DIGRAMACAO CORIGIDA ALTERADA ... - Galeno Alvarenga
DIGRAMACAO CORIGIDA ALTERADA ... - Galeno Alvarenga
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Brasileiros, Alerta!<br />
A Imbecilidade Cresce em<br />
Todo o País<br />
GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA<br />
www.galenoalvarenga.com.br<br />
Esse livro faz parte do acervo de publicações do Psiquiatra e Psicólogo<br />
<strong>Galeno</strong> <strong>Alvarenga</strong>. Disponibilizamos também a versão impressa, que<br />
pode ser adquirida através do site do autor.<br />
Visite www.galenoalvarenga.com.br e saiba mais sobre:<br />
Publicações do Autor<br />
Transtornos Mentais<br />
Testes Psicológicos<br />
Medicamentos<br />
Galeria de Pinturas de Pacientes<br />
Vídeos / Programas de TV com participação de <strong>Galeno</strong> <strong>Alvarenga</strong><br />
Tags: Comportamento / Condutas, Crenças antigas / Mitos / Superstições,<br />
Doenças Mentais (transtornos), Drogas / Medicamentos / Remédios, Educação e<br />
Conhecimento, Emoções Sentimentos Controle, Estresses Problemas e Adversidades,<br />
Família e Casamento, Festas populares e Lazeres, Informação Linguagem e<br />
comunicação, Livros Online Grátis, Livros Psicologia, Livros Psiquiatria, Pintura<br />
dos esquizofrênicos, Política: Políticos e Corrupção, Problemas Familiares, Sociedade:<br />
Valores e Cultura, Uso de Drogas (Consumo)
<strong>Galeno</strong> Procópio M. <strong>Alvarenga</strong><br />
BRASILEIROS, ALERTA!<br />
A IMBECILIDADE CRESCE EM TODO O PAÍS<br />
Belo Horizonte<br />
2009
COPyRIGHT © By GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA<br />
Supervisão Gráfica<br />
Sofia Lopes<br />
Edição Independente do Autor<br />
<strong>Galeno</strong> Procópio M. <strong>Alvarenga</strong><br />
Imagens capa e contracapa<br />
<strong>Galeno</strong> Procópio M. <strong>Alvarenga</strong><br />
Diagramação<br />
Marcos de Oliveira Lara<br />
Capa<br />
Max Guedes (Estagiário)<br />
Revisão<br />
Maria Isabel da Silva Lopes<br />
Impressão<br />
Sografe<br />
Contato c/ o Autor<br />
galenoalvarenga@terra.com.br<br />
www.galenoalvarenga.com.br<br />
<strong>Alvarenga</strong>, <strong>Galeno</strong> Procópio de Mendonça<br />
A473 Brasileiros, alerta! A imbecilidade cresce em<br />
todo país / <strong>Galeno</strong> Procópio de Mendonça<br />
<strong>Alvarenga</strong>. – Belo Horizonte: Ed. do autor, 2009.<br />
268 p.<br />
ISBN 978-85-907543-9-8<br />
1. Ensaios brasileiros. 2. Estupidez – Ensaios.<br />
I. Título.<br />
CDD: B869.45<br />
CDU: 869.0(81) – 4<br />
Elaborada por:<br />
Maria Aparecida Costa Duarte<br />
CRB/6-1047
AgrAdecimentoS<br />
Aos intelectuais terrestres que sonham ser<br />
sábios. O homem é idiota por natureza.<br />
A burrice atinge a todos os animais humanos,<br />
uns mais, outros menos, conforme as<br />
áreas do conhecimento.
SUmÁrio<br />
UM NOVO PRODUTO À VENDA: O SEMIANALFABETO .............. 9<br />
TELEVISÃO E BURRICE ..................................................... 17<br />
UM CONTO QUASE DE FADAS ............................................ 21<br />
TV E PESQUISAS DE OPINIÕES: VOCÊ DECIDE .................... 27<br />
DUAS CLASSES: CULTOS E INCULTOS ................................ 35<br />
SALVE NOSSO GOVERNANTE............................................. 37<br />
A LIBERDADE DOS JOVENS ............................................... 39<br />
NOSSA LIBERDADE E OUTROS PODERES ............................ 45<br />
COMO ERA VERDE MEU VALE ............................................ 49<br />
AS CONSTITUIÇÕES QUE PASSEI NA VIDA .......................... 55<br />
INTUIÇÃO, RAZÃO E JULGAMENTO MORAL .......................... 61<br />
BICHOS OU SERES HUMANOS? ......................................... 65<br />
COMPUTADOR E FERRADURA ............................................ 69<br />
O MODELO DA LATA DE LIXO ............................................ 75<br />
REFERENDO: UMA DECISÃO IMPOSSÍVEL ........................... 79<br />
A MULTIDÃO SOLITÁRIA ................................................... 83<br />
GUERRA, HERÓIS E INOCÊNCIA ........................................ 87<br />
OS MAIORAIS ................................................................. 91<br />
A FABRICAÇÃO DO HOMEM FORA-DE-SÉRIE ........................ 99<br />
O QUE DESEJAM AS PESSOAS? ....................................... 103<br />
HOMEM: ANIMAL CONTRADITÓRIO .................................. 107<br />
A VERDADE DE CADA UM ............................................... 113<br />
AFIRMAÇÕES DUVIDOSAS .............................................. 117<br />
A LOUCURA: FABRICAÇÃO DA NORMALIDADE ................... 121<br />
O VASTO MUNDO DAS DROGAS ....................................... 127<br />
MÉDICO X CLIENTE ....................................................... 131<br />
AS DOENÇAS E OS JARGÕES MÉDICOS ............................ 135
CONFISSÕES DE UMA MÉDICA ........................................ 139<br />
O DIFÍCIL ENCONTRO:MÉDICO E PACIENTE ...................... 145<br />
A PROPÓSITO DE UMA GRIPE .......................................... 147<br />
TRANSTORNO MÉDICO-PSIQUIÁTRICO OU FICÇÃO? ........... 153<br />
LOUCOS X SEM-TETO ..................................................... 163<br />
A TESTEMUNHA DO PONTO DE VISTA PSIQUIÁTRICO ......... 169<br />
DUAS VERTENTES ......................................................... 175<br />
PLACEBO, A PÍLULA DOURADA ........................................ 179<br />
AIDS: VOCÊ TEM MEDO DA DOENÇA OU DO DOENTE? ....... 183<br />
AIDS: O PâNICO ESTÁ SOLTO ......................................... 187<br />
COMO CONTROLAR OS ACONTECIMENTOS ....................... 191<br />
O PREÇO DE UMA ESCOLHA:ADEUS ÀS ILUSÕES ............... 195<br />
DINHEIRO, NOSSA ATUAL DEVOÇÃO ................................ 203<br />
SENHORES DO PODER ................................................... 207<br />
OS NARCISISTAS MODERNOS ......................................... 211<br />
OS NOVOS DEUSES ....................................................... 215<br />
DISCURSO: O TOQUE SUTIL DOS SONS ........................... 217<br />
O QUE SE ESCONDE POR TRÁS DOS SLOGANS? ................ 221<br />
QUANDO AS PALAVRAS MENTEM ..................................... 227<br />
O CONHECIMENTO E AS DIVERSAS LÍNGUAS .................... 231<br />
UM LUGAR AO SOL ........................................................ 237<br />
A MENSAGEM ................................................................ 241<br />
VIDENTES: A PROSTITUIÇÃO DAS PALAVRAS .................... 245<br />
ADIVINHOS: ESSES DESADAPTADOS ............................... 251<br />
FÉ: UM PODEROSO MEDICAMENTO .................................. 255<br />
A SANTA QUE FALA PORTUGUÊS ...................................... 261<br />
O PODER DO BOATO ...................................................... 265
Um noVo ProdUto À VendA:<br />
o SemiAnALFABeto<br />
O analfabeto aos poucos tende a desaparecer e com<br />
ele termina um ciclo da cultura popular. No seu lugar nasce<br />
seu sucessor mais próximo e imediato, um novo indivíduo,<br />
fabricado para ser um consumidor fanático. O analfabeto<br />
está sendo transformado em semianalfabeto, para alguns,<br />
cerca de 90% da população do nosso querido Brasil.<br />
Os dois têm pontos em comum, mas têm suas diferenças.<br />
Os primeiros, nossos antepassados, livres do<br />
domínio de seus atuais donos, vivendo mais isolados em<br />
seus grupos - ainda não existia a “aldeia global” - foram<br />
mais criativos, inventaram as ciências e as religiões, as<br />
pinturas, canções, escritas e estabeleceram os valores. Os<br />
semianalfabetos, ao contrário, nada criaram, seguem cabisbaixos<br />
seus donos.<br />
Estes, ainda que possam parecer atraentes por fora,<br />
são vazios por dentro. Uma vez promovidos a semialfabetizados,<br />
prenderam-se nas redes preparadas pelos que os<br />
ensinaram a ler e a escrever, tornando-os presas fáceis de<br />
serem manipulados pelas classes empresariais que ajudaram<br />
a criá-lo e que passaram a ser o tutor desse grupo.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 9
Hoje o semialfabetizado representa o principal cidadão-alvo<br />
do comércio, é o homem comum, o medíocre, o fácil de<br />
ser manipulado.<br />
No lugar da cultura popular criada pelos analfabetos,<br />
seu antecessor nada produziu. Não temos e nem teremos<br />
uma cultura do semianalfabeto, vai morrendo a cultura popular,<br />
talvez enlaçada com a cultura sofisticada.<br />
O grupo dos semialfabetizados vai, pouco a pouco,<br />
aumentando seu número. Fabricado aos milhares sem cuidado<br />
ou técnica apurada, dentro do modelo usado na fabricação<br />
dos chinelos de liga ou da lata de lixo, eles diferem,<br />
tanto do seu irmão analfabeto livre e mais reflexivo, como<br />
do outro, o culto, o acostumado a ler, construído duramente,<br />
um a um, com cuidado e dedicação. Apesar disso,<br />
os semialfabetizados estão alegres, sorriem, mostrando os<br />
dentes claros e brilhantes para seus proprietários. É uma<br />
felicidade ingênua, estranha e servil.<br />
Seus senhores, principalmente os políticos, sempre<br />
bem acompanhados e protegidos pelos empresários, conhecedores<br />
do fim dos seus produtos e dos investimentos<br />
feitos, manipulam cuidadosamente estes infelizes para<br />
alcançarem seus objetivos. Fornecem-lhes cartilhas para<br />
lerem, textos simples, de fácil compreensão, nada de complicado,<br />
propositadamente preparados para eles. Os textos<br />
fáceis, digeríveis na primeira passagem, carregados<br />
de noções falsas, têm como finalidade básica impedi-los<br />
de pensar por si, isto é, de usar suas mentes num programa<br />
de benefício próprio. Mas a presença dos livros, a ida<br />
às aulas, as amizades formadas nas escolas conseguem<br />
diverti-los, bem como mantê-los unidos. Entretanto, dada<br />
a simplicidade do estudo lecionado, na maioria das vezes<br />
por pessoas não-sofisticadas, eles se transformam em<br />
pessoas ainda mais incapazes de fazer uso da inteligência<br />
e crítica. Como robôs, aprendem a comportar-se em blo-<br />
10 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
cos, não mais como indivíduos, a pertencer a um certo<br />
partido político e votar num determinado candidato, a seguir<br />
a religião em moda, a comprar certas mercadorias, a<br />
defender certas ideias desconhecidas, escondidas e nunca<br />
acessíveis a eles.<br />
Estes pseudoalfabetizados foram construídos para seguirem<br />
os comandos, não para pensarem, jamais refletirem<br />
e perguntarem: “o que quero, o que devo fazer com<br />
minha curta vida?“. Orgulhosamente, de modo semelhante<br />
a outros animais, mais abaixo na escala zoológica, como<br />
cães, galos e lagartos, eles buscam o fundamental da vida<br />
animal: alimentar-se, procriar e ter sua toca para lhes dar<br />
segurança contra os predadores, que são, principalmente,<br />
os próprios dirigentes aliados a eles.<br />
Eles vivem quase que exclusivamente o momento<br />
presente, o “aqui e agora”, transmitidos com orgulho, enquanto<br />
seus proprietários, desejando vender aparelhos e<br />
ideias, planejam o futuro onde eles são os consumidores<br />
cegos. Eles respondem aos estímulos do meio ambiente<br />
de forma direta, sem intermediação de seu “Eu”, pois<br />
este foi bloqueado, encontra-se enferrujado, incapaz de<br />
ser usado.<br />
Não possuindo planos individuais próprios, estes indivíduos<br />
agem como certas espécies de animal: formigas,<br />
abelhas, cupins. O indivíduo separado existente dentro<br />
dele, com história própria, foi assimilado pelo grupal, pelo<br />
social, que é valorizado acima de tudo. Todos têm as mesmas<br />
ideias, os mesmos ideais, os mesmos instrumentais<br />
para chegarem onde supõem querer, as mesmas alegrias<br />
e tristezas, todos seguem os mesmos planos do grupo coeso.<br />
Não há dissidentes. Num programa de auditório é fácil<br />
verificar este comportamento: a pessoa escolhida para<br />
opinar na roleta da sorte, antes de decidir a resposta a escolher,<br />
sempre ouve o auditório. É a voz do grupo, do qual<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 11
ela faz parte, que decide; o grupo sentencia se ela deve<br />
parar de apostar e ganhar um prêmio menor, ou continuar<br />
e arriscar-se a perder tudo.<br />
Seus ouvidos, estão presos ao auditório, este lhe ordena,<br />
na ausência do chefe, o que deve fazer. Ela obedece<br />
servilmente, com naturalidade e sorridente, ao comando<br />
externo.<br />
Os semialfabetizados, iguais na conduta, têm, entretanto,<br />
diferenças em algumas características, que são exibidas<br />
com orgulho, tais como a impressão digital, o CPF,<br />
a rua e o número da residência, o modo de escrever a<br />
primeira letra do seu nome e ainda o modo de pentear o<br />
cabelo e de fazer a macarronada.<br />
Eles não possuem uma mente crítica individual, baseada<br />
na sua história pessoal diferente dos seus outros irmãos<br />
da mesma espécie. No seu ingênuo modo de pensar,<br />
ignorante da própria ignorância, este indivíduo, confiante<br />
ao se julgar, percebe-se como bem informado e capaz, pois<br />
lê determinadas revistas, por sinal muito instrutivas. Sua<br />
mente pouco trabalhada e quase sem ser usada, permitiulhe<br />
decifrar, orgulhosamente, as instruções de manejo de<br />
cartões de banco, de instrumentos do seu trabalho rotineiro,<br />
de ligar o aparelho de televisão, de ir aos restaurantes<br />
e comer com os talheres apropriados, de conhecer as<br />
roupas que estão na moda, de conhecer e viajar para os<br />
lugares “badalados”, de usar a nova cueca lançada, o perfume<br />
moderno, a nova aplicação bancária e muitas outras<br />
atrações sedutoras do mesmo gênero, que indicam informações<br />
importantes para se viver. Coitado!<br />
Tudo nesse mundo de Deus tem suas vantagens. Proibidos<br />
de pensar, os semialfabetizados não se sentem culpados<br />
por possuir uma mente quase nula. Estão tranquilos,<br />
talvez não sofram infartos, hipertensão arterial, úlceras e<br />
insônia, como ocorre com seus donos, sempre preocupados<br />
com os sucessos e insucessos dos planos.<br />
12 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Com pouca ou nenhuma vontade própria, impedidos<br />
de tomar decisões particulares, sem responsabilidade por<br />
suas ações, eles caminham, moribundos, para seu fim.<br />
Descartando o complicado, evitando aprofundar-se nas tarefas<br />
e soluções que exigem cadeias de raciocínios longas<br />
e tortuosas, eles vivem felizes na sua gaiola de bambu,<br />
onde existe cama, sexo e comida, desfrutando da liberdade<br />
imaginada e que eles não têm.<br />
Estão sempre esperando alguém: “as autoridades”,<br />
os mais “inteligentes”, os espertos pensarem e resolverem<br />
seus problemas, decidirem por eles. Sabem, como princípio<br />
fundamental, que alguém é capaz de pensar melhor<br />
do que eles, por isso estão sempre pedindo ajuda, para<br />
verificar se seu cabelo está bem, se aquele batom recentemente<br />
lançado realmente é o melhor para ela, se deve fazer<br />
aquele curso ou o outro. Como sua autoestima é baixa,<br />
eles amam mais o próximo do que a si mesmos.<br />
Seu amor romântico é imbecil. Para este grupo,<br />
“amar” significa a posse da pessoa amada. Quando estes<br />
indivíduos dizem “eu te amo”, a frase indica ”eu preciso de<br />
você, sem você minha vida será uma desgraça, pois não<br />
tenho mais ninguém para pensar por mim, para ajudarme,<br />
encostar-me, estou perdido, nada tenho para dar, preciso<br />
receber seu apoio e sua piedade”.<br />
No amor este grupo nada oferece, nada dá, exige do outro<br />
responsabilidade por sua vida, que eles não têm. Mas chamam<br />
tudo isto de “amor”, de “gostar” muito do outro. Quando<br />
percebem que não podem receber do amado o apoio desejado,<br />
o amor que ele próprio não tem dentro de si, que terá<br />
de dar algo que ele jamais pensou em possuir, este indivíduo<br />
retira-se frustrado por não ter sido amado. Na sua mente ele<br />
amou muito, deu muito de si: deu o nada para o outro.<br />
Este grupo tem como lema fundamental: “É preciso<br />
aproveitar a vida”. Tal afirmativa significa: distrair-se o<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 13
mais que puder, esquecer que está vivo, que não comanda<br />
suas ações, que não manda na sua vida. Eles precisam se<br />
divertir, continuamente, com as brincadeiras fornecidas e<br />
preparadas pelo mundo externo a ele. Ler o livro mais vendido,<br />
ir ao parque no domingo, dançar no baile dos idosos<br />
ou do carnaval, comprar o bilhete da loto, ir ao jogo ou<br />
vê-lo na TV. Estas diversões são organizadas com precisão<br />
matemática pelos senhores do poder, governo e empresários,<br />
de modo a dar tudo certo. As autoridades sabem o<br />
que é melhor para ele, mais do que ele próprio, pois lhe<br />
faltam os instrumentais capazes de fornecer um retrato de<br />
si mesmo, de se autoexaminar com alguma precisão, seu<br />
diagnóstico é sempre dado pelos de fora.<br />
Lamentável e criminosamente sua mente foi lacrada,<br />
muito bem fechada ainda muito cedo, impedindo a invasão<br />
de incômodas ideias capazes de fazerem desmoronar crenças<br />
firmes, pilares vindos de longe, infelizmente muitos<br />
deles já podres. Nada de ideias novas, principalmente as<br />
diferentes das costumeiras, das antigas e repetidas pelas<br />
suas sábias mães virtuosas e dignas de crédito. Estes indivíduos<br />
fogem como podem da intromissão de teorias contrárias<br />
às suas, que poderiam desmoronar, abruptamente,<br />
tudo o acreditado, destruir para sempre seu frágil sistema<br />
de pensamentos mal arranjados, sua instável estrutura<br />
mental mal elaborada e mal pregada em estruturas tortas,<br />
em princípios duvidosos, muitas vezes mágicos.<br />
Apoiado em fundamentos adquiridos na cultura onde<br />
foi educado, sem dúvidas, o semianalfabeto recusa submeter-se<br />
a investigações internas, a reflexões acerca da validade<br />
ou não dos pilares que deram origem ao seu raciocínio.<br />
Sua segurança está fora dele, apoia-se nos outros - “o<br />
presidente falou”, “meu chefe me disse”, “li no jornal” - nos<br />
proprietários de suas ideias, ou mesmo nos seus amigos<br />
de infortúnios ludibriados pelas mesmas crenças: - “tenho<br />
14 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
certeza disso, todos nós pensamos assim”. Como ele está<br />
bem acompanhado, pela maioria da população, confiantes<br />
no falso princípio de que a “maioria tem razão”, ou que “a<br />
voz do povo é a voz de Deus”, o semi-analfabeto sente-se<br />
protegido, confortável e até feliz. Não perderá seu precioso<br />
tempo com bobagens, tais como refletir acerca de si ou<br />
do mundo em que vive. Precisa, sim, divertir-se, assistir à<br />
novela das oito. Semimorto como indivíduo, vivendo apenas<br />
como espécie, o semianalfabeto não tem forças para<br />
examinar se sua vida vale a pena ser vivida como está, ou<br />
se deve ser destruída, mudada, para construir outra mais<br />
digna do homem que ele poderá vir a ser.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 15
teLeViSÃo e BUrrice<br />
Muitos pensam que alguns programas da televisão<br />
tornam as pessoas idiotas. Nada mais errado. A TV jamais<br />
conseguiu transformar um cão, uma pulga, uma pedra ou<br />
até mesmo um cavalo num burro. Também não imbecilizou<br />
quem não a vê. Para que um evento como esse aconteça,<br />
é necessário que certos comportamentos existam nos dois<br />
lados. Sempre há necessidade de um certo compromisso<br />
entre as duas partes envolvidas, para que a consequência<br />
ocorra. Em outras palavras, para que haja o emburrecimento<br />
do telespectador, é necessário que haja também<br />
uma prontidão, talvez um desejo do telespectador para<br />
facilitar a tarefa da TV. Não é possível o poder ser exercido<br />
através apenas de um lado, isto é, da TV.<br />
Por outro lado, também sempre se acreditou que os<br />
meios de comunicação, principalmente a TV, têm servido<br />
de instrumento de domínio político. Antigamente acusaram<br />
certos livros como perigosos. A idéia do efeito negativo da<br />
TV sobre a mente pressupõe a existência de um telespectador<br />
de mente vazia, um folha de papel em branco, à<br />
mercê do poder da TV. Esta ideia é falsa. A “página” que<br />
assiste TV já foi marcada ou rascunhada muito antes.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 17
Alguns falam que a TV difunde opiniões e anúncios<br />
enganadores e, por isso mesmo, gera uma consciência<br />
falsa.<br />
Os defensores da mente dos telespectadores acreditam<br />
que a TV, ao criar um deslumbramento na pessoa,<br />
penetra subtilmente na mente do distraído telespectador e<br />
aí coloca o que quiser. Ora, não é bem assim.<br />
Como é sabido, durante a história do homem, os pais,<br />
a igreja, os professores, os companheiros e outros educadores<br />
difundiram condutas, ideias e princípios na mente<br />
dos educandos, desde o nascimento. Muitos desses fundamentos,<br />
que são falsos, apesar disso continuam a ser<br />
ensinados como certos. São estes princípios que formam<br />
a base da mente que permitem a entrada, a aceitação e a<br />
assimilação das informações vindas de fora, da TV, supostamente<br />
novas. Sem esta base adquirida geralmente no<br />
meio familiar e dos companheiros, a informação “nociva”<br />
fatalmente seria rejeitada. Não é fácil para ninguém se livrar<br />
de ideias errôneas postas cedo na vida, mesmo quando<br />
elas trazem sofrimento para seu possuidor.<br />
A ideia do poder da TV sobre as pessoas utiliza um<br />
fundamento equivocado. Acreditou-se que o ser humano é<br />
passivo, e não ativo, diante dos estímulos do meio, e que<br />
esses atingem uma mente sem nada. Na verdade, nossa<br />
mente filtra e seleciona nossas percepções. Todos telespectadores,<br />
sem exceção, têm uma participação ativa na<br />
escolha e na interpretação do que é transmitido. Em outras<br />
palavras, a “vítima”, o telespectador, antes de ligar<br />
o aparelho de TV, já tem sua mente pronta para receber<br />
as informações carregadas de mitos, crendices, desejos e<br />
sonhos. Qualquer pessoa tem ideias e especulações mais<br />
ou menos adequadas acerca do início do mundo, do que as<br />
pessoas estão fazendo aqui, do amor, da justiça, das relações<br />
entre as pessoas, da honestidade, etc.<br />
18 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Junto a estas diversas suposições, ajuntam-se outras<br />
crenças: dos poderes mágicos dos cristais, duendes, gnomos,<br />
santos, espíritos, almas de outro mundo e outros habitantes<br />
fantasmagóricos que estão inculcados nas mentes<br />
confusas.<br />
Numa cabeça assim, previamente bem preparada<br />
pela educação, fundamentada numa visão de um mundo<br />
mágico, não fica difícil, para os embusteiros e charlatães,<br />
introduzir novelas e programas de mau gosto, discursos<br />
políticos idiotas, conselhos enganadores, condutas e tratamentos<br />
estranhos ou qualquer outro programa absurdamente<br />
estranho e grosseiro.<br />
As televisões que mostram essas programações trabalham<br />
de mãos dadas com essas cabeças modeladas pelos<br />
pais ou outros educadores. Só assim elas são capazes<br />
de assimilar e apreciar as bobagens ali mostradas. A TV,<br />
portanto, nada mais faz do que manter o que foi plantado<br />
antes. Ela nada acrescenta ou modifica à mente da maioria<br />
dos seus usuários. Seus programas são preparados, para<br />
manter como estão, as ideias e ilusões existentes na mente<br />
do pobre telespectador.<br />
Esses encantamentos são oferecidos não só pelas TVs,<br />
mas também por outros usuários da ingenuidade humana,<br />
dos atraídos pelo mágico. Livros, geralmente os mais vendidos,<br />
relatam métodos fáceis de viver melhor, horóscopos<br />
nos mostram o futuro, talismãs nos protegem, fórmulas<br />
fáceis são oferecidas para tornarem bonitos os feios, terapias<br />
espetaculares são oferecidas para esses consumidores<br />
de sonhos. Ora, no meio de tanta fantasia (burrice), fica<br />
fácil a TV introduzir seus produtos: “o sabor que refresca”,<br />
“torne sua pele natural” e muito mais...<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 19
Um conto QUASe de FAdAS<br />
Há mais de um ano minha ajudante largou-me - não<br />
gosto do termo empregada doméstica. Fui obrigado a arrumar<br />
uma outra que também não deu certo. Mais outra,<br />
outra mais, e elas foram passando... As idades variavam<br />
de 20 a 30 anos, portanto, todas jovens. Todas, também,<br />
haviam terminado o segundo grau em colégios públicos.<br />
Tinham boa caligrafia, melhor, e muito, do que a minha,<br />
conversavam bem, quase sem erros de concordância graves<br />
e tinham uma boa pronúncia.<br />
Contando com minha grande experiência nesse campo,<br />
como curioso e chato, alguns fatos passaram a chamar<br />
minha atenção com respeito a esse grupo. Como a ajudante<br />
antiga ficou muitos anos na minha casa, eu nada<br />
mais percebia acerca de suas ações e ideias. Tudo passou<br />
a ser esperado e natural. Houve uma tolerância. Acostumamo-nos<br />
com os que estão muito perto e, assim, ficamos<br />
incapazes de observá-los com atenção. É um barulho<br />
continuado, sempre na mesma altura e timbre, sem que a<br />
gente note sua presença. Deixei de ouvir, observar e julgar<br />
minha ex- ajudante. Ela foi, aos poucos, desaparecendo da<br />
minha consciência e, pior, de meu interesse.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 21
As que foram contratadas, ao contrário, uma a uma,<br />
motivaram-me e excitaram-me: tudo era novidade. Passei<br />
a observar os olhos e o nariz, os cabelos e os penteados,<br />
as frases, o corpo, o andar, o modo de se alimentar, as<br />
crenças, as roupas, os perfumes, os casos – sempre semelhantes<br />
com respeito aos namorados - e a família. Interessei-me<br />
também pela vida e relações de cada uma delas:<br />
ouvia seus planos e fracassos. Era como se assistisse a um<br />
novo filme, lesse um romance nunca lido. Todo começo<br />
tem seu encanto, como disse o poeta. Toda novidade estimula<br />
nossa atenção. Mas, o que começa, acaba...<br />
Animado pela experiência, imaginei trocar de ajudante<br />
a cada seis meses, pois, como pensei, assim eu ficaria<br />
sempre animado com as novidades. Verifiquei, fazendo<br />
diversas análises pormenorizadas e criteriosas, que seis<br />
meses depois, o interesse e a curiosidade começam a diminuir.<br />
Não sei se esse desinteresse é igual para todos<br />
ou se varia com cada observador e com cada ajudante.<br />
Um amigo meu, que já se casou diversas vezes, contoume<br />
algo semelhante. Para ele, quando moramos por muito<br />
tempo com uma mesma pessoa – até quando temos um<br />
mesmo amigo por um longo período – não temos mais o<br />
que conversar. Tudo já foi falado, geralmente o mesmo<br />
caso foi reprisado diversas vezes, e, quase sempre, “não<br />
vale a pena ouvir de novo”.<br />
Entretanto, quando arrumamos uma nova companhia,<br />
segundo ele, podemos contar, sem medo de estar<br />
repetindo, quando e onde nascemos, as brigas antigas e<br />
atuais, como é a família, o primeiro emprego, as namoradas<br />
existentes, os cursos, as vitórias e derrotas, etc. Nossa<br />
amiga, namorada ou nova esposa, de modo semelhante,<br />
contaria os casos nunca ouvidos e a conversa ficaria interessante<br />
e poderia durar algum tempo. Achei boa a ideia e<br />
tenho pensado nela.<br />
22 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Todos nós, à medida que vamos convivendo com<br />
pessoas antes desconhecidas, querendo ou não, passamos<br />
a observá-las. Aos poucos, após saber seu nome,<br />
onde nasceu, em que lugar trabalhou, se sabe fazer arroz<br />
solto e bife mal passado, descobrimos, mais devagar, é<br />
claro, que cada uma delas tem certas formas de agir e de<br />
pensar que se repetem, ou seja, apresentam um padrão<br />
que pouco muda, que inclui uma grande parte das ações e<br />
emoções, fáceis de serem detectadas e entendidas.<br />
Em resumo: apresentam uma redundância, sinais<br />
já conhecidos. Assim, elas, como todos nós, apresentam<br />
certas maneiras constantes de interpretar, de se emocionar<br />
e de classificar as situações agradáveis e penosas<br />
que enfrentam. Aos poucos aprendemos como cada uma<br />
“joga” o jogo das relações humanas, quais lances são os<br />
mais frequentes, diante de quais situações as diversas jogadas<br />
aparecem, as estratégias usadas, as intenções veladas<br />
e as explicitadas, quais são os valores fundamentais<br />
e os termos básicos que dão nascimentos às principais<br />
ideias. Os padrões percebidos, de cada uma delas, são<br />
os mesmos que emergem quando colocamos um observador,<br />
que jamais viu um jogo de xadrez, diante deste.<br />
Ele, ao assistir vários jogos, vai descobrindo que cada<br />
peça possui alguns, e somente alguns, movimentos possíveis,<br />
que certas peças são mais importantes que outras,<br />
que uma delas, uma vez perdida, leva o jogo a terminar,<br />
etc. Do mesmo modo, se prestarmos atenção aos pontoschaves,<br />
às repetições, às reações emocionais diante disso<br />
ou daquilo, nós formamos uma ideia bastante exata do<br />
comportamento da ajudante quanto à economia, amor,<br />
religião, política, às vezes melhor do que a que ela tem<br />
de si mesma.<br />
Observando o tabuleiro de xadrez das ajudantes, ou<br />
mais exatamente, examinando as ajudantes no meu ta-<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 23
uleiro de xadrez, notei que certas jogadas se repetiam,<br />
certas palavras eram mais pronunciadas, certas emoções<br />
mais comuns, certas críticas e elogios eram mais frequentes.<br />
Até aí nada demais, assim pensará o leitor que chegou<br />
a esse ponto da crônica. Mas fui notando também, e<br />
é isso que quero contar, que todas elas tinham uma vida<br />
mais virtual que real. Vou explicar melhor, pedindo desculpas<br />
por estar generalizando muito. Todas elas, apesar<br />
da boa saúde mental e física, jamais tiveram poder econômico<br />
alto, status social elevado, beleza tipo Miss Brasil,<br />
ou mesmo tipo Miss Estados Unidos, inteligência e cultura<br />
de chamar a atenção de outros e capacidade de concorrer<br />
a concursos e vestibulares de altíssima dificuldade. Todas<br />
elas faziam parte desse exército que constitui a grande<br />
parte da população do planeta, pessoas simples e dedicadas<br />
e geralmente exploradas.<br />
A maioria - não sei bem se isso é certo - foi empurrada<br />
pelo grupo do meio, dos colocados no centro, para<br />
a margem da sociedade, quase sem possibilidade de alcançar<br />
uma posição de respeitabilidade pelos valores da<br />
sociedade em que vivemos: beleza, dinheiro, habilidades<br />
sociais e poder valorizados pela nossa cultura.<br />
Vamos ao que interessa, pois acho que fui longe demais.<br />
Todas elas, apesar de estarem colocadas pela população<br />
mais poderosa e cruel, empurradas pela sociedade<br />
para o extremo inferior, imaginam, segundo minhas observações,<br />
casar-se com rapazes lindos e maravilhosos -<br />
quase príncipes - jovens, ricos, poderosos, de preferência<br />
artistas bastantes conhecidos e que aparecem constantemente<br />
nas TVs e, engasgados, dão adeusinhos a elas.<br />
Elas foram bem treinadas e colonizadas, muito cedo,<br />
pelas palavras e imagens da mídia, principalmente novelas<br />
e músicas “caipiras”.<br />
24 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
A indústria do espírito as possuiu e as engravidou. E<br />
deu no que deu. A técnica, apontada para o intelecto da<br />
mulher simples, penetrou fundo na mente moldável das<br />
ajudantes desse Brasil, depositando ali, naquele campo<br />
fértil e ingênuo, mercadorias ditas culturais: músicas, palavras<br />
apropriadas com grande conotação emocional (amor<br />
ardente e separação trágica, casamento, família, mãe, jovem,<br />
passeio, etc.), formas padronizadas de relacionar-se<br />
com os namorados (tipos e técnicas de dar beijos, trejeitos,<br />
lugares para passear, transar, roupas da moda, etc.).<br />
Deixei de propósito um espaço especial para os cabelos,<br />
eles merecem isso. Os cabelos foram eleitos os atributos<br />
físicos preferenciais dessas jovens trabalhadoras. Tornaram-se<br />
preciosidades para todas as estudadas na minha<br />
amostragem. Elas seguram os cabelos o tempo todo, esses<br />
são jogados para um e outro lado, levados para frente da<br />
testa, depois para trás. As mesmas frases acerca dos cabelos<br />
são ouvidas: “Preciso clareá-lo um pouco”, “Vou deixar<br />
crescer as pontas”, “Agora vou cortar um pouco, assim fica<br />
mais adaptado ao formato do meu rosto”, “Preciso deixá-lo<br />
conforme a moda que vi na revista desse verão”, “Agora<br />
só uso o xampu X e o condicionador Y, são caros, mas<br />
fantásticos, deixam meu cabelo lindo e solto”. Os cabelos<br />
são arrumados, penteados, pintados, cortados, alongados,<br />
alisados, ondulados, desarrumados, conforme a moda tirânica<br />
das revistas. O pelo do homem primitivo, aos poucos,<br />
tornou-se cabelo, transformando-se na parte mais importante<br />
do corpo, muito mais do que o intelecto.<br />
Gasta-se um tempo imenso com os cabelos: molhar,<br />
ensaboar, condicionar, pintar, enxugar, secar, por rolinhos,<br />
tirá-los, pentear, etc.<br />
Mas tem mais, tirei algumas outras conclusões com<br />
minha pequena amostra: notei que todas ajudantes foram<br />
inoculadas pelos vírus dos amores romanceados, isto é, do<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 25
amor existente nos filmes, novelas e romances adocicados:<br />
um amor poderoso, que luta e vence tudo. Lindo! Os<br />
canais de informação desenvolveram, projetaram, invadiram<br />
e dominaram todas as áreas culturais clássicas, religiosas,<br />
humanistas e, finalmente, destruiu o que restava<br />
das culturas nacional e regionais.<br />
Todas minhas ajudantes nasceram e foram criadas<br />
em pequenas cidades do interior de Minas. Todas, quando<br />
lá moravam, possuíam, além de um nome, uma identidade<br />
própria e adequada ao meio ambiente que as cercava.<br />
Usavam maneiras de raciocinar, emocionar-se, resolver<br />
problemas e, também, palavras do seu ambiente sociocultural<br />
ou do seu ninho. Nas grandes cidades, todas elas se<br />
metamorfosearam, tornaram-se, sem perceberem, massas<br />
sociais. O que fazer? Nada?<br />
26 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
tV e PeSQUiSAS de oPiniÕeS:<br />
VocÊ decide<br />
Todos sabem que a compreensão de afirmações simples<br />
exige basicamente uma proposição com um sujeito e<br />
um predicado. O sujeito refere-se a um exemplar específico<br />
ou a um ou mais membros de uma categoria (José, no<br />
primeiro caso, um médico ou os médicos, os livros, etc., no<br />
segundo). O predicado pode se referir a uma ação específica<br />
(atendeu um paciente, apresentou um programa de<br />
auditório), ou a uma relação entre o sujeito e um atributo<br />
dele (é gordo, tem o cabelo preto).<br />
A frase “um ator apresentou um programa” exige mais<br />
dificuldade e também maior tempo para ser assimilada e<br />
compreendida do que “Sílvio Santos apresentou um programa”.<br />
Nesse último caso, há uma ativação de imagens,<br />
noções ou modelos já formados e conhecidos na mente do<br />
ouvinte, portanto mais fáceis de serem ativados. Ficará<br />
mais difícil ainda assimilar a afirmativa: “um gato apresentou<br />
um programa”. Tente, meu caro leitor, imaginar o<br />
que essa proposição quer informar. É melhor lembrar de<br />
“Ratinho”. Por isso mesmo é difícil e chato conversar com<br />
intelectuais, pois sua fala dificilmente ativa algum fato já<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 27
experimentado ou visto por nós. O mundo deles não é o<br />
meu, talvez não seja também o seu. Tudo indica que as<br />
afirmações repetidas são mais fáceis de serem julgadas e,<br />
além disso, acreditamos mais nelas, pela repetição, do que<br />
as ouvidas ou lidas pela primeira vez.<br />
A compreensão de uma informação utiliza-se do lido,<br />
ouvido ou experimentado. O estoque de informações existentes<br />
em cada mente servirá de base para se fazer novos<br />
julgamentos, a probabilidade de um acontecimento ocorrer,<br />
emitir qualquer opinião sobre o assunto X ou Y. Assim,<br />
interpretamos a frase “João é mau”, ou “Maria é simpática”,<br />
em função de modelos ou ideias que possuímos, aprendidas<br />
anteriormente.<br />
Serão elas que servirão de “processadores” para a informação<br />
recebida. Por isso mesmo, fica difícil, ou impossível,<br />
assimilarmos uma frase ou imagem: “Hitler e Stalin<br />
amavam as crianças e os pássaros”. Não temos processadores<br />
mentais para isso.<br />
ACONTECIMENTOS FAMILIARES E NÃO-FAMILIARES.<br />
A descrição dos eventos que ouvimos, na sua maioria,<br />
se constitui de situações familiares e, por isso mesmo,<br />
fáceis de serem entendidas, também fáceis de serem esquecidas,<br />
como a que servirá de exemplo: “Na noite de<br />
sexta-feira, fui ao restaurante Luar do Inferno. Lá, pedi um<br />
bife com batatas e um copo de vinho. Terminei, veio a conta,<br />
paguei e saí”. Todos os fatos são comuns, talvez o nome<br />
do restaurante possa ser novo. Poderiam ter ocorrido fatos<br />
mais excitantes: “encontrei um conhecido..., discutimos...,<br />
ele ficou nervoso, pegou o garfo, avançou, etc.” Nessa última<br />
descrição, possivelmente, o ouvinte ficará um pouco<br />
mais curioso com a cena mostrada, podendo retê-la um<br />
pouco mais. Além disso, ao ouvir a narrativa, talvez se<br />
lembre de fatos e emoções semelhantes já vividas.<br />
28 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Uma premissa fundamental para a informação é que<br />
ela deve fornecer para o receptor algum conhecimento que<br />
ele ainda não possuía. Deve, ainda, convencê-lo de ser<br />
verdadeira. Nada mais chato do que ouvir uma “informação”<br />
conhecida:<br />
— “Os atleticanos odeiam os cruzeirenses”, ou seja,<br />
ouvir uma não-informação.<br />
Outro aspecto importante: as pessoas são mais facilmente<br />
influenciadas por informações que permitem a elas,<br />
sem dificuldade, construírem uma ideia, imagem ou modelo<br />
concreto do acontecimento que está sendo descrito.<br />
As ideias ou padrões mais utilizados pelas pessoas consistem<br />
em representações mentais de situações, envolvendo<br />
pessoas e acontecimentos particulares e ou concretos. Os<br />
modelos mais utilizados podem ser formados de diversas<br />
maneiras: devido a experiências diretas, por ouvirmos relatos<br />
de outras pessoas, lendo jornais, revistas, etc. e, por<br />
último, assistindo TVs.<br />
Segundo as estatísticas, um americano médio vê 4<br />
horas de TV por dia. Como foi dito, adquirimos modelos do<br />
mundo de diversos modos, um deles é quando assistirmos<br />
TVs. Portanto, muitas de nossas ideias a respeito da moda,<br />
da conduta sexual, da educação de crianças, acerca da ciência,<br />
etc., são formadas através dessa “leitura” fácil e preguiçosa<br />
que é a TV. Lamentavelmente, os modelos observados,<br />
aprendidos, incorporados e utilizados pelo indivíduo<br />
nas televisões, frequentemente baseiam-se em comportamentos<br />
de pessoas fictícias ou raras, vivendo acontecimentos<br />
pouco prováveis e em situações não-comuns. Por tudo<br />
isso, podemos supor que o modo de enxergar e lidar com<br />
o mundo, do americano médio, ao incorporar suas ideias<br />
básicas com os ensinamentos da TV, assenta-se em fundamentos<br />
falsos ou não-usuais. Desse modo, ele irá compreender<br />
ou assimilar os fatos concretos e reais do mundo<br />
através de estacas podres e fincadas no lamaçal.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 29
Como compreendemos os fatos, e nos expressamos<br />
conforme os modelos de condutas existentes e armazenados<br />
em nossa mente, e como muitos de nossos modelos<br />
situacionais são formados através de programas de auditório<br />
do Gugu, Leão, Faustão e muitos outros, bem como das<br />
novelas de TV, podemos compreender como anda a mente<br />
do telespectador fanático e como funciona o que tem sido<br />
vulgarmente chamada de “formadora de opiniões”.<br />
Como se sabe, quase a totalidade dos programas de<br />
TV tem como meta o seguinte: um patrocinador, uma audiência,<br />
muita movimentação e provocação de emoções.<br />
Para que se cumpra esse objetivo, enfatizam-se inúmeras<br />
“ficções” sensacionalistas e teatrais. O ouvinte distraído,<br />
tendo sua mente preparada para assimilar o que está sendo<br />
exibido, com o programa incorpora, lentamente, essas<br />
ideias. Elas penetram sorrateiramente: os costumes, o<br />
modo de se expressar, o jeito teatral, os cabelos, as roupas,<br />
os namoros, a forma de beijar e tudo mais visto na<br />
magnífica TV.<br />
Mais tarde, as mesmas TVs, apostando na plasticidade<br />
da mente já semiformada, imprimem na mente plástica<br />
do telespectador julgamentos e valores para eventos e fatos,<br />
parâmetros para julgá-los, executa suas “pesquisas”<br />
de opiniões. Nestas, o telespectador inconsciente, quase<br />
dormindo, é perguntado para “estimar as taxas de crimes<br />
no Brasil”, “quem é mais inteligente, se o homem ou a<br />
mulher”, “quem fez o gol mais bonito”, “quem deverá ser<br />
escalado”, etc.<br />
Ora, o respondedor, como um cão bem ensinado, não<br />
mais rosnando, soltando gotas de saliva, irá responder utilizando-se<br />
das “informações” ou “conhecimento” ditado e<br />
inoculado anteriormente pelos senhores do poder e dos programas<br />
preferidos: jogos, novelas, pegadinhas, etc., isto é,<br />
os mesmos que fazem a “pesquisa de opinião” do povo.<br />
30 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
O leitor deve lembrar que a mente do telespectador ao<br />
assistir a TV já está, na sua maioria, pronta para assimilar<br />
e adotar as infiltrações dos programas. Mais tarde, feliz, o<br />
telespectador e seu repórter preferido comemoram o resultado<br />
das pesquisas de “opiniões”. O que o telespectador<br />
responde - nos Ibopes da vida – a perguntas tais como:<br />
“você decide”, “se você é a favor disque...”, “em quem você<br />
votaria se a eleição fosse hoje”, “sua opinião sobre o novo<br />
presidente”, nada mais é do que a opinião mais ouvida,<br />
mais pronunciada pelos atores, locutores mais simpáticos<br />
e bonitos, pelas TVs, jornais e rádios mais ouvidos, vistos,<br />
lidos e queridos e, também, dos companheiros do telespectador<br />
que seguem o mesmo tipo de vida.<br />
Vou lhes contar um caso. Há alguns anos, antes da<br />
eleição do F. Collor, numa tarde, eu estava no barbeiro.<br />
Num certo momento do papo, perguntei a ele - um ilustre<br />
senhor de cabelos brancos - em quem iria votar. Ele ficou<br />
sério, compenetrado. Demorou um pouco e, de repente,<br />
dando uma de pensador profundo, respondeu-me num tom<br />
de voz baixo, ao pé do ouvido, quase inaudível: “Doutor,<br />
estão dizendo aí, TVs e rádios, que Collor vai ganhar. Vou<br />
votar nele”. Ele mostrou o discutido acima: o voto no possível<br />
ganhador, segundo os orientados pelos rumores...<br />
As TVs, lançando certo tipo de notícia e não outras, ou<br />
seja, informando algumas áreas e não informando outras<br />
- o modo de falar em público, de alourar os cabelos das<br />
morenas e mulatas, mais recentemente das mais “idosas”,<br />
de se vestir e agir, etc. - levam as pessoas que a veem, a<br />
imaginar que o costume, o lazer, a compra a crédito e os<br />
costumes de modo geral mostrados são os certos para todas<br />
as pessoas, em todos os lugares. Nada mais absurdo!<br />
Lamentavelmente, muitos só têm a TV como fonte<br />
de informação e amigos que assistem a mesma TV. Nesse<br />
caso as informações só são transmitidas por essas fontes:<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 31
TV, amigos e familiares que assistem os mesmos programas.<br />
Existindo apenas um único professor, a maneira de<br />
pensar, avaliar e concluir desse infeliz telespectador, diante<br />
das perguntas feitas nas pesquisas das TVs, fatalmente<br />
será a ensinada nessas “escolas” conforme as receitas e<br />
modas passageiras transmitidas. O telespectador, animado,<br />
não percebe que vomita o alimento deteriorado doado<br />
pela TV para seu organismo submisso e complacente,<br />
bem preparado para engolir todo e qualquer lixo. Solitário,<br />
cansado e corrompido, mais tarde, deslizando na sua<br />
poltrona desbotada e rasgada, exalta-se satisfeito por ter<br />
“opinado” o que todos opinaram. Sorri por ter contribuído<br />
para a “pesquisa”, principalmente, porque sua avaliação<br />
foi a “certa”, ou seja, estava de acordo com a maioria dos<br />
seus iguais, como disse solenemente meu barbeiro.<br />
Algumas vezes assisti a um programa de TV que finge<br />
ser sério: “O Globo Repórter”. Estava curioso acerca<br />
de certo assunto anunciado. Pude perceber, na área que<br />
conheço um pouco, que inúmeras “informações” fornecidas<br />
estavam erradas, outras enfatizavam aspectos de<br />
pouca ou nenhuma importância em detrimento de outras<br />
e, muitas vezes, anunciava-se uma “grande e moderna<br />
descoberta da ciência” que eu tinha lido há vinte anos<br />
atrás. Para meu azar, muitos clientes amigos e interessados<br />
no meu conhecimento, telefonavam-me ou escreviam-me,<br />
antes ou depois do programa, para comunicarme<br />
os “novos dados científicos” que foram transmitidos<br />
em “primeira mão”.<br />
Já recebi de clientes recortes de jornais e de revistas<br />
leigas, descrevendo artigos mal entendidos pelo repórter<br />
articulista. Logicamente, se ele não entendeu o assunto<br />
que lera, jamais poderia escrevê-lo adequadamente. Os<br />
artigos recebidos continham informações confusas e erradas<br />
acerca de novos tratamentos para a esquizofrenia,<br />
32 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
depressão, ansiedade, doença de pânico, etc... O médico<br />
ou o leigo, que imagina aprender através dessa fonte<br />
de informação, estará redondamente enganado e perdido<br />
nesse atoleiro.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 33
dUAS cLASSeS: cULtoS e incULtoS<br />
A lei proíbe a segregação racial, entretanto a segregação<br />
cultural ocorre em todo o mundo e ninguém reclama<br />
contra ela. Poucos a percebem, ou talvez não desejem vêla.<br />
Assistimos, continuamente, à formação de grupos segregados<br />
quanto ao nível e profundidade dos conhecimentos<br />
adquiridos. Com este desnível, cada grupo apresenta<br />
sensibilidade diferente quanto aos estímulos e acontecimentos<br />
do mundo. A divisão intelectual separa os indivíduos<br />
de forma semelhante à existente com respeito às<br />
posses materiais.<br />
