato, a “escolha livre” é determinada,<br />

em grande parte, pelos modelos recebidos e<br />

incorporados, principalmente dos familiares e companheiros,<br />

e também por experiências transmitidas verbalmente<br />

por outras pessoas e nunca experimentadas. Todas essas<br />

informações recebidas, algumas vivenciadas, outras não,<br />

são seguidas com muita fé, quase sem contestação ou crítica.<br />

O indivíduo, frequentemente, crê que sua escolha é<br />

livre: que ele se casou com Margarida porque quis, que é<br />

médico por vocação, porque, para ele, a medicina é a melhor<br />

profissão e é amigo de Paulo, porque Paulo é muito<br />

“boa gente”. Pura ilusão. A nossa representação do mundo,<br />

incluindo os diferentes modelos, é pobre, contém poucos<br />

dados à nossa disposição. Conhecemos superficialmente,<br />

ou mesmo nada, acerca de outras profissões, assim como<br />

outros modos de vida e desconhecemos modelos de vida<br />

de pessoas estranhas ao nosso convívio.<br />

Além disso, os modelos pouco conhecidos não poderiam<br />

exercer atração sobre nós, pois geralmente só valorizamos<br />

as experiências ditadas pelo modelo por nós<br />

aprendido. O valor que nós imputamos a alguém, a alguma<br />

coisa, ou a alguma atividade, está já constituído e cristalizado<br />

em torno do fim da adolescência em nossas mentes,<br />

pelos nossos “tapa-olhos”. Assim, munidos desse “radar”,<br />

vamos organizando nossas percepções em torno dos nossos<br />

padrões, vamos formando a nossa estrutura mental,<br />

“filtrando” aquilo que não corresponde à nossa hierarquia<br />

de valores que foram inoculados em nossa mente.<br />

“Sou advogado, gosto muito daquela moça, mas ela<br />

não é do meu nível, pois é balconista”. Sou branco, estudante<br />

de medicina, não fica bem para mim ir à festa com<br />

Pedro, que é negro, servente de pedreiro, apesar de ele<br />

42 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


ser o melhor do nosso time de futebol”. “Sou professor da<br />

Faculdade de Medicina, não posso frequentar tais lugares<br />

e andar com essa gentinha sem classe, que nem se vestir<br />

sabe”. “Eles são gente simples como nós”, “Só frequento<br />

restaurantes de alto nível, não tolero falta de classe”.<br />

Dificilmente ouvimos uma conversa descontraída ou<br />

um papo informal, onde o preconceito e a visão estreita<br />

do mundo não se revelem e possam ser identificados. Não<br />

só assistimos aos preconceitos contra o negro ou os portugueses,<br />

mas a respeito das várias classes e papéis sociais,<br />

de profissões, de sexo, de idade e assim por diante. “Ele é<br />

muito jovem, nada sabe”, ou o seu oposto, “Ela está totalmente<br />

gagá”.<br />

É extremamente difícil sair disso. Só com uma criação<br />

de um modelo neutro, que permitisse a entrada de toda<br />

e qualquer informação, padrão esse que fornecesse para<br />

cada dado recebido um valor que fosse interessante para<br />

seu possuidor.<br />

Portanto, para nos tornarmos mais livres, é preciso<br />

usar menos os “filtros” e menos os “radares”. Usar, sim,<br />

uma “antena parabólica” para captar tudo o que pudermos,<br />

dando a cada percepção um valor mais abrangente,<br />

aumentando nossa representação ou o nosso macromodelo<br />

do mundo.<br />

Só assim poderíamos ficar um pouco menos presos<br />

aos grupos de pressões, passaríamos a ser mais orientados<br />

internamente e menos externamente, deixaríamos de<br />

ser seduzidos pelos líderes carismáticos e, dessa forma,<br />

quem sabe, poderíamos ser líderes de nós mesmos.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 43


noSSA LiBerdAde e oUtroS PodereS<br />

Coitado do cidadão: aprisionado em si mesmo, sozinho,<br />

isolado do exterior por uma pele fina e frágil, cercado<br />

por todos os lados pelos donos do poder espalhados na<br />

natureza física, química, biológica e dos homens.<br />

Nos meus delírios de perseguição, visualizo um complô,<br />

arquitetado por homens tiranos, juntos aos seres vivos<br />

em geral e, também, pelas almas penadas - tudo muito<br />

bem coordenado - visando controlar minha liberdade, bem<br />

como a sua. Não estou exagerando, darei exemplos, todos<br />

eles escolhidos ao acaso. Os não lembrados ficarão por<br />

conta dos leitores.<br />

Não acreditam? Pois vejamos: ora é uma mosca que<br />

vem pousar no meu nariz, ora um cão que me observa,<br />

mostrando seus belos e pontiagudos dentes, pronto para<br />

atacar-me. Mas não fica só nisso, depois é o convite de<br />

formatura que exige minha presença, o telefone que toca<br />

e me obriga a correr, o interfone oferecendo gás, a conta<br />

a pagar, o presente de Natal e de aniversário, o forno que<br />

não mais esquenta e também isso e aquilo. Mas tem também<br />

a chuva, a enchente, o imposto de renda, o terremoto<br />

lá longe, o trombadinha bem perto. Na rua, o carro dispa-<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 45


ado pronto para matar-me, obriga-me a correr desajeitado<br />

e envergonhado pela falta de forma, o trânsito que não<br />

flui, a rua esburacada e sem saída, meu time perdendo, o<br />

assaltante roubando meu sossego, às vezes, meu sonho<br />

de tranquilidade, o frio que me obriga a vestir o agasalho<br />

feio e fedendo a mofo, o calor que me faz suar e dormir<br />

mal, o café frio, fraco, fedorento e com formiga no fundo.<br />

Onde buscar, nessa Babel de desgraças, forças capazes<br />

de suportar e orientar minha vida? Deus! Oh Deus!<br />

Onde está minha sonhada liberdade, a escolha individual,<br />

meu livrearbítrio? Milhares de outras forças, além das<br />

minhas, me impelem a agir de um modo e de outro, não<br />

como gostaria. Estou aprisionado a tudo isso e muito mais:<br />

a cãibra, o espirro, a tosse, o pedinte e o flanelinha, o som<br />

do vizinho, a gritaria dos meninos do colégio, a fumaça<br />

que me impede de enxergar os objetivos imaginados e<br />

sonhados.<br />

Ao envelhecer, aos poucos ou rapidamente, não sei<br />

mais, vou perdendo a ilusão plantada cedo em minha cabeça<br />

mole da existência da liberdade, uma ideia inoculada<br />

pela igreja e pela escola, logo que nasci. Cansado de ser<br />

preso à família, ao partido político, à religião, ao time de<br />

futebol, à profissão e a tudo mais, percebo que o aprendido<br />

acerca da liberdade era tudo mentira, nascida de uma<br />

ideologia democrática falsa, incoerente: ela me enganou<br />

durante anos.<br />

Onde encontrar a liberdade proclamada e esperada,<br />

que me fazia sentir feliz? “Foi um sonho que findou”, como<br />

diz a letra do poeta. Vejo agora que a liberdade é uma balela,<br />

um conceito belo, como algumas pessoas, mas sem<br />

conteúdo. Imagino, sem melhor ideia, que a inexistente<br />

liberdade foi construída pelo poder cultural para amenizar<br />

nossa infelicidade.Foi fabricada, como várias outras ilusões,<br />

para nos amparar e nos proteger nesse mundo confuso.<br />

46 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Os poderes que esmagam meu fraco organismo vão<br />

desde a mosca que pousa, sem dar a mínima, de tempos<br />

em tempos, no meu velho e cansado nariz, até os decretos-leis<br />

de FHC, de Lula e de outros, que sei que virão.<br />

Mas, além disso, fui, há muito, dominado pelos dogmas<br />

religiosos, pelas ideologias marxistas, machistas e<br />

democráticas. Mais tarde, aprisionei-me nas teorias científicas<br />

em voga, pulando de uma a outra sem parar. Corri<br />

como um burro atrás do milho inalcançável, em busca do<br />

“alimento” para minhas dúvidas. Desesperado, sem melhor<br />

orientação interna, esmagado por pressões e decepções,<br />

daqui e dali, agarrei-me, como náufrago desesperado, à<br />

“sabedoria” dos provérbios: “macaco que mexe muito está<br />

querendo chumbo”.<br />

As terríveis forças malignas do poder trabalham para<br />

o mesmo fim e, em bloco, tentam me derrotar. Todas elas<br />

têm um aspecto em comum: mudar meu comportamento,<br />

dirigir minha conduta para um rumo alheio à minha vontade.<br />

Meu saudoso livrearbítrio, sem dizer adeus, desapareceu<br />

da minha vida há muitos anos. As forças do não-eu,<br />

em conjunto, lutam contra minha consciência, me impedem<br />

de alcançar minhas metas, se é que elas são minhas.<br />

Agora, já não tenho nenhuma certeza.<br />

Aceito a definição de poder como a “capacidade para<br />

produzir determinada ocorrência”, ou “a influência exercida<br />

por uma pessoa ou grupo sobre a conduta alheia, através<br />

de algum meio”. Portanto, para ser exercido o poder,<br />

necessita-se de uma força atuante – a que desencadeia<br />

a ação (a mosca e o governo) – e também de um poder<br />

geralmente passivo ou bastante submisso - adequado para<br />

sofrer a ação (eu, eu, eu). Uma mosca não modificará a<br />

conduta de um boneco ao pousar em seu nariz, o imposto<br />

de renda, com todos os urros do leão, não conseguirá fazer<br />

com que o morto preencha sua declaração de renda.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 47


Algumas vezes, muito raramente, o poder de um indivíduo<br />

ou grupo sobre o comportamento do cidadão está<br />

em concordância, ou se identifica, com os objetivos ou<br />

necessidades deste, produzindo uma satisfação dos dois<br />

poderes envolvidos, o ativo e o passivo. Por exemplo, se<br />

você é convidado para ir almoçar na casa de um amigo – o<br />

que modificará o seu comportamento habitual - há a possibilidade<br />

estatística de você, naquele dia, desejar aquele<br />

encontro e até gostar das iguarias e do vinho servido, caso<br />

tenha sorte. Isso acontecendo, os dois participantes do poder<br />

– a força atuante e a passiva - podem atingir objetivos<br />

comuns: isso raramente acontece.<br />

Além disso, o poder tem possibilidade de ser exercido<br />

visando auxiliar uma pessoa, com um fim eticamente<br />

louvável. Convenço minha filha que é bom para ela frequentar<br />

a escola, comer determinado alimento, ter certos<br />

hábitos higiênicos, etc. A aceitação de formas básicas de<br />

conduta por parte dela poderá facilitar sua vida, aumentar<br />

seu “poder pessoal” para tolerar e, talvez, driblar o poder<br />

institucional. Mas mesmo esses valores amplos e gerais<br />

podem ser questionados. Posso estar equivocado e isso<br />

minha filha verificará com o tempo e experiência para encontrar<br />

seu caminho.<br />

48 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


como erA Verde meU VALe<br />

A Bíblia fala que Adão e Eva viviam no jardim do Éden<br />

sem trabalhar, comendo frutas do jardim celestial, sem<br />

guerrear e sem atividade sexual, em paz com a vida e os<br />

outros animais; sem roupas e sem se envergonharem disso<br />

(Gênesis 2:25).<br />

Muitos jovens, outros nem tão jovens, anseiam ter a<br />

vida contada na Bíblia. Esses moços ambicionam no futuro,<br />

nada mais, nada menos, do que o retorno ao mundo “bom,<br />

ordenado e belo”, imaginado e sonhado descrito pelo mito<br />

do paraíso.<br />

A rebelião dos jovens, que combate o estabelecido,<br />

explode ocasionalmente, conforme o tempo, o vento e<br />

tempestades passageiras, nas entressafras das suas “revoluções”.<br />

Não ocorre um questionamento constante dos<br />

costumes por parte da juventude. O mal para a juventude<br />

sonhadora, pura e ingênua, é a sociedade e a vida atual. A<br />

infelicidade, para eles, está ligada à ordem social vigente<br />

formulada pelos seus pais.<br />

Os mais idosos já desistiram, há muito, dessa luta<br />

inglória: transformar a atual sociedade imoral e corrupta<br />

numa decente e ordeira. A juventude sonha e luta, mas<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 49


não de maneira eficaz, para salvar o homem “do mal do<br />

século”, transformar a história humana num conto de fadas<br />

com um final feliz.<br />

Esses loucos utópicos - deve ser lembrado que todos<br />

nós já vivemos nossa loucura numa certa idade - expressam<br />

de vários modos, conforme a época e a cultura, sua<br />

atração pelo paraíso: o uso de roupas grosseiras, desbotadas<br />

e rasgadas de fábrica. Nudez diante dos outros,<br />

principalmente de uma câmera de TV ou de uma máquina<br />

fotográfica. Exibição de coxas ou de seios entre as mulheres,<br />

para mostrar o proibido pelas regras dos ordeiros<br />

e conformados. Badernas, gritos, urros e destruição durante<br />

jogos, formaturas, shows, missas, sermões e posse<br />

de presidente da república. Colônias de nudistas para homenagear<br />

e defender o “naturalismo”, numa praia ornamentada<br />

pela cultura de massa. Ato sexual nos teatros,<br />

filmes e praças, para combater o moralismo tolo e ineficaz<br />

dos gagás.<br />

Todas essas exibições teatrais, histéricas e misturadas<br />

a rituais religiosos ou pagãos, provocam, em seus executores,<br />

uma excitação delirante: orgasmos demorados e<br />

aplausos da grande massa entusiasmada enquanto espera<br />

o retorno à Terra prometida. Os outros seres, surdos aos<br />

berros dos jovens, observam, afastados e incrédulos, o<br />

extraordinário entusiasmo enxertado à simplicidade hilariante.<br />

Para os jovens, lá, muito longe, no alto, bem acima<br />

de nossas cabeças de homens e da montanha, no céu<br />

azulado e estrelado, anjos decentemente enfeitados da<br />

nudez divina e primitiva, de mãos dadas, cantam e bailam<br />

alegremente, girando em volta do compenetrado, honrado<br />

e sempre vigilante Deus.<br />

Entusiasmados com essa fantasia maravilhosa, em<br />

alguns lares desse mundo afora, pais não muito jovens,<br />

inoculados por essa pregação, passaram a cultivar o ba-<br />

50 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


nho coletivo. Também em algumas praias, como ocorre no<br />

paraíso, desfilam homens, mulheres e crianças despidas.<br />

Rapazes e moças desoladas exibem, diante da natureza<br />

viva, a natureza morta: seios e pênis tristonhos e abandonados,<br />

órgãos esperando por algum milagre dos que por<br />

ali passeiam.<br />

Semelhante ao mito da nudez e do paraíso, de tempos<br />

em tempos nasce o mito dos protestos estudantis cômicos.<br />

Estes, organizados pelos exploradores, vestidos de<br />

cordeiros explorados, combatem com seus discursos inflamados<br />

o poder que eles, sem notar, exibem: roupas de<br />

marca, palavras bem escolhidas e reveladoras de erudição,<br />

corte de cabelo moderno e apurado, relógios, brincos<br />

e outras joias de alto custo. Seu poder, exposto através<br />

das informações sem-palavras, mostra claramente existir<br />

uma classe estudantil bem diferente da outra, da desclassificada<br />

logo ao nascer. Frequentemente, através de gritarias<br />

em público, de algumas pedradas medrosas e cuidadosas,<br />

eles atacam o pobre policial que pertence à classe<br />

que, hipocritamente, os líderes, do lado de cima do limite,<br />

afirmam defender. Esta é a luta deles: alcançar, através de<br />

ações dificílimas, perigosíssimas, carregadas de emoções<br />

intensas, um mundo melhor ainda para eles, ou seja, o<br />

paraíso para um grupo especial e já escolhido.<br />

Durante essas lutas coletivas, desordenadas e cômicas,<br />

transformadas em exibição teatral na praça pública,<br />

jovens fantasiados, tendo as caras pintadas com esmero,<br />

com roupas típicas plantadas em desejos inconfessáveis<br />

de cada um, gritam, por instantes, com muita raiva, enquanto<br />

esperam a hora de ir jantar e beber no restaurante<br />

chique. Ninguém sabe com clareza o que se pretende, a<br />

favor de quê e contra quê se luta.<br />

Todos sabem que há um protesto contra alguma coisa.<br />

Rebelam-se, talvez, contra eles mesmos, pelas prer-<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 51


ogativas que uns poucos têm sobre a maioria, pelo poder<br />

que detêm, pela arrogância de um lado e a humildade do<br />

outro. Reclama-se contra o atual em todas as áreas.<br />

Tudo está errado! Exige-se um futuro melhor. Entretanto,<br />

o que é este futuro melhor? Nenhum deles sabe,<br />

nem nós, os mais velhos. Tudo é vago, distante demais,<br />

impossível de ser até mesmo imaginado, representado e<br />

muito menos verbalizado, o que eles mais fazem. Ninguém<br />

consegue definir o que se quer, nem mesmo os líderes<br />

dos movimentos. Quase sempre a maioria deles fez<br />

– ou faz - parte e defendeu, com o mesmo vigor, o “outro<br />

lado”, o lado do “estabelecido”, o agora “combatido” com<br />

veemência.<br />

Este mundo imaginário e buscado, principalmente pelos<br />

jovens sonhadores e rebeldes, é nebuloso. Se não se<br />

conhece o fim desejado, logicamente não será possível saber<br />

o meio para alcançá-lo. Nota-se que eles desejam um<br />

retorno ao mundo antigo, calmo e ordeiro, sem lutas, com<br />

nudez e frutinhas naturais para serem saboreadas ao som<br />

singelo de órgãos celestiais. Entretanto, os jovens são, ao<br />

mesmo tempo, apaixonados pelo mundo natural e atraídos<br />

pelo moderno, pelo desperdício do dinheiro na compra dos<br />

aparelhos de som e imagem ultrassofisticados, pelo uso<br />

das últimas novidades em bebidas e drogas colocadas no<br />

mercado, tudo isso não tão natural assim.<br />

Muitos discursos, artigos e livros dirigidos aos jovens<br />

buscam despertar crenças antigas, plantadas firmemente<br />

pelos pais quando eles eram crianças. Nós todos as temos.<br />

Essas histórias falam acerca de um mundo imaginário ordeiro,<br />

cheio de homens bons e honestos, igualdade e liberdade<br />

para todos. Infelizmente, isso era uma mentira que<br />

nossos pais ouviram de seus pais e, de boca em boca, a<br />

história, teimosamente, continua a se alastrar. Este mundo<br />

imaginado nunca existiu e nem existirá.<br />

52 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


A juventude que procura alcançar essa utopia ainda<br />

acredita nela, mas, à medida que se torna adulto, o sonho<br />

vai se acabando. Os jovens receiam transformar-se em<br />

adultos, perceberem que o aprendido não é o experimentado.<br />

Crescer, para a juventude, significa tornar-se igual<br />

aos pais, assumir seu lugar nessa bagunça total, na farsa<br />

e corrupção desse estranho mundo habitado por anjos e<br />

demônios, metade céu, metade inferno.<br />

Talvez o sonho máximo desse grupo fosse viajar para<br />

o paraíso. Caso o combustível não desse, pelo menos até<br />

Marte, no novo ônibus espacial a ser construído após o último<br />

acidente, ou, talvez, na nave dos ETs. Para fazer essa<br />

viagem fantástica, “numa boa”, “de repente”, “com certeza”,<br />

“né”, e junto com toda a patota, todos vestiriam um<br />

uniforme superchique e moderninho. Bem, quando lá chegassem,<br />

prontamente eles iriam se despir. Após cada um<br />

“ficar” rapidamente com os outros, eles comeriam, abraçados,<br />

as frutinhas celestiais distribuídas por São Pedro,<br />

dançando e cantando, diante do som “louco” produzido por<br />

uma banda supermoderna e, evidentemente, tendo todos<br />

seus componentes drogados com cogumelos do céu.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 53


AS conStitUiÇÕeS QUe PASSei nA VidA<br />

Nasci em Itabira de Mato Dentro, sendo o décimo primeiro<br />

filho de uma família de doze irmãos. Não participei,<br />

por conseguinte, da criação, elaboração e discussão do que<br />

era certo ou errado: a “Carta Magna” de minha família, a<br />

“lei” do permitido e do proibido, do “bom” e do “mau” - já<br />

há muito havia sido promulgada, não tendo contado com a<br />

minha colaboração. Eu devia respeitá-la, cooperando com<br />

o poder que emanava de meu pai e minha mãe. Por ser<br />

criança, sem condição física, intelectual ou cultural, tinha<br />

de seguir as normas e, se quisesse ser aceito, deveria trabalhar<br />

para a manutenção delas.<br />

Assim sendo, aprendi que o partido Republicano de<br />

Arthur da Silva Bernardes era o certo, e todos os políticos e<br />

seguidores daquele partido eram homens bons, honestos,<br />

de princípios justos e interessados no bem-estar geral.<br />

Aprendi que devia rezar todas as noites três Ave-Marias<br />

e três Padre-Nossos e, em momentos de maior perigo,<br />

a Salve-Rainha. Devia ir à missa aos domingos, confessarme<br />

pelo menos uma vez ao ano e rezar algumas Ave-Marias<br />

extras às três horas da tarde da Sexta-Feira Santa,<br />

as quais, uma vez estocadas, seriam de grande valia em<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 55


momentos de grande aflição. Diga-se de passagem, eu as<br />

venho usando atualmente em grande quantidade, pois têm<br />

sido frequentes os meus apuros. Felizmente, daquele estoque<br />

de preces ainda conto com umas boas reservas.<br />

Aprendi que não devia roubar, mas que furtar frutas<br />

no quintal do vizinho, quando houvesse abundância delas,<br />

era tolerável.<br />

Não devia maltratar certos animais, mas podia matar<br />

galinhas e sapos. Devia matar, sem piedade, escorpiões,<br />

cobras venenosas, marimbondos e mosquitos. Abelhas,<br />

não, louva-a-deus e andorinha, nunca.<br />

Devia obedecer aos pais, aos professores, assim como<br />

ao governo do partido republicano, mas rebelar-me contra<br />

o governo de Vargas ou o de Benedito Valadares, pois eles<br />

eram errados e maus.<br />

Aprendi que, à escola, à missa e ao dentista (não me<br />

lembro se ao médico), eu devia ir limpo e calçado. Fora<br />

daqueles “templos” eu podia - e até devia - andar descalço<br />

para economizar sapatos e usar roupas velhas e estragadas<br />

pelos mesmos motivos.<br />

Aprendi que, nas refeições, eu podia comer um ovo,<br />

um pedaço pequeno de frango e, no pão, deveria pôr pouca<br />

manteiga de um lado só do pão. Nunca era permitido<br />

jogar comida fora, pois outros meninos não tinham o que<br />

comer, logo, isso seria um pecado.<br />

Não devia falar mentiras em hipótese nenhuma. Mas<br />

essa regra começou a ser burlada ainda cedo, depois que,<br />

no grupo “Barão de Macaúbas”, onde estudava, fui obrigado<br />

pela professora de Religião a retirar a imagem de Cristo<br />

da sala de aula, por não ter ido à missa no domingo e confessado<br />

contritamente a minha falta. A partir daí descobri<br />

que era menos penoso ir contra o preceito de minha mãe<br />

- não mentir - do que suportar o castigo de d. Mercês - expulsar<br />

o Cristo da sala de aula quando não fosse à Missa.<br />

56 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Aprendi que, sendo homem, não podia chorar, fugir a<br />

uma briga, assim como achar outro homem bonito.<br />

Aprendi que eu seria o responsável - e ninguém mais<br />

- por decisões como beber, fumar, sair de casa, “transar”,<br />

escolher uma profissão. O que não podia era ficar sem estudar<br />

ou trabalhar.<br />

Tornei-me adolescente convivendo intimamente, num<br />

time de futebol, com quase-favelados (naquela época não<br />

havia ainda favelas): sapateiros, capinadores de rua, “chapas”,<br />

serventes, carvoeiros, alcoólatras e até assaltantes<br />

- embora “fichinhas” para a época atual. Seus valores e<br />

sua hierarquia - a sua “constituição” - eram-me estranhos,<br />

mas interessantes, pela novidade. Suas leis eram outras:<br />

defendiam a supremacia do mais forte fisicamente sobre<br />

o mais fraco, a masculinidade do que conseguisse tomar<br />

mais pinga ou transar com um maior número de prostitutas<br />

da rua Guaicurus. Eu era obrigado, às vezes, a fazer<br />

algumas concessões às leis desse grupo, outras vezes, às<br />

de minha família. Ao mesmo tempo tinha de associá-las<br />

no meu eu. Não era fácil: quebrei cabeça para conciliar as<br />

duas ordens e sobreviver a ambas. Escapuli desta enrascada<br />

não sendo mais fiel a uma do que a outra regra. Iniciei<br />

assim a formação de minha individualidade, fruto dessas<br />

duas escolas às vezes antagônicas, mas com muitos pontos<br />

comuns, como só agora percebo.<br />

Estabeleci para mim uma consciência exigente, disciplinada<br />

e original, que ia impondo objetivos e promovendo<br />

meios de alcançá-los, custasse o que custasse. Tinha que<br />

chegar aonde minha mente determinava. Corajosamente,<br />

entrei no paraíso selvagem da Faculdade de Medicina da<br />

Universidade Federal de Minas Gerais.<br />

Nesse ambiente, que nada tinha a ver com as mesas<br />

de boteco da zona boêmia ou com minha casa, utilizavamse<br />

palavras venenosas, porém adocicadas, ditas na maioria<br />

das vezes com gentileza hipócrita.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 57


Imperava entre os colegas uma competição doentia,<br />

“cada um por si”: era a lei da selva. As informações sobre<br />

textos e questões de prova eram escondidas a sete chaves<br />

por - e para - alguns “iniciados”.<br />

Os parentes e amigos dos “poderosos”, alguns poucos<br />

escolhidos, eram visível e arrogantemente ajudados, protegidos<br />

e elogiados.<br />

Nós, participantes da maioria sem poder econômico,<br />

de parentesco ou político, éramos rejeitados. Eu não percebia<br />

claramente que havia uma luta pelo poder e uma<br />

tentativa dos seus detentores de não dividi-lo, mantendoo<br />

limitado ao exercício por uma minoria.<br />

Era ideia minha que, se seguisse as leis do bom Cristão<br />

de Itabira, eu seria tratado com respeito e dignidade<br />

na Escola, teria as oportunidades dos outros e talvez<br />

pudesse até ser admirado, já que o hábito de obedecer<br />

a regras de grupos fazia de mim um aluno cooperativo e<br />

ajustado. Mas ali as leis eram muito diferentes e eu é que<br />

não sabia disso.<br />

Achava que estava participando ativamente de movimentos<br />

compatíveis com os altos ideais da Faculdade, mas<br />

eu apenas podia votar, ora num, ora noutro candidato, e<br />

eram sempre os mesmos relacionados entre a minoria dominante,<br />

lutando para preservar ou aumentar os poderes<br />

adquiridos.<br />

Sonhava que os meus interesses seriam defendidos<br />

nas diretorias, mas no fundo eles eram ignorados, pois<br />

conflitavam com os interesses dos líderes. Como disse, as<br />

normas impostas e garantidas pelos detentores do poder,<br />

na Faculdade, diferiam e muito da constituição vigente na<br />

família e das do grupo de companheiros.<br />

Tendo, por fim, entendido isso, penosa e rebeldemente<br />

passei a receber, como um golpe na face, as leis dos<br />

médicos.<br />

58 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


1º - Nunca se emocione com o sofrimento de seu paciente<br />

ou da família dele, para não atrapalhar seu trabalho<br />

ou julgamento.<br />

2º - Trate o cliente como paciente. Saúde-o e converse<br />

com ele e seus familiares, mantendo distância, pois é<br />

ele quem precisa de você: o poder está em suas mãos.<br />

3º - Forme seu grupo, faça parte das associações de<br />

classe, senão você estará perdido. Os fortes, além de não<br />

o protegerem, poderão destrui-lo.<br />

4º - Use uma expressão, um andar, um vocabulário<br />

típico do médico, identifique-se com a classe, perca a espontaneidade,<br />

só assim você será entendido pelos seus<br />

pares e manterá o poder sobre seu cliente, que se sentirá<br />

inferior a você.<br />

5º - Não seja simples: monte um consultório de luxo,<br />

em bairro nobre, de preferência com aparelhos sofisticados,<br />

mesmo que inúteis, para impressionar,<br />

6º - Peça vários exames, use o mínimo sua própria<br />

cabeça para não cansá-la e, se possível, faça diagnósticos<br />

complicados para valorizar seu trabalho.<br />

7º - Interne seu paciente psiquiátrico sempre que puder,<br />

pois isso dará a você “mais conforto e segurança com<br />

menos trabalho”, talvez, até mais dinheiro e mais poder.<br />

8º - Associe-se a algum grupo teórico, de preferência<br />

entre os psicanalistas, para com eles se sentir protegido<br />

pelo seu poder nos departamentos e diante do público.<br />

Através desse grupo, você poderá até receber clientes dos<br />

mais poderosos, quando estes os tiverem de sobra.<br />

Passou-se o tempo, eu não estava mais muito preso<br />

às leis da antiga família itabirana, nem do grupo de esporte<br />

e farras, mas também não conseguia compreender muito<br />

bem e introjetar as leis da Faculdade de Medicina. E não<br />

consigo até hoje. Tornei-me um solitário rebelde, mas, felizmente,<br />

sempre tive companheiros que também não co-<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 59


mungaram com aquelas diretrizes. Lamentavelmente, um<br />

bom número de médicos seguiu e segue a sério tais leis.<br />

Confuso, inconformado, buscando um sentido, um<br />

poder mais pessoal e não institucional, valores, liberdades<br />

individuais e mais espontaneidade, eu ingressei na Faculdade<br />

de Filosofia. Ali, nova constituição há muito tinha sido<br />

promulgada. Nova reviravolta, tanto nos meus objetivos de<br />

vida, como nos meios para alcançá-los. Percebi que não há<br />

verdades e certezas eternas: tudo o que havia aprendido<br />

antes como certo, eram mitos, concepções do mundo. Tornei-me<br />

um doido. Percebi a subjetividade da objetividade<br />

médica, a defesa constante, por uma parte da classe médica,<br />

de valores duvidosos da nossa sociedade, a hipocrisia<br />

frequente num discurso médico paternal, protetor, mas<br />

cuja intenção é manter seus próprios valores, segundo os<br />

quais o paciente deve submeter-se como animal ou coisa<br />

ao seu poder. Em resumo, percebi que, na Faculdade de<br />

Medicina e na classe médica, uma boa parte de estudantes<br />

e profissionais defendem e preservam o conformismo e<br />

não as mudanças reais que valorizam o indivíduo como ser<br />

único.<br />

Você também, prezado leitor, que nasceu na família<br />

Silva ou Souza, sabe o que é bom ou mau. Você também<br />

está sujeito a centenas ou milhares dessas leis, sem tê-las<br />

criado.<br />

Elas entraram na sua vida e na sua mente sem serem<br />

criticadas ou analisadas: entraram como transe hipnótico.<br />

Comece a analisá-las: veja se elas o estão ajudando, ou<br />

não, a ver melhor. As que o estão prejudicando-o, jogueas<br />

fora.<br />

60 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


intUiÇÃo, rAZÃo e JULgAmento morAL<br />

Nosso juízo moral é dominado por duas ilusões:<br />

1ª) Acreditamos que nosso julgamento moral é ativado<br />

pela razão. Isso não é verdade.<br />

2ª) Esperamos, através das discussões intuitivas, alterar<br />

o modo de pensar do opositor. Isso não acontece.<br />

Segundo o modelo intuitivo (não-racional) o indivíduo ao<br />

ouvir, por exemplo, o relato de um estupro, é dominado<br />

rápida e automaticamente por uma emoção desagradável.<br />

O mal-estar corporal interno, uma vez percebido, produzirá<br />

uma avaliação negativa do fato. Apoiado no desconforto<br />

interno, a pessoa capta intuitivamente, sem usar a lógica<br />

ou razão, que o estupro é um ato condenável. Algumas<br />

vezes - nem sempre - após a explosão intuitiva, a pessoa<br />

procura tornar inteligível o problema, explicando-o verbalmente.<br />

Nosso cérebro, construtor de modelos avaliadores e<br />

explicativos, só recentemente começou a ser bem estudado.<br />

O homem sempre procurou interpretar o meio ambiente<br />

e seu organismo. Durante séculos, as interpretações<br />

mágico-religiosas dominaram as explanações. Mais<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 61


tarde nasceram as ideologias e, também, as ciências. Mas<br />

a conduta moral, sendo um julgamento de valor (princípios<br />

ou normas idealizados), não permite ser verificada através<br />

de testes empíricos, apenas pelas reflexões filosóficas.<br />

De qualquer forma, o roteiro sagrado e não-sagrado tem<br />

servido de sustentação para captar, selecionar, organizar<br />

e explicar as informações complexas ou simples do meio<br />

ambiente.<br />

Cinco funções têm sido descritas como sendo as mais<br />

importantes para selecionar e interpretar o observado:<br />

sensorial (sensação), dois tipos de cognições, um formal e<br />

outro mítico ou sobrenatural, sentimento (emoção) e intuição<br />

(conhecimento obtido sem o uso da razão). Ninguém<br />

usa somente um desses cinco modos de focalizar o evento,<br />

mas cada pessoa tende a empregar mais uma função<br />

que outra (sensorial, cognitiva, emotiva e intuitiva). O fato<br />

focalizado, por si só, pode ativar o uso de uma função. No<br />

velório posso ser impelido a usar o processo sobrenatural,<br />

ou se tenho dor de barriga, focalizo o sensorial e, também,<br />

o pensamento intuitivo sobre a causa: o possível pastel<br />

comido no boteco.<br />

O cérebro do homem, muito cedo, é marcado por noções<br />

intuitivas simples. Dada a potência do nosso B-A-BA<br />

inicial (pré-saber), este aprendizado nunca mais nos abandona.<br />

O homem inculto, desprovido de saberes complexos,<br />

percebe, entende e explica os eventos através das noções<br />

adquiridas cedo (pré-saberes), geralmente inadequadas.<br />

Muitas vezes, um mito, uma metáfora ou comparação serve<br />

de base para exibir o entendimento (“Pedro é um cavalo.<br />

Só fala abobrinhas.”). Este é instrumento limitado para<br />

descrever uma conduta.<br />

Alguns adquiriram um saber, mas a complexidade<br />

desse saber pode sofrer danos ocasionais. O pré-saber<br />

primitivo pode invadir e dominar, com sua simplicidade,<br />

62 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


o saber complexo. Isto ocorre quando a pessoa está fatigada,<br />

apressada ou com a “cabeça quente”, por exemplo,<br />

dominada por paixões: sexuais, políticas, etc. Resumindo:<br />

nosso julgamento final é uma “salada” contendo intuições<br />

emocionais, pré-saberes e, às vezes, saberes mais profundos<br />

e amplos, capazes de criticar e dominar os pré-saberes<br />

inocentes e primitivos.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 63


BicHoS oU SereS HUmAnoS?<br />

Ao lidar com os meninos de rua não devemos esquecer<br />

que estamos lidando com seres humanos, cujo comportamento<br />

resulta das exigências do seu organismo biológico,<br />

de sua aprendizagem durante sua vida, dos estímulos<br />

provenientes de seu meio ambiente num determinado momento,<br />

das pressões provocadas pelos grupos dos quais<br />

fazem parte e conforme os modelos que aprenderam de si<br />

e do mundo. Todos estes fatores funcionam juntos, predominando,<br />

ora mais um, ora outro.<br />

O que diferencia os “pivetes” não-criminosos dos<br />

“pivetes” criminosos são pequenas diferenças existentes<br />

em cada um dos fatores acima relacionados. Assim, um<br />

adolescente não-criminoso apresenta uma concentração<br />

de serotonina cerebral - um neurotransmissor existente<br />

no cérebro - mais elevada do que o menino criminoso.<br />

Uma criança “normal”, provavelmente, foi criada num lar<br />

mais harmonioso e seus pais eram mais bondosos e compreensíveis<br />

do que os pais – caso tenha - do menino de<br />

rua. Os pais do adolescente “normal” talvez não tenham<br />

sido alcoólatras ou dependentes de drogas. O cérebro de<br />

um recém-nascido “normal” não sofreu danos pré, peri, ou<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 65


pós-natal como pode ter ocorrido no pivete criminoso. A<br />

maioria dos meninos tem uma ideia do mundo mais realista<br />

do que a do menino de rua, principalmente da conduta<br />

das pessoas.<br />

A família e a sociedade em geral vai, pouco a pouco,<br />

se acomodando e assimilando a carreira do “pivete”, que<br />

ela, em grande parte, ajudou a construir. Acostumamo-nos<br />

com seus pequenos delitos e sua aprendizagem progressiva<br />

para crimes mais sérios. Aceitamos passivamente, sem<br />

nos alarmar, sua miséria, sua morte precoce nos acidentes<br />

de trânsito, nos espancamentos sofridos dos próprios<br />

companheiros ou por grupos de extermínio, suas doenças<br />

graves, sua desnutrição, seu tédio proveniente de sua vida<br />

vazia e sem sentido, sua falta de higiene, o uso de drogas,<br />

sua submissão a estupros e, por fim, sua exploração continuada<br />

pelos que se utilizam deles para a prática de roubos,<br />

de relações sexuais e até mesmo de campanhas políticas.<br />

Lamentamos histericamente seu sofrimento com palavras<br />

semanticamente apropriadas para as emoções negativas,<br />

mas sem que nosso coração ou pulmão mude seu<br />

ritmo normal. Assistimos nas imagens da televisão a seu<br />

sofrimento de animal abandonado, no instante da notícia.<br />

Após a hora marcada para “sofrermos” o problema do pivete,<br />

diante do noticiário, desligamos a TV e também nosso<br />

cérebro e o ligamos no canal das diversões. Ao exibir essa<br />

conduta de preocupação simulada, expiamos nossa responsabilidade<br />

na participação desse problema social e reforçamos<br />

a nossa imagem de cidadãos bondosos. Com isso<br />

mantemos um falso equilíbrio e nossa autoestima elevada.<br />

Após o “nosso sofrimento” de hora marcada, saímos<br />

com nossa família saudável e unida para jantar. Passamos<br />

pelo teatro para assistirmos a uma comédia representando<br />

o drama humano. Voltamos para casa para mais um descanso,<br />

agora das diversões do mundo fictício. Deitamo-nos<br />

66 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


para dormir numa espaçosa cama limpa, macia e confortável.<br />

Recuperamos, desse modo, as energias perdidas pelo<br />

sofrimento do dia anterior.<br />

Dormimos um sono tranquilo e sem culpa, como bons<br />

cristãos que somos. Enquanto dormimos, neste momento,<br />

um pivete pode estar sendo assassinado, acidentado ou<br />

estuprado numa noite fria, indiferente, sonolenta e serena<br />

como nós.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 67


comPUtAdor e FerrAdUrA<br />

O homem pós-moderno deixa a luz feérica dos laboratórios<br />

de cibernética, energia nuclear e genética, onde<br />

recompõe a vida, e à noite vai procurar a luz bruxuleante<br />

dos templos de pai-de-santo, cartomantes, gurus, operadores<br />

de pêndulo, onde humildemente busca forças para<br />

viver e resolver seus conflitos.<br />

A cada monumental templo erigido em nome da ciência,<br />

surgem dezenas de outros dedicados às mais estranhas<br />

ideias sobrenaturais. Cada um acha que a sua ideia<br />

é a melhor, após, naturalmente, ter experimentado várias<br />

delas. A confusão é tão grande, as pessoas estão tão perdidas<br />

em busca de um mundo mítico e mágico, que em<br />

Paris apareceu um feiticeiro africano, que conseguiu reunir<br />

os dois mundos numa só idéia: passou a vender coca-cola<br />

benta. O homem pós-moderno é, pois, aquele que toma<br />

coca-cola benta, enquanto opera o seu computador de última<br />

geração.<br />

Essa confusão mental, digamos assim, ocorre no<br />

mundo inteiro. Os jornais e as listas telefônicas americanas<br />

estampam em suas páginas milhares de anúncios de<br />

cartomantes, videntes e outros autorrevelados, interpreta-<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 69


