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A Casa das Sete Moradas<br />
Valeska Perez Sarti<br />
2
Nosso nascimento não é senão so<strong>no</strong> e esquecimento:<br />
A alma que se alteia em nós, estrela de <strong>no</strong>ssa vida,<br />
Já teve seu pouso em outro lugar<br />
E vem de muito longe<br />
Wordsworth<br />
3
Um<br />
O sol tinha um brilho diferente naquele dia. Por onde passava, um<br />
rastro de solidão ia-se apagando e a chama da re<strong>no</strong>vação começava<br />
ali a habitar. Era como se mil mãos se movimentassem na<br />
distribuição do calor sutil que envolvia o mundo.<br />
Recostada sob a pérgula que distinguia sua casa das outras, Cornélia<br />
observava as distantes montanhas que, em clarões intermitentes, lhe<br />
apresentavam as mudanças das nuvens que recobriam o céu. Ora o<br />
brilho se expandia, vez ou outra uma sombra mais espessa roubava a<br />
transparência dos cumes.<br />
Diziam os moradores de sua ilha que as montanhas íngremes<br />
enfileiradas a distância pertenciam ao rei<strong>no</strong> dos antigos druidas,<br />
povo considerado poderoso naquele território coroado de mistérios.<br />
Cornélia sempre ouvia histórias contadas por seu avô sobre esse<br />
povo, que alguns apontavam como bárbaros, outros, como<br />
poderosos, e, uma boa parte, como criaturas indisciplinadas, mas<br />
fortíssimos cultivadores da magia.<br />
De tudo o que tinha escutado, a face que mais exercia atração na<br />
mocinha era a que se referia aos druidas como gente que sabia<br />
produzir feitos que os homens mais comuns desconheciam.<br />
Portanto, Cornélia sabia que se podia incluir <strong>no</strong> rol das criaturas<br />
apreciadoras do que era considerado “o sobrenatural”.<br />
Pertencia a uma família de gente que cultivava o solo. Seu avô se<br />
havia interessado por tudo o que o solo lhe trazia, como, por<br />
exemplo, informações a respeito de seus antepassados. Ele era um<br />
arqueólogo e amante do povo de Creta.<br />
Sobre os druidas, ele fazia sempre referência a Cornélia, mas<br />
afirmando que havia perecido com eles a força que possuíam nas<br />
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mãos, ou <strong>para</strong> plantar, ou <strong>para</strong> colher, até mesmo histórias sobre um<br />
passado que havia ficado coberto pelos escombros do transcorrer<br />
dos séculos.<br />
Cornélia andava bastante apreensiva. Nos dois dias que antecederam<br />
este em que observava as montanhas mutáveis, algo a havia atraído<br />
com grande insistência. Eram objetos depositados <strong>no</strong> porão de sua<br />
casa, construída num platô magnífico com vistas <strong>para</strong> o mar.<br />
Aquela casa parecia, na verdade, uma e<strong>no</strong>rme pérola branca,<br />
depositada num terre<strong>no</strong> sólido e com uma das faces voltada <strong>para</strong> o<br />
lado em que chegavam as embarcações dos homens do mar. Era<br />
essa a face preferida de Cornélia, e fora ali que ela havia ajudado o<br />
jardineiro Konstantin a erguer a pérgula.<br />
Konstantin era um velho enrugado como um pergaminho, mas de<br />
corpo e músculos rígidos e dourados pelo sol que tomava desde a<br />
manhã até à <strong>no</strong>itinha, quando o sol se punha, e ele, então, seguia a<br />
passos firmes <strong>para</strong> a casa de seus próprios familiares.<br />
O velho jardineiro era o maior amigo de Cornélia. Depois dele,<br />
vinha a filha do homem que cuidava dos cavalos e éguas de seu pai<br />
e também de outros senhores que constituíam uma espécie de<br />
sociedade com ele.<br />
A filha desse cavalariço, Hannah, era uma moça fechadíssima, de<br />
tez pálida e olhos rasgados, o que os tornava mais enigmáticos do<br />
que a própria expressão e palidez da moça.<br />
Diziam algumas criaturas que moravam ali <strong>no</strong> Solarium – assim era<br />
chamada a residência de Cornélia – que Hannah tinha alguma parte<br />
a ver com os demônios.<br />
Só que Cornélia jamais havia feito uma divisão entre deuses e<br />
demônios. Para ela, tudo fazia parte da vida e jamais tinha ouvido<br />
dizer que o Bem e o Mal fossem representados por um ou outro.<br />
Assim, os deuses tinham apenas uma função: oferecer seus recados<br />
nas situações que conviessem; e os demônios eram os deuses que<br />
habitavam <strong>no</strong>s antros mais fundos, porque precisavam prover o<br />
mundo d<strong>aqui</strong>lo que ninguém tinha capacidade <strong>para</strong> realizar. Os<br />
demônios, portanto, não eram os deuses nem do mal e nem das<br />
5
tragédias, mas simplesmente os “armadores” do que era oculto e<br />
“desvencilhadores” dos nós que os próprios homens iam montando<br />
nas estradas.<br />
Isto tudo posto quer dizer que Cornélia apresentava não só uma<br />
preferência por Hannah, mas também se considerava semelhante a<br />
ela nessa parceria entre deuses e demônios.<br />
Entretanto, os moradores daquela ilha já haviam passado por<br />
situações consideradas bem estranhas, e insistiam em apontar<br />
Hannah como a possível “montadora” de seus embaraços. Eram<br />
criaturas ig<strong>no</strong>rantes e supersticiosas, o que abria um certo<br />
afastamento entre elas, Hannah e Cornélia também.<br />
Mas os habitantes do Solarium não deixavam de ser criaturas<br />
simplórias, pacatas e amantes apenas de um deus que cultuavam – o<br />
Sol.<br />
Cornélia era uma meni<strong>no</strong>ta intimorata, arredia e bastante<br />
dominadora. Não naquele tipo de domínio de quem quer comandar.<br />
O seu domínio representava-se apenas em uma palavra - a sua<br />
independência.<br />
Soubesse ser ouvida ou ser consultada, quem com ela convivesse<br />
ganharia todos os agrados dos deuses, isto é, ganharia de Cornélia<br />
os sorrisos mais felizes do mundo. Mas ai daqueles que a<br />
contrariassem, apontando-lhe o caminho que deveria percorrer...!<br />
Talvez por isso ela e Hannah se entendessem às maravilhas. Nesse<br />
aspecto, as duas eram como se tivessem sido moldadas <strong>no</strong> mesmo<br />
tipo de argila.<br />
6
Dois<br />
Quando as nuvens se adensaram e roubaram de seus olhos as<br />
majestosas silhuetas de suas montanhas preferidas, Cornélia saiu de<br />
seu repouso e voltou <strong>para</strong> dentro da moradia.<br />
A casa estava sendo arejada e limpa. Os serviçais distribuíam-se tão<br />
tranqüilamente <strong>no</strong>s afazeres, que Cornélia precisava buscar um<br />
recanto onde se sentisse a própria dona do seu nariz. E isso só era<br />
possível lá <strong>no</strong> porão, que possuía a mesma dimensão da residência,<br />
embora fosse dividido <strong>para</strong> diferentes utilidades: celeiro de<br />
alimentos, reservatório de sementes a serem plantadas, e uma<br />
espécie de abrigo <strong>para</strong> as bugigangas que passavam a ser olhadas<br />
como quinquilharias, à medida que os a<strong>no</strong>s iam transcorrendo.<br />
Ali era o rei<strong>no</strong> de Cornélia. Havia tantos objetos expostos, que<br />
serviam de motivo <strong>para</strong> ir criando em sua cabeça o resumo do que<br />
sua família havia vivenciado.<br />
A mãe de Cornélia tinha sido uma mulher de bela figura e<br />
totalmente diferente dos moradores dali. Branca como os narcisos<br />
que se elevavam <strong>no</strong>s grossos caules, mas cheia de uma melancolia<br />
que ninguém conseguia dissipar. Por mais que a filha e o marido<br />
Diomedes a quisessem enriquecer com seus sorrisos singelos, a<br />
pálida mãe da menina -– que por isso até passou a ser chamada de<br />
Branca – pouco conseguia de tempo <strong>para</strong> ingressar <strong>no</strong> rei<strong>no</strong> de seus<br />
familiares.<br />
Ia entregando-se como aquelas plantinhas que crescem à beira dos<br />
rios, apenas <strong>para</strong> enxergar-se nas águas que Deus dispõe <strong>para</strong> a<br />
fertilidade do solo.<br />
7
Com vinte e cinco a<strong>no</strong>s apenas, Branca suspendeu as imensas asas e<br />
partiu <strong>para</strong> o céu do desconhecido, deixando Diomedes e Cornélia<br />
como se fossem duas embarcações sem remo.<br />
O enterro tinha sido lá <strong>para</strong> a direção das altas montanhas, a pedido<br />
da própria Branca, que não parecia ter apreciado o Solarium,<br />
embora vivesse em paz com todos os habitantes dali. Na verdade,<br />
ela nunca havia deixado de ser uma estrangeira entre todos.<br />
Das mãos de Branca e também de alguns ancestrais de Diomedes,<br />
havia ficado ali, <strong>no</strong> porão, uma série de recordações que Cornélia<br />
gostava de olhar e acondicionar. Com o tempo, o local transformouse<br />
numa espécie de museu da família de Cornélia, tão interessante,<br />
que Diomedes resolveu pôr nele algumas colaborações também.<br />
Foi <strong>no</strong> porão do Solarium que Cornélia começou, então, a viver uma<br />
estranha aventura, repartida por ela apenas com o silencioso<br />
Konstantin, porque tinha muito a ver com a participação de deuses e<br />
demônios.<br />
Quando se descia até o porão, a temperatura também descia alguns<br />
graus, porque o vento não conseguia circular. Apenas uma entrada<br />
bem reta conduzia <strong>para</strong> os degraus dispostos com a única finalidade<br />
de levar os moradores ao espaço reservado, primeiro de tudo, às<br />
utilidades da moradia. Dali, até o “museu” de Cornélia, ela<br />
precisava percorrer um labirinto.<br />
Ela costumava dizer a Hannah que um dia algum gênio benfazejo<br />
por ali também adentraria, <strong>para</strong> colocá-la num corcel mágico e<br />
transportá-la <strong>para</strong> rei<strong>no</strong>s que nem os olhos de seu pai ou de seu avô<br />
haviam avistado. Era esse o único traço de romantismo daquela<br />
menina que contava apenas com doze a<strong>no</strong>s.<br />
Hannah já era mulher. Dizia-se que possuía um filho que morava<br />
também lá <strong>para</strong> os lados das atraentes montanhas.<br />
Foi com um coração transbordante de vida e de alegria que Cornélia<br />
alcançou os objetos enfileirados numa prateleira de tábua rústica.<br />
Ela pensava em acondicionar alguns em uma caixa que seu pai lhe<br />
dera e, depois, transportá-los <strong>para</strong> seus amplos aposentos, <strong>para</strong> que<br />
pudesse pôr os olhos neles mais a miúdo. O pai de Cornélia já havia<br />
8
percebido que a menina estava passando por uma transformação e<br />
teve a idéia de sugerir que guardasse perto de si o que mais lhe<br />
agradasse.<br />
A impressão de Cornélia era que um leve perfume de lavanda ainda<br />
se mantinha <strong>no</strong> primeiro objeto que separou - uma pena de ave<br />
pequenina, enrolada num fio prateado, mas já escurecido pelo<br />
tempo. Vinha espetada numa cortiça em <strong>formato</strong> de cilindro, com<br />
alguns dizeres em língua estranha, na base dessa cortiça.<br />
Ao tocá-lo, <strong>no</strong>tou que havia algo inserido ali. Era uma pérola oculta,<br />
sabe-se lá por quanto tempo. De cor tão bela, que Cornélia imagi<strong>no</strong>u<br />
ter sido extraída de um mar mais profundo do que aquele que os<br />
mergulhadores da ilha costumavam enfrentar.<br />
A pérola perfeita, de nuance rosada, devia ter pertencido um dia a<br />
alguma fada do rei<strong>no</strong> das águas – assim ela ia analisando.<br />
Observou-a bastante, sopesou-a na concha da mão e, depois,<br />
estendeu-a diante de si, <strong>para</strong> admirá-la mais. Foi então que tudo se<br />
transformou.<br />
Como se aquela pérola lhe servisse de firme concentração, foi-se<br />
abrindo em sua fronte algo de que já ouvira falar: uma porta mágica<br />
<strong>para</strong> um mundo exterior e interior ao mesmo tempo. Exterior,<br />
porque se tratava do mundo da vivência dos homens - e interior,<br />
porque era do seu ser, num contato com outra paisagem existencial,<br />
em tempo distinto daquele em que vivia.<br />
Cornélia estava passando pelo portão da Primeira Morada, que ela<br />
nem sabia que se dividia em sete.<br />
9
Três<br />
A donzela era belíssima, toda ornada em estrelas. O manto que a<br />
recobria era todo estrelado e os pés pareciam flutuar acima de<br />
nuvens.<br />
Para a mocinha que contemplava aquela estátua, ela estava<br />
simplesmente pousada acima de um tufo de algodão. Ela sorria <strong>para</strong><br />
a estátua, que também sorria <strong>para</strong> ela. Mas a única diferença<br />
existente entre aquela imagem com outras que já existiam<br />
representando as mulheres era o ador<strong>no</strong> de uma pérola rosada, em<br />
<strong>formato</strong> de gota, num colar pousado em seu colo.<br />
Aquela donzela era a representação de uma divindade do mar. E<br />
quem a olhava? A própria Cornélia.<br />
Cornélia se via lá, transportada <strong>para</strong> um mundo diferente do seu. E<br />
maravilhou-se. Tudo se lhe apresentava porme<strong>no</strong>rizadamente. Sua<br />
roupa era estranha: uma saia longa, uma blusa roxo-lilás, de decote<br />
ousado, brincos pendentes nas orelhas, como o das ciganas. Mas seu<br />
sorriso, ah! o seu sorriso era de mofa.<br />
Não via nenhuma santidade naquela estátua, porque o mundo dela<br />
só possuía deuses e deusas. E eles não eram vestidos assim, porque<br />
nunca eram apresentados como seres huma<strong>no</strong>s. Seus deuses eram<br />
figuras de aves e animais.<br />
Ela ia e voltava diante da estátua. Sentia-se livre como um pássaro.<br />
Sabia que podia dormir sob o manto da <strong>no</strong>ite, sem que alguém lhe<br />
avisasse que já era hora de dormir. Dividia sua vida com várias<br />
mulheres e atribuíam-se as tarefas que gostavam de fazer. Por serem<br />
todas diferentes em gosto, pouco restava a ser feito na razão de<br />
“obrigações”. Todas serviam a todas.<br />
10
Cornélia continuava a visualizar a sua existência. Vivia num<br />
Templo, que era inexpugnável. Para cada uma delas existia uma<br />
minúscula cela, que lhes servia de dormitório, quando queriam. Não<br />
eram prisioneiras. Mais fácil caracterizá-las como ciganas, porque<br />
muitas saíam daquele Templo <strong>para</strong> outros, considerados filiais. Mas<br />
não eram ciganas e sim conhecidas como Vestais.<br />
Não havia homens em suas vidas; eles eram cautelosos com elas,<br />
porque elas pertenciam a um grupo reservado <strong>para</strong> servir deuses e<br />
deusas. Mas, se um ou outro se decidisse procurá-las, ou mesmo<br />
molestá-las, buscavam os horários em que elas serviam fora dos<br />
Templos.<br />
Cornélia reconhecia perfeitamente quais eram suas preferências:<br />
gostava das saias muito longas, que até chegavam a embaraçar seus<br />
passos, mas isso porque caminhava descalça. Mostrar os pés era<br />
falta de consideração <strong>para</strong> quem as procurasse, a fim de lhes pedir<br />
conselhos.<br />
Um estranho ruído, como o do roçar de passos, fez com que<br />
Cornélia saísse do mundo da memória e se sentisse de <strong>no</strong>vo dentro<br />
do Solarium. Dois minutos depois, foi alcançada por Hannah,<br />
avisando-lhe que o pai a convidava a subir, porque havia visita na<br />
casa.<br />
Ela ajeitou uma mecha dos cabelos longos, colocou um xale sobre<br />
os ombros e saiu em busca do pai.<br />
O visitante era considerado habitante do pânta<strong>no</strong> – assim é que<br />
diziam os moradores da ilha, porque não conheciam o local que<br />
tinha sido reservado <strong>para</strong> os recém chegados ao território. Mas não<br />
se tratava de pânta<strong>no</strong> e sim de terras que eram próximas de um rio<br />
que, vez ou outra, transbordava e os deixava assustados. Até então,<br />
nenhum deles se preocu<strong>para</strong> em mudar de lugar, porque amavam<br />
muito aquelas terras.<br />
Se elas possuíam os embaraços das cheias, nem por isso as terras<br />
deixavam de ser férteis. E eles eram amantes das plantações. Suas<br />
casas eram construídas em cima de estacas, de modo que somente<br />
uma subida muito forte das águas conseguiria desabrigá-los.<br />
11
O homem que procurava o seu pai era muito alto. Parecia uma<br />
espiga de milho maduro, visto que os cabelos lembravam o<br />
acobreado das penugens do milho. Tinha também um tufo ruivo <strong>no</strong><br />
queixo afilado, que completava um rosto de expressão amável e<br />
cordial.<br />
Cornélia alcançou o salão, quando o visitante já repousava numa<br />
cadeira de palhas trançadas, num encosto acolchoado em tecido<br />
grosso, mas não feito <strong>no</strong>s teares da casa. Era de uma primeira leva<br />
de tecidos que chegavam por ali, num comércio incipiente feito por<br />
barcos que conseguiam se aproximar do local onde fora construído o<br />
Solarium.<br />
O homem que pareceu a Cornélia uma espiga de milho empinado<br />
apresentou-se:<br />
- Sou o chefe de uma expedição que sairá deste território <strong>para</strong> um<br />
não avistado d<strong>aqui</strong> – e ele apontou <strong>para</strong> Cornélia as montanhas que<br />
sempre a haviam encantado, porque pertenciam aos mistérios de um<br />
mundo que tanto a agradava.<br />
Cornélia olhou-o extasiada e até com uma pontinha de inveja.<br />
Aquela era uma liberdade que ela teria, se não fosse uma garota e se<br />
pudesse vestir-se como os homens, <strong>para</strong> poder viajar.<br />
O pai logo adivinhou a expressão da filha, dividida entre o anseio de<br />
fazer o mesmo, ou ter de continuar a realizar as tarefas que o mundo<br />
havia ofertado <strong>para</strong> ela.<br />
Mas ela se surpreendeu muito, ao ouvir Diomedes dizer<br />
simplesmente que ia mandar Konstantin com o senhor Péricles – o<br />
visitante –, a fim de que o serviçal comprasse objetos e ferramentas<br />
<strong>para</strong> a casa, e perguntar-lhe:<br />
- Quer acompanhar Konstantin nesta viagem? Estando na<br />
companhia dele e do senhor Péricles, tenho confiança de mandá-la,<br />
porque você precisa também fazer alguma escolha de tecidos <strong>para</strong><br />
mim.<br />
Um misto de dúvida e de desejo apresentou-se tão forte em sua<br />
expressão, que Konstantin reforçou:<br />
12
- A senhorita poderá estar tranqüila, quando se afastar de seu pai. E,<br />
se desejar, pode, inclusive, levar uma criada a seu dispor.<br />
- Não temos criadas <strong>aqui</strong>, Konstantin – ela brincou com ele. - Os<br />
<strong>no</strong>ssos serviçais são tão antigos, que já fazem parte de <strong>no</strong>ssa família.<br />
Mas... - ela titubeou – ... se meu pai me permitir mesmo viajar, e<br />
vou gostar muito!, queria levar comigo a Hannah – e olhou <strong>para</strong> o<br />
pai pedindo aceitação.<br />
Diomedes pousou as mãos <strong>no</strong>s joelhos e asseverou:<br />
- Então está combinado. O senhor Péricles avisa quando parte,<br />
enquanto você se pre<strong>para</strong>.<br />
Cornélia jamais havia imaginado quão distantes ficavam as<br />
montanhas por eles chamadas de Três Estribos.<br />
O território que começaram a percorrer era quase desértico, mas<br />
provido de pousadas ao longo de trilhas construídas <strong>para</strong> os<br />
aventureiros que se atreviam a pôr os pés por ali. Atreviam-se, sim,<br />
porque nem todas as criaturas que o atravessavam eram cumpridoras<br />
do que se diz respeito aos semelhantes.<br />
Homens rudes, bandoleiros ávidos, mercadores volúveis, piratas de<br />
terras, enfim, uma quantidade de tipos huma<strong>no</strong>s tão variada, que<br />
somente com vigilância constante se conseguia sobreviver.<br />
Mas Cornélia seguia eufórica. A confiança ilimitada em Konstantin,<br />
e a certeza de que os melhores caminhos seriam escolhidos pelo<br />
senhor Péricles, constituíam a dupla força com que se via<br />
presenteada. E <strong>para</strong> os caminhos do coração contava com a<br />
silenciosa Hannah – o que <strong>para</strong> Cornélia já era suficiente, pois<br />
também gostava de manter a privacidade.<br />
Dias e <strong>no</strong>ites se passaram, a pé e por águas, escapando em alguns<br />
dos perigos e, em outros, banqueteando-se com os espaços livres e<br />
sublimes da majestosa natureza. Até que avistaram a região mais<br />
bela que seus olhos jamais imaginavam existir.<br />
O lugar dividia-se sem cercas e sem fronteiras. Tudo era repleto de<br />
plantações e de flores. Casas pequenas, mas de aparência<br />
13
confortável, expunham telhados de ardósia por entre a vegetação<br />
verde e exuberante.<br />
Às vezes, sobressaíam-se telhados minúsculos, porque se tratava dos<br />
celeiros de herdades maiores e muito bem cuidadas, com vinhedos<br />
em larga extensão do território.<br />
Não existiam estradas amplas, apenas trilhas que se iam alargando, à<br />
medida que um grupo por ali viajava. E o grupo do senhor Péricles<br />
era numeroso e mostrava-se disposto a marcar aquele território com<br />
sua presença. Facas, facões e machados iam abrindo clareiras e<br />
delineando <strong>no</strong>vas trilhas, bem mais largas que as existentes.<br />
Cornélia nem <strong>no</strong>tou que, durante aquela travessia, quase um a<strong>no</strong><br />
havia escoado e que ela estava completando o seu décimo terceiro<br />
aniversário.<br />
Foi exatamente com esta idade que chegou ali em Nazaré.<br />
Naquela <strong>no</strong>ite, dormiu da forma que mais a agradava – coberta<br />
apenas pelo manto das estrelas.<br />
Dali, a caravana do senhor Péricles ia prosseguir <strong>para</strong> se aproximar<br />
mais das montanhas, mas Cornélia foi tomada de uma ansiedade<br />
incomum. Não desejava mais continuar a viagem.<br />
Seus sonhos de menina, que a convidavam a conhecer o território<br />
dos druidas, esvaneceu-se. Nem as montanhas dos Três Estribos<br />
faziam mais o seu coração pulsar fortemente. Agora, o palpitar dele<br />
e o sangue que lhe afluía ao rosto tinham algo a ver com o que<br />
viveria ali. Ela sabia, ela intuía que aquele lugar levaria <strong>para</strong> a sua<br />
vida algo semelhante ao que lhe havia sucedido ao contemplar a<br />
pérola rosada, lá <strong>no</strong> Solarium.<br />
14
Ah! o seu coração ia mudar. Exatamente isto fez com que se<br />
recusasse a continuar. Por ela, permaneceria <strong>para</strong> sempre em<br />
Nazaré.<br />
15
Quatro<br />
O barulho de estacas sendo fortemente golpeadas <strong>para</strong> perfurar o<br />
duro solo a acordou.<br />
Crianças corriam brincando, mulheres conversavam numa algaravia<br />
diferente, tão diferente, que a apavorou e a levou a levantar-se.<br />
Correu à procura de Hannah, mas não a encontrou. Apenas viu <strong>no</strong>s<br />
olhos de um estranho que a observava alguma coisa que lhe dizia<br />
que não era um estranho completamente. O que seria?<br />
Quando pensou em lhe perguntar, viu aproximar-se dela uma<br />
mulher tão branca quanto o leite das cabras. E ela a olhava como se<br />
a conhecesse. Mas Cornélia assustou-se, quando a ouviu dizer:<br />
- Venha, Nazira! Seu tio quer conversar com você. Ele vai de <strong>no</strong>vo<br />
enfronhar-se pelo deserto e quer saber se você se interessa por essa<br />
viagem.<br />
Cornélia olhou-a atarantada, sem saber se devia contrariá-la,<br />
dizendo que seu <strong>no</strong>me não era Nazira. Mas preferiu calar-se. Como<br />
saber se podia confiar naquela estranha?<br />
Pouco depois, um árabe quase da altura da abertura que servia de<br />
porta <strong>para</strong> a tenda saiu dali.<br />
- Então, minha filha – ele disse, afagando-lhe os cabelos ruivoclaros<br />
– , como se sente hoje? Ficamos todos preocupados com você<br />
por muitos dias. E tanto, que pensei que vai ser melhor tirar você<br />
deste território <strong>para</strong> um outro de clima mais ame<strong>no</strong>. Sua tia Amine<br />
lhe fará companhia e...<br />
- Não!! Eu não quero ir! – Cornélia exclamou com fúria. – Eu quero<br />
voltar lá <strong>para</strong> Nazaré.<br />
16
- Nazaré??? – perguntou Kalil, franzindo o cenho. – E quem foi que<br />
lhe disse que existe um lugar chamado Nazaré?<br />
- Ora, nem precisavam me dizer, pois foi de lá que eu vim...<br />
O homem balançou a cabeça, pôs-se pensativo e então comentou<br />
com a mulher que o ladeava:<br />
- Você ouviu, Amine? Acho que as febres foram muito altas. Acho<br />
que por pouco ela não morria. Até está...e apontou a têmpora direita,<br />
girando levemente o dedo indicador. Bem, bem, isto não importa.<br />
Apenas reforça a minha idéia de tirá-la d<strong>aqui</strong>. E então comandou:<br />
- Arrume todos os pertences dela, Amine, está resolvido, ela vai<br />
comigo!<br />
- Mas... e a Iasmine? Como fica? – indagou a mulher, preocupada. –<br />
Ela vai ficar doente, se perder a amiguinha.<br />
- Oras! O homem puxou um dos lóbulos da orelha. Ah, já sei,<br />
Iasmine segue com ela. Não é uma boa solução?<br />
- Mas a mãe da Iasmine vai se enfurecer, Kalil, ela tem pla<strong>no</strong>s <strong>para</strong><br />
a filha – a mulher argumentou.<br />
- Pla<strong>no</strong>s faço eu!!! – gritou o árabe, já decidido. – Nazira precisa<br />
sair d<strong>aqui</strong>. Não quero mais ouvi-la dizer que veio de Nazaré –<br />
completou aborrecido.<br />
Cornélia olhou-o tristonha. Percebeu que nem tudo podia confessar.<br />
Talvez nem mostrar <strong>para</strong> ele a pérola bonita que um mercador havia<br />
oferecido <strong>para</strong> ela, <strong>no</strong> dia em que a febre a atacou. O árabe ia achar<br />
que a pérola tinha sido responsável por sua doença, então ela não ia<br />
mostrá-la <strong>para</strong> ninguém. A pérola era dela, sim, Cornélia, e não<br />
Nazira. D<strong>aqui</strong>lo ela não ia abrir a mão.<br />
O sacolejar do camelo entregava a Cornélia tanto so<strong>no</strong>, que um<br />
árabe, Antúlio, havia sido indicado por seu tio como acompanhante<br />
dela naquela caminhada. Kalil havia improvisado uma sela<br />
diferente, de modo que Antúlio ia guiando e ao mesmo tempo<br />
17
am<strong>para</strong>ndo, cada vez que ela amolecia e quase despencava da altura<br />
do camelo.<br />
Aquele so<strong>no</strong> constante e ingrato a fazia acordar aos gritos, na garupa<br />
do camelo de passadas silenciosas. E Antúlio a observava atento,<br />
sabendo que na alma daquela menina um mundo diferente ia junto<br />
se revelando.<br />
Este árabe pertencia a um grupo do deserto já pre<strong>para</strong>do <strong>para</strong><br />
adentrar ensinamentos além dos habituais, porque a alma dele era<br />
exatamente igual à dela. Antúlio também conseguia entrar <strong>no</strong>s<br />
labirintos de sua memória. A única dádiva que ele não possuía era a<br />
de rememorar os <strong>no</strong>mes dos locais pelos quais havia levado suas<br />
existências pregressas. E ele ficava maravilhado com a bênção<br />
recebida pela menina que, um dia, por entre a so<strong>no</strong>lência da<br />
caminhada, murmurava entre soluços que seu <strong>no</strong>me era Cornélia e<br />
que era de Nazaré.<br />
Infelizmente, essa viagem programada por Kalil a arrebatou <strong>para</strong><br />
sempre da companhia de Antúlio.<br />
O que havia sucedido?<br />
Uma nuvem de areia vinha seguindo a caravana de Kalil a distância<br />
já fazia alguns dias. Raptores do deserto interessaram-se por eles,<br />
pois pareciam possuir bens materiais.<br />
Como raposas meticulosas, acompanharam dias e <strong>no</strong>ites o itinerário<br />
de Kalil, aguardando a melhor oportunidade de tomarem <strong>para</strong> si o<br />
que aqueles homens carregavam.<br />
Quando a caravana já se aproximava do povoado que lhes servia<br />
<strong>para</strong> descansarem, <strong>para</strong> se abastecerem e aos animais, o bando de<br />
ferozes beduí<strong>no</strong>s alcançou-os e empenharam uma luta encarniçada.<br />
Salvaram-se poucos e, entre eles, Cornélia, porque foi escolhida<br />
<strong>para</strong> servir de presente a um dos amigos dos assaltantes. Iasmine<br />
conseguiu ocultar-se, de modo que aguardou o final da rapina e,<br />
quando a <strong>no</strong>ite já caía, saiu à procura de sobreviventes. Conseguiu<br />
prestar cuidados a Antúlio, o que lhe valeu a vida. O restante do<br />
grupo estava perdido <strong>para</strong> eles.<br />
18
No harém de um sheik, encontrava-se Cornélia. Era uma mocinha<br />
de seus quinze a<strong>no</strong>s. Os bastos cabelos, o corpo esguio, a pele<br />
sedosa e os olhos brilhantes não lhe serviam como apresentação de<br />
uma beldade atraente ou desejável. A fúria que encaravam em seus<br />
olhos era terrivelmente assustadora. Necessário seria que se visse<br />
frente a frente com outra pantera, que conseguisse domesticá-la.<br />
O sheik que a recebera de presente se havia enfurecido também,<br />
quando se viu arranhado <strong>no</strong> rosto por aquela garota. Só não mandou<br />
eliminá-la, porque se considerava um grande domador e porque<br />
resolveu que poderia pregar uma peça em um de seus amigos, que<br />
também possuía um harém, entregando-a <strong>para</strong> ele. Os dois eram<br />
amigos desde a infância e acostumados a pregar peças um <strong>no</strong> outro.<br />
Não era raro se encontrarem <strong>no</strong> cruzar das caravanas e dividirem,<br />
então, o tempo, os alimentos e as mulheres.<br />
Portanto, Cornélia foi resguardada apenas <strong>para</strong> que este sheik –<br />
Abzis – levasse um desafio ao amigo Omar, que era conhecido por<br />
alguns como um homem humanitário.<br />
Abzis, de antemão, já se via até sorrindo, ao imaginar que um dia<br />
Omar chegaria até ele com o rosto todo lanhado, como aconteceu<br />
com ele, na <strong>no</strong>ite que intentara se abrigar na tenda daquela beldade.<br />
Cornélia já estava servindo de chacota <strong>para</strong> esse árabe, que se<br />
julgava paciente. Só que desconhecia a paciência e a astúcia que<br />
também moldavam a alma de Cornélia.<br />
Uma forte tempestade atingiu as duas caravanas – de Abzis e de<br />
Omar – perto de um oásis que procuravam sempre <strong>para</strong> o encontro<br />
anual.<br />
Ainda que o vento atingisse com força esses homens indômitos,<br />
nunca hesitavam. Pre<strong>para</strong>vam suas tendas, como se o açoite da<br />
natureza fosse uma simples birra de crianças.<br />
Omar alcançou o oásis dois dias antes do encontro. Sua tenda era<br />
cheia de cuidados, porque contava com a ajuda de várias mulheres<br />
19
que não temiam as intempéries. Eram suas mulheres na divisão de<br />
corpos e de trabalhos também. Mesmo a considerada favorita era<br />
olhada com respeito pelas companheiras. Não existia um clima de<br />
disputas naquela caravana.<br />
Já a de Abzis não contava com a mesma harmonia, porque ele era<br />
olhado como um fanfarrão, embora destemido nas lutas. Gostava de<br />
vangloriar-se de sua força e de sua pertinácia, mas parecia não<br />
conhecer um tostão sequer das inúmeras mulheres que compunham<br />
o seu harém e que atravessavam o deserto com ele.<br />
Quando a tenda de Abzis estava sendo montada, a <strong>no</strong>ite já ia<br />
avançada. Abzis precisou adiar a entrega de seu "presente".<br />
Mas o dia seguinte amanheceu inquietante, com um céu plúmbeo e<br />
o prenúncio de tempestade. Clarões desenhavam-se <strong>no</strong> espaço,<br />
lembrando fogos-fátuos, e a lua crescente se exibia empinada <strong>no</strong><br />
céu, <strong>no</strong> seu eter<strong>no</strong> ciclo mágico.<br />
Omar foi o primeiro a se movimentar, saindo de sua tenda e<br />
plenamente seguro de que algo favorável lhe iria suceder. Possuía a<br />
rara qualidade de antecipar situações, tristes ou agradáveis, mas <strong>para</strong><br />
tudo conseguia uma boa explicação.<br />
Ao ouvir os primeiros ruídos na caravana de seu amigo, resolveu<br />
caminhar até a tenda de Abzis. Deteve-se a meio do caminho,<br />
porque avistou uma mocinha correndo em direção à fonte de águas,<br />
que era a maior riqueza dali.<br />
Pareceu-lhe estar diante de uma gazela tímida, já que procurava as<br />
águas sozinha e, <strong>para</strong> os habitantes do deserto, era comum a divisão<br />
de tudo, até dos banhos.<br />
Ao vê-lo, Cornélia o encarou e em seguida desfaleceu.<br />
Passos apressados seguiam a jovenzinha, de modo que Omar pôde<br />
aproximar-se, sem levar constrangimento ao grupo recém chegado.<br />
A mulher que ia ao encalço de Cornélia era a favorita de Abzis,<br />
Nadja. Forte, graúda, alta, com um corpo quase atlético, apanhou<br />
facilmente a garota <strong>no</strong>s braços, <strong>no</strong> momento em que Abzis deixava<br />
sua tenda, porque tinha ouvido as exclamações de espanto de Nadja.<br />
20
Foi desta forma o encontro dos amigos e Abzis não se viu<br />
favorecido <strong>para</strong> completar os seus pla<strong>no</strong>s, porque <strong>no</strong>tou a expressão<br />
de espanto e, ao mesmo tempo, de admiração de Omar <strong>para</strong><br />
Cornélia.<br />
- Quem é essa criança, Abzis? - Omar indagou.<br />
- Criança?? Deixe disso, meu amigo. Não imagina os embaraços que<br />
me vem causando. Eu...<br />
O tiro lhe saía pela culatra. Depois daquela afirmativa, jamais<br />
poderia alegar a Omar que a jovem era um bom presente reservado<br />
<strong>para</strong> ele.<br />
- Mas de onde ela vem? - insistiu Omar.<br />
Cornélia, que nesse meio tempo já voltara à consciência e já exigia<br />
que Nadja a colocasse <strong>no</strong> chão, esclareceu:<br />
- Costumam me chamar de Nazira, mas meu <strong>no</strong>me verdadeiro é<br />
Cornélia e eu sou de Nazaré.<br />
Naquele dia, Omar a tomou como filha e os dois teriam muito a se<br />
dizer pelo resto de suas vidas.<br />
Cornélia havia entrado em sua Segunda Morada, em época que<br />
antecipava exatamente esta em que vivia com o <strong>no</strong>me de Cornélia.<br />
Daí, a própria confusão que fazia com os <strong>no</strong>mes.<br />
21
Cinco<br />
- Cornélia! Cornélia! – Hannah sacudia-lhe o braço, preocupada<br />
com o olhar vazio da amiga. O que sucedeu? Não se sente bem?<br />
Não vê que a <strong>no</strong>ite já desceu e que já é quase hora da refeição?<br />
Saindo de um torpor esquisito, Cornélia levantou-se e foi <strong>para</strong> o<br />
terraço olhar o mar. As águas tranqüilas desenhavam pequeninas<br />
ondas que iam bater nas rochas, de onde ela e a amiga muitas vezes<br />
saltavam <strong>para</strong> um bom mergulho.<br />
Cornélia agora já estava com dezesseis a<strong>no</strong>s e suas preocupações<br />
voltavam-se aos caprichos que ela pensava que a vida oferecia às<br />
pessoas. E ainda não sabia se deveria fazer de Hannah confidente<br />
dos estranhos eventos que a assaltavam, quando se punha a fixar a<br />
pérola que um dia havia pertencido a sua mãe.<br />
Aquilo a transportava <strong>para</strong> zonas desconhecidas de sua mente,<br />
comprovando-lhe que existia dentro dela algo que a afastava dos<br />
acontecimentos pueris do dia-a-dia. Mas, se contasse a Hannah tudo<br />
o que havia vislumbrado em suas saídas (ou entradas?) fora dali,<br />
talvez a amiga passasse a olhá-la como os outros, repudiando-a<br />
também, porque Hannah detestava quando ouvia alguém chamá-la<br />
de demoníaca.<br />
Hannah agora já havia adquirido um corpo redondo, de mulher<br />
entrada na maturidade. A tendência à obesidade ia conseguindo<br />
roubar-lhe as formas anteriormente esculturais e o rosto também ia<br />
adquirindo um volume diferente, o que fazia Cornélia achar que se<br />
tratava de uma certa displicência da amiga em tor<strong>no</strong> da vaidade.<br />
No entanto, entre as duas jamais havia sido modificada a afeição<br />
agradável que costuma unir duas almas iguais, embora diferentes<br />
pela situação de nascimento oferecida a elas <strong>no</strong> mundo terre<strong>no</strong>.<br />
22
Hannah possuía as mesmas predisposições <strong>para</strong> entender “o oculto”,<br />
“o sobrenatural”, mas sentia-se tolhida pela responsabilidade que<br />
julgava deveria estender <strong>para</strong> aquela moça de família feliz, à qual se<br />
unira quando havia perdido, de uma vez, a família e o próprio<br />
filhinho – que lhe tinha sido roubado do lado da cama em que<br />
dormia.<br />
Hannah jamais havia contado <strong>para</strong> Cornélia a série de infelicidades<br />
domésticas de que tinha sido alvo, e exatamente quando possuía a<br />
mesma idade que Cornélia alcançava agora. Era uma mulher de<br />
alma sofrida, amadurecida, embora nem houvesse atingido uma<br />
idade que a pudesse caracterizá-la como madura.<br />
Mas ela o era, sim, na alma e <strong>no</strong>s bens singelos que guardava <strong>no</strong><br />
peito, e que se tratava de afeição verdadeira por algumas criaturas.<br />
Havia sido apaixonada pelo homem que um dia lhe dera um filho e<br />
que, na calada da <strong>no</strong>ite, havia mandado que alguém o furtasse,<br />
porque desejava apenas o filhinho, mas não a responsabilidade de<br />
organizar uma família, ao lado de Hannah.<br />
Os familiares desse rapaz, Dionísio, eram pobres mas honrados, e<br />
jamais permitiriam que ele deixasse de assumir o “posto de pai”, se<br />
viessem a saber que ele andara deixando um fruto seu, <strong>no</strong> ventre de<br />
Hannah. E por saber isto muito bem, o que Dionísio fez? Pegou a<br />
criancinha e alegou ao pai que ia viajar em busca de trabalho.<br />
Mudou de local e de desti<strong>no</strong> também. Nem o remorso o corroeu e<br />
nem a lembrança de Hannah o comoveu.<br />
Portanto, enquanto Hannah ia vivendo com a família de Cornélia,<br />
Dionísio – o amor de Hannah – caminhava sozinho pelo mundo,<br />
sentindo-se perseguido pela frieza do fado.<br />
- O que quer de mim, Hannah? – disse Cornélia, depois que se<br />
recompôs com a bela vista das montanhas dos Três Estribos. - É<br />
algum recado de meu pai?<br />
- Não é nada disso. Mas você anda tão distraída, que nem se<br />
lembrou que amanhã é dia de sairmos com as embarcações <strong>para</strong> o<br />
alto mar. Antigamente você era a primeira a escolher os enfeites<br />
<strong>para</strong> seu pai. Agora, nem se recorda que um dia viajamos com o<br />
23
Konstantin <strong>para</strong> a compra de tecidos <strong>no</strong>vos e que voltou com um<br />
monte de enfeites <strong>para</strong> essas ocasiões.<br />
- É verdade, Hannah. É que poucas vezes tenho ido ao porão, agora<br />
que trouxe meus objetos preferidos <strong>para</strong> cá e...<br />
Hannah sabia muito bem do que se tratava, pois podia <strong>no</strong>tar o<br />
domínio que alguns daqueles objetos exerciam em Cornélia. Só não<br />
conseguia perceber qual era a medida desse domínio e nem por que<br />
Cornélia quase os idolatrava. Às vezes chegava a pensar que eram<br />
fantasias da mocinha e que era chegada a hora de aconselhá-la a sair<br />
<strong>para</strong> olhar a vida lá fora. E só por essa razão tentou levar a conversa<br />
<strong>para</strong> esse rumo.<br />
- Conte <strong>para</strong> mim, Cornélia, qual valor você vê nestes enfeites tão<br />
gastos pelo rolar dos a<strong>no</strong>s?<br />
Meio sem jeito, ela respondeu:<br />
- Não é por eles, não. Não dou valor nenhum a pérolas, rubis ou às<br />
conchinhas. Mas eles me calam <strong>aqui</strong> bem fundo – e ela apontou o<br />
coração.<br />
- E não quer me dizer por quê? Quem sabe eu sou capaz de ajudar<br />
você, <strong>para</strong> que... você... volte a sorrir. Não sei se já reparou que nem<br />
sabe mais sorrir, Cornélia.<br />
Cornélia olhou-a atônita. Não havia re<strong>para</strong>do se sabia sorrir ou não.<br />
- Está certo, Hannah. Vou pensar nisso que está me avisando. Mas...<br />
amanhã ainda vai dar tempo <strong>para</strong> a gente enfeitar as embarcações.<br />
Eu me lembro mesmo que comprei metros e metros de fitas, de<br />
tecidos e muitas pedrarias <strong>para</strong> os <strong>no</strong>ssos arranjos, naquela viagem<br />
com o Konstantin.<br />
- Que, por sinal, anda até meio apático, Cornélia. Não tenho visto<br />
você conversando com ele e... com ele eu sei que você sabe sorrir,<br />
isto eu admito.<br />
As duas amigas deixaram os aposentos de Cornélia e desceram <strong>para</strong><br />
a sala de refeições.<br />
24
A casa de barcos de Diomedes estava agitada. Após a refeição<br />
<strong>no</strong>turna, os moradores do Solarium reuniram-se por lá, cada um<br />
querendo oferecer seus préstimos <strong>para</strong> a padroeira dos navegantes.<br />
Hannah distraía-se compondo flores miúdas em tecidos que<br />
aprendera a tingir, e ia distribuindo essas flores em diversos matizes<br />
nas fitas que, depois, seriam presas <strong>no</strong> barco do Konstantin. O que<br />
se dizia “barco do Konstantin” era um veleiro peque<strong>no</strong>, construído<br />
por ele em madeira entalhada, e que seria ofertado na procissão<br />
com o <strong>no</strong>me de Cornélia.<br />
Ali, de conversa em conversa, Cornélia decidiu contar <strong>para</strong> Hannah<br />
uma parte do que andava acontecendo com ela. Mas foram<br />
interrompidas por uma velha senhora, Anúbia, responsável pelo<br />
andamento perfeito do Solarium.<br />
Cornélia não ficou sabendo até que ponto Anúbia a ouviu esclarecer<br />
sobre suas visões de outras existências. Avistou <strong>no</strong>s olhos da velha<br />
senhora uma sombra de medo? Ou, talvez, um toque de admiração,<br />
por ter descoberto também um segredo seu? Anúbia assistira o seu<br />
nascimento e tinha sido a primeira a carregá-la, após o parto, <strong>para</strong><br />
depositá-la <strong>no</strong>s braços de seu pai. Era serviçal do Solarium desde o<br />
casamento de Diomedes com Branca.<br />
Só mais tarde, bem mais tarde mesmo, Cornélia descobriu que<br />
Anúbia fazia parte do rol das criaturas que buscavam o<br />
conhecimento de fatos incomuns, como Cornélia e como Hannah<br />
também.<br />
25
Seis<br />
Multiplicaram-se dias, meses, a<strong>no</strong>s. Cornélia já não era a garota que<br />
vivia a pesquisar os seus dons interiores. Tornara-se esguia, alta e<br />
bastante calada. Podia-se até dizer que havia herdado de Branca a<br />
quietude se não a amargura também. Não a amargura de<br />
ressentimentos ou causada por tristezas, mas aquela que pode ser<br />
definida como o buscar de algo que venha a abrir os mistérios da<br />
Criação.<br />
Portanto, era uma sintonia que brotava da alma de Cornélia e que<br />
exigia dentro dela – mais do que em outras mulheres – uma<br />
Revelação sobre os anjos e demônios do mundo.<br />
Ela continuava a crer que os fios entrelaçados pelo desti<strong>no</strong> tinham<br />
uma explicação que podia ser alcançada por todos os mortais que<br />
vestiam na Terra os trajes do Criador, sem exceção. E o Criador<br />
<strong>para</strong> ela ainda era representado pela figura do Sol Reluzente, mas<br />
transcendente também, porque inviolável, ativo e gerando toda<br />
espécie de vida que o mundo se cansa de apresentar.<br />
As riquezas do solo, do céu, da terra, das águas, tudo necessitava<br />
daquele calor gerador que seu Deus ia entregando <strong>para</strong> o mundo. E<br />
nunca lhe passava pela idéia que os raios da lua ou o brilho singelo<br />
dos pirilampos deixassem de ser também a manifestação concreta<br />
do Deus Sol, alado, girando por mundos diferentes a compor as<br />
mais variadas manifestações que os olhos dos homens podem<br />
alcançar, exatamente porque ele cobre os mundos, o infinito, as<br />
galáxias, as estrelas, enfim, todo o movimentar do Universo.<br />
Assim, já feita moça, um dia Cornélia desejou voltar a Nazaré. A<br />
sensação nítida de que a ida dela <strong>para</strong> lá ainda meni<strong>no</strong>ta tinha sido<br />
um princípio de que algo miraculoso e bom ia lhe suceder ainda<br />
26
persistia. Conhecer Nazaré, junto a Konstantin, tinha sido um<br />
preâmbulo e, agora, precisava deixar a própria vontade comandar.<br />
Seu pai Diomedes já andava cansado, tomado por uma doença<br />
prog<strong>no</strong>sticada como gota. Tornara-se macambúzio e muito fechado.<br />
Deixava-se inúmeras vezes recostado, ao sol, apenas comandando<br />
seus desejos com ordens apáticas, que nem sempre lhe traziam os<br />
melhores resultados.<br />
Portanto, Cornélia já perto de seus 23 a<strong>no</strong>s passou a tomar as rédeas<br />
do Solarium. Anúbia precisou ser substituída por uma mulher mais<br />
jovem, que extrapolava em saúde e vigor. E Konstantin não mais<br />
cuidava do jardim e nem mais exercia a função de cavalariço. Era<br />
ainda o seu maior amigo, mas passara simplesmente a fazer<br />
a<strong>no</strong>tações de sua vida ali <strong>no</strong> Solarium. Já estava cansado também.<br />
Capacitada <strong>para</strong> seguir até Nazaré, partiu. Ia ser seguida da saudade<br />
por todos aqueles a quem amava. Hannah também não a<br />
acompanhou; ia servir a seu pai. Já tinha sido procurada pelo<br />
homem que tanto a infelicitara, Dionísio, e que se incumbira (pelo<br />
me<strong>no</strong>s n<strong>aqui</strong>lo!) de entregar-lhe <strong>no</strong>tícia do desaparecimento do<br />
filhinho, que ele julgava morto.<br />
Mas o que nem o pai da criança sabia era que o meni<strong>no</strong> estava<br />
sendo criado por um <strong>no</strong>bre roma<strong>no</strong>.<br />
O que havia acontecido?<br />
Um homem ilustre - um pai de um meni<strong>no</strong> também - pediu a uma<br />
serviçal de sua casa <strong>para</strong> lhe trazer um bebezinho, visto que o dele<br />
havia morrido ao nascer, e ele desejava ocultar o fato à esposa.<br />
A serva, de <strong>no</strong>me Irina, conhecia Dionísio desde a infância. Sempre<br />
tinha sido fascinada por aquele rapaz, que era robusto desde garoto,<br />
e de olhos lumi<strong>no</strong>sos e cabelos diferentes dos daquela gente que<br />
morava por aqueles territórios.<br />
Irina nutria uma paixão desmedida por Dionísio, cuja vida ela havia<br />
acompanhado a distância, mas bem perto de seu coração. Ela<br />
conhecia o ato injusto cometido por ele a Hannah. Decepcio<strong>no</strong>u-se<br />
27
tanto, que entregou ao coração uma grande amargura, mas esta<br />
provocada por grande ressentimento.<br />
Quando seu senhor lhe pediu <strong>para</strong> trazer uma criança, Irina não se<br />
negou a colaborar. Numa madrugada escura e bastante imprudente<br />
<strong>para</strong> ela, penetrou furtivamente na cabana de Dionísio, que dormia<br />
pesadamente. Cobriu o bebê de Hannah num xale e levou-o embora.<br />
Partiu rápida <strong>para</strong> a casa de seu senhor e, ao entregar-lhe o meni<strong>no</strong><br />
de Hannah, recebeu uma sacola cheia de moedas de ouro, que lhe<br />
permitiriam viver na abastança até a sua velhice. Mas havia<br />
recebido um aviso: caso o seu senhor ou algum de seus amigos a<br />
avistasse por aqueles territórios, ela perderia a vida.<br />
Portanto, nem Dionísio ou Hannah sabiam que o bebê desaparecido<br />
estava sendo cuidado por uma <strong>no</strong>bre família de roma<strong>no</strong>s, e havia<br />
recebido o <strong>no</strong>me do suposto pai. Era um garoto robusto, cheio de<br />
saúde, indômito e, ainda meni<strong>no</strong>te, não aparentava a idade que<br />
possuía: parecia um quase homem, de pele marcada pelas espinhas<br />
da adolescência, mas com postura de príncipe, quando envergava os<br />
trajes que seu pai (adotivo) lhe mandava confeccionar.<br />
A casa de Cornélia, em Nazaré, era ampla e considerada uma<br />
vivenda de veraneio dos habitantes do Solarium. Mas bem poucas<br />
vezes tinha conseguido reunir o pessoal que vivia tão<br />
tranqüilamente <strong>no</strong> lar dos antepassados de Diomedes. Não era<br />
provida de porão e nem do silêncio doce que contornava todo o<br />
Solarium, porque permitia que os ruídos e as manifestações da vida<br />
ativa lá fora alcançassem as janelas de seu amplo quarto, também<br />
acrescido de belo terraço. Erguia-se sobre rochas. Os perfumes, o ar<br />
puro e a claridade límpida do Solarium ali se repetiam.<br />
Mas logo que chegou, o coração de Cornélia começou a bater<br />
intranqüilo. Aquela suave essência de seu amor pelo lugar agora lhe<br />
parecia truncada. O que seria?<br />
Konstantin lhe fazia falta, mas <strong>no</strong> lugar dele havia sido disposto<br />
<strong>para</strong> acompanhá-la e auxiliá-la um homem negro como as <strong>no</strong>ites<br />
mais profundas daquele local. Era um remanescente dos assírios –<br />
28
pelo me<strong>no</strong>s ele assim afirmava, com um sorriso mais branco do que<br />
as açucenas que enfeitavam os vales daqueles arredores.<br />
Seu <strong>no</strong>me era tão estranho, que Cornélia pediu licença <strong>para</strong> chamálo<br />
de Hermes, por causa do rosto enigmático e pelos mistérios que<br />
costumava ver nele e ouvir também, quando o negro se apoderava<br />
de uma flauta e se punha a tocar. Suas melodias exóticas e<br />
pungentes faziam com que Cornélia com ele brincasse, chamando-o<br />
“o mago do amor”.<br />
O negro sorria, sorria, encantava-a, conseguindo facilmente<br />
apoderar-se da amizade daquela jovem que, <strong>para</strong> ele, representava<br />
um ramo de mulheres já desaparecidas do mundo desde a época de<br />
Noé.<br />
Quando Hermes dizia isto <strong>para</strong> ela, Cornélia estremecia, porque não<br />
gostava nem de imaginar se havia pertencido a esses rei<strong>no</strong>s que ela<br />
considerava desventurados <strong>para</strong> os habitantes da Terra.<br />
Hermes a acompanhava como se fosse sua sombra, ou, talvez, como<br />
se fosse o próprio sol perdido naquele ocaso da vida, porque ele lhe<br />
dizia tristonho que o Homem Peixe já estava junto deles, <strong>para</strong> tudo<br />
mudar.<br />
Aquela afirmativa de Hermes era sentida por ela como se uma<br />
estocada bem funda de espada lhe atingisse o corpo, levando-a até<br />
às lágrimas, que passaram dali em diante a ser uma constante na<br />
moça. E, naqueles instantes de choro sentido, o negro sentia-se<br />
atarantado, prometendo-lhe que a faria mudar, que nem que lhe<br />
custasse o último alento tentaria fazê-la sorrir, ou cantar como os<br />
rouxinóis que um dia ela havia ganhado de um rapazinho e até se<br />
havia esquecido. Cornélia balançava a cabeça, considerando-o<br />
muito imaginativo, embora leal.<br />
A presença de Hermes era o maior tesouro que a vida lhe vinha<br />
oferecendo naquele instante e naquela época em que as mãos<br />
mágicas de um Criador diferente iam passar a comandar.<br />
Certa vez, atarefada <strong>no</strong>s cuidados da casa e distribuindo deveres<br />
<strong>para</strong> a serva Zínia, ouviu o soar de um instrumento desconhecido<br />
29
<strong>para</strong> ela. Era algo como se uma peça dura fosse batida contra uma<br />
placa de bronze ou de cobre.<br />
Procurou ver do que se tratava, dirigindo-se <strong>para</strong> o terraço. Nada<br />
conseguindo, saiu em busca de Hermes. Passou <strong>para</strong> o primeiro<br />
pavimento da casa, que se prolongava até uma ampla entrada. Esta<br />
só poderia ser visualizada, da rua, se fosse aberta uma alta porta de<br />
madeira <strong>no</strong>bre, entalhada.<br />
Resolveu abrir a pesada porta, alcançando um espaço onde estavam<br />
sendo pre<strong>para</strong>das sementeiras <strong>para</strong> um futuro jardim. Mas dali já<br />
podia avistar uma faixa da rua estreita em ladeira, porque, mesmo<br />
pertencendo ao térreo de sua casa, era elevado o suficiente <strong>para</strong> não<br />
fazer parte da estreita viela em declive que ia dar numa grande<br />
praça. Esta praça era utilizada <strong>para</strong> quem quisesse fazer queixas de<br />
tudo o que lhe desagradasse. Nos tempos de hoje se poderia até<br />
dizer que era uma praça <strong>para</strong> tribuna de políticos.<br />
Cornélia conseguiu finalmente avistar uma fileira de “neófitos” de<br />
um Templo que pertencia a algum credo desconhecido por ela. Os<br />
homens levavam as cabeças raspadas e as mulheres, xales escuros,<br />
cobrindo cabeças e ombros. Mas caminhavam em fileiras se<strong>para</strong>das,<br />
como se homens e mulheres participassem da mesma seita, mas sem<br />
poder professar a fé lado a lado. Por isso, os homens iam na frente e<br />
as mulheres, atrás.<br />
O ruído ouvido por ela – como o das matracas – anunciava ao povo<br />
que, ali, ia uma procissão e que ninguém deveria atrapalhá-los, pois<br />
seguiriam pela estreita rua até um vale, desconhecido ainda de<br />
Cornélia.<br />
Alguns dos homens levavam faixas com pinturas brancas <strong>no</strong> rosto e<br />
na cabeça; estes carregavam uma estátua que veneravam. Aquela<br />
estátua produziu em Cornélia o mesmo efeito que a pérola lhe<br />
provocava. Seus olhos se fixaram nela, mas seu corpo amoleceu e<br />
ela tombou.<br />
Acordou com os olhos de Hermes a encará-la muito preocupado,<br />
aspergindo-lhe pulso e fronte com uma essência ambarina só dele<br />
conhecida. Ele a trancava a sete chaves e, quando a aplicava,<br />
30
ninguém lhe exigia explicações, porque já sabiam que era algo que a<br />
todos beneficiava e Cornélia não o proibia de usá-la.<br />
Já refeita do grande desconforto que lhe tomara o corpo, ouviu dos<br />
lábios de Hermes:<br />
- Não quer me contar o que vem em sua cabeça agora?<br />
- Aquela procissão, Hermes. Eu um dia já acompanhei uma<br />
procissão assim. Eu sei, eu sei...<br />
- Fale dela então, Flor de Lótus.<br />
Cornélia olhou-o espantadíssima e indagou:<br />
- Por que disse Flor de Lótus?<br />
Ele riu e numa linguagem estranha recitou algo não entendido por<br />
ela. Depois, insistiu: - Vamos, Flor de Lótus, caminhe por esta<br />
morada.<br />
Cornélia olhou-o fascinada e começou a narrar <strong>para</strong> o negro a sua<br />
vida na Terceira Morada.<br />
31
Sete<br />
- O leito do rio era perfeito <strong>para</strong> <strong>no</strong>s abrigar, Hermes. Eu era filha de<br />
um homem que possuía uma casa com imenso jardim. Tão grande,<br />
que não seria exagero dizer que era bem maior do que este terre<strong>no</strong><br />
que abriga esta casa e todas suas dependências.<br />
Eu era a caçula e ainda me lembro bem que meu pai vestia uma<br />
roupa muito engraçada: a calça bem larga com as pernas presas <strong>no</strong>s<br />
tor<strong>no</strong>zelos por enfeites de pérolas. O torso meio desnudo com<br />
apenas uma espécie de colete aberto, que servia simplesmente de<br />
enfeite.<br />
Nossa família vivia em contato puro com a Natureza. Minha mãe<br />
era uma mulher de olhos verdes como as esmeraldas que enfeitavam<br />
o <strong>no</strong>sso palácio. As pedras preciosas abundavam por ali como os<br />
próprios peixes que alimentavam as criaturas dependentes do mar.<br />
O rio Ganges era o <strong>no</strong>sso rio sagrado e nele continuávamos a fazer<br />
as <strong>no</strong>ssas abluções. Nunca <strong>no</strong>s faltavam oferendas <strong>para</strong> entregarmos<br />
aos deuses que, na realidade, era um só, mas na postura de muitos.<br />
Cada uma das representações dele <strong>no</strong>s mostrava a variedade de<br />
composições que aquele Deus rico tinha <strong>para</strong> <strong>no</strong>s ofertar.<br />
Éramos felizes até que por ali entrou um povo oriundo do ocea<strong>no</strong>. A<br />
chegada deles começou a macular o <strong>no</strong>sso solo.<br />
Nós possuíamos um Templo <strong>para</strong> <strong>no</strong>ssa exortação ao Deus da Vida,<br />
mas um dia ele amanheceu todo chamuscado, e aqueles estrangeiros<br />
diziam que era apenas um aviso, <strong>para</strong> que recebêssemos melhor a<br />
oferta deles numa fé que queriam <strong>no</strong>s demonstrar.<br />
Capciosos que eram, iniciaram vagarosamente a queima de muitas<br />
tendas, onde viviam os administradores do território. E o meu pai,<br />
que era o dirigente maior do grupo, nem sabia o que fazer.<br />
32
Ele era um homem sério, tranqüilo, mais parecia uma criança pela<br />
felicidade e alegria com que encarava a vida. Não estava<br />
