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“Ajoelhou tem que rezar”, avisa a plaquinha enferrujada, pregada num pedaço de parede já embolorada<br />
e malcheirosa da velha igreja de Santa Gema. Se não fosse pelos altares despidos de imagens e pelos<br />
tocos de velas chorosas, quase não existiriam sinais de que ali se encontrava mais uma morada divina.<br />
Nem as cruzes resistiram ao último levante popular, liderado por gente impiedosa, que acusava o pobre<br />
Padre Ferdinando Gonzales de fazer as carolas pagar os pecados de forma nada ortodoxa. As sentenças<br />
proferidas pelo sexagenário homem de cabelos brancos e tez franzida não eram lá muito convencionais<br />
– mas havia quem disputava levar a coça dominical a portas fechadas. Entre as devotas militantes estava<br />
dona Lucinda e sua prole de meninotas endiabradas. A senhorinha bem intencionada fazia questão de<br />
arrastar as filhas para os recônditos celestiais, “sempre impregnadas de pecados impronunciáveis” – dizia<br />
ela, e que só eram confessados diante do santo representante do Criador. Lucinha, Luiza, Lucimar,<br />
Luana e Luzia eram mesmo do balaco, mas nada que as obrigasse a esfolar os joelhos juvenis. E quando<br />
o Padre avistava o quinteto, logo soltava um risinho diabólico. Entre o rebanho, a sua ovelha preferida<br />
era Luiza, moça de olhos languidos, cabelos aparados na altura do queixo e boca rosa-carmim. Era se<br />
aproximar dela para o Padre ser tomado por uma vozinha sem-vergonha: “pega ela”. E lá ia o beato<br />
para o seu quartinho do castigo, com uma vareta na mão e a bíblia noutra. Nem precisava chamar a<br />
aspirante à santinha, ela apressava o passo para mostrar que estava antecipadamente redimida. De cabeça<br />
baixa, ajoelhava-se numa estranha maçaroca e rezava uma, duas, três, dez ave-marias. Deixava as<br />
lágrimas escorrerem pela face e não se atrevia a levantar antes de completar o terço. Padre Ferdinando<br />
mantinha a vigília e só emitia algum som – sempre de desaprovação – quando ouvia “ui e ais” abafados,<br />
vindos da coitadinha que apreciava as poças de sangue formadas ao redor de suas pernocas. Junto do<br />
milho, somavam-se caroços de azeitonas, cacos de vidro e pedras pontiagudas. No entendimento do<br />
tal do Espírito Santo, como justificava o pároco, a “receita da dor” obrigava a culpa a renegar aquele<br />
corpo impuro. A seção de tortura era das mais amaldiçoadas (e temidas) do interior catarinense, razão<br />
pela qual os fiéis fugiram às tantas para os centros espíritas, terreiros de umbanda e candomblé, além<br />
dos bancos evangélicos. “Só mesmo as predestinadas aguentam o fardo”, afirma Gonzales – e Luiza estava<br />
entre as apostas de Deus para seguir os caminhos de Calcutá. Uma santa de alma, que ainda teria<br />
que ralar muito para deixar miss Monroe injuriada de inveja.