dores desses estranhos sinais de comunicação existentes<br />

nas linhas das mãos, nos olhos, no ar, nas cartas etc., para<br />

uma possível comunicação com o mundo sobrenatural.<br />

Calcula-se que na Inglaterra mais de 10 mil profissionais<br />

dessa área trabalham em tempo integral. Na China,<br />

os dragões saltam dos livros vermelhos para a imaginação<br />

do povo e terror das crianças.<br />

Conta-se que um jornalista ocidental comentou com<br />

um chinês que iria escrever um artigo sobre dragões. O<br />

chinês disse que a revolução havia acabado com essas<br />

ideias.<br />

— Mas é um dragão de penas brancas.<br />

— Mas todo mundo sabe que os dragões não têm penas.<br />

É isso: todo mundo sabe, e provavelmente tem certeza,<br />

que sua crença, religião, seja lá o que for, é a única<br />

certa, a que está mais apoiada em dados e mais, já teve o<br />

seu modelo colocado para estudos em um computador não<br />

menos maluco.<br />

O mau-olhado é universal: os franceses fazem o sinal<br />

da cruz quando ouvem falar em “regard méchant”, os<br />

italianos têm horror do “mal ochio”, que deve ser evitado,<br />

custe o que custar. Em todas as ilhas britânicas, inclusive<br />

naquela em que mora a rainha, uma ferradura é o principal<br />

instrumento capaz de afastar o mau-olhado. Uma pessoa<br />

pode adoecer, uma planta definhar e o gado morrer devido<br />

ao mau-olhado. Todo mundo sabe disso.<br />

Há uma grande diferença entre as crenças pós-modernas<br />

e as líricas que povoaram nossa mente e tornaram<br />

nossa infância mais agradável e rica em sonhos. Criouse<br />

hoje uma simbologia mística complexa, construída pelo<br />

marketing, utilizando-se da ingenuidade inata ou construída<br />

pela propaganda, apoiada no mito do fim do mundo, na<br />

busca de momentos mágicos, de um orgasmo mais excitante,<br />

de benefícios extraordinários da alimentação natural<br />

70 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


ou de um “mundo melhor” com alucinógenos. Cada grupo<br />

organiza-se de acordo com suas atitudes, formando uma<br />

seita que sempre é a correta, pois é uma crença e estas<br />

são sempre certas, com muita fé.<br />

Há uma florescente indústria de “alimentação natural”<br />

onde se defende, com unhas e dentes, a necessidade<br />

dos vegetais serem cultivados sem adubos ou agrotóxicos.<br />

Isso é, puros e virgens como deve ser o homem íntegro.<br />

Há também o puro mel obtido de abelhas treinadas que<br />

não se aproximam de flores envenenadas. A “comida natural”<br />

começa a ser um negócio que é olhado com bons<br />

olhos pelos banqueiros. Eles nunca se enganaram. Nunca<br />

mesmo.<br />

Misturam-se símbolos de alto e baixo nível numa bagunça<br />

total: crucifixos, ferraduras, pé-de-coelho, trevo de<br />

quatro folhas, amuleto, dentes e diversos outros, confundindo<br />

a orientação e a cabeça de qualquer “crioulo doido”.<br />

Cada ferramenta ou símbolo “protege” o indivíduo daquilo<br />

que ele teme, dando-lhe uma pseudossegurança e sentido<br />

para a vida sem sentido.<br />

Isso faz lembrar o grande movimento hippie dos anos<br />

60. Cabelos grandes, jeans, tênis e alguma sujeira era o<br />

máximo de contestação ao “sistema”. A recusa em usar<br />

outros tipos de roupas, acreditavam eles, era uma maneira<br />

de protestar contra o desvairado consumo da época. Pois<br />

bem, os hippies mais espertos se aliaram a não menos<br />

espertos industriais e hoje temos a moda “jovem” vendendo<br />

e muito: ela envolve milhões de dólares. Figurinistas,<br />

cabeleireiros, perfumistas e outros profissionais não tardaram<br />

a entrar no negócio e todos viveram felizes até surgir<br />

uma nova moda, a unissex, que fatura de outra maneira.<br />

Dizem até que a moda unissex foi criada pela conjunção de<br />

heterossexuais não muito convictos e homossexuais ainda<br />

não-assumidos.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 71


A eliminação da individualidade e solidão está sendo<br />

conseguida através do uso de roupas, de penteados, de<br />

discursos e até de fragrâncias, por um mesmo grupo, que<br />

imagina com isso estar protegido e seguro.<br />

Livros estranhos sobre as mais estranhas ideias têm<br />

a mesma tiragem dos livros sobre computação. Calcula-se<br />

que um manual de operação de pêndulo vendeu mais de<br />

100 mil exemplares em pouco mais de um ano. Tome-se<br />

que a tiragem básica no Brasil é de 10 mil exemplares e calcule<br />

o sucesso dos ensinamentos para as ideias místicas.<br />

Revistas místicas de ufologia, comida natural, sexologia<br />

e outras coisas do mesmo gênero são compradas pelo<br />

mesmo leitor que leva as de rock, programação básica e<br />

vídeo. Em alguns países já é possível comprar as antigas<br />

e puras receitas de bruxas em fitas, CDs e DVDs. É o progresso<br />

da ciência.<br />

Os roqueiros gostam principalmente dos conjuntos de<br />

“heavy metal”. Esses são autores e donos de gestos que,<br />

em outras épocas, os levariam diretamente para as fogueiras.<br />

Hoje eles causam o delírio de multidões de jovens,<br />

alegria para os felizes produtores.<br />

Não se sabe realmente o que é mais demoníaco, se<br />

os gestos ou a estrutura publicitária montada em cima do<br />

assunto, criando a necessidade de pertencer aos grupos.<br />

A pessoa deposita no guru a mesma confiança, ou<br />

mais, que a que é descrita no resultado de sua tomografia<br />

computadorizada. Por via das dúvidas, consulta-se os dois:<br />

primeiro o guru, depois o clínico, mergulha-se no mais moderno<br />

arsenal quimioterápico e, caso escape, sai dizendo<br />

maravilhas acerca do guru.<br />

Isso não é de se espantar. Um arsenal de palavras,<br />

sem definição muito clara, tem sido usada por quase todo<br />

o mundo. Mental é uma delas, tem poderes mágicos e coisas<br />

do tipo “melhore sua vida mental”, “controle mental<br />

72 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


em cinco lições”, “controle sua mente”, são amplamente<br />

usadas. Democracia, comunismo, modelo, maduro, carência<br />

afetiva, feminismo, liberdade são outras palavras<br />

mágicas que todos expressam sem saber realmente qual<br />

é o significado delas e cada um, na verdade, cria o seu<br />

entendimento particular. Os embusteiros pós-modernos as<br />

usam a toda hora com os significados que lhes interessam.<br />

Oriente é outra palavra que eletriza as pessoas. De lá podem<br />

vir chips ou filosofia, tanto faz, há consumo para as<br />

duas coisas.<br />

O mesmo olhar embevecido com que o técnico olha<br />

essa maravilha da ciência que é o chip, mais tarde será<br />

utilizado para o guru, dono de frases que serão vendidas<br />

aos milhares em livros distribuídos por todo o país. Produtor<br />

de chips e gurus têm possibilidades iguais de obterem<br />

o mesmo lucro.<br />

Fazer filtros de amor, beber poções mágicas que nossos<br />

pais-de-santo carinhosamente chamam de “garrafadas”,<br />

não exclui o uso da técnica, a vida moderna, a<br />

pesquisa científica e o ensino universitário. Na verdade a<br />

ciência também não escapa às superstições. As explicações<br />

da ciência vão até certo ponto, a partir do qual nascem as<br />

crenças, metáforas ou mitos para fornecer a compreensão<br />

dos fatos onde nenhuma explicação plausível é conhecida<br />

– nem possível – como, por exemplo, os conceitos de<br />

“energia mental” da psicanálise, a representação gráfica<br />

do átomo, o vetor como força física e assim por diante.<br />

As religiões e pseudociências, não sendo testáveis e<br />

tendo por base premissas logicamente interligadas, somente<br />

logicamente, não permitem contestação na sua<br />

composição mística. A tentativa de analisar estes fatos<br />

pelo ponto de vista científico costuma acabar em tragédia:<br />

o pesquisador pode virar guru.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 73


o modeLo dA LAtA de LiXo<br />

Todos vocês conhecem a “lata de lixo” mas provavelmente<br />

não conhecem o “Modelo da Lata de Lixo”, um<br />

termo criado por alguns cientistas desocupados. Eles falam<br />

que em qualquer sociedade sempre se encontram pessoas<br />

que discutem e brigam por certas ideias, as mesmas de<br />

sempre, anos após anos.<br />

Conforme os criadores do Modelo da Lata de Lixo, ao<br />

se iniciar uma discussão em mesas redondas, programas<br />

de TVs e rádios, sempre aparecem, em todos eles, certos<br />

problemas que são os mesmos, várias vezes repetidos, os<br />

quais dominam a atenção de todos no debate. Eis alguns<br />

exemplos desses assuntos que “enchem” os programas,<br />

bem como a fala dos debatedores: “Precisamos estudar<br />

melhor os discos voadores”, “Com o imposto único o País<br />

irá retomar o crescimento”, “Devemos combater as drogas<br />

a qualquer preço”, “Nosso problema é a infância desassistida”,<br />

“O problema do Brasil é a fome”, “Precisamos acabar<br />

com a impunidade do país”, “O mal é o aumento do desemprego”,<br />

“Devemos aumentar o lazer”, etc. O leitor lembrará<br />

de muitos outros problemas importantes para serem discutidos<br />

com ardor.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 75


Como é difícil pensar e trabalhar com muitas ideias ao<br />

mesmo tempo. Sendo muitas delas contraditórias, ao adotar<br />

o modelo da “Lata de Lixo”, as discussões, bem como<br />

os problemas, se tornam simples e fáceis de serem resolvidos.<br />

Através desse modelo, todos os grandes problemas<br />

são facilmente equacionados na mente de seu defensor e,<br />

mais ainda, sua vida. Mesmo quando o argumento não se<br />

encaixa no discutido, os debatedores, seguros e tranquilos,<br />

lutam tenazmente pela importância das brilhantes ideias.<br />

Este modelo é construído da seguinte maneira: ao<br />

nascer, a criança começa a adquirir um sentido do “bom”<br />

e do “mau”, do “certo” e do “errado”, inicialmente através<br />

da observação da conduta dos companheiros mais velhos,<br />

quando ainda não aprendeu a linguagem e, muito menos, o<br />

raciocínio lógico. Um pouco mais tarde, são aprendidos os<br />

valores e condutas, principalmente com o grupo de amigos<br />

e com os “ensinamentos” da mídia. Durante a puberdade<br />

e a adolescência, o aprendizado de valores será através<br />

da imitação dos companheiros de grupo. Para alguns, esse<br />

é o período mais importante e crítico para a aquisição de<br />

julgamentos do “certo” e “errado”. Depois, seus juízos de<br />

valor vão se fixando cada vez mais através das reações<br />

cordiais ou hostis com pessoas importantes para o comportamento<br />

do agente.<br />

Alguns dos valores defendidos com ardor, uma vez assimilados<br />

e armazenados, passam a fazer parte dos objetivos<br />

que devem ser seguidos e dos julgamentos realizados<br />

pelo indivíduo. São eles que fornecem o sentido para a vida<br />

de cada um. Muitos dos “tem de ser”, “devo agir” e “tinha”,<br />

que proferimos constantemente para nós mesmos e para<br />

os outros, nem são normas de conduta definitiva, nem são<br />

universais, isto é, para todas as culturas. Os valores são<br />

apenas objetivos individuais, temporários, seguidos por<br />

uns, rejeitados e amaldiçoados por outros, variando con-<br />

76 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


forme as diferentes culturas e subculturas, podendo também<br />

ser adotados como meios para outros fins. Por isso, os<br />

valores podem, e devem ser, de fato, questionados.<br />

Como temos diversos “professores”, cada um deles<br />

com uma opinião própria, aprendemos valores-fins e meios<br />

antagônicos. Assim, de um lado, como objetivo, aprendemos<br />

que devemos respeitar a professora, por outro lado,<br />

avaliamos que é agradável conversar na sala de aula sobre<br />

a nova namorada com o amigo. Aprendemos que devemos<br />

ser honestos, mas também que precisamos passar de ano<br />

e, como não estudamos, temos que colar. Ao escolhermos<br />

uma conduta contendo, ao mesmo tempo, valores defendidos<br />

opostos, podemos, às vezes, ficar confusos. Assim,<br />

agrada-nos fumar, mas desejamos ter boa saúde, não queremos<br />

ser obesos, mas a carne gordurosa está uma delícia.<br />

Queremos viajar, mas precisamos trabalhar mais ainda<br />

– o que não nos agrada - para ter um dinheiro sobrando,<br />

desejamos a vida com uma companheira compreensível<br />

e carinhosa, mas detestamos as limitações impostas pela<br />

vida a dois ou a três.<br />

Alguns valores podem tomar conta de nossos objetivos<br />

ou meios a vida inteira, como nos exemplos: aos dezoito<br />

anos Pedro decide ser engenheiro e torna-se engenheiro<br />

até a morte, José decide casar-se aos 28 anos com<br />

Marta, a mulher dos seus sonhos. Poderá ficar para o resto<br />

da vida preso a ela e aos filhos nascidos.<br />

Diante de tantas alternativas, pergunta-se:<br />

“Que caminho devo tomar?” Muitos só enxergam e<br />

têm interesse e certeza da existência de um só objetivo<br />

e caminho para se chegar a ele, sendo essa preocupação<br />

solitária que passa a coordenar, dirigir e a fornecer significados<br />

para a vida. Os que fazem parte desse grupo podem<br />

passar a vida fazendo campanhas contra o aborto. Outros<br />

se preocupam com o controle do armamento nuclear.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 77


Alguns lutam a favor do estudo da homeopatia nas<br />

Faculdades de Medicina. Outros lutam em prol da vida das<br />

cobras. Para esses, o voto deve ser dado nas eleições para<br />

o candidato que defender esse ou aquele problema particular:<br />

basta um deles, desde que se encaixe no “Modelo da<br />

Lata de Lixo”. Adotando essa posição, o mundo fica fácil de<br />

ser entendido, explicado e manuseado.<br />

Felizmente, para a felicidade de todos, algumas vezes<br />

um problema pode ser resolvido sem atrapalhar o outro. É<br />

possível tapar os buracos da Rua da Esperança fazendo, ao<br />

mesmo tempo, um mata-burro na Rua dos Sofredores e,<br />

também, prender os ladrões de galinha do Lambari. Coroando<br />

tantas obras, criam-se mais impostos e, como consequência,<br />

aumenta-se os salários dos nobres e digníssimos<br />

deputados.<br />

78 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


eFerendo: UmA deciSÃo imPoSSÍVeL<br />

Devemos ser a favor ou contra o uso de armas, a favor<br />

ou contra a pena de morte? E do aborto? De internar<br />

ou não o paciente psiquiátrico? Manter ou dissolver o maldito<br />

casamento? Eis alguns exemplos de dúvidas que nos<br />

perseguem, quanto à escolha de um valor ou outro.<br />

Um anarquista polêmico defendia a igualdade acima<br />

de tudo. Para ele as universidades deviam ser fechadas<br />

porque formam pessoas desiguais, homens superiores,<br />

comparados aos não-estudiosos. Da mesma forma, um<br />

mundo de perfeita justiça não é compatível com a misericórdia.<br />

A lei exige a pena conforme o delito, a ética religiosa<br />

defende o perdão. A defesa de um valor vai contra o<br />

outro. Existirá apenas um certo?<br />

A liberdade procurada por todos não convive bem<br />

com a igualdade. Se José é livre para fazer o desejado,<br />

ele, sendo mais forte que Gervásio, pode, usando sua liberdade,<br />

agredir seu desafeto. Se defendemos a igualdade,<br />

não devemos ultrapassar outras pessoas quanto aos<br />

bens materiais (propriedades, dinheiro), nem com respeito<br />

aos bens intelectuais, espirituais, artísticos (conhecimento,<br />

perícia, governo, arte). Se ultrapassamos os outros,<br />

nos tornamos desiguais.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 79


A felicidade e o conhecimento podem ser ou não compatíveis.<br />

Alguns pensavam que o conhecimento sempre libera<br />

e salva o homem e aprisiona o ignorante.<br />

Nem sempre ele libera: se fico sabendo que sou portador<br />

de um câncer incurável – um conhecimento - não me<br />

torno mais feliz e mais livre.<br />

Admiramos a criatividade, o nascimento livre das<br />

ideias e obras de arte. Entretanto, essa liberdade não é<br />

compatível com a capacidade de planejamento cuidadoso<br />

e eficaz, sem o qual não pode ser criada nenhuma vida<br />

organizada e segura.<br />

Ter uma companhia amiga é uma meta cobiçada por<br />

todos. Mas são essas companhias – rotuladas de agradáveis<br />

– as principais fontes de futuras dores, da perda da<br />

querida liberdade e do sossego. Os cônjuges brigam entre<br />

si, batem, exploram um ou outro. Os amigos matam, traem,<br />

mentem. Os colegas podem ser egoístas, competitivos<br />

e agressivos. Se estamos livres dos sofrimentos das relações,<br />

não gozamos os prazeres do amor.<br />

Armado e desarmado, liberdade e igualdade, criatividade<br />

e segurança, felicidade e conhecimento, misericórdia e<br />

justiça, solidão e amizade: esses são valores procurados por<br />

todos, mas são incompatíveis entre si. Quando somos obrigados<br />

a escolher, sempre iremos sofrer perdas, às vezes,<br />

trágicas. Esse outro lado da escolha deve ser aceito com<br />

naturalidade, pois, no momento, escolhemos um valor que<br />

parece ser mais importante. Estudar Medicina ou Direito?<br />

A ideia do mundo perfeito, onde só as boas coisas<br />

podem ser realizadas, não existe. A escolha de um certo<br />

valor impedirá gozar o prazer possuído pelo valor descartado.<br />

Há sempre ganho de um lado e perda de outro. Não<br />

existe projeto de vida ideal pelo qual deveríamos sacrificar<br />

nossa vida: não há “vida perfeita”. Essa quimera jamais<br />

será atingida.<br />

80 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Não podemos nem imaginá-la, pois, se observo o lado<br />

bom, também vejo o ruim, sempre são dois lados da mesma<br />

moeda.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 81


A mULtidÃo SoLitÁriA<br />

Se você não é a favor dessa ideia, lute pela contrária.<br />

Assim como os policiais devem combater os criminosos,<br />

alguém deve combater os policiais. É preciso proteger as<br />

árvores, mas é preciso, também, ter mais empregos e indústrias.<br />

Os fiscais devem fiscalizar os preços e nós temos<br />

que fiscalizar os fiscais. Devemos ir ao teatro e ao futebol.<br />

Mas, e o aborto? Ah! Devemos combatê-lo com rigor, mas<br />

precisamos proteger a liberdade e os direitos das mulheres<br />

de terem ou não filhos. Como agir?<br />

Cada um acha que seu problema é o mais importante.<br />

O envolvimento com esses “ideais” fornece ao organismo<br />

um bem-estar, pois aumenta os estoques empobrecidos<br />

pelas frustrações de substâncias químicas como a serotonina,<br />

dopamina, noradrenalina, oxitocina, endorfinas e<br />

outros neuropéptides mais, todas substâncias importantes<br />

para nosso bem-estar. Devem diminuir os impostos que me<br />

atingem e aumentar os dos outros. Precisamos proteger os<br />

animais. Coitado deles! Na primeira oportunidade o defensor<br />

dessa ideia esmaga uma formiga trabalhadora e séria,<br />

aniquila um inocente pernilongo-fêmea que necessita de<br />

um pouco de sangue para que sua espécie não desapareça<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 83


e pisa, sem dó nem piedade, numa barata que passeia calmamente<br />

à noite, na cozinha, em busca de uma paquera<br />

ou de um jantar de migalhas abandonadas. Combate-se<br />

com veemência a matança das raposas que comem as magras<br />

galinhas do lavrador faminto. Tudo são valores! O que<br />

será melhor: comer abóboras ou assistir à ópera, manter<br />

as florestas ou aumentar empregos?<br />

Essas tomadas de posição por algo têm uma importante<br />

função social. Precisamos dessas discussões e devemos<br />

tomar parte nelas. Qualquer movimento social seja<br />

real ou fictício, importante ou não, agradável ou aversivo,<br />

sábio ou idiota, liberta, ainda que por momentos, o indivíduo<br />

de seu vazio, de sua depressão, ou melhor, de sua<br />

desesperança e desamparo com esse mundo confuso. É<br />

preciso estar envolvido! O povo procura, fora de si, uma<br />

“causa” para ser seguida, por isso são sempre bem-vindas<br />

ações governamentais ou não-governamentais para “distrair<br />

o povo”, para promover estoques das benditas substâncias<br />

químicas que nos põem alegres e animados, cheios<br />

de esperança com respeito a qualquer bobagem. Tudo serve<br />

para aliviar o povo do seu desengano, sofrimento e,<br />

principalmente, da ausência de objetivos próprios.<br />

Mas para conseguirmos um alívio mais eficaz do tédio,<br />

precisamos ter companheiros, alguém que tenha a<br />

mesma fé, acredite e lute pelos mesmos valores. Ligados<br />

a uma causa comum, os seres humanos se sentem satisfeitos,<br />

seguros e, quase sempre, entusiasmados com a<br />

própria alienação, bem como a dos amigos. Uma multidão<br />

perdida, uma vez reunida sob o mesmo guardachuva<br />

conceitual, descobre, irmanada, um sentido imaginário e<br />

atraente para participar, de braços dados, de qualquer jornada.<br />

Agarrados uns aos outros, como crianças amedrontadas<br />

se prendem à saia da mãe, esses indivíduos realizam<br />

seus sonhos e esquecem, provisoriamente, da miserável e<br />

84 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


chata vida do dia-a-dia. Amparados em bandeiras podres,<br />

protegidos por venerar os mesmos objetivos duvidosos,<br />

excitados e sem refletir, eles planejam, estabelecem e dão<br />

sentido a um programa de vida sem sentido.<br />

Passam a ter uma “ideal” para lutar, brigar e até morrer.<br />

Quem ainda não entrou para um grupo desses, não<br />

se aflija. Existem vagas em diversos clubes: entre rápido<br />

para o fã Clube de Carmen Miranda, colecione “souvenirs”<br />

deixados por James Dean, Michael Jackson, participe dos<br />

estudos dos Objetos Não-Identificados, frequente o clube<br />

dos machões ou das feministas, compre depressa ingressos<br />

para o maravilhoso “show” do cantor X, o curso para<br />

“Ser Feliz” do Professor Z. Na ausência de tudo disso, faça<br />

parte do clube dos amigos de qualquer coisa. O nome não<br />

importa. Se este não for seu caso, para o bem de sua saúde<br />

mental, comece a comprar. Compre qualquer coisa: um<br />

lápis colorido, um Papai Noel, uma boneca, uma cafeteira,<br />

uma camisa do seu time ou uma arca enorme para guardar<br />

tudo. É tempo de festa. O importante é o entusiasmo por<br />

algo e, talvez, quanto mais ridículo e estranho, maior efeito<br />

terá na produção de energia, de prazer e de alegria de<br />

viver. Esse é o mundo sonhado pelo homem moderno que<br />

está em construção. Ou será em desconstrução?<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 85


gUerrA, HerÓiS e inocÊnciA<br />

Os povos sempre produziram bobos, heróis e trapaceiros.<br />

Talvez precisemos deles. Os bobos servem para nos<br />

divertir, os heróis nos fornecem direção e segurança para<br />

as dúvidas e os trapaceiros nos fazem acreditar, por alguns<br />

momentos, em dias melhores. Uma distinção precisa entre<br />

eles não é fácil, pois as três características se misturam<br />

e se completam. Todos trabalham com o povo: o herói<br />

precisa de um público para admirá-lo ou adorá-lo, o bobo<br />

necessita de risadas da plateia, e o trapaceiro aproveita a<br />

ingenuidade e crendice de suas vítimas.<br />

De tempos em tempos, como ocorre agora, os heróis<br />

(ou seriam trapaceiros?) ocupam os espaços dos jornais.<br />

Eles inoculam nas mentes inocentes, através de discursos<br />

virulentos, estimulantes para o tédio do povo. Sua fala,<br />

desprovida de argumentos, inclui, preferencialmente, sons<br />

com forte teor emocional, frases grandiosas, expressas de<br />

forma direta, simples e vaga, escondendo a complexidade<br />

dos temas discutidos.<br />

Palavras oportunas, em grande quantidade, são disparadas<br />

contra a mente de fanáticos admiradores. Sob o<br />

efeito do discurso, cada um em seu canto, interrompe suas<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 87


eflexões pessoais sobre as eternas desigualdades e injustiças<br />

sociais, esquece sua insuportável solidão, sua vida sem<br />

atrativos e sem perspectivas de mudança. O discurso do<br />

guru, milagrosamente, lhe revela alguma razão para viver.<br />

O líder, consciente da submissão, fraqueza e aturdimento<br />

dos liderados, injeta, pouco a pouco, em suas mentes<br />

macias, a figura do inimigo fantasma. Revelado o inimigo<br />

comum, mesmo sendo cada um muito diferente do<br />

outro, os desgarrados se unem.<br />

As palavras do líder, lançadas com sabedoria e precisão<br />

matemática, produtos de refinadas pesquisas das<br />

agências de propaganda, atingem a mente atordoada do<br />

guerreiro em potencial, sendo que a provocação do ódio<br />

concentra-se, inicialmente, num nome. É difícil odiar um<br />

povo, pois esse, além de não ter personalidade, não pode<br />

ser visto. O combatente virtual só sente e entende o concreto.<br />

Termos usados para expressarmos nossa raiva de<br />

todo dia, são utilizados para identificar o inimigo: demônio,<br />

bandido, louco, ditador, agora, terrorista. Uma vez selecionado<br />

o monstro, estende-se a agressão para o povo<br />

da mesma raça.<br />

Doutrinados pelo ódio ao inimigo comum, os convertidos<br />

se sentem encantados, aliviados e felizes por estarem<br />

defendendo uma causa justa e grandiosa. Extasiados,<br />

sentem nascer, no seu íntimo, um vigor e prazer sublime,<br />

nunca antes vivido, fruto de sua conversão a um “xiismo”<br />

qualquer. Assim, milhões de fanáticos, ligados por uma<br />

ideia comum, partem para o ritual da guerra. Nesse ponto,<br />

os objetivos escusos do líder passam a ser os mesmos dos<br />

seguidores, mais importantes que suas vidas.<br />

Estranhamente, e como é estranha a mente humana!,<br />

esses jovens convertidos, antes desorientados, agora<br />

se sentem seguros e tranquilos. Suas intermináveis e dolorosas<br />

dúvidas: “o que fazer?”, ou “para onde ir?” terminam<br />

88 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


com a adesão à guerra. Na mente dos humildes seguidores<br />

despertam sonhos muito antigos de glória e de poder, inatingíveis<br />

pelos caminhos normais de sua vida. Entretanto,<br />

ao se identificar com os discursos do líder, o soldado imagina-se<br />

importante, conhecido e poderoso.<br />

Claro que ele não será famoso como foi John Smith,<br />

por exemplo, Mas ficará famoso por ter morrido como soldado<br />

do regimento importante, de um país importante. Ele<br />

imagina ser um dia famoso e forte como é seu guia idolatrado,<br />

fantasia dias melhores, paz e felicidade. Começa a<br />

sonhar com seu retorno triunfal, seu nome na imprensa,<br />

garotas belas e carinhosas ao seu redor, numa praia ensolarada,<br />

como sempre viu nos filmes sobre os heróis de<br />

guerras anteriores.<br />

Os que já foram enganados outras vezes por diversos<br />

governantes, esperam mais fatos e menos boatos para se<br />

decidirem. Este grupo sabe que as suas experiências são<br />

altamente diferentes das vividas pelos seus superiores. Os<br />

sons que eles pronunciam são os mesmos que todos nós<br />

pronunciamos, mas essas palavras iguais (“guerra”, “inimigo”,<br />

“ditador”, “terrorista”, “incapaz de governar o povo”, “liberdade”,<br />

“democracia” e outras), expressam experiências<br />

muito diferentes, referem-se a mundos totalmente diversos.<br />

Sadam Hussein foi “Deus” para boa parte do povo iraquiano,<br />

Bush foi apoiado pela maioria do Congresso e por grande<br />

parte do povo americano nas votações. Nós, brasileiros,<br />

já elegemos Jânio, a nossa Câmara já aprovou, sem votos<br />

contra, o governo de Costa e Silva, Médici e outros. Stalin<br />

foi herói na Rússia e Hitler, na Alemanha. Com o passar dos<br />

anos, com mais informações e menor número de versões, a<br />

história poderá ser transformada em novas verdades.<br />

Já assistimos a esse “filme” e já conhecemos o perdedor<br />

- o povo dos dois lados - e os vencedores, os governantes<br />

de algumas nações e certos empresários que, como<br />

sempre, aproveitam a situação. Essa é a sua atividade.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 89


Infelizmente os heróis ou trapaceiros voltaram, discursando<br />

como sempre, conduzindo para a guerra, ou para<br />

diversos caminhos estranhos aos nossos, um rebanho de<br />

jovens inocentes. Seriam os tolos?<br />

Vidas e vidas continuam sendo eliminadas, sem ao<br />

menos perguntar aos crentes seus valores e objetivos. Impõem-nos,<br />

em troca do nada, expelindo palavras vazias,<br />

seus objetivos sórdidos. De tempos em tempos, uma multidão<br />

de ovelhas puras e mansas caminha, antes da hora,<br />

para o outro mundo, conduzida por pastores incapazes,<br />

imbecis ou loucos.<br />

90 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


oS mAiorAiS<br />

Alguns sujeitos têm mais sorte que outros: são percebidos<br />

pela população como possuidores de características<br />

muito “superiores” às normais, por isso são chamados<br />

de “gênios”, “santos”, “heróis”, artistas excepcionais, craques<br />

tipo Pelé ou Ronaldinho ou “grandes bandidos” como<br />

o “Fernandinho” e o “Bandido da Luz Vermelha”. Esses indivíduos<br />

não se transformaram apenas em bons médicos,<br />

excelentes atletas ou artistas, eles se transformaram em<br />

mitos. Chamo a atenção do leitor, pois uma coisa é diferente<br />

da outra.<br />

Alguns indivíduos abandonaram sua “humanidade”,<br />

isto é, as mazelas e singularidades positivas e negativas<br />

próprias dos homens, sofreram uma metamorfose, deixaram<br />

a pele humana e passaram a usar vestimentas gloriosas<br />

dos maiorais, tornaram-se “heróis”, “santos” ou “malfeitores”<br />

extraordinários.<br />

Faço uma pergunta para mim mesmo: O que faz com<br />

que um determinado indivíduo, aos poucos, deixe de ser<br />

homem e torne-se mito? O que leva uma pessoa a receber<br />

uma categorização de tão alto nível? Não estou falando de<br />

uma habilidade comum como “ter um bom ouvido”, uma<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 91


“bela voz” ou uma boa memória. E muito mais: por que<br />

o processo de cristalização dessas honrarias ou acusações<br />

se deu em torno daquele determinado indivíduo e não de<br />

outro qualquer? De modo concreto: por que Santo Antônio<br />

tornou-se santo numa certa época e não antes ou depois e,<br />

além disso, santo casamenteiro, S. Judas Tadeu metamorfoseou-se<br />

em protetor das “causas perdidas”, Fernandinho<br />

Beira-Mar, virou um perigosíssimo bandido?<br />

Frustro o leitor. Não tenho respostas, tenho especulações.<br />

Talvez certos indivíduos sejam possuidores de determinados<br />

aspectos físicos, intelectuais ou morais, que se<br />

adaptam melhor a uma história mítica pré-existente, bem<br />

conhecida, contada repetidamente. Um certo modo de ser,<br />

de olhar, andar, bem como as roupas usadas, etc., facilitariam<br />

uma melhor assimilação conforme o modelo de “Cinderela”,<br />

enquanto outro se assemelha mais ao estereótipo<br />

de “demônio”.<br />

Todos nós, muito cedo, ouvimos, emocionados, histórias<br />

míticas ou lendas, contadas pelos nossos pais, avós,<br />

professoras, entre elas: Gata Borralheira, Chapeuzinho<br />

Vermelho, Robin Hood, Gúliver. Por outro lado, também os<br />

jornais, filmes e TVs nos informaram acerca de bandidos<br />

espetaculares e craques fora-de-série. Pode ocorrer que,<br />

mais tarde, ao observarmos certas condutas, determinamos<br />

e selecionamos certos aspectos da pessoa e, após enfatizá-las,<br />

identificamos os atributos com as características<br />

armazenadas em nossa mente do mito: “Oh! É a própria<br />

Gata Borralheira!”, “Esse é outro Pelé!”, “É outro bandido<br />

da mala”. Com as pistas e as noções memorizadas da lenda<br />

aprendida, associamos alguns fatos percebidos do indivíduo<br />

alvo. Os fatos selecionados e enfatizados, muitas vezes, são<br />

características quase ou nada significativas, seja no aspecto<br />

físico, seja na conduta do indivíduo observado para que<br />

seja dado o rótulo final de gênio ou de santo. De posse das<br />

92 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


ideias da lenda armazenadas em nossa memória, assimilamos<br />

o cidadão focalizado e passamos a classificá-lo disso<br />

ou daquilo. Não sei se essa explicação tem algo de verdadeiro,<br />

mas é um palpite meu nesse momento.<br />

Mas vamos um pouco além dessa ideia, pois já penso<br />

ser ela simples demais, até um pouco boba. Talvez ganhe<br />

mais sua atenção com as novas suposições que acabei de<br />

ter. Na maioria das vezes, o rótulo colocado é percebido<br />

pelo “rotulador” como tal, ou seja, como rótulo. Nesse<br />

caso, o “rotulador” reconhece claramente que o rotulado<br />

não é o personagem do mito. Exemplificando: a pessoa<br />

sabe que o símbolo por ele usado ao chamar determinada<br />

mulher de “Gata Borralheira” não representa a realidade,<br />

pois ela é, de fato, a lavadeira Teresa.<br />

Entretanto, algumas vezes ficamos confusos e podemos<br />

confundir as ideias estocadas em nossa mente com<br />

respeito ao mito com a pessoa identificada e, posteriormente,<br />

rotulada. Nesse caso, passamos a acreditar que<br />

Teresa é a “Gata Borralheira” e não a lavadeira. Não se<br />

assustem, isso não é tão raro assim. É bastante comum.<br />

Isso torna a coisa complicada. Passamos a denominar e,<br />

logicamente, a enxergar ou tratar a pessoa rotulada conforme<br />

o rótulo usado: gênio, herói, santo, milagreiro, etc.<br />

Assim, passamos a acreditar totalmente na nossa categorização,<br />

no rótulo usado, deixando de lado o exame ou as<br />

observações possíveis de serem realizadas.<br />

Vamos imaginar, como exemplo, a afirmativa: “Minha<br />

mãe foi uma santa”. Se repetimos isso diversas vezes,<br />

contando para os outros e para nós mesmos, aos poucos,<br />

para nós, ela se torna “santa”. Entretanto, ela jamais agiu<br />

conforme as determinações dos candidatos a santos, mas<br />

passamos a acreditar nas nossas ideias, que eram inicialmente<br />

meras suposições e, numa época, sabíamos que estávamos<br />

conjeturando. Aos poucos, com segurança, sem<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 93


dúvida, passamos a acreditar na nossa ideia delirante, que<br />

nossa mãe, sem dúvida nenhuma, foi mesmo uma santa,<br />

não a do pau oco.<br />

Nesse caso, falamos que houve uma transformação<br />

do real para o ideal. Como afirmou o “gênio” Pascal: “Aja<br />

como se acreditasse; reze, ajoelhe-se e você acreditará, a<br />

fé chegará por si”. Você poderá lembrar de outros rótulos:<br />

burro, bonito, inteligente, esperto, molenga, educado.<br />

Vamos a outro exemplo: por mais que a pessoa demonstre<br />

que ela é gente como a gente, como ocorreu com<br />

Maria da Silva que tem diarreia, menstruações dolorosas,<br />

alimenta e defeca, age, muitas vezes, burramente, como<br />

todos nós, passamos a imaginá-la como santa, sábia ou<br />

uma perigosa bandida, isso não importa. Ela passa a ser<br />

classificada como muito diferente de nós. Num grau semelhante<br />

e muito frequente, não sei bem se pequeno ou<br />

grande, a rotulação inadequada ocorre quando amamos ou<br />

odiamos alguém. Embevecido, arrebatado pelo desejo e<br />

paixões avassaladoras, Amadeu visualiza e categoriza sua<br />

amada, não como ela é de fato: com sua perna fina e as<br />

coxas grossas, um ombro mais alto do que outro, a testa<br />

cheia de rugas. Ele a enxerga, sim, conforme os mitos que<br />

possui acerca da beleza e elegância e, inconscientemente,<br />

como afirmou Pascal, passa a enquadrá-la: “um corpo esbelto,<br />

uma testa lisa e sedosa, olhos brilhantes e sedutores<br />

e uma sagacidade de espantar, um amor de mulher”. A<br />

“sabedoria” popular tem um provérbio para resumir tudo<br />

isso de forma mais simples e mais exata do que escrevi:<br />

“Quem ama o feio, bonito lhe parece”.<br />

Portanto, algumas pessoas se transformam em mito<br />

para um indivíduo - como exemplifiquei acima - outros,<br />

para um grupo, país ou para grande parte da população,<br />

como ocorreu com a Irmã Teresa de Calcutá. Esta, como<br />

consta na sua história, viveu parte de sua vida como uma<br />

94 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


santa, mas não toda a vida. Sei que é difícil ir contra esse<br />

estereótipo para os seguidores do catolicismo. Alguns leitores<br />

não gostaram, franziram a testa reprovando minhas<br />

especulações. Mas essa afirmação encaixa-se no exemplo<br />

geral do que estou descrevendo: uma transformação ou<br />

um estereótipo mítico de uma pessoa que viveu, até uma<br />

época de sua vida, como todos nós.<br />

Podemos dizer, de uma outra maneira, que a população<br />

absorveu a pessoa indicada, que ela se encaixou no<br />

assimilador mítico pré-existente (mito do herói, do rei justo,<br />

do fora-da-lei, do nobre, do santo, do sábio etc.) como<br />

pessoa mítica, isto é, possuidora de características excepcionais<br />

anteriormente já descritas para outras figuras mitológicas.<br />

Esse encaixe do indivíduo ao mito do herói, santo<br />

ou demônio, apareceu muito cedo na imaginação dos<br />

homens.<br />

Uma vez iniciada a construção do mito, ou seja, a<br />

transformação de um homem normal num mítico excepcional,<br />

esta edificação continua através de sua vida. A partir<br />

do seu reconhecimento como homem extraordinário,<br />

seus novos feitos ou condutas, geralmente semelhantes<br />

às de todos nós, passam a ser vistas de forma deformada<br />

pelo novo estereótipo existente. A conduta do ser mítico é<br />

observada e julgada com os novos óculos usados, o novo<br />

prisma deformador da realidade, de acordo com o rótulo<br />

recebido: santo, herói, malfeitor, um amor de mulher,<br />

super-honesto ou outro qualquer.<br />

Nomeado herói, santo, craque, grande artista, os esforços<br />

são feitos para que ex-candidato à figura mitológica,<br />

uma vez empossado no cargo, se estabilize, ou seja, não<br />

retorne à sua normalidade anterior, a de um homem medíocre<br />

como são os homens comuns como eu e você, leitor.<br />

Dessa forma, os fatos ocorridos anteriormente - antes da<br />

pessoa ter se tornado uma “figura mítica”, a “santa” ou o<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 95


“herói” - passam a ser examinados de maneira deformada.<br />

Procuramos dar aos fatos comuns uma conotação “santificada”,<br />

“heróica”, para se adaptar ao novo status atingido.<br />

Ele não é mais um homem qualquer, logo, não mais<br />

pode ser examinado como tal, ele agora é Chico Xavier,<br />

um santo, um homem extraordinário, boníssimo. Não poderemos<br />

mais enxergar nele as características humanas<br />

que todos possuímos, pois ele é um ser diferente, só pode<br />

ser examinado, observado e avaliado conforme o molde<br />

mítico existente na mente dos observadores. Sentimo-nos<br />

mal, sentimos asco, se usarmos nosso assimilador mental<br />

normal para examinar Moisés, Chico Xavier, Madre Tereza,<br />

Freud, nosso pai, mãe e, logicamente, nossa querida namorada<br />

atual, pois depois ela se transforma numa pessoa<br />

semelhante às outras...<br />

Temos a tendência de manter inalterável um determinado<br />

modelo que temos das pessoas com as quais lidamos.<br />

Assim, por exemplo, se gosto de uma pessoa, procuro atos<br />

seus que comprovem minha hipótese, inclusive os fatos<br />

que aconteceram antes de conhecê-la. Por outro lado, não<br />

percebo, não aceito ou não acredito nos eventos que negam<br />

as crenças existentes em minha mente. Se odiar, uso<br />

o raciocínio oposto.<br />

Muitas vezes, após aceitarmos por muito tempo algum<br />

indivíduo como super-homem (herói, bandido, etc.) damos<br />

uma rasteira no seu prestígio, destruímos sua santidade<br />

ou heroísmo, transformando-o num homem normal.<br />

Isso tem ocorrido entre os grandes estadistas e, mesmo<br />

entre os santos, alguns foram destituídos do status que<br />

gozavam.<br />

O candidato a covarde ou herói, demônio ou santo,<br />

dando tudo certo, não surgindo nenhum acidente de percurso,<br />

se transforma em mito e passa a ser admirado como<br />

tal. Mas não devemos nos esquecer do essencial: fomos<br />

96 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


nós, os “rotuladores”, que o construímos, para isso usamos<br />

mais os símbolos de histórias míticas anteriores, e menos<br />

a realidade observada.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 97


A FABricAÇÃo do Homem ForA-de-SÉrie<br />

Nossa cultura tem poucas fórmulas para usar como<br />

receitas para fabricar os nossos atuais super-homens: heróis,<br />

santos e outros fora-de-série. A mente humana, esgotada,<br />

interrompeu sua fábrica criativa de novos padrões<br />

capazes de transformar um homem comum num mítico.<br />

Sem outra alternativa, só nos resta aplicarmos o modelo<br />

antigo existente num ou noutro candidato a esse posto tão<br />

cobiçado. Para que os candidatos possam se adequar aos<br />

modelos e símbolos pré-existentes dos antigos mitos é preciso<br />

que eles exibam modos de agir e de pensar sugerindo<br />

figuras míticas conhecidas. Quais seriam as características<br />

necessárias para que um indivíduo, até certa época igual a<br />

todos os outros homens, passe a ser percebido, observado<br />

e finalmente rotulado de gênio, herói ou santo?<br />

Sabemos que o fantástico sempre esteve presente na<br />

vida do candidato a mito. O incrível dominou a vida dos<br />

santos, do nascimento à morte, seu azar e ao mesmo tempo<br />

sua capacidade imensa de suportar provações terríveis<br />

sem abandonar seus objetivos. Ouvimos inúmeras histórias<br />

acerca dos cavaleiros que realizaram façanhas sobrehumanas<br />

na política, religião, esporte, proezas jamais realizadas<br />

por nós, pobres mortais de segunda classe.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 99