Para indicar melhor a separação entre as castas, certas<br />
cerimônias são usadas pelos diferentes grupos. Alguns realizam<br />
reuniões ou festividades semanais ou mensais, fazendo<br />
uso de roupas especiais, onde apenas entram os “irmãos”,<br />
outros grupos têm sua própria imprensa, jornais e revistas<br />
especializadas, sua linguagem e jargões como a Associação<br />
Médica, a dos Engenheiros, do Banco do Brasil, dos Gays,<br />
das Mulheres Nuas, da Agricultura, etc. Além disso, excursões<br />
e passeios são organizados e adaptados para as pessoas<br />
do grupo. Até as praias do país tem sido divididas conforme<br />
as classes: média, rica, dos artistas e dos farofeiros.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 35
Para aumentar ainda mais a separação, cada grupo<br />
processa, assimila e expressa as informações do meio<br />
através de conhecimentos e raciocínios diferentes.<br />
De outro modo, as premissas ou suposições básicas<br />
com que um grupo raciocina, bem como as formas de atribuir<br />
causalidade aos acontecimentos, diferem frontalmente<br />
entre os cultos e incultos.<br />
Um pequeno grupo raciocina seguindo as normas da<br />
lógica formal, já o grande grupo usa e abusa do antropomorfismo,<br />
do animismo e do pensamento mágico para<br />
compreender e explicar os acontecimentos. O resultado<br />
prático disso é que os incultos falham mais nas previsões<br />
dos acontecimentos. A “lógica” dos incultos, afastada das<br />
regras tradicionais, extrai conclusões esdrúxulas, liga informações<br />
que jamais estiveram associadas, como disse<br />
minha faxineira: “Maria é esperta, porque nasceu em São<br />
Paulo”.<br />
No exercício da profissão médica nota-se facilmente<br />
essa diferença ao examinar um paciente de um grupo e<br />
outro. A maneira de descrever o aparecimento da doença,<br />
sua evolução, bem como os possíveis fatores a ela associados,<br />
ou seja, suas possíveis “causas”, são descritas de<br />
forma totalmente diversa pelos dois grupos. O “diálogo”,<br />
quando existe, entre essas diferentes “castas”, é quase impossível,<br />
pois um imenso vão os separa.<br />
Não há projeto para diminuir essa divisão. Tudo indica<br />
que, com o passar do tempo, o espaço entre os dois modos<br />
de pensar tende a aumentar. O prejuízo é imenso para todos.<br />
Os fatores, econômico e término de curso “superior”,<br />
não são os únicos responsáveis pela diferença. Existem<br />
pessoas ricas, outras formadas no terceiro grau, que estão<br />
culturalmente segregadas, fazendo parte do imenso grupo<br />
dos analfabetos ou semianalfabetos.<br />
36 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
SALVe noSSo goVernAnte<br />
Há uma grande variedade de intenções e valores, há<br />
diversas culturas e temperamentos. Cada um de nós busca<br />
valores diferentes e, alguns, semelhantes. Nós todos<br />
consideramos ruim sermos obrigados a conviver com determinado<br />
valor, caso isso ocorra tendemos a atacar os<br />
valores indesejáveis. Se um homem possuir uma educação<br />
bastante extravagante, falsa e ilusória, ele acreditará num<br />
ou outro valor diferentes dos usuais e aceitos, correndo o<br />
risco de cometer crimes absurdos.<br />
Há ideólogos que acreditam existir uma única forma<br />
de verdade. Conforme essa crença, algumas pessoas especiais<br />
sabem as respostas certas para os grandes problemas<br />
da humanidade. Por isso, elas devem comandar os<br />
que desconhecem os maravilhosos caminhos a que só eles<br />
têm acesso. Portanto, esses líderes (chefes, ditadores, intelectuais),<br />
para essa crença, devem ser obedecidos. Somente<br />
eles sabem como a sociedade deve ser organizada,<br />
como a vida de Maria ou de José deve ser vivida, como<br />
a cultura deve ser desenvolvida. Essa é a antiga crença<br />
platônica dos reis-filósofos, que tinham o direito de dar<br />
ordens aos outros.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 37
Sempre apareceram pensadores dispostos a defender<br />
que, se os cientistas - ou pessoas cientificamente treinadas<br />
- pudessem ser encarregadas das coisas, o mundo seria<br />
imensamente melhorado. Esses faziam ou fazem parte<br />
do grupo escolhido. Antigamente os homens e as mulheres<br />
eram entregues ao sacrifício a uma variedade de deuses,<br />
os antigos donos da verdade única. A era moderna gerou<br />
novos ídolos: os“ismos”da atualidade.<br />
Causar dor, matar o mais fraco, torturar são, em geral,<br />
corretamente condenados. Entretanto, transformam-se<br />
em ações corretas caso essas não sejam feitas em beneficio<br />
pessoal, mas sim obedecendo a um conjunto de ideias,<br />
ou seja, aos “ismos”: socialismo, nacionalismo, fascismo,<br />
comunismo, brasileirismo, sanismo, cientificismo, indianismo,<br />
crença religiosa fanática, progresso ou leis da história.<br />
A maioria dos revolucionários políticos e religiosos (bem<br />
como alguns médicos) acredita, secreta ou abertamente,<br />
que para criar o mundo melhor e ideal, não precisamos,<br />
nem devemos pensar em Maria e José - simples indivíduos<br />
sem prestígio - mas sim no conjunto, na população ou no<br />
país. Seguindo esse modo de pensar, tudo deve ser feito<br />
para “melhorar” a vida dos homens em geral, portanto, o<br />
cliente. Pedro ou Ilda, devem obedecer aos “sábios”, aos<br />
governantes, médicos e intelectuais, pois eles sabem o que<br />
é bom para nós, muito mais que nós mesmos.<br />
38 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
A LiBerdAde doS JoVenS<br />
Muito se tem discutido acerca do problema da maior<br />
ou menor liberdade dos jovens. Quando e como devemos<br />
dar-lhes a liberdade e em que grau essa deve ser concedida?<br />
O termo emancipação, que se assemelha à libertação,<br />
significa “aquisição da capacidade civil”, ou “libertação do<br />
pátrio poder” ou ainda “conquista de independência”. Ao<br />
falarmos deste tema, forçosamente penetramos num terreno<br />
difícil e de grande importância para o ser humano,<br />
que é sua liberdade e esta tem, como seus opostos, o<br />
determinismo e a coação.<br />
Não discutirei as duas posições extremas e radicais,<br />
ou seja, determinismo absoluto ou liberdade total, pois<br />
creio que estes não fazem parte da conduta humana. O<br />
homem carrega pré-determinações absolutas: não pode<br />
voar, trocar de sexo e assim por diante, mas pode alcançar<br />
uma liberdade relativa como trocar de emprego,<br />
casar ou descasar, ir ao cinema ou ver TV e fingir trocar<br />
de sexo.<br />
A liberdade, ainda que limitada, é conseguida ou<br />
conquistada através da decisão do indivíduo de construir<br />
a si mesmo, de acordo com seus valores. Esta constru-<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 39
ção surge através da ação. O homem não se torna livre<br />
pensando apenas, precisa agir. Ele encontra-se cercado<br />
de grandes dilemas, um deles é o determinado por duas<br />
tendências fundamentais e, em certo sentido, opostas:<br />
1) a autoafirmação, que corresponde à autonomia individual;<br />
2) a integração, que leva à dependência. Ao mesmo<br />
tempo existe em todos nós – desde o nascimento - uma<br />
força ou tendência no sentido de torná-lo autônomo ou<br />
livre. Essa é adquirida, em grande parte, através da outra<br />
tendência humana, a de estar ligado, integrado, a outros<br />
seres humanos, ou seja, estar dependente e não-livre.<br />
Como escapar ao dilema de buscar a liberdade através<br />
da não-liberdade? O menino aprende a ser livre privandose<br />
de sua liberdade, preso ao grupo social, geralmente o<br />
de sua família e, mais tarde, dos companheiros, cônjuge,<br />
membros de igreja, etc.<br />
A estabilidade dos organismos individuais e da sociedade,<br />
assim como seu bem-estar, dependem basicamente<br />
do equilíbrio próprio entre essas duas tendências conflitantes<br />
e necessárias ao desenvolvimento. Durante o estado<br />
de “saúde” dos dois sistemas - individual e social – há uma<br />
relativa integração entre eles: uma relativa liberdade individual<br />
e, ao mesmo tempo, um sistema familiar e social<br />
integrado, funcional e estável dinamicamente. Nesse caso,<br />
ambos os sistemas estão satisfeitos.<br />
Durante as crises, ocorre o contrário: ambos os sistemas<br />
estão em sofrimento - “doentes” - por desequilíbrio<br />
entre suas tendências básicas. Neste caso, ou a família<br />
hipertrofiou a integração em detrimento do crescimento<br />
da individualidade de seus membros, ou o jovem exagerou<br />
sua autonomia, provocando a quebra da integração familiar,<br />
num momento de sua vida no qual a ligação ainda era<br />
de vital importância.<br />
40 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
O sistema individual do jovem é extremamente fluido,<br />
dotado de ainda poucos recursos, sendo facilmente controlado<br />
por outros sistemas.<br />
Quando o jovem abandona precocemente o sistema<br />
familiar, é comum ligar-se e “nutrir-se” de outros sistemas<br />
ao seu redor, que podem ser melhores ou piores para ele do<br />
que o anterior. O jovem poderá ligar-se ao grupo de escoteiros<br />
ou ao de assaltantes. Em nossa cultura americanizada,<br />
propagada pelos filmes de Hollywood e por outras influências,<br />
existe uma pressão para que as pessoas se agreguem<br />
em grupos não-familiares, em detrimento de liberdade individual.<br />
Esta “cultura” vai contra a dos nossos antepassados,<br />
na qual a ligação familiar era a buscada e elogiada.<br />
A agregação diminui ou elimina a autonomia individual, a<br />
orientação interna de cada pessoa. Ao mesmo tempo ocorre<br />
a hipertrofia da “boa relação” com o grupo, ou o “bem-estar<br />
grupal”. Culturas diferentes enfatizam diferentes posturas:<br />
maior ênfase no indivíduo, na sua liberdade ou maior importância<br />
aos grupos familiares, políticos ou religiosos.<br />
Os valores e as atitudes transmitidos ao jovem pela<br />
própria família funcionam assentados em regras, moldes ou<br />
padrões de conduta que são aceitos como certos. Ensina-se<br />
o que é sério e o que não o é, o que é bom e o que é mau, a<br />
forma apropriada de comer e a inadequada, as formas corretas<br />
e incorretas de demonstrar carinho, quais são os amigos<br />
e os que não o são e milhares de modelos semelhantes.<br />
Portanto, nos primeiros anos de vida, a família, que<br />
já possui os seus padrões assimilados, os impõe ao filho. À<br />
medida que o menino cresce, ele vai recebendo outros modelos<br />
ou padrões: dos amigos, dos colegas, dos professores,<br />
da imprensa, dos partidos políticos, da Igreja, etc. Pouco<br />
a pouco desenvolve-se o padrão do indivíduo, produto<br />
da organização dada às milhares de experiências vitoriosas<br />
e de fracasso, dos vários modelos recebidos e recriados.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 41
Aparentemente ocorre uma situação de liberdade,<br />
quando o jovem escolhe uma profissão, um cônjuge ou<br />
um grupo de amigos. Mas, de fato, a “escolha livre” é determinada,<br />
em grande parte, pelos modelos recebidos e<br />
incorporados, principalmente dos familiares e companheiros,<br />
e também por experiências transmitidas verbalmente<br />
por outras pessoas e nunca experimentadas. Todas essas<br />
informações recebidas, algumas vivenciadas, outras não,<br />
são seguidas com muita fé, quase sem contestação ou crítica.<br />
O indivíduo, frequentemente, crê que sua escolha é<br />
livre: que ele se casou com Margarida porque quis, que é<br />
médico por vocação, porque, para ele, a medicina é a melhor<br />
profissão e é amigo de Paulo, porque Paulo é muito<br />
“boa gente”. Pura ilusão. A nossa representação do mundo,<br />
incluindo os diferentes modelos, é pobre, contém poucos<br />
dados à nossa disposição. Conhecemos superficialmente,<br />
ou mesmo nada, acerca de outras profissões, assim como<br />
outros modos de vida e desconhecemos modelos de vida<br />
de pessoas estranhas ao nosso convívio.<br />
Além disso, os modelos pouco conhecidos não poderiam<br />
exercer atração sobre nós, pois geralmente só valorizamos<br />
as experiências ditadas pelo modelo por nós<br />
aprendido. O valor que nós imputamos a alguém, a alguma<br />
coisa, ou a alguma atividade, está já constituído e cristalizado<br />
em torno do fim da adolescência em nossas mentes,<br />
pelos nossos “tapa-olhos”. Assim, munidos desse “radar”,<br />
vamos organizando nossas percepções em torno dos nossos<br />
padrões, vamos formando a nossa estrutura mental,<br />
“filtrando” aquilo que não corresponde à nossa hierarquia<br />
de valores que foram inoculados em nossa mente.<br />
“Sou advogado, gosto muito daquela moça, mas ela<br />
não é do meu nível, pois é balconista”. Sou branco, estudante<br />
de medicina, não fica bem para mim ir à festa com<br />
Pedro, que é negro, servente de pedreiro, apesar de ele<br />
42 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
ser o melhor do nosso time de futebol”. “Sou professor da<br />
Faculdade de Medicina, não posso frequentar tais lugares<br />
e andar com essa gentinha sem classe, que nem se vestir<br />
sabe”. “Eles são gente simples como nós”, “Só frequento<br />
restaurantes de alto nível, não tolero falta de classe”.<br />
Dificilmente ouvimos uma conversa descontraída ou<br />
um papo informal, onde o preconceito e a visão estreita<br />
do mundo não se revelem e possam ser identificados. Não<br />
só assistimos aos preconceitos contra o negro ou os portugueses,<br />
mas a respeito das várias classes e papéis sociais,<br />
de profissões, de sexo, de idade e assim por diante. “Ele é<br />
muito jovem, nada sabe”, ou o seu oposto, “Ela está totalmente<br />
gagá”.<br />
É extremamente difícil sair disso. Só com uma criação<br />
de um modelo neutro, que permitisse a entrada de toda<br />
e qualquer informação, padrão esse que fornecesse para<br />
cada dado recebido um valor que fosse interessante para<br />
seu possuidor.<br />
Portanto, para nos tornarmos mais livres, é preciso<br />
usar menos os “filtros” e menos os “radares”. Usar, sim,<br />
uma “antena parabólica” para captar tudo o que pudermos,<br />
dando a cada percepção um valor mais abrangente,<br />
aumentando nossa representação ou o nosso macromodelo<br />
do mundo.<br />
Só assim poderíamos ficar um pouco menos presos<br />
aos grupos de pressões, passaríamos a ser mais orientados<br />
internamente e menos externamente, deixaríamos de<br />
ser seduzidos pelos líderes carismáticos e, dessa forma,<br />
quem sabe, poderíamos ser líderes de nós mesmos.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 43
noSSA LiBerdAde e oUtroS PodereS<br />
Coitado do cidadão: aprisionado em si mesmo, sozinho,<br />
isolado do exterior por uma pele fina e frágil, cercado<br />
por todos os lados pelos donos do poder espalhados na<br />
natureza física, química, biológica e dos homens.<br />
Nos meus delírios de perseguição, visualizo um complô,<br />
arquitetado por homens tiranos, juntos aos seres vivos<br />
em geral e, também, pelas almas penadas - tudo muito<br />
bem coordenado - visando controlar minha liberdade, bem<br />
como a sua. Não estou exagerando, darei exemplos, todos<br />
eles escolhidos ao acaso. Os não lembrados ficarão por<br />
conta dos leitores.<br />
Não acreditam? Pois vejamos: ora é uma mosca que<br />
vem pousar no meu nariz, ora um cão que me observa,<br />
mostrando seus belos e pontiagudos dentes, pronto para<br />
atacar-me. Mas não fica só nisso, depois é o convite de<br />
formatura que exige minha presença, o telefone que toca<br />
e me obriga a correr, o interfone oferecendo gás, a conta<br />
a pagar, o presente de Natal e de aniversário, o forno que<br />
não mais esquenta e também isso e aquilo. Mas tem também<br />
a chuva, a enchente, o imposto de renda, o terremoto<br />
lá longe, o trombadinha bem perto. Na rua, o carro dispa-<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 45
ado pronto para matar-me, obriga-me a correr desajeitado<br />
e envergonhado pela falta de forma, o trânsito que não<br />
flui, a rua esburacada e sem saída, meu time perdendo, o<br />
assaltante roubando meu sossego, às vezes, meu sonho<br />
de tranquilidade, o frio que me obriga a vestir o agasalho<br />
feio e fedendo a mofo, o calor que me faz suar e dormir<br />
mal, o café frio, fraco, fedorento e com formiga no fundo.<br />
Onde buscar, nessa Babel de desgraças, forças capazes<br />
de suportar e orientar minha vida? Deus! Oh Deus!<br />
Onde está minha sonhada liberdade, a escolha individual,<br />
meu livrearbítrio? Milhares de outras forças, além das<br />
minhas, me impelem a agir de um modo e de outro, não<br />
como gostaria. Estou aprisionado a tudo isso e muito mais:<br />
a cãibra, o espirro, a tosse, o pedinte e o flanelinha, o som<br />
do vizinho, a gritaria dos meninos do colégio, a fumaça<br />
que me impede de enxergar os objetivos imaginados e<br />
sonhados.<br />
Ao envelhecer, aos poucos ou rapidamente, não sei<br />
mais, vou perdendo a ilusão plantada cedo em minha cabeça<br />
mole da existência da liberdade, uma ideia inoculada<br />
pela igreja e pela escola, logo que nasci. Cansado de ser<br />
preso à família, ao partido político, à religião, ao time de<br />
futebol, à profissão e a tudo mais, percebo que o aprendido<br />
acerca da liberdade era tudo mentira, nascida de uma<br />
ideologia democrática falsa, incoerente: ela me enganou<br />
durante anos.<br />
Onde encontrar a liberdade proclamada e esperada,<br />
que me fazia sentir feliz? “Foi um sonho que findou”, como<br />
diz a letra do poeta. Vejo agora que a liberdade é uma balela,<br />
um conceito belo, como algumas pessoas, mas sem<br />
conteúdo. Imagino, sem melhor ideia, que a inexistente<br />
liberdade foi construída pelo poder cultural para amenizar<br />
nossa infelicidade.Foi fabricada, como várias outras ilusões,<br />
para nos amparar e nos proteger nesse mundo confuso.<br />
46 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Os poderes que esmagam meu fraco organismo vão<br />
desde a mosca que pousa, sem dar a mínima, de tempos<br />
em tempos, no meu velho e cansado nariz, até os decretos-leis<br />
de FHC, de Lula e de outros, que sei que virão.<br />
Mas, além disso, fui, há muito, dominado pelos dogmas<br />
religiosos, pelas ideologias marxistas, machistas e<br />
democráticas. Mais tarde, aprisionei-me nas teorias científicas<br />
em voga, pulando de uma a outra sem parar. Corri<br />
como um burro atrás do milho inalcançável, em busca do<br />
“alimento” para minhas dúvidas. Desesperado, sem melhor<br />
orientação interna, esmagado por pressões e decepções,<br />
daqui e dali, agarrei-me, como náufrago desesperado, à<br />
“sabedoria” dos provérbios: “macaco que mexe muito está<br />
querendo chumbo”.<br />
As terríveis forças malignas do poder trabalham para<br />
o mesmo fim e, em bloco, tentam me derrotar. Todas elas<br />
têm um aspecto em comum: mudar meu comportamento,<br />
dirigir minha conduta para um rumo alheio à minha vontade.<br />
Meu saudoso livrearbítrio, sem dizer adeus, desapareceu<br />
da minha vida há muitos anos. As forças do não-eu,<br />
em conjunto, lutam contra minha consciência, me impedem<br />
de alcançar minhas metas, se é que elas são minhas.<br />
Agora, já não tenho nenhuma certeza.<br />
Aceito a definição de poder como a “capacidade para<br />
produzir determinada ocorrência”, ou “a influência exercida<br />
por uma pessoa ou grupo sobre a conduta alheia, através<br />
de algum meio”. Portanto, para ser exercido o poder,<br />
necessita-se de uma força atuante – a que desencadeia<br />
a ação (a mosca e o governo) – e também de um poder<br />
geralmente passivo ou bastante submisso - adequado para<br />
sofrer a ação (eu, eu, eu). Uma mosca não modificará a<br />
conduta de um boneco ao pousar em seu nariz, o imposto<br />
de renda, com todos os urros do leão, não conseguirá fazer<br />
com que o morto preencha sua declaração de renda.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 47
Algumas vezes, muito raramente, o poder de um indivíduo<br />
ou grupo sobre o comportamento do cidadão está<br />
em concordância, ou se identifica, com os objetivos ou<br />
necessidades deste, produzindo uma satisfação dos dois<br />
poderes envolvidos, o ativo e o passivo. Por exemplo, se<br />
você é convidado para ir almoçar na casa de um amigo – o<br />
que modificará o seu comportamento habitual - há a possibilidade<br />
estatística de você, naquele dia, desejar aquele<br />
encontro e até gostar das iguarias e do vinho servido, caso<br />
tenha sorte. Isso acontecendo, os dois participantes do poder<br />
– a força atuante e a passiva - podem atingir objetivos<br />
comuns: isso raramente acontece.<br />
Além disso, o poder tem possibilidade de ser exercido<br />
visando auxiliar uma pessoa, com um fim eticamente<br />
louvável. Convenço minha filha que é bom para ela frequentar<br />
a escola, comer determinado alimento, ter certos<br />
hábitos higiênicos, etc. A aceitação de formas básicas de<br />
conduta por parte dela poderá facilitar sua vida, aumentar<br />
seu “poder pessoal” para tolerar e, talvez, driblar o poder<br />
institucional. Mas mesmo esses valores amplos e gerais<br />
podem ser questionados. Posso estar equivocado e isso<br />
minha filha verificará com o tempo e experiência para encontrar<br />
seu caminho.<br />
48 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
como erA Verde meU VALe<br />
A Bíblia fala que Adão e Eva viviam no jardim do Éden<br />
sem trabalhar, comendo frutas do jardim celestial, sem<br />
guerrear e sem atividade sexual, em paz com a vida e os<br />
outros animais; sem roupas e sem se envergonharem disso<br />
(Gênesis 2:25).<br />
Muitos jovens, outros nem tão jovens, anseiam ter a<br />
vida contada na Bíblia. Esses moços ambicionam no futuro,<br />
nada mais, nada menos, do que o retorno ao mundo “bom,<br />
ordenado e belo”, imaginado e sonhado descrito pelo mito<br />
do paraíso.<br />
A rebelião dos jovens, que combate o estabelecido,<br />
explode ocasionalmente, conforme o tempo, o vento e<br />
tempestades passageiras, nas entressafras das suas “revoluções”.<br />
Não ocorre um questionamento constante dos<br />
costumes por parte da juventude. O mal para a juventude<br />
sonhadora, pura e ingênua, é a sociedade e a vida atual. A<br />
infelicidade, para eles, está ligada à ordem social vigente<br />
formulada pelos seus pais.<br />
Os mais idosos já desistiram, há muito, dessa luta<br />
inglória: transformar a atual sociedade imoral e corrupta<br />
numa decente e ordeira. A juventude sonha e luta, mas<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 49
não de maneira eficaz, para salvar o homem “do mal do<br />
século”, transformar a história humana num conto de fadas<br />
com um final feliz.<br />
Esses loucos utópicos - deve ser lembrado que todos<br />
nós já vivemos nossa loucura numa certa idade - expressam<br />
de vários modos, conforme a época e a cultura, sua<br />
atração pelo paraíso: o uso de roupas grosseiras, desbotadas<br />
e rasgadas de fábrica. Nudez diante dos outros,<br />
principalmente de uma câmera de TV ou de uma máquina<br />
fotográfica. Exibição de coxas ou de seios entre as mulheres,<br />
para mostrar o proibido pelas regras dos ordeiros<br />
e conformados. Badernas, gritos, urros e destruição durante<br />
jogos, formaturas, shows, missas, sermões e posse<br />
de presidente da república. Colônias de nudistas para homenagear<br />
e defender o “naturalismo”, numa praia ornamentada<br />
pela cultura de massa. Ato sexual nos teatros,<br />
filmes e praças, para combater o moralismo tolo e ineficaz<br />
dos gagás.<br />
Todas essas exibições teatrais, histéricas e misturadas<br />
a rituais religiosos ou pagãos, provocam, em seus executores,<br />
uma excitação delirante: orgasmos demorados e<br />
aplausos da grande massa entusiasmada enquanto espera<br />
o retorno à Terra prometida. Os outros seres, surdos aos<br />
berros dos jovens, observam, afastados e incrédulos, o<br />
extraordinário entusiasmo enxertado à simplicidade hilariante.<br />
Para os jovens, lá, muito longe, no alto, bem acima<br />
de nossas cabeças de homens e da montanha, no céu<br />
azulado e estrelado, anjos decentemente enfeitados da<br />
nudez divina e primitiva, de mãos dadas, cantam e bailam<br />
alegremente, girando em volta do compenetrado, honrado<br />
e sempre vigilante Deus.<br />
Entusiasmados com essa fantasia maravilhosa, em<br />
alguns lares desse mundo afora, pais não muito jovens,<br />
inoculados por essa pregação, passaram a cultivar o ba-<br />
50 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
nho coletivo. Também em algumas praias, como ocorre no<br />
paraíso, desfilam homens, mulheres e crianças despidas.<br />
Rapazes e moças desoladas exibem, diante da natureza<br />
viva, a natureza morta: seios e pênis tristonhos e abandonados,<br />
órgãos esperando por algum milagre dos que por<br />
ali passeiam.<br />
Semelhante ao mito da nudez e do paraíso, de tempos<br />
em tempos nasce o mito dos protestos estudantis cômicos.<br />
Estes, organizados pelos exploradores, vestidos de<br />
cordeiros explorados, combatem com seus discursos inflamados<br />
o poder que eles, sem notar, exibem: roupas de<br />
marca, palavras bem escolhidas e reveladoras de erudição,<br />
corte de cabelo moderno e apurado, relógios, brincos<br />
e outras joias de alto custo. Seu poder, exposto através<br />
das informações sem-palavras, mostra claramente existir<br />
uma classe estudantil bem diferente da outra, da desclassificada<br />
logo ao nascer. Frequentemente, através de gritarias<br />
em público, de algumas pedradas medrosas e cuidadosas,<br />
eles atacam o pobre policial que pertence à classe<br />
que, hipocritamente, os líderes, do lado de cima do limite,<br />
afirmam defender. Esta é a luta deles: alcançar, através de<br />
ações dificílimas, perigosíssimas, carregadas de emoções<br />
intensas, um mundo melhor ainda para eles, ou seja, o<br />
paraíso para um grupo especial e já escolhido.<br />
Durante essas lutas coletivas, desordenadas e cômicas,<br />
transformadas em exibição teatral na praça pública,<br />
jovens fantasiados, tendo as caras pintadas com esmero,<br />
com roupas típicas plantadas em desejos inconfessáveis<br />
de cada um, gritam, por instantes, com muita raiva, enquanto<br />
esperam a hora de ir jantar e beber no restaurante<br />
chique. Ninguém sabe com clareza o que se pretende, a<br />
favor de quê e contra quê se luta.<br />
Todos sabem que há um protesto contra alguma coisa.<br />
Rebelam-se, talvez, contra eles mesmos, pelas prer-<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 51
ogativas que uns poucos têm sobre a maioria, pelo poder<br />
que detêm, pela arrogância de um lado e a humildade do<br />
outro. Reclama-se contra o atual em todas as áreas.<br />
Tudo está errado! Exige-se um futuro melhor. Entretanto,<br />
o que é este futuro melhor? Nenhum deles sabe,<br />
nem nós, os mais velhos. Tudo é vago, distante demais,<br />
impossível de ser até mesmo imaginado, representado e<br />
muito menos verbalizado, o que eles mais fazem. Ninguém<br />
consegue definir o que se quer, nem mesmo os líderes<br />
dos movimentos. Quase sempre a maioria deles fez<br />
– ou faz - parte e defendeu, com o mesmo vigor, o “outro<br />
lado”, o lado do “estabelecido”, o agora “combatido” com<br />
veemência.<br />
Este mundo imaginário e buscado, principalmente pelos<br />
jovens sonhadores e rebeldes, é nebuloso. Se não se<br />
conhece o fim desejado, logicamente não será possível saber<br />
o meio para alcançá-lo. Nota-se que eles desejam um<br />
retorno ao mundo antigo, calmo e ordeiro, sem lutas, com<br />
nudez e frutinhas naturais para serem saboreadas ao som<br />
singelo de órgãos celestiais. Entretanto, os jovens são, ao<br />
mesmo tempo, apaixonados pelo mundo natural e atraídos<br />
pelo moderno, pelo desperdício do dinheiro na compra dos<br />
aparelhos de som e imagem ultrassofisticados, pelo uso<br />
das últimas novidades em bebidas e drogas colocadas no<br />
mercado, tudo isso não tão natural assim.<br />
Muitos discursos, artigos e livros dirigidos aos jovens<br />
buscam despertar crenças antigas, plantadas firmemente<br />
pelos pais quando eles eram crianças. Nós todos as temos.<br />
Essas histórias falam acerca de um mundo imaginário ordeiro,<br />
cheio de homens bons e honestos, igualdade e liberdade<br />
para todos. Infelizmente, isso era uma mentira que<br />
nossos pais ouviram de seus pais e, de boca em boca, a<br />
história, teimosamente, continua a se alastrar. Este mundo<br />
imaginado nunca existiu e nem existirá.<br />
52 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
A juventude que procura alcançar essa utopia ainda<br />
acredita nela, mas, à medida que se torna adulto, o sonho<br />
vai se acabando. Os jovens receiam transformar-se em<br />
adultos, perceberem que o aprendido não é o experimentado.<br />
Crescer, para a juventude, significa tornar-se igual<br />
aos pais, assumir seu lugar nessa bagunça total, na farsa<br />
e corrupção desse estranho mundo habitado por anjos e<br />
demônios, metade céu, metade inferno.<br />
Talvez o sonho máximo desse grupo fosse viajar para<br />
o paraíso. Caso o combustível não desse, pelo menos até<br />
Marte, no novo ônibus espacial a ser construído após o último<br />
acidente, ou, talvez, na nave dos ETs. Para fazer essa<br />
viagem fantástica, “numa boa”, “de repente”, “com certeza”,<br />
“né”, e junto com toda a patota, todos vestiriam um<br />
uniforme superchique e moderninho. Bem, quando lá chegassem,<br />
prontamente eles iriam se despir. Após cada um<br />
“ficar” rapidamente com os outros, eles comeriam, abraçados,<br />
as frutinhas celestiais distribuídas por São Pedro,<br />
dançando e cantando, diante do som “louco” produzido por<br />
uma banda supermoderna e, evidentemente, tendo todos<br />
seus componentes drogados com cogumelos do céu.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 53
AS conStitUiÇÕeS QUe PASSei nA VidA<br />
Nasci em Itabira de Mato Dentro, sendo o décimo primeiro<br />
filho de uma família de doze irmãos. Não participei,<br />
por conseguinte, da criação, elaboração e discussão do que<br />
era certo ou errado: a “Carta Magna” de minha família, a<br />
“lei” do permitido e do proibido, do “bom” e do “mau” - já<br />
há muito havia sido promulgada, não tendo contado com a<br />
minha colaboração. Eu devia respeitá-la, cooperando com<br />
o poder que emanava de meu pai e minha mãe. Por ser<br />
criança, sem condição física, intelectual ou cultural, tinha<br />
de seguir as normas e, se quisesse ser aceito, deveria trabalhar<br />
para a manutenção delas.<br />
Assim sendo, aprendi que o partido Republicano de<br />
Arthur da Silva Bernardes era o certo, e todos os políticos e<br />
seguidores daquele partido eram homens bons, honestos,<br />
de princípios justos e interessados no bem-estar geral.<br />
Aprendi que devia rezar todas as noites três Ave-Marias<br />
e três Padre-Nossos e, em momentos de maior perigo,<br />
a Salve-Rainha. Devia ir à missa aos domingos, confessarme<br />
pelo menos uma vez ao ano e rezar algumas Ave-Marias<br />
extras às três horas da tarde da Sexta-Feira Santa,<br />
as quais, uma vez estocadas, seriam de grande valia em<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 55
momentos de grande aflição. Diga-se de passagem, eu as<br />
venho usando atualmente em grande quantidade, pois têm<br />
sido frequentes os meus apuros. Felizmente, daquele estoque<br />
de preces ainda conto com umas boas reservas.<br />
Aprendi que não devia roubar, mas que furtar frutas<br />
no quintal do vizinho, quando houvesse abundância delas,<br />
era tolerável.<br />
Não devia maltratar certos animais, mas podia matar<br />
galinhas e sapos. Devia matar, sem piedade, escorpiões,<br />
cobras venenosas, marimbondos e mosquitos. Abelhas,<br />
não, louva-a-deus e andorinha, nunca.<br />
Devia obedecer aos pais, aos professores, assim como<br />
ao governo do partido republicano, mas rebelar-me contra<br />
o governo de Vargas ou o de Benedito Valadares, pois eles<br />
eram errados e maus.<br />
Aprendi que, à escola, à missa e ao dentista (não me<br />
lembro se ao médico), eu devia ir limpo e calçado. Fora<br />
daqueles “templos” eu podia - e até devia - andar descalço<br />
para economizar sapatos e usar roupas velhas e estragadas<br />
pelos mesmos motivos.<br />
Aprendi que, nas refeições, eu podia comer um ovo,<br />
um pedaço pequeno de frango e, no pão, deveria pôr pouca<br />
manteiga de um lado só do pão. Nunca era permitido<br />
jogar comida fora, pois outros meninos não tinham o que<br />
comer, logo, isso seria um pecado.<br />
Não devia falar mentiras em hipótese nenhuma. Mas<br />
essa regra começou a ser burlada ainda cedo, depois que,<br />
no grupo “Barão de Macaúbas”, onde estudava, fui obrigado<br />
pela professora de Religião a retirar a imagem de Cristo<br />
da sala de aula, por não ter ido à missa no domingo e confessado<br />
contritamente a minha falta. A partir daí descobri<br />
que era menos penoso ir contra o preceito de minha mãe<br />
- não mentir - do que suportar o castigo de d. Mercês - expulsar<br />
o Cristo da sala de aula quando não fosse à Missa.<br />
56 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Aprendi que, sendo homem, não podia chorar, fugir a<br />
uma briga, assim como achar outro homem bonito.<br />
Aprendi que eu seria o responsável - e ninguém mais<br />
- por decisões como beber, fumar, sair de casa, “transar”,<br />
escolher uma profissão. O que não podia era ficar sem estudar<br />
ou trabalhar.<br />
Tornei-me adolescente convivendo intimamente, num<br />
time de futebol, com quase-favelados (naquela época não<br />
havia ainda favelas): sapateiros, capinadores de rua, “chapas”,<br />
serventes, carvoeiros, alcoólatras e até assaltantes<br />
- embora “fichinhas” para a época atual. Seus valores e<br />
sua hierarquia - a sua “constituição” - eram-me estranhos,<br />
mas interessantes, pela novidade. Suas leis eram outras:<br />
defendiam a supremacia do mais forte fisicamente sobre<br />
o mais fraco, a masculinidade do que conseguisse tomar<br />
mais pinga ou transar com um maior número de prostitutas<br />
da rua Guaicurus. Eu era obrigado, às vezes, a fazer<br />
algumas concessões às leis desse grupo, outras vezes, às<br />
de minha família. Ao mesmo tempo tinha de associá-las<br />
no meu eu. Não era fácil: quebrei cabeça para conciliar as<br />
duas ordens e sobreviver a ambas. Escapuli desta enrascada<br />
não sendo mais fiel a uma do que a outra regra. Iniciei<br />
assim a formação de minha individualidade, fruto dessas<br />
duas escolas às vezes antagônicas, mas com muitos pontos<br />
comuns, como só agora percebo.<br />
Estabeleci para mim uma consciência exigente, disciplinada<br />
e original, que ia impondo objetivos e promovendo<br />
meios de alcançá-los, custasse o que custasse. Tinha que<br />
chegar aonde minha mente determinava. Corajosamente,<br />
entrei no paraíso selvagem da Faculdade de Medicina da<br />
Universidade Federal de Minas Gerais.<br />
Nesse ambiente, que nada tinha a ver com as mesas<br />
de boteco da zona boêmia ou com minha casa, utilizavamse<br />
palavras venenosas, porém adocicadas, ditas na maioria<br />
das vezes com gentileza hipócrita.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 57
Imperava entre os colegas uma competição doentia,<br />
“cada um por si”: era a lei da selva. As informações sobre<br />
textos e questões de prova eram escondidas a sete chaves<br />
por - e para - alguns “iniciados”.<br />
Os parentes e amigos dos “poderosos”, alguns poucos<br />
escolhidos, eram visível e arrogantemente ajudados, protegidos<br />
e elogiados.<br />
Nós, participantes da maioria sem poder econômico,<br />
de parentesco ou político, éramos rejeitados. Eu não percebia<br />
claramente que havia uma luta pelo poder e uma<br />
tentativa dos seus detentores de não dividi-lo, mantendoo<br />
limitado ao exercício por uma minoria.<br />
Era ideia minha que, se seguisse as leis do bom Cristão<br />
de Itabira, eu seria tratado com respeito e dignidade<br />
na Escola, teria as oportunidades dos outros e talvez<br />
pudesse até ser admirado, já que o hábito de obedecer<br />
a regras de grupos fazia de mim um aluno cooperativo e<br />
ajustado. Mas ali as leis eram muito diferentes e eu é que<br />
não sabia disso.<br />
Achava que estava participando ativamente de movimentos<br />
compatíveis com os altos ideais da Faculdade, mas<br />
eu apenas podia votar, ora num, ora noutro candidato, e<br />
eram sempre os mesmos relacionados entre a minoria dominante,<br />
lutando para preservar ou aumentar os poderes<br />
adquiridos.<br />
Sonhava que os meus interesses seriam defendidos<br />
nas diretorias, mas no fundo eles eram ignorados, pois<br />
conflitavam com os interesses dos líderes. Como disse, as<br />
normas impostas e garantidas pelos detentores do poder,<br />
na Faculdade, diferiam e muito da constituição vigente na<br />
família e das do grupo de companheiros.<br />
Tendo, por fim, entendido isso, penosa e rebeldemente<br />
passei a receber, como um golpe na face, as leis dos<br />
médicos.<br />
58 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
1º - Nunca se emocione com o sofrimento de seu paciente<br />
ou da família dele, para não atrapalhar seu trabalho<br />
ou julgamento.<br />
2º - Trate o cliente como paciente. Saúde-o e converse<br />
com ele e seus familiares, mantendo distância, pois é<br />
ele quem precisa de você: o poder está em suas mãos.<br />
3º - Forme seu grupo, faça parte das associações de<br />
classe, senão você estará perdido. Os fortes, além de não<br />
o protegerem, poderão destrui-lo.<br />
4º - Use uma expressão, um andar, um vocabulário<br />
típico do médico, identifique-se com a classe, perca a espontaneidade,<br />
só assim você será entendido pelos seus<br />
pares e manterá o poder sobre seu cliente, que se sentirá<br />
inferior a você.<br />
5º - Não seja simples: monte um consultório de luxo,<br />
em bairro nobre, de preferência com aparelhos sofisticados,<br />
mesmo que inúteis, para impressionar,<br />
6º - Peça vários exames, use o mínimo sua própria<br />
cabeça para não cansá-la e, se possível, faça diagnósticos<br />
complicados para valorizar seu trabalho.<br />
7º - Interne seu paciente psiquiátrico sempre que puder,<br />
pois isso dará a você “mais conforto e segurança com<br />
menos trabalho”, talvez, até mais dinheiro e mais poder.<br />
8º - Associe-se a algum grupo teórico, de preferência<br />
entre os psicanalistas, para com eles se sentir protegido<br />
pelo seu poder nos departamentos e diante do público.<br />
Através desse grupo, você poderá até receber clientes dos<br />
mais poderosos, quando estes os tiverem de sobra.<br />
Passou-se o tempo, eu não estava mais muito preso<br />
às leis da antiga família itabirana, nem do grupo de esporte<br />
e farras, mas também não conseguia compreender muito<br />
bem e introjetar as leis da Faculdade de Medicina. E não<br />
consigo até hoje. Tornei-me um solitário rebelde, mas, felizmente,<br />
sempre tive companheiros que também não co-<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 59
mungaram com aquelas diretrizes. Lamentavelmente, um<br />
bom número de médicos seguiu e segue a sério tais leis.<br />
Confuso, inconformado, buscando um sentido, um<br />
poder mais pessoal e não institucional, valores, liberdades<br />
individuais e mais espontaneidade, eu ingressei na Faculdade<br />
de Filosofia. Ali, nova constituição há muito tinha sido<br />
promulgada. Nova reviravolta, tanto nos meus objetivos de<br />
vida, como nos meios para alcançá-los. Percebi que não há<br />
verdades e certezas eternas: tudo o que havia aprendido<br />
antes como certo, eram mitos, concepções do mundo. Tornei-me<br />
um doido. Percebi a subjetividade da objetividade<br />
médica, a defesa constante, por uma parte da classe médica,<br />
de valores duvidosos da nossa sociedade, a hipocrisia<br />
frequente num discurso médico paternal, protetor, mas<br />
cuja intenção é manter seus próprios valores, segundo os<br />
quais o paciente deve submeter-se como animal ou coisa<br />
ao seu poder. Em resumo, percebi que, na Faculdade de<br />
Medicina e na classe médica, uma boa parte de estudantes<br />
e profissionais defendem e preservam o conformismo e<br />
não as mudanças reais que valorizam o indivíduo como ser<br />
único.<br />
Você também, prezado leitor, que nasceu na família<br />
Silva ou Souza, sabe o que é bom ou mau. Você também<br />
está sujeito a centenas ou milhares dessas leis, sem tê-las<br />
criado.<br />
Elas entraram na sua vida e na sua mente sem serem<br />
criticadas ou analisadas: entraram como transe hipnótico.<br />
Comece a analisá-las: veja se elas o estão ajudando, ou<br />
não, a ver melhor. As que o estão prejudicando-o, jogueas<br />
fora.<br />
60 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
intUiÇÃo, rAZÃo e JULgAmento morAL<br />
Nosso juízo moral é dominado por duas ilusões:<br />
1ª) Acreditamos que nosso julgamento moral é ativado<br />
pela razão. Isso não é verdade.<br />
2ª) Esperamos, através das discussões intuitivas, alterar<br />
o modo de pensar do opositor. Isso não acontece.<br />
Segundo o modelo intuitivo (não-racional) o indivíduo ao<br />
ouvir, por exemplo, o relato de um estupro, é dominado<br />
rápida e automaticamente por uma emoção desagradável.<br />
O mal-estar corporal interno, uma vez percebido, produzirá<br />
uma avaliação negativa do fato. Apoiado no desconforto<br />
interno, a pessoa capta intuitivamente, sem usar a lógica<br />
ou razão, que o estupro é um ato condenável. Algumas<br />
vezes - nem sempre - após a explosão intuitiva, a pessoa<br />
procura tornar inteligível o problema, explicando-o verbalmente.<br />
Nosso cérebro, construtor de modelos avaliadores e<br />
explicativos, só recentemente começou a ser bem estudado.<br />
O homem sempre procurou interpretar o meio ambiente<br />
e seu organismo. Durante séculos, as interpretações<br />
mágico-religiosas dominaram as explanações. Mais<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 61
tarde nasceram as ideologias e, também, as ciências. Mas<br />
a conduta moral, sendo um julgamento de valor (princípios<br />
ou normas idealizados), não permite ser verificada através<br />
de testes empíricos, apenas pelas reflexões filosóficas.<br />
De qualquer forma, o roteiro sagrado e não-sagrado tem<br />
servido de sustentação para captar, selecionar, organizar<br />
e explicar as informações complexas ou simples do meio<br />
ambiente.<br />
Cinco funções têm sido descritas como sendo as mais<br />
importantes para selecionar e interpretar o observado:<br />
sensorial (sensação), dois tipos de cognições, um formal e<br />
outro mítico ou sobrenatural, sentimento (emoção) e intuição<br />
(conhecimento obtido sem o uso da razão). Ninguém<br />
usa somente um desses cinco modos de focalizar o evento,<br />
mas cada pessoa tende a empregar mais uma função<br />
que outra (sensorial, cognitiva, emotiva e intuitiva). O fato<br />
focalizado, por si só, pode ativar o uso de uma função. No<br />
velório posso ser impelido a usar o processo sobrenatural,<br />
ou se tenho dor de barriga, focalizo o sensorial e, também,<br />
o pensamento intuitivo sobre a causa: o possível pastel<br />
comido no boteco.<br />
O cérebro do homem, muito cedo, é marcado por noções<br />
intuitivas simples. Dada a potência do nosso B-A-BA<br />
inicial (pré-saber), este aprendizado nunca mais nos abandona.<br />
O homem inculto, desprovido de saberes complexos,<br />
percebe, entende e explica os eventos através das noções<br />
adquiridas cedo (pré-saberes), geralmente inadequadas.<br />
Muitas vezes, um mito, uma metáfora ou comparação serve<br />
de base para exibir o entendimento (“Pedro é um cavalo.<br />
Só fala abobrinhas.”). Este é instrumento limitado para<br />
descrever uma conduta.<br />
Alguns adquiriram um saber, mas a complexidade<br />
desse saber pode sofrer danos ocasionais. O pré-saber<br />
primitivo pode invadir e dominar, com sua simplicidade,<br />
62 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
o saber complexo. Isto ocorre quando a pessoa está fatigada,<br />
apressada ou com a “cabeça quente”, por exemplo,<br />
dominada por paixões: sexuais, políticas, etc. Resumindo:<br />
nosso julgamento final é uma “salada” contendo intuições<br />
emocionais, pré-saberes e, às vezes, saberes mais profundos<br />
e amplos, capazes de criticar e dominar os pré-saberes<br />
inocentes e primitivos.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 63
BicHoS oU SereS HUmAnoS?<br />
Ao lidar com os meninos de rua não devemos esquecer<br />
que estamos lidando com seres humanos, cujo comportamento<br />
resulta das exigências do seu organismo biológico,<br />
de sua aprendizagem durante sua vida, dos estímulos<br />
provenientes de seu meio ambiente num determinado momento,<br />
das pressões provocadas pelos grupos dos quais<br />
fazem parte e conforme os modelos que aprenderam de si<br />
e do mundo. Todos estes fatores funcionam juntos, predominando,<br />
ora mais um, ora outro.<br />
O que diferencia os “pivetes” não-criminosos dos<br />
“pivetes” criminosos são pequenas diferenças existentes<br />
em cada um dos fatores acima relacionados. Assim, um<br />
adolescente não-criminoso apresenta uma concentração<br />
de serotonina cerebral - um neurotransmissor existente<br />
no cérebro - mais elevada do que o menino criminoso.<br />
Uma criança “normal”, provavelmente, foi criada num lar<br />
mais harmonioso e seus pais eram mais bondosos e compreensíveis<br />
do que os pais – caso tenha - do menino de<br />
rua. Os pais do adolescente “normal” talvez não tenham<br />
sido alcoólatras ou dependentes de drogas. O cérebro de<br />
um recém-nascido “normal” não sofreu danos pré, peri, ou<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 65
pós-natal como pode ter ocorrido no pivete criminoso. A<br />
maioria dos meninos tem uma ideia do mundo mais realista<br />
do que a do menino de rua, principalmente da conduta<br />
das pessoas.<br />
A família e a sociedade em geral vai, pouco a pouco,<br />
se acomodando e assimilando a carreira do “pivete”, que<br />
ela, em grande parte, ajudou a construir. Acostumamo-nos<br />
com seus pequenos delitos e sua aprendizagem progressiva<br />
para crimes mais sérios. Aceitamos passivamente, sem<br />
nos alarmar, sua miséria, sua morte precoce nos acidentes<br />
de trânsito, nos espancamentos sofridos dos próprios<br />
companheiros ou por grupos de extermínio, suas doenças<br />
graves, sua desnutrição, seu tédio proveniente de sua vida<br />
vazia e sem sentido, sua falta de higiene, o uso de drogas,<br />
sua submissão a estupros e, por fim, sua exploração continuada<br />
pelos que se utilizam deles para a prática de roubos,<br />
de relações sexuais e até mesmo de campanhas políticas.<br />
Lamentamos histericamente seu sofrimento com palavras<br />
