PD 18 - Fundação Astrojildo Pereira
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A necessidade da<br />
Reforma Política
<strong>Fundação</strong> <strong>Astrojildo</strong> <strong>Pereira</strong><br />
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Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF:<br />
<strong>Fundação</strong> <strong>Astrojildo</strong> <strong>Pereira</strong>, 2007.<br />
Nº <strong>18</strong>, julho de 2007<br />
202 p.<br />
1. Política. 2. Cultura. I. <strong>Fundação</strong> <strong>Astrojildo</strong> <strong>Pereira</strong>. II. Título.<br />
CDU 32.008.1 (05)<br />
Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores.<br />
Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.
Política Democrática<br />
Revista de Política e Cultura<br />
<strong>Fundação</strong> <strong>Astrojildo</strong> <strong>Pereira</strong><br />
A necessidade da<br />
Reforma Política
Sobre a capa<br />
Participando das comemorações do centenário da xilogravura,<br />
apresentamos em nossa capa e contracapa algumas<br />
criativas obras xilográficas de Francisco (Xico) Carvalho.<br />
Nascido em João Pessoa/PB, em 1949, Xico é gravador e escultor,<br />
autodidata por excelência, filho de família tradicional de<br />
gravadores do município de Itabaiana/PB.<br />
Iniciou-se em xilogravura, ainda criança, quando recebeu<br />
influência da chamada gravura popular, por meio de trabalhos<br />
de artistas populares nas capas de folhetos de cordel.<br />
Xico faz parte do grupo fundador do Clube de Gravura da<br />
Paraíba, em 1984, tendo participado de suas principais exposições<br />
coletivas.<br />
Suas obras podem ser encontradas nos acervos de galerias,<br />
museus e colecionadores de arte, no Brasil e no exterior, sendo<br />
alvo de estudo por parte de pesquisadores e artistas brasileiros<br />
e estrangeiros.<br />
Além de participar, com suas gravuras, da antologia poética<br />
do famoso poeta paraibano Leandro Gomes de Barros<br />
(Editora Universitária da UFPB, 2001), tem ilustrado livros de<br />
poesia, além de criar capas para cordéis de inúmeros autores<br />
nordestinos.<br />
Utilizando-se da Oficina Jaguaribe, aí ele tem realizado suas<br />
mais recentes experiências em cores, o que o faz integrar-se definitivamente<br />
à gravura contemporânea brasileira.<br />
Leiam, na página 165, o excelente ensaio quase crônica do<br />
seu primo, o cineasta, jornalista e também xilogravador Vladimir<br />
Carvalho, primeiro presidente da <strong>Fundação</strong> <strong>Astrojildo</strong><br />
<strong>Pereira</strong>.
Sumário<br />
I. Apresentação<br />
Cláudio Vitorino de Aguiar ........................................................................................................11<br />
II. Conjuntura – A necessidade da Reforma Política<br />
Perspectivas da reforma política<br />
Caetano Araujo ........................................................................................................................17<br />
Uma reforma sempre adiada<br />
Luiz Carlos Azedo ....................................................................................................................30<br />
Sobre o conteúdo da Reforma Política<br />
Rubens Otoni ..........................................................................................................................40<br />
III. Observatório Político<br />
O Estado Novo do PT<br />
Luiz Werneck Vianna ...............................................................................................................45<br />
Sobre o aquecimento global<br />
Sergio Augusto de Moraes ........................................................................................................54<br />
Um país (um mundo) de sinais trocados<br />
Marcos Costa Lima ..................................................................................................................62<br />
IV. No compasso das reformas<br />
Colisão de direitos fundamentais no debate sobre aborto<br />
Arryanne Queiroz .....................................................................................................................71<br />
Penas alternativas e política pública<br />
Márcia de Alencar ....................................................................................................................75<br />
Feminismo e nova esquerda: um diálogo em construção<br />
Almira Rodrigues .....................................................................................................................80<br />
V. Batalha das Idéias<br />
Uma busca inglória<br />
Iraci del Nero da Costa .............................................................................................................89
Considerações acerca de um sistema equivocado<br />
(cotas raciais nos vestibulares)<br />
Fábio Santa Cruz .....................................................................................................................95<br />
Estado Democrático & Segurança Pública<br />
Oscar d´Alva e Souza Filho ....................................................................................................108<br />
Crime, castigo, determinismo socioeconômico<br />
João Manoel Pinho de Mello .................................................................................................. 103<br />
VI. Ensaio<br />
A esquerda italiana e o reformismo no século XX<br />
Giuseppe Vacca .................................................................................................................... 111<br />
VII. Mundo<br />
Sarkozy segundo a ordem das razões<br />
Ruy Fausto ........................................................................................................................... 129<br />
ALCA: negociações, impasses e resistências<br />
Marcelo Santos ..................................................................................................................... 138<br />
A governabilidade democrática como espaço idôneo para conciliar as<br />
políticas econômicas com as políticas sociais<br />
Amália D. García Medina ...................................................................................................... 148<br />
O golpe de Gaza: a islamização está chegando<br />
Walid Salem .......................................................................................................................... 154<br />
A paz após a tomada de Gaza pelo Hamas<br />
Galia Golan .......................................................................................................................... 159<br />
VIII. Vida Cultural<br />
Folhetim da viagem (xilográfica) ao Reino do Primo Xico<br />
Vladimir Carvalho ................................................................................................................. 165<br />
IX. Documento – Ano Caio Prado Jr<br />
A revolução agrária não camponesa no Brasil<br />
Caio Prado Jr ........................................................................................................................ 171<br />
X. Memória<br />
João Saldanha<br />
Ivan Alves Filho .................................................................................................................... 179
Gramsci, 70 anos depois<br />
Gilvan Cavalcanti de Melo ............................................................................................... <strong>18</strong>2<br />
XI. Resenha<br />
O pensamento livre<br />
Luiz Bernardo Pericás ..................................................................................................... 151<br />
Presente na encruzilhada<br />
Francisco Alambert ......................................................................................................... 195<br />
Síntese de ritmos<br />
Fernando Marques .......................................................................................................... 197
I. Apresentação<br />
Cláudio Vitorino de Aguiar<br />
Pós-graduado em História pela Universidade Federal<br />
de Pernambuco, professor de História Moderna<br />
e editor-adjunto da Política Democrática
Em sua edição de nº <strong>18</strong>, Política Democrática tem como tema central<br />
o debate sobre alguns aspectos cruciais da reforma política brasileira.<br />
Os textos, alguns de caráter acadêmico, produzidos por especialistas,<br />
como o do professor da UnB, Caetano Araújo, mas também os<br />
produzidos no ‘calor da hora’, como o do jornalista Luiz Carlos Azedo,<br />
buscam levantar os elementos mais relevantes de nosso atual sistema<br />
político-partidário, destacando suas evidentes fragilidades e as dificuldades<br />
de superarmos a inércia do presente modelo.<br />
Importante destacar que as diversas contribuições referentes à reforma<br />
política, aqui publicadas, foram escritas antes que o plenário<br />
da Câmara sepultasse, mais uma vez, nova possibilidade de efetivas<br />
mudanças em nosso sistema político-eleitoral. De todo modo, <strong>PD</strong> não<br />
se furtou a destacar, por meio dos ensaios reunidos, os elementos<br />
centrais que a reforma política representa para o aprofundamento e<br />
ampliação de nosso processo democrático, e os riscos envolvidos em<br />
sua não realização.<br />
Na seção Observatório Político, chamamos especial atenção ao agudo<br />
ensaio do professor Luiz Werneck Vianna que trata do ‘Estado Novo<br />
do PT’ e seu “projeto pluriclassista” de controle do Estado, ancorado<br />
nos movimentos sociais, mormente MST e CUT, transformados em<br />
acessórios do poder realizado pelo PT no governo federal. Destaquese<br />
que a visão crítica do Governo Lula revela os profundos aspectos<br />
de uma certa concepção de esquerda que se acomodou ao papel de<br />
gerente do condomínio estatal, relevando as necessárias mudanças<br />
político-sociais em função de seu projeto de poder.<br />
Um outro artigo muito importante apresentado, na mesma seção,<br />
trata da cruciante questão ambiental. O engenheiro Sérgio Augusto<br />
de Moraes faz um pequeno levantamento histórico da questão em seu<br />
ensaio “Sobre o aquecimento global” destacando o impacto representado<br />
pelo desenvolvimento do capitalismo, a partir do século XIX, e<br />
as profundas transformações havidas na relação homem-natureza e<br />
a exacerbação dos aspectos negativos dessa relação que hoje colocam<br />
em questão a própria existência da humanidade.<br />
11
I. Apresentação<br />
De suma importância reveste-se o artigo da socióloga e feminista<br />
Almira Rodrigues sobre “Feminismo e nova esquerda: um diálogo em<br />
construção”, na seção No compasso das reformas, espaço que dedicamos<br />
às questões e temas que necessitam de novas abordagens e/ou<br />
práxis, buscando superar os impasses que persistem no plural campo<br />
da esquerda.<br />
Outro ensaio muito importante, que trazemos ao conhecimento<br />
de nossos leitores, é de autoria do professor Ruy Fausto, um dos<br />
mais importantes estudiosos do marxismo, no Brasil, autor de obras<br />
que se tornaram referência sobre o tema. Escrito originalmente em<br />
francês, o artigo comenta a vitória de Nicolas Sarkozy, nas eleições<br />
presidenciais francesas, e analisa o discurso do candidato conservador<br />
quando de sua posse. Centrando suas considerações na ‘apropriação’<br />
de temas e referências clássicas da esquerda por parte dos<br />
conservadores, aponta para as implicações teórico-políticas de tal<br />
atitude, para a compreensão dos aspectos ideológicos implícitos na<br />
luta política contemporânea.<br />
O presente número, além de conter outros artigos instigantes na<br />
seção Batalha das idéias, de que são exemplos “Uma busca inglória”,<br />
do pensador paulista Iraci del Nero da Costa e “Estado Democrático<br />
& Segurança Pública” do professor Oscar d’Alva e Souza Filho, traz,<br />
em uma nova seção, Ensaio, excepcional texto do italiano Giuseppe<br />
Vacca, intelectual que preside Gramsci e é dirigente dos Democratici<br />
de la Sinistra, no qual analisa o longo processo de discussão da<br />
esquerda reformista italiana em busca de melhor adequar-se à contemporaneidade.<br />
Destaque-se, por fim, a homenagem ao político e intelectual italiano<br />
Antonio Gramsci, maior referência teórica da esquerda democrática,<br />
nos setenta anos de sua morte, em artigo assinado por Gilvan<br />
Cavalcanti. A <strong>PD</strong> também homenageia dois brasileiros militantes, que<br />
dignificaram a política como exercício de discussão e conhecimento<br />
da realidade, bem como de transformação das condições da vida em<br />
sociedade. Comprometidos, ambos, com a luta pelo socialismo, dedicaram<br />
suas vidas, cada um à sua maneira, ao desafio de transformar<br />
uma nação marcada pelo mandonismo de suas classes dirigentes em<br />
uma nação de todo o povo, sem privilégios nem preconceitos. Referimo-nos<br />
a Caio Prado Jr. e João Saldanha.<br />
De Caio Prado relembramos, sobretudo para as novas gerações,<br />
uma curta passagem de seu livro A revolução brasileira, publicado<br />
em 1966, pela Editora Brasiliense, que trata da ‘questão camponesa’<br />
discutindo a singularidade do capitalismo brasileiro, enfrentan-<br />
12<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Apresentação<br />
do a questão teórica, e equivocada, do feudalismo e antiimperialismo<br />
sustentada então por largas parcelas do PCB. Adotando uma outra<br />
perspectiva, Caio Prado não só inovava a questão do papel do mundo<br />
agrário e sua importância no desenvolvimento do capitalismo brasileiro,<br />
como acentuava uma nova abordagem da própria reforma agrária,<br />
tida então como elemento fundamental de transformação das relações<br />
sociais no campo e de uma nova relação do mundo urbano e rural, na<br />
definição de uma nova correlação de forças políticas.<br />
Quanto a João Saldanha, em um carinhoso artigo do historiador e<br />
escritor Ivan Alves Filho, é lembrado seu percurso de formação e militância<br />
no PCB, desde sua pequena Alegrete, no interior do Rio Grande<br />
do Sul, até o Rio de Janeiro, então capital da República. Jornalista<br />
esportivo que marcou época, destacou-se como técnico de futebol por<br />
imprimir nos clubes em que atuou, inclusive na própria seleção brasileira,<br />
nas eliminatórias da Copa de 1970, um estilo marcado por uma<br />
técnica sofisticada e vigor físico, que se celebrizou como ‘as feras de<br />
Saldanha’. Como afirma o autor, “pode-se dizer que poucos jornalistas<br />
estiveram em tão profunda sintonia com a alma popular” como ele.<br />
*<br />
13
II. Conjuntura<br />
A necessidade da<br />
reforma política
Autores<br />
Caetano Araujo<br />
Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e consultor<br />
legislativo do Senado Federal.<br />
Luiz Carlos Azedo<br />
Jornalista, observador e comentarista político.<br />
Rubens Otoni<br />
Deputado federal pelo PT-GO e membro da Comissão Especial de Reforma Política que<br />
existe na Câmara Federal, desde 1995.
Histórico<br />
Perspectivas da reforma política<br />
Caetano Araujo<br />
A discussão sobre reforma política no país é repleta de singularidades.<br />
Primeiro, teve início com a Constituição de 1988. De certa<br />
maneira a nova Carta – ao invés de estipular um sistema de regras<br />
acabado – impôs a continuidade da discussão ao prever o plebiscito<br />
sobre regime e sistema de governo. Passado o plebiscito, a experiência<br />
com o funcionamento das regras, acumulada a cada eleição, estimulou<br />
o surgimento de propostas de reforma e sua discussão.<br />
Em segundo lugar, acontece em duas arenas diferentes, embora<br />
em permanente comunicação: o Congresso Nacional e a comunidade<br />
acadêmica.<br />
Em terceiro lugar, desenvolveu uma dinâmica regular. Depois de<br />
cada eleição, no início de cada governo, o tema volta à discussão. O<br />
Legislativo despende um esforço significativo na formulação e tramitação<br />
de propostas, mas a votação final em plenário é sempre obstruída.<br />
A coligação reformista, mesmo com o apoio do Executivo, não consegue<br />
aprovar a reforma. Os conservadores, por sua vez, não conseguem<br />
impedir o retorno da questão à pauta. O equilíbrio de forças que provoca<br />
esse vai-vem perdura há pelo menos 12 anos.<br />
Finalmente, o debate caracteriza-se por acumular enormes dissonâncias<br />
cognitivas e valorativas. Partidários e opositores da reforma<br />
divergem radicalmente não apenas sobre benefícios e custos das re-<br />
17
II. Conjuntura<br />
gras em discussão, na perspectiva da democracia, mas sobre questões<br />
de fato. Problemas que são importantes para uns, simplesmente não<br />
existem para outros.<br />
Mas afinal, qual o cerne da controvérsia? Quais os argumentos em<br />
jogo? Um bom começo de resposta é o exame da trajetória da discussão<br />
no Congresso Nacional.<br />
Na Legislatura 1995-1999, por inspiração da bancada governista,<br />
foram criadas comissões especiais para analisar a matéria e propor<br />
alternativas, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. A Comissão<br />
da Câmara não concluiu seus trabalhos. A do Senado, após<br />
inúmeros debates, nos quais foram ouvidos representantes do Poder<br />
Executivo, da Justiça Eleitoral e de partidos políticos, concluiu, em<br />
1998, pela apresentação de uma série de sugestões, na forma de Propostas<br />
de Emendas à Constituição e Projetos de Lei do Senado 1 .<br />
As alterações mais importantes propostas pela Comissão eram: a<br />
substituição do sistema de voto proporcional em listas abertas pelo<br />
sistema conhecido como distrital misto; a proibição de coligações nas<br />
eleições proporcionais; a instituição da fidelidade partidária, ou seja,<br />
a previsão de perda de mandato para o parlamentar que mudasse<br />
de partido ou incorresse em falta disciplinar grave; o estabelecimento<br />
de prazos mais dilatados para a filiação e o domicílio eleitoral de<br />
candidatos; o voto facultativo; o financiamento público exclusivo de<br />
campanha; e a cláusula de barreira, regra que estipulava a exclusão<br />
dos partidos, que não atingissem o desempenho mínimo, do rateio do<br />
tempo de propaganda no rádio e na televisão.<br />
O diagnóstico da Comissão, que fundamentava esse conjunto de<br />
propostas, tinha como foco a constatação da “fragilidade da vida partidária<br />
brasileira”, fruto de uma legislação que enfraqueceria os partidos,<br />
de um lado, e, de outro, reforçaria a atuação individual de personalidades,<br />
as quais tenderiam a uma situação de independência<br />
frente aos partidos.<br />
O exame do conjunto de propostas revela três problemas distintos –<br />
cuja solução era procurada –, todos eles derivados da fraqueza dos partidos<br />
e da excessiva personalização das eleições. Em primeiro lugar, a<br />
regra produziria, na avaliação da Comissão, um problema de representatividade.<br />
Haveria uma separação radical entre o período de campanha<br />
1 Importa lembrar que além dos projetos de reforma amplos, resultado dos trabalhos<br />
dessas comissões, deputados e senadores apresentaram, constantemente, um<br />
número expressivo de propostas pontuais de alteração das regras eleitorais e partidárias<br />
ao longo do período. Em 2004, Santos (2004) localizou 266 proposições em<br />
tramitação sobre reforma política.<br />
<strong>18</strong><br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Perspectivas da reforma política<br />
e eleição e o período posterior à posse dos eleitos, ao ponto de as ações<br />
dos representantes ganharem autonomia absoluta frente às intenções<br />
dos representados. Em outras palavras, os votos dos eleitores teriam<br />
conseqüências por ele não previstas e até mesmo indesejadas.<br />
O exemplo mais claro de distorção da vontade do eleitor é a migração<br />
de cerca de um terço dos deputados para outras legendas no decorrer<br />
de seus mandatos. O movimento ocorre, basicamente, de partidos<br />
da oposição para partidos da situação e ganha em intensidade nos<br />
meses posteriores à eleição de um novo presidente. Esse fato ganha<br />
em significação quando constatamos que muito poucos deputados<br />
conseguem sua eleição exclusivamente com os próprios votos. Quase<br />
todos dependem dos votos dados a seus partidos e coligações. A mudança<br />
de partido afeta, portanto, não apenas os eleitores do deputado<br />
migrante, mas todos os eleitores do seu partido. Todos contribuíram<br />
para a eleição do deputado, numa campanha articulada com as siglas<br />
e candidaturas identificadas com a oposição e todos serão representados<br />
nos quatro anos seguintes por um deputado da situação.<br />
A liberdade de coligação no sistema de voto proporcional com listas<br />
abertas é vista como um mecanismo adicional de distorção da vontade<br />
do eleitor. Nesse sistema, o cidadão sabe em quem vota, mas não sabe<br />
a quem elegerá. Pode ser outro candidato menos votado do mesmo<br />
partido, mas a liberdade de coligação permite que seja um candidato<br />
de outro partido, até mesmo de um partido situado em campo oposto<br />
na política nacional, embora coligado no plano local. Para citar um<br />
exemplo extremo: votos dados a uma campanha “pacifista”, centrada<br />
no controle da circulação e do uso de armas de fogo, podem, a depender<br />
do arranjo da coligação local, eleger um candidato “belicista”,<br />
defensor do direito irrestrito ao porte de armas, da redução da maioridade<br />
penal, da pena de morte.<br />
Para enfrentar o problema da representatividade, a Comissão propôs<br />
a mudança do sistema eleitoral, a proibição de coligações nas<br />
eleições proporcionais e a instituição da fidelidade partidária, para<br />
impedir a mobilidade de parlamentares entre os partidos.<br />
Em segundo lugar, a regra teria o efeito de criar condições de competição<br />
desigual entre os candidatos. No ambiente de eleições por ela<br />
criado, o peso do poder econômico estaria livre para atuar e influir<br />
decisivamente no resultado das eleições. Haveria necessidade de uma<br />
nova regra que assegurasse, ao mesmo tempo, eqüidade e transparência<br />
no financiamento das campanhas. A Comissão terminou, como<br />
vimos, por propor o financiamento público exclusivo de campanha.<br />
19
II. Conjuntura<br />
O terceiro problema alvo das propostas da Comissão refere-se à governabilidade,<br />
ou seja, às possibilidades de o Executivo construir uma<br />
sólida maioria no Congresso, capaz de garantir o apoio indispensável<br />
à consecução de sua agenda. Na situação presente, a governabilidade<br />
seria ameaçada, simultaneamente, pelo excesso de partidos e por sua<br />
fraqueza. Muitos partidos tornam complicadas as negociações para a<br />
formação da maioria. Partidos fracos tornam-nas insuficientes, uma<br />
vez que frações e grupos intrapartidários têm a capacidade de reivindicar<br />
uma negociação adicional em separado. Na visão da Comissão,<br />
a redução do número de partidos seria obtida com a cláusula de barreira,<br />
e seu fortalecimento, com a mudança do sistema eleitoral e com<br />
a fidelidade partidária.<br />
Ao final da legislatura, em 31 de janeiro de 1999, todas as proposições<br />
originadas da Comissão foram arquivadas. Na legislatura seguinte,<br />
as lideranças dos partidos da base governista decidiram alterar<br />
sua estratégia. Como a mudança radical, em bloco, havia-se revelado<br />
de difícil aceitação, o caminho adequado seria a mudança paulatina,<br />
com ênfase nas mudanças passíveis de serem apresentadas na forma<br />
de projeto de lei. Como resultado dessa estratégia, diversos projetos<br />
foram aprovados pelo Senado Federal e encaminhados à Câmara dos<br />
Deputados. Os mais importantes foram: a proibição de coligações nas<br />
eleições proporcionais, a cláusula de barreira, a criação da federação<br />
de partidos, o voto proporcional em listas fechadas e o financiamento<br />
público exclusivo de campanhas.<br />
No início de 2002, a reforma política voltou à pauta do Congresso<br />
Nacional, mais uma vez por inspiração dos partidos governistas. Nova<br />
Comissão com essa finalidade foi formada na Câmara dos Deputados,<br />
e seu relatório foi apresentado pela Comissão ao final do ano. Os projetos<br />
aprovados pelo Senado na legislatura anterior tiveram influência<br />
significativa nas conclusões da Comissão.<br />
O diagnóstico, de início, foi em tudo semelhante. Os problemas<br />
cruciais do sistema eleitoral brasileiro foram assim apresentados no<br />
relatório: “a deturpação do sistema eleitoral causada pelas coligações<br />
partidárias nas eleições proporcionais; a extrema personalização do<br />
voto nas eleições proporcionais, da qual resulta o enfraquecimento<br />
das agremiações partidárias; os crescentes custos das campanhas<br />
eleitorais, que tornam seu financiamento dependente do poder econômico;<br />
a excessiva fragmentação do quadro partidário; e as intensas<br />
migrações entre as legendas, cujas bancadas no Legislativo oscilam<br />
substancialmente ao longo das legislaturas”.<br />
20<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Perspectivas da reforma política<br />
As principais propostas de mudança contemplavam a instituição<br />
do voto em listas partidárias pré-ordenadas, a criação das federações<br />
partidárias, o financiamento público exclusivo de campanha e a cláusula<br />
de barreira. As principais diferenças em relação à proposta original<br />
do Senado foram a opção pelo voto em listas fechadas e a criação<br />
da figura da federação partidária, como meio de atenuar a proibição<br />
de coligações nas eleições proporcionais. Com a federação, a coligação<br />
eleitoral deve ser mantida após as eleições por um período mínimo de<br />
três anos. Mesmo essas diferenças, no entanto, constavam de projetos<br />
encaminhados anteriormente pelo Senado.<br />
O projeto da Comissão enfrentou forte resistência, principalmente<br />
entre partidos da base governista. Pronto para ir a plenário, foi<br />
encaminhado à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, cuja<br />
manifestação foi solicitada por requerimento assinado pelos líderes do<br />
PTB, PP, PL e PMDB, aos quais se somou, no último momento, o líder<br />
do PT. A manobra protelatória foi resultado evidente da pressão dos<br />
demais partidos sobre o governo. Nessa situação, a opção foi sacrificar<br />
os esperados benefícios futuros da reforma em prol da manutenção da<br />
base de apoio presente na Câmara e no Senado.<br />
Na última década, portanto, a discussão da reforma política nas<br />
duas Casas do Congresso Nacional apresentou uma linha de continuidade<br />
clara, em termos de diagnóstico, argumentos e propostas de<br />
mudança. Apesar disso, as propostas não prosperaram. É preciso,<br />
portanto, qualificar os campos políticos separados pelas propostas de<br />
reforma. Quem apoiou a reforma, reiteradamente, na década que passou?<br />
Quem a ela se opôs?<br />
Parece claro, de início, o interesse do Poder Executivo na promoção<br />
das mudanças. Vimos que essa foi uma preocupação constante<br />
das lideranças do governo Fernando Henrique Cardoso, assim como<br />
do Presidente Lula, no primeiro ano de seu governo. Em segundo lugar,<br />
parece igualmente claro que as iniciativas reformistas conseguem<br />
aprovação nas Comissões criadas para esse fim e fracassam na tentativa<br />
de chegar ao plenário. Ou seja, as forças da conservação da regra<br />
fazem-se ouvir no momento da decisão final.<br />
Qual o critério a dividir os partidos nessa questão? A dicotomia<br />
situação/oposição não parece útil, uma vez que, no atual governo<br />
e no anterior, havia situacionistas e oposicionistas nos dois lados<br />
da questão. Uma suposta polarização ideológica tampouco parece<br />
eficiente para compreender a situação, pois partidos e parlamentares<br />
de direita e de esquerda, qualquer que seja a definição utili-<br />
21
II. Conjuntura<br />
zada, encontram-se igualmente entre os apoiadores e os opositores<br />
da reforma.<br />
A posição dos partidos no episódio do requerimento que evitou a<br />
votação em plenário do projeto de reforma da Câmara é um bom indicador<br />
da divisão que vigora nessa questão 2 . No primeiro momento,<br />
fora do requerimento, ou seja, favoráveis à reforma, estavam PSDB,<br />
PT, PFL, PSB, <strong>PD</strong>T e PPS. Assinavam o requerimento, ou seja, pretendiam<br />
obstruir a reforma, PMDB, PTB, PP e PL. Qual o traço comum<br />
a esses partidos em cada um dos campos? A meu ver, a relação com<br />
o Poder Executivo. Partidos favoráveis à reforma haviam apresentado<br />
ou trabalhado, nas eleições anteriores, candidaturas a Presidente<br />
da República. Partidos contrários à reforma não haviam cogitado em<br />
candidatos próprios a presidente. No máximo ofereceram candidaturas<br />
a vice-presidente. Um grupo de partidos, portanto, argumentava<br />
a partir da perspectiva de Executivo, ou seja, da posição de quem demanda<br />
apoio no Legislativo. Outro grupo descartava essa perspectiva<br />
e encarava a questão do ponto de vista de quem oferta esse apoio.<br />
As mesmas propostas eram vistas por um grupo como fortalecimento<br />
dos partidos e avanços democráticos; para outros, como a ditadura<br />
ilegítima de burocracias partidárias sobre mulheres e homens “bons<br />
de voto”.<br />
Argumentos, contra-argumentos e vazios no debate<br />
Uma segunda questão diz respeito ao peso dos argumentos que<br />
cada lado levanta. É digno de nota o fato de diagnóstico, argumentos<br />
e propostas de mudança, tal como formulados no âmbito do Congresso<br />
Nacional, serem objeto de polêmica também acirrada fora dele.<br />
Cientistas políticos, assim como outros acadêmicos e analistas, têmse<br />
manifestado repetidamente sobre o tema, como mostra a série de<br />
coletâneas publicadas nos últimos anos especificamente sobre reforma<br />
política (FUNDAÇÃO KONRAD ADENAUER, 2003; BENEVIDES,<br />
VANUCHI e KERCHE, 2003; SOARES e RENNÓ, 2006; ANASTÁSIA e<br />
AVRITZER, 2006), sua temática geral (AVELAR e CINTRA, 2004), assim<br />
como artigos isolados (COELHO, 2006). A divergência sobre todas<br />
as propostas aqui relatadas é profunda e não se restringem à oportunidade<br />
das medidas ou ao caminho da transição para elas: diverge-se<br />
sobre o diagnóstico dos problemas, a necessidade das medidas e até<br />
sobre seu caráter democrático ou autoritário. Antes de recapitular su-<br />
2 Coelho (2006) discute o histórico do projeto de reforma da Câmara dos Deputados e a<br />
posição dos diferentes partidos sobre ele.<br />
22<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Perspectivas da reforma política<br />
cintamente os argumentos de cada parte, vale assinalar uma primeira<br />
lacuna no debate.<br />
Lacuna 1: a posição dos atores políticos a respeito da reforma,<br />
posição que, como vimos, mantém uma relativa regularidade nos últimos<br />
12 anos, tende a não ser considerada.<br />
Diversos autores tendem, em medida diversa, a subestimar as<br />
razões desses partidos e parlamentares, ao invés de considerá-las<br />
parte do problema, um dado a ser incluído na pesquisa. Assim, os<br />
defensores do predomínio completo do Executivo sobre o Legislativo,<br />
da Mesa e das lideranças sobre os parlamentares têm dificuldade<br />
em lidar com o evidente interesse do Executivo nas reformas. Esse<br />
interesse precisa, nessa perspectiva, ser ignorado ou desqualificado<br />
como uma espécie de ambição ditatorial de presidentes que já detém<br />
todo o poder possível.<br />
Do outro lado, autores que partilham das críticas comuns ao sistema<br />
e encampam propostas de reforma não refletem sobre o caráter da<br />
resistência conservadora, assimilada implicitamente à sobrevivência<br />
de padrões arcaicos da política brasileira.<br />
Em ambos os casos, o problema parece estar na tendência à inserção<br />
do cientista no debate no mesmo plano que os demais atores.<br />
A questão de quem defende qual ponto perde importância face à comparação<br />
entre as propostas apresentadas e os modelos normativos de<br />
democracia implícitos nas considerações de cada autor.<br />
Retornemos aos argumentos. Os três grandes problemas do sistema,<br />
tal como apontados pelos reformistas, valem como roteiro dessa discussão,<br />
uma vez que todas as propostas partem desse diagnóstico: representatividade,<br />
eqüidade na competição eleitoral e governabilidade.<br />
Há um problema de representatividade no sistema político brasileiro?<br />
A migração partidária ao sabor da conveniência eleitoral de cada<br />
parlamentar resulta, como visto, numa Câmara dos Deputados muito<br />
diferente daquela que saiu das urnas (Santos, 2006). Na prática, a intenção<br />
de voto oposicionista de milhões de eleitores é convertida, sem<br />
consentimento ou aviso prévio, em apoio ao governo. Defensores da<br />
regra, por sua vez, podem argumentar que a troca de partidos é feita<br />
às claras, sob as vistas dos eleitores, que, ao cabo de quatro anos, irão<br />
avaliar esses parlamentares e punir com a recusa do voto aqueles que<br />
não tenham correspondido a suas expectativas.<br />
Na verdade, mais importante que discutir as opiniões e posições<br />
favoráveis e contrárias seria tentar verificar o que pensam os próprios<br />
eleitores acerca do sistema. Poucas pesquisas de opinião perguntam<br />
23
II. Conjuntura<br />
especificamente sobre a troca de partidos e a questão do pertencimento<br />
do mandato. Muitas, inclusive aquelas produzidas e divulgadas pelo<br />
Latinobarómetro, registram, ano a ano, a avaliação desfavorável dos<br />
eleitores brasileiros sobre a política e seus representantes. De modo<br />
geral, a política é mal-vista e, no seu mundo, a visão sobre Legislativo,<br />
partidos e parlamentares é ainda mais negativa que aquela sobre o<br />
Executivo. É difícil deixar de levantar a hipótese de que essa percepção<br />
amplamente majoritária tem forte relação com as evidências cotidianas<br />
de inconseqüência do voto dado.<br />
Lacuna 2: a literatura discute a massa de dados acumulada sobre<br />
descrédito da política e dos políticos a partir da hipótese de insatisfação<br />
com a democracia, sem testar a hipótese de insatisfação com a<br />
regra da representação.<br />
A linha predominante, desde o trabalho de Moisés (1995), aponta<br />
para a fragilidade da cultura democrática no Brasil 3 . O trabalho com<br />
a hipótese alternativa permitiria separar o que nos dados se deve a<br />
um suposto déficit em cultura democrática do que poderia ser uma<br />
demanda reprimida por reforma política.<br />
Há um problema de eqüidade nas condições de competição eleitoral?<br />
Em outras palavras, o peso do poder econômico seria, entre nós,<br />
muito superior ao verificado em outros países? Há evidência forte nesse<br />
sentido. O cientista político David Samuels (2003 a e b) comparou<br />
os gastos eleitorais declarados no Brasil e nos Estados Unidos, na<br />
década de 1990. A soma dos gastos de todos os candidatos foi igual ou<br />
superior no Brasil, em torno dos U$ 3,5 bilhões. A leitura desse dado<br />
exige algumas considerações. Em primeiro lugar, vivia-se na época<br />
uma quase paridade entre as moedas real e dólar, paridade que pode<br />
ter inflacionado os gastos brasileiros. No entanto, é preciso ver que<br />
os gastos americanos incorporavam a compra de tempo de televisão,<br />
assegurado gratuitamente no Brasil, além da campanha nas prévias,<br />
mecanismo que não existe entre nós. O desconto desses dois fatores<br />
nos gastos americanos faria aumentar em muito a diferença em favor<br />
do Brasil. Finalmente, se o gasto for relacionado à população, ao número<br />
de eleitores ou ao montante do PIB, muito menores no Brasil,<br />
nossa vantagem aumentaria ainda mais.<br />
Tudo isso com relação aos gastos declarados. Sabemos, no entanto,<br />
que a prática da subnotificação de gastos é comum nas eleições<br />
brasileiras, onde é conhecida como caixa 2. Variam muito as estimativas<br />
dos gastos não declarados no Brasil, entre duas e oito vezes o<br />
3 Santos (2000) e Araújo (2000) discutem as características da cultura política brasileira<br />
a partir de pesquisa realizada no Distrito Federal.<br />
24<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Perspectivas da reforma política<br />
montante dos gastos declarados. Os poucos indícios que vêm a público<br />
apontam em favor da diferença maior. Vimos recentemente a<br />
divulgação na imprensa de gravações telefônicas em que um deputado<br />
recém-eleito declarava gastos de R$ 5 milhões, apenas 8% da quantia<br />
oficialmente assumida. Em todo caso, é razoável supor que o caixa 2<br />
no Brasil seja superior ao norte-americano, o que faria pender a comparação<br />
dos gastos ainda mais a nosso favor.<br />
Quais as razões de as eleições no Brasil serem tão caras? A primeira<br />
delas deriva diretamente da regra eleitoral. No sistema de voto proporcional<br />
em listas abertas, cada candidato torna-se o centro de uma<br />
campanha autônoma, em competição aberta com candidatos de partidos<br />
adversários e, principalmente, com candidatos do próprio partido,<br />
com quem disputa o voto na mesma faixa de opinião. Cada candidato,<br />
portanto, é um centro de arrecadação de recursos e gastos de campanha.<br />
Os partidos, por sua vez, são estimulados pela regra a lançarem<br />
o maior número de candidatos possível, para aumentar o percentual<br />
de votos a conseguir e, com ele, o número de cadeiras. Temos cerca de<br />
20 partidos registrados, e cada qual pode apresentar um número de<br />
candidatos igual a 1,5 vezes o número de vagas em disputa. As coligações<br />
diminuem esse número, mas, em compensação podem apresentar<br />
ainda mais candidatos. Para simplificar, vamos supor que não se<br />
formem coligações. O número total máximo de candidatos à Câmara<br />
dos Deputados seria, nessa situação de 513 x 1,5 x 20, ou seja, de<br />
15.390 candidatos.<br />
A segunda razão é o tamanho das circunscrições eleitorais. Um número<br />
grande de candidatos compete em circunscrições (as unidades da<br />
Federação) extensas e populosas. Qualquer unidade adicional de recursos<br />
de campanha permite a ampliação da campanha para um município<br />
novo e pode produzir os votos determinantes para a vitória.<br />
Sistemas eleitorais alternativos, por comparação, tendem a produzir<br />
eleições mais baratas. No voto proporcional com listas fechadas,<br />
a unidade da campanha, de arrecadação de recursos, portanto, é o<br />
partido, não o candidato. No nosso caso teríamos, no máximo, 20 listas<br />
por estado. No voto distrital, as circunscrições são menores e há,<br />
também, apenas um candidato por partido.<br />
A relação entre custos de campanha e sistema eleitoral levou as<br />
Comissões da Câmara e do Senado a proporem o financiamento público<br />
com a mudança da regra eleitoral. Na vigência da regra atual,<br />
o financiamento público seria insuficiente e tenderiam a ser eleitos<br />
aqueles candidatos que aceitassem o expediente do caixa 2.<br />
25
II. Conjuntura<br />
Lacuna 3: o esforço de pesquisa tem ignorado a questão da lógica<br />
dos gastos eleitorais.<br />
É verdade que há boas razões para tanto. Candidatos e partidos<br />
não falam sobre caixa 2 e poucos países exigem o registro de doações<br />
e gastos eleitorais. O foco da discussão, portanto, tem sido o financiamento<br />
e não o custo das campanhas. Apesar disso, contudo, pesquisas<br />
podem ser realizadas. Um exemplo de especulações antagônicas:<br />
Samuels sugere que o sistema distrital produziria campanhas mais<br />
caras, uma vez que a restrição do universo de eleitores e a competição<br />
acirrada estimulariam o investimento eleitoral sem limites. Alternativamente,<br />
poder-se-ia argumentar que a restrição do universo de eleitores<br />
faria decair o patamar a partir do qual a unidade de investimento<br />
passaria a produzir resultados eleitorais decrescentes. No distrito, ao<br />
contrário do que ocorre no Brasil, o candidato que produzir 20 peças<br />
de propaganda por eleitor não terá condições maiores de vitória que<br />
aquele que, por exemplo, produzir 5.<br />
Finalmente, vamos ao problema da governabilidade. Neste ponto,<br />
a polêmica é ainda mais acirrada. Afinal, o presidente da República<br />
encontra ou não problemas na formação e manutenção de sua base de<br />
apoio no Congresso Nacional?<br />
Há todo um leque de respostas a essa pergunta. Nos pólos, os<br />
argumentos extremos que afirmam, de um lado, a virtual impossibilidade<br />
de formação de maioria a um custo aceitável, na linha das<br />
conclusões das diversas Comissões encarregadas da questão da reforma<br />
política, e, de outro, a eficiência do sistema, do ponto de vista da<br />
formação da maioria governista, em função dos poderes do presidente<br />
da República combinados com as regras de funcionamento das Casas<br />
do Congresso Nacional.<br />
No meio acadêmico, Barry Ames representaria a posição de crítica<br />
mais contundente ao sistema político brasileiro, sob esse aspecto<br />
(apud RENNÓ, 2006). Na sua visão, Poder Executivo e líderes dos<br />
partidos governistas encontram-se na posição de procurar, constantemente,<br />
o apoio dos parlamentares para a agenda do governo. Esse<br />
apoio é obtido pontualmente, muitas vezes caso a caso, em troca de<br />
liberação de emendas orçamentárias e de cargos no governo. O sistema<br />
consumiria um esforço significativo para apresentar resultados<br />
pífios em termos de mudança. O grande exemplo seria o governo de<br />
Fernando Henrique Cardoso que, a despeito de contar com uma base<br />
de apoio formal de até 70 % da Câmara dos Deputados, teve enorme<br />
dificuldade na aprovação de sua agenda de reformas.<br />
26<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Perspectivas da reforma política<br />
No outro extremo encontra-se a posição de diversos cientistas políticos<br />
brasileiros de peso (LIMONGI, 2006). Para eles, os dados disponíveis<br />
mostram que o Congresso Nacional não constitui empecilho<br />
algum para a aprovação da agenda do governo. A grande maioria da<br />
legislação aprovada é de iniciativa do Executivo e cerca de 70 % de<br />
suas propostas são aprovadas. Raros são os casos de rejeição pelo<br />
legislativo de propostas do Executivo. Conclusão: as coalizões partidárias<br />
de apoio ao governo existem e funcionam; os parlamentares<br />
seguem disciplinadamente as orientações de seus líderes; o sistema<br />
assemelha-se ao parlamentarismo e funciona tão bem quanto<br />
os melhores de seus exemplos; a reforma política, portanto, não é<br />
necessária.<br />
As duas posições dão ênfase, como assinala Rennó, a elementos<br />
diferentes do sistema político. Os críticos assinalam os elementos descentralizadores,<br />
a multiplicação de atores dotados de capacidade de<br />
veto, o custo do apoio conseguido, a necessidade de renovar esse apoio<br />
em diferentes momentos, o poder dos parlamentares de direcionar o<br />
conteúdo das propostas originadas do Executivo e de impor sobre ele<br />
seu poder de veto. Aqueles que afirmam o bom funcionamento do presidencialismo<br />
no Brasil, por sua vez, enfatizam seus elementos centralizadores,<br />
os poderes do presidente, a centralização na organização<br />
dos trabalhos das Casas do Congresso, ou seja, o poder da Mesa e dos<br />
líderes na formação da pauta. Observam o resultado e não questionam<br />
os meios utilizados para chegar a eles. Nas palavras de Limongi<br />
(2006): “A aprovação dos projetos presidenciais é fruto do apoio sistemático<br />
e disciplinado de uma coalizão partidária”, uma vez que “parlamentares<br />
seguem as orientações de seus líderes”.<br />
Outras lacunas aparecem nessa discussão. Do ponto de vista daqueles<br />
que enfatizam as dificuldades da formação da coalizão governamental,<br />
seu custo político, que levam a sério, portanto, o discurso<br />
reformista do Poder Executivo, o ponto a ser explicado é a situação<br />
pré-1964.<br />
Lacuna 4: dada a mesma regra eleitoral, como explicar a passagem<br />
da situação de indisciplina partidária para a de disciplina atual?<br />
Ou seja, se a alegada concentração de poderes nos líderes, decorrente<br />
de mudanças no funcionamento interno do Legislativo não<br />
explica a mudança, que outro fator a explicaria?<br />
Uma possibilidade de investigação reside em outra mudança, posta<br />
pela Constituição de 1988: o voto do analfabeto. Lembro que em 1945<br />
participaram da eleição 6 milhões de eleitores, 13% da população. Em<br />
1960, foram 15,5 milhões de eleitores ou 22% do total. Hoje temos<br />
27
II. Conjuntura<br />
120 milhões de eleitores sobre <strong>18</strong>8 milhões de habitantes, ou seja<br />
63% do total. No interregno democrático anterior a 1964, a maioria do<br />
eleitorado vivia no campo e tinha seu voto sujeito às redes de clientela<br />
locais. O eleitorado urbano era pequeno e exigia pouco investimento<br />
eleitoral relativo dos candidatos ao Legislativo vencedores. Hoje, a<br />
maioria do eleitorado é urbana e pode escolher o objeto de seu voto ou<br />
engajamento 4 . Em síntese, para se elegerem, deputados não precisavam,<br />
antes de 1964, de controle sobre cargos, liberação de emendas,<br />
acesso a verbas outras, ou seja da benevolência do Executivo, com a<br />
premência de hoje.<br />
Se essa perspectiva demonstrar algum fundamento nos dados,<br />
teríamos uma situação interessante: avanços democráticos inegáveis,<br />
como o fim da imposição do bipartidarismo e o sufrágio universal,<br />
revelam vulnerabilidades do sistema eleitoral não percebidas na<br />
situação anterior.<br />
Por outro lado, na perspectiva dos que defendem a facilidade do<br />
Executivo, os pontos a explicar são outros.<br />
Lacuna 5: como é possível que os líderes consigam controlar os<br />
votos dos liderados e simultaneamente não consigam controlar a permanência<br />
desses liderados no partido?<br />
Qual a força desses partidos que age seletivamente e deixa escapar<br />
o principal, ou seja, a manutenção dos deputados na sigla? A<br />
hipótese alternativa seria a força de gravidade do governo, que acionaria<br />
o remanejamento partidário e alocaria os novos apoiadores em<br />
partidos do governo. Nessa linha, deputados não apóiam o governo<br />
porque recebem incentivos de seus líderes, mas recebem incentivos<br />
do governo para deslocar-se para aquela sigla ou nela permanecer e<br />
votar com os líderes.<br />
Lacuna 6: qual a importância dos incentivos nas mãos dos líderes,<br />
tais como participação em comissões e relatorias de projetos, num<br />
quadro de amnésia eleitoral comprovada do brasileiro?<br />
Ou seja, quando o eleitor não se recorda do nome do seu candidato<br />
(ALMEIDA, 2006), como iria se lembrar de projetos por ele apresentados,<br />
relatados ou de sua participação em comissões?<br />
4 A título de ilustração: Marco Antônio Coelho, militante desconhecido do PCB, elegeu-se<br />
deputado federal pela Guanabara, em 1962, pelo PST, em coligação com o<br />
PSD. A campanha durou apenas 15 dias e foram usados 300 mil exemplares de um<br />
único panfleto. Marco Antônio conseguiu 22 mil votos e conquistou a segunda vaga<br />
da coligação. O ponto é este: se o patamar de votos necessários à eleição é esse,<br />
candidatos que não contam com meios de campanha adicionais fornecidos pelo<br />
executivo permanecem competitivos.<br />
28<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Perspectivas da reforma política<br />
Este artigo procurou mapear a discussão sobre reforma política,<br />
num momento em que a questão ganha atualidade, com a votação na<br />
Câmara dos Deputados das propostas apresentadas pela Comissão<br />
Especial. Mais uma vez, as propostas caminham para a derrota. Uma<br />
vez que os problemas do sistema não dão sinal algum de solução, é de<br />
se prever o reinício do ciclo, com a discussão e votação no médio prazo<br />
de uma nova leva de propostas, talvez com foco na linha que aparenta<br />
encontrar menor resistência entre deputados e senadores: ao invés<br />
das listas fechadas, alguma forma de voto distrital misto.<br />
*<br />
29
II. Conjuntura<br />
30<br />
Uma reforma sempre adiada 1<br />
Luiz Carlos Azedo<br />
Deputados e senadores da República devem uma resposta à sociedade.<br />
Por que os escândalos envolvendo desvio de recursos<br />
da União, dos estados e municípios quase sempre são protagonizados<br />
por parlamentares? É uma pergunta que se repete a cada<br />
legislatura e nunca é respondida. E arrasta para a lama os políticos,<br />
os partidos e a política propriamente dita.<br />
É óbvio que isso não é bom para a democracia. Quem mais<br />
perde com a desmoralização do Congresso e o desgaste do Judiciário<br />
– obrigado a desagradar à opinião pública para assegurar<br />
o princípio da presunção da inocência – é a própria sociedade.<br />
Nada garante também que o Executivo funcionará melhor com a<br />
desmoralização da política. Acabará tutelado pelo Ministério Público,<br />
devassado pela Polícia Federal. O “guardião”, moderno sistema<br />
digital de espionagem eletrônica, é capaz de grampear simultaneamente<br />
centenas de ligações telefônicas e mensagens pela<br />
internet, mas não substitui o sistema político representativo.<br />
O velho patrimonialismo brasileiro, descrito por Sérgio Buarque<br />
de Holanda em Raízes do Brasil, por mais arraigado que esteja no<br />
comportamento dos políticos, tem dias contatos. Não só pelo fato<br />
de que vivemos numa sociedade mais moderna, sob uma ordem<br />
política democrática. Mas também pela conjugação de outros três<br />
fatores: os novos meios de comunicação, que desnudam a atuação<br />
dos políticos em tempo real; os recursos tecnológicos disponíveis<br />
para o controle financeiro e fiscal, que fazem a arqueologia dos desvios<br />
de recursos públicos; e o surgimento de instituições capazes de<br />
defender o Estado com certa eficácia, como a Controladoria Geral<br />
da União, a Receita Federal, a Polícia Federal e, sobretudo, o Ministério<br />
Público.<br />
Por que, então, o velho patrimonialismo é tão atual, com sua legião<br />
de “homens cordiais”, que perambulam pelo Congresso, finan-<br />
1 Colagem de artigos publicados no jornal Correio Braziliense, com expressa permissão<br />
do seu autor. Em dois momentos em que se eliminam algumas palavras a editoria<br />
utiliza (...) já que se referem a fatos datados.<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Uma reforma sempre adiada<br />
ciam campanhas e mimam os políticos? A cultura política brasileira<br />
do pós-guerra, cujo ápice foi o glamour do governo “bossa nova” de<br />
Juscelino Kubitschek, foi resultado de um jogo de oposições e contrastes,<br />
que parecia impedir o dogmatismo e promover soluções mais<br />
dialéticas. Mas desaguou na crise de 1964, no regime militar. Agora,<br />
mais de vinte anos depois da eleição de Tancredo Neves, esse legado<br />
exige uma apreciação crítica para separar o joio do trigo. Porque a cultura<br />
política brasileira ainda hoje busca sua identidade naqueles anos<br />
1950. É o flerte com o populismo, o desenvolvimentismo e o transformismo<br />
patrimonialista, a partir da simbiose entre negócios, atividade<br />
parlamentar e gestão administrativa. Não há a menor chance de isso<br />
dar certo, pois se trata de um padrão esgotado, que prende o país ao<br />
passado e ao atraso.<br />
É por isso que a atual legislatura (...) está na berlinda. Outro escândalo<br />
envolve os políticos com desvio de recursos públicos, superfaturamento<br />
e fraudes. As investigações se assemelham à pesca com<br />
tarrafa. É só esperar o cardume e jogar a rede, que vem de tudo, do<br />
badejão ao peroá. Agora, para o cidadão, quase todos os políticos são<br />
suspeitos, até que se prove o contrário. A culpa é deles mesmos, que<br />
construíram um sistema de financiamento de campanha eleitoral viciado,<br />
onde a eleição depende de “estruturas”, de contratos e obras. É<br />
legítimo que parlamentares disputem posições de mando no Executivo<br />
e fatias dos orçamentos da União, dos estados e dos municípios para<br />
beneficiar seus eleitores. Mas não é legítimo que o façam para aparelhar<br />
e o serviço público financiar suas campanhas, pagar as velhas<br />
dívidas eleitorais. Muito menos para formar patrimônio e enriquecer.<br />
Para sair momentaneamente da berlinda, os políticos costumam<br />
cortar na própria carne. Basta escolher o colega com mais cara de mau<br />
para a degola. Mas isso não resolve o problema. Outros escândalos<br />
surgirão, enquanto outros esquemas existirem. É só jogar a tarrafa,<br />
que eles aparecem. A resposta a ser dada à sociedade é uma reforma<br />
política que fortaleça os partidos, melhore a qualidade da representação<br />
e garanta o financiamento público das campanhas mais baratas.<br />
A outra alternativa seria a solução americana: quem quiser misturar<br />
negócios com a política tem que fazer tudo às claras e, depois, enfrentar<br />
as conseqüências eleitorais de servir a determinadas empresas e<br />
não ao bem comum dos cidadãos.<br />
É a luta pelo poder<br />
Por que a reforma política, (...) não começa logo a ser votada? A<br />
resposta é simples: porque mexe com as estruturas de poder, ou me-<br />
31
II. Conjuntura<br />
lhor, com a forma pela qual se estrutura nossa ordem democrática. E<br />
esse é um problema complexo, ainda mais no Brasil, onde a vida republicana<br />
teve pelo menos duas grandes interrupções (a revolução de 30,<br />
que gerou o Estado Novo; e o golpe de 1964, que manteve os militares<br />
no poder por duas décadas). No caso atual, a reforma política tem dois<br />
aspectos complicados, um aberto e outro velado.<br />
A questão mais transparente em discussão na Câmara é o sistema<br />
eleitoral. Fidelidade partidária, financiamento público de campanha e<br />
fim das coligações são temas relativamente simples, mas que perdem<br />
qualquer sentido estruturante sem a alteração do nosso sistema de<br />
eleições proporcionais com votação nominal. É uma mudança difícil<br />
por causa da tradição eleitoral brasileira, que vem do Império. As mudanças<br />
nas eleições proporcionais, gradativas ao longo do tempo, não<br />
alteraram o fundamental: o voto é no candidato; o voto das legendas<br />
serve apenas para a distribuição das vagas entre os partidos.<br />
A introdução do voto distrital é uma revolução na política brasileira<br />
porque radicaliza o voto no candidato, pelo sistema majoritário,<br />
como uma eleição de senador num colégio eleitoral menor. Mas poderá<br />
colocar em xeque a eleição da maioria dos atuais deputados. Por isso,<br />
votar a reforma é mais ou menos como chamar o peru para a ceia de<br />
Natal. Hoje, funciona a lei de Murici: cada um cuida de si. A escolha<br />
do partido e do cargo a ser disputado é um cálculo eleitoral. Por isso, é<br />
tão comum um deputado federal disputar a eleição de prefeito sabendo<br />
que vai perder, para ter chance de se reeleger; ou senador concorrer<br />
ao governo do estado e pagar mico com o mesmo objetivo. O trocatroca<br />
de partido também é determinado pelo problema eleitoral, muito<br />
mais do que por nomeações no governo (mesmo quando o sujeito deixa<br />
a oposição para ser governista). O voto em lista mantendo o sistema<br />
proporcional não mudaria muita coisa, embora reforce a burocracia<br />
partidária. O que pode realmente mudar tudo é a criação dos distritos<br />
eleitorais, o que exige uma emenda à Constituição.<br />
O aspecto mais obscuro dessa discussão é aquele que verdadeiramente<br />
move a reforma: o fim da reeleição, com mudança do calendário<br />
eleitoral. Por trás dessa questão estão as forças que disputam o poder<br />
político no Brasil, o PT e o PSDB, e seus principais aliados. O presidente<br />
Luiz Inácio Lula da Silva tem reiterado que não pretende disputar<br />
um terceiro mandato, até porque sempre foi contra a reeleição. E<br />
defende mandatos de cinco anos para os cargos executivos. A mudança<br />
no calendário eleitoral, teoricamente, viria para ajustá-lo aos novos<br />
mandatos. Com estas hipóteses: 1) separação das eleições legislativas<br />
das de prefeitos, governadores e do presidente, com eleições gerais<br />
a cada 20 anos; ou 2) ampliação dos mandatos parlamentares para<br />
32<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Uma reforma sempre adiada<br />
cinco anos, com exceção dos senadores, cujos mandatos passariam<br />
de oito para dez anos; ou 3) prorrogação dos mandatos de prefeitos e<br />
vereadores, para coincidência geral das eleições.<br />
Do ponto de vista da qualidade da representação política, a proposta<br />
não muda nada. Só interessa aos políticos. Facilitaria um acordo<br />
entre os dois possíveis candidatos do PSDB, os governadores de<br />
São Paulo, José Serra, e de Minas, Aécio Neves. E criaria um cenário<br />
mais favorável à volta de Lula ao poder, sem ter que enfrentar um presidente<br />
candidato à reeleição, situação que ele hoje conhece dos dois<br />
lados do balcão.<br />
Mas a luta pelo poder é o centro da reforma. Não se pode descartar<br />
a possibilidade de a reforma política permitir que o presidente<br />
Lula concorra ao novo mandato, já agora de cinco anos.<br />
Se os políticos têm dúvidas, basta fazer um plebiscito para saber<br />
se o povo gosta da idéia. Afinal, uma das propostas avançadas<br />
da reforma política é ampliar a democracia com a participação<br />
direta do povo nas decisões polêmicas, por meio de referendos.<br />
O Congresso está acuado<br />
O Congresso Nacional não sabe o que fazer para evitar a desmoralização<br />
que sofre com os sucessivos escândalos protagonizados por<br />
seus integrantes. Depois do desgaste com os casos dos “mensaleiros”<br />
e das “sanguessugas”, o escândalo da empreiteira Gautama – que<br />
para a maioria ainda é uma caixa-preta – mantém na berlinda deputados<br />
e senadores. Sabe-se que é apenas a ponta de um iceberg que<br />
envolve a relação de empreiteiras com o Executivo e o Legislativo, por<br />
causa do atual padrão de financiamento eleitoral. Por isso, há um<br />
certo consenso de que uma reforma política é cada vez mais necessária,<br />
porém não há acordo com relação ao conteúdo das propostas.<br />
Cada cabeça é uma sentença na hora de discutir o sistema eleitoral<br />
e o funcionamento dos partidos.<br />
Um grupo de cardeais do Senado – Tião Viana (AC) e Aloizio Mercadante<br />
(SP), do PT; Tasso Jereissati (CE), Sérgio Guerra (PE) e Arthur<br />
Virgílio (AM), do PSDB; José Sarney (AP) e Jarbas Vasconcelos<br />
(PE), do PMDB; e Antonio Carlos Magalhães (BA), Heráclito Fortes<br />
(PI) e José Agripino (RN), do PFL, dentre outros – chegou a fazer um<br />
pacto para tentar uma reação. A idéia era articular as cúpulas dos<br />
grandes partidos para promover a reforma política e enfrentar os<br />
problemas que viciam o sistema eleitoral, o regime partidário e o financiamento<br />
das campanhas.<br />
33
II. Conjuntura<br />
O caso Gautama é encarado como um aviso de que o Congresso<br />
pode ser desmoralizado ainda mais, caso a relação existente entre os<br />
políticos e as empreiteiras continue a ser devassada pelo Ministério<br />
Público e a Polícia Federal. A avaliação corrente é de que as emendas<br />
parlamentares são café pequeno diante do que acontece com a execução<br />
do Orçamento da União, dos estados, dos municípios e até das<br />
estatais. O volume de recursos a ser movimentado pelas empreiteiras<br />
só tende a aumentar com o crescimento da economia e a execução das<br />
obras do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).<br />
Os caciques do Senado, entretanto, foram imobilizados pela representação<br />
do pequeno PSol contra o senador Renan Calheiros<br />
(PMDB-AL), que virou o centro das preocupações da Casa. Houve<br />
um acordo para protegê-lo, mas o preço a ser pago está ficando alto<br />
demais. E arrasar a liderança política dos senadores, com a perda de<br />
autoridade junto à sociedade para pressionar a Câmara a aprovar a<br />
reforma política.<br />
A proposta de reforma política esboçada na Câmara trombou com<br />
as propostas aprovadas no Senado, sob inspiração do senador Marco<br />
Maciel (PFL-PE), que defende a redução do número de partidos, o voto<br />
distrital e a fidelidade partidária. O presidente da Câmara, Arlindo<br />
Chinaglia (PT-SP), no vácuo político criado pelo desgaste de Renan<br />
Calheiros, patrocinou o arquivamento das propostas aprovadas no<br />
Senado. Mas não conseguiu colocar nada no lugar. Chegou a articular<br />
um projeto de mudanças, com o vice-líder do governo Henrique<br />
Fontana (PT-SP), mas houve uma rebelião – com adesão em massa<br />
do baixo clero – contra o voto em lista, o financiamento público, a fidelidade<br />
partidária, a cláusula de barreira e o fim das coligações. Até<br />
agora nada foi votado. A única possibilidade de avançar com a reforma<br />
é uma roleta russa: colocar a proposta em votação ponto a ponto e<br />
aprovar por maioria cada mudança, sem saber o que vai dar. O mais<br />
provável é a geração de um monstrengo, um modelo político-eleitoral<br />
pior ainda do que o atual. É por isso que a reforma política empacou<br />
na Câmara, cujos integrantes vivem a angústia de não saber avaliar as<br />
conseqüências da situação que eles mesmos criaram: se correr o bicho<br />
pega, se ficar o bicho come. É a crise.<br />
O problema é que vem mais uma eleição aí pela frente: a escolha de<br />
vereadores e prefeitos, em 2008. Todos sabem que algo precisa ser feito<br />
antes disso. O pleito municipal poderia ser uma oportunidade para<br />
a reestruturação na vida política do país, de baixo para cima, com os<br />
partidos testando as novas regras. Haveria tempo ainda para corrigilas<br />
e melhorá-las em caso de defeito de fabricação. É óbvio que essa visão<br />
