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A Casa das Sete Moradas<br />

Valeska Perez Sarti<br />

2


Nosso nascimento não é senão so<strong>no</strong> e esquecimento:<br />

A alma que se alteia em nós, estrela de <strong>no</strong>ssa vida,<br />

Já teve seu pouso em outro lugar<br />

E vem de muito longe<br />

Wordsworth<br />

3


Um<br />

O sol tinha um brilho diferente naquele dia. Por onde passava, um<br />

rastro de solidão ia-se apagando e a chama da re<strong>no</strong>vação começava<br />

ali a habitar. Era como se mil mãos se movimentassem na<br />

distribuição do calor sutil que envolvia o mundo.<br />

Recostada sob a pérgula que distinguia sua casa das outras, Cornélia<br />

observava as distantes montanhas que, em clarões intermitentes, lhe<br />

apresentavam as mudanças das nuvens que recobriam o céu. Ora o<br />

brilho se expandia, vez ou outra uma sombra mais espessa roubava a<br />

transparência dos cumes.<br />

Diziam os moradores de sua ilha que as montanhas íngremes<br />

enfileiradas a distância pertenciam ao rei<strong>no</strong> dos antigos druidas,<br />

povo considerado poderoso naquele território coroado de mistérios.<br />

Cornélia sempre ouvia histórias contadas por seu avô sobre esse<br />

povo, que alguns apontavam como bárbaros, outros, como<br />

poderosos, e, uma boa parte, como criaturas indisciplinadas, mas<br />

fortíssimos cultivadores da magia.<br />

De tudo o que tinha escutado, a face que mais exercia atração na<br />

mocinha era a que se referia aos druidas como gente que sabia<br />

produzir feitos que os homens mais comuns desconheciam.<br />

Portanto, Cornélia sabia que se podia incluir <strong>no</strong> rol das criaturas<br />

apreciadoras do que era considerado “o sobrenatural”.<br />

Pertencia a uma família de gente que cultivava o solo. Seu avô se<br />

havia interessado por tudo o que o solo lhe trazia, como, por<br />

exemplo, informações a respeito de seus antepassados. Ele era um<br />

arqueólogo e amante do povo de Creta.<br />

Sobre os druidas, ele fazia sempre referência a Cornélia, mas<br />

afirmando que havia perecido com eles a força que possuíam nas<br />

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mãos, ou <strong>para</strong> plantar, ou <strong>para</strong> colher, até mesmo histórias sobre um<br />

passado que havia ficado coberto pelos escombros do transcorrer<br />

dos séculos.<br />

Cornélia andava bastante apreensiva. Nos dois dias que antecederam<br />

este em que observava as montanhas mutáveis, algo a havia atraído<br />

com grande insistência. Eram objetos depositados <strong>no</strong> porão de sua<br />

casa, construída num platô magnífico com vistas <strong>para</strong> o mar.<br />

Aquela casa parecia, na verdade, uma e<strong>no</strong>rme pérola branca,<br />

depositada num terre<strong>no</strong> sólido e com uma das faces voltada <strong>para</strong> o<br />

lado em que chegavam as embarcações dos homens do mar. Era<br />

essa a face preferida de Cornélia, e fora ali que ela havia ajudado o<br />

jardineiro Konstantin a erguer a pérgula.<br />

Konstantin era um velho enrugado como um pergaminho, mas de<br />

corpo e músculos rígidos e dourados pelo sol que tomava desde a<br />

manhã até à <strong>no</strong>itinha, quando o sol se punha, e ele, então, seguia a<br />

passos firmes <strong>para</strong> a casa de seus próprios familiares.<br />

O velho jardineiro era o maior amigo de Cornélia. Depois dele,<br />

vinha a filha do homem que cuidava dos cavalos e éguas de seu pai<br />

e também de outros senhores que constituíam uma espécie de<br />

sociedade com ele.<br />

A filha desse cavalariço, Hannah, era uma moça fechadíssima, de<br />

tez pálida e olhos rasgados, o que os tornava mais enigmáticos do<br />

que a própria expressão e palidez da moça.<br />

Diziam algumas criaturas que moravam ali <strong>no</strong> Solarium – assim era<br />

chamada a residência de Cornélia – que Hannah tinha alguma parte<br />

a ver com os demônios.<br />

Só que Cornélia jamais havia feito uma divisão entre deuses e<br />

demônios. Para ela, tudo fazia parte da vida e jamais tinha ouvido<br />

dizer que o Bem e o Mal fossem representados por um ou outro.<br />

Assim, os deuses tinham apenas uma função: oferecer seus recados<br />

nas situações que conviessem; e os demônios eram os deuses que<br />

habitavam <strong>no</strong>s antros mais fundos, porque precisavam prover o<br />

mundo d<strong>aqui</strong>lo que ninguém tinha capacidade <strong>para</strong> realizar. Os<br />

demônios, portanto, não eram os deuses nem do mal e nem das<br />

5


tragédias, mas simplesmente os “armadores” do que era oculto e<br />

“desvencilhadores” dos nós que os próprios homens iam montando<br />

nas estradas.<br />

Isto tudo posto quer dizer que Cornélia apresentava não só uma<br />

preferência por Hannah, mas também se considerava semelhante a<br />

ela nessa parceria entre deuses e demônios.<br />

Entretanto, os moradores daquela ilha já haviam passado por<br />

situações consideradas bem estranhas, e insistiam em apontar<br />

Hannah como a possível “montadora” de seus embaraços. Eram<br />

criaturas ig<strong>no</strong>rantes e supersticiosas, o que abria um certo<br />

afastamento entre elas, Hannah e Cornélia também.<br />

Mas os habitantes do Solarium não deixavam de ser criaturas<br />

simplórias, pacatas e amantes apenas de um deus que cultuavam – o<br />

Sol.<br />

Cornélia era uma meni<strong>no</strong>ta intimorata, arredia e bastante<br />

dominadora. Não naquele tipo de domínio de quem quer comandar.<br />

O seu domínio representava-se apenas em uma palavra - a sua<br />

independência.<br />

Soubesse ser ouvida ou ser consultada, quem com ela convivesse<br />

ganharia todos os agrados dos deuses, isto é, ganharia de Cornélia<br />

os sorrisos mais felizes do mundo. Mas ai daqueles que a<br />

contrariassem, apontando-lhe o caminho que deveria percorrer...!<br />

Talvez por isso ela e Hannah se entendessem às maravilhas. Nesse<br />

aspecto, as duas eram como se tivessem sido moldadas <strong>no</strong> mesmo<br />

tipo de argila.<br />

6


Dois<br />

Quando as nuvens se adensaram e roubaram de seus olhos as<br />

majestosas silhuetas de suas montanhas preferidas, Cornélia saiu de<br />

seu repouso e voltou <strong>para</strong> dentro da moradia.<br />

A casa estava sendo arejada e limpa. Os serviçais distribuíam-se tão<br />

tranqüilamente <strong>no</strong>s afazeres, que Cornélia precisava buscar um<br />

recanto onde se sentisse a própria dona do seu nariz. E isso só era<br />

possível lá <strong>no</strong> porão, que possuía a mesma dimensão da residência,<br />

embora fosse dividido <strong>para</strong> diferentes utilidades: celeiro de<br />

alimentos, reservatório de sementes a serem plantadas, e uma<br />

espécie de abrigo <strong>para</strong> as bugigangas que passavam a ser olhadas<br />

como quinquilharias, à medida que os a<strong>no</strong>s iam transcorrendo.<br />

Ali era o rei<strong>no</strong> de Cornélia. Havia tantos objetos expostos, que<br />

serviam de motivo <strong>para</strong> ir criando em sua cabeça o resumo do que<br />

sua família havia vivenciado.<br />

A mãe de Cornélia tinha sido uma mulher de bela figura e<br />

totalmente diferente dos moradores dali. Branca como os narcisos<br />

que se elevavam <strong>no</strong>s grossos caules, mas cheia de uma melancolia<br />

que ninguém conseguia dissipar. Por mais que a filha e o marido<br />

Diomedes a quisessem enriquecer com seus sorrisos singelos, a<br />

pálida mãe da menina -– que por isso até passou a ser chamada de<br />

Branca – pouco conseguia de tempo <strong>para</strong> ingressar <strong>no</strong> rei<strong>no</strong> de seus<br />

familiares.<br />

Ia entregando-se como aquelas plantinhas que crescem à beira dos<br />

rios, apenas <strong>para</strong> enxergar-se nas águas que Deus dispõe <strong>para</strong> a<br />

fertilidade do solo.<br />

7


Com vinte e cinco a<strong>no</strong>s apenas, Branca suspendeu as imensas asas e<br />

partiu <strong>para</strong> o céu do desconhecido, deixando Diomedes e Cornélia<br />

como se fossem duas embarcações sem remo.<br />

O enterro tinha sido lá <strong>para</strong> a direção das altas montanhas, a pedido<br />

da própria Branca, que não parecia ter apreciado o Solarium,<br />

embora vivesse em paz com todos os habitantes dali. Na verdade,<br />

ela nunca havia deixado de ser uma estrangeira entre todos.<br />

Das mãos de Branca e também de alguns ancestrais de Diomedes,<br />

havia ficado ali, <strong>no</strong> porão, uma série de recordações que Cornélia<br />

gostava de olhar e acondicionar. Com o tempo, o local transformouse<br />

numa espécie de museu da família de Cornélia, tão interessante,<br />

que Diomedes resolveu pôr nele algumas colaborações também.<br />

Foi <strong>no</strong> porão do Solarium que Cornélia começou, então, a viver uma<br />

estranha aventura, repartida por ela apenas com o silencioso<br />

Konstantin, porque tinha muito a ver com a participação de deuses e<br />

demônios.<br />

Quando se descia até o porão, a temperatura também descia alguns<br />

graus, porque o vento não conseguia circular. Apenas uma entrada<br />

bem reta conduzia <strong>para</strong> os degraus dispostos com a única finalidade<br />

de levar os moradores ao espaço reservado, primeiro de tudo, às<br />

utilidades da moradia. Dali, até o “museu” de Cornélia, ela<br />

precisava percorrer um labirinto.<br />

Ela costumava dizer a Hannah que um dia algum gênio benfazejo<br />

por ali também adentraria, <strong>para</strong> colocá-la num corcel mágico e<br />

transportá-la <strong>para</strong> rei<strong>no</strong>s que nem os olhos de seu pai ou de seu avô<br />

haviam avistado. Era esse o único traço de romantismo daquela<br />

menina que contava apenas com doze a<strong>no</strong>s.<br />

Hannah já era mulher. Dizia-se que possuía um filho que morava<br />

também lá <strong>para</strong> os lados das atraentes montanhas.<br />

Foi com um coração transbordante de vida e de alegria que Cornélia<br />

alcançou os objetos enfileirados numa prateleira de tábua rústica.<br />

Ela pensava em acondicionar alguns em uma caixa que seu pai lhe<br />

dera e, depois, transportá-los <strong>para</strong> seus amplos aposentos, <strong>para</strong> que<br />

pudesse pôr os olhos neles mais a miúdo. O pai de Cornélia já havia<br />

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percebido que a menina estava passando por uma transformação e<br />

teve a idéia de sugerir que guardasse perto de si o que mais lhe<br />

agradasse.<br />

A impressão de Cornélia era que um leve perfume de lavanda ainda<br />

se mantinha <strong>no</strong> primeiro objeto que separou - uma pena de ave<br />

pequenina, enrolada num fio prateado, mas já escurecido pelo<br />

tempo. Vinha espetada numa cortiça em <strong>formato</strong> de cilindro, com<br />

alguns dizeres em língua estranha, na base dessa cortiça.<br />

Ao tocá-lo, <strong>no</strong>tou que havia algo inserido ali. Era uma pérola oculta,<br />

sabe-se lá por quanto tempo. De cor tão bela, que Cornélia imagi<strong>no</strong>u<br />

ter sido extraída de um mar mais profundo do que aquele que os<br />

mergulhadores da ilha costumavam enfrentar.<br />

A pérola perfeita, de nuance rosada, devia ter pertencido um dia a<br />

alguma fada do rei<strong>no</strong> das águas – assim ela ia analisando.<br />

Observou-a bastante, sopesou-a na concha da mão e, depois,<br />

estendeu-a diante de si, <strong>para</strong> admirá-la mais. Foi então que tudo se<br />

transformou.<br />

Como se aquela pérola lhe servisse de firme concentração, foi-se<br />

abrindo em sua fronte algo de que já ouvira falar: uma porta mágica<br />

<strong>para</strong> um mundo exterior e interior ao mesmo tempo. Exterior,<br />

porque se tratava do mundo da vivência dos homens - e interior,<br />

porque era do seu ser, num contato com outra paisagem existencial,<br />

em tempo distinto daquele em que vivia.<br />

Cornélia estava passando pelo portão da Primeira Morada, que ela<br />

nem sabia que se dividia em sete.<br />

9


Três<br />

A donzela era belíssima, toda ornada em estrelas. O manto que a<br />

recobria era todo estrelado e os pés pareciam flutuar acima de<br />

nuvens.<br />

Para a mocinha que contemplava aquela estátua, ela estava<br />

simplesmente pousada acima de um tufo de algodão. Ela sorria <strong>para</strong><br />

a estátua, que também sorria <strong>para</strong> ela. Mas a única diferença<br />

existente entre aquela imagem com outras que já existiam<br />

representando as mulheres era o ador<strong>no</strong> de uma pérola rosada, em<br />

<strong>formato</strong> de gota, num colar pousado em seu colo.<br />

Aquela donzela era a representação de uma divindade do mar. E<br />

quem a olhava? A própria Cornélia.<br />

Cornélia se via lá, transportada <strong>para</strong> um mundo diferente do seu. E<br />

maravilhou-se. Tudo se lhe apresentava porme<strong>no</strong>rizadamente. Sua<br />

roupa era estranha: uma saia longa, uma blusa roxo-lilás, de decote<br />

ousado, brincos pendentes nas orelhas, como o das ciganas. Mas seu<br />

sorriso, ah! o seu sorriso era de mofa.<br />

Não via nenhuma santidade naquela estátua, porque o mundo dela<br />

só possuía deuses e deusas. E eles não eram vestidos assim, porque<br />

nunca eram apresentados como seres huma<strong>no</strong>s. Seus deuses eram<br />

figuras de aves e animais.<br />

Ela ia e voltava diante da estátua. Sentia-se livre como um pássaro.<br />

Sabia que podia dormir sob o manto da <strong>no</strong>ite, sem que alguém lhe<br />

avisasse que já era hora de dormir. Dividia sua vida com várias<br />

mulheres e atribuíam-se as tarefas que gostavam de fazer. Por serem<br />

todas diferentes em gosto, pouco restava a ser feito na razão de<br />

“obrigações”. Todas serviam a todas.<br />

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Cornélia continuava a visualizar a sua existência. Vivia num<br />

Templo, que era inexpugnável. Para cada uma delas existia uma<br />

minúscula cela, que lhes servia de dormitório, quando queriam. Não<br />

eram prisioneiras. Mais fácil caracterizá-las como ciganas, porque<br />

muitas saíam daquele Templo <strong>para</strong> outros, considerados filiais. Mas<br />

não eram ciganas e sim conhecidas como Vestais.<br />

Não havia homens em suas vidas; eles eram cautelosos com elas,<br />

porque elas pertenciam a um grupo reservado <strong>para</strong> servir deuses e<br />

deusas. Mas, se um ou outro se decidisse procurá-las, ou mesmo<br />

molestá-las, buscavam os horários em que elas serviam fora dos<br />

Templos.<br />

Cornélia reconhecia perfeitamente quais eram suas preferências:<br />

gostava das saias muito longas, que até chegavam a embaraçar seus<br />

passos, mas isso porque caminhava descalça. Mostrar os pés era<br />

falta de consideração <strong>para</strong> quem as procurasse, a fim de lhes pedir<br />

conselhos.<br />

Um estranho ruído, como o do roçar de passos, fez com que<br />

Cornélia saísse do mundo da memória e se sentisse de <strong>no</strong>vo dentro<br />

do Solarium. Dois minutos depois, foi alcançada por Hannah,<br />

avisando-lhe que o pai a convidava a subir, porque havia visita na<br />

casa.<br />

Ela ajeitou uma mecha dos cabelos longos, colocou um xale sobre<br />

os ombros e saiu em busca do pai.<br />

O visitante era considerado habitante do pânta<strong>no</strong> – assim é que<br />

diziam os moradores da ilha, porque não conheciam o local que<br />

tinha sido reservado <strong>para</strong> os recém chegados ao território. Mas não<br />

se tratava de pânta<strong>no</strong> e sim de terras que eram próximas de um rio<br />

que, vez ou outra, transbordava e os deixava assustados. Até então,<br />

nenhum deles se preocu<strong>para</strong> em mudar de lugar, porque amavam<br />

muito aquelas terras.<br />

Se elas possuíam os embaraços das cheias, nem por isso as terras<br />

deixavam de ser férteis. E eles eram amantes das plantações. Suas<br />

casas eram construídas em cima de estacas, de modo que somente<br />

uma subida muito forte das águas conseguiria desabrigá-los.<br />

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O homem que procurava o seu pai era muito alto. Parecia uma<br />

espiga de milho maduro, visto que os cabelos lembravam o<br />

acobreado das penugens do milho. Tinha também um tufo ruivo <strong>no</strong><br />

queixo afilado, que completava um rosto de expressão amável e<br />

cordial.<br />

Cornélia alcançou o salão, quando o visitante já repousava numa<br />

cadeira de palhas trançadas, num encosto acolchoado em tecido<br />

grosso, mas não feito <strong>no</strong>s teares da casa. Era de uma primeira leva<br />

de tecidos que chegavam por ali, num comércio incipiente feito por<br />

barcos que conseguiam se aproximar do local onde fora construído o<br />

Solarium.<br />

O homem que pareceu a Cornélia uma espiga de milho empinado<br />

apresentou-se:<br />

- Sou o chefe de uma expedição que sairá deste território <strong>para</strong> um<br />

não avistado d<strong>aqui</strong> – e ele apontou <strong>para</strong> Cornélia as montanhas que<br />

sempre a haviam encantado, porque pertenciam aos mistérios de um<br />

mundo que tanto a agradava.<br />

Cornélia olhou-o extasiada e até com uma pontinha de inveja.<br />

Aquela era uma liberdade que ela teria, se não fosse uma garota e se<br />

pudesse vestir-se como os homens, <strong>para</strong> poder viajar.<br />

O pai logo adivinhou a expressão da filha, dividida entre o anseio de<br />

fazer o mesmo, ou ter de continuar a realizar as tarefas que o mundo<br />

havia ofertado <strong>para</strong> ela.<br />

Mas ela se surpreendeu muito, ao ouvir Diomedes dizer<br />

simplesmente que ia mandar Konstantin com o senhor Péricles – o<br />

visitante –, a fim de que o serviçal comprasse objetos e ferramentas<br />

<strong>para</strong> a casa, e perguntar-lhe:<br />

- Quer acompanhar Konstantin nesta viagem? Estando na<br />

companhia dele e do senhor Péricles, tenho confiança de mandá-la,<br />

porque você precisa também fazer alguma escolha de tecidos <strong>para</strong><br />

mim.<br />

Um misto de dúvida e de desejo apresentou-se tão forte em sua<br />

expressão, que Konstantin reforçou:<br />

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- A senhorita poderá estar tranqüila, quando se afastar de seu pai. E,<br />

se desejar, pode, inclusive, levar uma criada a seu dispor.<br />

- Não temos criadas <strong>aqui</strong>, Konstantin – ela brincou com ele. - Os<br />

<strong>no</strong>ssos serviçais são tão antigos, que já fazem parte de <strong>no</strong>ssa família.<br />

Mas... - ela titubeou – ... se meu pai me permitir mesmo viajar, e<br />

vou gostar muito!, queria levar comigo a Hannah – e olhou <strong>para</strong> o<br />

pai pedindo aceitação.<br />

Diomedes pousou as mãos <strong>no</strong>s joelhos e asseverou:<br />

- Então está combinado. O senhor Péricles avisa quando parte,<br />

enquanto você se pre<strong>para</strong>.<br />

Cornélia jamais havia imaginado quão distantes ficavam as<br />

montanhas por eles chamadas de Três Estribos.<br />

O território que começaram a percorrer era quase desértico, mas<br />

provido de pousadas ao longo de trilhas construídas <strong>para</strong> os<br />

aventureiros que se atreviam a pôr os pés por ali. Atreviam-se, sim,<br />

porque nem todas as criaturas que o atravessavam eram cumpridoras<br />

do que se diz respeito aos semelhantes.<br />

Homens rudes, bandoleiros ávidos, mercadores volúveis, piratas de<br />

terras, enfim, uma quantidade de tipos huma<strong>no</strong>s tão variada, que<br />

somente com vigilância constante se conseguia sobreviver.<br />

Mas Cornélia seguia eufórica. A confiança ilimitada em Konstantin,<br />

e a certeza de que os melhores caminhos seriam escolhidos pelo<br />

senhor Péricles, constituíam a dupla força com que se via<br />

presenteada. E <strong>para</strong> os caminhos do coração contava com a<br />

silenciosa Hannah – o que <strong>para</strong> Cornélia já era suficiente, pois<br />

também gostava de manter a privacidade.<br />

Dias e <strong>no</strong>ites se passaram, a pé e por águas, escapando em alguns<br />

dos perigos e, em outros, banqueteando-se com os espaços livres e<br />

sublimes da majestosa natureza. Até que avistaram a região mais<br />

bela que seus olhos jamais imaginavam existir.<br />

O lugar dividia-se sem cercas e sem fronteiras. Tudo era repleto de<br />

plantações e de flores. Casas pequenas, mas de aparência<br />

13


confortável, expunham telhados de ardósia por entre a vegetação<br />

verde e exuberante.<br />

Às vezes, sobressaíam-se telhados minúsculos, porque se tratava dos<br />

celeiros de herdades maiores e muito bem cuidadas, com vinhedos<br />

em larga extensão do território.<br />

Não existiam estradas amplas, apenas trilhas que se iam alargando, à<br />

medida que um grupo por ali viajava. E o grupo do senhor Péricles<br />

era numeroso e mostrava-se disposto a marcar aquele território com<br />

sua presença. Facas, facões e machados iam abrindo clareiras e<br />

delineando <strong>no</strong>vas trilhas, bem mais largas que as existentes.<br />

Cornélia nem <strong>no</strong>tou que, durante aquela travessia, quase um a<strong>no</strong><br />

havia escoado e que ela estava completando o seu décimo terceiro<br />

aniversário.<br />

Foi exatamente com esta idade que chegou ali em Nazaré.<br />

Naquela <strong>no</strong>ite, dormiu da forma que mais a agradava – coberta<br />

apenas pelo manto das estrelas.<br />

Dali, a caravana do senhor Péricles ia prosseguir <strong>para</strong> se aproximar<br />

mais das montanhas, mas Cornélia foi tomada de uma ansiedade<br />

incomum. Não desejava mais continuar a viagem.<br />

Seus sonhos de menina, que a convidavam a conhecer o território<br />

dos druidas, esvaneceu-se. Nem as montanhas dos Três Estribos<br />

faziam mais o seu coração pulsar fortemente. Agora, o palpitar dele<br />

e o sangue que lhe afluía ao rosto tinham algo a ver com o que<br />

viveria ali. Ela sabia, ela intuía que aquele lugar levaria <strong>para</strong> a sua<br />

vida algo semelhante ao que lhe havia sucedido ao contemplar a<br />

pérola rosada, lá <strong>no</strong> Solarium.<br />

14


Ah! o seu coração ia mudar. Exatamente isto fez com que se<br />

recusasse a continuar. Por ela, permaneceria <strong>para</strong> sempre em<br />

Nazaré.<br />

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Quatro<br />

O barulho de estacas sendo fortemente golpeadas <strong>para</strong> perfurar o<br />

duro solo a acordou.<br />

Crianças corriam brincando, mulheres conversavam numa algaravia<br />

diferente, tão diferente, que a apavorou e a levou a levantar-se.<br />

Correu à procura de Hannah, mas não a encontrou. Apenas viu <strong>no</strong>s<br />

olhos de um estranho que a observava alguma coisa que lhe dizia<br />

que não era um estranho completamente. O que seria?<br />

Quando pensou em lhe perguntar, viu aproximar-se dela uma<br />

mulher tão branca quanto o leite das cabras. E ela a olhava como se<br />

a conhecesse. Mas Cornélia assustou-se, quando a ouviu dizer:<br />

- Venha, Nazira! Seu tio quer conversar com você. Ele vai de <strong>no</strong>vo<br />

enfronhar-se pelo deserto e quer saber se você se interessa por essa<br />

viagem.<br />

Cornélia olhou-a atarantada, sem saber se devia contrariá-la,<br />

dizendo que seu <strong>no</strong>me não era Nazira. Mas preferiu calar-se. Como<br />

saber se podia confiar naquela estranha?<br />

Pouco depois, um árabe quase da altura da abertura que servia de<br />

porta <strong>para</strong> a tenda saiu dali.<br />

- Então, minha filha – ele disse, afagando-lhe os cabelos ruivoclaros<br />

– , como se sente hoje? Ficamos todos preocupados com você<br />

por muitos dias. E tanto, que pensei que vai ser melhor tirar você<br />

deste território <strong>para</strong> um outro de clima mais ame<strong>no</strong>. Sua tia Amine<br />

lhe fará companhia e...<br />

- Não!! Eu não quero ir! – Cornélia exclamou com fúria. – Eu quero<br />

voltar lá <strong>para</strong> Nazaré.<br />

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- Nazaré??? – perguntou Kalil, franzindo o cenho. – E quem foi que<br />

lhe disse que existe um lugar chamado Nazaré?<br />

- Ora, nem precisavam me dizer, pois foi de lá que eu vim...<br />

O homem balançou a cabeça, pôs-se pensativo e então comentou<br />

com a mulher que o ladeava:<br />

- Você ouviu, Amine? Acho que as febres foram muito altas. Acho<br />

que por pouco ela não morria. Até está...e apontou a têmpora direita,<br />

girando levemente o dedo indicador. Bem, bem, isto não importa.<br />

Apenas reforça a minha idéia de tirá-la d<strong>aqui</strong>. E então comandou:<br />

- Arrume todos os pertences dela, Amine, está resolvido, ela vai<br />

comigo!<br />

- Mas... e a Iasmine? Como fica? – indagou a mulher, preocupada. –<br />

Ela vai ficar doente, se perder a amiguinha.<br />

- Oras! O homem puxou um dos lóbulos da orelha. Ah, já sei,<br />

Iasmine segue com ela. Não é uma boa solução?<br />

- Mas a mãe da Iasmine vai se enfurecer, Kalil, ela tem pla<strong>no</strong>s <strong>para</strong><br />

a filha – a mulher argumentou.<br />

- Pla<strong>no</strong>s faço eu!!! – gritou o árabe, já decidido. – Nazira precisa<br />

sair d<strong>aqui</strong>. Não quero mais ouvi-la dizer que veio de Nazaré –<br />

completou aborrecido.<br />

Cornélia olhou-o tristonha. Percebeu que nem tudo podia confessar.<br />

Talvez nem mostrar <strong>para</strong> ele a pérola bonita que um mercador havia<br />

oferecido <strong>para</strong> ela, <strong>no</strong> dia em que a febre a atacou. O árabe ia achar<br />

que a pérola tinha sido responsável por sua doença, então ela não ia<br />

mostrá-la <strong>para</strong> ninguém. A pérola era dela, sim, Cornélia, e não<br />

Nazira. D<strong>aqui</strong>lo ela não ia abrir a mão.<br />

O sacolejar do camelo entregava a Cornélia tanto so<strong>no</strong>, que um<br />

árabe, Antúlio, havia sido indicado por seu tio como acompanhante<br />

dela naquela caminhada. Kalil havia improvisado uma sela<br />

diferente, de modo que Antúlio ia guiando e ao mesmo tempo<br />

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am<strong>para</strong>ndo, cada vez que ela amolecia e quase despencava da altura<br />

do camelo.<br />

Aquele so<strong>no</strong> constante e ingrato a fazia acordar aos gritos, na garupa<br />

do camelo de passadas silenciosas. E Antúlio a observava atento,<br />

sabendo que na alma daquela menina um mundo diferente ia junto<br />

se revelando.<br />

Este árabe pertencia a um grupo do deserto já pre<strong>para</strong>do <strong>para</strong><br />

adentrar ensinamentos além dos habituais, porque a alma dele era<br />

exatamente igual à dela. Antúlio também conseguia entrar <strong>no</strong>s<br />

labirintos de sua memória. A única dádiva que ele não possuía era a<br />

de rememorar os <strong>no</strong>mes dos locais pelos quais havia levado suas<br />

existências pregressas. E ele ficava maravilhado com a bênção<br />

recebida pela menina que, um dia, por entre a so<strong>no</strong>lência da<br />

caminhada, murmurava entre soluços que seu <strong>no</strong>me era Cornélia e<br />

que era de Nazaré.<br />

Infelizmente, essa viagem programada por Kalil a arrebatou <strong>para</strong><br />

sempre da companhia de Antúlio.<br />

O que havia sucedido?<br />

Uma nuvem de areia vinha seguindo a caravana de Kalil a distância<br />

já fazia alguns dias. Raptores do deserto interessaram-se por eles,<br />

pois pareciam possuir bens materiais.<br />

Como raposas meticulosas, acompanharam dias e <strong>no</strong>ites o itinerário<br />

de Kalil, aguardando a melhor oportunidade de tomarem <strong>para</strong> si o<br />

que aqueles homens carregavam.<br />

Quando a caravana já se aproximava do povoado que lhes servia<br />

<strong>para</strong> descansarem, <strong>para</strong> se abastecerem e aos animais, o bando de<br />

ferozes beduí<strong>no</strong>s alcançou-os e empenharam uma luta encarniçada.<br />

Salvaram-se poucos e, entre eles, Cornélia, porque foi escolhida<br />

<strong>para</strong> servir de presente a um dos amigos dos assaltantes. Iasmine<br />

conseguiu ocultar-se, de modo que aguardou o final da rapina e,<br />

quando a <strong>no</strong>ite já caía, saiu à procura de sobreviventes. Conseguiu<br />

prestar cuidados a Antúlio, o que lhe valeu a vida. O restante do<br />

grupo estava perdido <strong>para</strong> eles.<br />

18


No harém de um sheik, encontrava-se Cornélia. Era uma mocinha<br />

de seus quinze a<strong>no</strong>s. Os bastos cabelos, o corpo esguio, a pele<br />

sedosa e os olhos brilhantes não lhe serviam como apresentação de<br />

uma beldade atraente ou desejável. A fúria que encaravam em seus<br />

olhos era terrivelmente assustadora. Necessário seria que se visse<br />

frente a frente com outra pantera, que conseguisse domesticá-la.<br />

O sheik que a recebera de presente se havia enfurecido também,<br />

quando se viu arranhado <strong>no</strong> rosto por aquela garota. Só não mandou<br />

eliminá-la, porque se considerava um grande domador e porque<br />

resolveu que poderia pregar uma peça em um de seus amigos, que<br />

também possuía um harém, entregando-a <strong>para</strong> ele. Os dois eram<br />

amigos desde a infância e acostumados a pregar peças um <strong>no</strong> outro.<br />

Não era raro se encontrarem <strong>no</strong> cruzar das caravanas e dividirem,<br />

então, o tempo, os alimentos e as mulheres.<br />

Portanto, Cornélia foi resguardada apenas <strong>para</strong> que este sheik –<br />

Abzis – levasse um desafio ao amigo Omar, que era conhecido por<br />

alguns como um homem humanitário.<br />

Abzis, de antemão, já se via até sorrindo, ao imaginar que um dia<br />

Omar chegaria até ele com o rosto todo lanhado, como aconteceu<br />

com ele, na <strong>no</strong>ite que intentara se abrigar na tenda daquela beldade.<br />

Cornélia já estava servindo de chacota <strong>para</strong> esse árabe, que se<br />

julgava paciente. Só que desconhecia a paciência e a astúcia que<br />

também moldavam a alma de Cornélia.<br />

Uma forte tempestade atingiu as duas caravanas – de Abzis e de<br />

Omar – perto de um oásis que procuravam sempre <strong>para</strong> o encontro<br />

anual.<br />

Ainda que o vento atingisse com força esses homens indômitos,<br />

nunca hesitavam. Pre<strong>para</strong>vam suas tendas, como se o açoite da<br />

natureza fosse uma simples birra de crianças.<br />

Omar alcançou o oásis dois dias antes do encontro. Sua tenda era<br />

cheia de cuidados, porque contava com a ajuda de várias mulheres<br />

19


que não temiam as intempéries. Eram suas mulheres na divisão de<br />

corpos e de trabalhos também. Mesmo a considerada favorita era<br />

olhada com respeito pelas companheiras. Não existia um clima de<br />

disputas naquela caravana.<br />

Já a de Abzis não contava com a mesma harmonia, porque ele era<br />

olhado como um fanfarrão, embora destemido nas lutas. Gostava de<br />

vangloriar-se de sua força e de sua pertinácia, mas parecia não<br />

conhecer um tostão sequer das inúmeras mulheres que compunham<br />

o seu harém e que atravessavam o deserto com ele.<br />

Quando a tenda de Abzis estava sendo montada, a <strong>no</strong>ite já ia<br />

avançada. Abzis precisou adiar a entrega de seu "presente".<br />

Mas o dia seguinte amanheceu inquietante, com um céu plúmbeo e<br />

o prenúncio de tempestade. Clarões desenhavam-se <strong>no</strong> espaço,<br />

lembrando fogos-fátuos, e a lua crescente se exibia empinada <strong>no</strong><br />

céu, <strong>no</strong> seu eter<strong>no</strong> ciclo mágico.<br />

Omar foi o primeiro a se movimentar, saindo de sua tenda e<br />

plenamente seguro de que algo favorável lhe iria suceder. Possuía a<br />

rara qualidade de antecipar situações, tristes ou agradáveis, mas <strong>para</strong><br />

tudo conseguia uma boa explicação.<br />

Ao ouvir os primeiros ruídos na caravana de seu amigo, resolveu<br />

caminhar até a tenda de Abzis. Deteve-se a meio do caminho,<br />

porque avistou uma mocinha correndo em direção à fonte de águas,<br />

que era a maior riqueza dali.<br />

Pareceu-lhe estar diante de uma gazela tímida, já que procurava as<br />

águas sozinha e, <strong>para</strong> os habitantes do deserto, era comum a divisão<br />

de tudo, até dos banhos.<br />

Ao vê-lo, Cornélia o encarou e em seguida desfaleceu.<br />

Passos apressados seguiam a jovenzinha, de modo que Omar pôde<br />

aproximar-se, sem levar constrangimento ao grupo recém chegado.<br />

A mulher que ia ao encalço de Cornélia era a favorita de Abzis,<br />

Nadja. Forte, graúda, alta, com um corpo quase atlético, apanhou<br />

facilmente a garota <strong>no</strong>s braços, <strong>no</strong> momento em que Abzis deixava<br />

sua tenda, porque tinha ouvido as exclamações de espanto de Nadja.<br />

20


Foi desta forma o encontro dos amigos e Abzis não se viu<br />

favorecido <strong>para</strong> completar os seus pla<strong>no</strong>s, porque <strong>no</strong>tou a expressão<br />

de espanto e, ao mesmo tempo, de admiração de Omar <strong>para</strong><br />

Cornélia.<br />

- Quem é essa criança, Abzis? - Omar indagou.<br />

- Criança?? Deixe disso, meu amigo. Não imagina os embaraços que<br />

me vem causando. Eu...<br />

O tiro lhe saía pela culatra. Depois daquela afirmativa, jamais<br />

poderia alegar a Omar que a jovem era um bom presente reservado<br />

<strong>para</strong> ele.<br />

- Mas de onde ela vem? - insistiu Omar.<br />

Cornélia, que nesse meio tempo já voltara à consciência e já exigia<br />

que Nadja a colocasse <strong>no</strong> chão, esclareceu:<br />

- Costumam me chamar de Nazira, mas meu <strong>no</strong>me verdadeiro é<br />

Cornélia e eu sou de Nazaré.<br />

Naquele dia, Omar a tomou como filha e os dois teriam muito a se<br />

dizer pelo resto de suas vidas.<br />

Cornélia havia entrado em sua Segunda Morada, em época que<br />

antecipava exatamente esta em que vivia com o <strong>no</strong>me de Cornélia.<br />

Daí, a própria confusão que fazia com os <strong>no</strong>mes.<br />

21


Cinco<br />

- Cornélia! Cornélia! – Hannah sacudia-lhe o braço, preocupada<br />

com o olhar vazio da amiga. O que sucedeu? Não se sente bem?<br />

Não vê que a <strong>no</strong>ite já desceu e que já é quase hora da refeição?<br />

Saindo de um torpor esquisito, Cornélia levantou-se e foi <strong>para</strong> o<br />

terraço olhar o mar. As águas tranqüilas desenhavam pequeninas<br />

ondas que iam bater nas rochas, de onde ela e a amiga muitas vezes<br />

saltavam <strong>para</strong> um bom mergulho.<br />

Cornélia agora já estava com dezesseis a<strong>no</strong>s e suas preocupações<br />

voltavam-se aos caprichos que ela pensava que a vida oferecia às<br />

pessoas. E ainda não sabia se deveria fazer de Hannah confidente<br />

dos estranhos eventos que a assaltavam, quando se punha a fixar a<br />

pérola que um dia havia pertencido a sua mãe.<br />

Aquilo a transportava <strong>para</strong> zonas desconhecidas de sua mente,<br />

comprovando-lhe que existia dentro dela algo que a afastava dos<br />

acontecimentos pueris do dia-a-dia. Mas, se contasse a Hannah tudo<br />

o que havia vislumbrado em suas saídas (ou entradas?) fora dali,<br />

talvez a amiga passasse a olhá-la como os outros, repudiando-a<br />

também, porque Hannah detestava quando ouvia alguém chamá-la<br />

de demoníaca.<br />

Hannah agora já havia adquirido um corpo redondo, de mulher<br />

entrada na maturidade. A tendência à obesidade ia conseguindo<br />

roubar-lhe as formas anteriormente esculturais e o rosto também ia<br />

adquirindo um volume diferente, o que fazia Cornélia achar que se<br />

tratava de uma certa displicência da amiga em tor<strong>no</strong> da vaidade.<br />

No entanto, entre as duas jamais havia sido modificada a afeição<br />

agradável que costuma unir duas almas iguais, embora diferentes<br />

pela situação de nascimento oferecida a elas <strong>no</strong> mundo terre<strong>no</strong>.<br />

22


Hannah possuía as mesmas predisposições <strong>para</strong> entender “o oculto”,<br />

“o sobrenatural”, mas sentia-se tolhida pela responsabilidade que<br />

julgava deveria estender <strong>para</strong> aquela moça de família feliz, à qual se<br />

unira quando havia perdido, de uma vez, a família e o próprio<br />

filhinho – que lhe tinha sido roubado do lado da cama em que<br />

dormia.<br />

Hannah jamais havia contado <strong>para</strong> Cornélia a série de infelicidades<br />

domésticas de que tinha sido alvo, e exatamente quando possuía a<br />

mesma idade que Cornélia alcançava agora. Era uma mulher de<br />

alma sofrida, amadurecida, embora nem houvesse atingido uma<br />

idade que a pudesse caracterizá-la como madura.<br />

Mas ela o era, sim, na alma e <strong>no</strong>s bens singelos que guardava <strong>no</strong><br />

peito, e que se tratava de afeição verdadeira por algumas criaturas.<br />

Havia sido apaixonada pelo homem que um dia lhe dera um filho e<br />

que, na calada da <strong>no</strong>ite, havia mandado que alguém o furtasse,<br />

porque desejava apenas o filhinho, mas não a responsabilidade de<br />

organizar uma família, ao lado de Hannah.<br />

Os familiares desse rapaz, Dionísio, eram pobres mas honrados, e<br />

jamais permitiriam que ele deixasse de assumir o “posto de pai”, se<br />

viessem a saber que ele andara deixando um fruto seu, <strong>no</strong> ventre de<br />

Hannah. E por saber isto muito bem, o que Dionísio fez? Pegou a<br />

criancinha e alegou ao pai que ia viajar em busca de trabalho.<br />

Mudou de local e de desti<strong>no</strong> também. Nem o remorso o corroeu e<br />

nem a lembrança de Hannah o comoveu.<br />

Portanto, enquanto Hannah ia vivendo com a família de Cornélia,<br />

Dionísio – o amor de Hannah – caminhava sozinho pelo mundo,<br />

sentindo-se perseguido pela frieza do fado.<br />

- O que quer de mim, Hannah? – disse Cornélia, depois que se<br />

recompôs com a bela vista das montanhas dos Três Estribos. - É<br />

algum recado de meu pai?<br />

- Não é nada disso. Mas você anda tão distraída, que nem se<br />

lembrou que amanhã é dia de sairmos com as embarcações <strong>para</strong> o<br />

alto mar. Antigamente você era a primeira a escolher os enfeites<br />

<strong>para</strong> seu pai. Agora, nem se recorda que um dia viajamos com o<br />

23


Konstantin <strong>para</strong> a compra de tecidos <strong>no</strong>vos e que voltou com um<br />

monte de enfeites <strong>para</strong> essas ocasiões.<br />

- É verdade, Hannah. É que poucas vezes tenho ido ao porão, agora<br />

que trouxe meus objetos preferidos <strong>para</strong> cá e...<br />

Hannah sabia muito bem do que se tratava, pois podia <strong>no</strong>tar o<br />

domínio que alguns daqueles objetos exerciam em Cornélia. Só não<br />

conseguia perceber qual era a medida desse domínio e nem por que<br />

Cornélia quase os idolatrava. Às vezes chegava a pensar que eram<br />

fantasias da mocinha e que era chegada a hora de aconselhá-la a sair<br />

<strong>para</strong> olhar a vida lá fora. E só por essa razão tentou levar a conversa<br />

<strong>para</strong> esse rumo.<br />

- Conte <strong>para</strong> mim, Cornélia, qual valor você vê nestes enfeites tão<br />

gastos pelo rolar dos a<strong>no</strong>s?<br />

Meio sem jeito, ela respondeu:<br />

- Não é por eles, não. Não dou valor nenhum a pérolas, rubis ou às<br />

conchinhas. Mas eles me calam <strong>aqui</strong> bem fundo – e ela apontou o<br />

coração.<br />

- E não quer me dizer por quê? Quem sabe eu sou capaz de ajudar<br />

você, <strong>para</strong> que... você... volte a sorrir. Não sei se já reparou que nem<br />

sabe mais sorrir, Cornélia.<br />

Cornélia olhou-a atônita. Não havia re<strong>para</strong>do se sabia sorrir ou não.<br />

- Está certo, Hannah. Vou pensar nisso que está me avisando. Mas...<br />

amanhã ainda vai dar tempo <strong>para</strong> a gente enfeitar as embarcações.<br />

Eu me lembro mesmo que comprei metros e metros de fitas, de<br />

tecidos e muitas pedrarias <strong>para</strong> os <strong>no</strong>ssos arranjos, naquela viagem<br />

com o Konstantin.<br />

- Que, por sinal, anda até meio apático, Cornélia. Não tenho visto<br />

você conversando com ele e... com ele eu sei que você sabe sorrir,<br />

isto eu admito.<br />

As duas amigas deixaram os aposentos de Cornélia e desceram <strong>para</strong><br />

a sala de refeições.<br />

24


A casa de barcos de Diomedes estava agitada. Após a refeição<br />

<strong>no</strong>turna, os moradores do Solarium reuniram-se por lá, cada um<br />

querendo oferecer seus préstimos <strong>para</strong> a padroeira dos navegantes.<br />

Hannah distraía-se compondo flores miúdas em tecidos que<br />

aprendera a tingir, e ia distribuindo essas flores em diversos matizes<br />

nas fitas que, depois, seriam presas <strong>no</strong> barco do Konstantin. O que<br />

se dizia “barco do Konstantin” era um veleiro peque<strong>no</strong>, construído<br />

por ele em madeira entalhada, e que seria ofertado na procissão<br />

com o <strong>no</strong>me de Cornélia.<br />

Ali, de conversa em conversa, Cornélia decidiu contar <strong>para</strong> Hannah<br />

uma parte do que andava acontecendo com ela. Mas foram<br />

interrompidas por uma velha senhora, Anúbia, responsável pelo<br />

andamento perfeito do Solarium.<br />

Cornélia não ficou sabendo até que ponto Anúbia a ouviu esclarecer<br />

sobre suas visões de outras existências. Avistou <strong>no</strong>s olhos da velha<br />

senhora uma sombra de medo? Ou, talvez, um toque de admiração,<br />

por ter descoberto também um segredo seu? Anúbia assistira o seu<br />

nascimento e tinha sido a primeira a carregá-la, após o parto, <strong>para</strong><br />

depositá-la <strong>no</strong>s braços de seu pai. Era serviçal do Solarium desde o<br />

casamento de Diomedes com Branca.<br />

Só mais tarde, bem mais tarde mesmo, Cornélia descobriu que<br />

Anúbia fazia parte do rol das criaturas que buscavam o<br />

conhecimento de fatos incomuns, como Cornélia e como Hannah<br />

também.<br />

25


Seis<br />

Multiplicaram-se dias, meses, a<strong>no</strong>s. Cornélia já não era a garota que<br />

vivia a pesquisar os seus dons interiores. Tornara-se esguia, alta e<br />

bastante calada. Podia-se até dizer que havia herdado de Branca a<br />

quietude se não a amargura também. Não a amargura de<br />

ressentimentos ou causada por tristezas, mas aquela que pode ser<br />

definida como o buscar de algo que venha a abrir os mistérios da<br />

Criação.<br />

Portanto, era uma sintonia que brotava da alma de Cornélia e que<br />

exigia dentro dela – mais do que em outras mulheres – uma<br />

Revelação sobre os anjos e demônios do mundo.<br />

Ela continuava a crer que os fios entrelaçados pelo desti<strong>no</strong> tinham<br />

uma explicação que podia ser alcançada por todos os mortais que<br />

vestiam na Terra os trajes do Criador, sem exceção. E o Criador<br />

<strong>para</strong> ela ainda era representado pela figura do Sol Reluzente, mas<br />

transcendente também, porque inviolável, ativo e gerando toda<br />

espécie de vida que o mundo se cansa de apresentar.<br />

As riquezas do solo, do céu, da terra, das águas, tudo necessitava<br />

daquele calor gerador que seu Deus ia entregando <strong>para</strong> o mundo. E<br />

nunca lhe passava pela idéia que os raios da lua ou o brilho singelo<br />

dos pirilampos deixassem de ser também a manifestação concreta<br />

do Deus Sol, alado, girando por mundos diferentes a compor as<br />

mais variadas manifestações que os olhos dos homens podem<br />

alcançar, exatamente porque ele cobre os mundos, o infinito, as<br />

galáxias, as estrelas, enfim, todo o movimentar do Universo.<br />

Assim, já feita moça, um dia Cornélia desejou voltar a Nazaré. A<br />

sensação nítida de que a ida dela <strong>para</strong> lá ainda meni<strong>no</strong>ta tinha sido<br />

um princípio de que algo miraculoso e bom ia lhe suceder ainda<br />

26


persistia. Conhecer Nazaré, junto a Konstantin, tinha sido um<br />

preâmbulo e, agora, precisava deixar a própria vontade comandar.<br />

Seu pai Diomedes já andava cansado, tomado por uma doença<br />

prog<strong>no</strong>sticada como gota. Tornara-se macambúzio e muito fechado.<br />

Deixava-se inúmeras vezes recostado, ao sol, apenas comandando<br />

seus desejos com ordens apáticas, que nem sempre lhe traziam os<br />

melhores resultados.<br />

Portanto, Cornélia já perto de seus 23 a<strong>no</strong>s passou a tomar as rédeas<br />

do Solarium. Anúbia precisou ser substituída por uma mulher mais<br />

jovem, que extrapolava em saúde e vigor. E Konstantin não mais<br />

cuidava do jardim e nem mais exercia a função de cavalariço. Era<br />

ainda o seu maior amigo, mas passara simplesmente a fazer<br />

a<strong>no</strong>tações de sua vida ali <strong>no</strong> Solarium. Já estava cansado também.<br />

Capacitada <strong>para</strong> seguir até Nazaré, partiu. Ia ser seguida da saudade<br />

por todos aqueles a quem amava. Hannah também não a<br />

acompanhou; ia servir a seu pai. Já tinha sido procurada pelo<br />

homem que tanto a infelicitara, Dionísio, e que se incumbira (pelo<br />

me<strong>no</strong>s n<strong>aqui</strong>lo!) de entregar-lhe <strong>no</strong>tícia do desaparecimento do<br />

filhinho, que ele julgava morto.<br />

Mas o que nem o pai da criança sabia era que o meni<strong>no</strong> estava<br />

sendo criado por um <strong>no</strong>bre roma<strong>no</strong>.<br />

O que havia acontecido?<br />

Um homem ilustre - um pai de um meni<strong>no</strong> também - pediu a uma<br />

serviçal de sua casa <strong>para</strong> lhe trazer um bebezinho, visto que o dele<br />

havia morrido ao nascer, e ele desejava ocultar o fato à esposa.<br />

A serva, de <strong>no</strong>me Irina, conhecia Dionísio desde a infância. Sempre<br />

tinha sido fascinada por aquele rapaz, que era robusto desde garoto,<br />

e de olhos lumi<strong>no</strong>sos e cabelos diferentes dos daquela gente que<br />

morava por aqueles territórios.<br />

Irina nutria uma paixão desmedida por Dionísio, cuja vida ela havia<br />

acompanhado a distância, mas bem perto de seu coração. Ela<br />

conhecia o ato injusto cometido por ele a Hannah. Decepcio<strong>no</strong>u-se<br />

27


tanto, que entregou ao coração uma grande amargura, mas esta<br />

provocada por grande ressentimento.<br />

Quando seu senhor lhe pediu <strong>para</strong> trazer uma criança, Irina não se<br />

negou a colaborar. Numa madrugada escura e bastante imprudente<br />

<strong>para</strong> ela, penetrou furtivamente na cabana de Dionísio, que dormia<br />

pesadamente. Cobriu o bebê de Hannah num xale e levou-o embora.<br />

Partiu rápida <strong>para</strong> a casa de seu senhor e, ao entregar-lhe o meni<strong>no</strong><br />

de Hannah, recebeu uma sacola cheia de moedas de ouro, que lhe<br />

permitiriam viver na abastança até a sua velhice. Mas havia<br />

recebido um aviso: caso o seu senhor ou algum de seus amigos a<br />

avistasse por aqueles territórios, ela perderia a vida.<br />

Portanto, nem Dionísio ou Hannah sabiam que o bebê desaparecido<br />

estava sendo cuidado por uma <strong>no</strong>bre família de roma<strong>no</strong>s, e havia<br />

recebido o <strong>no</strong>me do suposto pai. Era um garoto robusto, cheio de<br />

saúde, indômito e, ainda meni<strong>no</strong>te, não aparentava a idade que<br />

possuía: parecia um quase homem, de pele marcada pelas espinhas<br />

da adolescência, mas com postura de príncipe, quando envergava os<br />

trajes que seu pai (adotivo) lhe mandava confeccionar.<br />

A casa de Cornélia, em Nazaré, era ampla e considerada uma<br />

vivenda de veraneio dos habitantes do Solarium. Mas bem poucas<br />

vezes tinha conseguido reunir o pessoal que vivia tão<br />

tranqüilamente <strong>no</strong> lar dos antepassados de Diomedes. Não era<br />

provida de porão e nem do silêncio doce que contornava todo o<br />

Solarium, porque permitia que os ruídos e as manifestações da vida<br />

ativa lá fora alcançassem as janelas de seu amplo quarto, também<br />

acrescido de belo terraço. Erguia-se sobre rochas. Os perfumes, o ar<br />

puro e a claridade límpida do Solarium ali se repetiam.<br />

Mas logo que chegou, o coração de Cornélia começou a bater<br />

intranqüilo. Aquela suave essência de seu amor pelo lugar agora lhe<br />

parecia truncada. O que seria?<br />

Konstantin lhe fazia falta, mas <strong>no</strong> lugar dele havia sido disposto<br />

<strong>para</strong> acompanhá-la e auxiliá-la um homem negro como as <strong>no</strong>ites<br />

mais profundas daquele local. Era um remanescente dos assírios –<br />

28


pelo me<strong>no</strong>s ele assim afirmava, com um sorriso mais branco do que<br />

as açucenas que enfeitavam os vales daqueles arredores.<br />

Seu <strong>no</strong>me era tão estranho, que Cornélia pediu licença <strong>para</strong> chamálo<br />

de Hermes, por causa do rosto enigmático e pelos mistérios que<br />

costumava ver nele e ouvir também, quando o negro se apoderava<br />

de uma flauta e se punha a tocar. Suas melodias exóticas e<br />

pungentes faziam com que Cornélia com ele brincasse, chamando-o<br />

“o mago do amor”.<br />

O negro sorria, sorria, encantava-a, conseguindo facilmente<br />

apoderar-se da amizade daquela jovem que, <strong>para</strong> ele, representava<br />

um ramo de mulheres já desaparecidas do mundo desde a época de<br />

Noé.<br />

Quando Hermes dizia isto <strong>para</strong> ela, Cornélia estremecia, porque não<br />

gostava nem de imaginar se havia pertencido a esses rei<strong>no</strong>s que ela<br />

considerava desventurados <strong>para</strong> os habitantes da Terra.<br />

Hermes a acompanhava como se fosse sua sombra, ou, talvez, como<br />

se fosse o próprio sol perdido naquele ocaso da vida, porque ele lhe<br />

dizia tristonho que o Homem Peixe já estava junto deles, <strong>para</strong> tudo<br />

mudar.<br />

Aquela afirmativa de Hermes era sentida por ela como se uma<br />

estocada bem funda de espada lhe atingisse o corpo, levando-a até<br />

às lágrimas, que passaram dali em diante a ser uma constante na<br />

moça. E, naqueles instantes de choro sentido, o negro sentia-se<br />

atarantado, prometendo-lhe que a faria mudar, que nem que lhe<br />

custasse o último alento tentaria fazê-la sorrir, ou cantar como os<br />

rouxinóis que um dia ela havia ganhado de um rapazinho e até se<br />

havia esquecido. Cornélia balançava a cabeça, considerando-o<br />

muito imaginativo, embora leal.<br />

A presença de Hermes era o maior tesouro que a vida lhe vinha<br />

oferecendo naquele instante e naquela época em que as mãos<br />

mágicas de um Criador diferente iam passar a comandar.<br />

Certa vez, atarefada <strong>no</strong>s cuidados da casa e distribuindo deveres<br />

<strong>para</strong> a serva Zínia, ouviu o soar de um instrumento desconhecido<br />

29


<strong>para</strong> ela. Era algo como se uma peça dura fosse batida contra uma<br />

placa de bronze ou de cobre.<br />

Procurou ver do que se tratava, dirigindo-se <strong>para</strong> o terraço. Nada<br />

conseguindo, saiu em busca de Hermes. Passou <strong>para</strong> o primeiro<br />

pavimento da casa, que se prolongava até uma ampla entrada. Esta<br />

só poderia ser visualizada, da rua, se fosse aberta uma alta porta de<br />

madeira <strong>no</strong>bre, entalhada.<br />

Resolveu abrir a pesada porta, alcançando um espaço onde estavam<br />

sendo pre<strong>para</strong>das sementeiras <strong>para</strong> um futuro jardim. Mas dali já<br />

podia avistar uma faixa da rua estreita em ladeira, porque, mesmo<br />

pertencendo ao térreo de sua casa, era elevado o suficiente <strong>para</strong> não<br />

fazer parte da estreita viela em declive que ia dar numa grande<br />

praça. Esta praça era utilizada <strong>para</strong> quem quisesse fazer queixas de<br />

tudo o que lhe desagradasse. Nos tempos de hoje se poderia até<br />

dizer que era uma praça <strong>para</strong> tribuna de políticos.<br />

Cornélia conseguiu finalmente avistar uma fileira de “neófitos” de<br />

um Templo que pertencia a algum credo desconhecido por ela. Os<br />

homens levavam as cabeças raspadas e as mulheres, xales escuros,<br />

cobrindo cabeças e ombros. Mas caminhavam em fileiras se<strong>para</strong>das,<br />

como se homens e mulheres participassem da mesma seita, mas sem<br />

poder professar a fé lado a lado. Por isso, os homens iam na frente e<br />

as mulheres, atrás.<br />

O ruído ouvido por ela – como o das matracas – anunciava ao povo<br />

que, ali, ia uma procissão e que ninguém deveria atrapalhá-los, pois<br />

seguiriam pela estreita rua até um vale, desconhecido ainda de<br />

Cornélia.<br />

Alguns dos homens levavam faixas com pinturas brancas <strong>no</strong> rosto e<br />

na cabeça; estes carregavam uma estátua que veneravam. Aquela<br />

estátua produziu em Cornélia o mesmo efeito que a pérola lhe<br />

provocava. Seus olhos se fixaram nela, mas seu corpo amoleceu e<br />

ela tombou.<br />

Acordou com os olhos de Hermes a encará-la muito preocupado,<br />

aspergindo-lhe pulso e fronte com uma essência ambarina só dele<br />

conhecida. Ele a trancava a sete chaves e, quando a aplicava,<br />

30


ninguém lhe exigia explicações, porque já sabiam que era algo que a<br />

todos beneficiava e Cornélia não o proibia de usá-la.<br />

Já refeita do grande desconforto que lhe tomara o corpo, ouviu dos<br />

lábios de Hermes:<br />

- Não quer me contar o que vem em sua cabeça agora?<br />

- Aquela procissão, Hermes. Eu um dia já acompanhei uma<br />

procissão assim. Eu sei, eu sei...<br />

- Fale dela então, Flor de Lótus.<br />

Cornélia olhou-o espantadíssima e indagou:<br />

- Por que disse Flor de Lótus?<br />

Ele riu e numa linguagem estranha recitou algo não entendido por<br />

ela. Depois, insistiu: - Vamos, Flor de Lótus, caminhe por esta<br />

morada.<br />

Cornélia olhou-o fascinada e começou a narrar <strong>para</strong> o negro a sua<br />

vida na Terceira Morada.<br />

31


Sete<br />

- O leito do rio era perfeito <strong>para</strong> <strong>no</strong>s abrigar, Hermes. Eu era filha de<br />

um homem que possuía uma casa com imenso jardim. Tão grande,<br />

que não seria exagero dizer que era bem maior do que este terre<strong>no</strong><br />

que abriga esta casa e todas suas dependências.<br />

Eu era a caçula e ainda me lembro bem que meu pai vestia uma<br />

roupa muito engraçada: a calça bem larga com as pernas presas <strong>no</strong>s<br />

tor<strong>no</strong>zelos por enfeites de pérolas. O torso meio desnudo com<br />

apenas uma espécie de colete aberto, que servia simplesmente de<br />

enfeite.<br />

Nossa família vivia em contato puro com a Natureza. Minha mãe<br />

era uma mulher de olhos verdes como as esmeraldas que enfeitavam<br />

o <strong>no</strong>sso palácio. As pedras preciosas abundavam por ali como os<br />

próprios peixes que alimentavam as criaturas dependentes do mar.<br />

O rio Ganges era o <strong>no</strong>sso rio sagrado e nele continuávamos a fazer<br />

as <strong>no</strong>ssas abluções. Nunca <strong>no</strong>s faltavam oferendas <strong>para</strong> entregarmos<br />

aos deuses que, na realidade, era um só, mas na postura de muitos.<br />

Cada uma das representações dele <strong>no</strong>s mostrava a variedade de<br />

composições que aquele Deus rico tinha <strong>para</strong> <strong>no</strong>s ofertar.<br />

Éramos felizes até que por ali entrou um povo oriundo do ocea<strong>no</strong>. A<br />

chegada deles começou a macular o <strong>no</strong>sso solo.<br />

Nós possuíamos um Templo <strong>para</strong> <strong>no</strong>ssa exortação ao Deus da Vida,<br />

mas um dia ele amanheceu todo chamuscado, e aqueles estrangeiros<br />

diziam que era apenas um aviso, <strong>para</strong> que recebêssemos melhor a<br />

oferta deles numa fé que queriam <strong>no</strong>s demonstrar.<br />

Capciosos que eram, iniciaram vagarosamente a queima de muitas<br />

tendas, onde viviam os administradores do território. E o meu pai,<br />

que era o dirigente maior do grupo, nem sabia o que fazer.<br />

32


Ele era um homem sério, tranqüilo, mais parecia uma criança pela<br />

felicidade e alegria com que encarava a vida. Não estava<br />

acostumado a distúrbios e nunca havia enfrentado uma situação<br />

semelhante.<br />

Convocou os <strong>no</strong>bres administradores e assim decidiram que o<br />

melhor a fazer seria convidar os estrangeiros, <strong>para</strong> que tentassem<br />

estabelecer uma aliança que a todos atendesse, <strong>no</strong> sentido de uma<br />

felicidade conjunta.<br />

Acontece que entre esses estrangeiros um parecia ser o grão-senhor.<br />

Vestia-se de forma tão estranha, que a todos nós assustava. E o riso<br />

dele ecoava mais forte do que as águas que caíam altas das<br />

cachoeiras.<br />

Na primeira reunião entre meu pai, seus administradores e esse<br />

homem estranho, prevaleceu o comando do estrangeiro. Ele só se<br />

prestaria a fazer uma aliança com todos se passasse a fazer parte de<br />

<strong>no</strong>ssa família. Meu pai nem entendeu que aquele estranho estava<br />

querendo mesmo era <strong>para</strong> esposa ou concubina uma de suas filhas.<br />