semanticamente apropriadas para as emoções negativas,<br />
mas sem que nosso coração ou pulmão mude seu<br />
ritmo normal. Assistimos nas imagens da televisão a seu<br />
sofrimento de animal abandonado, no instante da notícia.<br />
Após a hora marcada para “sofrermos” o problema do pivete,<br />
diante do noticiário, desligamos a TV e também nosso<br />
cérebro e o ligamos no canal das diversões. Ao exibir essa<br />
conduta de preocupação simulada, expiamos nossa responsabilidade<br />
na participação desse problema social e reforçamos<br />
a nossa imagem de cidadãos bondosos. Com isso<br />
mantemos um falso equilíbrio e nossa autoestima elevada.<br />
Após o “nosso sofrimento” de hora marcada, saímos<br />
com nossa família saudável e unida para jantar. Passamos<br />
pelo teatro para assistirmos a uma comédia representando<br />
o drama humano. Voltamos para casa para mais um descanso,<br />
agora das diversões do mundo fictício. Deitamo-nos<br />
66 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
para dormir numa espaçosa cama limpa, macia e confortável.<br />
Recuperamos, desse modo, as energias perdidas pelo<br />
sofrimento do dia anterior.<br />
Dormimos um sono tranquilo e sem culpa, como bons<br />
cristãos que somos. Enquanto dormimos, neste momento,<br />
um pivete pode estar sendo assassinado, acidentado ou<br />
estuprado numa noite fria, indiferente, sonolenta e serena<br />
como nós.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 67
comPUtAdor e FerrAdUrA<br />
O homem pós-moderno deixa a luz feérica dos laboratórios<br />
de cibernética, energia nuclear e genética, onde<br />
recompõe a vida, e à noite vai procurar a luz bruxuleante<br />
dos templos de pai-de-santo, cartomantes, gurus, operadores<br />
de pêndulo, onde humildemente busca forças para<br />
viver e resolver seus conflitos.<br />
A cada monumental templo erigido em nome da ciência,<br />
surgem dezenas de outros dedicados às mais estranhas<br />
ideias sobrenaturais. Cada um acha que a sua ideia<br />
é a melhor, após, naturalmente, ter experimentado várias<br />
delas. A confusão é tão grande, as pessoas estão tão perdidas<br />
em busca de um mundo mítico e mágico, que em<br />
Paris apareceu um feiticeiro africano, que conseguiu reunir<br />
os dois mundos numa só idéia: passou a vender coca-cola<br />
benta. O homem pós-moderno é, pois, aquele que toma<br />
coca-cola benta, enquanto opera o seu computador de última<br />
geração.<br />
Essa confusão mental, digamos assim, ocorre no<br />
mundo inteiro. Os jornais e as listas telefônicas americanas<br />
estampam em suas páginas milhares de anúncios de<br />
cartomantes, videntes e outros autorrevelados, interpreta-<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 69
dores desses estranhos sinais de comunicação existentes<br />
nas linhas das mãos, nos olhos, no ar, nas cartas etc., para<br />
uma possível comunicação com o mundo sobrenatural.<br />
Calcula-se que na Inglaterra mais de 10 mil profissionais<br />
dessa área trabalham em tempo integral. Na China,<br />
os dragões saltam dos livros vermelhos para a imaginação<br />
do povo e terror das crianças.<br />
Conta-se que um jornalista ocidental comentou com<br />
um chinês que iria escrever um artigo sobre dragões. O<br />
chinês disse que a revolução havia acabado com essas<br />
ideias.<br />
— Mas é um dragão de penas brancas.<br />
— Mas todo mundo sabe que os dragões não têm penas.<br />
É isso: todo mundo sabe, e provavelmente tem certeza,<br />
que sua crença, religião, seja lá o que for, é a única<br />
certa, a que está mais apoiada em dados e mais, já teve o<br />
seu modelo colocado para estudos em um computador não<br />
menos maluco.<br />
O mau-olhado é universal: os franceses fazem o sinal<br />
da cruz quando ouvem falar em “regard méchant”, os<br />
italianos têm horror do “mal ochio”, que deve ser evitado,<br />
custe o que custar. Em todas as ilhas britânicas, inclusive<br />
naquela em que mora a rainha, uma ferradura é o principal<br />
instrumento capaz de afastar o mau-olhado. Uma pessoa<br />
pode adoecer, uma planta definhar e o gado morrer devido<br />
ao mau-olhado. Todo mundo sabe disso.<br />
Há uma grande diferença entre as crenças pós-modernas<br />
e as líricas que povoaram nossa mente e tornaram<br />
nossa infância mais agradável e rica em sonhos. Criouse<br />
hoje uma simbologia mística complexa, construída pelo<br />
marketing, utilizando-se da ingenuidade inata ou construída<br />
pela propaganda, apoiada no mito do fim do mundo, na<br />
busca de momentos mágicos, de um orgasmo mais excitante,<br />
de benefícios extraordinários da alimentação natural<br />
70 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
ou de um “mundo melhor” com alucinógenos. Cada grupo<br />
organiza-se de acordo com suas atitudes, formando uma<br />
seita que sempre é a correta, pois é uma crença e estas<br />
são sempre certas, com muita fé.<br />
Há uma florescente indústria de “alimentação natural”<br />
onde se defende, com unhas e dentes, a necessidade<br />
dos vegetais serem cultivados sem adubos ou agrotóxicos.<br />
Isso é, puros e virgens como deve ser o homem íntegro.<br />
Há também o puro mel obtido de abelhas treinadas que<br />
não se aproximam de flores envenenadas. A “comida natural”<br />
começa a ser um negócio que é olhado com bons<br />
olhos pelos banqueiros. Eles nunca se enganaram. Nunca<br />
mesmo.<br />
Misturam-se símbolos de alto e baixo nível numa bagunça<br />
total: crucifixos, ferraduras, pé-de-coelho, trevo de<br />
quatro folhas, amuleto, dentes e diversos outros, confundindo<br />
a orientação e a cabeça de qualquer “crioulo doido”.<br />
Cada ferramenta ou símbolo “protege” o indivíduo daquilo<br />
que ele teme, dando-lhe uma pseudossegurança e sentido<br />
para a vida sem sentido.<br />
Isso faz lembrar o grande movimento hippie dos anos<br />
60. Cabelos grandes, jeans, tênis e alguma sujeira era o<br />
máximo de contestação ao “sistema”. A recusa em usar<br />
outros tipos de roupas, acreditavam eles, era uma maneira<br />
de protestar contra o desvairado consumo da época. Pois<br />
bem, os hippies mais espertos se aliaram a não menos<br />
espertos industriais e hoje temos a moda “jovem” vendendo<br />
e muito: ela envolve milhões de dólares. Figurinistas,<br />
cabeleireiros, perfumistas e outros profissionais não tardaram<br />
a entrar no negócio e todos viveram felizes até surgir<br />
uma nova moda, a unissex, que fatura de outra maneira.<br />
Dizem até que a moda unissex foi criada pela conjunção de<br />
heterossexuais não muito convictos e homossexuais ainda<br />
não-assumidos.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 71
A eliminação da individualidade e solidão está sendo<br />
conseguida através do uso de roupas, de penteados, de<br />
discursos e até de fragrâncias, por um mesmo grupo, que<br />
imagina com isso estar protegido e seguro.<br />
Livros estranhos sobre as mais estranhas ideias têm<br />
a mesma tiragem dos livros sobre computação. Calcula-se<br />
que um manual de operação de pêndulo vendeu mais de<br />
100 mil exemplares em pouco mais de um ano. Tome-se<br />
que a tiragem básica no Brasil é de 10 mil exemplares e calcule<br />
o sucesso dos ensinamentos para as ideias místicas.<br />
Revistas místicas de ufologia, comida natural, sexologia<br />
e outras coisas do mesmo gênero são compradas pelo<br />
mesmo leitor que leva as de rock, programação básica e<br />
vídeo. Em alguns países já é possível comprar as antigas<br />
e puras receitas de bruxas em fitas, CDs e DVDs. É o progresso<br />
da ciência.<br />
Os roqueiros gostam principalmente dos conjuntos de<br />
“heavy metal”. Esses são autores e donos de gestos que,<br />
em outras épocas, os levariam diretamente para as fogueiras.<br />
Hoje eles causam o delírio de multidões de jovens,<br />
alegria para os felizes produtores.<br />
Não se sabe realmente o que é mais demoníaco, se<br />
os gestos ou a estrutura publicitária montada em cima do<br />
assunto, criando a necessidade de pertencer aos grupos.<br />
A pessoa deposita no guru a mesma confiança, ou<br />
mais, que a que é descrita no resultado de sua tomografia<br />
computadorizada. Por via das dúvidas, consulta-se os dois:<br />
primeiro o guru, depois o clínico, mergulha-se no mais moderno<br />
arsenal quimioterápico e, caso escape, sai dizendo<br />
maravilhas acerca do guru.<br />
Isso não é de se espantar. Um arsenal de palavras,<br />
sem definição muito clara, tem sido usada por quase todo<br />
o mundo. Mental é uma delas, tem poderes mágicos e coisas<br />
do tipo “melhore sua vida mental”, “controle mental<br />
72 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
em cinco lições”, “controle sua mente”, são amplamente<br />
usadas. Democracia, comunismo, modelo, maduro, carência<br />
afetiva, feminismo, liberdade são outras palavras<br />
mágicas que todos expressam sem saber realmente qual<br />
é o significado delas e cada um, na verdade, cria o seu<br />
entendimento particular. Os embusteiros pós-modernos as<br />
usam a toda hora com os significados que lhes interessam.<br />
Oriente é outra palavra que eletriza as pessoas. De lá podem<br />
vir chips ou filosofia, tanto faz, há consumo para as<br />
duas coisas.<br />
O mesmo olhar embevecido com que o técnico olha<br />
essa maravilha da ciência que é o chip, mais tarde será<br />
utilizado para o guru, dono de frases que serão vendidas<br />
aos milhares em livros distribuídos por todo o país. Produtor<br />
de chips e gurus têm possibilidades iguais de obterem<br />
o mesmo lucro.<br />
Fazer filtros de amor, beber poções mágicas que nossos<br />
pais-de-santo carinhosamente chamam de “garrafadas”,<br />
não exclui o uso da técnica, a vida moderna, a<br />
pesquisa científica e o ensino universitário. Na verdade a<br />
ciência também não escapa às superstições. As explicações<br />
da ciência vão até certo ponto, a partir do qual nascem as<br />
crenças, metáforas ou mitos para fornecer a compreensão<br />
dos fatos onde nenhuma explicação plausível é conhecida<br />
– nem possível – como, por exemplo, os conceitos de<br />
“energia mental” da psicanálise, a representação gráfica<br />
do átomo, o vetor como força física e assim por diante.<br />
As religiões e pseudociências, não sendo testáveis e<br />
tendo por base premissas logicamente interligadas, somente<br />
logicamente, não permitem contestação na sua<br />
composição mística. A tentativa de analisar estes fatos<br />
pelo ponto de vista científico costuma acabar em tragédia:<br />
o pesquisador pode virar guru.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 73
o modeLo dA LAtA de LiXo<br />
Todos vocês conhecem a “lata de lixo” mas provavelmente<br />
não conhecem o “Modelo da Lata de Lixo”, um<br />
termo criado por alguns cientistas desocupados. Eles falam<br />
que em qualquer sociedade sempre se encontram pessoas<br />
que discutem e brigam por certas ideias, as mesmas de<br />
sempre, anos após anos.<br />
Conforme os criadores do Modelo da Lata de Lixo, ao<br />
se iniciar uma discussão em mesas redondas, programas<br />
de TVs e rádios, sempre aparecem, em todos eles, certos<br />
problemas que são os mesmos, várias vezes repetidos, os<br />
quais dominam a atenção de todos no debate. Eis alguns<br />
exemplos desses assuntos que “enchem” os programas,<br />
bem como a fala dos debatedores: “Precisamos estudar<br />
melhor os discos voadores”, “Com o imposto único o País<br />
irá retomar o crescimento”, “Devemos combater as drogas<br />
a qualquer preço”, “Nosso problema é a infância desassistida”,<br />
“O problema do Brasil é a fome”, “Precisamos acabar<br />
com a impunidade do país”, “O mal é o aumento do desemprego”,<br />
“Devemos aumentar o lazer”, etc. O leitor lembrará<br />
de muitos outros problemas importantes para serem discutidos<br />
com ardor.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 75
Como é difícil pensar e trabalhar com muitas ideias ao<br />
mesmo tempo. Sendo muitas delas contraditórias, ao adotar<br />
o modelo da “Lata de Lixo”, as discussões, bem como<br />
os problemas, se tornam simples e fáceis de serem resolvidos.<br />
Através desse modelo, todos os grandes problemas<br />
são facilmente equacionados na mente de seu defensor e,<br />
mais ainda, sua vida. Mesmo quando o argumento não se<br />
encaixa no discutido, os debatedores, seguros e tranquilos,<br />
lutam tenazmente pela importância das brilhantes ideias.<br />
Este modelo é construído da seguinte maneira: ao<br />
nascer, a criança começa a adquirir um sentido do “bom”<br />
e do “mau”, do “certo” e do “errado”, inicialmente através<br />
da observação da conduta dos companheiros mais velhos,<br />
quando ainda não aprendeu a linguagem e, muito menos, o<br />
raciocínio lógico. Um pouco mais tarde, são aprendidos os<br />
valores e condutas, principalmente com o grupo de amigos<br />
e com os “ensinamentos” da mídia. Durante a puberdade<br />
e a adolescência, o aprendizado de valores será através<br />
da imitação dos companheiros de grupo. Para alguns, esse<br />
é o período mais importante e crítico para a aquisição de<br />
julgamentos do “certo” e “errado”. Depois, seus juízos de<br />
valor vão se fixando cada vez mais através das reações<br />
cordiais ou hostis com pessoas importantes para o comportamento<br />
do agente.<br />
Alguns dos valores defendidos com ardor, uma vez assimilados<br />
e armazenados, passam a fazer parte dos objetivos<br />
que devem ser seguidos e dos julgamentos realizados<br />
pelo indivíduo. São eles que fornecem o sentido para a vida<br />
de cada um. Muitos dos “tem de ser”, “devo agir” e “tinha”,<br />
que proferimos constantemente para nós mesmos e para<br />
os outros, nem são normas de conduta definitiva, nem são<br />
universais, isto é, para todas as culturas. Os valores são<br />
apenas objetivos individuais, temporários, seguidos por<br />
uns, rejeitados e amaldiçoados por outros, variando con-<br />
76 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
forme as diferentes culturas e subculturas, podendo também<br />
ser adotados como meios para outros fins. Por isso, os<br />
valores podem, e devem ser, de fato, questionados.<br />
Como temos diversos “professores”, cada um deles<br />
com uma opinião própria, aprendemos valores-fins e meios<br />
antagônicos. Assim, de um lado, como objetivo, aprendemos<br />
que devemos respeitar a professora, por outro lado,<br />
avaliamos que é agradável conversar na sala de aula sobre<br />
a nova namorada com o amigo. Aprendemos que devemos<br />
ser honestos, mas também que precisamos passar de ano<br />
e, como não estudamos, temos que colar. Ao escolhermos<br />
uma conduta contendo, ao mesmo tempo, valores defendidos<br />
opostos, podemos, às vezes, ficar confusos. Assim,<br />
agrada-nos fumar, mas desejamos ter boa saúde, não queremos<br />
ser obesos, mas a carne gordurosa está uma delícia.<br />
Queremos viajar, mas precisamos trabalhar mais ainda<br />
– o que não nos agrada - para ter um dinheiro sobrando,<br />
desejamos a vida com uma companheira compreensível<br />
e carinhosa, mas detestamos as limitações impostas pela<br />
vida a dois ou a três.<br />
Alguns valores podem tomar conta de nossos objetivos<br />
ou meios a vida inteira, como nos exemplos: aos dezoito<br />
anos Pedro decide ser engenheiro e torna-se engenheiro<br />
até a morte, José decide casar-se aos 28 anos com<br />
Marta, a mulher dos seus sonhos. Poderá ficar para o resto<br />
da vida preso a ela e aos filhos nascidos.<br />
Diante de tantas alternativas, pergunta-se:<br />
“Que caminho devo tomar?” Muitos só enxergam e<br />
têm interesse e certeza da existência de um só objetivo<br />
e caminho para se chegar a ele, sendo essa preocupação<br />
solitária que passa a coordenar, dirigir e a fornecer significados<br />
para a vida. Os que fazem parte desse grupo podem<br />
passar a vida fazendo campanhas contra o aborto. Outros<br />
se preocupam com o controle do armamento nuclear.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 77
Alguns lutam a favor do estudo da homeopatia nas<br />
Faculdades de Medicina. Outros lutam em prol da vida das<br />
cobras. Para esses, o voto deve ser dado nas eleições para<br />
o candidato que defender esse ou aquele problema particular:<br />
basta um deles, desde que se encaixe no “Modelo da<br />
Lata de Lixo”. Adotando essa posição, o mundo fica fácil de<br />
ser entendido, explicado e manuseado.<br />
Felizmente, para a felicidade de todos, algumas vezes<br />
um problema pode ser resolvido sem atrapalhar o outro. É<br />
possível tapar os buracos da Rua da Esperança fazendo, ao<br />
mesmo tempo, um mata-burro na Rua dos Sofredores e,<br />
também, prender os ladrões de galinha do Lambari. Coroando<br />
tantas obras, criam-se mais impostos e, como consequência,<br />
aumenta-se os salários dos nobres e digníssimos<br />
deputados.<br />
78 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
eFerendo: UmA deciSÃo imPoSSÍVeL<br />
Devemos ser a favor ou contra o uso de armas, a favor<br />
ou contra a pena de morte? E do aborto? De internar<br />
ou não o paciente psiquiátrico? Manter ou dissolver o maldito<br />
casamento? Eis alguns exemplos de dúvidas que nos<br />
perseguem, quanto à escolha de um valor ou outro.<br />
Um anarquista polêmico defendia a igualdade acima<br />
de tudo. Para ele as universidades deviam ser fechadas<br />
porque formam pessoas desiguais, homens superiores,<br />
comparados aos não-estudiosos. Da mesma forma, um<br />
mundo de perfeita justiça não é compatível com a misericórdia.<br />
A lei exige a pena conforme o delito, a ética religiosa<br />
defende o perdão. A defesa de um valor vai contra o<br />
outro. Existirá apenas um certo?<br />
A liberdade procurada por todos não convive bem<br />
com a igualdade. Se José é livre para fazer o desejado,<br />
ele, sendo mais forte que Gervásio, pode, usando sua liberdade,<br />
agredir seu desafeto. Se defendemos a igualdade,<br />
não devemos ultrapassar outras pessoas quanto aos<br />
bens materiais (propriedades, dinheiro), nem com respeito<br />
aos bens intelectuais, espirituais, artísticos (conhecimento,<br />
perícia, governo, arte). Se ultrapassamos os outros,<br />
nos tornamos desiguais.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 79
A felicidade e o conhecimento podem ser ou não compatíveis.<br />
Alguns pensavam que o conhecimento sempre libera<br />
e salva o homem e aprisiona o ignorante.<br />
Nem sempre ele libera: se fico sabendo que sou portador<br />
de um câncer incurável – um conhecimento - não me<br />
torno mais feliz e mais livre.<br />
Admiramos a criatividade, o nascimento livre das<br />
ideias e obras de arte. Entretanto, essa liberdade não é<br />
compatível com a capacidade de planejamento cuidadoso<br />
e eficaz, sem o qual não pode ser criada nenhuma vida<br />
organizada e segura.<br />
Ter uma companhia amiga é uma meta cobiçada por<br />
todos. Mas são essas companhias – rotuladas de agradáveis<br />
– as principais fontes de futuras dores, da perda da<br />
querida liberdade e do sossego. Os cônjuges brigam entre<br />
si, batem, exploram um ou outro. Os amigos matam, traem,<br />
mentem. Os colegas podem ser egoístas, competitivos<br />
e agressivos. Se estamos livres dos sofrimentos das relações,<br />
não gozamos os prazeres do amor.<br />
Armado e desarmado, liberdade e igualdade, criatividade<br />
e segurança, felicidade e conhecimento, misericórdia e<br />
justiça, solidão e amizade: esses são valores procurados por<br />
todos, mas são incompatíveis entre si. Quando somos obrigados<br />
a escolher, sempre iremos sofrer perdas, às vezes,<br />
trágicas. Esse outro lado da escolha deve ser aceito com<br />
naturalidade, pois, no momento, escolhemos um valor que<br />
parece ser mais importante. Estudar Medicina ou Direito?<br />
A ideia do mundo perfeito, onde só as boas coisas<br />
podem ser realizadas, não existe. A escolha de um certo<br />
valor impedirá gozar o prazer possuído pelo valor descartado.<br />
Há sempre ganho de um lado e perda de outro. Não<br />
existe projeto de vida ideal pelo qual deveríamos sacrificar<br />
nossa vida: não há “vida perfeita”. Essa quimera jamais<br />
será atingida.<br />
80 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Não podemos nem imaginá-la, pois, se observo o lado<br />
bom, também vejo o ruim, sempre são dois lados da mesma<br />
moeda.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 81
A mULtidÃo SoLitÁriA<br />
Se você não é a favor dessa ideia, lute pela contrária.<br />
Assim como os policiais devem combater os criminosos,<br />
alguém deve combater os policiais. É preciso proteger as<br />
árvores, mas é preciso, também, ter mais empregos e indústrias.<br />
Os fiscais devem fiscalizar os preços e nós temos<br />
que fiscalizar os fiscais. Devemos ir ao teatro e ao futebol.<br />
Mas, e o aborto? Ah! Devemos combatê-lo com rigor, mas<br />
precisamos proteger a liberdade e os direitos das mulheres<br />
de terem ou não filhos. Como agir?<br />
Cada um acha que seu problema é o mais importante.<br />
O envolvimento com esses “ideais” fornece ao organismo<br />
um bem-estar, pois aumenta os estoques empobrecidos<br />
pelas frustrações de substâncias químicas como a serotonina,<br />
dopamina, noradrenalina, oxitocina, endorfinas e<br />
outros neuropéptides mais, todas substâncias importantes<br />
para nosso bem-estar. Devem diminuir os impostos que me<br />
atingem e aumentar os dos outros. Precisamos proteger os<br />
animais. Coitado deles! Na primeira oportunidade o defensor<br />
dessa ideia esmaga uma formiga trabalhadora e séria,<br />
aniquila um inocente pernilongo-fêmea que necessita de<br />
um pouco de sangue para que sua espécie não desapareça<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 83
e pisa, sem dó nem piedade, numa barata que passeia calmamente<br />
à noite, na cozinha, em busca de uma paquera<br />
ou de um jantar de migalhas abandonadas. Combate-se<br />
com veemência a matança das raposas que comem as magras<br />
galinhas do lavrador faminto. Tudo são valores! O que<br />
será melhor: comer abóboras ou assistir à ópera, manter<br />
as florestas ou aumentar empregos?<br />
Essas tomadas de posição por algo têm uma importante<br />
função social. Precisamos dessas discussões e devemos<br />
tomar parte nelas. Qualquer movimento social seja<br />
real ou fictício, importante ou não, agradável ou aversivo,<br />
sábio ou idiota, liberta, ainda que por momentos, o indivíduo<br />
de seu vazio, de sua depressão, ou melhor, de sua<br />
desesperança e desamparo com esse mundo confuso. É<br />
preciso estar envolvido! O povo procura, fora de si, uma<br />
“causa” para ser seguida, por isso são sempre bem-vindas<br />
ações governamentais ou não-governamentais para “distrair<br />
o povo”, para promover estoques das benditas substâncias<br />
químicas que nos põem alegres e animados, cheios<br />
de esperança com respeito a qualquer bobagem. Tudo serve<br />
para aliviar o povo do seu desengano, sofrimento e,<br />
principalmente, da ausência de objetivos próprios.<br />
Mas para conseguirmos um alívio mais eficaz do tédio,<br />
precisamos ter companheiros, alguém que tenha a<br />
mesma fé, acredite e lute pelos mesmos valores. Ligados<br />
a uma causa comum, os seres humanos se sentem satisfeitos,<br />
seguros e, quase sempre, entusiasmados com a<br />
própria alienação, bem como a dos amigos. Uma multidão<br />
perdida, uma vez reunida sob o mesmo guardachuva<br />
conceitual, descobre, irmanada, um sentido imaginário e<br />
atraente para participar, de braços dados, de qualquer jornada.<br />
Agarrados uns aos outros, como crianças amedrontadas<br />
se prendem à saia da mãe, esses indivíduos realizam<br />
seus sonhos e esquecem, provisoriamente, da miserável e<br />
84 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
chata vida do dia-a-dia. Amparados em bandeiras podres,<br />
protegidos por venerar os mesmos objetivos duvidosos,<br />
excitados e sem refletir, eles planejam, estabelecem e dão<br />
sentido a um programa de vida sem sentido.<br />
Passam a ter uma “ideal” para lutar, brigar e até morrer.<br />
Quem ainda não entrou para um grupo desses, não<br />
se aflija. Existem vagas em diversos clubes: entre rápido<br />
para o fã Clube de Carmen Miranda, colecione “souvenirs”<br />
deixados por James Dean, Michael Jackson, participe dos<br />
estudos dos Objetos Não-Identificados, frequente o clube<br />
dos machões ou das feministas, compre depressa ingressos<br />
para o maravilhoso “show” do cantor X, o curso para<br />
“Ser Feliz” do Professor Z. Na ausência de tudo disso, faça<br />
parte do clube dos amigos de qualquer coisa. O nome não<br />
importa. Se este não for seu caso, para o bem de sua saúde<br />
mental, comece a comprar. Compre qualquer coisa: um<br />
lápis colorido, um Papai Noel, uma boneca, uma cafeteira,<br />
uma camisa do seu time ou uma arca enorme para guardar<br />
tudo. É tempo de festa. O importante é o entusiasmo por<br />
algo e, talvez, quanto mais ridículo e estranho, maior efeito<br />
terá na produção de energia, de prazer e de alegria de<br />
viver. Esse é o mundo sonhado pelo homem moderno que<br />
está em construção. Ou será em desconstrução?<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 85
gUerrA, HerÓiS e inocÊnciA<br />
Os povos sempre produziram bobos, heróis e trapaceiros.<br />
Talvez precisemos deles. Os bobos servem para nos<br />
divertir, os heróis nos fornecem direção e segurança para<br />
as dúvidas e os trapaceiros nos fazem acreditar, por alguns<br />
momentos, em dias melhores. Uma distinção precisa entre<br />
eles não é fácil, pois as três características se misturam<br />
e se completam. Todos trabalham com o povo: o herói<br />
precisa de um público para admirá-lo ou adorá-lo, o bobo<br />
necessita de risadas da plateia, e o trapaceiro aproveita a<br />
ingenuidade e crendice de suas vítimas.<br />
De tempos em tempos, como ocorre agora, os heróis<br />
(ou seriam trapaceiros?) ocupam os espaços dos jornais.<br />
Eles inoculam nas mentes inocentes, através de discursos<br />
virulentos, estimulantes para o tédio do povo. Sua fala,<br />
desprovida de argumentos, inclui, preferencialmente, sons<br />
com forte teor emocional, frases grandiosas, expressas de<br />
forma direta, simples e vaga, escondendo a complexidade<br />
dos temas discutidos.<br />
Palavras oportunas, em grande quantidade, são disparadas<br />
contra a mente de fanáticos admiradores. Sob o<br />
efeito do discurso, cada um em seu canto, interrompe suas<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 87
eflexões pessoais sobre as eternas desigualdades e injustiças<br />
sociais, esquece sua insuportável solidão, sua vida sem<br />
atrativos e sem perspectivas de mudança. O discurso do<br />
guru, milagrosamente, lhe revela alguma razão para viver.<br />
O líder, consciente da submissão, fraqueza e aturdimento<br />
dos liderados, injeta, pouco a pouco, em suas mentes<br />
macias, a figura do inimigo fantasma. Revelado o inimigo<br />
comum, mesmo sendo cada um muito diferente do<br />
outro, os desgarrados se unem.<br />
As palavras do líder, lançadas com sabedoria e precisão<br />
matemática, produtos de refinadas pesquisas das<br />
agências de propaganda, atingem a mente atordoada do<br />
guerreiro em potencial, sendo que a provocação do ódio<br />
concentra-se, inicialmente, num nome. É difícil odiar um<br />
povo, pois esse, além de não ter personalidade, não pode<br />
ser visto. O combatente virtual só sente e entende o concreto.<br />
Termos usados para expressarmos nossa raiva de<br />
todo dia, são utilizados para identificar o inimigo: demônio,<br />
bandido, louco, ditador, agora, terrorista. Uma vez selecionado<br />
o monstro, estende-se a agressão para o povo<br />
da mesma raça.<br />
Doutrinados pelo ódio ao inimigo comum, os convertidos<br />
se sentem encantados, aliviados e felizes por estarem<br />
defendendo uma causa justa e grandiosa. Extasiados,<br />
sentem nascer, no seu íntimo, um vigor e prazer sublime,<br />
nunca antes vivido, fruto de sua conversão a um “xiismo”<br />
qualquer. Assim, milhões de fanáticos, ligados por uma<br />
ideia comum, partem para o ritual da guerra. Nesse ponto,<br />
os objetivos escusos do líder passam a ser os mesmos dos<br />
seguidores, mais importantes que suas vidas.<br />
Estranhamente, e como é estranha a mente humana!,<br />
esses jovens convertidos, antes desorientados, agora<br />
se sentem seguros e tranquilos. Suas intermináveis e dolorosas<br />
dúvidas: “o que fazer?”, ou “para onde ir?” terminam<br />
88 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
com a adesão à guerra. Na mente dos humildes seguidores<br />
despertam sonhos muito antigos de glória e de poder, inatingíveis<br />
pelos caminhos normais de sua vida. Entretanto,<br />
ao se identificar com os discursos do líder, o soldado imagina-se<br />
importante, conhecido e poderoso.<br />
Claro que ele não será famoso como foi John Smith,<br />
por exemplo, Mas ficará famoso por ter morrido como soldado<br />
do regimento importante, de um país importante. Ele<br />
imagina ser um dia famoso e forte como é seu guia idolatrado,<br />
fantasia dias melhores, paz e felicidade. Começa a<br />
sonhar com seu retorno triunfal, seu nome na imprensa,<br />
garotas belas e carinhosas ao seu redor, numa praia ensolarada,<br />
como sempre viu nos filmes sobre os heróis de<br />
guerras anteriores.<br />
Os que já foram enganados outras vezes por diversos<br />
governantes, esperam mais fatos e menos boatos para se<br />
decidirem. Este grupo sabe que as suas experiências são<br />
altamente diferentes das vividas pelos seus superiores. Os<br />
sons que eles pronunciam são os mesmos que todos nós<br />
pronunciamos, mas essas palavras iguais (“guerra”, “inimigo”,<br />
“ditador”, “terrorista”, “incapaz de governar o povo”, “liberdade”,<br />
“democracia” e outras), expressam experiências<br />
muito diferentes, referem-se a mundos totalmente diversos.<br />
Sadam Hussein foi “Deus” para boa parte do povo iraquiano,<br />
Bush foi apoiado pela maioria do Congresso e por grande<br />
parte do povo americano nas votações. Nós, brasileiros,<br />
já elegemos Jânio, a nossa Câmara já aprovou, sem votos<br />
contra, o governo de Costa e Silva, Médici e outros. Stalin<br />
foi herói na Rússia e Hitler, na Alemanha. Com o passar dos<br />
anos, com mais informações e menor número de versões, a<br />
história poderá ser transformada em novas verdades.<br />
Já assistimos a esse “filme” e já conhecemos o perdedor<br />
- o povo dos dois lados - e os vencedores, os governantes<br />
de algumas nações e certos empresários que, como<br />
sempre, aproveitam a situação. Essa é a sua atividade.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 89
Infelizmente os heróis ou trapaceiros voltaram, discursando<br />
como sempre, conduzindo para a guerra, ou para<br />
diversos caminhos estranhos aos nossos, um rebanho de<br />
jovens inocentes. Seriam os tolos?<br />
Vidas e vidas continuam sendo eliminadas, sem ao<br />
menos perguntar aos crentes seus valores e objetivos. Impõem-nos,<br />
em troca do nada, expelindo palavras vazias,<br />
seus objetivos sórdidos. De tempos em tempos, uma multidão<br />
de ovelhas puras e mansas caminha, antes da hora,<br />
para o outro mundo, conduzida por pastores incapazes,<br />
imbecis ou loucos.<br />
90 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
oS mAiorAiS<br />
Alguns sujeitos têm mais sorte que outros: são percebidos<br />
pela população como possuidores de características<br />
muito “superiores” às normais, por isso são chamados<br />
de “gênios”, “santos”, “heróis”, artistas excepcionais, craques<br />
tipo Pelé ou Ronaldinho ou “grandes bandidos” como<br />
o “Fernandinho” e o “Bandido da Luz Vermelha”. Esses indivíduos<br />
não se transformaram apenas em bons médicos,<br />
excelentes atletas ou artistas, eles se transformaram em<br />
mitos. Chamo a atenção do leitor, pois uma coisa é diferente<br />
da outra.<br />
Alguns indivíduos abandonaram sua “humanidade”,<br />
isto é, as mazelas e singularidades positivas e negativas<br />
próprias dos homens, sofreram uma metamorfose, deixaram<br />
a pele humana e passaram a usar vestimentas gloriosas<br />
dos maiorais, tornaram-se “heróis”, “santos” ou “malfeitores”<br />
extraordinários.<br />
Faço uma pergunta para mim mesmo: O que faz com<br />
que um determinado indivíduo, aos poucos, deixe de ser<br />
homem e torne-se mito? O que leva uma pessoa a receber<br />
uma categorização de tão alto nível? Não estou falando de<br />
uma habilidade comum como “ter um bom ouvido”, uma<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 91
“bela voz” ou uma boa memória. E muito mais: por que<br />
o processo de cristalização dessas honrarias ou acusações<br />
se deu em torno daquele determinado indivíduo e não de<br />
outro qualquer? De modo concreto: por que Santo Antônio<br />
tornou-se santo numa certa época e não antes ou depois e,<br />
além disso, santo casamenteiro, S. Judas Tadeu metamorfoseou-se<br />
em protetor das “causas perdidas”, Fernandinho<br />
Beira-Mar, virou um perigosíssimo bandido?<br />
Frustro o leitor. Não tenho respostas, tenho especulações.<br />
Talvez certos indivíduos sejam possuidores de determinados<br />
aspectos físicos, intelectuais ou morais, que se<br />
adaptam melhor a uma história mítica pré-existente, bem<br />
conhecida, contada repetidamente. Um certo modo de ser,<br />
de olhar, andar, bem como as roupas usadas, etc., facilitariam<br />
uma melhor assimilação conforme o modelo de “Cinderela”,<br />
enquanto outro se assemelha mais ao estereótipo<br />
de “demônio”.<br />
Todos nós, muito cedo, ouvimos, emocionados, histórias<br />
míticas ou lendas, contadas pelos nossos pais, avós,<br />
professoras, entre elas: Gata Borralheira, Chapeuzinho<br />
Vermelho, Robin Hood, Gúliver. Por outro lado, também os<br />
jornais, filmes e TVs nos informaram acerca de bandidos<br />
espetaculares e craques fora-de-série. Pode ocorrer que,<br />
mais tarde, ao observarmos certas condutas, determinamos<br />
e selecionamos certos aspectos da pessoa e, após enfatizá-las,<br />
identificamos os atributos com as características<br />
armazenadas em nossa mente do mito: “Oh! É a própria<br />
Gata Borralheira!”, “Esse é outro Pelé!”, “É outro bandido<br />
da mala”. Com as pistas e as noções memorizadas da lenda<br />
aprendida, associamos alguns fatos percebidos do indivíduo<br />
alvo. Os fatos selecionados e enfatizados, muitas vezes, são<br />
características quase ou nada significativas, seja no aspecto<br />
físico, seja na conduta do indivíduo observado para que<br />
seja dado o rótulo final de gênio ou de santo. De posse das<br />
92 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
ideias da lenda armazenadas em nossa memória, assimilamos<br />
o cidadão focalizado e passamos a classificá-lo disso<br />
ou daquilo. Não sei se essa explicação tem algo de verdadeiro,<br />
mas é um palpite meu nesse momento.<br />
Mas vamos um pouco além dessa ideia, pois já penso<br />
ser ela simples demais, até um pouco boba. Talvez ganhe<br />
mais sua atenção com as novas suposições que acabei de<br />
ter. Na maioria das vezes, o rótulo colocado é percebido<br />
pelo “rotulador” como tal, ou seja, como rótulo. Nesse<br />
caso, o “rotulador” reconhece claramente que o rotulado<br />
não é o personagem do mito. Exemplificando: a pessoa<br />
sabe que o símbolo por ele usado ao chamar determinada<br />
mulher de “Gata Borralheira” não representa a realidade,<br />
pois ela é, de fato, a lavadeira Teresa.<br />
Entretanto, algumas vezes ficamos confusos e podemos<br />
confundir as ideias estocadas em nossa mente com<br />
respeito ao mito com a pessoa identificada e, posteriormente,<br />
rotulada. Nesse caso, passamos a acreditar que<br />
Teresa é a “Gata Borralheira” e não a lavadeira. Não se<br />
assustem, isso não é tão raro assim. É bastante comum.<br />
Isso torna a coisa complicada. Passamos a denominar e,<br />
logicamente, a enxergar ou tratar a pessoa rotulada conforme<br />
o rótulo usado: gênio, herói, santo, milagreiro, etc.<br />
Assim, passamos a acreditar totalmente na nossa categorização,<br />
no rótulo usado, deixando de lado o exame ou as<br />
observações possíveis de serem realizadas.<br />
Vamos imaginar, como exemplo, a afirmativa: “Minha<br />
mãe foi uma santa”. Se repetimos isso diversas vezes,<br />
contando para os outros e para nós mesmos, aos poucos,<br />
para nós, ela se torna “santa”. Entretanto, ela jamais agiu<br />
conforme as determinações dos candidatos a santos, mas<br />
passamos a acreditar nas nossas ideias, que eram inicialmente<br />
meras suposições e, numa época, sabíamos que estávamos<br />
conjeturando. Aos poucos, com segurança, sem<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 93
dúvida, passamos a acreditar na nossa ideia delirante, que<br />
nossa mãe, sem dúvida nenhuma, foi mesmo uma santa,<br />
não a do pau oco.<br />
Nesse caso, falamos que houve uma transformação<br />
do real para o ideal. Como afirmou o “gênio” Pascal: “Aja<br />
como se acreditasse; reze, ajoelhe-se e você acreditará, a<br />
fé chegará por si”. Você poderá lembrar de outros rótulos:<br />
burro, bonito, inteligente, esperto, molenga, educado.<br />
Vamos a outro exemplo: por mais que a pessoa demonstre<br />
que ela é gente como a gente, como ocorreu com<br />
Maria da Silva que tem diarreia, menstruações dolorosas,<br />
alimenta e defeca, age, muitas vezes, burramente, como<br />
todos nós, passamos a imaginá-la como santa, sábia ou<br />
uma perigosa bandida, isso não importa. Ela passa a ser<br />
classificada como muito diferente de nós. Num grau semelhante<br />
e muito frequente, não sei bem se pequeno ou<br />
grande, a rotulação inadequada ocorre quando amamos ou<br />
odiamos alguém. Embevecido, arrebatado pelo desejo e<br />
paixões avassaladoras, Amadeu visualiza e categoriza sua<br />
amada, não como ela é de fato: com sua perna fina e as<br />
coxas grossas, um ombro mais alto do que outro, a testa<br />
cheia de rugas. Ele a enxerga, sim, conforme os mitos que<br />
possui acerca da beleza e elegância e, inconscientemente,<br />
como afirmou Pascal, passa a enquadrá-la: “um corpo esbelto,<br />
uma testa lisa e sedosa, olhos brilhantes e sedutores<br />
e uma sagacidade de espantar, um amor de mulher”. A<br />
“sabedoria” popular tem um provérbio para resumir tudo<br />
isso de forma mais simples e mais exata do que escrevi:<br />
“Quem ama o feio, bonito lhe parece”.<br />
Portanto, algumas pessoas se transformam em mito<br />
para um indivíduo - como exemplifiquei acima - outros,<br />
para um grupo, país ou para grande parte da população,<br />
como ocorreu com a Irmã Teresa de Calcutá. Esta, como<br />
consta na sua história, viveu parte de sua vida como uma<br />
94 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
santa, mas não toda a vida. Sei que é difícil ir contra esse<br />
estereótipo para os seguidores do catolicismo. Alguns leitores<br />
não gostaram, franziram a testa reprovando minhas<br />
especulações. Mas essa afirmação encaixa-se no exemplo<br />
geral do que estou descrevendo: uma transformação ou<br />
um estereótipo mítico de uma pessoa que viveu, até uma<br />
época de sua vida, como todos nós.<br />
Podemos dizer, de uma outra maneira, que a população<br />
absorveu a pessoa indicada, que ela se encaixou no<br />
assimilador mítico pré-existente (mito do herói, do rei justo,<br />
do fora-da-lei, do nobre, do santo, do sábio etc.) como<br />
pessoa mítica, isto é, possuidora de características excepcionais<br />
anteriormente já descritas para outras figuras mitológicas.<br />
Esse encaixe do indivíduo ao mito do herói, santo<br />
ou demônio, apareceu muito cedo na imaginação dos<br />
homens.<br />
Uma vez iniciada a construção do mito, ou seja, a<br />
transformação de um homem normal num mítico excepcional,<br />
esta edificação continua através de sua vida. A partir<br />
do seu reconhecimento como homem extraordinário,<br />
seus novos feitos ou condutas, geralmente semelhantes<br />
às de todos nós, passam a ser vistas de forma deformada<br />
pelo novo estereótipo existente. A conduta do ser mítico é<br />
observada e julgada com os novos óculos usados, o novo<br />
prisma deformador da realidade, de acordo com o rótulo<br />
recebido: santo, herói, malfeitor, um amor de mulher,<br />
super-honesto ou outro qualquer.<br />
Nomeado herói, santo, craque, grande artista, os esforços<br />
são feitos para que ex-candidato à figura mitológica,<br />
uma vez empossado no cargo, se estabilize, ou seja, não<br />
retorne à sua normalidade anterior, a de um homem medíocre<br />
como são os homens comuns como eu e você, leitor.<br />
Dessa forma, os fatos ocorridos anteriormente - antes da<br />
pessoa ter se tornado uma “figura mítica”, a “santa” ou o<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 95
“herói” - passam a ser examinados de maneira deformada.<br />
Procuramos dar aos fatos comuns uma conotação “santificada”,<br />
“heróica”, para se adaptar ao novo status atingido.<br />
Ele não é mais um homem qualquer, logo, não mais<br />
pode ser examinado como tal, ele agora é Chico Xavier,<br />
um santo, um homem extraordinário, boníssimo. Não poderemos<br />
mais enxergar nele as características humanas<br />
que todos possuímos, pois ele é um ser diferente, só pode<br />
ser examinado, observado e avaliado conforme o molde<br />
mítico existente na mente dos observadores. Sentimo-nos<br />
mal, sentimos asco, se usarmos nosso assimilador mental<br />
normal para examinar Moisés, Chico Xavier, Madre Tereza,<br />
Freud, nosso pai, mãe e, logicamente, nossa querida namorada<br />
atual, pois depois ela se transforma numa pessoa<br />
semelhante às outras...<br />
Temos a tendência de manter inalterável um determinado<br />
modelo que temos das pessoas com as quais lidamos.<br />
Assim, por exemplo, se gosto de uma pessoa, procuro atos<br />
seus que comprovem minha hipótese, inclusive os fatos<br />
que aconteceram antes de conhecê-la. Por outro lado, não<br />
percebo, não aceito ou não acredito nos eventos que negam<br />
as crenças existentes em minha mente. Se odiar, uso<br />
o raciocínio oposto.<br />
Muitas vezes, após aceitarmos por muito tempo algum<br />
indivíduo como super-homem (herói, bandido, etc.) damos<br />
uma rasteira no seu prestígio, destruímos sua santidade<br />
ou heroísmo, transformando-o num homem normal.<br />
Isso tem ocorrido entre os grandes estadistas e, mesmo<br />
entre os santos, alguns foram destituídos do status que<br />
gozavam.<br />
O candidato a covarde ou herói, demônio ou santo,<br />
dando tudo certo, não surgindo nenhum acidente de percurso,<br />
se transforma em mito e passa a ser admirado como<br />
tal. Mas não devemos nos esquecer do essencial: fomos<br />
96 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
nós, os “rotuladores”, que o construímos, para isso usamos<br />
mais os símbolos de histórias míticas anteriores, e menos<br />
a realidade observada.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 97
A FABricAÇÃo do Homem ForA-de-SÉrie<br />
Nossa cultura tem poucas fórmulas para usar como<br />
receitas para fabricar os nossos atuais super-homens: heróis,<br />
santos e outros fora-de-série. A mente humana, esgotada,<br />
interrompeu sua fábrica criativa de novos padrões<br />
capazes de transformar um homem comum num mítico.<br />
Sem outra alternativa, só nos resta aplicarmos o modelo<br />
antigo existente num ou noutro candidato a esse posto tão<br />
cobiçado. Para que os candidatos possam se adequar aos<br />
modelos e símbolos pré-existentes dos antigos mitos é preciso<br />
que eles exibam modos de agir e de pensar sugerindo<br />
figuras míticas conhecidas. Quais seriam as características<br />
necessárias para que um indivíduo, até certa época igual a<br />
todos os outros homens, passe a ser percebido, observado<br />
e finalmente rotulado de gênio, herói ou santo?<br />
Sabemos que o fantástico sempre esteve presente na<br />
vida do candidato a mito. O incrível dominou a vida dos<br />
santos, do nascimento à morte, seu azar e ao mesmo tempo<br />
sua capacidade imensa de suportar provações terríveis<br />
sem abandonar seus objetivos. Ouvimos inúmeras histórias<br />
acerca dos cavaleiros que realizaram façanhas sobrehumanas<br />
na política, religião, esporte, proezas jamais realizadas<br />
por nós, pobres mortais de segunda classe.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 99
Um outro fator necessário à fabricação do mito tem<br />
sido seu nascimento e sua morte diferentes da dos outros<br />
homens.<br />
Histórias incríveis têm sido contadas para descrever o<br />
nascimento da figura mítica, enquanto outros relatos associam<br />
a morte do mito às grandes catástrofes.<br />
Uma associação da morte do herói com as desgraças<br />
sociais leva a população a imaginar uma ligação de causalidade<br />
entre os dois fatos. Na mente de seus adoradores,<br />
a morte do herói passa a ser “causa” dos sofrimentos do<br />
povo, gerando o raciocínio de que, caso ele estivesse vivo,<br />
os acontecimentos tomariam um rumo diferente. “A partir<br />
da morte de minha amada não fui mais o mesmo homem”.<br />
Os heróis ou santos não morrem como nós. As histórias<br />
nos mostram que a maioria dos super-homens teve morte<br />
trágica. Não fica bem para um ser excepcional ter uma<br />
morte devida a um nó nas tripas ou um engasgo com um<br />
naco de carne. A morte desastrosa sempre estimulou a<br />
mente popular, para lembrar e venerar mais e mais seu<br />
herói predileto por algum tempo. Os mais velhos recordam<br />
alguns de nossos mitos e suas mortes: João Pessoa, Getúlio<br />
Vargas, Juscelino Kubitschek e outros.<br />
O processo de cristalização de personagens míticas<br />
não se restringe a governantes. Como exemplo de mitos<br />
não-governantes podemos citar: Padre Eustáquio e Ayrton<br />
Senna. Mas, além desses heróis, o molde mítico pode<br />
adaptar-se também a outros tipos, os chamados heróismarginais<br />
ou vilões populares: Robin Hood, Escadinha,<br />
Mariel Mariscot, Fernandinho Beira-Mar, Lúcio Flávio, Hussein,<br />
Bush e outros.<br />
A sabedoria também é um fator importante na feitura<br />
do mito. Não se pode conceber um santo ou um herói burro.<br />
Um Ulisses da Odisséia, ou o Guimarães, Einstein, Churchill<br />
ou Lenine, foram considerados, todos, muito inteligentes.<br />
100 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Incorporado à sabedoria, o homem-mito necessita ser sagaz<br />
e esperto, além de possuir a bravura e audácia, como<br />
tem sido descrita pelos admiradores de Hitler e Stalin.<br />
Precisa ainda ter uma força extraordinária, como Hércules,<br />
Atlas, e também, se possível, poderes imensos que<br />
possibilitam ligações com outros deuses excepcionais, ou<br />
mesmo sobrenaturais: Lao-Tsé, Buda, Confúcio e Maomé,<br />
entre outros.<br />
Alguns homens que foram transformados em mitos<br />
assimilaram, ao mesmo tempo, diversos estereótipos míticos,<br />