mais otimista, que aposta na reação do Congresso, não tem ainda<br />
34<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Uma reforma sempre adiada<br />
massa crítica no Congresso, nem lideranças capazes de construí-la. A<br />
tendência atual é a adoção de mudanças meramente cosméticas, mesmo<br />
com o surgimento de novos escândalos, que enfraquecerão ainda<br />
mais o Congresso.<br />
A política em desconstrução<br />
Um dos temas atuais da antropologia é a desconstrução do sujeito<br />
moderno, sociológico, acelerada pela globalização, mas não somente<br />
em sua conseqüência. Seria um processo semelhante ao que ocorreu<br />
com o sujeito iluminista – “penso, logo existo” -, diante da emergência<br />
da sociedade industrial, marcada pela estruturação de classes sociais<br />
definidas a partir das relações de produção capitalistas, que arrasou<br />
com a idéia de que os poderosos tinham sangue azul. No mundo de<br />
hoje, os políticos não estão à margem desse processo, no qual as idéias<br />
pautadas pelo Estado-nação e pela luta de classes estão em xeque.<br />
Talvez por isso invoquem com tanta freqüência o “espírito republicano”,<br />
palavra mágica que serviria para separar as boas ações dos maus<br />
costumes políticos.<br />
A política do século passado foi marcada por um formidável embate<br />
entre as idéias liberais e socialistas, que ainda hoje impregnam a<br />
atuação dos políticos profissionais. No campo das idéias liberais, um<br />
dos textos mais célebres é do sociólogo Max Weber, numa conferência<br />
famosa intitulada A política como vocação. Nele, afirma que há duas<br />
formas de fazer da política uma vocação: “Ou se vive para a política,<br />
ou se vive da política”. Para ele, “quem vive para a política a torna o<br />
fim da sua existência por prazer ou por uma causa”. Já aquele que vê<br />
na política uma forma permanente de rendas, “vive da política como<br />
vocação”. Na ordem capitalista, esses seriam os dois tipos de políticos,<br />
com maior ou menor refinamento.<br />
“Em condições normais, deve o homem político ser economicamente<br />
independente das rendas que a ação política lhe possa proporcionar.<br />
Isso significa que o político deve ser rico ou contar com uma fonte<br />
de rendas independentemente de sua qualidade de político”, adverte<br />
Weber. Em condições anormais, o jogo seria outro: vivem de saques,<br />
roubos, confiscos, emissão de bônus sem lastro etc.<br />
Um outro conceito, radicalmente diferente, é o do político revolucionário<br />
que exerce uma ação de vanguarda para subverter a ordem<br />
e transformar a sociedade. É a idéia do militante a serviço das classes<br />
subalternas. O russo Vladimir Lênin, líder da Revolução de 1917<br />
(O que fazer?), e italiano Antônio Gramsci (Maquiavel, a política e o<br />
35
II. Conjuntura<br />
Estado moderno), que morreu na prisão, levaram às últimas conseqüências<br />
a tese marxista de que a classe operária, ao se libertar, libertaria<br />
todas as demais classes exploradas e oprimidas da sociedade. A<br />
missão seria orientar e organizar essa ação. O partido revolucionário<br />
seria a parte consciente da classe, organizado de cima para baixo,<br />
por homens unidos por fortes laços de camaradagem (Lênin). O novo<br />
“príncipe” seria um “ser coletivo”, integrado por “intelectuais orgânicos”,<br />
capazes de unir os trabalhadores e edificar um novo consenso na<br />
sociedade (GRAMSCI).<br />
A terceira revolução industrial liquidou com a idéia de “classe geral”,<br />
calcada no “ser operário!” como protagonista da construção da<br />
sociedade nova. A grande produção industrial, que serviu de alavanca<br />
da economia estatal, foi substituída por sistemas de produção flexíveis,<br />
que tornaram obsoletas as economias do chamado “socialismo<br />
real”. Foi a dêbacle dos partidos comunistas e operários.<br />
Mas o que tem a ver os dois conceitos com a crise que se abate<br />
sobre o Congresso brasileiro. Muita coisa. Não só políticos tradicionais<br />
foram ultrapassados pela desconstrução do sujeito moderno,<br />
os militantes revolucionários também. Os conceitos e as práticas que<br />
orientaram suas ações estão sendo rejeitados pela sociedade da informação.<br />
Ficaram fora de moda, embora sirvam ao status quo social e<br />
ao establishment porque não existe democracia sem partidos políticos.<br />
A política desnudada revela todas as inconformidades e deformações.<br />
Os que as simbolizam, ao terem sua imagem desconstruída, perdem a<br />
representação da sociedade. Isso vale tanto para o ex-deputado José<br />
Dirceu (PT-SP), que pautou sua vida por objetivos revolucionários e foi<br />
cassado no auge do prestígio, como também vale para o presidente do<br />
Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), cuja opção foi ser um político<br />
moderado e ascender por vias tradicionais.<br />
Identidades perdidas<br />
A desconstrução da identidade dos partidos, em primeiro lugar, é<br />
uma crise de imagem provocada por escândalos sucessivos. Os exemplos<br />
são quase diários. Ao ser apresentado o relatório do senador Epitácio<br />
Cafeteira (PTB-MA) sobre o caso do presidente do Congresso,<br />
Renan Calheiros, no Conselho de Ética do Senado, tivemos um bom<br />
exemplo de como esse desgaste ocorre. Porém, tais fatos – que estão<br />
na esfera da pequena política – decorrem de causas mais profundas.<br />
Não é só a velha política brasileira, patrimonialista e clientelista, que<br />
se reproduz pelo nepotismo, que está esgotada. Também estão em<br />
xeque os paradigmas que distinguiam os liberais e os conservadores,<br />
36<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Uma reforma sempre adiada<br />
os reformistas e os revolucionários, a direita e a esquerda. Os partidos<br />
são vistos por prismas em pedaços, como espelhos quebrados, o que<br />
complica ainda mais a reconstrução dos valores e projetos políticos.<br />
Os partidos políticos no Brasil nunca tiveram a força de seus congêneres<br />
europeus ou norte-americanos. Nunca tiveram muito compromisso<br />
com os respectivos programas, pois seus políticos são prisioneiros<br />
dos interesses imediatos que representam. No Império, liberais e<br />
conservadores eram escravocratas em sua maioria e se uniram contra<br />
as reformas, com sua política de conciliação. Os republicanos surgiram<br />
como a incipiente classe média, mas na República Velha representaram<br />
as oligarquias. Contra elas quem se insurgiu foi o movimento<br />
tenentista, que desaguou na Revolução de 30.<br />
A política partidária propriamente dita renasceu das cinzas em<br />
1945 sob o signo da guerra fria. Foi com esse paradigma que os principais<br />
partidos políticos atuaram no Brasil até o golpe de 1964, que<br />
marcou o esgotamento de um ciclo político. O populismo havia assinalado<br />
a entrada em cena política dos trabalhadores assalariados, muito<br />
mais do que a fundação do Partido Comunista em 1922. Curiosamente,<br />
a aliança entre pessedistas, trabalhistas e comunistas na eleição<br />
de Juscelino Kubitschek proporcionou o melhor momento da Segunda<br />
República e um contraponto à influência póstuma de Getúlio Vargas.<br />
A tentativa de implantar o bipartidarismo na marra, durante o regime<br />
militar, fracassou por dois motivos. O primeiro era óbvio: não<br />
havia liberdade. O segundo, perdura até hoje: a influência européia na<br />
política brasileira sempre foi maior do que a norte-americana, apesar<br />
da falta de assimetria com as nossas relações econômicas. Com o fim<br />
da guerra fria, a crise dos partidos brasileiros se aprofundou. Muito<br />
mais em conseqüência das mudanças que ocorrem no mundo do que<br />
por causa do ambiente político interno. Em tese, a democratização da<br />
vida nacional, com o restabelecimento das eleições diretas em todos<br />
os níveis, seria um fator de fortalecimento dos partidos junto à sociedade.<br />
Está acontecendo exatamente o contrário.<br />
Na verdade, a globalização dos mercados mudou o nexo das políticas<br />
nacionais em todo o mundo. O fim da União Soviética, a formação<br />
da União Européia, a emergência das potências asiáticas e o enfraquecimento<br />
da hegemonia econômica norte-americana, em que pese<br />
sua ação militar, contribuíram decisivamente para isso. Além disso, a<br />
terceira revolução industrial e as reformas econômicas que provocou<br />
contribuíram para romper a identificação das massas trabalhadoras<br />
dos países industrializados com seus partidos tradicionais, o que gerou<br />
uma nova direita na Europa, populista e nacionalista.<br />
37
II. Conjuntura<br />
O impacto dessas mudanças no Brasil ainda não foi suficientemente<br />
analisado, mas atinge em cheio os partidos. Ocorre, sobretudo,<br />
na esfera da grande política. O efeito mais evidente é a blindagem<br />
da política econômica, que a rigor foi iniciada pelo ex-presidente Fernando<br />
Collor de Mello com a abertura da economia. Essa política se<br />
consolidou com o Plano Real no governo Itamar Franco e ganhou força<br />
hegemônica nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso,<br />
com um caráter social-liberal. Ao ser encampada pelo presidente Luiz<br />
Inácio Lula da Silva, atraiu para sua esfera o PT, a força política que<br />
poderia levar adiante um vigoroso reformismo democrático e social.<br />
Da mesma forma como antes a política econômica havia assimilado<br />
o projeto social-democrata do PSDB. O preço pago é a obstrução da<br />
renovação dos costumes políticos, o enfraquecimento e a descaracterização<br />
dos partidos.<br />
Ensaio de uma reforma de mentirinha<br />
Não há, na história política do Ocidente, nenhuma crise política<br />
que não tenha como estopim uma crise parlamentar, daquelas<br />
que somente os políticos, com a sua criatividade, são capazes de<br />
aprontar. A mais famosa foi o golpe de Estado de dezembro de <strong>18</strong>51<br />
na França, conhecido como o <strong>18</strong> Brumário de Luís Bonaparte, que<br />
restaurou a monarquia. Não passou de uma grande farsa da aristocracia<br />
francesa, pois o capitalismo já estava consolidado e a ordem<br />
burguesa se tornara indispensável. Porém, serviu para revelar como<br />
um parlamento é capaz de se descolar dos interesses que deveria<br />
representar e virar fumaça.<br />
No Brasil, podemos colecionar mais de uma dezena de crises políticas,<br />
todas com a formidável colaboração do parlamento. A mais<br />
trágica teve como estopim a atitude de um único parlamentar, Márcio<br />
Moreira Alves, cujo discurso contra os militares precipitou o endurecimento<br />
do regime militar, com o famigerado Ato Institucional<br />
nº 5. O episódio, porém, foi o desfecho de um processo iniciado bem<br />
antes, por ocasião da renúncia do presidente Jânio Quadros, em<br />
1961, vista por muitos como uma manobra golpista que deu errado.<br />
À época, o vice-presidente João Goulart, que deveria assumir a Presidência,<br />
estava em viagem diplomática na China. Setores políticos e<br />
militares conservadores tentaram impedir a sua posse. Para viabilizála,<br />
se fez um acordo político no Congresso, que adotou o regime parlamentarista,<br />
sendo João Goulart empossado como chefe de Estado.<br />
Em 1963, por meio de plebiscito, o povo brasileiro votou pela volta do<br />
regime presidencialista. Jango finalmente assumiu a presidência com<br />
38<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Uma reforma sempre adiada<br />
amplos poderes, mas estava criado o cenário para o golpe de 1964 e<br />
para a implantação progressiva do regime militar que durou até 1985.<br />
Os caminhos de uma crise política são complexos, tortuosos e inesperados.<br />
Os nexos de uma crise parlamentar com a sociedade quase sempre<br />
precisam de um fio para serem encontrados, no labirinto da luta<br />
política. Mas eles sempre existem, porque o poder político é expressão<br />
direta da força social real dos grupos e classes em pugna. Em determinados<br />
momentos, nesse embate, os partidos políticos se descolam<br />
completamente dos interesses que originalmente representavam.<br />
Luís Bonaparte, sobrinho ambicioso do ex-imperador, foi mais<br />
feliz ao identificar os interesses das elites francesas do que os representantes<br />
populares no parlamento, autismo que Marx chamou de<br />
“cretinismo parlamentar”. Os políticos viviam num mundo imaginário<br />
e haviam perdido “todo sentido, toda recordação, toda compreensão<br />
do rude mundo exterior”. É um pouco o que está acontecendo no<br />
Congresso brasileiro, diante da desmoralização provocada pela sucessão<br />
de escândalos envolvendo os partidos e os políticos. Agora, os<br />
grandes partidos ensaiam uma reforma política de mentirinha, que,<br />
na verdade, é um esquema para garantir a reeleição quase vitalícia<br />
da maioria dos congressistas. Listas fechadas encabeçadas pelos<br />
atuais detentores de mandato, financiamento público que favorece<br />
os grandes partidos e fidelidade partidária subordinam os mandatos<br />
à vontade de governadores e prefeitos, sem falar na do presidente<br />
da República. É a gestação de uma nova casta a serviço do poder,<br />
cuja existência é incompatível com uma sociedade democrática.<br />
A proposta que poderia realmente aproximar o Congresso dos seus<br />
representados, o voto distrital puro ou misto, está fora de consideração<br />
na reforma. O mais grave, porém, é que a pseudoreforma cria<br />
condições favoráveis para projetos continuístas no Executivo – basta<br />
surgir um novo “queremismo” –, mantido o ambiente de bonança<br />
econômica internacional. Em outro contexto econômico, porém, pode<br />
provocar uma crise institucional com sinal trocado, como costuma<br />
acontecer no Brasil.<br />
*<br />
39
II. Conjuntura<br />
40<br />
Sobre o conteúdo<br />
da Reforma Política<br />
Rubens Otoni<br />
A<br />
necessidade da reforma política não decorre de um impulso<br />
colonial de transplantar para o Brasil fórmulas utilizadas nos<br />
países desenvolvidos. Nosso sistema político eleitoral é, sob<br />
muitos aspectos, melhor que os sistemas adotados na Europa e nos<br />
Estados Unidos.<br />
Tendo claro que não há um sistema perfeito, salta às vistas que<br />
o sistema eletrônico brasileiro de votação e a apuração das eleições<br />
é invejável por sua agilidade e eficácia. Alguns, os mais pessimistas,<br />
dirão que ele pode permitir fraudes. A esses, cabe lembrar que não<br />
existe obra humana que não seja sujeita a fraude. Mas cabe também<br />
acrescentar que ele é de longe o menos vulnerável.<br />
O sistema brasileiro de repartição proporcional dos tempos de<br />
cada partido na televisão e no rádio é igualmente exemplar. Assegura<br />
de forma justa o acesso dos partidos ao conjunto da população.<br />
Também o sistema de eleições proporcionais para os cargos do<br />
Legislativo, embora contendo imperfeições pontuais, é mais justo e<br />
democrático do que o sistema distrital adotado em alguns países da<br />
Europa e nos Estados Unidos.<br />
O sistema proporcional assegura a representação das minorias,<br />
na medida em que as vagas do Legislativo são preenchidas proporcionalmente<br />
à votação de cada partido. Infelizmente, aqui no Brasil,<br />
esta proporcionalidade não é absoluta, mas pode e deve ser aperfeiçoada.<br />
É democrático lutar pela adoção do princípio de que a cada<br />
eleitor corresponde um voto, independentemente do lugar onde vive<br />
no território nacional.<br />
Mesmo assim, nosso sistema proporcional é muito mais justo que<br />
o claramente antidemocrático sistema de voto distrital. A título de<br />
ilustração vamos tomar o caso da Inglaterra, pátria-mãe do sistema<br />
distrital. Lá, na última eleição para o Parlamento, setembro de 2005,<br />
os trabalhistas obtiveram 35,3% dos votos e levaram 356 cadeiras,<br />
os conservadores obtiveram 32,3% dos votos e levaram 198 cadeiras.<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Sobre o conteúdo da Reforma Política<br />
A discrepância é muito grande. 35,3% dos votos elegeram 62% das<br />
vagas, enquanto 32,3% elegeram 34% das cadeiras. Estes números<br />
falam por si, o sistema é injusto e antidemocrático. Tony Blair prometeu<br />
reformá-lo. Ainda não o fez, talvez porque o sistema interessa<br />
a trabalhistas e conservadores. Mas certamente não deve interessar<br />
aos liberais.<br />
Ainda a título de ilustração, registro a informação de Jairo Nicolau,<br />
em Sistemas Eleitorais: “O Partido Liberal do Reino Unido tem<br />
sido freqüentemente prejudicado, pois o percentual de cadeiras que<br />
recebe é sempre inferior ao seu percentual de votos. O partido foi subrepresentado<br />
em todas as eleições para a Câmara dos Comuns no pós-<br />
1945: com uma média de 12,4% dos votos obteve uma média de 1,9%<br />
das cadeiras. A diferença mais acentuada ocorreu em 1983, quando<br />
recebeu 25,04 % dos votos e elegeu apenas 3,5% dos representantes”.<br />
Não há exagero em afirmar que este sistema é aberrante.<br />
Aliás, o sistema inglês é tão ruim que recentemente a imprensa<br />
anunciou que a composição da Casa dos Lordes, o Senado deles, vai<br />
deixar de ser feita pelo critério da hereditariedade. Os senadores, que<br />
lá têm também poderes judiciários, passarão a ser eleitos. Convenhamos,<br />
para o começo do século XXI, está um pouco tarde. O sistema<br />
americano também padece dos defeitos do voto distrital, herdado da<br />
Inglaterra. Além disso, os americanos conseguiram organizar uma<br />
perfeita bagunça em suas eleições. As duas últimas eleições presidenciais<br />
tiveram seus resultados contestados na Justiça.<br />
Na Alemanha, para atenuar as deformações produzidas pelo sistema<br />
distrital, foi adotado o sistema de listas para eleger a metade<br />
do parlamento. A outra metade é eleita pelo antidemocrático sistema<br />
distrital. Dir-se-ia que a elite alemã, consciente de seu passado nada<br />
exemplar em matéria de democracia, resolveu permitir que pelo menos<br />
metade de seu parlamento fosse eleita de forma democrática.<br />
Explicar outros defeitos do sistema distrital demandaria muito espaço.<br />
Vou apenas enumerar alguns: ele paroquializa o debate, favorece<br />
o abuso do poder econômico, serve para perpetuar caciques, bloqueia<br />
a renovação das bancadas parlamentares, não fortalece os partidos<br />
e cria um problema insolúvel sobre a redefinição periódica do mapa<br />
dos distritos; o que provocaria uma guerra permanente entre partidos,<br />
personalidades e caciques em busca de uma demarcação ideal do distrito,<br />
aquela que mais se aproximasse de seu interesse eleitoral. Ou<br />
seja, qualquer sistema de voto distrital seria um retrocesso.<br />
41
II. Conjuntura<br />
Os principais problemas do sistema eleitoral brasileiro foram diagnosticados<br />
pela Comissão Especial que tratou da matéria e podem ser<br />
resumidos nos seguintes pontos:<br />
a) a distorção da vontade do eleitor causada pela permissão de coligações<br />
nas eleições para o Legislativo;<br />
b) a extrema personalização do voto nas eleições legislativas, da<br />
qual decorre o enfraquecimento dos partidos;<br />
c) os crescentes custos da campanhas eleitorais, que tornam o seu<br />
financiamento refém do poder econômico;<br />
d) a excessiva fragmentação do quadro partidário, que fragiliza os<br />
partidos;<br />
e) as intensas migrações entre legendas, cujas bancadas no Legislativo<br />
oscilam substancialmente ao longo das legislaturas.<br />
Para enfrentar estes problemas reais, a Comissão Especial antes<br />
referida, aprovou, por maioria significativa, uma proposta mais tarde<br />
referendada pela Comissão de Constituição de Justiça, que contém<br />
alguns pontos importantes:<br />
• A adoção do voto em lista, para equacionar o problema da excessiva<br />
personalização do voto e dar racionalidade ao debate eleitoral.<br />
• A introdução do financiamento público exclusivo de campanha<br />
para superar o abuso do poder econômico e a proibição de coligações<br />
proporcionais.<br />
Aos que temem o sistema de lista, argumentando que ele favorecerá<br />
a oligarquização e o caciquismo dentro dos partidos, cabe explicar<br />
que atualmente a maioria dos partidos já padece destes males. A solução<br />
para estes males está na aprovação de uma legislação que estabeleça<br />
regras democráticas para a confecção das listas e no estímulo<br />
a uma cultura democrática no interior de cada agremiação. Aliás, o<br />
mais provável é que os partidos que adotem métodos autoritários para<br />
a confecção de suas listas não consigam sobreviver.<br />
Aos que argumentam que o financiamento público exclusivo não<br />
bloqueia totalmente a intervenção do financiamento privado, cabe<br />
lembrar que ele pelo menos o inibe, e cria mecanismos de punição.<br />
Com relação à fidelidade partidária, parece que existe quase uma unanimidade<br />
sobre sua necessidade. Resta apenas discutir os termos.<br />
Caso venhamos a aprovar a Reforma Política, estaremos dando um<br />
grande passo no sentido de aperfeiçoar o sistema eleitoral brasileiro,<br />
sem prejuízo de outras matérias igualmente importantes.<br />
42<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
III. Observatório<br />
Político
Autores<br />
Luiz Werneck Vianna<br />
Sociólogo e professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), é<br />
autor de várias obras, dentre elas Esquerda brasileira e Tradição republicana.<br />
Sergio Augusto de Moraes<br />
Engenheiro, diretor do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro.<br />
Marcos Costa Lima<br />
Professor e atual coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política/<br />
UFPE. Pós-Doutorado na Université Paris XIII/Villetaneuse; Doutor em Ciências Sociais,<br />
Unicamp/São Paulo.
O Estado Novo do PT<br />
Luiz Werneck Vianna<br />
A<br />
crer nos indicadores dos dois períodos presidenciais de Fernando<br />
Henrique, mas, sobretudo a partir do mandato de Lula, o<br />
capitalismo brasileiro encontrou um caminho de expansão e de<br />
intensificação da sua experiência. Contudo, tem sido agora que se vê<br />
conduzido por um projeto pluriclassista e com a definida intenção de<br />
favorecer uma reconciliação política com a história do país, contrariamente<br />
à administração anterior, mais homogênea em sua composição<br />
de interesses e decididamente refratária ao que entendia ser o legado<br />
patrimonial da nossa herança republicana.<br />
Com efeito, estão aí, neste governo Lula, guindadas a Ministérios<br />
estratégicos, as lideranças das múltiplas frações da burguesia brasileira<br />
– a industrial, a comercial, a financeira, a agrária, inclusive os<br />
cúlaques que começaram sua história nas pequena e média propriedades,<br />
e que, com a cultura da soja, atingiram o reino do grande capital<br />
–, lado a lado com o sindicalismo das grandes centrais sindicais<br />
e com a representação dos intelectuais do Movimento dos Trabalhadores<br />
Sem Terra (MST). De outra parte, estão aí a revalorização da<br />
questão nacional, do Estado como agente indutor do desenvolvimento,<br />
o tema do planejamento na economia, a retomada do papel político<br />
da representação funcional, da qual é ícone institucional a criação do<br />
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).<br />
Se, antes, a ruptura com o passado fazia parte de um bordão comum<br />
ao PSDB e ao PT – o fim da Era Vargas –, sob o governo Lula,<br />
que converteu Celso Furtado em um dos seus principais ícones, e<br />
45
III. Observatório Político<br />
em que ressoam linguagens e temas do chamado período nacionaldesenvolvimentista<br />
em personagens destacados da sua administração,<br />
como José de Alencar, Dilma Roussef e Luciano Coutinho, todos<br />
em posições-chave, menos que de ruptura o passado é mais objeto de<br />
negociação. Assim, o governo que, no seu cerne, representa as forças<br />
expansivas no mercado, naturalmente avessas à primazia do público,<br />
em especial no que se refere à dimensão da economia – marca<br />
da tradição republicana brasileira –, adquire, com sua interpelação<br />
positiva do passado, uma certa autonomia quanto a elas, das quais<br />
não provém e não lhe asseguram escoras políticas e sociais confiáveis.<br />
Pois, para um governo originário da esquerda, a autonomia diante do<br />
núcleo duro das elites políticas e sociais que nele se acham presentes,<br />
respaldadas pelas poderosas agências da sociedade civil a elas<br />
vinculadas, somente pode existir, se o Estado traz para si grupos de<br />
interesses com outra orientação.<br />
A composição pluriclassista do governo se traduz, portanto, em<br />
uma forma de Estado de compromisso, abrigando forças sociais contraditórias<br />
entre si – em boa parte estranhas ou independentes dos<br />
partidos políticos –, cujas pretensões são arbitradas no seu interior, e<br />
decididas, em ultima instância, pelo chefe do poder executivo. Capitalistas<br />
do agronegócio, MST, empresários e sindicalistas, portadores<br />
de concepções e interesses opostos em disputas abertas na sociedade<br />
civil, encontram no Estado, onde todos se fazem representar, um outro<br />
lugar para a expressão do seu dissídio. Longe do caso clássico em<br />
que o Estado, diante da abdicação política das classes dominantes,<br />
se erige em “patrão” delas para melhor realizar os seus interesses, a<br />
forma particular desse Estado de compromisso se exprime na criação,<br />
no interior das suas agências, de um parlamento paralelo onde<br />
classes, frações de classes, segmentos sociais, têm voz e oportunidade<br />
no processo de deliberação das políticas que diretamente os afetam.<br />
Nesse parlamento, delibera-se sobre políticas e se decide sobre sua<br />
execução. À falta de consenso, o presidente arbitra e decide.<br />
Contorna-se, pois, o parlamento real e o sistema de partidos na<br />
composição dos interesses em litígio, que somente irão examinar da<br />
sua conveniência, em fase legislativa, quando couber. Com essa operação,<br />
a formação da vontade na esfera pública não tem como conhecer,<br />
salvo por meios indiretos, a opinião que se forma na sociedade<br />
civil, e as decisões tendem a se conformar por razões tecnocráticas.<br />
A criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, agência<br />
criada nos começos do primeiro mandato, no curso do qual não<br />
desempenhou papel relevante, mas que, agora, parece destinada a<br />
cumprir de fato as funções de câmara corporativa a mediar as relações<br />
46 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
O Estado Novo do PT<br />
entre o Estado e a sociedade civil organizada, reforçam ainda mais as<br />
possibilidades de ultrapassagem da representação política. A afirmação<br />
da representação funcional como forma de articulação de interesses,<br />
sob a arbitragem do Estado, é mais um indicador da intenção de<br />
se despolitizar a resolução dos conflitos em favor da negociação entre<br />
grupos de interesses.<br />
Com esse movimento, o Estado avoca a sociedade civil para si,<br />
inclusive movimentos sociais como os de gênero e os de etnias. Tudo<br />
que é vivo gira e gravita em torno dele. Boa parte das organizações<br />
não-governamentais (ONGs) são dele dependentes e sequer lhe escapam<br />
os setores excluídos, difusamente distribuídos no território do<br />
país, os quais incorpora por meio de programas de assistência social,<br />
como o bolsa-família, com o que se mantém capilarmente articulado<br />
à sua sociedade.<br />
O governo, que acolhe representantes das principais corporações<br />
da sociedade civil, ainda se vincula formalmente a elas pelo CDES.<br />
A representação funcional lhe é, pois, constitutiva. A ela se agrega,<br />
nos postos de comando na máquina governamental, os quadros extraídos<br />
da representação política. Contudo, uma vez que, pela lógica<br />
vigente de presidencialismo de coalizão, a formação de uma vontade<br />
majoritária no Congresso é dependente da partilha entre os aliados de<br />
posições ministeriais, os partidos políticos no governo passam a viver<br />
uma dinâmica que afrouxa seus nexos orgânicos com a sociedade civil,<br />
distantes das demandas que nela se originam. Tornam-se partidos<br />
de Estado, gravitando em torno dele e contando com seus recursos de<br />
poder para sua reprodução nas competições eleitorais.<br />
A dupla representação – a política e a funcional –, operando ambas<br />
à base de movimentos de cooptação realizados pelo Executivo, não somente<br />
amplia a autonomia do governo quanto às partes heterogêneas<br />
que o compõe, ademais reforçada por sua capacidade constitucional<br />
de legislar por meio de medidas provisórias, como criam condições<br />
para o seu insulamento político quanto à esfera pública. As múltiplas<br />
correias de transmissão entre Estado e sociedade funcionam em um<br />
único sentido: de cima para baixo. Nesse ambiente fechado à circulação<br />
da política, a sua prática se limita ao exercício solitário do vértice<br />
do presidencialismo de coalizão, o chefe do Estado.<br />
Tal couraça de que se reveste o Executivo se acha qualificada pelos<br />
notórios avanços da centralização administrativa nos marcos institucionais<br />
do país, em que pese a Carta de 1988, de espírito federativo e<br />
descentralizador. Com razão, a bibliografia brasileira, desde o publicista<br />
Tavares Bastos no Império, associa a opção pela centralização<br />
47
III. Observatório Político<br />
administrativa à natureza autoritária do nosso sistema político, justificada<br />
à época pela necessidade de preservar a unidade nacional, tida<br />
como ameaçada pelos impulsos separatistas do poder local no período<br />
da Regência. Essa associação foi confirmada pelos dois longos períodos<br />
ditatoriais do regime republicano – o de 1937-45 e o de 1964-85<br />
–, que, em nome da busca dos fins da modernização econômica, extremaram<br />
a centralização administrativa e a prevalência da União sobre<br />
a Federação. A reação ao autoritarismo político, que culminou com a<br />
democratização do país, atualizou as demandas pela descentralização<br />
e pela afirmação do poder local, que se fizeram presentes, como é sabido,<br />
no texto constitucional de 1988.<br />
Desde aí se vem confirmando o diagnóstico clássico de que a centralização<br />
administrativa também pode ser filha da democracia. As<br />
crescentes demandas por políticas públicas orientadas por critérios de<br />
justiça social, como as da agenda da saúde, educação e segurança, têm<br />
conduzido, na busca da eficácia e da racionalização das suas ações, à<br />
centralização do seu planejamento e ao controle da sua execução. De<br />
outra parte, a política tributária, nessa última década, tem privilegiado<br />
a União sobre a Federação, sobretudo os estados, que, em nome<br />
da racionalização, foram obstados de emitir dívidas, privatizados os<br />
seus antigos e poderosos bancos, e a Polícia Federal cada vez mais se<br />
comporta como a suprema guardiã de todo o aparato civil de segurança.<br />
Centralização que, nessa estrita dimensão, ainda se reforça com a<br />
recente criação de uma força de segurança nacional, subordinada ao<br />
Ministério da Justiça e com sede operacional na capital federal.<br />
Registro forte a confirmar a intensidade e a abrangência do atual<br />
processo de centralização está indicado na criação do Conselho Nacional<br />
de Justiça, presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal,<br />
assim elevado à posição, até então desconhecida entre nós, de<br />
vértice do Poder Judiciário, destinando-se esse Conselho, dotado do<br />
poder de estabelecer sanções sobre tribunais e juízes, federais e estaduais,<br />
ao controle da administração do sistema da Justiça. Na mesma<br />
direção, consagrou-se, com a introdução da súmula com efeito vinculante,<br />
o princípio da primazia das decisões dos vértices do Poder<br />
Judiciário sobre os juízes singulares, em sua maioria, originários das<br />
justiças estaduais. A ação do Ministério Público participa do mesmo<br />
movimento, em especial no controle que exerce, pela via das ações diretas<br />
de inconstitucionalidade, sobre as leis estaduais.<br />
Tem-se daí que o novo curso da centralização, ao contrário de períodos<br />
anteriores, está associado à crescente democratização social e às<br />
necessidades de racionalização da administração, inclusive a do Judiciário<br />
e do sistema de segurança pública, que dela derivam. Mas esse movi-<br />
48 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
O Estado Novo do PT<br />
mento, por sua própria natureza – atua de cima para baixo –, prescinde<br />
da participação dos cidadãos, uma vez que decorre da ação das elites<br />
ilustradas, selecionadas à margem dos interesses sistêmicos e das corporações<br />
que os representam, elites que encontram no governo a oportunidade<br />
de realização das suas agendas de democratização social, móvel<br />
normativo que presidiu sua formação nos movimentos de resistência ao<br />
regime militar. Se o Estado pretendeu, nos idos do Estado Novo, sob a<br />
iniciativa das suas elites intelectuais, como Gustavo Capanema, Francisco<br />
Campos, Agamenon Magalhães, entre tantos, ser mais moderno que<br />
sua sociedade, as elites desse novo Estado, que toma corpo com a vitória<br />
do PT, pretendem que ele se torne mais justo que ela.<br />
Sob essa formatação, em que elites dirigentes de corporações integram<br />
o comando da política econômica, em que as centrais sindicais<br />
tomam assento no governo, em que se valoriza a representação funcional<br />
– caso conspícuo o ministro do Trabalho, alçado a essa posição<br />
na condição de presidente da CUT – em que se faz uso instrumental<br />
das instituições da democracia representativa, em que se reforçam os<br />
meios da centralização administrativa, e, sobretudo, em que se quer<br />
apresentar o Estado como agência não só mais moderna que sua sociedade,<br />
como também mais justa que ela, o que se tem é uma grossa<br />
linha de continuidade com a política da tradição brasileira. Aí, os<br />
ecos da Era Vargas e do Estado Novo, decerto que ajustados à nova<br />
circunstância da democracia brasileira. Também aí um presidente da<br />
República carismático, acima das classes e dos seus interesses imediatos,<br />
cujos antagonismos harmoniza, detendo sobre eles poder de<br />
arbitragem, cada vez mais apartidário, único ponto de equilíbrio em<br />
um sistema de governo que encontrou sua forma de ser na reunião de<br />
contrários, e em que somente ele merece a confiança da população.<br />
Nada, portanto, do discurso dos tempos de origem e de confirmação<br />
do PT como partido relevante na cena contemporânea. Elo perdido a<br />
sistemática denúncia do populismo e das alianças políticas entre partidos<br />
representativos de trabalhadores com os de outra extração, assim<br />
como desvanecidos os outrora fortes vínculos com a obra de interpretação<br />
do país que se aplicava em assinalar a necessidade de uma ruptura<br />
com aquela tradição – Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes<br />
e Raimundo Faoro eram, então, as principais referências.<br />
Se, no começo da sua trajetória, o PT se apresentava como portador<br />
da proposta de um novo começo para história do país, na pretensão<br />
de conformá-la a partir de baixo em torno dos interesses e valores dos<br />
trabalhadores – a parte recriando uma nova totalidade à sua imagem<br />
e semelhança –, a reconciliação com ela, levada a efeito pelo partido<br />
às vésperas de assumir o poder, conduziu-o aos trilhos comuns da<br />
49
III. Observatório Político<br />
política brasileira. A totalidade adquire precedência sobre os interesses<br />
das partes, ponto enunciado claramente pelo próprio presidente<br />
da República, nos seus primeiros dias de governo, em marcante discurso<br />
às lideranças sindicais, quando reclamou delas que, em suas<br />
reivindicações, levassem em conta o interesse nacional. Nessa chave,<br />
conceitua-se o próprio desenvolvimento do capitalismo no país e sua<br />
inscrição no chamado processo de globalização como processos a serem<br />
subsumidos ao interesse nacional, cuja representação tem sede<br />
no seu Estado. De fato, para uma orientação desse tipo, o melhor repertório<br />
se encontra em nossa tradição republicana.<br />
Mas essa opção não foi feita a frio. O programa do PT era, com suas<br />
variações, o de uma esquerda brasileira clássica, e, como tal, se orientava<br />
no sentido de preconizar reformas estruturais que permitissem<br />
dirigir os rumos da economia para as necessidades da sua população e<br />
a favorecer um desenvolvimento auto-sustentado das forças produtivas<br />
nacionais. Ainda no período eleitoral, a reação a esse programa veio sob<br />
a forma de uma rebelião do mercado, de que o descontrole no preço do<br />
dólar foi apenas um indicador. Nesse sentido, tentar realizá-lo, depois<br />
de oito anos de governo FHC, que não só levara o país a debelar a crônica<br />
inflação brasileira e rebaixara dramaticamente, sob consenso geral<br />
das elites econômicas, a presença do Estado na economia, em clara<br />
inclinação favorável às forças de mercado, continha in nuce as possibilidades<br />
de se inscrever o país na lógica das revoluções.<br />
A opção do governo recém-eleito, como se sabe, foi a de ceder à contingência,<br />
abdicar do seu programa e das veleidades revolucionárias<br />
de amplos setores do seu partido e de se por em linha de continuidade<br />
com a política econômico-financeira do governo anterior. A inovação<br />
viria da política. Em primeiro lugar, instituindo o Estado como um<br />
lugar de condomínio aberto a todas as classes e principais grupos de<br />
interesses. Em segundo, pela recusa a um modelo de simplificação do<br />
Estado, que preponderava no governo anterior, o que importou uma<br />
aproximação, mais clara à medida que o governo aprofundava sua<br />
experiência, com temas da agenda da tradição republicana – o nacional-desenvolvimentismo<br />
de Dilma Roussef e de Luciano Coutinho, por<br />
exemplo – e com seu estilo de fazer política.<br />
O caráter do governo como condomínio entre contrários encontra<br />
sua expressão paradigmática nas relações entre o capitalismo agrário<br />
e os trabalhadores do campo, aí incluído o MST, ambos ocupando,<br />
pelas suas representações, posições fortes na Administração. Os duros<br />
e constantes conflitos que os envolvem, no terreno da sociedade<br />
civil, em torno de questões que vão da propriedade da terra ao uso de<br />
transgênicos na agricultura, não têm impedido a permanência dos<br />
50 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
O Estado Novo do PT<br />
seus representantes no governo. Prevalece a política, salvo em matérias<br />
tópicas, de procurar conciliar pragmaticamente as controvérsias<br />
que os opõe, legitimando, ao menos no plano simbólico – isso mais no<br />
caso do MST –, a validade das suas pretensões. A mesma relação com<br />
idênticas conseqüências, se reitera no caso das lideranças empresariais<br />
e sindicais com assento em ministérios, em litígio aberto na sociedade<br />
civil no que se refere a questões previdenciárias, da legislação<br />
trabalhista e da sindical.<br />
Esse Estado não quer se apresentar como o lugar da representação<br />
de um interesse em detrimento de outro, mas de todos os interesses.<br />
Essa a razão de fundo porque o governo evita a fórmula de poder decisionista<br />
e também se abstém de propor mudanças legislativas em<br />
matérias estratégicas, como a tributária, a da reforma política e a da<br />
legislação sindical e trabalhista, que, com sua carga potencialmente<br />
conflitiva, poderiam ameaçar a unidade de contrários que intenta<br />
administrar. Pragmático, desde a primeira vitória eleitoral, negocia e<br />
compõe com os interesses heterogêneos que convoca para seu interior,<br />
manobra com que se evadiu do caminho de rupturas continuadas<br />
aberto à sua frente.<br />
A forma benigna com que a esquerda chegou ao poder – a via eleitoral<br />
– não tinha como escamotear, até com independência da consciência<br />
dos atores sobre sua circunstância, de que se estava no limiar<br />
de uma revolução. Começadas as grandes mudanças estruturais,<br />
seguir-se-ia o momento da mobilização popular e da sua contínua intensificação.<br />
Nesse contexto hipotético, o front dos conflitos agrários,<br />
sem dúvida, comporia o cenário mais dramático para o seu desdobramento.<br />
A rigor, as forças da antítese não quiseram assumir os riscos<br />
da sua vitória, reencontrando-se com o adversário que acabara de<br />
derrotar. São as forças da antítese que se apropriam do programa das<br />
forças da tese, contra as quais tinham construído sua identidade. Não<br />
havia contradição a ser superada. A dialética sem síntese da tradição<br />
política brasileira, mais uma vez, restaura o seu andamento.<br />
Invertem-se, porém os termos da revolução passiva clássica: é o<br />
elemento de extração jacobina quem, no governo, aciona os freios a<br />
fim de deter o movimento das forças da revolução, decapita o seu antagonista,<br />
comprometendo-se a realizar, sob seu controle, o programa<br />
dele, e coopta muitos dos seus quadros, aos quais destina a direção<br />
dos rumos sistêmicos em matéria econômico-financeira. Mas será dele<br />
o controle da máquina governamental e o comando sobre as transformações<br />
moleculares constitutivas à fórmula do conservar-mudando,<br />
direcionadas, fundamentalmente, para a área das políticas públicas<br />
51
III. Observatório Político<br />
aplicadas ao social. Decididamente, o desenlace de 2002 não foi o de<br />
uma contra-revolução.<br />
Os setores subalternos não são mobilizados, e se fazem objetos<br />
passivos das políticas públicas, que, em muitos casos, incorporam à<br />
malha governamental lideranças de movimentos sociais, apartando-as<br />
de suas bases. Os partidos de esquerda e os movimentos sociais institucionalizados,<br />
quase todos os presentes no governo, retidos nessas<br />
suas posições, aderem ao andamento passivo e se deixam estatalizar,<br />
abdicando de apresentarem rumos alternativos para o desenvolvimento,<br />
demonstrando, nessa dimensão, anuência tácita com a herança<br />
recebida dos neoliberais da administração econômica do governo FHC.<br />
O ator definha, e os protagonistas são, por assim dizer, os fatos.<br />
Mas, a inversão da lógica da revolução passiva não obedece à mesma<br />
pauta da sua forma canônica. Nessa sua forma bizarra, não são as<br />
forças da conservação que se encontram na posição de mando político<br />
legítimo, não contando, pois, com plenos recursos para administrarem<br />
a fórmula do conservar-mudando. Exemplar disso o fato de que<br />
a agenda de reformas – a tributária, a da previdência e a da legislação<br />
sindical e trabalhista –, que essas forças compreendem como necessárias<br />
à estabilização e ao aprofundamento do capitalismo brasileiro,<br />
não venha encontrando passagem para sua implementação, barradas,<br />
ao menos até agora, pela ação combinada dos movimentos sociais com<br />
a sua representação no governo.<br />
Assim, mesmo sob o império dos fatos, persistem papéis para um<br />
ator que, presente na coalizão governamental, invista na mudança, em<br />
particular na ação de resistência a políticas publicas que lhe sejam<br />
adversas e na democratização da dimensão do social, desde que não<br />
atinja a região estratégica do mundo sistêmico, blindado às intervenções<br />
originárias de territórios estranhos aos seus. Eventualmente, e<br />
na margem, pode-se mais mudar que conservar. Com os antagonismos<br />
sociais importados da sociedade para o seu interior, o Estado<br />
de compromisso que procura equilibrá-los é um lugar de permanente<br />
tensão, cuja coesão depende unicamente do prestígio popular do seu<br />
chefe. Daí que, contraditoriamente, a política em curso, cujo programa<br />
parece limitar-se à adaptação à sua circunstância, dependa tanto da<br />
intervenção carismática do ator, que é, afinal, o cimento dessa, além<br />
de bizarra, frágil construção.<br />
A sua fragilidade conspira contra a sua permanência. Cada classe,<br />
fração de classe ou grupamento de interesse, nesses cinco anos de<br />
governo em condomínio, aprendeu, por lição vivida, nos seus litígios<br />
no interior da máquina governamental, que a melhor forma de vencer<br />
52 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
O Estado Novo do PT<br />
– ou de não perder tudo – está em sua capacidade de arregimentar forças<br />
na sociedade civil. Tal arregimentação, por sua vez, repercute no<br />
interior do governo e dificulta o processo de composição dos interesses<br />
contraditórios em que se acha empenhado permanentemente. A<br />
esquerda tem como alvo principal a administração do Banco Central,<br />
caixa-preta da política econômico-financeira do país, a direita encontrou<br />
o seu na presença do PMDB na coalizão política que sustenta o<br />
governo, sem a qual ele perde força no Congresso e na sociedade.<br />
E mais, a construção tem prazo de validade: o fim do mandato presidencial<br />
em 2010. Os antagonismos, à medida que essa data já se põe<br />
no horizonte, começam a procurar formas próprias de expressão, em<br />
um cenário com partidos em ruínas e instituições políticas, como o Parlamento,<br />
desacreditadas pela população. Tal tendência, ameaça virtual<br />
ao Estado Novo do PT, deverá se confirmar quando as campanhas eleitorais<br />
– a primeira, em 2008 – vierem a reanimar a agenda contenciosa<br />
das reformas institucionais (a da previdência à frente). Mas, já se faz<br />
sentir, entre tantos sinais, no mundo sindical, com o anúncio de rompimento<br />
do PCdoB, um partido integrante do governo, com a CUT, em<br />
nome de uma ação sindical mais reivindicadora, e, no mundo agrário,<br />
com a contestação do MST à política do agronegócio do etanol.<br />
De qualquer sorte, da perspectiva de hoje, já visível o marco de<br />
2010, não se pode deixar de cogitar sobre as possibilidades de que o<br />
condomínio pluriclassista que nos governa venha a encontrar crescentes<br />
dificuldades para sua reprodução, em particular quando se tornar<br />
inevitável, na hora da sucessão presidencial, a perda da ação carismática<br />
do seu principal fiador e artífice. Na eventualidade, no contexto<br />
de uma sociedade civil desorganizada, em particular nos seus setores<br />
subalternos, e do atual desprestígio de nossas instituições democráticas,<br />
a política pode se tornar um lugar vazio, nostálgico do seu homem<br />
providencial, ou vulnerável à emergência eleitoral da direita, brandindo<br />
seu programa de reformas institucionais, entre as quais a de simplificar<br />
ao máximo o papel do Estado, a ser denunciado como agência<br />
patrimonial, fonte originária da corrupção no país. Impedir isso é a<br />
tarefa atual da esquerda. Mas, ela somente reunirá credenciais para<br />
tanto, se, rompendo com o estatuto condominial vigente, for capaz<br />
de reanimar seus partidos, aí compreendido o PT, e de estabelecer<br />
vínculos concretos com os movimentos sociais, sempre na defesa da<br />
sua autonomia, em torno de suas reivindicações. E, sem preconceitos,<br />
favorecer alianças, nas eleições e fora delas, com todos os partidos,<br />
associações e personalidades de adesão democrática, em favor de um<br />
programa centrado no objetivo de destravar os entraves ao crescimento<br />
econômico e de promover a justiça social.<br />
53
II. Conjuntura<br />
54<br />
Sobre o aquecimento global<br />
Sergio Augusto de Moraes<br />
A relação homem-natureza na pré-história<br />
Houve um tempo em que grupamentos humanos se preocupavam<br />
com os efeitos, para as próximas gerações, de sua relação com a natureza.<br />
Por exemplo, os índios sioux, que viviam numa parte do território<br />
dos atuais EEUU antes do descobrimento, caçavam búfalos pensando<br />
em preservar essa fonte de proteína até a futura sétima geração. Claro,<br />
os sioux trabalhavam com um modelo primitivo que manejava algumas<br />
poucas variáveis (taxa de reprodução da população sioux, idem<br />
dos búfalos etc.) e não conheciam a propriedade privada.<br />
Os homens do paleolítico (período que vai, aproximadamente, do<br />
ano 265.000 a.C a 10.000 a.C) tinham, ao mesmo tempo, relações de<br />
temor, de respeito e de aprendizado com a natureza. Ela dominava<br />
tanto o seu presente quanto seu futuro. Mas também lhes aportava<br />
preciosos ensinamentos: apagar o fogo com água foi um dos primeiros<br />
recursos aprendidos com ela. Nesse período, de mais ou menos<br />
255.000 anos, a população humana cresceu de 125.000 a aproximadamente<br />
5 milhões de pessoas.<br />
A revolução neolítica (entre 10 e 5.000 a.C) muda radicalmente a<br />
relação do homem com a natureza. O homem domestica os animais e as<br />
plantas o que lhe permite passar da fase de coleta ao sedentarismo. Da<br />
fase de penúria de alimentos à produção de um excedente, o que permite<br />
o surgimento da propriedade privada. O homem passa a ter uma<br />
relação com a natureza intermediada pelo proprietário da terra, surge<br />
a divisão social de classe entre amos e escravos, e o escravo vê também<br />
no seu amo um outro dono de sua vida e morte, além da natureza.<br />
A população humana passa de 5 milhões a 90 milhões.<br />
A revolução industrial e o capitalismo<br />
Com o passar dos anos aumenta o domínio do homem sobre a<br />
natureza. Mas isso não significa uma “aproximação amigável”. Marx<br />
aponta nos Grundrisse:<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Sobre o aquecimento global<br />
(...) não é a UNIDADE (grifo meu, SAM) da humanidade viva e<br />
ativa com as condições naturais, inorgânicas, da sua troca metabólica<br />
com a natureza e daí sua apropriação da natureza, que<br />
requer explicação ou é um resultado de um processo histórico,<br />
mas a SEPARAÇÃO (grifo meu, SAM) entre essas condições inorgânicas<br />
da existência humana e esta existência ativa, uma separação<br />
que só é completamente postulada na relação do trabalho<br />
assalariado com o capital. 1<br />
A questão mais difícil é portanto:<br />
(...) a compreensão da evolução das inter-relações materiais (o<br />
que Marx chamava de “relações metabólicas”) entre os seres<br />
humanos e a natureza ...” ; assim “... de um ponto de vista materialista<br />
consistente a questão não é antropocentrismo VER-<br />
SUS ecocentrismo – a rigor tais dualismos pouco nos ajudam a<br />
entender as condições materiais reais, em perene mudança, da<br />
existência humana no interior da biosfera- mas uma questão de<br />
CO-EVOLUÇÃO. 2<br />
Em O Capital, Marx usa o conceito de METABOLISMO para definir<br />
o processo de trabalho “... como um processo entre o homem e a<br />
natureza , um processo pelo qual o homem, através de suas próprias<br />
ações, MEDEIA, REGULA E CONTROLA o metabolismo entre ele e a<br />
natureza”. Mas uma falha irreparável surgiu nesse metabolismo em<br />
decorrência das relações de produção capitalistas e da separação<br />
antagonista entre cidade e campo. Daí ser necessário, na sociedade<br />
de produtores associados, quer dizer, na sociedade comunista “... governar<br />
o metabolismo humano com a natureza de modo racional”, o<br />
que excede completamente as capacitações da sociedade burguesa. 3<br />
No capitalismo o que governa a relação entre o homem e a natureza,<br />
entre o capital e o trabalho, é a obtenção de lucro máximo o que,<br />
em última instância, exclui aquele “governo racional”.<br />
Quando se inicia a revolução industrial, nos meados do século<br />
XIX, essa separação da natureza, essa irracionalidade, não representava<br />
ainda uma ameaça às condições de vida no planeta. Ao contrário,<br />
era um fator de progresso, comparado com as condições de<br />
1 Citado por John Bellamy Foster em A Ecologia de Marx, Ed.Civilização Brasileira,<br />
RJ, 2005, p. 13<br />
2 Idem, p. 23<br />
3 Idem, p. 201.<br />
55
III. Observatório Político<br />
servidão que existiam antes. Mas o modo de produção capitalista não<br />
podia avançar sem criar novos mercados, sem revolucionar permanentemente<br />
as forças produtivas atrás de maiores lucros.<br />
Para a população então existente, algo em torno de 800 milhões<br />
de pessoas, a natureza parecia inesgotável, o “progresso” não a ameaçava.<br />
Hoje, qualquer pessoa razoavelmente informada sabe que não<br />
é bem assim.<br />
População e meio ambiente<br />
Em <strong>18</strong>50 a população mundial passou de 1 bilhão, em 1950 atingiu<br />
2,5 bilhões, em 2000 alcançou 6 bilhões, em 2005 chegou a 6,4<br />
bilhões. O campo se esvaziou e as cidades cresceram exponencialmente:<br />
o homem se afasta mais e mais da natureza.<br />
As causas deste crescimento exponencial da população mundial<br />
tem várias fontes, desde o declínio da mortalidade infantil até à produção<br />
de antibióticos. A principal, porém, é o modo de produção<br />
capitalista, que concentra capital, amplia permanentemente o mercado,<br />
aumenta e concentra o número de trabalhadores, amplia as<br />
desigualdades, cria as megalópolis. É isso que está na origem da<br />
agressão ao meio ambiente que presenciamos hoje.<br />
A degradação ambiental vem de há muito sendo objeto de preocupação<br />
e denuncia por parte de cientistas, organizações e personalidades<br />
no mundo inteiro. Na década de 1980, Jacques Cousteau e um<br />
grupo de estudiosos das universidades norte-americanas já haviam<br />
anunciado que os recursos do planeta não seriam suficientes para<br />
sustentar o padrão de consumo dos EEUU se ele fosse estendido a<br />
todo o mundo. Não haveria petróleo, aço, alumínio e outros materiais<br />
para satisfazer a demanda que seria criada.<br />
No limiar do século XXI, a situação se agravou. Diz a revista The<br />
Economist:<br />
56<br />
O principal impacto da China no mercado mundial é a mudança<br />
dos preços relativos. Os produtos exportados pela China empurram<br />
os preços para baixo e os produtos importados por ela<br />
puxam os preços para cima, nomeadamente petróleo e matérias<br />
primas. A China é hoje o maior consumidor de alumínio, aço,<br />
cobre e carvão, e o segundo em petróleo... como o consumo per<br />
capita de petróleo na China é ainda 1/15 daquele dos EEUU é<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Sobre o aquecimento global<br />
inevitável que a demanda de energia cresça no futuro, juntamente<br />
com o aumento da renda. 4<br />
O que se descortina hoje é que com base nos recursos naturais<br />
conhecidos e prospectados no mundo e com a atual tecnologia nem<br />
a China poderia alcançar o nível de consumo dos EEUU sem provocar<br />
um desastre ecológico.<br />
A questão do aquecimento global<br />
Em 1992, representantes de quase todos os países do mundo<br />
reuniram-se no Rio de Janeiro para elaborar a “Carta da Terra”,<br />
assinada por 175 países, que abarcava três convenções: Biodiversidade,<br />
Desertificação e Mudanças Climáticas, uma Declaração de<br />
Princípios e a Agenda 21, base para que cada país elaborasse seu<br />
plano de conservação do meio ambiente.<br />
O Protocolo de Kioto (1997) foi mais adiante: estabeleceu metas<br />
para a emissão de gases poluentes, dentre os quais o dióxido de<br />
carbono (CO2) e o metano (CH4), que, além de outros gases, contribuem<br />
para aumentar o “efeito estufa”. Este protocolo conta com a<br />
participação de 163 nações e prevê que até 2012 seus signatários<br />
reduzam as emissões combinadas a níveis 5% abaixo dos índices de<br />
1990. A eficácia do acordo, contudo, é limitada, pois até o momento<br />
os Estados Unidos, maior emissor mundial de dióxido de carbono,<br />
não ratificaram o pacto. Especialistas acreditam que as resoluções<br />
de Kioto apenas combatem a camada mais superficial do problema<br />
do aquecimento.<br />
O Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC),<br />
promovido pela ONU, realizado em Paris, em abril deste ano (2007),<br />
com a participação de 2.500 cientistas e estudiosos, acendeu o sinal<br />
vermelho. Segundo o “Quarto Relatório de Avaliação do GT1:<br />
(...) a concentração atmosférica global de dióxido de carbono<br />
aumentou de um valor pré-industrial (1750) de cerca de 280<br />
ppm para 379 ppm em 2005. 5<br />
4 “The Economist”, 30/07/05, p. 62,63.<br />
5 ppm, partes por milhão, é a razão do número de moléculas de gases de efeito estufa<br />
em relação ao número total de moléculas de ar seco; ppb, idem, idem, bilhão.<br />
57
III. Observatório Político<br />
A concentração atmosférica de dióxido de carbono em 2005 ultrapassa<br />
em muito a faixa natural dos últimos 650.000 anos (<strong>18</strong>0 a<br />
300 ppm) como determinado a partir de testemunhos de gelo. A taxa<br />
de aumento de concentração anual de dióxido de carbono foi mais<br />
elevada durante os últimos dez anos (média de 1995 a 2005: 1,9 ppm<br />
por ano) do que desde o início das medições atmosféricas contínuas<br />
(média de 1960 a 2005: 1,4 ppm por ano) embora haja variações de<br />
um ano a outro nas taxas”. E acrescenta, adiante:<br />
58<br />
(...) a principal fonte de aumento da concentração atmosférica de<br />
dióxido de carbono desde o período pré-industrial se deve ao uso<br />
de combustíveis fósseis, com a mudança do uso da terra contribuindo<br />
com uma parcela significativa, porém menor. 6<br />
Sabe-se que o efeito estufa é indispensável à vida na Terra. Entretanto,<br />
a partir de um certo valor da concentração dos gases, a temperatura<br />
na Terra aumentaria a ponto de produzir catástrofes ecológicas<br />
como amplamente divulgado pelos jornais após a publicação do relatório<br />
do IPCC.<br />
A matriz do aquecimento<br />
As principais fontes de gases do aquecimento global são (em %):<br />
Transportes .......................................................................... 13,5<br />
Eletricidade .......................................................................... 24,6<br />
Outras formas de queima de combustível ............................... 9,0<br />
Indústria .............................................................................. 10,4<br />
Emissões acidentais ............................................................... 3,9<br />
Processos industriais .............................................................. 3,4<br />
Uso da terra ......................................................................... <strong>18</strong>,2<br />
Agricultura ........................................................................... 13,5<br />
Lixo e rejeitos ......................................................................... 3,6<br />
Desse total, 77% corresponde ao CO2, 14% ao metano (CH4), 8%<br />
ao óxido nitroso (N2O) e 1% a outros. 7<br />
Daqui é fácil concluir que o maior contribuinte desses gases é a<br />
indústria petrolífera. Não é por acaso que o American Enterprise Institute<br />
(AEI), um instituto financiado pela gigante petrolífera ExxonMobil<br />
6 Quarto Relatório de Avaliação do GT1 do IPCC, Sumário Para os Formuladores de<br />
Política (em português), p. 5<br />
7 “O Globo” de 3/02/07, p. 42.<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Sobre o aquecimento global<br />
com “ligações estreitas com o governo Bush” – ofereceu US$ 10 mil<br />
para que cientistas e economistas publicassem artigos que duvidassem<br />
das constatações do relatório do IPCC. 8<br />
Quem são os responsáveis?<br />
Mas a discussão sobre os responsáveis não para aqui. Alguns<br />
estudiosos vêm concentrando a discussão na quantificação da parcela<br />
desse aumento dos gases do efeito estufa. Afinal, dizem eles,<br />
qual seria a contribuição do homem e qual a da natureza, aqui incluídos<br />
fatores do planeta e do sistema solar, nesse aumento?<br />
O que os cientistas que elaboraram o relatório do IPCC dizem é<br />
que há 90% de chance de que o aumento observado após a revolução<br />
industrial cabe ao homem. Outros argumentam que seria prepotência<br />
dos seres humanos atribuírem às suas atividades o poder<br />
de mudar o clima do planeta.<br />
Há que notar que a humanidade vem influindo sobre o meio ambiente<br />
há milênios. A destruição da floresta que havia na Zona da<br />
Mata alterou o clima do nordeste brasileiro e no mundo os exemplos<br />
de tal interferência são inúmeros. Mas, diriam aqueles, uma coisa<br />
é alterar o clima em regiões localizadas outra é alterar as condições<br />
da atmosfera que afetam o planeta.<br />
Até o fim da guerra fria, nos últimos anos da década de 80 do<br />
século passado, uma guerra nuclear entre os EEUU e a União Soviética<br />
era uma possibilidade real. Se isso tivesse acontecido, diziam<br />
os cientistas, seria criado um “inverno nuclear” com efeitos semelhantes<br />
àquele criado pela queda de um meteoro que há milhões de<br />
anos destruiu os dinossauros.<br />
O buraco na camada de ozônio é um exemplo instrutivo: na<br />
medida em que os países ricos reduziram ou eliminaram a emissão<br />
dos CFCs (gases que destroem aquela camada) o buraco reduziu-se<br />
significativamente.<br />
Os principais responsáveis pelo aquecimento global são os países<br />
ricos que, com uma população de 20% da humanidade, consomem<br />
hoje 80% do que é produzido no planeta (aqui incluído a energia),<br />
enquanto os outros 80% ficam apenas com 20% .O desafio não<br />
é fazer com que esses 80% mais pobres consumam (e desperdicem)<br />
a mesma coisa que os ricos, mas sim que haja uma redistribuição<br />
de renda aliada a um desenvolvimento ecologicamente correto para<br />
8 Idem , idem, p. 40.<br />
59
III. Observatório Político<br />
que possamos chegar a uma co-evolução, a uma relação racional<br />