Um outro fator necessário à fabricação do mito tem<br />

sido seu nascimento e sua morte diferentes da dos outros<br />

homens.<br />

Histórias incríveis têm sido contadas para descrever o<br />

nascimento da figura mítica, enquanto outros relatos associam<br />

a morte do mito às grandes catástrofes.<br />

Uma associação da morte do herói com as desgraças<br />

sociais leva a população a imaginar uma ligação de causalidade<br />

entre os dois fatos. Na mente de seus adoradores,<br />

a morte do herói passa a ser “causa” dos sofrimentos do<br />

povo, gerando o raciocínio de que, caso ele estivesse vivo,<br />

os acontecimentos tomariam um rumo diferente. “A partir<br />

da morte de minha amada não fui mais o mesmo homem”.<br />

Os heróis ou santos não morrem como nós. As histórias<br />

nos mostram que a maioria dos super-homens teve morte<br />

trágica. Não fica bem para um ser excepcional ter uma<br />

morte devida a um nó nas tripas ou um engasgo com um<br />

naco de carne. A morte desastrosa sempre estimulou a<br />

mente popular, para lembrar e venerar mais e mais seu<br />

herói predileto por algum tempo. Os mais velhos recordam<br />

alguns de nossos mitos e suas mortes: João Pessoa, Getúlio<br />

Vargas, Juscelino Kubitschek e outros.<br />

O processo de cristalização de personagens míticas<br />

não se restringe a governantes. Como exemplo de mitos<br />

não-governantes podemos citar: Padre Eustáquio e Ayrton<br />

Senna. Mas, além desses heróis, o molde mítico pode<br />

adaptar-se também a outros tipos, os chamados heróismarginais<br />

ou vilões populares: Robin Hood, Escadinha,<br />

Mariel Mariscot, Fernandinho Beira-Mar, Lúcio Flávio, Hussein,<br />

Bush e outros.<br />

A sabedoria também é um fator importante na feitura<br />

do mito. Não se pode conceber um santo ou um herói burro.<br />

Um Ulisses da Odisséia, ou o Guimarães, Einstein, Churchill<br />

ou Lenine, foram considerados, todos, muito inteligentes.<br />

100 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Incorporado à sabedoria, o homem-mito necessita ser sagaz<br />

e esperto, além de possuir a bravura e audácia, como<br />

tem sido descrita pelos admiradores de Hitler e Stalin.<br />

Precisa ainda ter uma força extraordinária, como Hércules,<br />

Atlas, e também, se possível, poderes imensos que<br />

possibilitam ligações com outros deuses excepcionais, ou<br />

mesmo sobrenaturais: Lao-Tsé, Buda, Confúcio e Maomé,<br />

entre outros.<br />

Alguns homens que foram transformados em mitos<br />

assimilaram, ao mesmo tempo, diversos estereótipos míticos,<br />

eles se encaixaram entre os “plurimitos” ou “supermitos”.<br />

Esses felizardos, inicialmente, tiveram um nascimento<br />

fantástico, depois, uma sabedoria superior ao homem<br />

comum, além disso, possuíam a esperteza dos fora-desérie<br />

e ligações poderosas com forças do bem ou do mal.<br />

Tinham ainda, para esnobar, uma força física extraordinária<br />

e feitos impossíveis para os normais. Um exemplo<br />

desse supermito é o de Ulisses, o da Odisséia de Homero,<br />

retratado há mais de 2.000 anos. Este mito encarna as peripécias<br />

sensacionais de um herói capaz de causar inveja a<br />

qualquer candidato a aprendiz de semideus ou de deus.<br />

Lamentavelmente, muitos supermitos e mitos, da<br />

mesma forma que se tornaram homens percebidos como<br />

superiores, rapidamente se transformaram em antimitos.<br />

O povo, ora elege um homem a santo ou guerreiro, ora o<br />

destrói, tão rapidamente como o construiu. O mito anterior<br />

torna-se um covarde, demônio ou idiota. A história nos<br />

mostra como a ascensão de diversos ídolos mundiais teve<br />

uma duração efêmera: Hitler, Stalin, Mussolini, Getúlio<br />

Vargas e Collor são alguns exemplos. Muitos – nem todos -<br />

anos depois de atingirem o status de mitos, passaram a ter<br />

dores de barriga, câncer, doença de Alzheimer, adoeceram<br />

e morreram, confusos, esqueléticos, fracos e submissos,<br />

como possivelmente acontecerá a todos nós.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 101


o QUe deSeJAm AS PeSSoAS?<br />

Muitas pessoas desejam não ser obesas, nem cheirar<br />

mal, ter filhos lindos e saudáveis, ter boa saúde, belos<br />

dentes e um sorriso bonito. Ter dinheiro, boas roupas, um<br />

carro possante, uma casa sem barulho, segura e confortável.<br />

Estar cercadas de amigos e familiares, não serem<br />

feias, amar e serem amadas, possuir coisas valiosas, ter<br />

sucesso na profissão e no casamento. Terem uma autoestima<br />

alta, não serem passadas para trás, fazerem viagens<br />

maravilhosas e, por fim, terem uma boa velhice e uma<br />

morte digna.<br />

Mas as pessoas não se preocupam se seu desejo,<br />

uma vez realizado, será bom ou não para elas. Nossos<br />

desejos estão presos a valores e estes são transmitidos na<br />

infância, aprendidos sem critério do meio social ou surgem<br />

como reações ao ambiente. As crenças, desejos e os valores<br />

passam de uma pessoa à outra, geralmente na infância<br />

e adolescência, através do contato e aprendizagem com<br />

indivíduos “dignos de crédito”.<br />

Cada pessoa, dependendo do seu sistema de valores,<br />

de suas premissas básicas, defende com ardor seus desejos.<br />

Assim, o “hedonista” valoriza e quer “levar vantagem<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 103


em tudo”, busca o prazer e foge do sofrimento. O prático,<br />

adepto da ética utilitária, dá prioridade ao útil. Os seguidores<br />

da ética social afirmarão seguros: “tudo que melhore as<br />

condições sociais dos homens deve ser procurado em primeiro<br />

lugar”. Os fiéis da ética religiosa evitam os pecados<br />

e procuram a conduta virtuosa revelada e prescrita pela<br />

religião seguida. Para os “naturalistas”, adeptos da ética<br />

do organismo, o bom é ter uma mente sã junto ao corpo<br />

forte, bonito e saudável e, assim, devemos fazer exercícios<br />

físicos, comer frutas e legumes, evitar bebidas alcoólicas,<br />

drogas e o fumo. Os relativistas, em dúvida, pensam: “o<br />

critério do que é bom e mau depende do indivíduo e da<br />

situação onde se dá o fato, tudo é relativo”.<br />

Os artistas, seguidores dos valores estéticos, exaltam<br />

o belo e o sublime e rejeitam o feio e o ridículo. O<br />

justiceiro, defensor incansável dos valores do que é certo,<br />

luta, com as leis ou as armas, pela justiça e punição dos<br />

“culpados”. Os adeptos da política discursam em defesa<br />

do poder, do governo e, por fim, os lógicos lutarão pela<br />

verdade, a certeza e abominam o raciocínio incongruente<br />

ou falso. Existem outros valores defendidos com “unhas e<br />

dentes” pelos seus partidários. Todo homem valoriza mais<br />

alguma coisa do que outra e pensa que os valores do outro,<br />

quando diferentes dos seus, são mesquinhos, idiotas<br />

e absurdos.<br />

Não existem valores objetivos. Não se pode falar que<br />

isto é melhor do que aquilo, ou é “melhor” comer chuchu<br />

do que dançar”. Não se pode comparar uma coisa com a<br />

outra, quando não há parâmetro para isso. Não há nada<br />

que seja bom para todos e mau para todos. Os governantes<br />

sofrem por isso. Os moradores da rua Maria de Souza<br />

acham que a prefeitura deveria, prioritariamente, calçá-la,<br />

mas a comunidade do Bairro Esperança pensa ser “absurdo”<br />

não existir uma linha de ônibus para servir a região.<br />

104 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Um grupo acha que as árvores devem ser cortadas para a<br />

construção de uma fábrica, pois esta gerará mais empregos<br />

em Santana da Misericórdia. Mas outros fazem abaixoassinado<br />

contra o corte, pois este irá perturbar o equilíbrio<br />

ecológico.<br />

As nossas instituições sociais não possuem uma maneira<br />

fácil ou mágica de tratar os valores antagônicos e<br />

múltiplos, como se descreveu acima. Precisamos de empregos<br />

e de um bom meio ambiente. As discussões acerca<br />

do melhor, para um ou para todos, continuarão eternamente,<br />

para alegria dos defensores de qualquer uma dessas<br />

ideias.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 105


Homem: AnimAL contrAditÓrio<br />

O homem é um animal “fora de série”, estranho e desadaptado.<br />

Somos isolados, mas vivemos altamente ligados<br />

uns aos outros. Temos uma parte da mente que pensa,<br />

às vezes com alguma lógica, e ao mesmo tempo, uma outra<br />

parte da cabeça presa ao organismo - glândulas, órgãos,<br />

músculos – reage instintiva e automaticamente aos estímulos,<br />

portanto, somos irracionais em diversas ocasiões.<br />

Às vezes somos bondosos, oferecemos muito de nós mesmos<br />

em benefício de nosso irmão, em outros, o assaltamos,<br />

o estupramos ou o matamos. Oscilamos, passando de<br />

um modo de viver cheio de alegria, esperança e fé, para o<br />

mais completo desespero e ódio. Buscamos ansiosamente<br />

a ajuda médica por pequenos problemas de saúde e, muitas<br />

vezes, menosprezando a própria vida, nos suicidamos.<br />

Trabalhamos duramente para conseguirmos recursos<br />

visando obter casa, comida e segurança. Entretanto,<br />

ao atingirmos o desejado, passamos a comer exageradamente,<br />

acumulamos dinheiro desnecessário e arriscamos<br />

nossa vida em atividades perigosas como lazer. Fazemos<br />

guerras, para conseguirmos a paz. Lutamos contra os poderosos<br />

e quando estamos no poder, quase sempre atu-<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 107


amos de todas as formas, no sentido de eliminar os de<br />

menor poder. Criticamos violentamente os torturadores<br />

e, na primeira oportunidade, passamos a agir como eles.<br />

Buscamos de todas as formas possíveis uma companhia,<br />

e quando a conquistamos, a achamos aborrecida e vamos<br />

atrás de outra.<br />

Censuramos a censura, quando ela é extirpada, cada<br />

grupo ideológico reclama seu retorno. Como equilibrar-se<br />

numa “zorra” dessas? Esses pensamentos me ocorreram<br />

ao lembrar-me de Cícero.<br />

Conheço-o há longos anos, acho mesmo que desde<br />

criança. O nosso convívio sempre foi muito íntimo e isso<br />

permitiu obter muitas informações a seu respeito, como, até<br />

mesmo, elaborar algumas teorias acerca de sua vida. Apesar<br />

dessa proximidade, na maior parte das vezes eu não o entendo<br />

e, quando suponho compreendê-lo, vejo que falhei.<br />

Cícero é um pesquisador sério da natureza. Lê muito,<br />

presta atenção a tudo e armazenou, ao longo dos anos,<br />

vastos conhecimentos científicos e históricos do mundo e<br />

do homem. Entretanto seu “radar” é muito abrangente e<br />

pouco seletivo. Desse modo ele captou também crenças<br />

infundadas, superstições diversas, ideias religiosas emitidas<br />

por qualquer seita moderna e, além disso, aceita inúmeras<br />

“verdades” do senso comum. A cabeça do Cícero<br />

virou uma verdadeira salada, contendo informações desordenadas,<br />

contraditórias e pouco plausíveis. Todas elas<br />

seguidas e defendidas com o mesmo vigor e entusiasmo. O<br />

resultado tem sido drástico. Diante de tantas informações<br />

niveladas em termos de valor, algumas sérias, outras nem<br />

tanto, ele foi arrastado para uma profissão que lhe é imprópria,<br />

escolheu amigos inadequados ou incompetentes,<br />

casou-se com uma mulher que não lhe assentava e criou<br />

seus filhos na falsa esperança que boas intenções são suficientes<br />

para conduzir a uma boa educação.<br />

108 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Mas Cícero é um homem bravo, valente e teimoso.<br />

Ele continua confiante no “mapa” desajustado e confuso<br />

existente em sua mente e vai em frente.<br />

É claro que o “território” onde ele está pisando é bastante<br />

diferente do “mapa” existente em sua representação<br />

mental. Portanto, quando ele está deitado em sua cama,<br />

pensando que tudo vai bem, ao levantar-se e ao agir, ele é<br />

obrigado a perceber que o “mapa” que representa seu mundo<br />

é um, o mundo real é outro. Assim, meu grande amigo,<br />

frequentemente lamenta-se para si ou para os outros: “Sou<br />

um desastrado, um sem sorte, tudo que tento dá errado”.<br />

O modelo que construiu de si mesmo e do mundo,<br />

nesse caso, foi acrescido de mais uma crendice: “Sou um<br />

sem sorte”. Assim Cícero gasta parte de seu precioso tempo<br />

lastimando-se, utilizando pouco seus recursos e potencialidades.<br />

Por tudo isso, ele fracassa em diversas atividades,<br />

perde a oportunidade de obter várias satisfações e<br />

exibe ressentimento e infelicidade.<br />

Cícero não se emenda, pois, por mais que ele transgrida<br />

as leis da natureza e da sociedade, ele não modifica seu<br />

modo de pensar e agir, isto é, não aprende com a experiência<br />

vivida. Ele é, como disse, um sujeito contraditório, em<br />

certas ocasiões Cícero só cuida de si. Nessas ocasiões, ao<br />

ser importunado, agride, xinga ou, no mínimo, não ajuda<br />

ninguém. Outras vezes, porém, gasta seu tempo, que é curto,<br />

ajudando, ouvindo lamentações aborrecidas dos outros,<br />

até mesmo de pessoas que mal conhece ou que sabe que<br />

não gostam dele. Durante essa fase, ele empresta dinheiro,<br />

procura emprego e aconselha pacientemente os pedintes.<br />

A maneira de pensar de Cícero também é estranha.<br />

Ele é economista, seu raciocínio é lógico, tanto no serviço<br />

como nos aspectos de sua vida relacionados à sua área de<br />

trabalho. Eu diria até que “lá” ele pensa matematicamente.<br />

Não há imprecisão ou ideias preconceituosas.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 109


De cada premissa elaborada, sempre bem postada,<br />

ele deduz conclusões com proposições que não contêm nenhuma<br />

dúvida, exibindo clareza de pensamento produzido<br />

por uma razão lúcida e expresso sem palavras ambíguas.<br />

Pois bem, o racional Cícero, ao abordar outros problemas<br />

humanos fora do seu domínio estrito, se lambuza<br />

todo. Quando abordava os temas do dia-a-dia, na política<br />

ele é brizolista, em religião, ele abraçou as ideias do<br />

Boff, no amor... bem não posso revelar, e até no futebol,<br />

onde sua paixão é o Atlético, ele se torna, de repente, um<br />

perfeito animal irracional. Toda sua bela lógica mental é<br />

transformada em palpites, preconceitos, desejos, fé cega,<br />

superstições, incoerências uma após outras, deduções<br />

apressadas, hipóteses duvidosas e não comprovadas e assim<br />

por diante, de modo a envergonhar qualquer tratado<br />

elementar de lógica. Nesses momentos, o Cícero torna-se<br />

outro ser, um não humano, carregado de emoção, impulsivo,<br />

não sabendo mais argumentar e nem ouvir argumentos<br />

de seu opositor. Levanta a voz, enfurece-se, desafia, às<br />

vezes parte até para as “vias de fato”.<br />

Eu, que já conheço essas reações, o perdoo. Mas é<br />

comum ele brigar até comigo, grande amigo seu, quando<br />

se torna irracional. Depois, mais tarde, arrependido, ele retorna<br />

com a sua outra mente e eu o aceito como sempre.<br />

Cícero não me surpreende só nesses aspectos. Olho-o<br />

com tristeza, lamentando comigo mesmo como pode uma<br />

pessoa que tem uma bela inteligência, experiência, crítica<br />

e cultura ser tão preso às regras, sem nunca duvidar delas,<br />

agindo como um cordeiro às suas imposições.<br />

Levanta-se sempre à mesma hora, vai para o serviço,<br />

pelo mesmo caminho, nunca falta a este, chega no mesmo<br />

horário, deixa o carro no mesmo lugar. Repete no trabalho,<br />

maquinal e automaticamente, as mesmas atividades, os<br />

mesmos gestos, sorrisos, expressões e conversas, usando<br />

110 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


frases apropriadas para cada pessoa. Nada é criado, nada<br />

é diferente. Parece haver dentro dele um medo à espontaneidade,<br />

um pavor em ser diferente, um culto à mesmice.<br />

Seu “computador mental” é dominado no serviço, no lazer,<br />

em tudo, uma programação repetitiva e monótona. Mas, já<br />

disse que o Cícero espanta-me.<br />

Surpreendo-me com ele, em nossas tertúlias ocasionais,<br />

principalmente após alguns cervejas bem geladas,<br />

que descem devagar. Nesses momentos aparece um novo<br />

programa no seu “computador mental”. Cícero torna-se<br />

um indivíduo prático, criativo e com propósitos individuais.<br />

Critica com sabedoria e elegância todos os modelos humanos<br />

existentes que paralisam o ser humano.<br />

Sob o efeito do álcool ele cresce, abandona o automatismo,<br />

começa a filosofar, critica as “verdades” que ele,<br />

no trabalho, segue sem pensar, defende a necessidade do<br />

crescimento do indivíduo como meta principal para qualquer<br />

ser humano cuja missão fundamental seria atualizarse.<br />

Põe em dúvida diversos valores geralmente seguidos<br />

inconscientemente pela multidão solitária e sem rumo.<br />

Nesse momento, ele traça planos, chegando até a executar<br />

alguns deles nos dias seguintes.<br />

O novo Cícero defende a necessidade de nos libertarmos<br />

dos preconceitos e das superstições, de seguirmos<br />

objetivos mais humanos e mais produtivos.<br />

Entusiasmado, acredita que dentro de nós há recursos,<br />

energia, força e coragem suficiente para transformar<br />

esse mundo injusto e massacrante, num mundo melhor.<br />

Esses arroubos são, porém, rapidamente amortecidos...<br />

Fico confuso: jamais entendi Cícero. Entretanto, após<br />

pensar um pouco, descobri que ele se parece comigo e<br />

também com todos vocês, meus caros leitores, com os<br />

seres humanos...<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 111


A VerdAde de cAdA Um<br />

A conduta do homem é determinada pelo que ele pensa,<br />

acredita, representa e prevê. Através do trabalho cognitivo,<br />

ele tenta construir para si um mundo significativo e,<br />

para isso, ele classifica e ordena uma multidão de fatos, de<br />

objetos e de pessoas, que julga conhecer em detalhes.<br />

Os acontecimentos estão constantemente ocorrendo<br />

em torno de nós e são ordenados de acordo com diferentes<br />

concepções ou interpretações. Somos nós, conforme<br />

nosso próprio modelo mental, que organizamos, em nosso<br />

pensamento, certos acontecimentos e não outros, enfatizando<br />

alguns deles, valorizando uns mais do que os demais<br />

e criando assim sentido para fatos não organizados<br />

e sem significado. Nunca chegamos a captar a verdade<br />

“verdadeira”, pois ela é realmente criada de acordo com o<br />

momento que estamos vivendo, adequada àquela situação<br />

particular.<br />

Com frequência, acreditamos estar de posse da verdade<br />

ao percebermos certa relação prática e funcional entre os<br />

nossos desejos e esperanças e os resultados aparentes de<br />

nossas ações. Ao estabelecermos apenas uma concepção da<br />

realidade caótica, eliminamos várias outras interpretações<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 113


possíveis, e ficamos convencidos ser a nossa análise a única<br />

aceitável ou correta. Vejamos alguns exemplos: um garoto<br />

residindo na zona rural criou um modelo de diversão a partir<br />

de uma bola, um cão e algumas brincadeiras existentes em<br />

sua cidade. Um dia ele veio passear em BH e visitou um parque<br />

de diversões. Provavelmente ficou boquiaberto, confuso<br />

ao ver tanto brinquedo desconhecido.<br />

Ora, o “deslumbramento” seria o oposto caso o menino<br />

estivesse acostumado a visitar a Disney World. Um segundo<br />

exemplo: uma adolescente de 15 anos conquista o seu<br />

primeiro namorado, um imberbe de 16 anos. Fica encantada<br />

com suas declarações de amor, com sua técnica eficiente<br />

de abraçá-la e beijá-la. Posteriormente, conhece um rapaz<br />

treinado nessa arte com esmero. A mocinha passa a ter um<br />

novo modelo, uma nova “verdade” do que seria um “bom”<br />

namorado e reformulará o seu julgamento inicial.<br />

O amigo leitor poderá lembrar-se de vários exemplos<br />

pessoais: suas preferências culinárias antigas e as de hoje.<br />

Suas escolhas passadas e as atuais quanto a música, passeios,<br />

política, literatura, programas de TV, futebol, etc. A<br />

sua concepção do mundo, com a idade tornou-se diferente,<br />

seu “mapa mental”, ainda que vivendo num “território”<br />

muito semelhante ao antigo, não é mais o mesmo. Agora,<br />

possuindo novos valores, você percebe acontecimentos<br />

não antes notados, representa fatos ao seu redor de maneira<br />

diferente. “Enxerga” o mundo com outros “olhos”.<br />

Muitos se contentam com uma “verdade” única, se<br />

agarram a ela e nunca a abandonam, evitando, a qualquer<br />

preço, o seu questionamento e, também, a dúvida e a incerteza<br />

que outras ideias poderiam trazer. Esses fanáticos<br />

querem manter, a todo custo, uma segurança impossível<br />

de ser conseguida nos seres humanos.<br />

As primeiras “verdades” com as quais convivemos<br />

não são concepções nossas, mas sim dos nossos educa-<br />

114 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


dores: pais, professores, companheiros e outros. Elas nos<br />

são transmitidas, na maioria das vezes, de maneira simples,<br />

ingênua e até mesmo tola.<br />

Uma vez inculcadas essas “verdades”, elas nos darão<br />

uma representação do mundo semelhante à dos nossos<br />

educadores. As novas informações que nos chegam posteriormente,<br />

com frequência vêm fortalecer as ideias primitivas,<br />

pois o comum é convivermos com pessoas que pensam<br />

de modo semelhante ao nosso, lermos livros previamente<br />

censurados e assim por diante. Psicologicamente é mais fácil<br />

manter as verdades iniciais, pois assim não temos que repensar,<br />

jogar por terra crenças queridas e familiares, o que<br />

nos obrigaria a reformular nossa conduta ao criarmos novos<br />

modelos mentais. Não é fácil trocar a verdade “minha mãe<br />

sempre me amou”, por “minha mãe, que frequentemente<br />

me odiava” ou “minha namorada só se encontra comigo”<br />

pela nova concepção “minha namorada está me traindo com<br />

outro”. Muitas vezes, apesar de todas as evidências, continuamos<br />

a adotar a crença inicial. Quase sempre só com<br />

algum sofrimento, até mesmo com algum sentimento de<br />

culpa, é que conseguimos mudar as “verdades” iniciais,<br />

principalmente quando as novas são totalmente diferentes<br />

das antigas.<br />

O homem é um inventor de verdades, um conceptualizador<br />

de acontecimentos, um representador de uma<br />

realidade que ele nem sabe quanto de real ela tem. E como<br />

se dá essa invenção? Por capricho, raciocínio ou pressão<br />

dos fatos? Ainda não possuo essa verdade, mas gostaria<br />

muito de tê-la.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 115


AFirmAÇÕeS dUVidoSAS<br />

A psiquiatria incorporou e se desfez de muitas verdades,<br />

hoje criticadas, como a caça e queima às bruxas, o<br />

mesmerismo, a malarioterapia, o eletrochoque, a insulinoterapia,<br />

a lobotomia e várias psicoterapias não-científicas,<br />

entre elas a psicanálise.<br />

A lista não termina aqui. Cada um desses modelos<br />

teve sua época com o nascimento, crescimento e esplendor,<br />

seus seguidores fervorosos, entre médicos, psicólogos<br />

e também entre os clientes e o público. Há pouco tempo<br />

surgiram mais duas novas verdades, como sempre aceitas<br />

como panaceias pelos seus adeptos: a neurolinguística e a<br />

psiquiatria biológica. Daqui a dez ou talvez vinte anos, no<br />

máximo, possivelmente acharemos graça em algumas de<br />

suas afirmações. É só esperar o tempo passar.<br />

Durante a minha adolescência ouvi um professor afirmar,<br />

em sala de aula, que a masturbação causava, entre<br />

outros males, a tuberculose, o reumatismo e a loucura.<br />

Mais tarde ouvi na escola de Medicina um professor afirmar<br />

que nós devíamos, ao examinar um paciente, pensar “sifiliticamente”,<br />

pois a sífilis imitava todas as enfermidades<br />

possíveis. Nós todos acreditávamos nessas afirmações.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 117


Os médicos, de tempos em tempos, enunciam suposições<br />

aceitas como verdades, tanto entre alguns cientistas<br />

como também entre a população. Muitas dessas declarações<br />

hipotéticas – anunciadas como verdades eternas<br />

- têm duração efêmera, outras permanecem vigorando por<br />

um período mais longo.<br />

Alguns desses profetas, mais geniais e corajosos, ganham<br />

notoriedade nacional, internacional e entre a população.<br />

Esses inovadores, ao ganharem maior poder entre<br />

o público e nas academias, entusiasmam-se passando a<br />

emitir julgamentos ou opiniões nos mais diversos campos<br />

do conhecimento humano, acreditando numa falácia: se<br />

são bons num setor, serão bons também nos outros. Os<br />

anunciantes se utilizam muito dessa generalização, colocam<br />

na TV uma personalidade famosa sugerindo o uso de<br />

um produto do qual ela nada entende.<br />

Olhando sob este prisma, o aparecimento desses “gênios”<br />

tem sido frequentemente danoso para a humanidade,<br />

às vezes uma tragédia para o conhecimento, pois ficamos<br />

presos a conhecimentos errados por anos e anos, como “A<br />

Terra é o centro do Universo”, “O Sol é o centro do Universo”,<br />

“Nossa galáxia é o centro do Universo”, “Não existem<br />

outras terras além das da Europa”, “Só podemos estudar<br />

as ciências físicas e biológicas, as psicológicas não, essas<br />

nos são reveladas”.<br />

As afirmações morais ou científicas, devido ao prestígio<br />

do “inventor”, ficam difíceis ou impossíveis de serem criticadas:<br />

ninguém se atreve a ir contra as ideias do gênio criador,<br />

pois esse é intocável. Por tudo isso, uma vez lançadas as<br />

“profecias” do sábio, o conhecimento naquela área é obscurecido,<br />

penetra-se numa era negra da história do pensamento<br />

humano, devido ao poder da barreira simbólica intransponível,<br />

que impede o nascimento de novas e produtivas<br />

ideias. Um exemplo ainda vivo é o das ideias freudianas.<br />

118 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Essas dominaram mentes diversas, por anos, impedindo<br />

o crescimento do conhecimento acerca do ser humano.<br />

Morre hoje “sem foguetes e sem bilhetes”, não deixa<br />

sementes capazes de produzir nada útil para o crescimento<br />

da psicologia. As hipóteses ou teorias equivocadas dos<br />

sábios só desaparecerão com a morte dos autores delas e,<br />

principalmente, de seus fiéis seguidores.<br />

No início do século XIX, ganhou notoriedade nos Estados<br />

Unidos um professor de Psiquiatria, Benjamin Rush.<br />

Usando de seu poder, passou a ditar normas morais para a<br />

população americana. Sua principal pregação foi a respeito<br />

da masturbação. Para o Dr. Rush, pai da psiquiatria americana,<br />

a masturbação, por ser um mal terrível, devia ser<br />

combatida a qualquer preço.<br />

Seu prestígio reuniu seguidores. Teses foram escritas<br />

condenando o terrível mal, tratamentos estranhos foram<br />

recomendados: vários clitóris foram decepados, algumas<br />

mãos amarradas para proteger e impedir as vítimas de<br />

caírem na tentação e tornarem-se “doentes”.<br />

Esse professor afirmou durante suas conferências e<br />

artigos: “a masturbação provoca fraqueza do sêmen, impotência,<br />

disúria, ataxia motora, fraqueza pulmonar, dispepsia,<br />

redução da visão, vertigem, epilepsia, hipocondria,<br />

perda de memória, imbecilidade e morte”. Pinel, o grande<br />

psiquiatra, não ficou para atrás, tendo afirmado acerca do<br />

mesmo assunto: “A masturbação leva à ninfomania”.<br />

Esquirol, outro famoso médico, completou: “A masturbação<br />

é reconhecida em todos os países como sendo<br />

uma causa comum de insanidade”.<br />

Em 1854 foi publicado um editorial no New Orleans<br />

Medical Surgical Journal que dizia, entre outras coisas: “Em<br />

minha opinião, nem a peste, nem a guerra, nem a varíola,<br />

nem uma multidão de males semelhantes foram mais desastrosos<br />

para a humanidade do que o hábito da masturbação:<br />

é o elemento destrutivo da sociedade civilizada”.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 119


Encontrei em minha biblioteca com relíquias de livros<br />

selecionados por meu pai um discurso proferido em 1927<br />

por um famoso professor da medicina brasileira. Em respeito<br />

a ele, deixo de citar seu nome. Esse trabalho foi impresso<br />

e distribuído pelo governo brasileiro aos colégios<br />

“em virtude do seu alto valor educacional”, recomendado<br />

para ser lido em sala de aula. Eis alguns trechos do famoso<br />

discurso: “O álcool é o maior agente de degeneração<br />

da raça; a todos ataca e a todos degenera; é a família<br />

alcoólica dos beberrões, com os seus epilépticos, imbecis,<br />

loucos, deformados e monstros. A beberronia dos pais prolonga-se<br />

nos filhos através do óvulo: pais bêbados, filhos<br />

beberrazes, netos criminosos... nem ao menos é um tóxico<br />

elegante, só ao alcance das bolsas fortes dos ricos; ao<br />

contrário, é o vício deselegante propiciado ao pobre pelo<br />

seu ínfimo preço”.<br />

Não estou aqui fazendo críticas à inteligência desses<br />

senhores, ao seu pioneirismo e coragem. Nós devemos<br />

muito a eles e sem sombra de dúvida todos foram personalidades<br />

marcantes, líderes em suas áreas e altamente<br />

capazes. Humildemente, com todo o respeito, quero dizer<br />

que creio que eles foram longe demais ao afirmar a respeito<br />

de valores e as escolhas de cada um. Suponho que cada<br />

cidadão tem o direito de escolher seu caminho, desde que<br />

respeite os outros.<br />

Os que apreciam a bebida e os masturbadores não<br />

foram respeitados por esses insignes mestres.<br />

120 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


A LoUcUrA:<br />

FABricAÇÃo dA normALidAde<br />

Em 1509 Erasmo de Rotterdam publicou o livro “Elogio<br />

à Loucura”. Suas ideias, muitas delas ainda atuais,<br />

constituem críticas ao chamado bom senso, ao comportamento<br />

racional, à sisudez do indivíduo “quadrado” e bem<br />

adaptado, em oposição à “loucura” que seria a espontaneidade,<br />

a liberdade de expressão e ação e das emoções.<br />

Para ele a loucura seria inata, enquanto que o “normal”<br />

seria imposto e não humano.<br />

Os chamados “loucos”, até o século XV viviam de maneira<br />

harmoniosa com a população de “sadios”. Estes cultivavam<br />

a tolerância e as peculiaridades ou idiossincrasias<br />

de cada cidadão, que eram aceitas e respeitadas como<br />

adequadas à sua natureza singular. Esse relacionamento<br />

harmonioso entre os chamados “normais” e os “não-normais”<br />

ocorre ainda, com frequência, nas pequenas cidades<br />

do interior do Brasil.<br />

O conceito de loucura, condição própria de cada pessoa,<br />

a partir do fim do feudalismo - início de burguesia<br />

- começou a ser modificado quando apareceu um novo<br />

modelo daquilo que seria aceito como sendo a natureza<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 121


humana. Esse novo padrão teórico acerca do homem era,<br />

não só mais restritivo - menos tolerante com as diferenças<br />

individuais - como, também, mais prescritivo. As pessoas,<br />

para não serem taxadas de loucas, deveriam se comportar,<br />

talvez até pensar de acordo com o novo padrão “instituído<br />

e correto” de conduta.<br />

A recém-criada “natureza humana”, fabricada pela<br />

sabedoria burguesa, enfatizava as qualidades da virtude,<br />

contenção, parcimônia e razão, que eram exigidas a todo<br />

e qualquer preço. A partir da nova tese defendida, a loucura<br />

foi encurralada e criticada conforme o novo padrão<br />

de normalidade das pessoas.<br />

As sociedades começaram a estreitar os seus limites<br />

de normalidade, passando a rotular o “louco” e “nãolouco”,<br />

o “são” e o “patológico”, o “normal” e o “anormal”,<br />

como extremos intocáveis de uma escala de medida do<br />

certo e do errado, onde um comportamento era valorizado,<br />

o outro não.<br />

A partir dessa constituição, novas regras de conduta<br />

passaram a ser exigidas, somente algumas aceitas como<br />

corretas. Em lugar de trabalhar para viver, o indivíduo<br />

passou a viver para trabalhar. A definição do normal, que<br />

antes se apoiava muito na maneira de ser do indivíduo<br />

singular a ser avaliado, passou a ser estabelecido, utilizando-se<br />

um modelo supraindividual, criado não mais das<br />

necessidades ou interesses de cada uma pessoa, mas sim<br />

das necessidades do conjunto abstrato: economia e trabalho<br />

colocado a serviço da produção.<br />

Esse novo critério decretou o fim do singular, ao generalizar<br />

o indivíduo. Tornou-se errado ou anormal ser<br />

particular. Só o geral seria normal e o que sair do padrão<br />

será considerado “doente mental”. Mas nem todos concordaram<br />

com essas regras, alguns se rebelaram, surgindo<br />

um novo problema: “Como conter os insubordinados em<br />

122 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


um estado que se dizia liberal e cheio de humanismo”?<br />

Anteriormente os revoltados e rebeldes eram lançados à<br />

fogueira, mas essa prática não é mais tolerada.<br />

Na nova sociedade nós, os bondosos, racionais e virtuosos<br />

deveríamos ser capazes de compreender e tratar<br />

os “loucos”. Nasceram assim as instituições encarregadas<br />

de cuidar deles, ou seja, de coletar o lixo humano produzido<br />

e rejeitado pela sociedade burguesa. Nasce então a<br />

figura ilustre do psiquiatra, juntamente com a criação dos<br />

hospitais destinados a proteger os “normais” do perigoso<br />

contágio dos loucos.<br />

Esse modelo do homem moderno, criado em torno<br />

do séc. XV, forçou a eliminação de um sentimento sempre<br />

existente na mente de grande parte dos homens dessa<br />

época, ou seja, a permissão da liberdade individual. Para<br />

a nova ideologia implantada, a liberdade individual é incompatível<br />

com a subordinação a uma atividade, seja de<br />

trabalho ou seja de lazer, altamente vigiada, lógica, ditada<br />

de fora. Essa coação, até aquela época, só existia nas prisões.<br />

O novo conceito de natureza humana, estranhamente,<br />

construiu o corolário: somos “livres” ao nos subordinarmos<br />

às ideias do Estado, dos empregadores, religiosos<br />

ou de qualquer outro grupo poderoso.<br />

Foram criadas para manter a ordem estabelecida,<br />

visando o normal, leis que exigiam a obediência às normas,<br />

cujo objetivo era proteger as classes dominantes.<br />

Os mendigos, vagabundos, os ociosos e “loucos” de qualquer<br />

espécie passaram a ser tratados como eram antes o<br />

marginais: banidos da sociedade. As instituições, frutos<br />

dessas ideias - casas de correção e de trabalho, hospitais<br />

em geral - teriam como função principal limpar as cidades<br />

da “sujeira” desses desajustados.<br />

Os “hospitais” foram destinados a receberem os grupos<br />

de “marginais” da sociedade sadia – os diferentes –<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 123


um lugar onde, na maioria das vezes, não pisavam os<br />

médicos, só iam para visitas ocasionais.<br />

A direção dos hospitais, entregue às irmãs de caridade,<br />

tratava coercivamente os enfermos através das<br />

orações, penitências e práticas adaptadas ao ensinado.<br />

A medicina daquela época precisava construir ou mesmo<br />

inventar explicações para suas ações irracionais, que se<br />

diziam alicerçadas em bases lógicas e humanísticas. Foi<br />

criada então a “psiquiatria científica”. Esta “descobriu” sinais<br />

e sintomas nas pessoas, indicadores de doença mental.<br />

Esses, na maioria das vezes, eram preconceitos ou<br />

delírios dos psiquiatras da época, tendo como “pano de<br />

fundo” a moral vigente. Eis alguns exemplos dessa “psiquiatria<br />

científica”: “A loucura está localizada nos vasos<br />

sanguíneos”, “A oposição à revolução americana é uma<br />

forma de doença mental e o apoio uma forma de terapia”,<br />

“Sanidade mental é a aptidão para julgar as coisas como<br />

os demais julgam e possuir hábitos regulares e insanidade<br />

é um distanciamento com relação a isso”, “Conformismo<br />

social equivale à saúde mental e inconformismo corresponde<br />

à doença”.<br />

A maneira de pensar e de agir em desacordo com a<br />

forma tradicional passou a ser a principal característica da<br />

nova doença mental, sendo diagnosticada através de vários<br />

dispositivos que mediam a maneira normal e coletiva<br />

de se comportar, necessária à manutenção e crescimento<br />

da burguesia e da harmonia social.<br />

Portanto, os primeiros psiquiatras eram muito mais<br />

“reformadores sociais evangélicos”, pregadores de uma<br />

ética puritana para todos, do que médicos, preocupados<br />

com o bem-estar de seus pacientes.<br />

A cura ocorria quando o paciente aceitava e se comportava<br />

de acordo com as normas sociais pregadas pelo<br />

médico assistente.<br />

124 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Infelizmente, esses comportamentos “moralistas e<br />