acostumado a distúrbios e nunca havia enfrentado uma situação<br />
semelhante.<br />
Convocou os <strong>no</strong>bres administradores e assim decidiram que o<br />
melhor a fazer seria convidar os estrangeiros, <strong>para</strong> que tentassem<br />
estabelecer uma aliança que a todos atendesse, <strong>no</strong> sentido de uma<br />
felicidade conjunta.<br />
Acontece que entre esses estrangeiros um parecia ser o grão-senhor.<br />
Vestia-se de forma tão estranha, que a todos nós assustava. E o riso<br />
dele ecoava mais forte do que as águas que caíam altas das<br />
cachoeiras.<br />
Na primeira reunião entre meu pai, seus administradores e esse<br />
homem estranho, prevaleceu o comando do estrangeiro. Ele só se<br />
prestaria a fazer uma aliança com todos se passasse a fazer parte de<br />
<strong>no</strong>ssa família. Meu pai nem entendeu que aquele estranho estava<br />
querendo mesmo era <strong>para</strong> esposa ou concubina uma de suas filhas.<br />
O porte atlético do homem parecia o de um deus – mas um deus do<br />
mal – eu até pensei, quando meu pai voltou silencioso <strong>para</strong> casa,<br />
sem saber como resolver aquela desdita que <strong>no</strong>s apanhava, como os<br />
receptáculos que nós usávamos <strong>para</strong> apanhar algumas aves e<br />
prendê-las. Só que nós os usávamos <strong>para</strong> prender as aves com a<br />
finalidade de embelezar os <strong>no</strong>ssos jardins... Mas ele...<br />
Para resumir a minha história, Hermes, esse homem truculento<br />
começou a <strong>no</strong>s roubar as criaturas amigas e antigas conhecidas<br />
<strong>no</strong>ssas. Sabe como? Ele captava a confiança delas e, com o tempo,<br />
ia formando um verdadeiro exército de seguidores.<br />
Eles também se pintavam como os homens e mulheres dessa<br />
procissão que acabei de ver, e a casa deles – a que mais os atraía,<br />
pois possuíam muitas – era toda cheia de pedrarias às quais nem<br />
davam valor.<br />
Um dia, o Conselho de meu pai decidiu que seria melhor uma filha<br />
dele se unir logo àquele homem em um ritual de casamento.<br />
33
Fui eu a escolhida, Hermes, porque aquele homem via em mim a<br />
aparência de uma esmeralda – eu nunca soube por quê. Mas ele me<br />
olhava zombeteiro e <strong>no</strong> dia do <strong>no</strong>sso encontro, <strong>para</strong> estabelecermos<br />
uma aliança entre nós, ele me ofereceu um belo colar de pérolas<br />
com cores que jamais julguei existir: brancas, azuis, amarelas<br />
malvas e até negras. Segundo ele, cada uma delas possuía uma<br />
história que um dia ia me contar.<br />
Derramei abundantes lágrimas, <strong>para</strong> concluir, finalmente, que eu<br />
seria apenas uma oferenda <strong>para</strong> aquele homem. Mais tarde eu soube<br />
que ele era oriundo do Setentrião.<br />
Por esse meu ato de casamento, meu povo recomeçou a viver em<br />
paz. Voltamos a <strong>no</strong>s servir do Ganges. Mais tarde, meu pai e minha<br />
mãe passaram <strong>para</strong> as dimensões celestiais e eu – que continuava a<br />
ser chamada de Esmeralda por ele – morri numa cerimônia fúnebre,<br />
ao lado dele, porque era costume cremarem os corpos dos mortos e,<br />
se o marido morresse primeiro – que era o <strong>no</strong>sso caso –, a mulher<br />
deveria morrer junto, <strong>para</strong> que não houvesse continuidade<br />
sanguínea. Era uma sociedade extremamente patriarcal.<br />
Sabe, Hermes, agora, ao ver qualquer tipo de pérola ou adereço mais<br />
simples que seja, recordo-me que aquele homem me prometeu<br />
contar a história das pérolas de <strong>no</strong>sso casamento. Só que hoje eu<br />
penso que é preferível que o fio que prendia as contas do colar se<br />
tenha partido, e que o mar tenha colhido cada uma daquelas pérolas,<br />
<strong>para</strong> que eu nunca mais precise servir de sacrifício <strong>para</strong> ninguém.<br />
Os olhos de Cornélia marejaram e Hermes garantiu:<br />
- Pois eu creio que <strong>aqui</strong>, Flor de Lótus, você vai recolher a mais<br />
perfeita pérola existente, e ganhar a plena certeza de que é a mais<br />
bela mesmo, pertencente a um rei<strong>no</strong> que outras jamais superarão.<br />
- Que rei<strong>no</strong>, Hermes?<br />
- O do Homem Peixe. Será ele que a entregará <strong>para</strong> você.<br />
Hermes sorriu e, na escuridão brilhante daquele olhar, Cornélia viu<br />
o mundo mágico ao qual ele pertencia e do qual jamais ouvira falar.<br />
34
Oito<br />
Cornélia atravessou a porteirinha rústica e entrou em um extenso<br />
quintal, onde havia algumas árvores frutíferas e ovelhas de um<br />
peque<strong>no</strong> rebanho. Aliás, o rebanho era grande, mas dividido entre<br />
vários amigos que não possuíam posses <strong>para</strong> cuidá-lo sozinhos.<br />
Assim, uma parte permanecia ali, com a família de Abigail, perto de<br />
Nazaré.<br />
Abigail, a dona da casa, saudou Cornélia e puseram-se a conversar,<br />
a respeito de uma reunião programada <strong>para</strong> aquela <strong>no</strong>ite.<br />
- Agora que você já participa das <strong>no</strong>ssas pregações, já sabe que há<br />
necessidade de grandes cuidados de <strong>no</strong>ssa parte, Cornélia. Os<br />
poderes se vêem fortalecidos e há testemunhos de que alguns dos<br />
meus amigos já se encontram nas malhas dos ferozes roma<strong>no</strong>s, que<br />
se recusam a ouvir expressões de paz e igualdade <strong>para</strong> todos. Esses<br />
altos senhores se encontram insatisfeitos e desvinculados de<br />
qualquer tipo de amor, pois preferem pautar seus rumos pela lei do<br />
comando. Quem não os aceita é açoitado e colocado em locais<br />
abomináveis, tornando-se servos malditos desses senhores<br />
desventurados.<br />
- Tenho <strong>para</strong> mim, Abigail, que essas horas que vivemos por <strong>aqui</strong><br />
serão infames e também catalisadoras.<br />
- Não entendo o que está me dizendo, Cornélia, só sei o que meu<br />
coração me passa. E ele me diz que preciso respirar o aroma<br />
diferente trazido por Joshua, o Messias. Tenho certeza absoluta de<br />
que ele vai <strong>no</strong>s conduzir exatamente como Moisés, tirando o meu<br />
povo do cativeiro.<br />
- Ah, Abigail, é difícil <strong>para</strong> mim compreender isto. Sou totalmente<br />
inculta sobre o que vocês, judeus, pensam. Fui instruída de forma<br />
35
diferente. Nem tenho um deus <strong>para</strong> adorar, entende? O meu culto é<br />
o Sol, a própria Natureza com tudo o que está dentro dela.<br />
- Mas ... então por que <strong>no</strong>s procura, Cornélia?<br />
- Porque me sinto atraída pelos dizeres desse homem que vocês<br />
consideram um Messias – só isto. Já o ouvi falar algumas vezes. E,<br />
quando o ouço, é o mesmo que estar sendo atraída por todos os<br />
poderes do universo ao mesmo tempo. É estar sendo chamada pela<br />
luz, pelo calor do Sol, pelo cenário das estrelas do firmamento, pelas<br />
tempestades e marés, e...<br />
- E pelos peixes – Abigail tentou brincar, mas a expressão era de<br />
preocupação.<br />
- Tenho um escravo que o chama de Homem Peixe. Mas peixes<br />
somos também todos nós – os que o seguem ou não -, e também os<br />
colibris, os filhotes de colibris e esses infelizes roma<strong>no</strong>s que<br />
acabarão aprisionados nas próprias malhas que escolheram <strong>para</strong><br />
prender Joshua e tantos outros.<br />
- Do jeito que você fala, até parece que não prevê um bom final...<br />
- E não posso prever mesmo, Abigail. Nós vamos perdê-lo, mas ele<br />
vai escapar por entre as malhas, você verá.<br />
- Então isto é bom. É isto mesmo que eu quero. E faço questão de<br />
estar lá, <strong>para</strong> ajudar a tirar as malhas em tor<strong>no</strong> dele. É exatamente<br />
por isso que prossigo – Abigail suspirou esperançosa.<br />
Cornélia olhou-a tristonha e perguntou qual seria a senha daquele<br />
dia <strong>para</strong> a reunião.<br />
- Senhor dos Mundos – ela informou cheia de cuidados. Aquelas<br />
senhas só eram repartidas <strong>para</strong> pessoas de confiança, da parte dos<br />
seguidores de Joshua.<br />
Ao se dirigir de volta ao portãozinho que a levara até Abigail,<br />
Cornélia ouviu a jovem pronunciar cheia de fé:<br />
- Que o Nazare<strong>no</strong> esteja sempre co<strong>no</strong>sco!<br />
Cornélia <strong>aqui</strong>esceu com um ligeiro ace<strong>no</strong> da cabeça e voltou <strong>para</strong><br />
seu lar.<br />
36
Naquele mesmo dia, recebeu <strong>no</strong>tícia da morte de seu pai e a<br />
promessa de que Hannah e seu amigo Konstantin a visitariam em<br />
breve.<br />
Cornélia pranteou o pai, mas o coração se manteve firme, porque<br />
sabia dos sofrimentos de Diomedes.<br />
Seu pai tinha sido um homem metódico e de certa forma inculto.<br />
Prendia-se a tradições, mas não às que se referiam aos familiares –<br />
seu culto verdadeiro eram as posses. Homem cheio de vaidade,<br />
navegava nas ondas do sucesso pecuniário. Tinha conseguido bem<br />
moço triplicar a sua fortuna, <strong>no</strong> comércio com madeiras e, depois,<br />
com a construção de embarcações. Estas eram tão necessárias<br />
naquela região, que num piscar de olhos se viu rodeado de criaturas<br />
que comungavam os mesmos ideais.<br />
Foi assim que logo saiu de sua função de comerciante <strong>para</strong> grande<br />
empresário. Com uma capacidade inata <strong>para</strong> perceber as<br />
necessidades materiais da região, logo entendeu quais eram as<br />
daquele povo roma<strong>no</strong> que ali vinha estendendo implacavelmente<br />
seus domínios. Com uma rapidez invejável, Diomedes se havia<br />
aliado a gente que, como ele mesmo, via na construção de<br />
embarcações a forma mais rápida <strong>para</strong> ampliar fortuna. E não se<br />
enga<strong>no</strong>u. Em pouco tempo, já havia organizado uma espécie de<br />
cooperativa e se tornara senhor de bens invejáveis.<br />
Diomedes havia florescido naqueles territórios e adjacências e até<br />
parecia que recebia do Alto um impulso <strong>para</strong> que tal se processasse.<br />
Aliás, <strong>para</strong> muitos o mesmo sucedia. Os que buscavam enriquecer,<br />
conseguiam; os que pretendiam enamorar-se, eram visitados pelo<br />
amor; os que almejavam aprendizado e compreensão, tinham a<br />
graça de contar com os ensinamentos de Joshua.<br />
Dessa forma, uma e<strong>no</strong>rme teia de opções de escolhas surgia ali, <strong>para</strong><br />
a montagem de uma vida feliz, porque Joshua não se mostrava<br />
contrário a alegrias, a regras, a amores. Não, Joshua era a própria<br />
Cornucópia oferecida pelos deuses <strong>para</strong> prover de abundância os<br />
lares e corações.<br />
37
Só que, da mesma forma que as criancinhas escolhem brinquedos<br />
<strong>para</strong> alegrar seus sonhos de venturas, os adultos que percorriam<br />
aqueles territórios apresentavam a preferência pelo que era material,<br />
ig<strong>no</strong>rando que existiam mundos entremeados – o da matéria e o do<br />
espírito – e que o mundo espiritual estava sendo aberto <strong>para</strong> eles,<br />
com a presença de Joshua, enquanto ele pousasse seus pés por<br />
aquele solo. Se os homens houvessem analisado melhor o que seria<br />
o Rei<strong>no</strong> citado por ele, as escolhas poderiam ter sido me<strong>no</strong>s injustas,<br />
mais equilibradas e também providas da felicidade terrena.<br />
Mas tinha que ser assim. Era exatamente <strong>para</strong> que as medidas dos<br />
homens se ampliassem que Joshua colaborou, doando sua vida em<br />
<strong>no</strong>me da felicidade que os infelizes mortais buscavam muito longe<br />
do Rei<strong>no</strong>.<br />
Konstantin chegou na casa de Cornélia bastante abatido. Juntos,<br />
ainda puderam fazer longos passeios e até ouvir algumas prédicas<br />
do Nazare<strong>no</strong>, que começava a ser vigiado muito de perto.<br />
Konstantin partiu <strong>para</strong> a Morada do Desconhecido três dias antes de<br />
ouvirem contar que Joshua havia sido aprisionado.<br />
Com a morte de Joshua, Cornélia voltou <strong>para</strong> o Solarium junto de<br />
um rapazinho chamado Boanerges, que ela havia tomado como filho<br />
adotivo, exatamente na ocasião em que o negro Hermes se afastava<br />
<strong>para</strong> outros rumos. O Solarium estava aos cuidados de serviçais,<br />
pois Hannah havia viajado logo após a morte do pai de Cornélia,<br />
<strong>para</strong> encontrar-se com pessoas de sua afeição.<br />
Passaram-se uns tempos. Certa manhã, Cornélia foi avisada por<br />
Boanerges que era procurada por algumas senhoras.<br />
Eram Hannah e algumas amigas dela, matronas romanas às quais<br />
Hannah se havia afeiçoado, quando ainda era mocinha. Estavam<br />
acompanhadas de um jovem de seus dezoito a<strong>no</strong>s, de passadas<br />
ágeis, elegante e aparentemente cordial. Talvez fosse um encontro<br />
programado pelo próprio desti<strong>no</strong>, a fim de que uma corrente de<br />
vibrações agradáveis percorresse o Solarium de ponta a ponta,<br />
lavando as inquietações dos corações que se encontravam<br />
amargurados.<br />
38
Entre as senhoras que ladeavam Hannah, uma era familiar de Irina,<br />
e que havia contado detalhadamente <strong>para</strong> Hannah o que havia<br />
acontecido com o filhinho afastado dela por Dionísio. Era uma<br />
mulher ativa, de idade aproximada dos sessenta a<strong>no</strong>s, elegante e de<br />
maneiras orientais. Os trajes eram um misto daquele povo que<br />
amava a seda, mas adaptado <strong>para</strong> a região que ora ela percorria.<br />
Levava <strong>no</strong> colo uma bela safira, incrustada em um medalhão, onde<br />
se podia também ver o desenho de um menininho de uns seis a<strong>no</strong>s.<br />
De uma outra visitante, Cornélia não conseguia desprender os olhos,<br />
até que ouviu o <strong>no</strong>me, pela apresentação de Hannah – Celeste. Uma<br />
onda de alegria percorreu-lhe a alma, resultante daquelas afinidades<br />
espontâneas que não se consegue explicar.<br />
Celeste, a matrona romana, olhava-a atentamente e logo se<br />
manifestou, com um sorriso agradável:<br />
- Então era <strong>aqui</strong> que você se encontrava...! Nunca imaginei que<br />
deveria procurá-la <strong>no</strong> lar de seus ancestrais. Quando Hannah se<br />
referiu ao seu <strong>para</strong>deiro como algo bastante natural e esperado,<br />
confesso que não acreditei. Para mim, você havia saído de Nazaré<br />
na companhia dos judeus que apoiavam o Nazare<strong>no</strong>. Jamais<br />
imaginei mesmo...<br />
Cornélia interrompeu-a.<br />
- Eu não pude acompanhá-los, minha senhora. Não que o meu<br />
coração não o quisesse. Mas <strong>para</strong> aqueles seguidores eu era apenas<br />
uma mulher e eles não viam em mim uma pessoa pre<strong>para</strong>da <strong>para</strong> as<br />
pregações, porque eu não era judia. Como eu poderia enfrentar<br />
argumentos do que eu nem entendia? Além do mais, acho que até<br />
me irritaria se eles analisassem os fatos sem colocar em primeiro<br />
lugar o que Joshua apregoava. Isto eu conhecia bem, porque o ouvi<br />
muitas vezes. Afinal de contas, ele falava do Amor, da Alegria<br />
futura. As falas dele eram sobre o ontem, o hoje e o amanhã e não<br />
sobre minúcias de rituais, de circuncisões ou de alimentos. Não –<br />
ela prosseguiu com energia – eu não seria uma boa companhia nas<br />
pregações futuras, repito, eu sou apenas uma mulher, e uma mulher<br />
não pre<strong>para</strong>da <strong>para</strong> tomar conta dos alimentos ou dos afazeres<br />
domésticos. Nisso, até as minha amigas judias brincavam comigo.<br />
39
Elas me diziam que deveria existir entre elas uma função diferente<br />
<strong>para</strong> as mulheres que preferem os aromas e suas essências, aí, sim,<br />
eu poderia criar <strong>no</strong>vas fragrâncias e, junto, fazer uma mistura de<br />
ervas e de incenso, <strong>para</strong> perfumar diferentemente os lares.<br />
- Ah, eu sei a que você está se referindo – sorriu Celeste. – Soube<br />
que você distribuiu essência de nardos <strong>para</strong> eles, não foi? E aposto<br />
que por isso foi julgada uma leviana.<br />
Cornélia levantou os ombros.<br />
- E quem é que nunca comete leviandades? Parece que as minhas<br />
foram bem <strong>no</strong>tadas. Talvez por ter Aquele Anjo maravilhoso<br />
mostrado <strong>para</strong> os ouvintes Dele que éramos todos iguais. Mas<br />
quando é que os homens se igualariam às mulheres? Jamais. Então –<br />
ela <strong>no</strong>vamente ergueu os ombros - eu parti. Voltei <strong>para</strong> o lar de<br />
meus ancestrais. Ah, como chorei, minha amiga! Acho que só não<br />
morri, porque as falas de Joshua haviam penetrado bem fundo em<br />
minha alma. Não creio mesmo que, aonde quer que eu vá, esqueça<br />
da mansidão com que Ele olhava um por um: velhos, jovens,<br />
crianças, doentes e até senadores roma<strong>no</strong>s. Ele jamais se irava;<br />
jamais perdia o sentido do que era justo. Afinal... este mundo parece<br />
andar meio cambaio, você não acha?<br />
- Concordo com você, mas, diga-me, consegue ser feliz? Continuar<br />
sua vida como se nada houvesse acontecido?<br />
Cornélia parou um instante <strong>para</strong> responder.<br />
- Consigo viver, sim, mas como se o mundo tivesse sido<br />
interrompido. Como se o mundo, de repente, tivesse aberto umas<br />
comportas <strong>para</strong> as águas jorrarem. E eu tenho medo, muito medo. É<br />
como se eu soubesse que preciso entrar nessas águas e aprender a<br />
nadar. Sou muito frágil, bem mais do que a minha aparência<br />
apresenta. Não que eu tenha medo de águas, ou de que possa me<br />
afogar. Tenho medo de não saber que direção devo tomar, de não<br />
saber a direção certa <strong>para</strong> poder seguir na de Joshua, você me<br />
entende? – os olhos de Cornélia marejaram.<br />
- Ah, minha amiga! – disse Hannah, comovida. – Eu acho que<br />
extrapolei sua força e a sua capacidade. Pensei que você estaria bem<br />
40
sem a minha companhia. Mas enganei-me. Enquanto eu buscava<br />
ainda realizar alguns sonhos, você se esvaziava. Ah, como fui<br />
imprudente! Não devia ter deixado você sozinha, depois que eu<br />
soube da morte de Joshua.<br />
- Não, não se preocupe, Hannah. Eu ainda estou dando tempo e<br />
olhando as águas, <strong>para</strong> entrar nelas e nadar. Mas creia que é muito<br />
bom tê-la <strong>aqui</strong> agora, junto com suas amigas, porque esta é uma<br />
forma agradável de entrar numa piscina antes de me dirigir ao mar.<br />
Enquanto as mulheres conversavam, o rapaz que as havia<br />
acompanhado analisava os detalhes da casa de Cornélia. Interessouse<br />
muito, quando ouviu suave melodia tirada por um alaúde e que<br />
era cantada por Boanerges <strong>no</strong> terraço da casa.<br />
Cornélia <strong>no</strong>tou-lhe o interesse e convidou:<br />
- Não quer subir e acompanhar a melodia de Boanerges? Deve ser<br />
bem mais agradável <strong>para</strong> você afastar-se por uns tempos da<br />
companhia de mulheres. Vá, vá até lá!<br />
O rapaz apenas sorriu e não aguardou segundo convite. Logo estava<br />
junto do jovem que tocava com grande sensibilidade.<br />
Boanerges saudou-o meneando a cabeça e deixou-se conduzir pela<br />
inspiração, criando melodia <strong>no</strong>va. Quando a finalizou, ouviu o<br />
visitante dizer:<br />
- Você tem um raro dom <strong>para</strong> a música. E aposto que tem outros que<br />
ninguém conhece – mas o riso era de mofa, quando fez a segunda<br />
parte de sua observação.<br />
Boanerges ouviu-o tristemente e devolveu:<br />
- Se pelo me<strong>no</strong>s me servir <strong>para</strong> afastar os desconfiados, muito me<br />
valerá.<br />
Amuado, o jovem questio<strong>no</strong>u:<br />
- Ofendi-o? Não era a minha intenção.<br />
- Não ando à busca de conhecer as pessoas, rapazinho. Se eu<br />
conseguir me conhecer, já terei conseguido o meu aprendizado <strong>aqui</strong><br />
na Terra.<br />
41
- Você fala como os cristãos. Você é um? – ele disse com o peito<br />
empinado.<br />
- Eu me chamo Boanerges, rapaz. Isto basta <strong>para</strong> você, já que está<br />
num lar que o recebe com cordialidade não fictícia.<br />
Aí o jovem encabulou-se e se retratou:<br />
- Eu estava apenas querendo criar uma polêmica. Meu jeito é assim,<br />
belicoso e muitas vezes insensato. Mas confesso que não gosto<br />
muito de brigas.<br />
- Nem eu – retrucou Boanerges -, porque se eu gostasse ia me<br />
colocar lá dentro daquelas arenas cheias de leões. Não estaria <strong>aqui</strong><br />
tocando sinceramente o meu alaúde.<br />
- Bem, eu não sou lá muito amigo de músicas – disse o jovem -, mas<br />
eu acho que até gostaria de ser treinado como gladiador. Só não o<br />
faço, porque minha família impediria. Eles acham que gente de<br />
fortuna não deve ser gladiador.<br />
- E você possui fortuna? – indagou Boanerges apenas <strong>para</strong> ser<br />
gentil.<br />
- Tenho – ele afirmou, mas sem arrogância. - Minha família é...<br />
Foi interrompido por Cornélia, que avisava Boanerges da chegada<br />
de sua outra mãe adotiva, Salomé.<br />
Reuniam-se, naquele dia, várias criaturas que foram marcadas<br />
diferentemente por Joshua. Umas prosseguiram em suas jornadas<br />
com a imagem dele, cantante, <strong>no</strong> peito. Outras como se a passagem<br />
de Joshua tivesse sido apenas um sopro pequeni<strong>no</strong> e sem finalidade.<br />
Mas, <strong>para</strong> Cornélia, seria a razão de suas existências futuras.<br />
42
Nove<br />
A permanência de Cornélia <strong>no</strong> Solarium ia acabar. Seu coração<br />
pedia mudanças e ela não desejava continuar ali sem os seus<br />
familiares. Nazaré também havia cerrado um véu <strong>para</strong> ela, de modo<br />
que sua proposta era deixar aquela casa <strong>para</strong> Boanerges e seus<br />
familiares, ou melhor, os judeus que haviam acolhido Boanerges,<br />
quando ele ainda era um meni<strong>no</strong> de dois a<strong>no</strong>s.<br />
Boanerges não sabia quem eram seus pais. Havia sido deixado na<br />
porta da casa de Salomé e seu marido, um homem que trabalhava<br />
com couro, e conhecido também como seleiro.<br />
Para Cornélia, dinheiro não faltaria, mas encontrava-se ressequida<br />
de afeto. Se não tivesse contado com a companhia daquele<br />
rapazinho naqueles últimos a<strong>no</strong>s, teria deixado de querer entender a<br />
razão de sua existência.<br />
Os familiares de Boanerges já estavam chegando e o pla<strong>no</strong> dela era<br />
sair dali exatamente com os que levassem Salomé e o marido até lá.<br />
Seu desti<strong>no</strong> todos desconheceriam. Assim ela preferia. Sentia uma<br />
necessidade muito grande de isolar-se.<br />
Quem cruzasse com Cornélia nesses últimos cinco a<strong>no</strong>s após a<br />
morte de Joshua, não entenderia como havia feito <strong>para</strong> vencer as<br />
próprias tormentas. Estava mais magra, mas a expressão não era de<br />
criatura vencida, e sim de quem buscava ansiosamente por uma<br />
resposta.<br />
Ela viajou, comprou uma casa modesta, mas confortável, e nela se<br />
alojou. Não era perto de Nazaré. Vivia em paz, na companhia de<br />
alguns serviçais. Afastada das atrações que ela caracterizava como<br />
“carnais”, começou mais uma vez a analisar-se interiormente.<br />
43
Enquanto havia caminhado com Joshua, não havia tentado sua<br />
experiência de concentração na pérola. Mas naquela ocasião havia<br />
<strong>no</strong>tado, diariamente, o poder da fé em muitas criaturas que<br />
materializavam a cura <strong>no</strong> próprio corpo, quando se aproximavam de<br />
Joshua ou eram tocados por ele. Assim, acreditava que ele<br />
continuaria a auxiliá-la, onde quer que estivesse. Ele a curaria de<br />
suas mágoas e decepções.<br />
A sua primeira concentração, depois de tanto tempo, foi tranqüila. A<br />
silhueta de uma menininha de uns cinco a<strong>no</strong>s desenhou-se em sua<br />
“tela”. A garota tinha nas mãos um bastão vermelho, de pedra<br />
translúcida, em cuja ponta um facho de luz cintilava. Ela girava o<br />
corpo com a mão estendida e, quando completava um círculo,<br />
guardada pela lumi<strong>no</strong>sidade que ia permanecendo <strong>no</strong> centro dele,<br />
via-se como se estivesse projetada fora do círculo e de seu próprio<br />
corpo. Aquele bastão funcionava como se fosse um projetor da<br />
imagem de quem o empunhasse. A cada projeção, a garotinha ria,<br />
sacudia os cabelos longos e envaidecia-se, feliz, pois ia se vendo<br />
com trajes diferentes, de épocas desconhecidas por ela. Cornélia<br />
sabia que a garota do bastão era ela mesma, a se ver em diversas<br />
situações.<br />
Que Morada seria aquela, onde as criaturas tinham nas mãos a<br />
possibilidade de se enxergar tão facilmente, como um ser vivente<br />
em vários espaços? E tudo <strong>aqui</strong>lo com o emprego de um simples<br />
bastão, sem tantas dificuldades <strong>para</strong> se conhecer?<br />
Talvez pelo fato de indagar tão veementemente o que significaria<br />
tudo <strong>aqui</strong>lo, sua mente se desconectou daquela “caixa mágica”<br />
guardada em seu cérebro, e ela voltou a ser simplesmente Cornélia.<br />
Mas a impressão ficou fortemente gravada. Seria isso a que se<br />
referiam, quando diziam que os homens haviam perdido o Paraíso?<br />
Que razão teria surgido <strong>para</strong> que aquela garota tão exuberante de<br />
vida, de energia, de felicidade e de liberdade deixasse <strong>aqui</strong>lo tudo<br />
<strong>para</strong> viver num mundo onde a tendência dos homens era <strong>para</strong> o<br />
aprisionamento? Sim, um mundo onde pareciam sentir satisfação<br />
em tolher os passos dos que amavam sinceramente, como Joshua<br />
amava. Não haviam os homens colocado aquele ser amoroso numa<br />
44
cruz, tolhendo seus passos, quando ele vivia <strong>no</strong> auge de sua<br />
mocidade?<br />
Ah, a expressão daquela garota, de sorriso límpido e cheia de<br />
descobertas e venturas, havia deixado nela, agora, algo diferente,<br />
um sentimento benéfico a respeito de um passado que Cornélia não<br />
soube distinguir se havia acontecido na Terra – ou se <strong>no</strong> Paraíso.<br />
Tinha sido uma experiência muito rápida.<br />
Poucos dias depois, voltou a ser surpreendida por situação inusitada.<br />
Seu isolamento a levava freqüentemente, mesmo sem desejar, a<br />
voltar os pensamentos <strong>para</strong> o Solarium, como se sua casa estivesse<br />
viajando com ela <strong>no</strong> tempo. Pela insistência desses pensamentos,<br />
certa manhã, viu-se a percorrer uma extensa planície, mas voejava<br />
desprendida do corpo físico, presa nele pelo belíssimo cordão<br />
prateado, que liga os corpos espirituais aos corpos físicos. Estava<br />
perfeitamente consciente de que seu corpo físico repousava lá, em<br />
sua <strong>no</strong>va moradia, enquanto sua alma deslizava rumo ao Solarium.<br />
Também entendia que havia se desligado de seu casulo por um curto<br />
espaço de tempo, porque aquela estrutura de carne e ossos que a<br />
recebera <strong>para</strong> vivenciar os seus a<strong>no</strong>s de Cornélia, aquela estrutura<br />
orgânica que a recebera e fora outorgada pelo Deus Criador,<br />
existiria enquanto ela necessitasse dela, a fim de concluir tarefas ou<br />
experimentar aprendizados <strong>para</strong> sua evolução pessoal.<br />
Cornélia pouco admirou as paisagens que ia atravessando, <strong>no</strong><br />
espaço, porque as imagens que lhe vinham à mente eram todas de<br />
alguns momentos passados <strong>no</strong> labirinto do Solarium, quando havia<br />
conhecido pela primeira vez o medo, e, também, das visualizações<br />
de existências suas, conseguidas por sua concentração na pérola, o<br />
que a levara a crer, algumas vezes, que era “uma criatura diabólica”<br />
por conseguir tudo isto.<br />
A leve lembrança do termo “criatura diabólica”, acompanhada de<br />
medo e preconceito, levou inevitavelmente o seu corpo espiritual a<br />
<strong>baixar</strong> a altitude, a perder a leveza inicial de que se vira dotada. E<br />
isso era provocado por ela mesma, por sua atitude negativa e que<br />
comprometia a bela experiência vivenciada naquele momento.<br />
45
Mais à frente, viu-se diante de criaturas que também haviam<br />
abandonado o casulo do corpo e seguiam rumos variados. Os corpos<br />
astrais de alguns apresentavam cores límpidas, mas, outros, matizes<br />
manchados em nuanças diversas. O ar pareceu-lhe denso e<br />
desagradável.<br />
“Ah, se eu alcançasse Nazaré!”, ela pensou, e o amor que lhe encheu<br />
a alma inundou-a de energias vivificantes. O espaço ampliou-se, ela<br />
foi impulsionada <strong>para</strong> maior altitude de <strong>no</strong>vo, e então conseguiu<br />
alcançar Nazaré e, em seguida, a sua casa do Solarium.<br />
Desceu <strong>no</strong> terraço, cuja pérgula florida sempre a atraía. Mas o<br />
desejo intenso de tudo ver rapidamente a levou a percorrer<br />
atabalhoadamente alguns recantos da casa. Entendeu que devia<br />
conter-se, equilibrar-se, a fim de melhor usufruir daquele milagre<br />
que a vida lhe estava ofertando, permitindo-lhe percorrer a sua casa,<br />
sem que estivesse presente com o corpo físico.<br />
Lágrimas desprenderam-se de seus olhos espirituais, ao ouvir uma<br />
cantiga de ninar entoada por Boanerges.<br />
Ele se encontrava dentro da casa, num amplo aposento que havia<br />
sido dividido em dois: <strong>para</strong> o casal e <strong>para</strong> uma criança que estava<br />
próxima dele – um menininho que começava a trocar os primeiros<br />
passos.<br />
“Boanerges casou e já tem um filhinho!”<br />
Dentro da casa, o ruído de louças e o cheiro apetitoso de alimentos<br />
sendo pre<strong>para</strong>dos atraíram Cornélia. Viu-se diante de uma bela<br />
jovem, a esposa de Boanerges.<br />
Prosseguiu em sua caminhada - agora não mais voejava - até a<br />
entrada do celeiro, mas ali se deteve. Recordou-se claramente de<br />
palavras ditas por Boanerges, a respeito dos medos que ela havia<br />
guardado de suas primeiras experiências por ali.<br />
Para Cornélia, Boanerges era uma criatura iluminada. Desde que o<br />
havia visto pela primeira vez, na casa de Salomé, sabia que o corpo<br />
franzi<strong>no</strong> daquele rapazote guardava uma alma cheia de experiências,<br />
de conhecimentos e de coragem.<br />
46
E, de fato, eram muitos os dons de Boanerges. Sua percepção maior<br />
– ela acreditava – era conhecer, mais facilmente que outras pessoas,<br />
o caos que acompanha as criaturas que precisam se equilibrar. E ele<br />
sempre se mostrara como criatura instruída na alma, não pelos<br />
<strong>livro</strong>s.<br />
O que acontecia em relação a ele é que, embora a memória do<br />
espírito houvesse sofrido o aprisionamento do corpo, <strong>no</strong> momento<br />
do nascimento (como acontece a todo mundo), Boanerges havia<br />
conseguido, em poucos a<strong>no</strong>s de vivência, libertar-se de suas peias.<br />
Mas como?<br />
Ele se havia libertado de suas peias e mazelas com a presença de<br />
Joshua. Joshua levara consigo, com toda a Luz que o circundava, a<br />
libertação de muitas almas que se encontravam vivendo por ali – e<br />
não por acaso...<br />
As tarefas de Joshua, as mais aparentes, não tinham sido entendidas<br />
por todos, muito me<strong>no</strong>s aquelas que diziam respeito à “libertação de<br />
criaturas <strong>para</strong> a Luz”.<br />
Sim, Boanerges havia sido orvalhado pela luz divina, com o apoio<br />
daquele Messias, de modo que renasceu nele um dom que o levaria,<br />
futuramente, a auxiliar pessoas que desejavam conduzir-se pelos<br />
caminhos do “sobrenatural”. Não que o rapaz deixasse de entender<br />
que o sobrenatural inexiste, mas ele sabia que muita gente iria<br />
buscar a Luz atraída pelo sobrenatural. E essa era uma tarefa que lhe<br />
agradava abraçar. Mas ele não era dotado apenas deste dom. Era<br />
uma criatura cordial, amiga, companheira, protetora dos justos e<br />
alertadora dos injustos.<br />
Os pensamentos firmes de Cornélia sobre o amigo o atraíram <strong>para</strong><br />
perto dela, como um ímã. Ele deixou de lado o alaúde, pegou o<br />
filhinho <strong>no</strong> colo e encaminhou-se exatamente <strong>para</strong> onde Cornélia se<br />
havia dirigido. Parou bem diante dela.<br />
Ao vê-lo, ela espantou-se e sentiu uma vontade e<strong>no</strong>rme de estreitálo<br />
num forte abraço. Mas quem a enxergou foi o menininho, que<br />
estendeu a mão e colocou-a em seu rosto, sorrindo. Assim,<br />
Boanerges entendeu que ela estava ali.<br />
47
Cornélia conseguiu vislumbrar centelhas de luzes se desprenderem<br />
da mão daquela criança.<br />
Mas a reação de Boanerges foi inesperada. Levantou com as duas<br />
mãos o filho <strong>para</strong> o alto e rodopiou, rodopiou, exatamente como a<br />
menina do bastão. Esta associação de imagem a levou de volta <strong>para</strong><br />
seu corpo físico, numa atração inevitável. No entanto, a felicidade<br />
que seguiu com ela a fez perceber que a melhor opção de sua vida<br />
não seria isolar-se <strong>para</strong> se conhecer, como andava fazendo. Deveria<br />
manter-se como participante dos jogos do mundo, porque o que<br />
estava tentando, na realidade, era afastar de si a mágoa de que se via<br />
ferida pelo descaso com que tinha sido atingida pelos seguidores de<br />
Joshua, que ela havia considerado amigos seus.<br />
Naquele momento, decidiu retornar a Nazaré. Voltaria a morar em<br />
sua antiga residência, que estava aos cuidados de serviçais e sob<br />
vigilância de Hannah, porque Hannah agora morava com uma de<br />
suas amigas romanas.<br />
Um mês depois, retornava ao ambiente que lhe havia produzido<br />
e<strong>no</strong>rmes mudanças.<br />
48
Dez<br />
Numa sólida casa construída ao redor de um pátio, à maneira grega,<br />
e que fora mandada erigir por um rico roma<strong>no</strong>, vivia Hannah com<br />
uma senhora de <strong>no</strong>me ilustre, Aurélia.<br />
Aurélia era descendente dos famosos Gracos, cujos feitos eram<br />
elogiados por todos os roma<strong>no</strong>s que se viam como deuses. Senhora<br />
de boa cultura, de grande firmeza na realização de seus desejos e<br />
mãe de dois filhos varões que pertenciam ao exército roma<strong>no</strong>.<br />
O prestígio do <strong>no</strong>me de seus antepassados lhe valera a facilidade de<br />
educar os rapazes, após a morte de seu esposo, ocorrida quando as<br />
crianças ainda eram púberes. Havia entregue a eles as suas energias,<br />
benesses e razão de sua existência. Vivia por eles, lutava por eles e<br />
sorria por eles. Tal capacidade de desprendimento tinha valido a<br />
Hannah, pelo convívio com ela, uma das faces do exemplo também<br />
adquirido por Cornélia enquanto seguia Joshua.<br />
Só que Aurélia, a matrona romana, tinha a mesma estrutura de seus<br />
antepassados, isto é, valia-se da figura da mulher com o mesmo<br />
fervor daquelas que haviam lutado por seus filhos <strong>para</strong> fazê-los altos<br />
dirigentes. Não possuía, portanto, o pensamento de Joshua “de que<br />
as criaturas eram todas iguais e de que todos somos irmãos e filhos<br />
do mesmo Pai”.<br />
Para Aurélia, o império roma<strong>no</strong> é que deveria estruturar os<br />
costumes, os hábitos e, se possível, até o sentimento dos judeus.<br />
Judeu, segundo sua opinião, era um povo que deveria ser submetido<br />
ao tacão dos roma<strong>no</strong>s, porque não possuíam a mesma estrutura e<br />
nem a disciplina ou a oratória de sua própria gente tão apaixonada<br />
por conquistas. Ela não entendia que o povo judeu lutava fortemente<br />
por sua liberdade; acreditava piamente que eram submissos e<br />
49
frágeis. Dessa foram é que ela havia sido moldada por seus pais e,<br />
eles, por seus ancestrais.<br />
Na companhia dessa senhora autoritária pelo comando e pulso<br />
firme, Hannah ia amadurecendo. Mas algo havia sucedido a ela: viase<br />
dividida entre os valores que lhe eram expostos naquela casa,<br />
quase que diariamente, e pelo que havia conseguido apreender<br />
durante a passagem daquele judeu messiânico que havia sido<br />
imolado por seu próprio povo, com a colaboração dos roma<strong>no</strong>s.<br />
Portanto, ia por si mesma pondo, numa balança, os pesos dos<br />
valores de um e do outro povo. Descobriu-se, assim, sem o desejo<br />
de permanecer naquele impasse, e com vontade de ver o lado da<br />
moeda jogada por Joshua, isto é, verificar o que havia sucedido com<br />
os judeus, após a morte de seu maior representante.<br />
Estava exatamente com este ponto de interrogação moldado <strong>no</strong><br />
coração, quando soube que Cornélia havia retomado sua vida na<br />
casa da ladeira – assim é que ela se referia à moradia da amiga.<br />
Numa tarde, procurou-a.<br />
Cornélia estava abatida pela mudança e pela viagem, mas o olhar<br />
apresentava a mesma firmeza conhecida por Hannah, dos tempos<br />
em que haviam convivido.<br />
- Ah, Cornélia, temos muito a conversar. Logo que soube de sua<br />
chegada, percebi que você poderia me auxiliar em uma de minhas<br />
divisões, aliás, proposta por Aurélia.<br />
- Divisões??<br />
- Sim, eu me encontrava sem saber se deveria permanecer mais uns<br />
tempos por <strong>aqui</strong> ou se deveria viajar. Tenho tantas dúvidas a<br />
respeito de minha vida afetiva...!<br />
- Entendo – disse Cornélia -, seu coração anda pedindo uma<br />
companhia...<br />
- Se você se refere a uma companhia masculina, equivocou-se,<br />
minha amiga. É que... há um chamado bem <strong>aqui</strong> <strong>no</strong> meu peito. E<br />
não sei qual é a forma de descobri-lo. Sinto-me vazia, inútil,<br />
50
vivendo uma vida de abando<strong>no</strong> dos meus próprios valores, porque<br />
eles estão mergulhados numa tigela de bronze.<br />
Cornélia riu.<br />
- Tão pequeni<strong>no</strong>s assim, <strong>para</strong> caberem numa tigela?<br />
- Exatamente, Cornélia. É por isso que vim conversar. Gosto muito<br />
da companhia de Aurélia, mas sei que preciso ampliar os meus<br />
horizontes. A luta de Aurélia é um pouco parecida com a luta de<br />
castas dos hindus.<br />
- Nem me fale em castas, Hannah. Isto me apavora mais do que<br />
imagina. Mas posso entender aonde quer chegar.<br />
- É que os meus amigos se moldaram muito fortemente na idolatria<br />
de seus antepassados. Agora, fico imaginando se você não levou<br />
uma e<strong>no</strong>rme vantagem convivendo uns tempos com os judeus mais<br />
simples que acompanharam Joshua.<br />
- Ah, Hannah, há muito já concluí que este ou aquele povo guarda<br />
na memória apenas pedaços de sua história, quando, na realidade, é<br />
tudo uma questão de imaturidade mesmo. Nós já vivemos tantas<br />
vezes...<br />
- Se eu conseguisse acreditar nisso, seria muito mais fácil <strong>para</strong> mim,<br />
Cornélia. Mas eu não creio que vamos um dia morrer, e sair d<strong>aqui</strong><br />
<strong>para</strong> depois recomeçar tudo <strong>no</strong>vamente. Qual sentido haveria numa<br />
Roda de Vivências?<br />
- O sentido da Luz, Hannah, da amplidão. Você acha tão<br />
importantes os feitos dos Gracos, dos Catões, dos Cipiões e dos<br />
Tibérios?<br />
Hannah pensou e comentou:<br />
- Talvez... <strong>para</strong> a reconstrução dos impérios que...<br />
- Que levaram criaturas e criaturas a desesperar-se? A se verem<br />
isoladas, manchadas, perdidas <strong>no</strong>s valores que deveriam ser os da<br />
construção sem violência? Pensa realmente, Hannah, que a maldade,<br />
a brutalidade e a imposição são a maneira vista pelo Criador <strong>para</strong><br />
51
embelezar a Terra? Acha que é necessário abrir um mundo de covas<br />
<strong>para</strong> o coração do homem progredir?<br />
- Eu não, Cornélia. Sou criatura pacífica.<br />
- Você é, eu sei. Mas você crê que esses roma<strong>no</strong>s de agora, que<br />
estão construindo um império fe<strong>no</strong>menal, pretendem entregar o<br />
pacifismo <strong>para</strong> quem não responde com a mesma fala deles?<br />
- Não, não posso achar.<br />
- Pois então eu lhe digo, minha amiga, foi isto que aprendi com<br />
Joshua; que o Deus Dele oferece um Rei<strong>no</strong> de Luz <strong>para</strong> todos – e<br />
sem exceção. Isto eu acho justo, decente e misericordioso.<br />
- Mas este Messias já morreu, Cornélia. E então?<br />
- Então ele deixou por <strong>aqui</strong> ensinamentos que as criaturas vão tentar<br />
propagar. E estas criaturas um dia vão morrer... e renascer,<br />
conforme o próprio exemplo deixado por Joshua. Você não ouviu<br />
contarem que ele apareceu aos amigos, após a morte na cruz?<br />
- Sim, eu soube disto.<br />
- Quando Joshua possibilitou o conhecimento deste fato, desvendou<br />
um dos mistérios da vida - aquele que <strong>no</strong>s mostra como criaturas<br />
com capacidade de vivenciar aprendizados em existências várias.<br />
Portanto, Cornélia, os que o amaram de verdade poderão continuar<br />
a seguir infindavelmente os exemplos dele. Ele jamais morrerá,<br />
entende?<br />
Hannah permaneceu tristonha. Aquela afirmativa não ia de encontro<br />
ao que seu coração ou seu intelecto alcançavam.<br />
- Sabe, Cornélia, tive oportunidade de observá-la bem. Você era<br />
uma jovenzinha sempre preocupada com o passado e com o futuro.<br />
Com aquelas visões que me contou que teve – e que nem sei<br />
interpretar – posso sentir que somos diferentes em alguns aspectos.<br />
Minhas exigências são <strong>para</strong> entender o <strong>aqui</strong> e o agora. Mas você,<br />
não. Você é como aquelas criaturas que gostam de ouvir as boas<br />
músicas e tentam encontrar, já, nas pessoas, os instrumentistas de<br />
valor.<br />
52
- E você acha que isto não é certo?<br />
- Como posso saber o que é certo ou errado? Eu apenas observo os<br />
instrumentos, Cornélia. E <strong>para</strong> mim os homens ainda estão na fase<br />
de aprender a construir os instrumentos, a fim de fazerem suas<br />
tentativas musicais. Sendo assim, se eu for pensar em futuro – e na<br />
possibilidade de vivermos outras vezes - acho que, até chegarem a<br />
ser justos, os homens vão necessitar construir tantos instrumentos<br />
musicais diferentes dos que conhecemos, que a <strong>no</strong>ssa imaginação<br />
nem pode alcançar.<br />
- E então?<br />
- Daí, eu deduzo que a minha preocupação em relação à humanidade<br />
é muito maior do que a sua. Principalmente porque acredito que o<br />
Divi<strong>no</strong> só entregará aos homens esta possibilidade de construírem<br />
<strong>no</strong>vos instrumentos, quando o próprio homem estiver entendendo,<br />
de fato, qual é o significado da música.<br />
- Ah, Hannah, Joshua foi um instrumentista perfeito. Quantos o<br />
ouviram? Nem por isso o Divi<strong>no</strong> deixou de mandá-lo até nós. Não<br />
acha que isto pode significar que já é o momento certo <strong>para</strong> os<br />
homens escolherem quais músicas preferem? Ou quais músicas<br />
agradam ao Divi<strong>no</strong>?<br />
53
Onze<br />
A tristeza começava a visitar a casa de Aurélia. Seus dois filhos<br />
muito amados, Fábio e Licínio, tinham sido indicados <strong>para</strong> um posto<br />
que os afastaria dali <strong>para</strong> a Roma dos desesperos de Aurélia.<br />
E por que isto?<br />
Já fazia algum tempo que ela se via entregue a pesadelos em<br />
quadros estarrecedores durante o so<strong>no</strong>. Eram centenas de criaturas<br />
crucificadas, numa extensa Via, que ela, particularmente, distinguia<br />
como pertencente a Roma. Acordava em desespero e fugia <strong>para</strong> fora<br />
de casa, desejosa de abraçar os filhos e, naqueles momentos, com<br />
um único intento: afastá-los do exército de que tanto se havia<br />
orgulhado.<br />
Até então, Aurélia tinha usufruído da companhia dos filhos, em<br />
suas visitas ou em estadias que a enchiam de satisfação, quando<br />
encontrava pretexto <strong>para</strong> oferecer festas que entravam pela<br />
madrugada ao som de sorrisos e de músicas.<br />
Seu filho mais velho, Licínio, caladão, sempre demonstrou que<br />
havia de atingir altos cargos, pela pertinácia, retidão e alegria com<br />
que encarava a vida. Destemido, nada o esmorecia. Sua preocupação<br />
maior era com o irmão, de quem tentava equilibrar as passadas,<br />
visto que Fábio era excessivo em bazófias e desaforado ao se ver<br />
diante de situações que considerasse injustas.<br />
A disciplina rígida do exército apenas conseguira colocar Fábio<br />
numa gangorra, porque, se não temia as falas de seus superiores,<br />
esforçava-se <strong>para</strong> não confrontá-los, mas apenas quando se<br />
lembrava da figura da mãe, a quem adorava. Fábio havia colocado a<br />
mãe num pedestal, mas o afastamento <strong>para</strong> a distância poderia trocar<br />
54
o lado da gangorra, visto que deixaria de receber a influência<br />
marcante que ela exercia sobre ele. E Licínio já previa tudo isto.<br />
Aurélia entendia que o exército era a escada <strong>para</strong> a fama dos filhos,<br />
e que ela mesma, silenciosamente, mas em ma<strong>no</strong>bras políticas e<br />
sagazes, havia colocado à frente deles. Certamente havia acreditado<br />
que poderia ma<strong>no</strong>brar até o fim a caminhada daqueles seres.<br />
A chegada de um <strong>no</strong>vo comandante, que não se importava nem um<br />
pouco com <strong>no</strong>mes célebres de antepassados, tirou da mão de Aurélia<br />
os poderes de que se via investida. Quando percebeu, já não havia<br />
mais possibilidades de evitar o afastamento de Licínio e de Fábio<br />
<strong>para</strong> Roma – exatamente o local que soava sinistramente em seus<br />
ouvidos.<br />
Só em pensar em Roma, Aurélia estremecia. Era como se esperasse<br />
de lá, antecipadamente, um roteiro cheio de mágoas <strong>para</strong> aquelas<br />
criaturas às quais havia doado suas energias e melhores vibrações.<br />
Tanto sofreu, que certa <strong>no</strong>ite acordou Hannah pelos soluços<br />
contínuos a que se entregava, sentada em um banco do extenso<br />
jardim de sua residência e que ficava quase que embaixo da janela<br />
dos aposentos de Hannah.<br />
Hannah desceu ao seu encontro.<br />
- Ah, Hannah, tenho tido visões medonhas durante meus sonhos!<br />
Vejo uma quantidade imensa de cruzes e, nelas, criaturas<br />
martirizadas como foi aquele filho de carpinteiro.<br />
- Calma, Aurélia! Você deve ter em mente exatamente a morte<br />
daquele judeu que muitos afirmam que era o filho do Deus.<br />
- Não, não se trata disso, Hannah. Aquele homem era somente um<br />
simples... e nem era roma<strong>no</strong>. Mas o meu coração está chorando pelo<br />
meu povo e também porque vejo, entre ele, os meus filhos. Eu me<br />
desespero, porque tenho medo de que Fábio e Licínio também sejam<br />
sacrificados.<br />
- É que você, pela primeira vez, os terá longe de seus olhos e de<br />
seus cuidados, minha amiga. E nós todas temos ouvido falar da<br />
pompa, das extravagâncias e das corrupções existentes em Roma.<br />
55
Mas você e seus filhos são criaturas de cultura e de boa cepa,<br />
Aurélia.<br />
- Eu sinto muito medo...! Sinto como se lá fosse acontecer o mesmo<br />
que se deu por <strong>aqui</strong>. Até quando vamos precisar ouvir a história<br />
desse judeu que dizem que veio <strong>para</strong> cá <strong>para</strong> tudo mudar? Pensei<br />
que a morte dele acabaria por <strong>aqui</strong>. Mas não. Estou sempre ouvindo<br />
os meus servos comentarem que ele era o filho do Deus e que... - ela<br />
voltou a soluçar. Mas nós não tivemos nada a ver com <strong>aqui</strong>lo, não é<br />
mesmo, Hannah?<br />
A amiga abraçou-a.<br />
O que sucedia com Aurélia era o mesmo que vinha se passando com<br />
os habitantes daquele território. Sempre inserida <strong>no</strong>s meios<br />
políticos, ela acreditava que os chefes e mesmo os subordinados dos<br />
graúdos, até então limitados a fazer com que o andamento dos<br />
povoados fosse entregando alimentos, tarefas, condições de<br />
sobrevivência, etc. etc., não deviam se ocupar muito <strong>para</strong> entender o<br />
que se passava na alma de cada um. Bastava-lhes que a máquina<br />
administrativa funcionasse, bastava-lhes que houvesse lucro e<br />
crescimento material, porque isto resumia tudo <strong>para</strong> eles.<br />
Acontece que algo começava a se inserir, a brotar sutilmente <strong>no</strong>s<br />
corações e mente das pessoas. Até a paisagem principiava a<br />
provocar em cada um o “desejo de descobrir algo a mais” – e isto<br />
referente ao coração.<br />
E não sucedia só <strong>para</strong> ela. Senhores do exército, soldados, donas de<br />
casa, prostitutas, neófitos, escravos, judeus, roma<strong>no</strong>s, árabes, todos,<br />
enfim, não deixavam de captar uma expectativa diferente na<br />
maneira de viver, uma certa ansiedade de conhecer um outro lado do<br />
mundo – o do Rei<strong>no</strong> tão propalado por ali por Joshua. Só que isto<br />
era tão imperceptível <strong>para</strong> alguns, como o era <strong>para</strong> um nãometeorologista<br />
prever que ia chover.<br />
Crianças, senhoras, velhos, jovens, <strong>para</strong>líticos, endemoninhados,<br />
todos sentiam a presença quase mágica de que uma Aurora Bendita<br />
iria se expandir entre eles. Para alguns, isso trazia, já, a presença da<br />
alegria com uma re<strong>no</strong>vação interior. Para outros, era como se o<br />
56
mundo fosse acabar, a fim de começar um outro <strong>no</strong>vo. Era isso que<br />
Aurélia temia, colocando nessa impressão a morte de seus filhos. E<br />
tão grande a sua preocupação, o seu medo, que entrava em pânico.<br />
- Aurélia, enxugue essas lágrimas! Amanhã conversaremos melhor.<br />
Você ainda poderá contar com surpresas que nem está esperando.<br />
Ninguém consegue estabelecer bons pla<strong>no</strong>s, quando se entrega à<br />
aflição. Prometo que amanhã vamos tentar achar algum caminho<br />
que a leve a encarar a viagem de seus filhos como um bem e não<br />
como um sacrifício, como você pensa. Vá, vá, retorne a seu leito!<br />
Já sozinha, Hannah se pôs a refletir que a passagem daquele judeu<br />
por aquele território havia produzido mudanças em vários lares.<br />
Tinha velhos conhecidos que lhe contavam histórias ligadas ao<br />
desti<strong>no</strong> de Joshua, mas muitas eram cheias de alegrias e de<br />
esperanças. Talvez Cornélia pudesse também se unir a ela e narrar<br />
alguns acontecimentos que fossem benéficos <strong>para</strong> Aurélia. Se<br />
Joshua era um justo, por que teria surgido tanta desavença por ali?<br />
A resposta era diferente <strong>para</strong> cada um?<br />
Exausta, voltou <strong>para</strong> seu quarto. Só conseguiu dormir, quando a<br />
manhãzinha se levantava.<br />
Coincidentemente ou não, naquele mesmo dia Aurélia e Hannah<br />
receberam um aviso de que Celeste e outras amigas se propunham<br />
visitá-las, <strong>para</strong> uma tarde amena e uma proposta de trabalhos a<br />
empenhar. Pediam que Cornélia fosse avisada.<br />
Aurélia encantou-se. Gostava da calma e da firmeza de Celeste, que<br />
também possuía um filho jovem, mas que jamais se havia inclinado<br />
<strong>para</strong> as armas. Era um rapaz bastante tímido, afeito a estudos e<br />
ferrenho defensor das tradições romanas. Dizia-se que Emilia<strong>no</strong>, o<br />
filho de Celeste, compunha escritas que a ninguém entregava, a não<br />
ser a um amigo leal, um judeu-árabe. Lembrando-se desses detalhes,<br />
o coração de Aurélia apaziguou-se. Pelo me<strong>no</strong>s já havia dirigido o<br />
rumo dos filhos. Devia ser um pesadelo a vida de Celeste, já que o<br />
futuro de Emilia<strong>no</strong> ainda era uma incógnita.<br />
57
À tarde, quando todas as amigas já estavam reunidas a conversar,<br />
um serviçal foi ao encontro de Aurélia. Ele avisava que Emilia<strong>no</strong><br />
procurava a mãe, e estava acompanhado de um amigo.<br />
Os dois foram introduzidos na grande e suntuosa sala.<br />
O filho de Celeste era um rapagão alto mas ainda imberbe, de nariz<br />
<strong>aqui</strong>li<strong>no</strong> e pele tão clara, que se podia ver desenhada nela as fininhas<br />
veias que percorriam o rosto de <strong>formato</strong> quase oval. E, se ele fosse<br />
analisado mais porme<strong>no</strong>rizadamente, as mãos, de dedos longilíneos,<br />
estariam bem de acordo com a tendência do jovem de se dedicar a<br />
instrumentos musicais. Aliás, desde criança ele apresentava<br />
tendências artísticas <strong>para</strong> uma boa variedade de artes, jamais as<br />
marciais.<br />
De sorriso franco e bastante à vontade diante de tantas mulheres,<br />
Emilia<strong>no</strong> apresentou o amigo Ben Iasin. O filho de Celeste tinha<br />
sido, desde cedo, um bom companheiro da mãe, nas infindas<br />
reuniões sociais de sua residência, visto que também o pai gostava<br />
de reunir amigos <strong>para</strong> grandes <strong>no</strong>itadas e banquetes.<br />
O acompanhante de Emilia<strong>no</strong> nem de perto se aproximava de sua<br />
faixa etária. Ben Iasin era um homem de seus cinqüenta a<strong>no</strong>s, de<br />
maneiras galantes, mas não ousadas, diante daquelas representantes<br />
do sexo femini<strong>no</strong>. Tinha sido criado por um velho árabe que sempre<br />
havia vivido naquele território.<br />
Talvez por isso apresentasse um traje misto de judeu e árabe: uma<br />
túnica de listras em cores, encimada por um manto de franjas largas,<br />
tendo na cintura uma sacolinha toda bordada, bem à moda dos<br />
mercadores de grandes cidades.<br />
A um sinal de Celeste, os dois foram sentar-se perto. Mas Emilia<strong>no</strong><br />
logo se dirigiu a ela.<br />
- Até parece que vem a propósito esta reunião, minha mãe. O meu<br />
amigo <strong>aqui</strong> me convidou <strong>para</strong> uma viagem até Roma e eu confesso<br />
que estava procurando uma ocasião propícia <strong>para</strong> conversarmos. Sei<br />
muito bem quais os perigos das estradas e não desconheço os avisos<br />
que <strong>no</strong>s são feitos de todas as formas, <strong>para</strong> não <strong>no</strong>s afastarmos a<br />
territórios distantes, sem que estejamos em boa companhia. Mas o<br />
58
pai de Ben Iasin já tem organizada uma caravana com boa escolta,<br />
que pode prevenir os assaltos.<br />
O rapaz ia falando rapidamente, tentando impedir que a mãe<br />
negasse logo de início a realização daquele desejo. Por isso, os<br />
argumentos iniciais <strong>para</strong> ganhar a <strong>aqui</strong>escência dela se baseavam<br />
primeiro <strong>no</strong>s cuidados especiais, na escolta, e na companhia de<br />
criaturas mais velhas do que ele.<br />
Celeste conhecia bem o filho. Analisava os mínimos gestos de<br />
Emilia<strong>no</strong>, sua fluência <strong>para</strong> persuadi-la, e a manifestação de um<br />
tique nervoso que só sucedia quando se via afobado por algum ato<br />
ou pensamento que tentava disfarçar: piscava os olhos três vezes em<br />
seguida, antes de olhar firmemente <strong>para</strong> a mãe.<br />
Enquanto o monólogo do rapaz se desenrolava, Cornélia, ou tocada<br />
pelas palavras sobre a caravana e assaltos, ou atraída pela figura do<br />
árabe que a analisava atentamente, começou a sentir os primeiros<br />
vestígios da tontura que a levava, após, aos desfalecimentos tão<br />
comuns anteriormente, e dos quais se havia livrado com a ajuda de<br />
Joshua. A fronte cobriu-se de suor e uma espécie de arrepio<br />
percorreu ao longo a sua espinha.<br />
