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Entre Limões de cheiro e açoites: o carnaval e a escravidão na ...

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História, imagem e <strong>na</strong>rrativas<br />

N o 7, ano 3, setembro/outubro/2008 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br<br />

<strong>Entre</strong> <strong>Limões</strong> <strong>de</strong> <strong>cheiro</strong> e <strong>açoites</strong>: o <strong>car<strong>na</strong>val</strong> e a <strong>escravidão</strong> <strong>na</strong> imprensa<br />

ilustrada. Pelotas-RS, 1880-1889.<br />

Aristeu Elisandro Machado Lopes<br />

Doutorando em História/UFRGS – Bolsista CNPq<br />

Professor Substituto da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>/FURG<br />

e-mail: aristoriaufrgs@yahoo.com.br<br />

Resumo: A imprensa ilustrada foi um dos ramos do jor<strong>na</strong>lismo que mais se <strong>de</strong>senvolveram no Brasil do século XIX.<br />

As cida<strong>de</strong>s mais <strong>de</strong>senvolvidas do Império contaram com este tipo <strong>de</strong> publicação como Pelotas, no sul do Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul. Os periódicos Cabrion, Zé Povinho e A Ventarola foram os mais significativos abordando, em suas<br />

pági<strong>na</strong>s <strong>de</strong> ilustrações, os mais variados temas. <strong>Entre</strong> eles, o <strong>car<strong>na</strong>val</strong> e a <strong>escravidão</strong>. Esses assuntos constituem os<br />

objetivos da proposta <strong>de</strong> análise <strong>de</strong>ste artigo. Preten<strong>de</strong>-se a<strong>na</strong>lisar como os periódicos abordaram, por um lado, o<br />

<strong>car<strong>na</strong>val</strong> quase sempre relacio<strong>na</strong>da as camadas mais populares e por outro, a <strong>escravidão</strong>, tão presente <strong>na</strong> socieda<strong>de</strong><br />

escravista pelotense nos anos 1880.<br />

Palavras-chave: Imprensa ilustrada – Pelotas – Car<strong>na</strong>val – Escravidão<br />

1


História, imagem e <strong>na</strong>rrativas<br />

N o 7, ano 3, setembro/outubro/2008 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br<br />

CONSIDERAÇÕES INICIAIS<br />

A cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pelotas no século XIX obteve um <strong>de</strong>senvolvimento significativo <strong>na</strong>s<br />

ativida<strong>de</strong>s relacio<strong>na</strong>das a imprensa e a literatura. Em parte, <strong>de</strong>vido à existência <strong>de</strong> uma população<br />

letrada que encontrava <strong>na</strong>s livrarias um número variado <strong>de</strong> livros <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e importados e<br />

jor<strong>na</strong>is, tanto diários como periódicos, a sua disposição. Ao longo daquele século Pelotas contou<br />

com uma gama variada <strong>de</strong> jor<strong>na</strong>is diários, periódicos literários ou <strong>de</strong> assuntos diversos e<br />

alma<strong>na</strong>ques. <strong>Entre</strong> os periódicos, três apresentavam-se como ilustrados e humorísticos: Cabrion,<br />

publicado entre os anos <strong>de</strong> 1879 e 1881; Zé Povinho que circulou nos primeiros seis meses <strong>de</strong><br />

1883 e A Ventarola fundada em 1887 e mantida até 1889. Estes periódicos consi<strong>de</strong>ravam tudo e<br />

todos passíveis <strong>de</strong> suas críticas, emitindo opiniões sobre os mais variados assuntos, <strong>de</strong>dicando<br />

uma parte significativa <strong>de</strong> sua produção à política do tempo. Por outro lado, uma vertente <strong>de</strong> sua<br />

atenção era direcio<strong>na</strong>da à cida<strong>de</strong>, incluindo-se as condições <strong>de</strong> vida da população pobre ou<br />

escravizada. Neste artigo preten<strong>de</strong>-se abordar, através do <strong>car<strong>na</strong>val</strong> e da <strong>escravidão</strong>, algumas das<br />

ilustrações e textos sobre essas temáticas a<strong>na</strong>lisando o conteúdo expresso <strong>na</strong> sátira e <strong>na</strong> crítica<br />

presentes <strong>na</strong> elaboração dos <strong>de</strong>senhos e textos humorísticos que eram transmitidos aos leitores<br />

através <strong>de</strong> uma apresentação cômica da realida<strong>de</strong>. Assim, aspira-se também <strong>de</strong>monstrar que a<br />

inditosa parcela da população foi um elemento caro às composições das expressões artísticas dos<br />

caricaturistas pelotenses.<br />

“VOCÊ NÃO ME CONHECE? EU TE CONHEÇO”: O CARNAVAL NA IMPRENSA<br />

ILUSTRADA<br />

O <strong>car<strong>na</strong>val</strong> pelotense não diferiu daquele realizado por outras cida<strong>de</strong>s do Império. Ele foi<br />

caracterizado por dois mo<strong>de</strong>los distintos: o entrudo e o <strong>car<strong>na</strong>val</strong> elegante. O primeiro era uma<br />

brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> rua, trazida pelos imigrantes portugueses, <strong>na</strong> qual as pessoas atiravam, umas <strong>na</strong>s<br />

outras, água suja, ovos, farinha e outras substâncias. Caracteristico do entrudo e do <strong>car<strong>na</strong>val</strong><br />

brasileiro no século XIX foram as bolas <strong>de</strong> ceras confeccio<strong>na</strong>das artesa<strong>na</strong>lmente e preenchidas<br />

com água, conhecidas como limões <strong>de</strong> <strong>cheiro</strong>. Praticado, sobretudo, pelas camadas populares, o


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entrudo era consi<strong>de</strong>rado um jogo estúpido que <strong>de</strong>veria ser substituído pelo segundo 1 .<br />

Em Pelotas a brinca<strong>de</strong>ira ocorria <strong>na</strong> Rua São Miguel (atual XV <strong>de</strong> Novembro) e <strong>na</strong> Praça<br />

Pedro II (atual Coronel Pedro Osório): “No redondo da praça, ao que se diz, <strong>de</strong>ram se episódios<br />

por <strong>de</strong>mais picarescos, isto é... <strong>car<strong>na</strong>val</strong>escos e entru<strong>de</strong>scos” (A Ventarola, 10/03/1889) 2 .<br />