normalistas” ainda são vistos com alguma frequência em<br />

nosso meio.<br />

Os clientes, muitas vezes, são julgados, inicialmente<br />

pelos familiares, posteriormente pelo psiquiatra, como<br />

possuidor de uma conduta normal ou anormal, conforme<br />

os padrões e valores percebidos e usados pele grupo dos<br />

examinadores num certo momento. O cliente pode ser repreendido,<br />

tratado sem o desejar, ou “preso” no hospital,<br />

por não tolerar ou não conseguir conviver numa sociedade<br />

que tem como valores fundamentais o trabalho, a produção<br />

e o consumo.<br />

Curvando-se à pressão externa que exigia mão-deobra<br />

barata, trabalhadores braçais foram usados, em profusão,<br />

para atender às necessidades dos sub-empregos<br />

oferecidos: a psiquiatria, atenta às necessidades dos empregadores,<br />

procurou acelerar os processos de “cura”, visando<br />

o retorno ao trabalho dos candidatos o mais rápido<br />

possível.<br />

O psiquiatra, ingenuamente, passou a ser agente da<br />

“normalização” quando a sociedade lhe outorgou o poder<br />

de examinar, julgar condutas e impor um tratamento após<br />

seu veredicto, em nome de um suposto bem-estar geral e<br />

social da coletividade e da manutenção da ordem pública<br />

estabelecida.<br />

Nasceu assim a relação não-recíproca com a tutela<br />

regulamentada conforme a crença: o tutor é o competente,<br />

o tutelado é o incapaz e irresponsável. Os tratamentos<br />

prescritos em grande parte tinham como objetivo principal<br />

a integração e o conformismo social. A implementação da<br />

psiquiatria preventiva, como ocorre com outros campos de<br />

saúde, tornou possível a ação dos especialistas antes do<br />

aparecimento da “doença mental”, ao descobrir sintomas e<br />

sinais nos suspeitos.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 125


Desse modo, como é sabido, em certos locais e ocasiões,<br />

os “sãos” passaram a examinar populações inteiras,<br />

tendo à mão o mandado de “busca e apreensão” para os<br />

“anormais” detectados.<br />

Felizmente, nos últimos anos, um grande número de<br />

psiquiatras vem questionando, duvidando e desmitificando<br />

milhares de afirmações e dezenas de teorias criadas por<br />

alguns “gênios” da psiquiatria, baseadas, muito mais, em<br />

verdades reveladas ou em pressões sociais, do que em observações<br />

científicas bem sistematizadas e críticas.<br />

Uma por uma, essas “verdades” vêm sendo discutidas,<br />

não substituídas por “novas verdades” dogmáticas,<br />

mas analisadas, através da dúvida constante e equilibrada.<br />

O novo caminho traçado é o abandono definitivo de crenças<br />

eternas, baseadas na autoridade iluminada, no seu<br />

prestígio, na sua sabedoria acima de qualquer suspeita.<br />

126 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


o VASto mUndo dAS drogAS<br />

Vivemos em um mundo de drogas. Drogas para todas<br />

as idades e para todos os gostos. Algumas são chamadas<br />

lícitas e outras ilícitas. Algumas são proibidas: seu uso e<br />

porte são qualificadas de contravenção. Outras são permitidas<br />

e difundidas até pelos pais e pelos meios de comunicação.<br />

Seu uso é, muitas vezes, valorizado. Por sua<br />

vez, certas drogas são conceituadas e permitidas pelos<br />

médicos e Conselhos de Medicina.<br />

Algumas drogas, como as colas e os solventes, são<br />

usadas preferencialmente pelas crianças desamparadas, os<br />

pivetes, outras são mais comuns entre os jovens de condição<br />

econômica variada - xaropes, maconha e cogumelos. Algumas<br />

são usadas principalmente pelas mulheres da classe<br />

média e alta com objetivo de perder alguns quilinhos, como<br />

os anorexígenos. Certas drogas são mais consumidas pelos<br />

adultos jovens, de poder econômico alto - cocaína, LSD,<br />

heroína. Algumas toneladas de drogas são largamente utilizadas<br />

por adultos e idosos pertencentes às mais diversas<br />

classes sociais, para permitir-lhes dormir ou suportar este<br />

mundo confuso: tranquilizantes, soníferos e analgésicos.<br />

Finalmente, as drogas mais difundidas e consumidas, pos-<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 127


sivelmente mais “democratizadas”, já que são usadas universalmente<br />

por todos: cafeína, álcool e tabaco. Ninguém<br />

escapa de pelo menos inalar a fumaça do cigarro do vizinho,<br />

beber um cafezinho ou um copo de cerveja ou licor.<br />

Não sei, e duvido que alguém saiba, as razões de<br />

preferências tão diversas, das diferentes posições e atitudes<br />

da sociedade a favor de uma e contra outras.<br />

Para tentar aclarar minha mente recorri a certos conceitos<br />

básicos: os de abuso e dependência da substância,<br />

e aqueles relacionados como consequência: tolerância e<br />

síndrome de abstinência.<br />

Antecipadamente confesso ao leitor que os resultados<br />

não foram animadores, pois continuei sem entender<br />

este comportamento humano, ou seja, o uso de drogas<br />

diferentes por diferentes indivíduos, a permissão de umas<br />

e a proibição de outras, e o consumo universal de muitos.<br />

Encontrei em um manual de diagnóstico em psiquiatria a<br />

definição procurada, que foi a seguinte:<br />

Abuso de drogas: “Uso habitual de agentes químicos<br />

apesar das consequências danosas, que dependem das<br />

propriedades farmacológicas e toxicológicas das drogas, da<br />

personalidade do usuário, das necessidades nas quais ele<br />

vive, e do grau no qual ele negligencia sua saúde individual<br />

e bem-estar através da diferença e perda econômica”.<br />

Existe abuso da droga quando seu uso ultrapassa os<br />

30 dias e existe tolerância quando se necessita de mais droga<br />

para obter-se os efeitos desejados: daí o aumento das<br />

dosagens e a instalação dos quadros tóxicos. Por último,<br />

ocorre a síndrome de abstinência quando, ao reduzir-se a<br />

droga, ou quando ocorre a sua interrupção, seguem-se distúrbios<br />

fisiológicos e psicológicos, geralmente transitórios.<br />

Ora, a maioria das drogas proibidas, assim como as permitidas<br />

- cafeína, nicotina, álcool, sedativos etc. - aí se enquadram,<br />

o que nos leva a pensar que esse não é o motivo da<br />

128 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


classificação usada, assim como das proibições e permissões<br />

legais, de exigência de um ou de outro receituário médico, ou<br />

de incentivo familiar para se beber café ou cerveja e fumar,<br />

pois todas elas são semelhantes. Deve haver algo mais.<br />

Alguns teóricos combatem certas drogas simplesmente<br />

afirmando que elas “causam prazer”, e os indivíduos<br />

consumidores delas abandonariam outras atividades<br />

caso elas fossem liberadas. Ora, isso é uma forma muito<br />

simplista de explicar um comportamento tão complexo. O<br />

cigarro, as bebidas, o café e mesmo os tranquilizantes -<br />

todos nós temos um médico amigo ou parente que fornece<br />

gratuitamente as receitas - são facilmente adquiridos e<br />

nem por isso são consumidos exageradamente por todos:<br />

apenas uma minoria é prejudicada. Se utilizarmos o conceito<br />

de prazer deveremos proibir os alimentos saborosos<br />

e a torcida do Atlético, impedir o jogador de jogar cartas<br />

ou futebol e abolir até mesmo as relações sexuais, pois<br />

tudo isso causa prazer e também dependência pelo menos<br />

psíquica, talvez física.<br />

Vamos a um outro argumento. Parece que certos indivíduos,<br />

por motivos biológicos - genéticos - são mais<br />

propensos do que outros a ficarem “presos”, dependentes<br />

da droga, a levarem ao exagero um modo de vida em<br />

detrimento de outro. Seriam os indivíduos de “alto risco”,<br />

os prováveis toxicômanos. Mas acredito que esses seriam,<br />

também, os mais sujeitos a se tornarem viciados em café,<br />

comida, jogos, cigarros, sexo ou até mesmo no trabalho<br />

sem pausa nem sentido. Deveríamos condená-los, por<br />

causa de um “defeito biológico”?<br />

No outro extremo do biológico vêm as “explicações<br />

sociais”. A própria sociedade induz o consumo de drogas<br />

através de vários meios: de um lado, a propaganda generalizada,<br />

de outro, a incapacidade para abolir várias de suas<br />

doenças e para dirimir conflitos, injustiças e preconceitos.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 129


Anuncia-se um belo carro, uma bela “gata”, mas não<br />

se fornecem ao consumidor os meios da sua aquisição e<br />

conquista. Costuma-se, com frequência, considerar o “outro”,<br />

o vizinho ou o parente, como o responsável por induzir<br />

os mais jovens ao uso da droga.<br />

Uma outra explicação é a da psicologia. O indivíduo<br />

usa café, álcool, tabaco, maconha, doce, cocaína, cerveja,<br />

heroína, até sexo, para ficar “diferente” de seu estado<br />

“normal”. Com isso, a pessoa se sente mais animada,<br />

agressiva, expansiva e extrovertida ou introvertida. Em resumo,<br />

a droga seria usada como automedicação.<br />

Todas essas explicações contêm, provavelmente, algo<br />

de verdade e, também, de mito. Não estou, neste artigo,<br />

defendendo o uso das chamadas drogas proibidas ou exortando<br />

ao uso delas, nem também, indo ao outro extremo,<br />

de combatê-las ferozmente. Assim como não defendo o<br />

abuso de tabaco, café, cerveja e comida, não combato,<br />

como se fosse a pior coisa do mundo, o seu uso. Acredito<br />

que qualquer pessoa que esteja bem consigo mesma e<br />

que tenha algum propósito de “nível mais elevado”, isto<br />

é, objetivos individuais claramente definidos, nunca será<br />

presa e dependente das drogas, seja das lícitas, seja das<br />

ilícitas.<br />

O mundo contraditório e confuso das drogas permite<br />

a produção, de um lado, dos defensores ferozes das<br />

chamadas drogas proibidas, quase sempre com objetivos<br />

pecuniários. De outro lado, a de combatentes impiedosos,<br />

que disso se utilizam para criar liderança e poder. Esses<br />

últimos, ao combatê-las, fazem disso sua “droga” e aliviam<br />

sua ira ao sentenciar os “errados” e “marginais”, enquanto<br />

eles, os acusadores, se sentem como os anjos puros, habitantes<br />

diferenciados deste paraíso chamado Terra.<br />

130 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


mÉdico X cLiente<br />

A imprensa noticia, novamente, reclamações de pacientes<br />

ou dos seus familiares acerca do mau atendimento<br />

médico. As disputas se restringem, quase sempre, ao que<br />

ocorre no último elo de uma cadeia que se iniciou há anos,<br />

já que a enfermidade, exibida no momento da consulta,<br />

espelha um conjunto de fatos ocorridos na história de cada<br />

paciente, os quais, em geral, não tiveram a participação do<br />

médico que o assiste naquele instante.<br />

São milhares os acontecimentos responsáveis pelo<br />

atual sofrimento do cliente: alguns devido ao acaso, outros<br />

facilitados pela conduta do próprio doente, como, por<br />

exemplo, o uso que fez de bebidas alcoólicas, de cigarros<br />

e medicamentos, seus hábitos alimentares, seu tipo de<br />

trabalho e de lazer, outras doenças sofridas, tratamentos<br />

impropriamente realizados anteriores à consulta presente.<br />

Mas não fica só nisso, há outros aspectos importantes: o<br />

mundo poluído de bactérias, vírus, fungos, monóxido de<br />

carbono, a estrutura biológica frágil do cliente, sua carga<br />

genética peculiar. Tudo isso, ao longo dos anos, facilitou ou<br />

desencadeou a eclosão da doença atual.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 131


Em resumo, nas reclamações não são levados em conta<br />

os diversos aspectos que antecederam a atual consulta<br />

geradora da discórdia. Possivelmente todos nós mantemos<br />

ideias irracionais a respeito da nossa vida e do mundo em<br />

que vivemos e carregamos ilusões acerca de possuir uma<br />

saúde física e mental eterna. Em outras palavras, fantasiamos<br />

para nós a imortalidade. Também alimentamos sonhos<br />

com referência às uniões ou vínculos com os outros homens<br />

e imaginamos que essas ligações nos darão proteção<br />

contra os problemas do dia-a-dia. Por último, acreditamos<br />

que, ao criarmos explicações científicas, filosóficas ou religiosas<br />

para o mundo caótico em que vivemos, estaremos a<br />

salvo de sofrimentos, já que pela teoria estabelecida poderemos<br />

encontrar as causas do nosso sofrimento, que, por<br />

sua vez, nos levarão a maneiras seguras de eliminá-las.<br />

Mas de fato, ao enfrentar uma realidade confusa, sem<br />

leis, ou seja, vivendo num mundo que não pactua com as<br />

nossas fantasias, o homem tenta, a todo custo, encontrar<br />

algumas regras para sistematizar e assim administrar da<br />

melhor maneira possível a sua vida. Entretanto, quase sempre,<br />

o modelo da realidade ao qual ele se apega é inexato.<br />

Se sua vida flui normalmente, sem tropeços, o indivíduo<br />

não chega a perceber que o seu “mapa” da realidade<br />

não está representado corretamente, nem retrata com<br />

precisão o “território” onde sua vida se desenrola. Nos momentos<br />

críticos, porém, como no caso de uma doença grave<br />

ou de morte, de repente a pessoa se defronta com um<br />

mundo diferente daquele que havia criado em sua mente.<br />

Surgem, geralmente, nestes instantes, o pânico e o desespero,<br />

pois os planos e técnicas existentes para solucionar<br />

os problemas se mostraram ineficientes. Nesses momentos,<br />

tentando se defender de qualquer maneira, o homem<br />

lança mão das soluções mágicas ou das ideias ilusórias que<br />

havia elaborado. Busca a tábua da salvação: o médico e<br />

132 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


a sua ciência, que se enquadram muito bem naquele falso<br />

modelo de mundo. Não são raros os médicos que fingem<br />

ser o Salvador para todas desgraças e sofrimentos...<br />

Quase sempre as ciências médicas possuem teorias<br />

um pouco melhores acerca das doenças e dos seus tratamentos<br />

do que o paciente. Muitos clientes imaginam o<br />

médico como o “prestidigitador” que eles procuram, um<br />

ser capaz de rapidamente descobrir as “causas” da doença,<br />

dar explicações para esta e encontrar maneiras fáceis<br />

e simples de exterminá-la.<br />

E é nesses momentos agudos que os médicos - alguns<br />

mais bem dotados, preparados e equipados, outros<br />

menos - são chamados para examinar o paciente. O cliente<br />

em desespero agarra-se ao salvador, acreditando convictamente<br />

possuir ele poderes divinos para tirá-lo da crise<br />

e afastá-lo da morte. Todos nós sabemos, porém, que a<br />

melhor medicina do mundo, equipada com os aparelhos<br />

mais sofisticados, contando com os médicos da melhor estirpe<br />

intelectual e científica, erra, falha e tem dúvidas ao<br />

receber pacientes graves com certas enfermidades. Assim<br />

é natural que muitos deles morram.<br />

Aqui, como alhures, as moléstias costumam ser obscuras,<br />

difíceis e muitas vezes impossíveis de serem diagnosticadas<br />

e tratadas, como gostaríamos que fossem.<br />

Pouca ou nenhuma certeza temos acerca da teoria das doenças,<br />

de sua evolução, de suas causas e tratamentos.<br />

Possuímos, na maioria das vezes, hipóteses, trabalhamos<br />

com elas, constantemente incertos e inseguros quanto aos<br />

diagnósticos e tratamentos. Aprendemos muito com nossas<br />

tentativas e acertos e também com nossos erros. O conhecimento<br />

de boa percentagem das doenças ainda é uma<br />

incógnita para os pesquisadores sérios, não o sendo para<br />

os mal informados, os limitados, os que só enxergam a periferia<br />

da realidade, julgando tudo muito simples e fácil.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 133


As doenças fazem parte de nossas vidas: vida e morte<br />

andam juntas. Toda a decepção com a crueldade e indiferença<br />

do mundo, percebida pelo cliente ou pelos familiares<br />

diante da doença, volta-se frequentemente com violência<br />

contra o médico, que encarna, por alguns momentos<br />

durante a enfermidade, a figura mágica do Salvador. Nos<br />

momentos de desespero e dor, o médico representa para<br />

o paciente o próprio Deus, o que, como sabemos, lamentavelmente<br />

não é verdade.<br />

134 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


AS doenÇAS<br />

e oS JArgÕeS mÉdicoS<br />

A linguagem médica, desenvolvida do pensamento<br />

mágico, acha-se ainda presa às ideias e práticas ancoradas<br />

no fantástico. Sua linguagem carrega vestígios de seres e<br />

situações encarnando o “grande poder”. No modelo, seres<br />

sobrenaturais evocados através de rituais (rezas, danças,<br />

penitências, confissões), têm o poder de provocar as mudanças<br />

desejadas, físicas ou psicológicas. Estamos marcados<br />

por “energias” psicológicas, “fluidos” milagrosos, os<br />

“maus-olhados”. O médico pode curar, representando tanto<br />

o cientista como o bruxo, servindo-se de um diagnóstico<br />

preciso ou, se quiser, lançando mão de preces e receitas<br />

milagrosas (placebos).<br />

Para muitos, uma doença diagnosticada é uma doença<br />

quase curada, usando o método científico ou o mágico.<br />

Dar um rótulo às causas, ao conjunto de sinais e sintomas,<br />

envolve classificação e promove e orienta o prognóstico e,<br />

finalmente, indica a terapia. Mas o diagnóstico dado, às vezes<br />

prejudica. O nome “febre” e “diarreia” podem sinalizar<br />

coisas simples, o rótulo de “AIDS”, levar ao desespero.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 135


O termo usado para o diagnóstico, misturado às informações<br />

sutis e escondidas, fornecerá a diferença: “gastrite”<br />

(fácil de curar) e “cirrose hepática” (morte). Certos<br />

nomes carregam mensagens metafóricas, outros não. Gonorreia<br />

e hanseníase de um lado, hipertensão e artrose de<br />

outro. O rótulo de doença mental estigmatiza, o infarto e<br />

a diabetes, não.<br />

Quando um tumor está em discussão, o temor gira em<br />

torno da palavra-chave “benigno” ou “maligno”. Os residentes<br />

do Hospital das Clínicas pronunciavam “CA”, e não “câncer”.<br />

Olhavam para o chão, sempre num tom de voz baixo<br />

e grave, demonstrando alto respeito pela doença “maldita”.<br />

As palavras nascem e morrem, transformam-se, adquirem<br />

novos significados. O termo “digestivo” virou “digestório”,<br />

“pedinte”, passou a ser “excluído” e “negro”, agora é<br />

“afroamericano”. A palavra “melancolia” foi desprestigiada.<br />

Diagnósticos surgem do nada: “Doenças do Pânico”, “Ansiedade<br />

Pós-Estresse”.<br />

Outros mudam de nome: “perverso”, da psicanálise,<br />

virou “psicopata”, mais tarde, “sociopata”, agora é “Personalidade<br />

antissocial. “Neurastenia” desapareceu no Ocidente,<br />

permanece deprimida na China. “Doenças”, (ou<br />

seriam só nomes?), enterradas há anos como “Síndrome<br />

da Fadiga Crônica” (síndrome pós-viral), bem como “Fibromialgia”,<br />

renascem. A sífilis e gonorreia, irritadas com<br />

o desprestígio, ameaçam voltar. A simpática histeria, gozadora<br />

de grande prestígio, se dissipou, apesar de seus<br />

protestos espalhafatosos.<br />

Os jargões médicos variam conforme o profissional e<br />

a especialidade e, ainda, a nacionalidade e raça. Na França<br />

há mais diagnósticos acerca do fígado, na Alemanha, de<br />

doenças cardíacas e os britânicos enfatizam o estômago e<br />

intestinos. Os conceitos e diagnósticos da psiquiatria são<br />

ficções. Eles estão contaminados por ideologias, não se<br />

136 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


apoiam em observações “reais”. Uma nova classificação<br />

está sendo imaginada, a atual não apresenta um único<br />

diagnóstico separando o “normal” do “doente”. Além disso,<br />

os diagnósticos se acham interligados, não há como<br />

diferenciá-los corretamente. Os diagnósticos são nomes e<br />

nomes, apenas nomes.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 137


conFiSSÕeS de UmA mÉdicA<br />

Há dias, no meu consultório, atendi uma médica recémformada.<br />

Soluçando, contou-me sua “tragédia” pela qual me<br />

interessei. Com seu consentimento, publico o relato.<br />

“Formei-me em medicina! Alegria geral! Agora preciso<br />

ganhar o pão de cada dia com meu suor, se possível<br />

sem lágrimas. Mas onde e como?<br />

Comecei a clinicar. Chegam os pacientes, despejados<br />

de todos os cantos, a maioria escorre das favelas. Na madrugada<br />

fria, enfileirados, eles imploram, piedosamente, a<br />

bendita consulta. Esta, uma vez conseguida, é realizada,<br />

muitas vezes de modo superficial e apressado. Todos entram<br />

no templo encantado dominados por uma imensa fé e<br />

sonham com os milagres da fantástica medicina moderna.<br />

Chega o momento do exame, agora eles são encaminhados<br />

para o altar onde será iniciado o interrogatório.<br />

Conforme determina o ritual, inicialmente é preciso que<br />

o doente se mostre humilde diante da divindade: venere<br />

o sacerdote vaidoso e compenetrado que o espera. Após<br />

obedecer a esse mandamento, ele será considerado merecedor<br />

de ajuda futura. Cabe ao paciente executar o determinado.<br />

Não lhe será permitido questionar, pois perguntas<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 139


aborrecem, tomam tempo, indicam desconfiança e magoam<br />

o sensível médico. Ali imperam leis veladas: o clínico<br />

ordena, o cliente não pode opinar, ele deve submeter-se à<br />

vontade do protetor. Sem entender o padrão rígido existente<br />

e a linguagem usada, os clientes procuram, muitas<br />

vezes sem serem ouvidos, explicar seus males.<br />

Começa a consulta: encurvado, enrolado em farrapos,<br />

submisso, o paciente contempla o chão. Sua face magra e<br />

pálida mostra sinais de feridas não cicatrizadas. Do fundo<br />

de sua garganta apertada ecoam, penosamente, cânticos<br />

melancólicos que descrevem sofrimentos. Defronto-me<br />

com seres humanos envelhecidos pela dor. Imagino, com<br />

pesar e dificuldade, que um dia eles foram crianças saudáveis<br />

e alegres e sonharam ser alguém. Hoje, derrotados<br />

e excluídos, jamais alcançarão a profissão, as relações sociais<br />

e o respeito valorizado pela nossa cultura. No consultório<br />

médico e em outros campos sagrados, essas sombras<br />

são tratadas como animais sem dono, ervas daninhas que<br />

só incomodam. Miseravelmente sozinhos, sem proteção,<br />

eles ainda teimam em viver e implorar.<br />

Esse encontro bate e fere minha face jovem. Tento<br />

mostrar uma fortaleza que não possuo. Assentada no meu<br />

trono, sou a soberana e represento a farsa da assistência<br />

médica ao indigente, papel que forçaram-me a interpretar<br />

com uma sabedoria e um poder fingido. Contenho-me<br />

para não gritar por socorro, dizer-lhes que também preciso<br />

de “médicos” para ajudar-me a suportar as incertezas, as<br />

perdas, a juventude que se vai, a responsabilidade que<br />

caiu pesada demais sobre mim e, pior ainda, possuir a<br />

consciência de tudo isso.<br />

Não inventei a doença, nem a pobreza, muito menos<br />

a discriminação social ou a morte. Portanto, não posso ser<br />

responsável por essas mazelas. Não teci o estranho caminho<br />

desenhado pela natureza - ou sei lá o quê - que cons-<br />

140 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


truiu de modo tão desigual e injusto cada um de nós, bem<br />

como a nossa posição na sociedade.<br />

Sei que enquanto estou provisoriamente do lado de<br />

cá, atuo como um pararraios, sempre aberto, tentando<br />

consertar os desencontros dessas vidas. Ouço súplicas,<br />

esbarro na penúria extrema, sinto o cheiro nauseabundo<br />

de feridas incuráveis, sou jogada e me perco no labirinto<br />

sem saída do cliente. Despreparada para conviver com<br />

esse caos, obrigada a representar este papel, tenho que<br />

extrair de minha mente inocente e conturbada, receitas<br />

milagrosas para aliviar todos e tudo. Não possuo essas<br />

drogas como muitos fantasiam.<br />

Mas, na verdade, sinto-me confortável nesse encontro<br />

venerável. Gosto de fingir de deusa, mesmo sendo<br />

uma deusinha mixuruca. Sei que é pecado pensar assim.<br />

Encanta-me fingir que sou o ente poderoso e sobrenatural<br />

criado pela mente da sociedade. No delírio compartilhado,<br />

eu sou o ser superior que extermina o sofrimento. Estamos,<br />

eu e o paciente, aprisionados na mesma estrutura,<br />

somos enganados e enganamos, mas necessitamos, para<br />

viver, conservar essa quimera. Isso é um direito nosso, talvez<br />

nossa única liberdade: sonhar, sonhar, sonhar...”<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 141


o diFÍciL encontro:<br />

mÉdico e PAciente<br />

A terminologia médica fornece um bom exemplo das<br />

múltiplas funções que a linguagem tem a desempenhar.<br />

Por um lado ela é técnica, permitindo aos médicos compreender<br />

e explicar a doença, mas também serve de comunicação<br />

entre os pacientes, dentro e fora da sala de espera.<br />

Entretanto, muitas vezes há uma não-comunicação entre<br />

o médico e o paciente.<br />

Essa linguagem, apesar de buscar ser, ao mesmo<br />

tempo neutra e objetiva acerca do conhecimento científico,<br />

do lado do cliente e mesmo do médico encontra-se emaranhada<br />

de noções sociais, culturais, econômicas, religiosas<br />

e prescrições e aspirações terapêuticas e morais: “Você<br />

precisa tomar esse remédio!”; “Deve usar camisinha”;<br />

“Tem que agradecer a Deus por ter operado.”. Notam-se,<br />

pelos exemplos, os “tem”; “deve” e “precisa”. Na maior<br />

parte das vezes a linguagem médica é dogmática e autoritária,<br />

metamorfoseada, na sua aparência, como sendo<br />

democrática e liberal, “boa para o cliente”...<br />

Na consulta, sentindo uma dor ou uma emoção ruim,<br />

o cliente desesperançado busca em vão o termo certo que<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 143


esteja em harmonia com o observado. Ele quer informar<br />

não só a natureza, bem como a intensidade do que está<br />

sentindo, às vezes até a causa de seus males. Ele deseja<br />

transmitir o ponto exato onde se localiza a dor, explicar<br />

quando ela vem e desaparece, aumenta e diminui.<br />

Tudo isso é difícil de transmitir, ainda mais num tempo<br />

exíguo e diante do rosto, quase sempre austero e autoritário,<br />

do médico. O que fazer? Coitado do cliente, obrigado<br />

pelas circunstâncias da doença precisou recorrer ao médico.<br />

Coitado do médico, empurrado pelos fatos da vida,<br />

entrou numa área de incertezas, passou a conviver com<br />

o sofrimento e o desespero. A tarefa de ambos é, talvez,<br />

impossível.<br />

A linguagem para nomear as emoções desagradáveis<br />

e agradáveis não é nem objetiva, nem capaz de estimar a<br />

intensidade delas. O cliente, na sua vã tentativa de transmitir<br />

seu sofrimento, procura relacioná-la a alguma entidade<br />

(teoria, hipótese) mais ampla: funcionamento anormal<br />

dos intestinos, uma deficiência alimentar, um transtorno<br />

geral do organismo, uma gripe ou uma espinhela caída.<br />

Outras vezes, tenta explicar a doença fazendo uso de metáforas<br />

ou de imagens semelhantes: “Tá doendo pra chuchu”;<br />

“É uma dor ardida”; “A cabeça vai estourar!”; “Tenho<br />

um medo terrível!”; “Fiquei fraco da ideia.”; “Não tenho<br />

força para mover uma palha.”<br />

Esse modo de ser, de um e outro lado, não tem culpado.<br />

Tudo decorre de um tempo longínquo do sábio-rei Platônico,<br />

da aristocracia que imperava. Os médicos sonham<br />

com o merecimento moral, casta e sacerdócio, apesar da<br />

realidade mostrar o desprestígio e desrespeito. O médico<br />

é agredido, até fisicamente, pelo “cliente” desesperado –<br />

seria paciente?<br />

Ele culpa o personagem central dessa tragicomédia,<br />

onde o Atlas (médico), representa o papel de curador ge-<br />

144 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


al da miséria humana (pobreza, ignorância, desemprego,<br />

família esfacelada, educação defeituosa).<br />

O médico moderno, como os pais modernos, acreditam<br />

no seu poder divino, ainda imaginam um status que<br />

não mais existe, um lugar ao sol, de um Sol que já desapareceu<br />

no horizonte há muitos anos.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 145


A ProPÓSito de UmA griPe<br />

Todos nós já tivemos uma gripe. Conforme a gravidade<br />

dela faltamos ao serviço, ou deixamos de fazer uma<br />

viagem que havíamos planejado. Cada pessoa avalia sua<br />

gripe à sua maneira quanto à gravidade, escolhendo os<br />

melhores meios de tratá-la. Uns buscam a orientação da<br />

mãe, outros, do amigo, alguns vão à procura do médico.<br />

Após ouvirmos nossos conselheiros, tomamos chás,<br />

medicamentos, repousamos e, às vezes, até mudamos alguns<br />

dos nossos hábitos. O que ocorreu nesse indivíduo<br />

que aqui chamaremos de Marta? Inicialmente, no sistema<br />

ou organismo de Marta originou-se uma ação de uma matéria<br />

- ou energia por sua interação com o meio em que<br />

vive ou, em outras palavras, adquiriu um vírus que, ao penetrar<br />

no seu organismo, que se encontrava em estado de<br />

equilíbrio com seu meio, tirou-o de sua estabilidade, ou de<br />

sua saúde, e colocou-o em um modo de viver disfuncional,<br />

ou seja, doente. Entretanto, Marta é um sistema individualizado,<br />

formado por vários subsistemas e fazendo parte de<br />

um sistema mais amplo formado por seu meio ambiente.<br />

Além disso, Marta é um sistema aberto que troca, isto<br />

é, recebe e fornece energia com sistemas vizinhos como<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 147


a sua família, seus amigos e seu meio social. Além disso,<br />

cada subsistema do organismo de Marta, o respiratório,<br />

cardíaco, mental, nervoso, etc., está em constante interação,<br />

através de trocas que causam alterações diversas,<br />

dentro de um estado dinâmico de equilíbrio.<br />

O vírus da gripe, ao penetrar no sistema corporal de<br />

Marta, desencadeia uma série de disfunções, desequilíbrios<br />

ou “doenças”.<br />

No caso de Marta, o vírus atingiu inicialmente o seu<br />

subsistema respiratório na sua parte celular. Ela sente dor<br />

na laringe e falta de ar. Pouco a pouco os subsistemas<br />

vão-se afetando mutuamente. Marta começa a sentir náuseas,<br />

dores nas pernas, taquicardia, visão ruim, a cabeça<br />

confusa, sua pele fica avermelhada e assim por diante,<br />

atingindo, em grau maior ou menor todo o sistema, isto<br />

é, todo o organismo da coitada. Nesse caso falamos que<br />

Marta adoeceu.<br />

Diante de um problema clínico como esse, o médico<br />

tenta agir no sistema paciente-meio, buscando produzir<br />

uma transição de um estado de doença para um estado de<br />

saúde, quase sempre com uma série de estados intermediários<br />

que, com frequência, são para o paciente piores do<br />

que os sintomas da própria doença, como, por exemplo,<br />

realizar uma cirurgia para extirpar um tumor indolor. Porém<br />

o azar de Marta não acaba aí. A potência do vírus da<br />

gripe, por si só, é geralmente pequena. Mas ele provocou<br />

o funcionamento de uma série de outros sistemas que passaram<br />

a causar enormes danos.<br />

Analogicamente, assim como um sinal luminoso que<br />

possui baixa quantidade de energia, ao tornar-se verde<br />

faz fluir dezenas ou centenas de veículos no trânsito (uma<br />

alta quantidade de energia). O vírus também pode provocar<br />

distúrbios de alta proporção. Marta encontrava-se<br />

gripada exatamente no dia de uma prova final. Não se saiu<br />

148 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


em nos exames, pois sua cabeça não funcionou adequadamente<br />

e, por isso, ela perdeu o ano.<br />

A gripe modificou sua atuação no sistema escola/social,<br />

causando-lhe enormes perdas neste sistema.<br />

Marta não vive sozinha, ela tem família, colegas, vizinhos<br />

e mora em uma cidade. Marta, como sistema aberto<br />

que é, não só tem todas as partes do seu organismo<br />

interligadas e interrelacionadas, mas também todas elas<br />

funcionam em harmonia com sua estrutura, de acordo com<br />

seus objetivos. Ela interage igualmente com os sistemas<br />

vizinhos, tais como o sistema-familiar, o sistema-colégio<br />

e outros mais à sua volta, recebendo e enviando agentes<br />

de mudanças ou, em outras palavras, trocando matériaenergia.<br />

Marta, além de ser um ser biológico, é também um<br />

ser psicossocial. Da mesma maneira que sua estrutura biológica<br />

conduz seu organismo a ter certas funções e não<br />

outras, seu sistema mental, adquirido através de educação,<br />

aprendizagens diversas, cultura, valores, se organiza<br />

num todo, que estabelece sua estrutura mental peculiar e<br />

esta, de maneira harmoniosa, busca a sua preservação,<br />

assim como procura atingir os objetivos ditados por ela. O<br />

sistema mental de Marta desenvolveu-se pouco a pouco,<br />

criando assim uma ideia de si mesma. Como ser diferenciado<br />

dos outros, constantemente ela luta para que seu<br />

sistema mental não se misture exageradamente com os<br />

sistemas vizinhos. Se acontecer, ela poderá desaparecer<br />

ou dissolver-se como sistema individualizado, esvaindo-se<br />

nos outros.<br />

Ao mesmo tempo que o modelo de si e do mundo vai<br />

se formando no indivíduo, servindo-lhe de guia para suas<br />

ações, a pessoa necessita dos outros para manter-se em<br />

equilíbrio consigo e com o meio, ao receber conhecimento,<br />

reconhecimento, proteção, crítica, etc.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 149


Comumente a ideia ou “mapa” que uma pessoa tem<br />

a seu respeito e do mundo é muito diferente da idéia ou<br />

“mapa” que os outros fazem dela e de sua realidade. Marta<br />

criou um “mapa” de si como se estivesse muito doente,<br />

ela tanto imaginou, tanto representou para si a ideia de<br />

doença grave, que essa influenciou e transformou o sistema<br />

mental até mesmo do médico que a atendeu. Ele<br />

passou a achá-la bastante doente, tanto assim que decidiu<br />

interná-la num hospital, dada a “gravidade do caso”.<br />

Portanto, houve um equilíbrio no sistema Marta-médico,<br />

os dois passaram a ter a mesma ideia. Marta, de acordo<br />

com sua estrutura mental ou seus propósitos, “necessitava”<br />

ficar doente, o médico “necessitava” de pacientes para<br />

representar o papel de médico.<br />

A doença de Marta, inicialmente orgânica, agora já<br />

o é também psicológica e social. Marta, do consultório vai<br />

submeter-se a exames laboratoriais, RX e, finalmente, é<br />

internada. No hospital, Marta se descompensou, pois foilhe<br />

muito difícil adaptar-se nesse sistema estranho e às<br />

vezes sinistro, exatamente num momento difícil de sua<br />

vida. Ela, que já estava doente, adoeceu ainda mais.<br />

Além disso, seu ponto de apoio, que era a família,<br />

teve seu contato diminuído e muito, para que o sistema<br />

hospitalar pudesse funcionar a contento, em detrimento<br />

do primeiro, ou seja, da família. Diante desses problemas<br />

a mais, Marta piorou. À medida que ia se desequilibrando,<br />

o sistema-Marta equilibrava o sistema-hospitalar, pois este<br />

último só existe em função do paciente.<br />

Esta maneira de conceituar a “doença” mostra a complexidade<br />

que é um ser humano doente, não somente com<br />

respeito a uma descrição dos vários sistemas orgânicos envolvidos,<br />

mas também com respeito à maneira e à execução<br />

do tratamento e mesmo onde irá ser feito, quais os riscos para<br />

os diversos sistemas do indivíduo (psicológico e social).<br />

150 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


O sistema Marta agora coloca em funcionamento<br />

vários outros sistemas à sua volta e com eles interage.<br />

Transforma e é transformada por eles. Uma doença maior<br />

e mais complicada começa a aparecer. Era uma simples<br />

gripe, aos poucos atinge outras áreas, passando a ser um<br />

distúrbio complexo, abrangendo os sistemas orgânico-psicológico-social<br />

interrelacionados. Todos eles foram atingidos<br />

e se desequilibraram. O tratamento não consistirá<br />

mais em curar uma gripe, mas, sim, fazer com que todos<br />

os sistemas comprometidos voltem ao equilíbrio anterior.<br />

O distúrbio inicial pequeno pode gerar, em outros sistemas,<br />

distúrbios de muito maior gravidade e intensidade.<br />

A doença inicial de Marta, gripe, poderá provocar em sua<br />

mãe uma reação emocional intensa, provocando-lhe insônia,<br />

diarreia, ansiedade. Este distúrbio, por sua vez, poderá<br />

atuar na avó de Marta e esta poderá ter um infarte. A<br />

cadeia pode-se estender para outras pessoas e, uma vez<br />

formada, tende a permanecer, ou seja, encapsular, resistir<br />

às mudanças. Quando as transformações permanecem por<br />

um tempo longo, elas ficam incorporadas ao sistema, mantendo<br />

um equilíbrio disfuncional (doentio). Daí a dificuldade<br />

encontrada pelos médicos frente ao paciente crônico.<br />

Portanto, uma “doencinha” à-toa, pode tornar-se,<br />

com a participação de outros sistemas, uma doença incapacitante.<br />

São comuns afirmações como “depois daquele<br />

tombo não fui mais o mesmo homem” ou, “eu virei outra<br />

mulher após a ligadura das trompas”.<br />

A ação do médico, algumas vezes de proteção para<br />

com o paciente, pode protelar, ou mesmo impedir a cura,<br />

de acordo com esta teoria. A ligação do sistema médicopaciente<br />

pode se tornar tão forte para o cliente, que ela se<br />

torna o objetivo primordial da pessoa. O indivíduo passa<br />

a se considerar um doente, acostuma-se com essa ideia<br />

e a partir de então fica aprisionado no sistema de saúde,<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 151


como doente. Os clínicos de maior experiência sabem que,<br />

com alguns pacientes, para ajudá-los ou curá-los, têm que<br />

abandoná-los. Em outras palavras, para permitir que uma<br />

paciente possa retornar a um nível satisfatório de vida, é<br />

necessário que o médico corte a ligação médico-paciente,<br />

anteriormente necessária para a recuperação da mesma,<br />

agora prejudicial, isto é, está lhe causando uma outra doença,<br />

num outro sistema. Qualquer pessoa que estiver<br />

muito presa a um sistema, terá dificuldades em se envolver<br />

ou buscar outras opções no seu mundo.<br />

Lamentavelmente, para alguns, “ser-doente no mundo”<br />

passou a constituir o objetivo supremo do viver, o ato<br />

mais significativo de uma vida insignificante. Para esses, é<br />

menos ruim ser doente do que não ser nada.<br />

152 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


trAnStorno mÉdico-<br />

PSiQUiÁtrico oU FicÇÃo?<br />

Numa manhã quente de quarta-feira atendi em meu<br />

consultório um rapaz de quinze anos. Este, segundo seus<br />

pais, há cerca de um ano começou a ficar “esquisito”. Seu<br />

comportamento tornou-se diferente do que era na escola e<br />

em casa, não mais conseguindo estudar ou se divertir como<br />

antes. Começou a falar coisas desconexas e, às vezes, a<br />

fazer perguntas estranhas, dormindo mal, não terminando<br />

o que começava, tendo ações incompreensíveis como chorar<br />

e, de repente, muitas vezes, ficando agitado.<br />

Eu, como psiquiatra, examinei o paciente de acordo<br />

com o que aprendi como médico, ou seja, olhando um aspecto<br />

do universo comportamental: a conduta diferente<br />

das usuais. Examinei-o com minha “luneta” médica, focalizei<br />

certas características do comportamento e deixei<br />

de lado milhares de outras. Orientado por pistas que intencionalmente<br />

procurava – conforme as teorias que me<br />

vieram à mente - rotulei o rapaz de “doente mental”, mais<br />

especificamente portador de um transtorno denominado<br />

“esquizofrenia hebefrênica”.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 153


