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PD 18 - Fundação Astrojildo Pereira

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A necessidade da<br />

Reforma Política


<strong>Fundação</strong> <strong>Astrojildo</strong> <strong>Pereira</strong><br />

SDS · Edifício Miguel Badya · Sala 322 · 70394-901 · Brasília-DF<br />

Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 - fundacao@fundacaoastrojildo.org.br<br />

www.fundacaoastrojildo.org.br<br />

Editor<br />

Caetano E.P. Araújo<br />

Editor Executivo<br />

Francisco Inácio de Almeida<br />

Editor Executivo Adjunto<br />

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Charles Pessanha<br />

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Denis Lerrer Rosenfield<br />

Fábio Freitas<br />

Fernando Pardellas<br />

Flávio Kothe<br />

Francisco José <strong>Pereira</strong><br />

Gildo Marçal Brandão<br />

Copyright © 2007 by <strong>Fundação</strong> <strong>Astrojildo</strong> <strong>Pereira</strong><br />

ISSN 15<strong>18</strong>-7446<br />

Política Democrática<br />

Revista de Política e Cultura<br />

www.politicademocratica.com.br<br />

Conselho de Redação<br />

Alberto Aggio<br />

Anivaldo Miranda<br />

Davi Emerich<br />

Dina Lida Kinoshita<br />

Ferreira Gullar<br />

George Gurgel de Oliveira<br />

Conselho Editorial<br />

Gilson Leão<br />

Gilvan Cavalcanti<br />

Hermano Nepomuceno<br />

Irma Passoni<br />

Joanildo Buriti<br />

José Antonio Segatto<br />

José Bezerra<br />

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Luiz Carlos Azedo<br />

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Luiz Gonzaga Beluzzo<br />

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Luiz Werneck Vianna<br />

Marco Antonio Coelho<br />

Marco Aurélio Nogueira<br />

Maria do Socorro Ferraz<br />

Marisa Bittar<br />

Martin Cézar Feijó<br />

Ficha Bibliográfica<br />

Giovanni Menegoz<br />

Ivan Alves Filho<br />

Luiz Mário Gazzaneo<br />

Luiz Sérgio Henriques<br />

Raimundo Santos<br />

Michel Zaidan<br />

Milton Lahuerta<br />

Oscar D’Alva e Souza Filho<br />

Othon Jambeiro<br />

Paulo Alves de Lima<br />

Paulo Bonavides<br />

Paulo César Nascimento<br />

Paulo Fábio Dantas Neto<br />

Pedro Vicente Costa Sobrinho<br />

Raul de Mattos Paixão Filho<br />

Ricardo Cravo Albin<br />

Ricardo Maranhão<br />

Roberto Mangabeira Unger<br />

Rose Marie Muraro<br />

Sérgio Augusto de Moraes<br />

Sérgio Bessermann<br />

Sinclair Mallet Guy Guerra<br />

Telma Lobo<br />

Washington Bonfim<br />

Willame Jansen<br />

Willis Santiago Guerra Filho<br />

Zander Navarro<br />

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF:<br />

<strong>Fundação</strong> <strong>Astrojildo</strong> <strong>Pereira</strong>, 2007.<br />

Nº <strong>18</strong>, julho de 2007<br />

202 p.<br />

1. Política. 2. Cultura. I. <strong>Fundação</strong> <strong>Astrojildo</strong> <strong>Pereira</strong>. II. Título.<br />

CDU 32.008.1 (05)<br />

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores.<br />

Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.


Política Democrática<br />

Revista de Política e Cultura<br />

<strong>Fundação</strong> <strong>Astrojildo</strong> <strong>Pereira</strong><br />

A necessidade da<br />

Reforma Política


Sobre a capa<br />

Participando das comemorações do centenário da xilogravura,<br />

apresentamos em nossa capa e contracapa algumas<br />

criativas obras xilográficas de Francisco (Xico) Carvalho.<br />

Nascido em João Pessoa/PB, em 1949, Xico é gravador e escultor,<br />

autodidata por excelência, filho de família tradicional de<br />

gravadores do município de Itabaiana/PB.<br />

Iniciou-se em xilogravura, ainda criança, quando recebeu<br />

influência da chamada gravura popular, por meio de trabalhos<br />

de artistas populares nas capas de folhetos de cordel.<br />

Xico faz parte do grupo fundador do Clube de Gravura da<br />

Paraíba, em 1984, tendo participado de suas principais exposições<br />

coletivas.<br />

Suas obras podem ser encontradas nos acervos de galerias,<br />

museus e colecionadores de arte, no Brasil e no exterior, sendo<br />

alvo de estudo por parte de pesquisadores e artistas brasileiros<br />

e estrangeiros.<br />

Além de participar, com suas gravuras, da antologia poética<br />

do famoso poeta paraibano Leandro Gomes de Barros<br />

(Editora Universitária da UFPB, 2001), tem ilustrado livros de<br />

poesia, além de criar capas para cordéis de inúmeros autores<br />

nordestinos.<br />

Utilizando-se da Oficina Jaguaribe, aí ele tem realizado suas<br />

mais recentes experiências em cores, o que o faz integrar-se definitivamente<br />

à gravura contemporânea brasileira.<br />

Leiam, na página 165, o excelente ensaio quase crônica do<br />

seu primo, o cineasta, jornalista e também xilogravador Vladimir<br />

Carvalho, primeiro presidente da <strong>Fundação</strong> <strong>Astrojildo</strong><br />

<strong>Pereira</strong>.


Sumário<br />

I. Apresentação<br />

Cláudio Vitorino de Aguiar ........................................................................................................11<br />

II. Conjuntura – A necessidade da Reforma Política<br />

Perspectivas da reforma política<br />

Caetano Araujo ........................................................................................................................17<br />

Uma reforma sempre adiada<br />

Luiz Carlos Azedo ....................................................................................................................30<br />

Sobre o conteúdo da Reforma Política<br />

Rubens Otoni ..........................................................................................................................40<br />

III. Observatório Político<br />

O Estado Novo do PT<br />

Luiz Werneck Vianna ...............................................................................................................45<br />

Sobre o aquecimento global<br />

Sergio Augusto de Moraes ........................................................................................................54<br />

Um país (um mundo) de sinais trocados<br />

Marcos Costa Lima ..................................................................................................................62<br />

IV. No compasso das reformas<br />

Colisão de direitos fundamentais no debate sobre aborto<br />

Arryanne Queiroz .....................................................................................................................71<br />

Penas alternativas e política pública<br />

Márcia de Alencar ....................................................................................................................75<br />

Feminismo e nova esquerda: um diálogo em construção<br />

Almira Rodrigues .....................................................................................................................80<br />

V. Batalha das Idéias<br />

Uma busca inglória<br />

Iraci del Nero da Costa .............................................................................................................89


Considerações acerca de um sistema equivocado<br />

(cotas raciais nos vestibulares)<br />

Fábio Santa Cruz .....................................................................................................................95<br />

Estado Democrático & Segurança Pública<br />

Oscar d´Alva e Souza Filho ....................................................................................................108<br />

Crime, castigo, determinismo socioeconômico<br />

João Manoel Pinho de Mello .................................................................................................. 103<br />

VI. Ensaio<br />

A esquerda italiana e o reformismo no século XX<br />

Giuseppe Vacca .................................................................................................................... 111<br />

VII. Mundo<br />

Sarkozy segundo a ordem das razões<br />

Ruy Fausto ........................................................................................................................... 129<br />

ALCA: negociações, impasses e resistências<br />

Marcelo Santos ..................................................................................................................... 138<br />

A governabilidade democrática como espaço idôneo para conciliar as<br />

políticas econômicas com as políticas sociais<br />

Amália D. García Medina ...................................................................................................... 148<br />

O golpe de Gaza: a islamização está chegando<br />

Walid Salem .......................................................................................................................... 154<br />

A paz após a tomada de Gaza pelo Hamas<br />

Galia Golan .......................................................................................................................... 159<br />

VIII. Vida Cultural<br />

Folhetim da viagem (xilográfica) ao Reino do Primo Xico<br />

Vladimir Carvalho ................................................................................................................. 165<br />

IX. Documento – Ano Caio Prado Jr<br />

A revolução agrária não camponesa no Brasil<br />

Caio Prado Jr ........................................................................................................................ 171<br />

X. Memória<br />

João Saldanha<br />

Ivan Alves Filho .................................................................................................................... 179


Gramsci, 70 anos depois<br />

Gilvan Cavalcanti de Melo ............................................................................................... <strong>18</strong>2<br />

XI. Resenha<br />

O pensamento livre<br />

Luiz Bernardo Pericás ..................................................................................................... 151<br />

Presente na encruzilhada<br />

Francisco Alambert ......................................................................................................... 195<br />

Síntese de ritmos<br />

Fernando Marques .......................................................................................................... 197


I. Apresentação<br />

Cláudio Vitorino de Aguiar<br />

Pós-graduado em História pela Universidade Federal<br />

de Pernambuco, professor de História Moderna<br />

e editor-adjunto da Política Democrática


Em sua edição de nº <strong>18</strong>, Política Democrática tem como tema central<br />

o debate sobre alguns aspectos cruciais da reforma política brasileira.<br />

Os textos, alguns de caráter acadêmico, produzidos por especialistas,<br />

como o do professor da UnB, Caetano Araújo, mas também os<br />

produzidos no ‘calor da hora’, como o do jornalista Luiz Carlos Azedo,<br />

buscam levantar os elementos mais relevantes de nosso atual sistema<br />

político-partidário, destacando suas evidentes fragilidades e as dificuldades<br />

de superarmos a inércia do presente modelo.<br />

Importante destacar que as diversas contribuições referentes à reforma<br />

política, aqui publicadas, foram escritas antes que o plenário<br />

da Câmara sepultasse, mais uma vez, nova possibilidade de efetivas<br />

mudanças em nosso sistema político-eleitoral. De todo modo, <strong>PD</strong> não<br />

se furtou a destacar, por meio dos ensaios reunidos, os elementos<br />

centrais que a reforma política representa para o aprofundamento e<br />

ampliação de nosso processo democrático, e os riscos envolvidos em<br />

sua não realização.<br />

Na seção Observatório Político, chamamos especial atenção ao agudo<br />

ensaio do professor Luiz Werneck Vianna que trata do ‘Estado Novo<br />

do PT’ e seu “projeto pluriclassista” de controle do Estado, ancorado<br />

nos movimentos sociais, mormente MST e CUT, transformados em<br />

acessórios do poder realizado pelo PT no governo federal. Destaquese<br />

que a visão crítica do Governo Lula revela os profundos aspectos<br />

de uma certa concepção de esquerda que se acomodou ao papel de<br />

gerente do condomínio estatal, relevando as necessárias mudanças<br />

político-sociais em função de seu projeto de poder.<br />

Um outro artigo muito importante apresentado, na mesma seção,<br />

trata da cruciante questão ambiental. O engenheiro Sérgio Augusto<br />

de Moraes faz um pequeno levantamento histórico da questão em seu<br />

ensaio “Sobre o aquecimento global” destacando o impacto representado<br />

pelo desenvolvimento do capitalismo, a partir do século XIX, e<br />

as profundas transformações havidas na relação homem-natureza e<br />

a exacerbação dos aspectos negativos dessa relação que hoje colocam<br />

em questão a própria existência da humanidade.<br />

11


I. Apresentação<br />

De suma importância reveste-se o artigo da socióloga e feminista<br />

Almira Rodrigues sobre “Feminismo e nova esquerda: um diálogo em<br />

construção”, na seção No compasso das reformas, espaço que dedicamos<br />

às questões e temas que necessitam de novas abordagens e/ou<br />

práxis, buscando superar os impasses que persistem no plural campo<br />

da esquerda.<br />

Outro ensaio muito importante, que trazemos ao conhecimento<br />

de nossos leitores, é de autoria do professor Ruy Fausto, um dos<br />

mais importantes estudiosos do marxismo, no Brasil, autor de obras<br />

que se tornaram referência sobre o tema. Escrito originalmente em<br />

francês, o artigo comenta a vitória de Nicolas Sarkozy, nas eleições<br />

presidenciais francesas, e analisa o discurso do candidato conservador<br />

quando de sua posse. Centrando suas considerações na ‘apropriação’<br />

de temas e referências clássicas da esquerda por parte dos<br />

conservadores, aponta para as implicações teórico-políticas de tal<br />

atitude, para a compreensão dos aspectos ideológicos implícitos na<br />

luta política contemporânea.<br />

O presente número, além de conter outros artigos instigantes na<br />

seção Batalha das idéias, de que são exemplos “Uma busca inglória”,<br />

do pensador paulista Iraci del Nero da Costa e “Estado Democrático<br />

& Segurança Pública” do professor Oscar d’Alva e Souza Filho, traz,<br />

em uma nova seção, Ensaio, excepcional texto do italiano Giuseppe<br />

Vacca, intelectual que preside Gramsci e é dirigente dos Democratici<br />

de la Sinistra, no qual analisa o longo processo de discussão da<br />

esquerda reformista italiana em busca de melhor adequar-se à contemporaneidade.<br />

Destaque-se, por fim, a homenagem ao político e intelectual italiano<br />

Antonio Gramsci, maior referência teórica da esquerda democrática,<br />

nos setenta anos de sua morte, em artigo assinado por Gilvan<br />

Cavalcanti. A <strong>PD</strong> também homenageia dois brasileiros militantes, que<br />

dignificaram a política como exercício de discussão e conhecimento<br />

da realidade, bem como de transformação das condições da vida em<br />

sociedade. Comprometidos, ambos, com a luta pelo socialismo, dedicaram<br />

suas vidas, cada um à sua maneira, ao desafio de transformar<br />

uma nação marcada pelo mandonismo de suas classes dirigentes em<br />

uma nação de todo o povo, sem privilégios nem preconceitos. Referimo-nos<br />

a Caio Prado Jr. e João Saldanha.<br />

De Caio Prado relembramos, sobretudo para as novas gerações,<br />

uma curta passagem de seu livro A revolução brasileira, publicado<br />

em 1966, pela Editora Brasiliense, que trata da ‘questão camponesa’<br />

discutindo a singularidade do capitalismo brasileiro, enfrentan-<br />

12<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Apresentação<br />

do a questão teórica, e equivocada, do feudalismo e antiimperialismo<br />

sustentada então por largas parcelas do PCB. Adotando uma outra<br />

perspectiva, Caio Prado não só inovava a questão do papel do mundo<br />

agrário e sua importância no desenvolvimento do capitalismo brasileiro,<br />

como acentuava uma nova abordagem da própria reforma agrária,<br />

tida então como elemento fundamental de transformação das relações<br />

sociais no campo e de uma nova relação do mundo urbano e rural, na<br />

definição de uma nova correlação de forças políticas.<br />

Quanto a João Saldanha, em um carinhoso artigo do historiador e<br />

escritor Ivan Alves Filho, é lembrado seu percurso de formação e militância<br />

no PCB, desde sua pequena Alegrete, no interior do Rio Grande<br />

do Sul, até o Rio de Janeiro, então capital da República. Jornalista<br />

esportivo que marcou época, destacou-se como técnico de futebol por<br />

imprimir nos clubes em que atuou, inclusive na própria seleção brasileira,<br />

nas eliminatórias da Copa de 1970, um estilo marcado por uma<br />

técnica sofisticada e vigor físico, que se celebrizou como ‘as feras de<br />

Saldanha’. Como afirma o autor, “pode-se dizer que poucos jornalistas<br />

estiveram em tão profunda sintonia com a alma popular” como ele.<br />

*<br />

13


II. Conjuntura<br />

A necessidade da<br />

reforma política


Autores<br />

Caetano Araujo<br />

Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e consultor<br />

legislativo do Senado Federal.<br />

Luiz Carlos Azedo<br />

Jornalista, observador e comentarista político.<br />

Rubens Otoni<br />

Deputado federal pelo PT-GO e membro da Comissão Especial de Reforma Política que<br />

existe na Câmara Federal, desde 1995.


Histórico<br />

Perspectivas da reforma política<br />

Caetano Araujo<br />

A discussão sobre reforma política no país é repleta de singularidades.<br />

Primeiro, teve início com a Constituição de 1988. De certa<br />

maneira a nova Carta – ao invés de estipular um sistema de regras<br />

acabado – impôs a continuidade da discussão ao prever o plebiscito<br />

sobre regime e sistema de governo. Passado o plebiscito, a experiência<br />

com o funcionamento das regras, acumulada a cada eleição, estimulou<br />

o surgimento de propostas de reforma e sua discussão.<br />

Em segundo lugar, acontece em duas arenas diferentes, embora<br />

em permanente comunicação: o Congresso Nacional e a comunidade<br />

acadêmica.<br />

Em terceiro lugar, desenvolveu uma dinâmica regular. Depois de<br />

cada eleição, no início de cada governo, o tema volta à discussão. O<br />

Legislativo despende um esforço significativo na formulação e tramitação<br />

de propostas, mas a votação final em plenário é sempre obstruída.<br />

A coligação reformista, mesmo com o apoio do Executivo, não consegue<br />

aprovar a reforma. Os conservadores, por sua vez, não conseguem<br />

impedir o retorno da questão à pauta. O equilíbrio de forças que provoca<br />

esse vai-vem perdura há pelo menos 12 anos.<br />

Finalmente, o debate caracteriza-se por acumular enormes dissonâncias<br />

cognitivas e valorativas. Partidários e opositores da reforma<br />

divergem radicalmente não apenas sobre benefícios e custos das re-<br />

17


II. Conjuntura<br />

gras em discussão, na perspectiva da democracia, mas sobre questões<br />

de fato. Problemas que são importantes para uns, simplesmente não<br />

existem para outros.<br />

Mas afinal, qual o cerne da controvérsia? Quais os argumentos em<br />

jogo? Um bom começo de resposta é o exame da trajetória da discussão<br />

no Congresso Nacional.<br />

Na Legislatura 1995-1999, por inspiração da bancada governista,<br />

foram criadas comissões especiais para analisar a matéria e propor<br />

alternativas, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. A Comissão<br />

da Câmara não concluiu seus trabalhos. A do Senado, após<br />

inúmeros debates, nos quais foram ouvidos representantes do Poder<br />

Executivo, da Justiça Eleitoral e de partidos políticos, concluiu, em<br />

1998, pela apresentação de uma série de sugestões, na forma de Propostas<br />

de Emendas à Constituição e Projetos de Lei do Senado 1 .<br />

As alterações mais importantes propostas pela Comissão eram: a<br />

substituição do sistema de voto proporcional em listas abertas pelo<br />

sistema conhecido como distrital misto; a proibição de coligações nas<br />

eleições proporcionais; a instituição da fidelidade partidária, ou seja,<br />

a previsão de perda de mandato para o parlamentar que mudasse<br />

de partido ou incorresse em falta disciplinar grave; o estabelecimento<br />

de prazos mais dilatados para a filiação e o domicílio eleitoral de<br />

candidatos; o voto facultativo; o financiamento público exclusivo de<br />

campanha; e a cláusula de barreira, regra que estipulava a exclusão<br />

dos partidos, que não atingissem o desempenho mínimo, do rateio do<br />

tempo de propaganda no rádio e na televisão.<br />

O diagnóstico da Comissão, que fundamentava esse conjunto de<br />

propostas, tinha como foco a constatação da “fragilidade da vida partidária<br />

brasileira”, fruto de uma legislação que enfraqueceria os partidos,<br />

de um lado, e, de outro, reforçaria a atuação individual de personalidades,<br />

as quais tenderiam a uma situação de independência<br />

frente aos partidos.<br />

O exame do conjunto de propostas revela três problemas distintos –<br />

cuja solução era procurada –, todos eles derivados da fraqueza dos partidos<br />

e da excessiva personalização das eleições. Em primeiro lugar, a<br />

regra produziria, na avaliação da Comissão, um problema de representatividade.<br />

Haveria uma separação radical entre o período de campanha<br />

1 Importa lembrar que além dos projetos de reforma amplos, resultado dos trabalhos<br />

dessas comissões, deputados e senadores apresentaram, constantemente, um<br />

número expressivo de propostas pontuais de alteração das regras eleitorais e partidárias<br />

ao longo do período. Em 2004, Santos (2004) localizou 266 proposições em<br />

tramitação sobre reforma política.<br />

<strong>18</strong><br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Perspectivas da reforma política<br />

e eleição e o período posterior à posse dos eleitos, ao ponto de as ações<br />

dos representantes ganharem autonomia absoluta frente às intenções<br />

dos representados. Em outras palavras, os votos dos eleitores teriam<br />

conseqüências por ele não previstas e até mesmo indesejadas.<br />

O exemplo mais claro de distorção da vontade do eleitor é a migração<br />

de cerca de um terço dos deputados para outras legendas no decorrer<br />

de seus mandatos. O movimento ocorre, basicamente, de partidos<br />

da oposição para partidos da situação e ganha em intensidade nos<br />

meses posteriores à eleição de um novo presidente. Esse fato ganha<br />

em significação quando constatamos que muito poucos deputados<br />

conseguem sua eleição exclusivamente com os próprios votos. Quase<br />

todos dependem dos votos dados a seus partidos e coligações. A mudança<br />

de partido afeta, portanto, não apenas os eleitores do deputado<br />

migrante, mas todos os eleitores do seu partido. Todos contribuíram<br />

para a eleição do deputado, numa campanha articulada com as siglas<br />

e candidaturas identificadas com a oposição e todos serão representados<br />

nos quatro anos seguintes por um deputado da situação.<br />

A liberdade de coligação no sistema de voto proporcional com listas<br />

abertas é vista como um mecanismo adicional de distorção da vontade<br />

do eleitor. Nesse sistema, o cidadão sabe em quem vota, mas não sabe<br />

a quem elegerá. Pode ser outro candidato menos votado do mesmo<br />

partido, mas a liberdade de coligação permite que seja um candidato<br />

de outro partido, até mesmo de um partido situado em campo oposto<br />

na política nacional, embora coligado no plano local. Para citar um<br />

exemplo extremo: votos dados a uma campanha “pacifista”, centrada<br />

no controle da circulação e do uso de armas de fogo, podem, a depender<br />

do arranjo da coligação local, eleger um candidato “belicista”,<br />

defensor do direito irrestrito ao porte de armas, da redução da maioridade<br />

penal, da pena de morte.<br />

Para enfrentar o problema da representatividade, a Comissão propôs<br />

a mudança do sistema eleitoral, a proibição de coligações nas<br />

eleições proporcionais e a instituição da fidelidade partidária, para<br />

impedir a mobilidade de parlamentares entre os partidos.<br />

Em segundo lugar, a regra teria o efeito de criar condições de competição<br />

desigual entre os candidatos. No ambiente de eleições por ela<br />

criado, o peso do poder econômico estaria livre para atuar e influir<br />

decisivamente no resultado das eleições. Haveria necessidade de uma<br />

nova regra que assegurasse, ao mesmo tempo, eqüidade e transparência<br />

no financiamento das campanhas. A Comissão terminou, como<br />

vimos, por propor o financiamento público exclusivo de campanha.<br />

19


II. Conjuntura<br />

O terceiro problema alvo das propostas da Comissão refere-se à governabilidade,<br />

ou seja, às possibilidades de o Executivo construir uma<br />

sólida maioria no Congresso, capaz de garantir o apoio indispensável<br />

à consecução de sua agenda. Na situação presente, a governabilidade<br />

seria ameaçada, simultaneamente, pelo excesso de partidos e por sua<br />

fraqueza. Muitos partidos tornam complicadas as negociações para a<br />

formação da maioria. Partidos fracos tornam-nas insuficientes, uma<br />

vez que frações e grupos intrapartidários têm a capacidade de reivindicar<br />

uma negociação adicional em separado. Na visão da Comissão,<br />

a redução do número de partidos seria obtida com a cláusula de barreira,<br />

e seu fortalecimento, com a mudança do sistema eleitoral e com<br />

a fidelidade partidária.<br />

Ao final da legislatura, em 31 de janeiro de 1999, todas as proposições<br />

originadas da Comissão foram arquivadas. Na legislatura seguinte,<br />

as lideranças dos partidos da base governista decidiram alterar<br />

sua estratégia. Como a mudança radical, em bloco, havia-se revelado<br />

de difícil aceitação, o caminho adequado seria a mudança paulatina,<br />

com ênfase nas mudanças passíveis de serem apresentadas na forma<br />

de projeto de lei. Como resultado dessa estratégia, diversos projetos<br />

foram aprovados pelo Senado Federal e encaminhados à Câmara dos<br />

Deputados. Os mais importantes foram: a proibição de coligações nas<br />

eleições proporcionais, a cláusula de barreira, a criação da federação<br />

de partidos, o voto proporcional em listas fechadas e o financiamento<br />

público exclusivo de campanhas.<br />

No início de 2002, a reforma política voltou à pauta do Congresso<br />

Nacional, mais uma vez por inspiração dos partidos governistas. Nova<br />

Comissão com essa finalidade foi formada na Câmara dos Deputados,<br />

e seu relatório foi apresentado pela Comissão ao final do ano. Os projetos<br />

aprovados pelo Senado na legislatura anterior tiveram influência<br />

significativa nas conclusões da Comissão.<br />

O diagnóstico, de início, foi em tudo semelhante. Os problemas<br />

cruciais do sistema eleitoral brasileiro foram assim apresentados no<br />

relatório: “a deturpação do sistema eleitoral causada pelas coligações<br />

partidárias nas eleições proporcionais; a extrema personalização do<br />

voto nas eleições proporcionais, da qual resulta o enfraquecimento<br />

das agremiações partidárias; os crescentes custos das campanhas<br />

eleitorais, que tornam seu financiamento dependente do poder econômico;<br />

a excessiva fragmentação do quadro partidário; e as intensas<br />

migrações entre as legendas, cujas bancadas no Legislativo oscilam<br />

substancialmente ao longo das legislaturas”.<br />

20<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Perspectivas da reforma política<br />

As principais propostas de mudança contemplavam a instituição<br />

do voto em listas partidárias pré-ordenadas, a criação das federações<br />

partidárias, o financiamento público exclusivo de campanha e a cláusula<br />

de barreira. As principais diferenças em relação à proposta original<br />

do Senado foram a opção pelo voto em listas fechadas e a criação<br />

da figura da federação partidária, como meio de atenuar a proibição<br />

de coligações nas eleições proporcionais. Com a federação, a coligação<br />

eleitoral deve ser mantida após as eleições por um período mínimo de<br />

três anos. Mesmo essas diferenças, no entanto, constavam de projetos<br />

encaminhados anteriormente pelo Senado.<br />

O projeto da Comissão enfrentou forte resistência, principalmente<br />

entre partidos da base governista. Pronto para ir a plenário, foi<br />

encaminhado à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, cuja<br />

manifestação foi solicitada por requerimento assinado pelos líderes do<br />

PTB, PP, PL e PMDB, aos quais se somou, no último momento, o líder<br />

do PT. A manobra protelatória foi resultado evidente da pressão dos<br />

demais partidos sobre o governo. Nessa situação, a opção foi sacrificar<br />

os esperados benefícios futuros da reforma em prol da manutenção da<br />

base de apoio presente na Câmara e no Senado.<br />

Na última década, portanto, a discussão da reforma política nas<br />

duas Casas do Congresso Nacional apresentou uma linha de continuidade<br />

clara, em termos de diagnóstico, argumentos e propostas de<br />

mudança. Apesar disso, as propostas não prosperaram. É preciso,<br />

portanto, qualificar os campos políticos separados pelas propostas de<br />

reforma. Quem apoiou a reforma, reiteradamente, na década que passou?<br />

Quem a ela se opôs?<br />

Parece claro, de início, o interesse do Poder Executivo na promoção<br />

das mudanças. Vimos que essa foi uma preocupação constante<br />

das lideranças do governo Fernando Henrique Cardoso, assim como<br />

do Presidente Lula, no primeiro ano de seu governo. Em segundo lugar,<br />

parece igualmente claro que as iniciativas reformistas conseguem<br />

aprovação nas Comissões criadas para esse fim e fracassam na tentativa<br />

de chegar ao plenário. Ou seja, as forças da conservação da regra<br />

fazem-se ouvir no momento da decisão final.<br />

Qual o critério a dividir os partidos nessa questão? A dicotomia<br />

situação/oposição não parece útil, uma vez que, no atual governo<br />

e no anterior, havia situacionistas e oposicionistas nos dois lados<br />

da questão. Uma suposta polarização ideológica tampouco parece<br />

eficiente para compreender a situação, pois partidos e parlamentares<br />

de direita e de esquerda, qualquer que seja a definição utili-<br />

21


II. Conjuntura<br />

zada, encontram-se igualmente entre os apoiadores e os opositores<br />

da reforma.<br />

A posição dos partidos no episódio do requerimento que evitou a<br />

votação em plenário do projeto de reforma da Câmara é um bom indicador<br />

da divisão que vigora nessa questão 2 . No primeiro momento,<br />

fora do requerimento, ou seja, favoráveis à reforma, estavam PSDB,<br />

PT, PFL, PSB, <strong>PD</strong>T e PPS. Assinavam o requerimento, ou seja, pretendiam<br />

obstruir a reforma, PMDB, PTB, PP e PL. Qual o traço comum<br />

a esses partidos em cada um dos campos? A meu ver, a relação com<br />

o Poder Executivo. Partidos favoráveis à reforma haviam apresentado<br />

ou trabalhado, nas eleições anteriores, candidaturas a Presidente<br />

da República. Partidos contrários à reforma não haviam cogitado em<br />

candidatos próprios a presidente. No máximo ofereceram candidaturas<br />

a vice-presidente. Um grupo de partidos, portanto, argumentava<br />

a partir da perspectiva de Executivo, ou seja, da posição de quem demanda<br />

apoio no Legislativo. Outro grupo descartava essa perspectiva<br />

e encarava a questão do ponto de vista de quem oferta esse apoio.<br />

As mesmas propostas eram vistas por um grupo como fortalecimento<br />

dos partidos e avanços democráticos; para outros, como a ditadura<br />

ilegítima de burocracias partidárias sobre mulheres e homens “bons<br />

de voto”.<br />

Argumentos, contra-argumentos e vazios no debate<br />

Uma segunda questão diz respeito ao peso dos argumentos que<br />

cada lado levanta. É digno de nota o fato de diagnóstico, argumentos<br />

e propostas de mudança, tal como formulados no âmbito do Congresso<br />

Nacional, serem objeto de polêmica também acirrada fora dele.<br />

Cientistas políticos, assim como outros acadêmicos e analistas, têmse<br />

manifestado repetidamente sobre o tema, como mostra a série de<br />

coletâneas publicadas nos últimos anos especificamente sobre reforma<br />

política (FUNDAÇÃO KONRAD ADENAUER, 2003; BENEVIDES,<br />

VANUCHI e KERCHE, 2003; SOARES e RENNÓ, 2006; ANASTÁSIA e<br />

AVRITZER, 2006), sua temática geral (AVELAR e CINTRA, 2004), assim<br />

como artigos isolados (COELHO, 2006). A divergência sobre todas<br />

as propostas aqui relatadas é profunda e não se restringem à oportunidade<br />

das medidas ou ao caminho da transição para elas: diverge-se<br />

sobre o diagnóstico dos problemas, a necessidade das medidas e até<br />

sobre seu caráter democrático ou autoritário. Antes de recapitular su-<br />

2 Coelho (2006) discute o histórico do projeto de reforma da Câmara dos Deputados e a<br />

posição dos diferentes partidos sobre ele.<br />

22<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Perspectivas da reforma política<br />

cintamente os argumentos de cada parte, vale assinalar uma primeira<br />

lacuna no debate.<br />

Lacuna 1: a posição dos atores políticos a respeito da reforma,<br />

posição que, como vimos, mantém uma relativa regularidade nos últimos<br />

12 anos, tende a não ser considerada.<br />

Diversos autores tendem, em medida diversa, a subestimar as<br />

razões desses partidos e parlamentares, ao invés de considerá-las<br />

parte do problema, um dado a ser incluído na pesquisa. Assim, os<br />

defensores do predomínio completo do Executivo sobre o Legislativo,<br />

da Mesa e das lideranças sobre os parlamentares têm dificuldade<br />

em lidar com o evidente interesse do Executivo nas reformas. Esse<br />

interesse precisa, nessa perspectiva, ser ignorado ou desqualificado<br />

como uma espécie de ambição ditatorial de presidentes que já detém<br />

todo o poder possível.<br />

Do outro lado, autores que partilham das críticas comuns ao sistema<br />

e encampam propostas de reforma não refletem sobre o caráter da<br />

resistência conservadora, assimilada implicitamente à sobrevivência<br />

de padrões arcaicos da política brasileira.<br />

Em ambos os casos, o problema parece estar na tendência à inserção<br />

do cientista no debate no mesmo plano que os demais atores.<br />

A questão de quem defende qual ponto perde importância face à comparação<br />

entre as propostas apresentadas e os modelos normativos de<br />

democracia implícitos nas considerações de cada autor.<br />

Retornemos aos argumentos. Os três grandes problemas do sistema,<br />

tal como apontados pelos reformistas, valem como roteiro dessa discussão,<br />

uma vez que todas as propostas partem desse diagnóstico: representatividade,<br />

eqüidade na competição eleitoral e governabilidade.<br />

Há um problema de representatividade no sistema político brasileiro?<br />

A migração partidária ao sabor da conveniência eleitoral de cada<br />

parlamentar resulta, como visto, numa Câmara dos Deputados muito<br />

diferente daquela que saiu das urnas (Santos, 2006). Na prática, a intenção<br />

de voto oposicionista de milhões de eleitores é convertida, sem<br />

consentimento ou aviso prévio, em apoio ao governo. Defensores da<br />

regra, por sua vez, podem argumentar que a troca de partidos é feita<br />

às claras, sob as vistas dos eleitores, que, ao cabo de quatro anos, irão<br />

avaliar esses parlamentares e punir com a recusa do voto aqueles que<br />

não tenham correspondido a suas expectativas.<br />

Na verdade, mais importante que discutir as opiniões e posições<br />

favoráveis e contrárias seria tentar verificar o que pensam os próprios<br />

eleitores acerca do sistema. Poucas pesquisas de opinião perguntam<br />

23


II. Conjuntura<br />

especificamente sobre a troca de partidos e a questão do pertencimento<br />

do mandato. Muitas, inclusive aquelas produzidas e divulgadas pelo<br />

Latinobarómetro, registram, ano a ano, a avaliação desfavorável dos<br />

eleitores brasileiros sobre a política e seus representantes. De modo<br />

geral, a política é mal-vista e, no seu mundo, a visão sobre Legislativo,<br />

partidos e parlamentares é ainda mais negativa que aquela sobre o<br />

Executivo. É difícil deixar de levantar a hipótese de que essa percepção<br />

amplamente majoritária tem forte relação com as evidências cotidianas<br />

de inconseqüência do voto dado.<br />

Lacuna 2: a literatura discute a massa de dados acumulada sobre<br />

descrédito da política e dos políticos a partir da hipótese de insatisfação<br />

com a democracia, sem testar a hipótese de insatisfação com a<br />

regra da representação.<br />

A linha predominante, desde o trabalho de Moisés (1995), aponta<br />

para a fragilidade da cultura democrática no Brasil 3 . O trabalho com<br />

a hipótese alternativa permitiria separar o que nos dados se deve a<br />

um suposto déficit em cultura democrática do que poderia ser uma<br />

demanda reprimida por reforma política.<br />

Há um problema de eqüidade nas condições de competição eleitoral?<br />

Em outras palavras, o peso do poder econômico seria, entre nós,<br />

muito superior ao verificado em outros países? Há evidência forte nesse<br />

sentido. O cientista político David Samuels (2003 a e b) comparou<br />

os gastos eleitorais declarados no Brasil e nos Estados Unidos, na<br />

década de 1990. A soma dos gastos de todos os candidatos foi igual ou<br />

superior no Brasil, em torno dos U$ 3,5 bilhões. A leitura desse dado<br />

exige algumas considerações. Em primeiro lugar, vivia-se na época<br />

uma quase paridade entre as moedas real e dólar, paridade que pode<br />

ter inflacionado os gastos brasileiros. No entanto, é preciso ver que<br />

os gastos americanos incorporavam a compra de tempo de televisão,<br />

assegurado gratuitamente no Brasil, além da campanha nas prévias,<br />

mecanismo que não existe entre nós. O desconto desses dois fatores<br />

nos gastos americanos faria aumentar em muito a diferença em favor<br />

do Brasil. Finalmente, se o gasto for relacionado à população, ao número<br />

de eleitores ou ao montante do PIB, muito menores no Brasil,<br />

nossa vantagem aumentaria ainda mais.<br />

Tudo isso com relação aos gastos declarados. Sabemos, no entanto,<br />

que a prática da subnotificação de gastos é comum nas eleições<br />

brasileiras, onde é conhecida como caixa 2. Variam muito as estimativas<br />

dos gastos não declarados no Brasil, entre duas e oito vezes o<br />

3 Santos (2000) e Araújo (2000) discutem as características da cultura política brasileira<br />

a partir de pesquisa realizada no Distrito Federal.<br />

24<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Perspectivas da reforma política<br />

montante dos gastos declarados. Os poucos indícios que vêm a público<br />

apontam em favor da diferença maior. Vimos recentemente a<br />

divulgação na imprensa de gravações telefônicas em que um deputado<br />

recém-eleito declarava gastos de R$ 5 milhões, apenas 8% da quantia<br />

oficialmente assumida. Em todo caso, é razoável supor que o caixa 2<br />

no Brasil seja superior ao norte-americano, o que faria pender a comparação<br />

dos gastos ainda mais a nosso favor.<br />

Quais as razões de as eleições no Brasil serem tão caras? A primeira<br />

delas deriva diretamente da regra eleitoral. No sistema de voto proporcional<br />

em listas abertas, cada candidato torna-se o centro de uma<br />

campanha autônoma, em competição aberta com candidatos de partidos<br />

adversários e, principalmente, com candidatos do próprio partido,<br />

com quem disputa o voto na mesma faixa de opinião. Cada candidato,<br />

portanto, é um centro de arrecadação de recursos e gastos de campanha.<br />

Os partidos, por sua vez, são estimulados pela regra a lançarem<br />

o maior número de candidatos possível, para aumentar o percentual<br />

de votos a conseguir e, com ele, o número de cadeiras. Temos cerca de<br />

20 partidos registrados, e cada qual pode apresentar um número de<br />

candidatos igual a 1,5 vezes o número de vagas em disputa. As coligações<br />

diminuem esse número, mas, em compensação podem apresentar<br />

ainda mais candidatos. Para simplificar, vamos supor que não se<br />

formem coligações. O número total máximo de candidatos à Câmara<br />

dos Deputados seria, nessa situação de 513 x 1,5 x 20, ou seja, de<br />

15.390 candidatos.<br />

A segunda razão é o tamanho das circunscrições eleitorais. Um número<br />

grande de candidatos compete em circunscrições (as unidades da<br />

Federação) extensas e populosas. Qualquer unidade adicional de recursos<br />

de campanha permite a ampliação da campanha para um município<br />

novo e pode produzir os votos determinantes para a vitória.<br />

Sistemas eleitorais alternativos, por comparação, tendem a produzir<br />

eleições mais baratas. No voto proporcional com listas fechadas,<br />

a unidade da campanha, de arrecadação de recursos, portanto, é o<br />

partido, não o candidato. No nosso caso teríamos, no máximo, 20 listas<br />

por estado. No voto distrital, as circunscrições são menores e há,<br />

também, apenas um candidato por partido.<br />

A relação entre custos de campanha e sistema eleitoral levou as<br />

Comissões da Câmara e do Senado a proporem o financiamento público<br />

com a mudança da regra eleitoral. Na vigência da regra atual,<br />

o financiamento público seria insuficiente e tenderiam a ser eleitos<br />

aqueles candidatos que aceitassem o expediente do caixa 2.<br />

25


II. Conjuntura<br />

Lacuna 3: o esforço de pesquisa tem ignorado a questão da lógica<br />

dos gastos eleitorais.<br />

É verdade que há boas razões para tanto. Candidatos e partidos<br />

não falam sobre caixa 2 e poucos países exigem o registro de doações<br />

e gastos eleitorais. O foco da discussão, portanto, tem sido o financiamento<br />

e não o custo das campanhas. Apesar disso, contudo, pesquisas<br />

podem ser realizadas. Um exemplo de especulações antagônicas:<br />

Samuels sugere que o sistema distrital produziria campanhas mais<br />

caras, uma vez que a restrição do universo de eleitores e a competição<br />

acirrada estimulariam o investimento eleitoral sem limites. Alternativamente,<br />

poder-se-ia argumentar que a restrição do universo de eleitores<br />

faria decair o patamar a partir do qual a unidade de investimento<br />

passaria a produzir resultados eleitorais decrescentes. No distrito, ao<br />

contrário do que ocorre no Brasil, o candidato que produzir 20 peças<br />

de propaganda por eleitor não terá condições maiores de vitória que<br />

aquele que, por exemplo, produzir 5.<br />

Finalmente, vamos ao problema da governabilidade. Neste ponto,<br />

a polêmica é ainda mais acirrada. Afinal, o presidente da República<br />

encontra ou não problemas na formação e manutenção de sua base de<br />

apoio no Congresso Nacional?<br />

Há todo um leque de respostas a essa pergunta. Nos pólos, os<br />

argumentos extremos que afirmam, de um lado, a virtual impossibilidade<br />

de formação de maioria a um custo aceitável, na linha das<br />

conclusões das diversas Comissões encarregadas da questão da reforma<br />

política, e, de outro, a eficiência do sistema, do ponto de vista da<br />

formação da maioria governista, em função dos poderes do presidente<br />

da República combinados com as regras de funcionamento das Casas<br />

do Congresso Nacional.<br />

No meio acadêmico, Barry Ames representaria a posição de crítica<br />

mais contundente ao sistema político brasileiro, sob esse aspecto<br />

(apud RENNÓ, 2006). Na sua visão, Poder Executivo e líderes dos<br />

partidos governistas encontram-se na posição de procurar, constantemente,<br />

o apoio dos parlamentares para a agenda do governo. Esse<br />

apoio é obtido pontualmente, muitas vezes caso a caso, em troca de<br />

liberação de emendas orçamentárias e de cargos no governo. O sistema<br />

consumiria um esforço significativo para apresentar resultados<br />

pífios em termos de mudança. O grande exemplo seria o governo de<br />

Fernando Henrique Cardoso que, a despeito de contar com uma base<br />

de apoio formal de até 70 % da Câmara dos Deputados, teve enorme<br />

dificuldade na aprovação de sua agenda de reformas.<br />

26<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Perspectivas da reforma política<br />

No outro extremo encontra-se a posição de diversos cientistas políticos<br />

brasileiros de peso (LIMONGI, 2006). Para eles, os dados disponíveis<br />

mostram que o Congresso Nacional não constitui empecilho<br />

algum para a aprovação da agenda do governo. A grande maioria da<br />

legislação aprovada é de iniciativa do Executivo e cerca de 70 % de<br />

suas propostas são aprovadas. Raros são os casos de rejeição pelo<br />

legislativo de propostas do Executivo. Conclusão: as coalizões partidárias<br />

de apoio ao governo existem e funcionam; os parlamentares<br />

seguem disciplinadamente as orientações de seus líderes; o sistema<br />

assemelha-se ao parlamentarismo e funciona tão bem quanto<br />

os melhores de seus exemplos; a reforma política, portanto, não é<br />

necessária.<br />

As duas posições dão ênfase, como assinala Rennó, a elementos<br />

diferentes do sistema político. Os críticos assinalam os elementos descentralizadores,<br />

a multiplicação de atores dotados de capacidade de<br />

veto, o custo do apoio conseguido, a necessidade de renovar esse apoio<br />

em diferentes momentos, o poder dos parlamentares de direcionar o<br />

conteúdo das propostas originadas do Executivo e de impor sobre ele<br />

seu poder de veto. Aqueles que afirmam o bom funcionamento do presidencialismo<br />

no Brasil, por sua vez, enfatizam seus elementos centralizadores,<br />

os poderes do presidente, a centralização na organização<br />

dos trabalhos das Casas do Congresso, ou seja, o poder da Mesa e dos<br />

líderes na formação da pauta. Observam o resultado e não questionam<br />

os meios utilizados para chegar a eles. Nas palavras de Limongi<br />

(2006): “A aprovação dos projetos presidenciais é fruto do apoio sistemático<br />

e disciplinado de uma coalizão partidária”, uma vez que “parlamentares<br />

seguem as orientações de seus líderes”.<br />

Outras lacunas aparecem nessa discussão. Do ponto de vista daqueles<br />

que enfatizam as dificuldades da formação da coalizão governamental,<br />

seu custo político, que levam a sério, portanto, o discurso<br />

reformista do Poder Executivo, o ponto a ser explicado é a situação<br />

pré-1964.<br />

Lacuna 4: dada a mesma regra eleitoral, como explicar a passagem<br />

da situação de indisciplina partidária para a de disciplina atual?<br />

Ou seja, se a alegada concentração de poderes nos líderes, decorrente<br />

de mudanças no funcionamento interno do Legislativo não<br />

explica a mudança, que outro fator a explicaria?<br />

Uma possibilidade de investigação reside em outra mudança, posta<br />

pela Constituição de 1988: o voto do analfabeto. Lembro que em 1945<br />

participaram da eleição 6 milhões de eleitores, 13% da população. Em<br />

1960, foram 15,5 milhões de eleitores ou 22% do total. Hoje temos<br />

27


II. Conjuntura<br />

120 milhões de eleitores sobre <strong>18</strong>8 milhões de habitantes, ou seja<br />

63% do total. No interregno democrático anterior a 1964, a maioria do<br />

eleitorado vivia no campo e tinha seu voto sujeito às redes de clientela<br />

locais. O eleitorado urbano era pequeno e exigia pouco investimento<br />

eleitoral relativo dos candidatos ao Legislativo vencedores. Hoje, a<br />

maioria do eleitorado é urbana e pode escolher o objeto de seu voto ou<br />

engajamento 4 . Em síntese, para se elegerem, deputados não precisavam,<br />

antes de 1964, de controle sobre cargos, liberação de emendas,<br />

acesso a verbas outras, ou seja da benevolência do Executivo, com a<br />

premência de hoje.<br />

Se essa perspectiva demonstrar algum fundamento nos dados,<br />

teríamos uma situação interessante: avanços democráticos inegáveis,<br />

como o fim da imposição do bipartidarismo e o sufrágio universal,<br />

revelam vulnerabilidades do sistema eleitoral não percebidas na<br />

situação anterior.<br />

Por outro lado, na perspectiva dos que defendem a facilidade do<br />

Executivo, os pontos a explicar são outros.<br />

Lacuna 5: como é possível que os líderes consigam controlar os<br />

votos dos liderados e simultaneamente não consigam controlar a permanência<br />

desses liderados no partido?<br />

Qual a força desses partidos que age seletivamente e deixa escapar<br />

o principal, ou seja, a manutenção dos deputados na sigla? A<br />

hipótese alternativa seria a força de gravidade do governo, que acionaria<br />

o remanejamento partidário e alocaria os novos apoiadores em<br />

partidos do governo. Nessa linha, deputados não apóiam o governo<br />

porque recebem incentivos de seus líderes, mas recebem incentivos<br />

do governo para deslocar-se para aquela sigla ou nela permanecer e<br />

votar com os líderes.<br />

Lacuna 6: qual a importância dos incentivos nas mãos dos líderes,<br />

tais como participação em comissões e relatorias de projetos, num<br />

quadro de amnésia eleitoral comprovada do brasileiro?<br />

Ou seja, quando o eleitor não se recorda do nome do seu candidato<br />

(ALMEIDA, 2006), como iria se lembrar de projetos por ele apresentados,<br />

relatados ou de sua participação em comissões?<br />

4 A título de ilustração: Marco Antônio Coelho, militante desconhecido do PCB, elegeu-se<br />

deputado federal pela Guanabara, em 1962, pelo PST, em coligação com o<br />

PSD. A campanha durou apenas 15 dias e foram usados 300 mil exemplares de um<br />

único panfleto. Marco Antônio conseguiu 22 mil votos e conquistou a segunda vaga<br />

da coligação. O ponto é este: se o patamar de votos necessários à eleição é esse,<br />

candidatos que não contam com meios de campanha adicionais fornecidos pelo<br />

executivo permanecem competitivos.<br />

28<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Perspectivas da reforma política<br />