<strong>Entre</strong>tanto não se restringiu somente a esses espaços, um cronista anônimo <strong>na</strong>rrou no jor<strong>na</strong>l<br />

Cabrion um “combate” realizado <strong>na</strong> Rua General Osório em 1880:<br />

Esquecia-me <strong>de</strong> dar a notícia <strong>de</strong> um combate terrível que há dias teve lugar <strong>na</strong> Rua<br />

General Osório, quadra entre as ruas S. Jeronymo e 7 <strong>de</strong> Setembro - A arma<br />

escolhida foi bal<strong>de</strong>s d'água e limões. Foi tal o motim que, parecendo um grave<br />

conflito, fez ali reunir se um gran<strong>de</strong> numero <strong>de</strong> transeuntes, inclusive muitas<br />

praças do <strong>de</strong>stacamento policial (Cabrion, 08/02/1880).<br />

Possivelmente os episódios <strong>na</strong>rrados pelos periódicos foram protagonizados por<br />

elementos oriundos <strong>de</strong> camadas populares, e não pelo grupo social formado por famílias<br />

essencialmente brancas e abastadas. Estas, norteadas por normas européias, <strong>de</strong>sfrutavam dos Balmasqués<br />

(bailes <strong>de</strong> máscaras) oferecidos pelas socieda<strong>de</strong>s recreativas e bailantes. Fora do período<br />

do <strong>car<strong>na</strong>val</strong> essas associações eram as principais formas <strong>de</strong> lazer da cida<strong>de</strong> no século XIX<br />

(LONER, 2002b, p.44) <strong>Entre</strong>tanto, a barreira entre os segmentos sociais não era tão resistente em<br />

cida<strong>de</strong>s maiores, como aponta Maria Clementi<strong>na</strong> Cunha ao relatar o entrudo realizado <strong>na</strong> cida<strong>de</strong><br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

das janelas e sacadas, ou no leito das ruas, mulheres e homens <strong>de</strong> variada extração<br />

social divertiam-se empenhadamente em atirar limões-<strong>de</strong>-<strong>cheiro</strong> - ou para os<br />

menos refi<strong>na</strong>dos, gamelas <strong>de</strong> água (limpa ou suja) - nos passantes, mesmo quando<br />

fossem socieda<strong>de</strong>s incorporadas, solenes e luxuosas, ansiosas por achar Paris <strong>na</strong><br />

estreita rua do Ouvidor, enquanto escravos brincavam <strong>de</strong> esfarinhar-se e melar-se<br />

junto aos chafarizes, caracterizando-se como brancos em uma ence<strong>na</strong>ção <strong>de</strong><br />

evi<strong>de</strong>nte sátira social. Cartolas e casacas envergadas por altivos senhores<br />

tor<strong>na</strong>vam-se então alvos preferenciais <strong>de</strong> pilhéria, que consistia em, literalmente,<br />

<strong>de</strong>struir tais signos <strong>de</strong> distinção social entre assuadas e gargalhadas - mesmo sob o<br />

risco da intervenção da polícia (CUNHA, 2002, p.374).<br />

1 Mais informações sobre o <strong>car<strong>na</strong>val</strong> pelotense no século XIX e no início do século XIX po<strong>de</strong>m ser obtidas em:<br />

BARRETO, Alvaro. Dias <strong>de</strong> folia. O <strong>car<strong>na</strong>val</strong> pelotense <strong>de</strong> 1890 a 1937. Pelotas: UCPel, 2003.<br />

2 Todas as citações dos jor<strong>na</strong>is tiveram sua grafia atualizada.


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Retor<strong>na</strong>ndo a citação do periódico Cabrion, que <strong>de</strong>stacava a interferência policial <strong>na</strong><br />

resolução do “grave conflito”, nota-se que a brinca<strong>de</strong>ira não agradava a todos, gerando<br />

<strong>de</strong>scontentamento por parte dos vitimados e sendo alvo <strong>de</strong> críticas dos redatores dos jor<strong>na</strong>is. Em<br />

1880, em artigo intitulado “Bis<strong>na</strong>gadas” o mesmo jor<strong>na</strong>l fez a seguinte <strong>de</strong>scrição do <strong>car<strong>na</strong>val</strong><br />

realizado <strong>na</strong> Praça Pedro II: “todas as noites é ali um dilúvio <strong>de</strong> bis<strong>na</strong>gas, seringas e limões, que<br />

parece um inferno...molhado” (Cabrion, 01/02/1880). Na edição seguinte, novas críticas surgem<br />

assi<strong>na</strong>das por “Zé-bis<strong>na</strong>ga”: “Venham as críticas e alusões, venham os cancans <strong>de</strong>senfreados e<br />

abaixo o estúpido entrudo com seus brutais a<strong>de</strong>ptos!” (Cabrion, 08/02/1880). Já o periódico A<br />

Ventarola inseriu <strong>na</strong> primeira pági<strong>na</strong> <strong>de</strong> sua edição <strong>de</strong> 03 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1889 o resultado do<br />

entrudo que, apesar do tom simpático, apresentava os resultados prejudiciais <strong>de</strong>ixados pela festa.<br />

(FIGURA 1) Na ilustração ficava evi<strong>de</strong>nte que a prática <strong>car<strong>na</strong>val</strong>esca do entrudo era um jogo<br />

selvagem, que <strong>de</strong>struía, com seus modos grosseiros, tudo que estivesse no caminho dos foliões.<br />

Essa brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>saparecer em favorecimento dos elegantes bailes, que foram o alvo<br />

principal das notícias sobre os eventos <strong>car<strong>na</strong>val</strong>escos, tanto em 1888 como em 1889.<br />

FIGURA 1: Quarta-feira <strong>de</strong> cinzas.<br />

Fonte: A Ventarola, Pelotas, n.102, p.1, 10 mar. 1889. Acervo: BBP


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Além <strong>de</strong> ter sido consi<strong>de</strong>rado um jogo bárbaro o entrudo era responsável por causar<br />

diversas moléstias. O periódico Cabrion em 1881 afirmou ser as bis<strong>na</strong>gas o motivo “para tanta<br />

gente com tosse e sofrendo do peito; pois não sabem que as bis<strong>na</strong>gas constipam. A constipação<br />

provida <strong>de</strong> uma forte bis<strong>na</strong>gada é muitas vezes, sofrimento para perto <strong>de</strong> um ano” (Cabrion,<br />

