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Universida<strong>de</strong> Estadual Paulista<br />
“Julio <strong>de</strong> Mesquita Filho”<br />
Campus <strong>de</strong> Presi<strong>de</strong>nte Pru<strong>de</strong>nte<br />
<strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong><br />
A relação cida<strong>de</strong>/campo e a processualida<strong>de</strong> sócio-territorial<br />
Presi<strong>de</strong>nte Pru<strong>de</strong>nte<br />
2009
Adriana Caramêz<br />
Adriano Quirino <strong>de</strong> Oliveira<br />
Alessandro Donaire <strong>de</strong> Santana<br />
André Aparecido Bernardo<br />
André Felipe Vilas <strong>de</strong> Castro<br />
Audrey Ferreira Rosa<br />
Bruna Cristina dos Santos<br />
Bruno Cesar G. Veiga<br />
Caio Felipe <strong>de</strong> Oliveira<br />
Camila Ferracini Origuéla<br />
Claudinei da Silva Pereira<br />
Dablys Ta<strong>de</strong>u Comini Boaventura<br />
Elenira <strong>de</strong> Jesus Souza<br />
Érica Liberato da Rocha<br />
Erika Akemi Shimabukura<br />
Felipe Cesar A. da Silva<br />
Felipe Ribeiro Garcia<br />
Fernando Cesar Almeida <strong>de</strong> Freitas<br />
Gerson <strong>de</strong> Souza Oliveira<br />
Gilmar dos Santos Soares<br />
Gustavo Batel Marques<br />
Gutierre Paschoa Catrolio da Silva<br />
Inaua Marina Daltro Rosa<br />
Italo Franco Ribeiro]<br />
Janaina Soares<br />
Jaqueline da Silva Oliveira<br />
Jefferson Hiroshi Hanhu<br />
Jokasta Aparecida Valezi<br />
Jorge Augusto Brandão Rosan<br />
José Ricardo da Silva Ferreira<br />
José Sobreiro Filho<br />
Juan Felipe Fernan<strong>de</strong>s Gomez Rodriguez<br />
Juliana da Luz Rocha<br />
Juliane Silva Ribeiro<br />
Karime Pechutti Fante<br />
Leiliane Cristine Ferraz Xavier<br />
Lucas Junior Pereira da Silva<br />
Lucinete Ferreira <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Manoela Yara F. <strong>de</strong> Lima<br />
Marcela Galizia Domingues<br />
Marlon Altavini <strong>de</strong> Abreu<br />
Martha Esthela dos Santos Silva<br />
Maurício Toma<br />
<strong>Messias</strong> Alessandro Cardoso<br />
Michele Balbin<br />
Nallígia Tavares De Oliveira<br />
Paulo Henrique Pereira Souto<br />
NOME DOS INTEGRANTES<br />
2
Paulo Vinicios dos Santos Maffi<br />
Philipe Andra<strong>de</strong> Ferreira<br />
Rafael Gotardi Brússolo<br />
Renata Pereira Prates<br />
Robson Sanches Salgueiro<br />
Rodolfo Creres <strong>de</strong> Cristofaro<br />
Rodolfo Delbone Perez<br />
Rodrigo Cesar <strong>de</strong> Lima Souza<br />
Sidney Querino Junior<br />
Sueli Aparecida <strong>de</strong> Souza<br />
Thamara Almeida Barbosa Silva<br />
Thays Domingues De Souza<br />
Thiago Barbosa F. Vilas Boas<br />
Valmir José <strong>de</strong> Oliveira Valério<br />
Verônica Araujo M. Me<strong>de</strong>iros<br />
Vitor Silva <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Ximenes França <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros<br />
Yara Manfrin Garcia<br />
Yuri Cavazin<br />
3
ÍNDICE DE FIGURAS<br />
Figura 1 ‐ Localização dos municípios que fazem parte do Tabuleiro <strong>de</strong> Russas no Estado do Ceará. 77<br />
Figura 2 ‐ Localização do Baixo Jaguaribe em relação a alguns dos principais centros consumidores e<br />
portos do Nor<strong>de</strong>ste brasileiro ............................................................................................................... 79<br />
Figura 3 ‐ Localização das comunida<strong>de</strong>s e da Barragem Figueiredo ................................................... 131<br />
Figura 4 ‐ Localização do Complexo Industrial e Portuário do Pecém na Região Metropolitana <strong>de</strong><br />
Fortaleza .............................................................................................................................................. 148<br />
Figura 5 ‐ Articulação portuária do CIPP com o mercado global ........................................................ 156<br />
Figura 6 ‐ Croqui da localização dos canais <strong>de</strong> transposição em relação à área <strong>de</strong> ari<strong>de</strong>z crítica no<br />
Estado do Ceará .................................................................................................................................. 159<br />
4
ÍNDICE DE FOTOS<br />
Foto 1 ‐ Presença do Exército no canteiro <strong>de</strong> obras da transposição do Rio São Francisco<br />
(Cabrobó/PE) ......................................................................................................................................... 29<br />
Foto 2 ‐ Funcionários do Ministério da Integração Nacional e Tenente do Exército no canteiro <strong>de</strong><br />
obras da transposição do Rio São Francisco (Cabrobó/PE) .................................................................. 31<br />
Foto 3 ‐ Canal do eixo norte da transposição do Rio São Francisco em Cabrobó/PE ........................... 31<br />
Foto 4 ‐ Ponto <strong>de</strong> tomada <strong>de</strong> água do Rio São Francisco para o canal do eixo norte da transposição. 32<br />
Foto 5 ‐ Maquete da Vila Produtiva Rural do Junco .............................................................................. 34<br />
Foto 6 ‐ Moradias da Vila Produtiva Rural do Junco ............................................................................. 34<br />
Foto 7 ‐ Comunida<strong>de</strong> da Lapa ............................................................................................................. 136<br />
Foto 8 ‐ Açu<strong>de</strong> construído pela comunida<strong>de</strong> ...................................................................................... 137<br />
Foto 9 ‐ Obras da Barragem Figueiredo, município <strong>de</strong> Alto Santo/CE ................................................ 141<br />
Foto 10 ‐ Obras da Barragem Figueiredo, município <strong>de</strong> Alto Santo/CE .............................................. 142<br />
Foto 11 ‐ Moinhos à beira‐mar ........................................................................................................... 151<br />
Foto <strong>12</strong> ‐ Entroncamento das águas: obra que permite o controle da disponibilida<strong>de</strong> hídrica por meio<br />
da ligação entre os canais da “integração” (acima) e do trabalhador (abaixo) .................................. 160<br />
ÍNDICE DE GRÁFICOS<br />
Gráfico 1 ‐ Evolução da área plantada (ha) na lavoura branca temporária no Trabuleiro Irrigado <strong>de</strong><br />
Russas .................................................................................................................................................... 90<br />
Gráfico 2 ‐ Evolução da área plantada (ha) na fruticultura no TI <strong>de</strong> Russas ......................................... 91<br />
Gráfico 3 ‐ Participação da Região Metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza na produção do PIB cearense ......... 152<br />
5
ÍNDICE DE QUADROS<br />
Quadro 1 - Área das Residências oferecidas ao reassentados pelo Projeto Castanhão no<br />
município <strong>de</strong> Nova Jaguaribara (CE) .............................................................................................. 55<br />
Quadro 2 ‐ Características técnicas do Açu<strong>de</strong> Figueiredo ................................................................... 143<br />
Quadro 3 ‐ Laudo <strong>de</strong> Avaliação do proprietário Geraldo Antônio <strong>de</strong> Moura ..................................... 144<br />
6
ÍNDICE DE TABELAS<br />
Tabela 1 ‐ Pessoas ocupadas por ativida<strong>de</strong>s econômicas ‐ 2000 .......................................................... <strong>23</strong><br />
Tabela 2 ‐ Principais culturas agrícolas ‐ 2007 ...................................................................................... <strong>23</strong><br />
Tabela 3 ‐ Efetivo dos Rebanhos e produção animal ‐ 2007 ................................................................. <strong>23</strong><br />
Tabela 4 ‐ PIB Municipal <strong>de</strong> Cabrobó/PE ‐ 2006 ................................................................................... 24<br />
Tabela 5 ‐ Instrução da população por faixas etárias. 1991 ‐ 2000....................................................... 25<br />
Tabela 6 ‐ Domicílios por forma <strong>de</strong> abastecimento d'água, com banheiro ou sanitário, e <strong>de</strong>stino do<br />
lixo ......................................................................................................................................................... 25<br />
Tabela 7 ‐ Fluxo <strong>de</strong> Admissão e Desligamento em Cabrobó/PE – Jan a Ago ........................................ 37<br />
Tabela 8 ‐ Ocupações que mais admitiram em Cabrobó/PE. Período <strong>de</strong> Jan/2008 à Jan/2009. .......... 38<br />
Tabela 9 ‐ Formação dos comitês <strong>de</strong> bacias hidrográficas ate 2006 ................................................... 110<br />
7
SUMÁRIO<br />
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 10<br />
2. APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................. 14<br />
3. TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO EM TEMPOS DE PAC .................................................... 21<br />
3.1 Cabrobó no contexto da transposição ................................................................................ 22<br />
3.2 O Projeto São Francisco: “Água a quem tem se<strong>de</strong>”? .......................................................... 26<br />
3.3 Gestão da Água e Relações <strong>de</strong> <strong>Trabalho</strong> no Processo <strong>de</strong> Construção do Canal da<br />
Integração......................................................................................................................................... 37<br />
4. DAS ÁGUAS TRANSPOSTAS ÀS ÁGUAS DISPOSTAS: O AÇUDE CASTANHÃO E AS NOVAS<br />
CONDIÇÕES DE NOVA JAGUARIBARA ................................................................................................... 44<br />
4.1 A Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaguaribara ........................................................................................................ 45<br />
4.2 A Construção do Açu<strong>de</strong> Castanhão ..................................................................................... 47<br />
4.3 A Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova Jaguaribara ............................................................................................ 51<br />
4.4 Reassentamentos ................................................................................................................. 55<br />
4.5 Comunida<strong>de</strong> do Desterro .................................................................................................... 56<br />
4.6 Comunida<strong>de</strong> Baixa dos Cajueiros ....................................................................................... 58<br />
4.7 Comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mineiro ...................................................................................................... 60<br />
4.8 Comunida<strong>de</strong> Mandacaru ..................................................................................................... 64<br />
4.9 Comunida<strong>de</strong> Lajes ................................................................................................................ 65<br />
4.10 Comunida<strong>de</strong> do Sossego ...................................................................................................... 66<br />
4.11 Comunida<strong>de</strong> Curupati ......................................................................................................... 71<br />
4.<strong>12</strong> Comunida<strong>de</strong> Barra II ........................................................................................................... 73<br />
4.13 Comunida<strong>de</strong> Caroba ............................................................................................................ 74<br />
5. TERRITÓRIO EM DISPUTA – CONTROLE E ACESSO À ÁGUA NO PERÍMETRO IRRIGADO DO<br />
TABULEIRO DE RUSSAS/CE .................................................................................................................... 77<br />
5.1 A mercantilização da água e a constuição do agrohidronegócio ..................................... 80<br />
5.2 Discurso e po<strong>de</strong>r i<strong>de</strong>ológico do capital .............................................................................. 82<br />
8
5.3 Comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Tomé: a visão dos moradores.................................................................. 85<br />
5.4 Comunida<strong>de</strong> Lagoa dos Cavalos ......................................................................................... 86<br />
5.5 Do Castanhão ao Tabuleiro Irrigado <strong>de</strong> Russas: acesso à água para quem? ................... 89<br />
6. O MUNICÍPIO DE PACAJUS NO NOVO CONTEXTO DA REGIÃO METROPOLITANA DE FORTALEZA:<br />
INDUSTRIALIZAÇÃO COMO FATOR DINAMIZADOR DO ESPAÇO ........................................................... 93<br />
6.1 Pacajus no novo contexto da Região Metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza ................................... 96<br />
6.2 Alguns <strong>de</strong>terminantes históricos e a estrutura da obra ................................................... 97<br />
6.3 O processo <strong>de</strong> industrialização e as novas articulações cida<strong>de</strong>‐região ......................... 101<br />
6.4 As formas <strong>de</strong> controle e utilização da água no entorno do canal do trabalhador e do eixo<br />
da integração ‐ trechos 4 e 5 entre pacajus e pecém .................................................................. 106<br />
6.5 A formação e organização dos comitês <strong>de</strong> bacias hidrográficas do estado do ceará e da<br />
bacia metropolitana <strong>de</strong> fortaleza .................................................................................................. 108<br />
6.6 Bacia metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza .................................................................................... 1<strong>12</strong><br />
6.7 Gerenciamento dos Recursos Hídricos no Estado do Ceará ........................................... 116<br />
7. AÇUDE FIGUEIREDO: DA AMEAÇA À CONCRETIZAÇÃO DA EXCLUSÃO TERRITORIAL!<br />
(COMUNIDADES LAPA E BOA ESPERANÇA) ......................................................................................... <strong>12</strong>2<br />
7.1 A problemática da água ..................................................................................................... <strong>12</strong>4<br />
7.2 O papel do Governo/Estado e das políticas públicas ...................................................... <strong>12</strong>7<br />
7.3 O açu<strong>de</strong> e as comunida<strong>de</strong>s ................................................................................................ 130<br />
7.4 Comunida<strong>de</strong>s Lapa e Boa Esperança ................................................................................ 132<br />
5.1.1 Comunida<strong>de</strong> Lapa ............................................................................................................... 135<br />
5.1.2 Comunida<strong>de</strong> Boa Esperança ............................................................................................... 138<br />
7.5 Açu<strong>de</strong> Figueiredo ............................................................................................................... 140<br />
8. O COMPLEXO INDUSTRIAL E PORTUÁRIO DO PECÉM E A REGIÃO METROPOLITANA DE<br />
FORTALEZA COMO PÓLO CENTRALIZADO DA ECONOMIA E REFLEXO DA DESIGUALDADE NO ESPAÇO<br />
CEARENSE: OS USOS DA ÁGUA ........................................................................................................... 146<br />
8.1 O Porto do Pecém e o “corredor das águas”: enunciados e significados ....................... 154<br />
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................. 166<br />
10. BIBLIOGRAFIA ................................................................................. Erro! Indicador não <strong>de</strong>finido.<br />
9
1. INTRODUÇÃO<br />
No âmbito dos principais <strong>de</strong>bates acerca do Nor<strong>de</strong>ste brasileiro, a “questão<br />
da água” ocupa lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, frequentemente, presente nos veículos <strong>de</strong><br />
comunicação, muitas vezes <strong>de</strong> forma estereotipada. Desse modo, seca e fome<br />
periódicas, em consórcio com uma “leitura pronta”, contribuem para a conformação<br />
do i<strong>de</strong>ário que associa a dificulda<strong>de</strong> da vida sertaneja à existência <strong>de</strong> obstáculos<br />
naturais, mascarando os verda<strong>de</strong>iros processos proce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> estruturas<br />
econômicas <strong>de</strong>feituosas, originadas no âmbito dos interesses do capitalismo<br />
globalizado. Os anseios do “Brasil mo<strong>de</strong>rno” esbarram no atraso <strong>de</strong> políticas que por<br />
mais que se julguem “integradoras”, na realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixam transparecer o quadro <strong>de</strong><br />
aguda <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e injustiça sociais, no qual a fome aparece como síntese <strong>de</strong> um<br />
movimento social que privilegia o econômico em <strong>de</strong>trimento do social.<br />
Para que a realida<strong>de</strong> seja <strong>de</strong>svendada <strong>de</strong> forma a <strong>de</strong>nunciar as estruturas<br />
que conformam o movimento do espaço na dimensão dos territórios, <strong>de</strong>stacando<br />
atores e setores no âmbito das contradições inerentes à apropriação do espaço no<br />
bojo da atual fase <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do capitalismo, faz-se necessário ir além da<br />
aparência dada pelos mecanismos midiáticos <strong>de</strong> manipulação i<strong>de</strong>ológica ou do<br />
“progressismo” do discurso institucional. Desse modo, a experiência da realização<br />
do <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> no Nor<strong>de</strong>ste do Brasil possibilitou-nos reunir uma diversida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> referenciais que, tendo origem nos próprios moradores do lugar espalhados pela<br />
caatinga cearense, dão voz àqueles que conhecem na prática os significados da<br />
engenharia das águas na vida dos habitantes comuns; homens e mulheres que,<br />
mais que um “pedaço <strong>de</strong> terra”, tem no lugar on<strong>de</strong> vivem o lastro do seu modo <strong>de</strong><br />
vida.<br />
A viabilização metodológica das propostas <strong>de</strong> intervenção na realida<strong>de</strong> à<br />
qual pretendíamos enten<strong>de</strong>r foi moldada ao sabor dos <strong>de</strong>safios postos no <strong>de</strong>correr<br />
da viagem. Assim, em cada localida<strong>de</strong> escolhida para estudo, novos elementos<br />
foram adicionados ao planejamento inicial, sendo necessário à utilização <strong>de</strong><br />
recursos <strong>de</strong> transporte (motocicleta, caminhão, caminhonete) para a<br />
operacionalização <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamentos on<strong>de</strong> o ônibus não acessaria. Tal recurso<br />
logístico possibilitou-nos a divisão em equipes <strong>de</strong> forma a cobrir um maior número<br />
10
<strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s, o que permitiu um enriquecimento quanto à relevância dos estudos<br />
<strong>de</strong> caso.<br />
O trajeto que compõe o que consi<strong>de</strong>ramos o “caminho das águas”, da cida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Cabrobó/PE a Pecém/CE, permite vislumbrar, <strong>de</strong> um extremo a outro, múltiplas<br />
dimensões da barbárie advinda da filiação do Estado cearense às diretrizes da<br />
reestruturação produtiva do capital. Nesse contexto, buscando evi<strong>de</strong>nciar a dinâmica<br />
territorial inerente ao processo histórico <strong>de</strong> consolidação do Estado do Ceará, faz-se<br />
necessário uma análise, mesmo que breve, do processo <strong>de</strong> formação econômicoterritorial<br />
do Estado.<br />
I<strong>de</strong>ntificamos o início da ocupação e, por conseguinte, a inserção econômica<br />
da região, na criação <strong>de</strong> gado e no cultivo da cana-<strong>de</strong>-açúcar. Estas ativida<strong>de</strong>s<br />
foram beneficiadas principalmente pelas características físicas como clima e relevo.<br />
Desta maneira, o território passou a se <strong>de</strong>finir e se re<strong>de</strong>finir consoante aos<br />
interesses <strong>de</strong> ambas as ativida<strong>de</strong>s, juntamente com as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />
associadas aos interesses econômicos.<br />
É no processo <strong>de</strong> criação e recriação do território cearense que o<br />
clientelismo, paternalismo e o coronelismo, materializados em ações como a<br />
consolidação do latifúndio, tornam-se elementar para compreen<strong>de</strong>rmos as relações<br />
sociais que apresentam reflexo <strong>de</strong> atraso até os dias atuais, on<strong>de</strong> relações<br />
socioeconômicas passadas mesclam-se às atuais.<br />
No século XIX, o algodão surge como cultura economicamente viável se<br />
integrando ao ritmo da pecuária extensiva e da cultura da cana-<strong>de</strong>-açúcar como<br />
principais ativida<strong>de</strong>s comerciais agroexportadoras, abastecendo os mercados norteamericano<br />
e europeu. É com o advento da cultura algodoeira que o território passa a<br />
ser dotado <strong>de</strong> infra-estruturas específicas, potencializando a flui<strong>de</strong>z da produção e<br />
exercendo, também, atração <strong>de</strong> capitais inclusive internacionais. Dentre os impactos<br />
que potencializaram os fluxos em prol das relações econômicas no espaço cearense<br />
<strong>de</strong>staca-se a criação <strong>de</strong> trapiches (pré-portos) e as estradas boia<strong>de</strong>iras que<br />
antece<strong>de</strong>ram as principais vias <strong>de</strong> comunicação.<br />
A <strong>de</strong>speito da aparente transformação técnica propiciada pelos períodos<br />
mais próximos, a indústria nor<strong>de</strong>stina tem suas origens no final do século XIX, com<br />
suas bases assentadas no po<strong>de</strong>r das oligarquias familiares e a produção <strong>de</strong><br />
charutos, cigarros, chapéus, carroças, peles e couros, cimento e gran<strong>de</strong> produção<br />
industrial açucareira, têxtil e óleos vegetais (PEREIRA JR. apud ANDRADE, 1981).<br />
11
As oligarquias <strong>de</strong>sempenhavam o controle social e político da época com o objetivo<br />
da manutenção da estrutura <strong>de</strong> produção tradicional e avessa aos mecanismos do<br />
mercado.<br />
A inserção na lógica seletiva da flexibilização da economia e do<br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sigual e combinado peculiar ao capitalismo do tipo tardio 1 da<br />
indústria cearense, têm início a partir das políticas <strong>de</strong> integração nacional nos anos<br />
1960, especialmente com a criação das Superintendências, no caso a<br />
Superintendência <strong>de</strong> Desenvolvimento do Nor<strong>de</strong>ste (SUDENE), além <strong>de</strong> organismos<br />
internacionais como a Comissão Econômica para a América latina (CEPAL)/ONU e,<br />
posteriormente, reforçado por iniciativas do Po<strong>de</strong>r Executivo Estadual na década <strong>de</strong><br />
1980.<br />
Balizado pelo discurso <strong>de</strong>senvolvimentista, o Estado, por meio da SUDENE,<br />
traça um projeto para o fortalecimento <strong>de</strong> seu parque industrial com a construção <strong>de</strong><br />
bases territoriais para localização <strong>de</strong> estabelecimentos industriais na Região<br />
Metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza. Há, portanto, uma significativa alteração do cenário<br />
produtivo do estado como um todo, passando <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo agrário-exportador para<br />
o setor industrial e terciário (PEREIRA JR., 2005).<br />
Neste contexto, inicia-se uma nova fase na organização política no Estado<br />
do Ceará, promovida pelo chamado “Governo das Mudanças”, que tem como<br />
principais nomes Tasso Jereissati e Ciro Gomes. Ambos figuraram como<br />
Governadores do Estado do Ceará nos períodos <strong>de</strong> 1987 a 1991, 1995 a 2002 e<br />
1991 a 1994, respectivamente, sendo responsáveis pela materialização <strong>de</strong> alianças<br />
políticas entre o po<strong>de</strong>r público e o capital privado para romper com as antigas<br />
formas <strong>de</strong> relação socioeconômica <strong>de</strong> domínio dos coronéis para uma “ampliação da<br />
infra-estrutura cearense, atração <strong>de</strong> investimentos internos e externos e na<br />
reestruturação do Estado baseada numa política <strong>de</strong> privatização” (PEREIRA JR.,<br />
2005, p. 45).<br />
Consi<strong>de</strong>rada na lógica do modo capitalista <strong>de</strong> produção, a água passa <strong>de</strong><br />
recurso natural vital, a fator <strong>de</strong> produção para o acionamento do processo <strong>de</strong><br />
valorização do capital. Assim, a “questão da água” é representativa das atuais<br />
dinâmicas sócio-espaciais que dotam o território cearense dos fixos necessários ao<br />
aparelhamento técnico voltado ao atendimento das <strong>de</strong>mandas do capital que, por<br />
1 Cf. MANDEL, 1982.<br />
<strong>12</strong>
sua vez, se ligam às <strong>de</strong>mandas do mercado e comércio internacionais. Dentro <strong>de</strong>ssa<br />
perspectiva, o Estado age como um regulador das ações <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s empresas,<br />
sobretudo transnacionais, pois inserem novas localida<strong>de</strong>s na lógica da produção<br />
globalizada, tornando-as propícias à atração do capital e imprescindíveis no<br />
processo <strong>de</strong> reprodução ampliada.<br />
De um extremo a outro dos canais <strong>de</strong> transposição das águas, por mais que<br />
o discurso institucional tente impor uma leitura <strong>de</strong> que as obras não causariam<br />
impactos aos habitantes dos diversos lugares “premiados” com a sorte <strong>de</strong> estarem<br />
no “caminho das águas” e que o objetivo <strong>de</strong> tal empreendimento teria como<br />
finalida<strong>de</strong> matar a se<strong>de</strong> <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> pessoas atingidas pela ari<strong>de</strong>z, a realida<strong>de</strong> dos<br />
fatos expõe <strong>de</strong> maneira clara os verda<strong>de</strong>iros objetivos ocultos no véu do<br />
“<strong>de</strong>senvolvimentismo” estatal em consórcio com os interesses privados, agravando<br />
ainda mais a profunda concentração fundiária que, no nor<strong>de</strong>ste do Brasil, conforma<br />
o cenário que permite também a privatização da água, excluindo e marginalizando<br />
populações inteiras do acesso aos fatores básicos para o pleno <strong>de</strong>senvolvimento da<br />
vida.<br />
13
2. APRESENTAÇÃO<br />
A disciplina <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong>: a relação cida<strong>de</strong>/campo e a<br />
processualida<strong>de</strong> sócio territotial, direcionada aos alunos do terceiro ano é<br />
consi<strong>de</strong>rada popularmente “optatória”, em função <strong>de</strong> burocraticamente ser optativa,<br />
mas que pela importância adquirida, enquanto oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vivenciar na prática<br />
os conhecimentos geográficos, se faz indispensável para qualquer aluno.<br />
Este presente relatório é resultado <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira soma <strong>de</strong> esforços<br />
acumulados no período <strong>de</strong> dois anos e meio, o qual movimentou não somente as<br />
ações práticas para sua realização, mas também disputas no plano políticopedagógico,<br />
que envolveram inúmeros <strong>de</strong>bates no ambiente interno da Geografia<br />
por àqueles que protagonizam o <strong>de</strong>senvolvimento das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ste curso<br />
intramuros unespianos.<br />
No ano <strong>de</strong> 2007, em uma disciplina obrigatória do segundo semestre do<br />
curso forjaram-se algumas propostas para realização <strong>de</strong> um trabalho <strong>de</strong> campo que<br />
seria conduzido pelo então Professor <strong>de</strong>sta mesma disciplina.<br />
Foi no âmbito da Geografia do Brasil, por meio dos conteúdos e trabalhos<br />
realizados nesta disciplina que tivemos os primeiros contatos com assuntos<br />
referentes às políticas públicas estaduais e fe<strong>de</strong>rais e, sobretudo, com o tema água,<br />
sob a coor<strong>de</strong>nação do Professor "capa" Thomaz Jr, docente responsável pelas<br />
disciplinas Geografia do Brasil e <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong>.<br />
Em principio, o tema visava compreen<strong>de</strong>r as questões relacionadas às<br />
políticas públicas <strong>de</strong> transposição das águas do Rio São Francisco, porém com o<br />
amadurecimento da idéia o tema centrou-se em seguir os caminhos da água e,<br />
conseqüentemente, os impactos socioambientais <strong>de</strong>stas ações governamentais. O<br />
percurso a ser trilhado para <strong>de</strong>svendar a teia <strong>de</strong> relações que envolvem o tema<br />
"água" foi realizado no chamado eixo Norte; partindo <strong>de</strong> Cabrobó/ PE, ponto inicial<br />
do mega projeto <strong>de</strong> transposição, que por meio <strong>de</strong> canais, cifões, adutoras e até<br />
mesmo aquedutos, transpõe parte da vazão das águas do São Francisco para o<br />
abastecimento dos estados do Pernambuco, Paraíba, Rio Gran<strong>de</strong> do Norte e Ceará,<br />
este último, local on<strong>de</strong> concentrou-se nossas investigações e análises.<br />
14
Diante <strong>de</strong> tal objetivo, o primeiro estorvo enfrentado pela equipe foi viabilizar<br />
financeiramente o trabalho, posto que sempre fora do entendimento <strong>de</strong> todos os<br />
envolvidos nesta empreita, garantir a presença <strong>de</strong> todas as pessoas matriculadas na<br />
disciplina, mesmo sabendo das <strong>de</strong>liberações contrastantes <strong>de</strong> muitos dos membros<br />
que compõem o <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> Geografia <strong>de</strong>sta instituição. Cabia ao grupo,<br />
portanto, angariar recursos para sua realização, e ai começa <strong>de</strong> fato a jornada <strong>de</strong><br />
mobilização dos alunos que iriam participar, elemento esse fundamental, pois <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o principio foi uma forma <strong>de</strong> aproximar os mais dispersos à idéia, situação que gerou<br />
frutos significativos e , conseqüentemente, montou-se comissões <strong>de</strong> trabalho, que<br />
começaram os ativida<strong>de</strong>s ainda no ano <strong>de</strong> 2008. O carro chefe <strong>de</strong>ssa arrecadação<br />
foram as camisetas vendidas, a <strong>de</strong>stacar o símbolo estampado, os continentes<br />
formando a copa <strong>de</strong> uma árvore acoplada ao tronco, enfatizando o enraizamento do<br />
ser Geografia, também foram realizadas rifas, caixinhas, festas, doações pessoais,<br />
repasses <strong>de</strong> verbas institucionais e arrecadação entre os participantes.<br />
Para o projeto levantar vôo, duas comissões eram fundamentais, a comissão<br />
<strong>de</strong> logística responsável por <strong>de</strong>finir o melhor trajeto e a comissão <strong>de</strong> contatos<br />
responsável pela confirmação da viabilida<strong>de</strong> do mesmo, ambas começaram a<br />
trabalhar incessantemente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro semestre <strong>de</strong> 2009 até o final da viagem<br />
em outubro do ano corrente. Logo no inicio das ativida<strong>de</strong>s da disciplina foi<br />
organizada também a comissão <strong>de</strong> redação, encarregada <strong>de</strong> elaborar o projeto do<br />
trabalho, contendo os objetivos a serem alcançados. Em setembro, foram <strong>de</strong>finidas<br />
novas comissões, as responsáveis em apoiar o grupo durante a viagem, sendo elas:<br />
comissão <strong>de</strong> abastecimento <strong>de</strong> água, limpeza, alimentação, e as comissões que<br />
auxiliariam na coleta <strong>de</strong> material para a elaboração do trabalho final e que<br />
caminhariam até o final das ativida<strong>de</strong>s, a comissão <strong>de</strong> apoio, direcionada a coleta <strong>de</strong><br />
dados <strong>de</strong> primeira or<strong>de</strong>m, através do GPS na viagem, o pessoal do áudio visual, das<br />
fotografias, que ao final teve apoio <strong>de</strong> todos que tinham a disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> registrar<br />
os momentos vividos, nessa experiência.<br />
Enquanto seres humanos, era indispensável para todos os envolvidos no<br />
trabalho <strong>de</strong>scansar e para tanto, ao final <strong>de</strong> cada dia <strong>de</strong> viagem havia um espaço<br />
conseguido pelas duas comissões fundamentais. São os casos dos alojamentos<br />
formados na universida<strong>de</strong> UNICERP no município <strong>de</strong> Patrocínio/MG e da escola<br />
estadual Abdias Menezes no município <strong>de</strong> Vitória da Conquista/BA.<br />
15
No município <strong>de</strong> Cabrobó/PE, a cida<strong>de</strong> se<strong>de</strong> do primeiro ponto <strong>de</strong> estudo do<br />
projeto, o grupo <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> campo ficou alojado em uma residência gran<strong>de</strong>, mas<br />
que não <strong>de</strong>u conta da massa <strong>de</strong> pessoas (em torno <strong>de</strong> 65 pessoas), on<strong>de</strong> muitos<br />
dormiram na garagem, no quintal, e meninas mesmo com o privilégio <strong>de</strong> ficarem com<br />
a suíte, o maior <strong>de</strong> todos os cômodos, não escaparam ao <strong>de</strong>stino que lhes pregou<br />
uma peça. Todos nós, com o objetivo <strong>de</strong> investigar a água no NE, ou a seca, para<br />
clarear as idéias, eis que no meio da madrugada, por volta das 4 horas da manhã,<br />
especificamente, período imprescindível e muito esperado por boa parte dos<br />
integrantes para realizarem suas necessida<strong>de</strong>s tidas como primeira, o sono, eis que<br />
vem a surpresa, a suíte fora alagada, mulheres gritando e correndo, nada podia ser<br />
entendido e o lí<strong>de</strong>r do bando, Thomaz Jr, estabeleceu um comando <strong>de</strong> operação <strong>de</strong><br />
evacuação e averiguação dos fatos. Colchonetes pendurados, aquele caos instalado<br />
e então a revelação, a água tinha acabado, <strong>de</strong>vido a um cidadão <strong>de</strong>veras esperto,<br />
<strong>de</strong>ixaste a torneira do banheiro aberta, causa <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira enchente que<br />
aguçara os humores, para mais ou para menos, <strong>de</strong> todos os componentes da<br />
equipe, mas que não refletira na consecução dos trabalhos daquele dia. Questão<br />
resolvida, entretanto, quanto ao cidadão, somente a vida po<strong>de</strong>rá concertá-lo.<br />
No município <strong>de</strong> Nova Jaguaribara/ CE centraram os principais esforços <strong>de</strong><br />
averiguação e análise dos impactos sociais efetivados pela grandiosa obra <strong>de</strong><br />
transposição.<br />
A estada nesta localida<strong>de</strong> nos revelou o quanto nós, seres até àquele<br />
momento, tidos como "civilizados", cidadãos "metropolitanos", universitários, temos<br />
muito que apren<strong>de</strong>r com a vida e internalizar novos valores <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>, coisas<br />
que a universida<strong>de</strong> jamais po<strong>de</strong>ria nos oferecer se não fosse a efetivação <strong>de</strong>ste<br />
trabalho. Em todo período que permanecemos nesta cida<strong>de</strong> singular, fomos muito<br />
bem recebidos, acomodados e mesmo servidos por pessoas realmente incríveis.<br />
Inúmeros relatos feitos pelos membros <strong>de</strong> nossa equipe revelaram a prestativida<strong>de</strong> e<br />
auxílio do povo cearense para conosco em um momento <strong>de</strong> intenso trabalho.<br />
Permanecemos em Nova Jaguaribara por três dias. Ela foi o ponto<br />
estratégico que utilizamos para realizarmos nossas incursões diárias ao encontro<br />
das "populações difusas", termo polissêmico, utilizado por muitos pesquisadores <strong>de</strong><br />
maneira i<strong>de</strong>ológica, mascarando o que para nosso entendimento se trata <strong>de</strong><br />
comunida<strong>de</strong>s ameaçadas e impactadas pelas obras <strong>de</strong> armazenamento <strong>de</strong> água, os<br />
açu<strong>de</strong>s, e pela construção dos canais que irão carrear as águas da transposição do<br />
16
Rio São Francisco, enfim, por toda infra-estrutura que já se faz presente e/ou em<br />
vias <strong>de</strong> execução no Estado do Ceará.<br />
Ao todo, foram onze pontos visitados durante o período em que ficamos<br />
alojados no projeto ABC, em Nova Jaguaribara. Tais visitas foram acompanhadas <strong>de</strong><br />
perto por pesquisadores <strong>de</strong> outras instituições, estudantes <strong>de</strong> Pós-Graduação e<br />
membros <strong>de</strong> movimentos sociais, como o Movimento dos Atingidos por Barragens<br />
do Ceará. A metodologia empregada nessas visitas foi a divisão interna dos<br />
membros da equipe em diversos grupos com o intuito <strong>de</strong> focar assuntos específicos<br />
e realizar entrevistas com a população local.<br />
Em uma <strong>de</strong> nossas incursões a<strong>de</strong>ntro da caatinga, com o objetivo <strong>de</strong> visitar<br />
algumas comunida<strong>de</strong>s e reassentamentos, foi necessário a utilização <strong>de</strong> outros<br />
meios <strong>de</strong> transporte, pois os ônibus que até àquele momento nos tinham<br />
proporcionado completo apoio logístico, foram impossibilitados <strong>de</strong> serem usados<br />
<strong>de</strong>vido às condições do terreno. É nesse momento que lançamos mão, novamente<br />
aos bolsos, e o grupo fez o "rateio dos pau-<strong>de</strong>-araras". Caminhonetes, caminhões,<br />
carros e motos foram utilizados como veículos <strong>de</strong> transporte <strong>de</strong> toda equipe, em<br />
uma verda<strong>de</strong>ira manobra <strong>de</strong> operação <strong>de</strong> guerra, ou mais condizente à nossa<br />
realida<strong>de</strong>, guerrilha.<br />
Embora a maioria das pessoas envolvidas nessa empreita pu<strong>de</strong>ram se<br />
acomodar nos veículos, um gran<strong>de</strong> colega, um dos maiores animadores do grupo,<br />
por sua imensa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressar-se e <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> incrível, não<br />
conseguiu se afeiçoar ao novo meio <strong>de</strong> transporte e, ao primeiro solavanco do "pau<strong>de</strong>-arara",<br />
vai ao chão. Nem mesmo o gran<strong>de</strong> esforço <strong>de</strong> alguns colegas para tentar<br />
mantê-lo na caçamba da caminhonete po<strong>de</strong> conter seu peso somado à força do<br />
tranco. Conquanto não tivéssemos elaborado uma comissão <strong>de</strong> resgate, não houve<br />
ferimentos ou escoriações, somente mais um fato para alimentar inúmeras<br />
gargalhadas.<br />
No caminho para a capital Fortaleza/CE, fizemos uma breve parada na<br />
famosa praia <strong>de</strong> Canoa Quebrada, local on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>mos, com nossos calcanhares,<br />
verificar a temperatura das águas daquele imenso e maravilhoso mar.<br />
Ficamos hospedados na UECE (Universida<strong>de</strong> Estadual do Ceará). Neste<br />
local contamos com a incomensurável presença do Professor Emérito Luiz Cruz<br />
Lima, que nos acompanhou em todo percurso efetivado na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Fortaleza, no<br />
entorno da Região Metropolitana até o porto <strong>de</strong> Pecém. Não po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />
17
fazer uma menção àquela tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> muito trabalho a beira mar, que regados a<br />
camarão e cerveja, exercitamos em diálogos profundos com nossos pares toda<br />
nossa "musculatura" teórica acumulada até aquele momento.<br />
Após a conclusão dos pontos <strong>de</strong> trabalho, uma nova e grandiosa viagem,<br />
que durou três dias, mas não menos empolgante que a totalida<strong>de</strong> do trabalho.<br />
A primeira parada foi em Juazeiro do Norte. Em uma verda<strong>de</strong>ira<br />
<strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimento e <strong>de</strong>voção, <strong>de</strong> alguns, foi feito o pedido <strong>de</strong><br />
proteção e a concessão da benção da figura sacra <strong>de</strong> Padre Cícero. Os ônibus<br />
saíram <strong>de</strong> Juazeiro do Norte com algumas bugigangas a mais, presentes para a<br />
família, como por exemplo, a imagem do padre, fez parte da lista <strong>de</strong> compras do<br />
pessoal.<br />
No caminho para Petrolina, cida<strong>de</strong> na qual pernoitamos, passamos por<br />
Exú/PE, especificamente, no Parque Asa Branca, on<strong>de</strong> se localiza o Museu do<br />
Gonzagão, homenagem ao músico Luiz Gonzaga, rei do baião, o qual inspirou por<br />
toda a viagem o bando <strong>de</strong> músicos <strong>de</strong> plantão, e colaborou para a formação do mais<br />
novo grupo do cenário musical totalmente amador, "Os Desencontrados do Baião",<br />
batizado por Thomaz Jr. e com uma apresentação ao vivo <strong>de</strong>ntro do museu.<br />
Ainda que o intuito <strong>de</strong>ssa vigem, sobretudo, no plano da sociabilida<strong>de</strong>,<br />
também objetivasse a aproximação e maior contato entre a "galera", não po<strong>de</strong>mos<br />
negligenciar, ao menos neste pequeno parágrafo, a monotonia e o ambiente<br />
enfadonho que se encontrara, em vários momentos, o interior do Pruda Express –<br />
ônibus do campus <strong>de</strong> Presi<strong>de</strong>nte Pru<strong>de</strong>nte. Em situação totalmente contrastante em<br />
relação ao Rosanão Express – ônibus do campus <strong>de</strong> Rosana – que entre batuques<br />
dos Desencontrados do Baião, festas intermináveis, jogos <strong>de</strong> azar, um triângulo que<br />
propagou um som estri<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Salinas-MG à Vitória da Conquista-BA, e sua<br />
conseqüente extinção, proporcionaram momentos <strong>de</strong> intensa excitação, garotagem<br />
e mesmo "azaração".<br />
A caminho <strong>de</strong> Barreiras-BA, ocorreu mais um dos vários problemas<br />
mecânicos com um dos ônibus que segurou o grupo por quase toda a madrugada. E<br />
eis que mais uma vez o elemento surpresa se fez presente entre a equipe.<br />
Nas bordas da Chapada Diamantina, distante uns 100km, aproximadamente,<br />
<strong>de</strong> toda e qualquer mancha urbana, ocorreu uma baixa. Um indivíduo dos mais<br />
robustos e saudáveis <strong>de</strong> toda equipe, totalmente visível pela sua forma bem<br />
equilibrada em seus 110kg bem distribuídos pelos seus quase 1,75m <strong>de</strong> altura, fora<br />
18
abatido por um perigosíssimo componente do ecossistema terrestre com incidência<br />
em todos os continentes, inseto pertencente à or<strong>de</strong>m Hymenoptera, da superfamília<br />
Apoi<strong>de</strong>a e do subgrupo Anthophila, ou simplesmente abelha. Este inseto, <strong>de</strong><br />
aproximadamente dois gramas <strong>de</strong>rrotou um sujeito <strong>de</strong> 110kg.<br />
O resultado <strong>de</strong>ssa representação épica foi novamente a divisão do grupo.<br />
Um ônibus levou o indivíduo vitimado ao hospital, <strong>de</strong>vido a uma possível reação<br />
alérgica, juntamente com quase a totalida<strong>de</strong> das mulheres. Aos <strong>de</strong>mais restou uma<br />
bela madrugada em um posto <strong>de</strong> gasolina, no interior da Bahia e ainda, sem o<br />
principal, o banho, pois o chefe da manada, imperativo, e no uso <strong>de</strong> seus po<strong>de</strong>res e<br />
atribuições <strong>de</strong> "capa", proibiu essa prática burguesa para os integrantes<br />
malcheirosos do grupo naquela noite.<br />
Deixando essas linhas ligeiramente cômicas e em tom <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>iras,<br />
queremos realmente agra<strong>de</strong>cer muitos companheiros que nos ajudaram a direcionar<br />
o foco da investigação, com a clareza <strong>de</strong> suas experiências. 1) Destacamos a<br />
participação da querida Cíntia, Professora <strong>de</strong> Geografia da UECE, campus <strong>de</strong><br />
Sobral e do Juscelino, atualmente fazendo doutorado em Geografia na Unesp/PP,<br />
que percorreu quase todo o percurso com o grupo; 2) o pessoal do MAB (Movimento<br />
dos Atingidos por Barragem), particularmente ao Yuri, por sua luta e disposição; 3)<br />
os colegas do projeto ABC, <strong>de</strong> Nova Jaguaribara, que abriu as portas para nos<br />
acolher em seu espaço, cancelando inclusive as aulas para nossa estada; 4) à Irmã<br />
Berna<strong>de</strong>te que com toda sua graça cativou nossos corações e <strong>de</strong>monstrou com<br />
firmeza a razão <strong>de</strong> luta dos povos submetidos ao contra-senso do po<strong>de</strong>r publico; 5)<br />
às irmãs do Retiro das Freiras, Barreiras/Ba, que nos abrigou em suas confortáveis<br />
instalações em um momento crucial <strong>de</strong> nossa viagem.<br />
Nosso agra<strong>de</strong>cimento também a todas as pessoas que disponibilizaram<br />
casas, escolas e universida<strong>de</strong>s, como foram nas cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Patrocínio-MG, Vitória<br />
da Conquista/BA, Cabrobó/PE, Nova Jaguaribara/CE, Fortaleza/CE, Petrolina/PE e<br />
o convento em Barreiras/BA.<br />
Os caminhos que percorremos apresentaram, como era previsto, muitos<br />
imprevistos. Um <strong>de</strong>les foi o transporte, sendo necessário em alguns momentos partir<br />
para meios alternativos como o pau-<strong>de</strong>-arara e caminhonetes, assim como a moto<br />
sem freio do Yuri, não <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ressaltar o capacete, equipamento indispensável<br />
para o tráfego <strong>de</strong> motocicletas, não faz parte da indumentária do motociclista nas<br />
pequenas cida<strong>de</strong>s do interior Nor<strong>de</strong>stino, que, inclusive, por inúmeras vezes,<br />
19
transporta o máximo <strong>de</strong> pessoas que pu<strong>de</strong>rem se equilibrar neste pequeno veículo,<br />
fato experenciado por alguns "oreia" <strong>de</strong> nosso grupo.<br />
Os <strong>de</strong>sentendimentos que surgiram, em um ambiente com muitas pessoas<br />
convivendo em condições adversas fez aflorar em dadas circunstâncias sentimentos<br />
e emoções <strong>de</strong> difícil controle pessoal, situações em que a razão era <strong>de</strong>ixada <strong>de</strong> lado<br />
a fim <strong>de</strong> extravasar tal sentimento, e nessa hora o lí<strong>de</strong>r por comoção, Thomaz Jr,<br />
cumpriu com firmeza seu papel e pediu <strong>de</strong> forma contun<strong>de</strong>nte como ele diz “usem os<br />
neurônios e <strong>de</strong>ixem <strong>de</strong> lado esses sentimentos pequenos, se tem algo que você não<br />
gosta da forma que está sendo feita, nada, exatamente nada, te proíbe <strong>de</strong><br />
participar”, essa foi uma saída para as questões pessoais e trouxe ao grupo coesão,<br />
através do reconhecimento mutuo e reflexivo.<br />
Um agra<strong>de</strong>cimento em especial é feito aos excelentes motoristas (Edvaldo,<br />
Fábio e Pedro) dos ônibus. Os quais, por todo o percurso, mantiveram o<br />
profissionalismo e acurácia no <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s e sendo, durante<br />
toda a viagem, compreensíveis com os jovens futuros professores e geógrafos. A<br />
estes, que prontos a qualquer hora e lugar, nosso muito obrigado.<br />
Todas as comissões trabalharam imensamente para a realização <strong>de</strong>sse<br />
trabalho, isso não quer dizer que todas as pessoas participaram plenamente, pois<br />
assim não po<strong>de</strong>ria ser, se não on<strong>de</strong> ficaria a discordância no mundo e suas regras, a<br />
todos os grupos foram dadas tarefas árduas, mas todas foram superadas com muita<br />
firmeza e trazendo à cada um, crescimento enquanto pessoa e profissional <strong>de</strong> valia<br />
imensurável, haja visto que o trabalho em grupo é algo poucas vezes visto, mas<br />
po<strong>de</strong>-se dizer que nesse caso foi assim que aconteceu.<br />
Por fim agra<strong>de</strong>cemos a esta instituição pelos recursos repassados, a chefia<br />
do Departamento, ao Reitor <strong>de</strong>sta Universida<strong>de</strong>, ao Professor Antonio Thomaz<br />
Júnior, e principalmente, a todos que colaboraram para que esse gran<strong>de</strong> projeto se<br />
realizasse. Esperamos ter alcançado objetivos, no mínimo, com uma boa qualida<strong>de</strong>,<br />
e seus resultados, fruto <strong>de</strong> muito trabalho e <strong>de</strong>dicação, serão arrolados e discutidos<br />
por todos nós ao longo <strong>de</strong>ste relatório.<br />
20
3. TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO EM TEMPOS DE<br />
PAC<br />
O primeiro ponto <strong>de</strong> trabalho da nossa investigação <strong>de</strong> campo nos envolveu<br />
no semi-árido nor<strong>de</strong>stino e na polêmica em torno da transposição do rio São<br />
Francisco e a integração <strong>de</strong> suas águas às bacias do Nor<strong>de</strong>ste Setentrional ou como<br />
o <strong>de</strong>nomina o governo: Projeto São Francisco – Água a quem tem se<strong>de</strong>, viabilizado<br />
pelo Programa da Aceleração do Crescimento (PAC).<br />
Quando consi<strong>de</strong>ramos as políticas públicas voltadas para a região semiárida<br />
do Nor<strong>de</strong>ste brasileiro, notamos que, a fragmentação político-administrativa<br />
aliada à força política e a aparente união dos grupos dominantes tradicionais e<br />
emergentes sustenta a venda da imagem do sub<strong>de</strong>senvolvimento regional. A partir<br />
disso, como aponta Corrêa (2005) as portas estão abertas para a obtenção <strong>de</strong><br />
“recursos públicos que, se não resolvem os problemas da região, contribuem para<br />
manter os grupos dominantes no po<strong>de</strong>r”.<br />
Neste contexto, para evi<strong>de</strong>nciar a atuação do governo na região Nor<strong>de</strong>ste<br />
faz-se necessário uma caracterização do Departamento Nacional <strong>de</strong> Obras Contra<br />
as Secas (DNOCS). Principal órgão responsável pela gestão e materialização dos<br />
projetos <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> açu<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>mais formas <strong>de</strong> disponibilização <strong>de</strong> água, o<br />
DNOCS se constitui na mais antiga instituição fe<strong>de</strong>ral com atuação no Nor<strong>de</strong>ste.<br />
Criado sob o nome <strong>de</strong> Inspetoria <strong>de</strong> Obras Contra as Secas - IOCS através do<br />
Decreto 7.619 <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1909 editado pelo então Presi<strong>de</strong>nte Nilo<br />
Peçanha, <strong>de</strong>pois recebeu o nome <strong>de</strong> Inspetoria Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Obras Contra as Secas -<br />
IFOCS antes <strong>de</strong> assumir sua <strong>de</strong>nominação atual, que lhe foi conferida em 1945<br />
(Decreto-Lei 8.846, <strong>de</strong> 28/<strong>12</strong>/1945), vindo a ser transformado em autarquia fe<strong>de</strong>ral,<br />
através da Lei n° 4229, <strong>de</strong> 01/06/1963. Chegou a se constituir na maior empreiteira<br />
da América Latina na época em que o Governo Fe<strong>de</strong>ral construía, no Nor<strong>de</strong>ste, suas<br />
obras por administração. Além <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s açu<strong>de</strong>s, como Orós, Banabuiú, Araras,<br />
po<strong>de</strong>mos registrar a construção da rodovia Fortaleza-Brasília e o início da<br />
construção da barragem <strong>de</strong> Boa Esperança (OLIVEIRA, 1985).<br />
Para Francisco <strong>de</strong> Oliveira (1985), em momento anterior às obras<br />
faraônicas, que nos chamou atenção, o DNOCS <strong>de</strong>dicou-se, sobretudo, à<br />
21
construção <strong>de</strong> barragens para o represamento da água, para utilização em períodos<br />
<strong>de</strong> seca, e ao construí-las nas proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s fazen<strong>de</strong>iros: não eram<br />
barragens públicas, na maioria dos casos, apesar <strong>de</strong> utilizarem <strong>de</strong> recursos públicos.<br />
Serviam, sobretudo, para sustentação do gado <strong>de</strong>sses fazen<strong>de</strong>iros, e apenas<br />
marginalmente para a implantação <strong>de</strong> pequenas “culturas <strong>de</strong> subsistência” <strong>de</strong><br />
várzeas, assim chamadas as ribeiras das barragens.<br />
Com isso, temos que o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do Brasil era<br />
totalmente <strong>de</strong>sigual e, portanto, havia a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> implementar políticas <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento regional para “<strong>de</strong>senvolver” e dar conta da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> gerada<br />
pelo <strong>de</strong>senvolvimento da região su<strong>de</strong>ste impulsionada pelo crescimento industrial <strong>de</strong><br />
São Paulo, que teve na sua fonte, a acumulação do capital pelo setor cafeeiro.<br />
Diante <strong>de</strong>sse quadro, a criação do DNOCS objetivou levar <strong>de</strong>senvolvimento<br />
para região Nor<strong>de</strong>ste, tendo como base a política <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver e integrar esta ao<br />
conjunto do país. Hoje essa é ainda uma das principais funções do DNOCS e<br />
também do Ministério da Integração Nacional (MIN), que atuam diretamente e<br />
interligados nas obras do Projeto <strong>de</strong> Transposição do Rio São Francisco que,<br />
segundo os <strong>de</strong>poimentos dos diretores do órgão e funcionários <strong>de</strong> alto escalão do<br />
Ministério, “visa o <strong>de</strong>senvolvimento do Semi-Árido nor<strong>de</strong>stino a partir da<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resolução da problemática da seca”. (Informação verbal 2 ).<br />
3.1 Cabrobó no contexto da transposição<br />
Segundo os dados do IBGE, o município <strong>de</strong> Cabrobó tem aproximadamente<br />
28.851 habitantes sendo que 17.696 habitantes vivem na área urbana,<br />
representando 61,34% da população total e 11.155 resi<strong>de</strong>m no meio rural,<br />
constituindo, portanto, 38,66% da população total. A população é composta por<br />
13.965 homens sendo 48,40% da população e as mulheres representam 14.637,<br />
totalizando 50,73% da população.<br />
2<br />
Informação concedida por funcionário do Ministério da Integração nas obras da Embocadura do<br />
canal no município <strong>de</strong> Cabrobó/PE.<br />
22
O aumento populacional entre os anos <strong>de</strong> 2007 (28.888) e 2008 (31.2000)<br />
está correlacionado à oferta <strong>de</strong> empregos gerados diretamente pelas empreiteiras<br />
que ganharam licitação para realizarem partes do trecho inicial da obra <strong>de</strong><br />
Transposição, juntamente com o Exército.<br />
Entretanto, mesmo com a forte atuação <strong>de</strong> empresas do setor da construção<br />
civil no município, a ativida<strong>de</strong> agropecuária continua como a maior fonte <strong>de</strong> renda<br />
(Tabela 1).<br />
Tabela 1 ‐ Pessoas ocupadas por ativida<strong>de</strong>s econômicas ‐ 2000<br />
Ativida<strong>de</strong>s Econômicas TOTAL %<br />
Agropecuária 5.249 51,8<br />
Comércio, reparação <strong>de</strong> veículos,<br />
objetos pessoais e domésticos 1.421 14,0<br />
Outras ativida<strong>de</strong>s 3.460 34,2<br />
TOTAL 10.130 100.00<br />
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 – Resultados da<br />
Amostra<br />
O número <strong>de</strong> estabelecimento e <strong>de</strong> empregados, <strong>de</strong> 2007, do setor formal da<br />
economia mostra que os principais ramos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> econômica são constituídos<br />
pela administração pública e pelo comércio varejista.<br />
O principal produto da agricultura é o plantio da cebola (Tabela 2) e na<br />
pecuária o criatório <strong>de</strong> caprinos (Tabela 3).<br />
Tabela 2 ‐ Principais culturas agrícolas ‐ 2007<br />
Culturas<br />
Área<br />
colhida<br />
(ha)<br />
Quantida<strong>de</strong><br />
Produzida (t)<br />
Rendimento<br />
médio<br />
(kg/ha)<br />
Valor<br />
(R$ 1.000)<br />
Cebola 1.300 <strong>23</strong>.400 18.000 16.380<br />
Arroz (em<br />
casca) 1.500 9.000 6.000 2.610<br />
Melancia 200 7.000 35.000 2.007<br />
Banana 60 1.500 25.000 525<br />
Coco-da-baía 1 110 1.500 13.636 488<br />
Fonte: IBGE, Produção Agrícola Municipal<br />
(1) Quantida<strong>de</strong> produzida em mil frutos e rendimento médio em frutos por<br />
hectare<br />
Tabela 3 ‐ Efetivo dos Rebanhos e produção animal ‐ 2007<br />
Especificação<br />
Quantida<strong>de</strong><br />
(cabeças)<br />
Efetivo dos rebanhos<br />
Caprino 39.000<br />
<strong>23</strong>
4).<br />
Ovino 18.000<br />
Bovino 16.000<br />
Suíno <strong>12</strong>.600<br />
Equino 1.200<br />
Asinino 700<br />
Muar <strong>12</strong>0<br />
Galos, frangos, frangas, pintos 18.500<br />
Galinhas 13.800<br />
Produção animal<br />
Leite produzido (1.000 litros) 1.958<br />
Ovos <strong>de</strong> galinha (1.000 dúzias) 85<br />
Fonte: IBGE, Pesquisa da Pecuária Municipal, 2007.<br />
No entanto, o setor <strong>de</strong> serviços representa 72,37% do PIB municipal (Tabela<br />
Tabela 4 ‐ PIB Municipal <strong>de</strong> Cabrobó/PE ‐ 2006<br />
Discriminação Valor<br />
PIB Municipal 1 (R$ 1000,00) 103.572<br />
Participação % no PIB <strong>de</strong> PE 0,19<br />
Composição Setorial (%)<br />
Agropecuária 14,77<br />
Indústria <strong>12</strong>,76<br />
Serviços 72,37<br />
Fonte: IBGE e Agência CONDEP/FIDEM<br />
(1) PIB a preço <strong>de</strong> mercado<br />
Já no que tange à educação o município apresenta altos índices <strong>de</strong><br />
analfabetismo, apesar <strong>de</strong> estar com uma leve tendência <strong>de</strong> queda. Po<strong>de</strong>-se<br />
evi<strong>de</strong>nciar, portanto, que a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> anos <strong>de</strong> estudo da maioria da população<br />
<strong>de</strong> Cabrobó, principalmente as pessoas que têm ida<strong>de</strong> para exercer ativida<strong>de</strong>s<br />
remuneradas, reflete na baixa qualificação profissional e, conseqüentemente,<br />
submete-os à intensa exploração da mão-<strong>de</strong>-obra. (Tabela 5).<br />
24
Tabela 5 ‐ Instrução da população por faixas etárias. 1991 ‐ 2000<br />
Discriminação<br />
Taxa <strong>de</strong><br />
analfabetismo<br />
% com menos<br />
<strong>de</strong> 4 anos <strong>de</strong><br />
estudo<br />
% com menos<br />
<strong>de</strong> oito anos<br />
<strong>de</strong> estudo<br />
Média <strong>de</strong> anos<br />
<strong>de</strong> estudo<br />
7 a 14 10 a 14 15 a 17 18 a 24 25 ou mais<br />
1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000<br />
56 28 42 16,9 27,8 8,72 31 15,3 49,8 39,2<br />
- - 75,5 63 55,5 27,1 47,5 33,7 71,8 58,2<br />
- - - - 92,6 84,8 80,3 69,6 89,9 82,7<br />
- - - - - - - - 2,43 3,54<br />
Fonte: PNUD/IPEA/FJP, Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil<br />
Sobre o saneamento básico dos 6.137 domicílios registrados <strong>de</strong> Cabrobó,<br />
em 2000, só 68% e abastecido por água da re<strong>de</strong> geral, 57,24% tem banheiro ou<br />
sanitário e 52,60 % do lixo e coletado pelo município. (Tabela 6).<br />
E quanto ao abastecimento <strong>de</strong> água por re<strong>de</strong> geral, fica explícito a<br />
in<strong>de</strong>finição das políticas públicas. Situado às margens do rio São Francisco, um dos<br />
maiores do Brasil em extensão e potencialida<strong>de</strong> hídrica, o município <strong>de</strong> Cabrobó<br />
ainda sofre com problemas <strong>de</strong> abastecimento hídrico da população local, sobretudo,<br />
as comunida<strong>de</strong>s rurais, revelando a má gestão e distribuição <strong>de</strong> um bem natural<br />
básico necessário para a manutenção da vida.<br />
Tabela 6 ‐ Domicílios por forma <strong>de</strong> abastecimento d'água, com banheiro ou sanitário, e <strong>de</strong>stino do lixo<br />
Abastecimento d’água Banheiro ou sanitário Destino do lixo<br />
Total <strong>de</strong><br />
domicílios<br />
Re<strong>de</strong><br />
geral<br />
Poço ou<br />
nascente Outra<br />
Tinham<br />