Este artigo procurou mapear a discussão sobre reforma política,<br />

num momento em que a questão ganha atualidade, com a votação na<br />

Câmara dos Deputados das propostas apresentadas pela Comissão<br />

Especial. Mais uma vez, as propostas caminham para a derrota. Uma<br />

vez que os problemas do sistema não dão sinal algum de solução, é de<br />

se prever o reinício do ciclo, com a discussão e votação no médio prazo<br />

de uma nova leva de propostas, talvez com foco na linha que aparenta<br />

encontrar menor resistência entre deputados e senadores: ao invés<br />

das listas fechadas, alguma forma de voto distrital misto.<br />

*<br />

29


II. Conjuntura<br />

30<br />

Uma reforma sempre adiada 1<br />

Luiz Carlos Azedo<br />

Deputados e senadores da República devem uma resposta à sociedade.<br />

Por que os escândalos envolvendo desvio de recursos<br />

da União, dos estados e municípios quase sempre são protagonizados<br />

por parlamentares? É uma pergunta que se repete a cada<br />

legislatura e nunca é respondida. E arrasta para a lama os políticos,<br />

os partidos e a política propriamente dita.<br />

É óbvio que isso não é bom para a democracia. Quem mais<br />

perde com a desmoralização do Congresso e o desgaste do Judiciário<br />

– obrigado a desagradar à opinião pública para assegurar<br />

o princípio da presunção da inocência – é a própria sociedade.<br />

Nada garante também que o Executivo funcionará melhor com a<br />

desmoralização da política. Acabará tutelado pelo Ministério Público,<br />

devassado pela Polícia Federal. O “guardião”, moderno sistema<br />

digital de espionagem eletrônica, é capaz de grampear simultaneamente<br />

centenas de ligações telefônicas e mensagens pela<br />

internet, mas não substitui o sistema político representativo.<br />

O velho patrimonialismo brasileiro, descrito por Sérgio Buarque<br />

de Holanda em Raízes do Brasil, por mais arraigado que esteja no<br />

comportamento dos políticos, tem dias contatos. Não só pelo fato<br />

de que vivemos numa sociedade mais moderna, sob uma ordem<br />

política democrática. Mas também pela conjugação de outros três<br />

fatores: os novos meios de comunicação, que desnudam a atuação<br />

dos políticos em tempo real; os recursos tecnológicos disponíveis<br />

para o controle financeiro e fiscal, que fazem a arqueologia dos desvios<br />

de recursos públicos; e o surgimento de instituições capazes de<br />

defender o Estado com certa eficácia, como a Controladoria Geral<br />

da União, a Receita Federal, a Polícia Federal e, sobretudo, o Ministério<br />

Público.<br />

Por que, então, o velho patrimonialismo é tão atual, com sua legião<br />

de “homens cordiais”, que perambulam pelo Congresso, finan-<br />

1 Colagem de artigos publicados no jornal Correio Braziliense, com expressa permissão<br />

do seu autor. Em dois momentos em que se eliminam algumas palavras a editoria<br />

utiliza (...) já que se referem a fatos datados.<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Uma reforma sempre adiada<br />

ciam campanhas e mimam os políticos? A cultura política brasileira<br />

do pós-guerra, cujo ápice foi o glamour do governo “bossa nova” de<br />

Juscelino Kubitschek, foi resultado de um jogo de oposições e contrastes,<br />

que parecia impedir o dogmatismo e promover soluções mais<br />

dialéticas. Mas desaguou na crise de 1964, no regime militar. Agora,<br />

mais de vinte anos depois da eleição de Tancredo Neves, esse legado<br />

exige uma apreciação crítica para separar o joio do trigo. Porque a cultura<br />

política brasileira ainda hoje busca sua identidade naqueles anos<br />

1950. É o flerte com o populismo, o desenvolvimentismo e o transformismo<br />

patrimonialista, a partir da simbiose entre negócios, atividade<br />

parlamentar e gestão administrativa. Não há a menor chance de isso<br />

dar certo, pois se trata de um padrão esgotado, que prende o país ao<br />

passado e ao atraso.<br />

É por isso que a atual legislatura (...) está na berlinda. Outro escândalo<br />

envolve os políticos com desvio de recursos públicos, superfaturamento<br />

e fraudes. As investigações se assemelham à pesca com<br />

tarrafa. É só esperar o cardume e jogar a rede, que vem de tudo, do<br />

badejão ao peroá. Agora, para o cidadão, quase todos os políticos são<br />

suspeitos, até que se prove o contrário. A culpa é deles mesmos, que<br />

construíram um sistema de financiamento de campanha eleitoral viciado,<br />

onde a eleição depende de “estruturas”, de contratos e obras. É<br />

legítimo que parlamentares disputem posições de mando no Executivo<br />

e fatias dos orçamentos da União, dos estados e dos municípios para<br />

beneficiar seus eleitores. Mas não é legítimo que o façam para aparelhar<br />

e o serviço público financiar suas campanhas, pagar as velhas<br />

dívidas eleitorais. Muito menos para formar patrimônio e enriquecer.<br />

Para sair momentaneamente da berlinda, os políticos costumam<br />

cortar na própria carne. Basta escolher o colega com mais cara de mau<br />

para a degola. Mas isso não resolve o problema. Outros escândalos<br />

surgirão, enquanto outros esquemas existirem. É só jogar a tarrafa,<br />

que eles aparecem. A resposta a ser dada à sociedade é uma reforma<br />

política que fortaleça os partidos, melhore a qualidade da representação<br />

e garanta o financiamento público das campanhas mais baratas.<br />

A outra alternativa seria a solução americana: quem quiser misturar<br />

negócios com a política tem que fazer tudo às claras e, depois, enfrentar<br />

as conseqüências eleitorais de servir a determinadas empresas e<br />

não ao bem comum dos cidadãos.<br />

É a luta pelo poder<br />

Por que a reforma política, (...) não começa logo a ser votada? A<br />

resposta é simples: porque mexe com as estruturas de poder, ou me-<br />

31


II. Conjuntura<br />

lhor, com a forma pela qual se estrutura nossa ordem democrática. E<br />

esse é um problema complexo, ainda mais no Brasil, onde a vida republicana<br />

teve pelo menos duas grandes interrupções (a revolução de 30,<br />

que gerou o Estado Novo; e o golpe de 1964, que manteve os militares<br />

no poder por duas décadas). No caso atual, a reforma política tem dois<br />

aspectos complicados, um aberto e outro velado.<br />

A questão mais transparente em discussão na Câmara é o sistema<br />

eleitoral. Fidelidade partidária, financiamento público de campanha e<br />

fim das coligações são temas relativamente simples, mas que perdem<br />

qualquer sentido estruturante sem a alteração do nosso sistema de<br />

eleições proporcionais com votação nominal. É uma mudança difícil<br />

por causa da tradição eleitoral brasileira, que vem do Império. As mudanças<br />

nas eleições proporcionais, gradativas ao longo do tempo, não<br />

alteraram o fundamental: o voto é no candidato; o voto das legendas<br />

serve apenas para a distribuição das vagas entre os partidos.<br />

A introdução do voto distrital é uma revolução na política brasileira<br />

porque radicaliza o voto no candidato, pelo sistema majoritário,<br />

como uma eleição de senador num colégio eleitoral menor. Mas poderá<br />

colocar em xeque a eleição da maioria dos atuais deputados. Por isso,<br />

votar a reforma é mais ou menos como chamar o peru para a ceia de<br />

Natal. Hoje, funciona a lei de Murici: cada um cuida de si. A escolha<br />

do partido e do cargo a ser disputado é um cálculo eleitoral. Por isso, é<br />

tão comum um deputado federal disputar a eleição de prefeito sabendo<br />

que vai perder, para ter chance de se reeleger; ou senador concorrer<br />

ao governo do estado e pagar mico com o mesmo objetivo. O trocatroca<br />

de partido também é determinado pelo problema eleitoral, muito<br />

mais do que por nomeações no governo (mesmo quando o sujeito deixa<br />

a oposição para ser governista). O voto em lista mantendo o sistema<br />

proporcional não mudaria muita coisa, embora reforce a burocracia<br />

partidária. O que pode realmente mudar tudo é a criação dos distritos<br />

eleitorais, o que exige uma emenda à Constituição.<br />

O aspecto mais obscuro dessa discussão é aquele que verdadeiramente<br />

move a reforma: o fim da reeleição, com mudança do calendário<br />

eleitoral. Por trás dessa questão estão as forças que disputam o poder<br />

político no Brasil, o PT e o PSDB, e seus principais aliados. O presidente<br />

Luiz Inácio Lula da Silva tem reiterado que não pretende disputar<br />

um terceiro mandato, até porque sempre foi contra a reeleição. E<br />

defende mandatos de cinco anos para os cargos executivos. A mudança<br />

no calendário eleitoral, teoricamente, viria para ajustá-lo aos novos<br />

mandatos. Com estas hipóteses: 1) separação das eleições legislativas<br />

das de prefeitos, governadores e do presidente, com eleições gerais<br />

a cada 20 anos; ou 2) ampliação dos mandatos parlamentares para<br />

32<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Uma reforma sempre adiada<br />

cinco anos, com exceção dos senadores, cujos mandatos passariam<br />

de oito para dez anos; ou 3) prorrogação dos mandatos de prefeitos e<br />

vereadores, para coincidência geral das eleições.<br />

Do ponto de vista da qualidade da representação política, a proposta<br />

não muda nada. Só interessa aos políticos. Facilitaria um acordo<br />

entre os dois possíveis candidatos do PSDB, os governadores de<br />

São Paulo, José Serra, e de Minas, Aécio Neves. E criaria um cenário<br />

mais favorável à volta de Lula ao poder, sem ter que enfrentar um presidente<br />

candidato à reeleição, situação que ele hoje conhece dos dois<br />

lados do balcão.<br />

Mas a luta pelo poder é o centro da reforma. Não se pode descartar<br />

a possibilidade de a reforma política permitir que o presidente<br />

Lula concorra ao novo mandato, já agora de cinco anos.<br />

Se os políticos têm dúvidas, basta fazer um plebiscito para saber<br />

se o povo gosta da idéia. Afinal, uma das propostas avançadas<br />

da reforma política é ampliar a democracia com a participação<br />

direta do povo nas decisões polêmicas, por meio de referendos.<br />

O Congresso está acuado<br />

O Congresso Nacional não sabe o que fazer para evitar a desmoralização<br />

que sofre com os sucessivos escândalos protagonizados por<br />

seus integrantes. Depois do desgaste com os casos dos “mensaleiros”<br />

e das “sanguessugas”, o escândalo da empreiteira Gautama – que<br />

para a maioria ainda é uma caixa-preta – mantém na berlinda deputados<br />

e senadores. Sabe-se que é apenas a ponta de um iceberg que<br />

envolve a relação de empreiteiras com o Executivo e o Legislativo, por<br />

causa do atual padrão de financiamento eleitoral. Por isso, há um<br />

certo consenso de que uma reforma política é cada vez mais necessária,<br />

porém não há acordo com relação ao conteúdo das propostas.<br />

Cada cabeça é uma sentença na hora de discutir o sistema eleitoral<br />

e o funcionamento dos partidos.<br />

Um grupo de cardeais do Senado – Tião Viana (AC) e Aloizio Mercadante<br />

(SP), do PT; Tasso Jereissati (CE), Sérgio Guerra (PE) e Arthur<br />

Virgílio (AM), do PSDB; José Sarney (AP) e Jarbas Vasconcelos<br />

(PE), do PMDB; e Antonio Carlos Magalhães (BA), Heráclito Fortes<br />

(PI) e José Agripino (RN), do PFL, dentre outros – chegou a fazer um<br />

pacto para tentar uma reação. A idéia era articular as cúpulas dos<br />

grandes partidos para promover a reforma política e enfrentar os<br />

problemas que viciam o sistema eleitoral, o regime partidário e o financiamento<br />

das campanhas.<br />

33


II. Conjuntura<br />

O caso Gautama é encarado como um aviso de que o Congresso<br />

pode ser desmoralizado ainda mais, caso a relação existente entre os<br />

políticos e as empreiteiras continue a ser devassada pelo Ministério<br />

Público e a Polícia Federal. A avaliação corrente é de que as emendas<br />

parlamentares são café pequeno diante do que acontece com a execução<br />

do Orçamento da União, dos estados, dos municípios e até das<br />

estatais. O volume de recursos a ser movimentado pelas empreiteiras<br />

só tende a aumentar com o crescimento da economia e a execução das<br />

obras do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).<br />

Os caciques do Senado, entretanto, foram imobilizados pela representação<br />

do pequeno PSol contra o senador Renan Calheiros<br />

(PMDB-AL), que virou o centro das preocupações da Casa. Houve<br />

um acordo para protegê-lo, mas o preço a ser pago está ficando alto<br />

demais. E arrasar a liderança política dos senadores, com a perda de<br />

autoridade junto à sociedade para pressionar a Câmara a aprovar a<br />

reforma política.<br />

A proposta de reforma política esboçada na Câmara trombou com<br />

as propostas aprovadas no Senado, sob inspiração do senador Marco<br />

Maciel (PFL-PE), que defende a redução do número de partidos, o voto<br />

distrital e a fidelidade partidária. O presidente da Câmara, Arlindo<br />

Chinaglia (PT-SP), no vácuo político criado pelo desgaste de Renan<br />

Calheiros, patrocinou o arquivamento das propostas aprovadas no<br />

Senado. Mas não conseguiu colocar nada no lugar. Chegou a articular<br />

um projeto de mudanças, com o vice-líder do governo Henrique<br />

Fontana (PT-SP), mas houve uma rebelião – com adesão em massa<br />

do baixo clero – contra o voto em lista, o financiamento público, a fidelidade<br />

partidária, a cláusula de barreira e o fim das coligações. Até<br />

agora nada foi votado. A única possibilidade de avançar com a reforma<br />

é uma roleta russa: colocar a proposta em votação ponto a ponto e<br />

aprovar por maioria cada mudança, sem saber o que vai dar. O mais<br />

provável é a geração de um monstrengo, um modelo político-eleitoral<br />

pior ainda do que o atual. É por isso que a reforma política empacou<br />

na Câmara, cujos integrantes vivem a angústia de não saber avaliar as<br />

conseqüências da situação que eles mesmos criaram: se correr o bicho<br />

pega, se ficar o bicho come. É a crise.<br />

O problema é que vem mais uma eleição aí pela frente: a escolha de<br />

vereadores e prefeitos, em 2008. Todos sabem que algo precisa ser feito<br />

antes disso. O pleito municipal poderia ser uma oportunidade para<br />

a reestruturação na vida política do país, de baixo para cima, com os<br />

partidos testando as novas regras. Haveria tempo ainda para corrigilas<br />

e melhorá-las em caso de defeito de fabricação. É óbvio que essa visão<br />

mais otimista, que aposta na reação do Congresso, não tem ainda<br />

34<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Uma reforma sempre adiada<br />

massa crítica no Congresso, nem lideranças capazes de construí-la. A<br />

tendência atual é a adoção de mudanças meramente cosméticas, mesmo<br />

com o surgimento de novos escândalos, que enfraquecerão ainda<br />

mais o Congresso.<br />

A política em desconstrução<br />

Um dos temas atuais da antropologia é a desconstrução do sujeito<br />

moderno, sociológico, acelerada pela globalização, mas não somente<br />

em sua conseqüência. Seria um processo semelhante ao que ocorreu<br />

com o sujeito iluminista – “penso, logo existo” -, diante da emergência<br />

da sociedade industrial, marcada pela estruturação de classes sociais<br />

definidas a partir das relações de produção capitalistas, que arrasou<br />

com a idéia de que os poderosos tinham sangue azul. No mundo de<br />

hoje, os políticos não estão à margem desse processo, no qual as idéias<br />

pautadas pelo Estado-nação e pela luta de classes estão em xeque.<br />

Talvez por isso invoquem com tanta freqüência o “espírito republicano”,<br />

palavra mágica que serviria para separar as boas ações dos maus<br />

costumes políticos.<br />

A política do século passado foi marcada por um formidável embate<br />

entre as idéias liberais e socialistas, que ainda hoje impregnam a<br />

atuação dos políticos profissionais. No campo das idéias liberais, um<br />

dos textos mais célebres é do sociólogo Max Weber, numa conferência<br />

famosa intitulada A política como vocação. Nele, afirma que há duas<br />

formas de fazer da política uma vocação: “Ou se vive para a política,<br />

ou se vive da política”. Para ele, “quem vive para a política a torna o<br />

fim da sua existência por prazer ou por uma causa”. Já aquele que vê<br />

na política uma forma permanente de rendas, “vive da política como<br />

vocação”. Na ordem capitalista, esses seriam os dois tipos de políticos,<br />

com maior ou menor refinamento.<br />

“Em condições normais, deve o homem político ser economicamente<br />

independente das rendas que a ação política lhe possa proporcionar.<br />

Isso significa que o político deve ser rico ou contar com uma fonte<br />

de rendas independentemente de sua qualidade de político”, adverte<br />

Weber. Em condições anormais, o jogo seria outro: vivem de saques,<br />

roubos, confiscos, emissão de bônus sem lastro etc.<br />

Um outro conceito, radicalmente diferente, é o do político revolucionário<br />

que exerce uma ação de vanguarda para subverter a ordem<br />

e transformar a sociedade. É a idéia do militante a serviço das classes<br />

subalternas. O russo Vladimir Lênin, líder da Revolução de 1917<br />

(O que fazer?), e italiano Antônio Gramsci (Maquiavel, a política e o<br />

35


II. Conjuntura<br />

Estado moderno), que morreu na prisão, levaram às últimas conseqüências<br />

a tese marxista de que a classe operária, ao se libertar, libertaria<br />

todas as demais classes exploradas e oprimidas da sociedade. A<br />

missão seria orientar e organizar essa ação. O partido revolucionário<br />

seria a parte consciente da classe, organizado de cima para baixo,<br />

por homens unidos por fortes laços de camaradagem (Lênin). O novo<br />

“príncipe” seria um “ser coletivo”, integrado por “intelectuais orgânicos”,<br />

capazes de unir os trabalhadores e edificar um novo consenso na<br />

sociedade (GRAMSCI).<br />

A terceira revolução industrial liquidou com a idéia de “classe geral”,<br />

calcada no “ser operário!” como protagonista da construção da<br />

sociedade nova. A grande produção industrial, que serviu de alavanca<br />

da economia estatal, foi substituída por sistemas de produção flexíveis,<br />

que tornaram obsoletas as economias do chamado “socialismo<br />

real”. Foi a dêbacle dos partidos comunistas e operários.<br />

Mas o que tem a ver os dois conceitos com a crise que se abate<br />

sobre o Congresso brasileiro. Muita coisa. Não só políticos tradicionais<br />

foram ultrapassados pela desconstrução do sujeito moderno,<br />

os militantes revolucionários também. Os conceitos e as práticas que<br />

orientaram suas ações estão sendo rejeitados pela sociedade da informação.<br />

Ficaram fora de moda, embora sirvam ao status quo social e<br />

ao establishment porque não existe democracia sem partidos políticos.<br />

A política desnudada revela todas as inconformidades e deformações.<br />

Os que as simbolizam, ao terem sua imagem desconstruída, perdem a<br />

representação da sociedade. Isso vale tanto para o ex-deputado José<br />

Dirceu (PT-SP), que pautou sua vida por objetivos revolucionários e foi<br />

cassado no auge do prestígio, como também vale para o presidente do<br />

Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), cuja opção foi ser um político<br />

moderado e ascender por vias tradicionais.<br />

Identidades perdidas<br />

A desconstrução da identidade dos partidos, em primeiro lugar, é<br />

uma crise de imagem provocada por escândalos sucessivos. Os exemplos<br />

são quase diários. Ao ser apresentado o relatório do senador Epitácio<br />

Cafeteira (PTB-MA) sobre o caso do presidente do Congresso,<br />

Renan Calheiros, no Conselho de Ética do Senado, tivemos um bom<br />

exemplo de como esse desgaste ocorre. Porém, tais fatos – que estão<br />

na esfera da pequena política – decorrem de causas mais profundas.<br />

Não é só a velha política brasileira, patrimonialista e clientelista, que<br />

se reproduz pelo nepotismo, que está esgotada. Também estão em<br />

xeque os paradigmas que distinguiam os liberais e os conservadores,<br />

36<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Uma reforma sempre adiada<br />

os reformistas e os revolucionários, a direita e a esquerda. Os partidos<br />

são vistos por prismas em pedaços, como espelhos quebrados, o que<br />

complica ainda mais a reconstrução dos valores e projetos políticos.<br />

Os partidos políticos no Brasil nunca tiveram a força de seus congêneres<br />

europeus ou norte-americanos. Nunca tiveram muito compromisso<br />

com os respectivos programas, pois seus políticos são prisioneiros<br />

dos interesses imediatos que representam. No Império, liberais e<br />

conservadores eram escravocratas em sua maioria e se uniram contra<br />

as reformas, com sua política de conciliação. Os republicanos surgiram<br />

como a incipiente classe média, mas na República Velha representaram<br />

as oligarquias. Contra elas quem se insurgiu foi o movimento<br />

tenentista, que desaguou na Revolução de 30.<br />

A política partidária propriamente dita renasceu das cinzas em<br />

1945 sob o signo da guerra fria. Foi com esse paradigma que os principais<br />

partidos políticos atuaram no Brasil até o golpe de 1964, que<br />

marcou o esgotamento de um ciclo político. O populismo havia assinalado<br />

a entrada em cena política dos trabalhadores assalariados, muito<br />

mais do que a fundação do Partido Comunista em 1922. Curiosamente,<br />

a aliança entre pessedistas, trabalhistas e comunistas na eleição<br />

de Juscelino Kubitschek proporcionou o melhor momento da Segunda<br />

República e um contraponto à influência póstuma de Getúlio Vargas.<br />

A tentativa de implantar o bipartidarismo na marra, durante o regime<br />

militar, fracassou por dois motivos. O primeiro era óbvio: não<br />

havia liberdade. O segundo, perdura até hoje: a influência européia na<br />

política brasileira sempre foi maior do que a norte-americana, apesar<br />

da falta de assimetria com as nossas relações econômicas. Com o fim<br />

da guerra fria, a crise dos partidos brasileiros se aprofundou. Muito<br />

mais em conseqüência das mudanças que ocorrem no mundo do que<br />

por causa do ambiente político interno. Em tese, a democratização da<br />

vida nacional, com o restabelecimento das eleições diretas em todos<br />

os níveis, seria um fator de fortalecimento dos partidos junto à sociedade.<br />

Está acontecendo exatamente o contrário.<br />

Na verdade, a globalização dos mercados mudou o nexo das políticas<br />

nacionais em todo o mundo. O fim da União Soviética, a formação<br />

da União Européia, a emergência das potências asiáticas e o enfraquecimento<br />

da hegemonia econômica norte-americana, em que pese<br />

sua ação militar, contribuíram decisivamente para isso. Além disso, a<br />

terceira revolução industrial e as reformas econômicas que provocou<br />

contribuíram para romper a identificação das massas trabalhadoras<br />

dos países industrializados com seus partidos tradicionais, o que gerou<br />

uma nova direita na Europa, populista e nacionalista.<br />

37


II. Conjuntura<br />

O impacto dessas mudanças no Brasil ainda não foi suficientemente<br />

analisado, mas atinge em cheio os partidos. Ocorre, sobretudo,<br />

na esfera da grande política. O efeito mais evidente é a blindagem<br />

da política econômica, que a rigor foi iniciada pelo ex-presidente Fernando<br />

Collor de Mello com a abertura da economia. Essa política se<br />

consolidou com o Plano Real no governo Itamar Franco e ganhou força<br />

hegemônica nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso,<br />

com um caráter social-liberal. Ao ser encampada pelo presidente Luiz<br />

Inácio Lula da Silva, atraiu para sua esfera o PT, a força política que<br />

poderia levar adiante um vigoroso reformismo democrático e social.<br />

Da mesma forma como antes a política econômica havia assimilado<br />

o projeto social-democrata do PSDB. O preço pago é a obstrução da<br />

renovação dos costumes políticos, o enfraquecimento e a descaracterização<br />

dos partidos.<br />

Ensaio de uma reforma de mentirinha<br />

Não há, na história política do Ocidente, nenhuma crise política<br />

que não tenha como estopim uma crise parlamentar, daquelas<br />

que somente os políticos, com a sua criatividade, são capazes de<br />

aprontar. A mais famosa foi o golpe de Estado de dezembro de <strong>18</strong>51<br />

na França, conhecido como o <strong>18</strong> Brumário de Luís Bonaparte, que<br />

restaurou a monarquia. Não passou de uma grande farsa da aristocracia<br />

francesa, pois o capitalismo já estava consolidado e a ordem<br />

burguesa se tornara indispensável. Porém, serviu para revelar como<br />

um parlamento é capaz de se descolar dos interesses que deveria<br />

representar e virar fumaça.<br />

No Brasil, podemos colecionar mais de uma dezena de crises políticas,<br />

todas com a formidável colaboração do parlamento. A mais<br />

trágica teve como estopim a atitude de um único parlamentar, Márcio<br />

Moreira Alves, cujo discurso contra os militares precipitou o endurecimento<br />

do regime militar, com o famigerado Ato Institucional<br />

nº 5. O episódio, porém, foi o desfecho de um processo iniciado bem<br />

antes, por ocasião da renúncia do presidente Jânio Quadros, em<br />

1961, vista por muitos como uma manobra golpista que deu errado.<br />

À época, o vice-presidente João Goulart, que deveria assumir a Presidência,<br />

estava em viagem diplomática na China. Setores políticos e<br />

militares conservadores tentaram impedir a sua posse. Para viabilizála,<br />

se fez um acordo político no Congresso, que adotou o regime parlamentarista,<br />

sendo João Goulart empossado como chefe de Estado.<br />

Em 1963, por meio de plebiscito, o povo brasileiro votou pela volta do<br />

regime presidencialista. Jango finalmente assumiu a presidência com<br />

38<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Uma reforma sempre adiada<br />

amplos poderes, mas estava criado o cenário para o golpe de 1964 e<br />

para a implantação progressiva do regime militar que durou até 1985.<br />

Os caminhos de uma crise política são complexos, tortuosos e inesperados.<br />

Os nexos de uma crise parlamentar com a sociedade quase sempre<br />

precisam de um fio para serem encontrados, no labirinto da luta<br />

política. Mas eles sempre existem, porque o poder político é expressão<br />

direta da força social real dos grupos e classes em pugna. Em determinados<br />

momentos, nesse embate, os partidos políticos se descolam<br />

completamente dos interesses que originalmente representavam.<br />

Luís Bonaparte, sobrinho ambicioso do ex-imperador, foi mais<br />

feliz ao identificar os interesses das elites francesas do que os representantes<br />

populares no parlamento, autismo que Marx chamou de<br />

“cretinismo parlamentar”. Os políticos viviam num mundo imaginário<br />

e haviam perdido “todo sentido, toda recordação, toda compreensão<br />

do rude mundo exterior”. É um pouco o que está acontecendo no<br />

Congresso brasileiro, diante da desmoralização provocada pela sucessão<br />

de escândalos envolvendo os partidos e os políticos. Agora, os<br />

grandes partidos ensaiam uma reforma política de mentirinha, que,<br />

na verdade, é um esquema para garantir a reeleição quase vitalícia<br />

da maioria dos congressistas. Listas fechadas encabeçadas pelos<br />

atuais detentores de mandato, financiamento público que favorece<br />

os grandes partidos e fidelidade partidária subordinam os mandatos<br />

à vontade de governadores e prefeitos, sem falar na do presidente<br />

da República. É a gestação de uma nova casta a serviço do poder,<br />

cuja existência é incompatível com uma sociedade democrática.<br />

A proposta que poderia realmente aproximar o Congresso dos seus<br />

representados, o voto distrital puro ou misto, está fora de consideração<br />

na reforma. O mais grave, porém, é que a pseudoreforma cria<br />

condições favoráveis para projetos continuístas no Executivo – basta<br />

surgir um novo “queremismo” –, mantido o ambiente de bonança<br />

econômica internacional. Em outro contexto econômico, porém, pode<br />

provocar uma crise institucional com sinal trocado, como costuma<br />

acontecer no Brasil.<br />

*<br />

39


II. Conjuntura<br />

40<br />

Sobre o conteúdo<br />

da Reforma Política<br />

Rubens Otoni<br />

A<br />

necessidade da reforma política não decorre de um impulso<br />

colonial de transplantar para o Brasil fórmulas utilizadas nos<br />

países desenvolvidos. Nosso sistema político eleitoral é, sob<br />

muitos aspectos, melhor que os sistemas adotados na Europa e nos<br />

Estados Unidos.<br />

Tendo claro que não há um sistema perfeito, salta às vistas que<br />

o sistema eletrônico brasileiro de votação e a apuração das eleições<br />

é invejável por sua agilidade e eficácia. Alguns, os mais pessimistas,<br />

dirão que ele pode permitir fraudes. A esses, cabe lembrar que não<br />

existe obra humana que não seja sujeita a fraude. Mas cabe também<br />

acrescentar que ele é de longe o menos vulnerável.<br />

O sistema brasileiro de repartição proporcional dos tempos de<br />

cada partido na televisão e no rádio é igualmente exemplar. Assegura<br />

de forma justa o acesso dos partidos ao conjunto da população.<br />

Também o sistema de eleições proporcionais para os cargos do<br />

Legislativo, embora contendo imperfeições pontuais, é mais justo e<br />

democrático do que o sistema distrital adotado em alguns países da<br />

Europa e nos Estados Unidos.<br />

O sistema proporcional assegura a representação das minorias,<br />

na medida em que as vagas do Legislativo são preenchidas proporcionalmente<br />

à votação de cada partido. Infelizmente, aqui no Brasil,<br />

esta proporcionalidade não é absoluta, mas pode e deve ser aperfeiçoada.<br />

É democrático lutar pela adoção do princípio de que a cada<br />

eleitor corresponde um voto, independentemente do lugar onde vive<br />

no território nacional.<br />

Mesmo assim, nosso sistema proporcional é muito mais justo que<br />

o claramente antidemocrático sistema de voto distrital. A título de<br />

ilustração vamos tomar o caso da Inglaterra, pátria-mãe do sistema<br />

distrital. Lá, na última eleição para o Parlamento, setembro de 2005,<br />

os trabalhistas obtiveram 35,3% dos votos e levaram 356 cadeiras,<br />

os conservadores obtiveram 32,3% dos votos e levaram 198 cadeiras.<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Sobre o conteúdo da Reforma Política<br />

A discrepância é muito grande. 35,3% dos votos elegeram 62% das<br />

vagas, enquanto 32,3% elegeram 34% das cadeiras. Estes números<br />

falam por si, o sistema é injusto e antidemocrático. Tony Blair prometeu<br />

reformá-lo. Ainda não o fez, talvez porque o sistema interessa<br />

a trabalhistas e conservadores. Mas certamente não deve interessar<br />

aos liberais.<br />

Ainda a título de ilustração, registro a informação de Jairo Nicolau,<br />

em Sistemas Eleitorais: “O Partido Liberal do Reino Unido tem<br />

sido freqüentemente prejudicado, pois o percentual de cadeiras que<br />

recebe é sempre inferior ao seu percentual de votos. O partido foi subrepresentado<br />

em todas as eleições para a Câmara dos Comuns no pós-<br />

1945: com uma média de 12,4% dos votos obteve uma média de 1,9%<br />

das cadeiras. A diferença mais acentuada ocorreu em 1983, quando<br />

recebeu 25,04 % dos votos e elegeu apenas 3,5% dos representantes”.<br />

Não há exagero em afirmar que este sistema é aberrante.<br />

Aliás, o sistema inglês é tão ruim que recentemente a imprensa<br />

anunciou que a composição da Casa dos Lordes, o Senado deles, vai<br />

deixar de ser feita pelo critério da hereditariedade. Os senadores, que<br />

lá têm também poderes judiciários, passarão a ser eleitos. Convenhamos,<br />

para o começo do século XXI, está um pouco tarde. O sistema<br />

americano também padece dos defeitos do voto distrital, herdado da<br />

Inglaterra. Além disso, os americanos conseguiram organizar uma<br />

perfeita bagunça em suas eleições. As duas últimas eleições presidenciais<br />

tiveram seus resultados contestados na Justiça.<br />

Na Alemanha, para atenuar as deformações produzidas pelo sistema<br />

distrital, foi adotado o sistema de listas para eleger a metade<br />

do parlamento. A outra metade é eleita pelo antidemocrático sistema<br />

distrital. Dir-se-ia que a elite alemã, consciente de seu passado nada<br />

exemplar em matéria de democracia, resolveu permitir que pelo menos<br />

metade de seu parlamento fosse eleita de forma democrática.<br />

Explicar outros defeitos do sistema distrital demandaria muito espaço.<br />

Vou apenas enumerar alguns: ele paroquializa o debate, favorece<br />

o abuso do poder econômico, serve para perpetuar caciques, bloqueia<br />

a renovação das bancadas parlamentares, não fortalece os partidos<br />

e cria um problema insolúvel sobre a redefinição periódica do mapa<br />

dos distritos; o que provocaria uma guerra permanente entre partidos,<br />

personalidades e caciques em busca de uma demarcação ideal do distrito,<br />

aquela que mais se aproximasse de seu interesse eleitoral. Ou<br />

seja, qualquer sistema de voto distrital seria um retrocesso.<br />

41


II. Conjuntura<br />

Os principais problemas do sistema eleitoral brasileiro foram diagnosticados<br />

pela Comissão Especial que tratou da matéria e podem ser<br />

resumidos nos seguintes pontos:<br />

a) a distorção da vontade do eleitor causada pela permissão de coligações<br />

nas eleições para o Legislativo;<br />

b) a extrema personalização do voto nas eleições legislativas, da<br />

qual decorre o enfraquecimento dos partidos;<br />

c) os crescentes custos da campanhas eleitorais, que tornam o seu<br />

financiamento refém do poder econômico;<br />

d) a excessiva fragmentação do quadro partidário, que fragiliza os<br />

partidos;<br />

e) as intensas migrações entre legendas, cujas bancadas no Legislativo<br />

oscilam substancialmente ao longo das legislaturas.<br />

Para enfrentar estes problemas reais, a Comissão Especial antes<br />

referida, aprovou, por maioria significativa, uma proposta mais tarde<br />

referendada pela Comissão de Constituição de Justiça, que contém<br />

alguns pontos importantes:<br />

• A adoção do voto em lista, para equacionar o problema da excessiva<br />

personalização do voto e dar racionalidade ao debate eleitoral.<br />

• A introdução do financiamento público exclusivo de campanha<br />

para superar o abuso do poder econômico e a proibição de coligações<br />

proporcionais.<br />

Aos que temem o sistema de lista, argumentando que ele favorecerá<br />

a oligarquização e o caciquismo dentro dos partidos, cabe explicar<br />

que atualmente a maioria dos partidos já padece destes males. A solução<br />

para estes males está na aprovação de uma legislação que estabeleça<br />

regras democráticas para a confecção das listas e no estímulo<br />

a uma cultura democrática no interior de cada agremiação. Aliás, o<br />

mais provável é que os partidos que adotem métodos autoritários para<br />

a confecção de suas listas não consigam sobreviver.<br />

Aos que argumentam que o financiamento público exclusivo não<br />

bloqueia totalmente a intervenção do financiamento privado, cabe<br />

lembrar que ele pelo menos o inibe, e cria mecanismos de punição.<br />

Com relação à fidelidade partidária, parece que existe quase uma unanimidade<br />

sobre sua necessidade. Resta apenas discutir os termos.<br />

Caso venhamos a aprovar a Reforma Política, estaremos dando um<br />

grande passo no sentido de aperfeiçoar o sistema eleitoral brasileiro,<br />

sem prejuízo de outras matérias igualmente importantes.<br />

42<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


III. Observatório<br />

Político


Autores<br />

Luiz Werneck Vianna<br />

Sociólogo e professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), é<br />

autor de várias obras, dentre elas Esquerda brasileira e Tradição republicana.<br />

Sergio Augusto de Moraes<br />

Engenheiro, diretor do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro.<br />

Marcos Costa Lima<br />

Professor e atual coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política/<br />

UFPE. Pós-Doutorado na Université Paris XIII/Villetaneuse; Doutor em Ciências Sociais,<br />

Unicamp/São Paulo.


O Estado Novo do PT<br />

Luiz Werneck Vianna<br />

A<br />

crer nos indicadores dos dois períodos presidenciais de Fernando<br />

Henrique, mas, sobretudo a partir do mandato de Lula, o<br />

capitalismo brasileiro encontrou um caminho de expansão e de<br />

intensificação da sua experiência. Contudo, tem sido agora que se vê<br />

conduzido por um projeto pluriclassista e com a definida intenção de<br />

favorecer uma reconciliação política com a história do país, contrariamente<br />

à administração anterior, mais homogênea em sua composição<br />

de interesses e decididamente refratária ao que entendia ser o legado<br />

patrimonial da nossa herança republicana.<br />

Com efeito, estão aí, neste governo Lula, guindadas a Ministérios<br />

estratégicos, as lideranças das múltiplas frações da burguesia brasileira<br />

– a industrial, a comercial, a financeira, a agrária, inclusive os<br />

cúlaques que começaram sua história nas pequena e média propriedades,<br />

e que, com a cultura da soja, atingiram o reino do grande capital<br />

–, lado a lado com o sindicalismo das grandes centrais sindicais<br />

e com a representação dos intelectuais do Movimento dos Trabalhadores<br />

Sem Terra (MST). De outra parte, estão aí a revalorização da<br />

questão nacional, do Estado como agente indutor do desenvolvimento,<br />

o tema do planejamento na economia, a retomada do papel político<br />

da representação funcional, da qual é ícone institucional a criação do<br />

Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).<br />

Se, antes, a ruptura com o passado fazia parte de um bordão comum<br />

ao PSDB e ao PT – o fim da Era Vargas –, sob o governo Lula,<br />

que converteu Celso Furtado em um dos seus principais ícones, e<br />

45


III. Observatório Político<br />

em que ressoam linguagens e temas do chamado período nacionaldesenvolvimentista<br />

em personagens destacados da sua administração,<br />

como José de Alencar, Dilma Roussef e Luciano Coutinho, todos<br />

em posições-chave, menos que de ruptura o passado é mais objeto de<br />

negociação. Assim, o governo que, no seu cerne, representa as forças<br />

expansivas no mercado, naturalmente avessas à primazia do público,<br />

em especial no que se refere à dimensão da economia – marca<br />

da tradição republicana brasileira –, adquire, com sua interpelação<br />

positiva do passado, uma certa autonomia quanto a elas, das quais<br />

não provém e não lhe asseguram escoras políticas e sociais confiáveis.<br />

Pois, para um governo originário da esquerda, a autonomia diante do<br />

núcleo duro das elites políticas e sociais que nele se acham presentes,<br />

respaldadas pelas poderosas agências da sociedade civil a elas<br />

vinculadas, somente pode existir, se o Estado traz para si grupos de<br />

interesses com outra orientação.<br />

A composição pluriclassista do governo se traduz, portanto, em<br />

uma forma de Estado de compromisso, abrigando forças sociais contraditórias<br />

entre si – em boa parte estranhas ou independentes dos<br />

partidos políticos –, cujas pretensões são arbitradas no seu interior, e<br />

decididas, em ultima instância, pelo chefe do poder executivo. Capitalistas<br />

do agronegócio, MST, empresários e sindicalistas, portadores<br />

de concepções e interesses opostos em disputas abertas na sociedade<br />

civil, encontram no Estado, onde todos se fazem representar, um outro<br />

lugar para a expressão do seu dissídio. Longe do caso clássico em<br />

que o Estado, diante da abdicação política das classes dominantes,<br />

se erige em “patrão” delas para melhor realizar os seus interesses, a<br />

forma particular desse Estado de compromisso se exprime na criação,<br />

no interior das suas agências, de um parlamento paralelo onde<br />

classes, frações de classes, segmentos sociais, têm voz e oportunidade<br />

no processo de deliberação das políticas que diretamente os afetam.<br />

Nesse parlamento, delibera-se sobre políticas e se decide sobre sua<br />

execução. À falta de consenso, o presidente arbitra e decide.<br />

Contorna-se, pois, o parlamento real e o sistema de partidos na<br />

composição dos interesses em litígio, que somente irão examinar da<br />

sua conveniência, em fase legislativa, quando couber. Com essa operação,<br />

a formação da vontade na esfera pública não tem como conhecer,<br />

salvo por meios indiretos, a opinião que se forma na sociedade<br />

civil, e as decisões tendem a se conformar por razões tecnocráticas.<br />

A criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, agência<br />

criada nos começos do primeiro mandato, no curso do qual não<br />

desempenhou papel relevante, mas que, agora, parece destinada a<br />

cumprir de fato as funções de câmara corporativa a mediar as relações<br />

46 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


O Estado Novo do PT<br />

entre o Estado e a sociedade civil organizada, reforçam ainda mais as<br />

possibilidades de ultrapassagem da representação política. A afirmação<br />

da representação funcional como forma de articulação de interesses,<br />

sob a arbitragem do Estado, é mais um indicador da intenção de<br />

se despolitizar a resolução dos conflitos em favor da negociação entre<br />

grupos de interesses.<br />

Com esse movimento, o Estado avoca a sociedade civil para si,<br />

inclusive movimentos sociais como os de gênero e os de etnias. Tudo<br />

que é vivo gira e gravita em torno dele. Boa parte das organizações<br />

não-governamentais (ONGs) são dele dependentes e sequer lhe escapam<br />

os setores excluídos, difusamente distribuídos no território do<br />

país, os quais incorpora por meio de programas de assistência social,<br />

como o bolsa-família, com o que se mantém capilarmente articulado<br />

à sua sociedade.<br />

O governo, que acolhe representantes das principais corporações<br />

da sociedade civil, ainda se vincula formalmente a elas pelo CDES.<br />

A representação funcional lhe é, pois, constitutiva. A ela se agrega,<br />

nos postos de comando na máquina governamental, os quadros extraídos<br />

da representação política. Contudo, uma vez que, pela lógica<br />

vigente de presidencialismo de coalizão, a formação de uma vontade<br />

majoritária no Congresso é dependente da partilha entre os aliados de<br />

posições ministeriais, os partidos políticos no governo passam a viver<br />

uma dinâmica que afrouxa seus nexos orgânicos com a sociedade civil,<br />

distantes das demandas que nela se originam. Tornam-se partidos<br />

de Estado, gravitando em torno dele e contando com seus recursos de<br />

poder para sua reprodução nas competições eleitorais.<br />

A dupla representação – a política e a funcional –, operando ambas<br />

à base de movimentos de cooptação realizados pelo Executivo, não somente<br />

amplia a autonomia do governo quanto às partes heterogêneas<br />

que o compõe, ademais reforçada por sua capacidade constitucional<br />

de legislar por meio de medidas provisórias, como criam condições<br />

para o seu insulamento político quanto à esfera pública. As múltiplas<br />

correias de transmissão entre Estado e sociedade funcionam em um<br />

único sentido: de cima para baixo. Nesse ambiente fechado à circulação<br />

da política, a sua prática se limita ao exercício solitário do vértice<br />

do presidencialismo de coalizão, o chefe do Estado.<br />

Tal couraça de que se reveste o Executivo se acha qualificada pelos<br />

notórios avanços da centralização administrativa nos marcos institucionais<br />

do país, em que pese a Carta de 1988, de espírito federativo e<br />

descentralizador. Com razão, a bibliografia brasileira, desde o publicista<br />

Tavares Bastos no Império, associa a opção pela centralização<br />

47


III. Observatório Político<br />

administrativa à natureza autoritária do nosso sistema político, justificada<br />

à época pela necessidade de preservar a unidade nacional, tida<br />

como ameaçada pelos impulsos separatistas do poder local no período<br />

da Regência. Essa associação foi confirmada pelos dois longos períodos<br />

ditatoriais do regime republicano – o de 1937-45 e o de 1964-85<br />

–, que, em nome da busca dos fins da modernização econômica, extremaram<br />

a centralização administrativa e a prevalência da União sobre<br />

a Federação. A reação ao autoritarismo político, que culminou com a<br />

democratização do país, atualizou as demandas pela descentralização<br />

e pela afirmação do poder local, que se fizeram presentes, como é sabido,<br />

no texto constitucional de 1988.<br />

Desde aí se vem confirmando o diagnóstico clássico de que a centralização<br />

administrativa também pode ser filha da democracia. As<br />

crescentes demandas por políticas públicas orientadas por critérios de<br />

justiça social, como as da agenda da saúde, educação e segurança, têm<br />

conduzido, na busca da eficácia e da racionalização das suas ações, à<br />

centralização do seu planejamento e ao controle da sua execução. De<br />

outra parte, a política tributária, nessa última década, tem privilegiado<br />

a União sobre a Federação, sobretudo os estados, que, em nome<br />

da racionalização, foram obstados de emitir dívidas, privatizados os<br />

seus antigos e poderosos bancos, e a Polícia Federal cada vez mais se<br />

comporta como a suprema guardiã de todo o aparato civil de segurança.<br />

Centralização que, nessa estrita dimensão, ainda se reforça com a<br />

recente criação de uma força de segurança nacional, subordinada ao<br />

Ministério da Justiça e com sede operacional na capital federal.<br />

Registro forte a confirmar a intensidade e a abrangência do atual<br />

processo de centralização está indicado na criação do Conselho Nacional<br />

de Justiça, presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal,<br />

assim elevado à posição, até então desconhecida entre nós, de<br />

vértice do Poder Judiciário, destinando-se esse Conselho, dotado do<br />

poder de estabelecer sanções sobre tribunais e juízes, federais e estaduais,<br />

ao controle da administração do sistema da Justiça. Na mesma<br />

direção, consagrou-se, com a introdução da súmula com efeito vinculante,<br />

o princípio da primazia das decisões dos vértices do Poder<br />

Judiciário sobre os juízes singulares, em sua maioria, originários das<br />

justiças estaduais. A ação do Ministério Público participa do mesmo<br />

movimento, em especial no controle que exerce, pela via das ações diretas<br />

de inconstitucionalidade, sobre as leis estaduais.<br />

Tem-se daí que o novo curso da centralização, ao contrário de períodos<br />

anteriores, está associado à crescente democratização social e às<br />

necessidades de racionalização da administração, inclusive a do Judiciário<br />

e do sistema de segurança pública, que dela derivam. Mas esse movi-<br />

48 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


O Estado Novo do PT<br />

mento, por sua própria natureza – atua de cima para baixo –, prescinde<br />

da participação dos cidadãos, uma vez que decorre da ação das elites<br />

ilustradas, selecionadas à margem dos interesses sistêmicos e das corporações<br />

que os representam, elites que encontram no governo a oportunidade<br />

de realização das suas agendas de democratização social, móvel<br />

normativo que presidiu sua formação nos movimentos de resistência ao<br />

regime militar. Se o Estado pretendeu, nos idos do Estado Novo, sob a<br />

iniciativa das suas elites intelectuais, como Gustavo Capanema, Francisco<br />

Campos, Agamenon Magalhães, entre tantos, ser mais moderno que<br />

sua sociedade, as elites desse novo Estado, que toma corpo com a vitória<br />

do PT, pretendem que ele se torne mais justo que ela.<br />

Sob essa formatação, em que elites dirigentes de corporações integram<br />

o comando da política econômica, em que as centrais sindicais<br />

tomam assento no governo, em que se valoriza a representação funcional<br />

– caso conspícuo o ministro do Trabalho, alçado a essa posição<br />

na condição de presidente da CUT – em que se faz uso instrumental<br />

das instituições da democracia representativa, em que se reforçam os<br />

meios da centralização administrativa, e, sobretudo, em que se quer<br />

apresentar o Estado como agência não só mais moderna que sua sociedade,<br />

como também mais justa que ela, o que se tem é uma grossa<br />

linha de continuidade com a política da tradição brasileira. Aí, os<br />

ecos da Era Vargas e do Estado Novo, decerto que ajustados à nova<br />

circunstância da democracia brasileira. Também aí um presidente da<br />

República carismático, acima das classes e dos seus interesses imediatos,<br />

cujos antagonismos harmoniza, detendo sobre eles poder de<br />

arbitragem, cada vez mais apartidário, único ponto de equilíbrio em<br />

um sistema de governo que encontrou sua forma de ser na reunião de<br />

contrários, e em que somente ele merece a confiança da população.<br />

Nada, portanto, do discurso dos tempos de origem e de confirmação<br />

do PT como partido relevante na cena contemporânea. Elo perdido a<br />

sistemática denúncia do populismo e das alianças políticas entre partidos<br />

representativos de trabalhadores com os de outra extração, assim<br />

como desvanecidos os outrora fortes vínculos com a obra de interpretação<br />

do país que se aplicava em assinalar a necessidade de uma ruptura<br />

com aquela tradição – Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes<br />

e Raimundo Faoro eram, então, as principais referências.<br />

Se, no começo da sua trajetória, o PT se apresentava como portador<br />

da proposta de um novo começo para história do país, na pretensão<br />

de conformá-la a partir de baixo em torno dos interesses e valores dos<br />

trabalhadores – a parte recriando uma nova totalidade à sua imagem<br />

e semelhança –, a reconciliação com ela, levada a efeito pelo partido<br />

às vésperas de assumir o poder, conduziu-o aos trilhos comuns da<br />

49


III. Observatório Político<br />

política brasileira. A totalidade adquire precedência sobre os interesses<br />

das partes, ponto enunciado claramente pelo próprio presidente<br />

da República, nos seus primeiros dias de governo, em marcante discurso<br />

às lideranças sindicais, quando reclamou delas que, em suas<br />

reivindicações, levassem em conta o interesse nacional. Nessa chave,<br />

conceitua-se o próprio desenvolvimento do capitalismo no país e sua<br />

inscrição no chamado processo de globalização como processos a serem<br />

subsumidos ao interesse nacional, cuja representação tem sede<br />

no seu Estado. De fato, para uma orientação desse tipo, o melhor repertório<br />

se encontra em nossa tradição republicana.<br />

Mas essa opção não foi feita a frio. O programa do PT era, com suas<br />

variações, o de uma esquerda brasileira clássica, e, como tal, se orientava<br />

no sentido de preconizar reformas estruturais que permitissem<br />

dirigir os rumos da economia para as necessidades da sua população e<br />

a favorecer um desenvolvimento auto-sustentado das forças produtivas<br />

nacionais. Ainda no período eleitoral, a reação a esse programa veio sob<br />

a forma de uma rebelião do mercado, de que o descontrole no preço do<br />

dólar foi apenas um indicador. Nesse sentido, tentar realizá-lo, depois<br />

de oito anos de governo FHC, que não só levara o país a debelar a crônica<br />

inflação brasileira e rebaixara dramaticamente, sob consenso geral<br />

das elites econômicas, a presença do Estado na economia, em clara<br />

inclinação favorável às forças de mercado, continha in nuce as possibilidades<br />

de se inscrever o país na lógica das revoluções.<br />

A opção do governo recém-eleito, como se sabe, foi a de ceder à contingência,<br />

abdicar do seu programa e das veleidades revolucionárias<br />

de amplos setores do seu partido e de se por em linha de continuidade<br />

com a política econômico-financeira do governo anterior. A inovação<br />

viria da política. Em primeiro lugar, instituindo o Estado como um<br />

lugar de condomínio aberto a todas as classes e principais grupos de<br />

interesses. Em segundo, pela recusa a um modelo de simplificação do<br />

Estado, que preponderava no governo anterior, o que importou uma<br />

aproximação, mais clara à medida que o governo aprofundava sua<br />

experiência, com temas da agenda da tradição republicana – o nacional-desenvolvimentismo<br />

de Dilma Roussef e de Luciano Coutinho, por<br />

exemplo – e com seu estilo de fazer política.<br />

O caráter do governo como condomínio entre contrários encontra<br />

sua expressão paradigmática nas relações entre o capitalismo agrário<br />

e os trabalhadores do campo, aí incluído o MST, ambos ocupando,<br />

pelas suas representações, posições fortes na Administração. Os duros<br />

e constantes conflitos que os envolvem, no terreno da sociedade<br />

civil, em torno de questões que vão da propriedade da terra ao uso de<br />

transgênicos na agricultura, não têm impedido a permanência dos<br />

50 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


O Estado Novo do PT<br />

seus representantes no governo. Prevalece a política, salvo em matérias<br />

tópicas, de procurar conciliar pragmaticamente as controvérsias<br />

que os opõe, legitimando, ao menos no plano simbólico – isso mais no<br />

caso do MST –, a validade das suas pretensões. A mesma relação com<br />

idênticas conseqüências, se reitera no caso das lideranças empresariais<br />

e sindicais com assento em ministérios, em litígio aberto na sociedade<br />

civil no que se refere a questões previdenciárias, da legislação<br />

trabalhista e da sindical.<br />

Esse Estado não quer se apresentar como o lugar da representação<br />

de um interesse em detrimento de outro, mas de todos os interesses.<br />

Essa a razão de fundo porque o governo evita a fórmula de poder decisionista<br />

e também se abstém de propor mudanças legislativas em<br />

matérias estratégicas, como a tributária, a da reforma política e a da<br />

legislação sindical e trabalhista, que, com sua carga potencialmente<br />

conflitiva, poderiam ameaçar a unidade de contrários que intenta<br />

administrar. Pragmático, desde a primeira vitória eleitoral, negocia e<br />

compõe com os interesses heterogêneos que convoca para seu interior,<br />

manobra com que se evadiu do caminho de rupturas continuadas<br />

aberto à sua frente.<br />

A forma benigna com que a esquerda chegou ao poder – a via eleitoral<br />

– não tinha como escamotear, até com independência da consciência<br />

dos atores sobre sua circunstância, de que se estava no limiar<br />

de uma revolução. Começadas as grandes mudanças estruturais,<br />

seguir-se-ia o momento da mobilização popular e da sua contínua intensificação.<br />

Nesse contexto hipotético, o front dos conflitos agrários,<br />

sem dúvida, comporia o cenário mais dramático para o seu desdobramento.<br />

A rigor, as forças da antítese não quiseram assumir os riscos<br />

da sua vitória, reencontrando-se com o adversário que acabara de<br />

derrotar. São as forças da antítese que se apropriam do programa das<br />

forças da tese, contra as quais tinham construído sua identidade. Não<br />

havia contradição a ser superada. A dialética sem síntese da tradição<br />

política brasileira, mais uma vez, restaura o seu andamento.<br />

Invertem-se, porém os termos da revolução passiva clássica: é o<br />

elemento de extração jacobina quem, no governo, aciona os freios a<br />

fim de deter o movimento das forças da revolução, decapita o seu antagonista,<br />

comprometendo-se a realizar, sob seu controle, o programa<br />

dele, e coopta muitos dos seus quadros, aos quais destina a direção<br />

dos rumos sistêmicos em matéria econômico-financeira. Mas será dele<br />

o controle da máquina governamental e o comando sobre as transformações<br />

moleculares constitutivas à fórmula do conservar-mudando,<br />

direcionadas, fundamentalmente, para a área das políticas públicas<br />

51


III. Observatório Político<br />

aplicadas ao social. Decididamente, o desenlace de 2002 não foi o de<br />

uma contra-revolução.<br />

Os setores subalternos não são mobilizados, e se fazem objetos<br />

passivos das políticas públicas, que, em muitos casos, incorporam à<br />

malha governamental lideranças de movimentos sociais, apartando-as<br />

de suas bases. Os partidos de esquerda e os movimentos sociais institucionalizados,<br />

quase todos os presentes no governo, retidos nessas<br />

suas posições, aderem ao andamento passivo e se deixam estatalizar,<br />

abdicando de apresentarem rumos alternativos para o desenvolvimento,<br />

demonstrando, nessa dimensão, anuência tácita com a herança<br />

recebida dos neoliberais da administração econômica do governo FHC.<br />

O ator definha, e os protagonistas são, por assim dizer, os fatos.<br />

Mas, a inversão da lógica da revolução passiva não obedece à mesma<br />

pauta da sua forma canônica. Nessa sua forma bizarra, não são as<br />

forças da conservação que se encontram na posição de mando político<br />

legítimo, não contando, pois, com plenos recursos para administrarem<br />

a fórmula do conservar-mudando. Exemplar disso o fato de que<br />

a agenda de reformas – a tributária, a da previdência e a da legislação<br />

sindical e trabalhista –, que essas forças compreendem como necessárias<br />

à estabilização e ao aprofundamento do capitalismo brasileiro,<br />

não venha encontrando passagem para sua implementação, barradas,<br />

ao menos até agora, pela ação combinada dos movimentos sociais com<br />

a sua representação no governo.<br />

Assim, mesmo sob o império dos fatos, persistem papéis para um<br />

ator que, presente na coalizão governamental, invista na mudança, em<br />

particular na ação de resistência a políticas publicas que lhe sejam<br />

adversas e na democratização da dimensão do social, desde que não<br />

atinja a região estratégica do mundo sistêmico, blindado às intervenções<br />

originárias de territórios estranhos aos seus. Eventualmente, e<br />

na margem, pode-se mais mudar que conservar. Com os antagonismos<br />

sociais importados da sociedade para o seu interior, o Estado<br />

de compromisso que procura equilibrá-los é um lugar de permanente<br />

tensão, cuja coesão depende unicamente do prestígio popular do seu<br />

chefe. Daí que, contraditoriamente, a política em curso, cujo programa<br />

parece limitar-se à adaptação à sua circunstância, dependa tanto da<br />

intervenção carismática do ator, que é, afinal, o cimento dessa, além<br />

de bizarra, frágil construção.<br />

A sua fragilidade conspira contra a sua permanência. Cada classe,<br />

fração de classe ou grupamento de interesse, nesses cinco anos de<br />

governo em condomínio, aprendeu, por lição vivida, nos seus litígios<br />

no interior da máquina governamental, que a melhor forma de vencer<br />

52 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


O Estado Novo do PT<br />

– ou de não perder tudo – está em sua capacidade de arregimentar forças<br />

na sociedade civil. Tal arregimentação, por sua vez, repercute no<br />

interior do governo e dificulta o processo de composição dos interesses<br />

contraditórios em que se acha empenhado permanentemente. A<br />

esquerda tem como alvo principal a administração do Banco Central,<br />

caixa-preta da política econômico-financeira do país, a direita encontrou<br />

o seu na presença do PMDB na coalizão política que sustenta o<br />

governo, sem a qual ele perde força no Congresso e na sociedade.<br />

E mais, a construção tem prazo de validade: o fim do mandato presidencial<br />

em 2010. Os antagonismos, à medida que essa data já se põe<br />

no horizonte, começam a procurar formas próprias de expressão, em<br />

um cenário com partidos em ruínas e instituições políticas, como o Parlamento,<br />

desacreditadas pela população. Tal tendência, ameaça virtual<br />

ao Estado Novo do PT, deverá se confirmar quando as campanhas eleitorais<br />

– a primeira, em 2008 – vierem a reanimar a agenda contenciosa<br />

das reformas institucionais (a da previdência à frente). Mas, já se faz<br />

sentir, entre tantos sinais, no mundo sindical, com o anúncio de rompimento<br />

do PCdoB, um partido integrante do governo, com a CUT, em<br />

nome de uma ação sindical mais reivindicadora, e, no mundo agrário,<br />

com a contestação do MST à política do agronegócio do etanol.<br />

De qualquer sorte, da perspectiva de hoje, já visível o marco de<br />

2010, não se pode deixar de cogitar sobre as possibilidades de que o<br />

condomínio pluriclassista que nos governa venha a encontrar crescentes<br />

dificuldades para sua reprodução, em particular quando se tornar<br />

inevitável, na hora da sucessão presidencial, a perda da ação carismática<br />

do seu principal fiador e artífice. Na eventualidade, no contexto<br />

de uma sociedade civil desorganizada, em particular nos seus setores<br />

subalternos, e do atual desprestígio de nossas instituições democráticas,<br />

a política pode se tornar um lugar vazio, nostálgico do seu homem<br />

providencial, ou vulnerável à emergência eleitoral da direita, brandindo<br />

seu programa de reformas institucionais, entre as quais a de simplificar<br />

ao máximo o papel do Estado, a ser denunciado como agência<br />

patrimonial, fonte originária da corrupção no país. Impedir isso é a<br />

tarefa atual da esquerda. Mas, ela somente reunirá credenciais para<br />

tanto, se, rompendo com o estatuto condominial vigente, for capaz<br />

de reanimar seus partidos, aí compreendido o PT, e de estabelecer<br />

vínculos concretos com os movimentos sociais, sempre na defesa da<br />

sua autonomia, em torno de suas reivindicações. E, sem preconceitos,<br />

favorecer alianças, nas eleições e fora delas, com todos os partidos,<br />

associações e personalidades de adesão democrática, em favor de um<br />

programa centrado no objetivo de destravar os entraves ao crescimento<br />

econômico e de promover a justiça social.<br />

53


II. Conjuntura<br />

54<br />

Sobre o aquecimento global<br />

Sergio Augusto de Moraes<br />

A relação homem-natureza na pré-história<br />

Houve um tempo em que grupamentos humanos se preocupavam<br />

com os efeitos, para as próximas gerações, de sua relação com a natureza.<br />

Por exemplo, os índios sioux, que viviam numa parte do território<br />

dos atuais EEUU antes do descobrimento, caçavam búfalos pensando<br />

em preservar essa fonte de proteína até a futura sétima geração. Claro,<br />

os sioux trabalhavam com um modelo primitivo que manejava algumas<br />

poucas variáveis (taxa de reprodução da população sioux, idem<br />

dos búfalos etc.) e não conheciam a propriedade privada.<br />

Os homens do paleolítico (período que vai, aproximadamente, do<br />

ano 265.000 a.C a 10.000 a.C) tinham, ao mesmo tempo, relações de<br />

temor, de respeito e de aprendizado com a natureza. Ela dominava<br />

tanto o seu presente quanto seu futuro. Mas também lhes aportava<br />

preciosos ensinamentos: apagar o fogo com água foi um dos primeiros<br />

recursos aprendidos com ela. Nesse período, de mais ou menos<br />

255.000 anos, a população humana cresceu de 125.000 a aproximadamente<br />

5 milhões de pessoas.<br />

A revolução neolítica (entre 10 e 5.000 a.C) muda radicalmente a<br />

relação do homem com a natureza. O homem domestica os animais e as<br />

plantas o que lhe permite passar da fase de coleta ao sedentarismo. Da<br />

fase de penúria de alimentos à produção de um excedente, o que permite<br />

o surgimento da propriedade privada. O homem passa a ter uma<br />

relação com a natureza intermediada pelo proprietário da terra, surge<br />

a divisão social de classe entre amos e escravos, e o escravo vê também<br />

no seu amo um outro dono de sua vida e morte, além da natureza.<br />

A população humana passa de 5 milhões a 90 milhões.<br />

A revolução industrial e o capitalismo<br />

Com o passar dos anos aumenta o domínio do homem sobre a<br />

natureza. Mas isso não significa uma “aproximação amigável”. Marx<br />

aponta nos Grundrisse:<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Sobre o aquecimento global<br />