Conseguiu equilibrar-se, mas perdeu totalmente, dali em diante, a<br />
seqüência do diálogo mantido por Celeste com o filho.<br />
Olhando mais uma vez <strong>para</strong> o árabe, Cornélia reviu – só que desta<br />
vez diante dela – o rosto do homem do deserto, que se chamava<br />
Antúlio, e que tão atentamente a cuidara e a conduzira em cima de<br />
um camelo, sob o sol escaldante e por entre as tempestades de areia,<br />
numa longínqua caminhada em tempos desconhecidos <strong>para</strong> ela.<br />
Quando Emilia<strong>no</strong> e Ben Iasin já se despediam, o árabe se pôs diante<br />
de Cornélia e comentou:<br />
- Talvez a senhora não entenda o que vou lhe dizer, mas sinto que<br />
não posso partir d<strong>aqui</strong> sem esclarecer o que me parece um traçado<br />
do desti<strong>no</strong>.<br />
Ele permaneceu em silêncio, aguardando um consentimento da parte<br />
dela, <strong>para</strong> prosseguir. Cornélia sorriu e disse:<br />
59
- Até sei o que o senhor tem <strong>para</strong> me ofertar.<br />
- É isto mesmo, minha senhora. Uma oferta de amizade segura e<br />
interminável. Sei que a conheço. Que já fez parte de meu passado, e<br />
que fomos afastados perversamente pelos caminhos difíceis que o<br />
desti<strong>no</strong> às vezes <strong>no</strong>s traça. A senhora era muito jovem, inexperiente,<br />
mas cheia de valores que precisavam ser reconhecidos por si<br />
mesma. Não pude acompanhá-la até o fim daquela viagem, porque o<br />
mundo exigia <strong>para</strong> <strong>no</strong>ssas almas uma tarefa em campos diferentes.<br />
Hannah e as amigas entreolhavam-se atônitas; nada entendiam.<br />
O árabe voltou-se então <strong>para</strong> Aurélia:<br />
- Perdoe-me, minha senhora. Não pude deixar de me apresentar<br />
assim <strong>para</strong> ela. Certamente, se ela desejar, poderá esclarecer melhor<br />
os fatos que <strong>aqui</strong> expus resumidamente.<br />
Os homens saíram e Hannah disse rindo e cheia de curiosidade:<br />
- Então? Quando foi que o conheceu?<br />
- Ah, Hannah <strong>para</strong> explicar isso tudo, vou precisar desnudar minha<br />
alma diante de vocês. E talvez seja bem difícil que não me<br />
crucifiquem também, depois que eu revelar este meu segredo.<br />
- Por que não tenta? – propôs Otávia. – Quer saber de uma coisa?<br />
Acho que entendi perfeitamente o que ele dizia.<br />
- Você entendeu? – perguntou Aurélia. – Para mim foi uma<br />
conversa em língua estranha.<br />
Celeste argumentou:<br />
- Não acredito que seja algo tão incompreensível assim, <strong>para</strong> que a<br />
crucifiquemos.<br />
Cornélia olhou contente <strong>para</strong> as amigas de Hannah, com as quais<br />
começaria a estreitar amizade. Eram criaturas de costumes<br />
diferentes e donas de essência que não se igualaria à das demais, por<br />
serem personalidades distintas. Por que não poderia dividir com elas<br />
também uma parte do que Hannah já conhecia? Não hesitou.<br />
- Não sei se vocês já sabem que perdi a minha mãe, quando eu era<br />
muito <strong>no</strong>vinha – ela logo começou. - Mas fui criada olhando a vida<br />
60
como um espetáculo grandioso e real. Nada era fictício nele,<br />
principalmente os <strong>no</strong>ssos sentimentos, porque a minha mãe era a<br />
pessoa mais transparente que conheci. E minha ama também.<br />
Mas eu nasci com uma faculdade bastante estranha <strong>para</strong> a maioria<br />
das pessoas. Conseguia me afastar da vida comum e ingressar num<br />
rei<strong>no</strong> que me pertencia, mas que fazia parte de outras épocas, de<br />
outras eras. Desde menina, eu soube que vivíamos mesmo por várias<br />
estradas <strong>aqui</strong> na Terra. E eu tinha uma curiosidade quase que<br />
obsessiva de descobrir por onde havia caminhado.<br />
Por meio de uma série de concentrações – eu não saberia lhes<br />
explicar como cheguei a obter um bom resultado –, consegui um dia<br />
atingir um espaço diferente, <strong>no</strong> tempo, e me vi participando da vida<br />
como se eu fosse uma outra pessoa.<br />
Eu não era sempre Cornélia, é claro; tinha outras formas de<br />
vivenciar o mundo, outras características físicas, embora, em<br />
algumas delas, a minha figura de Cornélia relembre as outras.<br />
Pois bem, numa dessas minhas buscas, participei da vida deste árabe<br />
que saiu d<strong>aqui</strong> agora. Era um homem formoso e eu - ingênua,<br />
conforme ele quis dizer – fiz dele um herói. Sei que o admirei<br />
profundamente e que a alma dele devia ser belíssima, porque só me<br />
entregava bem-estar.<br />
Fui raptada por beduí<strong>no</strong>s e entregue em um harém. Ali, vivi uma<br />
história que nem sei reconstituir, porque as minhas reminiscências<br />
só me levaram a este ponto.<br />
Jamais pude comprovar se não eram fantasias da minha mente. Mas<br />
as palavras dele, ditas tão seriamente, me servem de aviso <strong>para</strong> que<br />
eu entenda que realmente não criei as histórias que enxerguei, ao<br />
conseguir penetrar <strong>no</strong> meu mundo interior.<br />
Já contei a Hannah algumas das divisões de minha alma – é assim<br />
que eu costumo pensar. Mas ainda estou procurando as razões pelas<br />
quais fui colocada nessa vida <strong>no</strong> deserto. Qual foi meu aprendizado<br />
ali? E também quero saber o que foi que produziu em mim ter<br />
vivido como Vestal em território do Egito, por exemplo.<br />
61
Cornélia fez uma pausa e Aurélia aproveitou <strong>para</strong> inquirir:<br />
- E você sempre se vê refletida assim, em outras existências<br />
anteriores, ou pode se ver por <strong>aqui</strong> mesma, descobrindo coisas que<br />
vão acontecer?<br />
Hannah entendeu perfeitamente qual era a preocupação da amiga,<br />
porque na voz de Aurélia havia quase que um apelo <strong>para</strong> que a<br />
resposta de Cornélia fosse negativa.<br />
- Infelizmente, sim – Cornélia respondeu gravemente. - Sofri<br />
terrivelmente, quando vi Joshua numa cruz. O fato ainda não havia<br />
acontecido.<br />
- Ah!! – exclamou Aurélia, horrorizada.<br />
Hannah argumentou:<br />
O fato de você ter pesadelos não significa que esteja passando o<br />
mesmo que sucede com Cornélia, Aurélia. Sonhar todo mundo<br />
sonha, mas há misturas de <strong>no</strong>ssas preocupações, quando a gente tem<br />
um pesadelo.<br />
Mas Hannah precisou se deter. Lembrou-se de que nenhuma das<br />
amigas ali presentes sabia quais eram os pesadelos de Aurélia.<br />
Preferiu, então, sair daquele rumo. Disse que já era hora de<br />
saborearem algumas guloseimas e tratou de entrar na casa, a fim de<br />
deixar que Aurélia conseguisse se acalmar.<br />
62
Doze<br />
Ao contrário do que havia parecido a Hannah, a princípio, a reunião<br />
acabou apresentando um resultado inesperado e favorável.<br />
Preocupada com as aflições demonstradas por Aurélia, depois que<br />
ela narrou seus pesadelos, Otávia referiu-se a um recanto<br />
<strong>para</strong>disíaco <strong>para</strong> onde sempre se dirigia, quando se via assaltada por<br />
ondas de medo e decepções. Convidou-as <strong>para</strong> ir até lá. Tinha sido<br />
por muitos a<strong>no</strong>s o seu lar, até a época em que se casou. Logo após<br />
seu casamento, seu pai enviuvou e permaneceu na propriedade,<br />
entregue aos encantos da beleza e do silêncio do local.<br />
O pai de Otávia, Orígenes, era um homem que apreciava o colorido<br />
daquelas glebas que se perdiam de vista. Seu maior prazer, <strong>no</strong><br />
entanto, era disputar com os ilustres roma<strong>no</strong>s o conhecimento a<br />
respeito das diferentes espécies humanas que habitam a Terra. E o<br />
que ele fazia <strong>para</strong> isto? Tomava a seu comando uma centena de<br />
escravos <strong>para</strong> servi-lo, mas só comprava os que tinham origens<br />
variadas. Ia, dessa forma, rodeando-se da “cultura primitiva”,<br />
conforme costumava dizer. Talvez fosse a maneira preferida por ele<br />
<strong>para</strong> sentir-se o maior representante entre os roma<strong>no</strong>s. Um<br />
excêntrico aquele homem!<br />
É verdade, o imenso número de escravos adquiridos por ele, com a<br />
variedade de pensares dessas pobres criaturas abatidas em sua<br />
liberdade pelo “mandato” do pai de Otávia, constituía o maior<br />
orgulho e a principal excentricidade de Orígenes.<br />
Mas havia outras. Sua casa era riquíssima em obras de arte. Assim<br />
como colecionava diferentes espécimens huma<strong>no</strong>s, ninguém<br />
conseguiria enxergar na vivenda dele um determinado estilo na<br />
decoração. Mas não se podia negar que era um excelente apreciador<br />
das belezas produzidas pelos homens. Pela residência se viam<br />
63
espalhadas relíquias de inestimável valor, desde estátuas em<br />
tamanho natural de deuses gregos ou roma<strong>no</strong>s, até estatuetas<br />
ornamentais representativas da fauna e da flora, esculpidas em<br />
realidade impressionante, e também originárias de diversos<br />
territórios.<br />
Isso não era difícil, porque assim como chegavam negociantes de<br />
escravos vindos dos portos do Mediterrâneo e do Mar Negro, com<br />
levas da África, Espanha, Germânia, Ásia e Grécia, entre outros, o<br />
mesmo sucedia com os admiradores da arte.<br />
Era dessa forma que Orígenes ia colecionando espelhos de bronze,<br />
ornamentos florais e mitológicos, a estatuária dos deuses lares,<br />
ornamentos luxuosíssimos <strong>para</strong> os quartos de banho, serviços de<br />
prata, louças vidradas em cor vermelho vivo, e até instrumentos<br />
musicais.<br />
Sua casa de campo era considerada pelos altos dirigentes roma<strong>no</strong>s<br />
bastante invejável. Talvez a excentricidade de Orígenes encontrasse<br />
reciprocidade na alma daqueles senhores, sabe-se lá.<br />
Era <strong>para</strong> viajar até essa casa de campo que Otávia as convidou.<br />
Aurélia facilmente cedeu à proposta, principalmente porque<br />
enxergou a possibilidade de tentar um caminho diferente, a fim de<br />
evitar os atropelos que, porventura, Roma oferecesse a Licínio e<br />
Fábio, já que a propriedade de Orígenes não distava tanto de Roma.<br />
Poderia começar a estabelecer alguns contatos com gente ilustre<br />
daquela cidade.<br />
Foi com o coração cheio de expectativas, da parte de Aurélia, que as<br />
amigas se despediram.<br />
Hannah, Celeste e Aurélia viajaram tempos depois ao encontro de<br />
Otávia. Iam sentir a brisa que soprava por aqueles lados, enquanto<br />
Cornélia e as amigas judias que não haviam acompanhado seus<br />
maridos, nas divulgações de Joshua, permaneceriam num total<br />
obscurantismo.<br />
O zunzunzum provocado pelas prédicas dos seguidores do<br />
Nazare<strong>no</strong>, sobre os ensinamentos e também sobre os milagres das<br />
curas realizadas por ele, alcançavam muitas direções. É claro que<br />
64
iam surgindo conversas contraditórias e, também, as cheias de<br />
encantos, alcançando cada vez mais ouvidos de gente dedicada à<br />
política. E era através da política (ou arremedos dela) que as<br />
mulheres romanas entendiam que seus maridos conseguiriam galgar<br />
altas posições - aqueles patamares indiscutíveis de “sonhos de<br />
grandeza” - com os quais não deixavam de compactuar.<br />
Muito poucas as que se preocupavam com os feitos de Joshua, ou<br />
que se dispunham a analisar que, por ali, estava chegando uma<br />
sementeira bastante diferente. Mas havia exceções, é claro. E<br />
também iam surgindo matronas que preferiam entregar sua<br />
contribuição, <strong>no</strong> fato de tentarem evitar as rudes perseguições contra<br />
aqueles “tristes e desventurados cristãos que, antes mesmo de iniciar<br />
o combate, já se viram lançados <strong>no</strong> solo pela morte de seu<br />
representante maior” – assim é que analisavam. Para essas, a<br />
supremacia de Roma era inevitável. De qualquer forma, pelo me<strong>no</strong>s<br />
escolhiam o caminho da não-violência. Preferiam manter o status<br />
quo (se não elevá-lo) e passar de lado pela brisa que vinha,<br />
indiretamente, da boca de Joshua.<br />
A esse último grupo pertenciam as amigas de Aurélia que moravam<br />
em Roma. Aurélia enviou <strong>para</strong> duas delas um bilhete, avisando-lhes<br />
que passava uns tempos na propriedade de Orígenes com Otávia.<br />
Poucos dias após, foi visitada por Júlia, acompanhada de uma<br />
enteada. Pela boca de Júlia, Aurélia ficou sabendo o sucedido com a<br />
amiga em comum, a quem Aurélia havia enviado também um<br />
convite, mas que não comparecera - Lélia.<br />
Lélia havia cedido aos ensinamentos dos divulgadores da mensagem<br />
de Joshua. O marido, um importante senador roma<strong>no</strong>, temendo ser<br />
ridicularizado por seus amigos, exilou-a <strong>para</strong> bem longe, em<br />
companhia de alguns poucos escravos e o filhinho <strong>para</strong>lítico.<br />
A desventura de Lélia passava de boca em boca. Era a primeira<br />
entre as amigas de Aurélia que não se havia ocultado e aceitava<br />
plenamente a <strong>no</strong>va seita.<br />
Paradoxalmente, o infortúnio de Lélia serviu <strong>para</strong> a ampliação da<br />
serenidade de Aurélia. Se aquela amiga, dona de grande fortuna e<br />
65
esposa de um <strong>no</strong>bre senador, não havia sido sacrificada por<br />
pertencer à <strong>no</strong>va seita, era bobagem de sua parte, então, martirizarse<br />
por achar que os roma<strong>no</strong>s – e junto deles, seus filhos – seriam<br />
sacrificados por obra daquele judeu, assim Aurélia passou a<br />
analisar.<br />
Daquele dia em diante, mais Aurélia reforçou seu ideal: continuaria<br />
a luta em prol do engrandecimento dos filhos. “Ninguém tem o<br />
direito de mudar o que já está tão arraigado por <strong>aqui</strong> - o poder dos<br />
<strong>no</strong>bres roma<strong>no</strong>s”, assegurava, com orgulho.<br />
Mas a história de Lélia não iria terminar assim. Uma série de<br />
criaturas mostrou-se condoída pela imagem da esposa exilada,<br />
cuidando, precariamente, de um meni<strong>no</strong> enfermo e fragilizado.<br />
Dessa forma, um grupo de mulheres romanas pressio<strong>no</strong>u o marido<br />
de Lélia. Para que a situação não chegasse aos ouvidos do próprio<br />
Imperador, Lélia foi premiada com a “misericórdia” do marido e<br />
voltou <strong>para</strong> sua rica propriedade de Roma.<br />
Mal sabiam eles que aquela mulher seria de uma utilidade<br />
incomparável <strong>para</strong> os seguidores de Joshua, que se viam ofendidos<br />
em uma série de lugares alcançados em suas peregrinações.<br />
Aqui e acolá, a mão do desti<strong>no</strong> ia plantando suportes <strong>para</strong> o<br />
crescimento da imensa videira em semeadura.<br />
66
Treze<br />
Enquanto isso, Cornélia, distante dali, entre a so<strong>no</strong>lência e o<br />
despertar, sentiu-se, um dia, desligada do corpo. A sua primeira<br />
impressão era que sua vida ia se esvair e que havia chegado sua hora<br />
de ir ao encontro do Divi<strong>no</strong>.<br />
Não havia nela nem um resquício de medo. A visão que um dia<br />
tinha tido da figura etérea e iluminada de Joshua, após a morte física<br />
na cruz, ainda pulsante de vida e de regozijo, corroborava <strong>para</strong> seu<br />
destemor.<br />
Sentia-se leve, muito leve, como devem ser as asas das delicadas<br />
borboletas que desfilam sua ambivalência pela vida, impulsionando<br />
a parte física e, depois, transportando-se <strong>para</strong> seus rei<strong>no</strong>s de<br />
inumeráveis flores. A leveza do mundo dessas graciosas voadoras<br />
se igualava certamente ao que usufruía naquele momento.<br />
Deixou-se pairar, acompanhada da música que percorre os espaços,<br />
e viu-se <strong>no</strong>vamente como a menina do bastão.<br />
Cornélia exultou. Sua memória espiritual voltava aos jorros e até a<br />
fragrância inebriante do espaço que a circundava conseguia captar.<br />
Viu-se num local, onde os jardins se assemelhavam a imensas<br />
floreiras de cores indescritíveis, e junto de outras meninas a brincar<br />
com seus bastões, à beira de um mar majestoso. Era dali que partiam<br />
as músicas adoráveis que enchiam seu coração de paz.<br />
Já acostumada com visões, e com o desligamento da alma, Cornélia<br />
deixava-se levar, evitando até o movimentar forte do inspirar e<br />
expirar. Soltava levemente pelas narinas o ar mor<strong>no</strong> que a seu corpo<br />
correspondia, certificando-se do bom relaxar.<br />
Era a primeira experiência que chegava até ela, daquela maneira.<br />
Seu corpo fluídico foi se soltando do corpo terre<strong>no</strong>, como se solta a<br />
67
espuma do mar, que permanece algum tempo pousada na areia e<br />
depois a ela se junta.<br />
Cornélia era um leque de sensações, ao vivenciar a experiência dela<br />
mesma como uma menininha, que se regozijava a se projetar tendo<br />
na mão um bastão vermelho e translúcido de cristal. O pensamento<br />
da garota era ágil, forte, analista e, ao mesmo tempo, desafiador.<br />
Ela vivia bem próximo do mar. Sua casa, construída sobre altas<br />
rochas, lhe permitia avistar a e<strong>no</strong>rme beleza de um ocea<strong>no</strong> de cor<br />
indefinível. O céu era de uma palidez robusta, se é que se pode dizer<br />
isso de um branco não desmaiado que se tingia de nesgas das<br />
mesmas cores que pintavam o mar. Céu e mar se igualavam em<br />
perfeição.<br />
Subitamente, uma nuvem escura se desprendeu do pico de uma<br />
montanha, que era as delícias daquela menina. Um rolo espesso de<br />
fumaça mais negra também subiu, espalhando com ele um odor<br />
fétido a atingir prontamente aquele espaço. Labaredas o<br />
acompanharam, entremeadas de fagulhas que se soltavam em riscas<br />
horizontais.<br />
Não demorou muito e lavas incandescentes escorriam pela<br />
montanha, produzindo rio de imensa largura, descendo preguiçosa<br />
mas inexoravelmente em direção ao peque<strong>no</strong> povoado.<br />
Nalu - era assim que ela se chamava - entre o fascínio do mistério<br />
que se desprendia daquelas rochas incandescentes, e o desconforto<br />
do inusitado e também desconhecido <strong>para</strong> ela, viu-se de repente<br />
caída <strong>no</strong> solo. Havia desfalecido.<br />
Depois, tudo se sucedeu em ações céleres. Uma mulher de cabelos<br />
da cor do milho <strong>no</strong>vo a apanhava e corria com ela. Sua voz se<br />
recusava a sair, mas em seus olhos havia a queixa de haver deixado<br />
<strong>no</strong> chão o bastão de que tanto se orgulhava.<br />
Na <strong>no</strong>ite daquele mesmo dia de escuridão, <strong>no</strong> sentido do horror que<br />
todos haviam enfrentado, a família de Cornélia venceu as<br />
intempéries, porque era o final. O continente submergiu como uma<br />
gigantesca nau atingida por algo irremediável.<br />
68
Mas sua impressão era que tinha sido recolhida mesmo em e<strong>no</strong>rme<br />
embarcação e conduzida, junto a seus pais e amiguinhas, <strong>para</strong> uma<br />
outra região.<br />
Dias e <strong>no</strong>ites sua alma procurava o local, na esperança de rever as<br />
águas <strong>baixar</strong>em, <strong>para</strong> reencontrar o lar que tanto amava e seu bastão,<br />
que havia ficado sobre os seixos à beira-mar.<br />
O pai de Cornélia era um pastor de ovelhas e as pastagens, dali,<br />
incomparáveis. Ela desconhecia o sentido da palavra medo e os<br />
habitantes do peque<strong>no</strong> povoado viviam em perfeita comunhão,<br />
realizando trabalhos braçais, cumpridos ao som de músicas e <strong>no</strong><br />
meio de festejos. Aquele povo agricultor oferecia benesses ao Deus<br />
de Todos os Seres.<br />
Ali se conhecia a possibilidade de ligar-se ao Deus - um Deus único<br />
que festejava seus filhos, entregando-lhes a facilidade de contatar o<br />
outro lado da vida. E todos se reconheciam como seres itinerantes,<br />
vindos do espaço <strong>para</strong> cumprir tarefas em trabalhos de plantações,<br />
em <strong>no</strong>me do seu Deus.<br />
Desde pequenas, as crianças possuíam a facilidade de se desligar do<br />
corpo físico e deslizar a alma, que se formava como em um par: um<br />
lado do par era o afetivo e o outro, o racional.<br />
Cada criatura tinha a sua preferência por um ou outro lado, mas<br />
todos sabiam, perfeitamente, que só a junção dos dois lhes entregava<br />
a unidade - e que era essa unidade que lhes permitia devassar pla<strong>no</strong>s<br />
não avistados pelos olhos terre<strong>no</strong>s. Como o desejo de conhecer o<br />
indevassável era bem maior do que raciocinar, ou apenas sentir,<br />
aquele povo conseguia a união de 1+1.<br />
Muito, muito cedo, a maioria das crianças alcançava este<br />
desdobramento. Pode-se até dizer que, quando balbuciavam as<br />
primeiras palavras, já visitavam os rei<strong>no</strong>s do desconhecido.<br />
Para os que se dividiam entre a preferência do racional ou do<br />
emocional, havia preparo. Criaturas categorizadas - amoráveis e<br />
racionais - entregavam um bastão <strong>para</strong> os discípulos dessas escolas.<br />
Havia bastões de cores diversas, segundo a ordem do que<br />
aprenderiam. Os bastões vermelhos simbolizavam a energia, o vigor<br />
69
e a saúde. E quem o recebesse, havia finalizado o seu primeiro<br />
estágio de aprendizado <strong>no</strong> equilíbrio entre o racional e o emocional.<br />
Para os adultos, os estudos eram diferentes.<br />
Nalu/Cornélia tinha grande orgulho daquele prêmio. Com ele, pôde<br />
enxergar quais aprendizados viveria, depois que seu território<br />
submergiu <strong>no</strong> profundo ocea<strong>no</strong>. E suas vidas futuras foram todas<br />
moldadas com a presença do mar, mar amigo, mar assombroso, mar<br />
inesperado e traiçoeiro, mas que nunca havia deixado de ser a razão<br />
de seus amores, de suas saudades e de seu desenvolvimento, <strong>no</strong>s<br />
a<strong>no</strong>s subseqüentes em seus estágios feitos na Terra, e bem distantes<br />
do local daquelas terras submersas.<br />
Esta Quarta Morada Cornélia jamais deixou de abençoar.<br />
70
Catorze<br />
Próximo da residência de Orígenes, um núcleo de judeus começava<br />
a se ampliar. Diz-se próximo, porque as terras de Orígenes beiravam<br />
uma série de vilarejos que pertenciam a agricultores, gente simples<br />
de Roma.<br />
Essa gente era habituada a pegar na enxada, a cavar a terra e a<br />
contribuir <strong>para</strong> o plantio de frutas e hortaliças que eram distribuídas<br />
em grandes carroças <strong>para</strong> um entreposto conhecido como O Grande<br />
Celeiro.<br />
Dali, eram comercializadas por diferentes cidadãos, cuja função<br />
maior, na verdade, era "servirem de olheiros", a fim de que não<br />
faltasse alimento <strong>para</strong> uma grande parte da Roma desses tempos -<br />
teatro dos acontecimentos que estão sendo relembrados. É evidente<br />
que esses olheiros faziam parte do elenco dos servidores imperiais e<br />
de seus comandados.<br />
A esses homens, nunca era negado o abre-te-sézamo em qualquer<br />
situação de dúvida sobre a repartição daquele tesouro. E o território<br />
que eles administravam - um quadrilátero - possuía quatro dirigentes<br />
principais, que se diferiam em suas características e maneira de ser.<br />
O que se pretende apontar é que o território administrado por um<br />
desses homens - Demócrito - contava com mais de 1/5 da produção<br />
dos alimentos dali. Ele era um homem de má catadura, avesso a<br />
contrariedades, mas do<strong>no</strong> de uma cabeça excepcional <strong>para</strong><br />
planejamentos.<br />
Numa época em que a maioria dos homens de importantes funções<br />
se dispersavam facilmente <strong>para</strong> assistir aos jogos dos Circos<br />
Roma<strong>no</strong>s ou outro qualquer tipo de atividade, Demócrito jamais se<br />
desviava de seu objetivo primordial: manter a sua quota provedora<br />
71
de alimentos em perfeito acerto, a fim de que sua figura se fizesse<br />
acentuada diante dos grandes homens de Roma e, principalmente,<br />
dos grandes senadores.<br />
Para Demócrito, era sagrado o seu mundo interior, era sagrada a sua<br />
honra de homem comedido e responsável na boa contribuição de<br />
suas tarefas. A ele não interessava nem religião ou crença. Seu<br />
campo de guerrilha era mesmo o campo de honra.<br />
Foi dentro de seu "distrito de cuidados" que começou a ampliar o<br />
núcleo de judeus, vindos de diferentes recantos. Nem todos haviam<br />
saído da Galiléia. Alguns nem conheciam os fatos da morte de<br />
Joshua e, recentemente, também se haviam dirigido <strong>para</strong> ali uns<br />
poucos judeus que haviam convivido com Joshua.<br />
Nessa comunidade tão heterogênea - <strong>no</strong> sentido de serem originários<br />
de locais diversos - muita dissidência poderia ocorrer. Os que<br />
desconheciam os momentos vividos por Joshua continuavam a viver<br />
sem que a história dele existisse. Os mais antigos já estavam cientes<br />
dos últimos acontecimentos, porque as <strong>no</strong>tícias passadas de boca em<br />
boca se espalham tão rapidamente quanto o fogo em palha seca. Os<br />
últimos a chegar acreditavam que seria importante florescer, com os<br />
ensinamentos de Joshua, aquele núcleo já existente por ali,<br />
principalmente porque era próximo de Roma, local bem estratégico.<br />
Mas esses judeus não tinham o dom da oratória e, embora<br />
temerários, não pretendiam lançar-se na boca do lobo, porque não<br />
desconheciam a crueldade e arbitrariedade de muitos roma<strong>no</strong>s. A<br />
intenção deles era ir distribuindo mensagens manuscritas, que eles<br />
próprios haviam compilado.<br />
Apontado o quadro do ambiente que circundava as terras de<br />
Orígenes, pode-se, então, focalizar mais de perto as possibilidades<br />
que iam se abrir ali também <strong>para</strong> Hannah, Otávia, Celeste e<br />
amigas.<br />
Demócrito era conhecido de Orígenes. Os dois viviam às turras,<br />
porque Orígenes se recusava a entregar parte do que recolhia em<br />
suas terras <strong>para</strong> prover o Celeiro Maior.<br />
72
Ele alegava que sua contribuição já estava sendo feita, desde o<br />
momento em que seus escravos é que plantavam e colhiam os<br />
alimentos e os gastos eram dele mesmo, portanto, os lucros<br />
deveriam lhe pertencer. Não prestaria tributo nenhum aos grandes<br />
senhores, visto que suas terras já estavam alimentando uma boa<br />
parte das residências de Roma. Era este seu argumento - que não<br />
deixava de ter lá suas razões.<br />
Mas existia uma lei que apontava que todos, indistintamente,<br />
deveriam contribuir <strong>para</strong> o Celeiro Maior, independente de serem<br />
do<strong>no</strong>s ou não das terras, dos escravos e das plantações.<br />
Com isto, iniciou-se uma guerrilha encoberta entre Orígenes e<br />
Demócrito, sem que qualquer um dos dois estivesse, a bem da<br />
verdade, faltando com "a lei de seu próprio direito".<br />
Quando Aurélia por ali chegou, desejosa de contatar pessoas<br />
eminentes que pudessem contribuir na ajuda a seus dois filhos, teve<br />
a infeliz idéia de contatar Demócrito e não Orígenes, simplesmente<br />
porque não aceitava a excentricidade do pai de Otávia. Ela o<br />
respeitava... mas só.<br />
Ao compactuar com aquele homem irascível e sem crença religiosa,<br />
prosélito apenas dos lucros do gover<strong>no</strong>, Aurélia sem o <strong>no</strong>tar estava<br />
trilhando o começo de um caminho que, mais tarde, iria levá-la a<br />
confrontar os seguidores do Nazare<strong>no</strong>.<br />
Otávia percebeu a tendência de Aurélia e procurou orientá-la.<br />
- Dizem por aí, Aurélia, que este homem conhecido por Demócrito<br />
pode ser um verdugo até de seu pai. Para ele, o que conta é o lucro<br />
da terra, mesmo com os desmandos que tornam as criaturas<br />
infelizes. Ele é incapaz de fechar os olhos em suas cobranças,<br />
porque <strong>no</strong> coração dele ainda não está inscrita a palavra<br />
misericórdia.<br />
Mas Aurélia teimou:<br />
- Eu preciso de gente enérgica <strong>para</strong> levar os meus recados, Otávia.<br />
Ouvi dizer que este homem é um gênio na administração do Grande<br />
Celeiro. E ele é figura bem grata ao Imperador.<br />
73
Otávia quase preferiu se calar, principalmente porque a amiga<br />
demonstrava colocar seu pai Orígenes fora da aliança dela. Mas<br />
ainda advertiu:<br />
- Só tome cuidado, Aurélia. Há gente que não hesita em se colocar<br />
em primeiro lugar, seja qual for a circunstância. Essas pessoas...<br />
Mas não prosseguiu.<br />
Hannah, ali perto, observava. Não participava das tentativas de<br />
Aurélia de se tornar conhecida <strong>no</strong>s altos meios sociais de Roma.<br />
Principiava a interessar-se pelos comentários de algumas amigas de<br />
Otávia que as visitavam, falando-lhes de Lélia.<br />
Hannah desejava muito conversar pessoalmente com ela.<br />
Naquela mesma semana, o dedo do desti<strong>no</strong> apontou a solução <strong>para</strong><br />
aquela realização. Os dois filhos de Aurélia foram até a casa de<br />
Orígenes passar uns dias. Eles insistiam com a mãe que os<br />
acompanhasse até Roma, levando suas amigas.<br />
Aurélia entusiasmou-se e tudo foi acertado. Elas foram hospedar-se<br />
na casa de um amigo de Licínio. De lá, foi fácil visitarem Lélia.<br />
A residência de Lélia era extraordinária pelo tamanho. Possuía um<br />
amplo pátio aberto, onde se viam flores, aves, estátuas, e pórtico<br />
dos quatro lados. Mas o interior era sóbrio, como se aquela criatura<br />
quisesse estampar a seu redor a melancolia de que era possuída.<br />
Fora as porcelanas, louças e pratarias finíssimas, onde tinham sido<br />
servidas frutas e deliciosas iguarias, nada conseguia indicar que<br />
Lélia possuía e<strong>no</strong>rme fortuna.<br />
Contou-lhes sua história, bem comum.<br />
Havia vivido com o pai desde menina, porque a mãe morrera <strong>no</strong> seu<br />
parto, e sua educação tinha sido feita por uma ama que havia<br />
chegado de lugar distante - uma senhora de maneiras gentis e<br />
bastante humanitária, culta, conhecedora do contraste do ensi<strong>no</strong><br />
entre os gregos e roma<strong>no</strong>s. Ela era em parte grega.<br />
Como Lélia desde criança havia demonstrado predileção pela<br />
música, a ama a orientara e ela era exímia tocadora de cítara.<br />
74
Mas sua cultura sobre o povo roma<strong>no</strong> vinha dos ensi<strong>no</strong>s de seu pai,<br />
até que conheceu um rapazinho e a irmã dele, absorvendo <strong>no</strong>vos<br />
conhecimentos. Esse rapaz se tornara mais tarde seu esposo - o<br />
senador roma<strong>no</strong> que não hesitou em mandá-la <strong>para</strong> o exílio, ao vê-la<br />
interessada <strong>no</strong>s feitos dos seguidores de Joshua.<br />
O senador Teodoro, marido de Lélia, era homem de grande cultura<br />
e também um grande orador que conseguia atrair bom número de<br />
seguidores. Mas ele execrava o movimento subterrâneo que vinha<br />
sendo formado por ali, depois da morte de Joshua - aquele judeu<br />
revolucionário - como costumava dizer.<br />
A ama de Lélia havia aberto <strong>para</strong> ela os ensinamentos de Joshua. A<br />
comunidade judia, próxima da residência de Orígenes, já começava<br />
a multiplicar os textos dos seguidores e um desses manuscritos<br />
havia caído em mãos de Lélia, com a ajuda da ama.<br />
Lélia falava de sua ama com tanta ternura, que não se podia duvidar<br />
de que a alma de uma mãe é que ocupava o corpo de uma serviçal,<br />
<strong>para</strong> aliviar os seus caminhos.<br />
Hannah, que havia começado a interessar-se pelos eventos de<br />
Joshua, lá na Galiléia, ali em Roma principiou a leitura desses<br />
manuscritos, oferecidos por Lélia.<br />
Dali em diante, ela, Celeste e Otávia se dispuseram a conhecer mais<br />
e mais sobre a vida daquele simples filho de um carpinteiro.<br />
75
Quinze<br />
O crepúsculo surgiu junto ao pontilhar de diamantes do céu da<br />
Galiléia.<br />
No terraço de sua residência, Cornélia permitia que sua alma<br />
transcendesse, que sua alma mergulhasse <strong>no</strong>s diamantes miudinhos<br />
de suas lembranças, desde seus dias de menina até esse em que sua<br />
alma transbordava em amor, mas cheia de solidão. Não tinha certeza<br />
ainda de ter optado bem, quando se negara a acompanhar Hannah e<br />
as amigas até a Roma longínqua.<br />
O silêncio de que se via envolta, como que desejoso de agradá-la,<br />
foi cortado pelo latido de cães. E, com o instinto próprio daqueles<br />
que conhecem bem até os ruídos de suas cercanias, como uma<br />
gatinha que fareja bem antes a chegada de pessoas queridas,<br />
Cornélia desceu até o pátio fronteiriço de sua casa.<br />
Apurou os ouvidos diante do e<strong>no</strong>rme portão, <strong>para</strong> verificar se era ali<br />
mesmo que havia <strong>para</strong>do um veículo e se ouvia, de fato, um<br />
agradável murmurejar de criaturas que iriam procurá-la.<br />
Zínia também havia descido até lá, com um grande xale colocado<br />
<strong>no</strong>s ombros, <strong>para</strong> ocultar os trajes de dormir.<br />
- Pressentiu o movimento, senhora? – perguntou, solícita, a serviçal,<br />
e antecipando-se <strong>para</strong> abrir o pesado portão.<br />
Diante delas, Boanerges carregava o garoto Josiel, ladeado da<br />
esposa Rute e de Salomé. Josiel dormia o so<strong>no</strong> dos justos. Alguns<br />
cachos negros repousavam na fronte quase tão rosada quanto as<br />
bochechas do garotinho. A pele sedosa e macia de uma das faces<br />
guardava sinais da mantilha que lhe havia servido como travesseiro,<br />
quando Josiel ergueu a cabecinha e, meio so<strong>no</strong>lento, ofereceu os<br />
braços <strong>para</strong> Cornélia.<br />
76
Era o mesmo sinal de reconhecimento da parte dele, relembrando o<br />
dia em que a tinha visto em sua casa - só que em corpo espiritual - e<br />
havia estendido a mãozinha <strong>para</strong> sua fronte.<br />
- Venham, venham! - Cornélia disse feliz. - Nem imaginam como<br />
desejava abraçá-los. Ah, que bela surpresa me fazem!<br />
Rute, intimidada, mais parecia uma garota em idade escolar.<br />
Magrinha, de tórax fi<strong>no</strong> e rosto também desprovido de carnes. O<br />
que realçavam nela eram os grandes olhos pretos e a palidez mate da<br />
tez. Estendeu-lhe a mão delicada, que mal tocou a de Cornélia.<br />
Uma grande ternura envolveu Cornélia diante daquela quase<br />
mocinha, recém saída da categoria de menina <strong>para</strong> mulher.<br />
- Ah, que bom! - voltou a exclamar Cornélia, enquanto Boanerges<br />
se ocupava de descer a bagagem e colocá-la diante do grande portal.<br />
Zínia já havia entrado na residência, à busca de outros serviçais.<br />
Em pouco tempo, os volumes já estavam distribuídos <strong>no</strong>s devidos<br />
aposentos indicados pela dona da casa e os viajantes se dirigiam<br />
<strong>para</strong> uma e<strong>no</strong>rme copa-cozinha.<br />
Ali, em uma lareira ardia grosso tronco de lenha e as auxiliares de<br />
Zínia se ouriçavam festivamente, apesar do adiantado das horas.<br />
Pre<strong>para</strong>vam frugal refeição, dispondo, <strong>no</strong> pavimento tapetado de<br />
azul, iguarias várias: pedaços de aves, queijos, pasteizinhos de<br />
<strong>no</strong>zes, bolos dourados, torta de amêndoas, uma terrina de leite de<br />
cabra e castanhas que, assadas diante deles, iam sendo se<strong>para</strong>das em<br />
cestinhos de juncos e regadas com manteiga ou mel.<br />
Boanerges sorriu satisfeito. Olhou <strong>para</strong> Cornélia e a censurou:<br />
- Está muito magra. O que é que tem feito diante de tanta fartura?<br />
- Ora, meu amigo, olhe <strong>para</strong> a sua mulher...<br />
Ele riu e revidou: - Mas a Rute é de gente assim. Você, não. Seu pai<br />
tinha um bom corpo e me contaram que sua mãe até que era roliça,<br />
quando moça.<br />
O agradável desenrolar da conversa alcançou a madrugada.<br />
Ninguém desejava se recolher, <strong>para</strong> que o encanto do momento não<br />
77
se desfizesse. Apenas o peque<strong>no</strong> Josiel ressonava maciamente e<br />
deitado <strong>no</strong> tapete azul.<br />
Cornélia não se cansava de observar o amigo. Não era mais um<br />
rapazote magrinho e tímido, mas conservava a serenidade do olhar.<br />
Rute foi a primeira a se movimentar em busca do leito, seguida de<br />
Salomé que, a contragosto, decidiu também ir repousar, levando<br />
consigo o meni<strong>no</strong> adormecido.<br />
Num acordo tácito entre criaturas que nem precisavam do uso de<br />
palavras <strong>para</strong> se entenderem, Cornélia e Boanerges foram <strong>para</strong> o<br />
terraço.<br />
- Agora, conte-me, Cornélia, o que tem acontecido? Há tantas<br />
<strong>no</strong>tícias em seu rosto, que você me parece aqueles manuscritos que<br />
andam sendo distribuídos por aí. Já os leu?<br />
- Ora, Boanerges, desde que Joshua ...<br />
- Não, não, estou me referindo aos de agora.<br />
- Não sei do que fala - ela disse, espantada.<br />
- Então não tem sido procurada por seus amigos mais chegados?<br />
- Mas eles já saíram d<strong>aqui</strong>, Boanerges. Eles se distribuíram d<strong>aqui</strong><br />
até Roma, penso eu.<br />
- Só pensa? E não procurou se certificar?<br />
- Para quê? Os manuscritos que li e as palavras que ouvi já<br />
compõem o meu céu interior. Às vezes, até tenho a impressão de<br />
que ouço, vibrando <strong>no</strong> espaço, as palavras sublimes de Joshua. Será<br />
que elas chegaram até as estrelas? - ela disse num arrebatamento<br />
incontido.<br />
Boanerges escutou-a, comovido.<br />
- Penso que você agora tem um romantismo que não conheci. Você<br />
parecia mais...<br />
- Vamos! Mais... o quê?<br />
- Mais seca. Mais séria, Cornélia.<br />
78
- Talvez! - ela ergueu os ombros. Mas eu mudei mesmo, Boanerges.<br />
Não creio que exista alguém que deixe de dar um passo <strong>para</strong> uma<br />
olhada diferente, depois que conviva com um ser como Aquele<br />
Anjo.<br />
- Uhmm! - ele fez, preocupado. - Não é bem assim. Se assim fosse,<br />
todo mundo teria ido <strong>para</strong> o céu com ele. E hoje o céu estaria<br />
carregadinho de anjos, tanto quanto as uvas dos parreirais. Mas nós<br />
sabemos que até algumas uvas secam <strong>no</strong>s próprios pés, não é assim?<br />
- É, é verdade. Mas que pena que seja assim!<br />
- Não é pena, Cornélia. É o mundo. É a composição do mundo. E<br />
Joshua sabia disto muito bem. Se não soubesse... nem se atreveria a<br />
pisar por <strong>aqui</strong>.<br />
Sorrindo, Cornélia pediu: - Conte-me, então, que manuscritos são<br />
esses que você leu?<br />
- Quem sabe até de amigos seus, Cornélia. Eu não sei. Não trazem<br />
indicação de quem os copiou. Sabe como é, um vai passando <strong>para</strong> o<br />
outro. Todo mundo quer contar um pedaço do que ouviu Joshua<br />
dizer.<br />
- E é bom. Assim as palavras dele vão chegar em outros continentes.<br />
- Claro que vão! E eu nem me preocupo com a maneira com que<br />
escrevem, sabe por quê? Porque todo mundo quer contar os<br />
milagres que ele fez e sobre o Amor que ele deixou. Por mais que as<br />
pessoas escrevam em idiomas diferentes, o Amor de Joshua está lá.<br />
A gente sabe que o que nunca morre é o Amor. Joshua jamais<br />
morrerá.<br />
Os olhos de Cornélia umedeceram-se.<br />
- E suas visões? Repetiram-se? - Boanerges indagou interessado.<br />
- Sim, agora chegam espontaneamente. Não preciso mais da pérola.<br />
- Mas eu sempre soube que isso era apenas um recurso <strong>para</strong> você<br />
não se dispersar em pensamentos fugidios, minha amiga. E não há<br />
nenhum milagre nesse sucedido.<br />
- Eu sei. Você não acredita em sobrenatural. Jamais acreditou.<br />
79
- Não mesmo. Com a ampliação de <strong>no</strong>sso entendimento, a gente vai<br />
somando 1+1.<br />
- Ah, que coincidência! Deixe-me contar-lhe a última visão que tive.<br />
E que veio acompanhada de entendimento de alguns fatos. Tem<br />
tudo a ver com o 1+1.<br />
Cornélia narrou em detalhes a sua vivência como Nalu. Ele<br />
permaneceu pensativo, mas, depois de ponderar, arriscou-se a dizer:<br />
- Um continente submerso... Uhmm! Não me parece que tem a ver<br />
com Adão e Eva. É algo bem anterior. Interessante isso tudo,<br />
Cornélia. E você? O que pensa?<br />
- Que somos bem mais velhos do que imaginamos. E surdos de<br />
entendimento, porque até hoje estamos aprendendo esta história do<br />
1+1.<br />
- Pois então! Joshua veio re<strong>no</strong>vá-la <strong>para</strong> nós, exatamente <strong>para</strong><br />
podermos escutar o marulho das águas que percorremos, Cornélia.<br />
- Sabe de uma coisa, Boanerges, era um local tão belo! Tão<br />
encantador!!! Por que será que precisou submergir?<br />
- Não é prudente tentarmos analisar os atos de Deus, você não acha?<br />
O que você ganhar Dele - agradeça. Assim estará exercitando o<br />
aprendizado natural do raciocinar e do amar. Ele ficará feliz.<br />
80
Dezesseis<br />
Numa villa de altos funcionários de Roma, reuniram-se grandes<br />
senhores. Eram os prosélitos do Imperador, que tinham nas mãos<br />
uma batuta <strong>para</strong> comandar os acertos e desacertos da época.<br />
A figura mais imponente representava o rei do grande tabuleiro de<br />
xadrez, só que nunca andava pari passu com a rainha, porque sua<br />
esposa preferia comandar sozinha os próprios peões.<br />
As mulheres de Roma se encantavam com poderio e brilho. Eram<br />
perfeitamente cientes de que a própria mulher crescia com a riqueza<br />
da sociedade. Só não saíam comandando um exército, porque<br />
precisavam se manter atentas em seus territórios <strong>para</strong> o próximo<br />
lance do jogo e <strong>para</strong> espalhar, a seu redor, as iscas. Com isso,<br />
recolhiam os dados que, acrescidos de suas preferências individuais,<br />
iam apresentar em suas mãos o jogo mais ou me<strong>no</strong>s imaginado por<br />
elas.<br />
Sim, mais ou me<strong>no</strong>s, porque era tão grande a variedade de interesses<br />
ocultos nesse jogo organizado, que nem sempre obtinham o final<br />
desejado.<br />
Num ambiente onde as intrigas palacianas e as conversas se<br />
sucediam <strong>no</strong> diapasão do volúvel e do insensato, Aurélia foi se<br />
colocar, sempre pensando em manter o brilho das conquistas <strong>para</strong> os<br />
filhos. Agora, já planejava requisitar um mais alto posto de<br />
comando, do que aquele que lhes tinha sido conferido pelo anterior<br />
comandante, ao enviá-los <strong>para</strong> Roma. Tão aturdida por esses<br />
encantos bem vulneráveis, não observou que o filho Licínio já<br />
caminhava em direção quase oposta à dela, pois ele começava a<br />
interessar-se pelos cristãos. Diz-se direção "quase" oposta, porque<br />
ele nunca havia deixado de amar a mãe.<br />
81
O que Licínio mais almejava <strong>para</strong> Aurélia era que ela visse que as<br />
luzes da ribalta estavam próximas de se apagar e, na opinião dele, a<br />
própria mãe deveria descobrir isso sozinha, desinteressando-se dos<br />
festejos sociais de valor aparente.<br />
Mas foi por intermédio de Fábio que Aurélia começou a <strong>no</strong>tar que<br />
algo não caminhava segundo o seu comando. Ele se chegou a ela,<br />
um dia, interrogando-a:<br />
- Mãe, o que sabe sobre os homens que caminham por aí fazendo<br />
milagres?<br />
- Ora, meu filho, o povo de Roma sempre foi cheio de superstições.<br />
Provavelmente são histórias contadas pelos escravos que infestam<br />
estes territórios. É gente vinda de locais onde as crenças não<br />
condizem com as <strong>no</strong>ssas. Os próprios judeus – alguns deles -<br />
também acreditam que o filho de um carpinteiro que foi crucificado<br />
era o filho de um Deus único. Não vejo motivo <strong>para</strong> me questionar<br />
se devo abandonar os <strong>no</strong>ssos deuses. Eu estou muito feliz com eles,<br />
Fábio. Você não está?<br />
- Eu não estou falando de deuses ou de um Deus único, minha mãe.<br />
O que digo é que até os meus companheiros de armas viram gente<br />
ser curada pelas mãos de alguns dos prosélitos dessa seita <strong>no</strong>va. E<br />
isto me pareceu espantoso e...<br />
- O que sucede com você, Fábio? Arrisca-se a ser taxado de louco,<br />
se fizer esse tipo de comentário diante de seus companheiros.<br />
- Pois a senhora está enganada. Alguns apenas sorriem<br />
incredulamente diante do fato, mas uma boa parte já comenta que<br />
parentes e amigos chegados foram curados até de doenças<br />
consideradas malditas. É tudo bastante estranho, minha mãe. E nem<br />
posso imaginar como foi que a senhora deixou de ouvir esses<br />
comentários. Eles estão em toda parte.<br />
- Ouvir eu já ouvi, Fábio, mas prefiro permanecer muda diante<br />
disso. Por que vou ajudar a espalhar algo de que nem entendo? Até<br />
acho que, se eu comentar, vou colocar mais lenha na fogueira. E<br />
<strong>para</strong> quê? Nós não estamos felizes como estamos?<br />
82
Fábio olhou <strong>para</strong> a mãe e não conseguiu evitar uma certa ironia, ao<br />
prosseguir:<br />
- Não penso como a senhora. Ser feliz é uma coisa, ig<strong>no</strong>rar o que<br />
está em tor<strong>no</strong> de nós é uma forma de deixar <strong>para</strong> lá o mundo que<br />
<strong>no</strong>s abriga.<br />
- E o que acha que posso fazer? - retrucou Aurélia com rispidez -<br />
Sair perguntando <strong>para</strong> os criadinhos e criadinhas o que eles andam<br />
vendo por aí? Você sabe que o meu mundo não é esse, Fábio. Meus<br />
amigos não fazem comentários a esse respeito.<br />
- Ah, fazem sim, senhora minha mãe - ele insistiu. - A senhora sabe<br />
muito bem que existem amigas suas entendendo perfeitamente o que<br />
sucede. Sua amiga Lélia, por exemplo. Desinteressou-se dela? A<br />
senhora e Lélia se conheceram desde a infância, não foi assim? Por<br />
que não a procurou mais?<br />
Aurélia franziu o cenho e indagou:<br />
- Posso saber qual o seu interesse em minhas amigas? O que há,<br />
Fábio? Qual é seu verdadeiro propósito em tudo isso?<br />
- Exatamente saber - por gente <strong>no</strong>ssa, conforme a senhora disse - o<br />
que são estes seguidores do Nazare<strong>no</strong>. Eu também, como a senhora,<br />
não pretendo tirar informações de <strong>no</strong>ssos escravos. Mas não quero<br />
continuar a ig<strong>no</strong>rar o que eles fazem. Pelo que soube, são gente<br />
digna e felizes, porque procuram levar felicidade aos meios me<strong>no</strong>s<br />
providos de posse. E eu não acho isto errado. A senhora acha?<br />
Aurélia não soube o que responder. Não era uma criatura indiferente<br />
ao sofrimento huma<strong>no</strong>. Apenas pautava a vida levianamente,<br />
preenchendo os espaços que lhe levavam solidão com o brilho das<br />
festas. Pela primeira vez, talvez, Aurélia tinha se surpreendido com<br />
a sinceridade daquele filho que não apalpava os seus comandantes e<br />
nem os seus comandados.<br />
"Fábio está amadurecendo", ela pensou, mas foi fugaz o seu<br />
interesse, ao entender que ele lhe dizia <strong>para</strong> olhar melhor os seus<br />
semelhantes e a vida ao redor. Assim, ela voltou a aconselhar:<br />
83
- Filho, cumpra dignamente suas tarefas. Seja respeitado e honrado.<br />
E deixe as crenças <strong>para</strong> serem seguidas por quem quiser. Nossos<br />
deuses lares já <strong>no</strong>s estão favorecendo.<br />
Fábio desistiu por aquele momento. Só que, como a mãe, ele<br />
também gostava de fazer jogos. Ia tentar um reencontro entre a mãe<br />
e Lélia. Queria saber da própria boca daquela senhora, esposa de um<br />
<strong>no</strong>bre senador roma<strong>no</strong>, o que era, na verdade, a seita dos seguidores<br />
de Joshua. Ele não tinha pressa; sabia esperar.<br />
Naquele mesmo dia foi procurado por Licínio, avisando-lhe que ia<br />
viajar, encarregado de <strong>no</strong>va missão. Ouviu do irmão:<br />
- Tem conversado com <strong>no</strong>ssa mãe?<br />
- Sim. Ainda hoje mesmo quase <strong>no</strong>s engalfinhamos. Ela prefere<br />
isolar-se da vida real, Licínio - ele se queixou. - Preocupo-me,<br />
porque parece que ela tem medo até das pessoas que não seguem as<br />
crenças dela - e ele olhou atento <strong>para</strong> Licínio.<br />
O irmão sorriu. Entendia muito bem o que Fábio queria lhe falar. E<br />
então indagou interessado:<br />
- O que aconselhou <strong>para</strong> ela, se é que o fez?<br />
- Que volte a procurar Lélia. Tenho interesse nisso, Licínio - ele não<br />
omitiu.<br />
O coração de Licínio tranqüilizou-se. Mais dia me<strong>no</strong>s dia já poderia<br />
conversar com o irmão sobre os <strong>no</strong>vos eventos de Roma,<br />
relacionados ao assunto de que ele ia tratar em sua viagem. Podia<br />
partir em paz.<br />
Era imponente a aparência dos jovens servidores do exército de<br />
Roma. No entanto, nem todos vestiam o fardamento porque<br />
amavam o exército. Alguns, na verdade, se inclinariam <strong>para</strong> a Musa<br />
das Artes, se não tivessem encontrado a oposição dos pais, que viam<br />
o meio artístico, tanto quanto a influência exercida pelos gregos<br />
nesse aspecto, como a forma de afeminar as virtudes varonis dos<br />
homens roma<strong>no</strong>s. Outros haviam alcançado aquela posição por<br />
favores especiais, porque os oficiais, em sua maioria, pertenciam ao<br />
84
mundo dos <strong>no</strong>bres, filhos privilegiados pela fortuna do nascimento -<br />
como era o caso do próprio comandante daqueles homens: Licínio.<br />
Entre esses últimos também se podia apontar divisões: os que se<br />
julgavam atingindo o palco dos deuses e aqueles que nunca<br />
vacilariam em disputar com os companheiros a própria glória.<br />
Na aparência, um grupo harmonioso, em busca de campo de atuação<br />
diferente. Na essência ... ninguém os conhecia, embora se possa crer<br />
que dotados dos valores oferecidos pelo Criador.<br />
Licínio não desconhecia que sua tarefa diante deles devia ser o<br />
exemplo, por isso seguia preocupado. A tática que vinha aplicando<br />
era amenizar a vida dos seguidores de Joshua, impedindo que seus<br />
comandados os atirassem em lugares sombrios. Até então não havia<br />
sofrido reveses, por ser muito estimado por eles. Mas desta vez um<br />
oficial <strong>no</strong>vo havia sido inserido em seu grupo, um rapaz brilhante<br />
em dizeres e réplicas, cheio de maneirismos e brincadeiras<br />
divertidas, mas de olhar desconfiado <strong>para</strong> esse comandante a quem<br />
não desejava se subordinar.<br />
Esse <strong>no</strong>bre, Flavius, via <strong>no</strong> exército a sua forma de ir adquirindo<br />
mais pulso, a fim de galgar aquelas altas posições que Aurélia<br />
pretendia <strong>para</strong> seus filhos. Portanto, cheio das vaidades que Licínio<br />
já havia retirado de seu traje interior.<br />
Os olhos de Flavius acompanhavam os mínimos detalhes de seu<br />
superior. Não lhe foi difícil verificar que nas regiões fronteiriças,<br />
onde surgia o maior número de escaramuças entre os judeus<br />
ortodoxos e os seguidores do crucificado, Licínio se dispunha<br />
sempre a apaziguar, numa atitude bem rara entre os comandantes de<br />
outros batalhões.<br />
Num povoado pequeni<strong>no</strong>, detiveram-se. Ali seriam armadas suas<br />
tendas, <strong>para</strong> que Licínio organizasse grupos que seguiriam direções<br />
diferentes, agora em funções específicas.<br />
A ordem dos superiores de Licínio era que levasse até eles<br />
informações sobre correligionários de Joshua, principalmente sobre<br />
os que se apresentassem como os mais firmes na manutenção da<br />
seita. Não se interessavam ainda pelas criaturas que os procuravam.<br />
85
Esses superiores achavam que, <strong>no</strong>s vilarejos que se estendiam de<br />
Roma até a Galiléia, viviam criaturas simples, incultas em sua<br />
maioria, e do<strong>no</strong>s de uma crendice que chegava às raias da loucura -<br />
pelo me<strong>no</strong>s era assim que os roma<strong>no</strong>s viam quem não se entrosasse<br />
com seus próprios hábitos. Uns bárbaros, costumavam dizer alguns<br />
graúdos de Roma, como Semprônio, que possuía uma verve obtusa,<br />
sempre que se via atingido n<strong>aqui</strong>lo que mais o interessava - o culto<br />
do <strong>no</strong>me de seus antepassados.<br />
Flavius, agora na vigília de Licínio, entregava-se ao mesmo culto de<br />
Semprônio, porque se orgulhava de pertencer à gens Flavia, de onde<br />
saíram alguns cônsules. E ele desejava até aprisionar, entre os<br />
cristãos, alguém que justificasse a sua "importante" permanência por<br />
ali, isto é, alguém que fosse o grande entre os grandes daquela turma<br />
de judeus unidos a Joshua.<br />
Mas a estratégia de Licínio pôs abaixo as suas pretensões, porque.<br />
ele dividiu seus oficiais em grupos, entregando, <strong>para</strong> cada um, um<br />
representante de seu poder, isto é, um responsável pelas tarefas que<br />
deveriam executar. Flavius só não se opôs, por ter recebido a chefia<br />
de um desses grupos.<br />
Dali em diante, eles caminhariam. As montarias permaneceriam por<br />
ali, com os oficiais que cuidariam do acampamento. Não havia<br />
estradas <strong>para</strong> onde se dirigiriam. Na reunião de todos, quando<br />
voltassem, já findas as missões particulares, Licínio pre<strong>para</strong>ria o<br />
relatório final sobre as ocorrências naqueles territórios.<br />
As perguntas básicas dos superiores de Licínio eram: "O que há,<br />
politicamente, na cabeça dos seguidores de Joshua?"; "Já existe um<br />
substituto do Rei dos judeus?"<br />
A tarefa de Licínio, portanto, não seria verificar o número de<br />
criaturas que aderiam aos propagadores da <strong>no</strong>va fé, e sim se o<br />
domínio do morto prosseguia nas mãos de algum outro Rei, em<br />
preparo <strong>para</strong> sobrepujar o domínio de Roma. Os superiores de<br />
Licínio não haviam absolutamente entendido de que Rei<strong>no</strong> Joshua<br />
falava.<br />
86
Dezessete<br />
A presença de Boanerges continuava sendo um raio de luz na<br />
existência de Cornélia, mas o dia da partida já se aproximava. Ele e<br />
Rute se pre<strong>para</strong>vam <strong>para</strong> seguir viagem rumo a Roma. Rute jamais<br />
havia posto os pés além da Galiléia e Boanerges decidiu que iriam<br />
até lá <strong>para</strong> assistirem aos festejos de Bona Dea. Boa Deusa era a<br />
padroeira da cura e reverenciada apenas pelas mulheres, semelhante<br />
a Ceres e Rhea - esta última reverenciada nas ilhas gregas e<br />
assimilada depois pelos roma<strong>no</strong>s.<br />
Cornélia não se interessava por Roma. Seu pai Diomedes lhe havia<br />
narrado com minúcias o que havia sucedido com ele, quando já<br />
despertava <strong>para</strong> a adolescência. Ele havia conhecido o calor e a<br />
afabilidade da gente romana, mas havia perdido por lá um amigo<br />
muito estimado de seus tempos de folguedos, de modo que havia<br />
pintado Roma <strong>para</strong> ela com cores muito escuras e sombrias.<br />
Ainda que Cornélia tivesse ouvido da boca de seu amigo Konstantin<br />
que os moradores de Roma também gostavam de cantar, de sorrir e<br />
de sonhar, ela continuava a guardar dentro do peito os quadros do<br />
pai.<br />
Mas foi com espanto que Boanerges a ouviu dizer, em uma de suas<br />
tentativas de convencê-la a acompanhá-los: - Meu propósito, agora,<br />
é conhecer gente de outros territórios, Boanerges. Quero ouvir<br />
músicas <strong>no</strong>vas, percorrer terre<strong>no</strong>s que minha alma já percorreu. E<br />
uma de minhas visões me levou até a Índia milenar. Seguirei com<br />
vocês até Roma e, de lá, parto <strong>para</strong> conhecer essa terra cheia de<br />