20/02/1881). Em 1886 a Inspetoria Geral <strong>de</strong> Higiene da Corte, passou à população o seguinte<br />

aviso:<br />

A Inspetoria Geral <strong>de</strong> Higiene aconselha aos habitantes <strong>de</strong>sta capital que se<br />

abstenham do jogo do entrudo, divertimento bárbaro, impróprio <strong>de</strong> uma <strong>na</strong>ção<br />

civilizada. As supressões básicas da transpiração, os resfriamentos, conseqüência<br />

imediata do entrudo, são as causas mais po<strong>de</strong>rosas da tísica pulmo<strong>na</strong>r, <strong>de</strong> todas as<br />

moléstias graves, especialmente a febre amarela (CANO; ARDUINI, 2003, p.04).<br />

Concomitante ao entrudo houve no <strong>car<strong>na</strong>val</strong> <strong>de</strong> rua um tipo particular <strong>de</strong> folião: o<br />

fantasiado avulso, chamado <strong>de</strong> pulha. Eles apareciam, ás vezes, em grupos percorrendo as ruas,<br />

fazendo a pergunta: “tu não me conheces? Eu te conheço”. Estes fantasiados foram alvo <strong>de</strong><br />

críticas da imprensa, que os menosprezavam. Em 1883, um cronista do jor<strong>na</strong>l Zé Povinho, se<br />

protegendo sob o pseudônimo <strong>de</strong> Demócrito, tratou os avulsos da seguinte forma: “estamos em<br />

pleno <strong>car<strong>na</strong>val</strong>, é dizer, <strong>na</strong> época dos pulhas e princeses (sic), <strong>na</strong> época em que a rapaziada<br />

pratica mil diabruras pelas ruas e salões <strong>de</strong> bailes, com prejuízo da bolça (sic) e da saú<strong>de</strong>,<br />

julgando que se diverte” (Zé Povinho, 04/02/1883). Em 1889, foi novamente razão <strong>de</strong> crítica em<br />

A Ventarola: “Segunda-feira, havendo melhor tempo, exibiram-se alguns mascarados, em gran<strong>de</strong><br />

parte pulhas do fastidioso tu não me conheces? eu te conheço..., bobos alegres que, suando em<br />

bicas, melhor fariam se se <strong>de</strong>ixassem ficar em casa matando pulgas” (A Ventarola, 10/03/1889).<br />

(grifo do jor<strong>na</strong>l).<br />

O que se constata através das críticas era um preconceito por parte dos redatores dos<br />

jor<strong>na</strong>is a este tipo <strong>de</strong> folião, geralmente associado as camadas inferiores da população: “O Zé<br />

Povinho divertiu-se a valer, fazendo <strong>de</strong> pulha, <strong>de</strong> bexiga e <strong>de</strong> princez (sic). Que mais quer ele?”<br />

(A Ventarola, 19/02/1888). No caso do jor<strong>na</strong>l A Ventarola, as críticas a esse tipo <strong>de</strong> mascarado<br />

foram mais contun<strong>de</strong>ntes estando presente nos dois anos que o jor<strong>na</strong>l acompanhou as festas<br />

<strong>car<strong>na</strong>val</strong>escas. “Quando tomarão juízo estes idiotas, santo <strong>de</strong>us?... Não aparecerá, por carida<strong>de</strong>,<br />

quem se encarregue <strong>de</strong> dissuadi-los <strong>de</strong> semelhante bobagem?...” (A Ventarola, 17/03/1889). No<br />

entanto, quando os foliões avulsos constituíam um grupo <strong>de</strong> assalto formado por membros <strong>de</strong>


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famílias conhecidas e ricas, as críticas se transformavam em elogios como po<strong>de</strong> se averiguar <strong>na</strong><br />

continuação da mesma crônica citada acima quando o autor Simplicio elogiou um <strong>de</strong>stes grupos:<br />

“Mas... á noite, como para remate das festas <strong>car<strong>na</strong>val</strong>escas, um grupo <strong>de</strong> interessantes jovens da<br />

nossa elite, envergando vistosos dominós, <strong>de</strong>u um passeio pela cida<strong>de</strong>, fazendo gentil visita a<br />

famílias <strong>de</strong> seu conhecimento”. Assim verifica-se que os jor<strong>na</strong>is diferenciavam os foliões avulsos<br />

(os pulhas) consi<strong>de</strong>rados importunos, que vagueavam pelas ruas com uma fantasia medíocre<br />

fazendo sua particular pergunta e aqueles oriundos <strong>de</strong> famílias conhecidas, fantasiados or<strong>de</strong>iros<br />

que somente visitavam casas <strong>de</strong> pessoas com a mesma condição social. Duas ilustrações<br />

veiculadas nesta mesma edição d’A Ventarola, noticiando o <strong>car<strong>na</strong>val</strong> <strong>de</strong> 1889, exemplificam essa<br />

constatação. (FIGURAS 2 e 3)<br />

FIGURA 2: O <strong>car<strong>na</strong>val</strong> <strong>de</strong> rua – banda e foliões avulsos.<br />

Fonte: A Ventarola, Pelotas, n.103, p.4, 17 mar. 1889. Acervo: BBP


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FIGURA 3: O <strong>car<strong>na</strong>val</strong> fechado – grupo <strong>de</strong> assalto.<br />

Legenda: ... e visitando algumas ilustres famílias on<strong>de</strong> todos se entregaram por algum tempo aos prazeres da dança.<br />