Total<br />
Não<br />
Coletado<br />
tinham<br />
Outro<br />
<strong>de</strong>stino<br />
Re<strong>de</strong><br />
Geral<br />
6.137 4.173 657 1.307 3.513 2.966 2.624 3.228 2.909<br />
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 – Resultados do Universo<br />
Diante da realida<strong>de</strong> vista in loco, pu<strong>de</strong>mos perceber que o maior problema<br />
da região Nor<strong>de</strong>ste em relação à água, não é a sua escassez, mas as barreiras<br />
sociais, econômicas que dificultam e impe<strong>de</strong>m o acesso e utilização <strong>de</strong>ste bem<br />
pelos mais pobres. Nada <strong>de</strong> novo, mas o aumento dos indicadores <strong>de</strong> renda, e com<br />
uma estrutura fundiária baseada em gran<strong>de</strong>s latifúndios, que mantém a submissão<br />
das pessoas carentes e ditam a forma pela qual é apropriada e utilizada a água.<br />
25
3.2 . O Projeto São Francisco: “Água a quem tem se<strong>de</strong>”?<br />
A Região Nor<strong>de</strong>ste apresenta em seu território gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> climática,<br />
mas as áreas <strong>de</strong> clima semi-árido ou o Polígono das Secas abrangem a maior parte<br />
<strong>de</strong> todos os oito estados. São aproximadamente 86,48% <strong>de</strong> toda a região na qual a<br />
questão da água se faz presente no cotidiano das populações que lá vivem.<br />
O clima semi-árido na Região Nor<strong>de</strong>ste no Brasil é resultado da conjunção<br />
<strong>de</strong> diversos fatores, como: a diferença <strong>de</strong> temperatura entre as águas do Atlântico<br />
Norte, que são mais quentes, e as do Sul, mais frias; o <strong>de</strong>slocamento da Zona <strong>de</strong><br />
convergência intertropical para o Hemisfério Norte, quando há o aumento da<br />
temperatura no Sul; o aparecimento do fenômeno El Niño, caracterizado pelo<br />
aumento <strong>de</strong> temperatura no Oceano Pacífico; e a topografia aci<strong>de</strong>ntada que acaba<br />
inibindo a ocorrências <strong>de</strong> chuvas.<br />
As condições climáticas que têm gerado, historicamente, episódios <strong>de</strong> seca<br />
<strong>de</strong> média e longa duração, aliadas à inexistência <strong>de</strong> uma política eficiente e<br />
continuada <strong>de</strong> gestão dos recursos hídricos na região acabam impactando<br />
negativamente o <strong>de</strong>senvolvimento regional, com graves conseqüências para a<br />
população, sendo, pois, uma das principais conseqüências, ainda no século XXI a<br />
migração para outras Regiões do país.<br />
Com isso tem-se a continuida<strong>de</strong> do que já foi mais contun<strong>de</strong>nte nas décadas<br />
anteriores, ou seja, a manutenção da precarieda<strong>de</strong> das condições <strong>de</strong> vida, diante do<br />
amontoamento <strong>de</strong>ssas populações nas periferias das cida<strong>de</strong>s receptoras, o aumento<br />
do número <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados e os problemas relacionados a não possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
obtenção <strong>de</strong> renda nas áreas urbanas.<br />
Posto essa <strong>de</strong>scrição partimos para a compreensão da alternativa imposta<br />
pelo Po<strong>de</strong>r Público como capaz <strong>de</strong> solucionar efetivamente a questão da seca do<br />
Nor<strong>de</strong>ste brasileiro mediante o Projeto São Francisco.<br />
Enten<strong>de</strong>r o Projeto São Francisco no âmbito da política pública voltada para<br />
a gestão hídrica na Região Nor<strong>de</strong>ste é imprescindível para que possamos enten<strong>de</strong>r<br />
sua abrangência significativa, <strong>de</strong>vido a sua extensão, aos investimentos públicos e a<br />
quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas envolvidas, seja no <strong>de</strong>senvolvimento das obras seja nos<br />
reflexos causados por elas. Sem dúvida alguma, nenhuma outra obra pública<br />
relacionada à seca no semi-árido nor<strong>de</strong>stino conseguiu atingir tamanha<br />
26
expressivida<strong>de</strong> na mídia e no cotidiano da população brasileira como o Projeto São<br />
Francisco.<br />
O Governo Fe<strong>de</strong>ral, enquanto criador, e o Ministério da Integração Nacional,<br />
na condição <strong>de</strong> executor da intervenção mais grandiosa voltada à questão hídrica já<br />
implementada no Nor<strong>de</strong>ste Setentrional, classificam o Projeto São Francisco como a<br />
alternativa mais efetiva <strong>de</strong> combate à seca na região e como a única alternativa<br />
capaz <strong>de</strong> garantir segurança hídrica para <strong>12</strong> milhões <strong>de</strong> brasileiros<br />
permanentemente. Além do Governo Fe<strong>de</strong>ral e do Ministério da Integração, diversos<br />
órgãos públicos atuam diretamente no Projeto, como o DNOCS.<br />
O Projeto está orçado em R$5 bilhões, <strong>de</strong>stinados pelo Programa <strong>de</strong><br />
Aceleração do Crescimento (PAC), e emprega entre 8 e 10 mil trabalhadores em<br />
suas frentes <strong>de</strong> trabalho espalhados ao longo do traçado do Canal da Integração. As<br />
ações irão atingir, em 2025, período <strong>de</strong>finido pelos mentores do Projeto para o<br />
término <strong>de</strong> todas as obras e regularização do uso da água, <strong>12</strong> milhões <strong>de</strong> pessoas<br />
que vivem em 390 municípios entre os estados do Pernambuco, Paraíba, Rio<br />
Gran<strong>de</strong> do Norte e Ceará, e tem o intuito <strong>de</strong> garantir segurança hídrica a estas<br />
pessoas a partir da integração do rio São Francisco com as bacias hidrográficas do<br />
Nor<strong>de</strong>ste Setentrional.<br />
Segundo o secretário <strong>de</strong> Infra-Estrutura Hídrica do Ministério da Integração<br />
Nacional, João Reis Santana Filho, a priorida<strong>de</strong> do Projeto <strong>de</strong> Integração será<br />
fornecer água para consumo humano e animal. Em segundo plano, em caso <strong>de</strong><br />
sobra da água, cada Governo Estadual beneficiado com o Projeto po<strong>de</strong>rá usá-la, da<br />
forma como achar melhor, em ativida<strong>de</strong>s que visem o <strong>de</strong>senvolvimento econômico<br />
<strong>de</strong> seu Estado.<br />
Outro objetivo do Projeto <strong>de</strong> Integração <strong>de</strong> Bacias é manter os açu<strong>de</strong>s do<br />
Nor<strong>de</strong>ste Setentrional (Castanhão – CE, Armando Ribeiro Gonçalves – RN, Epitácio<br />
Pessoa – PB, Poço da Cruz – PE e outros) com uma capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> água suficiente<br />
para garantir o fornecimento <strong>de</strong> água para cida<strong>de</strong>s e perímetros <strong>de</strong> irrigação nos<br />
períodos <strong>de</strong> seca. Para isso, nos diversos estados beneficiados com o Projeto já<br />
estão em andamento obras que visam construir e ampliar sistemas <strong>de</strong> distribuição<br />
<strong>de</strong> água dos reservatórios estratégicos, não restringindo o Projeto à construção dos<br />
canais.<br />
Ainda, o Ministério da Integração afirma que o Projeto é benéfico, pois ao<br />
mesmo tempo em que garante o abastecimento por longo prazo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s centros<br />
27
urbanos (Fortaleza, Juazeiro do Norte, Crato, Mossoró, Campina Gran<strong>de</strong>, Caruaru,<br />
João Pessoa) e <strong>de</strong> pequenas e médias cida<strong>de</strong>s do Semi-árido, também irá atingir<br />
positivamente áreas do interior do Nor<strong>de</strong>ste que possuem certo potencial<br />
econômico, possibilitando assim uma política <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconcentração do<br />
<strong>de</strong>senvolvimento, polarizado pelas capitais dos estados. Além disso, os benefícios<br />
também se esten<strong>de</strong>m para a área rural, com o abastecimento <strong>de</strong> água para a<br />
população rural, através da manutenção dos rios nos períodos <strong>de</strong> seca e da<br />
construção <strong>de</strong> adutoras para o atendimento <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> localida<strong>de</strong>s na área<br />
rural (ABREU et al, 2008).<br />
A integração do rio São Francisco às bacias dos rios intermitentes do semiárido<br />
será feita com a retirada contínua <strong>de</strong> 26,4 m³/s <strong>de</strong> água, o equivalente a 1,4%<br />
da vazão do rio, por meio <strong>de</strong> dois canais, os Eixos Norte e Leste, sem <strong>de</strong>svio do<br />
curso do rio. As bacias receptoras, ou seja, aquelas que receberão água do rio São<br />
Francisco são: Brígida, Terra Nova, Pajeú, Moxotó e Bacias do Agreste em<br />
Pernambuco; Jaguaribe e Metropolitanas no Ceará; Apodi e Piranhas-Açu no Rio<br />
Gran<strong>de</strong> do Norte; Paraíba e Piranhas na Paraíba.<br />
A obra do Projeto <strong>de</strong> integração do São Francisco está dividida em 14 lotes<br />
e cada um <strong>de</strong>les se encontra em estágio diferente, sendo o Exército e algumas<br />
empreiteiras os responsáveis pela execução das obras. Cada empreiteira, ou<br />
consórcio é responsável pela construção <strong>de</strong> 2 lotes e o Exército é responsável pela<br />
construção dos canais <strong>de</strong> aproximação dos dois eixos: 1) Norte, o reservatório<br />
Tucutu (Cabrobó), 2) Leste, a Barragem <strong>de</strong> Areias (Floresta). Os dois canais já estão<br />
em construção, cada um com estágio diferente <strong>de</strong> andamento nas obras, e tem<br />
direções distintas: o Eixo Norte levará água para os sertões <strong>de</strong> Pernambuco, Ceará,<br />
Paraíba e Rio Gran<strong>de</strong> do Norte, e o Eixo Leste beneficiará parte do sertão e a região<br />
agreste <strong>de</strong> Pernambuco e Paraíba.<br />
O Eixo Norte, objeto da nossa investigação, irá captar a água do rio São<br />
Francisco nas proximida<strong>de</strong>s da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cabrobó, no estado do Pernambuco. Ele<br />
terá cerca <strong>de</strong> 400 km e conduzirá água aos rios Salgado e Jaguaribe, no Ceará;<br />
Apodi, no Rio Gran<strong>de</strong> do Norte; e Piranhas-Açu, na Paraíba e Rio Gran<strong>de</strong> do Norte.<br />
Este Eixo disponibilizará água para três sub-bacias do rio São Francisco: Brígida,<br />
Terra Nova e Pajeú. O Eixo Norte opera com vazão contínua, no entanto, quando<br />
houver volumes exce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> água no rio São Francisco parte <strong>de</strong>la será<br />
armazenada em reservatórios estratégicos das bacias receptoras: Atalho e<br />
28
Castanhão, no Ceará; Armando Ribeiro Gonçalves, Santa Cruz e Pau dos Ferros, no<br />
Rio Gran<strong>de</strong> do Norte; Engenheiro Ávidos e São Gonçalo, na Paraíba; e Chapéu e<br />
Entre Montes, em Pernambuco.<br />
Foto 1 ‐ Presença do Exército no canteiro <strong>de</strong> obras da transposição do Rio São Francisco<br />
(Cabrobó/PE).<br />
Fonte: <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009.<br />
A intervenção do Exército nas obras é limitada, pois, segundo informações<br />
extraídas em entrevista no canteiro <strong>de</strong> obras do canal <strong>de</strong> aproximação nas<br />
proximida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Cabrobó, a tecnologia necessária para executar o Projeto ainda<br />
não é <strong>de</strong> domínio do Exército Brasileiro, sendo então necessária a contratação <strong>de</strong><br />
empresas especializadas.<br />
Com a efetivação do projeto, mesmo sem um amplo <strong>de</strong>bate com a<br />
socieda<strong>de</strong>, no sentido <strong>de</strong> reunir posicionamentos sobre essa obra e a inserção das<br />
reivindicações das populações atingidas por esta infra-estrutura, a função do<br />
exército na consecução do ponto inicial <strong>de</strong>ste mega-projeto, aponta para uma<br />
atuação que vai além dos aspectos econômicos <strong>de</strong> contenção <strong>de</strong> gastos que está<br />
contido no discurso dos representantes do Governo Fe<strong>de</strong>ral. Visto o caráter<br />
imperativo por parte do Governo brasileiro para com a realização das obras, houve<br />
uma forte mobilização <strong>de</strong> amplos setores da socieda<strong>de</strong> civil, sobretudo, movimentos<br />
29
sociais, com o objetivo <strong>de</strong> ampliar o <strong>de</strong>bate acerca da transposição das águas do<br />
Rio São Francisco, <strong>de</strong>nunciar os reais interesses que estão por trás <strong>de</strong>ssa obra<br />
faraônica e os seus impactos sociais e ambientais. Nesse contexto, o exército<br />
brasileiro assume uma importância estratégica para a concretização <strong>de</strong>ste projeto,<br />
qual seja o <strong>de</strong> mediar e, principalmente, estabelecer uma relação <strong>de</strong>sigual <strong>de</strong> forças<br />
entre o Governo e os atores sociais que protagonizam um embate <strong>de</strong> idéias e ações<br />
contra a implementação <strong>de</strong>sta obra.<br />
O po<strong>de</strong>r e autorida<strong>de</strong> exercida e a <strong>de</strong>monstração do aparato bélico do<br />
exército na área <strong>de</strong> construção do canal impõe uma sujeição aos sujeitos sociais<br />
envolvidos nessa trama <strong>de</strong> relações e gera a impotência <strong>de</strong> ações que doravante<br />
possam empreen<strong>de</strong>r frente a manifestação da força e intimidação.<br />
Portanto, o atuação do exército brasileiro na construção <strong>de</strong> alguns lotes da<br />
parte inicial do canal, que permitirá a transposição <strong>de</strong> parte da vazão do Rio São<br />
Francisco, em Cabrobó, revela o caráter autoritário do Governo Fe<strong>de</strong>ral na<br />
implementação das políticas públicas, pois age <strong>de</strong> forma anti<strong>de</strong>mocrática no<br />
momento em que se fecha às reivindicações da socieda<strong>de</strong>, impõe seus projetos<br />
políticos, maquia o jogo <strong>de</strong> interesses e as alianças estratégicas estabelecidas entre<br />
o público e o privado e, sobretudo, na forma como está atuando com as milhares <strong>de</strong><br />
pessoas que foram atingidas e impactadas por esta obra. A função primordial do<br />
exército na concretização da obra é garantir o pleno <strong>de</strong>senvolvimento dos trabalhos<br />
<strong>de</strong> construção do canal, seja pela coação dos sujeitos envolvidos, ou até mesmo, a<br />
repressão pelo uso da força.<br />
30
Foto 2 ‐ Funcionários do Ministério da Integração Nacional e Tenente do Exército no canteiro<br />
<strong>de</strong> obras da transposição do Rio São Francisco (Cabrobó/PE).<br />
Fonte: <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009.<br />
As empreiteiras que atuam nas obras no município <strong>de</strong> Cabrobó são<br />
li<strong>de</strong>radas pelo Consórcio Construtor Águas do São Francisco, formado pelas<br />
empresas: Christiani Nielsen Engenharia S/A, Serveng Civilsan S.A, Empresas<br />
Associadas <strong>de</strong> Engenharia e S.A Paulista <strong>de</strong> Construções e Comércio. Todas são <strong>de</strong><br />
capital nacional proveniente dos estados da Região Su<strong>de</strong>ste. O valor global do lote<br />
vencido pelo consórcio é <strong>de</strong> R$ <strong>23</strong>8,8 milhões.<br />
Foto 3 ‐ Canal do eixo norte da transposição do Rio São Francisco em Cabrobó/PE.<br />
Fonte: <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009.<br />
Já no Eixo Leste a captação da água será feita a partir do lago da barragem<br />
<strong>de</strong> Itaparica, no município <strong>de</strong> Floresta, também no estado <strong>de</strong> Pernambuco. O canal<br />
terá 220 km até o rio Paraíba, no estado da Paraíba, e alimentará as bacias do<br />
31
Pajeú, do Moxotó e da região agreste <strong>de</strong> Pernambuco. Da mesma forma que o Eixo<br />
Norte, o Leste também terá vazão contínua e em momentos <strong>de</strong> aumento da vazão,<br />
com conseqüente surgimento <strong>de</strong> exce<strong>de</strong>nte hídrico na Usina Hidrelétrica <strong>de</strong><br />
Sobradinho, teremos o armazenamento da água em reservatórios existentes nas<br />
bacias receptoras: Poço da Cruz, em Pernambuco, e Epitácio Pessoa, na Paraíba.<br />
Além dos Eixos e reservatórios, o Projeto prevê a construção <strong>de</strong> aquedutos,<br />
nos locais on<strong>de</strong> existem rios e riachos, estações <strong>de</strong> bombeamentos, nas áreas em<br />
que o terreno tem altitu<strong>de</strong> mais elevada, e barragens, que servem como<br />
reservatórios <strong>de</strong> compensação, permitindo o <strong>de</strong>sligamento das estações <strong>de</strong><br />
bombeamento. Estão previstas 9 estações <strong>de</strong> bombeamento: 3 no Eixo Norte, com<br />
elevação total <strong>de</strong> 180m, e 6 no Eixo Leste, com altura total <strong>de</strong> 300m, e 30 barragens,<br />
permitindo o fluxo <strong>de</strong> água nos canais no período em que as estações <strong>de</strong><br />
bombeamento serão <strong>de</strong>sligadas.<br />
Essas são as principais informações referentes ao Projeto São Francisco<br />
que são divulgadas pelo Governo Fe<strong>de</strong>ral e o Ministério da Integração Nacional.<br />
Parecem claros os objetivos do Projeto e a justificativa <strong>de</strong> distribuir a água do rio<br />
São Francisco para as áreas menos privilegiadas.<br />
Foto 4 ‐ Ponto <strong>de</strong> tomada <strong>de</strong> água do Rio São Francisco para o canal do eixo<br />
norte da transposição.<br />
Fonte: <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009.<br />
No entanto, o Projeto, apesar <strong>de</strong> tecnicamente bem estruturado, <strong>de</strong>ixa a<br />
<strong>de</strong>sejar pela falta <strong>de</strong> informação referente a gestão dos recursos hídricos ou, quem<br />
sabe, pela não existência <strong>de</strong> uma gestão já <strong>de</strong>finida para esses recursos. É, <strong>de</strong> certo<br />
modo, contraditório um Projeto que objetiva fornecer água a população ainda não ter<br />
32
<strong>de</strong>finido os custos e as formas <strong>de</strong> se levar a água até essas pessoas. Afinal, há<br />
perguntas essenciais para serem respondidas a um morando da área: como a água<br />
chegará até a população? Quem será responsável pela distribuição <strong>de</strong>ssa água?<br />
Quais os custos para a população?<br />
Para se firmar como um Projeto social, que visa aten<strong>de</strong>r as necessida<strong>de</strong>s<br />
mais gritantes da população que vive no Semi-Árido nor<strong>de</strong>stino, é <strong>de</strong> fundamental<br />
importância <strong>de</strong>finir quais serão os usos do exce<strong>de</strong>nte da água, quem po<strong>de</strong>rá ser<br />
beneficiado com esse exce<strong>de</strong>nte e criar condições reais para que a população da<br />
área rural tenha acesso a água em suas pequenas proprieda<strong>de</strong>s. Ou então,<br />
novamente o Estado será o agente que arca com os investimentos pesados em<br />
infra-estrutura para dar sustentação às ações do capital privado que tem interesse<br />
em garantir, nesse caso, o acesso à água <strong>de</strong> seus latifúndios. As lacunas do Projeto<br />
sobre as perspectivas sobre a gestão das águas dos Eixos <strong>de</strong> Integração parecem<br />
ser uma forma sutil <strong>de</strong> abrir possibilida<strong>de</strong>s para privilegiar as ações do gran<strong>de</strong><br />
capital que tem interesses econômicos no semi-árido nor<strong>de</strong>stino.<br />
Além das lacunas sobre a gestão dos recursos hídricos, pouco se sabe<br />
sobre os reflexos no cotidiano das populações atingidas diretamente pelas obras e<br />
sobre a ação do Governo junto às populações atingidas pelas obras dos dois eixos,<br />
reservatórios e açu<strong>de</strong>s. Em campo, percebeu-se claramente, a partir das entrevistas<br />
que existe certo <strong>de</strong>scaso do po<strong>de</strong>r público, que não fornece informações precisas<br />
sobre o que ocorrerá com os habitantes que estão nas áreas que serão atingidas.<br />
Muitos já têm, há meses, a informação <strong>de</strong> que terão que sair <strong>de</strong> suas casas, mas<br />
não existem prazos para a retirada da população da área a ser atingida, tampouco<br />
para o pagamento das in<strong>de</strong>nizações ou a mudança para as Vilas Produtivas Rurais<br />
(VPR), no caso <strong>de</strong> Cabrobó.<br />
O Projeto visa a construção <strong>de</strong> 18 VPR, que são compostas por 55 casas <strong>de</strong><br />
tamanho padrão, com banheiro, sala, cozinha e 3 quartos, po<strong>de</strong>ndo cada casa ser<br />
habitada por até 3 famílias e preten<strong>de</strong> abranger um total <strong>de</strong> 793 famílias. A Vila é<br />
composta por um núcleo habitacional e um núcleo produtivo, sendo que cada família<br />
receberá um lote <strong>de</strong> no mínimo 5 hectares. Vale lembrar que ao menos 1 <strong>de</strong>sses<br />
hectares é irrigado, o que segundo o discurso governamental faz com que as Vilas<br />
sejam uma “exceção” à regra, já que o <strong>de</strong>stino da água é para abastecimento<br />
humano e <strong>de</strong>sse<strong>de</strong>ntação animal. Segundo a técnica do Ministério da Integração<br />
33
Nacional no Junco os moradores das Vilas são os principais beneficiados, porque o<br />
principal objetivo da água é o abastecimento humano e a exceção são as VPR.<br />
Foto 5 ‐ Maquete da Vila Produtiva Rural do Junco.<br />
Fonte: <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009.<br />
Foto 6 ‐ Moradias da Vila Produtiva Rural do Junco.<br />
Fonte: <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009.<br />
Até o momento, não existe nenhuma VPR concluída e a em estágio mais<br />
avançado é a do Junco, que, uma semana após o trabalho <strong>de</strong> campo na área, foi<br />
inaugurada <strong>de</strong> forma simbólica pelo presi<strong>de</strong>nte Luis Inácio Lula da Silva e realizado<br />
o sorteio das casas para as primeiras famílias.<br />
Em uma análise mais aprofundada sobre as VPR, po<strong>de</strong>mos notar a relação<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e território das famílias que vão vir a habitá-las. São famílias que<br />
nasceram, cresceram e constituíram outras famílias nas terras que habitavam a<br />
priori da construção do canal. Sobre isso, Haesbaert diz:<br />
34
O território envolve sempre, ao mesmo tempo (...), uma dimensão simbólica,<br />
cultural, por meio <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> territorial atribuída pelos grupos<br />
sociais, como forma <strong>de</strong> controle simbólico sobre o espaço on<strong>de</strong> vivem<br />
(sendo também, portanto, uma forma <strong>de</strong> apropriação), e uma dimensão<br />
mais concreta, <strong>de</strong> caráter político-disciplinar: a apropriação e or<strong>de</strong>nação do<br />
espaço como forma <strong>de</strong> domínio e disciplinarização dos indivíduos<br />
(HAESBAERT, 1997, p.42).<br />
Po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r que ao realocar essas famílias, que já tinham uma<br />
relação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com o território que habitavam, se cria uma dissociação <strong>de</strong>ssa<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com o local que vão morar. As famílias não pu<strong>de</strong>ram optar em ficar nas<br />
suas casas, não pu<strong>de</strong>ram optar em serem realocadas em uma região próxima a sua<br />
antiga residência, estão sendo realocadas por sorteio, estão sendo realocadas em<br />
uma casa com outras famílias, sem ser levado em conta afinida<strong>de</strong> ou conhecimento<br />
prévio dos mesmos.<br />
Vemos uma clara precarização na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>ssas famílias, um<br />
<strong>de</strong>scaso para com os mesmo por parte do Governo, um ato puramente político que<br />
visa apenas mostrar resultados para um problema gerado pela construção do canal,<br />
não levando em conta a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, as relações <strong>de</strong> convívio, o espaço individual e o<br />
próprio controle <strong>de</strong> cada família sobre o local que vai habitar. Os VPR são uma arma<br />
governamental para ser usada para propaganda, como vimos na reportagem do<br />
globo do dia 16 <strong>de</strong> outubro, cujo qual foi reportado que o sorteio realizado pelo<br />
presi<strong>de</strong>nte Luis Inácio Lula da Silva, que também foi transmitida por outros jornais e<br />
re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> televisão.<br />
Esse aspecto nos estimula discutir o que é central nesse <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Campo</strong>, ou seja, as contradições do caminho das águas integradas ou transpostas,<br />
no Ceará. Percebemos que o Canal da Integração não alimenta as áreas <strong>de</strong> real<br />
escassez, nas quais a população passa por dificulda<strong>de</strong> e o abastecimento se dá por<br />
carros pipa e cisternas, mas sim áreas on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolve a fruticultura <strong>de</strong><br />
exportação, com atuação <strong>de</strong> empresas agroexportadoras, como, por exemplo, a<br />
multinacional Del monte Fresh e diversas outras <strong>de</strong> capital nacional, que atuam,<br />
sobretudo, no cultivo <strong>de</strong> mamão, melão, melancia, goiaba, banana. É importante<br />
ressaltar que no ponto final do canal da integração está previsto a instalação <strong>de</strong><br />
indústrias transnacionais, nesse caso, uma empresa norte coreana do setor mínerometalúrgico<br />
que irá fixar-se no Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP),<br />
<strong>de</strong>mandando gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> hídrica, que será suprida pelas águas advindas do<br />
canal da integração. Isso confirma que o real <strong>de</strong>stino <strong>de</strong>ssas águas seja mesmo o<br />
35
“abastecimento” do gran<strong>de</strong> capital, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um contexto geral que também po<strong>de</strong><br />
ser classificado <strong>de</strong> agrohidronegócio.<br />
De acordo com Thomaz Jr. (2008):<br />
A monopolização da terra e da água são, <strong>de</strong>finitivamente, elementos<br />
indissociáveis para o capital. A água historicamente vinculada ao<br />
acionamento dos pivôs-centrais e a irrigação das gran<strong>de</strong>s plantações para<br />
exportação, num ritmo <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição sem limites, mais recentemente<br />
também se inscreve na produção <strong>de</strong> energia elétrica. É <strong>de</strong>ssa complexa e<br />
articulada malha <strong>de</strong> relações que estamos enten<strong>de</strong>ndo esse processo no<br />
âmbito do agrohidronegócio, por on<strong>de</strong> nos propomos enten<strong>de</strong>r os<br />
<strong>de</strong>safios da dinâmica geográfica da reprodução do capital no século XXI<br />
(THOMAZ, 2008, p. 9).<br />
Diante disso, as ações governamentais parecem caminhar nesse sentido.<br />
Ações como a criação <strong>de</strong> uma Associação <strong>de</strong> Moradores já parecem encaminhadas,<br />
porém é fato que apenas constar no projeto não basta, já que a história nos mostra<br />
que a população mais carente fica à margem das ações governamentais. Para<br />
ilustrar, basta que analisemos as políticas <strong>de</strong>stinadas à concessão <strong>de</strong> subvenções<br />
feitas pelo governo para a agricultura familiar, ações estas que beneficiam<br />
impreterivelmente os gran<strong>de</strong>s proprietários, que têm sua produção <strong>de</strong>stinada ao<br />
mercado internacional.<br />
As experiências em diferentes regiões do país mostram que somente<br />
assentar famílias e constituir cooperativas não é o suficiente, se não tiver<br />
intervenção técnica e extensionista, através <strong>de</strong> técnicos e formação para o pequeno<br />
agricultor com o objetivo do aprimoramento operacional e manutenção das famílias<br />
na terra. Outra prerrogativa para aperfeiçoar as ações do projeto é o financiamento<br />
para estimular a produção <strong>de</strong>sse pequeno agricultor. Sem essas prerrogativas jogar<br />
o trabalhador num local sem acesso à água e recursos básicos para o <strong>de</strong>sempenho<br />
<strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s é <strong>de</strong>sperdiçar dinheiro público.<br />
Partindo <strong>de</strong>ssas perspectivas, muitos questionamentos po<strong>de</strong>m ser feitos se<br />
analisarmos as políticas públicas relacionadas à água e o seu acesso, como<br />
também a questão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e território. Essas famílias e outras serão<br />
reassentadas pelo ‘simples’ fato <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> obra ocorrer em suas terras. No<br />
entanto percebemos que esses fatos se <strong>de</strong>vem à vonta<strong>de</strong> do Estado implementar o<br />
dito ‘<strong>de</strong>senvolvimento’ com foco na expansão econômica, assim beneficiando o<br />
agronegócio que cada vez mais se intensifica não só no Nor<strong>de</strong>ste, como no território<br />
brasileiro <strong>de</strong> forma geral, abrangendo todos biomas existentes.<br />
36
3.3 . Gestão da Água e Relações <strong>de</strong> <strong>Trabalho</strong> no Processo <strong>de</strong><br />
Construção do Canal da Integração<br />
Aprofundando a questão da população atingida pelas obras, temos que levar<br />
em consi<strong>de</strong>ração a divulgação <strong>de</strong> dados sobre a criação <strong>de</strong> postos <strong>de</strong> trabalho<br />
<strong>de</strong>vido ao Projeto São Francisco. Segundo dados oficiais, são empregados entre 8 e<br />
10 mil pessoas nas obras, o que é visto <strong>de</strong> forma positiva pela opinião pública, pelos<br />
trabalhadores que estão envolvidos nas obras e colocado pelo Po<strong>de</strong>r Público como<br />
um dos pontos mais interessantes do Projeto. Assim, o Projeto é aceito também<br />
como uma forma <strong>de</strong> gerar empregos em nosso país. No entanto, a realida<strong>de</strong> vivida<br />
nas áreas on<strong>de</strong> estão ocorrendo as obras da integração das bacias é muito<br />
diferente, como po<strong>de</strong>mos ver nos estudos realizados por Juscelino Bezerra sobre as<br />
relações <strong>de</strong> trabalho.<br />
Bezerra 2009 afirma que na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cabrobó a população local tem um<br />
discurso <strong>de</strong> que a obra leva <strong>de</strong>senvolvimento para região, esquecendo que ao final<br />
das obras os empregos e a sensação <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento vão <strong>de</strong>saparecer como<br />
um grão <strong>de</strong> areia que o vento leva embora. Diante disso, o autor afirma que essa<br />
nova dinâmica <strong>de</strong> emprego movimenta o município <strong>de</strong> forma nunca vista<br />
anteriormente e que o setor responsável pelo salto no número <strong>de</strong> emprego é o da<br />
construção civil. (Tabela 7).<br />
Tabela 7 ‐ Fluxo <strong>de</strong> Admissão e Desligamento em<br />
Cabrobó/PE – Jan a Ago<br />
Ano Admitidos Desligados Saldo<br />
2007 101 94 7<br />
2009 1.532 580 952<br />
Fonte: TEM/CAGED<br />
O autor aponta ainda para on<strong>de</strong> foram direcionadas as vagas que surgiram<br />
tendo o servente <strong>de</strong> obras como o maior agente impulsionador <strong>de</strong> vagas (Tabela 8).<br />
37
Tabela 8 ‐ Ocupações que mais admitiram em Cabrobó/PE. Período <strong>de</strong> Jan/2008 à Jan/2009.<br />
Frequência<br />
Admissões Desligamentos Saldo<br />
Servente <strong>de</strong> obras 175 91 84<br />
Motorista operacional <strong>de</strong> guincho 86 8 78<br />
Ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> comércio varejista 51 39 <strong>12</strong><br />
Pedreiro 45 33 <strong>12</strong><br />
Operador <strong>de</strong> máquinas <strong>de</strong><br />
construção civil e mineração 29 <strong>12</strong> 17<br />
Operador <strong>de</strong> motoniveladora 29 14 15<br />
Apontador <strong>de</strong> mão <strong>de</strong> obra 28 <strong>12</strong> 16<br />
Operador <strong>de</strong> britador <strong>de</strong><br />
mandíbulas 26 5 21<br />
Faxineiro 20 6 14<br />
Mestre (construção civil) 18 6 <strong>12</strong><br />
Carpinteiro <strong>de</strong> obras 16 7 9<br />
Auxiliar <strong>de</strong> escritório, em geral 14 9 5<br />
Frentista 14 9 5<br />
Técnico <strong>de</strong> segurança do trabalho 10 8 2<br />
Mecânico <strong>de</strong> manutenção <strong>de</strong> maq.<br />
<strong>de</strong> terraplanagem 10 2 8<br />
Zelador <strong>de</strong> edifício 9 5 4<br />
Motorista <strong>de</strong> carro <strong>de</strong> passeio<br />
Motorista <strong>de</strong> caminhão (rotas<br />
8 4 4<br />
regionais e internacionais) 7 3 4<br />
Carregador (armazém) 7 7 0<br />
Trabalhador agropecuário em geral<br />
Fonte: MTE/CAGED, 2009.<br />
6 3 3<br />
Durante exposição <strong>de</strong> uma das técnicas do Ministério da Integração<br />
Nacional, responsável pela obra, fomos informados <strong>de</strong> que as empresas que<br />
ganharam a licitação para execução das obras tiveram dificulda<strong>de</strong> para contratar<br />
mão <strong>de</strong> obra, pois a população local não tinha formação básica e carteira <strong>de</strong><br />
trabalho. Outro ponto que a técnica pon<strong>de</strong>rou foi que no contrato <strong>de</strong> concessão,<br />
existe uma cláusula que <strong>de</strong>termina que os trabalhadores contratados têm que ser da<br />
região <strong>de</strong> on<strong>de</strong> a obra está sendo construída. Mas como vimos o trabalho reservado<br />
para a população <strong>de</strong> Cabrobó é <strong>de</strong> baixa qualificação, até pelo que já vimos na<br />
<strong>de</strong>scrição do município o grau <strong>de</strong> instrução da população não é elevado sobrando a<br />
esta, trabalhos com braçais e <strong>de</strong> baixa remuneração.<br />
38
Assim, percebemos claramente que ocorreram alterações expressivas nas<br />
relações <strong>de</strong> trabalho nos locais on<strong>de</strong> as obras estão ocorrendo, além das mudanças<br />
no cotidiano das pessoas envolvidas, o que po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r melhor a partir dos<br />
trabalhos publicados por Bezerra (2009):<br />
Do ponto <strong>de</strong> vista dos trabalhadores a perspectiva <strong>de</strong> emprego muda o seu<br />
referencial <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do trabalho. Segundo informações da técnica do<br />
Ministério da Integração Nacional quando do início das obras e da<br />
contratação dos trabalhadores houve algumas dificulda<strong>de</strong>s, pois os<br />
trabalhadores não tinham a carteira <strong>de</strong> trabalho. Para muitos, esta foi uma<br />
mudança significativa cuja proporção necessita ser avaliada teoricamente<br />
sem preconceitos <strong>de</strong> classificarmos esta relação como mera dádiva<br />
temporária do capital ou classificarmos autoritariamente estas relações<br />
como relações <strong>de</strong> alienados que não percebem que a carteira assinada é<br />
apenas mais um instrumento <strong>de</strong> cooptação do trabalhador ao universo dito<br />
“salubre” da legislação trabalhista (BEZERRA, 2009, p.7-8).<br />
Assim, utilizar a questão da criação <strong>de</strong> postos <strong>de</strong> trabalho como propaganda<br />
a favor do Projeto é, na realida<strong>de</strong>, uma tentativa <strong>de</strong> manipular a opinião pública em<br />
favor das obras <strong>de</strong> transposição, sendo que um olhar mais atento sobre o tema<br />
evi<strong>de</strong>nciará o caráter temporário dos empregos criados e da noção <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento.<br />
Outra lacuna que o Projeto apresenta e po<strong>de</strong>mos notar facilmente é a falta<br />
<strong>de</strong> informações sobre a afirmação <strong>de</strong> ser esta a forma mais viável e eficiente <strong>de</strong> se<br />
minimizar os efeitos da seca no Semi-Árido nor<strong>de</strong>stino, já que não são<br />
disponibilizadas pesquisas feitas sobre os possíveis pontos positivos e negativos <strong>de</strong><br />
alternativas para atingir a segurança hídrica na região.<br />
Discorrer sobre esses apontamentos se torna essencial para compreen<strong>de</strong>r o<br />
Projeto São Francisco e seu significado <strong>de</strong>ntro do processo <strong>de</strong> transformação do<br />
espaço em curso na região Nor<strong>de</strong>ste, e mais especificamente no Semi-Árido. Mas,<br />
mais importante do que isso é conseguir i<strong>de</strong>ntificar os interesses do Po<strong>de</strong>r Público<br />
nesse processo e suas relações com outros agentes, analisando o Projeto São<br />
Francisco como mais um elemento da política pública voltada ao crescimento<br />
econômico regional, expandindo, assim, nossa análise para a própria compreensão<br />
das diretrizes da política nacional brasileira.<br />
As propostas intervencionistas, ou <strong>de</strong> planejamento, que vem sendo<br />
elaboradas para a região que envolvem a problemática dos recursos hídricos e,<br />
conseqüentemente, o Projeto São Francisco são: a Política Nacional <strong>de</strong><br />
Desenvolvimento Regional (PNDR) e uma <strong>de</strong> suas propostas específicas para o<br />
39
Semi-Árido: o Plano Estratégico <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável do Semi-Árido<br />
(PDSA), <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> do Ministério da Integração Nacional, em conjunto com<br />
a Secretaria <strong>de</strong> Políticas <strong>de</strong> Desenvolvimento Regional (SDR) e a Agência <strong>de</strong><br />
Desenvolvimento do Nor<strong>de</strong>ste (ADENE).<br />
Em documento que indica num primeiro momento as <strong>de</strong>finições da PDSA,<br />
elaborado em 2005 pelo Governo Fe<strong>de</strong>ral para ser discutido e posteriormente<br />
modificado e aprovado, temos algumas indicações do que seria o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da região Semi-Árida para o Governo e quais setores da economia os investimentos<br />
públicos preten<strong>de</strong>m privilegiar.<br />
O PDSA, enquanto <strong>de</strong>sdobramento da PNDR, por ser uma política que<br />
engloba toda a região e por elaborar estratégias regionalizadas representa um<br />
gran<strong>de</strong> avanço na concepção <strong>de</strong> planejamento adotada pelo Governo Fe<strong>de</strong>ral e os<br />
órgãos que ser responsabilizam por tais intervenções, já que procura enten<strong>de</strong>r os<br />
entraves ao <strong>de</strong>senvolvimento como um todo, não privilegiando apenas pontos<br />
específicos do espaço Nor<strong>de</strong>stino. Ele aborda diversos setores da economia, a infraestrutura<br />
regional e, claro, dá maior <strong>de</strong>staque e importância a questão hídrica, pois<br />
gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> seus projetos estão vinculados a este recurso mal distribuído e<br />
escasso na região. As principais apostas do PDSA são: Revitalização da Bacia do<br />
Rio São Francisco; Integração <strong>de</strong> Bacias Hidrográficas; Hidrovia do São Francisco;<br />
Ferrovia Transnor<strong>de</strong>stina; Agricultura Irrigada: Agronegócio e Revitalização <strong>de</strong><br />
Perímetros Públicos; Energia Alternativa: Biodiesel, Gás Natural e Outras Fontes<br />
Não-fósseis <strong>de</strong> Energia; Mineração; e Refinaria da Petrobrás.<br />
O que fica evi<strong>de</strong>nte ao ler as propostas <strong>de</strong> intervenção que buscam o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento da região Semi-Árida e as principais apostas do PDSA é o gran<strong>de</strong><br />
peso dado às questões <strong>de</strong> criação e ampliação <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s econômicas que<br />
acabam por favorecer apenas gran<strong>de</strong>s empresas e gran<strong>de</strong>s proprietários rurais, pois<br />
poucas são as alternativas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento voltadas à alteração da realida<strong>de</strong><br />
vivida pelos pequenos proprietários que praticam a agricultura <strong>de</strong> subsistência e<br />
representam os reais afetados com a questão da seca no semi-árido. Essa<br />
tendência po<strong>de</strong> ser vista na introdução do PDSA, extraída <strong>de</strong> textos do político<br />
nor<strong>de</strong>stino Ciro Gomes, on<strong>de</strong> vemos claramente a opinião do Governo sobre a<br />
subsistência no semi-árido, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resolução da problemática da seca e<br />
do sub<strong>de</strong>senvolvimento:<br />
40
A questão da seca está colada no imaginário coletivo como a terrível<br />
condicionante da miséria <strong>de</strong> massa na região. Há aqui uma verda<strong>de</strong> e um<br />
erro fundamental: a verda<strong>de</strong> é que há uma dramática escassez <strong>de</strong> recursos<br />
hídricos na área, problema <strong>de</strong> solução concreta absolutamente viável com<br />
as tecnologias mo<strong>de</strong>rnas <strong>de</strong> formação e manejo <strong>de</strong> águas, postas à<br />
disposição dos tomadores <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão pela técnica mo<strong>de</strong>rna; o erro grave <strong>de</strong><br />
atitu<strong>de</strong> é insistir na imaginação <strong>de</strong> que a agricultura <strong>de</strong> subsistência (...)<br />
po<strong>de</strong>ria algum dia servir <strong>de</strong> base a um mo<strong>de</strong>lo sustentável <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento (Gomes, 2002, p. 110.).<br />
Assim, po<strong>de</strong>mos afirmar claramente qual a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> planejamento e<br />
<strong>de</strong>senvolvimento adotada pelo Governo Fe<strong>de</strong>ral na elaboração <strong>de</strong> suas principais<br />
políticas públicas para a região Nor<strong>de</strong>ste. Vemos que tais políticas visam à<br />
expansão do gran<strong>de</strong> capital e a transformação do espaço nor<strong>de</strong>stino, e em especial<br />
o espaço rural, em áreas dinâmicas, que atraiam investimentos e com intenso uso<br />
<strong>de</strong> tecnologia. Só que para atingir esse objetivo se faz necessário a implantação <strong>de</strong><br />
uma infra-estrutura que dê sustentação as ativida<strong>de</strong>s econômicas que po<strong>de</strong>rão se<br />
instalar e possibilitem a expansão das já existentes.<br />
A proposta <strong>de</strong> planejamento para o Nor<strong>de</strong>ste e, logo, para o semi-árido é<br />
pautada basicamente em setores econômicos dominados pelo gran<strong>de</strong> capital,<br />
<strong>de</strong>ixando a margem <strong>de</strong> suas ações o gran<strong>de</strong> contingente <strong>de</strong> pequenos proprietários<br />
rurais que vive na região e é constantemente ameaçado pela seca e falta <strong>de</strong><br />
oportunida<strong>de</strong>s para a transformação <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s econômicas.<br />
Como a questão dos recursos hídricos é um ponto crítico que inviabiliza a<br />
expansão do capital, o centro das preocupações <strong>de</strong>ssas políticas está na<br />
problemática da falta <strong>de</strong> água em algumas regiões específicas, pois sem a<br />
disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste recurso seria impossível criar e expandir ativida<strong>de</strong>s agrícolas<br />
no semi-árido e, logo, seria um entrave ao crescimento econômico.<br />
Por essa razão, o elemento chave da política <strong>de</strong> planejamento no semiárido,<br />
que visa o crescimento econômico e a criação <strong>de</strong> áreas dinâmicas para o<br />
investimento <strong>de</strong> capital, é o Projeto São Francisco. Somente com a construção <strong>de</strong><br />
uma infra-estrutura que possibilite a distribuição dos recursos hídricos pelo Semi-<br />
Árido, financiada pelo Governo, o crescimento econômico nos mol<strong>de</strong>s da atual<br />
socieda<strong>de</strong> capitalista po<strong>de</strong>rá ser atingido, e é exatamente a construção <strong>de</strong>ssa infraestrutura<br />
que o Projeto São Francisco oferece ao gran<strong>de</strong> capital, é o investimento<br />
público financiando a reprodução do capital das gran<strong>de</strong>s empresas e gran<strong>de</strong>s<br />
proprietários rurais.<br />
41
Temos aí uma contradição nas ações do po<strong>de</strong>r público: se o PDSA e a<br />
PNDR têm como objetivo o crescimento econômico a partir das ativida<strong>de</strong>s<br />
dominadas pelo gran<strong>de</strong> capital, como po<strong>de</strong> o Projeto São Francisco ter como<br />
objetivo principal matar a se<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>12</strong> milhões <strong>de</strong> nor<strong>de</strong>stinos que vivem no Polígono<br />
das Secas e, ao mesmo tempo, ser uma das principais apostas do planejamento<br />
para a região? Como o Projeto São Francisco po<strong>de</strong> ao mesmo tempo oferecer<br />
recursos hídricos para a expansão do agrohidronegócio e levar água para a<br />
população rural que vive no semi-árido? Seria impossível um mesmo Projeto<br />
conseguir atingir positivamente gran<strong>de</strong>s e pequenos proprietários, pois com a<br />
expansão do agrohidronegócio no semi-árido nor<strong>de</strong>stino teremos como<br />
conseqüência a diminuição dos pequenos proprietários que não têm possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
acesso ao capital necessário para mo<strong>de</strong>rnizar sua base produtiva para po<strong>de</strong>r se<br />
manter em suas terras.<br />
Concluindo, afirmar ser o Projeto São Francisco um projeto que objetiva<br />
matar a se<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>12</strong> milhões <strong>de</strong> pessoas que vivem no semi-árido e que tem em<br />
segundo plano a intenção <strong>de</strong> transformar em áreas dinâmicas parte da região<br />
Nor<strong>de</strong>ste é um equívoco. Já que a análise dos documentos produzidos pelos órgãos<br />
responsáveis pelo Projeto e por ações <strong>de</strong> planejamento que o englobam trazem<br />
outra realida<strong>de</strong> a tona, na qual os principais objetivos se voltam para o crescimento<br />
econômico e não para a solução da problemática as seca. Além das informações<br />
extraídas dos veículos <strong>de</strong> comunicação do po<strong>de</strong>r público que comprovam os reais<br />
objetivos do Projeto, a experiência vivida em campo vem para reafirmar essa<br />
constatação.<br />
Como comprova a história das políticas públicas voltadas para a questão da<br />
água no Nor<strong>de</strong>ste, as intervenções do po<strong>de</strong>r público acabam sempre por acirrar os<br />
conflitos sobre a água e inviabilizam a obtenção <strong>de</strong> água por parte da população<br />
menos privilegiada, acabando por se tornar mais um instrumento nas mãos do<br />
gran<strong>de</strong> capital que busca áreas on<strong>de</strong> haja possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> reprodução do capital.<br />
Por conta disso alguns autores já classificam a água como uma mercadoria<br />
conforme aponta Torres (2007) em sua dissertação <strong>de</strong> mestrado:<br />
Como ferramentas econômicas da gestão, a lei propõe a outorga e a<br />
cobrança do uso dos recursos hídricos. A outorga é a licença para uso da<br />
água, que gera uma contrapartida, um custo financeiro regulado através do<br />
segundo instrumento, a cobrança pelo uso da água, que estabelece valor<br />
financeiro pelo uso <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados volumes <strong>de</strong> água.<br />
42
Na medida em que são implementadas a outorga e a cobrança na gestão<br />
das bacias hidrográficas, é possível que aconteçam repercussões,<br />
transformações e consolidações <strong>de</strong> novas territorialida<strong>de</strong>s a nível<br />
econômico e/ou social, que emergiram com a aplicação <strong>de</strong>sses<br />
instrumentos da lei 9.433/97 no Brasil. A referida lei ao atribuir a água valor<br />
econômico, torna ela passível <strong>de</strong> manobras que instituam uma gestão<br />
participativa ilusória. Assim, por questões sociais, culturais e regionais, a<br />
representativida<strong>de</strong> da comunida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser manipulada <strong>de</strong> diversas<br />
maneiras, inclusive via dominação do território (TORRES, 2007, p.<strong>12</strong>-13).<br />
Pu<strong>de</strong>mos constatar também que se essa água chegasse aos<br />
reassentamentos, criados <strong>de</strong>vido às construções do canal, o uso seria cobrado,<br />
entretanto, anteriormente, os moradores atingidos pelas obras tinham, em suas<br />
terras, disponibilida<strong>de</strong> hídrica <strong>de</strong> graça, coletando esse bem natural dos corpos<br />
d'água e pequenos açu<strong>de</strong>s. Com toda certeza, os serviços <strong>de</strong> distribuição e<br />
abastecimento serão cobrados e, nesse caso, a mercadoria água teria seu acesso<br />
restrito, pois seu consumo estaria reservado a quem tem condições <strong>de</strong> pagar. A<br />
terra <strong>de</strong> outrora, território <strong>de</strong> um pequeno agricultor, camponês, agora é território da<br />
reprodução do capital, transformando a água que corre pelos canais seu elemento<br />
central no processo <strong>de</strong> acumulação, pois a água, para os gran<strong>de</strong>s agentes<br />
econômicos e para o Estado, passa <strong>de</strong> um bem natural, a um recurso natural, não<br />
mais disponível a todos, mas vendido como mercadoria, inserida na lógica <strong>de</strong><br />
reprodução do capital em escala internacional.<br />
43
4. DAS ÁGUAS TRANSPOSTAS ÀS ÁGUAS DISPOSTAS: O AÇUDE<br />
CASTANHÃO E AS NOVAS CONDIÇÕES DE NOVA<br />
JAGUARIBARA<br />
O Estado do Ceará possui mais <strong>de</strong> 90% do seu território inserido no domínio<br />
semi-árido, caracterizado por clima quente e seco, com duas estações <strong>de</strong>finidas, a<br />
seca e a úmida. As chuvas concentram-se em sua maioria em três a quatro meses<br />
do ano na estação úmida, acarretando um déficit negativo no balanço hídrico no<br />
<strong>de</strong>corre do ano com elevado índice <strong>de</strong> ari<strong>de</strong>z. (SOUZA, 2000).<br />
As chuvas irregulares e as condições climáticas da região resultam em uma<br />
escassez natural <strong>de</strong> água, que é consi<strong>de</strong>rada relativa já que em outras regiões do<br />
Estado, essa característica não é uma irregularida<strong>de</strong>. Os rios escoam água <strong>de</strong> três a<br />
quatro meses no ano durante a estação úmida, entre os meses <strong>de</strong> fevereiro a maio,<br />
porém permanece seco durante os meses seguintes, o que chamamos <strong>de</strong> rios<br />
intermitentes. Os rios do Estado do Ceará só são perenes em seu baixo curso<br />
<strong>de</strong>vido a ação do mar, nas regiões estuárias.<br />
Os recursos hídricos superficiais no Ceará constituem na principal fonte <strong>de</strong><br />
abastecimento humano, animais e para as ativida<strong>de</strong>s agrícolas. O aproveitamento<br />
<strong>de</strong>sse recurso tem sido feito em cima do discurso da seca e da cheias que ocorrem<br />
em anos chuvosos, com construção <strong>de</strong> açu<strong>de</strong>s e barragens com o intuito <strong>de</strong> acabar<br />
com a escassez <strong>de</strong> água e para acabar com as cheias na região do baixo Jaguaribe,<br />
como foi o caso da construção da barragem do Castanhão. No entanto, a barragem<br />
não acabou nem com a seca e nem as cheias no baixo Jaguaribe. A análise <strong>de</strong>sse<br />
fato, nos levam a refletir sobre o papel do Estado e suas articulações na inserção <strong>de</strong><br />
políticas públicas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômico que visa favorecer o capital, e que<br />
põe em conflito a população em relação ao uso da terra e o acesso à água.<br />
É nesse contexto, que se da no nor<strong>de</strong>ste brasileiro através da intervenção<br />
da União, pelo governo fe<strong>de</strong>ral a construção <strong>de</strong> obras faraônicas promovidas pelos<br />
militares almejando a integração no nor<strong>de</strong>ste, on<strong>de</strong> as discussões pautam-se em<br />
entorno da questão da água <strong>de</strong>nominada como um “ouro azul” <strong>de</strong>vido a sua rarida<strong>de</strong><br />
em alguns países e regiões brasileiras.<br />
Silveira (2009) lembra que:<br />
44
A água como recurso natural não-renovável tem preocupado, no nosso<br />
século, diversas nações do planeta. Nas regiões semi-áridas esse problema<br />
é bem mais antigo. No caso brasileiro, séculos <strong>de</strong> estudos e execução <strong>de</strong><br />
políticas públicas no semi-árido revelam uma má combinação <strong>de</strong> técnica e<br />
política, ou, talvez, uma manipulação política da técnica, transformando uma<br />
peculiarida<strong>de</strong> da natureza em problema social. Tal fato tem justificado<br />
historicamente os projetos <strong>de</strong> açu<strong>de</strong>s e barragens no sertão. Inicialmente<br />
essas represas não passavam <strong>de</strong> projetos. Depois, passam a concretizar-se<br />
em proprieda<strong>de</strong>s privadas, para privilégio <strong>de</strong> alguns. No presente, em<br />
espaços públicos, <strong>de</strong>salojando populações (SILVEIRA, 2009, p. 01).<br />
A partir dos anos <strong>de</strong> 1960, temos a formulação dos Planos <strong>de</strong> Integração<br />
Nacional que associado as medidas governamentais <strong>de</strong> cunho progressistas,<br />
voltadas para o <strong>de</strong>senvolvimento das zonas “ditas inóspitas” do cenário brasileiro.<br />
Num primeiro momento, cria-se o primeiro Plano Integrado <strong>de</strong> Intervenção<br />
Governamental do Sertão Nor<strong>de</strong>stino e o Código das Águas em 1934 3 e em meados<br />
dos anos <strong>de</strong> 1959, o plano é fortalecido com a criação da SUDENE<br />
(Superintendência <strong>de</strong> Desenvolvimento do Nor<strong>de</strong>ste), no governo <strong>de</strong> Juscelino<br />
Kubitschek, que ganha força com a presença <strong>de</strong> políticas neoliberais adotadas a<br />
partir da década <strong>de</strong> 1970, no Brasil.<br />
A construção <strong>de</strong> barragens tem provocado gran<strong>de</strong>s questionamentos sobre<br />
o <strong>de</strong>stino da água no Estado do Ceará. Um exemplo <strong>de</strong>ssa tendência po<strong>de</strong> ser<br />
i<strong>de</strong>ntificado na construção da barragem do Castanhão no Ceará.<br />
4.1 . A Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaguaribara<br />
Jaguaribara situava-se no Médio Jaguaribe, entre as coor<strong>de</strong>nadas<br />
geográficas aproximadas 5º 10’ e 5º 45’ Sul e 38º 45’ Oeste. Tinha uma área <strong>de</strong> 731<br />
km² e limitava-se ao norte com o município <strong>de</strong> Alto Santo, ao sul com Jaguaribe, a<br />
leste com Iracema e a oeste com o município <strong>de</strong> Jaguaretama, constituindo a<br />
Região Administrativa numero 11 do Estado do Ceará. O Único distrito, Poço<br />
Comprido, hoje se encontra incorporada à se<strong>de</strong> da Nova Jaguaribara, que se<br />
3 Para a instrumentalização <strong>de</strong>sse processo, em face da complexida<strong>de</strong> e abrangência dos problemas<br />
das águas, foi gerada uma gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leis, <strong>de</strong>cretos, portarias, regulamentos e normas<br />
sobre uso e proteção do ambiente, alguns dos quais se tornaram inclusive objeto <strong>de</strong> disposições<br />
constitucionais.<br />
45
localizava a 18 km da antiga cida<strong>de</strong> e a população correspondia a 8.730 habitantes.<br />
(NASCIMENTO, 2003).<br />
O povoado <strong>de</strong> Jaguaribara surge no final do século XVIII com a <strong>de</strong>nominação<br />
<strong>de</strong> Riacho do Sangue, passando a chamar-se <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Santa Rosa. Os primeiros<br />
habitantes da região foram os índios paiacus e os jaguaribararas, que <strong>de</strong>ram origem<br />
ao nome do município, que etimologicamente significa Moradores do Rio das Onças.<br />
(NASCIMENTO, 2003).<br />
O município sobrevivia da pesca no rio Jaguaribe, que passava <strong>de</strong>ntro do<br />
antigo distrito-se<strong>de</strong>. A agricultura <strong>de</strong> subsistência era a principal fonte <strong>de</strong> renda, e<br />
era nas margens do rio (agricultura <strong>de</strong> vazante), que se plantava arroz, milho e<br />
feijão. No município, ainda contava com os pequenos e médios criadores <strong>de</strong> gado<br />
bovino. A ativida<strong>de</strong> industrial, era representada pelas industrias <strong>de</strong> beneficiamento<br />
<strong>de</strong> produtos alimentares,(casa <strong>de</strong> farinha, os engenhos e fabricação <strong>de</strong> queijos e<br />
manteigas) e ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> serviços e comércio.<br />
Com quarenta anos <strong>de</strong> emancipação política e dois séculos <strong>de</strong> história, em<br />
1985, os moradores <strong>de</strong> Jaguaribara receberam a notícia da construção da Barragem<br />
do Castanhão, tendo como gran<strong>de</strong> impacto o <strong>de</strong>saparecimento da cida<strong>de</strong>. Os<br />
municípios <strong>de</strong> Jaguaribe, Jaguaretama e Alto Santo (município da Bacia hidrográfica<br />
do Médio Jaguaribe), também teriam parte <strong>de</strong> suas terras inundadas pelo açu<strong>de</strong>.<br />
Com a inundação da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaguaribara a preocupação da população se<br />
concentrou na conservação do patrimônio histórico até então ameaçado com a<br />
construção da barragem. Os símbolos culturais e religiosos, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> afetivida<strong>de</strong> e<br />
significados, que marcam a historia e a memória do povo jaguaribarenses são eles:<br />
O marco do Tristão Gonçalves <strong>de</strong> Alencar Araripe (Chefe da Confe<strong>de</strong>ração do<br />
Equador no Ceará); a Igreja <strong>de</strong> Santa Rosa <strong>de</strong> Lima; as primeiras residências; a<br />
igreja <strong>de</strong> São Vicente Férrer no distrito <strong>de</strong> Poço Comprido, construída na década <strong>de</strong><br />
30 e o Riacho do Sangue, palco das resistências dos povos indígenas da região.<br />
(DINIZ, 1993).<br />
Quanto aos aspectos do ecossistema, a vegetação da área que foi inundada<br />
caracterizava pela presença da vegetação do tipo Caatinga hiperxerofita (per<strong>de</strong> as<br />
folhas durante a estação seca), esse tipo <strong>de</strong> vegetação esta associada a regime<br />
hidrológico da área, caracterizada por longos períodos <strong>de</strong> estiagem. Enquanto a<br />
geomorfologia da área do projeto é caracterizada pela <strong>de</strong>pressão sertaneja e<br />
planície fluvial.<br />
46
As <strong>de</strong>pressões sertanejas se caracterizam por rochas do embasamento<br />
cristalino e marcados por feições topográficas planas e levemente onduladas,<br />
oriundas <strong>de</strong> processos erosivos, quanto as rochas apresentam maior resistência a<br />
esses processos. As litologias que compõem as <strong>de</strong>pressões são geralmente<br />
representadas por rochas do complexo gnáissico magmático e plutônico granulares.<br />
Enquanto, a planície fluvial do Rio Jaguaribe e seus tributários são formados<br />
essencialmente por <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> areia, silte e argilas.<br />
A cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaguaribara encontrava-se localizada tanto na unida<strong>de</strong><br />
geomorfológica, <strong>de</strong>pressão sertaneja <strong>de</strong> terrenos cristalinos, como na planície fluvial<br />
(aluviões), inundação da obra do Castanhão.<br />
Toda a área para a construção do açu<strong>de</strong> foi <strong>de</strong>sapropriada pelo Estado e a<br />
população local foi utilizada como mão-<strong>de</strong>-obra. Muitos trabalhadores <strong>de</strong>ixaram<br />
suas ocupações, voltadas para agricultura e para a pesca, e se submeterem ao<br />
trabalho temporário na construção civil. Após o termino da obra, quase que a<br />
totalida<strong>de</strong> dos trabalhadores contratos foram <strong>de</strong>mitidos, pouco permaneceram para<br />
manutenção da obra. De acordo com Lins (2008), dos 1.200 trabalhadores contratos<br />
apenas <strong>12</strong> permaneceram após construção da obra trabalhando na manutenção da<br />
mesma.<br />
4.2 . A Construção do Açu<strong>de</strong> Castanhão<br />
A construção do açu<strong>de</strong> do Castanhão se inicia a partir dos anos <strong>de</strong><br />
1980 4 , quando no Brasil começam a ser <strong>de</strong>senvolvidas as políticas públicas voltadas<br />
para o atendimento das espacialida<strong>de</strong>s locais e, com isso, temos o rompimento das<br />
velhas oligarquias reinantes na estruturação governamental brasileira.<br />
