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1


CRÔNICAS & ENSAIOS<br />

Uma Crítica aos Costumes<br />

GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA<br />

www.galenoalvarenga.com.br<br />

Esse livro faz parte do acervo de publicações do Psiquiatra e Psicólogo<br />

<strong>Galeno</strong> <strong>Alvarenga</strong>. Disponibilizamos também a versão impressa, que<br />

pode ser adquirida através do site do autor.<br />

Visite www.galenoalvarenga.com.br e saiba mais sobre:<br />

Publicações do Autor<br />

Transtornos Mentais<br />

Testes Psicológicos<br />

Medicamentos<br />

Galeria de Pinturas de Pacientes<br />

Vídeos / Programas de TV com participação de <strong>Galeno</strong> <strong>Alvarenga</strong><br />

Tags: Agressividade e Violência, Comportamento / Condutas, Crenças antigas<br />

/ Mitos / Superstições, Educação e Conhecimento, Emoções Sentimentos<br />

Controle, Informação Linguagem e comunicação, <strong>Livro</strong>s Online Grátis, <strong>Livro</strong>s<br />

Psicologia, <strong>Livro</strong>s Psiquiatria, Médico vs Paciente, Sociedade: Valores e Cultura<br />

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Índice<br />

7<br />

9<br />

13<br />

16<br />

19<br />

22<br />

25<br />

32<br />

38<br />

42<br />

48<br />

50<br />

53<br />

55<br />

59<br />

64<br />

68<br />

73<br />

79<br />

84<br />

90<br />

95<br />

104<br />

107<br />

Introdução<br />

Valores<br />

Homem: Ator engraçado e ridículo<br />

Dois modos de pensar que não combinam<br />

Ser Humano: Anjo ou Demônio?<br />

Responsabilidade moral: Fato ou ficção<br />

Satisfação e sofrimento: Dois lados da mesma moeda<br />

Viva feliz realizando coisas ruíns<br />

O Sequestro da Camisa Listrada<br />

Valores: Informações resumidas<br />

Agressividade e Violência<br />

O Assalto<br />

Brigas de Casais: Agressão ou Excitação Sexual?<br />

Marido Violento: Este Incompreendido<br />

Conheça o Estuprador<br />

Agressividade e Violência: Informações resumidas<br />

Aprenda a não ser tolo: três Marias vão ao médico<br />

Maria Ingênua vai ao médico<br />

Maria Cautelosa vai ao médico<br />

Maria Sofisticada vai ao médico<br />

As três Marias: Informações resumidas<br />

Nosso povo<br />

Entardecer de uma estrela: “BIG BROTHER”<br />

Os maiorais<br />

Amanhecer sem Futuro: Fortunato e Felicidade vão às Compras<br />

Metamorfose<br />

Fanfarra <strong>para</strong> um Homem Comum<br />

A Fabricação do Homem Fora-de-série<br />

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110<br />

113<br />

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188<br />

193<br />

197<br />

200<br />

204<br />

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215<br />

220<br />

224<br />

Um Lugar ao Sol<br />

Nosso Povo: Informações resumidas<br />

Início do universo - começo da vida<br />

O nascimento do Universo<br />

O BIG-BANG<br />

A Explosão inicial: Agrupamento das Letras<br />

O aparecimento dos Seres Vivos<br />

Organismo Humano: O que são Seres Vivos?<br />

Nascimento do Bebê: Primeiros contatos<br />

Recém nascido: Ligação inicial com o Criador<br />

Formação de Modelos: Relação mãe/filho<br />

A Plantonista<br />

Início do Universo – Começo da Vida: Informações resumidas<br />

Emoções, sentimentos, memória e indivíduo<br />

Emoção: A história de Geraldo<br />

O que é emoção?<br />

Sentimentos: Afetos secundários<br />

Memória, Aprendizagem e Pensamento<br />

Duas Memórias: Procedimento e Declarativa<br />

O Eu e a Regulação Interna<br />

Confidências à Meia-Noite<br />

Emoções, Sentimentos e Memória e Indivíduo: Informações resumidas<br />

Comportamento<br />

Tenha Coragem de ter Medo<br />

Como era Verde meu Vale<br />

O Modelo da Lata de Lixo<br />

AIDS: Você tem medo da Doença ou do Doente?<br />

O Preço de uma Escolha: Adeus às Ilusões<br />

Adivinhos: Esses Desadaptados<br />

Comportamento: Informações resumidas<br />

Sociedade e cultura<br />

Os Donos do Poder<br />

Nossas Origens Culturais: Chinesa e Grega<br />

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229<br />

238<br />

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248<br />

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258<br />

264<br />

267<br />

271<br />

276<br />

Um desfecho inesperado<br />

Loucos X Sem-tetos<br />

O Conhecimento e as Diversas Línguas<br />

Sociedade e cultura: Informações resumidas<br />

Informação, comunicação e linguagem<br />

Duas Mulheres Num dia Qualquer<br />

TV e Pesquisas de Opiniões: Você Decide<br />

Discurso: O Toque Sutil dos Sons<br />

O Que se Esconde Por Trás dos Slogans<br />

Informação, Comunicação, Linguagem: Informação resumidas<br />

Lembranças, recordações, saudades<br />

Mergulho no Passado: Uma História Verdadeira<br />

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Para minhas filhas Jussara e Juliana<br />

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Introdução<br />

Quando eu era criança, meus amados e esforçados “professores”, imbuídos<br />

das melhores intenções e empenhados em pre<strong>para</strong>r-me <strong>para</strong> a<br />

vida futura na sociedade, prescreveram-me algumas regras <strong>para</strong> avaliar<br />

o comportamento humano quanto ao certo e errado.<br />

Alguns, possivelmente preocupados em não me assustar, transmitiram-me<br />

um único modo de “ver o mundo” com respeito à ciência,<br />

filosofia, ética, religião.<br />

Outros, menos apreensivos com a tranquilidade do espírito, alertaram-me<br />

<strong>para</strong> a existência de mundos diferentes, bem como de formas<br />

diversas <strong>para</strong> observá-los.<br />

O primeiro grupo de “professores” – os convergentes e presos à<br />

tradição dogmática e da certeza única – dificultou-me ou impediu-me<br />

de observar, examinar e julgar os eventos e as relações humanas sob<br />

prismas diferentes dos afirmados.<br />

O segundo grupo de “professores” – os divergentes, defensores da<br />

tradição crítica, assentados na dúvida construtiva – ensinou-me que<br />

todo conhecimento envolve contradições, incertezas e princípios discutíveis,<br />

pois nada é definitivo e universal. Esses mestres tiveram a coragem<br />

e a humildade necessárias, dignas dos verdadeiros professores,<br />

de criticarem as próprias hipóteses que possuíam e ensinavam. Graças<br />

a eles, muitos alunos, como eu, puderam crescer sem se prenderem<br />

rigorosamente a nenhuma idéia externa.<br />

Deixo <strong>aqui</strong> minha gratidão a <strong>esse</strong>s homens de mente crítica e flexível.<br />

Devo muito a eles.<br />

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Valores<br />

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Homem: Ator engraçado e ridículo<br />

“Lincha! Lincha!”; ”Assassino! Assassino!”. Frequentemente ouvimos<br />

o povo gritar e xingar o suposto estuprador, criminoso ou sequestrador;<br />

outras vezes, nem tão emocionados, escutamos o discurso oposto:<br />

“Salve!, Viva!”: gritos seguidos de palmas e mais palmas, elogios e<br />

exortações.<br />

Frágil, física e intelectualmente, através dos tempos, o homem tem<br />

se mostrado cômico, metido e ridículo. Após adquirir a fala, orgulhosa<br />

e arrogantemente, o homem tem exibido uma superioridade sobre os<br />

outros animais (baratas, ratos, maribondos, bactérias, mosquitos da<br />

dengue e outros): jamais comprovada. Baseado nessa crença falsa, o<br />

homem, através dos tempos, reivindicou <strong>para</strong> si a responsabilidade por<br />

suas ações; condutas que de fato pertencem à natureza do organismo<br />

biológico e da cultura.<br />

Não somos nem tão poderosos, nem tão inteligentes como tem sido<br />

apregoado; somos mais pra burros-autômatos que pra gênios-livres.<br />

Baseado no continuado delírio de grandeza, o homem sancionou sua<br />

importância na Terra. Qual importância seria?<br />

Deixando escapar uma sabedoria suspeita, um amor próprio arrogante<br />

e vazio, ele ora elogia, ora culpa a si próprio; de sobra, engrandece<br />

e macula outros indivíduos. Ele exalta e arruína. Alguns homens,<br />

classificados de criminosos, são torturados e assassinados; outros, ao<br />

realizarem ações chamadas de elevadas (políticas, esportivas, religiosas,<br />

científicas, artísticas) são dignificados e imortalizados. Mas, nem<br />

o homem extraordinário, nem o ordinário, são responsáveis por suas<br />

condutas.<br />

Nós, da espécie “Homo sapiens” – devemos pronunciar isso de boca<br />

cheia – fazemos parte de um grupo de seres semelhantes aos obedien-<br />

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tes cupins, às ordeiras formigas, ás belas e simpáticas abelhas e aos<br />

teimosos salmões. Esses animais, bem como todos não citados, formam<br />

um batalhão de seres vivos disciplinados, em marcha continuada,<br />

do nascimento à morte, na sua busca frenética e incansável por metas<br />

imaginadas como sendo estabelecidas ou assentadas por eles próprios.<br />

Todo organismo busca, antes de tudo, manter sua vida e a da espécie;<br />

o resto é um sonho, preocupações secundárias e derivadas do<br />

princípio fundamental: não morrer.<br />

Nossos objetivos, julgamentos e decisões, jamais foram escolhas<br />

livres. Sabemos que as coisas que acontecem raramente são as que<br />

queremos. Muitas vezes temos, claramente, a impressão de que não<br />

fomos nós os executores da ação, muito embora saibamos que nós é<br />

que as fizemos: “Desculpe: eu não queria fazer isso”.<br />

Quando nós “queremos” algo – tomar um café, ir ao cinema, encontrar<br />

a namorada – utilizamos apenas uma pequeníssima parte do nosso<br />

comando: a consciência voluntária. Mas o que empurra ou impulsiona<br />

a conduta é o organismo total, no qual a consciência está incluída. A<br />

consciência que “escolhe livremente” o desejado está subordinada<br />

e fixada na totalidade do organismo, faz parte dele, e dele depende.<br />

A ciência mostra que é a totalidade do organismo, não somente um<br />

atributo ou aspecto dele, que leva, arrasta, empurra e conduz a pessoa<br />

a fazer uma ou outra coisa. O poder da consciência é ínfimo diante da<br />

potência extraordinária do restante do organismo.<br />

A totalidade do organismo não é dirigida por nós: é comandada por<br />

outras forças, com pouco, e, às vezes, nenhum poder nosso. Não basta<br />

desejarmos ter uma boa disposição, uma inteligência elevada ou possuir<br />

uma habilidade futebolística ou artística; tudo isso não acontece<br />

apenas em virtude do nosso desejo e esforço, participam outros fatores,<br />

altamente poderosos.<br />

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A totalidade do organismo situa-se numa região pouco conhecida: a<br />

nossa imensa ignorância. Ele não só se orienta por princípios ou <strong>para</strong>digmas<br />

inconscientes, como é comandado, também, por pressões biológicas<br />

poderosas; ambas orientações não são acessíveis à consciência<br />

e à nossa vontade e essas duas forças governam e promovem as ações<br />

humanas. A frágil “consciência voluntária” faz parte do conjunto total;<br />

nos propiciando somente a ilusão do livre-arbítrio, dando-nos a suposição<br />

de que as condutas executadas foram decididas livremente por nós<br />

ou que somos livres <strong>para</strong> agir.<br />

O organismo, como um todo, no qual se instala a consciência voluntária,<br />

não pode ser conhecido ou conscientizado através de nenhuma<br />

técnica. Uma razão – dentre outras – <strong>para</strong> isso deriva do fato de que a<br />

consciência só se mostra – é dada à conhecer – à medida que ela vai<br />

sendo constituída, a cada instante, isto é, ela é estruturada ou desvelada<br />

quando nós agimos. Não podemos conhecer <strong>esse</strong> mecanismo, pois<br />

é impossível voltar nossa atenção <strong>para</strong> o objeto focalizado pela consciência<br />

e, também, <strong>para</strong> ela própria; as duas atividades ocorrem juntas.<br />

A estruturação da consciência é formada e deformada sem <strong>para</strong>r; não<br />

podemos conhecer antecipadamente sua constituição ou produção.<br />

A ciência comprovou que a consciência é instalada ou produzida,<br />

automaticamente, devido a ações bioquímicas e biofísicas ocorridas<br />

dentro do organismo diante dos estímulos do meio ambiente, quase<br />

sempre, aleatoriamente e sem nosso conhecimento.<br />

As intenções verdadeiras – as que se realizam e se tornam atos<br />

– nascem de programas não exibidos em nossa consciência; temos<br />

acesso ao resultado final, à conduta possível de ser observada pelos<br />

órgãos dos sentidos. Agimos por intermédio de nosso corpo devido às<br />

pressões externas e internas. O “querer amplo” é cumprido ou alcançado<br />

através de várias ações biológicas: neuro-transmissores, peptídeos,<br />

elementos sanguíneos, hormônios etc., provocadoras das emoções<br />

sem-palavras e, por outro lado, acha-se influenciado ou dominado<br />

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pelos modelos teóricos, princípios, ideologias, <strong>para</strong>digmas etc., que se<br />

manifestam, automaticamente, durante as interações do indivíduo com<br />

acontecimentos fortuitos do meio ambiente. Não possuímos meios ou<br />

aptidões <strong>para</strong> resistir a essas poderosas forças.<br />

O homem é uma construção da evolução: ora dançamos a melodia<br />

demoníaca, ora a dos anjos. Estamos aprisionados às forças que nos<br />

obrigam a preservar a nossa vida e a da espécie. Inventamos explicações<br />

mágicas ou semimágicas <strong>para</strong> a explicar a conduta; uma dessas<br />

interpretações é a de que somos superiores e livres.<br />

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Dois Modos de Pensar<br />

que Não Combinam<br />

Duas orientações básicas, quase opostas, invadiram e dominaram<br />

nossas mentes, passando a fazer parte dos nossos estoques de saberes<br />

culturais. Lançamos mão ora de uma, ora de outra forma, <strong>para</strong> apoiar e<br />

dar direção às nossas ações e pensamentos.<br />

A primeira informação fundamental afirma que <strong>para</strong> compreender<br />

a conduta das pessoas, ou das coisas, devemos examinar e analisar as<br />

cadeias de acontecimentos existentes entre eles; pesquisar como um<br />

– ou alguns – evento anterior atua como causa necessária e suficiente<br />

<strong>para</strong> a ocorrência da posterior. Usamos frequentemente as frases:<br />

“Tudo tem sua causa”; “Precisamos conhecer as causas <strong>para</strong> resolver o<br />

problema”.<br />

A segunda orientação, estranha à primeira, afirma a responsabilidade<br />

moral do homem diante da vida, de sua liberdade de escolha, ou<br />

seja, atesta que sua conduta não depende de acontecimentos anteriores<br />

existentes. Usamos, também, as frases: “É preciso ter “força” de<br />

vontade”; “Com determinação venceremos”.<br />

Você, leitor, deve ter percebido o desacordo entre <strong>esse</strong>s dois princípios<br />

básicos <strong>para</strong> a compreensão da conduta humana; ambos usados<br />

por todos nós, dependendo do momento. Num instante esbravejamos<br />

com nosso filho, afirmando que ele é um vagabundo, não faz os deveres<br />

e não estuda como devia, pressupondo que, se ele “quis<strong>esse</strong>”,<br />

tiv<strong>esse</strong> “força de vontade”, fosse um bom filho, poderia “escolher” ser,<br />

também, um bom aluno e tirar boas notas. Em outro momento, no<br />

trabalho ou laboratório, o pai que acreditava na “liberdade de escolha”<br />

estuda a sequência de fatos <strong>para</strong> verificar as causas da pressão arterial,<br />

da obesidade, da criminalidade, do desemprego, do câncer, dos aciden-<br />

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tes de trânsito, da possibilidade ganhar na sena, ou, ainda, ao deixar<br />

entornar o café na roupa da amiga querida, apressa-se em falar: “Perdão:<br />

foi sem querer”.<br />

Portanto, uma crença afirma que o estado de espírito, o sentimento<br />

e a vontade humana, bem como suas ações, relacionam-se ou dependem<br />

de cadeias causais inquebrantáveis. A outra idéia – princípio, regra,<br />

direção – declara que o homem é responsável por seus atos, isto é,<br />

que nós poderíamos agir, se quiséssemos, de forma diferente de como<br />

agimos. De onde nasceu <strong>esse</strong> “querer”? Onde ele está apoiado? No ar?<br />