com a natureza. Esse é talvez o maior e mais urgente desafio para<br />
a democracia.<br />
Gente, tecnologia e tempo<br />
A humanidade levou mais ou menos 120.000 anos para chegar<br />
ao primeiro bilhão de seres humanos (em torno de <strong>18</strong>00 d.C). E, a<br />
partir daqui, somente 200 anos para chegar a 6 bilhões. Entretanto,<br />
se olharmos mais de perto esse número não cresceu e não cresce<br />
igualmente em todos os períodos nem nos diversos continentes. Na<br />
Europa, a taxa de crescimento populacional foi de 1,7 entre 1750 e<br />
<strong>18</strong>50, passou para 1,98 deste ano até 1950, decresce para 1,32 desta<br />
data até 2000 e daqui passa a ser menor que 1, decrescendo de 727,9<br />
milhões em 2000 para 724,7 milhões(mi), em 2005. Na Ásia, só entre<br />
1950 e 2000 a população passa de 1,39 bilhões (bi) para 3,67 bi, uma<br />
taxa de reprodução de 2,63 em 50 anos. E lá a taxa continua a ser<br />
maior que 1. 9<br />
O que se nota é que enquanto o capitalismo industrial e as técnicas<br />
fordistas e tayloristas dominaram a Europa o crescimento de sua<br />
população foi acentuado. A partir da década de 60 do século passado<br />
os trabalhadores europeus atingem um alto grau de organização e de<br />
luta, a competição com o sistema socialista ganha novas cores, começa<br />
a revolução técnico-científica e as atividades industriais intensivas<br />
em mão de obra passam a ser transferidas para os países subdesenvolvidos,<br />
como foi o caso da indústria automobilística no Brasil.<br />
Os métodos anticoncepcionais se desenvolvem e a pílula passa a<br />
jogar um papel decisivo na taxa de reprodução da população. As populações<br />
da Europa e dos EEUU passam a concentrar a produção de<br />
conhecimentos, a taxa de reprodução pode cair.<br />
Como dissemos acima, mesmo com a atual população mundial e<br />
se alguma fada fizesse com que as relações de dominação mudassem<br />
os recursos do planeta não seriam suficientes para atender um consumo<br />
do padrão dos norte-americanos para toda a população mundial.<br />
Entretanto, o esgotamento progressivo dos recursos não significaria<br />
um limite físico para o capitalismo, para o crescimento da sua produtividade<br />
social. Porque as mudanças tecnológicas permitiriam sua<br />
sobrevida nas novas condições: a General Motors já desenvolveu pro-<br />
9 “Crescimento Populacional”, Wikipédia em http//t.wikipedia.org/wiki/Crescimen-<br />
60<br />
to_populacional<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Sobre o aquecimento global<br />
tótipos de carros elétricos, idem de hidrogênio etc. E o sistema solar<br />
mal começou a ser explorado. Claro, as reservas de petróleo que a<br />
natureza levou milhões de anos para produzir seriam esgotadas e o<br />
aquecimento global já teria derretido a calota polar. Já existem notícias<br />
de que o preço do metro quadrado no Alaska está subindo. As<br />
regiões frias do norte se transformariam em temperadas e as tropicais<br />
em desertos.<br />
Isso não será assim, dizem alguns, porque a próxima glaciação vai<br />
mudar tudo. Mas o que se sabe é que não há indícios desse fenômeno.<br />
Os mais de cinqüenta modelos matemáticos construídos para explicar<br />
esses ciclos ainda não permitem prever o tempo em que tal fenômeno<br />
se dará.<br />
Nessas circunstâncias, as relações de exploração e desigualdade<br />
continuariam e se expandiriam para outras fronteiras porque isso é<br />
inerente ao capitalismo.<br />
Os desafios e limites para os que querem estabelecer uma relação<br />
racional com a natureza não são físicos, são políticos.<br />
*<br />
61
III. Observatório Político<br />
62<br />
Um país (um mundo)<br />
de sinais trocados<br />
Marcos Costa Lima<br />
Chame o ladrão, chame o ladrão!<br />
Chico Buarque de Holanda<br />
O<br />
trecho antológico do samba Acorda, amor de Chico Buarque é<br />
expressão da ironia, da astúcia e da atualidade desse grande<br />
músico e poeta brasileiro. Evidencia um país de sinais trocados,<br />
onde a lei é excludente, rigorosa, madrasta, sobretudo para os<br />
mais fracos, os destituídos de poder.<br />
Vive-se numa sociedade em que a impunidade do colarinho branco<br />
é a regra, em que é raro o relacionamento de igual para igual, em que<br />
a esfera pública é marcada por privilégios de toda natureza. Ampliamse,<br />
ano a ano, a espacialização das classes sociais e os guetos, seja<br />
no sentido dos condomínios luxuosos das altas rendas, dos shopping<br />
centers reluzentes, seja das palafitas e favelas dos trabalhadores informais.<br />
Privatiza-se boa parte do Estado e declara-se, sem maiores<br />
discussões, a eficiência do mercado. Ou, como diria em tom de ironia<br />
o historiador Perry Anderson (2004), o aprofundamento das “assimetrias<br />
entre a rua e o palácio”.<br />
O padrão de conduta dominante é o individualismo, é o salve-se<br />
quem puder, pois vigora um sistemático darwinismo social a cada dia<br />
mais generalizado, que impregna pouco a pouco todo o imaginário e o<br />
tecido social.<br />
No cotidiano urbano, privilegiam-se os automóveis, e não as pessoas,<br />
com avenidas a permitirem a celeridade dos carros, que desconfiguram<br />
edificações de valor histórico. Asfaltam-se antigas áreas<br />
verdes, impedindo ou dificultando o caminhar dos pedestres, sujeitos<br />
a ruas sem calçadas, barulhentas, com os esgotos estourados atentando<br />
contra a saúde pública. E raros são os espaços públicos de<br />
convivência, de sociabilidade, uma vez que a pobreza desloca-se a pé<br />
ou de ônibus, jamais de automóveis de passeio de uso das classes<br />
médias, que vão de uma “ilha urbana” à outra, rumo a espaços cli-<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Um país (um mundo) de sinais trocados<br />
matizados e de conforto. Em muitas metrópoles brasileiras, até o pão<br />
cotidiano compra-se de automóvel, por medo de assaltos, e nos meios<br />
abastados, quando é procurado a pé, o é por intermédio das domésticas.<br />
Evidentemente anula-se, pela residência em altos edifícios, o<br />
sentido da vizinhança, para não dizer o de compartilhar.<br />
Viver exclusivamente para si e os familiares mais próximos é, principalmente,<br />
ignorar os outros, é pensar nos prazeres e nas facilidades<br />
individuais, custe o que custar. Se o objetivo é chegar mais cedo à<br />
casa ou ao trabalho, jamais se cede a vez, jamais se pratica um gesto<br />
cordial, considerado atitude de “otário”, que não sabe levar vantagem,<br />
que desconhece que o homem é o lobo do homem. Portanto, quem não<br />
se adapta, quem não é “forte”, quem não decide, quem não é eficiente<br />
é um perdedor, talvez a palavra mais ofensiva na língua dos norteamericanos,<br />
o loser.<br />
Já na filosofia de Platão encontrava-se a crítica social, pois seu<br />
idealismo não podia admitir um mundo material onde os homens e as<br />
coisas se defrontassem como mercadorias. A ordem justa da alma seria<br />
destruída pela cobiça da riqueza, que controla os homens a ponto<br />
de não terem mais tempo para nada além da preocupação com suas<br />
propriedades. O cidadão se empenha nisso com toda a sua alma, de<br />
modo que não tem tempo para pensar em nada mais do que no ganho<br />
diário, no acúmulo de riquezas.<br />
Segundo Herbert Marcuse (2001), na época burguesa, a teoria da<br />
relação entre o necessário e o belo, entre o mundo dos sentidos e o<br />
mundo das idéias, entre o trabalho e o prazer experimentou mudanças<br />
substantivas. Em primeiro lugar, desapareceu a idéia de que a<br />
preocupação com os valores supremos seria apropriada como profissão<br />
por determinados setores sociais. Em seguida, surge a tese da<br />
universalidade geral da “cultura”. No entanto, mantém-se e afirma-se<br />
a dicotomia entre cultura e civilização; quer dizer, de um lado um<br />
mundo espiritual melhor, essencialmente diferente da res extensa, da<br />
luta cotidiana pela existência. Os grupos da burguesia fundavam sua<br />
exigência de uma nova liberdade social mediante a razão humana universal,<br />
mas ela logo se revelava excludente:<br />
[...] numa sociedade que se reproduz pela concorrência<br />
econômica, a simples exigência de uma existência feliz do<br />
todo já representava uma rebelião [...] A exigência de felicidade<br />
contém um tom perigoso em uma ordem que resulta<br />
em opressão, carência e sacrifício para a maioria. (MAR-<br />
CUSE, 2001)<br />
63
III. Observatório Político<br />
Uma sociabilidade unidimensional, como diria nosso filósofo, é resultante<br />
de uma sociedade em ruptura, em que a cultura foi engolida<br />
pela civilização, em que a perda da percepção dos outros, o alheamento<br />
individual é uma exigência pragmática de sobrevivência. Mas<br />
é também uma perda de sentido mais geral – vive-se apenas para a<br />
conquista de bens materiais, mesmo à custa da perda de convivência<br />
com filhos, amigos, parentes. Aí reside o fetichismo da mercadoria.<br />
Vive-se como um moto-contínuo, sem questionamentos, sem se perguntar<br />
para que, por que, para quem. O outro, nessa perspectiva,<br />
é sempre percebido como um adversário, jamais como alguém com<br />
quem se possa dialogar, trocar, aprender e, menos ainda, como uma<br />
parceria criativa. Perde-se a dimensão de projeto, de objetivos comuns<br />
e instaura-se a fragmentação, o curto-prazo, o imediatismo.<br />
O conjunto desses comportamentos, analisados com acuidade por<br />
Lasch (1970; 1995), foi por ele intitulado de “ética da sobrevivência<br />
narcísica”, em que o sentido do que é coletivo e público esfuma-se,<br />
para dar lugar a uma privatização acentuada das esferas da saúde,<br />
da educação, da segurança. Lasch, imunizado contra o culto da economia,<br />
do progresso, da modernização, põe em questão o movimento<br />
tido como inelutável, que submete ao “reino da economia” todas as<br />
sociedades e o processo de emancipação efetiva dos indivíduos e dos<br />
povos.<br />
No mesmo sentido, Jean-Claude Michéa (2003) afirma que o “pretendido<br />
realismo da ciência econômica repousa sobre uma representação<br />
metafísica do homem, cuja aplicação prática e irrefletida é terrivelmente<br />
destrutiva para a humanidade real”. Na cultura da indiferença,<br />
conforme a lúcida reflexão de Jurandir Freire da Costa, a guerra é de<br />
todos contra todos e, nesse embate, morte e vida se equivalem.<br />
Não foi justamente Adam Smith quem entronizou a idéia segundo<br />
a qual o bem-estar material de “toda a sociedade” é garantido quando<br />
todos podem seguir o seu próprio interesse particular? Albert Hirschman<br />
(2002) ressalta que o autor de A Riqueza das Nações torna<br />
sinônimos os termos “interesses” e “paixões”, que tinham significados<br />
antagônicos na literatura até a elaboração de sua opus magna.<br />
Quais são os grandes problemas que têm acometido a sociedade<br />
contemporânea e os indivíduos? Observando o mundo contemporâneo<br />
a partir da interpretação freudiana, que trata o processo civilizatório<br />
como um confronto entre o instinto de vida (Eros) e o instinto de morte<br />
(Thanatos), no entendimento dos fluxos simbólicos, das pulsões produtivas<br />
da atualidade, Thanatos estaria momentaneamente vitorioso,<br />
e não é difícil perceber quatro dimensões articuladas daquilo que re-<br />
64<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Um país (um mundo) de sinais trocados<br />
presenta esse mal-estar civilizatório, dimensões que ressaltam a falência<br />
do paradigma atual e a necessidade de construirmos alternativas<br />
à crise vigente.<br />
A primeira delas é a dimensão global, que tem como características<br />
mais salientes um sistema financeiro dominante, que exige retornos<br />
predatórios à dinâmica do setor produtivo, estimulando uma acentuada<br />
“oligopolização” do poder das grandes corporações transnacionais;<br />
a utilização privativa, mercantil e exclusiva da ciência; a obsolescência<br />
programada da produção de artefatos; a ampliação da dominação sobre<br />
a periferia do capitalismo; uma sociedade de consumo excludente:<br />
o incremento da pobreza mundial; uma crise ambiental generalizada;<br />
uma ideologia da Via Única; a vertigem da velocidade e o excesso de<br />
informação.<br />
A segunda é a dimensão doméstica, dos costumes e da cultura,<br />
na qual o individualismo prevalece sobre o coletivo; a mudança no interior<br />
da família; o consumo conspícuo e ostensivo; o excessivo poder<br />
da imagem; o narcisismo e o exibicionismo; o voyeurismo e a “espetacularização”;<br />
a solidão dos indivíduos e das massas; a predominância<br />
do curto prazo e do hedonismo; a falta de compromisso; a falta de ética<br />
nas relações; a falta de perspectivas; as drogas enquanto “paraísos<br />
artificiais”; a perda da auto-estima pela fragilidade dos princípios; o<br />
sexo como mercadoria; a intolerância. Não é por nada que boa parte da<br />
ciência política contemporânea assume, derrisoriamente, as premissas<br />
do individualismo metodológico ou da intitulada “escolha racional”.<br />
A terceira dimensão é aquela da produção: a crise e a precarização<br />
do trabalho; a insegurança quanto ao futuro; o desemprego estrutural<br />
e a robótica; o trabalhador descartável; a quebra dos padrões legais de<br />
proteção vigentes; o risco e o medo do fracasso.<br />
Finalmente, a dimensão da cidadania: a crise do Estado; o Estado<br />
autoritário; o Estado mínimo privatizado; o retorno das questões e<br />
conflitos religiosos e étnicos; a descrença generalizada na política; a<br />
formalização dos direitos e a impunidade; a explosão da violência concreta<br />
e simbólica; o “humanismo militar” 1 .<br />
Jurandir Freire da Costa (1977) diz que “[...] através do imaginário<br />
social, podemos entender a construção da subjetividade historicamente<br />
contingente e socialmente determinada”. E esse imaginário está<br />
condicionado pela exploração econômica e física da classe trabalhadora,<br />
pela concentração de renda, pela brutalidade e violência cotidiana,<br />
1 Expressão utilizada por Perry Anderson para designar a violência expressa nas hegemonias<br />
dos países centrais, notadamente aquela dos Estados Unidos da América.<br />
65
III. Observatório Político<br />
em que os políticos sinalizam para um descompromisso com o interesse<br />
coletivo; em que a polícia, enquanto agente público da segurança,<br />
comete todo tipo de arbitrariedade – da corrupção ao extermínio –, em<br />
que os pobres e miseráveis não são percebidos enquanto sujeitos, enquanto<br />
pessoas morais, enquanto cidadãos, e essa desqualificação do<br />
sujeito como ser moral provoca a indiferença e anula o outro em sua<br />
humanidade, como nos lembra Hannah Arendt. Se as elites ignoram<br />
os pobres, ou fazem semblante, estes, por sua vez, negam seu pertencimento<br />
a um povo, classe ou nação (COSTA, 1994); e o banditismo<br />
incruento das Cidades de Deus, dos Jardineiros Fiéis é extrapolado<br />
para os espaços luminosos e refrigerados das cidades maravilhosas,<br />
daqui e d’além mar.<br />
É grave o crescente problema da violação dos direitos humanos<br />
coletivos e individuais no cotidiano, numa sociedade em que as instituições<br />
mediadoras estão, se não ausentes, omissas ou coniventes<br />
com a produção da violência, ao não reconhecerem os direitos da<br />
“gente miúda”, das camadas populares que não são aceitas como<br />
sujeitos sociais e políticos. Desta forma há que se trabalhar o papel<br />
emancipatório da educação e da aprendizagem conjunta na elaboração<br />
de uma educação para os direitos humanos, levando em conta<br />
as determinações materiais necessárias à vida social como condição<br />
para o avanço dos espaços alternativos de construção de outros saberes,<br />
indispensáveis para que uma nova prática seja implantada, a<br />
começar pela recuperação da democracia. Este não é um processo<br />
simples e pode exigir a desobediência civil, a exemplo do que têm<br />
demonstrado os “sem terra”.<br />
Os gregos na antiguidade atribuíam à paidéia o sentido da formação<br />
e educação de seu povo, pois:<br />
66<br />
“[...] estavam convencidos de que a educação e a cultura<br />
não constituem arte formal ou uma teoria abstrata, distinta<br />
da estrutura histórica objetiva da vida espiritual de<br />
uma nação. [...] Os gregos viram pela primeira vez que a<br />
educação tem de ser também um processo de construção<br />
consciente [...] e só a este tipo de educação se pode aplicar<br />
com propriedade a palavra formação, tal qual a usou Platão<br />
em sentido metafórico, aplicando-a à ação educadora<br />
[...]” (JAEGER, 1975).<br />
Com as devidas mediações, isso está em sintonia com a educação<br />
para a liberdade, de Paulo Freire, que implica descolonizar saberes<br />
estabelecidos, respeitar o saber do educando, rejeitar qualquer forma<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Um país (um mundo) de sinais trocados<br />
de discriminação, aceitar o novo, tomar o conhecimento como uma<br />
construção de pontes, uma dialógica entre o ir e o vir, com padrões de<br />
respeito à dignidade do próximo.<br />
Uma educação transformadora para uma população majoritariamente<br />
desprovida de direitos, porque desprovida de poder, nos reporta<br />
à significativa obra de Amartya Sen (1997) sobre a pobreza. O<br />
economista indiano introduz um conceito de alta relevância, que é o<br />
conceito de efetivação 2 . Os elementos constitutivos da vida são entendidos<br />
como combinações de várias efetivações. A relação das efetivações<br />
será tanto maior quanto maiores forem as possibilidades de<br />
um sistema social. Existem efetivações elementares, como evitar a<br />
morte precoce, alimentar-se adequadamente, o direito de transitar, ou<br />
até efetivações mais complexas, como desenvolver o auto-respeito, a<br />
auto-estima, participar da vida comunitária de forma ampla (COSTA<br />
LIMA; LEITE, 2001).<br />
Comentando a assertiva de Montesquieu segundo a qual a vida dos<br />
povos era governada por leis e costumes, Hannah Arendt nos alerta<br />
que “a falência das nações tem início com a destruição gradual da legalidade,<br />
seja porque o governo no poder abusa das leis, seja porque<br />
as leis nascem de uma autoridade que se torna questionável”. Como<br />
resultado, a nação acaba por perder, além da crença em suas próprias<br />
leis, sua capacidade de ação política responsável: “As pessoas deixam<br />
de ser cidadãs no sentido estrito do termo. [...] Só se pode confiar na<br />
tradição para impedir o pior durante um período limitado de tempo”.<br />
Em nossa tradição autoritária e oligárquica, a fragilidade de nosso<br />
Estado democrático de Direito é cotidianamente exposta, é uma quase<br />
figura de retórica.<br />
Ao concluir estas reflexões sobre este país (mundo) de ponta-cabeça,<br />
onde é próprio do capitalismo mundializado aprofundar as desigualdades<br />
e as injustiças (GADREY, 2000; PLIHON, 2003), uma reflexão<br />
do jurista Fábio Konder Comparato (2004) chama a atenção para<br />
o fato de que no Brasil o sistema democrático tem funcionado em sentido<br />
inverso, pois a soberania tem pertencido de fato aos governantes<br />
“que vivem numa espécie de estratosfera ou círculo celeste”, região ou<br />
domínio onde só são admitidos os que detêm poder econômico ou, no<br />
máximo, aqueles carismáticos que possuem poder simbólico, que se<br />
2 Também conhecido como enfoque da habilitação (entitlement). Para participar da<br />
distribuição de renda social, é necessário estar habilitado por títulos outros, seja<br />
de propriedade, seja pela inserção qualificada no sistema produtivo, pelo comércio,<br />
pelo trabalho por conta própria, pela herança. Cada elo na cadeia das relações de<br />
efetivação legitima um conjunto de propriedades (títulos) em relação a outros.<br />
67
III. Observatório Político<br />
transfigura em votos junto à opinião pública; de fato são expressões de<br />
poder que caminham juntas. Por quanto tempo mais? A democracia,<br />
muito ao contrário, “pressupõe a atribuição efetiva (e não apenas simbólica)<br />
da soberania ao povo, devendo os órgãos estatais atuar como<br />
meros executores da vontade popular”.<br />
Referências<br />
ANDERSON, Perry. “A batalha das idéias na construção das<br />
alternativas”. In: Atílio Borón. Nova Hegemonia Mundial. Buenos<br />
Aires: Clacso, p. 46, 2004.<br />
ARENDT, Hannah. A Dignidade da Política. Rio de Janeiro:<br />
Relume-Dumará, 1993.<br />
COSTA, Jurandir Freire da. “Ética e democrática e seus inimigos: o<br />
lado privado da violência pública”. In: Nascimento, Elimar Pinheiro<br />
(org.). Ética. Rio de Janeiro; Brasília, DF: Garamond/Codeplan.<br />
(Coleção Brasília, Capital do debate: o Século XXI), 1997.<br />
COSTA LIMA, Marcos; LEITE, Maria de Jesus de Britto. “O conceito<br />
de pobreza e a sua mensuração: uma pluralidade de abordagens”.<br />
Política Hoje, ano 7, n. 11, jul., Recife, 2001.<br />
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à<br />
prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.<br />
GADREY, Jean. Nouvelle Économie, nouveau mythe? Paris:<br />
Flammarion, 2000.<br />
HIRSCHMAN, Albert O. As paixões e os interesses. Rio de Janeiro:<br />
Record, 2002.<br />
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São<br />
Paulo: Martins Fontes, p. 2, 13, 1975.<br />
LASCH, Christopher. A rebelião das elites e a traição da<br />
democracia. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995.<br />
MARCUSE, Herbert. Cultura e psicanálise. São Paulo: Paz e Terra,<br />
p. 7-77, 2001.<br />
MICHÈA, Jean-Claude. Impasse Adam Smith: brèves remarques<br />
sur lº impossibilité de dépasser le capitalisme sur la gauche.<br />
Paris: Climats, p. 40, 2002.<br />
68<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
IV. No compasso<br />
das reformas
Autores<br />
Arryanne Queiroz<br />
Analista Judiciário do Tribunal Superior Eleitoral, pesquisadora da Anis: Instituto de<br />
Boética, Direitos Humanos e Gênero<br />
Márcia de Alencar<br />
Psicóloga com pós-graduação em Sociologia, consultora em Penas Alternativas,<br />
especialista em Gestão Pública e membro da diretoria executiva do Instituto Brasileiro<br />
de Execução Penal (Ibep).<br />
Almira Rodrigues<br />
Doutora em Sociologia pela UnB e feminista.
Colisão de direitos fundamentais no<br />
debate sobre aborto<br />
Arryanne Queiroz 1*<br />
A<br />
discussão sobre o aborto provoca os limites da tolerância moral,<br />
ética e religiosa das pessoas. Infelizmente, boa parcela da humanidade<br />
ainda se vale da religião como justificativa absoluta<br />
para praticar atos truculentos contra seus estranhos morais, optando<br />
pelo fanatismo religioso em detrimento da lucidez religiosa; assumindo<br />
o compromisso missionário de fazer valer uma única verdade, como<br />
se a pluralidade de pensamentos não fizesse parte da essência do ser<br />
humano.<br />
No Brasil, o debate público sobre o aborto tem sido marcado pela<br />
intolerância religiosa de congregações radicais, que, amparados pelo<br />
direito fundamental à liberdade de expressão, e em nome da causa<br />
antiaborto, se valem da violência à imagem e à honorabilidade alheios<br />
para tentar impor silêncio. O mecanismo eleito para desqualificar, segregar<br />
e intimidar quem ousa divergir é a imputação da palavra ‘abortista’<br />
contra quem promove o dissenso ético e democrático no debate<br />
sobre o aborto.<br />
É preciso descascar as várias camadas de significado do termo<br />
‘abortista’. A expressão é pejorativa e grosseira, além de estar associada<br />
a figuras depreciativas como caveiras ou a morte. Não faz parte do<br />
léxico corrente da língua portuguesa, a tal ponto que não foi inserida<br />
1 Analista Judiciário do Tribunal Superior Eleitoral, pesquisadora da Anis: Instituto<br />
de Boética, Direitos Humanos e Gênero.<br />
71
IV. No compasso das reformas<br />
nos dicionários oficiais do idioma. Não é conceito moralmente neutro,<br />
sendo que, dentro das comunidades onde adquire reconhecimento,<br />
validade, eficácia e aplicabilidade, constitui ofensa gravíssima. Nenhuma<br />
pessoa adepta da bandeira ‘pró-vida’ – absolutamente contrária a<br />
toda justificativa para o aborto – toleraria ser taxada como ‘abortista’,<br />
certamente porque essa tipificação atingiria sua honra e sua imagem,<br />
com conclusões nefastas sobre sua índole e seu caráter. A palavra é<br />
usada tanto como adjetivo quanto como substantivo, sempre implicando,<br />
nas duas acepções, insulto, com pesos negativos similares na<br />
perspectiva do ofendido e do ofensor.<br />
O emprego da palavra estimula um sentimento de aversão e de<br />
repugnância, principalmente, porque o tema ainda não deixou de ser<br />
tabu na sociedade brasileira. Tem conotação torpe e infame, não se<br />
prestando simplesmente a evidenciar a adoção partidária de corrente<br />
ideológica sobre o aborto. É a tradução panfletária de ‘assassino de<br />
bebês’: um slogan religioso de impacto político criado para angariar<br />
forças para o front de uma luta ‘santa’ (imaginária) contra qualquer<br />
convite público de reflexão sobre a eticidade e a humanidade da abreviação<br />
terapêutica da gestação, desde a perspectiva da saúde emocional,<br />
mental, psíquica e física da gestante.<br />
Afora isso, enseja uma visão distorcida e caricata do indivíduo,<br />
induzindo à conclusão equivocada de que sua discordância quanto à<br />
posição oponente ao aborto compromete a idoneidade de sua conduta.<br />
O uso da expressão serve a um propósito demarcatório simplificado<br />
de identidades, em que, de um lado, são postas as pessoas más (‘abortistas’)<br />
e, de outro, as pessoas boas (não ‘abortistas’), contrapostas,<br />
respectivamente, entre o satânico e o divino, valores espirituais importantes<br />
para a sociedade.<br />
A ligação do nome, da imagem e da profissão de uma pessoa ao<br />
vocábulo tem por fim enfraquecer e escarnecer seu discurso e pôr em<br />
cheque a seriedade de sua linha de pesquisa, desviando, de forma rasteira,<br />
o foco de atenção, da atividade intelectual, para a personalidade<br />
do indivíduo. As pessoas que não reconhecem no aborto um pecado<br />
contra Deus nem uma transgressão de preceitos religiosos ou dogmas<br />
de fé, mesmo sem serem agnósticas ou descrentes, são etiquetadas<br />
como ‘abortistas’, tornando-se vítimas de um reducionismo perverso<br />
sobre sua efetiva compreensão acerca da moralidade do aborto.<br />
A associação de uma pessoa ao termo ‘abortista’, que traz implícito<br />
em seu sentido uma acepção vil, expõe os predicados inerentes<br />
à personalidade humana a uma situação de vulnerabilidade incompatível<br />
com o ordenamento constitucional, que tem por fio condu-<br />
72 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Colisão de direitos fundamentais no debate sobre aborto<br />
tor o princípio da dignidade da pessoa humana. A imputação isolada<br />
do termo ‘abortista’ não denota o exercício honesto do direito<br />
de crítica assegurado pela liberdade de expressão, porque ignora o<br />
postulado da máxima transparência próprio das relações de boa-fé.<br />
Assim como todas as palavras ofensivas e ultrajantes da língua portuguesa,<br />
a palavra ‘abortista’ sempre estará disponível para quem dela<br />
quiser lançar mão. Não faz sentido proibir a pronúncia e o uso de<br />
qualquer palavra pelas pessoas. Isso seria dar espaço para lógica do<br />
impossível. Contudo, a certeza de que a censura prévia é incompatível<br />
com a democracia e a vida civilizada não significa que a livre expressão<br />
não possa e não deva ser judicialmente punida quando infringe valores<br />
individuais, difusos e coletivos de respeito mútuo vigentes nestas<br />
sociedades, com a incitação ao ódio, ao apartheid e ao preconceito. Nenhuma<br />
palavra é proibida, mas toda palavra pode ser alvo de repreensão<br />
judicial quando servir como instrumento para atingir a felicidade e<br />
o bem-estar alheio, causando constrangimento, angústia, sofrimento<br />
e dissabor significativos ao ofendido.<br />
Se, por um lado, o preceito fundamental de liberdade de expressão<br />
permite a qualquer pessoa, religiosa ou não religiosa, defender publicamente<br />
a abreviação de gestação como uma extensão dos direitos à<br />
dignidade humana, à autonomia da vontade e à saúde em sua acepção<br />
mais ampla, por outro, também autoriza outras pessoas a exporem<br />
seu repúdio ao aborto com base na premissa da santidade e da<br />
intocabilidade da vida humana. Todos têm resguardado, em princípio,<br />
o direito à liberdade de opinião. Em qualquer caso, porém, o direito<br />
à livre expressão não se coaduna com violência, que funciona senão<br />
como um fator de descaracterização desse direito.<br />
O uso da palavra ‘abortista’ fomenta a marginalização social,<br />
constituindo um neologismo perigoso para a coexistência pacífica<br />
entre estranhos morais, porque alimenta a falsa premissa de que as<br />
pessoas não adeptas da razão ‘pró-vida’ são nocivas ao bem-estar da<br />
humanidade.<br />
As liberdades públicas não são incondicionais, e, portanto, ninguém<br />
pode exceder os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes<br />
no gozo de quaisquer direitos. O abuso que coloque em risco<br />
direito alheio, de mesma natureza ou não, faz surgir a responsabilidade<br />
civil para o autor dos danos, como expõe o Código Civil, motivo pelo<br />
qual, inclusive, a Constituição Federal veda o anonimato. Segundo<br />
precedentes do STF, os direitos fundamentais pressupõem uso harmônico<br />
por parte de seus titulares, sob pena de grave lesão à ordem<br />
jurídica.<br />
73
IV. No compasso das reformas<br />
Nenhuma religião pode servir como escudo protetor para a prática<br />
de atos ilícitos ou de desrespeito aos sentimentos alheios. O diálogo<br />
pacífico entre oponentes ideológicos é possível, desde que, no exercício<br />
da liberdade de opinião, o princípio do respeito mútuo seja observado<br />
como virtude fundamental, o que não requer renúncia nem abandono<br />
de convicções pessoais nem institucionais, mas, apenas, tolerância ao<br />
próximo. A liberdade de expressão não garante liberdade para insultar,<br />
até porque é direito que não se orienta pelo princípio feyerabandiano<br />
do tudo vale.<br />
*<br />
74 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Penas alternativas e política pública<br />
Penas alternativas e política pública<br />
Márcia de Alencar<br />
A contextualização da execução penal alternativa<br />
A execução penal alternativa aproxima o Direito das Ciências Humanas<br />
e Sociais. Trata-se de um processo de execução penal dinâmico,<br />
onde o mundo jurídico composto da lei como fonte formal básica<br />
interage necessariamente com o mundo social, a partir dos fatos ocorridos<br />
durante a execução da pena ou medida alternativa. Esses fatos<br />
se apresentam como fonte material permanente.<br />
Demanda da execução penal alternativa é indiscutivelmente jurídica<br />
e fundamentada no discurso legal. O processo dessa execução, por<br />
sua vez, guarda muita especificidade, uma vez que ele acontece na arena<br />
social, no seio da comunidade e recebe um tratamento psicossocial<br />
e psiquiátrico especializado. O corpo técnico estabelece uma relação<br />
interdisciplinar, simultaneamente, com o juízo e a comunidade para<br />
viabilizar as condições e garantir os procedimentos técnicos e jurídicos<br />
suficientemente indicados e necessários para aquele caso concreto.<br />
Resulta, desta feita, um produto de natureza jurídico-social com o<br />
objetivo de assegurar o controle social pelo Estado e pela sociedade.<br />
Essa interdisciplinaridade representa, portanto, a base de sustentação<br />
dessa prática jurídica, onde o discurso legal e o discurso técnico<br />
durante a execução das alternativas penais estabelecem uma relação de<br />
complementaridade, através de conceitos correspondentes e não concorrentes,<br />
entre o mundo jurídico e o mundo social. Dentre eles, destacamse:<br />
conduta/comportamento; fiscalização/acompanhamento; coercitividade/volição;<br />
cumprimento da sanção/reinserção ou inclusão social.<br />
O método aplicado tanto pelo discurso legal como pelo discurso técnico<br />
recorrem ao mesmo recurso: a hermenêutica. O primeiro interpreta<br />
a realidade objetiva através da prova e o segundo interpreta a realidade<br />
subjetiva através da personalidade. E ambos constroem uma linguagem<br />
singular que viabiliza a efetividade da execução penal alternativa.<br />
Nas penas alternativas, o discurso legal busca caracterizar o fato<br />
jurídico, através da incidência sobre as leis 7.210/84, 9.009/84,<br />
9.714/98, 10.259/01 e as Regras de Tóquio com base na Resolução<br />
75
IV. No compasso das reformas<br />
da ONU/1990; enquanto o discurso técnico busca compreender o fato<br />
social, identificando o perfil individual, a dinâmica familiar e o contexto<br />
social daquele sujeito implicado com o delito.<br />
O monitoramento das alternativas penais<br />
Enquanto nas varas criminais e nos juizados especiais criminais<br />
são aplicadas penas e medidas alternativas pelos operadores do Direito<br />
seja no processo de condenação e/ou na transação penal; a equipe<br />
de apoio técnico capta, cadastra e capacita entidades parceiras para<br />
que os órgãos da execução (juiz e Ministério Público) credenciem a<br />
rede de apoio local, pública e/ou de interesse social.<br />
Quando o processo criminal entra na fase de execução propriamente<br />
dita, há a intimação, através de uma audiência. No caso das<br />
varas de execução, após a audiência é realizada a avaliação psicossocial<br />
pela equipe de apoio técnico. No caso dos juizados especiais,<br />
criminais, a avaliação ocorre durante a audiência.<br />
Quando se trata de avaliação de situações de baixa e média complexidade<br />
não necessita de avaliação psiquiátrica. Quando se trata de<br />
situação de alta complexidade, o assistente social e o psicólogo sugerem<br />
uma avaliação psiquiátrica aos órgãos da execução. Em geral, os casos<br />
de alta complexidade envolvem o tratamento da dependência química<br />
ou uma manifestação aguda de uma psicose durante a execução.<br />
Concluída a avaliação e resguardados os sigilos profissionais da<br />
área de saúde mental, a equipe registra um sumário psicossocial<br />
como uma súmula ou parecer nos autos do processo, com a indicação<br />
da entidade parceira mais adequada para receber aquele beneficiário<br />
da pena ou medida alternativa determinada. Essa entidade,<br />
por sua vez, é consultada previamente pelo corpo técnico para o devido<br />
registro.<br />
O juiz da vara de execução homologa a decisão com base no sumário<br />
psicossocial. No juizado especial criminal, o promotor propõe a transação<br />
penal que, uma vez aceita, é também homologada pelo juiz.<br />
A homologação consta dos condicionantes da pena ou medida alternativa<br />
imposta: o local de cumprimento da pena ou medida alternativa,<br />
o volume de horas para prestar serviço à comunidade, ou o tempo<br />
da limitação de fim de semana, a freqüência do tratamento de Justiça<br />
Terapêutica se assim tiver sido determinado, além do comparecimento<br />
em juízo nos casos de prestação pecuniária.<br />
76 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Penas alternativas e política pública<br />
Uma vez encaminhado o beneficiário da pena ou medida alternativa,<br />
inicia-se a fiscalização do cumprimento da sanção penal e o acompanhamento<br />
da execução.<br />
Durante o acompanhamento, a equipe de apoio técnico monitora as<br />
situações vividas pelo beneficiário, estabelecendo um contato permanente<br />
entre o juízo e a entidade parceira, através de visitas, reuniões,<br />
entrevistas, grupos de discussão, seminários e oficinas de trabalho com<br />
os próprios beneficiários e os responsáveis daquela instituição.<br />
As entidades parceiras emitem relatórios e preenchem fichas de<br />
controle e freqüência, através de instrumentos de trabalhos repassados<br />
pelo juízo desde o momento do credenciamento daquela instituição<br />
com a vara de execução ou juizado especial criminal. Concluído o<br />
tempo determinado para cumprimento da pena, é extinta a punibilidade<br />
e arquivado o processo.<br />
Caso se caracterize uma situação de incidente, a equipe de apoio<br />
técnico registra nos autos do processo ou dialoga, diretamente, com<br />
os órgãos da execução para que possa ser realizada uma audiência de<br />
advertência, onde nela se confirme ou se caracterize o descumprimento<br />
da pena ou medida.<br />
Esse procedimento jurídico pode implicar em um novo encaminhamento<br />
ou, no caso das varas de execução em uma conversão de pena<br />
alternativa para pena privativa de liberdade.<br />
Em síntese, o sistema de monitoramento das alternativas penais<br />
envolve quatro procedimentos técnicos 1 fundamentais:<br />
• a captação, cadastramento e capacitação das entidades parcerias<br />
para formação da rede social de apoio;<br />
• a avaliação psicossocial e psiquiátrica, em casos de alta complexidade;<br />
• o encaminhamento do beneficiário para cumprimento da sanção<br />
penal determinada; e<br />
• o acompanhamento da execução penal alternativa.<br />
Durante a execução penal alternativa, o juízo e a comunidade realizam<br />
o monitoramento da administração do sistema de justiça cri-<br />
1 Estes procedimentos técnicos encontram-se descritos na Metodologia de Apoio Técnico<br />
elaborada pela consultora Márcia de Alencar Araújo Mattos, através do convênio<br />
068/2002 do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop) com<br />
o Ministério da Justiça; e adotada no Manual de Monitoramento das Penas Alternativas<br />
editado pela Secretaria Nacional de Justiça, Cenapa, em novembro de 2002.<br />
77
IV. No compasso das reformas<br />
minal, através da fiscalização do cumprimento da sanção penal e do<br />
desenvolvimento de programas de reinserção e inclusão social.<br />
E, desta forma, Estado e sociedade civil exercem seus respectivos<br />
papéis institucionais no controle social dessa política pública criminal<br />
e diante do combate à impunidade e à violência.<br />
As penas alternativas e a prevenção criminal<br />
As práticas criminosas de baixo e médio potencial ofensivo guardam<br />
características específicas e necessitam de um manejo diferenciado<br />
e especializado do Estado e da sociedade civil organizada para o<br />
efetivo exercício do controle social. Para tais condutas, o Estado impõe<br />
um tratamento penal alternativo onde o autor do fato ou condenado<br />
não sofre reclusão, permanece na comunidade por não representar,<br />
em princípio, risco ou perigo à comunidade.<br />
No Brasil, as penas alternativas vêm se materializando nos últimos<br />
15 anos, junto com a reforma do Estado, onde a passagem de um<br />
Estado burocrático para um Estado gerencial gerou ações públicas<br />
baseadas em contratos de gestão. O Estado passa a executar a política<br />
pública e a sociedade a monitorar seus resultados, de acordo com os<br />
princípios do Estado Democrático de Direito.<br />
É necessário frisar que a sanção penal de baixa e média criminalidade,<br />
no momento da aplicação, baseia-se nos princípios da proporcionalidade<br />
e razoabilidade da pena e que, no momento da execução,<br />
o princípio da punibilidade se apresenta com o cumprimento da pena<br />
ou medida alternativa imposta.<br />
A impressão de que as penas alternativas punem menos são enganosas,<br />
elas punem melhor e hierarquizam o grau da sanção diante da<br />
tipologia do crime, gerando coerência na administração do sistema de<br />
justiça criminal. A ação criminosa de alta periculosidade guarda outra<br />
lógica dentro do campo da criminologia. O Estado e a sociedade não<br />
podem, portanto, oferecer a mesma resposta penal.<br />
Para além do mundo jurídico, as alternativas penais pertencem<br />
ao campo das políticas públicas criminais e sua conceituação, portanto,<br />
envolve o tema da responsabilização da esfera pública. Espaço<br />
onde o Estado e sociedade civil organizada estabelecem diálogo e<br />
acordo sobre as garantias dos direitos civis, sociais, econômicos e<br />
culturais; e sobre o modo particular como o direito penal está sendo<br />
processado, frente ao acelerado quadro de impunidade e violência do<br />
78 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Penas alternativas e política pública<br />
país; e qual o seu grau de convergência com as políticas públicas em<br />
execução no país.<br />
Quase 60% dos beneficiários desse instituto penal são pobres e<br />
mais de 50% têm ensino fundamental incompleto 2 e cometeram uma<br />
infração que justifica uma pena restritiva de direitos e não uma pena<br />
privativa de liberdade.<br />
Para reprimir esse crime o juízo e a comunidade interagem no momento<br />
da execução penal para assegurar o fiel cumprimento da sanção<br />
penal, através de uma relação interdisciplinar previamente legitimada<br />
com procedimentos técnicos e jurídicos que envolvem a avaliação, o<br />
encaminhamento à entidade parceira, o acompanhamento e a fiscalização<br />
do beneficiário daquela pena ou medida alternativa determinada<br />
de forma individualizada.<br />
Diante desse tipo de crime, e visando prevenir a violência, o juízo<br />
e a comunidade passam a formar uma rede de apoio local, seja pública<br />
ou de interesse social, para assegurar programas de inclusão<br />
social de tratamento, escolarização, profissionalização e geração de<br />
emprego e renda.<br />
Para promover o bem-estar social, o Estado e a sociedade civil organizada<br />
estabelecem pactos no âmbito da esfera pública para que os<br />
agentes públicos e sociais daquela comunidade assegurem o controle<br />
social, através do resgate e exercício da justiça, democracia, cidadania<br />
e paz social.<br />
A incapacidade do Estado em promover bem-estar social e prevenir<br />
a violência tem gerado uma necessidade exagerada de reprimir o crime,<br />
esvaziando o papel das instituições que compõem o Poder Executivo<br />
e colocando o Poder Judiciário em xeque com a responsabilidade<br />
de eliminar o mal com os remédios previstos e revistos no ordenamento<br />
jurídico. Como se a justiça do caso concreto, individualizada, que<br />
reflete factualmente apenas aquele delito, pudesse dar conta do descompasso<br />
entre a realidade jurídica e o real social brasileiro.<br />
A sociedade é chamada para participar como primo pobre e, compulsoriamente,<br />
recebe os riscos e as responsabilidades transferidas<br />
pelo estado, onde seus fracassos são punidos pelo próprio Estado, que<br />
se omitiu na origem; e seus sucessos são credenciados ao governo ou<br />
ao mandato que permitiu essa engenhosa gestão.<br />
2 Fonte: Central Nacional de Apoio às Penas e Medidas Alternativas (Cenapa) da Secretaria<br />
Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, Brasília, novembro de 2003.<br />
79
IV. No compasso das reformas<br />
Feminismo e nova esquerda:<br />
um diálogo em construção<br />
Almira Rodrigues<br />
Este texto analisa algumas contribuições dos movimentos feminista<br />
e de mulheres para a construção da democracia no<br />
Brasil; reflete sobre a sua interlocução com outros sujeitos e<br />
instâncias políticas; e desenvolve mediações entre o ideário feminista<br />
e a perspectiva de construção de nova(s) esquerda(s).<br />
O feminismo da segunda metade do século XX trouxe contribuições<br />
teórico-práticas para o avanço da democracia, entre as quais destacamos<br />
especialmente duas. A perspectiva feminista coloca que a situação<br />
das mulheres, bem como as representações e relações de gênero<br />
constituem um eixo estruturante das desigualdades e discriminações<br />
sociais. Entende que este eixo não corre em paralelo aos demais, mas<br />
se articula com outras bases que sustentam essas desigualdades e<br />
discriminações, como as relações de produção e de trabalho e as relações<br />
interétnicas e raciais. Nessa medida, distende as noções de<br />
conflito e opressão social para aquém e para além da relação capitaltrabalho,<br />
ainda considerada por muitos como a categoria central ou<br />
exclusiva na compreensão e luta por mudança social, particularmente<br />
nas sociedades capitalistas.<br />
Outra contribuição substantiva se traduz nas bandeiras de luta “o<br />
pessoal é político” e “democracia na rua e em casa”. O feminismo faz<br />
o resgate das relações na esfera privada – relações sociais e de poder<br />
tanto quanto as relações de trabalho e as relações políticas institucionalizadas<br />
– promovendo a sua politização, publicização e construção<br />
enquanto objeto de legislação, de políticas públicas e de aprofundamento<br />
da cidadania. Com esta visão, o movimento alerta para a conexão<br />
das esferas pública e privada: em ambas circulam relações de poder<br />
que variam de relações mais simétricas, de diálogo e negociação,<br />
a relações de opressão, autoritarismo e abusos de todas as formas; as<br />
práticas democráticas e de dominação que circulam nessas esferas se<br />
reforçam mutuamente. Ao resgatar o cotidiano e as relações de reprodução<br />
social, o movimento trouxe para a agenda política as dimensões<br />
de subjetividade, de auto-estima e empoderamento das mulheres, e o<br />
80 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Feminismo e nova esquerda:<br />
cenário de possibilidade de construção de relações igualitárias e fraternas<br />
entre homens e mulheres.<br />
Desde os anos setenta no Brasil, os movimentos feminista e de<br />
mulheres vêm construindo uma das experiências mais ricas de diálogo<br />
interno, isto é, no âmbito do próprio movimento. Há trinta anos<br />
era comum se falar “a mulher brasileira”, hoje não. Nessas três últimas<br />
décadas o ideário feminista de superação da discriminação,<br />
marginalização, exploração e opressão vivenciadas pelas mulheres e<br />
de construção de relações igualitárias difundiu-se para segmentos diversificados:<br />
mulheres brancas, negras, índias e orientais; mulheres<br />
jovens, adultas e idosas; mulheres analfabetas e com distintos graus<br />
de instrução; mulheres solteiras, casadas e em coabitação; mulheres<br />
mães e não-mães; mulheres com deficiência ou não; mulheres trabalhadoras<br />
urbanas e rurais, empregadas domésticas, donas de casa e<br />
empresárias; mulheres hetero, homo e bissexuais; mulheres travestis<br />
e transsexuais; mulheres prestadoras de serviços sexuais; mulheres<br />
religiosas e agnósticas/atéias.<br />
Nesse processo de acolhimento e transmissão do ideário feminista,<br />
as mulheres se organizaram em grupos os mais diferenciados: desde<br />
aqueles que congregam mulheres em condições similares até outros<br />
que reúnem mulheres vinculadas a problemáticas específicas como<br />
educação, saúde, trabalho, moradia, violência, desenvolvimento sustentável<br />
e política. Estas organizações também apresentam diversas<br />
naturezas: muitas são autônomas e se articulam em redes e fóruns<br />
locais, regionais, nacionais e internacionais; outras se vinculam a instituições<br />
abrangentes como associações de bairro, profissionais, sindicatos,<br />
centrais sindicais, universidades e partidos políticos. Estes<br />
agrupamentos realizaram suas próprias sínteses, e não sem tensões,<br />
afirmaram e afirmam sua singularidade, juntamente com a possibilidade<br />
de diálogo e articulação a partir de toda essa diversidade. Os<br />
movimentos têm conseguido gerir os conflitos e as desigualdades que<br />
recaem sobre as próprias mulheres sem submergir às clivagens de<br />
classe, culturais, sexuais, étnicas, raciais, religiosas e político-ideológicas.<br />
Têm enfrentado duros embates, entre os quais se destacam<br />
aqueles em torno dos direitos sexuais e direitos reprodutivos – particularmente<br />
pelas propostas de regulamentação da educação sexual<br />
nas escolas, da livre expressão sexual, da parceria civil entre pessoas<br />
do mesmo sexo, dos serviços sexuais, da cirurgia para mudança de<br />
sexo, do aborto e da reprodução humana assistida – e do aumento de<br />
recursos para as políticas sociais.<br />
No âmbito do movimento social, 1975 foi um marco na segunda<br />
onda do feminismo, declarado como Ano Internacional da Mulher<br />
81
IV. No compasso das reformas<br />
pela ONU, o que desencadeou comemorações em todo o mundo. Outro<br />
marco especialmente para o movimento no Brasil foi o ano de 1995,<br />
pela realização da IV Conferência Mundial sobre Mulher, Desenvolvimento<br />
e Paz, em Beijing, também convocada pela ONU, motivando um<br />
processo de preparação e articulação das mulheres brasileiras.<br />
Mas não só o diálogo consigo próprio tem sido produtivo e enriquecedor.<br />
Também tem sido profícuo o diálogo com o Estado brasileiro e<br />
com outros movimentos sociais, tendo em vista o caráter fortemente<br />
propositivo dos movimentos feminista e de mulheres e a receptividade<br />
e a disposição políticas dessas instituições. No âmbito do Estado<br />
brasileiro, um marco substantivo foi o ano de 1985 com a criação do<br />
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, órgão governamental e paritário,<br />
expressando o reconhecimento da necessidade e importância<br />
da formulação de políticas públicas para mulheres, no contexto da<br />
redemocratização brasileira. A este instrumento inicial, reproduzido<br />
em muitos estados e municípios, seguiu-se, por reivindicação dos movimentos<br />
e mais recentemente, a criação de órgãos executores dessa<br />
política (secretarias e coordenações). Estes órgãos, em âmbitos nacional,<br />
estadual e municipal, têm a função de coordenação e implementação<br />
de programas e projetos em diversas frentes e de forma cada vez<br />
mais transversal à estrutura e gestão governamental. Nesse processo<br />
de interlocução, merecem registro: a criação da Secretaria Especial de<br />
Políticas para Mulheres, vinculada à Presidência da República, com<br />
status de Ministério, em 2003; a realização da I Conferência Nacional<br />
de Políticas para Mulheres, em 2004, que originou o Plano Nacional de<br />
Políticas para Mulheres; e a preparação da II Conferência Nacional, a<br />
ser realizada em agosto deste ano, precedida por conferências estaduais<br />
e municipais já em curso.<br />
A Constituição Federal de 1988 é outra conquista expressiva à<br />
medida que assegurou a igualdade jurídica entre homens e mulheres<br />
em direitos e deveres, além de inúmeras outras conquistas. No âmbito<br />
do Legislativo federal, desde 1986, com a eleição pela primeira vez de<br />
uma Bancada Feminina mais numerosa (26 parlamentares, sendo que<br />
em 2006 foram eleitas 45 deputadas), desenvolve-se a experiência de<br />
reunião das parlamentares de diferentes partidos em torno de uma<br />
plataforma dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero. A Bancada<br />
Feminina vem desenvolvendo um bom diálogo com os movimentos<br />
feminista e de mulheres o que tem propiciado avanços legislativos<br />
e iniciativas de controle e monitoramento das políticas públicas.<br />
Apesar de muitas propostas apresentadas pelos movimentos terem<br />
sido incorporadas por legisladores/as, governantes e gestores públicos,<br />
este diálogo e negociação apresentam embates, entre os quais<br />
82 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Feminismo e nova esquerda:<br />
destacamos a dificuldade de inserção da perspectiva de gênero no Plano<br />
Plurianual, na Lei de Diretrizes Orçamentárias e na Lei Orçamentária<br />
Anual, que, de fato, garantem e concretizam direitos conquistados<br />
na lei, ao sustentar a implementação de políticas públicas mediante a<br />
implantação de programas de variados tipos e alcance social.<br />
No que tange ao diálogo dos movimentos feminista e de mulheres<br />
com outros movimentos – a exemplo dos movimentos de direitos humanos,<br />
ambientalista e de desenvolvimento sustentado, de igualdade<br />
racial, de livre expressão sexual, entre outros –, este tem sido aprofundado<br />
gerando caminhos convergentes e solidários na luta por inclusão<br />
social, contra as desigualdades e todas as formas de discriminação<br />
social. Cada vez mais estes movimentos estabelecem alianças e reciprocidades<br />
entre si no apoio a agendas de luta pela construção de um<br />
novo mundo. Apontam para projetos de curto e longo prazo, defendendo<br />
condições de existência digna para as atuais e futuras gerações.<br />
Os movimentos feministas e de mulheres têm provocado o Estado e<br />
a sociedade civil organizada para a necessidade de que as instituições<br />
elaborem políticas de gênero em um chamamento para que considerem:<br />
a história e o cotidiano diferenciado de homens e mulheres com<br />
seus desdobramentos objetivos e simbólicos; os efeitos e impactos das<br />
ações públicas segundo o gênero; a importância de atuação no sentido<br />
de minorar e superar as desigualdades de gênero, expressas em relações,<br />
condições e representações sociais, em geral constrangedoras,<br />
adversas e restritivas ao desenvolvimento e realização das capacidades<br />
e potencialidades das mulheres.<br />
A interlocução dos movimentos feminista e de mulheres nas duas<br />
frentes mencionadas – Estado e demais movimentos sociais – tem sido<br />
mais satisfatória comparativamente à interlocução com os partidos<br />
políticos. Dos 29 partidos registrados no TSE são poucos os que têm<br />
demonstrado uma sensibilidade para a questão e menos ainda os que<br />
adotaram uma política de gênero, ainda que tímida. Como elementos<br />
integrantes dessa política podemos mencionar: a definição de uma<br />
plataforma pela igualdade de gênero e cidadania das mulheres; a criação<br />
de instâncias partidárias específicas para dinamizar esta política<br />
(Secretaria, Departamento, Coordenação de Mulheres/Gênero); a<br />
destinação de recursos financeiros para a realização do trabalho de<br />
promoção da participação feminina e das plataformas feministas; a<br />
destinação de tempo de propaganda partidária na mídia para difundir<br />
a importância da participação política das mulheres; e a adoção de<br />
cotas por sexo para a composição de instâncias de direção partidária,<br />
além da indicação das mulheres para atividades e funções expressivas<br />
de representação partidária.<br />
83
IV. No compasso das reformas<br />
Nessa medida, cabe o questionamento do por quê ocorre a dificuldade<br />
generalizada dos partidos (de esquerda, de centro, de direita) no<br />
que tange à formulação e implementação de uma política de gênero,<br />
em âmbito partidário, e de sua defesa junto ao Estado e à sociedade.<br />
Alguns partidos até acolhem uma plataforma feminista, mas apresentam<br />
fortes resistências a desenvolver iniciativas que efetivamente promovam<br />
e ampliem a participação das mulheres em âmbito partidário<br />
e de representação política. Os partidos políticos são historicamente<br />
instituições masculinas e funcionam a partir de uma lógica que acaba<br />
por restringir e/ou excluir a participação das mulheres. A adoção de<br />
uma política de gênero, particularmente em âmbito partidário, aponta<br />
para o compromisso, em alguma medida, de superar esta concentração<br />
de poder; e significa, também, se comprometer com a divisão e<br />
o compartilhamento de responsabilidades e decisões sobre os rumos<br />
de desenvolvimento do país, e de construção da cidadania. Este é um<br />
horizonte promissor em termos de ampliação e democratização da política<br />
representativa que, no entanto, ainda não foi devidamente vislumbrado<br />
por militantes e dirigentes partidários.<br />
Consideramos que a crise da política, dos políticos e dos partidos<br />
têm muito a ver com este fechamento e quase exclusividade da participação<br />
masculina. Esta situação é mais grave ainda, considerando-se<br />
que os partidos detêm o monopólio da representação política no Brasil<br />
como na quase totalidade dos países. A participação política das mulheres<br />
enfrenta adversidades decorrentes da cultura patriarcal, que<br />
naturaliza a vinculação deste segmento à esfera privada e dos homens<br />
à esfera pública. Outra adversidade refere-se a uma condição muito<br />
objetiva, a restrição do tempo das mulheres para a ação política à medida<br />
que as responsabilidades pelas tarefas domésticas e pelo cuidado<br />
das crianças, das pessoas idosas, doentes e com deficiências físicas<br />
e transtornos mentais recaem sobre elas. Estas funções não são divididas<br />
com os parceiros que coabitam com mulheres (embora já cerca<br />
de 30% das famílias sejam monoparentais femininas), tampouco são<br />
assumidas pelo Estado mediante a implementação de políticas públicas<br />
expressivas de educação infantil e de assistência à saúde voltadas<br />
para as pessoas que se encontram em situações de vulnerabilidade física<br />
e mental. A estas dificuldades mencionadas, somam-se outras no<br />
âmbito da política representativa, entre as quais se destaca a situação<br />
de imensa dificuldade das mulheres de dispor e reunir recursos para<br />
o financiamento de campanhas eleitorais, que no Brasil é privado. O<br />
sistema político brasileiro é excludente, viciado e perverso, beneficiando<br />
explicitamente as candidaturas com poder político e econômico e<br />
com influência para a arrecadação de fundos, que ocorre em grande<br />
84 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Feminismo e nova esquerda:<br />
parte por meio de mecanismos ilícitos, de tráfico de influência e de<br />
apropriação de recursos públicos.<br />
Os movimentos feminista e de mulheres vêm colocando que a saída<br />
para esta crise implica um conjunto de mudanças em várias frentes.<br />
Entre elas, são essenciais: ampliar a compreensão da ação política<br />
para todas as relações e tempos da existência humana; reconstruir<br />
os partidos como instituições que considerem o cotidiano de sujeitos<br />
concretos, como espaços de enriquecimento humano e canais de construção<br />
de “novos cenários de futuro”, cooperadamente com outros;<br />
fortalecer todos os espaços de expressão da cidadania e promover o<br />
engajamento de segmentos sub-representados na política institucionalizada,<br />
a exemplo das mulheres, da população negra e dos jovens;<br />
realizar mudanças no sistema político brasileiro mediante uma reforma<br />
política ampla e democrática.<br />
Especificamente no que se refere à formação de uma nova esquerda,<br />
ou de novas esquerdas, sintonizadas com os novos tempos, é mister<br />
considerar que sua construção e desenvolvimento não podem ser<br />
uma prerrogativa de certos partidos políticos que se auto-nomeiam<br />
como tal. Uma perspectiva e prática de esquerda é fruto: do desenvolvimento<br />
de determinadas compreensões sobre a existência e o viver<br />
em sociedade; da realização de formas de inserção social, alinhadas<br />
com determinados afetos, valores e práticas; do estabelecimento de<br />
compromissos com certas mudanças no status quo. Nessa medida,<br />
podem ocorrer em múltiplos espaços e relações.<br />
Tais perspectivas e práticas exigem a constante formação e desenvolvimento<br />
de seres humanos que possam afirmar relações éticas,<br />
de reciprocidade e respeito às diferenças. Exigem o enfrentamento<br />
constante de práticas perversas, narcísicas, de retaliação e de<br />
aniquilamento do “Outro”. Exigem a distinção entre espaço público e<br />
espaço privado; o respeito à coisa pública, de todas/todos, portanto<br />
um Estado com suas políticas, instâncias e recursos de caráter efetivamente<br />
público.<br />
A partir dessas reflexões, entendemos que a construção de um<br />
projeto democrático e de esquerda para o Brasil exige a incorporação<br />
de uma perspectiva feminista e de gênero, sem o quê está fadado, a<br />
priori, ao fracasso, por uma desconexão com os tempos em que vivemos<br />
e que buscamos transformar. Que a experiência de diálogo dos<br />
movimentos feminista e de mulheres em seu próprio âmbito possa<br />
contribuir e reforçar a importância do diálogo entre as esquerdas<br />
nesse processo de renovação e atualização histórica. Que a experiência<br />
de diálogo dos movimentos feminista e de mulheres com o Estado<br />
85
IV. No compasso das reformas<br />
e com os demais movimentos sociais possa ser aprofundada pelas<br />
forças de esquerda no país.<br />
Que as forças de esquerda não sucumbam frente a clivagens partidárias<br />
e a projetos de poder excludentes e comprometedores da pluralidade<br />
político-ideológica e da união de forças democráticas necessárias<br />
para o efetivo enfrentamento das desigualdades e exclusões sociais.<br />
Que as esquerdas no Brasil e no mundo se fortaleçam, se ampliem e se<br />
articulem. Que tenham vida nova e vida longa. Este é o nosso desejo,<br />
nossa luta e esperança.<br />
*<br />
86 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
V. Batalha<br />
das Idéias
Iraci del Nero da Costa<br />
Autores<br />
Economista e professor da Faculdade de Economia e Administração da USP.<br />
Fábio Santa Cruz<br />
Mestre em História pela Universidade de Brasília (UnB) e professor de História na<br />
Universidade Estadual de Goiás (UEG).<br />
Oscar d´Alva e Souza Filho<br />
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Ceará. Diretor da Escola<br />
Superior do MP do Ceará. Professor de Ética e de Filosofia do Direito, na Unifor. Livre<br />
Docente em Filosofia do Direito. Email: oscardalva@uol.com.br<br />
João Manoel Pinho de Mello<br />
Ph.D. em economia por Stanford, é professor-assistente do Departamento de Economia<br />
da PUC-Rio.