Com a crise econômica dos anos <strong>de</strong> 1973, e por toda a década dos anos <strong>de</strong><br />
1980, o Estado passa a intervir diretamente na economia, <strong>de</strong>ssa forma as bases<br />
estruturalistas centralizadoras começam a per<strong>de</strong>r as forças e apoio (o Estado). Sob<br />
4 A política <strong>de</strong> gestão dos recursos hídricos no Ceará é intensificada a partir da década <strong>de</strong> 1980,<br />
momento em que se criam instituições públicas <strong>de</strong> gestão, elaboram-se inúmeros programas e<br />
projetos associados à consecução <strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro sistema <strong>de</strong> objetos associados aos recursos<br />
hídricos, criando novas territorialida<strong>de</strong>s.<br />
47
pressão dos movimentos sociais, que almejavam uma participação mais proativa na<br />
elaboração dos projetos sociais <strong>de</strong> atuação horizontal, com um olhar para as<br />
realida<strong>de</strong>s locais; por volta dos anos <strong>de</strong> 1990 temos a <strong>de</strong>scentralização das políticas<br />
públicas voltadas para o <strong>de</strong>senvolvimento local, <strong>de</strong>correntes da crise <strong>de</strong><br />
governabilida<strong>de</strong>.<br />
Assim Tonella (2006) diz que:<br />
As inúmeras articulações ocorridas no campo social levaram o país a<br />
transformação no campo político, no sentido da re<strong>de</strong>mocratização e da<br />
ampliação da participação social. Os movimentos procuraram expressar por<br />
meio <strong>de</strong> propostas a serem incorporadas a constituição <strong>de</strong> 1988 (TONELLA,<br />
2006, p. 27-28).<br />
Nesse período tivemos pela primeira vez a participação dos agentes sociais<br />
na elaboração dos projetos governamentais, graças à constituição <strong>de</strong> 1988 5 . Com<br />
isso, aquele autoritarismo e o clientelismo, reinante da verticalização das políticas<br />
públicas em suas diferentes escalas a favor dos gran<strong>de</strong>s empresários, latifundiários,<br />
que compunham o complexo agroindustrial brasileiro, começa a ser questionada a<br />
eficácia e a centralida<strong>de</strong>, principalmente com a participação <strong>de</strong> novos agentes<br />
sociais, em <strong>de</strong>trimento do <strong>de</strong>senvolvimento das políticas locais, aproveitando as<br />
potencialida<strong>de</strong>s regionais.<br />
Diante <strong>de</strong>stes episódios nacionais, que ao longo dos anos fortificaram-se no<br />
Brasil, as atitu<strong>de</strong>s governamentais em benefício da minoria clientelista, que acabam<br />
acatando os projetos elaborados, pensados e <strong>de</strong>senvolvidos <strong>de</strong> maneira<br />
centralizadora não respeitando, as diversida<strong>de</strong>s locais, os agentes sociais e<br />
principalmente o meio ambiente, que é diretamente afetado pelos os impactos<br />
causados pela construção <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s obras, como a barragem do Castanhão.<br />
A barragem do Castanhão foi construída no médio curso do Rio Jaguaribe,<br />
localizado em uma área <strong>de</strong>nominada Boqueirão da Cunha, situado<br />
aproximadamente a 9.5 km ao sul do povoado Castanhão, no município <strong>de</strong> Alto<br />
Santo no Estado do Ceará. O Rio Jaguaribe é o principal curso d’água no Estado.<br />
A Bacia hidrográfica ocupa uma área <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 51% no Estado do Ceará,<br />
situado sobre os terrenos <strong>de</strong> formação geológica predominante cristalina, o que<br />
5 A constituição <strong>de</strong> 1988 reconhece formalmente uma serie <strong>de</strong> direitos, cria novos mecanismos <strong>de</strong><br />
participação política ao lado dos tradicionais da <strong>de</strong>mocracia representativa, o que realmente temos<br />
em mente é que: as instituições participativas criadas pela Carta <strong>de</strong> 1988 saíram do papel e se<br />
espalharam por todo o país nos três níveis <strong>de</strong> governo.<br />
48
possibilita maior escoamento da água. A re<strong>de</strong> <strong>de</strong> drenagem é do tipo <strong>de</strong>ntrítica e<br />
possui uma área <strong>de</strong> 72.440 km². (DINIZ,1993).<br />
Na Bacia Hidrográfica do Rio Jaguaribe estão localizados alguns dos<br />
maiores açu<strong>de</strong>s do Nor<strong>de</strong>ste, o <strong>de</strong> Orós, Arrojado Lisboa (Banabuiú) e <strong>de</strong> Pedras<br />
Brancas. No ano <strong>de</strong> 1993, existia cercam <strong>de</strong> 900 açu<strong>de</strong>s, estima-se que esse<br />
número tenha aumentado, por conta da inserção <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> públicas para o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento do nor<strong>de</strong>ste, e cerca <strong>de</strong> 80% <strong>de</strong>stes representam apenas 8% do<br />
volume d’água é armazenada pelo conjunto. (DINIZ, 1993).<br />
A barragem do Castanhão foi proposta ainda em 1911, pelo IFOCS<br />
(Inspetoria <strong>de</strong> Obras Contra a Seca), que i<strong>de</strong>ntificou o Boqueirão (ou Buraco do<br />
Doutor, como é chamado na região), como o local i<strong>de</strong>al para a construção da<br />
barragem. Em 1980, setenta anos <strong>de</strong>pois, a barragem Castanhão foi então projetada<br />
pelos dirigentes do extinto Departamento Nacional <strong>de</strong> Obras e Saneamento (DNOS),<br />
empresa sediada no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Com a extinção da empresa, a construção da<br />
obra passou a ser responsabilida<strong>de</strong> do Ministério da Irrigação, em Brasília, criado<br />
pelo presi<strong>de</strong>nte João Figueiredo. Porém o Ministério da Irrigação também foi extinto,<br />
passando a obra para a responsabilida<strong>de</strong> do Departamento Nacional <strong>de</strong> Obras<br />
Contra as Secas (DNOCS), no ano <strong>de</strong> 1989, sediada na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Fortaleza. (DINIZ,<br />
1993).<br />
No mês <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1985 foram divulgadas em Jaguaribara, as primeiras<br />
noticias sobre a construção do açu<strong>de</strong> Castanhão. Nesse período a construção da<br />
barragem tinha os seguintes objetivos: irrigar 75.000 Hectares na Chapada do Apodi<br />
e evitar as inundações no baixo Jaguaribe protegendo as cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Alto Santo,<br />
Tabuleiro do Norte, São João do Jaguaribe, Limoeiro do Norte, Russas, Quixeré,<br />
Itaiçaba, Jaguaruana e Aracati.<br />
A Construção provocou inquietações nas comunida<strong>de</strong>s do vale e gerou<br />
polêmicas entre os técnicos e políticos locais. Estudiosos sobre o assunto na época,<br />
contestaram e <strong>de</strong>saconselharam à construção da barragem, não apenas pelo<br />
<strong>de</strong>sperdício <strong>de</strong> recursos financeiros que po<strong>de</strong>riam levar a resultados duvidosos, mas<br />
por enten<strong>de</strong>rem que os recursos que seriam investidos na construção alcançariam<br />
resultados mais significativos, com uma serie <strong>de</strong> pequenos e médios açu<strong>de</strong>s<br />
espalhados na região, caso a construção fosse mesmo para beneficiar aquela área.<br />
(DINIZ, 1993).<br />
49
Sobre os projetos <strong>de</strong> irrigação que envolvia a construção do Açu<strong>de</strong><br />
Castanhão, alguns estudiosos afirmavam que na Chapada do Apodi não dispõe <strong>de</strong><br />
75.000 hectares <strong>de</strong> solos propícios para esse fim. Outro aspecto <strong>de</strong> contestação<br />
seria a gran<strong>de</strong> extensão do espelho d’água da barragem que implicaria na<br />
evaporação <strong>de</strong> um volume <strong>de</strong> água correspon<strong>de</strong>nte ao Açu<strong>de</strong> Pentecoste (volume<br />
<strong>de</strong> 395 milhões <strong>de</strong> metros cúbicos) por ano. Para a irrigação chegar até a Chapada<br />
do Apodi, seria necessário um volume morto (sem utilização equivalente ao Açu<strong>de</strong><br />
Banabuiú – volume <strong>de</strong> 1 bilhão <strong>de</strong> metros cúbicos).<br />
Quanto às inundações do Baixo Jaguaribe, a proposta na época era que<br />
esse problema seria resolvido com a construção <strong>de</strong> quatro açu<strong>de</strong>s menores,<br />
aproveitando assim os recursos hídricos dos vales cearenses, no lugar <strong>de</strong> obras tão<br />
gran<strong>de</strong>s.<br />
Alguns estudos realizados por ambientalistas, engenheiros e geógrafos<br />
<strong>de</strong>stacaram a inviabilida<strong>de</strong> da obra, que <strong>de</strong> acordo com Nascimento (2003, p.30) as<br />
principais implicações foram:<br />
A construção da obra em uma área já perenizada pelo Orós, embora<br />
fornecendo uma mesma vazão (<strong>12</strong> m³); a salinização dos solos do Baixo<br />
Jaguaribe, resultando no empobrecimento <strong>de</strong> importantes terras cultiváveis<br />
do Ceará; a evaporação anual equivalente a um açu<strong>de</strong> Banabuiú, dados os<br />
6,8 bilhões <strong>de</strong> metros cúbicos <strong>de</strong> água estimados.<br />
A construção do açu<strong>de</strong> do Castanhão consiste na viabilização do<br />
fortalecimento da infra-estrutura hídrica, sendo os sistemas fixos (rios, lagos e<br />
lagoas) e artificiais (açu<strong>de</strong>s, barragens, canais e adutoras) do Estado do Ceará, o<br />
foco da viabilização <strong>de</strong> tais projetos, que irá possibilitar um <strong>de</strong>senvolvimento<br />
hidroagrícola e o reforço no abastecimento d'água na região da Gran<strong>de</strong> Fortaleza.<br />
Além <strong>de</strong> controlar as enchentes do Vale do Jaguaribe, o projeto tem por objetivos<br />
incrementar a piscicultura, gerar energia elétrica e a instalação <strong>de</strong> pólo turístico, para<br />
a geração <strong>de</strong> renda para a população local que sofre constantemente com os<br />
episódios da seca no sertão cearense.<br />
A população local das cida<strong>de</strong>s que seriam atingidos pela construção do<br />
açu<strong>de</strong>, juntamente com os pescadores e trabalhadores rurais da locais atingidos<br />
pela construção, tiveram que ser realocada para a construção do açu<strong>de</strong> do<br />
Castanhão. O governo <strong>de</strong>salojou um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> moradores das cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
Jaguaribe, Jaguaretama, já que nessas localida<strong>de</strong>s gran<strong>de</strong>s partes das suas áreas<br />
seriam inundadas.<br />
50
O órgão gestor da obra e pela realocação da população, no caso o DNOCS,<br />
com apoio do Ministério da Integração Nacional e Secretárias dos Recursos Hídricos<br />
(SRH), Quintiliano (2008), não levaram em consi<strong>de</strong>ração questão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, que<br />
removeram as populações da cida<strong>de</strong> antiga para a nova cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cunho<br />
mo<strong>de</strong>rnista 6 , Nova Jaguaribara e reassentamentos rurais.<br />
Dessa forma Quintiliano (2008, p.135) lembra que:<br />
A barragem é polêmica, <strong>de</strong>vido ao acesso restrito da comunida<strong>de</strong> a projetos<br />
piscicultura e agrícolas, <strong>de</strong>ixando parte da população do entorno do canal<br />
sem acesso água para plantio. Deve-se o fato à falta <strong>de</strong> recursos dos<br />
excluídos que não po<strong>de</strong>m se equipar e aten<strong>de</strong>r as exigências <strong>de</strong> uso do<br />
recurso hídrico, evitando <strong>de</strong>sperdícios e otimizando a produção.<br />
Dessa maneira, o que esta se presenciando no local é o fruto <strong>de</strong> uma<br />
relação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, que com a tomada do espaço socialmente ocupado pela ação<br />
intervencionista da “União” o produto passa a ser questionado coexistindo uma<br />
relação <strong>de</strong> luta entre os diferentes agentes sociais 7 envolvidos, que atuam na<br />
produção do espaço cearense, que na sua relação com a matéria, nota-se que esta<br />
é uma relação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que está inserida no campo político por intermédio do modo<br />
<strong>de</strong> produção capitalista. (RAFFESTIN, 1993).<br />
A construção do Açu<strong>de</strong> Castanhão faz parte <strong>de</strong> um processo territorialmente<br />
seletivo e socialmente exclu<strong>de</strong>nte pelo fato <strong>de</strong> que foi construído em uma área que<br />
possui maior potencial hídrico e ao mesmo tempo uma maior <strong>de</strong>manda para o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento da ativida<strong>de</strong> agrícola.<br />
4.3 . A Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova Jaguaribara<br />
Para a Construção do Açu<strong>de</strong> Castanhão foi necessário inundar 2/3 da<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaguaribara, o que levou a construção <strong>de</strong> uma nova cida<strong>de</strong>.<br />
6 A cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova Jaguaribara, mesmo com uma população pequena, foi <strong>de</strong>nominada como<br />
município, mas o interessante esta no padrão <strong>de</strong> planejamento encontrado, com ruas largas, todas<br />
em paralelas e perpendiculares, ruas cobertas com paralelepípedo (ter uma maior absorção <strong>de</strong> água).<br />
Mesmo com todo esse padrão <strong>de</strong>senvolvimentista, a cida<strong>de</strong> que era para ser consi<strong>de</strong>rado um gran<strong>de</strong><br />
centro regional não recebeu o gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> população esperada.<br />
7 Os principais atores sociais envolvidos são os seguintes: Estado, os usuários da água (pequenos e<br />
gran<strong>de</strong>s empresários agrícolas, industriais e piscicultores), os membros dos Comitês <strong>de</strong> Bacia, os<br />
movimentos sociais e toda a população atingida pela implantação dos fixos necessários a captação<br />
<strong>de</strong> água.<br />
51
A remoção da população da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaguaribara para um novo espaço foi<br />
anunciada pelo Governo do Estado no ano <strong>de</strong> 1995. Essa mudança interrompe uma<br />
história, a dos jaguaribarenses com o seu lugar <strong>de</strong> vivência, seu espaço coletivo das<br />
praticas sociais, econômicas, culturais e políticas. (NASCIMENTO, 2003).<br />
A mobilida<strong>de</strong> para a nova cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>u início ao Movimento “Não ao<br />
Castanhão” pela comunida<strong>de</strong> jaguariberense na tentativa <strong>de</strong> evitar que a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Jaguaribara fosse inundada pela construção do açu<strong>de</strong>. Segundo Lins (2008), o<br />
movimento foi iniciado a partir das audiências públicas realizadas com o DNOCS,<br />
que tinha por objetivo discutir os impactos com a construção do açu<strong>de</strong>, a empresa<br />
<strong>de</strong>tinha apenas informações <strong>de</strong> impactos positivos sobre a obra, sem referência<br />
sobre os impactos negativos mencionados pelos estudiosos.<br />
As comunida<strong>de</strong>s ao se <strong>de</strong>pararem com a irreversibilida<strong>de</strong> do projeto<br />
apresentaram um importante papel em favor do retardamento da obra, a fim <strong>de</strong><br />
conquistarem neste período benefícios que amenizassem suas perdas, como:<br />
<strong>de</strong>finição do novo espaço territorial do município <strong>de</strong> Jaguaribara e o distrito <strong>de</strong> Poço<br />
Comprido; infra-estrutura social e econômica <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> padrão; proximida<strong>de</strong> da<br />
nova cida<strong>de</strong> com as águas do Jaguaribe; acesso às principais rodovias fe<strong>de</strong>rais e<br />
estaduais; reassentamento da população rural com ou sem terras e que tenham o<br />
acesso a projetos irrigados; Que a população <strong>de</strong> produtores rurais com ou sem terra<br />
do município <strong>de</strong> Jaguaribara tenha priorida<strong>de</strong> no assentamento em terras<br />
agricultáveis da Bacia Hidrográfica da Barragem; entre outros benefícios voltados à<br />
<strong>de</strong>fesa da memória da cida<strong>de</strong> e assistência a população atingida. Umas séries <strong>de</strong><br />
criticas foram feitas à obra e segundo Perote (2006):<br />
A principal polêmica gerada em torno do empreendimento baseou-se na<br />
tese <strong>de</strong>fendida por diversos técnicos que questionavam afrontosamente os<br />
cálculos da barragem. O super dimensionamento do Castanhão é posto em<br />
discussão, <strong>de</strong>vido ao fato <strong>de</strong> gerar impactos, po<strong>de</strong>mos salientar, além da<br />
inundação <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> dois terços do município <strong>de</strong> Jaguaribara, a erosão<br />
fluvial a jusante da barragem; a alteração no regime sedimentológico <strong>de</strong><br />
transporte <strong>de</strong> material na planície fluvial e ambiente marinho, o que impacta<br />
a ativida<strong>de</strong> pesqueira, qualida<strong>de</strong> da água a jusante, do reservatório em<br />
função da vazão <strong>de</strong>fendida para a barragem e dos usos d’água em vista da<br />
irrigação e <strong>de</strong>pósitos finais <strong>de</strong> <strong>de</strong>jetos; a salinização dos solos agricultáveis,<br />
<strong>de</strong>vido o rebaixamento do lençol freático, o que permite a intrusão <strong>de</strong> águas<br />
e muitos outros listados no EIA/RIMA e nos pareceres da consultoria.<br />
Para manter a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com lugar mesmo em uma nova cida<strong>de</strong> a<br />
comunida<strong>de</strong> jaguaribarense criou a Casa da Memória, fundada em 1998 com o<br />
apoio do Instituto <strong>de</strong> Memória do Povo Cearense – IMOPEC. A Casa <strong>de</strong> Memória foi<br />
52
um espaço construído para que as pessoas pu<strong>de</strong>ssem <strong>de</strong>ixar objetos que marcaram<br />
suas vidas na antiga cida<strong>de</strong>, uma memória capaz <strong>de</strong> reviver o passado, preservar a<br />
riqueza dos significados e fortalecer a comunida<strong>de</strong> na construção do lugar.<br />
A escolha da localização da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova Jaguaribara levou-se em<br />
consi<strong>de</strong>ração alguns fatores importantes, segundo a SEINFRA (Secretaria <strong>de</strong> Infraestrutura<br />
do Estado do Ceará), entre eles po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar:<br />
Proximida<strong>de</strong> com o Açu<strong>de</strong> Castanhão;<br />
A área apresenta um relevo suave, e esten<strong>de</strong>-se pelo Chapadão até a cota 110;<br />
Condições geomorfológicas favoráveis, boas condições pedológicas da área<br />
que não apresenta processos erosivos e instabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> talu<strong>de</strong>s, facilitando<br />
assim a drenagem superficial naturalmente. Os solos na maior parte são<br />
profundos e com excelente permeabilida<strong>de</strong>;<br />
Terreno elevado, que permite a visualização da região do lago, da barragem e<br />
do rio Jaguaribe e elimina o risco <strong>de</strong> inundações;<br />
Possibilida<strong>de</strong> da realização <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> irrigação nas vizinhanças do sítio;<br />
Inexistência <strong>de</strong> barreiras para a circulação dos ventos, levando-se em<br />
consi<strong>de</strong>ração que se trata do sertão semi-árido do Nor<strong>de</strong>ste;<br />
O fácil acesso à BR-116, estrada que liga o estado ao sul do país, <strong>de</strong><br />
fundamental importância para o escoamento da produção, além <strong>de</strong> favorecer o<br />
intercâmbio com os principais municípios vizinhos;<br />
A localização geográfica privilegiada <strong>de</strong>ntro do estado do Ceará, servindo <strong>de</strong><br />
ponto central entre importantes municípios, como Morada Nova, Jaguaretama,<br />
Alto Santo e Iracema.<br />
De acordo com o discurso da SEINFRA, o projeto urbanístico da cida<strong>de</strong> foi<br />
concebido <strong>de</strong> forma a aproveitar ao máximo o potencial da área, em seus aspectos<br />
físicos, paisagísticos, sociais e econômicos.<br />
Como relatam os autores dos projetos <strong>de</strong> construção da Nova Jaguaribara, a<br />
concepção das edificações da nova cida<strong>de</strong> observou os parâmetros <strong>de</strong>finidos no<br />
Plano Urbanístico no que diz respeito à localização, às visuais, à pluviosida<strong>de</strong> da<br />
região, à insolação e à ventilação. Consi<strong>de</strong>ram as características regionais quanto à<br />
forma e quanto aos materiais empregados, observando suas características,<br />
disponibilida<strong>de</strong> e facilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fabricação, no intuito <strong>de</strong> fomentar e apoiar as<br />
53
ativida<strong>de</strong>s das pequenas empresas regionais na geração <strong>de</strong> emprego e renda<br />
(PEROTE, 2006).<br />
Na Nova Jaguaribara, os moradores possuem serviços urbanos <strong>de</strong><br />
comunicação, abastecimento <strong>de</strong> água, sistemas <strong>de</strong> coleta e tratamento <strong>de</strong> esgoto e<br />
eletrificação.<br />
No discurso do governo sobre a construção da nova cida<strong>de</strong>, mencionava<br />
que iriam melhorar a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida da população e fortalecer a cidadania e o<br />
que os laços <strong>de</strong> vizinhança e amiza<strong>de</strong> não se alterariam, porém, percebe-se essa<br />
alteração e assim relata Nascimento (2005, p.44):<br />
As relações <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong>, importante suporte material na construção da<br />
memória e do patrimônio histórico, foram suplantadas, uma vez que nem<br />
todos os moradores mantiveram suas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> vizinhança, agora<br />
condicionadas pelo <strong>de</strong>senho urbano. A imposição <strong>de</strong>ssa arquitetura é mais<br />
patente para os velhos, que, em sua condição natural <strong>de</strong> retraimento, são os<br />
que sofrem mais profundamente: as casas dos amigos ficam mais<br />
afastadas, as distâncias a percorrer mais longas.<br />
As obras do açu<strong>de</strong> Castanhão tiveram seu término no ano <strong>de</strong> 2003 e o<br />
discurso político em sua <strong>de</strong>fesa era que o açu<strong>de</strong> serviria principalmente ao<br />
abastecimento humano, garantindo o fornecimento <strong>de</strong> água durante os períodos<br />
mais críticos <strong>de</strong> seca, controlar as cheias em épocas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s volumes <strong>de</strong><br />
precipitações, possibilitar o cultivo agrícola através <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> irrigações, entre<br />
outros.<br />
Diante <strong>de</strong> tantas controvérsias, a construção do açu<strong>de</strong> Castanhão, <strong>de</strong>ve<br />
servir <strong>de</strong> exemplo a outras obras que ainda estão por vir ou em fase inicial<br />
(Barragem do Figueiredo e própria transposição do Rio São Francisco, que também<br />
foram visitados em campo) <strong>de</strong>ntre as quais se po<strong>de</strong> ressaltar que a participação<br />
social que foi <strong>de</strong> suma importância pra que houvesse um retorno (mesmo que<br />
apenas material) por parte do governo para essas populações atingidas e que a<br />
população brasileira <strong>de</strong>ve sempre repensar em quais são as verda<strong>de</strong>iras intenções<br />
por parte do governo quando por vezes quer impor o seu discurso<br />
“<strong>de</strong>senvolvimentista” .<br />
No ano <strong>de</strong> 2000 inicia-se a transferência dos moradores para a nova cida<strong>de</strong><br />
e no ano <strong>de</strong> 2001 é inaugurada pelo Governo do Estado do Ceará a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova<br />
Jaguaribara, que ficava localizada a 55 km da Jaguaribara. O município passa a ter<br />
os seguintes limites: ao norte, o município <strong>de</strong> Morada Nova; a leste, os municípios<br />
<strong>de</strong> Alto Santo e Iracema; ao sul, Jaguaribe e a oeste o município Jaguaretama. A<br />
54
área territorial é <strong>de</strong> 595,60 km² e a população resi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> 8.730 habitantes. (IBGE,<br />
2000). Foram realocados para a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova Jaguaribara 3.300 habitantes do<br />
distrito-se<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaguaribara, e <strong>12</strong>0 habitantes do distrito <strong>de</strong> Poço Comprido, e 220<br />
moradores <strong>de</strong> um bairro da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaguaretama e Alto Santo. Aos moradores<br />
realocados foram oferecidos três mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> residências cujo tamanho baseou-se<br />
nas antigas moradias. O quadro a seguir da Secretaria <strong>de</strong> Turismo e Comunicação<br />
Social, elaborado por LINS (2008) apud Nascimento (2003) e <strong>de</strong> Isac (2007)<br />
mostram os três mo<strong>de</strong>los das residências em Nova Jaguaribara.<br />
Tamanho das<br />
casas<br />
Tamanho dos<br />
Lotes<br />
Condição<br />
50m² 360m² Moradores que viviam em casa <strong>de</strong> taipa ou alvenaria.<br />
75m² 360m² Moradores que viviam em casa entre 51 a 75m²<br />
100m² 540m² Moradores que viviam em casas entre 76 a 100m²<br />
<strong>12</strong>5m² 540m² Moradores que viviam em casa entre 101 e <strong>12</strong>5 m²<br />
150m² 720m² Moradores que viviam em casas maiores que <strong>12</strong>5m²<br />
Quadro 1 - Área das Residências oferecidas ao reassentados pelo Projeto Castanhão no município<br />
<strong>de</strong> Nova Jaguaribara (CE). Fonte: LINS, 2008.<br />
Os principais impactos na vida dos moradores foram os cortes com os laços<br />
culturais com a cida<strong>de</strong> antiga e com o rio Jaguaribe, já que algumas famílias viviam<br />
da pesca do rio, como a nova cida<strong>de</strong> ficou distante essa ativida<strong>de</strong> não são mais<br />
possíveis <strong>de</strong> serem <strong>de</strong>senvolvidas. Outro aspecto negativo com a saída da cida<strong>de</strong><br />
antiga refere-se a conservação da vizinhança, que não foi respeitada em muitos<br />
casos pelo projeto, por conta da distância entre as residências na nova cida<strong>de</strong>.<br />
(LINS, 2008).<br />
4.4 . Reassentamentos<br />
As pequenas comunida<strong>de</strong>s que viviam da pratica da pesca e agricultura,<br />
foram removidas das áreas que seriam inundadas pela construção do açu<strong>de</strong>,<br />
receberam um lote <strong>de</strong> terra nos projetos <strong>de</strong> reassentamentos, porém uma gran<strong>de</strong><br />
parte ficou sem produzir, já eu o governo não ofereceu os subsídios necessários<br />
para o <strong>de</strong>senvolvimento das ativida<strong>de</strong>s agrícolas, como a distribuição <strong>de</strong> sementes,<br />
55
acompanhamento técnico e a captação <strong>de</strong> água. Além da criação da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Nova Jaguaribara, foram instalados vinte projetos <strong>de</strong> reassentamento divididos entre<br />
os municípios <strong>de</strong> Alto Santo, Jaguaribara, Jaguaretama e São João do Jaguaribe,<br />
entre eles foram visitados nove reassentamentos <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> campo, tais como: a<br />
comunida<strong>de</strong> do Desterro, Baixa dos Cajoeiros, Mineiro, Mandacaru, Lajes, Sossego,<br />
Curupati, Barra 2 e Caroba.<br />
As populações reassentadas durante a construção do Açu<strong>de</strong> do Castanhão<br />
vem sofrendo com o não cumprimento das <strong>de</strong>slumbrantes promessas feitas pelo<br />
governo, das in<strong>de</strong>nizações não pagas durante os processos <strong>de</strong> (re) assentamento<br />
dos moradores, nas comunida<strong>de</strong>s alocadas no interior da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova<br />
Jaguaribara, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o término das obras do Açu<strong>de</strong> do Castanhão. Há promessas,<br />
quer saíram do papel, por exemplo, as in<strong>de</strong>nizações referentes aos antigos imóveis<br />
dos moradores, que hoje tem valor bem inferiores ao <strong>de</strong> mercado.<br />
4.5 . Comunida<strong>de</strong> do Desterro<br />
A comunida<strong>de</strong> do Desterro está localizada no município <strong>de</strong> Jaguaretama<br />
(CE) e é composta por <strong>de</strong>z residências. Destas, oito pertencem os moradores <strong>de</strong><br />
uma mesma família, que antes <strong>de</strong> se tornarem reassentados viviam em uma mesma<br />
fazenda trabalhando na plantação <strong>de</strong> cana-<strong>de</strong>-açúcar. As duas restantes vieram <strong>de</strong><br />
outras comunida<strong>de</strong>s. A comunida<strong>de</strong> vivia on<strong>de</strong> hoje está construída a torre da<br />
barragem, portanto, foram umas das primeiras famílias a serem realocadas. A priori,<br />
as famílias não receberam residências e passaram cerca <strong>de</strong> três meses vivendo em<br />
condições subumanas. Para estas, foi disponibilizado apenas um barracão, sem<br />
energia e água encanada.<br />
As famílias do reassentamento não possuem nenhum tipo <strong>de</strong> renda fixa. A<br />
renda das famílias se resume basicamente aos programas assistencialistas do<br />
governo, <strong>de</strong>ntre os quais citamos o Bolsa Família, além da pesca no açu<strong>de</strong><br />
localizado nas proximida<strong>de</strong>s do reassentamento e do trabalho informal. Um aspecto<br />
importante a ser <strong>de</strong>stacado é que parte dos moradores trabalha na se<strong>de</strong> do<br />
56
município <strong>de</strong> Jaguaretama ou nas cida<strong>de</strong>s vizinhas durante toda a semana, voltando<br />
para casa apenas nos finais <strong>de</strong> semana.<br />
Parte dos moradores que moram permanentemente no reassentamento,<br />
trabalham junto ao MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), no projeto <strong>de</strong><br />
criação <strong>de</strong> gado bovino e no projeto <strong>de</strong> apicultura. No total são 10 apicultores, sendo<br />
que cada um <strong>de</strong>les é responsável por 20 colméias, o que dá uma renda aproximada<br />
<strong>de</strong> R$ 60,00. Sendo que esta renda só é possível no período chuvoso, já que no<br />
período <strong>de</strong> estiagem as abelhas não produzem.<br />
A partir do trabalho <strong>de</strong> campo e ao conversarmos com Zilda Torquato,<br />
moradora da comunida<strong>de</strong> há 9 anos e ex-presi<strong>de</strong>nte do assentamento, verificamos<br />
que foi instalada uma adutora para que o projeto <strong>de</strong> reassentamento fosse<br />
abastecido <strong>de</strong> água. Mas o fato é que a CAGECE (Companhia <strong>de</strong> Água e Esgoto do<br />
Estado do Ceará) consi<strong>de</strong>ra essa instalação inviável economicamente pelo fato <strong>de</strong><br />
que o reassentamento conta apenas com <strong>de</strong>z famílias.<br />
A adutora está pronta, porém encontra-se <strong>de</strong>sativada pelo fato <strong>de</strong> que a<br />
população não tem condições <strong>de</strong> arcar com as <strong>de</strong>spesas referentes à energia para o<br />
bombeamento da água. Atualmente, cada família dispõe <strong>de</strong> uma cisterna <strong>de</strong> placa e<br />
também é abastecida por carro-pipa nos períodos <strong>de</strong> estiagem. O Estado oferece<br />
seis tickets <strong>de</strong> carro-pipa para a comunida<strong>de</strong> e quando os mesmos acabam, as<br />
famílias precisam arcar com essas <strong>de</strong>spesas. Os tickets são distribuídos<br />
mensalmente e liberados apenas nos períodos <strong>de</strong> seca.<br />
Algumas famílias da comunida<strong>de</strong> do Desterro tem encontrado muitas<br />
dificulda<strong>de</strong>s em pagar pela água oferecida pelo carro-pipa que chega a custar 50,00<br />
reais, porém sua água é salobra, o que faz com que essa água seja utilizada apenas<br />
para lavar roupas, para o banho e para os animais, sendo imprópria para o consumo<br />
humano.<br />
Além da falta <strong>de</strong> água e <strong>de</strong> renda, os moradores da comunida<strong>de</strong> do<br />
Desterro, também ressaltaram a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> transporte, já que as crianças<br />
precisam ir à cida<strong>de</strong> estudar e o transporte só circula no período da tar<strong>de</strong>,<br />
dificultando o acesso <strong>de</strong>sses moradores a cida<strong>de</strong>.<br />
Quanto a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do local, os moradores têm muito receio <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar<br />
as casas como sendo suas residências, <strong>de</strong>vido à falta <strong>de</strong> escritura das mesmas e,<br />
caso queiram ir para outro lugar tentar a sorte, estão arriscados a per<strong>de</strong>r a casa que<br />
já possuem para outra família.<br />
57
4.6 . Comunida<strong>de</strong> Baixa dos Cajueiros<br />
A comunida<strong>de</strong> da Baixa dos Cajueiros está localizada no município <strong>de</strong> Nova<br />
Jaguaribara, na margem esquerda do Canal da Integração. O Canal da Integração<br />
faz parte do Complexo Castanhão e está inserido no Programa <strong>de</strong> Gerenciamento e<br />
Integração dos Recursos Hídricos do Estado do Ceará – PROGERIRH, implantado<br />
pelo Governo Estadual e Fe<strong>de</strong>ral, com financiamento do Banco Mundial.<br />
Os moradores <strong>de</strong>ssa comunida<strong>de</strong> resi<strong>de</strong>m no local a mais <strong>de</strong> cinqüenta<br />
anos, já que as terras geralmente foram herdadas <strong>de</strong> parentes e/ou fazen<strong>de</strong>iros.<br />
Tais moradores levam um modo <strong>de</strong> vida camponês e sobrevivem da agricultura <strong>de</strong><br />
sequeiro, principalmente da plantação <strong>de</strong> milho e feijão, e da criação <strong>de</strong> gado<br />
bovino. Todo o exce<strong>de</strong>nte da produção é vendido nas cida<strong>de</strong>s vizinhas.<br />
Um dos principais problemas enfrentados pela população da comunida<strong>de</strong> diz<br />
respeito ao acesso à água, já que os córregos e rios existentes nas proximida<strong>de</strong>s do<br />
local são intermitentes e o açu<strong>de</strong> mais próximo localiza-se a três quilômetros <strong>de</strong><br />
distância da comunida<strong>de</strong>. Antes da construção do Canal, os moradores da<br />
comunida<strong>de</strong> retiravam água <strong>de</strong>sse açu<strong>de</strong> e a mesma era transportada por carroças<br />
ou animais <strong>de</strong> tração. Essa água era utilizada para lavar roupas, tomar banho,<br />
cozinhar e para o gado. Não existiam cisternas e os carros-pipa só chegam até a<br />
comunida<strong>de</strong> uma vez a cada mês, o que prejudicava até mesmo a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses<br />
moradores.<br />
A partir da década <strong>de</strong> 90 o Estado do Ceará juntamente com o Governo<br />
Fe<strong>de</strong>ral na implantação <strong>de</strong> políticas públicas <strong>de</strong> acesso à água, passou a realizar<br />
programas para o controle e a distribuição dos recursos hídricos, que resultaram em<br />
projetos que visavam diferentes fontes <strong>de</strong> recursos e a distribuição por <strong>de</strong>terminados<br />
espaços do território.<br />
A construção do Canal da Integração, uma das medidas governamentais em<br />
prol do acesso a água no nor<strong>de</strong>ste e que po<strong>de</strong> ser explicada pelo governo como<br />
forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> surgimento <strong>de</strong> um pólo hidroagrícola<br />
nas áreas <strong>de</strong> tabuleiro da Bacia do rio Jaguaribe, promovendo o atendimento aos<br />
projetos <strong>de</strong> irrigação no <strong>de</strong>correr do seu traçado.<br />
A forma <strong>de</strong> gestão se faz territorialmente seletiva e socialmente exclu<strong>de</strong>nte<br />
pelos problemas que se encontram nas comunida<strong>de</strong>s no entorno do canal.<br />
58
Comunida<strong>de</strong>s que ficam a 50 metros do canal e não conseguem a garantia do<br />
governo <strong>de</strong> ter água encanada para o seu consumo, porém os fluxos <strong>de</strong>sses canais<br />
aumentam e conseguem chegar a inúmeras áreas <strong>de</strong> acordo com os interesses <strong>de</strong><br />
grupos econômicos. (LINS, 2008).<br />
No entanto, após o começo da construção do Canal, com o apoio do<br />
Governo Municipal <strong>de</strong> Nova Jaguaribara, as casas da Comunida<strong>de</strong> Baixa dos<br />
Cajueiros, começaram a possuir encanamentos. A água que passa pelo canal é uma<br />
água consi<strong>de</strong>rada “bruta”, e não tratada, sendo imprópria para o consumo humano e<br />
o seu uso fica restrito para as irrigações e trabalhos domésticos. A população <strong>de</strong>ssa<br />
região utiliza-se <strong>de</strong> cisternas para o abastecimento da casa e para beber.<br />
De acordo com os <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> moradores da Baixa dos Cajueiros, o<br />
Estado não teve a preocupação <strong>de</strong> fazer com que essa água chegasse às<br />
residências dos sertanejos e tão pouco na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa água, o que <strong>de</strong>monstra<br />
que as políticas públicas <strong>de</strong> acesso a água pelo Estado não estão diretamente<br />
relacionada ao abastecimento humano e <strong>de</strong>sse<strong>de</strong>ntação <strong>de</strong> animais, e sim para<br />
aten<strong>de</strong>r as indústrias e o agronegócio.<br />
Para que essa água seja utilizada apenas <strong>de</strong> acordo com os interesses do<br />
Estado e do gran<strong>de</strong> capital, o Governo do Estado investiu em um sistema <strong>de</strong><br />
monitoramento 24horas, com seguranças armados que circulam pelo canal e com<br />
câmeras que possuem um zoom <strong>de</strong> até 2km, conectadas a um sistema central em<br />
Nova Jaguaribara e em Fortaleza.<br />
Logo no período da inauguração do primeiro trecho do Canal, o acesso à<br />
estrada que cortava o canal, bem como à água era completamente proibido. Hoje os<br />
moradores das comunida<strong>de</strong>s vizinhas conseguem retirar águas com bal<strong>de</strong>s pelo fato<br />
<strong>de</strong> que os seguranças foram trocados e os que trabalham nessa ativida<strong>de</strong><br />
atualmente são pessoas <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s próximas, o que, <strong>de</strong> certa forma, acabou<br />
favorecendo aos moradores<br />
O Estado, na implantação <strong>de</strong>ssas obras não teve a preocupação com a<br />
população atingida a fim <strong>de</strong> preservar suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s culturais ou <strong>de</strong> promover um<br />
crescimento econômico <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssas comunida<strong>de</strong>s.<br />
O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> gestão que o Estado implanta em obras, como o canal da<br />
integração, se faz em benefício somente aos possuidores <strong>de</strong> capital, e não sendo<br />
como políticas públicas em favorecimento a gran<strong>de</strong> parte da população, como diz<br />
LINS (2008) ao analisar tais construções:<br />
59
Obras <strong>de</strong> importância estratégicas para o”crescimento econômico” da região<br />
Nor<strong>de</strong>ste e do Ceará, mas que pouco contribuirão para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
econômico e social da população nor<strong>de</strong>stina, já que a mesma é realizada<br />
com o intuito <strong>de</strong> favorecer a poucos, concentrados em uma única classe<br />
social: a dos <strong>de</strong>tentores do capital, enquanto a maioria da população fica<br />
completamente <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong>sse recurso <strong>de</strong> fundamental importância à<br />
existência humana”. (LINS, 2008)<br />
Como po<strong>de</strong> ser observado, o Estado implanta suas políticas no território<br />
favorecendo somente a quem lhe interesse economicamente e ignorando sua<br />
população, os <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> moradores da comunida<strong>de</strong> da Baixa dos Cajueiros<br />
tem consciência <strong>de</strong> que a água que percorre a comunida<strong>de</strong> não está disponível para<br />
abastecer a população local e sim as ativida<strong>de</strong>s agroindustriais. Foi possível<br />
observar que alguns dos moradores nem sabem o porquê do canal nessas<br />
localida<strong>de</strong>s.<br />
4.7 . Comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mineiro<br />
A Comunida<strong>de</strong> Mineiro contempla uma área <strong>de</strong> reassentamento, da qual os<br />
moradores foram acometidos pelos processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapropriação para a<br />
construção do açu<strong>de</strong> Castanhão. Gomes e Khan (2003) enfatizam que o<br />
<strong>de</strong>slocamento compulsório <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s e famílias é geralmente conseqüência<br />
inevitável da construção <strong>de</strong> infra-estruturas, especialmente no caso da infraestrutura<br />
hídrica, on<strong>de</strong> açu<strong>de</strong>s e canais são construídos em terras e ao longo <strong>de</strong> rios<br />
altamente populosos. Assim, milhares <strong>de</strong> famílias que vivem geralmente no meio<br />
rural são praticamente obrigadas a <strong>de</strong>ixarem suas terras para viverem em outras<br />
que na maioria das vezes se apresentam improdutivas.<br />
Não fugindo às regras que parecem gerais aos reassentamentos<br />
apresentam diversas dificulda<strong>de</strong>s no quesito produção. As famílias que vivem nesse<br />
reassentamento são todas <strong>de</strong> pequenos agricultores que viviam na área rural dos<br />
municípios no entorno da antiga Jaguaribara. Hoje sobrevivem, na maioria das<br />
vezes, dos programas assistencialistas do Governo Fe<strong>de</strong>ral, tais como Bolsa<br />
Família, Bolsa Escola, além da aposentadoria e do emprego público, geralmente nas<br />
60
prefeituras. Atualmente são cerca <strong>de</strong> 140 famílias vivendo nessa comunida<strong>de</strong>, a<br />
maioria dos moradores reclamam da falta <strong>de</strong> emprego, já que a área cedida pelo<br />
DNOCS não é suficiente para o pastoreio ou para se produzir qualquer alimento.<br />
A associação <strong>de</strong> moradores <strong>de</strong>ssa comunida<strong>de</strong> funciona há cerca <strong>de</strong> oito<br />
anos, mas o que observamos a partir das entrevistas realizadas durante o trabalho<br />
<strong>de</strong> campo, é que suas ações não são eficazes quanto antes pelo fato <strong>de</strong> que muitos<br />
moradores per<strong>de</strong>ram o interesse em participar das reuniões e das ações<br />
<strong>de</strong>senvolvidas pela mesma. Mas mesmo sem o interesse da população em participar<br />
<strong>de</strong> tais reuniões, a associação <strong>de</strong> moradores trouxe vários benefícios para a<br />
comunida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntre os quais citamos a energia elétrica, embora o custo seja<br />
elevado.<br />
Conforme relatos, percebemos que os índices <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego na<br />
Comunida<strong>de</strong> Mineiro são muito altos, as pessoas não têm terras para cultivar e nem<br />
espaço para a criação <strong>de</strong> gado leiteiro. Alguns saem para trabalhar fora das<br />
comunida<strong>de</strong>s, e mesmo assim os ganhos são insuficientes, pois se trata, na maioria<br />
das vezes <strong>de</strong> trabalhos temporários em lavouras vizinhas ao reassentamento. Um<br />
fato <strong>de</strong> relevante significado foi à cobrança pela água. Alguns moradores afirmaram<br />
em <strong>de</strong>poimentos que, quando ainda viviam on<strong>de</strong> hoje é o açu<strong>de</strong> Castanhão, tinham<br />
água em abundância e não pagavam pela mesma. Atualmente pagam pela água e<br />
segundo afirmações, pagam caro. Algumas pessoas que não tem empregos, já<br />
tiveram sua conta cortada por falta <strong>de</strong> pagamento. A água utilizada (e paga) pelos<br />
moradores é bombeada do Açu<strong>de</strong> Castanhão. Porém, antes da construção do<br />
mesmo, a água utilizada pelos moradores era extraída <strong>de</strong> poços artesianos e não<br />
existia nenhum tipo <strong>de</strong> taxa para a sua utilização.<br />
A comunida<strong>de</strong> Mineiro é um antigo bairro da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaguaribara,<br />
existente e povoado antes <strong>de</strong> sua inundação do açu<strong>de</strong> Castanhão. A partir das<br />
entrevistas realizadas no trabalho <strong>de</strong> campo, observamos que existiram dois<br />
processos <strong>de</strong> ocupação <strong>de</strong>ssa área. O primeiro veio do projeto São José – um<br />
projeto antigo <strong>de</strong> assentamento executado pelo então governo do Estado em<br />
parceria com a prefeitura <strong>de</strong> Jaguaribara. Posteriormente, há cerca <strong>de</strong> sete anos,<br />
sob administração do DNOCS, chegaram os atingidos pela barragem do açu<strong>de</strong>.<br />
Assim, a Comunida<strong>de</strong> Mineiro é composta por dois núcleos, um combinado com<br />
antigos moradores e outro com reassentados.<br />
61
Em relação ao DNOCS, muitos moradores repudiam esse órgão ou<br />
<strong>de</strong>sconhecem sua existência, a maioria prefere não falar sobre. Os poucos que se<br />
aventuraram a dar opiniões afirmaram que foram abandonados naquela área, que<br />
do DNOCS obtiveram apenas a casa para morar, mas não terras agricultáveis.<br />
Algumas famílias reassentadas foram outrora, trabalhadores <strong>de</strong> casas gran<strong>de</strong>s em<br />
fazendas no antigo povoado, hoje sem emprego, sobrevivem <strong>de</strong> ajuda humanitária.<br />
Para a reassentada Elenilda Diogenes Maia, 33 anos:<br />
As pessoas aqui estão abandonadas, se não são os aposentados as<br />
pessoas não tem nem do que sobreviver. On<strong>de</strong> tem um aposentado tem um<br />
filho, uma neta que se encosta na pessoa.<br />
A saída das famílias da área a ser inundada pelo açu<strong>de</strong> foi muito pacífica,<br />
não houve resistência, conforme relatos <strong>de</strong> reassentados da Comunida<strong>de</strong>. Segundo<br />
<strong>de</strong>sabafos, aqueles que já possuíam maior po<strong>de</strong>r aquisitivo receberam in<strong>de</strong>nização<br />
e foram morar em outra localida<strong>de</strong>, até mesmo para outros municípios. Para os mais<br />
pobres restou apenas retirar-se e mudar-se para a Comunida<strong>de</strong> Mineiro, pois era a<br />
única solução, já que aquela área seria alagada.<br />
Silveira (2009) <strong>de</strong>staca, em outras palavras, que a preocupação do então<br />
governador Ciro Gomes estava muito distante dos indivíduos atingidos pela<br />
barragem ao afirmar que em discurso publico, o mesmo manifestou afeto interesse<br />
para com as políticas centralizadas e os programas <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> impacto,<br />
esquecendo-se que para o <strong>de</strong>senvolvimento daquela obra tão magnífica, implicaria<br />
<strong>de</strong>squalificação da vida <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> pessoas. Ou seja, a vida humana<br />
representou o elemento <strong>de</strong> menor importância perante a magnitu<strong>de</strong> do açu<strong>de</strong><br />
Castanhão.<br />
Dentre as reivindicações dos reassentados quando da saída da área hoje<br />
ocupada pelo açu<strong>de</strong> Castanhão, <strong>de</strong>staca-se para a população rural ou sem terras a<br />
opção <strong>de</strong> ser reassentada em projetos irrigados pelo DNOCS e DNOS<br />
(Departamento Nacional <strong>de</strong> Obras e Saneamento), com direito <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
um lote padrão; Definição <strong>de</strong> terras agricultáveis da Bacia Hidrográfica da barragem<br />
e que a população <strong>de</strong> produtores rurais com ou sem terra do município <strong>de</strong><br />
Jaguaribara tenha priorida<strong>de</strong> no assentamento nestas áreas. Salienta-se, portanto<br />
que essas reivindicações não foram atendidas conforme visto na Comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Mineiro, uma vez que estes só receberam casas e não houve distribuição <strong>de</strong> terras<br />
para cultura ou ativida<strong>de</strong>s criatórias.<br />
62
De acordo com Silveira (2009), uma das inquietações do então governador<br />
Ciro Gomes, quando dos processos <strong>de</strong> realocação dos moradores da velha<br />
Jaguaribara, foi à ostentação da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />
Silveira (2009) finaliza afirmando que o governador, em suas ações <strong>de</strong><br />
implementação <strong>de</strong> obras com tamanha grandiosida<strong>de</strong>, acreditou na ilusão <strong>de</strong> tais<br />
ações se converteriam em retorno populista, no entanto, na medida em que criava<br />
os espaços <strong>de</strong> discussão, expunha-se a socieda<strong>de</strong>, acabando por comprometer-se<br />
bem mais do que previa, consolidando novas relações entre Estado e Socieda<strong>de</strong><br />
Civil na história do Ceará.<br />
De acordo com <strong>Campo</strong>s e <strong>Campo</strong>s (2008), quanto aos principais impactos<br />
negativos <strong>de</strong>rivados da construção do Castanhão <strong>de</strong>staca-se o reassentamento <strong>de</strong><br />
cerca <strong>de</strong> 8.000 pessoas resi<strong>de</strong>ntes nos Municípios <strong>de</strong> Jaguaribara, Jaguaretama,<br />
Alto Santo e Jaguaribe. O Açu<strong>de</strong> do Castanhão reduziu a disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />
área <strong>de</strong> até 60.000 hectares, com perda total <strong>de</strong> toda infra-estrutura existente na<br />
área inundada; gerou tensão social <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> mudanças irreversíveis na vida e<br />
na rotina da população <strong>de</strong>slocada, da interrupção das ativida<strong>de</strong>s sociais e<br />
produtivas, e da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> remoção <strong>de</strong> cemitérios, <strong>de</strong> marcos histórico e <strong>de</strong><br />
construções antigas. Do ponto <strong>de</strong> vista ambiental, um impacto importante foi, a<br />
alteração do regime ecológico dos ecossistemas, com reflexos ainda imprevisíveis<br />
sobre a fauna e flora da região.<br />
A partir dos <strong>de</strong>poimentos cedidos nas entrevistas, ficou notório que na<br />
Comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mineiro, além <strong>de</strong> solos inférteis, não há terras suficientes para as<br />
ativida<strong>de</strong>s criatórias e tão pouco para as ativida<strong>de</strong>s agrícolas. Alguns poucos<br />
moradores criam algumas cabeças <strong>de</strong> gado leiteiro, mas apenas para consumo<br />
próprio, pois a quantida<strong>de</strong> produzida é insuficiente para comércio.<br />
Assim, apesar da importância da barragem para aquela região e para o<br />
Estado do Ceará, alguns fatores <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m social e econômica necessitam ser<br />
i<strong>de</strong>ntificados e estudados para mensurar seus efeitos e permitir tomar <strong>de</strong>cisões em<br />
termos <strong>de</strong> formulação <strong>de</strong> políticas a<strong>de</strong>quadas às necessida<strong>de</strong>s das comunida<strong>de</strong>s<br />
atingidas. <strong>Campo</strong>s e <strong>Campo</strong>s (2008).<br />
63
4.8 . Comunida<strong>de</strong> Mandacaru<br />
A comunida<strong>de</strong> do Mandacaru possui aproximadamente 170 famílias, que<br />
foram removidas <strong>de</strong> suas terras, na zona rural, já que área seria inundada com a<br />
construção do Açu<strong>de</strong> Castanhão. A cerca <strong>de</strong> 5 anos no local, a comunida<strong>de</strong> não tem<br />
acesso a água, para irrigação para produção agrícola, mesmo localizada a poucos<br />
metros do Canal da Integração. Os moradores se queixaram que as promessas<br />
feitas pelo governo sobre os projetos <strong>de</strong> irrigação não foram cumpridas, e ainda hoje<br />
esperam pela implantação dos canais <strong>de</strong> irrigação.<br />
A comunida<strong>de</strong> não possui escola <strong>de</strong> 1º e 2º grau do ensino fundamental e<br />
médio, possui apenas uma creche e entre as construções em andamento está um<br />
posto <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, um frigorífico e um galpão para or<strong>de</strong>nha <strong>de</strong> vacas e resfriamento do<br />
leite.<br />
Os moradores da Comunida<strong>de</strong> Mandacaru pertenciam a comunida<strong>de</strong>s rurais<br />
na antiga cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaguaribara e tiveram um tratamento completamente diferente<br />
daquela oferecida aos moradores da área urbana. A maioria <strong>de</strong>les só aceitou a<br />
mudança para o novo local <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muita resistência, por conta das promessas<br />
não cumpridas pelo governo, que garantia melhorar a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>ssas<br />
pessoas.<br />
Os principais impactos na Comunida<strong>de</strong> relatados pelos moradores é que<br />
antes como criavam gado, os animais bebiam água do Rio Jaguaribe, e hoje como<br />
não têm acesso a água não praticam mais essa ativida<strong>de</strong>. Além disso, as casas no<br />
novo local possuem pouco mais <strong>de</strong> cinco anos, e já se encontram danificadas<br />
externamente, sendo visível que foram mal construídas.<br />
As dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas pela Comunida<strong>de</strong> relacionam mesmo a<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com o lugar, com a ausência do Rio Jaguaribe, já que na Comunida<strong>de</strong><br />
antiga se alimentavam da pesca que era praticada no Rio. Além disso, não pagavam<br />
pela água que consumiam o que não ocorre no reassentamento, já que muitos<br />
moradores não têm renda suficiente para pagar pela água que consume.<br />
Um dos principais aspectos observados a partir <strong>de</strong> conversas com os<br />
moradores foram os associados à cultura, ao amor à terra. Observamos que os<br />
moradores sofreram um choque cultural muito gran<strong>de</strong>, principalmente a população<br />
mais idosa, já que toda a sua história <strong>de</strong> vida ficou nas áreas alagadas. As pessoas<br />
64
sofreram muito com essas mudanças, houve perda <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com o local <strong>de</strong><br />
origem, mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> cinco anos no novo local as famílias ainda não<br />
conseguiram se adaptar.<br />
No início da obra da construído o canal para a irrigação, foram compradas<br />
às bombas para que pu<strong>de</strong>ssem levar água até o reassentamento. Entretanto, foram<br />
<strong>de</strong>ixadas aos cuidados <strong>de</strong> um morador local, que relatou se encontrarem em <strong>de</strong>suso<br />
à aproximadamente três anos, sofrendo <strong>de</strong>preciação. O fato prejudica a economia<br />
local, já que a famílias reassentadas necessitam cultivar a terra, para obter o seu<br />
sustento.<br />
4.9 . Comunida<strong>de</strong> Lajes<br />
A comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lajes está localizada próxima a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova<br />
Jaguaribara e é consi<strong>de</strong>rada como um bairro rural, da cida<strong>de</strong>. Ela <strong>de</strong>staca-se pelo<br />
fato <strong>de</strong> ter sido, uma das comunida<strong>de</strong>s que mais resistiu ao processo <strong>de</strong> construção<br />
da barragem Castanhão. Isso é observado a partir <strong>de</strong> conversas com moradores da<br />
própria comunida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntre os quais citamos o Sr. Pedro Rodrigues <strong>de</strong> Oliveira, 61<br />
anos, casado e pai <strong>de</strong> cinco filhos. Sr. Pedro mora na comunida<strong>de</strong> há oito anos e<br />
comenta que muitos moradores tiveram dificulda<strong>de</strong>s em se adaptarem ao novo local.<br />
Os moradores que resistiram à construção foram retirados brutalmente <strong>de</strong><br />
suas residências e transportados <strong>de</strong> helicópteros. Na ocasião o DNOCS havia<br />
garantido aos moradores que o nível água da barragem não subiria em 19 anos,<br />
porém naquele mesmo ano <strong>de</strong> 2004 ocorreram fortes chuvas provocando o<br />
transbordamento das águas e causando perdas violentas. Muitos animais morreram<br />
com a inundação, já que não houve tempo suficiente para que fossem retirados.<br />
Os moradores da comunida<strong>de</strong> receberam em média R$ 4.000,00 <strong>de</strong><br />
in<strong>de</strong>nização e tiveram que ven<strong>de</strong>r toda a sua produção e, principalmente, a criação<br />
<strong>de</strong> animais, já que o local on<strong>de</strong> a comunida<strong>de</strong> está instalada hoje é consi<strong>de</strong>rado<br />
apenas um bairro rural da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova Jaguaribara.<br />
65
Na antiga comunida<strong>de</strong>, os moradores viviam da criação <strong>de</strong> animais e da<br />
plantação <strong>de</strong> milho, feijão, melancia e mamona. Toda a produção era apenas para a<br />
subsistência, sendo que o exce<strong>de</strong>nte era vendido na se<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong>.<br />
Nesta comunida<strong>de</strong> foi implantado um projeto <strong>de</strong> plantação <strong>de</strong> mamona em<br />
conjunto com a Petrobrás, porém apenas um morador a<strong>de</strong>riu a tal projeto, sendo<br />
que sua produção gira em torno <strong>de</strong> 600kg/mês. Atualmente o quilo da mamona é<br />
vendido por aproximadamente R$ 1,15 e gera uma renda mensal <strong>de</strong><br />
aproximadamente quatrocentos reais. A mamona é uma cultura <strong>de</strong> sequeiro, ou<br />
seja, é realizada apenas no período chuvoso por não ser permitida a retirada <strong>de</strong><br />
água da barragem para tal produção.<br />
Outros moradores entrevistados <strong>de</strong>stacam ainda que, apesar das casas<br />
serem maiores, não há infra-estrutura capaz <strong>de</strong> segurar os mais jovens no local.<br />
Poucos são os jovens que tem perspectivas <strong>de</strong> melhoras e projetos para o futuro no<br />
local, o que retrata a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> muitos jovens em outras regiões do nor<strong>de</strong>ste.<br />
4.10 . Comunida<strong>de</strong> do Sossego<br />
O reassentamento do Sossego integra o conjunto <strong>de</strong> transferências <strong>de</strong><br />
pessoas feitas pelo DNOCS (Departamento Nacional <strong>de</strong> Obras <strong>de</strong> Combate a Seca)<br />
em parceria com o IDACE (Instituto do Desenvolvimento Agrário do Estado do<br />
Ceara) e o INCRA (Instituto <strong>de</strong> Colonização e Reforma Agrária), como medidas<br />
mitigadoras e compensatórias exigidas no plano <strong>de</strong> construção e formação do<br />
reservatório hídrico do Açu<strong>de</strong> Castanhão, localizado no município <strong>de</strong> Nova<br />
Jaguaribara.<br />
O reassentamento Sossego começou a ser planejado em 1997, através da<br />
coleta dos nomes dos possíveis interessados. Destes nomes, 75 famílias seriam<br />
selecionadas, sendo que a primeira reunião ocorreu no dia 6 <strong>de</strong> Novembro do<br />
mesmo ano. Com a burocracia e a <strong>de</strong>sconfiança que estes possíveis “candidatos”<br />
possuíam das organizações envolvidas no planejamento do reassentamento, varias<br />
famílias <strong>de</strong>sistiram da vaga.<br />
66
O começo, <strong>de</strong> fato, da implantação do reassentamento <strong>de</strong>u-se no ano <strong>de</strong><br />
1998, quando o IDACE, através <strong>de</strong> política publica, ofereceu credito na área <strong>de</strong><br />
moradia. Foram disponibilizados para construção das casas, aproximadamente, R$<br />
1.980,00 um valor totalmente irrisório para se construir uma moradia <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>.<br />
No mesmo ano o IDACE forneceu mais R$ 520 para alimentação, já que este foi um<br />
ano <strong>de</strong> forte seca. Foram enviadas às famílias selecionadas uma “planta mo<strong>de</strong>lo” <strong>de</strong><br />
construção, no qual os moradores po<strong>de</strong>riam segui-la, ou não. As obras da<br />
construção foram feitas através <strong>de</strong> mutirão entre os moradores e sem qualquer<br />