Afinal e resumindo: somos determinados por forças acima de nossa<br />

vontade ou somos livres? Fabricados como somos – genética e culturalmente<br />

– estimulados num certo momento por uma ou várias dessas<br />

forças; não sabemos como a maioria delas age em nosso organismo<br />

<strong>para</strong> determinar a formação de uma ou de outra conduta. Como deixar<br />

de agir conforme determinam os fatores formadores da minha esquisita<br />

e quase desconhecida estrutura?<br />

Como usar a “liberdade” pretendida se estou aprisionado a um corpo<br />

biológico de homem, sendo que, na minha cabeça mole e capaz de<br />

ser esculpida, foram introduzidas, sorrateiramente, trilhões de idéias?<br />

Sou regido, primeiramente, por forças de minha espécie, impossíveis<br />

de serem contestadas, pois não posso nunca ser uma águia ou pulga;<br />

depois, por valores da minha classe, de minha raça – se é que isso<br />

existe – da igreja e da civilização na qual fui ; forças incorporadas, não<br />

criadas por min, que não consigo ir contra.<br />

Você não acha, pensando da maneira acima, que é uma idiotice<br />

censurarmos ou elogiarmos João ou Maria; prender ou aplaudir Teresa<br />

ou Frederico, por possuírem ou não uma determinada característica<br />

que uma cultura particular inseminou no seu genoma de ser humano?<br />

Devemos aplaudir uma pessoa por ela ter uma altura maior ou menor,<br />

um nariz mais <strong>aqui</strong>lino, uma cor da pele branca, preta ou amarela; uma<br />

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grande inteligência ou falta dela? Nenhum d<strong>esse</strong>s atributos foram decisões<br />

de seus possuidores.<br />

Se pensarmos assim – aproveito o espaço <strong>para</strong> lhes dizer que <strong>esse</strong><br />

modo de pensar pode ser perigoso – chegamos à conclusão que tudo<br />

o que existe é necessário e inevitável. Para essa, somente essa especulação,<br />

culpar ou elogiar alguém, considerar outros cursos possíveis de<br />

ação diferentes das tomadas por João ou Maria, acusar ou defender figuras<br />

históricas, Cristóvão Colombo, Pedro Álvares Cabral, Dom Pedro I,<br />

Tiradentes, Getúlio Vargas, FHC ou Lula, por agirem de um certo modo,<br />

é uma conduta sem pé nem cabeça, tola e maluca, caso apoiarmos<br />

nosso raciocínio nas cadeias de acontecimentos, um atuando no outro,<br />

como foi descrito numa das orientações. Mas, se adotarmos o outro<br />

ponto de vista, que <strong>esse</strong>s senhores, do nada, construíram suas vidas,<br />

poderemos aplaudi-los ou censurá-los, tudo dependerá do avaliador.<br />

Acusar alguém nada mais é que interpretar superficialmente uma<br />

pessoa, ou melhor, se prender apenas à tinta externa, a casca facilmente<br />

visível. Denominar alguém de responsável ou irresponsável, culpado<br />

ou criminoso, é um modo simples de escapar ao penoso e longo<br />

esforço, sutil, chato e carregado de dúvidas visando a desembaraçar<br />

os intrincados e desconhecidos laços que dão nascimento às intenções<br />

humanas.<br />

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Ser Humano: Anjo ou Demônio?<br />

Sempre existiram pessoas altamente entusiasmadas com os feitos<br />

espetaculares de A, com a insensatez de B, a violência de C ou a periculosidade<br />

de D. Sempre admiramos alguns, desprezamos outros e<br />

permanecemos indiferentes à maioria. Os julgamentos que realizamos,<br />

favoráveis ou contra determinada pessoa, possivelmente, são semelhantes<br />

às avaliações efetuadas diante de um quadro, de uma música e,<br />

principalmente, de uma mulher: “Como é bela esta mulher!” ou “Detesto<br />

este cara! Pô!”.<br />

As avaliações de condutas como as acima citadas, igual à maioria<br />

das que realizamos, são fáceis, simples e automáticas de se fazer; não<br />

precisamos de esforço e nem de raciocínio <strong>para</strong> elogiar ou deplorar,<br />

sentir amor ou ódio, satisfação ou vergonha; <strong>esse</strong> tipo de julgamento<br />

emocional brota fácil da mente. Ninguém se esgota ao avaliar ações. A<br />

avaliação explode rápida; sem estudo e sem o uso da razão e da lógica;<br />

ela emerge sem querer, automaticamente, sem nossa vontade ou<br />

desejo; ela é inconsciente.<br />

Nós, frequentemente, simpatizamos ou antipatizamos por alguém,<br />

amamos ou odiamos algo. Essas atitudes – puras reações motivacionais<br />

e emocionais – geram emoções positivas ou negativas sem o uso da inteligência<br />

e vontade, surgindo de repente, às vezes nos assustando ao<br />

invadir e dominar nossa consciência sem que saibamos o porquê: uma<br />

paixão violenta ou um ódio destruidor.<br />

Por outro lado, é extremamente difícil – seria impossível? – arrumar<br />

e organizar argumentos bem colocados, válidos, racionais, <strong>para</strong> culpar<br />

ou justificar as ações de César, Pilatos, Átila, Jesus, Maomé, Buda, Moisés,<br />

Hitler, Bush, Saddam Hussein e Lula.<br />

Os “argumentos” usados por nós, quase sempre, são ruídos passa-<br />

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geiros, pois a conduta de Pedro, ou de Paulo, pode ser admirada ou<br />

não, numa, ou noutra ocasião. Podemos saudar euforicamente Ely,<br />

ou amaldiçoá-lo. Sempre existem os dois lados. Se pensarmos mais a<br />

fundo, denegrir ou enaltecer, criticar ou elogiar, “A” ou “B”, é tão idiota<br />

como fazer sermões recriminando minha jabuticabeira que morreu à-<br />

-toa; criticar a “maldade” do empertigado escorpião amarelo que picou<br />

Joãozinho quando este brincava com o rabinho dele.<br />

Partindo do princípio de que todos nós somos comandados ou condicionados<br />

devido as nossas peculiaridades biológicas e socioculturais,<br />

chegamos à conclusão que seria mais viável evitar toda atribuição de<br />

responsabilidade ou todo julgamento moral. A escolha humana é muito<br />

mais limitada que costumávamos supor. A evidência atual à nossa<br />

disposição mostra que muitos dos atos frequentemente considerados<br />

sob controle do indivíduo não o são. O homem é, muito mais que se<br />

supõe, um objeto da natureza (cientificamente previsível); é isso que<br />

todos os cientistas, biólogos, psicólogos, sociólogos e outros estão<br />

tentando fazer; descobrir leis associando o comportamento estudado<br />

e desconhecido com outros já estudados e conhecidos. Com o desenvolvimento<br />

das ciências sérias, os dis<strong>para</strong>tes acerca da conduta irão<br />

diminuir ou sumir.<br />

O ser humano aprendeu, entre outras coisas, a valorizar ações. Os<br />

hábitos, pensamentos, sentimentos e expressões – as condutas de<br />

modo geral – podem ser, pelo menos em princípio, passíveis de serem<br />

classificadas e submetidas a hipóteses e leis sistemáticas como acontece<br />

com os comportamentos de outros objetos da natureza. Esse é o<br />

trabalho conjunto da psicologia e de outras ciências relacionadas.<br />

Pensando assim, a explicação e o peso da responsabilidade de toda<br />

ação humana deve deixar de ser posta no indivíduo, João ou Maria, e<br />

transferir-se <strong>para</strong> outros aspectos ou forças diferentes das comumente<br />

chamadas pessoais: circuitos cerebrais, hormônios, neuro-transmissores,<br />

lesões, drogas, educação, cultura, época, idade, doenças, pressões<br />

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diversas, profissão etc. Todas essas estruturas: biológicas, bioquímicas,<br />

psicológicas, culturais e religiosas possuem um maior potencial<br />

explicativo que a que habita o fraco e isolado João Ninguém ou Pedro<br />

o Grande, ou seja, o ser humano que foi atirado <strong>para</strong> um lado ou <strong>para</strong><br />

outro, por forças complexas e mal-estudadas, jamais esclarecidas pelos<br />

“sábios”, que também, por sua vez, sofrem, como João Ninguém, as<br />

ações dessas mesmas forças.<br />

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Responsabilidade moral:<br />

Fato ou ficção<br />

Nada é universal e absoluto, tudo muda conforme o momento, o<br />

local e as idéias dos “donos da verdade”. As regras morais, como tudo o<br />

mais, variam diretamente com a distribuição do poder, a época, a moralidade<br />

predominante. Sabemos que a ética nunca é a dos perdedores;<br />

<strong>para</strong> dar uma impressão superficial e popular de justiça, fingimos<br />

e exibimos nossas mentiras uns <strong>para</strong> os outros de maneira hipócrita.<br />

Mantemos um suposto equilíbrio, uma pseudo-harmonia da justiça dos<br />

fortes e dos fracos, dos “escolhidos” e dos “rejeitados”, dos dominantes<br />

e dos domesticados.<br />

Sem exceção, nós mesmos, julgadores não-julgados num momento,<br />

querendo ou não, pertencemos a um ou outro grupo e, n<strong>esse</strong> caso,<br />

tendenciosamente, enxergamos e avaliamos o mundo segundo o ponto<br />

de observação provisoriamente ocupado por nós. Ora pertencemos<br />

ao grupo médico, ora ao político; mas podemos representar e pensar<br />

como o eleitor, lixeiro, pai, cliente, filho, irmão, católico, ateu, ocidental,<br />

oriental, latino, mineiro e itabirano.<br />

Sempre usamos, durante nossos julgamentos, a tela do momento –<br />

pai ou filho, médico ou cliente – que nos cega; impede-nos de enxergar<br />

o lado de lá, muitas vezes oposto, o que está sendo acusado ou elogiado.<br />

Creio ser impossível julgar um povo sob a tela visual despreocupada,<br />

otimista e folgazã do político; examinar o lixeiro através dos “olhos”<br />

indiferentes do produtor do lixo.<br />

Se não estudarmos como possíveis às grandes e poderosas correntes<br />

do pensamento que nos dominam, o jogo complexo acerca da conduta<br />

humana jamais será decifrado, existirão vultos desordenados, não-<br />

-interligados, assentados na argila mole.<br />

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19


A bela e admirada responsabilidade moral é uma ficção que começa<br />

a desabar e a ficar fora de moda. É um dinossauro, uma criação pré-<br />

-científica que deverá morrer quase sem deixar vestígios, sem foguetes<br />

e sem luar. Espera-se, com o aumento do conhecimento, o desaparecimento<br />

da antiga explicação, ou, no mínimo, sua reformulação quanto<br />

aos princípios básicos. Usamos, constantemente, expressões “carregadas<br />

de valor”; também, falsas noções de democracia, de liberdade<br />

humana, na qual se fundamenta a idéia de responsabilidade. Espera-se<br />

que essa idéia acabe <strong>para</strong> os homens esclarecidos e se alastre.<br />

Há uma maneira rápida, mas complexa, <strong>para</strong> entender a conduta<br />

negativa ou positiva de alguém; tomar seu lugar, representar seu<br />

papel provisoriamente, se possível, imaginar os aspectos biológicos da<br />

pessoa que estamos julgando e, também, as condições como o “clima”<br />

intelectual, religioso e social da época e do lugar onde ela cresceu e desenvolveu<br />

até chegar no ambiente onde agiu. Assim consegue-se obter<br />

uma visão mais clara e aproximada dos motivos e ações que estamos<br />

incriminando ou exaltando.<br />

Caso conseguíssemos isso – sei que é impossível – todo o vocabulário<br />

das relações humanas sofreria um abalo radical. Expressões<br />

como: “Não devia ter feito isso”; “Como é que você pôde escolher X?”,<br />

além de toda a linguagem, pejorativa e enaltecedora, usada por nossa<br />

consciência <strong>para</strong> avaliarmos nós e os outros, passaria por uma transformação<br />

total; as expressões linguísticas seriam muito diferentes das<br />

atualmente usadas.<br />

Se os progressos existentes nas neurociências e na psicologia continuarem,<br />

caso não haja censuras constrangedoras, seremos obrigados<br />

a usar novos modos de pensar, de avaliar e de conceituar os eventos<br />

acerca da responsabilidade, do crime, do engrandecimento ou glorificação<br />

de pessoas. Isso marcaria uma revolução no modo de raciocinar,<br />

de julgar, maior que a guerra dos Canudos, do Iraque ou dos Cem-<br />

-Anos.<br />

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Caro leitor: acho que fui longe demais. Eu, pessoalmente, a princípio<br />

entusiasmado, comecei a ficar amedrontado à medida que, automática<br />

e inconscientemente, imaginava e escrevia. Achei estranho, talvez<br />

insensato, não mais “poder” ou conseguir, por causa da minha transformação,<br />

deixar de elogiar uma bela mulher, ou acusar alguns políticos<br />

que odeio. O meu mundo – perderia minha identidade? – caso<br />

isso ocorr<strong>esse</strong>, seria esquisito; talvez, inabitável <strong>para</strong> meu eu antigo<br />

e conhecido. Além disso, até que ponto deveria mandar <strong>para</strong> a lixeira<br />

e, em seguida, esvaziá-la, inúmeras crenças contrárias aos fatos que<br />

todos nós aceitamos como verdades verdadeiras, que têm servido,<br />

pelos séculos e séculos, de suporte <strong>para</strong> elaboração do pensamento e<br />

<strong>para</strong> explicar condutas; elogiando ou denegrindo pessoas. Seria muito<br />

perigoso agir assim; o ser humano eliminar toda essa poderosa rede de<br />

conceituações falsas relacionadas à responsabilidade, liberdade e livre<br />

escolha.<br />

O melhor é não esquentar a cabeça e continuarmos presos à estrutura<br />

inexata; caso contrário, iria pelos ares toda uma classe de expressões<br />

que usamos sem <strong>para</strong>r: “Você está errado!”; “Você precisa largar a<br />

bebida!”; “Como é bondoso aquele senhor”; “Albertina é uma santa!”.<br />

Tudo o que pensamos está impregnado por essas categorias de<br />

uma forma tão arraigada, tão difundida e universal que afastá-las e<br />

pensarmos de outro modo é quase, senão totalmente, impraticável.<br />

Fica difícil, talvez esteja além de nossos poderes normais, conceber<br />

qual seria nossa imagem do mundo se acreditássemos e empregássemos<br />

seriamente essas idéias. As mudanças envolvidas são radicais;<br />

por tudo isso, repito: estou arrependido. O melhor, ou menos ruim, é<br />

deixar tudo como sempre foi. Não vale a pena pensar d<strong>esse</strong> modo, pois<br />

experimentaríamos consequências terríveis caso mudássemos nossa<br />

maneira de avaliar. Por isso, vamos continuar a exclamar: “Viva Z!” ;<br />

“Lincha X! Mata Y!”; é fácil e prático e, além disso, não dá trabalho a<br />

nossa cansada cabeça.<br />

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Satisfação e Sofrimento: Dois lados<br />

da mesma moeda<br />

A satisfação e o sofrimento são emoções responsáveis pelos impulsos<br />

que levam um organismo – homem ou outro animal – a buscar ou<br />

fugir de uma meta. Mas, um objetivo que era muito agradável num<br />

momento, com o passar do tempo, torna-se menos prazeroso. Do mesmo<br />

modo, uma meta provocadora de emoções ruins, pouco a pouco,<br />

fica mais suportável. Portanto, o homem acostuma-se tanto aos prazeres<br />

como aos sofrimentos da vida.<br />

O sofrimento<br />

O número dos batimentos cardíacos de um cão aumenta quando ele<br />

é submetido a sessões de choques. Se os choques continuam sendo<br />

aplicados por mais tempo, os batimentos cardíacos aumentados começam<br />

a diminuir; tendem a retornar ao que era antes das aplicações. O<br />

mesmo processo ocorre com respeito à respiração, salivação etc., diante<br />

de estímulos negativos ou positivos <strong>para</strong> o cão. Quando isso ocorre<br />

falamos que o cão tornou-se tolerante, de outro modo, seu organismo<br />

acostumou-se aos choques elétricos, habituou-se ao “sofrimento”. Nós<br />

homens, somos semelhantes ao cão da experiência quanto a <strong>esse</strong>s<br />

aspectos.<br />

O prazer<br />

Certos estímulos nos provocam prazer e, consequentemente, euforia;<br />

assim, se estivermos diante de uma deliciosa e rica carne tostada,<br />

suculenta e cheirosa, naturalmente com fome, ficamos animados,<br />

alegres e contentes. Ocorre, numa primeira fase, uma reação prazerosa<br />

produzida pela sensação visual, olfativa e mental (expectativa de comê-<br />

-la), gerando no organismo uma grande quantidade de saliva e, além<br />

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disso, os olhos ficam mais abertos, antevendo a possibilidade do prazer<br />

durante a ingestão da carne. Quando a pessoa começa a mastigar,<br />

saborear e engolir a carne, aparece a segunda fase: o prazer e entusiasmo<br />

produzido pelo sabor e ingestão do alimento.<br />

Mas há uma terceira fase; a chamada pós-reação, a que é importante<br />

<strong>para</strong> essa matéria. Esta aparece à medida que o estômago vai ficando<br />

cheio, variando conforme o comilão e o dia. Após certo tempo, o prazer<br />

e euforia inicial, provocada pela visão, cheiro, gosto e ingestão da<br />

carne, vai se acabando.<br />

Horas ou dias após o indivíduo ter saboreado a carne, caso ela tenha<br />

sido saborosa, ele tende a recordar o fato: “Aquele churrasco estava<br />

uma delícia; vou ao restaurante outra vez”. O nosso amigo ficará propenso<br />

a buscar novamente o mesmo estímulo positivo e prazeroso que<br />

lhe excitou e lhe deu alegria: a carne tostada e cheirosa. A esperança<br />

do seu organismo é obter, de novo, um prazer parecido ao sentido na<br />

primeira experiência.<br />

Assim, a representação mental da carne olhada e ingerida tende a<br />

provocar o retorno do comilão ao restaurante. Essa idéia, por si só,<br />

alivia em parte o estado desagradável ou aversivo provocado pela lembrança<br />

da ausência do fato agradável: comer a carne cheia de gordura,<br />

cheirosa etc.<br />

Assim começa a cristalizar a adição, ou seja, a necessidade de comer,<br />

outras e outras vezes, a carne apetitosa ingerida num certo dia e<br />

produtora de prazer. O organismo “sofre” caso não busque e consuma<br />

o desejado e prazeroso. As adições (pressões internas do organismo<br />

percebidas pela consciência <strong>para</strong> alcançar a mesma fonte de prazer)<br />

podem ser de bebidas, drogas, alimentos, internet, compras, dinheiro,<br />

jogos, poder, passeios, transas etc., ou seja, atividades que produziram<br />

e virtualmente continuam a produzir prazer no organismo do indivíduo<br />

e, consequentemente, sofrimento devido à ausência.<br />

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Vivemos à procura de alguma fonte favorita de prazer. Cada indivíduo,<br />

durante certa época, conforme a cultura e “biologia”, terá suas<br />

preferências singulares: <strong>para</strong> uns, a comida, <strong>para</strong> outros, o sexo; outros,<br />

ainda, a novela, as visitas, a solidão, o programa do “Ratinho” ou<br />

o “Fantástico”, a música, a leitura, e-mails, um cafezinho, contar piadas,<br />

xingar, olhar o céu e, principalmente, torcer e morrer pelo Atlético.<br />

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Viva feliz realizando coisas ruíns<br />