Uma busca inglória<br />
Iraci del Nero da Costa<br />
A<br />
nosso ver, alguns pensadores marxistas ainda se prendem ferrenhamente<br />
à idéia de que uma eventual mudança socioeconômica<br />
radical dependerá, necessariamente, da liderança ideológica<br />
e da condução política de uma classe social revolucionária.<br />
Dadas as transformações ocorridas no seio do velho proletariado,<br />
alguns buscam um novo “sujeito revolucionário” no seio de segmentos<br />
mais bem preparados do ponto de vista intelectual e profissional;<br />
integrantes de tais segmentos, aptos a chegarem a um refinamento<br />
ideológico mais sofisticado, aglutinar-se-iam numa elite politicamente<br />
atuante a qual viria a comandar as esperadas mudanças radicais. Já<br />
outros, procuram esse “indivíduo universal” nos estratos menos abonados<br />
da sociedade, entre os que “não têm nada a perder, a não ser as<br />
correntes que os agrilhoam”.<br />
De toda sorte, estejam onde estiverem, tais elementos terão de estar<br />
em algum lugar de nossa complexa sociedade de inícios do século<br />
XXI. Tudo se passa como se o momento tido como “objetivo” tivesse<br />
preeminência absoluta sobre o elemento considerado de ordem “subjetiva”.<br />
A nosso juízo, a permanência de tal visão cediça, que já se<br />
mostrava limitada e ultrapassada no passado, é muito perniciosa e<br />
impede que se “limpe o terreno do pensamento marxista” a fim de que<br />
possamos formular novas formas de encarar a realidade atual e de<br />
atuar sobre ela; realidade essa fundamente marcada e alterada, tanto<br />
objetiva como subjetivamente, pela derrocada do assim chamado “socialismo<br />
real”.<br />
89
V. Batalha das Idéias<br />
Uma das mudanças significativas decorrentes da experiência<br />
histórica acumulada no correr dos últimos cento e cinqüenta anos<br />
talvez tenha sido a de liberar uma eventual revolução social futura<br />
das amarras que, como se supunha, a prendiam a uma dada<br />
classe social.<br />
Segundo pensamos, o papel ativo e historicamente significativo<br />
do proletariado culmina e se esgota com a formulação da crítica<br />
do capital efetuada por Marx. Pode-se dizer que a classe operária<br />
desempenhou papel fundamental para indicar à humanidade (aqui<br />
personalizada em Marx), de uma parte, a possibilidade de se subverter<br />
a sociedade burguesa, e, de outra, a de evidenciar a direção<br />
básica dessa mudança: a supressão da propriedade privada sobre os<br />
meios de produção.<br />
A contar da obra de Marx, a revolução deixa de ser uma tarefa<br />
desta ou daquela classe e se torna um programa de mudanças que se<br />
impõe a toda a humanidade. Tal alteração no caráter de uma eventual<br />
revolução futura não é aleatório, pois resulta tanto de causas de ordem<br />
objetiva como de razões de ordem subjetiva. Vejamos, inda que<br />
superficialmente, alguns desses condicionantes.<br />
A concepção de um descolamento da mudança revolucionária<br />
de corte socialista com respeito à classe operária, ou a uma dada<br />
classe social, parece-nos muito incipiente e está a demandar uma<br />
sistematização teórica de largo fôlego; embora saibamos que não<br />
estamos pessoalmente preparados para efetuá-la, sentimos que<br />
podemos intuir sua necessidade e cremos que elementos teóricos<br />
embrionários de tal descolamento já se encontram presentes no<br />
pensamento de Marx, Engels e Lukács. Assim, lê-se no Manifesto<br />
Comunista:<br />
90<br />
Todas as classes dominantes anteriores procuraram garantir sua<br />
posição submetendo a sociedade às suas condições de apropriação.<br />
Os proletários só podem se apoderar das forças produtivas<br />
sociais se abolirem o modo de apropriação típico destas e, por<br />
conseguinte, todo o modo de apropriação em vigor até hoje. Os<br />
proletários nada têm de seu para salvaguardar; eles têm que destruir<br />
todas as seguranças e todas as garantias da propriedade<br />
privada até aqui existentes. (MARX & ENGELS, 1998, p. <strong>18</strong>-19)<br />
Coube a Georg Lukács lançar luz sobre essa observação de Marx e<br />
Engels, destarte, em Historia y consciencia de clase, encontramos, calcada<br />
na citação acima posta, uma longa explanação sobre as tarefas<br />
de novo tipo que se imporiam ao proletariado:<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Um busca inglória<br />
Pues las clases que en anteriores sociedades se vieron llamadas<br />
al dominio y, por lo tanto, fueron capaces de realizar revoluciones<br />
victoriosas, se encontraron subjetivamente ante una tarea<br />
mucho más fácil, a causa precisamente de la inadecuación de<br />
su consciencia de clase respecto de la estructura económica<br />
objetiva, o sea, a causa de su inconsciencia respecto de su propia<br />
función en el proceso del desarrollo social. Les bastó con<br />
imponer sus intereses inmediatos mediante la fuerza de que<br />
disponían, y el sentido social de sus acciones les quedó siempre<br />
oculto, entregado a la ‘astucia de la razón’ en el proceso<br />
social determinado. Pero como el proletariado se encuentra en<br />
la historia con la tarea de una transformación consciente de<br />
la sociedad, tiene que producirse en su consciencia de clase la<br />
contradicción dialéctica entre el interés inmediato y la meta última,<br />
entre el momento singular y el todo. Pues el momento singular<br />
del proceso, la situación concreta con sus concretas exigencias,<br />
es por su naturaleza inmanente a la actual sociedad,<br />
a la sociedad capitalista, se encuentra sometida a sus leyes y<br />
a su estructura económica. Y no se hace revolucionaria más<br />
que se inserta en la concepción total del proceso, cuando se<br />
introduce con referencia al objetivo último, remitiendo concreta<br />
y conscientemente más allá de la sociedad capitalista. Pero eso<br />
significa, subjetivamente considerado, para la consciencia de<br />
clase del proletariado, que la relación dialéctica entre él interés<br />
inmediato y la acción objetiva orientada al todo de la sociedad<br />
queda situada en la consciencia del proletariado mismo, en vez<br />
de desarrollarse, como ocurrió con todas las clases anteriores,<br />
más allá de la consciencia (atribuible), como proceso puramente<br />
objetivo. La victoria revolucionaria del proletariado no es pues,<br />
como para las demás clases anteriores, la realización inmediata<br />
del ser socialmente dado de la clase, sino – como ya lo vio y formuló<br />
agudamente el joven Marx – la autosuperación de la clase.<br />
El Manifiesto Comunista formula esa diferencia del siguiente<br />
modo: ‘Todas las clases anteriores que conquistaron para sí el<br />
dominio intentaron asegurar la posición que ja havian logrado<br />
en la vida sometiendo la sociedad entera a las condiciones de su<br />
logro. Los proletarios no pueden conquistar para sí las fuerzas<br />
sociales de producción más que suprimiendo su propio anterior<br />
modo de apropiación y, con ello, todo modo de apropiación existido<br />
hasta ahora.’ (LUKÁCS, 1975, p. 77-78).<br />
Como se vê imediatamente, o cerne da questão repousa no caráter<br />
totalmente original das transformações a serem implementadas.<br />
Não se trata mais da subordinação de uma ou mais classes sociais<br />
91
V. Batalha das Idéias<br />
aos interesses imediatos de um segmento social dominante, mas da<br />
própria superação das classes sociais; não se trata de impor uma<br />
nova forma de expropriação, mas de eliminar a possibilidade de que<br />
a exploração possa ocorrer. Este elemento de ordem objetiva empresta<br />
um conteúdo novo à própria idéia de revolução, tornando-a uma<br />
tarefa aberta à participação de todas as classes e segmentos sociais,<br />
enfim de toda a parcela da Humanidade favorável à emergência de<br />
uma sociedade mais equânime, ademais, confere um novo status ao<br />
momento subjetivo.<br />
Encontramo-nos, de fato, em face de uma situação limite na qual<br />
o elemento de ordem objetiva deixa de ter um caráter transformador<br />
per se e o elemento subjetivo assume papel determinante, pois o passo<br />
transformador definitivo depende agora, necessariamente, da ação<br />
consciente dos homens.<br />
Para nós, como apontado em trabalhos anteriores realizados juntamente<br />
com José Flávio Motta, o desenvolvimento das formas mercadoria,<br />
dinheiro e capital conhece seu ponto culminante com a emergência<br />
da mercadoria força de trabalho, ou seja, com o estabelecimento do<br />
capitalismo, no âmbito do qual se dá o pleno amadurecimento de tais<br />
formas. Estabelecido em espaço geográfico considerável passou ele a<br />
operar de maneira a subordinar e recriar, à sua feição, todo o espaço<br />
social, econômico e físico com o qual entrava em contato. Observa-se,<br />
assim, não só a emergência da história universal, mas, também, de<br />
uma mudança qualitativa na própria história da humanidade; a partir<br />
de então só persiste o modo de produção capitalista – que a tudo ilumina,<br />
como se diria em termos clássicos – tudo subordinando, condicionando<br />
e determinando.<br />
De outra parte, justamente por ter ocorrido o desenvolvimento<br />
superior daquelas formas, chega-se à derradeira forma de sociabilidade<br />
natural da humanidade; a partir de então – e à medida que<br />
o capital industrial traz implícitas as condições de sua reprodução,<br />
de sua reposição – apenas um movimento do espírito, da ação conscientemente,<br />
poderá conduzir à superação das condições dadas, vale<br />
dizer, do capitalismo, o qual, caso contrário, repor-se-á indefinidamente.<br />
O primeiro passo necessário à sua superação estará, pois, no<br />
estabelecimento da crítica teórica das condições dadas, estudo este<br />
que deverá fundamentar a ação consciente no sentido da negação do<br />
status quo; assim, a crítica da lógica de funcionamento do capital industrial<br />
e do capitalismo define-se como pressuposto imprescindível<br />
à aludida superação.<br />
92<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Um busca inglória<br />
A nosso ver, as análises cujo apogeu atingiu-se com a elaboração<br />
e a publicação de O Capital representaram o primeiro momento do<br />
referido movimento do espírito indispensável à criação das condições<br />
subjetivas para que a humanidade pudesse propor-se a negação do<br />
capitalismo e, portanto, passar a empenhar-se nessa tarefa.<br />
Do exposto, infere-se a existência de dois elementos que estão a<br />
condicionar a possibilidade de se superar o modo de produção capitalista.<br />
Um primeiro, óbvio, de ordem objetiva: a constituição e a<br />
universalização do próprio capitalismo. Outro de ordem subjetiva: a<br />
crítica do sistema (da lógica de funcionamento do capital industrial) e<br />
a formulação, ainda que num mero bosquejo, de uma nova forma de<br />
sociabilidade, a primeira a se assentar inteiramente no espírito e que,<br />
portanto, terá de ser por ele sustentada (isto é, terá como suporte a<br />
ação consciente de homens livremente associados).<br />
Como afirmado, a história natural do homem esgotou-se, chegou<br />
à sua forma superior com a existência do modo de produção capitalista;<br />
impõe-se, agora, sua história “cultural”, uma história propriamente<br />
humana uma vez que posta pelo “espírito” e não uma simples<br />
decorrência da acomodação do homem à situação objetiva que, embora<br />
sendo fruto de sua ação, lhe aparece como algo dado, como uma<br />
criação que lhe é exterior; não como um fato social, mas como um<br />
fato natural.<br />
Já não basta aos homens perseguirem seus interesses imediatos<br />
para dar-se a transformação revolucionária, é preciso que eles transcendam<br />
seus eventuais interesses “egoísticos”, para usar uma linguagem<br />
própria de Antonio Gramsci; o “político” sobrepõe-se ao “econômico”,<br />
o “subjetivo” sobrepuja o “objetivo”. Quais elementos deveriam,<br />
afinal, estar presentes no bosquejo acima referido? Sem pretendermos<br />
sequer arranhar a resposta definitiva a esta questão, não nos furtamos<br />
a tecer os breves comentários que se seguem com o intuito de<br />
encaminhar a discussão. Em primeiro lugar, considerando que terá<br />
de haver livre assentimento com respeito à nova forma de sociabilidade,<br />
é indispensável uma ambiência democrática, vale dizer, a democracia<br />
e os direitos que expressam a cidadania têm de prevalecer,<br />
absoluta e irrestritamente, e a ambos, obviamente, há de estar aliado<br />
o maior grau possível de liberdade pessoal e coletiva. Em segundo,<br />
tal sociedade terá de se erigir com base na negação da propriedade<br />
privada sobre os meios de produção, uma vez que não pode haver, por<br />
hipótese, qualquer mediação entre a produção de bens e serviços e<br />
sua distribuição consoante às necessidades dos indivíduos. Em terceiro,<br />
para a gestão da vida econômica dessa sociedade “pós-capitalista”<br />
precisar-se-á de uma engenharia econômica que não se confunde com<br />
93
V. Batalha das Idéias<br />
a(s) engenharia(s) de hoje, nem com a administração como a conhecemos,<br />
nem com a economia como a praticamos nos dias correntes; a<br />
essa nova engenharia cumprirá estabelecer as relações que vincularão<br />
a produção física com os recursos e as técnicas disponíveis e com as<br />
demandas de caráter individual e social.<br />
Em suma, temos, no capitalismo, um sistema “natural” integrado,<br />
auto-regulado, no qual até mesmo as formas de pensar (a seu favor)<br />
encontram-se “naturalmente” delineadas. De outra parte, deparamonos<br />
com o embrionário pensamento da esquerda, ainda incapaz de<br />
compor um quadro coerente e articulado do que deverá vir a ser, em<br />
idéia, o sistema pelo qual almejam os críticos radicais do capitalismo.<br />
Pensamento este que nos parecerá muito mais rudimentar se tivermos<br />
presente o quanto lhe resta por avançar, pois, por se tratar de<br />
algo “antinatural”, tudo, ou quase tudo, ainda está por ser elaborado.<br />
Pensamento que, por esta mesma causa, defronta-se com o fato de<br />
que não há nenhuma razão de ordem natural conducente ao estabelecimento<br />
e à persistência no tempo de uma nova forma de sociabilidade<br />
humana (as questões aqui sumariadas, como avançado, são tratadas<br />
mais detidamente nos seguintes trabalhos: MOTTA & COSTA, 2000 e<br />
MOTTA & COSTA, 2004).<br />
Talvez seja oportuno lembrar a esta altura desta nota que o empuxo<br />
transformador de caráter objetivo devido à ação da classe operária<br />
e do campesinato é bastante para colocar o capitalismo em xeque,<br />
mas, na ausência do elemento subjetivo aqui referido, o movimento<br />
revolucionário passa a “patinar” e sua direção pode ser empolgada<br />
por grupos políticos que conduzem o corpo social a situações em que<br />
domina o elemento repressivo ou totalitário e nas quais podem vir a<br />
predominar aparelhos burocráticos corruptos e/ou em que a ineficiência<br />
se mostra generalizada. Exemplos de casos como tais encontramos<br />
na URSS, nos países do leste Europeu, na China e em nossa tão<br />
desventurada Cuba.<br />
Se as opiniões acima reportadas estiverem corretas é forçoso reconhecer<br />
que a tarefa colocada ao pensamento de esquerda não é a<br />
de encontrar uma “nova classe redentora”, mas a de mobilizar consciências<br />
para a execução de um projeto político-ideológico consistente<br />
e abrangente, projeto este que nos cabe formular, pois ele ainda nem<br />
sequer foi esboçado em todas as suas dimensões.<br />
94<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Considerações acerca de um sistema equivocado<br />
Considerações acerca de<br />
um sistema equivocado<br />
(cotas raciais nos vestibulares)<br />
Fábio Santa Cruz<br />
No vestibular da Universidade de Brasília, parte das vagas disponíveis<br />
se destina a estudantes negros. E há uma comissão que decide,<br />
analisando as fotos dos vestibulandos, quem pode e quem não<br />
pode concorrer a estas vagas. Trata-se, então, de uma comissão que tem<br />
a atribuição de decidir quem é e quem não é negro. É, sem dúvida, uma<br />
atribuição polêmica. Mas um caso impressionante e absurdo aumentou<br />
ainda mais as dúvidas em relação à legitimidade das decisões tomadas<br />
por tal comissão. Após inscreverem-se no mesmo vestibular da Universidade<br />
de Brasília, dois irmãos solicitaram a sua inclusão no grupo de candidatos<br />
que deveria concorrer àquelas vagas reservadas aos estudantes<br />
negros. Embora os dois irmãos sejam gêmeos idênticos, apenas um deles<br />
teve a sua solicitação atendida.<br />
Pode-se tentar entender o que aconteceu neste caso. Talvez um<br />
examinador (ou um grupo de examinadores) tenha analisado a foto<br />
de um dos irmãos gêmeos e outro examinador (ou outro grupo de<br />
examinadores) tenha analisado a foto do outro irmão, chegando cada<br />
um destes dois examinadores (ou cada um destes dois grupos de examinadores)<br />
a conclusões diferentes acerca das fotos de duas pessoas<br />
idênticas. Caso tenha sido isso o que aconteceu, percebe-se como pode<br />
variar de examinador para examinador (ou de grupo de examinadores<br />
para grupo de examinadores) a conclusão acerca da condição racial de<br />
um estudante. O procedimento, assim, mostra-se claramente inexato,<br />
defeituoso e injusto.<br />
Caso as fotos dos dois irmãos gêmeos tenham sido analisadas pelo<br />
mesmo examinador (ou pelo mesmo grupo de examinadores), a situação<br />
é ainda mais problemática. Significa que uma mesma pessoa (ou<br />
um mesmo grupo de pessoas) pode achar que um sujeito é negro e<br />
que, por outro lado, alguém idêntico a este mesmo sujeito não é. Neste<br />
caso, sobressai ainda mais a inexatidão, a defeituosidade e a injustiça<br />
do que está sendo feito na Universidade de Brasília.<br />
95
V. Batalha das Idéias<br />
O caso é grave, pois demonstra que um sistema visivelmente<br />
equivocado e, portanto, acintosamente injusto está influenciando<br />
de forma decisiva o processo de admissão de novos alunos em<br />
uma das mais importantes universidades públicas do Brasil. Tendo<br />
em vista o que aconteceu no caso destes irmãos gêmeos idênticos,<br />
é provável que, em outros vestibulares, jovens que não foram<br />
vítimas de racismo ao longo de suas vidas tenham sido considerados<br />
estudantes negros pela Universidade de Brasília. E é provável<br />
que tenha ocorrido o inverso também. Enfim, este sistema de análise<br />
de fotos, que já era duvidoso e controverso, caiu em total descrédito<br />
após a divulgação deste escandaloso caso de duas pessoas fisicamente<br />
iguais que foram consideradas diferentes do ponto de vista racial.<br />
Qualquer outro procedimento que tente dividir a população<br />
brasileira em grupos raciais diferentes também terá problemas<br />
sérios para se sustentar. É muito difícil (talvez seja impossível)<br />
estabelecer critérios justos e exatos para definir qual a raça das<br />
pessoas, ainda mais em um país de tamanha miscigenação como<br />
o Brasil. Melhor seria pensar em um país em que todos pudessem<br />
ser cidadãos com direitos iguais, tenha cada um a estrutura genética<br />
que tiver. Este, aliás, era um dos principais anseios de grandes<br />
anti-segregacionistas que entraram para a história, como Martin Luther<br />
King. Sua luta foi para que cada pessoa pudesse ser tratada pelo<br />
Estado sem que se levasse em consideração a cor de sua pele, o seu<br />
tipo de cabelo ou qualquer outra característica de sua aparência externa.<br />
O que a Universidade de Brasília está fazendo, vestibular após<br />
vestibular, é justamente o contrário.<br />
No Brasil, o sistema de cotas raciais no processo de admissão a algumas<br />
instituições públicas de ensino superior foi proposto e, depois, oficialmente<br />
instituído sem que houvesse grande resistência por parte da<br />
sociedade. As manifestações contrárias a tal sistema foram reduzidas e<br />
tímidas. Por seu caráter notavelmente polêmico e complexo, o assunto<br />
deveria ser tratado de forma bem mais detida, mas parecia que havia algo<br />
dificultando a realização de um debate mais amplo e franco, que avaliasse<br />
atenciosamente o que estava sendo proposto e qual seria, sob<br />
diversos aspectos, o seu impacto. O que estava dificultando este debate<br />
era o temor de que qualquer palavra dita contra este sistema de<br />
cotas raciais fosse tratada como uma imprecação contra a raça negra.<br />
Segmentos progressistas da sociedade brasileira não tinham coragem<br />
de se opor a esta proposta porque temiam ser chamados de racistas,<br />
reacionários e antipopulares. Parte dos brasileiros foi tomada por um<br />
certo sentimento de culpa coletiva pelo nosso passado escravista e,<br />
96<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Considerações acerca de um sistema equivocado<br />
portanto, achava reprovável opor-se às reivindicações dos movimentos<br />
de defesa da raça negra.<br />
Passados alguns anos, há cada vez mais resistência ao sistema de cotas<br />
raciais nos vestibulares. Não é difícil entender porque isto está acontecendo.<br />
Depois de instaurado este sistema, a injustiça e a defeituosidade<br />
que o caracteriza vem se mostrando indisfarçável. Tão indisfarçável<br />
que há cada vez mais descontentamento e indignação contra tal sistema.<br />
Descontentamento e indignação que, lamentavelmente, podem dar<br />
origem a um aguçamento da rivalidade entre pessoas que têm a pele<br />
mais clara e mais escura (este, aliás, é outro problema decorrente da<br />
descabida tentativa de dividir os brasileiros entre negros e brancos).<br />
Já se sabe o que precisa ser feito para que jovens advindos de<br />
segmentos marginalizados da sociedade passem a ingressar com<br />
maior freqüência no ensino superior público e se dê início, destarte,<br />
a uma grande mudança de caráter popular e democrático em nosso<br />
país. O que pode promover tamanha mudança (que seria uma verdadeira<br />
revolução silenciosa) é o melhoramento amplo e contínuo das<br />
escolas públicas de nível fundamental e médio, onde estuda grande<br />
parte dos injustiçados do Brasil. O sistema de cotas raciais nos vestibulares,<br />
ao contrário, promove mudanças pífias, pois não faz mais<br />
do que criar um atalho para que alguns jovens de pele mais escura<br />
(mas, em sua maioria, de classe média) ingressem com maior facilidade<br />
no ensino superior público. Além disso, pode-se dizer que este sistema<br />
possui aspectos simbólico-emocionais (uns se sentem vingados, outros<br />
aliviam a culpa que sentem por terem ascendentes escravistas) e também<br />
pode ser uma ótima oportunidade para se satisfazer intentos demagógico-populistas.<br />
Não são, certamente, argumentos que justifiquem<br />
a adoção deste sistema. Trata-se, afinal, de um sistema evidentemente<br />
equivocado e injusto, do qual podem surgir casos tão bisonhos e ridículos<br />
como este dos irmãos gêmeos idênticos revelado pela imprensa.<br />
*<br />
97
V. Batalha das Idéias<br />
Introdução ao tema<br />
98<br />
Estado Democrático &<br />
Segurança Pública<br />
Oscar d´Alva e Souza Filho<br />
O Estado de Direito é uma construção do idealismo alemão, de<br />
fonte kantiana, preconizadora da necessidade de uma ordem jurídica<br />
coercitiva que garantisse tudo aquilo que a lei moral indicava como<br />
bem comum, mas não podia realizar, à míngua de força impositiva.<br />
O Direito seria, pois, o império da razão legisladora do Estado,<br />
normatizando e disciplinando as relações sociais, com imparcialidade<br />
e generalidade, de modo a conseguir uma ordem comunitária eficaz e<br />
plena.<br />
Ocorreu, contudo, que a “ratio” ou lógica jurídica editada pelo poder<br />
político do Estado se viu trombando com os muros da realidade<br />
social, esta, contraditória e dialética, trazendo em seu bojo classes<br />
sociais antagônicas e com interesses concretamente inconciliáveis,<br />
burguesia e proletariado.<br />
O Direito perdeu, de logo, sua feição racionalista e ideal de agente<br />
produtor de legislação disciplinadora e pacificadora. Assumiu a postura<br />
de ordenação, de comando e de mandamento legalista, traduzindo,<br />
sem rodeios, uma vontade política dominante. Vontade da classe<br />
dominante, pois.<br />
A partir de então, com acentuado sentido classista, o Direto Positivo<br />
deixou de ser uma “ratio” e aceitou de bom grado ser uma vontade,<br />
uma “voluntas”. Ao invés de se basear numa idéia de dever, baseou-se<br />
na realidade de seu poder policial, de sua capacidade de constranger.<br />
Mas não renunciou a nenhuma explicação ideológica legitimadora de<br />
seu papel: manter a ordem, a paz e a felicidade dos homens. Essa<br />
a cantilena ideológica do Estado Moderno e do seu Direito Positivo.<br />
Nenhum sistema positivo ousa dizer com clareza que sua base original<br />
é a força política real, impositiva, sua capacidade de constranger.<br />
O limite jurídico do poder político é a força do grupo ou da classe governante.<br />
Tal como ensinaram Maquiavel, Hobbes, Spinoza e Marx.<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Estado Democrático & Segurança Pública<br />
A partir do Estado moderno já se evidencia que a violência gerada<br />
pelos problemas sociais que consumaram o episódio da Comuna de<br />
Paris (<strong>18</strong>70) seria respondida pela violência legal do próprio Estado,<br />
através de seu poder de polícia.<br />
Alguns estados especializam seu aparelho policial repressivo como<br />
solução formal e material de manter a ordem e a paz políticas. Cria-se<br />
a concepção segundo a qual a questão social deve ser resolvida com<br />
medidas policiais adequadas.<br />
Nos países europeus surgem elogios ao modo investigador da polícia<br />
inglesa e à objetividade prática da polícia francesa. Depois na<br />
Itália, também em <strong>18</strong>70, César Lombroso explica a criminalidade a<br />
partir das características inatas de alguns indivíduos que nasceriam<br />
destinados ao crime...<br />
É a fase áurea do chamado jus-positivismo ou positivismo jurídico,<br />
doutrina do Direito que o identifica e o restringe ao espectro normativo.<br />
Lei e Direito significariam a mesma coisa.<br />
A experiência brasileira<br />
No Brasil, a tendência prática-objetiva da polícia francesa (que<br />
desvendava o crime no primeiro ato do inquérito, o interrogatório)<br />
predominou no Rio de Janeiro, em São Paulo e depois em todas as<br />
capitais federadas. A capacidade de “conseguir confissões” mediante<br />
instrumentos de tortura física e psicológica marcou e ainda hoje marca<br />
a identidade de nossa polícia. Tudo conforme a ideologia e a prática<br />
autoritária de nossas elites.<br />
Nos dias atuais, verificamos uma mudança considerável na estrutura<br />
geral do Estado e do poder da sociedade civil. Temos uma proposta<br />
legislativa ideologicamente democrática, baseada na idéia grega de<br />
isonomia formal, ou seja, a igualdade abstrata de todos os cidadãos<br />
de nossa República.<br />
A Carta constituinte de 1988 foi publicada num instante político<br />
de grande aspiração de liberdade e ainda sob suspiros de um intenso<br />
sofrimento advindo da experiência dos governos militares de 1964 a<br />
1985. Por isso nossa Carta Magna foi desenhada com ideologizações<br />
humanistas e progressistas que se assentaram em nossa Carta Maior<br />
como uma Intenção principiológica, eis que, na prática, nada mais se<br />
permitia ao povo que essa faculdade ingênua de sonhar, de aspirar.<br />
Devolvido o poder à sociedade civil, iniciamos uma fase nova chamada<br />
de Nova República, onde mais uma vez o povo republicano foi<br />
99
V. Batalha das Idéias<br />
substituído por “representantes” que se haviam credenciado na luta<br />
democrática de resistência ao militarismo. PMDB & Cia. <strong>PD</strong>T, PTB,<br />
PCdoB, PSDB, PT et caterva. Todos seguindo o ensinamento maquiavélico<br />
segundo o qual “o Partido deve lutar pelo poder”, o “governo<br />
deve lutar para mantê-lo”...<br />
Deu no que deu. Revelaram-se “farinha do mesmo saco”. Diferentes<br />
na expressão do discurso dialógico e iguais nas atitudes intestinas<br />
em prol da posse do poder político e econômico.<br />
A decepção com a Nova República e a falência do<br />
governo civil<br />
A Nova República revelou-se tão velha como a anterior. De Sarney<br />
a Collor de Melo. De Fernando Henrique a FHC. De Lula da Silva<br />
conciliador das elites e do FMI ao Lula que não sabe de nada, que<br />
desconhece o que fazem seus ministros e assessores diretos. O Lula<br />
do mensalão, dos sanguessugas e das promessas de PACs e outras<br />
matreirices...<br />
A constatação objetiva é que o Estado brasileiro ruiu. Faliu, não<br />
cumpriu com sua finalidade institucional e foi substituído nos maiores<br />
estados federados por outra trupe de corruptos que, pelo menos,<br />
não enganam. Não se dizem representantes do nosso povo. Tão bandidos<br />
como os nossos 300 picaretas, mas bem armados, com uma infraestrutura<br />
econômica e financeira alimentada pelo mercado internacional<br />
de drogas e de contrabando de armas. E de sobra com capacidade<br />
financeira para comprar deputados estaduais, federais, e pagar a toda<br />
uma corporação da Polícia Militar, como se viu no Rio de Janeiro.<br />
O poder paralelo, de um Estado-bandido, não-representativo e<br />
contra a lei positiva instituída, se afirma a cada dia, de dentro dos Presídios<br />
ou nas favelas, através de organizações complexas e eficientes<br />
em seus propósitos, como o CV (Comando Vermelho) e o PCC (Primeiro<br />
Comando da Capital).<br />
De um lado, a corrupção absoluta dos poderes políticos e das instituições<br />
do Estado republicano. Registremos o esforço indigente de<br />
alguns setores do DPF, do MPF e dos juízes pela democracia. De outro<br />
lado, a falta de assistência à sociedade. O primeiro emprego é dado<br />
pelo tráfico de drogas. O Estado civil não cumpre seu papel. Faltam<br />
escolas, falta habitação, falta emprego, falta saúde. Sobra dinheiro<br />
de uma tributação selvagem e imoral que é desviado, dia a dia para a<br />
corrupção demagógica dos poderes instituídos. O que fazer?<br />
100<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Estado Democrático & Segurança Pública<br />
A Nova República repete o discurso do início da época moderna<br />
e das nossas primeiras experiências republicanas: “polícia na rua”,<br />
mais viaturas, mais tanques, mais armamentos. Ou de outro modo:<br />
leis mais severas etc. Como se a questão fosse policial ou legislativa.<br />
A solução democrática para a Segurança Pública<br />
Só um choque de democracia pode salvar o nosso pretenso Estado<br />
Democrático.<br />
A Segurança Pública é uma questão da sociedade brasileira e do<br />
nosso Estado. É necessário que haja um diálogo entre as instituições<br />
do Estado responsáveis pela Segurança Pública (delegados de polícia<br />
civil e federal, polícias militares, ministérios públicos: federal dos Estados<br />
e territórios, juízes federais e estaduais e defensores públicos).<br />
Todas essas autoridades deverão calçar as “sandálias da humildade”<br />
e conversar com a sociedade civil, que é a destinatária da Segurança<br />
Pública. É imperativo que as associações comunitárias, os sindicatos,<br />
os clubes sociais de serviços, a juventude, as mulheres, as lideranças<br />
de bairro, políticos, religiosos, gregos e troianos, todos enfim se irmanem<br />
nesse esforço social de paz e de construção solidária.<br />
Será que ninguém entendeu uma coisa tão óbvia? Que se criem<br />
Centros Integrados de Defesa Social (que podem ser edificados com<br />
dinheiro dos municípios ou com verbas retiradas da corrupção) onde<br />
ali funcionem diariamente juizados cíveis e criminais, junto a promotorias<br />
cíveis e criminais, ao lado de defensorias públicas, de delegacias<br />
civis, de polícias militares, todos fiscalizados pela comunidade, pela<br />
imprensa democrática, por rádios comunitárias. Com controle social e<br />
democrático dos poderes públicos.<br />
E nada impede que ao lado desses Centros funcionem escolas com<br />
dois turnos de funcionamento para nossa infância e juventude, clubes<br />
de serviços etc. Hospitais, centros de artesanato, programas municipais<br />
e estaduais de qualificação de mão-de-obra etc.<br />
Observe-se que o mais difícil e mais caro já existe dentro da estrutura<br />
do Estado: polícias, promotores, juízes e defensores públicos.<br />
Só que estão afastados e separados da sociedade civil a que deveriam<br />
servir. Falta apenas um plano democrático, uma vontade política,<br />
para mudar, revolucionar, transformar. Mas tem que ser com o povo<br />
participando... Esse é o grande problema, nossos partidos, nossa<br />
esquerda, nossos políticos consideram-se auto-suficientes como representantes<br />
do povo, e nessa condição descartam a necessidade de<br />
ouvir a população.<br />
101
V. Batalha das Idéias<br />
Nossa República representativa se basta na representação legislativa<br />
e nos partidos autoritários e corruptos que temos. Não há solução<br />
democrática sem a participação popular. Ou estamos cometendo uma<br />
heresia?<br />
102<br />
*<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Crime, castigo, determinismo socioeconômico<br />
Crime, castigo, determinismo<br />
socioeconômico<br />
João Manoel Pinho de Mello<br />
O<br />
assassinato do garoto João Hélio Fernandes causou indignada<br />
reação da sociedade civil, clamando por ações enérgicas. Talvez<br />
esse crime chocante possa ensejar, finalmente, um debate<br />
sério sobre segurança pública no Brasil. Que a emoção do momento<br />
sirva de propulsor da ação, impedindo que a última de muitas atrocidades<br />
não caia no esquecimento, algo infelizmente provável. Mas que<br />
prevaleça a racionalidade. Necessitamos de soluções que sejam viáveis<br />
e que funcionem.<br />
Ao apresentar parte da evidência científica produzida na literatura<br />
econômica a respeito dos determinantes da criminalidade, espero<br />
que este artigo contribua para o debate. É importante enfatizar o<br />
caráter científico da evidência. Criminalidade é assunto sério, que<br />
também merece o rigor e o distanciamento da ciência.<br />
Separemos os crimes em dois grandes grupos: os racionais e os<br />
emocionais. Comecemos pelos últimos, com um exemplo ilustrativo<br />
da importância do rigor científico: a relação entre consumo de álcool<br />
em bares e crime. A revista Veja, de 11/2/2007 reporta, com<br />
a chancela de “especialistas ouvidos”, uma queda de 68% na taxa<br />
de homicídio em Diadema, município da Grande São Paulo, supostamente<br />
devida à adoção de restrições ao funcionamento de bares e<br />
restaurantes em determinados períodos do dia (“lei seca”). De fato, se<br />
compararmos as taxas de homicídio de Diadema antes e depois dessa<br />
providência, chegaremos a algo próximo daquele número. Há, no<br />
entanto, duas complicações. Diadema adotou simultaneamente várias<br />
outras medidas de contenção da criminalidade. E nesse período<br />
os homicídios estavam em queda livre na Grande São Paulo em geral.<br />
Olhando somente para Diadema, é praticamente impossível saber se<br />
a queda alardeada se deve à “lei seca”, às demais medidas, ou ao fato<br />
de que os homicídios já estavam em queda na Grande São Paulo e,<br />
portanto, cairiam com ou sem a “lei seca”.<br />
Há, no entanto, outras cidades da Grande São Paulo que adotaram<br />
a “lei seca” e, mais importante, outras tantas que não adotaram.<br />
103
V. Batalha das Idéias<br />
Comparando a dinâmica da taxa de homicídio entre cidades que adotaram<br />
e que não adotaram a “lei seca”, Ciro Biderman, Alexandre<br />
Schneider e eu contornamos os problemas descritos e chegamos a<br />
um número menor, mas ainda impressionante: a “lei seca” causa<br />
uma queda de 15% nos homicídios. Ora, se a conclusão é a mesma,<br />
a discussão não é meramente acadêmica? Não, porque, além de ter<br />
certeza, é importante saber a magnitude da queda.<br />
Se é de 68%, então temos uma panacéia: fechar os bares e - por<br />
que não, por extensão? - ilegalizar o consumo de álcool. Assim, no<br />
mínimo 68% do problema estaria resolvido. Fácil, não? Aí, adotamos<br />
a lei e alguma outra coisa que aumenta os homicídios ocorre<br />
simultaneamente. Se o efeito é de somente 15%, essa força contrária<br />
pode muito bem anular o benefício da “lei seca”. Desapontamo-nos<br />
e voltamos atrás. Resultado: por imaginar que tínhamos a solução<br />
mágica, deixamos de colocar em prática uma política pública que<br />
funcionaria.<br />
As declarações públicas sugerem que há dois grupos de opinião,<br />
aparentemente antagônicos. O primeiro é o “lei-e-ordem”, associado<br />
à “direita”, para quem a solução é reprimir com penas cada vez mais<br />
duras. O segundo é o “razões-de-fundo”, geralmente “esquerdista”,<br />
segundo o qual a questão criminal é eminentemente social, ou seja,<br />
falta de renda, educação, perspectiva de modo geral. Esse debate somente<br />
se aplica aos crimes cometidos por razões racionais. Contudo,<br />
tal conflito de opiniões é tão artificial quanto a dicotomia esquerda/<br />
direita.<br />
Lei e ordem e razões de fundo são faces de uma mesma moeda:<br />
determinam o “lucro” com atos criminosos. Lei e ordem determinam<br />
o custo de cometer atos ilegais. Mais policiamento ostensivo aumenta<br />
a chance de a pessoa ser presa - o que sai mais caro se as chances de<br />
condenação são altas e longas as penas. As razões de fundo afetam<br />
o benefício líquido do crime, ou seja, quanto o criminoso recebe na<br />
atividade criminosa, descontado o que ele ganharia se não estivesse<br />
na criminalidade. Por exemplo, se a pessoa é mais educada, seu salário<br />
tende a ser maior na atividade legal e, conseqüentemente, menor<br />
seu ganho líquido da atividade criminal, supondo que educação não<br />
ajuda na “profissão” marginal. Esse arcabouço ajuda a organizar o<br />
raciocínio. Mais interessante ainda, porém, é a evidência empírica.<br />
Primeiro, os temas referentes a lei e ordem. Para não perder tempo<br />
com debates já resolvidos, coloquemos um ponto final na polêmica<br />
sobre se policiamento diminui ou não a criminalidade. O bom<br />
senso diz que sim e há vasta evidência empírica a esse respeito. A<br />
104<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Crime, castigo, determinismo socioeconômico<br />
dificuldade em verificar empiricamente essa relação vinha do fato de<br />
que há mais polícia em lugares onde há mais crime. Ou seja, polícia<br />
causa queda no crime, mas crime causa aumento do policiamento.<br />
Nesse caso, não é claro como fica a relação crua entre as duas variáveis.<br />
Uma contribuição importante dos economistas para compreensão<br />
dos determinantes da criminalidade foi trazer uma metodologia<br />
empírica poderosa para “separar” efeitos contrários, como é o caso<br />
polícia-crime.<br />
Se não me crêem, lembrem-se do pandemônio, em Nova Orleans,<br />
que se seguiu ao Katrina, quando a autoridade pública desapareceu.<br />
Um alerta: como seria de esperar, policiamento afeta de maneira<br />
mais relevante os delitos mais “racionais”, como furto e roubo.<br />
Homicídio, que muitas vezes ocorre por razões emocionais (veja-se o<br />
exemplo da “lei seca”), não é muito afetado por policiamento. O efeito<br />
é praticamente nulo sobre estupro, crime cuja motivação é basicamente<br />
emocional. Mas tragédias como a de João Hélio Fernandes,<br />
um latrocínio, seriam menos prováveis.<br />
Além da possibilidade de o criminoso ser pego, o “custo” do crime<br />
aumenta quando a probabilidade de condenação e a pena são maiores.<br />
Fato amplamente documentado: maiores penas estão fortemente<br />
associadas com menor criminalidade. Há dúvida, no entanto, se o<br />
efeito é o “desestímulo” ou a “incapacitação”. O primeiro é auto-evidente.<br />
O segundo pode ser entendido como “um delinqüente a mais<br />
na cadeia é um bandido a menos na rua”. Em dois exemplos de boa<br />
ciência, o economista americano Steven Levitt mostrou que ambos os<br />
efeitos são relevantes, mas o efeito “desestímulo” é mais importante.<br />
Para separar os dois efeitos, dois procedimentos engenhosos foram<br />
usados. Em um dos trabalhos (em co-autoria com Daniel Kessler),<br />
Levitt usou o aumento no tempo de sentenças para estimar<br />
o efeito “desestímulo”: no curto prazo, o aumento da sentença não<br />
produziria o efeito “incapacitação”, que somente seria sentido lá na<br />
frente, nos anos adicionais.<br />
Em outro trabalho, Levitt usou o fato de que, se o efeito “incapacitação”<br />
é o relevante, aumentos de sentença para um tipo de crime<br />
diminuiriam os outros tipos de crime. Se o relevante é o efeito “desestímulo”,<br />
mais dureza em um tipo de crime aumenta os outros<br />
tipos de crime, porque seria de esperar que os marginais trocassem o<br />
caro pelo barato. Novamente, o interesse em distinguir os dois efeitos<br />
não é uma curiosidade intelectual. Se o efeito “desestímulo” é mais<br />
importante, como foi documentado, é preciso aumentar todas as sentenças<br />
uniformemente.<br />
105
V. Batalha das Idéias<br />
O efeito “desestímulo” tende a ser mais importante para os níveis<br />
baixos de pena. Por exemplo, aumentar a pena de 5 para 20 anos<br />
desencoraja mais do que aumentar de 30 para 45. Por quê? Talvez<br />
porque 30 anos já seja um horizonte tão longínquo para a maioria<br />
das pessoas que a adição de outros 15 não faz grande diferença.<br />
Por exemplo, não há documentação para um efeito “desestímulo” da<br />
pena de morte nos EUA. Não chega a surpreender, porque o efeito é<br />
provavelmente nulo.<br />
Crimes para os quais se aplicaria a pena de morte seriam punidos,<br />
de outro modo, com 30 anos de encarceramento ou com prisão<br />
perpétua. O custo adicional é baixo. Outra razão é que os crimes para<br />
os quais a sociedade americana está disposta a usar a pena de morte<br />
têm, na maioria esmagadora das vezes, uma forte raiz irracional. No<br />
nosso caso, não sabemos muito bem se a prisão perpétua terá algum<br />
efeito além do que se verificaria com 30 anos de prisão. Se eu tivesse<br />
que apostar diria que não, pela mesma razão de que pena de morte,<br />
aparentemente, não detém a criminalidade.<br />
Isso indica que, apesar de o aumento das penas funcionar, está<br />
longe de ser o cura-tudo. Mais importante é fazer valer as punições<br />
atuais, de modo que se cumpram as penas já estabelecidas e se acabem<br />
com os subterfúgios - 1/6 da pena, apelação em liberdade, progressões<br />
para regime semi-aberto e outros artifícios que fazem com<br />
que as punições sejam, em média, muito brandas.<br />
Como o efeito “desestímulo” é forte para penas relativamente baixas,<br />
e praticamente não há pena para uma faixa etária especialmente<br />
problemática, entre 15 e <strong>18</strong> anos, a antecipação da maioridade<br />
penal provavelmente diminuiria a criminalidade. Mas, novamente,<br />
isso não deve ser visto como panacéia. A assimetria na punição de<br />
maiores e menores tem dois efeitos: “substituição” e “geral”. O primeiro<br />
ocorre quando os criminosos colocam os menores para cometer<br />
atrocidades.<br />
Se a maioridade penal fosse diminuída, parte desses atos continuaria<br />
a ser cometida, mas agora pelos mais brutais e não pelos<br />
legalmente menores. A outra parte se refere ao efeito “geral”, advindo<br />
do fato de que, tudo o mais permanecendo constante, a punição<br />
média aumentou. Pode-se argumentar, no entanto, que, mesmo que<br />
somente houvesse o efeito “substituição”, ainda assim seria desejável<br />
diminuir a maioridade penal, pois os mais velhos passariam a cometer<br />
os crimes, o que por si só seria “bom”.<br />
Passemos às “razões de fundo”. Surpreendentemente, a relação<br />
entre crime e desemprego é ambígua. Enquanto há alguma evidên-<br />
106<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Crime, castigo, determinismo socioeconômico<br />
cia de que altíssimos níveis de desemprego estão empiricamente associados<br />
à maior ocorrência de crimes, essa relação não sobrevive<br />
em níveis de emprego mais mundanos. Também surpreendente é a<br />
dificuldade de documentar uma relação incontestável entre educação<br />
e crime. Usando dados individuais, alguns estudos chegam à<br />
relação, mais esperada, de que os criminosos são, em média, menos<br />
educados. Com dados agregados, no entanto, encontrou-se a relação<br />
contrária.<br />
Desigualdade de renda causa crime, mesmo levando-se em conta<br />
que, para um mesmo nível de renda média, desigualdade maior significa<br />
mais gente abaixo da linha de pobreza. Das “razões de fundo”,<br />
demografia talvez seja aquela mais fortemente ligada à criminalidade.<br />
Quanto maior a proporção de jovens do sexo masculino entre 15<br />
e 25 anos, maior será a criminalidade.<br />
Nos grandes centros urbanos brasileiros, é difícil dissociar criminalidade<br />
do tráfico de entorpecentes. Nesse caso, a própria ilegalidade<br />
provoca ainda mais ilegalidade. Uma razão é a falta de meios<br />
legais para resolução de conflitos. Como o vendedor não pode processar<br />
o cliente ou distribuidor inadimplente, reputação se torna a<br />
alma do negócio. A ameaça de assassinato, que às vezes tem que ser<br />
cumprida, torna-se instrumento de cobrança. Além disso, não há<br />
comprovação de que a proibição diminui o consumo de psicotrópicos.<br />
Apesar de não conclusivo, o fato de que, ao que tudo indica, o<br />
consumo de álcool não caiu na década de 1920 nos EUA é bastante<br />
sugestivo de que a proibição pouco ajuda.<br />
Em resumo, com base na evidência empírica da literatura econômica,<br />
parece que, de fato, nos faltam lei e ordem: investir em policiamento<br />
ostensivo, discutir a questão da maioridade penal, aumentar<br />
as penas (principalmente aquelas atualmente muito baixas)<br />
e, sobretudo, rever o processo penal, para que as punições atuais<br />
sejam cumpridas (por todos, ricos e pobres). Melhorar a distribuição<br />
de renda também diminuiria a criminalidade, mas demoraria a surtir<br />
efeito. Esperar que as mudanças demográficas nos salvem seria<br />
suicídio. Legalizar as drogas não parece ser o caminho mais prático,<br />
politicamente.<br />
É importante lembrar que prevenção não é a única razão que deveria<br />
nortear a decisão a respeito da severidade da pena. Pode haver,<br />
por exemplo, razões normativas de justiça para aumentar as penas,<br />
inclusive para evitar que a justiça seja feita à revelia do Estado; ou<br />
razões sociais, para proteger as crianças e os adolescentes. Essas<br />
outras dimensões devem ser levadas em conta, naturalmente.<br />
107
V. Batalha das Idéias<br />
Finalmente, enquanto as “razões de fundo” são pouco flexíveis no<br />
curto prazo, as variáveis que afetam o “custo” da atividade criminal<br />
podem ser ajustadas rapidamente. Mesmo que concluíssemos que as<br />
“razões de fundo” são mais importantes, vem à mente a analogia do<br />
médico de plantão. O paciente chega com enfarte, ele opera. Nesse<br />
momento, há que salvar o paciente, e não perguntar sobre sua dieta.<br />
O Brasil está tendo um enfarte na segurança pública.<br />
108<br />
*<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
VI. Ensaio
110<br />
Autores<br />
Giuseppe Vacca<br />
Presidente da <strong>Fundação</strong> Intituto Gramsci, em Roma.