Na entrevista com os pais, esses contaram-me, entre<br />

outros fatos, que uma psicóloga lhes disse que o rapaz<br />

era “normal”, que ele nada tinha de “errado” em sua<br />

conduta.<br />

Fica a pergunta: Como eu e a psicóloga “enxergamos”<br />

e categorizamos um “mesmo evento” de forma tão<br />

diferente?<br />

Uma conduta desajustada pode ser percebida de diversas<br />

formas por diferentes observadores, inclusive pelo<br />

observador possuidor do transtorno. Existem várias maneiras<br />

de classificar um fenômeno psicossocial, diferentes<br />

modos de perceber as relações entre um fato e outro que<br />

emergem da conduta da pessoa. Cada maneira de simbolizar<br />

tem seus seguidores.<br />

A cultura fornece, a cada um dos seus membros, referências<br />

variadas capazes de assimilar o evento dos mais<br />

diversos modos. Na maneira de ver do psiquiatra, isto é,<br />

a conduta vista como fenômeno médico, as variantes do<br />

comportamento são analisadas, apoiadas em determinados<br />

pressupostos aceitos como “realidades” entre o modo<br />

de ver médico: o indivíduo está sofrendo e está agindo<br />

disfuncionalmente, isto é, em desacordo ao esperado pelo<br />

grupo sociocultural do qual faz parte.<br />

Para explicar ou entender qualquer conduta “normal”<br />

ou “anormal”, o “rotulador”, profissional ou amador, terá<br />

que utilizar-se de um certo padrão (esquema ou modelo)<br />

que, uma vez ligado ao fenômeno observado, fornecerlhe-á<br />

um significado ou uma compreensão. Este modelo<br />

forçosamente terá que existir previamente na mente do<br />

rotulador, fazer parte de seu conhecimento, não só estar<br />

armazenado na sua memória, mas, principalmente, estar<br />

disponível, consciente no momento, pronto para ser usado.<br />

A não existência do conhecimento que servirá de base<br />

para ser checado com o fenômeno, fornecendo-lhe a com-<br />

154 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


preensão, também, a não exibição à consciência, impedirá<br />

a associação do conhecimento anterior assimilador com o<br />

fato que está sendo observado para ser entendido.<br />

Para que uma pessoa se sinta mais segura com respeito<br />

às suas interpretações é necessário que, pelo menos<br />

parte de seu grupo de referência, profissional ou cultural,<br />

defenda e siga os mesmos pressupostos teóricos,<br />

ou seja, tenha os mesmos conhecimentos assimiladores.<br />

Ora, como sou médico, sigo as ideias compartilhadas pela<br />

maioria da comunidade científica médica psiquiatra, pois<br />

identifico-me com elas.<br />

Voltando ao paciente: foi apoiado nesses meus “óculos”,<br />

que são os usados pelo grupo do qual faço parte,<br />

que examinei a conduta do rapaz, comparando-a, primeiramente,<br />

com a conduta “normal” – um paradigma vago<br />

acerca de um grupo, o dos adolescentes masculinos. Posteriormente<br />

confrontei seu próprio comportamento anterior,<br />

de acordo com o relato dos pais, com a conduta atual<br />

diante de mim e conforme os relatos. Para o modelo que<br />

me esforço para seguir, o médico-psicológico, este rapaz,<br />

aqui denominado de “cliente”, distanciava-se dos padrões<br />

mencionados, não só dos adolescentes, como também de<br />

sua própria conduta anterior.<br />

Uma vez constatada a existência de anomalias na<br />

conduta - sintomas e sinais próprios de um desvio comportamental<br />

- foi procurado, no subsistema de conhecimento<br />

médico-psiquiátrico, um conceito – aqui chamado<br />

de “diagnóstico”, conforme a classificação internacional<br />

de doenças mentais - capaz de englobar essas condutas<br />

“anormais” do rapaz de maneira simplificada, fácil de ser<br />

comunicada para mim mesmo ou para outros. Foi então<br />

utilizado um símbolo verbal simples, unificador, uma abstração<br />

dos fatos concretos observados no paciente ou inferidos<br />

através dos relatos dos familiares.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 155


A classificação, estabelecida por um grupo de psiquiatras<br />

ilustres de todo o mundo, serve como orientação para<br />

o estabelecimento dos diagnósticos psiquiátricos para fins<br />

oficiais, de pesquisa e para orientar o tratamento, inclusive<br />

para verificar, conforme a evolução do paciente, se ele está<br />

mais próximo do “certo”, ou do “errado”.<br />

Normalmente o observador que percebe ou examina<br />

a conduta, nesse caso particular um médico assistindo a<br />

um paciente, acredita que o observado é “real”. Essa crença<br />

apoia-se em pressupostos encaixados na doutrina do<br />

realismo filosófico: o que observo com meus órgãos dos<br />

sentidos tem existência fora da minha mente, tal como<br />

percebo. Sabemos que esta postura recebe, com muita razão,<br />

severas críticas de outras escolas filosóficas. Todas as<br />

nossas percepções são guiadas ou dirigidas pelas ideias ou<br />

premissas que estão armazenadas em nossa mente. Ora,<br />

essas ideias básicas ou princípios são geralmente adquiridos<br />

muito cedo. Uma vez armazenadas, essas idéias básicas<br />

não são lembradas como foram adquiridas e também<br />

não temos acesso a elas diretamente, como através da<br />

introspecção ou de reflexões.<br />

Sabe-se que uma grande parte de nossos pressupostos,<br />

valores morais, etc. são adquiridos, para alguns,<br />

antes dos três anos, para outros, os julgamentos morais<br />

seriam aprendidos na adolescência. Agimos automaticamente<br />

usando esses pressupostos- chaves, sem conseguir<br />

criticá-los através de nossos esforços conscientes. Entretanto,<br />

são dessas premissas-conceitos não-visíveis que<br />

extraímos nossas associações entre os fatos - funcionam<br />

como elos teóricos encarregados de reunir os eventos que<br />

observo ou que desejo compreender.<br />

Desse modo, o percebido passa a formar um conjunto<br />

harmônico e estruturado, fornecendo ao observador algum<br />

sentido para ele, que é dado pelo elo dos pressupostos.<br />

156 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Portanto, em resumo: não se podem extrair conclusões,<br />

sem existirem premissas. Nosso raciocínio funciona<br />

após ter recebido um conjunto adequado de informações<br />

iniciais, ou seja, de princípios. De posse de certas premissas,<br />

os “eventos observados” são interpretados – ligados<br />

uns aos outros - sempre através dos pressupostos básicos<br />

que utilizamos. Desse modo é formada uma “rede” onde outros<br />

dados podem, ou não, fazer parte. Portanto, a razão é<br />

totalmente instrumental – trabalha através dos fundamentos<br />

aceitos - ela não nos dá garantia de estarmos certos ou<br />

errados, bem como não indica onde vamos chegar. Podemos<br />

supor que certas experiências perceptivas são diretamente<br />

acessíveis a um observador. Entretanto, as proposições de<br />

observações, unindo os perceptos, nunca são percebidas,<br />

elas existem – já foram “plantadas” em nossa mente antes<br />

da observação. Devemos ter consciência de que percebemos<br />

as “coisas”, ou os “fatos”, sempre nos apoiando nelas.<br />

Nós, os psiquiatras, na impossibilidade de termos um<br />

instrumental mais sofisticado para observarmos, continuamos<br />

a usar esse expediente para fazer nossos diagnósticos<br />

clínicos, isto é, a linguagem do dia-a-dia para os fatos e a<br />

classificação das doença mentais.<br />

Não temos outro mais confiável até agora, esses são<br />

nossos instrumentos de observação. Essa ferramenta interpretativa,<br />

formulada por um grupo de psiquiatras, corrigida<br />

de tempos em tempos, parece-me menos defeituosa<br />

do que se cada um, em cada momento, usasse sua própria<br />

ferramenta, carregada de “pré-conceitos” científicos, acreditando,<br />

com muita fé, que está tendo “percepções imaculadas”,<br />

crença comum existente no “realismo ingênuo”.<br />

Não temos outra saída.<br />

Para a “luneta” ou observações do psiquiatra, os vários<br />

modos de agir do rapaz são denominados sintomas e<br />

sinais, exibidos pelo paciente, e que têm sua origem na<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 157


psique (cérebro/mente) da pessoa. Nessa localizam-se os<br />

fatores determinantes responsáveis pelas anomalias comportamentais<br />

percebidas: tipo de conduta observada, processos<br />

fisiológicos associados e somatizações, mudanças<br />

na cognição, na emoção e na conduta simbólica e, além<br />

disso, inventamos certos fatores que chamamos de “traços”<br />

como determinantes, desde cedo, por certo tipo de<br />

comportamento.<br />

Entretanto, há observadores não-médicos que usam<br />

“óculos” diferentes dos psiquiatras. Eles têm outras premissas<br />

básicas, usam outras lentes. Esses não só observarão<br />

condutas diferentes, como também enfatizarão algumas<br />

delas como mais importantes – prioritárias - para manter<br />

sua ideia do mundo ou da sua cosmologia. Fatalmente não<br />

darão importância às outras condutas ou outros fatos que<br />

são “valorizados” pelo psiquiatra. Para alguns psicólogos,<br />

certos religiosos e espíritas, o que o psiquiatra denomina<br />

de “transtorno psiquiátrico” pode não ser uma disfunção<br />

mental e não ter nada a ver com o cérebro/mente. Eles<br />

entendem e explicam o transtorno mental descrito por nós<br />

conforme as teorias orientadoras subjacentes existentes<br />

em suas mentes. Raciocinarão com conceitos e teorias bastante<br />

diferentes das usadas pelos médico acerca do fato, de<br />

sua evolução e, principalmente, das possíveis “causas” desencadeadoras<br />

do fenômeno que está sendo examinado.<br />

Por fim, esses valorizarão a conduta de forma diversa<br />

do psiquiatra. O que para esse é uma “doença”, para o<br />

espírita ou religioso pode ser, por exemplo, uma “possessão”,<br />

um “encosto” ou até mesmo uma “revelação”. Uma<br />

psicóloga pode chamar esse quadro de “carência afetiva”,<br />

“problemas de adolescente”, “ego fraco” ou outro nome<br />

semelhante. Além disso, não devemos nos esquecer que<br />

observamos um “cliente”, ou qualquer outro nome que se<br />

queira dar, num certo momento, diante de um determina-<br />

158 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


do observador e, como sabemos, a conduta das pessoas<br />

muda conforme o ambiente, nesse caso em função das<br />

informações ou condutas do observador.<br />

As pessoas possuem estruturas psíquicas ou cerebrais<br />

que promovem ações intencionais/racionais. Certos transtornos,<br />

mudanças ou lesões nessas estruturas provocarão<br />

mudanças nas ações. Em outras palavras, as modificações<br />

nas estruturas físicas/biológicas, causadas por mutações<br />

genéticas, danos no tecido cerebral, distúrbios nas substâncias<br />

químicas que aí circulam (neurotransmissores, hormônios<br />

e péptides), além das mudanças internas causadas<br />

por problemas externos do meio ambiente, principalmente<br />

o relacionado aos contatos com pessoas, irão se manifestar<br />

em mudanças comportamentais da pessoa, que pode<br />

caracterizar o que é chamado de transtorno psiquiátrico.<br />

Sua base, essencialmente biológica, está ancorada na história<br />

evolucionária e no genoma das espécies. Entretanto,<br />

o transtorno pode e, geralmente reflete, os efeitos indiretos<br />

ou indesejáveis do meio ambiente sobre o indivíduo<br />

psicossocial. O ser humano, preso às suas características<br />

biológicas, age e reage ao meio social, promovendo continuadamente<br />

sua adaptação aos significados ou valores<br />

desse meio.<br />

Há, portanto, bases sociobiológicas para os transtornos<br />

psiquiátricos. A teoria social fornece as influências<br />

nascidas da cultura e dos sistemas sociais que possibilitam<br />

o aparecimento, bem como sua forma, dos diferentes tipos<br />

de transtornos psiquiátricos. Muitas pesquisas nessas<br />

áreas têm se concentrado na pobreza, na classe social,<br />

nos estressores sociais, no apoio social e diversas outras<br />

influências culturais. Todas têm suas razões.<br />

Um sistema social global é constituído de diversos<br />

subsistemas como o legal/governamental, religioso/moral,<br />

familiar/comunal, acadêmico/médico, crenças/costumes,<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 159


etc. Existindo diversos modos de examinar a conduta,<br />

esta, uma vez desviada, pode levar os diferentes rotuladores<br />

a emitir classificações, conceitos e conclusões também<br />

diferentes, dependendo do subsistema utilizado para<br />

dar significado ao comportamento. O psiquiatra, estando<br />

ligado primordialmente ao subsistema médico, usará uma<br />

conceituação que a comunidade médica adota. Entretanto,<br />

sendo ele gente como o cliente e outras pessoas, - deve<br />

ser lembrado -, está ligado também a outros subsistemas,<br />

muitas vezes mais aprisionados nesses últimos do que no<br />

sistema médico.<br />

Todos esses subsistemas constituem padrões ou esquemas<br />

de referência para comparar e avaliar a conduta<br />

da pessoa a ser examinada. Os diversos esquemas de referência<br />

de cada subsistema examinarão aspectos diferentes<br />

da conduta, usarão conceitos e teorias diversas, valorizarão<br />

mais certos atributos, isto é, operam em termos de<br />

convenções distintivas. Assim é que uma pessoa P pode,<br />

num certo meio social, vir a ser diagnosticada como antissocial,<br />

informalmente rotulada de diferente, desviante,<br />

infradotada ou doente.<br />

Isto indica que P, a partir de um esquema de referência,<br />

recebeu uma identidade social formal como resultado<br />

de sua incorporação num certo subsistema social adotado<br />

por um grupo de pessoas. Este mesmo “cliente”, se examinado<br />

através de um outro padrão ou subsistema, e uma<br />

vez interpretada por ele, poderá ser denominada de criminosa<br />

(subsistema legal/governamental), poderá também<br />

ser rotulada de “santa”, “vidente” ou “médium”, etc. Tudo<br />

dependerá das convenções existentes na base de referência<br />

adotada e usada no momento da incorporação, por cada<br />

examinador de conduta. Em resumo, um mesmo indivíduo<br />

P poderá ser rotulado de criminoso, doente mental, sadio,<br />

santo e estranho e outros rótulos, até de “normal”.<br />

160 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


São frequentes os conflitos entre os diversos modos<br />

de rotular dos subsistemas. Geralmente um rotulador não<br />

conhece o esquema usado pelo outro para rotular e, por<br />

isso, acha que ele está errado. O próprio rotulador geralmente<br />

não conhece as premissas implícitas no seu raciocínio<br />

e que estão sendo usadas para incorporar um certo<br />

indivíduo num subsistema sociocultural. Cada sistema possui<br />

não só ontologias diversas, como também epistemologias<br />

variadas conduzindo a ela.<br />

O subsistema médico clássico, como outros subsistemas,<br />

opera com pressuposições teóricas subjacentes diferentes<br />

das dos outros. Assim, ao examinar uma conduta,<br />

poderíamos perguntar: - Que fatores levam uma pessoa a<br />

ter o comportamento que ela está apresentando? Se ela<br />

é rotulada de “doente mental”, estamos raciocinando com<br />

hipóteses ou explicações biológicas e desenvolvimentalistas<br />

para entender o transtorno.<br />

Para o adepto do subsistema religioso, as explicações<br />

emergem de teorias místicas ou mágico-religiosas e, finalmente,<br />

o esquema legal/governamental examinará as<br />

ações do rotulado que não se enquadram no que está estabelecido<br />

pela lei.<br />

A nossa sociedade ou governo, por diversas “razões”,<br />

tem priorizado o esquema de referência científica, neste<br />

caso o modelo médico e não os “alternativos” como o mágico-religioso.<br />

Entretanto, os outros subsistemas contaminam<br />

o pensamento de todos nós, inclusive dos médicos,<br />

psicólogos, juízes, autoridades, etc. O nosso presidente,<br />

ao tomar posse, indicou um médico para ser o Ministro da<br />

Saúde. Entretanto, preso a outros esquemas, usou fitinhas<br />

de N. S. do Bonfim no pulso para “protegê-lo” contra maus<br />

prognósticos e submeteu-se à acupuntura para suas dores<br />

lombares. Uma mistura de crenças e de paradigmas conflitantes.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 161


A cultura continua a utilizar-se de premissas, conceitos<br />

e teorias das doenças e da saúde provenientes de diversas<br />

origens, algumas com ideias opostas. Ao categorizarmos<br />

um comportamento desviante, misturamos ideologias variadas<br />

acerca das doenças, fatores naturais e sobrenaturais,<br />

considerações morais, socioecológicas, sociossituacionais,<br />

como anomalias, excentricidades, criminalidade, santidade,<br />

pecado e feitiçaria. Todas se entrelaçam na mente do<br />

indivíduo e não raras vezes nas teorias complexas do próprio<br />

médico, formando um todo compacto.<br />

162 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


LoUcoS X Sem-teto<br />

Resta-nos esperar um pouco para assistirmos à transformação<br />

de uma multidão de “loucos” em um exército de<br />

sem-teto (sem-casa, ou, mais vulgarmente, pedidores de<br />

esmolas). Muitos dos loucos “soltos” – ou seriam abandonados?<br />

– pelos seus “defensores”, depois de um certo<br />

tempo irão morrer de inanição, outros serão queimados,<br />

atropelados ou assassinados pelos seus próprios companheiros<br />

ou inimigos, nas ruas ou nos barracões inabitáveis<br />

e também em “abrigos para velhos e loucos”. Os que escaparem<br />

desse morticínio morrerão de cirrose, hepatite,<br />

tuberculose e pneumonia assentada na desnutrição, alcoolismo<br />

e outras drogas.<br />

Compreenda melhor a verdadeira história da “Libertação<br />

dos Loucos”. Em 1900, o número dos pacientes mentais<br />

internados nos hospitais psiquiátricos americanos era<br />

de 150.000. Este número cresceu para 445.000, em 1940.<br />

Em 1955, dobrou para 819.000 (citado por John Q. La Font,<br />

1994). Os gastos ocorridos com esta população preocupa-<br />

preocuparam<br />

o governo americano. Era preciso armar, rapidamente,<br />

uma estratégia capaz de diminuir essas despesas e, ao<br />

mesmo tempo, agradar à opinião pública.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 163


Nos anos sessenta o quebracabeça foi maquiavelicamente<br />

solucionado. A estratégia foi inteligentemente montada.<br />

Sempre todos criticaram a assistência médica dada<br />

ao paciente mental nos hospitais psiquiátricos. Na época<br />

da criação da brilhante ideia para economizar gastos públicos,<br />

grandes nomes da psiquiatria mundial como Laing,<br />

Szasz, Gofman faziam, com toda razão, pesadas críticas ao<br />

internamento desnecessário e à péssima assistência psiquiátrica<br />

hospitalar.<br />

Mas como tirar os pacientes do hospital sem ferir a<br />

opinião pública? A ideia para esse dilema foi magistral e<br />

simples. Criou-se uma lei proibindo o internamento involuntário.<br />

A partir daí, todas as internações tornaram-se<br />

mais difíceis de serem concretizadas. Além disso, os pacientes<br />

internados podiam escolher, a partir da promulgação<br />

da lei, em continuar ou não hospitalizados.<br />

O povo apoiou com entusiasmo a lei. O povo jamais<br />

conhece a fundo as intenções reais e implícitas dos governantes,<br />

pois os discursos explicitados, em sua maioria ou<br />

totalidade, têm sido usados para esconder o que não pode<br />

ser mostrado. O movimento que tirou o louco do hospital e<br />

o despejou na rua como lixo, recebeu o eufêmico nome de<br />

“movimento em defesa da liberdade dos indivíduos estigmatizados<br />

e desprotegidos socialmente”.<br />

O resultado da reforma foi rápido e eficiente como<br />

desejavam os governantes preocupados com as despesas,<br />

jamais com a qualidade de vida do paciente psiquiátrico.<br />

O número de internados nos USA caiu para menos<br />

de 200.000. Suas famílias, quando existiam, não tinham<br />

capacidade nem competência para tê-los em casa. Os pacientes,<br />

uma vez “libertados” e sem apoio familiar, foram<br />

transferidos dos péssimos hospitais psiquiátricos para as<br />

ruas selvagens das grandes cidades ou abrigos miseráveis<br />

e sem assistência médico-psiquiátrica.<br />

164 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Os dados mostram que nos USA houve um crescimento<br />

assustador dos sem-tetos após a vigência dessa lei.<br />

Estes aumentaram para 500.000 a 600.000 indivíduos.<br />

Outras estatísticas falam de 3.000.000 deles. Desses,<br />

segundo as estatísticas, 90% são doentes mentais graves:<br />

esquizofrênicos, alcoólatras, deprimidos, dependentes de<br />

drogas, epilépticos, demenciados (caduquice) e débeis<br />

mentais.<br />

Por outro lado, a população ficou à mercê de possíveis<br />

ataques de alguns desses ex-pacientes. Há tempos, o<br />

New York Times publicou uma reportagem relatando crimes<br />

no metrô de Nova Iorque. As vítimas, usuários do<br />

metrô, foram atiradas debaixo dos trens. Dos dez assassinatos<br />

relatados, nove foram praticados por esquizofrênicos<br />

delirantes e que nunca tinham visto suas vítimas. Um<br />

outro estudo feito na Suécia mostrou que 20% das mulheres<br />

sem-teto morreram durante os três anos da pesquisa,<br />

sendo que algumas delas foram assassinadas pelos<br />

próprios companheiros. Essa taxa de mortalidade é doze<br />

vezes maior do que as ocorridas com uma amostra de mulheres<br />

de mesma idade.<br />

Em resumo: os “loucos”, nos Estados Unidos, se transformaram<br />

em sem-teto. A ideologia capitalista, desde sua<br />

origem, não tolera cidadãos que não produzam trabalho.<br />

Os primeiros “hospitais” eram depósitos de “vagabundos”,<br />

destinados a afastá-los dos “sãos” trabalhadores. O governo<br />

capitalista esvaziou os hospitais, lançando os pacientes<br />

na rua e sem dono, abandonando-os à sua própria sorte.<br />

Surpreendentemente, vemos ativistas dos partidos<br />

chamados de “progressistas” como os principais defensores<br />

dessa covarde trapaça. Aproveita-se da insensatez<br />

provisória ou perene dos doentes mentais, prometendolhes<br />

a liberdade inexistente. Foram, de fato, jogados no<br />

inferno das ruas, sem comida e sem lugar para dormir.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 165


De forma ilógica falam do direito do cidadão, inclusive do<br />

direito à assistência médica, mas, com a alta hospitalar élhes<br />

negado esse direito.<br />

Todos sabem - os políticos interessados em economizar<br />

fingem não saber - que este tipo de indivíduo não consegue<br />

distinguir e escolher o que é o melhor para ele próprio, uma<br />

conduta que faz parte de sua própria doença. O Estado,<br />

apoiado por diversos políticos e pelo povo ingênuo, atuando<br />

como o bandido ou marginal, passa o “conto do vigário” no<br />

incauto e desprotegido paciente, lucrando com a ingenuidade<br />

de sua vítima e, estranhamente, recebe as honras e os<br />

aplausos da galera por estar “libertando os loucos”.<br />

A história ocorrida nos USA, que está sendo reformulada,<br />

foi copiada em Minas. Lá nos Estados Unidos constatou-se<br />

que a “caridade” para com o paciente, de fato, foi<br />

sua desgraça. A lei foi modificada para a adoção de uma<br />

“Jurisprudência Terapêutica”. Segundo esta, o alvo passa<br />

a ser o melhor para a saúde do paciente, isto é, o internamento<br />

ou tratamento pode e deve ser involuntário, desde<br />

que beneficie o paciente.<br />

Vamos matar muitos “loucos” para acordarmos e<br />

aprendermos a lição. É possível, desde que pensemos, antecipar<br />

acontecimentos ilógicos antes de sua ocorrência.<br />

Posso, ao perceber que a escada está quebrada, trocá-la<br />

antes de minha queda. De qualquer modo, com o dinheiro<br />

economizado devido à “liberdade” dos “loucos inúteis”,<br />

com a diminuição dos gastos com a saúde desses pacientes<br />

sem voz e sem prestígio social, torna-se possível aumentar<br />

os salários dos nobres vereadores, deputados, senadores e<br />

outros protegidos. E os políticos continuarão a ser os grandes<br />

defensores dos desassistidos.<br />

Talvez o governo e os políticos tenham razão: o melhor<br />

– ou menos ruim - para os “loucos” abandonados é ter<br />

uma morte rápida.<br />

166 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Torna-se difícil fazer uma escolha entre viver num<br />

péssimo hospital psiquiátrico ou morrer bêbado, drogado,<br />

doente e agredido numa rua escura e sem saída.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 167


A teStemUnHA do Ponto de ViStA<br />

PSiQUiÁtrico<br />

Nenhuma testemunha, por mais que jure dizer a verdade,<br />

somente a verdade, o fará, pois sua “verdade” é<br />

um conjunto de conceitos, preconceitos, julgamentos, inferências,<br />

interpretações, percepções e fantasias mal ou<br />

bem elaboradas. Sabe-se que ninguém tem condições de<br />

fazer uma descrição imparcial e objetiva de um fato, mesmo<br />

de evento simples: um atropelamento por um veículo.<br />

Cada uma das testemunhas é diferente quanto à idade,<br />

sexo, inteligência, capacidade de percepção, raciocínio,<br />

julgamento e maior ou menor tendência à fantasia. Consequentemente,<br />

cada uma terá uma história, ou melhor, uma<br />

versão do acidente.<br />

Assim, se o atropelamento foi cometido por um motorista<br />

de táxi e a testemunha não gostar deste profissional,<br />

ela poderá ter “enxergado” uma expressão de raiva no<br />

rosto do motorista. Um bom observador poderá perceber<br />

no rosto do motorista, por exemplo, a pupila dilatada, os<br />

lábios contraídos, tremores nas mãos, a palidez, a respiração<br />

e voz entrecortada, mas jamais observará “ódio”, pois<br />

esse não é percebido e sim construído ou imaginado pelo<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 169


observador, ou seja, o “ódio” será sua interpretação ou julgamento<br />

de certos fatos que ele percebeu. Provavelmente<br />

todos os depoimentos são carregados de julgamentos ou<br />

interpretações.<br />

Um testemunhará que o motorista estava “voando”,<br />

uma outra, simpática aos taxistas, afirmará que o pedestre<br />

não teve o “devido cuidado” ao atravessar a rua, e acrescentará:<br />

”é muito difícil dirigir no centro da cidade”.<br />

Há outras hipóteses: uma, ao assistir ao acidente,<br />

colocará a culpa no guarda de trânsito – caso não goste<br />

deles. Outras ainda poderão culpar o governo, o calor<br />

ou o frio, conforme a temperatura do dia. Portanto, todos<br />

irão elaborar hipóteses pessoais para o que acabaram de<br />

ver, escutar e, principalmente, sentir. Assim agem todas as<br />

testemunhas: de casamento, de briga de marido e mulher,<br />

de acidente de trânsito ou de assassinato.<br />

A “descrição” é, de fato, um julgamento intuitivo, automático,<br />

interpretações concebidas por cada um de nós<br />

após sentirmos emoções diante do fato presenciado. Nunca<br />

é uma descrição dos fatos puros observados. Isso só acontece,<br />

em algum grau, com os cientistas nos laboratórios de<br />

pesquisas. A testemunha relata a composição que elaborou<br />

ou fantasiou, aproveitando um ou outro fato, deixando<br />

de lado diversos outros que não interessam ao descrito.<br />

Em resumo, elas fazem julgamentos do que sentiram, não<br />

do que viram, em harmonia com o que pensam de si e do<br />

mundo. A nossa mente seleciona e retém eventos do mundo<br />

conforme nossos valores ou atitudes.<br />

Numa pesquisa, meninos de uma escola americana foram<br />

separados em duas classes: uma com preconceitos contra<br />

o negro, outra formada de alunos sem preconceitos. Para<br />

os dois grupos foi lida uma história relatando fatos favoráveis<br />

e desfavoráveis ao negro. Semanas após a leitura pediu-se<br />

aos alunos que relatassem o que lembravam da história.<br />

170 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


O primeiro grupo - o que tinha preconceito – lembrava<br />

apenas de fatos desfavoráveis aos negros.<br />

O segundo grupo, sem preconceitos, lembrou-se tanto<br />

de fatos favoráveis quanto desfavoráveis.<br />

Voltando ao acidente de trânsito, o foco de atenção<br />

das testemunhas, no momento anterior ao acidente, possivelmente<br />

era, como sempre, dirigido aos seus interesses<br />

do momento: um olhava a vitrine, outro refletia sobre a<br />

briga que teve com a esposa, um terceiro lia manchetes na<br />

banca de jornais, uma cuidava de crianças, etc. De repente,<br />

a paz foi quebrada por um estrondo ou visão inesperada.<br />

A atenção do pedestre/testemunha é mudada bruscamente<br />

devido ao estímulo visual ou auditivo.<br />

Mesmo se a pessoa observou a colisão no momento<br />

exato em que a vítima foi atirada ao chão, ela não poderá<br />

dar um relato preciso do fato, pois ela não tem o treinamento<br />

adequado para observar acidentes, crimes ou brigas. Um<br />

policial habilidoso, ao presenciar um acidente, poderá ver,<br />

possivelmente melhor do que um nervoso passante sem<br />

treino. Mas mesmo este policial terá sua observação limitada,<br />

posto que naquele instante verá um acontecimento<br />

complexo, com diversos fatos antecedentes e consequentes.<br />

Por exemplo, ao presenciar um acidente, o policial ou<br />

a testemunha não sabem se a vítima sentiu um mal súbito,<br />

se queria matar-se ou, até mesmo, a posição do carro nos<br />

instantes que antecederam a colisão. O conjunto de fatores<br />

que levou o carro a colidir não é conhecido.<br />

Nossa mente tende a dar uma organização lógica e<br />

compreensível a qualquer fato. Ora, como falta treino, no<br />

caso de observação de acidente, e também conceitos organizadores<br />

mais científicos acerca do fato - menos populares<br />

– para obter uma objetividade maior, sabemos que qualquer<br />

indivíduo percebe, organiza e transforma os acontecimentos<br />

conforme o modelo mental existente em sua mente.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 171


Desse modo, em lugar de descrever um fato observado,<br />

a testemunha relata um fato transformado, encaixando-o<br />

no seu sistema representacional já há muito organizado<br />

pelas experiências e aprendizagens anteriores. Ele dará<br />

pouco valor a fatos que não se enquadram às suas crenças<br />

e ideais básicos, por outro lado acentuará os que reforçam<br />

as ideias básicas. Se ocorresse o contrário, as pessoas<br />

iriam se modificar a todo momento e isso não ocorre.<br />

Há uma experiência clássica, que realizei por diversas<br />

vezes na Faculdade de Medicina da UFMG. Ela consiste<br />

em apresentar a um aluno um quadro contendo uma cena<br />

dentro de um ônibus com vários personagens. Um deles é<br />

um homem de cor branca portando uma navalha levantada<br />

em direção ao rosto de um homem negro. Pede-se ao aluno<br />

que está vendo a cena que faça uma descrição da mesma<br />

para um segundo aluno, que vai escutar o relato sem<br />

ter visto a imagem. Esse segundo aluno depois descreve o<br />

que “ouviu” para um terceiro aluno, que entra na sala até<br />

alcançar sete alunos. Com frequência, em certo momento<br />

do relato, algum aluno transforma o ouvido: descreve a<br />

navalha na mão do homem negro e não do branco como<br />

estava sendo descrita. Assim, o escutado é transformado<br />

pela cognição ou representação pré-existente, quem ataca<br />

é o negro, não o branco.<br />

Em resumo, o mundo que observamos é modificado<br />

pelo nosso “assimilador” mental. Os fatos serão sempre<br />

percebidos e organizados conforme os valores e ideais que<br />

cada um tem no momento.<br />

Se a testemunha não gosta de taxistas, nem de cabeludo,<br />

e por azar o motorista encaixa-se nessas características,<br />

possivelmente ele será incriminado pelo observador.<br />

Um acidente, um crime ou um divórcio são processos<br />

dinâmicos, confusos e complexos. Uma testemunha, ao<br />

observar ou ouvir, “congela” a imagem percebida domina-<br />

172 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


da pela emoção provocada: essa orientará o relato. Ora, o<br />

pequeno segmento do acidente memorizado, ditado pelas<br />

suas intuições e emoções, não dará nunca a ideia do todo.<br />

É atribuída a José Maria de Alkmim a frase “o importante<br />

não é o fato, mas a versão”. Ele sabia o que dizia,<br />

pois o fato, a partir do momento seguinte ao acontecimento,<br />

passará a existir apenas na memória dos espectadores,<br />

cada um com a sua versão. Após o acidente encerrou-se<br />

o fato. A partir daí nascem as versões e essas passarão a<br />

existir nos processos, nas histórias e na vida das testemunhas.<br />

Se a vítima morre, parte do fato real é enterrado<br />

com ela.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 173


dUAS VertenteS<br />

Duas revistas americanas, a “New York”, há vários<br />

anos, dezembro de 89, e a “Newsweek”, março de 1990,<br />

estamparam na capa fotos e desenhos de um novo antidepressivo,<br />

o cloridrato de fluoxetina, lançado no Brasil<br />

também há bastante tempo, bem como nos Estados Unidos.<br />

Ambas as revistas discutem, em suas reportagens, a<br />

batalha que se trava entre os chamados psicoterapeutas e<br />

os psiquiatras referente à prescrição de drogas para seus<br />

pacientes. O que se nota, através das reportagens, é uma<br />

modificação nos hábitos e na maneira de pensar dos psicoterapeutas.<br />

Baseados na crença de que as prescrições para<br />

os clientes teriam um efeito simbólico negativo sobre a<br />

psicoterapia, eles não receitavam medicamentos para seus<br />

pacientes. Agora passaram a recomendá-los.<br />

A luta, que é antiga, se acirrou a partir do livro publicado<br />

pelos professores americanos Paul Wender e Donald<br />

Klein, em 1981, com o título “Mind, Mood and Medicine”.<br />

Nele é descrito o caso de uma cliente que, após ser tratada<br />

durante vários anos através de diferentes formas de psicoterapias,<br />

e não tendo conseguido os resultados esperados,<br />

melhorou consideravelmente ao usar antidepressivos.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 175


A paciente apresentava a síndrome do pânico. Estava lançada<br />

para o mundo uma ideia revolucionária da possibilidade<br />

de se tratarem certos distúrbios emocionais através<br />

de medicações. Até então a única forma de tratamento<br />

utilizada para esses casos era a psicoterapia.<br />

A descoberta de novas medicações e a divulgação e o<br />

uso de novas técnicas psicoterápicas destruíram o domínio<br />

exercido, durante décadas, pela psicanálise.<br />

Esta forma de tratamento, ou melhor, esta técnica psicoterápica<br />

tornou-se tão divulgada entre a população que<br />

ela passou a ser sinônimo, para muitos, de psicoterapia.<br />

Atualmente existem catalogadas mais de mil teorias psicoterápicas<br />

diferentes. Algumas são, há muito, empregadas<br />

no Brasil, como a Psicoterapia Centrada no Cliente, Terapia<br />

Transacional, Terapia Comportamental, Terapia Jungiana,<br />

Gestalt, Neurolinguística, Terapia Racional Emotiva, Terapia<br />

Cognitiva Comportamental e outras.<br />

A poeira ainda não baixou nos Estados Unidos, mas<br />

começou a levantar-se aqui no Brasil. Durante muitos anos<br />

a psicoterapia de base analítica dominou os departamentos<br />

das escolas médicas, de psicologia, de sociologia e de<br />

antropologia e também uma grande parte das revistas sobre<br />

o comportamento humano. A psicanálise sutilmente<br />

penetrou e dominou a imprensa leiga, assim como as artes<br />

e a literatura, determinando a formação de uma opinião<br />

pública altamente favorável a ela. Nos departamentos<br />

das universidades, onde a psicanálise dominava, os que<br />

ousaram duvidar de suas suposições, ou eram afastados<br />

de suas funções, quando as tinham, ou nunca alcançavam<br />

cargos de direção. A psicanálise tornou-se, para muitos<br />

dos seus antigos seguidores, algo semelhante a uma religião.<br />

As suas premissas não podiam ser contestadas, mas<br />

tão-somente discutidas, para serem compreendidas pelos<br />

iniciados nas “verdades” reveladas e não observadas.<br />

176 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Alguns curiosos discordavam publicamente da teoria<br />

psicanalítica, entre eles Sir Peter Medawar, prêmio Nobel<br />

de Medicina, que declarou: “Considerada em sua totalidade,<br />

a psicanálise não funciona, ela é um produto acabado,<br />

é como um dinossauro ou um Zepelin; nenhuma teoria<br />

melhor poderá ser erigida sobre suas ruínas, as quais permanecerão<br />

para sempre como uma das mais tristes e estranhas<br />

marcas na história do pensamento do século XX”.<br />

Existe atualmente o perigo de caminharmos para o<br />

outro extremo, o risco desses entusiasmados neuroquímicos<br />

passarem a tratar todos os seus pacientes de modo semelhante<br />

ao do internista que trata uma úlcera, ou de um<br />

fanático psicoterapeuta ao imaginar que a teoria por ele<br />

seguida é a única certa e verdadeira e, desse modo, cair na<br />

mesma crença sustentada pelos psicanalistas de ontem.<br />

Os psicólogos americanos que, aqui como lá, não podem<br />

receitar, lutam para conseguir esse privilégio restrito<br />

a médicos e dentistas. Parece que a luta entre os grupos<br />

vai durar muito tempo. Quem perde com a disputa é<br />

a própria psiquiatria, pelo radicalismo, sempre perigoso,<br />

principalmente na área científica, e também os clientes,<br />

que ao se filiarem a um grupo ou a outro, perdem muitas<br />

vezes a oportunidade de se beneficiar com os tratamentos<br />

do grupo adversário. De qualquer modo, pouco a pouco os<br />

psiquiatras aceitam o inevitável, isto é, surgimento de diferentes<br />

técnicas psicoterápicas adequadas para diferentes<br />

tipos de pacientes e de terapeutas, e o uso de medicamentos<br />

para curar algumas vezes ou, pelo menos, junto com<br />

as psicoterapias, ajudar a curar diversas doenças mentais<br />

e emocionais.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 177


PLAceBo, A PÍLULA doUrAdA<br />

Certos médicos gostam muito de receitar drogas novas,<br />

a última novidade ou descoberta do laboratório. Eles<br />

tem plena razão, pois no meio médico circula uma afirmação:<br />

“deve-se tratar o maior número de pacientes com as<br />

novas drogas, enquanto elas ainda têm o poder de curar”.<br />

Sabe-se que, após algum tempo de uso, várias dessas<br />

drogas espetaculares foram desmitificadas e tornaram-se<br />

somente placebos, ou seja, substâncias sem a ação farmacológica.<br />

Para verificar se uma droga tem ou não propriedades<br />

farmacológicas, os pesquisadores testam-na, comparandoa<br />

com um falso tratamento, isto é, com um placebo. Este<br />

é preparado preenchendo todas as características externas<br />

da droga a ser testada. Também o grupo de pacientes que<br />

recebem a droga e os que recebem apenas o placebo deve<br />

ser semelhante tanto em idade, como quanto à ”doença”,<br />

à cultura, etc. Os pacientes, as enfermeiras e os médicos<br />

que aplicam as duas “drogas” não sabem qual é a inerte<br />

e qual é a droga a ser testada. Apenas o coordenador da<br />

pesquisa conhece esses dados.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 179