mistérios. Quem sabe tiro de mim a mágoa que minha visão me<br />
deixou.<br />
- Eu sempre afirmei que a melhor forma de vencer os medos é<br />
enfrentá-los. Pois faça isso. No entanto, não perco a esperança de<br />
87
evê-la em Roma, quando você voltar da Índia. Vou permanecer um<br />
a<strong>no</strong> por lá. Mas... sabe, Cornélia, acho que Josiel é a razão maior de<br />
seu desejo de conhecer a Índia agora - e ele sorriu misteriosamente.<br />
Parece que o desti<strong>no</strong> encaminha as pessoas <strong>para</strong> soluções mais<br />
fáceis, ou Boanerges possuía mesmo algum dom oculto. O fato é<br />
que, naquela <strong>no</strong>ite, Cornélia preparou-se <strong>para</strong> dormir, presa de uma<br />
certa inquietação. No avançar da madrugada, ainda se encontrava <strong>no</strong><br />
leito desperta, quando teve a nítida impressão de mergulhar naquele<br />
transe estranho, já seu conhecido. Viu que um garotinho risonho<br />
adentrava seu quarto. As faces, os olhos, o sorriso e a ternura<br />
lembravam exatamente Josiel, mas a idade do meni<strong>no</strong> não era a<br />
mesma dele.<br />
Aquela criança risonha estendia as mãos <strong>para</strong> ela e convidava:<br />
- Venha comigo, minha amiga. Não tenha medo. Sou uma parte de<br />
seu passado, perdida em suas reminiscências, mas que desponta<br />
porque você insiste em conhecer "toda a verdade". Não há erro em<br />
querer conhecer o mundo interior, quando já há um preparo. E<br />
prosseguiu: - Para muitas criaturas o véu não se descerra,<br />
exatamente porque fizeram opção de uma vida mais comum. Cada<br />
ser tem suas provisões e seus anjos. Eles conhecem a essência de<br />
seus pupilos. Eu conheço a sua, não tema.<br />
Aquela voz cheia de candura e de sabedoria afastou mais uma vez o<br />
véu que ocultava uma outra parte do passado de Cornélia, vivido na<br />
Índia. Ela <strong>no</strong>vamente se via diante do homem que, mediante um<br />
subterfúgio, a conseguira como esposa. Ele se havia aliado a um<br />
hindu - Maharishi - uma criatura de perto de seus trinta a<strong>no</strong>s. Era<br />
uma figura ilustre. Pertencia a uma casta que não se misturava às<br />
demais. Os olhos negros levavam uma arrogância e uma<br />
magnificência que nunca se pensa encontrar em uma criatura.<br />
A pele era quase azul, uma tonalidade estranha resultante de um<br />
extrato tirado de certas folhas e que, misturado a diferentes<br />
beberagens, utilizavam <strong>para</strong> colorir o corpo.<br />
Cornélia continuava a relembrar. Só havia conseguido entrar <strong>no</strong><br />
grupo daquele estranho, porque ele apreciava o seu filho, Seiki.<br />
88
(Descobria agora que possuía um filho). Mas Maharishi a<br />
desprezava. Era realmente uma chama de desprezo que levava<br />
aquele homem a erguer o canto da boca num sorriso falso e quase<br />
perverso. Como se a "<strong>no</strong>breza" dele não se misturasse com a dela.<br />
Na presença daquele grupo, ela havia aprendido a possibilidade de<br />
passar em cima de brasas sem se queimar, e atravessar pânta<strong>no</strong>s<br />
insalubres infestados de insetos sem se deixar molestar; precisara<br />
aprender a ser simples, como forma de não incomodar os "senhores"<br />
daquela casta e permanecer ilesa diante da força que muitos deles<br />
possuíam, <strong>para</strong> que pudesse preservar a integridade de seu filho e<br />
dela própria.<br />
A miséria, a flagelação dos corpos, a crença em um deus poderoso,<br />
mas inclemente, faziam parte daquele núcleo de homens e mulheres<br />
que também carregavam em si algo de majestoso, o que certamente<br />
havia atraído o estrangeiro que <strong>para</strong> lá se dirigira, e que já era seu<br />
marido.<br />
Cornélia se via aprendendo as diferenças existentes nas raízes de<br />
cada um, oculta, mas latente em cada ação. Com eles, começou a<br />
entender o funcionamento do próprio corpo, os poderes de que era<br />
dotada, mas que por nenhum modo se atrevia a utilizar.<br />
Via homens permanecerem em covas profundas, como<br />
adormecidos, numa serenidade que a aterrava, porque a visão da<br />
morte sempre se apresentava medonha <strong>para</strong> ela. Aquelas criaturas<br />
eram as lagartas e as borboletas do caminho. Permaneciam longos<br />
períodos inertes e de repente ressurgiam em toda sua pujança, como<br />
espectros que haviam desafiado o Criador. Levantavam-se e<br />
continuavam a viver, como se a finalidade de sua existência fosse<br />
comprovar seu "poder" sobre Aquele que os criara. Não pareciam se<br />
preocupar se existia ou não o Deus da Vida. Até as crianças daquele<br />
grupo, desde a infância, conviviam com encantadores de serpentes,<br />
porque às serpentes se atribuía a idéia da ilusão. Os encantadores<br />
provavam a todos os que deles se aproximassem que a ilusão podia<br />
ser desviada de seus meandros por um peque<strong>no</strong> sopro dos homens.<br />
Os olhos desses homens, que Cornélia caracterizava como magos,<br />
eram vítreos. Com seus instrumentos de sopro, afinizavam-se com o<br />
89
ei<strong>no</strong> animal e passavam a integrar-se a este rei<strong>no</strong>, mas eram os<br />
heróis vencedores de suas batalhas, porque a serpente rastejante - a<br />
primeira a freqüentar o mundo, na teoria deles - estava ali presa em<br />
sua mágica e jamais voltaria a destruir o mundo dos homens. Os<br />
encantadores de serpentes eram os heróis fantásticos de uma<br />
mitologia completamente desconhecida <strong>para</strong> o mundo ocidental.<br />
Subitamente, o véu das reminiscências foi se extinguindo <strong>para</strong><br />
Cornélia. O meni<strong>no</strong> que a ela se apresentara ressurgiu <strong>no</strong>vamente.<br />
Ele estendeu a mão e pousou-a carinhosamente em sua fronte.<br />
Cornélia tor<strong>no</strong>u a ver centelhas saindo da mão de uma criança e, só<br />
naquele momento, entendeu que Josiel era o seu próprio filhinho<br />
daquela época, que se chamava Seiki.<br />
Mergulhou finalmente num so<strong>no</strong> profundo, mas intuía que o garoto<br />
permanecia ali, e não se enga<strong>no</strong>u.<br />
Sonhou. Era como se fosse mergulhando em fonte bendita, de onde<br />
poderia extrair mais explicações <strong>para</strong> sua alma, que tanto desejava<br />
compreender as razões da múltipla existência dos seres e também a<br />
própria.<br />
Mas desta vez voltou <strong>para</strong> o deserto, quando já estava em<br />
companhia do árabe, Omar, que a havia acolhido como sua filha,<br />
das mãos do sheik de <strong>no</strong>me Abzis. Ouvia nitidamente o ruído dos<br />
animais durante a <strong>no</strong>ite, o céu parecendo mais próximo das<br />
criaturas, pela infinidade de estrelas tingindo o breu que os cercava;<br />
a azáfama do amanhecer, quando cada grupo se pre<strong>para</strong>va <strong>para</strong> a<br />
primeira refeição; as cantigas a brotar do lábio das mulheres, que<br />
chamavam seus filhos <strong>para</strong> alimentá-los e <strong>para</strong> distribuir as tarefas<br />
do dia.<br />
Cada um ali exercia a sua função e não havia zombaria, quando<br />
homens precisavam substituir mulheres em algumas tarefas. O<br />
aconchego e a familiaridade entre os companheiros eram<br />
indescritíveis.<br />
Se houve maneira melhor <strong>para</strong> Allah entregar aos homens a <strong>no</strong>ção<br />
do respeito familiar, Ele a encontrou tornando nômades alguns<br />
90
povos. Para os ocidentais, os pensamentos e os valores daquele povo<br />
seriam incomensuravelmente distantes.<br />
Cornélia descobria que ali aprendia a amar os homens com<br />
igualdade, com desapego e com tolerância maior <strong>para</strong> a divisão das<br />
coisas.<br />
Subitamente, um outro cenário se sobrepôs àquele e ela sabia que se<br />
tratava de tempo bem anterior a esse. Não era uma jovenzinha.<br />
Tinha perto de seus trinta e cinco a<strong>no</strong>s. Encontrava-se numa grande<br />
praça de mercado. Dezenas de barracas com ofertas variadas se<br />
estendiam em várias direções, formando um verdadeiro labirinto.<br />
Cornélia as percorria, lentamente, surpreendendo-se com os detalhes<br />
dos objetos que reluziam em metal e cobre. A graça com que os<br />
vendedores faziam suas ofertas a encantou, até o momento em que<br />
viu um árabe de bastos cabelos negros, com uma tira enviesada na<br />
cabeça, prendendo uma rodela de pa<strong>no</strong> escuro <strong>no</strong> olho esquerdo..<br />
Era do<strong>no</strong> de um sorriso fascinante.<br />
A tenda deste mercador se localizava nas proximidades de um beco.<br />
Lenços multicoloridos assemelhavam-se a bandeiras expostas em<br />
verga de navio, ao lado de sua barraca. Aproximou-se <strong>para</strong> verificar<br />
quais quinquilharias recheavam o comércio daquele homem.<br />
Espantou-se, ao ver que sua especialidade eram estátuas artísticas.<br />
Grandes, minúsculas, em várias posições, formas e materiais. Havia<br />
grotescas, sublimes, engraçadas e até comovedoras.<br />
O tempo que permaneceu apreciando aquela arte, sustentando-se <strong>no</strong><br />
desejo de adquirir alguma que lhe falasse à alma, foi suficiente, por<br />
certo, <strong>para</strong> que o mercador entendesse sua intenção. Acostumado<br />
com estrangeiros, que deveriam fazer parte de seu cenário constante,<br />
ele destacou entre todas aquelas preciosidades uma estátua em<br />
alabastro. Seus olhos clínicos não se haviam enganado. Ela se via<br />
maravilhada a analisar a peça em seus detalhes.<br />
A estátua de mulher se erguia entre duas colunas que lembravam os<br />
pórticos gregos e levava a cabeça voltada <strong>para</strong> o alto, como se<br />
clamasse ao céu um pedido. Em uma das mãos, a figura de mulher<br />
carregava uma cornucópia, que representa abundância e riqueza em<br />
91
colheita. Ela era toda incrustada em pedras coloridas brilhantes,<br />
entremeadas de pérolas.<br />
Embaraçada com a sensação estranha que a envolvia naquele<br />
instante, voltou-se ao homem e indagou:<br />
- Estátua de quem? É de alguma deusa?<br />
Sorrindo misteriosamente, o árabe respondeu rápido:<br />
- Sim, de uma deusa. E são tantas as lendas em tor<strong>no</strong> dela, que eu<br />
precisaria de mais tempo de que a senhora dispõe <strong>para</strong> ouvir.<br />
- Mas eu vou gostar de saber tudo - disse com determinação e<br />
também com uma certa dose de arrogância.<br />
O árabe insistiu:<br />
- Muito tempo, não me ouviu? O olhar dele traduzia tanto mistério e<br />
a cadência da voz era tão firme, que ela retrucou:<br />
- Pois, se é um desafio, aceito.<br />
O homem tor<strong>no</strong>u-se pensativo, tirou gentilmente a estátua de sua<br />
mão e afirmou: - Não creio que seja uma criatura pre<strong>para</strong>da <strong>para</strong><br />
tanto. E prosseguiu energicamente: - Tem levado seus desafios e<br />
suas lutas <strong>para</strong> um lado que não a dignifica. Por que deveria se<br />
envolver com esta história? Ela é <strong>para</strong> ser ouvida por pessoas de<br />
fibra, sim, mas que não estejam interessadas apenas <strong>no</strong> próprio eu -<br />
e olhou-a desafiadoramente.<br />
Já ia revidar com desprezo, mas o olhar quase hipnótico daquele<br />
homem lhe transmitia fraternidade e amor, sentimentos que ela sabia<br />
que seu coração pouco abrigava.<br />
Ele entendeu a luta enfrentada por aquela mulher altiva, <strong>para</strong> não se<br />
entregar à cólera. Entrou na barraca, trazendo em mãos um líquido,<br />
que lhe entregou <strong>para</strong> beber e acalmá-la.<br />
- Percebeu? - ele disse mais tranqüilo. - Trata-se de um assunto que<br />
pode feri-la profundamente ou redimi-la, tornando-a capaz de se<br />
transformar em uma deusa - como esta - ele olhou <strong>para</strong> a estátua,<br />
que naquele momento pareceu flutuar aos olhos de Cornélia.<br />
92
Dezoito<br />
Cornélia ia absorvendo toda a luta interior de seu espírito cheio de<br />
arrogância e de desafios. Mas também se sentia impulsionada por<br />
um apelo diferente, que lhe convidava a ceder e prosseguir sem<br />
mágoa. Assim, comentou:<br />
- Não sei quem você é e nem a procedência desta estátua. Mas sei<br />
que quero adquiri-la e, junto com ela, todas as informações que o<br />
senhor puder passar. Fez, então, o gesto de procurar moedas <strong>para</strong><br />
pagar por aquela <strong>aqui</strong>sição.<br />
O homem interrompeu seu gesto e comentou:<br />
- Ela não leva preço. Pertencerá à senhora depois de determinada<br />
circunstância.<br />
Sem entender o que significavam aquelas circunstâncias, sentiu-se<br />
ferida e retrucou amargurada:<br />
- Pensei que o senhor fosse um homem honrado.<br />
O árabe sorriu e interpôs:<br />
- Está vendo? Vai ser muito difícil. Por que não desiste? Se a<br />
senhora encontra maldade nas palavras que ouve, se interpreta o<br />
sentido do mundo apenas com o espelho da maledicência, como<br />
espera encontrar a água cristalina <strong>para</strong> olhar-se nela<br />
esplendorosamente? E continuou: - Tem comandado os desti<strong>no</strong>s,<br />
mas não consegue penetrar na essência. Exige tolerância, mas <strong>para</strong><br />
locupletar-se apenas <strong>no</strong>s seus caprichos. Aniquila suas afeições, mas<br />
se deixa naufragar <strong>no</strong> sorvedouro da melancolia. Afinal, qual tem<br />
sido a sua escola? Não é a da vida?<br />
Ao ouvir aquelas palavras, ela percebia todo o ressoar de seus<br />
passos anteriores. Mas conseguiu dizer com sinceridade:<br />
94
- Dê-me uma chance. Eu posso aprender.<br />
Dali em diante, viu-se lado a lado com ele, caminhando por vielas<br />
escuras e sombrias. Depois, atravessando caminhos iluminados pelo<br />
sol abrasante e espaços abertos onde a brisa não encontrava<br />
obstáculos. Até que avistaram um pórtico quase em ruínas. Mas, ao<br />
transpô-lo, uma paisagem diferente os acolheu. Um jardim com<br />
pérgulas floridas se espreguiçava na lateral de uma construção<br />
baixa. E, na frente da casa, um meni<strong>no</strong> de seis a<strong>no</strong>s. Ao avistar o<br />
pai, ele correu <strong>para</strong> abraçá-lo.<br />
- Cumprimente a senhora, meu filho - disse o árabe, sorrindo.<br />
Somente naquele momento, Cornélia começou a observar o porte<br />
avantajado do árabe e a longa veste azul, acompanhando seus passos<br />
ágeis. E reconheceu, nele, Omar.<br />
O garotinho fez um movimento engraçado com a cabeça de cabelos<br />
tão negros quanto os do pai, e pronunciou algumas palavras que<br />
pareciam ter sido ensaiadas <strong>para</strong> algumas ocasiões, mas cheias de<br />
sabor:<br />
- Allah ilumina todos os que <strong>no</strong>s honram com sua visita! - e saiu<br />
correndo <strong>para</strong> o interior da casa.<br />
- Você deve estar extenuada - disse-lhe o árabe. - Caminhamos<br />
muito. Deve agora descansar.<br />
Em suas reminiscências, Cornélia sentia-se refazendo das agruras<br />
pelas quais havia passado.<br />
Com que alegria via o garotinho aproximar-se, recebendo-a como se<br />
ela pertencesse àquela morada. Levava-lhe flores, contava histórias<br />
com as fantasias próprias de uma criança que pertencia a um<br />
ambiente sólido, saudável. As narrativas eram tão harmoniosas e<br />
felizes, que o contemplava encantada, vendo ali uma alma em<br />
perfeita florescência.<br />
Seu coração ia se transformando. E como sua vontade de mudar era<br />
verdadeira, sentia-se a derrubar os primeiros tijolos de uma<br />
construção que havia erguido ao redor de si mesma, prestes a<br />
aprisioná-la, e deixando-a isolada das belezas do mundo.<br />
95
Um dia, recolhida <strong>no</strong> silêncio, entre odores suaves e sons<br />
harmoniosos, ouviu de Omar:<br />
- Amanhã você terá início a um longo aprendizado.<br />
Foi despertada, <strong>no</strong> dia seguinte, pelo meni<strong>no</strong> que a sacudia a repetir:<br />
- Meu pai disse que é chegada a hora.<br />
Viu-se, então, ao lado de Omar, caminhando em uma direção que<br />
deixava entrever a distância algumas elevações cor de barro, com<br />
morros que mais pareciam paisagens de fundo de mar. Só quando se<br />
aproximavam, certificou-se que os "morros" na verdade eram<br />
construções próximas umas das outras e que pareciam moldadas em<br />
terracota. Uma delas, a maior, era a que constituía o Templo.<br />
Erguia-se acima das outras e emprestava uma visão pa<strong>no</strong>râmica<br />
espantosa. A cada direção que se olhasse - dos quatro pontos<br />
cardeais - a paisagem convidava a percorrê-la incansavelmente. Ao<br />
<strong>no</strong>rte, uma cadeia de montanhas íngremes, um desafio aos homens;<br />
ao sul, um mar vibrante e majestoso, com casas pequeninas<br />
colocadas não tão aproximadas dele, mas também não tão afastadas<br />
a não permitir que os moradores se beneficiassem de uma aragem<br />
perfeita; os outros dois lados se perdiam num embarafustado de<br />
rochas e vegetações, salpicadas <strong>aqui</strong> e acolá por telhados de ardósia.<br />
Uma paisagem sublime e aterradora ao mesmo tempo, porque<br />
sugeria a Cornélia um mistério que teria de aprender a desvendar.<br />
A visão daquela paisagem a tocava profundamente, quando foi<br />
tirada das abstrações por Omar e levada por ele <strong>para</strong> perto de<br />
algumas pessoas que se reuniam à porta do Templo. Eram homens e<br />
mulheres, todos com vestes longas e na mesma cor azul, apesar dos<br />
tons esmaecidos em algumas e avivados em outras.<br />
Desde o princípio, pôde perceber que Omar era uma espécie de<br />
orientador de grupo, respeitado, e alguns ali até se sentiam um<br />
pouco intimidados em sua presença.<br />
Depois daquela reunião, o árabe permaneceu em silêncio, mas seus<br />
olhos a acompanhavam, como se quisesse compartilhar das<br />
sensações que a alcançavam. Cornélia entendia que ele desejava<br />
96
desembaraçá-la das vestes antigas, <strong>para</strong> ofertar-lhe uma <strong>no</strong>va, e que<br />
receava a desistência dela.<br />
As imagens de seu sonho agora deslizavam rapidamente, como se<br />
indicassem o tempo transcorrido ali, as caminhadas ao Templo, as<br />
conversas profundas entre companheiros e a garrulice do filho de<br />
Omar, sempre a abraçando com afeto.<br />
Subitamente, nuvens escuras, relâmpagos e trovões povoaram este<br />
cenário. Uma madrugada de assombros. A voz de Omar foi<br />
nitidamente ouvida por ela, que em seus aposentos acordara<br />
assustada com a impetuosidade da Natureza. Ouviu-o ainda dizer<br />
<strong>para</strong> algumas pessoas que se encontravam à porta da casa:<br />
- Esperem! Seguirei com vocês.<br />
Aquela foi a última vez que o viu. Soube que uma enchente voraz<br />
havia destruído algumas pequenas casas de amigos do Templo e que<br />
ele - Omar - tinha sido arrastado pela torrente, quando tentava salvar<br />
uma criança.<br />
O Templo que os abrigara em conversas e em estudos permaneceu<br />
semi-coberto e Cornélia se via olhando alguns compartimentos,<br />
quando a tempestade se amai<strong>no</strong>u. Num deles, a estátua da deusa -<br />
em tamanho grande - olhava <strong>para</strong> cima daqueles horizontes.<br />
A miniatura daquela estátua, que ela um dia havia tentado comprar<br />
de Omar, <strong>no</strong> mercado, ele já havia ofertado <strong>para</strong> ela, como<br />
confirmação de que era bem-vinda àquele grupo, que a respeitava e<br />
festejava também.<br />
Mais uma vez havia participado da vida de Omar e de Josiel - o<br />
garotinho de Omar - e que tinha sido seu próprio filho, na Índia.<br />
Ah, a vida entrelaça as criaturas que se amam também!<br />
97
Deze<strong>no</strong>ve<br />
As experiências de Cornélia a deixaram atônita e também eufórica.<br />
Um desejo e<strong>no</strong>rme de viver mais amplamente, de contribuir com a<br />
alegria que a tocava, revolucio<strong>no</strong>u seu interior. E, <strong>para</strong> completar,<br />
foi procurada por um mensageiro de Hannah, que lhe mandava<br />
<strong>no</strong>tícias, preocupada com sua solidão. A amiga lhe detalhava as<br />
alegrias e decepções pelas quais vinha passando, as descobertas<br />
sobre os amigos de Joshua que passavam por aqueles territórios, um<br />
dos quais se chamava Nathanael, e que havia perguntado por ela.<br />
Tocada pela saudade, apressou-se a responder, aproveitando a volta<br />
do mensageiro.<br />
"Saudações, Hannah!<br />
Agradeço suas preocupações com o isolamento a que me impus.<br />
Mas tive nesses últimos dias a grata surpresa de receber em minha<br />
casa Boanerges e sua família.<br />
Acontecimentos inesperados (ainda referentes aos véus que se<br />
abrem <strong>para</strong> mim) e longas conversas entre nós me levam agora a<br />
decidir-me acompanhar Boanerges até Roma. Confesso que tenho<br />
abusado de minha inclinação <strong>para</strong> afastar-me do mundo, mas<br />
Boanerges conseguiu pacificar minha alma e impulsionar-me <strong>para</strong><br />
<strong>no</strong>vas expectativas, que realizaremos juntos com Rute, esposa dele,<br />
e o filhinho Josiel. Chegaremos aí por ocasião dos festejos de Bona<br />
Dea. Irei procurá-la na propriedade de Otávia.<br />
Boanerges já está providenciando a escolta que <strong>no</strong>s deverá<br />
acompanhar. Seu mensageiro, Hannah, foi bastante providencial. A<br />
ele, Boanerges encarregará de <strong>no</strong>s reservar uma moradia perto de<br />
Roma. Saudações! Cornélia."<br />
98
Na casa, o clima era de entusiasmo. Josiel perambulava por entre os<br />
volumes que iam sendo depositados em se<strong>para</strong>do, contendo o que<br />
era necessário <strong>para</strong> uma longa viagem.<br />
As serviçais incansavelmente trabalhavam. Só Zínia a acompanharia<br />
e também um escravo recém adquirido, mas já alforriado por<br />
Cornélia.<br />
Era um negro de seus trinta a<strong>no</strong>s, Timóteo, de sorriso reprimido,<br />
mas de alma generosa. Para ele, a viagem programada era o mais<br />
doce dos sonhos que poderia realizar. Sempre havia desejado<br />
conhecer o que existia <strong>para</strong> fora daquele território e se via, então,<br />
presenteado com a abertura de um grande portal.<br />
A concretização daquele sonho <strong>para</strong> Timóteo - e <strong>para</strong> todos,<br />
evidentemente - começou exatamente quando Boanerges abriu a<br />
pesada porta de madeira que protegia a casa de Cornélia, <strong>para</strong> se<br />
encontrarem com os amigos que seguiriam com eles.<br />
Cornélia, Boanerges, Rute, Zínia, Josiel, Salomé e Timóteo saíram<br />
da residência de Nazaré nas primeiras horas de um dia que seria<br />
inesquecível <strong>para</strong> eles. O marido de Salomé ficaria <strong>para</strong><br />
supervisionar a casa.<br />
Na porta, doze criaturas os aguardavam. Para alguns, Roma não era<br />
um território desconhecido; <strong>para</strong> outros, seria, talvez, uma cidade<br />
que lhes sorriria.<br />
Esses homens tinham sido escolhidos por Boanerges a dedo.<br />
Homens fortes, saudáveis, bons chefes de família - alguns - e<br />
pre<strong>para</strong>dos <strong>para</strong> enfrentar os caminhos nem sempre trilhados por<br />
pessoas responsáveis ou credenciadas <strong>para</strong> atos de amor e<br />
misericórdia. Eram escravos alforriados, já exercendo profissões<br />
diversas, mas amantes da paz e da prosperidade. Gente simples,<br />
elevada em princípios de solidariedade e fraternidade.<br />
Alguns deles haviam seguido Joshua a distância, haviam partilhado<br />
de suas dores e angústias, haviam conhecido histórias sobre ele.<br />
Entendiam perfeitamente que Joshua era o filho de um Pai Maior e<br />
que conhecia a desolação de um mundo acossado por atos de<br />
99
conquistas de gente de ouvido fechado <strong>para</strong> o valor e o respeito ao<br />
próximo.<br />
Eram criaturas que também haviam perdido seres que amavam e que<br />
nem entendiam a razão de terem sido lançados por ali, levados pelas<br />
mãos de negociantes de escravos impiedosos.<br />
Cornélia entendeu que sua responsabilidade, entre eles, seria apenas<br />
o amparo material. Poderia utilizar a sua riqueza daquela forma:<br />
entregando-lhes alimentos e boas estalagens na caminhada. Neles,<br />
sentia o gesto de confiança.<br />
Boanerges, que a conhecia muito bem, <strong>no</strong>tou a avalanche de<br />
sentimentos que a tocava e que ia acompanhá-la, por certo, na longa<br />
peregrinação. Sabia que a cada segundo estaria relembrando os<br />
reveses sofridos ali, pela morte do Anjo Magnífico, despojado de<br />
suas vestes e crucificado junto de bandoleiros. Um ato infame que<br />
ela não compreendia se era devido aos judeus, à perversidade dos<br />
roma<strong>no</strong>s, ou às circunstâncias <strong>no</strong>rmais do desti<strong>no</strong> de todos.<br />
Logo que saíram, Cornélia teve a impressão nítida de ouvir<br />
chegando, com a brisa fresca daquelas primeiras horas de um dia,<br />
um murmúrio baixinho de Joshua a lhe desejar uma boa colheita.<br />
No imo, intuía que <strong>para</strong> lá não mais voltaria, mas isso não a<br />
preocupava. Poderia até vestir o traje daqueles velhos pescadores,<br />
prontos a lançar redes <strong>para</strong> o alcance dos peixes que iam suprir a<br />
própria família. Assim se sentia, certa de que Joshua estaria com ela.<br />
Não há necessidade de qualquer referência sobre o percurso<br />
vencido, porque Boanerges era realmente um bom timoneiro. Nada<br />
havia sido esquecido por ele e nem por Timóteo.<br />
Atingiram um portão de Roma, quando as primeiras estrelas<br />
acendiam o lampadário do céu límpido e sem nuvens. Mas foram<br />
surpreendidos com uma escolta que os aguardava ali. Hannah se<br />
anteci<strong>para</strong> à surpresa que Cornélia lhe faria e havia conseguido, por<br />
intermédio de Fábio, que um oficial do exército roma<strong>no</strong> os<br />
encontrasse e os acompanhasse até uma vivenda reservada <strong>para</strong> eles.<br />
100
Tinha servido, anteriormente, como estalagem. Ficava ao sopé de<br />
uma das colinas de Roma, e já havia recebido muitas famílias não<br />
nascidas por ali. Não se distanciava da propriedade de Orígenes.<br />
Na região, encontravam-se estrangeiros industriosos, cheios da<br />
alegria de viver, amantes da música. Uma grande parte originários<br />
da Grécia, mas não de "sangue puro", porque por ali a miscigenação<br />
também ia bastante avançada. Mas eram seres dóceis, de vida<br />
equilibrada <strong>no</strong> trabalho e cheios do desejo de progresso e realização<br />
de sonhos - como acontece na Terra a todos os que não se ocupam<br />
com guerras de conquista.<br />
Nesse povoado - pode-se dizer povoado, embora inserido <strong>no</strong> seio de<br />
Roma - Cornélia e sua caravana desceram.<br />
A casa principal já contava com arranjos de flores, das mãos de<br />
Hannah, e o celeiro pequeni<strong>no</strong>, com forragens <strong>para</strong> os animais; a<br />
lenha, empilhada e seca, oferecia-se <strong>para</strong> uma lareira improvisada<br />
rapidamente por sua amiga; os utensílios de cozinha brilhavam em<br />
suportes articulados de madeira.<br />
Era adorável o local, embora em tamanho reduzido, se com<strong>para</strong>do<br />
às dimensões da anterior moradia de Cornélia. E, ali, duas serviçais<br />
aguardavam as ordens da <strong>no</strong>va senhora.<br />
Cornélia comoveu-se pelo carinho e atenção de Hannah, pela<br />
amizade tão claramente expressa nesses atos de agrado. E logo já<br />
dava suas ordens, corria atrás de objetos perdidos <strong>no</strong> meio de tantos<br />
volumes. Não sossegou, enquanto não se encontrava tudo em seus<br />
devidos lugares.<br />
Três dias depois, estavam instalados como se ali morassem há muito<br />
tempo. Só então Cornélia soube, por Hannah, que, se quisesse,<br />
poderia aumentar a casa, inserir <strong>no</strong>vos pavimentos ou jardins, pois<br />
aquelas terras pertenciam a Orígenes, que as tinha posto à venda.<br />
Hannah as havia reservado <strong>para</strong> ela, com a desistência do antigo<br />
do<strong>no</strong> da estalagem, impossibilitado de comprá-las. Era um solo<br />
valoroso <strong>para</strong> plantio.<br />
Imprevisível e adorável Hannah!<br />
101
Enquanto Cornélia se enfronhava <strong>no</strong> ambiente <strong>no</strong>vo, Licínio voltava<br />
com seus oficiais <strong>para</strong> Roma. Terminada a sua incumbência, levou<br />
os informes a seus superiores. Eram recados urgentes, mas seguros.<br />
Ele garantia que não existiam atos políticos na mente dos judeus<br />
seguidores de Joshua. Eram pessoas sem violência, voltadas <strong>para</strong> os<br />
campos da alma e não <strong>para</strong> os materiais. Diziam-se propagadores de<br />
uma fé diferente, porque incluíam a participação do povo <strong>para</strong> o<br />
conhecimento de um <strong>no</strong>vo Rei<strong>no</strong> - um Rei<strong>no</strong> que ele, Licínio,<br />
particularmente acreditava que não seria incluído naqueles<br />
territórios. Isto ele deduzia, porque não carregavam armas e o único<br />
instrumento de que se valiam <strong>para</strong> a propagação eram as palavras.<br />
Essas palavras preconizavam uma vida mais feliz <strong>para</strong> todos,<br />
quando se reunissem ao Deus do Amor, <strong>para</strong> serem irmãos em<br />
fraternidade e entendimento.<br />
O sorriso de mofa que principiou a se formar <strong>no</strong> rosto de seu<br />
comandante, enquanto ia lendo o relatório, incomodou Licínio.<br />
Vinha de um homem cheio de agressividade, mas extremamente<br />
dedicado ao posto que havia galgado por suas idéias rígidas e<br />
disciplinares. Só proferia um não definitivo, em uma causa que<br />
defendesse, quando tivesse em mãos um bom número de<br />
informações de seus diversos subordinados.<br />
Esse superior de Licínio o aceitava como um perfeito comandante<br />
de unidade, mas jamais deixaria de analisar outras opiniões na causa<br />
que vinha examinando, antes de dar seu veredicto final.<br />
Licínio afastou-se satisfeito com seu trabalho, mas bastante<br />
preocupado com os teores que chegariam às mãos dele, vindos dos<br />
outros informantes. Ainda que possuísse recursos de saber quais<br />
seriam essas opiniões, antes mesmo que chegassem às mãos do<br />
severo homem, não procurou se valer de sua autoridade. Não o<br />
movia o desejo de triunfo e nem de impor o seu ponto de vista.<br />
Deixaria que tudo seguisse os canais habituais.<br />
Voltou <strong>para</strong> casa, banhou-se, recebeu um tratamento de massagens<br />
num banho público. Depois, foi em busca da mãe.<br />
102
Durante todo o tempo em que havia permanecido fora, a figura de<br />
Aurélia não lhe tinha saído do pensamento. Alguma coisa lhe dizia<br />
intimamente que ela ia passar por algum revés e ele queria evitá-lo.<br />
Licínio se dava conta, ultimamente, de que algo estranho se passava<br />
com ele. Encontrava maiores facilidades <strong>para</strong> intuir acontecimentos<br />
antecipadamente - e alguns deles realmente se haviam realizado,<br />
<strong>para</strong> seu grande espanto. Também uma leve sensação de que<br />
mudanças aconteceriam em sua família, e isso incluía Fábio e a<br />
mocinha por quem ele sabia que o irmão se havia apaixonado.<br />
Ela era de descendência judaica, do lado da mãe, e, do pai, ele não<br />
sabia. Uma bela jovem, culta, atraente e voltada inteiramente <strong>para</strong> as<br />
tradições judaicas.<br />
Sua mãe ainda não conhecia esta inclinação de Fábio e Licínio sabia<br />
perfeitamente que Aurélia sonhava <strong>para</strong> ambos um casamento entre<br />
patrícios. Por ela, Fábio se casaria com uma princesa romana<br />
imperial, se dependesse só dela os seus jogos matrimoniais. E ele<br />
não duvidava de que ela chegaria bem próxima desses propósitos, se<br />
Fábio não fosse também um exímio jogador.<br />
Quando Licínio chegou perto da mãe, logo <strong>no</strong>tou que algo a<br />
desagradava. Ela parecia reprimida, contrariada, a ponto de deixar<br />
romper o dique de intolerância que sempre a acometia, quando se<br />
via perto de atingir uma meta e esta lhe escorregasse pelos dedos.<br />
Mas daquela vez a meta era mesmo Fábio. Ela havia recém<br />
descoberto o interesse dele pela moça de olhos amendoados.<br />
- Que aconteceu, minha mãe? Não está contente com a minha volta?<br />
Preferia que eu estivesse bisbilhotando naquelas zonas fronteiriças,<br />
vigiando os pobres judeus? - ele brincou, mas com amargura.<br />
Aurélia olhou-o como se ele nem se encontrasse ali. Seus<br />
pensamentos vagueavam, até que conseguiu se recompor.<br />
- Deixe disso, meu filho. Conheço o seu valor <strong>no</strong> ofício que exerce.<br />
Mas o Fábio...<br />
- Que houve com ele? Algum sarilho que não me chegou aos<br />
ouvidos? - perguntou preocupado.<br />
103
- Não, não - disse enfezada. - Até seria melhor se fosse sarilho<br />
mesmo. Desta vez se trata de... de uma garota.<br />
- Mas isso é bastante natural. Se eu, que sou o mais velho, ainda não<br />
me decidi por uma escolha, é até muito bom que parta dele uma<br />
iniciativa. Nossa família anda precisando de sangue <strong>no</strong>vo, não pensa<br />
assim?<br />
- Mas é por aí mesmo que surge o problema, Licínio. Sonhei sempre<br />
com uma patrícia <strong>para</strong> minha <strong>no</strong>ra e sabe o que seu irmão está<br />
pretendendo? Prender-se a uma moça de olhos puxadinhos que,<br />
além disso, tem o sangue dos judeus. Nem sei o que meus amigos<br />
vão pensar!<br />
Licínio desagradou-se. Tinha por <strong>no</strong>rma não interferir nas ma<strong>no</strong>bras<br />
da mãe, porque sabia que seus jogos visavam sempre a um futuro<br />
feliz <strong>para</strong> os filhos. Mas agora se tratava de batimento cardíaco e<br />
isto jamais poderia ser incluído em interesses e m<strong>aqui</strong>nações.<br />
- Importa o que Fábio pensa, o que Fábio sente e o que Fábio<br />
prefere, senhora dona Aurélia - retrucou severamente. - Ele não é<br />
mais um menininho e já tem dosagem certa <strong>para</strong> a satisfação de seus<br />
interesses preferenciais. E tem dado mostras de maturidade e<br />
responsabilidade. Pode muito bem constituir a família que quiser.<br />
Aurélia olhou-o, estupefata. Não conseguia entender o que estava<br />
acontecendo <strong>para</strong> a sua família. Mas desta vez não ficou jogando em<br />
círculos e foi direta ao ponto:<br />
- Não posso proibi-lo de se unir a essa... a essa judiazinha - ela<br />
gaguejou. - Mas posso muito bem conseguir o envio dele <strong>para</strong> bem<br />
longe de mim, <strong>para</strong> um lugar onde nem existam mensageiros que me<br />
tragam <strong>no</strong>tícias de que é feliz ou não. Ao terminar de dizer tudo<br />
isso, o rosto estava esbraseado.<br />
- Ótimo, minha mãe! Meus aplausos. Sempre acreditei que <strong>no</strong>s<br />
amava; que seus cuidados eram <strong>para</strong> a <strong>no</strong>ssa felicidade afetiva. Mas<br />
posso ver o quanto me enganei. Só a posição social conta? Só os<br />
interesses? Só a sociedade romana, que está despencando num<br />
abismo de frouxidão? Não é capaz de enxergar isso, senhora<br />
Aurélia? Não consegue <strong>no</strong>tar que seus estimados patrícios estão se<br />
104
vendendo à custa do poder? Pensa que estão muito interessados na<br />
felicidade do povo? Não vê de quantos recursos infelizes se<br />
utilizam? E prosseguiu zangado: - Pão e circo, senhora Aurélia. É<br />
isso que têm oferecido <strong>no</strong>s últimos tempos. Só espetáculos de<br />
desperdício de dinheiro <strong>para</strong> encobrir os olhos do povo infeliz!<br />
Aurélia deu um passo <strong>para</strong> trás.<br />
- Então é isso, Licínio? Você também?<br />
- Também o quê?<br />
- Sabe muito bem do que estou falando, mas tenho a impressão de<br />
que <strong>no</strong>ssa linguagem mudou. Os cristãos agora são os do<strong>no</strong>s da<br />
arena?<br />
Licínio riu, riu tanto, que se acalmou e conseguiu ser mais<br />
ponderado ao dizer:<br />
- Quisera eu que fossem eles os do<strong>no</strong>s da arena, senhora Aurélia. Aí,<br />
então, em lugar de carne humana destroçada em espetáculos<br />
infamantes, nós ouviríamos hi<strong>no</strong>s de louvor à vida humana. É isto o<br />
que os cristãos pretendem louvar - a vida humana, minha mãe. Eles<br />
não querem morrer, só querem se entregar a Deus. Eles não querem<br />
sacrifícios, só paz e não poder. Querem fraternidade e união, a<br />
senhora não compreende?<br />
Aurélia chorou. Não de tristeza, nem de amargura. Chorou, porque<br />
seus pla<strong>no</strong>s estavam sendo mudados, devagarinho, pela própria<br />
vida. Chorou, porque se sentiu impotente <strong>para</strong> continuar a ma<strong>no</strong>brar<br />
os cordéis, e porque seus filhos ingratos não mais a entendiam.<br />
O silêncio caiu sobre eles. Não um silêncio glacial, pois o coração<br />
de Licínio se entristecia pela mãe. Ela o olhava como se ele fosse<br />
um leão na arena.<br />
Licínio tentou aproximar-se, acarinhá-la, mas em vão. Ela deixou-se<br />
tocar, mas não estava perto dele. Mantinha-se bem distante, arredia<br />
e ludibriada.<br />
- Mãe - ele disse baixinho -, Roma está em decadência. Impera <strong>aqui</strong><br />
a grosseria. Nós não vamos conseguir mudança alguma, se não<br />
mudarmos primeiro os <strong>no</strong>ssos próprios passos, os <strong>no</strong>ssos ideais. Não<br />
105
acha que o amor é belo, Aurélia? - ele imitou a voz do pai, ao dizer<br />
essa frase.<br />
Foi um instantinho fugaz, um cintilar milimétrico de interesse <strong>para</strong><br />
Aurélia, ao ouvi-lo repetir a frase que seu marido costumava<br />
cantarolar, <strong>no</strong>s dias em que chegava feliz do seu posto de comando,<br />
porque ele também era um jovem oficial, quando se casou com<br />
Aurélia.<br />
- Vou verificar se as refeições estão sendo bem pre<strong>para</strong>das - ela<br />
retrucou, e saiu <strong>para</strong> o interior da casa.<br />
Licínio suspirou. Mas não se arrependeu. Ela precisava acordar,<br />
amadurecer, buscar um ideal diferente. Não podia permanecer<br />
voltada às honrarias do passado. O futuro os chamava <strong>para</strong> uma<br />
<strong>no</strong>va compreensão. Saiu, então, à procura do irmão.<br />
106
Vinte<br />
Roma era uma verdadeira colméia, enquanto a pre<strong>para</strong>vam <strong>para</strong> os<br />
festejos de Bona Dea. Até os aromas habituais, reconhecidos pelos<br />
moradores, mesclavam-se a <strong>no</strong>vos, devido a inúmeras rosas<br />
acrescidas diante de barracas, moradias, locais de comércio em<br />
ruelas e praças.<br />
Cornélia, Celeste e Hannah caminhavam num dia ensolarado e<br />
límpido, ouvindo os diferentes falares de estrangeiros, o grego, o<br />
latim com sotaque siríaco, o aramaico, o puro linguajar dos<br />
roma<strong>no</strong>s, o árabe e muitos outros.<br />
Detiveram-se diante de uma loja, com piso de pedra lavado, onde se<br />
destacavam objetos <strong>para</strong> oferendas em Templos, caixinhas lavradas<br />
em prata, bustos em barro, velas de cera de abelha, de perfume<br />
agradável, e também incensos. Ao fundo dela, encontrariam o que<br />
Hannah procurava: os atraentes camafeus - uma indicação de<br />
Celeste, que os colecionava, e que passaram também a ser um<br />
atrativo <strong>para</strong> Hannah.<br />
Logo que entraram, o rumor de passos apressados vindos de uma<br />
viela que passava pelo fundo daquela propriedade chamou-lhes a<br />
atenção. Foram tranqüilizadas pelo mercador, que se aproximava e<br />
se desculpava, como se fosse ele o responsável pelas balbúrdias da<br />
cidade.<br />
- Não se preocupem, que as próprias autoridades se encarregarão de<br />
colocar cada um na cela que lhes compete - ele riu, e a testa franziu<br />
em dezenas de risquinhos bem fundos, embora o homem tivesse um<br />
travesso olhar de garoto.<br />
- De que se trata? - inquiriu Hannah, cheia de curiosidade.<br />
107
- Disseram-me que foi a atração exercida por um homem chamado<br />
Simão, o mago. Ele tem esta alcunha, porque é realmente um mago,<br />
pelo me<strong>no</strong>s é o que muitos afirmam - e ele ergueu os ombros, como<br />
se não desejasse se comprometer naquela afirmativa.<br />
- Já ouvi referências a ele - comentou Celeste. - Alguns o apontam<br />
como judeu, como samarita<strong>no</strong> ou de origem essênia. Dizem também<br />
que é um médico.<br />
Vendo que as elegantes senhoras não repudiavam a figura do<br />
homem que, na verdade, ele admirava, arriscou-se a acrescentar<br />
detalhes:<br />
- Também já ouvi contarem que ele faz com que apareçam objetos<br />
perdidos e que, às pessoas que o procuram com pesadelos e temores,<br />
ele auxilia. E até sabe apontar quais dias são ou não favoráveis <strong>para</strong><br />
as pessoas estabelecerem seus pla<strong>no</strong>s. É porque ele sabe consultar<br />
os astros, entendem? Quer dizer, não sei bem se isto é verdade -<br />
mais uma vez ele se armou. E nesta última observação, ele preferiu<br />
colocar na voz um tom de desinteresse.<br />
- O senhor já o viu fazer alguma magia, ou apenas ouviu contarem?<br />
- Hannah perguntou.<br />
- Na verdade, ele é um homem que faz encantamentos estranhos<br />
diante de quem queira observá-los, minha senhora. Não se esconde<br />
de forma alguma, aliás, até parece que prefere permanecer em<br />
destaque diante do público. Fala-se tanto dele, que certamente<br />
algum dia vai virar uma lenda - o homem riu, mas seus olhos já<br />
desmentiam o pouco caso com que a ele se referia.<br />
- O senhor pode <strong>no</strong>s esclarecer melhor o que ele faz, <strong>para</strong> merecer<br />
tal alcunha?- perguntou Cornélia.<br />
Vendo que desejavam apenas informações corriqueiras, o vendedor<br />
se desarmou e continuou:<br />
- Confesso que já tive oportunidade de me encontrar com ele. E nem<br />
pude acreditar que não faz as suas magias <strong>para</strong> ganhar o seu<br />
sustento. Não me exigiu pagamento nenhum em troca do seu<br />
espetáculo - ele assegurou.<br />
108
- Espetáculo? - perguntou Hannah.<br />
- Não deixa de ser um, embora ele não se exponha em cima de altos<br />
tablados e nem na arena do Circo - ele brincou. - E pelo me<strong>no</strong>s não<br />
são atos destrutivos os desse homem - ele prosseguiu, como que em<br />
defesa de Simão. - Ninguém se fere, quando ele se encontra <strong>no</strong><br />
comando.<br />
- No comando? - estranhou Celeste.<br />
- Sim, minha senhora. Simão, o mago, é um homem de força<br />
estranha <strong>no</strong>s olhos. Quem o olha profundamente e se deixa envolver<br />
por aquelas pupilas que lembram panteras prestes a dar um bote, não<br />
consegue defender-se de suas ordens de comando. Ele dá - o outro<br />
corresponde.<br />
- Isto não existe! - afirmou Celeste - o senhor deve estar enganado.<br />
- Perdoe-me, mas já comprovei. Com alguns, ele apenas brinca.<br />
Comigo, por exemplo. Mandou-me apanhar um ramalhete de flores<br />
e entregar a uma pessoa que estava em minha companhia. Eu só<br />
soube que o havia feito, quando me vi com as flores na mão, em<br />
atitude cavalheiresca, que não é o meu habitual - aí ele gargalhou,<br />
como se tivesse apreciado fortemente a experiência vivida junto<br />
daquele a quem consideravam um mago.<br />
- Ainda não creio - insistiu Hannah. - Talvez sua companheira<br />
estivesse em conluio com ele - argumentou.<br />
- Não, senhora. Esta minha amiga é pessoa séria e até me explicou<br />
que por causa desses tipos estranhos é que muita gente pensa que os<br />
seguidores de um outro mago, um judeu de uma <strong>no</strong>va seita, são<br />
igualados. Mas eu sei muito bem que não se trata disso. Simão, o<br />
mago, só gosta de alardear os seus poderes. Os seguidores do outro,<br />
conhecido como Nazare<strong>no</strong>, impõem as mãos sobre as pessoas <strong>para</strong><br />
fazerem curas. Eles não são ilusionistas.<br />
- Bem que eu gostaria de conhecer esse Simão - disse Celeste,<br />
sinceramente.<br />
- Desculpe-me, minha senhora, se deseja conhecer fatos<br />
miraculosos, por que não procura os verdadeiros seguidores do<br />
109
Nazare<strong>no</strong>? Não que eu seja um deles, veja bem - ele se escusou,<br />
embora em suas palavras houvesse um tantinho de interesse pelos<br />
fatos que já tinha ouvido narrarem.<br />
Cornélia permanecia calada e feliz. Via, naquela simples conversa,<br />
que os eventos de Joshua já haviam começado a deixar as suas<br />
sementinhas por ali. Mas comentou:<br />
- Do que fomos informadas, esses seguidores não estão por <strong>aqui</strong>. Ou<br />
estão? O senhor os conhece? Sabe como é, as <strong>no</strong>tícias por <strong>aqui</strong><br />
correm velozmente...<br />
- É verdade - ele estendeu amplo sorriso - e exatamente por isso é<br />
que sei que são hóspedes de Otávia, junto com a senhora Celeste,<br />
<strong>aqui</strong>, apreciadora de meus humildes artigos - ele aproveitou <strong>para</strong><br />
levá-las ao motivo que as fizera seguir até ele. Deixava claro,<br />
também, que preferia outros assuntos <strong>para</strong> conversa dali em diante -<br />
a venda de suas mercadorias.<br />
Elas entenderam a deixa, sorriram e começaram a analisar os<br />
camafeus.<br />
À saída da loja, foram vistas por uma romana, conduzida em uma<br />
cadeirinha elegantemente ornamentada, levada por dois escravos<br />
negros como carvão. Era uma conhecida de Aurélia e que Celeste já<br />
havia avistado rapidamente, em outra ocasião. Túlia as saudou e se<br />
mostrou disposta a conversar.<br />
Rechonchuda, em traje de seda vermelha, tentava disfarçar o<br />
avançar da idade, na flacidez do pescoço, com um colar belíssimo e<br />
de alto valor. Mas possuía feições bonitas ainda e tinha os cabelos<br />
elegantemente penteados.<br />
Túlia não parecia pessoa disposta a ouvir. Falava, falava, até que<br />
apontou <strong>para</strong> a loja de onde haviam saído.<br />
- Conhecem este mercador? - perguntou com um olhar estranho. -<br />
Sabem que tem parentesco com um importante artesão? E, sem<br />
esperar por uma resposta, prosseguiu: - Dizem que o artesão, que<br />
vive em Roma desde meni<strong>no</strong>, e que não se ocupa nem de religião ou<br />
de política, porque é um simples escravo liberto (é parente desse<br />
110
mercador que acabam de visitar, ela repetiu), ganhava seu sustento<br />
com artesanato até há pouco tempo. Ela parou, observou o interesse<br />
das três e continuou: - O artesanato de que se ocupava era <strong>para</strong><br />
enfeitar os Templos de Roma, os <strong>no</strong>ssos Templos - agora ela falava<br />
com mágoa. Mas ele começou a diminuir sua produção e, aos<br />
questionamentos feitos a ele a esse respeito, apenas respondia: É<br />
chegado o tempo de <strong>no</strong>vas estruturas <strong>para</strong> Roma. Não passava disso<br />
a resposta dele. Só reforçava que não adornaria mais os Templos.<br />
No entanto - ela prosseguia sem tomar fôlego - a insistência das<br />
pessoas era <strong>para</strong> que ele continuasse a criar as suas estátuas,<br />
belíssimas, por sinal. Sabem o que ele fez? Saiu pelas ruas de Roma,<br />
conclamando o povo a fazer me<strong>no</strong>s estátuas, me<strong>no</strong>s oferendas, e<br />
tratar de pregar o amor entre os povos.<br />
A matrona Túlia soltou um risinho disfarçado. - Este homem<br />
atrevido acabou sendo trancafiado, como se fosse um arruaceiro<br />
revolucionário. Acontece que ele tinha conhecido o Imperador, <strong>para</strong><br />
quem já havia esculpido uma belíssima estátua. E, já <strong>no</strong> cárcere,<br />
atrevidíssimo, exigiu aos carcereiros que o levassem à presença do<br />
Imperador. Desejava defender-se das ofensas que a ele faziam, visto<br />
que era um escravo liberto, tinha direito de trabalhar <strong>para</strong> ganho do<br />
próprio sustento e que, por estar em Roma há tanto tempo, já havia<br />
adquirido cidadania.<br />
A narrativa de Túlia não parecia que ia ter fim.<br />
- Os carcereiros até que foram benevolentes com ele - ela opi<strong>no</strong>u. -<br />
Conseguiram que fosse recebido pelo governador - não pelo<br />
Imperador. Este se recusou firmemente a vê-lo. O que se conta,<br />
depois disto, é que o tal artesão, depois dessa conversa com o<br />
governador, foi convidado a fazer parte do exército de Roma e saiu<br />
da prisão.<br />
Ela olhou triunfante <strong>para</strong> as ouvintes.<br />
Celeste, Hannah e Cornélia, espantadíssimas, observavam aquela<br />
senhora que parecia querer, num único dia, conversar sobre tudo o<br />
que a acabrunhava e a atraía. Mas não entendiam aonde ela queria<br />
111
chegar, quando lhes havia feito um sinal, detendo-as ali, em frente<br />
da loja do mercador de camafeus.<br />
No entanto, Túlia, dando-se conta de que já as tinha detido por<br />
muito tempo e de que poderia perder a oportunidade real do que<br />
pretendia mesmo, ao chamá-las, abriu <strong>no</strong>vo sorriso matreiro <strong>para</strong><br />
elas e propôs:<br />
- Se são amigas desse comerciante, podem me fazer um grande<br />
favor. Pedir <strong>para</strong> ele que leve o grande amigo dele - o artesão das<br />
estátuas - <strong>para</strong> construir uma em sua <strong>no</strong>va propriedade - aí ela sorriu<br />
<strong>para</strong> Cornélia. Assim, indiretamente, vocês podem descobrir, por<br />
conversas, se ele intercederia em favor de Lélia, já que ele se tor<strong>no</strong>u<br />
uma pessoa com privilégios.<br />
- De Lélia? - foi a única pergunta feita por Cornélia, agora<br />
interessada.<br />
- Sim. Não sei se já sabem que agora Lélia está sendo pressionada<br />
<strong>para</strong> abandonar o caminho cristão que segue, e exatamente por<br />
algumas matronas romanas que antes se apiedaram dela, quando<br />
estava exilada. Não são estranhos os eventos desses dias? - ela<br />
ponderou. - Gostaria mesmo era de descobrir se o tal do construtor<br />
de estátuas ainda continua dizendo que é chegado o tempo de <strong>no</strong>vas<br />
estruturas, depois do cargo que ele conseguiu.<br />
Túlia arrematou a fala com um único gesto, e este gesto era dirigido<br />
<strong>para</strong> os negros que a conduziam. Não esperou uma resposta. Ela<br />
afastou-se com um ace<strong>no</strong> gentil.<br />
Nenhuma das três entendeu se a matrona, pelo me<strong>no</strong>s, era favorável<br />
a Lélia.<br />
112
Vinte e Um<br />
O arroio das gaivotas, <strong>no</strong>me pelo qual passou a ser chamado o <strong>no</strong>vo<br />
lar de Cornélia, por sugestão de Hannah, recebera uma bela reforma.<br />
Pintura, restaurações, ampliação de alguns pavimentos. Era uma<br />
construção sólida que, sem o recurso dos bens materiais de seus<br />
anteriores arrendatários, vinha mantendo a aparência vetusta e<br />
fantasmagórica do pretérito.<br />
Mas Cornélia não conseguia atinar com a razão que a levava a se<br />
sentir, por ali, como co-participante de fatos estranhos, como se<br />
alguém invisível caminhasse com ela. Ora uma presença<br />
ameaçadora, e outras vezes como se instrumentistas <strong>no</strong>vos<br />
compusessem a seu lado melodias inquietantes. Começava a pensar<br />
que o local era mal-assombrado.<br />
Hannah ria de seus temores e convidou-a a reunir algumas amigas<br />
<strong>para</strong> a inauguração da casa. Dizia-lhe que ela continuava a ser uma<br />
gaivota, querendo sempre voejar e entender o que estava <strong>no</strong> alto -<br />
ou oculto - sem se ocupar até com o arroio que passava <strong>no</strong> fundo de<br />
seu terre<strong>no</strong>.<br />
Cornélia aceitou de bom grado, de modo que, logo que o jardim<br />
ganhou um primeiro impulso de verdadeiros profissionais, a casa<br />
recebeu a presença de Hannah, Celeste, Otávia, Aurélia e também<br />
de Lélia. Júlia não pôde comparecer.<br />
Apenas nessa ocasião, começaram a entender o que um dia haviam<br />
ouvido da romana Túlia. E veio de Lélia a observação que as levaria<br />
<strong>para</strong> tal entendimento.<br />
Ao se referir às imponentes estátuas gregas que Cornélia havia<br />
colocado em seu jardim, Lélia observou:<br />
113
- Tenho um grande amigo que é escultor, Cornélia. Ele modela tão<br />
bem as suas figuras, que costumo me referir a ele como um<br />
descendente do talentoso Fídias. Mas também já o vi a olhar as<br />
minhas peças de bronze e chegar a se comover até as lágrimas.<br />
- E quem é este homem tão sensível, Lélia? - indagou Celeste, não<br />
só curiosa pelo profissional. - Interesso-me pelo assunto, porque<br />
tenho um filho com tendências artísticas. Seria muito bom se ele<br />
conhecesse uma pessoa assim.<br />
- Não sei se Cléon seria a criatura ideal <strong>para</strong> professor de artes. Mas<br />
certamente ele poderá lhe oferecer informações bem úteis, Celeste.<br />
- Posso saber quem é este modelo de virtudes que consegue vencer<br />
as passadas de Roma sem ter armas nas mãos? - disse Aurélia com<br />
azedume.<br />
Lélia sorriu, ao responder: - É exatamente um homem que também<br />
pertence ao exército roma<strong>no</strong>, Aurélia.<br />
- Como isto é possível? - provocou-a Aurélia. - É o mesmo que ser<br />
um tocador de flauta e de trombeta ao mesmo tempo. Ninguém<br />
consegue manter-se em harmonia com duas escolhas tão diferentes.<br />
- Pois está enganada, amiga - voltou Lélia, desapaixonadamente. -<br />
Cléon seguiu <strong>para</strong> o exército com um propósito que nenhuma de nós<br />
pode entender, mas não deixa de ser a criatura generosa e sensível<br />
que é, só porque empunha armas defendendo seu ideal.<br />
- E qual é o ideal dele? - riu Aurélia. - Defender o <strong>no</strong>sso povo de<br />
perturbações do coração? E ele pretende, agora, erigir estátuas <strong>para</strong><br />
quem? Tem certeza de que é <strong>para</strong> o <strong>no</strong>sso Imperador, ou <strong>para</strong>...?<br />
- Para... quem? Vamos, Aurélia - desafiou-a Hannah -, continue.<br />
Você ultimamente anda revoltada com tudo. Até acha que em Roma<br />
não deveria morar ninguém que não fosse roma<strong>no</strong>.<br />
- É isso mesmo, Hannah, principalmente quem é judeu - ela<br />
desabafou.<br />
- Você nem atina que ser judeu não significa ser cristão, minha<br />
amiga. Basta saber que alguém é desta raça, <strong>para</strong> você se retrair.<br />
Pensa que todos são seguidores do Messias, desejando destruir o<br />
114
que os roma<strong>no</strong>s vêm construindo. Esquece que existem os que<br />
desejam que sua raça evolua <strong>para</strong> todo o sempre, são amantes da paz<br />
e da prosperidade, e que contam, ainda, com a certeza de que<br />
acontecerá mesmo, um dia, a vinda de um Messias. Não colocam o<br />
filho do carpinteiro nesse papel.<br />
Cornélia interferiu:<br />
- Se o amigo de Lélia está participando do exército como forma de<br />
resgatar o povo roma<strong>no</strong> das garras da ambição, eu acho que ele<br />
escolheu uma forma magnífica de se entregar ao amor.<br />
- Com você nem vou argumentar, Cornélia - reclamou Aurélia. -<br />
Mudei muito nesses últimos dias. Não consigo mais ver o povo<br />
judeu com a mesma imagem de antes. Eu acho que eles estão<br />
começando a roubar os meus filhos.<br />
- Engana-se, Aurélia - voltou Lélia. - Talvez você esteja magoada,<br />
porque seus filhos estão inseridos em tarefas que dizem respeito aos<br />
judeus que passaram a seguir o cristianismo. Mas uma grande parte<br />
deste povo não trocou nem um milímetro do modo de ser. Eu tenho<br />
conhecido alguns - ela informou - seguidores ou não. No caso dos<br />
segundos, são convictos de uma Divindade Maior, <strong>para</strong> quem a<br />
figura do Crucificado é uma vergonha. Mas não abandonaram suas<br />