A esquerda italiana e o<br />
reformismo no século XX 1<br />
Giuseppe Vacca<br />
Na segunda metade dos anos 1990, uma singular sincronia<br />
eleitoral fez com que, em treze dos quinzes países da União<br />
Européia, partidos socialistas ou coalizões de centro-esquerda<br />
se encontrassem pela primeira vez no governo ao mesmo tempo.<br />
O acontecimento era de alcance extraordinário: nos anos oitenta,<br />
em todos os países europeus o reformismo socialista havia registrado<br />
uma crise de consenso e, em 1989, fora desafiado pela orgia em<br />
torno da “morte do comunismo”, de que a opinião pública mundial<br />
parecia ter se convencido. Para compreender como teve origem tal<br />
acontecimento, pode ser útil fazer uma comparação entre o “velho”<br />
reformismo, que travou suas batalhas no horizonte da política nacional,<br />
e o “novo” reformismo, que enfrenta os desafios da supranacionalidade.<br />
A comparação terá uma inflexão particular, uma vez<br />
que o foco do discurso recai sobre a Itália, que, como se sabe, não<br />
conheceu e ainda não conhece a existência de um partido reformista<br />
de nível europeu.<br />
1 Este texto é o prólogo do livro Il riformismo italiano — dalla fine della guerra fredda<br />
alle sfide future (2006) e foi também publicado em La Insignia. Por razões estritas de<br />
espaço, a editoria foi obrigada a eliminar as notas referenciais de obras em italiano.<br />
O texto original está em Gramsci e o Brasil – www.gramsci.org.<br />
111
VI. Ensaio<br />
A crise dos anos trinta e as primeiras experiências de<br />
governos reformistas<br />
Os sujeitos políticos se definem através dos desafios a que tentam<br />
responder com base nos valores, nas visões e nos interesses que os caracterizam.<br />
Em outras palavras, definem-se reciprocamente com base<br />
nos diferentes modos pelos quais se referem aos processos históricos<br />
gerais. Portanto, devemos estabelecer preliminarmente qual é o termo<br />
de comparação do reformismo e o gênero próximo a que se refere. O<br />
tema não é banal, antes de mais nada porque nos anos mais recentes<br />
o termo “reformismo” sofreu uma dilatação semântica despropositada,<br />
de modo que, especialmente na linguagem jornalística, ele é empregado<br />
para indicar qualquer tipo de governo – de esquerda, de centro ou<br />
de direita – que implemente reformas. No entanto, em sentido próprio,<br />
a “questão do reformismo” diz respeito à história do socialismo. Mas,<br />
para focalizar o problema, esta delimitação do campo não basta. Ainda<br />
se deve ajustar contas com a idéia muito difundida de que os movimentos<br />
políticos distinguem-se com base na sua identidade, definida<br />
de uma vez por todas; de tal sorte, é opinião corrente que o socialismo<br />
encarne a idéia de igualdade, de conteúdos variáveis, mas sempre<br />
igual a si mesma como valor. Na “eterna” contraposição entre direita<br />
e esquerda, ela identificaria a esquerda e, portanto, o reformismo, que<br />
é uma parte essencial desta esquerda. Na realidade, as coisas não são<br />
assim: direita e esquerda redefinem-se reciprocamente no tempo e no<br />
espaço com base na mudança de critérios de realinhamento das forças<br />
sociais e políticas determinados pelas vicissitudes nacionais e mundiais.<br />
Mas, mesmo depois desta especificação, o conceito ainda não<br />
está inteiramente esclarecido. Com efeito, na Itália ainda prevalece a<br />
idéia de que reformismo seja sinônimo de “gradualismo”: os reformistas<br />
representariam aquela parte da esquerda que aceita subordinar<br />
seus fins aos ritmos e compatibilidades do “jogo democrático”: seu<br />
oposto seriam os “revolucionários”, que, ao contrário, não aceitariam<br />
tais condições. Esta definição é patentemente anacrônica: está presa<br />
ao grande debate do final do século XIX, no qual o socialismo europeu<br />
se dividiu entre “reformistas” e “revolucionários” com base em dois modos<br />
diferentes de conceber o fim último (a “superação do capitalismo”).<br />
Como se sabe, a divisão se tornou dilaceradora com o nascimento do<br />
movimento comunista e o abandono do “fim último” por parte dos reformistas.<br />
Mas, de um ponto de vista histórico, já no curso dos anos<br />
vinte o movimento comunista pôs de lado a perspectiva da “revolução<br />
mundial”, e não se pode negar que desde então, na Europa, também<br />
tenha sido “gradualista”. A divisão, pois, ficou limitada aos meios.<br />
112<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
A esquerda italiana e o reformismo no século XX<br />
Apesar disso, permaneceu uma contraposição radical, uma vez<br />
que passava pelo reconhecimento ou pelo desconhecimento da democracia<br />
como regra absoluta do jogo. Sua aceitação por parte da socialdemocracia<br />
não era só uma “escolha de valor”, mas também decorria<br />
de uma visão da “estabilização capitalista”: ela a percebia não só<br />
como a hipótese mais provável (depois da catástrofe da guerra), mas<br />
também a mais desejável, e a punha como base de uma “estratégia<br />
de compromisso”, destinada a favorecer a estabilidade, em troca da<br />
democracia e do Welfare. Ao contrário, para o movimento comunista,<br />
a estabilização capitalista não interrompia a “crise geral do capitalismo”<br />
e tornava inteiramente transitórias (além de circunscritas aos<br />
países capitalistas mais desenvolvidos) as “situações democráticas”.<br />
De todo modo, desde os anos trinta do século XX, a distinção entre<br />
“reformistas” e “revolucionários” torna-se anacrônica. Por outro lado,<br />
a disputa sobre o “fim último” baseava-se num equívoco. A idéia da<br />
“superação do capitalismo” nascia da contraposição entre capitalismo<br />
e socialismo, que é histórica e conceitualmente infundada. Capitalismo<br />
e socialismo referem-se a dois planos diversos da realidade e não<br />
são comparáveis: o capitalismo é um modo de produção, o socialismo<br />
é um critério de regulação do desenvolvimento econômico, que, portanto,<br />
não se contrapõe ao primeiro, mas propõe-se orientá-lo. Para<br />
superar este falso dilema, foi necessário elaborar o conceito de regulação,<br />
e, naturalmente, não estamos falando de elaboração puramente<br />
intelectual, mas de experiência histórica concreta. Aproximamo-nos,<br />
assim, do ato de nascimento do reformismo: a crise dos anos trinta e<br />
a invenção de um “modo de regulação” do desenvolvimento alternativo<br />
ao do velho liberalismo, que entra em colapso.<br />
Portanto, o termo de comparação do reformismo foi e ainda é o<br />
maximalismo. O reformismo é programa e ação de governo; o maximalismo,<br />
diferentemente daquilo que geralmente se considera, não<br />
é tanto radicalismo social ou antagonismo “de classe” (até Turati era<br />
“classista”), quanto, sobretudo, indiferença em relação à responsabilidade<br />
de governo. Mas, para um partido, desenvolver capacidade de<br />
governo não é só questão de vontade. Seu ponto de amadurecimento<br />
é o alcance da capacidade de interpretar o interesse nacional, que, por<br />
natureza, está em disputa. De reformismo socialista só podemos falar,<br />
de modo circunstanciado, a partir de quando, elaborando programas<br />
representativos do “interesse nacional”, alguns partidos socialistas<br />
chegaram ao governo nos seus países. Isto aconteceu pela primeira<br />
vez na Grã-Bretanha, na Suécia e na Bélgica, entre o fim dos anos<br />
vinte e o início dos anos trinta, numa passagem crucial da história<br />
do século XX. Diante dos efeitos explosivos da crise de 1929-1932, foram<br />
aqueles partidos operários que elaboraram soluções mais válidas<br />
113
VI. Ensaio<br />
do que as propostas pelos partidos liberais ou conservadores para os<br />
problemas do próprio país e conquistaram seu governo. Na verdade,<br />
não foi a primeira experiência de governo em termos absolutos: tinha<br />
havido a República de Weimar; mas os socialistas que governaram a<br />
Alemanha nos anos vinte fracassaram precisamente na capacidade de<br />
enfrentar a Grande Depressão, abrindo assim caminho para a vitória<br />
de Hitler. Ao contrário, nos três casos que lembrei, os socialistas venceram<br />
o desafio porque ocorreu uma mudança fundamental da sua<br />
cultura política: uma mudança de paradigma, que constitui o verdadeiro<br />
ato de nascimento do reformismo.<br />
O salto de qualidade consistia no fato de que aqueles partidos<br />
mostravam-se capazes de agir pela primeira vez não só em nome da<br />
classe, mas também em nome da nação. Foram assim lançadas as<br />
bases do reformismo nacional. Em outras palavras, de uma cultura de<br />
governo dos socialistas que, ao evoluir ainda mais, seria capaz de promover,<br />
depois da Segunda Guerra Mundial, um consenso reformista<br />
majoritário num número crescente de países europeus.<br />
Entre os elementos que deram origem a esta evolução, deve-se salientar,<br />
antes de mais nada, a nova capacidade de análise do capitalismo,<br />
emancipada da visão catastrófica das suas crises. Nos anos<br />
trinta, as três socialdemocracias que recordei mostram consciência de<br />
que as crises são o processo natural do desenvolvimento capitalista e,<br />
portanto, trata-se de aprender a governá-las. No caso específico, elas<br />
interpretaram a Grande Depressão como uma crise de subconsumo<br />
e elaboraram respostas eficazes que a cultura liberal então refutava:<br />
políticas de sustentação da demanda efetiva, desenvolvimento da economia<br />
mista, compromisso entre as organizações sindicais dos trabalhadores<br />
e das empresas, reconhecendo a legitimidade do comando<br />
capitalista na fábrica mas contratando suas modalidades, acordo sobre<br />
a relação entre salários e produtividade, forte impulso às políticas<br />
sociais. São os elementos básicos daquilo que muitos anos depois se<br />
chamaria de “compromisso keynesiano” ou “regulação fordista”.<br />
As frentes populares. Os Cadernos do cárcere<br />
A importância histórica daquelas experiências também residia na<br />
demonstração de que, diante da dissolução da civilização liberal, a alternativa<br />
entre bolchevismo e fascismo não era inexorável. Depois da<br />
vitória de Hitler na Alemanha, este parecia ser o destino da Europa.<br />
No entanto, aquelas experiências começaram a alimentar o antifascismo<br />
com propostas positivas e concretas. Este foi o quadro em que,<br />
também no movimento comunista, abriu-se um espaço para a conci-<br />
114<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
A esquerda italiana e o reformismo no século XX<br />
liação entre classe e nação. Para tanto, foi decisiva a experiência da<br />
Frente Popular na França, nascida da colaboração entre comunistas<br />
e socialistas. Na Itália, deve-se recordar o pacto de unidade e ação de<br />
1934, que também nascia da revisão de análises e programas que animaram<br />
a investigação socialista depois da derrota de 1919-1922, bem<br />
como da elaboração do PCI sobre o fascismo. Ainda que de modo limitado<br />
à necessidade de combater o fascismo, também os comunistas<br />
resolviam o problema da participação em governos de coalizão para<br />
enfrentar os perigos da guerra, defender a democracia e renovar seus<br />
conteúdos através da realização de reformas econômicas e sociais. A<br />
“virada” foi aprovada no VII Congresso da Internacional, que retificou<br />
a equação entre socialdemocracia e fascismo. Restava o limite insuperável<br />
da subordinação dos partidos comunistas à política da URSS, de<br />
modo que o que deveria ter sido uma virada estratégica foi só uma virada<br />
tática, logo sepultada pelo desencadeamento do Grande Terror e<br />
pelo pacto Molotov–Ribbentrop. Mas era de grande importância o fato<br />
de que, através da elaboração de um programa concreto de luta contra<br />
o fascismo, também os comunistas enfrentassem o nó das relações<br />
entre classe e nação, e isso contribuiria de modo significativo para valorizar<br />
seu papel na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial.<br />
Na Itália, o problema de conciliar classe e nação fora formulado por<br />
Antonio Gramsci desde 1924. A solução do problema, pois, inscreviase<br />
numa perspectiva revolucionária e não na reformista. Mas deve-se<br />
chamar a atenção para a revisão dos fundamentos teóricos do bolchevismo<br />
que Gramsci elaborou nos Cadernos do cárcere. Partindo<br />
da análise da crise de 1929, ele chegava a uma verdadeira teoria geral<br />
das crises, que continha também a explicação das origens da Grande<br />
Guerra. A partir das últimas décadas do século XIX, com a formação<br />
de uma “economia mundial”, crises e guerras tinham origem no contraste<br />
cada vez mais gritante entre o “cosmopolitismo” da economia e o<br />
“nacionalismo” da política. O primeiro não podia difundir seus influxos<br />
benéficos porque se via obstaculizado pela existência de uma ordem<br />
internacional baseada nos Estados-nação, que, com suas prerrogativas<br />
(o princípio de soberania, a decisão exclusiva sobre a guerra e<br />
a paz), monopolizavam a política. Mas o princípio de soberania fora<br />
definitivamente abalado pelos eventos da Primeira Guerra Mundial,<br />
que deflagrou uma crise irreversível do Estado-nação. A virada isolacionista<br />
da política soviética (a opção de “construir o socialismo num<br />
só país”) pôs fora de jogo o movimento comunista, uma vez que ele<br />
identificava o socialismo com o destino da URSS. Mas nos Estados<br />
Unidos se estava desenvolvendo um novo tipo de industrialismo, destinado<br />
a expandir-se em nível mundial e a mudar os espaços da política.<br />
Neste processo Gramsci entrevia a possibilidade de encaminhar<br />
115
VI. Ensaio<br />
a solução daquela antinomia, orientando nacionalmente a aliança entre<br />
operários e camponeses para um “novo cosmopolitismo”, voltado<br />
para a “reconstrução da economia segundo um plano mundial”. Etapa<br />
intermediária da nova ordem mundial, a criação de “agrupamentos”<br />
econômicos supranacionais.<br />
Gramsci escrevia num cárcere fascista, mas não há quem não veja<br />
como sua elaboração atinja em cheio os fundamentos do bolchevismo:<br />
a teoria da “crise geral do capitalismo”, a consideração do imperialismo<br />
como “fase suprema do capitalismo” e, portanto, a idéia da inevitabilidade<br />
da guerra. Depois da queda do fascismo, sua investigação<br />
influenciaria de modo determinante a política do PCI, inspirada na<br />
perspectiva do antifascismo.<br />
A guerra antifascista e a redefinição do reformismo<br />
As primeiras três décadas do segundo pós-guerra registraram a<br />
ascensão do “reformismo nacional” e, na Itália, único país da Europa<br />
Ocidental, o crescimento constante do peso eleitoral e do papel do<br />
PCI. Para analisar esta “anomalia”, é necessário que nos detenhamos<br />
brevemente nas características da Segunda Guerra Mundial a partir<br />
de 1941, isto é, a partir de quando, com a intervenção dos Estados<br />
Unidos e o surgimento da Grande Aliança, ela se tornou a guerra antifascista.<br />
Devemos, pois, considerar as mudanças por ela produzidas.<br />
Deve-se chamar a atenção para o universalismo rooseveltiano e a<br />
visão que a elite do New Deal tinha da nova ordem internacional a<br />
ser construída depois da derrota do nazismo. Ela propugnava uma<br />
reorganização do mercado mundial que também incluísse a URSS,<br />
um ordenamento das relações internacionais baseado na cooperação<br />
entre as potências antifascistas, uma abordagem multilateral dos problemas<br />
internacionais, a criação de espaços econômicos supranacionais<br />
abertos, a construção de novos organismos internacionais para o<br />
governo da economia, o nascimento das Nações Unidas como embrião<br />
de um governo mundial. Não foi possível realizar este projeto não só<br />
por causa da morte de Roosevelt e da mudança do bloco de poder que<br />
o sucede à frente dos Estados Unidos, mas também, e talvez sobretudo,<br />
por causa da indisponibilidade da URSS a aceitar este desafio.<br />
Na elite staliniana, dominava a percepção da insegurança da URSS, e<br />
isso fazia com que buscasse novas garantias territoriais. Era a projeção<br />
da “política de segurança” que Stalin havia começado na segunda<br />
metade dos anos trinta e que, logo depois do parêntese da “guerra pa-<br />
116<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
A esquerda italiana e o reformismo no século XX<br />
triótica”, induziu-o a restaurar o “Estado de segurança total”. Aquela<br />
visão leva a impor aos países da Europa Central e do Leste, libertados<br />
pelas forças soviéticas, um regime de ocupação permanente voltado<br />
para estender as fronteiras da URSS até as fronteiras desses países e<br />
a neles instaurar o sistema político e econômico da própria URSS. Era<br />
a criação de uma esfera de influência totalitária baseada em critérios<br />
militares e na divisão da Europa, com o erguimento do que Churchill<br />
batizou como “cortina de ferro”.<br />
Portanto, caminhavam pari passu a ruptura da aliança antifascista<br />
e o nascimento da guerra fria. Mas as mudanças originadas da<br />
Segunda Guerra Mundial tiveram igualmente uma relevância epocal.<br />
Para ficar nas que se referem ao nosso tema, recordo a criação, por<br />
parte dos Estados Unidos, de um espaço econômico supranacional<br />
que se estendia a todo o Ocidente, o lançamento de “políticas de produtividade”<br />
voltadas para estabilizá-lo, favorecendo a reconstrução da<br />
Europa Ocidental, a divisão do mundo em dois campos contrapostos<br />
dominados pelas duas maiores potências, o início da integração européia.<br />
Nascia assim uma nova “estrutura do mundo”, na qual interdependência<br />
econômica e interdependência política caminhavam paralelamente.<br />
Criava-se um sistema de relações internacionais, no qual<br />
o Estado-nação não era mais o único protagonista. As duas maiores<br />
potências alcançaram rapidamente uma capacidade de destruição recíproca<br />
que limitava sua própria soberania, uma vez que a decisão da<br />
guerra não era mais prerrogativa unilateral de uma ou de outra. Em<br />
medida bem maior, este elemento constitutivo da soberania do Estado<br />
moderno desaparecia em todos os demais países. No plano econômico,<br />
em todo o Ocidente se instaurava uma ordem dúplice, que, para retomar<br />
a feliz metáfora de Robert Gilpin, baseava-se num “compromisso<br />
entre Smith e Keynes”, isto é, na predominância da regulação de mercado<br />
na economia internacional e da regulação política na economia<br />
nacional. Isso favorecia o que Alan Milward chama de “renascimento<br />
do Estado-nação na Europa”, uma vez que os mercados nacionais<br />
eram os centros propulsores da difusão internacional do novo industrialismo<br />
e da “economia dos consumos”, que constituíam a base da<br />
hegemonia americana mas também do desenvolvimento dos países<br />
aliados, e a regulação política do mercado interno era a alavanca do<br />
“desenvolvimento nacional”. Sua promoção, somada à construção do<br />
Welfare State, tornou-se o principal objetivo das esquerdas em todas<br />
as democracias ocidentais. Esta combinação virtuosa de fatores políticos<br />
nacionais e internacionais iria durar até a crise dos anos setenta.<br />
Mas, voltando à Segunda Guerra Mundial e à Itália, a Grande<br />
Aliança antifascista permitiu ao Partido Comunista assumir um papel<br />
117
VI. Ensaio<br />
eminente na Resistência e na guerra de Libertação, e tornar-se o principal<br />
partido do movimento operário italiano. Tomava forma assim um<br />
reformismo nacional comunista, que, caso único na Europa, demonstrou<br />
uma capacidade de resistência e de evolução destinada a incidir<br />
profundamente na vida política e civil do país até os anos setenta.<br />
Baseava-se, precisamente, na conciliação entre classe e nação, a partir<br />
da missão que coube à classe operária na Resistência e na guerra<br />
de Libertação; graças a ela, o PCI conseguiu ter um papel relevante<br />
na fundação da República, na elaboração do pacto constitucional e<br />
na construção do sistema político, e, do ponto de vista programático,<br />
desempenhou um papel comparável àquele que, nos outros países europeus,<br />
tiveram as grandes socialdemocracias. Pode-se dizer que, caso<br />
talvez único entre os partidos comunistas europeus, o PCI jamais se<br />
afastou do antifascismo como fundamento de uma política nacional<br />
reformista. A Constituição republicana tornou-se seu “programa fundamental”.<br />
No entanto, tratava-se de um tipo de reformismo nacional<br />
incompleto, que, sob a roupagem de um partido comunista, não podia<br />
ser levado a cabo.<br />
O “partido novo” de Togliatti era concebido como “partido de governo<br />
da classe operária”, e seu programa, resumido na fórmula da<br />
“democracia progressiva” (se levarmos em conta as particularidades<br />
de um país derrotado, que havia vivido a experiência do fascismo e,<br />
com o colapso deste último, também o colapso do Estado; e, além disso,<br />
havia experimentado uma guerra civil sangrenta, a divisão entre a<br />
República Social e o Reino do Sul, o risco de ruptura da unidade nacional),<br />
não estava em nível inferior ao dos programas de reconstrução<br />
sustentados pelos partidos socialistas nos outros países da Europa<br />
Ocidental. Mas, terminada a Grande Aliança, o pertencimento ao movimento<br />
comunista internacional e a fidelidade à URSS privavam o PCI<br />
da legitimação para governar. Esta não lhe era vedada pela força, mas<br />
pela falta de consenso, uma vez que, enquanto a Democracia Cristã<br />
dispunha de um nexo internacional virtuoso no qual inserir o desenvolvimento<br />
do país, a “dupla lealdade” do PCI não lhe permitia fazer o<br />
mesmo. No mundo do pós-guerra, a política nacional era o resultado<br />
de determinadas “combinações” de forças nacionais e de condicionamentos<br />
internacionais. Na esfera ocidental, em que a Itália estava solidamente<br />
inserida, não estava dada ao PCI a possibilidade de elaborar<br />
uma própria “combinação” daqueles fatores que o pusesse em condições<br />
de desafiar a DC (e seu sistema de alianças) quanto ao governo<br />
do país. Em outros termos, no nexo entre política interna e política<br />
internacional, o PCI estava bloqueado por uma contradição insanável,<br />
derivada da sua lealdade a uma coalizão internacional contraposta<br />
àquela em que estava inserida a Itália, que impedia o desdobramento<br />
1<strong>18</strong><br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
A esquerda italiana e o reformismo no século XX<br />
do núcleo reformista do seu projeto. Isto também bloqueou a evolução<br />
da sua cultura política, privando-o de recursos fundamentais na<br />
gestão do “compromisso keynesiano” — sobretudo na concepção das<br />
“relações industriais” — e atribuindo-lhe um papel inferior ao que, em<br />
outros países europeus, tinham as socialdemocracias. Finalmente, a<br />
emergência da guerra fria cristalizou as divisões existentes no reformismo<br />
italiano, uma parte do qual - os dossettianos, os republicanos<br />
e Saragat - se colocava no governo, enquanto a outra - socialistas e<br />
comunistas - estava na oposição, reduzindo-lhe drasticamente o papel<br />
e a eficácia. No sistema da guerra fria, identificavam-se a “democracia<br />
bloqueada” e a impossibilidade de unir num só partido de governo<br />
as correntes do reformismo italiano: e isso, na Itália do segundo pósguerra,<br />
iria marcar toda a experiência do “reformismo nacional”.<br />
O fim do sistema de Bretton Woods e o “conflito econômico<br />
mundial”. Surgimento do europeísmo socialista<br />
Os arranjos internacionais originados da Segunda Guerra Mundial<br />
entraram em crise no final dos anos sessenta. Para ter um quadro<br />
exaustivo dos fatores de mudança e dos processos que tiveram<br />
início nos anos setenta, também deveríamos considerar a evolução<br />
das relações Norte-Sul. Mas, para os fins do nosso argumento, podemos<br />
deixá-las de lado, mesmo porque estavam condicionadas pelas<br />
relações Leste-Oeste e pelas dinâmicas da guerra fria. Vamos considerar,<br />
pois, em primeiro lugar, a crise do sistema de Bretton Woods.<br />
No final dos anos sessenta, a economia americana não era mais capaz<br />
de desempenhar um papel hegemônico na economia ocidental.<br />
A convertibilidade do dólar e o regime de câmbio fixo tinham garantido<br />
a reconstrução européia e a ascensão de duas outras potências<br />
econômicas capazes de cooperar, mas também de competir com a<br />
economia americana: o Japão e a República Federal da Alemanha.<br />
Os Estados Unidos, que no final da guerra representavam 53% da<br />
riqueza mundial, por volta de 1970 representavam cerca de um terço<br />
desta riqueza. Não podiam mais arcar com o peso das despesas<br />
militares decorrentes do papel de “gendarme” internacional do Ocidente<br />
e perdiam competitividade também por causa do peso social<br />
alcançado pelas classes trabalhadoras. Este aspecto dizia respeito,<br />
em modos diferentes, a todas as democracias industriais, que haviam<br />
atingido a maturidade do “ciclo fordista”. Os Estados Unidos<br />
decidiram pôr fim à convertibilidade do dólar (1971) e ao regime de<br />
câmbio fixo (1973), destruindo o sistema de Bretton Woods. O significado<br />
desta decisão resume-se ao objetivo de tirar das mãos dos<br />
governos o controle dos fluxos financeiros internacionais e entregá-<br />
119
VI. Ensaio<br />
lo a mãos privadas. Assim, da velha ordem econômica internacional<br />
passava-se a um regime que só na aparência era de “desordem”: na<br />
realidade, ocorria a passagem de um sistema hegemônico, vantajoso<br />
também para os aliados dos Estados Unidos, para um conflito econômico<br />
mundial regulado pela lei do mais forte. Entre os motivos daquela<br />
escolha, deve-se recordar a vontade de valer-se da senhoriagem<br />
do dólar para financiar o desenvolvimento da “economia da informação”,<br />
apoiando-se no complexo militar-industrial com o objetivo<br />
de reconquistar a competitividade perdida em benefício da economia<br />
alemã e da japonesa. Objetivo não secundário era o de favorecer,<br />
também em nível nacional, o predomínio da regulação de mercado<br />
para facilitar a difusão da “economia da informação”. Em síntese,<br />
soava a hora final do “compromisso entre Smith e Keynes” e iniciavase<br />
um novo ciclo de globalização assimétrica da economia mundial,<br />
entregue à regulação de mercado. Por outra parte, nos anos setenta<br />
também entra em crise o bipolarismo, e se a URSS, pensando aproveitar<br />
a derrota americana no Vietnã, tentou relançar o próprio papel<br />
internacional com uma agressiva política expansionista no Terceiro<br />
Mundo, os EUA responderam com o lançamento de uma “nova guerra<br />
fria”, voltada para excluir a União Soviética da terceira revolução<br />
industrial. A passagem de um bipolarismo baseado na estabilidade<br />
das esferas de influência, bem como no domínio de cada superpotência<br />
no interior destas esferas, para um bipolarismo antagonista<br />
provocou o colapso da URSS, uma vez que ao seu poderio militar não<br />
correspondia um igual poderio industrial e tecnológico, que lhe permitisse<br />
resistir ao desafio americano.<br />
Mas, voltando aos anos setenta, o fim de Bretton Woods, o início<br />
de um “conflito econômico mundial”, o lançamento de uma “nova<br />
guerra fria” mudaram radicalmente a natureza do vínculo externo.<br />
Antes de mais nada, desaparecia a autonomia relativa das economias<br />
nacionais; em segundo lugar, a estas economias se apresentavam<br />
problemas agudos de reconversão industrial e de especialização<br />
competitiva; em terceiro lugar, a passagem do industrialismo<br />
mecânico ao neo-industrialismo informático mudava rapidamente a<br />
composição demográfica dos países mais desenvolvidos. Estas mudanças<br />
faziam desaparecer as vantagens da regulação política das<br />
economias nacionais e reduziam sensivelmente os recursos financeiros<br />
necessários para sustentar as redes de proteção social construídas<br />
nas décadas precedentes (a “crise fiscal do Estado”); além<br />
disso, diferenciavam cada vez mais as demandas de Welfare e enfraqueciam<br />
o parceiro sindical do “compromisso neocorporativo”. Era o<br />
início do fim da identificação entre movimento operário e socialismo,<br />
e fechava-se o ciclo do “reformismo nacional”. Como recordamos no<br />
120<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
A esquerda italiana e o reformismo no século XX<br />
início, nos anos oitenta se registrou uma crise generalizada do “consenso<br />
reformista”.<br />
Mas a Europa Ocidental não sofreu passivamente as conseqüências<br />
do unilateralismo econômico americano. Fracassada, por causa<br />
da oposição dos Estados Unidos, a primeira tentativa de criar uma<br />
moeda única, os governos europeus aceleraram o processo de integração,<br />
criando (1979) o Sistema Monetário Europeu (SME). Por<br />
seu turno, os dirigentes mais lúcidos do socialismo europeu (Brandt,<br />
Palme, Kreisky) haviam empreendido uma busca destinada a renovar<br />
profundamente a cultura política dos respectivos partidos. Protagonistas<br />
da construção européia no pós-guerra foram a cultura política<br />
católica e a liberal. Os partidos operários, tanto as socialdemocracias<br />
quanto os partidos comunistas, restaram por muito tempo vinculados<br />
ao nacionalismo econômico. Isto se explica com o fato de que a<br />
regulação política do mercado nacional e o “compromisso neocorporativo”<br />
eram seus principais recursos políticos. Ao contrário, não é<br />
justificável sua dificuldade para compreender o valor progressista<br />
do regionalismo econômico e da integração supranacional. Quanto<br />
aos comunistas, em particular, deve-se salientar a incapacidade de<br />
compreender que a integração européia não era apenas um pilar da<br />
guerra fria, mas também um processo que, iniciado neste contexto,<br />
tendia a superar a lógica bipolar e a criar um ator político que poderia<br />
contribuir para sua superação. Mas já nos anos sessenta os<br />
principais partidos operários da Europa Ocidental começaram uma<br />
revisão das suas posições em relação ao Mercado Comum Europeu.<br />
Nos anos oitenta, a busca de novas respostas à crise do consenso<br />
reformista levou ao surgimento de um europeísmo socialista. Entre<br />
os partidos comunistas, o mais avançado era o PCI, que, no que se<br />
refere a estes temas, seguiu uma parábola análoga à das socialdemocracias,<br />
apesar dos limites derivados do caráter contraditório das<br />
suas ligações internacionais. E eles foram muito rapidamente evidenciados<br />
pelo rápido esgotamento do período do “eurocomunismo”.<br />
No curso dos anos oitenta, a resposta européia ao desafio americano<br />
aprofundou-se e, com o Ato Único (1986), começou a tomar<br />
forma o projeto de uma União política. O tema se tornaria plenamente<br />
atual depois de 1989, quando, com o fim da guerra fria, a<br />
incorporação da Alemanha Oriental pela Ocidental e o colapso da<br />
URSS, surgiram novos problemas acerca da “globalização de mercado”<br />
da economia mundial e se apresentou concretamente o problema<br />
de unificar o velho continente.<br />
121
VI. Ensaio<br />
Fim da guerra fria e “globalização assimétrica”. O ciclo<br />
político dos anos noventa<br />
Voltamos assim ao ponto de partida das nossas reflexões: o ciclo<br />
político dos anos noventa, que, depois da vitória de Clinton nas eleições<br />
presidenciais de 1992, registrou a vitória das esquerdas não só<br />
na maioria dos países europeus, mas também em países importantes<br />
da América Latina. Gostaria de tentar dar uma interpretação deste<br />
ciclo que, na Europa, teve como protagonista um novo reformismo.<br />
À explosão da globalização dos mercados e ao fim da URSS a Europa<br />
Ocidental reagiu com o Tratado de Maastricht (1991) e a decisão<br />
de “ampliar” a União aos países da Europa Central e Oriental (e, numa<br />
perspectiva a mais longo prazo, também aos Bálcãs, à Turquia e a outros<br />
países mediterrâneos). Teve início assim a construção da União<br />
política européia e se lançaram as primeiras bases da unificação do<br />
velho continente. O objetivo prioritário era criar, com o surgimento de<br />
uma moeda única, o espaço econômico indispensável para enfrentar<br />
os desafios da “competição global”. Mas a meta da União política é<br />
muito mais ambiciosa: com efeito, visa a transformar a Europa num<br />
novo ator político global. Nos países europeus, a globalização dos mercados<br />
e o processo de Maastricht mudaram o nexo internacional das<br />
políticas nacionais e deram origem a novos critérios de agrupamento<br />
de forças. O problema que se apresenta às elites nacionais é fazer<br />
frente aos novos condicionamentos da economia e da política mundial.<br />
A alternativa de fundo refere-se aos modos pelos quais cada país pode<br />
participar do processo de integração supranacional e, portanto, à repartição<br />
dos custos e dos benefícios entre os diferentes grupos sociais.<br />
A visão do interesse nacional torna-se parte integrante da percepção do<br />
interesse comum europeu. E tanto um quanto outro são determinados<br />
em modos diversos segundo as diferenças de interesses, de culturas e<br />
de valores que atravessam a sociedade.<br />
Para tornar mais acessível a argumentação, limitar-me-ei à Itália.<br />
O primeiro problema que, no início dos anos noventa, se apresentou<br />
era honrar ou não os compromissos assumidos com a assinatura do<br />
Tratado de Maastricht. Para isto acontecer, a Itália devia mudar o<br />
rumo. Nos quinze anos anteriores, ela fora governada com critérios<br />
divergentes daqueles seguidos nas outras grandes democracias européias.<br />
Dívida pública, déficit orçamentário, altas taxas de juros, diferencial<br />
de inflação, política de gastos, protecionismo econômico, modelo<br />
televisivo, atraso dos sistemas de rede e “democracia bloqueada”<br />
impediam nosso país de desempenhar o papel que dele se esperava.<br />
Logo em seguida à assinatura do Tratado de Maastricht, começaram<br />
pressões significativas das instituições européias para que a Itália<br />
122<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
A esquerda italiana e o reformismo no século XX<br />
mudasse as orientações de governo. Além disso, na década anterior,<br />
tais orientações produziram uma crescente discrepância entre Norte e<br />
Sul do país até o ponto de solapar sua unidade.<br />
Em 1992, quem quer que vencesse as eleições se veria diante da<br />
necessidade de dar início à convergência com os parâmetros de Maastricht<br />
e de propor aos cidadãos “grandes sacrifícios” para sanear a<br />
economia. O saneamento podia ser buscado mediante escolhas unilaterais,<br />
impostas pelo núcleo exportador dos grupos econômicos muito<br />
mais amplos que haviam sustentado a coalizão pentapartidária 2* ,<br />
ou então mediante a promoção de políticas de concertação que redistribuíssem<br />
seus custos de modo equânime. Nem as forças de governo<br />
nem as de oposição percebiam a questão em jogo. Mas a velha aliança<br />
de governo chegara ao fim da linha, uma vez que as forças que a<br />
sustentaram estavam divididas pelos novos desafios da integração<br />
européia. Depois das eleições, o crescimento da Liga Norte, a explosão<br />
de Tangentopoli e as vicissitudes dos movimentos referendários<br />
propiciaram um rápido processo de deslegitimação da classe política<br />
de governo. Ao mesmo tempo, a Itália foi alcançada por uma crise da<br />
moeda que impôs uma pesada desvalorização da lira e o abandono do<br />
SME. Enquanto o sistema de partidos se desfazia, formava-se uma<br />
nova coalizão de forças e de interesses decididos a guiar o país até<br />
a “Europa de Maastricht”. Fato de absoluta relevância, tanto com o<br />
governo Amato (1992), quanto com o governo Ciampi (1993), aquelas<br />
forças buscaram um entendimento com o movimento sindical e<br />
com a oposição de esquerda, pondo fim a uma orientação histórica<br />
das classes dirigentes italianas, que jamais haviam reconhecido à<br />
esquerda a legitimação para governar. Formava-se, pois, uma coalizão<br />
europeísta, que pretendia incluir a esquerda no governo do país.<br />
Mas ela não era majoritária e se via combatida por um amplo alinhamento<br />
anti-Maastricht, cujo denominador comum era o nacionalismo<br />
econômico e cujas orientações ideais também se alimentavam de uma<br />
difusa aversão aos valores da modernidade. Por causa dos erros da<br />
esquerda, entre 1993 e 1994, estas forças coagularam-se rapidamente<br />
e, favorecidas pelos humores “antipolíticos” propagados pelos<br />
grupos do establishment que manipularam a “revolução” das Mãos<br />
2 No período final da “Primeira República”, entre 1980 e 1992, os governos italianos<br />
compunham-se de uma coalizão de cinco partidos: a DC, o PSI e três agremiações<br />
menores, que reuniam socialdemocratas, republicanos e liberais (PSDI, PRI e PLI). O<br />
“pentapartido” conclui-se com o conjunto de investigações e procedimentos judiciais<br />
conhecido como Operação Mãos Limpas, que desvenda a Tangentopoli, gigantesco<br />
sistema de corrupção incrustado no sistema de poder democrata-cristão e socialista.<br />
[N. do T.]<br />
123
VI. Ensaio<br />
Limpas, recolheram-se em torno de Silvio Berlusconi, sob a bandeira<br />
do novo partido por ele fundado no início de 1994. Assim, enquanto<br />
a esquerda buscava confusamente uma nova identidade, nascia<br />
uma nova direita, populista, plebiscitária, xenófoba e antieuropéia.<br />
Ela era heterogênea em termos de interesses e programas; mas, fato<br />
único na Europa, revelou uma capacidade extraordinária de agregar<br />
um amplo consenso majoritário e venceu as eleições de 1994.<br />
Interesse nacional e interesse comum europeu<br />
Com esta realidade teve de haver-se o <strong>PD</strong>S [Partido Democrático<br />
de Esquerda], nascido em 1991 a partir da dissolução do PCI. Em<br />
1992-1993, ele representava quase tudo o que restava da esquerda<br />
reformista e foi obrigado, antes de mais nada, a ajustar contas consigo<br />
mesmo, uma vez que as bases programáticas sobre as quais surgira<br />
eram exíguas e a cultura política da qual se nutria era subalterna e<br />
ambígua. Não dispunha de uma análise apropriada das mudanças<br />
dos últimos vinte anos e estava permeado de humores maximalistas.<br />
Ambos os elementos tornavam-no antes o continuador do PCI dos<br />
anos oitenta do que uma força do novo reformismo europeu. Todavia,<br />
com a “virada” da Bolognina fora dado o passo decisivo: a parte mais<br />
consistente do PCI saíra do estado de menoridade a que a ligação com<br />
a URSS o havia condenado e, com a entrada na Internacional Socialista,<br />
dispunha pela primeira vez de conexões internacionais mais úteis.<br />
Além disso, a dissolução do PCI liberalizara o mercado político, e o <strong>PD</strong>S<br />
estava desafiado a completar sua evolução reformista para poder aspirar<br />
ao governo. Com a mudança do seu líder, em 1994, produziu-se<br />
uma significativa mudança de estratégia.<br />
A primeira inovação foi introduzida no plano da análise. Tratavase,<br />
antes de tudo, de compreender as razões da derrota. Estas foram<br />
sintetizadas na incapacidade de propor um novo “pacto social” que<br />
substituísse a velha “aliança dos produtores”, na qual se baseara o<br />
consenso da esquerda nos anos do ciclo fordista e da construção do<br />
Welfare. Apontou-se como conteúdo deste pacto uma articulação entre<br />
as reformas do sistema econômico e a reforma do Estado social,<br />
tendo em vista a modernização do país e sua reinserção entre os protagonistas<br />
da integração européia. Isto significava dar uma perspectiva<br />
política à coalizão de forças europeístas que, a partir de 1992, havia<br />
dirigido o país abalado pela crise do velho modelo de desenvolvimento<br />
e pelo colapso do sistema de partidos, bem como precisar as alianças<br />
que permitissem ao <strong>PD</strong>S assumir um papel de governo. Aos conteúdos<br />
econômico-sociais do “novo pacto” correspondia uma aliança da<br />
124<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
A esquerda italiana e o reformismo no século XX<br />
esquerda reformista com o centro católico-democrático. Por outra parte,<br />
um capítulo fundamental da europeização do país era constituído<br />
pela reforma do sistema político e pela realização de uma democracia<br />
da alternância. Diante de uma direita que assumia as características<br />
sumariamente descritas, deviam se unir as forças cujas raízes residiam<br />
nas culturas políticas que marcaram a história da República.<br />
Em terceiro lugar, o panorama das forças políticas que emergiam delineava<br />
o cenário de um bipolarismo de coalizões, e o centro-esquerda,<br />
em particular, não podia ser concebido como uma aliança eleitoral<br />
entre partidos, mas devia assumir os traços de uma coalizão não passageira,<br />
protagonista do desafio em torno do governo. Lançavam-se,<br />
assim, as premissas de um “novo reformismo”, uma vez que o modo<br />
pelo qual se interpretava o interesse nacional estava estreitamente<br />
ligado à perspectiva de um papel destacado da Itália na definição do<br />
interesse comum europeu. Por motivos históricos que remontam a todas<br />
as vicissitudes do século XX, na última década o intérprete deste<br />
reformismo não foi um novo partido, mas uma coalizão não ainda<br />
bem definida: a Oliveira. Investigar suas origens, seguir seu percurso<br />
e tentar perscrutar seu futuro é o tema que pusemos no centro das<br />
páginas que se seguem.<br />
(Tradução: Luiz Sérgio Henriques)<br />
*<br />
125
VII. Mundo
128<br />
Autores<br />
Ruy Fausto<br />
Doutor em Filosofia pela Université de Paris 1 (1981), e graduado em Filosofia (1956) e<br />
em Direito (1960) pela Universidade de São Paulo. Dentre suas obras destaca-se Marx:<br />
lógica e política.<br />
Marcelo Santos<br />
Professor de Ciência Política da Unesp, Campus de Araraquara/SP.<br />
Amália D. García Medina<br />
Governadora do Estado de Zacatecas, México. Foi deputada e senadora e Presidente<br />
Nacional do Partido de la Revolución Democrática.<br />
Walid Salem<br />
Diretor do “Panorama”, Centro Palestino para Disseminação da Democracia e<br />
Desenvolvimento Comunitário, ONG baseada em Jerusalém Oriental. É autor de vários<br />
livros e artigos sobre democracia, sociedade civil, juventude, refugiados e estudos sobre<br />
a paz. Foi jornalista e membro do Conselho Nacional Palestino.<br />
Galia Golan<br />
Professora emérita da Universidade Hebraica de Jerusalém e da Escola de Governo<br />
do Centro Interdisciplinar de Herzlia. É uma das principais líderes do Movimento PAZ<br />
AGORA.