Tem sido verificado que os placebos tendem a ser<br />

mais eficazes, se custam mais caro, se muitos amigos e<br />

conhecidos já o usaram com “sucesso”, se são amargos<br />

ou se, em algum sentido, apresentam dificuldade de serem<br />

usados. As injeções inertes têm mais efeito do que os<br />

comprimidos sem ação.<br />

Pois bem, normalmente os sintomas da maioria das<br />

doenças são favoravelmente afetados também pelos placebos,<br />

isto é, pelo não-remédio.<br />

Eles são altamente eficientes para melhorar as ansiedades,<br />

depressões, dores, enjoos, insônias, psicoses,<br />

neuroses, alergias diversas, artrites, distúrbios gastrointestinais,<br />

doenças da menopausa, verrugas, impotência,<br />

acne, obesidade e muitos outros problemas médicos. Não<br />

fique muito entusiasmado com essa “panaceia”. Ela é muito<br />

eficiente para curar os sintomas e não a reversão ou<br />

suspensão de condições degenerativas.<br />

Os remédios receitados pelos curandeiros e pelos<br />

médicos até o século XIX eram certamente placebos, já<br />

que mesmo aqueles medicamentos, com propriedades farmacológicas<br />

hoje bem conhecidas e comprovadas, eram<br />

utilizados em doses inadequadas ou para vários males em<br />

que a sua ação terapêutica era nula. Os antigos médicos<br />

e curandeiros indicaram e realizaram, entre outros, os<br />

seguintes tratamentos: panos quentes aplicados à pele,<br />

varas magnéticas, elixir de longa vida e, para curar impotência,<br />

bebidas contendo o sangue dos fortes, perfurações<br />

da pele com agulhas especiais, inalações de vapores ou<br />

de fumaças, etc. As poções, os unguentos e as cápsulas<br />

preparadas pelos curadores podiam conter quase tudo:<br />

fezes ou urinas humanas ou de outros animais, metais<br />

diversos como o cobre (usado também para ser colocado<br />

em contato com a pele), pós de besouro e de serpentes,<br />

gorduras de eunucos e de porcos não castrados, testí-<br />

180 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


culos e diversas ervas. Todos esses tratamentos tiveram<br />

algum sucesso, em certos épocas, realizados por algum<br />

terapeuta.<br />

Os doentes mentais se submetiam a alguns tratamentos<br />

mais bárbaros: odores desagradáveis, sons altíssimos,<br />

exposição a situações de perigo (cova das serpentes),<br />

aplicação de vesicatórios na cabeça, camisa de força,<br />

duchas frias, segregação social, coma insulínico, eletrochoque<br />

e, mais recentemente, a lobotomia.<br />

Os clientes e seus familiares eram explorados pelos<br />

diversos “sábios” da época, que cobravam às vezes fortunas<br />

pelos tratamentos efetuados. Esses eram feitos, muitas<br />

vezes, com remédios não revelados, fabricados secretamente<br />

pelo curador, exigindo um grande tempo de uso,<br />

bem como muitos recursos e esforços do paciente, além<br />

de serem perigosos, desagradáveis e até mesmo sinistros.<br />

Ora, como a maioria dos tratamentos que ocorreram na<br />

medicina pré-científica - ainda muito usados - não apresentava<br />

o menor efeito orgânico direto sobre a condição<br />

a ser tratada, conclui-se que grande parte das curas foi<br />

alcançada com o uso de placebos.<br />

O placebo continua com sua ação poderosa na medicina<br />

moderna. Podemos afirmar que toda ação terapêutica<br />

medicamentosa, psicoterápica ou mesmo cirúrgica,<br />

envolve, em maior ou menor grau, efeitos de placebo que<br />

dependerá do carisma do médico, da fé do cliente e como<br />

o ritual mítico foi encenado. O médico, querendo ou não,<br />

sabendo ou não, fará uso de efeitos placebos em seus<br />

tratamentos.<br />

Entre as diversas pressões sofridas pelos médicos no<br />

seu dia-a-dia, principalmente se trabalha em instituições<br />

onde o número de clientes é enorme e o tempo curto, é a<br />

exercida pela indústria farmacêutica quanto à promoção<br />

de seus produtos.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 181


As estratégias são várias, indo desde a propaganda<br />

cara a cara, passando por promoção de encontros, revistas<br />

especializadas muito bem impressas, até o financiamento<br />

de congressos, ajuda material e financeira para pesquisa<br />

dos medicamentos da firma e distribuição de amostras.<br />

Essa indústria, de parceria com o ensino médico,<br />

criou o conceito de que tratar de alguém é dar-lhe algum<br />

medicamento. Essa ideia contamina a população, que hoje<br />

pensa do mesmo modo. Criou-se com isso, ao lado do médico,<br />

do paciente e da indústria farmacêutica, uma redução<br />

no campo de visão da doença, com percepção apenas dos<br />

seus aspectos biológicos, e pouca ou nenhuma preocupação<br />

com os ângulos psicológicos, sociais e culturais.<br />

A indústria farmacêutica, seguindo os outros mercados<br />

de produção e consumo, lança periodicamente novidades<br />

em medicamentos, com a ideia, para o consumidor<br />

e alguns médicos, de um suposto progresso ou avanço de<br />

medicina. Os novos medicamentos são avidamente receitados<br />

e consumidos pelas mentes confusas, assim como<br />

se usa a nova cueca, o novo sabão em pó ou o novo perfume.<br />

O bom médico, na avaliação de alguns, deve estar em<br />

dia com as novas e maravilhosas drogas que acabaram de<br />

sair do forno. Como toda moda, as propriedades extraordinárias<br />

da nova droga quase sempre desaparecem com o<br />

tempo. O cliente, esquecendo que foi ludibriado ao ser tratado<br />

possivelmente por um placebo, curado pela fé retorna<br />

ao seu médico, caçador da mais moderna descoberta, e<br />

consome feliz, novamente, o último lançamento, a última<br />

panaceia, o placebo dourado, num ritual hipocondríaco.<br />

182 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


AidS:<br />

VocÊ tem medo dA doenÇA<br />

oU do doente?<br />

Há dias, durante cerca de três horas, fiz uma viagem<br />

de ônibus para o interior de Minas. O ônibus, cheio de<br />

passageiros assentados, carregava também alguns em pé.<br />

De tempos em tempos, o veículo parava na estrada para<br />

pegar ou descer viajantes. Nessas ocasiões, por vezes vagava<br />

um novo assento no ônibus. Era comum ver o passageiro<br />

em pé continuar nessa posição alguns minutos, antes<br />

de decidir se assentar no lugar disponível.<br />

É curioso observar que a maioria das pessoas prefere<br />

não se assentar numa cadeira ainda “quente”. Segundo a<br />

crença, essa pode transmitir doenças. Pesquisas mostraram<br />

mais do que isso: a maioria das pessoas tem aversão<br />

a usar camisas, blusas, meias, sapatos, escova de dentes,<br />

pentes, sabonetes que pertenceram a um estranho e,<br />

principalmente, utilizar-se de uma privada estranha ao seu<br />

bem conhecido e amado bumbum.<br />

Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos, com a<br />

participação de 260 estudantes americanos, mostrou uma<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 183


aversão estranha e não esperada. As perguntas e as respostas<br />

foram muito semelhantes às abaixo:<br />

— Você seria capaz de usar um blusão que pertenceu<br />

a um aidético?<br />

— Acho que não.<br />

— E se esse aidético for um homossexual?<br />

— Pior ainda, de modo nenhum!<br />

— E se o blusão tivesse sido usado por um homem<br />

que perdeu uma perna num acidente de carro?<br />

— É... acho que não o usaria.<br />

— Vestiria um blusão que pertenceu a um assassino?<br />

— Não... nem pensar.<br />

Outras perguntas foram feitas como “Como você se<br />

sentiria usando um blusão novo?” Em seguida, perguntouse<br />

acerca do uso do blusão usado por um homem sadio,<br />

por um tuberculoso e um aidético-hemofílico. As mesmas<br />

perguntas foram feitas ao grupo de estudantes americanos<br />

com respeito a dormir na cama e dirigir um carro usado<br />

por esse grupo de indivíduos.<br />

Os resultados encontrados são interessantes: houve<br />

um elevado índice de medo de “contágio”, mesmo quando<br />

o blusão, cama e carro haviam pertencido a um homem<br />

saudável, em 33% dos entrevistados. Uma surpresa: na<br />

pesquisa, 50% dos entrevistados não usariam um objeto<br />

pertencente a um indivíduo que perdera uma perna num<br />

acidente. Seria medo do azar?<br />

Outros estudos relatam que tem sido difícil vender<br />

ou alugar casa onde anteriormente morou um aidético.<br />

Também tem sido verificado que os pais relutavam em<br />

matricular o filho numa escola frequentada por um aluno<br />

com AIDS. Uma pesquisa mostrou que 32% dos entrevistados<br />

acreditam que a AIDS pode ser transmitida pelo<br />

banho de banheira e 35% que pode ser adquirida ao doar<br />

sangue.<br />

184 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


A aversão pessoal é um sintoma de inúmeros transtornos<br />

mentais, na qual se inclui a personalidade “evitante”<br />

(pessoa facilmente ferida pelas críticas, que foge de<br />

atividades sociais, evita falar ou comer em público, etc.).<br />

A aversão ao contágio é uma resposta comum em pessoas<br />

consideradas “normais” e poucos são os defensores dos<br />

direitos dos aidéticos que seriam capazes de vestir uma<br />

roupa que foi usada por esse grupo e, muito menos, por<br />

um aidético homossexual. Por quê?<br />

Sabe-se que o medo do contato com pessoas, doentes<br />

ou não, implica mais do que o simples medo de contrair uma<br />

doença. Uma explicação frequente das causas das doenças<br />

é a cultural-religiosa. Para essa interpretação, apanha-se<br />

uma doença em virtude de transgressões morais ou pecados.<br />

Por trás dessa crença há uma suposição da existência<br />

de um “mundo justo”, sugerindo um castigo e desvalorização<br />

moral da vítima dos azares físicos ou moléstias. Para<br />

esses, o atingido pelo infortúnio deve “merecer” o ocorrido<br />

como punição por algo errado que ele deve ter feito.<br />

O descrito acima intuitivamente nos soa esquisito.<br />

Mas, sem estranharmos, observamos uma conduta oposta:<br />

a todo o momento assistimos fãs de artistas, esportistas,<br />

políticos, religiosos e outros famosos sonhando em possuir<br />

e vestir a camisa e cueca que pertenceu a Ronaldinho e<br />

outros, de tomar um banho com o sabonete usado pelo<br />

cãozinho de Xuxa, ou usar sua calcinha e sutiã, de dormir<br />

na cama que pertenceu, ou, se possível, com o “próprio”<br />

deus idolatrado, de viajar no carro de alguém famoso, em<br />

resumo: tudo que poderá produzir associações supostamente<br />

“positivas”.<br />

Acredito que é a emoção intuitiva, positiva ou negativa<br />

que sentimos para um ou outro indivíduo, que promove<br />

os pensamentos favoráveis e desfavoráveis que surgem<br />

para justificar o sentido pelo nosso organismo.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 185


De outro modo, não são os pensamentos “lógicos”<br />

que dão origem aos julgamentos feitos – vestir ou não<br />

o blusão - mas sim as emoções presas em julgamentos<br />

cristalizados que são detonadas automática e inconscientemente<br />

contra ou a favor de determinadas categorias de<br />

pessoas diante da presença do fato exibido.<br />

Vocês sabem que existe uma ilusão de autoengrandecimento<br />

pessoal devido a ligações não significativas, subjetivas<br />

tolas, como ficar feliz por morar no mesmo prédio<br />

ou bairro onde reside uma pessoa famosa, usar a mesma<br />

marca de auto, o mesmo corte de cabelo, chinelos, óculos<br />

etc., semelhantes ao do nosso ídolo. Alguns ficam felizes<br />

até em virtude de associações tênues, como ter nascido no<br />

mesmo dia e mês em que nasceu seu deusinho passageiro.<br />

Esse é o ser humano, chamado, por alguns, de animal<br />

superior e racional.<br />

186 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


AidS: o Pânico eStÁ SoLto<br />

O medo da AIDS tem-se tornado, talvez, uma doença<br />

mais grave que a própria AIDS. Um novo tipo de pacientes<br />

começa a ser identificado nas salas de espera dos clínicos e<br />

dos psiquiatras: aquele que busca desesperadamente uma<br />

ajuda, acreditando estar contaminado pela AIDS. Nesse<br />

padrão se enquadra o que limita sua atividade sexual com<br />

medo de apanhar a doença e o que não limita. Ambos, em<br />

pânico, procuram os médicos e se dispõem a submeteremse<br />

a exames.<br />

Um paciente de 45 anos imaginava suicidar-se depois<br />

de ter mantido relações sexuais com uma amiga. Esse<br />

paciente, casado, perfeitamente ajustado até então, começou<br />

a fazer exames médicos e, como nenhum era realmente<br />

conclusivo, foi fazendo outros, até se ver numa ciranda<br />

sem fim. Ele não pertencia a nenhum grupo de risco,<br />

nem sua amiga, uma recatada e pura funcionária pública.<br />

A cada exame, que respondia negativamente aos seus temores,<br />

ele exigia outros mais sofisticados. Enquanto isso,<br />

incomodava-o uma persistente diarreia - o início de seu<br />

medo. Era uma diarreia de origem emocional, como mais<br />

tarde ficou demonstrado.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 187


No Brasil, entre outros, foi registrado um caso doloroso:<br />

um homem suspeitando - apenas suspeitando - de que<br />

estivesse com AIDS, matou a mulher, os filhos e suicidouse.<br />

A autopsia mostrou que não passava de um medo infundado.<br />

Ele não tinha a doença.<br />

O medo de uma doença e outros estados emocionais<br />

atingem, primariamente, o espírito e, secundariamente, o<br />

corpo e as relações sociais.<br />

A literatura médica é repleta de casos de pessoas que<br />

morreram por medo do câncer ou da solidão. Entre os casais<br />

unidos há anos, não é raro um cônjuge morrer pouco<br />

depois da morte do primeiro.<br />

O leigo “explica” fácil e rapidamente a realidade, longe<br />

dos fatos: “A diarreia foi devida a uma laranja chupada”,<br />

“A loucura dele é castigo divino”. A tuberculose, que<br />

em épocas passadas não era bem conhecida quanto à causa,<br />

teve o seu período mítico áureo. As mais diversas “teorias”<br />

foram elaboradas, sendo cada uma fruto dos desejos,<br />

crenças, experiências e dramas de seus criadores. À medida<br />

que se conheceu melhor essa doença, os novos fatos<br />

impiedosamente jogaram por terra, destruindo as belas<br />

fantasias de seus autores.<br />

A AIDS ainda está no apogeu, ainda recebe hipóteses<br />

variadas, a maioria repleta de fantasias. Sendo pouco conhecida,<br />

ela dá margem à criatividade de cada um de seus<br />

explicadores. O discurso de cada um tem pretendido conhecer<br />

a realidade, organizá-la, impor normas de conduta,<br />

segregar pessoas, proteger, etc. As lacunas do desconhecido,<br />

muito frequentes, são preenchidas “com os delírios” e<br />

propósitos de cada um ou de cada grupo, conforme a concepção<br />

de mundo do indivíduo que vai explicá-lo. É possível<br />

ouvir, ditas com seriedade, frases do tipo: “AIDS é obra da<br />

engenharia genética”, “É um castigo para a liberdade sexual<br />

exagerada” e “Os portadores de AIDS devem ser esterilizados<br />

e, ao mesmo tempo, eliminar a sua potência sexual”.<br />

188 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


O fruto de todas essas fantasias, mitos e histórias<br />

mal contadas é o pânico diante do pouco conhecido, assim<br />

como foi a tuberculose, a lepra e a peste negra.<br />

Possivelmente, à medida que os fatos se forem tornando<br />

conhecidos, ficará o medo sensato e objetivo da<br />

doença, não mais o horror que está tomando conta dos<br />

amantes, até de alguns médicos e profissionais ligados à<br />

área de saúde.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 189


como controLAr oS AcontecimentoS<br />

Enquanto alguns obstinados tentam, a todo custo,<br />

controlar o meio rebelde, outros, mais conformados e plácidos,<br />

deixam as “águas rolarem” e uns poucos procuram,<br />

propositadamente, confusões e nelas se instalam, satisfeitos<br />

e confortáveis.<br />

Muitos desejam, alguns imploram ao bondoso Deus:<br />

“Que bom seria se pudesse mudar a cabeça do patrão,<br />

para que ele não me demita”, ou “fazer com que minha<br />

namorada não me abandone”, “iluminar a cabeça do nosso<br />

Presidente, para que ele nos deixe dormir em paz.”<br />

A maioria imagina que o controle vem apenas de<br />

fora. Esses supõem que os amigos e parentes, ou mesmo<br />

os políticos, deviam ajudá-los a conseguir o que eles não<br />

alcançaram e, muitas vezes, nem tentaram.<br />

Na velhice descobre-se - é preciso viver muito – a<br />

duras custas, que certos meios são difíceis, outros impossíveis<br />

de serem controlados. Aprende-se que nada se pode<br />

fazer diante de alguns problemas, como a violência dos<br />

outros, não a nossa, a corrupção, a chatura do discurso<br />

político, o trânsito caótico, o acidente, a miséria do povo e<br />

a ignorância.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 191


Sabe-se que algumas mudanças podem ser realizadas<br />

e várias delas dependem de nossa ação. Entretanto,<br />

nem sempre temos energia e vontade para lutarmos por<br />

essas alterações, assim, posso pretender ser médico, mas<br />

não quero gastar meu tempo estudando.<br />

Em alguns casos pode existir o desejo e a energia,<br />

mas pode faltar a competência necessária: gostaria de ser<br />

corredor, mas tenho o pé torto. Por fim, posso ser competente,<br />

ter vontade e energia, mas tenho uma autoestima<br />

baixa, ou seja, não acredito na minha capacidade. Tudo<br />

isso dificulta “chegar lá”.<br />

Ao nascermos, tomamos as primeiras medidas, por<br />

sinal grosseiras, para controlar o meio ingrato. O recémnascido,<br />

se está com fome, chora, e alguém pode milagrosamente<br />

aparecer para lhe dar o leite. Se está com frio,<br />

chora e novamente o protetor o aquece. Com o choro, o<br />

desconforto é controlado e o bem-estar retorna. Muitos<br />

adultos continuam usando essa técnica.<br />

Mais tarde aparecem estratégias mais sofisticadas<br />

para controlar o meio e a si próprio. Se estamos querendo<br />

um doce e o pedimos à nossa mãe, ela pode impor certas<br />

condições. A criança deseja brincar com o vizinho, a mãe<br />

não concorda, pois está na hora do almoço. Neste nesse<br />

caso a criança pode chorar, pedir mais, gritar, tentar<br />

manipulá-la ou negociar a ida, em último caso poderá até<br />

mesmo fugir de casa e ir morar com o vizinho.<br />

Na adolescência e na vida adulta, não só o meio enfrentado,<br />

mas também as técnicas para conseguir o desejado,<br />

tornam-se mais complexas e difíceis. O jovem quer<br />

ter um bom emprego, por conseguinte, casa e comida. Mas<br />

para isso terá que frequentar, por anos, a escola, estudar<br />

muito e deixar de lado diversões atraentes.<br />

Na velhice, inferiorizado e estigmatizado, não mais<br />

acreditando no choro, sem forças, o idoso só pode implorar<br />

192 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


para receber ajuda do meio, já que sua capacidade para<br />

modificá-lo é mínima e, para piorar, muitos estão doentes.<br />

Portanto, durante nossa jornada aqui na Terra os<br />

desencontros são muitos, as frustrações amargas. Mas é<br />

preciso seguir em frente até o ato final. E assim vamos,<br />

ora desequilibrados, ora supostamente firmes. Aos poucos,<br />

cada um, cambaleando, vai construindo seu caminho<br />

particular, imaginando medidas eficazes para restabelecer<br />

o “elo perdido”, a segurança sonhada. Mas basta surgir<br />

uma peninha de equilíbrio, um tempinho de calmaria e<br />

paz, para novamente esse animal surpreendente inventar<br />

novos caminhos, diferentes planos, ações e buscas e,<br />

consequentemente, novas desarmonias com o ambiente e<br />

consigo próprio.<br />

Assim é o homem: age, ao mesmo tempo evitando<br />

as dissonâncias internas e externas e, ao mesmo tempo,<br />

provocando-as. Este é seu destino, precisa das desordens,<br />

do caos. Ele planeja constantemente situações de risco, o<br />

que o amedronta: este é o alimento de sua mente. Muitos<br />

imaginam alcançar a felicidade caso consigam a paz constante.<br />

Ledo engano. Precisamos, para crescermos, relacionarmo-nos<br />

com os obstáculos, com as dificuldades, pois<br />

são as incongruências os nossos nutrientes mentais. São<br />

eles que nos fazem crescer. Sem eles seríamos idiotas.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 193


o PreÇo de UmA eScoLHA:<br />

AdeUS ÀS iLUSÕeS<br />

Todos nós sonhamos com a possibilidade, por sinal<br />

impossível, de transformar alguns fatos já vividos em outros.<br />

De outro modo, imaginamos desviver o vivido. Essa<br />

mágica não se realiza. Cada um lembra, amargamente,<br />

que podia ter estudado mais para aquele exame, não devia<br />

ter tratado tão mal aquela namorada encantadora,<br />

há muito devia ter mandado para o inferno o “amigo da<br />

onça” explorador, ter tido mais cuidado ao dirigir, evitando<br />

o acidente provocador das dores do joelho. Pensamos:<br />

“Se tivesse agido de outro modo, estaria, possivelmente,<br />

vivendo mais feliz do que estou”. Talvez sim, talvez não.<br />

Quantos e quantos aborrecimentos podiam ter sido evitados.<br />

Em resumo: muitas decisões tomadas ontem com<br />

muita fé, hoje, em hipótese alguma seriam realizadas.<br />

O povo fala: “ninguém é perfeito”, portanto, todos<br />

nós, sem exceção, demos nossos tropeços durante nossa<br />

passagem pela vida terrena. Segundo as estatísticas nesse<br />

assunto, quase todas ou todas as pessoas sentem-se terrivelmente<br />

arrependidas de terem abandonado os estudos<br />

muito cedo, queixam-se de que ninguém nada fez para<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 195


dissuadi-los disso. Outros lamentam um casamento precoce,<br />

que estragou todos os outros planos.<br />

Há, ainda, os que se arrependeram de ter mantido<br />

uma amizade por muitos anos, quando o melhor teria sido<br />

mandar “para o inferno” o “amigo/inimigo” de longa data,<br />

e outros ainda, por fim, amaldiçoam a hora fatídica do trágico<br />

encontro que resultou numa gravidez e no nascimento<br />

de um filho nascido num momento terrível, jogando por<br />

terra as belas fantasias da juventude.<br />

A psicologia costuma chamar esse arrependimento de<br />

“pensamento contrafactual”, isto é, nosso desejo de mudar<br />

os fatos que lamentavelmente aconteceram no passado e<br />

não podem ser modificados.<br />

Como o mundo caminha independentemente do que<br />

desejamos, um pequeno, simples e tolo fato não-pensado,<br />

não-desejado e nem necessário pode ocorrer. Tragicamente,<br />

esse fato que não precisava existir pode mudar para<br />

sempre nossas vidas. Um “escorregão numa casca de banana”<br />

pode dar origem a um novo e árduo caminho, sem<br />

que nada mais possa ser feito, destruindo para sempre a<br />

trajetória delineada, carregada de emoções positivas que<br />

habitavam o organismo num tempo longínquo que passou.<br />

Quanta saudade!<br />

Pensando nos meus escorregões, nas minhas “burradas”<br />

malucas pela vida afora, lembrei-me do encontro ocasional<br />

que tive com o Sócrates. Esse meu amigo de infância<br />

tinha uma vida traçada para ser boa. Era disposto, alegre,<br />

bonito e rico. Mas “estou lamentando antes da hora”. Sócrates<br />

conheceu a filha do aposentado da esquina, em virtude<br />

de pequenas coincidências, a princípio sem importância.<br />

Pouco a pouco, esse conhecimento, que não precisava ter<br />

ocorrido o levou a um caminho, é...bem! Vou lhes contar:<br />

Eu caminhava a mando do cardiologista - fazia minhas<br />

caminhadas para melhorar a pressão e observar a<br />

196 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


multidão - quando encontrei Sócrates. Achei-o envelhecido.<br />

Sempre achamos o outro mais acabado do que nós.<br />

Penso que essa avaliação ocorre porque vemos todos<br />

os dias nosso rosto e corpo no espelho e não vemos o do<br />

nosso amigo sumido.<br />

Fomos colegas no colégio do bairro e do futebol da<br />

várzea. Nem eu, nem ele, fomos craques, nem de futebol,<br />

nem dos estudos. Estudávamos para passar de ano e jogávamos<br />

para nos divertir. Entretanto, não éramos os piores<br />

da sala nem do time. Um dia, um dia como qualquer outro,<br />

sem nada de especial, nem chovia, nem ventava, o azul do<br />

céu de abril começava a escurecer, o Sol se punha, tranquilo.<br />

Sócrates ainda era jovem, muito jovem, como era o<br />

narrador dessa tragicomédia.<br />

Estava esquecendo: ele era um dos poucos do grupo<br />

que a família tinha algum dinheiro. Falava-se, entre nós,<br />

que seu pai era grande fazendeiro no norte de Minas. Nas<br />

nossas conversas não se comentava a vida e os segredos<br />

familiares de e para ninguém. Essa regra - não havia proibições<br />

explícitas – era acatada e respeitada por todos, não<br />

podia ser burlada.<br />

Voltando ao Sócrates: ele, quando ainda era um ginasiano<br />

- para quem não sabe, “ginasiano” era quem cursava<br />

os quatro últimos anos do atual primeiro grau - foi fisgado<br />

pela filha do aposentado. Lucélia, uma bela morena, ou<br />

mulata, isso não importa, era de “fechar o comércio”. Até<br />

aquela data, ela era inacessível aos jovens imberbes e desajeitados,<br />

mas nem por isso deixava de ser desejada por<br />

todos os jovens que transitavam em torno de sua casa.<br />

Dentro do nosso maniqueísta e acanhado campo perceptual<br />

de julgamento da conduta feminina, existiam, radicalmente<br />

opostos, dois tipos de mulheres: de um lado,<br />

as santas ou virgens-santas que serviam para se casar, de<br />

outro, as desinibidas e livres demais que podiam ter algumas<br />

outras serventias.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 197


Até então, não havia meio-termo. Mas apareceu Lucélia.<br />

Nenhum de nós pensava em aproximar-se dela para<br />

namorá-la, não porque a rejeitássemos, mas sim devido à<br />

nossa incapacidade física e financeira, ou pior do que isso,<br />

em virtude de nossa inabilidade, da falta de coragem, pois<br />

não conhecíamos as estratégias e as táticas necessárias<br />

para mantermos uma conversa e um relacionamento adequado<br />

com uma mulher daquele “pedigree”, capaz de fazer<br />

todos os homens virarem seus rostos em sua direção,<br />

quando passava pela rua. A presença de Lucélia derrubou<br />

nossa regra simples para julgar as mulheres em dois grupos<br />

opostos. Ela era um dos únicos e raros artigos que<br />

conhecíamos fora-de-série, pois não era, segundo nossa<br />

classificação, nem para casar, nem para um programa com<br />

pessoas como as do nosso grupo. Amedrontados, muito<br />

antes de darmos o primeiro passo em sua direção, já antevíamos<br />

o fracasso caso ousássemos conquistá-la. O nosso<br />

treino era pouquíssimo, a nossa única e, por sinal, péssima<br />

experiência, era muito pequena: “mulheres de rua”,<br />

mulheres de “terceira classe”, segundo nossa classificação<br />

sócio-religiosa da época, isto é, prostitutas, semiprostitutas<br />

ou candidatas a tal.<br />

Enxergávamos Lucélia através desses óculos embaçados<br />

e de lentes não-flexíveis, de maneira confusa: éramos<br />

superatraídos por ela e também tínhamos pavor de nos aproximarmos.<br />

Assim, ao mesmo tempo, sonhávamos em estar<br />

juntos e afastados dela. Tentar ou não tentar. Mas pior que<br />

tudo: Lucélia era inacessível para nossas posses. Tínhamos<br />

o delírio em nossas mentes, mas a realidade era outra.<br />

Num fim de tarde, ficamos surpresos ou espantados,<br />

não sei bem, quando vimos Sócrates de mãos dadas com<br />

Lucélia, passando na nossa frente sorridente e orgulhoso<br />

da conquista. Não dava para entender. O seu comportamento<br />

gerou em todos nós uma imensa inveja misturada<br />

198 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


com raiva. Pensei inicialmente que devia ser um encontro<br />

casual, sem consequências, milagrosamente dentro do padrão<br />

existente no grupo. Mas fiquei intrigado, imaginando<br />

como foi que ele conseguira ganhar a tão distante Lucélia,<br />

uma conquista que ninguém do grupo tinha conseguido,<br />

nem imaginado.<br />

Mas as pequenas diferenças foram, pouco a pouco,<br />

provocando as grandes diferenças na vida do Sócrates.<br />

Muito lentamente ele ia se transformando, à medida que<br />

sua paixão por Lucélia aumentava. Primeiramente Sócrates<br />

abandonou os encontros com os companheiros, mais tarde<br />

largou o futebol, depois, os estudos. A cada dia mais, sua<br />

vida girava exclusivamente em torno dela. Lucélia também<br />

ficou diferente do que era. Deixou de ser a jovem livre e<br />

alegre de outros tempos, a que saía com os “bacanas” de<br />

terno e gravata, os que a buscavam em seus carros, de<br />

fato carros simples. Tornou-se uma donzela séria, recatada.<br />

Ao abandonar os “grã-finos”, somente saía com Sócrates.<br />

Nós, de boca aberta, olhávamos e suspirávamos,<br />

seduzidos e raivosos, ao ver o casal passar.<br />

Após um curto período de dedicação exclusiva e de<br />

muita paixão, Sócrates deu mais um ligeiro escorregão,<br />

provavelmente não-desejado e não-programado. Um pequeno<br />

fato, sem os cuidados necessários, transformou, de<br />

vez, a vida do Sócrates e produziu uma diferença ainda<br />

maior. O fosso entre o antigo e o atual aumentou.<br />

O inevitável ocorreu: Lucélia foi deflorada, nome dado<br />

na época a certas minúcias do sexo. Em outras palavras,<br />

Sócrates “fez mal” a Lucélia. Naquele tempo, diferente dos<br />

tempos modernos, o costume obrigava o suposto autor a casar-se<br />

com sua “vítima”. À “boca pequena” falava-se que ele<br />

havia caído no conto da gravidez indesejada, ou melhor, os<br />

componentes do grupo tinham dúvida quanto ao autor real<br />

da gravidez. Talvez tivéssemos inventado isso de inveja.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 199


A partir de mais esse pequeno fato, a boa vida de<br />

Sócrates foi decepada para sempre. Ele, que nunca havia<br />

trabalhado, passou a fazê-lo. Ele, que sempre tinha algum<br />

dinheirinho sobrando no bolso para comprar um doce ou<br />

ir ao cinema, teve que economizar. Os fatos negativos,<br />

como bolas de neve, se acumularam. Sem alternativas,<br />

diante de sérias dificuldades financeiras, Sócrates mudouse<br />

da pensão razoável onde morava, para o fundo do barraco<br />

existente na casa do sogro. Era lá onde funcionava<br />

um pequeno depósito de lenha. Era apenas um quartinho<br />

apertado para dormir. O banheiro situava-se fora do quarto<br />

e não havia cozinha, nem sala.<br />

Sócrates passava parte do dia cuidando da esposa,<br />

que estava grávida, pois logo no início da gravidez Lucélia<br />

foi despedida do emprego de vendedora das Lojas Canadenses.<br />

Dia sim, dia não, enquanto sua sogra cuidava<br />

dela, Sócrates vendia para vizinhos e pessoas amigas doces<br />

fabricados por ele durante o dia e, à noite, trabalhava<br />

de porteiro da Associação Comercial.<br />

Tentou voltar aos estudos, mas faltou dinheiro para<br />

as mensalidades e também tempo para frequentar a escola<br />

e, por isso, abandonou o colégio para sempre.<br />

Foi deixando de lado, progressivamente, outras metas<br />

anteriormente planejadas como fazendo parte de seu<br />

futuro, frutos de sonhos de criança e dos incentivos do<br />

pai: ser advogado na área criminal, ser famoso, rico, participar<br />

de júris com criminosos conhecidos, aparecer nas<br />

notícias dos jornais, ter diversas mulheres apaixonadas<br />

por ele.<br />

O mundo imaginado e esperado foi sendo tomado por<br />

um mundo frio, monótono e sem sabor.<br />

Sócrates foi sendo esmagado pelas pressões dos fatos<br />

vindos de todos os lados: despesas com o leite, roupas,<br />

médicos e remédios. Outros filhos foram nascendo,<br />

200 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


crescendo, dando mais e mais trabalho. Ora era um que<br />

tinha dor de barriga, ora outro tinha tosse, um terceiro<br />

dor de ouvidos. Uma boa parte do tempo eles choravam,<br />

de dia ou de noite, de fome ou de desconforto, algumas<br />

poucas vezes sorriam, pedindo colo ou companhia.<br />

Nessa guerra inglória de partos continuados, abortos<br />

espontâneos, gritarias infernais dos diabinhos, Lucélia<br />

foi se desfigurando. Inferiorizada, começava a não mais<br />

chamar a atenção dos homens nas poucas vezes que saía<br />

de casa. Sócrates, cabisbaixo, examinava-a. Recordando,<br />

comparava a Lucélia atual, gorda e encurvada, a que estava<br />

viva à sua frente dando sopinha ao filho, com a jovem<br />

bela e alegre do retrato, colocado em cima da prateleira<br />

do guardalouça, a do dia do casamento. Deprimida, desconfiada,<br />

irritada, gastava o que não podia com os filhos<br />

agitados e magros, com o alcoolismo do pai e a hipertensão<br />

da mãe.<br />

Sócrates transformou-se num escravo das exigências<br />

do cotidiano, dedicado integralmente às soluções para os<br />

entraves constantes da vida familiar.<br />

Não mais lhe sobrava tempo, nem mesmo capacidade,<br />

para pensar acerca de si mesmo, do que fazer em seu<br />

próprio benefício. O mundo imaginado durante sua juventude<br />

ficava cada vez mais distante, com menor importância<br />

para ele. Uma vez ou outra, ocasionalmente, estimulado<br />

por uma notícia no jornal ou o encontro com um ex-companheiro,<br />

ele lembrava-se de algumas cenas do passado,<br />

longínquas, antigas e envelhecidas como sua cabeça atual.<br />

Lá, muito longe, o jovem alegre parecia tão feliz. Agora<br />

transformou-se noutro, um trabalhador em tempo integral<br />

para manter-se naquela miserável prisão iniciada na noite<br />

fatídica. Os sonhos viraram fumaça, dispersaram-se: Sócrates<br />

foi levado para um outro mundo. O caminho, antes<br />

claro e perto, distanciou-se, estreitou-se, ficou embaçado.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 201


Naquela tarde sombria, abandonei minha caminhada<br />

para escutar o desabafo de Sócrates. Morando sozinho, eu<br />

tinha enorme dificuldade para entender uma pessoa presa<br />

a uma família. Ao ouvi-lo com paciência, simpatia e<br />

até piedade, relatar, com uma voz embargada, seu drama<br />

melancólico, eu me lembrava dos tempos que não voltam<br />

mais, dos meus tropeços parecidos com o dele, dessa vida<br />

da qual sempre tive medo. Escutava suas amarguras, sua<br />

nova história de vida, uma vida para mim inútil e sem<br />

rumo. Imaginei que talvez, bem escondida - ele não me<br />

confessou isso - sua vontade era de nunca ter feito tudo<br />

aquilo.<br />

Entretanto, como bom observador, pude notar, ao me<br />

despedir, uma certa satisfação e alegria no seu semblante.<br />

Imaginei que, apesar de tudo, das dificuldades com que vivia,<br />

ele estava desejando chegar em casa, pois lá ele tinha<br />

proteção e segurança.<br />

Daqui a pouco ele teria ao seu lado seus filhos e sua<br />

mulher para recebê-lo e com eles passaria a noite.<br />

Nós nos despedimos friamente. Eu estava sem graça.<br />

Voltei para casa pensativo. Sabia que estava livre de tudo<br />

aquilo que ouvira. Entretanto, estava confuso: retornava<br />

para meu lar, um lugar onde não havia ninguém para me<br />

aborrecer, onde gozava de completa liberdade, entretanto<br />

na minha casa não havia ninguém, ninguém, ninguém<br />

mesmo. Somente eu para me receber, conversar e apoiar.<br />

202 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


dinHeiro, noSSA AtUAL deVoÇÃo<br />

É preciso gastar menos: estamos numa “economia<br />

de guerra”. Acabaram-se os nossos míseros reais. Nada de<br />

gastos com revistas e livros. Ideias novas são supérfluas,<br />

pois já temos as velhas que nos bastam. O nosso cérebro<br />

necessita apenas de glicose para manter-se vivo sem entrar<br />

em coma, assim ele poderá assistir e apreciar essa<br />

tragicomédia econômica que ora nos apresenta.<br />

Assistimos, impotentes, à ascensão ao poder de um<br />

novo grupo de profissionais, os economistas. Essa nova elite,<br />

ao tomar consciência do seu poder, passou a ditar normas<br />

acerca de salários, empregos, horários e tudo mais.<br />

Por que não dizer, de nossas vidas?<br />

Os sábios profetas da economia são muitos. Os jornais<br />

e as TVs divulgam a todo momento suas profecias e eles,<br />

sem nada cobrar, aconselham-nos a economizar mais, para<br />

o sucesso do modelo capitalista “trabalho e produção”. Os<br />

economistas conhecem melhor do que nós mesmos o que<br />

se deve fazer com o nosso dinheiro, como por exemplo:<br />

onde guardá-lo, quando tirá-lo, em que lugar devemos<br />

passar nossas férias e se devemos ir de avião, ônibus ou a<br />

pé a Itabira ou a Tóquio. Quando devemos nos aposentar<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 203


ou resgatar o Pis e Pasep, a maneira de alugar um imóvel,<br />

quando vender ou comprar ouro e dólar e até se devemos<br />

abandonar a profissão de engenheiro, trocando-a pela de<br />

florista. Ninguém precisa pensar, menos ainda refletir, pois<br />

existem “gênios” que pensam por nós, todos especialistas<br />

nisso ou naquilo.<br />

Vivemos a época de ouro da economia. A cada dia,<br />

ou talvez a cada hora, são entrevistados luminares nessa<br />

ciência e estes descrevem, cada um a seu modo, a situação<br />

econômica do País, indicando, de maneira segura, o<br />

que deve ser feito para tirar-nos da miséria, da dívida e<br />

do caos.<br />

Infelizmente, os ministros, assim como os ex-secretários<br />

de Estado, só conhecem as soluções econômicas<br />

adequadas para o País quando largam os cargos, nunca<br />

durante o exercício de suas atividades. Economistas diversos,<br />

candidatos a cargos no governo, professores, PhDs<br />

diversos e até alguns amadores iniciados no assunto criticam<br />

a política econômica com sabedoria.<br />

O dinheiro agora é o nosso rei e talvez o nosso Deus,<br />

pois foi promovido pelos fabricantes da cultura, de “meio”<br />

a “fim”. O dinheiro que era um instrumento utilizado para<br />

se alcançar algum objetivo, tornou-se atual sistema de valores<br />

sociais, o próprio alvo a ser atingido.<br />

Os subprodutos do dinheiro, como os salários, gastos,<br />

etc., comandam atualmente nossas ações e intenções. Nós<br />

nos preocupamos muito com o prejuízo financeiro de um<br />

acidente e pouco, ou quase nada, com o sofrimento das<br />

pessoas envolvidas. Mortes de indivíduos são analisadas<br />

muitas vezes com respeito ao seguro a ser recebido ou à<br />

economia ocorrida com sua morte. Algumas religiões são<br />

fundadas em busca de dinheiro, filhos matam os pais para<br />

receber a herança e alguns se suicidam porque suas fortunas<br />

estão se esvaindo. Assistimos a esse espetáculo com<br />

204 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


naturalidade, sem espantar-nos, pois estamos julgando os<br />

fatos com os mesmos modelos conceituais dos protagonistas<br />

das ações.<br />

O valor instrumental do dinheiro está ganhando a luta<br />

contra todos os outros valores humanos. Poucos atualmente<br />

são capazes de apreciar outros valores - uma boa bebida<br />

ou comida, um passeio, uma visita - sem imaginar o custo<br />

em dinheiro de cada uma dessas ações. Talvez, pior ainda,<br />

a maioria das pessoas não consiga bater um bom papo ou<br />

amar alguém sem contabilizar os gastos ocorridos durante<br />

esse tempo e que poderiam ser convertidos em produção e<br />

dinheiro, como manda o modelo econômico vigente.<br />

Prezado leitor, como psiquiatra que sou, tenho como<br />

obsessão a tendência a dar conselhos, e aqui aproveito a<br />

oportunidade para opinar contra os conselhos dados por<br />

alguns economistas.<br />

1) Ao tomar o seu café sinta o seu paladar, calor e<br />

aroma e não pense no preço do pó, da água, da energia e<br />

da mão-de-obra.<br />

2) Ao abraçar e beijar o seu amado, ao acariciar os<br />

seus cabelos, sinta as sensações provenientes do seu rosto,<br />

lábios ou das suas mãos e, pelo menos naquele instante,<br />

não pense no dinheiro que está sendo gasto com o batom<br />

que desaparece ou com o penteado desfeito, pois, caso<br />

tudo dê certo, o que é o esperado, você terá outros ganhos<br />

e prazeres, que são para alguns poucos seres humanos<br />

mais importantes que o dinheiro guardado no cofre.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 205


SenHoreS do Poder<br />

Certas propagandas sedutoras conseguem fazer com<br />

que boa parte da população saia de casa para ver um determinado<br />

filme, abandone tudo para assistir a uma novela,<br />

tome banho com um certo sabonete durante anos e<br />

vista uma calça desconfortável, ou engula um fortificante<br />

sem precisar dele. Não é difícil constatar que certas<br />

crenças, introduzidas em nossa mente, comandam o nosso<br />

comportamento.<br />

Alguns homens, por diversos motivos, forçam outros<br />

a pensarem de acordo com seus princípios e suas regras.<br />

Frequentemente, ideias propostas pelos poderosos se espalham<br />

e são incorporadas por um grande número de pessoas,<br />

que passam a viver sob o comando dessas crenças,<br />

na ilusão de que não há nada melhor para se fazer.<br />

Acreditamos e copiamos muito as supostas preferências<br />

de pessoas conhecidas, principalmente se são pessoas<br />

de prestígio. Assim passamos a usar uma certa bateria em<br />

nosso carro, pois o famoso piloto disse que ela é a melhor,<br />

jogamos na loteria, pois o jogador de futebol nos incentivou<br />

a comprar o bilhete, passamos a morar num certo<br />

bairro, pois o grupo com o qual nos identificamos e ao qual<br />

almejamos pertencer, ali reside.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 207