Fonte: A Ventarola, Pelotas, n.103, p.4, 17 mar. 1889. Acervo: BBP<br />

Na primeira ilustração o periódico apresentava uma ce<strong>na</strong> do <strong>car<strong>na</strong>val</strong> <strong>de</strong> rua. Num<br />

primeiro plano aparecem os músicos puxando os foliões; logo em seguida, num segundo plano,<br />

surgem dois foliões avulsos, os “pulhas”. Destaca-se ainda, no canto superior esquerdo um<br />

estandarte <strong>de</strong> um bloco <strong>car<strong>na</strong>val</strong>esco. O cortejo é espreitado por homens <strong>de</strong> cartola, os quais<br />

provavelmente não participavam da festa. Já a segunda representava uma ativida<strong>de</strong> <strong>car<strong>na</strong>val</strong>esca<br />

fechada (vê-se no fundo da composição um lustre e corti<strong>na</strong>s <strong>de</strong> janela) com um grupo <strong>de</strong> assalto<br />

“or<strong>de</strong>iro”, se divertindo, provavelmente num baile particular, como afiançava a legenda: “... e<br />

visitando algumas ilustres famílias on<strong>de</strong> todos se entregaram por algum tempo aos prazeres da<br />

dança” . Nota-se ainda nesta imagem uma unida<strong>de</strong> <strong>na</strong> fantasia; em <strong>de</strong>trimento da imagem anterior<br />

que apresentava os foliões fantasiados aleatoriamente.<br />

O “BALUARTE DA ESCRAVAGISMO”: A MORTE DO ESCRAVO JERONYMO E O<br />

ASSASSINATO DA CONTRATADA 3 PÓRCIA.<br />

Pelotas concentrou um número significativo <strong>de</strong> charqueadas ao longo do século XIX<br />

transformando o charque no principal produto <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento econômico. Na fabricação<br />

foi utilizada a mão-<strong>de</strong>-obra escrava proporcio<strong>na</strong>ndo assim uma das maiores concentrações <strong>de</strong><br />

3<br />

Vale <strong>de</strong>stacar que a Abolição dos escravos já havia ocorrido, em parte, em Pelotas em 1884, por isso Pórcia era<br />

uma contratada, ou seja, ex-escrava.


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população negra do império. Essa característica foi asseverada pelo periódico A Ventarola que,<br />

logo após a abolição, afirmou “vivemos entre o mais inexpugnável baluarte do escravagismo da<br />

Província”. Dois casos <strong>de</strong> assassi<strong>na</strong>to proporcio<strong>na</strong>ram uma tomada <strong>de</strong> posição dos<br />

hebdomadários em relação aa <strong>escravidão</strong>: o assassi<strong>na</strong>to do escravo Jeronymo ocorrido em 1881 e<br />

noticiado pelo Cabrion e a morte da contratada Pórcia em 1888 tema abordado em A Ventarola.<br />

Jeronymo, 16 anos, morreu após ter sido açoitado pelo capataz da charqueada <strong>na</strong> qual era<br />

escravo. O assassínio teve gran<strong>de</strong> repercussão <strong>na</strong> socieda<strong>de</strong> pelotense e foi motivo para longos<br />

<strong>de</strong>bates entre os jor<strong>na</strong>listas da imprensa pelotense. O periódico Cabrion que con<strong>de</strong>nou a<br />

ocorrência e exigiu punição aos culpados, criticou também o jor<strong>na</strong>lista Antonio Joaquim Dias,<br />

proprietário do jor<strong>na</strong>l diário Correio Mercantil. Conforme o caricaturista Eduardo Guerra,<br />

responsável pelas ilustrações do periódico, Dias tornou-se o <strong>de</strong>fensor dos assassinos escrevendo<br />

artigos tentando ludibriar a opinião pública e, para <strong>de</strong>sempenhar tal função, recebia dinheiro do<br />

charqueador. Na primeira pági<strong>na</strong> da edição do dia 03 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1881, o periódico publicou uma<br />

lápi<strong>de</strong> com a inscrição: “Aqui jaz o infeliz Jeronymo vitima do cancro social que civiliza o nosso<br />

país”. Aos lados aparecem quatro algozes e no centro da composição alguns objetos utilizados<br />

para castigar os escravos. Ape<strong>na</strong>s um dos carrascos foi mostrado <strong>de</strong> frente; ele é Dias que traz <strong>na</strong><br />

mão um papel com a inscrição: “Correio Mercantil <strong>de</strong>fensor perpétuo <strong>de</strong> infâmias”. Ojor<strong>na</strong>lista<br />

não participou da morte do escravo, contudo, <strong>de</strong>vido a sua propaganda em prol dos assassinos, foi<br />

consi<strong>de</strong>rado pelo caricaturista como um <strong>de</strong>les. (FIGURA 4)


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Figura 4: O assassi<strong>na</strong>to do escravo Jeronymo<br />

Legendas: (Na lápi<strong>de</strong>) Aqui jaz o infeliz Jeronymo vítima do cancro social que civiliza o nosso país.<br />

E ainda há miseráveis que se prestam a <strong>de</strong>fesa!...<br />

(Na mão do homem do canto direito) Correio Mercantil <strong>de</strong>fensor perpétuo <strong>de</strong> infâmias.<br />

Fonte: Cabrion, Pelotas, n.114, p.1, 03 abr. 1881. Acervo: BBP<br />

A posição acatada pelo Cabrion, em relação à <strong>escravidão</strong> e a condição <strong>de</strong> vida dos<br />

escravizados, se tornou mais clara após o assassi<strong>na</strong>to. Eduardo Guerra adotou também uma<br />

postura contra os proprietários <strong>de</strong> escravos que dispunham <strong>de</strong> dinheiro e influências para abafar<br />

os crimes:<br />

Não é por se dizer – é negro – que não se <strong>de</strong>ve punir por esse infeliz que a<br />

<strong>de</strong>sgraça o <strong>de</strong>stinou à <strong>escravidão</strong>, nem tão pouco por os algozes serem ricos e<br />

po<strong>de</strong>rosos que se lhes faça a justiça imputando-lhes a culpabilida<strong>de</strong> do crime,<br />

dando assim um exemplo a essa aristocracia mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong> que por tantos crimes é<br />

responsável, mas que os abafam porque para isso dispõem do baro<strong>na</strong>to, da<br />

comenda, do pergaminho e do dinheiro (Cabrion, 10/04/1881).<br />

Ao lado disso, o periódico rogava ao promotor e ao juiz que não vacilassem em nenhum instante,<br />

uma vez que a morte do “infeliz Jeronymo é a expectativa popular <strong>de</strong>sta cida<strong>de</strong>.”