assistência técnica dos órgãos competentes.<br />
O reassentamento Sossego/Contendas está numa área <strong>de</strong><br />
aproximadamente 2.400 hectares e atualmente possui 62 famílias, que vieram das<br />
áreas que seriam submersas pela águas do Açu<strong>de</strong> e <strong>de</strong> outros assentamentos<br />
(Principalmente do reassentamento Mineiro). Em entrevista com o presi<strong>de</strong>nte da<br />
associação <strong>de</strong> moradores do reassentamento Sossego/Contendas Diógenes<br />
Domingos, o mesmo nos <strong>de</strong>monstra a dificulda<strong>de</strong> dos moradores com o tamanho do<br />
reassentamento:<br />
Este assentamento foi criado para 75 famílias, na época existiam estas 75<br />
vagas, ai muita gente <strong>de</strong>sistiu, mas aqui não tem proprieda<strong>de</strong> para<br />
comportar as 75 famílias. Atualmente temos aqui 62 famílias. Aqui o cara<br />
tem que trabalhar mesmo, tem normas , logo a gente tem muita terra <strong>de</strong><br />
serra , a gente não vaga na serra, e on<strong>de</strong> tem outro a gente não vai e aqui a<br />
gente ganhou pouca terra. Pra plantar e criar fica difícil.<br />
Observa-se que a relação da área do assentamento com o número <strong>de</strong><br />
famílias restringe a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma maior utilização das terras para outros fins,<br />
como a pecuária ou mesmo criação <strong>de</strong> caprinos como complementação da renda<br />
das famílias. Neste reassentamento, em particular, foi <strong>de</strong>finido pela Associação dos<br />
Moradores que cada família po<strong>de</strong>ria criar no máximo 17 cabeças <strong>de</strong> gado, o que nos<br />
leva a crer que a área <strong>de</strong>stinada à criação é pequena, fato este que po<strong>de</strong> se tornar<br />
um inibidor do <strong>de</strong>senvolvimento socioeconômico das famílias que habitam a<br />
comunida<strong>de</strong>.<br />
A principal fonte <strong>de</strong> renda do reassentamento é a agricultura e a pecuária.<br />
Os moradores investem na criação <strong>de</strong> gado bovino, caprinos e na plantação <strong>de</strong><br />
milho, feijão e mandioca para subsistência, além da produção <strong>de</strong> leite.<br />
67
Outro problema é a não realização pelo INCRA <strong>de</strong> projetos que viabilizem<br />
uma maior inserção <strong>de</strong> seus produtos nos mercados locais, isto, <strong>de</strong> acordo com os<br />
moradores é causado pela falta <strong>de</strong> assistência técnica ou mesmo pela escassez <strong>de</strong><br />
recursos para investir nas suas lavouras e aumentarem a produtivida<strong>de</strong>.<br />
Como observamos, a comunida<strong>de</strong> do Sossego passa por uma série <strong>de</strong><br />
problemas no que diz respeito ao espaço para a produção e criação <strong>de</strong> animais,<br />
além <strong>de</strong> não obter nenhum tipo <strong>de</strong> apoio institucional para a implantação <strong>de</strong> projetos<br />
na comunida<strong>de</strong>. Como forma <strong>de</strong> unir a comunida<strong>de</strong> e facilitar a luta para melhorias<br />
no reassentamento, os moradores <strong>de</strong>cidiram criar, com apoio do IDACE, no ano<br />
2000, a Associação dos Assentados do Assentamento Sossego/Contendas.<br />
A associação praticamente dita as regras no assentamento, <strong>de</strong>ste a<br />
negociação com os órgãos governamentais (INCRA, IDACE, DNOCS e outros), até<br />
se vão incorporar novos moradores, como explicita a passagem em entrevista com o<br />
presi<strong>de</strong>nte Diógenes domingos:<br />
Os problemas daqui a gente leva pra reunião da assembléia, a gente<br />
discute tudo nesta reunião. Tudo e resolvido na votação, quando tem um<br />
problema mais grave como selecionar quem serão os novos moradores<br />
acontece reunião em voto secreto, hoje ninguém entra mais, só se sair<br />
alguém, pois temos 62 famílias, filho <strong>de</strong> assentado agregado ao pai, logo<br />
nos temos perto <strong>de</strong> 90 famílias aqui <strong>de</strong>ntro, ai não há espaço suficiente.<br />
O programa um milhão <strong>de</strong> cisternas do governo do Ceará e que está <strong>de</strong>ntro<br />
do Projeto São José, ainda não chegou a beneficiar todas as famílias, alguns<br />
moradores não tiveram condições <strong>de</strong> pagar o custo da mão <strong>de</strong> obra do pedreiro,<br />
para a construção da mesma, pois neste programa o governo só financia o material<br />
para a construção das mesmas.<br />
Seu funcionamento se dá a partir da captação das águas pluviais pelo<br />
sistema <strong>de</strong> cisternas, no qual há uma ligação por canos nas calhas dos telhados e<br />
posteriormente está água é escoada para a cisterna que confina este recurso no<br />
período das chuvas na região.<br />
Estas cisternas têm a capacida<strong>de</strong> para armazenar até 17 mil litros <strong>de</strong> água,<br />
o que seria suficiente para abastecer uma família <strong>de</strong> 4 a 5 pessoas por<br />
aproximadamente seis meses.<br />
Outra política <strong>de</strong> fomento ao reassentamento foi o projeto galinha caipira na<br />
localida<strong>de</strong>. O projeto foi fruto <strong>de</strong> uma reivindicação do MAB (Movimento dos<br />
Atingidos por Barragem) e teve investimento do DNOCS e do SEBRAE/CE. O<br />
68
objetivo do projeto era capacitar as famílias para que as mesmas pu<strong>de</strong>ssem<br />
<strong>de</strong>senvolver uma ativida<strong>de</strong> econômica voltada para a realida<strong>de</strong> do campo, neste<br />
caso a criação <strong>de</strong> frango e galinhas.<br />
Foi <strong>de</strong>stinado aos beneficiados todo o material para a construção dos<br />
aviários, e cabendo aos mesmos a mão-<strong>de</strong>-obra necessária para a sua construção.<br />
Foram, segundo o SEBRAE, <strong>de</strong>slocados médicos veterinários e agrônomos para a<br />
instalação e a capacitação dos assentados na nova ativida<strong>de</strong> produtiva, que haveria<br />
controle zootécnico da produção com o objetivo <strong>de</strong> analisar a produção e que os<br />
produtores foram capacitados nas técnicas <strong>de</strong> venda (como atendimento ao cliente,<br />
por exemplo) e convênios com a prefeitura para que estes produtos fossem<br />
vendidos em feiras e no comércio.<br />
Partindo dos pressupostos da água como recurso essencial <strong>de</strong><br />
sobrevivência econômica para o pequeno produtor rural, seja através do<br />
oferecimento pela natureza a partir da pluviosida<strong>de</strong> ou no caso, <strong>de</strong> áreas como a<br />
região do semi-árido nor<strong>de</strong>stino do suprimento através <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> engenharia<br />
(canais ou por dutos) observa-se que no conjunto das obras realizadas a partir da<br />
materialização do Açu<strong>de</strong> Castanhão ou mesmo incorporação das diversas<br />
construções hidráulicas do Projeto <strong>de</strong> Interligação do rio São Francisco com as<br />
Bacias Hidrográficas do Nor<strong>de</strong>ste Setentrional, o reassentamento não é beneficiado<br />
por estas águas. Ou seja, as águas transpostas não são fonte <strong>de</strong> geração e<br />
fortalecimento dos assentamentos, o que se tem nesse núcleo rural é o oferecimento<br />
<strong>de</strong> água pela CAGECE (Companhia <strong>de</strong> água e esgoto do Ceará) que cobra dos<br />
moradores a água fornecida no assentamento com valores em média <strong>de</strong> R$ 10,00<br />
por residência mensal.<br />
Mesmo sem receber tratamento a<strong>de</strong>quado, a água que é distribuída para a<br />
comunida<strong>de</strong> pela CACEGE é utilizada no consumo animal (gado bovino, cabras e<br />
muares), para a lavagem <strong>de</strong> roupas e para o consumo humano quando as cisternas<br />
secam.<br />
Para corroborar com a precarização do trabalhador rural e da sua<br />
<strong>de</strong>pendência das condições climáticas, os governos não criaram no assentamento<br />
nenhuma obra <strong>de</strong> engenharia que permitisse ao produtor rural usufruir da água do<br />
Açu<strong>de</strong> Castanhão para irrigar suas proprieda<strong>de</strong>s.<br />
A renda dos moradores do reassentamento Sossego é basicamente a<br />
produção agrícola <strong>de</strong> sequeiro voltada para subsistência (feijão, milho e mandioca).<br />
69
Gran<strong>de</strong> parte dos moradores da comunida<strong>de</strong> do Sossego, anteriormente<br />
residiam nas margens do rio Jaguaribe e geralmente moravam e trabalhavam em<br />
algumas fazendas, ou até mesmo como diaristas, realizando plantio <strong>de</strong> produtos<br />
alimentícios através do sistema <strong>de</strong> parcerias ou como meeiros.<br />
Com a imposição <strong>de</strong> uma nova realida<strong>de</strong> para estas famílias como a<br />
transferência das suas residências e a mudança das formas <strong>de</strong> lidar sejam com a<br />
terra, relativo a diferentes tipos <strong>de</strong> solos ou, logicamente, as novas relações sociais<br />
recriadas a partir da formação <strong>de</strong> um novo modo <strong>de</strong> vida socioeconômico, causou<br />
impactos culturais e <strong>de</strong> valores pessoais que haviam sido construídos ao longo <strong>de</strong><br />
anos <strong>de</strong>sta população. Assim, o elemento i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural e <strong>de</strong> vizinhança nas<br />
suas antigas proprieda<strong>de</strong>s fora substituído por novas relações neste<br />
reassentamento.<br />
Quando se menciona a perspectiva da mo<strong>de</strong>rnização da socieda<strong>de</strong> na busca<br />
<strong>de</strong> uma maior integração dos elementos sociais, educacionais, <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e mesmo<br />
<strong>de</strong> questões relativas ao meio ambiente, este na sua integrida<strong>de</strong> da associação<br />
homem-natureza, observa-se no presente reassentamento uma não integração dos<br />
diferentes órgãos <strong>de</strong> governo, sejam nas autarquias municipal, estadual e fe<strong>de</strong>ral,<br />
para a resolução <strong>de</strong> problemas crônicos que afetam a população brasileira, como a<br />
baixa renda, a diminuta perspectiva <strong>de</strong> vida em relação ao futuro.<br />
Esses elementos são formas <strong>de</strong> crescimento econômico regional que vincula<br />
a perspectiva <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, apenas com o aumento das rendas e da<br />
circulação <strong>de</strong> capitais, não faz jus à realida<strong>de</strong> imposta e vivenciada pelos moradores<br />
do semi-árido, no qual estão à mercê <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> riquezas, que<br />
tem na sua ótica a concentração dos benefícios em mãos <strong>de</strong> poucos, ou mesmo<br />
para a maximização <strong>de</strong> lucros e rendimentos para <strong>de</strong>terminadas empresas<br />
locais/regionais que encontram na exploração dos recursos hídricos para irrigação<br />
<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s frutíferas para exportação.<br />
Este é o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento difundido pelas propagandas oficiais,<br />
como forma <strong>de</strong> levar renda e melhorias sociais para <strong>de</strong>terminadas porções do semiárido<br />
cearense.<br />
Os diversos argumentos do que venha a ser o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um país<br />
ou região, está em sua maioria vinculados a maximização das riquezas; entretanto,<br />
buscar os idéias <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento enseja ir além das concepções <strong>de</strong> acúmulo <strong>de</strong><br />
riquezas e sim, incorporar elementos sociais que articulem o ser humano enquanto<br />
70
ser atuante e possuidor <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong>s particulares, ou seja, como mencionado por<br />
Amartya Sem (2000) “o <strong>de</strong>senvolvimento consiste na eliminação <strong>de</strong> privações <strong>de</strong><br />
liberda<strong>de</strong> que limitam as escolhas e as oportunida<strong>de</strong>s das pessoas <strong>de</strong> exercer sua<br />
condição <strong>de</strong> agente” .<br />
As privações entendidas no caso estudado que é <strong>de</strong> um assentamento numa<br />
região brasileira que apresenta elevada concentração e renda e, conseqüentemente,<br />
elevados índices <strong>de</strong> pobreza está relacionado às diminutas perspectivas <strong>de</strong><br />
melhorias socioeconômicas daquela população, que vivem da subsistência agrícola,<br />
e do <strong>de</strong>samparo das instituições publicas para a promoção <strong>de</strong> melhores rendimentos<br />
e acesso aos diversos meios culturais e educacionais.<br />
Assim, a restrição das liberda<strong>de</strong>s individuais parece ser elemento fundante<br />
na localida<strong>de</strong>, pois a liberda<strong>de</strong> econômica que po<strong>de</strong>ria dar sustentação para as<br />
outras formas <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> social são interceptadas pelas formas como o Estado<br />
impõem, seu mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento regional, que como visto, renega os mais<br />
necessitados e beneficia os grupos historicamente favorecidos pelas políticas<br />
econômicas <strong>de</strong> diversos governos locais.<br />
4.11 . Comunida<strong>de</strong> Curupati<br />
O projeto Curupati tem uma área <strong>de</strong> aproximadamente 720 hectares,<br />
construída pelo governo estadual para garantir o reassentamento <strong>de</strong> famílias rurais<br />
atingidas pelo açu<strong>de</strong> do Castanhão. Tais famílias residiam no distrito <strong>de</strong> Poço<br />
Cumprido e nas comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Jabu, Estreito e Ilha Gran<strong>de</strong>. O projeto <strong>de</strong><br />
reassentamento está localizado a 16km da se<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaguaribara e seu acesso é feito<br />
pela BR-116 ou por barco, no açu<strong>de</strong> Castanhão. A principal forma <strong>de</strong> acesso à área<br />
é através dos barcos, pois as estradas são ruins e não existe transporte municipal<br />
que ligue o assentamento à se<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova Jaguaribara.<br />
O assentamento foi implantado no ano <strong>de</strong> 2002 e é dividido em dois<br />
segmentos: o Curupati Peixe e o Curupati Irrigação. No total, 198 famílias foram<br />
assentadas nesse projeto, as residências são mo<strong>de</strong>stas, com apenas um quarto,<br />
uma sala e um banheiro. A organização social está avançando, os moradores tem<br />
71
acesso à escola <strong>de</strong> ensino fundamental, quanto às creches, essas ainda são<br />
precárias e insuficientes, por outro lado, estão presentes áreas <strong>de</strong> lazer o que po<strong>de</strong><br />
ser consi<strong>de</strong>rado <strong>de</strong> extrema importância, pois por excelência é um espaço <strong>de</strong><br />
recreação e convívio social.<br />
O projeto Curupati Peixe, referente à piscicultura foi direcionado aos antigos<br />
pescadores do rio e aos aposentados. Seu início se <strong>de</strong>u em 2002, tendo os<br />
componentes do projeto organizados em cooperativa. O projeto foi iniciado com<br />
apenas quinze gaiolas <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> tilápia, hoje são cerca <strong>de</strong> 500 gaiolas que<br />
beneficiam 54 famílias do projeto. Atualmente o assentamento produz 40 toneladas<br />
<strong>de</strong> tilápia por mês que são vendidas no Ceasa <strong>de</strong> Fortaleza, junto a outros projetos<br />
semelhantes.<br />
Organizados em cooperativa, o projeto <strong>de</strong> irrigação conta com 144 famílias,<br />
cada uma com um lote <strong>de</strong> terra <strong>de</strong> 3 ha., trabalhando na produção <strong>de</strong> mamão e<br />
goiaba, atualmente voltada tanto para o mercado local. A Comunida<strong>de</strong> chegou a<br />
assinar contrato coma Frutacor, mas o contrato não durou muito. Inclusive a<br />
Comunida<strong>de</strong> chegou a per<strong>de</strong>r a produção por conta disso.<br />
As gran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s da produção irrigada esta principalmente, na<br />
inexperiência dos assentados em relação à nova técnica <strong>de</strong> produção que se<br />
apresenta e o crédito agrícola, que auxiliaria na compra <strong>de</strong> maquinário e insumos<br />
agrícolas. As condições naturais tanto o solo quanto a água dificultam uma<br />
produtivida<strong>de</strong> competitiva, o que os <strong>de</strong>ixa muitas vezes á mercê dos gran<strong>de</strong>s<br />
produtores.<br />
Entre os moradores há a estigma <strong>de</strong> não explorar toda a terra disponível,<br />
isso por não terem mão-<strong>de</strong>-obra suficiente e por, julgarem não compensar tal<br />
empreitada, por outro lado, as famílias que foram entrevistadas, acreditam que o<br />
Castanhão trará melhorias para suas vidas. As famílias acreditam que as áreas<br />
cultivadas po<strong>de</strong>rão ser expandidas assim como o rebanho <strong>de</strong> animais, e pensam em<br />
manter o trabalho familiar mas cogitam a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contratar funcionários.<br />
Nesse ponto se expressa à extrema contradição entre a realida<strong>de</strong> lida e a<br />
realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejada, situação dialética, das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que se materializam<br />
nesse espaço, <strong>de</strong> um lado o pequeno produtor <strong>de</strong> cultura arraigada a terra e às suas<br />
próprias necessida<strong>de</strong>s, situação da qual ele retira sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e seu ele com a<br />
realida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> outros gran<strong>de</strong>s produtores apoiados pelo po<strong>de</strong>r publico, sem contato<br />
72
necessário com o produzir, visando basicamente o lucro e <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rando as<br />
pessoas que alimentam ser cultural da relação que tem com a terra e lugar.<br />
4.<strong>12</strong> . Comunida<strong>de</strong> Barra II<br />
O Assentamento Barra II surgiu para reassentar agricultores que foram<br />
atingidos pela Barragem do Castanhão. A maioria trabalhava como empregado em<br />
fazendas, sendo que alguns tinham pequenas proprieda<strong>de</strong>s rurais. As casas foram<br />
construídas pelos próprios moradores com recursos do governo (não falam se<br />
fe<strong>de</strong>ral ou estadual), porém, os recursos para reformar as casas e fazer benfeitorias<br />
<strong>de</strong>moram a chegar e só chegaram <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muita luta dos moradores com ajuda e<br />
assistência do MAB. Todas as casas possuem cisternas e também água encanada,<br />
que é captada da barragem através do sistema <strong>de</strong> adutoras. No reassentamento<br />
moram 19 famílias.<br />
As práticas econômicas se resumem à agricultura <strong>de</strong> subsistência e<br />
aos pequenos rebanhos <strong>de</strong> animais, como vacas, ovelhas, galinhas, jumentos e<br />
porcos, para uso doméstico, como leite, fabricação caseira <strong>de</strong> queijos e carne para<br />
consumo. Inexistem práticas mercantilistas no assentamento, nada do que é<br />
produzido é comercializado para o mercado, toda a produção é para consumo<br />
próprio, feita em pequenas proprieda<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> maneira comunitária. O<br />
reassentamento possui uma associação para captar recursos e dividir a produção.<br />
Existe uma diferenciação nas práticas produtivas entre as diferentes<br />
famílias, o que leva a uma diversida<strong>de</strong> dos produtos e uma especialização na<br />
produção. Há diferenças <strong>de</strong> condições materiais entre as famílias. Algumas são mais<br />
prósperas, outras passam por gran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s materiais, necessitando <strong>de</strong> ajuda<br />
dos outros membros da comunida<strong>de</strong>. Dentro do reassentamento existe uma escola<br />
<strong>de</strong> ensino fundamental, que funciona também como creche. O hospital mais próximo<br />
é em Nova Jaguaribara, que fica a 55 Km <strong>de</strong> distância. O transporte é feito por um<br />
carro <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que aten<strong>de</strong> as comunida<strong>de</strong>s rurais. Possui ainda uma igreja<br />
evangélica.<br />
73
A maioria dos moradores entrevistados acha positivo o fato <strong>de</strong> terem sido<br />
reassentados, argumentando sobre a melhoria das condições materiais <strong>de</strong> vida.<br />
Segundo eles, as casas são melhores, o acesso à água é mais fácil, pois antes eles<br />
tinham que caminhar quilômetros para buscar água. O atendimento <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e<br />
educação é melhor, além do fato <strong>de</strong> terem o controle sobre a terra, posto que a<br />
maioria trabalhava como empregado e era explorada nas fazendas. Eles dizem que<br />
trabalham menos e tem melhores condições <strong>de</strong> vida. Porém, a maioria <strong>de</strong>les admite<br />
que resistiu em abandonar o antigo lar e, principalmente os que tinham pequenas<br />
proprieda<strong>de</strong>s, sentem muitas sauda<strong>de</strong>s das suas casas antigas, on<strong>de</strong> viveram seus<br />
pais.<br />
Nenhum <strong>de</strong>les participa <strong>de</strong> movimentos sociais, porém admitem que possam<br />
se articular melhor para pressionar mais as autorida<strong>de</strong>s para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r seus<br />
interesses e obter mais melhorar ainda mais as condições <strong>de</strong> vida. Todos sentem<br />
profundo respeito pelo MAB, que sempre lutaram pelos interesses da comunida<strong>de</strong>.<br />
4.13 . Comunida<strong>de</strong> Caroba<br />
O assentamento Caroba compreen<strong>de</strong> uma área antes <strong>de</strong>sapropriada pelo<br />
Incra, constituindo-se posteriormente em reassentamento. Os moradores <strong>de</strong>sse<br />
reassentamento foram retirados do local on<strong>de</strong> hoje é o açu<strong>de</strong> Castanhão, e<br />
reassentados pelo Idasp (XX), há <strong>de</strong> quinze anos.<br />
Conforme afirmações <strong>de</strong> moradores do reassentamento Caroba, mesmo<br />
com toda a resistência dos mesmos pela permanência nas antigas casas, quando da<br />
retirada <strong>de</strong>stes não houve choque físico, pois aos moradores só restava mesmo à<br />
saída, àquelas casas seriam inundadas. Segundo <strong>de</strong>poimentos, o DNOCS<br />
(Departamento Nacional <strong>de</strong> obras Contra Seca) informou-os do início das obras,<br />
então quem insistisse em permanecer teria sua casa invadida pelas águas.<br />
A pesquisa <strong>de</strong> campo possibilitou ao grupo perceber que o processo <strong>de</strong><br />
realocação <strong>de</strong>ssas pessoas foi envolto por muitas incoerências, <strong>de</strong> ambos os lados<br />
os discursos tomaram caminhos bem diversificados, dado que os interesses e<br />
motivações que os guiaram também diferiam. Pois conforme palavras do então<br />
74
governador do Estado do Ceará, Tasso Jereissati, proferidas ao então presi<strong>de</strong>nte da<br />
república no canteiro <strong>de</strong> obras do Castanhão. Aquela seria uma obra social, pela<br />
economia, porque traria irrigação, produção, riqueza, promoveria a geração <strong>de</strong><br />
empregos e renda. Mas, acima <strong>de</strong> tudo, para os nor<strong>de</strong>stinos, isso seria uma obra<br />
social. E o que po<strong>de</strong> ser observado, pelo menos no reassentamento Caroba, é que a<br />
preocupação com o social esteve muito distante da realida<strong>de</strong>, pois os moradores<br />
<strong>de</strong>sse assentamento vivem em condições <strong>de</strong> subemprego, os produtores enfrentam<br />
enormes dificulda<strong>de</strong>s para praticar ativida<strong>de</strong>s irrigadas. Sendo assim, na maioria das<br />
vezes, precisa <strong>de</strong> trabalho fora do assentamento, o que nem sempre é viável,<br />
porque <strong>de</strong> acordo com as políticas do Incra, aqueles que saírem para realizar<br />
ativida<strong>de</strong>s remuneradas fora daquelas <strong>de</strong>limitações estará sujeito a não beneficiarse<br />
dos serviços prestados por esta instituição <strong>de</strong>ntro daquele espaço.<br />
As inúmeras dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas pelas famílias que vivem no<br />
reassentamento Caroba, os mesmos afirmam ter se acostumado a viver nesse local,<br />
e por <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong>claram que nunca <strong>de</strong>veriam ter saído do lugar on<strong>de</strong> viviam.<br />
<strong>Campo</strong>s (2008), afirma que para os assentados, os principais problemas são a falta<br />
<strong>de</strong> capital <strong>de</strong> giro (a razão porque não compensa explorar mais terra e que mão-<strong>de</strong>obra<br />
é insuficiente), <strong>de</strong> máquinas e equipamentos, <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra especializada,<br />
<strong>de</strong> crédito e <strong>de</strong> água, entre outros. Assim, a produção nesse reassentamento<br />
mostra-se totalmente comprometida, uma vez que os solos são inférteis. A criação<br />
<strong>de</strong> gado leiteiro, que é por hora o único meio <strong>de</strong> sobrevivência daqueles produtores.<br />
Uma moradora <strong>de</strong>screve o solo do assentamento como um monte <strong>de</strong> pedregulho,<br />
pois não há possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver qualquer tipo <strong>de</strong> cultivo. Nesse sentido,<br />
cabe <strong>de</strong>stacar que a produção leiteira no assentamento Caroba é <strong>de</strong>stinada ao<br />
comércio local, sendo consumida pela própria comunida<strong>de</strong>.<br />
Outro aspecto relevante observado em campo e nas entrevistas refere-se<br />
aos subsídios fornecidos pelo governo, que no primeiro momento, parecem<br />
insuficientes para que os assentados tenham qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida no assentamento.<br />
Algumas famílias participam do programa fe<strong>de</strong>ral bolsa família, mas apenas aquelas<br />
mais carentes e que tenham filhos na escola.<br />
Quanto ao PRONAF, foi notório o quanto os reassentados, <strong>de</strong> modo geral<br />
têm medo <strong>de</strong> se envolver com quaisquer programas <strong>de</strong> crédito. Pois <strong>de</strong> acordo com<br />
um morador, naquele reassentamento o PRONAF cedia um valor <strong>de</strong> R$18.000,<br />
quantia significativamente alta em comparação à renda dos pequenos produtores. O<br />
75
governo do Estado, no princípio das obras, apresentou diversas propostas <strong>de</strong> apoio<br />
aos assentados, como assistência técnica para suprir as necessida<strong>de</strong>s no que tange<br />
à produção agropecuária, porém, na visão <strong>de</strong> boa parte dos moradores daquele<br />
assentamento, isso foi mais uma falsa ilusão, pois para eles, essas políticas públicas<br />
que estão postas não estão para beneficiar assentados.<br />
Vivendo a um quilometro <strong>de</strong> distância do açu<strong>de</strong> Castanhão, os assentados<br />
que moram na Comunida<strong>de</strong> Caroba dizem que a água disponível para seu consumo<br />
não oferece boa qualida<strong>de</strong>, trata-se <strong>de</strong> uma água amarelada e lodosa, retirada <strong>de</strong><br />
um pequeno açu<strong>de</strong> nas proximida<strong>de</strong>s do assentamento. Essas pessoas acreditam<br />
que pela pequena distância, seria plenamente possível a implantação <strong>de</strong> um sistema<br />
<strong>de</strong> adutora que possa bombear água do açu<strong>de</strong> Castanhão até o assentamento.<br />
Desse modo, os assentados manifestam-se contra os projetos <strong>de</strong> integração<br />
e avaliam que as comunida<strong>de</strong>s carentes como a Caroba não serão contempladas<br />
por tal obra, questionam-se freqüentemente a quem essa obra beneficiará. Pois<br />
conforme os <strong>de</strong>poimentos adquiridos através das entrevistas alguns assentados<br />
afirmaram que esse projeto <strong>de</strong> integração que levará água até o Porto <strong>de</strong> Pecém<br />
servirá para exportar a produção <strong>de</strong> fruticultura do Estado e não necessariamente<br />
para garantir qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida às comunida<strong>de</strong>s mais pobres.<br />
Para a comunida<strong>de</strong> Caroba a maior <strong>de</strong>svantagem protagonizada pelas obras<br />
do açu<strong>de</strong> Castanhão foi à retirada dos agricultores <strong>de</strong> suas terras e a perda da<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com aquele local. Ainda segundo <strong>de</strong>poimentos, as antigas casas também<br />
possuíam mais conforto do que essas em que vivem agora. Nesse assentamento<br />
pouco se fala em vantagens advindas com as obras do referido açu<strong>de</strong>.<br />
76
5. TERRITÓRIO EM DISPUTA – CONTROLE E ACESSO À ÁGUA<br />
NO PERÍMETRO IRRIGADO DO TABULEIRO DE RUSSAS/CE<br />
O que nos motiva a ensaiar alguns pontos <strong>de</strong> reflexão é o questionamento<br />
sobre a dinâmica geográfica do território em disputa, <strong>de</strong>marcando as posições e<br />
quais os projetos que balizam o controle e o acesso a água no Perímetro Irrigado do<br />
Tabuleiro <strong>de</strong> Russas-CE.<br />
O Perímetro Irrigado do Tabuleiro <strong>de</strong> Russas, está localizado nos municípios<br />
<strong>de</strong> Russas, Limoeiro do Norte e Morada Nova, mais precisamente no baixo vale do<br />
Jaguaribe. A área, <strong>de</strong> um modo geral é constituída por uma faixa contínua <strong>de</strong> terras<br />
agricultáveis ao longo da margem esquerda do Rio Jaguaribe, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Russas até a confluência do rio Banabuiú, no Estado do Ceará.<br />
Figura 1 ‐ Localização dos municípios que fazem parte do Tabuleiro <strong>de</strong><br />
Russas no Estado do Ceará.<br />
Fonte: <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009.<br />
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Para enten<strong>de</strong>rmos a história da ocupação e <strong>de</strong> construção do território do<br />
Perímetro Irrigado do Tabuleiro <strong>de</strong> Russas, precisamos focar atenção nas<br />
contradições que tomam conta da estrutura fundiária do Nor<strong>de</strong>ste e que são a base<br />
das disputas territoriais.<br />
O mo<strong>de</strong>lo agroexportador escolhido para se implantar no Tabuleiro <strong>de</strong><br />
Russas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu início, foi o da fruticultura irrigada vinculada aos parâmetros do<br />
agronegócio em <strong>de</strong>trimento à agricultura camponesa e agroecológica. Este mo<strong>de</strong>lo<br />
proposto teve como objetivo incluir a região Nor<strong>de</strong>ste na economia <strong>de</strong> mercado com<br />
ajuda <strong>de</strong> políticas públicas dinamizadas pelo Estado, conforme apontado por<br />
(SANTOS, 2002 apud BEZERRA, 2006):<br />
Nos últimos anos do século XX, a fruticultura transformou-se em um dos<br />
maiores vetores <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômico do agronegócio da Região<br />
Nor<strong>de</strong>ste. Esta ativida<strong>de</strong> foi uma das alternativas mais promissoras para a<br />
inserção do Nor<strong>de</strong>ste na economia <strong>de</strong> mercado mediante atuação do<br />
Estado na proposição <strong>de</strong> políticas públicas potencializadoras da<br />
implantação <strong>de</strong> variados sistemas <strong>de</strong> objetos que dinamizaram fluxos <strong>de</strong><br />
toda or<strong>de</strong>m. (p.218).<br />
Este “novo” mo<strong>de</strong>lo agro-exportador foi implantado em algumas<br />
microrregiões do Nor<strong>de</strong>ste Setentrional, tais como: Mossoró (RN),Vale do Açú (RN),<br />
Petrolina (PE), Juazeiro (BA), além da nossa região <strong>de</strong> estudo, o baixo Jaguaribe<br />
(CE), alterando a imagem do “Nor<strong>de</strong>ste como foco <strong>de</strong> terras improdutivas”, que<br />
servia como consolidação do po<strong>de</strong>r eleitoreiro para um quadro <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> frutas<br />
<strong>de</strong> alto valor agregado extraindo o lucro máximo da terra.<br />
O capital encontrou as condições favoráveis para se ampliar nesta região,<br />
assim po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar:<br />
a) o baixo preço da terra;<br />
b) excesso <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra;<br />
c) a ajuda <strong>de</strong> políticas públicas;<br />
d) terras e água favoráveis para o <strong>de</strong>senvolvimento da fruticultura.<br />
Com a chegada das empresas nos perímetros e em gran<strong>de</strong> parte da<br />
extensão dos vales úmidos no Nor<strong>de</strong>ste, <strong>de</strong>u-se início ao processo <strong>de</strong> mudança da<br />
estrutura produtiva. Tal fato representa uma condição fundamental para o<br />
aprofundamento do agronegócio no Nor<strong>de</strong>ste. A participação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rosos grupos<br />
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nacionais e internacionais atuando na produção e comercialização das frutas, em<br />
especial o melão, no Baixo Jaguaribe possibilita às empresas como a multinacional<br />
Del Monte Fresh Produce, que atuam na região, um alto po<strong>de</strong>r político e social sobre<br />
as terras, que em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu baixo preço são facilmente adquiridas pelo capital<br />
privado, em <strong>de</strong>trito da população local que se encontra endividada ou expropriada,<br />
<strong>de</strong>sterreada <strong>de</strong> suas terras.<br />
Além disso, como sabemos, a produção <strong>de</strong> frutas frescas requer uma<br />
<strong>de</strong>manda <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra expressiva em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguns procedimentos adotados<br />
para a produção dos frutos <strong>de</strong>mandar única e exclusivamente do trabalho braçal. Tal<br />
fato torna-se emblemático na organização do mercado <strong>de</strong> trabalho agropecuário<br />
formal no Nor<strong>de</strong>ste quando averiguamos que as principais culturas representativas<br />
do agronegócio da fruticultura são exatamente aquelas para as quais se exige maior<br />
<strong>de</strong>manda por trabalhadores agrícolas, sem qualificação.<br />
Outro fator que contribui para a bem sucedida implantação da fruticultura no<br />
Baixo Jaguaribe é a sua localização geográfica, por situar-se em áreas <strong>de</strong> extensas<br />
planícies aluviais e água subterrânea abundante, além <strong>de</strong> contar com água dos<br />
açu<strong>de</strong>s Orós e Castanhão, o que torna particularmente favorável à irrigação (Figura<br />
2).<br />
Figura 2 ‐ Localização do Baixo Jaguaribe em relação a alguns dos<br />
principais centros consumidores e portos do Nor<strong>de</strong>ste brasileiro.<br />
Fonte: www.dnocs.org.br<br />
Neste sentido, o DNOCS aparece como um órgão fundamental na<br />
organização, normatização e manutenção do uso dos sistemas <strong>de</strong> engenharia<br />
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associados aos perímetros. Portanto, este órgão foi responsável por implementar<br />
<strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> projetos públicos <strong>de</strong> irrigação, bem como gran<strong>de</strong>s obras que garantiram<br />
a expansão da fruticultura. É o caso, por exemplo, <strong>de</strong> duas das principais obras<br />
hídricas do Nor<strong>de</strong>ste, como a Barragem Armando Ribeiro Gonçalves, no Rio Gran<strong>de</strong><br />
do Norte, e o Açu<strong>de</strong> Castanhão, no Estado do Ceará.<br />
5.1 . A mercantilização da água e a constuição do agrohidronegócio<br />
Salvo engano, a disputa que se materializa nesse território, coloca no fronte<br />
<strong>de</strong> batalha distintos sujeitos, ou seja, grupos nacionais e transnacionais vinculados<br />
ao agrohidronegócio 8 e na outra margem os camponeses, homens e mulheres<br />
locais.<br />
A discussão que estamos nos propondo a fazer aqui impõe como tema <strong>de</strong><br />
nosso enredo central a disputa pelo controle e acesso, sobretudo da água, esta<br />
mesma água que é o recurso natural <strong>de</strong> fundamental importância para a<br />
humanida<strong>de</strong> e também para os processos produtivos. Voltando nossas atenções<br />
para este tema é possível perceber que da mesma forma como já ocorreu com<br />
outros recursos da natureza, vem crescendo a forma mercantilizada <strong>de</strong> tratamento<br />
da água. A esse respeito, ao tentar enten<strong>de</strong>r a lógica <strong>de</strong>ssa equação na qual a<br />
escassez da água somada à falta <strong>de</strong> viabilização econômica e social da população<br />
<strong>de</strong> uma maneira geral - seja ela urbana e ou rural - nos <strong>de</strong>paramos com um novo<br />
redirecionamento para o uso e distribuição da água.<br />
Porque por ser a água um bem renovável, criou-se um imaginário e a<br />
mentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que a mesma seria um bem infinito, mas a forma como é feito seu<br />
uso e apropriação, sob o jugo das relações capitalistas, passa a impor limites no que<br />
diz respeito à sua quantida<strong>de</strong> e até mesmo à sua qualida<strong>de</strong>.<br />
Segundo a lógica <strong>de</strong>strutiva e incorrigível do capital que se revela no âmbito<br />
do acréscimo <strong>de</strong> valor agregado a um bem adquirido seja ele natural ou estritamente<br />
material, é pertinente consi<strong>de</strong>rarmos uma nova conceituação para esse recurso<br />
natural tão abundante e ao mesmo tempo muito escasso para o consumo humano.<br />
8 Esse conceito vem sendo lavrado e utilizado por Thomaz Jr., 2009.<br />
80
A água adquiriu em conjunto com o espaço, pois via <strong>de</strong> regra ela já esta inserida no<br />
espaço das relações geográficas e sociais, a condição <strong>de</strong> espaço-mercadoria, on<strong>de</strong><br />
as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r se sobrepõem sobre todas as outras formas <strong>de</strong> organização da<br />
socieda<strong>de</strong>.<br />
Neste cenário, como comenta Lins (2008), a elevação da água à condição<br />
<strong>de</strong> mercadoria em escala internacional, associado à diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> usos possíveis e<br />
à sua distribuição pelo território que não é equânime, fizeram com que a mesma<br />
passasse a ser fonte <strong>de</strong> inúmeros conflitos já que apenas uma classe social, a dos<br />
<strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> capital possui recursos suficientes para obter esse bem. Assim sendo,<br />
configura-se por todo território cearense e, sobretudo no Tabuleiro <strong>de</strong> Russas, um<br />
embate <strong>de</strong> forças que caracterizam a luta por territórios em disputa, no caso o<br />
hidronegócio.<br />
Pois, como bem caracteriza Torres (2007):<br />
Os conflitos em torno da água passam a existir quando um ou mais atores<br />
sociais estão em disputa por esse recurso que passou a ser escasso (por<br />
uma condição natural ou artificializada), para suprimento da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
todos (p.55).<br />
Assim, a água, sob o enfoque da dinâmica do capitalismo atual adquire tanto<br />
valor político como financeiro acoplados, e nasce aí sob o viés da luta <strong>de</strong> classe, a<br />
luta dos que tem a água e dos que precisam tê-la. Neste cenário, no que tange o<br />
Tabuleiro <strong>de</strong> Russas, o capital encimado pelo agrohidronegócio, ao perceber a<br />
importância e emergência do acesso à água, tenta se apropriar e patrimoniar como<br />
suas todas as formas <strong>de</strong> recursos hídricos, em prol da realização <strong>de</strong> seus ganhos.<br />
Esta é a lógica do agrohidronegócio, que será cada vez mais concentrador do<br />
acesso a água, na medida em que os recursos hídricos forem mais escassos.<br />
Comentando sobre este assunto Cortez (2005), enfatiza que:<br />
A partir do controle dos reservatórios e açu<strong>de</strong>s cresce a tendência <strong>de</strong><br />
buscar, como negócio ter o controle <strong>de</strong> toda a água disponível. Logo, quem<br />
controla uma nascente, um manancial, também controla toda a bacia e, por<br />
conseqüência impõe seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> negociação em toda a água virtual<br />
incorporada à produção da região (p.03).<br />
Diante das reflexões e apontamentos que obtivemos em campo, po<strong>de</strong>mos<br />
avançar e dizer que por <strong>de</strong>ntro da estrutura complexa do Tabuleiro <strong>de</strong> Russas, que<br />
conta inclusive com participação crescente <strong>de</strong> grupos estrangeiros ligados a<br />
81
fruticultura, consolida-se o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> classe do capital sobre as melhores terras<br />
agricultáveis e sob o controle do acesso a água.<br />
Portanto, como sinaliza Thomaz Jr. (2008), a monopolização da terra e da<br />
água, são, <strong>de</strong>finitivamente, elementos indissociáveis para o capital. Assim sendo, é<br />
<strong>de</strong>ssa complexa e articulada malha <strong>de</strong> relações que estamos apostando enten<strong>de</strong>r<br />
esse processo no âmbito do agrohidronegócio.<br />
Neste sentido, processa-se o aparelhamento do território com a montagem<br />
<strong>de</strong> uma infra-estrutura voltada para a captação e <strong>de</strong>stinação da água para o<br />
Tabuleiro <strong>de</strong> Russas, sobretudo para o uso do agrohidronegócio fruticultor e<br />
exportador.<br />
Sobre a onda do capital é que se <strong>de</strong>lineia o projeto e a construção do Canal<br />
da Integração no estado do Ceará, obra que tem como meta perenizar o rio<br />
Jaguaribe, por meio do açu<strong>de</strong> do Castanhão, e oferecer aos condôminos do<br />
Tabuleiro <strong>de</strong> Russas condições para viabilizem o agrohidronegócio fruticultor. Por<br />
isso, a importância <strong>de</strong> tentarmos traduzir a atual forma <strong>de</strong> territorialização do capital<br />
através do controle e gestão dos recursos hídricos na bacia do rio Jaguaribe nas<br />
mediações do Tabuleiro <strong>de</strong> Russas, nos permite insistir no tema central do nosso<br />
projeto <strong>de</strong> pesquisa: o acesso a água para quem? Portanto, o que esta por traz, das<br />
políticas públicas voltadas para o Canal da Integração, está muito aquém <strong>de</strong> uma<br />
breve interpretação porque a gama variada das tramas sociais, dos conflitos<br />
existentes em torno da temática, nos impõem pensar para além das meras<br />
sensações, para além da mera paisagem.<br />
Pois, o sucesso <strong>de</strong> empreendimento como um todo, como revela Thomaz Jr.<br />
(2009), requer a garantia <strong>de</strong> acesso a água, seja superficial ou por meio do<br />
represamento <strong>de</strong> cursos d’água, porque o agronegócio não po<strong>de</strong> ser atribuído<br />
somente à sua fixação, à territorialização e/ou monopolização das terras, mas<br />
também ao acesso e controle da água.<br />
5.2 . Discurso e po<strong>de</strong>r i<strong>de</strong>ológico do capital<br />
82
Com o apoio da experiência do <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> realizado, mediante as<br />
entrevistas executadas po<strong>de</strong>mos afirmar que o Perímetro Irrigado do Tabuleiro <strong>de</strong><br />
Russas, encontra-se submetido e imerso aos tentáculos do imaginário e do discurso<br />
i<strong>de</strong>ológico promovido pelo capital.<br />
Todavia, é importante que lembremos que a existência <strong>de</strong>sse i<strong>de</strong>ário<br />
promovido pelos representantes do agronegócio, tem o intuito <strong>de</strong> extinguir do<br />
imaginário social a concepção da agricultura como setor arcaico <strong>de</strong> práticas<br />
tradicionais, dando lugar a um discurso segundo o qual o agronegócio constitui uma<br />
das principais vocações econômicas para o país, o gran<strong>de</strong> gerador <strong>de</strong> empregos e<br />
renda.<br />
Para Thomaz Jr. (2009), comentando sobre a veiculação do discurso<br />
estratégico do agronegócio:<br />
O po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> convencimento vinculado nas campanhas publicitárias<br />
milionárias do governo, vinculadas às estratégias <strong>de</strong> marketing dos gran<strong>de</strong>s<br />
conglomerados agro-químico-industrial-financeiros tem sido capaz <strong>de</strong><br />
garantir esse convencimento interno (p.04).<br />
Principalmente através das conversas com os moradores locais da<br />
Comunida<strong>de</strong> Tomé, pu<strong>de</strong>mos perceber o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> influência e domínio do discurso<br />
do agronegócio sobre o “território da consciência” dos homens e mulheres. Via <strong>de</strong><br />
regra, para estes a gran<strong>de</strong> referência do agronegócio em seu imaginário, em suas<br />
mentes é aquela passada e disseminada pelo marketing do gran<strong>de</strong> capital, ou seja,<br />
o agronegócio como carro-chefe da economia brasileira e, sobretudo local, o<br />
agronegócio como um vetor da tão <strong>de</strong>sejada mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, ou ainda, o agronegócio<br />
como único vetor gerador <strong>de</strong> emprego e renda ou a salvação da lavoura.<br />
A gran<strong>de</strong> sacada do agronegócio é relacionar e veicular a sua imagem à<br />
criação <strong>de</strong> empregos, bem como a dinamização da economia em seus diversos<br />
segmentos. Sendo assim, po<strong>de</strong>mos afirmar que o discurso do agronegócio constrói<br />
uma tessitura <strong>de</strong> sensação <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e riqueza, como se estas fossem<br />
partilhadas igualmente por todos, distribuídas <strong>de</strong> maneira homogênea e geradoras<br />
<strong>de</strong> um bem-estar coletivo.<br />
Para Bezerra (2006), no nor<strong>de</strong>ste esta relação é extremamente eficaz, pois<br />
aliado ao discurso da geração <strong>de</strong> emprego e renda, temos ainda, a inversão da<br />
natureza como obstáculo a uma natureza que possibilita perfeitamente o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s lucrativas. A racionalida<strong>de</strong> trazida pelos i<strong>de</strong>ais do<br />
83
agronegócio permitiria uma utilização racional e produtiva do território ao criar<br />
verda<strong>de</strong>iros arranjos produtivos. É nessa seara que se insere o projeto <strong>de</strong><br />
transposição do São Francisco e interligação à bacia do Jaguaribe, como forma <strong>de</strong><br />
viabilizar o agrohidronegócio na região.<br />
Por <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse território minado e marcado por disputas territoriais, no<br />
caso, o Tabuleiro <strong>de</strong> Russas, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> influência do agronegócio tenta<br />
homogeneizar e <strong>de</strong>struir todas as linhas <strong>de</strong> resistência ao seu mo<strong>de</strong>lo agroexportador.<br />
Em oportunida<strong>de</strong> fornecida pelo <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong>, na comunida<strong>de</strong> Tomé,<br />
percebemos o quão forte é o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ste discurso, a ponto <strong>de</strong> cooptar e seduzir a<br />
gran<strong>de</strong> maioria da população local, com promessas <strong>de</strong> emprego e <strong>de</strong> geração <strong>de</strong><br />
renda. Em linhas gerais, estes homens e mulheres simples conseguem vislumbrar,<br />
mesmo que em foco distorcido que estão sendo em certa medida explorados, porém<br />
em seus pensamentos esta é a única ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalho que eles po<strong>de</strong>m retirar o<br />
sustento para suas famílias.<br />
Questionados sobre o problema da poluição das águas, inclusive para<br />
consumo humano por conta dos agrotóxicos utilizados pelo agronegócio na<br />
produção <strong>de</strong> banana, todas as pessoas entrevistadas confirmaram a existência<br />
<strong>de</strong>sse fato.<br />
Gran<strong>de</strong> parte dos moradores <strong>de</strong>stacaram que “a água ali é muito sebosa,<br />
tem gosto forte”. Dessas sinalizações enten<strong>de</strong>mos a magnitu<strong>de</strong> da contaminação da<br />
água pelo agronegócio fruticultor.<br />
Os comerciantes indagados sobre o conhecimento <strong>de</strong>ssa situação, a<br />
princípio negaram, mas percebemos no <strong>de</strong>correr da conversa a revelação do real<br />
problema da poluição, ou seja, os empresários do agronegócio da banana “não<br />
tomam a água <strong>de</strong> uso comum envenenada, e sim, água mineral engarrafada, pois<br />
nós a ven<strong>de</strong>mos diariamente”.<br />
Ainda, sobre o tema da contaminação da água pelos agrotóxicos utilizados<br />
na produção <strong>de</strong> banana, nos remetemos aos <strong>de</strong>poimentos dos moradores, nos quais<br />
confirmam a veracida<strong>de</strong> da poluição da água pelo <strong>de</strong>spejo e manejo ina<strong>de</strong>quado dos<br />
agrotóxicos que são utilizados para pulverizar as extensas plantações.<br />
Diante <strong>de</strong>sta realida<strong>de</strong>, como po<strong>de</strong>mos perceber, os trabalhadores estão<br />
totalmente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes das empresas no referente ao acesso e manutenção do<br />
emprego. Conseqüentemente gran<strong>de</strong> parte da dinâmica econômica das localida<strong>de</strong>s<br />
84
que circundam as empresas também passam a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r dos salários dos<br />
trabalhadores safristas.<br />
Para a sustentação e manutenção <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo, torna-se indispensável<br />
para o capital a apropriação e controle do “território da consciência”, convertendo<br />
este ao do jugo da lógica <strong>de</strong>strutiva do capital em “território da alienação,“ assim as<br />
diferentes relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que se interpõem estabelecem os marcos da dinâmica<br />
geográfica do território em disputa.<br />
Porém, como a realida<strong>de</strong> objetiva é dialética, pu<strong>de</strong>mos também observar em<br />
campo a negação do processo anteriormente <strong>de</strong>scrito, ou melhor, a resistência ao<br />
mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> crescimento difundido pelo discurso do agronegócio, como eficiente,<br />
gerador <strong>de</strong> emprego e renda e que, em verda<strong>de</strong> tenta maquiar a imagem da<br />
agricultura capitalista, historicamente exploradora do trabalho e concentradora <strong>de</strong><br />
terra, renda e capital.<br />
5.3 . Comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Tomé: a visão dos moradores<br />
A comunida<strong>de</strong> Tomé não mais expressa com clareza, sua oposição à<br />
chegada do agronegócio, já estabelecido na região. O fato <strong>de</strong> não termos<br />
vislumbrado resistência é facilmente explicável, já que gran<strong>de</strong> parte dos moradores<br />
que foram entrevistados dizem que a chegada das gran<strong>de</strong>s empresas produtoras <strong>de</strong><br />
frutas fizeram com que elevasse o número <strong>de</strong> empregos e aquecesse o comércio<br />
local, como po<strong>de</strong>mos observar nos <strong>de</strong>poimentos abaixo:<br />
9<br />
<strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009.<br />
10<br />
I<strong>de</strong>m.<br />
11<br />
I<strong>de</strong>m.<br />
Ah! Com relação ao <strong>de</strong>semprego aqui, você po<strong>de</strong> ter certeza que melhorou<br />
bastante aqui, melhorou bastante a vida das pessoas (informação verbal) 9 .<br />
É, melhorou bastante a vida, porque antigamente acontecia bastante o<br />
<strong>de</strong>semprego e hoje não acontece mais, né por conta disso, <strong>de</strong>ssas<br />
empresas (informação verbal) 10 .<br />
Foi bom porque <strong>de</strong>u emprego para o pessoal, mas o povo reclama dos<br />
venenos que os aviões passam por cima expurgando (informação verbal) 11 .<br />
85
A população não tinha acesso regular à água, mas com a chegada do<br />
agronegócio e posteriormente também da água para suprir a <strong>de</strong>manda das<br />
empresas que cultivam frutas, os moradores <strong>de</strong>ssa comunida<strong>de</strong> passaram a adquirir<br />
esse bem, porém muitos não a utilizam para beber, este fato ocorre <strong>de</strong>vido aos<br />
rumores <strong>de</strong> que a água da comunida<strong>de</strong> Tomé está contaminada, portanto a maioria<br />
dos moradores compram água mineral, no comércio local para substituir aquela que<br />
chega em suas casas.<br />
Já, outra parcela entrevistada nos relata que bebem a água disponível e que<br />
não acreditam que ela esteja envenenada, pois nunca passaram mal e não sabem<br />
<strong>de</strong> casos que outras pessoas tenham sido prejudicadas.<br />
Como po<strong>de</strong>mos perceber, via <strong>de</strong> regra, a ampla maioria da população <strong>de</strong>ssa<br />
comunida<strong>de</strong>, encontra-se envolvida e dominada pela lógica <strong>de</strong>strutiva do discurso<br />
i<strong>de</strong>ológico do capital, as <strong>de</strong>sesperanças e <strong>de</strong>silusões as fazem ver o braço do<br />
agronegócio, através <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> empregos, como a única alternativa que lhes<br />
resta.<br />
5.4 . Comunida<strong>de</strong> Lagoa dos Cavalos<br />
Só a título <strong>de</strong> exemplo, po<strong>de</strong>mos enfocar a resistência <strong>de</strong>sempenhada pela<br />
Comunida<strong>de</strong> Lagoa dos Cavalos, encravada entre o Tabuleiro <strong>de</strong> Russas (na sua<br />
segunda fase <strong>de</strong> implantação), e o projeto <strong>de</strong> transposição das águas do Rio<br />
Jaguaribe, conseqüente do Rio São Francisco. Essa comunida<strong>de</strong> se encontra na<br />
área <strong>de</strong> construção da segunda etapa do Tabuleiro <strong>de</strong> Russas, que compreen<strong>de</strong> os<br />
municípios <strong>de</strong> Morada Nova, Russas e Limoeiro do Norte, ou seja, a comunida<strong>de</strong><br />
teria que ser <strong>de</strong>sapropriada e <strong>de</strong>sterrada <strong>de</strong> suas originais terras.<br />
A questão do uso e acesso da água no estado do Ceará gera conflitos entre<br />
as comunida<strong>de</strong>s afetadas e o DNOCS, e po<strong>de</strong>mos citar como exemplo a<br />
comunida<strong>de</strong> Lagoa dos Cavalos.<br />
A comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolve diversas ativida<strong>de</strong>s para própria subsistência,<br />
somente ven<strong>de</strong>ndo seu exce<strong>de</strong>nte, além disso a comunida<strong>de</strong> tem uma boa<br />
estrutura, como po<strong>de</strong>mos verificar abaixo:<br />
86
A outra questão é o nível <strong>de</strong> ocupação das comunida<strong>de</strong>s, notadamente a <strong>de</strong><br />
Lagoa dos Cavalos, que não se limitam a casas e roçados, mas sediam um<br />
verda<strong>de</strong>iro mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> convivência com o semi-árido. Li<strong>de</strong>radas pelas<br />
respectivas associações comunitárias, as famílias possuem casa <strong>de</strong> farinha,<br />
casa <strong>de</strong> mel orgânico, cultura agrossilvopastoril, irrigada por meio <strong>de</strong><br />
barragem subterrânea, centenas <strong>de</strong> cisternas <strong>de</strong> placas para os períodos <strong>de</strong><br />
seca, casa <strong>de</strong> sementes (mais adaptadas ao solo local do que as fornecidas<br />
pelo Estado), além <strong>de</strong> escolas, quadras esportivas e ambientes — como<br />
igreja, escola, biblioteca, cemitério, praça — que evi<strong>de</strong>nciam as<br />
singularida<strong>de</strong>s culturais <strong>de</strong> quem nasceu e se criou numa terra que, além <strong>de</strong><br />
casas e vegetação, hospedam a história das famílias, viventes aos mol<strong>de</strong>s<br />
da agroecologia. (DIÁRIO DO NORDESTE, 2008).<br />
Através do relato acima, po<strong>de</strong>mos verificar que a comunida<strong>de</strong> tem<br />
autonomia perante a produção que há no local, dificultando assim a retirada da<br />
população para outra localida<strong>de</strong>, pois já há uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com o lugar, vínculos<br />
estabelecidos com a terra, além da infra-estrutura que está diretamente ligada para<br />
o uso da comunida<strong>de</strong>, consolidando a relação daqueles que ainda acreditam que ali<br />
po<strong>de</strong>m criar algo para o coletivo.<br />
O que po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r através dos relatos mencionados em campo,<br />
é que as outras comunida<strong>de</strong>s que se retiraram e <strong>de</strong>ram passagem ao projeto, até<br />
hoje não foram in<strong>de</strong>nizadas ou mesmo realocadas. Neste sentido, está havendo<br />
coação e diversos tipos <strong>de</strong> ameaças aos moradores <strong>de</strong>ssas comunida<strong>de</strong>s<br />
encravadas no meio do projeto, para que aceitem os ditames e condições do<br />
DNOCS, caso eles não queiram ficar sem nada, sem nenhuma compensação.<br />
A comunida<strong>de</strong> Lagoa dos Cavalos é um exemplo <strong>de</strong> resistência ao<br />
<strong>de</strong>sterreamento e por extensão aos imperativos da barbárie introduzidos pelo<br />
capital. Isto fica evi<strong>de</strong>nte no próprio discurso <strong>de</strong> seus moradores:<br />
Somos contra a forma que este projeto <strong>de</strong> transposição <strong>de</strong> águas é<br />
<strong>de</strong>senvolvido e pensado, trazendo água apenas para os gran<strong>de</strong>s<br />
empresários. É por isso que a gente é contra. Porque a água não será para<br />
as pessoas da comunida<strong>de</strong>, inclusive as pessoas que moram a vinte metros<br />
do canal não tem acesso à água. Nossa luta é pela permanência na terra<br />
das comunida<strong>de</strong>s locais e acesso à água para a comunida<strong>de</strong> (Dizeres <strong>de</strong><br />
Ozarina lí<strong>de</strong>r da comunida<strong>de</strong> Lagoa dos Cavalos, 2009).<br />
O Departamento Nacional <strong>de</strong> Obras Contra as Secas, visando a ampliação<br />
do Tabuleiro <strong>de</strong> Russas, tem atuado junto às comunida<strong>de</strong>s que possivelmente serão<br />
atingidas pelas obras, para que estas sejam realocadas. No trabalho <strong>de</strong> campo uma<br />
moradora <strong>de</strong> Lagoa dos Cavalos relatou a forma como o DNOCS exerce coação<br />
perante as famílias, para que estas cedam e autorizem a construção das obras da<br />
87
segunda etapa do tabuleiro <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> suas proprieda<strong>de</strong>s sem que haja a garantia <strong>de</strong><br />
in<strong>de</strong>nização. Segundo a lí<strong>de</strong>r comunitária Ozarina:<br />
Houve um caso <strong>de</strong> um senhor que passou mal diante da ameaça dos<br />
membros do DNOCS e por conta disso o Ministério Publico está<br />
investigando (informação verbal) <strong>12</strong> .<br />
Nota-se no <strong>de</strong>poimento como a população se sente pressionada com<br />
relação à forma <strong>de</strong> atuação do DNOCS, pois muitas vezes as abordagens são<br />
realizadas <strong>de</strong> maneira agressiva, assim intimidando a população a aceitar sua<br />
proposta ou então ser retirada <strong>de</strong> lá a força pelo Exército, exercendo uma pressão<br />
psicológica, como po<strong>de</strong>mos ouvir da lí<strong>de</strong>r Ozarina:<br />
Primeiramente oferecem dinheiro e emprego, e <strong>de</strong>pois vão ameaçando,<br />
dizendo que o Exército po<strong>de</strong>rá obrigar os moradores a <strong>de</strong>ixarem suas<br />
casas. Quando isso aconteceu com esse morador [citado acima] ele teve<br />
um problema <strong>de</strong> aumento da pressão. Conforme as famílias resistem, vão<br />
ocorrendo <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>s na construção das obras do canal. (informação<br />
verbal) 13 .<br />
Em virtu<strong>de</strong> da resistência oferecida a esse projeto agro-exportador, temos<br />
que a construção do Canal da Integração está sendo efetivada <strong>de</strong> forma parcelada,<br />
ao poucos <strong>de</strong> pedaço em pedaço, como um emaranhado <strong>de</strong> peças <strong>de</strong> um quebracabeça<br />
que no fim terão que se encaixar.<br />
A pressão exercida para aceitação do projeto atinge os níveis da extrema<br />