Todos nós já sofremos desenganos por aceitar a crença<br />

embutida no ditado popular “a voz do povo é a voz de<br />

Deus”. E sabemos muito bem, que uma conduta utilizada<br />

por muitos não fornece necessariamente informações corretas<br />

e garantidas acerca de uma realidade, da mesma forma<br />

que um julgamento com o qual a maioria das pessoas<br />

está de acordo, nem sempre é digno de confiança e nem<br />

ser aceito sem objeções ou dúvidas.<br />

Todos nós temos certo receio de pensar de modo diferente<br />

de nossos companheiros e isso nos leva a emitir<br />

opiniões quase sempre semelhantes às do nosso grupo.<br />

Para complicar nossa submissão às ideias coletivas, há<br />

uma tendência universal em ridicularizar os pontos de vista<br />

divergentes, ou pensamentos singulares, que são considerados<br />

pilhéria, sinal de burrice e até indício de loucura.<br />

Uma vez expostas às pressões grupais, as pessoas<br />

tendem a pensar e a dar opiniões de maneira convergente,<br />

isto é, iguais à de todos. Num clima desses torna-se difícil<br />

o aparecimento de novas ideias e novas decisões. Assim o<br />

grupo tende a ficar em paz, mas estagnado. Com tristeza<br />

lembramos do apoio dado por quase toda a população<br />

brasileira ao então candidato à presidência do país, Jânio<br />

Quadros, e outros semelhantes. O famigerado plano cruzado<br />

também foi amplamente louvado e deu no que deu...<br />

e não é difícil para nós lembrarmos situações semelhantes<br />

mais recentes.<br />

Quem controla ou dirige essas oscilações de opiniões<br />

dos grupos ou das populações? Não é difícil perceber, se<br />

abrirmos os olhos, que alguns poucos, usando nomes, disfarces,<br />

truques e slogans sugestivos, são o sedutores crônicos<br />

da população. Eles controlam nosso comportamento<br />

e até nosso modo de pensar.<br />

De uns tempos para cá um novo grupo vem ganhando<br />

notoriedade e poder sobre as nossas ações: os tecnocratas.<br />

208 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Este grupo é formado por alguns senhores sisudos, especialistas<br />

em técnicas e processos diversos.<br />

Eles falam de um modo diferente do nosso e entram<br />

em contato com a população através de ordens dadas em<br />

forma de portarias e pacotes.<br />

Os tecnocratas não bolem apenas na nossa poupança,<br />

seu campo é vasto. Através de investigações sigilosas<br />

incriminaram alguns banqueiros, colocando-nos contra<br />

eles. Até aí nada demais. Depois foi a vez de empresários<br />

diversos, logo após atingiram os trabalhadores ligados à<br />

economia informal. Mais tarde viraram-se contra alguns<br />

médicos do serviço público e agora, numa grande jogada,<br />

acionaram suas garras para atingir milhares de funcionários<br />

públicos federais.<br />

Quem será o próximo a ser atingido, ninguém pode<br />

adivinhar, mas suponho que seremos todos nós. Muitos<br />

escaparam, mas possivelmente por pouco tempo. Os tecnocratas<br />

conhecem, mais do que ninguém, o nosso ponto<br />

vulnerável ou pelo menos a nossa intenção muito escondida<br />

de, a qualquer momento, fazer uma trapaça contra o<br />

honesto governo. Os tecnocratas são nossos senhores e<br />

deles podemos esperar apenas misericórdia.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 209


oS nArciSiStAS modernoS<br />

Conta-nos o mito que quando a ninfa Eco, terrivelmente<br />

apaixonada por Narciso, correu para junto dele para<br />

abraçá-lo, este, repelindo-a, lhe disse: “Afasta-te, prefiro<br />

morrer a te deixar possuir-me”. Narciso, tendo desprezado<br />

todas as ninfas como havia repelido a ninfa Eco, não amava<br />

ninguém. Porém, um dia, a deusa da vingança cedeu<br />

a um pedido de uma ninfa mal-amada fazendo com que<br />

Narciso se apaixonasse por si mesmo.<br />

Narciso, uma vez sob o encanto da deusa, foi seduzido<br />

por sua própria beleza ao ver sua imagem refletida<br />

na água. Enfeitiçado, todas as vezes que Narciso tentava<br />

abraçar e beijar sua própria imagem, esta desaparecia na<br />

água. A lenda termina com a morte de Narciso consumido<br />

pela sua paixão.<br />

Esta é a história do antigo Narciso. Os narcisistas modernos<br />

agem diferentemente. Eles cresceram em número,<br />

tanto assim que a Classificação Internacional de Doenças<br />

Mentais (CID 10) reservou um lugar especial para eles:<br />

“Transtorno da Personalidade Narcisista”.<br />

Veja como ele foi descrito no CID 10: “o indivíduo<br />

apresenta um sentimento grandiloquente de sua própria<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 211


importância ou do seu caráter excepcional; preocupação<br />

com fantasias de êxito ilimitado; necessidade exibicionista<br />

de atenção e de admiração constantes; respostas características<br />

às ameaças à sua autoestima; e perturbações no<br />

relacionamento interpessoal, como sentimento de “ter direito”<br />

a exploração inter-pessoal e ausência de empatia”.<br />

O leitor atento identificará, entre amigos e inimigos,<br />

artistas, atletas, políticos e outros, os novos narcisistas.<br />

As realizações dos narcisistas tendem a ser valorizadas<br />

irrealisticamente nas áreas de poder, riqueza, fama e<br />

beleza. O narcisista tenta de fato alcançar tais objetivos,<br />

mas isso é feito de modo forçado e destituído de prazer,<br />

com uma ambição que não pode ser satisfeita. No Brasil<br />

eles são encontrados nas favelas, prisões, mansões e, com<br />

alguma frequência, nos palácios. A forma da expressão de<br />

orgulho por si mesmo é que varia de acordo com o grupo<br />

social ao qual o narcisista pertence.<br />

A artista de TV narcisista, feia, inculta e burra fala acerca<br />

de sua beleza, de seus dotes literários, de suas idéias políticas<br />

e do seu comportamento sexual. Recebemos deles,<br />

gratuitamente, lições do seu modo particular de encarar a<br />

realidade, que é tida, orgulhosamente, como certa.<br />

O narcisista supõe ser ele capaz de fazer e pensar<br />

adequadamente a respeito de tudo. Se ele foi bom letrista<br />

de música, poderá ser um bom ministro, se foi professor,<br />

poderá desempenhar bem o papel de governante, se é piloto,<br />

poderá ser bom garoto propaganda, se é político, logicamente,<br />

poderá ser..., sei lá, qualquer coisa!<br />

Na plateia, certo público cativo bate palmas, urra<br />

deslumbrado e entusiasmado com as proezas de seu ídolo.<br />

Entretanto, outros se irritam, xingam e jogam pedras ao<br />

se sentirem impotentes diante de seu poder.<br />

A maioria, entediada, percebe a fragilidade do narcisista<br />

escondida por trás de sua máscara arrogante e prepo-<br />

212 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


tente e, indiferente às suas palavras vazias, espera, alguns<br />

até oram, para que um dia cada narcisista siga o exemplo<br />

do antigo Narciso do mito e acabe consumido pela sua<br />

paixão e não mais tome nosso precioso tempo com suas<br />

chatices e gabarolices.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 213


oS noVoS deUSeS<br />

O Deus primeiro e único não tem cara fechada, não<br />

sorri, não tem iate, não tem salário, não agride e nem tem<br />

voz. Os novos deuses falam, gesticulam, transam, namoram<br />

até pessoas do outro sexo, alguns cantam, outros jogam e<br />

outros correm velozmente. Muitos ganham por mês mais<br />

do que um operário ganha em toda sua vida de trabalho.<br />

Todos os deuses são lindos, maravilhosos, ricos e jovens,<br />

conforme a avaliação dos seus seguidores. Eles são<br />

adorados pelos seus fiéis seguidores, intocáveis e respeitados<br />

pela mídia, governo e população em geral. Os novos<br />

deuses são, graças a Deus, efêmeros. Somente alguns<br />

permanecem reinando por um tempo mais longo.<br />

Cada um dos deuses tem suas peculiaridades, entretanto<br />

eles apresentam uma estrutura comum que os iguala<br />

e os identifica como produtos de uma sociedade esquisita.<br />

Assim é que eles sempre falam acerca de contratos novos,<br />

do próximo adversário que deve ser respeitado no campo,<br />

sobre os novos lançamentos, as novas representações nos<br />

palcos ou nas TVs, onde a atual é sempre superior às anteriores<br />

e mais adaptadas à sua personalidade. Outros falam<br />

sobre seu novo disco.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 215


Mas há algo mais ainda que os une. Todos, sem exceção,<br />

adoram contar a sua vida. Estas são geralmente<br />

lindas, sofridas, cheia de coisas interessantes. Eles todos,<br />

diferentes dos outros moradores desse mundo, alcançaram<br />

a fama através de “muito esforço e trabalho duro”. Todos,<br />

bondosamente, ensinam o que aprenderam aos seus<br />

admiradores.<br />

Expressam seus valores e normas de vida para a população<br />

e sobretudo sempre com alta sabedoria e segurança.<br />

Ora o discurso é acerca do seu casamento exemplar,<br />

ora da melhor maneira de transar e o melhor local<br />

para isso. Nunca faltam instruções minuciosas a respeito<br />

de como alcançar a felicidade, viver uma boa vida, conquistar<br />

amigos, ter fortunas e a melhor religião a ser seguida.<br />

Em resumo, eles sabem mais do que nós mesmos o<br />

que devemos fazer para sermos felizes.<br />

A maioria da população escuta atentamente cada frase<br />

de seus deuses, se compraz e se embriaga na sua sabedoria<br />

fácil. Os novos deuses não precisam estudar para<br />

conhecer, pois, privilegiados e iluminados que são, tornaram-se<br />

sábios através de revelações milagrosas.<br />

Eles são procurados, entrevistados, observados e seguidos<br />

continuamente. Os adoradores dos deuses sabem<br />

tudo acerca deles. Comentam emocionados a troca da namorada,<br />

que sempre é uma deusa ou deus, seu novo contrato,<br />

sua doença, seu filho que nasceu e assim por diante.<br />

Todas as notícias sobre os deuses são lidas ou escutadas<br />

com mais interesse do que as noticias chatas e conhecidas<br />

que ocorrem dentro de nossa própria família, como o desemprego<br />

do pai, a morte do irmão, a separação do avô.<br />

216 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


diScUrSo:<br />

o toQUe SUtiL doS SonS<br />

Os políticos - bem como outros manipuladores de<br />

opiniões - nas campanhas eleitorais sempre abusaram de<br />

discursos carregados de termos com forte carga emocional,<br />

introduzidos em frases grandiosas, expressos de uma<br />

maneira direta, simples e, sobretudo, superficial. Para que<br />

um vocábulo no discurso tenha o poder de operar milagres<br />

é preciso que seja uma palavra de natureza especial, diferente<br />

das pronunciadas todos os dias. Ela precisa ser uma<br />

palavra que não somente designa a coisa, mas que seja<br />

sentida como sendo a própria coisa expressa.<br />

Esta palavra mágica deve atingir as fantasias do eleitor<br />

distraído, propor soluções fáceis, rápidas e simples – intuitivas<br />

- ainda que equivocadas, para resolver problemas<br />

humanos difíceis, custosos ou impossíveis. As fantasias,<br />

utopias ou crendices populares são estimuladas pelo discurso<br />

do político, transformadas em projetos possíveis de<br />

serem executados.<br />

Mas, por outro lado, o discurso político, semelhante<br />

às ideias descritas pelos diversos mitos, exorta a manutenção<br />

do existente. Os políticos, junto a companheiros<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 217


pertencentes às mesmas castas, lutam por conservar a<br />

mente do povo às escuras. O discurso político, defendendo<br />

as ideias convergentes, tem como lema: “Nunca examine<br />

se seu modo de pensar é, ou não, correto”.<br />

O povo é aplaudido caso saiba de cor o hino nacional,<br />

trabalhe muito sem reclamar, não faça greves, guarde dinheiro<br />

na poupança, participe ativamente de partidos políticos,<br />

principalmente votando e apoiando seus candidatos,<br />

contribua para todas as campanhas de ajuda aos necessitados,<br />

seja um bom soldado na guerra ou na paz, trate com<br />

respeito os poderosos, frequente assiduamente a igreja,<br />

mantenha amizades sólidas com certas pessoas, cuide de<br />

sua saúde e da família conforme mandam os padrões, não<br />

desperdice (nem água e nem energia elétrica), respeite<br />

as autoridades e a lei, procure certo tipo de conforto e de<br />

lazer no lugar e momento adequado para ele. Tudo como<br />

ensinam os antigos mitos e o catecismo paroquial.<br />

Assim, como estamos presos aos nossos genes que<br />

nos impedem de ser outro animal diferente do que somos,<br />

e de escapar das características específicas que herdamos,<br />

também, desde nosso nascimento, fomos aprisionados nas<br />

normas de conduta, de relacionar e de pensar ditadas pela<br />

cultura, ou seja, construídas antes de nascermos pelos que<br />

nos antecederam. Amarrados pelo resto de nossa vida a<br />

essas duas vertentes, colaboramos inocentemente para a<br />

conservação do modelo encontrado e impresso em nossa<br />

mente, imaginando-o como certo e melhor. Na maioria<br />

dos casos, sem consciência disto, não exercitamos nossa<br />

criatividade para escaparmos ou, pelo menos, tentarmos<br />

escapar, ou ainda avaliar este padrão.<br />

Pois bem, o discurso político desperta, para conservar,<br />

muitas metas controvertidas dos nossos antepassados. Estimula<br />

a mente sonolenta dos eleitores com palavras belas,<br />

sonoras e vagas, o reservatório onde dormem crenças,<br />

218 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


sonhos, medos e esperanças armazenadas durante anos,<br />

na maioria das vezes ilusórias. O político apresenta-se ao<br />

eleitor como um intermediário capaz de conduzi-lo, com<br />

mestria, para a travessia fantástica, partindo de sua vida<br />

atual e conhecida, mas também chata, difícil e injusta,<br />

para chegar à vida paradisíaca, tranquila, feliz e, sobretudo,<br />

muito, muito longínqua.<br />

As eleições terminam e tudo fica como sempre esteve.<br />

A quimera afundou-se na realidade indiferente, fria e<br />

sem alma. Alguns poucos dominam muitos, para o bemestar<br />

dos de sempre, conforme rezam os diversos mitos do<br />

poder, cumprindo assim a profecia.<br />

Os discursos não param após as eleições, eles continuam,<br />

mesmo nas entressafras, mas nestas servem para<br />

justificar as contradições existentes nos mitos citados durante<br />

os discursos proferidos nos palanques eleitorais.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 219


o QUe Se eSconde<br />

Por trÁS doS SLogAnS?<br />

“Fome zero”, “Eu te amo”, “O principal no relacionamento<br />

familiar é o amor e a compreensão”, “Tudo pelo social”.<br />

Frequentemente, pensamos, falamos e escrevemos<br />

dessa maneira. Muitos são capazes de discutir acaloradamente<br />

sobre as ideias contidas nessas frases, defendendo-as<br />

ou atacando-as. Mas, afinal, o que elas afirmam?<br />

Creio que ninguém saberá com precisão o que significam.<br />

Para cada um de nós, as palavras “amor”, “ódio”,<br />

“compreensão”, “social” e outras, terão significados diferentes.<br />

Além disso, uma situação altamente complexa,<br />

como a qualidade de vida familiar, não poderia ser atribuída<br />

apenas a dois fatores, onde as palavras mágicas “amor”<br />

e “compreensão” tornam-se explicações causais pelo bemestar<br />

ou não da família. É raro questionarmos o nosso interlocutor,<br />

ou nós mesmos, acerca do sentido, dimensão e<br />

significado das palavras que estão sendo utilizadas.<br />

O psicólogo Kurt Lewin escreveu, entre outros, o artigo<br />

“O modo de pensar Aristotélico versus o modo de pensar<br />

Galileico”. Nesse, ele critica a linguagem da Psicologia<br />

e da Psiquiatria quanto à descrição de um fato, uma ma-<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 221


neira que, infelizmente, continua. Para esse autor, o modo<br />

Aristotélico de se expressar, próprio da linguagem comum,<br />

descreve uma pessoa como “rica” ou “pobre”, “bonita” ou<br />

“feia”, “gorda” ou “magra” e assim por diante. Já a maneira<br />

Galileica, ao descrever os mesmos fatos, é mais precisa.<br />

Assim, em lugar de afirmar que o dia esteve quente,<br />

cita a temperatura alcançada de 32ºC, que João pesa 100<br />

quilos para indicar porque está dizendo que ele é gordo.<br />

A linguagem da Psicologia e da Psiquiatria é muito<br />

semelhante à popular, até mesmo nos artigos chamados<br />

“científicos” destas especialidades. Não é raro encontrarmos,<br />

entre os psicólogos, afirmações como as seguintes:<br />

“Maria é uma moça carente”, “Marta é perversa”, “Álvaro<br />

está deprimido”, “Alfredo é esquizofrênico, mas seu irmão<br />

Carlos é normal”. O leitor certamente se lembrará de centenas<br />

de outros exemplos semelhantes.<br />

Discussões acaloradas, que terminam, às vezes, em<br />

brigas, ocorrem em assembleias, programas de TVs, sala<br />

de aula, etc., devido ao uso dessa linguagem. Nessas, em<br />

virtude da indefinição dos conceitos causadores da discussão,<br />

nunca se chega, nem se poderia chegar, a um acordo.<br />

Se os conceitos utilizados nas disputas fossem mais bem<br />

definidos, as discussões provavelmente não ocorreriam.<br />

Fica difícil discutir, por exemplo, “violência”, pois esse termo<br />

tem conotações e denotações muito diferentes para<br />

diferentes modos de pensar.<br />

Com frequência, utilizamos a linguagem de dois modos<br />

diferentes: para representar nossa experiência pessoal<br />

ou para comunicar nosso modelo ou representação<br />

acerca do assunto. Assim, discutem-se fatos diferentes,<br />

causados por fatores diferentes, utilizando um único vocábulo.<br />

Que experiência e que representação do mundo<br />

cada um dos que enunciam a palavra “violência” estaria<br />

querendo expressar? O “mapa” utilizado foi um só para<br />

designar “territórios” diversos.<br />

222 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Usam-se, a todo o momento, palavras que têm o mesmo<br />

som ou grafia, mas com significados, conotações e denotações<br />

as mais diversas.<br />

O que pretende dizer alguém que usa as frases: “Tudo<br />

pelo social”, “Defenderemos a nossa soberania”, “Fome zero”<br />

(seria no Palácio da Alvorada ou na residência do presidente?).<br />

Todas são frases usadas para se obter um efeito emocional,<br />

mágico ou hipnotizador, sem importância para o real.<br />

Cada cidadão que as ouve, receberá e entenderá uma comunicação<br />

diferente conforme a emoção que lhe foi inoculada.<br />

Atrás de uma palavra ou frase nem sempre está um<br />

objeto concreto. Palavras não são coisas, são representações<br />

e ligações entre coisas. Não resolveremos os nossos<br />

problemas de comunicação empregando palavras mágicas,<br />

procurando sinônimos das mesmas, gritando-as diante dos<br />

altofalantes. Muita gritaria, às vezes, acalma e deixa de<br />

lado as ações possíveis para dar soluções para os problemas<br />

existentes. Antes de acreditar ou não em uma palavra<br />

ou seguir a ideia que ela parece traduzir, precisamos primeiramente<br />

descobrir seu significado, pois o símbolo nem<br />

sempre traduz a coisa simbolizada.<br />

Quando um hipnotizador diz a alguém: “agora você<br />

se sentirá melhor, mais disposto e terá mais forças para<br />

enfrentar seus problemas”, cada hipnotizado entenderá a<br />

comunicação de acordo com suas experiências particulares<br />

ou memória autobiográfica. As frases citadas no início e ao<br />

longo desse texto despertarão em cada leitor certas fantasias<br />

e sentimentos próprios. A maioria das frases do nosso<br />

dia-a-dia, por serem altamente genéricas, atingem todos e<br />

acerca de quase tudo e, ao mesmo tempo, de quase nada.<br />

Por exemplo, uma frase muito repetida: “Devemos fazer<br />

tudo pelo social”.<br />

Os termos empregados são vagos, abrangentes ao<br />

extremo, ou seja, estamos diante de uma linguagem su-<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 223


perficial. O que é “tudo” e “social” para cada um dos leitores<br />

ou ouvintes?<br />

Alguns, usando agora uma linguagem menos superficial,<br />

poderão pensar que a ideia fala acerca de possíveis<br />

aumentos de salários, de menor inflação ou mais saúde.<br />

Para outros, a mesma frase poderá suscitar ideias opostas:<br />

menores salários, maiores taxas de inflação e mais doentes.<br />

Os desejos e aspirações de cada um ditarão o tipo de<br />

ideia que poderá surgir pelo uso do termo vago. Este modo<br />

de comunicar pode ser chamado de “mágico” no sentido de<br />

que, não comunicando nada, fornece suposições para cada<br />

cabeça.<br />

Como hipnotizador, os emissores da mensagem conseguem<br />

dizer tudo e não dizer nada ao mesmo tempo, sem<br />

que haja meios de desmenti-la, pois o enunciado não possibilita<br />

a comprovação. Os políticos, pregadores fanáticos,<br />

psicólogos que escrevem sobre autoajuda, curandeiros de<br />

modo geral, são useiros e vezeiros em pronunciamentos<br />

desse tipo. Ao recebermos uma comunicação, expressa em<br />

linguagem superficial e “Aristotélica”, ficamos sem referências,<br />

como ocorreu com o homem que corria atrás de<br />

outro, conforme a historinha “Sócrates” de N. O. Scarpi.<br />

Um homem, gritando, corre atrás de outro que foge:<br />

— Assassino! Assassino!.<br />

Pergunta Sócrates ao homem que grita.<br />

— Um assassino! Que vem a ser um assassino?<br />

— Pergunta idiota! Um assassino é um sujeito que<br />

mata.<br />

— Então, um açougueiro?<br />

— Cretino! Quero dizer um homem que mata outro<br />

homem.<br />

— Seria, portanto, um soldado?<br />

— Não, um homem que mata outro homem em tempos<br />

de paz.<br />

224 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


— Compreendo, um carrasco.<br />

— Eu quero dizer um homem que mata outro homem<br />

em casa dele.<br />

— Ah! Entendi! Um médico?<br />

Confuso, o perseguidor desistiu da perseguição.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 225


QUAndo AS PALAVrAS mentem<br />

“Quando os humanos tomam os seus mitos e as suas ideias<br />

pela realidade, tendem a crer Que os mitos e as suas ideias<br />

são o próprio mundo.” edgar morin<br />

Esse autor, com essa frase nos alerta acerca do poder<br />

das palavras, da força que têm esses sons mágicos provocadores<br />

de ações impulsivas, carregadas de ódio, alegria,<br />

tristeza ou medo. Sabemos, também, que através de palavras<br />

adequadas despertamos ou criamos crenças, valores,<br />

fantasias e desejos adormecidos que habitam nossas almas.<br />

O condutor de massas, o líder carismático e o grande<br />

pregador sempre usaram e abusaram das “palavras oportunas”,<br />

no momento certo. Somos, num certo grau, dóceis<br />

e fracos, sujeitos às manipulações continuadas dos mais<br />

espertos.<br />

Em todos os tempos um grupo dominou o outro para<br />

seu benefício. Assim é que na maioria das culturas os homens<br />

jovens e brancos, sadios, ricos, saudáveis, inteligentes<br />

e cultos, exploraram as mulheres, os velhos, os negros,<br />

os pobres, os doentes, os deficientes mentais e os incultos.<br />

Este é o nosso destino: obedecer, sem refletir e sem o desejar,<br />

à vontade dos mais sagazes e com maior poder.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 227


Os comerciantes seduzem o cidadão-alvo com promessas<br />

de férias maravilhosas, juventude e beleza eterna,<br />

hálito perfumado, frescor no corpo, cabelos sedosos e brilhantes,<br />

alegria irradiante ou tola, lábios sensuais, bustos<br />

e bumbuns belos e firmes.<br />

Para quem? Para uma população sem dinheiro, de<br />

idosos, desnutridos, feios, banguelas, nanicos, carecas,<br />

despeitados e desbundados.<br />

Já os políticos, usando as palavras adequadas e comoventes,<br />

seguindo o padrão da propaganda, oferecem-nos a<br />

justiça social, os empregos com salários altos para todos,<br />

a assistência médica de alto padrão, a proteção à criança<br />

abandonada e ao idoso, uma justiça digna para os grupos<br />

marginalizados, uma alimentação abundante e barata.<br />

Em resumo, tudo o que é desejado por todos nós. Para<br />

quem? Para uma maioria que nunca imaginou poder alcançar<br />

tais coisas, compostas dos sem-casa, pivetes, negros e<br />

brancos pobres, mulheres desempregadas ou com subempregos,<br />

crianças, analfabetos, deficientes mentais, etc., ou<br />

seja, pessoas sem oportunidades e estigmatizadas socialmente.<br />

Vivemos, ainda, sonhando com o paraíso perdido.<br />

Os conhecidos manipuladores do povo, nos seus discursos<br />

esforçam-se como podem para estimular e conservar<br />

as crenças existentes entre a população, as normas<br />

vigentes, as prescrições de conduta e, por que não, a ignorância<br />

popular. O poder de uns se assenta, exatamente,<br />

às custas de crenças supersticiosas, na irracionalidade do<br />

povo que o impede de sair do seu estado de indigente de<br />

conhecimento e de crítica.<br />

Mesmos os políticos chamados de mais “avançados”<br />

ou da esquerda, cegados pela tradição, defendem no programa<br />

de governo a melhoria dos empregos, salários, assistência<br />

à saúde, etc., mas nunca uma mudança do modo<br />

de pensar mais profundo do operário e do lavrador.<br />

228 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Quando se fala em melhoria do ensino, trata-se apenas<br />

de melhorar a capacidade de compreensão da leitura<br />

de instruções para que o operário saiba utilizar melhor o<br />

maquinário da empresa, para aumentar a produção, a leitura<br />

de revistas e jornais que precisam ser vendidos, de<br />

propagandas diversas e, deste modo, haja mais consumo<br />

com mais lucro para as empresas.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 229


o conHecimento<br />

e AS diVerSAS LÍngUAS<br />

Alimentadas pelo modo de pensar dominante existente<br />

em cada época, constantemente nascem novas palavras.<br />

Uma manifestação verbal importante socialmente<br />

produzida num local populoso poderá influenciar outras<br />

regiões e grupos.<br />

Assistimos constantemente ao aparecimento de modos<br />

diferentes de nomear fatos e situações, apropriados<br />

a cada geração, grupo ou sociedade. Essas maneiras de<br />

classificar são simbolizadas ou expressas em linguagens<br />

diferentes, variando conforme a idade, o sexo, o grupo<br />

social e cultural, a profissão, o lugar, a época e outras variáveis.<br />

Pode-se afirmar que cada indivíduo tem seu vocabulário<br />

próprio, usa mais certas palavras e não outras, enfatiza<br />

mais certos aspectos da realidade e pouco, ou nada,<br />

outros. Notamos que há uma grande diferença entre a fala<br />

do presidente e a do ministro, do clérigo, advogado, médico,<br />

futebolista, sem-teto, idoso, jovem, trombadinha,<br />

prostituta, bandido e político.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 231


Por outro lado, cada um de nós altera seu modo de<br />

falar conforme atua diante de uma ou outra situação, na<br />

hora da briga ou do amor, perante os filhos, pais, médicos,<br />

clientes, amigos, inimigos, torcedores, amante. Em cada<br />

uma dessas ocasiões, fazemos uso de linguagens diferentes,<br />

pulamos de uma para outra, automaticamente, sem<br />

esforço e inconscientemente. Algumas vezes não entendemos<br />

a linguagem de um grupo ou de outro.<br />

As linguagens referidas acima (do presidente, bandido,<br />

futebolista e outras) coexistem, se expressam e se misturam.<br />

Todos os modos de nomear coisas e eventos sobreviveram<br />

em grupos diversos e separados e germinaram, durante<br />

certos períodos, na vida sociocultural de um grupo determinado.<br />

As palavras que ainda vivem, as que resistiram ao<br />

tempo ainda dominam a mente de seus possuidores em razão<br />

de sua utilidade, do contrário teriam desaparecido.<br />

Os vários discursos, indo do professor universitário ao<br />

analfabeto, do servente ao presidente, nasceram e germinaram<br />

da existência simultânea de modos antagônicos de<br />

viver quanto às ideologias, aspectos socioeconômicos, religiões<br />

diversas, várias profissões, sexo, idade. Em resumo:<br />

de diferentes grupos com objetivos e condutas variadas.<br />

Convivem ao mesmo tempo, de forma harmoniosa e conflituosa,<br />

modos de falar antigos e modernos, onde alguns<br />

terão vida longa, outros, curta. Algumas palavras são mais<br />

potentes, tomam o lugar de outras mais frágeis, que, às<br />

vezes, desaparecem para sempre. Outras renascem com<br />

força total após anos de hibernação. Durante as lutas de<br />

palavras contra palavras, despontam acasalamentos que<br />

geram novas palavras ou novas formas de manifestações<br />

de ideias sociais, misturas de uma e de outra, ou de diversas<br />

delas. Das crias são conservadas, em maior quantidade,<br />

os “genes” das dominantes e poderosas e podem<br />

desaparecer os genes mais fracos.<br />

232 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


As palavras, como os seres vivos, nascem, crescem e<br />

morrem. Algumas resistem mais, como insetos, estando mais<br />

bem adaptadas ao meio, habitam a mente, em todas as épocas,<br />

de todos os grupos socioculturais. Não são exterminadas,<br />

por mais que haja grupos contrários à sua proliferação.<br />

Cada linguagem, nascida de um grupo sociocultural<br />

específico, ingrediente do bolo total existente, se distingue<br />

das outras. Cada língua, fiel à suas convicções e princípios<br />

orientadores, enfatiza um ou outro aspecto: uma prioriza a<br />

função, a outra, o tema, outra, ainda, a religião ou o social.<br />

Algumas poucas são dramáticas.<br />

Apesar da existência de diversas linguagens, quase<br />

todas convivem entre si, apesar de que uma ou outra pode<br />

ser obstáculo ao crescimento ou manutenção da outra. Por<br />

exemplo: o Brasil tem sido invadido pela linguagem e, ligado<br />

a ela, pelos costumes próprios dos nativos da língua<br />

inglesa. Também percebe-se a invasão de conceitos e termos<br />

da linguagem de uma área no território de outras:<br />

“Precisamos fazer um diagnóstico melhor da nossa economia”,<br />

“Só fazendo uma cirurgia radical iremos acabar com<br />

a violência”, “Para curar esse câncer, há necessidade de<br />

processos invasivos, pois assim iremos exterminar a doença”.<br />

Os exemplos, relacionados ao uso de termos de determinada<br />

linguagem de um grupo (médicos, na economia<br />

e na violência, da guerra, na medicina etc.) são inúmeros,<br />

viajando na boca de todos nós de forma automática. Usamos<br />

sem parar uma linguagem híbrida, tudo naturalmente<br />

sem esforço. Aos poucos, alguns termos podem ir mudando<br />

de habitat, passando, por exemplo, da linguagem médica<br />

para a popular: “O país está esquizofrênico”.<br />

Um aspecto importante para a sobrevivência longa de<br />

uma palavra é a de que o discurso onde ela habita, precisa,<br />

para viver ou sobreviver, apoiar-se fora dele, isto é, uma<br />

linguagem não pode ser gerada e desenvolvida do nada.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 233


Ela precisa alimentar-se de objetos observáveis, os<br />

que atingem nossos sentidos, muito próximos ou muito<br />

afastados. A linguagem não resiste à falta de objeto, sem<br />

este ela forçosamente desaparece.<br />

Quando assistimos às conversas dos intelectuais<br />

- que fogem dessa orientação - não percebemos no seu<br />

“bate-papo” nada além de uma teia vazia: palavras e mais<br />

palavras sem referenciais, nuas, impossíveis de serem<br />

compreendidas. Trata-se de um tipo de linguagem da qual<br />

nada sabemos, pois ela não nos informa nem sua posição<br />

social, nem as intenções, nem a época, nem o destino,<br />

nem nada. Os intelectuais, estando acima das “coisas reais”,<br />

discursam sobre o nada. Estudar o discurso em si<br />

mesmo, ignorando sua orientação externa, é tão absurdo<br />

como estudar o sofrimento mental sem examinar como<br />

esse foi desenvolvido, bem como o contexto que facilitou<br />

ou dificultou o aparecimento dele.<br />

A língua não trabalha com palavras neutras ou sem<br />

emoções, como os psicanalistas acreditavam. Não existe<br />

uma palavra válida e eficiente que não pertence a ninguém,<br />

a nenhuma época e nenhuma idade, etc. Um termo só sobreviverá<br />

e funcionará caso seja contaminado pelas intenções,<br />

prazeres, sofrimentos e objetivos implícitos – raramente<br />

explícitos - de uma pessoa ou grupo sociocultural.<br />

Um lavrador iletrado, residindo pra lá dos confins da<br />

Cidade de Nossa Senhora do Socorro, ingenuamente mergulhado<br />

em uma existência imaginada como imutável e<br />

inabalável, vive, apesar de tudo, num meio contendo vários<br />

sistemas linguísticos interagindo e em constante mudança.<br />

Ele deve cantar suas modinhas caipiras numa forma<br />

poética e emocional, reza a Deus numa linguagem apropriada<br />

à sua religião, fala de um modo coloquial e espontâneo<br />

com seus familiares e amigos íntimos, ou seja, numa<br />

234 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


terceira língua. Quando colher e vender seu feijão e milho<br />

usará a linguagem comercial, quando casar, diante das autoridades<br />

da cidade, ele usará uma outra língua: a oficial,<br />

do cartório.<br />

Para cada ato desses, pressupõe-se linguagens e termos<br />

diferentes, porém estas línguas não estão ordenadas<br />

hierarquicamente na consciência do lavrador. Ele usa ora<br />

uma, ora outra. A cada instante, automaticamente, troca<br />

de língua. Cada linguagem usada nasceu e cresceu em ninhos<br />

diferentes. O lavrador, possivelmente nunca procurou,<br />

nem mesmo imaginou, examinar uma linguagem usada -<br />

bem como o mundo descrito ou interpretado por ela - com<br />

a lente da outra. Por exemplo, examinar a linguagem usada<br />

no cotidiano e familiar com os “olhos” da linguagem da oração<br />

ou da canção. Ele não deve imaginar que se fizesse isso<br />

- examinasse um dos mundos vividos com as “lentes” da<br />

outra linguagem - o “mundo” olhado não seria o conhecido,<br />

seria outro, talvez muito diferente do lido com a linguagem<br />

inicial. Ele enxergaria novos mundos.<br />

A linguagem e o mundo da oração, a linguagem e o<br />

mundo da canção, do trabalho e comércio, dos costumes,<br />

a linguagem específica e o mundo da administração rural, a<br />

moderna e o mundo do trabalhador braçal que chega em casa<br />

para descansar. Todas essas linguagens descrevem mundos<br />

determinados, usam certas palavras apropriadas para aquele<br />

mundinho, os descortinados por cada uma delas.<br />

Cedo ou tarde, cada um desses mundos, dependendo<br />

do poder ou vigor da linguagem, poderá perder seu estado<br />

de equilíbrio sereno e amorfo. Muitos mundos, antes<br />

estáveis, que foram imaginados firmes e eternos, quando<br />

examinados sob o prisma complacente e tolerante da língua-mãe,<br />

de sua própria linguagem tendenciosa e tolerante,<br />

desabaram, olhados sob outros óculos, mais neutros e<br />

impiedosos.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 235


Cada grupo de palavras nos leva a formar imagens de<br />

um contexto, no qual elas nasceram e viveram. Portanto,<br />

todas as palavras são povoadas por intenções e emoções,<br />

nelas são inevitáveis as harmonias e as desarmonias de<br />

gênero, de orientações, de idade, de indivíduos diferentes.<br />

A palavra pronunciada, ou escrita, numa conversa<br />

ou discussão é, ao mesmo tempo, uma palavra emitida<br />

por uma determinada pessoa, e também ideias, conceitos<br />

ou lógicas emprestadas de outros. Não foram criadas por<br />

seu possuidor, já existiam quando ele nasceu. Ela se torna<br />

“própria” quando o falante a povoa com sua intenção, com<br />

seu acento particular - caso o tenha - quando ele a domina<br />

através do seu discurso, tornando-a familiar ao dar sua<br />

orientação semântica e expressiva particular.<br />

Alguns falam sem pôr um acento ou linguagem “própria”,<br />

como se estivessem distantes do falado. A fala ecoa<br />

de modo estranho, pois as linguagens usadas não foram<br />

assimiladas, ficam “entre aspas”, foram decoradas.<br />

A visão do mundo de uma geração, se formulada em<br />

palavras, torna-se necessariamente uma prisão para a geração<br />

seguinte ou as seguintes. Cada geração deve exigir sua<br />

própria linguagem, nascida de uma época e numa cultura.<br />

236 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Um LUgAr Ao SoL<br />

O nascimento, o crescimento e a divulgação de alguns<br />

novos termos que são lançados no mercado da fala<br />

diária, muitas vezes se espalham ao sabor do vento: “Com<br />

certeza”, “Virgem Maria”, “Bumbum”, “Aí”, “Nossa!”, “Na<br />

verdade”, “De repente”, “Quer dizer”, “Né”, são apenas alguns<br />

exemplos. Uma grande parte dessas expressões denotam<br />

exclamações, emoções, outras são apenas ruídos<br />

inofensivos sem utilidade informativa.<br />

Do mesmo modo, de tempos em tempos todos nós<br />

anotamos em nossa memória, no computador ou agendas,<br />

novos nomes e endereços de um e outro indivíduo<br />

que, temporariamente, foi batizado como “excelente mecânico”,<br />

“grande conquistador”, “canalha”, “ótimo médico”,<br />

“craque”, “língua ferina”, “perigoso bandido”, “próspero<br />

fazendeiro”, “comerciante esperto”, “linda mulher”. Essas<br />

classificações, geralmente, têm uma vida curta.<br />

Não se conhece bem o processo da produção de novas<br />

palavras, bem como a “descoberta” de características excepcionais<br />

de determinada pessoa. Portanto, não sabemos<br />

como nasce, nem por que isso acontece e também a maneira<br />

como o sucesso ou desprestígio do indivíduo se espalha<br />

nas mentes dos seus admiradores ou críticos ferinos.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 237