Assim como ocorre a tolerância no cão que recebeu choques elétricos<br />

repetidos ou um naco de carne, durante algum tempo, o ser humano<br />

também, com o passar dos dias, meses ou anos, apresenta tolerância<br />

diante do sofrimento ou do prazer causado por fontes continuadas<br />

do mesmo estímulo: a mesma praça, a mesma casa, a mesma rua, a<br />

mesma cama, o mesmo portão e televisão, a mesma secretária ou<br />

vizinha, o mesmo marido ou mulher, a mesma iguaria: todos produzem<br />

a maldita e terrível tolerância. O estímulo provocador de imenso prazer<br />

passa a não provocar mais emoções agradáveis como antes; produz,<br />

às vezes, indiferença, muitas vezes, pior ainda, o sofrimento e aversão:<br />

“Que chatura! Não aguento nem ouvir a voz de meu marido!”; “Tenho<br />

vontade de sumir ao ver minha mulher se aproximar de mim com sua<br />

tosse antipática!”; “Não suporto mais essa comida”.<br />

Estudos mostram que a droga que excitou muito o usuário, a companhia<br />

antes agradável, o filme, o autor ou o programa de TV predileto,<br />

todos eles, após algum tempo, não mais agradam como antes. O que<br />

um dia nos atraiu muito, fornecendo-nos inclusive um significado <strong>para</strong><br />

viver, com o passar do tempo, perde seu encanto, vigor e importância;<br />

torna-se um “nada”, um zero à esquerda, ou, algumas vezes, uma fonte<br />

de sofrimento e irritação da qual procuramos fugir: “Que burrada! Porque<br />

tanto tempo preso a isso”.<br />

Como é estranha a vida! Diante disso, pergunto-me: O que fazer? De<br />

forma automática o organismo pode aumentar a quantidade da fonte<br />

produtora do prazer ou, também, procurar estímulos novos, isto é, de<br />

qualidade diferente. Dessa forma, a pessoa poderá comer, comer e<br />

comer ou, também, usar o alimento altamente temperado; se a bebida<br />

estiver fazendo pouco efeito, a solução é beber e beber, mais e mais,<br />

na busca do prazer anterior perdido; poderá também misturar diversas<br />

bebidas, tomá-las de cabeça <strong>para</strong> baixo, pulando de pára-quedas<br />

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ou debaixo d’água dentro de escafandro. Se o problema for o dinheiro,<br />

que na quantidade atual não mais produz emoções positivas, seu<br />

possuidor poderá armazenar mais e mais, fazer diversas aplicações, de<br />

preferência as ousadas, pois essas provocam mais emoções.<br />

Em qualquer área: fama, crença religiosa, transa, onde a fonte de<br />

prazer acha-se enfraquecida, a técnica será a mesma: aumentar ou<br />

diversificar os estímulos. Assim, <strong>para</strong> aumentar o prazer enfraquecido<br />

diante das orações, o remédio é orar mais e mais, ou trocar, de tempos<br />

em tempos, de religião ou de igreja; se as transas não causam mais<br />

prazer, o amante poderá tentar transar mais e mais ou variar as técnicas,<br />

criar fantasias imagináveis e inimagináveis, usar drogas que aumentam<br />

o prazer ou, ainda, se tudo isso der errado, trocar, de tempos<br />

em tempos, de parceiro.<br />

Lamentavelmente, – eu não queria relatar o que se segue <strong>para</strong> não<br />

tirar a alegria do leitor – qualquer remédio usado <strong>para</strong> aumentar o prazer<br />

anterior, com o tempo, cedo ou tarde, irá diminuir, pois a tolerância<br />

aparecerá novamente atrapalhando o novo prazer obtido através das<br />

novas técnicas empregadas. Não há prazer ou sofrimento que resista<br />

ao tempo. O homem, bem como alguns animais, acostuma-se a tudo:<br />

seja bom, seja ruim. A dopamina, uma substância química produzida<br />

por algumas células nervosas, mecanismo envolvido na produção do<br />

prazer, se esgota quando os estímulos são exibidos e continuados por<br />

muito tempo. A nascente dopaminérgica, diante de estímulos continuados,<br />

esgota-se.<br />

Mas, como diziam os escoteiros, num tempo longínquo, que não<br />

tenho saudade, pois jamais fui ou pensei ser escoteiro: “Nem tudo está<br />

perdido, ainda resta uma esperança, o escoteiro sorri na desventura e<br />

caminha com as próprias pernas”. Existe uma solução aparentemente<br />

estranha, mas que dá, na maioria das vezes, bons resultados. Aconselho,<br />

convidando o prezado leitor, que n<strong>esse</strong> ponto pode estar um pouco<br />

desesperado, a entrar no processo oposto; o outro lado da moeda,<br />

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uscar o sofrimento em lugar do prazer. Não estou brincando! Falo sério!<br />

Não pare <strong>aqui</strong>; prossiga a leitura, pois explicarei melhor como você<br />

irá alcançar a felicidade através da execução das atividades chamadas<br />

– só chamadas – de ruins. Vivemos alegres e satisfeitos por realizarmos<br />

tarefas ruins, precisamos delas <strong>para</strong> ficarmos eufóricos e satisfeitos; as<br />

tarefas boas são raras.<br />

Noel Rosa (?) já cantava, na voz de Aracy de Almeida, em seus versos:<br />

“Sofrer foi o prazer que Deus me deu/ Eu sei sofrer sem reclamar/<br />

Quem sofreu mais do que eu; não nasceu/ Com certeza Deus já me<br />

esqueceu?/É na dor que eu encontro o prazer/ Saber sofrer é uma arte<br />

que pondo a modéstia à parte, eu posso dizer que sei sofrer.<br />

Caso tenha errado, no autor ou versos, peço desculpas aos leitores.<br />

Para mim, estou certo!<br />

Quando um estímulo (o reforço) é negativo (desagradável <strong>para</strong> o<br />

organismo) ele produzirá na pessoa ou no cão uma tonalidade afetiva<br />

desagradável, como foi dito no caso do choque elétrico. Por outro lado,<br />

afirmei ainda que a provocação de uma reação agradável no organismo<br />

o leva a tentar aproximar-se do objeto desejado; ao contrário, quando<br />

surge a reação desagradável, nossa tendência é nos afastar do objeto.<br />

Guarde essa última afirmativa: fugir do ruim. Se não existisse o ruim,<br />

não existiria o bom. A seguir uma explicação detalhada e espero ser<br />

convincente.<br />

Conforme a teoria, e todos vocês sabem disso, após a estimulação<br />

desagradável, ocorrida quando somos submetidos a um estímulo<br />

negativo ou danoso, aparece a pós-reação. Esta, nada mais é que o<br />

prazer de ficar livre do desprazer. Isso mesmo: prazer. A ausência do<br />

sofrimento provoca o prazer, término da estimulação negativa: entrar<br />

num banho quente após estar “gelado” pelo frio; acabar com a secura<br />

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da garganta tomando água; terminar a difícil arrumação etc. Atenção!<br />

Aqui está o “pulo do gato”! Ao fugirmos, escaparmos, livrarmos do<br />

acontecimento provocador do nosso sofrimento, nos sentimos bem,<br />

eufóricos, alegres e satisfeitos. Schopenhauer, exagerando, escreveu:<br />

““Só a dor é positiva””; <strong>para</strong> ele, o prazer seria a ausência da dor.<br />

Passamos de um sentimento negativo – ação do estímulo ruim – <strong>para</strong><br />

um positivo, quando não mais estamos sendo estimulados por algo<br />

aborrecido; o que nos fazia sofrer. Toca o telefone durante a madrugada.<br />

Imaginamos ser uma notícia ruim. É um engano. Ficamos aliviados,<br />

felizmente não era nada. A visita chata decide sair. Que bom! Se estiver<br />

me afogando, ao conseguir voltar a respirar, surgem os sentimentos<br />

de alegria e prazer, que n<strong>esse</strong> caso, podem ser enormes. Frases como:<br />

“Renasci”, “Deus me salvou, vivi de novo”, são afirmadas, sem <strong>para</strong>r,<br />

por todos nós, com grande satisfação. Portanto, ouvimos essas declarações<br />

– saídas do fundo da alma – a todo o momento, quando a<br />

pessoa se livra de um grande perigo: assalto, acidente, doença etc. Há<br />

outros exemplos: após o alívio de uma dor de barriga, de dentes ou<br />

de cabeça, nasce a nova emoção, os sentimentos de prazer e vigor. O<br />

prazer sem-palavras que sentimos ao ficarmos livres dos sofrimentos<br />

não só tranquiliza, como relaxa nosso organismo biológico. Para coroar<br />

o evento orgânico e sem-palavras, em seguida ao alívio corporal, nosso<br />

intelecto elabora um discurso sobre o fato sentido: surgem as explicações,<br />

interpretações ou considerações da nossa cognição, de nossas<br />

idéias, como as exemplificadas acima. Para o organismo biológico não<br />

havia necessidade dessas considerações ou palavrórios.<br />

Como a eliminação do fato ruim e, consequentemente, das emoções<br />

negativas, dá nascimento ao prazer, o indivíduo, como ocorre no caso<br />

dos estímulos positivos, passa a procurar os estímulos negativos <strong>para</strong>,<br />

após alguns instantes, dias, meses ou mesmo anos, ficar livre deles e,<br />

portanto, alcançar o prazer e a felicidade. Estou falando sério. É isso<br />

mesmo que você está lendo: a pessoa começa a procurar realizar uma<br />

atividade ruim; um ruim ou desagradável que ocorre somente duran-<br />

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te sua execução; não quando ela termina. O autor da ação sabe, por<br />

experiência própria, que ele, após terminar a atividade, alcançará a<br />

emoção desejada: euforia, alegria, felicidade: tudo o que uma pessoa<br />

sadia deseja da vida. Penso que agora vocês perceberam que eu tinha<br />

razão. Estudamos e sofremos <strong>para</strong> passar no vestibular; quanta alegria<br />

ao terminar o sofrimento. Fazemos um curso de vários anos; sabemos<br />

que num dia ficaremos livres dele. Meu artigo parece que está sendo<br />

delineado. Que alívio! Isso nos faz agir.<br />

Vamos a um exemplo muito bem pesquisado: o salto de pára-quedas.<br />

Os estudos mostram que no primeiro salto, antes do pára-quedas<br />

se abrir, o pára-quedista apresenta vários sinais de terror: órbita ocular<br />

ressaltada, batimentos cardíacos aumentados, respiração difícil e suor<br />

profuso. Uma vez tendo chegado vivo ao chão, após um pequeno período<br />

de estupor, aparece um alívio, um prazer por estar bem, ter ficado<br />

livre do sofrimento. N<strong>esse</strong> instante, começa a se instalar a euforia em<br />

sua face. Quando isso ocorre, os pára-quedistas falam e gesticulam<br />

alegres entre eles. Nota-se claramente a mudança do medo e do sofrimento<br />

<strong>para</strong> a euforia; é esta que toma conta de seu organismo. Assistindo<br />

um filme ou novela, vemos o herói, com o qual identificamos,<br />

enfrentar perigos e perigos. Mais tarde ele supera as adversidades e<br />

alcança o prazer. O espectador, também, ficará angustiado e, mais tarde,<br />

aliviado e eufórico. O mesmo ocorre com alguém, sem treino, que<br />

vai falar em público.Após o pavor inicial, lá no finzinho da fala, aparece<br />

o sorriso e alegria quando ele percebe que cumpriu o dever. Outros<br />

exemplos: encerrar uma conversa, um namoro complicado, urinar após<br />

estar “apertado” etc.<br />

Seguindo estudos feitos com diversos pára-quedistas, o efeito aversivo<br />

inicial vai se acabando após pulos continuados; aparece a tolerância<br />

ao sofrimento, semelhante ao descrito quanto ao choque no cão. O<br />

mal-estar inicial, aos poucos, praticamente desaparece ou é tão leve<br />

que a pessoa quase não o sente. Contudo, depois de aterrissar, os<br />

pára-quedistas se sentem alegres e satisfeitos; um bem-estar bastante<br />

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intenso, levando-os a pular outras e outras vezes.<br />

O mesmo pode ser dito <strong>para</strong> o caso de entrar na sauna superquente;<br />

a satisfação ocorre após ficar livre da sensação ruim de queimação e<br />

falta de ar. Fato semelhante acontece com os praticantes de esportes<br />

radicais (asa-delta, alpinismo, fórmula 1 etc.) e, também, com os que<br />

fazem uso de penitências ou autoflagelação. Todos agem dessa forma<br />

porque se “sentem bem” durante a atividade por saber que ela terminará<br />

logo depois; irão se sentir muito bem após seu término. Durante<br />

as chicotadas que a pessoa dá em si mesmo, ele, antecipando a<br />

felicidade ao ficar livre delas, terá um prazer semelhante ao individuo<br />

diante da carne tostada e cheirosa antes de degustá-la. Possivelmente,<br />

após alguns dias sem experimentar a autoflagelação, forma-se na mente<br />

de seu autor uma situação semelhante à ocorrida quando deixamos<br />

de ingerir a carne tostada e gordurosa; surge a vontade de tornar a<br />

obter o grande prazer conseguido com seu término.<br />

Suponho que diversas ocupações profissionais, seguindo <strong>esse</strong> raciocínio,<br />

têm seus adeptos devido ao mecanismo explicado acima.<br />

Em diversas profissões, as atividades são realizadas com algum prazer<br />

porque seus agentes estão pensando que “d<strong>aqui</strong> a pouco” eles ficarão<br />

livres delas, e, depois, aparecerá o prazer e alegria do alívio. Para<br />

alguns, o alívio total, a imensa euforia, só aparecerá na aposentadoria.<br />

Segundo minhas avaliações – sei que são tendenciosas – coloco no grupo<br />

dos trabalhos “agradáveis” somente após seu término os limpadores<br />

de esgotos, os professores de certos colégios, policiais que realizam<br />

trabalhos de alto risco e incerteza, lixeiros, caixas de bancos etc. A lista<br />

é enorme.<br />

Também, se a hipótese é correta, uma pessoa acostumada a suportar<br />

uma enorme dor, um grande calor, um exercício físico pesado,<br />

tolerará dores atrozes, temperaturas mais altas e ginásticas terríveis<br />

devido a sua “tolerância”. Algumas pessoas são exibidas pela mídia<br />

como exemplos de pessoas capazes de suportar grandes sofrimentos;<br />

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<strong>esse</strong>s escolheram um modo complicado de obter prazeres enormes ao<br />

ficarem livres dos terríveis padecimentos. Nós, amadores, jogadores da<br />

terceira divisão dos martirizados, não chegamos aos pés d<strong>esse</strong>s felizardos-sofredores.<br />

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O Sequestro da Camisa Listrada<br />