eles se encaixaram entre os “plurimitos” ou “supermitos”.<br />
Esses felizardos, inicialmente, tiveram um nascimento<br />
fantástico, depois, uma sabedoria superior ao homem<br />
comum, além disso, possuíam a esperteza dos fora-desérie<br />
e ligações poderosas com forças do bem ou do mal.<br />
Tinham ainda, para esnobar, uma força física extraordinária<br />
e feitos impossíveis para os normais. Um exemplo<br />
desse supermito é o de Ulisses, o da Odisséia de Homero,<br />
retratado há mais de 2.000 anos. Este mito encarna as peripécias<br />
sensacionais de um herói capaz de causar inveja a<br />
qualquer candidato a aprendiz de semideus ou de deus.<br />
Lamentavelmente, muitos supermitos e mitos, da<br />
mesma forma que se tornaram homens percebidos como<br />
superiores, rapidamente se transformaram em antimitos.<br />
O povo, ora elege um homem a santo ou guerreiro, ora o<br />
destrói, tão rapidamente como o construiu. O mito anterior<br />
torna-se um covarde, demônio ou idiota. A história nos<br />
mostra como a ascensão de diversos ídolos mundiais teve<br />
uma duração efêmera: Hitler, Stalin, Mussolini, Getúlio<br />
Vargas e Collor são alguns exemplos. Muitos – nem todos -<br />
anos depois de atingirem o status de mitos, passaram a ter<br />
dores de barriga, câncer, doença de Alzheimer, adoeceram<br />
e morreram, confusos, esqueléticos, fracos e submissos,<br />
como possivelmente acontecerá a todos nós.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 101
o QUe deSeJAm AS PeSSoAS?<br />
Muitas pessoas desejam não ser obesas, nem cheirar<br />
mal, ter filhos lindos e saudáveis, ter boa saúde, belos<br />
dentes e um sorriso bonito. Ter dinheiro, boas roupas, um<br />
carro possante, uma casa sem barulho, segura e confortável.<br />
Estar cercadas de amigos e familiares, não serem<br />
feias, amar e serem amadas, possuir coisas valiosas, ter<br />
sucesso na profissão e no casamento. Terem uma autoestima<br />
alta, não serem passadas para trás, fazerem viagens<br />
maravilhosas e, por fim, terem uma boa velhice e uma<br />
morte digna.<br />
Mas as pessoas não se preocupam se seu desejo,<br />
uma vez realizado, será bom ou não para elas. Nossos<br />
desejos estão presos a valores e estes são transmitidos na<br />
infância, aprendidos sem critério do meio social ou surgem<br />
como reações ao ambiente. As crenças, desejos e os valores<br />
passam de uma pessoa à outra, geralmente na infância<br />
e adolescência, através do contato e aprendizagem com<br />
indivíduos “dignos de crédito”.<br />
Cada pessoa, dependendo do seu sistema de valores,<br />
de suas premissas básicas, defende com ardor seus desejos.<br />
Assim, o “hedonista” valoriza e quer “levar vantagem<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 103
em tudo”, busca o prazer e foge do sofrimento. O prático,<br />
adepto da ética utilitária, dá prioridade ao útil. Os seguidores<br />
da ética social afirmarão seguros: “tudo que melhore as<br />
condições sociais dos homens deve ser procurado em primeiro<br />
lugar”. Os fiéis da ética religiosa evitam os pecados<br />
e procuram a conduta virtuosa revelada e prescrita pela<br />
religião seguida. Para os “naturalistas”, adeptos da ética<br />
do organismo, o bom é ter uma mente sã junto ao corpo<br />
forte, bonito e saudável e, assim, devemos fazer exercícios<br />
físicos, comer frutas e legumes, evitar bebidas alcoólicas,<br />
drogas e o fumo. Os relativistas, em dúvida, pensam: “o<br />
critério do que é bom e mau depende do indivíduo e da<br />
situação onde se dá o fato, tudo é relativo”.<br />
Os artistas, seguidores dos valores estéticos, exaltam<br />
o belo e o sublime e rejeitam o feio e o ridículo. O<br />
justiceiro, defensor incansável dos valores do que é certo,<br />
luta, com as leis ou as armas, pela justiça e punição dos<br />
“culpados”. Os adeptos da política discursam em defesa<br />
do poder, do governo e, por fim, os lógicos lutarão pela<br />
verdade, a certeza e abominam o raciocínio incongruente<br />
ou falso. Existem outros valores defendidos com “unhas e<br />
dentes” pelos seus partidários. Todo homem valoriza mais<br />
alguma coisa do que outra e pensa que os valores do outro,<br />
quando diferentes dos seus, são mesquinhos, idiotas<br />
e absurdos.<br />
Não existem valores objetivos. Não se pode falar que<br />
isto é melhor do que aquilo, ou é “melhor” comer chuchu<br />
do que dançar”. Não se pode comparar uma coisa com a<br />
outra, quando não há parâmetro para isso. Não há nada<br />
que seja bom para todos e mau para todos. Os governantes<br />
sofrem por isso. Os moradores da rua Maria de Souza<br />
acham que a prefeitura deveria, prioritariamente, calçá-la,<br />
mas a comunidade do Bairro Esperança pensa ser “absurdo”<br />
não existir uma linha de ônibus para servir a região.<br />
104 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Um grupo acha que as árvores devem ser cortadas para a<br />
construção de uma fábrica, pois esta gerará mais empregos<br />
em Santana da Misericórdia. Mas outros fazem abaixoassinado<br />
contra o corte, pois este irá perturbar o equilíbrio<br />
ecológico.<br />
As nossas instituições sociais não possuem uma maneira<br />
fácil ou mágica de tratar os valores antagônicos e<br />
múltiplos, como se descreveu acima. Precisamos de empregos<br />
e de um bom meio ambiente. As discussões acerca<br />
do melhor, para um ou para todos, continuarão eternamente,<br />
para alegria dos defensores de qualquer uma dessas<br />
ideias.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 105
Homem: AnimAL contrAditÓrio<br />
O homem é um animal “fora de série”, estranho e desadaptado.<br />
Somos isolados, mas vivemos altamente ligados<br />
uns aos outros. Temos uma parte da mente que pensa,<br />
às vezes com alguma lógica, e ao mesmo tempo, uma outra<br />
parte da cabeça presa ao organismo - glândulas, órgãos,<br />
músculos – reage instintiva e automaticamente aos estímulos,<br />
portanto, somos irracionais em diversas ocasiões.<br />
Às vezes somos bondosos, oferecemos muito de nós mesmos<br />
em benefício de nosso irmão, em outros, o assaltamos,<br />
o estupramos ou o matamos. Oscilamos, passando de<br />
um modo de viver cheio de alegria, esperança e fé, para o<br />
mais completo desespero e ódio. Buscamos ansiosamente<br />
a ajuda médica por pequenos problemas de saúde e, muitas<br />
vezes, menosprezando a própria vida, nos suicidamos.<br />
Trabalhamos duramente para conseguirmos recursos<br />
visando obter casa, comida e segurança. Entretanto,<br />
ao atingirmos o desejado, passamos a comer exageradamente,<br />
acumulamos dinheiro desnecessário e arriscamos<br />
nossa vida em atividades perigosas como lazer. Fazemos<br />
guerras, para conseguirmos a paz. Lutamos contra os poderosos<br />
e quando estamos no poder, quase sempre atu-<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 107
amos de todas as formas, no sentido de eliminar os de<br />
menor poder. Criticamos violentamente os torturadores<br />
e, na primeira oportunidade, passamos a agir como eles.<br />
Buscamos de todas as formas possíveis uma companhia,<br />
e quando a conquistamos, a achamos aborrecida e vamos<br />
atrás de outra.<br />
Censuramos a censura, quando ela é extirpada, cada<br />
grupo ideológico reclama seu retorno. Como equilibrar-se<br />
numa “zorra” dessas? Esses pensamentos me ocorreram<br />
ao lembrar-me de Cícero.<br />
Conheço-o há longos anos, acho mesmo que desde<br />
criança. O nosso convívio sempre foi muito íntimo e isso<br />
permitiu obter muitas informações a seu respeito, como, até<br />
mesmo, elaborar algumas teorias acerca de sua vida. Apesar<br />
dessa proximidade, na maior parte das vezes eu não o entendo<br />
e, quando suponho compreendê-lo, vejo que falhei.<br />
Cícero é um pesquisador sério da natureza. Lê muito,<br />
presta atenção a tudo e armazenou, ao longo dos anos,<br />
vastos conhecimentos científicos e históricos do mundo e<br />
do homem. Entretanto seu “radar” é muito abrangente e<br />
pouco seletivo. Desse modo ele captou também crenças<br />
infundadas, superstições diversas, ideias religiosas emitidas<br />
por qualquer seita moderna e, além disso, aceita inúmeras<br />
“verdades” do senso comum. A cabeça do Cícero<br />
virou uma verdadeira salada, contendo informações desordenadas,<br />
contraditórias e pouco plausíveis. Todas elas<br />
seguidas e defendidas com o mesmo vigor e entusiasmo. O<br />
resultado tem sido drástico. Diante de tantas informações<br />
niveladas em termos de valor, algumas sérias, outras nem<br />
tanto, ele foi arrastado para uma profissão que lhe é imprópria,<br />
escolheu amigos inadequados ou incompetentes,<br />
casou-se com uma mulher que não lhe assentava e criou<br />
seus filhos na falsa esperança que boas intenções são suficientes<br />
para conduzir a uma boa educação.<br />
108 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Mas Cícero é um homem bravo, valente e teimoso.<br />
Ele continua confiante no “mapa” desajustado e confuso<br />
existente em sua mente e vai em frente.<br />
É claro que o “território” onde ele está pisando é bastante<br />
diferente do “mapa” existente em sua representação<br />
mental. Portanto, quando ele está deitado em sua cama,<br />
pensando que tudo vai bem, ao levantar-se e ao agir, ele é<br />
obrigado a perceber que o “mapa” que representa seu mundo<br />
é um, o mundo real é outro. Assim, meu grande amigo,<br />
frequentemente lamenta-se para si ou para os outros: “Sou<br />
um desastrado, um sem sorte, tudo que tento dá errado”.<br />
O modelo que construiu de si mesmo e do mundo,<br />
nesse caso, foi acrescido de mais uma crendice: “Sou um<br />
sem sorte”. Assim Cícero gasta parte de seu precioso tempo<br />
lastimando-se, utilizando pouco seus recursos e potencialidades.<br />
Por tudo isso, ele fracassa em diversas atividades,<br />
perde a oportunidade de obter várias satisfações e<br />
exibe ressentimento e infelicidade.<br />
Cícero não se emenda, pois, por mais que ele transgrida<br />
as leis da natureza e da sociedade, ele não modifica seu<br />
modo de pensar e agir, isto é, não aprende com a experiência<br />
vivida. Ele é, como disse, um sujeito contraditório, em<br />
certas ocasiões Cícero só cuida de si. Nessas ocasiões, ao<br />
ser importunado, agride, xinga ou, no mínimo, não ajuda<br />
ninguém. Outras vezes, porém, gasta seu tempo, que é curto,<br />
ajudando, ouvindo lamentações aborrecidas dos outros,<br />
até mesmo de pessoas que mal conhece ou que sabe que<br />
não gostam dele. Durante essa fase, ele empresta dinheiro,<br />
procura emprego e aconselha pacientemente os pedintes.<br />
A maneira de pensar de Cícero também é estranha.<br />
Ele é economista, seu raciocínio é lógico, tanto no serviço<br />
como nos aspectos de sua vida relacionados à sua área de<br />
trabalho. Eu diria até que “lá” ele pensa matematicamente.<br />
Não há imprecisão ou ideias preconceituosas.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 109
De cada premissa elaborada, sempre bem postada,<br />
ele deduz conclusões com proposições que não contêm nenhuma<br />
dúvida, exibindo clareza de pensamento produzido<br />
por uma razão lúcida e expresso sem palavras ambíguas.<br />
Pois bem, o racional Cícero, ao abordar outros problemas<br />
humanos fora do seu domínio estrito, se lambuza<br />
todo. Quando abordava os temas do dia-a-dia, na política<br />
ele é brizolista, em religião, ele abraçou as ideias do<br />
Boff, no amor... bem não posso revelar, e até no futebol,<br />
onde sua paixão é o Atlético, ele se torna, de repente, um<br />
perfeito animal irracional. Toda sua bela lógica mental é<br />
transformada em palpites, preconceitos, desejos, fé cega,<br />
superstições, incoerências uma após outras, deduções<br />
apressadas, hipóteses duvidosas e não comprovadas e assim<br />
por diante, de modo a envergonhar qualquer tratado<br />
elementar de lógica. Nesses momentos, o Cícero torna-se<br />
outro ser, um não humano, carregado de emoção, impulsivo,<br />
não sabendo mais argumentar e nem ouvir argumentos<br />
de seu opositor. Levanta a voz, enfurece-se, desafia, às<br />
vezes parte até para as “vias de fato”.<br />
Eu, que já conheço essas reações, o perdoo. Mas é<br />
comum ele brigar até comigo, grande amigo seu, quando<br />
se torna irracional. Depois, mais tarde, arrependido, ele retorna<br />
com a sua outra mente e eu o aceito como sempre.<br />
Cícero não me surpreende só nesses aspectos. Olho-o<br />
com tristeza, lamentando comigo mesmo como pode uma<br />
pessoa que tem uma bela inteligência, experiência, crítica<br />
e cultura ser tão preso às regras, sem nunca duvidar delas,<br />
agindo como um cordeiro às suas imposições.<br />
Levanta-se sempre à mesma hora, vai para o serviço,<br />
pelo mesmo caminho, nunca falta a este, chega no mesmo<br />
horário, deixa o carro no mesmo lugar. Repete no trabalho,<br />
maquinal e automaticamente, as mesmas atividades, os<br />
mesmos gestos, sorrisos, expressões e conversas, usando<br />
110 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
frases apropriadas para cada pessoa. Nada é criado, nada<br />
é diferente. Parece haver dentro dele um medo à espontaneidade,<br />
um pavor em ser diferente, um culto à mesmice.<br />
Seu “computador mental” é dominado no serviço, no lazer,<br />
em tudo, uma programação repetitiva e monótona. Mas, já<br />
disse que o Cícero espanta-me.<br />
Surpreendo-me com ele, em nossas tertúlias ocasionais,<br />
principalmente após alguns cervejas bem geladas,<br />
que descem devagar. Nesses momentos aparece um novo<br />
programa no seu “computador mental”. Cícero torna-se<br />
um indivíduo prático, criativo e com propósitos individuais.<br />
Critica com sabedoria e elegância todos os modelos humanos<br />
existentes que paralisam o ser humano.<br />
Sob o efeito do álcool ele cresce, abandona o automatismo,<br />
começa a filosofar, critica as “verdades” que ele,<br />
no trabalho, segue sem pensar, defende a necessidade do<br />
crescimento do indivíduo como meta principal para qualquer<br />
ser humano cuja missão fundamental seria atualizarse.<br />
Põe em dúvida diversos valores geralmente seguidos<br />
inconscientemente pela multidão solitária e sem rumo.<br />
Nesse momento, ele traça planos, chegando até a executar<br />
alguns deles nos dias seguintes.<br />
O novo Cícero defende a necessidade de nos libertarmos<br />
dos preconceitos e das superstições, de seguirmos<br />
objetivos mais humanos e mais produtivos.<br />
Entusiasmado, acredita que dentro de nós há recursos,<br />
energia, força e coragem suficiente para transformar<br />
esse mundo injusto e massacrante, num mundo melhor.<br />
Esses arroubos são, porém, rapidamente amortecidos...<br />
Fico confuso: jamais entendi Cícero. Entretanto, após<br />
pensar um pouco, descobri que ele se parece comigo e<br />
também com todos vocês, meus caros leitores, com os<br />
seres humanos...<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 111
A VerdAde de cAdA Um<br />
A conduta do homem é determinada pelo que ele pensa,<br />
acredita, representa e prevê. Através do trabalho cognitivo,<br />
ele tenta construir para si um mundo significativo e,<br />
para isso, ele classifica e ordena uma multidão de fatos, de<br />
objetos e de pessoas, que julga conhecer em detalhes.<br />
Os acontecimentos estão constantemente ocorrendo<br />
em torno de nós e são ordenados de acordo com diferentes<br />
concepções ou interpretações. Somos nós, conforme<br />
nosso próprio modelo mental, que organizamos, em nosso<br />
pensamento, certos acontecimentos e não outros, enfatizando<br />
alguns deles, valorizando uns mais do que os demais<br />
e criando assim sentido para fatos não organizados<br />
e sem significado. Nunca chegamos a captar a verdade<br />
“verdadeira”, pois ela é realmente criada de acordo com o<br />
momento que estamos vivendo, adequada àquela situação<br />
particular.<br />
Com frequência, acreditamos estar de posse da verdade<br />
ao percebermos certa relação prática e funcional entre os<br />
nossos desejos e esperanças e os resultados aparentes de<br />
nossas ações. Ao estabelecermos apenas uma concepção da<br />
realidade caótica, eliminamos várias outras interpretações<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 113
possíveis, e ficamos convencidos ser a nossa análise a única<br />
aceitável ou correta. Vejamos alguns exemplos: um garoto<br />
residindo na zona rural criou um modelo de diversão a partir<br />
de uma bola, um cão e algumas brincadeiras existentes em<br />
sua cidade. Um dia ele veio passear em BH e visitou um parque<br />
de diversões. Provavelmente ficou boquiaberto, confuso<br />
ao ver tanto brinquedo desconhecido.<br />
Ora, o “deslumbramento” seria o oposto caso o menino<br />
estivesse acostumado a visitar a Disney World. Um segundo<br />
exemplo: uma adolescente de 15 anos conquista o seu<br />
primeiro namorado, um imberbe de 16 anos. Fica encantada<br />
com suas declarações de amor, com sua técnica eficiente<br />
de abraçá-la e beijá-la. Posteriormente, conhece um rapaz<br />
treinado nessa arte com esmero. A mocinha passa a ter um<br />
novo modelo, uma nova “verdade” do que seria um “bom”<br />
namorado e reformulará o seu julgamento inicial.<br />
O amigo leitor poderá lembrar-se de vários exemplos<br />
pessoais: suas preferências culinárias antigas e as de hoje.<br />
Suas escolhas passadas e as atuais quanto a música, passeios,<br />
política, literatura, programas de TV, futebol, etc. A<br />
sua concepção do mundo, com a idade tornou-se diferente,<br />
seu “mapa mental”, ainda que vivendo num “território”<br />
muito semelhante ao antigo, não é mais o mesmo. Agora,<br />
possuindo novos valores, você percebe acontecimentos<br />
não antes notados, representa fatos ao seu redor de maneira<br />
diferente. “Enxerga” o mundo com outros “olhos”.<br />
Muitos se contentam com uma “verdade” única, se<br />
agarram a ela e nunca a abandonam, evitando, a qualquer<br />
preço, o seu questionamento e, também, a dúvida e a incerteza<br />
que outras ideias poderiam trazer. Esses fanáticos<br />
querem manter, a todo custo, uma segurança impossível<br />
de ser conseguida nos seres humanos.<br />
As primeiras “verdades” com as quais convivemos<br />
não são concepções nossas, mas sim dos nossos educa-<br />
114 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
dores: pais, professores, companheiros e outros. Elas nos<br />
são transmitidas, na maioria das vezes, de maneira simples,<br />
ingênua e até mesmo tola.<br />
Uma vez inculcadas essas “verdades”, elas nos darão<br />
uma representação do mundo semelhante à dos nossos<br />
educadores. As novas informações que nos chegam posteriormente,<br />
com frequência vêm fortalecer as ideias primitivas,<br />
pois o comum é convivermos com pessoas que pensam<br />
de modo semelhante ao nosso, lermos livros previamente<br />
censurados e assim por diante. Psicologicamente é mais fácil<br />
manter as verdades iniciais, pois assim não temos que repensar,<br />
jogar por terra crenças queridas e familiares, o que<br />
nos obrigaria a reformular nossa conduta ao criarmos novos<br />
modelos mentais. Não é fácil trocar a verdade “minha mãe<br />
sempre me amou”, por “minha mãe, que frequentemente<br />
me odiava” ou “minha namorada só se encontra comigo”<br />
pela nova concepção “minha namorada está me traindo com<br />
outro”. Muitas vezes, apesar de todas as evidências, continuamos<br />
a adotar a crença inicial. Quase sempre só com<br />
algum sofrimento, até mesmo com algum sentimento de<br />
culpa, é que conseguimos mudar as “verdades” iniciais,<br />
principalmente quando as novas são totalmente diferentes<br />
das antigas.<br />
O homem é um inventor de verdades, um conceptualizador<br />
de acontecimentos, um representador de uma<br />
realidade que ele nem sabe quanto de real ela tem. E como<br />
se dá essa invenção? Por capricho, raciocínio ou pressão<br />
dos fatos? Ainda não possuo essa verdade, mas gostaria<br />
muito de tê-la.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 115
AFirmAÇÕeS dUVidoSAS<br />
A psiquiatria incorporou e se desfez de muitas verdades,<br />
hoje criticadas, como a caça e queima às bruxas, o<br />
mesmerismo, a malarioterapia, o eletrochoque, a insulinoterapia,<br />
a lobotomia e várias psicoterapias não-científicas,<br />
entre elas a psicanálise.<br />
A lista não termina aqui. Cada um desses modelos<br />
teve sua época com o nascimento, crescimento e esplendor,<br />
seus seguidores fervorosos, entre médicos, psicólogos<br />
e também entre os clientes e o público. Há pouco tempo<br />
surgiram mais duas novas verdades, como sempre aceitas<br />
como panaceias pelos seus adeptos: a neurolinguística e a<br />
psiquiatria biológica. Daqui a dez ou talvez vinte anos, no<br />
máximo, possivelmente acharemos graça em algumas de<br />
suas afirmações. É só esperar o tempo passar.<br />
Durante a minha adolescência ouvi um professor afirmar,<br />
em sala de aula, que a masturbação causava, entre<br />
outros males, a tuberculose, o reumatismo e a loucura.<br />
Mais tarde ouvi na escola de Medicina um professor afirmar<br />
que nós devíamos, ao examinar um paciente, pensar “sifiliticamente”,<br />
pois a sífilis imitava todas as enfermidades<br />
possíveis. Nós todos acreditávamos nessas afirmações.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 117
Os médicos, de tempos em tempos, enunciam suposições<br />
aceitas como verdades, tanto entre alguns cientistas<br />
como também entre a população. Muitas dessas declarações<br />
hipotéticas – anunciadas como verdades eternas<br />
- têm duração efêmera, outras permanecem vigorando por<br />
um período mais longo.<br />
Alguns desses profetas, mais geniais e corajosos, ganham<br />
notoriedade nacional, internacional e entre a população.<br />
Esses inovadores, ao ganharem maior poder entre<br />
o público e nas academias, entusiasmam-se passando a<br />
emitir julgamentos ou opiniões nos mais diversos campos<br />
do conhecimento humano, acreditando numa falácia: se<br />
são bons num setor, serão bons também nos outros. Os<br />
anunciantes se utilizam muito dessa generalização, colocam<br />
na TV uma personalidade famosa sugerindo o uso de<br />
um produto do qual ela nada entende.<br />
Olhando sob este prisma, o aparecimento desses “gênios”<br />
tem sido frequentemente danoso para a humanidade,<br />
às vezes uma tragédia para o conhecimento, pois ficamos<br />
presos a conhecimentos errados por anos e anos, como “A<br />
Terra é o centro do Universo”, “O Sol é o centro do Universo”,<br />
“Nossa galáxia é o centro do Universo”, “Não existem<br />
outras terras além das da Europa”, “Só podemos estudar<br />
as ciências físicas e biológicas, as psicológicas não, essas<br />
nos são reveladas”.<br />
As afirmações morais ou científicas, devido ao prestígio<br />
do “inventor”, ficam difíceis ou impossíveis de serem criticadas:<br />
ninguém se atreve a ir contra as ideias do gênio criador,<br />
pois esse é intocável. Por tudo isso, uma vez lançadas as<br />
“profecias” do sábio, o conhecimento naquela área é obscurecido,<br />
penetra-se numa era negra da história do pensamento<br />
humano, devido ao poder da barreira simbólica intransponível,<br />
que impede o nascimento de novas e produtivas<br />
ideias. Um exemplo ainda vivo é o das ideias freudianas.<br />
118 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Essas dominaram mentes diversas, por anos, impedindo<br />
o crescimento do conhecimento acerca do ser humano.<br />
Morre hoje “sem foguetes e sem bilhetes”, não deixa<br />
sementes capazes de produzir nada útil para o crescimento<br />
da psicologia. As hipóteses ou teorias equivocadas dos<br />
sábios só desaparecerão com a morte dos autores delas e,<br />
principalmente, de seus fiéis seguidores.<br />
No início do século XIX, ganhou notoriedade nos Estados<br />
Unidos um professor de Psiquiatria, Benjamin Rush.<br />
Usando de seu poder, passou a ditar normas morais para a<br />
população americana. Sua principal pregação foi a respeito<br />
da masturbação. Para o Dr. Rush, pai da psiquiatria americana,<br />
a masturbação, por ser um mal terrível, devia ser<br />
combatida a qualquer preço.<br />
Seu prestígio reuniu seguidores. Teses foram escritas<br />
condenando o terrível mal, tratamentos estranhos foram<br />
recomendados: vários clitóris foram decepados, algumas<br />
mãos amarradas para proteger e impedir as vítimas de<br />
caírem na tentação e tornarem-se “doentes”.<br />
Esse professor afirmou durante suas conferências e<br />
artigos: “a masturbação provoca fraqueza do sêmen, impotência,<br />
disúria, ataxia motora, fraqueza pulmonar, dispepsia,<br />
redução da visão, vertigem, epilepsia, hipocondria,<br />
perda de memória, imbecilidade e morte”. Pinel, o grande<br />
psiquiatra, não ficou para atrás, tendo afirmado acerca do<br />
mesmo assunto: “A masturbação leva à ninfomania”.<br />
Esquirol, outro famoso médico, completou: “A masturbação<br />
é reconhecida em todos os países como sendo<br />
uma causa comum de insanidade”.<br />
Em 1854 foi publicado um editorial no New Orleans<br />
Medical Surgical Journal que dizia, entre outras coisas: “Em<br />
minha opinião, nem a peste, nem a guerra, nem a varíola,<br />
nem uma multidão de males semelhantes foram mais desastrosos<br />
para a humanidade do que o hábito da masturbação:<br />
é o elemento destrutivo da sociedade civilizada”.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 119
Encontrei em minha biblioteca com relíquias de livros<br />
selecionados por meu pai um discurso proferido em 1927<br />
por um famoso professor da medicina brasileira. Em respeito<br />
a ele, deixo de citar seu nome. Esse trabalho foi impresso<br />
e distribuído pelo governo brasileiro aos colégios<br />
“em virtude do seu alto valor educacional”, recomendado<br />
para ser lido em sala de aula. Eis alguns trechos do famoso<br />
discurso: “O álcool é o maior agente de degeneração<br />
da raça; a todos ataca e a todos degenera; é a família<br />
alcoólica dos beberrões, com os seus epilépticos, imbecis,<br />
loucos, deformados e monstros. A beberronia dos pais prolonga-se<br />
nos filhos através do óvulo: pais bêbados, filhos<br />
beberrazes, netos criminosos... nem ao menos é um tóxico<br />
elegante, só ao alcance das bolsas fortes dos ricos; ao<br />
contrário, é o vício deselegante propiciado ao pobre pelo<br />
seu ínfimo preço”.<br />
Não estou aqui fazendo críticas à inteligência desses<br />
senhores, ao seu pioneirismo e coragem. Nós devemos<br />
muito a eles e sem sombra de dúvida todos foram personalidades<br />
marcantes, líderes em suas áreas e altamente<br />
capazes. Humildemente, com todo o respeito, quero dizer<br />
que creio que eles foram longe demais ao afirmar a respeito<br />
de valores e as escolhas de cada um. Suponho que cada<br />
cidadão tem o direito de escolher seu caminho, desde que<br />
respeite os outros.<br />
Os que apreciam a bebida e os masturbadores não<br />
foram respeitados por esses insignes mestres.<br />
120 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
A LoUcUrA:<br />
FABricAÇÃo dA normALidAde<br />
Em 1509 Erasmo de Rotterdam publicou o livro “Elogio<br />
à Loucura”. Suas ideias, muitas delas ainda atuais,<br />
constituem críticas ao chamado bom senso, ao comportamento<br />
racional, à sisudez do indivíduo “quadrado” e bem<br />
adaptado, em oposição à “loucura” que seria a espontaneidade,<br />
a liberdade de expressão e ação e das emoções.<br />
Para ele a loucura seria inata, enquanto que o “normal”<br />
seria imposto e não humano.<br />
Os chamados “loucos”, até o século XV viviam de maneira<br />
harmoniosa com a população de “sadios”. Estes cultivavam<br />
a tolerância e as peculiaridades ou idiossincrasias<br />
de cada cidadão, que eram aceitas e respeitadas como<br />
adequadas à sua natureza singular. Esse relacionamento<br />
harmonioso entre os chamados “normais” e os “não-normais”<br />
ocorre ainda, com frequência, nas pequenas cidades<br />
do interior do Brasil.<br />
O conceito de loucura, condição própria de cada pessoa,<br />
a partir do fim do feudalismo - início de burguesia<br />
- começou a ser modificado quando apareceu um novo<br />
modelo daquilo que seria aceito como sendo a natureza<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 121
humana. Esse novo padrão teórico acerca do homem era,<br />
não só mais restritivo - menos tolerante com as diferenças<br />
individuais - como, também, mais prescritivo. As pessoas,<br />
para não serem taxadas de loucas, deveriam se comportar,<br />
talvez até pensar de acordo com o novo padrão “instituído<br />
e correto” de conduta.<br />
A recém-criada “natureza humana”, fabricada pela<br />
sabedoria burguesa, enfatizava as qualidades da virtude,<br />
contenção, parcimônia e razão, que eram exigidas a todo<br />
e qualquer preço. A partir da nova tese defendida, a loucura<br />
foi encurralada e criticada conforme o novo padrão<br />
de normalidade das pessoas.<br />
As sociedades começaram a estreitar os seus limites<br />
de normalidade, passando a rotular o “louco” e “nãolouco”,<br />
o “são” e o “patológico”, o “normal” e o “anormal”,<br />
como extremos intocáveis de uma escala de medida do<br />
certo e do errado, onde um comportamento era valorizado,<br />
o outro não.<br />
A partir dessa constituição, novas regras de conduta<br />
passaram a ser exigidas, somente algumas aceitas como<br />
corretas. Em lugar de trabalhar para viver, o indivíduo<br />
passou a viver para trabalhar. A definição do normal, que<br />
antes se apoiava muito na maneira de ser do indivíduo<br />
singular a ser avaliado, passou a ser estabelecido, utilizando-se<br />
um modelo supraindividual, criado não mais das<br />
necessidades ou interesses de cada uma pessoa, mas sim<br />
das necessidades do conjunto abstrato: economia e trabalho<br />
colocado a serviço da produção.<br />
Esse novo critério decretou o fim do singular, ao generalizar<br />
o indivíduo. Tornou-se errado ou anormal ser<br />
particular. Só o geral seria normal e o que sair do padrão<br />
será considerado “doente mental”. Mas nem todos concordaram<br />
com essas regras, alguns se rebelaram, surgindo<br />
um novo problema: “Como conter os insubordinados em<br />
122 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
um estado que se dizia liberal e cheio de humanismo”?<br />
Anteriormente os revoltados e rebeldes eram lançados à<br />
fogueira, mas essa prática não é mais tolerada.<br />
Na nova sociedade nós, os bondosos, racionais e virtuosos<br />
deveríamos ser capazes de compreender e tratar<br />
os “loucos”. Nasceram assim as instituições encarregadas<br />
de cuidar deles, ou seja, de coletar o lixo humano produzido<br />
e rejeitado pela sociedade burguesa. Nasce então a<br />
figura ilustre do psiquiatra, juntamente com a criação dos<br />
hospitais destinados a proteger os “normais” do perigoso<br />
contágio dos loucos.<br />
Esse modelo do homem moderno, criado em torno<br />
do séc. XV, forçou a eliminação de um sentimento sempre<br />
existente na mente de grande parte dos homens dessa<br />
época, ou seja, a permissão da liberdade individual. Para<br />
a nova ideologia implantada, a liberdade individual é incompatível<br />
com a subordinação a uma atividade, seja de<br />
trabalho ou seja de lazer, altamente vigiada, lógica, ditada<br />
de fora. Essa coação, até aquela época, só existia nas prisões.<br />
O novo conceito de natureza humana, estranhamente,<br />
construiu o corolário: somos “livres” ao nos subordinarmos<br />
às ideias do Estado, dos empregadores, religiosos<br />
ou de qualquer outro grupo poderoso.<br />
Foram criadas para manter a ordem estabelecida,<br />
visando o normal, leis que exigiam a obediência às normas,<br />
cujo objetivo era proteger as classes dominantes.<br />
Os mendigos, vagabundos, os ociosos e “loucos” de qualquer<br />
espécie passaram a ser tratados como eram antes o<br />
marginais: banidos da sociedade. As instituições, frutos<br />
dessas ideias - casas de correção e de trabalho, hospitais<br />
em geral - teriam como função principal limpar as cidades<br />
da “sujeira” desses desajustados.<br />
Os “hospitais” foram destinados a receberem os grupos<br />
de “marginais” da sociedade sadia – os diferentes –<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 123
um lugar onde, na maioria das vezes, não pisavam os<br />
médicos, só iam para visitas ocasionais.<br />
A direção dos hospitais, entregue às irmãs de caridade,<br />
tratava coercivamente os enfermos através das<br />
orações, penitências e práticas adaptadas ao ensinado.<br />
A medicina daquela época precisava construir ou mesmo<br />
inventar explicações para suas ações irracionais, que se<br />
diziam alicerçadas em bases lógicas e humanísticas. Foi<br />
criada então a “psiquiatria científica”. Esta “descobriu” sinais<br />
e sintomas nas pessoas, indicadores de doença mental.<br />
Esses, na maioria das vezes, eram preconceitos ou<br />
delírios dos psiquiatras da época, tendo como “pano de<br />
fundo” a moral vigente. Eis alguns exemplos dessa “psiquiatria<br />
científica”: “A loucura está localizada nos vasos<br />
sanguíneos”, “A oposição à revolução americana é uma<br />
forma de doença mental e o apoio uma forma de terapia”,<br />
“Sanidade mental é a aptidão para julgar as coisas como<br />
os demais julgam e possuir hábitos regulares e insanidade<br />
é um distanciamento com relação a isso”, “Conformismo<br />
social equivale à saúde mental e inconformismo corresponde<br />
à doença”.<br />
A maneira de pensar e de agir em desacordo com a<br />
forma tradicional passou a ser a principal característica da<br />
nova doença mental, sendo diagnosticada através de vários<br />
dispositivos que mediam a maneira normal e coletiva<br />
de se comportar, necessária à manutenção e crescimento<br />
da burguesia e da harmonia social.<br />
Portanto, os primeiros psiquiatras eram muito mais<br />
“reformadores sociais evangélicos”, pregadores de uma<br />
ética puritana para todos, do que médicos, preocupados<br />
com o bem-estar de seus pacientes.<br />
A cura ocorria quando o paciente aceitava e se comportava<br />
de acordo com as normas sociais pregadas pelo<br />
médico assistente.<br />
124 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Infelizmente, esses comportamentos “moralistas e<br />
normalistas” ainda são vistos com alguma frequência em<br />
nosso meio.<br />
Os clientes, muitas vezes, são julgados, inicialmente<br />
pelos familiares, posteriormente pelo psiquiatra, como<br />
possuidor de uma conduta normal ou anormal, conforme<br />
os padrões e valores percebidos e usados pele grupo dos<br />
examinadores num certo momento. O cliente pode ser repreendido,<br />
tratado sem o desejar, ou “preso” no hospital,<br />
por não tolerar ou não conseguir conviver numa sociedade<br />
que tem como valores fundamentais o trabalho, a produção<br />
e o consumo.<br />
Curvando-se à pressão externa que exigia mão-deobra<br />
barata, trabalhadores braçais foram usados, em profusão,<br />
para atender às necessidades dos sub-empregos<br />
oferecidos: a psiquiatria, atenta às necessidades dos empregadores,<br />
procurou acelerar os processos de “cura”, visando<br />
o retorno ao trabalho dos candidatos o mais rápido<br />
possível.<br />
O psiquiatra, ingenuamente, passou a ser agente da<br />
“normalização” quando a sociedade lhe outorgou o poder<br />
de examinar, julgar condutas e impor um tratamento após<br />
seu veredicto, em nome de um suposto bem-estar geral e<br />
social da coletividade e da manutenção da ordem pública<br />
estabelecida.<br />
Nasceu assim a relação não-recíproca com a tutela<br />
regulamentada conforme a crença: o tutor é o competente,<br />
o tutelado é o incapaz e irresponsável. Os tratamentos<br />
prescritos em grande parte tinham como objetivo principal<br />
a integração e o conformismo social. A implementação da<br />
psiquiatria preventiva, como ocorre com outros campos de<br />
saúde, tornou possível a ação dos especialistas antes do<br />
aparecimento da “doença mental”, ao descobrir sintomas e<br />
sinais nos suspeitos.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 125
Desse modo, como é sabido, em certos locais e ocasiões,<br />
os “sãos” passaram a examinar populações inteiras,<br />
tendo à mão o mandado de “busca e apreensão” para os<br />
“anormais” detectados.<br />
Felizmente, nos últimos anos, um grande número de<br />
psiquiatras vem questionando, duvidando e desmitificando<br />
milhares de afirmações e dezenas de teorias criadas por<br />
alguns “gênios” da psiquiatria, baseadas, muito mais, em<br />
verdades reveladas ou em pressões sociais, do que em observações<br />
científicas bem sistematizadas e críticas.<br />
Uma por uma, essas “verdades” vêm sendo discutidas,<br />
não substituídas por “novas verdades” dogmáticas,<br />
mas analisadas, através da dúvida constante e equilibrada.<br />
O novo caminho traçado é o abandono definitivo de crenças<br />
eternas, baseadas na autoridade iluminada, no seu<br />
prestígio, na sua sabedoria acima de qualquer suspeita.<br />
126 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
o VASto mUndo dAS drogAS<br />
Vivemos em um mundo de drogas. Drogas para todas<br />
as idades e para todos os gostos. Algumas são chamadas<br />
lícitas e outras ilícitas. Algumas são proibidas: seu uso e<br />
porte são qualificadas de contravenção. Outras são permitidas<br />
e difundidas até pelos pais e pelos meios de comunicação.<br />
Seu uso é, muitas vezes, valorizado. Por sua<br />
vez, certas drogas são conceituadas e permitidas pelos<br />
médicos e Conselhos de Medicina.<br />
Algumas drogas, como as colas e os solventes, são<br />
usadas preferencialmente pelas crianças desamparadas, os<br />
pivetes, outras são mais comuns entre os jovens de condição<br />
econômica variada - xaropes, maconha e cogumelos. Algumas<br />
são usadas principalmente pelas mulheres da classe<br />
média e alta com objetivo de perder alguns quilinhos, como<br />
os anorexígenos. Certas drogas são mais consumidas pelos<br />
adultos jovens, de poder econômico alto - cocaína, LSD,<br />
heroína. Algumas toneladas de drogas são largamente utilizadas<br />
por adultos e idosos pertencentes às mais diversas<br />
classes sociais, para permitir-lhes dormir ou suportar este<br />
mundo confuso: tranquilizantes, soníferos e analgésicos.<br />
Finalmente, as drogas mais difundidas e consumidas, pos-<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 127
sivelmente mais “democratizadas”, já que são usadas universalmente<br />
por todos: cafeína, álcool e tabaco. Ninguém<br />
escapa de pelo menos inalar a fumaça do cigarro do vizinho,<br />
beber um cafezinho ou um copo de cerveja ou licor.<br />
Não sei, e duvido que alguém saiba, as razões de<br />
preferências tão diversas, das diferentes posições e atitudes<br />
da sociedade a favor de uma e contra outras.<br />
Para tentar aclarar minha mente recorri a certos conceitos<br />
básicos: os de abuso e dependência da substância,<br />
e aqueles relacionados como consequência: tolerância e<br />
síndrome de abstinência.<br />
Antecipadamente confesso ao leitor que os resultados<br />
não foram animadores, pois continuei sem entender<br />
este comportamento humano, ou seja, o uso de drogas<br />
diferentes por diferentes indivíduos, a permissão de umas<br />
e a proibição de outras, e o consumo universal de muitos.<br />
Encontrei em um manual de diagnóstico em psiquiatria a<br />
definição procurada, que foi a seguinte:<br />
Abuso de drogas: “Uso habitual de agentes químicos<br />
apesar das consequências danosas, que dependem das<br />
propriedades farmacológicas e toxicológicas das drogas, da<br />
personalidade do usuário, das necessidades nas quais ele<br />
vive, e do grau no qual ele negligencia sua saúde individual<br />
e bem-estar através da diferença e perda econômica”.<br />
Existe abuso da droga quando seu uso ultrapassa os<br />
30 dias e existe tolerância quando se necessita de mais droga<br />
para obter-se os efeitos desejados: daí o aumento das<br />
dosagens e a instalação dos quadros tóxicos. Por último,<br />
ocorre a síndrome de abstinência quando, ao reduzir-se a<br />
droga, ou quando ocorre a sua interrupção, seguem-se distúrbios<br />
fisiológicos e psicológicos, geralmente transitórios.<br />
Ora, a maioria das drogas proibidas, assim como as permitidas<br />
- cafeína, nicotina, álcool, sedativos etc. - aí se enquadram,<br />
o que nos leva a pensar que esse não é o motivo da<br />
128 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
classificação usada, assim como das proibições e permissões<br />
legais, de exigência de um ou de outro receituário médico, ou<br />
de incentivo familiar para se beber café ou cerveja e fumar,<br />
pois todas elas são semelhantes. Deve haver algo mais.<br />
Alguns teóricos combatem certas drogas simplesmente<br />
afirmando que elas “causam prazer”, e os indivíduos<br />
consumidores delas abandonariam outras atividades<br />
caso elas fossem liberadas. Ora, isso é uma forma muito<br />
simplista de explicar um comportamento tão complexo. O<br />
cigarro, as bebidas, o café e mesmo os tranquilizantes -<br />
todos nós temos um médico amigo ou parente que fornece<br />
gratuitamente as receitas - são facilmente adquiridos e<br />
nem por isso são consumidos exageradamente por todos:<br />
apenas uma minoria é prejudicada. Se utilizarmos o conceito<br />
de prazer deveremos proibir os alimentos saborosos<br />
e a torcida do Atlético, impedir o jogador de jogar cartas<br />
ou futebol e abolir até mesmo as relações sexuais, pois<br />
tudo isso causa prazer e também dependência pelo menos<br />
psíquica, talvez física.<br />
Vamos a um outro argumento. Parece que certos indivíduos,<br />
por motivos biológicos - genéticos - são mais<br />
propensos do que outros a ficarem “presos”, dependentes<br />
da droga, a levarem ao exagero um modo de vida em<br />
detrimento de outro. Seriam os indivíduos de “alto risco”,<br />
os prováveis toxicômanos. Mas acredito que esses seriam,<br />
também, os mais sujeitos a se tornarem viciados em café,<br />
comida, jogos, cigarros, sexo ou até mesmo no trabalho<br />
sem pausa nem sentido. Deveríamos condená-los, por<br />
causa de um “defeito biológico”?<br />
No outro extremo do biológico vêm as “explicações<br />
sociais”. A própria sociedade induz o consumo de drogas<br />
através de vários meios: de um lado, a propaganda generalizada,<br />
de outro, a incapacidade para abolir várias de suas<br />
doenças e para dirimir conflitos, injustiças e preconceitos.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 129
Anuncia-se um belo carro, uma bela “gata”, mas não<br />
se fornecem ao consumidor os meios da sua aquisição e<br />
conquista. Costuma-se, com frequência, considerar o “outro”,<br />
o vizinho ou o parente, como o responsável por induzir<br />
os mais jovens ao uso da droga.<br />
Uma outra explicação é a da psicologia. O indivíduo<br />
usa café, álcool, tabaco, maconha, doce, cocaína, cerveja,<br />
heroína, até sexo, para ficar “diferente” de seu estado<br />
“normal”. Com isso, a pessoa se sente mais animada,<br />
agressiva, expansiva e extrovertida ou introvertida. Em resumo,<br />
a droga seria usada como automedicação.<br />
Todas essas explicações contêm, provavelmente, algo<br />
de verdade e, também, de mito. Não estou, neste artigo,<br />
defendendo o uso das chamadas drogas proibidas ou exortando<br />
ao uso delas, nem também, indo ao outro extremo,<br />
de combatê-las ferozmente. Assim como não defendo o<br />
abuso de tabaco, café, cerveja e comida, não combato,<br />
como se fosse a pior coisa do mundo, o seu uso. Acredito<br />
que qualquer pessoa que esteja bem consigo mesma e<br />
que tenha algum propósito de “nível mais elevado”, isto<br />
é, objetivos individuais claramente definidos, nunca será<br />
presa e dependente das drogas, seja das lícitas, seja das<br />
ilícitas.<br />
O mundo contraditório e confuso das drogas permite<br />
a produção, de um lado, dos defensores ferozes das<br />
chamadas drogas proibidas, quase sempre com objetivos<br />
pecuniários. De outro lado, a de combatentes impiedosos,<br />
que disso se utilizam para criar liderança e poder. Esses<br />
últimos, ao combatê-las, fazem disso sua “droga” e aliviam<br />
sua ira ao sentenciar os “errados” e “marginais”, enquanto<br />
eles, os acusadores, se sentem como os anjos puros, habitantes<br />
diferenciados deste paraíso chamado Terra.<br />
130 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
mÉdico X cLiente<br />
A imprensa noticia, novamente, reclamações de pacientes<br />
ou dos seus familiares acerca do mau atendimento<br />
médico. As disputas se restringem, quase sempre, ao que<br />
ocorre no último elo de uma cadeia que se iniciou há anos,<br />
já que a enfermidade, exibida no momento da consulta,<br />
espelha um conjunto de fatos ocorridos na história de cada<br />
paciente, os quais, em geral, não tiveram a participação do<br />
médico que o assiste naquele instante.<br />
São milhares os acontecimentos responsáveis pelo<br />
atual sofrimento do cliente: alguns devido ao acaso, outros<br />
facilitados pela conduta do próprio doente, como, por<br />
exemplo, o uso que fez de bebidas alcoólicas, de cigarros<br />
e medicamentos, seus hábitos alimentares, seu tipo de<br />
trabalho e de lazer, outras doenças sofridas, tratamentos<br />
impropriamente realizados anteriores à consulta presente.<br />
Mas não fica só nisso, há outros aspectos importantes: o<br />
mundo poluído de bactérias, vírus, fungos, monóxido de<br />
carbono, a estrutura biológica frágil do cliente, sua carga<br />
genética peculiar. Tudo isso, ao longo dos anos, facilitou ou<br />
desencadeou a eclosão da doença atual.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 131
Em resumo, nas reclamações não são levados em conta<br />
os diversos aspectos que antecederam a atual consulta<br />
geradora da discórdia. Possivelmente todos nós mantemos<br />
ideias irracionais a respeito da nossa vida e do mundo em<br />
que vivemos e carregamos ilusões acerca de possuir uma<br />
saúde física e mental eterna. Em outras palavras, fantasiamos<br />
para nós a imortalidade. Também alimentamos sonhos<br />
com referência às uniões ou vínculos com os outros homens<br />
e imaginamos que essas ligações nos darão proteção<br />
contra os problemas do dia-a-dia. Por último, acreditamos<br />
que, ao criarmos explicações científicas, filosóficas ou religiosas<br />
para o mundo caótico em que vivemos, estaremos a<br />
salvo de sofrimentos, já que pela teoria estabelecida poderemos<br />
encontrar as causas do nosso sofrimento, que, por<br />
sua vez, nos levarão a maneiras seguras de eliminá-las.<br />
Mas de fato, ao enfrentar uma realidade confusa, sem<br />
leis, ou seja, vivendo num mundo que não pactua com as<br />
nossas fantasias, o homem tenta, a todo custo, encontrar<br />
algumas regras para sistematizar e assim administrar da<br />