(...) não é a UNIDADE (grifo meu, SAM) da humanidade viva e<br />

ativa com as condições naturais, inorgânicas, da sua troca metabólica<br />

com a natureza e daí sua apropriação da natureza, que<br />

requer explicação ou é um resultado de um processo histórico,<br />

mas a SEPARAÇÃO (grifo meu, SAM) entre essas condições inorgânicas<br />

da existência humana e esta existência ativa, uma separação<br />

que só é completamente postulada na relação do trabalho<br />

assalariado com o capital. 1<br />

A questão mais difícil é portanto:<br />

(...) a compreensão da evolução das inter-relações materiais (o<br />

que Marx chamava de “relações metabólicas”) entre os seres<br />

humanos e a natureza ...” ; assim “... de um ponto de vista materialista<br />

consistente a questão não é antropocentrismo VER-<br />

SUS ecocentrismo – a rigor tais dualismos pouco nos ajudam a<br />

entender as condições materiais reais, em perene mudança, da<br />

existência humana no interior da biosfera- mas uma questão de<br />

CO-EVOLUÇÃO. 2<br />

Em O Capital, Marx usa o conceito de METABOLISMO para definir<br />

o processo de trabalho “... como um processo entre o homem e a<br />

natureza , um processo pelo qual o homem, através de suas próprias<br />

ações, MEDEIA, REGULA E CONTROLA o metabolismo entre ele e a<br />

natureza”. Mas uma falha irreparável surgiu nesse metabolismo em<br />

decorrência das relações de produção capitalistas e da separação<br />

antagonista entre cidade e campo. Daí ser necessário, na sociedade<br />

de produtores associados, quer dizer, na sociedade comunista “... governar<br />

o metabolismo humano com a natureza de modo racional”, o<br />

que excede completamente as capacitações da sociedade burguesa. 3<br />

No capitalismo o que governa a relação entre o homem e a natureza,<br />

entre o capital e o trabalho, é a obtenção de lucro máximo o que,<br />

em última instância, exclui aquele “governo racional”.<br />

Quando se inicia a revolução industrial, nos meados do século<br />

XIX, essa separação da natureza, essa irracionalidade, não representava<br />

ainda uma ameaça às condições de vida no planeta. Ao contrário,<br />

era um fator de progresso, comparado com as condições de<br />

1 Citado por John Bellamy Foster em A Ecologia de Marx, Ed.Civilização Brasileira,<br />

RJ, 2005, p. 13<br />

2 Idem, p. 23<br />

3 Idem, p. 201.<br />

55


III. Observatório Político<br />

servidão que existiam antes. Mas o modo de produção capitalista não<br />

podia avançar sem criar novos mercados, sem revolucionar permanentemente<br />

as forças produtivas atrás de maiores lucros.<br />

Para a população então existente, algo em torno de 800 milhões<br />

de pessoas, a natureza parecia inesgotável, o “progresso” não a ameaçava.<br />

Hoje, qualquer pessoa razoavelmente informada sabe que não<br />

é bem assim.<br />

População e meio ambiente<br />

Em <strong>18</strong>50 a população mundial passou de 1 bilhão, em 1950 atingiu<br />

2,5 bilhões, em 2000 alcançou 6 bilhões, em 2005 chegou a 6,4<br />

bilhões. O campo se esvaziou e as cidades cresceram exponencialmente:<br />

o homem se afasta mais e mais da natureza.<br />

As causas deste crescimento exponencial da população mundial<br />

tem várias fontes, desde o declínio da mortalidade infantil até à produção<br />

de antibióticos. A principal, porém, é o modo de produção<br />

capitalista, que concentra capital, amplia permanentemente o mercado,<br />

aumenta e concentra o número de trabalhadores, amplia as<br />

desigualdades, cria as megalópolis. É isso que está na origem da<br />

agressão ao meio ambiente que presenciamos hoje.<br />

A degradação ambiental vem de há muito sendo objeto de preocupação<br />

e denuncia por parte de cientistas, organizações e personalidades<br />

no mundo inteiro. Na década de 1980, Jacques Cousteau e um<br />

grupo de estudiosos das universidades norte-americanas já haviam<br />

anunciado que os recursos do planeta não seriam suficientes para<br />

sustentar o padrão de consumo dos EEUU se ele fosse estendido a<br />

todo o mundo. Não haveria petróleo, aço, alumínio e outros materiais<br />

para satisfazer a demanda que seria criada.<br />

No limiar do século XXI, a situação se agravou. Diz a revista The<br />

Economist:<br />

56<br />

O principal impacto da China no mercado mundial é a mudança<br />

dos preços relativos. Os produtos exportados pela China empurram<br />

os preços para baixo e os produtos importados por ela<br />

puxam os preços para cima, nomeadamente petróleo e matérias<br />

primas. A China é hoje o maior consumidor de alumínio, aço,<br />

cobre e carvão, e o segundo em petróleo... como o consumo per<br />

capita de petróleo na China é ainda 1/15 daquele dos EEUU é<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Sobre o aquecimento global<br />

inevitável que a demanda de energia cresça no futuro, juntamente<br />

com o aumento da renda. 4<br />

O que se descortina hoje é que com base nos recursos naturais<br />

conhecidos e prospectados no mundo e com a atual tecnologia nem<br />

a China poderia alcançar o nível de consumo dos EEUU sem provocar<br />

um desastre ecológico.<br />

A questão do aquecimento global<br />

Em 1992, representantes de quase todos os países do mundo<br />

reuniram-se no Rio de Janeiro para elaborar a “Carta da Terra”,<br />

assinada por 175 países, que abarcava três convenções: Biodiversidade,<br />

Desertificação e Mudanças Climáticas, uma Declaração de<br />

Princípios e a Agenda 21, base para que cada país elaborasse seu<br />

plano de conservação do meio ambiente.<br />

O Protocolo de Kioto (1997) foi mais adiante: estabeleceu metas<br />

para a emissão de gases poluentes, dentre os quais o dióxido de<br />

carbono (CO2) e o metano (CH4), que, além de outros gases, contribuem<br />

para aumentar o “efeito estufa”. Este protocolo conta com a<br />

participação de 163 nações e prevê que até 2012 seus signatários<br />

reduzam as emissões combinadas a níveis 5% abaixo dos índices de<br />

1990. A eficácia do acordo, contudo, é limitada, pois até o momento<br />

os Estados Unidos, maior emissor mundial de dióxido de carbono,<br />

não ratificaram o pacto. Especialistas acreditam que as resoluções<br />

de Kioto apenas combatem a camada mais superficial do problema<br />

do aquecimento.<br />

O Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC),<br />

promovido pela ONU, realizado em Paris, em abril deste ano (2007),<br />

com a participação de 2.500 cientistas e estudiosos, acendeu o sinal<br />

vermelho. Segundo o “Quarto Relatório de Avaliação do GT1:<br />

(...) a concentração atmosférica global de dióxido de carbono<br />

aumentou de um valor pré-industrial (1750) de cerca de 280<br />

ppm para 379 ppm em 2005. 5<br />

4 “The Economist”, 30/07/05, p. 62,63.<br />

5 ppm, partes por milhão, é a razão do número de moléculas de gases de efeito estufa<br />

em relação ao número total de moléculas de ar seco; ppb, idem, idem, bilhão.<br />

57


III. Observatório Político<br />

A concentração atmosférica de dióxido de carbono em 2005 ultrapassa<br />

em muito a faixa natural dos últimos 650.000 anos (<strong>18</strong>0 a<br />

300 ppm) como determinado a partir de testemunhos de gelo. A taxa<br />

de aumento de concentração anual de dióxido de carbono foi mais<br />

elevada durante os últimos dez anos (média de 1995 a 2005: 1,9 ppm<br />

por ano) do que desde o início das medições atmosféricas contínuas<br />

(média de 1960 a 2005: 1,4 ppm por ano) embora haja variações de<br />

um ano a outro nas taxas”. E acrescenta, adiante:<br />

58<br />

(...) a principal fonte de aumento da concentração atmosférica de<br />

dióxido de carbono desde o período pré-industrial se deve ao uso<br />

de combustíveis fósseis, com a mudança do uso da terra contribuindo<br />

com uma parcela significativa, porém menor. 6<br />

Sabe-se que o efeito estufa é indispensável à vida na Terra. Entretanto,<br />

a partir de um certo valor da concentração dos gases, a temperatura<br />

na Terra aumentaria a ponto de produzir catástrofes ecológicas<br />

como amplamente divulgado pelos jornais após a publicação do relatório<br />

do IPCC.<br />

A matriz do aquecimento<br />

As principais fontes de gases do aquecimento global são (em %):<br />

Transportes .......................................................................... 13,5<br />

Eletricidade .......................................................................... 24,6<br />

Outras formas de queima de combustível ............................... 9,0<br />

Indústria .............................................................................. 10,4<br />

Emissões acidentais ............................................................... 3,9<br />

Processos industriais .............................................................. 3,4<br />

Uso da terra ......................................................................... <strong>18</strong>,2<br />

Agricultura ........................................................................... 13,5<br />

Lixo e rejeitos ......................................................................... 3,6<br />

Desse total, 77% corresponde ao CO2, 14% ao metano (CH4), 8%<br />

ao óxido nitroso (N2O) e 1% a outros. 7<br />

Daqui é fácil concluir que o maior contribuinte desses gases é a<br />

indústria petrolífera. Não é por acaso que o American Enterprise Institute<br />

(AEI), um instituto financiado pela gigante petrolífera ExxonMobil<br />

6 Quarto Relatório de Avaliação do GT1 do IPCC, Sumário Para os Formuladores de<br />

Política (em português), p. 5<br />

7 “O Globo” de 3/02/07, p. 42.<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Sobre o aquecimento global<br />

com “ligações estreitas com o governo Bush” – ofereceu US$ 10 mil<br />

para que cientistas e economistas publicassem artigos que duvidassem<br />

das constatações do relatório do IPCC. 8<br />

Quem são os responsáveis?<br />

Mas a discussão sobre os responsáveis não para aqui. Alguns<br />

estudiosos vêm concentrando a discussão na quantificação da parcela<br />

desse aumento dos gases do efeito estufa. Afinal, dizem eles,<br />

qual seria a contribuição do homem e qual a da natureza, aqui incluídos<br />

fatores do planeta e do sistema solar, nesse aumento?<br />

O que os cientistas que elaboraram o relatório do IPCC dizem é<br />

que há 90% de chance de que o aumento observado após a revolução<br />

industrial cabe ao homem. Outros argumentam que seria prepotência<br />

dos seres humanos atribuírem às suas atividades o poder<br />

de mudar o clima do planeta.<br />

Há que notar que a humanidade vem influindo sobre o meio ambiente<br />

há milênios. A destruição da floresta que havia na Zona da<br />

Mata alterou o clima do nordeste brasileiro e no mundo os exemplos<br />

de tal interferência são inúmeros. Mas, diriam aqueles, uma coisa<br />

é alterar o clima em regiões localizadas outra é alterar as condições<br />

da atmosfera que afetam o planeta.<br />

Até o fim da guerra fria, nos últimos anos da década de 80 do<br />

século passado, uma guerra nuclear entre os EEUU e a União Soviética<br />

era uma possibilidade real. Se isso tivesse acontecido, diziam<br />

os cientistas, seria criado um “inverno nuclear” com efeitos semelhantes<br />

àquele criado pela queda de um meteoro que há milhões de<br />

anos destruiu os dinossauros.<br />

O buraco na camada de ozônio é um exemplo instrutivo: na<br />

medida em que os países ricos reduziram ou eliminaram a emissão<br />

dos CFCs (gases que destroem aquela camada) o buraco reduziu-se<br />

significativamente.<br />

Os principais responsáveis pelo aquecimento global são os países<br />

ricos que, com uma população de 20% da humanidade, consomem<br />

hoje 80% do que é produzido no planeta (aqui incluído a energia),<br />

enquanto os outros 80% ficam apenas com 20% .O desafio não<br />

é fazer com que esses 80% mais pobres consumam (e desperdicem)<br />

a mesma coisa que os ricos, mas sim que haja uma redistribuição<br />

de renda aliada a um desenvolvimento ecologicamente correto para<br />

8 Idem , idem, p. 40.<br />

59


III. Observatório Político<br />

que possamos chegar a uma co-evolução, a uma relação racional<br />

com a natureza. Esse é talvez o maior e mais urgente desafio para<br />

a democracia.<br />

Gente, tecnologia e tempo<br />

A humanidade levou mais ou menos 120.000 anos para chegar<br />

ao primeiro bilhão de seres humanos (em torno de <strong>18</strong>00 d.C). E, a<br />

partir daqui, somente 200 anos para chegar a 6 bilhões. Entretanto,<br />

se olharmos mais de perto esse número não cresceu e não cresce<br />

igualmente em todos os períodos nem nos diversos continentes. Na<br />

Europa, a taxa de crescimento populacional foi de 1,7 entre 1750 e<br />

<strong>18</strong>50, passou para 1,98 deste ano até 1950, decresce para 1,32 desta<br />

data até 2000 e daqui passa a ser menor que 1, decrescendo de 727,9<br />

milhões em 2000 para 724,7 milhões(mi), em 2005. Na Ásia, só entre<br />

1950 e 2000 a população passa de 1,39 bilhões (bi) para 3,67 bi, uma<br />

taxa de reprodução de 2,63 em 50 anos. E lá a taxa continua a ser<br />

maior que 1. 9<br />

O que se nota é que enquanto o capitalismo industrial e as técnicas<br />

fordistas e tayloristas dominaram a Europa o crescimento de sua<br />

população foi acentuado. A partir da década de 60 do século passado<br />

os trabalhadores europeus atingem um alto grau de organização e de<br />

luta, a competição com o sistema socialista ganha novas cores, começa<br />

a revolução técnico-científica e as atividades industriais intensivas<br />

em mão de obra passam a ser transferidas para os países subdesenvolvidos,<br />

como foi o caso da indústria automobilística no Brasil.<br />

Os métodos anticoncepcionais se desenvolvem e a pílula passa a<br />

jogar um papel decisivo na taxa de reprodução da população. As populações<br />

da Europa e dos EEUU passam a concentrar a produção de<br />

conhecimentos, a taxa de reprodução pode cair.<br />

Como dissemos acima, mesmo com a atual população mundial e<br />

se alguma fada fizesse com que as relações de dominação mudassem<br />

os recursos do planeta não seriam suficientes para atender um consumo<br />

do padrão dos norte-americanos para toda a população mundial.<br />

Entretanto, o esgotamento progressivo dos recursos não significaria<br />

um limite físico para o capitalismo, para o crescimento da sua produtividade<br />

social. Porque as mudanças tecnológicas permitiriam sua<br />

sobrevida nas novas condições: a General Motors já desenvolveu pro-<br />

9 “Crescimento Populacional”, Wikipédia em http//t.wikipedia.org/wiki/Crescimen-<br />

60<br />

to_populacional<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Sobre o aquecimento global<br />

tótipos de carros elétricos, idem de hidrogênio etc. E o sistema solar<br />

mal começou a ser explorado. Claro, as reservas de petróleo que a<br />

natureza levou milhões de anos para produzir seriam esgotadas e o<br />

aquecimento global já teria derretido a calota polar. Já existem notícias<br />

de que o preço do metro quadrado no Alaska está subindo. As<br />

regiões frias do norte se transformariam em temperadas e as tropicais<br />

em desertos.<br />

Isso não será assim, dizem alguns, porque a próxima glaciação vai<br />

mudar tudo. Mas o que se sabe é que não há indícios desse fenômeno.<br />

Os mais de cinqüenta modelos matemáticos construídos para explicar<br />

esses ciclos ainda não permitem prever o tempo em que tal fenômeno<br />

se dará.<br />

Nessas circunstâncias, as relações de exploração e desigualdade<br />

continuariam e se expandiriam para outras fronteiras porque isso é<br />

inerente ao capitalismo.<br />

Os desafios e limites para os que querem estabelecer uma relação<br />

racional com a natureza não são físicos, são políticos.<br />

*<br />

61


III. Observatório Político<br />

62<br />

Um país (um mundo)<br />

de sinais trocados<br />

Marcos Costa Lima<br />

Chame o ladrão, chame o ladrão!<br />

Chico Buarque de Holanda<br />

O<br />

trecho antológico do samba Acorda, amor de Chico Buarque é<br />

expressão da ironia, da astúcia e da atualidade desse grande<br />

músico e poeta brasileiro. Evidencia um país de sinais trocados,<br />

onde a lei é excludente, rigorosa, madrasta, sobretudo para os<br />

mais fracos, os destituídos de poder.<br />

Vive-se numa sociedade em que a impunidade do colarinho branco<br />

é a regra, em que é raro o relacionamento de igual para igual, em que<br />

a esfera pública é marcada por privilégios de toda natureza. Ampliamse,<br />

ano a ano, a espacialização das classes sociais e os guetos, seja<br />

no sentido dos condomínios luxuosos das altas rendas, dos shopping<br />

centers reluzentes, seja das palafitas e favelas dos trabalhadores informais.<br />

Privatiza-se boa parte do Estado e declara-se, sem maiores<br />

discussões, a eficiência do mercado. Ou, como diria em tom de ironia<br />

o historiador Perry Anderson (2004), o aprofundamento das “assimetrias<br />

entre a rua e o palácio”.<br />

O padrão de conduta dominante é o individualismo, é o salve-se<br />

quem puder, pois vigora um sistemático darwinismo social a cada dia<br />

mais generalizado, que impregna pouco a pouco todo o imaginário e o<br />

tecido social.<br />

No cotidiano urbano, privilegiam-se os automóveis, e não as pessoas,<br />

com avenidas a permitirem a celeridade dos carros, que desconfiguram<br />

edificações de valor histórico. Asfaltam-se antigas áreas<br />

verdes, impedindo ou dificultando o caminhar dos pedestres, sujeitos<br />

a ruas sem calçadas, barulhentas, com os esgotos estourados atentando<br />

contra a saúde pública. E raros são os espaços públicos de<br />

convivência, de sociabilidade, uma vez que a pobreza desloca-se a pé<br />

ou de ônibus, jamais de automóveis de passeio de uso das classes<br />

médias, que vão de uma “ilha urbana” à outra, rumo a espaços cli-<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Um país (um mundo) de sinais trocados<br />

matizados e de conforto. Em muitas metrópoles brasileiras, até o pão<br />

cotidiano compra-se de automóvel, por medo de assaltos, e nos meios<br />

abastados, quando é procurado a pé, o é por intermédio das domésticas.<br />

Evidentemente anula-se, pela residência em altos edifícios, o<br />

sentido da vizinhança, para não dizer o de compartilhar.<br />

Viver exclusivamente para si e os familiares mais próximos é, principalmente,<br />

ignorar os outros, é pensar nos prazeres e nas facilidades<br />

individuais, custe o que custar. Se o objetivo é chegar mais cedo à<br />

casa ou ao trabalho, jamais se cede a vez, jamais se pratica um gesto<br />

cordial, considerado atitude de “otário”, que não sabe levar vantagem,<br />

que desconhece que o homem é o lobo do homem. Portanto, quem não<br />

se adapta, quem não é “forte”, quem não decide, quem não é eficiente<br />

é um perdedor, talvez a palavra mais ofensiva na língua dos norteamericanos,<br />

o loser.<br />

Já na filosofia de Platão encontrava-se a crítica social, pois seu<br />

idealismo não podia admitir um mundo material onde os homens e as<br />

coisas se defrontassem como mercadorias. A ordem justa da alma seria<br />

destruída pela cobiça da riqueza, que controla os homens a ponto<br />

de não terem mais tempo para nada além da preocupação com suas<br />

propriedades. O cidadão se empenha nisso com toda a sua alma, de<br />

modo que não tem tempo para pensar em nada mais do que no ganho<br />

diário, no acúmulo de riquezas.<br />

Segundo Herbert Marcuse (2001), na época burguesa, a teoria da<br />

relação entre o necessário e o belo, entre o mundo dos sentidos e o<br />

mundo das idéias, entre o trabalho e o prazer experimentou mudanças<br />

substantivas. Em primeiro lugar, desapareceu a idéia de que a<br />

preocupação com os valores supremos seria apropriada como profissão<br />

por determinados setores sociais. Em seguida, surge a tese da<br />

universalidade geral da “cultura”. No entanto, mantém-se e afirma-se<br />

a dicotomia entre cultura e civilização; quer dizer, de um lado um<br />

mundo espiritual melhor, essencialmente diferente da res extensa, da<br />

luta cotidiana pela existência. Os grupos da burguesia fundavam sua<br />

exigência de uma nova liberdade social mediante a razão humana universal,<br />

mas ela logo se revelava excludente:<br />

[...] numa sociedade que se reproduz pela concorrência<br />

econômica, a simples exigência de uma existência feliz do<br />

todo já representava uma rebelião [...] A exigência de felicidade<br />

contém um tom perigoso em uma ordem que resulta<br />

em opressão, carência e sacrifício para a maioria. (MAR-<br />

CUSE, 2001)<br />

63


III. Observatório Político<br />

Uma sociabilidade unidimensional, como diria nosso filósofo, é resultante<br />

de uma sociedade em ruptura, em que a cultura foi engolida<br />

pela civilização, em que a perda da percepção dos outros, o alheamento<br />

individual é uma exigência pragmática de sobrevivência. Mas<br />

é também uma perda de sentido mais geral – vive-se apenas para a<br />

conquista de bens materiais, mesmo à custa da perda de convivência<br />

com filhos, amigos, parentes. Aí reside o fetichismo da mercadoria.<br />

Vive-se como um moto-contínuo, sem questionamentos, sem se perguntar<br />

para que, por que, para quem. O outro, nessa perspectiva,<br />

é sempre percebido como um adversário, jamais como alguém com<br />

quem se possa dialogar, trocar, aprender e, menos ainda, como uma<br />

parceria criativa. Perde-se a dimensão de projeto, de objetivos comuns<br />

e instaura-se a fragmentação, o curto-prazo, o imediatismo.<br />

O conjunto desses comportamentos, analisados com acuidade por<br />

Lasch (1970; 1995), foi por ele intitulado de “ética da sobrevivência<br />

narcísica”, em que o sentido do que é coletivo e público esfuma-se,<br />

para dar lugar a uma privatização acentuada das esferas da saúde,<br />

da educação, da segurança. Lasch, imunizado contra o culto da economia,<br />

do progresso, da modernização, põe em questão o movimento<br />

tido como inelutável, que submete ao “reino da economia” todas as<br />

sociedades e o processo de emancipação efetiva dos indivíduos e dos<br />

povos.<br />

No mesmo sentido, Jean-Claude Michéa (2003) afirma que o “pretendido<br />

realismo da ciência econômica repousa sobre uma representação<br />

metafísica do homem, cuja aplicação prática e irrefletida é terrivelmente<br />

destrutiva para a humanidade real”. Na cultura da indiferença,<br />

conforme a lúcida reflexão de Jurandir Freire da Costa, a guerra é de<br />

todos contra todos e, nesse embate, morte e vida se equivalem.<br />

Não foi justamente Adam Smith quem entronizou a idéia segundo<br />

a qual o bem-estar material de “toda a sociedade” é garantido quando<br />

todos podem seguir o seu próprio interesse particular? Albert Hirschman<br />

(2002) ressalta que o autor de A Riqueza das Nações torna<br />

sinônimos os termos “interesses” e “paixões”, que tinham significados<br />

antagônicos na literatura até a elaboração de sua opus magna.<br />

Quais são os grandes problemas que têm acometido a sociedade<br />

contemporânea e os indivíduos? Observando o mundo contemporâneo<br />

a partir da interpretação freudiana, que trata o processo civilizatório<br />

como um confronto entre o instinto de vida (Eros) e o instinto de morte<br />

(Thanatos), no entendimento dos fluxos simbólicos, das pulsões produtivas<br />

da atualidade, Thanatos estaria momentaneamente vitorioso,<br />

e não é difícil perceber quatro dimensões articuladas daquilo que re-<br />

64<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Um país (um mundo) de sinais trocados<br />

presenta esse mal-estar civilizatório, dimensões que ressaltam a falência<br />

do paradigma atual e a necessidade de construirmos alternativas<br />

à crise vigente.<br />

A primeira delas é a dimensão global, que tem como características<br />

mais salientes um sistema financeiro dominante, que exige retornos<br />

predatórios à dinâmica do setor produtivo, estimulando uma acentuada<br />

“oligopolização” do poder das grandes corporações transnacionais;<br />

a utilização privativa, mercantil e exclusiva da ciência; a obsolescência<br />

programada da produção de artefatos; a ampliação da dominação sobre<br />

a periferia do capitalismo; uma sociedade de consumo excludente:<br />

o incremento da pobreza mundial; uma crise ambiental generalizada;<br />

uma ideologia da Via Única; a vertigem da velocidade e o excesso de<br />

informação.<br />

A segunda é a dimensão doméstica, dos costumes e da cultura,<br />

na qual o individualismo prevalece sobre o coletivo; a mudança no interior<br />

da família; o consumo conspícuo e ostensivo; o excessivo poder<br />

da imagem; o narcisismo e o exibicionismo; o voyeurismo e a “espetacularização”;<br />

a solidão dos indivíduos e das massas; a predominância<br />

do curto prazo e do hedonismo; a falta de compromisso; a falta de ética<br />

nas relações; a falta de perspectivas; as drogas enquanto “paraísos<br />

artificiais”; a perda da auto-estima pela fragilidade dos princípios; o<br />

sexo como mercadoria; a intolerância. Não é por nada que boa parte da<br />

ciência política contemporânea assume, derrisoriamente, as premissas<br />

do individualismo metodológico ou da intitulada “escolha racional”.<br />

A terceira dimensão é aquela da produção: a crise e a precarização<br />

do trabalho; a insegurança quanto ao futuro; o desemprego estrutural<br />

e a robótica; o trabalhador descartável; a quebra dos padrões legais de<br />

proteção vigentes; o risco e o medo do fracasso.<br />

Finalmente, a dimensão da cidadania: a crise do Estado; o Estado<br />

autoritário; o Estado mínimo privatizado; o retorno das questões e<br />

conflitos religiosos e étnicos; a descrença generalizada na política; a<br />

formalização dos direitos e a impunidade; a explosão da violência concreta<br />

e simbólica; o “humanismo militar” 1 .<br />

Jurandir Freire da Costa (1977) diz que “[...] através do imaginário<br />

social, podemos entender a construção da subjetividade historicamente<br />

contingente e socialmente determinada”. E esse imaginário está<br />

condicionado pela exploração econômica e física da classe trabalhadora,<br />

pela concentração de renda, pela brutalidade e violência cotidiana,<br />

1 Expressão utilizada por Perry Anderson para designar a violência expressa nas hegemonias<br />

dos países centrais, notadamente aquela dos Estados Unidos da América.<br />

65


III. Observatório Político<br />

em que os políticos sinalizam para um descompromisso com o interesse<br />

coletivo; em que a polícia, enquanto agente público da segurança,<br />

comete todo tipo de arbitrariedade – da corrupção ao extermínio –, em<br />

que os pobres e miseráveis não são percebidos enquanto sujeitos, enquanto<br />

pessoas morais, enquanto cidadãos, e essa desqualificação do<br />

sujeito como ser moral provoca a indiferença e anula o outro em sua<br />

humanidade, como nos lembra Hannah Arendt. Se as elites ignoram<br />

os pobres, ou fazem semblante, estes, por sua vez, negam seu pertencimento<br />

a um povo, classe ou nação (COSTA, 1994); e o banditismo<br />

incruento das Cidades de Deus, dos Jardineiros Fiéis é extrapolado<br />

para os espaços luminosos e refrigerados das cidades maravilhosas,<br />

daqui e d’além mar.<br />

É grave o crescente problema da violação dos direitos humanos<br />

coletivos e individuais no cotidiano, numa sociedade em que as instituições<br />

mediadoras estão, se não ausentes, omissas ou coniventes<br />

com a produção da violência, ao não reconhecerem os direitos da<br />

“gente miúda”, das camadas populares que não são aceitas como<br />

sujeitos sociais e políticos. Desta forma há que se trabalhar o papel<br />

emancipatório da educação e da aprendizagem conjunta na elaboração<br />

de uma educação para os direitos humanos, levando em conta<br />

as determinações materiais necessárias à vida social como condição<br />

para o avanço dos espaços alternativos de construção de outros saberes,<br />

indispensáveis para que uma nova prática seja implantada, a<br />

começar pela recuperação da democracia. Este não é um processo<br />

simples e pode exigir a desobediência civil, a exemplo do que têm<br />

demonstrado os “sem terra”.<br />

Os gregos na antiguidade atribuíam à paidéia o sentido da formação<br />

e educação de seu povo, pois:<br />

66<br />

“[...] estavam convencidos de que a educação e a cultura<br />

não constituem arte formal ou uma teoria abstrata, distinta<br />

da estrutura histórica objetiva da vida espiritual de<br />

uma nação. [...] Os gregos viram pela primeira vez que a<br />

educação tem de ser também um processo de construção<br />

consciente [...] e só a este tipo de educação se pode aplicar<br />

com propriedade a palavra formação, tal qual a usou Platão<br />

em sentido metafórico, aplicando-a à ação educadora<br />

[...]” (JAEGER, 1975).<br />

Com as devidas mediações, isso está em sintonia com a educação<br />

para a liberdade, de Paulo Freire, que implica descolonizar saberes<br />

estabelecidos, respeitar o saber do educando, rejeitar qualquer forma<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Um país (um mundo) de sinais trocados<br />

de discriminação, aceitar o novo, tomar o conhecimento como uma<br />

construção de pontes, uma dialógica entre o ir e o vir, com padrões de<br />

respeito à dignidade do próximo.<br />

Uma educação transformadora para uma população majoritariamente<br />

desprovida de direitos, porque desprovida de poder, nos reporta<br />

à significativa obra de Amartya Sen (1997) sobre a pobreza. O<br />

economista indiano introduz um conceito de alta relevância, que é o<br />

conceito de efetivação 2 . Os elementos constitutivos da vida são entendidos<br />

como combinações de várias efetivações. A relação das efetivações<br />

será tanto maior quanto maiores forem as possibilidades de<br />

um sistema social. Existem efetivações elementares, como evitar a<br />

morte precoce, alimentar-se adequadamente, o direito de transitar, ou<br />

até efetivações mais complexas, como desenvolver o auto-respeito, a<br />

auto-estima, participar da vida comunitária de forma ampla (COSTA<br />

LIMA; LEITE, 2001).<br />

Comentando a assertiva de Montesquieu segundo a qual a vida dos<br />

povos era governada por leis e costumes, Hannah Arendt nos alerta<br />

que “a falência das nações tem início com a destruição gradual da legalidade,<br />

seja porque o governo no poder abusa das leis, seja porque<br />

as leis nascem de uma autoridade que se torna questionável”. Como<br />

resultado, a nação acaba por perder, além da crença em suas próprias<br />

leis, sua capacidade de ação política responsável: “As pessoas deixam<br />

de ser cidadãs no sentido estrito do termo. [...] Só se pode confiar na<br />

tradição para impedir o pior durante um período limitado de tempo”.<br />

Em nossa tradição autoritária e oligárquica, a fragilidade de nosso<br />

Estado democrático de Direito é cotidianamente exposta, é uma quase<br />

figura de retórica.<br />

Ao concluir estas reflexões sobre este país (mundo) de ponta-cabeça,<br />

onde é próprio do capitalismo mundializado aprofundar as desigualdades<br />

e as injustiças (GADREY, 2000; PLIHON, 2003), uma reflexão<br />

do jurista Fábio Konder Comparato (2004) chama a atenção para<br />

o fato de que no Brasil o sistema democrático tem funcionado em sentido<br />

inverso, pois a soberania tem pertencido de fato aos governantes<br />

“que vivem numa espécie de estratosfera ou círculo celeste”, região ou<br />

domínio onde só são admitidos os que detêm poder econômico ou, no<br />

máximo, aqueles carismáticos que possuem poder simbólico, que se<br />

2 Também conhecido como enfoque da habilitação (entitlement). Para participar da<br />

distribuição de renda social, é necessário estar habilitado por títulos outros, seja<br />

de propriedade, seja pela inserção qualificada no sistema produtivo, pelo comércio,<br />

pelo trabalho por conta própria, pela herança. Cada elo na cadeia das relações de<br />

efetivação legitima um conjunto de propriedades (títulos) em relação a outros.<br />

67


III. Observatório Político<br />

transfigura em votos junto à opinião pública; de fato são expressões de<br />

poder que caminham juntas. Por quanto tempo mais? A democracia,<br />

muito ao contrário, “pressupõe a atribuição efetiva (e não apenas simbólica)<br />

da soberania ao povo, devendo os órgãos estatais atuar como<br />

meros executores da vontade popular”.<br />

Referências<br />

ANDERSON, Perry. “A batalha das idéias na construção das<br />

alternativas”. In: Atílio Borón. Nova Hegemonia Mundial. Buenos<br />

Aires: Clacso, p. 46, 2004.<br />

ARENDT, Hannah. A Dignidade da Política. Rio de Janeiro:<br />

Relume-Dumará, 1993.<br />

COSTA, Jurandir Freire da. “Ética e democrática e seus inimigos: o<br />

lado privado da violência pública”. In: Nascimento, Elimar Pinheiro<br />

(org.). Ética. Rio de Janeiro; Brasília, DF: Garamond/Codeplan.<br />

(Coleção Brasília, Capital do debate: o Século XXI), 1997.<br />

COSTA LIMA, Marcos; LEITE, Maria de Jesus de Britto. “O conceito<br />

de pobreza e a sua mensuração: uma pluralidade de abordagens”.<br />

Política Hoje, ano 7, n. 11, jul., Recife, 2001.<br />

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à<br />

prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.<br />

GADREY, Jean. Nouvelle Économie, nouveau mythe? Paris:<br />

Flammarion, 2000.<br />

HIRSCHMAN, Albert O. As paixões e os interesses. Rio de Janeiro:<br />

Record, 2002.<br />

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São<br />

Paulo: Martins Fontes, p. 2, 13, 1975.<br />

LASCH, Christopher. A rebelião das elites e a traição da<br />

democracia. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995.<br />

MARCUSE, Herbert. Cultura e psicanálise. São Paulo: Paz e Terra,<br />

p. 7-77, 2001.<br />

MICHÈA, Jean-Claude. Impasse Adam Smith: brèves remarques<br />

sur lº impossibilité de dépasser le capitalisme sur la gauche.<br />

Paris: Climats, p. 40, 2002.<br />

68<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


IV. No compasso<br />

das reformas


Autores<br />

Arryanne Queiroz<br />

Analista Judiciário do Tribunal Superior Eleitoral, pesquisadora da Anis: Instituto de<br />

Boética, Direitos Humanos e Gênero<br />

Márcia de Alencar<br />

Psicóloga com pós-graduação em Sociologia, consultora em Penas Alternativas,<br />

especialista em Gestão Pública e membro da diretoria executiva do Instituto Brasileiro<br />

de Execução Penal (Ibep).<br />

Almira Rodrigues<br />

Doutora em Sociologia pela UnB e feminista.


Colisão de direitos fundamentais no<br />

debate sobre aborto<br />

Arryanne Queiroz 1*<br />

A<br />

discussão sobre o aborto provoca os limites da tolerância moral,<br />

ética e religiosa das pessoas. Infelizmente, boa parcela da humanidade<br />

ainda se vale da religião como justificativa absoluta<br />

para praticar atos truculentos contra seus estranhos morais, optando<br />

pelo fanatismo religioso em detrimento da lucidez religiosa; assumindo<br />

o compromisso missionário de fazer valer uma única verdade, como<br />

se a pluralidade de pensamentos não fizesse parte da essência do ser<br />

humano.<br />

No Brasil, o debate público sobre o aborto tem sido marcado pela<br />

intolerância religiosa de congregações radicais, que, amparados pelo<br />

direito fundamental à liberdade de expressão, e em nome da causa<br />

antiaborto, se valem da violência à imagem e à honorabilidade alheios<br />

para tentar impor silêncio. O mecanismo eleito para desqualificar, segregar<br />

e intimidar quem ousa divergir é a imputação da palavra ‘abortista’<br />

contra quem promove o dissenso ético e democrático no debate<br />

sobre o aborto.<br />

É preciso descascar as várias camadas de significado do termo<br />

‘abortista’. A expressão é pejorativa e grosseira, além de estar associada<br />

a figuras depreciativas como caveiras ou a morte. Não faz parte do<br />

léxico corrente da língua portuguesa, a tal ponto que não foi inserida<br />

1 Analista Judiciário do Tribunal Superior Eleitoral, pesquisadora da Anis: Instituto<br />

de Boética, Direitos Humanos e Gênero.<br />

71


IV. No compasso das reformas<br />

nos dicionários oficiais do idioma. Não é conceito moralmente neutro,<br />

sendo que, dentro das comunidades onde adquire reconhecimento,<br />

validade, eficácia e aplicabilidade, constitui ofensa gravíssima. Nenhuma<br />

pessoa adepta da bandeira ‘pró-vida’ – absolutamente contrária a<br />

toda justificativa para o aborto – toleraria ser taxada como ‘abortista’,<br />

certamente porque essa tipificação atingiria sua honra e sua imagem,<br />

com conclusões nefastas sobre sua índole e seu caráter. A palavra é<br />

usada tanto como adjetivo quanto como substantivo, sempre implicando,<br />

nas duas acepções, insulto, com pesos negativos similares na<br />

perspectiva do ofendido e do ofensor.<br />

O emprego da palavra estimula um sentimento de aversão e de<br />

repugnância, principalmente, porque o tema ainda não deixou de ser<br />

tabu na sociedade brasileira. Tem conotação torpe e infame, não se<br />

prestando simplesmente a evidenciar a adoção partidária de corrente<br />

ideológica sobre o aborto. É a tradução panfletária de ‘assassino de<br />

bebês’: um slogan religioso de impacto político criado para angariar<br />

forças para o front de uma luta ‘santa’ (imaginária) contra qualquer<br />

convite público de reflexão sobre a eticidade e a humanidade da abreviação<br />

terapêutica da gestação, desde a perspectiva da saúde emocional,<br />

mental, psíquica e física da gestante.<br />

Afora isso, enseja uma visão distorcida e caricata do indivíduo,<br />

induzindo à conclusão equivocada de que sua discordância quanto à<br />

posição oponente ao aborto compromete a idoneidade de sua conduta.<br />

O uso da expressão serve a um propósito demarcatório simplificado<br />

de identidades, em que, de um lado, são postas as pessoas más (‘abortistas’)<br />

e, de outro, as pessoas boas (não ‘abortistas’), contrapostas,<br />

respectivamente, entre o satânico e o divino, valores espirituais importantes<br />

para a sociedade.<br />

A ligação do nome, da imagem e da profissão de uma pessoa ao<br />

vocábulo tem por fim enfraquecer e escarnecer seu discurso e pôr em<br />

cheque a seriedade de sua linha de pesquisa, desviando, de forma rasteira,<br />

o foco de atenção, da atividade intelectual, para a personalidade<br />

do indivíduo. As pessoas que não reconhecem no aborto um pecado<br />

contra Deus nem uma transgressão de preceitos religiosos ou dogmas<br />

de fé, mesmo sem serem agnósticas ou descrentes, são etiquetadas<br />

como ‘abortistas’, tornando-se vítimas de um reducionismo perverso<br />

sobre sua efetiva compreensão acerca da moralidade do aborto.<br />

A associação de uma pessoa ao termo ‘abortista’, que traz implícito<br />

em seu sentido uma acepção vil, expõe os predicados inerentes<br />

à personalidade humana a uma situação de vulnerabilidade incompatível<br />

com o ordenamento constitucional, que tem por fio condu-<br />

72 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Colisão de direitos fundamentais no debate sobre aborto<br />

tor o princípio da dignidade da pessoa humana. A imputação isolada<br />

do termo ‘abortista’ não denota o exercício honesto do direito<br />

de crítica assegurado pela liberdade de expressão, porque ignora o<br />

postulado da máxima transparência próprio das relações de boa-fé.<br />

Assim como todas as palavras ofensivas e ultrajantes da língua portuguesa,<br />

a palavra ‘abortista’ sempre estará disponível para quem dela<br />

quiser lançar mão. Não faz sentido proibir a pronúncia e o uso de<br />

qualquer palavra pelas pessoas. Isso seria dar espaço para lógica do<br />

impossível. Contudo, a certeza de que a censura prévia é incompatível<br />

com a democracia e a vida civilizada não significa que a livre expressão<br />

não possa e não deva ser judicialmente punida quando infringe valores<br />

individuais, difusos e coletivos de respeito mútuo vigentes nestas<br />

sociedades, com a incitação ao ódio, ao apartheid e ao preconceito. Nenhuma<br />

palavra é proibida, mas toda palavra pode ser alvo de repreensão<br />

judicial quando servir como instrumento para atingir a felicidade e<br />

o bem-estar alheio, causando constrangimento, angústia, sofrimento<br />

e dissabor significativos ao ofendido.<br />

Se, por um lado, o preceito fundamental de liberdade de expressão<br />

permite a qualquer pessoa, religiosa ou não religiosa, defender publicamente<br />

a abreviação de gestação como uma extensão dos direitos à<br />

dignidade humana, à autonomia da vontade e à saúde em sua acepção<br />

mais ampla, por outro, também autoriza outras pessoas a exporem<br />

seu repúdio ao aborto com base na premissa da santidade e da<br />

intocabilidade da vida humana. Todos têm resguardado, em princípio,<br />

o direito à liberdade de opinião. Em qualquer caso, porém, o direito<br />

à livre expressão não se coaduna com violência, que funciona senão<br />

como um fator de descaracterização desse direito.<br />

O uso da palavra ‘abortista’ fomenta a marginalização social,<br />

constituindo um neologismo perigoso para a coexistência pacífica<br />

entre estranhos morais, porque alimenta a falsa premissa de que as<br />

pessoas não adeptas da razão ‘pró-vida’ são nocivas ao bem-estar da<br />

humanidade.<br />

As liberdades públicas não são incondicionais, e, portanto, ninguém<br />

pode exceder os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes<br />

no gozo de quaisquer direitos. O abuso que coloque em risco<br />

direito alheio, de mesma natureza ou não, faz surgir a responsabilidade<br />

civil para o autor dos danos, como expõe o Código Civil, motivo pelo<br />

qual, inclusive, a Constituição Federal veda o anonimato. Segundo<br />

precedentes do STF, os direitos fundamentais pressupõem uso harmônico<br />

por parte de seus titulares, sob pena de grave lesão à ordem<br />

jurídica.<br />

73


IV. No compasso das reformas<br />

Nenhuma religião pode servir como escudo protetor para a prática<br />

de atos ilícitos ou de desrespeito aos sentimentos alheios. O diálogo<br />

pacífico entre oponentes ideológicos é possível, desde que, no exercício<br />

da liberdade de opinião, o princípio do respeito mútuo seja observado<br />

como virtude fundamental, o que não requer renúncia nem abandono<br />

de convicções pessoais nem institucionais, mas, apenas, tolerância ao<br />

próximo. A liberdade de expressão não garante liberdade para insultar,<br />

até porque é direito que não se orienta pelo princípio feyerabandiano<br />

do tudo vale.<br />

*<br />

74 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Penas alternativas e política pública<br />

Penas alternativas e política pública<br />

Márcia de Alencar<br />

A contextualização da execução penal alternativa<br />

A execução penal alternativa aproxima o Direito das Ciências Humanas<br />

e Sociais. Trata-se de um processo de execução penal dinâmico,<br />

onde o mundo jurídico composto da lei como fonte formal básica<br />

interage necessariamente com o mundo social, a partir dos fatos ocorridos<br />

durante a execução da pena ou medida alternativa. Esses fatos<br />

se apresentam como fonte material permanente.<br />

Demanda da execução penal alternativa é indiscutivelmente jurídica<br />

e fundamentada no discurso legal. O processo dessa execução, por<br />

sua vez, guarda muita especificidade, uma vez que ele acontece na arena<br />

social, no seio da comunidade e recebe um tratamento psicossocial<br />

e psiquiátrico especializado. O corpo técnico estabelece uma relação<br />

interdisciplinar, simultaneamente, com o juízo e a comunidade para<br />

viabilizar as condições e garantir os procedimentos técnicos e jurídicos<br />

suficientemente indicados e necessários para aquele caso concreto.<br />

Resulta, desta feita, um produto de natureza jurídico-social com o<br />

objetivo de assegurar o controle social pelo Estado e pela sociedade.<br />

Essa interdisciplinaridade representa, portanto, a base de sustentação<br />

dessa prática jurídica, onde o discurso legal e o discurso técnico<br />

durante a execução das alternativas penais estabelecem uma relação de<br />

complementaridade, através de conceitos correspondentes e não concorrentes,<br />

entre o mundo jurídico e o mundo social. Dentre eles, destacamse:<br />

conduta/comportamento; fiscalização/acompanhamento; coercitividade/volição;<br />

cumprimento da sanção/reinserção ou inclusão social.<br />

O método aplicado tanto pelo discurso legal como pelo discurso técnico<br />

recorrem ao mesmo recurso: a hermenêutica. O primeiro interpreta<br />

a realidade objetiva através da prova e o segundo interpreta a realidade<br />

subjetiva através da personalidade. E ambos constroem uma linguagem<br />

singular que viabiliza a efetividade da execução penal alternativa.<br />

Nas penas alternativas, o discurso legal busca caracterizar o fato<br />

jurídico, através da incidência sobre as leis 7.210/84, 9.009/84,<br />

9.714/98, 10.259/01 e as Regras de Tóquio com base na Resolução<br />

75


IV. No compasso das reformas<br />

da ONU/1990; enquanto o discurso técnico busca compreender o fato<br />

social, identificando o perfil individual, a dinâmica familiar e o contexto<br />

social daquele sujeito implicado com o delito.<br />

O monitoramento das alternativas penais<br />

Enquanto nas varas criminais e nos juizados especiais criminais<br />

são aplicadas penas e medidas alternativas pelos operadores do Direito<br />

seja no processo de condenação e/ou na transação penal; a equipe<br />

de apoio técnico capta, cadastra e capacita entidades parceiras para<br />

que os órgãos da execução (juiz e Ministério Público) credenciem a<br />

rede de apoio local, pública e/ou de interesse social.<br />

Quando o processo criminal entra na fase de execução propriamente<br />

dita, há a intimação, através de uma audiência. No caso das<br />

varas de execução, após a audiência é realizada a avaliação psicossocial<br />

pela equipe de apoio técnico. No caso dos juizados especiais,<br />

criminais, a avaliação ocorre durante a audiência.<br />

Quando se trata de avaliação de situações de baixa e média complexidade<br />

não necessita de avaliação psiquiátrica. Quando se trata de<br />

situação de alta complexidade, o assistente social e o psicólogo sugerem<br />

uma avaliação psiquiátrica aos órgãos da execução. Em geral, os casos<br />

de alta complexidade envolvem o tratamento da dependência química<br />

ou uma manifestação aguda de uma psicose durante a execução.<br />

Concluída a avaliação e resguardados os sigilos profissionais da<br />

área de saúde mental, a equipe registra um sumário psicossocial<br />

como uma súmula ou parecer nos autos do processo, com a indicação<br />

da entidade parceira mais adequada para receber aquele beneficiário<br />

da pena ou medida alternativa determinada. Essa entidade,<br />

por sua vez, é consultada previamente pelo corpo técnico para o devido<br />

registro.<br />

O juiz da vara de execução homologa a decisão com base no sumário<br />

psicossocial. No juizado especial criminal, o promotor propõe a transação<br />

penal que, uma vez aceita, é também homologada pelo juiz.<br />

A homologação consta dos condicionantes da pena ou medida alternativa<br />

imposta: o local de cumprimento da pena ou medida alternativa,<br />

o volume de horas para prestar serviço à comunidade, ou o tempo<br />

da limitação de fim de semana, a freqüência do tratamento de Justiça<br />

Terapêutica se assim tiver sido determinado, além do comparecimento<br />

em juízo nos casos de prestação pecuniária.<br />

76 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Penas alternativas e política pública<br />

Uma vez encaminhado o beneficiário da pena ou medida alternativa,<br />

inicia-se a fiscalização do cumprimento da sanção penal e o acompanhamento<br />

da execução.<br />

Durante o acompanhamento, a equipe de apoio técnico monitora as<br />

situações vividas pelo beneficiário, estabelecendo um contato permanente<br />

entre o juízo e a entidade parceira, através de visitas, reuniões,<br />

entrevistas, grupos de discussão, seminários e oficinas de trabalho com<br />

os próprios beneficiários e os responsáveis daquela instituição.<br />

As entidades parceiras emitem relatórios e preenchem fichas de<br />

controle e freqüência, através de instrumentos de trabalhos repassados<br />

pelo juízo desde o momento do credenciamento daquela instituição<br />

com a vara de execução ou juizado especial criminal. Concluído o<br />

tempo determinado para cumprimento da pena, é extinta a punibilidade<br />

e arquivado o processo.<br />

Caso se caracterize uma situação de incidente, a equipe de apoio<br />

técnico registra nos autos do processo ou dialoga, diretamente, com<br />

os órgãos da execução para que possa ser realizada uma audiência de<br />

advertência, onde nela se confirme ou se caracterize o descumprimento<br />

da pena ou medida.<br />

Esse procedimento jurídico pode implicar em um novo encaminhamento<br />

ou, no caso das varas de execução em uma conversão de pena<br />

alternativa para pena privativa de liberdade.<br />

Em síntese, o sistema de monitoramento das alternativas penais<br />

envolve quatro procedimentos técnicos 1 fundamentais:<br />

• a captação, cadastramento e capacitação das entidades parcerias<br />

para formação da rede social de apoio;<br />

• a avaliação psicossocial e psiquiátrica, em casos de alta complexidade;<br />

• o encaminhamento do beneficiário para cumprimento da sanção<br />

penal determinada; e<br />

• o acompanhamento da execução penal alternativa.<br />

Durante a execução penal alternativa, o juízo e a comunidade realizam<br />

o monitoramento da administração do sistema de justiça cri-<br />

1 Estes procedimentos técnicos encontram-se descritos na Metodologia de Apoio Técnico<br />

elaborada pela consultora Márcia de Alencar Araújo Mattos, através do convênio<br />

068/2002 do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop) com<br />

o Ministério da Justiça; e adotada no Manual de Monitoramento das Penas Alternativas<br />

editado pela Secretaria Nacional de Justiça, Cenapa, em novembro de 2002.<br />

77


IV. No compasso das reformas<br />

minal, através da fiscalização do cumprimento da sanção penal e do<br />

desenvolvimento de programas de reinserção e inclusão social.<br />

E, desta forma, Estado e sociedade civil exercem seus respectivos<br />

papéis institucionais no controle social dessa política pública criminal<br />

e diante do combate à impunidade e à violência.<br />

As penas alternativas e a prevenção criminal<br />

As práticas criminosas de baixo e médio potencial ofensivo guardam<br />

características específicas e necessitam de um manejo diferenciado<br />

e especializado do Estado e da sociedade civil organizada para o<br />

efetivo exercício do controle social. Para tais condutas, o Estado impõe<br />

um tratamento penal alternativo onde o autor do fato ou condenado<br />

não sofre reclusão, permanece na comunidade por não representar,<br />

em princípio, risco ou perigo à comunidade.<br />

No Brasil, as penas alternativas vêm se materializando nos últimos<br />

15 anos, junto com a reforma do Estado, onde a passagem de um<br />

Estado burocrático para um Estado gerencial gerou ações públicas<br />

baseadas em contratos de gestão. O Estado passa a executar a política<br />

pública e a sociedade a monitorar seus resultados, de acordo com os<br />

princípios do Estado Democrático de Direito.<br />

É necessário frisar que a sanção penal de baixa e média criminalidade,<br />

no momento da aplicação, baseia-se nos princípios da proporcionalidade<br />

e razoabilidade da pena e que, no momento da execução,<br />

o princípio da punibilidade se apresenta com o cumprimento da pena<br />

ou medida alternativa imposta.<br />

A impressão de que as penas alternativas punem menos são enganosas,<br />

elas punem melhor e hierarquizam o grau da sanção diante da<br />

tipologia do crime, gerando coerência na administração do sistema de<br />

justiça criminal. A ação criminosa de alta periculosidade guarda outra<br />

lógica dentro do campo da criminologia. O Estado e a sociedade não<br />

podem, portanto, oferecer a mesma resposta penal.<br />

Para além do mundo jurídico, as alternativas penais pertencem<br />

ao campo das políticas públicas criminais e sua conceituação, portanto,<br />

envolve o tema da responsabilização da esfera pública. Espaço<br />

onde o Estado e sociedade civil organizada estabelecem diálogo e<br />

acordo sobre as garantias dos direitos civis, sociais, econômicos e<br />

culturais; e sobre o modo particular como o direito penal está sendo<br />

processado, frente ao acelerado quadro de impunidade e violência do<br />

78 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Penas alternativas e política pública<br />

país; e qual o seu grau de convergência com as políticas públicas em<br />

execução no país.<br />

Quase 60% dos beneficiários desse instituto penal são pobres e<br />

mais de 50% têm ensino fundamental incompleto 2 e cometeram uma<br />

infração que justifica uma pena restritiva de direitos e não uma pena<br />

privativa de liberdade.<br />

Para reprimir esse crime o juízo e a comunidade interagem no momento<br />

da execução penal para assegurar o fiel cumprimento da sanção<br />

penal, através de uma relação interdisciplinar previamente legitimada<br />

com procedimentos técnicos e jurídicos que envolvem a avaliação, o<br />

encaminhamento à entidade parceira, o acompanhamento e a fiscalização<br />

do beneficiário daquela pena ou medida alternativa determinada<br />

de forma individualizada.<br />

Diante desse tipo de crime, e visando prevenir a violência, o juízo<br />

e a comunidade passam a formar uma rede de apoio local, seja pública<br />

ou de interesse social, para assegurar programas de inclusão<br />

social de tratamento, escolarização, profissionalização e geração de<br />

emprego e renda.<br />

Para promover o bem-estar social, o Estado e a sociedade civil organizada<br />

estabelecem pactos no âmbito da esfera pública para que os<br />

agentes públicos e sociais daquela comunidade assegurem o controle<br />

social, através do resgate e exercício da justiça, democracia, cidadania<br />

e paz social.<br />

A incapacidade do Estado em promover bem-estar social e prevenir<br />

a violência tem gerado uma necessidade exagerada de reprimir o crime,<br />

esvaziando o papel das instituições que compõem o Poder Executivo<br />

e colocando o Poder Judiciário em xeque com a responsabilidade<br />

de eliminar o mal com os remédios previstos e revistos no ordenamento<br />

jurídico. Como se a justiça do caso concreto, individualizada, que<br />

reflete factualmente apenas aquele delito, pudesse dar conta do descompasso<br />

entre a realidade jurídica e o real social brasileiro.<br />

A sociedade é chamada para participar como primo pobre e, compulsoriamente,<br />

recebe os riscos e as responsabilidades transferidas<br />

pelo estado, onde seus fracassos são punidos pelo próprio Estado, que<br />

se omitiu na origem; e seus sucessos são credenciados ao governo ou<br />

ao mandato que permitiu essa engenhosa gestão.<br />

2 Fonte: Central Nacional de Apoio às Penas e Medidas Alternativas (Cenapa) da Secretaria<br />

Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, Brasília, novembro de 2003.<br />

79


IV. No compasso das reformas<br />

Feminismo e nova esquerda:<br />

um diálogo em construção<br />

Almira Rodrigues<br />

Este texto analisa algumas contribuições dos movimentos feminista<br />

e de mulheres para a construção da democracia no<br />

Brasil; reflete sobre a sua interlocução com outros sujeitos e<br />

instâncias políticas; e desenvolve mediações entre o ideário feminista<br />

e a perspectiva de construção de nova(s) esquerda(s).<br />

O feminismo da segunda metade do século XX trouxe contribuições<br />

teórico-práticas para o avanço da democracia, entre as quais destacamos<br />

especialmente duas. A perspectiva feminista coloca que a situação<br />

das mulheres, bem como as representações e relações de gênero<br />

constituem um eixo estruturante das desigualdades e discriminações<br />

sociais. Entende que este eixo não corre em paralelo aos demais, mas<br />

se articula com outras bases que sustentam essas desigualdades e<br />

discriminações, como as relações de produção e de trabalho e as relações<br />

interétnicas e raciais. Nessa medida, distende as noções de<br />

conflito e opressão social para aquém e para além da relação capitaltrabalho,<br />

ainda considerada por muitos como a categoria central ou<br />

exclusiva na compreensão e luta por mudança social, particularmente<br />

nas sociedades capitalistas.<br />

Outra contribuição substantiva se traduz nas bandeiras de luta “o<br />

pessoal é político” e “democracia na rua e em casa”. O feminismo faz<br />

o resgate das relações na esfera privada – relações sociais e de poder<br />

tanto quanto as relações de trabalho e as relações políticas institucionalizadas<br />