tradições e me pareceram excelentes pessoas .<br />
- Bem, são os cristãos os responsáveis pelo desmoronamento de<br />
meus sonhos - Aurélia insistiu.<br />
- Então eu acho que você é que precisa conversar com Cléon,<br />
Aurélia - argumentou Lélia. - Aí entenderia a diferença entre amor à<br />
pátria e amor divi<strong>no</strong>.<br />
- Não adianta! - Aurélia queixou-se. - Sou mi<strong>no</strong>ria <strong>aqui</strong>. Você,<br />
Cornélia, meus filhos e talvez até Hannah foram contagiados por<br />
esses cristãos. Eu não consigo entender!! Essa exclamação era quase<br />
um grito de angústia dessa mulher romana que não conseguia<br />
direcionar sua visão <strong>para</strong> um espelho que não contivesse senão a<br />
própria imagem.<br />
115
- Aurélia, vamos fazer um jogo, <strong>aqui</strong> e agora - propôs Celeste<br />
cordialmente. - Um jogo <strong>no</strong> qual nenhuma de nós precisa ganhar,<br />
porque a realidade dele será apenas a composição de uma imagem.<br />
Se você fosse esculpir uma estátua, o que faria antes de tudo?<br />
- Escolheria de quem, evidentemente - respondeu Aurélia,<br />
desapontada.<br />
- Qual seria o passo seguinte?<br />
- Esculpiria o corpo.<br />
- De homem ou de mulher não importaria? Ou haveria diferenças?<br />
- A princípio não - ela relutou.<br />
- Pois bem. Suponha que escolheu uma estátua de homem. O que<br />
faria após esculpir a forma masculina?<br />
- Colocaria as vestes.<br />
- Ótimo. E acredita que as vestes seriam muito importantes na<br />
aparência do conjunto?<br />
- Não. Acho que o conjunto todo é que apresentaria a harmonia da<br />
estátua. Nada adiantaria ter muitos cuidados com a roupa, se os pés,<br />
as mãos, as pernas, o tronco e o rosto estivessem sem boas<br />
proporções.<br />
- Excelente, Aurélia. Você entende, então, que a harmonia ou do<br />
homem ou da mulher está <strong>no</strong> Todo e não nas partes, não é assim?<br />
- Claro! Mas o que é que este jogo vai realmente me revelar,<br />
Celeste?<br />
- Apenas que <strong>para</strong> o Criador só um Todo integrado é belo. As<br />
dissenções, as lutas e as disputas resultam na desarmonia do mundo.<br />
É por isso que este amigo escultor de Lélia e tantos outros tentam<br />
uma integração entre as partes. Eles pegam as armas <strong>para</strong> defesa,<br />
não <strong>para</strong> a destruição. Se as empunhassem <strong>para</strong> destruir, não seriam<br />
verdadeiros criadores da beleza <strong>para</strong> o Criador.<br />
- E daí, Celeste? - ela redargüiu amuada.<br />
116
- Daí que eu estou querendo lhe dizer que você não está em mi<strong>no</strong>ria,<br />
como afirmou. Tem apenas se preocupado com o traje das pessoas,<br />
pelo que me pareceu. O traje dos judeus, o traje dos cristãos, o traje<br />
dos roma<strong>no</strong>s, entende? No momento em que conseguir se<br />
despreocupar desses trajes, ou que entender que esses trajes só<br />
levam a caminhos, escolhas ou hábitos diferentes, acabará<br />
concluindo - quer queira ou não - que a estátua estará sendo<br />
montada do mesmo jeito. E sabe por quê? Porque quem esculpe a<br />
estátua Maior é mesmo o Pai Criador. Os <strong>no</strong>ssos deuses lares são<br />
apenas porme<strong>no</strong>res na estátua maior do Divi<strong>no</strong>, Aurélia.<br />
Aurélia olhou-a perturbada. Confessava, intimamente, que <strong>aqui</strong>lo<br />
que Celeste lhe falava já a havia tocado - a parceria de todos <strong>para</strong><br />
um ideal maior. Mas, se fosse Lélia que tivesse dito <strong>aqui</strong>lo, ela<br />
talvez nem participasse do jogo diferente, porque Lélia era cristã e<br />
isto já bastava <strong>para</strong> que ela se desviasse desse tipo de conversação.<br />
O silêncio desceu entre elas. Cada uma amadurecia dentro de si o<br />
que Celeste acabava de expor.<br />
No entanto, Aurélia ainda se queixou:<br />
- Não vale! Não vale! Você propôs um jogo, mas eu fui a única a<br />
jogá-lo perante vocês.<br />
Celeste arrematou sorrindo:<br />
- Nenhuma de nós se sentia na mi<strong>no</strong>ria. Só você.<br />
117
Vinte e Dois<br />
Desejando colaborar com Cornélia, <strong>no</strong> sentido de fazê-la<br />
participante do mundo e deixar por uns tempos suas meditações e<br />
vida interior, Hannah convidou-a a conhecer um local que<br />
certamente a atrairia, porque tinha muito a ver com as preferências<br />
dela e também combinava com seu próprio modo de ser.<br />
As fumacinhas de incenso subiam, subiam, esgarçavam-se e<br />
misturavam-se aos odores de ramalhetes de flores vermelhas<br />
dispostas em cima de tamboretes rústicos, naquele Templo. Não se<br />
conseguia distinguir direito se era uma fragrância acre ou doce;<br />
lembravam a composição de inúmeras vegetações.<br />
Tão grande a rusticidade do ambiente, que as duas se entreolharam e<br />
entenderam que ali até se podia captar o mistério que emanava<br />
dentro das paredes de pedras frias do solitário recinto.<br />
Era o Templo da Lua, <strong>no</strong> Aventi<strong>no</strong> - um entre tantos templos<br />
sagrados que se espalhavam pelo Império Roma<strong>no</strong> -, onde se faziam<br />
oferendas votivas a Tanith, deusa da lua, das estrelas e da <strong>no</strong>ite.<br />
Uma mulher silenciosa caminhou em passos altivos <strong>para</strong> uma<br />
portinhola lateral e por ela desapareceu. Por certo, a sacerdotisa que<br />
fazia seus vaticínios. Tudo penumbroso e fantasmagórico, mas<br />
atrativo <strong>para</strong> quem se integrava com a fé simples das criaturas<br />
freqüentadoras, aguardando a realização de seus pedidos feitos à<br />
deusa.<br />
Num lado mais obscuro do recinto circular, Cornélia e Hannah<br />
sentaram-se num banco de pedra. Logo em seguida, viram a entrada<br />
de uma mocinha com oferendas nas mãos, acompanhada de um<br />
molecote. No rosto da menina-moça, um sorriso vazio de expressão,<br />
mas a expectativa de algo a receber. No rapazinho, o jeito de quem<br />
118
ainda esperava conquistar o mundo, mas que não acreditava que<br />
saísse dali a sua vitória, porque reclamava:<br />
- Não sei por que você insiste em voltear por <strong>aqui</strong>, como uma<br />
borboleta de asas truncadas, Manilia - ele tinha o ar enfadado. Não<br />
vê que o rosto de nenhum deus está inscrito <strong>aqui</strong> nessas pedras?<br />
Acredita mesmo que um deus graúdo precisa dessas oferendas <strong>para</strong><br />
<strong>no</strong>s agradar?<br />
- Se você fala de um deus grandioso, ele nem é mesmo, se não<br />
entende as pessoas que vêm <strong>aqui</strong> visitar uma deusa - ela comentou<br />
com sagacidade.<br />
- Ah, Manilia, eu também penso que um deus grandioso não se<br />
preocupa mesmo com escravos ou escravas, como nós dois, que<br />
conseguimos a <strong>no</strong>ssa alforria a duras penas.<br />
- Você não está achando que eu venho <strong>aqui</strong> trazer a minha oferenda<br />
só <strong>para</strong> cobrar a amizade da deusa Lua, hein, Fulvius? Eu venho,<br />
porque <strong>aqui</strong> eu me sinto como se ... como se eu fosse uma outra<br />
pessoa. Fico bem diferente. Você viu aquela mulher que entrou na<br />
<strong>no</strong>ssa frente? Ela é a sacerdotisa e já me ajudou muito.<br />
- Vi, sim, Manilia. Mas ela não passa de uma simples mulher, que<br />
veste aquelas roupas estranhas só <strong>para</strong> chamar atenção. Ninguém<br />
tem capacidade de conversar com a Tanith ou outro deus qualquer.<br />
Isto tudo é bobagem e quem ganha com isso são os do<strong>no</strong>s desses<br />
templos. O que eles gostam mesmo é das oferendas. Vendidas as<br />
jóias, os objetos, e guardados os sestércios e moedas de prata, eles<br />
têm os seus lucros facilmente, sem fazer qualquer tipo de esforço.<br />
Só precisam colher os frutos oferecidos pelos outros. Não acha que<br />
isto é errado?<br />
- Mas, Fulvius, veja como são poucas as oferendas d<strong>aqui</strong> - ela<br />
apontou. Não acho que alguém vai enriquecer com essas pequenas<br />
coisas.<br />
- Ah, Manilia, o dia inteiro o templo está aberto. Você nem sabe se<br />
eles já fizeram a colheita desse dia e já puseram tudo muito bem<br />
guardado. Além do mais, este é um dos templos. Já se pôs a contar<br />
<strong>no</strong>s dedos quantos se espalham por aí? Só das mulheres a gente<br />
119
pode lembrar o de Vênus, Vesta, Victória, Ceres, Cibele e quantos<br />
outros? Ponha na lista agora o dos poderosos Marte, Satur<strong>no</strong>...<br />
- Chega, Fulvius!! - ela se zangou. - Não me interprete mal, mas<br />
você é um simples rapaz. Só pensa mesmo em batalhas, em<br />
conquistas e...<br />
- E em sonhos e realizações também, Manilia. Você pode não<br />
acreditar, mas eu me sinto mesmo poderoso é lá fora, até quando<br />
posso dar umas voltas <strong>no</strong> meu cavalo, que meu antigo senhor me<br />
deu, quando me alforriou. Acho que Roma ainda vai <strong>no</strong>s entregar<br />
muitos festejos, como são os de Augustus, que eu venero.<br />
- Não sei qual a diferença entre venerar Augustus e Tanith, Fulvius,<br />
mas, <strong>para</strong> mim, a minha é que vale, porque Augustus foi um homem<br />
feito deus pelos próprios homens; a deusa da Lua, não, ela é criação<br />
de algo diferente. Ela ilumina tudo. E você quer saber? Eu só a<br />
chamo de deusa, porque é o <strong>no</strong>me que todos dão <strong>para</strong> uma coisa que<br />
é maior do que a gente.<br />
Fulvius riu. - Agora você foi engraçada, Manilia. Então acha que<br />
existe alguma coisa maior do que os <strong>no</strong>ssos deuses de Roma?<br />
Ela ergueu os ombros. - Sei lá! A minha mãe, quando eu era<br />
pequena e antes de sermos roubadas de <strong>no</strong>ssa casa, sempre olhava<br />
<strong>para</strong> o céu e me dizia que era a Lua que ia dirigir os <strong>no</strong>ssos passos;<br />
que por ela a gente ia ter uma caminhada vitoriosa - lembro de tudo<br />
exatamente como ela falou, Fulvius.<br />
O rapazinho ficou pensativo e depois argumentou:<br />
- Muito estranho isto <strong>para</strong> mim. Quem sabe ela falava assim, porque<br />
na Lua ninguém consegue pisar.<br />
Manilia olhou-o amuada:<br />
- Eu só sei que a Lua comanda o mundo, Fulvius, e que ela é muito<br />
mais importante que o Sol.<br />
- Mais importante que o Sol? Não posso acreditar que pensa assim.<br />
E ele prosseguiu caçoando da amiga:<br />
120
- Que confusão você faz, Manilia. Ainda vai precisar crescer muito,<br />
<strong>para</strong> ver que aqueles brilhos lá de cima, da Lua, das estrelas e do Sol<br />
não precisam um do outro. Se fosse assim, até já tinham caído. Já<br />
pensei muito nisso. E concluí que é a mão poderosa de um deus<br />
muito muito grande e forte que sustenta tudo por lá.<br />
Manilia olhou-o séria e opi<strong>no</strong>u:<br />
- Nisso eu acho que você tem razão. Deve existir mesmo uma coisa<br />
e<strong>no</strong>rme, como mãos bem fortes, <strong>para</strong> segurar <strong>aqui</strong>lo tudo lá em<br />
cima. Mas, depois, acrescentou conformada: - Enquanto eu não sei<br />
de quem é, vou continuar a fazer os meus pedidos <strong>para</strong> a deusa Lua.<br />
Pelo me<strong>no</strong>s ela eu posso ver.<br />
Tocou a vez do rapazinho se pôr sério.<br />
- Isso é verdade. Eu também não consigo ver quem comanda<br />
aquelas belezas lá do céu.<br />
- Então venha comigo, Fulvius. Ajude-me a acender estes incensos<br />
que achei <strong>no</strong> chão, perto de uma barraca. Vou aproveitar e pedir<br />
<strong>para</strong> a deusa que abençoe esta pessoa que perdeu os incensos <strong>para</strong><br />
eu achar - ela concluiu simploriamente.<br />
Fulvius sorriu <strong>para</strong> ela com amorosidade e foi ajudá-la.<br />
"Certamente a deusa Lua vai colaborar com seus encantos, <strong>para</strong> que<br />
essas criaturas se enamorem e tenham uma vida de paz e<br />
prosperidade, se o Ser Supremo reforçar este meu desejo", pensou<br />
Cornélia, sem saber que Hannah também fazia o mesmo augúrio<br />
<strong>para</strong> o simples casal.<br />
121
Vinte e Três<br />
Numa <strong>no</strong>ite de frio e de chuva, Cornélia foi procurada por um<br />
homem chegado da Antióquia. Era um amigo de Boanerges, que lhe<br />
levava <strong>no</strong>tícias dele. Boanerges havia viajado urgentemente <strong>para</strong> lá,<br />
visto que os pais de Rute haviam pedido a presença da filha.<br />
A fisio<strong>no</strong>mia desse homem, que se chamava Nathanael, não parecia<br />
estranha a Cornélia. Os olhos cinzentos, a testa alta, os cabelos<br />
castanho-avermelhados, o pomo-de-adão proeminente num pescoço<br />
bastante alongado e os lábios fi<strong>no</strong>s em boca bem desenhada<br />
constituíam características fortes de alguém que ela muito conhecia.<br />
Mas quem?<br />
Num arroubo espontâneo, de curiosidade e de afeição, indagou: - De<br />
quem você é filho, Nathanael? Leva traços de alguém que sei que<br />
conheço, só por isso não consigo deixar de lhe fazer tão deselegante<br />
pergunta.<br />
O homem, desembaraçado e até contente, respondeu:<br />
- Não sei por que deveria estranhar o seu desejo de me conhecer<br />
melhor. Nós estivemos juntos numa ocasião de triste ocorrência, lá<br />
onde sucumbiu o <strong>no</strong>sso estimado Joshua.<br />
Quem sabe a minha figura lembre mesmo a de meu pai, que logo<br />
depois também partiu ao encontro daquele Anjo. Ele jamais se<br />
conformou com aquela perda irreparável e com a fúria insensata de<br />
homens incompreensíveis. Naquela ocasião, eu tinha uns quinze<br />
a<strong>no</strong>s, mas já era como agora. Sempre fui bastante alto e só por<br />
pouco tempo pareci um molecote. Acho que aqueles eventos me<br />
amadureceram rapidamente - ele concluiu com os olhos tristonhos.<br />
- Diga-me, Nathanael, foi você quem me procurou por <strong>aqui</strong>, antes<br />
que eu mudasse <strong>para</strong> Roma? Eu estava em Nazaré, quando recebi<br />
122
mensagem de uma amiga, dizendo-me que um Nathanael me<br />
procurava.<br />
- Sim, eu queria vê-la, porque tinha comigo algo que me<br />
incumbiram de lhe entregar. Pensei que você tinha partido de sua<br />
casa diretamente <strong>para</strong> Roma, logo após a morte de Joshua.<br />
- Não. Sou realmente culpada de não ter informado o meu <strong>para</strong>deiro<br />
<strong>para</strong> ninguém. Queria estar só.<br />
- Compreendo - ele respondeu, olhando-a calorosamente. - Espero<br />
que o conteúdo deste volume não a alcance em ocasião inútil - e ele<br />
o estendeu <strong>para</strong> ela. Mas penso que não. Sei que as mensagens de<br />
amigos <strong>no</strong>ssos sempre são relevantes, não é mesmo?<br />
- Mensagens? - Cornélia perguntou, mas os olhos entristeceram<br />
- É só o que posso adiantar. Tudo dependerá do que seu coração<br />
pede agora, Cornélia. A <strong>no</strong>ssa vida continuou meio... desconjuntada,<br />
não pensa assim? Pelo me<strong>no</strong>s <strong>para</strong> mim é como se tivesse passado<br />
dentro de um temporal e um nevoeiro. Só agora o nevoeiro começa<br />
a se dissipar.<br />
Cornélia tocou na mão do homem que se sentava a seu lado e<br />
comentou:<br />
- Também atravessei esse nevoeiro, Nathanael. Você como homem<br />
deve tê-lo sentido de forma diferente. Nós, as mulheres, nem sempre<br />
somos muito razoáveis e equilibradas nas <strong>no</strong>ssas grandes afeições.<br />
Ele ace<strong>no</strong>u a cabeça e depois acrescentou:<br />
- Boanerges sentiu-se profundamente comovido pela vida que levou<br />
com você. Foi curta - ele me disse -, mas valeu por muitas<br />
caminhadas.<br />
- Ah, Boanerges! - os olhos dela marejaram. Meu coração sempre<br />
pulsará por ele com grande ternura. Mas como sei que os grandes<br />
amores e afetos não morrem, ele estará sempre comigo, apesar da<br />
se<strong>para</strong>ção.<br />
- Talvez ele se demore em Antióquia, Cornélia. Os pais de Rute<br />
estão muito doentes.<br />
123
- Compreendo o que me está avisando. Mas, diga-me, Nathanael,<br />
tem acompanhado alguns amigos na propagação das palavras de<br />
Joshua?<br />
- Cumpro o meu papel na forma que posso. Não sou um orador. Mas<br />
tenho servido alguns, desembaraçando-os dos problemas materiais,<br />
pois sou um bom fabricante de tendas. E prosseguiu: - Você sabe<br />
que somos peregri<strong>no</strong>s, Cornélia. Dificilmente estaremos em locais<br />
que permitirão uma certeza das <strong>para</strong>das. Mas sei que posso lhe<br />
entregar uma senha. Aqui em Roma, um oficial do exército - que é<br />
dos <strong>no</strong>ssos, sem dúvida nenhuma - poderá apontar o <strong>no</strong>sso itinerário<br />
<strong>para</strong> você. Ele comanda uma unidade e muito viaja. Tem <strong>no</strong>s<br />
ajudado em encontros e também em soluções, <strong>para</strong> que <strong>no</strong>s<br />
afastemos dos perigos que vamos enfrentando. Nós agora<br />
precisamos viver - o máximo que pudermos -, <strong>para</strong> atingir maior<br />
número de territórios com <strong>no</strong>ssas palavras.<br />
- Então me dê o <strong>no</strong>me desse oficial. Posso pedir <strong>para</strong> meu servo<br />
Timóteo encontrá-lo <strong>para</strong> mim. Timóteo é pessoa de extrema<br />
confiança.<br />
- Se você diz, não duvido, Cornélia. Mas precisamos ter cuidados<br />
extremos e estar atentos <strong>para</strong> qualquer planejamento a ser feito. Há<br />
muitos olheiros espalhados em Roma. Os exércitos... ah, você já<br />
deve saber disso tudo.<br />
- Sim, tenho-me informado de muita coisa. Fala-se demais em<br />
Roma.<br />
- Dessas informações indiretas, a gente deve se precaver. Quando<br />
você for procurar o Licínio, diga...<br />
- Licínio??? Refere-se ao homem que pertence à família dos<br />
Gracos? Que possui também <strong>no</strong> exército roma<strong>no</strong> um irmão, Fábio,<br />
filhos de Aurélia?<br />
- A ele mesmo. Ele tem colaborado co<strong>no</strong>sco de maneira<br />
indescritível. Atualmente, encontra-se aquartelado em...<br />
124
- Não se preocupe, Nathanael. Sei perfeitamente como posso chegar<br />
até Licínio, sem interromper o silêncio que vocês devem pretender<br />
manter em volta dele.<br />
- Ótimo - ele disse, levantando-se. - A paz esteja com você,<br />
Cornélia.<br />
Ao ver o porte altivo do homem que pertencia à mesma raça do seu<br />
amado Joshua afastar-se, Cornélia comoveu-se. E por seu<br />
pensamento passou: " Lélia já deve estar há muito tempo ciente do<br />
que se trama por esses bastidores. Agora vou precisar me encontrar<br />
com ela... mas a sós."<br />
Rapidamente se pôs a desfazer as amarras do invólucro trazido<br />
gentilmente por Nathanael, feito em couro e costurado<br />
cuidadosamente. Continha um rolo de manuscritos.<br />
Olhando <strong>para</strong> a distância, pensou em voz alta, quebrando o silêncio<br />
de que era cercada:<br />
- Ah, Joshua! - eu volto <strong>para</strong> a luta.<br />
125
Vinte e Quatro<br />
Uma lamparina de azeite ardia na escuridão. Cornélia encontrava-se<br />
sozinha. Havia organizado bem o seu dia, <strong>para</strong> que suas auxiliares<br />
se recolhessem cedo. Desejava privacidade <strong>para</strong> ler as mensagens<br />
que tinha às mãos.<br />
Vinham assinadas por Yohanan (o Batista). Era uma apresentação<br />
simples daquele que havia vivido <strong>no</strong> meio dos essênios, onde se<br />
dispusera a pre<strong>para</strong>r-se <strong>para</strong> o encontro com Joshua.<br />
Lágrimas desceram às faces de Cornélia, porque ela o havia<br />
conhecido. Era um homem de olhos negros e observadores, de<br />
compleição forte e cheio de majestade <strong>no</strong> caminhar, de grande<br />
rigidez de princípios, passados a ele por homens que viviam<br />
isolados em razão de estudos - os essênios. Este grupo se havia<br />
alicerçado, aguardando a chegada do Salvador, e nunca haviam<br />
duvidado de que era Joshua, logo que o encontraram.<br />
Assim escrevia Yohanan:<br />
" Pertenço de corpo e alma a um povo que me ensi<strong>no</strong>u, desde<br />
meni<strong>no</strong>, a servir os meus semelhantes.<br />
Nunca possuí uma moradia individual, porque até a organização de<br />
<strong>no</strong>sso núcleo visava a <strong>no</strong>s demonstrar que éramos criaturas de um<br />
mundo a ser repartido - um mundo coletivo a ser respeitado e<br />
interiorizado apenas <strong>no</strong> amor.<br />
Só não convivíamos com irmãos de outros pensares, porque <strong>no</strong>s<br />
deveríamos pre<strong>para</strong>r em diferentes rituais, que <strong>no</strong>s abririam etapas<br />
<strong>para</strong> maior aprendizado interior.<br />
126
Sabíamos desde cedo que a única preferência a <strong>no</strong>s guiar seria "o<br />
tipo de aprendizado", pois o mundo oferece uma infinidade deles e<br />
nós temos o livre-arbítrio <strong>para</strong> esta preferência.<br />
Nossas atividades eram comuns, baseadas antes de tudo na<br />
manutenção da alegria <strong>para</strong> o <strong>no</strong>sso espírito. E esta alegria sempre<br />
emanava da fonte interna de <strong>no</strong>ssa alma. Entre nós, traduzia-se na<br />
pre<strong>para</strong>ção de <strong>no</strong>ssos ideais, na crença de um Deus único, na<br />
certeza de que receberíamos em <strong>no</strong>sso núcleo Aquele que seria<br />
reconhecido como o Salvador do Mundo.<br />
Sabíamos que cada um de nós seria uma parte integrante num<br />
Rei<strong>no</strong> glorioso, que se assemelharia às constelações do céu, quando<br />
o Salvador <strong>no</strong>s visitasse. Nós seríamos como aqueles astros a se<br />
moverem na imensidão, aliados pela Força e Luz que Dele<br />
emanaria e percorreríamos a <strong>no</strong>ssa trajetória <strong>para</strong> o Rei<strong>no</strong> do<br />
Esplendor.<br />
Poucos de nós sabiam quando Ele chegaria, porque percorríamos<br />
<strong>no</strong>ssos estudos sem <strong>no</strong>s dispersar em indagações. Tínhamos etapas<br />
e metas a cumprir, até recebermos o título de iniciados, quando,<br />
então, ocuparíamos posições diferentes entre os participantes desse<br />
<strong>no</strong>sso imenso grupo.<br />
Mas devo dizer que ninguém precisou me apontar aquele meni<strong>no</strong> de<br />
porte majestoso e cheio de carisma como o Messias esperado. Eu o<br />
soube <strong>no</strong> momento em que <strong>no</strong>ssos olhos se encontraram. Eu o<br />
reconheci e Ele, a meu ver, também me reconheceu como amigo,<br />
porque se aproximou sorrindo e <strong>no</strong>ssas almas se irmanaram, dali<br />
em diante, na Fé, <strong>no</strong> Amor e na Amizade.<br />
Éramos os dois cheios de desembaraços, mas cada um com o seu<br />
cálice a beber. Duas criaturas que já se haviam encontrado em<br />
outras circunstâncias, em outras romagens, na grande<br />
peregrinação dos astros a girarem pelo espaço.<br />
Não me creiam vaidoso por me referir assim à minha alma e à Dele.<br />
As almas de Deus, todas elas, possuem vestígios de Luz. Algumas<br />
conseguem mantê-la e outras preferem apagá-la, quando se<br />
entregam à inconstância de seus sentimentos. Somente as almas<br />
127
firmes, persistentes, leais, desembaraçadas e amantes da Beleza<br />
conseguem manter aceso o brilho das estrelas em seu coração.<br />
Eu mantive o meu e Ele o Dele, mas eu, porque amava plenamente<br />
o Messias.<br />
Poucas vezes consegui dirigir-me a Ele tratando-o por Joshua. Este<br />
era um <strong>no</strong>me terre<strong>no</strong> e eu não o via como um Ser desta galáxia. Eu<br />
o via como pertencente às alturas da qual Ele descera, de modo que<br />
o tratava como Messias, Mestre ou Meu Senhor.<br />
Minha vida pertenceu a Ele, desde o momento em que O vi sorrindo<br />
e sentindo-se feliz entre nós - o povo essênio. Orgulho-me de<br />
pertencer a este povo voltado <strong>para</strong> a seriedade da formação e<br />
evolução das criaturas.<br />
Na faixa de iniciado em que me encontro hoje, já tenho a<br />
possibilidade de ver e prever meu futuro. Minha caminhada será<br />
curta, porque minha vida me será tirada antes que a Dele<br />
resplandeça. E isso <strong>para</strong> mim constitui Felicidade Plena. Não<br />
gostaria de passar, após a morte Dele, pelos lugares que os pés<br />
Dele consagrarem, porque me sentiria um salteador dos Bens<br />
Inigualáveis desse meu Mestre, que tanto venero.<br />
Sei que meu Deus conhece esta minha disposição, de modo que me<br />
<strong>aqui</strong>eto, porque sei também que Meu Deus me atenderá. Por pensar<br />
assim, antes mesmo de minha morte, já abençôo aqueles que me<br />
atraiçoarem."<br />
Só pelo início da manhã, vencida pelo cansaço do corpo físico,<br />
Cornélia deixou o manuscrito de lado e preparou-se <strong>para</strong> dormir.<br />
Mas não conseguiu.<br />
A alma, cheia de indagações, desejava integrar-se a tudo, até mesmo<br />
a quem lhe havia direcionado aquelas mensagens. Nathanael havia<br />
sido extremamente reservado àquele respeito.<br />
Mas ela havia percebido <strong>no</strong> olhar de Nathanael uma espécie de<br />
desafio. Seria por algo que esperava dela, ou se tratava apenas de<br />
128
uma forma singela de mimoseá-la com algo que jamais pensaria em<br />
ganhar?<br />
Inadvertidamente voltou ao passado, tentando rememorar o que<br />
havia sucedido após a morte de Joshua. Nathanael lhe afirmara que<br />
estava presente na ocasião. Quem entre os outros, também<br />
presentes, havia se<strong>para</strong>do <strong>para</strong> ela aquele manuscrito? Seria<br />
Zebedeu? Othoniel, ou mesmo o pai de Nathanael?<br />
Por que tanta consideração <strong>para</strong> com ela, se todos eram viajantes em<br />
uma nau que havia seguido por águas tormentosas? Não eram eles<br />
todos igualados naquela perda irreparável e dolorosa?<br />
Quem deles mantivera acesa a chama da Fé e da Esperança, depois<br />
de surpreendido pela Verdade incontestável da rápida partida de<br />
Joshua <strong>para</strong> o Rei<strong>no</strong> inefável, que Ele sempre apregoara e tão<br />
poucos entenderam?<br />
Subitamente, lembrou-se. No momento em que abandonava a cena<br />
da crucificação, uma mulher se havia aproximado dela, dizendo-lhe:<br />
"Um dia <strong>no</strong>s reuniremos, Cornélia, e, por minúscula que seja <strong>no</strong>ssa<br />
contribuição, haveremos de levar a parte que <strong>no</strong>s compete a outras<br />
regiões".<br />
Teria sido mesmo uma promessa? Um convite? Ou apenas um<br />
desabafo? Aquela criaturinha frágil, envolta em xale negro - que ali<br />
expressava toda a dor de uma perda profunda - pertenceria também<br />
ao grupo dos essênios?<br />
"Débora" - ouviu Cornélia nitidamente. Tão claro o som, que se<br />
voltou <strong>para</strong> a lateral, de onde parecia que ele tinha ecoado. Não era<br />
uma voz interiorizada ou intuitiva. Seus ouvidos terre<strong>no</strong>s haviam<br />
captado perfeitamente aquele <strong>no</strong>me.<br />
- Débora! - Cornélia repetiu em voz alta. Sim, sim, eu a conheci na<br />
casa de Abigail. Mas ela era tão menina...!! Até mais <strong>no</strong>va do que<br />
Nathanael. Será ela amiga dele?<br />
Um raio de luz argêntea desceu <strong>para</strong> o quarto de Cornélia, quando a<br />
lua em suas passadas mágicas atingiu o desvão de sua janela e a<br />
brisa, em colaboração, soprou movimentando o fi<strong>no</strong> cortinado.<br />
129
No piso do frio pavimento viu levemente delineado um peixe. Ele<br />
permaneceu ali até que as nuvens viajantes encobriram a e<strong>no</strong>rme lua<br />
prateada.<br />
O cenário de seu quarto mergulhou, mais uma vez, nas sombras da<br />
madrugada, sem peixe, sem lua, mas com a oferta de um <strong>no</strong>vo e<br />
promissor amanhecer.<br />
Descansou umas poucas horas e ainda cedinho pediu a Timóteo que<br />
procurasse Licínio e Lélia. Em nenhum momento pensou em<br />
interferir <strong>no</strong> caminho daqueles que se haviam determinado propagar<br />
a <strong>no</strong>va seita. Mas agora necessitava da orientação de alguém que já<br />
contribuía nessa luta de sacrifício, <strong>para</strong> poder servir.<br />
Não lhe importava como. Só sabia que o porquê vinha assinalado<br />
naquelas páginas do manuscrito, com o <strong>no</strong>me de Yohanan.<br />
Sim, Yohanan estava certíssimo ao adotar o termo Mestre <strong>para</strong><br />
Joshua. Mestre do Amor e da Misericórdia. Ela gostaria de<br />
participar ainda de seu aprendizado.<br />
130
Vinte e Cinco<br />
Reunida em sua casa com Lélia e com Licínio, Cornélia colocou-os<br />
a par do que lhe havia sucedido.<br />
Licínio rapidamente entendeu o que a afligia.<br />
- Tudo o que <strong>no</strong>s narrou me leva a crer que deseja, <strong>no</strong>vamente, se<br />
integrar <strong>no</strong>s percursos do cristianismo que já floresceu em seu<br />
coração, Cornélia. Eu já conhecia detalhes de seu passado, porque<br />
tenho convivido com gente que morou uns tempos lá na Galiléia.<br />
- Eu também conheço parte de seu envolvimento com alguns dos<br />
pescadores e amigos próximos do Nazare<strong>no</strong> - disse Lélia, que já<br />
estava inserida <strong>no</strong>s movimentos subterrâneos da multiplicação das<br />
mensagens.<br />
- Mas nenhum dos dois entende por que os chamei, não é assim? -<br />
ela indagou sorrindo, e prosseguiu: - Preciso da ajuda e<br />
compreensão de vocês, <strong>para</strong> que eu possa me colocar de pé<br />
<strong>no</strong>vamente e... caminhar. Até agora tenho me desvelado <strong>no</strong> amor...<br />
mas sem obras.<br />
A conversa se manteve, desdobrando-se em vários rumos. Ao final,<br />
Cornélia já conhecia a maneira escolhida por Lélia <strong>para</strong> tentar<br />
multiplicar entre os homens e mulheres de Roma algumas<br />
mensagens, que lhes eram entregues por pessoas às quais ela não<br />
identificou.<br />
O trabalho de Lélia seguia mais ou me<strong>no</strong>s o esquema dos espiões<br />
que saíam de seus países <strong>para</strong> outros, pre<strong>para</strong>dos na língua, <strong>no</strong>s<br />
costumes, <strong>no</strong>s hábitos, conhecendo a possibilidade de que poderiam<br />
morrer, se fossem descobertos. Lélia havia optado pela renúncia do<br />
viver, se dela exigissem isto por sua fé.<br />
131
Já o desti<strong>no</strong> de Licínio era terrivelmente ameaçador, diariamente.<br />
Convivia seu dia-a-dia com os próprios algozes de sua crença.<br />
Qualquer palavra ou menção, distraída, de fatos examinados por<br />
seus superiores, ou mesmo por alguns de seus comandados,<br />
colocaria em seus ombros a pecha de traidor. E todos sabiam que a<br />
traição levava à morte cruel. Portanto, nem Licínio ou Lélia<br />
deixavam, <strong>para</strong> segundo pla<strong>no</strong>, a Renúncia. Renunciavam, já, à<br />
própria vida, <strong>para</strong> continuar a Obra.<br />
Finalmente Cornélia pôde entrever os quadros aterrorizantes do<br />
Circo Roma<strong>no</strong>, onde leões e criaturas se enfrentavam <strong>para</strong> vencer<br />
uma luta. Só a Força, a Fé e a Coragem podiam realmente levar um<br />
prosélito do Mestre a acompanhá-Lo. Caso contrário, o melhor seria<br />
esquecer <strong>aqui</strong>lo tudo e viver de forma simples e sem compromissos.<br />
Enquanto se esforçava <strong>para</strong> escolher "de qual maneira poderia<br />
servir", Lélia aconselhou-a:<br />
- Ajude-os a não morrer, Cornélia. Ajude-os a encontrar um local,<br />
do qual possam se servir, quando a fé vacilar, ou quando a<br />
necessidade de salvar um companheiro os atingir. Não sabe quantas<br />
criaturas crimi<strong>no</strong>sas se valem do <strong>no</strong>me "cristianismo", a fim de<br />
descartar pessoas que, às vezes, nem mesmo fazem parte desse<br />
movimento subterrâneo.<br />
- E como posso saber a quem salvar, Lélia?<br />
- Muito simples. Eu serei ainda como sou - a espiã. Apontarei o<br />
local <strong>para</strong> aqueles a quem o momento exigir.<br />
- Entendo. Você quer apenas que eu prepare um lugar de segurança<br />
<strong>para</strong> eles.<br />
- Lélia está certa, Cornélia. Você possui fortuna e não possui<br />
herdeiros. Não é esse o caso de Lélia, cujos bens precisa respeitar,<br />
pois tem marido e filho.<br />
- Mas vocês estão me ofertando apenas um presente, não um<br />
trabalho - reclamou Cornélia, sorrindo.<br />
- Por que diz isto? - perguntou Licínio.<br />
132
- Porque local eu já tenho. A adega desta minha casa pode abrigar<br />
uma dezena de pessoas e é bem segura. Aí ela brincou: - Minha<br />
amiga Hannah <strong>no</strong>meou este meu <strong>no</strong>vo lar como "o arroio das<br />
gaivotas". Mal sabe ela que escolheu um <strong>no</strong>me providencial. Posso<br />
trazer <strong>para</strong> cá um monte de gaivotas. Não deixarei que aparem as<br />
asas delas. Eu as cuidarei mais do que tenho investido em minha<br />
própria felicidade. Isto eu prometo - ela concluiu, feliz.<br />
Licínio sorriu, mas não deixou de alertar:<br />
- Cornélia, tenha muito cuidado. Há muitos gaviões ávidos de<br />
abocanhar presas <strong>aqui</strong> em Roma.<br />
- E também existem imensas aves voejando por esses espaços,<br />
Licínio - os Anjos. Eles <strong>no</strong>s protegerão.<br />
Por um bom tempo, os pla<strong>no</strong>s alcançaram êxito. Mas chegaram as<br />
inexoráveis chuvas. Cada morador de Roma fazia parte do duro<br />
aprendizado que o Criador entregava em suas mãos. As conquistas<br />
muitas vezes eram apenas analisadas como "esforço", visto que<br />
apenas fagulhas de luzes aqueciam os corações aflitos.<br />
Os duros roma<strong>no</strong>s iam <strong>aqui</strong>nhoando <strong>para</strong> suas próprias vestes as<br />
lágrimas daqueles que iam morrendo na cruz (isto simbolicamente),<br />
porque bem mais tarde é que a extensa Via Ápia seria juncada de<br />
criaturas sofrendo o mesmo martírio de Joshua. E isso <strong>no</strong> tempo de<br />
Nero, que não faz parte deste cenário.<br />
Fábio casou-se e Aurélia morreu um pouco depois do casamento do<br />
filho. Celeste perdeu Emilia<strong>no</strong> numa disputa bem tola enfrentada<br />
por ele, simplesmente porque um dia riu de um <strong>no</strong>bre e pomposo<br />
roma<strong>no</strong> que se recusava a atravessar um caminho, onde vários<br />
judeus se reuniam a conversar.<br />
O tal <strong>no</strong>bre, homem cheio de eficácia na maldade, apontou-o como<br />
um "pactuante do povo hebreu". O pobre Emilia<strong>no</strong> nem ficou<br />
sabendo por que razão lhe extinguiam a vida, ainda na flor da idade,<br />
pois não havia completado seus trinta a<strong>no</strong>s.<br />
133
Licínio e Fábio tiveram a sorte de sair de Roma numa época em que<br />
dificilmente continuariam a escapar das garras dos executores.<br />
Foram salvos por Lélia, que havia sido aprisionada, mas antes lhes<br />
entregara um salvo-conduto, ao avisar-lhes que se escondessem<br />
urgentemente na adega de Cornélia e, dali, saíssem <strong>para</strong> outro<br />
território, até que a poeira baixasse.<br />
Hannah partiu <strong>para</strong> as dimensões desconhecidas exatamente na<br />
época em que Licínio e Fábio acabavam de deixar o "arroio das<br />
gaivotas".<br />
O enterro de Hannah contou com a presença de poucas amigas -<br />
apenas Júlia, Otávia e Cornélia, que já estava se pre<strong>para</strong>ndo <strong>para</strong> ir<br />
ao encontro de Nathanael, com Timóteo. Desejava conhecer melhor<br />
Débora e Nathanael, de cujas mãos havia recebido o manuscrito de<br />
Yohanan, que o registrara bem poucos dias antes de ser executado<br />
por ordem de Herodes Antipas. Cornélia já estava ciente de que<br />
fora mesmo Débora que incentivara Nathanael a entregar uma cópia<br />
<strong>para</strong> ela. Débora era prometida de Nathanael, na época em que<br />
Joshua morrera na cruz.<br />
Na leitura final daquela mensagem, Cornélia havia encontrado um<br />
adendo: um estranho mapa desenhado pelas mãos de Nathanael,<br />
indicando-lhe <strong>para</strong> onde deveria ir "quando o local de sua casa - que<br />
serviria de alojamento <strong>para</strong> cristãos - estivesse sendo ameaçado de<br />
invasão". Aquilo tudo lhe comprovava que Nathanael não só havia<br />
previsto o rumo que ela escolheria <strong>para</strong> colaborar, como também os<br />
acontecimentos nefastos que poderiam alcançá-la. Textualmente,<br />
Nathanael dizia: "Quando intuir que as andorinhas deverão voejar,<br />
encontrará moradia entre os essênios".<br />
Mas Cornélia começava a acreditar que, <strong>para</strong> ela, a vida ainda<br />
reservava uma longa caminhada.<br />
134
Segunda Parte<br />
135
Vinte e Seis<br />
Era o meio de um dia modorrento, porque o sol não encontrava<br />
empecilhos <strong>para</strong> repousar na vastidão do território de Roma.<br />
O ritmo de trabalho dos escravos de Orígenes, cavando o duro solo<br />
<strong>para</strong> <strong>no</strong>vo plantio, levava Cornélia à <strong>no</strong>stalgia e a uma saudade<br />
profunda das terras de seus ancestrais. Longe estavam aqueles dias<br />
descontraídos que se resumiam em fazê-la <strong>no</strong>tar que era uma<br />
criatura abençoada, por ter nascido <strong>no</strong> lar de Diomedes.<br />
Quantas transformações!<br />
Agora, despedia-se de Otávia e narrava a seus anfitriões parte do<br />
pla<strong>no</strong> que havia traçado.<br />
Os conselhos de Orígenes ficavam bem aquém d<strong>aqui</strong>lo que<br />
almejava, porque ele lhe afirmava que ela deveria viajar sob a<br />
proteção de oficiais roma<strong>no</strong>s, e seu coração lhe indicava, como<br />
melhor, a proteção dos homens que a haviam conduzido até ali. Mas<br />
não deixou de analisar as ponderações daquele homem experiente,<br />
que lhe dizia:<br />
- Escute-me com atenção, Cornélia. Você é uma criatura que leva a<br />
vantagem de ser uma mulher romana, da parte de sua mãe. Está <strong>no</strong>s<br />
dizendo que pretende ir ao encontro de amigos. Se estiver sob<br />
cuidados do exército roma<strong>no</strong>, não despertará atenção de ninguém e<br />
terá toda auto<strong>no</strong>mia até <strong>para</strong> mudar seus planejamentos, <strong>no</strong><br />
momento que desejar. Sempre poderá alegar que é <strong>para</strong> divertir-se -<br />
o que será visto sem desconfiança por eles, e que não sucederia se<br />
estivesse acompanhada apenas por gente escrava alforriada.<br />
- É verdade, Cornélia - aparteou Otávia -, fala-se muito sobre essas<br />
criaturas humildes. Elas têm constituído o motivo de inúmeras<br />
queixas dos graúdos de Roma. Um grande número deles se ligou aos<br />
136
movimentos subterrâneos da <strong>no</strong>va seita. E muitas mulheres romanas<br />
acabaram encontrando neles um porta-voz <strong>para</strong> se informarem<br />
melhor do que é apregoado pelos discípulos do Nazare<strong>no</strong>. É o caso<br />
da <strong>no</strong>ssa querida Lélia.<br />
- Além disso - reforçou Orígenes -, junto dos roma<strong>no</strong>s, você só<br />
precisará informar que viaja porque deseja ver mais de perto o<br />
andamento de suas propriedades. Sua viagem não será mal<br />
interpretada pelos poderosos, que também a mantêm em vigilância,<br />
você já sabe disso, não é mesmo?<br />
Notando uma certa confusão <strong>no</strong>s olhos de Cornélia, Otávia foi em<br />
seu socorro:<br />
- Meu pai diz isto, porque ninguém se esqueceu de que você foi<br />
grande amiga de Tibério, mas que nem por isso temeu participar das<br />
pregações de Joshua, <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s que precederam a morte dele.<br />
Orígenes foi agora mais claro:<br />
- Não é de se duvidar que aguardem qualquer manifestação sua - por<br />
me<strong>no</strong>r que seja - a respeito das falas dos discípulos de Joshua, a<br />
quem alguns amigos meus chamam de Jesus. Sua casa deve ser<br />
bastante atraente <strong>para</strong> senadores e governador, visto que não<br />
desconhecem que se dava bem com Lélia.<br />
- Não sei se você sabe, Cornélia, que Celeste tem sido o seu anjo<br />
protetor. Por pertencer a uma ilustre casa romana, foi requisitada<br />
<strong>para</strong> fornecer informações, <strong>no</strong> dia em que aprisionaram Lélia. E ela<br />
foi a garantia de que você não participa de encontros - contou-lhe<br />
Otávia.<br />
Cornélia calou-se. Estava a par de todos aqueles eventos, me<strong>no</strong>s a<br />
respeito dos questionamentos feitos a Celeste. E pôde compreender<br />
melhor que seu silêncio e seus cuidados em tor<strong>no</strong> dos movimentos<br />
subterrâneos é que a tinham favorecido. Provavelmente, haviam<br />
levado os poderosos a olhá-la como uma mulher que "fantasiara"<br />
sua vida, um dia, seguindo os passos do homem crucificado; agora,<br />
talvez a vissem como mulher mais "sensata", porque preferia seguir<br />
uma vida comum. Cornélia até que preferia que continuassem a<br />
pensar assim.<br />
137
Mas os argumentos de Orígenes foram bem analisados por ela e,<br />
desejando realmente que a considerassem uma mulher leviana não<br />
dotada de Fé, decidiu-se aceitar os conselhos de Orígenes e deixarse<br />
acompanhar por uma escolta de oficiais roma<strong>no</strong>s.<br />
Cornélia não sabia que, na opinião de Orígenes, o sopro do vento<br />
que atingia aquelas terras jamais iria retirá-la dos cenários mais<br />
ilustres. Porém Otávia, que conseguia enxergar a força oculta de<br />
Cornélia, achava que aquela viagem da amiga estava perfeitamente<br />
relacionada a seus princípios de fé. Desejou sinceramente que não<br />
sofresse as mazelas enfrentadas por Lélia.<br />
Finalmente chegou o dia tão planejado. A oficialidade que a<br />
acompanharia era comandada por Flavius.<br />
Inúmeras hospedarias haviam brotado naqueles territórios desde a<br />
primeira vez que os transpusera. Para alcançar o Santuário dos<br />
essênios, nas proximidades de Jericó, precisaria de um "passaporte"<br />
que só alguns judeus ofereceriam <strong>para</strong> ela - os próprios essênios. E<br />
ela já o levava consigo. Era o manuscrito que Nathanael lhe dera em<br />
mãos.<br />
Nathanael estava atento. Fora ele que havia conduzido Licínio e<br />
Fábio <strong>para</strong> longe da toca do lobo. Mas, ao contrário dela, os dois<br />
saíram de Roma pelo mar. Não haviam seguido em busca dos<br />
essênios e, bem longe dali, enfrentavam uma viagem bastante<br />
aflitiva.<br />
Entre Cornélia e Flavius logo se formou uma indisposição. Embora<br />
respeitada em seus mínimos pedidos e até na trajetória que havia<br />
colocado <strong>para</strong> ele, nenhum dos dois conseguia afastar a animosidade<br />
enquanto percorriam aquelas <strong>para</strong>gens.<br />
Flavius, por suas inúmeras viagens-tarefa, havia adquirido um certo<br />
"faro" <strong>para</strong> captar onde estavam os seguidores do Nazare<strong>no</strong>. Mas ele<br />
não conseguia atinar de onde vinha sua percepção <strong>para</strong> distinguir<br />
quais eram os seguidores ou não. Analisava atentamente as<br />
conversas entre estalajadeiros e hóspedes, entre servos e do<strong>no</strong>s de<br />
estalagens, preocupando-se até com as lisonjas que o atingiam,<br />
138
acreditando encontrar nisso um sinal de que havia por perto algum<br />
seguidor do crucificado.<br />
Mas havia algo, sim, naqueles caminhos. Era com se os cristãos se<br />
houvessem multiplicado num piscar de olhos, era como se os<br />
incríveis seguidores levassem <strong>no</strong>s olhos alguma expressão<br />
significativa que os diferenciava dos estrangeiros e dos que nunca<br />
haviam escutado o <strong>no</strong>me de Joshua.<br />
Só que Cornélia não se via fazendo aquela romaria <strong>para</strong> junto dos<br />
essênios, a fim de abandonar o que era, nem <strong>para</strong> seguir um<br />
caminho que não lhe pertencia por marca de nascimento. Apenas<br />
desejava encontrar abrigo entre os amigos de Nathanael, <strong>para</strong> se<br />
afastar das borrascas surgidas em Roma. E também porque tinha<br />
certeza de que, <strong>no</strong> silêncio de um local que havia um dia recebido<br />
Joshua, seria guiada <strong>para</strong> um desti<strong>no</strong> que lhe levaria re<strong>no</strong>vação da<br />
alegria ao coração e maior desejo de servir aos semelhantes. Sabiase<br />
necessitada de melhor preparo em seus caminhos.<br />
Flavius, por sua vez, enchia a cabeça disposto a decifrar um enigma,<br />
junto de Cornélia, lamentável enga<strong>no</strong> que o levava a pensar<br />
constantemente que ela desejava fazer de tolos todos aqueles que a<br />
favoreciam por ali. Um lamentável enga<strong>no</strong>, porque a via, e também<br />
a Zínia e Timóteo, como viajantes se escudando em sua fé.<br />
Numa estalagem, a meio do caminho, Cornélia decidiu que<br />
deveriam fazer uma <strong>para</strong>da mais longa <strong>para</strong> descansarem. Zínia e<br />
Timóteo mostraram-se felizes com aquela decisão. O lugar, embora<br />
muito simples, contava com boas alimentações e um estalajadeiro<br />
silencioso, que era auxiliado por um rapazinho de seus doze a<strong>no</strong>s:<br />
Matatias. Esse garoto desde o primeiro dia seguia de perto os passos<br />
de Cornélia. Servia as refeições com eficiência e demonstrava<br />
esperteza e inteligência, nas observações simples que, às vezes,<br />
soltava.<br />
139
Vinte e Sete<br />
A hospedaria parecia uma embarcação ancorada <strong>no</strong> meio de denso<br />
nevoeiro, quando a manhãzinha abriu os olhos so<strong>no</strong>lentos e sorriu<br />
<strong>para</strong> a continuidade da vida.<br />
Zínia, que era uma serviçal sempre atenta aos chamados de<br />
Cornélia, visto que havia levado sua existência enfronhada em lides<br />
domésticas, pouco havia adquirido das sutilezas que vão<br />
impregnando o mundo social dos homens.<br />
Suas armas principais eram o coração gentil e a temperança. Seus<br />
sonhos não ultrapassavam o desejo de servir, servir e mais servir.<br />
Entre ela e Cornélia vinha sendo ampliada uma aliança que poderia<br />
se manter infinitamente, se não surgissem armadilhas que a vida vai<br />
colocando diante de todos <strong>para</strong> serem desarticuladas.<br />
E a única que poderia deter os passos de Zínia era a ambição, mas<br />
uma ambição não moldada <strong>no</strong>s sonhos de grandeza e nem voltada<br />
<strong>para</strong> a <strong>aqui</strong>sição de bens materiais: a de construir seu próprio lar.<br />
Talvez nem se possa utilizar este termo - ambição - <strong>para</strong><br />
caracterizar o sentimento de uma criatura daquele feitio.<br />
Desde menina, Zínia vinha servindo gente de posse, famílias de<br />
classe média e até de lares onde crianças eram abandonadas pelas<br />
mães, devido à indiferença com que essas mulheres construíam suas<br />
trajetórias de mães ou esposas. Em nenhum desses lares em que<br />
Zínia havia servido, morava a serenidade do casal, ou dos próprios<br />
filhos dos quais ela cuidava.<br />
Talvez por isso, naquela ocasião Zínia vinha sonhando com um lar<br />
seu, que ela manteria na alegria e na temperança, naturais <strong>para</strong> seu<br />
coração bem formado. Se porventura brotasse uma chama em seu<br />
coração, diante de um rapaz modesto e gentil, Zínia seria capaz de<br />
140
mudar o seu desti<strong>no</strong> de acompanhante de Cornélia, <strong>para</strong> estabelecerse<br />
nem que fosse numa daquelas estalagenzinhas modestas ao longo<br />
daquela estrada. Era assim que ela tudo via.<br />
Não se sabe se seus pensamentos haviam sido escutados, ou se o<br />
desti<strong>no</strong> havia planejado <strong>para</strong> ela algo diferente: deixá-la entregue às<br />
próprias metas; também se uma armadilha foi pre<strong>para</strong>da <strong>para</strong> ela,<br />
vinda da parte de Flavius, que desejava conquistar a confiança da<br />
serva gentil.<br />
O fato é que, de repente, a situação transformou-se. Zínia começou a<br />
mostrar-se retraída, entristecida e cheia de mágoa <strong>no</strong> olhar. Só<br />
trocava poucas palavras com Cornélia, assim mesmo quando se via<br />
requisitada. A tristeza começava a visitá-la.<br />
Nessa manhã de nevoeiro denso, Cornélia levantou-se e vestiu-se<br />
sozinha. Zínia não foi a seu encontro. Saiu à procura da serva e não<br />
a encontrou. Aflita, logo entendeu que algo não obedecia ao<br />
esquema planejado por ela. Zínia jamais seria capaz de introduzir,<br />
por si mesma, pla<strong>no</strong>s diferentes em relação à sua senhora.<br />
Procurou por Matatias e viu <strong>no</strong>s olhos do garoto o receio de uma<br />
conversa mais clara. Ele olhava <strong>para</strong> os lados como se estivesse<br />
sendo vigiado. Para não comprometê-lo, Cornélia aguardou até o<br />
entardecer e avisou Timóteo sobre o sucedido.<br />
Quando a <strong>no</strong>ite ia adiantada, Timóteo viu Matatias seguindo por<br />
uma trilha <strong>no</strong> meio de vegetações espessas e seguiu-o. Passou <strong>para</strong><br />
Cornélia a informação e os dois resolveram descobrir, <strong>no</strong> dia<br />
seguinte, de quem era a casa procurada à <strong>no</strong>ite por Matatias.<br />
Era a moradia do pai de Matatias, que prestava serviços ao do<strong>no</strong> da<br />
estalagem. Ele não se recusou dar informações a Cornélia.<br />
- Esses senhores que a acompanham pecam pela ambição do<br />
dinheiro, minha senhora. Mas, entre eles, há dois que ambicionam<br />
um lar, como todos os mortais. Um deles procurou a sua serva e<br />
ofereceu-lhe um lar, se ela se dispusesse a lhe servir de informante<br />
sobre os passos que a senhora dá em sua vida.<br />
141
Cornélia olhou-o pasma e já ia começar seus questionamentos,<br />
quando ele prosseguiu:<br />
- Pode parecer inescrupuloso o gesto desse homem que se prestou a<br />
favorecer o amigo, por lealdade a ele. Talvez <strong>para</strong> ele seja um fato<br />
natural.<br />
- Espere, esclareça-me melhor este caso. Quem pediu a Zínia <strong>para</strong><br />
casar-se com ela?<br />
- O amigo do senhor Flavius, comandante desta unidade. Tudo não<br />
passou de um pla<strong>no</strong> desse comandante, eu lhe asseguro. E lhe digo<br />
mais. A sua serva Zínia era enamorada desse amigo dele. Contoume<br />
ela, antes de partir, que o senhor Flavius acreditava que a<br />
senhora era mancomunada com os homens que se devotam ao<br />
Nazare<strong>no</strong>, porque não podia crer que a senhora se havia afastado<br />
dessas questões só porque se mantinha em silêncio. Então, ele<br />
apenas aguardava um deslize de sua parte, porque desejava pegá-la<br />
em flagrante em qualquer reunião subterrânea, como aconteceu a<br />
sua amiga Lélia.<br />
O homem olhou <strong>para</strong> Cornélia e ela viu a dureza do aço ali<br />
estampada.<br />
Mas ele prosseguiu: - Esses roma<strong>no</strong>s não conseguem entender que,<br />
além de <strong>no</strong>ssa fé, somos criaturas destemidas; que não vão<br />
conseguir, por um simples berro deles, desmantelar toda uma rede já<br />
organizada por nós, desde a morte do <strong>no</strong>sso Messias.<br />
Aí a voz dele se adoçou.<br />
- Nós aguardávamos o momento em que a senhora ia deixar o seu<br />
mutismo, a fim de continuar a batalhar. Sua amiga Lélia continua<br />
presa e nós queremos que <strong>no</strong>s ajude a tirá-la da prisão.<br />
Cornélia olhava-o cada vez mais espantada, quando comentou:<br />
- Mas a prisão de Lélia, lá em Roma, é uma Fortaleza indevassável.<br />
Eu jamais sairia de lá, se visse uma pequenina oportunidade <strong>para</strong><br />
soltá-la, meu senhor.<br />
- Só em parte é uma verdade o que me fala.<br />
142
- Como?? - perguntou admirada.<br />
- Eu repito: só em parte, porque Lélia não se encontra mais em<br />
Roma e sim na Galiléia.<br />
- Impossível! Quem lhe disse isto?<br />
- Informantes de Nathanael.<br />
Só então Cornélia começou a avaliar a organização perfeita daqueles<br />
homens. Porque continuava calada, o homem voltou:<br />
- Nathanael está a par de todos os eventos. Na Galiléia, em Roma e<br />
outros territórios. Ele convidou-a a movimentar-se, quando lhe<br />
entregou a cópia daquele manuscrito.<br />
- Até isto o senhor conhece?<br />
- Por aí pode ver que nenhum de nós está dormindo. Estamos<br />
diariamente a postos, e acreditamos que, antes de conhecer o<br />
Santuário, a senhora vai poder <strong>no</strong>s ajudar a tirar Lélia das garras<br />
dos carcereiros.<br />
- Mas de que forma? - ela perguntou aflita. - Que posso fazer, se os<br />
roma<strong>no</strong>s não confiam em minha pessoa e muito me<strong>no</strong>s <strong>no</strong>s outros<br />
seguidores do Nazare<strong>no</strong>?<br />
- Ganhar a confiança desse comandante Flavius. Foi ele que<br />
conseguiu conquistar a confiança de Zínia, prometendo-lhe um lar<br />
ao lado desse oficial de quem Zínia está enamorada.<br />
- Cornélia nem acreditava <strong>no</strong> que ouvia. - Zínia enamorada? Mas...<br />
- Sim, sua serviçal não teve coragem de lhe dizer que o homem a<br />
quem havia entregado o coração pretende prejudicar a senhora. E<br />
este oficial a acompanha <strong>aqui</strong>, neste percurso que a senhora está<br />
fazendo. Zínia reencontrou-o. O acaso pregou uma peça nela - ele<br />
riu, tristonho.<br />
- Mas ela é amada por ele? - perguntou, penalizada. - Se é, deveria<br />
ter tido confiança em mim. Não precisava fugir, assim, enfrentando<br />
o perigo dessas estradas infestadas de salteadores. Por que ela não<br />
me contou? - ela se queixou.<br />
143
- Afligia-se pela situação. Enamorou-se, quando era ainda mocinha,<br />
mas o rapaz se transformou num homem ambicioso. E ela jamais<br />
pensou que conseguiria alcançá-lo, devido à posição em que ele<br />
está. Já estava determinada a colocar os seus sonhos num poço<br />
fundo, quando o reviu assim tão próximo dela. Foi então que se<br />
decidiu fugir.<br />
- Mas como Flavius sabia disto?<br />
- Isso não sei informar. Mas posso lhe garantir que Flavius tentou<br />
ganhar Zínia, a fim de vigiar os seus passos.<br />
- Quer dizer com isto que ela não vai aceitar o rapaz?<br />
- Qual o quê, minha senhora. Preferiu afastar-se. Mas meu filho<br />
Matatias tinha tanta afeição por ela, quanto pela senhora. Ele viu<br />
onde ela parou.<br />
- Diga-me onde ela está. Eu vou...<br />
- Isso não vou fazer. Só estou informando isso tudo, <strong>para</strong> que a<br />
senhora não se aflija por ela e nem atrase a sua viagem. Ela está<br />
bem am<strong>para</strong>da e eu não posso interferir na escolha dela.<br />
Timóteo, que ouvia tudo calado, comentou:<br />
- Não se preocupe, senhora. Agora já sabemos claramente que temos<br />
gente a <strong>no</strong>s vigiar, como temos também amigos a <strong>no</strong>s am<strong>para</strong>r.<br />
- É verdade, Timóteo. Mas diga-me, meu senhor - Cornélia ainda<br />
indagou - em qual estalagem que encontrarei à frente, e mais<br />
próxima da Galiléia, posso encontrar pessoas que me ajudem a<br />
estabelecer pla<strong>no</strong>s <strong>para</strong> ajudar Lélia?<br />
O homem sorriu e informou categórico:<br />
- Em nenhuma delas vai conseguir um bom resultado, se tiver este<br />
comandante em seu encalço. Ouça o que lhe aconselho ...<br />
144
Vinte e Oito<br />
Daí em diante, o percurso foi transposto sem incidentes dig<strong>no</strong>s de<br />
menção, até que uma <strong>no</strong>tícia alcançou Cornélia, enchendo-a de<br />
pesar: Lélia havia sido martirizada.<br />
A <strong>no</strong>tícia levou-a a reformular seus pla<strong>no</strong>s. A próxima <strong>para</strong>da<br />
deveria ser na estalagem Giramundo, mas era chegada a hora de<br />
escolher um outro caminho e de prosseguir somente com a<br />
companhia de Timóteo.<br />
Naquele mesmo dia, ela e o servo estenderam o mapa desenhado<br />