O porte atlético do homem parecia o de um deus – mas um deus do<br />

mal – eu até pensei, quando meu pai voltou silencioso <strong>para</strong> casa,<br />

sem saber como resolver aquela desdita que <strong>no</strong>s apanhava, como os<br />

receptáculos que nós usávamos <strong>para</strong> apanhar algumas aves e<br />

prendê-las. Só que nós os usávamos <strong>para</strong> prender as aves com a<br />

finalidade de embelezar os <strong>no</strong>ssos jardins... Mas ele...<br />

Para resumir a minha história, Hermes, esse homem truculento<br />

começou a <strong>no</strong>s roubar as criaturas amigas e antigas conhecidas<br />

<strong>no</strong>ssas. Sabe como? Ele captava a confiança delas e, com o tempo,<br />

ia formando um verdadeiro exército de seguidores.<br />

Eles também se pintavam como os homens e mulheres dessa<br />

procissão que acabei de ver, e a casa deles – a que mais os atraía,<br />

pois possuíam muitas – era toda cheia de pedrarias às quais nem<br />

davam valor.<br />

Um dia, o Conselho de meu pai decidiu que seria melhor uma filha<br />

dele se unir logo àquele homem em um ritual de casamento.<br />

33


Fui eu a escolhida, Hermes, porque aquele homem via em mim a<br />

aparência de uma esmeralda – eu nunca soube por quê. Mas ele me<br />

olhava zombeteiro e <strong>no</strong> dia do <strong>no</strong>sso encontro, <strong>para</strong> estabelecermos<br />

uma aliança entre nós, ele me ofereceu um belo colar de pérolas<br />

com cores que jamais julguei existir: brancas, azuis, amarelas<br />

malvas e até negras. Segundo ele, cada uma delas possuía uma<br />

história que um dia ia me contar.<br />

Derramei abundantes lágrimas, <strong>para</strong> concluir, finalmente, que eu<br />

seria apenas uma oferenda <strong>para</strong> aquele homem. Mais tarde eu soube<br />

que ele era oriundo do Setentrião.<br />

Por esse meu ato de casamento, meu povo recomeçou a viver em<br />

paz. Voltamos a <strong>no</strong>s servir do Ganges. Mais tarde, meu pai e minha<br />

mãe passaram <strong>para</strong> as dimensões celestiais e eu – que continuava a<br />

ser chamada de Esmeralda por ele – morri numa cerimônia fúnebre,<br />

ao lado dele, porque era costume cremarem os corpos dos mortos e,<br />

se o marido morresse primeiro – que era o <strong>no</strong>sso caso –, a mulher<br />

deveria morrer junto, <strong>para</strong> que não houvesse continuidade<br />

sanguínea. Era uma sociedade extremamente patriarcal.<br />

Sabe, Hermes, agora, ao ver qualquer tipo de pérola ou adereço mais<br />

simples que seja, recordo-me que aquele homem me prometeu<br />

contar a história das pérolas de <strong>no</strong>sso casamento. Só que hoje eu<br />

penso que é preferível que o fio que prendia as contas do colar se<br />

tenha partido, e que o mar tenha colhido cada uma daquelas pérolas,<br />

<strong>para</strong> que eu nunca mais precise servir de sacrifício <strong>para</strong> ninguém.<br />

Os olhos de Cornélia marejaram e Hermes garantiu:<br />

- Pois eu creio que <strong>aqui</strong>, Flor de Lótus, você vai recolher a mais<br />

perfeita pérola existente, e ganhar a plena certeza de que é a mais<br />

bela mesmo, pertencente a um rei<strong>no</strong> que outras jamais superarão.<br />

- Que rei<strong>no</strong>, Hermes?<br />

- O do Homem Peixe. Será ele que a entregará <strong>para</strong> você.<br />

Hermes sorriu e, na escuridão brilhante daquele olhar, Cornélia viu<br />

o mundo mágico ao qual ele pertencia e do qual jamais ouvira falar.<br />

34


Oito<br />

Cornélia atravessou a porteirinha rústica e entrou em um extenso<br />

quintal, onde havia algumas árvores frutíferas e ovelhas de um<br />

peque<strong>no</strong> rebanho. Aliás, o rebanho era grande, mas dividido entre<br />

vários amigos que não possuíam posses <strong>para</strong> cuidá-lo sozinhos.<br />

Assim, uma parte permanecia ali, com a família de Abigail, perto de<br />

Nazaré.<br />

Abigail, a dona da casa, saudou Cornélia e puseram-se a conversar,<br />

a respeito de uma reunião programada <strong>para</strong> aquela <strong>no</strong>ite.<br />

- Agora que você já participa das <strong>no</strong>ssas pregações, já sabe que há<br />

necessidade de grandes cuidados de <strong>no</strong>ssa parte, Cornélia. Os<br />

poderes se vêem fortalecidos e há testemunhos de que alguns dos<br />

meus amigos já se encontram nas malhas dos ferozes roma<strong>no</strong>s, que<br />

se recusam a ouvir expressões de paz e igualdade <strong>para</strong> todos. Esses<br />

altos senhores se encontram insatisfeitos e desvinculados de<br />

qualquer tipo de amor, pois preferem pautar seus rumos pela lei do<br />

comando. Quem não os aceita é açoitado e colocado em locais<br />

abomináveis, tornando-se servos malditos desses senhores<br />

desventurados.<br />

- Tenho <strong>para</strong> mim, Abigail, que essas horas que vivemos por <strong>aqui</strong><br />

serão infames e também catalisadoras.<br />

- Não entendo o que está me dizendo, Cornélia, só sei o que meu<br />

coração me passa. E ele me diz que preciso respirar o aroma<br />

diferente trazido por Joshua, o Messias. Tenho certeza absoluta de<br />

que ele vai <strong>no</strong>s conduzir exatamente como Moisés, tirando o meu<br />

povo do cativeiro.<br />

- Ah, Abigail, é difícil <strong>para</strong> mim compreender isto. Sou totalmente<br />

inculta sobre o que vocês, judeus, pensam. Fui instruída de forma<br />

35


diferente. Nem tenho um deus <strong>para</strong> adorar, entende? O meu culto é<br />

o Sol, a própria Natureza com tudo o que está dentro dela.<br />

- Mas ... então por que <strong>no</strong>s procura, Cornélia?<br />

- Porque me sinto atraída pelos dizeres desse homem que vocês<br />

consideram um Messias – só isto. Já o ouvi falar algumas vezes. E,<br />

quando o ouço, é o mesmo que estar sendo atraída por todos os<br />

poderes do universo ao mesmo tempo. É estar sendo chamada pela<br />

luz, pelo calor do Sol, pelo cenário das estrelas do firmamento, pelas<br />

tempestades e marés, e...<br />

- E pelos peixes – Abigail tentou brincar, mas a expressão era de<br />

preocupação.<br />

- Tenho um escravo que o chama de Homem Peixe. Mas peixes<br />

somos também todos nós – os que o seguem ou não -, e também os<br />

colibris, os filhotes de colibris e esses infelizes roma<strong>no</strong>s que<br />

acabarão aprisionados nas próprias malhas que escolheram <strong>para</strong><br />

prender Joshua e tantos outros.<br />

- Do jeito que você fala, até parece que não prevê um bom final...<br />

- E não posso prever mesmo, Abigail. Nós vamos perdê-lo, mas ele<br />

vai escapar por entre as malhas, você verá.<br />

- Então isto é bom. É isto mesmo que eu quero. E faço questão de<br />

estar lá, <strong>para</strong> ajudar a tirar as malhas em tor<strong>no</strong> dele. É exatamente<br />

por isso que prossigo – Abigail suspirou esperançosa.<br />

Cornélia olhou-a tristonha e perguntou qual seria a senha daquele<br />

dia <strong>para</strong> a reunião.<br />

- Senhor dos Mundos – ela informou cheia de cuidados. Aquelas<br />

senhas só eram repartidas <strong>para</strong> pessoas de confiança, da parte dos<br />

seguidores de Joshua.<br />

Ao se dirigir de volta ao portãozinho que a levara até Abigail,<br />

Cornélia ouviu a jovem pronunciar cheia de fé:<br />

- Que o Nazare<strong>no</strong> esteja sempre co<strong>no</strong>sco!<br />

Cornélia <strong>aqui</strong>esceu com um ligeiro ace<strong>no</strong> da cabeça e voltou <strong>para</strong><br />

seu lar.<br />

36


Naquele mesmo dia, recebeu <strong>no</strong>tícia da morte de seu pai e a<br />

promessa de que Hannah e seu amigo Konstantin a visitariam em<br />

breve.<br />

Cornélia pranteou o pai, mas o coração se manteve firme, porque<br />

sabia dos sofrimentos de Diomedes.<br />

Seu pai tinha sido um homem metódico e de certa forma inculto.<br />

Prendia-se a tradições, mas não às que se referiam aos familiares –<br />

seu culto verdadeiro eram as posses. Homem cheio de vaidade,<br />

navegava nas ondas do sucesso pecuniário. Tinha conseguido bem<br />

moço triplicar a sua fortuna, <strong>no</strong> comércio com madeiras e, depois,<br />

com a construção de embarcações. Estas eram tão necessárias<br />

naquela região, que num piscar de olhos se viu rodeado de criaturas<br />

que comungavam os mesmos ideais.<br />

Foi assim que logo saiu de sua função de comerciante <strong>para</strong> grande<br />

empresário. Com uma capacidade inata <strong>para</strong> perceber as<br />

necessidades materiais da região, logo entendeu quais eram as<br />

daquele povo roma<strong>no</strong> que ali vinha estendendo implacavelmente<br />

seus domínios. Com uma rapidez invejável, Diomedes se havia<br />

aliado a gente que, como ele mesmo, via na construção de<br />

embarcações a forma mais rápida <strong>para</strong> ampliar fortuna. E não se<br />

enga<strong>no</strong>u. Em pouco tempo, já havia organizado uma espécie de<br />

cooperativa e se tornara senhor de bens invejáveis.<br />

Diomedes havia florescido naqueles territórios e adjacências e até<br />

parecia que recebia do Alto um impulso <strong>para</strong> que tal se processasse.<br />

Aliás, <strong>para</strong> muitos o mesmo sucedia. Os que buscavam enriquecer,<br />

conseguiam; os que pretendiam enamorar-se, eram visitados pelo<br />

amor; os que almejavam aprendizado e compreensão, tinham a<br />

graça de contar com os ensinamentos de Joshua.<br />

Dessa forma, uma e<strong>no</strong>rme teia de opções de escolhas surgia ali, <strong>para</strong><br />

a montagem de uma vida feliz, porque Joshua não se mostrava<br />

contrário a alegrias, a regras, a amores. Não, Joshua era a própria<br />

Cornucópia oferecida pelos deuses <strong>para</strong> prover de abundância os<br />

lares e corações.<br />

37


Só que, da mesma forma que as criancinhas escolhem brinquedos<br />

<strong>para</strong> alegrar seus sonhos de venturas, os adultos que percorriam<br />

aqueles territórios apresentavam a preferência pelo que era material,<br />

ig<strong>no</strong>rando que existiam mundos entremeados – o da matéria e o do<br />

espírito – e que o mundo espiritual estava sendo aberto <strong>para</strong> eles,<br />

com a presença de Joshua, enquanto ele pousasse seus pés por<br />

aquele solo. Se os homens houvessem analisado melhor o que seria<br />

o Rei<strong>no</strong> citado por ele, as escolhas poderiam ter sido me<strong>no</strong>s injustas,<br />

mais equilibradas e também providas da felicidade terrena.<br />

Mas tinha que ser assim. Era exatamente <strong>para</strong> que as medidas dos<br />

homens se ampliassem que Joshua colaborou, doando sua vida em<br />

<strong>no</strong>me da felicidade que os infelizes mortais buscavam muito longe<br />

do Rei<strong>no</strong>.<br />

Konstantin chegou na casa de Cornélia bastante abatido. Juntos,<br />

ainda puderam fazer longos passeios e até ouvir algumas prédicas<br />

do Nazare<strong>no</strong>, que começava a ser vigiado muito de perto.<br />

Konstantin partiu <strong>para</strong> a Morada do Desconhecido três dias antes de<br />

ouvirem contar que Joshua havia sido aprisionado.<br />

Com a morte de Joshua, Cornélia voltou <strong>para</strong> o Solarium junto de<br />

um rapazinho chamado Boanerges, que ela havia tomado como filho<br />

adotivo, exatamente na ocasião em que o negro Hermes se afastava<br />

<strong>para</strong> outros rumos. O Solarium estava aos cuidados de serviçais,<br />

pois Hannah havia viajado logo após a morte do pai de Cornélia,<br />

<strong>para</strong> encontrar-se com pessoas de sua afeição.<br />

Passaram-se uns tempos. Certa manhã, Cornélia foi avisada por<br />

Boanerges que era procurada por algumas senhoras.<br />

Eram Hannah e algumas amigas dela, matronas romanas às quais<br />

Hannah se havia afeiçoado, quando ainda era mocinha. Estavam<br />

acompanhadas de um jovem de seus dezoito a<strong>no</strong>s, de passadas<br />

ágeis, elegante e aparentemente cordial. Talvez fosse um encontro<br />

programado pelo próprio desti<strong>no</strong>, a fim de que uma corrente de<br />

vibrações agradáveis percorresse o Solarium de ponta a ponta,<br />

lavando as inquietações dos corações que se encontravam<br />

amargurados.<br />

38


Entre as senhoras que ladeavam Hannah, uma era familiar de Irina,<br />

e que havia contado detalhadamente <strong>para</strong> Hannah o que havia<br />

acontecido com o filhinho afastado dela por Dionísio. Era uma<br />

mulher ativa, de idade aproximada dos sessenta a<strong>no</strong>s, elegante e de<br />

maneiras orientais. Os trajes eram um misto daquele povo que<br />

amava a seda, mas adaptado <strong>para</strong> a região que ora ela percorria.<br />

Levava <strong>no</strong> colo uma bela safira, incrustada em um medalhão, onde<br />

se podia também ver o desenho de um menininho de uns seis a<strong>no</strong>s.<br />

De uma outra visitante, Cornélia não conseguia desprender os olhos,<br />

até que ouviu o <strong>no</strong>me, pela apresentação de Hannah – Celeste. Uma<br />

onda de alegria percorreu-lhe a alma, resultante daquelas afinidades<br />

espontâneas que não se consegue explicar.<br />

Celeste, a matrona romana, olhava-a atentamente e logo se<br />

manifestou, com um sorriso agradável:<br />

- Então era <strong>aqui</strong> que você se encontrava...! Nunca imaginei que<br />

deveria procurá-la <strong>no</strong> lar de seus ancestrais. Quando Hannah se<br />

referiu ao seu <strong>para</strong>deiro como algo bastante natural e esperado,<br />

confesso que não acreditei. Para mim, você havia saído de Nazaré<br />

na companhia dos judeus que apoiavam o Nazare<strong>no</strong>. Jamais<br />

imaginei mesmo...<br />

Cornélia interrompeu-a.<br />

- Eu não pude acompanhá-los, minha senhora. Não que o meu<br />

coração não o quisesse. Mas <strong>para</strong> aqueles seguidores eu era apenas<br />

uma mulher e eles não viam em mim uma pessoa pre<strong>para</strong>da <strong>para</strong> as<br />

pregações, porque eu não era judia. Como eu poderia enfrentar<br />

argumentos do que eu nem entendia? Além do mais, acho que até<br />

me irritaria se eles analisassem os fatos sem colocar em primeiro<br />

lugar o que Joshua apregoava. Isto eu conhecia bem, porque o ouvi<br />

muitas vezes. Afinal de contas, ele falava do Amor, da Alegria<br />

futura. As falas dele eram sobre o ontem, o hoje e o amanhã e não<br />

sobre minúcias de rituais, de circuncisões ou de alimentos. Não –<br />

ela prosseguiu com energia – eu não seria uma boa companhia nas<br />

pregações futuras, repito, eu sou apenas uma mulher, e uma mulher<br />

não pre<strong>para</strong>da <strong>para</strong> tomar conta dos alimentos ou dos afazeres<br />

domésticos. Nisso, até as minha amigas judias brincavam comigo.<br />

39


Elas me diziam que deveria existir entre elas uma função diferente<br />

<strong>para</strong> as mulheres que preferem os aromas e suas essências, aí, sim,<br />

eu poderia criar <strong>no</strong>vas fragrâncias e, junto, fazer uma mistura de<br />

ervas e de incenso, <strong>para</strong> perfumar diferentemente os lares.<br />

- Ah, eu sei a que você está se referindo – sorriu Celeste. – Soube<br />

que você distribuiu essência de nardos <strong>para</strong> eles, não foi? E aposto<br />

que por isso foi julgada uma leviana.<br />

Cornélia levantou os ombros.<br />

- E quem é que nunca comete leviandades? Parece que as minhas<br />

foram bem <strong>no</strong>tadas. Talvez por ter Aquele Anjo maravilhoso<br />

mostrado <strong>para</strong> os ouvintes Dele que éramos todos iguais. Mas<br />

quando é que os homens se igualariam às mulheres? Jamais. Então –<br />

ela <strong>no</strong>vamente ergueu os ombros - eu parti. Voltei <strong>para</strong> o lar de<br />

meus ancestrais. Ah, como chorei, minha amiga! Acho que só não<br />

morri, porque as falas de Joshua haviam penetrado bem fundo em<br />

minha alma. Não creio mesmo que, aonde quer que eu vá, esqueça<br />

da mansidão com que Ele olhava um por um: velhos, jovens,<br />

crianças, doentes e até senadores roma<strong>no</strong>s. Ele jamais se irava;<br />

jamais perdia o sentido do que era justo. Afinal... este mundo parece<br />

andar meio cambaio, você não acha?<br />

- Concordo com você, mas, diga-me, consegue ser feliz? Continuar<br />

sua vida como se nada houvesse acontecido?<br />

Cornélia parou um instante <strong>para</strong> responder.<br />

- Consigo viver, sim, mas como se o mundo tivesse sido<br />

interrompido. Como se o mundo, de repente, tivesse aberto umas<br />

comportas <strong>para</strong> as águas jorrarem. E eu tenho medo, muito medo. É<br />

como se eu soubesse que preciso entrar nessas águas e aprender a<br />

nadar. Sou muito frágil, bem mais do que a minha aparência<br />

apresenta. Não que eu tenha medo de águas, ou de que possa me<br />

afogar. Tenho medo de não saber que direção devo tomar, de não<br />

saber a direção certa <strong>para</strong> poder seguir na de Joshua, você me<br />

entende? – os olhos de Cornélia marejaram.<br />

- Ah, minha amiga! – disse Hannah, comovida. – Eu acho que<br />

extrapolei sua força e a sua capacidade. Pensei que você estaria bem<br />

40


sem a minha companhia. Mas enganei-me. Enquanto eu buscava<br />

ainda realizar alguns sonhos, você se esvaziava. Ah, como fui<br />

imprudente! Não devia ter deixado você sozinha, depois que eu<br />

soube da morte de Joshua.<br />

- Não, não se preocupe, Hannah. Eu ainda estou dando tempo e<br />

olhando as águas, <strong>para</strong> entrar nelas e nadar. Mas creia que é muito<br />

bom tê-la <strong>aqui</strong> agora, junto com suas amigas, porque esta é uma<br />

forma agradável de entrar numa piscina antes de me dirigir ao mar.<br />

Enquanto as mulheres conversavam, o rapaz que as havia<br />

acompanhado analisava os detalhes da casa de Cornélia. Interessouse<br />

muito, quando ouviu suave melodia tirada por um alaúde e que<br />

era cantada por Boanerges <strong>no</strong> terraço da casa.<br />

Cornélia <strong>no</strong>tou-lhe o interesse e convidou:<br />

- Não quer subir e acompanhar a melodia de Boanerges? Deve ser<br />

bem mais agradável <strong>para</strong> você afastar-se por uns tempos da<br />

companhia de mulheres. Vá, vá até lá!<br />

O rapaz apenas sorriu e não aguardou segundo convite. Logo estava<br />

junto do jovem que tocava com grande sensibilidade.<br />

Boanerges saudou-o meneando a cabeça e deixou-se conduzir pela<br />

inspiração, criando melodia <strong>no</strong>va. Quando a finalizou, ouviu o<br />

visitante dizer:<br />

- Você tem um raro dom <strong>para</strong> a música. E aposto que tem outros que<br />

ninguém conhece – mas o riso era de mofa, quando fez a segunda<br />

parte de sua observação.<br />

Boanerges ouviu-o tristemente e devolveu:<br />

- Se pelo me<strong>no</strong>s me servir <strong>para</strong> afastar os desconfiados, muito me<br />

valerá.<br />

Amuado, o jovem questio<strong>no</strong>u:<br />

- Ofendi-o? Não era a minha intenção.<br />

- Não ando à busca de conhecer as pessoas, rapazinho. Se eu<br />

conseguir me conhecer, já terei conseguido o meu aprendizado <strong>aqui</strong><br />

na Terra.<br />

41


- Você fala como os cristãos. Você é um? – ele disse com o peito<br />

empinado.<br />

- Eu me chamo Boanerges, rapaz. Isto basta <strong>para</strong> você, já que está<br />

num lar que o recebe com cordialidade não fictícia.<br />

Aí o jovem encabulou-se e se retratou:<br />

- Eu estava apenas querendo criar uma polêmica. Meu jeito é assim,<br />

belicoso e muitas vezes insensato. Mas confesso que não gosto<br />

muito de brigas.<br />

- Nem eu – retrucou Boanerges -, porque se eu gostasse ia me<br />

colocar lá dentro daquelas arenas cheias de leões. Não estaria <strong>aqui</strong><br />

tocando sinceramente o meu alaúde.<br />

- Bem, eu não sou lá muito amigo de músicas – disse o jovem -, mas<br />

eu acho que até gostaria de ser treinado como gladiador. Só não o<br />

faço, porque minha família impediria. Eles acham que gente de<br />

fortuna não deve ser gladiador.<br />

- E você possui fortuna? – indagou Boanerges apenas <strong>para</strong> ser<br />

gentil.<br />

- Tenho – ele afirmou, mas sem arrogância. - Minha família é...<br />

Foi interrompido por Cornélia, que avisava Boanerges da chegada<br />

de sua outra mãe adotiva, Salomé.<br />

Reuniam-se, naquele dia, várias criaturas que foram marcadas<br />

diferentemente por Joshua. Umas prosseguiram em suas jornadas<br />

com a imagem dele, cantante, <strong>no</strong> peito. Outras como se a passagem<br />

de Joshua tivesse sido apenas um sopro pequeni<strong>no</strong> e sem finalidade.<br />

Mas, <strong>para</strong> Cornélia, seria a razão de suas existências futuras.<br />

42


Nove<br />

A permanência de Cornélia <strong>no</strong> Solarium ia acabar. Seu coração<br />

pedia mudanças e ela não desejava continuar ali sem os seus<br />

familiares. Nazaré também havia cerrado um véu <strong>para</strong> ela, de modo<br />

que sua proposta era deixar aquela casa <strong>para</strong> Boanerges e seus<br />

familiares, ou melhor, os judeus que haviam acolhido Boanerges,<br />

quando ele ainda era um meni<strong>no</strong> de dois a<strong>no</strong>s.<br />

Boanerges não sabia quem eram seus pais. Havia sido deixado na<br />

porta da casa de Salomé e seu marido, um homem que trabalhava<br />

com couro, e conhecido também como seleiro.<br />

Para Cornélia, dinheiro não faltaria, mas encontrava-se ressequida<br />

de afeto. Se não tivesse contado com a companhia daquele<br />

rapazinho naqueles últimos a<strong>no</strong>s, teria deixado de querer entender a<br />

razão de sua existência.<br />

Os familiares de Boanerges já estavam chegando e o pla<strong>no</strong> dela era<br />

sair dali exatamente com os que levassem Salomé e o marido até lá.<br />

Seu desti<strong>no</strong> todos desconheceriam. Assim ela preferia. Sentia uma<br />

necessidade muito grande de isolar-se.<br />

Quem cruzasse com Cornélia nesses últimos cinco a<strong>no</strong>s após a<br />

morte de Joshua, não entenderia como havia feito <strong>para</strong> vencer as<br />

próprias tormentas. Estava mais magra, mas a expressão não era de<br />

criatura vencida, e sim de quem buscava ansiosamente por uma<br />

resposta.<br />

Ela viajou, comprou uma casa modesta, mas confortável, e nela se<br />

alojou. Não era perto de Nazaré. Vivia em paz, na companhia de<br />

alguns serviçais. Afastada das atrações que ela caracterizava como<br />

“carnais”, começou mais uma vez a analisar-se interiormente.<br />

43


Enquanto havia caminhado com Joshua, não havia tentado sua<br />

experiência de concentração na pérola. Mas naquela ocasião havia<br />

<strong>no</strong>tado, diariamente, o poder da fé em muitas criaturas que<br />

materializavam a cura <strong>no</strong> próprio corpo, quando se aproximavam de<br />

Joshua ou eram tocados por ele. Assim, acreditava que ele<br />

continuaria a auxiliá-la, onde quer que estivesse. Ele a curaria de<br />

suas mágoas e decepções.<br />

A sua primeira concentração, depois de tanto tempo, foi tranqüila. A<br />

silhueta de uma menininha de uns cinco a<strong>no</strong>s desenhou-se em sua<br />

“tela”. A garota tinha nas mãos um bastão vermelho, de pedra<br />

translúcida, em cuja ponta um facho de luz cintilava. Ela girava o<br />

corpo com a mão estendida e, quando completava um círculo,<br />

guardada pela lumi<strong>no</strong>sidade que ia permanecendo <strong>no</strong> centro dele,<br />

via-se como se estivesse projetada fora do círculo e de seu próprio<br />

corpo. Aquele bastão funcionava como se fosse um projetor da<br />

imagem de quem o empunhasse. A cada projeção, a garotinha ria,<br />

sacudia os cabelos longos e envaidecia-se, feliz, pois ia se vendo<br />

com trajes diferentes, de épocas desconhecidas por ela. Cornélia<br />

sabia que a garota do bastão era ela mesma, a se ver em diversas<br />

situações.<br />

Que Morada seria aquela, onde as criaturas tinham nas mãos a<br />

possibilidade de se enxergar tão facilmente, como um ser vivente<br />

em vários espaços? E tudo <strong>aqui</strong>lo com o emprego de um simples<br />

bastão, sem tantas dificuldades <strong>para</strong> se conhecer?<br />

Talvez pelo fato de indagar tão veementemente o que significaria<br />

tudo <strong>aqui</strong>lo, sua mente se desconectou daquela “caixa mágica”<br />

guardada em seu cérebro, e ela voltou a ser simplesmente Cornélia.<br />

Mas a impressão ficou fortemente gravada. Seria isso a que se<br />

referiam, quando diziam que os homens haviam perdido o Paraíso?<br />

Que razão teria surgido <strong>para</strong> que aquela garota tão exuberante de<br />

vida, de energia, de felicidade e de liberdade deixasse <strong>aqui</strong>lo tudo<br />

<strong>para</strong> viver num mundo onde a tendência dos homens era <strong>para</strong> o<br />

aprisionamento? Sim, um mundo onde pareciam sentir satisfação<br />

em tolher os passos dos que amavam sinceramente, como Joshua<br />

amava. Não haviam os homens colocado aquele ser amoroso numa<br />

44


cruz, tolhendo seus passos, quando ele vivia <strong>no</strong> auge de sua<br />

mocidade?<br />

Ah, a expressão daquela garota, de sorriso límpido e cheia de<br />

descobertas e venturas, havia deixado nela, agora, algo diferente,<br />

um sentimento benéfico a respeito de um passado que Cornélia não<br />

soube distinguir se havia acontecido na Terra – ou se <strong>no</strong> Paraíso.<br />

Tinha sido uma experiência muito rápida.<br />

Poucos dias depois, voltou a ser surpreendida por situação inusitada.<br />

Seu isolamento a levava freqüentemente, mesmo sem desejar, a<br />

voltar os pensamentos <strong>para</strong> o Solarium, como se sua casa estivesse<br />

viajando com ela <strong>no</strong> tempo. Pela insistência desses pensamentos,<br />

certa manhã, viu-se a percorrer uma extensa planície, mas voejava<br />

desprendida do corpo físico, presa nele pelo belíssimo cordão<br />

prateado, que liga os corpos espirituais aos corpos físicos. Estava<br />

perfeitamente consciente de que seu corpo físico repousava lá, em<br />

sua <strong>no</strong>va moradia, enquanto sua alma deslizava rumo ao Solarium.<br />

Também entendia que havia se desligado de seu casulo por um curto<br />

espaço de tempo, porque aquela estrutura de carne e ossos que a<br />

recebera <strong>para</strong> vivenciar os seus a<strong>no</strong>s de Cornélia, aquela estrutura<br />

orgânica que a recebera e fora outorgada pelo Deus Criador,<br />

existiria enquanto ela necessitasse dela, a fim de concluir tarefas ou<br />

experimentar aprendizados <strong>para</strong> sua evolução pessoal.<br />

Cornélia pouco admirou as paisagens que ia atravessando, <strong>no</strong><br />

espaço, porque as imagens que lhe vinham à mente eram todas de<br />

alguns momentos passados <strong>no</strong> labirinto do Solarium, quando havia<br />

conhecido pela primeira vez o medo, e, também, das visualizações<br />

de existências suas, conseguidas por sua concentração na pérola, o<br />

que a levara a crer, algumas vezes, que era “uma criatura diabólica”<br />

por conseguir tudo isto.<br />

A leve lembrança do termo “criatura diabólica”, acompanhada de<br />

medo e preconceito, levou inevitavelmente o seu corpo espiritual a<br />

<strong>baixar</strong> a altitude, a perder a leveza inicial de que se vira dotada. E<br />

isso era provocado por ela mesma, por sua atitude negativa e que<br />

comprometia a bela experiência vivenciada naquele momento.<br />

45


Mais à frente, viu-se diante de criaturas que também haviam<br />

abandonado o casulo do corpo e seguiam rumos variados. Os corpos<br />

astrais de alguns apresentavam cores límpidas, mas, outros, matizes<br />

manchados em nuanças diversas. O ar pareceu-lhe denso e<br />

desagradável.<br />

“Ah, se eu alcançasse Nazaré!”, ela pensou, e o amor que lhe encheu<br />

a alma inundou-a de energias vivificantes. O espaço ampliou-se, ela<br />

foi impulsionada <strong>para</strong> maior altitude de <strong>no</strong>vo, e então conseguiu<br />

alcançar Nazaré e, em seguida, a sua casa do Solarium.<br />

Desceu <strong>no</strong> terraço, cuja pérgula florida sempre a atraía. Mas o<br />

desejo intenso de tudo ver rapidamente a levou a percorrer<br />

atabalhoadamente alguns recantos da casa. Entendeu que devia<br />

conter-se, equilibrar-se, a fim de melhor usufruir daquele milagre<br />

que a vida lhe estava ofertando, permitindo-lhe percorrer a sua casa,<br />

sem que estivesse presente com o corpo físico.<br />

Lágrimas desprenderam-se de seus olhos espirituais, ao ouvir uma<br />

cantiga de ninar entoada por Boanerges.<br />

Ele se encontrava dentro da casa, num amplo aposento que havia<br />

sido dividido em dois: <strong>para</strong> o casal e <strong>para</strong> uma criança que estava<br />

próxima dele – um menininho que começava a trocar os primeiros<br />

passos.<br />

“Boanerges casou e já tem um filhinho!”<br />

Dentro da casa, o ruído de louças e o cheiro apetitoso de alimentos<br />

sendo pre<strong>para</strong>dos atraíram Cornélia. Viu-se diante de uma bela<br />

jovem, a esposa de Boanerges.<br />

Prosseguiu em sua caminhada - agora não mais voejava - até a<br />

entrada do celeiro, mas ali se deteve. Recordou-se claramente de<br />

palavras ditas por Boanerges, a respeito dos medos que ela havia<br />

guardado de suas primeiras experiências por ali.<br />

Para Cornélia, Boanerges era uma criatura iluminada. Desde que o<br />

havia visto pela primeira vez, na casa de Salomé, sabia que o corpo<br />

franzi<strong>no</strong> daquele rapazote guardava uma alma cheia de experiências,<br />

de conhecimentos e de coragem.<br />

46


E, de fato, eram muitos os dons de Boanerges. Sua percepção maior<br />

– ela acreditava – era conhecer, mais facilmente que outras pessoas,<br />

o caos que acompanha as criaturas que precisam se equilibrar. E ele<br />

sempre se mostrara como criatura instruída na alma, não pelos<br />

<strong>livro</strong>s.<br />

O que acontecia em relação a ele é que, embora a memória do<br />

espírito houvesse sofrido o aprisionamento do corpo, <strong>no</strong> momento<br />

do nascimento (como acontece a todo mundo), Boanerges havia<br />

conseguido, em poucos a<strong>no</strong>s de vivência, libertar-se de suas peias.<br />

Mas como?<br />

Ele se havia libertado de suas peias e mazelas com a presença de<br />

Joshua. Joshua levara consigo, com toda a Luz que o circundava, a<br />

libertação de muitas almas que se encontravam vivendo por ali – e<br />

não por acaso...<br />

As tarefas de Joshua, as mais aparentes, não tinham sido entendidas<br />

por todos, muito me<strong>no</strong>s aquelas que diziam respeito à “libertação de<br />

criaturas <strong>para</strong> a Luz”.<br />

Sim, Boanerges havia sido orvalhado pela luz divina, com o apoio<br />

daquele Messias, de modo que renasceu nele um dom que o levaria,<br />

futuramente, a auxiliar pessoas que desejavam conduzir-se pelos<br />

caminhos do “sobrenatural”. Não que o rapaz deixasse de entender<br />

que o sobrenatural inexiste, mas ele sabia que muita gente iria<br />

buscar a Luz atraída pelo sobrenatural. E essa era uma tarefa que lhe<br />

agradava abraçar. Mas ele não era dotado apenas deste dom. Era<br />

uma criatura cordial, amiga, companheira, protetora dos justos e<br />

alertadora dos injustos.<br />

Os pensamentos firmes de Cornélia sobre o amigo o atraíram <strong>para</strong><br />

perto dela, como um ímã. Ele deixou de lado o alaúde, pegou o<br />

filhinho <strong>no</strong> colo e encaminhou-se exatamente <strong>para</strong> onde Cornélia se<br />

havia dirigido. Parou bem diante dela.<br />

Ao vê-lo, ela espantou-se e sentiu uma vontade e<strong>no</strong>rme de estreitálo<br />

num forte abraço. Mas quem a enxergou foi o menininho, que<br />

estendeu a mão e colocou-a em seu rosto, sorrindo. Assim,<br />

Boanerges entendeu que ela estava ali.<br />

47


Cornélia conseguiu vislumbrar centelhas de luzes se desprenderem<br />

da mão daquela criança.<br />

Mas a reação de Boanerges foi inesperada. Levantou com as duas<br />

mãos o filho <strong>para</strong> o alto e rodopiou, rodopiou, exatamente como a<br />

menina do bastão. Esta associação de imagem a levou de volta <strong>para</strong><br />

seu corpo físico, numa atração inevitável. No entanto, a felicidade<br />

que seguiu com ela a fez perceber que a melhor opção de sua vida<br />

não seria isolar-se <strong>para</strong> se conhecer, como andava fazendo. Deveria<br />

manter-se como participante dos jogos do mundo, porque o que<br />

estava tentando, na realidade, era afastar de si a mágoa de que se via<br />

ferida pelo descaso com que tinha sido atingida pelos seguidores de<br />

Joshua, que ela havia considerado amigos seus.<br />

Naquele momento, decidiu retornar a Nazaré. Voltaria a morar em<br />

sua antiga residência, que estava aos cuidados de serviçais e sob<br />

vigilância de Hannah, porque Hannah agora morava com uma de<br />

suas amigas romanas.<br />

Um mês depois, retornava ao ambiente que lhe havia produzido<br />

e<strong>no</strong>rmes mudanças.<br />

48


Dez<br />

Numa sólida casa construída ao redor de um pátio, à maneira grega,<br />

e que fora mandada erigir por um rico roma<strong>no</strong>, vivia Hannah com<br />

uma senhora de <strong>no</strong>me ilustre, Aurélia.<br />

Aurélia era descendente dos famosos Gracos, cujos feitos eram<br />

elogiados por todos os roma<strong>no</strong>s que se viam como deuses. Senhora<br />

de boa cultura, de grande firmeza na realização de seus desejos e<br />

mãe de dois filhos varões que pertenciam ao exército roma<strong>no</strong>.<br />

O prestígio do <strong>no</strong>me de seus antepassados lhe valera a facilidade de<br />

educar os rapazes, após a morte de seu esposo, ocorrida quando as<br />

crianças ainda eram púberes. Havia entregue a eles as suas energias,<br />

benesses e razão de sua existência. Vivia por eles, lutava por eles e<br />

sorria por eles. Tal capacidade de desprendimento tinha valido a<br />

Hannah, pelo convívio com ela, uma das faces do exemplo também<br />

adquirido por Cornélia enquanto seguia Joshua.<br />

Só que Aurélia, a matrona romana, tinha a mesma estrutura de seus<br />

antepassados, isto é, valia-se da figura da mulher com o mesmo<br />

fervor daquelas que haviam lutado por seus filhos <strong>para</strong> fazê-los altos<br />

dirigentes. Não possuía, portanto, o pensamento de Joshua “de que<br />

as criaturas eram todas iguais e de que todos somos irmãos e filhos<br />

do mesmo Pai”.<br />

Para Aurélia, o império roma<strong>no</strong> é que deveria estruturar os<br />

costumes, os hábitos e, se possível, até o sentimento dos judeus.<br />

Judeu, segundo sua opinião, era um povo que deveria ser submetido<br />

ao tacão dos roma<strong>no</strong>s, porque não possuíam a mesma estrutura e<br />

nem a disciplina ou a oratória de sua própria gente tão apaixonada<br />

por conquistas. Ela não entendia que o povo judeu lutava fortemente<br />

por sua liberdade; acreditava piamente que eram submissos e<br />

49


frágeis. Dessa foram é que ela havia sido moldada por seus pais e,<br />

eles, por seus ancestrais.<br />

Na companhia dessa senhora autoritária pelo comando e pulso<br />

firme, Hannah ia amadurecendo. Mas algo havia sucedido a ela: viase<br />

dividida entre os valores que lhe eram expostos naquela casa,<br />

quase que diariamente, e pelo que havia conseguido apreender<br />

durante a passagem daquele judeu messiânico que havia sido<br />

imolado por seu próprio povo, com a colaboração dos roma<strong>no</strong>s.<br />

Portanto, ia por si mesma pondo, numa balança, os pesos dos<br />

valores de um e do outro povo. Descobriu-se, assim, sem o desejo<br />

de permanecer naquele impasse, e com vontade de ver o lado da<br />

moeda jogada por Joshua, isto é, verificar o que havia sucedido com<br />

os judeus, após a morte de seu maior representante.<br />

Estava exatamente com este ponto de interrogação moldado <strong>no</strong><br />

coração, quando soube que Cornélia havia retomado sua vida na<br />

casa da ladeira – assim é que ela se referia à moradia da amiga.<br />

Numa tarde, procurou-a.<br />

Cornélia estava abatida pela mudança e pela viagem, mas o olhar<br />

apresentava a mesma firmeza conhecida por Hannah, dos tempos<br />

em que haviam convivido.<br />

- Ah, Cornélia, temos muito a conversar. Logo que soube de sua<br />

chegada, percebi que você poderia me auxiliar em uma de minhas<br />

divisões, aliás, proposta por Aurélia.<br />

- Divisões??<br />

- Sim, eu me encontrava sem saber se deveria permanecer mais uns<br />

tempos por <strong>aqui</strong> ou se deveria viajar. Tenho tantas dúvidas a<br />

respeito de minha vida afetiva...!<br />

- Entendo – disse Cornélia -, seu coração anda pedindo uma<br />

companhia...<br />

- Se você se refere a uma companhia masculina, equivocou-se,<br />

minha amiga. É que... há um chamado bem <strong>aqui</strong> <strong>no</strong> meu peito. E<br />

não sei qual é a forma de descobri-lo. Sinto-me vazia, inútil,<br />

50


vivendo uma vida de abando<strong>no</strong> dos meus próprios valores, porque<br />

eles estão mergulhados numa tigela de bronze.<br />

Cornélia riu.<br />

- Tão pequeni<strong>no</strong>s assim, <strong>para</strong> caberem numa tigela?<br />

- Exatamente, Cornélia. É por isso que vim conversar. Gosto muito<br />

da companhia de Aurélia, mas sei que preciso ampliar os meus<br />

horizontes. A luta de Aurélia é um pouco parecida com a luta de<br />

castas dos hindus.<br />

- Nem me fale em castas, Hannah. Isto me apavora mais do que<br />

imagina. Mas posso entender aonde quer chegar.<br />

- É que os meus amigos se moldaram muito fortemente na idolatria<br />

de seus antepassados. Agora, fico imaginando se você não levou<br />

uma e<strong>no</strong>rme vantagem convivendo uns tempos com os judeus mais<br />

simples que acompanharam Joshua.<br />

- Ah, Hannah, há muito já concluí que este ou aquele povo guarda<br />

na memória apenas pedaços de sua história, quando, na realidade, é<br />

tudo uma questão de imaturidade mesmo. Nós já vivemos tantas<br />

vezes...<br />

- Se eu conseguisse acreditar nisso, seria muito mais fácil <strong>para</strong> mim,<br />

Cornélia. Mas eu não creio que vamos um dia morrer, e sair d<strong>aqui</strong><br />

<strong>para</strong> depois recomeçar tudo <strong>no</strong>vamente. Qual sentido haveria numa<br />

Roda de Vivências?<br />

- O sentido da Luz, Hannah, da amplidão. Você acha tão<br />

importantes os feitos dos Gracos, dos Catões, dos Cipiões e dos<br />

Tibérios?<br />

Hannah pensou e comentou:<br />

- Talvez... <strong>para</strong> a reconstrução dos impérios que...<br />

- Que levaram criaturas e criaturas a desesperar-se? A se verem<br />

isoladas, manchadas, perdidas <strong>no</strong>s valores que deveriam ser os da<br />

construção sem violência? Pensa realmente, Hannah, que a maldade,<br />

a brutalidade e a imposição são a maneira vista pelo Criador <strong>para</strong><br />

51


embelezar a Terra? Acha que é necessário abrir um mundo de covas<br />

<strong>para</strong> o coração do homem progredir?<br />

- Eu não, Cornélia. Sou criatura pacífica.<br />

- Você é, eu sei. Mas você crê que esses roma<strong>no</strong>s de agora, que<br />

estão construindo um império fe<strong>no</strong>menal, pretendem entregar o<br />

pacifismo <strong>para</strong> quem não responde com a mesma fala deles?<br />

- Não, não posso achar.<br />

- Pois então eu lhe digo, minha amiga, foi isto que aprendi com<br />

Joshua; que o Deus Dele oferece um Rei<strong>no</strong> de Luz <strong>para</strong> todos – e<br />

sem exceção. Isto eu acho justo, decente e misericordioso.<br />

- Mas este Messias já morreu, Cornélia. E então?<br />

- Então ele deixou por <strong>aqui</strong> ensinamentos que as criaturas vão tentar<br />

propagar. E estas criaturas um dia vão morrer... e renascer,<br />

conforme o próprio exemplo deixado por Joshua. Você não ouviu<br />

contarem que ele apareceu aos amigos, após a morte na cruz?<br />

- Sim, eu soube disto.<br />

- Quando Joshua possibilitou o conhecimento deste fato, desvendou<br />

um dos mistérios da vida - aquele que <strong>no</strong>s mostra como criaturas<br />

com capacidade de vivenciar aprendizados em existências várias.<br />

Portanto, Cornélia, os que o amaram de verdade poderão continuar<br />

a seguir infindavelmente os exemplos dele. Ele jamais morrerá,<br />

entende?<br />

Hannah permaneceu tristonha. Aquela afirmativa não ia de encontro<br />

ao que seu coração ou seu intelecto alcançavam.<br />

- Sabe, Cornélia, tive oportunidade de observá-la bem. Você era<br />

uma jovenzinha sempre preocupada com o passado e com o futuro.<br />

Com aquelas visões que me contou que teve – e que nem sei<br />

interpretar – posso sentir que somos diferentes em alguns aspectos.<br />

Minhas exigências são <strong>para</strong> entender o <strong>aqui</strong> e o agora. Mas você,<br />

não. Você é como aquelas criaturas que gostam de ouvir as boas<br />

músicas e tentam encontrar, já, nas pessoas, os instrumentistas de<br />

valor.<br />

52


- E você acha que isto não é certo?<br />

- Como posso saber o que é certo ou errado? Eu apenas observo os<br />

instrumentos, Cornélia. E <strong>para</strong> mim os homens ainda estão na fase<br />

de aprender a construir os instrumentos, a fim de fazerem suas<br />

tentativas musicais. Sendo assim, se eu for pensar em futuro – e na<br />

possibilidade de vivermos outras vezes - acho que, até chegarem a<br />

ser justos, os homens vão necessitar construir tantos instrumentos<br />

musicais diferentes dos que conhecemos, que a <strong>no</strong>ssa imaginação<br />

nem pode alcançar.<br />

- E então?<br />

- Daí, eu deduzo que a minha preocupação em relação à humanidade<br />

é muito maior do que a sua. Principalmente porque acredito que o<br />

Divi<strong>no</strong> só entregará aos homens esta possibilidade de construírem<br />

<strong>no</strong>vos instrumentos, quando o próprio homem estiver entendendo,<br />

de fato, qual é o significado da música.<br />

- Ah, Hannah, Joshua foi um instrumentista perfeito. Quantos o<br />

ouviram? Nem por isso o Divi<strong>no</strong> deixou de mandá-lo até nós. Não<br />

acha que isto pode significar que já é o momento certo <strong>para</strong> os<br />

homens escolherem quais músicas preferem? Ou quais músicas<br />

agradam ao Divi<strong>no</strong>?<br />

53


Onze<br />

A tristeza começava a visitar a casa de Aurélia. Seus dois filhos<br />

muito amados, Fábio e Licínio, tinham sido indicados <strong>para</strong> um posto<br />

que os afastaria dali <strong>para</strong> a Roma dos desesperos de Aurélia.<br />

E por que isto?<br />

Já fazia algum tempo que ela se via entregue a pesadelos em<br />

quadros estarrecedores durante o so<strong>no</strong>. Eram centenas de criaturas<br />

crucificadas, numa extensa Via, que ela, particularmente, distinguia<br />

como pertencente a Roma. Acordava em desespero e fugia <strong>para</strong> fora<br />

de casa, desejosa de abraçar os filhos e, naqueles momentos, com<br />

um único intento: afastá-los do exército de que tanto se havia<br />

orgulhado.<br />

Até então, Aurélia tinha usufruído da companhia dos filhos, em<br />

suas visitas ou em estadias que a enchiam de satisfação, quando<br />

encontrava pretexto <strong>para</strong> oferecer festas que entravam pela<br />

madrugada ao som de sorrisos e de músicas.<br />

Seu filho mais velho, Licínio, caladão, sempre demonstrou que<br />

havia de atingir altos cargos, pela pertinácia, retidão e alegria com<br />

que encarava a vida. Destemido, nada o esmorecia. Sua preocupação<br />

maior era com o irmão, de quem tentava equilibrar as passadas,<br />

visto que Fábio era excessivo em bazófias e desaforado ao se ver<br />

diante de situações que considerasse injustas.<br />

A disciplina rígida do exército apenas conseguira colocar Fábio<br />

numa gangorra, porque, se não temia as falas de seus superiores,<br />

esforçava-se <strong>para</strong> não confrontá-los, mas apenas quando se<br />

lembrava da figura da mãe, a quem adorava. Fábio havia colocado a<br />

mãe num pedestal, mas o afastamento <strong>para</strong> a distância poderia trocar<br />

54


o lado da gangorra, visto que deixaria de receber a influência<br />

marcante que ela exercia sobre ele. E Licínio já previa tudo isto.<br />

Aurélia entendia que o exército era a escada <strong>para</strong> a fama dos filhos,<br />

e que ela mesma, silenciosamente, mas em ma<strong>no</strong>bras políticas e<br />

sagazes, havia colocado à frente deles. Certamente havia acreditado<br />

que poderia ma<strong>no</strong>brar até o fim a caminhada daqueles seres.<br />

A chegada de um <strong>no</strong>vo comandante, que não se importava nem um<br />

pouco com <strong>no</strong>mes célebres de antepassados, tirou da mão de Aurélia<br />

os poderes de que se via investida. Quando percebeu, já não havia<br />

mais possibilidades de evitar o afastamento de Licínio e de Fábio<br />

<strong>para</strong> Roma – exatamente o local que soava sinistramente em seus<br />

ouvidos.<br />

Só em pensar em Roma, Aurélia estremecia. Era como se esperasse<br />

de lá, antecipadamente, um roteiro cheio de mágoas <strong>para</strong> aquelas<br />

criaturas às quais havia doado suas energias e melhores vibrações.<br />

Tanto sofreu, que certa <strong>no</strong>ite acordou Hannah pelos soluços<br />

contínuos a que se entregava, sentada em um banco do extenso<br />

jardim de sua residência e que ficava quase que embaixo da janela<br />

dos aposentos de Hannah.<br />

Hannah desceu ao seu encontro.<br />

- Ah, Hannah, tenho tido visões medonhas durante meus sonhos!<br />

Vejo uma quantidade imensa de cruzes e, nelas, criaturas<br />

martirizadas como foi aquele filho de carpinteiro.<br />

- Calma, Aurélia! Você deve ter em mente exatamente a morte<br />

daquele judeu que muitos afirmam que era o filho do Deus.<br />

- Não, não se trata disso, Hannah. Aquele homem era somente um<br />

simples... e nem era roma<strong>no</strong>. Mas o meu coração está chorando pelo<br />

meu povo e também porque vejo, entre ele, os meus filhos. Eu me<br />

desespero, porque tenho medo de que Fábio e Licínio também sejam<br />

sacrificados.<br />

- É que você, pela primeira vez, os terá longe de seus olhos e de<br />

seus cuidados, minha amiga. E nós todas temos ouvido falar da<br />

pompa, das extravagâncias e das corrupções existentes em Roma.<br />

55


Mas você e seus filhos são criaturas de cultura e de boa cepa,<br />

Aurélia.<br />

- Eu sinto muito medo...! Sinto como se lá fosse acontecer o mesmo<br />

que se deu por <strong>aqui</strong>. Até quando vamos precisar ouvir a história<br />

desse judeu que dizem que veio <strong>para</strong> cá <strong>para</strong> tudo mudar? Pensei<br />

que a morte dele acabaria por <strong>aqui</strong>. Mas não. Estou sempre ouvindo<br />

os meus servos comentarem que ele era o filho do Deus e que... - ela<br />

voltou a soluçar. Mas nós não tivemos nada a ver com <strong>aqui</strong>lo, não é<br />

mesmo, Hannah?<br />

A amiga abraçou-a.<br />

O que sucedia com Aurélia era o mesmo que vinha se passando com<br />

os habitantes daquele território. Sempre inserida <strong>no</strong>s meios<br />

políticos, ela acreditava que os chefes e mesmo os subordinados dos<br />

graúdos, até então limitados a fazer com que o andamento dos<br />

povoados fosse entregando alimentos, tarefas, condições de<br />

sobrevivência, etc. etc., não deviam se ocupar muito <strong>para</strong> entender o<br />

que se passava na alma de cada um. Bastava-lhes que a máquina<br />

administrativa funcionasse, bastava-lhes que houvesse lucro e<br />

crescimento material, porque isto resumia tudo <strong>para</strong> eles.<br />

Acontece que algo começava a se inserir, a brotar sutilmente <strong>no</strong>s<br />

corações e mente das pessoas. Até a paisagem principiava a<br />

provocar em cada um o “desejo de descobrir algo a mais” – e isto<br />

referente ao coração.<br />

E não sucedia só <strong>para</strong> ela. Senhores do exército, soldados, donas de<br />

casa, prostitutas, neófitos, escravos, judeus, roma<strong>no</strong>s, árabes, todos,<br />

enfim, não deixavam de captar uma expectativa diferente na<br />

maneira de viver, uma certa ansiedade de conhecer um outro lado do<br />

mundo – o do Rei<strong>no</strong> tão propalado por ali por Joshua. Só que isto<br />

era tão imperceptível <strong>para</strong> alguns, como o era <strong>para</strong> um nãometeorologista<br />

prever que ia chover.<br />

Crianças, senhoras, velhos, jovens, <strong>para</strong>líticos, endemoninhados,<br />

todos sentiam a presença quase mágica de que uma Aurora Bendita<br />

iria se expandir entre eles. Para alguns, isso trazia, já, a presença da<br />

alegria com uma re<strong>no</strong>vação interior. Para outros, era como se o<br />

56


mundo fosse acabar, a fim de começar um outro <strong>no</strong>vo. Era isso que<br />

Aurélia temia, colocando nessa impressão a morte de seus filhos. E<br />

tão grande a sua preocupação, o seu medo, que entrava em pânico.<br />

- Aurélia, enxugue essas lágrimas! Amanhã conversaremos melhor.<br />

Você ainda poderá contar com surpresas que nem está esperando.<br />

Ninguém consegue estabelecer bons pla<strong>no</strong>s, quando se entrega à<br />

aflição. Prometo que amanhã vamos tentar achar algum caminho<br />

que a leve a encarar a viagem de seus filhos como um bem e não<br />

como um sacrifício, como você pensa. Vá, vá, retorne a seu leito!<br />

Já sozinha, Hannah se pôs a refletir que a passagem daquele judeu<br />

por aquele território havia produzido mudanças em vários lares.<br />

Tinha velhos conhecidos que lhe contavam histórias ligadas ao<br />

desti<strong>no</strong> de Joshua, mas muitas eram cheias de alegrias e de<br />

esperanças. Talvez Cornélia pudesse também se unir a ela e narrar<br />

alguns acontecimentos que fossem benéficos <strong>para</strong> Aurélia. Se<br />

Joshua era um justo, por que teria surgido tanta desavença por ali?<br />

A resposta era diferente <strong>para</strong> cada um?<br />

Exausta, voltou <strong>para</strong> seu quarto. Só conseguiu dormir, quando a<br />

manhãzinha se levantava.<br />

Coincidentemente ou não, naquele mesmo dia Aurélia e Hannah<br />

receberam um aviso de que Celeste e outras amigas se propunham<br />

visitá-las, <strong>para</strong> uma tarde amena e uma proposta de trabalhos a<br />

empenhar. Pediam que Cornélia fosse avisada.<br />

Aurélia encantou-se. Gostava da calma e da firmeza de Celeste, que<br />

também possuía um filho jovem, mas que jamais se havia inclinado<br />

<strong>para</strong> as armas. Era um rapaz bastante tímido, afeito a estudos e<br />

ferrenho defensor das tradições romanas. Dizia-se que Emilia<strong>no</strong>, o<br />

filho de Celeste, compunha escritas que a ninguém entregava, a não<br />

ser a um amigo leal, um judeu-árabe. Lembrando-se desses detalhes,<br />

o coração de Aurélia apaziguou-se. Pelo me<strong>no</strong>s já havia dirigido o<br />

rumo dos filhos. Devia ser um pesadelo a vida de Celeste, já que o<br />

futuro de Emilia<strong>no</strong> ainda era uma incógnita.<br />

57


À tarde, quando todas as amigas já estavam reunidas a conversar,<br />

um serviçal foi ao encontro de Aurélia. Ele avisava que Emilia<strong>no</strong><br />

procurava a mãe, e estava acompanhado de um amigo.<br />

Os dois foram introduzidos na grande e suntuosa sala.<br />

O filho de Celeste era um rapagão alto mas ainda imberbe, de nariz<br />

<strong>aqui</strong>li<strong>no</strong> e pele tão clara, que se podia ver desenhada nela as fininhas<br />

veias que percorriam o rosto de <strong>formato</strong> quase oval. E, se ele fosse<br />

analisado mais porme<strong>no</strong>rizadamente, as mãos, de dedos longilíneos,<br />

estariam bem de acordo com a tendência do jovem de se dedicar a<br />

instrumentos musicais. Aliás, desde criança ele apresentava<br />

tendências artísticas <strong>para</strong> uma boa variedade de artes, jamais as<br />

marciais.<br />

De sorriso franco e bastante à vontade diante de tantas mulheres,<br />

Emilia<strong>no</strong> apresentou o amigo Ben Iasin. O filho de Celeste tinha<br />

sido, desde cedo, um bom companheiro da mãe, nas infindas<br />

reuniões sociais de sua residência, visto que também o pai gostava<br />

de reunir amigos <strong>para</strong> grandes <strong>no</strong>itadas e banquetes.<br />

O acompanhante de Emilia<strong>no</strong> nem de perto se aproximava de sua<br />

faixa etária. Ben Iasin era um homem de seus cinqüenta a<strong>no</strong>s, de<br />

maneiras galantes, mas não ousadas, diante daquelas representantes<br />

do sexo femini<strong>no</strong>. Tinha sido criado por um velho árabe que sempre<br />

havia vivido naquele território.<br />

Talvez por isso apresentasse um traje misto de judeu e árabe: uma<br />

túnica de listras em cores, encimada por um manto de franjas largas,<br />

tendo na cintura uma sacolinha toda bordada, bem à moda dos<br />

mercadores de grandes cidades.<br />

A um sinal de Celeste, os dois foram sentar-se perto. Mas Emilia<strong>no</strong><br />

logo se dirigiu a ela.<br />

- Até parece que vem a propósito esta reunião, minha mãe. O meu<br />

amigo <strong>aqui</strong> me convidou <strong>para</strong> uma viagem até Roma e eu confesso<br />

que estava procurando uma ocasião propícia <strong>para</strong> conversarmos. Sei<br />

muito bem quais os perigos das estradas e não desconheço os avisos<br />

que <strong>no</strong>s são feitos de todas as formas, <strong>para</strong> não <strong>no</strong>s afastarmos a<br />

territórios distantes, sem que estejamos em boa companhia. Mas o<br />

58


pai de Ben Iasin já tem organizada uma caravana com boa escolta,<br />

que pode prevenir os assaltos.<br />

O rapaz ia falando rapidamente, tentando impedir que a mãe<br />

negasse logo de início a realização daquele desejo. Por isso, os<br />

argumentos iniciais <strong>para</strong> ganhar a <strong>aqui</strong>escência dela se baseavam<br />

primeiro <strong>no</strong>s cuidados especiais, na escolta, e na companhia de<br />

criaturas mais velhas do que ele.<br />

Celeste conhecia bem o filho. Analisava os mínimos gestos de<br />

Emilia<strong>no</strong>, sua fluência <strong>para</strong> persuadi-la, e a manifestação de um<br />

tique nervoso que só sucedia quando se via afobado por algum ato<br />

ou pensamento que tentava disfarçar: piscava os olhos três vezes em<br />

seguida, antes de olhar firmemente <strong>para</strong> a mãe.<br />

Enquanto o monólogo do rapaz se desenrolava, Cornélia, ou tocada<br />

pelas palavras sobre a caravana e assaltos, ou atraída pela figura do<br />

árabe que a analisava atentamente, começou a sentir os primeiros<br />

vestígios da tontura que a levava, após, aos desfalecimentos tão<br />

comuns anteriormente, e dos quais se havia livrado com a ajuda de<br />

Joshua. A fronte cobriu-se de suor e uma espécie de arrepio<br />

percorreu ao longo a sua espinha.<br />

Conseguiu equilibrar-se, mas perdeu totalmente, dali em diante, a<br />

seqüência do diálogo mantido por Celeste com o filho.<br />

Olhando mais uma vez <strong>para</strong> o árabe, Cornélia reviu – só que desta<br />

vez diante dela – o rosto do homem do deserto, que se chamava<br />

Antúlio, e que tão atentamente a cuidara e a conduzira em cima de<br />

um camelo, sob o sol escaldante e por entre as tempestades de areia,<br />

numa longínqua caminhada em tempos desconhecidos <strong>para</strong> ela.<br />