coação, quebrando evi<strong>de</strong>ntemente a estrutura organizacional da comunida<strong>de</strong>. Em<br />
troca da a<strong>de</strong>rência a este mo<strong>de</strong>lo a empresa contratada está se utilizando <strong>de</strong><br />
diferentes meios para consecução <strong>de</strong>sses intentos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o oferecimento <strong>de</strong><br />
dinheiro, emprego, ou até mesmo a ameaça <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir casas e plantações locais.<br />
Contudo, estamos confirmando a indissociabilida<strong>de</strong> do entendimento teórico<br />
e prático da realida<strong>de</strong>, porque esta resistência local e pontual reflete os aspectos da<br />
luta pelo basta aos imperativos da barbárie.<br />
Portanto como afirma Cardoso (2009), se não existem alternativas não<br />
existe liberda<strong>de</strong>, mas isso não significa, que os sujeitos sociais, homens e mulheres<br />
não possam se levantar contra essa lógica societal, pois a “não liberda<strong>de</strong>”, contém<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seu metabolismo os genes dialéticos da resistência.<br />
No próximo tópico analisaremos a questão do acesso da água do Castanhão<br />
para o Tabuleiro <strong>de</strong> Russas e quais os sujeitos que se apropriam <strong>de</strong>sta.<br />
<strong>12</strong> <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009.<br />
13 I<strong>de</strong>m.<br />
88
5.5 . Do Castanhão ao Tabuleiro Irrigado <strong>de</strong> Russas: acesso a água<br />
para quem?<br />
Mediante o trabalho <strong>de</strong> campo, realizado no estado do Ceará, pu<strong>de</strong>mos<br />
percorrer o traçado e a configuração do novo território das águas. Voltando,<br />
primordialmente nossas atenções para Baixo Jaguaribe, sobretudo para o Perímetro<br />
Irrigado do Tabuleiro <strong>de</strong> Russas que se encontra em sua segunda fase <strong>de</strong><br />
implantação e está contemplado no Plano <strong>de</strong> Aceleração do Crescimento(PAC) do<br />
Governo Fe<strong>de</strong>ral com pelo menos R$70 milhões disponíveis.<br />
Po<strong>de</strong>mos afirmar diante do exposto que o projeto <strong>de</strong> transposição das águas<br />
do Rio São Francisdo e a integração das bacias (São Francisco-Jaguaribe)<br />
representam em verda<strong>de</strong> a mais nova forma e a chave que faltava para a conclusão<br />
do agrohidronegócio fruticultor exportador nesta área. Assim sendo, como os dados<br />
<strong>de</strong>monstram a participação do Ceará no ranking <strong>de</strong> exportações <strong>de</strong> frutas, no Brasil,<br />
passou <strong>de</strong> <strong>12</strong>,2% em 2007 para 18,1% em 2008, sendo que a fatia correspon<strong>de</strong>nte à<br />
fruticultura aumentou <strong>de</strong> 6,7% em 2007 para 10,3% em 2008 superando inclusive os<br />
produtos têxtis.<br />
No total, as vendas <strong>de</strong> frutas produzidas no Ceará e <strong>de</strong>stinadas ao comércio<br />
exterior somaram US$131,6 milhões. Só a título <strong>de</strong> exemplo se somados o Tabuleiro<br />
<strong>de</strong> Russas e o Jaguaribe-Apodi, respon<strong>de</strong>m por 25% das exportações <strong>de</strong> frutas do<br />
Ceará. Essa fruticultura sob domínio do agronegócio e que consome parcela<br />
expressiva das águas transpostas e dos elevados investimentos públicos para tal<br />
fim, é imprescindível para a manutenção da equação exportadora.<br />
Nesse momento, nossos interlocutores, entrevistados, po<strong>de</strong>m estar se<br />
perguntando, mas nós temos o retorno econômico manifestado através da venda<br />
das frutas? Dizemos que não! Em verda<strong>de</strong>, os lucros se concentram nas mãos das<br />
transnacionais (Del Monte, Nolen). Só título <strong>de</strong> exemplo, o município <strong>de</strong> Russas<br />
integrante do Perímetro Irrigado ao qual estamos nos reportando, apresentou no ano<br />
<strong>de</strong> 2008, entre os principais produtos exportados, segundo dados do SECEX,<br />
fornecido pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, a<br />
89
exportação <strong>de</strong> melão, melancia e mamão frescos, somando juntos suas exportações<br />
o montante <strong>de</strong> US$ 11997244, que se concentraram nas mãos das gran<strong>de</strong>s<br />
multinacionais, mencionadas acima, que monopolizam essa produção, assim sendo<br />
tem-se claro com o esboçar <strong>de</strong>stes dados a magnitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal empreendimento, e o<br />
porquê da <strong>de</strong>fesa ferrenha por parte <strong>de</strong>stes capitais do projeto <strong>de</strong> transposição <strong>de</strong><br />
águas. Entre os principais países compradores, a qual a produção é <strong>de</strong>stinada,<br />
encontram-se os países europeus, sobretudo (Reino Unido, Itália, Holanda,<br />
Alemanha, Espanha e alguns países do MERCOSUL).<br />
Em meio a esse cenário perverso tem-se a ameaça e comprometimento da<br />
Soberania Alimentar, em <strong>de</strong>trimento das culturas <strong>de</strong> mercado do agronegócio.<br />
De acordo com os dados da produção agrícola municipal do IBGE, é<br />
possível perceber, que alguns produtos típicos da agricultura camponesa <strong>de</strong><br />
alimento no TI do Tabuleiro <strong>de</strong> Russas, tais como o arroz e a mandioca,<br />
apresentaram, no período analisado, números que indicam uma crescente<br />
estagnação, ou crescimento pífio da área plantada se comparado com as culturas<br />
voltadas para o agronegócio fruticultor, como mostram os gráficos a seguir. (Gráfico<br />
1).<br />
Gráfico 1 ‐ Evolução da área plantada (ha) na lavoura branca temporária no Trabuleiro<br />
Irrigado <strong>de</strong> Russas.<br />
Fonte: Produção Agrícola Municipal, IBGE.<br />
Vários são os fatores possíveis que nos ajudam a enten<strong>de</strong>r esta letargia,<br />
contudo o que nos interessa evi<strong>de</strong>nciar é que enquanto os dados das culturas<br />
tradicionais apontam queda um ritmo pífio <strong>de</strong> crescimento da área plantada, a<br />
análise dos dados do agronegócio da fruticultura mostra praticamente inverso.<br />
90
Vejamos o gráfico da área plantada <strong>de</strong> mamão, goiaba e melão como evoluem ao<br />
longo do tempo no TI <strong>de</strong> Russas. (Gráfico 2).<br />
Gráfico 2 ‐ Evolução da área plantada (ha) na fruticultura no TI <strong>de</strong> Russas. Produção<br />
Agrícola Municipal, IBGE.<br />
Fonte: Produção Agrícola Municipal, IBGE.<br />
Como vimos, houve notável crescimento na área plantada e na quantida<strong>de</strong><br />
produzida das principais culturas associadas ao agronegócio da fruticultura no TI <strong>de</strong><br />
Russas. Esta dinâmica representa a materialização <strong>de</strong> todos os i<strong>de</strong>ais das políticas<br />
públicas <strong>de</strong> valorização do agronegócio em <strong>de</strong>trimento da agricultura <strong>de</strong> base<br />
camponesa e ligada a produção <strong>de</strong> alimento. Dessa forma, esta mudança no quadro<br />
da estrutura produtiva <strong>de</strong>sta região, revela o sentido real da territorialização do<br />
capital no campo.<br />
Neste ponto concordamos com a assertiva <strong>de</strong> Cardoso (2009), quando diz<br />
que agronegócio, essa expressão clara e atual do estágio latente <strong>de</strong> barbárie em<br />
que vivemos, em combinação com uma conjuntura que exala os pressupostos<br />
neoliberais, tem-se caracterizado por um forte caráter <strong>de</strong>strutivo, acarretando entre<br />
tantos aspectos nefastos, uma enorme precarização do trabalho e uma <strong>de</strong>gradação<br />
crescente da natureza. Tal combinação, sendo conduzida por uma lógica societal<br />
que é movida pelos interesses do capital se volta prioritariamente para produção <strong>de</strong><br />
mercadorias para o mercado externo à custa da <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> vida<br />
camponesas, morte <strong>de</strong> trabalhadores e do meio ambiente.<br />
A nosso ver, o projeto <strong>de</strong> transposição e integração <strong>de</strong> bacias com vistas<br />
também fortalecimento e ampliação do Perímetro Irrigado do Tabuleiro <strong>de</strong> Russas,<br />
91
não apresenta a preocupação para com o acesso à água, para as populações locais,<br />
porque na verda<strong>de</strong>, esta não é sua motivação e nem seu objetivo.<br />
Mas então, para quem seria o acesso à água?<br />
A nosso ver, a resposta é simples, porém convicta, pois a água e as<br />
estruturas que se materializam no território, em nome do tal difundido acesso à água<br />
para as populações difusas, nada mais indicam do que a consolidação dos<br />
interesses e privilégios do agrohidronegócio fruticultor.<br />
Em linhas gerais, este projeto <strong>de</strong> transposição nem sequer consi<strong>de</strong>ra e<br />
aten<strong>de</strong> aos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>safios da região, quais sejam: a regularização fundiária,<br />
acesso a água para a população e um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento estruturado<br />
sobre as bases da agricultura camponesa e agroecologia.<br />
Não se trata aqui <strong>de</strong> dizer que somos contra a obra em si, mas sim, contra o<br />
mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> (territorialmente seletivo e socialmente exclu<strong>de</strong>nte) que<br />
escuda os pilares do projeto.<br />
92
6. O MUNICÍPIO DE PACAJUS NO NOVO CONTEXTO DA REGIÃO<br />
METROPOLITANA DE FORTALEZA: INDUSTRIALIZAÇÃO COMO<br />
FATOR DINAMIZADOR DO ESPAÇO<br />
Para o Estado do Ceará os anos 90 foram foco <strong>de</strong> inovações tecnológicas e<br />
organizacionais fortemente marcadas pelo neoliberalismo, mais presente <strong>de</strong>vido às<br />
empresas que se direcionavam para o território <strong>de</strong>ste Estado. Dessa forma, a lógica<br />
empregada foi com base na economia e no mercado, <strong>de</strong> maneira a re<strong>de</strong>finir os<br />
padrões <strong>de</strong> consumo e as relações <strong>de</strong> produção que buscavam como crédito o<br />
crescimento e o <strong>de</strong>senvolvimento.<br />
O discurso do <strong>de</strong>senvolvimento também aparece presente no documento do<br />
Governo Fe<strong>de</strong>ral intitulado PNDE – Plano Estratégico <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />
Sustentável do Nor<strong>de</strong>ste: <strong>de</strong>safios e possibilida<strong>de</strong>s para o nor<strong>de</strong>ste do século XXI. O<br />
argumento <strong>de</strong>fendido pelo governo (PNDE 2006, p.14), por mais que seja na escala<br />
da região do nor<strong>de</strong>ste, é com base na sustentabilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>senvolvimento<br />
referenciando-se pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> incorporar parcela significativa da população<br />
na economia tendo como estratégias para essa realização a competitivida<strong>de</strong>,<br />
inclusão social e sustentabilida<strong>de</strong> do meio ambiente.<br />
Outro ponto interessante nesse documento pauta-se no que o governo<br />
chama <strong>de</strong> um dos maiores <strong>de</strong>safios para a região no sentido da<br />
[...] concepção <strong>de</strong> objetivos e na mobilização <strong>de</strong> meios para a ampliação da<br />
estreita base produtiva regional, da qual <strong>de</strong>corra a inclusão da população no<br />
processo produtivo através <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> produção e <strong>de</strong> trabalho (PNDE<br />
2006, p.56).<br />
Afinal, são a partir <strong>de</strong>sses referenciais que o governo estrutura suas políticas<br />
<strong>de</strong> atuação e busca estruturar o território.<br />
Sobre a construção <strong>de</strong> uma competitivida<strong>de</strong> sistêmica, nesse caso como<br />
uma segunda opção estratégica do governo, vale lembrar que estas baseiam-se na<br />
criação <strong>de</strong> condições que viabilizem todas esferas <strong>de</strong> produção para ampliação do<br />
capital inserindo-a na lógica econômica e mercadológica. São estruturantes <strong>de</strong>ssa<br />
competitivida<strong>de</strong> sistêmica: a criação <strong>de</strong> novas condições logísticas, infra-estruturais,<br />
capacitação e inovação; diversificação das ativida<strong>de</strong>s produtivas; e a criação <strong>de</strong><br />
93
novos padrões produtivos e tecnológicos para viabilização das empresas do<br />
Nor<strong>de</strong>ste nos mercados extra-regionais. Portanto, nas consi<strong>de</strong>rações do próprio<br />
Governo Fe<strong>de</strong>ral, quando refere-se ao Nor<strong>de</strong>ste<br />
[...] a opção estratégica aponta para a criação <strong>de</strong> externalida<strong>de</strong>s que<br />
promovam a crescente conquista <strong>de</strong> competitivida<strong>de</strong> sistêmica da Região,<br />
como <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> infra-estrutura física (energia, transporte,<br />
comunicações, recursos hídricos e saneamento básico ambiental) mo<strong>de</strong>rna<br />
e integrada, elevada qualificação profissional dos recursos humanos<br />
(compreen<strong>de</strong>ndo a força <strong>de</strong> trabalho e a própria capacida<strong>de</strong> empresarial) e<br />
diversificada e dinâmica estrutura <strong>de</strong> produção e difusão <strong>de</strong> conhecimento,<br />
capaz <strong>de</strong> permitir a criação <strong>de</strong> um ambiente favorável <strong>de</strong> inovação (PNDE<br />
2006, p.109).<br />
No que tange a mo<strong>de</strong>rnização relacionada à indústria, é importante salientar<br />
que, para o Governo Fe<strong>de</strong>ral, um dos pontos <strong>de</strong> estrangulamento econômico baseiase<br />
no baixo grau <strong>de</strong> integração e lento processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização da estrutura<br />
industrial da região <strong>de</strong>vido à heterogeneida<strong>de</strong> e diversida<strong>de</strong> da estrutura industrial a<br />
região apresenta uma ativida<strong>de</strong> manufatureira com baixo dinamismo e baixo grau <strong>de</strong><br />
mo<strong>de</strong>rnização tecnológica, <strong>de</strong>vido à competição com outras regiões mais<br />
industrializadas do país.<br />
Araújo (2005) nos lembra que o termo mo<strong>de</strong>rnização <strong>de</strong>ve ser utilizado com<br />
cautela, pois, na ativida<strong>de</strong> industrial do Estado as alterações se fazem pela<br />
integração <strong>de</strong> novas e velhas formas <strong>de</strong> acumulação <strong>de</strong> capital, na busca da<br />
ampliação da taxa <strong>de</strong> lucros.<br />
Sobre as ações planejadas do Estado no sentido <strong>de</strong> investir e requalificar o<br />
território Quintiliano e Lima (2008) profere que “o Estado assume a função <strong>de</strong> dotar<br />
condições favoráveis como externalida<strong>de</strong>s que possam viabilizar a dinâmica das<br />
empresas”, tendo como principais fontes <strong>de</strong> recurso os órgãos internacionais <strong>de</strong><br />
financiamento. Portanto, ainda dialogando com esses dois autores “trata-se <strong>de</strong><br />
investimentos que possam abranger os distintos níveis <strong>de</strong> base da produção, do<br />
consumo, da distribuição e da circulação <strong>de</strong> bens e mercadorias” (p.50).<br />
Para Pereira Junior (2003) no que diz respeito às mudanças no espaço <strong>de</strong><br />
Pacajus e Horizonte é que ela “passa pela interpretação do espaço”, este “como um<br />
meio e objeto <strong>de</strong> trabalho universal, constituído como necessida<strong>de</strong> e condição prévia<br />
<strong>de</strong> toda ativida<strong>de</strong> prática, econômica e social”.<br />
94
Vale <strong>de</strong>stacar, ainda mais quando tratamos da industrialização <strong>de</strong> Pacajus e<br />
Horizonte, é o caráter mo<strong>de</strong>rnizante que esse processo ocasiona naquele espaço.<br />
Para Pereira Junior (2003)<br />
A integração <strong>de</strong> Horizonte e Pacajus nos novos processos <strong>de</strong><br />
competitivida<strong>de</strong> e rentabilida<strong>de</strong> internacionais significa também sua inclusão<br />
no or<strong>de</strong>namento criado pelas práticas globais <strong>de</strong> ampliação dos<br />
superlucros. A chegada da ativida<strong>de</strong> industrial, um processo que vai<br />
reorganizando a divisão territorial do trabalho, institui nos municípios os<br />
referenciais <strong>de</strong> mundialização das trocas, sempre dispostos a satisfazer as<br />
necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> expansão do sistema capitalista. O espaço <strong>de</strong> Horizonte e<br />
Pacajus é, nesse sentido, um espaço que gradativamente se submete a um<br />
jogo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões tomadas, cada vez mais, por articuladores que estão<br />
distantes <strong>de</strong>sses lugares (p.95).<br />
Ainda dialogando com Pereira Junior observamos que a industrialização<br />
recente, nesse espaço <strong>de</strong> Pacajus e Horizonte, significa, também, “a re<strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />
todo um corpo <strong>de</strong> valores que emerge sob a resistente influência <strong>de</strong> uma lógica<br />
racionalista”, afinal, sobre essas duas cida<strong>de</strong>s “espaço, produto, condição e meio do<br />
processo <strong>de</strong> reprodução social reflete todas as mudanças, evi<strong>de</strong>nciando uma<br />
reestruturação que se dá a partir <strong>de</strong>sse jogo <strong>de</strong> forças”. Portanto, ainda nas palavras<br />
<strong>de</strong>sse mesmo autor, “a reestruturação espacial <strong>de</strong> Horizonte e Pacajus permite<br />
<strong>de</strong>tectar que no bojo da instalação dos valores mo<strong>de</strong>rnos erigem-se as contradições<br />
que <strong>de</strong>terminam uma vida social modificada”. (Pereira Junior, 2003 p. 96)<br />
Sendo assim, ao tomarmos como referência todo discurso <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />
(ou valores mo<strong>de</strong>rnos) que são carregados no processo <strong>de</strong> reestruturação que vem<br />
ocorrendo no território do Estado do Ceará, mais especificamente na Região<br />
Metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza nas imediações do eixo Pacajus – Horizonte, somos<br />
levados a refletir sobre tal processo e como isso se inclui no discurso da<br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Martins (2000, p. 27), em seu comentário sobre a maneira com que<br />
essa mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> chega ao Brasil, discorre que tal “nos chega estrangeira, como<br />
expressão do ver e não como expressão do ser, do viver e do acontecer”. Portanto,<br />
na idéia <strong>de</strong> que todo aparato produtivo, ainda mais <strong>de</strong> caráter internacional, são<br />
reflexos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> voltada à produção industrial e que tal processo irá trazer<br />
maior <strong>de</strong>senvolvimento e progresso ao espaço em que se instala. Ainda sob o ponto<br />
<strong>de</strong> vista <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Souza Martins, complementamos que tal mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> se porta<br />
mais como estratégia <strong>de</strong> compreensão e <strong>de</strong> administração das irracionalida<strong>de</strong>s e<br />
contradições da socieda<strong>de</strong> capitalista. Portanto:<br />
95
A mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> é justamente este momento da história contemporânea em<br />
que a consigna não é acobertar as injustiças, a exploração, a <strong>de</strong>gradação<br />
humana dos que foram con<strong>de</strong>nados a carregar nos ombros o peso da<br />
História. A mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> é, num certo sentido, o reino do cinismo: é<br />
constitutivo <strong>de</strong>la a <strong>de</strong>nuncia das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s e dos <strong>de</strong>sencontros que a<br />
caracterizam. Nela, o capitalismo se antecipa à crítica radical <strong>de</strong> suas<br />
vítimas mais sofridas. Por isso a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> conter (e<br />
manipular) reconhecíveis evidências dos problemas e das contradições <strong>de</strong><br />
que ela é expressão (Martins, 2000 p. 21).<br />
Sobre a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e sua i<strong>de</strong>ologia na socieda<strong>de</strong> é interessante pensá-la<br />
como um dos fatores que sempre estarão levando a uma reestruturação permanente<br />
do espaço <strong>de</strong>vido à saturação social. Pois, sob a perspectiva <strong>de</strong> Moreira (2008, pg.<br />
101) “a construção geográfica das socieda<strong>de</strong>s é um processo <strong>de</strong> movimento<br />
dinâmico”, on<strong>de</strong> “a reestruturação espacial é um dado concreto na história”. Afinal,<br />
as práticas sociais, também, dão forma ao espaço e conforme ultrapassa-se a<br />
assimilação <strong>de</strong> coisas novas, a reestruturação se faz necessária. O novo, o atual e o<br />
mo<strong>de</strong>rno surgem como orientação para produção do espaço conforme os<br />
parâmetros econômicos e sociais que os balizam.<br />
6.1 . Pacajus no novo contexto da Região Metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza<br />
O município <strong>de</strong> Pacajus, recentemente incorporado à Região Metropolitana<br />
<strong>de</strong> Fortaleza (RMF), mais especificamente o eixo Pacajus-Horizonte, passa por um<br />
importante processo <strong>de</strong> reestruturação econômica e espacial nos últimos anos com<br />
a concentração <strong>de</strong> importantes empresas do setor têxtil e calçadista. Tal fenômeno<br />
conta com importante apoio político e administrativo do governo no âmbito municipal<br />
(isenção <strong>de</strong> impostos, incentivos fiscais e doação <strong>de</strong> terrenos para construção das<br />
indústrias) e no âmbito estadual (disponibilização <strong>de</strong> água bruta ou potável e o<br />
acesso a pontos <strong>de</strong> água) para aten<strong>de</strong>r as necessida<strong>de</strong>s hídricas das novas<br />
indústrias e <strong>de</strong> parte da população local.<br />
Com base nos trabalhos <strong>de</strong> Araújo (2007), Pereira Júnior (2000 e 2002) e<br />
Lins (2008), <strong>de</strong>stacamos que importantes empresas do setor têxtil e calçadista tem<br />
se <strong>de</strong>slocado para o corredor Pacajus-Horizonte nas últimas duas décadas. A<br />
96
concentração <strong>de</strong> indústrias (fixos) através dos incentivos oferecidos pelo governo,<br />
juntamente com a facilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escoamento e circulação das mercadorias (fluxos)<br />
pela localização favorecida da BR-116, tem atraído uma massa <strong>de</strong> trabalhadores<br />
migrantes <strong>de</strong> outras regiões do estado do Ceará, e até <strong>de</strong> outros estados próximos<br />
como Paraíba e Rio Gran<strong>de</strong> do Norte, que chegam procurando emprego no “novo”<br />
mercado inaugurado por essas empresas, pois “os espaços se distinguem pela<br />
diferente capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> oferecer rentabilida<strong>de</strong> dos investimentos”. Esse conjunto <strong>de</strong><br />
elementos transformou e transforma consi<strong>de</strong>ravelmente a paisagem <strong>de</strong>ssas cida<strong>de</strong>s,<br />
tais modificações não são casos específicos da região, mas é justamente parte,<br />
mesmo que em outra escala, do processo <strong>de</strong> reestruturação sócio-espacial do<br />
Estado do Ceará <strong>de</strong>ntro da produção globalizada. O Estado como principal agente<br />
fomentador <strong>de</strong>ssas transformações precisa alicerçar, <strong>de</strong>ntro do território, as<br />
condições objetivas para que as empresas privadas consigam auferir os seus<br />
patamares <strong>de</strong> lucro <strong>de</strong> forma a dar retorno seus investimentos.<br />
Assim a tecnificação do território do Estado do Ceará, no caso específico<br />
dos municípios <strong>de</strong> Pacajus e Horizonte, vêm justamente dar as condições<br />
necessárias para o <strong>de</strong>senvolvimento do processo <strong>de</strong> produção capitalista, seja pela<br />
melhoria das rodovias <strong>de</strong> acesso à capital, pelo aumento do número da frota <strong>de</strong><br />
ônibus e vãs <strong>de</strong> transportes públicos, pela isenção <strong>de</strong> ICMS ou mesmo pelas<br />
facilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> acesso à água. As empresas mais significativas localizadas no<br />
corredor são: Santana Têxtil, Vicunha do Nor<strong>de</strong>ste, Petropar Embalagens, Vulcabrás<br />
do Nor<strong>de</strong>ste, Rigesa do Nor<strong>de</strong>ste, Lam Confecções e Troller Veículos; tais<br />
empreendimentos mostram-se como inovadores aos municípios <strong>de</strong> forte tradição<br />
agrária e com pequeno fluxo comercial.<br />
6.2 . Alguns <strong>de</strong>terminantes históricos e a estrutura da obra<br />
Antes da crise do estado brasileiro ocorrida na década <strong>de</strong> 80 e suas<br />
conseqüências na política intervencionista, o Estado do Ceará, em conformida<strong>de</strong> e<br />
paralelo com o governo fe<strong>de</strong>ral, promovia políticas e investimentos em infraestrutura<br />
<strong>de</strong> maneira selecionada, manifestando interesses <strong>de</strong> setores econômicos<br />
97
presentes no governo com a propositura <strong>de</strong> organizar o território para o fomento (a<br />
industrialização cearense é <strong>de</strong>finida como tardia) e efetivação da produção –<br />
distribuição dos produtos da indústria emergente do estado (flui<strong>de</strong>z no espaço<br />
construído). Dois pesquisadores do estado evi<strong>de</strong>nciam bem isso:<br />
Na gerência administrativa, da década <strong>de</strong> 1960 à meado dos anos 1980, há<br />
seletivida<strong>de</strong> dos investimentos, na tentativa <strong>de</strong> associação à política<br />
nacional <strong>de</strong> investimentos para a diminuição das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s regionais.<br />
Energização, infra-estrutura hídrica e sanitária financeirização são<br />
condições necessárias ao estabelecimento das indústrias. O que esboça o<br />
primeiro momento mo<strong>de</strong>rnizante do estado, do atual período histórico<br />
correspon<strong>de</strong>nte ao regime ditatorial no pais (QUINTILIANO; LIMA, 2008, p:<br />
36-37).<br />
A crise fiscal monetária que o país enfrenta na década <strong>de</strong> 80 é fruto do<br />
contexto econômico internacional <strong>de</strong> alta nos preços do petróleo, <strong>de</strong> recessão<br />
seguida <strong>de</strong> inflação (estagflação), além <strong>de</strong> erros <strong>de</strong> gestão da política econômica do<br />
país, evi<strong>de</strong>nciados na falta <strong>de</strong> <strong>de</strong>vida a<strong>de</strong>quação ao contexto econômico mundial da<br />
década <strong>de</strong> 70, do qual <strong>de</strong>pendia fundamentalmente o mo<strong>de</strong>lo agrário exportador<br />
brasileiro. Tal crise do Estado provocou a interrupção da intervenção estatal na<br />
economia brasileira, por conta que o estado ficara ocupado com a gestão da mesma<br />
(necessária austerida<strong>de</strong> fiscal). Sendo a intervenção estatal fomentadora do<br />
<strong>de</strong>sejado mo<strong>de</strong>lo urbano industrial. Entretanto<br />
[...] nos anos <strong>de</strong> 1990 com a introdução <strong>de</strong> inovações tecnológicas e<br />
organizacionais das empresas além <strong>de</strong> re<strong>de</strong>finição dos padrões <strong>de</strong> consumo<br />
e das relações <strong>de</strong> produção, o país ten<strong>de</strong> a estabilida<strong>de</strong>” (QUINTILIANO;<br />
LIMA, 2008, p.47).<br />
Estabilida<strong>de</strong> conseguida com o atrelamento do crescimento e<br />
<strong>de</strong>senvolvimento econômico à <strong>de</strong>pendência dos ajustes “naturais do mercado”, em<br />
<strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> sua autonomia política-econômica, com a venda das principais<br />
estatais brasileiras.<br />
A perda <strong>de</strong> mais autonomia política econômica (conseqüência da<br />
ingovernabilida<strong>de</strong> fiscal da década <strong>de</strong> 80) ficou manifestada na exigência, por parte<br />
<strong>de</strong> órgãos financeiros internacionais, no cumprimento <strong>de</strong> cartilhas (consenso <strong>de</strong><br />
Washington) que tinham como base o neoliberalismo, além <strong>de</strong> ter por trás as<br />
necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> reestruturação do espaço e da flexibilixação do mercado <strong>de</strong><br />
trabalho <strong>de</strong>mandadas pela nova organização do trabalho que se difundira nas<br />
gran<strong>de</strong>s empresas dos países <strong>de</strong>senvolvidos. O preço pago pela estabilida<strong>de</strong> foi o<br />
retorno da busca pelo estado mínimo, do livre comércio e uma maior interferência<br />
98
dos setores empresariais, o que favorece a disputa entre os territórios – ausência da<br />
intervenção e planejamento nacional.<br />
O seguimento exposto por Quintiliano e Lima expressa que<br />
[...] as crises são reflexos da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> rearranjos em níveis<br />
econômicos, sociais e políticos por todo o mundo, com o intuito <strong>de</strong><br />
acompanhar a or<strong>de</strong>m das empresas hegemônicas (QUINTILIANO, LIMA,<br />
2008, p. 43).<br />
A or<strong>de</strong>m do momento era a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dotar o território <strong>de</strong> estrutura<br />
a<strong>de</strong>quada para ser base <strong>de</strong> uma produção, agora flexibilizada, ou seja, promover a<br />
reestruturação do espaço e mo<strong>de</strong>rnizar o mesmo. Como exemplo <strong>de</strong>ssa condição<br />
encontramos em Abul El Haj (1990 apud QUINTILIANO; LIMA, 2008, p. 43) “no<br />
nor<strong>de</strong>ste a receptivida<strong>de</strong> às inovações tecnológicas ocorrera para oxigenar o<br />
sistema produtivo na corrida da competição internacional”.<br />
No Ceará, grupos progressistas, jovens empresários que <strong>de</strong>sejavam novo<br />
rumo político e econômico para o Estado - quando no exercício do po<strong>de</strong>r executivo<br />
foram <strong>de</strong>nominados <strong>de</strong> governo das mudanças - tem como norte a implementação<br />
<strong>de</strong>ssa nova or<strong>de</strong>m no Estado, a partir da segunda meta<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 80. Porém<br />
o esforço empregado para promover a mo<strong>de</strong>rnização do espaço com a produção <strong>de</strong><br />
infra-estrutura tecnificada, capaz <strong>de</strong> proporcionar flui<strong>de</strong>z potencializadora dos<br />
negócios, que otimiza as vantagens comparativas do território cearense, não<br />
bloqueou o condicionamento da gestão estatal pelos ainda persistentes elementos<br />
da super-estrutura agrário-exportadora passada, o personalismo e o clientelismo.<br />
Seguindo-se a nova or<strong>de</strong>m fica claro que:<br />
Solidifica-se ainda mais a concepção <strong>de</strong> que a saída da crise se dá<br />
mediante investimentos econômicos que possibilitam a firmeza do setor<br />
industrial, o que exige mais investimentos públicos em infra-estrutura.<br />
Assim, o estado assume a função <strong>de</strong> dotar condições favoráveis como<br />
externalida<strong>de</strong>s que possam viabilizar a dinâmica das empresas. As<br />
principais fontes <strong>de</strong> recurso para a transformação são os órgãos<br />
internacionais <strong>de</strong> financiamento”. (QUINTILIANO; LIMA, 2008, p. 48-49).<br />
As intervenções do governo cearense, para dotar o território <strong>de</strong><br />
externalida<strong>de</strong>s com capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ligar a dinâmica produtiva do estado com a<br />
dinâmica produtiva comercial mundial, são planejadas sem a participação da<br />
socieda<strong>de</strong> tendo como resultado <strong>de</strong>sequilíbrios sociais e ambientais. A<br />
reestruturação do espaço, a partir da mudança e valorização da técnica, com o<br />
objetivo <strong>de</strong> otimização industrial, provoca a transformação e dificulta a adaptação da<br />
99
classe trabalhadora e camponesa. Ocorrem modificações no espaço geográfico<br />
tornando o palco <strong>de</strong> conflitos e tensões (QUINTILIANO; LIMA, 2008).<br />
Exemplo do exposto são as mo<strong>de</strong>rnas estruturas <strong>de</strong> irrigação que o estado<br />
do Ceará dispõe à ativida<strong>de</strong> agrícola no auxilio da vantagem comparativa. O Estado<br />
do Ceará, ao promover essa mudança técnica, exclui comunida<strong>de</strong>s do campo<br />
<strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> capital, a <strong>de</strong>sistência das mesmas da permanência no campo ocorre<br />
<strong>de</strong>vido à marginalida<strong>de</strong> na qual ficam em relação a tal recurso técnico <strong>de</strong> irrigação,<br />
selecionador <strong>de</strong>vido seus altos custos <strong>de</strong> manejo. A exclusão se dá ainda através da<br />
regularização fundiária, sendo que o gran<strong>de</strong> capital fica beneficiado com o êxodo<br />
rural. O resultado disso é o aumento do esgarçamento do tecido social.<br />
Elemento da mo<strong>de</strong>rnização do território, o açu<strong>de</strong> Pacajus é um fixo <strong>de</strong>ntro<br />
do sistema <strong>de</strong> irrigação que se inicia no gran<strong>de</strong> açu<strong>de</strong> castanhão e tem como<br />
finalida<strong>de</strong> abastecer os açu<strong>de</strong>s que proporcionam o consumo <strong>de</strong> água da população<br />
<strong>de</strong> fortaleza, além das empresas do CIPP (complexo industrial do porto <strong>de</strong> pecém)<br />
(Quintiliano & Lima 2008).<br />
O açu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pacajus (construído sobre o leito do rio choró no município <strong>de</strong><br />
Pacajus) foi construído pela companhia <strong>de</strong> água e esgoto do ceará CAGECE, em<br />
1993, e sua capacida<strong>de</strong> é <strong>de</strong> 240.000.000 m³. Está <strong>de</strong>ntro da lógica capitalista <strong>de</strong><br />
remo<strong>de</strong>lação do território para otimização da produção e participa, como fixo, <strong>de</strong> um<br />
sistema (canal da integração) que tem como finalida<strong>de</strong> garantir, fundamentalmente,<br />
a segurança hídrica às empresas do CIPP (complexo industrial do porto <strong>de</strong> Pecém).<br />
Reforçando a segurança hídrica o sistema é complementado pelo Canal do<br />
Trabalhador que tem sua construção datada também no ano <strong>de</strong> 1993 durante o<br />
governo <strong>de</strong> Ciro Gomes (governo mudancista), tendo 113 km <strong>de</strong> extensão. O canal<br />
capta águas do rio Jaguaribe <strong>de</strong>spejando as no açu<strong>de</strong> Pacajus, garantindo o<br />
abastecimento <strong>de</strong> água da região metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza. O canal do trabalhador<br />
atravessa os municípios <strong>de</strong> Itaiçaba, Palhano, Cascavel e Pacajus. Depois do açu<strong>de</strong><br />
Pacajus a água passa ainda por dois outros açu<strong>de</strong>s Pacoti/Riachão e<br />
Riaçhão/Gavião até chegar ao CIPP. Os pesquisadores nor<strong>de</strong>stinos resumem isso<br />
tudo em:<br />
100<br />
O caminho das águas (canal da integração) vem aten<strong>de</strong>r necessida<strong>de</strong><br />
básica <strong>de</strong> água, por meio <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> e articulado conjunto <strong>de</strong> obras<br />
governamentais que objetivam maximizar potenciais hídricos<br />
(QUINTILIANO; LIMA, 2008, p. 115).
Com investimentos da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> R$ 80.000.000,00 por parte do governo do<br />
Estado o Programa <strong>de</strong> Gerenciamento e Integração dos Recursos Hídricos<br />
(PROGERIRH), tem como objetivo o fortalecimento da infra-estrutura hídrica,<br />
garantir o transporte da água acumulada nos gran<strong>de</strong>s açu<strong>de</strong>s para os vazios<br />
hídricos (QUINTILIANO & Lima 2008). Segundo os autores:<br />
101<br />
O programa busca a implementação e recuperação <strong>de</strong> infra-estrutura<br />
voltada ao gerenciamento integrado <strong>de</strong> bacias, visando à consolidação <strong>de</strong><br />
eixos <strong>de</strong> integração hídrica, ao <strong>de</strong>senvolvimento e consolidação <strong>de</strong> sistemas<br />
sustentáveis para gerenciamento, operação e manutenção da infra-estrutura<br />
hídrica e á promoção da integração das ações ambientais com a gestão da<br />
água.<br />
6.3 . O processo <strong>de</strong> industrialização e as novas articulações cida<strong>de</strong>região<br />
Analisar a industrialização enquanto processo que se materializa em uma<br />
base territorial requer a atenção às combinações existentes entre seus fatores<br />
consolidantes – papéis <strong>de</strong>sempenhados pelos mecanismos <strong>de</strong> produção, agentes<br />
administrativos e formas espaciais especificas (Pereira Junior, 2005: p.51). Ou seja,<br />
sua compreensão requer a sobreposição <strong>de</strong> múltiplas relações que atuam e<br />
justificam a composição <strong>de</strong> uma dinâmica industrializante, que extrapolam os limites<br />
da indústria e penetram nas <strong>de</strong>terminações normativas tanto no campo i<strong>de</strong>ológico<br />
como na estrutura social. Estas consi<strong>de</strong>rações que aqui se apresentam compõem e<br />
orientam o <strong>de</strong>bate em torno do processo <strong>de</strong> industrialização compreendido no<br />
Corredor Horizonte-Pacajus, cida<strong>de</strong>s situadas na Área Metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza<br />
(AMF) espaço caracterizado por esse processo..<br />
Em sua formação histórica a região <strong>de</strong> Pacajus foi composta por base<br />
agrária, com plantio intensivo <strong>de</strong> caju, priorizando o mercado externo. As primeiras<br />
empresas instaladas <strong>de</strong>tinham caráter artesanal e nasceram <strong>de</strong>vido a potencialida<strong>de</strong><br />
agrícola; é a partir <strong>de</strong>las que tem-se as primeiras noções <strong>de</strong> produção, <strong>de</strong> relações<br />
<strong>de</strong> trabalho e a possibilida<strong>de</strong> da integração territorial partindo da circulação do<br />
capital. Em seguida apareceram as empresas <strong>de</strong> beneficiamento do caju produzido<br />
(castanha-<strong>de</strong>-caju) e com isso o aumento da massa industrial culminando na
implantação das primeiras habitações voltadas para os trabalhadores das fábricas.<br />
Já o município <strong>de</strong> Horizonte <strong>de</strong>staca-se por sua base na produção avícola. Este<br />
município conquistou sua emancipação <strong>de</strong>vido ao significativo investimento na<br />
cida<strong>de</strong> no ano <strong>de</strong> 1987.<br />
Um ponto <strong>de</strong> extrema importância na produção <strong>de</strong>sse cenário <strong>de</strong><br />
intensificação da industrialização foi a construção da BR 116, uma Rodovia Fe<strong>de</strong>ral<br />
que se esten<strong>de</strong> <strong>de</strong> Fortaleza – CE chegando até Jaguarão - RS. A implementação<br />
<strong>de</strong>ssa rodovia permitiu uma potencialida<strong>de</strong> na circulação, seja <strong>de</strong> mercadorias, <strong>de</strong><br />
informações e <strong>de</strong> pessoas, atraindo assim o interesse das empresas em se <strong>de</strong>slocar<br />
das regiões Sul e Su<strong>de</strong>ste para o Nor<strong>de</strong>ste. A este aumento consi<strong>de</strong>rável<br />
<strong>de</strong>stacamos inicialmente o papel do Estado e os instrumentos normativos à atração<br />
<strong>de</strong> investimentos ligados a empresas industriais. Há algumas décadas, como<br />
aponta Pereira Junior (2005), na discussão sobre a industrialização do Nor<strong>de</strong>ste, a<br />
análise do <strong>de</strong>senvolvimento regional, vêm incorporando um vinculo à esfera político<br />
– governamental.<br />
O Estado, nesta perspectiva, figura atrelado aos representantes das forças<br />
capitalistas numa posição <strong>de</strong> promovedor da reprodução do capital. Nessa ação<br />
empreen<strong>de</strong>dora constatamos incentivos fiscais, apoio financeiro e a implantação <strong>de</strong><br />
infra – estrutura básica <strong>de</strong> funcionamento às empresas. Dentre a especificida<strong>de</strong> da<br />
realida<strong>de</strong> cearense <strong>de</strong>stacamos a política industrial do Plano Plurianual do Governo<br />
do Estado (1992, p.1) para o quadriênio <strong>de</strong> 1992 – 1995 que estabelecia o<br />
fortalecimento dos parques fabris do Ceará a partir das potencialida<strong>de</strong>s municipais.<br />
102<br />
Criar condições básicas <strong>de</strong> infra – estrutura e aprimorar os mecanismos<br />
fiscais e financeiros <strong>de</strong> incentivos e apoio à instalação <strong>de</strong> novas unida<strong>de</strong>s<br />
produtivas (...) i<strong>de</strong>ntificadas a partir do estudo <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
investimento ao nível <strong>de</strong> região e município (PEREIRA JR., 2005)<br />
A construção <strong>de</strong> um quadro capaz <strong>de</strong> incorporar as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
reprodução do capital edifica-se para além das vantagens locacionais fornecidas<br />
pelo Estado. A consolidação <strong>de</strong> uma dinâmica industrial nas cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Horizonte –<br />
Pacajus apresentou ampla influência <strong>de</strong>ssas ações, que atuaram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a instalação<br />
<strong>de</strong> uma infra- estrutura industrial básica - implantação <strong>de</strong> re<strong>de</strong> <strong>de</strong> água, energia,<br />
transporte e comunicação até o local on<strong>de</strong> se ergueriam as fábricas - até os<br />
financiamentos, como no caso do Imposto <strong>de</strong> Circulação <strong>de</strong> Mercadorias, Bens e<br />
Serviços (ICMS). Esse mecanismo garantia para as empresas localizadas na Região
Metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza empréstimos <strong>de</strong> 45% do ICMS <strong>de</strong> seu recolhimento<br />
mensal com carência <strong>de</strong> 36 meses. Horizonte e Pacajus, no inicio do processo, não<br />
pertenciam à Região Metropolitana, fazendo ren<strong>de</strong>r um financiamento <strong>de</strong> 75% já que<br />
o programa do Estado do Ceará prevê benefício maior para os municípios<br />
localizados nas <strong>de</strong>mais regiões administrativas. Os agentes responsáveis<br />
oficialmente pelos programas <strong>de</strong> incentivos financeiros são os Bancos: do Brasil, do<br />
Estado do Ceará, do Nor<strong>de</strong>ste e o BNDES (Banco Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />
Econômico e Social).<br />
Além <strong>de</strong>sses elementos, as empresas se valem <strong>de</strong> estratégias apoiadas em<br />
fragilida<strong>de</strong>s locais. A ausência <strong>de</strong> uma tradição sindicalista somada ao baixo nível <strong>de</strong><br />
automação das empresas e na elevada oferta <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra culminam em baixos<br />
salários. Então po<strong>de</strong>mos esboçar uma comparação entre as condições <strong>de</strong> trabalho<br />
nas regiões Nor<strong>de</strong>ste e Sul/Su<strong>de</strong>ste. Verifica-se, também, um processo <strong>de</strong> subproletarização<br />
que vem se consolidando através da expansão do trabalho parcial, do<br />
trabalho temporário, precário, sub-contratato e da terceirização, marcando a<br />
“socieda<strong>de</strong> dual” no capitalismo avançado. O processo <strong>de</strong> terceirização, adotado<br />
para tentar reduzir os custos com os salários dos funcionários, acaba por ser<br />
bastante prejudicial, já que por meio <strong>de</strong>ssa contratação o empregado não <strong>de</strong>sfruta<br />
<strong>de</strong> seus direitos assegurados pela CLT (Consolidação das Leis do <strong>Trabalho</strong>). Para<br />
mais, também temos presenciado diversas manifestações do trabalho informal. No<br />
Corredor, o que se encontra é o pagamento <strong>de</strong> baixos salários, geralmente um<br />
salário mínimo para diferentes áreas <strong>de</strong> atuação, e que não é contestado pelos<br />
trabalhadores porque a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um salário fixo, embora baixo, é vantajoso e<br />
garante uma segurança para o sustento da família, enquanto ao realizar outras<br />
ativida<strong>de</strong>s (informais, por exemplo) não há garantia <strong>de</strong>ssa reprodução material.<br />
103<br />
O ramo têxtil é exemplo <strong>de</strong> investimento que chegou a Horizonte-Pacajus<br />
beneficiando-se <strong>de</strong> baixos salários. Em algumas empresas, um empilhador<br />
chega a receber mensalmente 100% a menos que um funcionário <strong>de</strong><br />
mesmo setor em unida<strong>de</strong>s do Estado <strong>de</strong> São Paulo (PEREIRA JR., 2005,<br />
p.61).<br />
Pereira Junior (2005) apresenta dados referentes ao aumento <strong>de</strong> mais <strong>de</strong><br />
300% dos estabelecimentos industriais, o que mostra como era vantajoso para as<br />
empresas se instalarem nesses municípios.<br />
Ao fim <strong>de</strong>ste período inicial <strong>de</strong> acomodação das empresas fez-se necessário<br />
a garantia da expansão da ativida<strong>de</strong> industrial, para tanto, foram lançados
mecanismos <strong>de</strong> financiamento e ampliação dos aparelhos <strong>de</strong> infra-estrutura. Dentre<br />
as medidas que foram estabelecidas, é a criação do gasoduto Pacajus – Horizonte<br />
(um investimento <strong>de</strong> R$ 600 mil) realizado mediante a parceria entre o Governo do<br />
Estado do Ceará e a Prefeitura Municipal <strong>de</strong> Horizonte. Esta obra tem condição <strong>de</strong><br />
fornecer 25 mil metros cúbicos diários <strong>de</strong> gás numa extensão canalizada <strong>de</strong> 3,3 mil<br />
metros. Estão envolvidas em sua realização a Companhia <strong>de</strong> Gás do Ceará<br />
(Cegas), empresa vinculada à Secretaria da Infra – Estrutura do Estado (Seinfra).<br />
Estudando o caso específico do Corredor, é possível dizer que houve e<br />
continua havendo uma reor<strong>de</strong>nação espacial resultante da industrialização e que<br />
esta alterou as relações sociais. A percepção <strong>de</strong>sse fato ocorre através do processo<br />
migratório que a região vem sofrendo como também pela alteração no padrão <strong>de</strong><br />
consumo e na formação <strong>de</strong> barreiras territoriais que não ficam restritas aos limites<br />
político-administrativos.<br />
È possível notar toda uma dinâmica <strong>de</strong>mográfica apresentada por essa<br />
região assim como po<strong>de</strong>mos notar uma diversificação e crescimento nas ativida<strong>de</strong>s<br />
econômicas. Entretanto, as empresas que vêm se instalando no Corredor 14 , em<br />
geral, utilizam mão-<strong>de</strong>-obra intensa e se especializam em produtos tradicionais. São<br />
empresas que possuem baixa automação e, por conseguinte, essa força <strong>de</strong> trabalho<br />
contratada é <strong>de</strong> pouca ou nenhuma qualificação. O segundo grupo refere-se às<br />
firmas com maior po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> mercado e este po<strong>de</strong>r se esten<strong>de</strong> por todo o território<br />
brasileiro. Enquanto que o terceiro grupo são os “maiores investidores<br />
materializados no lugar”. Ou seja, são empresas com importância nacional e<br />
internacional e que têm maior abrangência no mercado.<br />
Um apontamento a ser feito vai ao sentido da atuação <strong>de</strong>ssas indústrias na<br />
comunida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> sua alocação torna-se uma estratégia para se <strong>de</strong>senvolverem. O<br />
intuito é proporcionar melhoria na comunida<strong>de</strong> e estimular a os processos básicos<br />
<strong>de</strong> reprodução social – educação, religião, saú<strong>de</strong>, serviços sociais e até previdência<br />
social, sendo esta ação apoiada pelo Estado. Uma estratégia concomitante é a<br />
inserção do trabalhador na empresa fazendo-o sentir-se parte <strong>de</strong>la; como exemplo<br />
tem-se a utilização do termo “colaborador” para se referir aos trabalhadores. Esse<br />
termo traz a noção <strong>de</strong> que o empregado está integrado à empresa estimulando a<br />
visão <strong>de</strong> que seu trabalho é imprescindível para o crescimento e bom andamento<br />
14 Consi<strong>de</strong>ramos essas empresas como do primeiro grupo <strong>de</strong> firmas que utilizam, para a realização<br />
da sua produção, intensa mão-<strong>de</strong>-obra e se especializam em produtos tradicionais.<br />
104
<strong>de</strong>sta. A idéia é que o empregado tenha orgulho <strong>de</strong> sua função, se posicionando<br />
sempre a favor <strong>de</strong> seu empregador.<br />
Diante <strong>de</strong>ssa combinação temos um <strong>de</strong>sdobramento relacionado à<br />
qualificação <strong>de</strong>sses funcionários. Notou-se uma relação entre a chegada <strong>de</strong>ssas<br />
indústrias não Corredor e o aumento das matriculas nas escolas. Isso <strong>de</strong>nota que as<br />
pessoas estão criando certa consciência que as atenta para a relação empregoqualificação-educação,<br />
o que é bom, já que, em gran<strong>de</strong> parte, essas empresas<br />
importam mão-<strong>de</strong>-obra qualificada, principalmente da capital (Fortaleza), pois, a<br />
mão-<strong>de</strong>-obra local não aten<strong>de</strong> aos requisitos necessários para ocupar as vagas<br />
existentes. Sendo assim, vemos que o espaço concebido pelo capital é influenciado<br />
e até mesmo <strong>de</strong>terminado por mudanças estruturais do âmbito social. Sempre<br />
lembrando que tais mudanças po<strong>de</strong>m ten<strong>de</strong>r para o prejuízo ou ganho da população<br />
e que, muitas vezes, quando há prejuízo, essas populações encontram-se<br />
<strong>de</strong>sarticuladas e comumente <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> meios que as possibilitem na luta pela<br />
melhoria.<br />
A exemplo da nova acumulação e re<strong>de</strong>finição, o Nor<strong>de</strong>ste se <strong>de</strong>staca pela<br />
suas vantagens competitivas, pois dispõe <strong>de</strong> fácil acesso às Américas Central e do<br />
Norte e por oferecer uma infra-estrutura – servida pelo Estado e/ou Governo – <strong>de</strong><br />
portos, aeroportos e rodovias. É nesse plano que o Estado do Ceará vem assumindo<br />
um novo papel na divisão social e territorial do trabalho, pois vem superando o<br />
crescimento econômico da região Nor<strong>de</strong>ste. O Estado vem realizando uma política<br />
agressiva <strong>de</strong> concessão <strong>de</strong> incentivos fiscais através <strong>de</strong> investimentos financiados<br />
pelo Fundo <strong>de</strong> Financiamento da Indústria juntamente com o Programa <strong>de</strong> Incentivo<br />
ao Funcionamento <strong>de</strong> Empresas.<br />
A atual situação das cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Pacajus e Horizonte, e a posição <strong>de</strong>stas<br />
frente às relações travadas no território do Estado do Ceará, faz com que essas<br />
duas cida<strong>de</strong>s estejam parcialmente inseridas nas investidas do Estado que caminha<br />
para o or<strong>de</strong>namento da estrutura econômica dos municípios inserindo-os em novos<br />
padrões <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma a <strong>de</strong>terminar os ajustes sociais internos que<br />
conduzem a uma nova espacialida<strong>de</strong>.<br />
105
6.4 As formas <strong>de</strong> controle e utilização da água no entorno do canal<br />
do trabalhador e do eixo da integração trechos 4 e 5 entre Pacajus e<br />
Pecém<br />
O Canal do Trabalhador foi construído para aten<strong>de</strong>r as <strong>de</strong>mandas hídricas<br />
da capital Fortaleza, contudo, atualmente, o canal encontra-se em fase <strong>de</strong><br />
rea<strong>de</strong>quação <strong>de</strong> seus papeis estratégicos, pois, com a inauguração dos trechos II e<br />
III do “eixão” das águas, capazes por si só <strong>de</strong> abastecer a capital o Canal do<br />
Trabalhador po<strong>de</strong>rá exercer outras funções, como por exemplo, servir as<br />
comunida<strong>de</strong>s e as proprieda<strong>de</strong>s ao longo <strong>de</strong> seu trecho. É nesse ponto que chega<br />
ao cerne da questão posta para o Estado do Ceará e objeto <strong>de</strong> análise nesse<br />
relatório: a questão do uso e apropriação da água. A problemática que envolve a<br />
questão do acesso a água, não só no Ceará como em gran<strong>de</strong> parte do Nor<strong>de</strong>ste<br />
brasileiro, está estreitamente vinculada com a questão fundiária, historicamente<br />
problemática na região, e mais recentemente ao capital agroexportador que se<br />
apresenta com certa hegemonia no território.<br />
Segundo a COGERH (Companhia <strong>de</strong> Gestão <strong>de</strong> Recursos Hídricos do<br />
estado do Ceará) a liberação do canal do trabalhador da função <strong>de</strong> abastecer a<br />
região metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza fará com que o seu potencial <strong>de</strong> irrigação, que é<br />
<strong>de</strong> sete mil hectares, possa aten<strong>de</strong>r mais comunida<strong>de</strong>s e culturas irrigadas que<br />
estão ao longo <strong>de</strong> seu curso. Wan<strong>de</strong>rley Guimarães, gerente da célula <strong>de</strong> áreas<br />
irrigadas, acredita que o Canal do Trabalhador tem um ótimo potencial para servir a<br />
agricultura, mas em contrapartida um fortíssimo índice <strong>de</strong> concentração fundiária no<br />
seu entorno, cerca <strong>de</strong> 70% do total das terras que o cercam estão reunidas nas<br />
mãos <strong>de</strong> apenas três gran<strong>de</strong>s empresários. Atualmente, 1.186 hectares são<br />
utilizados para irrigação no entorno do canal, são 38 usuários cultivando áreas<br />
pequenas, entre 0,01 e cinco hectares, num total <strong>de</strong> 330 hectares, e quatro usuários<br />
ocupando 820 hectares <strong>de</strong> terras irrigadas. Na região, cultiva-se principalmente<br />
cajueiro, melão, feijão, capineiras.<br />
O trecho IV do Canal da integração compõe o penúltimo trecho antes da<br />
transposição oeste, que vai ao Complexo <strong>de</strong> Pecém (trecho V). É um dos pontos<br />
mais complexos <strong>de</strong> toda a obra <strong>de</strong> transposição, compreen<strong>de</strong>ndo 33,89 km <strong>de</strong><br />
aquedutos, canais, sifões e túneis que farão a água sair do Açu<strong>de</strong> Pacajus sob o Rio<br />
106
Choró para o Açu<strong>de</strong> Pacoti, sendo ponteado por três pequenos sifões que<br />
transpõem respectivamente a Avenida Lúcio Menezes, BR-116 e Canal do Ererê.<br />
Segue do Açu<strong>de</strong> Pacoti para o Açu<strong>de</strong> Riachão, por meio <strong>de</strong> uma abertura, quando o<br />
nível <strong>de</strong>ste diminuir por meio <strong>de</strong> túnel do Riachão para o Açu<strong>de</strong> Gavião.<br />
Resumidamente estes processos integram os seguintes principais tipos <strong>de</strong> obras<br />
localizadas para controle operacional e acesso:<br />
Estruturas <strong>de</strong> transição entre os trechos <strong>de</strong> canal e sifão;<br />
Estruturas <strong>de</strong> seccionamento equipadas com comportas planas;<br />
Obras <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> fundo e <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> segurança (superfície).<br />
Pontilhões e passarelas sobre o canal;<br />
Rampas <strong>de</strong> acesso ao fundo do canal.<br />
Os investimentos com verbas públicas são altíssimos e tudo se sustenta,<br />
fundamentalmente, pelo discurso i<strong>de</strong>ológico <strong>de</strong> “acabar com problema da seca” ou<br />
suprir “primeiramente as necessida<strong>de</strong>s humanas <strong>de</strong> água”.<br />
O discurso i<strong>de</strong>ológico dos órgãos responsáveis é facilmente <strong>de</strong>smascarado<br />
quando se fala com algum morador que seria o principal beneficiário da obra, como<br />
nos contou Francisco Amilton Silvio do Nascimento (36 anos), morador a sete anos<br />
na área on<strong>de</strong> hoje está localizado o Açu<strong>de</strong> Pacajus. Ele diz que o canal, ele em si,<br />
até beneficia muita gente na parte do emprego, mas na questão da água ele <strong>de</strong>ixa<br />
muito a <strong>de</strong>sejar. “Por que eles dizem que vai ser melhoria pra todo mundo, mas<br />
<strong>de</strong>pois que ta concretizado se num tem acesso a água. Pra colocar uma mangueira<br />
assim, eles vêem e falam pra cadastrar”. (informação verbal) 15 . E, além disso, nos<br />
conta Francisco, se a casa não estiver à jusante, ou no <strong>de</strong>clive para movimentar a<br />
água através da gravida<strong>de</strong> se torna mais difícil, mesmo com uso da bomba, por<br />
conta <strong>de</strong>ssas dificulda<strong>de</strong>s encontradas ninguém da comunida<strong>de</strong> possui água<br />
encanada nos arredores do açu<strong>de</strong>. Quem tem condições <strong>de</strong> colocar a bomba d’<br />
água coloca, mas a maioria não tem. A contradição entre o discurso e a realida<strong>de</strong><br />
por nós observada, fica patente também na fala do senhor Francisco Maciel (51<br />
anos), quando nos contou como foi para ele a construção do açu<strong>de</strong> em sua terra:<br />
15 <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong>, 2009.<br />
107
108<br />
Pra mim a construção do açu<strong>de</strong> não foi boa não, por que o meu terreno do<br />
outro lado ali foi tudo <strong>de</strong>struído, três casas gran<strong>de</strong>s e toda a plantação. Não<br />
houve nem um tipo <strong>de</strong> negociação, o valor da in<strong>de</strong>nização era o que eles<br />
davam e quem não aceitassem não iria receber nada, pois, tinha que sair <strong>de</strong><br />
todo jeito. [...] se mesmo nas cida<strong>de</strong>s gran<strong>de</strong>s “eles” fazem o que quer<br />
imagina no interior...? [...] Hoje pra beber a gente anda sete quilômetros pra<br />
buscar água no poço.(informação verbal) 16<br />
Nessa parte da conversa seu Francisco caminhava mostrando-nos on<strong>de</strong> era<br />
sua antiga casa e ao mesmo tempo dizendo: “Quando eles <strong>de</strong>struíram tudo a gente<br />
ficou nove semanas e três dias embaixo <strong>de</strong> um barraco <strong>de</strong> lona até a gente construir<br />
essa casinha, e eles <strong>de</strong>moraram três anos enrolando pra pagar a gente.” Segundo<br />
ele, quando pagaram o valor estava totalmente abaixo do real valor <strong>de</strong> suas<br />
benfeitorias.<br />
Esses são somente alguns exemplos dos vários casos <strong>de</strong> trabalhadores,<br />
ribeirinhos, irrigantes, vazanteiros e camponeses que per<strong>de</strong>ram suas casas e o<br />
direito <strong>de</strong> viver em suas terras por conta <strong>de</strong> medidas verticalizadas e autoritárias dos<br />
governantes. Na tentativa <strong>de</strong> envolver as partes afetadas e interessadas na<br />
discussão sobre os problemas relacionados à gestão das águas, foram criados<br />
Comitês <strong>de</strong> Bacias. Alvo <strong>de</strong> polêmicos <strong>de</strong>bates sobre sua real funcionalida<strong>de</strong> e<br />
sobre a sua efetivação enquanto “espaço <strong>de</strong>mocrático”. Comitês <strong>de</strong> Bacia são<br />
órgãos colegiados constituídos por membros dos po<strong>de</strong>res públicos (municipal,<br />
estadual e fe<strong>de</strong>ral, conforme a área <strong>de</strong> abrangência da bacia hidrográfica), dos<br />
usuários das águas, das organizações civis e pela população da bacia que tem<br />
como objetivo <strong>de</strong>senvolver ações que proporcionem um uso a<strong>de</strong>quado dos recursos<br />
hídricos.<br />
6.5 . A formação e organização dos comitês <strong>de</strong> bacias hidrográficas<br />
do estado do ceará e da bacia metropolitana <strong>de</strong> fortaleza<br />
De acordo com a ANA (Agência Nacional das Águas) os Comitês <strong>de</strong> Bacia<br />
Hidrográfica são a base do Sistema Nacional <strong>de</strong> Gerenciamento <strong>de</strong> Recursos<br />
Hídricos. Neles são <strong>de</strong>batidas as questões relacionadas à gestão <strong>de</strong>sses recursos.<br />
16 <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong>, 2009.