– promovendo a sua politização, publicização e construção<br />

enquanto objeto de legislação, de políticas públicas e de aprofundamento<br />

da cidadania. Com esta visão, o movimento alerta para a conexão<br />

das esferas pública e privada: em ambas circulam relações de poder<br />

que variam de relações mais simétricas, de diálogo e negociação,<br />

a relações de opressão, autoritarismo e abusos de todas as formas; as<br />

práticas democráticas e de dominação que circulam nessas esferas se<br />

reforçam mutuamente. Ao resgatar o cotidiano e as relações de reprodução<br />

social, o movimento trouxe para a agenda política as dimensões<br />

de subjetividade, de auto-estima e empoderamento das mulheres, e o<br />

80 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Feminismo e nova esquerda:<br />

cenário de possibilidade de construção de relações igualitárias e fraternas<br />

entre homens e mulheres.<br />

Desde os anos setenta no Brasil, os movimentos feminista e de<br />

mulheres vêm construindo uma das experiências mais ricas de diálogo<br />

interno, isto é, no âmbito do próprio movimento. Há trinta anos<br />

era comum se falar “a mulher brasileira”, hoje não. Nessas três últimas<br />

décadas o ideário feminista de superação da discriminação,<br />

marginalização, exploração e opressão vivenciadas pelas mulheres e<br />

de construção de relações igualitárias difundiu-se para segmentos diversificados:<br />

mulheres brancas, negras, índias e orientais; mulheres<br />

jovens, adultas e idosas; mulheres analfabetas e com distintos graus<br />

de instrução; mulheres solteiras, casadas e em coabitação; mulheres<br />

mães e não-mães; mulheres com deficiência ou não; mulheres trabalhadoras<br />

urbanas e rurais, empregadas domésticas, donas de casa e<br />

empresárias; mulheres hetero, homo e bissexuais; mulheres travestis<br />

e transsexuais; mulheres prestadoras de serviços sexuais; mulheres<br />

religiosas e agnósticas/atéias.<br />

Nesse processo de acolhimento e transmissão do ideário feminista,<br />

as mulheres se organizaram em grupos os mais diferenciados: desde<br />

aqueles que congregam mulheres em condições similares até outros<br />

que reúnem mulheres vinculadas a problemáticas específicas como<br />

educação, saúde, trabalho, moradia, violência, desenvolvimento sustentável<br />

e política. Estas organizações também apresentam diversas<br />

naturezas: muitas são autônomas e se articulam em redes e fóruns<br />

locais, regionais, nacionais e internacionais; outras se vinculam a instituições<br />

abrangentes como associações de bairro, profissionais, sindicatos,<br />

centrais sindicais, universidades e partidos políticos. Estes<br />

agrupamentos realizaram suas próprias sínteses, e não sem tensões,<br />

afirmaram e afirmam sua singularidade, juntamente com a possibilidade<br />

de diálogo e articulação a partir de toda essa diversidade. Os<br />

movimentos têm conseguido gerir os conflitos e as desigualdades que<br />

recaem sobre as próprias mulheres sem submergir às clivagens de<br />

classe, culturais, sexuais, étnicas, raciais, religiosas e político-ideológicas.<br />

Têm enfrentado duros embates, entre os quais se destacam<br />

aqueles em torno dos direitos sexuais e direitos reprodutivos – particularmente<br />

pelas propostas de regulamentação da educação sexual<br />

nas escolas, da livre expressão sexual, da parceria civil entre pessoas<br />

do mesmo sexo, dos serviços sexuais, da cirurgia para mudança de<br />

sexo, do aborto e da reprodução humana assistida – e do aumento de<br />

recursos para as políticas sociais.<br />

No âmbito do movimento social, 1975 foi um marco na segunda<br />

onda do feminismo, declarado como Ano Internacional da Mulher<br />

81


IV. No compasso das reformas<br />

pela ONU, o que desencadeou comemorações em todo o mundo. Outro<br />

marco especialmente para o movimento no Brasil foi o ano de 1995,<br />

pela realização da IV Conferência Mundial sobre Mulher, Desenvolvimento<br />

e Paz, em Beijing, também convocada pela ONU, motivando um<br />

processo de preparação e articulação das mulheres brasileiras.<br />

Mas não só o diálogo consigo próprio tem sido produtivo e enriquecedor.<br />

Também tem sido profícuo o diálogo com o Estado brasileiro e<br />

com outros movimentos sociais, tendo em vista o caráter fortemente<br />

propositivo dos movimentos feminista e de mulheres e a receptividade<br />

e a disposição políticas dessas instituições. No âmbito do Estado<br />

brasileiro, um marco substantivo foi o ano de 1985 com a criação do<br />

Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, órgão governamental e paritário,<br />

expressando o reconhecimento da necessidade e importância<br />

da formulação de políticas públicas para mulheres, no contexto da<br />

redemocratização brasileira. A este instrumento inicial, reproduzido<br />

em muitos estados e municípios, seguiu-se, por reivindicação dos movimentos<br />

e mais recentemente, a criação de órgãos executores dessa<br />

política (secretarias e coordenações). Estes órgãos, em âmbitos nacional,<br />

estadual e municipal, têm a função de coordenação e implementação<br />

de programas e projetos em diversas frentes e de forma cada vez<br />

mais transversal à estrutura e gestão governamental. Nesse processo<br />

de interlocução, merecem registro: a criação da Secretaria Especial de<br />

Políticas para Mulheres, vinculada à Presidência da República, com<br />

status de Ministério, em 2003; a realização da I Conferência Nacional<br />

de Políticas para Mulheres, em 2004, que originou o Plano Nacional de<br />

Políticas para Mulheres; e a preparação da II Conferência Nacional, a<br />

ser realizada em agosto deste ano, precedida por conferências estaduais<br />

e municipais já em curso.<br />

A Constituição Federal de 1988 é outra conquista expressiva à<br />

medida que assegurou a igualdade jurídica entre homens e mulheres<br />

em direitos e deveres, além de inúmeras outras conquistas. No âmbito<br />

do Legislativo federal, desde 1986, com a eleição pela primeira vez de<br />

uma Bancada Feminina mais numerosa (26 parlamentares, sendo que<br />

em 2006 foram eleitas 45 deputadas), desenvolve-se a experiência de<br />

reunião das parlamentares de diferentes partidos em torno de uma<br />

plataforma dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero. A Bancada<br />

Feminina vem desenvolvendo um bom diálogo com os movimentos<br />

feminista e de mulheres o que tem propiciado avanços legislativos<br />

e iniciativas de controle e monitoramento das políticas públicas.<br />

Apesar de muitas propostas apresentadas pelos movimentos terem<br />

sido incorporadas por legisladores/as, governantes e gestores públicos,<br />

este diálogo e negociação apresentam embates, entre os quais<br />

82 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Feminismo e nova esquerda:<br />

destacamos a dificuldade de inserção da perspectiva de gênero no Plano<br />

Plurianual, na Lei de Diretrizes Orçamentárias e na Lei Orçamentária<br />

Anual, que, de fato, garantem e concretizam direitos conquistados<br />

na lei, ao sustentar a implementação de políticas públicas mediante a<br />

implantação de programas de variados tipos e alcance social.<br />

No que tange ao diálogo dos movimentos feminista e de mulheres<br />

com outros movimentos – a exemplo dos movimentos de direitos humanos,<br />

ambientalista e de desenvolvimento sustentado, de igualdade<br />

racial, de livre expressão sexual, entre outros –, este tem sido aprofundado<br />

gerando caminhos convergentes e solidários na luta por inclusão<br />

social, contra as desigualdades e todas as formas de discriminação<br />

social. Cada vez mais estes movimentos estabelecem alianças e reciprocidades<br />

entre si no apoio a agendas de luta pela construção de um<br />

novo mundo. Apontam para projetos de curto e longo prazo, defendendo<br />

condições de existência digna para as atuais e futuras gerações.<br />

Os movimentos feministas e de mulheres têm provocado o Estado e<br />

a sociedade civil organizada para a necessidade de que as instituições<br />

elaborem políticas de gênero em um chamamento para que considerem:<br />

a história e o cotidiano diferenciado de homens e mulheres com<br />

seus desdobramentos objetivos e simbólicos; os efeitos e impactos das<br />

ações públicas segundo o gênero; a importância de atuação no sentido<br />

de minorar e superar as desigualdades de gênero, expressas em relações,<br />

condições e representações sociais, em geral constrangedoras,<br />

adversas e restritivas ao desenvolvimento e realização das capacidades<br />

e potencialidades das mulheres.<br />

A interlocução dos movimentos feminista e de mulheres nas duas<br />

frentes mencionadas – Estado e demais movimentos sociais – tem sido<br />

mais satisfatória comparativamente à interlocução com os partidos<br />

políticos. Dos 29 partidos registrados no TSE são poucos os que têm<br />

demonstrado uma sensibilidade para a questão e menos ainda os que<br />

adotaram uma política de gênero, ainda que tímida. Como elementos<br />

integrantes dessa política podemos mencionar: a definição de uma<br />

plataforma pela igualdade de gênero e cidadania das mulheres; a criação<br />

de instâncias partidárias específicas para dinamizar esta política<br />

(Secretaria, Departamento, Coordenação de Mulheres/Gênero); a<br />

destinação de recursos financeiros para a realização do trabalho de<br />

promoção da participação feminina e das plataformas feministas; a<br />

destinação de tempo de propaganda partidária na mídia para difundir<br />

a importância da participação política das mulheres; e a adoção de<br />

cotas por sexo para a composição de instâncias de direção partidária,<br />

além da indicação das mulheres para atividades e funções expressivas<br />

de representação partidária.<br />

83


IV. No compasso das reformas<br />

Nessa medida, cabe o questionamento do por quê ocorre a dificuldade<br />

generalizada dos partidos (de esquerda, de centro, de direita) no<br />

que tange à formulação e implementação de uma política de gênero,<br />

em âmbito partidário, e de sua defesa junto ao Estado e à sociedade.<br />

Alguns partidos até acolhem uma plataforma feminista, mas apresentam<br />

fortes resistências a desenvolver iniciativas que efetivamente promovam<br />

e ampliem a participação das mulheres em âmbito partidário<br />

e de representação política. Os partidos políticos são historicamente<br />

instituições masculinas e funcionam a partir de uma lógica que acaba<br />

por restringir e/ou excluir a participação das mulheres. A adoção de<br />

uma política de gênero, particularmente em âmbito partidário, aponta<br />

para o compromisso, em alguma medida, de superar esta concentração<br />

de poder; e significa, também, se comprometer com a divisão e<br />

o compartilhamento de responsabilidades e decisões sobre os rumos<br />

de desenvolvimento do país, e de construção da cidadania. Este é um<br />

horizonte promissor em termos de ampliação e democratização da política<br />

representativa que, no entanto, ainda não foi devidamente vislumbrado<br />

por militantes e dirigentes partidários.<br />

Consideramos que a crise da política, dos políticos e dos partidos<br />

têm muito a ver com este fechamento e quase exclusividade da participação<br />

masculina. Esta situação é mais grave ainda, considerando-se<br />

que os partidos detêm o monopólio da representação política no Brasil<br />

como na quase totalidade dos países. A participação política das mulheres<br />

enfrenta adversidades decorrentes da cultura patriarcal, que<br />

naturaliza a vinculação deste segmento à esfera privada e dos homens<br />

à esfera pública. Outra adversidade refere-se a uma condição muito<br />

objetiva, a restrição do tempo das mulheres para a ação política à medida<br />

que as responsabilidades pelas tarefas domésticas e pelo cuidado<br />

das crianças, das pessoas idosas, doentes e com deficiências físicas<br />

e transtornos mentais recaem sobre elas. Estas funções não são divididas<br />

com os parceiros que coabitam com mulheres (embora já cerca<br />

de 30% das famílias sejam monoparentais femininas), tampouco são<br />

assumidas pelo Estado mediante a implementação de políticas públicas<br />

expressivas de educação infantil e de assistência à saúde voltadas<br />

para as pessoas que se encontram em situações de vulnerabilidade física<br />

e mental. A estas dificuldades mencionadas, somam-se outras no<br />

âmbito da política representativa, entre as quais se destaca a situação<br />

de imensa dificuldade das mulheres de dispor e reunir recursos para<br />

o financiamento de campanhas eleitorais, que no Brasil é privado. O<br />

sistema político brasileiro é excludente, viciado e perverso, beneficiando<br />

explicitamente as candidaturas com poder político e econômico e<br />

com influência para a arrecadação de fundos, que ocorre em grande<br />

84 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Feminismo e nova esquerda:<br />

parte por meio de mecanismos ilícitos, de tráfico de influência e de<br />

apropriação de recursos públicos.<br />

Os movimentos feminista e de mulheres vêm colocando que a saída<br />

para esta crise implica um conjunto de mudanças em várias frentes.<br />

Entre elas, são essenciais: ampliar a compreensão da ação política<br />

para todas as relações e tempos da existência humana; reconstruir<br />

os partidos como instituições que considerem o cotidiano de sujeitos<br />

concretos, como espaços de enriquecimento humano e canais de construção<br />

de “novos cenários de futuro”, cooperadamente com outros;<br />

fortalecer todos os espaços de expressão da cidadania e promover o<br />

engajamento de segmentos sub-representados na política institucionalizada,<br />

a exemplo das mulheres, da população negra e dos jovens;<br />

realizar mudanças no sistema político brasileiro mediante uma reforma<br />

política ampla e democrática.<br />

Especificamente no que se refere à formação de uma nova esquerda,<br />

ou de novas esquerdas, sintonizadas com os novos tempos, é mister<br />

considerar que sua construção e desenvolvimento não podem ser<br />

uma prerrogativa de certos partidos políticos que se auto-nomeiam<br />

como tal. Uma perspectiva e prática de esquerda é fruto: do desenvolvimento<br />

de determinadas compreensões sobre a existência e o viver<br />

em sociedade; da realização de formas de inserção social, alinhadas<br />

com determinados afetos, valores e práticas; do estabelecimento de<br />

compromissos com certas mudanças no status quo. Nessa medida,<br />

podem ocorrer em múltiplos espaços e relações.<br />

Tais perspectivas e práticas exigem a constante formação e desenvolvimento<br />

de seres humanos que possam afirmar relações éticas,<br />

de reciprocidade e respeito às diferenças. Exigem o enfrentamento<br />

constante de práticas perversas, narcísicas, de retaliação e de<br />

aniquilamento do “Outro”. Exigem a distinção entre espaço público e<br />

espaço privado; o respeito à coisa pública, de todas/todos, portanto<br />

um Estado com suas políticas, instâncias e recursos de caráter efetivamente<br />

público.<br />

A partir dessas reflexões, entendemos que a construção de um<br />

projeto democrático e de esquerda para o Brasil exige a incorporação<br />

de uma perspectiva feminista e de gênero, sem o quê está fadado, a<br />

priori, ao fracasso, por uma desconexão com os tempos em que vivemos<br />

e que buscamos transformar. Que a experiência de diálogo dos<br />

movimentos feminista e de mulheres em seu próprio âmbito possa<br />

contribuir e reforçar a importância do diálogo entre as esquerdas<br />

nesse processo de renovação e atualização histórica. Que a experiência<br />

de diálogo dos movimentos feminista e de mulheres com o Estado<br />

85


IV. No compasso das reformas<br />

e com os demais movimentos sociais possa ser aprofundada pelas<br />

forças de esquerda no país.<br />

Que as forças de esquerda não sucumbam frente a clivagens partidárias<br />

e a projetos de poder excludentes e comprometedores da pluralidade<br />

político-ideológica e da união de forças democráticas necessárias<br />

para o efetivo enfrentamento das desigualdades e exclusões sociais.<br />

Que as esquerdas no Brasil e no mundo se fortaleçam, se ampliem e se<br />

articulem. Que tenham vida nova e vida longa. Este é o nosso desejo,<br />

nossa luta e esperança.<br />

*<br />

86 Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


V. Batalha<br />

das Idéias


Iraci del Nero da Costa<br />

Autores<br />

Economista e professor da Faculdade de Economia e Administração da USP.<br />

Fábio Santa Cruz<br />

Mestre em História pela Universidade de Brasília (UnB) e professor de História na<br />

Universidade Estadual de Goiás (UEG).<br />

Oscar d´Alva e Souza Filho<br />

Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Ceará. Diretor da Escola<br />

Superior do MP do Ceará. Professor de Ética e de Filosofia do Direito, na Unifor. Livre<br />

Docente em Filosofia do Direito. Email: oscardalva@uol.com.br<br />

João Manoel Pinho de Mello<br />

Ph.D. em economia por Stanford, é professor-assistente do Departamento de Economia<br />

da PUC-Rio.


Uma busca inglória<br />

Iraci del Nero da Costa<br />

A<br />

nosso ver, alguns pensadores marxistas ainda se prendem ferrenhamente<br />

à idéia de que uma eventual mudança socioeconômica<br />

radical dependerá, necessariamente, da liderança ideológica<br />

e da condução política de uma classe social revolucionária.<br />

Dadas as transformações ocorridas no seio do velho proletariado,<br />

alguns buscam um novo “sujeito revolucionário” no seio de segmentos<br />

mais bem preparados do ponto de vista intelectual e profissional;<br />

integrantes de tais segmentos, aptos a chegarem a um refinamento<br />

ideológico mais sofisticado, aglutinar-se-iam numa elite politicamente<br />

atuante a qual viria a comandar as esperadas mudanças radicais. Já<br />

outros, procuram esse “indivíduo universal” nos estratos menos abonados<br />

da sociedade, entre os que “não têm nada a perder, a não ser as<br />

correntes que os agrilhoam”.<br />

De toda sorte, estejam onde estiverem, tais elementos terão de estar<br />

em algum lugar de nossa complexa sociedade de inícios do século<br />

XXI. Tudo se passa como se o momento tido como “objetivo” tivesse<br />

preeminência absoluta sobre o elemento considerado de ordem “subjetiva”.<br />

A nosso juízo, a permanência de tal visão cediça, que já se<br />

mostrava limitada e ultrapassada no passado, é muito perniciosa e<br />

impede que se “limpe o terreno do pensamento marxista” a fim de que<br />

possamos formular novas formas de encarar a realidade atual e de<br />

atuar sobre ela; realidade essa fundamente marcada e alterada, tanto<br />

objetiva como subjetivamente, pela derrocada do assim chamado “socialismo<br />

real”.<br />

89


V. Batalha das Idéias<br />

Uma das mudanças significativas decorrentes da experiência<br />

histórica acumulada no correr dos últimos cento e cinqüenta anos<br />

talvez tenha sido a de liberar uma eventual revolução social futura<br />

das amarras que, como se supunha, a prendiam a uma dada<br />

classe social.<br />

Segundo pensamos, o papel ativo e historicamente significativo<br />

do proletariado culmina e se esgota com a formulação da crítica<br />

do capital efetuada por Marx. Pode-se dizer que a classe operária<br />

desempenhou papel fundamental para indicar à humanidade (aqui<br />

personalizada em Marx), de uma parte, a possibilidade de se subverter<br />

a sociedade burguesa, e, de outra, a de evidenciar a direção<br />

básica dessa mudança: a supressão da propriedade privada sobre os<br />

meios de produção.<br />

A contar da obra de Marx, a revolução deixa de ser uma tarefa<br />

desta ou daquela classe e se torna um programa de mudanças que se<br />

impõe a toda a humanidade. Tal alteração no caráter de uma eventual<br />

revolução futura não é aleatório, pois resulta tanto de causas de ordem<br />

objetiva como de razões de ordem subjetiva. Vejamos, inda que<br />

superficialmente, alguns desses condicionantes.<br />

A concepção de um descolamento da mudança revolucionária<br />

de corte socialista com respeito à classe operária, ou a uma dada<br />

classe social, parece-nos muito incipiente e está a demandar uma<br />

sistematização teórica de largo fôlego; embora saibamos que não<br />

estamos pessoalmente preparados para efetuá-la, sentimos que<br />

podemos intuir sua necessidade e cremos que elementos teóricos<br />

embrionários de tal descolamento já se encontram presentes no<br />

pensamento de Marx, Engels e Lukács. Assim, lê-se no Manifesto<br />

Comunista:<br />

90<br />

Todas as classes dominantes anteriores procuraram garantir sua<br />

posição submetendo a sociedade às suas condições de apropriação.<br />

Os proletários só podem se apoderar das forças produtivas<br />

sociais se abolirem o modo de apropriação típico destas e, por<br />

conseguinte, todo o modo de apropriação em vigor até hoje. Os<br />

proletários nada têm de seu para salvaguardar; eles têm que destruir<br />

todas as seguranças e todas as garantias da propriedade<br />

privada até aqui existentes. (MARX & ENGELS, 1998, p. <strong>18</strong>-19)<br />

Coube a Georg Lukács lançar luz sobre essa observação de Marx e<br />

Engels, destarte, em Historia y consciencia de clase, encontramos, calcada<br />

na citação acima posta, uma longa explanação sobre as tarefas<br />

de novo tipo que se imporiam ao proletariado:<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Um busca inglória<br />

Pues las clases que en anteriores sociedades se vieron llamadas<br />

al dominio y, por lo tanto, fueron capaces de realizar revoluciones<br />

victoriosas, se encontraron subjetivamente ante una tarea<br />

mucho más fácil, a causa precisamente de la inadecuación de<br />

su consciencia de clase respecto de la estructura económica<br />

objetiva, o sea, a causa de su inconsciencia respecto de su propia<br />

función en el proceso del desarrollo social. Les bastó con<br />

imponer sus intereses inmediatos mediante la fuerza de que<br />

disponían, y el sentido social de sus acciones les quedó siempre<br />

oculto, entregado a la ‘astucia de la razón’ en el proceso<br />

social determinado. Pero como el proletariado se encuentra en<br />

la historia con la tarea de una transformación consciente de<br />

la sociedad, tiene que producirse en su consciencia de clase la<br />

contradicción dialéctica entre el interés inmediato y la meta última,<br />

entre el momento singular y el todo. Pues el momento singular<br />

del proceso, la situación concreta con sus concretas exigencias,<br />

es por su naturaleza inmanente a la actual sociedad,<br />

a la sociedad capitalista, se encuentra sometida a sus leyes y<br />

a su estructura económica. Y no se hace revolucionaria más<br />

que se inserta en la concepción total del proceso, cuando se<br />

introduce con referencia al objetivo último, remitiendo concreta<br />

y conscientemente más allá de la sociedad capitalista. Pero eso<br />

significa, subjetivamente considerado, para la consciencia de<br />

clase del proletariado, que la relación dialéctica entre él interés<br />

inmediato y la acción objetiva orientada al todo de la sociedad<br />

queda situada en la consciencia del proletariado mismo, en vez<br />

de desarrollarse, como ocurrió con todas las clases anteriores,<br />

más allá de la consciencia (atribuible), como proceso puramente<br />

objetivo. La victoria revolucionaria del proletariado no es pues,<br />

como para las demás clases anteriores, la realización inmediata<br />

del ser socialmente dado de la clase, sino – como ya lo vio y formuló<br />

agudamente el joven Marx – la autosuperación de la clase.<br />

El Manifiesto Comunista formula esa diferencia del siguiente<br />

modo: ‘Todas las clases anteriores que conquistaron para sí el<br />

dominio intentaron asegurar la posición que ja havian logrado<br />

en la vida sometiendo la sociedad entera a las condiciones de su<br />

logro. Los proletarios no pueden conquistar para sí las fuerzas<br />

sociales de producción más que suprimiendo su propio anterior<br />

modo de apropiación y, con ello, todo modo de apropiación existido<br />

hasta ahora.’ (LUKÁCS, 1975, p. 77-78).<br />

Como se vê imediatamente, o cerne da questão repousa no caráter<br />

totalmente original das transformações a serem implementadas.<br />

Não se trata mais da subordinação de uma ou mais classes sociais<br />

91


V. Batalha das Idéias<br />

aos interesses imediatos de um segmento social dominante, mas da<br />

própria superação das classes sociais; não se trata de impor uma<br />

nova forma de expropriação, mas de eliminar a possibilidade de que<br />

a exploração possa ocorrer. Este elemento de ordem objetiva empresta<br />

um conteúdo novo à própria idéia de revolução, tornando-a uma<br />

tarefa aberta à participação de todas as classes e segmentos sociais,<br />

enfim de toda a parcela da Humanidade favorável à emergência de<br />

uma sociedade mais equânime, ademais, confere um novo status ao<br />

momento subjetivo.<br />

Encontramo-nos, de fato, em face de uma situação limite na qual<br />

o elemento de ordem objetiva deixa de ter um caráter transformador<br />

per se e o elemento subjetivo assume papel determinante, pois o passo<br />

transformador definitivo depende agora, necessariamente, da ação<br />

consciente dos homens.<br />

Para nós, como apontado em trabalhos anteriores realizados juntamente<br />

com José Flávio Motta, o desenvolvimento das formas mercadoria,<br />

dinheiro e capital conhece seu ponto culminante com a emergência<br />

da mercadoria força de trabalho, ou seja, com o estabelecimento do<br />

capitalismo, no âmbito do qual se dá o pleno amadurecimento de tais<br />

formas. Estabelecido em espaço geográfico considerável passou ele a<br />

operar de maneira a subordinar e recriar, à sua feição, todo o espaço<br />

social, econômico e físico com o qual entrava em contato. Observa-se,<br />

assim, não só a emergência da história universal, mas, também, de<br />

uma mudança qualitativa na própria história da humanidade; a partir<br />

de então só persiste o modo de produção capitalista – que a tudo ilumina,<br />

como se diria em termos clássicos – tudo subordinando, condicionando<br />

e determinando.<br />

De outra parte, justamente por ter ocorrido o desenvolvimento<br />

superior daquelas formas, chega-se à derradeira forma de sociabilidade<br />

natural da humanidade; a partir de então – e à medida que<br />

o capital industrial traz implícitas as condições de sua reprodução,<br />

de sua reposição – apenas um movimento do espírito, da ação conscientemente,<br />

poderá conduzir à superação das condições dadas, vale<br />

dizer, do capitalismo, o qual, caso contrário, repor-se-á indefinidamente.<br />

O primeiro passo necessário à sua superação estará, pois, no<br />

estabelecimento da crítica teórica das condições dadas, estudo este<br />

que deverá fundamentar a ação consciente no sentido da negação do<br />

status quo; assim, a crítica da lógica de funcionamento do capital industrial<br />

e do capitalismo define-se como pressuposto imprescindível<br />

à aludida superação.<br />

92<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Um busca inglória<br />

A nosso ver, as análises cujo apogeu atingiu-se com a elaboração<br />

e a publicação de O Capital representaram o primeiro momento do<br />

referido movimento do espírito indispensável à criação das condições<br />

subjetivas para que a humanidade pudesse propor-se a negação do<br />

capitalismo e, portanto, passar a empenhar-se nessa tarefa.<br />

Do exposto, infere-se a existência de dois elementos que estão a<br />

condicionar a possibilidade de se superar o modo de produção capitalista.<br />

Um primeiro, óbvio, de ordem objetiva: a constituição e a<br />

universalização do próprio capitalismo. Outro de ordem subjetiva: a<br />

crítica do sistema (da lógica de funcionamento do capital industrial) e<br />

a formulação, ainda que num mero bosquejo, de uma nova forma de<br />

sociabilidade, a primeira a se assentar inteiramente no espírito e que,<br />

portanto, terá de ser por ele sustentada (isto é, terá como suporte a<br />

ação consciente de homens livremente associados).<br />

Como afirmado, a história natural do homem esgotou-se, chegou<br />

à sua forma superior com a existência do modo de produção capitalista;<br />

impõe-se, agora, sua história “cultural”, uma história propriamente<br />

humana uma vez que posta pelo “espírito” e não uma simples<br />

decorrência da acomodação do homem à situação objetiva que, embora<br />

sendo fruto de sua ação, lhe aparece como algo dado, como uma<br />

criação que lhe é exterior; não como um fato social, mas como um<br />

fato natural.<br />

Já não basta aos homens perseguirem seus interesses imediatos<br />

para dar-se a transformação revolucionária, é preciso que eles transcendam<br />

seus eventuais interesses “egoísticos”, para usar uma linguagem<br />

própria de Antonio Gramsci; o “político” sobrepõe-se ao “econômico”,<br />

o “subjetivo” sobrepuja o “objetivo”. Quais elementos deveriam,<br />

afinal, estar presentes no bosquejo acima referido? Sem pretendermos<br />

sequer arranhar a resposta definitiva a esta questão, não nos furtamos<br />

a tecer os breves comentários que se seguem com o intuito de<br />

encaminhar a discussão. Em primeiro lugar, considerando que terá<br />

de haver livre assentimento com respeito à nova forma de sociabilidade,<br />

é indispensável uma ambiência democrática, vale dizer, a democracia<br />

e os direitos que expressam a cidadania têm de prevalecer,<br />

absoluta e irrestritamente, e a ambos, obviamente, há de estar aliado<br />

o maior grau possível de liberdade pessoal e coletiva. Em segundo,<br />

tal sociedade terá de se erigir com base na negação da propriedade<br />

privada sobre os meios de produção, uma vez que não pode haver, por<br />

hipótese, qualquer mediação entre a produção de bens e serviços e<br />

sua distribuição consoante às necessidades dos indivíduos. Em terceiro,<br />

para a gestão da vida econômica dessa sociedade “pós-capitalista”<br />

precisar-se-á de uma engenharia econômica que não se confunde com<br />

93


V. Batalha das Idéias<br />

a(s) engenharia(s) de hoje, nem com a administração como a conhecemos,<br />

nem com a economia como a praticamos nos dias correntes; a<br />

essa nova engenharia cumprirá estabelecer as relações que vincularão<br />

a produção física com os recursos e as técnicas disponíveis e com as<br />

demandas de caráter individual e social.<br />

Em suma, temos, no capitalismo, um sistema “natural” integrado,<br />

auto-regulado, no qual até mesmo as formas de pensar (a seu favor)<br />

encontram-se “naturalmente” delineadas. De outra parte, deparamonos<br />

com o embrionário pensamento da esquerda, ainda incapaz de<br />

compor um quadro coerente e articulado do que deverá vir a ser, em<br />

idéia, o sistema pelo qual almejam os críticos radicais do capitalismo.<br />

Pensamento este que nos parecerá muito mais rudimentar se tivermos<br />

presente o quanto lhe resta por avançar, pois, por se tratar de<br />

algo “antinatural”, tudo, ou quase tudo, ainda está por ser elaborado.<br />

Pensamento que, por esta mesma causa, defronta-se com o fato de<br />

que não há nenhuma razão de ordem natural conducente ao estabelecimento<br />

e à persistência no tempo de uma nova forma de sociabilidade<br />

humana (as questões aqui sumariadas, como avançado, são tratadas<br />

mais detidamente nos seguintes trabalhos: MOTTA & COSTA, 2000 e<br />

MOTTA & COSTA, 2004).<br />

Talvez seja oportuno lembrar a esta altura desta nota que o empuxo<br />

transformador de caráter objetivo devido à ação da classe operária<br />

e do campesinato é bastante para colocar o capitalismo em xeque,<br />

mas, na ausência do elemento subjetivo aqui referido, o movimento<br />

revolucionário passa a “patinar” e sua direção pode ser empolgada<br />

por grupos políticos que conduzem o corpo social a situações em que<br />

domina o elemento repressivo ou totalitário e nas quais podem vir a<br />

predominar aparelhos burocráticos corruptos e/ou em que a ineficiência<br />

se mostra generalizada. Exemplos de casos como tais encontramos<br />

na URSS, nos países do leste Europeu, na China e em nossa tão<br />

desventurada Cuba.<br />

Se as opiniões acima reportadas estiverem corretas é forçoso reconhecer<br />

que a tarefa colocada ao pensamento de esquerda não é a<br />

de encontrar uma “nova classe redentora”, mas a de mobilizar consciências<br />

para a execução de um projeto político-ideológico consistente<br />

e abrangente, projeto este que nos cabe formular, pois ele ainda nem<br />

sequer foi esboçado em todas as suas dimensões.<br />

94<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Considerações acerca de um sistema equivocado<br />

Considerações acerca de<br />

um sistema equivocado<br />

(cotas raciais nos vestibulares)<br />

Fábio Santa Cruz<br />

No vestibular da Universidade de Brasília, parte das vagas disponíveis<br />

se destina a estudantes negros. E há uma comissão que decide,<br />

analisando as fotos dos vestibulandos, quem pode e quem não<br />

pode concorrer a estas vagas. Trata-se, então, de uma comissão que tem<br />

a atribuição de decidir quem é e quem não é negro. É, sem dúvida, uma<br />

atribuição polêmica. Mas um caso impressionante e absurdo aumentou<br />

ainda mais as dúvidas em relação à legitimidade das decisões tomadas<br />

por tal comissão. Após inscreverem-se no mesmo vestibular da Universidade<br />

de Brasília, dois irmãos solicitaram a sua inclusão no grupo de candidatos<br />

que deveria concorrer àquelas vagas reservadas aos estudantes<br />

negros. Embora os dois irmãos sejam gêmeos idênticos, apenas um deles<br />

teve a sua solicitação atendida.<br />

Pode-se tentar entender o que aconteceu neste caso. Talvez um<br />

examinador (ou um grupo de examinadores) tenha analisado a foto<br />

de um dos irmãos gêmeos e outro examinador (ou outro grupo de<br />

examinadores) tenha analisado a foto do outro irmão, chegando cada<br />

um destes dois examinadores (ou cada um destes dois grupos de examinadores)<br />

a conclusões diferentes acerca das fotos de duas pessoas<br />

idênticas. Caso tenha sido isso o que aconteceu, percebe-se como pode<br />

variar de examinador para examinador (ou de grupo de examinadores<br />

para grupo de examinadores) a conclusão acerca da condição racial de<br />

um estudante. O procedimento, assim, mostra-se claramente inexato,<br />

defeituoso e injusto.<br />

Caso as fotos dos dois irmãos gêmeos tenham sido analisadas pelo<br />

mesmo examinador (ou pelo mesmo grupo de examinadores), a situação<br />

é ainda mais problemática. Significa que uma mesma pessoa (ou<br />

um mesmo grupo de pessoas) pode achar que um sujeito é negro e<br />

que, por outro lado, alguém idêntico a este mesmo sujeito não é. Neste<br />

caso, sobressai ainda mais a inexatidão, a defeituosidade e a injustiça<br />

do que está sendo feito na Universidade de Brasília.<br />

95


V. Batalha das Idéias<br />

O caso é grave, pois demonstra que um sistema visivelmente<br />

equivocado e, portanto, acintosamente injusto está influenciando<br />

de forma decisiva o processo de admissão de novos alunos em<br />

uma das mais importantes universidades públicas do Brasil. Tendo<br />

em vista o que aconteceu no caso destes irmãos gêmeos idênticos,<br />

é provável que, em outros vestibulares, jovens que não foram<br />

vítimas de racismo ao longo de suas vidas tenham sido considerados<br />

estudantes negros pela Universidade de Brasília. E é provável<br />

que tenha ocorrido o inverso também. Enfim, este sistema de análise<br />

de fotos, que já era duvidoso e controverso, caiu em total descrédito<br />

após a divulgação deste escandaloso caso de duas pessoas fisicamente<br />

iguais que foram consideradas diferentes do ponto de vista racial.<br />

Qualquer outro procedimento que tente dividir a população<br />

brasileira em grupos raciais diferentes também terá problemas<br />

sérios para se sustentar. É muito difícil (talvez seja impossível)<br />

estabelecer critérios justos e exatos para definir qual a raça das<br />

pessoas, ainda mais em um país de tamanha miscigenação como<br />

o Brasil. Melhor seria pensar em um país em que todos pudessem<br />

ser cidadãos com direitos iguais, tenha cada um a estrutura genética<br />

que tiver. Este, aliás, era um dos principais anseios de grandes<br />

anti-segregacionistas que entraram para a história, como Martin Luther<br />

King. Sua luta foi para que cada pessoa pudesse ser tratada pelo<br />

Estado sem que se levasse em consideração a cor de sua pele, o seu<br />

tipo de cabelo ou qualquer outra característica de sua aparência externa.<br />

O que a Universidade de Brasília está fazendo, vestibular após<br />

vestibular, é justamente o contrário.<br />

No Brasil, o sistema de cotas raciais no processo de admissão a algumas<br />

instituições públicas de ensino superior foi proposto e, depois, oficialmente<br />

instituído sem que houvesse grande resistência por parte da<br />

sociedade. As manifestações contrárias a tal sistema foram reduzidas e<br />

tímidas. Por seu caráter notavelmente polêmico e complexo, o assunto<br />

deveria ser tratado de forma bem mais detida, mas parecia que havia algo<br />

dificultando a realização de um debate mais amplo e franco, que avaliasse<br />

atenciosamente o que estava sendo proposto e qual seria, sob<br />

diversos aspectos, o seu impacto. O que estava dificultando este debate<br />

era o temor de que qualquer palavra dita contra este sistema de<br />

cotas raciais fosse tratada como uma imprecação contra a raça negra.<br />

Segmentos progressistas da sociedade brasileira não tinham coragem<br />

de se opor a esta proposta porque temiam ser chamados de racistas,<br />

reacionários e antipopulares. Parte dos brasileiros foi tomada por um<br />

certo sentimento de culpa coletiva pelo nosso passado escravista e,<br />

96<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Considerações acerca de um sistema equivocado<br />

portanto, achava reprovável opor-se às reivindicações dos movimentos<br />

de defesa da raça negra.<br />

Passados alguns anos, há cada vez mais resistência ao sistema de cotas<br />

raciais nos vestibulares. Não é difícil entender porque isto está acontecendo.<br />

Depois de instaurado este sistema, a injustiça e a defeituosidade<br />

que o caracteriza vem se mostrando indisfarçável. Tão indisfarçável<br />

que há cada vez mais descontentamento e indignação contra tal sistema.<br />

Descontentamento e indignação que, lamentavelmente, podem dar<br />

origem a um aguçamento da rivalidade entre pessoas que têm a pele<br />

mais clara e mais escura (este, aliás, é outro problema decorrente da<br />

descabida tentativa de dividir os brasileiros entre negros e brancos).<br />

Já se sabe o que precisa ser feito para que jovens advindos de<br />

segmentos marginalizados da sociedade passem a ingressar com<br />

maior freqüência no ensino superior público e se dê início, destarte,<br />

a uma grande mudança de caráter popular e democrático em nosso<br />

país. O que pode promover tamanha mudança (que seria uma verdadeira<br />

revolução silenciosa) é o melhoramento amplo e contínuo das<br />

escolas públicas de nível fundamental e médio, onde estuda grande<br />

parte dos injustiçados do Brasil. O sistema de cotas raciais nos vestibulares,<br />

ao contrário, promove mudanças pífias, pois não faz mais<br />

do que criar um atalho para que alguns jovens de pele mais escura<br />

(mas, em sua maioria, de classe média) ingressem com maior facilidade<br />

no ensino superior público. Além disso, pode-se dizer que este sistema<br />

possui aspectos simbólico-emocionais (uns se sentem vingados, outros<br />

aliviam a culpa que sentem por terem ascendentes escravistas) e também<br />

pode ser uma ótima oportunidade para se satisfazer intentos demagógico-populistas.<br />

Não são, certamente, argumentos que justifiquem<br />

a adoção deste sistema. Trata-se, afinal, de um sistema evidentemente<br />

equivocado e injusto, do qual podem surgir casos tão bisonhos e ridículos<br />

como este dos irmãos gêmeos idênticos revelado pela imprensa.<br />

*<br />

97


V. Batalha das Idéias<br />

Introdução ao tema<br />

98<br />

Estado Democrático &<br />

Segurança Pública<br />

Oscar d´Alva e Souza Filho<br />

O Estado de Direito é uma construção do idealismo alemão, de<br />

fonte kantiana, preconizadora da necessidade de uma ordem jurídica<br />

coercitiva que garantisse tudo aquilo que a lei moral indicava como<br />

bem comum, mas não podia realizar, à míngua de força impositiva.<br />

O Direito seria, pois, o império da razão legisladora do Estado,<br />

normatizando e disciplinando as relações sociais, com imparcialidade<br />

e generalidade, de modo a conseguir uma ordem comunitária eficaz e<br />

plena.<br />

Ocorreu, contudo, que a “ratio” ou lógica jurídica editada pelo poder<br />

político do Estado se viu trombando com os muros da realidade<br />

social, esta, contraditória e dialética, trazendo em seu bojo classes<br />

sociais antagônicas e com interesses concretamente inconciliáveis,<br />

burguesia e proletariado.<br />

O Direito perdeu, de logo, sua feição racionalista e ideal de agente<br />

produtor de legislação disciplinadora e pacificadora. Assumiu a postura<br />

de ordenação, de comando e de mandamento legalista, traduzindo,<br />

sem rodeios, uma vontade política dominante. Vontade da classe<br />

dominante, pois.<br />

A partir de então, com acentuado sentido classista, o Direto Positivo<br />

deixou de ser uma “ratio” e aceitou de bom grado ser uma vontade,<br />

uma “voluntas”. Ao invés de se basear numa idéia de dever, baseou-se<br />

na realidade de seu poder policial, de sua capacidade de constranger.<br />

Mas não renunciou a nenhuma explicação ideológica legitimadora de<br />

seu papel: manter a ordem, a paz e a felicidade dos homens. Essa<br />

a cantilena ideológica do Estado Moderno e do seu Direito Positivo.<br />

Nenhum sistema positivo ousa dizer com clareza que sua base original<br />

é a força política real, impositiva, sua capacidade de constranger.<br />

O limite jurídico do poder político é a força do grupo ou da classe governante.<br />

Tal como ensinaram Maquiavel, Hobbes, Spinoza e Marx.<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Estado Democrático & Segurança Pública<br />

A partir do Estado moderno já se evidencia que a violência gerada<br />

pelos problemas sociais que consumaram o episódio da Comuna de<br />

Paris (<strong>18</strong>70) seria respondida pela violência legal do próprio Estado,<br />

através de seu poder de polícia.<br />

Alguns estados especializam seu aparelho policial repressivo como<br />

solução formal e material de manter a ordem e a paz políticas. Cria-se<br />

a concepção segundo a qual a questão social deve ser resolvida com<br />

medidas policiais adequadas.<br />

Nos países europeus surgem elogios ao modo investigador da polícia<br />

inglesa e à objetividade prática da polícia francesa. Depois na<br />

Itália, também em <strong>18</strong>70, César Lombroso explica a criminalidade a<br />

partir das características inatas de alguns indivíduos que nasceriam<br />

destinados ao crime...<br />

É a fase áurea do chamado jus-positivismo ou positivismo jurídico,<br />

doutrina do Direito que o identifica e o restringe ao espectro normativo.<br />

Lei e Direito significariam a mesma coisa.<br />

A experiência brasileira<br />

No Brasil, a tendência prática-objetiva da polícia francesa (que<br />

desvendava o crime no primeiro ato do inquérito, o interrogatório)<br />

predominou no Rio de Janeiro, em São Paulo e depois em todas as<br />

capitais federadas. A capacidade de “conseguir confissões” mediante<br />

instrumentos de tortura física e psicológica marcou e ainda hoje marca<br />

a identidade de nossa polícia. Tudo conforme a ideologia e a prática<br />

autoritária de nossas elites.<br />

Nos dias atuais, verificamos uma mudança considerável na estrutura<br />

geral do Estado e do poder da sociedade civil. Temos uma proposta<br />

legislativa ideologicamente democrática, baseada na idéia grega de<br />

isonomia formal, ou seja, a igualdade abstrata de todos os cidadãos<br />

de nossa República.<br />

A Carta constituinte de 1988 foi publicada num instante político<br />

de grande aspiração de liberdade e ainda sob suspiros de um intenso<br />

sofrimento advindo da experiência dos governos militares de 1964 a<br />

1985. Por isso nossa Carta Magna foi desenhada com ideologizações<br />

humanistas e progressistas que se assentaram em nossa Carta Maior<br />

como uma Intenção principiológica, eis que, na prática, nada mais se<br />

permitia ao povo que essa faculdade ingênua de sonhar, de aspirar.<br />

Devolvido o poder à sociedade civil, iniciamos uma fase nova chamada<br />

de Nova República, onde mais uma vez o povo republicano foi<br />

99


V. Batalha das Idéias<br />

substituído por “representantes” que se haviam credenciado na luta<br />

democrática de resistência ao militarismo. PMDB & Cia. <strong>PD</strong>T, PTB,<br />

PCdoB, PSDB, PT et caterva. Todos seguindo o ensinamento maquiavélico<br />

segundo o qual “o Partido deve lutar pelo poder”, o “governo<br />

deve lutar para mantê-lo”...<br />

Deu no que deu. Revelaram-se “farinha do mesmo saco”. Diferentes<br />

na expressão do discurso dialógico e iguais nas atitudes intestinas<br />

em prol da posse do poder político e econômico.<br />

A decepção com a Nova República e a falência do<br />

governo civil<br />

A Nova República revelou-se tão velha como a anterior. De Sarney<br />

a Collor de Melo. De Fernando Henrique a FHC. De Lula da Silva<br />

conciliador das elites e do FMI ao Lula que não sabe de nada, que<br />

desconhece o que fazem seus ministros e assessores diretos. O Lula<br />

do mensalão, dos sanguessugas e das promessas de PACs e outras<br />

matreirices...<br />

A constatação objetiva é que o Estado brasileiro ruiu. Faliu, não<br />

cumpriu com sua finalidade institucional e foi substituído nos maiores<br />

estados federados por outra trupe de corruptos que, pelo menos,<br />

não enganam. Não se dizem representantes do nosso povo. Tão bandidos<br />

como os nossos 300 picaretas, mas bem armados, com uma infraestrutura<br />

econômica e financeira alimentada pelo mercado internacional<br />

de drogas e de contrabando de armas. E de sobra com capacidade<br />

financeira para comprar deputados estaduais, federais, e pagar a toda<br />

uma corporação da Polícia Militar, como se viu no Rio de Janeiro.<br />

O poder paralelo, de um Estado-bandido, não-representativo e<br />

contra a lei positiva instituída, se afirma a cada dia, de dentro dos Presídios<br />

ou nas favelas, através de organizações complexas e eficientes<br />

em seus propósitos, como o CV (Comando Vermelho) e o PCC (Primeiro<br />

Comando da Capital).<br />

De um lado, a corrupção absoluta dos poderes políticos e das instituições<br />

do Estado republicano. Registremos o esforço indigente de<br />

alguns setores do DPF, do MPF e dos juízes pela democracia. De outro<br />

lado, a falta de assistência à sociedade. O primeiro emprego é dado<br />

pelo tráfico de drogas. O Estado civil não cumpre seu papel. Faltam<br />

escolas, falta habitação, falta emprego, falta saúde. Sobra dinheiro<br />

de uma tributação selvagem e imoral que é desviado, dia a dia para a<br />

corrupção demagógica dos poderes instituídos. O que fazer?<br />

100<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Estado Democrático & Segurança Pública<br />

A Nova República repete o discurso do início da época moderna<br />

e das nossas primeiras experiências republicanas: “polícia na rua”,<br />

mais viaturas, mais tanques, mais armamentos. Ou de outro modo:<br />

leis mais severas etc. Como se a questão fosse policial ou legislativa.<br />

A solução democrática para a Segurança Pública<br />

Só um choque de democracia pode salvar o nosso pretenso Estado<br />

Democrático.<br />

A Segurança Pública é uma questão da sociedade brasileira e do<br />

nosso Estado. É necessário que haja um diálogo entre as instituições<br />

do Estado responsáveis pela Segurança Pública (delegados de polícia<br />

civil e federal, polícias militares, ministérios públicos: federal dos Estados<br />

e territórios, juízes federais e estaduais e defensores públicos).<br />

Todas essas autoridades deverão calçar as “sandálias da humildade”<br />

e conversar com a sociedade civil, que é a destinatária da Segurança<br />

Pública. É imperativo que as associações comunitárias, os sindicatos,<br />

os clubes sociais de serviços, a juventude, as mulheres, as lideranças<br />

de bairro, políticos, religiosos, gregos e troianos, todos enfim se irmanem<br />

nesse esforço social de paz e de construção solidária.<br />

Será que ninguém entendeu uma coisa tão óbvia? Que se criem<br />

Centros Integrados de Defesa Social (que podem ser edificados com<br />

dinheiro dos municípios ou com verbas retiradas da corrupção) onde<br />

ali funcionem diariamente juizados cíveis e criminais, junto a promotorias<br />

cíveis e criminais, ao lado de defensorias públicas, de delegacias<br />

civis, de polícias militares, todos fiscalizados pela comunidade, pela<br />

imprensa democrática, por rádios comunitárias. Com controle social e<br />

democrático dos poderes públicos.<br />

E nada impede que ao lado desses Centros funcionem escolas com<br />

dois turnos de funcionamento para nossa infância e juventude, clubes<br />

de serviços etc. Hospitais, centros de artesanato, programas municipais<br />

e estaduais de qualificação de mão-de-obra etc.<br />

Observe-se que o mais difícil e mais caro já existe dentro da estrutura<br />

do Estado: polícias, promotores, juízes e defensores públicos.<br />

Só que estão afastados e separados da sociedade civil a que deveriam<br />

servir. Falta apenas um plano democrático, uma vontade política,<br />

para mudar, revolucionar, transformar. Mas tem que ser com o povo<br />

participando... Esse é o grande problema, nossos partidos, nossa<br />

esquerda, nossos políticos consideram-se auto-suficientes como representantes<br />

do povo, e nessa condição descartam a necessidade de<br />

ouvir a população.<br />

101


V. Batalha das Idéias<br />

Nossa República representativa se basta na representação legislativa<br />

e nos partidos autoritários e corruptos que temos. Não há solução<br />

democrática sem a participação popular. Ou estamos cometendo uma<br />

heresia?<br />

102<br />

*<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Crime, castigo, determinismo socioeconômico<br />