melhor maneira possível a sua vida. Entretanto, quase sempre,<br />
o modelo da realidade ao qual ele se apega é inexato.<br />
Se sua vida flui normalmente, sem tropeços, o indivíduo<br />
não chega a perceber que o seu “mapa” da realidade<br />
não está representado corretamente, nem retrata com<br />
precisão o “território” onde sua vida se desenrola. Nos momentos<br />
críticos, porém, como no caso de uma doença grave<br />
ou de morte, de repente a pessoa se defronta com um<br />
mundo diferente daquele que havia criado em sua mente.<br />
Surgem, geralmente, nestes instantes, o pânico e o desespero,<br />
pois os planos e técnicas existentes para solucionar<br />
os problemas se mostraram ineficientes. Nesses momentos,<br />
tentando se defender de qualquer maneira, o homem<br />
lança mão das soluções mágicas ou das ideias ilusórias que<br />
havia elaborado. Busca a tábua da salvação: o médico e<br />
132 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
a sua ciência, que se enquadram muito bem naquele falso<br />
modelo de mundo. Não são raros os médicos que fingem<br />
ser o Salvador para todas desgraças e sofrimentos...<br />
Quase sempre as ciências médicas possuem teorias<br />
um pouco melhores acerca das doenças e dos seus tratamentos<br />
do que o paciente. Muitos clientes imaginam o<br />
médico como o “prestidigitador” que eles procuram, um<br />
ser capaz de rapidamente descobrir as “causas” da doença,<br />
dar explicações para esta e encontrar maneiras fáceis<br />
e simples de exterminá-la.<br />
E é nesses momentos agudos que os médicos - alguns<br />
mais bem dotados, preparados e equipados, outros<br />
menos - são chamados para examinar o paciente. O cliente<br />
em desespero agarra-se ao salvador, acreditando convictamente<br />
possuir ele poderes divinos para tirá-lo da crise<br />
e afastá-lo da morte. Todos nós sabemos, porém, que a<br />
melhor medicina do mundo, equipada com os aparelhos<br />
mais sofisticados, contando com os médicos da melhor estirpe<br />
intelectual e científica, erra, falha e tem dúvidas ao<br />
receber pacientes graves com certas enfermidades. Assim<br />
é natural que muitos deles morram.<br />
Aqui, como alhures, as moléstias costumam ser obscuras,<br />
difíceis e muitas vezes impossíveis de serem diagnosticadas<br />
e tratadas, como gostaríamos que fossem.<br />
Pouca ou nenhuma certeza temos acerca da teoria das doenças,<br />
de sua evolução, de suas causas e tratamentos.<br />
Possuímos, na maioria das vezes, hipóteses, trabalhamos<br />
com elas, constantemente incertos e inseguros quanto aos<br />
diagnósticos e tratamentos. Aprendemos muito com nossas<br />
tentativas e acertos e também com nossos erros. O conhecimento<br />
de boa percentagem das doenças ainda é uma<br />
incógnita para os pesquisadores sérios, não o sendo para<br />
os mal informados, os limitados, os que só enxergam a periferia<br />
da realidade, julgando tudo muito simples e fácil.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 133
As doenças fazem parte de nossas vidas: vida e morte<br />
andam juntas. Toda a decepção com a crueldade e indiferença<br />
do mundo, percebida pelo cliente ou pelos familiares<br />
diante da doença, volta-se frequentemente com violência<br />
contra o médico, que encarna, por alguns momentos<br />
durante a enfermidade, a figura mágica do Salvador. Nos<br />
momentos de desespero e dor, o médico representa para<br />
o paciente o próprio Deus, o que, como sabemos, lamentavelmente<br />
não é verdade.<br />
134 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
AS doenÇAS<br />
e oS JArgÕeS mÉdicoS<br />
A linguagem médica, desenvolvida do pensamento<br />
mágico, acha-se ainda presa às ideias e práticas ancoradas<br />
no fantástico. Sua linguagem carrega vestígios de seres e<br />
situações encarnando o “grande poder”. No modelo, seres<br />
sobrenaturais evocados através de rituais (rezas, danças,<br />
penitências, confissões), têm o poder de provocar as mudanças<br />
desejadas, físicas ou psicológicas. Estamos marcados<br />
por “energias” psicológicas, “fluidos” milagrosos, os<br />
“maus-olhados”. O médico pode curar, representando tanto<br />
o cientista como o bruxo, servindo-se de um diagnóstico<br />
preciso ou, se quiser, lançando mão de preces e receitas<br />
milagrosas (placebos).<br />
Para muitos, uma doença diagnosticada é uma doença<br />
quase curada, usando o método científico ou o mágico.<br />
Dar um rótulo às causas, ao conjunto de sinais e sintomas,<br />
envolve classificação e promove e orienta o prognóstico e,<br />
finalmente, indica a terapia. Mas o diagnóstico dado, às vezes<br />
prejudica. O nome “febre” e “diarreia” podem sinalizar<br />
coisas simples, o rótulo de “AIDS”, levar ao desespero.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 135
O termo usado para o diagnóstico, misturado às informações<br />
sutis e escondidas, fornecerá a diferença: “gastrite”<br />
(fácil de curar) e “cirrose hepática” (morte). Certos<br />
nomes carregam mensagens metafóricas, outros não. Gonorreia<br />
e hanseníase de um lado, hipertensão e artrose de<br />
outro. O rótulo de doença mental estigmatiza, o infarto e<br />
a diabetes, não.<br />
Quando um tumor está em discussão, o temor gira em<br />
torno da palavra-chave “benigno” ou “maligno”. Os residentes<br />
do Hospital das Clínicas pronunciavam “CA”, e não “câncer”.<br />
Olhavam para o chão, sempre num tom de voz baixo<br />
e grave, demonstrando alto respeito pela doença “maldita”.<br />
As palavras nascem e morrem, transformam-se, adquirem<br />
novos significados. O termo “digestivo” virou “digestório”,<br />
“pedinte”, passou a ser “excluído” e “negro”, agora é<br />
“afroamericano”. A palavra “melancolia” foi desprestigiada.<br />
Diagnósticos surgem do nada: “Doenças do Pânico”, “Ansiedade<br />
Pós-Estresse”.<br />
Outros mudam de nome: “perverso”, da psicanálise,<br />
virou “psicopata”, mais tarde, “sociopata”, agora é “Personalidade<br />
antissocial. “Neurastenia” desapareceu no Ocidente,<br />
permanece deprimida na China. “Doenças”, (ou<br />
seriam só nomes?), enterradas há anos como “Síndrome<br />
da Fadiga Crônica” (síndrome pós-viral), bem como “Fibromialgia”,<br />
renascem. A sífilis e gonorreia, irritadas com<br />
o desprestígio, ameaçam voltar. A simpática histeria, gozadora<br />
de grande prestígio, se dissipou, apesar de seus<br />
protestos espalhafatosos.<br />
Os jargões médicos variam conforme o profissional e<br />
a especialidade e, ainda, a nacionalidade e raça. Na França<br />
há mais diagnósticos acerca do fígado, na Alemanha, de<br />
doenças cardíacas e os britânicos enfatizam o estômago e<br />
intestinos. Os conceitos e diagnósticos da psiquiatria são<br />
ficções. Eles estão contaminados por ideologias, não se<br />
136 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
apoiam em observações “reais”. Uma nova classificação<br />
está sendo imaginada, a atual não apresenta um único<br />
diagnóstico separando o “normal” do “doente”. Além disso,<br />
os diagnósticos se acham interligados, não há como<br />
diferenciá-los corretamente. Os diagnósticos são nomes e<br />
nomes, apenas nomes.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 137
conFiSSÕeS de UmA mÉdicA<br />
Há dias, no meu consultório, atendi uma médica recémformada.<br />
Soluçando, contou-me sua “tragédia” pela qual me<br />
interessei. Com seu consentimento, publico o relato.<br />
“Formei-me em medicina! Alegria geral! Agora preciso<br />
ganhar o pão de cada dia com meu suor, se possível<br />
sem lágrimas. Mas onde e como?<br />
Comecei a clinicar. Chegam os pacientes, despejados<br />
de todos os cantos, a maioria escorre das favelas. Na madrugada<br />
fria, enfileirados, eles imploram, piedosamente, a<br />
bendita consulta. Esta, uma vez conseguida, é realizada,<br />
muitas vezes de modo superficial e apressado. Todos entram<br />
no templo encantado dominados por uma imensa fé e<br />
sonham com os milagres da fantástica medicina moderna.<br />
Chega o momento do exame, agora eles são encaminhados<br />
para o altar onde será iniciado o interrogatório.<br />
Conforme determina o ritual, inicialmente é preciso que<br />
o doente se mostre humilde diante da divindade: venere<br />
o sacerdote vaidoso e compenetrado que o espera. Após<br />
obedecer a esse mandamento, ele será considerado merecedor<br />
de ajuda futura. Cabe ao paciente executar o determinado.<br />
Não lhe será permitido questionar, pois perguntas<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 139
aborrecem, tomam tempo, indicam desconfiança e magoam<br />
o sensível médico. Ali imperam leis veladas: o clínico<br />
ordena, o cliente não pode opinar, ele deve submeter-se à<br />
vontade do protetor. Sem entender o padrão rígido existente<br />
e a linguagem usada, os clientes procuram, muitas<br />
vezes sem serem ouvidos, explicar seus males.<br />
Começa a consulta: encurvado, enrolado em farrapos,<br />
submisso, o paciente contempla o chão. Sua face magra e<br />
pálida mostra sinais de feridas não cicatrizadas. Do fundo<br />
de sua garganta apertada ecoam, penosamente, cânticos<br />
melancólicos que descrevem sofrimentos. Defronto-me<br />
com seres humanos envelhecidos pela dor. Imagino, com<br />
pesar e dificuldade, que um dia eles foram crianças saudáveis<br />
e alegres e sonharam ser alguém. Hoje, derrotados<br />
e excluídos, jamais alcançarão a profissão, as relações sociais<br />
e o respeito valorizado pela nossa cultura. No consultório<br />
médico e em outros campos sagrados, essas sombras<br />
são tratadas como animais sem dono, ervas daninhas que<br />
só incomodam. Miseravelmente sozinhos, sem proteção,<br />
eles ainda teimam em viver e implorar.<br />
Esse encontro bate e fere minha face jovem. Tento<br />
mostrar uma fortaleza que não possuo. Assentada no meu<br />
trono, sou a soberana e represento a farsa da assistência<br />
médica ao indigente, papel que forçaram-me a interpretar<br />
com uma sabedoria e um poder fingido. Contenho-me<br />
para não gritar por socorro, dizer-lhes que também preciso<br />
de “médicos” para ajudar-me a suportar as incertezas, as<br />
perdas, a juventude que se vai, a responsabilidade que<br />
caiu pesada demais sobre mim e, pior ainda, possuir a<br />
consciência de tudo isso.<br />
Não inventei a doença, nem a pobreza, muito menos<br />
a discriminação social ou a morte. Portanto, não posso ser<br />
responsável por essas mazelas. Não teci o estranho caminho<br />
desenhado pela natureza - ou sei lá o quê - que cons-<br />
140 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
truiu de modo tão desigual e injusto cada um de nós, bem<br />
como a nossa posição na sociedade.<br />
Sei que enquanto estou provisoriamente do lado de<br />
cá, atuo como um pararraios, sempre aberto, tentando<br />
consertar os desencontros dessas vidas. Ouço súplicas,<br />
esbarro na penúria extrema, sinto o cheiro nauseabundo<br />
de feridas incuráveis, sou jogada e me perco no labirinto<br />
sem saída do cliente. Despreparada para conviver com<br />
esse caos, obrigada a representar este papel, tenho que<br />
extrair de minha mente inocente e conturbada, receitas<br />
milagrosas para aliviar todos e tudo. Não possuo essas<br />
drogas como muitos fantasiam.<br />
Mas, na verdade, sinto-me confortável nesse encontro<br />
venerável. Gosto de fingir de deusa, mesmo sendo<br />
uma deusinha mixuruca. Sei que é pecado pensar assim.<br />
Encanta-me fingir que sou o ente poderoso e sobrenatural<br />
criado pela mente da sociedade. No delírio compartilhado,<br />
eu sou o ser superior que extermina o sofrimento. Estamos,<br />
eu e o paciente, aprisionados na mesma estrutura,<br />
somos enganados e enganamos, mas necessitamos, para<br />
viver, conservar essa quimera. Isso é um direito nosso, talvez<br />
nossa única liberdade: sonhar, sonhar, sonhar...”<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 141
o diFÍciL encontro:<br />
mÉdico e PAciente<br />
A terminologia médica fornece um bom exemplo das<br />
múltiplas funções que a linguagem tem a desempenhar.<br />
Por um lado ela é técnica, permitindo aos médicos compreender<br />
e explicar a doença, mas também serve de comunicação<br />
entre os pacientes, dentro e fora da sala de espera.<br />
Entretanto, muitas vezes há uma não-comunicação entre<br />
o médico e o paciente.<br />
Essa linguagem, apesar de buscar ser, ao mesmo<br />
tempo neutra e objetiva acerca do conhecimento científico,<br />
do lado do cliente e mesmo do médico encontra-se emaranhada<br />
de noções sociais, culturais, econômicas, religiosas<br />
e prescrições e aspirações terapêuticas e morais: “Você<br />
precisa tomar esse remédio!”; “Deve usar camisinha”;<br />
“Tem que agradecer a Deus por ter operado.”. Notam-se,<br />
pelos exemplos, os “tem”; “deve” e “precisa”. Na maior<br />
parte das vezes a linguagem médica é dogmática e autoritária,<br />
metamorfoseada, na sua aparência, como sendo<br />
democrática e liberal, “boa para o cliente”...<br />
Na consulta, sentindo uma dor ou uma emoção ruim,<br />
o cliente desesperançado busca em vão o termo certo que<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 143
esteja em harmonia com o observado. Ele quer informar<br />
não só a natureza, bem como a intensidade do que está<br />
sentindo, às vezes até a causa de seus males. Ele deseja<br />
transmitir o ponto exato onde se localiza a dor, explicar<br />
quando ela vem e desaparece, aumenta e diminui.<br />
Tudo isso é difícil de transmitir, ainda mais num tempo<br />
exíguo e diante do rosto, quase sempre austero e autoritário,<br />
do médico. O que fazer? Coitado do cliente, obrigado<br />
pelas circunstâncias da doença precisou recorrer ao médico.<br />
Coitado do médico, empurrado pelos fatos da vida,<br />
entrou numa área de incertezas, passou a conviver com<br />
o sofrimento e o desespero. A tarefa de ambos é, talvez,<br />
impossível.<br />
A linguagem para nomear as emoções desagradáveis<br />
e agradáveis não é nem objetiva, nem capaz de estimar a<br />
intensidade delas. O cliente, na sua vã tentativa de transmitir<br />
seu sofrimento, procura relacioná-la a alguma entidade<br />
(teoria, hipótese) mais ampla: funcionamento anormal<br />
dos intestinos, uma deficiência alimentar, um transtorno<br />
geral do organismo, uma gripe ou uma espinhela caída.<br />
Outras vezes, tenta explicar a doença fazendo uso de metáforas<br />
ou de imagens semelhantes: “Tá doendo pra chuchu”;<br />
“É uma dor ardida”; “A cabeça vai estourar!”; “Tenho<br />
um medo terrível!”; “Fiquei fraco da ideia.”; “Não tenho<br />
força para mover uma palha.”<br />
Esse modo de ser, de um e outro lado, não tem culpado.<br />
Tudo decorre de um tempo longínquo do sábio-rei Platônico,<br />
da aristocracia que imperava. Os médicos sonham<br />
com o merecimento moral, casta e sacerdócio, apesar da<br />
realidade mostrar o desprestígio e desrespeito. O médico<br />
é agredido, até fisicamente, pelo “cliente” desesperado –<br />
seria paciente?<br />
Ele culpa o personagem central dessa tragicomédia,<br />
onde o Atlas (médico), representa o papel de curador ge-<br />
144 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
al da miséria humana (pobreza, ignorância, desemprego,<br />
família esfacelada, educação defeituosa).<br />
O médico moderno, como os pais modernos, acreditam<br />
no seu poder divino, ainda imaginam um status que<br />
não mais existe, um lugar ao sol, de um Sol que já desapareceu<br />
no horizonte há muitos anos.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 145
A ProPÓSito de UmA griPe<br />
Todos nós já tivemos uma gripe. Conforme a gravidade<br />
dela faltamos ao serviço, ou deixamos de fazer uma<br />
viagem que havíamos planejado. Cada pessoa avalia sua<br />
gripe à sua maneira quanto à gravidade, escolhendo os<br />
melhores meios de tratá-la. Uns buscam a orientação da<br />
mãe, outros, do amigo, alguns vão à procura do médico.<br />
Após ouvirmos nossos conselheiros, tomamos chás,<br />
medicamentos, repousamos e, às vezes, até mudamos alguns<br />
dos nossos hábitos. O que ocorreu nesse indivíduo<br />
que aqui chamaremos de Marta? Inicialmente, no sistema<br />
ou organismo de Marta originou-se uma ação de uma matéria<br />
- ou energia por sua interação com o meio em que<br />
vive ou, em outras palavras, adquiriu um vírus que, ao penetrar<br />
no seu organismo, que se encontrava em estado de<br />
equilíbrio com seu meio, tirou-o de sua estabilidade, ou de<br />
sua saúde, e colocou-o em um modo de viver disfuncional,<br />
ou seja, doente. Entretanto, Marta é um sistema individualizado,<br />
formado por vários subsistemas e fazendo parte de<br />
um sistema mais amplo formado por seu meio ambiente.<br />
Além disso, Marta é um sistema aberto que troca, isto<br />
é, recebe e fornece energia com sistemas vizinhos como<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 147
a sua família, seus amigos e seu meio social. Além disso,<br />
cada subsistema do organismo de Marta, o respiratório,<br />
cardíaco, mental, nervoso, etc., está em constante interação,<br />
através de trocas que causam alterações diversas,<br />
dentro de um estado dinâmico de equilíbrio.<br />
O vírus da gripe, ao penetrar no sistema corporal de<br />
Marta, desencadeia uma série de disfunções, desequilíbrios<br />
ou “doenças”.<br />
No caso de Marta, o vírus atingiu inicialmente o seu<br />
subsistema respiratório na sua parte celular. Ela sente dor<br />
na laringe e falta de ar. Pouco a pouco os subsistemas<br />
vão-se afetando mutuamente. Marta começa a sentir náuseas,<br />
dores nas pernas, taquicardia, visão ruim, a cabeça<br />
confusa, sua pele fica avermelhada e assim por diante,<br />
atingindo, em grau maior ou menor todo o sistema, isto<br />
é, todo o organismo da coitada. Nesse caso falamos que<br />
Marta adoeceu.<br />
Diante de um problema clínico como esse, o médico<br />
tenta agir no sistema paciente-meio, buscando produzir<br />
uma transição de um estado de doença para um estado de<br />
saúde, quase sempre com uma série de estados intermediários<br />
que, com frequência, são para o paciente piores do<br />
que os sintomas da própria doença, como, por exemplo,<br />
realizar uma cirurgia para extirpar um tumor indolor. Porém<br />
o azar de Marta não acaba aí. A potência do vírus da<br />
gripe, por si só, é geralmente pequena. Mas ele provocou<br />
o funcionamento de uma série de outros sistemas que passaram<br />
a causar enormes danos.<br />
Analogicamente, assim como um sinal luminoso que<br />
possui baixa quantidade de energia, ao tornar-se verde<br />
faz fluir dezenas ou centenas de veículos no trânsito (uma<br />
alta quantidade de energia). O vírus também pode provocar<br />
distúrbios de alta proporção. Marta encontrava-se<br />
gripada exatamente no dia de uma prova final. Não se saiu<br />
148 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
em nos exames, pois sua cabeça não funcionou adequadamente<br />
e, por isso, ela perdeu o ano.<br />
A gripe modificou sua atuação no sistema escola/social,<br />
causando-lhe enormes perdas neste sistema.<br />
Marta não vive sozinha, ela tem família, colegas, vizinhos<br />
e mora em uma cidade. Marta, como sistema aberto<br />
que é, não só tem todas as partes do seu organismo<br />
interligadas e interrelacionadas, mas também todas elas<br />
funcionam em harmonia com sua estrutura, de acordo com<br />
seus objetivos. Ela interage igualmente com os sistemas<br />
vizinhos, tais como o sistema-familiar, o sistema-colégio<br />
e outros mais à sua volta, recebendo e enviando agentes<br />
de mudanças ou, em outras palavras, trocando matériaenergia.<br />
Marta, além de ser um ser biológico, é também um<br />
ser psicossocial. Da mesma maneira que sua estrutura biológica<br />
conduz seu organismo a ter certas funções e não<br />
outras, seu sistema mental, adquirido através de educação,<br />
aprendizagens diversas, cultura, valores, se organiza<br />
num todo, que estabelece sua estrutura mental peculiar e<br />
esta, de maneira harmoniosa, busca a sua preservação,<br />
assim como procura atingir os objetivos ditados por ela. O<br />
sistema mental de Marta desenvolveu-se pouco a pouco,<br />
criando assim uma ideia de si mesma. Como ser diferenciado<br />
dos outros, constantemente ela luta para que seu<br />
sistema mental não se misture exageradamente com os<br />
sistemas vizinhos. Se acontecer, ela poderá desaparecer<br />
ou dissolver-se como sistema individualizado, esvaindo-se<br />
nos outros.<br />
Ao mesmo tempo que o modelo de si e do mundo vai<br />
se formando no indivíduo, servindo-lhe de guia para suas<br />
ações, a pessoa necessita dos outros para manter-se em<br />
equilíbrio consigo e com o meio, ao receber conhecimento,<br />
reconhecimento, proteção, crítica, etc.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 149
Comumente a ideia ou “mapa” que uma pessoa tem<br />
a seu respeito e do mundo é muito diferente da idéia ou<br />
“mapa” que os outros fazem dela e de sua realidade. Marta<br />
criou um “mapa” de si como se estivesse muito doente,<br />
ela tanto imaginou, tanto representou para si a ideia de<br />
doença grave, que essa influenciou e transformou o sistema<br />
mental até mesmo do médico que a atendeu. Ele<br />
passou a achá-la bastante doente, tanto assim que decidiu<br />
interná-la num hospital, dada a “gravidade do caso”.<br />
Portanto, houve um equilíbrio no sistema Marta-médico,<br />
os dois passaram a ter a mesma ideia. Marta, de acordo<br />
com sua estrutura mental ou seus propósitos, “necessitava”<br />
ficar doente, o médico “necessitava” de pacientes para<br />
representar o papel de médico.<br />
A doença de Marta, inicialmente orgânica, agora já<br />
o é também psicológica e social. Marta, do consultório vai<br />
submeter-se a exames laboratoriais, RX e, finalmente, é<br />
internada. No hospital, Marta se descompensou, pois foilhe<br />
muito difícil adaptar-se nesse sistema estranho e às<br />
vezes sinistro, exatamente num momento difícil de sua<br />
vida. Ela, que já estava doente, adoeceu ainda mais.<br />
Além disso, seu ponto de apoio, que era a família,<br />
teve seu contato diminuído e muito, para que o sistema<br />
hospitalar pudesse funcionar a contento, em detrimento<br />
do primeiro, ou seja, da família. Diante desses problemas<br />
a mais, Marta piorou. À medida que ia se desequilibrando,<br />
o sistema-Marta equilibrava o sistema-hospitalar, pois este<br />
último só existe em função do paciente.<br />
Esta maneira de conceituar a “doença” mostra a complexidade<br />
que é um ser humano doente, não somente com<br />
respeito a uma descrição dos vários sistemas orgânicos envolvidos,<br />
mas também com respeito à maneira e à execução<br />
do tratamento e mesmo onde irá ser feito, quais os riscos para<br />
os diversos sistemas do indivíduo (psicológico e social).<br />
150 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
O sistema Marta agora coloca em funcionamento<br />
vários outros sistemas à sua volta e com eles interage.<br />
Transforma e é transformada por eles. Uma doença maior<br />
e mais complicada começa a aparecer. Era uma simples<br />
gripe, aos poucos atinge outras áreas, passando a ser um<br />
distúrbio complexo, abrangendo os sistemas orgânico-psicológico-social<br />
interrelacionados. Todos eles foram atingidos<br />
e se desequilibraram. O tratamento não consistirá<br />
mais em curar uma gripe, mas, sim, fazer com que todos<br />
os sistemas comprometidos voltem ao equilíbrio anterior.<br />
O distúrbio inicial pequeno pode gerar, em outros sistemas,<br />
distúrbios de muito maior gravidade e intensidade.<br />
A doença inicial de Marta, gripe, poderá provocar em sua<br />
mãe uma reação emocional intensa, provocando-lhe insônia,<br />
diarreia, ansiedade. Este distúrbio, por sua vez, poderá<br />
atuar na avó de Marta e esta poderá ter um infarte. A<br />
cadeia pode-se estender para outras pessoas e, uma vez<br />
formada, tende a permanecer, ou seja, encapsular, resistir<br />
às mudanças. Quando as transformações permanecem por<br />
um tempo longo, elas ficam incorporadas ao sistema, mantendo<br />
um equilíbrio disfuncional (doentio). Daí a dificuldade<br />
encontrada pelos médicos frente ao paciente crônico.<br />
Portanto, uma “doencinha” à-toa, pode tornar-se,<br />
com a participação de outros sistemas, uma doença incapacitante.<br />
São comuns afirmações como “depois daquele<br />
tombo não fui mais o mesmo homem” ou, “eu virei outra<br />
mulher após a ligadura das trompas”.<br />
A ação do médico, algumas vezes de proteção para<br />
com o paciente, pode protelar, ou mesmo impedir a cura,<br />
de acordo com esta teoria. A ligação do sistema médicopaciente<br />
pode se tornar tão forte para o cliente, que ela se<br />
torna o objetivo primordial da pessoa. O indivíduo passa<br />
a se considerar um doente, acostuma-se com essa ideia<br />
e a partir de então fica aprisionado no sistema de saúde,<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 151
como doente. Os clínicos de maior experiência sabem que,<br />
com alguns pacientes, para ajudá-los ou curá-los, têm que<br />
abandoná-los. Em outras palavras, para permitir que uma<br />
paciente possa retornar a um nível satisfatório de vida, é<br />
necessário que o médico corte a ligação médico-paciente,<br />
anteriormente necessária para a recuperação da mesma,<br />
agora prejudicial, isto é, está lhe causando uma outra doença,<br />
num outro sistema. Qualquer pessoa que estiver<br />
muito presa a um sistema, terá dificuldades em se envolver<br />
ou buscar outras opções no seu mundo.<br />
Lamentavelmente, para alguns, “ser-doente no mundo”<br />
passou a constituir o objetivo supremo do viver, o ato<br />
mais significativo de uma vida insignificante. Para esses, é<br />
menos ruim ser doente do que não ser nada.<br />
152 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
trAnStorno mÉdico-<br />
PSiQUiÁtrico oU FicÇÃo?<br />
Numa manhã quente de quarta-feira atendi em meu<br />
consultório um rapaz de quinze anos. Este, segundo seus<br />
pais, há cerca de um ano começou a ficar “esquisito”. Seu<br />
comportamento tornou-se diferente do que era na escola e<br />
em casa, não mais conseguindo estudar ou se divertir como<br />
antes. Começou a falar coisas desconexas e, às vezes, a<br />
fazer perguntas estranhas, dormindo mal, não terminando<br />
o que começava, tendo ações incompreensíveis como chorar<br />
e, de repente, muitas vezes, ficando agitado.<br />
Eu, como psiquiatra, examinei o paciente de acordo<br />
com o que aprendi como médico, ou seja, olhando um aspecto<br />
do universo comportamental: a conduta diferente<br />
das usuais. Examinei-o com minha “luneta” médica, focalizei<br />
certas características do comportamento e deixei<br />
de lado milhares de outras. Orientado por pistas que intencionalmente<br />
procurava – conforme as teorias que me<br />
vieram à mente - rotulei o rapaz de “doente mental”, mais<br />
especificamente portador de um transtorno denominado<br />
“esquizofrenia hebefrênica”.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 153
Na entrevista com os pais, esses contaram-me, entre<br />
outros fatos, que uma psicóloga lhes disse que o rapaz<br />
era “normal”, que ele nada tinha de “errado” em sua<br />
conduta.<br />
Fica a pergunta: Como eu e a psicóloga “enxergamos”<br />
e categorizamos um “mesmo evento” de forma tão<br />
diferente?<br />
Uma conduta desajustada pode ser percebida de diversas<br />
formas por diferentes observadores, inclusive pelo<br />
observador possuidor do transtorno. Existem várias maneiras<br />
de classificar um fenômeno psicossocial, diferentes<br />
modos de perceber as relações entre um fato e outro que<br />
emergem da conduta da pessoa. Cada maneira de simbolizar<br />
tem seus seguidores.<br />
A cultura fornece, a cada um dos seus membros, referências<br />
variadas capazes de assimilar o evento dos mais<br />
diversos modos. Na maneira de ver do psiquiatra, isto é,<br />
a conduta vista como fenômeno médico, as variantes do<br />
comportamento são analisadas, apoiadas em determinados<br />
pressupostos aceitos como “realidades” entre o modo<br />
de ver médico: o indivíduo está sofrendo e está agindo<br />
disfuncionalmente, isto é, em desacordo ao esperado pelo<br />
grupo sociocultural do qual faz parte.<br />
Para explicar ou entender qualquer conduta “normal”<br />
ou “anormal”, o “rotulador”, profissional ou amador, terá<br />
que utilizar-se de um certo padrão (esquema ou modelo)<br />
que, uma vez ligado ao fenômeno observado, fornecerlhe-á<br />
um significado ou uma compreensão. Este modelo<br />
forçosamente terá que existir previamente na mente do<br />
rotulador, fazer parte de seu conhecimento, não só estar<br />
armazenado na sua memória, mas, principalmente, estar<br />
disponível, consciente no momento, pronto para ser usado.<br />
A não existência do conhecimento que servirá de base<br />
para ser checado com o fenômeno, fornecendo-lhe a com-<br />
154 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
preensão, também, a não exibição à consciência, impedirá<br />
a associação do conhecimento anterior assimilador com o<br />
fato que está sendo observado para ser entendido.<br />
Para que uma pessoa se sinta mais segura com respeito<br />
às suas interpretações é necessário que, pelo menos<br />
parte de seu grupo de referência, profissional ou cultural,<br />
defenda e siga os mesmos pressupostos teóricos,<br />
ou seja, tenha os mesmos conhecimentos assimiladores.<br />
Ora, como sou médico, sigo as ideias compartilhadas pela<br />
maioria da comunidade científica médica psiquiatra, pois<br />
identifico-me com elas.<br />
Voltando ao paciente: foi apoiado nesses meus “óculos”,<br />
que são os usados pelo grupo do qual faço parte,<br />
que examinei a conduta do rapaz, comparando-a, primeiramente,<br />
com a conduta “normal” – um paradigma vago<br />
acerca de um grupo, o dos adolescentes masculinos. Posteriormente<br />
confrontei seu próprio comportamento anterior,<br />
de acordo com o relato dos pais, com a conduta atual<br />
diante de mim e conforme os relatos. Para o modelo que<br />
me esforço para seguir, o médico-psicológico, este rapaz,<br />
aqui denominado de “cliente”, distanciava-se dos padrões<br />
mencionados, não só dos adolescentes, como também de<br />
sua própria conduta anterior.<br />
Uma vez constatada a existência de anomalias na<br />
conduta - sintomas e sinais próprios de um desvio comportamental<br />
- foi procurado, no subsistema de conhecimento<br />
médico-psiquiátrico, um conceito – aqui chamado<br />
de “diagnóstico”, conforme a classificação internacional<br />
de doenças mentais - capaz de englobar essas condutas<br />
“anormais” do rapaz de maneira simplificada, fácil de ser<br />
comunicada para mim mesmo ou para outros. Foi então<br />
utilizado um símbolo verbal simples, unificador, uma abstração<br />
dos fatos concretos observados no paciente ou inferidos<br />
através dos relatos dos familiares.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 155
A classificação, estabelecida por um grupo de psiquiatras<br />
ilustres de todo o mundo, serve como orientação para<br />
o estabelecimento dos diagnósticos psiquiátricos para fins<br />
oficiais, de pesquisa e para orientar o tratamento, inclusive<br />
para verificar, conforme a evolução do paciente, se ele está<br />
mais próximo do “certo”, ou do “errado”.<br />
Normalmente o observador que percebe ou examina<br />
a conduta, nesse caso particular um médico assistindo a<br />
um paciente, acredita que o observado é “real”. Essa crença<br />
apoia-se em pressupostos encaixados na doutrina do<br />
realismo filosófico: o que observo com meus órgãos dos<br />
sentidos tem existência fora da minha mente, tal como<br />
percebo. Sabemos que esta postura recebe, com muita razão,<br />
severas críticas de outras escolas filosóficas. Todas as<br />
nossas percepções são guiadas ou dirigidas pelas ideias ou<br />
premissas que estão armazenadas em nossa mente. Ora,<br />
essas ideias básicas ou princípios são geralmente adquiridos<br />
muito cedo. Uma vez armazenadas, essas idéias básicas<br />
não são lembradas como foram adquiridas e também<br />
não temos acesso a elas diretamente, como através da<br />
introspecção ou de reflexões.<br />
Sabe-se que uma grande parte de nossos pressupostos,<br />
valores morais, etc. são adquiridos, para alguns,<br />
antes dos três anos, para outros, os julgamentos morais<br />
seriam aprendidos na adolescência. Agimos automaticamente<br />
usando esses pressupostos- chaves, sem conseguir<br />
criticá-los através de nossos esforços conscientes. Entretanto,<br />
são dessas premissas-conceitos não-visíveis que<br />
extraímos nossas associações entre os fatos - funcionam<br />
como elos teóricos encarregados de reunir os eventos que<br />
observo ou que desejo compreender.<br />
Desse modo, o percebido passa a formar um conjunto<br />
harmônico e estruturado, fornecendo ao observador algum<br />
sentido para ele, que é dado pelo elo dos pressupostos.<br />
156 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Portanto, em resumo: não se podem extrair conclusões,<br />
sem existirem premissas. Nosso raciocínio funciona<br />
após ter recebido um conjunto adequado de informações<br />
iniciais, ou seja, de princípios. De posse de certas premissas,<br />
os “eventos observados” são interpretados – ligados<br />
uns aos outros - sempre através dos pressupostos básicos<br />
que utilizamos. Desse modo é formada uma “rede” onde outros<br />
dados podem, ou não, fazer parte. Portanto, a razão é<br />
totalmente instrumental – trabalha através dos fundamentos<br />
aceitos - ela não nos dá garantia de estarmos certos ou<br />
errados, bem como não indica onde vamos chegar. Podemos<br />
supor que certas experiências perceptivas são diretamente<br />
acessíveis a um observador. Entretanto, as proposições de<br />
observações, unindo os perceptos, nunca são percebidas,<br />
elas existem – já foram “plantadas” em nossa mente antes<br />
da observação. Devemos ter consciência de que percebemos<br />
as “coisas”, ou os “fatos”, sempre nos apoiando nelas.<br />
Nós, os psiquiatras, na impossibilidade de termos um<br />
instrumental mais sofisticado para observarmos, continuamos<br />
a usar esse expediente para fazer nossos diagnósticos<br />
clínicos, isto é, a linguagem do dia-a-dia para os fatos e a<br />
classificação das doença mentais.<br />
Não temos outro mais confiável até agora, esses são<br />
nossos instrumentos de observação. Essa ferramenta interpretativa,<br />
formulada por um grupo de psiquiatras, corrigida<br />
de tempos em tempos, parece-me menos defeituosa<br />
do que se cada um, em cada momento, usasse sua própria<br />
ferramenta, carregada de “pré-conceitos” científicos, acreditando,<br />
com muita fé, que está tendo “percepções imaculadas”,<br />
crença comum existente no “realismo ingênuo”.<br />
Não temos outra saída.<br />
Para a “luneta” ou observações do psiquiatra, os vários<br />
modos de agir do rapaz são denominados sintomas e<br />
sinais, exibidos pelo paciente, e que têm sua origem na<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 157
psique (cérebro/mente) da pessoa. Nessa localizam-se os<br />
fatores determinantes responsáveis pelas anomalias comportamentais<br />
percebidas: tipo de conduta observada, processos<br />
fisiológicos associados e somatizações, mudanças<br />
na cognição, na emoção e na conduta simbólica e, além<br />
disso, inventamos certos fatores que chamamos de “traços”<br />
como determinantes, desde cedo, por certo tipo de<br />
comportamento.<br />
Entretanto, há observadores não-médicos que usam<br />
“óculos” diferentes dos psiquiatras. Eles têm outras premissas<br />
básicas, usam outras lentes. Esses não só observarão<br />
condutas diferentes, como também enfatizarão algumas<br />
delas como mais importantes – prioritárias - para manter<br />
sua ideia do mundo ou da sua cosmologia. Fatalmente não<br />
darão importância às outras condutas ou outros fatos que<br />
são “valorizados” pelo psiquiatra. Para alguns psicólogos,<br />
certos religiosos e espíritas, o que o psiquiatra denomina<br />
de “transtorno psiquiátrico” pode não ser uma disfunção<br />
mental e não ter nada a ver com o cérebro/mente. Eles<br />
entendem e explicam o transtorno mental descrito por nós<br />
conforme as teorias orientadoras subjacentes existentes<br />
em suas mentes. Raciocinarão com conceitos e teorias bastante<br />
diferentes das usadas pelos médico acerca do fato, de<br />
sua evolução e, principalmente, das possíveis “causas” desencadeadoras<br />
do fenômeno que está sendo examinado.<br />
Por fim, esses valorizarão a conduta de forma diversa<br />
do psiquiatra. O que para esse é uma “doença”, para o<br />
espírita ou religioso pode ser, por exemplo, uma “possessão”,<br />
um “encosto” ou até mesmo uma “revelação”. Uma<br />
psicóloga pode chamar esse quadro de “carência afetiva”,<br />
“problemas de adolescente”, “ego fraco” ou outro nome<br />
semelhante. Além disso, não devemos nos esquecer que<br />
observamos um “cliente”, ou qualquer outro nome que se<br />
queira dar, num certo momento, diante de um determina-<br />
158 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
do observador e, como sabemos, a conduta das pessoas<br />
muda conforme o ambiente, nesse caso em função das<br />
informações ou condutas do observador.<br />
As pessoas possuem estruturas psíquicas ou cerebrais<br />
que promovem ações intencionais/racionais. Certos transtornos,<br />
mudanças ou lesões nessas estruturas provocarão<br />
mudanças nas ações. Em outras palavras, as modificações<br />
nas estruturas físicas/biológicas, causadas por mutações<br />
genéticas, danos no tecido cerebral, distúrbios nas substâncias<br />
químicas que aí circulam (neurotransmissores, hormônios<br />
e péptides), além das mudanças internas causadas<br />
por problemas externos do meio ambiente, principalmente<br />
o relacionado aos contatos com pessoas, irão se manifestar<br />
em mudanças comportamentais da pessoa, que pode<br />
caracterizar o que é chamado de transtorno psiquiátrico.<br />
Sua base, essencialmente biológica, está ancorada na história<br />
evolucionária e no genoma das espécies. Entretanto,<br />
o transtorno pode e, geralmente reflete, os efeitos indiretos<br />
ou indesejáveis do meio ambiente sobre o indivíduo<br />
psicossocial. O ser humano, preso às suas características<br />
biológicas, age e reage ao meio social, promovendo continuadamente<br />
sua adaptação aos significados ou valores<br />
desse meio.<br />
Há, portanto, bases sociobiológicas para os transtornos<br />
psiquiátricos. A teoria social fornece as influências<br />
nascidas da cultura e dos sistemas sociais que possibilitam<br />
o aparecimento, bem como sua forma, dos diferentes tipos<br />
de transtornos psiquiátricos. Muitas pesquisas nessas<br />
áreas têm se concentrado na pobreza, na classe social,<br />
nos estressores sociais, no apoio social e diversas outras<br />
influências culturais. Todas têm suas razões.<br />
Um sistema social global é constituído de diversos<br />
subsistemas como o legal/governamental, religioso/moral,<br />
familiar/comunal, acadêmico/médico, crenças/costumes,<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 159
etc. Existindo diversos modos de examinar a conduta,<br />
esta, uma vez desviada, pode levar os diferentes rotuladores<br />
a emitir classificações, conceitos e conclusões também<br />
diferentes, dependendo do subsistema utilizado para<br />
dar significado ao comportamento. O psiquiatra, estando<br />
ligado primordialmente ao subsistema médico, usará uma<br />
conceituação que a comunidade médica adota. Entretanto,<br />
sendo ele gente como o cliente e outras pessoas, - deve<br />
ser lembrado -, está ligado também a outros subsistemas,<br />
muitas vezes mais aprisionados nesses últimos do que no<br />
sistema médico.<br />
Todos esses subsistemas constituem padrões ou esquemas<br />
de referência para comparar e avaliar a conduta<br />
da pessoa a ser examinada. Os diversos esquemas de referência<br />
de cada subsistema examinarão aspectos diferentes<br />
da conduta, usarão conceitos e teorias diversas, valorizarão<br />
mais certos atributos, isto é, operam em termos de<br />
convenções distintivas. Assim é que uma pessoa P pode,<br />
num certo meio social, vir a ser diagnosticada como antissocial,<br />
informalmente rotulada de diferente, desviante,<br />
infradotada ou doente.<br />
Isto indica que P, a partir de um esquema de referência,<br />
recebeu uma identidade social formal como resultado<br />
de sua incorporação num certo subsistema social adotado<br />
por um grupo de pessoas. Este mesmo “cliente”, se examinado<br />
através de um outro padrão ou subsistema, e uma<br />
vez interpretada por ele, poderá ser denominada de criminosa<br />
(subsistema legal/governamental), poderá também<br />
ser rotulada de “santa”, “vidente” ou “médium”, etc. Tudo<br />
dependerá das convenções existentes na base de referência<br />
adotada e usada no momento da incorporação, por cada<br />
examinador de conduta. Em resumo, um mesmo indivíduo<br />
P poderá ser rotulado de criminoso, doente mental, sadio,<br />
santo e estranho e outros rótulos, até de “normal”.<br />
160 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
São frequentes os conflitos entre os diversos modos<br />
de rotular dos subsistemas. Geralmente um rotulador não<br />
conhece o esquema usado pelo outro para rotular e, por<br />
isso, acha que ele está errado. O próprio rotulador geralmente<br />
não conhece as premissas implícitas no seu raciocínio<br />
e que estão sendo usadas para incorporar um certo<br />
indivíduo num subsistema sociocultural. Cada sistema possui<br />
não só ontologias diversas, como também epistemologias<br />
variadas conduzindo a ela.<br />
O subsistema médico clássico, como outros subsistemas,<br />
opera com pressuposições teóricas subjacentes diferentes<br />
das dos outros. Assim, ao examinar uma conduta,<br />
poderíamos perguntar: - Que fatores levam uma pessoa a<br />
ter o comportamento que ela está apresentando? Se ela<br />
é rotulada de “doente mental”, estamos raciocinando com<br />
hipóteses ou explicações biológicas e desenvolvimentalistas<br />
para entender o transtorno.<br />
Para o adepto do subsistema religioso, as explicações<br />
emergem de teorias místicas ou mágico-religiosas e, finalmente,<br />
o esquema legal/governamental examinará as<br />
ações do rotulado que não se enquadram no que está estabelecido<br />
pela lei.<br />
A nossa sociedade ou governo, por diversas “razões”,<br />
tem priorizado o esquema de referência científica, neste<br />
caso o modelo médico e não os “alternativos” como o mágico-religioso.<br />
Entretanto, os outros subsistemas contaminam<br />
o pensamento de todos nós, inclusive dos médicos,<br />
psicólogos, juízes, autoridades, etc. O nosso presidente,<br />
ao tomar posse, indicou um médico para ser o Ministro da<br />
Saúde. Entretanto, preso a outros esquemas, usou fitinhas<br />
de N. S. do Bonfim no pulso para “protegê-lo” contra maus<br />
prognósticos e submeteu-se à acupuntura para suas dores<br />
lombares. Uma mistura de crenças e de paradigmas conflitantes.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 161
A cultura continua a utilizar-se de premissas, conceitos<br />
e teorias das doenças e da saúde provenientes de diversas<br />
origens, algumas com ideias opostas. Ao categorizarmos<br />
um comportamento desviante, misturamos ideologias variadas<br />
acerca das doenças, fatores naturais e sobrenaturais,<br />
considerações morais, socioecológicas, sociossituacionais,<br />
como anomalias, excentricidades, criminalidade, santidade,<br />
pecado e feitiçaria. Todas se entrelaçam na mente do<br />
indivíduo e não raras vezes nas teorias complexas do próprio<br />
médico, formando um todo compacto.<br />
162 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
LoUcoS X Sem-teto<br />
Resta-nos esperar um pouco para assistirmos à transformação<br />
de uma multidão de “loucos” em um exército de<br />
sem-teto (sem-casa, ou, mais vulgarmente, pedidores de<br />
esmolas). Muitos dos loucos “soltos” – ou seriam abandonados?<br />
– pelos seus “defensores”, depois de um certo<br />
tempo irão morrer de inanição, outros serão queimados,<br />
atropelados ou assassinados pelos seus próprios companheiros<br />
ou inimigos, nas ruas ou nos barracões inabitáveis<br />
e também em “abrigos para velhos e loucos”. Os que escaparem<br />
desse morticínio morrerão de cirrose, hepatite,<br />
tuberculose e pneumonia assentada na desnutrição, alcoolismo<br />
e outras drogas.<br />
Compreenda melhor a verdadeira história da “Libertação<br />
dos Loucos”. Em 1900, o número dos pacientes mentais<br />
internados nos hospitais psiquiátricos americanos era<br />
de 150.000. Este número cresceu para 445.000, em 1940.<br />
Em 1955, dobrou para 819.000 (citado por John Q. La Font,<br />
1994). Os gastos ocorridos com esta população preocupa-<br />
preocuparam<br />
o governo americano. Era preciso armar, rapidamente,<br />
uma estratégia capaz de diminuir essas despesas e, ao<br />
mesmo tempo, agradar à opinião pública.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 163
Nos anos sessenta o quebracabeça foi maquiavelicamente<br />
solucionado. A estratégia foi inteligentemente montada.<br />
Sempre todos criticaram a assistência médica dada<br />
ao paciente mental nos hospitais psiquiátricos. Na época<br />
da criação da brilhante ideia para economizar gastos públicos,<br />
grandes nomes da psiquiatria mundial como Laing,<br />
Szasz, Gofman faziam, com toda razão, pesadas críticas ao<br />
internamento desnecessário e à péssima assistência psiquiátrica<br />
hospitalar.<br />
Mas como tirar os pacientes do hospital sem ferir a<br />
opinião pública? A ideia para esse dilema foi magistral e<br />
simples. Criou-se uma lei proibindo o internamento involuntário.<br />
A partir daí, todas as internações tornaram-se<br />
mais difíceis de serem concretizadas. Além disso, os pacientes<br />
internados podiam escolher, a partir da promulgação<br />
da lei, em continuar ou não hospitalizados.<br />
O povo apoiou com entusiasmo a lei. O povo jamais<br />
conhece a fundo as intenções reais e implícitas dos governantes,<br />
pois os discursos explicitados, em sua maioria ou<br />
totalidade, têm sido usados para esconder o que não pode<br />
ser mostrado. O movimento que tirou o louco do hospital e<br />
o despejou na rua como lixo, recebeu o eufêmico nome de<br />
“movimento em defesa da liberdade dos indivíduos estigmatizados<br />
e desprotegidos socialmente”.<br />
O resultado da reforma foi rápido e eficiente como<br />
desejavam os governantes preocupados com as despesas,<br />
jamais com a qualidade de vida do paciente psiquiátrico.<br />
O número de internados nos USA caiu para menos<br />
de 200.000. Suas famílias, quando existiam, não tinham<br />
capacidade nem competência para tê-los em casa. Os pacientes,<br />
uma vez “libertados” e sem apoio familiar, foram<br />