Fim de semana. Nos sábados e domingos, como sempre, há mui tos e<br />

muitos anos, visto minha velha e surrada camisa branca com oito listras<br />

horizontais, finas, azuis e amarelas. Eu percebia que ela estava ficando<br />

desbotada, alguns orifícios começaram a aparecer e, além dis so,<br />

foi abrindo uma grande abertura junto ao meu peito, bem ao lado do<br />

coração. Compreendia que, com a idade e também com muito trabalho,<br />

ela não mais suportava os “embates da vida”. Aos poucos, <strong>para</strong> o<br />

meu pesar, foram nascendo diversas feridas em sua pele, que não mais<br />

cicatrizavam, por mais que ela fosse levada ao “hospital” <strong>para</strong> receber<br />

alguns pontos.<br />

Numa segunda-feira triste de outubro, perto do aniversário de minha<br />

camisa, a antiga lavadeira, grávida de nove meses, entrou de licença. A<br />

nova lavadeira, uma moça dengosa e alta, decidida e afirma tiva, logo<br />

após tocar o interfone, passando por mim quase sem cum primentar,<br />

subiu as escadas rapidamente dirigindo-se até a lavanderia <strong>para</strong> começar<br />

o novo trabalho na minha residência.<br />

A lavadeira antiga conhecia e amava, como eu, minha camisa. Tinha<br />

por ela uma ternura especial. Eu sabia, mas não demonstrava, que ela<br />

a protegia. Era lavada e passada com mais cuidado e carinho, estava<br />

fraca, doente e, além disso, era mais “idosa” que as outras. Eu, como<br />

a antiga lavadeira, sabia dos problemas de saúde da camisa listra da<br />

e, por isso mesmo, a vestia com cuidado, em momentos especiais e<br />

calmos, não só <strong>para</strong> que ela perceb<strong>esse</strong> sua utilidade, mantiv<strong>esse</strong> sua<br />

autoestima e autoeficácia, mas também <strong>para</strong> que ela, sem se sentir<br />

abandonada e esquecida, exercitasse e conviv<strong>esse</strong> um pouco com o<br />

mundo externo à gaveta. Eu e ela, nos fins de semana, recordávamos,<br />

abraçados, os fatos bons e ruins vividos juntos.<br />

Preocupado com a nova lavadeira, atento às possíveis reações dela<br />

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<strong>para</strong> com a minha amada camisa, estava apreensivo, receava que, sem<br />

conhecê-la, ela pud<strong>esse</strong> maltratá-la, ou, no mínimo, não dar à camisa a<br />

atenção merecida.<br />

Há muito a camisa listrada fazia parte da família, tinha ligações<br />

estreitas comigo, minhas filhas e parentes mais chegados. Sabia que<br />

<strong>para</strong> a nova lavadeira a camisa não tinha história e, sem história, ela<br />

nada significava, pois nenhum fato vivido pela camisa se ligava a ou tros<br />

eventos existentes na vida da lavadeira.<br />

Não era uma camisa bonita de chamar a atenção e nem metida a<br />

sebo. Era simpática, nem larga nem apertada, abraçava-me com a<br />

suavidade e meiguice de quem conhece e ama o companheiro. Ela<br />

encostava-se ao meu tórax com carinho, sem apertar-me. Tocava-me<br />

suavemente quando precisava e às vezes massageava minha pele sofrida<br />

e carente. Conhecia, como ninguém, meu corpo quente e amigo. A<br />

camisa era calma e tolerante, não agredia abertamente, gostava mais<br />

de uma ironia suave, um sorriso ou de um elogio gozador.<br />

Minha camisa era superdiscreta e confiável. Eu e ela guardáva mos<br />

nossos segredos diante de experiências vivenciadas juntos, que não<br />

podiam, ou não deviam, ser contadas pra qualquer um. Mas nossa<br />

relação não era constituída apenas de segredos. Minha camisa, ajudando-me,<br />

testemunhou e partilhou de diversos acontecimentos bons e<br />

ruins, alegres e tristes. Foi cobrindo meu corpo que ela, amedrontada,<br />

enredada no meu peito, viu nascer minha primeira filha. Anos depois a<br />

segunda, lá na Maternidade Otaviano Neves. Participando dos mes mos<br />

eventos, pouco a pouco passamos a gostar e odiar as mesmas coisas.<br />

Na maioria das vezes, ela me dava sorte, levando-me a usá-la diante de<br />

situações especiais e complicadas. Sabia respeitar uma e ou tra cerimônia,<br />

pois sempre foi bem educada e civilizada. Mas a camisa listrada<br />

não participou apenas dos fatos bons, ela acompanhou-me também,<br />

com toda a dedicação e sensibilidade, durante as situações tristes<br />

vividas por mim: a doença, morte e velórios de parentes próxi mos e<br />

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amigos.<br />

Como ela acabou fazendo parte de minha vida e das minhas conversas,<br />

muitas e muitas vezes, nos meus papos com amigos, me referia<br />

a ela, contando seus modos, idiossincrasias, gostos e até mesmo julgamentos.<br />

Quando me referia à camisa <strong>para</strong> outras pessoas, ou também<br />

nas conversas solitárias comigo mesmo, batizei-a com uma frase, não<br />

com um só vocábulo.<br />

Chamava-a de “a camisa branca de listras horizontais”. Sei que era<br />

um nome muito simples, pensei até em chamá-la de “A Globo”. Desisti:<br />

ela não gostou do nome. Quando eu lhe contei meu dese jo, ela<br />

confidenciou-me, educadamente, que “A Globo” era um nome muito<br />

sofisticado e ela preferia ser chamada pelo apelido, pois já se acostumara<br />

a ele.<br />

Quando convidada, acompanhava-me sem se irritar <strong>para</strong> qual quer<br />

lugar. Além disso, não tinha ciúme, pois não insistia em continuar<br />

abraçada ao meu corpo quando era chegado o momento de largar-me<br />

por instantes ou dias, <strong>para</strong> dar lugar a uma ou outra camisa, às vezes<br />

mais bonita e faceira que ela. Costumava me dar conselhos: “Cuidado!<br />

Não vista aquela vermelha. Não lhe fará bem”. Eu não sabia e nem perguntava<br />

os motivos de sua preocupação. Era uma camisa de verdade.<br />

Sentindo o prazer de seu tecido alisando meu corpo cansado e envelhecido,<br />

juntos e isolados do mundo, somente eu e ela, olhá vamos nos<br />

fins de semana, no sossego e calma do terraço, a cidade esfumaçada,<br />

agitada e distante, lá longe.<br />

Sábado, como sempre acontecia nos fins de semana, fui à sua procura<br />

na gaveta onde ela me esperava limpa e cheirosa, pronta <strong>para</strong> o<br />

abraço gostoso e singelo daquele dia especial. Tranquilo, ima ginando o<br />

encontro carinhoso das tardes de sábado, o momento de aconchegar-<br />

-se em torno do meu corpo, abri a gaveta sorridente e ale gre. Assustei-<br />

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-me! Ao procurá-la, não a encontrei! Tornei a procurá-la. Nada! Comecei<br />

a ficar em pânico. Onde estará minha camisa branca de listras<br />

horizontais? Será? Imaginei o pior. Abri afoitamente uma por uma as<br />

gavetas onde encontrei outras e outras companheiras: azuis, brancas,<br />

vermelhas, listradas diversas, mais largas, apertadas, de man gas compridas<br />

e curtas, velhas e novas, mas todas sem a história dela, uma<br />

história especial e única. Ela não estava em lugar algum.<br />

Dois dias depois, afinal, chega a segunda-feira. Espero inquieto,<br />

olhando pela vidraça, a lavadeira nova e malvada. Toca o interfone.<br />

Junto à porta de entrada, aguardo sua entrada. Altiva, pisando duro,<br />

ela cruza a porta, espichando o pescoço e olhando <strong>para</strong> cima.<br />

Bruscamente, irritado com sua postura de superior ou indife rença,<br />

perguntei-lhe se se lembrava da camisa. Soberba e insensível, a lavadeira,<br />

ignorando minha angústia enquanto subia, com passos largos<br />

e antipáticos, a escada em direção à lavanderia, resmungou de forma<br />

quase inaudível:<br />

- Uma camisa toda esburacada… feia e velha, desbotada, que não<br />

mais prestava <strong>para</strong> nada, esgarçada…<br />

Ao virar o rosto em minha direção, via-se claramente que seu olhar<br />

era de deboche. Ela criticava-me por me preocupar com artigo tão inútil.<br />

Fiquei com vontade de pular em seu pescoço grosso e, ao mesmo<br />

tempo, estava confuso por demonstrar, abertamente, minha preocupação<br />

por um artigo tão desprezível <strong>para</strong> ela. Por outro lado, sentia culpa<br />

e raiva de mim mesmo por estar envergonhado por de monstrar, diante<br />

da lavadeira, meu amor à camisa. Após respirar fun do, com muito custo,<br />

tomei coragem e decidi falar grosso:<br />

- Sim, ela mesma! Gostava muito dela!<br />

Falei o mais claro que pude, ao perder a vergonha de demons trar<br />

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meu afeto à camisa. Meus sentimentos de culpa acabaram-se e continuei,<br />

quase gritando:<br />

- Onde você a colocou?<br />

- Sei, não, senhor. Não prestava pra mais nada…. não sei se pus no<br />

lixo, ou se a rasguei <strong>para</strong> limpar a pia. Nem pra isso ela servia. O pano<br />

era ruim.<br />

De repente, voltando a caminhar, arrematou:<br />

- Por quê? O senhor usava <strong>aqui</strong>lo?<br />

Falou zombando, dando um risinho maroto.<br />

Saí rápido, antes que perd<strong>esse</strong> a cabeça. Fui até o cesto de lixo, sonhando<br />

poder encontrá-la. Nada! Não estava lá. Desci as escadas correndo.<br />

Eram nove e cinco e o caminhão de lixo passava mais ou menos<br />

n<strong>esse</strong> horário. Quem sabe? Não havia mais lixo, tudo estava va zio, não<br />

havia mais a camisa branca de listras horizontais, mais nada! Solucei,<br />

desolado.<br />

Assim foi decretada a morte, o fim de minha querida camisa. Ela não<br />

mais foi encontrada, nem <strong>para</strong> ser enterrada, cremada ou guarda dos<br />

suas restos finais, como lembrança de nossas relações e história.<br />

Uma camisa que fez parte de minha vida, simbolizando fatos que<br />

presenciei e vivenciei. Para minha nova lavadeira, a amada camisa nada<br />

significava, era apenas um pano velho e inútil, que merecia ser rasgado,<br />

um trapo sem valor, uma qualquer, uma porcaria que não provocava<br />

lembranças de nenhuma espécie, nem boas nem más.<br />

Para mim, a camisa era parte de minha vida, recuperava me mórias<br />

alegres e tristes, conversava comigo coisas que só nós dois sabíamos:<br />

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as dificuldades e brigas que tive, as esperanças, tudo isso e muito mais.<br />

Ela significava, só <strong>para</strong> mim, lutas, vitórias e derrotas, uma bandeira representando<br />

várias fases e aspectos de minha auto biografia. A lavadeira,<br />

sem ter criado nenhum vínculo com a camisa, a classificou como um<br />

tecido desbotado e furado, uma fazenda rasgada e envelhecida, sem<br />

valor, um pano que não tinha nada <strong>para</strong> contar e nada simbolizava.<br />

Coitada de minha camisa, seu fascínio foi ignorado por quem não a<br />

conhecia. Percebida por um ângulo genérico – pano – e não por um<br />

singular – uma camisa com uma história – ela foi desvalorizada. A lavadeira<br />

a olhou sob um ponto de vista diferente do meu, a consi derava<br />

sob um aspecto imediato, prático e simples. Sob essa visão, a camisa<br />

não possuía uma identidade própria, não tinha valor e signifi cado. Por<br />

tudo isso, <strong>para</strong> a lavadeira minha amada camisa merecia ir <strong>para</strong> o lixo,<br />

pois não servia nem <strong>para</strong> lavar a pia.<br />

Pobre de mim! Perdi um pouco do meu passado, de minha me mória.<br />

Quanta dor!<br />

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Valores: Informações resumidas<br />

Somente quando a pessoa possui um conhecimento inicial e básico<br />

de que existem germens e bactérias capazes de produzir doenças,<br />

terá sentido <strong>para</strong> ela a atitude de forçar as crianças a serem vacinadas<br />

contra varíola, tétano etc. Quando as informações disponíveis <strong>para</strong><br />

raciocinar acerca das doenças são formadas por demônios e espíritos,<br />

os problemas de saúde <strong>para</strong> <strong>esse</strong> grupo só serão resolvidos pelo curandeiro,<br />

feiticeiro e, consequentemente, haverá atitudes diferentes da<br />

médica quanto à vacinação e higiene.<br />

Para o pensamento antigo as leis da natureza e as morais eram a expressão<br />

da vontade divina. Quando a experiência mostrava o contrário<br />

do afirmado pelas leis, sua defesa apoiava-se na “ignorância dos impenetráveis<br />

desígnios divinos”. Depois, a garantia da unidade da lei moral<br />

e natural deixou de ser Deus; passou a ser a razão humana; dando<br />

nascimento às grandes ideologias do séc. XIX. Para os teóricos, a razão<br />

deveria descobrir as regras de conduta e de organização da sociedade,<br />

em harmonia com as leis da natureza.<br />

Enquanto as leis da natureza são cada vez mais bem decifradas e dominadas<br />

pelo exercício da razão (método científico), o crescimento das<br />

ciências não ajudou praticamente nada <strong>para</strong> a descoberta ou elaboração<br />

de uma ética individual e social.<br />

O mundo desabou: as ideologias fracassaram, a própria razão caiu<br />

do pedestal e espatifou-se. A crença de uma razão livre ou neutra <strong>para</strong><br />

fundamentar a ética individual e social foi enterrada.<br />

Temos boas “razões” <strong>para</strong> duvidarmos da influência e do poder do<br />

raciocínio na construção do julgamento moral. Existem dois processos<br />

cognitivos trabalhando juntos: o raciocínio e a intuição. Historicamente,<br />

o processo do raciocínio foi superenfatizado e priorizado. Agora<br />

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sabemos que, na maioria das vezes, o raciocínio é gerado pelo julgamento<br />

intuitivo. A intuição ocorre antes da razão, orientando-o; assim<br />

foi destruída a crença do raciocínio objetivo.<br />

Poucas vezes usamos o julgamento racional <strong>para</strong> avaliarmos a conduta<br />

moral. Os estudos demonstraram que as pessoas se apóiam e<br />

seguem mais suas intuições/emoções que suas reflexões morais.<br />

Os filósofos usaram e abusaram da metáfora <strong>para</strong> descrever o conflito<br />

entre a razão e as emoções; uma delas com<strong>para</strong>va a razão com a<br />

divindade e as emoções com o animal existente em nosso organismo.<br />

Platão relatou que Deus criou primeiro a cabeça do homem, encarregada<br />

do raciocínio; depois foi forçado a criar um corpo com as paixões<br />

<strong>para</strong> permitir a cabeça mover-se <strong>para</strong> um e outro lado. A intuição e,<br />

também, o raciocínio e o julgamento, são processos mentais conectados<br />

às emoções.<br />

Intuição e raciocínio são palavras que indicam a compreensão de<br />

duas formas de pensamentos diferentes. A intuição ocorre rápida e<br />

automaticamente; a conclusão final é obtida por ela, isto é, não através<br />

de um processamento envolvendo uma mente consciente e possível<br />

de ser examinada ou avaliada pelo autor. Por outro lado, o raciocínio<br />

ocorre mais lentamente, exigindo algum ou muito esforço, implicando,<br />

no mínimo, passos que são acessíveis à consciência.<br />

A intuição moral (“Ele não presta!”; “É um assassino!”; “Isto é um<br />

absurdo”) pode ser examinada como um conhecimento que se manifesta<br />

na consciência de forma repentina, produzindo um julgamento<br />

moral impregnado de aspectos afetivos, sentidos como bons ou ruins,<br />

prazerosos ou não-prazerosos. Além disso, seu possuidor sabe que não<br />

alcançou a conclusão através de uma procura organizada e metódica;<br />

ela formou-se automaticamente. Pensando assim, podemos afirmar<br />

que a intuição moral é um processo mental semelhante à avaliação<br />

estética: “Gostei d<strong>esse</strong> quadro”; “Detestei essa melodia”; “Essa mulher<br />

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é fantástica”. Num caso ou noutro, a pessoa observa algo e, instantaneamente,<br />

o aprova ou o desaprova.<br />

David Hume sintetizou essas idéias com a frase: ““A razão é escrava das<br />

emoções”.”<br />

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Agressividade e Violência<br />

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O Assalto<br />

Domingo: o relógio da igreja bateu quatro horas da tarde. Sérgio<br />

escrevia no computador.<br />

— Doutor! Doutor! Fui assaltada. Estou desesperada!<br />

— Assaltada? Como? Onde? Fala, Flor.<br />

— Não aguento nem falar, doutor. Vou assentar-me. Estou quase<br />

desmaiando!<br />

— Sente-se. O que foi? Conta! O que ocorreu?<br />

— Quase me mataram. Estou com o pescoço todo ferido.<br />

— Foi <strong>aqui</strong> perto?<br />

— Não aguento falar.<br />

— Pivetes? Quem foi?<br />

— Estou nervosa demais.<br />

Flor caminha na sala <strong>para</strong> um lado e outro. Assenta-se. Respira<br />

fundo. Levanta-se. Passa a mão pelo pescoço, mostrando marcas de<br />

unhas. Enfia os dedos nos cabelos crespos, levantando-os, dando a<br />

impressão de uma vassoura virada.<br />

— Roubaram-me, nem sei quanto! S<strong>esse</strong>nta reais, não… du zentos ou<br />

trezentos…<br />

— Como? Saiu de casa <strong>para</strong> passear com trezentos reais?<br />

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— Não. Tinha cinco. O dinheiro que me roubaram, hoje, deve estar<br />

valendo seiscentos reais. Mais ainda com a inflação. Fo ram cruzeiros,<br />

cruzados, cruzados novos. Nem sei mais!<br />

— Não estou entendendo nada. Como você foi assaltada, arranharam<br />

seu pescoço, se você saiu sem dinheiro? Para piorar, você disse<br />

que foi em cruzeiros, cruzados, reais. Que confusão!<br />

— Fui assaltada, sim. Estou com ódio. Vou arrumar um ad vogado<br />

<strong>para</strong> cuidar do caso. A mulher disse que eu fiz um abaixo-assinado<br />

contra ela no emprego. Ela saiu do serviço. Ele, sem mo tivo, de repente<br />

quase me enforcou. Olha meu pescoço: as marcas das unhas. Está tudo<br />

doendo. Arrumaram um táxi <strong>para</strong> mim. Eu só tinha dois reais. A Edina<br />

ficou lá.<br />

— Não entendi. Quem te assaltou? O que roubaram?<br />

— Doutor, eu já lhe falei que tinha um “pepino” <strong>para</strong> resol ver. Pois é<br />

isso. Este é o pepino.<br />

— Mas você foi roubada? Alguém levou seu dinheiro?<br />

— Bem… saí com Edina, minha prima. Tem uma mulher lá no Palmital,<br />

às vezes empresto-lhe dinheiro. Uma vez ou outra.<br />

— Empresta dinheiro? Seiscentos reais?<br />

— É… ou mais. Deve ser uns mil, com a inflação. O senhor sabe como<br />

é… Tudo subiu. Mas ela me paga, desgraçada!<br />

— Mas não foi um homem?<br />

— Foi. Foi o marido dela. Eu nem o conhecia.<br />

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— E emprestou dinheiro <strong>para</strong> ela?<br />