por Nathanael em mínimos detalhes. Só naquela ocasião, Cornélia<br />
observou que, dos pontos destacados por Nathanael como os<br />
favoráveis <strong>para</strong> as suas <strong>para</strong>das, apenas dois haviam sido mudados<br />
por Flavius. E isso logo após o afastamento de Zínia. Se Cornélia<br />
fosse uma criatura tão desconfiada quanto Flavius, saberia que ele<br />
os havia mudado, porque se havia interessado pelo afastamento da<br />
serviçal e andava à sua procura.<br />
Mas, preocupada com o roteiro que fariam sozinhos, Cornélia<br />
estudou apenas as marcas de Nathanael naquelas indicações. Ele<br />
havia apontado três opções de trajetórias, sendo que uma delas se<br />
realçava <strong>no</strong> mapa com uma grande estrela.<br />
Timóteo mostrava-se preocupado:<br />
- Gostaria de contar com outras pessoas <strong>para</strong> <strong>no</strong>s ajudarem, senhora.<br />
Mas nesta estalagem ninguém parece se importar com quem somos.<br />
Não creio que haja gente de Nathanael por perto.<br />
- Ainda assim, Timóteo, eu quero desaparecer já - ela disse<br />
determinada. - Flavius não vai imaginar que, cansados como<br />
estamos, <strong>no</strong>s disponhamos a seguir viagem tão depressa, muito<br />
me<strong>no</strong>s desacompanhados.<br />
145
- Então vou sugerir que a gente vá por <strong>aqui</strong> - ele apontou <strong>no</strong> mapa a<br />
trajetória que seguia <strong>para</strong> a estrela maior. Deve ser a preferida dele,<br />
senão indicaria como as outras, sem qualquer destaque.<br />
- Concordo. Vamos prosseguir amanhã de madrugada. Vá descansar<br />
um pouco e depois improvise roupas <strong>para</strong> mim.<br />
- Ele brincou: - E onde pensa que vou encontrar nestes ermos<br />
alguém que venda roupas?<br />
Cornélia encabulou-se, mas precisou esclarecer que não podia<br />
seguir com vestes femininas.<br />
O servo olhou-a boquiaberto, mas rápido concluiu:<br />
- Foi este o pla<strong>no</strong> aconselhado pelo pai de Matatias?<br />
- Sim, mas na hora pensei que era algo muito mirabolante. Depois,<br />
fui analisando os riscos de viajar, só com você, e com estes meus<br />
trajes - ela apontou a elegante veste. Não chegaríamos a dar nem<br />
cem passos desta propriedade e todos os oficiais de Flavius estariam<br />
em <strong>no</strong>sso calcanhar, não só ele - ela sorriu, mas desgostosa.<br />
- O que mais ele propôs? - perguntou, curioso.<br />
- Esconder a minha pele, escurecendo-a como a <strong>no</strong>ite, e adquirir<br />
nem que seja um burrinho <strong>para</strong> <strong>no</strong>s transportar, quando estivermos<br />
cansados. Você se encarregará disto. Mas leve dinheiro, que isto não<br />
<strong>no</strong>s falta. Só não se esqueça de que não podemos correr riscos.<br />
- Então precisamos de alimentos também.<br />
- Faça o que pode. Acha que conseguirá tudo bem rápido?<br />
Ele sorriu maroto e não respondeu; era o mesmo que confirmar.<br />
Dois dias depois já estavam bem longe dali. Se Flavius e seus<br />
homens estavam em seu encalço, não tiveram oportunidade de se<br />
certificar, porque não os viram. Quando alcançaram a estalagem,<br />
permaneceram estarrecidos diante dela. Uma tabuleta rústica<br />
apontava o <strong>no</strong>me A Grande Estrela. Nathanael a havia indicado<br />
através de um símbolo, e eles não se haviam dado conta.<br />
Aquela propriedade fora erguida num ermo, mas num local<br />
belíssimo, por um roma<strong>no</strong>. Não muito distante, uma fileira de<br />
146
montanhas e as águas misteriosas do Mar Morto. A construção<br />
seguia os moldes desse povo que mantinha domínio por ali. Seu<br />
proprietário a arrendava <strong>para</strong> um zelote, que via Roma como<br />
inimiga dos judeus. O <strong>no</strong>me dele era Numério. Ninguém sabia se se<br />
tratava de uma alcunha utilizada por ele <strong>para</strong> a própria<br />
caracterização.<br />
Ele dizia entre risos e brincadeiras que era bastante dedicado a<br />
cifras. Gostava muito de dinheiro e também de calcular, em<br />
números, o quanto havia conseguido realizar em sua vida, na<br />
questão de atos. Beirava os quarenta a<strong>no</strong>s.<br />
Numério parecia estar à espera dos dois. Colocou-os numa parte da<br />
hospedaria reservada <strong>para</strong> quem desejasse se manter em<br />
privacidade. Ali, só um dos quartos estava ocupado - disse ele entre<br />
risos.<br />
Cornélia não entendeu como ele a havia reconhecido, a não ser<br />
quando se viu diante de Nathanael, olhando-a com intensa alegria.<br />
Era ele o ocupante do quarto.<br />
Agora tudo estava em paz. Estava completo o planejamento de<br />
Nathanael e não apenas o dela, como vinha imaginando.<br />
Naquele mesmo dia, reuniram-se <strong>para</strong> confabular, após a simples<br />
refeição pre<strong>para</strong>da pelo próprio do<strong>no</strong> da estalagem, numa saleta<br />
reservada e aconchegante, dentro da simplicidade que o lugar<br />
exigia.<br />
Nathanael lhes contou que Numério era um dos mais ferozes<br />
seguidores do Nazare<strong>no</strong> e conhecido de alguns essênios também.<br />
Passou, então, a se referir, resumidamente, sobre aquele grupo com<br />
o qual Cornélia ia conviver por alguns tempos.<br />
- Eu tinha cinco a<strong>no</strong>s, quando comecei a visitar o Santuário de<br />
Qumran, levado por meu pai.<br />
- Ahn, seu pai era essênio?<br />
- Sim. Mas como havia optado por construir uma vida familiar,<br />
passou a integrar uma comunidade fora daqueles muros. O<br />
147
Santuário era, até então, freqüentado por homens-sacerdotes.<br />
Homens que se dedicavam a estudos e a escritas de seus ancestrais.<br />
Timóteo perguntou:<br />
- O senhor podia ir sempre até eles?<br />
- Podia, mas havia algumas restrições: dias determinados <strong>para</strong> os<br />
visitantes que não moravam na comunidade. Como o meu avô<br />
também havia vivido entre eles - ele era um servidor - não houve<br />
restrições a meu pai.<br />
- Era algo tão severo assim? Afinal... se vocês eram essênios... - quis<br />
saber Cornélia.<br />
- Não posso chamar isto de severidade, Cornélia. Pense, se você<br />
quer pôr ordem numa casa, precisa saber analisar bem quem deve<br />
viver nela ou não. Esses homens eram muito estudiosos e tinham<br />
como meta a pre<strong>para</strong>ção de um mundo melhor. Estudavam as<br />
escrituras e possuíam dons que muita gente até chamaria de<br />
"bruxaria". Mas não eram nem bruxos e nem magos. Simplesmente<br />
eram dotados de dons que procuravam cultivar seriamente.<br />
- Posso saber que dons, Nathanael?<br />
- Você já pôde se inteirar de alguns deles, quando leu o manuscrito<br />
de Yohanan.<br />
Cornélia refletiu por uns momentos e depois comentou:<br />
- Ahn, está se referindo ao fato, por exemplo, de ter ele previsto a<br />
própria morte? Se é isto, vou gostar muito de conversar com essa<br />
gente que pode ver "o que vai acontecer", porque também já tive<br />
oportunidade de passar por isto algumas vezes.<br />
- Mas você não vai conseguir respostas de nenhum deles sobre isto,<br />
minha amiga. Constituem um grupo muito reservado e não se<br />
propõem pre<strong>para</strong>r gente que não seja da comunidade.<br />
Cornélia pensou e depois retrucou:<br />
- Mesmo assim. Se eu lhes contar que pude antecipar - por meio de<br />
uma visão - a crucifixão de Joshua, talvez eles entendam que isto<br />
não é privilégio da "raça masculina" - ela disse tristonha -, nem dos<br />
148
hebreus, dos essênios, dos demais judeus ou dos que agora são<br />
chamados cristãos, porque seguem os falares de Joshua.<br />
Nathanael sorriu. - Sabe de uma coisa? Até que vou gostar de ver<br />
você contestar algo que digam.<br />
- Não sou contestadora, Nathanael. Só não consigo entender por que<br />
colocam a mulher em segundo pla<strong>no</strong>, se delas depende o mundo.<br />
Não são elas que dão à luz?<br />
Ele tor<strong>no</strong>u a rir. - Nós, os essênios, só estamos interessados na<br />
progressão e feitura do mundo, <strong>no</strong> que se refere a raças, sim, não <strong>no</strong><br />
que se refere a mulheres. Mas não quer dizer que não as amemos ou<br />
respeitemos.<br />
- Então vamos fazer o seguinte: passe-me o que já conhece, isto é, o<br />
que pensa que eu, como mulher, já posso saber - ela o espicaçou - e<br />
depois me apresente a eles.<br />
- Combinado. Mas vou me referir apenas ao que está ligado a<br />
Joshua, está bem assim? E prosseguiu: - Pelas dificuldades que<br />
surgiriam, <strong>para</strong> plantar na Terra as obras e os dizeres deste Anjo<br />
Magnífico <strong>no</strong>meado Joshua por alguns, Jesus, por outros, e Mestre,<br />
pelos essênios, nasceu por <strong>aqui</strong>, antes Dele e <strong>no</strong> tempo Dele, gente<br />
que estaria mais ou me<strong>no</strong>s pre<strong>para</strong>da <strong>para</strong> ajudar a lançar este<br />
alicerce <strong>no</strong> solo. Eu digo mais ou me<strong>no</strong>s, porque se não eram anjos<br />
nem santos - como Joshua -, pelo me<strong>no</strong>s eram criaturas capazes do<br />
esforço de tentar entender e aceitar pensares diferentes dos seus;<br />
eram criaturas conscientes de que Fé tem morada <strong>no</strong> coração e não<br />
<strong>no</strong> cérebro.<br />
A Fé era a palavra mágica que iria abrir a porta <strong>para</strong> todos esses<br />
homens e mulheres que seriam amoráveis a Joshua, e que já a<br />
haviam adquirido em outros meios, em outras existências, com<br />
outros tipos de aprendizados; gente também capaz de renunciar.<br />
Essas criaturas eram programadoras do futuro do cristianismo. Não<br />
se esperava isso só delas, e, sim, da multiplicidade delas, <strong>para</strong> um<br />
resultado que foi programado <strong>no</strong> Rei<strong>no</strong> Maior.<br />
149
Joshua pertencia a uma Falange Abençoada de Anjos, que haviam<br />
percorrido a Terra em tempos imemoriais. Digo imemoriais, porque<br />
os arquivos terre<strong>no</strong>s que poderiam entregar os traços dessas<br />
passagens por <strong>aqui</strong> já ficou perdido.<br />
Acontece que, se as calamidades do solo ocultaram esses arquivos,<br />
ainda assim, existe algo que se chama "memória" do Homem, e que<br />
pode reproduzir infinitamente o que ele já conheceu. Nem<br />
terremotos, nem maremotos, nem vulcões ou qualquer tipo de Furor<br />
da Terra destrói o que está escrito <strong>no</strong> "arquivo da alma dos homens".<br />
Muitas dessas criaturas, donas desta capacidade de rememorar<br />
eventos já findos, com o passar dos tempos - e com a evolução<br />
<strong>no</strong>rmal - passaram a viver em Pla<strong>no</strong>s mais elevados. E outras<br />
achavam que nada de <strong>no</strong>tável seria voltar a falar de gente do<br />
passado, de terras submersas, de mundos já findos.<br />
- Este é um outro dom - disse Timóteo, que pretendia falar consigo<br />
mesmo e acabou exteriorizando em voz alta o seu pensamento.<br />
Nathanael fez um ace<strong>no</strong> de concordância e continuou: - Entretanto<br />
houve uma exceção, uma exceção pequenina, mas de gente <strong>no</strong>tável,<br />
que conseguia relembrar e fazer renascer a luz de um passado que os<br />
marcou.<br />
Este grupo era exatamente o dos essênios e, nele, Joshua se integrou<br />
por uns tempos. Na comunidade dos essênios, Ele recebeu as<br />
maiores bênçãos de sua vida por <strong>aqui</strong>. E foi ali que Ele e Yohanan<br />
se encontraram, ou melhor, se reencontraram.<br />
Mas... - ele sorriu brejeiramente - a <strong>no</strong>ite já vai avançada, meus<br />
amigos. Se não estão cansados, eu estou. Tratemos de buscar os<br />
<strong>no</strong>ssos aposentos. Temos muito tempo ainda <strong>para</strong> conversar.<br />
150
Vinte e Nove<br />
Cornélia era uma mulher de sentimentos exacerbados. A megera<br />
foice que desbasta sonhos e alegrias nascentes havia arrancado, de<br />
um golpe só, tudo o que de mais belo tinha conquistado nessa vida,<br />
ao afastar-se de Joshua.<br />
Um rio de lágrimas e tristezas havia inundado seu coração, desde o<br />
momento em que Aquele Anjo expirara na cruz. Tudo <strong>para</strong> ela, até<br />
então, resultara em cinzas e aflições.<br />
Duros meses e a<strong>no</strong>s aqueles em que se obrigava a se reerguer e<br />
retomar a vida, a fim de alcançar algo que um dia Joshua lhe<br />
dissera: "A Alvorada já vem, Cornélia, não percebe isto? São os<br />
albores que se manifestam <strong>no</strong> sorriso Desse Deus Precioso, que<br />
distribui o néctar da prosperidade <strong>para</strong> todos os mortais. Os rios se<br />
encherão de Belezas inesperadas <strong>para</strong> os Homens, e a Luz Divina<br />
tocará cada um de Seus Filhos, mesmo diante das provas que<br />
precisarão enfrentar. A humanidade toda será um imenso<br />
caleidoscópio a gerar cores e imagens, que provocarão maravilhas<br />
nas estruturas que Ele pre<strong>para</strong> <strong>para</strong> o mundo.<br />
Não chore, criança, pois se a vida agora parece penetrar num rei<strong>no</strong><br />
de sombras, apenas <strong>para</strong> os cegos a sombra se mostra. Muitos<br />
cordeirinhos desse rebanho de Meu Pai já se vestem nessas Luzes.<br />
Entenda que sorrisos de aflição podem significar a glória daqueles<br />
que entrarão numa Era sem distorções, quando o Deus Meni<strong>no</strong><br />
estiver à frente dessas hostes que O amaram por amor do meu<br />
<strong>no</strong>me".<br />
Cornélia lembrava que, ao ouvir aquelas palavras, um turbilhão a<br />
havia atingido, sem que tivesse conseguido entender, perfeitamente<br />
151
e na totalidade, o sentido daqueles ensinamentos. E que dali em<br />
diante uma força extraordinária havia acompanhado seus passos.<br />
Para ela, significava que havia conseguido ingressar naquele Rei<strong>no</strong><br />
anunciado por Joshua, só que por aqueles instantes, apenas.<br />
Agora, ali, a caminho da comunidade dos essênios, a esperança mais<br />
uma vez a aquecia.<br />
Não se dirigiu ao leito. Debruçou-se na janela, <strong>para</strong> observar a<br />
escuridão e o céu estrelado. A lua não se mostrava, mas uma<br />
claridade prateada tingia todo o espaço e as flores espargiam<br />
perfumes, próximas de sua janela.<br />
Tão serena se encontrava, que começou a vislumbrar, naquele<br />
instante, uma centena de cavernas, cavadas em rochas, e criaturas<br />
simples, morando nelas. Tudo lembrava um imenso colmeal.<br />
Os homens utilizavam ferramentas rudes e a vida <strong>para</strong> eles se<br />
resumia em abençoar aquelas rochas escarpadas, onde iam abrindo<br />
os lares que lhes serviriam de abrigo contra o forte vento, o frio e a<br />
chuva.<br />
Eram adoradores de um Deus único. Não lhes faltavam animais <strong>para</strong><br />
transportá-los até regiões longínquas, ou <strong>para</strong> retornarem, se<br />
quisessem, <strong>para</strong> onde tinham vindo e onde uma parte desse grupo<br />
havia permanecido, a fim de ser remanejada, quando estes primeiros<br />
viajantes estivessem instalados.<br />
Cornélia assistia ao transcorrer do tempo: a chegada do grupo<br />
remanescente, ocupando o outro lado da grande rocha, já toda<br />
escavada como se fosse um e<strong>no</strong>rme queijo.<br />
Havia presteza e disciplina entre os dois grupos, que se pre<strong>para</strong>vam<br />
<strong>para</strong> construir, ali, um grande Santuário.<br />
Sua visão continuava e abarcou o todo do espaço, já tempos depois.<br />
Haviam erguido muros de pedras, salas, saletas, oficinas, e aquela<br />
civilização não lhe pareceu mais nem um pouco simplória ou<br />
comovente.<br />
152
Eram altos, fortes, ágeis <strong>no</strong> andar, de testas amplas, cabelos escuros,<br />
em alguns, e avermelhados, em outros, como se aquela aparência<br />
resultasse da mescla entre os dois grupos.<br />
Eles se aliavam bem, na disciplina e <strong>no</strong> bom falar. Mostravam-se<br />
amantes de uma vida metódica, do<strong>no</strong>s de boa cultura,<br />
exemplificando isso em oficinas, onde se dedicavam a escritas<br />
cifradas, difíceis de serem interpretadas <strong>para</strong> quem não fizesse seus<br />
estudos entre eles. Para Cornélia, assemelhava-se à escrita copta dos<br />
Egípcios. Mas Cornélia sabia que aquelas criaturas estudavam a lei<br />
Mosaica. Eram, portanto, remanescentes do grupo de Moisés.<br />
Uma parte deles, entretanto, não se ligava a divindades de espécie<br />
alguma. Amavam a Natureza, que era representada <strong>para</strong> eles com<br />
um Disco de Ouro - simbolismo do próprio Sol.<br />
Mesmo com essas diferenças entre eles, respeitavam-se e<br />
participavam, juntos, dos festejos que se realizavam de um lado e do<br />
outro da montanha.<br />
Mais um espaço de tempo ocorreu. Irmanaram-se na carne e <strong>no</strong><br />
sangue, isto é, casaram-se e constituíram famílias, formando uma<br />
raça que seria a Mãe daquele território: os hebreus.<br />
O tempo continuou voando. A visão de Cornélia parecia estagnar,<br />
quando surgiu diante de seus olhos um ancião venerável, túnica<br />
branca e longa, cabelos também longos e brancos, a dizer veemente:<br />
" Não!! Absolutamente não!! Nossa meta é proteger o<br />
desenvolvimento dessa humanidade que prefere caminhar à beira do<br />
abismo. Traga sua tribo <strong>aqui</strong>, e venham acompanhados de suas<br />
famílias. D<strong>aqui</strong> em diante, quem quiser permanecer co<strong>no</strong>sco deve<br />
assinar um termo de obrigação moral. E serão repudiados <strong>no</strong> dia em<br />
que desobedecerem <strong>no</strong>ssas leis."<br />
O homem que <strong>aqui</strong>lo ouviu saiu em busca de sua tribo e depois<br />
voltou <strong>para</strong> junto do ancião. Este, alcançou com o olhar a centena de<br />
criaturas diante dele, que aguardava a Ordenação.<br />
A voz possante do ancião afirmou: "Nós somos o povo essênio.<br />
Nossa vida doravante obedecerá as seguintes regras. Ele as<br />
enumerou e depois acrescentou: Os que optarem por uma vida de<br />
153
celibato permanecerão co<strong>no</strong>sco. Vamos organizar os <strong>no</strong>ssos<br />
manuscritos, a partir do que já temos em mãos. Não viemos de tão<br />
longe <strong>para</strong> <strong>no</strong>s dispersarmos nas tolices das dissenções. Somos um<br />
grupo coeso e podemos brilhar, colaborando e impondo as leis de<br />
Moisés."<br />
Mas, senhor, disse um homem de manto alvo e de cabelos<br />
cacheados e ruivos: "Eu vos amo e também toda a minha família.<br />
Tenho os mesmos ideais, sou estudioso, amigo, companheiro e não<br />
dissoluto. Por que devo me submeter, lá fora, a leis que não marcam<br />
o meu espírito? Por que devo me imolar com minha família <strong>para</strong><br />
fora desses muros que tanto venero? Vejo isto como uma imolação,<br />
meu senhor."<br />
O ancião continuou, incisivo: " Porque <strong>aqui</strong> permanecerão apenas os<br />
que não questionarem as organizações familiares. Estaremos<br />
voltados somente <strong>para</strong> estudos e leis. Mas você não deve entender<br />
isso como quebra de <strong>no</strong>ssa irmandade. Sempre seremos irmãos de<br />
sangue, mesmo que não habitemos <strong>no</strong> mesmo território".<br />
E ele acrescentou em voz troante: " Vão!! Dispersem-se com suas<br />
famílias <strong>para</strong> os campos, pelos ermos, pelo deserto. Será bom se<br />
nós, os essênios, contribuirmos <strong>para</strong> o progresso do mundo em<br />
outras fronteiras também. Vão!! Se este núcleo vai se manter como<br />
um Santuário, isso não significa que <strong>no</strong>ssas portas se fecharão <strong>para</strong><br />
vocês. Mas não corrompam <strong>no</strong>ssas leis. No caso de luto ou dos dias<br />
piedosos, reúnam-se co<strong>no</strong>sco. Serão sempre abençoados pela fé que<br />
<strong>no</strong>s une e pelo desprezo que entregamos aos que se comprazem com<br />
a imoralidade."<br />
O ancião diluiu-se à visão de Cornélia, como se a mão misteriosa<br />
que a houvesse permitido visualizar aquelas cenas puxasse o véu,<br />
entregando-a, de <strong>no</strong>vo, <strong>no</strong> mundo seu, e não naquele de um passado<br />
desconhecido <strong>para</strong> ela.<br />
Sabia que não havia vivido entre eles, que nunca havia morrido<br />
entre eles, e que não possuía qualquer consangüinidade com eles.<br />
O que significaria tudo <strong>aqui</strong>lo?<br />
154
Trinta<br />
Timóteo se havia dirigido <strong>para</strong> o quarto. Deitou-se, feliz, num leito<br />
forrado com palhas, e que o estalajadeiro tivera o cuidado de cobrir<br />
com um longo manto felpudo, costurado em lãs de carneiro.<br />
Num dos cantos, uma tocha acesa entregava lumi<strong>no</strong>sidade tênue,<br />
acrescentando tons dourados a uma bilha de água fresca. No outro,<br />
um tripé, com patas de leão, servia de suporte, <strong>no</strong> centro, a incensos<br />
que evolavam fumaça azulada e odorosa.<br />
Num suspiro de prazer adormeceu, mas com um desejo intenso de<br />
perambular por aquele terre<strong>no</strong> alcançado com dificuldade e<br />
esforços.<br />
Viu-se atravessando o corredor que distribuía os quartos, passando<br />
pelo de Cornélia e pelo de Nathanael, escolhendo a direção de um<br />
estábulo.<br />
Ali havia uma meia dúzia de cabras que forneciam o leite <strong>para</strong> os<br />
hóspedes, alguns jumentinhos puxadores de carroças, sendo que<br />
duas delas, na proximidade, estavam cobertas <strong>para</strong> que nem orvalho<br />
e chuvas lhes diminuíssem a durabilidade ou lhes prejudicassem a<br />
aparência.<br />
Caminhou mais um pouco, atravessando um pomar e horta, e depois<br />
uma trilha calçada de pedras socadas, relembrando seixos de beira<br />
de mar. Era ladeada de vegetação a<strong>para</strong>da até um determinado<br />
ponto. Dali em diante, o emaranhado da vegetação dificultava a<br />
caminhada de quem por ali se aventurasse. Mas Timóteo, bastante<br />
atento, com a <strong>no</strong>ite clara agora abençoada pela exposição da lua<br />
cheia, avistou uma quina de um barracão coberto de palha. Afastou<br />
os galhos de um espesso arbusto e entrou <strong>no</strong> barracão.<br />
155
Uma bancada de tábuas rústicas continha ferramentas, espátulas,<br />
potes de tinturas extraídas de plantas, tecidos de linho, couros em<br />
estampas gravadas e coloridas, pincéis de penas de aves e boa<br />
quantidade de ornamentos em pedrarias.<br />
Só naquele instante, Timóteo encabulou-se, porque havia penetrado<br />
num local que pertencia exclusivamente ao do<strong>no</strong> da hospedaria, e<br />
que certamente fazia parte de seus lazeres e de sua vida mais íntima.<br />
Já ia sair, quando uma pequena arca toda trabalhada em filetes de<br />
ouro o fasci<strong>no</strong>u.<br />
"Que riqueza de arte", pensou. "Será que Numério é um ladrão?"<br />
Mas assim como a rapidez daquele pensamento maledicente o<br />
atingiu, logo outro se interpôs: "Por que precisaria ser um? Por que<br />
não pode ter sido presente de um mercador? Ou de alguma mulher?"<br />
Aí sorriu brejeiro. "Sim, de uma dama e bem rica. Ele pode muito<br />
bem ser admirado por uma, afinal de contas... nem sei se Numério é<br />
casado.<br />
Depois de uma série de indagações mentais sobre a vida daquele<br />
homem, descobriu-se interessado em conhecê-lo melhor. Ele parecia<br />
ter amizade com gente de posse. Timóteo não acreditava<br />
absolutamente que um homem de aparência tão rude pudesse, ele<br />
próprio, ter criado aquela obra magnífica.<br />
Foi então que ouviu um fru-fru leve de tecido fi<strong>no</strong> aproximar-se e,<br />
em seguida, deparou-se com a mais bela visão que já tinha tido em<br />
sua vida. A jovem esguia e bela, de aproximadamente dezessete<br />
a<strong>no</strong>s, trajava elegante e longa veste de tecido avermelhado, que<br />
parecia esvoaçar a seu redor, <strong>no</strong>s movimentos delicados. O rosto era<br />
fi<strong>no</strong> e os cabelos com nuance semelhante ao do vestido. Parecia-lhe<br />
estar diante de uma ninfa, como as que surgem das sombras da <strong>no</strong>ite<br />
e deixam suave perfume por onde transitam; depois se desfazem<br />
como se desfazem sonhos e ilusões.<br />
Mas ela não se desfez e o olhar era cheio de cordialidade. Só então,<br />
aquela criatura quase etérea se comunicou com ele sem mover os<br />
lábios rosados e bem delineados. Disse-lhe através do pensamento:<br />
"Gostou de minha caixinha? Fui eu que a enfeitei <strong>para</strong> ele". A jovem<br />
156
sorriu e movimentou os longos cabelos, que lhe lembravam chamas<br />
mescladas de ouro e rubi.<br />
Timóteo nem pôde responder, porque diante dele logo surgiu uma<br />
figura diamantina: um homem. Ele lhe lembrava as <strong>no</strong>ites<br />
enluaradas, brancas e azuis, porque a roupa era um composto dos<br />
dois tons. Com sorriso gentil, comentou: " Timóteo, estou certo de<br />
que vai ser feliz. Cuide de sua ama. Nós o aguardaremos lá <strong>no</strong><br />
Santuário".<br />
Tudo se processou tão rápido, que num piscar d´olhos nada mais<br />
viu. Apenas a <strong>no</strong>ite se acendia, porque os primeiros claros do sol já<br />
se projetavam de <strong>no</strong>vo pela Terra e começavam a alegrar as aves,<br />
que se punham a marcar suas presenças em seus ninhos.<br />
Timóteo voltou os passos, dirigiu-se <strong>para</strong> seu quarto e completou<br />
aquela estranha <strong>no</strong>ite com um assombro bem maior: viu o seu corpo<br />
físico estendido <strong>no</strong> leito, num ressonar tranqüilo.<br />
Não desconhecia as possibilidades que têm as almas de se<br />
locomoverem <strong>para</strong> onde queiram, <strong>no</strong> descanso do so<strong>no</strong>. Sua visita<br />
ao barracão de Numério, portanto, não tinha sido intencional. Sua<br />
alma tinha sido atraída <strong>para</strong> aquele local.<br />
Permaneceu alguns minutos a observar o invólucro físico que lhe<br />
permitia o aprendizado da vida pela Terra e, sem qualquer sombra<br />
de medo, <strong>no</strong>tou que de seu corpo saía um cordão prateado e<br />
brilhante, que se ligava a ele. Pensou contente: "Que bom que este<br />
fio <strong>no</strong>s protege e <strong>no</strong>s faz voltar. Para ver de <strong>no</strong>vo aquela belíssima<br />
criatura, eu seria capaz de fugir muitas vezes ou até desejar<br />
permanecer <strong>no</strong> espaço feliz que a ela pertence". Depois concluiu:<br />
"Pensei inúmeras vezes que nasci <strong>para</strong> ser escravo, mas agora<br />
descubro que jamais o fui. Não tenho grilhões".<br />
Não soube como foi que se acoplou de <strong>no</strong>vo ao corpo, mas dormiu o<br />
so<strong>no</strong> dos justos.<br />
Trinta e Um<br />
157
A Grande Estrela era uma estalagem <strong>no</strong>rmalmente procurada por<br />
amigos de Numério, que faziam viagens de Roma <strong>para</strong> a Galiléia ou<br />
Judéia. E tudo havia sido bem arquitetado por eles, com idéia de<br />
estabelecer ali um mero refúgio, pois não desconheciam que Roma<br />
já ia começar a agonizar.<br />
Ninguém era cego <strong>para</strong> deixar de perceber que os governantes de<br />
Roma iriam acabar sofrendo uma derrocada bem rude, devido a atos<br />
brutais e insensatos que vinham praticando, sem qualquer<br />
preocupação de se ocultar. Mas, antes disso, muita gente ia receber<br />
açoites indevidos.<br />
É claro que o local tinha recebido o "alvará" dos todo-poderosos<br />
roma<strong>no</strong>s, <strong>para</strong> ser construído com aquela estrutura sólida e<br />
acomodações razoáveis. E fora um parente afastado de Orígenes que<br />
a havia erguido. Depois de aprovada pelo próprio Imperador, o<br />
construtor a havia entregado <strong>para</strong> Numério tomar conta, pois era<br />
homem responsável.<br />
É evidente também que muitas indagações e investigações haviam<br />
sido feitas em tor<strong>no</strong> de Numério, visto que era judeu e pertencia ao<br />
grupo dos zelotes. Mas como fosse apontado como um judeu<br />
simplório e bom cumpridor de sua vida pessoal, tudo se concluiu<br />
conforme desejavam.<br />
Este arranjo também tinha sofrido interferência de um judeu de<br />
<strong>no</strong>me Abdias.<br />
Abdias pertencia à seita dos essênios, era um ancião respeitadíssimo<br />
<strong>no</strong> Santuário de Qumran, não só por sua integridade como também<br />
pelas inúmeras previsões que ia fazendo. Na opinião de Abdias, o<br />
Santuário deveria ter permanecido com a estrutura anterior, isto é,<br />
sem o afastamento dos não-celibatários, porque ele temia o<br />
despreparo de alguns <strong>no</strong>s ritos que precisavam ter completado. E, de<br />
certa forma, não se enganara. Simão, o Mago, por exemplo, tinha<br />
sido atingido por extrema vaidade, ao se ver dotado do que ele<br />
158
considerava "poderes". Ele havia feito estudos junto com os<br />
essênios.<br />
Segundo Abdias, a construção de uma estalagem naquele local<br />
favoreceria os essênios em suas viagens <strong>para</strong> reencontro de amigos,<br />
quando visitavam as outras comunidades; também <strong>para</strong> descanso,<br />
ou nas ocasiões em que precisassem se dirigir aos festivais<br />
religiosos realizados em Qumran.<br />
Isto tudo foi esclarecido <strong>para</strong> Cornélia e Timóteo, <strong>no</strong> momento em<br />
que se reuniram com Nathanael e aproveitaram <strong>para</strong> contar o que<br />
lhes havia sucedido na <strong>no</strong>ite anterior.<br />
Nathanael escutou-os atentamente, refletiu, e assim classificou os<br />
fenôme<strong>no</strong>s:<br />
- Certamente vocês já estão sofrendo ligações com o pessoal que<br />
vão encontrar. Os planejamentos dos homens não são perfeitos<br />
como os do céu, evidentemente, mas nenhum de nós - que transita<br />
pela Terra - ig<strong>no</strong>ra que ninguém se encontra sozinho. Possuímos,<br />
<strong>no</strong>s pla<strong>no</strong>s do espaço invisível, pessoas que <strong>no</strong>s acompanham e <strong>no</strong>s<br />
intuem, <strong>para</strong> <strong>no</strong>s encaminhar aos rumos da perfeição. E estes seres<br />
sabem quais tendências apresentamos <strong>para</strong> os fatos que muitas<br />
pessoas chamam de dons e outras de poderes. Eu, particularmente,<br />
classifico isto como dádivas divinas. E, por serem divinas, não são<br />
negadas a ninguém.<br />
- Mas eu nunca participei de qualquer ritual - disse Timóteo,<br />
desconfiado - e também nunca me interessei por isto. A minha ama,<br />
sim, principalmente por ter acompanhado, por uns tempos, alguns<br />
amigos de Joshua e o próprio Joshua.. Para ela, eu acho que tudo<br />
isto é natural. Por que eu teria recebido aquela "visita" de seres tão<br />
maravilhosos? Para mim, eram Anjos do espaço.<br />
- Pois é isso, Timóteo, Anjos do espaço. Seres dotados de bondade e<br />
de sabedoria. Criaturas que já estão bem adiante de nós <strong>no</strong>s ensi<strong>no</strong>s<br />
do Nosso Pai. São elas que <strong>no</strong>s defendem, que <strong>no</strong>s intuem e que <strong>no</strong>s<br />
acompanham de perto, sem que saibamos. Posso até lhe garantir<br />
uma coisa: você só os viu, porque eles permitiram. Estes seres bemaventurados<br />
são dotados de luz e até preferem permanecer ocultos<br />
159
<strong>para</strong> nós, devido a <strong>no</strong>ssa ig<strong>no</strong>rância ou incompreensão. Mas vocês<br />
estão se pre<strong>para</strong>ndo <strong>para</strong> ir ao encontro de criaturas que<br />
partici<strong>para</strong>m de uma boa etapa nesses estudos do "oculto". Portanto,<br />
serão acompanhados até lá, <strong>para</strong> que tirem proveito esplêndido<br />
sobre muita coisa que ainda desconhecem. É assim que se processa<br />
a evolução dos seres - sigilosamente da parte dos seres invisíveis - e<br />
manifesta, de <strong>no</strong>ssa parte, se quisermos. Também temos o direito de<br />
<strong>no</strong>s calar, se preferirmos.<br />
- O senhor me permite confessar que aquela senhorita que vi era<br />
uma formosura? Nunca vi uma jovem tão bela assim.<br />
Nathanael riu com gosto e garantiu: - Pois eu lhe afirmo que<br />
gostaria de estar em seu lugar, meu bom rapaz. Mas foi você o<br />
premiado.<br />
Timóteo passou a mão pelos cabelos carapinhas e brincou:<br />
- Tomara que ela tenha encontrado em mim algo valoroso, porque<br />
de aparência...<br />
Cornélia provocou-o:<br />
- Quero crer que de hoje em diante você vai se interessar mais por ...<br />
esses dons...<br />
Encabulado, ele retrucou: - Vou mesmo, principalmente porque me<br />
pediram <strong>para</strong> cuidar bem da senhora. Não acho isto uma tarefa tão<br />
difícil.<br />
- Você já adquiriu um bem precioso, Timóteo, a generosidade, o<br />
dom de oferecer. É por isto que ganhou um belo prêmio.<br />
- Belo mesmo - ele disse risonho. - E ela disse que aquela arca era<br />
um presente dela <strong>para</strong> o Numério. Ele deve ter conhecido aquela<br />
senhorita.<br />
- Também não sei se você sabe que os Anjos conseguem manusear<br />
os elementos da natureza <strong>para</strong> criar objetos, Timóteo - esclareceu<br />
Nathanael. - Numa outra hora você pode voltar ao barracão, <strong>para</strong> ver<br />
se a caixa permanece lá. Caso contrário, o que você viu foi uma<br />
criação do espaço, e não algo material, <strong>aqui</strong> da Terra, entende?<br />
160
- Ahn! até que pode ser... vou querer tirar isto à prova. E... - ele<br />
disse titubeante - ... será que ela vai aparecer <strong>para</strong> mim de <strong>no</strong>vo?<br />
- Uma coisa você tem que aprender, Timóteo - saber esperar, porque<br />
a escolha é deles. Nossa parte é estar interessado e atento. Se<br />
estivermos distraídos, perderemos boas oportunidades como essas –<br />
assegurou Nathanael. - Bem, agora vamos fazer <strong>no</strong>ssos pla<strong>no</strong>s,<br />
Cornélia. Venham, vamos <strong>no</strong>s sentar em baixo daquela árvore.<br />
Numério hoje não está por <strong>aqui</strong>. Foi resolver algo <strong>para</strong> mim. Estou<br />
pretendendo sair d<strong>aqui</strong> amanhã ou depois. Vai depender do que ele<br />
conseguir.<br />
161
Trinta e Dois<br />
Entrava o inver<strong>no</strong> e os campos se cobriam de cores cambiantes. Até<br />
o azul do céu se transmutou. As manhãs eram pálidas e frias, com<br />
um vento cortante que zunia <strong>no</strong>s cumes dos morros, inclinava as<br />
vegetações, traduzindo uma linguagem diferente <strong>para</strong> cada cantinho<br />
da Natureza. As aves migravam em busca do calor.<br />
Cornélia encontrava-se na companhia de Débora e seus familiares.<br />
Nesses dias frios, a família simples se reunia sempre em tor<strong>no</strong> de<br />
braseiros, quando discussões fervorosas sobre o Rei<strong>no</strong> de Joshua<br />
sofriam diversas interpretações.<br />
Nathanael não se encontrava com eles. Ele havia seguido <strong>para</strong><br />
Qumran, pois Abdias se encontrava enfermo e bastante<br />
enfraquecido. Estava sendo estudada a possibilidade de ser<br />
substituído em suas funções por um essênio de corpo mais jovem,<br />
mas de disposição semelhante à dele.<br />
Com estas mudanças, a ida de Cornélia <strong>para</strong> passar uns tempos entre<br />
as paredes de um Santuário tinha sido adiada. Precisava aguardar as<br />
decisões, pre<strong>para</strong>r-se incansavelmente, a fim de tirar melhor<br />
proveito do que lhe fosse ofertado naquele meio.<br />
O pai de Débora era dos essênios que se haviam afastado do<br />
Santuário-Matriz, quando se havia feito a divisão entre celibatários<br />
ou não. Ele forneceu muitos esclarecimentos <strong>para</strong> Cornélia, ao ouvir<br />
dela a narrativa da visão sobre as inúmeras cavernas instaladas nas<br />
rochas. Contou-lhe que o pai dele sempre louvara perante os filhos a<br />
labuta empreendida por muitos, <strong>para</strong> que a vida sagrada desses<br />
homens não fosse conspurcada pelas ilusões terrenas.<br />
Era realmente uma imensa colméia a primitiva construção daquele<br />
povo ordeiro e cheio de fé, comentava a avó de Débora, uma mulher<br />
162
centenária, também reunida ali com eles. Referia-se aos locais<br />
santificados com uma dose de amor desconhecido de Cornélia. A<br />
vida <strong>para</strong> essa anciã era feita unicamente de trabalhos domésticos.<br />
Cuidar de uma prole imensa tinha sido a dádiva que havia recebido.<br />
Muitos filhos já haviam seguido <strong>para</strong> o outro lado da vida, mas ela<br />
ainda se referia a eles como se estivessem repartindo o calor do lar<br />
até aquele dia. É uma anciã única, pensava Cornélia, enquanto a<br />
velhinha ia resumindo o que era a vida <strong>para</strong> os homens que cavavam<br />
rochas e construíam abrigos.<br />
A anciã olhava <strong>para</strong> Cornélia como se soubesse o que ela ia<br />
encontrar <strong>no</strong> meio daqueles muros vedados aos que não eram<br />
judeus. Foi ela que resumiu um pouco do que se esperava por parte<br />
de Cornélia:<br />
- Se você recebeu uma autorização <strong>para</strong> participar de <strong>no</strong>ssas vidas,<br />
acredito que eles também esperam algo de você, porque quem<br />
recebe alegrias, precisa devolvê-las, não pensa assim?<br />
- Sim, senhora, mas não sei o que posso devolver, a não ser a minha<br />
compaixão pelos infelizes.<br />
- Isto não basta, mocinha - ela retrucou com olhos firmes e<br />
inquisidores. - Você vai poder usufruir da ventura e da serenidade<br />
de um dos Santuários. Disse-me Nathanael que vão introduzi-la em<br />
aposento visitado pelo Mestre crucificado. Assim, <strong>para</strong> retor<strong>no</strong>, não<br />
vai bastar a sua compaixão. O mínimo que se espera de você é que<br />
consiga aproveitar as vibrações do local <strong>para</strong> manifestar a voz<br />
divina.<br />
- Manifestar a voz divina? Não sei do que se trata - apressou-se<br />
Cornélia a responder. - Nathanael ainda não se referiu a isto.<br />
- Então você não irá direto aos aposentos que conheceram Joshua.<br />
Deverá ficar por uma temporada entre os essênios que ainda estão se<br />
pre<strong>para</strong>ndo <strong>no</strong>s primeiros graus. Não passa de uma <strong>no</strong>vata - ela<br />
disse com aspereza. - Não sei por que Nathanael não a preparou<br />
melhor, antes de trazê-la - havia queixa na voz da anciã.<br />
Débora interferiu:<br />
163
- Cornélia já tem manifestada a Visão e Nathanael me disse que ela<br />
vai passar rapidamente entre alguns estágios. Não sei a que ele se<br />
refere, mas ele conhece Cornélia melhor do que a senhora - ela<br />
explicou firme, mas educadamente.<br />
A anciã olhou desconfiada <strong>para</strong> Cornélia e preferiu calar-se.<br />
Cornélia percebeu a força, a autoridade e a formação rígida daquela<br />
mulher que, mesmo não tendo participado de rituais, mesmo tendo<br />
dedicado a vida exclusivamente aos cuidados do lar, era vista com<br />
respeito pelos mais <strong>no</strong>vos. Também havia uma grande dose de<br />
orgulho e preconceito na avó de Débora.<br />
- Venha, Cornélia, vamos pedir licença <strong>para</strong> a avó e passear lá pelo<br />
Lago Tiberíades. Sei que Nathanael não quer que você seja<br />
reconhecida, mas este frio <strong>no</strong>s favorece. Podemos <strong>no</strong>s ocultar com<br />
manto e capuz. Ninguém vai saber que ali vão Débora e Cornélia -<br />
ela riu.<br />
- Aceito - disse Cornélia com animação -, mas quero que você me<br />
prometa que me explicará por que razão pediu <strong>para</strong> Nathanael me<br />
entregar o manuscrito de Yohanan.<br />
- Com muito prazer. Venha, vamos <strong>no</strong>s agasalhar.<br />
As duas saíram seguidas do olhar severo da velha senhora.<br />
- Não ligue, Cornélia. Minha avó foi acostumada nessa austeridade.<br />
Já faz parte da personalidade dela. Deve ser muito difícil <strong>para</strong> você<br />
participar desse <strong>no</strong>sso meio; sei que é bastante liberal.<br />
- Não sei mais o que seja liberalidade, Débora. As pessoas têm<br />
confundido os termos. Mas devo confessar que não gosto muito de<br />
gente enfezada. Joshua era manso e generoso.<br />
- Sim. Senti isso <strong>no</strong>s olhos e nas palavras Dele muitas vezes,<br />
Cornélia. Ele não possuía a rigidez nem a altivez do Yohanan.<br />
- Altivez?<br />
- Ah, sim, pode crer. Tive oportunidade de estar algumas vezes<br />
perto de Yohanan e de ouvi-lo também. Eu o achava belíssimo,<br />
sabe? - e Débora corou.<br />
164
Cornélia sorriu. - Pelo seu jeito, Yohanan era <strong>para</strong> você um fruto<br />
proibido.<br />
Débora riu prazerosamente. - Não pensei num fruto, Cornélia, mas<br />
num Anjo intocável e perfeito. Você sabe que Nathanael chorou<br />
mais a morte de Yohanan que a de Joshua? Não que ele não amasse<br />
os dois. Mas Yohanan era mais parecido com Nathanael.<br />
- Não me diga! Nathanael também é uma criatura severa?<br />
- Hoje não sei mais - ela levantou os ombros. Meus pais desejavam<br />
que eu me casasse com Nathanael, não sei se você sabe. Mas eu me<br />
recusei.<br />
- Pela rigidez dele?<br />
- Não, porque eu... - e ela corou de <strong>no</strong>vo.<br />
- Ah, entendo, seu coração tinha preferência por Yohanan...<br />
Débora ace<strong>no</strong>u de leve com a cabeça. - Mas ele tinha escolhido<br />
oferecer a vida dele por seus ideais, então...<br />
- Então por que não se uniu ao Nathanael? Ninguém consegue me<br />
provar que ele não a ama.<br />
- Meu coração pertence a uma única pessoa. Eu não seria feliz com<br />
ninguém mais. Tenho certeza disto.<br />
- E como leva a sua vida, Débora? Deve ser muito solitária.<br />
- Engana-se. Sou feliz a meu modo. Amanhã vou mostrar <strong>para</strong> você<br />
o local onde vi Yohanan pela primeira vez. Ele parecia ser um<br />
daqueles deuses que os roma<strong>no</strong>s chamam de... de Apolo.<br />
Cornélia olhou <strong>para</strong> a gentil moça que havia mandado <strong>para</strong> ela o<br />
manuscrito de Yohanan. Entendeu perfeitamente as razões do<br />
coração de Débora. Convidara-a a participar daquele mundo de<br />
encantamentos e amor, que marcara a sua adolescência.<br />
Mas Cornélia ainda tinha muito a conhecer, em referência a ela. O<br />
tempo lhe mostraria.<br />
No dia seguinte, munidas de um farnel, pois fariam uma longa<br />
caminhada, as duas saíram de casa.<br />
165
Alcançaram o sopé de uma montanha, quando a manhã já ia ceder<br />
lugar <strong>para</strong> uma tarde mais ou me<strong>no</strong>s aquecida. Mais ou me<strong>no</strong>s,<br />
porque o sol, vez ou outra, disputava sua presença com o vento<br />
cortante. Quase ao meio-dia, alcançaram um platô que lhes permitia<br />
descortinar, do alto, a beleza das águas do Tiberíades.<br />
A <strong>para</strong>da <strong>para</strong> descanso foi aproveitada <strong>para</strong> se alimentarem um<br />
pouco, recolocando as energias em ordem, porque o desejo mesmo<br />
era prosseguirem sem se deter. Mas, dali onde estavam, Cornélia já<br />
podia avistar escavações na rocha. Serviam de abrigos <strong>para</strong> criaturas<br />
que precisavam de descanso nas caminhadas. Sabe-se lá se Yohanan<br />
não os havia visitado, durante suas peregrinações por aqueles ermos.<br />
Cornélia contou <strong>para</strong> Débora mais detalhes de sua visão sobre as<br />
cavernas. - Estou certa de que não se trata deste local - ela<br />
garantiu.<br />
Depois de mais um repouso, alcançaram o patamar que Débora<br />
procurava. Acima dele, a rocha mais parecia um ninho de aves. Era<br />
toda perfurada e as cavernas se uniam entre si, por dentro, formando<br />
um imenso lar. Ali, sim, contou-lhe Débora, havia existido um<br />
núcleo de essênios e que era visitado por Yohanan. Fora ali que ela<br />
o havia visto pela primeira vez, vestido em uma túnica branca. Ele<br />
estava sendo convidado a seguir <strong>para</strong> o último estágio dos estudos<br />
dos essênios e já reconhecia Joshua como Seu Mestre.<br />
Os olhos de Débora iluminaram-se, quando disse francamente:<br />
- Foi <strong>aqui</strong>, Cornélia, que entreguei todo o meu amor <strong>para</strong> um<br />
homem que nem desconfiou da existência disto. Jamais pensei em<br />
confiar <strong>para</strong> ninguém o que minha alma vibrou, quando o vi, feliz,<br />
sendo abraçado por uns vinte ou trinta anciãos, das comunidades<br />
essênias. Havia tanta felicidade <strong>no</strong>s olhos de Yohanan, que entendi<br />
que meu Deus havia disposto algo muito diferente <strong>para</strong> mim: não<br />
uma família, não filhos e nem a alegria do amor repartido entre um<br />
homem e uma mulher. Ele era uma criatura especial. Um Anjo<br />
mesmo - ela sorriu, embevecida.<br />
- Meu Deus, você sofreu uma perda dupla, minha amiga - Yohanan<br />
e Joshua!<br />
166
- Sim. E só depois que Nathanael começou a atravessar os estágios<br />
de estudo e compreensão, eu comecei a entender as razões de minha<br />
vida <strong>aqui</strong> na Terra - ela suspirou.<br />
Cornélia não teve a ousadia de perguntar quais razões eram aquelas.<br />
Débora devia ser uma criaturinha cheia de doçura, afabilidade, mas<br />
forte como uma rocha. Permanecia ali, diante dela, com a paz e a<br />
serenidade estampadas <strong>no</strong> rosto bonito, embora os olhos brilhassem<br />
com lágrimas da emoção pela recordação de um dia marcante <strong>para</strong><br />
ela.<br />
Cornélia afagou-lhe o rosto e depois indagou:<br />
- Você nunca teve visões?<br />
- Não, mas Nathanael me contou que você anteviu o martírio de<br />
Joshua. Eu prefiro ser como sou. Não sei o que teria me acontecido,<br />
se eu soubesse antecipadamente qual seria o fim de Yohanan.<br />
- É melhor nem saber, minha amiga. A mágoa acompanha a gente,<br />
aonde quer que a gente vá.<br />
- Mas por quê? Por que você precisou passar por isso?<br />
- Isso ainda não sei. Tenho esperança de descobrir entre os essênios<br />
anciãos. Mas Nathanael me disse que eles nada vão me informar a<br />
este respeito.<br />
- Nathanael é muito rígido, conforme lhe falei. Quem sabe as mãos<br />
de Joshua vão guiá-la <strong>para</strong> perto de algum deles que tire esta dúvida<br />
de você. Afinal, eles todos sabem que o Pai é Misericordioso. E<br />
Joshua também era.<br />
- Esperemos que sim, Débora.<br />
- Agora venha, vou mostrar <strong>para</strong> você o recanto preferido de<br />
Yohanan. Também sei isto por informação de Nathanael.<br />
Débora pegou a mão de Cornélia e entrou <strong>no</strong> interior daquelas<br />
cavernas interligadas.<br />
Algumas delas possuíam a bênção de uma abertura superior, de<br />
modo que a claridade do dia penetrava por ali e entregava um luscofusco<br />
adorável e cheio de mistérios. Outras eram inteiramente<br />
167
vedadas e a impressão de melancolia e solidão chegava a marcar o<br />
espírito.<br />
- Nathanael me disse que estas cavernas mais fechadas serviam <strong>para</strong><br />
fazerem suas meditações e treinarem <strong>no</strong>s dons que possuíam, mas<br />
não me esclareceu quais. Era a melhor forma <strong>para</strong> se isolarem do<br />
mundo e se integrarem com Deus - disse-me ele como única<br />
explicação. - Mas eu acho que prefiro me integrar com o Deus num<br />
lugar mais espaçoso e ventilado - ela sorriu brejeira.<br />
- Cada um se adapta melhor com um tipo de cenário, Débora,<br />
embora eu ache que eles amavam a amplidão tanto quanto nós. Este<br />
local só era propício <strong>para</strong> não se dispersarem <strong>no</strong>s eventos do dia-adia<br />
da humanidade. Ela é tão... complicada!<br />
- É verdade. Mas veja, já estamos chegando <strong>no</strong> lar de Yohanan. Ela<br />
destacou a palavra lar. Ali estavam alguns objetos utilizados por<br />
Yohanan: uma banqueta, uma mesa rústica, um tapete de pêlo de<br />
carneiro e uma lamparina a óleo, colocada <strong>no</strong> chão frio.<br />
- Ali - ela mostrou - havia uma bancada onde ele depositava<br />
documentos que lia e interpretava. Disse-me Nathanael que se<br />
tratava de manuscritos muito antigos, dos tempos de Moisés e<br />
outros profetas. Yohanan era muito sábio - ela comentou, e corou<br />
pela terceira vez.<br />
Vendo Cornélia sorrir, encabulou-se.<br />
- Você vai pensar que sou uma fanática, uma moça desequilibrada<br />
em meus sentimentos, porque ainda coro ao falar de Yohanan. Mas<br />
não sou nada disso, Cornélia. Só abrigo o meu amor e veneração <strong>no</strong><br />
coração. Nada mais. Olho a vida como uma simples passagem pela<br />
Terra. Tive apenas a ventura de conhecê-lo, não de compartilhar da<br />
vida dele. Mas isto me bastou, porque devo ser diferente. Não sei<br />
me interpretar.<br />
Não havia mágoa em Débora. Era amor mesmo. Um amor<br />
imensurável e incondicional. Nesse momento, Cornélia soube que<br />
aquela moça era mais feliz do que tantas que haviam partilhado uma<br />
vida em comum com esposos, ou amantes, mas não tinham tido a<br />
felicidade de amar daquela forma.<br />
168
169
Trinta e Três<br />
Somente um mês após a chegada de Cornélia ao lar de Débora,<br />
Nathanael conseguiu definir a época em que se dirigiriam ao<br />
Santuário de Qumran. Coincidiria com um dos Festejos Religiosos,<br />
portanto, os do<strong>no</strong>s da casa estavam em grandes pre<strong>para</strong>tivos. Além<br />
disto, Débora organizou reuniões <strong>para</strong> as amigas de Cornélia, em<br />
sua casa. Por terem seguido religiosamente o pedido de Nathanael,<br />
Cornélia havia permanecido uma grande parte desse tempo<br />
escondida, a fim de não ser descoberta por Flavius e seus oficiais.<br />
Agora, Cornélia já se sentia liberta e estava sendo instruída sobre a<br />
organização daquele evento. Dele, participariam essênios de várias<br />
localidades, mas não significava que seria um encontro "aberto ao<br />
público". Débora a acompanharia.<br />
Nathanael esclareceu alguns porme<strong>no</strong>res:<br />
- A probabilidade de você falar com um dos anciãos de Qumran não<br />
lhe será vedada. Logo que os festejos findarem, eu a levarei à<br />
presença desse homem. E como suas refeições e seus passos não<br />
deverão marcar alguns espaços onde se reúnem comunitariamente,<br />
já deixei definido, antecipadamente, o seu encontro com este<br />
ancião-sacerdote.<br />
- Não imaginei que existiriam tantos empecilhos assim <strong>para</strong> mim,<br />
Nathanael.<br />
- Ele sorriu e acrescentou: - Mas não é <strong>para</strong> você, minha amiga. É<br />
<strong>para</strong> os não-judeus, em geral. Se você fosse convidada <strong>para</strong> uma<br />
festa onde fossem servidas iguarias desconhecidas <strong>para</strong> você, como<br />
faria <strong>para</strong> escolher o que preferiria comer? Não acha que iria<br />
experimentar - ressabiada - aquelas iguarias e deixaria, por isso, os<br />
do<strong>no</strong>s da casa tristonhos por acharem que você não as apreciou?<br />
170
Cornélia ergueu os ombros, respondendo: - Entendo o que me<br />
aponta. Sei que existe uma infinidade de fatos sobre eles que<br />
desconheço. Mas eu não estou me ofendendo por saber que não farei<br />
parte dos festejos, nem das refeições conjuntas. Não se trata disto.<br />
Apenas acho estranho que me permitam estar por perto, com a<br />
condição de não participar dos rituais. É tudo muito vedado,<br />
Nathanael.<br />
- Não, não é vedado e nem proibido. Apenas preservado. Para eles<br />
seria como se fossem discutir "mistérios" com alguém cujo ouvido<br />
nem está pre<strong>para</strong>do <strong>para</strong> o vocabulário deles, entende? Nem mesmo<br />
a língua em que se comunicam você conhece. Ou melhor, sei que<br />
conhece um pouco, mas não domina. Foi por isso que escolhi um<br />
ancião, que é também Nathanael, <strong>para</strong> conversar com você. Você<br />
poderá chamá-lo de Nathan. Foi o máximo que consegui, acredite.<br />
Nos olhos de Cornélia não havia desencanto, mas uma certa tristeza<br />
por descobrir que o sistema de castas, como o dos hindus, lá<br />
também prevalecia.<br />
- Quando será que a humanidade deixará de ser tão repartida assim,<br />
meu amigo? - foi a única queixa emitida por Cornélia.<br />
Nathanael olhou-a cordialmente e opi<strong>no</strong>u:<br />
- Quando cada um tiver cumprido os papéis que desejou escolher<br />
<strong>para</strong> si. O povo essênio ainda está em meio a uma grande batalha,<br />
diante desse fato calamitoso que foi a morte do Messias aguardado.<br />
Nem todos tiveram possibilidade de "ler" o <strong>livro</strong> da vida de Joshua.<br />
- O que quer dizer com isto?<br />
- Que nem todos tiveram visão antecipada da morte dele. E nem<br />
todos entenderam que isto aconteceria, com o "ouvir". O ver e o<br />
ouvir foram prerrogativas de alguns.<br />
- Ah, compreendo. Eu "ouvi" me falarem que Débora é que me<br />
havia enviado o manuscrito, antes que você me confirmasse. Sim,<br />
eu ouvi perfeitamente isto, sem ter visto ninguém perto de mim.<br />
- É exatamente a isso que me refiro, Cornélia. Cada essênio adquiriu<br />
por <strong>aqui</strong> <strong>aqui</strong>lo que muitos tratam como "dons". Eram dons capazes<br />
171
de ajudá-los a se desenvolverem <strong>para</strong> colaborar com Joshua. Mas<br />
não foi uma tarefa perdida <strong>para</strong> eles, pelo fato de perderem o<br />
Messias, entende? Foi uma tarefa ganha <strong>para</strong> todos, até mesmo <strong>para</strong><br />
Aquele Anjo que partiu como um brilhante raio de Luz, e seguiu<br />
<strong>para</strong> a galáxia à qual pertence.<br />
- Também não será uma tarefa perdida <strong>para</strong> mim tentar entender<br />
tudo isso, não é mesmo?<br />
- Nem pensei nesse aspecto, Cornélia. Fiz questão de marcar uma<br />
conversa com Nathan, <strong>para</strong> que ele lhe entregue porme<strong>no</strong>res que a<br />
ajudarão a compreender sua função nessa sua vida como Cornélia.<br />
Não era isso que desejava?<br />
- Ah, Nathanael, se ele puder me esclarecer isto e algumas outras<br />
questões que me levam a refletir, jamais poderei deixar de<br />
agradecer-lhe...<br />
Nathanael a interrompeu e disse firme:<br />
- Não, minha amiga, não faça esta afirmativa. A gente nunca sabe<br />
em quais circunstâncias se pode falhar, quando garante este "jamais"<br />
que está dizendo. O coração da gente, quando se sente ferido,<br />
esquece esse tipo de promessa. Apenas agradeça a Deus o que lhe<br />
for dado, porque Dele é que vêm os prêmios e as <strong>no</strong>ssas alegrias. Os<br />
homens são <strong>no</strong>rmalmente inconstantes; Deus é justo.<br />
- Tem toda razão. É que me emocionei, quando me disse que vou<br />
poder esclarecer algumas de minhas dúvidas.<br />
- Nathan é um homem de mais de <strong>no</strong>venta a<strong>no</strong>s, mas de alma ainda<br />
jovem. Ele conviveu com Yohanan e também esteve uns tempos<br />
com Joshua. Acredito que, se você fosse falar sobre Joshua, ele lhe<br />
diria bem próximo do que eu mesmo lhe diria. Sobre Yohanan, ele<br />
sabe muito mais do que eu.<br />
- E o que você me diria sobre eles?<br />
- Para mim, Cornélia, Joshua era um Ser disciplinado, pacífico,<br />
amoroso, alegre, e dotado de virtudes que nós, os essênios, ainda<br />
precisamos alcançar. Sua integridade e valor estão muito além do<br />
que, nós, os "pre<strong>para</strong>dores do solo", conseguimos atingir. E a<br />
172
compreensão de Joshua sobre as criaturas que se dedicaram a ele, de<br />
corpo e alma, ultrapassa de muito as medidas terrenas, porque Seres<br />
Angelicais são de difícil definição.<br />
Seria o mesmo que se tentar estabelecer parâmetros sobre<br />
aborígenes de territórios diferentes, diante das luzes que se acendem<br />
<strong>no</strong> mundo. Para alguns aborígenes, a luz não passaria da centelha<br />