transferidos dos péssimos hospitais psiquiátricos para as<br />
ruas selvagens das grandes cidades ou abrigos miseráveis<br />
e sem assistência médico-psiquiátrica.<br />
164 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Os dados mostram que nos USA houve um crescimento<br />
assustador dos sem-tetos após a vigência dessa lei.<br />
Estes aumentaram para 500.000 a 600.000 indivíduos.<br />
Outras estatísticas falam de 3.000.000 deles. Desses,<br />
segundo as estatísticas, 90% são doentes mentais graves:<br />
esquizofrênicos, alcoólatras, deprimidos, dependentes de<br />
drogas, epilépticos, demenciados (caduquice) e débeis<br />
mentais.<br />
Por outro lado, a população ficou à mercê de possíveis<br />
ataques de alguns desses ex-pacientes. Há tempos, o<br />
New York Times publicou uma reportagem relatando crimes<br />
no metrô de Nova Iorque. As vítimas, usuários do<br />
metrô, foram atiradas debaixo dos trens. Dos dez assassinatos<br />
relatados, nove foram praticados por esquizofrênicos<br />
delirantes e que nunca tinham visto suas vítimas. Um<br />
outro estudo feito na Suécia mostrou que 20% das mulheres<br />
sem-teto morreram durante os três anos da pesquisa,<br />
sendo que algumas delas foram assassinadas pelos<br />
próprios companheiros. Essa taxa de mortalidade é doze<br />
vezes maior do que as ocorridas com uma amostra de mulheres<br />
de mesma idade.<br />
Em resumo: os “loucos”, nos Estados Unidos, se transformaram<br />
em sem-teto. A ideologia capitalista, desde sua<br />
origem, não tolera cidadãos que não produzam trabalho.<br />
Os primeiros “hospitais” eram depósitos de “vagabundos”,<br />
destinados a afastá-los dos “sãos” trabalhadores. O governo<br />
capitalista esvaziou os hospitais, lançando os pacientes<br />
na rua e sem dono, abandonando-os à sua própria sorte.<br />
Surpreendentemente, vemos ativistas dos partidos<br />
chamados de “progressistas” como os principais defensores<br />
dessa covarde trapaça. Aproveita-se da insensatez<br />
provisória ou perene dos doentes mentais, prometendolhes<br />
a liberdade inexistente. Foram, de fato, jogados no<br />
inferno das ruas, sem comida e sem lugar para dormir.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 165
De forma ilógica falam do direito do cidadão, inclusive do<br />
direito à assistência médica, mas, com a alta hospitalar élhes<br />
negado esse direito.<br />
Todos sabem - os políticos interessados em economizar<br />
fingem não saber - que este tipo de indivíduo não consegue<br />
distinguir e escolher o que é o melhor para ele próprio, uma<br />
conduta que faz parte de sua própria doença. O Estado,<br />
apoiado por diversos políticos e pelo povo ingênuo, atuando<br />
como o bandido ou marginal, passa o “conto do vigário” no<br />
incauto e desprotegido paciente, lucrando com a ingenuidade<br />
de sua vítima e, estranhamente, recebe as honras e os<br />
aplausos da galera por estar “libertando os loucos”.<br />
A história ocorrida nos USA, que está sendo reformulada,<br />
foi copiada em Minas. Lá nos Estados Unidos constatou-se<br />
que a “caridade” para com o paciente, de fato, foi<br />
sua desgraça. A lei foi modificada para a adoção de uma<br />
“Jurisprudência Terapêutica”. Segundo esta, o alvo passa<br />
a ser o melhor para a saúde do paciente, isto é, o internamento<br />
ou tratamento pode e deve ser involuntário, desde<br />
que beneficie o paciente.<br />
Vamos matar muitos “loucos” para acordarmos e<br />
aprendermos a lição. É possível, desde que pensemos, antecipar<br />
acontecimentos ilógicos antes de sua ocorrência.<br />
Posso, ao perceber que a escada está quebrada, trocá-la<br />
antes de minha queda. De qualquer modo, com o dinheiro<br />
economizado devido à “liberdade” dos “loucos inúteis”,<br />
com a diminuição dos gastos com a saúde desses pacientes<br />
sem voz e sem prestígio social, torna-se possível aumentar<br />
os salários dos nobres vereadores, deputados, senadores e<br />
outros protegidos. E os políticos continuarão a ser os grandes<br />
defensores dos desassistidos.<br />
Talvez o governo e os políticos tenham razão: o melhor<br />
– ou menos ruim - para os “loucos” abandonados é ter<br />
uma morte rápida.<br />
166 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Torna-se difícil fazer uma escolha entre viver num<br />
péssimo hospital psiquiátrico ou morrer bêbado, drogado,<br />
doente e agredido numa rua escura e sem saída.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 167
A teStemUnHA do Ponto de ViStA<br />
PSiQUiÁtrico<br />
Nenhuma testemunha, por mais que jure dizer a verdade,<br />
somente a verdade, o fará, pois sua “verdade” é<br />
um conjunto de conceitos, preconceitos, julgamentos, inferências,<br />
interpretações, percepções e fantasias mal ou<br />
bem elaboradas. Sabe-se que ninguém tem condições de<br />
fazer uma descrição imparcial e objetiva de um fato, mesmo<br />
de evento simples: um atropelamento por um veículo.<br />
Cada uma das testemunhas é diferente quanto à idade,<br />
sexo, inteligência, capacidade de percepção, raciocínio,<br />
julgamento e maior ou menor tendência à fantasia. Consequentemente,<br />
cada uma terá uma história, ou melhor, uma<br />
versão do acidente.<br />
Assim, se o atropelamento foi cometido por um motorista<br />
de táxi e a testemunha não gostar deste profissional,<br />
ela poderá ter “enxergado” uma expressão de raiva no<br />
rosto do motorista. Um bom observador poderá perceber<br />
no rosto do motorista, por exemplo, a pupila dilatada, os<br />
lábios contraídos, tremores nas mãos, a palidez, a respiração<br />
e voz entrecortada, mas jamais observará “ódio”, pois<br />
esse não é percebido e sim construído ou imaginado pelo<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 169
observador, ou seja, o “ódio” será sua interpretação ou julgamento<br />
de certos fatos que ele percebeu. Provavelmente<br />
todos os depoimentos são carregados de julgamentos ou<br />
interpretações.<br />
Um testemunhará que o motorista estava “voando”,<br />
uma outra, simpática aos taxistas, afirmará que o pedestre<br />
não teve o “devido cuidado” ao atravessar a rua, e acrescentará:<br />
”é muito difícil dirigir no centro da cidade”.<br />
Há outras hipóteses: uma, ao assistir ao acidente,<br />
colocará a culpa no guarda de trânsito – caso não goste<br />
deles. Outras ainda poderão culpar o governo, o calor<br />
ou o frio, conforme a temperatura do dia. Portanto, todos<br />
irão elaborar hipóteses pessoais para o que acabaram de<br />
ver, escutar e, principalmente, sentir. Assim agem todas as<br />
testemunhas: de casamento, de briga de marido e mulher,<br />
de acidente de trânsito ou de assassinato.<br />
A “descrição” é, de fato, um julgamento intuitivo, automático,<br />
interpretações concebidas por cada um de nós<br />
após sentirmos emoções diante do fato presenciado. Nunca<br />
é uma descrição dos fatos puros observados. Isso só acontece,<br />
em algum grau, com os cientistas nos laboratórios de<br />
pesquisas. A testemunha relata a composição que elaborou<br />
ou fantasiou, aproveitando um ou outro fato, deixando<br />
de lado diversos outros que não interessam ao descrito.<br />
Em resumo, elas fazem julgamentos do que sentiram, não<br />
do que viram, em harmonia com o que pensam de si e do<br />
mundo. A nossa mente seleciona e retém eventos do mundo<br />
conforme nossos valores ou atitudes.<br />
Numa pesquisa, meninos de uma escola americana foram<br />
separados em duas classes: uma com preconceitos contra<br />
o negro, outra formada de alunos sem preconceitos. Para<br />
os dois grupos foi lida uma história relatando fatos favoráveis<br />
e desfavoráveis ao negro. Semanas após a leitura pediu-se<br />
aos alunos que relatassem o que lembravam da história.<br />
170 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
O primeiro grupo - o que tinha preconceito – lembrava<br />
apenas de fatos desfavoráveis aos negros.<br />
O segundo grupo, sem preconceitos, lembrou-se tanto<br />
de fatos favoráveis quanto desfavoráveis.<br />
Voltando ao acidente de trânsito, o foco de atenção<br />
das testemunhas, no momento anterior ao acidente, possivelmente<br />
era, como sempre, dirigido aos seus interesses<br />
do momento: um olhava a vitrine, outro refletia sobre a<br />
briga que teve com a esposa, um terceiro lia manchetes na<br />
banca de jornais, uma cuidava de crianças, etc. De repente,<br />
a paz foi quebrada por um estrondo ou visão inesperada.<br />
A atenção do pedestre/testemunha é mudada bruscamente<br />
devido ao estímulo visual ou auditivo.<br />
Mesmo se a pessoa observou a colisão no momento<br />
exato em que a vítima foi atirada ao chão, ela não poderá<br />
dar um relato preciso do fato, pois ela não tem o treinamento<br />
adequado para observar acidentes, crimes ou brigas. Um<br />
policial habilidoso, ao presenciar um acidente, poderá ver,<br />
possivelmente melhor do que um nervoso passante sem<br />
treino. Mas mesmo este policial terá sua observação limitada,<br />
posto que naquele instante verá um acontecimento<br />
complexo, com diversos fatos antecedentes e consequentes.<br />
Por exemplo, ao presenciar um acidente, o policial ou<br />
a testemunha não sabem se a vítima sentiu um mal súbito,<br />
se queria matar-se ou, até mesmo, a posição do carro nos<br />
instantes que antecederam a colisão. O conjunto de fatores<br />
que levou o carro a colidir não é conhecido.<br />
Nossa mente tende a dar uma organização lógica e<br />
compreensível a qualquer fato. Ora, como falta treino, no<br />
caso de observação de acidente, e também conceitos organizadores<br />
mais científicos acerca do fato - menos populares<br />
– para obter uma objetividade maior, sabemos que qualquer<br />
indivíduo percebe, organiza e transforma os acontecimentos<br />
conforme o modelo mental existente em sua mente.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 171
Desse modo, em lugar de descrever um fato observado,<br />
a testemunha relata um fato transformado, encaixando-o<br />
no seu sistema representacional já há muito organizado<br />
pelas experiências e aprendizagens anteriores. Ele dará<br />
pouco valor a fatos que não se enquadram às suas crenças<br />
e ideais básicos, por outro lado acentuará os que reforçam<br />
as ideias básicas. Se ocorresse o contrário, as pessoas<br />
iriam se modificar a todo momento e isso não ocorre.<br />
Há uma experiência clássica, que realizei por diversas<br />
vezes na Faculdade de Medicina da UFMG. Ela consiste<br />
em apresentar a um aluno um quadro contendo uma cena<br />
dentro de um ônibus com vários personagens. Um deles é<br />
um homem de cor branca portando uma navalha levantada<br />
em direção ao rosto de um homem negro. Pede-se ao aluno<br />
que está vendo a cena que faça uma descrição da mesma<br />
para um segundo aluno, que vai escutar o relato sem<br />
ter visto a imagem. Esse segundo aluno depois descreve o<br />
que “ouviu” para um terceiro aluno, que entra na sala até<br />
alcançar sete alunos. Com frequência, em certo momento<br />
do relato, algum aluno transforma o ouvido: descreve a<br />
navalha na mão do homem negro e não do branco como<br />
estava sendo descrita. Assim, o escutado é transformado<br />
pela cognição ou representação pré-existente, quem ataca<br />
é o negro, não o branco.<br />
Em resumo, o mundo que observamos é modificado<br />
pelo nosso “assimilador” mental. Os fatos serão sempre<br />
percebidos e organizados conforme os valores e ideais que<br />
cada um tem no momento.<br />
Se a testemunha não gosta de taxistas, nem de cabeludo,<br />
e por azar o motorista encaixa-se nessas características,<br />
possivelmente ele será incriminado pelo observador.<br />
Um acidente, um crime ou um divórcio são processos<br />
dinâmicos, confusos e complexos. Uma testemunha, ao<br />
observar ou ouvir, “congela” a imagem percebida domina-<br />
172 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
da pela emoção provocada: essa orientará o relato. Ora, o<br />
pequeno segmento do acidente memorizado, ditado pelas<br />
suas intuições e emoções, não dará nunca a ideia do todo.<br />
É atribuída a José Maria de Alkmim a frase “o importante<br />
não é o fato, mas a versão”. Ele sabia o que dizia,<br />
pois o fato, a partir do momento seguinte ao acontecimento,<br />
passará a existir apenas na memória dos espectadores,<br />
cada um com a sua versão. Após o acidente encerrou-se<br />
o fato. A partir daí nascem as versões e essas passarão a<br />
existir nos processos, nas histórias e na vida das testemunhas.<br />
Se a vítima morre, parte do fato real é enterrado<br />
com ela.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 173
dUAS VertenteS<br />
Duas revistas americanas, a “New York”, há vários<br />
anos, dezembro de 89, e a “Newsweek”, março de 1990,<br />
estamparam na capa fotos e desenhos de um novo antidepressivo,<br />
o cloridrato de fluoxetina, lançado no Brasil<br />
também há bastante tempo, bem como nos Estados Unidos.<br />
Ambas as revistas discutem, em suas reportagens, a<br />
batalha que se trava entre os chamados psicoterapeutas e<br />
os psiquiatras referente à prescrição de drogas para seus<br />
pacientes. O que se nota, através das reportagens, é uma<br />
modificação nos hábitos e na maneira de pensar dos psicoterapeutas.<br />
Baseados na crença de que as prescrições para<br />
os clientes teriam um efeito simbólico negativo sobre a<br />
psicoterapia, eles não receitavam medicamentos para seus<br />
pacientes. Agora passaram a recomendá-los.<br />
A luta, que é antiga, se acirrou a partir do livro publicado<br />
pelos professores americanos Paul Wender e Donald<br />
Klein, em 1981, com o título “Mind, Mood and Medicine”.<br />
Nele é descrito o caso de uma cliente que, após ser tratada<br />
durante vários anos através de diferentes formas de psicoterapias,<br />
e não tendo conseguido os resultados esperados,<br />
melhorou consideravelmente ao usar antidepressivos.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 175
A paciente apresentava a síndrome do pânico. Estava lançada<br />
para o mundo uma ideia revolucionária da possibilidade<br />
de se tratarem certos distúrbios emocionais através<br />
de medicações. Até então a única forma de tratamento<br />
utilizada para esses casos era a psicoterapia.<br />
A descoberta de novas medicações e a divulgação e o<br />
uso de novas técnicas psicoterápicas destruíram o domínio<br />
exercido, durante décadas, pela psicanálise.<br />
Esta forma de tratamento, ou melhor, esta técnica psicoterápica<br />
tornou-se tão divulgada entre a população que<br />
ela passou a ser sinônimo, para muitos, de psicoterapia.<br />
Atualmente existem catalogadas mais de mil teorias psicoterápicas<br />
diferentes. Algumas são, há muito, empregadas<br />
no Brasil, como a Psicoterapia Centrada no Cliente, Terapia<br />
Transacional, Terapia Comportamental, Terapia Jungiana,<br />
Gestalt, Neurolinguística, Terapia Racional Emotiva, Terapia<br />
Cognitiva Comportamental e outras.<br />
A poeira ainda não baixou nos Estados Unidos, mas<br />
começou a levantar-se aqui no Brasil. Durante muitos anos<br />
a psicoterapia de base analítica dominou os departamentos<br />
das escolas médicas, de psicologia, de sociologia e de<br />
antropologia e também uma grande parte das revistas sobre<br />
o comportamento humano. A psicanálise sutilmente<br />
penetrou e dominou a imprensa leiga, assim como as artes<br />
e a literatura, determinando a formação de uma opinião<br />
pública altamente favorável a ela. Nos departamentos<br />
das universidades, onde a psicanálise dominava, os que<br />
ousaram duvidar de suas suposições, ou eram afastados<br />
de suas funções, quando as tinham, ou nunca alcançavam<br />
cargos de direção. A psicanálise tornou-se, para muitos<br />
dos seus antigos seguidores, algo semelhante a uma religião.<br />
As suas premissas não podiam ser contestadas, mas<br />
tão-somente discutidas, para serem compreendidas pelos<br />
iniciados nas “verdades” reveladas e não observadas.<br />
176 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Alguns curiosos discordavam publicamente da teoria<br />
psicanalítica, entre eles Sir Peter Medawar, prêmio Nobel<br />
de Medicina, que declarou: “Considerada em sua totalidade,<br />
a psicanálise não funciona, ela é um produto acabado,<br />
é como um dinossauro ou um Zepelin; nenhuma teoria<br />
melhor poderá ser erigida sobre suas ruínas, as quais permanecerão<br />
para sempre como uma das mais tristes e estranhas<br />
marcas na história do pensamento do século XX”.<br />
Existe atualmente o perigo de caminharmos para o<br />
outro extremo, o risco desses entusiasmados neuroquímicos<br />
passarem a tratar todos os seus pacientes de modo semelhante<br />
ao do internista que trata uma úlcera, ou de um<br />
fanático psicoterapeuta ao imaginar que a teoria por ele<br />
seguida é a única certa e verdadeira e, desse modo, cair na<br />
mesma crença sustentada pelos psicanalistas de ontem.<br />
Os psicólogos americanos que, aqui como lá, não podem<br />
receitar, lutam para conseguir esse privilégio restrito<br />
a médicos e dentistas. Parece que a luta entre os grupos<br />
vai durar muito tempo. Quem perde com a disputa é<br />
a própria psiquiatria, pelo radicalismo, sempre perigoso,<br />
principalmente na área científica, e também os clientes,<br />
que ao se filiarem a um grupo ou a outro, perdem muitas<br />
vezes a oportunidade de se beneficiar com os tratamentos<br />
do grupo adversário. De qualquer modo, pouco a pouco os<br />
psiquiatras aceitam o inevitável, isto é, surgimento de diferentes<br />
técnicas psicoterápicas adequadas para diferentes<br />
tipos de pacientes e de terapeutas, e o uso de medicamentos<br />
para curar algumas vezes ou, pelo menos, junto com<br />
as psicoterapias, ajudar a curar diversas doenças mentais<br />
e emocionais.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 177
PLAceBo, A PÍLULA doUrAdA<br />
Certos médicos gostam muito de receitar drogas novas,<br />
a última novidade ou descoberta do laboratório. Eles<br />
tem plena razão, pois no meio médico circula uma afirmação:<br />
“deve-se tratar o maior número de pacientes com as<br />
novas drogas, enquanto elas ainda têm o poder de curar”.<br />
Sabe-se que, após algum tempo de uso, várias dessas<br />
drogas espetaculares foram desmitificadas e tornaram-se<br />
somente placebos, ou seja, substâncias sem a ação farmacológica.<br />
Para verificar se uma droga tem ou não propriedades<br />
farmacológicas, os pesquisadores testam-na, comparandoa<br />
com um falso tratamento, isto é, com um placebo. Este<br />
é preparado preenchendo todas as características externas<br />
da droga a ser testada. Também o grupo de pacientes que<br />
recebem a droga e os que recebem apenas o placebo deve<br />
ser semelhante tanto em idade, como quanto à ”doença”,<br />
à cultura, etc. Os pacientes, as enfermeiras e os médicos<br />
que aplicam as duas “drogas” não sabem qual é a inerte<br />
e qual é a droga a ser testada. Apenas o coordenador da<br />
pesquisa conhece esses dados.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 179
Tem sido verificado que os placebos tendem a ser<br />
mais eficazes, se custam mais caro, se muitos amigos e<br />
conhecidos já o usaram com “sucesso”, se são amargos<br />
ou se, em algum sentido, apresentam dificuldade de serem<br />
usados. As injeções inertes têm mais efeito do que os<br />
comprimidos sem ação.<br />
Pois bem, normalmente os sintomas da maioria das<br />
doenças são favoravelmente afetados também pelos placebos,<br />
isto é, pelo não-remédio.<br />
Eles são altamente eficientes para melhorar as ansiedades,<br />
depressões, dores, enjoos, insônias, psicoses,<br />
neuroses, alergias diversas, artrites, distúrbios gastrointestinais,<br />
doenças da menopausa, verrugas, impotência,<br />
acne, obesidade e muitos outros problemas médicos. Não<br />
fique muito entusiasmado com essa “panaceia”. Ela é muito<br />
eficiente para curar os sintomas e não a reversão ou<br />
suspensão de condições degenerativas.<br />
Os remédios receitados pelos curandeiros e pelos<br />
médicos até o século XIX eram certamente placebos, já<br />
que mesmo aqueles medicamentos, com propriedades farmacológicas<br />
hoje bem conhecidas e comprovadas, eram<br />
utilizados em doses inadequadas ou para vários males em<br />
que a sua ação terapêutica era nula. Os antigos médicos<br />
e curandeiros indicaram e realizaram, entre outros, os<br />
seguintes tratamentos: panos quentes aplicados à pele,<br />
varas magnéticas, elixir de longa vida e, para curar impotência,<br />
bebidas contendo o sangue dos fortes, perfurações<br />
da pele com agulhas especiais, inalações de vapores ou<br />
de fumaças, etc. As poções, os unguentos e as cápsulas<br />
preparadas pelos curadores podiam conter quase tudo:<br />
fezes ou urinas humanas ou de outros animais, metais<br />
diversos como o cobre (usado também para ser colocado<br />
em contato com a pele), pós de besouro e de serpentes,<br />
gorduras de eunucos e de porcos não castrados, testí-<br />
180 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
culos e diversas ervas. Todos esses tratamentos tiveram<br />
algum sucesso, em certos épocas, realizados por algum<br />
terapeuta.<br />
Os doentes mentais se submetiam a alguns tratamentos<br />
mais bárbaros: odores desagradáveis, sons altíssimos,<br />
exposição a situações de perigo (cova das serpentes),<br />
aplicação de vesicatórios na cabeça, camisa de força,<br />
duchas frias, segregação social, coma insulínico, eletrochoque<br />
e, mais recentemente, a lobotomia.<br />
Os clientes e seus familiares eram explorados pelos<br />
diversos “sábios” da época, que cobravam às vezes fortunas<br />
pelos tratamentos efetuados. Esses eram feitos, muitas<br />
vezes, com remédios não revelados, fabricados secretamente<br />
pelo curador, exigindo um grande tempo de uso,<br />
bem como muitos recursos e esforços do paciente, além<br />
de serem perigosos, desagradáveis e até mesmo sinistros.<br />
Ora, como a maioria dos tratamentos que ocorreram na<br />
medicina pré-científica - ainda muito usados - não apresentava<br />
o menor efeito orgânico direto sobre a condição<br />
a ser tratada, conclui-se que grande parte das curas foi<br />
alcançada com o uso de placebos.<br />
O placebo continua com sua ação poderosa na medicina<br />
moderna. Podemos afirmar que toda ação terapêutica<br />
medicamentosa, psicoterápica ou mesmo cirúrgica,<br />
envolve, em maior ou menor grau, efeitos de placebo que<br />
dependerá do carisma do médico, da fé do cliente e como<br />
o ritual mítico foi encenado. O médico, querendo ou não,<br />
sabendo ou não, fará uso de efeitos placebos em seus<br />
tratamentos.<br />
Entre as diversas pressões sofridas pelos médicos no<br />
seu dia-a-dia, principalmente se trabalha em instituições<br />
onde o número de clientes é enorme e o tempo curto, é a<br />
exercida pela indústria farmacêutica quanto à promoção<br />
de seus produtos.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 181
As estratégias são várias, indo desde a propaganda<br />
cara a cara, passando por promoção de encontros, revistas<br />
especializadas muito bem impressas, até o financiamento<br />
de congressos, ajuda material e financeira para pesquisa<br />
dos medicamentos da firma e distribuição de amostras.<br />
Essa indústria, de parceria com o ensino médico,<br />
criou o conceito de que tratar de alguém é dar-lhe algum<br />
medicamento. Essa ideia contamina a população, que hoje<br />
pensa do mesmo modo. Criou-se com isso, ao lado do médico,<br />
do paciente e da indústria farmacêutica, uma redução<br />
no campo de visão da doença, com percepção apenas dos<br />
seus aspectos biológicos, e pouca ou nenhuma preocupação<br />
com os ângulos psicológicos, sociais e culturais.<br />
A indústria farmacêutica, seguindo os outros mercados<br />
de produção e consumo, lança periodicamente novidades<br />
em medicamentos, com a ideia, para o consumidor<br />
e alguns médicos, de um suposto progresso ou avanço de<br />
medicina. Os novos medicamentos são avidamente receitados<br />
e consumidos pelas mentes confusas, assim como<br />
se usa a nova cueca, o novo sabão em pó ou o novo perfume.<br />
O bom médico, na avaliação de alguns, deve estar em<br />
dia com as novas e maravilhosas drogas que acabaram de<br />
sair do forno. Como toda moda, as propriedades extraordinárias<br />
da nova droga quase sempre desaparecem com o<br />
tempo. O cliente, esquecendo que foi ludibriado ao ser tratado<br />
possivelmente por um placebo, curado pela fé retorna<br />
ao seu médico, caçador da mais moderna descoberta, e<br />
consome feliz, novamente, o último lançamento, a última<br />
panaceia, o placebo dourado, num ritual hipocondríaco.<br />
182 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
AidS:<br />
VocÊ tem medo dA doenÇA<br />
oU do doente?<br />
Há dias, durante cerca de três horas, fiz uma viagem<br />
de ônibus para o interior de Minas. O ônibus, cheio de<br />
passageiros assentados, carregava também alguns em pé.<br />
De tempos em tempos, o veículo parava na estrada para<br />
pegar ou descer viajantes. Nessas ocasiões, por vezes vagava<br />
um novo assento no ônibus. Era comum ver o passageiro<br />
em pé continuar nessa posição alguns minutos, antes<br />
de decidir se assentar no lugar disponível.<br />
É curioso observar que a maioria das pessoas prefere<br />
não se assentar numa cadeira ainda “quente”. Segundo a<br />
crença, essa pode transmitir doenças. Pesquisas mostraram<br />
mais do que isso: a maioria das pessoas tem aversão<br />
a usar camisas, blusas, meias, sapatos, escova de dentes,<br />
pentes, sabonetes que pertenceram a um estranho e,<br />
principalmente, utilizar-se de uma privada estranha ao seu<br />
bem conhecido e amado bumbum.<br />
Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos, com a<br />
participação de 260 estudantes americanos, mostrou uma<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 183
aversão estranha e não esperada. As perguntas e as respostas<br />
foram muito semelhantes às abaixo:<br />
— Você seria capaz de usar um blusão que pertenceu<br />
a um aidético?<br />
— Acho que não.<br />
— E se esse aidético for um homossexual?<br />
— Pior ainda, de modo nenhum!<br />
— E se o blusão tivesse sido usado por um homem<br />
que perdeu uma perna num acidente de carro?<br />
— É... acho que não o usaria.<br />
— Vestiria um blusão que pertenceu a um assassino?<br />
— Não... nem pensar.<br />
Outras perguntas foram feitas como “Como você se<br />
sentiria usando um blusão novo?” Em seguida, perguntouse<br />
acerca do uso do blusão usado por um homem sadio,<br />
por um tuberculoso e um aidético-hemofílico. As mesmas<br />
perguntas foram feitas ao grupo de estudantes americanos<br />
com respeito a dormir na cama e dirigir um carro usado<br />
por esse grupo de indivíduos.<br />
Os resultados encontrados são interessantes: houve<br />
um elevado índice de medo de “contágio”, mesmo quando<br />
o blusão, cama e carro haviam pertencido a um homem<br />
saudável, em 33% dos entrevistados. Uma surpresa: na<br />
pesquisa, 50% dos entrevistados não usariam um objeto<br />
pertencente a um indivíduo que perdera uma perna num<br />
acidente. Seria medo do azar?<br />
Outros estudos relatam que tem sido difícil vender<br />
ou alugar casa onde anteriormente morou um aidético.<br />
Também tem sido verificado que os pais relutavam em<br />
matricular o filho numa escola frequentada por um aluno<br />
com AIDS. Uma pesquisa mostrou que 32% dos entrevistados<br />
acreditam que a AIDS pode ser transmitida pelo<br />
banho de banheira e 35% que pode ser adquirida ao doar<br />
sangue.<br />
184 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
A aversão pessoal é um sintoma de inúmeros transtornos<br />
mentais, na qual se inclui a personalidade “evitante”<br />
(pessoa facilmente ferida pelas críticas, que foge de<br />
atividades sociais, evita falar ou comer em público, etc.).<br />
A aversão ao contágio é uma resposta comum em pessoas<br />
consideradas “normais” e poucos são os defensores dos<br />
direitos dos aidéticos que seriam capazes de vestir uma<br />
roupa que foi usada por esse grupo e, muito menos, por<br />
um aidético homossexual. Por quê?<br />
Sabe-se que o medo do contato com pessoas, doentes<br />
ou não, implica mais do que o simples medo de contrair uma<br />
doença. Uma explicação frequente das causas das doenças<br />
é a cultural-religiosa. Para essa interpretação, apanha-se<br />
uma doença em virtude de transgressões morais ou pecados.<br />
Por trás dessa crença há uma suposição da existência<br />
de um “mundo justo”, sugerindo um castigo e desvalorização<br />
moral da vítima dos azares físicos ou moléstias. Para<br />
esses, o atingido pelo infortúnio deve “merecer” o ocorrido<br />
como punição por algo errado que ele deve ter feito.<br />
O descrito acima intuitivamente nos soa esquisito.<br />
Mas, sem estranharmos, observamos uma conduta oposta:<br />
a todo o momento assistimos fãs de artistas, esportistas,<br />
políticos, religiosos e outros famosos sonhando em possuir<br />
e vestir a camisa e cueca que pertenceu a Ronaldinho e<br />
outros, de tomar um banho com o sabonete usado pelo<br />
cãozinho de Xuxa, ou usar sua calcinha e sutiã, de dormir<br />
na cama que pertenceu, ou, se possível, com o “próprio”<br />
deus idolatrado, de viajar no carro de alguém famoso, em<br />
resumo: tudo que poderá produzir associações supostamente<br />
“positivas”.<br />
Acredito que é a emoção intuitiva, positiva ou negativa<br />
que sentimos para um ou outro indivíduo, que promove<br />
os pensamentos favoráveis e desfavoráveis que surgem<br />
para justificar o sentido pelo nosso organismo.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 185
De outro modo, não são os pensamentos “lógicos”<br />
que dão origem aos julgamentos feitos – vestir ou não<br />
o blusão - mas sim as emoções presas em julgamentos<br />
cristalizados que são detonadas automática e inconscientemente<br />
contra ou a favor de determinadas categorias de<br />
pessoas diante da presença do fato exibido.<br />
Vocês sabem que existe uma ilusão de autoengrandecimento<br />
pessoal devido a ligações não significativas, subjetivas<br />
tolas, como ficar feliz por morar no mesmo prédio<br />
ou bairro onde reside uma pessoa famosa, usar a mesma<br />
marca de auto, o mesmo corte de cabelo, chinelos, óculos<br />
etc., semelhantes ao do nosso ídolo. Alguns ficam felizes<br />
até em virtude de associações tênues, como ter nascido no<br />
mesmo dia e mês em que nasceu seu deusinho passageiro.<br />
Esse é o ser humano, chamado, por alguns, de animal<br />
superior e racional.<br />
186 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
AidS: o Pânico eStÁ SoLto<br />
O medo da AIDS tem-se tornado, talvez, uma doença<br />
mais grave que a própria AIDS. Um novo tipo de pacientes<br />
começa a ser identificado nas salas de espera dos clínicos e<br />
dos psiquiatras: aquele que busca desesperadamente uma<br />
ajuda, acreditando estar contaminado pela AIDS. Nesse<br />
padrão se enquadra o que limita sua atividade sexual com<br />
medo de apanhar a doença e o que não limita. Ambos, em<br />
pânico, procuram os médicos e se dispõem a submeteremse<br />
a exames.<br />
Um paciente de 45 anos imaginava suicidar-se depois<br />
de ter mantido relações sexuais com uma amiga. Esse<br />
paciente, casado, perfeitamente ajustado até então, começou<br />
a fazer exames médicos e, como nenhum era realmente<br />
conclusivo, foi fazendo outros, até se ver numa ciranda<br />
sem fim. Ele não pertencia a nenhum grupo de risco,<br />
nem sua amiga, uma recatada e pura funcionária pública.<br />
A cada exame, que respondia negativamente aos seus temores,<br />
ele exigia outros mais sofisticados. Enquanto isso,<br />
incomodava-o uma persistente diarreia - o início de seu<br />
medo. Era uma diarreia de origem emocional, como mais<br />
tarde ficou demonstrado.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 187
No Brasil, entre outros, foi registrado um caso doloroso:<br />
um homem suspeitando - apenas suspeitando - de que<br />
estivesse com AIDS, matou a mulher, os filhos e suicidouse.<br />
A autopsia mostrou que não passava de um medo infundado.<br />
Ele não tinha a doença.<br />
O medo de uma doença e outros estados emocionais<br />
atingem, primariamente, o espírito e, secundariamente, o<br />
corpo e as relações sociais.<br />
A literatura médica é repleta de casos de pessoas que<br />
morreram por medo do câncer ou da solidão. Entre os casais<br />
unidos há anos, não é raro um cônjuge morrer pouco<br />
depois da morte do primeiro.<br />
O leigo “explica” fácil e rapidamente a realidade, longe<br />
dos fatos: “A diarreia foi devida a uma laranja chupada”,<br />
“A loucura dele é castigo divino”. A tuberculose, que<br />
em épocas passadas não era bem conhecida quanto à causa,<br />
teve o seu período mítico áureo. As mais diversas “teorias”<br />
foram elaboradas, sendo cada uma fruto dos desejos,<br />
crenças, experiências e dramas de seus criadores. À medida<br />
que se conheceu melhor essa doença, os novos fatos<br />
impiedosamente jogaram por terra, destruindo as belas<br />
fantasias de seus autores.<br />
A AIDS ainda está no apogeu, ainda recebe hipóteses<br />
variadas, a maioria repleta de fantasias. Sendo pouco conhecida,<br />
ela dá margem à criatividade de cada um de seus<br />
explicadores. O discurso de cada um tem pretendido conhecer<br />
a realidade, organizá-la, impor normas de conduta,<br />
segregar pessoas, proteger, etc. As lacunas do desconhecido,<br />
muito frequentes, são preenchidas “com os delírios” e<br />
propósitos de cada um ou de cada grupo, conforme a concepção<br />
de mundo do indivíduo que vai explicá-lo. É possível<br />
ouvir, ditas com seriedade, frases do tipo: “AIDS é obra da<br />
engenharia genética”, “É um castigo para a liberdade sexual<br />
exagerada” e “Os portadores de AIDS devem ser esterilizados<br />
e, ao mesmo tempo, eliminar a sua potência sexual”.<br />
188 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
O fruto de todas essas fantasias, mitos e histórias<br />
mal contadas é o pânico diante do pouco conhecido, assim<br />
como foi a tuberculose, a lepra e a peste negra.<br />
Possivelmente, à medida que os fatos se forem tornando<br />
conhecidos, ficará o medo sensato e objetivo da<br />
doença, não mais o horror que está tomando conta dos<br />
amantes, até de alguns médicos e profissionais ligados à<br />
área de saúde.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 189
como controLAr oS AcontecimentoS<br />
Enquanto alguns obstinados tentam, a todo custo,<br />
controlar o meio rebelde, outros, mais conformados e plácidos,<br />
deixam as “águas rolarem” e uns poucos procuram,<br />
propositadamente, confusões e nelas se instalam, satisfeitos<br />
e confortáveis.<br />
Muitos desejam, alguns imploram ao bondoso Deus:<br />
“Que bom seria se pudesse mudar a cabeça do patrão,<br />
para que ele não me demita”, ou “fazer com que minha<br />
namorada não me abandone”, “iluminar a cabeça do nosso<br />
Presidente, para que ele nos deixe dormir em paz.”<br />
A maioria imagina que o controle vem apenas de<br />
fora. Esses supõem que os amigos e parentes, ou mesmo<br />
os políticos, deviam ajudá-los a conseguir o que eles não<br />
alcançaram e, muitas vezes, nem tentaram.<br />
Na velhice descobre-se - é preciso viver muito – a<br />
duras custas, que certos meios são difíceis, outros impossíveis<br />
de serem controlados. Aprende-se que nada se pode<br />
fazer diante de alguns problemas, como a violência dos<br />
outros, não a nossa, a corrupção, a chatura do discurso<br />
político, o trânsito caótico, o acidente, a miséria do povo e<br />
a ignorância.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 191
Sabe-se que algumas mudanças podem ser realizadas<br />
e várias delas dependem de nossa ação. Entretanto,<br />
nem sempre temos energia e vontade para lutarmos por<br />
essas alterações, assim, posso pretender ser médico, mas<br />
não quero gastar meu tempo estudando.<br />
Em alguns casos pode existir o desejo e a energia,<br />
mas pode faltar a competência necessária: gostaria de ser<br />
corredor, mas tenho o pé torto. Por fim, posso ser competente,<br />
ter vontade e energia, mas tenho uma autoestima<br />
baixa, ou seja, não acredito na minha capacidade. Tudo<br />
isso dificulta “chegar lá”.<br />
Ao nascermos, tomamos as primeiras medidas, por<br />
sinal grosseiras, para controlar o meio ingrato. O recémnascido,<br />
se está com fome, chora, e alguém pode milagrosamente<br />
aparecer para lhe dar o leite. Se está com frio,<br />
chora e novamente o protetor o aquece. Com o choro, o<br />
desconforto é controlado e o bem-estar retorna. Muitos<br />
adultos continuam usando essa técnica.<br />
Mais tarde aparecem estratégias mais sofisticadas<br />
para controlar o meio e a si próprio. Se estamos querendo<br />
um doce e o pedimos à nossa mãe, ela pode impor certas<br />
condições. A criança deseja brincar com o vizinho, a mãe<br />
não concorda, pois está na hora do almoço. Neste nesse<br />
caso a criança pode chorar, pedir mais, gritar, tentar<br />
manipulá-la ou negociar a ida, em último caso poderá até<br />
mesmo fugir de casa e ir morar com o vizinho.<br />
Na adolescência e na vida adulta, não só o meio enfrentado,<br />
mas também as técnicas para conseguir o desejado,<br />
tornam-se mais complexas e difíceis. O jovem quer<br />
ter um bom emprego, por conseguinte, casa e comida. Mas<br />
para isso terá que frequentar, por anos, a escola, estudar<br />
muito e deixar de lado diversões atraentes.<br />
Na velhice, inferiorizado e estigmatizado, não mais<br />
acreditando no choro, sem forças, o idoso só pode implorar<br />
192 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
para receber ajuda do meio, já que sua capacidade para<br />
modificá-lo é mínima e, para piorar, muitos estão doentes.<br />
Portanto, durante nossa jornada aqui na Terra os<br />
desencontros são muitos, as frustrações amargas. Mas é<br />
preciso seguir em frente até o ato final. E assim vamos,<br />
ora desequilibrados, ora supostamente firmes. Aos poucos,<br />
cada um, cambaleando, vai construindo seu caminho<br />
particular, imaginando medidas eficazes para restabelecer<br />
o “elo perdido”, a segurança sonhada. Mas basta surgir<br />
uma peninha de equilíbrio, um tempinho de calmaria e<br />
paz, para novamente esse animal surpreendente inventar<br />
novos caminhos, diferentes planos, ações e buscas e,<br />
consequentemente, novas desarmonias com o ambiente e<br />
consigo próprio.<br />
Assim é o homem: age, ao mesmo tempo evitando<br />
as dissonâncias internas e externas e, ao mesmo tempo,<br />
provocando-as. Este é seu destino, precisa das desordens,<br />
do caos. Ele planeja constantemente situações de risco, o<br />
que o amedronta: este é o alimento de sua mente. Muitos<br />
imaginam alcançar a felicidade caso consigam a paz constante.<br />
Ledo engano. Precisamos, para crescermos, relacionarmo-nos<br />
com os obstáculos, com as dificuldades, pois<br />
são as incongruências os nossos nutrientes mentais. São<br />
eles que nos fazem crescer. Sem eles seríamos idiotas.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 193
o PreÇo de UmA eScoLHA:<br />
AdeUS ÀS iLUSÕeS<br />
Todos nós sonhamos com a possibilidade, por sinal<br />
impossível, de transformar alguns fatos já vividos em outros.<br />
De outro modo, imaginamos desviver o vivido. Essa<br />
mágica não se realiza. Cada um lembra, amargamente,<br />
que podia ter estudado mais para aquele exame, não devia<br />
ter tratado tão mal aquela namorada encantadora,<br />
há muito devia ter mandado para o inferno o “amigo da<br />
onça” explorador, ter tido mais cuidado ao dirigir, evitando<br />
o acidente provocador das dores do joelho. Pensamos:<br />
“Se tivesse agido de outro modo, estaria, possivelmente,<br />
vivendo mais feliz do que estou”. Talvez sim, talvez não.<br />
Quantos e quantos aborrecimentos podiam ter sido evitados.<br />
Em resumo: muitas decisões tomadas ontem com<br />
muita fé, hoje, em hipótese alguma seriam realizadas.<br />
O povo fala: “ninguém é perfeito”, portanto, todos<br />
nós, sem exceção, demos nossos tropeços durante nossa<br />
passagem pela vida terrena. Segundo as estatísticas nesse<br />
assunto, quase todas ou todas as pessoas sentem-se terrivelmente<br />
arrependidas de terem abandonado os estudos<br />
muito cedo, queixam-se de que ninguém nada fez para<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 195
dissuadi-los disso. Outros lamentam um casamento precoce,<br />
que estragou todos os outros planos.<br />
Há, ainda, os que se arrependeram de ter mantido<br />
uma amizade por muitos anos, quando o melhor teria sido<br />
mandar “para o inferno” o “amigo/inimigo” de longa data,<br />
e outros ainda, por fim, amaldiçoam a hora fatídica do trágico<br />
encontro que resultou numa gravidez e no nascimento<br />
de um filho nascido num momento terrível, jogando por<br />
terra as belas fantasias da juventude.<br />
A psicologia costuma chamar esse arrependimento de<br />
“pensamento contrafactual”, isto é, nosso desejo de mudar<br />
os fatos que lamentavelmente aconteceram no passado e<br />
não podem ser modificados.<br />
Como o mundo caminha independentemente do que<br />
desejamos, um pequeno, simples e tolo fato não-pensado,<br />
não-desejado e nem necessário pode ocorrer. Tragicamente,<br />
esse fato que não precisava existir pode mudar para<br />
sempre nossas vidas. Um “escorregão numa casca de banana”<br />
pode dar origem a um novo e árduo caminho, sem<br />
que nada mais possa ser feito, destruindo para sempre a<br />
trajetória delineada, carregada de emoções positivas que<br />
habitavam o organismo num tempo longínquo que passou.<br />
Quanta saudade!<br />
Pensando nos meus escorregões, nas minhas “burradas”<br />
malucas pela vida afora, lembrei-me do encontro ocasional<br />
que tive com o Sócrates. Esse meu amigo de infância<br />
tinha uma vida traçada para ser boa. Era disposto, alegre,<br />
bonito e rico. Mas “estou lamentando antes da hora”. Sócrates<br />
conheceu a filha do aposentado da esquina, em virtude<br />
de pequenas coincidências, a princípio sem importância.<br />
Pouco a pouco, esse conhecimento, que não precisava ter<br />
ocorrido o levou a um caminho, é...bem! Vou lhes contar:<br />
Eu caminhava a mando do cardiologista - fazia minhas<br />
caminhadas para melhorar a pressão e observar a<br />
196 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
multidão - quando encontrei Sócrates. Achei-o envelhecido.<br />
Sempre achamos o outro mais acabado do que nós.<br />
Penso que essa avaliação ocorre porque vemos todos<br />
os dias nosso rosto e corpo no espelho e não vemos o do<br />
nosso amigo sumido.<br />
Fomos colegas no colégio do bairro e do futebol da<br />
várzea. Nem eu, nem ele, fomos craques, nem de futebol,<br />
nem dos estudos. Estudávamos para passar de ano e jogávamos<br />
para nos divertir. Entretanto, não éramos os piores<br />
da sala nem do time. Um dia, um dia como qualquer outro,<br />
sem nada de especial, nem chovia, nem ventava, o azul do<br />
céu de abril começava a escurecer, o Sol se punha, tranquilo.<br />
Sócrates ainda era jovem, muito jovem, como era o<br />
narrador dessa tragicomédia.<br />
Estava esquecendo: ele era um dos poucos do grupo<br />
que a família tinha algum dinheiro. Falava-se, entre nós,<br />
que seu pai era grande fazendeiro no norte de Minas. Nas<br />
nossas conversas não se comentava a vida e os segredos<br />
familiares de e para ninguém. Essa regra - não havia proibições<br />
explícitas – era acatada e respeitada por todos, não<br />
podia ser burlada.<br />
Voltando ao Sócrates: ele, quando ainda era um ginasiano<br />
- para quem não sabe, “ginasiano” era quem cursava<br />
os quatro últimos anos do atual primeiro grau - foi fisgado<br />
pela filha do aposentado. Lucélia, uma bela morena, ou<br />
mulata, isso não importa, era de “fechar o comércio”. Até<br />
aquela data, ela era inacessível aos jovens imberbes e desajeitados,<br />
mas nem por isso deixava de ser desejada por<br />
todos os jovens que transitavam em torno de sua casa.<br />
Dentro do nosso maniqueísta e acanhado campo perceptual<br />
de julgamento da conduta feminina, existiam, radicalmente<br />
opostos, dois tipos de mulheres: de um lado,<br />
as santas ou virgens-santas que serviam para se casar, de<br />
outro, as desinibidas e livres demais que podiam ter algumas<br />
outras serventias.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 197
Até então, não havia meio-termo. Mas apareceu Lucélia.<br />
Nenhum de nós pensava em aproximar-se dela para<br />
namorá-la, não porque a rejeitássemos, mas sim devido à<br />
nossa incapacidade física e financeira, ou pior do que isso,<br />
em virtude de nossa inabilidade, da falta de coragem, pois<br />
não conhecíamos as estratégias e as táticas necessárias<br />
para mantermos uma conversa e um relacionamento adequado<br />
com uma mulher daquele “pedigree”, capaz de fazer<br />
todos os homens virarem seus rostos em sua direção,<br />
quando passava pela rua. A presença de Lucélia derrubou<br />
nossa regra simples para julgar as mulheres em dois grupos<br />
opostos. Ela era um dos únicos e raros artigos que<br />
conhecíamos fora-de-série, pois não era, segundo nossa<br />
classificação, nem para casar, nem para um programa com<br />
pessoas como as do nosso grupo. Amedrontados, muito<br />
antes de darmos o primeiro passo em sua direção, já antevíamos<br />
o fracasso caso ousássemos conquistá-la. O nosso<br />
treino era pouquíssimo, a nossa única e, por sinal, péssima<br />
experiência, era muito pequena: “mulheres de rua”,<br />
mulheres de “terceira classe”, segundo nossa classificação<br />
sócio-religiosa da época, isto é, prostitutas, semiprostitutas<br />
ou candidatas a tal.<br />
Enxergávamos Lucélia através desses óculos embaçados<br />
e de lentes não-flexíveis, de maneira confusa: éramos<br />
superatraídos por ela e também tínhamos pavor de nos aproximarmos.<br />
Assim, ao mesmo tempo, sonhávamos em estar<br />
juntos e afastados dela. Tentar ou não tentar. Mas pior que<br />
tudo: Lucélia era inacessível para nossas posses. Tínhamos<br />
o delírio em nossas mentes, mas a realidade era outra.<br />
Num fim de tarde, ficamos surpresos ou espantados,<br />
não sei bem, quando vimos Sócrates de mãos dadas com<br />
Lucélia, passando na nossa frente sorridente e orgulhoso<br />
da conquista. Não dava para entender. O seu comportamento<br />
gerou em todos nós uma imensa inveja misturada<br />
198 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
com raiva. Pensei inicialmente que devia ser um encontro<br />
casual, sem consequências, milagrosamente dentro do padrão<br />
existente no grupo. Mas fiquei intrigado, imaginando<br />
como foi que ele conseguira ganhar a tão distante Lucélia,<br />