Participam dos Comitês representantes do Po<strong>de</strong>r Público, dos usuários das águas e<br />
das organizações da socieda<strong>de</strong> com ações na área <strong>de</strong> recursos hídricos. Os<br />
Comitês <strong>de</strong> Bacia têm como objetivo a gestão participativa e <strong>de</strong>scentralizada dos<br />
recursos hídricos num território, por meio da implementação <strong>de</strong> instrumentos<br />
técnicos <strong>de</strong> gestão, da negociação <strong>de</strong> conflitos e da promoção dos usos múltiplos da<br />
água. Os Comitês <strong>de</strong>vem integrar as ações <strong>de</strong> todos os Governos, seja no âmbito<br />
dos Municípios, dos Estados ou da União; propiciar o respeito aos diversos<br />
ecossistemas naturais; promover a conservação e recuperação dos corpos d'água e<br />
garantir a utilização racional e sustentável dos recursos hídricos.<br />
Dentre suas competências se <strong>de</strong>stacam:<br />
Arbitrar os conflitos relacionados aos recursos hídricos naquela bacia<br />
hidrográfica;<br />
Aprovar os Planos <strong>de</strong> Recursos Hídricos;<br />
Acompanhar a execução do Plano e sugerir as providências necessárias para o<br />
cumprimento <strong>de</strong> suas metas;<br />
Estabelecer os mecanismos <strong>de</strong> cobrança pelo uso <strong>de</strong> recursos hídricos e<br />
sugerir os valores a serem cobrados;<br />
Definir os investimentos a serem implementados com a aplicação dos recursos<br />
da cobrança.<br />
Bacia Hidrográfica ou Bacia <strong>de</strong> Drenagem é compreendida como uma "Área<br />
<strong>de</strong>finida topograficamente, drenada por um curso d'água ou um sistema conectado<br />
<strong>de</strong> cursos d’água, tal que toda vazão seja <strong>de</strong>scarregada através <strong>de</strong> uma simples<br />
saída"(VILLELA & MATTOS, 1975), bem como todos envolvidos essencialmente ao<br />
uso e exploração <strong>de</strong>sse bem público indispensável à vida.<br />
No Ceará a cronologia do processo <strong>de</strong> formação dos comitês <strong>de</strong> bacias<br />
hidrográficas se <strong>de</strong>u através do órgão colegiado criado pela lei 11.996/92 e<br />
regulamentado pelo <strong>de</strong>creto 26.462/01, com atribuições, consultivas e <strong>de</strong>liberativas,<br />
com atuação na bacia ou sub-bacia hidrográfica <strong>de</strong> sua jurisdição, sendo composto<br />
por representantes dos usuários, da Socieda<strong>de</strong> Civil, das prefeituras e dos órgãos<br />
do Governo e é a instância mais importante <strong>de</strong> participação e integração do<br />
planejamento e das ações na área dos recursos hídricos. O colegiado do comitê <strong>de</strong><br />
bacia é composto por representantes <strong>de</strong> instituições governamentais e nãogovernamentais,<br />
distribuídos em 04 (quatro setores), sendo a seguinte distribuição e<br />
109
percentual <strong>de</strong> participação: Usuários (30%); Socieda<strong>de</strong> Civil (30%); Po<strong>de</strong>r Público<br />
Municipal (20%); Po<strong>de</strong>r Público Estadual/Fe<strong>de</strong>ral (20%).<br />
O trabalho <strong>de</strong> formação dos comitês no Ceará teve início em 1994, com o<br />
trabalho na Bacia Hidrográfica do Curu, sendo instalado o comitê <strong>de</strong>sta bacia em<br />
17/09/1997, sendo o primeiro comitê <strong>de</strong> bacia instalado no Ceará, que funcionou<br />
como projeto piloto, pois a partir da experiência <strong>de</strong>senvolvida ali, expandiu-se<br />
gradativamente o trabalho <strong>de</strong> formação dos outros comitês no Ceará. A metodologia<br />
para a formação dos comitês, <strong>de</strong>senvolvida pela COGERH, <strong>de</strong>finiu três níveis <strong>de</strong><br />
atuação (Açu<strong>de</strong>, Vale Perenizado, Bacia Hidrográfica) no sentido da integração das<br />
ações para o Apoio a Organização dos Usuários. Em algumas bacias o processo <strong>de</strong><br />
formação do comitê foi impulsionado através do trabalho <strong>de</strong> operação participativa<br />
dos vales perenizados, on<strong>de</strong> era formadas as Comissões <strong>de</strong> Operação dos Vales<br />
Perenizados, como no caso do Curu, Baixo Jaguaribe, Médio Jaguaribe, Acaraú.<br />
Os Comitês <strong>de</strong> Bacias tem seu próprio Regimento Interno; as assembléias<br />
são públicas; os membros têm po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> voto; os mandatos <strong>de</strong> todos os integrantes<br />
são <strong>de</strong> dois anos; todos os membros po<strong>de</strong>m se candidatar aos cargos da diretoria<br />
(composta por Presi<strong>de</strong>nte, Vice-presi<strong>de</strong>nte e Secretário Geral); os comitês po<strong>de</strong>m<br />
crias Comissões e Câmaras Técnicas; a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> membros é variável,<br />
<strong>de</strong>vendo apenas obe<strong>de</strong>cer os percentuais dos quatro setores representados. Já<br />
foram instalados 10 comitês <strong>de</strong> bacias hidrográficas no Ceará (Tabela 10).<br />
A diretriz básica dos comitês segundo o COGERH é <strong>de</strong> contribuir com a<br />
gestão integrada e <strong>de</strong>scentralizada dos Recursos Hídricos, garantindo a participação<br />
da socieda<strong>de</strong> no processo <strong>de</strong>cisório, buscando o <strong>de</strong>senvolvimento sustentável da<br />
bacia. Fato que não reflete a atual situação <strong>de</strong> como o acesso a água é gerenciado<br />
no estado, mostrando-se assim extremamente exclu<strong>de</strong>nte, seletivo e não sendo<br />
compatível com as necessida<strong>de</strong>s das minorias e populações difusas, do ponto <strong>de</strong><br />
vistas dos benefícios e priorida<strong>de</strong>s proporcionadas pela organização <strong>de</strong>stes órgãos.<br />
Tabela 9 ‐ Formação dos comitês <strong>de</strong> bacias hidrográficas ate 2006<br />
ITEM BACIA<br />
COMITÊS DE BACIAS HIDROGRÁFICAS<br />
ANO DE<br />
INSTALAÇÃO<br />
Nº DE<br />
MEMBROS<br />
MUNICÍPIOS QUE<br />
COMPÕE A BACIA<br />
01 CURU 1997 50 15<br />
110
02 BAIXO JAGUARIBE 1999 46 09<br />
03 MÉDIO JAGUARIBE 1999 30 13<br />
04 BANABUIÚ 2002 48 <strong>12</strong><br />
05 ALTO JAGUARIBE 2002 40 24<br />
06 SALGADO 2002 50 <strong>23</strong><br />
07 METROPOLITANAS 2003 60 31<br />
08 ACARAÚ 2004 40 27<br />
09 LITORAL 2006 40 11<br />
10 COREAU 2006 30 21<br />
Fonte: Companhia <strong>de</strong> Gestão dos Recursos Hídricos (COGERH)<br />
<br />
São atribuições dos Comitês <strong>de</strong> Bacias, segundo o <strong>de</strong>creto No 26.462/2001:<br />
I. Acompanhar e fiscalizar a aplicação dos recursos repassados ao órgão <strong>de</strong><br />
gerenciamento das bacias para aplicação na sua área <strong>de</strong> atuação, ou por quem<br />
exercer suas atribuições, recebendo informações sobre essa aplicação,<br />
<strong>de</strong>vendo comunicar ao Fundo Estadual <strong>de</strong> Recursos Hídricos, as<br />
irregularida<strong>de</strong>s i<strong>de</strong>ntificadas;<br />
II. Propor ao Conselho <strong>de</strong> Recursos Hídricos do Ceará - CONERH, critérios e<br />
normas gerais para a outorga <strong>de</strong> uso dos recursos hídricos e <strong>de</strong> execução <strong>de</strong><br />
obras ou serviços <strong>de</strong> oferta hídrica;<br />
III. Estimular a proteção e a preservação dos recursos hídricos e do meio<br />
ambiente contra ações que possam comprometer o uso múltiplo atual e futuro;<br />
IV. Discutir e selecionar alternativas <strong>de</strong> enquadramento dos corpos d`água da<br />
bacia hidrográfica, proposto conforme procedimentos estabelecidos na<br />
legislação pertinente;<br />
V. Aprovar internamente e propor ao Conselho <strong>de</strong> Recursos Hídricos do Ceará -<br />
CONERH, programas e projetos a serem executados com recursos oriundos da<br />
cobrança pela utilização <strong>de</strong> recursos hídricos das bacias hidrográficas,<br />
<strong>de</strong>stinados a investimentos;<br />
VI. Acompanhar a execução da Política <strong>de</strong> Recursos Hídricos, na área <strong>de</strong> sua<br />
atuação, formulando sugestões e oferecendo subsídios aos órgãos ou<br />
entida<strong>de</strong>s que compõem o Sistema Integrado <strong>de</strong> Gestão <strong>de</strong> Recursos Hídricos<br />
- SIGERH;<br />
VII. Aprovar o Plano <strong>de</strong> Gerenciamento <strong>de</strong> recursos hídricos da bacia,<br />
respeitando as respectivas diretrizes:<br />
a) do Comitê <strong>de</strong> Bacia do curso <strong>de</strong> água do qual é tributário, quando<br />
existente;<br />
b) do Conselho <strong>de</strong> Recursos Hídricos do Ceará - CONERH, ou do<br />
Conselho Nacional <strong>de</strong> Recursos Hídricos - CNRH;<br />
111
VIII. Propor, em períodos críticos, a elaboração e implementação <strong>de</strong> planos<br />
emergenciais possibilitando uma melhor convivência com a situação <strong>de</strong><br />
escassez;<br />
IX. Constituir grupos <strong>de</strong> trabalho, comissões específicas e câmaras técnicas,<br />
<strong>de</strong>finindo, no ato <strong>de</strong> criação, sua composição, atribuições e duração;<br />
X. Discutir e aprovar, anualmente, em conjunto com o órgão <strong>de</strong> gerenciamento<br />
das bacias, o plano <strong>de</strong> operação dos sistemas hídricos da bacia hidrográfica;<br />
XI. Elaborar e reformular seu Regimento nos termos <strong>de</strong>ste Decreto;<br />
XII. Orientar os usuários <strong>de</strong> recursos hídricos da bacia hidrográfica no sentido<br />
<strong>de</strong> adotar os instrumentos legais necessários ao cumprimento da Política <strong>de</strong><br />
Recursos Hídricos do Estado, com vistas à obtenção da outorga <strong>de</strong> direito <strong>de</strong><br />
uso da água e <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> oferta hídrica;<br />
XIII. Propor e articular, com as Secretarias Municipal e Estadual <strong>de</strong> Educação,<br />
a adaptação dos currículos escolares às questões ambientais relacionadas aos<br />
recursos hídricos locais.<br />
6.6 . Bacia metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza<br />
A bacia hidrográfica metropolitana apresenta uma área <strong>de</strong> drenagem <strong>de</strong><br />
15.085 Km², correspon<strong>de</strong>nte a 10,18% do território cearense, sendo uma Região<br />
Hidrográfica formada por 16 bacias in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, abriga o mais importante centro<br />
consumidor <strong>de</strong> água do Estado, que é a região Metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza (RMF),<br />
on<strong>de</strong> a disponibilida<strong>de</strong> hídrica tem sido insuficiente para o atendimento da população<br />
e para o suprimento <strong>de</strong> todas as ativida<strong>de</strong>s econômicas, necessitando importar água<br />
<strong>de</strong> outras bacias hidrográficas, principalmente às transposições Jaguaribe / RMF,<br />
através do Canal do Trabalhador e do Eixo Castanhão / RMF. Esta bacia é<br />
composta por 31 municípios (ver tabela abaixo) e apresenta uma capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
acumulação <strong>de</strong> águas superficiais <strong>de</strong> 1.325 344.000 m³, num total <strong>de</strong> 14 açu<strong>de</strong>s<br />
públicos gerenciados pela COGERH.<br />
1<strong>12</strong>
Municípios que compõem a Bacias Metropolitana:<br />
Acarape<br />
Aquiraz<br />
Aracoiaba<br />
Aratuba<br />
Barreira<br />
Baturité<br />
Beberibe<br />
Capistrano<br />
Cascável<br />
Caucaia<br />
Choró<br />
Chorozinho<br />
Euzébio<br />
Fortaleza<br />
Guaiuba<br />
Guaramiranga<br />
Horizonte<br />
Ibaretama<br />
Itaitinga<br />
Itapiúna<br />
Maracanaú<br />
Maranguape<br />
Mulungu<br />
Ocara<br />
Pacajus<br />
Pacatuba<br />
Pacoti<br />
Palmácia<br />
Pindoretama<br />
Re<strong>de</strong>nção<br />
São Gonçalo do Amarante<br />
A bacia possui ainda pequenas áreas dos seguintes municípios: Ibicuitinga,<br />
Fortim, Morada Nova, Quixadá, Carida<strong>de</strong>, Canindé e Paracuru.<br />
O potencial hídrico encontra-se totalmente comprometido com o<br />
abastecimento da Região Metropolitana (RMF) sendo que as bacias <strong>de</strong> Pacoti,<br />
Choró e Cocó são as que mais contribuem para o abastecimento <strong>de</strong> água <strong>de</strong><br />
Fortaleza.<br />
O trabalho <strong>de</strong> organização dos usuários nas bacias Metropolitanas iniciou-se<br />
em NOV/1996 (08 <strong>de</strong> nov <strong>de</strong> 1996, Fortaleza) com a realização do I Seminário<br />
Sobre Gestão do Sistema <strong>de</strong> Abastecimento <strong>de</strong> Água da Região Metropolitana <strong>de</strong><br />
Fortaleza, o qual teve como objetivos principais: a divulgação da Política Estadual <strong>de</strong><br />
Recursos Hídricos; a coleta <strong>de</strong> dados para o plano <strong>de</strong> operação da bacia;<br />
informação sobre condições da transferência da gestão do SARMF; o fornecimento<br />
<strong>de</strong> quadros <strong>de</strong> transferência relativos à questão ambiental e propiciar a participação<br />
dos usuários no processo <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong> recursos hídricos. Cujos resultados mais<br />
imediatos foram a aproximação com os usuários e a divulgação do trabalho da<br />
Companhia <strong>de</strong> Gestão dos Recursos Hídricos COGERH. No ano seguinte, 1997, as<br />
ações da COGERH nas Bacias Metropolitanas foram no sentido <strong>de</strong> conhecer melhor<br />
os usuários dos 31 municípios que as compõem, através do diagnóstico institucional<br />
<strong>de</strong>sses municípios, do acompanhamento <strong>de</strong> açu<strong>de</strong>s isolados (Castro em Itapiúna e<br />
Acarape do Meio) e <strong>de</strong> seminários por setores (Seminários com pescadores dos<br />
açu<strong>de</strong>s que abastecem a Região Metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza – Acarape do Meio,<br />
Pacajus, Riachão, Pacoti e Gavião e Seminário com Irrigantes do Vale do Acarape.<br />
113
A elaboração do “Plano <strong>de</strong> Gerenciamento das Águas das Bacias<br />
Metropolitanas inseriu-se nesse processo como elemento privilegiado <strong>de</strong> discussão,<br />
tornando necessária a retomada dos contatos anteriormente feitos visando a difusão<br />
das informações, possibilitando aos diversos usuários e à socieda<strong>de</strong> a intervenção<br />
no processo <strong>de</strong> gestão da bacia hidrográfica, bem como, a discussão <strong>de</strong> propostas<br />
metodológicas que orientassem o processo <strong>de</strong> organização dos usuários <strong>de</strong> água na<br />
perspectiva da constituição <strong>de</strong> fóruns <strong>de</strong> discussão relativos à gestão dos recursos<br />
hídricos, levando à construção <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong> conscientização e <strong>de</strong> preservação dos<br />
recursos da bacia. Assim, foi elaborado o “I Seminário <strong>de</strong> Planejamento das Bacias<br />
Metropolitanas” que contou com a participação <strong>de</strong> representantes do setor industrial,<br />
sistemas <strong>de</strong> abastecimento urbano, entida<strong>de</strong>s ambientalistas, instituições<br />
governamentais e não governamentais prefeituras e representantes da socieda<strong>de</strong><br />
civil dos diversos municípios que compõem a bacia metropolitana. A partir daí,<br />
iniciaram-se os encontros periódicos do Fórum das Águas, contando com a<br />
participação <strong>de</strong> representantes dos setores acima citados, tendo como objetivos<br />
principais: a discussão dos conflitos sobre o aproveitamento dos recursos hídricos; a<br />
discussão sobre a gestão participativa da Bacia Metropolitana e a capacitação<br />
<strong>de</strong>sses representantes sobre o uso racional da água.<br />
Em 1998, juntamente com os encontros do Fórum das Águas, foram<br />
realizadas as seguintes ativida<strong>de</strong>s: realização do I Cadastro Institucional da Bacia<br />
Metropolitana e início da operação <strong>de</strong> alguns reservatórios da Bacia. As ativida<strong>de</strong>s<br />
do ano <strong>de</strong> 1999 iniciaram-se com o II Seminário <strong>de</strong> Gestão dos Recursos Hídricos<br />
das Bacias Metropolitanas, realizado <strong>de</strong> 10 a <strong>12</strong>/03/1999, no município <strong>de</strong> Pacoti-<br />
CE. Neste evento foi promovido um <strong>de</strong>bate entre as diversas instituições e usuários<br />
das bacias metropolitanas, divididos em grupos <strong>de</strong> trabalho, com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
realizar o plano <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s/99 para a constituição do Comitê das Bacias<br />
Hidrográficas Metropolitana – CBH, <strong>de</strong>stacando-se ainda a participação <strong>de</strong> vários<br />
prefeitos da região serrana, o presi<strong>de</strong>nte da COGERH, além do Secretário <strong>de</strong><br />
Recursos Hídricos do Ceará Hypéri<strong>de</strong>s Pereira <strong>de</strong> Macedo, o qual proferiu palestra<br />
sobre “A Participação da Socieda<strong>de</strong> na Política <strong>de</strong> Gestão dos Recursos Hídricos”.<br />
Outros aspectos que <strong>de</strong>vem ser ressaltados no encontro acima foram: a<br />
divisão da Bacia Metropolitana em sub-regiões (Sertão, Litoral, Serra e Região<br />
Metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza) e a <strong>de</strong>finição do grau <strong>de</strong> envolvimento e compromisso<br />
das diversas instituições presentes no Seminário.<br />
114
Durante este ano foram realizadas ainda o Seminário dos Usuários do<br />
Açu<strong>de</strong> Acarape do Meio e o Seminário <strong>de</strong> Planejamento do Açu<strong>de</strong> Castro, além da<br />
criação do conselho gestor nessas duas áreas.<br />
As Reuniões mensais do Fórum das Águas continuaram a ocorrer nesse<br />
período, sempre na última segunda-feira <strong>de</strong> cada mês, constando <strong>de</strong> intensas<br />
discussões sobre a convivência dos diversos usuários da região com os Recursos<br />
Hídricos, além <strong>de</strong> diversas palestras técnicas para capacitação dos participantes do<br />
Fórum, <strong>de</strong>stacando-se “A Discussão Sobre o Plano <strong>de</strong> Gerenciamento das Bacias<br />
Metropolitanas”, apresentado pela VBA Consultores; a Apresentação sobre o<br />
Aproveitamento do Canal do Trabalhador” e a “Apresentação do Levantamento dos<br />
Poços Existentes no Ceará”, feito pela CPRM. Encerrando as ativida<strong>de</strong>s do ano <strong>de</strong><br />
1999, ocorreram dois cursos para os representantes do Fórum das Águas:<br />
“Legislação Para o Uso <strong>de</strong> Recursos Hídricos” e “Uso Racional da Água e Seus<br />
Reflexos No Meio Ambiente”, ambos oferecidos pelo CREA e Associação Brasileira<br />
<strong>de</strong> Educação Agrícola e Superior – ABEAS.<br />
Os trabalhos para a estruturação do Comitê da Bacia Hidrográfica<br />
Metropolitanas – CBH começaram no ano <strong>de</strong> 2000 com a realização do III Seminário<br />
<strong>de</strong> Planejamento das Bacias Metropolitanas, ocorrido em MAR/2000, no município<br />
<strong>de</strong> Beberibe. Este encontro contou com presenças <strong>de</strong> vários prefeitos da região<br />
litorânea, além dos representantes do Fórum das Águas.<br />
O evento serviu para constatar que vários municípios ainda estavam à<br />
margem do processo <strong>de</strong> formação do CBH, saindo como compromisso então, tendo<br />
sido viabilizado após esta data a realização <strong>de</strong> 30 encontros municipais, entre as<br />
cida<strong>de</strong>s pertencentes às bacias hidrográficas metropolitanas, com o intuito <strong>de</strong><br />
apresentar à população a importância da participação na gestão dos recursos<br />
hídricos. Neste ano iniciou-se também a discussão sobre o Regimento do CBH,<br />
tendo ocorrido 04 encontros regionais sobre este tema. Continuaram a ocorrer as<br />
reuniões mensais do Fórum das Águas e a programação do ano, encerrou, com a<br />
realização do IV Seminário <strong>de</strong> Planejamento das Ativida<strong>de</strong>s Para o Ano <strong>de</strong> 2001, em<br />
DEZ/2000, no município <strong>de</strong> Fortaleza-CE.<br />
Em 2001, ocorreram reuniões periódicas do Fórum das Águas, a realização<br />
<strong>de</strong> vários encontros regionais em Fortaleza para mobilização dos representantes da<br />
população <strong>de</strong>sta capital para a participação na gestão dos recursos hídricos.<br />
Posteriormente ocorreu o “Encontro Geral <strong>de</strong> Fortaleza Sobre Gestão <strong>de</strong> Recursos<br />
115
Hídricos” para a consolidação das propostas e dos participantes <strong>de</strong> Fortaleza no<br />
Fórum das Águas e na constituição do CBH. Esses encontros contaram com a<br />
participação <strong>de</strong> vários presi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> Associações <strong>de</strong> Bairros, ONG’s, vereadores e<br />
representantes da Prefeitura Municipal <strong>de</strong> Fortaleza. Encerraram-se as ativida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>ste ano com a realização <strong>de</strong> Encontros Temáticos e a preparação para a<br />
realização do Congresso <strong>de</strong> Constituição do Comitê da Bacia Metropolitana no ano<br />
<strong>de</strong> 2002. Neste ano, foi realizado em julho <strong>de</strong> 2002 o Congresso <strong>de</strong> constituição<br />
on<strong>de</strong> foi aprovado o regimento e eleitos os membros <strong>de</strong>ste colegiado. Para esta<br />
primeira gestão ficou <strong>de</strong>finida a participação <strong>de</strong> 60 membros, com representantes da<br />
socieda<strong>de</strong> civil, usuários, municípios e órgãos públicos fe<strong>de</strong>rais e estaduais.<br />
Esse longo período <strong>de</strong> organização do Comitê da Bacia Metropolitana –<br />
CBH justifica-se pela: complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa região; <strong>de</strong>ficiência hídrica <strong>de</strong> suporte às<br />
ativida<strong>de</strong>s econômicas e humanas da bacia, tornando-a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> outras<br />
bacias; bem como pela diversida<strong>de</strong> dos usuários existentes e o gran<strong>de</strong> contingente<br />
populacional da Região Metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza, o que ocasionou diversos<br />
conflitos entre as partes envolvidas na constituição do Comitê.<br />
O Curso <strong>de</strong> Capacitação em Recursos Hídricos ocorreu nos dias 20 e 21 <strong>de</strong><br />
outubro <strong>de</strong> 2003 no auditório da COGERH em Fortaleza. Na seqüência <strong>de</strong>ste<br />
evento, na tar<strong>de</strong> do dia 21 <strong>de</strong> outubro, ocorreu também a eleição da 1ª Diretoria do<br />
Comitê. A Reunião <strong>de</strong> Instalação do Comitê das Bacias Hidrográficas<br />
Metropolitanas, só ocorreu dia 30/09/2003. Nesta oportunida<strong>de</strong> foi realizada a posse<br />
da primeira Diretoria Executiva do Comitê, que ficou composta por Thomaz Antônio<br />
Sidrim Carvalho (Presi<strong>de</strong>nte), Maria Zita Timbó Araújo (Vice-Presi<strong>de</strong>nte), Andréia<br />
Cristiane Lante (Secretária Geral) e Maria <strong>de</strong> Fátima Maia Chaves (Secretária<br />
Adjunta).<br />
6.7 . Gerenciamento dos Recursos Hídricos no Estado do Ceará<br />
Gestão dos Recursos hídricos seria:<br />
116<br />
Uma ativida<strong>de</strong> analítica e criativa voltada à formulação <strong>de</strong> princípios e<br />
diretrizes, ao preparo <strong>de</strong> documentos orientadores e normativos, a
117<br />
estruturação <strong>de</strong> sistemas gerenciais e a tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões que tem por<br />
objetivo final promover o inventario, uso, controle e proteção das águas.<br />
(LANNA, 1997 apud LINS, 2008)<br />
Com base no trabalho <strong>de</strong> LINS (2008, p. 21) observamos que o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />
gestão das águas no Ceará segue a referência do mo<strong>de</strong>lo francês (o Estado como<br />
responsável pelo gerenciamento das águas) e foi um dos primeiros do país a<br />
formular o Plano Estadual <strong>de</strong> Recursos Hídricos, servindo <strong>de</strong> base inclusive para o<br />
Plano Nacional <strong>de</strong> Gestão das Águas Brasileiras. Contudo, ao mesmo tempo em<br />
que é consi<strong>de</strong>rado avançado, esse mo<strong>de</strong>lo é aplicado <strong>de</strong> maneira “socialmente<br />
exclu<strong>de</strong>nte e territorialmente seletiva” (p. <strong>23</strong>), ou seja, a implantação dos projetos<br />
beneficia áreas já com gran<strong>de</strong> potencial hídrico e, contraditoriamente, <strong>de</strong>ixa gran<strong>de</strong><br />
parte da população sem o acesso a essa água, seja pela falta <strong>de</strong> condições<br />
financeiras para dar o tratamento necessário à “água bruta” ou mesmo pelo alto<br />
valor cobrado por essa água aos consumidores. Hoje o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> gestão se<br />
aproxima muito mais do mo<strong>de</strong>lo inglês (gerenciamento misto - Estado e empresas<br />
privadas), por conta da agudização das políticas neoliberais no Brasil iniciado em<br />
meados da década <strong>de</strong> 90. A água, ao ser transformada em recurso hídrico e ao<br />
adquirir um valor econômico, passa a ser vista como fonte <strong>de</strong> riquezas, ou seja, um<br />
meio <strong>de</strong> produção importante para elaboração <strong>de</strong> mercadoria, já que também passa<br />
a ser uma mercadoria com valor econômico. Seu uso é agenciado pelo Estado e por<br />
empresas privadas (p. 39).<br />
No Brasil <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1930 ensaia-se um gerenciamento dos recursos hídricos no<br />
qual o Estado é o gestor, porém isso só é concretizado em 1990 com o Plano<br />
Nacional <strong>de</strong> Recursos Hídricos, baseados no mo<strong>de</strong>lo francês. As principais<br />
características do mo<strong>de</strong>lo francês <strong>de</strong> gestão dos recursos hídricos são: o<br />
planejamento integrado em <strong>de</strong>trimento do setorial; a adoção da bacia hidrográfica<br />
como unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> planejamento e gestão; a tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões em órgãos<br />
colegiados formados por representantes do po<strong>de</strong>r público, privado e da socieda<strong>de</strong><br />
civil. (p. 51). O mo<strong>de</strong>lo francês apesar <strong>de</strong> constituir um dos mais avançados do<br />
mundo é referência em muitos países, entre os quais o Brasil, mesmo em tese<br />
reconhecendo a água como patrimônio comum da nação, adota tais medidas<br />
apenas para mascarar a formação <strong>de</strong> mercado <strong>de</strong> águas no país, balizado pelas<br />
parcerias público-privadas. Isso, a exemplo da França também passou a ocorrer nos
países que copiaram o mo<strong>de</strong>lo, on<strong>de</strong> a água po<strong>de</strong> ser utilizada, poluída e<br />
<strong>de</strong>gradada, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se “pague por ela”.<br />
É a partir da Carta <strong>de</strong> Foz do Iguaçu, aprovada em Assembléia Geral<br />
durante o VII Simpósio Brasileiro <strong>de</strong> Recursos Hídricos em 1989, que se <strong>de</strong>fine três<br />
pontos importantes no que diz respeito aos recursos hídricos no Brasil. Primeiro, que<br />
a unida<strong>de</strong> básica <strong>de</strong> gestão seria a bacia hidrográfica; segundo, que a<br />
indissociabilida<strong>de</strong> entre quantida<strong>de</strong> e qualida<strong>de</strong> seriam levadas em conta; por fim o<br />
terceiro, que o uso da água <strong>de</strong>ve ser cobrado para garantir o “uso racional” – surge<br />
aí a idéia <strong>de</strong> usuário-pagador.<br />
De acordo com Lins (2008) o discurso <strong>de</strong> que a partir da cobrança pela água<br />
se atingiria o uso racional da água não se realiza, pois na realida<strong>de</strong> o valor cobrado<br />
é irrisório para os gran<strong>de</strong>s produtores e muitos <strong>de</strong>les possuem isenção fiscal e não<br />
pagam a tarifa <strong>de</strong> água. Os principais atingidos pela cobrança da água são as<br />
comunida<strong>de</strong>s ribeirinhas dos gran<strong>de</strong>s reservatórios (açu<strong>de</strong>s e canais) que não tem<br />
condições <strong>de</strong> pagar por ela. A tese do uso racional mediante cobrança não passa <strong>de</strong><br />
um discurso i<strong>de</strong>ológico com intuito <strong>de</strong> mascarar a formação <strong>de</strong> um mercado <strong>de</strong><br />
águas mediante a implementação da mentalida<strong>de</strong> do uso racional.<br />
Para Lins (2008, p. 76) os Comitês <strong>de</strong> Bacia são peça-chave do sistema <strong>de</strong><br />
gestão dos recursos hídricos e têm como objetivo integrar institucionalmente os<br />
diferentes interesses existentes na bacia. “Servem como órgão mediador <strong>de</strong><br />
conflitos, arbitram em primeira instância e geram acordos que permitem explorar os<br />
recursos hídricos <strong>de</strong> forma “harmônica”. Conforme <strong>de</strong>finição da Agência Nacional<br />
das Águas (ANA, 2005 apud LINS, 2008) a principal atribuição do Comitê <strong>de</strong> Bacia<br />
seria <strong>de</strong>bater sobre questões relacionadas aos recursos hídricos e articular a<br />
atuação das entida<strong>de</strong>s intervenientes; arbitrar, em primeira instância, os conflitos<br />
referentes aos recursos hídricos; aprovar e acompanhar a execução do Plano <strong>de</strong><br />
Recursos Hídricos da Bacia e sugerir as providências necessárias ao cumprimento<br />
das metas; propor ao Conselho Nacional e aos Conselhos Estaduais <strong>de</strong> Recursos<br />
Hídricos as acumulações, <strong>de</strong>rivações, captações e lançamentos <strong>de</strong> pouca<br />
expressão, para efeito <strong>de</strong> uso dos recursos hídricos, e sugerir os valores a serem<br />
cobrados; estabelecer critérios e promover rateio <strong>de</strong> custo das obras <strong>de</strong> múltiplo uso,<br />
<strong>de</strong> interesse comum ou coletivo. Há posicionamentos diversos com relação aos<br />
Comitês <strong>de</strong> Bacia. De um lado há os que dizem ser um avanço a sua constituição<br />
por abarcar ampla participação <strong>de</strong> setores da socieda<strong>de</strong>, por outro lado, estudiosos<br />
118
dizem que os comitês são um retrocesso, pois a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> interesses dos agentes<br />
possuidores <strong>de</strong> capital é hegemônica ao lado do Estado como seu con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte,<br />
em total prejuízo dos interesses <strong>de</strong> irrigantes, ribeirinhos, vazanteiros etc.<br />
O Estado do Ceará foi pioneiro tanto na criação <strong>de</strong> uma companhia <strong>de</strong><br />
gestão das águas, como na criação <strong>de</strong> um Comitê <strong>de</strong> Bacias Hidrográficas (CBHs).<br />
O sistema <strong>de</strong> gerenciamento dos recursos hídricos no estado do Ceará foi<br />
<strong>de</strong>scentralizado do DNOCS e atualmente está integrado a Secretaria dos Recursos<br />
Hídricos (SRH), criada em 1987. A secretaria, além <strong>de</strong> tentar promover o uso<br />
racional e integrado dos recursos hídricos, é encarregada, também, <strong>de</strong> gerenciar e<br />
operacionalizar estudos, pesquisas, programas, projetos e serviços associados à<br />
água. A Sohidra 17 , órgão subordinado ao DNOCS (Ceará) e a SRH, foi criada<br />
justamente para aten<strong>de</strong>r a essas <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> execução <strong>de</strong> obras no estado. Para<br />
aten<strong>de</strong>r as necessida<strong>de</strong>s do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> pesquisas no campo dos recursos<br />
hídricos superficiais e subterrâneos e à prestação <strong>de</strong> serviços a empresas privadas,<br />
foi reestruturado a Funceme 18 , antigo órgão do estado. Para encerrar o quadro <strong>de</strong><br />
gestão dos recursos hídricos no estado do Ceará foi estabelecido em 1992 o Plano<br />
Estadual <strong>de</strong> Recursos Hídricos e o Sistema <strong>de</strong> Gestão dos Recursos Hídricos<br />
(Sigerh), que no caso abarca todos os órgãos já citados e diretamente subordinados<br />
a Agência Nacional das Águas (ANA).<br />
Com informações obtidas a partir do trabalho <strong>de</strong> Lins (2008) vemos que a<br />
Sigerh foi instituída em 1992, contudo só passa a operar em 1993 quando o estado<br />
cria a Cogerh com forte apoio do Banco Mundial, que está por trás do financiamento<br />
dos principais projetos e programas associados ao gerenciamento dos recursos<br />
hídricos no Estado do Ceará, conseqüentemente o maior interessado na<br />
privatização <strong>de</strong>sses recursos para formação do mercado <strong>de</strong> águas. É a Cogerh a<br />
responsável pela cobrança e outorga para captação <strong>de</strong> água bruta. Como instituição<br />
encarregada <strong>de</strong> gerenciar os recursos hídricos <strong>de</strong> domínio do Estado, a Cogerh<br />
<strong>de</strong>ve atuar <strong>de</strong> acordo com três princípios básicos, que seriam a integração (com a<br />
população e com as instituições encarregadas da gestão), a <strong>de</strong>scentralização<br />
(tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>mocrática) e a participação (se daria pela<br />
17<br />
SOHIDRA, órgão executor da SRH e do DNOCS (Ceara), responsável pela construção <strong>de</strong> açu<strong>de</strong>s,<br />
barragens, adutoras, poços, entre outros.<br />
18<br />
A Funceme foi criada em 1972, sob a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> Fundação Cearense <strong>de</strong> Meteorologia e<br />
Chuvas Artificiais, e era vinculada a Secretaria <strong>de</strong> Agricultura e Abastecimento.<br />
119
implantação dos Comitês <strong>de</strong> Bacia, on<strong>de</strong> se encontram os principais atores<br />
envolvidos na gestão: Estado e usuários da água) 19 .<br />
O Banco Mundial através do projeto piloto, chamado Águas do Ceará que<br />
abarca uma série <strong>de</strong> sub-projetos <strong>de</strong> caráter estrutural e não-estrutural 20 na gestão<br />
dos recursos hídricos do estado, está transformando o território cearense num<br />
verda<strong>de</strong>iro laboratório <strong>de</strong> programas, todos no intento <strong>de</strong> subverter o controle dos<br />
recursos hídricos do estado. Os objetivos do projeto piloto seriam:<br />
A garantia da disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> água do território cearense que permita o<br />
abastecimento urbano-industrial e da produção hidro-agrícola, através <strong>de</strong> uma<br />
re<strong>de</strong> <strong>de</strong> açu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s portes interligada a um conjunto <strong>de</strong> açu<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
médio e gran<strong>de</strong> portes;<br />
O sistema <strong>de</strong> transferência <strong>de</strong> água baseado em adutoras, canais e<br />
perenização <strong>de</strong> rios;<br />
O uso da água subterrânea com o objetivo <strong>de</strong> substituir as políticas<br />
emergenciais no combate às secas.<br />
Esse projeto da mesma forma que outros como o Programa <strong>de</strong><br />
Desenvolvimento Sustentável do Semi-Árido Brasileiro (Proágua), Programa <strong>de</strong><br />
Água Subterrânea e Investigação <strong>de</strong> Subsolo e Programa <strong>de</strong> Apoio ao Saneamento<br />
Integrado do Sertão (Proásis) etc. apresentam discursos semelhantes em seus<br />
objetivos como: proporcionar o uso racional e igualitário da água e o<br />
“<strong>de</strong>senvolvimento sustentável” das comunida<strong>de</strong>s; ou apoiar as comunida<strong>de</strong>s do<br />
sertão no relacionado ao saneamento básico e ao abastecimento d’água mediante<br />
aproveitamento da água subterrânea do Ceara, mas no geral não proporcionam um<br />
<strong>de</strong>senvolvimento sustentável à população cearense, mas sim um <strong>de</strong>senvolvimento<br />
sustentado nas bases capitalistas <strong>de</strong> produção 21 , socialmente exclu<strong>de</strong>nte,<br />
territorialmente seletivo e ambientalmente insustentável.<br />
O Subprograma <strong>de</strong> Gerenciamento e Integração dos Recursos Hídricos<br />
(Progerirh) foi implantado no ano <strong>de</strong> 2000, em substituição ao Prourb – RH e tem<br />
19 Cf. LINS, 2008.<br />
20 As medidas estruturais são as que estão diretamente ligadas aos sistemas <strong>de</strong> engenharia, através<br />
da construção <strong>de</strong> objetos artificiais como açu<strong>de</strong>s, barragens, adutoras, canais, entre outros. Já as<br />
medidas não-estruturais, são as que atuam na implantação e no gerenciamento das estruturas,<br />
através <strong>de</strong> programas e projetos que auxiliam no controle do uso da água. (CAMPOS, 2001 apud<br />
LINS 2008 p. 1<strong>12</strong>).<br />
21 Cf. LINS, p. 97.<br />
<strong>12</strong>0
como meta principal a interligação das bacias hidrográficas do Estado mediante<br />
construção <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> açu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte.<br />
<strong>12</strong>1
7. AÇUDE FIGUEIREDO: DA AMEAÇA À CONCRETIZAÇÃO DA<br />
EXCLUSÃO TERRITORIAL! (COMUNIDADES LAPA E BOA<br />
ESPERANÇA)<br />
O Governo brasileiro vem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a época da ditadura militar com gran<strong>de</strong>s<br />
projetos e programas estatais para dinamizar e dar estrutura suficiente ao território.<br />
Os exemplos mais marcantes foram as construções <strong>de</strong> usinas hidrelétricas, sendo a<br />
maior Itaipu, além <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s empresas <strong>de</strong> exploração mineral, como a Vale do Rio<br />
Doce e a Petrobrás, entre outras. Hoje, o Governo Fe<strong>de</strong>ral mantém ações políticas<br />
voltadas às gran<strong>de</strong>s obras e programas, que segundo seus artífices, são feitas<br />
principalmente para beneficiar a vida <strong>de</strong> populações rurais que vivem em pequenas<br />
unida<strong>de</strong>s isoladas <strong>de</strong> povoamento, organizando-se em vilas ou, como chamaremos,<br />
em comunida<strong>de</strong>s.<br />
Utilizaremos como recorte da área <strong>de</strong> estudo no Projeto <strong>de</strong> <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Campo</strong>, a Barragem Figueiredo, localizada no município <strong>de</strong> Alto Santo (leste do<br />
estado do Ceará), unindo-se as obras da Transposição do Rio São Francisco,<br />
consi<strong>de</strong>rada como um gran<strong>de</strong> “fixo”, sob gestão do Departamento Nacional <strong>de</strong> Obras<br />
Contra as Secas (DNOCS), financiada pelo PAC e sob a responsabilida<strong>de</strong> do<br />
Ministério da Integração Nacional. A Barragem tem como objetivo principal a<br />
perenização do Rio Figueiredo, contribuindo para o Canal da Integração, agindo<br />
<strong>de</strong>ssa forma, como ponto <strong>de</strong> controle da vazão <strong>de</strong> drenagem.<br />
Assim, começamos a salientar os processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorialização22 e<br />
reterritorialização que ocorrem <strong>de</strong>vido a essa obra. No seu entorno se materializa<br />
um processo <strong>de</strong> constituição e afirmação da luta da resistência, em forma <strong>de</strong><br />
ocupações dos canteiros <strong>de</strong> obras, realização <strong>de</strong> passeatas, atos públicos etc., que<br />
<strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra <strong>de</strong>marcam posição contrária à opressão neoliberal e se<br />
contrapõem.<br />
22 Como po<strong>de</strong>mos ver no livro <strong>de</strong> Rogério Haesbaert, O Mito da Desterritorialização, o autor <strong>de</strong>ixa<br />
bem claro que o conceito <strong>de</strong> “<strong>de</strong>sterritorialização” “<strong>de</strong>ve ser aplicada a fenômenos <strong>de</strong> efetiva<br />
instabilida<strong>de</strong> ou fragilização territorial, principalmente em grupos socialmente mais excluídos e/ou<br />
profundamente segregados”, portanto sendo o caso das comunida<strong>de</strong>s atingidas pela Barragem<br />
Figueiredo. (HAESBAERT,2004,p.3<strong>12</strong>).<br />
<strong>12</strong>2
Segundo HAESBAERT (2004,p.<strong>12</strong>7), este “movimento” <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorializar e<br />
reterritorializar consiste em<br />
1<strong>23</strong><br />
Simplificadamente, po<strong>de</strong>mos afirmar que a <strong>de</strong>sterritorialização é o<br />
movimento pelo qual se abandona o território, “é a operação da linha <strong>de</strong><br />
fuga”, e a reterritorialização é o movimento <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> território<br />
(Deleuze e Guattari, 1997b:224); no primeiro movimento, os agenciados se<br />
<strong>de</strong>sterritorializam e, no segundo, eles se reterritorializam como novos<br />
agenciamentos maquínicos <strong>de</strong> corpos e coletivos <strong>de</strong> enunciação.<br />
Neste contexto po<strong>de</strong>mos observar que a <strong>de</strong>sterritorialização que ocorre no<br />
lócus <strong>de</strong> estudo está ligada não só a um território político-econômico, mas também<br />
social, pois comunida<strong>de</strong>s e suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s culturais estão presentes na área do<br />
conflito. Por este viés po<strong>de</strong>mos notar então que a <strong>de</strong>sterritorialização ocorrerá <strong>de</strong><br />
forma concreta no local, pois as famílias ameaçadas <strong>de</strong>verão ser expulsas e/ou<br />
<strong>de</strong>slocadas e per<strong>de</strong>rão seu vínculo com a terra, na qual já possuíam i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
territorial enraizada. Porém, <strong>de</strong>vido a isso, po<strong>de</strong> ocorrer o que é <strong>de</strong>nominado <strong>de</strong> (re)<br />
territorialização, sendo um movimento contrário e subseqüente ao da<br />
<strong>de</strong>sterritorialização, no qual os afetados se organizariam e lutariam contra a<br />
opressão do capital (sendo esse capital subsidiado pelo Estado). Assim, po<strong>de</strong>mos<br />
dizer, <strong>de</strong> forma geral, que a materialização <strong>de</strong>ste novo “território <strong>de</strong> luta” são<br />
representados pelos movimentos sociais, mais especificamente nesse caso, o MAB-<br />
Nor<strong>de</strong>ste <strong>23</strong> .<br />
Uma questão que <strong>de</strong>vemos <strong>de</strong>stacar <strong>de</strong> antemão é a particularida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
nossa área <strong>de</strong> estudo em relação às <strong>de</strong>mais. Para a construção da Barragem<br />
Figueiredo <strong>de</strong>verão ser retiradas e posteriormente realocadas, famílias <strong>de</strong> duas<br />
comunida<strong>de</strong>s que serão atingidas <strong>de</strong>vido ao alagamento e formação do açu<strong>de</strong>,<br />
sendo essas as comunida<strong>de</strong>s da Lapa e Boa Esperança, localizadas nas cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
Potiretama e Iracema, respectivamente. Sendo assim, enten<strong>de</strong>-se que elas serão<br />
ameaçadas e, portanto, para melhor compreensão, segue a diferenciação<br />
encontrada em campo entre os conceitos <strong>de</strong> ‘ameaçados’ e ‘atingidos’ presentes<br />
neste contexto. Ameaçadas são as pessoas que se vêem na condição <strong>de</strong> não<br />
possuir a garantia <strong>de</strong> continuarem a viver em suas casas, em suas proprieda<strong>de</strong>s. Ou<br />
seja, possuem um futuro incerto, haja vista não po<strong>de</strong>r exercer qualquer ativida<strong>de</strong><br />
ligada a agricultura, a pecuária, construção ou reforma <strong>de</strong> suas casas. Não somente<br />
por este tocante, o conceito <strong>de</strong> ameaçados abarca também um conjunto <strong>de</strong> ações e<br />
<strong>23</strong> MAB- Movimento dos Atingidos por Barragem.
pressões psicológicas sofridas pelos mesmos, dada a maneira como o DNOCS se<br />
relaciona com a população, enviando representantes a essas comunida<strong>de</strong>s que,<br />
muitas vezes, já não recebem informações a<strong>de</strong>quadas sobre os acontecimentos e<br />
procedimentos a serem tomados em <strong>de</strong>trimento da construção a ser realizada,<br />
fazendo com que esses representantes sejam vistos como fiscais e não como<br />
transmissores <strong>de</strong> informações.<br />
Sob um preâmbulo diferente, os afetados são aqueles que, <strong>de</strong> algum modo,<br />
per<strong>de</strong>ram seu patrimônio e in<strong>de</strong>nizados ou não, tiveram que partir, direcionar-se<br />
para outro local, <strong>de</strong>ixando a mercê do capital e do Estado, suas origens, seu<br />
passado e sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com a terra. Não levando em consi<strong>de</strong>ração o passado dos<br />
povos realocados, as águas inva<strong>de</strong>m suas casas, as barragens se concretizam em<br />
suas terras e os canais se fazem presentes em seus.<br />
O “sonho <strong>de</strong> progresso” <strong>de</strong>u-se <strong>de</strong> forma bastante conhecida no nor<strong>de</strong>ste<br />
<strong>de</strong>vido à política <strong>de</strong> implantação <strong>de</strong> medidas assistencialistas em combate à seca e<br />
a favor do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sta parcela do país, sobretudo com propostas <strong>de</strong><br />
reformas estruturais que vão <strong>de</strong> encontro com o po<strong>de</strong>r capitalista, com as empresas<br />
privadas e o setor público, mascarando seus interesses econômicos<br />
propagan<strong>de</strong>ando a ajuda e o <strong>de</strong>senvolvimento do povo nor<strong>de</strong>stino.<br />
7.1 . A problemática da água<br />
Partindo <strong>de</strong>ssa premissa, e focados no Nor<strong>de</strong>ste brasileiro, faremos análise<br />
<strong>de</strong> alguns aspectos intrínsecos à construção do Canal da Integração e assim, da<br />
Barragem Figueiredo, frutos do atual mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> gestão dos recursos hídricos no<br />
estado do Ceará. Consi<strong>de</strong>rado um dos mais avançados do mundo por adotar o<br />
mo<strong>de</strong>lo francês como referência e ser um dos primeiros a formular um Plano<br />
Estadual <strong>de</strong> Recursos Hídricos, servindo <strong>de</strong> base ao Plano Nacional <strong>de</strong> Gestão das<br />
Águas Brasileiras, o plano está baseado na <strong>de</strong>scentralização, na integração e na<br />
participação, aliás, instrumentos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> extensão i<strong>de</strong>ológica e eficiência para o<br />
controle social.<br />
<strong>12</strong>4
É por isso que quando analisamos tal mo<strong>de</strong>lo (tanto na teoria – legislação –<br />
quanto na prática), observamos várias contradições. Ao mesmo tempo em que se<br />
mostra avançado é aplicado <strong>de</strong> maneira socialmente exclu<strong>de</strong>nte e, portanto,<br />
territorialmente seletivo por privilegiar certos pontos do estado, sendo estes<br />
geralmente os <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> maior potencial hídrico ou aqueles com uma gran<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>manda por <strong>de</strong>ste recurso (como por exemplo, o Baixo Acarau e o Baixo<br />
Jaguaribe) e socialmente exclu<strong>de</strong>nte pelo fato <strong>de</strong> que nem toda a população é<br />
beneficiada pela implantação <strong>de</strong>ssas políticas públicas, mesmo localizadas próximas<br />
a essas áreas.<br />
Esse mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> gestão “ressalta as transformações abruptas no território <strong>de</strong><br />
on<strong>de</strong> surgem conflitos entre a condição arcaica e a pretensa face mo<strong>de</strong>rnizante, com<br />
objetivo <strong>de</strong> implantar meios para a flui<strong>de</strong>z territorial. Isso se realizou com <strong>de</strong>cisões<br />
políticas favoráveis aos setores produtivos: fruticultura, turismo, serviços e indústria”,<br />
(QUINTILIANO, 2008). Essa ligação na qual as ações <strong>de</strong> Estado beneficiam o setor<br />
privado tem como resultado uma série <strong>de</strong> transformações que repercutem no<br />
território do Ceará, dando origem a uma reestruturação territorial. Há, <strong>de</strong>ssa forma,<br />
uma reorganização socioespacial, realizada sobre estruturas arcaicas que são alvo<br />
da retórica e das ações das políticas públicas en<strong>de</strong>reçadas para viabilizarem a<br />
mo<strong>de</strong>rnização econômica.<br />
A cada dia, o estado do Ceará busca tornar-se mais dinâmico através do<br />
redirecionamento dos recursos governamentais para a instalação <strong>de</strong> novos sistemas<br />
<strong>de</strong> infra-estrutura relacionados principalmente ao abastecimento <strong>de</strong> água, como<br />
exemplo, o próprio Canal da Integração, que <strong>de</strong> maneira bastante significativa<br />
culminará em avanços especiais para agricultura servindo <strong>de</strong> aporte extremamente<br />
necessário para a irrigação assim como para a indústria, aquecendo sobremaneira o<br />
potencial <strong>de</strong> exportação do Complexo Industrial do Porto do Pecém. Sobre esta<br />
prerrogativa, seria involuntário comentar que assim como o comércio, outras formas<br />
<strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s terciárias serão impactadas positivamente, refletindo uma conjuntura<br />
que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> meados da década <strong>de</strong> 80, vêm sendo baseada prepon<strong>de</strong>rantemente no<br />
estímulo ao consumo <strong>de</strong> bens materiais e conseqüentemente <strong>de</strong> recursos naturais,<br />
<strong>de</strong>ntre os quais o mais importante e <strong>de</strong>sejado, a água.<br />
Sendo a água o mais importante elemento natural por estar ligada<br />
diretamente à sobrevivência humana e à realização das mais diversas ativida<strong>de</strong>s<br />
(seja no processo produtivo, seja como componente do produto final), <strong>de</strong>vido à<br />
<strong>12</strong>5
situação climática do Estado do Ceará, sua escassez relativa foi por muito tempo<br />
consi<strong>de</strong>rada um empecilho ao <strong>de</strong>senvolvimento da economia local. Ao longo do<br />
tempo, diversas ações foram <strong>de</strong>senvolvidas com o objetivo <strong>de</strong> sanar tal “problema”,<br />
todavia privilegiaram os segmentos sociais que já tinham acesso, numa clara<br />
inversão <strong>de</strong> valores, mas do ponto <strong>de</strong> vista i<strong>de</strong>ológico amparada nos interesses dos<br />
novos ditames do coronelismo e da estrutura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r local.<br />
Atualmente, existe uma gran<strong>de</strong> movimentação <strong>de</strong> empresas transnacionais<br />
que buscam controlar as fontes <strong>de</strong> água potável do mundo, chamada <strong>de</strong> “Ouro Azul.<br />
Tal como ocorreu com outros elementos da natureza (como por exemplo, o<br />
petróleo), a água, <strong>de</strong> elemento natural, foi transformada em recurso hídrico. A ela foi<br />
agregada o valor <strong>de</strong> uso e valor <strong>de</strong> troca, passando <strong>de</strong> elemento natural à categoria<br />
<strong>de</strong> mercadoria. Assim, foi convencionada certa diferenciação entre a água e o<br />
chamado recurso hídrico. Enquanto o primeiro termo diz respeito ao elemento<br />
natural, o segundo diz respeito à água como um recurso necessário à produção e<br />
daí sua consi<strong>de</strong>ração como um bem econômico. De acordo com Fracalanza (2005,<br />
p.<strong>23</strong>):<br />
<strong>12</strong>6<br />
A distinção entre a água utilizada para suprimento <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s<br />
essenciais dos organismos vivos e a água utilizada para suprir<br />
necessida<strong>de</strong>s do <strong>Home</strong>m permite que se refira à água <strong>de</strong> duas formas<br />
diferentes: o elemento natural água, necessário a manutenção da vida e dos<br />
seres vivos; e o recurso hídrico, apropriado pelo <strong>Home</strong>m como um meio<br />
para se atingir um fim, nas ativida<strong>de</strong>s que envolvem trabalho.<br />
Tal mercantilização da água que ocorre em escala internacional associada à<br />
diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus possíveis usos e sua distribuição pelo território, não é<br />
equânime. Ou seja, sua distribuição natural muitas vezes não correspon<strong>de</strong> à sua<br />
distribuição política, como é o exemplo do Brasil, possuidor <strong>de</strong> 53% da reserva<br />
hídrica da América Latina e 20% da reserva mundial. Porém, estão mal distribuídas<br />
nacionalmente, tendo em vista que 75% dos mananciais estão na Região Norte,<br />
on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong>m menos <strong>de</strong> 10% da população, enquanto que 28% dos resi<strong>de</strong>ntes na<br />
Região Nor<strong>de</strong>ste dispõem <strong>de</strong> apenas 3,3% da disponibilida<strong>de</strong> hídrica do país,<br />
fazendo com que a água passe a ser fonte <strong>de</strong> inúmeros conflitos motivados por essa<br />
<strong>de</strong>sigual distribuição. Sem contar o aumento do consumo da água tendo como<br />
conseqüência o aumento no seu preço, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ando novos conflitos voltados<br />
para a esfera por seu uso.