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Em outro artigo publicado em 17 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1881, Guerra <strong>de</strong>ixou transparecer sua<br />

posição sobre a <strong>escravidão</strong>, ao afirmar que a socieda<strong>de</strong> herdou o “cancro que presentemente nos<br />

horroriza, é necessário resolvê-lo, é um <strong>de</strong>ver e é uma obra <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>”. Ele <strong>de</strong>stacava que não<br />

se <strong>de</strong>ve conceber a injúria diária que diz “[...] é lei a <strong>escravidão</strong>. É escravo, apanhe o vergalho.”<br />

Em seguida afirmava que os escravistas não têm sentimentos e que “tendo ouro tem tudo o que<br />

<strong>de</strong>sejam”; contra isso conclama: “<strong>de</strong>vemos ter brio e dignida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ixemo-nos <strong>de</strong> contemplações”.<br />

O periódico findou sua circulação em junho <strong>de</strong> 1881, não obstante, o caso Jeronymo<br />

continuou sendo veiculado nos jor<strong>na</strong>is diários. Noticiaram as audiências realizadas a partir das<br />

<strong>de</strong>núncias da promotoria pública para a inquirição das testemunhas e através da imprensa diária<br />

foi possível constatar que além do charqueador Sr. Paulino Leite, seu irmão Antonio Leite e do<br />

capataz Sr. Manoel Oliveira, três escravos: Antonio, Marcelino e Casemiro foram acusados <strong>de</strong><br />

serem os executores dos castigos sofridos pelo escravo (Diário <strong>de</strong> Pelotas, 26/06/1881). Em<br />

setembro daquele ano, relatava que os escravos foram recolhidos à ca<strong>de</strong>ia a fim <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>rem<br />

ao processo juntamente com o capataz Manoel <strong>de</strong> Oliveira que já estava preso (Diário <strong>de</strong> Pelotas,<br />

02/09/1881). 4<br />

A jovem <strong>de</strong> 22 anos chamada Pórcia foi morta em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1887 por estrangulamento<br />

pelas suas senhoras, as quais eram <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong>das pel’A Ventarola <strong>de</strong> “víboras da<strong>na</strong>das”. Um crime<br />

semelhante ao anterior e que novamente foi motivo para <strong>de</strong>bates <strong>na</strong> imprensa pelotense. O<br />

periódico não só con<strong>de</strong>nou o crime como exigiu a punição das culpadas e se posicionou<br />

con<strong>de</strong><strong>na</strong>ndo a <strong>escravidão</strong>.<br />

Conforme o jor<strong>na</strong>l, o fato somente foi apurado após uma <strong>de</strong>núncia feita ao <strong>de</strong>legado <strong>de</strong><br />

polícia que investigou o caso e constatou que a contratada não morrera repenti<strong>na</strong>mente como<br />

afirmava o atestado <strong>de</strong> óbito, mas que a morte foi provocada por estrangulamento. Através da<br />

autopsia feita no cadáver “verificou-se que a miseranda Pórcia apresentava uma interminável<br />

sucessão <strong>de</strong> sevícias, algumas das quais, como as que apresentavam <strong>na</strong>s partes sexuais, feita a<br />

ferro incan<strong>de</strong>scente”. Reproduzindo parte da notícia veiculada em A Pátria o periódico relatava<br />

que havia no corpo “chagas antigas e recentes” além <strong>de</strong> apresentar “as costelas e as ná<strong>de</strong>gas<br />

<strong>de</strong>spidas <strong>de</strong> pele” (A Ventarola, 11/12/1887).<br />

4 Informações obtidas a partir <strong>de</strong> LONER, Beatriz A<strong>na</strong>. Formas <strong>de</strong> Organização dos trabalhadores <strong>na</strong> luta contra a<br />

Escravidão (1880-1888). Pelotas; NDH/UFPel, 2002a. (Projeto <strong>de</strong> pesquisa).


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A <strong>na</strong>rração do crime, feita <strong>na</strong>s ilustrações, ocupou toda a pági<strong>na</strong> oito e foi dividida em<br />

três quadros. (FIGURA 5) A ce<strong>na</strong> do assassi<strong>na</strong>to foi representada no interior <strong>de</strong> uma casa,<br />

certamente a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ignácio dos Santos, o contratador. No primeiro quadro<br />

apresentavam-<strong>na</strong> com as mãos amarradas e com uma corda no pescoço; ao lado duas mulheres<br />

batiam com bastões em suas costas. A legenda <strong>de</strong>nunciava as autoras: “a perversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Maria<br />

do Carmo e <strong>de</strong> Josefi<strong>na</strong> sua filha, reduziu a este estado uma infeliz que ape<strong>na</strong>s contava 22 anos <strong>de</strong><br />

ida<strong>de</strong>!!!”. No segundo quadro as duas mulheres aparecem enforcando Pórcia, que foi<br />

representada seminua e esfarrapada. A legenda avalizava que os suplícios eram <strong>de</strong> longa data e<br />

que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> “praticarem as maiores atrocida<strong>de</strong>s acabaram por assassiná-la”. O terceiro quadro<br />

traz uma mesa com um caixão fechado. A última legenda faz referência ao atestado <strong>de</strong> óbito e<br />

sobre a participação <strong>de</strong> médicos neste tipo <strong>de</strong> crime: “vai <strong>de</strong>pressa e arranca <strong>de</strong> qualquer médico<br />

um atestado no qual se diga que ela morreu <strong>de</strong> repente. Depressa antes que venha a polícia”.<br />

A partir <strong>de</strong>sta legenda, po<strong>de</strong> se <strong>de</strong>duzir que, em alguns casos, os médicos eram coniventes<br />

com os assassi<strong>na</strong>tos <strong>de</strong> escravos, ou seja, há gran<strong>de</strong> probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que outros crimes<br />

semelhantes a este tenham ocorrido, porém foram acobertados através da emissão <strong>de</strong> certidões <strong>de</strong><br />

óbitos falsas. A questão do assassi<strong>na</strong>to da contratada retornou às pági<strong>na</strong>s do periódico, meses<br />

<strong>de</strong>pois. O motivo foi questio<strong>na</strong>r que até aquele momento o crime ainda não havia sido<br />

solucio<strong>na</strong>do. No texto <strong>de</strong>nunciavam que as “duas tigras com feições <strong>de</strong> mulheres” assassi<strong>na</strong>s da<br />

contratada Pórcia continuavam em liberda<strong>de</strong>. Fazendo uma retrospectiva do crime, <strong>de</strong>stacavam<br />

que o fato “produziu sensação” e as autorida<strong>de</strong>s policiais pren<strong>de</strong>ram, como resultado do<br />

inquérito, o “marido da mulher apontada como autora daquele célebre crime” (A Ventarola,<br />

29/04/1888). Contudo, o indivíduo foi solto e as assassi<strong>na</strong>s fugiram da cida<strong>de</strong> para o distrito do<br />

Herval.