uma conquista que ninguém do grupo tinha conseguido,<br />
nem imaginado.<br />
Mas as pequenas diferenças foram, pouco a pouco,<br />
provocando as grandes diferenças na vida do Sócrates.<br />
Muito lentamente ele ia se transformando, à medida que<br />
sua paixão por Lucélia aumentava. Primeiramente Sócrates<br />
abandonou os encontros com os companheiros, mais tarde<br />
largou o futebol, depois, os estudos. A cada dia mais, sua<br />
vida girava exclusivamente em torno dela. Lucélia também<br />
ficou diferente do que era. Deixou de ser a jovem livre e<br />
alegre de outros tempos, a que saía com os “bacanas” de<br />
terno e gravata, os que a buscavam em seus carros, de<br />
fato carros simples. Tornou-se uma donzela séria, recatada.<br />
Ao abandonar os “grã-finos”, somente saía com Sócrates.<br />
Nós, de boca aberta, olhávamos e suspirávamos,<br />
seduzidos e raivosos, ao ver o casal passar.<br />
Após um curto período de dedicação exclusiva e de<br />
muita paixão, Sócrates deu mais um ligeiro escorregão,<br />
provavelmente não-desejado e não-programado. Um pequeno<br />
fato, sem os cuidados necessários, transformou, de<br />
vez, a vida do Sócrates e produziu uma diferença ainda<br />
maior. O fosso entre o antigo e o atual aumentou.<br />
O inevitável ocorreu: Lucélia foi deflorada, nome dado<br />
na época a certas minúcias do sexo. Em outras palavras,<br />
Sócrates “fez mal” a Lucélia. Naquele tempo, diferente dos<br />
tempos modernos, o costume obrigava o suposto autor a casar-se<br />
com sua “vítima”. À “boca pequena” falava-se que ele<br />
havia caído no conto da gravidez indesejada, ou melhor, os<br />
componentes do grupo tinham dúvida quanto ao autor real<br />
da gravidez. Talvez tivéssemos inventado isso de inveja.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 199
A partir de mais esse pequeno fato, a boa vida de<br />
Sócrates foi decepada para sempre. Ele, que nunca havia<br />
trabalhado, passou a fazê-lo. Ele, que sempre tinha algum<br />
dinheirinho sobrando no bolso para comprar um doce ou<br />
ir ao cinema, teve que economizar. Os fatos negativos,<br />
como bolas de neve, se acumularam. Sem alternativas,<br />
diante de sérias dificuldades financeiras, Sócrates mudouse<br />
da pensão razoável onde morava, para o fundo do barraco<br />
existente na casa do sogro. Era lá onde funcionava<br />
um pequeno depósito de lenha. Era apenas um quartinho<br />
apertado para dormir. O banheiro situava-se fora do quarto<br />
e não havia cozinha, nem sala.<br />
Sócrates passava parte do dia cuidando da esposa,<br />
que estava grávida, pois logo no início da gravidez Lucélia<br />
foi despedida do emprego de vendedora das Lojas Canadenses.<br />
Dia sim, dia não, enquanto sua sogra cuidava<br />
dela, Sócrates vendia para vizinhos e pessoas amigas doces<br />
fabricados por ele durante o dia e, à noite, trabalhava<br />
de porteiro da Associação Comercial.<br />
Tentou voltar aos estudos, mas faltou dinheiro para<br />
as mensalidades e também tempo para frequentar a escola<br />
e, por isso, abandonou o colégio para sempre.<br />
Foi deixando de lado, progressivamente, outras metas<br />
anteriormente planejadas como fazendo parte de seu<br />
futuro, frutos de sonhos de criança e dos incentivos do<br />
pai: ser advogado na área criminal, ser famoso, rico, participar<br />
de júris com criminosos conhecidos, aparecer nas<br />
notícias dos jornais, ter diversas mulheres apaixonadas<br />
por ele.<br />
O mundo imaginado e esperado foi sendo tomado por<br />
um mundo frio, monótono e sem sabor.<br />
Sócrates foi sendo esmagado pelas pressões dos fatos<br />
vindos de todos os lados: despesas com o leite, roupas,<br />
médicos e remédios. Outros filhos foram nascendo,<br />
200 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
crescendo, dando mais e mais trabalho. Ora era um que<br />
tinha dor de barriga, ora outro tinha tosse, um terceiro<br />
dor de ouvidos. Uma boa parte do tempo eles choravam,<br />
de dia ou de noite, de fome ou de desconforto, algumas<br />
poucas vezes sorriam, pedindo colo ou companhia.<br />
Nessa guerra inglória de partos continuados, abortos<br />
espontâneos, gritarias infernais dos diabinhos, Lucélia<br />
foi se desfigurando. Inferiorizada, começava a não mais<br />
chamar a atenção dos homens nas poucas vezes que saía<br />
de casa. Sócrates, cabisbaixo, examinava-a. Recordando,<br />
comparava a Lucélia atual, gorda e encurvada, a que estava<br />
viva à sua frente dando sopinha ao filho, com a jovem<br />
bela e alegre do retrato, colocado em cima da prateleira<br />
do guardalouça, a do dia do casamento. Deprimida, desconfiada,<br />
irritada, gastava o que não podia com os filhos<br />
agitados e magros, com o alcoolismo do pai e a hipertensão<br />
da mãe.<br />
Sócrates transformou-se num escravo das exigências<br />
do cotidiano, dedicado integralmente às soluções para os<br />
entraves constantes da vida familiar.<br />
Não mais lhe sobrava tempo, nem mesmo capacidade,<br />
para pensar acerca de si mesmo, do que fazer em seu<br />
próprio benefício. O mundo imaginado durante sua juventude<br />
ficava cada vez mais distante, com menor importância<br />
para ele. Uma vez ou outra, ocasionalmente, estimulado<br />
por uma notícia no jornal ou o encontro com um ex-companheiro,<br />
ele lembrava-se de algumas cenas do passado,<br />
longínquas, antigas e envelhecidas como sua cabeça atual.<br />
Lá, muito longe, o jovem alegre parecia tão feliz. Agora<br />
transformou-se noutro, um trabalhador em tempo integral<br />
para manter-se naquela miserável prisão iniciada na noite<br />
fatídica. Os sonhos viraram fumaça, dispersaram-se: Sócrates<br />
foi levado para um outro mundo. O caminho, antes<br />
claro e perto, distanciou-se, estreitou-se, ficou embaçado.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 201
Naquela tarde sombria, abandonei minha caminhada<br />
para escutar o desabafo de Sócrates. Morando sozinho, eu<br />
tinha enorme dificuldade para entender uma pessoa presa<br />
a uma família. Ao ouvi-lo com paciência, simpatia e<br />
até piedade, relatar, com uma voz embargada, seu drama<br />
melancólico, eu me lembrava dos tempos que não voltam<br />
mais, dos meus tropeços parecidos com o dele, dessa vida<br />
da qual sempre tive medo. Escutava suas amarguras, sua<br />
nova história de vida, uma vida para mim inútil e sem<br />
rumo. Imaginei que talvez, bem escondida - ele não me<br />
confessou isso - sua vontade era de nunca ter feito tudo<br />
aquilo.<br />
Entretanto, como bom observador, pude notar, ao me<br />
despedir, uma certa satisfação e alegria no seu semblante.<br />
Imaginei que, apesar de tudo, das dificuldades com que vivia,<br />
ele estava desejando chegar em casa, pois lá ele tinha<br />
proteção e segurança.<br />
Daqui a pouco ele teria ao seu lado seus filhos e sua<br />
mulher para recebê-lo e com eles passaria a noite.<br />
Nós nos despedimos friamente. Eu estava sem graça.<br />
Voltei para casa pensativo. Sabia que estava livre de tudo<br />
aquilo que ouvira. Entretanto, estava confuso: retornava<br />
para meu lar, um lugar onde não havia ninguém para me<br />
aborrecer, onde gozava de completa liberdade, entretanto<br />
na minha casa não havia ninguém, ninguém, ninguém<br />
mesmo. Somente eu para me receber, conversar e apoiar.<br />
202 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
dinHeiro, noSSA AtUAL deVoÇÃo<br />
É preciso gastar menos: estamos numa “economia<br />
de guerra”. Acabaram-se os nossos míseros reais. Nada de<br />
gastos com revistas e livros. Ideias novas são supérfluas,<br />
pois já temos as velhas que nos bastam. O nosso cérebro<br />
necessita apenas de glicose para manter-se vivo sem entrar<br />
em coma, assim ele poderá assistir e apreciar essa<br />
tragicomédia econômica que ora nos apresenta.<br />
Assistimos, impotentes, à ascensão ao poder de um<br />
novo grupo de profissionais, os economistas. Essa nova elite,<br />
ao tomar consciência do seu poder, passou a ditar normas<br />
acerca de salários, empregos, horários e tudo mais.<br />
Por que não dizer, de nossas vidas?<br />
Os sábios profetas da economia são muitos. Os jornais<br />
e as TVs divulgam a todo momento suas profecias e eles,<br />
sem nada cobrar, aconselham-nos a economizar mais, para<br />
o sucesso do modelo capitalista “trabalho e produção”. Os<br />
economistas conhecem melhor do que nós mesmos o que<br />
se deve fazer com o nosso dinheiro, como por exemplo:<br />
onde guardá-lo, quando tirá-lo, em que lugar devemos<br />
passar nossas férias e se devemos ir de avião, ônibus ou a<br />
pé a Itabira ou a Tóquio. Quando devemos nos aposentar<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 203
ou resgatar o Pis e Pasep, a maneira de alugar um imóvel,<br />
quando vender ou comprar ouro e dólar e até se devemos<br />
abandonar a profissão de engenheiro, trocando-a pela de<br />
florista. Ninguém precisa pensar, menos ainda refletir, pois<br />
existem “gênios” que pensam por nós, todos especialistas<br />
nisso ou naquilo.<br />
Vivemos a época de ouro da economia. A cada dia,<br />
ou talvez a cada hora, são entrevistados luminares nessa<br />
ciência e estes descrevem, cada um a seu modo, a situação<br />
econômica do País, indicando, de maneira segura, o<br />
que deve ser feito para tirar-nos da miséria, da dívida e<br />
do caos.<br />
Infelizmente, os ministros, assim como os ex-secretários<br />
de Estado, só conhecem as soluções econômicas<br />
adequadas para o País quando largam os cargos, nunca<br />
durante o exercício de suas atividades. Economistas diversos,<br />
candidatos a cargos no governo, professores, PhDs<br />
diversos e até alguns amadores iniciados no assunto criticam<br />
a política econômica com sabedoria.<br />
O dinheiro agora é o nosso rei e talvez o nosso Deus,<br />
pois foi promovido pelos fabricantes da cultura, de “meio”<br />
a “fim”. O dinheiro que era um instrumento utilizado para<br />
se alcançar algum objetivo, tornou-se atual sistema de valores<br />
sociais, o próprio alvo a ser atingido.<br />
Os subprodutos do dinheiro, como os salários, gastos,<br />
etc., comandam atualmente nossas ações e intenções. Nós<br />
nos preocupamos muito com o prejuízo financeiro de um<br />
acidente e pouco, ou quase nada, com o sofrimento das<br />
pessoas envolvidas. Mortes de indivíduos são analisadas<br />
muitas vezes com respeito ao seguro a ser recebido ou à<br />
economia ocorrida com sua morte. Algumas religiões são<br />
fundadas em busca de dinheiro, filhos matam os pais para<br />
receber a herança e alguns se suicidam porque suas fortunas<br />
estão se esvaindo. Assistimos a esse espetáculo com<br />
204 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
naturalidade, sem espantar-nos, pois estamos julgando os<br />
fatos com os mesmos modelos conceituais dos protagonistas<br />
das ações.<br />
O valor instrumental do dinheiro está ganhando a luta<br />
contra todos os outros valores humanos. Poucos atualmente<br />
são capazes de apreciar outros valores - uma boa bebida<br />
ou comida, um passeio, uma visita - sem imaginar o custo<br />
em dinheiro de cada uma dessas ações. Talvez, pior ainda,<br />
a maioria das pessoas não consiga bater um bom papo ou<br />
amar alguém sem contabilizar os gastos ocorridos durante<br />
esse tempo e que poderiam ser convertidos em produção e<br />
dinheiro, como manda o modelo econômico vigente.<br />
Prezado leitor, como psiquiatra que sou, tenho como<br />
obsessão a tendência a dar conselhos, e aqui aproveito a<br />
oportunidade para opinar contra os conselhos dados por<br />
alguns economistas.<br />
1) Ao tomar o seu café sinta o seu paladar, calor e<br />
aroma e não pense no preço do pó, da água, da energia e<br />
da mão-de-obra.<br />
2) Ao abraçar e beijar o seu amado, ao acariciar os<br />
seus cabelos, sinta as sensações provenientes do seu rosto,<br />
lábios ou das suas mãos e, pelo menos naquele instante,<br />
não pense no dinheiro que está sendo gasto com o batom<br />
que desaparece ou com o penteado desfeito, pois, caso<br />
tudo dê certo, o que é o esperado, você terá outros ganhos<br />
e prazeres, que são para alguns poucos seres humanos<br />
mais importantes que o dinheiro guardado no cofre.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 205
SenHoreS do Poder<br />
Certas propagandas sedutoras conseguem fazer com<br />
que boa parte da população saia de casa para ver um determinado<br />
filme, abandone tudo para assistir a uma novela,<br />
tome banho com um certo sabonete durante anos e<br />
vista uma calça desconfortável, ou engula um fortificante<br />
sem precisar dele. Não é difícil constatar que certas<br />
crenças, introduzidas em nossa mente, comandam o nosso<br />
comportamento.<br />
Alguns homens, por diversos motivos, forçam outros<br />
a pensarem de acordo com seus princípios e suas regras.<br />
Frequentemente, ideias propostas pelos poderosos se espalham<br />
e são incorporadas por um grande número de pessoas,<br />
que passam a viver sob o comando dessas crenças,<br />
na ilusão de que não há nada melhor para se fazer.<br />
Acreditamos e copiamos muito as supostas preferências<br />
de pessoas conhecidas, principalmente se são pessoas<br />
de prestígio. Assim passamos a usar uma certa bateria em<br />
nosso carro, pois o famoso piloto disse que ela é a melhor,<br />
jogamos na loteria, pois o jogador de futebol nos incentivou<br />
a comprar o bilhete, passamos a morar num certo<br />
bairro, pois o grupo com o qual nos identificamos e ao qual<br />
almejamos pertencer, ali reside.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 207
Todos nós já sofremos desenganos por aceitar a crença<br />
embutida no ditado popular “a voz do povo é a voz de<br />
Deus”. E sabemos muito bem, que uma conduta utilizada<br />
por muitos não fornece necessariamente informações corretas<br />
e garantidas acerca de uma realidade, da mesma forma<br />
que um julgamento com o qual a maioria das pessoas<br />
está de acordo, nem sempre é digno de confiança e nem<br />
ser aceito sem objeções ou dúvidas.<br />
Todos nós temos certo receio de pensar de modo diferente<br />
de nossos companheiros e isso nos leva a emitir<br />
opiniões quase sempre semelhantes às do nosso grupo.<br />
Para complicar nossa submissão às ideias coletivas, há<br />
uma tendência universal em ridicularizar os pontos de vista<br />
divergentes, ou pensamentos singulares, que são considerados<br />
pilhéria, sinal de burrice e até indício de loucura.<br />
Uma vez expostas às pressões grupais, as pessoas<br />
tendem a pensar e a dar opiniões de maneira convergente,<br />
isto é, iguais à de todos. Num clima desses torna-se difícil<br />
o aparecimento de novas ideias e novas decisões. Assim o<br />
grupo tende a ficar em paz, mas estagnado. Com tristeza<br />
lembramos do apoio dado por quase toda a população<br />
brasileira ao então candidato à presidência do país, Jânio<br />
Quadros, e outros semelhantes. O famigerado plano cruzado<br />
também foi amplamente louvado e deu no que deu...<br />
e não é difícil para nós lembrarmos situações semelhantes<br />
mais recentes.<br />
Quem controla ou dirige essas oscilações de opiniões<br />
dos grupos ou das populações? Não é difícil perceber, se<br />
abrirmos os olhos, que alguns poucos, usando nomes, disfarces,<br />
truques e slogans sugestivos, são o sedutores crônicos<br />
da população. Eles controlam nosso comportamento<br />
e até nosso modo de pensar.<br />
De uns tempos para cá um novo grupo vem ganhando<br />
notoriedade e poder sobre as nossas ações: os tecnocratas.<br />
208 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Este grupo é formado por alguns senhores sisudos, especialistas<br />
em técnicas e processos diversos.<br />
Eles falam de um modo diferente do nosso e entram<br />
em contato com a população através de ordens dadas em<br />
forma de portarias e pacotes.<br />
Os tecnocratas não bolem apenas na nossa poupança,<br />
seu campo é vasto. Através de investigações sigilosas<br />
incriminaram alguns banqueiros, colocando-nos contra<br />
eles. Até aí nada demais. Depois foi a vez de empresários<br />
diversos, logo após atingiram os trabalhadores ligados à<br />
economia informal. Mais tarde viraram-se contra alguns<br />
médicos do serviço público e agora, numa grande jogada,<br />
acionaram suas garras para atingir milhares de funcionários<br />
públicos federais.<br />
Quem será o próximo a ser atingido, ninguém pode<br />
adivinhar, mas suponho que seremos todos nós. Muitos<br />
escaparam, mas possivelmente por pouco tempo. Os tecnocratas<br />
conhecem, mais do que ninguém, o nosso ponto<br />
vulnerável ou pelo menos a nossa intenção muito escondida<br />
de, a qualquer momento, fazer uma trapaça contra o<br />
honesto governo. Os tecnocratas são nossos senhores e<br />
deles podemos esperar apenas misericórdia.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 209
oS nArciSiStAS modernoS<br />
Conta-nos o mito que quando a ninfa Eco, terrivelmente<br />
apaixonada por Narciso, correu para junto dele para<br />
abraçá-lo, este, repelindo-a, lhe disse: “Afasta-te, prefiro<br />
morrer a te deixar possuir-me”. Narciso, tendo desprezado<br />
todas as ninfas como havia repelido a ninfa Eco, não amava<br />
ninguém. Porém, um dia, a deusa da vingança cedeu<br />
a um pedido de uma ninfa mal-amada fazendo com que<br />
Narciso se apaixonasse por si mesmo.<br />
Narciso, uma vez sob o encanto da deusa, foi seduzido<br />
por sua própria beleza ao ver sua imagem refletida<br />
na água. Enfeitiçado, todas as vezes que Narciso tentava<br />
abraçar e beijar sua própria imagem, esta desaparecia na<br />
água. A lenda termina com a morte de Narciso consumido<br />
pela sua paixão.<br />
Esta é a história do antigo Narciso. Os narcisistas modernos<br />
agem diferentemente. Eles cresceram em número,<br />
tanto assim que a Classificação Internacional de Doenças<br />
Mentais (CID 10) reservou um lugar especial para eles:<br />
“Transtorno da Personalidade Narcisista”.<br />
Veja como ele foi descrito no CID 10: “o indivíduo<br />
apresenta um sentimento grandiloquente de sua própria<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 211
importância ou do seu caráter excepcional; preocupação<br />
com fantasias de êxito ilimitado; necessidade exibicionista<br />
de atenção e de admiração constantes; respostas características<br />
às ameaças à sua autoestima; e perturbações no<br />
relacionamento interpessoal, como sentimento de “ter direito”<br />
a exploração inter-pessoal e ausência de empatia”.<br />
O leitor atento identificará, entre amigos e inimigos,<br />
artistas, atletas, políticos e outros, os novos narcisistas.<br />
As realizações dos narcisistas tendem a ser valorizadas<br />
irrealisticamente nas áreas de poder, riqueza, fama e<br />
beleza. O narcisista tenta de fato alcançar tais objetivos,<br />
mas isso é feito de modo forçado e destituído de prazer,<br />
com uma ambição que não pode ser satisfeita. No Brasil<br />
eles são encontrados nas favelas, prisões, mansões e, com<br />
alguma frequência, nos palácios. A forma da expressão de<br />
orgulho por si mesmo é que varia de acordo com o grupo<br />
social ao qual o narcisista pertence.<br />
A artista de TV narcisista, feia, inculta e burra fala acerca<br />
de sua beleza, de seus dotes literários, de suas idéias políticas<br />
e do seu comportamento sexual. Recebemos deles,<br />
gratuitamente, lições do seu modo particular de encarar a<br />
realidade, que é tida, orgulhosamente, como certa.<br />
O narcisista supõe ser ele capaz de fazer e pensar<br />
adequadamente a respeito de tudo. Se ele foi bom letrista<br />
de música, poderá ser um bom ministro, se foi professor,<br />
poderá desempenhar bem o papel de governante, se é piloto,<br />
poderá ser bom garoto propaganda, se é político, logicamente,<br />
poderá ser..., sei lá, qualquer coisa!<br />
Na plateia, certo público cativo bate palmas, urra<br />
deslumbrado e entusiasmado com as proezas de seu ídolo.<br />
Entretanto, outros se irritam, xingam e jogam pedras ao<br />
se sentirem impotentes diante de seu poder.<br />
A maioria, entediada, percebe a fragilidade do narcisista<br />
escondida por trás de sua máscara arrogante e prepo-<br />
212 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
tente e, indiferente às suas palavras vazias, espera, alguns<br />
até oram, para que um dia cada narcisista siga o exemplo<br />
do antigo Narciso do mito e acabe consumido pela sua<br />
paixão e não mais tome nosso precioso tempo com suas<br />
chatices e gabarolices.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 213
oS noVoS deUSeS<br />
O Deus primeiro e único não tem cara fechada, não<br />
sorri, não tem iate, não tem salário, não agride e nem tem<br />
voz. Os novos deuses falam, gesticulam, transam, namoram<br />
até pessoas do outro sexo, alguns cantam, outros jogam e<br />
outros correm velozmente. Muitos ganham por mês mais<br />
do que um operário ganha em toda sua vida de trabalho.<br />
Todos os deuses são lindos, maravilhosos, ricos e jovens,<br />
conforme a avaliação dos seus seguidores. Eles são<br />
adorados pelos seus fiéis seguidores, intocáveis e respeitados<br />
pela mídia, governo e população em geral. Os novos<br />
deuses são, graças a Deus, efêmeros. Somente alguns<br />
permanecem reinando por um tempo mais longo.<br />
Cada um dos deuses tem suas peculiaridades, entretanto<br />
eles apresentam uma estrutura comum que os iguala<br />
e os identifica como produtos de uma sociedade esquisita.<br />
Assim é que eles sempre falam acerca de contratos novos,<br />
do próximo adversário que deve ser respeitado no campo,<br />
sobre os novos lançamentos, as novas representações nos<br />
palcos ou nas TVs, onde a atual é sempre superior às anteriores<br />
e mais adaptadas à sua personalidade. Outros falam<br />
sobre seu novo disco.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 215
Mas há algo mais ainda que os une. Todos, sem exceção,<br />
adoram contar a sua vida. Estas são geralmente<br />
lindas, sofridas, cheia de coisas interessantes. Eles todos,<br />
diferentes dos outros moradores desse mundo, alcançaram<br />
a fama através de “muito esforço e trabalho duro”. Todos,<br />
bondosamente, ensinam o que aprenderam aos seus<br />
admiradores.<br />
Expressam seus valores e normas de vida para a população<br />
e sobretudo sempre com alta sabedoria e segurança.<br />
Ora o discurso é acerca do seu casamento exemplar,<br />
ora da melhor maneira de transar e o melhor local<br />
para isso. Nunca faltam instruções minuciosas a respeito<br />
de como alcançar a felicidade, viver uma boa vida, conquistar<br />
amigos, ter fortunas e a melhor religião a ser seguida.<br />
Em resumo, eles sabem mais do que nós mesmos o<br />
que devemos fazer para sermos felizes.<br />
A maioria da população escuta atentamente cada frase<br />
de seus deuses, se compraz e se embriaga na sua sabedoria<br />
fácil. Os novos deuses não precisam estudar para<br />
conhecer, pois, privilegiados e iluminados que são, tornaram-se<br />
sábios através de revelações milagrosas.<br />
Eles são procurados, entrevistados, observados e seguidos<br />
continuamente. Os adoradores dos deuses sabem<br />
tudo acerca deles. Comentam emocionados a troca da namorada,<br />
que sempre é uma deusa ou deus, seu novo contrato,<br />
sua doença, seu filho que nasceu e assim por diante.<br />
Todas as notícias sobre os deuses são lidas ou escutadas<br />
com mais interesse do que as noticias chatas e conhecidas<br />
que ocorrem dentro de nossa própria família, como o desemprego<br />
do pai, a morte do irmão, a separação do avô.<br />
216 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
diScUrSo:<br />
o toQUe SUtiL doS SonS<br />
Os políticos - bem como outros manipuladores de<br />
opiniões - nas campanhas eleitorais sempre abusaram de<br />
discursos carregados de termos com forte carga emocional,<br />
introduzidos em frases grandiosas, expressos de uma<br />
maneira direta, simples e, sobretudo, superficial. Para que<br />
um vocábulo no discurso tenha o poder de operar milagres<br />
é preciso que seja uma palavra de natureza especial, diferente<br />
das pronunciadas todos os dias. Ela precisa ser uma<br />
palavra que não somente designa a coisa, mas que seja<br />
sentida como sendo a própria coisa expressa.<br />
Esta palavra mágica deve atingir as fantasias do eleitor<br />
distraído, propor soluções fáceis, rápidas e simples – intuitivas<br />
- ainda que equivocadas, para resolver problemas<br />
humanos difíceis, custosos ou impossíveis. As fantasias,<br />
utopias ou crendices populares são estimuladas pelo discurso<br />
do político, transformadas em projetos possíveis de<br />
serem executados.<br />
Mas, por outro lado, o discurso político, semelhante<br />
às ideias descritas pelos diversos mitos, exorta a manutenção<br />
do existente. Os políticos, junto a companheiros<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 217
pertencentes às mesmas castas, lutam por conservar a<br />
mente do povo às escuras. O discurso político, defendendo<br />
as ideias convergentes, tem como lema: “Nunca examine<br />
se seu modo de pensar é, ou não, correto”.<br />
O povo é aplaudido caso saiba de cor o hino nacional,<br />
trabalhe muito sem reclamar, não faça greves, guarde dinheiro<br />
na poupança, participe ativamente de partidos políticos,<br />
principalmente votando e apoiando seus candidatos,<br />
contribua para todas as campanhas de ajuda aos necessitados,<br />
seja um bom soldado na guerra ou na paz, trate com<br />
respeito os poderosos, frequente assiduamente a igreja,<br />
mantenha amizades sólidas com certas pessoas, cuide de<br />
sua saúde e da família conforme mandam os padrões, não<br />
desperdice (nem água e nem energia elétrica), respeite<br />
as autoridades e a lei, procure certo tipo de conforto e de<br />
lazer no lugar e momento adequado para ele. Tudo como<br />
ensinam os antigos mitos e o catecismo paroquial.<br />
Assim, como estamos presos aos nossos genes que<br />
nos impedem de ser outro animal diferente do que somos,<br />
e de escapar das características específicas que herdamos,<br />
também, desde nosso nascimento, fomos aprisionados nas<br />
normas de conduta, de relacionar e de pensar ditadas pela<br />
cultura, ou seja, construídas antes de nascermos pelos que<br />
nos antecederam. Amarrados pelo resto de nossa vida a<br />
essas duas vertentes, colaboramos inocentemente para a<br />
conservação do modelo encontrado e impresso em nossa<br />
mente, imaginando-o como certo e melhor. Na maioria<br />
dos casos, sem consciência disto, não exercitamos nossa<br />
criatividade para escaparmos ou, pelo menos, tentarmos<br />
escapar, ou ainda avaliar este padrão.<br />
Pois bem, o discurso político desperta, para conservar,<br />
muitas metas controvertidas dos nossos antepassados. Estimula<br />
a mente sonolenta dos eleitores com palavras belas,<br />
sonoras e vagas, o reservatório onde dormem crenças,<br />
218 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
sonhos, medos e esperanças armazenadas durante anos,<br />
na maioria das vezes ilusórias. O político apresenta-se ao<br />
eleitor como um intermediário capaz de conduzi-lo, com<br />
mestria, para a travessia fantástica, partindo de sua vida<br />
atual e conhecida, mas também chata, difícil e injusta,<br />
para chegar à vida paradisíaca, tranquila, feliz e, sobretudo,<br />
muito, muito longínqua.<br />
As eleições terminam e tudo fica como sempre esteve.<br />
A quimera afundou-se na realidade indiferente, fria e<br />
sem alma. Alguns poucos dominam muitos, para o bemestar<br />
dos de sempre, conforme rezam os diversos mitos do<br />
poder, cumprindo assim a profecia.<br />
Os discursos não param após as eleições, eles continuam,<br />
mesmo nas entressafras, mas nestas servem para<br />
justificar as contradições existentes nos mitos citados durante<br />
os discursos proferidos nos palanques eleitorais.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 219
o QUe Se eSconde<br />
Por trÁS doS SLogAnS?<br />
“Fome zero”, “Eu te amo”, “O principal no relacionamento<br />
familiar é o amor e a compreensão”, “Tudo pelo social”.<br />
Frequentemente, pensamos, falamos e escrevemos<br />
dessa maneira. Muitos são capazes de discutir acaloradamente<br />
sobre as ideias contidas nessas frases, defendendo-as<br />
ou atacando-as. Mas, afinal, o que elas afirmam?<br />
Creio que ninguém saberá com precisão o que significam.<br />
Para cada um de nós, as palavras “amor”, “ódio”,<br />
“compreensão”, “social” e outras, terão significados diferentes.<br />
Além disso, uma situação altamente complexa,<br />
como a qualidade de vida familiar, não poderia ser atribuída<br />
apenas a dois fatores, onde as palavras mágicas “amor”<br />
e “compreensão” tornam-se explicações causais pelo bemestar<br />
ou não da família. É raro questionarmos o nosso interlocutor,<br />
ou nós mesmos, acerca do sentido, dimensão e<br />
significado das palavras que estão sendo utilizadas.<br />
O psicólogo Kurt Lewin escreveu, entre outros, o artigo<br />
“O modo de pensar Aristotélico versus o modo de pensar<br />
Galileico”. Nesse, ele critica a linguagem da Psicologia<br />
e da Psiquiatria quanto à descrição de um fato, uma ma-<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 221
neira que, infelizmente, continua. Para esse autor, o modo<br />
Aristotélico de se expressar, próprio da linguagem comum,<br />
descreve uma pessoa como “rica” ou “pobre”, “bonita” ou<br />
“feia”, “gorda” ou “magra” e assim por diante. Já a maneira<br />
Galileica, ao descrever os mesmos fatos, é mais precisa.<br />
Assim, em lugar de afirmar que o dia esteve quente,<br />
cita a temperatura alcançada de 32ºC, que João pesa 100<br />
quilos para indicar porque está dizendo que ele é gordo.<br />
A linguagem da Psicologia e da Psiquiatria é muito<br />
semelhante à popular, até mesmo nos artigos chamados<br />
“científicos” destas especialidades. Não é raro encontrarmos,<br />
entre os psicólogos, afirmações como as seguintes:<br />
“Maria é uma moça carente”, “Marta é perversa”, “Álvaro<br />
está deprimido”, “Alfredo é esquizofrênico, mas seu irmão<br />
Carlos é normal”. O leitor certamente se lembrará de centenas<br />
de outros exemplos semelhantes.<br />
Discussões acaloradas, que terminam, às vezes, em<br />
brigas, ocorrem em assembleias, programas de TVs, sala<br />
de aula, etc., devido ao uso dessa linguagem. Nessas, em<br />
virtude da indefinição dos conceitos causadores da discussão,<br />
nunca se chega, nem se poderia chegar, a um acordo.<br />
Se os conceitos utilizados nas disputas fossem mais bem<br />
definidos, as discussões provavelmente não ocorreriam.<br />
Fica difícil discutir, por exemplo, “violência”, pois esse termo<br />
tem conotações e denotações muito diferentes para<br />
diferentes modos de pensar.<br />
Com frequência, utilizamos a linguagem de dois modos<br />
diferentes: para representar nossa experiência pessoal<br />
ou para comunicar nosso modelo ou representação<br />
acerca do assunto. Assim, discutem-se fatos diferentes,<br />
causados por fatores diferentes, utilizando um único vocábulo.<br />
Que experiência e que representação do mundo<br />
cada um dos que enunciam a palavra “violência” estaria<br />
querendo expressar? O “mapa” utilizado foi um só para<br />
designar “territórios” diversos.<br />
222 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Usam-se, a todo o momento, palavras que têm o mesmo<br />
som ou grafia, mas com significados, conotações e denotações<br />
as mais diversas.<br />
O que pretende dizer alguém que usa as frases: “Tudo<br />
pelo social”, “Defenderemos a nossa soberania”, “Fome zero”<br />
(seria no Palácio da Alvorada ou na residência do presidente?).<br />
Todas são frases usadas para se obter um efeito emocional,<br />
mágico ou hipnotizador, sem importância para o real.<br />
Cada cidadão que as ouve, receberá e entenderá uma comunicação<br />
diferente conforme a emoção que lhe foi inoculada.<br />
Atrás de uma palavra ou frase nem sempre está um<br />
objeto concreto. Palavras não são coisas, são representações<br />
e ligações entre coisas. Não resolveremos os nossos<br />
problemas de comunicação empregando palavras mágicas,<br />
procurando sinônimos das mesmas, gritando-as diante dos<br />
altofalantes. Muita gritaria, às vezes, acalma e deixa de<br />
lado as ações possíveis para dar soluções para os problemas<br />
existentes. Antes de acreditar ou não em uma palavra<br />
ou seguir a ideia que ela parece traduzir, precisamos primeiramente<br />
descobrir seu significado, pois o símbolo nem<br />
sempre traduz a coisa simbolizada.<br />
Quando um hipnotizador diz a alguém: “agora você<br />
se sentirá melhor, mais disposto e terá mais forças para<br />
enfrentar seus problemas”, cada hipnotizado entenderá a<br />
comunicação de acordo com suas experiências particulares<br />
ou memória autobiográfica. As frases citadas no início e ao<br />
longo desse texto despertarão em cada leitor certas fantasias<br />
e sentimentos próprios. A maioria das frases do nosso<br />
dia-a-dia, por serem altamente genéricas, atingem todos e<br />
acerca de quase tudo e, ao mesmo tempo, de quase nada.<br />
Por exemplo, uma frase muito repetida: “Devemos fazer<br />
tudo pelo social”.<br />
Os termos empregados são vagos, abrangentes ao<br />
extremo, ou seja, estamos diante de uma linguagem su-<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 223
perficial. O que é “tudo” e “social” para cada um dos leitores<br />
ou ouvintes?<br />
Alguns, usando agora uma linguagem menos superficial,<br />
poderão pensar que a ideia fala acerca de possíveis<br />
aumentos de salários, de menor inflação ou mais saúde.<br />
Para outros, a mesma frase poderá suscitar ideias opostas:<br />
menores salários, maiores taxas de inflação e mais doentes.<br />
Os desejos e aspirações de cada um ditarão o tipo de<br />
ideia que poderá surgir pelo uso do termo vago. Este modo<br />
de comunicar pode ser chamado de “mágico” no sentido de<br />
que, não comunicando nada, fornece suposições para cada<br />
cabeça.<br />
Como hipnotizador, os emissores da mensagem conseguem<br />
dizer tudo e não dizer nada ao mesmo tempo, sem<br />
que haja meios de desmenti-la, pois o enunciado não possibilita<br />
a comprovação. Os políticos, pregadores fanáticos,<br />
psicólogos que escrevem sobre autoajuda, curandeiros de<br />
modo geral, são useiros e vezeiros em pronunciamentos<br />
desse tipo. Ao recebermos uma comunicação, expressa em<br />
linguagem superficial e “Aristotélica”, ficamos sem referências,<br />
como ocorreu com o homem que corria atrás de<br />
outro, conforme a historinha “Sócrates” de N. O. Scarpi.<br />
Um homem, gritando, corre atrás de outro que foge:<br />
— Assassino! Assassino!.<br />
Pergunta Sócrates ao homem que grita.<br />
— Um assassino! Que vem a ser um assassino?<br />
— Pergunta idiota! Um assassino é um sujeito que<br />
mata.<br />
— Então, um açougueiro?<br />
— Cretino! Quero dizer um homem que mata outro<br />
homem.<br />
— Seria, portanto, um soldado?<br />
— Não, um homem que mata outro homem em tempos<br />
de paz.<br />
224 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
— Compreendo, um carrasco.<br />
— Eu quero dizer um homem que mata outro homem<br />
em casa dele.<br />
— Ah! Entendi! Um médico?<br />
Confuso, o perseguidor desistiu da perseguição.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 225
QUAndo AS PALAVrAS mentem<br />
“Quando os humanos tomam os seus mitos e as suas ideias<br />
pela realidade, tendem a crer Que os mitos e as suas ideias<br />
são o próprio mundo.” edgar morin<br />
Esse autor, com essa frase nos alerta acerca do poder<br />
das palavras, da força que têm esses sons mágicos provocadores<br />
de ações impulsivas, carregadas de ódio, alegria,<br />
tristeza ou medo. Sabemos, também, que através de palavras<br />
adequadas despertamos ou criamos crenças, valores,<br />
fantasias e desejos adormecidos que habitam nossas almas.<br />
O condutor de massas, o líder carismático e o grande<br />
pregador sempre usaram e abusaram das “palavras oportunas”,<br />
no momento certo. Somos, num certo grau, dóceis<br />
e fracos, sujeitos às manipulações continuadas dos mais<br />
espertos.<br />
Em todos os tempos um grupo dominou o outro para<br />
seu benefício. Assim é que na maioria das culturas os homens<br />
jovens e brancos, sadios, ricos, saudáveis, inteligentes<br />
e cultos, exploraram as mulheres, os velhos, os negros,<br />
os pobres, os doentes, os deficientes mentais e os incultos.<br />
Este é o nosso destino: obedecer, sem refletir e sem o desejar,<br />
à vontade dos mais sagazes e com maior poder.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 227
Os comerciantes seduzem o cidadão-alvo com promessas<br />
de férias maravilhosas, juventude e beleza eterna,<br />
hálito perfumado, frescor no corpo, cabelos sedosos e brilhantes,<br />
alegria irradiante ou tola, lábios sensuais, bustos<br />
e bumbuns belos e firmes.<br />
Para quem? Para uma população sem dinheiro, de<br />
idosos, desnutridos, feios, banguelas, nanicos, carecas,<br />
despeitados e desbundados.<br />
Já os políticos, usando as palavras adequadas e comoventes,<br />
seguindo o padrão da propaganda, oferecem-nos a<br />
justiça social, os empregos com salários altos para todos,<br />
a assistência médica de alto padrão, a proteção à criança<br />
abandonada e ao idoso, uma justiça digna para os grupos<br />
marginalizados, uma alimentação abundante e barata.<br />
Em resumo, tudo o que é desejado por todos nós. Para<br />
quem? Para uma maioria que nunca imaginou poder alcançar<br />
tais coisas, compostas dos sem-casa, pivetes, negros e<br />
brancos pobres, mulheres desempregadas ou com subempregos,<br />
crianças, analfabetos, deficientes mentais, etc., ou<br />
seja, pessoas sem oportunidades e estigmatizadas socialmente.<br />
Vivemos, ainda, sonhando com o paraíso perdido.<br />
Os conhecidos manipuladores do povo, nos seus discursos<br />
esforçam-se como podem para estimular e conservar<br />
as crenças existentes entre a população, as normas<br />
vigentes, as prescrições de conduta e, por que não, a ignorância<br />
popular. O poder de uns se assenta, exatamente,<br />
às custas de crenças supersticiosas, na irracionalidade do<br />
povo que o impede de sair do seu estado de indigente de<br />
conhecimento e de crítica.<br />
Mesmos os políticos chamados de mais “avançados”<br />
ou da esquerda, cegados pela tradição, defendem no programa<br />
de governo a melhoria dos empregos, salários, assistência<br />
à saúde, etc., mas nunca uma mudança do modo<br />
de pensar mais profundo do operário e do lavrador.<br />
228 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Quando se fala em melhoria do ensino, trata-se apenas<br />
de melhorar a capacidade de compreensão da leitura<br />
de instruções para que o operário saiba utilizar melhor o<br />
maquinário da empresa, para aumentar a produção, a leitura<br />
de revistas e jornais que precisam ser vendidos, de<br />
propagandas diversas e, deste modo, haja mais consumo<br />
com mais lucro para as empresas.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 229
o conHecimento<br />
e AS diVerSAS LÍngUAS<br />
Alimentadas pelo modo de pensar dominante existente<br />
em cada época, constantemente nascem novas palavras.<br />
Uma manifestação verbal importante socialmente<br />
produzida num local populoso poderá influenciar outras<br />
regiões e grupos.<br />
Assistimos constantemente ao aparecimento de modos<br />
diferentes de nomear fatos e situações, apropriados<br />
a cada geração, grupo ou sociedade. Essas maneiras de<br />
classificar são simbolizadas ou expressas em linguagens<br />
diferentes, variando conforme a idade, o sexo, o grupo<br />
social e cultural, a profissão, o lugar, a época e outras variáveis.<br />
Pode-se afirmar que cada indivíduo tem seu vocabulário<br />
próprio, usa mais certas palavras e não outras, enfatiza<br />
mais certos aspectos da realidade e pouco, ou nada,<br />
outros. Notamos que há uma grande diferença entre a fala<br />
do presidente e a do ministro, do clérigo, advogado, médico,<br />
futebolista, sem-teto, idoso, jovem, trombadinha,<br />
prostituta, bandido e político.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 231
Por outro lado, cada um de nós altera seu modo de<br />
falar conforme atua diante de uma ou outra situação, na<br />
hora da briga ou do amor, perante os filhos, pais, médicos,<br />
clientes, amigos, inimigos, torcedores, amante. Em cada<br />
uma dessas ocasiões, fazemos uso de linguagens diferentes,<br />
pulamos de uma para outra, automaticamente, sem<br />
esforço e inconscientemente. Algumas vezes não entendemos<br />
a linguagem de um grupo ou de outro.<br />
As linguagens referidas acima (do presidente, bandido,<br />
futebolista e outras) coexistem, se expressam e se misturam.<br />
Todos os modos de nomear coisas e eventos sobreviveram<br />
em grupos diversos e separados e germinaram, durante<br />
certos períodos, na vida sociocultural de um grupo determinado.<br />
As palavras que ainda vivem, as que resistiram ao<br />
tempo ainda dominam a mente de seus possuidores em razão<br />
de sua utilidade, do contrário teriam desaparecido.<br />
Os vários discursos, indo do professor universitário ao<br />
analfabeto, do servente ao presidente, nasceram e germinaram<br />
da existência simultânea de modos antagônicos de<br />
viver quanto às ideologias, aspectos socioeconômicos, religiões<br />
diversas, várias profissões, sexo, idade. Em resumo:<br />
de diferentes grupos com objetivos e condutas variadas.<br />
Convivem ao mesmo tempo, de forma harmoniosa e conflituosa,<br />
modos de falar antigos e modernos, onde alguns<br />
terão vida longa, outros, curta. Algumas palavras são mais<br />
potentes, tomam o lugar de outras mais frágeis, que, às<br />
vezes, desaparecem para sempre. Outras renascem com<br />
força total após anos de hibernação. Durante as lutas de<br />
palavras contra palavras, despontam acasalamentos que<br />
geram novas palavras ou novas formas de manifestações<br />
de ideias sociais, misturas de uma e de outra, ou de diversas<br />
delas. Das crias são conservadas, em maior quantidade,<br />
os “genes” das dominantes e poderosas e podem<br />
desaparecer os genes mais fracos.<br />
232 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
As palavras, como os seres vivos, nascem, crescem e<br />
morrem. Algumas resistem mais, como insetos, estando mais<br />
bem adaptadas ao meio, habitam a mente, em todas as épocas,<br />
de todos os grupos socioculturais. Não são exterminadas,<br />
por mais que haja grupos contrários à sua proliferação.<br />
Cada linguagem, nascida de um grupo sociocultural<br />
específico, ingrediente do bolo total existente, se distingue<br />
das outras. Cada língua, fiel à suas convicções e princípios<br />
orientadores, enfatiza um ou outro aspecto: uma prioriza a<br />
função, a outra, o tema, outra, ainda, a religião ou o social.<br />
Algumas poucas são dramáticas.<br />
Apesar da existência de diversas linguagens, quase<br />
todas convivem entre si, apesar de que uma ou outra pode<br />
ser obstáculo ao crescimento ou manutenção da outra. Por<br />
exemplo: o Brasil tem sido invadido pela linguagem e, ligado<br />
a ela, pelos costumes próprios dos nativos da língua<br />
inglesa. Também percebe-se a invasão de conceitos e termos<br />
da linguagem de uma área no território de outras:<br />
“Precisamos fazer um diagnóstico melhor da nossa economia”,<br />
“Só fazendo uma cirurgia radical iremos acabar com<br />
a violência”, “Para curar esse câncer, há necessidade de<br />
processos invasivos, pois assim iremos exterminar a doença”.<br />
Os exemplos, relacionados ao uso de termos de determinada<br />
linguagem de um grupo (médicos, na economia<br />
e na violência, da guerra, na medicina etc.) são inúmeros,<br />
viajando na boca de todos nós de forma automática. Usamos<br />
sem parar uma linguagem híbrida, tudo naturalmente<br />
sem esforço. Aos poucos, alguns termos podem ir mudando<br />
de habitat, passando, por exemplo, da linguagem médica<br />
para a popular: “O país está esquizofrênico”.<br />
Um aspecto importante para a sobrevivência longa de<br />
uma palavra é a de que o discurso onde ela habita, precisa,<br />
para viver ou sobreviver, apoiar-se fora dele, isto é, uma<br />
linguagem não pode ser gerada e desenvolvida do nada.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 233
Ela precisa alimentar-se de objetos observáveis, os<br />
que atingem nossos sentidos, muito próximos ou muito<br />
afastados. A linguagem não resiste à falta de objeto, sem<br />
este ela forçosamente desaparece.<br />
Quando assistimos às conversas dos intelectuais<br />
- que fogem dessa orientação - não percebemos no seu<br />
“bate-papo” nada além de uma teia vazia: palavras e mais<br />
palavras sem referenciais, nuas, impossíveis de serem<br />
compreendidas. Trata-se de um tipo de linguagem da qual<br />
nada sabemos, pois ela não nos informa nem sua posição<br />
social, nem as intenções, nem a época, nem o destino,<br />
nem nada. Os intelectuais, estando acima das “coisas reais”,<br />
discursam sobre o nada. Estudar o discurso em si<br />
mesmo, ignorando sua orientação externa, é tão absurdo<br />
como estudar o sofrimento mental sem examinar como<br />
esse foi desenvolvido, bem como o contexto que facilitou<br />
ou dificultou o aparecimento dele.<br />
A língua não trabalha com palavras neutras ou sem<br />
emoções, como os psicanalistas acreditavam. Não existe<br />
uma palavra válida e eficiente que não pertence a ninguém,<br />
a nenhuma época e nenhuma idade, etc. Um termo só sobreviverá<br />
e funcionará caso seja contaminado pelas intenções,<br />
prazeres, sofrimentos e objetivos implícitos – raramente<br />
explícitos - de uma pessoa ou grupo sociocultural.<br />
Um lavrador iletrado, residindo pra lá dos confins da<br />
Cidade de Nossa Senhora do Socorro, ingenuamente mergulhado<br />
em uma existência imaginada como imutável e<br />
inabalável, vive, apesar de tudo, num meio contendo vários<br />
sistemas linguísticos interagindo e em constante mudança.<br />
Ele deve cantar suas modinhas caipiras numa forma<br />
poética e emocional, reza a Deus numa linguagem apropriada<br />
à sua religião, fala de um modo coloquial e espontâneo<br />
com seus familiares e amigos íntimos, ou seja, numa<br />
234 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
terceira língua. Quando colher e vender seu feijão e milho<br />
usará a linguagem comercial, quando casar, diante das autoridades<br />
da cidade, ele usará uma outra língua: a oficial,<br />
do cartório.<br />
Para cada ato desses, pressupõe-se linguagens e termos<br />
diferentes, porém estas línguas não estão ordenadas<br />
hierarquicamente na consciência do lavrador. Ele usa ora<br />
uma, ora outra. A cada instante, automaticamente, troca<br />
de língua. Cada linguagem usada nasceu e cresceu em ninhos<br />
diferentes. O lavrador, possivelmente nunca procurou,<br />