— Coisa antiga. Gente fina, empresto há três anos.<br />

— E nem conhecia o marido de sua amiga de três anos?<br />

— Não! É… conhecia. Trabalha na “Fit” em Contagem.<br />

— Que história confusa. Ainda não entendi nada!<br />

— Eu também não. Estava no bar assentada com meu amigo, conversando.<br />

Ele veio sem falar nada e quase me enforcou. Olha as marcas<br />

das mãos dele. Tá doendo muito. Acho que queria me matar. Eu disse a<br />

ele:<br />

— Vamos conversar direito! Não tenho nada contra ele. O irmão<br />

dele está condenado a vinte e cinco anos. Ouvi dizer que ele também<br />

tem um ou mais processos na justiça. Acho que precisa urgente de um<br />

psiquiatra. Deve estar louco da cabeça.<br />

— Mas como? Por quê? Se você nem o conhecia direito…<br />

— Ele é marido dela. Acho que ele ficou com ciúmes de mim. Eu<br />

estava com Fred, que tem os olhos azuis. Agora eu só gosto de homem<br />

de olhos azuis.<br />

— Outro dia um “intaliano”, que também trabalha na “Fit”, me<br />

cantou. Um homem lindo, doutor. Agora está usando homem branco<br />

gostar de negra. Os brancos não estão gostando de brancas. As negras<br />

são mais quentes.<br />

— A cada hora a história fica mais confusa. Era um assalto e você<br />

nem dinheiro <strong>para</strong> o táxi tinha. O cara te apertou o pescoço e você diz<br />

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que era por ciúme?<br />

— Foi no portão da casa. Ele saiu de repente. Eu estava com Edina,<br />

conversando com a mulher dele… ele veio…<br />

— Você não disse que estava no bar assentada? Que sua pri ma estava<br />

lá fora? Você gostaria de…<br />

— Não. Eu estava na porta da casa dele. Ele é mais velho, deve ter<br />

uns cinquenta anos. Quem falou que gosto de velho?<br />

— A história de assalto já está mudando <strong>para</strong> namoro.<br />

— É… quando eu vou lá na casa dela. É, vou muito lá, ficamos horas<br />

conversando. Ele sempre passa de um lado <strong>para</strong> o outro, só <strong>para</strong> me<br />

vigiar. Ele anda pela casa e me olha com cara de apaixonado. Eu penso<br />

é que ele está caído por mim. Depois que ele me agarrou no pescoço,<br />

está tudo marcado. Olha <strong>aqui</strong>, ele me paga, aquele des graçado. Ele<br />

ficou na cadeira assentado e começou a chorar. Ficou <strong>para</strong>do, chorando.<br />

Aí, eles chamaram o táxi. O motorista ficou com dó de mim e só me<br />

cobrou os dois reais que tinha.<br />

— Como que ele ficou assentado, se foi na porta da casa? A cada<br />

hora você conta que a cena foi num lugar diferente. O dinhei ro perdido,<br />

quanto foi?<br />

— Eu sempre emprestei dinheiro <strong>para</strong> ela, gente boa. É <strong>para</strong> ela pagar<br />

o barracão onde mora. Mas ela falou que fiz um abaixoas sinado no<br />

serviço dela.<br />

— Você já falou sobre isso. Você sabe o que é abaixoassina do? Como<br />

você iria fazer um abaixo-assinado no serviço dela? E <strong>para</strong> quê? Onde<br />

ela trabalha?<br />

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— Não sei, não senhor. Não sei o que é abaixoassinado. Ela trabalha<br />

em casa de família como eu. Mas já foi despedida. Acho que é uma<br />

assinatura. Não é? Ela perguntou-me se eu queria tro car a dívida que<br />

ela tem comigo, que é de trinta reais, por um che que de oitenta reais.<br />

Este cheque é de outra pessoa e vai vencer em janeiro. Eu ficaria com o<br />

cheque e daria mais cinquenta reais <strong>para</strong> ela. Ela pensa que sou boba.<br />

Acha que eu não sei o que é cheque pré-datado. Todo o dia a televisão<br />

fala sobre isso. Que as pessoas não devem fazer compras a prazo,<br />

que os juros estão altos e que é melhor dar cheques pré-datados <strong>para</strong><br />

pagar as compras. Ela quer é me tapear, dando-me um cheque. Ela não<br />

me passa a perna nunca.<br />

— Ela está te devendo trinta reais? Você não falou que tinha sido<br />

assaltada em mais de seiscentos reais?<br />

— Mas, e os juros? Eu lhe emprestei em cruzeiros, reais, não sei<br />

mais, durante a inflação… foi muito dinheiro. Uns cinquenta reais ou<br />

muito mais, até uns mil, não sei bem não. Eu sei é que ela me deve e<br />

tem que me pagar.<br />

— Talvez isto sirva <strong>para</strong> você aprender, Flor. A gente só aprende,<br />

errando.<br />

— Mas ela é amiga antiga. Ela trabalhava, o marido também. Ele é<br />

paquerador, mas ela também tem um amante que dá dinheiro <strong>para</strong> ela.<br />

Para isso ela não é boba não.<br />

— Afinal, você os conhece há muito tempo. Gosta dela e em presta<br />

dinheiro quando ela precisa. Estava na casa deles e ele se enfureceu.<br />

Por quê?<br />

— Já ouvi dizer que ele colocou até detetive <strong>para</strong> saber com quem<br />

eu ando e aonde vou aos fins de semana. Eu já tinha notado. Lá na<br />

rodoviária, onde passeio aos domingos, um homem sempre anda me<br />

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vigiando. Quando fui tomar uma coca-cola, ele conversou comigo. Até<br />

pediu-me um pouco do refrigerante e eu, boba, lhe dei o resto da lata.<br />

Ele disse que a coca-cola estava com gosto de meus lábios. Acho que o<br />

marido de minha amiga é apaixonado por mim. Ontem fui lá no bairro.<br />

Depois fui até a casa dele junto com o amigo dos olhos azuis. Foi este<br />

amigo que chamou o táxi <strong>para</strong> mim. Tinha muito tempo que não andava<br />

de táxi. O motorista até que tentou me cantar. Foi muito simpático<br />

comigo. No caminho…<br />

— Termine a história. Passou <strong>para</strong> outra, a do motorista.<br />

— É… bem… acho que ele me apertou o pescoço de ciúme. Tanto<br />

que se arrependeu e chorou. Falou que na quinta-feira vem <strong>aqui</strong> em<br />

casa trazer o dinheiro que sua mulher me deve. Mas que precisa muito<br />

conversar comigo. Estou doida <strong>para</strong> chegar quinta. Ele não é de se jogar<br />

fora. Será que saio com ele? O que… o que o senhor acha?<br />

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Brigas de Casais: Agressão ou<br />

Excitação Sexual?<br />

Alguns casais usam com naturalidade as agressões físicas como<br />

forma de resolverem brigas domésticas. Curiosamente, apesar da rai va<br />

de ambos durante as desavenças, automaticamente eles aplicam certas<br />

regras <strong>para</strong> suavizar a agressão. Entre as “leis” do permitido e do proibido<br />

durante as lutas, encontram-se: “é proibido atacar pelas costas”,<br />

“o lugar de chutar deve ser olhado com atenção”, “deve-se ter extremo<br />

cuidado <strong>para</strong> não lesar as partes “nobres” como os seios, tes tículos, pênis,<br />

olhos, estômago”, “os chutes ou coices são permitidos em resposta<br />

a determinadas agressões verbais mais graves, mas não às leves”: “não<br />

se pode usar objetos <strong>para</strong> agredir”, “deve-se evitar as brigas diante dos<br />

filhos”, “se o companheiro estiver deprimido, gripa do e com diarreia,<br />

ele deve ser respeitado, não podendo ser agredido n<strong>esse</strong> dia”.<br />

Os homens envolvidos n<strong>esse</strong> tipo de briga agem com suas mu lheres<br />

durante estas lutas excitantes como se estiv<strong>esse</strong>m educando um filho.<br />

Ora a seguram, impedindo-a de se movimentar, ora a seguram <strong>para</strong><br />

que essa não saia à rua, ou <strong>para</strong> impedi-la de lhe atirar um objeto. Sua<br />

agressão é mais simbólica que real – muito diferente do agressor típico<br />

– mais <strong>para</strong> mostrar à companheira seu maior poder físico que <strong>para</strong><br />

feri-la. Sendo assim, os maridos só batem nos lugares apropriados,<br />

usando apenas um pouco da força, com a palma das mãos, visando<br />

controlar a agressão passageira da companheira/adversária.<br />

As mulheres que participam dessas brigas geralmente atiram objetos,<br />

quebram outros, rasgam as roupas do marido, xingam palavrões,<br />

gritam <strong>para</strong> chamar a atenção ou <strong>para</strong> pedir socorro aos vizinhos. Esse<br />

tipo de briga é frequentemente mostrado nas novelas da televisão.<br />

Uma particularidade d<strong>esse</strong>s casais nos quais ambos são agresso res é<br />

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que os dois são assertivos, isto é, nenhum tem medo do outro.<br />

Esses agressores, marido e mulher, estão sempre prontos <strong>para</strong> responderem<br />

às provocações recebidas. É comum o uso do álcool por um,<br />

ou por ambos os cônjuges, situando-se em torno de 50% dos casos. As<br />

brigas se dão geralmente durante discussões acerca de questões simples.<br />

Essas vão aumentando de intensidade, pouco a pouco, passando<br />

por períodos de uso de termos chulos até chegar às agressões físicas.<br />

O interessante dessas brigas está no fato de que, muitas vezes, elas<br />

fazem nascer um certo grau de excitação sexual, o que pode ser uma<br />

razão automática ou involuntária de sua provocação. A excitação sexual<br />

talvez seja despertada pela respiração ofegante de cada con tendor,<br />

pelo roçar dos corpos quentes e lubrificados pelo suor, pela dança dos<br />

agressores exibindo movimentos rápidos e também lentos. Toda a cena<br />

provoca a lembrança do ato sexual, realizado frequente mente no mesmo<br />

local onde, no momento, está ocorrendo a briga. Estudiosos do assunto<br />

afirmam ser a agressão física um excitante <strong>para</strong> o organismo <strong>para</strong><br />

a realização de diversas ações, entre elas a sexual. Por tudo isso, estas<br />

brigas terminam muitas vezes com os cônjuges rolando agradavelmente<br />

na cama “entre tapas e beijos”, com o apare cimento do prazer, da<br />

liberação de endorfinas endógenas e de oxito cina, bem como o retorno<br />

à suave paz.<br />

Estes comportamentos violentos continuam enquanto o casal estiver<br />

morando junto, aumentando sua frequência nos períodos de piora nas<br />

relações. Uma vez afastados um do outro por se<strong>para</strong>ções, as agressões<br />

terminam. Mas quase sempre voltam com um novo ca samento, mostrando<br />

que <strong>esse</strong>s cônjuges apresentam um padrão de agressão física<br />

ao lidar com certos problemas existentes, o qual pode ser interrompido<br />

temporariamente, quando não há um cônjuge apro priado, ou seja,<br />

pronto a aceitar o desafio e a entrar numa briga sim bólica de amigo-<br />

-inimigo.<br />

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Marido Violento: Este Incompreendido<br />

O homem que agride sua companheira tem sido interpretado de diversos<br />

modos: cada interpretador usa um ou vários modelos ou teorias<br />

explanatórias. Um e outro grupo defende apaixonadamente seu ponto<br />

de vista acerca do homem violento, convencido de sua veracidade. Entretanto,<br />

seus opositores também têm suas certezas. Vejamos algumas<br />

interpretações deste ser ainda não compreendido.<br />

1 – A antiga psicologia dinâmica freudiana, hoje moribunda e em<br />

extinção, interpretava o agressor da esposa como sendo sádico. O ato<br />

de bater, <strong>para</strong> <strong>esse</strong> modelo, daria um alívio e prazer ao agres sor. Já sua<br />

companheira, permitindo ser agredida, era classificada como masoquista<br />

– a que gosta de apanhar.<br />

2 – A Psicologia da Relação Objetal interpreta tanto o violento<br />

como a vítima que aceita as agressões como possuidores de personalidades<br />

patológicas. Os dois grupos estariam catalogados como<br />

Transtornos da Personalidade Antissocial, “Borderline” e Narcisista.<br />

Além disso, <strong>para</strong> essa teoria, estes agressores foram abusados e espancados<br />

na infância.<br />

3 – A Psicologia Cognitiva Comportamental explica a agressão<br />

d<strong>esse</strong>s homens como proveniente de distorções perceptuais e de sua<br />

tendência a atribuir causalidades incorretas à conduta da esposa. A<br />

raiva deriva da pessoa ter, desde cedo, seu “processador de informações”<br />

defeituoso. O seu possuidor seleciona e enfatiza apenas os<br />

eventos provocadores de raiva, generalizando estes e, por outro lado,<br />

negligenciando as informações não agressivas. O possuidor des se<br />

“defeito” interpretativo fica sensível somente às ações “negativas” da<br />

companheira.<br />

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4 – A Biologia estuda as disfunções orgânicas do agressor provenientes<br />

de distúrbios hormonais, lesões cerebrais, defeito nos neurotransmissores,<br />

baixa de glicose, etc. Estas disfunções podem ser<br />

exacerbadas pelas drogas ou álcool.<br />

Entre os sinais genéticos, anatômicos e bioquímicos que têm sido<br />

associados às agressões dos maridos estão o baixo teor de sero tonina,<br />

as infecções cerebrais, um sistema nervoso autônomo pouco reativo, o<br />

sexo masculino, a juventude e a baixa inteligência.<br />

5 – A Teoria dos Sistemas explica a agressão como decorrente de<br />

interações disfuncionais entre os familiares do agressor. Esta agres são<br />

é cultivada pelo agressor e pela vítima. Uma briga pode ser uma forma<br />

de preservar condutas que estão sendo úteis à manutenção do grupo<br />

familiar, permitindo a cada um dos membros desempenhar um papel<br />

aceito pelos demais familiares.<br />

6 – O Modelo Ético-Religioso coloca o marido violento como responsável<br />

por sua agressão. Possuindo o “livrearbítrio”, este tem condições<br />

de distinguir o “certo” do “errado”. O agressor deve ser punido<br />

por seus atos ao agir erradamente devido à sua “maldade” interna.<br />

Através de punições, penitências e rezas, o agressor poderá ser perdoado<br />

e se converter.<br />

7 – O Modelo da Lei examina se o marido agressor infringiu, ou<br />

não, o permitido pela lei. D<strong>esse</strong> modo, ele deve ser julgado de acor do<br />

com o que consta na legislação em vigor. Deverá ser absolvido ou punido,<br />

dependendo do exame das provas arroladas tanto em sua defesa,<br />

como na acusação. É a parte formal que interessa e não os fatos em si.<br />

8 – As feministas, por fim, veem o agressor como um produto das<br />

instituições sociais que não criaram uma igualdade entre homens e<br />

mulheres. Existe a agressão masculina devido a uma longa história do<br />

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domínio dos homens sobre as mulheres, muitas vezes constru ída ou<br />

apoiada pelas próprias mulheres. Criado com privilégios, o homem<br />

acredita no seu direito de julgar e punir as mulheres que o desafiam.<br />

Diante de tantas explicações, pergunto-me, qual é a certa? Não tenho<br />

resposta.<br />

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Conheça o Estuprador<br />

Os estudos acerca da personalidade do estuprador têm mostra do<br />

aspectos de inter<strong>esse</strong> <strong>para</strong> o entendimento de sua conduta sob o ângulo<br />

da psiquiatria. O estuprador geralmente é diagnosticado como tendo<br />

um Transtorno da Personalidade Antissocial (irresponsabilida de social,<br />

busca de risco, explorador, propensão ao uso de álcool e drogas, etc.).<br />

A sua bioquímica cerebral mostra, entre outros, um déficit no neurotransmissor<br />

serotonina. Os estudos mostram que uma diminuição<br />

dessa substância no cérebro tem sido associada com atos impulsivos,<br />

impensados, agressivos, suicidas, etc. O cérebro do estu prador parece<br />

ser internamente pouco ativado, levando-o a procurar mais estímulos<br />

externos <strong>para</strong> se sentir bem.<br />

Os estupradores, em grande parte, mostram-se agitados, inquie tos e<br />

explosivos. Tem sido relatado que a inteligência do estuprador é mais<br />

baixa que a média da população. Essa deficiência mental tem sido atribuída<br />

a fatores genéticos ou a lesões cerebrais sofridas du rante a vida<br />

pré ou pós-natal. Eles têm, principalmente, menor com preensão verbal<br />

e social. Com frequência, fazem uso de álcool e de drogas, agravando a<br />

sua já reduzida capacidade de lutar contra seus impulsos.<br />

Ainda cedo, os estupradores podem apresentar condutas desadaptadas<br />

como a crueldade com os animais, o uso de armas e má<br />

adaptação escolar. Na história de vida deles é frequente a enurese<br />

noturna (urinar na cama), incêndios e alcoolismo dos pais. Alguns estupradores<br />

podem fazer 150 vítimas durante sua vida, caso não sejam<br />

presos ou mortos. Cerca de 70% deles já praticaram outros crimes<br />

como assaltos, roubos e homicídios. Diversos estudos mostram que o<br />

padrão criminoso incorporado na infância d<strong>esse</strong>s indivíduos não será<br />

extinto com punições carcerárias. Como se sabe, todo e qualquer castigo<br />

usado comumente não pune o padrão aprendido, pune somente o<br />

indivíduo que praticou o crime.<br />

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O estuprador, muitas vezes, ataca sua vítima com armas. Pes quisas<br />

mostram que certas pessoas tornam-se mais agressivas ao lidar ou<br />

mesmo visualizar armas. A maioria dos estupradores é formada de<br />

jovens. Cerca de 61% deles têm menos de 21 anos. Sabe-se que os<br />

jovens, principalmente do sexo masculino, praticam mais atos antissociais.<br />

Um outro fator de importância é a maior taxa de testostero na<br />

nessa idade, e esta parece atuar diminuindo a taxa de serotonina cerebral<br />

e, consequentemente, aumentando a impulsividade. Muitos deles,<br />

durante o ato criminoso, têm, ao mesmo tempo, raiva e medo. Daí sua<br />

conduta confusa, na qual se misturam agressões e investida sexual.<br />

Durante o ataque, o estuprador normalmente ameaça a vida ou a integridade<br />

da vítima ou dos familiares. Além disso, não é raro ele ejacular,<br />

defecar ou urinar na face ou corpo da vítima. Às vezes, introduz objetos<br />

no ânus ou na vagina desta.<br />

As vítimas dos estupradores vão, segundo os dados, desde os 15 meses<br />

até os 82 anos, sendo que a maioria delas encontram-se entre 10 a<br />

29 anos. A estatura da vítima é geralmente menor que a do estu prador.<br />

Apenas cerca de 4% das vítimas facilitaram o estupro, o que é uma<br />

taxa baixa quando com<strong>para</strong>da com as pessoas assassinadas. Nestas, a<br />

percentagem chega a 22%. Apenas uma em cada quatro ví timas dos estupradores<br />

dá queixa à polícia. Para outros autores, uma em dez. Para<br />

terminar, a maior parte dos estupros ocorre dentro da própria casa da<br />

vítima e cerca de 7% dos estupradores são parentes.<br />

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Agressividade e Violência:<br />