surgida do atrito entre pedras, a fim de acenderem a palha seca, que<br />
resulta, então, <strong>no</strong> fogo lumi<strong>no</strong>so. Para outros, seria apenas a chama<br />
da tocha, sem que se preocupassem muito em saber como aquela luz<br />
apareceu por ali. Claro que outros já vêem a luz representada pela<br />
Lua, pelas Estrelas e pelo chamejante Sol, que a tudo vivifica. Mas<br />
existem inúmeras maneiras de representar a Luz divina, tanto quanto<br />
existem diferenças entre os homens que a captam, por sua evolução.<br />
É assim o mundo.<br />
A diferença maior entre nós, os essênios, é que nem sei se todos<br />
perceberam que Joshua era a própria Luz. Ela fazia parte de seu Eu<br />
Sublime, portanto, de difícil definição também. Como se o Deus<br />
tivesse pintado um quadro e nós não conseguíssemos captar. Com<br />
quais nuances Ele pintaria as Luzes de Seu Amado Filho?<br />
Eu costumo refletir sobre isso e sei que Deus não o faria com as<br />
mãos borradas de tintas materiais, e nem com a tristeza de colocar o<br />
Seu Filho <strong>aqui</strong> apenas <strong>para</strong> que perecesse diante da incompreensão e<br />
malícia dos homens. Portanto, Cornélia, a Luz de Joshua acendeu a<br />
<strong>no</strong>ssa comunidade em Bens, em Amor e Doação.<br />
Yohanan era um irmão consangüíneo apenas <strong>no</strong> sentido de que<br />
pertenciam à mesma Família Universal que é dedicada ao progresso<br />
dos homens. Terrenamente ele era aparentado com Joshua,<br />
pertencente ao núcleo dos essênios e cultivador da harmonia<br />
interior. Ele se distinguia principalmente pelo amor que dedicava<br />
aos humildes e à tão fragmentada tribo de judeus.<br />
Para Yohanan, não deveriam existir dissidências entre as criaturas e<br />
nem a Humanidade caminharia à beira dos abismos. Uma de suas<br />
metas era dirigir os homens <strong>no</strong>s princípios do respeito e da<br />
fraternidade universal.<br />
173
Mas Yohanan enfrentava um combate diferente, porque se<br />
alicerçava na confiança que deveria existir entre todos os membros<br />
de um grupo. Para ele, em especial, todas as famílias que se<br />
formassem deveriam cumprir seu papel com perfeita exatidão.<br />
Deveriam ser perfeitos pre<strong>para</strong>dores dos filhos que nascessem das<br />
uniões dos casais. Depois disso, desejava "pacificar-se, <strong>para</strong> chegar<br />
a ser um pacífico e manso, como foi Joshua". Yohanan não era visto<br />
como pacífico, porque suas Verdades atingiam profundamente os<br />
prevaricadores.<br />
Nessa época em que vivemos, Cornélia, os homens fazem suas leis<br />
segundo seus desejos físicos e materiais. Os atritos surgidos entre os<br />
roma<strong>no</strong>s e Yohanan foram terrivelmente fortes, porque Yohanan se<br />
referia às leis divinas e os homens falavam de suas próprias leis,<br />
querendo vestir-se de divi<strong>no</strong>s, de césares, de deuses.<br />
Eu até soube que alguns se referiram a ele como "um amigo do filho<br />
do carpinteiro, um pobre miserável" - Nathanael sorriu tristemente.<br />
Cornélia olhou-o assombrada e comentou:<br />
- Acredito que, se o dedo de Yohanan apontava exatamente <strong>para</strong> a<br />
moralidade (ou imoralidade!), deve mesmo ter espalhado em tor<strong>no</strong><br />
dele bastante ira, Nathanael.<br />
Ele ergueu os ombros e analisou:<br />
- A gente sabe que a Verdade só dói se a pessoa não aceita o título,<br />
embora o mereça. Eu acredito que temiam Yohanan, porque<br />
preferiam viver em prevaricação.<br />
Enfim... o luto <strong>no</strong>s alcançou com a morte de Yohanan e de Joshua,<br />
mas eu tenho certeza de que muita coisa deve ter mudado <strong>no</strong> interior<br />
de muitas criaturas, Cornélia.<br />
- Quais, por exemplo?<br />
- Os que foram sacrificados - e agora não me refiro a eles - já<br />
ganharam sua veste de luz, na medida do amor que exemplificaram;<br />
os algozes irão reaprender as medidas necessárias <strong>para</strong> viverem<br />
honestamente. E eu não duvido de que os roma<strong>no</strong>s acabem por<br />
174
perder este imenso Império, porque não o conduzem <strong>para</strong> a<br />
construção.<br />
- Ah, mas nós já perdemos Joshua! Isto ainda é muito triste <strong>para</strong><br />
mim.<br />
- Pois eu me alegro, porque Ele voltou <strong>para</strong> Seu Rei<strong>no</strong> de Luz. Um<br />
Anjo não desceu à Terra <strong>para</strong> participar desses minúsculos valores<br />
terre<strong>no</strong>s <strong>no</strong>ssos, Cornélia. Ele já é Luz, eu repito. Deixou <strong>aqui</strong><br />
amigos sinceros, seguidores nem sempre disciplinados, bons<br />
observadores das leis divinas e outros que ainda estão buscando<br />
entendê-las. É assim que penso.<br />
Agora, trate de se pre<strong>para</strong>r. Deixei <strong>aqui</strong> algumas a<strong>no</strong>tações sobre o<br />
encontro entre os essênios. Converse com Débora, ela poderá<br />
auxiliar você. Lá em Qumran, ela deve lhe abrir algumas portas. Viu<br />
como tudo se dispõe bem, quando a gente planeja com cuidados?<br />
- Estou percebendo. Não foi à toa que você se movimentou por um<br />
bom tempo, antes de pensar em me levar até lá.<br />
Nathanael começou a se afastar, mas voltou-se e comentou<br />
sorrindo:<br />
- Eu quase esqueci de lhe dizer que o Timóteo está tão<br />
entusiasmado, que já pensou em se inserir <strong>para</strong> estudos entre os<br />
essênios.<br />
O sorriso cheio de prazer de Nathanael acompanhou seus largos<br />
passos.<br />
175
Trinta e Quatro<br />
Estavam nas vizinhanças de Qumran, enfim. Mas, na imaginação de<br />
Cornélia, a construção daquele Santuário de paredes de pedras tão<br />
brancas, onde a sutileza do sol pintava as inúmeras nuances do arcoíris,<br />
continuava a apresentar inúmeras incógnitas. Qual a razão?<br />
Ela não havia adentrado o recinto, embora pensasse que era um<br />
presente dos deuses estar ali na ocasião dos Festejos do Vinho,<br />
mesmo que não pudesse participar da seqüência dos fatos que lá<br />
dentro se desdobravam.<br />
Agora já sabia que a seus olhos ficariam vedadas as refeições<br />
comunitárias, as orações propiciatórias que a comemoração exigia, e<br />
os rituais particulares daquele grupo de homens que faziam de suas<br />
vidas um grande mistério.<br />
Mas já havia conversado com muitas criaturas que também estavam<br />
acomodadas em tendas, ao redor do Santuário.<br />
Afinal de contas, ela pensou, não são tão soberbos quanto imaginei.<br />
Admitiram-me <strong>aqui</strong>, fora dos muros, numa dessas inúmeras tendas<br />
que se distribuem <strong>para</strong> estrangeiros em questões de costumes, como<br />
também sou. E, pensando bem, se eu estivesse lá dentro, talvez nem<br />
tivesse a oportunidade de conviver com tanta gente oriunda de<br />
territórios diversos, ou de apreciar este cenário fabuloso que <strong>no</strong>s<br />
cerca.<br />
Há tanta gente desligada deles, como eu mesma, que só posso<br />
agradecer por ter sido incluída na lista como convidada. Com a troca<br />
de informações, até já descobri que existem homens que podem<br />
estagiar entre eles; que podem fazer parte deste grupo de estudiosos,<br />
se se pre<strong>para</strong>rem em requisitos exigidos por eles. Quer dizer, então,<br />
que não só os nascidos de mulheres essênias convivem com eles.<br />
176
Assim refletindo, Cornélia caminhava por entre as tendas, <strong>no</strong>tando<br />
algo bastante marcante: elas tinham sido distribuídas num<br />
alinhamento perfeito, se<strong>para</strong>ndo homens e mulheres.<br />
Por esta razão, desde que se alojara não mais avistara Timóteo.<br />
Apenas Nathanael vez ou outra a procurava, em especial atenção,<br />
chamando sua atenção <strong>para</strong> pontos que ele considerava essenciais.<br />
E num de seus encontros, quando caminhavam, Nathanael levou-a a<br />
observar o morro que delimitava o terre<strong>no</strong> onde se encontravam as<br />
tendas das mulheres.<br />
Foi, então, na companhia de Nathanael, que Cornélia susteve a<br />
respiração e disse, espantada:<br />
- Foi <strong>aqui</strong>, Nathanael, foi deste morro que tive aquela visão que lhe<br />
contei, você se lembra? Quer ver? Posso até lhe provar isto. Venha,<br />
venha comigo! - ela insistiu, segurando-lhe a mão e arrastando-o,<br />
quase às carreiras, em direção à curvatura do morro que se<br />
distanciava bastante do local do Santuário.<br />
- Ali - ela apontou afobada - vamos encontrar aos pés da rocha<br />
íngreme um largo degrau, seguido de outros tantos que conduzem a<br />
um patamar não tão reduzido. Depois desse patamar, a escada<br />
continua e se pode começar a enxergar uma série de cavernas,<br />
algumas tão restritas, que nem se consegue entender como as<br />
criaturas faziam <strong>para</strong> viver assim.<br />
Os dois seguiram <strong>para</strong> a escada que, realmente, existia. Nathanael a<br />
observou um tanto preocupado, mas Cornélia acrescentou: - Meu<br />
Deus, agora me lembro de mais detalhes daquela visão que tive.<br />
Existiam muitas crianças por <strong>aqui</strong>. Pareciam a<strong>no</strong>rmais pelo<br />
tamanho.<br />
- A<strong>no</strong>rmais?? - ele franziu o cenho.<br />
- Sim, sim, de estatura muito elevada.<br />
- Ahn, pensei que se referia a anões!<br />
Cornélia riu. - Não, eram tão altas, que quase se com<strong>para</strong>vam aos<br />
pais, já entre os sete e oito a<strong>no</strong>s de idade.<br />
177
- Como pode ter certeza disso, minha amiga?<br />
- Ahn, Nathanael, eu já vivi por <strong>aqui</strong>!<br />
- Como? Está querendo me dizer que teve uma existência como<br />
essênia?<br />
- Não, não. Espere, Nathanael!<br />
Como que tomada de grande espanto e ferida por ter entrado <strong>no</strong><br />
mundo da memória espiritual, sem estar pre<strong>para</strong>da, Cornélia<br />
desabou <strong>no</strong> solo. Permaneceu inconsciente até o momento em que<br />
Nathanael a observava, já acompanhado de Nathan, a quem ele fora<br />
pedir ajuda.<br />
Nathan aproximou de suas narinas uma substância desconhecida até<br />
de Nathanael. A palidez da moça foi sendo substituída lentamente<br />
pelo colorido habitual de suas faces. Mas, ao enxergar Nathan, um<br />
grito se soltou de seu peito e passou a soluçar, conversando com ele<br />
num dialeto desconhecido totalmente de Nathanael.<br />
Nathan ajudou a levantá-la e carregou-a <strong>para</strong> o primeiro degrau<br />
daquela escada esculpida na dura rocha. Só então ele aconselhou:<br />
- Agora, acalme-se. Somente quando sentir que seu coração voltou a<br />
bater num ritmo me<strong>no</strong>s apressado deve falar. E, veja bem, só fale se<br />
quiser. Se preferir permanecer em silêncio, nós entenderemos.<br />
Cornélia exclamou:<br />
- Ah, senhor, estou hoje passeando por um recanto que já me serviu,<br />
um dia, de moradia! Esta foi a minha Quinta Morada.<br />
Como Nathan e o amigo preferiram guardar o silêncio, ela<br />
continuou:<br />
- Já sei que vivi entre os árabes, num grupo de tuaregues. E também<br />
<strong>no</strong> Egito, na Índia, e num local que foi coberto pelas águas. Agora,<br />
reconheço este cenário, ainda que apresente diferenças. Os tempos<br />
vão acrescentando camadas sobre os territórios e os ambientes se<br />
modificam a ponto de <strong>no</strong>s parecerem sobrenaturais.<br />
178
Mas eu já vivi <strong>aqui</strong>, sim, quando os homens ainda cultivavam a<br />
beleza de uma família bem constituída. Eu era uma menina tão alta,<br />
que meus pais me <strong>no</strong>meavam em razão de minha altura.<br />
A minha tez era morena e o meu povo de origem eram os assírios.<br />
Mas meu pai saiu de sua cidade de nascimento, porque era um<br />
mercador empobrecido. Buscava arriscar-se <strong>para</strong> conseguir fortuna.<br />
Numa grande tempestade (estávamos em uma embarcação) fomos<br />
atirados em terras desconhecidas e os nativos <strong>no</strong>s içaram do mar.<br />
Das mãos deles, fui <strong>para</strong>r nas mãos de mercadores e se<strong>para</strong>da de<br />
meus pais.<br />
Aquela minha sina foi nefasta, porque os mercadores eram homens<br />
violentos. Venderam-me <strong>para</strong> um homem que se dizia hebreu. Esta<br />
foi a minha sorte. Esse grupo de hebreus se dirigiu <strong>para</strong> cá.<br />
Desejavam fundar por <strong>aqui</strong> uma comunidade sonhada por eles fazia<br />
muito tempo.<br />
Eu vi inúmeras cavernas serem perfuradas e eu mesma ajudei uma<br />
mulher que cuidava de mim a carregar pedras de um lado <strong>para</strong> o<br />
outro, até que <strong>no</strong>ssa "casa" ficou apropriada <strong>para</strong> <strong>no</strong>s receber. Antes<br />
disso, dormíamos ao relento.<br />
Eu não tinha medo de nada, era forte e muito curiosa.<br />
Minha curiosidade levou-me a me afastar desse casal adorável que<br />
cuidava de mim, porque eu não queria passar a minha vida naquela<br />
caverna. Eu desejava conhecer o mundo que existia a meu redor.<br />
Quando me tornei mocinha, peguei as poucas coisas que possuía e<br />
parti, não sem antes me despedir de um ancião ao qual me afeiçoara<br />
muito - o senhor.<br />
O senhor era um velho muito ranzinza, mas de coração generoso e<br />
justo. Não pude deixar de lhe contar que tinha uma necessidade<br />
e<strong>no</strong>rme de conhecer o mundo. E o senhor não me disse <strong>para</strong> não<br />
partir. Apenas me advertiu sobre as perigosas estradas e lembrou-me<br />
que, se ali permanecesse, poderia conhecer o que era paz e<br />
tranqüilidade; que ali mesmo eu poderia crescer em valor.<br />
179
Mas, quando o senhor viu que suas palavras não exerciam influência<br />
em minha vontade, foi <strong>para</strong> dentro da caverna e me entregou um<br />
talismã. O senhor me disse que o Deus Sol me acompanharia por<br />
onde eu fosse, <strong>para</strong> que tivesse a força, o vigor e o calor dele. O<br />
talismã era um Sol gravado em pedra.<br />
Entendi o que me esclarecia e guardei o presente que me ofertava.<br />
Caminhei, caminhei muito, e acredito que não precisei enfrentar a<br />
fúria de homens cruéis, porque seu talismã me protegeu.<br />
Quando já era adulta, encontrava-me num povoado onde os homens<br />
eram pescadores. Casei-me, tive dois filhinhos e ali morri.<br />
Nathan comentou:<br />
- Acredito <strong>no</strong> que me conta, Cornélia. Seu porte e seu olhar não me<br />
são estranhos. Não sei se você sabe que conservamos em <strong>no</strong>ssos<br />
corpos físicos alguns traços que nem o correr dos séculos consegue<br />
apagar.<br />
Nathan fitou o horizonte e depois complementou:<br />
- Eu também sei que as almas que são afins jamais se despedem.<br />
Apenas se afastam, <strong>para</strong> se exercitarem <strong>no</strong>s cenários diferentes da<br />
vida. Mas... vejo que já está serena. Nathanael pediu-me <strong>para</strong><br />
conversar um dia com você. Agora, pelo que me contou, vejo que<br />
precisaremos de mais de um dia <strong>para</strong> os <strong>no</strong>ssos encontros.<br />
Cornélia observou, sorrindo <strong>para</strong> ele:<br />
- Sabe que até um dias desses eu ainda adorava o Sol?<br />
- Quer dizer, então, que o Nosso Mestre, o Nosso Messias,<br />
conseguiu provar-lhe que Deus é maior do que o Sol, não é assim?<br />
Antes que Cornélia respondesse, Nathanael fez um pedido.<br />
- Gostaria de fazer parte das conversas que tiverem, Nathan. O que<br />
Cornélia contou agora me faz ver que pouco a conheço.<br />
- Não diga isto, Nathanael, eu já lhe havia falado de minhas visões e<br />
audições também - Cornélia censurou-o.<br />
- Mas nunca se referiu ao fato de que consegue penetrar facilmente<br />
nas paisagens de suas vidas anteriores.<br />
180
- Não tão facilmente, Nathanael. O que me aconteceu hoje é bem<br />
raro.<br />
- É que este local colabora <strong>para</strong> isto, Cornélia - esclareceu Nathan. -<br />
Há em tor<strong>no</strong> de Qumran vibrações tão espetaculares, que muitos<br />
jamais captarão. Mas, por seu entendimento, vou até lhe mostrar um<br />
recinto que permanece sagrado <strong>para</strong> nós. Não do Santuário.<br />
- Obrigada, Nathan. O que eu mais desejava era encontrar um local<br />
que me favorecesse, <strong>para</strong> reencontrar a serenidade que perdi com a<br />
morte de Joshua.<br />
Nathan franziu o cenho, ao ouvi-la referir-se ao Salvador<br />
simplesmente como Joshua. Mas não a recrimi<strong>no</strong>u.<br />
- Você já sabe que <strong>no</strong> Santuário não poderá entrar. Mas façamos<br />
assim: d<strong>aqui</strong> a sete dias, quando os visitantes tiverem partido em<br />
busca de seus lares ou comunidades, vou pedir que esteja pre<strong>para</strong>da<br />
<strong>para</strong> você uma tenda em local não proibido <strong>para</strong> uma criatura que<br />
não pertença à <strong>no</strong>ssa raça. Tenho certeza de que poderei conseguir a<br />
anuência dos demais sacerdotes, principalmente porque estará em<br />
companhia de Débora, que é essênia como nós.<br />
Nathanael olhou-a, maroto, como que dizendo: Viu? Eu não falei?<br />
Nathan afastou-se feliz pelo reencontro inesperado.<br />
181
Trinta e Cinco<br />
Era belíssimo o espetáculo <strong>no</strong>tur<strong>no</strong>, quando centenas de criaturas<br />
acendiam suas lamparinas dentro das tendas e as silhuetas se<br />
desenhavam em movimentos tranqüilos, na meia obscuridade,<br />
pre<strong>para</strong>ndo-se <strong>para</strong> o descanso de mais um dia. Crianças, jovens,<br />
velhos, mocinhas silenciosas, e até garotos impetuosos quebrando o<br />
silêncio da <strong>no</strong>ite com seus risos cristali<strong>no</strong>s.<br />
Uma alegria imensa se manifestou em Cornélia, que começou,<br />
então, a captar o <strong>no</strong>vo sentido que a vida lhe entregava.<br />
Embora na presença de estranhos, ressoava em seu coração,<br />
claramente, o significado de alguns ensinamentos de Joshua,<br />
principalmente o que se referia ao amor universal.<br />
Então amar é isto, ela pensou. É buscar a compreensão de tudo, e<br />
sobre todos, mesmo que seja assim, ao lado de estranhos, e<br />
permitindo que chegue até nós a carícia de dividir e de compartilhar.<br />
Estou percebendo que algumas dessas pessoas tentam se aproximar<br />
de mim, sem o interesse de saber, ou não, se eu leio nas mesmas<br />
linhas da crença que eles seguem. Vejo que eles me olham<br />
prazerosos, explicam-me o que preferem ou falam do que gostam,<br />
sem que em um ínfimo momento sequer me convidem <strong>para</strong><br />
compartilhar d<strong>aqui</strong>lo que é necessário apenas <strong>para</strong> eles. Com isto,<br />
sinto-me integrada <strong>no</strong> mundo dos essênios e nem preciso expor<br />
<strong>para</strong> eles o que o "meu Deus" fala por mim.<br />
Ah, é adorável a sensação que este lugar me traz! Cornélia<br />
continuava a refletir, num arrebatamento cheio de calor.<br />
Olhou <strong>para</strong> o céu que, em contraste com a escuridão da <strong>no</strong>ite,<br />
assemelhava-se a uma cidade iluminada, com estrelas reluzindo em<br />
182
eciprocidade às pequenas e modestas lamparinas transformadoras<br />
do escuro breu.<br />
Quão magnífico e justo é Deus, que <strong>no</strong>s permite imitar <strong>aqui</strong> o que<br />
existe em plenitude lá em cima. Até as constelações do céu definem<br />
as formas do mundo da Terra. Quem sabe um dia, quando eu for<br />
sábia e atenta, vou entender mais facilmente o significado daquelas<br />
moradas lá do alto.<br />
Não posso sinceramente acreditar que o mundo se resume nessa<br />
minúscula caminhada que a gente consegue perceber só algumas<br />
vezes. Estou certa de que sou uma criatura antiga e que tive uma<br />
vivência bem maior do que as que consegui captar. Cinco moradas.<br />
Ah, não creio que minha alma tenha se limitado a vir, pelo<br />
nascimento e <strong>para</strong> a Terra, apenas cinco vezes. Não, não posso,<br />
principalmente porque tive a graça de conhecer o Anjo<br />
Misericordioso, Joshua, que procurou me demonstrar a beleza e a<br />
validade da vida.<br />
Até mesmo por isso nem tenho o direito de continuar a levar os<br />
meus dias da forma que levo, achando que o mundo e o <strong>para</strong>íso<br />
foram destruídos, depois que destruíram o meigo Joshua.<br />
Enquanto assim refletia, Cornélia, abstraída, não percebeu a<br />
presença de Débora a seu lado. Mas, quando a <strong>no</strong>tou, viu Débora<br />
apontar <strong>para</strong> uma das estrelas brilhantes do céu.<br />
- Aquela é a minha favorita, Cornélia. Acompanho-a sempre, nesta<br />
minha passagem <strong>aqui</strong> pela Terra. Desconheço o <strong>no</strong>me dela, porque<br />
não sou versada em astro<strong>no</strong>mia, mas ela é a razão de meu olhar; eu<br />
a comparo com Yohanan. E acho que da mesma forma que ela, ele<br />
acena <strong>para</strong> mim a distância.<br />
- Você é uma criatura belíssima, Débora. Fala da morte e do<br />
afastamento de uma criatura como se isto não a atingisse. E, ao<br />
ouvi-la, estou certa de que nem duvida, por um milésimo de<br />
segundo sequer, da existência de um outro lugar <strong>para</strong> a <strong>no</strong>ssa<br />
morada, depois que tivermos que partir d<strong>aqui</strong>.<br />
- Mas não duvido mesmo, minha amiga. Eu acho que Joshua e<br />
Yohanan vieram de uma daquelas estrelas mais luzentes do céu.<br />
183
Aí, ela sorriu docemente e concluiu:<br />
- Ainda bem que existem milhares de estrelas pequeninas também,<br />
tão pequenas que <strong>no</strong>ssos olhos nem as percebem. Para uma dessas é<br />
que irei, até que meu Deus me arranje uma possibilidade de viajar<br />
até a estrela de Yohanan. Se <strong>aqui</strong> a gente caminha <strong>para</strong> tantos<br />
pontos distantes, por que não pode acontecer o mesmo lá <strong>no</strong> céu? E,<br />
confiante, prosseguiu:- Quando isto for possível, vou procurar o<br />
Yohanan e vou dizer <strong>para</strong> ele que também sou uma pequenina<br />
estrela das hostes do céu. Se ele interessar-se...., ótimo. Caso<br />
contrário, vou ter mesmo que procurar um outro Anjo que se<br />
assemelhe a ele. E ela sorriu, intimidada, porque sentia que tinha<br />
sido ousada pelo que acabava de confessar <strong>para</strong> Cornélia.<br />
Cornélia passou o braço pelos ombros da amiga, comentando:<br />
- Se ele não a enxergar, vou pensar que os Anjos têm visão limitada<br />
- e riu brejeira.<br />
Débora ruborizou-se e repreendeu-a:<br />
- Não desfaça a beleza dos Anjos só por minha causa. Não mereço<br />
tanto de sua parte.<br />
- Merece, sim, mas diga-me uma coisa, você deseja me acompanhar,<br />
quando eu for conversar com o Nathan? Ele pode <strong>no</strong>s esclarecer<br />
muito.<br />
- Não, Cornélia. Nós duas somos como folhas de árvores diferentes.<br />
Você já está procurando entender as razões de sua vida. Eu ainda<br />
nem tenho a certeza se esta é a minha primeira experiência nesta<br />
terra.<br />
- É assim que pensa?<br />
- Sim. Creio que existem almas sendo criadas também. E quem me<br />
garante que não fui criada agora? Jamais tive qualquer revelação de<br />
uma outra vivência.<br />
- Entendo seu argumento e não sou capaz de esclarecer isto <strong>para</strong><br />
você. Mas... acho que você não parece tão <strong>no</strong>vinha assim - disse<br />
convicta.<br />
184
Quando Débora se afastou <strong>para</strong> repousar, uma estrela cadente<br />
assinalou o céu com um rastro brilhante e desapareceu de seus<br />
olhos. Decidiu-se naquele momento também ir deitar, porque a<br />
madrugada não tardaria a se revelar.<br />
De manhãzinha, ouviu Débora a cantarolar belíssima melodia,<br />
enquanto pre<strong>para</strong>va frugal refeição <strong>para</strong> as duas. Débora tinha as<br />
faces coradas e, <strong>no</strong> olhar, a mesma intensidade do brilho da estrela<br />
que lembrava Yohanan.<br />
- O que houve, Débora? Algum acontecimento bom já pela manhã?<br />
Recebeu alguma <strong>no</strong>tícia alvissareira de sua casa?<br />
- Não - ela respondeu, ligeira -, nem sei como lhe explicar. Mas<br />
sinto como se fosse mesmo receber uma <strong>no</strong>tícia inesperada, que já<br />
me transborda em afeto <strong>no</strong> coração. É como se...<br />
- Como se...?<br />
- Se eu fosse me comunicar com o Yohanan. Mas veja que tola eu<br />
sou! Só <strong>para</strong> você eu me atrevo a dizer isso, porque tem sido<br />
compreensiva e boa <strong>para</strong> mim.<br />
- Ah, minha amiga, permita-me então aconselhá-la.<br />
- Pode dizer o que quiser.<br />
- Você precisa viver a vida da terra, Débora. Yohanan está perdido<br />
<strong>para</strong> você tanto quanto Joshua <strong>para</strong> nós. O que eles querem mesmo é<br />
que vivamos em alegrias, mesmo sem eles.<br />
- Mas eu nunca pensei em levar a minha vida <strong>no</strong> descaso, na<br />
indiferença ou na dor, Cornélia. O que eu resolvi na <strong>no</strong>ite passada<br />
foi muito simples, creia. Tão simples, que nem posso entender como<br />
não pensei nisso antes.<br />
- E o que foi? O que decidiu fazer, que a levou a cantarolar como<br />
simples avezinha num ninho?<br />
- Exatamente isto. Vou pedir <strong>para</strong> os sacerdotes-anciãos que me<br />
deixem morar na caverna de Yohanan. Vou tentar ver se eles me<br />
aceitam como uma estudiosa entre eles, enquanto cuido de crianças<br />
185
essênias. Esta pode ser a minha forma de comunicar-me com<br />
Yohanan.<br />
- Mas, Débora, não vê que <strong>para</strong> os essênios as mulheres devem<br />
apenas cuidar dos afazeres da casa?<br />
- Disso eu sei muito bem. Mas minha proposta vai ter algo<br />
incomum. Vou me propor cuidar de meni<strong>no</strong>s que estejam em<br />
comunidades muito distantes. Ofereço-lhes os meus trabalhos da<br />
casa, claro. E as crianças ficam vivendo mais próximas do Santuário<br />
do que estão. Há muitos pais que vão gostar de que seus filhos<br />
estejam por <strong>aqui</strong>. E só não conseguem isto, porque precisam se<br />
manter longe, entende? Ela continuou, feliz: - Eles podem passar <strong>no</strong><br />
Santuário o tempo que lhes for exigido <strong>para</strong> se pre<strong>para</strong>rem. E <strong>no</strong>s<br />
momentos de lazer estarão sob meus cuidados. Estarei fazendo o<br />
papel de servidora dos filhos dos essênios.<br />
Cornélia olhou-a, pasma.<br />
- Mas... mas... você pensou bem nisso que vai propor? Não acha que<br />
deveria casar-se e cuidar dos próprios filhos?<br />
- Não, eu não acho. Meu coração até bate apressado, quando penso<br />
nisto. E tenho quase certeza de que vão me aceitar perto deles. No<br />
próximo a<strong>no</strong>, quando celebrarmos de <strong>no</strong>vo a data que agora<br />
celebramos, já vou estar por <strong>aqui</strong> com uma <strong>no</strong>va função.<br />
Cornélia não mais insistiu. Até conseguia crer que Débora seria<br />
mesmo uma simples avezinha entre eles. Mas desejava do fundo da<br />
alma que os roma<strong>no</strong>s não fizessem planejamentos contrários<br />
àqueles, destruindo o belo Santuário.<br />
Foi interrompida em suas análises por Débora:<br />
- Seu olhar a distância me diz que acabou concordando com meus<br />
argumentos, Cornélia. Nem sabe como estou feliz em tê-la comigo.<br />
Que bom que pedi a Nathanael que lhe entregasse o manuscrito de<br />
Yohanan. Só assim nós duas conseguimos <strong>no</strong>s reunir e eu posso<br />
dividir com você este meu sonho. Quando minha proposta receber<br />
aceitação, quero que saiba que terei uma imensa satisfação em<br />
recebê-la em minha casa, <strong>aqui</strong> próximo de Qumran e nesta região do<br />
186
Mar Morto que você tanto ama. Terá nela um abrigo sempre que<br />
desejar. E, se a vida se tornar difícil <strong>para</strong> você, venha até mim.<br />
Poderemos dividir lar e estudos.<br />
Cornélia anuiu em silêncio, olhando-a com afeto.<br />
"Bendita criatura, que me oferece algo que jamais pensei em buscar<br />
- um ninho entre os essênios. Se Hannah estivesse <strong>aqui</strong>, brincaria<br />
mais uma vez, dizendo-me que agora consegui um ninho de<br />
gaivotas sem o arroio, mas com um belo mar. Ah, Hannah, minha<br />
vida ainda pode ser extraordinária. Pode, sim!"<br />
187
Trinta e Seis<br />
O Festival do Vinho já havia encerrado, quando Nathan avisou <strong>para</strong><br />
Cornélia que fora erguida uma tenda <strong>para</strong> ela passar uns tempos <strong>no</strong><br />
silêncio daquele território. Por sua vez, Débora já havia conciliado<br />
seu coração com a oferta feita aos sacerdotes essênios.<br />
A princípio, haviam balançado a cabeça em negativas - em relação a<br />
Débora -, porque era a primeira vez que uma mulher se oferecia <strong>para</strong><br />
servidora e <strong>para</strong> estudos entre eles, ainda que fora dos muros do<br />
Santuário.<br />
Lá dentro, havia as que prestavam humildes serviços de limpeza e<br />
pre<strong>para</strong>tivos de alimentos, mas elas não se interessavam pelos<br />
estudos dos manuscritos considerados sagrados.<br />
A proposta de Débora foi considerada de grande ousadia. Só pelo<br />
fato de que pertencia a uma família de essênios foi levada em<br />
consideração e estudada. De alguns sacerdotes, ganhou votos<br />
favoráveis, porque não viam qualquer interferência ou quebra do<br />
ritmo em que viviam.<br />
Outros negaram inteiramente que vivesse <strong>no</strong> antigo lar de Yohanan,<br />
porque se distanciava muito do Santuário, já que a finalidade da<br />
presença de Débora seria cuidar dos meni<strong>no</strong>s que o freqüentariam.<br />
O mais razoável, então, seria morar o mais próximo possível, a fim<br />
de facilitar a caminhada das crianças <strong>para</strong> o Santuário. Esses não<br />
discutiram com Nathan, quando ele afirmava a validade da proposta<br />
de Débora.<br />
Havia aqueles que apoiavam calorosamente a idéia de pre<strong>para</strong>rem<br />
os filhos dos essênios que se lamentavam de não poder participar<br />
daqueles rituais assiduamente, apenas porque haviam optado pela<br />
organização familiar e viviam muito longe dali. Estando entre eles,<br />
188
essas crianças poderiam receber cuidados redobrados e com<br />
possibilidade de se tornarem mais cedo sacerdotes entre eles.<br />
Depois de muitas argumentações, análises e pareceres, a proposta de<br />
Débora foi aceita. Sua família foi chamada perante eles e só depois<br />
disso ficou definido um <strong>no</strong>vo rumo <strong>para</strong> a vida de Débora.<br />
As conversas entre Nathanael, Nathan e Cornélia foram adiadas,<br />
porque Nathan se tor<strong>no</strong>u responsável pela orientação e organização<br />
da vida de Débora entre eles.<br />
Mas Débora e Cornélia ficaram espantadas com a coincidência de<br />
um fato: a caverna onde Débora faria suas meditações e seus<br />
estudos era exatamente a que Cornélia tinha tido, um dia, em suas<br />
visões. Tudo parecia ligar-se como se um extenso e fantástico<br />
bordado estivesse sendo composto pelas mãos do Criador. Também<br />
algumas tendas seriam erguidas ali nas proximidades. Seriam<br />
reservadas <strong>para</strong> oficinas das crianças e até os alimentos iriam ser<br />
nelas pre<strong>para</strong>dos por Débora. Bancadas seriam montadas <strong>para</strong> ela<br />
também, <strong>para</strong> que fizesse a<strong>no</strong>tações <strong>para</strong> Nathan. Ele havia proposto<br />
utilizar Débora como sua auxiliar mais próxima, nas a<strong>no</strong>tações dos<br />
recados que costumava passar na comunidade. Débora, portanto,<br />
seria uma assistente-auxiliar de Nathan.<br />
E Cornélia?<br />
Na manhã em que saíram os últimos visitantes dos festejos, foi<br />
procurada por Nathanael.<br />
- Nathan lhe pede que aguarde uns dias mais pelos encontros<br />
prometidos. Ocupou-se de Débora, antes de poder atendê-la,<br />
Cornélia. Além disso, precisou interferir com uma certa força junto<br />
a alguns familiares de Débora, especialmente a avó, que jamais<br />
apresentou tolerância <strong>para</strong> os que não seguem os rumos do que ela<br />
pensa.<br />
- O que houve com ela?<br />
- Apressou-se a brigar com o pai de Débora, por ter ele permitido<br />
que ela se tornasse uma servidora dos filhos dos essênios. Pensa que<br />
Débora é apenas uma criança e, como tal, só deveria estar <strong>no</strong><br />
189
próprio lar <strong>para</strong> os aprendizados domésticos. Não consegue ver que<br />
a neta já é uma criatura amadurecida, sensata e livre <strong>para</strong> determinar<br />
o que prefere.<br />
- Entendo. Conheci a anciã. Pareceu-me... bastante temperamental e<br />
brava. Débora analisa isto como uma questão da criação que a avó<br />
teve.<br />
- Em parte é, sim, Cornélia. Mas eu posso afirmar que as pessoas só<br />
não mudam, quando não querem. Veja você o caso da própria<br />
Débora. Não guarda a ranzinzice da avó e nem a intolerância do<br />
próprio pai. Mas... e você, como vai, Cornélia?<br />
- Mudando. Este tempo que passei <strong>aqui</strong> foi muito valioso,<br />
Nathanael. Até consegui esquecer uns certos dissabores de Roma e<br />
da viagem que fiz até alcançar este local.<br />
- Eu soube que Flavius já descobriu que você está com Débora - ele<br />
informou.<br />
- Não me importo mais com o que os roma<strong>no</strong>s vão fazendo de<br />
minha figura. Vou até à minha casa em Nazaré, quando sair d<strong>aqui</strong>.<br />
Assim, eles verão que não os temo. E, <strong>para</strong> falar a verdade, o que<br />
poderão fazer comigo? Matar-me?<br />
Nathanael respondeu:<br />
- Acho que os governantes de Roma estão tão mergulhados num<br />
labirinto de injustiças, que não vão se importar se você ainda tece<br />
loas a Joshua. O caso deles agora é manter o poder, o comando e,<br />
quer saber? Manter o medo de dissolver-se <strong>no</strong> próprio emaranhado<br />
que teceram.<br />
- Por que diz isto?<br />
- Ahn, o jogo da política é tolo nas mãos de gente vaidosa. Eu até<br />
agradeço ao Alto por serem tão vaidosos assim, <strong>para</strong> não<br />
encontrarem tão rapidamente o caminho da crueldade.<br />
- Espanta-me que fale assim. Quer maior crueldade do que já<br />
fizeram?<br />
- Eles ainda podem centuplicá-la, Cornélia.<br />
190
- Sim, sim, eu sei. Mas sinto, <strong>no</strong> momento, que o que posso fazer é<br />
muito pouco <strong>para</strong> mudar este encaminhamento. Pouco mesmo.<br />
- Os seguidores de Joshua estão sendo inteligentes, Cornélia. Não<br />
são tão numerosos, porém vão espalhando as mensagens por vários<br />
caminhos. Elas vão seguindo pelas palavras escritas e pelas<br />
palavras contadas. Só assim mesmo <strong>para</strong> alcançarem maior número<br />
de olhos e ouvidos.<br />
- O que você acaba de me dizer me leva agora a pensar em algo.<br />
Quem sabe também posso colaborar escrevendo. Débora já se<br />
propôs a estudar.<br />
- Escrevendo??<br />
- Por que não? Também participei - e com toda minha alma - dessa<br />
História escrita por <strong>aqui</strong>.<br />
- Pense bem <strong>no</strong> que está dizendo, Cornélia - ele olhou-a sério. -<br />
Converse antes de tudo com Nathan. Aconselhe-se com ele.<br />
- Nesses últimos dias eu me sinto como se estivesse dentro de uma<br />
embarcação, onde os remos são empunhados por gente de pulso<br />
firme e com uma boa visão dos rumos e das marés.<br />
- Mas está sendo incoerente, quando se refere a empunhar os seus<br />
próprios remos.<br />
- Por quê? O convite de Débora me fez sentir como se ressoasse<br />
dentro de mim uma cítara bem tocada. Eu acho que posso compor<br />
boas escritas também, Nathanael.<br />
- E acredita que vai influir <strong>no</strong>s anciãos tanto quanto Débora? Não se<br />
esqueça de que ela será apenas uma serviçal. Você está pretendendo<br />
ser uma instrumentista. Não, eu não creio que vai conseguir a<br />
permissão deles <strong>para</strong> isso. Principalmente, porque me parece que<br />
está misturando tudo - escritas sagradas com pensamentos próprios<br />
seus. Procure outra forma de trabalho, Cornélia - ele disse com<br />
rispidez.<br />
191
Trinta e Sete<br />
A permanência de Débora entre os essênios seria de dupla utilidade<br />
<strong>para</strong> ela. Já sabia que todos ali se pre<strong>para</strong>vam, antes de tudo, <strong>para</strong> a<br />
Vida. E isto remetia à prática de virtudes consideradas básicas <strong>para</strong>,<br />
um dia, alcançarem a Sabedoria e a Perfeição <strong>no</strong>s atos e<br />
pensamentos.<br />
Por essa razão é que existiam "faixas de aprendizado e de subida<br />
<strong>para</strong> as iniciações", que tinham a ver tanto com os valores da alma<br />
quanto com os do coração. Os valores da alma referiam-se às<br />
Virtudes. Os do coração eram submetidos às afeições terrenas, <strong>para</strong><br />
que se tornassem capazes de chegar ao caminho da Retidão. E o<br />
caminho da Retidão tinha tudo a ver com Justiça, Continência e<br />
Abnegação <strong>no</strong> servir. Quanto mais servissem - despojados da<br />
intolerância e da vaidade - mais próximos se encontrariam do<br />
Caminho do Meio, aquele que poderia demonstrar que não mais<br />
eram homens extremistas e insensatos.<br />
As práticas ritualísticas realizadas pelos que freqüentavam o<br />
Santuário, <strong>no</strong>s banhos, nas refeições comunitárias, nas meditações e<br />
nas recitações de palavras sagradas, eram um dos meios de que se<br />
utilizavam <strong>para</strong> ir adquirindo "os dons", que uns alcançavam bem<br />
antes do que outros. E eles mesmos se sentiam seguros (ou<br />
inseguros), ao serem convidados <strong>para</strong> se manifestarem livremente,<br />
por ocasião da subida dos degraus, ou troca de "faixas", até o que<br />
significaria <strong>no</strong>va tarefa a ser realizada perante o grupo.<br />
Os essênios eram criaturas criteriosas, estudiosas, amantes do<br />
progresso, das virtudes e da vida. Preocupavam-se, sinceramente,<br />
com o desenvolvimento dos seres. Portanto, era pelo que se<br />
considerava material que treinavam a força <strong>para</strong> alcançarem o<br />
sucesso de seus empreendimentos, isto é, que lutavam <strong>para</strong> não<br />
192
deixar que a matéria sobrepujasse os valores da alma. Por isso não<br />
se apegavam aos bens terre<strong>no</strong>s. Afinal de contas, as almas<br />
pertenciam a Deus.<br />
Viver comunitariamente era também uma forma de vencer o<br />
egoísmo e a usura, principal entrave <strong>para</strong> quem desejava alcançar o<br />
Criador. Os bens de propriedade e as <strong>aqui</strong>sições de cada um eram<br />
revertidos a benefício do grupo.<br />
Débora precisou conhecer estes ditames, <strong>para</strong> que suas orientações<br />
junto às crianças não se desviassem dos pre<strong>para</strong>tivos daquela<br />
Grande Família. Mas seu modo de ser gentil, amoroso, responsável<br />
e respeitoso entregou rapidamente aos anciãos de Qumran a certeza<br />
de que sua presença ali seria útil e valiosa.<br />
Cornélia, por seu lado, procurou Nathan, após a conversa mantida<br />
com Nathanael. Entristeceu-se, porque sentiu que o amigo<br />
considerava dispensável a tarefa escolhida por ela. Mas de Nathan<br />
ouviu o seguinte:<br />
- Vejamos, Cornélia, primeiro de tudo quais são os motivos que a<br />
levam a pensar em escrever?<br />
- Transmitir as mensagens passadas por Joshua e que se referiam ao<br />
Amor do Divi<strong>no</strong> por nós. Em nenhum momento Joshua deixou de<br />
<strong>no</strong>s alertar que tudo o que ele realizava vinha do Pai. Era, portanto,<br />
o Amor do Pai a essência dos ensinamentos do Filho.<br />
- E depois? - Nathan insistiu.<br />
- Depois, falar sobre a Felicidade prometida <strong>para</strong> nós, apesar de <strong>no</strong>s<br />
ter alertado sobre as inúmeras dificuldades <strong>para</strong> chegarmos até ela.<br />
Sei que posso utilizar as minhas próprias palavras até <strong>para</strong> expressar<br />
a sensação de felicidade que Joshua passava apenas por sua<br />
presença, quando se dirigia a cada um.<br />
- Eu sei disso, Cornélia - ele emocio<strong>no</strong>u-se. - As pessoas eram<br />
atingidas por sua vibração amorosa, não apenas pelas palavras.<br />
Vendo-o interessar-se pelo que explicava, continuou:<br />
- Também quero me referir à aceitação que as criaturas deveriam ter<br />
pelos outros seres, pela maneira de ser de cada um, visto que, por<br />
193
esse aspecto, Joshua demonstrava que ninguém deveria lançar<br />
pedras <strong>no</strong>s companheiros. E isto é bem lógico, não é? Nós todos <strong>no</strong>s<br />
igualamos, principalmente, em imperfeições.<br />
- Sim, e ele não fazia questão de realçar a miséria humana.<br />
- Não mesmo. Para ele, nós todos éramos generosos, e isto se <strong>no</strong>s<br />
deixássemos abençoar pela Luz.<br />
- E você deixou, minha amiga?<br />
- Nem sempre. Muitas vezes preferi ficar escondida, por razão de<br />
atos meus dos quais me envergonhava. Eu sabia que ele tudo<br />
enxergava, tudo conhecia, mas que nem assim deixava de me<br />
abençoar, Nathan.<br />
Nathan, então, aconselhou:<br />
- Se você me permitir, não vou me abster de ler a sua escrita, mas<br />
gostaria de acrescentar censuras, se por acaso comentar algo que os<br />
essênios não aprovem. Permite-me isto?<br />
- Só por esta pergunta <strong>no</strong>to que aceita minha proposta e que pensa<br />
diferente de Nathanael. Ele me repreendeu, por achar que vou<br />
misturar o sagrado com o profa<strong>no</strong>.<br />
- Sabe de uma coisa, Cornélia? Eu considero sagradas apenas as<br />
escrituras que chegaram até nós, dos Profetas Antigos, que<br />
baseavam suas experiências em fatos acontecidos com eles mesmos.<br />
Ninguém pode "se pôr fora" de uma escrita. Se fosse assim, ela não<br />
sairia da alma.<br />
- Quer dizer que não renega o fato de eu ser apenas mulher e...<br />
Aí Nathan sorriu:<br />
- Nem creio que Nathanael a renegue também. Certamente ele ficou<br />
acalorado, por ver que você preferia escolher rumos difíceis. Ele<br />
também sabe que não é fácil colocar a própria alma nas escritas.<br />
Além disso, o que você vai a<strong>no</strong>tar não será misturado com <strong>no</strong>ssos<br />
manuscritos, evidentemente. Você mesma deverá se encarregar dos<br />
rumos do que escrever, já sabe disto. Será uma boa forma de investir<br />
<strong>no</strong> mundo dos Homens.<br />
194
Cornélia mostrou-se satisfeita.<br />
- Então, amanhã mesmo vou pedir <strong>para</strong> a Débora me emprestar por<br />
algumas horas a caverna, onde ela própria faz as suas meditações.<br />
- Ora, por quê? - ele questio<strong>no</strong>u, surpreso. - Se há tantas cavernas<br />
por aí...<br />
- Porque eu sei que a dela transcende em luz, Nathan. Débora é uma<br />
criatura de grande valor.<br />
- E você não é?<br />
- Não tenho certeza.<br />
- Melhor assim - ele afirmou e afastou-se <strong>para</strong> seus afazeres.<br />
195
Trinta e Oito<br />
Nem sempre a tranqüilidade imperava em Qumran.<br />
Na ocasião em que Débora e Cornélia abraçaram o caminho das<br />
meditações, abrigadas <strong>no</strong> silêncio daquelas vastidões, muitos<br />
peregri<strong>no</strong>s viajavam por ali levados por outras espécies de atrativos.<br />
A política humana, desde que o mundo é mundo, sempre apresentou<br />
rumos diversificados não apenas pela diversidade dos seres, como<br />
também pelas mudanças dos valores que se vão inserindo por esta<br />
prática, com a passagem contínua dos calendários terre<strong>no</strong>s.<br />
As lições de humildade do Nazare<strong>no</strong>, morto na cruz <strong>para</strong> entregar a<br />
luz do entendimento aos homens, ia seguindo, agora, as rotas<br />
dispostas pelos que se sentiam marcados por Ele. Galiléia, Judéia,<br />
Peréia, Samaria, Iduméia e outros tantos territórios ganhavam o<br />
conhecimento das Parábolas do Mestre e dos casos de cura<br />
considerados miraculosos por muitos.<br />
Casos existiam que levavam as mães às lágrimas - pela recuperação<br />
de seus filhos -, os escravos ao regozijo - pela libertação da alma -,<br />
as crianças à presença do divi<strong>no</strong> - pela certeza de que existiam <strong>no</strong><br />
mundo Anjos misericordiosos e não apenas deuses de barro.<br />
Até os roma<strong>no</strong>s das famílias dos <strong>no</strong>bres e que obedeciam<br />
rigidamente ao comando de seus superiores continuavam à busca de<br />
informações. Alguns - que tinham servido como mantenedores da<br />
ordem, durante e após a passagem de Joshua - não mais<br />
esbravejavam acerca do poderio do simples filho de carpinteiro.<br />
Mas continuavam escudados ou na ig<strong>no</strong>rância ou na indiferença,<br />
como Flavius.<br />
Flavius havia recebido ordem de se aquartelar perto de Jericó,<br />
portanto, nas vizinhanças de Qumran. E ele não desconhecia o<br />
196
<strong>para</strong>deiro de Cornélia, visto que fora informado do fato pelo próprio<br />
serviçal de Cornélia, Timóteo. Timóteo tinha sido avistado por ele<br />
num mercado, enquanto fazia compras de provimentos <strong>para</strong> a casa<br />
de Cornélia em Nazaré, onde ele se encontrava auxiliando uma<br />
serviçal de Cornélia chamada Lina, que substituira Zínia. Ao tomar<br />
conhecimento do <strong>para</strong>deiro daquela mulher que o havia colocado<br />
em má situação, fugindo de sua presença, Flavius logo pensou na<br />
hipótese de ir encontrá-la, <strong>para</strong> retirar informações a respeito de<br />
Qumran. Quem sabe entregaria anzóis <strong>para</strong> ela, e ela os devolveria<br />
com peixes e tudo.<br />
Era uma época de grandes dissenções entre os próprios judeus. Os<br />
que se dedicavam ao sacerdócio – alguns do próprio Sinédrio, mas<br />
que não eram essênios - amavam o conforto e o luxo. Acreditavam,<br />
contudo, que já estavam entregando os seus recados essenciais, pois<br />
ofertavam paz e prosperidade <strong>para</strong> a própria família. Eram<br />
independentes, então, do que Joshua proclamava.<br />
Esses judeus não apreciavam as comunidades dos essênios, visto<br />
que os essênios apregoavam o amor pela vida e o desapego ao<br />
mundo ilusório. E mundo ilusório era exatamente o apego à carne e<br />
às posses materiais. Para quem achava que o progresso financeiro<br />
não devia ser apontado como ig<strong>no</strong>minioso, pecami<strong>no</strong>so ou fatal <strong>para</strong><br />
a evolução das almas, havia muitas diferenças a afastá-los.<br />
Sendo tão grande a variedade de interesses e de ideais, o choque das<br />
opiniões alicerçava as dissenções. Portanto, a união e a fraternidade,<br />
que tanto Joshua relembrava, iam ficando de lado.<br />
Flavius desejava inteirar-se sobre a comunidade de Qumran. Foi ao<br />
encontro de Cornélia e de Nathanael.<br />
A princípio, falou sobre alguns acontecimentos de amigas de<br />
Cornélia.<br />
Celeste vivia em Roma, na magnífica propriedade que comprara de<br />
Teodoro. Com a morte de Lélia, a casa oferecia pesadelos ao<br />
famoso senador roma<strong>no</strong>, de modo que ele não se opôs à proposta de<br />
compra feita a ele por Celeste.<br />
197
Otávia passara a ser figura de relevo em Roma, só que <strong>no</strong> sentido<br />
inverso ao que esta afirmativa faz pensar. Era vista como criatura<br />
fraca da cabeça e do coração. Isso porque havia mudado seu modo<br />
de vida. Havia herdado uma fortuna imensa com a morte de seu pai,<br />
Orígenes, e construiu, em Tiro, uma espécie de abrigo <strong>para</strong> auxílio<br />
de crianças contaminadas pela lepra, doença considerada maligna.<br />
" Talvez até por isso Otávia se tenha desfeito de seu patrimônio pela<br />
metade", pensou Cornélia, quando soube dos <strong>no</strong>vos pla<strong>no</strong>s da<br />
amiga."Tiro, capital marítima da Fenícia, <strong>no</strong> Mediterrâneo, é um<br />
movimentado porto que permite a toda aquela região se pôr em<br />
contato com o mar. Ali a fraternidade essênia tem alianças com<br />
gente estudiosa do distante Oriente, que também possui escolas de<br />
estudos divi<strong>no</strong>s". Cornélia ia pensando rapidamente sobre estes<br />
fatos, pois Nathan havia se referido sobre os inúmeros locais<br />
disseminados em outros territórios, e com a presença de essênios.<br />
Mas Flavius continuava a narrar que não desconhecia as afirmativas<br />
de Otavia, a respeito do que era prosperidade. Ela estava convicta de<br />
que a prosperidade nunca deveria afastar seus vínculos com os<br />
seres, porque não era pela dificuldade das posses ou pelo sofrimento<br />
da fome que as criaturas iriam encontrar a felicidade pela Terra.<br />
- Ahn, Otávia deve estar feliz, pelo que <strong>no</strong>s conta - Cornélia o<br />
interrompeu.<br />
- Acredito que sim - ele teve que concordar. - Mesmo tendo<br />
familiares e amigos tachando-a de insana, parece realmente uma<br />
mulher feliz. Não se diz seguidora de crença alguma e só se afasta<br />
de Tiro <strong>para</strong> a propriedade de Orígenes, que conservou, porque diz<br />
que necessita reencontrar a paz e as vibrações da natureza, de<br />
tempos em tempos. Certamente é difícil a tarefa da convivência e<br />
dos cuidados com crianças doentes. Mas ela continua a venerar os<br />
deuses de seus ancestrais. Talvez apenas por amor a seu pai.<br />
Enquanto conversavam, Flavius analisava os mínimos detalhes das<br />
expressões de Cornélia, atenta a suas <strong>no</strong>tícias. Só que não conseguia<br />
deixar de recordar a fuga planejada por ela, mas não a censurando,<br />
porque a ousadia também ele conhecia de perto. Nem o desaponto o<br />
havia ferido gravemente, quando ele precisou contar a seus<br />
198
superiores sobre o "desaparecimento" daquela de quem ele era<br />
encarregado, e que fugira apenas ajudada por um escravo franzi<strong>no</strong>.<br />
Agora, ali, <strong>no</strong>vamente na presença de Cornélia, pensava em que<br />
rumos deveria seguir, <strong>para</strong> tirar-lhe informações de Qumran.<br />
Mas Cornélia foi ajudada por Nathanael que, adivinhando-lhe as<br />
intenções, comentou:<br />
- Não sei o que me deixa mais feliz, Flavius, se a sua presença entre<br />
nós, ou a certeza de que veio simplesmente <strong>para</strong> confirmar a sua<br />
amizade, apesar da travessura feita um dia por Cornélia a seu<br />
respeito.<br />
Flavius sorriu meio a contragosto.<br />
- Confesso que jamais pensei que as artimanhas fizessem parte da<br />
essência de Cornélia.<br />
- E por que diz isto? - ela perguntou com jeito brincalhão. - Deve<br />
me atribuir qualidades que não possuo, Flavius.<br />
- Absolutamente. Sempre a vi como pessoa séria e sem disfarces. E<br />
nunca soube que se escondesse atrás de qualquer atitude que<br />
considerasse necessária tomar. Pelo me<strong>no</strong>s os que a conhecem, os<br />
amigos e familiares de Tibério, por exemplo, também a apontavam<br />
como mulher implacável, quando desejava algo. Portanto, se a<br />
senhora não desejava seguir comigo naquela viagem, era só me<br />
dizer.<br />
- Não voltemos ao passado, Flavius. Sei que um comandante deve<br />
seguir rumos que garantam as ordens de seus superiores. Mas não<br />
havia clareza <strong>para</strong> mim do que o seu comandante desejava. E é claro<br />
que a sua lealdade seria toda <strong>para</strong> ele; não <strong>para</strong> mim.<br />
Ele olhou-a de viés e prosseguiu:<br />
- Naquela ocasião, eu tinha mesmo uma tarefa a cumprir. Não sei se<br />
a senhora sabe que um homem deve cumprir até o fim <strong>aqui</strong>lo a que<br />
se propôs.<br />
- Está querendo me dizer, por acaso, que deseja completar o papel<br />
daquela época?<br />
199
- E por que não? - ele disse, atrevidamente. - A honra me satisfaz.<br />
- Honra? E o que é que a sua honra tem a ver comigo?<br />
- Tem muito. Quero levar a meus superiores, desta vez, o resultado<br />
de uma tarefa que deixei de cumprir, por causa de seus<br />
planejamentos ocultos.<br />
- Calma lá, meu amigo - aparteou Nathanael. - Você se esquece que<br />
Cornélia se encontra em seu próprio lar.<br />
- Este território está sob as ordens dos roma<strong>no</strong>s, portanto, não estou<br />
entrando em uma casa alheia.<br />
Ao perceber que Nathanael ia zangar-se mais seriamente, Cornélia<br />
propôs diretamente:<br />
- O que deseja realmente de mim?<br />
- Notícias sobre o Homem de Nazaré. Quero saber se ele terá um<br />
substituto. Só isto é de meu interesse - ele garantiu.<br />
Cornélia olhou-o ressentida:<br />
- Pois é uma pena! Perde as informações mais importantes.<br />
- O que preciso só se refere a Roma. Só isto.<br />
- À política de Roma, você quer dizer.<br />
- Pois que seja. E então? Estes muros de Qumran guardam um <strong>no</strong>vo<br />
sucessor?<br />
Cornélia e Nathanael entreolharam-se boquiabertos.<br />
- É isto o que vocês, roma<strong>no</strong>s, acreditam? Que este Santuário se<br />
dedica ao preparo de homens que um dia se prevalecerão sobre<br />
Roma? - indagou Nathanael.<br />
- E por que não? Quem pode <strong>no</strong>s garantir que estes senhores que são<br />
conhecidos como essênios não querem o poder? Não estão eles se<br />
atribuindo a humildade do Nazare<strong>no</strong>? Não apontam os ambiciosos<br />
como venais?<br />
- Ahn!! - exclamou Nathanael, atônito. - Que bom que não<br />
desconhecem alguns de <strong>no</strong>ssos preceitos. Já é alguma coisa.<br />
200
- Não me venha com zombarias, meu senhor - Flavius retrucou,<br />
enérgico. - Nós não somos homens de armas <strong>para</strong> ouvirmos<br />
patranhas como essas. Se os senhores não temem a morte é....<br />
- Nós todos deste Santuário respeitamos a vida. A <strong>no</strong>ssa e a de<br />
todos. Mas engana-se se vê neste Santuário um recinto onde<br />
representamos papéis de vilões. Não somos vilões. Somos criaturas<br />
que amam o progresso do mundo, mas não conseguimos ver o<br />
progresso onde há o desperdício de vidas. Seus governantes pensam<br />
que são deuses e não são.<br />
Flavius calou-se, porque não se sentia ofendido com aquela<br />
acusação. Mas depois acrescentou:<br />
- Não somos deuses, mas somos os organizadores destes territórios.<br />
E <strong>no</strong>ssa organização inclui também este Santuário.<br />
- Nunca!!! - esbravejou Nathanael. - Mais fácil pegarmos em armas<br />
do que vocês investirem sobre nós.<br />
- Isto é uma ameaça? - perguntou, ríspido, aquele homem que<br />
começava a sair de seus parâmetros.<br />
Exatamente nesse momento Débora se aproximou. Estava<br />
meditando, mas sentindo-se angustiada resolveu sair à procura de<br />
Cornélia. Conseguiu ouvir uma parte daqueles diálogos exaltados.<br />
- Posso participar das acusações deste grupo? - ela questio<strong>no</strong>u, mas<br />
com o olhar fixo em Flavius.<br />
Ao ver aquela jovem aproximar-se, tranqüila, de passos ágeis e<br />
graciosos, Flavius comoveu-se. Uma parte de seu passado pareceu<br />
abrir-se <strong>para</strong> ele, ali, ao ver a figura de Débora. Ela era quase a<br />
imagem perfeita de uma de suas irmãs que havia morrido ao<br />
completar os quatorze a<strong>no</strong>s, Lívia.<br />
- Venham, venham comigo - propôs Débora. - Sentemo-<strong>no</strong>s na<br />
tenda, em minha oficina. Lá poderemos esclarecer melhor por que<br />
este oficial <strong>no</strong>s procurou. Deve existir um motivo muito sério <strong>para</strong> a<br />
viagem que ele empreendeu.<br />
201
Trinta e Nove<br />
- Eu o convido a usar de toda sua franqueza co<strong>no</strong>sco, senhor ...<br />
- Flavius - ele se apresentou.<br />
- Pois bem, pelo que pude entender, o senhor acredita que Qumran é<br />