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Figura 5: O assassi<strong>na</strong>to da contratada Pórcia<br />

Legendas: Suplício e morte da infeliz Pórcia, contratada <strong>de</strong> Ignácio José dos Santos.<br />

A perversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Maria do Carmo e Josefi<strong>na</strong>, sua filha, reduziu a este estado uma infeliz que ape<strong>na</strong>s contava 22<br />

anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>!!! Nunca se viu no Brasil tanta perversida<strong>de</strong>.<br />

Depois <strong>de</strong> praticarem as maiores atrocida<strong>de</strong>s – há longa data – acabaram por assassi<strong>na</strong>-la!<br />

Vai <strong>de</strong>pressa e arranca <strong>de</strong> qualquer médico um atestado no qual se diga que ela morreu <strong>de</strong> repente. Depressa antes<br />

que venha a polícia.<br />

Fonte: A Ventarola, Pelotas, n.36, p.8, 11 <strong>de</strong>z. 1887. Acervo: BBP


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Quando da ocorrência da morte <strong>de</strong> Pórcia, a questão do fim da <strong>escravidão</strong> e a conseqüente<br />

abolição estavam sendo amplamente <strong>de</strong>batidas, não só em Pelotas como no resto do Império. O<br />

caso tornou-se um elemento para ampliar essas discussões e con<strong>de</strong><strong>na</strong>r a <strong>escravidão</strong>. A<strong>na</strong>lisando o<br />

tratamento dispensado à causa em A Ventarola é possível afirmar que o periódico não adotou<br />

uma posição abolicionista clara, embora <strong>de</strong>ixasse transparecer, em alguns casos, a con<strong>de</strong><strong>na</strong>ção ao<br />

regime escravocrata. Exemplar <strong>de</strong>sta posição é um artigo publicado um pouco antes do<br />

assassi<strong>na</strong>to <strong>de</strong> Pórcia. Nele relatavam uma notícia dada pelo jor<strong>na</strong>l republicano A Fe<strong>de</strong>ração <strong>de</strong><br />

Porto Alegre que causou indig<strong>na</strong>ção nos pelotenses. O conteúdo <strong>de</strong>nunciava que “nesta bela e<br />

rica cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pelotas se mata e se esfola negros ai por essas margens do São Gonçalo e Pelotas”.<br />

O periódico apresentou uma contraposição à acusação do jor<strong>na</strong>l <strong>de</strong> Porto Alegre, <strong>de</strong>stacando as<br />

condições <strong>de</strong> vida dos escravos <strong>na</strong> cida<strong>de</strong>:<br />

O cativeiro aqui é uma condição suavíssima, em parte alguma do mundo não<br />

houve e não há lugar on<strong>de</strong> os cativos gozem <strong>de</strong> mais regalias. Os escravizados,<br />

entre nós, passam uma vida <strong>de</strong>liciosa. Assim vale a pe<strong>na</strong> ser cativo: comendo pão<br />

<strong>de</strong> ló e passando vida cômoda e regalada, quem não quererá ser escravizado? Isso<br />

<strong>de</strong> tronco, <strong>de</strong> ferros aos pés e galheira ao pescoço é bom lá para o norte: entre nós<br />

a coisa muda <strong>de</strong> figura (A Ventarola, 27/11/1887).<br />

Este parágrafo do texto passa, a princípio, um tom <strong>de</strong> serieda<strong>de</strong> que po<strong>de</strong> ser<br />

compreendido a partir <strong>de</strong> uma primeira leitura. No entanto, ao a<strong>na</strong>lisar o seu conteúdo e se<br />

tratando <strong>de</strong> um periódico humorístico fica patente que, não se trata <strong>de</strong> uma resposta a A<br />

Fe<strong>de</strong>ração; o trecho po<strong>de</strong> ser lido como uma afirmação da <strong>de</strong>núncia do jor<strong>na</strong>l porto-alegrense. A<br />

forma encontrada para rebater a crítica <strong>de</strong>ve ser entendida também como uma sátira à <strong>escravidão</strong>,<br />

direcio<strong>na</strong>da à socieda<strong>de</strong> escravista pelotense.<br />

Três números após <strong>de</strong>nunciar que o assassi<strong>na</strong>to da contratada Pórcia ainda não tinha sido<br />

solucio<strong>na</strong>do, A Ventarola noticiava a promulgação da lei Áurea: “inda não era meio-dia a 13 do<br />

que corre, quando tive o grandíssimo alegrão <strong>de</strong> que nesta terra do xarque (sic) e do café já não<br />

havia mais escravos”. O periódico, levando sempre à frente o seu propósito <strong>de</strong> satirizar os<br />

acontecimentos, tratou <strong>de</strong> dissertar não sobre a nova condição dos escravos libertados pela lei;<br />

abordou a situação em que se encontrariam, <strong>de</strong> agora em diante, os ex-senhores <strong>de</strong> escravos:


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Comecei eu a pensar, então, cá com os meus botões: como se arranjará este pobre<br />

Zé Povinho que vivia a sombra do negro e que não sabe as doçuras que o trabalho<br />

tem?<br />

Sim senhores, trabucava eu comigo, como hão <strong>de</strong> continuar <strong>na</strong> inércia robustos<br />

moços que tinham quatro gatos para mandar sulcar a terra?<br />

Como hão <strong>de</strong> sobreviver tantos velhos preguiçosos que <strong>na</strong>sceram e envelheceram,<br />

vivendo como quase parasitas – <strong>de</strong> suor do escravo?<br />

Meus senhores e minhas senhoras (como dizem os discursadores): é preciso que<br />

vos capaciteis <strong>de</strong> que – quem não po<strong>de</strong> com o tempo não inventa modas.<br />