Quando Emilia<strong>no</strong> e Ben Iasin já se despediam, o árabe se pôs diante<br />

de Cornélia e comentou:<br />

- Talvez a senhora não entenda o que vou lhe dizer, mas sinto que<br />

não posso partir d<strong>aqui</strong> sem esclarecer o que me parece um traçado<br />

do desti<strong>no</strong>.<br />

Ele permaneceu em silêncio, aguardando um consentimento da parte<br />

dela, <strong>para</strong> prosseguir. Cornélia sorriu e disse:<br />

59


- Até sei o que o senhor tem <strong>para</strong> me ofertar.<br />

- É isto mesmo, minha senhora. Uma oferta de amizade segura e<br />

interminável. Sei que a conheço. Que já fez parte de meu passado, e<br />

que fomos afastados perversamente pelos caminhos difíceis que o<br />

desti<strong>no</strong> às vezes <strong>no</strong>s traça. A senhora era muito jovem, inexperiente,<br />

mas cheia de valores que precisavam ser reconhecidos por si<br />

mesma. Não pude acompanhá-la até o fim daquela viagem, porque o<br />

mundo exigia <strong>para</strong> <strong>no</strong>ssas almas uma tarefa em campos diferentes.<br />

Hannah e as amigas entreolhavam-se atônitas; nada entendiam.<br />

O árabe voltou-se então <strong>para</strong> Aurélia:<br />

- Perdoe-me, minha senhora. Não pude deixar de me apresentar<br />

assim <strong>para</strong> ela. Certamente, se ela desejar, poderá esclarecer melhor<br />

os fatos que <strong>aqui</strong> expus resumidamente.<br />

Os homens saíram e Hannah disse rindo e cheia de curiosidade:<br />

- Então? Quando foi que o conheceu?<br />

- Ah, Hannah <strong>para</strong> explicar isso tudo, vou precisar desnudar minha<br />

alma diante de vocês. E talvez seja bem difícil que não me<br />

crucifiquem também, depois que eu revelar este meu segredo.<br />

- Por que não tenta? – propôs Otávia. – Quer saber de uma coisa?<br />

Acho que entendi perfeitamente o que ele dizia.<br />

- Você entendeu? – perguntou Aurélia. – Para mim foi uma<br />

conversa em língua estranha.<br />

Celeste argumentou:<br />

- Não acredito que seja algo tão incompreensível assim, <strong>para</strong> que a<br />

crucifiquemos.<br />

Cornélia olhou contente <strong>para</strong> as amigas de Hannah, com as quais<br />

começaria a estreitar amizade. Eram criaturas de costumes<br />

diferentes e donas de essência que não se igualaria à das demais, por<br />

serem personalidades distintas. Por que não poderia dividir com elas<br />

também uma parte do que Hannah já conhecia? Não hesitou.<br />

- Não sei se vocês já sabem que perdi a minha mãe, quando eu era<br />

muito <strong>no</strong>vinha – ela logo começou. - Mas fui criada olhando a vida<br />

60


como um espetáculo grandioso e real. Nada era fictício nele,<br />

principalmente os <strong>no</strong>ssos sentimentos, porque a minha mãe era a<br />

pessoa mais transparente que conheci. E minha ama também.<br />

Mas eu nasci com uma faculdade bastante estranha <strong>para</strong> a maioria<br />

das pessoas. Conseguia me afastar da vida comum e ingressar num<br />

rei<strong>no</strong> que me pertencia, mas que fazia parte de outras épocas, de<br />

outras eras. Desde menina, eu soube que vivíamos mesmo por várias<br />

estradas <strong>aqui</strong> na Terra. E eu tinha uma curiosidade quase que<br />

obsessiva de descobrir por onde havia caminhado.<br />

Por meio de uma série de concentrações – eu não saberia lhes<br />

explicar como cheguei a obter um bom resultado –, consegui um dia<br />

atingir um espaço diferente, <strong>no</strong> tempo, e me vi participando da vida<br />

como se eu fosse uma outra pessoa.<br />

Eu não era sempre Cornélia, é claro; tinha outras formas de<br />

vivenciar o mundo, outras características físicas, embora, em<br />

algumas delas, a minha figura de Cornélia relembre as outras.<br />

Pois bem, numa dessas minhas buscas, participei da vida deste árabe<br />

que saiu d<strong>aqui</strong> agora. Era um homem formoso e eu - ingênua,<br />

conforme ele quis dizer – fiz dele um herói. Sei que o admirei<br />

profundamente e que a alma dele devia ser belíssima, porque só me<br />

entregava bem-estar.<br />

Fui raptada por beduí<strong>no</strong>s e entregue em um harém. Ali, vivi uma<br />

história que nem sei reconstituir, porque as minhas reminiscências<br />

só me levaram a este ponto.<br />

Jamais pude comprovar se não eram fantasias da minha mente. Mas<br />

as palavras dele, ditas tão seriamente, me servem de aviso <strong>para</strong> que<br />

eu entenda que realmente não criei as histórias que enxerguei, ao<br />

conseguir penetrar <strong>no</strong> meu mundo interior.<br />

Já contei a Hannah algumas das divisões de minha alma – é assim<br />

que eu costumo pensar. Mas ainda estou procurando as razões pelas<br />

quais fui colocada nessa vida <strong>no</strong> deserto. Qual foi meu aprendizado<br />

ali? E também quero saber o que foi que produziu em mim ter<br />

vivido como Vestal em território do Egito, por exemplo.<br />

61


Cornélia fez uma pausa e Aurélia aproveitou <strong>para</strong> inquirir:<br />

- E você sempre se vê refletida assim, em outras existências<br />

anteriores, ou pode se ver por <strong>aqui</strong> mesma, descobrindo coisas que<br />

vão acontecer?<br />

Hannah entendeu perfeitamente qual era a preocupação da amiga,<br />

porque na voz de Aurélia havia quase que um apelo <strong>para</strong> que a<br />

resposta de Cornélia fosse negativa.<br />

- Infelizmente, sim – Cornélia respondeu gravemente. - Sofri<br />

terrivelmente, quando vi Joshua numa cruz. O fato ainda não havia<br />

acontecido.<br />

- Ah!! – exclamou Aurélia, horrorizada.<br />

Hannah argumentou:<br />

O fato de você ter pesadelos não significa que esteja passando o<br />

mesmo que sucede com Cornélia, Aurélia. Sonhar todo mundo<br />

sonha, mas há misturas de <strong>no</strong>ssas preocupações, quando a gente tem<br />

um pesadelo.<br />

Mas Hannah precisou se deter. Lembrou-se de que nenhuma das<br />

amigas ali presentes sabia quais eram os pesadelos de Aurélia.<br />

Preferiu, então, sair daquele rumo. Disse que já era hora de<br />

saborearem algumas guloseimas e tratou de entrar na casa, a fim de<br />

deixar que Aurélia conseguisse se acalmar.<br />

62


Doze<br />

Ao contrário do que havia parecido a Hannah, a princípio, a reunião<br />

acabou apresentando um resultado inesperado e favorável.<br />

Preocupada com as aflições demonstradas por Aurélia, depois que<br />

ela narrou seus pesadelos, Otávia referiu-se a um recanto<br />

<strong>para</strong>disíaco <strong>para</strong> onde sempre se dirigia, quando se via assaltada por<br />

ondas de medo e decepções. Convidou-as <strong>para</strong> ir até lá. Tinha sido<br />

por muitos a<strong>no</strong>s o seu lar, até a época em que se casou. Logo após<br />

seu casamento, seu pai enviuvou e permaneceu na propriedade,<br />

entregue aos encantos da beleza e do silêncio do local.<br />

O pai de Otávia, Orígenes, era um homem que apreciava o colorido<br />

daquelas glebas que se perdiam de vista. Seu maior prazer, <strong>no</strong><br />

entanto, era disputar com os ilustres roma<strong>no</strong>s o conhecimento a<br />

respeito das diferentes espécies humanas que habitam a Terra. E o<br />

que ele fazia <strong>para</strong> isto? Tomava a seu comando uma centena de<br />

escravos <strong>para</strong> servi-lo, mas só comprava os que tinham origens<br />

variadas. Ia, dessa forma, rodeando-se da “cultura primitiva”,<br />

conforme costumava dizer. Talvez fosse a maneira preferida por ele<br />

<strong>para</strong> sentir-se o maior representante entre os roma<strong>no</strong>s. Um<br />

excêntrico aquele homem!<br />

É verdade, o imenso número de escravos adquiridos por ele, com a<br />

variedade de pensares dessas pobres criaturas abatidas em sua<br />

liberdade pelo “mandato” do pai de Otávia, constituía o maior<br />

orgulho e a principal excentricidade de Orígenes.<br />

Mas havia outras. Sua casa era riquíssima em obras de arte. Assim<br />

como colecionava diferentes espécimens huma<strong>no</strong>s, ninguém<br />

conseguiria enxergar na vivenda dele um determinado estilo na<br />

decoração. Mas não se podia negar que era um excelente apreciador<br />

das belezas produzidas pelos homens. Pela residência se viam<br />

63


espalhadas relíquias de inestimável valor, desde estátuas em<br />

tamanho natural de deuses gregos ou roma<strong>no</strong>s, até estatuetas<br />

ornamentais representativas da fauna e da flora, esculpidas em<br />

realidade impressionante, e também originárias de diversos<br />

territórios.<br />

Isso não era difícil, porque assim como chegavam negociantes de<br />

escravos vindos dos portos do Mediterrâneo e do Mar Negro, com<br />

levas da África, Espanha, Germânia, Ásia e Grécia, entre outros, o<br />

mesmo sucedia com os admiradores da arte.<br />

Era dessa forma que Orígenes ia colecionando espelhos de bronze,<br />

ornamentos florais e mitológicos, a estatuária dos deuses lares,<br />

ornamentos luxuosíssimos <strong>para</strong> os quartos de banho, serviços de<br />

prata, louças vidradas em cor vermelho vivo, e até instrumentos<br />

musicais.<br />

Sua casa de campo era considerada pelos altos dirigentes roma<strong>no</strong>s<br />

bastante invejável. Talvez a excentricidade de Orígenes encontrasse<br />

reciprocidade na alma daqueles senhores, sabe-se lá.<br />

Era <strong>para</strong> viajar até essa casa de campo que Otávia as convidou.<br />

Aurélia facilmente cedeu à proposta, principalmente porque<br />

enxergou a possibilidade de tentar um caminho diferente, a fim de<br />

evitar os atropelos que, porventura, Roma oferecesse a Licínio e<br />

Fábio, já que a propriedade de Orígenes não distava tanto de Roma.<br />

Poderia começar a estabelecer alguns contatos com gente ilustre<br />

daquela cidade.<br />

Foi com o coração cheio de expectativas, da parte de Aurélia, que as<br />

amigas se despediram.<br />

Hannah, Celeste e Aurélia viajaram tempos depois ao encontro de<br />

Otávia. Iam sentir a brisa que soprava por aqueles lados, enquanto<br />

Cornélia e as amigas judias que não haviam acompanhado seus<br />

maridos, nas divulgações de Joshua, permaneceriam num total<br />

obscurantismo.<br />

O zunzunzum provocado pelas prédicas dos seguidores do<br />

Nazare<strong>no</strong>, sobre os ensinamentos e também sobre os milagres das<br />

curas realizadas por ele, alcançavam muitas direções. É claro que<br />

64


iam surgindo conversas contraditórias e, também, as cheias de<br />

encantos, alcançando cada vez mais ouvidos de gente dedicada à<br />

política. E era através da política (ou arremedos dela) que as<br />

mulheres romanas entendiam que seus maridos conseguiriam galgar<br />

altas posições - aqueles patamares indiscutíveis de “sonhos de<br />

grandeza” - com os quais não deixavam de compactuar.<br />

Muito poucas as que se preocupavam com os feitos de Joshua, ou<br />

que se dispunham a analisar que, por ali, estava chegando uma<br />

sementeira bastante diferente. Mas havia exceções, é claro. E<br />

também iam surgindo matronas que preferiam entregar sua<br />

contribuição, <strong>no</strong> fato de tentarem evitar as rudes perseguições contra<br />

aqueles “tristes e desventurados cristãos que, antes mesmo de iniciar<br />

o combate, já se viram lançados <strong>no</strong> solo pela morte de seu<br />

representante maior” – assim é que analisavam. Para essas, a<br />

supremacia de Roma era inevitável. De qualquer forma, pelo me<strong>no</strong>s<br />

escolhiam o caminho da não-violência. Preferiam manter o status<br />

quo (se não elevá-lo) e passar de lado pela brisa que vinha,<br />

indiretamente, da boca de Joshua.<br />

A esse último grupo pertenciam as amigas de Aurélia que moravam<br />

em Roma. Aurélia enviou <strong>para</strong> duas delas um bilhete, avisando-lhes<br />

que passava uns tempos na propriedade de Orígenes com Otávia.<br />

Poucos dias após, foi visitada por Júlia, acompanhada de uma<br />

enteada. Pela boca de Júlia, Aurélia ficou sabendo o sucedido com a<br />

amiga em comum, a quem Aurélia havia enviado também um<br />

convite, mas que não comparecera - Lélia.<br />

Lélia havia cedido aos ensinamentos dos divulgadores da mensagem<br />

de Joshua. O marido, um importante senador roma<strong>no</strong>, temendo ser<br />

ridicularizado por seus amigos, exilou-a <strong>para</strong> bem longe, em<br />

companhia de alguns poucos escravos e o filhinho <strong>para</strong>lítico.<br />

A desventura de Lélia passava de boca em boca. Era a primeira<br />

entre as amigas de Aurélia que não se havia ocultado e aceitava<br />

plenamente a <strong>no</strong>va seita.<br />

Paradoxalmente, o infortúnio de Lélia serviu <strong>para</strong> a ampliação da<br />

serenidade de Aurélia. Se aquela amiga, dona de grande fortuna e<br />

65


esposa de um <strong>no</strong>bre senador, não havia sido sacrificada por<br />

pertencer à <strong>no</strong>va seita, era bobagem de sua parte, então, martirizarse<br />

por achar que os roma<strong>no</strong>s – e junto deles, seus filhos – seriam<br />

sacrificados por obra daquele judeu, assim Aurélia passou a<br />

analisar.<br />

Daquele dia em diante, mais Aurélia reforçou seu ideal: continuaria<br />

a luta em prol do engrandecimento dos filhos. “Ninguém tem o<br />

direito de mudar o que já está tão arraigado por <strong>aqui</strong> - o poder dos<br />

<strong>no</strong>bres roma<strong>no</strong>s”, assegurava, com orgulho.<br />

Mas a história de Lélia não iria terminar assim. Uma série de<br />

criaturas mostrou-se condoída pela imagem da esposa exilada,<br />

cuidando, precariamente, de um meni<strong>no</strong> enfermo e fragilizado.<br />

Dessa forma, um grupo de mulheres romanas pressio<strong>no</strong>u o marido<br />

de Lélia. Para que a situação não chegasse aos ouvidos do próprio<br />

Imperador, Lélia foi premiada com a “misericórdia” do marido e<br />

voltou <strong>para</strong> sua rica propriedade de Roma.<br />

Mal sabiam eles que aquela mulher seria de uma utilidade<br />

incomparável <strong>para</strong> os seguidores de Joshua, que se viam ofendidos<br />

em uma série de lugares alcançados em suas peregrinações.<br />

Aqui e acolá, a mão do desti<strong>no</strong> ia plantando suportes <strong>para</strong> o<br />

crescimento da imensa videira em semeadura.<br />

66


Treze<br />

Enquanto isso, Cornélia, distante dali, entre a so<strong>no</strong>lência e o<br />

despertar, sentiu-se, um dia, desligada do corpo. A sua primeira<br />

impressão era que sua vida ia se esvair e que havia chegado sua hora<br />

de ir ao encontro do Divi<strong>no</strong>.<br />

Não havia nela nem um resquício de medo. A visão que um dia<br />

tinha tido da figura etérea e iluminada de Joshua, após a morte física<br />

na cruz, ainda pulsante de vida e de regozijo, corroborava <strong>para</strong> seu<br />

destemor.<br />

Sentia-se leve, muito leve, como devem ser as asas das delicadas<br />

borboletas que desfilam sua ambivalência pela vida, impulsionando<br />

a parte física e, depois, transportando-se <strong>para</strong> seus rei<strong>no</strong>s de<br />

inumeráveis flores. A leveza do mundo dessas graciosas voadoras<br />

se igualava certamente ao que usufruía naquele momento.<br />

Deixou-se pairar, acompanhada da música que percorre os espaços,<br />

e viu-se <strong>no</strong>vamente como a menina do bastão.<br />

Cornélia exultou. Sua memória espiritual voltava aos jorros e até a<br />

fragrância inebriante do espaço que a circundava conseguia captar.<br />

Viu-se num local, onde os jardins se assemelhavam a imensas<br />

floreiras de cores indescritíveis, e junto de outras meninas a brincar<br />

com seus bastões, à beira de um mar majestoso. Era dali que partiam<br />

as músicas adoráveis que enchiam seu coração de paz.<br />

Já acostumada com visões, e com o desligamento da alma, Cornélia<br />

deixava-se levar, evitando até o movimentar forte do inspirar e<br />

expirar. Soltava levemente pelas narinas o ar mor<strong>no</strong> que a seu corpo<br />

correspondia, certificando-se do bom relaxar.<br />

Era a primeira experiência que chegava até ela, daquela maneira.<br />

Seu corpo fluídico foi se soltando do corpo terre<strong>no</strong>, como se solta a<br />

67


espuma do mar, que permanece algum tempo pousada na areia e<br />

depois a ela se junta.<br />

Cornélia era um leque de sensações, ao vivenciar a experiência dela<br />

mesma como uma menininha, que se regozijava a se projetar tendo<br />

na mão um bastão vermelho e translúcido de cristal. O pensamento<br />

da garota era ágil, forte, analista e, ao mesmo tempo, desafiador.<br />

Ela vivia bem próximo do mar. Sua casa, construída sobre altas<br />

rochas, lhe permitia avistar a e<strong>no</strong>rme beleza de um ocea<strong>no</strong> de cor<br />

indefinível. O céu era de uma palidez robusta, se é que se pode dizer<br />

isso de um branco não desmaiado que se tingia de nesgas das<br />

mesmas cores que pintavam o mar. Céu e mar se igualavam em<br />

perfeição.<br />

Subitamente, uma nuvem escura se desprendeu do pico de uma<br />

montanha, que era as delícias daquela menina. Um rolo espesso de<br />

fumaça mais negra também subiu, espalhando com ele um odor<br />

fétido a atingir prontamente aquele espaço. Labaredas o<br />

acompanharam, entremeadas de fagulhas que se soltavam em riscas<br />

horizontais.<br />

Não demorou muito e lavas incandescentes escorriam pela<br />

montanha, produzindo rio de imensa largura, descendo preguiçosa<br />

mas inexoravelmente em direção ao peque<strong>no</strong> povoado.<br />

Nalu - era assim que ela se chamava - entre o fascínio do mistério<br />

que se desprendia daquelas rochas incandescentes, e o desconforto<br />

do inusitado e também desconhecido <strong>para</strong> ela, viu-se de repente<br />

caída <strong>no</strong> solo. Havia desfalecido.<br />

Depois, tudo se sucedeu em ações céleres. Uma mulher de cabelos<br />

da cor do milho <strong>no</strong>vo a apanhava e corria com ela. Sua voz se<br />

recusava a sair, mas em seus olhos havia a queixa de haver deixado<br />

<strong>no</strong> chão o bastão de que tanto se orgulhava.<br />

Na <strong>no</strong>ite daquele mesmo dia de escuridão, <strong>no</strong> sentido do horror que<br />

todos haviam enfrentado, a família de Cornélia venceu as<br />

intempéries, porque era o final. O continente submergiu como uma<br />

gigantesca nau atingida por algo irremediável.<br />

68


Mas sua impressão era que tinha sido recolhida mesmo em e<strong>no</strong>rme<br />

embarcação e conduzida, junto a seus pais e amiguinhas, <strong>para</strong> uma<br />

outra região.<br />

Dias e <strong>no</strong>ites sua alma procurava o local, na esperança de rever as<br />

águas <strong>baixar</strong>em, <strong>para</strong> reencontrar o lar que tanto amava e seu bastão,<br />

que havia ficado sobre os seixos à beira-mar.<br />

O pai de Cornélia era um pastor de ovelhas e as pastagens, dali,<br />

incomparáveis. Ela desconhecia o sentido da palavra medo e os<br />

habitantes do peque<strong>no</strong> povoado viviam em perfeita comunhão,<br />

realizando trabalhos braçais, cumpridos ao som de músicas e <strong>no</strong><br />

meio de festejos. Aquele povo agricultor oferecia benesses ao Deus<br />

de Todos os Seres.<br />

Ali se conhecia a possibilidade de ligar-se ao Deus - um Deus único<br />

que festejava seus filhos, entregando-lhes a facilidade de contatar o<br />

outro lado da vida. E todos se reconheciam como seres itinerantes,<br />

vindos do espaço <strong>para</strong> cumprir tarefas em trabalhos de plantações,<br />

em <strong>no</strong>me do seu Deus.<br />

Desde pequenas, as crianças possuíam a facilidade de se desligar do<br />

corpo físico e deslizar a alma, que se formava como em um par: um<br />

lado do par era o afetivo e o outro, o racional.<br />

Cada criatura tinha a sua preferência por um ou outro lado, mas<br />

todos sabiam, perfeitamente, que só a junção dos dois lhes entregava<br />

a unidade - e que era essa unidade que lhes permitia devassar pla<strong>no</strong>s<br />

não avistados pelos olhos terre<strong>no</strong>s. Como o desejo de conhecer o<br />

indevassável era bem maior do que raciocinar, ou apenas sentir,<br />

aquele povo conseguia a união de 1+1.<br />

Muito, muito cedo, a maioria das crianças alcançava este<br />

desdobramento. Pode-se até dizer que, quando balbuciavam as<br />

primeiras palavras, já visitavam os rei<strong>no</strong>s do desconhecido.<br />

Para os que se dividiam entre a preferência do racional ou do<br />

emocional, havia preparo. Criaturas categorizadas - amoráveis e<br />

racionais - entregavam um bastão <strong>para</strong> os discípulos dessas escolas.<br />

Havia bastões de cores diversas, segundo a ordem do que<br />

aprenderiam. Os bastões vermelhos simbolizavam a energia, o vigor<br />

69


e a saúde. E quem o recebesse, havia finalizado o seu primeiro<br />

estágio de aprendizado <strong>no</strong> equilíbrio entre o racional e o emocional.<br />

Para os adultos, os estudos eram diferentes.<br />

Nalu/Cornélia tinha grande orgulho daquele prêmio. Com ele, pôde<br />

enxergar quais aprendizados viveria, depois que seu território<br />

submergiu <strong>no</strong> profundo ocea<strong>no</strong>. E suas vidas futuras foram todas<br />

moldadas com a presença do mar, mar amigo, mar assombroso, mar<br />

inesperado e traiçoeiro, mas que nunca havia deixado de ser a razão<br />

de seus amores, de suas saudades e de seu desenvolvimento, <strong>no</strong>s<br />

a<strong>no</strong>s subseqüentes em seus estágios feitos na Terra, e bem distantes<br />

do local daquelas terras submersas.<br />

Esta Quarta Morada Cornélia jamais deixou de abençoar.<br />

70


Catorze<br />

Próximo da residência de Orígenes, um núcleo de judeus começava<br />

a se ampliar. Diz-se próximo, porque as terras de Orígenes beiravam<br />

uma série de vilarejos que pertenciam a agricultores, gente simples<br />

de Roma.<br />

Essa gente era habituada a pegar na enxada, a cavar a terra e a<br />

contribuir <strong>para</strong> o plantio de frutas e hortaliças que eram distribuídas<br />

em grandes carroças <strong>para</strong> um entreposto conhecido como O Grande<br />

Celeiro.<br />

Dali, eram comercializadas por diferentes cidadãos, cuja função<br />

maior, na verdade, era "servirem de olheiros", a fim de que não<br />

faltasse alimento <strong>para</strong> uma grande parte da Roma desses tempos -<br />

teatro dos acontecimentos que estão sendo relembrados. É evidente<br />

que esses olheiros faziam parte do elenco dos servidores imperiais e<br />

de seus comandados.<br />

A esses homens, nunca era negado o abre-te-sézamo em qualquer<br />

situação de dúvida sobre a repartição daquele tesouro. E o território<br />

que eles administravam - um quadrilátero - possuía quatro dirigentes<br />

principais, que se diferiam em suas características e maneira de ser.<br />

O que se pretende apontar é que o território administrado por um<br />

desses homens - Demócrito - contava com mais de 1/5 da produção<br />

dos alimentos dali. Ele era um homem de má catadura, avesso a<br />

contrariedades, mas do<strong>no</strong> de uma cabeça excepcional <strong>para</strong><br />

planejamentos.<br />

Numa época em que a maioria dos homens de importantes funções<br />

se dispersavam facilmente <strong>para</strong> assistir aos jogos dos Circos<br />

Roma<strong>no</strong>s ou outro qualquer tipo de atividade, Demócrito jamais se<br />

desviava de seu objetivo primordial: manter a sua quota provedora<br />

71


de alimentos em perfeito acerto, a fim de que sua figura se fizesse<br />

acentuada diante dos grandes homens de Roma e, principalmente,<br />

dos grandes senadores.<br />

Para Demócrito, era sagrado o seu mundo interior, era sagrada a sua<br />

honra de homem comedido e responsável na boa contribuição de<br />

suas tarefas. A ele não interessava nem religião ou crença. Seu<br />

campo de guerrilha era mesmo o campo de honra.<br />

Foi dentro de seu "distrito de cuidados" que começou a ampliar o<br />

núcleo de judeus, vindos de diferentes recantos. Nem todos haviam<br />

saído da Galiléia. Alguns nem conheciam os fatos da morte de<br />

Joshua e, recentemente, também se haviam dirigido <strong>para</strong> ali uns<br />

poucos judeus que haviam convivido com Joshua.<br />

Nessa comunidade tão heterogênea - <strong>no</strong> sentido de serem originários<br />

de locais diversos - muita dissidência poderia ocorrer. Os que<br />

desconheciam os momentos vividos por Joshua continuavam a viver<br />

sem que a história dele existisse. Os mais antigos já estavam cientes<br />

dos últimos acontecimentos, porque as <strong>no</strong>tícias passadas de boca em<br />

boca se espalham tão rapidamente quanto o fogo em palha seca. Os<br />

últimos a chegar acreditavam que seria importante florescer, com os<br />

ensinamentos de Joshua, aquele núcleo já existente por ali,<br />

principalmente porque era próximo de Roma, local bem estratégico.<br />

Mas esses judeus não tinham o dom da oratória e, embora<br />

temerários, não pretendiam lançar-se na boca do lobo, porque não<br />

desconheciam a crueldade e arbitrariedade de muitos roma<strong>no</strong>s. A<br />

intenção deles era ir distribuindo mensagens manuscritas, que eles<br />

próprios haviam compilado.<br />

Apontado o quadro do ambiente que circundava as terras de<br />

Orígenes, pode-se, então, focalizar mais de perto as possibilidades<br />

que iam se abrir ali também <strong>para</strong> Hannah, Otávia, Celeste e<br />

amigas.<br />

Demócrito era conhecido de Orígenes. Os dois viviam às turras,<br />

porque Orígenes se recusava a entregar parte do que recolhia em<br />

suas terras <strong>para</strong> prover o Celeiro Maior.<br />

72


Ele alegava que sua contribuição já estava sendo feita, desde o<br />

momento em que seus escravos é que plantavam e colhiam os<br />

alimentos e os gastos eram dele mesmo, portanto, os lucros<br />

deveriam lhe pertencer. Não prestaria tributo nenhum aos grandes<br />

senhores, visto que suas terras já estavam alimentando uma boa<br />

parte das residências de Roma. Era este seu argumento - que não<br />

deixava de ter lá suas razões.<br />

Mas existia uma lei que apontava que todos, indistintamente,<br />

deveriam contribuir <strong>para</strong> o Celeiro Maior, independente de serem<br />

do<strong>no</strong>s ou não das terras, dos escravos e das plantações.<br />

Com isto, iniciou-se uma guerrilha encoberta entre Orígenes e<br />

Demócrito, sem que qualquer um dos dois estivesse, a bem da<br />

verdade, faltando com "a lei de seu próprio direito".<br />

Quando Aurélia por ali chegou, desejosa de contatar pessoas<br />

eminentes que pudessem contribuir na ajuda a seus dois filhos, teve<br />

a infeliz idéia de contatar Demócrito e não Orígenes, simplesmente<br />

porque não aceitava a excentricidade do pai de Otávia. Ela o<br />

respeitava... mas só.<br />

Ao compactuar com aquele homem irascível e sem crença religiosa,<br />

prosélito apenas dos lucros do gover<strong>no</strong>, Aurélia sem o <strong>no</strong>tar estava<br />

trilhando o começo de um caminho que, mais tarde, iria levá-la a<br />

confrontar os seguidores do Nazare<strong>no</strong>.<br />

Otávia percebeu a tendência de Aurélia e procurou orientá-la.<br />

- Dizem por aí, Aurélia, que este homem conhecido por Demócrito<br />

pode ser um verdugo até de seu pai. Para ele, o que conta é o lucro<br />

da terra, mesmo com os desmandos que tornam as criaturas<br />

infelizes. Ele é incapaz de fechar os olhos em suas cobranças,<br />

porque <strong>no</strong> coração dele ainda não está inscrita a palavra<br />

misericórdia.<br />

Mas Aurélia teimou:<br />

- Eu preciso de gente enérgica <strong>para</strong> levar os meus recados, Otávia.<br />

Ouvi dizer que este homem é um gênio na administração do Grande<br />

Celeiro. E ele é figura bem grata ao Imperador.<br />

73


Otávia quase preferiu se calar, principalmente porque a amiga<br />

demonstrava colocar seu pai Orígenes fora da aliança dela. Mas<br />

ainda advertiu:<br />

- Só tome cuidado, Aurélia. Há gente que não hesita em se colocar<br />

em primeiro lugar, seja qual for a circunstância. Essas pessoas...<br />

Mas não prosseguiu.<br />

Hannah, ali perto, observava. Não participava das tentativas de<br />

Aurélia de se tornar conhecida <strong>no</strong>s altos meios sociais de Roma.<br />

Principiava a interessar-se pelos comentários de algumas amigas de<br />

Otávia que as visitavam, falando-lhes de Lélia.<br />

Hannah desejava muito conversar pessoalmente com ela.<br />

Naquela mesma semana, o dedo do desti<strong>no</strong> apontou a solução <strong>para</strong><br />

aquela realização. Os dois filhos de Aurélia foram até a casa de<br />

Orígenes passar uns dias. Eles insistiam com a mãe que os<br />

acompanhasse até Roma, levando suas amigas.<br />

Aurélia entusiasmou-se e tudo foi acertado. Elas foram hospedar-se<br />

na casa de um amigo de Licínio. De lá, foi fácil visitarem Lélia.<br />

A residência de Lélia era extraordinária pelo tamanho. Possuía um<br />

amplo pátio aberto, onde se viam flores, aves, estátuas, e pórtico<br />

dos quatro lados. Mas o interior era sóbrio, como se aquela criatura<br />

quisesse estampar a seu redor a melancolia de que era possuída.<br />

Fora as porcelanas, louças e pratarias finíssimas, onde tinham sido<br />

servidas frutas e deliciosas iguarias, nada conseguia indicar que<br />

Lélia possuía e<strong>no</strong>rme fortuna.<br />

Contou-lhes sua história, bem comum.<br />

Havia vivido com o pai desde menina, porque a mãe morrera <strong>no</strong> seu<br />

parto, e sua educação tinha sido feita por uma ama que havia<br />

chegado de lugar distante - uma senhora de maneiras gentis e<br />

bastante humanitária, culta, conhecedora do contraste do ensi<strong>no</strong><br />

entre os gregos e roma<strong>no</strong>s. Ela era em parte grega.<br />

Como Lélia desde criança havia demonstrado predileção pela<br />

música, a ama a orientara e ela era exímia tocadora de cítara.<br />

74


Mas sua cultura sobre o povo roma<strong>no</strong> vinha dos ensi<strong>no</strong>s de seu pai,<br />

até que conheceu um rapazinho e a irmã dele, absorvendo <strong>no</strong>vos<br />

conhecimentos. Esse rapaz se tornara mais tarde seu esposo - o<br />

senador roma<strong>no</strong> que não hesitou em mandá-la <strong>para</strong> o exílio, ao vê-la<br />

interessada <strong>no</strong>s feitos dos seguidores de Joshua.<br />

O senador Teodoro, marido de Lélia, era homem de grande cultura<br />

e também um grande orador que conseguia atrair bom número de<br />

seguidores. Mas ele execrava o movimento subterrâneo que vinha<br />

sendo formado por ali, depois da morte de Joshua - aquele judeu<br />

revolucionário - como costumava dizer.<br />

A ama de Lélia havia aberto <strong>para</strong> ela os ensinamentos de Joshua. A<br />

comunidade judia, próxima da residência de Orígenes, já começava<br />

a multiplicar os textos dos seguidores e um desses manuscritos<br />

havia caído em mãos de Lélia, com a ajuda da ama.<br />

Lélia falava de sua ama com tanta ternura, que não se podia duvidar<br />

de que a alma de uma mãe é que ocupava o corpo de uma serviçal,<br />

<strong>para</strong> aliviar os seus caminhos.<br />

Hannah, que havia começado a interessar-se pelos eventos de<br />

Joshua, lá na Galiléia, ali em Roma principiou a leitura desses<br />

manuscritos, oferecidos por Lélia.<br />

Dali em diante, ela, Celeste e Otávia se dispuseram a conhecer mais<br />

e mais sobre a vida daquele simples filho de um carpinteiro.<br />

75


Quinze<br />

O crepúsculo surgiu junto ao pontilhar de diamantes do céu da<br />

Galiléia.<br />

No terraço de sua residência, Cornélia permitia que sua alma<br />

transcendesse, que sua alma mergulhasse <strong>no</strong>s diamantes miudinhos<br />

de suas lembranças, desde seus dias de menina até esse em que sua<br />

alma transbordava em amor, mas cheia de solidão. Não tinha certeza<br />

ainda de ter optado bem, quando se negara a acompanhar Hannah e<br />

as amigas até a Roma longínqua.<br />

O silêncio de que se via envolta, como que desejoso de agradá-la,<br />

foi cortado pelo latido de cães. E, com o instinto próprio daqueles<br />

que conhecem bem até os ruídos de suas cercanias, como uma<br />

gatinha que fareja bem antes a chegada de pessoas queridas,<br />

Cornélia desceu até o pátio fronteiriço de sua casa.<br />

Apurou os ouvidos diante do e<strong>no</strong>rme portão, <strong>para</strong> verificar se era ali<br />

mesmo que havia <strong>para</strong>do um veículo e se ouvia, de fato, um<br />

agradável murmurejar de criaturas que iriam procurá-la.<br />

Zínia também havia descido até lá, com um grande xale colocado<br />

<strong>no</strong>s ombros, <strong>para</strong> ocultar os trajes de dormir.<br />

- Pressentiu o movimento, senhora? – perguntou, solícita, a serviçal,<br />

e antecipando-se <strong>para</strong> abrir o pesado portão.<br />

Diante delas, Boanerges carregava o garoto Josiel, ladeado da<br />

esposa Rute e de Salomé. Josiel dormia o so<strong>no</strong> dos justos. Alguns<br />

cachos negros repousavam na fronte quase tão rosada quanto as<br />

bochechas do garotinho. A pele sedosa e macia de uma das faces<br />

guardava sinais da mantilha que lhe havia servido como travesseiro,<br />

quando Josiel ergueu a cabecinha e, meio so<strong>no</strong>lento, ofereceu os<br />

braços <strong>para</strong> Cornélia.<br />

76


Era o mesmo sinal de reconhecimento da parte dele, relembrando o<br />

dia em que a tinha visto em sua casa - só que em corpo espiritual - e<br />

havia estendido a mãozinha <strong>para</strong> sua fronte.<br />

- Venham, venham! - Cornélia disse feliz. - Nem imaginam como<br />

desejava abraçá-los. Ah, que bela surpresa me fazem!<br />

Rute, intimidada, mais parecia uma garota em idade escolar.<br />

Magrinha, de tórax fi<strong>no</strong> e rosto também desprovido de carnes. O<br />

que realçavam nela eram os grandes olhos pretos e a palidez mate da<br />

tez. Estendeu-lhe a mão delicada, que mal tocou a de Cornélia.<br />

Uma grande ternura envolveu Cornélia diante daquela quase<br />

mocinha, recém saída da categoria de menina <strong>para</strong> mulher.<br />

- Ah, que bom! - voltou a exclamar Cornélia, enquanto Boanerges<br />

se ocupava de descer a bagagem e colocá-la diante do grande portal.<br />

Zínia já havia entrado na residência, à busca de outros serviçais.<br />

Em pouco tempo, os volumes já estavam distribuídos <strong>no</strong>s devidos<br />

aposentos indicados pela dona da casa e os viajantes se dirigiam<br />

<strong>para</strong> uma e<strong>no</strong>rme copa-cozinha.<br />

Ali, em uma lareira ardia grosso tronco de lenha e as auxiliares de<br />

Zínia se ouriçavam festivamente, apesar do adiantado das horas.<br />

Pre<strong>para</strong>vam frugal refeição, dispondo, <strong>no</strong> pavimento tapetado de<br />

azul, iguarias várias: pedaços de aves, queijos, pasteizinhos de<br />

<strong>no</strong>zes, bolos dourados, torta de amêndoas, uma terrina de leite de<br />

cabra e castanhas que, assadas diante deles, iam sendo se<strong>para</strong>das em<br />

cestinhos de juncos e regadas com manteiga ou mel.<br />

Boanerges sorriu satisfeito. Olhou <strong>para</strong> Cornélia e a censurou:<br />

- Está muito magra. O que é que tem feito diante de tanta fartura?<br />

- Ora, meu amigo, olhe <strong>para</strong> a sua mulher...<br />

Ele riu e revidou: - Mas a Rute é de gente assim. Você, não. Seu pai<br />

tinha um bom corpo e me contaram que sua mãe até que era roliça,<br />

quando moça.<br />

O agradável desenrolar da conversa alcançou a madrugada.<br />

Ninguém desejava se recolher, <strong>para</strong> que o encanto do momento não<br />

77


se desfizesse. Apenas o peque<strong>no</strong> Josiel ressonava maciamente e<br />

deitado <strong>no</strong> tapete azul.<br />

Cornélia não se cansava de observar o amigo. Não era mais um<br />

rapazote magrinho e tímido, mas conservava a serenidade do olhar.<br />

Rute foi a primeira a se movimentar em busca do leito, seguida de<br />

Salomé que, a contragosto, decidiu também ir repousar, levando<br />

consigo o meni<strong>no</strong> adormecido.<br />

Num acordo tácito entre criaturas que nem precisavam do uso de<br />

palavras <strong>para</strong> se entenderem, Cornélia e Boanerges foram <strong>para</strong> o<br />

terraço.<br />

- Agora, conte-me, Cornélia, o que tem acontecido? Há tantas<br />

<strong>no</strong>tícias em seu rosto, que você me parece aqueles manuscritos que<br />

andam sendo distribuídos por aí. Já os leu?<br />

- Ora, Boanerges, desde que Joshua ...<br />

- Não, não, estou me referindo aos de agora.<br />

- Não sei do que fala - ela disse, espantada.<br />

- Então não tem sido procurada por seus amigos mais chegados?<br />

- Mas eles já saíram d<strong>aqui</strong>, Boanerges. Eles se distribuíram d<strong>aqui</strong><br />

até Roma, penso eu.<br />

- Só pensa? E não procurou se certificar?<br />

- Para quê? Os manuscritos que li e as palavras que ouvi já<br />

compõem o meu céu interior. Às vezes, até tenho a impressão de<br />

que ouço, vibrando <strong>no</strong> espaço, as palavras sublimes de Joshua. Será<br />

que elas chegaram até as estrelas? - ela disse num arrebatamento<br />

incontido.<br />

Boanerges escutou-a, comovido.<br />

- Penso que você agora tem um romantismo que não conheci. Você<br />

parecia mais...<br />

- Vamos! Mais... o quê?<br />

- Mais seca. Mais séria, Cornélia.<br />

78


- Talvez! - ela ergueu os ombros. Mas eu mudei mesmo, Boanerges.<br />

Não creio que exista alguém que deixe de dar um passo <strong>para</strong> uma<br />

olhada diferente, depois que conviva com um ser como Aquele<br />

Anjo.<br />

- Uhmm! - ele fez, preocupado. - Não é bem assim. Se assim fosse,<br />

todo mundo teria ido <strong>para</strong> o céu com ele. E hoje o céu estaria<br />

carregadinho de anjos, tanto quanto as uvas dos parreirais. Mas nós<br />

sabemos que até algumas uvas secam <strong>no</strong>s próprios pés, não é assim?<br />

- É, é verdade. Mas que pena que seja assim!<br />

- Não é pena, Cornélia. É o mundo. É a composição do mundo. E<br />

Joshua sabia disto muito bem. Se não soubesse... nem se atreveria a<br />

pisar por <strong>aqui</strong>.<br />

Sorrindo, Cornélia pediu: - Conte-me, então, que manuscritos são<br />

esses que você leu?<br />

- Quem sabe até de amigos seus, Cornélia. Eu não sei. Não trazem<br />

indicação de quem os copiou. Sabe como é, um vai passando <strong>para</strong> o<br />

outro. Todo mundo quer contar um pedaço do que ouviu Joshua<br />

dizer.<br />

- E é bom. Assim as palavras dele vão chegar em outros continentes.<br />

- Claro que vão! E eu nem me preocupo com a maneira com que<br />

escrevem, sabe por quê? Porque todo mundo quer contar os<br />

milagres que ele fez e sobre o Amor que ele deixou. Por mais que as<br />

pessoas escrevam em idiomas diferentes, o Amor de Joshua está lá.<br />

A gente sabe que o que nunca morre é o Amor. Joshua jamais<br />

morrerá.<br />

Os olhos de Cornélia umedeceram-se.<br />

- E suas visões? Repetiram-se? - Boanerges indagou interessado.<br />

- Sim, agora chegam espontaneamente. Não preciso mais da pérola.<br />

- Mas eu sempre soube que isso era apenas um recurso <strong>para</strong> você<br />

não se dispersar em pensamentos fugidios, minha amiga. E não há<br />

nenhum milagre nesse sucedido.<br />

- Eu sei. Você não acredita em sobrenatural. Jamais acreditou.<br />

79


- Não mesmo. Com a ampliação de <strong>no</strong>sso entendimento, a gente vai<br />

somando 1+1.<br />

- Ah, que coincidência! Deixe-me contar-lhe a última visão que tive.<br />

E que veio acompanhada de entendimento de alguns fatos. Tem<br />

tudo a ver com o 1+1.<br />

Cornélia narrou em detalhes a sua vivência como Nalu. Ele<br />

permaneceu pensativo, mas, depois de ponderar, arriscou-se a dizer:<br />

- Um continente submerso... Uhmm! Não me parece que tem a ver<br />

com Adão e Eva. É algo bem anterior. Interessante isso tudo,<br />

Cornélia. E você? O que pensa?<br />

- Que somos bem mais velhos do que imaginamos. E surdos de<br />

entendimento, porque até hoje estamos aprendendo esta história do<br />

1+1.<br />

- Pois então! Joshua veio re<strong>no</strong>vá-la <strong>para</strong> nós, exatamente <strong>para</strong><br />

podermos escutar o marulho das águas que percorremos, Cornélia.<br />

- Sabe de uma coisa, Boanerges, era um local tão belo! Tão<br />

encantador!!! Por que será que precisou submergir?<br />

- Não é prudente tentarmos analisar os atos de Deus, você não acha?<br />

O que você ganhar Dele - agradeça. Assim estará exercitando o<br />

aprendizado natural do raciocinar e do amar. Ele ficará feliz.<br />

80


Dezesseis<br />

Numa villa de altos funcionários de Roma, reuniram-se grandes<br />

senhores. Eram os prosélitos do Imperador, que tinham nas mãos<br />

uma batuta <strong>para</strong> comandar os acertos e desacertos da época.<br />

A figura mais imponente representava o rei do grande tabuleiro de<br />

xadrez, só que nunca andava pari passu com a rainha, porque sua<br />

esposa preferia comandar sozinha os próprios peões.<br />

As mulheres de Roma se encantavam com poderio e brilho. Eram<br />

perfeitamente cientes de que a própria mulher crescia com a riqueza<br />

da sociedade. Só não saíam comandando um exército, porque<br />

precisavam se manter atentas em seus territórios <strong>para</strong> o próximo<br />

lance do jogo e <strong>para</strong> espalhar, a seu redor, as iscas. Com isso,<br />

recolhiam os dados que, acrescidos de suas preferências individuais,<br />

iam apresentar em suas mãos o jogo mais ou me<strong>no</strong>s imaginado por<br />

elas.<br />

Sim, mais ou me<strong>no</strong>s, porque era tão grande a variedade de interesses<br />

ocultos nesse jogo organizado, que nem sempre obtinham o final<br />

desejado.<br />

Num ambiente onde as intrigas palacianas e as conversas se<br />

sucediam <strong>no</strong> diapasão do volúvel e do insensato, Aurélia foi se<br />

colocar, sempre pensando em manter o brilho das conquistas <strong>para</strong> os<br />

filhos. Agora, já planejava requisitar um mais alto posto de<br />

comando, do que aquele que lhes tinha sido conferido pelo anterior<br />

comandante, ao enviá-los <strong>para</strong> Roma. Tão aturdida por esses<br />

encantos bem vulneráveis, não observou que o filho Licínio já<br />

caminhava em direção quase oposta à dela, pois ele começava a<br />

interessar-se pelos cristãos. Diz-se direção "quase" oposta, porque<br />

ele nunca havia deixado de amar a mãe.<br />

81


O que Licínio mais almejava <strong>para</strong> Aurélia era que ela visse que as<br />

luzes da ribalta estavam próximas de se apagar e, na opinião dele, a<br />

própria mãe deveria descobrir isso sozinha, desinteressando-se dos<br />

festejos sociais de valor aparente.<br />

Mas foi por intermédio de Fábio que Aurélia começou a <strong>no</strong>tar que<br />

algo não caminhava segundo o seu comando. Ele se chegou a ela,<br />

um dia, interrogando-a:<br />

- Mãe, o que sabe sobre os homens que caminham por aí fazendo<br />

milagres?<br />

- Ora, meu filho, o povo de Roma sempre foi cheio de superstições.<br />

Provavelmente são histórias contadas pelos escravos que infestam<br />

estes territórios. É gente vinda de locais onde as crenças não<br />

condizem com as <strong>no</strong>ssas. Os próprios judeus – alguns deles -<br />

também acreditam que o filho de um carpinteiro que foi crucificado<br />

era o filho de um Deus único. Não vejo motivo <strong>para</strong> me questionar<br />

se devo abandonar os <strong>no</strong>ssos deuses. Eu estou muito feliz com eles,<br />

Fábio. Você não está?<br />

- Eu não estou falando de deuses ou de um Deus único, minha mãe.<br />

O que digo é que até os meus companheiros de armas viram gente<br />

ser curada pelas mãos de alguns dos prosélitos dessa seita <strong>no</strong>va. E<br />

isto me pareceu espantoso e...<br />

- O que sucede com você, Fábio? Arrisca-se a ser taxado de louco,<br />

se fizer esse tipo de comentário diante de seus companheiros.<br />

- Pois a senhora está enganada. Alguns apenas sorriem<br />

incredulamente diante do fato, mas uma boa parte já comenta que<br />

parentes e amigos chegados foram curados até de doenças<br />

consideradas malditas. É tudo bastante estranho, minha mãe. E nem<br />

posso imaginar como foi que a senhora deixou de ouvir esses<br />

comentários. Eles estão em toda parte.<br />

- Ouvir eu já ouvi, Fábio, mas prefiro permanecer muda diante<br />

disso. Por que vou ajudar a espalhar algo de que nem entendo? Até<br />

acho que, se eu comentar, vou colocar mais lenha na fogueira. E<br />

<strong>para</strong> quê? Nós não estamos felizes como estamos?<br />

82


Fábio olhou <strong>para</strong> a mãe e não conseguiu evitar uma certa ironia, ao<br />

prosseguir:<br />

- Não penso como a senhora. Ser feliz é uma coisa, ig<strong>no</strong>rar o que<br />

está em tor<strong>no</strong> de nós é uma forma de deixar <strong>para</strong> lá o mundo que<br />

<strong>no</strong>s abriga.<br />

- E o que acha que posso fazer? - retrucou Aurélia com rispidez -<br />

Sair perguntando <strong>para</strong> os criadinhos e criadinhas o que eles andam<br />

vendo por aí? Você sabe que o meu mundo não é esse, Fábio. Meus<br />

amigos não fazem comentários a esse respeito.<br />

- Ah, fazem sim, senhora minha mãe - ele insistiu. - A senhora sabe<br />

muito bem que existem amigas suas entendendo perfeitamente o que<br />

sucede. Sua amiga Lélia, por exemplo. Desinteressou-se dela? A<br />

senhora e Lélia se conheceram desde a infância, não foi assim? Por<br />

que não a procurou mais?<br />

Aurélia franziu o cenho e indagou:<br />

- Posso saber qual o seu interesse em minhas amigas? O que há,<br />

Fábio? Qual é seu verdadeiro propósito em tudo isso?<br />

- Exatamente saber - por gente <strong>no</strong>ssa, conforme a senhora disse - o<br />

que são estes seguidores do Nazare<strong>no</strong>. Eu também, como a senhora,<br />

não pretendo tirar informações de <strong>no</strong>ssos escravos. Mas não quero<br />

continuar a ig<strong>no</strong>rar o que eles fazem. Pelo que soube, são gente<br />

digna e felizes, porque procuram levar felicidade aos meios me<strong>no</strong>s<br />

providos de posse. E eu não acho isto errado. A senhora acha?<br />

Aurélia não soube o que responder. Não era uma criatura indiferente<br />

ao sofrimento huma<strong>no</strong>. Apenas pautava a vida levianamente,<br />

preenchendo os espaços que lhe levavam solidão com o brilho das<br />

festas. Pela primeira vez, talvez, Aurélia tinha se surpreendido com<br />

a sinceridade daquele filho que não apalpava os seus comandantes e<br />

nem os seus comandados.<br />

"Fábio está amadurecendo", ela pensou, mas foi fugaz o seu<br />

interesse, ao entender que ele lhe dizia <strong>para</strong> olhar melhor os seus<br />

semelhantes e a vida ao redor. Assim, ela voltou a aconselhar:<br />

83


- Filho, cumpra dignamente suas tarefas. Seja respeitado e honrado.<br />

E deixe as crenças <strong>para</strong> serem seguidas por quem quiser. Nossos<br />

deuses lares já <strong>no</strong>s estão favorecendo.<br />

Fábio desistiu por aquele momento. Só que, como a mãe, ele<br />

também gostava de fazer jogos. Ia tentar um reencontro entre a mãe<br />

e Lélia. Queria saber da própria boca daquela senhora, esposa de um<br />

<strong>no</strong>bre senador roma<strong>no</strong>, o que era, na verdade, a seita dos seguidores<br />

de Joshua. Ele não tinha pressa; sabia esperar.<br />

Naquele mesmo dia foi procurado por Licínio, avisando-lhe que ia<br />

viajar, encarregado de <strong>no</strong>va missão. Ouviu do irmão:<br />

- Tem conversado com <strong>no</strong>ssa mãe?<br />

- Sim. Ainda hoje mesmo quase <strong>no</strong>s engalfinhamos. Ela prefere<br />

isolar-se da vida real, Licínio - ele se queixou. - Preocupo-me,<br />

porque parece que ela tem medo até das pessoas que não seguem as<br />

crenças dela - e ele olhou atento <strong>para</strong> Licínio.<br />

O irmão sorriu. Entendia muito bem o que Fábio queria lhe falar. E<br />

então indagou interessado:<br />

- O que aconselhou <strong>para</strong> ela, se é que o fez?<br />

- Que volte a procurar Lélia. Tenho interesse nisso, Licínio - ele não<br />

omitiu.<br />

O coração de Licínio tranqüilizou-se. Mais dia me<strong>no</strong>s dia já poderia<br />

conversar com o irmão sobre os <strong>no</strong>vos eventos de Roma,<br />

relacionados ao assunto de que ele ia tratar em sua viagem. Podia<br />

partir em paz.<br />

Era imponente a aparência dos jovens servidores do exército de<br />

Roma. No entanto, nem todos vestiam o fardamento porque<br />

amavam o exército. Alguns, na verdade, se inclinariam <strong>para</strong> a Musa<br />

das Artes, se não tivessem encontrado a oposição dos pais, que viam<br />

o meio artístico, tanto quanto a influência exercida pelos gregos<br />

nesse aspecto, como a forma de afeminar as virtudes varonis dos<br />

homens roma<strong>no</strong>s. Outros haviam alcançado aquela posição por<br />

favores especiais, porque os oficiais, em sua maioria, pertenciam ao<br />

84


mundo dos <strong>no</strong>bres, filhos privilegiados pela fortuna do nascimento -<br />

como era o caso do próprio comandante daqueles homens: Licínio.<br />

Entre esses últimos também se podia apontar divisões: os que se<br />

julgavam atingindo o palco dos deuses e aqueles que nunca<br />

vacilariam em disputar com os companheiros a própria glória.<br />

Na aparência, um grupo harmonioso, em busca de campo de atuação<br />

diferente. Na essência ... ninguém os conhecia, embora se possa crer<br />

que dotados dos valores oferecidos pelo Criador.<br />

Licínio não desconhecia que sua tarefa diante deles devia ser o<br />

exemplo, por isso seguia preocupado. A tática que vinha aplicando<br />

era amenizar a vida dos seguidores de Joshua, impedindo que seus<br />

comandados os atirassem em lugares sombrios. Até então não havia<br />

sofrido reveses, por ser muito estimado por eles. Mas desta vez um<br />

oficial <strong>no</strong>vo havia sido inserido em seu grupo, um rapaz brilhante<br />

em dizeres e réplicas, cheio de maneirismos e brincadeiras<br />

divertidas, mas de olhar desconfiado <strong>para</strong> esse comandante a quem<br />

não desejava se subordinar.<br />

Esse <strong>no</strong>bre, Flavius, via <strong>no</strong> exército a sua forma de ir adquirindo<br />

mais pulso, a fim de galgar aquelas altas posições que Aurélia<br />

pretendia <strong>para</strong> seus filhos. Portanto, cheio das vaidades que Licínio<br />

já havia retirado de seu traje interior.<br />

Os olhos de Flavius acompanhavam os mínimos detalhes de seu<br />

superior. Não lhe foi difícil verificar que nas regiões fronteiriças,<br />

onde surgia o maior número de escaramuças entre os judeus<br />

ortodoxos e os seguidores do crucificado, Licínio se dispunha<br />

sempre a apaziguar, numa atitude bem rara entre os comandantes de<br />

outros batalhões.<br />

Num povoado pequeni<strong>no</strong>, detiveram-se. Ali seriam armadas suas<br />

tendas, <strong>para</strong> que Licínio organizasse grupos que seguiriam direções<br />

diferentes, agora em funções específicas.<br />

A ordem dos superiores de Licínio era que levasse até eles<br />

informações sobre correligionários de Joshua, principalmente sobre<br />

os que se apresentassem como os mais firmes na manutenção da<br />

seita. Não se interessavam ainda pelas criaturas que os procuravam.<br />

85


Esses superiores achavam que, <strong>no</strong>s vilarejos que se estendiam de<br />

Roma até a Galiléia, viviam criaturas simples, incultas em sua<br />

maioria, e do<strong>no</strong>s de uma crendice que chegava às raias da loucura -<br />

pelo me<strong>no</strong>s era assim que os roma<strong>no</strong>s viam quem não se entrosasse<br />

com seus próprios hábitos. Uns bárbaros, costumavam dizer alguns<br />

graúdos de Roma, como Semprônio, que possuía uma verve obtusa,<br />

sempre que se via atingido n<strong>aqui</strong>lo que mais o interessava - o culto<br />

do <strong>no</strong>me de seus antepassados.<br />

Flavius, agora na vigília de Licínio, entregava-se ao mesmo culto de<br />

Semprônio, porque se orgulhava de pertencer à gens Flavia, de onde<br />

saíram alguns cônsules. E ele desejava até aprisionar, entre os<br />

cristãos, alguém que justificasse a sua "importante" permanência por<br />

ali, isto é, alguém que fosse o grande entre os grandes daquela turma<br />

de judeus unidos a Joshua.<br />

Mas a estratégia de Licínio pôs abaixo as suas pretensões, porque.<br />

ele dividiu seus oficiais em grupos, entregando, <strong>para</strong> cada um, um<br />

representante de seu poder, isto é, um responsável pelas tarefas que<br />

deveriam executar. Flavius só não se opôs, por ter recebido a chefia<br />

de um desses grupos.<br />

Dali em diante, eles caminhariam. As montarias permaneceriam por<br />

ali, com os oficiais que cuidariam do acampamento. Não havia<br />

estradas <strong>para</strong> onde se dirigiriam. Na reunião de todos, quando<br />

voltassem, já findas as missões particulares, Licínio pre<strong>para</strong>ria o<br />

relatório final sobre as ocorrências naqueles territórios.<br />

As perguntas básicas dos superiores de Licínio eram: "O que há,<br />

politicamente, na cabeça dos seguidores de Joshua?"; "Já existe um<br />

substituto do Rei dos judeus?"<br />

A tarefa de Licínio, portanto, não seria verificar o número de<br />

criaturas que aderiam aos propagadores da <strong>no</strong>va fé, e sim se o<br />

domínio do morto prosseguia nas mãos de algum outro Rei, em<br />

preparo <strong>para</strong> sobrepujar o domínio de Roma. Os superiores de<br />

Licínio não haviam absolutamente entendido de que Rei<strong>no</strong> Joshua<br />

falava.<br />

86


Dezessete<br />

A presença de Boanerges continuava sendo um raio de luz na<br />

existência de Cornélia, mas o dia da partida já se aproximava. Ele e<br />

Rute se pre<strong>para</strong>vam <strong>para</strong> seguir viagem rumo a Roma. Rute jamais<br />

havia posto os pés além da Galiléia e Boanerges decidiu que iriam<br />

até lá <strong>para</strong> assistirem aos festejos de Bona Dea. Boa Deusa era a<br />

padroeira da cura e reverenciada apenas pelas mulheres, semelhante<br />

a Ceres e Rhea - esta última reverenciada nas ilhas gregas e<br />

assimilada depois pelos roma<strong>no</strong>s.<br />

Cornélia não se interessava por Roma. Seu pai Diomedes lhe havia<br />

narrado com minúcias o que havia sucedido com ele, quando já<br />

despertava <strong>para</strong> a adolescência. Ele havia conhecido o calor e a<br />

afabilidade da gente romana, mas havia perdido por lá um amigo<br />

muito estimado de seus tempos de folguedos, de modo que havia<br />

pintado Roma <strong>para</strong> ela com cores muito escuras e sombrias.<br />

Ainda que Cornélia tivesse ouvido da boca de seu amigo Konstantin<br />

que os moradores de Roma também gostavam de cantar, de sorrir e<br />

de sonhar, ela continuava a guardar dentro do peito os quadros do<br />

pai.<br />

Mas foi com espanto que Boanerges a ouviu dizer, em uma de suas<br />

tentativas de convencê-la a acompanhá-los: - Meu propósito, agora,<br />

é conhecer gente de outros territórios, Boanerges. Quero ouvir<br />

músicas <strong>no</strong>vas, percorrer terre<strong>no</strong>s que minha alma já percorreu. E<br />

uma de minhas visões me levou até a Índia milenar. Seguirei com<br />

vocês até Roma e, de lá, parto <strong>para</strong> conhecer essa terra cheia de<br />

mistérios. Quem sabe tiro de mim a mágoa que minha visão me<br />

deixou.<br />

- Eu sempre afirmei que a melhor forma de vencer os medos é<br />

enfrentá-los. Pois faça isso. No entanto, não perco a esperança de<br />

87


evê-la em Roma, quando você voltar da Índia. Vou permanecer um<br />

a<strong>no</strong> por lá. Mas... sabe, Cornélia, acho que Josiel é a razão maior de<br />

seu desejo de conhecer a Índia agora - e ele sorriu misteriosamente.<br />

Parece que o desti<strong>no</strong> encaminha as pessoas <strong>para</strong> soluções mais<br />

fáceis, ou Boanerges possuía mesmo algum dom oculto. O fato é<br />

que, naquela <strong>no</strong>ite, Cornélia preparou-se <strong>para</strong> dormir, presa de uma<br />

certa inquietação. No avançar da madrugada, ainda se encontrava <strong>no</strong><br />

leito desperta, quando teve a nítida impressão de mergulhar naquele<br />

transe estranho, já seu conhecido. Viu que um garotinho risonho<br />

adentrava seu quarto. As faces, os olhos, o sorriso e a ternura<br />

lembravam exatamente Josiel, mas a idade do meni<strong>no</strong> não era a<br />

mesma dele.<br />

Aquela criança risonha estendia as mãos <strong>para</strong> ela e convidava:<br />