7.2 . O papel do Governo/Estado e das políticas públicas<br />
Após as abordagens políticas relacionadas à gestão da água no estado do<br />
Ceará, daremos prosseguimento ao nosso recorte <strong>de</strong> estudo, a Barragem Figueiredo<br />
e as comunida<strong>de</strong>s a serem afetadas, isto por tratar-se <strong>de</strong> uma obra sob<br />
responsabilida<strong>de</strong> do DNOCS em parceria com o Ministério <strong>de</strong> Integração Nacional e<br />
por fazer parte das obras do projeto <strong>de</strong> transposição ou Interligação da Bacia do<br />
São Francisco às Bacias do Nor<strong>de</strong>ste Setentrional, requer que realizemos algumas<br />
mediações.<br />
Por décadas o gerenciamento dos recursos hídricos do Estado do Ceará<br />
ficou sob responsabilida<strong>de</strong> do DNOCS, mas suas ações eram limitadas à<br />
construção <strong>de</strong> fixos (açu<strong>de</strong>s, barragens, cisternas e poços artesianos), implantados<br />
sem as <strong>de</strong>vidas adaptações às particularida<strong>de</strong>s locais, sejam elas ambientais ou<br />
socioeconômicas. Atualmente o Estado é responsável pela implantação <strong>de</strong> infraestruturas<br />
associadas ao abastecimento <strong>de</strong> água, a partir <strong>de</strong> programas como<br />
“Águas do Ceará”, dotado <strong>de</strong> subprogramas que atuam diretamente na gestão dos<br />
recursos hídricos do Ceará mediante introdução <strong>de</strong> medidas estruturais e nãoestruturais.<br />
Este programa conta com o financiamento do Banco Mundial, um dos<br />
principais credores da política <strong>de</strong> gestão das águas cearenses e um dos mais<br />
interessados nos lucros <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> uma possível e futura privatização da água.<br />
Entre esses subprogramas está o Programa <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />
Sustentável do Semi-Árido Brasileiro (Proágua), que <strong>de</strong> acordo com a Secretaria <strong>de</strong><br />
Recursos Hídricos do Ceará (SRH), é <strong>de</strong>senvolvido no estado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ano <strong>de</strong> 1998<br />
e objetiva garantir a oferta <strong>de</strong> água para o semi-árido brasileiro. Esse subprograma<br />
<strong>de</strong>senvolve ações com o objetivo <strong>de</strong> fortalecer a Secretaria Estadual <strong>de</strong> Recursos<br />
Hídricos, mediante criação <strong>de</strong> cadastro <strong>de</strong> usuários e execução da outorga e da<br />
cobrança pela captação da água. Desenvolve-se ainda ações <strong>de</strong> cunho estrutural,<br />
voltadas à implantação <strong>de</strong> obras prioritárias <strong>de</strong>stinadas a perenização dos corpos<br />
hídricos, a perfuração <strong>de</strong> poços e a implantação <strong>de</strong> adutoras.<br />
Um dos principais objetivos do Proágua é proporcionar o uso racional e<br />
igualitário da água e o “<strong>de</strong>senvolvimento sustentável” das comunida<strong>de</strong>s abarcadas<br />
<strong>12</strong>7
por ele. Porém, em nove anos <strong>de</strong> projeto, apenas treze adutoras foram implantadas<br />
em pontos estratégicos do estado do Ceará como, por exemplo, os pólos agrícolas e<br />
industriais em regiões on<strong>de</strong> a carcinicultura está começando a ser <strong>de</strong>senvolvida no<br />
Ceará. Assim, o Proágua não proporciona realmente um <strong>de</strong>senvolvimento<br />
sustentável, ao contrário, ele sustenta o interesse capitalista, abrindo espaço para a<br />
<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> socioeconômica local.<br />
Já o subprograma Proásis (Programa <strong>de</strong> Água Subterrânea e Investigação<br />
<strong>de</strong> Subsolo e Programa <strong>de</strong> Apoio ao Saneamento Integrado do Sertão), <strong>de</strong> acordo<br />
com a SRH (2002, p.34), tem como objetivo apoiar as comunida<strong>de</strong>s do sertão no<br />
tocante ao saneamento básico e ao abastecimento d’água, mediante o<br />
aproveitamento da água subterrânea do Ceará via recuperação, construção e<br />
instalação <strong>de</strong> poços e <strong>de</strong>ssalinizadores. Nesse subprograma merece <strong>de</strong>staque a<br />
instalação dos chamados “poços pioneiros”, perfurados em regiões sedimentares,<br />
com profundida<strong>de</strong> entre 600 e 900 m, oferecendo, assim, água potável para as<br />
comunida<strong>de</strong>s rurais com a mesma disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um açu<strong>de</strong> <strong>de</strong> médio porte.<br />
Para a SRH, esses poços, comparados a uma barragem, possuem as seguintes<br />
vantagens:<br />
A água subterrânea encontrada nos poços existentes é em sua maioria potável;<br />
A evaporação é zero;<br />
O custo é cinco vezes inferior a construção <strong>de</strong> uma barragem com igual vazão;<br />
Não há impactos ambientais nem sociais;<br />
A água não cobre o solo fértil.<br />
Aqui cabe salientar algumas diferenças, tais como, <strong>de</strong> maneira oposta às<br />
barragens, esse tipo <strong>de</strong> construção, se edificados <strong>de</strong> forma correta, <strong>de</strong>tonará<br />
impactos ambientais ínfimos em relação a uma barragem. Primeiro porque as áreas<br />
utilizadas são pequenas, diferentemente da extensão <strong>de</strong> uma barragem, que além<br />
<strong>de</strong> gerar impactos ambientais, também atinge o aspecto social, fato abordado no<br />
presente texto quando referimos as comunida<strong>de</strong>s que serão realocadas para outras<br />
áreas.<br />
Depois o custo da construção é extremamente baixo e o prazo <strong>de</strong><br />
construção gira em torno <strong>de</strong> três dias (contrapondo a construção <strong>de</strong> uma barragem<br />
que po<strong>de</strong> levar anos).<br />
<strong>12</strong>8
O Programa <strong>de</strong> Desenvolvimento Urbano e Gestão dos Recursos Hídricos<br />
(Prourb) foi o primeiro subprograma <strong>de</strong>senvolvido pelo estado do Ceará com o apoio<br />
do Banco Mundial. Iniciou-se no ano <strong>de</strong> 1995 com dois componentes básicos: um<br />
<strong>de</strong>stinado ao <strong>de</strong>senvolvimento urbano via Secretaria <strong>de</strong> Desenvolvimento Urbano, e<br />
outro referente ao fortalecimento da gestão dos recursos hídricos do Estado pela<br />
implantação <strong>de</strong> medidas estruturais (Prourb – RH). Concluído no ano <strong>de</strong> 2002, o<br />
subprograma teve como objetivo recuperar e construir barragens e adutoras em todo<br />
o território cearense, com ênfase nos vazios hídricos do Estado.<br />
Conforme estabelecido, o projeto <strong>de</strong>ste subprograma viabilizava construir 40<br />
novos açu<strong>de</strong>s e 46 adutoras no Estado do Ceará, no total <strong>de</strong> 456 km <strong>de</strong> extensão.<br />
Para isso, foram investidos aproximadamente US$ 140 milhões dos quais, 60%<br />
financiados pelo Banco Mundial. Finalizados no ano <strong>de</strong> 2002, os dois projetos<br />
concretizaram menos <strong>de</strong> 80% dos seus objetivos iniciais, pois dos 40 açu<strong>de</strong>s<br />
propostos, apenas 16 foram implantados e das 46 adutoras propostas, somente 25<br />
foram concluídas. Um dos motivos que levaram a não conclusão do Prourb – RH foi<br />
a centralização <strong>de</strong> investimentos na criação e execução <strong>de</strong> outro subprograma, o<br />
Progerirh, também financiado pelo Banco Mundial e que tem como base a<br />
construção <strong>de</strong> eixos <strong>de</strong> interligação <strong>de</strong> bacias hidrográficas.<br />
Devido às condições climáticas do Ceará, parte dos rios do estado são<br />
intermitentes, ou seja, apenas escoam água entre três a quatro meses em períodos<br />
chuvosos, porém estando em situações naturais adversas permanecem secos o ano<br />
inteiro. Além <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> concentração <strong>de</strong> água na época chuvosa, geralmente <strong>de</strong><br />
fevereiro a maio, o regime pluvial apresenta profunda irregularida<strong>de</strong> a cada ano. Não<br />
é rara a ocorrência <strong>de</strong> anos extremamente chuvosos ou secos <strong>de</strong>mais, com<br />
conseqüentes enchentes ou secas prolongadas. No Ceará, os recursos hídricos <strong>de</strong><br />
superfície se constituem na principal fonte <strong>de</strong> abastecimento humano, animal e<br />
agrícola.<br />
Assim, todas as obras são <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância para o melhor<br />
aproveitamento <strong>de</strong>sses recursos hídricos <strong>de</strong> superfície e para o “crescimento<br />
econômico” da Região Nor<strong>de</strong>ste e do Ceará. Contudo, pouco contribuirá para o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento econômico e principalmente social da população semi-árida<br />
nor<strong>de</strong>stina, consi<strong>de</strong>rando que tais obras estão sendo realizadas apenas com a<br />
intenção <strong>de</strong> favorecer uma pequena parcela da população, <strong>de</strong>tentora <strong>de</strong> capital,<br />
sobretudo os empresários vinculados ao agronegócio e interessados em usufruir <strong>de</strong><br />
<strong>12</strong>9
tais benefícios para potencializar e expandir seus investimentos e exercer o controle<br />
sobre os camponeses, trabalhadores em geral e <strong>de</strong>mais setores empobrecidos da<br />
população.<br />
A partir disso, observamos que as políticas públicas são responsáveis por<br />
gran<strong>de</strong>s contrastes sociais da região, alterando <strong>de</strong> forma singular o espaço habitado<br />
e remo<strong>de</strong>lando, sobretudo o território cearense, mediante planejamentos voltados a<br />
facilitar a reprodução do capital, acelerando seus novos usos juntamente com seus<br />
impactos e substituindo o meio natural e técnico, pelo meio técnico-científicoinformacional<br />
(SANTOS, 1996 e 2000), porquanto todos os lugares do mundo<br />
passam a “fabricar” e a conter os mesmos objetos geográficos, o que tornou o<br />
espaço cada vez mais mecanizado. Para Santos e Silveira (2001, p.52):<br />
7.3 . O açu<strong>de</strong> e as comunida<strong>de</strong>s<br />
130<br />
[...] o território ganha novos conteúdos e impõe novos comportamentos,<br />
graças às enormes possibilida<strong>de</strong>s da produção e, sobretudo, da circulação<br />
<strong>de</strong> insumos, dos produtos, do dinheiro, das idéias, das informações, das<br />
or<strong>de</strong>ns e dos homens.<br />
Nesse contexto, embora ainda em construção, os impactos da implantação<br />
do Canal da Integração e mais precisamente da Barragem/Açu<strong>de</strong> Figueiredo, já<br />
po<strong>de</strong>m ser sentidos, tanto no âmbito social, quanto no econômico. Observamos nas<br />
comunida<strong>de</strong>s Lapa e Boa Esperança estruturas fundiárias <strong>de</strong> pequenos produtores<br />
rurais (em sua maioria apenas para a própria subsistência), margeados por esse<br />
processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização do território voltado para as gran<strong>de</strong>s empresas, sofrendo<br />
impactos diretos <strong>de</strong>vido às obras da barragem que inundará as áreas on<strong>de</strong> elas se<br />
localizam. (Figura 3). Não se po<strong>de</strong> negar a importância <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong><br />
empreendimento, pois a perenização do rio e o controle da vazante resultará na<br />
presença <strong>de</strong> água no período <strong>de</strong> estiagem. Porém, fica um questionamento: quem<br />
terá acesso a esta água e para que será utilizada?
Figura 3 ‐ Localização das comunida<strong>de</strong>s e da Barragem Figueiredo.<br />
Fonte: <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009.<br />
Baseando-se nesta pergunta, po<strong>de</strong>mos dizer que, diferentemente do que é<br />
divulgado para todo o país, inclusive com a ajuda <strong>de</strong> um discurso midiático<br />
131
ten<strong>de</strong>ncioso que mostra o benefício que tais obras públicas trarão para as<br />
populações que “sofrem com a seca”, o verda<strong>de</strong>iro propósito para essas gran<strong>de</strong>s<br />
construções é levar estrutura física para que a reprodução <strong>de</strong> capital aconteça. Em<br />
nosso caso específico, a perenização do rio, ao longo <strong>de</strong> dose meses do ano,<br />
beneficiará a parcela a jusante do açu<strong>de</strong>, dando prosseguimento ao abastecimento<br />
<strong>de</strong> água para irrigações <strong>de</strong> plantações <strong>de</strong> diversas culturas, sobretudo <strong>de</strong> frutas<br />
(caju, mamão, banana, melão), como é o caso do Tabuleiro <strong>de</strong> Russas, on<strong>de</strong><br />
tivemos a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> visitar e constatar, empiricamente, para on<strong>de</strong> e para que<br />
a água será usada. Já as populações que vivem no sertão, sobretudo os atingidos<br />
pela construção do referido açu<strong>de</strong>, <strong>de</strong>verão se ren<strong>de</strong>r às imposições do DNOCS e<br />
continuarão a ser tratados como “fantoches” da situação, recebendo <strong>de</strong> in<strong>de</strong>nização<br />
o valor que é estipulado pelo DNOCS e não obtendo nenhuma orientação, quanto<br />
menos apoio referente ao seu remanejamento.<br />
É oportuno ressaltar o que observamos em campo, isto é, o caminho das<br />
águas que está sendo construído, sendo ele pelo Canal da Integração e Canal do<br />
Trabalhador, está estrategicamente localizado nas áreas <strong>de</strong> interesse mercantil <strong>de</strong><br />
cultivo <strong>de</strong> frutas a serem escoadas para exportação no Porto do Pecém, até mesmo<br />
porque, dada as condições pluviométricas referentes ao trajeto dos canais<br />
<strong>de</strong>spertem cuidados, tanto mais problemática é a porção Oeste do estado do Ceará,<br />
região mais necessitada e, portanto, potencialmente mais indicada para receber<br />
ações e investimentos públicos para ampliar o acesso a água.<br />
Assim, a construção da Barragem Figueiredo, além <strong>de</strong> implicar na dinâmica<br />
ambiental da área envolvida, também influencia a vida social da população como<br />
pu<strong>de</strong>mos observar a partir das visitas que realizamos junto às comunida<strong>de</strong>s Lapa e<br />
Boa Esperança.<br />
7.4 . Comunida<strong>de</strong>s Lapa e Boa Esperança<br />
Segundo reportagem publicada em 20/03/2009 no Diário do Nor<strong>de</strong>ste –<br />
Ceará, a Barragem Figueiredo irá atingir algumas áreas que serão <strong>de</strong>sapropriadas e<br />
assim terão <strong>de</strong> ser remanejados os núcleos urbanos <strong>de</strong> São José dos Famas, com<br />
132
37 famílias, Lapa, com 22 famílias e a bacia do açu<strong>de</strong> ainda atingirá o projeto <strong>de</strong><br />
assentamento Boa Esperança, do INCRA, composto <strong>de</strong> terras férteis <strong>de</strong> aluvião,<br />
próximas ao rio, com 32 famílias e área total <strong>de</strong> 1.752 hectares.<br />
De acordo com Cristina Peleteiro, diretora <strong>de</strong> infraestrutura do DNOCS, em<br />
reunião na se<strong>de</strong> do órgão com representantes das áreas a serem atingidas dos<br />
municípios <strong>de</strong> Alto Santo, Potiretama e Iracema, a barragem Figueiredo somente<br />
será concluída quando tiverem sido resolvidos todos os problemas sociais da<br />
população envolvida, tais como: o pagamento das in<strong>de</strong>nizações, o remanejamento<br />
dos núcleos urbanos, rurais e a titulação das terras.<br />
Porém, em visita ao canteiro <strong>de</strong> obras da barragem do açu<strong>de</strong> Figueiredo, o<br />
engenheiro chefe da obra garantiu que falta “apenas” uma comunida<strong>de</strong> a ser<br />
realocada, o que não impedirá a conclusão da barragem. Vemos, então, que o foco<br />
principal para a conclusão da obra que se propõe oferecer melhores condições <strong>de</strong><br />
vida para as populações atingidas pela estiagem no Ceará, não são as comunida<strong>de</strong>s<br />
rurais que serão atingidas, sendo estas, pois, ao contrário, consi<strong>de</strong>radas como um<br />
empecilho para o término da obra.<br />
Além disso, observamos e enfatizamos o <strong>de</strong>sprezo pelo qual o “problema”<br />
citado, por ser “apenas uma comunida<strong>de</strong>” que ainda não saiu da área a ser<br />
inundada. Um ponto muito importante a ser ressaltado é o fato <strong>de</strong> que as famílias,<br />
<strong>de</strong>stas e <strong>de</strong> outras comunida<strong>de</strong>s que visitamos, estão na mesma situação <strong>de</strong><br />
incerteza quanto ao seu <strong>de</strong>stino: não sabem como e para on<strong>de</strong> irão, nem quando<br />
receberão suas in<strong>de</strong>nizações.<br />
Cristina Peleteiro disse também na mesma reportagem que o cronograma da<br />
obra prevê a conclusão para outubro <strong>de</strong> 2010 e a obra somente será antecipada<br />
para <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2009 se todos os problemas acima citados estiverem resolvidos.<br />
Peleteiro disse também que todos os que têm títulos <strong>de</strong> terras já receberam as<br />
in<strong>de</strong>nizações, afirmando que “Dinheiro para pagar in<strong>de</strong>nizações não é problema”.<br />
No site da Defesa Civil, dados <strong>de</strong> 11/<strong>12</strong>/2008 mostram que as famílias<br />
cadastradas para <strong>de</strong>sapropriação e que resi<strong>de</strong>m na área <strong>de</strong> inundação do lago que<br />
será formado pelo açu<strong>de</strong> Figueiredo, já estavam sendo visitadas e recadastradas<br />
para reassentamentos em locais próximos ao reservatório e, segundo informações<br />
encontradas no site do Ministério da Integração 24 , o DNOCS está fazendo um<br />
24 http://www.integracao.gov.br/comunicacao/noticias/noticia.asp?id=1730<br />
133
trabalho <strong>de</strong> conscientização, buscando ouvir todos os atingidos e procurando<br />
solucionar os casos <strong>de</strong> forma que venham a beneficiar as famílias <strong>de</strong>sapropriadas.<br />
Com exceção dos que <strong>de</strong>cidiram simplesmente pela in<strong>de</strong>nização, segundo a<br />
responsável <strong>de</strong> obras, os moradores da Vila São José, da comunida<strong>de</strong> da Lapa, da<br />
área do eixo da barragem e <strong>de</strong> algumas residências rurais do entorno, serão<br />
redirecionados para locais escolhidos pelos próprios moradores. Dessa forma, já<br />
estão <strong>de</strong>finidas duas regiões para os reassentamentos: a Vila Nova São José, on<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>verão ser reassentados os proprietários dos imóveis e a Agrovila, para on<strong>de</strong> irão<br />
outros moradores das <strong>de</strong>mais proprieda<strong>de</strong>s.<br />
A<strong>de</strong>mais, o diretor-geral do DNOCS, Elias Fernan<strong>de</strong>s, já <strong>de</strong>terminou que em<br />
todos os processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapropriação e <strong>de</strong> reassentamento os envolvidos sejam<br />
ouvidos e os acordos passem obrigatoriamente pelo consenso entre a entida<strong>de</strong> e as<br />
famílias atingidas. Segundo o site do DNOCS, todo processo será executado <strong>de</strong>ntro<br />
das normas vigentes, <strong>de</strong> forma justa e sempre em benefício das pessoas que<br />
moram nos locais on<strong>de</strong> há interferência do Po<strong>de</strong>r Público.<br />
A partir das informações reunidas acima junto aos veículos <strong>de</strong> imprensa<br />
local, nor<strong>de</strong>stina e nacional, observamos o discurso apresentado pelo governo<br />
através do Ministério da Integração Nacional e do DNOCS, no qual os impactos<br />
sócio-ambientais envolvidos nas obras da Barragem Figueiredo estão sendo<br />
plenamente solucionados em conjunto com as populações atingidas. Porém, a<br />
realida<strong>de</strong> observada nas visitas a essas comunida<strong>de</strong>s evi<strong>de</strong>nciaram uma realida<strong>de</strong><br />
complexa, on<strong>de</strong> se manifestam diversos problemas quanto às in<strong>de</strong>nizações e<br />
redirecionamento <strong>de</strong>ssas famílias.<br />
A diferença mais notória observada pelo grupo <strong>de</strong> estudo entre Lapa e Boa<br />
Esperança foi o fator produção, pois na primeira prevalece uma forma <strong>de</strong> produção<br />
coletiva, dado que a comunida<strong>de</strong> é composta por uma única família. Assim, a terra,<br />
ao longo <strong>de</strong> gerações, foi dividida e subdividida entre irmãos e parentes, porém sem<br />
a separação legal da proprieda<strong>de</strong>. Já na comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Boa Esperança, a produção<br />
<strong>de</strong> alimentos é separada, relacionando ao fato <strong>de</strong> serem assentados e a terra ser<br />
previamente dividida, tendo apenas como área coletiva as pastagens.<br />
134
5.1.1. Comunida<strong>de</strong> Lapa<br />
Visitada no dia 09/10/2009, a comunida<strong>de</strong> Lapa, localizada no município <strong>de</strong><br />
Potiretama, on<strong>de</strong> vivem 22 (vinte e duas) famílias, apresenta uma realida<strong>de</strong><br />
totalmente contraditória ao que dizem o diretor-geral Elias Fernan<strong>de</strong>s e a diretora<br />
Cristina Peleteiro, ambos pertencentes ao DNOCS.<br />
Durante a visita à Comunida<strong>de</strong>, obtivemos informações dos moradores<br />
locais quanto ao andamento do processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapropriação <strong>de</strong> terras e a<br />
realocação das famílias, momento em que foram ouvidas reclamações sobre a<br />
ausência <strong>de</strong> informações oriundas do DNOCS, mencionando que nas reuniões,<br />
sempre eram atendidos por distintas pessoas fazendo com que a comunicação entre<br />
o <strong>de</strong>partamento e os moradores fosse <strong>de</strong>sconexa. O fato <strong>de</strong> sempre haver uma<br />
<strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> nesse diálogo, por serem envolvidas diversas pessoas para<br />
intermediar os dois atores, tornou o processo duvidoso para toda a comunida<strong>de</strong>.<br />
De acordo com Cristina Peleteiro, a <strong>de</strong>mora em muitas <strong>de</strong>sapropriações se<br />
dá pela falta <strong>de</strong> documentos por parte do proprietário, e em alguns casos, o uso<br />
capião é regularizado para que a família possa se afirmar proprietária da terra e, em<br />
seguida, partir para a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> valores in<strong>de</strong>nizatórios e a <strong>de</strong>sapropriação.<br />
Contudo, dona Antonia Alves <strong>de</strong> Moura (40 anos), uma das entrevistadas na<br />
comunida<strong>de</strong> disse que o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapropriação não está se dando <strong>de</strong> forma<br />
justa e nem em beneficio das famílias locais, como po<strong>de</strong>mos observar em um trecho<br />
<strong>de</strong> sua entrevista:<br />
135<br />
Veio o DNOCS, falando pra gente aceitar as in<strong>de</strong>nizações, no valor <strong>de</strong><br />
nossas casas, pra quem tem um pedaço <strong>de</strong> terra também vai receber<br />
in<strong>de</strong>nização, nós já enviamos os documentos todos, mas até agora nada. A<br />
construção do açu<strong>de</strong> esta terminando <strong>de</strong> ser feita e a gente não sabe pra<br />
on<strong>de</strong> vai, sem resposta nenhuma. O valor da minha casa, que tem quatro<br />
cômodos e o quintal, eles avaliaram em RS 6.600, isso <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2003, até<br />
agora nada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão, <strong>de</strong> resposta, sem saber pra on<strong>de</strong> vamos, sem<br />
receber, e não temos o que fazer.<br />
Dona Antonia afirma ainda que, com R$ 6.600,00 não é possível se ter a<br />
mesma infraestrutura <strong>de</strong> suas terras que “foram passadas <strong>de</strong> geração a geração, a<br />
família Moura já está aqui há uns 150 anos, já está nos tataranetos, eu moro aqui<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que nasci, e estou com 40 anos, toda a vizinhança são parentes, todos da<br />
família Moura.”
Um dos questionamentos em <strong>de</strong>bate pelos atingidos pelas barragens ou os<br />
que serão atingidos e ainda ameaçados, são as condições sociais e ambientais do<br />
<strong>de</strong>stino. Não basta a transferência, se não houver suporte e apoio corretos para que<br />
garantam qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e trabalho. Os moradores da Lapa preferiram ficar na<br />
terra (foto 1) a irem para a cida<strong>de</strong>, tomando em conta que se trata <strong>de</strong> gerações <strong>de</strong><br />
agricultores <strong>de</strong> sequeiro, agricultura <strong>de</strong> subsistência e criadores <strong>de</strong> gado. Como<br />
assevera D. Antonia:<br />
136<br />
O DNOCS veio uma vez com a proposta <strong>de</strong> colocar a gente em uma<br />
agrovila em Iracema, mas ninguém quis porque era uma casa pequena e<br />
somente três hectares <strong>de</strong> terra, nós íamos viver como? (informação<br />
verbal) 25<br />
Foto 7 ‐ Comunida<strong>de</strong> da Lapa.<br />
Fonte: <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009<br />
Quanto à mobilização da comunida<strong>de</strong> Lapa contra o DNOCS, verificamos<br />
que as famílias temem enfrentar esse gran<strong>de</strong> empreendimento milionário, pois por<br />
ele é utilizada e diversos mecanismos para <strong>de</strong>sarticular a população, inclusive <strong>de</strong><br />
ameaças são postos em prática por parte do órgão público, como disse D. Antonia:<br />
“nós fomos obrigados a assinar né, porque era assinar ou per<strong>de</strong>r tudo, não tinha<br />
opção, isso que o senhor do DNOCS disse”.<br />
E mesmo que essa mobilização sirva para que consigam as <strong>de</strong>vidas<br />
in<strong>de</strong>nizações para suas terras, ela é bastante tímida e ineficiente, <strong>de</strong>vido a falta <strong>de</strong><br />
25 <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> campo 2009
conscientização e <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> organização para a luta, que é resultante da<br />
sua própria condição social histórica e também por se sentirem impotentes diante <strong>de</strong><br />
um projeto que promete, segundo o governo, tamanho <strong>de</strong>senvolvimento para o<br />
Ceará.<br />
Questionados sobre a construção da barragem do Figueiredo, os moradores<br />
da Lapa relatam o "exemplo vivo”, que é o caso <strong>de</strong> Jaguaribara. Mesmo que a<br />
população da cida<strong>de</strong> tenha sido realocada para uma cida<strong>de</strong> planejada, não há<br />
projetos para manter as comunida<strong>de</strong>s com suas ativida<strong>de</strong>s rurais. Como afirma<br />
Leônidas:<br />
137<br />
Nós achamos que não vai melhora, porque vemos o exemplo do Castanhão,<br />
ouvimos no rádio que as comunida<strong>de</strong>s até hoje estão comprando água<br />
porque as empresas não <strong>de</strong>ixam as famílias mais pobres entrarem pra<br />
pegar água, e aqui achamos que vai ser a mesma coisa. ( Leônidas José <strong>de</strong><br />
Moura- Comunida<strong>de</strong> da Lapa)<br />
Outro fator abordado nas entrevistas, sendo este o principal no recorte<br />
estudado, foi a questão da disponibilida<strong>de</strong> e acessibilida<strong>de</strong> da água. Vimos que a<br />
Lapa possui um sistema próprio <strong>de</strong> abastecimento, pois se localiza ao lado <strong>de</strong> um<br />
rio, no qual foi construído um pequeno açu<strong>de</strong> pelos próprios moradores (imagem 2).<br />
Segundo Leônidas, morador local:<br />
Aqui nós nunca passamos falta d’água, porque temos o rio aqui embaixo<br />
com água limpa pra beber, que pegamos em um tanque, é uma água quase<br />
mineral, e já tem isso há 10 anos, e vamos per<strong>de</strong> tudo com o açu<strong>de</strong>.<br />
Foto 8 ‐ Açu<strong>de</strong> construído pela comunida<strong>de</strong>.<br />
Fonte: <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> campo 2009.
Uma questão importante e merece ser retomada diz respeito à titularida<strong>de</strong><br />
da posse da terra das famílias que serão futuramente impactadas pela construção<br />
do açu<strong>de</strong>, fazendo com que o DNOCS afirme que somente serão reassentadas<br />
aquelas que apresentarem documentações legais <strong>de</strong> posse da terra, acrescentando<br />
que as famílias não possuidoras <strong>de</strong> algum tipo <strong>de</strong> prova documentária serão apenas<br />
in<strong>de</strong>nizadas, <strong>de</strong> acordo com o tamanho da proprieda<strong>de</strong>, mediante parâmetro<br />
estabelecido pelo próprio órgão, sem direito a contraproposta.<br />
O que dificulta ainda mais a situação são as questões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m históricosociais.<br />
O processo <strong>de</strong> ocupação <strong>de</strong>ssa região <strong>de</strong>u-se pela apropriação <strong>de</strong> terras por<br />
posseiros, sendo estes não possuidores <strong>de</strong> qualquer tipo <strong>de</strong> documento da terra. A<br />
proprieda<strong>de</strong> é passada <strong>de</strong> pai pra filho, e assim sucessivamente. Outra questão<br />
evi<strong>de</strong>nciada é a divisão e a venda <strong>de</strong> terras sem documentação em tempos<br />
pretéritos. Alguns posseiros obtinham gran<strong>de</strong>s glebas <strong>de</strong> terras, que posteriormente<br />
foram divididas em glebas menores e vendidas para terceiros, agravando o<br />
problema da titulação da terra, salvo alguns proprietários que ainda possuem algum<br />
tipo <strong>de</strong> documentação, porém encontra-se em nome <strong>de</strong> outras pessoas. Neste<br />
sentido, a implantação <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> realocação das famílias complica-se, <strong>de</strong>vido à<br />
ausência <strong>de</strong> prova legal da proprieda<strong>de</strong> da terra.<br />
5.1.2. Comunida<strong>de</strong> Boa Esperança<br />
A comunida<strong>de</strong> Boa Esperança, situada entre os municípios <strong>de</strong> Iracema e<br />
Potiretama e cortada pelo Rio Figueiredo, trata-se <strong>de</strong> um assentamento do INCRA<br />
i<strong>de</strong>alizado em 1997 para 32 famílias, localizado em uma área <strong>de</strong> aproximadamente<br />
1.700 hectares e, assim como a comunida<strong>de</strong> Lapa, também será atingida.<br />
Nesse contexto, po<strong>de</strong>mos observar aspectos peculiares a partir das<br />
conversas com os moradores, como por exemplo, a questão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> territorial,<br />
já que, mesmo com o fato <strong>de</strong> as famílias não estarem há muito tempo no local, a<br />
gran<strong>de</strong> maioria tem por preferência continuar morando em Boa Esperança, on<strong>de</strong><br />
produzem seus alimentos, ainda vinculada à prática da subsistência e criatório <strong>de</strong><br />
pequenos animais e o na produção <strong>de</strong> leite <strong>de</strong> vaca. Assim, da mesma forma que a<br />
138
comunida<strong>de</strong> da Lapa, Boa Esperança também possui uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> territorial,<br />
porém diferenciada pelo fato <strong>de</strong> ser um assentamento do INCRA, portanto não se<br />
trata <strong>de</strong> posseiros. No entanto, i<strong>de</strong>ntificamos a presença do marcante vínculo com a<br />
terra e o forte vínculo com o território habitado.<br />
Sobre o aspecto da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> territorial, cabe aqui uma breve explicação<br />
que visará o melhor entendimento do assunto tratado. A <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> território além<br />
<strong>de</strong> abarcar as características materiais e imateriais, como os recursos biofísicos e<br />
humanos, e modos <strong>de</strong> produção e cultura, abarca também a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um povo,<br />
revelando tanto o aspecto quanto as formas e a intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma integração<br />
econômica e cultural dos lugares e regiões. Nessa atual conjuntura da globalização<br />
da economia e da cultura, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> territorial é cada vez mais consi<strong>de</strong>rada como<br />
um trunfo <strong>de</strong>cisivo para o <strong>de</strong>senvolvimento sustentável e para acirrar o jogo <strong>de</strong><br />
impasses <strong>de</strong> re<strong>de</strong>finição/homogeneização do espaço.<br />
Outro fator a ser <strong>de</strong>stacado na comunida<strong>de</strong> Boa Esperança é a ausência <strong>de</strong><br />
mobilização organizada da população, questão esta intimamente ligada à realida<strong>de</strong><br />
histórica do local sempre marcada pelo coronelismo, como disse uma entrevistada:<br />
139<br />
Eu às vezes, eu tenho pra mim que o pessoal daqui ainda pensa que o<br />
coronel ainda existe, quando chega um pessoal gran<strong>de</strong> (DNOCS) assim na<br />
casa pra conversar e um fala uma coisinha mais alta assim, o pessoal <strong>de</strong><br />
fora, aqui “morre” todo mundo (ninguém rebate), eu nem falo mais, todo<br />
mundo cala a boca! (Maria- Comunida<strong>de</strong> Boa Esperança)<br />
Ela se refere quando os representantes do DNOCS vão até a comunida<strong>de</strong><br />
conversar com a população sobre os processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapropriação do local para o<br />
açu<strong>de</strong>. Assim, a população local não consegue motivar uma mobilização para<br />
buscar seus direitos, ficando <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes das ações do governo, que muitas vezes,<br />
não aten<strong>de</strong>m suas reais necessida<strong>de</strong>s.<br />
Devido também a construção da barragem, os projetos agrícolas não tiveram<br />
a permissão <strong>de</strong> expandir. E tampouco as casas pu<strong>de</strong>ram ser reformadas ou<br />
ampliadas sob a justificativa <strong>de</strong> que a área vai ser <strong>de</strong>sapropriada e tudo será em<br />
vão. Vale ressaltar que essa situação se arrasta <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ano <strong>de</strong> 2003.<br />
Em relação às in<strong>de</strong>nizações e o reassentamento, a partir das entrevistas<br />
realizadas, constatamos que a população ainda não sabe ao certo a quantia e nem<br />
quando irão receber a mesma, e também não sabem para on<strong>de</strong> serão reassentadas,<br />
o que os <strong>de</strong>ixa em uma situação <strong>de</strong>sconfortável, já que parecem estagnados no<br />
tempo, e incertos sobre seus futuros.
Em relação ao acesso a água, na comunida<strong>de</strong> Boa Esperança, a população<br />
dispõe <strong>de</strong> cisternas para o armazenamento <strong>de</strong> água no período <strong>de</strong> estiagem e<br />
também um açu<strong>de</strong>, local on<strong>de</strong> é feita a retirada <strong>de</strong> água através <strong>de</strong> tração animal.<br />
7.5 . Açu<strong>de</strong> Figueiredo<br />
As obras do Açu<strong>de</strong> Figueiredo (Alto Santo-CE), bem como todas as outras<br />
obras, tanto <strong>de</strong> transposição, quanto <strong>de</strong> barramento, tem como principal objetivo<br />
aten<strong>de</strong>r às <strong>de</strong>mandas do capital no ceará. O açu<strong>de</strong>, por exemplo, irá beneficiar a<br />
piscicultura na região do Médio Jaguaribe, todavia, a construção do mesmo além <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sterritorializar a população atingida, não tem como objetivo o abastecimento <strong>de</strong><br />
água para as comunida<strong>de</strong>s circunvizinhas.<br />
O capital <strong>de</strong>sapropria e exclui populações já empobrecidas e que vivem à<br />
margem da socieda<strong>de</strong>. Porém, a maior contradição que po<strong>de</strong>mos notar é que, ao<br />
mesmo tempo em que o capital oprime essas populações, ele cultiva a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
das mesmas com o lugar <strong>de</strong> origem. Concomitantemente à <strong>de</strong>sapropriação surge a<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> organização e manifestação.<br />
140<br />
O <strong>de</strong>senvolvimento capitalista se faz movido pelas suas contradições. Ele é,<br />
portanto, em si, contraditório e <strong>de</strong>sigual. Isto significa que para seu<br />
<strong>de</strong>senvolvimento ser possível, ele tem que <strong>de</strong>senvolver aqueles aspectos<br />
aparentemente contraditórios a si mesmo” (OLIVEIRA, 2001, p. 18).<br />
Po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r que o açu<strong>de</strong> Castanhão transferirá suas águas ao<br />
Figueiredo que está sendo construída no município <strong>de</strong> Alto Santo e terá capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> armazenar 520 milhões <strong>de</strong> metros cúbicos <strong>de</strong> água. Segundo o governo estadual,<br />
o açu<strong>de</strong> será <strong>de</strong>stinado à irrigação, abastecimento das cida<strong>de</strong>s ao seu redor, a<br />
piscicultura, ao controle das cheias, ao turismo e lazer.<br />
Todas as obras <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização, já concluídas ou em construção no Estado<br />
do Ceará proporcionarão mudanças territoriais <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> vulto, e irão afetar<br />
principalmente comunida<strong>de</strong>s que pouco estão informadas sobre os projetos do<br />
governo. A moradora da Comunida<strong>de</strong> da Lapa, dona Antônia, que será afetada pela<br />
construção do açu<strong>de</strong>, acrescentou, durante a entrevista que:
141<br />
Vieram visitar nossas casas, fizeram as medições, primeiro eles vieram<br />
visitar e disseram que iriam construir o açu<strong>de</strong> e nós iríamos per<strong>de</strong>r nossa<br />
casa, ai <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito tempo que vieram medir as terras e as casas, ai<br />
passaram 2 ou 3 anos e vieram novamente fazer novas medições, agora<br />
sempre eles vêm, fazer visitas, reuniões pra dizer como vai ser, só que<br />
chegavam em dia com a conversa <strong>de</strong> um jeito, outro dia com <strong>de</strong> outro, e até<br />
hoje estamos sem saber o que fazer. (Antônia Alves <strong>de</strong> Moura- Comunida<strong>de</strong><br />
da Lapa)<br />
Pu<strong>de</strong>mos notar, durante o trabalho <strong>de</strong> campo, no canteiro <strong>de</strong> obras do açu<strong>de</strong><br />
Figueiredo, que ao entrevistar um dos engenheiros da obra, ele pouco sabia<br />
informar sobre os impactos sociais e ambientais da construção. A <strong>de</strong>vastação da<br />
área e a magnitu<strong>de</strong> da obra po<strong>de</strong>m ser vistas nas fotos abaixo:<br />
Foto 9 ‐ Obras da Barragem Figueiredo, município <strong>de</strong> Alto Santo/CE.<br />
Fonte: <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009
Foto 10 ‐ Obras da Barragem Figueiredo, município <strong>de</strong> Alto Santo/CE.<br />
Fonte: <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009<br />
Para a construção da barragem Figueiredo serão <strong>de</strong>sapropriados<br />
9.631hectares <strong>de</strong> terras localizadas no município <strong>de</strong> Alto Santo, segundo estabelece<br />
<strong>de</strong>creto assinado pelo Presi<strong>de</strong>nte Luiz Inácio Lula da Silva. O açu<strong>de</strong> <strong>de</strong>verá ser pólo<br />
piscicultor na região Jaguaribana, e as expectativas giram em torno da produção <strong>de</strong><br />
até 15 mil quilos <strong>de</strong> pescados por dia. A água também irá irrigar a 480 toneladas <strong>de</strong><br />
culturas <strong>de</strong> frutas como melancia, mamão e banana.<br />
O rio Jaguaribe tem como principais afluentes nessa região o rio Figueiredo<br />
e o riacho do Sangue. A Sub-Bacia do Médio Jaguaribe é composta <strong>de</strong> 13<br />
municípios - Alto Santo, Deputado Irapuan Pinheiro, Ererê, Iracema, Jaguaretama,<br />
Nova Jaguaribara, Jaguaribe, Milhã, Pereiro, Potiretama, São João do Jaguaribe,<br />
Solonópole e Tabuleiro do Norte. A sub-bacia do Médio Jaguaribe tem uma área <strong>de</strong><br />
10.509 Km², e é a que apresenta melhor nível <strong>de</strong> atendimento às populações<br />
urbanas, graças à perenização do rio viabilizada pelo açu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Orós.<br />
A barragem Figueiredo inundará uma área <strong>de</strong> 4.985hectares, transformandose<br />
num dos maiores reservatórios do Ceará. Será, portanto, o quinto maior em<br />
volume do Estado. O projeto prevê a construção <strong>de</strong> uma barragem do tipo<br />
entroncamento com núcleo argiloso e terá uma extensão total <strong>de</strong> 2.947 metros, com<br />
142
largura <strong>de</strong> oito metros no coroamento e altura máxima <strong>de</strong> 43,5 metros (Tabela 1).<br />
Além da função <strong>de</strong> acúmulo <strong>de</strong> água para múltiplos usos, o reservatório contribuirá<br />
para o controle <strong>de</strong> cheias no Baixo Jaguaribe, evitando ainda, nas gran<strong>de</strong>s<br />
enchentes, o impacto das águas do rio Figueiredo na calha do rio Jaguaribe. O<br />
empreendimento está orçado em torno <strong>de</strong> R$ 80 milhões, compreen<strong>de</strong>ndo a<br />
execução <strong>de</strong> obras e serviços <strong>de</strong> construção, incluindo, também, o fornecimento,<br />
instalação e montagem dos equipamentos hidromecânicos. (Quadro 2).<br />
Município: Alto Santo<br />
Coor<strong>de</strong>nada e: 581.250<br />
Coor<strong>de</strong>nada n: 9.371.075<br />
Bacia: Médio Jaguaribe<br />
Tipo: Enrocamento com Núcleo Argiloso<br />
Capacida<strong>de</strong> (m³): 519.600.000<br />
Bacia hidráulica (ha): 4.985,70<br />
Vazão regularizada (m³/s): 4,4<br />
Extensão pelo coroamento<br />
(m): 2.915,00<br />
Largura do coroamento (m): 8<br />
Cota do coroamento (m): 103,5<br />
Altura máxima (m): 33,5<br />
Sangradouro<br />
Tipo: Canal com Soleira Frontal<br />
Largura (m): 250<br />
Lâmina máxima (m): 2,3<br />
Cota da soleira (m): 99<br />
Tomada D’ Água<br />
Tipo: galeria com corpo da barragem<br />
Quadro 2 ‐ Características técnicas do Açu<strong>de</strong> Figueiredo. Fonte SRH ‐ Projeto<br />
básico da barragem Figueiredo‐ vol. V‐ relatório síntese.etapa b‐ fase v‐<br />
<strong>de</strong>talhamento do projeto. Coba/vba. Jun/2003.<br />
A obra do açu<strong>de</strong> está em ritmo acelerado segundo a população local. Há<br />
trabalhadores dia e noite para inaugurá-la ainda no final <strong>de</strong> 2009 ou início <strong>de</strong> 2010.<br />
Enquanto isso, o processo <strong>de</strong> in<strong>de</strong>nização e reassentamento das comunida<strong>de</strong>s<br />
ocorre lentamente. A maioria das famílias na região ainda não sabem para on<strong>de</strong> vão<br />
e nem quando e quanto receberão o ressarcimento pelas suas proprieda<strong>de</strong>s.<br />
143
Po<strong>de</strong>mos constatar o laudo <strong>de</strong> avaliação da proprieda<strong>de</strong> do senhor Geraldo<br />
Antônio <strong>de</strong> Moura, morador da comunida<strong>de</strong> da Lapa. Os valores que o DNOCS<br />
preten<strong>de</strong> pagar por cada item avaliado do terreno foram assim cotados (Quadro 3):<br />
Discriminação Quant.<br />
Valor<br />
un. Total<br />
Casa <strong>de</strong> tijolo sem reboco, cobertura <strong>de</strong> telha comum,<br />
(R$) (R$)<br />
esquadrias com ma<strong>de</strong>ira da região, por cimento (m³)<br />
Instalação Elétrica<br />
63,5 70,55 4,479,92<br />
Quadro <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> energia, completo (und.) 1 137,57 137,57<br />
Ponto <strong>de</strong> Energia (und.)<br />
Instalação Higráulica<br />
5 8,97 44,85<br />
Ponto hidraúlico 4 13,46 53,84<br />
Chuveiro plásticos (und.) 1 2,58 2,58<br />
Torneira para pia (und.) 1 13,46 13,46<br />
Pia <strong>de</strong> marmorite (1.20 x 0,50) (und.) 1 44,86 44,86<br />
Aparelho sanitário CELITE- branco (und.) 1 71,78 71,78<br />
Esgoto (und.) 1 16,82 16,82<br />
Registro (und.) 1 13,46 13,46<br />
Forno <strong>de</strong> embassamento com tijolo comum, dimensões<br />
5x10x20 cm, empregando argamassa mista <strong>de</strong> cal em pasta<br />
peneirada e pura areia média ou grossa sem peneirar no traço<br />
1:4 com 100 kg <strong>de</strong> cimento (m³)<br />
0,97 95,13 92,27<br />
Cerca <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira: Faxina, Vara Trançada ou pau-a- pique<br />
sem fio (m³) 65 1,48 96,2<br />
Desmatamento (ha) 1 97,1 97,1<br />
Destocamento 1 194,2 194,2<br />
Bananeira (cova)<br />
Culturas Frutíferas Perenes (em Produção)<br />
2 3,93 7,86<br />
Aceloreira (pé) 3 18,42 55,26<br />
Laranjeira (pé) 1 18,45 18,45<br />
Limoeiro (pé) 1 18,45 18,45<br />
Mangueira (pé) 1 64,83 64,83<br />
Outros (Coite, Grosselha, Azeitona, Murici, Abacaxi...,etc)<br />
(pé) 1 16,45 65,8<br />
Total 5589,56<br />
Quadro 3 ‐ Laudo <strong>de</strong> Avaliação do proprietário Geraldo Antônio <strong>de</strong> Moura. Fonte: Documento fornecido por<br />
morador.<br />
Fonte: <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009.<br />
144
No total o senhor Geraldo receberá cerca <strong>de</strong> R$ 5.600,00 por toda a sua<br />
proprieda<strong>de</strong> e benfeitorias. Todavia sabemos que este valor é insuficiente para a<br />
compra <strong>de</strong> outro terreno, sem contar a construção <strong>de</strong> uma casa.<br />
145
8. O COMPLEXO INDUSTRIAL E PORTUÁRIO DO PECÉM E A<br />
REGIÃO METROPOLITANA DE FORTALEZA COMO PÓLO<br />
CENTRALIZADO DA ECONOMIA E REFLEXO DA DESIGUALDADE<br />
NO ESPAÇO CEARENSE: OS USOS DA ÁGUA<br />
No contexto atual <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do capitalismo, na sua fase <strong>de</strong><br />
reestruturação produtiva em escala internacional, a compreensão <strong>de</strong> sua<br />
materialida<strong>de</strong> projetada no espaço pressupõe consi<strong>de</strong>rá-lo como algo socialmente<br />
produzido e explorado historicamente, on<strong>de</strong> tudo passa a ser passível <strong>de</strong> ser<br />
apropriado pela ânsia da reprodução ampliada, conferindo novos significados aos<br />
lugares.<br />
Em busca da a<strong>de</strong>quação do território às diretrizes advindas da inserção do<br />
Estado na lógica do “governo das mudanças 26 ”, uma série <strong>de</strong> medidas <strong>de</strong> caráter<br />
estrutural e não-estrutural passam a dinamizar o espaço cearense, dotando-o <strong>de</strong><br />
novos elementos que vem a impactar <strong>de</strong> forma direta e indireta na vida das<br />
populações que tem a “sorte” <strong>de</strong> estarem no “caminho” <strong>de</strong> tal empreendimento;<br />
sendo a construção dos canais <strong>de</strong> transposição das águas o carro chefe <strong>de</strong> tal<br />
política. Assim, “[...] a atuação política e técnica, induz aos lugares novas funções,<br />
atribuindo-lhes outros valores com repercussões no planejamento das ações e<br />
políticas territoriais” (QUINTILIANO, 2008, p. 21).<br />
Por meio da consi<strong>de</strong>ração do “caminho das águas” e, tendo em vista os<br />
múltiplos atores sociais impactados pelo “rastro do progresso” <strong>de</strong>ixado pela<br />
materialização das atuais políticas da água no nor<strong>de</strong>ste, po<strong>de</strong>mos vislumbrar, <strong>de</strong> um<br />
extremo a outro, distintas etapas <strong>de</strong> um mesmo processo. De Cabrobó (embocadura<br />
do eixo norte) até Pecém (<strong>de</strong>sembocadura dos canais), momentos distintos da<br />
efetivação do intento técnico-logístico das águas <strong>de</strong>nunciam faces da barbárie<br />
resultante da imposição <strong>de</strong> políticas estranhas à satisfação das necessida<strong>de</strong>s da<br />
população.<br />
O trecho inicial, no município <strong>de</strong> Cabrobó/PE, anuncia o discurso<br />
institucional <strong>de</strong> que as obras teriam como principal objetivo o abastecimento humano<br />
26<br />
Grupo político formado a partir da eleição <strong>de</strong> Tasso Jereissati no ano <strong>de</strong> 1987 e que marca o fim do<br />
“governo dos coronéis”.<br />
146
e a <strong>de</strong>sse<strong>de</strong>ntação animal para uma população aproximada <strong>de</strong> doze milhões <strong>de</strong><br />
pessoas.<br />
O qualificativo “nova”, carrega em si os significados da barbárie consolidada<br />
com o advento da efetivação da política das águas no município <strong>de</strong> Nova<br />
Jaguaribara/CE, cida<strong>de</strong> totalmente planejada e construída para habitar os<br />
moradores da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaguaribara, inundada com o enchimento do Açu<strong>de</strong><br />
Castanhão. Com isso hábitos, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, referenciais, lugares, etc., são<br />
sobrepostos por um “espaço artificial” (LIMA, 2009), on<strong>de</strong> a dimensão do espaço<br />
vivido é simplesmente tratada como acessório.<br />
Enquanto no caso anterior o cenário é <strong>de</strong> constatação <strong>de</strong> um fato<br />
consolidado, nos municípios <strong>de</strong> Iracema/CE e Potiretama/CE a barbárie se anuncia.<br />
A construção da barragem <strong>de</strong> Figueiredo ocasionará, a partir do seu preenchimento,<br />
a retirada <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> famílias que hoje habitam a área <strong>de</strong> inundação da obra,<br />
<strong>de</strong>ixando sem opção aqueles que tem no lugar mais que um “pedaço <strong>de</strong> terra”, um<br />
modo <strong>de</strong> vida que, submerso aos imperativos da engenhosida<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimentista<br />
sucumbe para dar lugar às “águas do futuro”.<br />
A fragilida<strong>de</strong> do discurso institucional quanto aos objetivos da transposição<br />
das águas fica evi<strong>de</strong>nte quando consi<strong>de</strong>ramos a região do Tabuleiro <strong>de</strong> Russas e<br />
Limoeiro do Norte, no Estado do Ceará, sendo representativa do cenário que<br />
compõe os aspectos integrantes do acesso à água. Nesse sentido, por meio da<br />
realida<strong>de</strong> por nós presenciada quando em campo, nota-se que o acesso à água tem<br />
como <strong>de</strong>terminante o fator econômico, pois mesmo nas áreas próximas aos canais a<br />
retirada <strong>de</strong> água na escala necessária para a irrigação só é possível para aqueles<br />
que dispõem <strong>de</strong> condições econômicas suficientes, sendo exceção os projetos <strong>de</strong><br />
irrigação do governo.<br />
Com isso, observa-se que o acesso à água dos canais ocorre principalmente<br />
por duas vias: projetos <strong>de</strong> irrigação do Governo – que além <strong>de</strong> insuficientes estariam<br />
em gran<strong>de</strong> parte sem funcionar, segundo <strong>de</strong>poimentos – e ações particulares <strong>de</strong><br />
implantação técnica para a irrigação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s plantações que, <strong>de</strong>vido ao alto<br />
custo dos equipamentos, consolida o acesso à água como socialmente exclu<strong>de</strong>nte.<br />
Para enten<strong>de</strong>rmos a presente configuração urbana do estado do Ceará no<br />
bojo das políticas da água, isto é, com a prerrogativa <strong>de</strong> Região Metropolitana dada<br />
a Fortaleza e a algumas cida<strong>de</strong>s adjacentes no início da década <strong>de</strong> 1970, área que<br />
contém o atual Complexo Industrial e Portuário do Pecém, (Figura 1) faz-se<br />
147
necessário um breve resgate histórico das especificida<strong>de</strong>s econômicas e sociais do<br />
Estado, notadamente a partir da primeira meta<strong>de</strong> do século XX.<br />
Figura 4 ‐ Localização do Complexo Industrial e Portuário do Pecém na Região<br />
Metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza.<br />
Fonte: QUINTILIANO, 2005.<br />
A concentração <strong>de</strong> terras, bem como a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir em<br />
virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> períodos <strong>de</strong> seca intensos e prolongados, levou sucessivas gerações a<br />
migrar em busca <strong>de</strong> melhores condições <strong>de</strong> vida. Quanto a isso, Araújo & Car<strong>de</strong>ial<br />
(2008) afirmam que:<br />
148<br />
O fenômeno da migração é eminentemente social e <strong>de</strong>terminado por<br />
condições históricas <strong>de</strong> processos e conflitos nas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />
No contexto cearense, Fortaleza sempre foi vista como o lugar das<br />
oportunida<strong>de</strong>s e, assim, ao longo <strong>de</strong> todo o século XX houve sucessivos fluxos<br />
migratórios para esta cida<strong>de</strong>, que cresceu <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada – a par da maioria<br />
das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s brasileiras.<br />
As políticas públicas <strong>de</strong> incentivo à industrialização pós-década <strong>de</strong> 1950 se<br />
concentraram na capital do estado, fato que – somado aos citados acima -
potencializou as correntes migratórias e, consequentemente, o intenso processo <strong>de</strong><br />
urbanização que elevou Fortaleza a se<strong>de</strong> da recém-criada Região Metropolitana <strong>de</strong><br />
Fortaleza no ano <strong>de</strong> 1973. É o que apontam Quintiliano & Lima (2008):<br />
149<br />
Na segunda meta<strong>de</strong> do século XX, a ampliação da força do capital induz<br />
maior polarização da indústria e <strong>de</strong> atração <strong>de</strong> população migrante. O<br />
contexto perfaz a lógica do projeto <strong>de</strong>senvolvimentista <strong>de</strong> “integração<br />
nacional” do nor<strong>de</strong>ste brasileiro com base no planejamento (p. 31).<br />
À concentração populacional soma-se a concentração e centralização da<br />
maior parte dos investimentos públicos e privados na Região Metropolitana <strong>de</strong><br />
Fortaleza (RMF), principalmente, e alguns poucos enclaves atraentes no interior do<br />
estado. Os gran<strong>de</strong>s grupos nacionais e internacionais do setor turístico -<br />
aproveitando a beleza paisagística do litoral e o respaldo do Estado – vêm<br />
construindo uma ampla e sofisticada estrutura <strong>de</strong> entretenimento que já faz <strong>de</strong><br />
Fortaleza um dos pólos <strong>de</strong> maior atração turística do país.<br />
Os empreendimentos como resorts, hotéis e parques aquáticos – que po<strong>de</strong>m<br />
se consubstanciar nas três coisas ao mesmo tempo - dotaram a capital cearense <strong>de</strong><br />
uma infra-estrutura <strong>de</strong> entretenimento comparável a dos gran<strong>de</strong>s complexos do<br />
ramo espalhados pelo mundo. Além do fato <strong>de</strong> ser acessível para poucos, os<br />
impactos sociais e ambientais <strong>de</strong> tais empreendimentos são mascarados com o<br />
discurso progressista dos <strong>de</strong>tentores do po<strong>de</strong>r econômico que, via <strong>de</strong> regra,<br />
encontra-se em consonância com o po<strong>de</strong>r político. Portanto, a materialização dos<br />
seus interesses gananciosos torna-se uma mera questão <strong>de</strong> acertos e conchavos à<br />
revelia dos interesses mais prementes da maioria da população.<br />
Exemplo da “extravagância” turística da RMF é o Complexo Beach Park,<br />
localizado no município <strong>de</strong> Aquiraz. Tais empreendimentos causam diversos<br />
impactos ambientais, pois geralmente estão instalados em áreas <strong>de</strong> dunas ou muito<br />
próximos à faixa <strong>de</strong> areia da praia, o que não seria possível caso as diretrizes<br />
ambientais fossem seguidas à risca. Quanto aos impactos sociais, po<strong>de</strong>mos<br />
ressaltar a <strong>de</strong>sarticulação do modo <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte das pessoas que<br />
viviam/vivem nessas áreas, haja vista que as comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pecadores<br />
tradicionais tiveram/têm sua rotina alterada pela gran<strong>de</strong> movimentação <strong>de</strong> turistas,<br />
conforme indicam <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> moradores do lugar.<br />
[...] melhorou uns pontos assim sobre o transporte, a saú<strong>de</strong>, porque o<br />
transporte aqui era raro [...] Mas emprego mesmo minha filha, não melhorou<br />
não, só no período <strong>de</strong> construção ou se tiver uma “peixada”, só se tiver
150<br />
alguma pessoa lá <strong>de</strong>ntro amiga que leve seu currículo, eu que não conheço<br />
ninguém nunca arrumarei (Entrevista com morador da comunida<strong>de</strong> do<br />
Pecém em 13/10/2009).<br />
Soma-se e se inter-relaciona ao setor turístico, o setor da construção civil, no<br />
que tange a construção dos luxuosos prédios <strong>de</strong> apartamentos voltados aos turistas<br />
e aos setores sociais com elevada capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo. Os incorporadores<br />
imobiliários não me<strong>de</strong>m esforços para conseguir novas áreas privilegiadas do ponto<br />
<strong>de</strong> vista da beleza paisagística e proximida<strong>de</strong> com a faixa <strong>de</strong> areia. A praia do<br />
Futuro, localizada a leste da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Fortaleza, por exemplo, tem sido alvo direto<br />
da cobiça dos gran<strong>de</strong>s empresários para a construção <strong>de</strong> barracas para aten<strong>de</strong>r os<br />
turistas. Algumas <strong>de</strong>las possuem inclusive, piscinas. Estes empreendimentos, como<br />
tantos outros, não respeitam a Legislação Ambiental e, por isso, têm sido alvo <strong>de</strong><br />
constantes protestos por parte dos movimentos ambientalistas, pelo fato <strong>de</strong><br />
lançarem o esgoto diretamente no mar.<br />
Outro projeto polêmico e que vem sendo contestado por movimentos sociais<br />
e <strong>de</strong> ambientalistas é o da construção <strong>de</strong> um estaleiro na praia do Titãozinho,<br />
próximo ao porto do Mucuripe. Isso porque, os moradores da área – constituídos<br />
pela população mais pobre – temem que sejam <strong>de</strong>salojados e expulsos <strong>de</strong> suas<br />
casas, embora o discurso dos interessados em realizar a obra seja <strong>de</strong> que isso não<br />
vai acontecer e que os moradores teriam suas casas reconstruídas no mesmo<br />
bairro.<br />
O porto do Mucuripe, aliás, é um importante porto <strong>de</strong> navegação <strong>de</strong><br />
cabotagem do país e movimenta gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cargas. Ao porto integram-se<br />
o terminal petroquímico operado pela subsidiária da Petrobrás - a Transpetro – e os<br />
gran<strong>de</strong>s moinhos: Dias Branco, J. Macedo (D. Benta) e o Moinho Cearense. À<br />
primeira vista, nos parecem estranhos à paisagem pelo fato <strong>de</strong> associarmos<br />
moinhos <strong>de</strong> processamento <strong>de</strong> trigo ao Sul do país e não a uma cida<strong>de</strong> litorânea<br />
(Foto 11). Notamos, então, um importante complexo industrial com infraestrutura que<br />
permite o escoamento da produção, bem como a chegada <strong>de</strong> matéria-prima através<br />
do porto. Além disso, a RMF e o CIPP contam com uma articulada re<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
transportes, tanto rodoviário como ferroviário, fixos que conferem à região<br />
condições <strong>de</strong> facilitação no processo <strong>de</strong> reprodução ampliada do capital, o que a faz<br />
figurar como “atraente” para os gran<strong>de</strong>s capitais em busca <strong>de</strong> novas condições <strong>de</strong><br />
reprodução ampliada na atual fase <strong>de</strong> reestruturação produtiva.