Há muito tempo que os abolicionistas lhes diziam: preparem-se, a tempesta<strong>de</strong> não<br />

está longe. Vossas Excelências entendiam que eles eram uma corja <strong>de</strong> sacripantes<br />

(sic) que queria privar-vos daquele engano d’alma ledo e cego, em que tinham Vs.<br />

Exas. vivido por tantos anos (A Ventarola, 20/05/1888). (grifo do jor<strong>na</strong>l).<br />

Pelo trecho, nota-se o mesmo tom satírico empregado no texto anterior que tratava da<br />

notícia-<strong>de</strong>núncia d’A Fe<strong>de</strong>ração. Neste, ao contrário daquele, não foram salientadas as condições<br />

<strong>de</strong> vida dos escravos, os quais viviam a “pão <strong>de</strong> ló”, contudo a sátira foi novamente en<strong>de</strong>reçada<br />

à socieda<strong>de</strong> escravista pelotense, já que <strong>de</strong>stacou os “problemas” que passariam os senhores <strong>de</strong><br />

escravos para se adaptar à nova condição. Comparando, ainda, os dois artigos, po<strong>de</strong>-se consi<strong>de</strong>rar<br />

que, se no primeiro apontaram as condições confortáveis da vida no cativeiro, o segundo<br />

“<strong>de</strong>smentiu” essa construção, <strong>de</strong>monstrando que esse relato foi elaborado, sobretudo, para<br />

proporcio<strong>na</strong>r o riso do leitor através <strong>de</strong> uma apresentação cômica da realida<strong>de</strong>, como evi<strong>de</strong>nciam<br />

os dois textos a<strong>na</strong>lisados.<br />

Já ao anunciar as repercussões da lei <strong>na</strong> cida<strong>de</strong> o periódico <strong>de</strong>monstrou em suas pági<strong>na</strong>s<br />

que, para “os ilustres escravocratas pelotenses” a lei teve o mesmo efeito <strong>de</strong> uma “bomba <strong>de</strong><br />

di<strong>na</strong>mite”. Numa seqüência <strong>de</strong> quadros a reação das “senhoras beatas escravagistas (sic)” foi o<br />

mote principal dos <strong>de</strong>senhos. Assim que a notícia chegou, elas tinham esperanças que a lei não<br />

abrangesse contratados e libertos, entretanto isso não ocorreu e elas rogaram “mil pragas à<br />

princesa imperial e xingaram o senhor João Alfredo”. Narraram que muitas <strong>de</strong>las, tentando<br />

impedir que os escravos soubessem da boa nova, “encerraram os mesmos em quartos e porões”<br />

ou tentaram fugir para o interior levando-os consigo. As ilustrações representaram essas mulheres<br />

esbravejando contra os escravos, os quais, davam “ba<strong>na</strong><strong>na</strong>s” e a<strong>de</strong>us para suas ex- senhoras. Por<br />

fim, <strong>de</strong>stacaram que muitas <strong>de</strong>las iriam retirar seus maridos dos partidos monárquicos, tor<strong>na</strong>ndo-


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os republicanos. O periódico concordou, visto que, “só nos falta conquistar a nossa liberda<strong>de</strong>, o<br />

alvitre das senhoras escravistas não é mau: engrosse-se, pois as fileiras do partido republicano”.<br />

(FIGURA 6)<br />

Figura 6: As senhoras escravagistas<br />

Legendas: Restava-lhes ainda a esperança <strong>de</strong> que os contratados e ingênuos continuassem no gozo da liberda<strong>de</strong>... do<br />

tronco, da palmatória e do bacalhau.<br />

As Sªs. beatas e escravagistas <strong>de</strong>ram-se aos <strong>de</strong>mônios; rogaram mil pragas a Princesa Imperial, xingaram o Sr. João<br />

Alfredo e, choraram e pintaram a manta.<br />

Fonte: A Ventarola, Pelotas, n.60, p. 5, 20 maio 1888. Acervo: BBP<br />

Nos <strong>de</strong>senhos humorísticos o periódico premeditava a futura corrida dos ex-senhores <strong>de</strong><br />

escravos, <strong>de</strong>scontentes com a Mo<strong>na</strong>rquia, para as agremiações republica<strong>na</strong>s. A situação foi<br />

verificada, em especial, <strong>na</strong>s zo<strong>na</strong>s cafeeiras em <strong>de</strong>clínio que tinham nos escravos sua fonte <strong>de</strong><br />

riqueza. Por outro lado, a mo<strong>na</strong>rquia conseguiu frear a campanha republica<strong>na</strong> <strong>de</strong>sviando a<br />

atenção para o fim da <strong>escravidão</strong>; ainda, alguns antigos oponentes do regime e lí<strong>de</strong>res do<br />

movimento abolicionista como o jor<strong>na</strong>lista José do Patrocínio e o <strong>de</strong>putado Joaquim Nabuco<br />

tor<strong>na</strong>ram mais brandas suas críticas a Mo<strong>na</strong>rquia. A Ventarola, que era simpática do movimento<br />

republicano, saudou a Abolição mas não arrefeceu em suas críticas ao império, continuando com


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a veiculação <strong>de</strong> caricaturas satirizando as mazelas que o regime proporcio<strong>na</strong>va, contrastando-as<br />

com as benesses dos i<strong>de</strong>ais republicanos. Para o jor<strong>na</strong>l pelotense a <strong>escravidão</strong>, a religião e a<br />

mo<strong>na</strong>rquia eram os gran<strong>de</strong>s males que emperravam o <strong>de</strong>senvolvimento do Brasil e aquele que<br />

lutasse contra um, <strong>de</strong>veria lutar contra todos.<br />

Quanto ao assassi<strong>na</strong>to <strong>de</strong> Pórcia, nenhuma relação entre sua morte e a lei da abolição,<br />

promulgada cerca <strong>de</strong> cinco meses após o crime, foi realizada. Apesar disso, ao <strong>de</strong>monstrar o<br />