Sarkozy segundo a ordem<br />
das razões 1<br />
Ruy Fausto<br />
O<br />
discurso pronunciado por Nicolas Sarkozy no dia 14 de janeiro<br />
de 2007, por ocasião da sua investidura como candidato às<br />
eleições presidenciais foi objeto de numerosas alusões, principalmente<br />
por parte dos seus adversários, mas, de um modo surpreendente,<br />
ele não foi examinado até aqui de maneira pelo menos<br />
um pouco sistemática. E, entretanto, a candidata socialista Ségolène<br />
1 O presente texto foi escrito originalmente em francês em março desse ano, e deveria<br />
ser publicado na França, o que acabou não acontecendo. Como Política Democrática<br />
se interessou, em princípio, por ele, eu o traduzi, e o ponho aqui à<br />
disposição do público brasileiro. Acho que o artigo pode ter certo interesse, porque<br />
as questões envolvendo as últimas eleições presidenciais francesas têm em parte<br />
alcance universal. O artigo comenta o discurso de investidura de Nicolas Sarkozy<br />
como candidato da UMP (União por um Movimento Popular) – partido gaulista na<br />
origem –, candidato que se elegeu presidente, no segundo turno, com uma maioria<br />
de 53%, contra 47% da candidata socialista. A campanha de Sarkozy se caracterizou<br />
por dois traços aparentemente contraditórios. Por um lado, ele se apresentou<br />
como candidato de uma direita que se afirma como tal, sem complexos, mas de<br />
outro, como alguém que não hesita em evocar nomes – e também temas, ou temas<br />
supostos – da tradição da esquerda. Tento fazer uma “explicação de texto” do discurso<br />
de investidura de Sarkozy, discurso que não foi escrito por ele, mas que o<br />
candidato assumiu, e que foi objeto de muitos comentários, não muito profundos,<br />
entretanto. Se o leitor quiser mais algumas informações sobre as eleições presidenciais<br />
francesas, permito-me indicar os artigos que publiquei na Folha de São<br />
Paulo, nos dias 7 de abril e 20 de maio de 2007. A versão do texto, que ofereço<br />
aqui, com alguns adendos e modificações, é a maior delas. Optei por ela, porque<br />
as outras freqüentemente omitiam as implicações de caráter mais universal que,<br />
precisamente, nos interessam mais de perto.<br />
129
VII. Mundo<br />
Royal, disse recentemente, a propósito do discurso, que “seria preciso<br />
pô-lo a nu (décortiquer)...”.<br />
Como se sabe, trata-se de um documento curioso, em que um candidato<br />
de direita invoca o nome de alguns ícones da esquerda, como<br />
Léon Blum e Jean Jaurès. Como isso foi possível? Quais são as operações<br />
que tornaram possível esse seqüestro? Em que medida o documento<br />
é rigoroso e, à sua maneira pelo menos, conseqüente? São<br />
questões importantes que nos levam bem longe, para além de uma<br />
simples avaliação da “sinceridade“ ou da “honestidade“ do candidato.<br />
A que título, e com que justificações, o candidato Sarkozy reivindica<br />
figuras tutelares da esquerda? Por que não invoca homens políticos<br />
de direita, do século XX ou do XIX? Sem dúvida, o texto nos fornece<br />
uma justificação. É que “durante muito tempo, a direita ignorou o<br />
trabalhador” (p. 8). A esquerda de outrora representaria, assim, uma<br />
referência melhor. Mas a esquerda de hoje não seria ela a herdeira<br />
natural desse passado? De jeito algum: “a esquerda, que outrora se<br />
identificava” com o trabalhador, “acabou traindo” (id), e com isso, perdeu<br />
o direito à herança. O principal exemplo dessa traição seria a lei<br />
que limita o tempo de trabalho regular semanal a 35 horas.<br />
A esquerda teria traído “o trabalhador”.“Trair” é um termo pesado<br />
que valeria a pena explicitar. Se tentarmos reconstituir como o texto<br />
desenvolve essa tese e a justifica, perceberemos, em primeiro lugar,<br />
que ele fala tanto do “trabalhador” como do “trabalho”. Ou, mais exatamente,<br />
que fala antes do trabalho – é o seu leitmotiv – do que do trabalhador.<br />
A “... esquerda imóvel não respeita mais o trabalho” (p. 4).<br />
“O objetivo da República é o reconhecimento do trabalho como fonte<br />
da propriedade, e [o reconhecimento da] propriedade como representação<br />
do trabalho” (p. 5). “[A república virtual] é aquela que proclama<br />
que o trabalho é um valor, mas que faz tudo para desencorajá-lo” (p.<br />
6). 2 “Com a crise do valor trabalho, é a esperança que desaparece”<br />
(p. 7). “Quero propor aos franceses uma política cuja finalidade será<br />
a revalorização do trabalho” (p. 8). “O trabalho é uma emancipação,<br />
é o desemprego que é uma alienação” (id). “É o trabalho que cria o<br />
trabalho” (id) etc. 3 Sem dúvida, fala-se também de “trabalhador”, mas<br />
muito menos : é como se houvesse um deslizamento da significação<br />
“trabalhador” para a significação “trabalho”. Por isso, para tentar revelar<br />
o conteúdo da suposta “traição” por parte da esquerda, conviria<br />
2 O trabalho é a liberdade, é a igualdade de oportunidades, é a promoção social” (p.<br />
7). “O trabalho é o respeito, é a dignidade, é a cidadania real” (id).<br />
3 Como indiquei no segundo dos meus artigos para a Folha, onde faço uma crítica da<br />
campanha de Ségolène Royal, a noção ambígua de “valor trabalho” fora enunciada<br />
originalmente pela candidata socialista, e constava do seu programa.<br />
130<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Sarkozy segundo a ordem das razões<br />
(e é legítimo) substituir “trabalhador” por “trabalho”, e escrever que,<br />
segundo Sarkozy, a esquerda traiu o trabalho. Mas há na realidade<br />
um jogo entre as duas significações, que seria preciso desmontar, e<br />
que constitui o segredo desse discurso.<br />
A dificuldade remete principalmente a duas questões. Por um lado,<br />
é preciso se perguntar qual foi a atitude da esquerda, no passado e<br />
qual é a sua atitude hoje, tanto em relação ao trabalho como em relação<br />
ao trabalhador. Por outro lado, já que quase ninguém poria em<br />
dúvida que o trabalhador é um “valor” – no sentido de que ele merece<br />
pelo menos o respeito que merecem todos os humanos – seria necessário<br />
se perguntar (o que não é a mesma coisa), em que medida o próprio<br />
“trabalho” é um valor.<br />
Tomando as duas questões num mesmo movimento, observar-se-á<br />
que se, hoje como ontem, a esquerda se apresentou como defensora<br />
dos trabalhadores, e se essa defesa incluía, de um modo ou de outro,<br />
“a garantia de emprego (ou de um emprego) ao trabalhador”, tal atitude<br />
não implicou no passado, nem implica hoje, numa idealização do<br />
“trabalho”. De fato, seria possível afirmar de um modo geral, e sem<br />
precisões de ordem quantitativa e qualitativa, que o próprio trabalho<br />
é um valor? A defesa do trabalhador implicou freqüentemente na exigência<br />
de redução quantitativa do tempo de trabalho, e a condenação<br />
de certas formas de trabalho.<br />
A luta histórica da esquerda, que foi, em medida considerável, paralela<br />
à luta dos trabalhadores, visava, entre outras coisas, limitar a<br />
jornada de trabalho, e, nesse sentido, a esquerda nunca foi “favorável<br />
ao trabalho” se isto significar “maximização do tempo de trabalho”.<br />
Tratava-se antes de uma defesa do trabalhador diante do trabalho,<br />
atitude que se traduzia, de modo só aparentemente paradoxal, na exigência<br />
de menos trabalho. A mesma coisa no plano qualitativo: o trabalho<br />
em “cadeia de produção”, e outras formas brutais, consideradas<br />
normais pelo sistema, foram combatidas pela esquerda.<br />
Dir-se-á que se tratava de trabalho excessivo, ou de formas violentas,<br />
mas a noção de trabalho excessivo, ou inumano, se desloca continuamente.<br />
Primeiro se lutou pela jornada de 10 horas, isto na época<br />
em que a direita pregava a jornada “normal” de 12 horas; depois lutouse<br />
pela jornada de 8 horas, que, segundo os ideólogos da época, seria<br />
incompatível com o lucro. Depois houve a introdução das 40 horas semanais<br />
(Blum, o inimigo do trabalho!) e, mais recentemente, votou-se a<br />
lei das 35 horas semanais. No plano qualitativo, o trabalho em “cadeia<br />
de produção”, por exemplo, que seria o máximo em matéria de modernidade<br />
e de progresso, acabou sendo proscrito, em muitos casos.<br />
131
VII. Mundo<br />
Claro que se pode discutir – limitando-nos ao problema da quantidade<br />
– se as condições atuais permitem ou não que se introduzam,<br />
com vantagem, as 35 horas. Todo argumento visando mostrar que,<br />
nas condições atuais, não é conveniente introduzir aquela redução,<br />
é um argumento que, verdadeiro ou falso é em si mesmo, honesto. A<br />
mesma coisa não pode ser dita, entretanto, desse jogo sofístico entre<br />
“trabalho” e “trabalhador”, que se fundamenta na lenda de uma traição<br />
ao “trabalho” praticada pela esquerda. Porque, resumindo, “trabalho”<br />
se diz em dois sentidos, e a confusão entre eles é o segredo do jogo<br />
de linguagem sarkoziano : o termo pode significar “trabalhador” (em<br />
geral, em oposição a “capital”), mas pode significar também “tempo de<br />
trabalho”. Na primeira acepção, a esquerda sempre apoiou o “trabalho”<br />
e, nem ontem nem hoje, o traiu; na segunda, pelo contrário, ela<br />
nunca lhe foi “favorável”, isto é, nunca foi, nem poderia ser, partidária<br />
da maximização do tempo de trabalho. 4<br />
O texto se refere certo número de vezes à “democracia”, várias vezes<br />
à “República”, mas é bastante discreto em relação às denominações<br />
que conviriam à organização econômica atual. Entretanto, há<br />
uma passagem, à qual voltarei mais adiante, em que ele fala em “capitalismo”.<br />
E há uma temática constante (que, como se verá, poderia<br />
ter uma relação com aquela a que acabo de me referir), a da diferença<br />
entre “república virtual” e “república real” (ver p. 6),<br />
A diferença entre “república virtual” e “república real” também parece<br />
ter alguma coisa a ver com o discurso da esquerda, e lhe ter sido<br />
tomada de empréstimo. Mesmo se o marxismo, e pior ainda, o totalitarismo<br />
leninista e depois stalinista, utilizaram mal a distinção entre<br />
uma “democracia formal” e uma democracia real (ou mais exatamente<br />
“efetiva” ou “efetivamente real”), infletindo-a no sentido de uma desvalorização<br />
da democracia (“formal” se tornou sinônimo de “irreal”, com<br />
as conseqüências que se sabe) – a oposição entre democracia formal e<br />
democracia real guarda uma importância considerável.<br />
4 Trabalho“, no segundo sentido, “tempo de trabalho”, se opõe a “tempo livre”, que<br />
constitui a verdadeira riqueza, como dizia um anônimo genial citado por Marx. De<br />
fato, se o trabalho é uma exigência social, e se certos trabalhos produzem prazer, na<br />
maioria dos casos, na sua forma atual, ele representa uma “pena”, o que significa<br />
que ele é, em geral “trabalho alienado”, razão pela qual não há por que idealizá-lo.<br />
Observe-se en passant, como sugeri anteriormente, que “emprego” – cujo oposto é<br />
“desemprego”, um oposto negativo – é uma noção cujo uso com sinal positivo oferece<br />
muito menos risco do que a imprudente idealização do “trabalho”. Mas o documento<br />
rejeita explicitamente (p. 8) a defesa do emprego, sob pretexto de que quer defender<br />
não o emprego mas o trabalhador...<br />
132<br />
•<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Sarkozy segundo a ordem das razões<br />
Vivemos numa sociedade que não podemos caracterizar nem simplesmente<br />
como “capitalista”, nem simplesmente como “democrática”.<br />
Trata-se de uma “democracia capitalista”, de uma democracia, mas...<br />
capitalista. Porém exatamente porque a democracia, mesmo nos limites<br />
do capitalismo, é o contrário de uma ilusão, a democracia está<br />
sempre em tensão, no que se refere às suas relações com o capitalismo.<br />
A democracia afirma valores de igualdade e de liberdade, que são<br />
mais ou menos postos em cheque (ou “virtualizados”) pelo capitalismo.<br />
O que não significa que se possa liquidar o capitalismo por um<br />
movimento de varinha mágica revolucionária. Aquilo de que se trata<br />
hoje é, antes, de obter controle sobre o capital, neutralizar seus efeitos<br />
negativos, o que, ao contrário do que se supunha, se revelou no fundo<br />
menos utópico e principalmente muito menos perigoso do que o caminho<br />
revolucionário.<br />
A distinção sarkozista entre “república virtual” e “república real”<br />
remeteria à oposição utilizada pela esquerda entre “democracia formal”<br />
e “democracia real”, e desembocaria, no mesmo sentido, numa<br />
exigência de luta pela neutralização dos efeitos negativos do capitalismo?<br />
Em primeira aproximação, isto seria pensável, seja por causa<br />
da proximidade que existe entre os dois pares de expressões, seja<br />
também a partir da leitura de uma passagem, já indicada, em que se<br />
fala do capitalismo e da necessidade de “moralizá-lo”: “Eu quero ser o<br />
presidente que se esforçará por moralizar o capitalismo, porque não<br />
acredito na sobrevivência de um capitalismo sem moral e sem ética...”<br />
(p. 8). Nicolas Sarkozy parece de novo enveredar na direção de um discurso<br />
crítico. Mas assim como a defesa dos trabalhadores se revelou<br />
de fato uma justificação do “trabalho alienado”, os temas da realização<br />
efetiva da democracia e da moralização do capitalismo se invertem em<br />
elogio da realização “plena” do capitalismo, o que significa recuo da<br />
democracia, pelo menos no campo econômico. Para mostrar isto, seria<br />
preciso examinar algumas das medidas econômicas e sociais que ele<br />
propõe. Há na realidade dois tipos de questões a analisar. Na primeira<br />
série, temos uma defesa praticamente aberta do capitalismo, na sua<br />
forma mais inegalitária. Na outra, há um fundo de problemas reais,<br />
mas tratados de tal modo (tomando o secundário como principal ou<br />
propondo remédios perigosos), que, de novo, é o sistema econômico<br />
sob a sua forma mais dura e injusta que sai reforçado.<br />
Moralizar o capitalismo só poderia significar, por um lado, reduzir<br />
as desigualdades, as quais, na França, sem atingir dimensões estratosféricas<br />
de certos paises do terceiro mundo, são, de qualquer modo,<br />
importantes. Ora, qual seria o efeito de medidas como a redução de<br />
60% a 50% do chamado “escudo fiscal” (o máximo de imposto global<br />
133
VII. Mundo<br />
que cada contribuinte poderia ser obrigado a pagar), “escudo” que afeta<br />
essencialmente os mais ricos? Qual poderia ser o sentido da quase<br />
liquidação dos impostos sobre sucessões e doações, a qual, de novo,<br />
beneficiaria essencialmente as grandes fortunas? (Nota: a acrescentar<br />
o custo, para o Estado, dessas medidas. Só a redução do imposto sobre<br />
sucessões e doações implicaria numa sangria da ordem de uns 5<br />
bilhões de euros...). Para justificar essas medidas, o texto apela para<br />
uma tese simplista sobre a relação entre trabalho e propriedade, por<br />
trás da qual há uma leitura mistificada da relação entre trabalho e<br />
capital. Assim, o esvaziamento dos impostos de sucessão e doação é<br />
justificado, através da exigência, feita em nome da justiça, de poder<br />
transmitir à sua descendência “os frutos de uma vida de trabalho” (p.<br />
8). Ora, não é verdade que as grandes fortunas sejam produto do trabalho.<br />
No melhor dos casos, há um trabalho de organização da produção,<br />
mas a riqueza apropriada é incomensurável com o que se pagaria<br />
por ele, por muito que se pagasse, se fosse retribuído enquanto tal. E<br />
esse é o melhor dos casos. As grandes fortunas não provêm apenas<br />
de trabalho de outrem diretamente apropriado pelo capitalista. Elas<br />
vêm das operações especulativas, dos “investimentos” nas bolsas etc.<br />
Sob esse aspecto, a relação da riqueza com o trabalho é ainda mais<br />
remota. A riqueza, “a grande riqueza”, tem mais a ver com o jogo do<br />
que com o trabalho.<br />
Há uma segunda série de questões, nas quais problemas reais são<br />
utilizados de forma transfigurada, de maneira a servir à ideologia do<br />
candidato. Assim, o documento critica os grevistas por causa dos efeitos<br />
negativos que teriam as greves sobre o bem-estar dos usuários, os<br />
dos meios de transporte, principalmente. O candidato propõe que uma<br />
lei imponha um voto secreto por parte de todos os membros de uma<br />
empresa, administração ou universidade, aos oito dias da deflagração<br />
de uma greve, para decidir da continuação ou não do movimento. Sem<br />
dúvida, as greves dos transportes públicos são às vezes muito duras<br />
para os usuários, embora a sua freqüência não seja a que sugere a<br />
direita. De qualquer modo, retomando uma opinião expressa há algum<br />
tempo por Daniel Cohn-Bendit, acho que seria desejável que, no<br />
momento de deflagrar um movimento, se ouvisse sempre um representante<br />
dos usuários. Quanto ao voto secreto, ele não é em princípio<br />
inadmissível, mas se deveria recorrer a ele nas assembléias, onde o<br />
problema é discutido. Mas o que é inadmissível no projeto do candidato<br />
é que tudo isso seria imposto por uma lei, lei que, além de tudo,<br />
fixaria prazos imperativos. O caráter de domesticação do movimento<br />
sindical que têm as propostas é evidente, e tanto mais, se pensarmos<br />
que elas se inserem num programa que não revela nenhum empenho<br />
em melhorar a condição dos pequenos e médios assalariados.<br />
134<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Sarkozy segundo a ordem das razões<br />
O texto critica aqueles que “não querem fazer nada” (p. 5), e diz que<br />
só os que ajudam a si mesmos merecem ser ajudados. Que existam<br />
aqui e ali abusos no uso das alocações do Estado – único caso em que<br />
o texto poderia ter alguma verdade –, gente que recebe indevidamente<br />
indenizações desta ou daquela espécie, é inegável. Mas, o fenômeno<br />
é certamente secundário. O essencial são as enormes dificuldades,<br />
criadas pelo novo capitalismo, no interior do qual, o assalariado está<br />
submetido às exigências leoninas dos acionistas, às imposições do<br />
capitalismo financeiro propriamente dito, e à concorrência internacional.<br />
Ora, no documento, esses problemas desaparecem, ou passam<br />
para o segundo plano, diante do mote culpabilizante do “assistencialismo<br />
generalizado” (p. 6, cf p. 8), ou do “trabalhador que vê aquele que<br />
é objeto de assistência (l’assisté) se sair melhor do que ele ao acertar<br />
as contas no final do mês” (p. 7). Esta última argumentação é propriamente<br />
indigna. Ela joga aqueles que têm um emprego contra os que<br />
não o têm, estigmatizando esses últimos e, naturalmente, absolvendo<br />
e idealizando o sistema. Aí aparece a verdadeira figura do documento<br />
e do candidato.<br />
Assim, o grande texto de entronização do candidato da UMP se<br />
revela, sem exagero, um tecido de “anfibologias”. Uma pequena obra<br />
prima ideológica da direita francesa dos nossos dias. O pano de fundo<br />
é a velha fábula ideológica, segundo a qual, o trabalho seria a “fonte da<br />
propriedade” e a propriedade a “representação” do trabalho (p. 5). Os<br />
que ousam duvidar dessa fábula seriam os cultores da “França imóvel”<br />
(p. 4). Como outros assinalaram, o menor dos paradoxos dessa<br />
ideologia não é o de chamar de “reforma” o que representa uma contra-reforma,<br />
ou de falar de movimento a propósito de um movimento<br />
de regressão. Sem dúvida, a marcha à ré também é um movimento.<br />
A acrescentar alguns toques de cinismo puro e simples, como o de se<br />
apresentar como defensor do pleno emprego (p. 6), incongruência gritante,<br />
no interior de um discurso cuja preocupação central não é essa,<br />
e cujas medidas propostas não vão certamente nessa direção.<br />
O apelo aos nomes de Blum e de Jaurès convida a uma reflexão<br />
final. Trata-se de uma demagogia eleitoral sem-vergonha. Poderíamos<br />
nos perguntar se tal evocação é tão absurda como seria a invocação,<br />
por parte da candidata da esquerda, dos nomes de Poincaré, de Tardieu,<br />
de Thiers ou de Guizot. Sim e não. Por um lado, teríamos nesse<br />
último caso um absurdo análogo, pois se reivindicaria simetricamente<br />
figuras tutelares que não encarnaram no passado nem podem encarnar,<br />
hoje, os valores (de esquerda), assumidos. Mas subsiste um<br />
problema. Se, embora ao preço de chicanas retóricas, o candidato de<br />
•<br />
135
VII. Mundo<br />
direita pode se servir, sem escrúpulos, da galeria dos homens políticos<br />
de esquerda, é improvável, com muito poucas exceções, que a candidata<br />
de esquerda, venha a fazer apelo ao Panteão dos homens políticos<br />
de direita. Por quê?<br />
A utilização dos grandes ícones da esquerda pela direita não deve<br />
ser considerada propriamente como um motivo de alegria para a esquerda,<br />
como alguns assumiram um pouco rapidamente. A confusão<br />
não é inocente e, por grosseira que seja, representa, diante de certo<br />
público, um sério perigo. Mas ela mostra certamente que é a esquerda<br />
e não a direita que encarna o progresso social (não falo do totalitarismo<br />
de esquerda, que como o de direita é sempre regressivo, mas da<br />
esquerda democrática diante da direita “republicana”). A despeito de<br />
tudo – das regressões sempre possíveis, como a que a direita prepara<br />
agora – há uma linha de progresso social. E, mesmo se em certos casos,<br />
por razões de interesse político, a direita se associou à esquerda e<br />
mesmo a precedeu (cf. a legislação social de Bismarck, por exemplo),<br />
na maioria deles, foi a esquerda (continuo me referindo só à esquerda<br />
democrática), que encarnou claramente esse movimento. Ora, a direita<br />
atual não pode deixar de reivindicar o progresso social no que se<br />
refere ao passado, mesmo se ela apresenta um projeto para o futuro<br />
que vai à contramão do progresso. As referências de Sarkozy a Blum<br />
e a Jaurès são assim um pouco a homenagem do vício à virtude. Na<br />
realidade, para qualquer homem político do século XXI – menos da<br />
extrema-direita – é muito difícil invocar as grandes figuras da direita.<br />
Fora algumas exceções, a história da direita e principalmente a história<br />
da direita européia do século XIX e do início do século XX não<br />
é suscetível de plena apropriação, mesmo por parte de seus descendentes<br />
naturais. É preciso renegar os seus ancestrais e buscar outros,<br />
de extração diferente. O que não quer dizer que não haja afinidade,<br />
entre a direita dos séculos XIX e XX, e a direita de hoje. É como se, no<br />
plano pontual das medidas, a direita de hoje fosse obrigada a invocar<br />
a esquerda do passado. (A direita de hoje concorda com a esquerda<br />
de 1936; a direita de 1936 estava de acordo com as principais propostas<br />
dos revolucionários de <strong>18</strong>48, e assim por diante...). Mas, no<br />
plano dos princípios, o acordo é profundo. Sobre o que se faz silêncio.<br />
Na realidade, os ideólogos do século XIX idealizavam o “trabalho” e<br />
naturalizavam o sistema como fazem os seus herdeiros, só que de um<br />
modo que é, sem dúvida, excessivamente brutal e grosseiro para as<br />
exigências da direita de hoje. Vejamos, por exemplo, como soava, no<br />
ano da graça de <strong>18</strong>49, a tese da unidade indissolúvel entre o esforço<br />
individual e a constituição de capital, tese cujo corolário é a culpabilização<br />
dos vencidos na luta econômica: “Uns, através da inteligência e<br />
da boa conduta, criam um capital e entram na via de uma vida cômo-<br />
136<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Sarkozy segundo a ordem das razões<br />
da (aisance) e do progresso. Os outros, limitados ou preguiçosos, ou<br />
desregrados, permanecem na condição estreita e precária das existências<br />
que se baseiam unicamente no salário” (GUIZOT, Da Democracia<br />
francesa, <strong>18</strong>49, p. 76). Estaríamos tão longe da distinção sarkozista<br />
entre “aquele que quer progredir” e “aquele que não quer fazer nada”?<br />
Tudo somado, tem-se a impressão de que esses verdadeiros ancestrais<br />
da direita francesa de hoje, cuja sombra permanece ausente-presente<br />
na fala dos seus herdeiros, nela reconheceriam, apesar de tudo, a sua<br />
própria mensagem. Quem não é preguiçoso nem desregrado cria um<br />
capital; trabalhe mais se quiser ganhar mais. De Guizot a Sarkozy,<br />
a letra variou um pouco, mas a melodia é a mesma. Infelizmente, só<br />
uma parte dos milhões de franceses que vivem do seu trabalho se deu<br />
conta isto.<br />
Boulogne-Billancourt (França), 3 de junho de 2007<br />
*<br />
137
VII. Mundo<br />
138<br />
ALCA: negociações, impasses e<br />
resistências<br />
Marcelo Santos<br />
A<br />
interrupção das negociações do projeto norte-americano da<br />
Área de Livre Comércio das Américas (Alca), desde novembro<br />
de 2005, deve-se sobretudo à atuação da diplomacia brasileira<br />
na defesa dos interesses nacionais e regionais. Ao contrário da política<br />
externa do governo FHC, que privilegiou as relações com os EUA, a<br />
atual política externa brasileira apostou na articulação dos países do<br />
sul para enfrentar as políticas comerciais preconizadas pelas grandes<br />
potências mundiais, tal como ocorreu no surgimento do Grupo dos 20,<br />
na reunião da OMC em Cancún, e nas tentativas de estreitar os laços<br />
de integração com os países latino-americanos. Porém, do lado norteamericano,<br />
a paralisação das negociações da Alca não significa que<br />
esse país tenha desistido desse projeto. Sob outras siglas e acordos<br />
bilaterais, o governo Bush vem tentando avançar nesse plano. Nesse<br />
sentido, esclarecer as questões que estão em jogo nesse projeto tornase<br />
uma tarefa fundamental, principalmente para os que se empenham<br />
pela construção de um mundo multipolar e mais soberano para os<br />
países do sul. Também deve servir para manter o debate político e intelectual<br />
com os partidários de uma integração mais subordinada às<br />
políticas de Washington.<br />
O projeto norte-americano da Alca<br />
O primeiro passo para a criação do projeto norte-americano da Alca<br />
foi dado em 27 de junho de 1990, quando o governo de George Bush<br />
anunciou oficialmente a “Iniciativa para as Américas”, que previa a<br />
formação de uma área de livre comércio no continente. Tal projeto<br />
concentrava-se em três áreas fundamentais: comércio, dívida externa<br />
e investimento. Na questão comercial, o objetivo era a eliminação das<br />
barreiras comerciais entre os países signatários e a adoção de uma<br />
legislação que envolvia, entre outros aspectos, a garantia total para a<br />
livre circulação de bens, serviços e capitais e a proteção da propriedade<br />
intelectual. Em relação à dívida externa, a proposta dos EUA era de<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
ALCA: negociações, impasses e resistências<br />
um abatimento pequeno da dívida e a garantia de novos empréstimos<br />
para os países latino-americanos, desde que esses estados se comprometessem<br />
com os programas de ajustes estruturais ditados pelo FMI<br />
e o Bird. E no que se refere aos investimentos, os EUA propuseram a<br />
criação de um fundo de investimentos para a região que deveria ser<br />
administrado pelo BID e pelo Bird (VIGEVANI e MARIANO, 2003). Dois<br />
anos depois do lançamento da “Iniciativa para as Américas”, o governo<br />
Bush assinou juntamente com o Canadá e o México, o tratado do Nafta,<br />
que serviu de modelo para as futuras negociações da Alca.<br />
Em dezembro de 1994, o presidente Bill Clinton conseguiu reunir,<br />
na Primeira Cúpula das Américas, em Miami, 33 chefes de Estados<br />
das Américas, com exceção de Cuba, para firmar o compromisso da<br />
região com a construção de uma área de livre comércio que deveria se<br />
estender do “Alasca à Terra do Fogo” – a Alca. Depois de Miami seguiram-se<br />
as reuniões ministeriais de comércio de Denver (1995), Cartagena<br />
(1996), Belo Horizonte (1997), San José (1998), Toronto (1999),<br />
Buenos Aires (2001), Quito (2002), Miami (2003), Puebla (2004) e as<br />
reuniões de Cúpula das Américas de Santiago (1998), Quebec (2001),<br />
Monterrey (2004) e Mar del Plata (2005) nas quais foram se estabelecendo<br />
a estrutura institucional, as diretrizes, o cronograma e as negociações<br />
da Alca. Ao longo desse processo foram criados nove Grupos<br />
Negociadores, envolvendo os seguintes temas: acesso a mercados; investimentos;<br />
serviços; compras governamentais; solução de controvérsias;<br />
agricultura; direitos de propriedade intelectual; subsídios, antidumping<br />
e direitos compensatórios; e política de concorrência. Esses<br />
grupos passaram a receber apoio administrativo de um secretariado e<br />
o apoio técnico de um Comitê Tripartite, formado pela OEA, pelo BID<br />
e pela Cepal. No Plano de Ação ficou estabelecido que as negociações<br />
para a criação da área de livre comércio hemisférica deveriam estar<br />
concluídas até 2005.<br />
O projeto de integração previsto pelos EUA não é simplesmente a<br />
formação de uma área de livre comércio tradicional com a eliminação<br />
dos entraves ao trânsito de bens, mas, mais do que isso, ele prevê<br />
também a institucionalização de regras comuns para temas como serviços,<br />
investimentos, compras governamentais, propriedade intelectual,<br />
etc. Note-se que a liberalização proposta pelos norte-americanos<br />
possui uma série de ressalvas e exceções que preservam os instrumentos<br />
de defesa comercial dos EUA como sua legislação antidumping<br />
e sua política de proteção à agricultura. Ao mesmo tempo, as negociações<br />
não incluem temas como a unificação monetária e criação de um<br />
banco central comum, programas de financiamento para os países e<br />
regiões mais atrasadas e a livre circulação de trabalhadores (BATISTA<br />
139
VII. Mundo<br />
JR., 2002). Para tornar mais evidente o tipo de integração econômica<br />
que os EUA propõem à região, vale a pena, nesse momento, destacar<br />
algumas de suas propostas nessas negociações.<br />
Na questão da propriedade intelectual, a diplomacia norte-americana,<br />
a serviço de suas grandes corporações do setor farmacêutico e<br />
de alta tecnologia, já havia conseguido incluir no documento final da<br />
Rodada Uruguai do GATT o acordo sobre TRIPs (Trade Related Aspects<br />
of Intellectual Property Rights – Aspectos Comerciais dos Direitos da<br />
Propriedade Intelectual). Nesse acordo foi ampliada significativamente<br />
a proteção às patentes em âmbito mundial. Através de instrumentos<br />
jurídicos internacionais garantiram-se às corporações transnacionais<br />
a proteção de suas tecnologias privadas, suas invenções, suas posições<br />
monopolistas e a extração rentista de royalties. O TRIPs incluído<br />
no GATT-OMC limitou significativamente o acesso à tecnologia,<br />
ao conhecimento e ao progresso técnico para os países periféricos.<br />
Não plenamente satisfeitos com o TRIPs, as pretensões norte-americanas<br />
na Alca nessa área vão além dos compromissos assumidos na<br />
OMC, ampliando ainda mais a proteção sobre o copyright, os segredos<br />
comerciais, as patentes, as marcas comerciais e as indicações<br />
geográficas. De acordo com Rubens Ricupero (2003, p. 56), dentre os<br />
aspectos em que os EUA querem avançar mais do que no atual acordo<br />
do TRIPs, incluem-se: ... a possibilidade de patentear organismos<br />
vivos, com implicações negativas e dispendiosas para a agropecuária;<br />
e a limitação ao máximo do recurso à “licença compulsória”, no caso<br />
de medicamentos. Direito reconhecido por todas as convenções sobre<br />
propriedade intelectual e pelo Acordo TRIPs, a licença compulsória é<br />
a possibilidade de romper a patente, quando existe abuso do titular,<br />
que se recusa a manufaturar o medicamento no país ou cobra por<br />
ele preço abusivo. O país-vítima pode também utilizar a “importação<br />
paralela”, isto é, em caso de necessidade, importar de fabricante nãoautorizado.<br />
Foi graças à possibilidade de recorrer a tais mecanismos<br />
que o Ministério da Saúde conseguiu no Brasil que os laboratórios<br />
reduzissem em até 70% o preço dos remédios do coquetel anti-Aids. Se<br />
estivesse em vigor o capítulo proposto pela Alca, o governo brasileiro<br />
não teria obtido tal vitória.<br />
Nas propostas sobre investimentos, as pretensões dos EUA no âmbito<br />
da Alca são as mesmas do Acordo Multilateral de Investimentos<br />
(AMI). Esse acordo, que os norte-americanos e alguns aliados não<br />
conseguiram aprovar nas negociações da OCDE devido à resistência<br />
da França e dos movimentos sociais, pretendia liberalizar os investimentos<br />
mundiais, oferecendo inúmeros direitos e nulas obrigações<br />
às corporações transnacionais e, ao mesmo tempo, impor duríssimas<br />
140<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
ALCA: negociações, impasses e resistências<br />
restrições aos Estados nacionais para regulamentar minimamente o<br />
movimento dos investidores e seus capitais. Estava previsto inclusive<br />
o direito dos investidores estrangeiros acionarem a arbitragem internacional<br />
contra os Estados nacionais para serem ressarcidos de prejuízos<br />
supostamente ocorridos devido a medidas tomadas pelos poderes<br />
públicos. Ao retomar a legislação do fracassado Acordo Multilateral de<br />
Investimentos, o projeto da Alca pretendido pelos EUA prevê: a proibição<br />
dos governos praticarem políticas que favoreçam os investidores<br />
nacionais em detrimento dos investidores externos; a garantia de livre<br />
transferência de capitais de um país ao outro a uma taxa de câmbio de<br />
mercado, impedindo os governos de controlarem os fluxos de capitais;<br />
a impossibilidade dos governos estabelecerem metas ou requisitos de<br />
desempenho a serem cumpridos pelos investidores externos; a obrigação<br />
dos Estados-membros a indenizarem os investidores estrangeiros<br />
em situações nas quais as decisões soberanas das autoridades nacionais<br />
sejam consideradas “equivalentes a uma expropriação” etc.<br />
Nas negociações do setor de serviços, novamente os EUA retomaram<br />
a agenda que tem enfrentado resistências na OMC e demais<br />
fóruns econômicos multilaterais, para tentar impô-la aos países da<br />
região. Os EUA, que são os maiores exportadores de serviços do planeta,<br />
pretendem incluir na Alca a liberalização completa de todos os<br />
tipos de serviços, tais como financeiros, telecomunicações, previdência,<br />
seguros, turismo, indústria editorial, postais, transportes, água,<br />
energia, assistência médica, etc. Também estão incluídas na proposta<br />
norte-americana todas as garantias previstas aos investidores externos<br />
que estão colocadas no capítulo sobre investimentos. Além disso,<br />
pretende-se proibir os estados de oferecerem serviços não sujeitos a<br />
uma rigorosa lógica econômica, a menos que sejam gratuitos e não<br />
compitam com os do setor privado. O processo de negociação do Acordo<br />
Geral Sobre Comércio de Serviços (Gats) criado em 1994 durante<br />
a conclusão da Rodada Uruguai do GATT já havia deixado claro que<br />
a pretensão dos países centrais era a completa liberalização do setor<br />
de serviços e a restrição à atuação dos governos nessa área, porém,<br />
a resistência dos países periféricos levou a um acordo que optou pela<br />
liberalização gradual do setor. Ficou acordado que a liberalização dos<br />
serviços ocorreria mediante “listas positivas”, nas quais os países destacavam<br />
as áreas que queriam liberalizar, embora o acordo já tivesse<br />
garantido a abertura das áreas de serviços financeiros e serviços básicos<br />
de telecomunicação. Pois bem, na ALCA os EUA retomam a agenda<br />
da liberalização ampla dos serviços, com poucas exceções, como já<br />
acontece no Nafta.<br />
141
VII. Mundo<br />
No que se refere às compras governamentais ou contratos públicos<br />
de governo, a proposta norte-americana para a Alca é evitar que os governos<br />
dêem tratamento preferencial às empresas nacionais devendo<br />
oferecer o mesmo tratamento para as empresas fornecedoras de bens<br />
e serviços de todos os países pertencentes a área.<br />
Sob esses aspectos, pode-se dizer que o projeto norte-americano<br />
da Alca pretende institucionalizar normas que garantam a liberalização<br />
comercial, financeira e dos investimentos de acordo com os interesses<br />
de seus capitalistas, impedindo os demais países da região<br />
de modificarem suas políticas econômicas nacionais. Nesse sentido, o<br />
projeto Alca é a complementação e a consolidação jurídica do processo<br />
de reformas liberalizantes promovidas na região nas últimas décadas<br />
sob monitoramento de Washington. Em conjunto, a maior parte das<br />
políticas, das reformas e das instituições recomendadas pelos EUA<br />
significa negar aos países da região a possibilidade de utilizarem instrumentos<br />
de política econômica que os próprios norte-americanos e<br />
os demais países centrais usaram durante seus respectivos processos<br />
de desenvolvimento.<br />
Negociações, impasses e resistências<br />
As negociações para a constituição da Alca, a despeito das divergências<br />
envolvendo alguns países, cumpriram até novembro de 2002<br />
todo o cronograma estabelecido na Quarta Reunião Ministerial de San<br />
José em março de 1998, sobretudo no que diz respeito à questão processual<br />
como a montagem da estrutura institucional. A partir da Sétima<br />
Reunião Ministerial, realizada em Quito, em novembro de 2002,<br />
na qual a presidência das negociações foi transferida do Equador para<br />
a co-presidência de Brasil e EUA, a Alca entrou na fase de definição<br />
das regras de seu funcionamento em que o embate passou a ser em<br />
torno das propostas para o acesso ao mercado nas áreas de agricultura,<br />
indústria, investimentos, serviços e compras governamentais. Foi<br />
nesse momento que a ALCA entrou num ritmo mais lento marcado<br />
pela discordância de propostas entre os EUA e o Mercosul, o que levaria<br />
a um impasse nas futuras negociações de tal forma que a previsão<br />
oficial de inaugurar a área de livre comércio até dezembro de 2005 não<br />
se cumpriu.<br />
O Brasil, respaldado principalmente pela Argentina no Mercosul,<br />
passou a defender aquilo que ficou conhecido como “Alca light”, na<br />
qual temas de maior importância seriam discutidos no esquema “4+1”<br />
(bloco do Mercosul e os EUA) e os temas sensíveis como propriedade<br />
intelectual, serviços, investimentos e compras governamentais deve-<br />
142<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
ALCA: negociações, impasses e resistências<br />
riam ser tratados na OMC. Ao contrário, a posição norte-americana foi<br />
a de defesa da “Alca abrangente” que deveria envolver todos os assuntos,<br />
inclusive os relacionados a investimentos, propriedade intelectual<br />
e compras governamentais, porém, assuntos como política antidumping<br />
e apoio interno aos produtores agrícolas são considerados pelos<br />
EUA como temas sistêmicos que devem ser tratados na OMC e não na<br />
Alca. Em fevereiro de 2003, novamente Mercosul e EUA entraram em<br />
rota de colisão quando os norte-americanos apresentaram suas propostas<br />
de redução de tarifas em produtos industriais e agrícolas sob a<br />
forma de quatro listas diferentes dividindo os 34 países do hemisfério<br />
ocidental em Caribe, América Central, Grupo Andino, Mercosul. Em<br />
tese, todos os produtos foram incluídos nas quatro listas, mas os itens<br />
e os prazos para a liberalização total, isto é, para eliminar a totalidade<br />
das tarifas até chegar a zero, variaram de acordo com os interesses<br />
de grupos internos norte-americanos. Por exemplo, para os países do<br />
Mercosul, os EUA propuseram a supressão total das barreiras para<br />
58% das manufaturas e 50% dos bens agrícolas, não contemplando<br />
itens agrícolas de interesse do bloco, principalmente do Brasil.<br />
Uma outra divergência envolvendo brasileiros e norte-americanos<br />
aconteceu durante a Quinta Conferência Ministerial da Organização<br />
Mundial do Comércio, realizada em Cancún em setembro de 2003,<br />
quando a diplomacia brasileira liderou um bloco de países (G-21) que<br />
inviabilizou a rodada de negociações devido à agenda do encontro contemplar<br />
apenas os interesses dos EUA e da União Européia, que recusavam<br />
discutir os subsídios agrícolas oferecidos aos seus produtores<br />
agrícolas. Depois de o representante do comércio exterior dos EUA<br />
(USTR), Robert Zoellick responsabilizar o Brasil pelo fracasso das negociações<br />
em Cancún, os norte-americanos acabaram concordando<br />
a contragosto em formular um acordo mais flexível para a ALCA, na<br />
Oitava Reunião Ministerial de Comércio em Miami, em novembro de<br />
2003. Na declaração de Miami ficou decidido que os países poderiam<br />
assumir níveis de compromissos distintos na Alca prevendo dois níveis<br />
de negociação. Enquanto no primeiro nível ficaria estabelecido<br />
um conjunto comum e equilibrado de direitos e obrigações, aplicáveis<br />
a todos os países, no segundo, era facultativo aos países definirem<br />
obrigações e benefícios adicionais no âmbito da Alca por meio de negociações<br />
plurilaterais. 1 Evitando os temas mais polêmicos, que poderiam<br />
ser negociados com o tempo, a declaração de Miami procurava<br />
impedir um novo choque entre as posições do Mercosul e as dos EUA<br />
1 Ver Declaração Ministerial de Miami, <strong>18</strong> de novembro de 2003. Em: http//www.ftaaalca.org.<br />
143
VII. Mundo<br />
na medida em que tornava facultativa a participação dos países em<br />
áreas consideradas por eles problemáticas.<br />
É importante destacar que os EUA, o Canadá, o México, o Chile e<br />
outros países não se contentaram com o acordo “light” estabelecido<br />
em Miami. Dessa forma, as divergências não demoram em reaparecer<br />
nas negociações, como ocorreu na Reunião do Comitê de Negociação<br />
Comercial, principal órgão técnico da ALCA, em Puebla, fevereiro de<br />
2004. Nas negociações, para se chegar a um formato final para a constituição<br />
da Alca, ocorreram novas divergências e a reunião fracassou<br />
nos seus propósitos. Novamente as questões ligadas aos subsídios<br />
norte-americanos à agricultura, aos temas da propriedade intelectual,<br />
políticas de concorrência, antidumping e direitos compensatórios e o<br />
debate entre Alca “light” ou abrangente levaram a reunião a um impasse.<br />
Note-se que, nessa reunião, os EUA, Canadá, Chile e México<br />
articularam o G14, grupo de países sintonizados com as propostas<br />
norte-americanas da Alca.<br />
Um mês depois do fracasso da reunião de Puebla, em 4 de março<br />
de 2004, o USTr, em documento enviado ao Congresso dos EUA, deixou<br />
clara a intenção de insistir nas negociações da Alca abrangente.<br />
Como relata o documento:<br />
144<br />
Algumas delegações que negociam a Alca vêm questionando esses<br />
princípios e objetivos, propondo que a Alca fique concentrada<br />
apenas no acesso a mercados... A Alca deve ser abrangente e<br />
incluir um conjunto comum de direitos e obrigações a ser aplicado<br />
para todos os países em todas as áreas que estão sendo<br />
negociadas. 2<br />
Com a interrupção das negociações da Alca em Puebla devido às<br />
divergências com o Mercosul, o governo Bush, valendo-se do Trade<br />
Promotion Authority ou fast track passou a privilegiar acordos bilaterais<br />
e plurilaterais com os demais países do continente nos mesmos<br />
termos da Alca abrangente. Pode-se dizer que, com essa ofensiva, os<br />
EUA pretendem minar a resistência do Mercosul à Alca e, ao mesmo<br />
tempo, bloquear avanços de integração regional latino-americana fora<br />
da sua liderança. Nos últimos dois anos os EUA fecharam o acordo do<br />
Cafta-DR com a América Central e a República Dominicana, iniciaram<br />
as negociações de um acordo bilateral com o Panamá, tentaram<br />
iniciar uma discussão com o Paraguai e o Uruguai e, de certa forma,<br />
conseguiram desestruturar a Comunidade Andina de Nações com as<br />
2 Fragmento publicado no jornal Folha de S.Paulo em 5 de março de 2004.<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
ALCA: negociações, impasses e resistências<br />
negociações do Tratado de Livre Comércio Andino com a Colômbia, o<br />
Equador e o Peru (a Bolívia chegou a participar como observadora).<br />
Desses países andinos, Peru e Colômbia já assinaram o TLC com<br />
os EUA, faltando apenas a ratificação dos Congressos nacionais, enquanto<br />
que as negociações com o Equador estão suspensas e a Bolívia<br />
passou a se opor ao TLC Andino.<br />
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em 8 de janeiro de 2006, o<br />
subsecretário de Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado norte-americano,<br />
Thomas Shannon fez uma avaliação dessa estratégia:<br />
Enquanto a Alca vem nesse caminho mais longo, temos pressionado<br />
fortemente essa agenda que resultou em acordos com<br />
o Chile, a Cafta-DR (Área de Livre Comércio da América Central<br />
e República Dominicana), o Peru e, esperamos, num futuro<br />
próximo, com Equador, países andinos, Colômbia e Panamá.<br />
Quando se combinam todos os países com os quais já firmamos<br />
acordo mais os que estamos negociando seriamente, isso cobre<br />
cerca de dois terços do PIB do hemisfério, o que é significativo.<br />
Vale lembrar mais uma vez que, nesses acordos, os EUA utilizam<br />
a sedução da oferta de acesso a seu mercado, a fragilidade econômica<br />
e a dependência dos demais países para impor somente as cláusulas<br />
de seu próprio interesse. Também cabe reafirmar que a estratégia<br />
de acordos bilaterais e plurilaterais adotada pelos EUA não significa<br />
que esse país tenha desistido da Alca. Tanto que na Quarta Reunião<br />
de Cúpula das Américas, realizada em novembro de 2005 em Mar<br />
del Plata, os EUA queriam incluir no documento final o compromisso<br />
dos demais países para retomar as discussões da Alca a partir de<br />
abril de 2006. O Mercosul e a Venezuela se opuseram à inclusão de<br />
qualquer menção que implicasse prazos para negociar a Alca. Diante<br />
do impasse para retomar as negociações, a Colômbia chegou a<br />
cogitar uma proposta, que foi logo apoiada pelo México, de criar a<br />
Alca para os 29 países que não se opõem ao acordo. Essas contradições<br />
também demonstram a divisão dos países latino-americanos<br />
em relação ao projeto Alca. Deve-se notar ainda que, embora muitos<br />
governos estejam negociando com os EUA, isso não implica que em<br />
suas sociedades não existam resistências, como vem ocorrendo em<br />
quase toda a região andina.<br />
Quando se observam as razões que levaram a um impasse na Alca,<br />
torna-se necessário recuar no tempo e refletir sobre a seguinte questão.<br />
A Alca foi lançada durante um período de euforia das elites dominantes<br />
e governantes latino-americanas com as reformas disseminadas pelos<br />
145
VII. Mundo<br />
EUA, acreditando que liberalizando, privatizando e estabilizando esses<br />
países teriam uma melhor inserção num mundo em que se anunciava<br />
como “um novo século americano” com uma nova ordem mundial<br />
pós-guerra fria, baseada nos princípios e valores norte-americanos da<br />
democracia de mercado e na força convergente da globalização. Ocorre<br />
que as crises econômicas e os resultados extremamente desiguais da<br />
globalização foram deixando mais claro para os movimentos sociais e<br />
alguns governantes da região os verdadeiros significados da adesão<br />
incondicional às diretrizes dos EUA. Mais do que isso, nessas negociações<br />
da Alca ficou evidente a histórica visão Pan-americanista dos<br />
EUA, na qual a soberania dos países latino-americanos é duramente<br />
violentada. Baseado na idéia de unidade das Américas e buscando<br />
receptividade aos seus projetos, os EUA mais uma vez partiram do<br />
pressuposto da existência de uma comunidade e unidade de objetivos<br />
e interesses econômicos, políticos, culturais e militares de todos os<br />
países do hemisfério ocidental. Porém, paradoxalmente, divulgando os<br />
princípios de igualdade, cooperação, solidariedade e parceria, os EUA<br />
foram deixando claro durante as negociações que o acordo deveria<br />
ocorrer fundamentalmente em conformidade com os seus interesses<br />
geoeconômicos, o que para a América Latina significaria restringir ainda<br />
mais sua capacidade de traçar políticas autônomas de desenvolvimento,<br />
como, por exemplo, praticar políticas industriais ativas.<br />
Tudo isso acabou gerando resistências de determinados governos<br />
e movimentos sociais à Alca, que, em alguns casos, passaram a exigir<br />
uma reformulação das propostas dos EUA e, em outros, iniciaram<br />
campanhas pelo fim das negociações do acordo. Daí decorrem algumas<br />
iniciativas tais como a tentativa de fortalecer o Mercosul; a criação da<br />
Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa) com a aproximação dos<br />
países sul-americanos com alguns países da Comunidade Andina; a<br />
entrada da Venezuela no Mercosul; a Campanha Continental contra a<br />
Alca, envolvendo vários movimento sociais de diversos países, inclusive<br />
dos EUA; e o projeto da Alternativa Bolivariana das Américas (Alba), lançado<br />
por Hugo Chávez da Venezuela e Fidel Castro de Cuba em dezembro<br />
de 2004, que propõe uma integração regional alternativa à Alca.<br />
Ao mesmo tempo em que essas iniciativas têm procurado demonstrar<br />
que a Alca não é inevitável, não é a melhor opção para a América<br />
Latina e que existe vontade e disposição para uma outra integração,<br />
elas padecem ainda das dificuldades que estiveram presentes em todas<br />
as tentativas de integração regional latino-americana, que, como<br />
indica o processo histórico, mantiveram-se aprisionadas a modelos, a<br />
instrumentos e as formas de mobilização que não conseguiram colocar<br />
o desenvolvimento econômico a serviço dos povos da região.<br />
146<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Referências<br />
ALCA: negociações, impasses e resistências<br />
BATISTA JR, P. N. A Alca e o Brasil. Estudos Avançados,<br />
Universidade de São Paulo. Instituto de Estudos Avançados. São<br />
Paulo: IEA. v. 17. n. 48. p. 267-293, 2002.<br />
CHANG, HA-J. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento<br />
em perspectiva histórica. São Paulo: Editora Unesp, 2004.<br />
DUPAS, G. A América Latina e o novo jogo global. In: DUPAS,<br />
G. (Coord.) América Latina no início do século XXI: perspectivas<br />
econômicas, sociais e políticas. Rio de Janeiro: <strong>Fundação</strong> Konrad<br />
Adenauer; São Paulo: Editora Unesp, 2005.<br />
RICUPERO, R. A Alca. São Paulo: Publifolha, 2003.<br />
SHIVA, V. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento.<br />
Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.<br />
VIGEVANI, T., MARIANO, M. P. Alca: O gigante e os anões. São<br />
Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003.<br />
*<br />
147
VII. Mundo<br />
148<br />
A governabilidade democrática como<br />
espaço idôneo para conciliar as<br />
políticas econômicas com<br />
as políticas sociais<br />
Amália D. García Medina<br />
Os países da América Latina estão insatisfeitos com os resultados<br />
das políticas econômicas aplicadas nos últimos anos. Sob<br />
múltiplos âmbitos tem se questionado as conseqüências do<br />
programa para o desenvolvimento que, em 1990, o economista John<br />
Williamson denominou o “Consenso de Washington”. O mesmo Williamson<br />
1 não duvida em qualificar como “decepcionantes” os resultados<br />
destes últimos anos, referindo-se aos resultados das reformas para<br />
o desenvolvimento – predominantemente econômicas – promovidas e<br />
aplicadas na América Latina desde os finais dos anos oitenta.<br />
O fracasso do Consenso de Washington<br />
Colocadas em marcha as chamadas “reformas de primeira geração”<br />
– como o denominam os economistas – deveriam ser o remédio para que<br />
os países em desenvolvimento pudessem enfrentar seus compromissos<br />
de pagamento da dívida externa – no marco da reestruturação da mesma<br />
com os organismos internacionais – e evitar, conjunturalmente, a<br />
potencial instabilidade e quebra do sistema financeiro internacional.<br />
Em sua recapitulação pública do ano 2003 John Williamson resumiu<br />
em dez proposições as medidas de política econômica que estavam sendo<br />
aplicadas nos países latinos americanos e que acabaram configurando<br />
seu já famoso “Consenso de Washington”. Ao continuar, enumerou<br />
dez reformas: “Disciplina fiscal; reordenamento das prioridades do<br />
gasto público; reforma tributária; liberalização das taxas de juros; tipo<br />
de câmbio competitivo; liberalização do comércio; liberação dos investimentos<br />
estrangeiros diretos; privatização; desregulamentação e direitos<br />
1 1 John Williamson. No hay consenso em el significado. Reseña sobre el Consenso<br />
de Washington y sugerencias sobre los pasos a dar. Finanzas & Desarrollo, p. 12;<br />
setiembre de 2003.<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
A governabilidade democrática como espaço idôneo<br />
para conciliar as políticas econômicas com as políticas sociais<br />
de propriedade”. 2 Ao aplicar estas reformas o desemprego aumentou em<br />
muitos países, a pobreza se estendeu e a ênfase na abertura fez com<br />
que os países se tornassem vulneráveis aos efeitos mais negativos da<br />
globalização; os economistas questionaram o ritmo e a seqüência das<br />
reformas. 3 Nos desenlaces deste período se destaca a unanimidade em<br />
uma conclusão que resume o atual panorama desolador da América<br />
Latina: nenhum país pode reduzir a pobreza ou a desigualdade, nem<br />
melhorar a qualidade e o nível de vida da população. 4<br />
As crises políticas, sociais e financeiras que estalaram nos distintos<br />
países latinos americanos durante a segunda parte da década de<br />
1990, o aumento no número de pobres e o colapso argentino no fim de<br />
2001 (país considerado pelos atores de Washington como exemplo a<br />
seguir) foram fatos que ajudaram a confirmar a sensação de fracasso<br />
que deixou a implementação destas políticas na maioria dos países da<br />
região. O mesmo Williamson, no documento já aludido, – se bem que<br />
ainda defende com certo dogmatismo, o programa do Consenso de<br />
Washington – não deixa de reconhecer que, no que se refere à renda,<br />
“América Latina ... possui as distribuições mais desiguais do mundo”<br />
e, em sua quarta recomendação advoga para que “os pobres tenham<br />
acesso aos meios que lhes permitam sair da pobreza”. 5<br />
No entanto, já desde meados da década de 90, na literatura sobre<br />
a economia do desenvolvimento, se reconhecia a importância das<br />
instituições para permitir que uma economia funcione com eficácia e<br />
equidade. “As reformas de segunda geração desenvolvidas por Moisés<br />
Naím (1995), são as que por meio do fortalecimento das instituições<br />
do Estado, tem propiciado um crescimento econômico maior e uma<br />
distribuição mais eqüitativa deste crescimento entre a população. De<br />
acordo com esta visão o fortalecimento institucional é a base para solucionar<br />
os problemas das políticas públicas e o desenvolvimento”. 6<br />
Também, neste conjunto de reformas se ressalta que um dos objetivos<br />
é conseguir que o crescimento econômico beneficie a todos. Nas<br />
chamadas reformas de primeira geração nem sequer se colocavam a<br />
redução da desigualdade e da pobreza como objetivos explícitos, já<br />
que se supunha que o crescimento econômico seria suficiente para<br />
diminuí-las. A discussão chegou a um ponto em que extrapolou o âmbito<br />
dos especialistas para irromper no debate político: trata-se de<br />
conseguir um enfoque de longo prazo para por em prática as reformas<br />
2 Ídem, p. 10-11.<br />
3 Gemma Cairó u Céspedes. FMI, reforma y desarrollo. Publicado em COSTAS, A. y<br />
CAIRO, G. (2003) Cooperación y Desarrollo. Hacia una Agenda compreensiva para el<br />
desarrollo. Pirámide, Madrid.<br />
4 Jorge G. Castañeda. Es la política. Diario Reforma, 03 de febrero de 2003.<br />
5 John Williamsonm. Ibíd., p. 13.<br />
6 José Luis Hernández Nuñez. Boletín económico, p. 21, BCR. El Salvador, 2004.<br />
149
VII. Mundo<br />
sociais postergadas. É um tema pertinente para o espaço da política,<br />
pois, – como o assinalam os especialistas –, para a criação e fortalecimento<br />
de instituições, não existem teorias desenvolvidas, testadas e<br />
estabelecidas, portanto é um campo novo e aberto à criatividade.<br />
Na atualidade, com distintas posturas e interpretações, o debate<br />