- Venha comigo, minha amiga. Não tenha medo. Sou uma parte de<br />

seu passado, perdida em suas reminiscências, mas que desponta<br />

porque você insiste em conhecer "toda a verdade". Não há erro em<br />

querer conhecer o mundo interior, quando já há um preparo. E<br />

prosseguiu: - Para muitas criaturas o véu não se descerra,<br />

exatamente porque fizeram opção de uma vida mais comum. Cada<br />

ser tem suas provisões e seus anjos. Eles conhecem a essência de<br />

seus pupilos. Eu conheço a sua, não tema.<br />

Aquela voz cheia de candura e de sabedoria afastou mais uma vez o<br />

véu que ocultava uma outra parte do passado de Cornélia, vivido na<br />

Índia. Ela <strong>no</strong>vamente se via diante do homem que, mediante um<br />

subterfúgio, a conseguira como esposa. Ele se havia aliado a um<br />

hindu - Maharishi - uma criatura de perto de seus trinta a<strong>no</strong>s. Era<br />

uma figura ilustre. Pertencia a uma casta que não se misturava às<br />

demais. Os olhos negros levavam uma arrogância e uma<br />

magnificência que nunca se pensa encontrar em uma criatura.<br />

A pele era quase azul, uma tonalidade estranha resultante de um<br />

extrato tirado de certas folhas e que, misturado a diferentes<br />

beberagens, utilizavam <strong>para</strong> colorir o corpo.<br />

Cornélia continuava a relembrar. Só havia conseguido entrar <strong>no</strong><br />

grupo daquele estranho, porque ele apreciava o seu filho, Seiki.<br />

88


(Descobria agora que possuía um filho). Mas Maharishi a<br />

desprezava. Era realmente uma chama de desprezo que levava<br />

aquele homem a erguer o canto da boca num sorriso falso e quase<br />

perverso. Como se a "<strong>no</strong>breza" dele não se misturasse com a dela.<br />

Na presença daquele grupo, ela havia aprendido a possibilidade de<br />

passar em cima de brasas sem se queimar, e atravessar pânta<strong>no</strong>s<br />

insalubres infestados de insetos sem se deixar molestar; precisara<br />

aprender a ser simples, como forma de não incomodar os "senhores"<br />

daquela casta e permanecer ilesa diante da força que muitos deles<br />

possuíam, <strong>para</strong> que pudesse preservar a integridade de seu filho e<br />

dela própria.<br />

A miséria, a flagelação dos corpos, a crença em um deus poderoso,<br />

mas inclemente, faziam parte daquele núcleo de homens e mulheres<br />

que também carregavam em si algo de majestoso, o que certamente<br />

havia atraído o estrangeiro que <strong>para</strong> lá se dirigira, e que já era seu<br />

marido.<br />

Cornélia se via aprendendo as diferenças existentes nas raízes de<br />

cada um, oculta, mas latente em cada ação. Com eles, começou a<br />

entender o funcionamento do próprio corpo, os poderes de que era<br />

dotada, mas que por nenhum modo se atrevia a utilizar.<br />

Via homens permanecerem em covas profundas, como<br />

adormecidos, numa serenidade que a aterrava, porque a visão da<br />

morte sempre se apresentava medonha <strong>para</strong> ela. Aquelas criaturas<br />

eram as lagartas e as borboletas do caminho. Permaneciam longos<br />

períodos inertes e de repente ressurgiam em toda sua pujança, como<br />

espectros que haviam desafiado o Criador. Levantavam-se e<br />

continuavam a viver, como se a finalidade de sua existência fosse<br />

comprovar seu "poder" sobre Aquele que os criara. Não pareciam se<br />

preocupar se existia ou não o Deus da Vida. Até as crianças daquele<br />

grupo, desde a infância, conviviam com encantadores de serpentes,<br />

porque às serpentes se atribuía a idéia da ilusão. Os encantadores<br />

provavam a todos os que deles se aproximassem que a ilusão podia<br />

ser desviada de seus meandros por um peque<strong>no</strong> sopro dos homens.<br />

Os olhos desses homens, que Cornélia caracterizava como magos,<br />

eram vítreos. Com seus instrumentos de sopro, afinizavam-se com o<br />

89


ei<strong>no</strong> animal e passavam a integrar-se a este rei<strong>no</strong>, mas eram os<br />

heróis vencedores de suas batalhas, porque a serpente rastejante - a<br />

primeira a freqüentar o mundo, na teoria deles - estava ali presa em<br />

sua mágica e jamais voltaria a destruir o mundo dos homens. Os<br />

encantadores de serpentes eram os heróis fantásticos de uma<br />

mitologia completamente desconhecida <strong>para</strong> o mundo ocidental.<br />

Subitamente, o véu das reminiscências foi se extinguindo <strong>para</strong><br />

Cornélia. O meni<strong>no</strong> que a ela se apresentara ressurgiu <strong>no</strong>vamente.<br />

Ele estendeu a mão e pousou-a carinhosamente em sua fronte.<br />

Cornélia tor<strong>no</strong>u a ver centelhas saindo da mão de uma criança e, só<br />

naquele momento, entendeu que Josiel era o seu próprio filhinho<br />

daquela época, que se chamava Seiki.<br />

Mergulhou finalmente num so<strong>no</strong> profundo, mas intuía que o garoto<br />

permanecia ali, e não se enga<strong>no</strong>u.<br />

Sonhou. Era como se fosse mergulhando em fonte bendita, de onde<br />

poderia extrair mais explicações <strong>para</strong> sua alma, que tanto desejava<br />

compreender as razões da múltipla existência dos seres e também a<br />

própria.<br />

Mas desta vez voltou <strong>para</strong> o deserto, quando já estava em<br />

companhia do árabe, Omar, que a havia acolhido como sua filha,<br />

das mãos do sheik de <strong>no</strong>me Abzis. Ouvia nitidamente o ruído dos<br />

animais durante a <strong>no</strong>ite, o céu parecendo mais próximo das<br />

criaturas, pela infinidade de estrelas tingindo o breu que os cercava;<br />

a azáfama do amanhecer, quando cada grupo se pre<strong>para</strong>va <strong>para</strong> a<br />

primeira refeição; as cantigas a brotar do lábio das mulheres, que<br />

chamavam seus filhos <strong>para</strong> alimentá-los e <strong>para</strong> distribuir as tarefas<br />

do dia.<br />

Cada um ali exercia a sua função e não havia zombaria, quando<br />

homens precisavam substituir mulheres em algumas tarefas. O<br />

aconchego e a familiaridade entre os companheiros eram<br />

indescritíveis.<br />

Se houve maneira melhor <strong>para</strong> Allah entregar aos homens a <strong>no</strong>ção<br />

do respeito familiar, Ele a encontrou tornando nômades alguns<br />

90


povos. Para os ocidentais, os pensamentos e os valores daquele povo<br />

seriam incomensuravelmente distantes.<br />

Cornélia descobria que ali aprendia a amar os homens com<br />

igualdade, com desapego e com tolerância maior <strong>para</strong> a divisão das<br />

coisas.<br />

Subitamente, um outro cenário se sobrepôs àquele e ela sabia que se<br />

tratava de tempo bem anterior a esse. Não era uma jovenzinha.<br />

Tinha perto de seus trinta e cinco a<strong>no</strong>s. Encontrava-se numa grande<br />

praça de mercado. Dezenas de barracas com ofertas variadas se<br />

estendiam em várias direções, formando um verdadeiro labirinto.<br />

Cornélia as percorria, lentamente, surpreendendo-se com os detalhes<br />

dos objetos que reluziam em metal e cobre. A graça com que os<br />

vendedores faziam suas ofertas a encantou, até o momento em que<br />

viu um árabe de bastos cabelos negros, com uma tira enviesada na<br />

cabeça, prendendo uma rodela de pa<strong>no</strong> escuro <strong>no</strong> olho esquerdo..<br />

Era do<strong>no</strong> de um sorriso fascinante.<br />

A tenda deste mercador se localizava nas proximidades de um beco.<br />

Lenços multicoloridos assemelhavam-se a bandeiras expostas em<br />

verga de navio, ao lado de sua barraca. Aproximou-se <strong>para</strong> verificar<br />

quais quinquilharias recheavam o comércio daquele homem.<br />

Espantou-se, ao ver que sua especialidade eram estátuas artísticas.<br />

Grandes, minúsculas, em várias posições, formas e materiais. Havia<br />

grotescas, sublimes, engraçadas e até comovedoras.<br />

O tempo que permaneceu apreciando aquela arte, sustentando-se <strong>no</strong><br />

desejo de adquirir alguma que lhe falasse à alma, foi suficiente, por<br />

certo, <strong>para</strong> que o mercador entendesse sua intenção. Acostumado<br />

com estrangeiros, que deveriam fazer parte de seu cenário constante,<br />

ele destacou entre todas aquelas preciosidades uma estátua em<br />

alabastro. Seus olhos clínicos não se haviam enganado. Ela se via<br />

maravilhada a analisar a peça em seus detalhes.<br />

A estátua de mulher se erguia entre duas colunas que lembravam os<br />

pórticos gregos e levava a cabeça voltada <strong>para</strong> o alto, como se<br />

clamasse ao céu um pedido. Em uma das mãos, a figura de mulher<br />

carregava uma cornucópia, que representa abundância e riqueza em<br />

91


colheita. Ela era toda incrustada em pedras coloridas brilhantes,<br />

entremeadas de pérolas.<br />

Embaraçada com a sensação estranha que a envolvia naquele<br />

instante, voltou-se ao homem e indagou:<br />

- Estátua de quem? É de alguma deusa?<br />

Sorrindo misteriosamente, o árabe respondeu rápido:<br />

- Sim, de uma deusa. E são tantas as lendas em tor<strong>no</strong> dela, que eu<br />

precisaria de mais tempo de que a senhora dispõe <strong>para</strong> ouvir.<br />

- Mas eu vou gostar de saber tudo - disse com determinação e<br />

também com uma certa dose de arrogância.<br />

O árabe insistiu:<br />

- Muito tempo, não me ouviu? O olhar dele traduzia tanto mistério e<br />

a cadência da voz era tão firme, que ela retrucou:<br />

- Pois, se é um desafio, aceito.<br />

O homem tor<strong>no</strong>u-se pensativo, tirou gentilmente a estátua de sua<br />

mão e afirmou: - Não creio que seja uma criatura pre<strong>para</strong>da <strong>para</strong><br />

tanto. E prosseguiu energicamente: - Tem levado seus desafios e<br />

suas lutas <strong>para</strong> um lado que não a dignifica. Por que deveria se<br />

envolver com esta história? Ela é <strong>para</strong> ser ouvida por pessoas de<br />

fibra, sim, mas que não estejam interessadas apenas <strong>no</strong> próprio eu -<br />

e olhou-a desafiadoramente.<br />

Já ia revidar com desprezo, mas o olhar quase hipnótico daquele<br />

homem lhe transmitia fraternidade e amor, sentimentos que ela sabia<br />

que seu coração pouco abrigava.<br />

Ele entendeu a luta enfrentada por aquela mulher altiva, <strong>para</strong> não se<br />

entregar à cólera. Entrou na barraca, trazendo em mãos um líquido,<br />

que lhe entregou <strong>para</strong> beber e acalmá-la.<br />

- Percebeu? - ele disse mais tranqüilo. - Trata-se de um assunto que<br />

pode feri-la profundamente ou redimi-la, tornando-a capaz de se<br />

transformar em uma deusa - como esta - ele olhou <strong>para</strong> a estátua,<br />

que naquele momento pareceu flutuar aos olhos de Cornélia.<br />

92


Dezoito<br />

Cornélia ia absorvendo toda a luta interior de seu espírito cheio de<br />

arrogância e de desafios. Mas também se sentia impulsionada por<br />

um apelo diferente, que lhe convidava a ceder e prosseguir sem<br />

mágoa. Assim, comentou:<br />

- Não sei quem você é e nem a procedência desta estátua. Mas sei<br />

que quero adquiri-la e, junto com ela, todas as informações que o<br />

senhor puder passar. Fez, então, o gesto de procurar moedas <strong>para</strong><br />

pagar por aquela <strong>aqui</strong>sição.<br />

O homem interrompeu seu gesto e comentou:<br />

- Ela não leva preço. Pertencerá à senhora depois de determinada<br />

circunstância.<br />

Sem entender o que significavam aquelas circunstâncias, sentiu-se<br />

ferida e retrucou amargurada:<br />

- Pensei que o senhor fosse um homem honrado.<br />

O árabe sorriu e interpôs:<br />

- Está vendo? Vai ser muito difícil. Por que não desiste? Se a<br />

senhora encontra maldade nas palavras que ouve, se interpreta o<br />

sentido do mundo apenas com o espelho da maledicência, como<br />

espera encontrar a água cristalina <strong>para</strong> olhar-se nela<br />

esplendorosamente? E continuou: - Tem comandado os desti<strong>no</strong>s,<br />

mas não consegue penetrar na essência. Exige tolerância, mas <strong>para</strong><br />

locupletar-se apenas <strong>no</strong>s seus caprichos. Aniquila suas afeições, mas<br />

se deixa naufragar <strong>no</strong> sorvedouro da melancolia. Afinal, qual tem<br />

sido a sua escola? Não é a da vida?<br />

Ao ouvir aquelas palavras, ela percebia todo o ressoar de seus<br />

passos anteriores. Mas conseguiu dizer com sinceridade:<br />

94


- Dê-me uma chance. Eu posso aprender.<br />

Dali em diante, viu-se lado a lado com ele, caminhando por vielas<br />

escuras e sombrias. Depois, atravessando caminhos iluminados pelo<br />

sol abrasante e espaços abertos onde a brisa não encontrava<br />

obstáculos. Até que avistaram um pórtico quase em ruínas. Mas, ao<br />

transpô-lo, uma paisagem diferente os acolheu. Um jardim com<br />

pérgulas floridas se espreguiçava na lateral de uma construção<br />

baixa. E, na frente da casa, um meni<strong>no</strong> de seis a<strong>no</strong>s. Ao avistar o<br />

pai, ele correu <strong>para</strong> abraçá-lo.<br />

- Cumprimente a senhora, meu filho - disse o árabe, sorrindo.<br />

Somente naquele momento, Cornélia começou a observar o porte<br />

avantajado do árabe e a longa veste azul, acompanhando seus passos<br />

ágeis. E reconheceu, nele, Omar.<br />

O garotinho fez um movimento engraçado com a cabeça de cabelos<br />

tão negros quanto os do pai, e pronunciou algumas palavras que<br />

pareciam ter sido ensaiadas <strong>para</strong> algumas ocasiões, mas cheias de<br />

sabor:<br />

- Allah ilumina todos os que <strong>no</strong>s honram com sua visita! - e saiu<br />

correndo <strong>para</strong> o interior da casa.<br />

- Você deve estar extenuada - disse-lhe o árabe. - Caminhamos<br />

muito. Deve agora descansar.<br />

Em suas reminiscências, Cornélia sentia-se refazendo das agruras<br />

pelas quais havia passado.<br />

Com que alegria via o garotinho aproximar-se, recebendo-a como se<br />

ela pertencesse àquela morada. Levava-lhe flores, contava histórias<br />

com as fantasias próprias de uma criança que pertencia a um<br />

ambiente sólido, saudável. As narrativas eram tão harmoniosas e<br />

felizes, que o contemplava encantada, vendo ali uma alma em<br />

perfeita florescência.<br />

Seu coração ia se transformando. E como sua vontade de mudar era<br />

verdadeira, sentia-se a derrubar os primeiros tijolos de uma<br />

construção que havia erguido ao redor de si mesma, prestes a<br />

aprisioná-la, e deixando-a isolada das belezas do mundo.<br />

95


Um dia, recolhida <strong>no</strong> silêncio, entre odores suaves e sons<br />

harmoniosos, ouviu de Omar:<br />

- Amanhã você terá início a um longo aprendizado.<br />

Foi despertada, <strong>no</strong> dia seguinte, pelo meni<strong>no</strong> que a sacudia a repetir:<br />

- Meu pai disse que é chegada a hora.<br />

Viu-se, então, ao lado de Omar, caminhando em uma direção que<br />

deixava entrever a distância algumas elevações cor de barro, com<br />

morros que mais pareciam paisagens de fundo de mar. Só quando se<br />

aproximavam, certificou-se que os "morros" na verdade eram<br />

construções próximas umas das outras e que pareciam moldadas em<br />

terracota. Uma delas, a maior, era a que constituía o Templo.<br />

Erguia-se acima das outras e emprestava uma visão pa<strong>no</strong>râmica<br />

espantosa. A cada direção que se olhasse - dos quatro pontos<br />

cardeais - a paisagem convidava a percorrê-la incansavelmente. Ao<br />

<strong>no</strong>rte, uma cadeia de montanhas íngremes, um desafio aos homens;<br />

ao sul, um mar vibrante e majestoso, com casas pequeninas<br />

colocadas não tão aproximadas dele, mas também não tão afastadas<br />

a não permitir que os moradores se beneficiassem de uma aragem<br />

perfeita; os outros dois lados se perdiam num embarafustado de<br />

rochas e vegetações, salpicadas <strong>aqui</strong> e acolá por telhados de ardósia.<br />

Uma paisagem sublime e aterradora ao mesmo tempo, porque<br />

sugeria a Cornélia um mistério que teria de aprender a desvendar.<br />

A visão daquela paisagem a tocava profundamente, quando foi<br />

tirada das abstrações por Omar e levada por ele <strong>para</strong> perto de<br />

algumas pessoas que se reuniam à porta do Templo. Eram homens e<br />

mulheres, todos com vestes longas e na mesma cor azul, apesar dos<br />

tons esmaecidos em algumas e avivados em outras.<br />

Desde o princípio, pôde perceber que Omar era uma espécie de<br />

orientador de grupo, respeitado, e alguns ali até se sentiam um<br />

pouco intimidados em sua presença.<br />

Depois daquela reunião, o árabe permaneceu em silêncio, mas seus<br />

olhos a acompanhavam, como se quisesse compartilhar das<br />

sensações que a alcançavam. Cornélia entendia que ele desejava<br />

96


desembaraçá-la das vestes antigas, <strong>para</strong> ofertar-lhe uma <strong>no</strong>va, e que<br />

receava a desistência dela.<br />

As imagens de seu sonho agora deslizavam rapidamente, como se<br />

indicassem o tempo transcorrido ali, as caminhadas ao Templo, as<br />

conversas profundas entre companheiros e a garrulice do filho de<br />

Omar, sempre a abraçando com afeto.<br />

Subitamente, nuvens escuras, relâmpagos e trovões povoaram este<br />

cenário. Uma madrugada de assombros. A voz de Omar foi<br />

nitidamente ouvida por ela, que em seus aposentos acordara<br />

assustada com a impetuosidade da Natureza. Ouviu-o ainda dizer<br />

<strong>para</strong> algumas pessoas que se encontravam à porta da casa:<br />

- Esperem! Seguirei com vocês.<br />

Aquela foi a última vez que o viu. Soube que uma enchente voraz<br />

havia destruído algumas pequenas casas de amigos do Templo e que<br />

ele - Omar - tinha sido arrastado pela torrente, quando tentava salvar<br />

uma criança.<br />

O Templo que os abrigara em conversas e em estudos permaneceu<br />

semi-coberto e Cornélia se via olhando alguns compartimentos,<br />

quando a tempestade se amai<strong>no</strong>u. Num deles, a estátua da deusa -<br />

em tamanho grande - olhava <strong>para</strong> cima daqueles horizontes.<br />

A miniatura daquela estátua, que ela um dia havia tentado comprar<br />

de Omar, <strong>no</strong> mercado, ele já havia ofertado <strong>para</strong> ela, como<br />

confirmação de que era bem-vinda àquele grupo, que a respeitava e<br />

festejava também.<br />

Mais uma vez havia participado da vida de Omar e de Josiel - o<br />

garotinho de Omar - e que tinha sido seu próprio filho, na Índia.<br />

Ah, a vida entrelaça as criaturas que se amam também!<br />

97


Deze<strong>no</strong>ve<br />

As experiências de Cornélia a deixaram atônita e também eufórica.<br />

Um desejo e<strong>no</strong>rme de viver mais amplamente, de contribuir com a<br />

alegria que a tocava, revolucio<strong>no</strong>u seu interior. E, <strong>para</strong> completar,<br />

foi procurada por um mensageiro de Hannah, que lhe mandava<br />

<strong>no</strong>tícias, preocupada com sua solidão. A amiga lhe detalhava as<br />

alegrias e decepções pelas quais vinha passando, as descobertas<br />

sobre os amigos de Joshua que passavam por aqueles territórios, um<br />

dos quais se chamava Nathanael, e que havia perguntado por ela.<br />

Tocada pela saudade, apressou-se a responder, aproveitando a volta<br />

do mensageiro.<br />

"Saudações, Hannah!<br />

Agradeço suas preocupações com o isolamento a que me impus.<br />

Mas tive nesses últimos dias a grata surpresa de receber em minha<br />

casa Boanerges e sua família.<br />

Acontecimentos inesperados (ainda referentes aos véus que se<br />

abrem <strong>para</strong> mim) e longas conversas entre nós me levam agora a<br />

decidir-me acompanhar Boanerges até Roma. Confesso que tenho<br />

abusado de minha inclinação <strong>para</strong> afastar-me do mundo, mas<br />

Boanerges conseguiu pacificar minha alma e impulsionar-me <strong>para</strong><br />

<strong>no</strong>vas expectativas, que realizaremos juntos com Rute, esposa dele,<br />

e o filhinho Josiel. Chegaremos aí por ocasião dos festejos de Bona<br />

Dea. Irei procurá-la na propriedade de Otávia.<br />

Boanerges já está providenciando a escolta que <strong>no</strong>s deverá<br />

acompanhar. Seu mensageiro, Hannah, foi bastante providencial. A<br />

ele, Boanerges encarregará de <strong>no</strong>s reservar uma moradia perto de<br />

Roma. Saudações! Cornélia."<br />

98


Na casa, o clima era de entusiasmo. Josiel perambulava por entre os<br />

volumes que iam sendo depositados em se<strong>para</strong>do, contendo o que<br />

era necessário <strong>para</strong> uma longa viagem.<br />

As serviçais incansavelmente trabalhavam. Só Zínia a acompanharia<br />

e também um escravo recém adquirido, mas já alforriado por<br />

Cornélia.<br />

Era um negro de seus trinta a<strong>no</strong>s, Timóteo, de sorriso reprimido,<br />

mas de alma generosa. Para ele, a viagem programada era o mais<br />

doce dos sonhos que poderia realizar. Sempre havia desejado<br />

conhecer o que existia <strong>para</strong> fora daquele território e se via, então,<br />

presenteado com a abertura de um grande portal.<br />

A concretização daquele sonho <strong>para</strong> Timóteo - e <strong>para</strong> todos,<br />

evidentemente - começou exatamente quando Boanerges abriu a<br />

pesada porta de madeira que protegia a casa de Cornélia, <strong>para</strong> se<br />

encontrarem com os amigos que seguiriam com eles.<br />

Cornélia, Boanerges, Rute, Zínia, Josiel, Salomé e Timóteo saíram<br />

da residência de Nazaré nas primeiras horas de um dia que seria<br />

inesquecível <strong>para</strong> eles. O marido de Salomé ficaria <strong>para</strong><br />

supervisionar a casa.<br />

Na porta, doze criaturas os aguardavam. Para alguns, Roma não era<br />

um território desconhecido; <strong>para</strong> outros, seria, talvez, uma cidade<br />

que lhes sorriria.<br />

Esses homens tinham sido escolhidos por Boanerges a dedo.<br />

Homens fortes, saudáveis, bons chefes de família - alguns - e<br />

pre<strong>para</strong>dos <strong>para</strong> enfrentar os caminhos nem sempre trilhados por<br />

pessoas responsáveis ou credenciadas <strong>para</strong> atos de amor e<br />

misericórdia. Eram escravos alforriados, já exercendo profissões<br />

diversas, mas amantes da paz e da prosperidade. Gente simples,<br />

elevada em princípios de solidariedade e fraternidade.<br />

Alguns deles haviam seguido Joshua a distância, haviam partilhado<br />

de suas dores e angústias, haviam conhecido histórias sobre ele.<br />

Entendiam perfeitamente que Joshua era o filho de um Pai Maior e<br />

que conhecia a desolação de um mundo acossado por atos de<br />

99


conquistas de gente de ouvido fechado <strong>para</strong> o valor e o respeito ao<br />

próximo.<br />

Eram criaturas que também haviam perdido seres que amavam e que<br />

nem entendiam a razão de terem sido lançados por ali, levados pelas<br />

mãos de negociantes de escravos impiedosos.<br />

Cornélia entendeu que sua responsabilidade, entre eles, seria apenas<br />

o amparo material. Poderia utilizar a sua riqueza daquela forma:<br />

entregando-lhes alimentos e boas estalagens na caminhada. Neles,<br />

sentia o gesto de confiança.<br />

Boanerges, que a conhecia muito bem, <strong>no</strong>tou a avalanche de<br />

sentimentos que a tocava e que ia acompanhá-la, por certo, na longa<br />

peregrinação. Sabia que a cada segundo estaria relembrando os<br />

reveses sofridos ali, pela morte do Anjo Magnífico, despojado de<br />

suas vestes e crucificado junto de bandoleiros. Um ato infame que<br />

ela não compreendia se era devido aos judeus, à perversidade dos<br />

roma<strong>no</strong>s, ou às circunstâncias <strong>no</strong>rmais do desti<strong>no</strong> de todos.<br />

Logo que saíram, Cornélia teve a impressão nítida de ouvir<br />

chegando, com a brisa fresca daquelas primeiras horas de um dia,<br />

um murmúrio baixinho de Joshua a lhe desejar uma boa colheita.<br />

No imo, intuía que <strong>para</strong> lá não mais voltaria, mas isso não a<br />

preocupava. Poderia até vestir o traje daqueles velhos pescadores,<br />

prontos a lançar redes <strong>para</strong> o alcance dos peixes que iam suprir a<br />

própria família. Assim se sentia, certa de que Joshua estaria com ela.<br />

Não há necessidade de qualquer referência sobre o percurso<br />

vencido, porque Boanerges era realmente um bom timoneiro. Nada<br />

havia sido esquecido por ele e nem por Timóteo.<br />

Atingiram um portão de Roma, quando as primeiras estrelas<br />

acendiam o lampadário do céu límpido e sem nuvens. Mas foram<br />

surpreendidos com uma escolta que os aguardava ali. Hannah se<br />

anteci<strong>para</strong> à surpresa que Cornélia lhe faria e havia conseguido, por<br />

intermédio de Fábio, que um oficial do exército roma<strong>no</strong> os<br />

encontrasse e os acompanhasse até uma vivenda reservada <strong>para</strong> eles.<br />

100


Tinha servido, anteriormente, como estalagem. Ficava ao sopé de<br />

uma das colinas de Roma, e já havia recebido muitas famílias não<br />

nascidas por ali. Não se distanciava da propriedade de Orígenes.<br />

Na região, encontravam-se estrangeiros industriosos, cheios da<br />

alegria de viver, amantes da música. Uma grande parte originários<br />

da Grécia, mas não de "sangue puro", porque por ali a miscigenação<br />

também ia bastante avançada. Mas eram seres dóceis, de vida<br />

equilibrada <strong>no</strong> trabalho e cheios do desejo de progresso e realização<br />

de sonhos - como acontece na Terra a todos os que não se ocupam<br />

com guerras de conquista.<br />

Nesse povoado - pode-se dizer povoado, embora inserido <strong>no</strong> seio de<br />

Roma - Cornélia e sua caravana desceram.<br />

A casa principal já contava com arranjos de flores, das mãos de<br />

Hannah, e o celeiro pequeni<strong>no</strong>, com forragens <strong>para</strong> os animais; a<br />

lenha, empilhada e seca, oferecia-se <strong>para</strong> uma lareira improvisada<br />

rapidamente por sua amiga; os utensílios de cozinha brilhavam em<br />

suportes articulados de madeira.<br />

Era adorável o local, embora em tamanho reduzido, se com<strong>para</strong>do<br />

às dimensões da anterior moradia de Cornélia. E, ali, duas serviçais<br />

aguardavam as ordens da <strong>no</strong>va senhora.<br />

Cornélia comoveu-se pelo carinho e atenção de Hannah, pela<br />

amizade tão claramente expressa nesses atos de agrado. E logo já<br />

dava suas ordens, corria atrás de objetos perdidos <strong>no</strong> meio de tantos<br />

volumes. Não sossegou, enquanto não se encontrava tudo em seus<br />

devidos lugares.<br />

Três dias depois, estavam instalados como se ali morassem há muito<br />

tempo. Só então Cornélia soube, por Hannah, que, se quisesse,<br />

poderia aumentar a casa, inserir <strong>no</strong>vos pavimentos ou jardins, pois<br />

aquelas terras pertenciam a Orígenes, que as tinha posto à venda.<br />

Hannah as havia reservado <strong>para</strong> ela, com a desistência do antigo<br />

do<strong>no</strong> da estalagem, impossibilitado de comprá-las. Era um solo<br />

valoroso <strong>para</strong> plantio.<br />

Imprevisível e adorável Hannah!<br />

101


Enquanto Cornélia se enfronhava <strong>no</strong> ambiente <strong>no</strong>vo, Licínio voltava<br />

com seus oficiais <strong>para</strong> Roma. Terminada a sua incumbência, levou<br />

os informes a seus superiores. Eram recados urgentes, mas seguros.<br />

Ele garantia que não existiam atos políticos na mente dos judeus<br />

seguidores de Joshua. Eram pessoas sem violência, voltadas <strong>para</strong> os<br />

campos da alma e não <strong>para</strong> os materiais. Diziam-se propagadores de<br />

uma fé diferente, porque incluíam a participação do povo <strong>para</strong> o<br />

conhecimento de um <strong>no</strong>vo Rei<strong>no</strong> - um Rei<strong>no</strong> que ele, Licínio,<br />

particularmente acreditava que não seria incluído naqueles<br />

territórios. Isto ele deduzia, porque não carregavam armas e o único<br />

instrumento de que se valiam <strong>para</strong> a propagação eram as palavras.<br />

Essas palavras preconizavam uma vida mais feliz <strong>para</strong> todos,<br />

quando se reunissem ao Deus do Amor, <strong>para</strong> serem irmãos em<br />

fraternidade e entendimento.<br />

O sorriso de mofa que principiou a se formar <strong>no</strong> rosto de seu<br />

comandante, enquanto ia lendo o relatório, incomodou Licínio.<br />

Vinha de um homem cheio de agressividade, mas extremamente<br />

dedicado ao posto que havia galgado por suas idéias rígidas e<br />

disciplinares. Só proferia um não definitivo, em uma causa que<br />

defendesse, quando tivesse em mãos um bom número de<br />

informações de seus diversos subordinados.<br />

Esse superior de Licínio o aceitava como um perfeito comandante<br />

de unidade, mas jamais deixaria de analisar outras opiniões na causa<br />

que vinha examinando, antes de dar seu veredicto final.<br />

Licínio afastou-se satisfeito com seu trabalho, mas bastante<br />

preocupado com os teores que chegariam às mãos dele, vindos dos<br />

outros informantes. Ainda que possuísse recursos de saber quais<br />

seriam essas opiniões, antes mesmo que chegassem às mãos do<br />

severo homem, não procurou se valer de sua autoridade. Não o<br />

movia o desejo de triunfo e nem de impor o seu ponto de vista.<br />

Deixaria que tudo seguisse os canais habituais.<br />

Voltou <strong>para</strong> casa, banhou-se, recebeu um tratamento de massagens<br />

num banho público. Depois, foi em busca da mãe.<br />

102


Durante todo o tempo em que havia permanecido fora, a figura de<br />

Aurélia não lhe tinha saído do pensamento. Alguma coisa lhe dizia<br />

intimamente que ela ia passar por algum revés e ele queria evitá-lo.<br />

Licínio se dava conta, ultimamente, de que algo estranho se passava<br />

com ele. Encontrava maiores facilidades <strong>para</strong> intuir acontecimentos<br />

antecipadamente - e alguns deles realmente se haviam realizado,<br />

<strong>para</strong> seu grande espanto. Também uma leve sensação de que<br />

mudanças aconteceriam em sua família, e isso incluía Fábio e a<br />

mocinha por quem ele sabia que o irmão se havia apaixonado.<br />

Ela era de descendência judaica, do lado da mãe, e, do pai, ele não<br />

sabia. Uma bela jovem, culta, atraente e voltada inteiramente <strong>para</strong> as<br />

tradições judaicas.<br />

Sua mãe ainda não conhecia esta inclinação de Fábio e Licínio sabia<br />

perfeitamente que Aurélia sonhava <strong>para</strong> ambos um casamento entre<br />

patrícios. Por ela, Fábio se casaria com uma princesa romana<br />

imperial, se dependesse só dela os seus jogos matrimoniais. E ele<br />

não duvidava de que ela chegaria bem próxima desses propósitos, se<br />

Fábio não fosse também um exímio jogador.<br />

Quando Licínio chegou perto da mãe, logo <strong>no</strong>tou que algo a<br />

desagradava. Ela parecia reprimida, contrariada, a ponto de deixar<br />

romper o dique de intolerância que sempre a acometia, quando se<br />

via perto de atingir uma meta e esta lhe escorregasse pelos dedos.<br />

Mas daquela vez a meta era mesmo Fábio. Ela havia recém<br />

descoberto o interesse dele pela moça de olhos amendoados.<br />

- Que aconteceu, minha mãe? Não está contente com a minha volta?<br />

Preferia que eu estivesse bisbilhotando naquelas zonas fronteiriças,<br />

vigiando os pobres judeus? - ele brincou, mas com amargura.<br />

Aurélia olhou-o como se ele nem se encontrasse ali. Seus<br />

pensamentos vagueavam, até que conseguiu se recompor.<br />

- Deixe disso, meu filho. Conheço o seu valor <strong>no</strong> ofício que exerce.<br />

Mas o Fábio...<br />

- Que houve com ele? Algum sarilho que não me chegou aos<br />

ouvidos? - perguntou preocupado.<br />

103


- Não, não - disse enfezada. - Até seria melhor se fosse sarilho<br />

mesmo. Desta vez se trata de... de uma garota.<br />

- Mas isso é bastante natural. Se eu, que sou o mais velho, ainda não<br />

me decidi por uma escolha, é até muito bom que parta dele uma<br />

iniciativa. Nossa família anda precisando de sangue <strong>no</strong>vo, não pensa<br />

assim?<br />

- Mas é por aí mesmo que surge o problema, Licínio. Sonhei sempre<br />

com uma patrícia <strong>para</strong> minha <strong>no</strong>ra e sabe o que seu irmão está<br />

pretendendo? Prender-se a uma moça de olhos puxadinhos que,<br />

além disso, tem o sangue dos judeus. Nem sei o que meus amigos<br />

vão pensar!<br />

Licínio desagradou-se. Tinha por <strong>no</strong>rma não interferir nas ma<strong>no</strong>bras<br />

da mãe, porque sabia que seus jogos visavam sempre a um futuro<br />

feliz <strong>para</strong> os filhos. Mas agora se tratava de batimento cardíaco e<br />

isto jamais poderia ser incluído em interesses e m<strong>aqui</strong>nações.<br />

- Importa o que Fábio pensa, o que Fábio sente e o que Fábio<br />

prefere, senhora dona Aurélia - retrucou severamente. - Ele não é<br />

mais um menininho e já tem dosagem certa <strong>para</strong> a satisfação de seus<br />

interesses preferenciais. E tem dado mostras de maturidade e<br />

responsabilidade. Pode muito bem constituir a família que quiser.<br />

Aurélia olhou-o, estupefata. Não conseguia entender o que estava<br />

acontecendo <strong>para</strong> a sua família. Mas desta vez não ficou jogando em<br />

círculos e foi direta ao ponto:<br />

- Não posso proibi-lo de se unir a essa... a essa judiazinha - ela<br />

gaguejou. - Mas posso muito bem conseguir o envio dele <strong>para</strong> bem<br />

longe de mim, <strong>para</strong> um lugar onde nem existam mensageiros que me<br />

tragam <strong>no</strong>tícias de que é feliz ou não. Ao terminar de dizer tudo<br />

isso, o rosto estava esbraseado.<br />

- Ótimo, minha mãe! Meus aplausos. Sempre acreditei que <strong>no</strong>s<br />

amava; que seus cuidados eram <strong>para</strong> a <strong>no</strong>ssa felicidade afetiva. Mas<br />

posso ver o quanto me enganei. Só a posição social conta? Só os<br />

interesses? Só a sociedade romana, que está despencando num<br />

abismo de frouxidão? Não é capaz de enxergar isso, senhora<br />

Aurélia? Não consegue <strong>no</strong>tar que seus estimados patrícios estão se<br />

104


vendendo à custa do poder? Pensa que estão muito interessados na<br />

felicidade do povo? Não vê de quantos recursos infelizes se<br />

utilizam? E prosseguiu zangado: - Pão e circo, senhora Aurélia. É<br />

isso que têm oferecido <strong>no</strong>s últimos tempos. Só espetáculos de<br />

desperdício de dinheiro <strong>para</strong> encobrir os olhos do povo infeliz!<br />

Aurélia deu um passo <strong>para</strong> trás.<br />

- Então é isso, Licínio? Você também?<br />

- Também o quê?<br />

- Sabe muito bem do que estou falando, mas tenho a impressão de<br />

que <strong>no</strong>ssa linguagem mudou. Os cristãos agora são os do<strong>no</strong>s da<br />

arena?<br />

Licínio riu, riu tanto, que se acalmou e conseguiu ser mais<br />

ponderado ao dizer:<br />

- Quisera eu que fossem eles os do<strong>no</strong>s da arena, senhora Aurélia. Aí,<br />

então, em lugar de carne humana destroçada em espetáculos<br />

infamantes, nós ouviríamos hi<strong>no</strong>s de louvor à vida humana. É isto o<br />

que os cristãos pretendem louvar - a vida humana, minha mãe. Eles<br />

não querem morrer, só querem se entregar a Deus. Eles não querem<br />

sacrifícios, só paz e não poder. Querem fraternidade e união, a<br />

senhora não compreende?<br />

Aurélia chorou. Não de tristeza, nem de amargura. Chorou, porque<br />

seus pla<strong>no</strong>s estavam sendo mudados, devagarinho, pela própria<br />

vida. Chorou, porque se sentiu impotente <strong>para</strong> continuar a ma<strong>no</strong>brar<br />

os cordéis, e porque seus filhos ingratos não mais a entendiam.<br />

O silêncio caiu sobre eles. Não um silêncio glacial, pois o coração<br />

de Licínio se entristecia pela mãe. Ela o olhava como se ele fosse<br />

um leão na arena.<br />

Licínio tentou aproximar-se, acarinhá-la, mas em vão. Ela deixou-se<br />

tocar, mas não estava perto dele. Mantinha-se bem distante, arredia<br />

e ludibriada.<br />

- Mãe - ele disse baixinho -, Roma está em decadência. Impera <strong>aqui</strong><br />

a grosseria. Nós não vamos conseguir mudança alguma, se não<br />

mudarmos primeiro os <strong>no</strong>ssos próprios passos, os <strong>no</strong>ssos ideais. Não<br />

105


acha que o amor é belo, Aurélia? - ele imitou a voz do pai, ao dizer<br />

essa frase.<br />

Foi um instantinho fugaz, um cintilar milimétrico de interesse <strong>para</strong><br />

Aurélia, ao ouvi-lo repetir a frase que seu marido costumava<br />

cantarolar, <strong>no</strong>s dias em que chegava feliz do seu posto de comando,<br />

porque ele também era um jovem oficial, quando se casou com<br />

Aurélia.<br />

- Vou verificar se as refeições estão sendo bem pre<strong>para</strong>das - ela<br />

retrucou, e saiu <strong>para</strong> o interior da casa.<br />

Licínio suspirou. Mas não se arrependeu. Ela precisava acordar,<br />

amadurecer, buscar um ideal diferente. Não podia permanecer<br />

voltada às honrarias do passado. O futuro os chamava <strong>para</strong> uma<br />

<strong>no</strong>va compreensão. Saiu, então, à procura do irmão.<br />

106


Vinte<br />

Roma era uma verdadeira colméia, enquanto a pre<strong>para</strong>vam <strong>para</strong> os<br />

festejos de Bona Dea. Até os aromas habituais, reconhecidos pelos<br />

moradores, mesclavam-se a <strong>no</strong>vos, devido a inúmeras rosas<br />

acrescidas diante de barracas, moradias, locais de comércio em<br />

ruelas e praças.<br />

Cornélia, Celeste e Hannah caminhavam num dia ensolarado e<br />

límpido, ouvindo os diferentes falares de estrangeiros, o grego, o<br />

latim com sotaque siríaco, o aramaico, o puro linguajar dos<br />

roma<strong>no</strong>s, o árabe e muitos outros.<br />

Detiveram-se diante de uma loja, com piso de pedra lavado, onde se<br />

destacavam objetos <strong>para</strong> oferendas em Templos, caixinhas lavradas<br />

em prata, bustos em barro, velas de cera de abelha, de perfume<br />

agradável, e também incensos. Ao fundo dela, encontrariam o que<br />

Hannah procurava: os atraentes camafeus - uma indicação de<br />

Celeste, que os colecionava, e que passaram também a ser um<br />

atrativo <strong>para</strong> Hannah.<br />

Logo que entraram, o rumor de passos apressados vindos de uma<br />

viela que passava pelo fundo daquela propriedade chamou-lhes a<br />

atenção. Foram tranqüilizadas pelo mercador, que se aproximava e<br />

se desculpava, como se fosse ele o responsável pelas balbúrdias da<br />

cidade.<br />

- Não se preocupem, que as próprias autoridades se encarregarão de<br />

colocar cada um na cela que lhes compete - ele riu, e a testa franziu<br />

em dezenas de risquinhos bem fundos, embora o homem tivesse um<br />

travesso olhar de garoto.<br />

- De que se trata? - inquiriu Hannah, cheia de curiosidade.<br />

107


- Disseram-me que foi a atração exercida por um homem chamado<br />

Simão, o mago. Ele tem esta alcunha, porque é realmente um mago,<br />

pelo me<strong>no</strong>s é o que muitos afirmam - e ele ergueu os ombros, como<br />

se não desejasse se comprometer naquela afirmativa.<br />

- Já ouvi referências a ele - comentou Celeste. - Alguns o apontam<br />

como judeu, como samarita<strong>no</strong> ou de origem essênia. Dizem também<br />

que é um médico.<br />

Vendo que as elegantes senhoras não repudiavam a figura do<br />

homem que, na verdade, ele admirava, arriscou-se a acrescentar<br />

detalhes:<br />

- Também já ouvi contarem que ele faz com que apareçam objetos<br />

perdidos e que, às pessoas que o procuram com pesadelos e temores,<br />

ele auxilia. E até sabe apontar quais dias são ou não favoráveis <strong>para</strong><br />

as pessoas estabelecerem seus pla<strong>no</strong>s. É porque ele sabe consultar<br />

os astros, entendem? Quer dizer, não sei bem se isto é verdade -<br />

mais uma vez ele se armou. E nesta última observação, ele preferiu<br />

colocar na voz um tom de desinteresse.<br />

- O senhor já o viu fazer alguma magia, ou apenas ouviu contarem?<br />

- Hannah perguntou.<br />

- Na verdade, ele é um homem que faz encantamentos estranhos<br />

diante de quem queira observá-los, minha senhora. Não se esconde<br />

de forma alguma, aliás, até parece que prefere permanecer em<br />

destaque diante do público. Fala-se tanto dele, que certamente<br />

algum dia vai virar uma lenda - o homem riu, mas seus olhos já<br />

desmentiam o pouco caso com que a ele se referia.<br />

- O senhor pode <strong>no</strong>s esclarecer melhor o que ele faz, <strong>para</strong> merecer<br />

tal alcunha?- perguntou Cornélia.<br />

Vendo que desejavam apenas informações corriqueiras, o vendedor<br />

se desarmou e continuou:<br />

- Confesso que já tive oportunidade de me encontrar com ele. E nem<br />

pude acreditar que não faz as suas magias <strong>para</strong> ganhar o seu<br />

sustento. Não me exigiu pagamento nenhum em troca do seu<br />

espetáculo - ele assegurou.<br />

108


- Espetáculo? - perguntou Hannah.<br />

- Não deixa de ser um, embora ele não se exponha em cima de altos<br />

tablados e nem na arena do Circo - ele brincou. - E pelo me<strong>no</strong>s não<br />

são atos destrutivos os desse homem - ele prosseguiu, como que em<br />

defesa de Simão. - Ninguém se fere, quando ele se encontra <strong>no</strong><br />

comando.<br />

- No comando? - estranhou Celeste.<br />

- Sim, minha senhora. Simão, o mago, é um homem de força<br />

estranha <strong>no</strong>s olhos. Quem o olha profundamente e se deixa envolver<br />

por aquelas pupilas que lembram panteras prestes a dar um bote, não<br />

consegue defender-se de suas ordens de comando. Ele dá - o outro<br />

corresponde.<br />

- Isto não existe! - afirmou Celeste - o senhor deve estar enganado.<br />

- Perdoe-me, mas já comprovei. Com alguns, ele apenas brinca.<br />

Comigo, por exemplo. Mandou-me apanhar um ramalhete de flores<br />

e entregar a uma pessoa que estava em minha companhia. Eu só<br />

soube que o havia feito, quando me vi com as flores na mão, em<br />

atitude cavalheiresca, que não é o meu habitual - aí ele gargalhou,<br />

como se tivesse apreciado fortemente a experiência vivida junto<br />

daquele a quem consideravam um mago.<br />

- Ainda não creio - insistiu Hannah. - Talvez sua companheira<br />

estivesse em conluio com ele - argumentou.<br />

- Não, senhora. Esta minha amiga é pessoa séria e até me explicou<br />

que por causa desses tipos estranhos é que muita gente pensa que os<br />

seguidores de um outro mago, um judeu de uma <strong>no</strong>va seita, são<br />

igualados. Mas eu sei muito bem que não se trata disso. Simão, o<br />

mago, só gosta de alardear os seus poderes. Os seguidores do outro,<br />

conhecido como Nazare<strong>no</strong>, impõem as mãos sobre as pessoas <strong>para</strong><br />

fazerem curas. Eles não são ilusionistas.<br />

- Bem que eu gostaria de conhecer esse Simão - disse Celeste,<br />

sinceramente.<br />

- Desculpe-me, minha senhora, se deseja conhecer fatos<br />

miraculosos, por que não procura os verdadeiros seguidores do<br />

109


Nazare<strong>no</strong>? Não que eu seja um deles, veja bem - ele se escusou,<br />

embora em suas palavras houvesse um tantinho de interesse pelos<br />

fatos que já tinha ouvido narrarem.<br />

Cornélia permanecia calada e feliz. Via, naquela simples conversa,<br />

que os eventos de Joshua já haviam começado a deixar as suas<br />

sementinhas por ali. Mas comentou:<br />

- Do que fomos informadas, esses seguidores não estão por <strong>aqui</strong>. Ou<br />

estão? O senhor os conhece? Sabe como é, as <strong>no</strong>tícias por <strong>aqui</strong><br />

correm velozmente...<br />

- É verdade - ele estendeu amplo sorriso - e exatamente por isso é<br />

que sei que são hóspedes de Otávia, junto com a senhora Celeste,<br />

<strong>aqui</strong>, apreciadora de meus humildes artigos - ele aproveitou <strong>para</strong><br />

levá-las ao motivo que as fizera seguir até ele. Deixava claro,<br />

também, que preferia outros assuntos <strong>para</strong> conversa dali em diante -<br />

a venda de suas mercadorias.<br />

Elas entenderam a deixa, sorriram e começaram a analisar os<br />

camafeus.<br />

À saída da loja, foram vistas por uma romana, conduzida em uma<br />

cadeirinha elegantemente ornamentada, levada por dois escravos<br />

negros como carvão. Era uma conhecida de Aurélia e que Celeste já<br />

havia avistado rapidamente, em outra ocasião. Túlia as saudou e se<br />

mostrou disposta a conversar.<br />

Rechonchuda, em traje de seda vermelha, tentava disfarçar o<br />

avançar da idade, na flacidez do pescoço, com um colar belíssimo e<br />

de alto valor. Mas possuía feições bonitas ainda e tinha os cabelos<br />

elegantemente penteados.<br />

Túlia não parecia pessoa disposta a ouvir. Falava, falava, até que<br />

apontou <strong>para</strong> a loja de onde haviam saído.<br />

- Conhecem este mercador? - perguntou com um olhar estranho. -<br />

Sabem que tem parentesco com um importante artesão? E, sem<br />

esperar por uma resposta, prosseguiu: - Dizem que o artesão, que<br />

vive em Roma desde meni<strong>no</strong>, e que não se ocupa nem de religião ou<br />

de política, porque é um simples escravo liberto (é parente desse<br />

110


mercador que acabam de visitar, ela repetiu), ganhava seu sustento<br />

com artesanato até há pouco tempo. Ela parou, observou o interesse<br />

das três e continuou: - O artesanato de que se ocupava era <strong>para</strong><br />

enfeitar os Templos de Roma, os <strong>no</strong>ssos Templos - agora ela falava<br />

com mágoa. Mas ele começou a diminuir sua produção e, aos<br />

questionamentos feitos a ele a esse respeito, apenas respondia: É<br />

chegado o tempo de <strong>no</strong>vas estruturas <strong>para</strong> Roma. Não passava disso<br />

a resposta dele. Só reforçava que não adornaria mais os Templos.<br />

No entanto - ela prosseguia sem tomar fôlego - a insistência das<br />

pessoas era <strong>para</strong> que ele continuasse a criar as suas estátuas,<br />

belíssimas, por sinal. Sabem o que ele fez? Saiu pelas ruas de Roma,<br />

conclamando o povo a fazer me<strong>no</strong>s estátuas, me<strong>no</strong>s oferendas, e<br />

tratar de pregar o amor entre os povos.<br />

A matrona Túlia soltou um risinho disfarçado. - Este homem<br />

atrevido acabou sendo trancafiado, como se fosse um arruaceiro<br />

revolucionário. Acontece que ele tinha conhecido o Imperador, <strong>para</strong><br />

quem já havia esculpido uma belíssima estátua. E, já <strong>no</strong> cárcere,<br />

atrevidíssimo, exigiu aos carcereiros que o levassem à presença do<br />

Imperador. Desejava defender-se das ofensas que a ele faziam, visto<br />

que era um escravo liberto, tinha direito de trabalhar <strong>para</strong> ganho do<br />

próprio sustento e que, por estar em Roma há tanto tempo, já havia<br />

adquirido cidadania.<br />

A narrativa de Túlia não parecia que ia ter fim.<br />

- Os carcereiros até que foram benevolentes com ele - ela opi<strong>no</strong>u. -<br />

Conseguiram que fosse recebido pelo governador - não pelo<br />

Imperador. Este se recusou firmemente a vê-lo. O que se conta,<br />

depois disto, é que o tal artesão, depois dessa conversa com o<br />

governador, foi convidado a fazer parte do exército de Roma e saiu<br />

da prisão.<br />

Ela olhou triunfante <strong>para</strong> as ouvintes.<br />

Celeste, Hannah e Cornélia, espantadíssimas, observavam aquela<br />

senhora que parecia querer, num único dia, conversar sobre tudo o<br />

que a acabrunhava e a atraía. Mas não entendiam aonde ela queria<br />

111


chegar, quando lhes havia feito um sinal, detendo-as ali, em frente<br />

da loja do mercador de camafeus.<br />

No entanto, Túlia, dando-se conta de que já as tinha detido por<br />

muito tempo e de que poderia perder a oportunidade real do que<br />

pretendia mesmo, ao chamá-las, abriu <strong>no</strong>vo sorriso matreiro <strong>para</strong><br />

elas e propôs:<br />

- Se são amigas desse comerciante, podem me fazer um grande<br />

favor. Pedir <strong>para</strong> ele que leve o grande amigo dele - o artesão das<br />

estátuas - <strong>para</strong> construir uma em sua <strong>no</strong>va propriedade - aí ela sorriu<br />

<strong>para</strong> Cornélia. Assim, indiretamente, vocês podem descobrir, por<br />

conversas, se ele intercederia em favor de Lélia, já que ele se tor<strong>no</strong>u<br />

uma pessoa com privilégios.<br />

- De Lélia? - foi a única pergunta feita por Cornélia, agora<br />

interessada.<br />

- Sim. Não sei se já sabem que agora Lélia está sendo pressionada<br />

<strong>para</strong> abandonar o caminho cristão que segue, e exatamente por<br />

algumas matronas romanas que antes se apiedaram dela, quando<br />

estava exilada. Não são estranhos os eventos desses dias? - ela<br />

ponderou. - Gostaria mesmo era de descobrir se o tal do construtor<br />

de estátuas ainda continua dizendo que é chegado o tempo de <strong>no</strong>vas<br />

estruturas, depois do cargo que ele conseguiu.<br />

Túlia arrematou a fala com um único gesto, e este gesto era dirigido<br />

<strong>para</strong> os negros que a conduziam. Não esperou uma resposta. Ela<br />

afastou-se com um ace<strong>no</strong> gentil.<br />

Nenhuma das três entendeu se a matrona, pelo me<strong>no</strong>s, era favorável<br />

a Lélia.<br />

112


Vinte e Um<br />

O arroio das gaivotas, <strong>no</strong>me pelo qual passou a ser chamado o <strong>no</strong>vo<br />

lar de Cornélia, por sugestão de Hannah, recebera uma bela reforma.<br />

Pintura, restaurações, ampliação de alguns pavimentos. Era uma<br />

construção sólida que, sem o recurso dos bens materiais de seus<br />

anteriores arrendatários, vinha mantendo a aparência vetusta e<br />

fantasmagórica do pretérito.<br />

Mas Cornélia não conseguia atinar com a razão que a levava a se<br />

sentir, por ali, como co-participante de fatos estranhos, como se<br />

alguém invisível caminhasse com ela. Ora uma presença<br />

ameaçadora, e outras vezes como se instrumentistas <strong>no</strong>vos<br />

compusessem a seu lado melodias inquietantes. Começava a pensar<br />

que o local era mal-assombrado.<br />

Hannah ria de seus temores e convidou-a a reunir algumas amigas<br />

<strong>para</strong> a inauguração da casa. Dizia-lhe que ela continuava a ser uma<br />

gaivota, querendo sempre voejar e entender o que estava <strong>no</strong> alto -<br />

ou oculto - sem se ocupar até com o arroio que passava <strong>no</strong> fundo de<br />

seu terre<strong>no</strong>.<br />

Cornélia aceitou de bom grado, de modo que, logo que o jardim<br />

ganhou um primeiro impulso de verdadeiros profissionais, a casa<br />

recebeu a presença de Hannah, Celeste, Otávia, Aurélia e também<br />

de Lélia. Júlia não pôde comparecer.<br />

Apenas nessa ocasião, começaram a entender o que um dia haviam<br />

ouvido da romana Túlia. E veio de Lélia a observação que as levaria<br />

<strong>para</strong> tal entendimento.<br />

Ao se referir às imponentes estátuas gregas que Cornélia havia<br />

colocado em seu jardim, Lélia observou:<br />

113


- Tenho um grande amigo que é escultor, Cornélia. Ele modela tão<br />

bem as suas figuras, que costumo me referir a ele como um<br />

descendente do talentoso Fídias. Mas também já o vi a olhar as<br />

minhas peças de bronze e chegar a se comover até as lágrimas.<br />

- E quem é este homem tão sensível, Lélia? - indagou Celeste, não<br />

só curiosa pelo profissional. - Interesso-me pelo assunto, porque<br />

tenho um filho com tendências artísticas. Seria muito bom se ele<br />

conhecesse uma pessoa assim.<br />

- Não sei se Cléon seria a criatura ideal <strong>para</strong> professor de artes. Mas<br />

certamente ele poderá lhe oferecer informações bem úteis, Celeste.<br />

- Posso saber quem é este modelo de virtudes que consegue vencer<br />

as passadas de Roma sem ter armas nas mãos? - disse Aurélia com<br />

azedume.<br />

Lélia sorriu, ao responder: - É exatamente um homem que também<br />

pertence ao exército roma<strong>no</strong>, Aurélia.<br />

- Como isto é possível? - provocou-a Aurélia. - É o mesmo que ser<br />

um tocador de flauta e de trombeta ao mesmo tempo. Ninguém<br />

consegue manter-se em harmonia com duas escolhas tão diferentes.<br />

- Pois está enganada, amiga - voltou Lélia, desapaixonadamente. -<br />

Cléon seguiu <strong>para</strong> o exército com um propósito que nenhuma de nós<br />

pode entender, mas não deixa de ser a criatura generosa e sensível<br />

que é, só porque empunha armas defendendo seu ideal.<br />

- E qual é o ideal dele? - riu Aurélia. - Defender o <strong>no</strong>sso povo de<br />

perturbações do coração? E ele pretende, agora, erigir estátuas <strong>para</strong><br />

quem? Tem certeza de que é <strong>para</strong> o <strong>no</strong>sso Imperador, ou <strong>para</strong>...?<br />

- Para... quem? Vamos, Aurélia - desafiou-a Hannah -, continue.<br />

Você ultimamente anda revoltada com tudo. Até acha que em Roma<br />

não deveria morar ninguém que não fosse roma<strong>no</strong>.<br />

- É isso mesmo, Hannah, principalmente quem é judeu - ela<br />

desabafou.<br />

- Você nem atina que ser judeu não significa ser cristão, minha<br />

amiga. Basta saber que alguém é desta raça, <strong>para</strong> você se retrair.<br />

Pensa que todos são seguidores do Messias, desejando destruir o<br />

114


que os roma<strong>no</strong>s vêm construindo. Esquece que existem os que<br />

desejam que sua raça evolua <strong>para</strong> todo o sempre, são amantes da paz<br />

e da prosperidade, e que contam, ainda, com a certeza de que<br />

acontecerá mesmo, um dia, a vinda de um Messias. Não colocam o<br />

filho do carpinteiro nesse papel.<br />

Cornélia interferiu:<br />

- Se o amigo de Lélia está participando do exército como forma de<br />

resgatar o povo roma<strong>no</strong> das garras da ambição, eu acho que ele<br />

escolheu uma forma magnífica de se entregar ao amor.<br />

- Com você nem vou argumentar, Cornélia - reclamou Aurélia. -<br />

Mudei muito nesses últimos dias. Não consigo mais ver o povo<br />

judeu com a mesma imagem de antes. Eu acho que eles estão<br />

começando a roubar os meus filhos.<br />

- Engana-se, Aurélia - voltou Lélia. - Talvez você esteja magoada,<br />

porque seus filhos estão inseridos em tarefas que dizem respeito aos<br />

judeus que passaram a seguir o cristianismo. Mas uma grande parte<br />

deste povo não trocou nem um milímetro do modo de ser. Eu tenho<br />

conhecido alguns - ela informou - seguidores ou não. No caso dos<br />

segundos, são convictos de uma Divindade Maior, <strong>para</strong> quem a<br />

figura do Crucificado é uma vergonha. Mas não abandonaram suas<br />

tradições e me pareceram excelentes pessoas .<br />

- Bem, são os cristãos os responsáveis pelo desmoronamento de<br />

meus sonhos - Aurélia insistiu.<br />

- Então eu acho que você é que precisa conversar com Cléon,<br />

Aurélia - argumentou Lélia. - Aí entenderia a diferença entre amor à<br />

pátria e amor divi<strong>no</strong>.<br />

- Não adianta! - Aurélia queixou-se. - Sou mi<strong>no</strong>ria <strong>aqui</strong>. Você,<br />