<strong>de</strong>sconsolo das mulheres escravistas, das quais, conforme o periódico, nem mesmo ao <strong>de</strong>mônio<br />

entregariam estes “entes queridos” e lembrando que foram duas mulheres também escravocratas<br />

que assassi<strong>na</strong>ram a contratada, po<strong>de</strong>-se dizer que, pelo menos <strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s d’A Ventarola, Pórcia<br />

estava vingada!<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Através <strong>de</strong> dois temas – o <strong>car<strong>na</strong>val</strong> e a <strong>escravidão</strong> – abordados <strong>na</strong> imprensa ilustrada e<br />

humorística pelotense do século XIX foi possível traçar algumas consi<strong>de</strong>rações em relação a<br />

população pobre ou escravizada em Pelotas. O <strong>car<strong>na</strong>val</strong> era <strong>de</strong>marcado claramente por divisões<br />

sociais não ocorrendo um “mundo ao revés” (como ocorria <strong>na</strong> Corte) ou seja, pobres brancos ou<br />

negros e escravos não se misturavam com brancos ricos. Enquanto os primeiros <strong>de</strong>sfrutavam do<br />

<strong>car<strong>na</strong>val</strong> aberto, assi<strong>na</strong>lado pelo entrudo, os segundos gozavam <strong>de</strong> um <strong>car<strong>na</strong>val</strong> fechado, chamado<br />

por eles <strong>de</strong> elegante, oferecido pelas associações e clubes ou até particulares. Ainda sobre o<br />

<strong>car<strong>na</strong>val</strong> foi averiguado um preconceito em relação aos fantasiados avulsos que <strong>de</strong>sfilavam pelas<br />

ruas, “importu<strong>na</strong>ndo” as pessoas com a pergunta: “Você não me conhece? Eu te conheço”. A<br />

imprensa ilustrada ao noticiar as ativida<strong>de</strong>s <strong>car<strong>na</strong>val</strong>escas con<strong>de</strong><strong>na</strong>va-os, chamando-os<br />

pejorativamente <strong>de</strong> pulhas. E ao combatê-los, juntamente com o entrudo, contribuía para manter a<br />

bifurcação social existente <strong>na</strong> socieda<strong>de</strong> pelotense que se evi<strong>de</strong>nciava no período das festas<br />

momescas.<br />

Ao que tange a <strong>escravidão</strong>, ao contrário <strong>de</strong> outros periódicos ilustrados <strong>de</strong> outras cida<strong>de</strong>s,<br />

(como a Revista Ilustrada do Rio <strong>de</strong> Janeiro) os <strong>de</strong> Pelotas não se <strong>de</strong>claravam abertamente<br />

abolicionistas. Essa atitu<strong>de</strong>, privavelmente, foi tomada <strong>de</strong>vido a parcela dos seus leitores e


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assi<strong>na</strong>ntes, oriundos da camada social rica e escravocrata. Contudo, com a ocorrência dos<br />

assassi<strong>na</strong>tos do escravo Jeronymo e da contratada Pórcia se posicio<strong>na</strong>ram, con<strong>de</strong><strong>na</strong>ndo as mortes<br />

e exigindo punição aos culpados. Assim proce<strong>de</strong>ndo, as imagens e textos veiculados sobre esse<br />

assunto <strong>de</strong>ixaram transparecer as condições <strong>de</strong> vida dos escravos, salientando as mazelas dos<br />

vitimados e os privilégios que os opressores <strong>de</strong>sfrutavam para escapar da con<strong>de</strong><strong>na</strong>ção. As duas<br />

temáticas, o <strong>car<strong>na</strong>val</strong> e a <strong>escravidão</strong> foram trabalhados paradoxalmente pelos periódicos: se por<br />

um lado combatiam o entrudo e os foliões “pulhas” constituídos por elementos provenientes <strong>de</strong><br />

camadas populares, por outro con<strong>de</strong><strong>na</strong>vam os crimes e criticavam a <strong>escravidão</strong>. Nesse sentido,<br />

vale consi<strong>de</strong>rar que essa produção artística e textual se constitui num ma<strong>na</strong>ncial rico à análise da<br />

participação dos elementos provenientes das classes populares <strong>na</strong> história da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pelotas<br />

nos últimos anos do Império, imputados à exclusão social por uma socieda<strong>de</strong> marcadamente<br />

opulenta, escravista e branca.<br />

Fontes:<br />

Centro <strong>de</strong> Documentação e Obras Valiosas/Biblioteca Pública Pelotense – Pelotas/RS:<br />

Cabrion (1880-1881)<br />

Zé Povinho (1883)<br />

A Ventarola (1887-1889)<br />

Referências:<br />

BARRETO, Alvaro. Dias <strong>de</strong> folia. O <strong>car<strong>na</strong>val</strong> pelotense <strong>de</strong> 1890 a 1937. Pelotas: UCPel, 2003.<br />

CANO, Jefferson e ARDUINI, Guilherme Ramalho. Circularida<strong>de</strong> e Resistência Cultural no<br />

Car<strong>na</strong>val Paulistano (1920-1945). Projeto <strong>de</strong> pesquisa. Campi<strong>na</strong>s: UNICAMP, 2003.<br />

CUNHA, Maria Clementi<strong>na</strong> Pereira. Vários Zés, um sobrenome: as muitas faces do senhor<br />

pereira no <strong>car<strong>na</strong>val</strong> carioca da virada do século. In: _______(Org.). Car<strong>na</strong>vais e outras f(r)estas.<br />

Ensaios <strong>de</strong> história social da cultura. Campi<strong>na</strong>s: UNICAMP/CECULT, 2002. p.371-417.<br />

LONER, Beatriz A<strong>na</strong>. Formas <strong>de</strong> Organização dos trabalhadores <strong>na</strong> luta contra a Escravidão<br />

(1880-1888). Pelotas; NDH/UFPel, 2002a. (Projeto <strong>de</strong> pesquisa).


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LONER, Beatriz A<strong>na</strong>. Pelotas se diverte: Clubes recreativos e culturais do século XIX. História<br />

em Revista. Pelotas: Núcleo <strong>de</strong> Documentação Histórica/Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pelotas, v.8,<br />

<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2002b, p. 37-68.

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