Crime, castigo, determinismo<br />

socioeconômico<br />

João Manoel Pinho de Mello<br />

O<br />

assassinato do garoto João Hélio Fernandes causou indignada<br />

reação da sociedade civil, clamando por ações enérgicas. Talvez<br />

esse crime chocante possa ensejar, finalmente, um debate<br />

sério sobre segurança pública no Brasil. Que a emoção do momento<br />

sirva de propulsor da ação, impedindo que a última de muitas atrocidades<br />

não caia no esquecimento, algo infelizmente provável. Mas que<br />

prevaleça a racionalidade. Necessitamos de soluções que sejam viáveis<br />

e que funcionem.<br />

Ao apresentar parte da evidência científica produzida na literatura<br />

econômica a respeito dos determinantes da criminalidade, espero<br />

que este artigo contribua para o debate. É importante enfatizar o<br />

caráter científico da evidência. Criminalidade é assunto sério, que<br />

também merece o rigor e o distanciamento da ciência.<br />

Separemos os crimes em dois grandes grupos: os racionais e os<br />

emocionais. Comecemos pelos últimos, com um exemplo ilustrativo<br />

da importância do rigor científico: a relação entre consumo de álcool<br />

em bares e crime. A revista Veja, de 11/2/2007 reporta, com<br />

a chancela de “especialistas ouvidos”, uma queda de 68% na taxa<br />

de homicídio em Diadema, município da Grande São Paulo, supostamente<br />

devida à adoção de restrições ao funcionamento de bares e<br />

restaurantes em determinados períodos do dia (“lei seca”). De fato, se<br />

compararmos as taxas de homicídio de Diadema antes e depois dessa<br />

providência, chegaremos a algo próximo daquele número. Há, no<br />

entanto, duas complicações. Diadema adotou simultaneamente várias<br />

outras medidas de contenção da criminalidade. E nesse período<br />

os homicídios estavam em queda livre na Grande São Paulo em geral.<br />

Olhando somente para Diadema, é praticamente impossível saber se<br />

a queda alardeada se deve à “lei seca”, às demais medidas, ou ao fato<br />

de que os homicídios já estavam em queda na Grande São Paulo e,<br />

portanto, cairiam com ou sem a “lei seca”.<br />

Há, no entanto, outras cidades da Grande São Paulo que adotaram<br />

a “lei seca” e, mais importante, outras tantas que não adotaram.<br />

103


V. Batalha das Idéias<br />

Comparando a dinâmica da taxa de homicídio entre cidades que adotaram<br />

e que não adotaram a “lei seca”, Ciro Biderman, Alexandre<br />

Schneider e eu contornamos os problemas descritos e chegamos a<br />

um número menor, mas ainda impressionante: a “lei seca” causa<br />

uma queda de 15% nos homicídios. Ora, se a conclusão é a mesma,<br />

a discussão não é meramente acadêmica? Não, porque, além de ter<br />

certeza, é importante saber a magnitude da queda.<br />

Se é de 68%, então temos uma panacéia: fechar os bares e - por<br />

que não, por extensão? - ilegalizar o consumo de álcool. Assim, no<br />

mínimo 68% do problema estaria resolvido. Fácil, não? Aí, adotamos<br />

a lei e alguma outra coisa que aumenta os homicídios ocorre<br />

simultaneamente. Se o efeito é de somente 15%, essa força contrária<br />

pode muito bem anular o benefício da “lei seca”. Desapontamo-nos<br />

e voltamos atrás. Resultado: por imaginar que tínhamos a solução<br />

mágica, deixamos de colocar em prática uma política pública que<br />

funcionaria.<br />

As declarações públicas sugerem que há dois grupos de opinião,<br />

aparentemente antagônicos. O primeiro é o “lei-e-ordem”, associado<br />

à “direita”, para quem a solução é reprimir com penas cada vez mais<br />

duras. O segundo é o “razões-de-fundo”, geralmente “esquerdista”,<br />

segundo o qual a questão criminal é eminentemente social, ou seja,<br />

falta de renda, educação, perspectiva de modo geral. Esse debate somente<br />

se aplica aos crimes cometidos por razões racionais. Contudo,<br />

tal conflito de opiniões é tão artificial quanto a dicotomia esquerda/<br />

direita.<br />

Lei e ordem e razões de fundo são faces de uma mesma moeda:<br />

determinam o “lucro” com atos criminosos. Lei e ordem determinam<br />

o custo de cometer atos ilegais. Mais policiamento ostensivo aumenta<br />

a chance de a pessoa ser presa - o que sai mais caro se as chances de<br />

condenação são altas e longas as penas. As razões de fundo afetam<br />

o benefício líquido do crime, ou seja, quanto o criminoso recebe na<br />

atividade criminosa, descontado o que ele ganharia se não estivesse<br />

na criminalidade. Por exemplo, se a pessoa é mais educada, seu salário<br />

tende a ser maior na atividade legal e, conseqüentemente, menor<br />

seu ganho líquido da atividade criminal, supondo que educação não<br />

ajuda na “profissão” marginal. Esse arcabouço ajuda a organizar o<br />

raciocínio. Mais interessante ainda, porém, é a evidência empírica.<br />

Primeiro, os temas referentes a lei e ordem. Para não perder tempo<br />

com debates já resolvidos, coloquemos um ponto final na polêmica<br />

sobre se policiamento diminui ou não a criminalidade. O bom<br />

senso diz que sim e há vasta evidência empírica a esse respeito. A<br />

104<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Crime, castigo, determinismo socioeconômico<br />

dificuldade em verificar empiricamente essa relação vinha do fato de<br />

que há mais polícia em lugares onde há mais crime. Ou seja, polícia<br />

causa queda no crime, mas crime causa aumento do policiamento.<br />

Nesse caso, não é claro como fica a relação crua entre as duas variáveis.<br />

Uma contribuição importante dos economistas para compreensão<br />

dos determinantes da criminalidade foi trazer uma metodologia<br />

empírica poderosa para “separar” efeitos contrários, como é o caso<br />

polícia-crime.<br />

Se não me crêem, lembrem-se do pandemônio, em Nova Orleans,<br />

que se seguiu ao Katrina, quando a autoridade pública desapareceu.<br />

Um alerta: como seria de esperar, policiamento afeta de maneira<br />

mais relevante os delitos mais “racionais”, como furto e roubo.<br />

Homicídio, que muitas vezes ocorre por razões emocionais (veja-se o<br />

exemplo da “lei seca”), não é muito afetado por policiamento. O efeito<br />

é praticamente nulo sobre estupro, crime cuja motivação é basicamente<br />

emocional. Mas tragédias como a de João Hélio Fernandes,<br />

um latrocínio, seriam menos prováveis.<br />

Além da possibilidade de o criminoso ser pego, o “custo” do crime<br />

aumenta quando a probabilidade de condenação e a pena são maiores.<br />

Fato amplamente documentado: maiores penas estão fortemente<br />

associadas com menor criminalidade. Há dúvida, no entanto, se o<br />

efeito é o “desestímulo” ou a “incapacitação”. O primeiro é auto-evidente.<br />

O segundo pode ser entendido como “um delinqüente a mais<br />

na cadeia é um bandido a menos na rua”. Em dois exemplos de boa<br />

ciência, o economista americano Steven Levitt mostrou que ambos os<br />

efeitos são relevantes, mas o efeito “desestímulo” é mais importante.<br />

Para separar os dois efeitos, dois procedimentos engenhosos foram<br />

usados. Em um dos trabalhos (em co-autoria com Daniel Kessler),<br />

Levitt usou o aumento no tempo de sentenças para estimar<br />

o efeito “desestímulo”: no curto prazo, o aumento da sentença não<br />

produziria o efeito “incapacitação”, que somente seria sentido lá na<br />

frente, nos anos adicionais.<br />

Em outro trabalho, Levitt usou o fato de que, se o efeito “incapacitação”<br />

é o relevante, aumentos de sentença para um tipo de crime<br />

diminuiriam os outros tipos de crime. Se o relevante é o efeito “desestímulo”,<br />

mais dureza em um tipo de crime aumenta os outros<br />

tipos de crime, porque seria de esperar que os marginais trocassem o<br />

caro pelo barato. Novamente, o interesse em distinguir os dois efeitos<br />

não é uma curiosidade intelectual. Se o efeito “desestímulo” é mais<br />

importante, como foi documentado, é preciso aumentar todas as sentenças<br />

uniformemente.<br />

105


V. Batalha das Idéias<br />

O efeito “desestímulo” tende a ser mais importante para os níveis<br />

baixos de pena. Por exemplo, aumentar a pena de 5 para 20 anos<br />

desencoraja mais do que aumentar de 30 para 45. Por quê? Talvez<br />

porque 30 anos já seja um horizonte tão longínquo para a maioria<br />

das pessoas que a adição de outros 15 não faz grande diferença.<br />

Por exemplo, não há documentação para um efeito “desestímulo” da<br />

pena de morte nos EUA. Não chega a surpreender, porque o efeito é<br />

provavelmente nulo.<br />

Crimes para os quais se aplicaria a pena de morte seriam punidos,<br />

de outro modo, com 30 anos de encarceramento ou com prisão<br />

perpétua. O custo adicional é baixo. Outra razão é que os crimes para<br />

os quais a sociedade americana está disposta a usar a pena de morte<br />

têm, na maioria esmagadora das vezes, uma forte raiz irracional. No<br />

nosso caso, não sabemos muito bem se a prisão perpétua terá algum<br />

efeito além do que se verificaria com 30 anos de prisão. Se eu tivesse<br />

que apostar diria que não, pela mesma razão de que pena de morte,<br />

aparentemente, não detém a criminalidade.<br />

Isso indica que, apesar de o aumento das penas funcionar, está<br />

longe de ser o cura-tudo. Mais importante é fazer valer as punições<br />

atuais, de modo que se cumpram as penas já estabelecidas e se acabem<br />

com os subterfúgios - 1/6 da pena, apelação em liberdade, progressões<br />

para regime semi-aberto e outros artifícios que fazem com<br />

que as punições sejam, em média, muito brandas.<br />

Como o efeito “desestímulo” é forte para penas relativamente baixas,<br />

e praticamente não há pena para uma faixa etária especialmente<br />

problemática, entre 15 e <strong>18</strong> anos, a antecipação da maioridade<br />

penal provavelmente diminuiria a criminalidade. Mas, novamente,<br />

isso não deve ser visto como panacéia. A assimetria na punição de<br />

maiores e menores tem dois efeitos: “substituição” e “geral”. O primeiro<br />

ocorre quando os criminosos colocam os menores para cometer<br />

atrocidades.<br />

Se a maioridade penal fosse diminuída, parte desses atos continuaria<br />

a ser cometida, mas agora pelos mais brutais e não pelos<br />

legalmente menores. A outra parte se refere ao efeito “geral”, advindo<br />

do fato de que, tudo o mais permanecendo constante, a punição<br />

média aumentou. Pode-se argumentar, no entanto, que, mesmo que<br />

somente houvesse o efeito “substituição”, ainda assim seria desejável<br />

diminuir a maioridade penal, pois os mais velhos passariam a cometer<br />

os crimes, o que por si só seria “bom”.<br />

Passemos às “razões de fundo”. Surpreendentemente, a relação<br />

entre crime e desemprego é ambígua. Enquanto há alguma evidên-<br />

106<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Crime, castigo, determinismo socioeconômico<br />

cia de que altíssimos níveis de desemprego estão empiricamente associados<br />

à maior ocorrência de crimes, essa relação não sobrevive<br />

em níveis de emprego mais mundanos. Também surpreendente é a<br />

dificuldade de documentar uma relação incontestável entre educação<br />

e crime. Usando dados individuais, alguns estudos chegam à<br />

relação, mais esperada, de que os criminosos são, em média, menos<br />

educados. Com dados agregados, no entanto, encontrou-se a relação<br />

contrária.<br />

Desigualdade de renda causa crime, mesmo levando-se em conta<br />

que, para um mesmo nível de renda média, desigualdade maior significa<br />

mais gente abaixo da linha de pobreza. Das “razões de fundo”,<br />

demografia talvez seja aquela mais fortemente ligada à criminalidade.<br />

Quanto maior a proporção de jovens do sexo masculino entre 15<br />

e 25 anos, maior será a criminalidade.<br />

Nos grandes centros urbanos brasileiros, é difícil dissociar criminalidade<br />

do tráfico de entorpecentes. Nesse caso, a própria ilegalidade<br />

provoca ainda mais ilegalidade. Uma razão é a falta de meios<br />

legais para resolução de conflitos. Como o vendedor não pode processar<br />

o cliente ou distribuidor inadimplente, reputação se torna a<br />

alma do negócio. A ameaça de assassinato, que às vezes tem que ser<br />

cumprida, torna-se instrumento de cobrança. Além disso, não há<br />

comprovação de que a proibição diminui o consumo de psicotrópicos.<br />

Apesar de não conclusivo, o fato de que, ao que tudo indica, o<br />

consumo de álcool não caiu na década de 1920 nos EUA é bastante<br />

sugestivo de que a proibição pouco ajuda.<br />

Em resumo, com base na evidência empírica da literatura econômica,<br />

parece que, de fato, nos faltam lei e ordem: investir em policiamento<br />

ostensivo, discutir a questão da maioridade penal, aumentar<br />

as penas (principalmente aquelas atualmente muito baixas)<br />

e, sobretudo, rever o processo penal, para que as punições atuais<br />

sejam cumpridas (por todos, ricos e pobres). Melhorar a distribuição<br />

de renda também diminuiria a criminalidade, mas demoraria a surtir<br />

efeito. Esperar que as mudanças demográficas nos salvem seria<br />

suicídio. Legalizar as drogas não parece ser o caminho mais prático,<br />

politicamente.<br />

É importante lembrar que prevenção não é a única razão que deveria<br />

nortear a decisão a respeito da severidade da pena. Pode haver,<br />

por exemplo, razões normativas de justiça para aumentar as penas,<br />

inclusive para evitar que a justiça seja feita à revelia do Estado; ou<br />

razões sociais, para proteger as crianças e os adolescentes. Essas<br />

outras dimensões devem ser levadas em conta, naturalmente.<br />

107


V. Batalha das Idéias<br />

Finalmente, enquanto as “razões de fundo” são pouco flexíveis no<br />

curto prazo, as variáveis que afetam o “custo” da atividade criminal<br />

podem ser ajustadas rapidamente. Mesmo que concluíssemos que as<br />

“razões de fundo” são mais importantes, vem à mente a analogia do<br />

médico de plantão. O paciente chega com enfarte, ele opera. Nesse<br />

momento, há que salvar o paciente, e não perguntar sobre sua dieta.<br />

O Brasil está tendo um enfarte na segurança pública.<br />

108<br />

*<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


VI. Ensaio


110<br />

Autores<br />

Giuseppe Vacca<br />

Presidente da <strong>Fundação</strong> Intituto Gramsci, em Roma.


A esquerda italiana e o<br />

reformismo no século XX 1<br />

Giuseppe Vacca<br />

Na segunda metade dos anos 1990, uma singular sincronia<br />

eleitoral fez com que, em treze dos quinzes países da União<br />

Européia, partidos socialistas ou coalizões de centro-esquerda<br />

se encontrassem pela primeira vez no governo ao mesmo tempo.<br />

O acontecimento era de alcance extraordinário: nos anos oitenta,<br />

em todos os países europeus o reformismo socialista havia registrado<br />

uma crise de consenso e, em 1989, fora desafiado pela orgia em<br />

torno da “morte do comunismo”, de que a opinião pública mundial<br />

parecia ter se convencido. Para compreender como teve origem tal<br />

acontecimento, pode ser útil fazer uma comparação entre o “velho”<br />

reformismo, que travou suas batalhas no horizonte da política nacional,<br />

e o “novo” reformismo, que enfrenta os desafios da supranacionalidade.<br />

A comparação terá uma inflexão particular, uma vez<br />

que o foco do discurso recai sobre a Itália, que, como se sabe, não<br />

conheceu e ainda não conhece a existência de um partido reformista<br />

de nível europeu.<br />

1 Este texto é o prólogo do livro Il riformismo italiano — dalla fine della guerra fredda<br />

alle sfide future (2006) e foi também publicado em La Insignia. Por razões estritas de<br />

espaço, a editoria foi obrigada a eliminar as notas referenciais de obras em italiano.<br />

O texto original está em Gramsci e o Brasil – www.gramsci.org.<br />

111


VI. Ensaio<br />

A crise dos anos trinta e as primeiras experiências de<br />

governos reformistas<br />

Os sujeitos políticos se definem através dos desafios a que tentam<br />

responder com base nos valores, nas visões e nos interesses que os caracterizam.<br />

Em outras palavras, definem-se reciprocamente com base<br />

nos diferentes modos pelos quais se referem aos processos históricos<br />

gerais. Portanto, devemos estabelecer preliminarmente qual é o termo<br />

de comparação do reformismo e o gênero próximo a que se refere. O<br />

tema não é banal, antes de mais nada porque nos anos mais recentes<br />

o termo “reformismo” sofreu uma dilatação semântica despropositada,<br />

de modo que, especialmente na linguagem jornalística, ele é empregado<br />

para indicar qualquer tipo de governo – de esquerda, de centro ou<br />

de direita – que implemente reformas. No entanto, em sentido próprio,<br />

a “questão do reformismo” diz respeito à história do socialismo. Mas,<br />

para focalizar o problema, esta delimitação do campo não basta. Ainda<br />

se deve ajustar contas com a idéia muito difundida de que os movimentos<br />

políticos distinguem-se com base na sua identidade, definida<br />

de uma vez por todas; de tal sorte, é opinião corrente que o socialismo<br />

encarne a idéia de igualdade, de conteúdos variáveis, mas sempre<br />

igual a si mesma como valor. Na “eterna” contraposição entre direita<br />

e esquerda, ela identificaria a esquerda e, portanto, o reformismo, que<br />

é uma parte essencial desta esquerda. Na realidade, as coisas não são<br />

assim: direita e esquerda redefinem-se reciprocamente no tempo e no<br />

espaço com base na mudança de critérios de realinhamento das forças<br />

sociais e políticas determinados pelas vicissitudes nacionais e mundiais.<br />

Mas, mesmo depois desta especificação, o conceito ainda não<br />

está inteiramente esclarecido. Com efeito, na Itália ainda prevalece a<br />

idéia de que reformismo seja sinônimo de “gradualismo”: os reformistas<br />

representariam aquela parte da esquerda que aceita subordinar<br />

seus fins aos ritmos e compatibilidades do “jogo democrático”: seu<br />

oposto seriam os “revolucionários”, que, ao contrário, não aceitariam<br />

tais condições. Esta definição é patentemente anacrônica: está presa<br />

ao grande debate do final do século XIX, no qual o socialismo europeu<br />

se dividiu entre “reformistas” e “revolucionários” com base em dois modos<br />

diferentes de conceber o fim último (a “superação do capitalismo”).<br />

Como se sabe, a divisão se tornou dilaceradora com o nascimento do<br />

movimento comunista e o abandono do “fim último” por parte dos reformistas.<br />

Mas, de um ponto de vista histórico, já no curso dos anos<br />

vinte o movimento comunista pôs de lado a perspectiva da “revolução<br />

mundial”, e não se pode negar que desde então, na Europa, também<br />

tenha sido “gradualista”. A divisão, pois, ficou limitada aos meios.<br />

112<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


A esquerda italiana e o reformismo no século XX<br />

Apesar disso, permaneceu uma contraposição radical, uma vez<br />

que passava pelo reconhecimento ou pelo desconhecimento da democracia<br />

como regra absoluta do jogo. Sua aceitação por parte da socialdemocracia<br />

não era só uma “escolha de valor”, mas também decorria<br />

de uma visão da “estabilização capitalista”: ela a percebia não só<br />

como a hipótese mais provável (depois da catástrofe da guerra), mas<br />

também a mais desejável, e a punha como base de uma “estratégia<br />

de compromisso”, destinada a favorecer a estabilidade, em troca da<br />

democracia e do Welfare. Ao contrário, para o movimento comunista,<br />

a estabilização capitalista não interrompia a “crise geral do capitalismo”<br />

e tornava inteiramente transitórias (além de circunscritas aos<br />

países capitalistas mais desenvolvidos) as “situações democráticas”.<br />

De todo modo, desde os anos trinta do século XX, a distinção entre<br />

“reformistas” e “revolucionários” torna-se anacrônica. Por outro lado,<br />

a disputa sobre o “fim último” baseava-se num equívoco. A idéia da<br />

“superação do capitalismo” nascia da contraposição entre capitalismo<br />

e socialismo, que é histórica e conceitualmente infundada. Capitalismo<br />

e socialismo referem-se a dois planos diversos da realidade e não<br />

são comparáveis: o capitalismo é um modo de produção, o socialismo<br />

é um critério de regulação do desenvolvimento econômico, que, portanto,<br />

não se contrapõe ao primeiro, mas propõe-se orientá-lo. Para<br />

superar este falso dilema, foi necessário elaborar o conceito de regulação,<br />

e, naturalmente, não estamos falando de elaboração puramente<br />

intelectual, mas de experiência histórica concreta. Aproximamo-nos,<br />

assim, do ato de nascimento do reformismo: a crise dos anos trinta e<br />

a invenção de um “modo de regulação” do desenvolvimento alternativo<br />

ao do velho liberalismo, que entra em colapso.<br />

Portanto, o termo de comparação do reformismo foi e ainda é o<br />

maximalismo. O reformismo é programa e ação de governo; o maximalismo,<br />

diferentemente daquilo que geralmente se considera, não<br />

é tanto radicalismo social ou antagonismo “de classe” (até Turati era<br />

“classista”), quanto, sobretudo, indiferença em relação à responsabilidade<br />

de governo. Mas, para um partido, desenvolver capacidade de<br />

governo não é só questão de vontade. Seu ponto de amadurecimento<br />

é o alcance da capacidade de interpretar o interesse nacional, que, por<br />

natureza, está em disputa. De reformismo socialista só podemos falar,<br />

de modo circunstanciado, a partir de quando, elaborando programas<br />

representativos do “interesse nacional”, alguns partidos socialistas<br />

chegaram ao governo nos seus países. Isto aconteceu pela primeira<br />

vez na Grã-Bretanha, na Suécia e na Bélgica, entre o fim dos anos<br />

vinte e o início dos anos trinta, numa passagem crucial da história<br />

do século XX. Diante dos efeitos explosivos da crise de 1929-1932, foram<br />

aqueles partidos operários que elaboraram soluções mais válidas<br />

113


VI. Ensaio<br />

do que as propostas pelos partidos liberais ou conservadores para os<br />

problemas do próprio país e conquistaram seu governo. Na verdade,<br />

não foi a primeira experiência de governo em termos absolutos: tinha<br />

havido a República de Weimar; mas os socialistas que governaram a<br />

Alemanha nos anos vinte fracassaram precisamente na capacidade de<br />

enfrentar a Grande Depressão, abrindo assim caminho para a vitória<br />

de Hitler. Ao contrário, nos três casos que lembrei, os socialistas venceram<br />

o desafio porque ocorreu uma mudança fundamental da sua<br />

cultura política: uma mudança de paradigma, que constitui o verdadeiro<br />

ato de nascimento do reformismo.<br />

O salto de qualidade consistia no fato de que aqueles partidos<br />

mostravam-se capazes de agir pela primeira vez não só em nome da<br />

classe, mas também em nome da nação. Foram assim lançadas as<br />

bases do reformismo nacional. Em outras palavras, de uma cultura de<br />

governo dos socialistas que, ao evoluir ainda mais, seria capaz de promover,<br />

depois da Segunda Guerra Mundial, um consenso reformista<br />

majoritário num número crescente de países europeus.<br />

Entre os elementos que deram origem a esta evolução, deve-se salientar,<br />

antes de mais nada, a nova capacidade de análise do capitalismo,<br />

emancipada da visão catastrófica das suas crises. Nos anos<br />

trinta, as três socialdemocracias que recordei mostram consciência de<br />

que as crises são o processo natural do desenvolvimento capitalista e,<br />

portanto, trata-se de aprender a governá-las. No caso específico, elas<br />

interpretaram a Grande Depressão como uma crise de subconsumo<br />

e elaboraram respostas eficazes que a cultura liberal então refutava:<br />

políticas de sustentação da demanda efetiva, desenvolvimento da economia<br />

mista, compromisso entre as organizações sindicais dos trabalhadores<br />

e das empresas, reconhecendo a legitimidade do comando<br />

capitalista na fábrica mas contratando suas modalidades, acordo sobre<br />

a relação entre salários e produtividade, forte impulso às políticas<br />

sociais. São os elementos básicos daquilo que muitos anos depois se<br />

chamaria de “compromisso keynesiano” ou “regulação fordista”.<br />

As frentes populares. Os Cadernos do cárcere<br />

A importância histórica daquelas experiências também residia na<br />

demonstração de que, diante da dissolução da civilização liberal, a alternativa<br />

entre bolchevismo e fascismo não era inexorável. Depois da<br />

vitória de Hitler na Alemanha, este parecia ser o destino da Europa.<br />

No entanto, aquelas experiências começaram a alimentar o antifascismo<br />

com propostas positivas e concretas. Este foi o quadro em que,<br />

também no movimento comunista, abriu-se um espaço para a conci-<br />

114<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


A esquerda italiana e o reformismo no século XX<br />

liação entre classe e nação. Para tanto, foi decisiva a experiência da<br />

Frente Popular na França, nascida da colaboração entre comunistas<br />

e socialistas. Na Itália, deve-se recordar o pacto de unidade e ação de<br />

1934, que também nascia da revisão de análises e programas que animaram<br />

a investigação socialista depois da derrota de 1919-1922, bem<br />

como da elaboração do PCI sobre o fascismo. Ainda que de modo limitado<br />

à necessidade de combater o fascismo, também os comunistas<br />

resolviam o problema da participação em governos de coalizão para<br />

enfrentar os perigos da guerra, defender a democracia e renovar seus<br />

conteúdos através da realização de reformas econômicas e sociais. A<br />

“virada” foi aprovada no VII Congresso da Internacional, que retificou<br />

a equação entre socialdemocracia e fascismo. Restava o limite insuperável<br />

da subordinação dos partidos comunistas à política da URSS, de<br />

modo que o que deveria ter sido uma virada estratégica foi só uma virada<br />

tática, logo sepultada pelo desencadeamento do Grande Terror e<br />

pelo pacto Molotov–Ribbentrop. Mas era de grande importância o fato<br />

de que, através da elaboração de um programa concreto de luta contra<br />

o fascismo, também os comunistas enfrentassem o nó das relações<br />

entre classe e nação, e isso contribuiria de modo significativo para valorizar<br />

seu papel na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial.<br />

Na Itália, o problema de conciliar classe e nação fora formulado por<br />

Antonio Gramsci desde 1924. A solução do problema, pois, inscreviase<br />

numa perspectiva revolucionária e não na reformista. Mas deve-se<br />

chamar a atenção para a revisão dos fundamentos teóricos do bolchevismo<br />

que Gramsci elaborou nos Cadernos do cárcere. Partindo<br />

da análise da crise de 1929, ele chegava a uma verdadeira teoria geral<br />

das crises, que continha também a explicação das origens da Grande<br />

Guerra. A partir das últimas décadas do século XIX, com a formação<br />

de uma “economia mundial”, crises e guerras tinham origem no contraste<br />

cada vez mais gritante entre o “cosmopolitismo” da economia e o<br />

“nacionalismo” da política. O primeiro não podia difundir seus influxos<br />

benéficos porque se via obstaculizado pela existência de uma ordem<br />

internacional baseada nos Estados-nação, que, com suas prerrogativas<br />

(o princípio de soberania, a decisão exclusiva sobre a guerra e<br />

a paz), monopolizavam a política. Mas o princípio de soberania fora<br />

definitivamente abalado pelos eventos da Primeira Guerra Mundial,<br />

que deflagrou uma crise irreversível do Estado-nação. A virada isolacionista<br />

da política soviética (a opção de “construir o socialismo num<br />

só país”) pôs fora de jogo o movimento comunista, uma vez que ele<br />

identificava o socialismo com o destino da URSS. Mas nos Estados<br />

Unidos se estava desenvolvendo um novo tipo de industrialismo, destinado<br />

a expandir-se em nível mundial e a mudar os espaços da política.<br />

Neste processo Gramsci entrevia a possibilidade de encaminhar<br />

115


VI. Ensaio<br />

a solução daquela antinomia, orientando nacionalmente a aliança entre<br />

operários e camponeses para um “novo cosmopolitismo”, voltado<br />

para a “reconstrução da economia segundo um plano mundial”. Etapa<br />

intermediária da nova ordem mundial, a criação de “agrupamentos”<br />

econômicos supranacionais.<br />

Gramsci escrevia num cárcere fascista, mas não há quem não veja<br />

como sua elaboração atinja em cheio os fundamentos do bolchevismo:<br />

a teoria da “crise geral do capitalismo”, a consideração do imperialismo<br />

como “fase suprema do capitalismo” e, portanto, a idéia da inevitabilidade<br />

da guerra. Depois da queda do fascismo, sua investigação<br />

influenciaria de modo determinante a política do PCI, inspirada na<br />

perspectiva do antifascismo.<br />

A guerra antifascista e a redefinição do reformismo<br />

As primeiras três décadas do segundo pós-guerra registraram a<br />

ascensão do “reformismo nacional” e, na Itália, único país da Europa<br />

Ocidental, o crescimento constante do peso eleitoral e do papel do<br />

PCI. Para analisar esta “anomalia”, é necessário que nos detenhamos<br />

brevemente nas características da Segunda Guerra Mundial a partir<br />

de 1941, isto é, a partir de quando, com a intervenção dos Estados<br />

Unidos e o surgimento da Grande Aliança, ela se tornou a guerra antifascista.<br />

Devemos, pois, considerar as mudanças por ela produzidas.<br />

Deve-se chamar a atenção para o universalismo rooseveltiano e a<br />

visão que a elite do New Deal tinha da nova ordem internacional a<br />

ser construída depois da derrota do nazismo. Ela propugnava uma<br />

reorganização do mercado mundial que também incluísse a URSS,<br />

um ordenamento das relações internacionais baseado na cooperação<br />

entre as potências antifascistas, uma abordagem multilateral dos problemas<br />

internacionais, a criação de espaços econômicos supranacionais<br />

abertos, a construção de novos organismos internacionais para o<br />

governo da economia, o nascimento das Nações Unidas como embrião<br />

de um governo mundial. Não foi possível realizar este projeto não só<br />

por causa da morte de Roosevelt e da mudança do bloco de poder que<br />

o sucede à frente dos Estados Unidos, mas também, e talvez sobretudo,<br />

por causa da indisponibilidade da URSS a aceitar este desafio.<br />

Na elite staliniana, dominava a percepção da insegurança da URSS, e<br />

isso fazia com que buscasse novas garantias territoriais. Era a projeção<br />

da “política de segurança” que Stalin havia começado na segunda<br />

metade dos anos trinta e que, logo depois do parêntese da “guerra pa-<br />

116<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


A esquerda italiana e o reformismo no século XX<br />

triótica”, induziu-o a restaurar o “Estado de segurança total”. Aquela<br />

visão leva a impor aos países da Europa Central e do Leste, libertados<br />

pelas forças soviéticas, um regime de ocupação permanente voltado<br />

para estender as fronteiras da URSS até as fronteiras desses países e<br />

a neles instaurar o sistema político e econômico da própria URSS. Era<br />

a criação de uma esfera de influência totalitária baseada em critérios<br />

militares e na divisão da Europa, com o erguimento do que Churchill<br />

batizou como “cortina de ferro”.<br />

Portanto, caminhavam pari passu a ruptura da aliança antifascista<br />

e o nascimento da guerra fria. Mas as mudanças originadas da<br />

Segunda Guerra Mundial tiveram igualmente uma relevância epocal.<br />

Para ficar nas que se referem ao nosso tema, recordo a criação, por<br />

parte dos Estados Unidos, de um espaço econômico supranacional<br />

que se estendia a todo o Ocidente, o lançamento de “políticas de produtividade”<br />

voltadas para estabilizá-lo, favorecendo a reconstrução da<br />

Europa Ocidental, a divisão do mundo em dois campos contrapostos<br />

dominados pelas duas maiores potências, o início da integração européia.<br />

Nascia assim uma nova “estrutura do mundo”, na qual interdependência<br />

econômica e interdependência política caminhavam paralelamente.<br />

Criava-se um sistema de relações internacionais, no qual<br />

o Estado-nação não era mais o único protagonista. As duas maiores<br />

potências alcançaram rapidamente uma capacidade de destruição recíproca<br />

que limitava sua própria soberania, uma vez que a decisão da<br />

guerra não era mais prerrogativa unilateral de uma ou de outra. Em<br />

medida bem maior, este elemento constitutivo da soberania do Estado<br />

moderno desaparecia em todos os demais países. No plano econômico,<br />

em todo o Ocidente se instaurava uma ordem dúplice, que, para retomar<br />

a feliz metáfora de Robert Gilpin, baseava-se num “compromisso<br />

entre Smith e Keynes”, isto é, na predominância da regulação de mercado<br />

na economia internacional e da regulação política na economia<br />

nacional. Isso favorecia o que Alan Milward chama de “renascimento<br />

do Estado-nação na Europa”, uma vez que os mercados nacionais<br />

eram os centros propulsores da difusão internacional do novo industrialismo<br />

e da “economia dos consumos”, que constituíam a base da<br />

hegemonia americana mas também do desenvolvimento dos países<br />

aliados, e a regulação política do mercado interno era a alavanca do<br />

“desenvolvimento nacional”. Sua promoção, somada à construção do<br />

Welfare State, tornou-se o principal objetivo das esquerdas em todas<br />

as democracias ocidentais. Esta combinação virtuosa de fatores políticos<br />

nacionais e internacionais iria durar até a crise dos anos setenta.<br />

Mas, voltando à Segunda Guerra Mundial e à Itália, a Grande<br />

Aliança antifascista permitiu ao Partido Comunista assumir um papel<br />

117


VI. Ensaio<br />

eminente na Resistência e na guerra de Libertação, e tornar-se o principal<br />

partido do movimento operário italiano. Tomava forma assim um<br />

reformismo nacional comunista, que, caso único na Europa, demonstrou<br />

uma capacidade de resistência e de evolução destinada a incidir<br />

profundamente na vida política e civil do país até os anos setenta.<br />

Baseava-se, precisamente, na conciliação entre classe e nação, a partir<br />

da missão que coube à classe operária na Resistência e na guerra<br />

de Libertação; graças a ela, o PCI conseguiu ter um papel relevante<br />

na fundação da República, na elaboração do pacto constitucional e<br />

na construção do sistema político, e, do ponto de vista programático,<br />

desempenhou um papel comparável àquele que, nos outros países europeus,<br />

tiveram as grandes socialdemocracias. Pode-se dizer que, caso<br />

talvez único entre os partidos comunistas europeus, o PCI jamais se<br />

afastou do antifascismo como fundamento de uma política nacional<br />

reformista. A Constituição republicana tornou-se seu “programa fundamental”.<br />

No entanto, tratava-se de um tipo de reformismo nacional<br />

incompleto, que, sob a roupagem de um partido comunista, não podia<br />

ser levado a cabo.<br />

O “partido novo” de Togliatti era concebido como “partido de governo<br />

da classe operária”, e seu programa, resumido na fórmula da<br />

“democracia progressiva” (se levarmos em conta as particularidades<br />

de um país derrotado, que havia vivido a experiência do fascismo e,<br />

com o colapso deste último, também o colapso do Estado; e, além disso,<br />

havia experimentado uma guerra civil sangrenta, a divisão entre a<br />

República Social e o Reino do Sul, o risco de ruptura da unidade nacional),<br />

não estava em nível inferior ao dos programas de reconstrução<br />

sustentados pelos partidos socialistas nos outros países da Europa<br />

Ocidental. Mas, terminada a Grande Aliança, o pertencimento ao movimento<br />

comunista internacional e a fidelidade à URSS privavam o PCI<br />

da legitimação para governar. Esta não lhe era vedada pela força, mas<br />

pela falta de consenso, uma vez que, enquanto a Democracia Cristã<br />

dispunha de um nexo internacional virtuoso no qual inserir o desenvolvimento<br />

do país, a “dupla lealdade” do PCI não lhe permitia fazer o<br />

mesmo. No mundo do pós-guerra, a política nacional era o resultado<br />

de determinadas “combinações” de forças nacionais e de condicionamentos<br />

internacionais. Na esfera ocidental, em que a Itália estava solidamente<br />

inserida, não estava dada ao PCI a possibilidade de elaborar<br />

uma própria “combinação” daqueles fatores que o pusesse em condições<br />

de desafiar a DC (e seu sistema de alianças) quanto ao governo<br />

do país. Em outros termos, no nexo entre política interna e política<br />

internacional, o PCI estava bloqueado por uma contradição insanável,<br />

derivada da sua lealdade a uma coalizão internacional contraposta<br />

àquela em que estava inserida a Itália, que impedia o desdobramento<br />

1<strong>18</strong><br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


A esquerda italiana e o reformismo no século XX<br />

do núcleo reformista do seu projeto. Isto também bloqueou a evolução<br />

da sua cultura política, privando-o de recursos fundamentais na<br />

gestão do “compromisso keynesiano” — sobretudo na concepção das<br />

“relações industriais” — e atribuindo-lhe um papel inferior ao que, em<br />

outros países europeus, tinham as socialdemocracias. Finalmente, a<br />

emergência da guerra fria cristalizou as divisões existentes no reformismo<br />

italiano, uma parte do qual - os dossettianos, os republicanos<br />

e Saragat - se colocava no governo, enquanto a outra - socialistas e<br />

comunistas - estava na oposição, reduzindo-lhe drasticamente o papel<br />

e a eficácia. No sistema da guerra fria, identificavam-se a “democracia<br />

bloqueada” e a impossibilidade de unir num só partido de governo<br />

as correntes do reformismo italiano: e isso, na Itália do segundo pósguerra,<br />

iria marcar toda a experiência do “reformismo nacional”.<br />

O fim do sistema de Bretton Woods e o “conflito econômico<br />

mundial”. Surgimento do europeísmo socialista<br />

Os arranjos internacionais originados da Segunda Guerra Mundial<br />

entraram em crise no final dos anos sessenta. Para ter um quadro<br />

exaustivo dos fatores de mudança e dos processos que tiveram<br />

início nos anos setenta, também deveríamos considerar a evolução<br />

das relações Norte-Sul. Mas, para os fins do nosso argumento, podemos<br />

deixá-las de lado, mesmo porque estavam condicionadas pelas<br />

relações Leste-Oeste e pelas dinâmicas da guerra fria. Vamos considerar,<br />

pois, em primeiro lugar, a crise do sistema de Bretton Woods.<br />

No final dos anos sessenta, a economia americana não era mais capaz<br />

de desempenhar um papel hegemônico na economia ocidental.<br />

A convertibilidade do dólar e o regime de câmbio fixo tinham garantido<br />

a reconstrução européia e a ascensão de duas outras potências<br />

econômicas capazes de cooperar, mas também de competir com a<br />

economia americana: o Japão e a República Federal da Alemanha.<br />

Os Estados Unidos, que no final da guerra representavam 53% da<br />

riqueza mundial, por volta de 1970 representavam cerca de um terço<br />

desta riqueza. Não podiam mais arcar com o peso das despesas<br />

militares decorrentes do papel de “gendarme” internacional do Ocidente<br />

e perdiam competitividade também por causa do peso social<br />

alcançado pelas classes trabalhadoras. Este aspecto dizia respeito,<br />

em modos diferentes, a todas as democracias industriais, que haviam<br />

atingido a maturidade do “ciclo fordista”. Os Estados Unidos<br />

decidiram pôr fim à convertibilidade do dólar (1971) e ao regime de<br />

câmbio fixo (1973), destruindo o sistema de Bretton Woods. O significado<br />

desta decisão resume-se ao objetivo de tirar das mãos dos<br />

governos o controle dos fluxos financeiros internacionais e entregá-<br />

119


VI. Ensaio<br />

lo a mãos privadas. Assim, da velha ordem econômica internacional<br />

passava-se a um regime que só na aparência era de “desordem”: na<br />

realidade, ocorria a passagem de um sistema hegemônico, vantajoso<br />

também para os aliados dos Estados Unidos, para um conflito econômico<br />

mundial regulado pela lei do mais forte. Entre os motivos daquela<br />

escolha, deve-se recordar a vontade de valer-se da senhoriagem<br />

do dólar para financiar o desenvolvimento da “economia da informação”,<br />

apoiando-se no complexo militar-industrial com o objetivo<br />

de reconquistar a competitividade perdida em benefício da economia<br />

alemã e da japonesa. Objetivo não secundário era o de favorecer,<br />

também em nível nacional, o predomínio da regulação de mercado<br />

para facilitar a difusão da “economia da informação”. Em síntese,<br />

soava a hora final do “compromisso entre Smith e Keynes” e iniciavase<br />

um novo ciclo de globalização assimétrica da economia mundial,<br />

entregue à regulação de mercado. Por outra parte, nos anos setenta<br />

também entra em crise o bipolarismo, e se a URSS, pensando aproveitar<br />

a derrota americana no Vietnã, tentou relançar o próprio papel<br />

internacional com uma agressiva política expansionista no Terceiro<br />

Mundo, os EUA responderam com o lançamento de uma “nova guerra<br />

fria”, voltada para excluir a União Soviética da terceira revolução<br />

industrial. A passagem de um bipolarismo baseado na estabilidade<br />

das esferas de influência, bem como no domínio de cada superpotência<br />

no interior destas esferas, para um bipolarismo antagonista<br />

provocou o colapso da URSS, uma vez que ao seu poderio militar não<br />

correspondia um igual poderio industrial e tecnológico, que lhe permitisse<br />

resistir ao desafio americano.<br />

Mas, voltando aos anos setenta, o fim de Bretton Woods, o início<br />

de um “conflito econômico mundial”, o lançamento de uma “nova<br />

guerra fria” mudaram radicalmente a natureza do vínculo externo.<br />

Antes de mais nada, desaparecia a autonomia relativa das economias<br />

nacionais; em segundo lugar, a estas economias se apresentavam<br />

problemas agudos de reconversão industrial e de especialização<br />

competitiva; em terceiro lugar, a passagem do industrialismo<br />

mecânico ao neo-industrialismo informático mudava rapidamente a<br />

composição demográfica dos países mais desenvolvidos. Estas mudanças<br />

faziam desaparecer as vantagens da regulação política das<br />

economias nacionais e reduziam sensivelmente os recursos financeiros<br />

necessários para sustentar as redes de proteção social construídas<br />

nas décadas precedentes (a “crise fiscal do Estado”); além<br />

disso, diferenciavam cada vez mais as demandas de Welfare e enfraqueciam<br />

o parceiro sindical do “compromisso neocorporativo”. Era o<br />

início do fim da identificação entre movimento operário e socialismo,<br />

e fechava-se o ciclo do “reformismo nacional”. Como recordamos no<br />

120<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


A esquerda italiana e o reformismo no século XX<br />

início, nos anos oitenta se registrou uma crise generalizada do “consenso<br />

reformista”.<br />

Mas a Europa Ocidental não sofreu passivamente as conseqüências<br />

do unilateralismo econômico americano. Fracassada, por causa<br />

da oposição dos Estados Unidos, a primeira tentativa de criar uma<br />

moeda única, os governos europeus aceleraram o processo de integração,<br />

criando (1979) o Sistema Monetário Europeu (SME). Por<br />

seu turno, os dirigentes mais lúcidos do socialismo europeu (Brandt,<br />

Palme, Kreisky) haviam empreendido uma busca destinada a renovar<br />

profundamente a cultura política dos respectivos partidos. Protagonistas<br />

da construção européia no pós-guerra foram a cultura política<br />

católica e a liberal. Os partidos operários, tanto as socialdemocracias<br />

quanto os partidos comunistas, restaram por muito tempo vinculados<br />

ao nacionalismo econômico. Isto se explica com o fato de que a<br />

regulação política do mercado nacional e o “compromisso neocorporativo”<br />

eram seus principais recursos políticos. Ao contrário, não é<br />

justificável sua dificuldade para compreender o valor progressista<br />

do regionalismo econômico e da integração supranacional. Quanto<br />

aos comunistas, em particular, deve-se salientar a incapacidade de<br />

compreender que a integração européia não era apenas um pilar da<br />

guerra fria, mas também um processo que, iniciado neste contexto,<br />

tendia a superar a lógica bipolar e a criar um ator político que poderia<br />

contribuir para sua superação. Mas já nos anos sessenta os<br />

principais partidos operários da Europa Ocidental começaram uma<br />

revisão das suas posições em relação ao Mercado Comum Europeu.<br />

Nos anos oitenta, a busca de novas respostas à crise do consenso<br />

reformista levou ao surgimento de um europeísmo socialista. Entre<br />

os partidos comunistas, o mais avançado era o PCI, que, no que se<br />

refere a estes temas, seguiu uma parábola análoga à das socialdemocracias,<br />

apesar dos limites derivados do caráter contraditório das<br />

suas ligações internacionais. E eles foram muito rapidamente evidenciados<br />

pelo rápido esgotamento do período do “eurocomunismo”.<br />

No curso dos anos oitenta, a resposta européia ao desafio americano<br />

aprofundou-se e, com o Ato Único (1986), começou a tomar<br />

forma o projeto de uma União política. O tema se tornaria plenamente<br />

atual depois de 1989, quando, com o fim da guerra fria, a<br />

incorporação da Alemanha Oriental pela Ocidental e o colapso da<br />

URSS, surgiram novos problemas acerca da “globalização de mercado”<br />

da economia mundial e se apresentou concretamente o problema<br />

de unificar o velho continente.<br />

121


VI. Ensaio<br />

Fim da guerra fria e “globalização assimétrica”. O ciclo<br />

político dos anos noventa<br />

Voltamos assim ao ponto de partida das nossas reflexões: o ciclo<br />

político dos anos noventa, que, depois da vitória de Clinton nas eleições<br />

presidenciais de 1992, registrou a vitória das esquerdas não só<br />

na maioria dos países europeus, mas também em países importantes<br />

da América Latina. Gostaria de tentar dar uma interpretação deste<br />

ciclo que, na Europa, teve como protagonista um novo reformismo.<br />

À explosão da globalização dos mercados e ao fim da URSS a Europa<br />

Ocidental reagiu com o Tratado de Maastricht (1991) e a decisão<br />

de “ampliar” a União aos países da Europa Central e Oriental (e, numa<br />

perspectiva a mais longo prazo, também aos Bálcãs, à Turquia e a outros<br />

países mediterrâneos). Teve início assim a construção da União<br />

política européia e se lançaram as primeiras bases da unificação do<br />

velho continente. O objetivo prioritário era criar, com o surgimento de<br />

uma moeda única, o espaço econômico indispensável para enfrentar<br />

os desafios da “competição global”. Mas a meta da União política é<br />

muito mais ambiciosa: com efeito, visa a transformar a Europa num<br />

novo ator político global. Nos países europeus, a globalização dos mercados<br />

e o processo de Maastricht mudaram o nexo internacional das<br />

políticas nacionais e deram origem a novos critérios de agrupamento<br />

de forças. O problema que se apresenta às elites nacionais é fazer<br />

frente aos novos condicionamentos da economia e da política mundial.<br />

A alternativa de fundo refere-se aos modos pelos quais cada país pode<br />

participar do processo de integração supranacional e, portanto, à repartição<br />

dos custos e dos benefícios entre os diferentes grupos sociais.<br />

A visão do interesse nacional torna-se parte integrante da percepção do<br />

interesse comum europeu. E tanto um quanto outro são determinados<br />

em modos diversos segundo as diferenças de interesses, de culturas e<br />

de valores que atravessam a sociedade.<br />

Para tornar mais acessível a argumentação, limitar-me-ei à Itália.<br />

O primeiro problema que, no início dos anos noventa, se apresentou<br />

era honrar ou não os compromissos assumidos com a assinatura do<br />

Tratado de Maastricht. Para isto acontecer, a Itália devia mudar o<br />

rumo. Nos quinze anos anteriores, ela fora governada com critérios<br />

divergentes daqueles seguidos nas outras grandes democracias européias.<br />

Dívida pública, déficit orçamentário, altas taxas de juros, diferencial<br />

de inflação, política de gastos, protecionismo econômico, modelo<br />

televisivo, atraso dos sistemas de rede e “democracia bloqueada”<br />

impediam nosso país de desempenhar o papel que dele se esperava.<br />

Logo em seguida à assinatura do Tratado de Maastricht, começaram<br />

pressões significativas das instituições européias para que a Itália<br />

122<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


A esquerda italiana e o reformismo no século XX<br />

mudasse as orientações de governo. Além disso, na década anterior,<br />

tais orientações produziram uma crescente discrepância entre Norte e<br />

Sul do país até o ponto de solapar sua unidade.<br />

Em 1992, quem quer que vencesse as eleições se veria diante da<br />

necessidade de dar início à convergência com os parâmetros de Maastricht<br />

e de propor aos cidadãos “grandes sacrifícios” para sanear a<br />

economia. O saneamento podia ser buscado mediante escolhas unilaterais,<br />

impostas pelo núcleo exportador dos grupos econômicos muito<br />

mais amplos que haviam sustentado a coalizão pentapartidária 2* ,<br />

ou então mediante a promoção de políticas de concertação que redistribuíssem<br />

seus custos de modo equânime. Nem as forças de governo<br />

nem as de oposição percebiam a questão em jogo. Mas a velha aliança<br />

de governo chegara ao fim da linha, uma vez que as forças que a<br />

sustentaram estavam divididas pelos novos desafios da integração<br />

européia. Depois das eleições, o crescimento da Liga Norte, a explosão<br />

de Tangentopoli e as vicissitudes dos movimentos referendários<br />

propiciaram um rápido processo de deslegitimação da classe política<br />

de governo. Ao mesmo tempo, a Itália foi alcançada por uma crise da<br />

moeda que impôs uma pesada desvalorização da lira e o abandono do<br />

SME. Enquanto o sistema de partidos se desfazia, formava-se uma<br />

nova coalizão de forças e de interesses decididos a guiar o país até<br />

a “Europa de Maastricht”. Fato de absoluta relevância, tanto com o<br />

governo Amato (1992), quanto com o governo Ciampi (1993), aquelas<br />

forças buscaram um entendimento com o movimento sindical e<br />

com a oposição de esquerda, pondo fim a uma orientação histórica<br />

das classes dirigentes italianas, que jamais haviam reconhecido à<br />

esquerda a legitimação para governar. Formava-se, pois, uma coalizão<br />

europeísta, que pretendia incluir a esquerda no governo do país.<br />

Mas ela não era majoritária e se via combatida por um amplo alinhamento<br />

anti-Maastricht, cujo denominador comum era o nacionalismo<br />

econômico e cujas orientações ideais também se alimentavam de uma<br />

difusa aversão aos valores da modernidade. Por causa dos erros da<br />

esquerda, entre 1993 e 1994, estas forças coagularam-se rapidamente<br />

e, favorecidas pelos humores “antipolíticos” propagados pelos<br />

grupos do establishment que manipularam a “revolução” das Mãos<br />

2 No período final da “Primeira República”, entre 1980 e 1992, os governos italianos<br />

compunham-se de uma coalizão de cinco partidos: a DC, o PSI e três agremiações<br />

menores, que reuniam socialdemocratas, republicanos e liberais (PSDI, PRI e PLI). O<br />

“pentapartido” conclui-se com o conjunto de investigações e procedimentos judiciais<br />

conhecido como Operação Mãos Limpas, que desvenda a Tangentopoli, gigantesco<br />

sistema de corrupção incrustado no sistema de poder democrata-cristão e socialista.<br />

[N. do T.]<br />

123


VI. Ensaio<br />

Limpas, recolheram-se em torno de Silvio Berlusconi, sob a bandeira<br />

do novo partido por ele fundado no início de 1994. Assim, enquanto<br />

a esquerda buscava confusamente uma nova identidade, nascia<br />

uma nova direita, populista, plebiscitária, xenófoba e antieuropéia.<br />

Ela era heterogênea em termos de interesses e programas; mas, fato<br />

único na Europa, revelou uma capacidade extraordinária de agregar<br />

um amplo consenso majoritário e venceu as eleições de 1994.<br />

Interesse nacional e interesse comum europeu<br />

Com esta realidade teve de haver-se o <strong>PD</strong>S [Partido Democrático<br />

de Esquerda], nascido em 1991 a partir da dissolução do PCI. Em<br />

1992-1993, ele representava quase tudo o que restava da esquerda<br />

reformista e foi obrigado, antes de mais nada, a ajustar contas consigo<br />

mesmo, uma vez que as bases programáticas sobre as quais surgira<br />

eram exíguas e a cultura política da qual se nutria era subalterna e<br />

ambígua. Não dispunha de uma análise apropriada das mudanças<br />

dos últimos vinte anos e estava permeado de humores maximalistas.<br />

Ambos os elementos tornavam-no antes o continuador do PCI dos<br />

anos oitenta do que uma força do novo reformismo europeu. Todavia,<br />

com a “virada” da Bolognina fora dado o passo decisivo: a parte mais<br />

consistente do PCI saíra do estado de menoridade a que a ligação com<br />

a URSS o havia condenado e, com a entrada na Internacional Socialista,<br />

dispunha pela primeira vez de conexões internacionais mais úteis.<br />

Além disso, a dissolução do PCI liberalizara o mercado político, e o <strong>PD</strong>S<br />

estava desafiado a completar sua evolução reformista para poder aspirar<br />

ao governo. Com a mudança do seu líder, em 1994, produziu-se<br />

uma significativa mudança de estratégia.<br />

A primeira inovação foi introduzida no plano da análise. Tratavase,<br />

antes de tudo, de compreender as razões da derrota. Estas foram<br />

sintetizadas na incapacidade de propor um novo “pacto social” que<br />

substituísse a velha “aliança dos produtores”, na qual se baseara o<br />

consenso da esquerda nos anos do ciclo fordista e da construção do<br />

Welfare. Apontou-se como conteúdo deste pacto uma articulação entre<br />

as reformas do sistema econômico e a reforma do Estado social,<br />

tendo em vista a modernização do país e sua reinserção entre os protagonistas<br />

da integração européia. Isto significava dar uma perspectiva<br />

política à coalizão de forças europeístas que, a partir de 1992, havia<br />

dirigido o país abalado pela crise do velho modelo de desenvolvimento<br />

e pelo colapso do sistema de partidos, bem como precisar as alianças<br />

que permitissem ao <strong>PD</strong>S assumir um papel de governo. Aos conteúdos<br />

econômico-sociais do “novo pacto” correspondia uma aliança da<br />

124<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


A esquerda italiana e o reformismo no século XX<br />

esquerda reformista com o centro católico-democrático. Por outra parte,<br />

um capítulo fundamental da europeização do país era constituído<br />

pela reforma do sistema político e pela realização de uma democracia<br />

da alternância. Diante de uma direita que assumia as características<br />

sumariamente descritas, deviam se unir as forças cujas raízes residiam<br />

nas culturas políticas que marcaram a história da República.<br />

Em terceiro lugar, o panorama das forças políticas que emergiam delineava<br />

o cenário de um bipolarismo de coalizões, e o centro-esquerda,<br />

em particular, não podia ser concebido como uma aliança eleitoral<br />

entre partidos, mas devia assumir os traços de uma coalizão não passageira,<br />

protagonista do desafio em torno do governo. Lançavam-se,<br />

assim, as premissas de um “novo reformismo”, uma vez que o modo<br />

pelo qual se interpretava o interesse nacional estava estreitamente<br />

ligado à perspectiva de um papel destacado da Itália na definição do<br />

interesse comum europeu. Por motivos históricos que remontam a todas<br />

as vicissitudes do século XX, na última década o intérprete deste<br />

reformismo não foi um novo partido, mas uma coalizão não ainda<br />

bem definida: a Oliveira. Investigar suas origens, seguir seu percurso<br />

e tentar perscrutar seu futuro é o tema que pusemos no centro das<br />

páginas que se seguem.<br />

(Tradução: Luiz Sérgio Henriques)<br />

*<br />

125


VII. Mundo


128<br />

Autores<br />

Ruy Fausto<br />

Doutor em Filosofia pela Université de Paris 1 (1981), e graduado em Filosofia (1956) e<br />

em Direito (1960) pela Universidade de São Paulo. Dentre suas obras destaca-se Marx:<br />

lógica e política.<br />

Marcelo Santos<br />

Professor de Ciência Política da Unesp, Campus de Araraquara/SP.<br />

Amália D. García Medina<br />

Governadora do Estado de Zacatecas, México. Foi deputada e senadora e Presidente<br />

Nacional do Partido de la Revolución Democrática.<br />

Walid Salem<br />

Diretor do “Panorama”, Centro Palestino para Disseminação da Democracia e<br />

Desenvolvimento Comunitário, ONG baseada em Jerusalém Oriental. É autor de vários<br />

livros e artigos sobre democracia, sociedade civil, juventude, refugiados e estudos sobre<br />

a paz. Foi jornalista e membro do Conselho Nacional Palestino.<br />

Galia Golan<br />

Professora emérita da Universidade Hebraica de Jerusalém e da Escola de Governo<br />

do Centro Interdisciplinar de Herzlia. É uma das principais líderes do Movimento PAZ<br />

AGORA.