Cornélia, meus filhos e talvez até Hannah foram contagiados por<br />

esses cristãos. Eu não consigo entender!! Essa exclamação era quase<br />

um grito de angústia dessa mulher romana que não conseguia<br />

direcionar sua visão <strong>para</strong> um espelho que não contivesse senão a<br />

própria imagem.<br />

115


- Aurélia, vamos fazer um jogo, <strong>aqui</strong> e agora - propôs Celeste<br />

cordialmente. - Um jogo <strong>no</strong> qual nenhuma de nós precisa ganhar,<br />

porque a realidade dele será apenas a composição de uma imagem.<br />

Se você fosse esculpir uma estátua, o que faria antes de tudo?<br />

- Escolheria de quem, evidentemente - respondeu Aurélia,<br />

desapontada.<br />

- Qual seria o passo seguinte?<br />

- Esculpiria o corpo.<br />

- De homem ou de mulher não importaria? Ou haveria diferenças?<br />

- A princípio não - ela relutou.<br />

- Pois bem. Suponha que escolheu uma estátua de homem. O que<br />

faria após esculpir a forma masculina?<br />

- Colocaria as vestes.<br />

- Ótimo. E acredita que as vestes seriam muito importantes na<br />

aparência do conjunto?<br />

- Não. Acho que o conjunto todo é que apresentaria a harmonia da<br />

estátua. Nada adiantaria ter muitos cuidados com a roupa, se os pés,<br />

as mãos, as pernas, o tronco e o rosto estivessem sem boas<br />

proporções.<br />

- Excelente, Aurélia. Você entende, então, que a harmonia ou do<br />

homem ou da mulher está <strong>no</strong> Todo e não nas partes, não é assim?<br />

- Claro! Mas o que é que este jogo vai realmente me revelar,<br />

Celeste?<br />

- Apenas que <strong>para</strong> o Criador só um Todo integrado é belo. As<br />

dissenções, as lutas e as disputas resultam na desarmonia do mundo.<br />

É por isso que este amigo escultor de Lélia e tantos outros tentam<br />

uma integração entre as partes. Eles pegam as armas <strong>para</strong> defesa,<br />

não <strong>para</strong> a destruição. Se as empunhassem <strong>para</strong> destruir, não seriam<br />

verdadeiros criadores da beleza <strong>para</strong> o Criador.<br />

- E daí, Celeste? - ela redargüiu amuada.<br />

116


- Daí que eu estou querendo lhe dizer que você não está em mi<strong>no</strong>ria,<br />

como afirmou. Tem apenas se preocupado com o traje das pessoas,<br />

pelo que me pareceu. O traje dos judeus, o traje dos cristãos, o traje<br />

dos roma<strong>no</strong>s, entende? No momento em que conseguir se<br />

despreocupar desses trajes, ou que entender que esses trajes só<br />

levam a caminhos, escolhas ou hábitos diferentes, acabará<br />

concluindo - quer queira ou não - que a estátua estará sendo<br />

montada do mesmo jeito. E sabe por quê? Porque quem esculpe a<br />

estátua Maior é mesmo o Pai Criador. Os <strong>no</strong>ssos deuses lares são<br />

apenas porme<strong>no</strong>res na estátua maior do Divi<strong>no</strong>, Aurélia.<br />

Aurélia olhou-a perturbada. Confessava, intimamente, que <strong>aqui</strong>lo<br />

que Celeste lhe falava já a havia tocado - a parceria de todos <strong>para</strong><br />

um ideal maior. Mas, se fosse Lélia que tivesse dito <strong>aqui</strong>lo, ela<br />

talvez nem participasse do jogo diferente, porque Lélia era cristã e<br />

isto já bastava <strong>para</strong> que ela se desviasse desse tipo de conversação.<br />

O silêncio desceu entre elas. Cada uma amadurecia dentro de si o<br />

que Celeste acabava de expor.<br />

No entanto, Aurélia ainda se queixou:<br />

- Não vale! Não vale! Você propôs um jogo, mas eu fui a única a<br />

jogá-lo perante vocês.<br />

Celeste arrematou sorrindo:<br />

- Nenhuma de nós se sentia na mi<strong>no</strong>ria. Só você.<br />

117


Vinte e Dois<br />

Desejando colaborar com Cornélia, <strong>no</strong> sentido de fazê-la<br />

participante do mundo e deixar por uns tempos suas meditações e<br />

vida interior, Hannah convidou-a a conhecer um local que<br />

certamente a atrairia, porque tinha muito a ver com as preferências<br />

dela e também combinava com seu próprio modo de ser.<br />

As fumacinhas de incenso subiam, subiam, esgarçavam-se e<br />

misturavam-se aos odores de ramalhetes de flores vermelhas<br />

dispostas em cima de tamboretes rústicos, naquele Templo. Não se<br />

conseguia distinguir direito se era uma fragrância acre ou doce;<br />

lembravam a composição de inúmeras vegetações.<br />

Tão grande a rusticidade do ambiente, que as duas se entreolharam e<br />

entenderam que ali até se podia captar o mistério que emanava<br />

dentro das paredes de pedras frias do solitário recinto.<br />

Era o Templo da Lua, <strong>no</strong> Aventi<strong>no</strong> - um entre tantos templos<br />

sagrados que se espalhavam pelo Império Roma<strong>no</strong> -, onde se faziam<br />

oferendas votivas a Tanith, deusa da lua, das estrelas e da <strong>no</strong>ite.<br />

Uma mulher silenciosa caminhou em passos altivos <strong>para</strong> uma<br />

portinhola lateral e por ela desapareceu. Por certo, a sacerdotisa que<br />

fazia seus vaticínios. Tudo penumbroso e fantasmagórico, mas<br />

atrativo <strong>para</strong> quem se integrava com a fé simples das criaturas<br />

freqüentadoras, aguardando a realização de seus pedidos feitos à<br />

deusa.<br />

Num lado mais obscuro do recinto circular, Cornélia e Hannah<br />

sentaram-se num banco de pedra. Logo em seguida, viram a entrada<br />

de uma mocinha com oferendas nas mãos, acompanhada de um<br />

molecote. No rosto da menina-moça, um sorriso vazio de expressão,<br />

mas a expectativa de algo a receber. No rapazinho, o jeito de quem<br />

118


ainda esperava conquistar o mundo, mas que não acreditava que<br />

saísse dali a sua vitória, porque reclamava:<br />

- Não sei por que você insiste em voltear por <strong>aqui</strong>, como uma<br />

borboleta de asas truncadas, Manilia - ele tinha o ar enfadado. Não<br />

vê que o rosto de nenhum deus está inscrito <strong>aqui</strong> nessas pedras?<br />

Acredita mesmo que um deus graúdo precisa dessas oferendas <strong>para</strong><br />

<strong>no</strong>s agradar?<br />

- Se você fala de um deus grandioso, ele nem é mesmo, se não<br />

entende as pessoas que vêm <strong>aqui</strong> visitar uma deusa - ela comentou<br />

com sagacidade.<br />

- Ah, Manilia, eu também penso que um deus grandioso não se<br />

preocupa mesmo com escravos ou escravas, como nós dois, que<br />

conseguimos a <strong>no</strong>ssa alforria a duras penas.<br />

- Você não está achando que eu venho <strong>aqui</strong> trazer a minha oferenda<br />

só <strong>para</strong> cobrar a amizade da deusa Lua, hein, Fulvius? Eu venho,<br />

porque <strong>aqui</strong> eu me sinto como se ... como se eu fosse uma outra<br />

pessoa. Fico bem diferente. Você viu aquela mulher que entrou na<br />

<strong>no</strong>ssa frente? Ela é a sacerdotisa e já me ajudou muito.<br />

- Vi, sim, Manilia. Mas ela não passa de uma simples mulher, que<br />

veste aquelas roupas estranhas só <strong>para</strong> chamar atenção. Ninguém<br />

tem capacidade de conversar com a Tanith ou outro deus qualquer.<br />

Isto tudo é bobagem e quem ganha com isso são os do<strong>no</strong>s desses<br />

templos. O que eles gostam mesmo é das oferendas. Vendidas as<br />

jóias, os objetos, e guardados os sestércios e moedas de prata, eles<br />

têm os seus lucros facilmente, sem fazer qualquer tipo de esforço.<br />

Só precisam colher os frutos oferecidos pelos outros. Não acha que<br />

isto é errado?<br />

- Mas, Fulvius, veja como são poucas as oferendas d<strong>aqui</strong> - ela<br />

apontou. Não acho que alguém vai enriquecer com essas pequenas<br />

coisas.<br />

- Ah, Manilia, o dia inteiro o templo está aberto. Você nem sabe se<br />

eles já fizeram a colheita desse dia e já puseram tudo muito bem<br />

guardado. Além do mais, este é um dos templos. Já se pôs a contar<br />

<strong>no</strong>s dedos quantos se espalham por aí? Só das mulheres a gente<br />

119


pode lembrar o de Vênus, Vesta, Victória, Ceres, Cibele e quantos<br />

outros? Ponha na lista agora o dos poderosos Marte, Satur<strong>no</strong>...<br />

- Chega, Fulvius!! - ela se zangou. - Não me interprete mal, mas<br />

você é um simples rapaz. Só pensa mesmo em batalhas, em<br />

conquistas e...<br />

- E em sonhos e realizações também, Manilia. Você pode não<br />

acreditar, mas eu me sinto mesmo poderoso é lá fora, até quando<br />

posso dar umas voltas <strong>no</strong> meu cavalo, que meu antigo senhor me<br />

deu, quando me alforriou. Acho que Roma ainda vai <strong>no</strong>s entregar<br />

muitos festejos, como são os de Augustus, que eu venero.<br />

- Não sei qual a diferença entre venerar Augustus e Tanith, Fulvius,<br />

mas, <strong>para</strong> mim, a minha é que vale, porque Augustus foi um homem<br />

feito deus pelos próprios homens; a deusa da Lua, não, ela é criação<br />

de algo diferente. Ela ilumina tudo. E você quer saber? Eu só a<br />

chamo de deusa, porque é o <strong>no</strong>me que todos dão <strong>para</strong> uma coisa que<br />

é maior do que a gente.<br />

Fulvius riu. - Agora você foi engraçada, Manilia. Então acha que<br />

existe alguma coisa maior do que os <strong>no</strong>ssos deuses de Roma?<br />

Ela ergueu os ombros. - Sei lá! A minha mãe, quando eu era<br />

pequena e antes de sermos roubadas de <strong>no</strong>ssa casa, sempre olhava<br />

<strong>para</strong> o céu e me dizia que era a Lua que ia dirigir os <strong>no</strong>ssos passos;<br />

que por ela a gente ia ter uma caminhada vitoriosa - lembro de tudo<br />

exatamente como ela falou, Fulvius.<br />

O rapazinho ficou pensativo e depois argumentou:<br />

- Muito estranho isto <strong>para</strong> mim. Quem sabe ela falava assim, porque<br />

na Lua ninguém consegue pisar.<br />

Manilia olhou-o amuada:<br />

- Eu só sei que a Lua comanda o mundo, Fulvius, e que ela é muito<br />

mais importante que o Sol.<br />

- Mais importante que o Sol? Não posso acreditar que pensa assim.<br />

E ele prosseguiu caçoando da amiga:<br />

120


- Que confusão você faz, Manilia. Ainda vai precisar crescer muito,<br />

<strong>para</strong> ver que aqueles brilhos lá de cima, da Lua, das estrelas e do Sol<br />

não precisam um do outro. Se fosse assim, até já tinham caído. Já<br />

pensei muito nisso. E concluí que é a mão poderosa de um deus<br />

muito muito grande e forte que sustenta tudo por lá.<br />

Manilia olhou-o séria e opi<strong>no</strong>u:<br />

- Nisso eu acho que você tem razão. Deve existir mesmo uma coisa<br />

e<strong>no</strong>rme, como mãos bem fortes, <strong>para</strong> segurar <strong>aqui</strong>lo tudo lá em<br />

cima. Mas, depois, acrescentou conformada: - Enquanto eu não sei<br />

de quem é, vou continuar a fazer os meus pedidos <strong>para</strong> a deusa Lua.<br />

Pelo me<strong>no</strong>s ela eu posso ver.<br />

Tocou a vez do rapazinho se pôr sério.<br />

- Isso é verdade. Eu também não consigo ver quem comanda<br />

aquelas belezas lá do céu.<br />

- Então venha comigo, Fulvius. Ajude-me a acender estes incensos<br />

que achei <strong>no</strong> chão, perto de uma barraca. Vou aproveitar e pedir<br />

<strong>para</strong> a deusa que abençoe esta pessoa que perdeu os incensos <strong>para</strong><br />

eu achar - ela concluiu simploriamente.<br />

Fulvius sorriu <strong>para</strong> ela com amorosidade e foi ajudá-la.<br />

"Certamente a deusa Lua vai colaborar com seus encantos, <strong>para</strong> que<br />

essas criaturas se enamorem e tenham uma vida de paz e<br />

prosperidade, se o Ser Supremo reforçar este meu desejo", pensou<br />

Cornélia, sem saber que Hannah também fazia o mesmo augúrio<br />

<strong>para</strong> o simples casal.<br />

121


Vinte e Três<br />

Numa <strong>no</strong>ite de frio e de chuva, Cornélia foi procurada por um<br />

homem chegado da Antióquia. Era um amigo de Boanerges, que lhe<br />

levava <strong>no</strong>tícias dele. Boanerges havia viajado urgentemente <strong>para</strong> lá,<br />

visto que os pais de Rute haviam pedido a presença da filha.<br />

A fisio<strong>no</strong>mia desse homem, que se chamava Nathanael, não parecia<br />

estranha a Cornélia. Os olhos cinzentos, a testa alta, os cabelos<br />

castanho-avermelhados, o pomo-de-adão proeminente num pescoço<br />

bastante alongado e os lábios fi<strong>no</strong>s em boca bem desenhada<br />

constituíam características fortes de alguém que ela muito conhecia.<br />

Mas quem?<br />

Num arroubo espontâneo, de curiosidade e de afeição, indagou: - De<br />

quem você é filho, Nathanael? Leva traços de alguém que sei que<br />

conheço, só por isso não consigo deixar de lhe fazer tão deselegante<br />

pergunta.<br />

O homem, desembaraçado e até contente, respondeu:<br />

- Não sei por que deveria estranhar o seu desejo de me conhecer<br />

melhor. Nós estivemos juntos numa ocasião de triste ocorrência, lá<br />

onde sucumbiu o <strong>no</strong>sso estimado Joshua.<br />

Quem sabe a minha figura lembre mesmo a de meu pai, que logo<br />

depois também partiu ao encontro daquele Anjo. Ele jamais se<br />

conformou com aquela perda irreparável e com a fúria insensata de<br />

homens incompreensíveis. Naquela ocasião, eu tinha uns quinze<br />

a<strong>no</strong>s, mas já era como agora. Sempre fui bastante alto e só por<br />

pouco tempo pareci um molecote. Acho que aqueles eventos me<br />

amadureceram rapidamente - ele concluiu com os olhos tristonhos.<br />

- Diga-me, Nathanael, foi você quem me procurou por <strong>aqui</strong>, antes<br />

que eu mudasse <strong>para</strong> Roma? Eu estava em Nazaré, quando recebi<br />

122


mensagem de uma amiga, dizendo-me que um Nathanael me<br />

procurava.<br />

- Sim, eu queria vê-la, porque tinha comigo algo que me<br />

incumbiram de lhe entregar. Pensei que você tinha partido de sua<br />

casa diretamente <strong>para</strong> Roma, logo após a morte de Joshua.<br />

- Não. Sou realmente culpada de não ter informado o meu <strong>para</strong>deiro<br />

<strong>para</strong> ninguém. Queria estar só.<br />

- Compreendo - ele respondeu, olhando-a calorosamente. - Espero<br />

que o conteúdo deste volume não a alcance em ocasião inútil - e ele<br />

o estendeu <strong>para</strong> ela. Mas penso que não. Sei que as mensagens de<br />

amigos <strong>no</strong>ssos sempre são relevantes, não é mesmo?<br />

- Mensagens? - Cornélia perguntou, mas os olhos entristeceram<br />

- É só o que posso adiantar. Tudo dependerá do que seu coração<br />

pede agora, Cornélia. A <strong>no</strong>ssa vida continuou meio... desconjuntada,<br />

não pensa assim? Pelo me<strong>no</strong>s <strong>para</strong> mim é como se tivesse passado<br />

dentro de um temporal e um nevoeiro. Só agora o nevoeiro começa<br />

a se dissipar.<br />

Cornélia tocou na mão do homem que se sentava a seu lado e<br />

comentou:<br />

- Também atravessei esse nevoeiro, Nathanael. Você como homem<br />

deve tê-lo sentido de forma diferente. Nós, as mulheres, nem sempre<br />

somos muito razoáveis e equilibradas nas <strong>no</strong>ssas grandes afeições.<br />

Ele ace<strong>no</strong>u a cabeça e depois acrescentou:<br />

- Boanerges sentiu-se profundamente comovido pela vida que levou<br />

com você. Foi curta - ele me disse -, mas valeu por muitas<br />

caminhadas.<br />

- Ah, Boanerges! - os olhos dela marejaram. Meu coração sempre<br />

pulsará por ele com grande ternura. Mas como sei que os grandes<br />

amores e afetos não morrem, ele estará sempre comigo, apesar da<br />

se<strong>para</strong>ção.<br />

- Talvez ele se demore em Antióquia, Cornélia. Os pais de Rute<br />

estão muito doentes.<br />

123


- Compreendo o que me está avisando. Mas, diga-me, Nathanael,<br />

tem acompanhado alguns amigos na propagação das palavras de<br />

Joshua?<br />

- Cumpro o meu papel na forma que posso. Não sou um orador. Mas<br />

tenho servido alguns, desembaraçando-os dos problemas materiais,<br />

pois sou um bom fabricante de tendas. E prosseguiu: - Você sabe<br />

que somos peregri<strong>no</strong>s, Cornélia. Dificilmente estaremos em locais<br />

que permitirão uma certeza das <strong>para</strong>das. Mas sei que posso lhe<br />

entregar uma senha. Aqui em Roma, um oficial do exército - que é<br />

dos <strong>no</strong>ssos, sem dúvida nenhuma - poderá apontar o <strong>no</strong>sso itinerário<br />

<strong>para</strong> você. Ele comanda uma unidade e muito viaja. Tem <strong>no</strong>s<br />

ajudado em encontros e também em soluções, <strong>para</strong> que <strong>no</strong>s<br />

afastemos dos perigos que vamos enfrentando. Nós agora<br />

precisamos viver - o máximo que pudermos -, <strong>para</strong> atingir maior<br />

número de territórios com <strong>no</strong>ssas palavras.<br />

- Então me dê o <strong>no</strong>me desse oficial. Posso pedir <strong>para</strong> meu servo<br />

Timóteo encontrá-lo <strong>para</strong> mim. Timóteo é pessoa de extrema<br />

confiança.<br />

- Se você diz, não duvido, Cornélia. Mas precisamos ter cuidados<br />

extremos e estar atentos <strong>para</strong> qualquer planejamento a ser feito. Há<br />

muitos olheiros espalhados em Roma. Os exércitos... ah, você já<br />

deve saber disso tudo.<br />

- Sim, tenho-me informado de muita coisa. Fala-se demais em<br />

Roma.<br />

- Dessas informações indiretas, a gente deve se precaver. Quando<br />

você for procurar o Licínio, diga...<br />

- Licínio??? Refere-se ao homem que pertence à família dos<br />

Gracos? Que possui também <strong>no</strong> exército roma<strong>no</strong> um irmão, Fábio,<br />

filhos de Aurélia?<br />

- A ele mesmo. Ele tem colaborado co<strong>no</strong>sco de maneira<br />

indescritível. Atualmente, encontra-se aquartelado em...<br />

124


- Não se preocupe, Nathanael. Sei perfeitamente como posso chegar<br />

até Licínio, sem interromper o silêncio que vocês devem pretender<br />

manter em volta dele.<br />

- Ótimo - ele disse, levantando-se. - A paz esteja com você,<br />

Cornélia.<br />

Ao ver o porte altivo do homem que pertencia à mesma raça do seu<br />

amado Joshua afastar-se, Cornélia comoveu-se. E por seu<br />

pensamento passou: " Lélia já deve estar há muito tempo ciente do<br />

que se trama por esses bastidores. Agora vou precisar me encontrar<br />

com ela... mas a sós."<br />

Rapidamente se pôs a desfazer as amarras do invólucro trazido<br />

gentilmente por Nathanael, feito em couro e costurado<br />

cuidadosamente. Continha um rolo de manuscritos.<br />

Olhando <strong>para</strong> a distância, pensou em voz alta, quebrando o silêncio<br />

de que era cercada:<br />

- Ah, Joshua! - eu volto <strong>para</strong> a luta.<br />

125


Vinte e Quatro<br />

Uma lamparina de azeite ardia na escuridão. Cornélia encontrava-se<br />

sozinha. Havia organizado bem o seu dia, <strong>para</strong> que suas auxiliares<br />

se recolhessem cedo. Desejava privacidade <strong>para</strong> ler as mensagens<br />

que tinha às mãos.<br />

Vinham assinadas por Yohanan (o Batista). Era uma apresentação<br />

simples daquele que havia vivido <strong>no</strong> meio dos essênios, onde se<br />

dispusera a pre<strong>para</strong>r-se <strong>para</strong> o encontro com Joshua.<br />

Lágrimas desceram às faces de Cornélia, porque ela o havia<br />

conhecido. Era um homem de olhos negros e observadores, de<br />

compleição forte e cheio de majestade <strong>no</strong> caminhar, de grande<br />

rigidez de princípios, passados a ele por homens que viviam<br />

isolados em razão de estudos - os essênios. Este grupo se havia<br />

alicerçado, aguardando a chegada do Salvador, e nunca haviam<br />

duvidado de que era Joshua, logo que o encontraram.<br />

Assim escrevia Yohanan:<br />

" Pertenço de corpo e alma a um povo que me ensi<strong>no</strong>u, desde<br />

meni<strong>no</strong>, a servir os meus semelhantes.<br />

Nunca possuí uma moradia individual, porque até a organização de<br />

<strong>no</strong>sso núcleo visava a <strong>no</strong>s demonstrar que éramos criaturas de um<br />

mundo a ser repartido - um mundo coletivo a ser respeitado e<br />

interiorizado apenas <strong>no</strong> amor.<br />

Só não convivíamos com irmãos de outros pensares, porque <strong>no</strong>s<br />

deveríamos pre<strong>para</strong>r em diferentes rituais, que <strong>no</strong>s abririam etapas<br />

<strong>para</strong> maior aprendizado interior.<br />

126


Sabíamos desde cedo que a única preferência a <strong>no</strong>s guiar seria "o<br />

tipo de aprendizado", pois o mundo oferece uma infinidade deles e<br />

nós temos o livre-arbítrio <strong>para</strong> esta preferência.<br />

Nossas atividades eram comuns, baseadas antes de tudo na<br />

manutenção da alegria <strong>para</strong> o <strong>no</strong>sso espírito. E esta alegria sempre<br />

emanava da fonte interna de <strong>no</strong>ssa alma. Entre nós, traduzia-se na<br />

pre<strong>para</strong>ção de <strong>no</strong>ssos ideais, na crença de um Deus único, na<br />

certeza de que receberíamos em <strong>no</strong>sso núcleo Aquele que seria<br />

reconhecido como o Salvador do Mundo.<br />

Sabíamos que cada um de nós seria uma parte integrante num<br />

Rei<strong>no</strong> glorioso, que se assemelharia às constelações do céu, quando<br />

o Salvador <strong>no</strong>s visitasse. Nós seríamos como aqueles astros a se<br />

moverem na imensidão, aliados pela Força e Luz que Dele<br />

emanaria e percorreríamos a <strong>no</strong>ssa trajetória <strong>para</strong> o Rei<strong>no</strong> do<br />

Esplendor.<br />

Poucos de nós sabiam quando Ele chegaria, porque percorríamos<br />

<strong>no</strong>ssos estudos sem <strong>no</strong>s dispersar em indagações. Tínhamos etapas<br />

e metas a cumprir, até recebermos o título de iniciados, quando,<br />

então, ocuparíamos posições diferentes entre os participantes desse<br />

<strong>no</strong>sso imenso grupo.<br />

Mas devo dizer que ninguém precisou me apontar aquele meni<strong>no</strong> de<br />

porte majestoso e cheio de carisma como o Messias esperado. Eu o<br />

soube <strong>no</strong> momento em que <strong>no</strong>ssos olhos se encontraram. Eu o<br />

reconheci e Ele, a meu ver, também me reconheceu como amigo,<br />

porque se aproximou sorrindo e <strong>no</strong>ssas almas se irmanaram, dali<br />

em diante, na Fé, <strong>no</strong> Amor e na Amizade.<br />

Éramos os dois cheios de desembaraços, mas cada um com o seu<br />

cálice a beber. Duas criaturas que já se haviam encontrado em<br />

outras circunstâncias, em outras romagens, na grande<br />

peregrinação dos astros a girarem pelo espaço.<br />

Não me creiam vaidoso por me referir assim à minha alma e à Dele.<br />

As almas de Deus, todas elas, possuem vestígios de Luz. Algumas<br />

conseguem mantê-la e outras preferem apagá-la, quando se<br />

entregam à inconstância de seus sentimentos. Somente as almas<br />

127


firmes, persistentes, leais, desembaraçadas e amantes da Beleza<br />

conseguem manter aceso o brilho das estrelas em seu coração.<br />

Eu mantive o meu e Ele o Dele, mas eu, porque amava plenamente<br />

o Messias.<br />

Poucas vezes consegui dirigir-me a Ele tratando-o por Joshua. Este<br />

era um <strong>no</strong>me terre<strong>no</strong> e eu não o via como um Ser desta galáxia. Eu<br />

o via como pertencente às alturas da qual Ele descera, de modo que<br />

o tratava como Messias, Mestre ou Meu Senhor.<br />

Minha vida pertenceu a Ele, desde o momento em que O vi sorrindo<br />

e sentindo-se feliz entre nós - o povo essênio. Orgulho-me de<br />

pertencer a este povo voltado <strong>para</strong> a seriedade da formação e<br />

evolução das criaturas.<br />

Na faixa de iniciado em que me encontro hoje, já tenho a<br />

possibilidade de ver e prever meu futuro. Minha caminhada será<br />

curta, porque minha vida me será tirada antes que a Dele<br />

resplandeça. E isso <strong>para</strong> mim constitui Felicidade Plena. Não<br />

gostaria de passar, após a morte Dele, pelos lugares que os pés<br />

Dele consagrarem, porque me sentiria um salteador dos Bens<br />

Inigualáveis desse meu Mestre, que tanto venero.<br />

Sei que meu Deus conhece esta minha disposição, de modo que me<br />

<strong>aqui</strong>eto, porque sei também que Meu Deus me atenderá. Por pensar<br />

assim, antes mesmo de minha morte, já abençôo aqueles que me<br />

atraiçoarem."<br />

Só pelo início da manhã, vencida pelo cansaço do corpo físico,<br />

Cornélia deixou o manuscrito de lado e preparou-se <strong>para</strong> dormir.<br />

Mas não conseguiu.<br />

A alma, cheia de indagações, desejava integrar-se a tudo, até mesmo<br />

a quem lhe havia direcionado aquelas mensagens. Nathanael havia<br />

sido extremamente reservado àquele respeito.<br />

Mas ela havia percebido <strong>no</strong> olhar de Nathanael uma espécie de<br />

desafio. Seria por algo que esperava dela, ou se tratava apenas de<br />

128


uma forma singela de mimoseá-la com algo que jamais pensaria em<br />

ganhar?<br />

Inadvertidamente voltou ao passado, tentando rememorar o que<br />

havia sucedido após a morte de Joshua. Nathanael lhe afirmara que<br />

estava presente na ocasião. Quem entre os outros, também<br />

presentes, havia se<strong>para</strong>do <strong>para</strong> ela aquele manuscrito? Seria<br />

Zebedeu? Othoniel, ou mesmo o pai de Nathanael?<br />

Por que tanta consideração <strong>para</strong> com ela, se todos eram viajantes em<br />

uma nau que havia seguido por águas tormentosas? Não eram eles<br />

todos igualados naquela perda irreparável e dolorosa?<br />

Quem deles mantivera acesa a chama da Fé e da Esperança, depois<br />

de surpreendido pela Verdade incontestável da rápida partida de<br />

Joshua <strong>para</strong> o Rei<strong>no</strong> inefável, que Ele sempre apregoara e tão<br />

poucos entenderam?<br />

Subitamente, lembrou-se. No momento em que abandonava a cena<br />

da crucificação, uma mulher se havia aproximado dela, dizendo-lhe:<br />

"Um dia <strong>no</strong>s reuniremos, Cornélia, e, por minúscula que seja <strong>no</strong>ssa<br />

contribuição, haveremos de levar a parte que <strong>no</strong>s compete a outras<br />

regiões".<br />

Teria sido mesmo uma promessa? Um convite? Ou apenas um<br />

desabafo? Aquela criaturinha frágil, envolta em xale negro - que ali<br />

expressava toda a dor de uma perda profunda - pertenceria também<br />

ao grupo dos essênios?<br />

"Débora" - ouviu Cornélia nitidamente. Tão claro o som, que se<br />

voltou <strong>para</strong> a lateral, de onde parecia que ele tinha ecoado. Não era<br />

uma voz interiorizada ou intuitiva. Seus ouvidos terre<strong>no</strong>s haviam<br />

captado perfeitamente aquele <strong>no</strong>me.<br />

- Débora! - Cornélia repetiu em voz alta. Sim, sim, eu a conheci na<br />

casa de Abigail. Mas ela era tão menina...!! Até mais <strong>no</strong>va do que<br />

Nathanael. Será ela amiga dele?<br />

Um raio de luz argêntea desceu <strong>para</strong> o quarto de Cornélia, quando a<br />

lua em suas passadas mágicas atingiu o desvão de sua janela e a<br />

brisa, em colaboração, soprou movimentando o fi<strong>no</strong> cortinado.<br />

129


No piso do frio pavimento viu levemente delineado um peixe. Ele<br />

permaneceu ali até que as nuvens viajantes encobriram a e<strong>no</strong>rme lua<br />

prateada.<br />

O cenário de seu quarto mergulhou, mais uma vez, nas sombras da<br />

madrugada, sem peixe, sem lua, mas com a oferta de um <strong>no</strong>vo e<br />

promissor amanhecer.<br />

Descansou umas poucas horas e ainda cedinho pediu a Timóteo que<br />

procurasse Licínio e Lélia. Em nenhum momento pensou em<br />

interferir <strong>no</strong> caminho daqueles que se haviam determinado propagar<br />

a <strong>no</strong>va seita. Mas agora necessitava da orientação de alguém que já<br />

contribuía nessa luta de sacrifício, <strong>para</strong> poder servir.<br />

Não lhe importava como. Só sabia que o porquê vinha assinalado<br />

naquelas páginas do manuscrito, com o <strong>no</strong>me de Yohanan.<br />

Sim, Yohanan estava certíssimo ao adotar o termo Mestre <strong>para</strong><br />

Joshua. Mestre do Amor e da Misericórdia. Ela gostaria de<br />

participar ainda de seu aprendizado.<br />

130


Vinte e Cinco<br />

Reunida em sua casa com Lélia e com Licínio, Cornélia colocou-os<br />

a par do que lhe havia sucedido.<br />

Licínio rapidamente entendeu o que a afligia.<br />

- Tudo o que <strong>no</strong>s narrou me leva a crer que deseja, <strong>no</strong>vamente, se<br />

integrar <strong>no</strong>s percursos do cristianismo que já floresceu em seu<br />

coração, Cornélia. Eu já conhecia detalhes de seu passado, porque<br />

tenho convivido com gente que morou uns tempos lá na Galiléia.<br />

- Eu também conheço parte de seu envolvimento com alguns dos<br />

pescadores e amigos próximos do Nazare<strong>no</strong> - disse Lélia, que já<br />

estava inserida <strong>no</strong>s movimentos subterrâneos da multiplicação das<br />

mensagens.<br />

- Mas nenhum dos dois entende por que os chamei, não é assim? -<br />

ela indagou sorrindo, e prosseguiu: - Preciso da ajuda e<br />

compreensão de vocês, <strong>para</strong> que eu possa me colocar de pé<br />

<strong>no</strong>vamente e... caminhar. Até agora tenho me desvelado <strong>no</strong> amor...<br />

mas sem obras.<br />

A conversa se manteve, desdobrando-se em vários rumos. Ao final,<br />

Cornélia já conhecia a maneira escolhida por Lélia <strong>para</strong> tentar<br />

multiplicar entre os homens e mulheres de Roma algumas<br />

mensagens, que lhes eram entregues por pessoas às quais ela não<br />

identificou.<br />

O trabalho de Lélia seguia mais ou me<strong>no</strong>s o esquema dos espiões<br />

que saíam de seus países <strong>para</strong> outros, pre<strong>para</strong>dos na língua, <strong>no</strong>s<br />

costumes, <strong>no</strong>s hábitos, conhecendo a possibilidade de que poderiam<br />

morrer, se fossem descobertos. Lélia havia optado pela renúncia do<br />

viver, se dela exigissem isto por sua fé.<br />

131


Já o desti<strong>no</strong> de Licínio era terrivelmente ameaçador, diariamente.<br />

Convivia seu dia-a-dia com os próprios algozes de sua crença.<br />

Qualquer palavra ou menção, distraída, de fatos examinados por<br />

seus superiores, ou mesmo por alguns de seus comandados,<br />

colocaria em seus ombros a pecha de traidor. E todos sabiam que a<br />

traição levava à morte cruel. Portanto, nem Licínio ou Lélia<br />

deixavam, <strong>para</strong> segundo pla<strong>no</strong>, a Renúncia. Renunciavam, já, à<br />

própria vida, <strong>para</strong> continuar a Obra.<br />

Finalmente Cornélia pôde entrever os quadros aterrorizantes do<br />

Circo Roma<strong>no</strong>, onde leões e criaturas se enfrentavam <strong>para</strong> vencer<br />

uma luta. Só a Força, a Fé e a Coragem podiam realmente levar um<br />

prosélito do Mestre a acompanhá-Lo. Caso contrário, o melhor seria<br />

esquecer <strong>aqui</strong>lo tudo e viver de forma simples e sem compromissos.<br />

Enquanto se esforçava <strong>para</strong> escolher "de qual maneira poderia<br />

servir", Lélia aconselhou-a:<br />

- Ajude-os a não morrer, Cornélia. Ajude-os a encontrar um local,<br />

do qual possam se servir, quando a fé vacilar, ou quando a<br />

necessidade de salvar um companheiro os atingir. Não sabe quantas<br />

criaturas crimi<strong>no</strong>sas se valem do <strong>no</strong>me "cristianismo", a fim de<br />

descartar pessoas que, às vezes, nem mesmo fazem parte desse<br />

movimento subterrâneo.<br />

- E como posso saber a quem salvar, Lélia?<br />

- Muito simples. Eu serei ainda como sou - a espiã. Apontarei o<br />

local <strong>para</strong> aqueles a quem o momento exigir.<br />

- Entendo. Você quer apenas que eu prepare um lugar de segurança<br />

<strong>para</strong> eles.<br />

- Lélia está certa, Cornélia. Você possui fortuna e não possui<br />

herdeiros. Não é esse o caso de Lélia, cujos bens precisa respeitar,<br />

pois tem marido e filho.<br />

- Mas vocês estão me ofertando apenas um presente, não um<br />

trabalho - reclamou Cornélia, sorrindo.<br />

- Por que diz isto? - perguntou Licínio.<br />

132


- Porque local eu já tenho. A adega desta minha casa pode abrigar<br />

uma dezena de pessoas e é bem segura. Aí ela brincou: - Minha<br />

amiga Hannah <strong>no</strong>meou este meu <strong>no</strong>vo lar como "o arroio das<br />

gaivotas". Mal sabe ela que escolheu um <strong>no</strong>me providencial. Posso<br />

trazer <strong>para</strong> cá um monte de gaivotas. Não deixarei que aparem as<br />

asas delas. Eu as cuidarei mais do que tenho investido em minha<br />

própria felicidade. Isto eu prometo - ela concluiu, feliz.<br />

Licínio sorriu, mas não deixou de alertar:<br />

- Cornélia, tenha muito cuidado. Há muitos gaviões ávidos de<br />

abocanhar presas <strong>aqui</strong> em Roma.<br />

- E também existem imensas aves voejando por esses espaços,<br />

Licínio - os Anjos. Eles <strong>no</strong>s protegerão.<br />

Por um bom tempo, os pla<strong>no</strong>s alcançaram êxito. Mas chegaram as<br />

inexoráveis chuvas. Cada morador de Roma fazia parte do duro<br />

aprendizado que o Criador entregava em suas mãos. As conquistas<br />

muitas vezes eram apenas analisadas como "esforço", visto que<br />

apenas fagulhas de luzes aqueciam os corações aflitos.<br />

Os duros roma<strong>no</strong>s iam <strong>aqui</strong>nhoando <strong>para</strong> suas próprias vestes as<br />

lágrimas daqueles que iam morrendo na cruz (isto simbolicamente),<br />

porque bem mais tarde é que a extensa Via Ápia seria juncada de<br />

criaturas sofrendo o mesmo martírio de Joshua. E isso <strong>no</strong> tempo de<br />

Nero, que não faz parte deste cenário.<br />

Fábio casou-se e Aurélia morreu um pouco depois do casamento do<br />

filho. Celeste perdeu Emilia<strong>no</strong> numa disputa bem tola enfrentada<br />

por ele, simplesmente porque um dia riu de um <strong>no</strong>bre e pomposo<br />

roma<strong>no</strong> que se recusava a atravessar um caminho, onde vários<br />

judeus se reuniam a conversar.<br />

O tal <strong>no</strong>bre, homem cheio de eficácia na maldade, apontou-o como<br />

um "pactuante do povo hebreu". O pobre Emilia<strong>no</strong> nem ficou<br />

sabendo por que razão lhe extinguiam a vida, ainda na flor da idade,<br />

pois não havia completado seus trinta a<strong>no</strong>s.<br />

133


Licínio e Fábio tiveram a sorte de sair de Roma numa época em que<br />

dificilmente continuariam a escapar das garras dos executores.<br />

Foram salvos por Lélia, que havia sido aprisionada, mas antes lhes<br />

entregara um salvo-conduto, ao avisar-lhes que se escondessem<br />

urgentemente na adega de Cornélia e, dali, saíssem <strong>para</strong> outro<br />

território, até que a poeira baixasse.<br />

Hannah partiu <strong>para</strong> as dimensões desconhecidas exatamente na<br />

época em que Licínio e Fábio acabavam de deixar o "arroio das<br />

gaivotas".<br />

O enterro de Hannah contou com a presença de poucas amigas -<br />

apenas Júlia, Otávia e Cornélia, que já estava se pre<strong>para</strong>ndo <strong>para</strong> ir<br />

ao encontro de Nathanael, com Timóteo. Desejava conhecer melhor<br />

Débora e Nathanael, de cujas mãos havia recebido o manuscrito de<br />

Yohanan, que o registrara bem poucos dias antes de ser executado<br />

por ordem de Herodes Antipas. Cornélia já estava ciente de que<br />

fora mesmo Débora que incentivara Nathanael a entregar uma cópia<br />

<strong>para</strong> ela. Débora era prometida de Nathanael, na época em que<br />

Joshua morrera na cruz.<br />

Na leitura final daquela mensagem, Cornélia havia encontrado um<br />

adendo: um estranho mapa desenhado pelas mãos de Nathanael,<br />

indicando-lhe <strong>para</strong> onde deveria ir "quando o local de sua casa - que<br />

serviria de alojamento <strong>para</strong> cristãos - estivesse sendo ameaçado de<br />

invasão". Aquilo tudo lhe comprovava que Nathanael não só havia<br />

previsto o rumo que ela escolheria <strong>para</strong> colaborar, como também os<br />

acontecimentos nefastos que poderiam alcançá-la. Textualmente,<br />

Nathanael dizia: "Quando intuir que as andorinhas deverão voejar,<br />

encontrará moradia entre os essênios".<br />

Mas Cornélia começava a acreditar que, <strong>para</strong> ela, a vida ainda<br />

reservava uma longa caminhada.<br />

134


Segunda Parte<br />

135


Vinte e Seis<br />

Era o meio de um dia modorrento, porque o sol não encontrava<br />

empecilhos <strong>para</strong> repousar na vastidão do território de Roma.<br />

O ritmo de trabalho dos escravos de Orígenes, cavando o duro solo<br />

<strong>para</strong> <strong>no</strong>vo plantio, levava Cornélia à <strong>no</strong>stalgia e a uma saudade<br />

profunda das terras de seus ancestrais. Longe estavam aqueles dias<br />

descontraídos que se resumiam em fazê-la <strong>no</strong>tar que era uma<br />

criatura abençoada, por ter nascido <strong>no</strong> lar de Diomedes.<br />

Quantas transformações!<br />

Agora, despedia-se de Otávia e narrava a seus anfitriões parte do<br />

pla<strong>no</strong> que havia traçado.<br />

Os conselhos de Orígenes ficavam bem aquém d<strong>aqui</strong>lo que<br />

almejava, porque ele lhe afirmava que ela deveria viajar sob a<br />

proteção de oficiais roma<strong>no</strong>s, e seu coração lhe indicava, como<br />

melhor, a proteção dos homens que a haviam conduzido até ali. Mas<br />

não deixou de analisar as ponderações daquele homem experiente,<br />

que lhe dizia:<br />

- Escute-me com atenção, Cornélia. Você é uma criatura que leva a<br />

vantagem de ser uma mulher romana, da parte de sua mãe. Está <strong>no</strong>s<br />

dizendo que pretende ir ao encontro de amigos. Se estiver sob<br />

cuidados do exército roma<strong>no</strong>, não despertará atenção de ninguém e<br />

terá toda auto<strong>no</strong>mia até <strong>para</strong> mudar seus planejamentos, <strong>no</strong><br />

momento que desejar. Sempre poderá alegar que é <strong>para</strong> divertir-se -<br />

o que será visto sem desconfiança por eles, e que não sucederia se<br />

estivesse acompanhada apenas por gente escrava alforriada.<br />

- É verdade, Cornélia - aparteou Otávia -, fala-se muito sobre essas<br />

criaturas humildes. Elas têm constituído o motivo de inúmeras<br />

queixas dos graúdos de Roma. Um grande número deles se ligou aos<br />

136


movimentos subterrâneos da <strong>no</strong>va seita. E muitas mulheres romanas<br />

acabaram encontrando neles um porta-voz <strong>para</strong> se informarem<br />

melhor do que é apregoado pelos discípulos do Nazare<strong>no</strong>. É o caso<br />

da <strong>no</strong>ssa querida Lélia.<br />

- Além disso - reforçou Orígenes -, junto dos roma<strong>no</strong>s, você só<br />

precisará informar que viaja porque deseja ver mais de perto o<br />

andamento de suas propriedades. Sua viagem não será mal<br />

interpretada pelos poderosos, que também a mantêm em vigilância,<br />

você já sabe disso, não é mesmo?<br />

Notando uma certa confusão <strong>no</strong>s olhos de Cornélia, Otávia foi em<br />

seu socorro:<br />

- Meu pai diz isto, porque ninguém se esqueceu de que você foi<br />

grande amiga de Tibério, mas que nem por isso temeu participar das<br />

pregações de Joshua, <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s que precederam a morte dele.<br />

Orígenes foi agora mais claro:<br />

- Não é de se duvidar que aguardem qualquer manifestação sua - por<br />

me<strong>no</strong>r que seja - a respeito das falas dos discípulos de Joshua, a<br />

quem alguns amigos meus chamam de Jesus. Sua casa deve ser<br />

bastante atraente <strong>para</strong> senadores e governador, visto que não<br />

desconhecem que se dava bem com Lélia.<br />

- Não sei se você sabe, Cornélia, que Celeste tem sido o seu anjo<br />

protetor. Por pertencer a uma ilustre casa romana, foi requisitada<br />

<strong>para</strong> fornecer informações, <strong>no</strong> dia em que aprisionaram Lélia. E ela<br />

foi a garantia de que você não participa de encontros - contou-lhe<br />

Otávia.<br />

Cornélia calou-se. Estava a par de todos aqueles eventos, me<strong>no</strong>s a<br />

respeito dos questionamentos feitos a Celeste. E pôde compreender<br />

melhor que seu silêncio e seus cuidados em tor<strong>no</strong> dos movimentos<br />

subterrâneos é que a tinham favorecido. Provavelmente, haviam<br />

levado os poderosos a olhá-la como uma mulher que "fantasiara"<br />

sua vida, um dia, seguindo os passos do homem crucificado; agora,<br />

talvez a vissem como mulher mais "sensata", porque preferia seguir<br />

uma vida comum. Cornélia até que preferia que continuassem a<br />

pensar assim.<br />

137


Mas os argumentos de Orígenes foram bem analisados por ela e,<br />

desejando realmente que a considerassem uma mulher leviana não<br />

dotada de Fé, decidiu-se aceitar os conselhos de Orígenes e deixarse<br />

acompanhar por uma escolta de oficiais roma<strong>no</strong>s.<br />

Cornélia não sabia que, na opinião de Orígenes, o sopro do vento<br />

que atingia aquelas terras jamais iria retirá-la dos cenários mais<br />

ilustres. Porém Otávia, que conseguia enxergar a força oculta de<br />

Cornélia, achava que aquela viagem da amiga estava perfeitamente<br />

relacionada a seus princípios de fé. Desejou sinceramente que não<br />

sofresse as mazelas enfrentadas por Lélia.<br />

Finalmente chegou o dia tão planejado. A oficialidade que a<br />

acompanharia era comandada por Flavius.<br />

Inúmeras hospedarias haviam brotado naqueles territórios desde a<br />

primeira vez que os transpusera. Para alcançar o Santuário dos<br />

essênios, nas proximidades de Jericó, precisaria de um "passaporte"<br />

que só alguns judeus ofereceriam <strong>para</strong> ela - os próprios essênios. E<br />

ela já o levava consigo. Era o manuscrito que Nathanael lhe dera em<br />

mãos.<br />

Nathanael estava atento. Fora ele que havia conduzido Licínio e<br />

Fábio <strong>para</strong> longe da toca do lobo. Mas, ao contrário dela, os dois<br />

saíram de Roma pelo mar. Não haviam seguido em busca dos<br />

essênios e, bem longe dali, enfrentavam uma viagem bastante<br />

aflitiva.<br />

Entre Cornélia e Flavius logo se formou uma indisposição. Embora<br />

respeitada em seus mínimos pedidos e até na trajetória que havia<br />

colocado <strong>para</strong> ele, nenhum dos dois conseguia afastar a animosidade<br />

enquanto percorriam aquelas <strong>para</strong>gens.<br />

Flavius, por suas inúmeras viagens-tarefa, havia adquirido um certo<br />

"faro" <strong>para</strong> captar onde estavam os seguidores do Nazare<strong>no</strong>. Mas ele<br />

não conseguia atinar de onde vinha sua percepção <strong>para</strong> distinguir<br />

quais eram os seguidores ou não. Analisava atentamente as<br />

conversas entre estalajadeiros e hóspedes, entre servos e do<strong>no</strong>s de<br />

estalagens, preocupando-se até com as lisonjas que o atingiam,<br />

138


acreditando encontrar nisso um sinal de que havia por perto algum<br />

seguidor do crucificado.<br />

Mas havia algo, sim, naqueles caminhos. Era com se os cristãos se<br />

houvessem multiplicado num piscar de olhos, era como se os<br />

incríveis seguidores levassem <strong>no</strong>s olhos alguma expressão<br />

significativa que os diferenciava dos estrangeiros e dos que nunca<br />

haviam escutado o <strong>no</strong>me de Joshua.<br />

Só que Cornélia não se via fazendo aquela romaria <strong>para</strong> junto dos<br />

essênios, a fim de abandonar o que era, nem <strong>para</strong> seguir um<br />

caminho que não lhe pertencia por marca de nascimento. Apenas<br />

desejava encontrar abrigo entre os amigos de Nathanael, <strong>para</strong> se<br />

afastar das borrascas surgidas em Roma. E também porque tinha<br />

certeza de que, <strong>no</strong> silêncio de um local que havia um dia recebido<br />

Joshua, seria guiada <strong>para</strong> um desti<strong>no</strong> que lhe levaria re<strong>no</strong>vação da<br />

alegria ao coração e maior desejo de servir aos semelhantes. Sabiase<br />

necessitada de melhor preparo em seus caminhos.<br />

Flavius, por sua vez, enchia a cabeça disposto a decifrar um enigma,<br />

junto de Cornélia, lamentável enga<strong>no</strong> que o levava a pensar<br />

constantemente que ela desejava fazer de tolos todos aqueles que a<br />

favoreciam por ali. Um lamentável enga<strong>no</strong>, porque a via, e também<br />

a Zínia e Timóteo, como viajantes se escudando em sua fé.<br />

Numa estalagem, a meio do caminho, Cornélia decidiu que<br />

deveriam fazer uma <strong>para</strong>da mais longa <strong>para</strong> descansarem. Zínia e<br />

Timóteo mostraram-se felizes com aquela decisão. O lugar, embora<br />

muito simples, contava com boas alimentações e um estalajadeiro<br />

silencioso, que era auxiliado por um rapazinho de seus doze a<strong>no</strong>s:<br />

Matatias. Esse garoto desde o primeiro dia seguia de perto os passos<br />

de Cornélia. Servia as refeições com eficiência e demonstrava<br />

esperteza e inteligência, nas observações simples que, às vezes,<br />

soltava.<br />

139


Vinte e Sete<br />

A hospedaria parecia uma embarcação ancorada <strong>no</strong> meio de denso<br />

nevoeiro, quando a manhãzinha abriu os olhos so<strong>no</strong>lentos e sorriu<br />

<strong>para</strong> a continuidade da vida.<br />

Zínia, que era uma serviçal sempre atenta aos chamados de<br />

Cornélia, visto que havia levado sua existência enfronhada em lides<br />

domésticas, pouco havia adquirido das sutilezas que vão<br />

impregnando o mundo social dos homens.<br />

Suas armas principais eram o coração gentil e a temperança. Seus<br />

sonhos não ultrapassavam o desejo de servir, servir e mais servir.<br />

Entre ela e Cornélia vinha sendo ampliada uma aliança que poderia<br />

se manter infinitamente, se não surgissem armadilhas que a vida vai<br />

colocando diante de todos <strong>para</strong> serem desarticuladas.<br />

E a única que poderia deter os passos de Zínia era a ambição, mas<br />

uma ambição não moldada <strong>no</strong>s sonhos de grandeza e nem voltada<br />

<strong>para</strong> a <strong>aqui</strong>sição de bens materiais: a de construir seu próprio lar.<br />

Talvez nem se possa utilizar este termo - ambição - <strong>para</strong><br />

caracterizar o sentimento de uma criatura daquele feitio.<br />

Desde menina, Zínia vinha servindo gente de posse, famílias de<br />

classe média e até de lares onde crianças eram abandonadas pelas<br />

mães, devido à indiferença com que essas mulheres construíam suas<br />

trajetórias de mães ou esposas. Em nenhum desses lares em que<br />

Zínia havia servido, morava a serenidade do casal, ou dos próprios<br />

filhos dos quais ela cuidava.<br />

Talvez por isso, naquela ocasião Zínia vinha sonhando com um lar<br />

seu, que ela manteria na alegria e na temperança, naturais <strong>para</strong> seu<br />

coração bem formado. Se porventura brotasse uma chama em seu<br />

coração, diante de um rapaz modesto e gentil, Zínia seria capaz de<br />

140


mudar o seu desti<strong>no</strong> de acompanhante de Cornélia, <strong>para</strong> estabelecerse<br />

nem que fosse numa daquelas estalagenzinhas modestas ao longo<br />

daquela estrada. Era assim que ela tudo via.<br />

Não se sabe se seus pensamentos haviam sido escutados, ou se o<br />

desti<strong>no</strong> havia planejado <strong>para</strong> ela algo diferente: deixá-la entregue às<br />

próprias metas; também se uma armadilha foi pre<strong>para</strong>da <strong>para</strong> ela,<br />

vinda da parte de Flavius, que desejava conquistar a confiança da<br />

serva gentil.<br />

O fato é que, de repente, a situação transformou-se. Zínia começou a<br />

mostrar-se retraída, entristecida e cheia de mágoa <strong>no</strong> olhar. Só<br />

trocava poucas palavras com Cornélia, assim mesmo quando se via<br />

requisitada. A tristeza começava a visitá-la.<br />

Nessa manhã de nevoeiro denso, Cornélia levantou-se e vestiu-se<br />

sozinha. Zínia não foi a seu encontro. Saiu à procura da serva e não<br />

a encontrou. Aflita, logo entendeu que algo não obedecia ao<br />

esquema planejado por ela. Zínia jamais seria capaz de introduzir,<br />

por si mesma, pla<strong>no</strong>s diferentes em relação à sua senhora.<br />

Procurou por Matatias e viu <strong>no</strong>s olhos do garoto o receio de uma<br />

conversa mais clara. Ele olhava <strong>para</strong> os lados como se estivesse<br />

sendo vigiado. Para não comprometê-lo, Cornélia aguardou até o<br />

entardecer e avisou Timóteo sobre o sucedido.<br />

Quando a <strong>no</strong>ite ia adiantada, Timóteo viu Matatias seguindo por<br />

uma trilha <strong>no</strong> meio de vegetações espessas e seguiu-o. Passou <strong>para</strong><br />

Cornélia a informação e os dois resolveram descobrir, <strong>no</strong> dia<br />

seguinte, de quem era a casa procurada à <strong>no</strong>ite por Matatias.<br />

Era a moradia do pai de Matatias, que prestava serviços ao do<strong>no</strong> da<br />

estalagem. Ele não se recusou dar informações a Cornélia.<br />

- Esses senhores que a acompanham pecam pela ambição do<br />

dinheiro, minha senhora. Mas, entre eles, há dois que ambicionam<br />

um lar, como todos os mortais. Um deles procurou a sua serva e<br />

ofereceu-lhe um lar, se ela se dispusesse a lhe servir de informante<br />

sobre os passos que a senhora dá em sua vida.<br />

141


Cornélia olhou-o pasma e já ia começar seus questionamentos,<br />

quando ele prosseguiu:<br />

- Pode parecer inescrupuloso o gesto desse homem que se prestou a<br />

favorecer o amigo, por lealdade a ele. Talvez <strong>para</strong> ele seja um fato<br />

natural.<br />

- Espere, esclareça-me melhor este caso. Quem pediu a Zínia <strong>para</strong><br />

casar-se com ela?<br />

- O amigo do senhor Flavius, comandante desta unidade. Tudo não<br />

passou de um pla<strong>no</strong> desse comandante, eu lhe asseguro. E lhe digo<br />

mais. A sua serva Zínia era enamorada desse amigo dele. Contoume<br />

ela, antes de partir, que o senhor Flavius acreditava que a<br />

senhora era mancomunada com os homens que se devotam ao<br />

Nazare<strong>no</strong>, porque não podia crer que a senhora se havia afastado<br />

dessas questões só porque se mantinha em silêncio. Então, ele<br />

apenas aguardava um deslize de sua parte, porque desejava pegá-la<br />

em flagrante em qualquer reunião subterrânea, como aconteceu a<br />

sua amiga Lélia.<br />

O homem olhou <strong>para</strong> Cornélia e ela viu a dureza do aço ali<br />

estampada.<br />

Mas ele prosseguiu: - Esses roma<strong>no</strong>s não conseguem entender que,<br />

além de <strong>no</strong>ssa fé, somos criaturas destemidas; que não vão<br />

conseguir, por um simples berro deles, desmantelar toda uma rede já<br />

organizada por nós, desde a morte do <strong>no</strong>sso Messias.<br />

Aí a voz dele se adoçou.<br />

- Nós aguardávamos o momento em que a senhora ia deixar o seu<br />

mutismo, a fim de continuar a batalhar. Sua amiga Lélia continua<br />

presa e nós queremos que <strong>no</strong>s ajude a tirá-la da prisão.<br />

Cornélia olhava-o cada vez mais espantada, quando comentou:<br />

- Mas a prisão de Lélia, lá em Roma, é uma Fortaleza indevassável.<br />

Eu jamais sairia de lá, se visse uma pequenina oportunidade <strong>para</strong><br />

soltá-la, meu senhor.<br />

- Só em parte é uma verdade o que me fala.<br />

142


- Como?? - perguntou admirada.<br />

- Eu repito: só em parte, porque Lélia não se encontra mais em<br />

Roma e sim na Galiléia.<br />

- Impossível! Quem lhe disse isto?<br />

- Informantes de Nathanael.<br />

Só então Cornélia começou a avaliar a organização perfeita daqueles<br />

homens. Porque continuava calada, o homem voltou:<br />

- Nathanael está a par de todos os eventos. Na Galiléia, em Roma e<br />

outros territórios. Ele convidou-a a movimentar-se, quando lhe<br />

entregou a cópia daquele manuscrito.<br />

- Até isto o senhor conhece?<br />

- Por aí pode ver que nenhum de nós está dormindo. Estamos<br />

diariamente a postos, e acreditamos que, antes de conhecer o<br />

Santuário, a senhora vai poder <strong>no</strong>s ajudar a tirar Lélia das garras<br />

dos carcereiros.<br />

- Mas de que forma? - ela perguntou aflita. - Que posso fazer, se os<br />

roma<strong>no</strong>s não confiam em minha pessoa e muito me<strong>no</strong>s <strong>no</strong>s outros<br />

seguidores do Nazare<strong>no</strong>?<br />

- Ganhar a confiança desse comandante Flavius. Foi ele que<br />

conseguiu conquistar a confiança de Zínia, prometendo-lhe um lar<br />

ao lado desse oficial de quem Zínia está enamorada.<br />

- Cornélia nem acreditava <strong>no</strong> que ouvia. - Zínia enamorada? Mas...<br />

- Sim, sua serviçal não teve coragem de lhe dizer que o homem a<br />

quem havia entregado o coração pretende prejudicar a senhora. E<br />

este oficial a acompanha <strong>aqui</strong>, neste percurso que a senhora está<br />

fazendo. Zínia reencontrou-o. O acaso pregou uma peça nela - ele<br />

riu, tristonho.<br />

- Mas ela é amada por ele? - perguntou, penalizada. - Se é, deveria<br />

ter tido confiança em mim. Não precisava fugir, assim, enfrentando<br />

o perigo dessas estradas infestadas de salteadores. Por que ela não<br />

me contou? - ela se queixou.<br />

143


- Afligia-se pela situação. Enamorou-se, quando era ainda mocinha,<br />

mas o rapaz se transformou num homem ambicioso. E ela jamais<br />

pensou que conseguiria alcançá-lo, devido à posição em que ele<br />

está. Já estava determinada a colocar os seus sonhos num poço<br />

fundo, quando o reviu assim tão próximo dela. Foi então que se<br />

decidiu fugir.<br />

- Mas como Flavius sabia disto?<br />

- Isso não sei informar. Mas posso lhe garantir que Flavius tentou<br />

ganhar Zínia, a fim de vigiar os seus passos.<br />

- Quer dizer com isto que ela não vai aceitar o rapaz?<br />

- Qual o quê, minha senhora. Preferiu afastar-se. Mas meu filho<br />

Matatias tinha tanta afeição por ela, quanto pela senhora. Ele viu<br />

onde ela parou.<br />

- Diga-me onde ela está. Eu vou...<br />

- Isso não vou fazer. Só estou informando isso tudo, <strong>para</strong> que a<br />

senhora não se aflija por ela e nem atrase a sua viagem. Ela está<br />

bem am<strong>para</strong>da e eu não posso interferir na escolha dela.<br />

Timóteo, que ouvia tudo calado, comentou:<br />

- Não se preocupe, senhora. Agora já sabemos claramente que temos<br />

gente a <strong>no</strong>s vigiar, como temos também amigos a <strong>no</strong>s am<strong>para</strong>r.<br />

- É verdade, Timóteo. Mas diga-me, meu senhor - Cornélia ainda<br />

indagou - em qual estalagem que encontrarei à frente, e mais<br />

próxima da Galiléia, posso encontrar pessoas que me ajudem a<br />

estabelecer pla<strong>no</strong>s <strong>para</strong> ajudar Lélia?<br />

O homem sorriu e informou categórico:<br />

- Em nenhuma delas vai conseguir um bom resultado, se tiver este<br />

comandante em seu encalço. Ouça o que lhe aconselho ...<br />

144


Vinte e Oito<br />

Daí em diante, o percurso foi transposto sem incidentes dig<strong>no</strong>s de<br />

menção, até que uma <strong>no</strong>tícia alcançou Cornélia, enchendo-a de<br />

pesar: Lélia havia sido martirizada.<br />

A <strong>no</strong>tícia levou-a a reformular seus pla<strong>no</strong>s. A próxima <strong>para</strong>da<br />

deveria ser na estalagem Giramundo, mas era chegada a hora de<br />

escolher um outro caminho e de prosseguir somente com a<br />

companhia de Timóteo.<br />

Naquele mesmo dia, ela e o servo estenderam o mapa desenhado<br />

por Nathanael em mínimos detalhes. Só naquela ocasião, Cornélia<br />

observou que, dos pontos destacados por Nathanael como os<br />

favoráveis <strong>para</strong> as suas <strong>para</strong>das, apenas dois haviam sido mudados<br />

por Flavius. E isso logo após o afastamento de Zínia. Se Cornélia<br />

fosse uma criatura tão desconfiada quanto Flavius, saberia que ele<br />

os havia mudado, porque se havia interessado pelo afastamento da<br />

serviçal e andava à sua procura.<br />

Mas, preocupada com o roteiro que fariam sozinhos, Cornélia<br />

estudou apenas as marcas de Nathanael naquelas indicações. Ele<br />

havia apontado três opções de trajetórias, sendo que uma delas se<br />

realçava <strong>no</strong> mapa com uma grande estrela.<br />

Timóteo mostrava-se preocupado:<br />

- Gostaria de contar com outras pessoas <strong>para</strong> <strong>no</strong>s ajudarem, senhora.<br />