das reformas está presente em quase toda a região. A urgência do crescimento<br />
é assumida, e vários governos se interrogam como fazê-lo com<br />
maior equidade levando em conta que os que sustentam o Consenso<br />
de Washington, finalmente, acabaram por admitir: as reformas econômica<br />
tem implicado altos custos sociais que ameaçam a governabilidade<br />
democrática. Neste contexto, entendemos a governabilidade como<br />
a capacidade dos governos para exercer o poder político democrático<br />
de forma continuada, em condições de legitimidade, especialmente em<br />
circunstâncias de crise.<br />
A governabilidade democrática<br />
A recuperação democrática dos anos noventa na América Latina é<br />
muito ilustrativa.<br />
150<br />
Na democracia adquirem visibilidade e liberdade de expressão as<br />
demandas cidadãs que, como sistematicamente mostram todas<br />
as pesquisas de opinião, priorizam os problemas de pobreza, de<br />
emprego, educação, saúde e segurança cidadã. Não existe programa<br />
de candidato que dispute democraticamente os votos que<br />
não inclua propostas para tais demandas. Esse é o espaço da<br />
legitimidade das políticas destinadas ao desenvolvimento social.<br />
Da mesma maneira, a frustração destas demandas, quer dizer,<br />
políticas destinadas a dar soluções às demandas sociais da cidadania<br />
que sejam insuficientes, débeis, inadequadas ou ineficientes,<br />
põem em questão, por sua vez, a governabilidade democrática<br />
e geram crises institucionais. E, uma vez eleitos os governantes,<br />
a cidadania se converte em avalista de suas propostas, se as instituições<br />
democráticas funcionam e se, além das desigualdades<br />
econômicas dos cidadãos ou dos pesos corporativos de interesses<br />
em jogo, prima a representação de maiorias e minorias, com<br />
parlamentos efetivos que permitam dirimir entre estes interesses<br />
particulares em função dos mais coletivos. Em suma, a capacidade<br />
dos sistemas democráticos para processar as demandas e<br />
dar espaço aos diversos interesses é o que faz a diferença na qualidade<br />
das políticas econômicas e sociais a que pode obrigar, em<br />
maior ou menor medida, a sua necessária articulação. Impostos,<br />
legislações trabalhistas, reformas sociais, políticas de igualdade<br />
de gênero e territoriais, entre outras, devem passar pela prova do<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
A governabilidade democrática como espaço idôneo<br />
para conciliar as políticas econômicas com as políticas sociais<br />
escrutínio público e ser parte da deliberação política. Mas, igualmente<br />
importante é entender que para articular adequadamente<br />
políticas econômicas e sociais orientadas a políticas ativas de<br />
inclusão e maior equidade social, se requer um aprofundamento<br />
da democracia que permita atribuir um maior peso ao valor<br />
da cidadania que ao valor econômico, bem como à estabilidade<br />
e legitimidade de suas instituições políticas que permitam que<br />
tal cidadania exerça efetivamente seus direitos. Instituições que<br />
funcionem além dos processos eleitorais, como são os parlamentos<br />
e os partidos; com uma sociedade civil forte e constituída;<br />
com transparência informativa, liberdade de expressão e pluralismo<br />
nos media; e com um sistema judicial independente, probo<br />
e expedito capaz de processar as muitas demandas sociais que<br />
crescentemente canalizam a população para a justiça. 7<br />
A crescente revalorização do local redefine o papel exercido pelas<br />
instituições econômicas, políticas e sociais nos governos democráticos<br />
locais para dar resposta ao incremento das demandas<br />
sociais. As instituições se constituem nas instâncias mediadoras<br />
que vinculam as políticas macroeconômicas com os agentes<br />
econômicos e sociais bo âmbito do desenvolvimento local que se<br />
relaciona com a esfera pública, particularmente na dotação dos<br />
bens e serviços públicos requeridos. A participação dos diferentes<br />
atores políticos, sociais e os agentes econômicos mediante<br />
processos de distribuição de poder para solucionar os conflitos<br />
de interesses, incide na formação dos arranjos institucionais. 8<br />
A América Latina tem patrocinado o aprendizado recente nas relações<br />
entre economia, sociedade e democracia: hoje é visível que não<br />
existe uma relação automática e unidirecional entre crescimento econômico<br />
e geração de emprego e tampouco existe uma relação mecânica<br />
e vertical entre crescimento econômico e superação da pobreza e que<br />
crescimento econômico não é garantia de maior desenvolvimento, entendido<br />
este desde uma perspectiva mais ampla e multidimensional;<br />
por fim, temos aprendido que a democracia pode ser um grande espaço<br />
para combinar as políticas econômicas com as políticas sociais.<br />
7 Clarisa Ardí. Algunas reflexiones sobre la relación entre políticas económicas y sociales.<br />
Colección Ideas. Año 5, n. 39., enero 2004. Presentación preparada para el<br />
encuentro “La Articulación de las Políticas Económicas y las Políticas Sociales: desafío<br />
para el crecimiento sostenible e incluyente”, organizado por el Instituto Interamericano<br />
para el Desarrollo Social (INDES), del Banco Interamericano de Desarrollo.<br />
BID. 1 y 2 de Diciembre 2003. Washington D.C.<br />
8 José Guadalupe Vargas Hernández. Implicaciones de los procesos de globalización<br />
económica en las reformas de las economías locales. Centro Universitario del Sur.<br />
Universidad de Guadalajara. Prol. Colón SN. Cd. Guzmán, Jalisco, 49000, México.<br />
151
VII. Mundo<br />
A estratégia do desenvolvimento humano<br />
152<br />
A inexistência de automatismos, crescimento econômico-desenvolvimento<br />
humano tem sido bem explicitada pelo Programa das<br />
Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) quando afirma<br />
que, apesar do crescimento econômico ampliar a base material<br />
para a satisfação das necessidades básicas, o grau em que estas<br />
são satisfeitas depende da distribuição dos recursos e o aproveitamento<br />
e a distribuição das oportunidades. A seqüência desejável<br />
de política econômica, para que o vínculo crescimento-desenvolvimento<br />
seja virtuoso, é priorizar primeiro o desenvolvimento<br />
humano – fundamentalmente educação primária e melhoria do<br />
saneamento básico – para posteriormente investir em crescimento<br />
econômico. Neste caso tratar-se-ia de ampliar a noção de<br />
desenvolvimento à esfera política – o papel da democracia e as<br />
instituições –, no âmbito social – a preocupação pela equidade<br />
e o nível de bem estar das pessoas – e a dimensão ecológica – a<br />
incorporação da sustentabilidade ambiental; enfatizando a necessidade<br />
de incluir no projeto a experiência e o conhecimento<br />
dos agentes locais, para assim lograr uma participação mais consensuada<br />
sobre os objetivos e os instrumentos das políticas. 9<br />
Esta é, justamente, a visão que temos escolhido para impulsionar<br />
o desenvolvimento no Estado de Zacatecas, no México.<br />
Nossa estratégia coincide, parcialmente, com a perspectiva explícita<br />
da Declaração de Nuevo Leon, de 2002. No preâmbulo daquele<br />
documento destacam-se os seguintes propósitos dos signatários:<br />
(...) afirmamos que o bem-estar de nossos povos requer sucesso<br />
em três objetivos estreitamente vinculados e interdependentes:<br />
crescimento econômico com equidade para reduzir a pobreza, desenvolvimento<br />
social e governabilidade democrática”. 10<br />
Trata-se do enriquecimento da vida e das liberdades das pessoas,<br />
quer dizer, o desenvolvimento humano. Só uma visão compartilhada<br />
do Estado, a economia e a sociedade que se deseja alcançar pode permitir<br />
saídas progressistas para todos os homens e mulheres.<br />
9 Gemma Cairó i Céspedes. FMI, reforma y desarrollo. P. 17-21. Publicado em COS-<br />
TAS, A. y CAIRO, G. (2003) Cooperación y desarrollo. Hacia una agendacompreensiva<br />
para el desarrollo. Pirámide, Madrid.<br />
10 Declaración de Nuevo León”. Monterrey, 2002.<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
A governabilidade democrática como espaço idôneo<br />
para conciliar as políticas econômicas com as políticas sociais<br />
Entretanto, há, pelo menos, duas críticas que se formulam contra<br />
o conceito geral do desenvolvimento humano sustentável: uma postura<br />
que desde uma “perspectiva crítica, se entende que, sem superar as<br />
limitações da forma de desenvolvimento capitalista, sem considerar a<br />
estrutura econômica onde este desenvolvimento deve realizar-se, é impossível<br />
“construir uma síntese entre globalidade e humanidade” já que<br />
é impossível que esta ocorra sob “condições capitalistas de produção,<br />
distribuição e consumo” e a segunda sublinha “a semelhança dos paradigmas<br />
do desenvolvimento humano com o do Consenso de Washington<br />
e os identifica como dois paradigmas aparentemente alternativos”. 11<br />
Sobre a primeira crítica desejo insistir que, justamente, trata-se<br />
de encontrar um caminho alternativo e divergente – que beneficie as<br />
pessoas – dentro das condições definidas pelo capitalismo; a questão<br />
é que não existe outro cenário.<br />
Sobre a segunda crítica é quase ocioso estabelecer algo que, talvez,<br />
psicologicamente se assume: não existe a originalidade radical; insisto:<br />
escolhemos a democracia – a governabilidade democrática – como<br />
o espaço idôneo para conciliar a política econômica com as políticas<br />
sociais. Esse é nosso programa.<br />
Se me permitem, terminarei com duas citações que me parece,<br />
descrevem com perfeição a filosofia que nos anima. Diz Aung San Suu<br />
Kyi – Prêmio Nobel da Paz, 1991 – que:<br />
(...) o respeito à dignidade humana implica um compromisso<br />
para criar condições nas quais os indivíduos possam desenvolver<br />
um sentido de autoestima e de segurança. A verdadeira dignidade<br />
provém da capacidade de colocar-se à altura dos desafios<br />
inerentes à condição humana. 12<br />
Por desgraça, durante o século XX a dignidade humana foi assolada<br />
sem misericórdia; por isso quero concluir com quatro versos do<br />
poema Fim de século 13 do poeta mexicano José Emilio Pacheco:<br />
Não quero nada para mim.<br />
Só anseio<br />
o possível impossível:<br />
um mundo sem vítimas.<br />
11 Gemma Cairó i Céspedes. FMI, reformas y desarrollo. Hacia una agenda compreensiva<br />
para el desarrollo. Pirámide, Madrid.<br />
12 Aung San Suu Kyi. Premio Nóbel da Paz 1991<br />
13 José Emilio Pacheco. Fin de siglo. P. 90. Lecturas mexicanas. Fondo de cultura económica.<br />
México, 1984.<br />
153
VII. Mundo<br />
154<br />
A crise no Oriente Médio<br />
O golpe de Gaza:<br />
a islamização está chegando 1<br />
Walid Salem<br />
Em resposta aos recentes eventos em Gaza, o dr. Sa’eb Erekat,<br />
chefe do Departamento de Negociações da Organização para a<br />
Libertação da Palestina, disse, no dia 14 de junho, que “este<br />
é o pior fato assistido pela Palestina, desde a derrota na guerra de<br />
1967”. Do outro lado, Sami Abu Zuhri, porta-voz do Hamas, em Gaza,<br />
declarou candidamente numa emissão da Rádio Hamas, no dia seguinte,<br />
que havia ocorrido a segunda libertação da Faixa de Gaza:<br />
“A primeira libertação foi das hordas dos colonos israelenses, e esta<br />
segunda é das hordas dos colaboradores de Israel”.<br />
Outros líderes do Hamas costumavam chamar aqueles que foram<br />
derrotados como os “Lahdis” (referindo-se a Antoin Lahd, chefe<br />
do antigo Exército do Sul do Líbano, que era ligado a Israel), e até<br />
diferenciavam entre esses “Lahdis” e a Fatah, dizendo que as lutas<br />
se deram apenas contra os “Lahdis”, e de nenhuma maneira com a<br />
Fatah.<br />
Erekat e todas as facções da OLP expressaram reações muito pessimistas<br />
sobre os eventos em Gaza, enquanto o Hamas festejou e até<br />
organizou marchas e encontros públicos para celebrar a segunda<br />
libertação de Gaza...<br />
A OLP e a era do programa nacional palestino estão em declínio,<br />
enquanto a nova era da islamização está em ascensão. Esta nova<br />
era começou com a vitória do Hamas nas eleições de 2006, e ganhou<br />
maior impulso com o controle unilateral do Hamas sobre Gaza desde<br />
o dia 15 de junho último.<br />
1 O original deste artigo (inglês) foi publicado em 20/06/2007 pelo MEW (Mid<br />
EastWeb for Coexistence) www.mideastweb.org, e traduzido por Moisés Storch para<br />
o Paz Agora|BR (www.pazagora.org) e a Revista Espaço Acadêmico.<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
O golpe de Gaza: a islamização está chegando<br />
A questão agora é se isso será ou não um primeiro passo para a<br />
tomada da Cisjordânia (ou possivelmente do Egito) pelo Hamas ou a<br />
Irmandade Muçulmana. Os fatos futuros responderão.<br />
Islamização versus nacionalismo<br />
Na era do nacionalismo palestino, a agenda nacional palestina<br />
era a prioridade, e o trabalho em função dessa agenda para chegar a<br />
um Estado Palestino tomava praticamente todos os esforços da OLP<br />
e suas facções.<br />
Hoje isso mudou. A questão nacional palestina é apenas um ponto<br />
da agenda do Hamas. Como parte dos grupos da Irmandade Muçulmana,<br />
seu principal tema é a criação de um sistema de califado<br />
islâmico. Assim o que deverá se seguir à sua tomada de Gaza não é<br />
necessariamente uma tomada da Cisjordânia, se a situação lá não<br />
for tão favorável. Poderá, por exemplo, ser o Egito, se este já estiver<br />
mais maduro que a Cisjordânia para a islamização. Os grupos<br />
da Irmandade Muçulmana, incluindo o Hamas, irão trabalhar pela<br />
islamização, onde ela for primeiramente possível, sem restringir-se<br />
a uma certa agenda nacional, pois acreditam que sua agenda transcende<br />
o nacionalismo.<br />
É por isso que o Hamas não está assustado com questões como<br />
a separação de Gaza da Cisjordânia e o impedimento da criação de<br />
um Estado Palestino, como as facções da OLP o acusam de estar<br />
fazendo. Simplesmente esses temas não são parte de sua agenda<br />
principal. Entretanto, o Hamas como o ramo da Irmandade Muçulmana<br />
em Gaza, e também na Cisjordânia, também irá trabalhar para<br />
tomar a Cisjordânia após Gaza para evitar separar uma da outra.<br />
Isso posto, deve-se acrescentar que a Irmandade Muçulmana foi<br />
fundada em 1928 para recriar o sistema de califado islâmico. Desde<br />
aquele tempo, foram incapazes de consegui-lo em qualquer dos<br />
países islâmicos. Portanto, eles não hesitarão em fazê-lo em Gaza,<br />
estabelecendo lá um semi-califado na forma de um emirado islâmico.<br />
A destruição das casas de Yasser Arafat (e de Abu Mazen), em Gaza,<br />
como maiores símbolos do nacionalismo palestino, são sinais nesta<br />
direção, e o que virá será bem maior.<br />
O processo de islamização<br />
Como irá se realizar o processo de islamização da Faixa de<br />
Gaza?<br />
155
VII. Mundo<br />
Será importante acompanhá-lo, pois será a primeira vez que um grupo<br />
da Irmandade Muçulmana estará no poder, e será um ensaio para o<br />
que eles farão em outros países quando os tomarem futuramente.<br />
Ainda não existe uma resposta completa para esta questão, mas<br />
algumas declarações feitas por alguns líderes do Hamas, em Gaza,<br />
estão sinalizando sobre a disposição dessa liderança em impor leis<br />
islâmicas em Gaza. No dia 15/6, o sheikh Ismail Hannieh pediu em<br />
discurso às Brigadas Al-Qassam para tratar seus reféns das forças<br />
de segurança derrotadas da AP de acordo com as normas de “tolerância<br />
islâmica”, que obviamente toleram aqueles que não mataram<br />
membros do Hamas antes, mas que também ditam que devem ser<br />
executados aqueles que mataram ou atacaram membros do Hamas.<br />
Em outro exemplo, o sheikh Nizar Rayyan, um líder do Hamas,<br />
disse que o que aconteceu em Gaza foi um conflito entre o Islã e a<br />
apostasia, que estava concluindo com o fechamento da era do secularismo<br />
e ateísmo naquela faixa. Acrescentou que irá transformar o<br />
quartel-general das forças de segurança da AP em Gaza numa mesquita,<br />
e que faria uma pregação especial na Muntada (o complexo<br />
presidencial de Abbas, em Gaza).<br />
Se adicionarmos a essas declarações as crescentes atividades de<br />
vários grupos salafitas em Gaza, apoiados por algumas alas do Hamas,<br />
e que agem contra os Internet Cafés e mulheres que não cobrem<br />
suas cabeças com véus e contra cristãos, então a tendência<br />
para se impor o Islã sobre todos os gazanos, incluindo aqueles que<br />
não crêem nele, ficará mais clara. O que se dará depois é uma medida<br />
do tipo de islamização que será implementada com base nas diferenças<br />
de posições de diversas alas do Hamas. Mas este é um mero<br />
detalhe, que não influenciará a direção principal que é no rumo da<br />
islamização.<br />
A resposta direta a esse processo de islamização não foi apenas<br />
que algumas pessoas do Fatah estejam tentando sair de Gaza, mas<br />
também que os seculares, os intelectuais, os empresários do setor<br />
privado, os líderes de ONGs e a maior parte dos democratas progressistas<br />
estão saindo por causa das ameaças às suas vidas. Lamentavelmente,<br />
por outro lado, isso irá acelerar o processo de imposição<br />
das normas do Hamas, em Gaza.<br />
A vida do povo em Gaza<br />
Além do processo de islamização que será acelerado em Gaza, a<br />
outra questão é: Como irá o povo viver em Gaza de agora em diante?<br />
156<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
O golpe de Gaza: a islamização está chegando<br />
a. Segurança: A ironia aqui é que as pessoas irão agora se sentir<br />
mais seguras nas ruas com o controle unilateral do Hamas sobre<br />
Gaza, mas ao mesmo tempo a violência irá continuar, incluindo assassinatos<br />
extra-judiciais por vingança e contra-vingança, e execuções<br />
daqueles que forem considerados como apóstatas ou “colaboradores”.<br />
A palavra “colaborador” na linguagem do Hamas não se refere<br />
apenas aos que passam informações a Israel. Para eles, existem outros<br />
tipos de colaboradores, como colaboradores políticos, culturais,<br />
econômicos e o colaborador por desvio de comportamento, como detalhado<br />
num trabalho escrito pelo dr. Saleh Abdel, em 1988.<br />
Outra questão que influenciará a segurança será a contradição<br />
entre as forças de segurança do Hamas e aquelas que receberão ordens<br />
de Ramalá. Esta é uma contradição futura porque no curto<br />
prazo o Hamas terá total autoridade sobre Gaza.<br />
b. O mapa político interno de Gaza mudará. O próprio Hamas<br />
assistirá a uma crescente influência de suas alas extremistas e ideológicas<br />
que desejam islamizar a sociedade, enquanto a Fatah, em<br />
Gaza, já perdeu (ao menos temporariamente) sua ala disposta a esmagar<br />
o Hamas (esta tendência foi derrotada nos eventos da semana<br />
passada). Duas outras facções da Fatah crescerão agora em Gaza.<br />
Uma é liderada por Ahmad Hilles, ex-secretário-geral da Fatah, em<br />
Gaza, que evitou que seus apoiadores combatessem o Hamas, apoiado<br />
por Ibrahim Abu Naja. Eles tentarão chegar a um compromisso<br />
com o Hamas sobre assuntos da vida diária, levando em consideração<br />
o novo contexto. A outra tendência na Fatah irá se adaptar<br />
completamente à nova estrutura de poder em Gaza, tentando encontrar<br />
soluções para problemas pessoais e individuais dentro da nova<br />
estrutura de poder.<br />
A nova oposição ao Hamas em Gaza será agora a Jihad Islâmica,<br />
com sua agenda nacional pela contínua resistência à ocupação<br />
israelense, sem respeito ao cessar-fogo que o Hamas propôs várias<br />
vezes. Porém mais perigosas são as novas organizações do tipo da Al-<br />
Qa’eda, como Suyuf Al-Alhaq (Espadas dos Justos), Jaish Al-Islam<br />
(Exército do Islã) e Kata’eb Al-Jihad Al-Muqaddas (Brigadas da Jihad<br />
Santa), as quais também são apoiadas pelas alas mais extremistas<br />
do Hamas.<br />
O Hamas, por si, será dividido entre aqueles que são mais ideológicos<br />
(Mohamad Zahar e Nizar Rayan) e os que são mais políticos<br />
(como Ghazi Hamad, porta-voz do governo, que silenciou totalmente<br />
durante as recentes semanas de ataques). Hanieh está liderando assumindo<br />
a posição intermediária entre essas duas correntes, porque<br />
157
VII. Mundo<br />
precisa de ambas. Ele precisa da posição ideológica para islamizar a<br />
sociedade, e também da política para poder falar com o mundo mais<br />
amplo.<br />
Finalmente, a ala da Fatah que foi derrotada deve continuar suas<br />
tentativas de reagir, mas isto será refletido em incidentes menores, aqui<br />
e ali, após terem perdido suas bases e suas armas para o Hamas.<br />
c. Economia e sustento: na ausência de uma economia real em<br />
Gaza após a eleição do Hamas em janeiro de 2006, e as sanções internacionais<br />
que se seguiram, o contrabando tornou-se a economia<br />
e a forma de muitos garantirem sua sobrevivência ali. Agora, com o<br />
fechamento de todas as passagens de fronteiras com Gaza após a tomada<br />
do Hamas, o contrabando aumentará, incluindo armas e todos<br />
os bens, a não ser que o lado egípcio seja autorizado por Israel (contradizendo<br />
o acordo de Camp David) a alocar massivamente forças<br />
no lado egípcio para impedir esse contrabando.<br />
Por outro lado, os empregados da AP em Gaza continuarão recebendo<br />
seus salários. Ou do novo governo de emergência de Salam<br />
Fayyad (o novo primeiro-ministro) composto no dia 17 de junho, ou<br />
(caso seja nomeado por Hanieh após a decisão de Abu Mazen de<br />
demiti-lo de sua posição, com a qual não concorda) do Hamas, que<br />
continuará a receber fundos dos ramos da Irmandade Muçulmana<br />
em todos os países islâmicos, e também do Irã, e provavelmente indiretamente<br />
de alguns países árabes como provavelmente o Qatar.<br />
Contudo, os problemas mais sérios serão aqueles relacionados<br />
à subsistência diária da população, e serão exacerbados principalmente<br />
se Israel continuar fechando as passagens de fronteiras, o que<br />
significaria não apenas desconectar completamente Gaza da Cisjordânia,<br />
mas também impedir que a assistência humanitária das organizações<br />
da ONU e outras cheguem ao povo necessitado de Gaza.<br />
Mais ainda, se Israel impedir a importação de bens para Gaza por<br />
intermédio dos portos israelenses.<br />
158<br />
*<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
A paz após a tomada<br />
de Gaza pelo Hamas 1<br />
Galia Golan<br />
A paz após a tomada de Gaza pelo Hamas<br />
Não é muito difícil enxergar como chegamos onde estamos hoje<br />
com respeito aos palestinos. Sucessivos governos israelenses<br />
sistematicamente destruíram ou enfraqueceram lideranças palestinas<br />
moderadas. Desde a destruição da Frente Nacional Palestina<br />
(os primeiros promotores nos territórios da solução de Dois Estados)<br />
em meados dos anos 70, até a total ausência de quaisquer medidas<br />
que pudessem ter fortalecido Abu Mazen (Mahmoud Abbas) como primeiro-ministro<br />
ou presidente aos olhos do seu povo, e incluindo a<br />
recente prisão dos poucos líderes do Hamas dispostos a falar com<br />
Israel.<br />
Acrescente-se a isto o exitoso esforço do premier Ariel Sharon em<br />
enfraquecer e dispersar a Autoridade Palestina, assim como a política<br />
não-declarada de Israel para separar Gaza da Cisjordânia, e chegamos<br />
à situação que hoje enfrentamos.<br />
A Fatah obviamente tem também sua parte de responsabilidade<br />
pela situação, por causa de suas próprias divisões internas, corrupção<br />
e indecisões. Não esqueçamos, porém, do assunto mais crítico<br />
subjacente: o fato de Israel não ter acabado a ocupação que, por todos<br />
esses 40 anos, vem aumentando o sofrimento, a pobreza, a frustração,<br />
a perda de terras e vidas e a desesperança das populações pela qual o<br />
Hamas e a Fatah competem.<br />
A questão é: podem esses (e muitos mais) erros do passado proporcionar<br />
algumas dicas para que possamos proceder melhor no futuro?<br />
Com um “governo” dissolvido oficialmente pelo presidente da<br />
Autoridade Palestina, mas ainda reinando sobre Gaza, um novo governo<br />
de emergência nomeado por Abu Mazen, um Conselho Legislativo<br />
dominado pelo Hamas - mas possivelmente também dissolvido sob<br />
regulamentos de emergência (se existirem) -, uma força de segurança<br />
em Gaza e uma outra aparentemente mantendo sua supremacia na<br />
1 Publicado na www.bitterlemons.org em 12/06/2007 a traduzido por Moisés Storch<br />
para o Paz Agora|BR (www.pazagora.org) e a Revista Espaço Acadêmico.<br />
159
VII. Mundo<br />
Cisjordânia, e as opiniões políticas visivelmente divididas mesmo dentro<br />
do Hamas e da Fatah - é difícil ter respostas precisas.<br />
Mas, teoricamente ao menos, existe uma série de opções para<br />
Israel (e para os EUA e a comunidade internacional). Entre elas<br />
estão:<br />
a. introdução de uma força internacional em Gaza (alguns adicionariam<br />
também na Cisjordânia - algo que ofereceria estabilidade<br />
para todos os territórios e se daria concomitantemente com a retirada<br />
israelense para linhas temporárias);<br />
b. relacionamento exclusivo com Abu Mazen, e seu fortalecimento,<br />
acompanhado do total isolamento do Hamas com boicote e<br />
pressão sobre Gaza;<br />
c. apoio a esforços para reconstrução do governo de união nacional,<br />
incluindo o levantamento do boicote ao Hamas, sujeito à<br />
demonstração do seu controle sobre as várias milícias islâmicas em<br />
Gaza e concomitante com o fortalecimento de Abu Mazen; e<br />
d. abertura de negociações para um acordo abrangente por meio<br />
da intermediação da Liga Árabe.<br />
Intervenção internacional?<br />
A primeira opção, de uma força internacional, aparece como a<br />
mais atraente, aliviando tanto Israel quanto os palestinos da responsabilidade<br />
pela população palestina. Se isso incluísse a Cisjordânia,<br />
significaria o fim da ocupação. Israel, claro, jamais mostrou<br />
qualquer interesse nesse tipo de arranjo, mas poderia levar a uma<br />
saída também para a Cisjordânia.<br />
A força internacional foi uma alternativa aberta por Israel como<br />
opção para Gaza, agora que o Hamas detém o controle da Faixa.<br />
Mas exatamente por isso, ela também não funcionaria: o Hamas<br />
não concordaria com tal limitação ao seu poder, e nenhum órgão<br />
internacional estaria disposto a assumir tal tarefa sob essas condições.<br />
Seria razoável que os egípcios concordariam com o fortalecimento<br />
internacional dos seus contingentes na fronteira (travessia<br />
de Rafah, etc.), mas sem um acordo com o Hamas ou outro órgão<br />
com controle sobre Gaza, a comunidade internacional possivelmente<br />
temeria arriscar uma presença física.<br />
160<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Isolar o Hamas?<br />
A paz após a tomada de Gaza pelo Hamas<br />
A opção já adotada por Israel e os Estados Unidos (que possivelmente<br />
será logo acompanhada pelo resto do Quarteto) é fortalecer Abu<br />
Mazen e isolar Haniyeh. A idéia é fornecer os meios (principalmente<br />
financeiros, mas possivelmente também materiais) para que a Fatah<br />
demonstre seu valor para a população palestina em comparação com<br />
o Hamas. Isto seria feito pelo levantamento dos bloqueios sobre a Autoridade<br />
Palestina e a liberação de fundos palestinos retidos, assim<br />
permitindo o pagamento desesperadamente necessário para os funcionários<br />
públicos (embora não seja claro se isso incluiria os servidores<br />
em Gaza).<br />
Mas para ganhar a simpatia da população, mais medidas seriam<br />
necessárias. Fala-se de abrir alguns checkpoints e aliviar um pouco a<br />
ocupação para os palestinos da Cisjordânia. Mas a medida de “construção<br />
de confiança” mais eficaz para valorizar a Fatah perante a população<br />
seria uma ampla soltura de prisioneiros (obviamente excluindo<br />
prisioneiros do Hamas). Tal medida poderia demonstrar que Abu<br />
Mazen pode “trazer resultados” - mitigando, talvez, as acusações de<br />
“colaboração” de Fatah com Israel (e os EUA).<br />
Um grande risco nesta política, porém, é o reconhecimento e possível<br />
institucionalização da separação da Cisjordânia de Gaza, ou seja<br />
a idéia de Três Estados que na verdade iria sabotar a criação de um<br />
Estado Palestino e a solução do conflito com Israel.<br />
O jogo seria que Abu Mazen deveria encontrar um jeito de trazer<br />
benefícios para a população de Gaza (salários para servidores civis,<br />
por exemplo) sem que isto fosse creditado ao Hamas ou facilitasse o<br />
domínio do Hamas. A Fatah precisa contar com a incapacidade do<br />
Hamas para governar (como fez após as eleições de 2006), mas o isolamento<br />
e sofrimento do povo de Gaza já se provaram mais benéficos do<br />
que prejudiciais ao Hamas vis-à-vis a Fatah entre os gazanos.<br />
Fatah + Hamas?<br />
Por essa razão, a terceira opção - ressuscitar o governo de união<br />
nacional e tratar também com o Hamas - pode ser necessária. Claramente<br />
não é uma solução ideal para Israel. Na verdade é a que o governo<br />
israelense menos apoiaria. Mas é uma opção que alguns na Fatah<br />
(e no mundo árabe) ainda acreditam ser razoável. Seria uma idéia<br />
promissora se fosse alcançada após um significativo fortalecimento<br />
de Abu Mazen e/ou a emergência de uma liderança da Fatah unida e<br />
161
VII. Mundo<br />
forte. Caso contrário, iria simplesmente repetir a luta pelo poder que<br />
acabamos de presenciar em Gaza.<br />
Assumindo que ambas as opções deverão no final dar lugar a novas<br />
eleições na Autoridade Palestina, a escolha deveria ser a que pudesse<br />
proporcionar uma melhor chance de enfraquecer o Hamas.<br />
Iniciativa árabe de paz<br />
A última opção traz a questão de um domínio dividido dentro dos<br />
territórios ocupados e está baseada na hipótese de que o fim da ocupação<br />
poderia mudar todo o cenário político.<br />
Os palestinos, na forma da OLP, são parte da Liga Árabe (listados<br />
como o “Estado da Palestina”) onde são representados por Abu Mazen.<br />
Caso Israel concordasse em entabular negociações com base na<br />
Iniciativa Árabe de Paz, e se fosse alcançado um acordo de paz, poderíamos<br />
esperar uma série de coisas.<br />
Primeiro, o Hamas teria dificuldade em ganhar uma maioria contra<br />
um acordo que pusesse um fim à ocupação com base na solução de<br />
Dois Estados.<br />
Segundo, uma força internacional de manutenção de paz nas fronteiras<br />
seria muito mais viável no contexto de um acordo de paz.<br />
Terceiro, seria muito difícil - se não impossível - que uma minoria<br />
que rejeita a proposta persistisse significativamente enquanto os países<br />
de todo o mundo árabe estivessem apoiando a normalização, os<br />
arranjos de segurança e a paz com Israel.<br />
É evidente que esta opção já poderia ter sido escolhida bem antes,<br />
e sem a vitória do Hamas em Gaza.<br />
162<br />
Mas ela ainda existe.<br />
*<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
VIII. Vida Cultural
Autores<br />
Vladimir Carvalho<br />
Jornalista e cineasta, primeiro presidente da <strong>Fundação</strong> <strong>Astrojildo</strong> <strong>Pereira</strong>.
Folhetim da viagem (xilográfica) ao<br />
Reino do Primo Xico<br />
Vladimir Carvalho<br />
Contemplo uma gravura e – estranhamente – é como se ouvisse<br />
vozes: e num passe de mágica sou obduzido pela força de seu<br />
corte, de sua textura e de sua cor. A imaginação entra pelos<br />
sulcos da madeira adentro e, de fato, o que escuto, meio ao longe, são<br />
vozes ancestrais, ecos de mitos adormecidos, numa remota cantilena,<br />
e o que se segue cada vez mais audível é todo um rumor e burburinho<br />
de uma imensa feira nordestina, o grande palco semanal das gentes<br />
sertanejas de antigamente. Uma feira (de Itabaiana, de Campina<br />
Grande, de Caruaru ou do Juazeiro do Padre Cícero?) que não existe<br />
mais, a não ser na lembrança de meu mundo infantil e que era quase<br />
como um circo repleto de atrações, embalado numa música forrozeira<br />
de sanfona, zabumba e ganzá, no ritmo do triângulo.<br />
Esse é um cenário a céu aberto, fervilhante de vida, encharcado de<br />
pregões, cantorias de cegos, de repentistas e camelôs, passando pelas<br />
barracas onde se vendiam os folhetos de feira (o cordel de hoje), com o<br />
chão coberto de bonecos de barro e de montes de mané gostosos feitos<br />
de pau; com as árvores enfeitadas de gaiolas de passarinhos. À noite,<br />
aqueles que pernoitassem por ali poderiam assistir e até participar<br />
de uma espécie de prolongamento do espetáculo da feira, em alguma<br />
ponta de rua: era a vez da brincadeira do cavalo marinho, do pastoril<br />
na zona de mulheres e do mamulengo também chamado de babau, e<br />
a coisa podia avançar até madrugada alta.<br />
165
VIII. Vida Cultural<br />
É justamente na visão das figuras por vezes fesceninas e debochadas<br />
desses folguedos que me detenho e volto á tona desse sonho<br />
remissivo, dessa viagem a um reino encantado que fiz ao embarcar na<br />
contemplação das xilogravuras de Xico Carvalho. E retomo nas mãos<br />
sua nova série, na qual as suas criaturas emergem do forte colorido<br />
do fundo, de amarelos quentes como labaredas de fogo, suavizando<br />
em cor de rosa somente vez por outra nas cenas mais “líricas”, e por<br />
essa via descubro de novo o profundo parentesco de sua arte com a<br />
imaginação popular que domina aqueles folguedos tão meus conhecidos.<br />
Tão conhecidos que sonho até hoje com “mateus”, “biricos” e<br />
“catirinas” do cavalo marinho, com o palhaço Bedegueba dos pastoris<br />
da rua do Carretel.<br />
E nesse lance está todo o gosto do povo pelo deboche e a irreverência,<br />
com seu tanto de picaresco como estão também a sua doçura e inocência.<br />
Aliás, em termos de picaresco, esse muitas vezes beira o grotesco nas<br />
pequenas e saborosas obscenidades de que o povo é capaz na sua verve<br />
criadora. Tudo isso perpassa essa galeria de tipos e de criaturas estranhas<br />
nessas cenas que Xico vai buscar com a maestria de sua goiva no<br />
fundo de suas tábuas de umburana e cedro nativos. Basta enumerar os<br />
títulos com que batizou algumas dessas criações para se sentir o espírito<br />
gaiato das feiras e das ruas. “O Mestre Língua”, “A Mulher Cobra”, “O<br />
Homem Cobra Chic”, “O Padre e a Moça”, entre outros.<br />
E por falar em “língua”, esse é o elemento que é “trabalhado” e visualizado<br />
intensamente nessa coletânea insólita da gravura brasileira.<br />
À primeira vista, ela – a língua – deixa de ser parte do órgão fonador<br />
e ultrapassa em muito aquilo que o vulgo chama de língua ferina,<br />
ferramenta do desaforo, e não do diálogo, e toma forma semelhante a<br />
um chicote ou flecha que parece servir mais a uma espécie de justa<br />
em que cavalheiros se engalfinham como cobras, gritando eloqüências<br />
escatológicas ou malcriações que o povo não quer calar.<br />
Pinta aqui então um clima de espetáculo do mamulengo/babau – e<br />
esse é o ponto máximo revelador das relações dessas xilos com a poética<br />
popular – em que surgem as movimentadas arengas e os disparates<br />
do negro Benedito e da Catirina, na pequena boca de cena e na<br />
cadência do som roufenho da rabeca. Mas pode também não ser nada<br />
disso, que o Xico é homem de boa paz: o que se vê talvez seja conversa<br />
branda e coloquial, algumas até muito persuasivas e amorosas, com a<br />
língua soltando beijos e se alongando até quase acariciar o interlocutor,<br />
como é o caso desses estranhos “Gêmeos” ou desse Padre e dessa<br />
Moça, da mesma natureza e talhe do que se vê nas capas de folhetos<br />
românticos (vide a história de Coco Verde e Melancia, por exemplo)<br />
vendidos até hoje por aí.<br />
166<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Folhetim da viagem (xilográfica) ao Reino do Primo Xico<br />
Enfim, essa remessa do Xico que agora sai da prensa é preciosa e,<br />
para nós, sinaliza o auge de um artista que no seu oficio vem produzindo<br />
uma arte que se pretende ingênua – no conceito conhecido – de corte<br />
propositalmente primitivo, bebido na fonte pura do inconsciente coletivo<br />
e sugere pelo estranhamento de alguns temas (bichos, aves, peixes<br />
e serpentes dialogando com seres humanos) um tipo de “surrealismo”<br />
popular com tudo que essa expressão tenha de impróprio neste caso.<br />
Uma arte que não é indiferente ao encantamento com o mundo de sua<br />
infância trazido de novo à luz, mas como se o visse pela primeira vez,<br />
um pouco coincidente com a visão do homem da caverna.<br />
Agora, a bem da verdade, devo dizer que jamais fui apresentado a<br />
Xico Carvalho, misterioso e invisível personagem que vem maneiro e<br />
sutil espalhando seu rastro e seus fluidos pelo bairro de Jaguaribe,<br />
em João Pessoa, sem jamais ter sido visto, e que diz pertencer ao clã<br />
do velho Martim Caco, meu avô, dos Carvalho de Itabaiana. Isto é o<br />
que dizem afiançar Unhandeijara Lisboa, esse, sim, meu primo legítimo<br />
na linhagem, inclusive, de meu tio Floripes Carvalho, ourives e<br />
gravador de talhe doce em ouro, estabelecido na Barão do Triunfo com<br />
sua joalheria. Mas o primo Nandi, como é conhecido, sempre desconversa<br />
toda vez que o interpelo a esse respeito. “O Xico anda pelo meio<br />
do mundo”, diz dando de ombros e mudando de assunto. Manuel Clemente,<br />
que é seu discípulo e comparsa no ateliê do Clube da Gravura,<br />
não arreda o pé de seu proverbial mutismo (a última vez que se fez<br />
ouvir foi em sala de aula, assim mesmo por obrigação acadêmica), e<br />
da última vez que o intimei a esclarecer o caso, riu um risinho maroto,<br />
engasgou-se, correu ao banheiro e não mais voltou. Saiu por alguma<br />
porta falsa, talvez a mesma que oculta as fugas convenientes do Xico.<br />
Martinho Campos, um dos mentores do Clube e iminência parda do<br />
fabuloso movimento da xilogravura na Paraíba, abordado, me fez uma<br />
verdadeira conferência, na verdade longa conversa “de cerca Lourenço”<br />
para me despistar. Resultado é que me deixou na mesma, nada<br />
sabendo do paradeiro do ensombrecido xilógrafo...<br />
De minha parte, resta-me o consolo de uma conclusão, talvez<br />
apressada, mas conseqüência natural e até certo ponto inconsciente<br />
de uma comparação que, aos poucos, venho fazendo entre a lavra visível<br />
do Xico com a do primo Nandi. Uma, perdoem-me, é quase um decalque<br />
da outra. Principalmente nos últimos anos em que na medida<br />
que Xico se torna mais “presente” Nandi vem se esquivando cada vez<br />
mais de produzir e se retira de cena. É uma coincidência muito grande<br />
e ninguém me convence de que esse Xico Carvalho não é uma artimanha,<br />
uma “ficção” do neto de Floriano Rodrigues Carvalho. “Uma<br />
bolação Unhandeijara”, como ele próprio dizia antigamente.<br />
167
IX. Documento –<br />
Ano Caio Prado Jr.
Autores<br />
Caio Prado Jr (1907-1990)<br />
Historiador, filósofo e geógrafo que formou, ao lado de Sérgio Buarque de Hollanda e<br />
Gilberto Freyre, a corrente renovadora dos estudos sobre a sociedade brasileira a partir<br />
dos anos 1930. Autor de 16 livros, fundou a editora Brasiliense em 1943, mesmo ano<br />
em que publicou sua obra capital, Formação do Brasil Contemporâneo. Em 1931,<br />
entra no Partido Comunista, e inicia seus estudos de Marx e de Engels. Em 1945, foi<br />
eleito Constituinte estadual pelo PCB. Teve seu mandato cassado em 1948. Em 1966 é<br />
agraciado com o Prêmio Juca Pato. Recebeu em 1968 o título de professor livre-docente na<br />
USP, sendo cassado no mesmo ano pelo governo militar.
A revolução agrária não<br />
camponesa no Brasil 1<br />
Caio Prado Jr.<br />
A<br />
caracterização do sistema econômico dominante na agropecuária<br />
brasileira, conforme se faça ou não no sentido de sua<br />
assimilação ao agrarismo feudal, leva respectivamente num e<br />
noutro caso a conclusões de ordem prática essencialmente distintas<br />
e da maior significação. Não é por simples luxo teórico e preocupação<br />
acadêmica que estamos aqui insistindo nesse ponto e procurando<br />
mostrar o desacerto que consiste em interpretar a nossa economia<br />
agrária e as relações de produção e trabalho nela presentes como<br />
derivações ou remanescentes de obsoletas e anacrônicas formas e<br />
1 O título acima foi usado em Raimundo Santos. Política e agrarismo sindical no PCB.<br />
Brasília: <strong>Fundação</strong> <strong>Astrojildo</strong> <strong>Pereira</strong>, 2002. Reproduzimos aqui um trecho de A revolução<br />
brasileira, no qual Caio Prado Jr. apresenta o sentido político-prático do seu<br />
agrarismo, marco na consolidação da práxis agrária dos comunistas brasileiros, empenhados<br />
desde meados dos anos 1950 na construção da rede sindical nacional que<br />
se afirmaria na Contag, fundada em 1963. Publicado originariamente em 1966, o livro<br />
A revolução brasileira foi lido como uma desconstrução das teses da feudalidade e<br />
do antiimperialismo. Caio Prado Jr. radicava sua reflexão na debilidade do nosso capitalismo<br />
pouco incorporador dos grandes contingentes populares. A fórmula caiopradiana<br />
de uma revolução nacional e agrária sugeria um processo ao modo americano<br />
no sentido de um Oeste-mercado interno (mundo rural) complementar de um Lesteindustrial.<br />
Caio Prado Jr. pensava em um renovamento do mundo rural assentado na<br />
proteção de direitos na “generalidade do país”. A lei trabalhista – à época, o Estatuto<br />
do Trabalhador Rural – viria universalizar processos sociais por meio dos sindicatos à<br />
frente de reivindicações salariais e do emprego nos grandes setores da agropecuária,<br />
onde estava o núcleo estratégico capaz de difundir impulsos transformadores sustentáveis:<br />
os empregados agrícolas. (RAIMUNDO SANTOS)<br />
171
IX. Documento – Ano Caio Prado Jr.<br />
estruturas feudais. Uma interpretação como essa leva naturalmente<br />
à conclusão – e é realmente o que se tem verificado no caso da defeituosa<br />
teoria da revolução brasileira até hoje consagrada – que a<br />
luta dos trabalhadores rurais brasileiros teria essencialmente por<br />
objetivo (como seria o caso se se tratasse de fato de camponeses) a<br />
livre ocupação e utilização da terra que hoje trabalham a título de<br />
empregados da grande exploração. E se dirigiria assim no sentido da<br />
reivindicação dessa terra. [...]<br />
Ora, isso vai frontalmente de encontro aos fatos mais evidentes da<br />
realidade brasileira; e mostra como essa errônea interpretação teórica<br />
pode conduzir, como de fato tem conduzido no Brasil, à desorientação<br />
na prática. As aspirações e reivindicações essenciais da grande<br />
e principal parte da massa trabalhadora rural do país não têm aquele<br />
sentido apontado. Refiro-me naturalmente à parcela maior e mais<br />
expressiva dos trabalhadores rurais brasileiros que se concentram<br />
nas grandes explorações agrárias do país – da cana-de-açúcar, do<br />
café, do algodão, do cacau e outras da mesma categoria. Não é pela<br />
ocupação e utilização individual e parcelária dessa terra onde hoje<br />
trabalham coletivamente entrosados no sistema da grande exploração,<br />
que aqueles trabalhadores procuram solucionar seus problemas<br />
de vida e superar as miseráveis condições de existência que são as<br />
suas. Nos maiores e principais setores da agropecuária brasileira,<br />
naqueles que constituem em conjunto o cerne da economia agrária<br />
do país e onde se concentra a maior parcela da população rural, os<br />
trabalhadores, como empregados que são da grande exploração, simples<br />
vendedores de força de trabalho, portanto, e não “camponeses”,<br />
no sentido próprio, aquilo pelo que aspiram e o que reivindicam, o<br />
sentido principal de sua luta é a obtenção de melhores condições de<br />
trabalho e emprego. [...]<br />
A reivindicação da terra e utilização dela pelo próprio trabalhador,<br />
manifestando-se de maneira apreciável e não apenas através<br />
de vagas aspirações desacompanhadas de qualquer ação e pressão<br />
efetivas, isso se circunscreve no Brasil praticamente a três setores<br />
apenas, todos eles de importância relativa e secundária. E o que é<br />
mais, assumindo em dois deles pelo menos (para não dizer todos<br />
três) formas e aspectos particulares e específicos que nada têm a ver<br />
nem podem ter com sistemas agrários feudais ou derivados, e eventuais<br />
restos e remanescentes de tais sistemas. 2 [...]<br />
2 O autor se refere a: 1) áreas intermediárias entre a zona da mata e o agreste, onde<br />
a propriedade se acha relativamente subdividida e se desenrolavam as atividades<br />
das Ligas Camponesas; 2) áreas de ocupação de terras virgens em zonas pioneiras,<br />
particularmente Oeste paranaense e Centro-Norte de Goiás; trata-se de regiões de<br />
172<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
A revolução agrária não camponesa no Brasil<br />
Esgotam-se, com essas situações de conflitos sociais no campo<br />
brasileiro que acabamos de enumerar, praticamente todos os casos<br />
expressivos em que se propõe a questão da terra, e onde a reivindicação<br />
dessa terra pelos trabalhadores e produtores se apresenta<br />
com potencialidade revolucionária. Mas potencialidade essa que<br />
nada tem a ver, como notamos, com a “eliminação de restos feudais”,<br />
ou que diga respeito a uma presumida revolução agrária antifeudal<br />
em germinação no processo histórico-social da atualidade brasileira.<br />
A reivindicação pela terra se liga entre nós, quando ocorre, a circunstâncias<br />
muito particulares e específicas de lugar e momento. E tem<br />
sua solução, por isso, em reformas ou transformações também de<br />
natureza muito particular e específica. Não se pode, portanto, legitimamente<br />
generalizá-la para o conjunto da economia agrária brasileira,<br />
como expressão de contradição essencial e básica. E numa interpretação<br />
dessas fundamentar toda a teoria e prática da revolução<br />
brasileira no campo. Isso é tanto menos legítimo que a reivindicação<br />
pela terra está longe, muito longe de ter a expressão quantitativa e,<br />
sobretudo, qualitativa de outras pressões e tensões no campo brasileiro<br />
que dizem respeito a condições de trabalho e emprego na grande<br />
exploração rural — fazenda, engenho, usina, estância... É aí que se<br />
situa o ponto nevrálgico das contradições no campo brasileiro. Isso<br />
já vem de longa data, desde sempre, pode-se dizer. [...]<br />
Numa revolução democrático-burguesa e antifeudal, o centro nevrálgico<br />
do impulso revolucionário se encontra na questão da posse<br />
da terra reivindicada por camponeses submetidos a jugo feudal ou<br />
semifeudal. É o que ensina o figurino europeu, e da Rússia czarista<br />
em particular. Assim, portanto, havia de ser no Brasil também. E<br />
essa conclusão apriorística faz subestimar, se não muitas vezes até<br />
mesmo oblitera por completo o que realmente se apresenta na realidade<br />
do campo brasileiro. A saber, a profundidade e extensão da luta<br />
reinvidicatória da massa trabalhadora rural por melhores condições<br />
de trabalho e emprego.<br />
Os documentos oficiais do Partido Comunista do Brasil são a esse<br />
respeito, entre outros, altamente ilustrativos. Veja-se, por exemplo, o<br />
Programa de 1954, particularmente importante porque é o primeiro,<br />
na fase mais recente do pós-guerra, aprovado em Congresso. [...] As<br />
relações de emprego na agropecuária brasileira acham-se colocadas<br />
nesse Programa em segundo e apagado plano. E trata-se aí de uma<br />
questão única: a do salário. Os autores do Programa achavam-se,<br />
conflitos entre “posseiros” e “grileiros”; e 3) o “alto interior do país” (os sertões do<br />
Nordeste, da Bahia e de Minas Gerais, onde o avanço da pecuária gerava conflitos<br />
com os pequenos agricultores).<br />
173
IX. Documento – Ano Caio Prado Jr.<br />
aliás, tão alheados da realidade brasileira que inscrevem no Ponto 40<br />
uma reivindicação já na época, e havia muito, incorporada à legislação<br />
brasileira que, na Consolidação das Leis do Trabalho de 1943<br />
(onze anos antes, portanto), assegurava ao trabalhador rural o salário<br />
mínimo. A questão, pois, não estava mais em legalizar o mínimo<br />
salarial, e sim torná-lo efetivo. [...]<br />
Que dizer então de outras questões relativas à extensão da legislação<br />
social-trabalhista ao campo? Também disso não se cogita<br />
no Congresso e no Programa de 1954. Como se sabe, o trabalhador<br />
rural foi excluído da incidência da legislação social-trabalhista até o<br />
advento do Estatuto do Trabalhador Rural (Lei nº 4.214 de 2 de março<br />
de 1963), salvo no caso de uns poucos dispositivos que, devido<br />
em parte a essa mesma excepcionalidade, permaneceram letra morta.<br />
Era assim o caso, evidentemente, de lhes dar vida. E sobretudo<br />
de ampliar a extensão da legislação trabalhista em geral ao campo.<br />
Abriam-se aí, portanto, largas perspectivas de ação. [...] Os fatos se<br />
incumbiriam de comprovar aquela importância e fecundidade das<br />
reivindicações trabalhistas no campo brasileiro com as ocorrências<br />
verificadas, particularmente no Nordeste, em 1963, e até o golpe de<br />
abril do ano seguinte, quando na base da luta pela aplicação do Estatuto<br />
do Trabalhador Rural se desencadeou uma das maiores batalhas,<br />
se não a maior delas, jamais verificada no campo brasileiro.<br />
Sobreleva-a unicamente a campanha abolicionista. [...]<br />
Abre-se, nessa insistência no erro, uma pequena exceção, infelizmente<br />
sem maiores conseqüências, como logo veremos. Trata-se da<br />
Resolução Política aprovada em Convenção Nacional do PCB realizada<br />
em 1960. Embora mantendo a tradicional e falseada posição teórica<br />
do Partido acerca da natureza da revolução brasileira, a Resolução<br />
Política de 1960 introduz uma réstia de bom senso no capítulo das<br />
normas de ação prática. É assim que, na primeira parte de seu item<br />
25, é estabelecido o seguinte: “A fim de impulsionar a organização<br />
das massas do campo é necessário dar atenção principal aos assalariados<br />
e semi-assalariados agrícolas. Sua organização em sindicatos<br />
deve constituir a base para a mobilização das massas camponesas”.<br />
Note-se bem que a Resolução de 1960 aconselha nesse texto “atenção<br />
principal” aos assalariados e semi-assalariados, e considera como<br />
base e principal fator de mobilização das massas do campo a organização<br />
e, pois, a luta daqueles trabalhadores. Isso constitui reconhecimento<br />
implícito, mas sem dúvida bem caracterizado, de que a revolução<br />
no campo brasileiro não tem sua mola mestra em nenhuma<br />
luta antifeudal e não se dirige contra nenhum resto semifeudal.<br />
174<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
A revolução agrária não camponesa no Brasil<br />
Talvez por isso mesmo a tese inscrita no citado texto do item 25<br />
da Resolução não tenha passado de um cochilo dos seus redatores.<br />
Não se encaixa coerentemente no conjunto da Resolução e está em<br />
completo desacordo com o restante de seu texto; e naturalmente,<br />
em particular, com as suas premissas teóricas. [...] Tanto que logo<br />
em continuação imediata a ele, sempre no mesmo item, e sem ao<br />
menos abrir um novo parágrafo, passa a Resolução, em flagrante<br />
incoerência e inconsistência, a assunto distinto, não cogitando mais<br />
de questões ligadas à relação de emprego que constitui o tema do<br />
trecho anterior. Esse texto é o seguinte: “A organização dos camponeses<br />
deve partir das reivindicações mais imediatas e viáveis como<br />
a baixa das taxas de arrendamento, a prorrogação dos contratos, a<br />
garantia contra os despejos, a permanência dos posseiros na terra e<br />
a legitimação das posses, etc.” De uma frase para outra, esquecemse<br />
por completo os autores da Resolução de 1960 que, segundo eles<br />
próprios acabavam de declarar, “a base da mobilização das massas<br />
camponesas se deveria constituir da organização dos assalariados<br />
e semi-assalariados”, cujas reivindicações, é claro, nada têm a ver<br />
com aquelas inscritas na segunda passagem citada. [...] Interessante<br />
observar que, para enquadrar as contradições e conflitos derivados<br />
das relações de emprego na teoria da reforma agrária antifeudal, os<br />
defensores dessa teoria, não podendo mais ignorá-la, como antes<br />
faziam, e sendo obrigados pela prática a reconhecer sua importância<br />
decisiva, pois é na base dessas contradições que se processa a parte<br />
substancial e mais significativa das lutas no campo brasileiro, os teóricos<br />
do antifeudalismo introduziram a esdrúxula concepção de que<br />
as reivindicações dos trabalhadores naquela luta (a saber, pela melhoria<br />
das condições de trabalho e emprego) seriam “reivindicações<br />
imediatas”, que precederiam e preparariam a reforma “radical” destinada<br />
a superar os restos semifeudais presentes na economia agrária<br />
brasileira. “Reforma radical” essa que consistiria fundamentalmente<br />
na eliminação do latifúndio “feudal”. [...]<br />
A ação revolucionária se torna vacilante e insegura, não se fixando<br />
em objetivos precisos e bem definidos. Daí a ausência de suficiente<br />
acentuação e estímulo daquelas forças e situações em que se localizam<br />
as contradições essenciais e fundamentais presentes no campo<br />
brasileiro, e onde, portanto, se encontram os pontos nevrálgicos do<br />
processo revolucionário em curso. A saber, a luta reivindicatória dos<br />
trabalhadores rurais por melhores condições de trabalho e emprego.<br />
Embora se reconheça, diante da evidência dos fatos, a necessidade<br />
dessa luta, não se apanha o seu alcance e significação profundos,<br />
porque isso é embaraçado por concepções teóricas em que ela não se<br />
ajusta convenientemente e tem de ser incluída através de artifícios e<br />
175
IX. Documento – Ano Caio Prado Jr.<br />
ajeitamentos mais ou menos arbitrários. Ou então se deixa simplesmente<br />
ao acaso das improvisações.<br />
De uma ou de outra forma, perde-se o impulso e a força necessários<br />
para uma ação fecunda e uma mobilização eficiente da massa<br />
trabalhadora rural. E isso precisamente naquele terreno de maior<br />
conteúdo e potencialidade revolucionários. Temos a prova cabal disso<br />
nestes vinte e tantos anos decorridos desde quando a Consolidação<br />
da Legislação Trabalhista de 1943 assegurou alguns direitos e<br />
vantagens aos trabalhadores, entre outros o salário mínimo, sem que<br />
nada se fizesse, a não ser muito recentemente, e assim mesmo, salvo<br />
em Pernambuco, muito pouco para tornar efetivas aquelas disposições<br />
legais. Nenhum passo foi dado, nenhuma medida foi tomada<br />
para esclarecer a massa trabalhadora rural de seus direitos, para<br />
lhe abrir perspectivas, estimulá-la em sua luta. E essa inércia não<br />
se explica unicamente nem principalmente pelas dificuldades, sem<br />
dúvida consideráveis, mas longe de insuperáveis, de acesso ao campo,<br />
nem tampouco, também, pela subestimação da questão agrária,<br />
que também existiu. A razão principal por que não se mobilizou ou<br />
pelo menos tentou seriamente mobilizar a massa trabalhadora rural<br />
na base de reivindicações por melhores condições de trabalho e emprego,<br />
se deveu ao fato de essas reivindicações não se considerarem<br />
essenciais, nem mesmo suficientemente importantes no processo revolucionário<br />
do campo brasileiro, que deveria obedecer, segundo a<br />
teoria oficial consagrada e indiscutivelmente aceita, ao esquema da<br />
revolução antifeudal: supressão das relações semifeudais de produção,<br />
em particular e diretamente pela destruição do latifúndio. Num<br />
esquema como esse, a luta por reivindicações imediatas, que dizem<br />
respeito a relações de emprego, essa luta tem papel quando muito<br />
secundário. Chegou-se mesmo, muitas vezes, a tachar seus propugnadores<br />
de “reformistas” (no sentido pejorativo e anti-revolucionário<br />
que esse termo tem no vocabulário marxista), pois a insistência deles<br />
numa reivindicação considerada de expressão revolucionária mínima,<br />
se não inexistente, podia obscurecer e, pois, embaraçar a proposição<br />
e o progresso da verdadeira luta do “camponês”, a saber, pela<br />
terra e contra a opressão “feudal”.<br />
176<br />
*<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
X. Memória
Autores<br />
Ivan Alves Filho<br />
Historiador, autor, dentre outros, do clássico Memorial de Palmares.<br />
Gilvan Cavalcanti de Melo<br />
Cientista político, ensaísta e membro do conselho editorial da Revista Política<br />
Democrática.