nem mesmo imaginou, examinar uma linguagem usada -<br />
bem como o mundo descrito ou interpretado por ela - com<br />
a lente da outra. Por exemplo, examinar a linguagem usada<br />
no cotidiano e familiar com os “olhos” da linguagem da oração<br />
ou da canção. Ele não deve imaginar que se fizesse isso<br />
- examinasse um dos mundos vividos com as “lentes” da<br />
outra linguagem - o “mundo” olhado não seria o conhecido,<br />
seria outro, talvez muito diferente do lido com a linguagem<br />
inicial. Ele enxergaria novos mundos.<br />
A linguagem e o mundo da oração, a linguagem e o<br />
mundo da canção, do trabalho e comércio, dos costumes,<br />
a linguagem específica e o mundo da administração rural, a<br />
moderna e o mundo do trabalhador braçal que chega em casa<br />
para descansar. Todas essas linguagens descrevem mundos<br />
determinados, usam certas palavras apropriadas para aquele<br />
mundinho, os descortinados por cada uma delas.<br />
Cedo ou tarde, cada um desses mundos, dependendo<br />
do poder ou vigor da linguagem, poderá perder seu estado<br />
de equilíbrio sereno e amorfo. Muitos mundos, antes<br />
estáveis, que foram imaginados firmes e eternos, quando<br />
examinados sob o prisma complacente e tolerante da língua-mãe,<br />
de sua própria linguagem tendenciosa e tolerante,<br />
desabaram, olhados sob outros óculos, mais neutros e<br />
impiedosos.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 235
Cada grupo de palavras nos leva a formar imagens de<br />
um contexto, no qual elas nasceram e viveram. Portanto,<br />
todas as palavras são povoadas por intenções e emoções,<br />
nelas são inevitáveis as harmonias e as desarmonias de<br />
gênero, de orientações, de idade, de indivíduos diferentes.<br />
A palavra pronunciada, ou escrita, numa conversa<br />
ou discussão é, ao mesmo tempo, uma palavra emitida<br />
por uma determinada pessoa, e também ideias, conceitos<br />
ou lógicas emprestadas de outros. Não foram criadas por<br />
seu possuidor, já existiam quando ele nasceu. Ela se torna<br />
“própria” quando o falante a povoa com sua intenção, com<br />
seu acento particular - caso o tenha - quando ele a domina<br />
através do seu discurso, tornando-a familiar ao dar sua<br />
orientação semântica e expressiva particular.<br />
Alguns falam sem pôr um acento ou linguagem “própria”,<br />
como se estivessem distantes do falado. A fala ecoa<br />
de modo estranho, pois as linguagens usadas não foram<br />
assimiladas, ficam “entre aspas”, foram decoradas.<br />
A visão do mundo de uma geração, se formulada em<br />
palavras, torna-se necessariamente uma prisão para a geração<br />
seguinte ou as seguintes. Cada geração deve exigir sua<br />
própria linguagem, nascida de uma época e numa cultura.<br />
236 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Um LUgAr Ao SoL<br />
O nascimento, o crescimento e a divulgação de alguns<br />
novos termos que são lançados no mercado da fala<br />
diária, muitas vezes se espalham ao sabor do vento: “Com<br />
certeza”, “Virgem Maria”, “Bumbum”, “Aí”, “Nossa!”, “Na<br />
verdade”, “De repente”, “Quer dizer”, “Né”, são apenas alguns<br />
exemplos. Uma grande parte dessas expressões denotam<br />
exclamações, emoções, outras são apenas ruídos<br />
inofensivos sem utilidade informativa.<br />
Do mesmo modo, de tempos em tempos todos nós<br />
anotamos em nossa memória, no computador ou agendas,<br />
novos nomes e endereços de um e outro indivíduo<br />
que, temporariamente, foi batizado como “excelente mecânico”,<br />
“grande conquistador”, “canalha”, “ótimo médico”,<br />
“craque”, “língua ferina”, “perigoso bandido”, “próspero<br />
fazendeiro”, “comerciante esperto”, “linda mulher”. Essas<br />
classificações, geralmente, têm uma vida curta.<br />
Não se conhece bem o processo da produção de novas<br />
palavras, bem como a “descoberta” de características excepcionais<br />
de determinada pessoa. Portanto, não sabemos<br />
como nasce, nem por que isso acontece e também a maneira<br />
como o sucesso ou desprestígio do indivíduo se espalha<br />
nas mentes dos seus admiradores ou críticos ferinos.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 237
Num caso ou noutro, o indivíduo se transforma num<br />
exemplar que será elogiado ou criticado, uma amostra ou<br />
modelo que facilitará a comparação de um indivíduo ao<br />
outro, seja semelhante, seja frontalmente oposto.<br />
Cada um de nós defende e briga em defesa de nossos<br />
argumentos: um afirma ser Edgard o melhor e mais honesto<br />
mecânico já encontrado e, ao mesmo tempo, criticamos,<br />
emocionados, o profissional defendido pelo amigo.<br />
Nota-se que certos estereótipos (rótulos, denominações<br />
ou lugares-comuns fixos) encaixam-se bem em torno<br />
de um determinado indivíduo, mas não em outro e, muitas<br />
vezes, esse encaixe tem o apoio de grupos maiores,<br />
de uma comunidade, ou até de um país ou de quase toda<br />
a população mundial: “Madre Teresa de Calcutá foi uma<br />
santa”, “Bush é um demônio!”. Soa estranho e mesmo intolerável<br />
para nossa mente pensar ou imaginar o oposto:<br />
“Madre Teresa é um demônio”, “Bush é um santo”. Estas<br />
últimas afirmações nos provocam um arrepio, enquanto<br />
as primeiras fluem bem, são facilmente assimiladas, sem<br />
causar o malestar anterior.<br />
Conforme o ambiente sociocultural existente e vigorando<br />
numa época, certos conceitos e modelos ficam mais<br />
fáceis de serem atribuídos a alguém, classificando o indivíduo<br />
de um certo modo e não de outro. Essas suposições,<br />
muitas vezes palpites, podem permitir o desenvolvimento,<br />
crescimento e reprodução das atribuições das pessoas rotuladas,<br />
ou seja, elas ficam encarceradas nos conceitos<br />
emitidos a respeito delas, tudo dependendo do ninho social<br />
onde os conceitos foram plantados ou lançados. Para que<br />
ocorra o crescimento de um conceito, torna-se necessário<br />
que haja “fertilizantes’’ adequados, um terreno propício,<br />
para o conceito “pegar” e “decolar”.<br />
O lançamento, a instalação, a fixação e propagação<br />
de uma ideia para classificar a conduta de determinada<br />
pessoa, boa ou má, às vezes é lenta, outras, rápida.<br />
238 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
O rótulo “João é muito inteligente”, uma vez aceito<br />
torna-se para seus usuários uma verdade insofismável,<br />
autoevidente e “acima de qualquer suspeita”, jamais imaginada<br />
no seu oposto.<br />
A partir da rotulação, os homens e as mulheres classificados<br />
passam a ser tratados pelos conhecidos, amigos<br />
ou inimigos, conforme o rótulo recebido. Se o indivíduo é<br />
denominado “engraçado”, “palhaço”, “grande contador de<br />
anedotas” e mesmo “filho da mãe”, uma vez acreditando na<br />
rotulação, aprisionado à categorização, ele irá se esforçar<br />
como pode para desempenhar, no carnaval ou no velório,<br />
o personagem designado pelo roteiro. Já assisti, muitas<br />
vezes, colegas de sala de aula rotulados de “engraçados”<br />
representarem, de tempos em tempos, conforme os fatos<br />
existentes, o papel exigido pela turma, inventando sempre<br />
que possível uma “graça” qualquer, mesmo uma graça sem<br />
graça, pois, do contrário frustrariam a plateia e poderiam<br />
perder o conceito recebido, passando a ser um qualquer,<br />
um João Ninguém, como os colegas não classificados de<br />
alguma coisa. Da mesma forma, se a pessoa recebe a classificação<br />
e os comentários necessários dos observadores<br />
de que é “bonita”, “elegante’, “inteligente”, “bom de cama”,<br />
“burro”, etc., deverá desempenhar esse papel nas ocasiões<br />
esperadas, não poderá ser “bom de cama” durante a<br />
discussão filosófica na qual deveria representar o papel de<br />
“inteligente”.<br />
Uma vez rotulado, forçado a agir como tal devido a<br />
pressões externas e internas, o antigo cidadão, Carlos ou<br />
Diva, desaparece. Assim vai se formando o novo ator, o<br />
transformado no rótulo, passando a agir de acordo com<br />
o novo conceito: “Aninha é bonita”, “Dirce é inteligente”,<br />
“Pedro é um crápula”.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 239
A menSAgem<br />
Anastácio é um dos donos de uma barraca de frutas<br />
do mercado municipal, onde compro bananas. Ao me ver<br />
naquele sábado, foi logo dizendo, quase gritando:<br />
— Acabei de conhecer uma moça notável. É bonita,<br />
inteligente, estudiosa, grã-fina e agradável... Com essa eu<br />
me caso!<br />
Fiquei pensando acerca do que ouvi, tentando decifrar<br />
o significado de sua frase. Sabia que Anastácio sempre<br />
tirava conclusões apressadas, quando iniciava um namoro.<br />
Nessa hora, misturava os desejos com a realidade. Não<br />
conseguia formar uma ideia da namorada de Anastácio.<br />
Acho que nem ele nem eu, conseguíamos retratar adequadamente<br />
os atributos que ele julgava ter notado. Não sei<br />
como ele chegou a essas conclusões. Apoiado na sua descrição,<br />
comecei a imaginar como seria essa mulher... ”ela<br />
era notável... o que tem uma moça para ser notável? Talvez<br />
muito alta ou gorda, ou muito magra, ou nada disso”.<br />
Continuei a imaginar a namorada de Anastácio. “ele<br />
julgou-a bonita: lembrei-me, quem ama o feio, bonito lhe<br />
parece... Como seria seu corpo, face, olhos, nariz, cabelos<br />
e dentes?”<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 241
Enquanto escolhia as bananas, pensava comigo mesmo.<br />
“Vivemos num mundo simbólico, onde certas coisas<br />
representam outras. Assim, dois pedaços de madeira reunidos<br />
de uma certa forma, que chamamos de cruz, podem<br />
simbolizar ou representar religiões diversas. Talvez a namorada<br />
de Anastácio tenha olhos azuis e cabelos louros,<br />
sendo a beleza, para ele, representada por esses traços.<br />
Mas lembrei-me que esse tipo de beleza foi o adquirido<br />
por mim, ao assistir a filmes americanos.<br />
Voltei a refletir: “Frequentemente inferimos certas<br />
coisas de outras, isto é, criamos uma afirmação a respeito<br />
de uma situação que nos é desconhecida, a partir de uma<br />
conhecida. Ao sentirmos uma dor no peito, inferimos – de<br />
um modo mais simples – imaginamos que estamos tendo<br />
um enfarto. Do mesmo modo, quando a mulher ciumenta<br />
encontra uma mancha de batom na roupa do marido, ela<br />
supõe ou infere que ele a traiu. Quem sabe a namorada de<br />
Anastácio teria lido o Pequeno Príncipe, gostasse de poesia<br />
e isso o levou a supor ser ela muito inteligente?” Com todas<br />
essas dúvidas eu continuava a não enxergar a moça.<br />
Prossegui, teimoso que sou, a fazer perguntas ao meu<br />
amigo e fui descobrindo fatos acerca de sua namorada. Fiquei<br />
sabendo ter ela 20 anos, estuda à noite num colégio<br />
estadual, cursa a 6ª série e já foi reprovada por duas ou<br />
três vezes. Não entendi bem essa parte. Como já sabia<br />
que Anastácio havia parado de estudar na 3 ª série, após<br />
perder o ano diversas vezes, inferi: “Ah! Por isso ele pensa<br />
que sua namorada é muito estudiosa... Perguntando mais,<br />
fiquei sabendo que a namorada de Anastácio lhe disse que,<br />
muitas vezes, ela ficava horas e horas assentada diante<br />
dos livros abertos à sua frente, estudando seguidamente.<br />
Ele aceitou ao pé da letra essas afirmações, acreditou<br />
no que ela disse ter observado e inferido a respeito de si<br />
mesma.<br />
242 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Procurei ir mais a fundo, tentando imaginar como<br />
Anastácio chegou às conclusões acerca da “agradabilidade”<br />
existente em sua namorada. Descobri que nas noites<br />
dos fins de semana, ela lhe preparava um deliciosos mingau<br />
de fubá, quentinho, misturado com pedaços de queijo,<br />
igual ao que fazia sua mãe lá em Divinolância, onde ele<br />
nasceu e foi criado antes de vir para B. H. tentar a sorte.<br />
Então era isso: ela era agradável porque lhe servia mingau<br />
de fubá com queijo mineiro.<br />
Restava examinar os motivos que o levaram a interpretá-la<br />
como grã-fina. Isso foi mais difícil. Descobri que<br />
ela trabalha como arrumadeira numa residência na Savassi,<br />
isto mesmo, na zona Sul da cidade. E tem mais, usa<br />
botas quando sai para passear no Parque Municipal e na<br />
Estação Rodoviária. Sua patroa tem uma loja, o patrão,<br />
que é um advogado famoso, possui uma Mercedes. Ela<br />
já andou nela quando foram à fazenda. No ano passado,<br />
o casal foi à Europa passear e levar alguns dólares para<br />
depositar na Suíça. Rosária, este é o nome da namorada<br />
de Anastácio, não foi com eles, como era seu desejo. Sendo<br />
de confiança, teve de ficar tomando conta da casa. Na<br />
volta, ela ganhou de presente dos patrões, uma escova de<br />
dentes, por sinal muito linda, um pente, um dentifrício, e<br />
ainda uma marmita arrumadinha, contendo uma deliciosa<br />
comida. Coitados, ficaram enjoados e não comeram nada.<br />
Guardei, enquanto pensava, minhas bananas caturras.<br />
Paguei a Anastácio o que lhe devia e desejei-lhe, como<br />
é de praxe no Mercado, um bom fim de semana. Caminhei<br />
um pouco tonto, desiludido com nossa conversa incompreensível.<br />
Em nenhum momento consegui formar uma<br />
imagem clara de Rosária, por mais que tentasse. O relato<br />
ouvido a seu respeito, contada pelo namorado apaixonado,<br />
não me forneceu nenhum fato acerca de seu nariz, boca,<br />
olhos, corpo em geral. Não conseguia enxergá-la pois, du-<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 243
ante o bate-papo havia escutado apenas inferências, julgamentos,<br />
comunicados de comunicados e interpretações<br />
superficiais.<br />
De repente, ao parar diante do ponto dos abacaxis,<br />
ao dar a primeira dentada num pedaço, descobri, de um<br />
estalo, a mensagem que Anastácio tentou transmitir-me<br />
em vão e que eu não compreendi devido à minha burrice<br />
nesses assuntos.<br />
Ele procurou comunicar-me, através de sua descrição<br />
do namoro com Rosária, que ele estava apaixonado, nada<br />
mais! Eu, tolamente, fiquei tentando decifrar, de maneira<br />
complicada, a mensagem simples contida em suas palavras,<br />
em vez de sentir as emoções expressas. Eu sempre<br />
faço isso: procuro um sentido complexo quando existem<br />
outros muito mais simples...<br />
244 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
VidenteS:<br />
A ProStitUiÇÃo dAS PALAVrAS<br />
Ouvi, atentamente, na TV, uma “numeróloga” descrever<br />
as características comportamentais exibidas pelas<br />
pessoas, conforme o dia do mês em que nasceram. Procurei<br />
verificar se os relatos feitos para todos os indivíduos<br />
serviriam para mim. O resultado da “pesquisa” mostrou<br />
que a vidente acertou mais do que eu imaginava. Todas as<br />
descrições feitas para os nascidos em todos os dias do mês<br />
deram certas para mim.<br />
Creio que as previsões feitas estão certas, também,<br />
para todos os leitores. Passo para vocês as afirmações da<br />
vidente, para que as comparem com suas próprias previsões:<br />
“os nascidos entre os dias 1 e 5 são teimosos, mas<br />
flexíveis para os que sabem agir com eles. Os nascidos entre<br />
os dias 6 e 10 têm um grande amor às crianças mas, às<br />
vezes, perdem a paciência com essas. Os nascidos entre<br />
os dias 11 e 16 são trabalhadores e persistentes, quando<br />
desejam alcançar seus objetivos. Os nascidos entre os<br />
dias 17 e 21 não gastam dinheiro facilmente, somente com<br />
pessoas ou coisas importantes para eles. Os nascidos entre<br />
os dias 22 e 25 apaixonam-se rapidamente, mas aban-<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 245
donam cedo suas paixões, quando frustrados. Os nascidos<br />
entre os dias 26 e 31 são desconfiados e selecionam com<br />
cuidado seus amigos”.<br />
Creio que todos os indivíduos encontrarão fatos, na<br />
sua história de vida, capazes de “provar” estas profecias.<br />
Mas se se esforçarem um pouco mais, descobrirão, também,<br />
eventos desconfirmando as previsões.<br />
Há pesquisas mostrando que as pessoas tendem a<br />
procurar fatos que comprovam suas hipóteses e só muito<br />
raramente buscam os eventos que as desconfirmam. Assim,<br />
se não gosto de Maria, a observo, selecionando sua<br />
conduta negativa, visando “provar” que tinha razão. Se<br />
afirmo que os bons vendedores são extrovertidos, seleciono<br />
esses para minha loja e não experimento os introvertidos<br />
para verificar a possibilidade de minha hipótese estar<br />
errada.<br />
Os políticos, cartomantes, videntes e outros profissionais<br />
do mesmo ramo, que advinham com precisão o que<br />
ocorrerá no futuro, jamais cometeram erros ao realizarem<br />
suas previsões. As afirmações desses indivíduos são vagas,<br />
permitindo a entrada dos mais diversos fatos na interpretação<br />
para “provar” as previsões.<br />
Quando um comentário sobre qualquer fato é muito<br />
geral como: “um dia vai chover em algum lugar da Terra”,<br />
ele não precisaria ser falado, por ser uma conclusão<br />
conhecida por todos. A fala que explica o geral, ou tudo,<br />
não pode ser negada. Quando um adivinho, usando búzios<br />
ou cartas, declara: “No próximo ano morrerá um político<br />
influente”, qualquer político que morrer irá se enquadrar<br />
na previsão, pois sempre algum político morre durante o<br />
ano e ele é influente para alguém. Afirmações como: “Haverá<br />
grandes mudanças no governo brasileiro”, “Um artista<br />
morrerá de AIDS” ou “A economia brasileira sofrerá abalos”,<br />
situam-se nesse tipo de afirmações desnecessárias.<br />
246 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Elas são abrangentes e, ao examiná-las, automaticamente<br />
selecionamos determinados fatos ocorridos que se encaixam<br />
na previsão.<br />
Ao observarmos as declarações da maioria das pessoas<br />
notamos que essas nada esclarecem, explicam ou<br />
acrescentam ao já sabido ou esperado. Falar que: “nosso<br />
sistema de saúde está falido”, “o povo está passando<br />
fome”, “o brasileiro gosta de levar vantagem em tudo” e<br />
“o brasileiro deixa tudo para última hora” afirma algo que<br />
sempre ocorre, em algum lugar, num certo momento, com<br />
algumas pessoas. Mas também poderíamos arrumar amostragens<br />
que “não deixa nada para a última hora”, “não leva<br />
vantagem em nada”, ”tem um sistema de saúde do primeiro<br />
mundo” e “muitos brasileiros comem exageradamente”.<br />
Portanto, essas afirmações são inúteis.<br />
As pessoas, ao se expressarem desse modo, não examinaram<br />
fatos para extrair conclusões. Elas aprenderam<br />
a conclusão pronta, não sabendo que fatos foram selecionados<br />
para contribuir para tal afirmação. Também não<br />
observaram outros aspectos da situação que poderiam ter<br />
importância, como: Qual sistema de saúde encontra-se falido?<br />
Seriam “todos os sistemas de saúde”, inclusive os<br />
que atendem as elites? A metáfora “falido”, que significado<br />
adquirirá junto ao contexto “sistema de saúde”? Caso a<br />
afirmação fosse confirmada, o que seria impossível, ainda<br />
continuaríamos em dúvida e perguntaríamos: “Quais e<br />
quantas foram as medidas usadas para se chegar a essa<br />
conclusão e que tipos de erros elas podem conter?<br />
Do mesmo modo: Quais brasileiros, quantas crianças<br />
e adultos, deixam tudo para a última hora? As mulheres<br />
também? Quais? E o que seria “última hora”? No dia do<br />
vencimento, um dia antes, na última hora, minuto, etc.?<br />
Mas as dificuldades não terminam aí. As palavras<br />
não são simplesmente símbolos que colocamos em coisas,<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 247
pessoas ou em fatos para identificá-las. Muitos dos vocábulos<br />
usados só adquirem significados no contexto onde<br />
são usados. Nesse caso, para que possamos decifrar seu<br />
significado, necessariamente devemos examinar sua relação<br />
com outros conceitos já assimilados e entendidos. Esses<br />
mais antigos na mente do indivíduo servirão de apoio<br />
à compreensão. A palavra, uma vez ancorada em outros<br />
conceitos aceitos e compreendidos, poderá nos fornecer<br />
um significado pleno e será assimilada pelo leitor ou ouvinte.<br />
Entretanto, a maioria das palavras do dia-a-dia, da<br />
linguagem popular, são usadas nos mais diversos contextos,<br />
ligando-se aos mais diversos temas e, em cada um<br />
deles, o termo tem um significado diferente. Por isso mesmo<br />
falamos que as palavras usadas na linguagem popular<br />
são, com frequência, ambíguas, isto é, apresentam significados<br />
diversos, conforme a frase usada. Elas “nasceram”<br />
de várias fontes e em cada uma delas adquiriram significados<br />
múltiplos.<br />
Consequentemente, afirmações como “levar vantagem<br />
em tudo”, ou “deixar tudo para última hora” produzem<br />
confusões no ouvinte e discussões sem fim: podem<br />
ser “provadas” e “negadas”, dependendo dos argumentos<br />
utilizados. Afirmações como essas não explicitaram a<br />
origem das palavras-chaves como “levar”, “vantagens” e<br />
“tudo”, bem como suas ligações a outros conhecimentos<br />
aceitos. Só desse modo essas frases poderiam ter algum<br />
sentido preciso.<br />
Examinemos algumas frases contendo a palavra<br />
“amor”. Este termo, por sinal muito repetido, evoca boas<br />
e más recordações, adquirindo significados distintos conforme<br />
os contextos onde está colocado.<br />
Assim, ouvimos e fingimos entender frases como:<br />
“No amor o importante é a sinceridade”, “Matou por amor”,<br />
248 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
“A química do amor”, “Maria é um amor de pessoa”, ‘O<br />
amor é sublime”, “As dores do amor”, “Fazer amor”; Um<br />
amor de casa”, “Morreu por amor”, “Os pais devem educar<br />
os filhos com amor”, “É preciso ter mais amor à humanidade”,<br />
“Se tivermos mais amor, tudo será resolvido”, etc.<br />
Através dessa pequena amostra o leitor poderá observar<br />
que a palavra, ou o signo “amor”, foi usada em<br />
diversos contextos, cada um muito diferente do outro. Ficaríamos<br />
confusos caso tentássemos decifrar o significado<br />
de “amor”, existente na frase “Morreu por amor”, através<br />
do significado que ela adquiriu na frase “Fazer amor”. Nas<br />
ciências sérias, seus conceitos principais ou “construtos”<br />
são definidos com extremo cuidado, aceitos pelos que os<br />
usam, e sempre ligados, direta ou indiretamente, a fatos<br />
existentes no mundo empírico.<br />
Aqui pergunto: Qual ideia teria um leitor que nunca<br />
tivesse visto a palavra “amor”, ao examinar esta lista<br />
de afirmações? Ora, os diversos contextos no qual a<br />
palavra foi colocada, onde ela está presa, fez com que o<br />
som ou imagem “amor” adquirisse significados totalmente<br />
diferentes. Na maioria das vezes seu sentido é difícil de<br />
ser entendido por quem emitiu ou por quem recebeu a<br />
informação. A maioria das palavras de uso diário caem no<br />
mesma dificuldade de entendimento. A palavra “over” em<br />
inglês, tem mais de 90 significados diferentes. Essa complexidade<br />
de sentidos facilita a vida do charlatão, do pregador<br />
desonesto, do vigarista, de muitas psicoterapias, de<br />
advogados diversos e dos políticos.<br />
Esses profissionais da palavra, através de uma verborreia<br />
algumas vezes ininteligível, desligada de fatos,<br />
usam com mestria, palavras produtoras de fantasias e<br />
emoções, dependendo do ouvinte. Com isso esses falantes<br />
conseguem ludibriar os inocentes clientes, o devoto<br />
incauto ou o fiel eleitor e vendem as ilusões desejadas.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 249
Quando o manipulador de pessoas emite os belos<br />
sons: “família”, “educação”, “saúde”, “colégio”, “lazer”, “riqueza”,<br />
“amor”, “democracia”, “liberdade”, estas palavras<br />
são interpretadas e sentidas pelas pessoas que as ouvem<br />
de acordo com a experiência e os sonhos de cada um. Elas<br />
comovem os que as ouvem. Mas os que as pronunciam,<br />
vivem geralmente em mundos diferentes dos seus ouvintes,<br />
compartilhando experiências diferentes. Cria-se uma<br />
comunicação próxima do zero: os vocábulos trocados são<br />
os mesmos, é certo, mas cada um os representa, em sua<br />
mente, ajustados ao seu mundo. Aprendemos, erroneamente,<br />
que para ser entendido basta falar o mesmo idioma<br />
ou as mesmas palavras. Não é bem assim...
AdiVinHoS: eSSeS deSAdAPtAdoS<br />
Os videntes, bem como os que trabalham com búzios,<br />
cartas, tarô, horóscopos, mapa astral e outros semelhantes,<br />
ao tentarem predizer o futuro do país, do artista ou do<br />
político, de fato só poderão observar os “mapas” mentais<br />
que habitam suas próprias mentes. Esses leitores misteriosos<br />
“leem” apenas seus próprios pensamentos e não os<br />
dos outros. Não há outra possibilidade. Alguns, sem malícia,<br />
outros, nem tanto, descrevem para o consulente ávido<br />
por profecias a “realidade” interna contida em sua mente,<br />
como se fossem eventos que irão acontecer.<br />
Ninguém pode refletir ou descrever o que não se encontra<br />
armazenado em sua própria mente, sua “memória<br />
autobiográfica”. Apesar desse fato simples, eu só falo o<br />
que aprendi, só consigo discutir ou resolver questões que<br />
tenho em mente e que conheço. Estranhamente, os diversos<br />
videntes atribuem suas visões a acontecimentos externos,<br />
até o momento da revelação desconhecidos para o<br />
vidente e o cliente.<br />
O grande paradoxo dos videntes e outros semelhantes<br />
é que eles jamais conseguiram prever seus próprios destinos,<br />
sair de sua ignorância a respeito de sua incapacidade<br />
para fazer o que dizem: eles ignoram a própria ignorância.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 251
Há uma verdade lógica impossível de ser negada:<br />
nada do que existe fora de nossa mente pode ser observado,<br />
percebido, examinado ou discutido em si. Tudo que<br />
conhecemos encontra-se intermediado pela nossa mente.<br />
Não existe objetividade nem nas ciências chamadas<br />
“exatas”. Tudo o que é olhado, escutado, cheirado, etc.,<br />
sempre o será por uma cabeça que já possui algum conhecimento<br />
ao nascer (inato) e, após o nascimento, cada<br />
um tem seu aprendizado singular. O conhecimento antigo<br />
forçosamente servirá de suporte ao novo que vai sendo<br />
edificado. Não pode ser de outro modo.<br />
Cada um de nós tem uma história que é humana: viveu<br />
e experimentou certas situações, leu ou escutou algo,<br />
interessa-lhe observar determinados aspectos do mundo,<br />
somente esses, num certo momento. Qualquer observador<br />
de fatos apresenta sempre limitações: características<br />
como a idade, sexo, maior ou menor conhecimento, a adoção<br />
de certa filosofia de vida, o viver um instante particular,<br />
etc. Tudo isso, e muito mais, irá fatalmente modificar a<br />
percepção e interpretação do fato ou as relações que estão<br />
sendo examinadas.<br />
Sempre, sem exceção, todos nós, ao examinarmos<br />
um evento, lançamos nele nossos desejos, noções gerais<br />
ou falta de conhecimento acerca do fato, de modo que o<br />
observado mistura-se às nossas crenças. Nós nunca atingimos<br />
os fatos. Sempre damos nossas versões acerca dele<br />
ou, de outro modo, trabalhamos, examinamos e interpretamos<br />
apenas as representações criadas ou construídas<br />
acerca dos eventos, um simulacro ou amostra do evento,<br />
uma história reconstruída, modificada e contada acerca do<br />
fato para e por alguém. Que pena!<br />
Muitas vezes recebemos informações de segunda,<br />
terceira ou quarta mão. Construímos as nossas versões<br />
dos fatos e estas sempre devem corresponder às nossas<br />
252 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
crenças subjacentes, aos nossos desejos, ao grupo social<br />
onde somos aceitos e do qual fazemos parte.<br />
As versões são frequentemente carregadas de mitos,<br />
hipóteses e deduções antigas, aprendidas cedo e, além disso,<br />
muito longe da realidade. Assim é que todos nós construímos<br />
nossos mitos particulares. Na maioria dos nossos<br />
raciocínios não examinamos os métodos que usamos para<br />
chegar às conclusões obtidas e, muito menos, não examinamos<br />
as contradições possíveis de existir no nosso próprio<br />
raciocínio.<br />
Parece-me que os videntes fazem parte do grupo dos<br />
seres humanos. Talvez não! Não sei bem. Eles, caso estejam<br />
certos, ao observarem e raciocinarem, como nós,<br />
selecionam certos fatos, acentuam alguns aspectos, eliminam<br />
e generalizam outros para construírem suas ideias<br />
conforme seus planos e intenções. Além disso, como todos<br />
nós, ao examinarem um acontecimento não valorizam e<br />
não selecionam aspectos do fato que não interessam às<br />
hipóteses que formulam e que poderiam contradizer as expressas<br />
no momento. O resto... vocês decidem.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 253
FÉ: Um PoderoSo medicAmento<br />
Uma visão retrospectiva na história da medicina nos<br />
conduz a uma constatação no mínimo estranha ou insólita:<br />
grande parte dos pacientes que consultaram os médicos,<br />
em épocas passadas, foi ludibriada.<br />
Isso ocorreu não por má-fé dos seus clínicos, mas<br />
sim em virtude de que os procedimentos físicos e medicamentos<br />
usados em grande parte dos casos não possuíam<br />
qualquer efeito farmacológico esperado sobre a condição<br />
que era tratada. Posso afirmar, sem muito medo de errar,<br />
que a grande maioria dos médicos do passado ajudaram os<br />
clientes muito mais através de técnicas psicológicas intuitivas,<br />
do que em virtude dos chás, poções, ervas, sangrias,<br />
incisões, xaropes, catárticos, sacrifícios em animais e em<br />
seres humanos, fumigações, enemas, vomitórios, penitências<br />
e outras técnicas largamente utilizadas no passado.<br />
As “causas” das doenças para a medicina pré-científica<br />
eram bem mais simples do que as atuais. Às vezes<br />
a “doença” era causada por um distúrbio ocorrido com os<br />
elementos básicos da natureza e, logicamente, do organismo<br />
- terra, água, fogo e ar – esses, teriam que ser<br />
restaurados. Outras vezes, a doença era proveniente de<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 255
uma possessão demoníaca e o tratamento indicado era o<br />
exorcismo do malfeitor. A possessão era combatida, e ainda<br />
o é, com bons resultados, através de orações e rezas,<br />
danças e cânticos, numa variedade de rituais. Quando o<br />
demônio era poderoso, a técnica era a de passá-lo para<br />
uma outra pessoa.<br />
Outras doenças surgiam devido ao “mau- olhado” ou<br />
eram colocadas” por pessoas poderosas e más.<br />
Assistimos atualmente a uma descrença na medicina<br />
tradicional, ao mesmo tempo um retorno às medicinas<br />
chamadas alternativas e às técnicas antigas. Essas têm,<br />
como sempre tiveram, a sua clientela fiel, agora em crescimento.<br />
Uma boa parte dos dirigentes dessas “clínicas” são<br />
leigos mas, a cada dia mais, médicos formados por escolas<br />
tradicionais engrossam a fileira dos “curadores mágicos”.<br />
Cada grupo dá sua explicação “científica” do mecanismo<br />
das doenças, sua etiopatogenia - assim como das<br />
causas - sua etiologia e explicam a lógica e a razão dos<br />
tratamentos instituídos. Todos têm algum sucesso. Para<br />
alguns a leitura das mãos permitirá um perfeito diagnóstico<br />
e prognóstico da doença e do doente, ou até revelará a<br />
doença ainda não ocorrida mas que acontecerá - é a medicina<br />
palmar preventiva. Para uma outra “medicina”, toda<br />
e qualquer doença é mostrada, apenas para mentes especiais,<br />
através dos globos oculares. Os olhos, sendo o “espelho<br />
da alma”, fornecem indícios evidentes e insofismáveis<br />
das doenças orgânicas e mentais. Alguns “consultam”<br />
através das cartas ou dos búzios, outros pelos horóscopos<br />
- até por correspondência - e outros ainda, simplesmente<br />
adivinham o que o paciente apresenta através do seu poder<br />
de vidente, como os sensitivos e os paranormais.<br />
Todos esses grupos, junto aos médicos, exercem a<br />
ajuda aos doentes, necessitados e carentes, cada um acreditando<br />
mais e mais em suas próprias técnicas e pouco ou<br />
nada nas dos adversários.<br />
256 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
Eu, com a minha medicinazinha simples e acanhada,<br />
com pouco, ou melhor, sem nenhuma certeza, fico perplexo<br />
com tanta fé e verdades ditas com tanta empolgação<br />
e segurança. Sei, assim como você, leitor, que todas elas<br />
“curam”. Uma boa parte dos pacientes volta à normalidade<br />
após qualquer um tratamento. Cada grupo de clientes,<br />
convicto da capacidade do seu “curador”, seja ele médico<br />
ou não, defende, elogia, prova e preconiza para os seus<br />
amigos, o tratamento usado. A situação é semelhante à<br />
dos pacientes que se submetem por muitos anos ao tratamento<br />
psicoanalítico e que percebem o seu terapeuta<br />
como o mais capaz, sábio, mais eficiente e inteligente.<br />
Da minha parte, particularmente, sou um tanto São<br />
Tomé, “ver, para crer” é uma de minhas regras favoritas.<br />
Tanto assim que em minhas aulas na Faculdade de Medicina<br />
da UFMG já fiz comparecer umbandistas, espíritas,<br />
cartomantes, professores de I Ching e diversos outros<br />
profissionais da saúde física e mental que expõem suas<br />
ideias, as quais são debatidas com os estudantes. Julgo<br />
estar aprendendo muito.<br />
Nesse ponto desejo lhes contar uma experiência pessoal<br />
e que era aqui guardada sigilosamente. Há anos passava<br />
férias em Santa Maria de Itabira, com duas filhas,<br />
uma delas com 16 anos naquela época e que sofrera um<br />
corte, em uma das mãos, produzido por um caco de vidro<br />
de uma garrafa quebrada acidentalmente. Já havia meses<br />
que o fato ocorrera e ela se queixava de que a dor na<br />
mão não passava e que além disso tinha dificuldades para<br />
executar movimentos normais. A outra, com 8 anos, apresentava<br />
uma inflamação palpebral, rebelde a tratamentos<br />
normais, aos quais já havíamos recorrido.<br />
Seu oftalmologista informou-me que o melhor seria<br />
lancetar e limpar o tumor e, por ser uma região delicada,<br />
seria prudente dar-lhe anestesia geral. Por precaução,<br />
adiei a pequena cirurgia.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 257
Em uma tarde, quando trafegava na cidade em meu<br />
jeep, combinamos fazer uma entrevista com um famoso<br />
“curandeiro” local, autor de várias curas fabulosas. Munido<br />
com a minha filmadora nos dirigimos para a entrevista. A<br />
gravação foi permitida pelo curandeiro, ficando marcada<br />
para uma hora mais tarde, pois ele desejava, antes, tomar<br />
um bom banho e se aprontar. A entrevista, que durou<br />
cerca de uma hora e meia, está ainda gravada e recentemente<br />
revi o tape. Correu tudo a contento, com várias<br />
explicações e demonstrações orais do meu companheiro<br />
de atividade - ouvir e ajudar pessoas que estão sofrendo.<br />
No final pedi ao renomado profissional que fizesse algo de<br />
prático e real para ajudar as minhas filhas que, um pouco<br />
espantadas, mas seriamente, assistiam a toda a explanação.<br />
Prontamente ele atendeu meu pedido, gastando não<br />
mais do que três minutos para realizar a cura solicitada,<br />
utilizando-se de algumas rezas desconexas, às vezes inaudíveis,<br />
tendo sempre à mão o seu terço, feito de contas<br />
de “lágrimas de Nossa Senhora”. Inicialmente seu alvo foi<br />
a mão esquerda da filha mais velha e, logo após, acrescentando<br />
algumas rezas a mais, dirigiu sua intervenção ao<br />
olho direito da mais nova.<br />
Pois bem, ficamos mais uma semana em Santa Maria.<br />
Após cinco dias, no máximo, as duas estavam curadas e<br />
não tiveram recidivas. É evidente que a ocorrência me fez<br />
pensar. Lembrei-me de Hipócrates: “as nossas naturezas<br />
são os médicos de nossas doenças”.<br />
Lembrei-me também de um professor, quando cursava<br />
a Faculdade. Em suas inteligentes aulas repetia, frequentemente,<br />
que uma grande parte das doenças são autocuráveis,<br />
isto é, nosso organismo, com sua misteriosa<br />
sabedoria e defesa elimina o mal e a disfunção sem ajuda<br />
externa. Falava sempre acerca da expressão “ilusão terapêutica”,<br />
o caso de uma cura espontânea e que se supõe<br />
258 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
ser devida a qualquer prática exercida ou medicamento<br />
usado. Lembro-me de seus exemplos: os diferentes remédios<br />
são receitados como eficientes na cura de gastrites<br />
ou de úlceras. Entretanto sabe-se que essas doenças melhoram<br />
ou desaparecem, e também voltam, em virtude de<br />
diversos fatores. Muitas vezes, o pesquisador menos avisado<br />
atribui ao seu remédio milagroso a responsabilidade<br />
pelo êxito.<br />
Você, prezado leitor, que acredita na cura pela fé,<br />
perdoe-me por raciocinar da maneira acima descrita, diante<br />
de tanta evidência. Ao andar buscando construir meu<br />
caminho, talvez tenha traçado um caminho diverso do seu,<br />
mas nunca antagônico, talvez com mais semelhança do<br />
que se possa imaginar.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 259
A SAntA QUe FALA PortUgUÊS<br />
Uma antiga história, de origem provavelmente hindu,<br />
conta que um cego perguntou a um sábio o significado de<br />
“branco”.<br />
— Branco é uma cor, como por exemplo, a neve, que<br />
é branca, disse-lhe o homem.<br />
— Eu compreendo, disse o cego. Ela é fria e úmida.<br />
— Não! Não! Ela não tem que ser úmida e fria. Ela é<br />
semelhante à pele do rato albino.<br />
— Então macia, uma cor coberta de penugens? Pergunta<br />
o cego.<br />
— Não! Não necessita ser macia: porcelana é branca<br />
também.<br />
— Talvez o branco seja uma cor dura e lisa, completou<br />
o cego.<br />
O homem, nesse ponto, perdeu a paciência e desistiu<br />
de dar explicações.<br />
Esta história ilustra a dificuldade, ou impossibilidade,<br />
de comunicação entre duas pessoas que não tiveram experiências<br />
comuns. Talvez este seja um dos grandes problemas<br />
do nosso tempo.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 261
Assisti certa vez a uma mesa redonda, reunindo jornalistas<br />
e juízes, quando se discutiu o poder judiciário visto<br />
pelos jornalistas. A discussão era principalmente sobre a<br />
dificuldade existente entre as linguagens dos juízes e a dos<br />
jornalistas. Segundo deduzi, um grupo não compreende o<br />
outro. De parte a parte surgiram argumentos acalorados,<br />
mas tudo dentro do mais alto nível. Durante as discussões<br />
um dos presentes argumentou: “Não vejo necessidade de<br />
modificar a linguagem de ninguém: todos nós falamos português”.<br />
Nada mais errado. Talvez seja mais fácil um juiz alemão<br />
entender um juiz brasileiro, mesmo que ele nunca<br />
tenha falado nossa língua, desde que tenha à mão um bom<br />
dicionário, do que um brasileiro comum entender a linguagem<br />
dos magistrados. O exemplo pode ser estendido para<br />
todas as áreas do conhecimento humano. O vocabulário de<br />
qualquer área é especializado. Os fatos e acontecimentos<br />
são codificados dentro de cada área e organizados de uma<br />
certa maneira, onde cada signo tem uma enorme riqueza<br />
de informações, conforme o estudo e observações dos peritos<br />
da área. Os mesmos sons, ou códigos, nada significam<br />
para os não-versados.<br />
Todos sabemos ligar uma aparelho de TV, entretanto<br />
um técnico em consertos saberá mais alguma coisa, já<br />
que seu modelo do aparelho é mais rico, mais abrangente<br />
e melhor coordenado em sua mente. Mas o engenheiro,<br />
projetor de aparelhos de TV, terá um mapa ainda mais<br />
detalhado, organizado e rico sobre uma televisão, do que<br />
o técnico em consertos. Nas outras atividades o mesmo<br />
ocorre.<br />
As palavras têm um significado especial para nós, porque<br />
tivemos experiências melhores ou piores, mais simples<br />
ou mais complexas com elas. Ao olharmos o dicionário,<br />
vamos encontrar apenas outras palavras, que significam<br />
262 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
coisas semelhantes, mas jamais a vivência ou experiência.<br />
Esta é crucial para o entendimento. Para obtermos experiência<br />
precisamos de tempo, talvez a vida toda, além da<br />
posse de algum talento na área onde investimos.<br />
Podemos, dessas reflexões, questionar, ao ler nos<br />
jornais notícias de que um lavrador, um empresário, uma<br />
beata, estão recebendo mensagens de Nossa Senhora ou<br />
de um ET.<br />
Como será que ela comunicou-se com eles? Como o<br />
cego? Será que a Santa aprendeu português e conseguiu<br />
captar nossas experiências culturais e sociais deste final<br />
do século XX?<br />
Imagino que ela ficará bastante confusa ao ouvir as<br />
mensagens carregadas de problemas atuais do nosso mundo,<br />
diferentes das vividas por ela numa época X ou Y de<br />
sua história e, além de tudo, formulada em outra língua.<br />
Mas, de qualquer modo, sempre há leitores interessados<br />
nesse assunto fantástico, extraordinário. Quem não tem?<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 263
o Poder do BoAto<br />
Na segunda feira, Frederico entrou na seção e, virando-se<br />
para a colega Inês, num tom de voz mais baixo que<br />
o normal, comentou admirado:<br />
— Você sabe da última? Assaltaram o chefe às 6:30<br />
da manhã de sábado. Ele estava com Raquel, aquela nova<br />
secretária. E acrescentou: - Os dois juntos numa hora dessas...<br />
só podiam estar vindo de algum motel. Você não<br />
acha?<br />
Estava criado o boato. A ”informação” preenchia todos<br />
os ingredientes necessários para seu nascimento e divulgação:<br />
o tema interessava ao grupo que o assimilava e<br />
transmitia e, além disso, ninguém podia saber com certeza<br />
o que os dois estavam fazendo, isto é, a informação era<br />
ambígua. Também o assunto “sexo” sempre atraiu e excitou<br />
as pessoas e uma informação acerca dos dois interessava<br />
ao grupo: o chefe era antipatizado por ser exigente<br />
e moralista, enquanto a secretária era invejada e odiada<br />
pela beleza e exuberância de seus dotes físicos e pelas<br />
regalias gozadas no serviço. O boato se caracteriza, quase<br />
sempre, por ter uma afirmação que não pode ser negada,<br />
nem confirmada.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 265
Os políticos são vítimas frequentes desse tipo de<br />
“informação”. Chegam-nos aos nossos ouvidos cochichos<br />
como: “Ouvi dizer que Q está transando, fora de casa, com<br />
a M”, “Você sabe que W bate frequentemente em sua mulher”,<br />
“O T enxuga feito um gambá, não consegue nem<br />
tirar a roupa do corpo”, “Faz anos que P faz uso de cocaína,<br />
só fala em público sob o efeito do pó”.<br />
A imprensa também costuma criar e divulgar boatos.<br />
Algumas revistas se mantêm quase que exclusivamente<br />
divulgando as fofocas sobre a vida dos artistas.<br />
Certos temas são mais férteis à geração de boatos.<br />
Entre eles podemos citar os crimes estranhos, bárbaros<br />
ou de origem sexual, as curas milagrosas, os escândalos<br />
sociais, as disputas eleitorais agressivas e as guerras. Uma<br />
boa parte das notícias que aparecem nas colunas sociais<br />
são rumores, que dão prazer tanto àqueles “que são notícias”<br />
como àqueles que não são.<br />
O boato age, muitas vezes, como estimulante mental<br />
como muitas drogas usadas. Tenho uma amiga perita em<br />
“acordar” grupos. Presenciei em uma reunião sua habilidade:<br />
a conversa corria morna e lenta, as pausas alongavam-se.<br />
Percebendo o desânimo dos convidados, ela fez uso do remédio<br />
milagroso. Com voz baixa e lenta, como manda o figurino,<br />
começou a falar, ao mesmo tempo que olhava para um e<br />
outro do grupo. Este, que a conhecia bem, percebeu, através<br />
dos gestos teatrais, que algo de interessante estava pronto<br />
para vir à tona. Sônia iniciou, falando espaçadamente:<br />
— Não sei se vocês conhecem a Terezinha, uma que<br />
mora no apartamento 13.001, no meu prédio, casada com<br />
aquele homem moreno, bonitão. Ela tem dois ou três filhos.<br />
Ouvi dizer, de fonte fidedigna, que ela largou o marido<br />
e já se casou de novo.<br />
Nesse ponto ela interrompeu a narração, observou<br />
sorrateiramente a expressão facial de cada um, decepcio-<br />
266 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA
nados, já que o “furo” não era tão sensacional. Ela, usando<br />
de seu traquejo de excelente transmissora de boatos, criava<br />
a frustração propositadamente. Esperou alguns instantes<br />
e completou a informação:<br />
— Sabem com quem ela se casou? Não sabem? Com<br />
a Ruth, uma loira, baixa, feiinha, telefonista da firma do<br />
ex-marido.<br />
Nesse instante o grupo despertou, o boato começava<br />
a agir. Todos, excitados, pediam mais detalhes, ou, no<br />
mínimo, a repetição do que acabavam de escutar. Sônia<br />
continuava a história, calmamente, sabendo que estava<br />
vitoriosa:<br />
— Isso mesmo, atualmente as duas estão morando<br />
juntas, lá em Lagoa Santa, há dois meses, numa casa de<br />
campo... Terezinha sempre gostou de ecologia. Segundo<br />
soube, as duas estão arrependidas de não terem tomado<br />
a decisão há mais tempo. Quem está incontrolável é o Arthur,<br />
seu marido.<br />
A partir daí, todos falavam ao mesmo tempo: uns<br />
pediam minúcias do caso, outros tinham algo semelhante<br />
para contar. Outros ainda tomavam partido, defendendo ou<br />
atacando a conduta dos envolvidos, quando o marido era<br />
acusado de ser um “banana”, permitindo que sua mulher,<br />
uma sem-vergonha, o largasse com os filhos. Cada um se<br />
identificava rapidamente com os personagens, projetando<br />
neles seus recalques, frustrações e outras mazelas.<br />
Assisti a tudo sem dizer nada. Tive a sorte de levar<br />
Sônia em casa, pois ela estava sem condução. Rimos juntos<br />
do efeito de sua fofoca e fiz alguns comentários. Entretanto,<br />
para meu espanto, ela me disse que o caso fora<br />
criado na hora. Exultante com o sucesso obtido, contoume<br />
para finalizar:<br />
— Já inventei várias histórias parecidas: não é difícil.<br />
Não existe a moradora do 13.001, nem o apartamento.<br />
BrASiLeiroS, ALertA! 267
Os personagens foram descritos de maneira vaga, que diz<br />
tudo e não diz nada. Usei uma linguagem superficial, com<br />
poucos detalhes. Com eles grande parte das pessoas se<br />
identificam.<br />
Esse tema provoca fantasias, emoções e desejos.<br />
Despertei na mente de cada um deles seus próprios boatos,<br />
mentiras, lendas, mitos e dramas particulares. Eles<br />
excitaram-se, não com minha história, mas sim com suas<br />
histórias particulares. Essa é sempre mais excitante.<br />
268 gALeno ProcÓPio m. ALVArengA