Mas nesta estalagem ninguém parece se importar com quem somos.<br />

Não creio que haja gente de Nathanael por perto.<br />

- Ainda assim, Timóteo, eu quero desaparecer já - ela disse<br />

determinada. - Flavius não vai imaginar que, cansados como<br />

estamos, <strong>no</strong>s disponhamos a seguir viagem tão depressa, muito<br />

me<strong>no</strong>s desacompanhados.<br />

145


- Então vou sugerir que a gente vá por <strong>aqui</strong> - ele apontou <strong>no</strong> mapa a<br />

trajetória que seguia <strong>para</strong> a estrela maior. Deve ser a preferida dele,<br />

senão indicaria como as outras, sem qualquer destaque.<br />

- Concordo. Vamos prosseguir amanhã de madrugada. Vá descansar<br />

um pouco e depois improvise roupas <strong>para</strong> mim.<br />

- Ele brincou: - E onde pensa que vou encontrar nestes ermos<br />

alguém que venda roupas?<br />

Cornélia encabulou-se, mas precisou esclarecer que não podia<br />

seguir com vestes femininas.<br />

O servo olhou-a boquiaberto, mas rápido concluiu:<br />

- Foi este o pla<strong>no</strong> aconselhado pelo pai de Matatias?<br />

- Sim, mas na hora pensei que era algo muito mirabolante. Depois,<br />

fui analisando os riscos de viajar, só com você, e com estes meus<br />

trajes - ela apontou a elegante veste. Não chegaríamos a dar nem<br />

cem passos desta propriedade e todos os oficiais de Flavius estariam<br />

em <strong>no</strong>sso calcanhar, não só ele - ela sorriu, mas desgostosa.<br />

- O que mais ele propôs? - perguntou, curioso.<br />

- Esconder a minha pele, escurecendo-a como a <strong>no</strong>ite, e adquirir<br />

nem que seja um burrinho <strong>para</strong> <strong>no</strong>s transportar, quando estivermos<br />

cansados. Você se encarregará disto. Mas leve dinheiro, que isto não<br />

<strong>no</strong>s falta. Só não se esqueça de que não podemos correr riscos.<br />

- Então precisamos de alimentos também.<br />

- Faça o que pode. Acha que conseguirá tudo bem rápido?<br />

Ele sorriu maroto e não respondeu; era o mesmo que confirmar.<br />

Dois dias depois já estavam bem longe dali. Se Flavius e seus<br />

homens estavam em seu encalço, não tiveram oportunidade de se<br />

certificar, porque não os viram. Quando alcançaram a estalagem,<br />

permaneceram estarrecidos diante dela. Uma tabuleta rústica<br />

apontava o <strong>no</strong>me A Grande Estrela. Nathanael a havia indicado<br />

através de um símbolo, e eles não se haviam dado conta.<br />

Aquela propriedade fora erguida num ermo, mas num local<br />

belíssimo, por um roma<strong>no</strong>. Não muito distante, uma fileira de<br />

146


montanhas e as águas misteriosas do Mar Morto. A construção<br />

seguia os moldes desse povo que mantinha domínio por ali. Seu<br />

proprietário a arrendava <strong>para</strong> um zelote, que via Roma como<br />

inimiga dos judeus. O <strong>no</strong>me dele era Numério. Ninguém sabia se se<br />

tratava de uma alcunha utilizada por ele <strong>para</strong> a própria<br />

caracterização.<br />

Ele dizia entre risos e brincadeiras que era bastante dedicado a<br />

cifras. Gostava muito de dinheiro e também de calcular, em<br />

números, o quanto havia conseguido realizar em sua vida, na<br />

questão de atos. Beirava os quarenta a<strong>no</strong>s.<br />

Numério parecia estar à espera dos dois. Colocou-os numa parte da<br />

hospedaria reservada <strong>para</strong> quem desejasse se manter em<br />

privacidade. Ali, só um dos quartos estava ocupado - disse ele entre<br />

risos.<br />

Cornélia não entendeu como ele a havia reconhecido, a não ser<br />

quando se viu diante de Nathanael, olhando-a com intensa alegria.<br />

Era ele o ocupante do quarto.<br />

Agora tudo estava em paz. Estava completo o planejamento de<br />

Nathanael e não apenas o dela, como vinha imaginando.<br />

Naquele mesmo dia, reuniram-se <strong>para</strong> confabular, após a simples<br />

refeição pre<strong>para</strong>da pelo próprio do<strong>no</strong> da estalagem, numa saleta<br />

reservada e aconchegante, dentro da simplicidade que o lugar<br />

exigia.<br />

Nathanael lhes contou que Numério era um dos mais ferozes<br />

seguidores do Nazare<strong>no</strong> e conhecido de alguns essênios também.<br />

Passou, então, a se referir, resumidamente, sobre aquele grupo com<br />

o qual Cornélia ia conviver por alguns tempos.<br />

- Eu tinha cinco a<strong>no</strong>s, quando comecei a visitar o Santuário de<br />

Qumran, levado por meu pai.<br />

- Ahn, seu pai era essênio?<br />

- Sim. Mas como havia optado por construir uma vida familiar,<br />

passou a integrar uma comunidade fora daqueles muros. O<br />

147


Santuário era, até então, freqüentado por homens-sacerdotes.<br />

Homens que se dedicavam a estudos e a escritas de seus ancestrais.<br />

Timóteo perguntou:<br />

- O senhor podia ir sempre até eles?<br />

- Podia, mas havia algumas restrições: dias determinados <strong>para</strong> os<br />

visitantes que não moravam na comunidade. Como o meu avô<br />

também havia vivido entre eles - ele era um servidor - não houve<br />

restrições a meu pai.<br />

- Era algo tão severo assim? Afinal... se vocês eram essênios... - quis<br />

saber Cornélia.<br />

- Não posso chamar isto de severidade, Cornélia. Pense, se você<br />

quer pôr ordem numa casa, precisa saber analisar bem quem deve<br />

viver nela ou não. Esses homens eram muito estudiosos e tinham<br />

como meta a pre<strong>para</strong>ção de um mundo melhor. Estudavam as<br />

escrituras e possuíam dons que muita gente até chamaria de<br />

"bruxaria". Mas não eram nem bruxos e nem magos. Simplesmente<br />

eram dotados de dons que procuravam cultivar seriamente.<br />

- Posso saber que dons, Nathanael?<br />

- Você já pôde se inteirar de alguns deles, quando leu o manuscrito<br />

de Yohanan.<br />

Cornélia refletiu por uns momentos e depois comentou:<br />

- Ahn, está se referindo ao fato, por exemplo, de ter ele previsto a<br />

própria morte? Se é isto, vou gostar muito de conversar com essa<br />

gente que pode ver "o que vai acontecer", porque também já tive<br />

oportunidade de passar por isto algumas vezes.<br />

- Mas você não vai conseguir respostas de nenhum deles sobre isto,<br />

minha amiga. Constituem um grupo muito reservado e não se<br />

propõem pre<strong>para</strong>r gente que não seja da comunidade.<br />

Cornélia pensou e depois retrucou:<br />

- Mesmo assim. Se eu lhes contar que pude antecipar - por meio de<br />

uma visão - a crucifixão de Joshua, talvez eles entendam que isto<br />

não é privilégio da "raça masculina" - ela disse tristonha -, nem dos<br />

148


hebreus, dos essênios, dos demais judeus ou dos que agora são<br />

chamados cristãos, porque seguem os falares de Joshua.<br />

Nathanael sorriu. - Sabe de uma coisa? Até que vou gostar de ver<br />

você contestar algo que digam.<br />

- Não sou contestadora, Nathanael. Só não consigo entender por que<br />

colocam a mulher em segundo pla<strong>no</strong>, se delas depende o mundo.<br />

Não são elas que dão à luz?<br />

Ele tor<strong>no</strong>u a rir. - Nós, os essênios, só estamos interessados na<br />

progressão e feitura do mundo, <strong>no</strong> que se refere a raças, sim, não <strong>no</strong><br />

que se refere a mulheres. Mas não quer dizer que não as amemos ou<br />

respeitemos.<br />

- Então vamos fazer o seguinte: passe-me o que já conhece, isto é, o<br />

que pensa que eu, como mulher, já posso saber - ela o espicaçou - e<br />

depois me apresente a eles.<br />

- Combinado. Mas vou me referir apenas ao que está ligado a<br />

Joshua, está bem assim? E prosseguiu: - Pelas dificuldades que<br />

surgiriam, <strong>para</strong> plantar na Terra as obras e os dizeres deste Anjo<br />

Magnífico <strong>no</strong>meado Joshua por alguns, Jesus, por outros, e Mestre,<br />

pelos essênios, nasceu por <strong>aqui</strong>, antes Dele e <strong>no</strong> tempo Dele, gente<br />

que estaria mais ou me<strong>no</strong>s pre<strong>para</strong>da <strong>para</strong> ajudar a lançar este<br />

alicerce <strong>no</strong> solo. Eu digo mais ou me<strong>no</strong>s, porque se não eram anjos<br />

nem santos - como Joshua -, pelo me<strong>no</strong>s eram criaturas capazes do<br />

esforço de tentar entender e aceitar pensares diferentes dos seus;<br />

eram criaturas conscientes de que Fé tem morada <strong>no</strong> coração e não<br />

<strong>no</strong> cérebro.<br />

A Fé era a palavra mágica que iria abrir a porta <strong>para</strong> todos esses<br />

homens e mulheres que seriam amoráveis a Joshua, e que já a<br />

haviam adquirido em outros meios, em outras existências, com<br />

outros tipos de aprendizados; gente também capaz de renunciar.<br />

Essas criaturas eram programadoras do futuro do cristianismo. Não<br />

se esperava isso só delas, e, sim, da multiplicidade delas, <strong>para</strong> um<br />

resultado que foi programado <strong>no</strong> Rei<strong>no</strong> Maior.<br />

149


Joshua pertencia a uma Falange Abençoada de Anjos, que haviam<br />

percorrido a Terra em tempos imemoriais. Digo imemoriais, porque<br />

os arquivos terre<strong>no</strong>s que poderiam entregar os traços dessas<br />

passagens por <strong>aqui</strong> já ficou perdido.<br />

Acontece que, se as calamidades do solo ocultaram esses arquivos,<br />

ainda assim, existe algo que se chama "memória" do Homem, e que<br />

pode reproduzir infinitamente o que ele já conheceu. Nem<br />

terremotos, nem maremotos, nem vulcões ou qualquer tipo de Furor<br />

da Terra destrói o que está escrito <strong>no</strong> "arquivo da alma dos homens".<br />

Muitas dessas criaturas, donas desta capacidade de rememorar<br />

eventos já findos, com o passar dos tempos - e com a evolução<br />

<strong>no</strong>rmal - passaram a viver em Pla<strong>no</strong>s mais elevados. E outras<br />

achavam que nada de <strong>no</strong>tável seria voltar a falar de gente do<br />

passado, de terras submersas, de mundos já findos.<br />

- Este é um outro dom - disse Timóteo, que pretendia falar consigo<br />

mesmo e acabou exteriorizando em voz alta o seu pensamento.<br />

Nathanael fez um ace<strong>no</strong> de concordância e continuou: - Entretanto<br />

houve uma exceção, uma exceção pequenina, mas de gente <strong>no</strong>tável,<br />

que conseguia relembrar e fazer renascer a luz de um passado que os<br />

marcou.<br />

Este grupo era exatamente o dos essênios e, nele, Joshua se integrou<br />

por uns tempos. Na comunidade dos essênios, Ele recebeu as<br />

maiores bênçãos de sua vida por <strong>aqui</strong>. E foi ali que Ele e Yohanan<br />

se encontraram, ou melhor, se reencontraram.<br />

Mas... - ele sorriu brejeiramente - a <strong>no</strong>ite já vai avançada, meus<br />

amigos. Se não estão cansados, eu estou. Tratemos de buscar os<br />

<strong>no</strong>ssos aposentos. Temos muito tempo ainda <strong>para</strong> conversar.<br />

150


Vinte e Nove<br />

Cornélia era uma mulher de sentimentos exacerbados. A megera<br />

foice que desbasta sonhos e alegrias nascentes havia arrancado, de<br />

um golpe só, tudo o que de mais belo tinha conquistado nessa vida,<br />

ao afastar-se de Joshua.<br />

Um rio de lágrimas e tristezas havia inundado seu coração, desde o<br />

momento em que Aquele Anjo expirara na cruz. Tudo <strong>para</strong> ela, até<br />

então, resultara em cinzas e aflições.<br />

Duros meses e a<strong>no</strong>s aqueles em que se obrigava a se reerguer e<br />

retomar a vida, a fim de alcançar algo que um dia Joshua lhe<br />

dissera: "A Alvorada já vem, Cornélia, não percebe isto? São os<br />

albores que se manifestam <strong>no</strong> sorriso Desse Deus Precioso, que<br />

distribui o néctar da prosperidade <strong>para</strong> todos os mortais. Os rios se<br />

encherão de Belezas inesperadas <strong>para</strong> os Homens, e a Luz Divina<br />

tocará cada um de Seus Filhos, mesmo diante das provas que<br />

precisarão enfrentar. A humanidade toda será um imenso<br />

caleidoscópio a gerar cores e imagens, que provocarão maravilhas<br />

nas estruturas que Ele pre<strong>para</strong> <strong>para</strong> o mundo.<br />

Não chore, criança, pois se a vida agora parece penetrar num rei<strong>no</strong><br />

de sombras, apenas <strong>para</strong> os cegos a sombra se mostra. Muitos<br />

cordeirinhos desse rebanho de Meu Pai já se vestem nessas Luzes.<br />

Entenda que sorrisos de aflição podem significar a glória daqueles<br />

que entrarão numa Era sem distorções, quando o Deus Meni<strong>no</strong><br />

estiver à frente dessas hostes que O amaram por amor do meu<br />

<strong>no</strong>me".<br />

Cornélia lembrava que, ao ouvir aquelas palavras, um turbilhão a<br />

havia atingido, sem que tivesse conseguido entender, perfeitamente<br />

151


e na totalidade, o sentido daqueles ensinamentos. E que dali em<br />

diante uma força extraordinária havia acompanhado seus passos.<br />

Para ela, significava que havia conseguido ingressar naquele Rei<strong>no</strong><br />

anunciado por Joshua, só que por aqueles instantes, apenas.<br />

Agora, ali, a caminho da comunidade dos essênios, a esperança mais<br />

uma vez a aquecia.<br />

Não se dirigiu ao leito. Debruçou-se na janela, <strong>para</strong> observar a<br />

escuridão e o céu estrelado. A lua não se mostrava, mas uma<br />

claridade prateada tingia todo o espaço e as flores espargiam<br />

perfumes, próximas de sua janela.<br />

Tão serena se encontrava, que começou a vislumbrar, naquele<br />

instante, uma centena de cavernas, cavadas em rochas, e criaturas<br />

simples, morando nelas. Tudo lembrava um imenso colmeal.<br />

Os homens utilizavam ferramentas rudes e a vida <strong>para</strong> eles se<br />

resumia em abençoar aquelas rochas escarpadas, onde iam abrindo<br />

os lares que lhes serviriam de abrigo contra o forte vento, o frio e a<br />

chuva.<br />

Eram adoradores de um Deus único. Não lhes faltavam animais <strong>para</strong><br />

transportá-los até regiões longínquas, ou <strong>para</strong> retornarem, se<br />

quisessem, <strong>para</strong> onde tinham vindo e onde uma parte desse grupo<br />

havia permanecido, a fim de ser remanejada, quando estes primeiros<br />

viajantes estivessem instalados.<br />

Cornélia assistia ao transcorrer do tempo: a chegada do grupo<br />

remanescente, ocupando o outro lado da grande rocha, já toda<br />

escavada como se fosse um e<strong>no</strong>rme queijo.<br />

Havia presteza e disciplina entre os dois grupos, que se pre<strong>para</strong>vam<br />

<strong>para</strong> construir, ali, um grande Santuário.<br />

Sua visão continuava e abarcou o todo do espaço, já tempos depois.<br />

Haviam erguido muros de pedras, salas, saletas, oficinas, e aquela<br />

civilização não lhe pareceu mais nem um pouco simplória ou<br />

comovente.<br />

152


Eram altos, fortes, ágeis <strong>no</strong> andar, de testas amplas, cabelos escuros,<br />

em alguns, e avermelhados, em outros, como se aquela aparência<br />

resultasse da mescla entre os dois grupos.<br />

Eles se aliavam bem, na disciplina e <strong>no</strong> bom falar. Mostravam-se<br />

amantes de uma vida metódica, do<strong>no</strong>s de boa cultura,<br />

exemplificando isso em oficinas, onde se dedicavam a escritas<br />

cifradas, difíceis de serem interpretadas <strong>para</strong> quem não fizesse seus<br />

estudos entre eles. Para Cornélia, assemelhava-se à escrita copta dos<br />

Egípcios. Mas Cornélia sabia que aquelas criaturas estudavam a lei<br />

Mosaica. Eram, portanto, remanescentes do grupo de Moisés.<br />

Uma parte deles, entretanto, não se ligava a divindades de espécie<br />

alguma. Amavam a Natureza, que era representada <strong>para</strong> eles com<br />

um Disco de Ouro - simbolismo do próprio Sol.<br />

Mesmo com essas diferenças entre eles, respeitavam-se e<br />

participavam, juntos, dos festejos que se realizavam de um lado e do<br />

outro da montanha.<br />

Mais um espaço de tempo ocorreu. Irmanaram-se na carne e <strong>no</strong><br />

sangue, isto é, casaram-se e constituíram famílias, formando uma<br />

raça que seria a Mãe daquele território: os hebreus.<br />

O tempo continuou voando. A visão de Cornélia parecia estagnar,<br />

quando surgiu diante de seus olhos um ancião venerável, túnica<br />

branca e longa, cabelos também longos e brancos, a dizer veemente:<br />

" Não!! Absolutamente não!! Nossa meta é proteger o<br />

desenvolvimento dessa humanidade que prefere caminhar à beira do<br />

abismo. Traga sua tribo <strong>aqui</strong>, e venham acompanhados de suas<br />

famílias. D<strong>aqui</strong> em diante, quem quiser permanecer co<strong>no</strong>sco deve<br />

assinar um termo de obrigação moral. E serão repudiados <strong>no</strong> dia em<br />

que desobedecerem <strong>no</strong>ssas leis."<br />

O homem que <strong>aqui</strong>lo ouviu saiu em busca de sua tribo e depois<br />

voltou <strong>para</strong> junto do ancião. Este, alcançou com o olhar a centena de<br />

criaturas diante dele, que aguardava a Ordenação.<br />

A voz possante do ancião afirmou: "Nós somos o povo essênio.<br />

Nossa vida doravante obedecerá as seguintes regras. Ele as<br />

enumerou e depois acrescentou: Os que optarem por uma vida de<br />

153


celibato permanecerão co<strong>no</strong>sco. Vamos organizar os <strong>no</strong>ssos<br />

manuscritos, a partir do que já temos em mãos. Não viemos de tão<br />

longe <strong>para</strong> <strong>no</strong>s dispersarmos nas tolices das dissenções. Somos um<br />

grupo coeso e podemos brilhar, colaborando e impondo as leis de<br />

Moisés."<br />

Mas, senhor, disse um homem de manto alvo e de cabelos<br />

cacheados e ruivos: "Eu vos amo e também toda a minha família.<br />

Tenho os mesmos ideais, sou estudioso, amigo, companheiro e não<br />

dissoluto. Por que devo me submeter, lá fora, a leis que não marcam<br />

o meu espírito? Por que devo me imolar com minha família <strong>para</strong><br />

fora desses muros que tanto venero? Vejo isto como uma imolação,<br />

meu senhor."<br />

O ancião continuou, incisivo: " Porque <strong>aqui</strong> permanecerão apenas os<br />

que não questionarem as organizações familiares. Estaremos<br />

voltados somente <strong>para</strong> estudos e leis. Mas você não deve entender<br />

isso como quebra de <strong>no</strong>ssa irmandade. Sempre seremos irmãos de<br />

sangue, mesmo que não habitemos <strong>no</strong> mesmo território".<br />

E ele acrescentou em voz troante: " Vão!! Dispersem-se com suas<br />

famílias <strong>para</strong> os campos, pelos ermos, pelo deserto. Será bom se<br />

nós, os essênios, contribuirmos <strong>para</strong> o progresso do mundo em<br />

outras fronteiras também. Vão!! Se este núcleo vai se manter como<br />

um Santuário, isso não significa que <strong>no</strong>ssas portas se fecharão <strong>para</strong><br />

vocês. Mas não corrompam <strong>no</strong>ssas leis. No caso de luto ou dos dias<br />

piedosos, reúnam-se co<strong>no</strong>sco. Serão sempre abençoados pela fé que<br />

<strong>no</strong>s une e pelo desprezo que entregamos aos que se comprazem com<br />

a imoralidade."<br />

O ancião diluiu-se à visão de Cornélia, como se a mão misteriosa<br />

que a houvesse permitido visualizar aquelas cenas puxasse o véu,<br />

entregando-a, de <strong>no</strong>vo, <strong>no</strong> mundo seu, e não naquele de um passado<br />

desconhecido <strong>para</strong> ela.<br />

Sabia que não havia vivido entre eles, que nunca havia morrido<br />

entre eles, e que não possuía qualquer consangüinidade com eles.<br />

O que significaria tudo <strong>aqui</strong>lo?<br />

154


Trinta<br />

Timóteo se havia dirigido <strong>para</strong> o quarto. Deitou-se, feliz, num leito<br />

forrado com palhas, e que o estalajadeiro tivera o cuidado de cobrir<br />

com um longo manto felpudo, costurado em lãs de carneiro.<br />

Num dos cantos, uma tocha acesa entregava lumi<strong>no</strong>sidade tênue,<br />

acrescentando tons dourados a uma bilha de água fresca. No outro,<br />

um tripé, com patas de leão, servia de suporte, <strong>no</strong> centro, a incensos<br />

que evolavam fumaça azulada e odorosa.<br />

Num suspiro de prazer adormeceu, mas com um desejo intenso de<br />

perambular por aquele terre<strong>no</strong> alcançado com dificuldade e<br />

esforços.<br />

Viu-se atravessando o corredor que distribuía os quartos, passando<br />

pelo de Cornélia e pelo de Nathanael, escolhendo a direção de um<br />

estábulo.<br />

Ali havia uma meia dúzia de cabras que forneciam o leite <strong>para</strong> os<br />

hóspedes, alguns jumentinhos puxadores de carroças, sendo que<br />

duas delas, na proximidade, estavam cobertas <strong>para</strong> que nem orvalho<br />

e chuvas lhes diminuíssem a durabilidade ou lhes prejudicassem a<br />

aparência.<br />

Caminhou mais um pouco, atravessando um pomar e horta, e depois<br />

uma trilha calçada de pedras socadas, relembrando seixos de beira<br />

de mar. Era ladeada de vegetação a<strong>para</strong>da até um determinado<br />

ponto. Dali em diante, o emaranhado da vegetação dificultava a<br />

caminhada de quem por ali se aventurasse. Mas Timóteo, bastante<br />

atento, com a <strong>no</strong>ite clara agora abençoada pela exposição da lua<br />

cheia, avistou uma quina de um barracão coberto de palha. Afastou<br />

os galhos de um espesso arbusto e entrou <strong>no</strong> barracão.<br />

155


Uma bancada de tábuas rústicas continha ferramentas, espátulas,<br />

potes de tinturas extraídas de plantas, tecidos de linho, couros em<br />

estampas gravadas e coloridas, pincéis de penas de aves e boa<br />

quantidade de ornamentos em pedrarias.<br />

Só naquele instante, Timóteo encabulou-se, porque havia penetrado<br />

num local que pertencia exclusivamente ao do<strong>no</strong> da hospedaria, e<br />

que certamente fazia parte de seus lazeres e de sua vida mais íntima.<br />

Já ia sair, quando uma pequena arca toda trabalhada em filetes de<br />

ouro o fasci<strong>no</strong>u.<br />

"Que riqueza de arte", pensou. "Será que Numério é um ladrão?"<br />

Mas assim como a rapidez daquele pensamento maledicente o<br />

atingiu, logo outro se interpôs: "Por que precisaria ser um? Por que<br />

não pode ter sido presente de um mercador? Ou de alguma mulher?"<br />

Aí sorriu brejeiro. "Sim, de uma dama e bem rica. Ele pode muito<br />

bem ser admirado por uma, afinal de contas... nem sei se Numério é<br />

casado.<br />

Depois de uma série de indagações mentais sobre a vida daquele<br />

homem, descobriu-se interessado em conhecê-lo melhor. Ele parecia<br />

ter amizade com gente de posse. Timóteo não acreditava<br />

absolutamente que um homem de aparência tão rude pudesse, ele<br />

próprio, ter criado aquela obra magnífica.<br />

Foi então que ouviu um fru-fru leve de tecido fi<strong>no</strong> aproximar-se e,<br />

em seguida, deparou-se com a mais bela visão que já tinha tido em<br />

sua vida. A jovem esguia e bela, de aproximadamente dezessete<br />

a<strong>no</strong>s, trajava elegante e longa veste de tecido avermelhado, que<br />

parecia esvoaçar a seu redor, <strong>no</strong>s movimentos delicados. O rosto era<br />

fi<strong>no</strong> e os cabelos com nuance semelhante ao do vestido. Parecia-lhe<br />

estar diante de uma ninfa, como as que surgem das sombras da <strong>no</strong>ite<br />

e deixam suave perfume por onde transitam; depois se desfazem<br />

como se desfazem sonhos e ilusões.<br />

Mas ela não se desfez e o olhar era cheio de cordialidade. Só então,<br />

aquela criatura quase etérea se comunicou com ele sem mover os<br />

lábios rosados e bem delineados. Disse-lhe através do pensamento:<br />

"Gostou de minha caixinha? Fui eu que a enfeitei <strong>para</strong> ele". A jovem<br />

156


sorriu e movimentou os longos cabelos, que lhe lembravam chamas<br />

mescladas de ouro e rubi.<br />

Timóteo nem pôde responder, porque diante dele logo surgiu uma<br />

figura diamantina: um homem. Ele lhe lembrava as <strong>no</strong>ites<br />

enluaradas, brancas e azuis, porque a roupa era um composto dos<br />

dois tons. Com sorriso gentil, comentou: " Timóteo, estou certo de<br />

que vai ser feliz. Cuide de sua ama. Nós o aguardaremos lá <strong>no</strong><br />

Santuário".<br />

Tudo se processou tão rápido, que num piscar d´olhos nada mais<br />

viu. Apenas a <strong>no</strong>ite se acendia, porque os primeiros claros do sol já<br />

se projetavam de <strong>no</strong>vo pela Terra e começavam a alegrar as aves,<br />

que se punham a marcar suas presenças em seus ninhos.<br />

Timóteo voltou os passos, dirigiu-se <strong>para</strong> seu quarto e completou<br />

aquela estranha <strong>no</strong>ite com um assombro bem maior: viu o seu corpo<br />

físico estendido <strong>no</strong> leito, num ressonar tranqüilo.<br />

Não desconhecia as possibilidades que têm as almas de se<br />

locomoverem <strong>para</strong> onde queiram, <strong>no</strong> descanso do so<strong>no</strong>. Sua visita<br />

ao barracão de Numério, portanto, não tinha sido intencional. Sua<br />

alma tinha sido atraída <strong>para</strong> aquele local.<br />

Permaneceu alguns minutos a observar o invólucro físico que lhe<br />

permitia o aprendizado da vida pela Terra e, sem qualquer sombra<br />

de medo, <strong>no</strong>tou que de seu corpo saía um cordão prateado e<br />

brilhante, que se ligava a ele. Pensou contente: "Que bom que este<br />

fio <strong>no</strong>s protege e <strong>no</strong>s faz voltar. Para ver de <strong>no</strong>vo aquela belíssima<br />

criatura, eu seria capaz de fugir muitas vezes ou até desejar<br />

permanecer <strong>no</strong> espaço feliz que a ela pertence". Depois concluiu:<br />

"Pensei inúmeras vezes que nasci <strong>para</strong> ser escravo, mas agora<br />

descubro que jamais o fui. Não tenho grilhões".<br />

Não soube como foi que se acoplou de <strong>no</strong>vo ao corpo, mas dormiu o<br />

so<strong>no</strong> dos justos.<br />

Trinta e Um<br />

157


A Grande Estrela era uma estalagem <strong>no</strong>rmalmente procurada por<br />

amigos de Numério, que faziam viagens de Roma <strong>para</strong> a Galiléia ou<br />

Judéia. E tudo havia sido bem arquitetado por eles, com idéia de<br />

estabelecer ali um mero refúgio, pois não desconheciam que Roma<br />

já ia começar a agonizar.<br />

Ninguém era cego <strong>para</strong> deixar de perceber que os governantes de<br />

Roma iriam acabar sofrendo uma derrocada bem rude, devido a atos<br />

brutais e insensatos que vinham praticando, sem qualquer<br />

preocupação de se ocultar. Mas, antes disso, muita gente ia receber<br />

açoites indevidos.<br />

É claro que o local tinha recebido o "alvará" dos todo-poderosos<br />

roma<strong>no</strong>s, <strong>para</strong> ser construído com aquela estrutura sólida e<br />

acomodações razoáveis. E fora um parente afastado de Orígenes que<br />

a havia erguido. Depois de aprovada pelo próprio Imperador, o<br />

construtor a havia entregado <strong>para</strong> Numério tomar conta, pois era<br />

homem responsável.<br />

É evidente também que muitas indagações e investigações haviam<br />

sido feitas em tor<strong>no</strong> de Numério, visto que era judeu e pertencia ao<br />

grupo dos zelotes. Mas como fosse apontado como um judeu<br />

simplório e bom cumpridor de sua vida pessoal, tudo se concluiu<br />

conforme desejavam.<br />

Este arranjo também tinha sofrido interferência de um judeu de<br />

<strong>no</strong>me Abdias.<br />

Abdias pertencia à seita dos essênios, era um ancião respeitadíssimo<br />

<strong>no</strong> Santuário de Qumran, não só por sua integridade como também<br />

pelas inúmeras previsões que ia fazendo. Na opinião de Abdias, o<br />

Santuário deveria ter permanecido com a estrutura anterior, isto é,<br />

sem o afastamento dos não-celibatários, porque ele temia o<br />

despreparo de alguns <strong>no</strong>s ritos que precisavam ter completado. E, de<br />

certa forma, não se enganara. Simão, o Mago, por exemplo, tinha<br />

sido atingido por extrema vaidade, ao se ver dotado do que ele<br />

158


considerava "poderes". Ele havia feito estudos junto com os<br />

essênios.<br />

Segundo Abdias, a construção de uma estalagem naquele local<br />

favoreceria os essênios em suas viagens <strong>para</strong> reencontro de amigos,<br />

quando visitavam as outras comunidades; também <strong>para</strong> descanso,<br />

ou nas ocasiões em que precisassem se dirigir aos festivais<br />

religiosos realizados em Qumran.<br />

Isto tudo foi esclarecido <strong>para</strong> Cornélia e Timóteo, <strong>no</strong> momento em<br />

que se reuniram com Nathanael e aproveitaram <strong>para</strong> contar o que<br />

lhes havia sucedido na <strong>no</strong>ite anterior.<br />

Nathanael escutou-os atentamente, refletiu, e assim classificou os<br />

fenôme<strong>no</strong>s:<br />

- Certamente vocês já estão sofrendo ligações com o pessoal que<br />

vão encontrar. Os planejamentos dos homens não são perfeitos<br />

como os do céu, evidentemente, mas nenhum de nós - que transita<br />

pela Terra - ig<strong>no</strong>ra que ninguém se encontra sozinho. Possuímos,<br />

<strong>no</strong>s pla<strong>no</strong>s do espaço invisível, pessoas que <strong>no</strong>s acompanham e <strong>no</strong>s<br />

intuem, <strong>para</strong> <strong>no</strong>s encaminhar aos rumos da perfeição. E estes seres<br />

sabem quais tendências apresentamos <strong>para</strong> os fatos que muitas<br />

pessoas chamam de dons e outras de poderes. Eu, particularmente,<br />

classifico isto como dádivas divinas. E, por serem divinas, não são<br />

negadas a ninguém.<br />

- Mas eu nunca participei de qualquer ritual - disse Timóteo,<br />

desconfiado - e também nunca me interessei por isto. A minha ama,<br />

sim, principalmente por ter acompanhado, por uns tempos, alguns<br />

amigos de Joshua e o próprio Joshua.. Para ela, eu acho que tudo<br />

isto é natural. Por que eu teria recebido aquela "visita" de seres tão<br />

maravilhosos? Para mim, eram Anjos do espaço.<br />

- Pois é isso, Timóteo, Anjos do espaço. Seres dotados de bondade e<br />

de sabedoria. Criaturas que já estão bem adiante de nós <strong>no</strong>s ensi<strong>no</strong>s<br />

do Nosso Pai. São elas que <strong>no</strong>s defendem, que <strong>no</strong>s intuem e que <strong>no</strong>s<br />

acompanham de perto, sem que saibamos. Posso até lhe garantir<br />

uma coisa: você só os viu, porque eles permitiram. Estes seres bemaventurados<br />

são dotados de luz e até preferem permanecer ocultos<br />

159


<strong>para</strong> nós, devido a <strong>no</strong>ssa ig<strong>no</strong>rância ou incompreensão. Mas vocês<br />

estão se pre<strong>para</strong>ndo <strong>para</strong> ir ao encontro de criaturas que<br />

partici<strong>para</strong>m de uma boa etapa nesses estudos do "oculto". Portanto,<br />

serão acompanhados até lá, <strong>para</strong> que tirem proveito esplêndido<br />

sobre muita coisa que ainda desconhecem. É assim que se processa<br />

a evolução dos seres - sigilosamente da parte dos seres invisíveis - e<br />

manifesta, de <strong>no</strong>ssa parte, se quisermos. Também temos o direito de<br />

<strong>no</strong>s calar, se preferirmos.<br />

- O senhor me permite confessar que aquela senhorita que vi era<br />

uma formosura? Nunca vi uma jovem tão bela assim.<br />

Nathanael riu com gosto e garantiu: - Pois eu lhe afirmo que<br />

gostaria de estar em seu lugar, meu bom rapaz. Mas foi você o<br />

premiado.<br />

Timóteo passou a mão pelos cabelos carapinhas e brincou:<br />

- Tomara que ela tenha encontrado em mim algo valoroso, porque<br />

de aparência...<br />

Cornélia provocou-o:<br />

- Quero crer que de hoje em diante você vai se interessar mais por ...<br />

esses dons...<br />

Encabulado, ele retrucou: - Vou mesmo, principalmente porque me<br />

pediram <strong>para</strong> cuidar bem da senhora. Não acho isto uma tarefa tão<br />

difícil.<br />

- Você já adquiriu um bem precioso, Timóteo, a generosidade, o<br />

dom de oferecer. É por isto que ganhou um belo prêmio.<br />

- Belo mesmo - ele disse risonho. - E ela disse que aquela arca era<br />

um presente dela <strong>para</strong> o Numério. Ele deve ter conhecido aquela<br />

senhorita.<br />

- Também não sei se você sabe que os Anjos conseguem manusear<br />

os elementos da natureza <strong>para</strong> criar objetos, Timóteo - esclareceu<br />

Nathanael. - Numa outra hora você pode voltar ao barracão, <strong>para</strong> ver<br />

se a caixa permanece lá. Caso contrário, o que você viu foi uma<br />

criação do espaço, e não algo material, <strong>aqui</strong> da Terra, entende?<br />

160


- Ahn! até que pode ser... vou querer tirar isto à prova. E... - ele<br />

disse titubeante - ... será que ela vai aparecer <strong>para</strong> mim de <strong>no</strong>vo?<br />

- Uma coisa você tem que aprender, Timóteo - saber esperar, porque<br />

a escolha é deles. Nossa parte é estar interessado e atento. Se<br />

estivermos distraídos, perderemos boas oportunidades como essas –<br />

assegurou Nathanael. - Bem, agora vamos fazer <strong>no</strong>ssos pla<strong>no</strong>s,<br />

Cornélia. Venham, vamos <strong>no</strong>s sentar em baixo daquela árvore.<br />

Numério hoje não está por <strong>aqui</strong>. Foi resolver algo <strong>para</strong> mim. Estou<br />

pretendendo sair d<strong>aqui</strong> amanhã ou depois. Vai depender do que ele<br />

conseguir.<br />

161


Trinta e Dois<br />

Entrava o inver<strong>no</strong> e os campos se cobriam de cores cambiantes. Até<br />

o azul do céu se transmutou. As manhãs eram pálidas e frias, com<br />

um vento cortante que zunia <strong>no</strong>s cumes dos morros, inclinava as<br />

vegetações, traduzindo uma linguagem diferente <strong>para</strong> cada cantinho<br />

da Natureza. As aves migravam em busca do calor.<br />

Cornélia encontrava-se na companhia de Débora e seus familiares.<br />

Nesses dias frios, a família simples se reunia sempre em tor<strong>no</strong> de<br />

braseiros, quando discussões fervorosas sobre o Rei<strong>no</strong> de Joshua<br />

sofriam diversas interpretações.<br />

Nathanael não se encontrava com eles. Ele havia seguido <strong>para</strong><br />

Qumran, pois Abdias se encontrava enfermo e bastante<br />

enfraquecido. Estava sendo estudada a possibilidade de ser<br />

substituído em suas funções por um essênio de corpo mais jovem,<br />

mas de disposição semelhante à dele.<br />

Com estas mudanças, a ida de Cornélia <strong>para</strong> passar uns tempos entre<br />

as paredes de um Santuário tinha sido adiada. Precisava aguardar as<br />

decisões, pre<strong>para</strong>r-se incansavelmente, a fim de tirar melhor<br />

proveito do que lhe fosse ofertado naquele meio.<br />

O pai de Débora era dos essênios que se haviam afastado do<br />

Santuário-Matriz, quando se havia feito a divisão entre celibatários<br />

ou não. Ele forneceu muitos esclarecimentos <strong>para</strong> Cornélia, ao ouvir<br />

dela a narrativa da visão sobre as inúmeras cavernas instaladas nas<br />

rochas. Contou-lhe que o pai dele sempre louvara perante os filhos a<br />

labuta empreendida por muitos, <strong>para</strong> que a vida sagrada desses<br />

homens não fosse conspurcada pelas ilusões terrenas.<br />

Era realmente uma imensa colméia a primitiva construção daquele<br />

povo ordeiro e cheio de fé, comentava a avó de Débora, uma mulher<br />

162


centenária, também reunida ali com eles. Referia-se aos locais<br />

santificados com uma dose de amor desconhecido de Cornélia. A<br />

vida <strong>para</strong> essa anciã era feita unicamente de trabalhos domésticos.<br />

Cuidar de uma prole imensa tinha sido a dádiva que havia recebido.<br />

Muitos filhos já haviam seguido <strong>para</strong> o outro lado da vida, mas ela<br />

ainda se referia a eles como se estivessem repartindo o calor do lar<br />

até aquele dia. É uma anciã única, pensava Cornélia, enquanto a<br />

velhinha ia resumindo o que era a vida <strong>para</strong> os homens que cavavam<br />

rochas e construíam abrigos.<br />

A anciã olhava <strong>para</strong> Cornélia como se soubesse o que ela ia<br />

encontrar <strong>no</strong> meio daqueles muros vedados aos que não eram<br />

judeus. Foi ela que resumiu um pouco do que se esperava por parte<br />

de Cornélia:<br />

- Se você recebeu uma autorização <strong>para</strong> participar de <strong>no</strong>ssas vidas,<br />

acredito que eles também esperam algo de você, porque quem<br />

recebe alegrias, precisa devolvê-las, não pensa assim?<br />

- Sim, senhora, mas não sei o que posso devolver, a não ser a minha<br />

compaixão pelos infelizes.<br />

- Isto não basta, mocinha - ela retrucou com olhos firmes e<br />

inquisidores. - Você vai poder usufruir da ventura e da serenidade<br />

de um dos Santuários. Disse-me Nathanael que vão introduzi-la em<br />

aposento visitado pelo Mestre crucificado. Assim, <strong>para</strong> retor<strong>no</strong>, não<br />

vai bastar a sua compaixão. O mínimo que se espera de você é que<br />

consiga aproveitar as vibrações do local <strong>para</strong> manifestar a voz<br />

divina.<br />

- Manifestar a voz divina? Não sei do que se trata - apressou-se<br />

Cornélia a responder. - Nathanael ainda não se referiu a isto.<br />

- Então você não irá direto aos aposentos que conheceram Joshua.<br />

Deverá ficar por uma temporada entre os essênios que ainda estão se<br />

pre<strong>para</strong>ndo <strong>no</strong>s primeiros graus. Não passa de uma <strong>no</strong>vata - ela<br />

disse com aspereza. - Não sei por que Nathanael não a preparou<br />

melhor, antes de trazê-la - havia queixa na voz da anciã.<br />

Débora interferiu:<br />

163


- Cornélia já tem manifestada a Visão e Nathanael me disse que ela<br />

vai passar rapidamente entre alguns estágios. Não sei a que ele se<br />

refere, mas ele conhece Cornélia melhor do que a senhora - ela<br />

explicou firme, mas educadamente.<br />

A anciã olhou desconfiada <strong>para</strong> Cornélia e preferiu calar-se.<br />

Cornélia percebeu a força, a autoridade e a formação rígida daquela<br />

mulher que, mesmo não tendo participado de rituais, mesmo tendo<br />

dedicado a vida exclusivamente aos cuidados do lar, era vista com<br />

respeito pelos mais <strong>no</strong>vos. Também havia uma grande dose de<br />

orgulho e preconceito na avó de Débora.<br />

- Venha, Cornélia, vamos pedir licença <strong>para</strong> a avó e passear lá pelo<br />

Lago Tiberíades. Sei que Nathanael não quer que você seja<br />

reconhecida, mas este frio <strong>no</strong>s favorece. Podemos <strong>no</strong>s ocultar com<br />

manto e capuz. Ninguém vai saber que ali vão Débora e Cornélia -<br />

ela riu.<br />

- Aceito - disse Cornélia com animação -, mas quero que você me<br />

prometa que me explicará por que razão pediu <strong>para</strong> Nathanael me<br />

entregar o manuscrito de Yohanan.<br />

- Com muito prazer. Venha, vamos <strong>no</strong>s agasalhar.<br />

As duas saíram seguidas do olhar severo da velha senhora.<br />

- Não ligue, Cornélia. Minha avó foi acostumada nessa austeridade.<br />

Já faz parte da personalidade dela. Deve ser muito difícil <strong>para</strong> você<br />

participar desse <strong>no</strong>sso meio; sei que é bastante liberal.<br />

- Não sei mais o que seja liberalidade, Débora. As pessoas têm<br />

confundido os termos. Mas devo confessar que não gosto muito de<br />

gente enfezada. Joshua era manso e generoso.<br />

- Sim. Senti isso <strong>no</strong>s olhos e nas palavras Dele muitas vezes,<br />

Cornélia. Ele não possuía a rigidez nem a altivez do Yohanan.<br />

- Altivez?<br />

- Ah, sim, pode crer. Tive oportunidade de estar algumas vezes<br />

perto de Yohanan e de ouvi-lo também. Eu o achava belíssimo,<br />

sabe? - e Débora corou.<br />

164


Cornélia sorriu. - Pelo seu jeito, Yohanan era <strong>para</strong> você um fruto<br />

proibido.<br />

Débora riu prazerosamente. - Não pensei num fruto, Cornélia, mas<br />

num Anjo intocável e perfeito. Você sabe que Nathanael chorou<br />

mais a morte de Yohanan que a de Joshua? Não que ele não amasse<br />

os dois. Mas Yohanan era mais parecido com Nathanael.<br />

- Não me diga! Nathanael também é uma criatura severa?<br />

- Hoje não sei mais - ela levantou os ombros. Meus pais desejavam<br />

que eu me casasse com Nathanael, não sei se você sabe. Mas eu me<br />

recusei.<br />

- Pela rigidez dele?<br />

- Não, porque eu... - e ela corou de <strong>no</strong>vo.<br />

- Ah, entendo, seu coração tinha preferência por Yohanan...<br />

Débora ace<strong>no</strong>u de leve com a cabeça. - Mas ele tinha escolhido<br />

oferecer a vida dele por seus ideais, então...<br />

- Então por que não se uniu ao Nathanael? Ninguém consegue me<br />

provar que ele não a ama.<br />

- Meu coração pertence a uma única pessoa. Eu não seria feliz com<br />

ninguém mais. Tenho certeza disto.<br />

- E como leva a sua vida, Débora? Deve ser muito solitária.<br />

- Engana-se. Sou feliz a meu modo. Amanhã vou mostrar <strong>para</strong> você<br />

o local onde vi Yohanan pela primeira vez. Ele parecia ser um<br />

daqueles deuses que os roma<strong>no</strong>s chamam de... de Apolo.<br />

Cornélia olhou <strong>para</strong> a gentil moça que havia mandado <strong>para</strong> ela o<br />

manuscrito de Yohanan. Entendeu perfeitamente as razões do<br />

coração de Débora. Convidara-a a participar daquele mundo de<br />

encantamentos e amor, que marcara a sua adolescência.<br />

Mas Cornélia ainda tinha muito a conhecer, em referência a ela. O<br />

tempo lhe mostraria.<br />

No dia seguinte, munidas de um farnel, pois fariam uma longa<br />

caminhada, as duas saíram de casa.<br />

165


Alcançaram o sopé de uma montanha, quando a manhã já ia ceder<br />

lugar <strong>para</strong> uma tarde mais ou me<strong>no</strong>s aquecida. Mais ou me<strong>no</strong>s,<br />

porque o sol, vez ou outra, disputava sua presença com o vento<br />

cortante. Quase ao meio-dia, alcançaram um platô que lhes permitia<br />

descortinar, do alto, a beleza das águas do Tiberíades.<br />

A <strong>para</strong>da <strong>para</strong> descanso foi aproveitada <strong>para</strong> se alimentarem um<br />

pouco, recolocando as energias em ordem, porque o desejo mesmo<br />

era prosseguirem sem se deter. Mas, dali onde estavam, Cornélia já<br />

podia avistar escavações na rocha. Serviam de abrigos <strong>para</strong> criaturas<br />

que precisavam de descanso nas caminhadas. Sabe-se lá se Yohanan<br />

não os havia visitado, durante suas peregrinações por aqueles ermos.<br />

Cornélia contou <strong>para</strong> Débora mais detalhes de sua visão sobre as<br />

cavernas. - Estou certa de que não se trata deste local - ela<br />

garantiu.<br />

Depois de mais um repouso, alcançaram o patamar que Débora<br />

procurava. Acima dele, a rocha mais parecia um ninho de aves. Era<br />

toda perfurada e as cavernas se uniam entre si, por dentro, formando<br />

um imenso lar. Ali, sim, contou-lhe Débora, havia existido um<br />

núcleo de essênios e que era visitado por Yohanan. Fora ali que ela<br />

o havia visto pela primeira vez, vestido em uma túnica branca. Ele<br />

estava sendo convidado a seguir <strong>para</strong> o último estágio dos estudos<br />

dos essênios e já reconhecia Joshua como Seu Mestre.<br />

Os olhos de Débora iluminaram-se, quando disse francamente:<br />

- Foi <strong>aqui</strong>, Cornélia, que entreguei todo o meu amor <strong>para</strong> um<br />

homem que nem desconfiou da existência disto. Jamais pensei em<br />

confiar <strong>para</strong> ninguém o que minha alma vibrou, quando o vi, feliz,<br />

sendo abraçado por uns vinte ou trinta anciãos, das comunidades<br />

essênias. Havia tanta felicidade <strong>no</strong>s olhos de Yohanan, que entendi<br />

que meu Deus havia disposto algo muito diferente <strong>para</strong> mim: não<br />

uma família, não filhos e nem a alegria do amor repartido entre um<br />

homem e uma mulher. Ele era uma criatura especial. Um Anjo<br />

mesmo - ela sorriu, embevecida.<br />

- Meu Deus, você sofreu uma perda dupla, minha amiga - Yohanan<br />

e Joshua!<br />

166


- Sim. E só depois que Nathanael começou a atravessar os estágios<br />

de estudo e compreensão, eu comecei a entender as razões de minha<br />

vida <strong>aqui</strong> na Terra - ela suspirou.<br />

Cornélia não teve a ousadia de perguntar quais razões eram aquelas.<br />

Débora devia ser uma criaturinha cheia de doçura, afabilidade, mas<br />

forte como uma rocha. Permanecia ali, diante dela, com a paz e a<br />

serenidade estampadas <strong>no</strong> rosto bonito, embora os olhos brilhassem<br />

com lágrimas da emoção pela recordação de um dia marcante <strong>para</strong><br />

ela.<br />

Cornélia afagou-lhe o rosto e depois indagou:<br />

- Você nunca teve visões?<br />

- Não, mas Nathanael me contou que você anteviu o martírio de<br />

Joshua. Eu prefiro ser como sou. Não sei o que teria me acontecido,<br />

se eu soubesse antecipadamente qual seria o fim de Yohanan.<br />

- É melhor nem saber, minha amiga. A mágoa acompanha a gente,<br />

aonde quer que a gente vá.<br />

- Mas por quê? Por que você precisou passar por isso?<br />

- Isso ainda não sei. Tenho esperança de descobrir entre os essênios<br />

anciãos. Mas Nathanael me disse que eles nada vão me informar a<br />

este respeito.<br />

- Nathanael é muito rígido, conforme lhe falei. Quem sabe as mãos<br />

de Joshua vão guiá-la <strong>para</strong> perto de algum deles que tire esta dúvida<br />

de você. Afinal, eles todos sabem que o Pai é Misericordioso. E<br />

Joshua também era.<br />

- Esperemos que sim, Débora.<br />

- Agora venha, vou mostrar <strong>para</strong> você o recanto preferido de<br />

Yohanan. Também sei isto por informação de Nathanael.<br />

Débora pegou a mão de Cornélia e entrou <strong>no</strong> interior daquelas<br />

cavernas interligadas.<br />

Algumas delas possuíam a bênção de uma abertura superior, de<br />

modo que a claridade do dia penetrava por ali e entregava um luscofusco<br />

adorável e cheio de mistérios. Outras eram inteiramente<br />

167


vedadas e a impressão de melancolia e solidão chegava a marcar o<br />

espírito.<br />

- Nathanael me disse que estas cavernas mais fechadas serviam <strong>para</strong><br />

fazerem suas meditações e treinarem <strong>no</strong>s dons que possuíam, mas<br />

não me esclareceu quais. Era a melhor forma <strong>para</strong> se isolarem do<br />

mundo e se integrarem com Deus - disse-me ele como única<br />

explicação. - Mas eu acho que prefiro me integrar com o Deus num<br />

lugar mais espaçoso e ventilado - ela sorriu brejeira.<br />

- Cada um se adapta melhor com um tipo de cenário, Débora,<br />

embora eu ache que eles amavam a amplidão tanto quanto nós. Este<br />

local só era propício <strong>para</strong> não se dispersarem <strong>no</strong>s eventos do dia-adia<br />

da humanidade. Ela é tão... complicada!<br />

- É verdade. Mas veja, já estamos chegando <strong>no</strong> lar de Yohanan. Ela<br />

destacou a palavra lar. Ali estavam alguns objetos utilizados por<br />

Yohanan: uma banqueta, uma mesa rústica, um tapete de pêlo de<br />

carneiro e uma lamparina a óleo, colocada <strong>no</strong> chão frio.<br />

- Ali - ela mostrou - havia uma bancada onde ele depositava<br />

documentos que lia e interpretava. Disse-me Nathanael que se<br />

tratava de manuscritos muito antigos, dos tempos de Moisés e<br />

outros profetas. Yohanan era muito sábio - ela comentou, e corou<br />

pela terceira vez.<br />

Vendo Cornélia sorrir, encabulou-se.<br />

- Você vai pensar que sou uma fanática, uma moça desequilibrada<br />

em meus sentimentos, porque ainda coro ao falar de Yohanan. Mas<br />

não sou nada disso, Cornélia. Só abrigo o meu amor e veneração <strong>no</strong><br />

coração. Nada mais. Olho a vida como uma simples passagem pela<br />

Terra. Tive apenas a ventura de conhecê-lo, não de compartilhar da<br />

vida dele. Mas isto me bastou, porque devo ser diferente. Não sei<br />

me interpretar.<br />

Não havia mágoa em Débora. Era amor mesmo. Um amor<br />

imensurável e incondicional. Nesse momento, Cornélia soube que<br />

aquela moça era mais feliz do que tantas que haviam partilhado uma<br />

vida em comum com esposos, ou amantes, mas não tinham tido a<br />

felicidade de amar daquela forma.<br />

168


169


Trinta e Três<br />

Somente um mês após a chegada de Cornélia ao lar de Débora,<br />

Nathanael conseguiu definir a época em que se dirigiriam ao<br />

Santuário de Qumran. Coincidiria com um dos Festejos Religiosos,<br />

portanto, os do<strong>no</strong>s da casa estavam em grandes pre<strong>para</strong>tivos. Além<br />

disto, Débora organizou reuniões <strong>para</strong> as amigas de Cornélia, em<br />

sua casa. Por terem seguido religiosamente o pedido de Nathanael,<br />

Cornélia havia permanecido uma grande parte desse tempo<br />

escondida, a fim de não ser descoberta por Flavius e seus oficiais.<br />

Agora, Cornélia já se sentia liberta e estava sendo instruída sobre a<br />

organização daquele evento. Dele, participariam essênios de várias<br />

localidades, mas não significava que seria um encontro "aberto ao<br />

público". Débora a acompanharia.<br />

Nathanael esclareceu alguns porme<strong>no</strong>res:<br />

- A probabilidade de você falar com um dos anciãos de Qumran não<br />

lhe será vedada. Logo que os festejos findarem, eu a levarei à<br />

presença desse homem. E como suas refeições e seus passos não<br />

deverão marcar alguns espaços onde se reúnem comunitariamente,<br />

já deixei definido, antecipadamente, o seu encontro com este<br />

ancião-sacerdote.<br />

- Não imaginei que existiriam tantos empecilhos assim <strong>para</strong> mim,<br />

Nathanael.<br />

- Ele sorriu e acrescentou: - Mas não é <strong>para</strong> você, minha amiga. É<br />

<strong>para</strong> os não-judeus, em geral. Se você fosse convidada <strong>para</strong> uma<br />

festa onde fossem servidas iguarias desconhecidas <strong>para</strong> você, como<br />

faria <strong>para</strong> escolher o que preferiria comer? Não acha que iria<br />

experimentar - ressabiada - aquelas iguarias e deixaria, por isso, os<br />

do<strong>no</strong>s da casa tristonhos por acharem que você não as apreciou?<br />

170


Cornélia ergueu os ombros, respondendo: - Entendo o que me<br />

aponta. Sei que existe uma infinidade de fatos sobre eles que<br />

desconheço. Mas eu não estou me ofendendo por saber que não farei<br />

parte dos festejos, nem das refeições conjuntas. Não se trata disto.<br />

Apenas acho estranho que me permitam estar por perto, com a<br />

condição de não participar dos rituais. É tudo muito vedado,<br />

Nathanael.<br />

- Não, não é vedado e nem proibido. Apenas preservado. Para eles<br />

seria como se fossem discutir "mistérios" com alguém cujo ouvido<br />

nem está pre<strong>para</strong>do <strong>para</strong> o vocabulário deles, entende? Nem mesmo<br />

a língua em que se comunicam você conhece. Ou melhor, sei que<br />

conhece um pouco, mas não domina. Foi por isso que escolhi um<br />

ancião, que é também Nathanael, <strong>para</strong> conversar com você. Você<br />

poderá chamá-lo de Nathan. Foi o máximo que consegui, acredite.<br />

Nos olhos de Cornélia não havia desencanto, mas uma certa tristeza<br />

por descobrir que o sistema de castas, como o dos hindus, lá<br />

também prevalecia.<br />

- Quando será que a humanidade deixará de ser tão repartida assim,<br />

meu amigo? - foi a única queixa emitida por Cornélia.<br />

Nathanael olhou-a cordialmente e opi<strong>no</strong>u:<br />

- Quando cada um tiver cumprido os papéis que desejou escolher<br />

<strong>para</strong> si. O povo essênio ainda está em meio a uma grande batalha,<br />

diante desse fato calamitoso que foi a morte do Messias aguardado.<br />

Nem todos tiveram possibilidade de "ler" o <strong>livro</strong> da vida de Joshua.<br />

- O que quer dizer com isto?<br />

- Que nem todos tiveram visão antecipada da morte dele. E nem<br />

todos entenderam que isto aconteceria, com o "ouvir". O ver e o<br />

ouvir foram prerrogativas de alguns.<br />

- Ah, compreendo. Eu "ouvi" me falarem que Débora é que me<br />

havia enviado o manuscrito, antes que você me confirmasse. Sim,<br />

eu ouvi perfeitamente isto, sem ter visto ninguém perto de mim.<br />

- É exatamente a isso que me refiro, Cornélia. Cada essênio adquiriu<br />

por <strong>aqui</strong> <strong>aqui</strong>lo que muitos tratam como "dons". Eram dons capazes<br />

171


de ajudá-los a se desenvolverem <strong>para</strong> colaborar com Joshua. Mas<br />

não foi uma tarefa perdida <strong>para</strong> eles, pelo fato de perderem o<br />

Messias, entende? Foi uma tarefa ganha <strong>para</strong> todos, até mesmo <strong>para</strong><br />

Aquele Anjo que partiu como um brilhante raio de Luz, e seguiu<br />

<strong>para</strong> a galáxia à qual pertence.<br />

- Também não será uma tarefa perdida <strong>para</strong> mim tentar entender<br />

tudo isso, não é mesmo?<br />

- Nem pensei nesse aspecto, Cornélia. Fiz questão de marcar uma<br />

conversa com Nathan, <strong>para</strong> que ele lhe entregue porme<strong>no</strong>res que a<br />

ajudarão a compreender sua função nessa sua vida como Cornélia.<br />

Não era isso que desejava?<br />

- Ah, Nathanael, se ele puder me esclarecer isto e algumas outras<br />

questões que me levam a refletir, jamais poderei deixar de<br />

agradecer-lhe...<br />

Nathanael a interrompeu e disse firme:<br />

- Não, minha amiga, não faça esta afirmativa. A gente nunca sabe<br />

em quais circunstâncias se pode falhar, quando garante este "jamais"<br />

que está dizendo. O coração da gente, quando se sente ferido,<br />

esquece esse tipo de promessa. Apenas agradeça a Deus o que lhe<br />

for dado, porque Dele é que vêm os prêmios e as <strong>no</strong>ssas alegrias. Os<br />

homens são <strong>no</strong>rmalmente inconstantes; Deus é justo.<br />

- Tem toda razão. É que me emocionei, quando me disse que vou<br />

poder esclarecer algumas de minhas dúvidas.<br />

- Nathan é um homem de mais de <strong>no</strong>venta a<strong>no</strong>s, mas de alma ainda<br />

jovem. Ele conviveu com Yohanan e também esteve uns tempos<br />

com Joshua. Acredito que, se você fosse falar sobre Joshua, ele lhe<br />

diria bem próximo do que eu mesmo lhe diria. Sobre Yohanan, ele<br />

sabe muito mais do que eu.<br />

- E o que você me diria sobre eles?<br />

- Para mim, Cornélia, Joshua era um Ser disciplinado, pacífico,<br />

amoroso, alegre, e dotado de virtudes que nós, os essênios, ainda<br />

precisamos alcançar. Sua integridade e valor estão muito além do<br />

que, nós, os "pre<strong>para</strong>dores do solo", conseguimos atingir. E a<br />