João Saldanha<br />
Ivan Alves Filho<br />
Se vivo fosse, João Saldanha teria completado, no dia 3 de julho,<br />
90 anos de idade. Nascido em Alegrete, no Rio Grande do Sul,<br />
em 1917 – ano da Revolução Russa – e morto em Roma, em<br />
1990, em plena Copa do Mundo, foi um homem combativo politicamente<br />
e respeitado em sua condição de jornalista e escritor.<br />
Aderiu ao Partido Comunista Brasileiro ainda no Estado Novo, no<br />
início dos anos 40, muito provavelmente, sendo um dos responsáveis,<br />
na clandestinidade, pela Juventude Comunista. Isso, no Rio de Janeiro,<br />
então capital da República e cidade para a qual se mudou ainda<br />
na adolescência. Após a anistia política e a redemocratização do país,<br />
em 1945, no fim da ditadura Vargas, Saldanha assumiu a secretaria<br />
geral da Juventude Comunista, trabalhando em estreita ligação com<br />
Apolônio de Carvalho, Marcos Jaimovitch, Zuleika Alambert e outras<br />
lideranças do movimento estudantil e juvenil do Partido. Desde essa<br />
fase, ele já cuidava de arregimentar jovens para o PCB com base na<br />
organização de grupos esportivos, sobretudo equipes de futebol. Para<br />
Saldanha, o esporte possuía uma carga agregadora tremenda.<br />
Conforme testemunho do líder camponês comunista Hilário Pinho<br />
à série documental Brasileiros e Militantes, uma iniciativa da <strong>Fundação</strong><br />
<strong>Astrojildo</strong> <strong>Pereira</strong>, João Saldanha participou das lutas de autodefesa<br />
camponesa de Porecatu, no norte do Paraná, entre o final da década<br />
de 40 e o início da de 50. Nessa região, por 22 meses ininterruptos,<br />
os camponeses em armas, com o auxílio do PCB, forçaram as autoridades<br />
governamentais do Paraná a negociar a implementação de uma<br />
ampla política de distribuição de terras, a qual resultou na primeira –<br />
179
X. Memória<br />
e, até aqui, única – luta vitoriosa pela reforma agrária no Brasil. João<br />
Saldanha dirigia então, com outros companheiros, o Comitê Regional<br />
do Partido no estado. Dessa luta vitoriosa também participaram líderes<br />
respeitados do PCB, como Agliberto Vieira de Azevedo e Gregório<br />
Bezerra, ambos oriundos do levante militar-aliancista de 1935, mais<br />
exatamente no Rio de Janeiro e no Recife.<br />
Com o recrudescimento da repressão aos comunistas no governo<br />
Dutra (1946-1950), que sucedera àquele de Getúlio Vargas, João Saldanha<br />
chegou a ser baleado nos pulmões, no Rio de Janeiro. Conseguiu<br />
fugir de forma espetacular de um hospital carioca, pulando pela<br />
janela do quarto em que se encontrava convalescendo, antes que a<br />
polícia política o prendesse. Isso, apenas 24 horas após a cirurgia para<br />
a extração da bala...<br />
Eleito em seguida para o Comitê Central do PCB, João Saldanha pediu<br />
afastamento do cargo no IV Congresso, realizado clandestinamente<br />
em 1954, por divergir da forma como determinados dirigentes estavam<br />
conduzindo a política partidária. Ao que tudo indica, sua divergência<br />
tinha que ver com o mandonismo já presente no Partido nessa ocasião.<br />
Eram os duros tempos dos desvios stalinistas, diga-se de passagem.<br />
No entanto, Saldanha não deixaria de militar no Partido. Apenas<br />
passou a dividir mais seu tempo entre o PCB e o futebol, outra grande<br />
paixão sua. Jogador e depois técnico do Botafogo, no ano de 1957,<br />
João dedicou-se ainda, com extraordinário afinco e sucesso, ao jornalismo<br />
esportivo, como comentarista de rádio e cronista do Jornal<br />
do Brasil, então o órgão de imprensa de maior prestígio no país. Seus<br />
comentários, que começavam invariavelmente pelo bordão “Meus amigos...”<br />
marcaram época no rádio brasileiro. Pode-se dizer que poucos<br />
jornalistas estiveram em tão profunda sintonia com a alma popular<br />
como Saldanha. Aquela era uma época em que o Brasil iniciava uma<br />
espetacular arrancada para a conquista do seu primeiro título mundial<br />
de futebol, o que se daria na Suécia, no ano seguinte, em 1958. Os<br />
bons tempos de Pelé, Garrincha, Didi, Gilmar e Nilton Santos.<br />
E, nesse mesmo ano de 1958, o PCB também dava início a uma<br />
política transformadora, materializada na Declaração de Março, que<br />
propunha a superação do capitalismo no terreno da própria democracia<br />
e não mais pela via armada, conforme ditava o Manifesto de<br />
Agosto de 1950, corroborado ainda pelas propostas do IV Congresso<br />
de 1954. João Saldanha se alinhava entre aqueles que aceitaram as<br />
teses democráticas da Declaração de Março, apesar de não ter mais<br />
responsabilidades na direção partidária.<br />
<strong>18</strong>0<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
João Saldanha<br />
Durante os governos JK (1956-1960) e Jango (1961-1964), sobretudo<br />
neste último, bem mais conturbado, Saldanha atuou sempre no<br />
sentido de aplicar a linha política de massas do PCB. Em 1964, opôsse<br />
resolutamente ao golpe militar, integrando-se à ampla luta de resistência<br />
que o Partido, desde a clandestinidade, começava a coordenar<br />
com o propósito de isolar o novo regime. E, paralelamente, prosseguia<br />
com seu trabalho profissional, comentando jogos, escrevendo crônicas<br />
e livros. Temperamento altivo, por vezes até mesmo “estourado”, como<br />
se diz, Saldanha era conhecido pela população como João sem Medo.<br />
Em 1969, em plena vigência do Ato Institucional n.5, João Saldanha<br />
passou a dirigir a Seleção Brasileira, da qual se afastaria no<br />
ano seguinte, por imposição da ditadura militar: ele teria declarado<br />
na ocasião “que o presidente (o ditador Médici, no caso) escala o seu<br />
ministério; eu escalo a minha equipe...” Foi o suficiente para seu afastamento<br />
da Seleção. Mas o Brasil ganhou a Copa de 70 com as chamadas<br />
“feras do Saldanha”. Isso, ninguém retiraria dele.<br />
Durante a ditadura militar, mesmo em seus períodos mais terríveis,<br />
João Saldanha sempre colaborou com o PCB, inclusive financeiramente,<br />
ajudando vários companheiros perseguidos, em dificuldades.<br />
Melhor: doou ao Partido boa parte de uma herança que recebera<br />
dos pais. Seu desprendimento assombrava os amigos mais próximos,<br />
que conheciam sua generosidade.<br />
Com a volta de Luiz Carlos Prestes do exílio, em 1979, Saldanha<br />
cedeu seu apartamento ao líder comunista, secretário-geral do PCB<br />
desde a Conferência da Mantiqueira, em 1943. Apesar de sua ligação<br />
pessoal com Prestes, João Saldanha nunca se afastou do Partido, concorrendo,<br />
inclusive, à prefeitura do Rio de Janeiro, em 1985, ao lado<br />
de outra figura muito respeitada da resistência democrática, o advogado<br />
Marcello Cerqueira.<br />
João Saldanha era um extraordinário contador de histórias. Costumava<br />
dizer que havia no céu três bilhões de estrelas e que se alguém<br />
porventura duvidasse, que contasse, pois ele o fizera... Homem culto<br />
– falava diversos idiomas, inclusive –, Saldanha era, acima de tudo,<br />
amigo dos seus amigos. Foram seus companheiros de jornada Oscar<br />
Niemeyer e Nelson Werneck Sodré, entre outras personalidades da<br />
vida brasileira. Querido por todos, um verdadeiro mito nacional, João<br />
Saldanha foi o que se poderia chamar de um cidadão exemplar.<br />
*<br />
<strong>18</strong>1
X. Memória<br />
<strong>18</strong>2<br />
Gramsci, 70 anos depois 1<br />
Gilvan Cavalcanti de Melo 2<br />
Seremos marxistas?<br />
Existirão marxistas?<br />
Tolice, só tu és imortal.<br />
(Gramsci)<br />
Em 27 de abril de 1937, morria aos 46 anos, Antonio Gramsci,<br />
o mais importante, talvez o maior pensador da tradição<br />
marxista-ocidental do século passado. A morte o derrotou no<br />
instante em que conseguira a liberdade: dois dias antes recebera o<br />
documento com a declaração de que não havia mais qualquer medida<br />
de segurança em relação a ele, assinado pelo Juiz do Tribunal<br />
Especial de Roma. Foi preso por ordem de Mussolini, em 8 de novembro<br />
de 1926. No processo farsa, montado pelo Estado Fascista,<br />
o acusador pediu aos juizes sua condenação e diante de Gramsci,<br />
sentenciou: ‘é preciso impedir este cérebro de funcionar’. Condenaram-no<br />
é verdade mas, não conseguiram impedir que, de dentro da<br />
prisão, fosse escrita uma obra monumental.<br />
Encarcerado fez com que sua inteligência penetrasse na densidade<br />
sombria da realidade. Recusou a vaidade demagógica de uns e<br />
o dogmatismo degenerado de outros. Não pensou em formular uma<br />
nova e original concepção da práxis. Só mais tarde manifestou a<br />
consciência do valor de sua produção intelectual. Ousou, de dentro<br />
do cárcere, na solidão e solitário politicamente, desafiar a ignorância<br />
e as banalidades stalinistas. Foi, também, por muito tempo negligenciado<br />
e desconsiderado, inclusive, por muitos companheiros os<br />
quais, deveriam tê-lo valorizado e amado mais intensamente. Em<br />
primeiro lugar se comovido por aquele homem frágil, sofredor e perseguido.<br />
Em segundo, admiração por sua coragem e combatividade.<br />
Em terceiro, por seu pensamento denso, profundo. Finalmente, por<br />
seus ensinamentos e visão inovadora sobre a filosofia de Marx.<br />
1 Gramsci se referia a Marx. Citado no artigo “A reforma Gramsciana da Política de<br />
Valentino Gerratana”, revista Presença n. 17 – nov.1991/mar. 1992, Rio de Janeiro.<br />
2 Membro efetivo dos Diretórios Nacional e Regional/RJ do PPS e do Conselho Editorial<br />
da revista Política Democrática.<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Gramsci, 70 anos depois<br />
Nada mais justo ao se completar 70 anos de sua morte recordar algumas<br />
contribuições daquele pensamento inovador na tradição de Marx.<br />
Há uma controvérsia sobre o porquê da recusa de Gramsci em<br />
usar o termo materialismo ou marxismo. Parte de estudiosos lhe atribuem<br />
o fato como uma maneira de ultrapassar a rigidez da censura.<br />
Entretanto, é preciso ressaltar que aqueles termos estavam relacionados<br />
a uma leitura economicista, dogmática e ortodoxa de Marx.<br />
O símbolo mais conhecido era o Manual Ensaio Popular de Nicolau<br />
Bukarin. Em defesa do novo conceito foi buscar o exemplo de Marx<br />
no prefácio de O Capital. Ali estava explicitado ‘dialética racional’ e<br />
‘dialética mística’ em vez de dialética materialista e dialética idealista.<br />
O próprio Marx se recusava a se identificar com o materialismo<br />
vulgar.<br />
Há outra convicção: o uso do termo filosofia da praxis foi consciente<br />
no sentido da revalorização da atividade cultural e da dimensão<br />
ético-política. Ao mesmo tempo em que travava uma batalha contra<br />
os dogmáticos, não deixou de considerar, também, que a ‘filosofia da<br />
praxis’ deveria reconquistar a força criadora da qual se apoderara<br />
o pensamento moderno, preconceituoso e desfavorável a priori, em<br />
relação a Marx: Bérgson, Sorel, Croce, Weber, Veblen, Freud, Wiliam<br />
James e através de Spengler, também, Nietzsche.<br />
Seria interessante relacionar a crítica que ele fez às duas correntes<br />
filosóficas existentes: uma chamada ortodoxa e outra eclética. A<br />
primeira tendência era representada por Plekhanov, cujo ensaio mais<br />
conhecido era Os problemas fundamentais do marxismo. A obra não<br />
foi poupada por Gramsci, chamado-a de materialismo vulgar e típica<br />
do método positivista. A segunda queria ligar a “filosofia da práxis”<br />
ao kantismo ou outras correntes não positivistas e não materialistas,<br />
representada por Otto Bauer o qual chegou a afirmar que o marxismo<br />
poderia ser fundamentado e integrado por qualquer filosofia. Daí<br />
a sua preocupação em colocar em circulação o pensamento de outro<br />
italiano: Antonio Labriola. Era o contraponto ao grupo intelectual<br />
alemão que exercia uma forte influência em determinada leitura de<br />
Marx, na Rússia. Por isso, Gramsci valorizava a idéia de Labriola de<br />
que a filosofia da práxis era independente de qualquer outra filosofia,<br />
sendo auto-suficiente.<br />
Qual o núcleo central do pensamento gramsciano? A palavra chave<br />
era o homem como bloco histórico, categoria que ele adquiriu de<br />
Sorel e deu-lhe outra dimensão. Discutiu o tema e se contrapôs à<br />
teoria da dualidade, inclusive, com George Lukács. E, assim se expressou:<br />
“Deve-se estudar a posição do professor Lukács em face da<br />
<strong>18</strong>3
X. Memória<br />
filosofia da práxis. Lukács, ao que parece, afirma que só se pode falar<br />
de dialética para a história dos homens, não para a natureza. Pode<br />
estar equivocado e pode ter razão. Se sua afirmação pressupõe um<br />
dualismo entre a natureza e o homem, ele está equivocado porque<br />
cai em uma concepção da natureza própria da religião e da filosofia<br />
greco-cristã, bem como do idealismo, que realmente não consegue<br />
unificar e relacionar o homem e natureza mais do que verbalmente.<br />
Mas se a história humana deve ser concebida também como história<br />
da natureza (através também da história da ciência), como então a<br />
dialética pode ser destacada da natureza? Lukács, talvez, por reação<br />
às teorias barrocas do Ensaio Popular, caiu no erro oposto, em uma<br />
forma de idealismo”. 3<br />
Reafirmou sua concepção unitária do homem, quando escreveu:<br />
“É possível dizer que cada um transforma a si mesmo, se modifica,<br />
na medida em que transforma e modifica todo o conjunto de relações<br />
do qual ele é o ponto central. Neste sentido o verdadeiro filósofo<br />
é – e não pode deixar de ser – nada mais do que o político, isto<br />
é, o homem ativo que modifica o ambiente, entendido por ambiente<br />
o conjunto das relações de que o indivíduo faz parte. Se a própria<br />
individualidade é o conjunto destas relações, conquistar uma personalidade<br />
significa adquirir consciência destas relações, modificar<br />
a própria personalidade significa modificar o conjunto destas<br />
relações”. 4 Ai, também, está presente uma leitura antipragmática,<br />
uma reelaboração inovadora da teoria do conhecimento expressa<br />
por Marx na tese onze sobre Feuerbach: “Os filósofos de limitaram<br />
a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo”. 5 Isto é,<br />
o conceito unitário: conhecer a realidade e transformá-la.<br />
O bloco histórico está presente na relação entre intelectuais e<br />
não intelectuais, através dos conceitos senso-comum/bom senso.<br />
Gramsci evidenciou que todos homens são filósofos, de forma inconsciente<br />
e definiu os limites e as características dessa peculiaridade.<br />
Esta singularidade está contida, em primeiro lugar, na própria<br />
linguagem, isto é, um conjunto de conceitos com conteúdos,<br />
ou seja, em qualquer simples manifestação intelectual fica explicita<br />
uma concepção de mundo. Em segundo lugar, a religião popular,<br />
com todo o sistema de crenças, superstições, etc. E, encontrou a<br />
chave para unificar, criticamente, esse conjunto de filosofia. Resol-<br />
3 Gramsci, Antonio - Concepção Dialética da História , pág. 173 , 3ª edição 1978 -<br />
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.<br />
4 Idem, pág.40<br />
5 Marx, Karl - Tese sobre Feuerbach - Os Pensadores , pág. 53 , 2ª edição. 1978 - Abril<br />
Cultural<br />
<strong>18</strong>4<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Gramsci, 70 anos depois<br />
veu a questão de maneira muito original. Estabeleceu uma relação<br />
entre a passagem do saber ao compreender, ao sentir e vice-versa.<br />
E, simultaneamente, do sentir ao compreender, ao saber. Destacou<br />
que o popular sente, mas nem sempre compreende ou sabe. O intelectual<br />
sabe, mas nem sempre compreende e, em especial, sente.<br />
É indispensável, portanto, reconciliar senso-comum e bom-senso.<br />
Sem essa conexão entre intelectuais e a grande maioria da população<br />
não se faz política.<br />
Essa relação unitária perpassa todo o trabalho e formação de outros<br />
conceitos e categorias. Está presente, também, no estudo da estrutura<br />
e superestrutura. Outro exemplo claro é quando ele se refere<br />
às “ondas” dos movimentos históricos: de um lado, chamou a atenção<br />
para o exagero do economicismo ou do doutrinarismo pedante e, de<br />
outro lado, o limite extremo de ideologismo. Essa separação poderia<br />
levar a graves erros na arte política de construir a história presente e<br />
futura e daria lugar a fórmulas infantis de otimismo e bobagens.<br />
Outra contribuição importante: estabeleceu uma distinção metodológica<br />
de dois momentos para a análise de uma situação concreta,<br />
circunstância ou conjuntura: a) um momento unido à estrutura,<br />
objetiva, o grau de desenvolvimento das forças materiais de<br />
produção. A formação dos agrupamentos sociais, suas funções e<br />
posição na produção. Essa realidade permite investigar se em uma<br />
determinada sociedade já existe as condições indispensáveis e suficientes<br />
para sua transformação; b) outro momento é a relação das<br />
forças política, avaliação do grau de homogeneidade, autoconsciência<br />
e de organização adquiridas pelos diferentes grupos sociais. Na<br />
vida real, entretanto, considerou que estes momentos se confundiam<br />
reciprocamente.<br />
E com base na análise de conjuntura procurou resolver duas<br />
questões apresentadas por Marx no prefácio à Crítica da Economia<br />
Política: a) “uma formação social nunca perece antes que estejam desenvolvidas<br />
todas as forças produtivas para as quais ela é suficientemente<br />
desenvolvida, e novas relações de produção mais adiantadas<br />
jamais tomarão o lugar, antes que suas condições materiais de existência<br />
tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade”; b) é<br />
por isso que a humanidade só se propõe as tarefas que pode resolver,<br />
pois, se se considera mais atentamente, se chegará à conclusão de<br />
que a própria tarefa só aparece onde as condições materiais de sua<br />
solução já existem, ou, pelo menos, captadas no processo do seu<br />
<strong>18</strong>5
X. Memória<br />
devir”. 6 Na sua enorme pesquisa fragmentada apresentou e desenvolveu<br />
a categoria de revolução passiva. Inferiu-a dos dois princípios<br />
estabelecidos por Marx, no prefácio de <strong>18</strong>59. Reportando-o à descrição<br />
daqueles dois momentos que podiam distinguir a situação concreta<br />
e o equilíbrio das forças com a máxima valorização do segundo<br />
momento. 7<br />
A chave bloco histórico serviu-lhe para resolver um falso problema<br />
da separação entre Estado/Sociedade Civil, separação que só<br />
existe metodologicamente. Mas, deixou muito bem explicitado que<br />
esta relação dialética exigia um reconhecimento do terreno nacional.<br />
Entretanto, ao analisar as formações sociais pouco desenvolvidas e<br />
comparando com as mais desenvolvidas chegou a uma conclusão importante:<br />
nas primeiras, o Estado é tudo, a sociedade civil é primitiva,<br />
gelatinosa, sem consistência; nas segundas, há entre o Estado e a<br />
sociedade civil uma relação de disputa, pendência e qualquer tremor<br />
ou oscilação do Estado, imediatamente, descobre-se uma poderosa<br />
estrutura da sociedade civil. O Estado é apenas um posto avançado,<br />
por trás do qual se situa uma poderosa rede de proteção blindada.<br />
Dessa leitura reexaminou o conceito leniniano de hegemonia. E,<br />
entre os elementos força e consenso, deu ênfase aos ordenadores<br />
do sistema de hegemonia: a) as organizações e instituições políticas<br />
e culturais, nas quais esse sistema se materializou; b) os sujeitos,<br />
forças sociais e instituições que o construiram e se reproduziram.<br />
Mas, demonstrou, também, que os sistemas hegemônicos não eram<br />
eternos, mas históricos. Bem como, salientou os processos e possibilidades<br />
de se construir novas hegemonias político-morais.<br />
Através de uma série de problemas examinados por Gramsci<br />
dentro do pensamento filosófico, no início da década 30, foi possível<br />
antecipar as novas contradições das sociedades modernas, suas<br />
complicações, crises econômicas e morais e a passagem do velho<br />
individualismo econômico para a economia programática, uma nova<br />
hegemonia. Vislumbrou as grandes transformações capitalistas. Com<br />
Americanismo e Fordismo, ele demonstrou sua enorme capacidade<br />
de olhar o mundo além do seu tempo.<br />
A mesma coerência unitária esteve presente na sua visão de partido<br />
político. Recusou um tipo de organização oriental, burocrática.<br />
Iniciou sua análise partindo do questionamento da necessidade his-<br />
6 MARX, Karl. Para a Critica da Economia Polícia. Prefácio – Os Pensadores, p. 130, 2.<br />
edição, 1978. Abril Cultural<br />
7 VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva – Iberismo e americanismo no Brasil,<br />
p. 28-88. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1997.<br />
<strong>18</strong>6<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Gramsci, 70 anos depois<br />
tórica da sua existência e propôs algumas condições, entre elas a<br />
possibilidade de seu triunfo ou, pelo menos, em vias de alcançá-lo.<br />
Mas, para isso era necessária a unidade de três grupos de elementos:<br />
a) um elemento de homens comuns, cuja participação seja oferecida<br />
pela disciplina e fidelidade; b) o elemento principal de coesão, que<br />
unifique o campo nacional, torne eficiente e poderoso um conjunto<br />
de forças. Este grupo é dotado de determinadas premissas como<br />
criatividade, perspectiva e unido; c) um elemento médio, que articule<br />
o primeiro grupo com o segundo, os colocando em sólido contato intelectual<br />
e moral.<br />
Seu pensamento avançava por fragmentos, abandonados logo em<br />
seguida e em outros casos aperfeiçoava-o por outros. Não era uma<br />
obra sistemática. Por isso, há estudiosos e especialistas de sua obra<br />
que tentam diversidades de interpretações: uns com matizes, formas<br />
e graus diferentes colocam-na no campo exclusivo do leninismo;<br />
outros interessados, fundamentalmente, nas inovações que ele introduziu<br />
nas análises das superestruturas; os terceiros que o preferem<br />
como o filósofo da sociedade industrial. A controvérsia é natural<br />
numa obra inconclusa.<br />
O que é o homem? Era a grande questão para Gramsci. E destacou<br />
que esta é a primeira e principal pergunta da filosofia. E questionou:<br />
como respondê-la? Sua conclusão foi resumida em ritmo de novas<br />
perguntas, mais ou menos assim: o que o homem pode se tornar,<br />
se o homem pode controlar seu próprio destino, se ele pode se fazer,<br />
se ele pode criar sua própria vida? E, concluiu, portanto, o homem<br />
é um processo, exatamente, o processo de seus atos. Em suma, a<br />
humanidade se reflete em cada individualidade e é composta de distintos<br />
elementos: a) o individuo; b) os outros homens; c) a natureza. 8<br />
Isto é, em outras palavras, o bloco histórico. Só metodologicamente<br />
é possível fragmentá-lo.<br />
Não deixou de polemizar com o pensamento mais rigoroso e mais<br />
fecundo que formavam grandes correntes de opinião. Assim o faz<br />
quando estudou o conceito de classe política de Gaetano Mosca, e<br />
relacionando-o com o conceito elite de Vilfredo Pareto. Foi Benedetto<br />
Croce seu principal interlocutor. O conjunto dos Cadernos do Cárcere,<br />
na verdade, é um combate em duas frentes: contra o pensamento<br />
especulativo e idealista (Croce) e a chamada ortodoxia vulgar e positivista<br />
do marxismo.<br />
8 GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História, p. 39, 3. ed., 1978, Rio de Janeiro:<br />
Civilização Brasileira.<br />
<strong>18</strong>7
X. Memória<br />
E, hoje, as categorias gramscianas são reconhecidas e estudadas,<br />
nos meios acadêmicos e políticos como instrumentos de análise da modernização<br />
conservadora brasileira e suas complexas superestruturas.<br />
Sua vida pelo modo, lugar e tempo de sua concretização, poderia<br />
ser designada como a de um homem derrotado. Na ignorância de uma<br />
época fez iluminar a extraordinária força moral e o rigor intelectual do<br />
homem que, sem se deixar abater, fez de suas derrotas, novas fontes<br />
de energia para recomeçar e avançar. Suportou o seu destino, com<br />
coragem e sobriedade intelectual, sem concessões ao vulgar e patético,<br />
conservando sempre o controle racional dos sentimentos.<br />
Diante disso como resistir à tentação de falar sobre Gramsci e sua<br />
obra tão rica, fecunda, dando-lhe, ao mesmo tempo, o papel de herói,<br />
no mundo cheio de vilões teóricos? Referindo-se a Marx, Noberto Bobbio<br />
dizia que para garantir um lugar entre os clássicos, um pensador<br />
deve obter reconhecimento nestas três qualidades: a) deve ser considerado<br />
como tal intérprete da época em que viveu que não se possa<br />
prescindir de sua obra para conhecer o “espírito do tempo”; b) deve ser<br />
sempre atual, no sentido de que cada geração sinta necessidade de<br />
relê-lo e, relendo-o, de dedicar-lhe uma nova interpretação; c) deve ter<br />
elaborado categorias gerais de compreensão histórica das quais não<br />
se possa prescindir para interpretar uma realidade mesmo distinta<br />
daquela a partir da qual derivou essas categorias e à qual as aplicou. 9<br />
Esta afirmação caberia, também para Gramsci?<br />
Ninguém, hoje, duvida que deva ser considerado um clássico na<br />
história do pensamento.<br />
Finalmente, nessa pequena homenagem, não poderia faltar um<br />
trecho de sua carta de 10 de maio de 1928, enviada para a mãe:<br />
<strong>18</strong>8<br />
(...) Querida mamãe, gostaria muito de lhe abraçar bem apertado<br />
para que sentisse o quanto eu gosto de você e como gostaria de<br />
lhe consolar por esse desgosto que lhe dei, mas não podia agir de<br />
outro modo.A vida é assim, muito dura, e os filhos algumas vezes<br />
têm de dar grandes desgostos às suas mães, se querem conservar<br />
a sua honra e a sua dignidade de homens. 10<br />
9 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política – A filosofia Política e as Lições dos Clássicos,<br />
p. 114. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000.<br />
10 FIORI, Giuseppe. A vida de Antonio Gramsci, p. 360, Rio de Janeiro: Editora Paz e<br />
Terra, 1979.<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
XI. Resenhas
Autores<br />
Luiz Bernardo Pericás<br />
Escritor e historiador, autor de Che Guevara e o Debate Econômico em Cuba, entre<br />
outros.<br />
Francisco Alambert<br />
Professor de história social da arte e história contemporânea na USP.<br />
Fernando Marques<br />
Jornalista e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília
O pensamento livre 1<br />
Luiz Bernardo Pericás<br />
No apêndice da segunda edição de Sociologia do Materialismo, publicada<br />
em 1959, Leôncio Basbaum afirmava que “a tarefa que<br />
se levanta para nós, marxis tas de hoje, consiste em libertar o<br />
marxis mo dos dogmatismos, para que o atraso que ele apresenta em relação<br />
ao desenvol vimento histórico possa ser superado. Es sa tarefa soa:<br />
dialetizar o marxismo... A re visão do marxismo precisa ser executada<br />
diariamente, referindo-o aos fatos, aos novos conhecimentos científicos,<br />
às mu danças da realidade social. Talvez seja precisamente essa tarefa<br />
a herança mais importante de Marx. Precisa mos tentar alcançar para<br />
nós, mar xistas, o direito de criticar o marxis mo, especialmente o marxismo<br />
ho je em voga, sem sermos, por isso, excluídos ou expurgados”.<br />
Esse trecho significativo de Bas baum (importante teórico, político<br />
marxista, militante do PCB) ilus tra bem a reação de alguns intelectuais<br />
de esquerda de nosso país às normas doutrinárias e esquematismos<br />
teóricos propugnados pelo marxismo ortodoxo oficial soviético,<br />
divulgados e copiados pelos dirigentes comunistas de outros paí ses,<br />
inclusive os brasileiros.<br />
Entre aqueles que mais se destacaram na tentativa de romper com<br />
essa tradição ne fasta e se empenharam em “nacionalizar” o marxismo<br />
no Brasil (até mesmo, déca das antes), figura o exímio historiador<br />
paulista Caio Prado Júnior (1907/1990). É bom lembrar que gerações<br />
de militantes eram formadas pelos antigos “manuais” de economia<br />
1 Publicado originariamente na revista semanal Cartacapital, edição de 21 de fevereiro<br />
de 2007, p. 58 e 59)<br />
191
X. Resenhas<br />
política da Academia de Ciências da União Soviética, importa dos diretamente<br />
de Moscou.<br />
Textos pouco sofisticados, como os de Afanassiev ou Strumilin,<br />
eram lidos e dis cutidos em reuniões acaloradas: represen tavam, na<br />
prática. a versão oficial do “ver dadeiro” marxismo que o PCUS queria<br />
ex portar para o resto do mundo. Mas a im posição daqueles “fundamentos”<br />
dogmá ticos e mecanicistas (que deveriam servir para todas as<br />
realidades, obrigando a en quadrar os processos históricos regionais,<br />
inclusive o brasileiro, dentro de seus mo delos pré-fabricados), teve<br />
como conse qüência, em última instância, a falta de uma avaliação<br />
correta do desenvolvimen to histórico nacional e derrotas sucessivas<br />
na luta política ao longo de várias décadas.<br />
O autor de Evolução Política do Brasil (1933), Formação do Brasil<br />
Contemporâ neo (1942), História Econômica do Brasil (1945), Dialética<br />
do Conhecimento (1952) e Esboços dos Fundamentos da Teoria Econômica<br />
(1957), ainda que membro do PCB, por seu lado, nunca se<br />
submeteu às normas rígidas impostas pelo stalinismo latente no partido.<br />
Junto de Daniel De León (o primeiro teórico marxista origi nal do<br />
Hemisfério Ocidental) e do jorna lista peruano José Carlos Mariátegui,<br />
Prado Júnior pode ser considerado, cer tamente, um dos mais importantes<br />
e pro fundos teóricos marxistas de nosso con tinente. Outros, no<br />
Brasil e no resto das Américas, deram importantes contribui ções para<br />
o estudo das diferentes reali dades nacionais, mas poucos chegaram<br />
tão longe quanto ele.<br />
Caio foi um homem complexo: mem bro do PCB, dirigente da ANL,<br />
fun dador da Revista Brasiliense e da Edi tora Brasiliense, publisher,<br />
fotógrafo amador, geógrafo, filósofo, deputa do estadual por São Paulo<br />
(eleito em 1947 e cassado em 1948), mem bro do Clube de Artistas Modernos<br />
(CAM), ensaísta, articulista, pales trante, ganhador do Prêmio<br />
Juca Pa to, da União Brasileira de Escritores (1966), historiador de<br />
primeira. Mesmo sendo notoria mente um personagem multiface tado<br />
e de altíssimo nível intelectual, esse verdadeiro outsider também teve<br />
todas as portas do meio acadêmico fechadas para ele. Ainda hoje, é<br />
visto com restrição por alguns historiadores “profissionais”...<br />
Apesar dos críticos, Prado Júnior foi um dos autores que “fizeram a<br />
cabeça” de vários estudantes e ativistas de esquerda “heterodoxos”, principalmente<br />
a partir da década de 1960, estimulando, ao mesmo tempo,<br />
por meio de seus livros, intelectuais importantes como Jacob Gorender,<br />
Nelson Werneck Sodré, Fernando Novais, João José Reis e tantos outros,<br />
a “dialo gar”, direta ou indiretamente, com sua obra, e fazer avançar os<br />
estudos sobre o processo de formação histórica do Brasil.<br />
192<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
O pensamento livre<br />
Ao contrário de politiqueiros profis sionais “oportunistas” (que<br />
sempre prio rizaram a disputa por cargos e posições de destaque nas<br />
cúpulas partidárias), Caio, filho de uma tradicional e aristo crática família<br />
paulista, preferiu atuar de maneira distinta e construiu, gradualmente,<br />
o monumento que foi sua vasta obra bibliográfica. Mas<br />
não sem sofrer críticas intensas, tanto da direita (que o considerava<br />
um traidor de clas se), como da própria esquerda, que o via, muitas<br />
vezes, como um herege. Flexível, eclético e aberto a diferentes idéias,<br />
CPJ bebia de diversas fontes. É possível en contrar distintas influências<br />
em seus li vros. Talvez por isso mesmo sem pre houvesse aqueles<br />
que se recusa ram a considerá-la marxista...<br />
Ele integrava um grupo de homens notáveis, de diversos matizes<br />
ideológicos, que pensavam e acreditavam em nosso país (homens de<br />
uma estirpe ética, e .moral cada vez mais rara no Brasil), como Celso<br />
Furtado, Antonio Candido, Florestan Fernandes, Antônio Houaiss,<br />
Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer, entre tantos outros. Sua contribuição<br />
foi verdadeiramente estimulante.<br />
Viajante inveterado, Pra do Júnior conheceu di versos países (inclusive,<br />
vários do mundo socialista) e os recantos mais profundos do<br />
Brasil. Ia pessoalmente, em seu velho Fusca, para o in terior do país,<br />
para, o sertão, para os vilarejos em cada canto da na ção: fotografava,<br />
conversava com o po vo local, levantava documentos, anali sava dados<br />
estatísticos e depois dedi cava horas e horas por dia a colocar no papel<br />
os resultados de suas pesquisas. Não era apenas um historiador<br />
de ga binete. Mesmo assim, entre os mais proeminentes “intérpretes”<br />
do Brasil, como Gilberto Freyre ou Sérgio Buar que de Holanda, Caio<br />
foi, durante bastante tempo, o que teve menos visibilidade dentro das<br />
universidades.<br />
As comemorações dos cem anos de seu nascimento podem ser um<br />
bom motivo para trazer de volta o debate em torno desse grande teórico.<br />
E, principalmente, têm potencial para criar um interesse renovado<br />
em sua obra no público jovem. Diversas exposições, palestras, conferências<br />
e a publicação de livros sobre CPJ estão pro gramadas para<br />
este ano.<br />
O destaque fica para Uma Trajetória Intelectual: Caio Prado Júnior,<br />
de Paulo Teixeira Iumatti (a ser lançada pela Editora Brasiliense), uma<br />
interessante biografia intelectual do autor de A Revolução Brasileira.<br />
Originalmente parte de uma tese de doutorado defendida no Departamento<br />
de História da USP em 2001, essa obra deixa de lado qualquer<br />
viés hagio gráfico ou laudatório, e percorre os cami nhos trilhados por<br />
Caio em todas as suas diferentes formas de atuação.<br />
193
X. Resenhas<br />
Assim, é possível acompanhar o per curso de Prado Júnior da década<br />
de 1920 ao fim dos anos 1970, e ver como o am biente político-cultural<br />
interno e externo, assim como suas leituras, contribuiram para a<br />
produção científica; entender a atuação como militante e teórico marxista;<br />
e, finalmente, compreender também o lado pessoal e familiar.<br />
Dessa for ma, Iumatti (que já havia sido o responsá vel pela publicação,<br />
anos atrás, dos diários políticos de CPJ pela mesma. editora); tenta<br />
apresentar o personagem da ma neira mais completa possível, entrelaçando<br />
a dimensão humana com a política e a intelectual. Para isso, o<br />
autor re correu a entrevistas, a arquivos de fami liares e de universidades,<br />
assim como a cartas e livros do próprio Prado Júnior.<br />
No deserto intelectual em que se encon tra o Brasil, país que parece<br />
patinar no mesmo lugar, sem grandes ambições nem perspectivas<br />
nítidas de crescimento econômico ou justiça social, o centenário de<br />
Caio Prado Júnior pode ser uma boa provocação e um excelente motivo<br />
para repensar e reavaliar nossas prioridades, nos sa visão de nós<br />
mesmos e nosso futuro como nação. Escrito numa linguagem leve,<br />
direta e sem academicismos, o livro de Iu matti certamente ajudará<br />
nessa tarefa.<br />
Sobre a obra: Uma trajetória intelectual: Caio Prado Junior, de Paulo<br />
Teixeira Inmatti, São Paulo: Brasiliense, 280 p., 2007.<br />
194<br />
*<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Presente na encruzilhada<br />
Francisco Alambert<br />
Presente na encruzilhada<br />
Desde a crise da invasão da reitoria da USP, o movimento estudantil<br />
voltou, até segunda ordem, ao centro do problema<br />
brasileiro. Depois das crises, do neoliberalismo do governo<br />
Fernando Henrique Cardoso/e da mudança do PT rumo ao centro<br />
político e à direita econômica, isso era inevitável.<br />
Pensar o papel dos estudantes e os impasses na educação trazidos<br />
pelo fim de um projeto nacional orgânico é o assunto de duas<br />
coletâneas lançadas à beira da crise atual. Uma delas, Movimento<br />
Estudantil Brasileiro e a Educação Superior, trata sobretudo do passado<br />
do movimento, enquanto que a outra, Política Pública de Educação<br />
no Brasil, trata dos impasses do presente.<br />
Em ambos os casos, a maioria dos autores vem do Norte e do<br />
Nordeste do Brasil. Movimento Estudantil Brasileiro traz diversos<br />
pesquisadores e intelectuais que analisam e dão depoimentos sobre<br />
o movimento a partir dos anos 1950.<br />
Nos diversos textos, muitos temas são tratados, sobretudo a partir<br />
do forte movimento político pernambucano, no contexto do governo<br />
de Miguel Arraes e da militância de Paulo Freire.<br />
Aprendemos que, desde pelo menos 1958 até 1968, as questões<br />
centrais da busca de um ensino superior público esbarravam em<br />
problemas de toda ordem: a questão da autonomia, a insuficiência<br />
de recursos, a busca por aumento de vagas, a necessidade de criar,<br />
em âmbito federal, uma universidade orgânica partindo de uma base<br />
precária – as escolas superiores isoladas.<br />
O novo movimento estudantil nasceu de uma necessária tomada<br />
de posição diante dessas questões. No final da década de 50, como<br />
mostra o texto de Maria de Lourdes Favero, o debate em torno da Lei<br />
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional colocou os intelectuais<br />
e os estudantes à frente da defesa da escola pública, sobretudo no<br />
contexto das “reformas de base” que antecederam o golpe militar.<br />
Como explica Lauro Morhy, a questão hoje é que, depois do período<br />
militar, esse debate não voltou. No seu lugar veio a crise eco-<br />
195
X. Resenhas<br />
nômica, em torno da qual os debates sobre a questão encontravam<br />
seu limite.<br />
Entre os depoimentos recolhidos e editados, destacam-se os de<br />
Luiz Costa Lima e Jurandir Freire Costa, apontando a influência das<br />
propostas de Paulo Freire em suas vidas estudantis. Ambos notam<br />
que a militância recifense se dava intelectualmente contra as idéias e<br />
a influência de Gilberto Freyre – a quem Costa Lima acusa de o haver<br />
delatado como “marxista”, coisa que o levou a sua primeira prisão<br />
pela ditadura.<br />
Entretanto Freire Costa, que estudava medicina, afirma que, mais<br />
ou menos, todos se inspiravam nas idéias marxistas.<br />
O ensaio Análise do Discurso do Novo Movimento Estudantil tenta<br />
trazer as discussões para o presente. Escrito por três estudantes,<br />
analisa o “discurso” de uma chapa estudantil, buscando entender o<br />
que é o “jovem” estudante atual.<br />
Sua conclusão, após volteios um tanto confusos, é que o estudantado<br />
de hoje “une” parte do ideário da esquerda dos anos 60 e<br />
70 com reivindicações de “atuações mais individualizadas”. Diante<br />
de certos procedimentos dos estudantes que ocuparam a reitoria da<br />
USP, defendendo a autonomia universitária com as armas da organização<br />
coletiva, sem que partidos políticos tivessem a hegemonia no<br />
processo, essa conclusão pode ser problematizada. Política Pública<br />
traz o problema para o centro da crise aberta pelo neoliberalismo da<br />
última década e seus impasses estruturais.<br />
Em diferentes campos do saber educacional (desde as dificuldades<br />
de gestão até os impactos do neoliberalismo no ensino de<br />
educação física), os textos nos mostram as ressignificações ditadas<br />
pela lógica neoliberal e sua estratégia de privatização do conhecimento<br />
e de produção da educação (e dos alunos) como mercadoria.<br />
Embora boa parte dos artigos se preocupe em apresentar os problemas<br />
dessa situação, não se furtam também a procurar alternativas,<br />
na busca de uma nova significação para a idéia de ensino público,<br />
constantemente dinamitada pelos governos e que, parece, só está<br />
sendo defendida na prática pelos estudantes, custe o que custar.<br />
Sobre as obras: Movimento Estudantil Brasileiro e a Educação Superior,<br />
Michel Zaidan Filho e Otávio Luiz Machado (org.), Editora Universitária<br />
UFPE, 260 p.<br />
Política Pública de Educação no Brasil, Antônio Cabral Neto, Ilma Vieira do<br />
Nascimento e Rosângela Novaes Lima (org.), Editora Sulina, Porto Alegre, 350 p.<br />
196<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Síntese de ritmos<br />
Fernando Marques<br />
Síntese de ritmos<br />
Há mais semelhanças entre o Brasil e os Estados Unidos do<br />
que em geral se supõe. Por exemplo: o samba e o jazz têm afinidades<br />
históricas. De saída, ambos os estilos tomam forma<br />
em cenários urbanos. O samba nasce no coração do Rio de Janeiro,<br />
nos bairros onde se concentram os baianos vindos do Recôncavo,<br />
nas décadas seguintes à Abolição. Nos Estados Unidos, o jazz surge<br />
na região boêmia de Nova Orleans, extremo Sul do país.<br />
Ao longe, podem-se ver as raízes rurais dessas populações, as do<br />
cacau no Brasil, as do algodão nos EUA. Ressalta a herança africana,<br />
aqui ou lá, com os ritmos que entortam os desenhos mais lineares<br />
da métrica européia, enriquecendo-a. Samba e jazz são gêneros de<br />
síntese.<br />
Veja-se ainda que Rio de Janeiro e Nova Orleans, por serem cidades<br />
portuárias, favorecem o trânsito de pessoas e produtos que anima<br />
a vida noturna, estimulando a oferta de cultura e entretenimento.<br />
Por fim, samba e jazz nascem com o século 20 e emplacam, ambos,<br />
seu primeiro registro em disco no mesmo ano de 1917. É pouco?<br />
Muito. No entanto, faz-se necessário o zelo inteligente de um<br />
grande estudioso desses dois estilos musicais para reuni-los num<br />
único livro, caso de Samba, jazz e outras notas, coletânea de artigos<br />
do crítico e historiador carioca Lúcio Rangel (1914-1979). Organizado<br />
pelo jornalista Sérgio Augusto, que também responde por amplo<br />
e ótimo prefácio, o livro ganha em ser lido ao lado da Coleção Revista<br />
da Música Popular, outro lançamento recente, que reproduz os 14<br />
números da revista que o mesmo Lúcio Rangel editou, à frente de colaboradores<br />
ilustres, nos anos 1950. De fato, estamos redescobrindo<br />
Lúcio que, além de cronista musical, foi um sujeito singular, bemhumorado,<br />
sarcástico, idiossincrático.<br />
É paradoxal que o jornalista, freqüentador de inúmeros veículos<br />
(do Jornal de Letras ao Correio da Manhã, de A Cigarra a Senhor),<br />
tenha deixado um único livro. O volume se chama Sambistas e chorões<br />
e é de 1962; acha-se (“acha-se” é força de expressão) esgotado<br />
há tempos. Também por isso, o contato com as pesquisas rigorosas<br />
197
X. Resenhas<br />
e o estilo transparente do autor, propiciado pela coletânea recémlançada,<br />
revela-se oportuno. Os artistas que destacam sua intransigência<br />
purista (em ambos os gêneros), seu amor ao detalhe soam<br />
como lições a serem meditadas pelo apressado jornalismo nosso de<br />
cada dia.<br />
Para tentar descrever o método crítico de Lúcio Rangel, digamos que<br />
ele costumava analisar a obra e a trajetória dos artistas relacionandoas<br />
ao desenvolvimento do gênero que esses artistas ajudavam a criar,<br />
ou de que eram expoentes. Lúcio percebe, com razão, que a evolução dos<br />
estilos é duplamente motivada: desdobra-se conforme razões históricas,<br />
mas também decorre, claro, de imponderáveis méritos individuais.<br />
A noção materialista, em princípio certeira, de que a história é que<br />
faz os indivíduos, e não o contrário, desmente-se em parte pela observação<br />
do real, no setor ultra-sensível da música. Ou seja: a história<br />
dirige as pessoas; mas os fatos históricos dependem também de<br />
decisões particulares, de acasos, de encontros e desencontros imprevistos.<br />
E dependem um bocado das parcerias, previsíveis ou não.<br />
Nesse sentido, exemplo tirado da primeira seção do livro, dedicada ao<br />
samba, envolve acaso que não foi bem acaso: o encontro entre Sinhô<br />
e Mário Reis, a que Lúcio atribui enorme importância.<br />
Antes de contar o episódio, o crítico lembrava que a técnica e os trejeitos<br />
da ópera, sobretudo italiana, haviam influído sobre o canto dos<br />
artistas populares brasileiros. Estes procuravam transpor a estética<br />
da grande voz – que implica o grande personagem, o grande drama<br />
– para a interpretação de gêneros como o maxixe, música buliçosa,<br />
sensual, dirigida mais ao corpo do que à cabeça. Não podia dar certo.<br />
Por isso, Rangel bendiz o dia em que Mário Reis, jovem grã-fino que<br />
gostava de cantar, procurou Sinhô, para ter aulas de violão com o<br />
compositor famoso. Escreve Lúcio, relatando o encontro: “O jovem<br />
declarou admirar extraordinariamente os sambas de Sinhô. Só conhecia<br />
alguns, disse. E depois de alguma relutância cantou, a pedido<br />
do mestre, que o acompanhava ao violão”, um dos sucessos da hora.<br />
A música era “Que vale a nota sem o carinho da mulher?” e, quando<br />
Mário “acabou de cantar o samba então em grande voga, Sinhô estava<br />
deslumbrado”. O compositor descobria “o intérprete ideal para os<br />
seus sambas”. O rapaz estrearia em disco na semana seguinte, com<br />
duas músicas de Sinhô. O ano era o de 1928.<br />
As qualidades de Mário Reis têm parte com a espontaneidade,<br />
sem dispensar perícia e precisão: o intérprete, ao pronunciar “admiravelmente<br />
as palavras do samba, com extraordinária noção de ritmo<br />
e uma personalidade marcante, deu lição de mestre aos cantores da<br />
198<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Síntese de ritmos<br />
época, todos mais ou menos influenciados pelos tenores italianos”.<br />
Para Lúcio, o gênero achava a sua voz coloquial.<br />
“Nenhum cantor popular brasileiro deixou, desde então, de sofrer,<br />
direta ou indiretamente, a influência de Mário Reis”, afirma o<br />
crítico. Mesmo Chico Alves, que tinha imenso cartaz e era de fato<br />
grande cantor, “aprimorou sua dicção e refreou suas tendências para<br />
a ópera”. O próprio Lúcio viria a promover outro encontro essencial<br />
na história da música popular: o de Vinicius de Moraes e Tom Jobim,<br />
parceiros pela primeira vez nas canções da peça Orfeu da Conceição,<br />
escrita pelo poeta em meados dos anos 50.<br />
Lúcio Rangel era também apaixonado por música instrumental. Não<br />
tocava, mas, depois de tomar uns goles, encantava e divertia os amigos<br />
com seu trombone imaginário (tinha boa voz e talvez fizesse carreira<br />
como cantor, se o pai não brecasse as suas pretensões artísticas). De<br />
fato, as matérias destinam bom espaço ao choro e ao jazz instrumentais.<br />
Ao falar da figura de Pixinguinha, Rangel descreve com certa minúcia<br />
a situação familiar do jovem, esboçando o quadro social onde o artista<br />
evolui. O menino era filho de violonista, tendo sido incentivado<br />
pelo pai, que lhe confiou uma das duas flautas que havia em casa;<br />
aos 15 anos, fazia sua estréia profissional, numa choperia do bairro<br />
da Lapa, no Rio.<br />
Pixinguinha cresceu em sobrado amplo, movimentado e musical,<br />
residência nada modesta, mas dotada de “oito quartos e quatro<br />
salas”. O lugar chamava-se “Pensão Viana”, pela hospitalidade que<br />
dispensava aos amigos (não custa reparar que, se o samba nasce<br />
nessas casas amplas e festivas, ele não nasce da pobreza, mas da<br />
fartura). O perfil do grande artista se encerra pela resposta encabulada,<br />
quando lhe perguntaram se preferia tocar, compor ou escrever<br />
arranjos: “Gosto mesmo é de fazer minha musiquinha”, disse o líder<br />
dos Oito Batutas.<br />
Outra grande admiração do crítico dedicava-se ao compositor Noel<br />
Rosa, que o menino Lúcio chegou a ver e ouvir em espetáculos na<br />
década de 30. Noel morreu há exatos 70 anos (que se completaram<br />
a 4 de maio), e uma parcela de sua obra cai em domínio público a<br />
partir do ano que vem – é o caso das canções que fez sozinho ou com<br />
parceiros também desaparecidos há mais de sete décadas (segundo<br />
lembra o professor Wellington Diniz, da Escola de Música).<br />
O crítico se enganou ao atribuir ao compositor a autoria “de <strong>18</strong>0<br />
a 190 peças”, refutando pesquisador que chegara a relacionar 300<br />
canções feitas por Noel, só ou com parceiros. Lúcio imaginava que o<br />
exagero se devesse, em parte, ao fato de várias músicas terem rece-<br />
199
X. Resenhas<br />
bido dois títulos (artifício de que Noel se valia, às vezes, para atender<br />
à demanda por canções inéditas). Os biógrafos João Máximo e Carlos<br />
Didier afinal recensearam cerca de 250 músicas assinadas por Noel,<br />
só ou acompanhado.<br />
Seja como for, é interessante ler a lista, preparada por Lúcio, das<br />
canções que Noel fez sem parceiros (o mais importante deles foi Vadico,<br />
com quem escreveu os definitivos Feitio de oração e Feitiço da<br />
Vila). Sozinho, o garoto de Vila Isabel compôs Com que roupa?, João<br />
Ninguém, Gago apaixonado, Não tem tradução e Último desejo, entre<br />
outras, transitando do humor de Com que roupa? à ironia triste desta<br />
última.<br />
Importante ainda, além dos dados factuais diligentemente relacionados<br />
pelo crítico, é a visão que dá de Noel, poeta e músico sofisticado,<br />
mas intuitivo: “Houve quem visse em Noel Rosa a influência da<br />
moderna poesia que a Semana de Arte de São Paulo começa a espalhar<br />
por todo o Brasil. Não acredito nisso, Noel não era um livresco,<br />
certamente ignorava os versos dos dois andrades, de Bandeira e de<br />
Guilherme de Almeida”. Pouco adiante, define: “Sua poesia buscava-a<br />
na vida cotidiana, nas situações criadas pelos seus íntimos e por ele<br />
mesmo, nas ruas, nos cafés populares, em contato com o povo. Nem<br />
por isso deixou de ser grande”.<br />
Menos extensa que a primeira, a segunda seção do livro trata de<br />
música norte-americana, com ênfase na figura do trompetista, cantor<br />
e líder de banda Louis Armstrong, representante do estilo tradicional.<br />
A “orquestra ideal” de jazz soma “um trompete, um trombone e<br />
uma clarineta, com o apoio da seção rítmica, composta de piano, guitarra,<br />
contrabaixo (ou tuba) e bateria”. A improvisação é a tônica dos<br />
grupos desse gênero, “sem arranjos preestabelecidos ou partituras”,<br />
tudo correndo por conta do “talento inventivo dos executantes”.<br />
Lúcio descrê das “grandes orquestras pretendendo fazer música<br />
de jazz” e, mais ainda, abomina o be-bop de Charlie Parker<br />
e Dizzy Gillespie (embora admire Parker), tendência que não se<br />
cansa de ironizar, presumivelmente pela atitude cerebral que o<br />
bop vem impor a um estilo espontâneo. O oportunismo de músicos<br />
ou empresários brancos que se apropriam do trabalho de artistas<br />
negros recebe, mais que a ironia, o desprezo de Lúcio.<br />
O leitor não especialmente interessado nos detalhes da história da<br />
música popular, no Brasil e nos EUA, talvez se canse diante de alguns<br />
textos, pródigos em dados de catálogo – Lúcio era um obsessivo<br />
da informação, no que foi beneficiado pelo amor a seus assuntos e<br />
pela boa memória, apoiada em biblioteca e discoteca fartas. Esse<br />
200<br />
Política Democrática · Nº <strong>18</strong>
Síntese de ritmos<br />
traço não cancela a qualidade e mesmo a delícia dos perfis que faz<br />
de Pixinguinha, Noel ou Armstrong, para citar alguns dos melhores<br />
textos.<br />
É engraçado, afinal de contas, que sujeito intelectualmente tão<br />
organizado, metódico e produtivo fosse também um boêmio, piadista<br />
e pândego. Mostrava-se capaz de tiradas agudas, devidas à inteligência<br />
ágil ou ao efeito do uísque, ou a ambos (nem sempre contraditórios),<br />
como se percebe nos episódios seguintes, colhidos no prefácio.<br />
O primeiro deles: Lúcio e um amigo sentam-se à mesa de um<br />
botequim, e o companheiro sugere que peçam algo para beliscar.<br />
Lúcio, de cara limpa, retruca: “Você tem razão. Mas primeiro vamos<br />
beber alguma coisa, porque eu não como de estômago vazio”.<br />
Outra tirada deve ter sido dita em pleno porre e é nonsense puro,<br />
genuíno, escocês. A seleção brasileira de futebol acabara de vencer<br />
o campeonato mundial na Suécia, em 1958, e havia patrícios amontoados<br />
num bar em Ipanema (como por todo o Rio). O clima era de<br />
alegria, naturalmente, mas algo atrapalhava a festa: as moscas inumeráveis<br />
que se multiplicavam em torno dos copos.<br />
Um patriota impaciente dobrou o jornal do dia e saiu caçando os<br />
insetos, esmagando alguns deles. Lúcio, tomado de bíblica piedade,<br />
subiu na cadeira e, com os olhos fixos no assassino de insetos, gritou:<br />
“Deixe as mosquinhas em paz! Elas também são campeãs do<br />
mundo!”. Além de boêmio, Lúcio Rangel foi um de nossos melhores e<br />
mais férteis cronistas de música popular.<br />
Sobre a obra: Samba, Jazz e outras notas – Coletânea de artigos do crítico<br />
e historiador Lúcio Rangel. Organização e prefácio de Sérgio Augusto.<br />
Agir. 240 p.<br />
*<br />
201
Pr o d u ç ã o Ed i t o r i a l<br />
Projeto e Edição Final<br />
Tereza Vitale<br />
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