Sarkozy segundo a ordem<br />

das razões 1<br />

Ruy Fausto<br />

O<br />

discurso pronunciado por Nicolas Sarkozy no dia 14 de janeiro<br />

de 2007, por ocasião da sua investidura como candidato às<br />

eleições presidenciais foi objeto de numerosas alusões, principalmente<br />

por parte dos seus adversários, mas, de um modo surpreendente,<br />

ele não foi examinado até aqui de maneira pelo menos<br />

um pouco sistemática. E, entretanto, a candidata socialista Ségolène<br />

1 O presente texto foi escrito originalmente em francês em março desse ano, e deveria<br />

ser publicado na França, o que acabou não acontecendo. Como Política Democrática<br />

se interessou, em princípio, por ele, eu o traduzi, e o ponho aqui à<br />

disposição do público brasileiro. Acho que o artigo pode ter certo interesse, porque<br />

as questões envolvendo as últimas eleições presidenciais francesas têm em parte<br />

alcance universal. O artigo comenta o discurso de investidura de Nicolas Sarkozy<br />

como candidato da UMP (União por um Movimento Popular) – partido gaulista na<br />

origem –, candidato que se elegeu presidente, no segundo turno, com uma maioria<br />

de 53%, contra 47% da candidata socialista. A campanha de Sarkozy se caracterizou<br />

por dois traços aparentemente contraditórios. Por um lado, ele se apresentou<br />

como candidato de uma direita que se afirma como tal, sem complexos, mas de<br />

outro, como alguém que não hesita em evocar nomes – e também temas, ou temas<br />

supostos – da tradição da esquerda. Tento fazer uma “explicação de texto” do discurso<br />

de investidura de Sarkozy, discurso que não foi escrito por ele, mas que o<br />

candidato assumiu, e que foi objeto de muitos comentários, não muito profundos,<br />

entretanto. Se o leitor quiser mais algumas informações sobre as eleições presidenciais<br />

francesas, permito-me indicar os artigos que publiquei na Folha de São<br />

Paulo, nos dias 7 de abril e 20 de maio de 2007. A versão do texto, que ofereço<br />

aqui, com alguns adendos e modificações, é a maior delas. Optei por ela, porque<br />

as outras freqüentemente omitiam as implicações de caráter mais universal que,<br />

precisamente, nos interessam mais de perto.<br />

129


VII. Mundo<br />

Royal, disse recentemente, a propósito do discurso, que “seria preciso<br />

pô-lo a nu (décortiquer)...”.<br />

Como se sabe, trata-se de um documento curioso, em que um candidato<br />

de direita invoca o nome de alguns ícones da esquerda, como<br />

Léon Blum e Jean Jaurès. Como isso foi possível? Quais são as operações<br />

que tornaram possível esse seqüestro? Em que medida o documento<br />

é rigoroso e, à sua maneira pelo menos, conseqüente? São<br />

questões importantes que nos levam bem longe, para além de uma<br />

simples avaliação da “sinceridade“ ou da “honestidade“ do candidato.<br />

A que título, e com que justificações, o candidato Sarkozy reivindica<br />

figuras tutelares da esquerda? Por que não invoca homens políticos<br />

de direita, do século XX ou do XIX? Sem dúvida, o texto nos fornece<br />

uma justificação. É que “durante muito tempo, a direita ignorou o<br />

trabalhador” (p. 8). A esquerda de outrora representaria, assim, uma<br />

referência melhor. Mas a esquerda de hoje não seria ela a herdeira<br />

natural desse passado? De jeito algum: “a esquerda, que outrora se<br />

identificava” com o trabalhador, “acabou traindo” (id), e com isso, perdeu<br />

o direito à herança. O principal exemplo dessa traição seria a lei<br />

que limita o tempo de trabalho regular semanal a 35 horas.<br />

A esquerda teria traído “o trabalhador”.“Trair” é um termo pesado<br />

que valeria a pena explicitar. Se tentarmos reconstituir como o texto<br />

desenvolve essa tese e a justifica, perceberemos, em primeiro lugar,<br />

que ele fala tanto do “trabalhador” como do “trabalho”. Ou, mais exatamente,<br />

que fala antes do trabalho – é o seu leitmotiv – do que do trabalhador.<br />

A “... esquerda imóvel não respeita mais o trabalho” (p. 4).<br />

“O objetivo da República é o reconhecimento do trabalho como fonte<br />

da propriedade, e [o reconhecimento da] propriedade como representação<br />

do trabalho” (p. 5). “[A república virtual] é aquela que proclama<br />

que o trabalho é um valor, mas que faz tudo para desencorajá-lo” (p.<br />

6). 2 “Com a crise do valor trabalho, é a esperança que desaparece”<br />

(p. 7). “Quero propor aos franceses uma política cuja finalidade será<br />

a revalorização do trabalho” (p. 8). “O trabalho é uma emancipação,<br />

é o desemprego que é uma alienação” (id). “É o trabalho que cria o<br />

trabalho” (id) etc. 3 Sem dúvida, fala-se também de “trabalhador”, mas<br />

muito menos : é como se houvesse um deslizamento da significação<br />

“trabalhador” para a significação “trabalho”. Por isso, para tentar revelar<br />

o conteúdo da suposta “traição” por parte da esquerda, conviria<br />

2 O trabalho é a liberdade, é a igualdade de oportunidades, é a promoção social” (p.<br />

7). “O trabalho é o respeito, é a dignidade, é a cidadania real” (id).<br />

3 Como indiquei no segundo dos meus artigos para a Folha, onde faço uma crítica da<br />

campanha de Ségolène Royal, a noção ambígua de “valor trabalho” fora enunciada<br />

originalmente pela candidata socialista, e constava do seu programa.<br />

130<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Sarkozy segundo a ordem das razões<br />

(e é legítimo) substituir “trabalhador” por “trabalho”, e escrever que,<br />

segundo Sarkozy, a esquerda traiu o trabalho. Mas há na realidade<br />

um jogo entre as duas significações, que seria preciso desmontar, e<br />

que constitui o segredo desse discurso.<br />

A dificuldade remete principalmente a duas questões. Por um lado,<br />

é preciso se perguntar qual foi a atitude da esquerda, no passado e<br />

qual é a sua atitude hoje, tanto em relação ao trabalho como em relação<br />

ao trabalhador. Por outro lado, já que quase ninguém poria em<br />

dúvida que o trabalhador é um “valor” – no sentido de que ele merece<br />

pelo menos o respeito que merecem todos os humanos – seria necessário<br />

se perguntar (o que não é a mesma coisa), em que medida o próprio<br />

“trabalho” é um valor.<br />

Tomando as duas questões num mesmo movimento, observar-se-á<br />

que se, hoje como ontem, a esquerda se apresentou como defensora<br />

dos trabalhadores, e se essa defesa incluía, de um modo ou de outro,<br />

“a garantia de emprego (ou de um emprego) ao trabalhador”, tal atitude<br />

não implicou no passado, nem implica hoje, numa idealização do<br />

“trabalho”. De fato, seria possível afirmar de um modo geral, e sem<br />

precisões de ordem quantitativa e qualitativa, que o próprio trabalho<br />

é um valor? A defesa do trabalhador implicou freqüentemente na exigência<br />

de redução quantitativa do tempo de trabalho, e a condenação<br />

de certas formas de trabalho.<br />

A luta histórica da esquerda, que foi, em medida considerável, paralela<br />

à luta dos trabalhadores, visava, entre outras coisas, limitar a<br />

jornada de trabalho, e, nesse sentido, a esquerda nunca foi “favorável<br />

ao trabalho” se isto significar “maximização do tempo de trabalho”.<br />

Tratava-se antes de uma defesa do trabalhador diante do trabalho,<br />

atitude que se traduzia, de modo só aparentemente paradoxal, na exigência<br />

de menos trabalho. A mesma coisa no plano qualitativo: o trabalho<br />

em “cadeia de produção”, e outras formas brutais, consideradas<br />

normais pelo sistema, foram combatidas pela esquerda.<br />

Dir-se-á que se tratava de trabalho excessivo, ou de formas violentas,<br />

mas a noção de trabalho excessivo, ou inumano, se desloca continuamente.<br />

Primeiro se lutou pela jornada de 10 horas, isto na época<br />

em que a direita pregava a jornada “normal” de 12 horas; depois lutouse<br />

pela jornada de 8 horas, que, segundo os ideólogos da época, seria<br />

incompatível com o lucro. Depois houve a introdução das 40 horas semanais<br />

(Blum, o inimigo do trabalho!) e, mais recentemente, votou-se a<br />

lei das 35 horas semanais. No plano qualitativo, o trabalho em “cadeia<br />

de produção”, por exemplo, que seria o máximo em matéria de modernidade<br />

e de progresso, acabou sendo proscrito, em muitos casos.<br />

131


VII. Mundo<br />

Claro que se pode discutir – limitando-nos ao problema da quantidade<br />

– se as condições atuais permitem ou não que se introduzam,<br />

com vantagem, as 35 horas. Todo argumento visando mostrar que,<br />

nas condições atuais, não é conveniente introduzir aquela redução,<br />

é um argumento que, verdadeiro ou falso é em si mesmo, honesto. A<br />

mesma coisa não pode ser dita, entretanto, desse jogo sofístico entre<br />

“trabalho” e “trabalhador”, que se fundamenta na lenda de uma traição<br />

ao “trabalho” praticada pela esquerda. Porque, resumindo, “trabalho”<br />

se diz em dois sentidos, e a confusão entre eles é o segredo do jogo<br />

de linguagem sarkoziano : o termo pode significar “trabalhador” (em<br />

geral, em oposição a “capital”), mas pode significar também “tempo de<br />

trabalho”. Na primeira acepção, a esquerda sempre apoiou o “trabalho”<br />

e, nem ontem nem hoje, o traiu; na segunda, pelo contrário, ela<br />

nunca lhe foi “favorável”, isto é, nunca foi, nem poderia ser, partidária<br />

da maximização do tempo de trabalho. 4<br />

O texto se refere certo número de vezes à “democracia”, várias vezes<br />

à “República”, mas é bastante discreto em relação às denominações<br />

que conviriam à organização econômica atual. Entretanto, há<br />

uma passagem, à qual voltarei mais adiante, em que ele fala em “capitalismo”.<br />

E há uma temática constante (que, como se verá, poderia<br />

ter uma relação com aquela a que acabo de me referir), a da diferença<br />

entre “república virtual” e “república real” (ver p. 6),<br />

A diferença entre “república virtual” e “república real” também parece<br />

ter alguma coisa a ver com o discurso da esquerda, e lhe ter sido<br />

tomada de empréstimo. Mesmo se o marxismo, e pior ainda, o totalitarismo<br />

leninista e depois stalinista, utilizaram mal a distinção entre<br />

uma “democracia formal” e uma democracia real (ou mais exatamente<br />

“efetiva” ou “efetivamente real”), infletindo-a no sentido de uma desvalorização<br />

da democracia (“formal” se tornou sinônimo de “irreal”, com<br />

as conseqüências que se sabe) – a oposição entre democracia formal e<br />

democracia real guarda uma importância considerável.<br />

4 Trabalho“, no segundo sentido, “tempo de trabalho”, se opõe a “tempo livre”, que<br />

constitui a verdadeira riqueza, como dizia um anônimo genial citado por Marx. De<br />

fato, se o trabalho é uma exigência social, e se certos trabalhos produzem prazer, na<br />

maioria dos casos, na sua forma atual, ele representa uma “pena”, o que significa<br />

que ele é, em geral “trabalho alienado”, razão pela qual não há por que idealizá-lo.<br />

Observe-se en passant, como sugeri anteriormente, que “emprego” – cujo oposto é<br />

“desemprego”, um oposto negativo – é uma noção cujo uso com sinal positivo oferece<br />

muito menos risco do que a imprudente idealização do “trabalho”. Mas o documento<br />

rejeita explicitamente (p. 8) a defesa do emprego, sob pretexto de que quer defender<br />

não o emprego mas o trabalhador...<br />

132<br />

•<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Sarkozy segundo a ordem das razões<br />

Vivemos numa sociedade que não podemos caracterizar nem simplesmente<br />

como “capitalista”, nem simplesmente como “democrática”.<br />

Trata-se de uma “democracia capitalista”, de uma democracia, mas...<br />

capitalista. Porém exatamente porque a democracia, mesmo nos limites<br />

do capitalismo, é o contrário de uma ilusão, a democracia está<br />

sempre em tensão, no que se refere às suas relações com o capitalismo.<br />

A democracia afirma valores de igualdade e de liberdade, que são<br />

mais ou menos postos em cheque (ou “virtualizados”) pelo capitalismo.<br />

O que não significa que se possa liquidar o capitalismo por um<br />

movimento de varinha mágica revolucionária. Aquilo de que se trata<br />

hoje é, antes, de obter controle sobre o capital, neutralizar seus efeitos<br />

negativos, o que, ao contrário do que se supunha, se revelou no fundo<br />

menos utópico e principalmente muito menos perigoso do que o caminho<br />

revolucionário.<br />

A distinção sarkozista entre “república virtual” e “república real”<br />

remeteria à oposição utilizada pela esquerda entre “democracia formal”<br />

e “democracia real”, e desembocaria, no mesmo sentido, numa<br />

exigência de luta pela neutralização dos efeitos negativos do capitalismo?<br />

Em primeira aproximação, isto seria pensável, seja por causa<br />

da proximidade que existe entre os dois pares de expressões, seja<br />

também a partir da leitura de uma passagem, já indicada, em que se<br />

fala do capitalismo e da necessidade de “moralizá-lo”: “Eu quero ser o<br />

presidente que se esforçará por moralizar o capitalismo, porque não<br />

acredito na sobrevivência de um capitalismo sem moral e sem ética...”<br />

(p. 8). Nicolas Sarkozy parece de novo enveredar na direção de um discurso<br />

crítico. Mas assim como a defesa dos trabalhadores se revelou<br />

de fato uma justificação do “trabalho alienado”, os temas da realização<br />

efetiva da democracia e da moralização do capitalismo se invertem em<br />

elogio da realização “plena” do capitalismo, o que significa recuo da<br />

democracia, pelo menos no campo econômico. Para mostrar isto, seria<br />

preciso examinar algumas das medidas econômicas e sociais que ele<br />

propõe. Há na realidade dois tipos de questões a analisar. Na primeira<br />

série, temos uma defesa praticamente aberta do capitalismo, na sua<br />

forma mais inegalitária. Na outra, há um fundo de problemas reais,<br />

mas tratados de tal modo (tomando o secundário como principal ou<br />

propondo remédios perigosos), que, de novo, é o sistema econômico<br />

sob a sua forma mais dura e injusta que sai reforçado.<br />

Moralizar o capitalismo só poderia significar, por um lado, reduzir<br />

as desigualdades, as quais, na França, sem atingir dimensões estratosféricas<br />

de certos paises do terceiro mundo, são, de qualquer modo,<br />

importantes. Ora, qual seria o efeito de medidas como a redução de<br />

60% a 50% do chamado “escudo fiscal” (o máximo de imposto global<br />

133


VII. Mundo<br />

que cada contribuinte poderia ser obrigado a pagar), “escudo” que afeta<br />

essencialmente os mais ricos? Qual poderia ser o sentido da quase<br />

liquidação dos impostos sobre sucessões e doações, a qual, de novo,<br />

beneficiaria essencialmente as grandes fortunas? (Nota: a acrescentar<br />

o custo, para o Estado, dessas medidas. Só a redução do imposto sobre<br />

sucessões e doações implicaria numa sangria da ordem de uns 5<br />

bilhões de euros...). Para justificar essas medidas, o texto apela para<br />

uma tese simplista sobre a relação entre trabalho e propriedade, por<br />

trás da qual há uma leitura mistificada da relação entre trabalho e<br />

capital. Assim, o esvaziamento dos impostos de sucessão e doação é<br />

justificado, através da exigência, feita em nome da justiça, de poder<br />

transmitir à sua descendência “os frutos de uma vida de trabalho” (p.<br />

8). Ora, não é verdade que as grandes fortunas sejam produto do trabalho.<br />

No melhor dos casos, há um trabalho de organização da produção,<br />

mas a riqueza apropriada é incomensurável com o que se pagaria<br />

por ele, por muito que se pagasse, se fosse retribuído enquanto tal. E<br />

esse é o melhor dos casos. As grandes fortunas não provêm apenas<br />

de trabalho de outrem diretamente apropriado pelo capitalista. Elas<br />

vêm das operações especulativas, dos “investimentos” nas bolsas etc.<br />

Sob esse aspecto, a relação da riqueza com o trabalho é ainda mais<br />

remota. A riqueza, “a grande riqueza”, tem mais a ver com o jogo do<br />

que com o trabalho.<br />

Há uma segunda série de questões, nas quais problemas reais são<br />

utilizados de forma transfigurada, de maneira a servir à ideologia do<br />

candidato. Assim, o documento critica os grevistas por causa dos efeitos<br />

negativos que teriam as greves sobre o bem-estar dos usuários, os<br />

dos meios de transporte, principalmente. O candidato propõe que uma<br />

lei imponha um voto secreto por parte de todos os membros de uma<br />

empresa, administração ou universidade, aos oito dias da deflagração<br />

de uma greve, para decidir da continuação ou não do movimento. Sem<br />

dúvida, as greves dos transportes públicos são às vezes muito duras<br />

para os usuários, embora a sua freqüência não seja a que sugere a<br />

direita. De qualquer modo, retomando uma opinião expressa há algum<br />

tempo por Daniel Cohn-Bendit, acho que seria desejável que, no<br />

momento de deflagrar um movimento, se ouvisse sempre um representante<br />

dos usuários. Quanto ao voto secreto, ele não é em princípio<br />

inadmissível, mas se deveria recorrer a ele nas assembléias, onde o<br />

problema é discutido. Mas o que é inadmissível no projeto do candidato<br />

é que tudo isso seria imposto por uma lei, lei que, além de tudo,<br />

fixaria prazos imperativos. O caráter de domesticação do movimento<br />

sindical que têm as propostas é evidente, e tanto mais, se pensarmos<br />

que elas se inserem num programa que não revela nenhum empenho<br />

em melhorar a condição dos pequenos e médios assalariados.<br />

134<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Sarkozy segundo a ordem das razões<br />

O texto critica aqueles que “não querem fazer nada” (p. 5), e diz que<br />

só os que ajudam a si mesmos merecem ser ajudados. Que existam<br />

aqui e ali abusos no uso das alocações do Estado – único caso em que<br />

o texto poderia ter alguma verdade –, gente que recebe indevidamente<br />

indenizações desta ou daquela espécie, é inegável. Mas, o fenômeno<br />

é certamente secundário. O essencial são as enormes dificuldades,<br />

criadas pelo novo capitalismo, no interior do qual, o assalariado está<br />

submetido às exigências leoninas dos acionistas, às imposições do<br />

capitalismo financeiro propriamente dito, e à concorrência internacional.<br />

Ora, no documento, esses problemas desaparecem, ou passam<br />

para o segundo plano, diante do mote culpabilizante do “assistencialismo<br />

generalizado” (p. 6, cf p. 8), ou do “trabalhador que vê aquele que<br />

é objeto de assistência (l’assisté) se sair melhor do que ele ao acertar<br />

as contas no final do mês” (p. 7). Esta última argumentação é propriamente<br />

indigna. Ela joga aqueles que têm um emprego contra os que<br />

não o têm, estigmatizando esses últimos e, naturalmente, absolvendo<br />

e idealizando o sistema. Aí aparece a verdadeira figura do documento<br />

e do candidato.<br />

Assim, o grande texto de entronização do candidato da UMP se<br />

revela, sem exagero, um tecido de “anfibologias”. Uma pequena obra<br />

prima ideológica da direita francesa dos nossos dias. O pano de fundo<br />

é a velha fábula ideológica, segundo a qual, o trabalho seria a “fonte da<br />

propriedade” e a propriedade a “representação” do trabalho (p. 5). Os<br />

que ousam duvidar dessa fábula seriam os cultores da “França imóvel”<br />

(p. 4). Como outros assinalaram, o menor dos paradoxos dessa<br />

ideologia não é o de chamar de “reforma” o que representa uma contra-reforma,<br />

ou de falar de movimento a propósito de um movimento<br />

de regressão. Sem dúvida, a marcha à ré também é um movimento.<br />

A acrescentar alguns toques de cinismo puro e simples, como o de se<br />

apresentar como defensor do pleno emprego (p. 6), incongruência gritante,<br />

no interior de um discurso cuja preocupação central não é essa,<br />

e cujas medidas propostas não vão certamente nessa direção.<br />

O apelo aos nomes de Blum e de Jaurès convida a uma reflexão<br />

final. Trata-se de uma demagogia eleitoral sem-vergonha. Poderíamos<br />

nos perguntar se tal evocação é tão absurda como seria a invocação,<br />

por parte da candidata da esquerda, dos nomes de Poincaré, de Tardieu,<br />

de Thiers ou de Guizot. Sim e não. Por um lado, teríamos nesse<br />

último caso um absurdo análogo, pois se reivindicaria simetricamente<br />

figuras tutelares que não encarnaram no passado nem podem encarnar,<br />

hoje, os valores (de esquerda), assumidos. Mas subsiste um<br />

problema. Se, embora ao preço de chicanas retóricas, o candidato de<br />

•<br />

135


VII. Mundo<br />

direita pode se servir, sem escrúpulos, da galeria dos homens políticos<br />

de esquerda, é improvável, com muito poucas exceções, que a candidata<br />

de esquerda, venha a fazer apelo ao Panteão dos homens políticos<br />

de direita. Por quê?<br />

A utilização dos grandes ícones da esquerda pela direita não deve<br />

ser considerada propriamente como um motivo de alegria para a esquerda,<br />

como alguns assumiram um pouco rapidamente. A confusão<br />

não é inocente e, por grosseira que seja, representa, diante de certo<br />

público, um sério perigo. Mas ela mostra certamente que é a esquerda<br />

e não a direita que encarna o progresso social (não falo do totalitarismo<br />

de esquerda, que como o de direita é sempre regressivo, mas da<br />

esquerda democrática diante da direita “republicana”). A despeito de<br />

tudo – das regressões sempre possíveis, como a que a direita prepara<br />

agora – há uma linha de progresso social. E, mesmo se em certos casos,<br />

por razões de interesse político, a direita se associou à esquerda e<br />

mesmo a precedeu (cf. a legislação social de Bismarck, por exemplo),<br />

na maioria deles, foi a esquerda (continuo me referindo só à esquerda<br />

democrática), que encarnou claramente esse movimento. Ora, a direita<br />

atual não pode deixar de reivindicar o progresso social no que se<br />

refere ao passado, mesmo se ela apresenta um projeto para o futuro<br />

que vai à contramão do progresso. As referências de Sarkozy a Blum<br />

e a Jaurès são assim um pouco a homenagem do vício à virtude. Na<br />

realidade, para qualquer homem político do século XXI – menos da<br />

extrema-direita – é muito difícil invocar as grandes figuras da direita.<br />

Fora algumas exceções, a história da direita e principalmente a história<br />

da direita européia do século XIX e do início do século XX não<br />

é suscetível de plena apropriação, mesmo por parte de seus descendentes<br />

naturais. É preciso renegar os seus ancestrais e buscar outros,<br />

de extração diferente. O que não quer dizer que não haja afinidade,<br />

entre a direita dos séculos XIX e XX, e a direita de hoje. É como se, no<br />

plano pontual das medidas, a direita de hoje fosse obrigada a invocar<br />

a esquerda do passado. (A direita de hoje concorda com a esquerda<br />

de 1936; a direita de 1936 estava de acordo com as principais propostas<br />

dos revolucionários de <strong>18</strong>48, e assim por diante...). Mas, no<br />

plano dos princípios, o acordo é profundo. Sobre o que se faz silêncio.<br />

Na realidade, os ideólogos do século XIX idealizavam o “trabalho” e<br />

naturalizavam o sistema como fazem os seus herdeiros, só que de um<br />

modo que é, sem dúvida, excessivamente brutal e grosseiro para as<br />

exigências da direita de hoje. Vejamos, por exemplo, como soava, no<br />

ano da graça de <strong>18</strong>49, a tese da unidade indissolúvel entre o esforço<br />

individual e a constituição de capital, tese cujo corolário é a culpabilização<br />

dos vencidos na luta econômica: “Uns, através da inteligência e<br />

da boa conduta, criam um capital e entram na via de uma vida cômo-<br />

136<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Sarkozy segundo a ordem das razões<br />

da (aisance) e do progresso. Os outros, limitados ou preguiçosos, ou<br />

desregrados, permanecem na condição estreita e precária das existências<br />

que se baseiam unicamente no salário” (GUIZOT, Da Democracia<br />

francesa, <strong>18</strong>49, p. 76). Estaríamos tão longe da distinção sarkozista<br />

entre “aquele que quer progredir” e “aquele que não quer fazer nada”?<br />

Tudo somado, tem-se a impressão de que esses verdadeiros ancestrais<br />

da direita francesa de hoje, cuja sombra permanece ausente-presente<br />

na fala dos seus herdeiros, nela reconheceriam, apesar de tudo, a sua<br />

própria mensagem. Quem não é preguiçoso nem desregrado cria um<br />

capital; trabalhe mais se quiser ganhar mais. De Guizot a Sarkozy,<br />

a letra variou um pouco, mas a melodia é a mesma. Infelizmente, só<br />

uma parte dos milhões de franceses que vivem do seu trabalho se deu<br />

conta isto.<br />

Boulogne-Billancourt (França), 3 de junho de 2007<br />

*<br />

137


VII. Mundo<br />

138<br />

ALCA: negociações, impasses e<br />

resistências<br />

Marcelo Santos<br />

A<br />

interrupção das negociações do projeto norte-americano da<br />

Área de Livre Comércio das Américas (Alca), desde novembro<br />

de 2005, deve-se sobretudo à atuação da diplomacia brasileira<br />

na defesa dos interesses nacionais e regionais. Ao contrário da política<br />

externa do governo FHC, que privilegiou as relações com os EUA, a<br />

atual política externa brasileira apostou na articulação dos países do<br />

sul para enfrentar as políticas comerciais preconizadas pelas grandes<br />

potências mundiais, tal como ocorreu no surgimento do Grupo dos 20,<br />

na reunião da OMC em Cancún, e nas tentativas de estreitar os laços<br />

de integração com os países latino-americanos. Porém, do lado norteamericano,<br />

a paralisação das negociações da Alca não significa que<br />

esse país tenha desistido desse projeto. Sob outras siglas e acordos<br />

bilaterais, o governo Bush vem tentando avançar nesse plano. Nesse<br />

sentido, esclarecer as questões que estão em jogo nesse projeto tornase<br />

uma tarefa fundamental, principalmente para os que se empenham<br />

pela construção de um mundo multipolar e mais soberano para os<br />

países do sul. Também deve servir para manter o debate político e intelectual<br />

com os partidários de uma integração mais subordinada às<br />

políticas de Washington.<br />

O projeto norte-americano da Alca<br />

O primeiro passo para a criação do projeto norte-americano da Alca<br />

foi dado em 27 de junho de 1990, quando o governo de George Bush<br />

anunciou oficialmente a “Iniciativa para as Américas”, que previa a<br />

formação de uma área de livre comércio no continente. Tal projeto<br />

concentrava-se em três áreas fundamentais: comércio, dívida externa<br />

e investimento. Na questão comercial, o objetivo era a eliminação das<br />

barreiras comerciais entre os países signatários e a adoção de uma<br />

legislação que envolvia, entre outros aspectos, a garantia total para a<br />

livre circulação de bens, serviços e capitais e a proteção da propriedade<br />

intelectual. Em relação à dívida externa, a proposta dos EUA era de<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


ALCA: negociações, impasses e resistências<br />

um abatimento pequeno da dívida e a garantia de novos empréstimos<br />

para os países latino-americanos, desde que esses estados se comprometessem<br />

com os programas de ajustes estruturais ditados pelo FMI<br />

e o Bird. E no que se refere aos investimentos, os EUA propuseram a<br />

criação de um fundo de investimentos para a região que deveria ser<br />

administrado pelo BID e pelo Bird (VIGEVANI e MARIANO, 2003). Dois<br />

anos depois do lançamento da “Iniciativa para as Américas”, o governo<br />

Bush assinou juntamente com o Canadá e o México, o tratado do Nafta,<br />

que serviu de modelo para as futuras negociações da Alca.<br />

Em dezembro de 1994, o presidente Bill Clinton conseguiu reunir,<br />

na Primeira Cúpula das Américas, em Miami, 33 chefes de Estados<br />

das Américas, com exceção de Cuba, para firmar o compromisso da<br />

região com a construção de uma área de livre comércio que deveria se<br />

estender do “Alasca à Terra do Fogo” – a Alca. Depois de Miami seguiram-se<br />

as reuniões ministeriais de comércio de Denver (1995), Cartagena<br />

(1996), Belo Horizonte (1997), San José (1998), Toronto (1999),<br />

Buenos Aires (2001), Quito (2002), Miami (2003), Puebla (2004) e as<br />

reuniões de Cúpula das Américas de Santiago (1998), Quebec (2001),<br />

Monterrey (2004) e Mar del Plata (2005) nas quais foram se estabelecendo<br />

a estrutura institucional, as diretrizes, o cronograma e as negociações<br />

da Alca. Ao longo desse processo foram criados nove Grupos<br />

Negociadores, envolvendo os seguintes temas: acesso a mercados; investimentos;<br />

serviços; compras governamentais; solução de controvérsias;<br />

agricultura; direitos de propriedade intelectual; subsídios, antidumping<br />

e direitos compensatórios; e política de concorrência. Esses<br />

grupos passaram a receber apoio administrativo de um secretariado e<br />

o apoio técnico de um Comitê Tripartite, formado pela OEA, pelo BID<br />

e pela Cepal. No Plano de Ação ficou estabelecido que as negociações<br />

para a criação da área de livre comércio hemisférica deveriam estar<br />

concluídas até 2005.<br />

O projeto de integração previsto pelos EUA não é simplesmente a<br />

formação de uma área de livre comércio tradicional com a eliminação<br />

dos entraves ao trânsito de bens, mas, mais do que isso, ele prevê<br />

também a institucionalização de regras comuns para temas como serviços,<br />

investimentos, compras governamentais, propriedade intelectual,<br />

etc. Note-se que a liberalização proposta pelos norte-americanos<br />

possui uma série de ressalvas e exceções que preservam os instrumentos<br />

de defesa comercial dos EUA como sua legislação antidumping<br />

e sua política de proteção à agricultura. Ao mesmo tempo, as negociações<br />

não incluem temas como a unificação monetária e criação de um<br />

banco central comum, programas de financiamento para os países e<br />

regiões mais atrasadas e a livre circulação de trabalhadores (BATISTA<br />

139


VII. Mundo<br />

JR., 2002). Para tornar mais evidente o tipo de integração econômica<br />

que os EUA propõem à região, vale a pena, nesse momento, destacar<br />

algumas de suas propostas nessas negociações.<br />

Na questão da propriedade intelectual, a diplomacia norte-americana,<br />

a serviço de suas grandes corporações do setor farmacêutico e<br />

de alta tecnologia, já havia conseguido incluir no documento final da<br />

Rodada Uruguai do GATT o acordo sobre TRIPs (Trade Related Aspects<br />

of Intellectual Property Rights – Aspectos Comerciais dos Direitos da<br />

Propriedade Intelectual). Nesse acordo foi ampliada significativamente<br />

a proteção às patentes em âmbito mundial. Através de instrumentos<br />

jurídicos internacionais garantiram-se às corporações transnacionais<br />

a proteção de suas tecnologias privadas, suas invenções, suas posições<br />

monopolistas e a extração rentista de royalties. O TRIPs incluído<br />

no GATT-OMC limitou significativamente o acesso à tecnologia,<br />

ao conhecimento e ao progresso técnico para os países periféricos.<br />

Não plenamente satisfeitos com o TRIPs, as pretensões norte-americanas<br />

na Alca nessa área vão além dos compromissos assumidos na<br />

OMC, ampliando ainda mais a proteção sobre o copyright, os segredos<br />

comerciais, as patentes, as marcas comerciais e as indicações<br />

geográficas. De acordo com Rubens Ricupero (2003, p. 56), dentre os<br />

aspectos em que os EUA querem avançar mais do que no atual acordo<br />

do TRIPs, incluem-se: ... a possibilidade de patentear organismos<br />

vivos, com implicações negativas e dispendiosas para a agropecuária;<br />

e a limitação ao máximo do recurso à “licença compulsória”, no caso<br />

de medicamentos. Direito reconhecido por todas as convenções sobre<br />

propriedade intelectual e pelo Acordo TRIPs, a licença compulsória é<br />

a possibilidade de romper a patente, quando existe abuso do titular,<br />

que se recusa a manufaturar o medicamento no país ou cobra por<br />

ele preço abusivo. O país-vítima pode também utilizar a “importação<br />

paralela”, isto é, em caso de necessidade, importar de fabricante nãoautorizado.<br />

Foi graças à possibilidade de recorrer a tais mecanismos<br />

que o Ministério da Saúde conseguiu no Brasil que os laboratórios<br />

reduzissem em até 70% o preço dos remédios do coquetel anti-Aids. Se<br />

estivesse em vigor o capítulo proposto pela Alca, o governo brasileiro<br />

não teria obtido tal vitória.<br />

Nas propostas sobre investimentos, as pretensões dos EUA no âmbito<br />

da Alca são as mesmas do Acordo Multilateral de Investimentos<br />

(AMI). Esse acordo, que os norte-americanos e alguns aliados não<br />

conseguiram aprovar nas negociações da OCDE devido à resistência<br />

da França e dos movimentos sociais, pretendia liberalizar os investimentos<br />

mundiais, oferecendo inúmeros direitos e nulas obrigações<br />

às corporações transnacionais e, ao mesmo tempo, impor duríssimas<br />

140<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


ALCA: negociações, impasses e resistências<br />

restrições aos Estados nacionais para regulamentar minimamente o<br />

movimento dos investidores e seus capitais. Estava previsto inclusive<br />

o direito dos investidores estrangeiros acionarem a arbitragem internacional<br />

contra os Estados nacionais para serem ressarcidos de prejuízos<br />

supostamente ocorridos devido a medidas tomadas pelos poderes<br />

públicos. Ao retomar a legislação do fracassado Acordo Multilateral de<br />

Investimentos, o projeto da Alca pretendido pelos EUA prevê: a proibição<br />

dos governos praticarem políticas que favoreçam os investidores<br />

nacionais em detrimento dos investidores externos; a garantia de livre<br />

transferência de capitais de um país ao outro a uma taxa de câmbio de<br />

mercado, impedindo os governos de controlarem os fluxos de capitais;<br />

a impossibilidade dos governos estabelecerem metas ou requisitos de<br />

desempenho a serem cumpridos pelos investidores externos; a obrigação<br />

dos Estados-membros a indenizarem os investidores estrangeiros<br />

em situações nas quais as decisões soberanas das autoridades nacionais<br />

sejam consideradas “equivalentes a uma expropriação” etc.<br />

Nas negociações do setor de serviços, novamente os EUA retomaram<br />

a agenda que tem enfrentado resistências na OMC e demais<br />

fóruns econômicos multilaterais, para tentar impô-la aos países da<br />

região. Os EUA, que são os maiores exportadores de serviços do planeta,<br />

pretendem incluir na Alca a liberalização completa de todos os<br />

tipos de serviços, tais como financeiros, telecomunicações, previdência,<br />

seguros, turismo, indústria editorial, postais, transportes, água,<br />

energia, assistência médica, etc. Também estão incluídas na proposta<br />

norte-americana todas as garantias previstas aos investidores externos<br />

que estão colocadas no capítulo sobre investimentos. Além disso,<br />

pretende-se proibir os estados de oferecerem serviços não sujeitos a<br />

uma rigorosa lógica econômica, a menos que sejam gratuitos e não<br />

compitam com os do setor privado. O processo de negociação do Acordo<br />

Geral Sobre Comércio de Serviços (Gats) criado em 1994 durante<br />

a conclusão da Rodada Uruguai do GATT já havia deixado claro que<br />

a pretensão dos países centrais era a completa liberalização do setor<br />

de serviços e a restrição à atuação dos governos nessa área, porém,<br />

a resistência dos países periféricos levou a um acordo que optou pela<br />

liberalização gradual do setor. Ficou acordado que a liberalização dos<br />

serviços ocorreria mediante “listas positivas”, nas quais os países destacavam<br />

as áreas que queriam liberalizar, embora o acordo já tivesse<br />

garantido a abertura das áreas de serviços financeiros e serviços básicos<br />

de telecomunicação. Pois bem, na ALCA os EUA retomam a agenda<br />

da liberalização ampla dos serviços, com poucas exceções, como já<br />

acontece no Nafta.<br />

141


VII. Mundo<br />

No que se refere às compras governamentais ou contratos públicos<br />

de governo, a proposta norte-americana para a Alca é evitar que os governos<br />

dêem tratamento preferencial às empresas nacionais devendo<br />

oferecer o mesmo tratamento para as empresas fornecedoras de bens<br />

e serviços de todos os países pertencentes a área.<br />

Sob esses aspectos, pode-se dizer que o projeto norte-americano<br />

da Alca pretende institucionalizar normas que garantam a liberalização<br />

comercial, financeira e dos investimentos de acordo com os interesses<br />

de seus capitalistas, impedindo os demais países da região<br />

de modificarem suas políticas econômicas nacionais. Nesse sentido, o<br />

projeto Alca é a complementação e a consolidação jurídica do processo<br />

de reformas liberalizantes promovidas na região nas últimas décadas<br />

sob monitoramento de Washington. Em conjunto, a maior parte das<br />

políticas, das reformas e das instituições recomendadas pelos EUA<br />

significa negar aos países da região a possibilidade de utilizarem instrumentos<br />

de política econômica que os próprios norte-americanos e<br />

os demais países centrais usaram durante seus respectivos processos<br />

de desenvolvimento.<br />

Negociações, impasses e resistências<br />

As negociações para a constituição da Alca, a despeito das divergências<br />

envolvendo alguns países, cumpriram até novembro de 2002<br />

todo o cronograma estabelecido na Quarta Reunião Ministerial de San<br />

José em março de 1998, sobretudo no que diz respeito à questão processual<br />

como a montagem da estrutura institucional. A partir da Sétima<br />

Reunião Ministerial, realizada em Quito, em novembro de 2002,<br />

na qual a presidência das negociações foi transferida do Equador para<br />

a co-presidência de Brasil e EUA, a Alca entrou na fase de definição<br />

das regras de seu funcionamento em que o embate passou a ser em<br />

torno das propostas para o acesso ao mercado nas áreas de agricultura,<br />

indústria, investimentos, serviços e compras governamentais. Foi<br />

nesse momento que a ALCA entrou num ritmo mais lento marcado<br />

pela discordância de propostas entre os EUA e o Mercosul, o que levaria<br />

a um impasse nas futuras negociações de tal forma que a previsão<br />

oficial de inaugurar a área de livre comércio até dezembro de 2005 não<br />

se cumpriu.<br />

O Brasil, respaldado principalmente pela Argentina no Mercosul,<br />

passou a defender aquilo que ficou conhecido como “Alca light”, na<br />

qual temas de maior importância seriam discutidos no esquema “4+1”<br />

(bloco do Mercosul e os EUA) e os temas sensíveis como propriedade<br />

intelectual, serviços, investimentos e compras governamentais deve-<br />

142<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


ALCA: negociações, impasses e resistências<br />

riam ser tratados na OMC. Ao contrário, a posição norte-americana foi<br />

a de defesa da “Alca abrangente” que deveria envolver todos os assuntos,<br />

inclusive os relacionados a investimentos, propriedade intelectual<br />

e compras governamentais, porém, assuntos como política antidumping<br />

e apoio interno aos produtores agrícolas são considerados pelos<br />

EUA como temas sistêmicos que devem ser tratados na OMC e não na<br />

Alca. Em fevereiro de 2003, novamente Mercosul e EUA entraram em<br />

rota de colisão quando os norte-americanos apresentaram suas propostas<br />

de redução de tarifas em produtos industriais e agrícolas sob a<br />

forma de quatro listas diferentes dividindo os 34 países do hemisfério<br />

ocidental em Caribe, América Central, Grupo Andino, Mercosul. Em<br />

tese, todos os produtos foram incluídos nas quatro listas, mas os itens<br />

e os prazos para a liberalização total, isto é, para eliminar a totalidade<br />

das tarifas até chegar a zero, variaram de acordo com os interesses<br />

de grupos internos norte-americanos. Por exemplo, para os países do<br />

Mercosul, os EUA propuseram a supressão total das barreiras para<br />

58% das manufaturas e 50% dos bens agrícolas, não contemplando<br />

itens agrícolas de interesse do bloco, principalmente do Brasil.<br />

Uma outra divergência envolvendo brasileiros e norte-americanos<br />

aconteceu durante a Quinta Conferência Ministerial da Organização<br />

Mundial do Comércio, realizada em Cancún em setembro de 2003,<br />

quando a diplomacia brasileira liderou um bloco de países (G-21) que<br />

inviabilizou a rodada de negociações devido à agenda do encontro contemplar<br />

apenas os interesses dos EUA e da União Européia, que recusavam<br />

discutir os subsídios agrícolas oferecidos aos seus produtores<br />

agrícolas. Depois de o representante do comércio exterior dos EUA<br />

(USTR), Robert Zoellick responsabilizar o Brasil pelo fracasso das negociações<br />

em Cancún, os norte-americanos acabaram concordando<br />

a contragosto em formular um acordo mais flexível para a ALCA, na<br />

Oitava Reunião Ministerial de Comércio em Miami, em novembro de<br />

2003. Na declaração de Miami ficou decidido que os países poderiam<br />

assumir níveis de compromissos distintos na Alca prevendo dois níveis<br />

de negociação. Enquanto no primeiro nível ficaria estabelecido<br />

um conjunto comum e equilibrado de direitos e obrigações, aplicáveis<br />

a todos os países, no segundo, era facultativo aos países definirem<br />

obrigações e benefícios adicionais no âmbito da Alca por meio de negociações<br />

plurilaterais. 1 Evitando os temas mais polêmicos, que poderiam<br />

ser negociados com o tempo, a declaração de Miami procurava<br />

impedir um novo choque entre as posições do Mercosul e as dos EUA<br />

1 Ver Declaração Ministerial de Miami, <strong>18</strong> de novembro de 2003. Em: http//www.ftaaalca.org.<br />

143


VII. Mundo<br />

na medida em que tornava facultativa a participação dos países em<br />

áreas consideradas por eles problemáticas.<br />

É importante destacar que os EUA, o Canadá, o México, o Chile e<br />

outros países não se contentaram com o acordo “light” estabelecido<br />

em Miami. Dessa forma, as divergências não demoram em reaparecer<br />

nas negociações, como ocorreu na Reunião do Comitê de Negociação<br />

Comercial, principal órgão técnico da ALCA, em Puebla, fevereiro de<br />

2004. Nas negociações, para se chegar a um formato final para a constituição<br />

da Alca, ocorreram novas divergências e a reunião fracassou<br />

nos seus propósitos. Novamente as questões ligadas aos subsídios<br />

norte-americanos à agricultura, aos temas da propriedade intelectual,<br />

políticas de concorrência, antidumping e direitos compensatórios e o<br />

debate entre Alca “light” ou abrangente levaram a reunião a um impasse.<br />

Note-se que, nessa reunião, os EUA, Canadá, Chile e México<br />

articularam o G14, grupo de países sintonizados com as propostas<br />

norte-americanas da Alca.<br />

Um mês depois do fracasso da reunião de Puebla, em 4 de março<br />

de 2004, o USTr, em documento enviado ao Congresso dos EUA, deixou<br />

clara a intenção de insistir nas negociações da Alca abrangente.<br />

Como relata o documento:<br />

144<br />

Algumas delegações que negociam a Alca vêm questionando esses<br />

princípios e objetivos, propondo que a Alca fique concentrada<br />

apenas no acesso a mercados... A Alca deve ser abrangente e<br />

incluir um conjunto comum de direitos e obrigações a ser aplicado<br />

para todos os países em todas as áreas que estão sendo<br />

negociadas. 2<br />

Com a interrupção das negociações da Alca em Puebla devido às<br />

divergências com o Mercosul, o governo Bush, valendo-se do Trade<br />

Promotion Authority ou fast track passou a privilegiar acordos bilaterais<br />

e plurilaterais com os demais países do continente nos mesmos<br />

termos da Alca abrangente. Pode-se dizer que, com essa ofensiva, os<br />

EUA pretendem minar a resistência do Mercosul à Alca e, ao mesmo<br />

tempo, bloquear avanços de integração regional latino-americana fora<br />

da sua liderança. Nos últimos dois anos os EUA fecharam o acordo do<br />

Cafta-DR com a América Central e a República Dominicana, iniciaram<br />

as negociações de um acordo bilateral com o Panamá, tentaram<br />

iniciar uma discussão com o Paraguai e o Uruguai e, de certa forma,<br />

conseguiram desestruturar a Comunidade Andina de Nações com as<br />

2 Fragmento publicado no jornal Folha de S.Paulo em 5 de março de 2004.<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


ALCA: negociações, impasses e resistências<br />

negociações do Tratado de Livre Comércio Andino com a Colômbia, o<br />

Equador e o Peru (a Bolívia chegou a participar como observadora).<br />

Desses países andinos, Peru e Colômbia já assinaram o TLC com<br />

os EUA, faltando apenas a ratificação dos Congressos nacionais, enquanto<br />

que as negociações com o Equador estão suspensas e a Bolívia<br />

passou a se opor ao TLC Andino.<br />

Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em 8 de janeiro de 2006, o<br />

subsecretário de Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado norte-americano,<br />

Thomas Shannon fez uma avaliação dessa estratégia:<br />

Enquanto a Alca vem nesse caminho mais longo, temos pressionado<br />

fortemente essa agenda que resultou em acordos com<br />

o Chile, a Cafta-DR (Área de Livre Comércio da América Central<br />

e República Dominicana), o Peru e, esperamos, num futuro<br />

próximo, com Equador, países andinos, Colômbia e Panamá.<br />

Quando se combinam todos os países com os quais já firmamos<br />

acordo mais os que estamos negociando seriamente, isso cobre<br />

cerca de dois terços do PIB do hemisfério, o que é significativo.<br />

Vale lembrar mais uma vez que, nesses acordos, os EUA utilizam<br />

a sedução da oferta de acesso a seu mercado, a fragilidade econômica<br />

e a dependência dos demais países para impor somente as cláusulas<br />

de seu próprio interesse. Também cabe reafirmar que a estratégia<br />

de acordos bilaterais e plurilaterais adotada pelos EUA não significa<br />

que esse país tenha desistido da Alca. Tanto que na Quarta Reunião<br />

de Cúpula das Américas, realizada em novembro de 2005 em Mar<br />

del Plata, os EUA queriam incluir no documento final o compromisso<br />

dos demais países para retomar as discussões da Alca a partir de<br />

abril de 2006. O Mercosul e a Venezuela se opuseram à inclusão de<br />

qualquer menção que implicasse prazos para negociar a Alca. Diante<br />

do impasse para retomar as negociações, a Colômbia chegou a<br />

cogitar uma proposta, que foi logo apoiada pelo México, de criar a<br />

Alca para os 29 países que não se opõem ao acordo. Essas contradições<br />

também demonstram a divisão dos países latino-americanos<br />

em relação ao projeto Alca. Deve-se notar ainda que, embora muitos<br />

governos estejam negociando com os EUA, isso não implica que em<br />

suas sociedades não existam resistências, como vem ocorrendo em<br />

quase toda a região andina.<br />

Quando se observam as razões que levaram a um impasse na Alca,<br />

torna-se necessário recuar no tempo e refletir sobre a seguinte questão.<br />

A Alca foi lançada durante um período de euforia das elites dominantes<br />

e governantes latino-americanas com as reformas disseminadas pelos<br />

145


VII. Mundo<br />

EUA, acreditando que liberalizando, privatizando e estabilizando esses<br />

países teriam uma melhor inserção num mundo em que se anunciava<br />

como “um novo século americano” com uma nova ordem mundial<br />

pós-guerra fria, baseada nos princípios e valores norte-americanos da<br />

democracia de mercado e na força convergente da globalização. Ocorre<br />

que as crises econômicas e os resultados extremamente desiguais da<br />

globalização foram deixando mais claro para os movimentos sociais e<br />

alguns governantes da região os verdadeiros significados da adesão<br />

incondicional às diretrizes dos EUA. Mais do que isso, nessas negociações<br />

da Alca ficou evidente a histórica visão Pan-americanista dos<br />

EUA, na qual a soberania dos países latino-americanos é duramente<br />

violentada. Baseado na idéia de unidade das Américas e buscando<br />

receptividade aos seus projetos, os EUA mais uma vez partiram do<br />

pressuposto da existência de uma comunidade e unidade de objetivos<br />

e interesses econômicos, políticos, culturais e militares de todos os<br />

países do hemisfério ocidental. Porém, paradoxalmente, divulgando os<br />

princípios de igualdade, cooperação, solidariedade e parceria, os EUA<br />

foram deixando claro durante as negociações que o acordo deveria<br />

ocorrer fundamentalmente em conformidade com os seus interesses<br />

geoeconômicos, o que para a América Latina significaria restringir ainda<br />

mais sua capacidade de traçar políticas autônomas de desenvolvimento,<br />

como, por exemplo, praticar políticas industriais ativas.<br />

Tudo isso acabou gerando resistências de determinados governos<br />

e movimentos sociais à Alca, que, em alguns casos, passaram a exigir<br />

uma reformulação das propostas dos EUA e, em outros, iniciaram<br />

campanhas pelo fim das negociações do acordo. Daí decorrem algumas<br />

iniciativas tais como a tentativa de fortalecer o Mercosul; a criação da<br />

Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa) com a aproximação dos<br />

países sul-americanos com alguns países da Comunidade Andina; a<br />

entrada da Venezuela no Mercosul; a Campanha Continental contra a<br />

Alca, envolvendo vários movimento sociais de diversos países, inclusive<br />

dos EUA; e o projeto da Alternativa Bolivariana das Américas (Alba), lançado<br />

por Hugo Chávez da Venezuela e Fidel Castro de Cuba em dezembro<br />

de 2004, que propõe uma integração regional alternativa à Alca.<br />

Ao mesmo tempo em que essas iniciativas têm procurado demonstrar<br />

que a Alca não é inevitável, não é a melhor opção para a América<br />

Latina e que existe vontade e disposição para uma outra integração,<br />

elas padecem ainda das dificuldades que estiveram presentes em todas<br />

as tentativas de integração regional latino-americana, que, como<br />

indica o processo histórico, mantiveram-se aprisionadas a modelos, a<br />

instrumentos e as formas de mobilização que não conseguiram colocar<br />

o desenvolvimento econômico a serviço dos povos da região.<br />

146<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Referências<br />

ALCA: negociações, impasses e resistências<br />

BATISTA JR, P. N. A Alca e o Brasil. Estudos Avançados,<br />

Universidade de São Paulo. Instituto de Estudos Avançados. São<br />

Paulo: IEA. v. 17. n. 48. p. 267-293, 2002.<br />

CHANG, HA-J. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento<br />

em perspectiva histórica. São Paulo: Editora Unesp, 2004.<br />

DUPAS, G. A América Latina e o novo jogo global. In: DUPAS,<br />

G. (Coord.) América Latina no início do século XXI: perspectivas<br />

econômicas, sociais e políticas. Rio de Janeiro: <strong>Fundação</strong> Konrad<br />

Adenauer; São Paulo: Editora Unesp, 2005.<br />

RICUPERO, R. A Alca. São Paulo: Publifolha, 2003.<br />

SHIVA, V. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento.<br />

Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.<br />

VIGEVANI, T., MARIANO, M. P. Alca: O gigante e os anões. São<br />

Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003.<br />

*<br />

147


VII. Mundo<br />

148<br />

A governabilidade democrática como<br />

espaço idôneo para conciliar as<br />

políticas econômicas com<br />

as políticas sociais<br />

Amália D. García Medina<br />

Os países da América Latina estão insatisfeitos com os resultados<br />

das políticas econômicas aplicadas nos últimos anos. Sob<br />

múltiplos âmbitos tem se questionado as conseqüências do<br />

programa para o desenvolvimento que, em 1990, o economista John<br />

Williamson denominou o “Consenso de Washington”. O mesmo Williamson<br />

1 não duvida em qualificar como “decepcionantes” os resultados<br />

destes últimos anos, referindo-se aos resultados das reformas para<br />

o desenvolvimento – predominantemente econômicas – promovidas e<br />

aplicadas na América Latina desde os finais dos anos oitenta.<br />

O fracasso do Consenso de Washington<br />

Colocadas em marcha as chamadas “reformas de primeira geração”<br />

– como o denominam os economistas – deveriam ser o remédio para que<br />

os países em desenvolvimento pudessem enfrentar seus compromissos<br />

de pagamento da dívida externa – no marco da reestruturação da mesma<br />

com os organismos internacionais – e evitar, conjunturalmente, a<br />

potencial instabilidade e quebra do sistema financeiro internacional.<br />

Em sua recapitulação pública do ano 2003 John Williamson resumiu<br />

em dez proposições as medidas de política econômica que estavam sendo<br />

aplicadas nos países latinos americanos e que acabaram configurando<br />

seu já famoso “Consenso de Washington”. Ao continuar, enumerou<br />

dez reformas: “Disciplina fiscal; reordenamento das prioridades do<br />

gasto público; reforma tributária; liberalização das taxas de juros; tipo<br />

de câmbio competitivo; liberalização do comércio; liberação dos investimentos<br />

estrangeiros diretos; privatização; desregulamentação e direitos<br />

1 1 John Williamson. No hay consenso em el significado. Reseña sobre el Consenso<br />

de Washington y sugerencias sobre los pasos a dar. Finanzas & Desarrollo, p. 12;<br />

setiembre de 2003.<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


A governabilidade democrática como espaço idôneo<br />

para conciliar as políticas econômicas com as políticas sociais<br />

de propriedade”. 2 Ao aplicar estas reformas o desemprego aumentou em<br />

muitos países, a pobreza se estendeu e a ênfase na abertura fez com<br />

que os países se tornassem vulneráveis aos efeitos mais negativos da<br />

globalização; os economistas questionaram o ritmo e a seqüência das<br />

reformas. 3 Nos desenlaces deste período se destaca a unanimidade em<br />

uma conclusão que resume o atual panorama desolador da América<br />

Latina: nenhum país pode reduzir a pobreza ou a desigualdade, nem<br />

melhorar a qualidade e o nível de vida da população. 4<br />

As crises políticas, sociais e financeiras que estalaram nos distintos<br />

países latinos americanos durante a segunda parte da década de<br />

1990, o aumento no número de pobres e o colapso argentino no fim de<br />

2001 (país considerado pelos atores de Washington como exemplo a<br />

seguir) foram fatos que ajudaram a confirmar a sensação de fracasso<br />

que deixou a implementação destas políticas na maioria dos países da<br />

região. O mesmo Williamson, no documento já aludido, – se bem que<br />

ainda defende com certo dogmatismo, o programa do Consenso de<br />

Washington – não deixa de reconhecer que, no que se refere à renda,<br />

“América Latina ... possui as distribuições mais desiguais do mundo”<br />

e, em sua quarta recomendação advoga para que “os pobres tenham<br />

acesso aos meios que lhes permitam sair da pobreza”. 5<br />

No entanto, já desde meados da década de 90, na literatura sobre<br />

a economia do desenvolvimento, se reconhecia a importância das<br />

instituições para permitir que uma economia funcione com eficácia e<br />

equidade. “As reformas de segunda geração desenvolvidas por Moisés<br />

Naím (1995), são as que por meio do fortalecimento das instituições<br />

do Estado, tem propiciado um crescimento econômico maior e uma<br />

distribuição mais eqüitativa deste crescimento entre a população. De<br />

acordo com esta visão o fortalecimento institucional é a base para solucionar<br />

os problemas das políticas públicas e o desenvolvimento”. 6<br />

Também, neste conjunto de reformas se ressalta que um dos objetivos<br />

é conseguir que o crescimento econômico beneficie a todos. Nas<br />

chamadas reformas de primeira geração nem sequer se colocavam a<br />

redução da desigualdade e da pobreza como objetivos explícitos, já<br />

que se supunha que o crescimento econômico seria suficiente para<br />

diminuí-las. A discussão chegou a um ponto em que extrapolou o âmbito<br />

dos especialistas para irromper no debate político: trata-se de<br />

conseguir um enfoque de longo prazo para por em prática as reformas<br />

2 Ídem, p. 10-11.<br />

3 Gemma Cairó u Céspedes. FMI, reforma y desarrollo. Publicado em COSTAS, A. y<br />

CAIRO, G. (2003) Cooperación y Desarrollo. Hacia una Agenda compreensiva para el<br />

desarrollo. Pirámide, Madrid.<br />

4 Jorge G. Castañeda. Es la política. Diario Reforma, 03 de febrero de 2003.<br />

5 John Williamsonm. Ibíd., p. 13.<br />

6 José Luis Hernández Nuñez. Boletín económico, p. 21, BCR. El Salvador, 2004.<br />

149


VII. Mundo<br />

sociais postergadas. É um tema pertinente para o espaço da política,<br />

pois, – como o assinalam os especialistas –, para a criação e fortalecimento<br />

de instituições, não existem teorias desenvolvidas, testadas e<br />

estabelecidas, portanto é um campo novo e aberto à criatividade.<br />

Na atualidade, com distintas posturas e interpretações, o debate<br />

das reformas está presente em quase toda a região. A urgência do crescimento<br />

é assumida, e vários governos se interrogam como fazê-lo com<br />

maior equidade levando em conta que os que sustentam o Consenso<br />

de Washington, finalmente, acabaram por admitir: as reformas econômica<br />

tem implicado altos custos sociais que ameaçam a governabilidade<br />

democrática. Neste contexto, entendemos a governabilidade como<br />

a capacidade dos governos para exercer o poder político democrático<br />

de forma continuada, em condições de legitimidade, especialmente em<br />

circunstâncias de crise.<br />

A governabilidade democrática<br />

A recuperação democrática dos anos noventa na América Latina é<br />

muito ilustrativa.<br />

150<br />

Na democracia adquirem visibilidade e liberdade de expressão as<br />

demandas cidadãs que, como sistematicamente mostram todas<br />

as pesquisas de opinião, priorizam os problemas de pobreza, de<br />

emprego, educação, saúde e segurança cidadã. Não existe programa<br />

de candidato que dispute democraticamente os votos que<br />

não inclua propostas para tais demandas. Esse é o espaço da<br />

legitimidade das políticas destinadas ao desenvolvimento social.<br />

Da mesma maneira, a frustração destas demandas, quer dizer,<br />

políticas destinadas a dar soluções às demandas sociais da cidadania<br />

que sejam insuficientes, débeis, inadequadas ou ineficientes,<br />

põem em questão, por sua vez, a governabilidade democrática<br />

e geram crises institucionais. E, uma vez eleitos os governantes,<br />

a cidadania se converte em avalista de suas propostas, se as instituições<br />

democráticas funcionam e se, além das desigualdades<br />

econômicas dos cidadãos ou dos pesos corporativos de interesses<br />

em jogo, prima a representação de maiorias e minorias, com<br />

parlamentos efetivos que permitam dirimir entre estes interesses<br />

particulares em função dos mais coletivos. Em suma, a capacidade<br />

dos sistemas democráticos para processar as demandas e<br />

dar espaço aos diversos interesses é o que faz a diferença na qualidade<br />

das políticas econômicas e sociais a que pode obrigar, em<br />

maior ou menor medida, a sua necessária articulação. Impostos,<br />

legislações trabalhistas, reformas sociais, políticas de igualdade<br />

de gênero e territoriais, entre outras, devem passar pela prova do<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