Num caso ou noutro, o indivíduo se transforma num<br />

exemplar que será elogiado ou criticado, uma amostra ou<br />

modelo que facilitará a comparação de um indivíduo ao<br />

outro, seja semelhante, seja frontalmente oposto.<br />

Cada um de nós defende e briga em defesa de nossos<br />

argumentos: um afirma ser Edgard o melhor e mais honesto<br />

mecânico já encontrado e, ao mesmo tempo, criticamos,<br />

emocionados, o profissional defendido pelo amigo.<br />

Nota-se que certos estereótipos (rótulos, denominações<br />

ou lugares-comuns fixos) encaixam-se bem em torno<br />

de um determinado indivíduo, mas não em outro e, muitas<br />

vezes, esse encaixe tem o apoio de grupos maiores,<br />

de uma comunidade, ou até de um país ou de quase toda<br />

a população mundial: “Madre Teresa de Calcutá foi uma<br />

santa”, “Bush é um demônio!”. Soa estranho e mesmo intolerável<br />

para nossa mente pensar ou imaginar o oposto:<br />

“Madre Teresa é um demônio”, “Bush é um santo”. Estas<br />

últimas afirmações nos provocam um arrepio, enquanto<br />

as primeiras fluem bem, são facilmente assimiladas, sem<br />

causar o malestar anterior.<br />

Conforme o ambiente sociocultural existente e vigorando<br />

numa época, certos conceitos e modelos ficam mais<br />

fáceis de serem atribuídos a alguém, classificando o indivíduo<br />

de um certo modo e não de outro. Essas suposições,<br />

muitas vezes palpites, podem permitir o desenvolvimento,<br />

crescimento e reprodução das atribuições das pessoas rotuladas,<br />

ou seja, elas ficam encarceradas nos conceitos<br />

emitidos a respeito delas, tudo dependendo do ninho social<br />

onde os conceitos foram plantados ou lançados. Para que<br />

ocorra o crescimento de um conceito, torna-se necessário<br />

que haja “fertilizantes’’ adequados, um terreno propício,<br />

para o conceito “pegar” e “decolar”.<br />

O lançamento, a instalação, a fixação e propagação<br />

de uma ideia para classificar a conduta de determinada<br />

pessoa, boa ou má, às vezes é lenta, outras, rápida.<br />

238 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


O rótulo “João é muito inteligente”, uma vez aceito<br />

torna-se para seus usuários uma verdade insofismável,<br />

autoevidente e “acima de qualquer suspeita”, jamais imaginada<br />

no seu oposto.<br />

A partir da rotulação, os homens e as mulheres classificados<br />

passam a ser tratados pelos conhecidos, amigos<br />

ou inimigos, conforme o rótulo recebido. Se o indivíduo é<br />

denominado “engraçado”, “palhaço”, “grande contador de<br />

anedotas” e mesmo “filho da mãe”, uma vez acreditando na<br />

rotulação, aprisionado à categorização, ele irá se esforçar<br />

como pode para desempenhar, no carnaval ou no velório,<br />

o personagem designado pelo roteiro. Já assisti, muitas<br />

vezes, colegas de sala de aula rotulados de “engraçados”<br />

representarem, de tempos em tempos, conforme os fatos<br />

existentes, o papel exigido pela turma, inventando sempre<br />

que possível uma “graça” qualquer, mesmo uma graça sem<br />

graça, pois, do contrário frustrariam a plateia e poderiam<br />

perder o conceito recebido, passando a ser um qualquer,<br />

um João Ninguém, como os colegas não classificados de<br />

alguma coisa. Da mesma forma, se a pessoa recebe a classificação<br />

e os comentários necessários dos observadores<br />

de que é “bonita”, “elegante’, “inteligente”, “bom de cama”,<br />

“burro”, etc., deverá desempenhar esse papel nas ocasiões<br />

esperadas, não poderá ser “bom de cama” durante a<br />

discussão filosófica na qual deveria representar o papel de<br />

“inteligente”.<br />

Uma vez rotulado, forçado a agir como tal devido a<br />

pressões externas e internas, o antigo cidadão, Carlos ou<br />

Diva, desaparece. Assim vai se formando o novo ator, o<br />

transformado no rótulo, passando a agir de acordo com<br />

o novo conceito: “Aninha é bonita”, “Dirce é inteligente”,<br />

“Pedro é um crápula”.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 239


A menSAgem<br />

Anastácio é um dos donos de uma barraca de frutas<br />

do mercado municipal, onde compro bananas. Ao me ver<br />

naquele sábado, foi logo dizendo, quase gritando:<br />

— Acabei de conhecer uma moça notável. É bonita,<br />

inteligente, estudiosa, grã-fina e agradável... Com essa eu<br />

me caso!<br />

Fiquei pensando acerca do que ouvi, tentando decifrar<br />

o significado de sua frase. Sabia que Anastácio sempre<br />

tirava conclusões apressadas, quando iniciava um namoro.<br />

Nessa hora, misturava os desejos com a realidade. Não<br />

conseguia formar uma ideia da namorada de Anastácio.<br />

Acho que nem ele nem eu, conseguíamos retratar adequadamente<br />

os atributos que ele julgava ter notado. Não sei<br />

como ele chegou a essas conclusões. Apoiado na sua descrição,<br />

comecei a imaginar como seria essa mulher... ”ela<br />

era notável... o que tem uma moça para ser notável? Talvez<br />

muito alta ou gorda, ou muito magra, ou nada disso”.<br />

Continuei a imaginar a namorada de Anastácio. “ele<br />

julgou-a bonita: lembrei-me, quem ama o feio, bonito lhe<br />

parece... Como seria seu corpo, face, olhos, nariz, cabelos<br />

e dentes?”<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 241


Enquanto escolhia as bananas, pensava comigo mesmo.<br />

“Vivemos num mundo simbólico, onde certas coisas<br />

representam outras. Assim, dois pedaços de madeira reunidos<br />

de uma certa forma, que chamamos de cruz, podem<br />

simbolizar ou representar religiões diversas. Talvez a namorada<br />

de Anastácio tenha olhos azuis e cabelos louros,<br />

sendo a beleza, para ele, representada por esses traços.<br />

Mas lembrei-me que esse tipo de beleza foi o adquirido<br />

por mim, ao assistir a filmes americanos.<br />

Voltei a refletir: “Frequentemente inferimos certas<br />

coisas de outras, isto é, criamos uma afirmação a respeito<br />

de uma situação que nos é desconhecida, a partir de uma<br />

conhecida. Ao sentirmos uma dor no peito, inferimos – de<br />

um modo mais simples – imaginamos que estamos tendo<br />

um enfarto. Do mesmo modo, quando a mulher ciumenta<br />

encontra uma mancha de batom na roupa do marido, ela<br />

supõe ou infere que ele a traiu. Quem sabe a namorada de<br />

Anastácio teria lido o Pequeno Príncipe, gostasse de poesia<br />

e isso o levou a supor ser ela muito inteligente?” Com todas<br />

essas dúvidas eu continuava a não enxergar a moça.<br />

Prossegui, teimoso que sou, a fazer perguntas ao meu<br />

amigo e fui descobrindo fatos acerca de sua namorada. Fiquei<br />

sabendo ter ela 20 anos, estuda à noite num colégio<br />

estadual, cursa a 6ª série e já foi reprovada por duas ou<br />

três vezes. Não entendi bem essa parte. Como já sabia<br />

que Anastácio havia parado de estudar na 3 ª série, após<br />

perder o ano diversas vezes, inferi: “Ah! Por isso ele pensa<br />

que sua namorada é muito estudiosa... Perguntando mais,<br />

fiquei sabendo que a namorada de Anastácio lhe disse que,<br />

muitas vezes, ela ficava horas e horas assentada diante<br />

dos livros abertos à sua frente, estudando seguidamente.<br />

Ele aceitou ao pé da letra essas afirmações, acreditou<br />

no que ela disse ter observado e inferido a respeito de si<br />

mesma.<br />

242 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Procurei ir mais a fundo, tentando imaginar como<br />

Anastácio chegou às conclusões acerca da “agradabilidade”<br />

existente em sua namorada. Descobri que nas noites<br />

dos fins de semana, ela lhe preparava um deliciosos mingau<br />

de fubá, quentinho, misturado com pedaços de queijo,<br />

igual ao que fazia sua mãe lá em Divinolância, onde ele<br />

nasceu e foi criado antes de vir para B. H. tentar a sorte.<br />

Então era isso: ela era agradável porque lhe servia mingau<br />

de fubá com queijo mineiro.<br />

Restava examinar os motivos que o levaram a interpretá-la<br />

como grã-fina. Isso foi mais difícil. Descobri que<br />

ela trabalha como arrumadeira numa residência na Savassi,<br />

isto mesmo, na zona Sul da cidade. E tem mais, usa<br />

botas quando sai para passear no Parque Municipal e na<br />

Estação Rodoviária. Sua patroa tem uma loja, o patrão,<br />

que é um advogado famoso, possui uma Mercedes. Ela<br />

já andou nela quando foram à fazenda. No ano passado,<br />

o casal foi à Europa passear e levar alguns dólares para<br />

depositar na Suíça. Rosária, este é o nome da namorada<br />

de Anastácio, não foi com eles, como era seu desejo. Sendo<br />

de confiança, teve de ficar tomando conta da casa. Na<br />

volta, ela ganhou de presente dos patrões, uma escova de<br />

dentes, por sinal muito linda, um pente, um dentifrício, e<br />

ainda uma marmita arrumadinha, contendo uma deliciosa<br />

comida. Coitados, ficaram enjoados e não comeram nada.<br />

Guardei, enquanto pensava, minhas bananas caturras.<br />

Paguei a Anastácio o que lhe devia e desejei-lhe, como<br />

é de praxe no Mercado, um bom fim de semana. Caminhei<br />

um pouco tonto, desiludido com nossa conversa incompreensível.<br />

Em nenhum momento consegui formar uma<br />

imagem clara de Rosária, por mais que tentasse. O relato<br />

ouvido a seu respeito, contada pelo namorado apaixonado,<br />

não me forneceu nenhum fato acerca de seu nariz, boca,<br />

olhos, corpo em geral. Não conseguia enxergá-la pois, du-<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 243


ante o bate-papo havia escutado apenas inferências, julgamentos,<br />

comunicados de comunicados e interpretações<br />

superficiais.<br />

De repente, ao parar diante do ponto dos abacaxis,<br />

ao dar a primeira dentada num pedaço, descobri, de um<br />

estalo, a mensagem que Anastácio tentou transmitir-me<br />

em vão e que eu não compreendi devido à minha burrice<br />

nesses assuntos.<br />

Ele procurou comunicar-me, através de sua descrição<br />

do namoro com Rosária, que ele estava apaixonado, nada<br />

mais! Eu, tolamente, fiquei tentando decifrar, de maneira<br />

complicada, a mensagem simples contida em suas palavras,<br />

em vez de sentir as emoções expressas. Eu sempre<br />

faço isso: procuro um sentido complexo quando existem<br />

outros muito mais simples...<br />

244 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


VidenteS:<br />

A ProStitUiÇÃo dAS PALAVrAS<br />

Ouvi, atentamente, na TV, uma “numeróloga” descrever<br />

as características comportamentais exibidas pelas<br />

pessoas, conforme o dia do mês em que nasceram. Procurei<br />

verificar se os relatos feitos para todos os indivíduos<br />

serviriam para mim. O resultado da “pesquisa” mostrou<br />

que a vidente acertou mais do que eu imaginava. Todas as<br />

descrições feitas para os nascidos em todos os dias do mês<br />

deram certas para mim.<br />

Creio que as previsões feitas estão certas, também,<br />

para todos os leitores. Passo para vocês as afirmações da<br />

vidente, para que as comparem com suas próprias previsões:<br />

“os nascidos entre os dias 1 e 5 são teimosos, mas<br />

flexíveis para os que sabem agir com eles. Os nascidos entre<br />

os dias 6 e 10 têm um grande amor às crianças mas, às<br />

vezes, perdem a paciência com essas. Os nascidos entre<br />

os dias 11 e 16 são trabalhadores e persistentes, quando<br />

desejam alcançar seus objetivos. Os nascidos entre os<br />

dias 17 e 21 não gastam dinheiro facilmente, somente com<br />

pessoas ou coisas importantes para eles. Os nascidos entre<br />

os dias 22 e 25 apaixonam-se rapidamente, mas aban-<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 245


donam cedo suas paixões, quando frustrados. Os nascidos<br />

entre os dias 26 e 31 são desconfiados e selecionam com<br />

cuidado seus amigos”.<br />

Creio que todos os indivíduos encontrarão fatos, na<br />

sua história de vida, capazes de “provar” estas profecias.<br />

Mas se se esforçarem um pouco mais, descobrirão, também,<br />

eventos desconfirmando as previsões.<br />

Há pesquisas mostrando que as pessoas tendem a<br />

procurar fatos que comprovam suas hipóteses e só muito<br />

raramente buscam os eventos que as desconfirmam. Assim,<br />

se não gosto de Maria, a observo, selecionando sua<br />

conduta negativa, visando “provar” que tinha razão. Se<br />

afirmo que os bons vendedores são extrovertidos, seleciono<br />

esses para minha loja e não experimento os introvertidos<br />

para verificar a possibilidade de minha hipótese estar<br />

errada.<br />

Os políticos, cartomantes, videntes e outros profissionais<br />

do mesmo ramo, que advinham com precisão o que<br />

ocorrerá no futuro, jamais cometeram erros ao realizarem<br />

suas previsões. As afirmações desses indivíduos são vagas,<br />

permitindo a entrada dos mais diversos fatos na interpretação<br />

para “provar” as previsões.<br />

Quando um comentário sobre qualquer fato é muito<br />

geral como: “um dia vai chover em algum lugar da Terra”,<br />

ele não precisaria ser falado, por ser uma conclusão<br />

conhecida por todos. A fala que explica o geral, ou tudo,<br />

não pode ser negada. Quando um adivinho, usando búzios<br />

ou cartas, declara: “No próximo ano morrerá um político<br />

influente”, qualquer político que morrer irá se enquadrar<br />

na previsão, pois sempre algum político morre durante o<br />

ano e ele é influente para alguém. Afirmações como: “Haverá<br />

grandes mudanças no governo brasileiro”, “Um artista<br />

morrerá de AIDS” ou “A economia brasileira sofrerá abalos”,<br />

situam-se nesse tipo de afirmações desnecessárias.<br />

246 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Elas são abrangentes e, ao examiná-las, automaticamente<br />

selecionamos determinados fatos ocorridos que se encaixam<br />

na previsão.<br />

Ao observarmos as declarações da maioria das pessoas<br />

notamos que essas nada esclarecem, explicam ou<br />

acrescentam ao já sabido ou esperado. Falar que: “nosso<br />

sistema de saúde está falido”, “o povo está passando<br />

fome”, “o brasileiro gosta de levar vantagem em tudo” e<br />

“o brasileiro deixa tudo para última hora” afirma algo que<br />

sempre ocorre, em algum lugar, num certo momento, com<br />

algumas pessoas. Mas também poderíamos arrumar amostragens<br />

que “não deixa nada para a última hora”, “não leva<br />

vantagem em nada”, ”tem um sistema de saúde do primeiro<br />

mundo” e “muitos brasileiros comem exageradamente”.<br />

Portanto, essas afirmações são inúteis.<br />

As pessoas, ao se expressarem desse modo, não examinaram<br />

fatos para extrair conclusões. Elas aprenderam<br />

a conclusão pronta, não sabendo que fatos foram selecionados<br />

para contribuir para tal afirmação. Também não<br />

observaram outros aspectos da situação que poderiam ter<br />

importância, como: Qual sistema de saúde encontra-se falido?<br />

Seriam “todos os sistemas de saúde”, inclusive os<br />

que atendem as elites? A metáfora “falido”, que significado<br />

adquirirá junto ao contexto “sistema de saúde”? Caso a<br />

afirmação fosse confirmada, o que seria impossível, ainda<br />

continuaríamos em dúvida e perguntaríamos: “Quais e<br />

quantas foram as medidas usadas para se chegar a essa<br />

conclusão e que tipos de erros elas podem conter?<br />

Do mesmo modo: Quais brasileiros, quantas crianças<br />

e adultos, deixam tudo para a última hora? As mulheres<br />

também? Quais? E o que seria “última hora”? No dia do<br />

vencimento, um dia antes, na última hora, minuto, etc.?<br />

Mas as dificuldades não terminam aí. As palavras<br />

não são simplesmente símbolos que colocamos em coisas,<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 247


pessoas ou em fatos para identificá-las. Muitos dos vocábulos<br />

usados só adquirem significados no contexto onde<br />

são usados. Nesse caso, para que possamos decifrar seu<br />

significado, necessariamente devemos examinar sua relação<br />

com outros conceitos já assimilados e entendidos. Esses<br />

mais antigos na mente do indivíduo servirão de apoio<br />

à compreensão. A palavra, uma vez ancorada em outros<br />

conceitos aceitos e compreendidos, poderá nos fornecer<br />

um significado pleno e será assimilada pelo leitor ou ouvinte.<br />

Entretanto, a maioria das palavras do dia-a-dia, da<br />

linguagem popular, são usadas nos mais diversos contextos,<br />

ligando-se aos mais diversos temas e, em cada um<br />

deles, o termo tem um significado diferente. Por isso mesmo<br />

falamos que as palavras usadas na linguagem popular<br />

são, com frequência, ambíguas, isto é, apresentam significados<br />

diversos, conforme a frase usada. Elas “nasceram”<br />

de várias fontes e em cada uma delas adquiriram significados<br />

múltiplos.<br />

Consequentemente, afirmações como “levar vantagem<br />

em tudo”, ou “deixar tudo para última hora” produzem<br />

confusões no ouvinte e discussões sem fim: podem<br />

ser “provadas” e “negadas”, dependendo dos argumentos<br />

utilizados. Afirmações como essas não explicitaram a<br />

origem das palavras-chaves como “levar”, “vantagens” e<br />

“tudo”, bem como suas ligações a outros conhecimentos<br />

aceitos. Só desse modo essas frases poderiam ter algum<br />

sentido preciso.<br />

Examinemos algumas frases contendo a palavra<br />

“amor”. Este termo, por sinal muito repetido, evoca boas<br />

e más recordações, adquirindo significados distintos conforme<br />

os contextos onde está colocado.<br />

Assim, ouvimos e fingimos entender frases como:<br />

“No amor o importante é a sinceridade”, “Matou por amor”,<br />

248 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


“A química do amor”, “Maria é um amor de pessoa”, ‘O<br />

amor é sublime”, “As dores do amor”, “Fazer amor”; Um<br />

amor de casa”, “Morreu por amor”, “Os pais devem educar<br />

os filhos com amor”, “É preciso ter mais amor à humanidade”,<br />

“Se tivermos mais amor, tudo será resolvido”, etc.<br />

Através dessa pequena amostra o leitor poderá observar<br />

que a palavra, ou o signo “amor”, foi usada em<br />

diversos contextos, cada um muito diferente do outro. Ficaríamos<br />

confusos caso tentássemos decifrar o significado<br />

de “amor”, existente na frase “Morreu por amor”, através<br />

do significado que ela adquiriu na frase “Fazer amor”. Nas<br />

ciências sérias, seus conceitos principais ou “construtos”<br />

são definidos com extremo cuidado, aceitos pelos que os<br />

usam, e sempre ligados, direta ou indiretamente, a fatos<br />

existentes no mundo empírico.<br />

Aqui pergunto: Qual ideia teria um leitor que nunca<br />

tivesse visto a palavra “amor”, ao examinar esta lista<br />

de afirmações? Ora, os diversos contextos no qual a<br />

palavra foi colocada, onde ela está presa, fez com que o<br />

som ou imagem “amor” adquirisse significados totalmente<br />

diferentes. Na maioria das vezes seu sentido é difícil de<br />

ser entendido por quem emitiu ou por quem recebeu a<br />

informação. A maioria das palavras de uso diário caem no<br />

mesma dificuldade de entendimento. A palavra “over” em<br />

inglês, tem mais de 90 significados diferentes. Essa complexidade<br />

de sentidos facilita a vida do charlatão, do pregador<br />

desonesto, do vigarista, de muitas psicoterapias, de<br />

advogados diversos e dos políticos.<br />

Esses profissionais da palavra, através de uma verborreia<br />

algumas vezes ininteligível, desligada de fatos,<br />

usam com mestria, palavras produtoras de fantasias e<br />

emoções, dependendo do ouvinte. Com isso esses falantes<br />

conseguem ludibriar os inocentes clientes, o devoto<br />

incauto ou o fiel eleitor e vendem as ilusões desejadas.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 249


Quando o manipulador de pessoas emite os belos<br />

sons: “família”, “educação”, “saúde”, “colégio”, “lazer”, “riqueza”,<br />

“amor”, “democracia”, “liberdade”, estas palavras<br />

são interpretadas e sentidas pelas pessoas que as ouvem<br />

de acordo com a experiência e os sonhos de cada um. Elas<br />

comovem os que as ouvem. Mas os que as pronunciam,<br />

vivem geralmente em mundos diferentes dos seus ouvintes,<br />

compartilhando experiências diferentes. Cria-se uma<br />

comunicação próxima do zero: os vocábulos trocados são<br />

os mesmos, é certo, mas cada um os representa, em sua<br />

mente, ajustados ao seu mundo. Aprendemos, erroneamente,<br />

que para ser entendido basta falar o mesmo idioma<br />

ou as mesmas palavras. Não é bem assim...


AdiVinHoS: eSSeS deSAdAPtAdoS<br />

Os videntes, bem como os que trabalham com búzios,<br />

cartas, tarô, horóscopos, mapa astral e outros semelhantes,<br />

ao tentarem predizer o futuro do país, do artista ou do<br />

político, de fato só poderão observar os “mapas” mentais<br />

que habitam suas próprias mentes. Esses leitores misteriosos<br />

“leem” apenas seus próprios pensamentos e não os<br />

dos outros. Não há outra possibilidade. Alguns, sem malícia,<br />

outros, nem tanto, descrevem para o consulente ávido<br />

por profecias a “realidade” interna contida em sua mente,<br />

como se fossem eventos que irão acontecer.<br />

Ninguém pode refletir ou descrever o que não se encontra<br />

armazenado em sua própria mente, sua “memória<br />

autobiográfica”. Apesar desse fato simples, eu só falo o<br />

que aprendi, só consigo discutir ou resolver questões que<br />

tenho em mente e que conheço. Estranhamente, os diversos<br />

videntes atribuem suas visões a acontecimentos externos,<br />

até o momento da revelação desconhecidos para o<br />

vidente e o cliente.<br />

O grande paradoxo dos videntes e outros semelhantes<br />

é que eles jamais conseguiram prever seus próprios destinos,<br />

sair de sua ignorância a respeito de sua incapacidade<br />

para fazer o que dizem: eles ignoram a própria ignorância.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 251


Há uma verdade lógica impossível de ser negada:<br />

nada do que existe fora de nossa mente pode ser observado,<br />

percebido, examinado ou discutido em si. Tudo que<br />

conhecemos encontra-se intermediado pela nossa mente.<br />

Não existe objetividade nem nas ciências chamadas<br />

“exatas”. Tudo o que é olhado, escutado, cheirado, etc.,<br />

sempre o será por uma cabeça que já possui algum conhecimento<br />

ao nascer (inato) e, após o nascimento, cada<br />

um tem seu aprendizado singular. O conhecimento antigo<br />

forçosamente servirá de suporte ao novo que vai sendo<br />

edificado. Não pode ser de outro modo.<br />

Cada um de nós tem uma história que é humana: viveu<br />

e experimentou certas situações, leu ou escutou algo,<br />

interessa-lhe observar determinados aspectos do mundo,<br />

somente esses, num certo momento. Qualquer observador<br />

de fatos apresenta sempre limitações: características<br />

como a idade, sexo, maior ou menor conhecimento, a adoção<br />

de certa filosofia de vida, o viver um instante particular,<br />

etc. Tudo isso, e muito mais, irá fatalmente modificar a<br />

percepção e interpretação do fato ou as relações que estão<br />

sendo examinadas.<br />

Sempre, sem exceção, todos nós, ao examinarmos<br />

um evento, lançamos nele nossos desejos, noções gerais<br />

ou falta de conhecimento acerca do fato, de modo que o<br />

observado mistura-se às nossas crenças. Nós nunca atingimos<br />

os fatos. Sempre damos nossas versões acerca dele<br />

ou, de outro modo, trabalhamos, examinamos e interpretamos<br />

apenas as representações criadas ou construídas<br />

acerca dos eventos, um simulacro ou amostra do evento,<br />

uma história reconstruída, modificada e contada acerca do<br />

fato para e por alguém. Que pena!<br />

Muitas vezes recebemos informações de segunda,<br />

terceira ou quarta mão. Construímos as nossas versões<br />

dos fatos e estas sempre devem corresponder às nossas<br />

252 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


crenças subjacentes, aos nossos desejos, ao grupo social<br />

onde somos aceitos e do qual fazemos parte.<br />

As versões são frequentemente carregadas de mitos,<br />

hipóteses e deduções antigas, aprendidas cedo e, além disso,<br />

muito longe da realidade. Assim é que todos nós construímos<br />

nossos mitos particulares. Na maioria dos nossos<br />

raciocínios não examinamos os métodos que usamos para<br />

chegar às conclusões obtidas e, muito menos, não examinamos<br />

as contradições possíveis de existir no nosso próprio<br />

raciocínio.<br />

Parece-me que os videntes fazem parte do grupo dos<br />

seres humanos. Talvez não! Não sei bem. Eles, caso estejam<br />

certos, ao observarem e raciocinarem, como nós,<br />

selecionam certos fatos, acentuam alguns aspectos, eliminam<br />

e generalizam outros para construírem suas ideias<br />

conforme seus planos e intenções. Além disso, como todos<br />

nós, ao examinarem um acontecimento não valorizam e<br />

não selecionam aspectos do fato que não interessam às<br />

hipóteses que formulam e que poderiam contradizer as expressas<br />

no momento. O resto... vocês decidem.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 253


FÉ: Um PoderoSo medicAmento<br />

Uma visão retrospectiva na história da medicina nos<br />

conduz a uma constatação no mínimo estranha ou insólita:<br />

grande parte dos pacientes que consultaram os médicos,<br />

em épocas passadas, foi ludibriada.<br />

Isso ocorreu não por má-fé dos seus clínicos, mas<br />

sim em virtude de que os procedimentos físicos e medicamentos<br />

usados em grande parte dos casos não possuíam<br />

qualquer efeito farmacológico esperado sobre a condição<br />

que era tratada. Posso afirmar, sem muito medo de errar,<br />

que a grande maioria dos médicos do passado ajudaram os<br />

clientes muito mais através de técnicas psicológicas intuitivas,<br />

do que em virtude dos chás, poções, ervas, sangrias,<br />

incisões, xaropes, catárticos, sacrifícios em animais e em<br />

seres humanos, fumigações, enemas, vomitórios, penitências<br />

e outras técnicas largamente utilizadas no passado.<br />

As “causas” das doenças para a medicina pré-científica<br />

eram bem mais simples do que as atuais. Às vezes<br />

a “doença” era causada por um distúrbio ocorrido com os<br />

elementos básicos da natureza e, logicamente, do organismo<br />

- terra, água, fogo e ar – esses, teriam que ser<br />

restaurados. Outras vezes, a doença era proveniente de<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 255


uma possessão demoníaca e o tratamento indicado era o<br />

exorcismo do malfeitor. A possessão era combatida, e ainda<br />

o é, com bons resultados, através de orações e rezas,<br />

danças e cânticos, numa variedade de rituais. Quando o<br />

demônio era poderoso, a técnica era a de passá-lo para<br />

uma outra pessoa.<br />

Outras doenças surgiam devido ao “mau- olhado” ou<br />

eram colocadas” por pessoas poderosas e más.<br />

Assistimos atualmente a uma descrença na medicina<br />

tradicional, ao mesmo tempo um retorno às medicinas<br />

chamadas alternativas e às técnicas antigas. Essas têm,<br />

como sempre tiveram, a sua clientela fiel, agora em crescimento.<br />

Uma boa parte dos dirigentes dessas “clínicas” são<br />

leigos mas, a cada dia mais, médicos formados por escolas<br />

tradicionais engrossam a fileira dos “curadores mágicos”.<br />

Cada grupo dá sua explicação “científica” do mecanismo<br />

das doenças, sua etiopatogenia - assim como das<br />

causas - sua etiologia e explicam a lógica e a razão dos<br />

tratamentos instituídos. Todos têm algum sucesso. Para<br />

alguns a leitura das mãos permitirá um perfeito diagnóstico<br />

e prognóstico da doença e do doente, ou até revelará a<br />

doença ainda não ocorrida mas que acontecerá - é a medicina<br />

palmar preventiva. Para uma outra “medicina”, toda<br />

e qualquer doença é mostrada, apenas para mentes especiais,<br />

através dos globos oculares. Os olhos, sendo o “espelho<br />

da alma”, fornecem indícios evidentes e insofismáveis<br />

das doenças orgânicas e mentais. Alguns “consultam”<br />

através das cartas ou dos búzios, outros pelos horóscopos<br />

- até por correspondência - e outros ainda, simplesmente<br />

adivinham o que o paciente apresenta através do seu poder<br />

de vidente, como os sensitivos e os paranormais.<br />

Todos esses grupos, junto aos médicos, exercem a<br />

ajuda aos doentes, necessitados e carentes, cada um acreditando<br />

mais e mais em suas próprias técnicas e pouco ou<br />

nada nas dos adversários.<br />

256 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


Eu, com a minha medicinazinha simples e acanhada,<br />

com pouco, ou melhor, sem nenhuma certeza, fico perplexo<br />

com tanta fé e verdades ditas com tanta empolgação<br />

e segurança. Sei, assim como você, leitor, que todas elas<br />

“curam”. Uma boa parte dos pacientes volta à normalidade<br />

após qualquer um tratamento. Cada grupo de clientes,<br />

convicto da capacidade do seu “curador”, seja ele médico<br />

ou não, defende, elogia, prova e preconiza para os seus<br />

amigos, o tratamento usado. A situação é semelhante à<br />

dos pacientes que se submetem por muitos anos ao tratamento<br />

psicoanalítico e que percebem o seu terapeuta<br />

como o mais capaz, sábio, mais eficiente e inteligente.<br />

Da minha parte, particularmente, sou um tanto São<br />

Tomé, “ver, para crer” é uma de minhas regras favoritas.<br />

Tanto assim que em minhas aulas na Faculdade de Medicina<br />

da UFMG já fiz comparecer umbandistas, espíritas,<br />

cartomantes, professores de I Ching e diversos outros<br />

profissionais da saúde física e mental que expõem suas<br />

ideias, as quais são debatidas com os estudantes. Julgo<br />

estar aprendendo muito.<br />

Nesse ponto desejo lhes contar uma experiência pessoal<br />

e que era aqui guardada sigilosamente. Há anos passava<br />

férias em Santa Maria de Itabira, com duas filhas,<br />

uma delas com 16 anos naquela época e que sofrera um<br />

corte, em uma das mãos, produzido por um caco de vidro<br />

de uma garrafa quebrada acidentalmente. Já havia meses<br />

que o fato ocorrera e ela se queixava de que a dor na<br />

mão não passava e que além disso tinha dificuldades para<br />

executar movimentos normais. A outra, com 8 anos, apresentava<br />

uma inflamação palpebral, rebelde a tratamentos<br />

normais, aos quais já havíamos recorrido.<br />

Seu oftalmologista informou-me que o melhor seria<br />

lancetar e limpar o tumor e, por ser uma região delicada,<br />

seria prudente dar-lhe anestesia geral. Por precaução,<br />

adiei a pequena cirurgia.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 257


Em uma tarde, quando trafegava na cidade em meu<br />

jeep, combinamos fazer uma entrevista com um famoso<br />

“curandeiro” local, autor de várias curas fabulosas. Munido<br />

com a minha filmadora nos dirigimos para a entrevista. A<br />

gravação foi permitida pelo curandeiro, ficando marcada<br />

para uma hora mais tarde, pois ele desejava, antes, tomar<br />

um bom banho e se aprontar. A entrevista, que durou<br />

cerca de uma hora e meia, está ainda gravada e recentemente<br />

revi o tape. Correu tudo a contento, com várias<br />

explicações e demonstrações orais do meu companheiro<br />

de atividade - ouvir e ajudar pessoas que estão sofrendo.<br />

No final pedi ao renomado profissional que fizesse algo de<br />

prático e real para ajudar as minhas filhas que, um pouco<br />

espantadas, mas seriamente, assistiam a toda a explanação.<br />

Prontamente ele atendeu meu pedido, gastando não<br />

mais do que três minutos para realizar a cura solicitada,<br />

utilizando-se de algumas rezas desconexas, às vezes inaudíveis,<br />

tendo sempre à mão o seu terço, feito de contas<br />

de “lágrimas de Nossa Senhora”. Inicialmente seu alvo foi<br />

a mão esquerda da filha mais velha e, logo após, acrescentando<br />

algumas rezas a mais, dirigiu sua intervenção ao<br />

olho direito da mais nova.<br />

Pois bem, ficamos mais uma semana em Santa Maria.<br />

Após cinco dias, no máximo, as duas estavam curadas e<br />

não tiveram recidivas. É evidente que a ocorrência me fez<br />

pensar. Lembrei-me de Hipócrates: “as nossas naturezas<br />

são os médicos de nossas doenças”.<br />

Lembrei-me também de um professor, quando cursava<br />

a Faculdade. Em suas inteligentes aulas repetia, frequentemente,<br />

que uma grande parte das doenças são autocuráveis,<br />

isto é, nosso organismo, com sua misteriosa<br />

sabedoria e defesa elimina o mal e a disfunção sem ajuda<br />

externa. Falava sempre acerca da expressão “ilusão terapêutica”,<br />

o caso de uma cura espontânea e que se supõe<br />

258 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


ser devida a qualquer prática exercida ou medicamento<br />

usado. Lembro-me de seus exemplos: os diferentes remédios<br />

são receitados como eficientes na cura de gastrites<br />

ou de úlceras. Entretanto sabe-se que essas doenças melhoram<br />

ou desaparecem, e também voltam, em virtude de<br />

diversos fatores. Muitas vezes, o pesquisador menos avisado<br />

atribui ao seu remédio milagroso a responsabilidade<br />

pelo êxito.<br />

Você, prezado leitor, que acredita na cura pela fé,<br />

perdoe-me por raciocinar da maneira acima descrita, diante<br />

de tanta evidência. Ao andar buscando construir meu<br />

caminho, talvez tenha traçado um caminho diverso do seu,<br />

mas nunca antagônico, talvez com mais semelhança do<br />

que se possa imaginar.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 259


A SAntA QUe FALA PortUgUÊS<br />

Uma antiga história, de origem provavelmente hindu,<br />

conta que um cego perguntou a um sábio o significado de<br />

“branco”.<br />

— Branco é uma cor, como por exemplo, a neve, que<br />

é branca, disse-lhe o homem.<br />

— Eu compreendo, disse o cego. Ela é fria e úmida.<br />

— Não! Não! Ela não tem que ser úmida e fria. Ela é<br />

semelhante à pele do rato albino.<br />

— Então macia, uma cor coberta de penugens? Pergunta<br />

o cego.<br />

— Não! Não necessita ser macia: porcelana é branca<br />

também.<br />

— Talvez o branco seja uma cor dura e lisa, completou<br />

o cego.<br />

O homem, nesse ponto, perdeu a paciência e desistiu<br />

de dar explicações.<br />

Esta história ilustra a dificuldade, ou impossibilidade,<br />

de comunicação entre duas pessoas que não tiveram experiências<br />

comuns. Talvez este seja um dos grandes problemas<br />

do nosso tempo.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 261


Assisti certa vez a uma mesa redonda, reunindo jornalistas<br />

e juízes, quando se discutiu o poder judiciário visto<br />

pelos jornalistas. A discussão era principalmente sobre a<br />

dificuldade existente entre as linguagens dos juízes e a dos<br />

jornalistas. Segundo deduzi, um grupo não compreende o<br />

outro. De parte a parte surgiram argumentos acalorados,<br />

mas tudo dentro do mais alto nível. Durante as discussões<br />

um dos presentes argumentou: “Não vejo necessidade de<br />

modificar a linguagem de ninguém: todos nós falamos português”.<br />

Nada mais errado. Talvez seja mais fácil um juiz alemão<br />

entender um juiz brasileiro, mesmo que ele nunca<br />

tenha falado nossa língua, desde que tenha à mão um bom<br />

dicionário, do que um brasileiro comum entender a linguagem<br />

dos magistrados. O exemplo pode ser estendido para<br />

todas as áreas do conhecimento humano. O vocabulário de<br />

qualquer área é especializado. Os fatos e acontecimentos<br />

são codificados dentro de cada área e organizados de uma<br />

certa maneira, onde cada signo tem uma enorme riqueza<br />

de informações, conforme o estudo e observações dos peritos<br />

da área. Os mesmos sons, ou códigos, nada significam<br />

para os não-versados.<br />

Todos sabemos ligar uma aparelho de TV, entretanto<br />

um técnico em consertos saberá mais alguma coisa, já<br />

que seu modelo do aparelho é mais rico, mais abrangente<br />

e melhor coordenado em sua mente. Mas o engenheiro,<br />

projetor de aparelhos de TV, terá um mapa ainda mais<br />

detalhado, organizado e rico sobre uma televisão, do que<br />

o técnico em consertos. Nas outras atividades o mesmo<br />

ocorre.<br />

As palavras têm um significado especial para nós, porque<br />

tivemos experiências melhores ou piores, mais simples<br />

ou mais complexas com elas. Ao olharmos o dicionário,<br />

vamos encontrar apenas outras palavras, que significam<br />

262 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


coisas semelhantes, mas jamais a vivência ou experiência.<br />

Esta é crucial para o entendimento. Para obtermos experiência<br />

precisamos de tempo, talvez a vida toda, além da<br />

posse de algum talento na área onde investimos.<br />

Podemos, dessas reflexões, questionar, ao ler nos<br />

jornais notícias de que um lavrador, um empresário, uma<br />

beata, estão recebendo mensagens de Nossa Senhora ou<br />

de um ET.<br />

Como será que ela comunicou-se com eles? Como o<br />

cego? Será que a Santa aprendeu português e conseguiu<br />

captar nossas experiências culturais e sociais deste final<br />

do século XX?<br />

Imagino que ela ficará bastante confusa ao ouvir as<br />

mensagens carregadas de problemas atuais do nosso mundo,<br />

diferentes das vividas por ela numa época X ou Y de<br />

sua história e, além de tudo, formulada em outra língua.<br />

Mas, de qualquer modo, sempre há leitores interessados<br />

nesse assunto fantástico, extraordinário. Quem não tem?<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 263


o Poder do BoAto<br />

Na segunda feira, Frederico entrou na seção e, virando-se<br />

para a colega Inês, num tom de voz mais baixo que<br />

o normal, comentou admirado:<br />

— Você sabe da última? Assaltaram o chefe às 6:30<br />

da manhã de sábado. Ele estava com Raquel, aquela nova<br />

secretária. E acrescentou: - Os dois juntos numa hora dessas...<br />

só podiam estar vindo de algum motel. Você não<br />

acha?<br />

Estava criado o boato. A ”informação” preenchia todos<br />

os ingredientes necessários para seu nascimento e divulgação:<br />

o tema interessava ao grupo que o assimilava e<br />

transmitia e, além disso, ninguém podia saber com certeza<br />

o que os dois estavam fazendo, isto é, a informação era<br />

ambígua. Também o assunto “sexo” sempre atraiu e excitou<br />

as pessoas e uma informação acerca dos dois interessava<br />

ao grupo: o chefe era antipatizado por ser exigente<br />

e moralista, enquanto a secretária era invejada e odiada<br />

pela beleza e exuberância de seus dotes físicos e pelas<br />

regalias gozadas no serviço. O boato se caracteriza, quase<br />

sempre, por ter uma afirmação que não pode ser negada,<br />

nem confirmada.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 265


Os políticos são vítimas frequentes desse tipo de<br />

“informação”. Chegam-nos aos nossos ouvidos cochichos<br />

como: “Ouvi dizer que Q está transando, fora de casa, com<br />

a M”, “Você sabe que W bate frequentemente em sua mulher”,<br />

“O T enxuga feito um gambá, não consegue nem<br />

tirar a roupa do corpo”, “Faz anos que P faz uso de cocaína,<br />

só fala em público sob o efeito do pó”.<br />

A imprensa também costuma criar e divulgar boatos.<br />

Algumas revistas se mantêm quase que exclusivamente<br />

divulgando as fofocas sobre a vida dos artistas.<br />

Certos temas são mais férteis à geração de boatos.<br />

Entre eles podemos citar os crimes estranhos, bárbaros<br />

ou de origem sexual, as curas milagrosas, os escândalos<br />

sociais, as disputas eleitorais agressivas e as guerras. Uma<br />

boa parte das notícias que aparecem nas colunas sociais<br />

são rumores, que dão prazer tanto àqueles “que são notícias”<br />

como àqueles que não são.<br />

O boato age, muitas vezes, como estimulante mental<br />

como muitas drogas usadas. Tenho uma amiga perita em<br />

“acordar” grupos. Presenciei em uma reunião sua habilidade:<br />

a conversa corria morna e lenta, as pausas alongavam-se.<br />

Percebendo o desânimo dos convidados, ela fez uso do remédio<br />

milagroso. Com voz baixa e lenta, como manda o figurino,<br />

começou a falar, ao mesmo tempo que olhava para um e<br />

outro do grupo. Este, que a conhecia bem, percebeu, através<br />

dos gestos teatrais, que algo de interessante estava pronto<br />

para vir à tona. Sônia iniciou, falando espaçadamente:<br />

— Não sei se vocês conhecem a Terezinha, uma que<br />

mora no apartamento 13.001, no meu prédio, casada com<br />

aquele homem moreno, bonitão. Ela tem dois ou três filhos.<br />

Ouvi dizer, de fonte fidedigna, que ela largou o marido<br />

e já se casou de novo.<br />

Nesse ponto ela interrompeu a narração, observou<br />

sorrateiramente a expressão facial de cada um, decepcio-<br />

266 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA


nados, já que o “furo” não era tão sensacional. Ela, usando<br />

de seu traquejo de excelente transmissora de boatos, criava<br />

a frustração propositadamente. Esperou alguns instantes<br />

e completou a informação:<br />

— Sabem com quem ela se casou? Não sabem? Com<br />

a Ruth, uma loira, baixa, feiinha, telefonista da firma do<br />

ex-marido.<br />

Nesse instante o grupo despertou, o boato começava<br />

a agir. Todos, excitados, pediam mais detalhes, ou, no<br />

mínimo, a repetição do que acabavam de escutar. Sônia<br />

continuava a história, calmamente, sabendo que estava<br />

vitoriosa:<br />

— Isso mesmo, atualmente as duas estão morando<br />

juntas, lá em Lagoa Santa, há dois meses, numa casa de<br />

campo... Terezinha sempre gostou de ecologia. Segundo<br />

soube, as duas estão arrependidas de não terem tomado<br />

a decisão há mais tempo. Quem está incontrolável é o Arthur,<br />

seu marido.<br />

A partir daí, todos falavam ao mesmo tempo: uns<br />

pediam minúcias do caso, outros tinham algo semelhante<br />

para contar. Outros ainda tomavam partido, defendendo ou<br />

atacando a conduta dos envolvidos, quando o marido era<br />

acusado de ser um “banana”, permitindo que sua mulher,<br />

uma sem-vergonha, o largasse com os filhos. Cada um se<br />

identificava rapidamente com os personagens, projetando<br />

neles seus recalques, frustrações e outras mazelas.<br />

Assisti a tudo sem dizer nada. Tive a sorte de levar<br />

Sônia em casa, pois ela estava sem condução. Rimos juntos<br />

do efeito de sua fofoca e fiz alguns comentários. Entretanto,<br />

para meu espanto, ela me disse que o caso fora<br />

criado na hora. Exultante com o sucesso obtido, contoume<br />

para finalizar:<br />

— Já inventei várias histórias parecidas: não é difícil.<br />

Não existe a moradora do 13.001, nem o apartamento.<br />

BrASiLeiroS, ALertA! 267


Os personagens foram descritos de maneira vaga, que diz<br />

tudo e não diz nada. Usei uma linguagem superficial, com<br />

poucos detalhes. Com eles grande parte das pessoas se<br />

identificam.<br />

Esse tema provoca fantasias, emoções e desejos.<br />

Despertei na mente de cada um deles seus próprios boatos,<br />

mentiras, lendas, mitos e dramas particulares. Eles<br />

excitaram-se, não com minha história, mas sim com suas<br />

histórias particulares. Essa é sempre mais excitante.<br />

268 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA

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