Informações resumidas<br />

Para diagnosticar o criminoso é preciso conhecê-lo. A partir dos<br />

4 anos ele inicia sua vida de desadaptado: bate e morde crianças e<br />

adultos, é superativo, pirracento, irritável, difícil de se educar, seduzido<br />

por aventuras, propenso às brigas, mentiroso, pratica pequenos roubos<br />

na escola, em casa e nas lojas, e apresenta coordenação motora deficiente.<br />

Mais tarde, rouba carros, vende e usa drogas, briga em bares,<br />

assalta, frauda, abusa de crianças, dirige drogado ou alcoolizado, agride<br />

mulheres, não paga suas dívidas e não fica no emprego. A disposição<br />

subjacente existente no verdadeiro desajustado permanece durante<br />

sua vida, com pouca ou nenhuma alteração, podendo mudar apenas<br />

quanto à expressão do ato criminoso conforme a idade e condições<br />

ambientais.<br />

A maioria dos criminosos nasceu em verdadeiras “escolas” do crime;<br />

ali aprenderam (aprendeu), dos pais ou companheiros, inconscientemente,<br />

a conduta anti-social. A maioria apresentou problemas de<br />

impulsividade, provavelmente, hereditários.<br />

Uma serotonina baixa associa-se a impulsividade, ou seja, uma maior<br />

rigidez da atenção e menor habilidade <strong>para</strong> agir diante dos problemas<br />

enfrentados no dia-a-dia.<br />

Foi sugerido que a serotonina baixa leva a uma maior sensibilidade<br />

à rejeição; o indivíduo torna-se mais vulnerável à não-aceitação ou à<br />

perda; fundamento dos sintomas existentes no Transtorno da Personalidade<br />

“Borderline” ou Limítrofe. Tais pacientes geralmente apresentam,<br />

também, os transtornos de personalidade histérica, narcisista e<br />

anti-social.<br />

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Os pacientes denominados “borderlines”, bem como os anti-sociais,<br />

narcisistas e histéricos, parecem ter um fator comum: uma extroversão<br />

extrema. Se isso é correto podemos especular que essas condições<br />

estão associadas com o fracasso dos extrovertidos em fixarem ligações<br />

com pessoas desejadas. Mas talvez seja o fracasso em conseguir<br />

ligações, e não a extroversão, o responsável pela baixa da serotonina<br />

produzida ou liberada nas sinapses neuronais d<strong>esse</strong>s indivíduos.<br />

Níveis baixos de serotonina cerebral têm sido descritos na depressão,<br />

atos suicidas, alcoolismo, medos exagerados, preocupações continuadas,<br />

obsessão e compulsão, transtornos alimentares e, ainda, entre<br />

os homicidas, principalmente quando <strong>esse</strong>s têm uma estreita relação<br />

com suas vítimas.<br />

Parece que o meio social “normal” diário, principalmente, as relações<br />

com pessoas desejadas, é que mantém um nível continuado e<br />

apropriado de liberação de serotonina. Ora, se a pessoa é amada e respeitada<br />

por outros que têm importância <strong>para</strong> ela, seus níveis de serotonina<br />

tendem a ficar mais elevados e, talvez, a torne menos extrovertida,<br />

ou mais “introvertida”. Quando a pessoa não consegue as ligações<br />

desejadas – há rejeição – os níveis normais de serotonina abaixam-se<br />

diante do fracasso em manter os contatos sociais imaginados. Ao mesmo<br />

tempo, há uma tendência ao aparecimento de condutas associadas<br />

à agressão impulsiva, a maior sensibilidade à rejeição e o pavor de ficar<br />

só: sinais e sintomas descritos entre os pacientes com Transtorno de<br />

Personalidade Borderline.<br />

Estudos mostraram que um anti-social que teve seus pais ricos quando<br />

criança, pode estar pobre ao chegar aos 40 anos, semelhante a uma<br />

pessoa de nível socioeconômico baixo, devido a sua restrita capacidade<br />

<strong>para</strong> aprender e compreender o complexo meio social, a pouca disciplina<br />

e baixa tolerância à frustração. Ele se torna um desviado da sociedade<br />

devido ao seu limitado repertório de alternativas <strong>para</strong> sobreviver.<br />

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Cerca de 50% dos crimes são cometidos por 5 a 6% dos ofensores,<br />

agindo, principalmente, contra pessoas. Este seleto grupo permanece<br />

cometendo crimes desde cedo até a morte.<br />

A sabedoria convencional, muitas vezes, sugere que a conduta está<br />

sob controle do inato e do aprendido, ora é um, ora outro, o mais forte<br />

ou mais poderoso. Se uma pessoa pobre apresenta um nível baixo<br />

de serotonina, alguém poderia argumentar que sua pobreza é biologicamente<br />

fundada. Entretanto, correlação não prova causalidade<br />

e é possível que fatores associados à pobreza como a falta de poder,<br />

deprivação das crianças, a dieta pobre, o isolamento social, o emprego<br />

exigindo grandes esforços e baixa decisão, tudo isso, contribui <strong>para</strong> um<br />

nível baixo de serotonina cerebral.<br />

Um aspecto característico do espírito da delinquência é o culto à<br />

proeza; uma incansável busca de sensações e emoções. O código deles<br />

é a aventura, a ousadia, as situações carregadas de perigo. Excitam-se<br />

fazendo o proibido, desafiando as autoridades, agindo contra a segurança,<br />

a rotina e o estabelecido. Para os delinquentes, a obediência à<br />

ordem produz tédio e ansiedade. Desdenham o progresso, os modelos<br />

de disciplina usados na escola e no trabalho. A maioria apresenta<br />

sonhos grandiosos de sucesso rápido, no qual o dinheiro é valorizado<br />

<strong>para</strong> gastos imediatos – não a longo prazo – em que tudo é desperdiçado<br />

num consumo impensado. Valorizam a trapaça e a manipulação,<br />

inclusive a dos familiares e amigos.<br />

As estatísticas acerca do crime – prevalência e incidência – situam-se<br />

em torno dos 17 anos. Em torno dos 20 anos a taxa diminui em 50% e<br />

em 85% aos 28 anos, ou seja, a maioria desiste de ser delinquente, de<br />

agir criminosamente.<br />

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Aprenda a não ser tolo:<br />

três Marias vão ao médico<br />

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Maria Ingênua vai ao médico<br />

Imaginemos a seguinte situação: Maria, após sentir dores torácicas<br />

e palpitações, procura Dr. José, um conceituado médico indicado por<br />

uma amiga. Poucos dias antes, Maria havia visitado outros médicos.<br />

Um deles diagnosticou hipocondria; um outro, dor anginosa; e um terceiro<br />

lhe afirmou que, a qualquer momento, ela poderia ter um infarto<br />

ou, um derrame. Maria estava apreensiva.<br />

No consultório limpo e bem arrumado, Dr. José, atencioso, começou<br />

o exame fazendo uma longa anamnese. Em seguida, a auscultou e,<br />

após pedi-la <strong>para</strong> deitar-se na maca, fez um exame eletrocardiográfico;<br />

também verificou, por diversas vezes, a pressão sanguínea e a temperatura.<br />

Após todo o ritual médico, Dr. José, enquanto ainda olhava o traçado<br />

do eletrocardiograma, pediu a Maria que se assentasse. Em determinado<br />

momento, ele voltou seu olhar calmo e alegre em direção à Maria e<br />

lhe disse com uma voz firme e bem postada:<br />

— Você não tem nada!<br />

Maria, talvez várias Marias diferentes, pode interpretar a afirmação<br />

do Dr. José de diversos modos. Uma frase, como esta, pode ser interpretada<br />

literalmente, isto é, como ela foi dita. Pode, também, provocar<br />

outras informações além da contida apenas na frase emitida. Entre<br />

essas estão as pistas fornecidas pelos diversos gestos do médico; pelos<br />

conhecimentos que temos acerca dele; pelas idéias anteriores que<br />

armazenamos acerca de doenças; pelos sintomas e sinais percebidos;<br />

pelas opiniões emitidas por outros médicos e, finalmente, pela simpatia<br />

ou antipatia que sentimos por ele.<br />

A primeira Maria, que nessa matéria descrevo, a ingênua, faz par-<br />

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te do enorme grupo das pessoas crédulas, que aceita a frase ouvida<br />

sem contestá-la, sem fazer uso de outros conhecimentos e suposições<br />

existentes em sua mente e que enriquecem as conclusões, permitindo<br />

escolher um melhor caminho. Para o enorme grupo dos crédulos,<br />

o afirmado por uma “autoridade”, como é o caso do Dr. José, é uma<br />

verdade verdadeira, não sujeita a críticas.<br />

Maria Ingênua da Silva não só aceita a frase “Você não tem nada”,<br />

emitida pelo Dr. José, como também acredita que ele é uma pessoa<br />

bem intencionada, ou seja, não teve outras intenções não reveladas<br />

além da expressa na frase. E mais, Maria talvez acredite que os médicos<br />

são todos competentes, portanto, Dr. José é uma pessoa capaz de<br />

conhecer seu organismo e transtornos deste. D<strong>esse</strong> modo, ela acredita<br />

que o exame foi perfeito e que a conclusão final expressa observações<br />

acertadas. Resumindo: Maria pensa que o Dr. José sabe o que está<br />

dizendo e é convincente.<br />

Podemos dizer que Maria aceitou como corretas duas informações<br />

que não foram expressas, além da afirmação transmitida. Em primeiro<br />

lugar, ela acreditou ser a informação dada por Dr. José, “Você não tem<br />

nada”, como a importante e que deve merecer sua atenção, de outro<br />

modo, segundo a postura de Maria, não existe outra mensagem importante<br />

<strong>para</strong> ela focalizar além da expressa pelo médico. Em segundo<br />

lugar, <strong>para</strong> Maria, os meios usados pelo médico <strong>para</strong> examiná-la, bem<br />

como sua maneira de lhe transmitir a informação, facilitaram a compreensão<br />

dela e a conclusão final acerca do seu estado físico. Ela poderá<br />

ir <strong>para</strong> casa tranquila, pois não tem nada: é uma pessoa saudável.<br />

Para muitos autores a idéia transmitida que merece a atenção é a<br />

que produz efeitos cognitivos, isto é, a que fornece informações fáceis<br />

de se ligarem às outras informações antigas do “assimilador mental”,<br />

ou seja, existentes na mente, no estoque de saberes armazenados,<br />

prontos <strong>para</strong> serem utilizados na compreensão ou interpretação das<br />

informações. O afirmado, “Você não tem nada”, uma vez unido ao já<br />

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sabido, possibilitará à rede de idéias – modelos ou <strong>para</strong>digmas gerais –<br />

entender e extrair deduções.<br />

Se a informação não é esperada, se ela é rara ou estranha àquela<br />

mente, ela dificilmente será compreendida e, n<strong>esse</strong> caso, a informação<br />

não será assimilada. Muitas vezes as pessoas enfrentam situações ou<br />

notícias que não são assimiláveis; nessas ocasiões, elas usam expressões<br />

como: “Isso é inacreditável!”; “Parece um sonho ou filme”; “Que<br />

horror; terrível! ”, bem como outras frases que indicam que a informação<br />

não pôde ser compreendida pelas idéias existentes. Assistimos,<br />

perplexos, à catástrofe ocorrida na região central de Nova Iorque quando<br />

os aviões espatifaram-se nos arranha-céus; nessa ocasião, ouvimos<br />

diversas expressões verbais d<strong>esse</strong> tipo.<br />

Pacientes como Maria Ingênua aceitam, sem questionar, a idoneidade,<br />

as boas intenções e a capacidade total do Dr. José e, possivelmente,<br />

de quaisquer outros Doutores Josés. Maria, uma vez tendo ajustado<br />

suas idéias às do Dr. José, por ser hipoteticamente ingênua, irá seguir<br />

o caminho do menor esforço, construindo uma interpretação simples,<br />

sem levantar suspeitas acerca da fala do médico.<br />

Coitada das Marias d<strong>esse</strong> vasto mundo. Em primeiro lugar, ela não<br />

imagina que a informação importante poderia ser outra, estar oculta e<br />

não ter sido dita. Os médicos usam muito isso, afirmam que o cliente<br />

não tem nada, sabendo que apresenta uma doença grave, às vezes,<br />

mortal. Em segundo lugar, o Dr. José poderia ainda não ter feito um<br />

diagnóstico correto como afirmou, poderia ser um profissional incompetente,<br />

estar distraído ou cansado no momento do exame, ter deixado<br />

<strong>para</strong> trás um sinal ou sintoma fundamental <strong>para</strong> o diagnóstico mais<br />

acertado, como se diz no jargão médico, pode ter “comido mosca”, ou<br />

ainda, Maria pode ter uma doença difícil ou impossível de ser diagnosticada.<br />

Ao ouvir Dr. José dizer: “Você não tem nada”, Maria interpretou a<br />

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informação “não tem nada” no sentido de que seu organismo está funcionando<br />

bem, suas dores e t<strong>aqui</strong>cardia devem ser esquecidas como<br />

algo que não existe, pois “tudo é psicológico”. Ela conclui que o Dr. José<br />

deseja que ela aceite essa implicação, ou seja, que ela, como ele, acredite<br />

estar bem, sem doenças, não precisa se preocupar, podendo ter<br />

uma vida normal. Em resumo: ela, por enquanto, não precisa procurar<br />

ajuda médica.<br />

Esta estratégia – interpretação ingênua – poderá produzir uma<br />

compreensão adequada e sem riscos <strong>para</strong> o ouvinte, sempre que o<br />

falante seja de fato bem intencionado e, acima de tudo, capacitado o<br />

suficiente <strong>para</strong> perceber e comunicar o que é importante e evidente<br />

<strong>para</strong> a pessoa com quem está se comunicando no momento. Apesar da<br />

crença, as pessoas, frequentemente, nem são competentes continuadamente<br />

e, também, nem sempre são bem intencionadas.<br />

Maria sabe, – mas não prestou atenção a <strong>esse</strong> conhecimento – sem<br />

o conhecimento de Dr. José, que outros médicos não só a examinaram,<br />

como também deram-lhe diagnósticos diferentes; um suspeitou de<br />

angina e da possibilidade dela vir a ter um derrame, o outro de hipocondria.<br />

Mas Maria Ingênua só prestou atenção ao afirmado por Dr.<br />

José; esqueceu as afirmações dos outros médicos. Seu defeito é não<br />

relacionar o que ouve agora com o que ouviu ou vivenciou antes. Se<br />

ela tiv<strong>esse</strong> lembrado de suas dores, do que o outro médico lhe disse,<br />

de histórias médicas escutadas ou lidas de outras pessoas, ela ficaria,<br />

no mínimo, em dúvida diante do falado pelo Dr. José: “Você não tem<br />

nada”. Poderia até pensar, caso suas interpretações fossem mais longe,<br />

que ele talvez estiv<strong>esse</strong> querendo dizer que “ela não tem nada” a ver<br />

com o que aconteceu, ou mesmo, que ela não tem mais nada a fazer,<br />

pois seu estado é grave.<br />

Mas como, no desenrolar da consulta, ele não receitou nada, nem<br />

indicou nenhum tratamento, ela imaginou a frase “Você não tem nada”<br />

da maneira mais fácil e mais simples, sem ter trabalho mental. Lem-<br />

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o o leitor que as crianças muito novas, bem como certos deficientes<br />

mentais, acreditam, sem fazer críticas, em qualquer informação ouvida.<br />

Maria é apenas ingênua como todos nós somos em inúmeras ocasiões.<br />

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Maria Cautelosa vai ao Médico<br />