A governabilidade democrática como espaço idôneo<br />

para conciliar as políticas econômicas com as políticas sociais<br />

escrutínio público e ser parte da deliberação política. Mas, igualmente<br />

importante é entender que para articular adequadamente<br />

políticas econômicas e sociais orientadas a políticas ativas de<br />

inclusão e maior equidade social, se requer um aprofundamento<br />

da democracia que permita atribuir um maior peso ao valor<br />

da cidadania que ao valor econômico, bem como à estabilidade<br />

e legitimidade de suas instituições políticas que permitam que<br />

tal cidadania exerça efetivamente seus direitos. Instituições que<br />

funcionem além dos processos eleitorais, como são os parlamentos<br />

e os partidos; com uma sociedade civil forte e constituída;<br />

com transparência informativa, liberdade de expressão e pluralismo<br />

nos media; e com um sistema judicial independente, probo<br />

e expedito capaz de processar as muitas demandas sociais que<br />

crescentemente canalizam a população para a justiça. 7<br />

A crescente revalorização do local redefine o papel exercido pelas<br />

instituições econômicas, políticas e sociais nos governos democráticos<br />

locais para dar resposta ao incremento das demandas<br />

sociais. As instituições se constituem nas instâncias mediadoras<br />

que vinculam as políticas macroeconômicas com os agentes<br />

econômicos e sociais bo âmbito do desenvolvimento local que se<br />

relaciona com a esfera pública, particularmente na dotação dos<br />

bens e serviços públicos requeridos. A participação dos diferentes<br />

atores políticos, sociais e os agentes econômicos mediante<br />

processos de distribuição de poder para solucionar os conflitos<br />

de interesses, incide na formação dos arranjos institucionais. 8<br />

A América Latina tem patrocinado o aprendizado recente nas relações<br />

entre economia, sociedade e democracia: hoje é visível que não<br />

existe uma relação automática e unidirecional entre crescimento econômico<br />

e geração de emprego e tampouco existe uma relação mecânica<br />

e vertical entre crescimento econômico e superação da pobreza e que<br />

crescimento econômico não é garantia de maior desenvolvimento, entendido<br />

este desde uma perspectiva mais ampla e multidimensional;<br />

por fim, temos aprendido que a democracia pode ser um grande espaço<br />

para combinar as políticas econômicas com as políticas sociais.<br />

7 Clarisa Ardí. Algunas reflexiones sobre la relación entre políticas económicas y sociales.<br />

Colección Ideas. Año 5, n. 39., enero 2004. Presentación preparada para el<br />

encuentro “La Articulación de las Políticas Económicas y las Políticas Sociales: desafío<br />

para el crecimiento sostenible e incluyente”, organizado por el Instituto Interamericano<br />

para el Desarrollo Social (INDES), del Banco Interamericano de Desarrollo.<br />

BID. 1 y 2 de Diciembre 2003. Washington D.C.<br />

8 José Guadalupe Vargas Hernández. Implicaciones de los procesos de globalización<br />

económica en las reformas de las economías locales. Centro Universitario del Sur.<br />

Universidad de Guadalajara. Prol. Colón SN. Cd. Guzmán, Jalisco, 49000, México.<br />

151


VII. Mundo<br />

A estratégia do desenvolvimento humano<br />

152<br />

A inexistência de automatismos, crescimento econômico-desenvolvimento<br />

humano tem sido bem explicitada pelo Programa das<br />

Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) quando afirma<br />

que, apesar do crescimento econômico ampliar a base material<br />

para a satisfação das necessidades básicas, o grau em que estas<br />

são satisfeitas depende da distribuição dos recursos e o aproveitamento<br />

e a distribuição das oportunidades. A seqüência desejável<br />

de política econômica, para que o vínculo crescimento-desenvolvimento<br />

seja virtuoso, é priorizar primeiro o desenvolvimento<br />

humano – fundamentalmente educação primária e melhoria do<br />

saneamento básico – para posteriormente investir em crescimento<br />

econômico. Neste caso tratar-se-ia de ampliar a noção de<br />

desenvolvimento à esfera política – o papel da democracia e as<br />

instituições –, no âmbito social – a preocupação pela equidade<br />

e o nível de bem estar das pessoas – e a dimensão ecológica – a<br />

incorporação da sustentabilidade ambiental; enfatizando a necessidade<br />

de incluir no projeto a experiência e o conhecimento<br />

dos agentes locais, para assim lograr uma participação mais consensuada<br />

sobre os objetivos e os instrumentos das políticas. 9<br />

Esta é, justamente, a visão que temos escolhido para impulsionar<br />

o desenvolvimento no Estado de Zacatecas, no México.<br />

Nossa estratégia coincide, parcialmente, com a perspectiva explícita<br />

da Declaração de Nuevo Leon, de 2002. No preâmbulo daquele<br />

documento destacam-se os seguintes propósitos dos signatários:<br />

(...) afirmamos que o bem-estar de nossos povos requer sucesso<br />

em três objetivos estreitamente vinculados e interdependentes:<br />

crescimento econômico com equidade para reduzir a pobreza, desenvolvimento<br />

social e governabilidade democrática”. 10<br />

Trata-se do enriquecimento da vida e das liberdades das pessoas,<br />

quer dizer, o desenvolvimento humano. Só uma visão compartilhada<br />

do Estado, a economia e a sociedade que se deseja alcançar pode permitir<br />

saídas progressistas para todos os homens e mulheres.<br />

9 Gemma Cairó i Céspedes. FMI, reforma y desarrollo. P. 17-21. Publicado em COS-<br />

TAS, A. y CAIRO, G. (2003) Cooperación y desarrollo. Hacia una agendacompreensiva<br />

para el desarrollo. Pirámide, Madrid.<br />

10 Declaración de Nuevo León”. Monterrey, 2002.<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


A governabilidade democrática como espaço idôneo<br />

para conciliar as políticas econômicas com as políticas sociais<br />

Entretanto, há, pelo menos, duas críticas que se formulam contra<br />

o conceito geral do desenvolvimento humano sustentável: uma postura<br />

que desde uma “perspectiva crítica, se entende que, sem superar as<br />

limitações da forma de desenvolvimento capitalista, sem considerar a<br />

estrutura econômica onde este desenvolvimento deve realizar-se, é impossível<br />

“construir uma síntese entre globalidade e humanidade” já que<br />

é impossível que esta ocorra sob “condições capitalistas de produção,<br />

distribuição e consumo” e a segunda sublinha “a semelhança dos paradigmas<br />

do desenvolvimento humano com o do Consenso de Washington<br />

e os identifica como dois paradigmas aparentemente alternativos”. 11<br />

Sobre a primeira crítica desejo insistir que, justamente, trata-se<br />

de encontrar um caminho alternativo e divergente – que beneficie as<br />

pessoas – dentro das condições definidas pelo capitalismo; a questão<br />

é que não existe outro cenário.<br />

Sobre a segunda crítica é quase ocioso estabelecer algo que, talvez,<br />

psicologicamente se assume: não existe a originalidade radical; insisto:<br />

escolhemos a democracia – a governabilidade democrática – como<br />

o espaço idôneo para conciliar a política econômica com as políticas<br />

sociais. Esse é nosso programa.<br />

Se me permitem, terminarei com duas citações que me parece,<br />

descrevem com perfeição a filosofia que nos anima. Diz Aung San Suu<br />

Kyi – Prêmio Nobel da Paz, 1991 – que:<br />

(...) o respeito à dignidade humana implica um compromisso<br />

para criar condições nas quais os indivíduos possam desenvolver<br />

um sentido de autoestima e de segurança. A verdadeira dignidade<br />

provém da capacidade de colocar-se à altura dos desafios<br />

inerentes à condição humana. 12<br />

Por desgraça, durante o século XX a dignidade humana foi assolada<br />

sem misericórdia; por isso quero concluir com quatro versos do<br />

poema Fim de século 13 do poeta mexicano José Emilio Pacheco:<br />

Não quero nada para mim.<br />

Só anseio<br />

o possível impossível:<br />

um mundo sem vítimas.<br />

11 Gemma Cairó i Céspedes. FMI, reformas y desarrollo. Hacia una agenda compreensiva<br />

para el desarrollo. Pirámide, Madrid.<br />

12 Aung San Suu Kyi. Premio Nóbel da Paz 1991<br />

13 José Emilio Pacheco. Fin de siglo. P. 90. Lecturas mexicanas. Fondo de cultura económica.<br />

México, 1984.<br />

153


VII. Mundo<br />

154<br />

A crise no Oriente Médio<br />

O golpe de Gaza:<br />

a islamização está chegando 1<br />

Walid Salem<br />

Em resposta aos recentes eventos em Gaza, o dr. Sa’eb Erekat,<br />

chefe do Departamento de Negociações da Organização para a<br />

Libertação da Palestina, disse, no dia 14 de junho, que “este<br />

é o pior fato assistido pela Palestina, desde a derrota na guerra de<br />

1967”. Do outro lado, Sami Abu Zuhri, porta-voz do Hamas, em Gaza,<br />

declarou candidamente numa emissão da Rádio Hamas, no dia seguinte,<br />

que havia ocorrido a segunda libertação da Faixa de Gaza:<br />

“A primeira libertação foi das hordas dos colonos israelenses, e esta<br />

segunda é das hordas dos colaboradores de Israel”.<br />

Outros líderes do Hamas costumavam chamar aqueles que foram<br />

derrotados como os “Lahdis” (referindo-se a Antoin Lahd, chefe<br />

do antigo Exército do Sul do Líbano, que era ligado a Israel), e até<br />

diferenciavam entre esses “Lahdis” e a Fatah, dizendo que as lutas<br />

se deram apenas contra os “Lahdis”, e de nenhuma maneira com a<br />

Fatah.<br />

Erekat e todas as facções da OLP expressaram reações muito pessimistas<br />

sobre os eventos em Gaza, enquanto o Hamas festejou e até<br />

organizou marchas e encontros públicos para celebrar a segunda<br />

libertação de Gaza...<br />

A OLP e a era do programa nacional palestino estão em declínio,<br />

enquanto a nova era da islamização está em ascensão. Esta nova<br />

era começou com a vitória do Hamas nas eleições de 2006, e ganhou<br />

maior impulso com o controle unilateral do Hamas sobre Gaza desde<br />

o dia 15 de junho último.<br />

1 O original deste artigo (inglês) foi publicado em 20/06/2007 pelo MEW (Mid<br />

EastWeb for Coexistence) www.mideastweb.org, e traduzido por Moisés Storch para<br />

o Paz Agora|BR (www.pazagora.org) e a Revista Espaço Acadêmico.<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


O golpe de Gaza: a islamização está chegando<br />

A questão agora é se isso será ou não um primeiro passo para a<br />

tomada da Cisjordânia (ou possivelmente do Egito) pelo Hamas ou a<br />

Irmandade Muçulmana. Os fatos futuros responderão.<br />

Islamização versus nacionalismo<br />

Na era do nacionalismo palestino, a agenda nacional palestina<br />

era a prioridade, e o trabalho em função dessa agenda para chegar a<br />

um Estado Palestino tomava praticamente todos os esforços da OLP<br />

e suas facções.<br />

Hoje isso mudou. A questão nacional palestina é apenas um ponto<br />

da agenda do Hamas. Como parte dos grupos da Irmandade Muçulmana,<br />

seu principal tema é a criação de um sistema de califado<br />

islâmico. Assim o que deverá se seguir à sua tomada de Gaza não é<br />

necessariamente uma tomada da Cisjordânia, se a situação lá não<br />

for tão favorável. Poderá, por exemplo, ser o Egito, se este já estiver<br />

mais maduro que a Cisjordânia para a islamização. Os grupos<br />

da Irmandade Muçulmana, incluindo o Hamas, irão trabalhar pela<br />

islamização, onde ela for primeiramente possível, sem restringir-se<br />

a uma certa agenda nacional, pois acreditam que sua agenda transcende<br />

o nacionalismo.<br />

É por isso que o Hamas não está assustado com questões como<br />

a separação de Gaza da Cisjordânia e o impedimento da criação de<br />

um Estado Palestino, como as facções da OLP o acusam de estar<br />

fazendo. Simplesmente esses temas não são parte de sua agenda<br />

principal. Entretanto, o Hamas como o ramo da Irmandade Muçulmana<br />

em Gaza, e também na Cisjordânia, também irá trabalhar para<br />

tomar a Cisjordânia após Gaza para evitar separar uma da outra.<br />

Isso posto, deve-se acrescentar que a Irmandade Muçulmana foi<br />

fundada em 1928 para recriar o sistema de califado islâmico. Desde<br />

aquele tempo, foram incapazes de consegui-lo em qualquer dos<br />

países islâmicos. Portanto, eles não hesitarão em fazê-lo em Gaza,<br />

estabelecendo lá um semi-califado na forma de um emirado islâmico.<br />

A destruição das casas de Yasser Arafat (e de Abu Mazen), em Gaza,<br />

como maiores símbolos do nacionalismo palestino, são sinais nesta<br />

direção, e o que virá será bem maior.<br />

O processo de islamização<br />

Como irá se realizar o processo de islamização da Faixa de<br />

Gaza?<br />

155


VII. Mundo<br />

Será importante acompanhá-lo, pois será a primeira vez que um grupo<br />

da Irmandade Muçulmana estará no poder, e será um ensaio para o<br />

que eles farão em outros países quando os tomarem futuramente.<br />

Ainda não existe uma resposta completa para esta questão, mas<br />

algumas declarações feitas por alguns líderes do Hamas, em Gaza,<br />

estão sinalizando sobre a disposição dessa liderança em impor leis<br />

islâmicas em Gaza. No dia 15/6, o sheikh Ismail Hannieh pediu em<br />

discurso às Brigadas Al-Qassam para tratar seus reféns das forças<br />

de segurança derrotadas da AP de acordo com as normas de “tolerância<br />

islâmica”, que obviamente toleram aqueles que não mataram<br />

membros do Hamas antes, mas que também ditam que devem ser<br />

executados aqueles que mataram ou atacaram membros do Hamas.<br />

Em outro exemplo, o sheikh Nizar Rayyan, um líder do Hamas,<br />

disse que o que aconteceu em Gaza foi um conflito entre o Islã e a<br />

apostasia, que estava concluindo com o fechamento da era do secularismo<br />

e ateísmo naquela faixa. Acrescentou que irá transformar o<br />

quartel-general das forças de segurança da AP em Gaza numa mesquita,<br />

e que faria uma pregação especial na Muntada (o complexo<br />

presidencial de Abbas, em Gaza).<br />

Se adicionarmos a essas declarações as crescentes atividades de<br />

vários grupos salafitas em Gaza, apoiados por algumas alas do Hamas,<br />

e que agem contra os Internet Cafés e mulheres que não cobrem<br />

suas cabeças com véus e contra cristãos, então a tendência<br />

para se impor o Islã sobre todos os gazanos, incluindo aqueles que<br />

não crêem nele, ficará mais clara. O que se dará depois é uma medida<br />

do tipo de islamização que será implementada com base nas diferenças<br />

de posições de diversas alas do Hamas. Mas este é um mero<br />

detalhe, que não influenciará a direção principal que é no rumo da<br />

islamização.<br />

A resposta direta a esse processo de islamização não foi apenas<br />

que algumas pessoas do Fatah estejam tentando sair de Gaza, mas<br />

também que os seculares, os intelectuais, os empresários do setor<br />

privado, os líderes de ONGs e a maior parte dos democratas progressistas<br />

estão saindo por causa das ameaças às suas vidas. Lamentavelmente,<br />

por outro lado, isso irá acelerar o processo de imposição<br />

das normas do Hamas, em Gaza.<br />

A vida do povo em Gaza<br />

Além do processo de islamização que será acelerado em Gaza, a<br />

outra questão é: Como irá o povo viver em Gaza de agora em diante?<br />

156<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


O golpe de Gaza: a islamização está chegando<br />

a. Segurança: A ironia aqui é que as pessoas irão agora se sentir<br />

mais seguras nas ruas com o controle unilateral do Hamas sobre<br />

Gaza, mas ao mesmo tempo a violência irá continuar, incluindo assassinatos<br />

extra-judiciais por vingança e contra-vingança, e execuções<br />

daqueles que forem considerados como apóstatas ou “colaboradores”.<br />

A palavra “colaborador” na linguagem do Hamas não se refere<br />

apenas aos que passam informações a Israel. Para eles, existem outros<br />

tipos de colaboradores, como colaboradores políticos, culturais,<br />

econômicos e o colaborador por desvio de comportamento, como detalhado<br />

num trabalho escrito pelo dr. Saleh Abdel, em 1988.<br />

Outra questão que influenciará a segurança será a contradição<br />

entre as forças de segurança do Hamas e aquelas que receberão ordens<br />

de Ramalá. Esta é uma contradição futura porque no curto<br />

prazo o Hamas terá total autoridade sobre Gaza.<br />

b. O mapa político interno de Gaza mudará. O próprio Hamas<br />

assistirá a uma crescente influência de suas alas extremistas e ideológicas<br />

que desejam islamizar a sociedade, enquanto a Fatah, em<br />

Gaza, já perdeu (ao menos temporariamente) sua ala disposta a esmagar<br />

o Hamas (esta tendência foi derrotada nos eventos da semana<br />

passada). Duas outras facções da Fatah crescerão agora em Gaza.<br />

Uma é liderada por Ahmad Hilles, ex-secretário-geral da Fatah, em<br />

Gaza, que evitou que seus apoiadores combatessem o Hamas, apoiado<br />

por Ibrahim Abu Naja. Eles tentarão chegar a um compromisso<br />

com o Hamas sobre assuntos da vida diária, levando em consideração<br />

o novo contexto. A outra tendência na Fatah irá se adaptar<br />

completamente à nova estrutura de poder em Gaza, tentando encontrar<br />

soluções para problemas pessoais e individuais dentro da nova<br />

estrutura de poder.<br />

A nova oposição ao Hamas em Gaza será agora a Jihad Islâmica,<br />

com sua agenda nacional pela contínua resistência à ocupação<br />

israelense, sem respeito ao cessar-fogo que o Hamas propôs várias<br />

vezes. Porém mais perigosas são as novas organizações do tipo da Al-<br />

Qa’eda, como Suyuf Al-Alhaq (Espadas dos Justos), Jaish Al-Islam<br />

(Exército do Islã) e Kata’eb Al-Jihad Al-Muqaddas (Brigadas da Jihad<br />

Santa), as quais também são apoiadas pelas alas mais extremistas<br />

do Hamas.<br />

O Hamas, por si, será dividido entre aqueles que são mais ideológicos<br />

(Mohamad Zahar e Nizar Rayan) e os que são mais políticos<br />

(como Ghazi Hamad, porta-voz do governo, que silenciou totalmente<br />

durante as recentes semanas de ataques). Hanieh está liderando assumindo<br />

a posição intermediária entre essas duas correntes, porque<br />

157


VII. Mundo<br />

precisa de ambas. Ele precisa da posição ideológica para islamizar a<br />

sociedade, e também da política para poder falar com o mundo mais<br />

amplo.<br />

Finalmente, a ala da Fatah que foi derrotada deve continuar suas<br />

tentativas de reagir, mas isto será refletido em incidentes menores, aqui<br />

e ali, após terem perdido suas bases e suas armas para o Hamas.<br />

c. Economia e sustento: na ausência de uma economia real em<br />

Gaza após a eleição do Hamas em janeiro de 2006, e as sanções internacionais<br />

que se seguiram, o contrabando tornou-se a economia<br />

e a forma de muitos garantirem sua sobrevivência ali. Agora, com o<br />

fechamento de todas as passagens de fronteiras com Gaza após a tomada<br />

do Hamas, o contrabando aumentará, incluindo armas e todos<br />

os bens, a não ser que o lado egípcio seja autorizado por Israel (contradizendo<br />

o acordo de Camp David) a alocar massivamente forças<br />

no lado egípcio para impedir esse contrabando.<br />

Por outro lado, os empregados da AP em Gaza continuarão recebendo<br />

seus salários. Ou do novo governo de emergência de Salam<br />

Fayyad (o novo primeiro-ministro) composto no dia 17 de junho, ou<br />

(caso seja nomeado por Hanieh após a decisão de Abu Mazen de<br />

demiti-lo de sua posição, com a qual não concorda) do Hamas, que<br />

continuará a receber fundos dos ramos da Irmandade Muçulmana<br />

em todos os países islâmicos, e também do Irã, e provavelmente indiretamente<br />

de alguns países árabes como provavelmente o Qatar.<br />

Contudo, os problemas mais sérios serão aqueles relacionados<br />

à subsistência diária da população, e serão exacerbados principalmente<br />

se Israel continuar fechando as passagens de fronteiras, o que<br />

significaria não apenas desconectar completamente Gaza da Cisjordânia,<br />

mas também impedir que a assistência humanitária das organizações<br />

da ONU e outras cheguem ao povo necessitado de Gaza.<br />

Mais ainda, se Israel impedir a importação de bens para Gaza por<br />

intermédio dos portos israelenses.<br />

158<br />

*<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


A paz após a tomada<br />

de Gaza pelo Hamas 1<br />

Galia Golan<br />

A paz após a tomada de Gaza pelo Hamas<br />

Não é muito difícil enxergar como chegamos onde estamos hoje<br />

com respeito aos palestinos. Sucessivos governos israelenses<br />

sistematicamente destruíram ou enfraqueceram lideranças palestinas<br />

moderadas. Desde a destruição da Frente Nacional Palestina<br />

(os primeiros promotores nos territórios da solução de Dois Estados)<br />

em meados dos anos 70, até a total ausência de quaisquer medidas<br />

que pudessem ter fortalecido Abu Mazen (Mahmoud Abbas) como primeiro-ministro<br />

ou presidente aos olhos do seu povo, e incluindo a<br />

recente prisão dos poucos líderes do Hamas dispostos a falar com<br />

Israel.<br />

Acrescente-se a isto o exitoso esforço do premier Ariel Sharon em<br />

enfraquecer e dispersar a Autoridade Palestina, assim como a política<br />

não-declarada de Israel para separar Gaza da Cisjordânia, e chegamos<br />

à situação que hoje enfrentamos.<br />

A Fatah obviamente tem também sua parte de responsabilidade<br />

pela situação, por causa de suas próprias divisões internas, corrupção<br />

e indecisões. Não esqueçamos, porém, do assunto mais crítico<br />

subjacente: o fato de Israel não ter acabado a ocupação que, por todos<br />

esses 40 anos, vem aumentando o sofrimento, a pobreza, a frustração,<br />

a perda de terras e vidas e a desesperança das populações pela qual o<br />

Hamas e a Fatah competem.<br />

A questão é: podem esses (e muitos mais) erros do passado proporcionar<br />

algumas dicas para que possamos proceder melhor no futuro?<br />

Com um “governo” dissolvido oficialmente pelo presidente da<br />

Autoridade Palestina, mas ainda reinando sobre Gaza, um novo governo<br />

de emergência nomeado por Abu Mazen, um Conselho Legislativo<br />

dominado pelo Hamas - mas possivelmente também dissolvido sob<br />

regulamentos de emergência (se existirem) -, uma força de segurança<br />

em Gaza e uma outra aparentemente mantendo sua supremacia na<br />

1 Publicado na www.bitterlemons.org em 12/06/2007 a traduzido por Moisés Storch<br />

para o Paz Agora|BR (www.pazagora.org) e a Revista Espaço Acadêmico.<br />

159


VII. Mundo<br />

Cisjordânia, e as opiniões políticas visivelmente divididas mesmo dentro<br />

do Hamas e da Fatah - é difícil ter respostas precisas.<br />

Mas, teoricamente ao menos, existe uma série de opções para<br />

Israel (e para os EUA e a comunidade internacional). Entre elas<br />

estão:<br />

a. introdução de uma força internacional em Gaza (alguns adicionariam<br />

também na Cisjordânia - algo que ofereceria estabilidade<br />

para todos os territórios e se daria concomitantemente com a retirada<br />

israelense para linhas temporárias);<br />

b. relacionamento exclusivo com Abu Mazen, e seu fortalecimento,<br />

acompanhado do total isolamento do Hamas com boicote e<br />

pressão sobre Gaza;<br />

c. apoio a esforços para reconstrução do governo de união nacional,<br />

incluindo o levantamento do boicote ao Hamas, sujeito à<br />

demonstração do seu controle sobre as várias milícias islâmicas em<br />

Gaza e concomitante com o fortalecimento de Abu Mazen; e<br />

d. abertura de negociações para um acordo abrangente por meio<br />

da intermediação da Liga Árabe.<br />

Intervenção internacional?<br />

A primeira opção, de uma força internacional, aparece como a<br />

mais atraente, aliviando tanto Israel quanto os palestinos da responsabilidade<br />

pela população palestina. Se isso incluísse a Cisjordânia,<br />

significaria o fim da ocupação. Israel, claro, jamais mostrou<br />

qualquer interesse nesse tipo de arranjo, mas poderia levar a uma<br />

saída também para a Cisjordânia.<br />

A força internacional foi uma alternativa aberta por Israel como<br />

opção para Gaza, agora que o Hamas detém o controle da Faixa.<br />

Mas exatamente por isso, ela também não funcionaria: o Hamas<br />

não concordaria com tal limitação ao seu poder, e nenhum órgão<br />

internacional estaria disposto a assumir tal tarefa sob essas condições.<br />

Seria razoável que os egípcios concordariam com o fortalecimento<br />

internacional dos seus contingentes na fronteira (travessia<br />

de Rafah, etc.), mas sem um acordo com o Hamas ou outro órgão<br />

com controle sobre Gaza, a comunidade internacional possivelmente<br />

temeria arriscar uma presença física.<br />

160<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Isolar o Hamas?<br />

A paz após a tomada de Gaza pelo Hamas<br />

A opção já adotada por Israel e os Estados Unidos (que possivelmente<br />

será logo acompanhada pelo resto do Quarteto) é fortalecer Abu<br />

Mazen e isolar Haniyeh. A idéia é fornecer os meios (principalmente<br />

financeiros, mas possivelmente também materiais) para que a Fatah<br />

demonstre seu valor para a população palestina em comparação com<br />

o Hamas. Isto seria feito pelo levantamento dos bloqueios sobre a Autoridade<br />

Palestina e a liberação de fundos palestinos retidos, assim<br />

permitindo o pagamento desesperadamente necessário para os funcionários<br />

públicos (embora não seja claro se isso incluiria os servidores<br />

em Gaza).<br />

Mas para ganhar a simpatia da população, mais medidas seriam<br />

necessárias. Fala-se de abrir alguns checkpoints e aliviar um pouco a<br />

ocupação para os palestinos da Cisjordânia. Mas a medida de “construção<br />

de confiança” mais eficaz para valorizar a Fatah perante a população<br />

seria uma ampla soltura de prisioneiros (obviamente excluindo<br />

prisioneiros do Hamas). Tal medida poderia demonstrar que Abu<br />

Mazen pode “trazer resultados” - mitigando, talvez, as acusações de<br />

“colaboração” de Fatah com Israel (e os EUA).<br />

Um grande risco nesta política, porém, é o reconhecimento e possível<br />

institucionalização da separação da Cisjordânia de Gaza, ou seja<br />

a idéia de Três Estados que na verdade iria sabotar a criação de um<br />

Estado Palestino e a solução do conflito com Israel.<br />

O jogo seria que Abu Mazen deveria encontrar um jeito de trazer<br />

benefícios para a população de Gaza (salários para servidores civis,<br />

por exemplo) sem que isto fosse creditado ao Hamas ou facilitasse o<br />

domínio do Hamas. A Fatah precisa contar com a incapacidade do<br />

Hamas para governar (como fez após as eleições de 2006), mas o isolamento<br />

e sofrimento do povo de Gaza já se provaram mais benéficos do<br />

que prejudiciais ao Hamas vis-à-vis a Fatah entre os gazanos.<br />

Fatah + Hamas?<br />

Por essa razão, a terceira opção - ressuscitar o governo de união<br />

nacional e tratar também com o Hamas - pode ser necessária. Claramente<br />

não é uma solução ideal para Israel. Na verdade é a que o governo<br />

israelense menos apoiaria. Mas é uma opção que alguns na Fatah<br />

(e no mundo árabe) ainda acreditam ser razoável. Seria uma idéia<br />

promissora se fosse alcançada após um significativo fortalecimento<br />

de Abu Mazen e/ou a emergência de uma liderança da Fatah unida e<br />

161


VII. Mundo<br />

forte. Caso contrário, iria simplesmente repetir a luta pelo poder que<br />

acabamos de presenciar em Gaza.<br />

Assumindo que ambas as opções deverão no final dar lugar a novas<br />

eleições na Autoridade Palestina, a escolha deveria ser a que pudesse<br />

proporcionar uma melhor chance de enfraquecer o Hamas.<br />

Iniciativa árabe de paz<br />

A última opção traz a questão de um domínio dividido dentro dos<br />

territórios ocupados e está baseada na hipótese de que o fim da ocupação<br />

poderia mudar todo o cenário político.<br />

Os palestinos, na forma da OLP, são parte da Liga Árabe (listados<br />

como o “Estado da Palestina”) onde são representados por Abu Mazen.<br />

Caso Israel concordasse em entabular negociações com base na<br />

Iniciativa Árabe de Paz, e se fosse alcançado um acordo de paz, poderíamos<br />

esperar uma série de coisas.<br />

Primeiro, o Hamas teria dificuldade em ganhar uma maioria contra<br />

um acordo que pusesse um fim à ocupação com base na solução de<br />

Dois Estados.<br />

Segundo, uma força internacional de manutenção de paz nas fronteiras<br />

seria muito mais viável no contexto de um acordo de paz.<br />

Terceiro, seria muito difícil - se não impossível - que uma minoria<br />

que rejeita a proposta persistisse significativamente enquanto os países<br />

de todo o mundo árabe estivessem apoiando a normalização, os<br />

arranjos de segurança e a paz com Israel.<br />

É evidente que esta opção já poderia ter sido escolhida bem antes,<br />

e sem a vitória do Hamas em Gaza.<br />

162<br />

Mas ela ainda existe.<br />

*<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


VIII. Vida Cultural


Autores<br />

Vladimir Carvalho<br />

Jornalista e cineasta, primeiro presidente da <strong>Fundação</strong> <strong>Astrojildo</strong> <strong>Pereira</strong>.


Folhetim da viagem (xilográfica) ao<br />

Reino do Primo Xico<br />

Vladimir Carvalho<br />

Contemplo uma gravura e – estranhamente – é como se ouvisse<br />

vozes: e num passe de mágica sou obduzido pela força de seu<br />

corte, de sua textura e de sua cor. A imaginação entra pelos<br />

sulcos da madeira adentro e, de fato, o que escuto, meio ao longe, são<br />

vozes ancestrais, ecos de mitos adormecidos, numa remota cantilena,<br />

e o que se segue cada vez mais audível é todo um rumor e burburinho<br />

de uma imensa feira nordestina, o grande palco semanal das gentes<br />

sertanejas de antigamente. Uma feira (de Itabaiana, de Campina<br />

Grande, de Caruaru ou do Juazeiro do Padre Cícero?) que não existe<br />

mais, a não ser na lembrança de meu mundo infantil e que era quase<br />

como um circo repleto de atrações, embalado numa música forrozeira<br />

de sanfona, zabumba e ganzá, no ritmo do triângulo.<br />

Esse é um cenário a céu aberto, fervilhante de vida, encharcado de<br />

pregões, cantorias de cegos, de repentistas e camelôs, passando pelas<br />

barracas onde se vendiam os folhetos de feira (o cordel de hoje), com o<br />

chão coberto de bonecos de barro e de montes de mané gostosos feitos<br />

de pau; com as árvores enfeitadas de gaiolas de passarinhos. À noite,<br />

aqueles que pernoitassem por ali poderiam assistir e até participar<br />

de uma espécie de prolongamento do espetáculo da feira, em alguma<br />

ponta de rua: era a vez da brincadeira do cavalo marinho, do pastoril<br />

na zona de mulheres e do mamulengo também chamado de babau, e<br />

a coisa podia avançar até madrugada alta.<br />

165


VIII. Vida Cultural<br />

É justamente na visão das figuras por vezes fesceninas e debochadas<br />

desses folguedos que me detenho e volto á tona desse sonho<br />

remissivo, dessa viagem a um reino encantado que fiz ao embarcar na<br />

contemplação das xilogravuras de Xico Carvalho. E retomo nas mãos<br />

sua nova série, na qual as suas criaturas emergem do forte colorido<br />

do fundo, de amarelos quentes como labaredas de fogo, suavizando<br />

em cor de rosa somente vez por outra nas cenas mais “líricas”, e por<br />

essa via descubro de novo o profundo parentesco de sua arte com a<br />

imaginação popular que domina aqueles folguedos tão meus conhecidos.<br />

Tão conhecidos que sonho até hoje com “mateus”, “biricos” e<br />

“catirinas” do cavalo marinho, com o palhaço Bedegueba dos pastoris<br />

da rua do Carretel.<br />

E nesse lance está todo o gosto do povo pelo deboche e a irreverência,<br />

com seu tanto de picaresco como estão também a sua doçura e inocência.<br />

Aliás, em termos de picaresco, esse muitas vezes beira o grotesco nas<br />

pequenas e saborosas obscenidades de que o povo é capaz na sua verve<br />

criadora. Tudo isso perpassa essa galeria de tipos e de criaturas estranhas<br />

nessas cenas que Xico vai buscar com a maestria de sua goiva no<br />

fundo de suas tábuas de umburana e cedro nativos. Basta enumerar os<br />

títulos com que batizou algumas dessas criações para se sentir o espírito<br />

gaiato das feiras e das ruas. “O Mestre Língua”, “A Mulher Cobra”, “O<br />

Homem Cobra Chic”, “O Padre e a Moça”, entre outros.<br />

E por falar em “língua”, esse é o elemento que é “trabalhado” e visualizado<br />

intensamente nessa coletânea insólita da gravura brasileira.<br />

À primeira vista, ela – a língua – deixa de ser parte do órgão fonador<br />

e ultrapassa em muito aquilo que o vulgo chama de língua ferina,<br />

ferramenta do desaforo, e não do diálogo, e toma forma semelhante a<br />

um chicote ou flecha que parece servir mais a uma espécie de justa<br />

em que cavalheiros se engalfinham como cobras, gritando eloqüências<br />

escatológicas ou malcriações que o povo não quer calar.<br />

Pinta aqui então um clima de espetáculo do mamulengo/babau – e<br />

esse é o ponto máximo revelador das relações dessas xilos com a poética<br />

popular – em que surgem as movimentadas arengas e os disparates<br />

do negro Benedito e da Catirina, na pequena boca de cena e na<br />

cadência do som roufenho da rabeca. Mas pode também não ser nada<br />

disso, que o Xico é homem de boa paz: o que se vê talvez seja conversa<br />

branda e coloquial, algumas até muito persuasivas e amorosas, com a<br />

língua soltando beijos e se alongando até quase acariciar o interlocutor,<br />

como é o caso desses estranhos “Gêmeos” ou desse Padre e dessa<br />

Moça, da mesma natureza e talhe do que se vê nas capas de folhetos<br />

românticos (vide a história de Coco Verde e Melancia, por exemplo)<br />

vendidos até hoje por aí.<br />

166<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Folhetim da viagem (xilográfica) ao Reino do Primo Xico<br />

Enfim, essa remessa do Xico que agora sai da prensa é preciosa e,<br />

para nós, sinaliza o auge de um artista que no seu oficio vem produzindo<br />

uma arte que se pretende ingênua – no conceito conhecido – de corte<br />

propositalmente primitivo, bebido na fonte pura do inconsciente coletivo<br />

e sugere pelo estranhamento de alguns temas (bichos, aves, peixes<br />

e serpentes dialogando com seres humanos) um tipo de “surrealismo”<br />

popular com tudo que essa expressão tenha de impróprio neste caso.<br />

Uma arte que não é indiferente ao encantamento com o mundo de sua<br />

infância trazido de novo à luz, mas como se o visse pela primeira vez,<br />

um pouco coincidente com a visão do homem da caverna.<br />

Agora, a bem da verdade, devo dizer que jamais fui apresentado a<br />

Xico Carvalho, misterioso e invisível personagem que vem maneiro e<br />

sutil espalhando seu rastro e seus fluidos pelo bairro de Jaguaribe,<br />

em João Pessoa, sem jamais ter sido visto, e que diz pertencer ao clã<br />

do velho Martim Caco, meu avô, dos Carvalho de Itabaiana. Isto é o<br />

que dizem afiançar Unhandeijara Lisboa, esse, sim, meu primo legítimo<br />

na linhagem, inclusive, de meu tio Floripes Carvalho, ourives e<br />

gravador de talhe doce em ouro, estabelecido na Barão do Triunfo com<br />

sua joalheria. Mas o primo Nandi, como é conhecido, sempre desconversa<br />

toda vez que o interpelo a esse respeito. “O Xico anda pelo meio<br />

do mundo”, diz dando de ombros e mudando de assunto. Manuel Clemente,<br />

que é seu discípulo e comparsa no ateliê do Clube da Gravura,<br />

não arreda o pé de seu proverbial mutismo (a última vez que se fez<br />

ouvir foi em sala de aula, assim mesmo por obrigação acadêmica), e<br />

da última vez que o intimei a esclarecer o caso, riu um risinho maroto,<br />

engasgou-se, correu ao banheiro e não mais voltou. Saiu por alguma<br />

porta falsa, talvez a mesma que oculta as fugas convenientes do Xico.<br />

Martinho Campos, um dos mentores do Clube e iminência parda do<br />

fabuloso movimento da xilogravura na Paraíba, abordado, me fez uma<br />

verdadeira conferência, na verdade longa conversa “de cerca Lourenço”<br />

para me despistar. Resultado é que me deixou na mesma, nada<br />

sabendo do paradeiro do ensombrecido xilógrafo...<br />

De minha parte, resta-me o consolo de uma conclusão, talvez<br />

apressada, mas conseqüência natural e até certo ponto inconsciente<br />

de uma comparação que, aos poucos, venho fazendo entre a lavra visível<br />

do Xico com a do primo Nandi. Uma, perdoem-me, é quase um decalque<br />

da outra. Principalmente nos últimos anos em que na medida<br />

que Xico se torna mais “presente” Nandi vem se esquivando cada vez<br />

mais de produzir e se retira de cena. É uma coincidência muito grande<br />

e ninguém me convence de que esse Xico Carvalho não é uma artimanha,<br />

uma “ficção” do neto de Floriano Rodrigues Carvalho. “Uma<br />

bolação Unhandeijara”, como ele próprio dizia antigamente.<br />

167


IX. Documento –<br />

Ano Caio Prado Jr.


Autores<br />

Caio Prado Jr (1907-1990)<br />

Historiador, filósofo e geógrafo que formou, ao lado de Sérgio Buarque de Hollanda e<br />

Gilberto Freyre, a corrente renovadora dos estudos sobre a sociedade brasileira a partir<br />

dos anos 1930. Autor de 16 livros, fundou a editora Brasiliense em 1943, mesmo ano<br />

em que publicou sua obra capital, Formação do Brasil Contemporâneo. Em 1931,<br />

entra no Partido Comunista, e inicia seus estudos de Marx e de Engels. Em 1945, foi<br />

eleito Constituinte estadual pelo PCB. Teve seu mandato cassado em 1948. Em 1966 é<br />

agraciado com o Prêmio Juca Pato. Recebeu em 1968 o título de professor livre-docente na<br />

USP, sendo cassado no mesmo ano pelo governo militar.


A revolução agrária não<br />

camponesa no Brasil 1<br />

Caio Prado Jr.<br />

A<br />

caracterização do sistema econômico dominante na agropecuária<br />

brasileira, conforme se faça ou não no sentido de sua<br />

assimilação ao agrarismo feudal, leva respectivamente num e<br />

noutro caso a conclusões de ordem prática essencialmente distintas<br />

e da maior significação. Não é por simples luxo teórico e preocupação<br />

acadêmica que estamos aqui insistindo nesse ponto e procurando<br />

mostrar o desacerto que consiste em interpretar a nossa economia<br />

agrária e as relações de produção e trabalho nela presentes como<br />

derivações ou remanescentes de obsoletas e anacrônicas formas e<br />

1 O título acima foi usado em Raimundo Santos. Política e agrarismo sindical no PCB.<br />

Brasília: <strong>Fundação</strong> <strong>Astrojildo</strong> <strong>Pereira</strong>, 2002. Reproduzimos aqui um trecho de A revolução<br />

brasileira, no qual Caio Prado Jr. apresenta o sentido político-prático do seu<br />

agrarismo, marco na consolidação da práxis agrária dos comunistas brasileiros, empenhados<br />

desde meados dos anos 1950 na construção da rede sindical nacional que<br />

se afirmaria na Contag, fundada em 1963. Publicado originariamente em 1966, o livro<br />

A revolução brasileira foi lido como uma desconstrução das teses da feudalidade e<br />

do antiimperialismo. Caio Prado Jr. radicava sua reflexão na debilidade do nosso capitalismo<br />

pouco incorporador dos grandes contingentes populares. A fórmula caiopradiana<br />

de uma revolução nacional e agrária sugeria um processo ao modo americano<br />

no sentido de um Oeste-mercado interno (mundo rural) complementar de um Lesteindustrial.<br />

Caio Prado Jr. pensava em um renovamento do mundo rural assentado na<br />

proteção de direitos na “generalidade do país”. A lei trabalhista – à época, o Estatuto<br />

do Trabalhador Rural – viria universalizar processos sociais por meio dos sindicatos à<br />

frente de reivindicações salariais e do emprego nos grandes setores da agropecuária,<br />

onde estava o núcleo estratégico capaz de difundir impulsos transformadores sustentáveis:<br />

os empregados agrícolas. (RAIMUNDO SANTOS)<br />

171


IX. Documento – Ano Caio Prado Jr.<br />

estruturas feudais. Uma interpretação como essa leva naturalmente<br />

à conclusão – e é realmente o que se tem verificado no caso da defeituosa<br />

teoria da revolução brasileira até hoje consagrada – que a<br />

luta dos trabalhadores rurais brasileiros teria essencialmente por<br />

objetivo (como seria o caso se se tratasse de fato de camponeses) a<br />

livre ocupação e utilização da terra que hoje trabalham a título de<br />

empregados da grande exploração. E se dirigiria assim no sentido da<br />

reivindicação dessa terra. [...]<br />

Ora, isso vai frontalmente de encontro aos fatos mais evidentes da<br />

realidade brasileira; e mostra como essa errônea interpretação teórica<br />

pode conduzir, como de fato tem conduzido no Brasil, à desorientação<br />

na prática. As aspirações e reivindicações essenciais da grande<br />

e principal parte da massa trabalhadora rural do país não têm aquele<br />

sentido apontado. Refiro-me naturalmente à parcela maior e mais<br />

expressiva dos trabalhadores rurais brasileiros que se concentram<br />

nas grandes explorações agrárias do país – da cana-de-açúcar, do<br />

café, do algodão, do cacau e outras da mesma categoria. Não é pela<br />

ocupação e utilização individual e parcelária dessa terra onde hoje<br />

trabalham coletivamente entrosados no sistema da grande exploração,<br />

que aqueles trabalhadores procuram solucionar seus problemas<br />

de vida e superar as miseráveis condições de existência que são as<br />

suas. Nos maiores e principais setores da agropecuária brasileira,<br />

naqueles que constituem em conjunto o cerne da economia agrária<br />

do país e onde se concentra a maior parcela da população rural, os<br />

trabalhadores, como empregados que são da grande exploração, simples<br />

vendedores de força de trabalho, portanto, e não “camponeses”,<br />

no sentido próprio, aquilo pelo que aspiram e o que reivindicam, o<br />

sentido principal de sua luta é a obtenção de melhores condições de<br />

trabalho e emprego. [...]<br />

A reivindicação da terra e utilização dela pelo próprio trabalhador,<br />

manifestando-se de maneira apreciável e não apenas através<br />

de vagas aspirações desacompanhadas de qualquer ação e pressão<br />

efetivas, isso se circunscreve no Brasil praticamente a três setores<br />

apenas, todos eles de importância relativa e secundária. E o que é<br />

mais, assumindo em dois deles pelo menos (para não dizer todos<br />

três) formas e aspectos particulares e específicos que nada têm a ver<br />

nem podem ter com sistemas agrários feudais ou derivados, e eventuais<br />

restos e remanescentes de tais sistemas. 2 [...]<br />

2 O autor se refere a: 1) áreas intermediárias entre a zona da mata e o agreste, onde<br />

a propriedade se acha relativamente subdividida e se desenrolavam as atividades<br />

das Ligas Camponesas; 2) áreas de ocupação de terras virgens em zonas pioneiras,<br />

particularmente Oeste paranaense e Centro-Norte de Goiás; trata-se de regiões de<br />

172<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


A revolução agrária não camponesa no Brasil<br />

Esgotam-se, com essas situações de conflitos sociais no campo<br />

brasileiro que acabamos de enumerar, praticamente todos os casos<br />

expressivos em que se propõe a questão da terra, e onde a reivindicação<br />

dessa terra pelos trabalhadores e produtores se apresenta<br />

com potencialidade revolucionária. Mas potencialidade essa que<br />

nada tem a ver, como notamos, com a “eliminação de restos feudais”,<br />

ou que diga respeito a uma presumida revolução agrária antifeudal<br />

em germinação no processo histórico-social da atualidade brasileira.<br />

A reivindicação pela terra se liga entre nós, quando ocorre, a circunstâncias<br />

muito particulares e específicas de lugar e momento. E tem<br />

sua solução, por isso, em reformas ou transformações também de<br />

natureza muito particular e específica. Não se pode, portanto, legitimamente<br />

generalizá-la para o conjunto da economia agrária brasileira,<br />

como expressão de contradição essencial e básica. E numa interpretação<br />

dessas fundamentar toda a teoria e prática da revolução<br />

brasileira no campo. Isso é tanto menos legítimo que a reivindicação<br />

pela terra está longe, muito longe de ter a expressão quantitativa e,<br />

sobretudo, qualitativa de outras pressões e tensões no campo brasileiro<br />

que dizem respeito a condições de trabalho e emprego na grande<br />

exploração rural — fazenda, engenho, usina, estância... É aí que se<br />

situa o ponto nevrálgico das contradições no campo brasileiro. Isso<br />

já vem de longa data, desde sempre, pode-se dizer. [...]<br />

Numa revolução democrático-burguesa e antifeudal, o centro nevrálgico<br />

do impulso revolucionário se encontra na questão da posse<br />

da terra reivindicada por camponeses submetidos a jugo feudal ou<br />

semifeudal. É o que ensina o figurino europeu, e da Rússia czarista<br />

em particular. Assim, portanto, havia de ser no Brasil também. E<br />

essa conclusão apriorística faz subestimar, se não muitas vezes até<br />

mesmo oblitera por completo o que realmente se apresenta na realidade<br />

do campo brasileiro. A saber, a profundidade e extensão da luta<br />

reinvidicatória da massa trabalhadora rural por melhores condições<br />

de trabalho e emprego.<br />

Os documentos oficiais do Partido Comunista do Brasil são a esse<br />

respeito, entre outros, altamente ilustrativos. Veja-se, por exemplo, o<br />

Programa de 1954, particularmente importante porque é o primeiro,<br />

na fase mais recente do pós-guerra, aprovado em Congresso. [...] As<br />

relações de emprego na agropecuária brasileira acham-se colocadas<br />

nesse Programa em segundo e apagado plano. E trata-se aí de uma<br />

questão única: a do salário. Os autores do Programa achavam-se,<br />

conflitos entre “posseiros” e “grileiros”; e 3) o “alto interior do país” (os sertões do<br />

Nordeste, da Bahia e de Minas Gerais, onde o avanço da pecuária gerava conflitos<br />

com os pequenos agricultores).<br />

173


IX. Documento – Ano Caio Prado Jr.<br />

aliás, tão alheados da realidade brasileira que inscrevem no Ponto 40<br />

uma reivindicação já na época, e havia muito, incorporada à legislação<br />

brasileira que, na Consolidação das Leis do Trabalho de 1943<br />

(onze anos antes, portanto), assegurava ao trabalhador rural o salário<br />

mínimo. A questão, pois, não estava mais em legalizar o mínimo<br />

salarial, e sim torná-lo efetivo. [...]<br />

Que dizer então de outras questões relativas à extensão da legislação<br />

social-trabalhista ao campo? Também disso não se cogita<br />

no Congresso e no Programa de 1954. Como se sabe, o trabalhador<br />

rural foi excluído da incidência da legislação social-trabalhista até o<br />

advento do Estatuto do Trabalhador Rural (Lei nº 4.214 de 2 de março<br />

de 1963), salvo no caso de uns poucos dispositivos que, devido<br />

em parte a essa mesma excepcionalidade, permaneceram letra morta.<br />

Era assim o caso, evidentemente, de lhes dar vida. E sobretudo<br />

de ampliar a extensão da legislação trabalhista em geral ao campo.<br />

Abriam-se aí, portanto, largas perspectivas de ação. [...] Os fatos se<br />

incumbiriam de comprovar aquela importância e fecundidade das<br />

reivindicações trabalhistas no campo brasileiro com as ocorrências<br />

verificadas, particularmente no Nordeste, em 1963, e até o golpe de<br />

abril do ano seguinte, quando na base da luta pela aplicação do Estatuto<br />

do Trabalhador Rural se desencadeou uma das maiores batalhas,<br />

se não a maior delas, jamais verificada no campo brasileiro.<br />

Sobreleva-a unicamente a campanha abolicionista. [...]<br />

Abre-se, nessa insistência no erro, uma pequena exceção, infelizmente<br />

sem maiores conseqüências, como logo veremos. Trata-se da<br />

Resolução Política aprovada em Convenção Nacional do PCB realizada<br />

em 1960. Embora mantendo a tradicional e falseada posição teórica<br />

do Partido acerca da natureza da revolução brasileira, a Resolução<br />

Política de 1960 introduz uma réstia de bom senso no capítulo das<br />

normas de ação prática. É assim que, na primeira parte de seu item<br />

25, é estabelecido o seguinte: “A fim de impulsionar a organização<br />

das massas do campo é necessário dar atenção principal aos assalariados<br />

e semi-assalariados agrícolas. Sua organização em sindicatos<br />

deve constituir a base para a mobilização das massas camponesas”.<br />

Note-se bem que a Resolução de 1960 aconselha nesse texto “atenção<br />

principal” aos assalariados e semi-assalariados, e considera como<br />

base e principal fator de mobilização das massas do campo a organização<br />

e, pois, a luta daqueles trabalhadores. Isso constitui reconhecimento<br />

implícito, mas sem dúvida bem caracterizado, de que a revolução<br />

no campo brasileiro não tem sua mola mestra em nenhuma<br />

luta antifeudal e não se dirige contra nenhum resto semifeudal.<br />

174<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


A revolução agrária não camponesa no Brasil<br />

Talvez por isso mesmo a tese inscrita no citado texto do item 25<br />

da Resolução não tenha passado de um cochilo dos seus redatores.<br />

Não se encaixa coerentemente no conjunto da Resolução e está em<br />

completo desacordo com o restante de seu texto; e naturalmente,<br />

em particular, com as suas premissas teóricas. [...] Tanto que logo<br />

em continuação imediata a ele, sempre no mesmo item, e sem ao<br />

menos abrir um novo parágrafo, passa a Resolução, em flagrante<br />

incoerência e inconsistência, a assunto distinto, não cogitando mais<br />

de questões ligadas à relação de emprego que constitui o tema do<br />

trecho anterior. Esse texto é o seguinte: “A organização dos camponeses<br />

deve partir das reivindicações mais imediatas e viáveis como<br />

a baixa das taxas de arrendamento, a prorrogação dos contratos, a<br />

garantia contra os despejos, a permanência dos posseiros na terra e<br />

a legitimação das posses, etc.” De uma frase para outra, esquecemse<br />

por completo os autores da Resolução de 1960 que, segundo eles<br />

próprios acabavam de declarar, “a base da mobilização das massas<br />

camponesas se deveria constituir da organização dos assalariados<br />

e semi-assalariados”, cujas reivindicações, é claro, nada têm a ver<br />

com aquelas inscritas na segunda passagem citada. [...] Interessante<br />

observar que, para enquadrar as contradições e conflitos derivados<br />

das relações de emprego na teoria da reforma agrária antifeudal, os<br />

defensores dessa teoria, não podendo mais ignorá-la, como antes<br />

faziam, e sendo obrigados pela prática a reconhecer sua importância<br />

decisiva, pois é na base dessas contradições que se processa a parte<br />

substancial e mais significativa das lutas no campo brasileiro, os teóricos<br />

do antifeudalismo introduziram a esdrúxula concepção de que<br />

as reivindicações dos trabalhadores naquela luta (a saber, pela melhoria<br />

das condições de trabalho e emprego) seriam “reivindicações<br />

imediatas”, que precederiam e preparariam a reforma “radical” destinada<br />

a superar os restos semifeudais presentes na economia agrária<br />

brasileira. “Reforma radical” essa que consistiria fundamentalmente<br />

na eliminação do latifúndio “feudal”. [...]<br />

A ação revolucionária se torna vacilante e insegura, não se fixando<br />

em objetivos precisos e bem definidos. Daí a ausência de suficiente<br />

acentuação e estímulo daquelas forças e situações em que se localizam<br />

as contradições essenciais e fundamentais presentes no campo<br />

brasileiro, e onde, portanto, se encontram os pontos nevrálgicos do<br />

processo revolucionário em curso. A saber, a luta reivindicatória dos<br />

trabalhadores rurais por melhores condições de trabalho e emprego.<br />

Embora se reconheça, diante da evidência dos fatos, a necessidade<br />

dessa luta, não se apanha o seu alcance e significação profundos,<br />

porque isso é embaraçado por concepções teóricas em que ela não se<br />

ajusta convenientemente e tem de ser incluída através de artifícios e<br />

175


IX. Documento – Ano Caio Prado Jr.<br />

ajeitamentos mais ou menos arbitrários. Ou então se deixa simplesmente<br />

ao acaso das improvisações.<br />

De uma ou de outra forma, perde-se o impulso e a força necessários<br />

para uma ação fecunda e uma mobilização eficiente da massa<br />

trabalhadora rural. E isso precisamente naquele terreno de maior<br />

conteúdo e potencialidade revolucionários. Temos a prova cabal disso<br />

nestes vinte e tantos anos decorridos desde quando a Consolidação<br />

da Legislação Trabalhista de 1943 assegurou alguns direitos e<br />

vantagens aos trabalhadores, entre outros o salário mínimo, sem que<br />

nada se fizesse, a não ser muito recentemente, e assim mesmo, salvo<br />

em Pernambuco, muito pouco para tornar efetivas aquelas disposições<br />

legais. Nenhum passo foi dado, nenhuma medida foi tomada<br />

para esclarecer a massa trabalhadora rural de seus direitos, para<br />

lhe abrir perspectivas, estimulá-la em sua luta. E essa inércia não<br />

se explica unicamente nem principalmente pelas dificuldades, sem<br />

dúvida consideráveis, mas longe de insuperáveis, de acesso ao campo,<br />

nem tampouco, também, pela subestimação da questão agrária,<br />

que também existiu. A razão principal por que não se mobilizou ou<br />

pelo menos tentou seriamente mobilizar a massa trabalhadora rural<br />

na base de reivindicações por melhores condições de trabalho e emprego,<br />

se deveu ao fato de essas reivindicações não se considerarem<br />

essenciais, nem mesmo suficientemente importantes no processo revolucionário<br />

do campo brasileiro, que deveria obedecer, segundo a<br />

teoria oficial consagrada e indiscutivelmente aceita, ao esquema da<br />

revolução antifeudal: supressão das relações semifeudais de produção,<br />

em particular e diretamente pela destruição do latifúndio. Num<br />

esquema como esse, a luta por reivindicações imediatas, que dizem<br />

respeito a relações de emprego, essa luta tem papel quando muito<br />

secundário. Chegou-se mesmo, muitas vezes, a tachar seus propugnadores<br />

de “reformistas” (no sentido pejorativo e anti-revolucionário<br />

que esse termo tem no vocabulário marxista), pois a insistência deles<br />

numa reivindicação considerada de expressão revolucionária mínima,<br />

se não inexistente, podia obscurecer e, pois, embaraçar a proposição<br />

e o progresso da verdadeira luta do “camponês”, a saber, pela<br />

terra e contra a opressão “feudal”.<br />

176<br />

*<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


X. Memória


Autores<br />

Ivan Alves Filho<br />

Historiador, autor, dentre outros, do clássico Memorial de Palmares.<br />

Gilvan Cavalcanti de Melo<br />

Cientista político, ensaísta e membro do conselho editorial da Revista Política<br />

Democrática.