172


compreensão de Joshua sobre as criaturas que se dedicaram a ele, de<br />

corpo e alma, ultrapassa de muito as medidas terrenas, porque Seres<br />

Angelicais são de difícil definição.<br />

Seria o mesmo que se tentar estabelecer parâmetros sobre<br />

aborígenes de territórios diferentes, diante das luzes que se acendem<br />

<strong>no</strong> mundo. Para alguns aborígenes, a luz não passaria da centelha<br />

surgida do atrito entre pedras, a fim de acenderem a palha seca, que<br />

resulta, então, <strong>no</strong> fogo lumi<strong>no</strong>so. Para outros, seria apenas a chama<br />

da tocha, sem que se preocupassem muito em saber como aquela luz<br />

apareceu por ali. Claro que outros já vêem a luz representada pela<br />

Lua, pelas Estrelas e pelo chamejante Sol, que a tudo vivifica. Mas<br />

existem inúmeras maneiras de representar a Luz divina, tanto quanto<br />

existem diferenças entre os homens que a captam, por sua evolução.<br />

É assim o mundo.<br />

A diferença maior entre nós, os essênios, é que nem sei se todos<br />

perceberam que Joshua era a própria Luz. Ela fazia parte de seu Eu<br />

Sublime, portanto, de difícil definição também. Como se o Deus<br />

tivesse pintado um quadro e nós não conseguíssemos captar. Com<br />

quais nuances Ele pintaria as Luzes de Seu Amado Filho?<br />

Eu costumo refletir sobre isso e sei que Deus não o faria com as<br />

mãos borradas de tintas materiais, e nem com a tristeza de colocar o<br />

Seu Filho <strong>aqui</strong> apenas <strong>para</strong> que perecesse diante da incompreensão e<br />

malícia dos homens. Portanto, Cornélia, a Luz de Joshua acendeu a<br />

<strong>no</strong>ssa comunidade em Bens, em Amor e Doação.<br />

Yohanan era um irmão consangüíneo apenas <strong>no</strong> sentido de que<br />

pertenciam à mesma Família Universal que é dedicada ao progresso<br />

dos homens. Terrenamente ele era aparentado com Joshua,<br />

pertencente ao núcleo dos essênios e cultivador da harmonia<br />

interior. Ele se distinguia principalmente pelo amor que dedicava<br />

aos humildes e à tão fragmentada tribo de judeus.<br />

Para Yohanan, não deveriam existir dissidências entre as criaturas e<br />

nem a Humanidade caminharia à beira dos abismos. Uma de suas<br />

metas era dirigir os homens <strong>no</strong>s princípios do respeito e da<br />

fraternidade universal.<br />

173


Mas Yohanan enfrentava um combate diferente, porque se<br />

alicerçava na confiança que deveria existir entre todos os membros<br />

de um grupo. Para ele, em especial, todas as famílias que se<br />

formassem deveriam cumprir seu papel com perfeita exatidão.<br />

Deveriam ser perfeitos pre<strong>para</strong>dores dos filhos que nascessem das<br />

uniões dos casais. Depois disso, desejava "pacificar-se, <strong>para</strong> chegar<br />

a ser um pacífico e manso, como foi Joshua". Yohanan não era visto<br />

como pacífico, porque suas Verdades atingiam profundamente os<br />

prevaricadores.<br />

Nessa época em que vivemos, Cornélia, os homens fazem suas leis<br />

segundo seus desejos físicos e materiais. Os atritos surgidos entre os<br />

roma<strong>no</strong>s e Yohanan foram terrivelmente fortes, porque Yohanan se<br />

referia às leis divinas e os homens falavam de suas próprias leis,<br />

querendo vestir-se de divi<strong>no</strong>s, de césares, de deuses.<br />

Eu até soube que alguns se referiram a ele como "um amigo do filho<br />

do carpinteiro, um pobre miserável" - Nathanael sorriu tristemente.<br />

Cornélia olhou-o assombrada e comentou:<br />

- Acredito que, se o dedo de Yohanan apontava exatamente <strong>para</strong> a<br />

moralidade (ou imoralidade!), deve mesmo ter espalhado em tor<strong>no</strong><br />

dele bastante ira, Nathanael.<br />

Ele ergueu os ombros e analisou:<br />

- A gente sabe que a Verdade só dói se a pessoa não aceita o título,<br />

embora o mereça. Eu acredito que temiam Yohanan, porque<br />

preferiam viver em prevaricação.<br />

Enfim... o luto <strong>no</strong>s alcançou com a morte de Yohanan e de Joshua,<br />

mas eu tenho certeza de que muita coisa deve ter mudado <strong>no</strong> interior<br />

de muitas criaturas, Cornélia.<br />

- Quais, por exemplo?<br />

- Os que foram sacrificados - e agora não me refiro a eles - já<br />

ganharam sua veste de luz, na medida do amor que exemplificaram;<br />

os algozes irão reaprender as medidas necessárias <strong>para</strong> viverem<br />

honestamente. E eu não duvido de que os roma<strong>no</strong>s acabem por<br />

174


perder este imenso Império, porque não o conduzem <strong>para</strong> a<br />

construção.<br />

- Ah, mas nós já perdemos Joshua! Isto ainda é muito triste <strong>para</strong><br />

mim.<br />

- Pois eu me alegro, porque Ele voltou <strong>para</strong> Seu Rei<strong>no</strong> de Luz. Um<br />

Anjo não desceu à Terra <strong>para</strong> participar desses minúsculos valores<br />

terre<strong>no</strong>s <strong>no</strong>ssos, Cornélia. Ele já é Luz, eu repito. Deixou <strong>aqui</strong><br />

amigos sinceros, seguidores nem sempre disciplinados, bons<br />

observadores das leis divinas e outros que ainda estão buscando<br />

entendê-las. É assim que penso.<br />

Agora, trate de se pre<strong>para</strong>r. Deixei <strong>aqui</strong> algumas a<strong>no</strong>tações sobre o<br />

encontro entre os essênios. Converse com Débora, ela poderá<br />

auxiliar você. Lá em Qumran, ela deve lhe abrir algumas portas. Viu<br />

como tudo se dispõe bem, quando a gente planeja com cuidados?<br />

- Estou percebendo. Não foi à toa que você se movimentou por um<br />

bom tempo, antes de pensar em me levar até lá.<br />

Nathanael começou a se afastar, mas voltou-se e comentou<br />

sorrindo:<br />

- Eu quase esqueci de lhe dizer que o Timóteo está tão<br />

entusiasmado, que já pensou em se inserir <strong>para</strong> estudos entre os<br />

essênios.<br />

O sorriso cheio de prazer de Nathanael acompanhou seus largos<br />

passos.<br />

175


Trinta e Quatro<br />

Estavam nas vizinhanças de Qumran, enfim. Mas, na imaginação de<br />

Cornélia, a construção daquele Santuário de paredes de pedras tão<br />

brancas, onde a sutileza do sol pintava as inúmeras nuances do arcoíris,<br />

continuava a apresentar inúmeras incógnitas. Qual a razão?<br />

Ela não havia adentrado o recinto, embora pensasse que era um<br />

presente dos deuses estar ali na ocasião dos Festejos do Vinho,<br />

mesmo que não pudesse participar da seqüência dos fatos que lá<br />

dentro se desdobravam.<br />

Agora já sabia que a seus olhos ficariam vedadas as refeições<br />

comunitárias, as orações propiciatórias que a comemoração exigia, e<br />

os rituais particulares daquele grupo de homens que faziam de suas<br />

vidas um grande mistério.<br />

Mas já havia conversado com muitas criaturas que também estavam<br />

acomodadas em tendas, ao redor do Santuário.<br />

Afinal de contas, ela pensou, não são tão soberbos quanto imaginei.<br />

Admitiram-me <strong>aqui</strong>, fora dos muros, numa dessas inúmeras tendas<br />

que se distribuem <strong>para</strong> estrangeiros em questões de costumes, como<br />

também sou. E, pensando bem, se eu estivesse lá dentro, talvez nem<br />

tivesse a oportunidade de conviver com tanta gente oriunda de<br />

territórios diversos, ou de apreciar este cenário fabuloso que <strong>no</strong>s<br />

cerca.<br />

Há tanta gente desligada deles, como eu mesma, que só posso<br />

agradecer por ter sido incluída na lista como convidada. Com a troca<br />

de informações, até já descobri que existem homens que podem<br />

estagiar entre eles; que podem fazer parte deste grupo de estudiosos,<br />

se se pre<strong>para</strong>rem em requisitos exigidos por eles. Quer dizer, então,<br />

que não só os nascidos de mulheres essênias convivem com eles.<br />

176


Assim refletindo, Cornélia caminhava por entre as tendas, <strong>no</strong>tando<br />

algo bastante marcante: elas tinham sido distribuídas num<br />

alinhamento perfeito, se<strong>para</strong>ndo homens e mulheres.<br />

Por esta razão, desde que se alojara não mais avistara Timóteo.<br />

Apenas Nathanael vez ou outra a procurava, em especial atenção,<br />

chamando sua atenção <strong>para</strong> pontos que ele considerava essenciais.<br />

E num de seus encontros, quando caminhavam, Nathanael levou-a a<br />

observar o morro que delimitava o terre<strong>no</strong> onde se encontravam as<br />

tendas das mulheres.<br />

Foi, então, na companhia de Nathanael, que Cornélia susteve a<br />

respiração e disse, espantada:<br />

- Foi <strong>aqui</strong>, Nathanael, foi deste morro que tive aquela visão que lhe<br />

contei, você se lembra? Quer ver? Posso até lhe provar isto. Venha,<br />

venha comigo! - ela insistiu, segurando-lhe a mão e arrastando-o,<br />

quase às carreiras, em direção à curvatura do morro que se<br />

distanciava bastante do local do Santuário.<br />

- Ali - ela apontou afobada - vamos encontrar aos pés da rocha<br />

íngreme um largo degrau, seguido de outros tantos que conduzem a<br />

um patamar não tão reduzido. Depois desse patamar, a escada<br />

continua e se pode começar a enxergar uma série de cavernas,<br />

algumas tão restritas, que nem se consegue entender como as<br />

criaturas faziam <strong>para</strong> viver assim.<br />

Os dois seguiram <strong>para</strong> a escada que, realmente, existia. Nathanael a<br />

observou um tanto preocupado, mas Cornélia acrescentou: - Meu<br />

Deus, agora me lembro de mais detalhes daquela visão que tive.<br />

Existiam muitas crianças por <strong>aqui</strong>. Pareciam a<strong>no</strong>rmais pelo<br />

tamanho.<br />

- A<strong>no</strong>rmais?? - ele franziu o cenho.<br />

- Sim, sim, de estatura muito elevada.<br />

- Ahn, pensei que se referia a anões!<br />

Cornélia riu. - Não, eram tão altas, que quase se com<strong>para</strong>vam aos<br />

pais, já entre os sete e oito a<strong>no</strong>s de idade.<br />

177


- Como pode ter certeza disso, minha amiga?<br />

- Ahn, Nathanael, eu já vivi por <strong>aqui</strong>!<br />

- Como? Está querendo me dizer que teve uma existência como<br />

essênia?<br />

- Não, não. Espere, Nathanael!<br />

Como que tomada de grande espanto e ferida por ter entrado <strong>no</strong><br />

mundo da memória espiritual, sem estar pre<strong>para</strong>da, Cornélia<br />

desabou <strong>no</strong> solo. Permaneceu inconsciente até o momento em que<br />

Nathanael a observava, já acompanhado de Nathan, a quem ele fora<br />

pedir ajuda.<br />

Nathan aproximou de suas narinas uma substância desconhecida até<br />

de Nathanael. A palidez da moça foi sendo substituída lentamente<br />

pelo colorido habitual de suas faces. Mas, ao enxergar Nathan, um<br />

grito se soltou de seu peito e passou a soluçar, conversando com ele<br />

num dialeto desconhecido totalmente de Nathanael.<br />

Nathan ajudou a levantá-la e carregou-a <strong>para</strong> o primeiro degrau<br />

daquela escada esculpida na dura rocha. Só então ele aconselhou:<br />

- Agora, acalme-se. Somente quando sentir que seu coração voltou a<br />

bater num ritmo me<strong>no</strong>s apressado deve falar. E, veja bem, só fale se<br />

quiser. Se preferir permanecer em silêncio, nós entenderemos.<br />

Cornélia exclamou:<br />

- Ah, senhor, estou hoje passeando por um recanto que já me serviu,<br />

um dia, de moradia! Esta foi a minha Quinta Morada.<br />

Como Nathan e o amigo preferiram guardar o silêncio, ela<br />

continuou:<br />

- Já sei que vivi entre os árabes, num grupo de tuaregues. E também<br />

<strong>no</strong> Egito, na Índia, e num local que foi coberto pelas águas. Agora,<br />

reconheço este cenário, ainda que apresente diferenças. Os tempos<br />

vão acrescentando camadas sobre os territórios e os ambientes se<br />

modificam a ponto de <strong>no</strong>s parecerem sobrenaturais.<br />

178


Mas eu já vivi <strong>aqui</strong>, sim, quando os homens ainda cultivavam a<br />

beleza de uma família bem constituída. Eu era uma menina tão alta,<br />

que meus pais me <strong>no</strong>meavam em razão de minha altura.<br />

A minha tez era morena e o meu povo de origem eram os assírios.<br />

Mas meu pai saiu de sua cidade de nascimento, porque era um<br />

mercador empobrecido. Buscava arriscar-se <strong>para</strong> conseguir fortuna.<br />

Numa grande tempestade (estávamos em uma embarcação) fomos<br />

atirados em terras desconhecidas e os nativos <strong>no</strong>s içaram do mar.<br />

Das mãos deles, fui <strong>para</strong>r nas mãos de mercadores e se<strong>para</strong>da de<br />

meus pais.<br />

Aquela minha sina foi nefasta, porque os mercadores eram homens<br />

violentos. Venderam-me <strong>para</strong> um homem que se dizia hebreu. Esta<br />

foi a minha sorte. Esse grupo de hebreus se dirigiu <strong>para</strong> cá.<br />

Desejavam fundar por <strong>aqui</strong> uma comunidade sonhada por eles fazia<br />

muito tempo.<br />

Eu vi inúmeras cavernas serem perfuradas e eu mesma ajudei uma<br />

mulher que cuidava de mim a carregar pedras de um lado <strong>para</strong> o<br />

outro, até que <strong>no</strong>ssa "casa" ficou apropriada <strong>para</strong> <strong>no</strong>s receber. Antes<br />

disso, dormíamos ao relento.<br />

Eu não tinha medo de nada, era forte e muito curiosa.<br />

Minha curiosidade levou-me a me afastar desse casal adorável que<br />

cuidava de mim, porque eu não queria passar a minha vida naquela<br />

caverna. Eu desejava conhecer o mundo que existia a meu redor.<br />

Quando me tornei mocinha, peguei as poucas coisas que possuía e<br />

parti, não sem antes me despedir de um ancião ao qual me afeiçoara<br />

muito - o senhor.<br />

O senhor era um velho muito ranzinza, mas de coração generoso e<br />

justo. Não pude deixar de lhe contar que tinha uma necessidade<br />

e<strong>no</strong>rme de conhecer o mundo. E o senhor não me disse <strong>para</strong> não<br />

partir. Apenas me advertiu sobre as perigosas estradas e lembrou-me<br />

que, se ali permanecesse, poderia conhecer o que era paz e<br />

tranqüilidade; que ali mesmo eu poderia crescer em valor.<br />

179


Mas, quando o senhor viu que suas palavras não exerciam influência<br />

em minha vontade, foi <strong>para</strong> dentro da caverna e me entregou um<br />

talismã. O senhor me disse que o Deus Sol me acompanharia por<br />

onde eu fosse, <strong>para</strong> que tivesse a força, o vigor e o calor dele. O<br />

talismã era um Sol gravado em pedra.<br />

Entendi o que me esclarecia e guardei o presente que me ofertava.<br />

Caminhei, caminhei muito, e acredito que não precisei enfrentar a<br />

fúria de homens cruéis, porque seu talismã me protegeu.<br />

Quando já era adulta, encontrava-me num povoado onde os homens<br />

eram pescadores. Casei-me, tive dois filhinhos e ali morri.<br />

Nathan comentou:<br />

- Acredito <strong>no</strong> que me conta, Cornélia. Seu porte e seu olhar não me<br />

são estranhos. Não sei se você sabe que conservamos em <strong>no</strong>ssos<br />

corpos físicos alguns traços que nem o correr dos séculos consegue<br />

apagar.<br />

Nathan fitou o horizonte e depois complementou:<br />

- Eu também sei que as almas que são afins jamais se despedem.<br />

Apenas se afastam, <strong>para</strong> se exercitarem <strong>no</strong>s cenários diferentes da<br />

vida. Mas... vejo que já está serena. Nathanael pediu-me <strong>para</strong><br />

conversar um dia com você. Agora, pelo que me contou, vejo que<br />

precisaremos de mais de um dia <strong>para</strong> os <strong>no</strong>ssos encontros.<br />

Cornélia observou, sorrindo <strong>para</strong> ele:<br />

- Sabe que até um dias desses eu ainda adorava o Sol?<br />

- Quer dizer, então, que o Nosso Mestre, o Nosso Messias,<br />

conseguiu provar-lhe que Deus é maior do que o Sol, não é assim?<br />

Antes que Cornélia respondesse, Nathanael fez um pedido.<br />

- Gostaria de fazer parte das conversas que tiverem, Nathan. O que<br />

Cornélia contou agora me faz ver que pouco a conheço.<br />

- Não diga isto, Nathanael, eu já lhe havia falado de minhas visões e<br />

audições também - Cornélia censurou-o.<br />

- Mas nunca se referiu ao fato de que consegue penetrar facilmente<br />

nas paisagens de suas vidas anteriores.<br />

180


- Não tão facilmente, Nathanael. O que me aconteceu hoje é bem<br />

raro.<br />

- É que este local colabora <strong>para</strong> isto, Cornélia - esclareceu Nathan. -<br />

Há em tor<strong>no</strong> de Qumran vibrações tão espetaculares, que muitos<br />

jamais captarão. Mas, por seu entendimento, vou até lhe mostrar um<br />

recinto que permanece sagrado <strong>para</strong> nós. Não do Santuário.<br />

- Obrigada, Nathan. O que eu mais desejava era encontrar um local<br />

que me favorecesse, <strong>para</strong> reencontrar a serenidade que perdi com a<br />

morte de Joshua.<br />

Nathan franziu o cenho, ao ouvi-la referir-se ao Salvador<br />

simplesmente como Joshua. Mas não a recrimi<strong>no</strong>u.<br />

- Você já sabe que <strong>no</strong> Santuário não poderá entrar. Mas façamos<br />

assim: d<strong>aqui</strong> a sete dias, quando os visitantes tiverem partido em<br />

busca de seus lares ou comunidades, vou pedir que esteja pre<strong>para</strong>da<br />

<strong>para</strong> você uma tenda em local não proibido <strong>para</strong> uma criatura que<br />

não pertença à <strong>no</strong>ssa raça. Tenho certeza de que poderei conseguir a<br />

anuência dos demais sacerdotes, principalmente porque estará em<br />

companhia de Débora, que é essênia como nós.<br />

Nathanael olhou-a, maroto, como que dizendo: Viu? Eu não falei?<br />

Nathan afastou-se feliz pelo reencontro inesperado.<br />

181


Trinta e Cinco<br />

Era belíssimo o espetáculo <strong>no</strong>tur<strong>no</strong>, quando centenas de criaturas<br />

acendiam suas lamparinas dentro das tendas e as silhuetas se<br />

desenhavam em movimentos tranqüilos, na meia obscuridade,<br />

pre<strong>para</strong>ndo-se <strong>para</strong> o descanso de mais um dia. Crianças, jovens,<br />

velhos, mocinhas silenciosas, e até garotos impetuosos quebrando o<br />

silêncio da <strong>no</strong>ite com seus risos cristali<strong>no</strong>s.<br />

Uma alegria imensa se manifestou em Cornélia, que começou,<br />

então, a captar o <strong>no</strong>vo sentido que a vida lhe entregava.<br />

Embora na presença de estranhos, ressoava em seu coração,<br />

claramente, o significado de alguns ensinamentos de Joshua,<br />

principalmente o que se referia ao amor universal.<br />

Então amar é isto, ela pensou. É buscar a compreensão de tudo, e<br />

sobre todos, mesmo que seja assim, ao lado de estranhos, e<br />

permitindo que chegue até nós a carícia de dividir e de compartilhar.<br />

Estou percebendo que algumas dessas pessoas tentam se aproximar<br />

de mim, sem o interesse de saber, ou não, se eu leio nas mesmas<br />

linhas da crença que eles seguem. Vejo que eles me olham<br />

prazerosos, explicam-me o que preferem ou falam do que gostam,<br />

sem que em um ínfimo momento sequer me convidem <strong>para</strong><br />

compartilhar d<strong>aqui</strong>lo que é necessário apenas <strong>para</strong> eles. Com isto,<br />

sinto-me integrada <strong>no</strong> mundo dos essênios e nem preciso expor<br />

<strong>para</strong> eles o que o "meu Deus" fala por mim.<br />

Ah, é adorável a sensação que este lugar me traz! Cornélia<br />

continuava a refletir, num arrebatamento cheio de calor.<br />

Olhou <strong>para</strong> o céu que, em contraste com a escuridão da <strong>no</strong>ite,<br />

assemelhava-se a uma cidade iluminada, com estrelas reluzindo em<br />

182


eciprocidade às pequenas e modestas lamparinas transformadoras<br />

do escuro breu.<br />

Quão magnífico e justo é Deus, que <strong>no</strong>s permite imitar <strong>aqui</strong> o que<br />

existe em plenitude lá em cima. Até as constelações do céu definem<br />

as formas do mundo da Terra. Quem sabe um dia, quando eu for<br />

sábia e atenta, vou entender mais facilmente o significado daquelas<br />

moradas lá do alto.<br />

Não posso sinceramente acreditar que o mundo se resume nessa<br />

minúscula caminhada que a gente consegue perceber só algumas<br />

vezes. Estou certa de que sou uma criatura antiga e que tive uma<br />

vivência bem maior do que as que consegui captar. Cinco moradas.<br />

Ah, não creio que minha alma tenha se limitado a vir, pelo<br />

nascimento e <strong>para</strong> a Terra, apenas cinco vezes. Não, não posso,<br />

principalmente porque tive a graça de conhecer o Anjo<br />

Misericordioso, Joshua, que procurou me demonstrar a beleza e a<br />

validade da vida.<br />

Até mesmo por isso nem tenho o direito de continuar a levar os<br />

meus dias da forma que levo, achando que o mundo e o <strong>para</strong>íso<br />

foram destruídos, depois que destruíram o meigo Joshua.<br />

Enquanto assim refletia, Cornélia, abstraída, não percebeu a<br />

presença de Débora a seu lado. Mas, quando a <strong>no</strong>tou, viu Débora<br />

apontar <strong>para</strong> uma das estrelas brilhantes do céu.<br />

- Aquela é a minha favorita, Cornélia. Acompanho-a sempre, nesta<br />

minha passagem <strong>aqui</strong> pela Terra. Desconheço o <strong>no</strong>me dela, porque<br />

não sou versada em astro<strong>no</strong>mia, mas ela é a razão de meu olhar; eu<br />

a comparo com Yohanan. E acho que da mesma forma que ela, ele<br />

acena <strong>para</strong> mim a distância.<br />

- Você é uma criatura belíssima, Débora. Fala da morte e do<br />

afastamento de uma criatura como se isto não a atingisse. E, ao<br />

ouvi-la, estou certa de que nem duvida, por um milésimo de<br />

segundo sequer, da existência de um outro lugar <strong>para</strong> a <strong>no</strong>ssa<br />

morada, depois que tivermos que partir d<strong>aqui</strong>.<br />

- Mas não duvido mesmo, minha amiga. Eu acho que Joshua e<br />

Yohanan vieram de uma daquelas estrelas mais luzentes do céu.<br />

183


Aí, ela sorriu docemente e concluiu:<br />

- Ainda bem que existem milhares de estrelas pequeninas também,<br />

tão pequenas que <strong>no</strong>ssos olhos nem as percebem. Para uma dessas é<br />

que irei, até que meu Deus me arranje uma possibilidade de viajar<br />

até a estrela de Yohanan. Se <strong>aqui</strong> a gente caminha <strong>para</strong> tantos<br />

pontos distantes, por que não pode acontecer o mesmo lá <strong>no</strong> céu? E,<br />

confiante, prosseguiu:- Quando isto for possível, vou procurar o<br />

Yohanan e vou dizer <strong>para</strong> ele que também sou uma pequenina<br />

estrela das hostes do céu. Se ele interessar-se...., ótimo. Caso<br />

contrário, vou ter mesmo que procurar um outro Anjo que se<br />

assemelhe a ele. E ela sorriu, intimidada, porque sentia que tinha<br />

sido ousada pelo que acabava de confessar <strong>para</strong> Cornélia.<br />

Cornélia passou o braço pelos ombros da amiga, comentando:<br />

- Se ele não a enxergar, vou pensar que os Anjos têm visão limitada<br />

- e riu brejeira.<br />

Débora ruborizou-se e repreendeu-a:<br />

- Não desfaça a beleza dos Anjos só por minha causa. Não mereço<br />

tanto de sua parte.<br />

- Merece, sim, mas diga-me uma coisa, você deseja me acompanhar,<br />

quando eu for conversar com o Nathan? Ele pode <strong>no</strong>s esclarecer<br />

muito.<br />

- Não, Cornélia. Nós duas somos como folhas de árvores diferentes.<br />

Você já está procurando entender as razões de sua vida. Eu ainda<br />

nem tenho a certeza se esta é a minha primeira experiência nesta<br />

terra.<br />

- É assim que pensa?<br />

- Sim. Creio que existem almas sendo criadas também. E quem me<br />

garante que não fui criada agora? Jamais tive qualquer revelação de<br />

uma outra vivência.<br />

- Entendo seu argumento e não sou capaz de esclarecer isto <strong>para</strong><br />

você. Mas... acho que você não parece tão <strong>no</strong>vinha assim - disse<br />

convicta.<br />

184


Quando Débora se afastou <strong>para</strong> repousar, uma estrela cadente<br />

assinalou o céu com um rastro brilhante e desapareceu de seus<br />

olhos. Decidiu-se naquele momento também ir deitar, porque a<br />

madrugada não tardaria a se revelar.<br />

De manhãzinha, ouviu Débora a cantarolar belíssima melodia,<br />

enquanto pre<strong>para</strong>va frugal refeição <strong>para</strong> as duas. Débora tinha as<br />

faces coradas e, <strong>no</strong> olhar, a mesma intensidade do brilho da estrela<br />

que lembrava Yohanan.<br />

- O que houve, Débora? Algum acontecimento bom já pela manhã?<br />

Recebeu alguma <strong>no</strong>tícia alvissareira de sua casa?<br />

- Não - ela respondeu, ligeira -, nem sei como lhe explicar. Mas<br />

sinto como se fosse mesmo receber uma <strong>no</strong>tícia inesperada, que já<br />

me transborda em afeto <strong>no</strong> coração. É como se...<br />

- Como se...?<br />

- Se eu fosse me comunicar com o Yohanan. Mas veja que tola eu<br />

sou! Só <strong>para</strong> você eu me atrevo a dizer isso, porque tem sido<br />

compreensiva e boa <strong>para</strong> mim.<br />

- Ah, minha amiga, permita-me então aconselhá-la.<br />

- Pode dizer o que quiser.<br />

- Você precisa viver a vida da terra, Débora. Yohanan está perdido<br />

<strong>para</strong> você tanto quanto Joshua <strong>para</strong> nós. O que eles querem mesmo é<br />

que vivamos em alegrias, mesmo sem eles.<br />

- Mas eu nunca pensei em levar a minha vida <strong>no</strong> descaso, na<br />

indiferença ou na dor, Cornélia. O que eu resolvi na <strong>no</strong>ite passada<br />

foi muito simples, creia. Tão simples, que nem posso entender como<br />

não pensei nisso antes.<br />

- E o que foi? O que decidiu fazer, que a levou a cantarolar como<br />

simples avezinha num ninho?<br />

- Exatamente isto. Vou pedir <strong>para</strong> os sacerdotes-anciãos que me<br />

deixem morar na caverna de Yohanan. Vou tentar ver se eles me<br />

aceitam como uma estudiosa entre eles, enquanto cuido de crianças<br />

185


essênias. Esta pode ser a minha forma de comunicar-me com<br />

Yohanan.<br />

- Mas, Débora, não vê que <strong>para</strong> os essênios as mulheres devem<br />

apenas cuidar dos afazeres da casa?<br />

- Disso eu sei muito bem. Mas minha proposta vai ter algo<br />

incomum. Vou me propor cuidar de meni<strong>no</strong>s que estejam em<br />

comunidades muito distantes. Ofereço-lhes os meus trabalhos da<br />

casa, claro. E as crianças ficam vivendo mais próximas do Santuário<br />

do que estão. Há muitos pais que vão gostar de que seus filhos<br />

estejam por <strong>aqui</strong>. E só não conseguem isto, porque precisam se<br />

manter longe, entende? Ela continuou, feliz: - Eles podem passar <strong>no</strong><br />

Santuário o tempo que lhes for exigido <strong>para</strong> se pre<strong>para</strong>rem. E <strong>no</strong>s<br />

momentos de lazer estarão sob meus cuidados. Estarei fazendo o<br />

papel de servidora dos filhos dos essênios.<br />

Cornélia olhou-a, pasma.<br />

- Mas... mas... você pensou bem nisso que vai propor? Não acha que<br />

deveria casar-se e cuidar dos próprios filhos?<br />

- Não, eu não acho. Meu coração até bate apressado, quando penso<br />

nisto. E tenho quase certeza de que vão me aceitar perto deles. No<br />

próximo a<strong>no</strong>, quando celebrarmos de <strong>no</strong>vo a data que agora<br />

celebramos, já vou estar por <strong>aqui</strong> com uma <strong>no</strong>va função.<br />

Cornélia não mais insistiu. Até conseguia crer que Débora seria<br />

mesmo uma simples avezinha entre eles. Mas desejava do fundo da<br />

alma que os roma<strong>no</strong>s não fizessem planejamentos contrários<br />

àqueles, destruindo o belo Santuário.<br />

Foi interrompida em suas análises por Débora:<br />

- Seu olhar a distância me diz que acabou concordando com meus<br />

argumentos, Cornélia. Nem sabe como estou feliz em tê-la comigo.<br />

Que bom que pedi a Nathanael que lhe entregasse o manuscrito de<br />

Yohanan. Só assim nós duas conseguimos <strong>no</strong>s reunir e eu posso<br />

dividir com você este meu sonho. Quando minha proposta receber<br />

aceitação, quero que saiba que terei uma imensa satisfação em<br />

recebê-la em minha casa, <strong>aqui</strong> próximo de Qumran e nesta região do<br />

186


Mar Morto que você tanto ama. Terá nela um abrigo sempre que<br />

desejar. E, se a vida se tornar difícil <strong>para</strong> você, venha até mim.<br />

Poderemos dividir lar e estudos.<br />

Cornélia anuiu em silêncio, olhando-a com afeto.<br />

"Bendita criatura, que me oferece algo que jamais pensei em buscar<br />

- um ninho entre os essênios. Se Hannah estivesse <strong>aqui</strong>, brincaria<br />

mais uma vez, dizendo-me que agora consegui um ninho de<br />

gaivotas sem o arroio, mas com um belo mar. Ah, Hannah, minha<br />

vida ainda pode ser extraordinária. Pode, sim!"<br />

187


Trinta e Seis<br />

O Festival do Vinho já havia encerrado, quando Nathan avisou <strong>para</strong><br />

Cornélia que fora erguida uma tenda <strong>para</strong> ela passar uns tempos <strong>no</strong><br />

silêncio daquele território. Por sua vez, Débora já havia conciliado<br />

seu coração com a oferta feita aos sacerdotes essênios.<br />

A princípio, haviam balançado a cabeça em negativas - em relação a<br />

Débora -, porque era a primeira vez que uma mulher se oferecia <strong>para</strong><br />

servidora e <strong>para</strong> estudos entre eles, ainda que fora dos muros do<br />

Santuário.<br />

Lá dentro, havia as que prestavam humildes serviços de limpeza e<br />

pre<strong>para</strong>tivos de alimentos, mas elas não se interessavam pelos<br />

estudos dos manuscritos considerados sagrados.<br />

A proposta de Débora foi considerada de grande ousadia. Só pelo<br />

fato de que pertencia a uma família de essênios foi levada em<br />

consideração e estudada. De alguns sacerdotes, ganhou votos<br />

favoráveis, porque não viam qualquer interferência ou quebra do<br />

ritmo em que viviam.<br />

Outros negaram inteiramente que vivesse <strong>no</strong> antigo lar de Yohanan,<br />

porque se distanciava muito do Santuário, já que a finalidade da<br />

presença de Débora seria cuidar dos meni<strong>no</strong>s que o freqüentariam.<br />

O mais razoável, então, seria morar o mais próximo possível, a fim<br />

de facilitar a caminhada das crianças <strong>para</strong> o Santuário. Esses não<br />

discutiram com Nathan, quando ele afirmava a validade da proposta<br />

de Débora.<br />

Havia aqueles que apoiavam calorosamente a idéia de pre<strong>para</strong>rem<br />

os filhos dos essênios que se lamentavam de não poder participar<br />

daqueles rituais assiduamente, apenas porque haviam optado pela<br />

organização familiar e viviam muito longe dali. Estando entre eles,<br />

188


essas crianças poderiam receber cuidados redobrados e com<br />

possibilidade de se tornarem mais cedo sacerdotes entre eles.<br />

Depois de muitas argumentações, análises e pareceres, a proposta de<br />

Débora foi aceita. Sua família foi chamada perante eles e só depois<br />

disso ficou definido um <strong>no</strong>vo rumo <strong>para</strong> a vida de Débora.<br />

As conversas entre Nathanael, Nathan e Cornélia foram adiadas,<br />

porque Nathan se tor<strong>no</strong>u responsável pela orientação e organização<br />

da vida de Débora entre eles.<br />

Mas Débora e Cornélia ficaram espantadas com a coincidência de<br />

um fato: a caverna onde Débora faria suas meditações e seus<br />

estudos era exatamente a que Cornélia tinha tido, um dia, em suas<br />

visões. Tudo parecia ligar-se como se um extenso e fantástico<br />

bordado estivesse sendo composto pelas mãos do Criador. Também<br />

algumas tendas seriam erguidas ali nas proximidades. Seriam<br />

reservadas <strong>para</strong> oficinas das crianças e até os alimentos iriam ser<br />

nelas pre<strong>para</strong>dos por Débora. Bancadas seriam montadas <strong>para</strong> ela<br />

também, <strong>para</strong> que fizesse a<strong>no</strong>tações <strong>para</strong> Nathan. Ele havia proposto<br />

utilizar Débora como sua auxiliar mais próxima, nas a<strong>no</strong>tações dos<br />

recados que costumava passar na comunidade. Débora, portanto,<br />

seria uma assistente-auxiliar de Nathan.<br />

E Cornélia?<br />

Na manhã em que saíram os últimos visitantes dos festejos, foi<br />

procurada por Nathanael.<br />

- Nathan lhe pede que aguarde uns dias mais pelos encontros<br />

prometidos. Ocupou-se de Débora, antes de poder atendê-la,<br />

Cornélia. Além disso, precisou interferir com uma certa força junto<br />

a alguns familiares de Débora, especialmente a avó, que jamais<br />

apresentou tolerância <strong>para</strong> os que não seguem os rumos do que ela<br />

pensa.<br />

- O que houve com ela?<br />

- Apressou-se a brigar com o pai de Débora, por ter ele permitido<br />

que ela se tornasse uma servidora dos filhos dos essênios. Pensa que<br />

Débora é apenas uma criança e, como tal, só deveria estar <strong>no</strong><br />

189


próprio lar <strong>para</strong> os aprendizados domésticos. Não consegue ver que<br />

a neta já é uma criatura amadurecida, sensata e livre <strong>para</strong> determinar<br />

o que prefere.<br />

- Entendo. Conheci a anciã. Pareceu-me... bastante temperamental e<br />

brava. Débora analisa isto como uma questão da criação que a avó<br />

teve.<br />

- Em parte é, sim, Cornélia. Mas eu posso afirmar que as pessoas só<br />

não mudam, quando não querem. Veja você o caso da própria<br />

Débora. Não guarda a ranzinzice da avó e nem a intolerância do<br />

próprio pai. Mas... e você, como vai, Cornélia?<br />

- Mudando. Este tempo que passei <strong>aqui</strong> foi muito valioso,<br />

Nathanael. Até consegui esquecer uns certos dissabores de Roma e<br />

da viagem que fiz até alcançar este local.<br />

- Eu soube que Flavius já descobriu que você está com Débora - ele<br />

informou.<br />

- Não me importo mais com o que os roma<strong>no</strong>s vão fazendo de<br />

minha figura. Vou até à minha casa em Nazaré, quando sair d<strong>aqui</strong>.<br />

Assim, eles verão que não os temo. E, <strong>para</strong> falar a verdade, o que<br />

poderão fazer comigo? Matar-me?<br />

Nathanael respondeu:<br />

- Acho que os governantes de Roma estão tão mergulhados num<br />

labirinto de injustiças, que não vão se importar se você ainda tece<br />

loas a Joshua. O caso deles agora é manter o poder, o comando e,<br />

quer saber? Manter o medo de dissolver-se <strong>no</strong> próprio emaranhado<br />

que teceram.<br />

- Por que diz isto?<br />

- Ahn, o jogo da política é tolo nas mãos de gente vaidosa. Eu até<br />

agradeço ao Alto por serem tão vaidosos assim, <strong>para</strong> não<br />

encontrarem tão rapidamente o caminho da crueldade.<br />

- Espanta-me que fale assim. Quer maior crueldade do que já<br />

fizeram?<br />

- Eles ainda podem centuplicá-la, Cornélia.<br />

190


- Sim, sim, eu sei. Mas sinto, <strong>no</strong> momento, que o que posso fazer é<br />

muito pouco <strong>para</strong> mudar este encaminhamento. Pouco mesmo.<br />

- Os seguidores de Joshua estão sendo inteligentes, Cornélia. Não<br />

são tão numerosos, porém vão espalhando as mensagens por vários<br />

caminhos. Elas vão seguindo pelas palavras escritas e pelas<br />

palavras contadas. Só assim mesmo <strong>para</strong> alcançarem maior número<br />

de olhos e ouvidos.<br />

- O que você acaba de me dizer me leva agora a pensar em algo.<br />

Quem sabe também posso colaborar escrevendo. Débora já se<br />

propôs a estudar.<br />

- Escrevendo??<br />

- Por que não? Também participei - e com toda minha alma - dessa<br />

História escrita por <strong>aqui</strong>.<br />

- Pense bem <strong>no</strong> que está dizendo, Cornélia - ele olhou-a sério. -<br />

Converse antes de tudo com Nathan. Aconselhe-se com ele.<br />

- Nesses últimos dias eu me sinto como se estivesse dentro de uma<br />

embarcação, onde os remos são empunhados por gente de pulso<br />

firme e com uma boa visão dos rumos e das marés.<br />

- Mas está sendo incoerente, quando se refere a empunhar os seus<br />

próprios remos.<br />

- Por quê? O convite de Débora me fez sentir como se ressoasse<br />

dentro de mim uma cítara bem tocada. Eu acho que posso compor<br />

boas escritas também, Nathanael.<br />

- E acredita que vai influir <strong>no</strong>s anciãos tanto quanto Débora? Não se<br />

esqueça de que ela será apenas uma serviçal. Você está pretendendo<br />

ser uma instrumentista. Não, eu não creio que vai conseguir a<br />

permissão deles <strong>para</strong> isso. Principalmente, porque me parece que<br />

está misturando tudo - escritas sagradas com pensamentos próprios<br />

seus. Procure outra forma de trabalho, Cornélia - ele disse com<br />

rispidez.<br />

191


Trinta e Sete<br />

A permanência de Débora entre os essênios seria de dupla utilidade<br />

<strong>para</strong> ela. Já sabia que todos ali se pre<strong>para</strong>vam, antes de tudo, <strong>para</strong> a<br />

Vida. E isto remetia à prática de virtudes consideradas básicas <strong>para</strong>,<br />

um dia, alcançarem a Sabedoria e a Perfeição <strong>no</strong>s atos e<br />

pensamentos.<br />

Por essa razão é que existiam "faixas de aprendizado e de subida<br />

<strong>para</strong> as iniciações", que tinham a ver tanto com os valores da alma<br />

quanto com os do coração. Os valores da alma referiam-se às<br />

Virtudes. Os do coração eram submetidos às afeições terrenas, <strong>para</strong><br />

que se tornassem capazes de chegar ao caminho da Retidão. E o<br />

caminho da Retidão tinha tudo a ver com Justiça, Continência e<br />

Abnegação <strong>no</strong> servir. Quanto mais servissem - despojados da<br />

intolerância e da vaidade - mais próximos se encontrariam do<br />

Caminho do Meio, aquele que poderia demonstrar que não mais<br />

eram homens extremistas e insensatos.<br />

As práticas ritualísticas realizadas pelos que freqüentavam o<br />

Santuário, <strong>no</strong>s banhos, nas refeições comunitárias, nas meditações e<br />

nas recitações de palavras sagradas, eram um dos meios de que se<br />

utilizavam <strong>para</strong> ir adquirindo "os dons", que uns alcançavam bem<br />

antes do que outros. E eles mesmos se sentiam seguros (ou<br />

inseguros), ao serem convidados <strong>para</strong> se manifestarem livremente,<br />

por ocasião da subida dos degraus, ou troca de "faixas", até o que<br />

significaria <strong>no</strong>va tarefa a ser realizada perante o grupo.<br />

Os essênios eram criaturas criteriosas, estudiosas, amantes do<br />

progresso, das virtudes e da vida. Preocupavam-se, sinceramente,<br />

com o desenvolvimento dos seres. Portanto, era pelo que se<br />

considerava material que treinavam a força <strong>para</strong> alcançarem o<br />

sucesso de seus empreendimentos, isto é, que lutavam <strong>para</strong> não<br />

192


deixar que a matéria sobrepujasse os valores da alma. Por isso não<br />

se apegavam aos bens terre<strong>no</strong>s. Afinal de contas, as almas<br />

pertenciam a Deus.<br />

Viver comunitariamente era também uma forma de vencer o<br />

egoísmo e a usura, principal entrave <strong>para</strong> quem desejava alcançar o<br />

Criador. Os bens de propriedade e as <strong>aqui</strong>sições de cada um eram<br />

revertidos a benefício do grupo.<br />

Débora precisou conhecer estes ditames, <strong>para</strong> que suas orientações<br />

junto às crianças não se desviassem dos pre<strong>para</strong>tivos daquela<br />

Grande Família. Mas seu modo de ser gentil, amoroso, responsável<br />

e respeitoso entregou rapidamente aos anciãos de Qumran a certeza<br />

de que sua presença ali seria útil e valiosa.<br />

Cornélia, por seu lado, procurou Nathan, após a conversa mantida<br />

com Nathanael. Entristeceu-se, porque sentiu que o amigo<br />

considerava dispensável a tarefa escolhida por ela. Mas de Nathan<br />

ouviu o seguinte:<br />

- Vejamos, Cornélia, primeiro de tudo quais são os motivos que a<br />

levam a pensar em escrever?<br />

- Transmitir as mensagens passadas por Joshua e que se referiam ao<br />

Amor do Divi<strong>no</strong> por nós. Em nenhum momento Joshua deixou de<br />

<strong>no</strong>s alertar que tudo o que ele realizava vinha do Pai. Era, portanto,<br />

o Amor do Pai a essência dos ensinamentos do Filho.<br />

- E depois? - Nathan insistiu.<br />

- Depois, falar sobre a Felicidade prometida <strong>para</strong> nós, apesar de <strong>no</strong>s<br />

ter alertado sobre as inúmeras dificuldades <strong>para</strong> chegarmos até ela.<br />

Sei que posso utilizar as minhas próprias palavras até <strong>para</strong> expressar<br />

a sensação de felicidade que Joshua passava apenas por sua<br />

presença, quando se dirigia a cada um.<br />

- Eu sei disso, Cornélia - ele emocio<strong>no</strong>u-se. - As pessoas eram<br />

atingidas por sua vibração amorosa, não apenas pelas palavras.<br />

Vendo-o interessar-se pelo que explicava, continuou:<br />

- Também quero me referir à aceitação que as criaturas deveriam ter<br />

pelos outros seres, pela maneira de ser de cada um, visto que, por<br />

193


esse aspecto, Joshua demonstrava que ninguém deveria lançar<br />

pedras <strong>no</strong>s companheiros. E isto é bem lógico, não é? Nós todos <strong>no</strong>s<br />

igualamos, principalmente, em imperfeições.<br />

- Sim, e ele não fazia questão de realçar a miséria humana.<br />

- Não mesmo. Para ele, nós todos éramos generosos, e isto se <strong>no</strong>s<br />

deixássemos abençoar pela Luz.<br />

- E você deixou, minha amiga?<br />

- Nem sempre. Muitas vezes preferi ficar escondida, por razão de<br />

atos meus dos quais me envergonhava. Eu sabia que ele tudo<br />

enxergava, tudo conhecia, mas que nem assim deixava de me<br />

abençoar, Nathan.<br />

Nathan, então, aconselhou:<br />

- Se você me permitir, não vou me abster de ler a sua escrita, mas<br />

gostaria de acrescentar censuras, se por acaso comentar algo que os<br />

essênios não aprovem. Permite-me isto?<br />

- Só por esta pergunta <strong>no</strong>to que aceita minha proposta e que pensa<br />

diferente de Nathanael. Ele me repreendeu, por achar que vou<br />

misturar o sagrado com o profa<strong>no</strong>.<br />

- Sabe de uma coisa, Cornélia? Eu considero sagradas apenas as<br />

escrituras que chegaram até nós, dos Profetas Antigos, que<br />

baseavam suas experiências em fatos acontecidos com eles mesmos.<br />

Ninguém pode "se pôr fora" de uma escrita. Se fosse assim, ela não<br />

sairia da alma.<br />

- Quer dizer que não renega o fato de eu ser apenas mulher e...<br />

Aí Nathan sorriu:<br />

- Nem creio que Nathanael a renegue também. Certamente ele ficou<br />

acalorado, por ver que você preferia escolher rumos difíceis. Ele<br />

também sabe que não é fácil colocar a própria alma nas escritas.<br />

Além disso, o que você vai a<strong>no</strong>tar não será misturado com <strong>no</strong>ssos<br />

manuscritos, evidentemente. Você mesma deverá se encarregar dos<br />

rumos do que escrever, já sabe disto. Será uma boa forma de investir<br />

<strong>no</strong> mundo dos Homens.<br />

194


Cornélia mostrou-se satisfeita.<br />

- Então, amanhã mesmo vou pedir <strong>para</strong> a Débora me emprestar por<br />

algumas horas a caverna, onde ela própria faz as suas meditações.<br />

- Ora, por quê? - ele questio<strong>no</strong>u, surpreso. - Se há tantas cavernas<br />

por aí...<br />

- Porque eu sei que a dela transcende em luz, Nathan. Débora é uma<br />

criatura de grande valor.<br />

- E você não é?<br />

- Não tenho certeza.<br />

- Melhor assim - ele afirmou e afastou-se <strong>para</strong> seus afazeres.<br />

195


Trinta e Oito<br />

Nem sempre a tranqüilidade imperava em Qumran.<br />

Na ocasião em que Débora e Cornélia abraçaram o caminho das<br />

meditações, abrigadas <strong>no</strong> silêncio daquelas vastidões, muitos<br />

peregri<strong>no</strong>s viajavam por ali levados por outras espécies de atrativos.<br />

A política humana, desde que o mundo é mundo, sempre apresentou<br />

rumos diversificados não apenas pela diversidade dos seres, como<br />

também pelas mudanças dos valores que se vão inserindo por esta<br />

prática, com a passagem contínua dos calendários terre<strong>no</strong>s.<br />

As lições de humildade do Nazare<strong>no</strong>, morto na cruz <strong>para</strong> entregar a<br />

luz do entendimento aos homens, ia seguindo, agora, as rotas<br />

dispostas pelos que se sentiam marcados por Ele. Galiléia, Judéia,<br />

Peréia, Samaria, Iduméia e outros tantos territórios ganhavam o<br />

conhecimento das Parábolas do Mestre e dos casos de cura<br />

considerados miraculosos por muitos.<br />

Casos existiam que levavam as mães às lágrimas - pela recuperação<br />

de seus filhos -, os escravos ao regozijo - pela libertação da alma -,<br />

as crianças à presença do divi<strong>no</strong> - pela certeza de que existiam <strong>no</strong><br />

mundo Anjos misericordiosos e não apenas deuses de barro.<br />

Até os roma<strong>no</strong>s das famílias dos <strong>no</strong>bres e que obedeciam<br />

rigidamente ao comando de seus superiores continuavam à busca de<br />

informações. Alguns - que tinham servido como mantenedores da<br />

ordem, durante e após a passagem de Joshua - não mais<br />

esbravejavam acerca do poderio do simples filho de carpinteiro.<br />

Mas continuavam escudados ou na ig<strong>no</strong>rância ou na indiferença,<br />

como Flavius.<br />

Flavius havia recebido ordem de se aquartelar perto de Jericó,<br />

portanto, nas vizinhanças de Qumran. E ele não desconhecia o<br />

196


<strong>para</strong>deiro de Cornélia, visto que fora informado do fato pelo próprio<br />

serviçal de Cornélia, Timóteo. Timóteo tinha sido avistado por ele<br />

num mercado, enquanto fazia compras de provimentos <strong>para</strong> a casa<br />

de Cornélia em Nazaré, onde ele se encontrava auxiliando uma<br />

serviçal de Cornélia chamada Lina, que substituira Zínia. Ao tomar<br />

conhecimento do <strong>para</strong>deiro daquela mulher que o havia colocado<br />

em má situação, fugindo de sua presença, Flavius logo pensou na<br />

hipótese de ir encontrá-la, <strong>para</strong> retirar informações a respeito de<br />

Qumran. Quem sabe entregaria anzóis <strong>para</strong> ela, e ela os devolveria<br />

com peixes e tudo.<br />

Era uma época de grandes dissenções entre os próprios judeus. Os<br />

que se dedicavam ao sacerdócio – alguns do próprio Sinédrio, mas<br />

que não eram essênios - amavam o conforto e o luxo. Acreditavam,<br />

contudo, que já estavam entregando os seus recados essenciais, pois<br />

ofertavam paz e prosperidade <strong>para</strong> a própria família. Eram<br />

independentes, então, do que Joshua proclamava.<br />

Esses judeus não apreciavam as comunidades dos essênios, visto<br />

que os essênios apregoavam o amor pela vida e o desapego ao<br />

mundo ilusório. E mundo ilusório era exatamente o apego à carne e<br />

às posses materiais. Para quem achava que o progresso financeiro<br />

não devia ser apontado como ig<strong>no</strong>minioso, pecami<strong>no</strong>so ou fatal <strong>para</strong><br />

a evolução das almas, havia muitas diferenças a afastá-los.<br />

Sendo tão grande a variedade de interesses e de ideais, o choque das<br />

opiniões alicerçava as dissenções. Portanto, a união e a fraternidade,<br />

que tanto Joshua relembrava, iam ficando de lado.<br />

Flavius desejava inteirar-se sobre a comunidade de Qumran. Foi ao<br />

encontro de Cornélia e de Nathanael.<br />

A princípio, falou sobre alguns acontecimentos de amigas de<br />

Cornélia.<br />

Celeste vivia em Roma, na magnífica propriedade que comprara de<br />

Teodoro. Com a morte de Lélia, a casa oferecia pesadelos ao<br />

famoso senador roma<strong>no</strong>, de modo que ele não se opôs à proposta de<br />

compra feita a ele por Celeste.<br />

197


Otávia passara a ser figura de relevo em Roma, só que <strong>no</strong> sentido<br />

inverso ao que esta afirmativa faz pensar. Era vista como criatura<br />

fraca da cabeça e do coração. Isso porque havia mudado seu modo<br />

de vida. Havia herdado uma fortuna imensa com a morte de seu pai,<br />

Orígenes, e construiu, em Tiro, uma espécie de abrigo <strong>para</strong> auxílio<br />

de crianças contaminadas pela lepra, doença considerada maligna.<br />

" Talvez até por isso Otávia se tenha desfeito de seu patrimônio pela<br />

metade", pensou Cornélia, quando soube dos <strong>no</strong>vos pla<strong>no</strong>s da<br />

amiga."Tiro, capital marítima da Fenícia, <strong>no</strong> Mediterrâneo, é um<br />

movimentado porto que permite a toda aquela região se pôr em<br />

contato com o mar. Ali a fraternidade essênia tem alianças com<br />

gente estudiosa do distante Oriente, que também possui escolas de<br />

estudos divi<strong>no</strong>s". Cornélia ia pensando rapidamente sobre estes<br />

fatos, pois Nathan havia se referido sobre os inúmeros locais<br />

disseminados em outros territórios, e com a presença de essênios.<br />

Mas Flavius continuava a narrar que não desconhecia as afirmativas<br />

de Otavia, a respeito do que era prosperidade. Ela estava convicta de<br />

que a prosperidade nunca deveria afastar seus vínculos com os<br />

seres, porque não era pela dificuldade das posses ou pelo sofrimento<br />

da fome que as criaturas iriam encontrar a felicidade pela Terra.<br />

- Ahn, Otávia deve estar feliz, pelo que <strong>no</strong>s conta - Cornélia o<br />

interrompeu.<br />

- Acredito que sim - ele teve que concordar. - Mesmo tendo<br />

familiares e amigos tachando-a de insana, parece realmente uma<br />

mulher feliz. Não se diz seguidora de crença alguma e só se afasta<br />

de Tiro <strong>para</strong> a propriedade de Orígenes, que conservou, porque diz<br />

que necessita reencontrar a paz e as vibrações da natureza, de<br />

tempos em tempos. Certamente é difícil a tarefa da convivência e<br />

dos cuidados com crianças doentes. Mas ela continua a venerar os<br />

deuses de seus ancestrais. Talvez apenas por amor a seu pai.<br />

Enquanto conversavam, Flavius analisava os mínimos detalhes das<br />

expressões de Cornélia, atenta a suas <strong>no</strong>tícias. Só que não conseguia<br />

deixar de recordar a fuga planejada por ela, mas não a censurando,<br />

porque a ousadia também ele conhecia de perto. Nem o desaponto o<br />

havia ferido gravemente, quando ele precisou contar a seus<br />

198


superiores sobre o "desaparecimento" daquela de quem ele era<br />

encarregado, e que fugira apenas ajudada por um escravo franzi<strong>no</strong>.<br />

Agora, ali, <strong>no</strong>vamente na presença de Cornélia, pensava em que<br />

rumos deveria seguir, <strong>para</strong> tirar-lhe informações de Qumran.<br />

Mas Cornélia foi ajudada por Nathanael que, adivinhando-lhe as<br />

intenções, comentou:<br />

- Não sei o que me deixa mais feliz, Flavius, se a sua presença entre<br />

nós, ou a certeza de que veio simplesmente <strong>para</strong> confirmar a sua<br />

amizade, apesar da travessura feita um dia por Cornélia a seu<br />

respeito.<br />

Flavius sorriu meio a contragosto.<br />

- Confesso que jamais pensei que as artimanhas fizessem parte da<br />

essência de Cornélia.<br />

- E por que diz isto? - ela perguntou com jeito brincalhão. - Deve<br />

me atribuir qualidades que não possuo, Flavius.<br />

- Absolutamente. Sempre a vi como pessoa séria e sem disfarces. E<br />

nunca soube que se escondesse atrás de qualquer atitude que<br />

considerasse necessária tomar. Pelo me<strong>no</strong>s os que a conhecem, os<br />

amigos e familiares de Tibério, por exemplo, também a apontavam<br />

como mulher implacável, quando desejava algo. Portanto, se a<br />

senhora não desejava seguir comigo naquela viagem, era só me<br />

dizer.<br />

- Não voltemos ao passado, Flavius. Sei que um comandante deve<br />

seguir rumos que garantam as ordens de seus superiores. Mas não<br />

havia clareza <strong>para</strong> mim do que o seu comandante desejava. E é claro<br />

que a sua lealdade seria toda <strong>para</strong> ele; não <strong>para</strong> mim.<br />

Ele olhou-a de viés e prosseguiu:<br />

- Naquela ocasião, eu tinha mesmo uma tarefa a cumprir. Não sei se<br />

a senhora sabe que um homem deve cumprir até o fim <strong>aqui</strong>lo a que<br />

se propôs.<br />

- Está querendo me dizer, por acaso, que deseja completar o papel<br />

daquela época?<br />

199


- E por que não? - ele disse, atrevidamente. - A honra me satisfaz.<br />

- Honra? E o que é que a sua honra tem a ver comigo?<br />

- Tem muito. Quero levar a meus superiores, desta vez, o resultado<br />

de uma tarefa que deixei de cumprir, por causa de seus<br />

planejamentos ocultos.<br />

- Calma lá, meu amigo - aparteou Nathanael. - Você se esquece que<br />

Cornélia se encontra em seu próprio lar.<br />

- Este território está sob as ordens dos roma<strong>no</strong>s, portanto, não estou<br />

entrando em uma casa alheia.<br />

Ao perceber que Nathanael ia zangar-se mais seriamente, Cornélia<br />

propôs diretamente:<br />

- O que deseja realmente de mim?<br />

- Notícias sobre o Homem de Nazaré. Quero saber se ele terá um<br />

substituto. Só isto é de meu interesse - ele garantiu.<br />

Cornélia olhou-o ressentida:<br />

- Pois é uma pena! Perde as informações mais importantes.<br />

- O que preciso só se refere a Roma. Só isto.<br />

- À política de Roma, você quer dizer.<br />

- Pois que seja. E então? Estes muros de Qumran guardam um <strong>no</strong>vo<br />

sucessor?<br />

Cornélia e Nathanael entreolharam-se boquiabertos.<br />

- É isto o que vocês, roma<strong>no</strong>s, acreditam? Que este Santuário se<br />

dedica ao preparo de homens que um dia se prevalecerão sobre<br />

Roma? - indagou Nathanael.<br />

- E por que não? Quem pode <strong>no</strong>s garantir que estes senhores que são<br />

conhecidos como essênios não querem o poder? Não estão eles se<br />

atribuindo a humildade do Nazare<strong>no</strong>? Não apontam os ambiciosos<br />

como venais?<br />

- Ahn!! - exclamou Nathanael, atônito. - Que bom que não<br />

desconhecem alguns de <strong>no</strong>ssos preceitos. Já é alguma coisa.<br />

200


- Não me venha com zombarias, meu senhor - Flavius retrucou,<br />

enérgico. - Nós não somos homens de armas <strong>para</strong> ouvirmos<br />

patranhas como essas. Se os senhores não temem a morte é....<br />

- Nós todos deste Santuário respeitamos a vida. A <strong>no</strong>ssa e a de<br />

todos. Mas engana-se se vê neste Santuário um recinto onde<br />

representamos papéis de vilões. Não somos vilões. Somos criaturas<br />

que amam o progresso do mundo, mas não conseguimos ver o<br />

progresso onde há o desperdício de vidas. Seus governantes pensam<br />

que são deuses e não são.<br />

Flavius calou-se, porque não se sentia ofendido com aquela<br />

acusação. Mas depois acrescentou:<br />

- Não somos deuses, mas somos os organizadores destes territórios.<br />

E <strong>no</strong>ssa organização inclui também este Santuário.<br />

- Nunca!!! - esbravejou Nathanael. - Mais fácil pegarmos em armas<br />

do que vocês investirem sobre nós.<br />

- Isto é uma ameaça? - perguntou, ríspido, aquele homem que<br />

começava a sair de seus parâmetros.<br />

Exatamente nesse momento Débora se aproximou. Estava<br />

meditando, mas sentindo-se angustiada resolveu sair à procura de<br />

Cornélia. Conseguiu ouvir uma parte daqueles diálogos exaltados.<br />

- Posso participar das acusações deste grupo? - ela questio<strong>no</strong>u, mas<br />

com o olhar fixo em Flavius.<br />

Ao ver aquela jovem aproximar-se, tranqüila, de passos ágeis e<br />

graciosos, Flavius comoveu-se. Uma parte de seu passado pareceu<br />

abrir-se <strong>para</strong> ele, ali, ao ver a figura de Débora. Ela era quase a<br />

imagem perfeita de uma de suas irmãs que havia morrido ao<br />

completar os quatorze a<strong>no</strong>s, Lívia.<br />

- Venham, venham comigo - propôs Débora. - Sentemo-<strong>no</strong>s na<br />

tenda, em minha oficina. Lá poderemos esclarecer melhor por que<br />

este oficial <strong>no</strong>s procurou. Deve existir um motivo muito sério <strong>para</strong> a<br />

viagem que ele empreendeu.<br />

201


Trinta e Nove<br />

- Eu o convido a usar de toda sua franqueza co<strong>no</strong>sco, senhor ...<br />

- Flavius - ele se apresentou.<br />

- Pois bem, pelo que pude entender, o senhor acredita que Qumran é<br />

apenas um baluarte político e que é d<strong>aqui</strong> que saem as criaturas que<br />

estão sendo pre<strong>para</strong>das <strong>para</strong> conduzir o desti<strong>no</strong> dos habitantes destes<br />

territórios. Se assim pensam os governadores, os cônsules, os<br />

imperadores, enfim, os poderosos que <strong>no</strong>s rodeiam, vão mesmo<br />

precisar de pessoas como o senhor, que possam estabelecer e<br />

conduzir um maior número de vigilantes perto de nós, a fim de se<br />

protegerem de uma eventual cilada da parte dos essênios. Estou<br />

certa até <strong>aqui</strong>? - ela perguntou cortesmente.<br />

Mas Nathanael olhava, atônito, <strong>para</strong> Débora. Ela conversava com<br />