Foto 11 ‐ Moinhos à beira‐mar.<br />
Fonte: <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009.<br />
Esta breve caracterização econômica da RMF serve para enten<strong>de</strong>rmos a<br />
posição específica <strong>de</strong> Fortaleza como pólo <strong>de</strong> concentração e centralização <strong>de</strong><br />
papéis, quando comparada ao restante do Estado do Ceará. A hierarquia urbana do<br />
estado, portanto, é macrocefálica que, segundo conceituação <strong>de</strong> SANTOS (1989):<br />
151<br />
É uma noção relativa que faz aparecer a importância <strong>de</strong>mográfica e,<br />
sobretudo, a importância econômica <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> em relação à <strong>de</strong> outras<br />
cida<strong>de</strong>s e à do conjunto do país (p. 157).<br />
Essa característica macrocefálica <strong>de</strong> Fortaleza fica patente ao trazermos à<br />
luz seus indicadores econômicos e <strong>de</strong>mográficos. A cida<strong>de</strong> apresenta população<br />
estimada em 2,43 milhões <strong>de</strong> habitantes, segundo último censo do IBGE (2007) e<br />
PIB <strong>de</strong> R$22,5 bilhões (IBGE, 2006). A segunda maior cida<strong>de</strong> em termos<br />
<strong>de</strong>mográficos é Caucaia – integra a RMF – com população estimada em 317 mil<br />
habitantes (IBGE, 2007) e PIB <strong>de</strong> pouco mais <strong>de</strong> R$ 1,3 bilhões (IBGE, 2006).<br />
Maracanaú - município que também integra a RMF – tem população estimada em<br />
197 mil habitantes (IBGE, 2007) e PIB <strong>de</strong> R$2,4 bilhões (IBGE, 2006).<br />
Quanto ao PIB, os dados são igualmente impressionantes: segundo dados<br />
divulgados em 2008 pelo IBGE, o PIB do Ceará referente ao ano <strong>de</strong> 2006 era <strong>de</strong>
aproximadamente R$ 56 bilhões e somente a RMF representava quase 56% na<br />
produção das riquezas do estado, ou seja, cerca <strong>de</strong> R$ 30 bilhões (Gráfico 3).<br />
44%<br />
Participação da RMF na produção do PIB<br />
cearense<br />
56%<br />
RMF<br />
Demais<br />
municípios<br />
cearenses<br />
Gráfico 3 ‐ Participação da Região Metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza na<br />
produção do PIB cearense.<br />
Fonte: IBGE, 2008.<br />
No entanto, mais impressionante ainda é a soma dos dados referentes ao<br />
total da população e do PIB da RMF. Esta pequena área - em termos proporcionais<br />
ao Estado – concentra aproximadamente 3,6 milhões <strong>de</strong> habitantes, ou seja, quase<br />
a meta<strong>de</strong> da população do estado que possui aproximadamente 8,2 milhões <strong>de</strong><br />
habitantes (IBGE, 2007).<br />
A disparida<strong>de</strong> socioeconômica no estado, portanto, explica o gran<strong>de</strong> afluxo<br />
<strong>de</strong> imigrantes para a RMF e nos ajuda a enten<strong>de</strong>r as implicações advindas <strong>de</strong> tal<br />
processo, tais como: precarização continua das condições <strong>de</strong> vida, perda da<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural e o aumento da criminalida<strong>de</strong>. A riqueza produzida pela RMF não<br />
se traduz, evi<strong>de</strong>ntemente, no <strong>de</strong>senvolvimento social da população. Ao<br />
percorrermos a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Fortaleza, por exemplo, notamos o quão dual a paisagem<br />
urbana se apresenta, pois ao lado dos suntuosos prédios <strong>de</strong> apartamentos e dos<br />
hotéis, encontramos as favelas à beira-mar evi<strong>de</strong>nciando toda a precarieda<strong>de</strong> nas<br />
condições <strong>de</strong> vida dos habitantes e esgoto a céu aberto nas proximida<strong>de</strong>s do centro<br />
da cida<strong>de</strong>. Segundo o IBGE, a cida<strong>de</strong> apresenta 30% <strong>de</strong> seus habitantes vivendo<br />
em favelas. Araújo, (2007) evi<strong>de</strong>ncia essa situação quando pon<strong>de</strong>ra que:<br />
152<br />
A Organização das Nações Unidas (ONU) prevê uma duplicação da<br />
população resi<strong>de</strong>nte em favelas nos próximos 30 anos. Em Fortaleza, isto
153<br />
ainda po<strong>de</strong>rá ter maior impacto, consi<strong>de</strong>rando que nos últimos 20 anos<br />
(entre 1980 e 2003) mais que quadriplicou o numero <strong>de</strong> favelas, saiu <strong>de</strong> 147<br />
para 722 (p. 262).<br />
Outro fato que se <strong>de</strong>staca refere-se à clara divisão da cida<strong>de</strong> entre o enclave<br />
na área leste - <strong>de</strong>stinado aos gran<strong>de</strong>s investimentos privados no âmbito do turismo e<br />
serviços voltados a este setor, principalmente - e a área oeste, que abriga os<br />
trabalhadores e a população mais pobre da cida<strong>de</strong>. Embora haja a presença <strong>de</strong><br />
favelas no setor leste da cida<strong>de</strong>, é nesta área on<strong>de</strong> a materialida<strong>de</strong> do capital se faz<br />
mais pujante, isto é, aí se encontram os imóveis mais valorizados, as boutiques, as<br />
lojas e os restaurantes voltados à elite que po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong>stes benesses.<br />
É nessa parte mais valorizada da cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> a prática da prostituição<br />
infantil se faz <strong>de</strong> maneira mais escancarada e escandalosa, como bem relatou o<br />
professor Luiz Cruz Lima, da Universida<strong>de</strong> Estadual do Ceará (UECE) à equipe do<br />
<strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong>. Os turistas estrangeiros são os gran<strong>de</strong>s entusiastas <strong>de</strong>sta<br />
prática vergonhosa, que po<strong>de</strong> ser entendida como reflexo das disparida<strong>de</strong>s entre<br />
ricos e pobres na capital cearense.<br />
Para aten<strong>de</strong>r a crescente <strong>de</strong>manda por água, vários açu<strong>de</strong>s foram<br />
construídos no entorno da RMF e outros já foram planejados e estão em via <strong>de</strong><br />
implantação. A gran<strong>de</strong> crise no abastecimento <strong>de</strong> água no início da década <strong>de</strong> 1990,<br />
“obrigou” o então governador, Ciro Gomes, a viabilizar a construção do Canal do<br />
Trabalhador, retirando água do Baixo Jaguaribe para abastecer a RMF, segundo<br />
<strong>de</strong>poimento do professor Luiz Cruz em explanação à equipe do <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong>.<br />
Até meados da década <strong>de</strong> 1990 tanto o Ceará, como o Nor<strong>de</strong>ste <strong>de</strong> forma<br />
geral, permaneceram à margem das ações e empreendimentos do gran<strong>de</strong> capital,<br />
haja vista a consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> que se constituiria numa região infértil e ina<strong>de</strong>quada ao<br />
cultivo agrícola em escala comercial. Com a mudança <strong>de</strong> paradigma <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada<br />
a partir da eleição <strong>de</strong> Tasso Jereissati para o Governo do Estado (1987 -1991),<br />
<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia-se uma série <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação do território cearense às<br />
necessida<strong>de</strong>s do gran<strong>de</strong> capital agrícola e industrial, fazendo surgir o grupo político<br />
que comporia o “governo das mudanças”. Tais necessida<strong>de</strong>s ensejaram medidas <strong>de</strong><br />
planejamento e execução <strong>de</strong> obras como a construção <strong>de</strong> barragens, açu<strong>de</strong>s e<br />
canais, além da criação <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> administração dos recursos hídricos. Com<br />
isso, o que antes era visto como impróprio, consi<strong>de</strong>rado agora no bojo das políticas<br />
da água ganha novos contornos, significados e valores.
Desse modo, iluminadas pelo brilho cristalino das águas da transposição,<br />
“manchas ver<strong>de</strong>s” passam a surgir na paisagem do semi-árido, <strong>de</strong>nunciando traços<br />
<strong>de</strong> uma política territorialmente seletiva e socialmente exclu<strong>de</strong>nte.<br />
Outro fator que também irá se inserir neste cenário <strong>de</strong> transformações<br />
socioespaciais refere-se à vinda <strong>de</strong> indústrias estrangeiras, atraídas pelas políticas<br />
<strong>de</strong> incentivos fiscais oferecidas pelo Governo do Estado em conjunto com os<br />
municípios. No entanto, para aten<strong>de</strong>r essa nova dinâmica <strong>de</strong> exportação, faz-se<br />
necessário que o estado invista na construção <strong>de</strong> um novo porto capaz <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r<br />
as exigências dos gran<strong>de</strong>s mercados, <strong>de</strong> acordo com as mo<strong>de</strong>rnas técnicas <strong>de</strong><br />
embarcação.<br />
O Porto do Mucuripe (Ceará) não atendia essa <strong>de</strong>manda, uma vez que seu<br />
calado encontrava-se na batimetria <strong>de</strong> 10 metros até 2004, enquanto os navios<br />
atuais precisam <strong>de</strong> calado superior a 15 metros. Como se encontrava localizado<br />
numa área urbana, sem possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expansão, torna-se inviável transformá-lo<br />
num porto mo<strong>de</strong>rno com infra-estrutura capaz <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r a nova geração <strong>de</strong> navios<br />
porta-contêiners refrigerados.<br />
Outra condicionante é que o governo do Estado do Ceará pretendia agregar<br />
ao porto um complexo industrial e, para isso, necessitava <strong>de</strong> um terminal com área<br />
disponível. A<strong>de</strong>rindo ao processo <strong>de</strong> globalização, as li<strong>de</strong>ranças políticas que<br />
pretendiam implementar essas novas tecnologias no Estado constataram que a<br />
instalação <strong>de</strong> um novo porto seria uma forma <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r a essa <strong>de</strong>manda. É neste<br />
contexto que surge o Porto do Pecém.<br />
8.1 . O Porto do Pecém e o “corredor das águas”: enunciados e<br />
significados<br />
Localizado a 45 km à Noroeste da capital do Ceará, no município <strong>de</strong> São<br />
Gonçalo do Amarante, atualmente integrante da Região Metropolitana <strong>de</strong> Fortaleza<br />
(RMF), o Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) iniciou suas operações<br />
em 2002, com serviço <strong>de</strong> navios porta-contêiner nas rotas dos Estados unidos,<br />
América do Sul, Caribe e Europa.<br />
154
Criado para respon<strong>de</strong>r aos enunciados do que propunham gran<strong>de</strong>s grupos<br />
empresariais, o CIPP ilustra o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômico adotado pelo<br />
governo do Ceará, garantindo condições para instalação <strong>de</strong> empreendimentos <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> porte, tais como: si<strong>de</strong>rurgia, termelétricas, refinarias e indústrias satélites. O<br />
CIPP opera com navios <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte <strong>de</strong> diversas rotas internacionais, cumprindo<br />
importante papel na consolidação das exportações <strong>de</strong> produtos cearenses,<br />
notadamente frutas, flores e pescado. A instalação portuária é dotada da infraestrutura<br />
necessária às operações marítimas <strong>de</strong> longo curso e cabotagem; o<br />
terminal marítimo tipo off-shore, ou seja, afastado da praia, sendo consi<strong>de</strong>rado mais<br />
mo<strong>de</strong>rno à navegação marítima na atualida<strong>de</strong>, abrigado artificialmente por quebra<br />
mar do tipo Berna.<br />
O Terminal Portuário do Pecém movimenta cargas próprias e <strong>de</strong> terceiros,<br />
<strong>de</strong>tendo o Estado do Ceará a sua proprieda<strong>de</strong>. A administração e exploração são<br />
realizadas pela Companhia <strong>de</strong> Integração Portuária do Ceará (Cearáportos), sendo<br />
assim, diferentemente dos outros portos do país o Porto do Pecém é administrado<br />
pelo governo do Estado do Ceará e não pela União.<br />
Obra pública financiada pelo Governo Fe<strong>de</strong>ral através do PAC (Programa <strong>de</strong><br />
Aceleração do Crescimento), em parceria com o Governo do Estado do Ceará, o<br />
Terminal Portuário do Pecém faz parte <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> investimentos que<br />
compõem o projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do Estado do Ceará.<br />
Segundo Lima:<br />
155<br />
Os investimentos no território cearense vêm constituindo um promissor<br />
cenário capaz <strong>de</strong> ultrapassar fronteiras e mercados. Através <strong>de</strong> suas ações<br />
e projetos integrados o governo busca uma dinamização dos setores<br />
produtivos e tenta agregar maiores investimentos, tornando-se mais<br />
competitivo, sempre pautado no mo<strong>de</strong>lo vigente da economia mundial.<br />
(2006, p.16)<br />
O CIPP encontra-se numa posição geograficamente privilegiada em relação<br />
aos principais mercados mundiais, aten<strong>de</strong>ndo tanto ao escoamento <strong>de</strong> produtos do<br />
estado como a conquista <strong>de</strong> novos mercados no exterior, estando a seis dias da<br />
costa leste dos Estados Unidos e a sete dias dos países europeus (Figura 3).
Figura 5 ‐ Articulação portuária do CIPP com o mercado global.<br />
Fonte: QUINTILIANO, 2005.<br />
O fato <strong>de</strong> uma obra da magnitu<strong>de</strong> e da importância do CIPP se encontrar<br />
localizada estrategicamente no trecho final dos canais <strong>de</strong> transposição <strong>de</strong> águas<br />
merece análise mais <strong>de</strong>talhada. Referenciado no discurso <strong>de</strong>senvolvimentista, o<br />
governo do Estado do Ceará passa, a partir do início dos anos 1990, a adotar<br />
medidas estruturais e não-estruturais visando à a<strong>de</strong>quação do território cearense às<br />
<strong>de</strong>mandas do capital. Com a evolução do capitalismo e a conseqüente urbanização<br />
e industrialização acelerada, o rápido aumento populacional somado ao<br />
<strong>de</strong>senvolvimento da ativida<strong>de</strong> agropecuária faz da água um recurso natural escasso<br />
e passível <strong>de</strong> controle via políticas <strong>de</strong> Estado, conferindo à água o caráter <strong>de</strong><br />
centralida<strong>de</strong> nas disputas <strong>de</strong> classe no Brasil (THOMAZ JR., 2009).<br />
Nesse sentido, inserimos para a discussão o conceito <strong>de</strong> água virtual 27 ,<br />
conceito que tem por finalida<strong>de</strong> traduzir a água implícita nos diversos produtos<br />
(industriais ou agrícolas) e que não é visível no produto final, ocultando uma já<br />
consolidada “balança comercial das águas” em escala mundial. Nesse ínterim o<br />
Brasil figura como gran<strong>de</strong> exportador <strong>de</strong>ste recurso, que ganha novos significados<br />
no contexto das relações comerciais globalizadas e da criação incessante <strong>de</strong> novas<br />
27 Expressão cunhada originalmente por A. J. Allan, professor da Scool of Oriental & African Studies<br />
da University of London, no início da década <strong>de</strong> 90. Para maiores esclarecimentos consultar<br />
http://www.eco<strong>de</strong>bate.com.br/2009/08/11/agua-virtual-escassez-e-gestao-o-brasil-como-gran<strong>de</strong>exportador-<strong>de</strong>-agua/<br />
156
necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> consumo, fazendo uso generalizado dos recursos hídricos, direta e<br />
indiretamente por meio da produção, manufatura e industrialização <strong>de</strong> uma<br />
infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produtos. Tal cenário tem composto estratégia comum no âmbito<br />
internacional, conformando elemento <strong>de</strong>terminante na localização <strong>de</strong> empresas que<br />
fazem uso da água enquanto fator <strong>de</strong> produção.<br />
A viabilização dos projetos previstos para serem instalados no Complexo<br />
Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) <strong>de</strong>manda uma quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> água suficiente<br />
para o abastecimento <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> com aproximadamente noventa mil habitantes,<br />
<strong>de</strong>ixando transparecer a dimensão dos “negócios da água”. O suprimento <strong>de</strong> uma<br />
<strong>de</strong>manda hídrica <strong>de</strong>sta magnitu<strong>de</strong>, com a qualida<strong>de</strong> e a segurança no fornecimento<br />
para que o capital sinta-se “seguro” a ponto <strong>de</strong> investir gran<strong>de</strong>s somas na busca<br />
incessante da sua reprodução ampliada numa área historicamente carente em<br />
recursos hídricos, encontra respaldo na construção dos Canais <strong>de</strong> Transposição das<br />
águas que, conforme aponta LINS (2008):<br />
157<br />
O principal objetivo do Canal da Integração é abastecer <strong>de</strong> água a RMF, o<br />
Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) e o Complexo Industrial<br />
<strong>de</strong> Maracanaú, além <strong>de</strong> abastecer as terras férteis do Vale do Jaguaribe,<br />
especialmente o Perímetro Irrigado do Tabuleiro <strong>de</strong> Russas, com vistas a<br />
promover os usos múltiplos da água via abastecimento urbano, agrícola e<br />
industrial (p. 19).<br />
Em relação à construção do Canal do Trabalhador, Quintiliano (2008)<br />
argumenta que a obra foi cercada <strong>de</strong> polêmicas e, hoje, o canal está com a<br />
capacida<strong>de</strong> ociosa em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> falhas na execução do projeto, que tornou a água<br />
suscetível à intensa salinização, servindo apenas à irrigação.<br />
[...] O Canal do Trabalhador encontra-se <strong>de</strong>teriorado e assume posição<br />
secundária no abastecimento hídrico, em particular da RMF para incremento<br />
da política das águas. Pensava-se em agregar o Canal do Trabalhador ao<br />
Canal da Integração, o que se tornou inviável, <strong>de</strong>vido a problemas <strong>de</strong><br />
gerência e qualida<strong>de</strong> da água (p. 144).<br />
A água, elemento central das preocupações <strong>de</strong> todos os países do mundo,<br />
ganha dimensão ainda mais importante on<strong>de</strong> ela é escassa como no semi-árido<br />
brasileiro. Nesse sentido, garantir seu controle é imprescindível para a viabilização<br />
do projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento assentado no princípio do lucro imediato, em<br />
<strong>de</strong>trimento dos interesses da maioria da população. Nesse sentido, QUINTILIANO<br />
(2008), argumenta que:
158<br />
Essas verda<strong>de</strong>iras “cirurgias” nos territórios, com “inovações”, revelam a<br />
exigência <strong>de</strong> “novas” ativida<strong>de</strong>s, como turismo, indústrias, setor terciário<br />
superior etc. – impondo um quadro espacial renovado, como um “ninho”<br />
a<strong>de</strong>quado à reprodução mais veloz e precisa do capital que agora pousa em<br />
terras tropicais do Nor<strong>de</strong>ste, antes, marginalizado (p. 24).<br />
O discurso institucional tenta massificar o entendimento quanto à questão da<br />
água no nor<strong>de</strong>ste impondo uma leitura <strong>de</strong> “integração <strong>de</strong> bacias”, tentando inverter<br />
todo o estigma que o dito popular cristalizou na consi<strong>de</strong>ração das contradições<br />
inerentes ao processo <strong>de</strong> territorialização das políticas da água no nor<strong>de</strong>ste e muito<br />
bem ilustrado no termo transposição <strong>de</strong> bacias, este sim dotado da capacida<strong>de</strong><br />
explicativa necessária frente ao <strong>de</strong>svendamento da i<strong>de</strong>ologia que permeia este<br />
<strong>de</strong>bate. Desse modo, enten<strong>de</strong>mos que a transposição antece<strong>de</strong> a dita “integração”,<br />
sendo a primeira pressuposto para a segunda. Ou seja, para que a tal “integração”<br />
se efetive faz-se necessário que antes haja a transposição das águas, fato este que<br />
<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia o cenário que nos permite pensar na tal integração. É por meio da<br />
retirada da água <strong>de</strong> um lugar e seu <strong>de</strong>slocamento para outro localizado a um<br />
patamar superior (transposição) que é possível pensar algo próximo ao que o<br />
discurso institucional objetiva impor como sendo a tal “integração <strong>de</strong> bacias”,<br />
empreendimento que, a nosso ver, muito além <strong>de</strong> mera questão semântica,<br />
encontra-se em estreita relação com a tentativa do capital <strong>de</strong> salvar a imagem <strong>de</strong> um<br />
projeto que pela sua natureza e magnitu<strong>de</strong> já <strong>de</strong>ixa transparecer os reais<br />
significados da construção <strong>de</strong>ste verda<strong>de</strong>iro “corredor das águas” no nor<strong>de</strong>ste do<br />
Brasil.<br />
Por meio da consi<strong>de</strong>ração da materialida<strong>de</strong> territorial dos eixos <strong>de</strong><br />
transposição (Figura 4) e, referenciando-nos na conformação espacial<br />
territorialmente seletiva que marca o “corredor das águas”, po<strong>de</strong>mos inferir quanto<br />
aos verda<strong>de</strong>iros objetivos mascarados no discurso <strong>de</strong>senvolvimentista. Analisando o<br />
mapa do trajeto dos canais <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, no município <strong>de</strong> Cabrobó/PE, até o Porto<br />
do Pecém/CE, po<strong>de</strong>mos notar que o percurso privilegia justamente a região<br />
cearense com maiores índices <strong>de</strong> precipitação, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> fora todo o interior do<br />
sertão nor<strong>de</strong>stino, on<strong>de</strong> o flagelo da seca apresenta-se nas mais variadas<br />
dimensões da barbárie resultante da confluência <strong>de</strong> condições climáticas adversas
somadas ao vício <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong>feituosas 28 que se valem da “questão da climática”<br />
para acionar as máquinas <strong>de</strong> uma nefasta “indústria da seca”.<br />
Figura 6 ‐ Croqui da localização dos canais <strong>de</strong> transposição em relação à área <strong>de</strong> ari<strong>de</strong>z<br />
crítica no Estado do Ceará.<br />
Fonte: <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009.<br />
O Canal da “Integração” é a obra mais polêmica que vem sendo construída<br />
com o objetivo <strong>de</strong> fornecer água do açu<strong>de</strong> Castanhão aos diversos setores<br />
empresariais na RMF, notadamente a indústria do turismo e o CIPP. A obra do canal<br />
28 Castro, 2007.<br />
159
compõe complexa engenharia, pois tem <strong>de</strong> vencer obstáculos naturais como rios e<br />
<strong>de</strong>sníveis <strong>de</strong> terreno, por meio <strong>de</strong> estações <strong>de</strong> bombeamento, aquedutos e sifões<br />
que tornam a obra mais dispendiosa em termos financeiros (Foto <strong>12</strong>). Mesmo assim<br />
as obras avançam, mesmo que em marcha lenta, tendo como fim último a garantia<br />
<strong>de</strong> suprimento hídrico do CIPP. A esse respeito afirma Quintiliano (2008):<br />
160<br />
Trata-se <strong>de</strong> infra-estrutura, no sentido <strong>de</strong> maximizar o processo <strong>de</strong><br />
comercialização mundial, na difusão <strong>de</strong> produtos agrícolas e industriais e<br />
<strong>de</strong>mais setores produtivos. Disso <strong>de</strong>corre a reestruturação territorial para a<br />
viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> maior dinamização e investimentos públicos e privados na<br />
região (p. 143).<br />
Foto <strong>12</strong> ‐ Entroncamento das águas: obra que permite o controle da<br />
disponibilida<strong>de</strong> hídrica por meio da ligação entre os canais da “integração”<br />
(acima) e do trabalhador (abaixo).<br />
Fonte: <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009.<br />
Ao discutir os significados do Canal da Integração no bojo das políticas da<br />
água no Estado do Ceará, LINS (2008), aponta que:<br />
O canal da Integração é <strong>de</strong> importância estratégica para o incremento<br />
econômico do Estado do Ceará, pois contribuirá para o incremento da<br />
realização <strong>de</strong> diversas ativida<strong>de</strong>s até então impossibilitadas pela escassez<br />
relativa da água. Apesar <strong>de</strong>sta vantagem, pouco contribuirá para o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento social do Estado. Assim, embora <strong>de</strong> importância<br />
estratégica, torna-se um exemplo claro do processo <strong>de</strong> exclusão existente<br />
no mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> gestão adotado pelo Estado. Privilegia apenas alguns pontos<br />
do território cearense e beneficia apenas a uma minoria da população por<br />
ele atingida. (p. 147)
O Distrito <strong>de</strong> Pecém, localizado no município <strong>de</strong> São Gonçalo do Amarante –<br />
RMF – até a construção do CIPP limitava-se a uma tradicional vila <strong>de</strong> pescadores,<br />
artesãos e pequenos agricultores. A implantação do mesmo alterou radicalmente a<br />
vida dos moradores, pois a materialização <strong>de</strong>ste projeto implicou diretamente na<br />
expropriação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte das famílias que estavam assentadas na área on<strong>de</strong> a<br />
obra seria construída.<br />
Conforme <strong>de</strong>stacamos, o Estado - em consonância com os <strong>de</strong>tentores do<br />
po<strong>de</strong>r econômico - aniquila o modo <strong>de</strong> vida tradicional das comunida<strong>de</strong>s ancorado<br />
no velho discurso progressista <strong>de</strong> que suas ações têm como fim último o bem estar<br />
da maioria e, no que se refere especificamente à comunida<strong>de</strong> do Pecém, o discurso<br />
é que a atração <strong>de</strong> indústrias e a conseqüente ampliação <strong>de</strong> empregos formais<br />
garantiriam maior amplitu<strong>de</strong> social aos moradores. Nesse sentido, compactuamos<br />
com a afirmação <strong>de</strong> ARAÚJO (2008), quando afirma que:<br />
161<br />
A política governamental <strong>de</strong> intervenção no espaço vê o espaço como<br />
<strong>de</strong>socupado, pois nega o valor das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> subsistência que da terra<br />
se retira, ao dotá-lo <strong>de</strong> infra-estrutura econômica para outros fins, para a<br />
ativida<strong>de</strong> capitalista do turismo e para a indústria, por exemplo, retirando<br />
compulsoriamente as famílias que na terra resi<strong>de</strong>m ou que <strong>de</strong>la tiram seu<br />
meio <strong>de</strong> vida (p. 3).<br />
A expropriação das terras on<strong>de</strong> viviam os pequenos agricultores, bem como<br />
a alteração da rotina daqueles que exerciam – e ainda exercem em menor escala –<br />
a ativida<strong>de</strong> da pesca, obrigou-os a tentarem se adaptar às circunstâncias impostas<br />
pela inserção forçada na nova lógica do <strong>Trabalho</strong> advinda com a implantação do<br />
porto. Isto porque, as alternativas que se apresentavam eram poucas: resistir ao<br />
forte po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> persuasão do aparato estatal (<strong>de</strong>cretos <strong>de</strong> expropriação), migrar ou<br />
servir <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra barata no porto.<br />
Quanto à resistência, o que se viu foi a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> articulação da<br />
população frente aos artifícios muito bem engendrados pela máquina estatal a fim <strong>de</strong><br />
executar a obra que possibilitaria a efetivação das diretrizes econômicas traçadas<br />
pelo governo do Ceará e que garantiria sua inserção direta no comércio<br />
internacional. Essa situação <strong>de</strong> impotência da população é apontada por Araújo<br />
(2008):<br />
Os projetos e as estratégias concebidas pelos técnicos do governo,<br />
conscientes ou não <strong>de</strong> sua imposição e coerção, levam a esse estado <strong>de</strong><br />
passivida<strong>de</strong>, com o “silêncio dos usuários”, ou apenas alguns “balbucios
162<br />
informes” não ouvidos, <strong>de</strong> aspirações caladas, assim, os “habitantes e<br />
usuários permanecem mudos” (p. 5).<br />
Porém, antes mesmo da construção do CIPP, a comunida<strong>de</strong> do Pecém<br />
enfrentava outra ameaça, a especulação imobiliária em virtu<strong>de</strong> dos atrativos naturais<br />
da praia <strong>de</strong> Pecém. Araújo (2008) aponta que o processo <strong>de</strong> ocupação <strong>de</strong> terras<br />
nesta comunida<strong>de</strong>, bem como no restante do estado do Ceará, se fez por meio <strong>de</strong><br />
grilagem e ocupação (posseiros). Essa situação <strong>de</strong>u margem para que os<br />
incorporadores imobiliários conseguissem expropriar as populações “invasoras” e<br />
construírem as casas <strong>de</strong> veraneio para os turistas. O mesmo autor afirma ainda que:<br />
Muitos trabalhadores <strong>de</strong>dicados à própria sobrevivência ven<strong>de</strong>ram suas<br />
terras e empregaram-se como trabalhadores domésticos ou como caseiros,<br />
moradores <strong>de</strong> segunda residência dos veranistas (p. 9).<br />
Diante da nova situação, houve a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> buscar meios para<br />
sobreviver e, inicialmente, o trabalho nas obras <strong>de</strong> construção do porto foi a<br />
alternativa encontrada para conseguir trabalhar num emprego formal e garantir,<br />
assim, o respaldo das leis trabalhistas. Após a execução das obras e início das<br />
ativida<strong>de</strong>s do porto, a <strong>de</strong>manda por mão <strong>de</strong> obra qualificada implicou no fluxo muito<br />
gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas vindas <strong>de</strong> outras regiões, estados e até <strong>de</strong> outros países. Com<br />
isso novos elementos são inseridos no cotidiano dos moradores, conforme ilustra o<br />
relato <strong>de</strong> um morador:<br />
[...] vem muita gente <strong>de</strong> fora, <strong>de</strong> todo canto do Brasil. Tem gente aqui hoje,<br />
do Mato Grosso, Pernambuco, Sergipe, Bahia, Maranhão, vem para<br />
trabalhar, e enquanto estão empregados ficam na comunida<strong>de</strong>, chegam a<br />
ficar anos e <strong>de</strong>pois vão embora (<strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong>, 2009).<br />
O resultado imediato do aumento do número <strong>de</strong> habitantes num pequeno<br />
núcleo urbano - como é o caso do distrito do Pecém – é a incapacida<strong>de</strong> por parte<br />
dos órgãos públicos em garantir satisfatoriamente a prestação dos serviços<br />
essenciais, tais como: saú<strong>de</strong>, transportes, segurança e educação, por exemplo.<br />
Segundo <strong>de</strong>poimentos dos moradores, para aten<strong>de</strong>r essa nova <strong>de</strong>manda a<br />
prefeitura passou a investir em infra-estrutura (água, esgoto e energia), bem como<br />
nos serviços elencados acima.<br />
Outra consequência direta do acréscimo populacional é a dinamização da<br />
economia local, o que contribuiu para o posicionamento favorável à construção e<br />
ampliação do CIPP por parte da população. Porém, as entrevistas junto aos<br />
moradores revelaram também que as maiores benesses advindas da construção do
Porto ficam nas mãos <strong>de</strong> investidores que vêm <strong>de</strong> outros lugares. É o caso <strong>de</strong> bares<br />
cujos proprietários são suíços, além das lojas e mercados <strong>de</strong> investidores advindos<br />
da capital, Fortaleza. Esta nova situação do distrito do Pecém foi bem caracterizada<br />
pelo jornal “O Povo Online”, em matéria divulgada na sua página virtual no dia 1 <strong>de</strong><br />
agosto <strong>de</strong> 2009:<br />
163<br />
Surgiram novos restaurantes, novas farmácias e houve um incremento <strong>de</strong><br />
setores como o <strong>de</strong> alojamentos. A população local, que beira as seis mil e<br />
poucas pessoas, sofre, contudo, da falta <strong>de</strong> preparo profissional para<br />
acompanhar o <strong>de</strong>vido progresso. A taxa <strong>de</strong> analfabetismo é alta. Muitas<br />
vezes os postos <strong>de</strong> trabalho são ocupados por pessoas que chegam <strong>de</strong><br />
outros lugares, como da capital Fortaleza, e até <strong>de</strong> outros Estados da<br />
Fe<strong>de</strong>ração.<br />
Somado a isso, para alguns entrevistados, a vida na comunida<strong>de</strong> teria sido<br />
<strong>de</strong>scaracterizada. Os antigos moradores têm que conviver com pessoas <strong>de</strong> outras<br />
localida<strong>de</strong>s, que possuem hábitos diferentes dos seus. Não há vínculos entre os<br />
trabalhadores temporários do Porto do Pecém e os moradores e, se há, constituemse<br />
<strong>de</strong> vínculos tênues, baseados em relações superficiais mediadas apenas por<br />
interesses imediatos. Relatam ainda que, as festas mais tradicionais da comunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser realizadas.<br />
Nota-se que o processo contínuo <strong>de</strong> instalações <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s empresas,<br />
contribuiu para a perda da sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural, como relataram os moradores<br />
João Andra<strong>de</strong> Sampaio, José Ferreira da Cruz e Joaquim Moreira, em entrevista à<br />
equipe do <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> 2009.<br />
Antigamente não tinha esse movimento, porque antigamente nem praça<br />
tinha, era só a igreja com uma pracinha <strong>de</strong>ste tamanhinho assim tal<br />
pequenininha, e tinha uns barzinhos por ali que as pessoas ia, as vezes<br />
uma novena , tinha as festas do padroeiro aí as pessoas iam pra a praça,<br />
agora ali é como um passeio público é toda noite todo dia o encontro do<br />
povo é ali né, porque a beira mar, e toda noite você vê os bares as ca<strong>de</strong>iras<br />
no meio da rua e a bebida atuando e a prostituição também e droga, tem<br />
passador <strong>de</strong> droga, só o que tem emprego é droga e prostituição, e então a<br />
vida <strong>de</strong> Pecém aqui é essa, as pessoas antes costumavam se reunir nas<br />
festas da capela, ven<strong>de</strong>r e trocar suas produções etc., hoje todo dia é a<br />
mesma coisa, aquele movimento contínuo, pendular, não se cria laços, tudo<br />
que é construído tem o seu por que: bares para o consumo alcoólico, os<br />
pontos <strong>de</strong> droga e a prostituição.<br />
O que fica patente, então, são as contradições existentes entre o discurso<br />
progressista do Estado e a realida<strong>de</strong> vivida na comunida<strong>de</strong> impactada direta e<br />
indiretamente pela construção do CIPP. O carro-chefe <strong>de</strong> tal discurso é a promessa<br />
<strong>de</strong> empregos para a população local, porém, a esta resta apenas os empregos <strong>de</strong>
aixa qualificação, tendo em vista que as vagas oferecidas exigem níveis <strong>de</strong><br />
qualificação que são encontrados, muitas vezes, apenas em outros estados ou<br />
mesmo países.<br />
Em atenção às afirmações dos moradores no que diz respeito à questão<br />
ambiental, verificamos que a construção do Porto do Pecém alterou o nível do mar,<br />
que passou a invadir a área habitada, sendo necessário à construção <strong>de</strong> um amplo<br />
calçadão <strong>de</strong> concreto para amenizar a situação, conforme relata Dona Raimunda,<br />
entrevistada durante a realização das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong> na<br />
Comunida<strong>de</strong> do Pecém: “O mar começou a subir, invadir as casas, foi preciso que<br />
construísse um calçadão <strong>de</strong> concreto para resolver o problema, pois havia muitas<br />
enchentes” (2009).<br />
Os moradores afirmam ainda que, a partir da construção do Porto tiveram<br />
que percorrer distâncias maiores (alto mar) para conseguir “boas pescarias”, fato<br />
que contribuiria para a <strong>de</strong>sistência <strong>de</strong> muitos pescadores da ativida<strong>de</strong> da pesca.<br />
Há também a poluição do ar causado pela queima do carvão, gerada pelas<br />
diversas ativida<strong>de</strong>s si<strong>de</strong>rúrgicas que, nas dimensões burocrática e propagandística,<br />
<strong>de</strong>stacam a preocupação <strong>de</strong> preservar ou usar técnicas necessárias para essa<br />
queima. De acordo com informações disponíveis na página do Ministério Público<br />
Fe<strong>de</strong>ral na internet, no ano <strong>de</strong> 2008 as obras <strong>de</strong> construção da futura Usina<br />
Termoelétrica MPX Energia/S.A. tiveram suas ativida<strong>de</strong>s paralisadas em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
“evitar que novos impactos ambientais possam surgir, sem o a<strong>de</strong>quado estudo <strong>de</strong><br />
suas proprieda<strong>de</strong>s cumulativas, ao longo da exploração da área do CIPP,<br />
ocasionando danos aos ecossistemas da zona costeira”. Assim:<br />
164<br />
Caso não haja prevenção, a área po<strong>de</strong> ser transformada em uma nova<br />
Cubatão, cida<strong>de</strong> paulista que na década <strong>de</strong> 80 teve altos índices <strong>de</strong><br />
poluição, em razão <strong>de</strong> um complexo industrial, que não foi planejado<br />
ambientalmente, mas somente sob o aspecto econômico, diz a ação. [...]<br />
Para o MPF, os órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos<br />
Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Superintendência Estadual do<br />
Meio Ambiente do Ceará (Semace) não <strong>de</strong>vem conce<strong>de</strong>r licenças<br />
ambientais individuais, mas exigir a realização <strong>de</strong> um estudo <strong>de</strong> toda a área<br />
do Complexo Industrial do Pecém, a partir da elaboração <strong>de</strong> estudo e<br />
relatório <strong>de</strong> impacto ambiental (EIA-Rima) específico. De acordo com o<br />
princípio da precaução, sem um relatório ambiental completo da região não<br />
é possível fazer a exploração da área. (MPF, 2008).<br />
A fala <strong>de</strong> algumas pessoas entrevistadas <strong>de</strong>ixa transparecer o sentimento <strong>de</strong><br />
que teriam sido ludibriadas com a atual situação, pois acreditavam que a poluição<br />
seria algo natural e que a geração <strong>de</strong> empregos superaria esse “lado” ruim, como
ilustra o <strong>de</strong>poimento do morador José Freire: “poluição toda usina tem, mas<br />
emprego também é bom para as pessoas”.<br />
O <strong>de</strong>smonte do modo <strong>de</strong> vida tradicional implica novas formas <strong>de</strong> se<br />
relacionar com o lugar on<strong>de</strong> cresceram, bem como a readaptação às novas<br />
exigências postas pelo cenário repentinamente industrial dado a até então vila <strong>de</strong><br />
pescadores o Pecém.<br />
Quanto aos impactos ambientais, o discurso é <strong>de</strong> que eles não existem, pois<br />
a Legislação Ambiental seria respeitada. Porém, os processos, as ações civis<br />
públicas e as liminares concedidas paralisando as obras da futura Usina<br />
Termoelétrica MPX Energia/S.A no CIPP, por exemplo, constituem evidência <strong>de</strong> que<br />
todo o processo <strong>de</strong> implantação <strong>de</strong>sse projeto está assentado em frau<strong>de</strong>s <strong>de</strong> EIA –<br />
Rimas, em prol dos interesses nefastos da minoria privilegiada que <strong>de</strong>tém o controle<br />
do po<strong>de</strong>r econômico e político do país.<br />
Esta obra reflete, portanto, a clara expressão <strong>de</strong> políticas assentadas na<br />
centralização <strong>de</strong> recursos em pontos estratégicos e privilegiados do território<br />
cearense, favorecendo setores específicos em <strong>de</strong>trimento da população em geral.<br />
Os gran<strong>de</strong>s empreendimentos do setor do turismo, da indústria e da agricultura não<br />
estão em consonância com os interesses da população do Ceará. Tudo está<br />
“voltado para fora”. A quem servirão os suntuosos hotéis, resorts e clubes à beiramar,<br />
por exemplo? O discurso é <strong>de</strong> que os empreendimentos promoverão o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento da economia e proporcionarão maior segurida<strong>de</strong> social ao povo,<br />
porém, as ações dos aparatos públicos e privados <strong>de</strong>ixam transparecer os<br />
verda<strong>de</strong>iros interesses em pauta, quais sejam, a promoção <strong>de</strong> um grupo restrito <strong>de</strong><br />
sujeitos sociais que não me<strong>de</strong> esforços para se perpetuar no po<strong>de</strong>r.<br />
165
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Diante <strong>de</strong> todos os argumentos e discussões expostos até aqui, é chegado o<br />
momento <strong>de</strong> aventuramos alguns apontamentos e reflexões, que ganham ares mais<br />
gerais sobre o caminho das águas em terras cearenses, ou melhor, <strong>de</strong>marcarmos<br />
nosso posicionamento a respeito da transposição das águas do rio Jaguaribe e<br />
conseqüentemente do rio São Francisco para a malha do Canal da Integração.<br />
Ao longo <strong>de</strong> nossa árdua jornada, tentamos apresentar as principais<br />
singularida<strong>de</strong>s e especificida<strong>de</strong>s que se materializam territorialmente no caminho<br />
das águas, neste caso, <strong>de</strong> Cabrobó ao Pecém. Não queremos aqui dizer que as<br />
contradições encimadas na relação capital x trabalho se territorializem em<br />
<strong>de</strong>terminada or<strong>de</strong>m ou seqüência cronológica; este foi apenas um recurso didático<br />
utilizado para melhor compreensão e aclaramento dos rearranjos singulares<br />
impostas pelo capital e viabilizado pelas políticas públicas neste território.<br />
Assim sendo, nos valemos da cronologia utilizada nos pontos <strong>de</strong> trabalho,<br />
para estruturarmos e enca<strong>de</strong>armos nosso pensamento expresso em forma <strong>de</strong><br />
consi<strong>de</strong>rações finais, trazendo à tona as contradições engendradas por essa<br />
dinâmica geográfica dos territórios em disputa. Neste sentido, fazendo um breve<br />
resgate aos nossos interlocutores; tivemos em Cabrobó este que é o marco zero e<br />
início das obras da transposição do rio São Francisco, o <strong>de</strong>svendar da importância<br />
em finalida<strong>de</strong> da presença do exército naquele ponto do território, porque este<br />
artifício é nada mais nada menos, do que uma geoestratégia, uma estratégia<br />
geopolítica para garantir e salvaguardar ao gran<strong>de</strong> capital a efetivação <strong>de</strong>sse<br />
projeto, garantindo assim, o controle da água para o capital.<br />
Em Nova Jaguaribara, pu<strong>de</strong>mos observar o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> fogo do capital, a ponto<br />
<strong>de</strong> realocar toda uma cida<strong>de</strong> e sua população, menosprezando todos os laços <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e afetivida<strong>de</strong> com o lugar, criando, portanto, um espaço totalmente<br />
artificializado sem vida, só com o intuito <strong>de</strong> concretizar os seus objetivos <strong>de</strong><br />
reprodução ampliada dos seus lucros.<br />
Em Figueiredo, a gran<strong>de</strong> questão que nos marcou foram os prefácios <strong>de</strong><br />
uma catástrofe anunciada, que atingirá gran<strong>de</strong> contingente <strong>de</strong> homens e mulheres,<br />
que percebem que tudo que eles lutaram durante suas vidas para construir, às<br />
166
cristalinas águas transpostas para o capital, simplesmente passaram, inundaram e<br />
levaram tudo embora.<br />
No Perímetro Irrigado do Tabuleiro <strong>de</strong> Russas, à gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta, foi a<br />
sacada atual que o capital (agronegócio), tem empreendido para a expansão <strong>de</strong><br />
seus negócios, ou seja, neste momento tanto terra como também água são<br />
elementos indissociáveis para o capital, é nesta perspectiva que no Tabuleiro <strong>de</strong><br />
Russas e na Chapada do Jaguaribe/Apodí, têm-se a constituição do mais novo<br />
negócio, a bola da vez para capital: o agrohidronegócio fruticultor e exportador.<br />
Em Pacajús, vivenciamos um momento emblemático, que fica para a<br />
posterida<strong>de</strong>, e assume a forma material e visual do encontro e entrelace do Canal do<br />
Trabalhador, com o da Integração, uma cena tipicamente cinematográfica em pleno<br />
semi-árido cearense, ironias à parte, o que pu<strong>de</strong>mos observar e extrair <strong>de</strong>ssas<br />
imagens, são as contradições que se escon<strong>de</strong>m e se materializam em forma <strong>de</strong><br />
canais.<br />
Em palavras mais palatáveis, esta imagem nos cancela e nos a referencia a<br />
dizer que à água será levada para on<strong>de</strong> já tem água abundante, po<strong>de</strong>-se perceber<br />
que junto à área mais castigada pelas secas o interior a Oeste no Ceará, ficará fora<br />
<strong>de</strong>sse projeto, em síntese, este foi um dos significados que extraímos <strong>de</strong>sse<br />
entroncamento <strong>de</strong> canais, na <strong>de</strong>sembocadura com o açu<strong>de</strong> Pacajús.<br />
E por fim, Pecém, o último da trajetória do caminho das águas, mas que nem<br />
por isso, tem sua importância arrefecida, em verda<strong>de</strong>, o gran<strong>de</strong> objetivo da<br />
consolidação do caminho das águas no Ceará, longe <strong>de</strong> ser, o atendimento a<br />
população difusa, se corporifica no atendimento dos reclames do capital, neste caso,<br />
no viabilizar do Terminal Portuário e Complexo Industrial do Pecém, assim sendo,<br />
não é água para a população e sim para as gran<strong>de</strong>s indústrias, entre elas, a<br />
si<strong>de</strong>rúrgica Ceará Steel <strong>de</strong> capital misto internacional e que funcionará utilizando às<br />
águas da transposição.<br />
Feito este breve resgate, em linhas gerais, po<strong>de</strong>mos aventurar alguns<br />
apontamentos críticos suscitado pela experiência do <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong>.<br />
Ao nosso ver, o que ficou e está claro, é que este projeto está longe <strong>de</strong><br />
contemplar o seu discurso oficial veiculado pelo governo, <strong>de</strong> <strong>de</strong>stinar a referida água<br />
transposta para saciar a se<strong>de</strong> <strong>12</strong> milhões <strong>de</strong> nor<strong>de</strong>stinos do semi-árido, está longe<br />
<strong>de</strong> ser a tão esperada salvação da fome, da seca e da pobreza no nor<strong>de</strong>ste, via <strong>de</strong><br />
regra, estes dizeres e discurso meramente i<strong>de</strong>ológicos, não passam <strong>de</strong> falácias.<br />
167
Porque, em verda<strong>de</strong>, o que po<strong>de</strong>mos aventurar, é que o Projeto <strong>de</strong><br />
Transposição e interligação <strong>de</strong> bacias (S. Francisco e Jaguaribe), não apresenta a<br />
preocupação para com o acesso a água para as populações locais, porque na<br />
verda<strong>de</strong>, esta não é sua motivação e nem seu objetivo.<br />
Mas, então para quem seria o acesso à água?<br />
A resposta nos parece simples e convicta; pois a água e as estruturas que<br />
se materializam no território, em nome do tão difundido acesso a água para as<br />
populações difusas, nada mais indicam, do que a consolidação dos interesses e<br />
privilégios <strong>de</strong> uma minoria <strong>de</strong>tentora do po<strong>de</strong>r político e econômico.<br />
Em linhas gerais, este projeto <strong>de</strong> transposição nem si quer consi<strong>de</strong>ra e<br />
aten<strong>de</strong> aos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>safios da região, quais sejam: a regularização fundiária, a<br />
<strong>de</strong>sconcentração da terra, o acesso a água para a população e um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento estruturado sobre as bases da agricultura camponesa e<br />
agroecologia.<br />
Não se trata aqui <strong>de</strong> dizer, que somos contra a obra em si, mas sim, contra o<br />
mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> (territorialmente seletivo e socialmente exclu<strong>de</strong>nte), que<br />
escuda os pilares do projeto.<br />
Assim, gostaríamos <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar bem claro, que a leitura que fica <strong>de</strong>ste projeto<br />
proporcionada pela experiência do <strong>Trabalho</strong> <strong>de</strong> <strong>Campo</strong>, é que O gran<strong>de</strong> problema<br />
do Nor<strong>de</strong>ste, não é a seca, não é a falta <strong>de</strong> água, água tem, água há! Como muito<br />
bem dito já por outros, o gran<strong>de</strong> problema é a cerca, ou melhor, a má distribuição, a<br />
monopolização por uma minoria <strong>de</strong> terra e água.<br />
Portanto, como fim um início, pois consi<strong>de</strong>rando os fundamentos que<br />
sustentam tal projeto, a gran<strong>de</strong> questão-chave que nos impõe o <strong>de</strong>ver da reflexão<br />
mais uma vez, é sobre que mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> iremos apostar: essa que está<br />
falida e fadada aos imperativos da barbárie e a <strong>de</strong>sumanização do ser social, ou<br />
apostaremos num outro mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>, cuja suas bases ainda não<br />
encontram-se totalmente <strong>de</strong>finidas, mas que tenha como fundamento básico a<br />
igualda<strong>de</strong> substantiva entre todos os seres humanos.<br />
168
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