A segunda Maria, a Cautelosa, menos ingênua que sua companheira,<br />

a Maria Ingênua, após a consulta, sai do consultório com algumas dúvidas.<br />

Afinal, o que o doutor quis dizer com a frase “Você não tem nada”,<br />

se eu sinto dores e palpitações?<br />

Maria Cautelosa acredita também, como a ingênua, que o emissor,<br />

n<strong>esse</strong> caso, Dr. José, está bem intencionado. Mas ela duvida de dois<br />

aspectos aceitos sem críticas por Maria Ingênua:<br />

faz restrições a maneira como Dr. José impôs no espírito dela as<br />

informações resumidas na frase “Você não tem nada”;<br />

levanta dúvida a respeito de sua competência <strong>para</strong> realizar um<br />

diagnóstico exato, isto é, absolutamente certo.<br />

Para Maria Cautelosa, Dr. José ignorou outros conhecimentos já possuídos<br />

por ela, pois, caso soub<strong>esse</strong>, fatalmente teria mais cuidado ao<br />

formular a informação final, a tida como a mais importante: “Você não<br />

tem nada”. Quando o Dr. José afirmou <strong>para</strong> Maria Cautelosa que ela<br />

não tinha nada, imediatamente ela lembrou-se das diferentes informações<br />

dadas pelos outros médicos visitados. Por tudo isso, a informação<br />

resumo e importante transmitida pelo Dr. José à Maria não dominará<br />

sua mente, pois esta já estava habitada por outras suposições surgidas<br />

na sua consciência quando recebeu a informação do médico.<br />

Os estoque de informações já existentes decorrentes das consultas<br />

anteriores, fatalmente, como não estavam de acordo com as do Dr.<br />

José, irão dificultar ou impossibilitar a aceitação das novas informações<br />

dadas por ele, mesmo sendo elas possíveis de serem importantes. De<br />

outro modo, como o ninho mental da paciente já estava povoado por<br />

outras idéias antigas, diferentes e contrárias à nova informação, estas<br />

combaterão as intrusas, as novas inimigas. Caso o ninho estiv<strong>esse</strong> vazio,<br />

sem idéias, seria mais fácil a idéia básica do Dr. José ali se instalar e<br />

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prosperar, orientando outras crenças e condutas de Maria.<br />

Vamos supor que a informação ouvida do Dr. José tranquilize a<br />

mente de Maria e ela a aceite como sendo uma informação importante<br />

e suficiente. N<strong>esse</strong> caso, como sempre, a mente da ouvinte segue um<br />

caminho que facilita a compreensão, a via de menor esforço. Entretanto,<br />

<strong>aqui</strong> ela vai mais longe; não se deterá na primeira interpretação<br />

importante que lhe vem à mente. Mesmo se sua mente apressada e<br />

distraída tiver aceitado a primeira interpretação dada pelo Dr. José, ela,<br />

sendo Maria Cautelosa, pensará outras possibilidades importantes.<br />

Para isso ela irá recorrer ao estoque de recordações existentes em sua<br />

memória como: o que ela sabe sobre o médico em particular; conhecimentos<br />

armazenados a respeito de outros médicos; acerca da arte da<br />

medicina; do que ela já leu ou viu nas TVs sobre acertos e erros médicos;<br />

dos sintomas sentidos e que ficaram sem explicações. Aos poucos,<br />

poderão surgir em sua memória lembranças de outros fatos vividos,<br />

observados e experimentados por ela, por parentes e amigos. Durante<br />

suas reflexões, ela lembra que ele não lhe receitou nada, não pediu<br />

exames laboratoriais, despediu-se dela e deu por encerrada a consulta;<br />

as dores e palpitações não foram explicadas.<br />

Assim, Maria Cautelosa, após todo <strong>esse</strong> trabalho intelectual de recuperação<br />

de lembranças e cruzamentos dessas com o afirmado pelo<br />

Dr. José, poderá construir um arsenal poderoso de críticas mais seguro,<br />

possibilitando uma avaliação melhor do que a aceitação simples do escutado<br />

durante a consulta, permitindo-lhe examinar melhor, e mesmo<br />

aceitar, ou, também, colocar em xeque o afirmado pelo Dr. José, ou<br />

seja, fará uma interpretação menos ingênua.<br />

Esse segundo modo de interpretar um acontecimento produzirá<br />

uma compreensão mais rica e adequada do informado pelo médico,<br />

mas, sem dúvida, é mais trabalhosa. A pessoa que fala, n<strong>esse</strong> caso, o<br />

Dr. José, mesmo sendo, por hipótese, bem intencionado, também por<br />

hipótese, poderá não ser capacitado ou competente o suficiente <strong>para</strong><br />

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fazer um bom exame, ou de perceber o que é importante <strong>para</strong> Maria<br />

num certo momento.<br />

Mas, infelizmente, apesar de nossos desejos, cheios de esperanças,<br />

nem sempre as pessoas são bem intencionadas e capacitadas. A comunicação<br />

humana pode ser inadequada e, <strong>para</strong> piorar, nem sempre<br />

é honesta; pode faltar por parte do emissor tanto a competência,<br />

como uma boa intenção. Liguem suas TVs e observem as propagandas.<br />

A maioria delas tenta convencer as crianças, jovens e idosos a comprar<br />

e comprar; usando os produtos anunciados todos ficarão mais<br />

sadios, mais bonitos, charmosos e atraentes, cheirosos, importantes,<br />

inteligentes e outros mais e mais. Tudo a baixo custo e sem esforço.<br />

As propagandas nos informam e nos incentivam a imaginar que o uso<br />

dos produtos é importante <strong>para</strong> nós. A propaganda tenta demonstrar<br />

boa-fé e nos levar a seguir suas orientações. Todos sabemos que as<br />

propagandas são geralmente muito competentes, atingem o desejado<br />

com grande parte da população; mas a intenção delas é diferente da<br />

vinculada.<br />

A intenção subjacente nas propagandas, como a que ocorre em<br />

grande parte das informações que escutamos, não é explicitada. Os<br />

motivos, razões ou desejos dos donos do produto propagado, velados<br />

ou bem escondidos, diferem e muito, dos desejos do telespectador;<br />

o desejo fundamental de um lado é vender e vender e não ajudar os<br />

compradores. Com os políticos, em grande parte dos casos, o padrão<br />

é o mesmo. Por tudo isso, um ouvinte realmente mais sofisticado não<br />

pode pensar como pensa Maria Ingênua: “Eu ponho a mão no fogo por<br />

ele”, como se todos os emissores de informações fossem bem intencionados.<br />

Creio que um comunicador verdadeiramente sofisticado, quase<br />

sempre, não é bem intencionado.<br />

Na hipótese <strong>aqui</strong> relatada, mesmo que Maria Cautelosa imaginasse<br />

Dr. José como bem intencionado, ela seria forçada a fazer restrições<br />

quanto a sua conduta, pois ele não tomou conhecimento de suas dores<br />

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e palpitações, bem como foi incapaz de explicar essas queixas; motivos<br />

de sua consulta. Portanto, o próprio Dr. José deveria estar ciente de<br />

que sua afirmação não era a única informação possível de ser verdadeira,<br />

pois ia contra o relatado pela cliente. Maria Cautelosa, através de<br />

um grande esforço criativo, poderia imaginar uma outra interpretação<br />

<strong>para</strong> tentar adequá-la à frase “Você não tem nada” dita pelo Dr. José.<br />

Quem sabe ele estiv<strong>esse</strong> querendo dizer “Você não tem nada” em relação<br />

a algum aspecto do organismo, como a pressão arterial que está<br />

boa, ou o intestino, por exemplo, que sempre funcionou bem”. É possível<br />

supor que Maria Cautelosa não agirá conforme a intenção expressa<br />

pelo Dr. José, ou seja, ir tranquila <strong>para</strong> casa imaginando não ter nada.<br />

As duas estratégias de interpretações, a Maria Ingênua e a Maria<br />

Cautelosa, pressupõem ser o Dr. José bem intencionado; elas não duvidarão<br />

de possíveis motivos escondidos existentes nele <strong>para</strong> prejudicá-<br />

-las, ou mesmo não ajudá-las como devia ser o trabalho médico; em<br />

resumo, <strong>para</strong> elas seu caráter é de um homem bem intencionado. A<br />

situação iria piorar caso Maria abandonasse <strong>esse</strong> pressuposto; se não<br />

acreditar na boa intenção dele, ela não encontrará mais nenhuma interpretação<br />

válida, pois, neste caso, sempre existiria a dúvida, acabou-<br />

-se a confiança, <strong>esse</strong>ncial <strong>para</strong> pressupor o restante da informação.<br />

Quando você aceita a boa intenção do emissor, não imaginará má-fé<br />

ou mentiras em suas afirmações, mas quando você não acredita na<br />

boa-fé ou honestidade do emissor, o receptor não mais poderá acreditar<br />

em nenhuma estratégia otimista apresentada por ele, pois essa<br />

postura pressupõe boa intenção. Em resumo: os ouvintes que reconhecem<br />

ou detectam mentiras nas informações de outros usam estratégias<br />

diferentes <strong>para</strong> assimilar o informado do que os que partem da suposição<br />

da informação ser bem intencionada.<br />

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Maria Sofisticada vai ao Médico<br />

A terceira Maria, a Sofisticada, examina mais profundamente, e de<br />

diversos modos, a frase construída por Dr. José após a consulta: “Você<br />

não tem nada”. Para Maria Sofisticada, a conclusão de um exame médico,<br />

resumida nessa frase, procura ligar diversos níveis de observações<br />

feitas pelo médico. A informação “Você não tem nada” é mais rica do<br />

que relatos de apenas alguns níveis como sua pressão está normal; seu<br />

peso também; não apresenta edemas; não há sopros cardíacos; sua<br />

memória está excelente etc.<br />

Entretanto, às vezes, imaginamos estar compreendendo um evento<br />

complexo – como um exame médico – ao isolar somente alguns níveis<br />

e não outros. Um médico cardiologista tende a “enxergar” principalmente<br />

os sinais e sintomas relacionados à área cardiovascular; um psiquiatra<br />

selecionará os aspectos do comportamento, deixando de lado<br />

características físicas etc. Uma minha amiga deu-me um bom exemplo<br />

do <strong>aqui</strong> discutido ao me confidenciar: “Doutor, Marly é esperta porque<br />

ela é paulista”. Sua conclusão foi estabelecida através de um fato – ter<br />

nascido em São Paulo – que talvez não tenha ligação alguma com “esperteza”.<br />

Os clientes ou ouvintes sofisticados – geralmente falantes competentes<br />

– percebem que os emissores usam a informação <strong>para</strong> atingir<br />

seus próprios fins. Estes podem, em alguns ou em muitos aspectos,<br />

corresponder aos fins ou desejos do receptor. Deve ser notado que,<br />

muitas vezes, as intenções dos emissores são altamente diferentes dos<br />

objetivos dos receptores ou ouvintes; estimulo a mente do leitor <strong>para</strong><br />

os discursos políticos, algumas pregações religiosas e, principalmente,<br />

propagandas existentes nas TVs, rádios, jornais etc.<br />

Maria Sofisticada, partindo de intenções possíveis do Dr. José, aprofunda-se<br />

mais, focalizando e imaginando diversas condutas do Dr. José<br />

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durante o exame. Ela procura entender o que o levou a examiná-la por<br />

tanto tempo, porque ele usou o eletrocardiograma e tomou a pressão<br />

arterial tantas vezes. E suas dores? Ele nada falou a respeito delas. Seria<br />

proveniente de uma outra doença ou de uma área da medicina que<br />

ele não conhece? Quem sabe ele não gostou de mim? Talvez, por não<br />

ter conseguido fazer um diagnóstico, decidiu mandar-me embora. Ele<br />

sorriu ao dizer a frase “Você não tem nada”. Porque será? Uma minha<br />

amiga foi diagnosticada como não tendo nada e morreu dias depois;<br />

não pode acontecer o mesmo comigo?<br />

Durante uma consulta médica são exibidos diferentes níveis <strong>para</strong><br />

o médico e o cliente. Em cada nível ou aspecto focalizado, formamos<br />

compreensões diversas, às vezes, contraditórias, outras vezes as informações<br />

obtidas se somam formando um todo mais compacto. Por<br />

exemplo: “Essa criança tem gastrenterite”; ela apresenta vômitos,<br />

febre, diarréia, desidratação etc. Cada um d<strong>esse</strong>s aspectos está aparentemente<br />

se<strong>para</strong>do, mas estão interligados através de uma teoria acerca<br />

da doença.<br />

O paciente, durante o relato de sua história médica, induz o ouvinte/<br />

médico a dar mais importância a certos fatos que foram selecionados<br />

pela mente dele. O médico prestará mais atenção a certos trechos da<br />

conversa e, além disso, durante a consulta, ele focalizará, também, sua<br />

atenção na conduta geral do cliente como: os termos usados, a construção<br />

das frases, a ordem lógica, os temas fundamentais descritos, as<br />

intenções por trás dos relatos e muito mais. Esses e outros aspectos<br />

não citados indicam claramente que a compreensão da informação<br />

obtida durante uma consulta, ou qualquer conversa, não é construída<br />

apenas dos relatos e observações diretas; é preciso mais alguma coisa<br />

que é, muitas vezes, a parte principal, importante ou básica da informação.<br />

Podemos afirmar que a mente do receptor ou ouvinte vai da<br />

mais simples, como Maria Ingênua, a mais complexa, como Maria Sofisticada;<br />

o que a pessoa conhecia antes de receber a nova mensagem.<br />

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Durante uma conversa, as inferências, deduções e suposições aparecem<br />

na mente do ouvinte e observador quando as estruturas do<br />

conhecimento dele são ativadas, isto é, quando o ouvinte recupera<br />

experiências ou lembranças anteriores memorizadas e fundamentos<br />

teóricos que passam a ser usados <strong>para</strong> ajudar a compreensão. Os<br />

conhecimentos anteriormente armazenados, possíveis de estarem<br />

relacionados ao tema discutido, uma vez recuperados da memória<br />

autobiográfica do indivíduo e tornados acessíveis à consciência – pronto<br />

<strong>para</strong> serem usados – irão participar ativamente na compreensão e<br />

resposta à conversa que está em andamento.<br />

Como não podia ser de outra forma, as memórias diversas armazenadas<br />

e estimuladas pela conversa ou leitura sempre dependerão do<br />

estoque existente e, também, de sua forma ou característica. Além<br />

disso, é necessário que o já aprendido esteja pronto <strong>para</strong> aparecer na<br />

consciência <strong>para</strong> ser utilizado. Eu posso ter um grande conhecimento<br />

acerca de um assunto e, no momento da conversa, <strong>esse</strong> pode não me<br />

vir à cabeça, portanto, de nada valerá. Quando o conhecimento se<br />

torna acessível à consciência, ou seja, foi recuperado, ele possibilitará<br />

uma compreensão mais ampla do que está sendo discutido por acrescentar<br />

mais informações ao tema.<br />

Maria Sofisticada armazenou uma grande quantidade de informações<br />

que ela utiliza durante suas conversas com o Dr. José. Sendo<br />

crítica e tendo boa memória, ela se lembra de minúcias do ocorrido<br />

durante o exame, de outras consultas já realizadas, dos bons e maus<br />

médicos em geral, leu muito sobre “erro médico”. “Não poderia estar<br />

acontecendo o mesmo comigo?” Questionou. Ela foi a outros médicos,<br />

um deles lhe disse que ela tinha “hipocondria”, o outro lhe falou na<br />

possibilidade de infarto e derrame. Quem tinha razão? As indagações<br />

de Maria Sofisticada poderiam prosseguir questionando a frase simples<br />

do Dr. José: “Você não tem nada”.<br />

Podemos afirmar que a melhor ou pior compreensão ou decodifica-<br />

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ção de uma informação como a acontecida na consulta – ou em qualquer<br />

conversa um pouco mais complexa- será sempre realizada através<br />

dos dois caminhos: as informações fornecidas pelo emissor de um<br />

lado, n<strong>esse</strong> caso, as do Dr. José; e a outra, a produzida pela maior ou<br />

menor sofisticação da mente do cliente, ou ouvinte, de sua prontidão,<br />

no momento, <strong>para</strong> recuperar as informações armazenadas, auxiliares à<br />

compreensão, que irão acrescentar outros significados e inferências à<br />

narração do discurso ouvido.<br />

Uma maior riqueza e disponibilidade dos conhecimentos anteriores,<br />

chamado por alguns de inteligência potencial, será fundamental <strong>para</strong><br />

uma compreensão mais sofisticada acerca das informações recebidas.<br />

Esse fator é composto de estruturas de conhecimentos diversos estocadas,<br />

tanto específicas como genéricas, possíveis de ser lembradas e<br />

usadas no momento da interação com o focalizado.<br />

As estruturas de conhecimento específicas, facilitadoras da compreensão,<br />

existentes na pessoa, incluem representações ou lembranças de<br />

experiências particulares, leitura de textos, aulas e discussões ouvidas<br />

etc. Muitas vezes, ao ouvirmos uma parte da fala de um amigo – principalmente<br />

dos inimigos – lembramos que ele, por exemplo, um pouco<br />

antes, relatou situações que contradizem o falado.<br />

As estruturas de conhecimento mais genéricas incluem os esquemas,<br />

os enredos, modelos, estereótipos e outros conjuntos de conhecimentos<br />

que conseguem facilitar e dar maior velocidade <strong>para</strong> a “digestão”<br />

do texto ou conversa que está sendo assimilada.<br />

São essas estruturas que irão fornecer à pessoa grande parte do conteúdo<br />

necessário <strong>para</strong> interpretar, explicar, predizer e compreender a<br />

conversa, o texto e os eventos que estão sendo enfrentados ou observados;<br />

em resumo, são estas estruturas que nos permitem compreender,<br />

predizer e explicar as experiências particulares e vividas por cada<br />

um de nós no meio ambiente experimentado.<br />

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Quando uma situação nos é muito familiar e superaprendida, o conteúdo<br />

das estruturas, ou seja, determinadas lembranças relacionadas<br />

ao observado são automaticamente estimuladas e ativadas com pouco<br />

ou nenhum esforço nosso. Quando uma nova informação aparece e só<br />

pode ser construída a partir de ciclos cognitivos de buscas e rebuscas<br />

na memória – uso de maior esforço – e na informação acumulada de<br />

várias fontes na memória autobiográfica, haverá muito mais dificuldade<br />

<strong>para</strong> a compreensão. Portanto, o ouvinte, ao compreender a conversa<br />