apenas um baluarte político e que é d<strong>aqui</strong> que saem as criaturas que<br />
estão sendo pre<strong>para</strong>das <strong>para</strong> conduzir o desti<strong>no</strong> dos habitantes destes<br />
territórios. Se assim pensam os governadores, os cônsules, os<br />
imperadores, enfim, os poderosos que <strong>no</strong>s rodeiam, vão mesmo<br />
precisar de pessoas como o senhor, que possam estabelecer e<br />
conduzir um maior número de vigilantes perto de nós, a fim de se<br />
protegerem de uma eventual cilada da parte dos essênios. Estou<br />
certa até <strong>aqui</strong>? - ela perguntou cortesmente.<br />
Mas Nathanael olhava, atônito, <strong>para</strong> Débora. Ela conversava com<br />
Flavius como se estivesse imersa numa outra face desconhecida<br />
<strong>para</strong> ele, porque até o timbre de voz era diferente.<br />
Os olhos de Débora, duas contas negras, brilhantes e vivazes,<br />
assemelhavam -se a faróis atravessando o imenso ocea<strong>no</strong>, a refletir<br />
as estrelas iridescentes na escuridão da <strong>no</strong>ite. Ela não se fixava <strong>no</strong><br />
homem, mas na alma do homem, tal qual tivesse o poder de<br />
enxergá-lo em profundo, devassando seus mais íntimos desejos.<br />
Flavius assustou-se. Sentia-se como se fosse ainda um rapazinho,<br />
em conversa com sua irmã Lívia, dois a<strong>no</strong>s mais <strong>no</strong>va do que ele.<br />
Lembrava-se da postura e da maturidade daquela menina que, desde<br />
criança, atraía a atenção dos adultos, por suas falas justas e maduras.<br />
Lívia muitas vezes lhe parecera estranha e incompreensível, porque<br />
adivinhava os seus mínimos pensamentos, como se lesse em sua<br />
alma me<strong>no</strong>s amadurecida. Até lhe oferecia objetos <strong>no</strong>s quais ele<br />
estava pensando, <strong>para</strong> divertir-se com ele.<br />
202
Mas a mãe deles se preocupava assustadoramente com as<br />
disposições apresentadas por Lívia, porque via n<strong>aqui</strong>lo apenas a<br />
manifestação doentia de desejos ocultos. Ela jamais teve<br />
oportunidade de ser esclarecida sobre aqueles fatos, porque, ao<br />
invés de se socorrer nas dúvidas, trancava a menina na casa, com<br />
medo de serem apontadas como uma família onde a maldição se<br />
instalara.<br />
Quando Lívia morreu, a família se dirigiu <strong>para</strong> Roma e foi, então,<br />
que Flavius começou a se pre<strong>para</strong>r <strong>para</strong> ingressar <strong>no</strong> exército<br />
roma<strong>no</strong>.<br />
Entretanto, Flavius em seus momentos de so<strong>no</strong> tinha continuamente<br />
a sensação de que se desprendia de seu corpo físico e ingressava<br />
num espaço que lhe permitia conversar com Lívia.<br />
Foram tantas as vezes que se avistara com ela, que preferiu ocultar<br />
de todos, porque não gostava de ser mesmo apontado como membro<br />
de uma família maldita.<br />
Bem lá <strong>no</strong> fundo, era assim que ele se considerava, de modo que, ao<br />
conseguir ir galgando melhores posições <strong>no</strong> exército, cumpria<br />
rigidamente o que seus superiores ordenavam. Parecia querer<br />
extrapolar até a sua própria essência.<br />
Flavius tinha tomado conhecimento da passagem de Joshua pela<br />
Terra, tinha ouvido contarem histórias fabulosas daquele homem<br />
que a todos curava apenas com a imposição de suas mãos.<br />
Lastimava-se profundamente por não ter encontrado com este<br />
mágico, que poderia, por certo, ter salvado a sua irmã.<br />
Mantinha-se dividido em dois. Uma parte, uma de suas faces, era a<br />
guerreira, a que olhava <strong>para</strong> o seu papel de oficial do exército,<br />
necessitando cumprir com honra as suas tarefas. A outra tentava<br />
entender o que acontecera com Lívia. Tinha certeza absoluta de que<br />
nenhuma das atitudes de Lívia comprovava insanidade, a ponto de<br />
precisar viver trancafiada em casa, como sucedeu.<br />
Além disso, <strong>no</strong> exército conheceu um oficial e, com ele estreitou<br />
amizade. Ele era exatamente como Lívia e também bastante justo<br />
em suas decisões. Mas este amigo passou <strong>para</strong> as hostes do<br />
203
Nazare<strong>no</strong>. Não tinha sido perseguido pelos superiores, embora<br />
tivesse enfrentado a ira dos mesmos. Apenas foi desligado de suas<br />
funções e procurou Flavius, <strong>no</strong> momento da partida, dizendo-lhe:<br />
"Algumas criaturas possuem dons, Flavius, que são considerados<br />
insa<strong>no</strong>s pela maioria. Vou agora tentar entender certas coisas que<br />
acontecem comigo. Sei que entre os essênios encontrarei uma<br />
resposta. Eu vou procurá-los."<br />
O desenrolar desses acontecimentos na vida de Flavius era de difícil<br />
esclarecimento, por ser o povo roma<strong>no</strong> bastante supersticioso e<br />
temente do que considerava "sobrenatural".<br />
Agora ali, em Qumran, Flavius se encontrava feliz. Primeiro, porque<br />
tinha conseguido a oportunidade de ser mandado <strong>para</strong> lá, sem<br />
precisar ferir a honra de sua escolha como oficial. Segundo, porque<br />
até poderia ser esclarecido sobre os fatos sobrenaturais que<br />
acompanharam a vida de sua irmãzinha e de seu companheiro de<br />
armas, que se recusara a viver na cegueira e havia partido em busca<br />
de explicações.<br />
Num pensamento rápido, tudo <strong>aqui</strong>lo tinha vindo à tona, enquanto<br />
ele observava a graciosa moça que aguardava suas explicações. Ele<br />
disse sinceramente:<br />
- Tenho mesmo ordens de descobrir se existem pre<strong>para</strong>tivos <strong>para</strong><br />
alguém tomar o poderio dos roma<strong>no</strong>s. Por outro lado, já verificamos<br />
que os seguidores do Nazare<strong>no</strong> não se movem armados. Mesmo<br />
assim, comenta-se que o Crucificado continua a aparecer <strong>para</strong><br />
alguns seguidores. Então, vou precisar levar a meus superiores um<br />
relato sobre estes fatos e sobre a posição dos habitantes de Qumran.<br />
- Sua alma não me expõe apenas isto - respondeu Débora, incisiva. -<br />
O senhor deseja ser esclarecido sobre acontecimentos dos quais não<br />
entende.<br />
Aquelas palavras de Débora foram um golpe na crença de Flavius,<br />
pois lhe comprovavam que ali não encontraria eventos habituais.<br />
Mas Débora prosseguiu:<br />
204
- Gostaria de adverti-lo, senhor Flavius, de que é chegada a hora de<br />
sua escolha por um de dois caminhos que terá à sua frente d<strong>aqui</strong> em<br />
diante: ou o da alegria, ou o da solidão. Para percorrer o primeiro,<br />
deverá pre<strong>para</strong>r-se <strong>para</strong> entendimentos como esses que sua irmã já<br />
conheceu. O segundo, o senhor trilhará se se mantiver inflexível<br />
sobre as coisas da alma. Já <strong>no</strong>tou que existem mudanças por esses<br />
territórios.<br />
As palavras de Débora eram seguras e ela prosseguia sem vacilar:<br />
- Se deseja ser venturoso, deverá procurar seu companheiro de<br />
armas. Ele pode auxiliá-lo. Não quero dizer com isto que precisará<br />
seguir o caminho do Nazare<strong>no</strong>. Apenas deve se abster de fazer<br />
sacrifícios de animais e tentar também entender o que sua irmã<br />
busca lhe dizer <strong>no</strong>s seus momentos de so<strong>no</strong>.<br />
- Mas isto é uma insanidade!! - ele recusou. - Minha irmã já está<br />
morta e...<br />
- A alma dela não morreu, senhor Flavius. E não houve nem<br />
invenção ou malícia <strong>no</strong>s homens, quando se propagou por tantos<br />
lugares que o Nazare<strong>no</strong> subiu em um raio de Luz, após a sua morte.<br />
Apenas o corpo físico se extinguiu. O Mestre continua realmente a<br />
apontar aos amigos a sua presença. Isto <strong>para</strong> que as sementes<br />
espalhadas por Ele possam frutificar em alguns solos. Se Ele não<br />
comprovasse aos incrédulos que as almas são imortais, poucos<br />
meses depois de sua morte é até provável que muitos de seus<br />
seguidores se absteriam de ir à luta.<br />
- E o que esse homem deseja? Destruir os roma<strong>no</strong>s?<br />
Um leve resquício de sorriso transpareceu <strong>no</strong> rosto da moça, que<br />
continuou:<br />
- Ele é o Deus do Amor. Não da violência.<br />
- Mas ele não percebe que se continuarem as pregações...<br />
Ela atalhou:<br />
- Se continuarem a disseminar a fraternidade, muita crueldade pode<br />
ser eliminada <strong>no</strong>s corações perversos. O senhor pode crer mesmo,<br />
em sã consciência, que os roma<strong>no</strong>s estão sendo frater<strong>no</strong>s?<br />
205
A face guerreira de Flavius logo devolveu:<br />
- Não se consegue pôr ordem nesses territórios com a mão leve.<br />
- Pois você verá que, se assim agirem, estarão escolhendo o<br />
caminho da solidão.<br />
Débora fechou os olhos e num murmúrio termi<strong>no</strong>u:<br />
- Sua irmã é uma criatura feliz. Ela o ama.<br />
Cornélia, maravilhada com aquela seqüência de diálogos, comentou:<br />
- Ah, Débora, só agora estou entendendo o que sua avó me disse, lá<br />
<strong>para</strong> trás, num certo dia.<br />
- E o que foi?<br />
- Que eu só poderia pisar <strong>no</strong>s sagrados lugares trilhados por Joshua,<br />
<strong>aqui</strong> em Qumran, quando eu manifestasse a voz divina. Foi isso o<br />
que você conseguiu. Você, Débora.<br />
Nathanael retrucou energicamente:<br />
- Não se esqueça, Cornélia, que não devemos esclarecer estes fatos<br />
na presença de estranhos.<br />
Flavius entendeu que os assuntos dos essênios tinham mais a ver<br />
com a postura da alma do que com a das armas.<br />
206
Quarenta<br />
Flavius afastou-se de Qumran com as palavras de Débora ressoando<br />
em sua alma. Pela primeira vez, fora tocado pela voz do amor.<br />
Desejava revê-la. Mas <strong>para</strong> um homem <strong>para</strong> quem o amor era quase<br />
como um sinônimo de submissão, ou de rendição, a dor que o<br />
atingia era quase insuportável.<br />
Débora guardara da presença daquele homem um sentimento de<br />
carinho e, ao mesmo tempo, de angústia. Logo que Flavius se<br />
afastou, disse a Nathanael:<br />
- Não sei lhe dizer a razão, mas sinto que este oficial se encontra <strong>no</strong><br />
limiar de uma fronteira perigosa. Como poderíamos ser de valia<br />
<strong>para</strong> ele?<br />
Nathanael esclareceu:<br />
- Existem pessoas que precisam aprender a amar, ou entender,<br />
também, que existe o amor incondicional, Débora. Outras se<br />
mantêm presas ao racional, porque acreditam seriamente que amar é<br />
fraqueza. O que poderia um homem oferecer a uma mulher que se<br />
recusasse a seu comando?<br />
Notando que a jovem permanecia cheia de ansiedade, continuou:<br />
- Por que acha que o Messias veio até nós? Apenas <strong>para</strong><br />
especularmos sobre o amor, ou <strong>para</strong> exemplificá-lo, minha amiga?<br />
Cada um tem nas mãos o direito de dirigir a própria escolha. Nós só<br />
conseguiríamos ajudá-lo, se ele quisesse. Mas tenho <strong>para</strong> mim que<br />
ele só vai permitir isto, quando descobrir o que é a estrada da<br />
solidão. Deixemos que o Messias ponha nele a Luz.<br />
Agora tenho uma proposta <strong>para</strong> você e Cornélia. Nessa semana,<br />
dediquem-se a seus afazeres com intensidade. Na próxima lua <strong>no</strong>va,<br />
vamos conhecer uma das comunidades freqüentada pelo Messias.<br />
207
E <strong>para</strong> lá partiram em uma manhãzinha em que o sol distribuía um<br />
calor forte, deixando mais árido aquele deserto abençoado pelo<br />
Criador.<br />
Débora exultava, porque fora avisada que tinha conseguido em<br />
tempo exíguo avançar dois degraus de sua escalada à iniciação dos<br />
essênios. Mas <strong>para</strong> Cornélia aquela viagem representava uma<br />
pequenina volta às imensas alegrias recebidas, quando acompanhara<br />
os passos de Joshua.<br />
A comunidade que iam conhecer não era tão distante do Santuário<br />
de Qumran. Pode-se até dizer que, se os homens houvessem feito<br />
um corte vertical nas rochas erguidas ali, ela poderia ser considerada<br />
"o quintal" do Santuário. Mas como seguiam a pé, e precisavam<br />
percorrer todo o contor<strong>no</strong> daquelas montanhas altaneiras, levaram<br />
uns bons dias <strong>para</strong> atingi-la.<br />
O núcleo a ser visitado era dos essênios que haviam acompanhado<br />
também de perto a passagem de Joshua e de Yohanan. Não se<br />
diferiam em hábitos e eram amigos de Nathan, que também ia junto.<br />
Nathan possuía parentes afetivos entre eles, portanto, era um lar<br />
desses amigos que primeiro iriam visitar.<br />
A moradia era inserida numa rocha e, <strong>para</strong> alcançá-la, existia um<br />
sistema de transporte <strong>para</strong> o alto, que constava de uma tábua rústica<br />
presa em correntes, e que se erguia com o auxílio de roldanas e da<br />
firmeza dos braços de homens vigorosos. Os homens que os<br />
receberam possuíam os cabelos acobreados.<br />
Um a um, alcançaram um patamar que, dali <strong>para</strong> mais alto, podia<br />
ser transposto por escadas escavadas até a entrada de algumas<br />
moradias.<br />
A caverna era bem larga e arejada. Dentro dela, avistaram um<br />
homem, que se retirou logo após cumprimentá-los. Vestia uma<br />
túnica de linho branco e usava sandálias de fibras trançadas presas<br />
ao tor<strong>no</strong>zelo.<br />
Também faziam parte da família uma mocinha e uma anciã,<br />
provavelmente próxima dos cem a<strong>no</strong>s.<br />
208
Quando a anciã quis saber o <strong>no</strong>me de Cornélia, Nathan se antecipou<br />
em explicações:<br />
- Ela só tem alguns traços de judia, mas não é, Thirza. Seu <strong>no</strong>me é<br />
Cornélia e a mãe dela era romana. E esta outra, Débora, é essênia<br />
como nós. O Nathanael você já conhece.<br />
Mas a anciã ergueu os ombros e disse, cheia de indiferença <strong>para</strong><br />
aqueles dados:<br />
- Já vivi tanto, Nathan, que até me admiro dessas referências sobre<br />
essênios ou não. Recebi tantas visitas... e o Rabi nem era essênio<br />
também. Mas pensa que não sei que elas queriam conhecer uma<br />
casa por onde ele passou? E ela riu, um sorriso de dentes<br />
incrivelmente perfeitos.<br />
Cornélia entendeu que a velhinha se referia a Joshua como Rabi.<br />
A anciã prosseguia feliz de conversar:<br />
- Aquele mocinho <strong>no</strong>s deu lições de valor, hein, Nathan? Dizia que<br />
não era importante a <strong>no</strong>ssa procedência, nem terrena e nem de<br />
grupo. O mundo era todo abençoado pelo Pai. Então - ela ergueu de<br />
<strong>no</strong>vo os ombros fi<strong>no</strong>s e magros -, não me importo muito se existem<br />
nabateus, zelotes, essênios, samarita<strong>no</strong>s, sicarii ou qualquer outro<br />
tipo de gente. O <strong>no</strong>sso grupo <strong>para</strong> mim continua sendo o Rabi - ela<br />
riu de <strong>no</strong>vo. E havia musicalidade em tor<strong>no</strong> daquela velha senhora.<br />
Depois ela fixou Débora e comandou:<br />
- Venha <strong>aqui</strong> perto, menina. Você conheceu o Rabi? E o Yohanan?<br />
Ele também me visitava.<br />
Débora comoveu-se, mas conseguiu reter as lágrimas. A velha fez<br />
que não viu e continuou:<br />
- O Yohanan era cheio de vaidade. As túnicas brancas dele<br />
precisavam ser alvíssimas. Minhas filhas me contavam tudo em<br />
porme<strong>no</strong>res, porque eu não gostava daquelas andanças. Minhas<br />
pernas sempre me incomodaram. E o Yohanan um dia me disse que<br />
assim era melhor. Eu só descobri que era mesmo, quando comecei a<br />
fazer a minha tapeçaria. Se minhas pernas tivessem sido fortes, eu<br />
acho que não ia fazer este belo trabalho que fiz. E ela apontou o<br />
209
tapete do chão, tecido por ela com grande habilidade, e um outro<br />
me<strong>no</strong>r, colocado numa das paredes da caverna.<br />
Querendo participar da conversa, Cornélia comentou:<br />
- Eu já vivi também, um dia, em uma caverna. Mas as minhas<br />
pernas eram fortes e eu fugi.<br />
- Então foi bom você ter sido trazida <strong>para</strong> cá de <strong>no</strong>vo, não pensa<br />
assim? Teve pernas <strong>para</strong> acompanhar o Rabi. Cornélia percebeu que<br />
ela falava convicta, que ela lia na alma humana.<br />
Débora pediu, timidamente:<br />
- Fale-<strong>no</strong>s mais do Yohanan. O que ele era mais, além de vaidoso?<br />
- Um grande homem, um gigante - Débora ouviu de um senhor que<br />
adentrava a caverna naquele instante.<br />
Ele possuía um rosto angular, nem parecia judeu. Disse o seu <strong>no</strong>me<br />
- Simeão. Aproximou-se de Nathanael, apertou-lhe demoradamente<br />
a mão, depois a de Nathan e, dele, se queixou: - Demorou a vir! Não<br />
sabe quantas vezes encerei a tábua que o conduziu até <strong>aqui</strong> em cima,<br />
na esperança de revê-lo e recebê-lo condignamente.<br />
Nathan encabulou-se, mas assegurou:<br />
- Sua amizade é que <strong>no</strong>s favorece, Simeão. E também seus cuidados<br />
com essa <strong>no</strong>ssa querida anciã.<br />
- Como está Qumran? - quis saber Simeão.<br />
- Acho que só vou lhe passar <strong>no</strong>tícias de minha comunidade, depois<br />
que você entregar à minha amiga Débora <strong>no</strong>tícias de Yohanan,<br />
conforme ela acaba de pedir.<br />
Mas a velhinha convocou Cornélia:<br />
- Leve-me <strong>para</strong> o meu leito. Quero repousar um pouco.<br />
Já deitada, Thirza segredou <strong>no</strong> ouvido de Cornélia:<br />
- Será que você é a mulher que seguiu o Rabi e que esteve perto dele<br />
até na cruz? Você não acha que isto já devia estar escrito nas<br />
estrelas? Ela devia ser amiga dele, não pensa como eu?<br />
210
Mas a velhinha seguia falando sem aguardar uma resposta. Quando<br />
Cornélia lhe desejou um bom repouso, a anciã apenas concluiu:<br />
- Gostei de você. O meu <strong>no</strong>me é Thirza, mas você pode me chamar<br />
de Daphné, é um <strong>no</strong>me que gosto. Os <strong>no</strong>mes não importam muito<br />
mesmo. Só as sensações que eles <strong>no</strong>s passam. Daphné... Daphné...-<br />
repetiu a velhinha - parece-me musical. E você tem música até <strong>no</strong>s<br />
ossos. Eu sei muito bem. Agora, vá, vá, deixe-me sozinha, porque o<br />
Simeão já vai falar do Yohanan <strong>para</strong> a Débora. Ah, o Yohanan era<br />
um pecado <strong>para</strong> as mulheres.<br />
Cornélia olhou-a tão assustada, que Thirza explicou:<br />
- Um pecado de tentação, mocinha. Não vê Débora? Ela não vai<br />
jamais esquecer dele. Encontrou diante dela um homem que tinha<br />
um papel a cumprir. Não era <strong>para</strong> ela. Era <strong>para</strong> Deus.<br />
Thirza virou-se de lado e rapidamente adormeceu.<br />
211
Quarenta e Um<br />
A mocinha encarregada dos cuidados da moradia, e de Thirza<br />
também, dispunha vasilhames de barro contendo frutas, queijo,<br />
pãezinhos e mel, sobre o tapete. Naquela casa não existia mobiliário<br />
e os habitantes se acomodavam <strong>no</strong> chão <strong>para</strong> se servirem. Tudo era<br />
rústico e apresentava a simplicidade de uma vida de sacrifícios.<br />
- A avó sempre se refere a Daphné, quando é visitada por alguém de<br />
quem gosta, Cornélia. Ela pensa que não ouvimos, quando falou -<br />
esclareceu Simeão. - Você é grega de origem?<br />
- Não, mas minha ama-de-leite, e que mais tarde passou à função de<br />
minha aia e amiga, era grega. Por ela, conheço bastante da mitologia<br />
desse povo estudioso e cheio de simbologia. Talvez pelas instruções<br />
que me foram dadas por ela e por um professor, que me<br />
acompanhou desde menina - grego também -, tenho a Grécia<br />
guardada bem <strong>aqui</strong> dentro do coração - ela falou comovida.<br />
- Está entendido, então, por que ela se referiu à sua musicalidade.<br />
Foi esse povo que <strong>no</strong>s trouxe as artes musicais. Mas, venha, sente-se<br />
<strong>aqui</strong> a meu lado.<br />
Depois de alguns momentos de silêncio, Simeão comentou:<br />
- A avó nem sempre se pautou pela musicalidade. Ainda que<br />
sustentando esta casa <strong>no</strong>s afazeres domésticos, deixou-se extinguir,<br />
pouco a pouco, em sua fé, principalmente após a partida de<br />
Yohanan, que era seu maior raio de luz. Era Yohanan que conseguia<br />
manter o vínculo de Thirza com o mundo lá de fora. Era ele que<br />
apontava <strong>para</strong> ela o céu de esplendor, ensinando-lhe as primeiras<br />
letras do aprendizado essênio.<br />
Graças a Yohanan, ela começou a entender o valor da vida e dessas<br />
moradias da Terra e de outras, que <strong>no</strong>s aguardam, a fim de<br />
212
seguirmos <strong>no</strong>vas etapas de aprendizado. Yohanan era <strong>para</strong> ela o<br />
próprio Apolo, empunhando a lira maravilhosa do Amor. Mas,<br />
infelizmente, a chama do amor que ela mantinha viva, enquanto ele<br />
também vivia, extinguiu-se... e muito rapidamente.<br />
Quando Yohanan começou a sua peregrinação, e levava as criaturas<br />
a se purificarem <strong>no</strong> rio Jordão, a avó começou a captar os tempos<br />
terríveis que viriam pela frente <strong>para</strong> ele. Tão assustada ficou pelas<br />
mudanças que antecipava - e sem entender a razão -, que começou a<br />
perder o movimento das pernas. Ela transportou <strong>para</strong> ela mesma a<br />
imobilidade que os homens ofereceriam a Yohanan.<br />
Mas Yohanan, tocado por um raio de luz, também sabia que Thirza<br />
precisava trocar os trajes que vestia por vestes mais <strong>no</strong>vas e cheias<br />
de luz. Assim, não interferiu, quando a situação dela se agravou.<br />
- É, ela me disse que ele havia falado que era melhor assim.<br />
- Yohanan jamais desconheceu os mecanismos de cura que se<br />
processam, invariavelmente, diante das criaturas de fé. Mas ele<br />
sabia também quais agravos podem ser ofertados <strong>para</strong> quem<br />
interfere na livre escolha de cada um. Nosso Mestre, o Nazare<strong>no</strong>,<br />
curava a multidão. Mas a tarefa de Yohanan era diferente. Ele não<br />
se colocava como instrumento de cura, porque a ânfora que<br />
carregava era <strong>para</strong> relembrar os homens da cegueira diante das Leis<br />
Divinas. Era esta a tarefa primordial a que Yohanan se dedicou.<br />
- Então por que ela se referiu a Yohanan como um vaidoso? -<br />
perguntou Débora.<br />
Simeão riu à larga. - Você se refere à túnica alvíssima?<br />
- Sim - ela respondeu meio confusa.<br />
- Não era à vaidade terrena de se usar uma veste muito branca, <strong>para</strong><br />
ser admirado pelos homens como um cuidadoso <strong>no</strong>s trajes, Débora.<br />
Yohanan entendia muito bem que os valores terre<strong>no</strong>s são ilusórios.<br />
A túnica alvíssima a que Thirza fez referência era a da alma. Ele<br />
desejava alcançar a perfeição. E, <strong>para</strong> isso, preparou-se com honra,<br />
dignidade, respeito, lealdade e perseverança. Sentiu-se muito<br />
213
honrado por participar dessa vida com Joshua, que ele sempre soube<br />
que era o Mestre dos Mestres.<br />
- Eu conheci Yohanan - disse Cornélia. - Eu o ouvi uma vez às<br />
margens do Jordão. Era um homem inflamado <strong>no</strong> falar.<br />
- Realmente - Simeão confirmou. - Eu tive oportunidade de lhe<br />
dizer, um dia, que ele era a Fúria dos Ocea<strong>no</strong>s e o <strong>no</strong>sso Messias, a<br />
própria lira do Orfeu. Duas almas a se expressarem de maneiras<br />
distintas, mas de mãos dadas num mesmo ideal, o ideal do amor ao<br />
Criador, que <strong>no</strong>s enviou o seu Angélico Filho <strong>para</strong> diminuir as<br />
<strong>no</strong>ssas agruras <strong>aqui</strong> na Terra.<br />
- Quer dizer que sempre haverá uma livre escolha <strong>para</strong> as tarefas? -<br />
perguntou Débora, emocionada por sentir-se um pouco mais ligada<br />
a Yohanan, ainda que fosse através dessa simples conversa.<br />
- Sim. Mas é claro que o Deus de Amor sabe melhor do que nós o<br />
que é a ig<strong>no</strong>rância ou a crueldade. Para cada caso há um caminho<br />
<strong>para</strong> a cura.<br />
- Não sei se seria uma intrusão de minha parte perguntar-lhe quem<br />
Yohanan era <strong>para</strong> o senhor - Débora acrescentou.<br />
- A minha lira, Débora, a minha lira. Eu o ouvia falar sobre seus<br />
inúmeros propósitos <strong>para</strong> servir. Portanto, ele é que me inspirava<br />
<strong>para</strong> meus atos. Por causa dele, compus algumas canções diferentes<br />
por <strong>aqui</strong>. Eu o amava como a um filho e, graças a ele, consegui<br />
atravessar, incólume, meus propósitos <strong>para</strong> ser um bom essênio.<br />
Hoje sou um servidor em uma comunidade, na mesma posição de<br />
Nathan, em Qumran. Mas tenho uma longa jornada <strong>para</strong> ser, um dia,<br />
como o Mestre dos Mestres. Uma longa jornada - ele repetiu,<br />
olhando <strong>para</strong> Débora.<br />
214
Quarenta e Dois<br />
A <strong>no</strong>ite já descia, quando os visitantes alcançaram, não tão distante<br />
dali, umas choupanas que serviam de abrigo a serviçais da<br />
comunidade dirigida por Simeão, que iriam conhecer <strong>no</strong> dia<br />
seguinte. Eram construídas com juncos e cobertas com palhas tão<br />
bem entrançadas, que nenhum vão permitia avistar a claridade da<br />
imensa lua prateada vigilante daquele dia.<br />
Nathan e Nathanael dormiram rapidamente <strong>no</strong>s catres, cobertos<br />
pelos próprios mantos. Mas Simeão, não tendo conseguido pegar <strong>no</strong><br />
so<strong>no</strong>, pegou uma candeia e foi caminhar. Se desejasse, poderia<br />
alcançar o local de sua comunidade, porque lhe bastaria atravessar<br />
um peque<strong>no</strong> filete de água e depois uma trilha ladeada de bambuzal,<br />
até o pátio fronteriço do Templo, cheio de bancos e com árvores já<br />
centenárias.<br />
Sua inquietação era saudável, não um presságio de maus<br />
acontecimentos e nem a ansiedade de poder levar as mãos <strong>para</strong> algo<br />
que não lhe pertencia. Ele era um prosélito do Cristo. Conhecia as<br />
escrituras sagradas e havia seguido Yohanan bem de perto, ouvindolhe<br />
as sentenças bem colocadas, e sentindo o valor dos ideais<br />
daquele homem que ele considerava do mesmo modo que<br />
considerava os Raios e os Trovões.<br />
Muitas vezes o vira exaltado, fremente de frustrações e de<br />
desenga<strong>no</strong>s, heróico em sua abnegação <strong>para</strong> com o Mestre dos<br />
Mestres. Yohanan era de uma devoção indefinível <strong>para</strong> com seu<br />
primo Joshua, a quem só não imitava porque conhecia o valor que<br />
tem cada um, valor este emanado da Fonte de Origem de todos - o<br />
Amorável e Justo Criador.<br />
Assim, entendia que, se ele era o Raio ou o Trovão, outros seriam a<br />
Tocha que se eleva <strong>no</strong> mundo <strong>para</strong> iluminar a cegueira dos homens<br />
215
fracos. E que nenhum deles por ali se assemelharia ao Mestre <strong>no</strong><br />
sacrifício e <strong>no</strong> Amor, porque o sacrifício do Amor de Joshua era o<br />
que levaria a humanidade a procurar em si o Amor verdadeiro.<br />
Joshua seria sempre a Esperança dos homens.<br />
Todo voltado <strong>para</strong> essas reflexões, viu surgir diante dele a jovem<br />
Débora, trajada de forma diferente, não como uma judia. Era uma<br />
criaturinha quase diáfana e caminhava segurando a mão de um<br />
garotinho de seis a sete a<strong>no</strong>s, de roupinha branca, como o habitual<br />
entre os essênios.<br />
Os olhos negros do garoto cintilaram, ao se ver perto de Simeão,<br />
jogando-se <strong>no</strong>s braços dele com imensa ternura.<br />
- Por onde andava, meu pai? - ele perguntou, ainda com os braços<br />
enleados <strong>no</strong> pescoço de Simeão.<br />
Simeão passou a mão pelos olhos, <strong>para</strong> disfarçar as lágrimas, e<br />
sorriu agradecido <strong>para</strong> Débora.<br />
Ela brincou:<br />
- Não precisa esconder a emoção, meu amigo. Esta é uma verdade<br />
que precisa ser retratada na face de cada um. Viu como o seu filho<br />
logo o reconheceu, mesmo tendo sido gerado por você em outro<br />
tempo? Aos olhos dele, e pelo amor que guarda de sua figura, o<br />
senhor ainda é seu verdadeiro pai, o pai amoroso do qual ele jamais<br />
esqueceu.<br />
Simeão naquele instante foi projetado pelos mecanismos da<br />
memória ao tempo em que viveu como genitor daquele garotinho.<br />
Mas preferiu perguntar <strong>para</strong> Débora de onde o conhecia, e o que ele<br />
representava <strong>para</strong> ela nessa existência que percorriam juntos.<br />
Ela sorriu feliz. - Ele é um dos filhos de essênios de quem tomo<br />
conta agora. E... sabe? Desde que me encarreguei do trabalho junto<br />
dessas crianças, vem-me acontecendo isso que você vê. Eles me<br />
procuram <strong>no</strong> momento em que mergulham <strong>no</strong> so<strong>no</strong> e me pedem<br />
<strong>para</strong> visitar as pessoas que são especiais <strong>para</strong> seus coraçõezinhos. E<br />
muitas vezes ele me pediu <strong>para</strong> falar com o Simeão. Mas só agora<br />
pude atendê-lo. Você também sabe muito bem que o tempo que<br />
216
conta não é o <strong>no</strong>sso. É o do Criador. E o tempo do Criador - estou<br />
aprendendo isto - <strong>no</strong>s entrega motivos e tarefas <strong>para</strong> que <strong>no</strong>s<br />
encontremos. O motivo dessa adorável criaturinha é o amor por<br />
você. E o meu é mostrar <strong>para</strong> você, Simeão, que cuido de uma<br />
criança que lhe pertence, ou melhor, que lhe é ligada por um afeto<br />
imorredouro.<br />
Simeão emocio<strong>no</strong>u-se. Na solidão de seus caminhos, dedicado a<br />
trabalhos que lhe cobravam inúmeros sacrifícios, via-se de repente<br />
presenteado com a aparição de um filhinho - uma alma amorável<br />
ligada a ele por sentimentos desinteressados, pelo amor<br />
incondicional.<br />
Abraçou-se ao garoto e não estranhou, ao reconhecer que não era<br />
um corpo físico que abraçava. Como um essênio estudioso das<br />
possibilidades terrenas de cada ser, entendia perfeitamente que ele<br />
próprio se havia desdobrado, <strong>para</strong> ganhar em seus braços aquela<br />
alminha que também se prendia ao corpo físico pelo cordão<br />
prateado. Todos os três, ali, recebiam de Deus a oferta magnífica da<br />
vida em comunhão, ainda que participantes de trabalhos e<br />
aprendizado em cenários diferentes.<br />
Embargado pela ternura, ouviu do garotinho:<br />
- Não chore, meu pai. Débora me disse que agora a gente vai poder<br />
se encontrar muitas vezes. Na próxima, vou trazer <strong>para</strong> o senhor ver<br />
os desenhos que gosto de fazer. Eu acho que o senhor vai gostar.<br />
Débora acercou-se do garoto, colocando-se de joelhos <strong>para</strong> estar<br />
mais próxima, e pediu:<br />
- Agora, Rúben, diga-lhe a palavra que já sabe, porque já vamos<br />
partir.<br />
- Shalon! - ele atendeu, e deu a mãozinha <strong>para</strong> Débora, sorrindo e<br />
olhando <strong>para</strong> trás, enquanto se afastavam.<br />
A lua fizera-se maior? Ou era a impressão do coração de Simeão<br />
que a agigantava? Ele permaneceu sentado num banco de pedra, até<br />
asserenar-se. Depois, prometeu-se que contaria a Débora o<br />
217
sucedido, se ela porventura esquecesse daquela visita <strong>no</strong>turna, fato<br />
que inúmeras vezes acontece <strong>para</strong> grande parte das criaturas.<br />
218
Quarenta e Três<br />
A manhã que despertou os viajantes era de vigoroso sol. As cabanas<br />
já se encontravam vazias, porque os servidores que nelas se haviam<br />
abrigado há muito haviam seguido <strong>para</strong> a comunidade que estava<br />
sob cuidados de Simeão.<br />
Débora e Cornélia foram as últimas a despertarem e encontraram<br />
Nathan, Nathanael e Simeão em franca e agradável conversa.<br />
- Conseguimos apenas algumas frutas e leite de cabra <strong>para</strong> vocês -<br />
desculpou-se Simeão. - Colocamos ali, em cima daquela pedra.<br />
Débora riu, porque a pedra possuía exatamente o <strong>formato</strong> de uma<br />
mesa. Uma oferta generosa do próprio Criador.<br />
Serviram-se, enquanto ouviam de Nathan:<br />
- Nossa ida até lá será bastante rápida. Voltaremos à tarde e faremos<br />
<strong>no</strong>va <strong>para</strong>da por <strong>aqui</strong>. Amanhã retornaremos a Qumran, só que <strong>no</strong>s<br />
utilizaremos de montarias providenciadas por Simeão. Isto porque<br />
<strong>no</strong>sso percurso não será o mesmo da vinda.<br />
Seguiram a pé, trocando idéias, e Simeão referiu-se à visita do<br />
meni<strong>no</strong> Rúben, levado até ele por Débora. Ela encantou-se, mas não<br />
se lembrava do episódio. Apenas guardava a sensação de que<br />
realmente havia encontrado com gente amorosa, durante o so<strong>no</strong>.<br />
Depois, Cornélia comentou com Simeão sobre as palavras de<br />
Thirza. O comentário da anciã não ficara esquecido <strong>para</strong> ela.Thirza<br />
lhe havia perguntado se ela havia acompanhado Joshua até a cruz, e<br />
havia feito referência à amizade daquela mulher com Joshua, uma<br />
amizade que estava escrita até nas estrelas.<br />
- É impressão minha - disse Cornélia - que Thirza se referia a Maria<br />
de Magdala, não a mim. Mas também penso que as mulheres todas<br />
219
são como Maria de Magdala, por isso não importa o <strong>no</strong>me que<br />
levam em seus aprendizados de vivência na Terra. Qual mulher não<br />
vacilou em seus caminhos? Qual não cometeu deslizes? Qual não<br />
buscou encontrar o verdadeiro afeto, seguindo muitas vezes<br />
escolhas enga<strong>no</strong>sas? Maria de Magdala é <strong>para</strong> mim expressão de<br />
amor incondicional, de amor puro, sublime, de devoção. Ela soube<br />
entender perfeitamente que Joshua era um Anjo, tanto quanto<br />
Débora intuiu que a tarefa de Yohanan a levaria <strong>para</strong> distante dele.<br />
No momento em que Cornélia comentava isto, ressou por aqueles<br />
arredores um forte som. Assemelhava-se ao ouvido por ela certo dia<br />
de Nazaré, quando uma procissão de neófitos estranhos tangia uma<br />
placa de bronze, anunciando sua passagem por caminho que levaria<br />
a uma grande praça. Naquela ocasião, ela havia desfalecido e tinha<br />
sido auxiliada por um de seus escravos, relembrando, então, um<br />
trecho de sua existência na Índia.<br />
A mesma angústia que <strong>aqui</strong>lo lhe provocara se repetiu, embora se<br />
mantivesse em pé. Mas Simeão <strong>no</strong>tou, porque se tor<strong>no</strong>u pálida e<br />
pediu <strong>para</strong> repousarem.<br />
Atravessaram por um tronco de árvore, que fazia às vezes de uma<br />
pontezinha sobre um peque<strong>no</strong> riacho. Logo depois, sentaram-se<br />
sobre raízes de árvore frondosa.<br />
Simeão tentou auxiliá-la.<br />
- O som que ouviu não tem nada a ver com a minha comunidade,<br />
Cornélia. Nela, não temos necessidade de sons <strong>para</strong> <strong>no</strong>s<br />
organizarmos em <strong>no</strong>ssos horários.<br />
Nathan acrescentou:<br />
- Em Qumran também já não temos necessidade de avisos exter<strong>no</strong>s.<br />
Nem mesmo quando chegarão companheiros. Nossas almas já<br />
atingiram algumas facilidades, <strong>para</strong> <strong>no</strong>s conduzirmos e <strong>para</strong><br />
anteciparmos também alguns eventos. Até mesmo fatos tão simples<br />
como a chegada de visitantes.<br />
- Poderiam mesmo saber quando alguém estivesse a caminho <strong>para</strong><br />
visitá-los? E sem o auxílio de anunciantes? - perguntou Débora.<br />
220
- Sim, isso faz parte de <strong>no</strong>ssos preparos. - comentou Nathanael.<br />
- Então quer dizer que há outras comunidades que não seguem o<br />
mesmo pla<strong>no</strong> de Qumran?<br />
- Só em parte - esclareceu Nathanael. - Simeão, por exemplo,<br />
pre<strong>para</strong> os aprendizes de primeiro grau <strong>para</strong> o seguinte. Mas<br />
algumas criaturas são capazes de se transferirem até <strong>para</strong> o terceiro<br />
grau, por suas próprias virtudes, pulando o intermediário. E, se elas<br />
quiserem continuar, precisam sair dali e dirigir-se a Qumran. Lá,<br />
terão que aceitar as condições das metas oferecidas por aquela<br />
comunidade.<br />
- São então como liceus pre<strong>para</strong>tivos de estudos? - perguntou<br />
Débora.<br />
- Evidentemente, mas cada um deles especializado n<strong>aqui</strong>lo que o<br />
próprio instrutor-chefe adquiriu - respondeu Nathanael, já se<br />
mostrando meio impaciente.<br />
- Quer dizer que Simeão só adquiriu preparo <strong>para</strong> a iniciação até o<br />
segundo nível? - quis saber Débora, ingenuamente, olhando <strong>para</strong><br />
ele.<br />
Nathan riu a bom valer. Simeão olhou-a com carinho. Nathanael, <strong>no</strong><br />
entanto, disse com rispidez:<br />
- Eu ficaria embaraçado e até infeliz se alguém me fizesse esta<br />
pergunta, Débora. Mas continuou: - Não, Simeão é homem muito<br />
culto. Preparou-se desde mocinho. Não se esqueça de que esteve<br />
perto de Yohanan. Espero que não ache que os estudos dos essênios<br />
se limitem apenas ao campo da religiosidade. O conhecimento das<br />
Leis Divinas e da alma humana, Débora, exige outros tipos de<br />
direcionamento <strong>para</strong> a visão dos homens.<br />
Ela olhou <strong>para</strong> Simeão, encabulada.<br />
- Perdoe-me, estou apenas iniciando e...<br />
Mas Nathanael voltou ao ataque, com rigidez:<br />
- Os essênios não se limitam ao estudo das Escrituras Sagradas dos<br />
Profetas Antigos. Precisaram conhecer a cultura do mundo, <strong>para</strong> se<br />
221
disporem a fazer parte de uma organização tão importante quanto<br />
esta - aguardar o Mestre dos Mestres. Têm em mãos a cultura de<br />
outros povos, também, <strong>para</strong> ler e entender.<br />
- Nós <strong>no</strong>s interessamos por tudo, Débora - disse Simeão, que não se<br />
mostrava nem um pouco ofendido. - Procuramos <strong>no</strong>s inteirar da<br />
formação dos homens, desde os tempos das cavernas bem mais<br />
primitivas do que as de agora, até a passagem de outras culturas<br />
milenares entre nós. Não estamos voltados apenas à história do povo<br />
hebreu. Os hebreus têm a sua importância, tanto quanto os outros<br />
povos também tiveram.<br />
Mas Cornélia exaltou-se, porque havia visto <strong>no</strong>s olhos de Nathanael<br />
um certo desdém pelas respostas dadas por ele a Débora, em seus<br />
ingênuos questionamentos. Até então se calara, mas não conseguiu<br />
permanecer sem dar um revide. A atitude dele <strong>para</strong> com Débora era<br />
vista por ela como zombaria.<br />
- Pois eu estranho também que vocês não mantenham um único<br />
ponto de vista - ela ponderou. - Já conheci alguma coisa sobre os<br />
sábios da antiguidade - ela olhou <strong>para</strong> Nathanael em desafio. Mas e<br />
daí? - comentou abespinhada. Você, Nathanael, parece olhar as<br />
mulheres como criaturas merecedoras de terem nas mãos apenas<br />
utensílios domésticos. Sem capacidade nenhuma <strong>para</strong> atingirem "os<br />
grandes cumes que só aos homens estão reservados". Mulheres? -<br />
ponderou com mágoa - precisam apenas trajar-se como tais e ganhar<br />
o papel de simples guardiães dos lares. Cultura <strong>para</strong> elas? Por quê?<br />
Para quê?<br />
- Não se ofenda assim - disse Nathan. - Ele não falou por mal.<br />
Ela ergueu os ombros.<br />
- Desculpe-me, Nathan, mas pouco importa mesmo. Nathanael não<br />
está acompanhando as mudanças do mundo, pelo que vejo.<br />
Continua firme na idéia de que <strong>para</strong> as mulheres basta um tear nas<br />
mãos. Elas precisam continuar a ser fiandeiras. Não instrumentistas<br />
- conforme ele me disse num outro dia, e claramente. Eu entendi<br />
perfeitamente que é assim que ele sente. Pois saiba, senhor<br />
Nathanael - ela continuou, irada -, que também conheço os homens<br />
222
valorosos da Grécia. Também já li Sócrates e alguma coisa de<br />
Platão. Sei, por exemplo, que Ptolomeu entendia o valor das<br />
mulheres, apesar de seus estudos evoluídos. Conheço a vida de<br />
Siddartha Gautama, o Budda, e de tantos outros que sabiam muito<br />
bem transmitir seus ensinamentos sem ofensas. Aprendi muito e<br />
sem precisar ter escritas nas minhas mãos, porque soube ouvir as<br />
pessoas que me ensinavam. Não precisei ler a quantidade de<br />
manuscritos que deve ter lido, mas soube que Joshua era um Ser<br />
Angélico, sem ter lido isto em manuscrito nenhum. Percebi isto por<br />
mim mesma, pelo que sou. E sei que Débora sentiu também o<br />
quanto eram valorosos Joshua e Yohanan, embora esteja se<br />
iniciando entre vocês.<br />
Agora, Nathanael mostrava-se embaraçadíssimo com aquela<br />
enxurrada de afirmações que eram perfeitamente verdadeiras,<br />
porque ele a enxergava como uma mulher sensível, emotiva... e<br />
chorona - nada mais.<br />
Nathan coçou a cabeça, mas tomou a resolução que sentiu ser a<br />
melhor, naquela contingência.<br />
- Eu sempre entendi que as <strong>no</strong>ssas passadas <strong>no</strong>s levarão exatamente<br />
ao caminho que o Criador escolhe como o melhor <strong>para</strong> nós. E <strong>para</strong> o<br />
Criador não há enga<strong>no</strong>s ou ciladas. Portanto, voltemos agora <strong>para</strong><br />
Qumran. Nós todos precisamos <strong>no</strong>s asserenar e a visita que faríamos<br />
<strong>aqui</strong>, na comunidade de Simeão, até perderia o sentido, devido a<br />
este triste acontecimento.<br />
Simeão conversou mais um pouco e não quis discordar de Nathan.<br />
Entrou desacompanhado em sua comunidade. Uma oportunidade<br />
tinha sido perdida pela entrada da desarmonia <strong>no</strong> grupo.<br />
Chegaram em Qumran tristonhos e Cornélia arrefeceu. Não que<br />
tivesse desistido de seus propósitos, porque os ideais que mantinha<br />
não eram circunscritos aos olhares que lhe lançavam algumas<br />
pessoas. Mas achava que já era hora de procurar <strong>no</strong>vos caminhos.<br />
Visitaria sua casa de Nazaré. Depois... veria.<br />
223
Quarenta e Quatro<br />
Cornélia saiu de Qumran e foi <strong>para</strong> Nazaré, onde passou uns tempos<br />
apenas <strong>para</strong> vender sua propriedade. Depois, afastou-se<br />
definitivamente daqueles territórios e foi morar na Gália, onde<br />
termi<strong>no</strong>u seus dias.<br />
No a<strong>no</strong> 70, portanto, 37 após a morte do Nazare<strong>no</strong>, havia<br />
completado 62 a<strong>no</strong>s. Realizara seu desejo de visitar a Índia,<br />
convivendo com criaturas de diferentes castas. Agora já conseguia<br />
ver aquele povo sem melancolia. Eram simplesmente criaturas de<br />
hábitos e costumes diferentes, mas que também sabiam amar,<br />
sofriam e se entregavam ao aprendizado do amor universal tanto<br />
quanto os povos ocidentais.<br />
Sua única ligação com seus dias pretéritos era feita com o auxílio de<br />
Débora. Fora esta amiga de tantos a<strong>no</strong>s que desenvolvera um<br />
sistema de comunicação, utilizando as viagens de amigos lá de<br />
Qumran <strong>para</strong> enviar as suas mensagens. Assim, acompanhou a<br />
distância os eventos vividos por Paulo de Tarso, Pedro, a mãe do<br />
Mestre, Nathanael, Simeão e tantos outros seguidores, como<br />
Licínio, que também acabou a vida de forma tristonha.<br />
A última mensagem de Débora lhe fora enviada <strong>no</strong> a<strong>no</strong> 69,<br />
exatamente o a<strong>no</strong> que antecedeu a destruição de Qumran pelos<br />
roma<strong>no</strong>s.<br />
Esta mensagem Cornélia não se cansava de reler. Constituía <strong>para</strong> ela<br />
o final daqueles dias tão cheios de contradição e, ao mesmo tempo,<br />
de tanto amor vivido entre seres que tiveram a graça de ter a seu<br />
lado a presença do Mestre dos Mestres.<br />
Assim havia escrito Débora:<br />
“Saudações, Cornélia<br />
224
Nos últimos dias tenho sentido dentro de mim a profunda certeza de<br />
que uma onda gigantesca <strong>no</strong>s atingirá. O Santuário que tanto amo<br />
será penetrado por homens que continuam a temer a perda do poder<br />
e vêem em nós os seus agressores.<br />
O Império Roma<strong>no</strong> vai agigantando seus passos, com uma ousadia<br />
só invejável <strong>para</strong> aqueles que não entendem que a alma humana é<br />
frágil, quando se desvia dos rumos do respeito pela integridade dos<br />
povos.<br />
Até esses dias, conseguimos <strong>no</strong>s manter ilesos, porque os roma<strong>no</strong>s<br />
não conseguiram resultado positivo numa estratégia utilizada<br />
ultimamente. Qual? Uma tentativa de enredar “irmãos contra<br />
irmãos”, porque sabiam que os poderosos do Sinédrio não viam a<br />
simplicidade dos essênios como necessária.<br />
Com o que esses guerreiros capciosos não contavam, era com o fato<br />
de que os sacerdotes do Sinédrio e os judeus que não viam o Mestre<br />
senão como um revolucionário se manteriam unidos em respeito a<br />
Qumran, quando vissem este local ameaçado. Não sou versada em<br />
política, minha amiga, mas confesso que estou temerosa, embora<br />
acredite na força e na sagacidade também de <strong>no</strong>ssos amigos<br />
essênios. Se não fossem intrépidos e valentes, há muito os grandes<br />
senhores roma<strong>no</strong>s já os teriam expulsado deste Santuário.<br />
Creio que cada um de nós, vivendo esses dias difíceis e de<br />
embaraços, conseguiu analisar mais apropriadamente os valores<br />
reais do mundo – os do espírito superando de muito os materiais.<br />
A presença do <strong>no</strong>sso Messias vencerá os tempos e percorrerá o<br />
mundo com o exemplo que, um dia, será seguido por todos que<br />
conservarem a centelha do amor <strong>no</strong> coração.<br />
Também creio que mesmo os que viram o Nosso Mestre como um<br />
simples interessado num rei<strong>no</strong> terre<strong>no</strong> sairão d<strong>aqui</strong> marcados<br />
fortemente pelo espetáculo infamante de um sacrifício injusto do<br />
Filho do Deus. E disso jamais se esquecerão. Nossos corpos<br />
permanecerão por <strong>aqui</strong>, mas <strong>no</strong>ssas almas possuem “memória”.<br />
225
Agora passemos à parte amena desta mensagem. Lembra-se de<br />
Josiel, o filho de Boanerges?<br />
Ele fez seus estudos na Grécia. Boanerges sempre se referiu a você<br />
com devoção, de modo que o rapaz pretende procurá-la. A morte de<br />
Boanerges e Rute o tem levado a procurar os verdadeiros amigos de<br />
seus pais. Mais dias me<strong>no</strong>s dias estará na presença desse homem<br />
que, desde bebê, a reconhecia como amiga. Quando me referi a esta<br />
passagem, ele sorriu. É caladão e tímido. Você verá.<br />
Quem permaneceu em <strong>no</strong>sso meio é o garotinho que ficou a meus<br />
cuidados, Rúben. Ele conseguiu acompanhar a vida de Simeão uns<br />
bons dez a<strong>no</strong>s. Permanecerá <strong>aqui</strong> como sacerdote, até que o Criador<br />
disponha de <strong>no</strong>ssas vidas <strong>para</strong> outras <strong>para</strong>gens. Ele passou<br />
rapidamente pelas iniciações. É um homem dig<strong>no</strong> e cheio de retidão.<br />
Reservo-me o direito de fazer uma excelente surpresa <strong>para</strong> você.<br />
Você a alcançará <strong>no</strong> dia de seu encontro com Josiel. Não posso lhe<br />
explicar como consegui isto, porque perderia o sabor de surpresa.<br />
Portanto, encarrego Josiel de ser “o mensageiro dos deuses”.<br />
Que seus pensamentos me alcancem, unam-se aos meus, e recolham<br />
a amizade que ofereço <strong>para</strong> você, hoje e sempre.. Débora.”<br />
226
Quarenta e Cinco<br />
Josiel chegou acompanhado de dois amigos da Grécia e tinha a seu<br />
lado a “surpresa” referida por Débora em sua última carta. Era<br />
Zínia.<br />
Cornélia e sua antiga serviçal não se cansavam de se abraçar, como<br />
se desejassem reter nesse abraço o calor, a alegria e as bênçãos que<br />
haviam recebido, juntas, nas inúmeras vezes que puderam<br />
compartilhar das palavras de Joshua em sua vida terrena.<br />
Zínia havia seguido o propósito de dedicar-se a criaturas solitárias, a<br />
fim de entregar-lhes a seiva da vida – que nunca lhe faltou – porque<br />
já era uma alma liberta. Tor<strong>no</strong>u-se uma criatura indômita e cheia de<br />
consideração pelos irmãos mais frágeis. As duas haviam nesta<br />
existência acendido um rainho de luz, que as acompanharia em suas<br />
existências futuras, pois sempre que se cruzassem se reconheceriam.<br />
Só que nenhuma das duas sabia que Josiel também era um elo<br />
perpétuo nesta corrente de amizade.<br />
Em um daqueles dias ame<strong>no</strong>s, em que a Natureza participava da paz<br />
naqueles territórios, enquanto em Qumran se fecharia o ciclo de<br />
vida de tantos amigos deles, conversavam.<br />
Disse-lhes Josiel: - Creio que não fiz nada melhor em minha vida,<br />
até hoje, do que viajar, <strong>para</strong> restabelecer contato com você, Zínia, e<br />
com Cornélia também. Não vou me ater ao fato de que somos almas<br />
vinculadas nesta trajetória que fazemos <strong>aqui</strong> pela Terra, porque sei,<br />
por intermédio de Débora, que você, Cornélia, possui o dom das<br />
reminiscências pretéritas. E, por elas, deve ter tantas informações a<br />
passar, que ficaríamos <strong>aqui</strong> voltados <strong>para</strong> um mundo que já se<br />
perdeu e o que importa mesmo é este momento do agora, do hoje,<br />
que <strong>no</strong>s entrega este prêmio do reconhecimento do afeto que ainda<br />
<strong>no</strong>s liga, apesar do transcorrer dos séculos.<br />
227
- Mas não posso deixar de lhe dizer, Josiel, que me ver assim, perto<br />
de vocês, me leva a sentir uma saudade inexplicável de algo que ...<br />
que <strong>no</strong>s pertenceu... e que <strong>no</strong>s revelou um tipo de vida cheio de<br />
bens, sem tantas tragédias – disse-lhe Zínia, cheia de afeto. - É bom<br />
saber que o passado também <strong>no</strong>s entregou crescimento e alegria. Se<br />
assim não fosse, por que <strong>no</strong>s deteríamos a olhar criaturas como<br />
“irmãos de coração?” Bem que eu gostaria de possuir este veículo<br />
que leva Cornélia a relembrar, por exemplo, onde foi que <strong>no</strong>s vimos<br />
– ela ponderou.<br />
Josiel sorriu. – Todos nós sabemos, Zínia, que a Casa do Pai tem<br />
muitas Moradas. Mas não é tão fácil descobrir quais delas <strong>no</strong>s<br />
abrigaram numa completa e perfeita harmonia.<br />
Cornélia emocio<strong>no</strong>u-se. -Tive possibilidade de me ver em várias<br />
delas, Josiel: Egito, Índia, Arábia, um local que desapareceu coberto<br />
pelas águas, outro em que existiam só cavernas, e que acabei<br />
reconhecendo como sendo exatamente este território que ora<br />
recebeu Joshua. Este lar de agora, <strong>para</strong> o qual Deus me fez retornar,<br />
certamente <strong>para</strong> que se extinguisse em mim um passado cheio de<br />
frustrações e desenga<strong>no</strong>s, mas, sem dúvida nenhuma, repleto de<br />
aprendizados. Seis existências valiosas, mas que eu considero<br />
ampliadas por uma outra – a sétima e a mais importante – porque<br />
nela tive o privilégio de participar da presença da Morada do<br />
Senhor, do Rei<strong>no</strong> do qual Ele <strong>no</strong>s falava.<br />
E então? – Josiel estimulou-a.<br />
- Então, eu descobri, finalmente, que o Rei<strong>no</strong> tão referido por<br />
Joshua era o <strong>no</strong>sso próprio coração. Em qualquer lugar que<br />
estivermos, teremos dentro de nós este Rei<strong>no</strong> magnífico, razão de<br />
<strong>no</strong>ssas passagens <strong>aqui</strong> pela Terra. A vocês eu posso confessar que<br />
esta Morada foi a minha preferida. Sim, nesta Sétima Morada eu<br />
posso dizer que me incluí, com amor, pela vida. E ela prosseguiu,<br />
feliz: O Rei<strong>no</strong> do Nosso Mestre me entregou ao aprendizado de uma<br />
série de chaves: da compreensão, da amizade, da estima, do afeto,<br />
enfim, da variedade de tipos de amores que Ele por <strong>aqui</strong><br />
exemplificava. Ah, quão valoroso e justo era Joshua! Mas também<br />
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sei que ainda existe uma infinidade de tipos de amores a serem<br />
conhecidos por nós. Por isso é que precisamos voltar... e voltar.<br />
- Pois eu posso lhes afiançar que você e Zínia já me receberam<br />
como filho. As duas já me amaram e protegeram. É por isto que<br />
minha alma me convidava a vir até <strong>aqui</strong>, neste lugar em que<br />
transformamos os <strong>no</strong>ssos laços do passado pelo amor incondicional.<br />
- Fale-<strong>no</strong>s sobre isto – pediu Zínia cheia de curiosidade. - É verdade<br />
que já <strong>no</strong>s conheceu?<br />
- Importa-<strong>no</strong>s mesmo, Zínia, é entender que as famílias são<br />
numerosas e que, com o transcorrer dos séculos, seremos realmente<br />
muitos irmãos. Caminharemos por outras Moradas, até findar o<br />
<strong>no</strong>sso ciclo reencarnatório pela Terra. Então, conheceremos outros<br />
tipos de mundos mais evoluídos e pacíficos do que este. Um dia<br />
seremos Luz.<br />
- Mas, quando você fala assim, tenho a impressão de que <strong>no</strong>s<br />
se<strong>para</strong>remos logo. E isto me entristece – queixou-se Zínia.<br />
- O Rei<strong>no</strong> do Pai nunca morre, Zínia. As programações Dele são<br />
perfeitas. Assim, Ele <strong>no</strong>s colocará sempre um diante do outro,<br />
porque o <strong>no</strong>sso coração pede isto. As Moradas são eternas em <strong>no</strong>sso<br />
coração, pois correspondem à Luz Divina.<br />
- Quer dizer que eu posso afirmar que vislumbrei, parcialmente, sete<br />
rainhos de luz, Josiel? Você concorda?<br />
- Plenamente. Mas esta bênção pertence a todos nós. Basta estarmos<br />
atentos e a enxergaremos.<br />
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Si<strong>no</strong>pse do <strong>livro</strong> A Casa das Sete Moradas<br />
Pelas dificuldades que surgiriam <strong>para</strong> plantar na Terra os<br />
dizeres e as obras de Jesus (Joshua), nasceu por <strong>aqui</strong>, antes<br />
Dele e depois Dele, gente que estaria pre<strong>para</strong>da <strong>para</strong> ajudar<br />
a lançar este alicerce <strong>no</strong> solo. Não anjos e nem santos,<br />
como o Messias, mas pessoas capazes de, pelo me<strong>no</strong>s,<br />
“tentar entender e aceitar pensares diferentes dos seus”.<br />
Entre esses, os essênios.<br />
Eram criaturas programadoras do futuro do cristianismo e<br />
que sabiam – muito bem – que não se esperava “só delas” e<br />
sim da “multiplicidade delas” o resultado do que fora<br />
programado, por sua vez, <strong>no</strong> Rei<strong>no</strong> Maior.<br />
A Casa das Sete Moradas contém esses fatos narrados sob<br />
o ponto de vista de uma mulher que era dotada de poderes<br />
considerados sobrenaturais. Anteviu a morte infamante de<br />
Joshua e percorreu locais que Ele e Yohannan (o João<br />
Batista) visitavam, pertencentes ao grupo dos essênios.<br />
A política da época, as superstições, os costumes das<br />
mulheres romanas e judias, dos próprios essênios, a<br />
empáfia dos conquistadores roma<strong>no</strong>s, a vaidade de Simão o<br />
Mago, o encarceramento de seguidores do Messias, o sonho<br />
de amor de uma jovem por Yohannan – estes são alguns<br />
dos flashes que iluminam por mais algum tempo aquele<br />
cenário de espanto e encantamento que, até hoje, desafia a<br />
memória das criaturas.<br />
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