João Saldanha<br />

Ivan Alves Filho<br />

Se vivo fosse, João Saldanha teria completado, no dia 3 de julho,<br />

90 anos de idade. Nascido em Alegrete, no Rio Grande do Sul,<br />

em 1917 – ano da Revolução Russa – e morto em Roma, em<br />

1990, em plena Copa do Mundo, foi um homem combativo politicamente<br />

e respeitado em sua condição de jornalista e escritor.<br />

Aderiu ao Partido Comunista Brasileiro ainda no Estado Novo, no<br />

início dos anos 40, muito provavelmente, sendo um dos responsáveis,<br />

na clandestinidade, pela Juventude Comunista. Isso, no Rio de Janeiro,<br />

então capital da República e cidade para a qual se mudou ainda<br />

na adolescência. Após a anistia política e a redemocratização do país,<br />

em 1945, no fim da ditadura Vargas, Saldanha assumiu a secretaria<br />

geral da Juventude Comunista, trabalhando em estreita ligação com<br />

Apolônio de Carvalho, Marcos Jaimovitch, Zuleika Alambert e outras<br />

lideranças do movimento estudantil e juvenil do Partido. Desde essa<br />

fase, ele já cuidava de arregimentar jovens para o PCB com base na<br />

organização de grupos esportivos, sobretudo equipes de futebol. Para<br />

Saldanha, o esporte possuía uma carga agregadora tremenda.<br />

Conforme testemunho do líder camponês comunista Hilário Pinho<br />

à série documental Brasileiros e Militantes, uma iniciativa da <strong>Fundação</strong><br />

<strong>Astrojildo</strong> <strong>Pereira</strong>, João Saldanha participou das lutas de autodefesa<br />

camponesa de Porecatu, no norte do Paraná, entre o final da década<br />

de 40 e o início da de 50. Nessa região, por 22 meses ininterruptos,<br />

os camponeses em armas, com o auxílio do PCB, forçaram as autoridades<br />

governamentais do Paraná a negociar a implementação de uma<br />

ampla política de distribuição de terras, a qual resultou na primeira –<br />

179


X. Memória<br />

e, até aqui, única – luta vitoriosa pela reforma agrária no Brasil. João<br />

Saldanha dirigia então, com outros companheiros, o Comitê Regional<br />

do Partido no estado. Dessa luta vitoriosa também participaram líderes<br />

respeitados do PCB, como Agliberto Vieira de Azevedo e Gregório<br />

Bezerra, ambos oriundos do levante militar-aliancista de 1935, mais<br />

exatamente no Rio de Janeiro e no Recife.<br />

Com o recrudescimento da repressão aos comunistas no governo<br />

Dutra (1946-1950), que sucedera àquele de Getúlio Vargas, João Saldanha<br />

chegou a ser baleado nos pulmões, no Rio de Janeiro. Conseguiu<br />

fugir de forma espetacular de um hospital carioca, pulando pela<br />

janela do quarto em que se encontrava convalescendo, antes que a<br />

polícia política o prendesse. Isso, apenas 24 horas após a cirurgia para<br />

a extração da bala...<br />

Eleito em seguida para o Comitê Central do PCB, João Saldanha pediu<br />

afastamento do cargo no IV Congresso, realizado clandestinamente<br />

em 1954, por divergir da forma como determinados dirigentes estavam<br />

conduzindo a política partidária. Ao que tudo indica, sua divergência<br />

tinha que ver com o mandonismo já presente no Partido nessa ocasião.<br />

Eram os duros tempos dos desvios stalinistas, diga-se de passagem.<br />

No entanto, Saldanha não deixaria de militar no Partido. Apenas<br />

passou a dividir mais seu tempo entre o PCB e o futebol, outra grande<br />

paixão sua. Jogador e depois técnico do Botafogo, no ano de 1957,<br />

João dedicou-se ainda, com extraordinário afinco e sucesso, ao jornalismo<br />

esportivo, como comentarista de rádio e cronista do Jornal<br />

do Brasil, então o órgão de imprensa de maior prestígio no país. Seus<br />

comentários, que começavam invariavelmente pelo bordão “Meus amigos...”<br />

marcaram época no rádio brasileiro. Pode-se dizer que poucos<br />

jornalistas estiveram em tão profunda sintonia com a alma popular<br />

como Saldanha. Aquela era uma época em que o Brasil iniciava uma<br />

espetacular arrancada para a conquista do seu primeiro título mundial<br />

de futebol, o que se daria na Suécia, no ano seguinte, em 1958. Os<br />

bons tempos de Pelé, Garrincha, Didi, Gilmar e Nilton Santos.<br />

E, nesse mesmo ano de 1958, o PCB também dava início a uma<br />

política transformadora, materializada na Declaração de Março, que<br />

propunha a superação do capitalismo no terreno da própria democracia<br />

e não mais pela via armada, conforme ditava o Manifesto de<br />

Agosto de 1950, corroborado ainda pelas propostas do IV Congresso<br />

de 1954. João Saldanha se alinhava entre aqueles que aceitaram as<br />

teses democráticas da Declaração de Março, apesar de não ter mais<br />

responsabilidades na direção partidária.<br />

<strong>18</strong>0<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


João Saldanha<br />

Durante os governos JK (1956-1960) e Jango (1961-1964), sobretudo<br />

neste último, bem mais conturbado, Saldanha atuou sempre no<br />

sentido de aplicar a linha política de massas do PCB. Em 1964, opôsse<br />

resolutamente ao golpe militar, integrando-se à ampla luta de resistência<br />

que o Partido, desde a clandestinidade, começava a coordenar<br />

com o propósito de isolar o novo regime. E, paralelamente, prosseguia<br />

com seu trabalho profissional, comentando jogos, escrevendo crônicas<br />

e livros. Temperamento altivo, por vezes até mesmo “estourado”, como<br />

se diz, Saldanha era conhecido pela população como João sem Medo.<br />

Em 1969, em plena vigência do Ato Institucional n.5, João Saldanha<br />

passou a dirigir a Seleção Brasileira, da qual se afastaria no<br />

ano seguinte, por imposição da ditadura militar: ele teria declarado<br />

na ocasião “que o presidente (o ditador Médici, no caso) escala o seu<br />

ministério; eu escalo a minha equipe...” Foi o suficiente para seu afastamento<br />

da Seleção. Mas o Brasil ganhou a Copa de 70 com as chamadas<br />

“feras do Saldanha”. Isso, ninguém retiraria dele.<br />

Durante a ditadura militar, mesmo em seus períodos mais terríveis,<br />

João Saldanha sempre colaborou com o PCB, inclusive financeiramente,<br />

ajudando vários companheiros perseguidos, em dificuldades.<br />

Melhor: doou ao Partido boa parte de uma herança que recebera<br />

dos pais. Seu desprendimento assombrava os amigos mais próximos,<br />

que conheciam sua generosidade.<br />

Com a volta de Luiz Carlos Prestes do exílio, em 1979, Saldanha<br />

cedeu seu apartamento ao líder comunista, secretário-geral do PCB<br />

desde a Conferência da Mantiqueira, em 1943. Apesar de sua ligação<br />

pessoal com Prestes, João Saldanha nunca se afastou do Partido, concorrendo,<br />

inclusive, à prefeitura do Rio de Janeiro, em 1985, ao lado<br />

de outra figura muito respeitada da resistência democrática, o advogado<br />

Marcello Cerqueira.<br />

João Saldanha era um extraordinário contador de histórias. Costumava<br />

dizer que havia no céu três bilhões de estrelas e que se alguém<br />

porventura duvidasse, que contasse, pois ele o fizera... Homem culto<br />

– falava diversos idiomas, inclusive –, Saldanha era, acima de tudo,<br />

amigo dos seus amigos. Foram seus companheiros de jornada Oscar<br />

Niemeyer e Nelson Werneck Sodré, entre outras personalidades da<br />

vida brasileira. Querido por todos, um verdadeiro mito nacional, João<br />

Saldanha foi o que se poderia chamar de um cidadão exemplar.<br />

*<br />

<strong>18</strong>1


X. Memória<br />

<strong>18</strong>2<br />

Gramsci, 70 anos depois 1<br />

Gilvan Cavalcanti de Melo 2<br />

Seremos marxistas?<br />

Existirão marxistas?<br />

Tolice, só tu és imortal.<br />

(Gramsci)<br />

Em 27 de abril de 1937, morria aos 46 anos, Antonio Gramsci,<br />

o mais importante, talvez o maior pensador da tradição<br />

marxista-ocidental do século passado. A morte o derrotou no<br />

instante em que conseguira a liberdade: dois dias antes recebera o<br />

documento com a declaração de que não havia mais qualquer medida<br />

de segurança em relação a ele, assinado pelo Juiz do Tribunal<br />

Especial de Roma. Foi preso por ordem de Mussolini, em 8 de novembro<br />

de 1926. No processo farsa, montado pelo Estado Fascista,<br />

o acusador pediu aos juizes sua condenação e diante de Gramsci,<br />

sentenciou: ‘é preciso impedir este cérebro de funcionar’. Condenaram-no<br />

é verdade mas, não conseguiram impedir que, de dentro da<br />

prisão, fosse escrita uma obra monumental.<br />

Encarcerado fez com que sua inteligência penetrasse na densidade<br />

sombria da realidade. Recusou a vaidade demagógica de uns e<br />

o dogmatismo degenerado de outros. Não pensou em formular uma<br />

nova e original concepção da práxis. Só mais tarde manifestou a<br />

consciência do valor de sua produção intelectual. Ousou, de dentro<br />

do cárcere, na solidão e solitário politicamente, desafiar a ignorância<br />

e as banalidades stalinistas. Foi, também, por muito tempo negligenciado<br />

e desconsiderado, inclusive, por muitos companheiros os<br />

quais, deveriam tê-lo valorizado e amado mais intensamente. Em<br />

primeiro lugar se comovido por aquele homem frágil, sofredor e perseguido.<br />

Em segundo, admiração por sua coragem e combatividade.<br />

Em terceiro, por seu pensamento denso, profundo. Finalmente, por<br />

seus ensinamentos e visão inovadora sobre a filosofia de Marx.<br />

1 Gramsci se referia a Marx. Citado no artigo “A reforma Gramsciana da Política de<br />

Valentino Gerratana”, revista Presença n. 17 – nov.1991/mar. 1992, Rio de Janeiro.<br />

2 Membro efetivo dos Diretórios Nacional e Regional/RJ do PPS e do Conselho Editorial<br />

da revista Política Democrática.<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Gramsci, 70 anos depois<br />

Nada mais justo ao se completar 70 anos de sua morte recordar algumas<br />

contribuições daquele pensamento inovador na tradição de Marx.<br />

Há uma controvérsia sobre o porquê da recusa de Gramsci em<br />

usar o termo materialismo ou marxismo. Parte de estudiosos lhe atribuem<br />

o fato como uma maneira de ultrapassar a rigidez da censura.<br />

Entretanto, é preciso ressaltar que aqueles termos estavam relacionados<br />

a uma leitura economicista, dogmática e ortodoxa de Marx.<br />

O símbolo mais conhecido era o Manual Ensaio Popular de Nicolau<br />

Bukarin. Em defesa do novo conceito foi buscar o exemplo de Marx<br />

no prefácio de O Capital. Ali estava explicitado ‘dialética racional’ e<br />

‘dialética mística’ em vez de dialética materialista e dialética idealista.<br />

O próprio Marx se recusava a se identificar com o materialismo<br />

vulgar.<br />

Há outra convicção: o uso do termo filosofia da praxis foi consciente<br />

no sentido da revalorização da atividade cultural e da dimensão<br />

ético-política. Ao mesmo tempo em que travava uma batalha contra<br />

os dogmáticos, não deixou de considerar, também, que a ‘filosofia da<br />

praxis’ deveria reconquistar a força criadora da qual se apoderara<br />

o pensamento moderno, preconceituoso e desfavorável a priori, em<br />

relação a Marx: Bérgson, Sorel, Croce, Weber, Veblen, Freud, Wiliam<br />

James e através de Spengler, também, Nietzsche.<br />

Seria interessante relacionar a crítica que ele fez às duas correntes<br />

filosóficas existentes: uma chamada ortodoxa e outra eclética. A<br />

primeira tendência era representada por Plekhanov, cujo ensaio mais<br />

conhecido era Os problemas fundamentais do marxismo. A obra não<br />

foi poupada por Gramsci, chamado-a de materialismo vulgar e típica<br />

do método positivista. A segunda queria ligar a “filosofia da práxis”<br />

ao kantismo ou outras correntes não positivistas e não materialistas,<br />

representada por Otto Bauer o qual chegou a afirmar que o marxismo<br />

poderia ser fundamentado e integrado por qualquer filosofia. Daí<br />

a sua preocupação em colocar em circulação o pensamento de outro<br />

italiano: Antonio Labriola. Era o contraponto ao grupo intelectual<br />

alemão que exercia uma forte influência em determinada leitura de<br />

Marx, na Rússia. Por isso, Gramsci valorizava a idéia de Labriola de<br />

que a filosofia da práxis era independente de qualquer outra filosofia,<br />

sendo auto-suficiente.<br />

Qual o núcleo central do pensamento gramsciano? A palavra chave<br />

era o homem como bloco histórico, categoria que ele adquiriu de<br />

Sorel e deu-lhe outra dimensão. Discutiu o tema e se contrapôs à<br />

teoria da dualidade, inclusive, com George Lukács. E, assim se expressou:<br />

“Deve-se estudar a posição do professor Lukács em face da<br />

<strong>18</strong>3


X. Memória<br />

filosofia da práxis. Lukács, ao que parece, afirma que só se pode falar<br />

de dialética para a história dos homens, não para a natureza. Pode<br />

estar equivocado e pode ter razão. Se sua afirmação pressupõe um<br />

dualismo entre a natureza e o homem, ele está equivocado porque<br />

cai em uma concepção da natureza própria da religião e da filosofia<br />

greco-cristã, bem como do idealismo, que realmente não consegue<br />

unificar e relacionar o homem e natureza mais do que verbalmente.<br />

Mas se a história humana deve ser concebida também como história<br />

da natureza (através também da história da ciência), como então a<br />

dialética pode ser destacada da natureza? Lukács, talvez, por reação<br />

às teorias barrocas do Ensaio Popular, caiu no erro oposto, em uma<br />

forma de idealismo”. 3<br />

Reafirmou sua concepção unitária do homem, quando escreveu:<br />

“É possível dizer que cada um transforma a si mesmo, se modifica,<br />

na medida em que transforma e modifica todo o conjunto de relações<br />

do qual ele é o ponto central. Neste sentido o verdadeiro filósofo<br />

é – e não pode deixar de ser – nada mais do que o político, isto<br />

é, o homem ativo que modifica o ambiente, entendido por ambiente<br />

o conjunto das relações de que o indivíduo faz parte. Se a própria<br />

individualidade é o conjunto destas relações, conquistar uma personalidade<br />

significa adquirir consciência destas relações, modificar<br />

a própria personalidade significa modificar o conjunto destas<br />

relações”. 4 Ai, também, está presente uma leitura antipragmática,<br />

uma reelaboração inovadora da teoria do conhecimento expressa<br />

por Marx na tese onze sobre Feuerbach: “Os filósofos de limitaram<br />

a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo”. 5 Isto é,<br />

o conceito unitário: conhecer a realidade e transformá-la.<br />

O bloco histórico está presente na relação entre intelectuais e<br />

não intelectuais, através dos conceitos senso-comum/bom senso.<br />

Gramsci evidenciou que todos homens são filósofos, de forma inconsciente<br />

e definiu os limites e as características dessa peculiaridade.<br />

Esta singularidade está contida, em primeiro lugar, na própria<br />

linguagem, isto é, um conjunto de conceitos com conteúdos,<br />

ou seja, em qualquer simples manifestação intelectual fica explicita<br />

uma concepção de mundo. Em segundo lugar, a religião popular,<br />

com todo o sistema de crenças, superstições, etc. E, encontrou a<br />

chave para unificar, criticamente, esse conjunto de filosofia. Resol-<br />

3 Gramsci, Antonio - Concepção Dialética da História , pág. 173 , 3ª edição 1978 -<br />

Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.<br />

4 Idem, pág.40<br />

5 Marx, Karl - Tese sobre Feuerbach - Os Pensadores , pág. 53 , 2ª edição. 1978 - Abril<br />

Cultural<br />

<strong>18</strong>4<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Gramsci, 70 anos depois<br />

veu a questão de maneira muito original. Estabeleceu uma relação<br />

entre a passagem do saber ao compreender, ao sentir e vice-versa.<br />

E, simultaneamente, do sentir ao compreender, ao saber. Destacou<br />

que o popular sente, mas nem sempre compreende ou sabe. O intelectual<br />

sabe, mas nem sempre compreende e, em especial, sente.<br />

É indispensável, portanto, reconciliar senso-comum e bom-senso.<br />

Sem essa conexão entre intelectuais e a grande maioria da população<br />

não se faz política.<br />

Essa relação unitária perpassa todo o trabalho e formação de outros<br />

conceitos e categorias. Está presente, também, no estudo da estrutura<br />

e superestrutura. Outro exemplo claro é quando ele se refere<br />

às “ondas” dos movimentos históricos: de um lado, chamou a atenção<br />

para o exagero do economicismo ou do doutrinarismo pedante e, de<br />

outro lado, o limite extremo de ideologismo. Essa separação poderia<br />

levar a graves erros na arte política de construir a história presente e<br />

futura e daria lugar a fórmulas infantis de otimismo e bobagens.<br />

Outra contribuição importante: estabeleceu uma distinção metodológica<br />

de dois momentos para a análise de uma situação concreta,<br />

circunstância ou conjuntura: a) um momento unido à estrutura,<br />

objetiva, o grau de desenvolvimento das forças materiais de<br />

produção. A formação dos agrupamentos sociais, suas funções e<br />

posição na produção. Essa realidade permite investigar se em uma<br />

determinada sociedade já existe as condições indispensáveis e suficientes<br />

para sua transformação; b) outro momento é a relação das<br />

forças política, avaliação do grau de homogeneidade, autoconsciência<br />

e de organização adquiridas pelos diferentes grupos sociais. Na<br />

vida real, entretanto, considerou que estes momentos se confundiam<br />

reciprocamente.<br />

E com base na análise de conjuntura procurou resolver duas<br />

questões apresentadas por Marx no prefácio à Crítica da Economia<br />

Política: a) “uma formação social nunca perece antes que estejam desenvolvidas<br />

todas as forças produtivas para as quais ela é suficientemente<br />

desenvolvida, e novas relações de produção mais adiantadas<br />

jamais tomarão o lugar, antes que suas condições materiais de existência<br />

tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade”; b) é<br />

por isso que a humanidade só se propõe as tarefas que pode resolver,<br />

pois, se se considera mais atentamente, se chegará à conclusão de<br />

que a própria tarefa só aparece onde as condições materiais de sua<br />

solução já existem, ou, pelo menos, captadas no processo do seu<br />

<strong>18</strong>5


X. Memória<br />

devir”. 6 Na sua enorme pesquisa fragmentada apresentou e desenvolveu<br />

a categoria de revolução passiva. Inferiu-a dos dois princípios<br />

estabelecidos por Marx, no prefácio de <strong>18</strong>59. Reportando-o à descrição<br />

daqueles dois momentos que podiam distinguir a situação concreta<br />

e o equilíbrio das forças com a máxima valorização do segundo<br />

momento. 7<br />

A chave bloco histórico serviu-lhe para resolver um falso problema<br />

da separação entre Estado/Sociedade Civil, separação que só<br />

existe metodologicamente. Mas, deixou muito bem explicitado que<br />

esta relação dialética exigia um reconhecimento do terreno nacional.<br />

Entretanto, ao analisar as formações sociais pouco desenvolvidas e<br />

comparando com as mais desenvolvidas chegou a uma conclusão importante:<br />

nas primeiras, o Estado é tudo, a sociedade civil é primitiva,<br />

gelatinosa, sem consistência; nas segundas, há entre o Estado e a<br />

sociedade civil uma relação de disputa, pendência e qualquer tremor<br />

ou oscilação do Estado, imediatamente, descobre-se uma poderosa<br />

estrutura da sociedade civil. O Estado é apenas um posto avançado,<br />

por trás do qual se situa uma poderosa rede de proteção blindada.<br />

Dessa leitura reexaminou o conceito leniniano de hegemonia. E,<br />

entre os elementos força e consenso, deu ênfase aos ordenadores<br />

do sistema de hegemonia: a) as organizações e instituições políticas<br />

e culturais, nas quais esse sistema se materializou; b) os sujeitos,<br />

forças sociais e instituições que o construiram e se reproduziram.<br />

Mas, demonstrou, também, que os sistemas hegemônicos não eram<br />

eternos, mas históricos. Bem como, salientou os processos e possibilidades<br />

de se construir novas hegemonias político-morais.<br />

Através de uma série de problemas examinados por Gramsci<br />

dentro do pensamento filosófico, no início da década 30, foi possível<br />

antecipar as novas contradições das sociedades modernas, suas<br />

complicações, crises econômicas e morais e a passagem do velho<br />

individualismo econômico para a economia programática, uma nova<br />

hegemonia. Vislumbrou as grandes transformações capitalistas. Com<br />

Americanismo e Fordismo, ele demonstrou sua enorme capacidade<br />

de olhar o mundo além do seu tempo.<br />

A mesma coerência unitária esteve presente na sua visão de partido<br />

político. Recusou um tipo de organização oriental, burocrática.<br />

Iniciou sua análise partindo do questionamento da necessidade his-<br />

6 MARX, Karl. Para a Critica da Economia Polícia. Prefácio – Os Pensadores, p. 130, 2.<br />

edição, 1978. Abril Cultural<br />

7 VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva – Iberismo e americanismo no Brasil,<br />

p. 28-88. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1997.<br />

<strong>18</strong>6<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Gramsci, 70 anos depois<br />

tórica da sua existência e propôs algumas condições, entre elas a<br />

possibilidade de seu triunfo ou, pelo menos, em vias de alcançá-lo.<br />

Mas, para isso era necessária a unidade de três grupos de elementos:<br />

a) um elemento de homens comuns, cuja participação seja oferecida<br />

pela disciplina e fidelidade; b) o elemento principal de coesão, que<br />

unifique o campo nacional, torne eficiente e poderoso um conjunto<br />

de forças. Este grupo é dotado de determinadas premissas como<br />

criatividade, perspectiva e unido; c) um elemento médio, que articule<br />

o primeiro grupo com o segundo, os colocando em sólido contato intelectual<br />

e moral.<br />

Seu pensamento avançava por fragmentos, abandonados logo em<br />

seguida e em outros casos aperfeiçoava-o por outros. Não era uma<br />

obra sistemática. Por isso, há estudiosos e especialistas de sua obra<br />

que tentam diversidades de interpretações: uns com matizes, formas<br />

e graus diferentes colocam-na no campo exclusivo do leninismo;<br />

outros interessados, fundamentalmente, nas inovações que ele introduziu<br />

nas análises das superestruturas; os terceiros que o preferem<br />

como o filósofo da sociedade industrial. A controvérsia é natural<br />

numa obra inconclusa.<br />

O que é o homem? Era a grande questão para Gramsci. E destacou<br />

que esta é a primeira e principal pergunta da filosofia. E questionou:<br />

como respondê-la? Sua conclusão foi resumida em ritmo de novas<br />

perguntas, mais ou menos assim: o que o homem pode se tornar,<br />

se o homem pode controlar seu próprio destino, se ele pode se fazer,<br />

se ele pode criar sua própria vida? E, concluiu, portanto, o homem<br />

é um processo, exatamente, o processo de seus atos. Em suma, a<br />

humanidade se reflete em cada individualidade e é composta de distintos<br />

elementos: a) o individuo; b) os outros homens; c) a natureza. 8<br />

Isto é, em outras palavras, o bloco histórico. Só metodologicamente<br />

é possível fragmentá-lo.<br />

Não deixou de polemizar com o pensamento mais rigoroso e mais<br />

fecundo que formavam grandes correntes de opinião. Assim o faz<br />

quando estudou o conceito de classe política de Gaetano Mosca, e<br />

relacionando-o com o conceito elite de Vilfredo Pareto. Foi Benedetto<br />

Croce seu principal interlocutor. O conjunto dos Cadernos do Cárcere,<br />

na verdade, é um combate em duas frentes: contra o pensamento<br />

especulativo e idealista (Croce) e a chamada ortodoxia vulgar e positivista<br />

do marxismo.<br />

8 GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História, p. 39, 3. ed., 1978, Rio de Janeiro:<br />

Civilização Brasileira.<br />

<strong>18</strong>7


X. Memória<br />

E, hoje, as categorias gramscianas são reconhecidas e estudadas,<br />

nos meios acadêmicos e políticos como instrumentos de análise da modernização<br />

conservadora brasileira e suas complexas superestruturas.<br />

Sua vida pelo modo, lugar e tempo de sua concretização, poderia<br />

ser designada como a de um homem derrotado. Na ignorância de uma<br />

época fez iluminar a extraordinária força moral e o rigor intelectual do<br />

homem que, sem se deixar abater, fez de suas derrotas, novas fontes<br />

de energia para recomeçar e avançar. Suportou o seu destino, com<br />

coragem e sobriedade intelectual, sem concessões ao vulgar e patético,<br />

conservando sempre o controle racional dos sentimentos.<br />

Diante disso como resistir à tentação de falar sobre Gramsci e sua<br />

obra tão rica, fecunda, dando-lhe, ao mesmo tempo, o papel de herói,<br />

no mundo cheio de vilões teóricos? Referindo-se a Marx, Noberto Bobbio<br />

dizia que para garantir um lugar entre os clássicos, um pensador<br />

deve obter reconhecimento nestas três qualidades: a) deve ser considerado<br />

como tal intérprete da época em que viveu que não se possa<br />

prescindir de sua obra para conhecer o “espírito do tempo”; b) deve ser<br />

sempre atual, no sentido de que cada geração sinta necessidade de<br />

relê-lo e, relendo-o, de dedicar-lhe uma nova interpretação; c) deve ter<br />

elaborado categorias gerais de compreensão histórica das quais não<br />

se possa prescindir para interpretar uma realidade mesmo distinta<br />

daquela a partir da qual derivou essas categorias e à qual as aplicou. 9<br />

Esta afirmação caberia, também para Gramsci?<br />

Ninguém, hoje, duvida que deva ser considerado um clássico na<br />

história do pensamento.<br />

Finalmente, nessa pequena homenagem, não poderia faltar um<br />

trecho de sua carta de 10 de maio de 1928, enviada para a mãe:<br />

<strong>18</strong>8<br />

(...) Querida mamãe, gostaria muito de lhe abraçar bem apertado<br />

para que sentisse o quanto eu gosto de você e como gostaria de<br />

lhe consolar por esse desgosto que lhe dei, mas não podia agir de<br />

outro modo.A vida é assim, muito dura, e os filhos algumas vezes<br />

têm de dar grandes desgostos às suas mães, se querem conservar<br />

a sua honra e a sua dignidade de homens. 10<br />

9 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política – A filosofia Política e as Lições dos Clássicos,<br />

p. 114. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000.<br />

10 FIORI, Giuseppe. A vida de Antonio Gramsci, p. 360, Rio de Janeiro: Editora Paz e<br />

Terra, 1979.<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


XI. Resenhas


Autores<br />

Luiz Bernardo Pericás<br />

Escritor e historiador, autor de Che Guevara e o Debate Econômico em Cuba, entre<br />

outros.<br />

Francisco Alambert<br />

Professor de história social da arte e história contemporânea na USP.<br />

Fernando Marques<br />

Jornalista e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília


O pensamento livre 1<br />

Luiz Bernardo Pericás<br />

No apêndice da segunda edição de Sociologia do Materialismo, publicada<br />

em 1959, Leôncio Basbaum afirmava que “a tarefa que<br />

se levanta para nós, marxis tas de hoje, consiste em libertar o<br />

marxis mo dos dogmatismos, para que o atraso que ele apresenta em relação<br />

ao desenvol vimento histórico possa ser superado. Es sa tarefa soa:<br />

dialetizar o marxismo... A re visão do marxismo precisa ser executada<br />

diariamente, referindo-o aos fatos, aos novos conhecimentos científicos,<br />

às mu danças da realidade social. Talvez seja precisamente essa tarefa<br />

a herança mais importante de Marx. Precisa mos tentar alcançar para<br />

nós, mar xistas, o direito de criticar o marxis mo, especialmente o marxismo<br />

ho je em voga, sem sermos, por isso, excluídos ou expurgados”.<br />

Esse trecho significativo de Bas baum (importante teórico, político<br />

marxista, militante do PCB) ilus tra bem a reação de alguns intelectuais<br />

de esquerda de nosso país às normas doutrinárias e esquematismos<br />

teóricos propugnados pelo marxismo ortodoxo oficial soviético,<br />

divulgados e copiados pelos dirigentes comunistas de outros paí ses,<br />

inclusive os brasileiros.<br />

Entre aqueles que mais se destacaram na tentativa de romper com<br />

essa tradição ne fasta e se empenharam em “nacionalizar” o marxismo<br />

no Brasil (até mesmo, déca das antes), figura o exímio historiador<br />

paulista Caio Prado Júnior (1907/1990). É bom lembrar que gerações<br />

de militantes eram formadas pelos antigos “manuais” de economia<br />

1 Publicado originariamente na revista semanal Cartacapital, edição de 21 de fevereiro<br />

de 2007, p. 58 e 59)<br />

191


X. Resenhas<br />

política da Academia de Ciências da União Soviética, importa dos diretamente<br />

de Moscou.<br />

Textos pouco sofisticados, como os de Afanassiev ou Strumilin,<br />

eram lidos e dis cutidos em reuniões acaloradas: represen tavam, na<br />

prática. a versão oficial do “ver dadeiro” marxismo que o PCUS queria<br />

ex portar para o resto do mundo. Mas a im posição daqueles “fundamentos”<br />

dogmá ticos e mecanicistas (que deveriam servir para todas as<br />

realidades, obrigando a en quadrar os processos históricos regionais,<br />

inclusive o brasileiro, dentro de seus mo delos pré-fabricados), teve<br />

como conse qüência, em última instância, a falta de uma avaliação<br />

correta do desenvolvimen to histórico nacional e derrotas sucessivas<br />

na luta política ao longo de várias décadas.<br />

O autor de Evolução Política do Brasil (1933), Formação do Brasil<br />

Contemporâ neo (1942), História Econômica do Brasil (1945), Dialética<br />

do Conhecimento (1952) e Esboços dos Fundamentos da Teoria Econômica<br />

(1957), ainda que membro do PCB, por seu lado, nunca se<br />

submeteu às normas rígidas impostas pelo stalinismo latente no partido.<br />

Junto de Daniel De León (o primeiro teórico marxista origi nal do<br />

Hemisfério Ocidental) e do jorna lista peruano José Carlos Mariátegui,<br />

Prado Júnior pode ser considerado, cer tamente, um dos mais importantes<br />

e pro fundos teóricos marxistas de nosso con tinente. Outros, no<br />

Brasil e no resto das Américas, deram importantes contribui ções para<br />

o estudo das diferentes reali dades nacionais, mas poucos chegaram<br />

tão longe quanto ele.<br />

Caio foi um homem complexo: mem bro do PCB, dirigente da ANL,<br />

fun dador da Revista Brasiliense e da Edi tora Brasiliense, publisher,<br />

fotógrafo amador, geógrafo, filósofo, deputa do estadual por São Paulo<br />

(eleito em 1947 e cassado em 1948), mem bro do Clube de Artistas Modernos<br />

(CAM), ensaísta, articulista, pales trante, ganhador do Prêmio<br />

Juca Pa to, da União Brasileira de Escritores (1966), historiador de<br />

primeira. Mesmo sendo notoria mente um personagem multiface tado<br />

e de altíssimo nível intelectual, esse verdadeiro outsider também teve<br />

todas as portas do meio acadêmico fechadas para ele. Ainda hoje, é<br />

visto com restrição por alguns historiadores “profissionais”...<br />

Apesar dos críticos, Prado Júnior foi um dos autores que “fizeram a<br />

cabeça” de vários estudantes e ativistas de esquerda “heterodoxos”, principalmente<br />

a partir da década de 1960, estimulando, ao mesmo tempo,<br />

por meio de seus livros, intelectuais importantes como Jacob Gorender,<br />

Nelson Werneck Sodré, Fernando Novais, João José Reis e tantos outros,<br />

a “dialo gar”, direta ou indiretamente, com sua obra, e fazer avançar os<br />

estudos sobre o processo de formação histórica do Brasil.<br />

192<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


O pensamento livre<br />

Ao contrário de politiqueiros profis sionais “oportunistas” (que<br />

sempre prio rizaram a disputa por cargos e posições de destaque nas<br />

cúpulas partidárias), Caio, filho de uma tradicional e aristo crática família<br />

paulista, preferiu atuar de maneira distinta e construiu, gradualmente,<br />

o monumento que foi sua vasta obra bibliográfica. Mas<br />

não sem sofrer críticas intensas, tanto da direita (que o considerava<br />

um traidor de clas se), como da própria esquerda, que o via, muitas<br />

vezes, como um herege. Flexível, eclético e aberto a diferentes idéias,<br />

CPJ bebia de diversas fontes. É possível en contrar distintas influências<br />

em seus li vros. Talvez por isso mesmo sem pre houvesse aqueles<br />

que se recusa ram a considerá-la marxista...<br />

Ele integrava um grupo de homens notáveis, de diversos matizes<br />

ideológicos, que pensavam e acreditavam em nosso país (homens de<br />

uma estirpe ética, e .moral cada vez mais rara no Brasil), como Celso<br />

Furtado, Antonio Candido, Florestan Fernandes, Antônio Houaiss,<br />

Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer, entre tantos outros. Sua contribuição<br />

foi verdadeiramente estimulante.<br />

Viajante inveterado, Pra do Júnior conheceu di versos países (inclusive,<br />

vários do mundo socialista) e os recantos mais profundos do<br />

Brasil. Ia pessoalmente, em seu velho Fusca, para o in terior do país,<br />

para, o sertão, para os vilarejos em cada canto da na ção: fotografava,<br />

conversava com o po vo local, levantava documentos, anali sava dados<br />

estatísticos e depois dedi cava horas e horas por dia a colocar no papel<br />

os resultados de suas pesquisas. Não era apenas um historiador<br />

de ga binete. Mesmo assim, entre os mais proeminentes “intérpretes”<br />

do Brasil, como Gilberto Freyre ou Sérgio Buar que de Holanda, Caio<br />

foi, durante bastante tempo, o que teve menos visibilidade dentro das<br />

universidades.<br />

As comemorações dos cem anos de seu nascimento podem ser um<br />

bom motivo para trazer de volta o debate em torno desse grande teórico.<br />

E, principalmente, têm potencial para criar um interesse renovado<br />

em sua obra no público jovem. Diversas exposições, palestras, conferências<br />

e a publicação de livros sobre CPJ estão pro gramadas para<br />

este ano.<br />

O destaque fica para Uma Trajetória Intelectual: Caio Prado Júnior,<br />

de Paulo Teixeira Iumatti (a ser lançada pela Editora Brasiliense), uma<br />

interessante biografia intelectual do autor de A Revolução Brasileira.<br />

Originalmente parte de uma tese de doutorado defendida no Departamento<br />

de História da USP em 2001, essa obra deixa de lado qualquer<br />

viés hagio gráfico ou laudatório, e percorre os cami nhos trilhados por<br />

Caio em todas as suas diferentes formas de atuação.<br />

193


X. Resenhas<br />

Assim, é possível acompanhar o per curso de Prado Júnior da década<br />

de 1920 ao fim dos anos 1970, e ver como o am biente político-cultural<br />

interno e externo, assim como suas leituras, contribuiram para a<br />

produção científica; entender a atuação como militante e teórico marxista;<br />

e, finalmente, compreender também o lado pessoal e familiar.<br />

Dessa for ma, Iumatti (que já havia sido o responsá vel pela publicação,<br />

anos atrás, dos diários políticos de CPJ pela mesma. editora); tenta<br />

apresentar o personagem da ma neira mais completa possível, entrelaçando<br />

a dimensão humana com a política e a intelectual. Para isso, o<br />

autor re correu a entrevistas, a arquivos de fami liares e de universidades,<br />

assim como a cartas e livros do próprio Prado Júnior.<br />

No deserto intelectual em que se encon tra o Brasil, país que parece<br />

patinar no mesmo lugar, sem grandes ambições nem perspectivas<br />

nítidas de crescimento econômico ou justiça social, o centenário de<br />

Caio Prado Júnior pode ser uma boa provocação e um excelente motivo<br />

para repensar e reavaliar nossas prioridades, nos sa visão de nós<br />

mesmos e nosso futuro como nação. Escrito numa linguagem leve,<br />

direta e sem academicismos, o livro de Iu matti certamente ajudará<br />

nessa tarefa.<br />

Sobre a obra: Uma trajetória intelectual: Caio Prado Junior, de Paulo<br />

Teixeira Inmatti, São Paulo: Brasiliense, 280 p., 2007.<br />

194<br />

*<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Presente na encruzilhada<br />

Francisco Alambert<br />

Presente na encruzilhada<br />

Desde a crise da invasão da reitoria da USP, o movimento estudantil<br />

voltou, até segunda ordem, ao centro do problema<br />

brasileiro. Depois das crises, do neoliberalismo do governo<br />

Fernando Henrique Cardoso/e da mudança do PT rumo ao centro<br />

político e à direita econômica, isso era inevitável.<br />

Pensar o papel dos estudantes e os impasses na educação trazidos<br />

pelo fim de um projeto nacional orgânico é o assunto de duas<br />

coletâneas lançadas à beira da crise atual. Uma delas, Movimento<br />

Estudantil Brasileiro e a Educação Superior, trata sobretudo do passado<br />

do movimento, enquanto que a outra, Política Pública de Educação<br />

no Brasil, trata dos impasses do presente.<br />

Em ambos os casos, a maioria dos autores vem do Norte e do<br />

Nordeste do Brasil. Movimento Estudantil Brasileiro traz diversos<br />

pesquisadores e intelectuais que analisam e dão depoimentos sobre<br />

o movimento a partir dos anos 1950.<br />

Nos diversos textos, muitos temas são tratados, sobretudo a partir<br />

do forte movimento político pernambucano, no contexto do governo<br />

de Miguel Arraes e da militância de Paulo Freire.<br />

Aprendemos que, desde pelo menos 1958 até 1968, as questões<br />

centrais da busca de um ensino superior público esbarravam em<br />

problemas de toda ordem: a questão da autonomia, a insuficiência<br />

de recursos, a busca por aumento de vagas, a necessidade de criar,<br />

em âmbito federal, uma universidade orgânica partindo de uma base<br />

precária – as escolas superiores isoladas.<br />

O novo movimento estudantil nasceu de uma necessária tomada<br />

de posição diante dessas questões. No final da década de 50, como<br />

mostra o texto de Maria de Lourdes Favero, o debate em torno da Lei<br />

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional colocou os intelectuais<br />

e os estudantes à frente da defesa da escola pública, sobretudo no<br />

contexto das “reformas de base” que antecederam o golpe militar.<br />

Como explica Lauro Morhy, a questão hoje é que, depois do período<br />

militar, esse debate não voltou. No seu lugar veio a crise eco-<br />

195


X. Resenhas<br />

nômica, em torno da qual os debates sobre a questão encontravam<br />

seu limite.<br />

Entre os depoimentos recolhidos e editados, destacam-se os de<br />

Luiz Costa Lima e Jurandir Freire Costa, apontando a influência das<br />

propostas de Paulo Freire em suas vidas estudantis. Ambos notam<br />

que a militância recifense se dava intelectualmente contra as idéias e<br />

a influência de Gilberto Freyre – a quem Costa Lima acusa de o haver<br />

delatado como “marxista”, coisa que o levou a sua primeira prisão<br />

pela ditadura.<br />

Entretanto Freire Costa, que estudava medicina, afirma que, mais<br />

ou menos, todos se inspiravam nas idéias marxistas.<br />

O ensaio Análise do Discurso do Novo Movimento Estudantil tenta<br />

trazer as discussões para o presente. Escrito por três estudantes,<br />

analisa o “discurso” de uma chapa estudantil, buscando entender o<br />

que é o “jovem” estudante atual.<br />

Sua conclusão, após volteios um tanto confusos, é que o estudantado<br />

de hoje “une” parte do ideário da esquerda dos anos 60 e<br />

70 com reivindicações de “atuações mais individualizadas”. Diante<br />

de certos procedimentos dos estudantes que ocuparam a reitoria da<br />

USP, defendendo a autonomia universitária com as armas da organização<br />

coletiva, sem que partidos políticos tivessem a hegemonia no<br />

processo, essa conclusão pode ser problematizada. Política Pública<br />

traz o problema para o centro da crise aberta pelo neoliberalismo da<br />

última década e seus impasses estruturais.<br />

Em diferentes campos do saber educacional (desde as dificuldades<br />

de gestão até os impactos do neoliberalismo no ensino de<br />

educação física), os textos nos mostram as ressignificações ditadas<br />

pela lógica neoliberal e sua estratégia de privatização do conhecimento<br />

e de produção da educação (e dos alunos) como mercadoria.<br />

Embora boa parte dos artigos se preocupe em apresentar os problemas<br />

dessa situação, não se furtam também a procurar alternativas,<br />

na busca de uma nova significação para a idéia de ensino público,<br />

constantemente dinamitada pelos governos e que, parece, só está<br />

sendo defendida na prática pelos estudantes, custe o que custar.<br />

Sobre as obras: Movimento Estudantil Brasileiro e a Educação Superior,<br />

Michel Zaidan Filho e Otávio Luiz Machado (org.), Editora Universitária<br />

UFPE, 260 p.<br />

Política Pública de Educação no Brasil, Antônio Cabral Neto, Ilma Vieira do<br />

Nascimento e Rosângela Novaes Lima (org.), Editora Sulina, Porto Alegre, 350 p.<br />

196<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Síntese de ritmos<br />

Fernando Marques<br />

Síntese de ritmos<br />

Há mais semelhanças entre o Brasil e os Estados Unidos do<br />

que em geral se supõe. Por exemplo: o samba e o jazz têm afinidades<br />

históricas. De saída, ambos os estilos tomam forma<br />

em cenários urbanos. O samba nasce no coração do Rio de Janeiro,<br />

nos bairros onde se concentram os baianos vindos do Recôncavo,<br />

nas décadas seguintes à Abolição. Nos Estados Unidos, o jazz surge<br />

na região boêmia de Nova Orleans, extremo Sul do país.<br />

Ao longe, podem-se ver as raízes rurais dessas populações, as do<br />

cacau no Brasil, as do algodão nos EUA. Ressalta a herança africana,<br />

aqui ou lá, com os ritmos que entortam os desenhos mais lineares<br />

da métrica européia, enriquecendo-a. Samba e jazz são gêneros de<br />

síntese.<br />

Veja-se ainda que Rio de Janeiro e Nova Orleans, por serem cidades<br />

portuárias, favorecem o trânsito de pessoas e produtos que anima<br />

a vida noturna, estimulando a oferta de cultura e entretenimento.<br />

Por fim, samba e jazz nascem com o século 20 e emplacam, ambos,<br />

seu primeiro registro em disco no mesmo ano de 1917. É pouco?<br />

Muito. No entanto, faz-se necessário o zelo inteligente de um<br />

grande estudioso desses dois estilos musicais para reuni-los num<br />

único livro, caso de Samba, jazz e outras notas, coletânea de artigos<br />

do crítico e historiador carioca Lúcio Rangel (1914-1979). Organizado<br />

pelo jornalista Sérgio Augusto, que também responde por amplo<br />

e ótimo prefácio, o livro ganha em ser lido ao lado da Coleção Revista<br />

da Música Popular, outro lançamento recente, que reproduz os 14<br />

números da revista que o mesmo Lúcio Rangel editou, à frente de colaboradores<br />

ilustres, nos anos 1950. De fato, estamos redescobrindo<br />

Lúcio que, além de cronista musical, foi um sujeito singular, bemhumorado,<br />

sarcástico, idiossincrático.<br />

É paradoxal que o jornalista, freqüentador de inúmeros veículos<br />

(do Jornal de Letras ao Correio da Manhã, de A Cigarra a Senhor),<br />

tenha deixado um único livro. O volume se chama Sambistas e chorões<br />

e é de 1962; acha-se (“acha-se” é força de expressão) esgotado<br />

há tempos. Também por isso, o contato com as pesquisas rigorosas<br />

197


X. Resenhas<br />

e o estilo transparente do autor, propiciado pela coletânea recémlançada,<br />

revela-se oportuno. Os artistas que destacam sua intransigência<br />

purista (em ambos os gêneros), seu amor ao detalhe soam<br />

como lições a serem meditadas pelo apressado jornalismo nosso de<br />

cada dia.<br />

Para tentar descrever o método crítico de Lúcio Rangel, digamos que<br />

ele costumava analisar a obra e a trajetória dos artistas relacionandoas<br />

ao desenvolvimento do gênero que esses artistas ajudavam a criar,<br />

ou de que eram expoentes. Lúcio percebe, com razão, que a evolução dos<br />

estilos é duplamente motivada: desdobra-se conforme razões históricas,<br />

mas também decorre, claro, de imponderáveis méritos individuais.<br />

A noção materialista, em princípio certeira, de que a história é que<br />

faz os indivíduos, e não o contrário, desmente-se em parte pela observação<br />

do real, no setor ultra-sensível da música. Ou seja: a história<br />

dirige as pessoas; mas os fatos históricos dependem também de<br />

decisões particulares, de acasos, de encontros e desencontros imprevistos.<br />

E dependem um bocado das parcerias, previsíveis ou não.<br />

Nesse sentido, exemplo tirado da primeira seção do livro, dedicada ao<br />

samba, envolve acaso que não foi bem acaso: o encontro entre Sinhô<br />

e Mário Reis, a que Lúcio atribui enorme importância.<br />

Antes de contar o episódio, o crítico lembrava que a técnica e os trejeitos<br />

da ópera, sobretudo italiana, haviam influído sobre o canto dos<br />

artistas populares brasileiros. Estes procuravam transpor a estética<br />

da grande voz – que implica o grande personagem, o grande drama<br />

– para a interpretação de gêneros como o maxixe, música buliçosa,<br />

sensual, dirigida mais ao corpo do que à cabeça. Não podia dar certo.<br />

Por isso, Rangel bendiz o dia em que Mário Reis, jovem grã-fino que<br />

gostava de cantar, procurou Sinhô, para ter aulas de violão com o<br />

compositor famoso. Escreve Lúcio, relatando o encontro: “O jovem<br />

declarou admirar extraordinariamente os sambas de Sinhô. Só conhecia<br />

alguns, disse. E depois de alguma relutância cantou, a pedido<br />

do mestre, que o acompanhava ao violão”, um dos sucessos da hora.<br />

A música era “Que vale a nota sem o carinho da mulher?” e, quando<br />

Mário “acabou de cantar o samba então em grande voga, Sinhô estava<br />

deslumbrado”. O compositor descobria “o intérprete ideal para os<br />

seus sambas”. O rapaz estrearia em disco na semana seguinte, com<br />

duas músicas de Sinhô. O ano era o de 1928.<br />

As qualidades de Mário Reis têm parte com a espontaneidade,<br />

sem dispensar perícia e precisão: o intérprete, ao pronunciar “admiravelmente<br />

as palavras do samba, com extraordinária noção de ritmo<br />

e uma personalidade marcante, deu lição de mestre aos cantores da<br />

198<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Síntese de ritmos<br />

época, todos mais ou menos influenciados pelos tenores italianos”.<br />

Para Lúcio, o gênero achava a sua voz coloquial.<br />

“Nenhum cantor popular brasileiro deixou, desde então, de sofrer,<br />

direta ou indiretamente, a influência de Mário Reis”, afirma o<br />

crítico. Mesmo Chico Alves, que tinha imenso cartaz e era de fato<br />

grande cantor, “aprimorou sua dicção e refreou suas tendências para<br />

a ópera”. O próprio Lúcio viria a promover outro encontro essencial<br />

na história da música popular: o de Vinicius de Moraes e Tom Jobim,<br />

parceiros pela primeira vez nas canções da peça Orfeu da Conceição,<br />

escrita pelo poeta em meados dos anos 50.<br />

Lúcio Rangel era também apaixonado por música instrumental. Não<br />

tocava, mas, depois de tomar uns goles, encantava e divertia os amigos<br />

com seu trombone imaginário (tinha boa voz e talvez fizesse carreira<br />

como cantor, se o pai não brecasse as suas pretensões artísticas). De<br />

fato, as matérias destinam bom espaço ao choro e ao jazz instrumentais.<br />

Ao falar da figura de Pixinguinha, Rangel descreve com certa minúcia<br />

a situação familiar do jovem, esboçando o quadro social onde o artista<br />

evolui. O menino era filho de violonista, tendo sido incentivado<br />

pelo pai, que lhe confiou uma das duas flautas que havia em casa;<br />

aos 15 anos, fazia sua estréia profissional, numa choperia do bairro<br />

da Lapa, no Rio.<br />

Pixinguinha cresceu em sobrado amplo, movimentado e musical,<br />

residência nada modesta, mas dotada de “oito quartos e quatro<br />

salas”. O lugar chamava-se “Pensão Viana”, pela hospitalidade que<br />

dispensava aos amigos (não custa reparar que, se o samba nasce<br />

nessas casas amplas e festivas, ele não nasce da pobreza, mas da<br />

fartura). O perfil do grande artista se encerra pela resposta encabulada,<br />

quando lhe perguntaram se preferia tocar, compor ou escrever<br />

arranjos: “Gosto mesmo é de fazer minha musiquinha”, disse o líder<br />

dos Oito Batutas.<br />

Outra grande admiração do crítico dedicava-se ao compositor Noel<br />

Rosa, que o menino Lúcio chegou a ver e ouvir em espetáculos na<br />

década de 30. Noel morreu há exatos 70 anos (que se completaram<br />

a 4 de maio), e uma parcela de sua obra cai em domínio público a<br />

partir do ano que vem – é o caso das canções que fez sozinho ou com<br />

parceiros também desaparecidos há mais de sete décadas (segundo<br />

lembra o professor Wellington Diniz, da Escola de Música).<br />

O crítico se enganou ao atribuir ao compositor a autoria “de <strong>18</strong>0<br />

a 190 peças”, refutando pesquisador que chegara a relacionar 300<br />

canções feitas por Noel, só ou com parceiros. Lúcio imaginava que o<br />

exagero se devesse, em parte, ao fato de várias músicas terem rece-<br />

199


X. Resenhas<br />

bido dois títulos (artifício de que Noel se valia, às vezes, para atender<br />

à demanda por canções inéditas). Os biógrafos João Máximo e Carlos<br />

Didier afinal recensearam cerca de 250 músicas assinadas por Noel,<br />

só ou acompanhado.<br />

Seja como for, é interessante ler a lista, preparada por Lúcio, das<br />

canções que Noel fez sem parceiros (o mais importante deles foi Vadico,<br />

com quem escreveu os definitivos Feitio de oração e Feitiço da<br />

Vila). Sozinho, o garoto de Vila Isabel compôs Com que roupa?, João<br />

Ninguém, Gago apaixonado, Não tem tradução e Último desejo, entre<br />

outras, transitando do humor de Com que roupa? à ironia triste desta<br />

última.<br />

Importante ainda, além dos dados factuais diligentemente relacionados<br />

pelo crítico, é a visão que dá de Noel, poeta e músico sofisticado,<br />

mas intuitivo: “Houve quem visse em Noel Rosa a influência da<br />

moderna poesia que a Semana de Arte de São Paulo começa a espalhar<br />

por todo o Brasil. Não acredito nisso, Noel não era um livresco,<br />

certamente ignorava os versos dos dois andrades, de Bandeira e de<br />

Guilherme de Almeida”. Pouco adiante, define: “Sua poesia buscava-a<br />

na vida cotidiana, nas situações criadas pelos seus íntimos e por ele<br />

mesmo, nas ruas, nos cafés populares, em contato com o povo. Nem<br />

por isso deixou de ser grande”.<br />

Menos extensa que a primeira, a segunda seção do livro trata de<br />

música norte-americana, com ênfase na figura do trompetista, cantor<br />

e líder de banda Louis Armstrong, representante do estilo tradicional.<br />

A “orquestra ideal” de jazz soma “um trompete, um trombone e<br />

uma clarineta, com o apoio da seção rítmica, composta de piano, guitarra,<br />

contrabaixo (ou tuba) e bateria”. A improvisação é a tônica dos<br />

grupos desse gênero, “sem arranjos preestabelecidos ou partituras”,<br />

tudo correndo por conta do “talento inventivo dos executantes”.<br />

Lúcio descrê das “grandes orquestras pretendendo fazer música<br />

de jazz” e, mais ainda, abomina o be-bop de Charlie Parker<br />

e Dizzy Gillespie (embora admire Parker), tendência que não se<br />

cansa de ironizar, presumivelmente pela atitude cerebral que o<br />

bop vem impor a um estilo espontâneo. O oportunismo de músicos<br />

ou empresários brancos que se apropriam do trabalho de artistas<br />

negros recebe, mais que a ironia, o desprezo de Lúcio.<br />

O leitor não especialmente interessado nos detalhes da história da<br />

música popular, no Brasil e nos EUA, talvez se canse diante de alguns<br />

textos, pródigos em dados de catálogo – Lúcio era um obsessivo<br />

da informação, no que foi beneficiado pelo amor a seus assuntos e<br />

pela boa memória, apoiada em biblioteca e discoteca fartas. Esse<br />

200<br />

Política Democrática · Nº <strong>18</strong>


Síntese de ritmos<br />

traço não cancela a qualidade e mesmo a delícia dos perfis que faz<br />

de Pixinguinha, Noel ou Armstrong, para citar alguns dos melhores<br />

textos.<br />

É engraçado, afinal de contas, que sujeito intelectualmente tão<br />

organizado, metódico e produtivo fosse também um boêmio, piadista<br />

e pândego. Mostrava-se capaz de tiradas agudas, devidas à inteligência<br />

ágil ou ao efeito do uísque, ou a ambos (nem sempre contraditórios),<br />

como se percebe nos episódios seguintes, colhidos no prefácio.<br />

O primeiro deles: Lúcio e um amigo sentam-se à mesa de um<br />

botequim, e o companheiro sugere que peçam algo para beliscar.<br />

Lúcio, de cara limpa, retruca: “Você tem razão. Mas primeiro vamos<br />

beber alguma coisa, porque eu não como de estômago vazio”.<br />

Outra tirada deve ter sido dita em pleno porre e é nonsense puro,<br />

genuíno, escocês. A seleção brasileira de futebol acabara de vencer<br />

o campeonato mundial na Suécia, em 1958, e havia patrícios amontoados<br />

num bar em Ipanema (como por todo o Rio). O clima era de<br />

alegria, naturalmente, mas algo atrapalhava a festa: as moscas inumeráveis<br />

que se multiplicavam em torno dos copos.<br />

Um patriota impaciente dobrou o jornal do dia e saiu caçando os<br />

insetos, esmagando alguns deles. Lúcio, tomado de bíblica piedade,<br />

subiu na cadeira e, com os olhos fixos no assassino de insetos, gritou:<br />

“Deixe as mosquinhas em paz! Elas também são campeãs do<br />

mundo!”. Além de boêmio, Lúcio Rangel foi um de nossos melhores e<br />

mais férteis cronistas de música popular.<br />

Sobre a obra: Samba, Jazz e outras notas – Coletânea de artigos do crítico<br />

e historiador Lúcio Rangel. Organização e prefácio de Sérgio Augusto.<br />

Agir. 240 p.<br />

*<br />

201


Pr o d u ç ã o Ed i t o r i a l<br />

Projeto e Edição Final<br />

Tereza Vitale<br />

CLSW 302 • Bloco B • Sala 123 • Ed. Park Center<br />

CEP 70673-612 • Setor Sudoeste<br />

Fone (61) 3033-3704/9986-3632<br />

tereza@intertexto.net<br />

Ficha Técnica<br />

Corpo do texto: Bookman Old Style (10/12, 8)<br />

Títulos: Bookman (20/24)<br />

Papel<br />

Reciclado 75g/m 2 (miolo)<br />

Papel off-set 100% reciclado, produzido em<br />

escala industrial, a partir de aparas pré e pós-consumo.<br />

Distribuição: <strong>Fundação</strong> <strong>Astrojildo</strong> <strong>Pereira</strong><br />

Fone: (61) 3224-2269 · Fax: (61) 3226-9756<br />

e-mail: contato@fundacaoastrojildo.org.br<br />

www.fundacaoastrojildo.org.br

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