Flavius como se estivesse imersa numa outra face desconhecida<br />

<strong>para</strong> ele, porque até o timbre de voz era diferente.<br />

Os olhos de Débora, duas contas negras, brilhantes e vivazes,<br />

assemelhavam -se a faróis atravessando o imenso ocea<strong>no</strong>, a refletir<br />

as estrelas iridescentes na escuridão da <strong>no</strong>ite. Ela não se fixava <strong>no</strong><br />

homem, mas na alma do homem, tal qual tivesse o poder de<br />

enxergá-lo em profundo, devassando seus mais íntimos desejos.<br />

Flavius assustou-se. Sentia-se como se fosse ainda um rapazinho,<br />

em conversa com sua irmã Lívia, dois a<strong>no</strong>s mais <strong>no</strong>va do que ele.<br />

Lembrava-se da postura e da maturidade daquela menina que, desde<br />

criança, atraía a atenção dos adultos, por suas falas justas e maduras.<br />

Lívia muitas vezes lhe parecera estranha e incompreensível, porque<br />

adivinhava os seus mínimos pensamentos, como se lesse em sua<br />

alma me<strong>no</strong>s amadurecida. Até lhe oferecia objetos <strong>no</strong>s quais ele<br />

estava pensando, <strong>para</strong> divertir-se com ele.<br />

202


Mas a mãe deles se preocupava assustadoramente com as<br />

disposições apresentadas por Lívia, porque via n<strong>aqui</strong>lo apenas a<br />

manifestação doentia de desejos ocultos. Ela jamais teve<br />

oportunidade de ser esclarecida sobre aqueles fatos, porque, ao<br />

invés de se socorrer nas dúvidas, trancava a menina na casa, com<br />

medo de serem apontadas como uma família onde a maldição se<br />

instalara.<br />

Quando Lívia morreu, a família se dirigiu <strong>para</strong> Roma e foi, então,<br />

que Flavius começou a se pre<strong>para</strong>r <strong>para</strong> ingressar <strong>no</strong> exército<br />

roma<strong>no</strong>.<br />

Entretanto, Flavius em seus momentos de so<strong>no</strong> tinha continuamente<br />

a sensação de que se desprendia de seu corpo físico e ingressava<br />

num espaço que lhe permitia conversar com Lívia.<br />

Foram tantas as vezes que se avistara com ela, que preferiu ocultar<br />

de todos, porque não gostava de ser mesmo apontado como membro<br />

de uma família maldita.<br />

Bem lá <strong>no</strong> fundo, era assim que ele se considerava, de modo que, ao<br />

conseguir ir galgando melhores posições <strong>no</strong> exército, cumpria<br />

rigidamente o que seus superiores ordenavam. Parecia querer<br />

extrapolar até a sua própria essência.<br />

Flavius tinha tomado conhecimento da passagem de Joshua pela<br />

Terra, tinha ouvido contarem histórias fabulosas daquele homem<br />

que a todos curava apenas com a imposição de suas mãos.<br />

Lastimava-se profundamente por não ter encontrado com este<br />

mágico, que poderia, por certo, ter salvado a sua irmã.<br />

Mantinha-se dividido em dois. Uma parte, uma de suas faces, era a<br />

guerreira, a que olhava <strong>para</strong> o seu papel de oficial do exército,<br />

necessitando cumprir com honra as suas tarefas. A outra tentava<br />

entender o que acontecera com Lívia. Tinha certeza absoluta de que<br />

nenhuma das atitudes de Lívia comprovava insanidade, a ponto de<br />

precisar viver trancafiada em casa, como sucedeu.<br />

Além disso, <strong>no</strong> exército conheceu um oficial e, com ele estreitou<br />

amizade. Ele era exatamente como Lívia e também bastante justo<br />

em suas decisões. Mas este amigo passou <strong>para</strong> as hostes do<br />

203


Nazare<strong>no</strong>. Não tinha sido perseguido pelos superiores, embora<br />

tivesse enfrentado a ira dos mesmos. Apenas foi desligado de suas<br />

funções e procurou Flavius, <strong>no</strong> momento da partida, dizendo-lhe:<br />

"Algumas criaturas possuem dons, Flavius, que são considerados<br />

insa<strong>no</strong>s pela maioria. Vou agora tentar entender certas coisas que<br />

acontecem comigo. Sei que entre os essênios encontrarei uma<br />

resposta. Eu vou procurá-los."<br />

O desenrolar desses acontecimentos na vida de Flavius era de difícil<br />

esclarecimento, por ser o povo roma<strong>no</strong> bastante supersticioso e<br />

temente do que considerava "sobrenatural".<br />

Agora ali, em Qumran, Flavius se encontrava feliz. Primeiro, porque<br />

tinha conseguido a oportunidade de ser mandado <strong>para</strong> lá, sem<br />

precisar ferir a honra de sua escolha como oficial. Segundo, porque<br />

até poderia ser esclarecido sobre os fatos sobrenaturais que<br />

acompanharam a vida de sua irmãzinha e de seu companheiro de<br />

armas, que se recusara a viver na cegueira e havia partido em busca<br />

de explicações.<br />

Num pensamento rápido, tudo <strong>aqui</strong>lo tinha vindo à tona, enquanto<br />

ele observava a graciosa moça que aguardava suas explicações. Ele<br />

disse sinceramente:<br />

- Tenho mesmo ordens de descobrir se existem pre<strong>para</strong>tivos <strong>para</strong><br />

alguém tomar o poderio dos roma<strong>no</strong>s. Por outro lado, já verificamos<br />

que os seguidores do Nazare<strong>no</strong> não se movem armados. Mesmo<br />

assim, comenta-se que o Crucificado continua a aparecer <strong>para</strong><br />

alguns seguidores. Então, vou precisar levar a meus superiores um<br />

relato sobre estes fatos e sobre a posição dos habitantes de Qumran.<br />

- Sua alma não me expõe apenas isto - respondeu Débora, incisiva. -<br />

O senhor deseja ser esclarecido sobre acontecimentos dos quais não<br />

entende.<br />

Aquelas palavras de Débora foram um golpe na crença de Flavius,<br />

pois lhe comprovavam que ali não encontraria eventos habituais.<br />

Mas Débora prosseguiu:<br />

204


- Gostaria de adverti-lo, senhor Flavius, de que é chegada a hora de<br />

sua escolha por um de dois caminhos que terá à sua frente d<strong>aqui</strong> em<br />

diante: ou o da alegria, ou o da solidão. Para percorrer o primeiro,<br />

deverá pre<strong>para</strong>r-se <strong>para</strong> entendimentos como esses que sua irmã já<br />

conheceu. O segundo, o senhor trilhará se se mantiver inflexível<br />

sobre as coisas da alma. Já <strong>no</strong>tou que existem mudanças por esses<br />

territórios.<br />

As palavras de Débora eram seguras e ela prosseguia sem vacilar:<br />

- Se deseja ser venturoso, deverá procurar seu companheiro de<br />

armas. Ele pode auxiliá-lo. Não quero dizer com isto que precisará<br />

seguir o caminho do Nazare<strong>no</strong>. Apenas deve se abster de fazer<br />

sacrifícios de animais e tentar também entender o que sua irmã<br />

busca lhe dizer <strong>no</strong>s seus momentos de so<strong>no</strong>.<br />

- Mas isto é uma insanidade!! - ele recusou. - Minha irmã já está<br />

morta e...<br />

- A alma dela não morreu, senhor Flavius. E não houve nem<br />

invenção ou malícia <strong>no</strong>s homens, quando se propagou por tantos<br />

lugares que o Nazare<strong>no</strong> subiu em um raio de Luz, após a sua morte.<br />

Apenas o corpo físico se extinguiu. O Mestre continua realmente a<br />

apontar aos amigos a sua presença. Isto <strong>para</strong> que as sementes<br />

espalhadas por Ele possam frutificar em alguns solos. Se Ele não<br />

comprovasse aos incrédulos que as almas são imortais, poucos<br />

meses depois de sua morte é até provável que muitos de seus<br />

seguidores se absteriam de ir à luta.<br />

- E o que esse homem deseja? Destruir os roma<strong>no</strong>s?<br />

Um leve resquício de sorriso transpareceu <strong>no</strong> rosto da moça, que<br />

continuou:<br />

- Ele é o Deus do Amor. Não da violência.<br />

- Mas ele não percebe que se continuarem as pregações...<br />

Ela atalhou:<br />

- Se continuarem a disseminar a fraternidade, muita crueldade pode<br />

ser eliminada <strong>no</strong>s corações perversos. O senhor pode crer mesmo,<br />

em sã consciência, que os roma<strong>no</strong>s estão sendo frater<strong>no</strong>s?<br />

205


A face guerreira de Flavius logo devolveu:<br />

- Não se consegue pôr ordem nesses territórios com a mão leve.<br />

- Pois você verá que, se assim agirem, estarão escolhendo o<br />

caminho da solidão.<br />

Débora fechou os olhos e num murmúrio termi<strong>no</strong>u:<br />

- Sua irmã é uma criatura feliz. Ela o ama.<br />

Cornélia, maravilhada com aquela seqüência de diálogos, comentou:<br />

- Ah, Débora, só agora estou entendendo o que sua avó me disse, lá<br />

<strong>para</strong> trás, num certo dia.<br />

- E o que foi?<br />

- Que eu só poderia pisar <strong>no</strong>s sagrados lugares trilhados por Joshua,<br />

<strong>aqui</strong> em Qumran, quando eu manifestasse a voz divina. Foi isso o<br />

que você conseguiu. Você, Débora.<br />

Nathanael retrucou energicamente:<br />

- Não se esqueça, Cornélia, que não devemos esclarecer estes fatos<br />

na presença de estranhos.<br />

Flavius entendeu que os assuntos dos essênios tinham mais a ver<br />

com a postura da alma do que com a das armas.<br />

206


Quarenta<br />

Flavius afastou-se de Qumran com as palavras de Débora ressoando<br />

em sua alma. Pela primeira vez, fora tocado pela voz do amor.<br />

Desejava revê-la. Mas <strong>para</strong> um homem <strong>para</strong> quem o amor era quase<br />

como um sinônimo de submissão, ou de rendição, a dor que o<br />

atingia era quase insuportável.<br />

Débora guardara da presença daquele homem um sentimento de<br />

carinho e, ao mesmo tempo, de angústia. Logo que Flavius se<br />

afastou, disse a Nathanael:<br />

- Não sei lhe dizer a razão, mas sinto que este oficial se encontra <strong>no</strong><br />

limiar de uma fronteira perigosa. Como poderíamos ser de valia<br />

<strong>para</strong> ele?<br />

Nathanael esclareceu:<br />

- Existem pessoas que precisam aprender a amar, ou entender,<br />

também, que existe o amor incondicional, Débora. Outras se<br />

mantêm presas ao racional, porque acreditam seriamente que amar é<br />

fraqueza. O que poderia um homem oferecer a uma mulher que se<br />

recusasse a seu comando?<br />

Notando que a jovem permanecia cheia de ansiedade, continuou:<br />

- Por que acha que o Messias veio até nós? Apenas <strong>para</strong><br />

especularmos sobre o amor, ou <strong>para</strong> exemplificá-lo, minha amiga?<br />

Cada um tem nas mãos o direito de dirigir a própria escolha. Nós só<br />

conseguiríamos ajudá-lo, se ele quisesse. Mas tenho <strong>para</strong> mim que<br />

ele só vai permitir isto, quando descobrir o que é a estrada da<br />

solidão. Deixemos que o Messias ponha nele a Luz.<br />

Agora tenho uma proposta <strong>para</strong> você e Cornélia. Nessa semana,<br />

dediquem-se a seus afazeres com intensidade. Na próxima lua <strong>no</strong>va,<br />

vamos conhecer uma das comunidades freqüentada pelo Messias.<br />

207


E <strong>para</strong> lá partiram em uma manhãzinha em que o sol distribuía um<br />

calor forte, deixando mais árido aquele deserto abençoado pelo<br />

Criador.<br />

Débora exultava, porque fora avisada que tinha conseguido em<br />

tempo exíguo avançar dois degraus de sua escalada à iniciação dos<br />

essênios. Mas <strong>para</strong> Cornélia aquela viagem representava uma<br />

pequenina volta às imensas alegrias recebidas, quando acompanhara<br />

os passos de Joshua.<br />

A comunidade que iam conhecer não era tão distante do Santuário<br />

de Qumran. Pode-se até dizer que, se os homens houvessem feito<br />

um corte vertical nas rochas erguidas ali, ela poderia ser considerada<br />

"o quintal" do Santuário. Mas como seguiam a pé, e precisavam<br />

percorrer todo o contor<strong>no</strong> daquelas montanhas altaneiras, levaram<br />

uns bons dias <strong>para</strong> atingi-la.<br />

O núcleo a ser visitado era dos essênios que haviam acompanhado<br />

também de perto a passagem de Joshua e de Yohanan. Não se<br />

diferiam em hábitos e eram amigos de Nathan, que também ia junto.<br />

Nathan possuía parentes afetivos entre eles, portanto, era um lar<br />

desses amigos que primeiro iriam visitar.<br />

A moradia era inserida numa rocha e, <strong>para</strong> alcançá-la, existia um<br />

sistema de transporte <strong>para</strong> o alto, que constava de uma tábua rústica<br />

presa em correntes, e que se erguia com o auxílio de roldanas e da<br />

firmeza dos braços de homens vigorosos. Os homens que os<br />

receberam possuíam os cabelos acobreados.<br />

Um a um, alcançaram um patamar que, dali <strong>para</strong> mais alto, podia<br />

ser transposto por escadas escavadas até a entrada de algumas<br />

moradias.<br />

A caverna era bem larga e arejada. Dentro dela, avistaram um<br />

homem, que se retirou logo após cumprimentá-los. Vestia uma<br />

túnica de linho branco e usava sandálias de fibras trançadas presas<br />

ao tor<strong>no</strong>zelo.<br />

Também faziam parte da família uma mocinha e uma anciã,<br />

provavelmente próxima dos cem a<strong>no</strong>s.<br />

208


Quando a anciã quis saber o <strong>no</strong>me de Cornélia, Nathan se antecipou<br />

em explicações:<br />

- Ela só tem alguns traços de judia, mas não é, Thirza. Seu <strong>no</strong>me é<br />

Cornélia e a mãe dela era romana. E esta outra, Débora, é essênia<br />

como nós. O Nathanael você já conhece.<br />

Mas a anciã ergueu os ombros e disse, cheia de indiferença <strong>para</strong><br />

aqueles dados:<br />

- Já vivi tanto, Nathan, que até me admiro dessas referências sobre<br />

essênios ou não. Recebi tantas visitas... e o Rabi nem era essênio<br />

também. Mas pensa que não sei que elas queriam conhecer uma<br />

casa por onde ele passou? E ela riu, um sorriso de dentes<br />

incrivelmente perfeitos.<br />

Cornélia entendeu que a velhinha se referia a Joshua como Rabi.<br />

A anciã prosseguia feliz de conversar:<br />

- Aquele mocinho <strong>no</strong>s deu lições de valor, hein, Nathan? Dizia que<br />

não era importante a <strong>no</strong>ssa procedência, nem terrena e nem de<br />

grupo. O mundo era todo abençoado pelo Pai. Então - ela ergueu de<br />

<strong>no</strong>vo os ombros fi<strong>no</strong>s e magros -, não me importo muito se existem<br />

nabateus, zelotes, essênios, samarita<strong>no</strong>s, sicarii ou qualquer outro<br />

tipo de gente. O <strong>no</strong>sso grupo <strong>para</strong> mim continua sendo o Rabi - ela<br />

riu de <strong>no</strong>vo. E havia musicalidade em tor<strong>no</strong> daquela velha senhora.<br />

Depois ela fixou Débora e comandou:<br />

- Venha <strong>aqui</strong> perto, menina. Você conheceu o Rabi? E o Yohanan?<br />

Ele também me visitava.<br />

Débora comoveu-se, mas conseguiu reter as lágrimas. A velha fez<br />

que não viu e continuou:<br />

- O Yohanan era cheio de vaidade. As túnicas brancas dele<br />

precisavam ser alvíssimas. Minhas filhas me contavam tudo em<br />

porme<strong>no</strong>res, porque eu não gostava daquelas andanças. Minhas<br />

pernas sempre me incomodaram. E o Yohanan um dia me disse que<br />

assim era melhor. Eu só descobri que era mesmo, quando comecei a<br />

fazer a minha tapeçaria. Se minhas pernas tivessem sido fortes, eu<br />

acho que não ia fazer este belo trabalho que fiz. E ela apontou o<br />

209


tapete do chão, tecido por ela com grande habilidade, e um outro<br />

me<strong>no</strong>r, colocado numa das paredes da caverna.<br />

Querendo participar da conversa, Cornélia comentou:<br />

- Eu já vivi também, um dia, em uma caverna. Mas as minhas<br />

pernas eram fortes e eu fugi.<br />

- Então foi bom você ter sido trazida <strong>para</strong> cá de <strong>no</strong>vo, não pensa<br />

assim? Teve pernas <strong>para</strong> acompanhar o Rabi. Cornélia percebeu que<br />

ela falava convicta, que ela lia na alma humana.<br />

Débora pediu, timidamente:<br />

- Fale-<strong>no</strong>s mais do Yohanan. O que ele era mais, além de vaidoso?<br />

- Um grande homem, um gigante - Débora ouviu de um senhor que<br />

adentrava a caverna naquele instante.<br />

Ele possuía um rosto angular, nem parecia judeu. Disse o seu <strong>no</strong>me<br />

- Simeão. Aproximou-se de Nathanael, apertou-lhe demoradamente<br />

a mão, depois a de Nathan e, dele, se queixou: - Demorou a vir! Não<br />

sabe quantas vezes encerei a tábua que o conduziu até <strong>aqui</strong> em cima,<br />

na esperança de revê-lo e recebê-lo condignamente.<br />

Nathan encabulou-se, mas assegurou:<br />

- Sua amizade é que <strong>no</strong>s favorece, Simeão. E também seus cuidados<br />

com essa <strong>no</strong>ssa querida anciã.<br />

- Como está Qumran? - quis saber Simeão.<br />

- Acho que só vou lhe passar <strong>no</strong>tícias de minha comunidade, depois<br />

que você entregar à minha amiga Débora <strong>no</strong>tícias de Yohanan,<br />

conforme ela acaba de pedir.<br />

Mas a velhinha convocou Cornélia:<br />

- Leve-me <strong>para</strong> o meu leito. Quero repousar um pouco.<br />

Já deitada, Thirza segredou <strong>no</strong> ouvido de Cornélia:<br />

- Será que você é a mulher que seguiu o Rabi e que esteve perto dele<br />

até na cruz? Você não acha que isto já devia estar escrito nas<br />

estrelas? Ela devia ser amiga dele, não pensa como eu?<br />

210


Mas a velhinha seguia falando sem aguardar uma resposta. Quando<br />

Cornélia lhe desejou um bom repouso, a anciã apenas concluiu:<br />

- Gostei de você. O meu <strong>no</strong>me é Thirza, mas você pode me chamar<br />

de Daphné, é um <strong>no</strong>me que gosto. Os <strong>no</strong>mes não importam muito<br />

mesmo. Só as sensações que eles <strong>no</strong>s passam. Daphné... Daphné...-<br />

repetiu a velhinha - parece-me musical. E você tem música até <strong>no</strong>s<br />

ossos. Eu sei muito bem. Agora, vá, vá, deixe-me sozinha, porque o<br />

Simeão já vai falar do Yohanan <strong>para</strong> a Débora. Ah, o Yohanan era<br />

um pecado <strong>para</strong> as mulheres.<br />

Cornélia olhou-a tão assustada, que Thirza explicou:<br />

- Um pecado de tentação, mocinha. Não vê Débora? Ela não vai<br />

jamais esquecer dele. Encontrou diante dela um homem que tinha<br />

um papel a cumprir. Não era <strong>para</strong> ela. Era <strong>para</strong> Deus.<br />

Thirza virou-se de lado e rapidamente adormeceu.<br />

211


Quarenta e Um<br />

A mocinha encarregada dos cuidados da moradia, e de Thirza<br />

também, dispunha vasilhames de barro contendo frutas, queijo,<br />

pãezinhos e mel, sobre o tapete. Naquela casa não existia mobiliário<br />

e os habitantes se acomodavam <strong>no</strong> chão <strong>para</strong> se servirem. Tudo era<br />

rústico e apresentava a simplicidade de uma vida de sacrifícios.<br />

- A avó sempre se refere a Daphné, quando é visitada por alguém de<br />

quem gosta, Cornélia. Ela pensa que não ouvimos, quando falou -<br />

esclareceu Simeão. - Você é grega de origem?<br />

- Não, mas minha ama-de-leite, e que mais tarde passou à função de<br />

minha aia e amiga, era grega. Por ela, conheço bastante da mitologia<br />

desse povo estudioso e cheio de simbologia. Talvez pelas instruções<br />

que me foram dadas por ela e por um professor, que me<br />

acompanhou desde menina - grego também -, tenho a Grécia<br />

guardada bem <strong>aqui</strong> dentro do coração - ela falou comovida.<br />

- Está entendido, então, por que ela se referiu à sua musicalidade.<br />

Foi esse povo que <strong>no</strong>s trouxe as artes musicais. Mas, venha, sente-se<br />

<strong>aqui</strong> a meu lado.<br />

Depois de alguns momentos de silêncio, Simeão comentou:<br />

- A avó nem sempre se pautou pela musicalidade. Ainda que<br />

sustentando esta casa <strong>no</strong>s afazeres domésticos, deixou-se extinguir,<br />

pouco a pouco, em sua fé, principalmente após a partida de<br />

Yohanan, que era seu maior raio de luz. Era Yohanan que conseguia<br />

manter o vínculo de Thirza com o mundo lá de fora. Era ele que<br />

apontava <strong>para</strong> ela o céu de esplendor, ensinando-lhe as primeiras<br />

letras do aprendizado essênio.<br />

Graças a Yohanan, ela começou a entender o valor da vida e dessas<br />

moradias da Terra e de outras, que <strong>no</strong>s aguardam, a fim de<br />

212


seguirmos <strong>no</strong>vas etapas de aprendizado. Yohanan era <strong>para</strong> ela o<br />

próprio Apolo, empunhando a lira maravilhosa do Amor. Mas,<br />

infelizmente, a chama do amor que ela mantinha viva, enquanto ele<br />

também vivia, extinguiu-se... e muito rapidamente.<br />

Quando Yohanan começou a sua peregrinação, e levava as criaturas<br />

a se purificarem <strong>no</strong> rio Jordão, a avó começou a captar os tempos<br />

terríveis que viriam pela frente <strong>para</strong> ele. Tão assustada ficou pelas<br />

mudanças que antecipava - e sem entender a razão -, que começou a<br />

perder o movimento das pernas. Ela transportou <strong>para</strong> ela mesma a<br />

imobilidade que os homens ofereceriam a Yohanan.<br />

Mas Yohanan, tocado por um raio de luz, também sabia que Thirza<br />

precisava trocar os trajes que vestia por vestes mais <strong>no</strong>vas e cheias<br />

de luz. Assim, não interferiu, quando a situação dela se agravou.<br />

- É, ela me disse que ele havia falado que era melhor assim.<br />

- Yohanan jamais desconheceu os mecanismos de cura que se<br />

processam, invariavelmente, diante das criaturas de fé. Mas ele<br />

sabia também quais agravos podem ser ofertados <strong>para</strong> quem<br />

interfere na livre escolha de cada um. Nosso Mestre, o Nazare<strong>no</strong>,<br />

curava a multidão. Mas a tarefa de Yohanan era diferente. Ele não<br />

se colocava como instrumento de cura, porque a ânfora que<br />

carregava era <strong>para</strong> relembrar os homens da cegueira diante das Leis<br />

Divinas. Era esta a tarefa primordial a que Yohanan se dedicou.<br />

- Então por que ela se referiu a Yohanan como um vaidoso? -<br />

perguntou Débora.<br />

Simeão riu à larga. - Você se refere à túnica alvíssima?<br />

- Sim - ela respondeu meio confusa.<br />

- Não era à vaidade terrena de se usar uma veste muito branca, <strong>para</strong><br />

ser admirado pelos homens como um cuidadoso <strong>no</strong>s trajes, Débora.<br />

Yohanan entendia muito bem que os valores terre<strong>no</strong>s são ilusórios.<br />

A túnica alvíssima a que Thirza fez referência era a da alma. Ele<br />

desejava alcançar a perfeição. E, <strong>para</strong> isso, preparou-se com honra,<br />

dignidade, respeito, lealdade e perseverança. Sentiu-se muito<br />

213


honrado por participar dessa vida com Joshua, que ele sempre soube<br />

que era o Mestre dos Mestres.<br />

- Eu conheci Yohanan - disse Cornélia. - Eu o ouvi uma vez às<br />

margens do Jordão. Era um homem inflamado <strong>no</strong> falar.<br />

- Realmente - Simeão confirmou. - Eu tive oportunidade de lhe<br />

dizer, um dia, que ele era a Fúria dos Ocea<strong>no</strong>s e o <strong>no</strong>sso Messias, a<br />

própria lira do Orfeu. Duas almas a se expressarem de maneiras<br />

distintas, mas de mãos dadas num mesmo ideal, o ideal do amor ao<br />

Criador, que <strong>no</strong>s enviou o seu Angélico Filho <strong>para</strong> diminuir as<br />

<strong>no</strong>ssas agruras <strong>aqui</strong> na Terra.<br />

- Quer dizer que sempre haverá uma livre escolha <strong>para</strong> as tarefas? -<br />

perguntou Débora, emocionada por sentir-se um pouco mais ligada<br />

a Yohanan, ainda que fosse através dessa simples conversa.<br />

- Sim. Mas é claro que o Deus de Amor sabe melhor do que nós o<br />

que é a ig<strong>no</strong>rância ou a crueldade. Para cada caso há um caminho<br />

<strong>para</strong> a cura.<br />

- Não sei se seria uma intrusão de minha parte perguntar-lhe quem<br />

Yohanan era <strong>para</strong> o senhor - Débora acrescentou.<br />

- A minha lira, Débora, a minha lira. Eu o ouvia falar sobre seus<br />

inúmeros propósitos <strong>para</strong> servir. Portanto, ele é que me inspirava<br />

<strong>para</strong> meus atos. Por causa dele, compus algumas canções diferentes<br />

por <strong>aqui</strong>. Eu o amava como a um filho e, graças a ele, consegui<br />

atravessar, incólume, meus propósitos <strong>para</strong> ser um bom essênio.<br />

Hoje sou um servidor em uma comunidade, na mesma posição de<br />

Nathan, em Qumran. Mas tenho uma longa jornada <strong>para</strong> ser, um dia,<br />

como o Mestre dos Mestres. Uma longa jornada - ele repetiu,<br />

olhando <strong>para</strong> Débora.<br />

214


Quarenta e Dois<br />

A <strong>no</strong>ite já descia, quando os visitantes alcançaram, não tão distante<br />

dali, umas choupanas que serviam de abrigo a serviçais da<br />

comunidade dirigida por Simeão, que iriam conhecer <strong>no</strong> dia<br />

seguinte. Eram construídas com juncos e cobertas com palhas tão<br />

bem entrançadas, que nenhum vão permitia avistar a claridade da<br />

imensa lua prateada vigilante daquele dia.<br />

Nathan e Nathanael dormiram rapidamente <strong>no</strong>s catres, cobertos<br />

pelos próprios mantos. Mas Simeão, não tendo conseguido pegar <strong>no</strong><br />

so<strong>no</strong>, pegou uma candeia e foi caminhar. Se desejasse, poderia<br />

alcançar o local de sua comunidade, porque lhe bastaria atravessar<br />

um peque<strong>no</strong> filete de água e depois uma trilha ladeada de bambuzal,<br />

até o pátio fronteriço do Templo, cheio de bancos e com árvores já<br />

centenárias.<br />

Sua inquietação era saudável, não um presságio de maus<br />

acontecimentos e nem a ansiedade de poder levar as mãos <strong>para</strong> algo<br />

que não lhe pertencia. Ele era um prosélito do Cristo. Conhecia as<br />

escrituras sagradas e havia seguido Yohanan bem de perto, ouvindolhe<br />

as sentenças bem colocadas, e sentindo o valor dos ideais<br />

daquele homem que ele considerava do mesmo modo que<br />

considerava os Raios e os Trovões.<br />

Muitas vezes o vira exaltado, fremente de frustrações e de<br />

desenga<strong>no</strong>s, heróico em sua abnegação <strong>para</strong> com o Mestre dos<br />

Mestres. Yohanan era de uma devoção indefinível <strong>para</strong> com seu<br />

primo Joshua, a quem só não imitava porque conhecia o valor que<br />

tem cada um, valor este emanado da Fonte de Origem de todos - o<br />

Amorável e Justo Criador.<br />

Assim, entendia que, se ele era o Raio ou o Trovão, outros seriam a<br />

Tocha que se eleva <strong>no</strong> mundo <strong>para</strong> iluminar a cegueira dos homens<br />

215


fracos. E que nenhum deles por ali se assemelharia ao Mestre <strong>no</strong><br />

sacrifício e <strong>no</strong> Amor, porque o sacrifício do Amor de Joshua era o<br />

que levaria a humanidade a procurar em si o Amor verdadeiro.<br />

Joshua seria sempre a Esperança dos homens.<br />

Todo voltado <strong>para</strong> essas reflexões, viu surgir diante dele a jovem<br />

Débora, trajada de forma diferente, não como uma judia. Era uma<br />

criaturinha quase diáfana e caminhava segurando a mão de um<br />

garotinho de seis a sete a<strong>no</strong>s, de roupinha branca, como o habitual<br />

entre os essênios.<br />

Os olhos negros do garoto cintilaram, ao se ver perto de Simeão,<br />

jogando-se <strong>no</strong>s braços dele com imensa ternura.<br />

- Por onde andava, meu pai? - ele perguntou, ainda com os braços<br />

enleados <strong>no</strong> pescoço de Simeão.<br />

Simeão passou a mão pelos olhos, <strong>para</strong> disfarçar as lágrimas, e<br />

sorriu agradecido <strong>para</strong> Débora.<br />

Ela brincou:<br />

- Não precisa esconder a emoção, meu amigo. Esta é uma verdade<br />

que precisa ser retratada na face de cada um. Viu como o seu filho<br />

logo o reconheceu, mesmo tendo sido gerado por você em outro<br />

tempo? Aos olhos dele, e pelo amor que guarda de sua figura, o<br />

senhor ainda é seu verdadeiro pai, o pai amoroso do qual ele jamais<br />

esqueceu.<br />

Simeão naquele instante foi projetado pelos mecanismos da<br />

memória ao tempo em que viveu como genitor daquele garotinho.<br />

Mas preferiu perguntar <strong>para</strong> Débora de onde o conhecia, e o que ele<br />

representava <strong>para</strong> ela nessa existência que percorriam juntos.<br />

Ela sorriu feliz. - Ele é um dos filhos de essênios de quem tomo<br />

conta agora. E... sabe? Desde que me encarreguei do trabalho junto<br />

dessas crianças, vem-me acontecendo isso que você vê. Eles me<br />

procuram <strong>no</strong> momento em que mergulham <strong>no</strong> so<strong>no</strong> e me pedem<br />

<strong>para</strong> visitar as pessoas que são especiais <strong>para</strong> seus coraçõezinhos. E<br />

muitas vezes ele me pediu <strong>para</strong> falar com o Simeão. Mas só agora<br />

pude atendê-lo. Você também sabe muito bem que o tempo que<br />

216


conta não é o <strong>no</strong>sso. É o do Criador. E o tempo do Criador - estou<br />

aprendendo isto - <strong>no</strong>s entrega motivos e tarefas <strong>para</strong> que <strong>no</strong>s<br />

encontremos. O motivo dessa adorável criaturinha é o amor por<br />

você. E o meu é mostrar <strong>para</strong> você, Simeão, que cuido de uma<br />

criança que lhe pertence, ou melhor, que lhe é ligada por um afeto<br />

imorredouro.<br />

Simeão emocio<strong>no</strong>u-se. Na solidão de seus caminhos, dedicado a<br />

trabalhos que lhe cobravam inúmeros sacrifícios, via-se de repente<br />

presenteado com a aparição de um filhinho - uma alma amorável<br />

ligada a ele por sentimentos desinteressados, pelo amor<br />

incondicional.<br />

Abraçou-se ao garoto e não estranhou, ao reconhecer que não era<br />

um corpo físico que abraçava. Como um essênio estudioso das<br />

possibilidades terrenas de cada ser, entendia perfeitamente que ele<br />

próprio se havia desdobrado, <strong>para</strong> ganhar em seus braços aquela<br />

alminha que também se prendia ao corpo físico pelo cordão<br />

prateado. Todos os três, ali, recebiam de Deus a oferta magnífica da<br />

vida em comunhão, ainda que participantes de trabalhos e<br />

aprendizado em cenários diferentes.<br />

Embargado pela ternura, ouviu do garotinho:<br />

- Não chore, meu pai. Débora me disse que agora a gente vai poder<br />

se encontrar muitas vezes. Na próxima, vou trazer <strong>para</strong> o senhor ver<br />

os desenhos que gosto de fazer. Eu acho que o senhor vai gostar.<br />

Débora acercou-se do garoto, colocando-se de joelhos <strong>para</strong> estar<br />

mais próxima, e pediu:<br />

- Agora, Rúben, diga-lhe a palavra que já sabe, porque já vamos<br />

partir.<br />

- Shalon! - ele atendeu, e deu a mãozinha <strong>para</strong> Débora, sorrindo e<br />

olhando <strong>para</strong> trás, enquanto se afastavam.<br />

A lua fizera-se maior? Ou era a impressão do coração de Simeão<br />

que a agigantava? Ele permaneceu sentado num banco de pedra, até<br />

asserenar-se. Depois, prometeu-se que contaria a Débora o<br />

217


sucedido, se ela porventura esquecesse daquela visita <strong>no</strong>turna, fato<br />

que inúmeras vezes acontece <strong>para</strong> grande parte das criaturas.<br />

218


Quarenta e Três<br />

A manhã que despertou os viajantes era de vigoroso sol. As cabanas<br />

já se encontravam vazias, porque os servidores que nelas se haviam<br />

abrigado há muito haviam seguido <strong>para</strong> a comunidade que estava<br />

sob cuidados de Simeão.<br />

Débora e Cornélia foram as últimas a despertarem e encontraram<br />

Nathan, Nathanael e Simeão em franca e agradável conversa.<br />

- Conseguimos apenas algumas frutas e leite de cabra <strong>para</strong> vocês -<br />

desculpou-se Simeão. - Colocamos ali, em cima daquela pedra.<br />

Débora riu, porque a pedra possuía exatamente o <strong>formato</strong> de uma<br />

mesa. Uma oferta generosa do próprio Criador.<br />

Serviram-se, enquanto ouviam de Nathan:<br />

- Nossa ida até lá será bastante rápida. Voltaremos à tarde e faremos<br />

<strong>no</strong>va <strong>para</strong>da por <strong>aqui</strong>. Amanhã retornaremos a Qumran, só que <strong>no</strong>s<br />

utilizaremos de montarias providenciadas por Simeão. Isto porque<br />

<strong>no</strong>sso percurso não será o mesmo da vinda.<br />

Seguiram a pé, trocando idéias, e Simeão referiu-se à visita do<br />

meni<strong>no</strong> Rúben, levado até ele por Débora. Ela encantou-se, mas não<br />

se lembrava do episódio. Apenas guardava a sensação de que<br />

realmente havia encontrado com gente amorosa, durante o so<strong>no</strong>.<br />

Depois, Cornélia comentou com Simeão sobre as palavras de<br />

Thirza. O comentário da anciã não ficara esquecido <strong>para</strong> ela.Thirza<br />

lhe havia perguntado se ela havia acompanhado Joshua até a cruz, e<br />

havia feito referência à amizade daquela mulher com Joshua, uma<br />

amizade que estava escrita até nas estrelas.<br />

- É impressão minha - disse Cornélia - que Thirza se referia a Maria<br />

de Magdala, não a mim. Mas também penso que as mulheres todas<br />

219


são como Maria de Magdala, por isso não importa o <strong>no</strong>me que<br />

levam em seus aprendizados de vivência na Terra. Qual mulher não<br />

vacilou em seus caminhos? Qual não cometeu deslizes? Qual não<br />

buscou encontrar o verdadeiro afeto, seguindo muitas vezes<br />

escolhas enga<strong>no</strong>sas? Maria de Magdala é <strong>para</strong> mim expressão de<br />

amor incondicional, de amor puro, sublime, de devoção. Ela soube<br />

entender perfeitamente que Joshua era um Anjo, tanto quanto<br />

Débora intuiu que a tarefa de Yohanan a levaria <strong>para</strong> distante dele.<br />

No momento em que Cornélia comentava isto, ressou por aqueles<br />

arredores um forte som. Assemelhava-se ao ouvido por ela certo dia<br />

de Nazaré, quando uma procissão de neófitos estranhos tangia uma<br />

placa de bronze, anunciando sua passagem por caminho que levaria<br />

a uma grande praça. Naquela ocasião, ela havia desfalecido e tinha<br />

sido auxiliada por um de seus escravos, relembrando, então, um<br />

trecho de sua existência na Índia.<br />

A mesma angústia que <strong>aqui</strong>lo lhe provocara se repetiu, embora se<br />

mantivesse em pé. Mas Simeão <strong>no</strong>tou, porque se tor<strong>no</strong>u pálida e<br />

pediu <strong>para</strong> repousarem.<br />

Atravessaram por um tronco de árvore, que fazia às vezes de uma<br />

pontezinha sobre um peque<strong>no</strong> riacho. Logo depois, sentaram-se<br />

sobre raízes de árvore frondosa.<br />

Simeão tentou auxiliá-la.<br />

- O som que ouviu não tem nada a ver com a minha comunidade,<br />

Cornélia. Nela, não temos necessidade de sons <strong>para</strong> <strong>no</strong>s<br />

organizarmos em <strong>no</strong>ssos horários.<br />

Nathan acrescentou:<br />

- Em Qumran também já não temos necessidade de avisos exter<strong>no</strong>s.<br />

Nem mesmo quando chegarão companheiros. Nossas almas já<br />

atingiram algumas facilidades, <strong>para</strong> <strong>no</strong>s conduzirmos e <strong>para</strong><br />

anteciparmos também alguns eventos. Até mesmo fatos tão simples<br />

como a chegada de visitantes.<br />

- Poderiam mesmo saber quando alguém estivesse a caminho <strong>para</strong><br />

visitá-los? E sem o auxílio de anunciantes? - perguntou Débora.<br />

220


- Sim, isso faz parte de <strong>no</strong>ssos preparos. - comentou Nathanael.<br />

- Então quer dizer que há outras comunidades que não seguem o<br />

mesmo pla<strong>no</strong> de Qumran?<br />

- Só em parte - esclareceu Nathanael. - Simeão, por exemplo,<br />

pre<strong>para</strong> os aprendizes de primeiro grau <strong>para</strong> o seguinte. Mas<br />

algumas criaturas são capazes de se transferirem até <strong>para</strong> o terceiro<br />

grau, por suas próprias virtudes, pulando o intermediário. E, se elas<br />

quiserem continuar, precisam sair dali e dirigir-se a Qumran. Lá,<br />

terão que aceitar as condições das metas oferecidas por aquela<br />

comunidade.<br />

- São então como liceus pre<strong>para</strong>tivos de estudos? - perguntou<br />

Débora.<br />

- Evidentemente, mas cada um deles especializado n<strong>aqui</strong>lo que o<br />

próprio instrutor-chefe adquiriu - respondeu Nathanael, já se<br />

mostrando meio impaciente.<br />

- Quer dizer que Simeão só adquiriu preparo <strong>para</strong> a iniciação até o<br />

segundo nível? - quis saber Débora, ingenuamente, olhando <strong>para</strong><br />

ele.<br />

Nathan riu a bom valer. Simeão olhou-a com carinho. Nathanael, <strong>no</strong><br />

entanto, disse com rispidez:<br />

- Eu ficaria embaraçado e até infeliz se alguém me fizesse esta<br />

pergunta, Débora. Mas continuou: - Não, Simeão é homem muito<br />

culto. Preparou-se desde mocinho. Não se esqueça de que esteve<br />

perto de Yohanan. Espero que não ache que os estudos dos essênios<br />

se limitem apenas ao campo da religiosidade. O conhecimento das<br />

Leis Divinas e da alma humana, Débora, exige outros tipos de<br />

direcionamento <strong>para</strong> a visão dos homens.<br />

Ela olhou <strong>para</strong> Simeão, encabulada.<br />

- Perdoe-me, estou apenas iniciando e...<br />

Mas Nathanael voltou ao ataque, com rigidez:<br />

- Os essênios não se limitam ao estudo das Escrituras Sagradas dos<br />

Profetas Antigos. Precisaram conhecer a cultura do mundo, <strong>para</strong> se<br />

221


disporem a fazer parte de uma organização tão importante quanto<br />

esta - aguardar o Mestre dos Mestres. Têm em mãos a cultura de<br />

outros povos, também, <strong>para</strong> ler e entender.<br />

- Nós <strong>no</strong>s interessamos por tudo, Débora - disse Simeão, que não se<br />

mostrava nem um pouco ofendido. - Procuramos <strong>no</strong>s inteirar da<br />

formação dos homens, desde os tempos das cavernas bem mais<br />

primitivas do que as de agora, até a passagem de outras culturas<br />

milenares entre nós. Não estamos voltados apenas à história do povo<br />

hebreu. Os hebreus têm a sua importância, tanto quanto os outros<br />

povos também tiveram.<br />

Mas Cornélia exaltou-se, porque havia visto <strong>no</strong>s olhos de Nathanael<br />

um certo desdém pelas respostas dadas por ele a Débora, em seus<br />

ingênuos questionamentos. Até então se calara, mas não conseguiu<br />

permanecer sem dar um revide. A atitude dele <strong>para</strong> com Débora era<br />

vista por ela como zombaria.<br />

- Pois eu estranho também que vocês não mantenham um único<br />

ponto de vista - ela ponderou. - Já conheci alguma coisa sobre os<br />

sábios da antiguidade - ela olhou <strong>para</strong> Nathanael em desafio. Mas e<br />

daí? - comentou abespinhada. Você, Nathanael, parece olhar as<br />

mulheres como criaturas merecedoras de terem nas mãos apenas<br />

utensílios domésticos. Sem capacidade nenhuma <strong>para</strong> atingirem "os<br />

grandes cumes que só aos homens estão reservados". Mulheres? -<br />

ponderou com mágoa - precisam apenas trajar-se como tais e ganhar<br />

o papel de simples guardiães dos lares. Cultura <strong>para</strong> elas? Por quê?<br />

Para quê?<br />

- Não se ofenda assim - disse Nathan. - Ele não falou por mal.<br />

Ela ergueu os ombros.<br />

- Desculpe-me, Nathan, mas pouco importa mesmo. Nathanael não<br />

está acompanhando as mudanças do mundo, pelo que vejo.<br />

Continua firme na idéia de que <strong>para</strong> as mulheres basta um tear nas<br />

mãos. Elas precisam continuar a ser fiandeiras. Não instrumentistas<br />

- conforme ele me disse num outro dia, e claramente. Eu entendi<br />

perfeitamente que é assim que ele sente. Pois saiba, senhor<br />

Nathanael - ela continuou, irada -, que também conheço os homens<br />

222


valorosos da Grécia. Também já li Sócrates e alguma coisa de<br />

Platão. Sei, por exemplo, que Ptolomeu entendia o valor das<br />

mulheres, apesar de seus estudos evoluídos. Conheço a vida de<br />

Siddartha Gautama, o Budda, e de tantos outros que sabiam muito<br />

bem transmitir seus ensinamentos sem ofensas. Aprendi muito e<br />

sem precisar ter escritas nas minhas mãos, porque soube ouvir as<br />

pessoas que me ensinavam. Não precisei ler a quantidade de<br />

manuscritos que deve ter lido, mas soube que Joshua era um Ser<br />

Angélico, sem ter lido isto em manuscrito nenhum. Percebi isto por<br />

mim mesma, pelo que sou. E sei que Débora sentiu também o<br />

quanto eram valorosos Joshua e Yohanan, embora esteja se<br />

iniciando entre vocês.<br />

Agora, Nathanael mostrava-se embaraçadíssimo com aquela<br />

enxurrada de afirmações que eram perfeitamente verdadeiras,<br />

porque ele a enxergava como uma mulher sensível, emotiva... e<br />

chorona - nada mais.<br />

Nathan coçou a cabeça, mas tomou a resolução que sentiu ser a<br />

melhor, naquela contingência.<br />

- Eu sempre entendi que as <strong>no</strong>ssas passadas <strong>no</strong>s levarão exatamente<br />

ao caminho que o Criador escolhe como o melhor <strong>para</strong> nós. E <strong>para</strong> o<br />

Criador não há enga<strong>no</strong>s ou ciladas. Portanto, voltemos agora <strong>para</strong><br />

Qumran. Nós todos precisamos <strong>no</strong>s asserenar e a visita que faríamos<br />

<strong>aqui</strong>, na comunidade de Simeão, até perderia o sentido, devido a<br />

este triste acontecimento.<br />

Simeão conversou mais um pouco e não quis discordar de Nathan.<br />

Entrou desacompanhado em sua comunidade. Uma oportunidade<br />

tinha sido perdida pela entrada da desarmonia <strong>no</strong> grupo.<br />

Chegaram em Qumran tristonhos e Cornélia arrefeceu. Não que<br />

tivesse desistido de seus propósitos, porque os ideais que mantinha<br />

não eram circunscritos aos olhares que lhe lançavam algumas<br />

pessoas. Mas achava que já era hora de procurar <strong>no</strong>vos caminhos.<br />

Visitaria sua casa de Nazaré. Depois... veria.<br />

223


Quarenta e Quatro<br />

Cornélia saiu de Qumran e foi <strong>para</strong> Nazaré, onde passou uns tempos<br />

apenas <strong>para</strong> vender sua propriedade. Depois, afastou-se<br />

definitivamente daqueles territórios e foi morar na Gália, onde<br />

termi<strong>no</strong>u seus dias.<br />

No a<strong>no</strong> 70, portanto, 37 após a morte do Nazare<strong>no</strong>, havia<br />

completado 62 a<strong>no</strong>s. Realizara seu desejo de visitar a Índia,<br />

convivendo com criaturas de diferentes castas. Agora já conseguia<br />

ver aquele povo sem melancolia. Eram simplesmente criaturas de<br />

hábitos e costumes diferentes, mas que também sabiam amar,<br />

sofriam e se entregavam ao aprendizado do amor universal tanto<br />

quanto os povos ocidentais.<br />

Sua única ligação com seus dias pretéritos era feita com o auxílio de<br />

Débora. Fora esta amiga de tantos a<strong>no</strong>s que desenvolvera um<br />

sistema de comunicação, utilizando as viagens de amigos lá de<br />

Qumran <strong>para</strong> enviar as suas mensagens. Assim, acompanhou a<br />

distância os eventos vividos por Paulo de Tarso, Pedro, a mãe do<br />

Mestre, Nathanael, Simeão e tantos outros seguidores, como<br />

Licínio, que também acabou a vida de forma tristonha.<br />

A última mensagem de Débora lhe fora enviada <strong>no</strong> a<strong>no</strong> 69,<br />

exatamente o a<strong>no</strong> que antecedeu a destruição de Qumran pelos<br />

roma<strong>no</strong>s.<br />

Esta mensagem Cornélia não se cansava de reler. Constituía <strong>para</strong> ela<br />

o final daqueles dias tão cheios de contradição e, ao mesmo tempo,<br />

de tanto amor vivido entre seres que tiveram a graça de ter a seu<br />

lado a presença do Mestre dos Mestres.<br />

Assim havia escrito Débora:<br />

“Saudações, Cornélia<br />

224


Nos últimos dias tenho sentido dentro de mim a profunda certeza de<br />

que uma onda gigantesca <strong>no</strong>s atingirá. O Santuário que tanto amo<br />

será penetrado por homens que continuam a temer a perda do poder<br />

e vêem em nós os seus agressores.<br />

O Império Roma<strong>no</strong> vai agigantando seus passos, com uma ousadia<br />

só invejável <strong>para</strong> aqueles que não entendem que a alma humana é<br />

frágil, quando se desvia dos rumos do respeito pela integridade dos<br />

povos.<br />

Até esses dias, conseguimos <strong>no</strong>s manter ilesos, porque os roma<strong>no</strong>s<br />

não conseguiram resultado positivo numa estratégia utilizada<br />

ultimamente. Qual? Uma tentativa de enredar “irmãos contra<br />

irmãos”, porque sabiam que os poderosos do Sinédrio não viam a<br />

simplicidade dos essênios como necessária.<br />

Com o que esses guerreiros capciosos não contavam, era com o fato<br />

de que os sacerdotes do Sinédrio e os judeus que não viam o Mestre<br />

senão como um revolucionário se manteriam unidos em respeito a<br />

Qumran, quando vissem este local ameaçado. Não sou versada em<br />

política, minha amiga, mas confesso que estou temerosa, embora<br />

acredite na força e na sagacidade também de <strong>no</strong>ssos amigos<br />

essênios. Se não fossem intrépidos e valentes, há muito os grandes<br />

senhores roma<strong>no</strong>s já os teriam expulsado deste Santuário.<br />

Creio que cada um de nós, vivendo esses dias difíceis e de<br />

embaraços, conseguiu analisar mais apropriadamente os valores<br />

reais do mundo – os do espírito superando de muito os materiais.<br />

A presença do <strong>no</strong>sso Messias vencerá os tempos e percorrerá o<br />

mundo com o exemplo que, um dia, será seguido por todos que<br />

conservarem a centelha do amor <strong>no</strong> coração.<br />

Também creio que mesmo os que viram o Nosso Mestre como um<br />

simples interessado num rei<strong>no</strong> terre<strong>no</strong> sairão d<strong>aqui</strong> marcados<br />

fortemente pelo espetáculo infamante de um sacrifício injusto do<br />

Filho do Deus. E disso jamais se esquecerão. Nossos corpos<br />

permanecerão por <strong>aqui</strong>, mas <strong>no</strong>ssas almas possuem “memória”.<br />

225


Agora passemos à parte amena desta mensagem. Lembra-se de<br />

Josiel, o filho de Boanerges?<br />

Ele fez seus estudos na Grécia. Boanerges sempre se referiu a você<br />

com devoção, de modo que o rapaz pretende procurá-la. A morte de<br />

Boanerges e Rute o tem levado a procurar os verdadeiros amigos de<br />

seus pais. Mais dias me<strong>no</strong>s dias estará na presença desse homem<br />

que, desde bebê, a reconhecia como amiga. Quando me referi a esta<br />

passagem, ele sorriu. É caladão e tímido. Você verá.<br />

Quem permaneceu em <strong>no</strong>sso meio é o garotinho que ficou a meus<br />

cuidados, Rúben. Ele conseguiu acompanhar a vida de Simeão uns<br />

bons dez a<strong>no</strong>s. Permanecerá <strong>aqui</strong> como sacerdote, até que o Criador<br />

disponha de <strong>no</strong>ssas vidas <strong>para</strong> outras <strong>para</strong>gens. Ele passou<br />

rapidamente pelas iniciações. É um homem dig<strong>no</strong> e cheio de retidão.<br />

Reservo-me o direito de fazer uma excelente surpresa <strong>para</strong> você.<br />

Você a alcançará <strong>no</strong> dia de seu encontro com Josiel. Não posso lhe<br />

explicar como consegui isto, porque perderia o sabor de surpresa.<br />

Portanto, encarrego Josiel de ser “o mensageiro dos deuses”.<br />

Que seus pensamentos me alcancem, unam-se aos meus, e recolham<br />

a amizade que ofereço <strong>para</strong> você, hoje e sempre.. Débora.”<br />

226


Quarenta e Cinco<br />

Josiel chegou acompanhado de dois amigos da Grécia e tinha a seu<br />

lado a “surpresa” referida por Débora em sua última carta. Era<br />

Zínia.<br />

Cornélia e sua antiga serviçal não se cansavam de se abraçar, como<br />

se desejassem reter nesse abraço o calor, a alegria e as bênçãos que<br />

haviam recebido, juntas, nas inúmeras vezes que puderam<br />

compartilhar das palavras de Joshua em sua vida terrena.<br />

Zínia havia seguido o propósito de dedicar-se a criaturas solitárias, a<br />

fim de entregar-lhes a seiva da vida – que nunca lhe faltou – porque<br />

já era uma alma liberta. Tor<strong>no</strong>u-se uma criatura indômita e cheia de<br />

consideração pelos irmãos mais frágeis. As duas haviam nesta<br />

existência acendido um rainho de luz, que as acompanharia em suas<br />

existências futuras, pois sempre que se cruzassem se reconheceriam.<br />

Só que nenhuma das duas sabia que Josiel também era um elo<br />

perpétuo nesta corrente de amizade.<br />

Em um daqueles dias ame<strong>no</strong>s, em que a Natureza participava da paz<br />

naqueles territórios, enquanto em Qumran se fecharia o ciclo de<br />

vida de tantos amigos deles, conversavam.<br />

Disse-lhes Josiel: - Creio que não fiz nada melhor em minha vida,<br />

até hoje, do que viajar, <strong>para</strong> restabelecer contato com você, Zínia, e<br />

com Cornélia também. Não vou me ater ao fato de que somos almas<br />

vinculadas nesta trajetória que fazemos <strong>aqui</strong> pela Terra, porque sei,<br />

por intermédio de Débora, que você, Cornélia, possui o dom das<br />

reminiscências pretéritas. E, por elas, deve ter tantas informações a<br />

passar, que ficaríamos <strong>aqui</strong> voltados <strong>para</strong> um mundo que já se<br />

perdeu e o que importa mesmo é este momento do agora, do hoje,<br />

que <strong>no</strong>s entrega este prêmio do reconhecimento do afeto que ainda<br />

<strong>no</strong>s liga, apesar do transcorrer dos séculos.<br />

227


- Mas não posso deixar de lhe dizer, Josiel, que me ver assim, perto<br />

de vocês, me leva a sentir uma saudade inexplicável de algo que ...<br />

que <strong>no</strong>s pertenceu... e que <strong>no</strong>s revelou um tipo de vida cheio de<br />

bens, sem tantas tragédias – disse-lhe Zínia, cheia de afeto. - É bom<br />

saber que o passado também <strong>no</strong>s entregou crescimento e alegria. Se<br />

assim não fosse, por que <strong>no</strong>s deteríamos a olhar criaturas como<br />

“irmãos de coração?” Bem que eu gostaria de possuir este veículo<br />

que leva Cornélia a relembrar, por exemplo, onde foi que <strong>no</strong>s vimos<br />

– ela ponderou.<br />

Josiel sorriu. – Todos nós sabemos, Zínia, que a Casa do Pai tem<br />

muitas Moradas. Mas não é tão fácil descobrir quais delas <strong>no</strong>s<br />

abrigaram numa completa e perfeita harmonia.<br />

Cornélia emocio<strong>no</strong>u-se. -Tive possibilidade de me ver em várias<br />

delas, Josiel: Egito, Índia, Arábia, um local que desapareceu coberto<br />

pelas águas, outro em que existiam só cavernas, e que acabei<br />

reconhecendo como sendo exatamente este território que ora<br />

recebeu Joshua. Este lar de agora, <strong>para</strong> o qual Deus me fez retornar,<br />

certamente <strong>para</strong> que se extinguisse em mim um passado cheio de<br />

frustrações e desenga<strong>no</strong>s, mas, sem dúvida nenhuma, repleto de<br />

aprendizados. Seis existências valiosas, mas que eu considero<br />

ampliadas por uma outra – a sétima e a mais importante – porque<br />

nela tive o privilégio de participar da presença da Morada do<br />

Senhor, do Rei<strong>no</strong> do qual Ele <strong>no</strong>s falava.<br />

E então? – Josiel estimulou-a.<br />

- Então, eu descobri, finalmente, que o Rei<strong>no</strong> tão referido por<br />

Joshua era o <strong>no</strong>sso próprio coração. Em qualquer lugar que<br />

estivermos, teremos dentro de nós este Rei<strong>no</strong> magnífico, razão de<br />

<strong>no</strong>ssas passagens <strong>aqui</strong> pela Terra. A vocês eu posso confessar que<br />

esta Morada foi a minha preferida. Sim, nesta Sétima Morada eu<br />

posso dizer que me incluí, com amor, pela vida. E ela prosseguiu,<br />

feliz: O Rei<strong>no</strong> do Nosso Mestre me entregou ao aprendizado de uma<br />

série de chaves: da compreensão, da amizade, da estima, do afeto,<br />

enfim, da variedade de tipos de amores que Ele por <strong>aqui</strong><br />

exemplificava. Ah, quão valoroso e justo era Joshua! Mas também<br />

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sei que ainda existe uma infinidade de tipos de amores a serem<br />

conhecidos por nós. Por isso é que precisamos voltar... e voltar.<br />

- Pois eu posso lhes afiançar que você e Zínia já me receberam<br />

como filho. As duas já me amaram e protegeram. É por isto que<br />

minha alma me convidava a vir até <strong>aqui</strong>, neste lugar em que<br />

transformamos os <strong>no</strong>ssos laços do passado pelo amor incondicional.<br />

- Fale-<strong>no</strong>s sobre isto – pediu Zínia cheia de curiosidade. - É verdade<br />

que já <strong>no</strong>s conheceu?<br />

- Importa-<strong>no</strong>s mesmo, Zínia, é entender que as famílias são<br />

numerosas e que, com o transcorrer dos séculos, seremos realmente<br />

muitos irmãos. Caminharemos por outras Moradas, até findar o<br />

<strong>no</strong>sso ciclo reencarnatório pela Terra. Então, conheceremos outros<br />

tipos de mundos mais evoluídos e pacíficos do que este. Um dia<br />

seremos Luz.<br />

- Mas, quando você fala assim, tenho a impressão de que <strong>no</strong>s<br />

se<strong>para</strong>remos logo. E isto me entristece – queixou-se Zínia.<br />

- O Rei<strong>no</strong> do Pai nunca morre, Zínia. As programações Dele são<br />

perfeitas. Assim, Ele <strong>no</strong>s colocará sempre um diante do outro,<br />

porque o <strong>no</strong>sso coração pede isto. As Moradas são eternas em <strong>no</strong>sso<br />

coração, pois correspondem à Luz Divina.<br />

- Quer dizer que eu posso afirmar que vislumbrei, parcialmente, sete<br />

rainhos de luz, Josiel? Você concorda?<br />

- Plenamente. Mas esta bênção pertence a todos nós. Basta estarmos<br />

atentos e a enxergaremos.<br />

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Si<strong>no</strong>pse do <strong>livro</strong> A Casa das Sete Moradas<br />

Pelas dificuldades que surgiriam <strong>para</strong> plantar na Terra os<br />

dizeres e as obras de Jesus (Joshua), nasceu por <strong>aqui</strong>, antes<br />

Dele e depois Dele, gente que estaria pre<strong>para</strong>da <strong>para</strong> ajudar<br />

a lançar este alicerce <strong>no</strong> solo. Não anjos e nem santos,<br />

como o Messias, mas pessoas capazes de, pelo me<strong>no</strong>s,<br />

“tentar entender e aceitar pensares diferentes dos seus”.<br />

Entre esses, os essênios.<br />

Eram criaturas programadoras do futuro do cristianismo e<br />

que sabiam – muito bem – que não se esperava “só delas” e<br />

sim da “multiplicidade delas” o resultado do que fora<br />

programado, por sua vez, <strong>no</strong> Rei<strong>no</strong> Maior.<br />

A Casa das Sete Moradas contém esses fatos narrados sob<br />

o ponto de vista de uma mulher que era dotada de poderes<br />

considerados sobrenaturais. Anteviu a morte infamante de<br />

Joshua e percorreu locais que Ele e Yohannan (o João<br />

Batista) visitavam, pertencentes ao grupo dos essênios.<br />

A política da época, as superstições, os costumes das<br />

mulheres romanas e judias, dos próprios essênios, a<br />

empáfia dos conquistadores roma<strong>no</strong>s, a vaidade de Simão o<br />

Mago, o encarceramento de seguidores do Messias, o sonho<br />

de amor de uma jovem por Yohannan – estes são alguns<br />

dos flashes que iluminam por mais algum tempo aquele<br />

cenário de espanto e encantamento que, até hoje, desafia a<br />

memória das criaturas.<br />

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