– neste caso particular, a consulta – uns mais e outros menos, irá<br />

procurar construir significados <strong>para</strong> o que está sendo ouvido; ele tentará<br />

explicar “porque” os episódios da conversa ou atos ocorreram e<br />

“porque” o falante mencionou certas informações particulares naquele<br />

dia.<br />

Dando um exemplo: Mário decidiu escrever uma carta a Alice, sua<br />

antiga amiga. Uma possibilidade adequada inclui “queria pedir ajuda”;<br />

“sentiu-se solitário”, “tinha uma notícia importante <strong>para</strong> ela” etc. Seria<br />

estranho inferir ou imaginar que Mário escreveu <strong>para</strong> Alice <strong>para</strong> “pegar<br />

na caneta”.<br />

Ao ouvir ou ler, esperamos por algo no futuro; uma conversa acerca<br />

de uma pessoa entrando num restaurante ativa nossa mente <strong>para</strong><br />

pensar que alguém deve ter ido ali <strong>para</strong> comer, beber, conversar, pagar<br />

etc., conforme nossa memória autobiográfica armazenou. Do mesmo<br />

modo, uma história de vingança leva-nos a esperar que alguém fira o<br />

outro que lhe fez algo desagradável anteriormente.<br />

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As três Marias: Informações<br />

resumidas<br />

Deve ser lembrado que todos os comportamentos verbais, bem<br />

como outros comportamentos comunicativos, visam, antes de tudo, a<br />

prender a atenção do sujeito alvo. Não há possibilidade de nos comunicarmos<br />

com alguém caso este não preste atenção às nossas informações.<br />

Quando transmitimos uma determinada mensagem <strong>para</strong> alguém,<br />

nós, como emissores, tentamos sempre formar na mente do receptor<br />

ou ouvinte outras informações, além das literalmente expressas:<br />

Pedro, interessado em conquistar Cláudia, ao vê-la, afirma: “Você tem<br />

belos olhos”. Em outro caso, ele pretende ajudar uma pessoa que<br />

está trocando o pneu furado do seu carro e lhe pergunta: “Seu pneu<br />

furou?”. Essas informações, que têm recebido o nome de “intenções<br />

informativas”, não são claramente verbalizadas. No caso do Dr. José, as<br />

intenções informativas deste foram seus gestos calmos, o tom de voz, a<br />

maneira de olhar etc.<br />

As intenções informativas simples nada mais são do que outras informações<br />

que a pessoa – a que emite a mensagem – tenta transmitir<br />

além do expresso literalmente. Muitas vezes, após ouvirmos uma frase,<br />

segundos depois, percebemos o que não tínhamos notado, falando<br />

<strong>para</strong> nós mesmos: “Ah! Só agora, percebi. Que burro fui! Ele disse que<br />

estava gripado como desculpa <strong>para</strong> não ir; fiquei preocupado à-toa.”<br />

A provocação ou realização de uma intenção informativa é geralmente<br />

intencional. Uma intenção de comunicar – ou uma “intenção<br />

comunicativa” – procura tornar conhecida uma intenção informativa<br />

inicial (de primeira ordem), a primeira informação, a que se deseja que<br />

seja aceita pelo receptor. Podemos imaginar que Maria Sofisticada está<br />

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ciente que Dr. José tem por intenção, ao demonstrar calma e falar que<br />

não há nada, fazer com que ela acredite no que está sendo dito. N<strong>esse</strong><br />

caso, podemos supor que Maria Sofisticada, não a Ingênua, está de<br />

posse do seguinte raciocínio/complexidade: “Dr. José quer que eu saiba<br />

que ele pretende fazer-me acreditar que ele não precisa fazer nada por<br />

mim, pois tudo está bem”.<br />

De maneira simples, podemos afirmar que a comunicação nada<br />

mais é do que usar um meio, ou estratégia, especial <strong>para</strong> realizar<br />

uma intenção informativa; de um modo mais seco e desagradável, de<br />

administrarmos nosso egoísmo junto ao outro. Através de uma intenção<br />

informativa fornecemos indícios, genuínos ou falsos, a respeito da<br />

informação que desejamos que o outro acredite como verdadeira.<br />

Nós, seres humanos, alguns mais, outros menos, usamos e abusamos<br />

de técnicas <strong>para</strong> construir, ou melhor, inocular estados mentais e<br />

emocionais nas pessoas. Constantemente estamos provocando intenções<br />

como no exemplo:<br />

“Luiz come diante de Marta, demonstrando extremo prazer pela<br />

feijoada pre<strong>para</strong>da por ela.”<br />

Com <strong>esse</strong> gesto, Luiz tenta agradá-la <strong>para</strong> mudar as intenções de<br />

Marta <strong>para</strong> com ele. Naquele dia, ela estava possessa. Era preciso<br />

acalmá-la. Um observador que não conhec<strong>esse</strong> as intenções de Luiz<br />

poderia imaginar que ele estiv<strong>esse</strong> faminto. Por outro lado, se Marta<br />

perceb<strong>esse</strong> a intenção de Luiz – comer muito <strong>para</strong> agradá-la e acalmá-<br />

-la – a conduta de Luiz poderia não surtir o efeito desejado.<br />

Um comportamento comunicativo, construtor de idéias, emoções<br />

e intenções no espírito dos receptores, pode ser feito por meios não-<br />

-verbais e verbais. João pode estabelecer contato visual com Lúcia,<br />

sua superiora; pode ainda olhar <strong>para</strong> o chão, andar devagar, esfregar o<br />

rosto com as mãos etc., tudo isso <strong>para</strong> auxiliar a compreensão de sua<br />

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intenção afirmativa; a de que está doente, precisa ir <strong>para</strong> casa e procurar<br />

um médico.<br />

Conforme o discutido, não há possibilidade clara e objetiva de sabermos<br />

as intenções mais escondidas do Dr. José; sabemos as mais superficiais,<br />

por exemplo, uma de suas intenções básicas foi fazer com que<br />

Maria acreditasse no que dizia. Mas durante uma ironia podemos fazer<br />

o oposto; falar algo de um certo modo que leva o receptor a saber que<br />

o afirmado quer dizer outra coisa diferente. No caso do médico, o Dr.<br />

José, ao fazer gestos e usar certos tons de voz, tentava mostrar calma<br />

intencionalmente <strong>para</strong> provocar nas Marias que ele não estava tenso<br />

e nem preocupado com estado físico delas, pois tudo estava bem. Mas<br />

é possível que ele quis<strong>esse</strong> dizer alguma coisa a mais do que foi falado<br />

e demonstrado pelos seus gestos. Hipoteticamente, tudo o que ele<br />

fez pode ser falso; não só em virtude dele ter uma intenção falsa por<br />

algum motivo próprio e desconhecido <strong>para</strong> nós, como também devido<br />

a uma incapacidade dele de fazer o diagnóstico mais acurado. Se<br />

pensarmos conforme essas hipóteses, o Dr. José podia estar enganando<br />

Maria, fingindo que tudo estava bem, <strong>para</strong>, posteriormente, tomar<br />

outras medidas necessárias junto a outros médicos ou familiares dela<br />

devido a gravidade do caso.<br />

Se alguém em quem você confia quer que você acredite em algo, há,<br />

frequentemente, boas razões <strong>para</strong> que você acredite no falado. Essa<br />

situação acontece nas relações usuais que temos com nossos pais e<br />

educadores. Estes nos informaram, em épocas passadas, uma série de<br />

dados e interpretações acerca das relações entre pessoas, da nossa<br />

família, da constituição e formação do mundo etc., todas bem intencionadas.<br />

Mais tarde, lamentavelmente, percebemos que muitas informações<br />

eram falsas. Nossos educadores e pais nos informaram tudo<br />

isso com a boa e santa intenção de nos ajudar; de não nos fazer sofrer<br />

diante da realidade dura e crua. Além disso, eles foram competentes<br />

<strong>para</strong> pôr em prática suas intenções; nos informar erroneamente acerca<br />

do mundo e das pessoas.<br />

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Quando uma pessoa tem uma intenção fundamental, espera-se que<br />

ela se esforce <strong>para</strong> que outras crenças ligadas à principal sejam aceitas<br />

<strong>para</strong> que a intenção principal seja realizada. Uma condição necessária<br />

<strong>para</strong> que ocorra isso é a de que o receptor, ou alvo da intenção, acredite<br />

que a informação que o comunicador quer transmitir é importante<br />

e, também, que é verdadeira. Em outros termos, todo ato de comunicação<br />

e, em particular, toda afirmação, contém uma presunção de sua<br />

própria relevância, do contrário ela não seria emitida.<br />

Se o ouvinte postular que o falante é bem intencionado e competente,<br />

como fez Maria Ingênua e, portanto, que a afirmação dele é importante<br />

e verdadeira <strong>para</strong> ela, n<strong>esse</strong> caso, fica simples e fácil decifrar a<br />

mensagem. Isso acontece mais nas relações entre pais e filhos, menos<br />

um pouco entre os cônjuges e amigos, e menos ainda em outros encontros.<br />

Mas na terceira estratégia, a da Maria Sofisticada, a interpretação<br />

fica extremamente mais complicada. N<strong>esse</strong> caso, não se supõe que o<br />

falante seja bem intencionado, também não se acredita piamente na<br />

sua competência: todas essas características são examinadas através<br />

de outros dados da experiência e do conhecimento geral do ouvinte<br />

fora do contexto enfrentado no momento. Neste modelo admite-se ou<br />

acredita-se somente que o Dr. José procura formar uma intenção no<br />

ouvinte de que é bem intencionado e competente.<br />

A Maria Sofisticada, como nas outras estratégias interpretativas,<br />

deve seguir o caminho de menor esforço, mas não se deter na primeira<br />

interpretação tida como importante que vem à sua mente – na primeira<br />

idéia acomodada ao ninho – nem na primeira interpretação que o<br />

falante pode ter pensado que fosse importante o suficiente <strong>para</strong> ele.<br />

Quando se considera a ironia, bem como outras interpretações de<br />

notícias e outros conteúdos que comentam o afirmado, isto é, informam<br />

além das informações fornecidas literalmente pela fala ou escrita,<br />

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torna-se evidente que os comunicadores usam muito suas interpretações<br />

particulares acerca das informações primárias, e muitos interpretam,<br />

por sua vez, as interpretações existentes, e assim por diante, tornando<br />

o informado cada vez mais complexo e difícil de ser entendido<br />

e exposto em nossa mente, ao mesmo tempo. Isso não implica que os<br />

comunicadores, durante <strong>esse</strong> tipo de informação estejam conscientes<br />

da complexidade de seus raciocínios. O que está implícito é que cada<br />

uma dessas representações mentais assenta-se em diferentes camadas,<br />

uma em cima da outra; sendo que cada uma das camadas terá que<br />

ter um papel diferente na compreensão do ouvinte ou leitor. Por isso<br />

elas são difíceis.<br />

Boa parte da comunicação cotidiana se efetua entre pessoas que são<br />

bem intencionadas umas em relação às outras; elas se conhecem bem<br />

reciprocamente. Em tais circunstâncias, a técnica da Maria Cautelosa<br />

– mesmo da Maria Ingênua – pode servir como estratégia de interpretação<br />

“usual”; não havendo necessidades de utilizar níveis mais altos e<br />

complicados como as envolvidas nas compreensões sofisticadas. Mas<br />

quando a estratégia ingênua ou cautelosa fracassa, seria interessante<br />

usar as estratégias sofisticadas <strong>para</strong> realizar deduções complexas.<br />

O Dr. José transmitiu à Maria uma informação que pode, como vimos,<br />

ser interpretada de diversos modos, indo do mais simples, aceitando<br />

as intenções dele e sua alta competência; que foi bem codificada<br />

na frase “Você não tem nada” sem outras intenções ou objetivos. Pode<br />

também ser examinada sob a ótica mais complicadas como a das duas<br />

Marias; Cautelosa e Sofisticada, que colocaram em dúvida suas intenções<br />

explicitadas ou sua competência. Essas Marias utilizaram diversos<br />

comentários ou análises das informações exibidas pelo Dr. José: o que<br />

ele disse, gestos, histórias particulares delas e outros conhecimentos<br />

adquiridos. Diversos outros exemplos nos levam a imaginar o uso de<br />

técnicas semelhantes <strong>para</strong> examinar informações usadas frequentemente<br />

por todos nós: “Vamos dar um tempo”; “Para mim está tudo<br />

acabado”; “E agora José…”<br />

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Nosso Povo<br />

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Entardecer de uma estrela:<br />

“BIG BROTHER”<br />

Se ligo uma TV e vejo um jogo de futebol, uma corrida de carro ou de<br />

maratonistas, eu chamo <strong>esse</strong>s eventos de esporte; se assisto uma novela,<br />

um filme, leio um romance ou uma poesia, observo uma pintura<br />

ou ouço uma canção, chamo isso de arte. Essas atividades são fáceis<br />

de categorizar. Do mesmo modo, se estudo num livro de Biologia ou de<br />

Física, sei que eles descrevem ciências diferentes; ao ler a Bíblia, o Talmude<br />

ou o Alcorão, sei que estou recebendo ensinamentos religiosos.<br />

Cada uma dessas atividades ensina, emociona e, muitas vezes, promove<br />

o desenvolvimento e crescimento do ser humano.<br />

Por outro lado, se ligo a TV e vejo um amontoado de jovens bonitos<br />

e atléticos, totalmente “perdidos na noite”, torna-se difícil encontrar<br />

algum conceito conhecido e, principalmente, elegante <strong>para</strong> categorizar<br />

os acontecimentos observados. Os telespectadores diante da tela, ao<br />

assistirem o programa “Big Brother” ficam perdidos, como os “atores”<br />

se encontram.<br />

Aquilo não é arte, não é esporte, não é religião e muito menos,<br />

ciência. Seria diversão pura e simples, com informação zero? Talvez<br />

não seja nada…um nada que não constrói, que não contribui <strong>para</strong> o<br />

desenvolvimento humano, que talvez só sirva <strong>para</strong> alimentar a bobice:<br />

uma bobice altamente desenvolvida, que alcançou seu limite máximo,<br />

possível e suportável.<br />

As imagens mostradas naquele jardim zoológico chique, os rosnados<br />

ouvidos – não há diálogos próprios do homem civilizado – nos incita<br />

à regressão, isto é, a um retorno aos animais que nos habitam, que<br />

dominaram o homem primitivo, que nascemos com eles, mas que a<br />

educação e a cultura de alguns, não de todos, domesticou. Observan-<br />

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do-os, enxergamos condutas que lutamos <strong>para</strong> ficar livres delas, pois,<br />

somente assim, conseguimos construir uma sociedade dita civilizada.<br />

Estranhamente, o “nada” exibido pela TV atraiu uma multidão de<br />

pessoas, assim como riscos e rabiscos coloridos e em movimentos na<br />

tela das televisões atraem as crianças recém-nascidas, ou seja, possuidoras,<br />

até aquele instante, somente do cérebro biológico primitivo.<br />

Como é triste ver seres humanos atraídos por rabiscos ou por um lixo<br />

d<strong>esse</strong>s. Seria diversão ou regressão?<br />

Todas as grandes religiões nasceram no Oriente (Cristã, Budista,<br />

Islâmica etc.); todas as grandes Ideologias nasceram no Ocidente (Comunismo,<br />

Democracia, Nacionalismo etc.). Nós participamos de uma<br />

civilização Latino-Americana, diferente das orientais e ocidentais; mas,<br />

por outro lado, sofremos pressões da religiosidade e ideologia de ambas.<br />

Entretanto, segundo alguns pensadores, ainda temos condições de<br />

nos libertar dos dois domínios e construir uma civilização Latina, mais<br />

nossa, menos controlada, na qual nossos valores e identidades possam<br />

emergir. Mas, <strong>para</strong> que isso aconteça, torna-se necessário jogar longe a<br />

manta que nos encobriu e que não é e nunca foi nossa.<br />

Gustave Flauber, no seu livro “Madame Bovary”, descreveu seus<br />

personagens como idiotas: Ema Bovary; seu marido médico; o farmacêutico;<br />

o amante e fazendeiro de botas brilhantes etc. Nós, agora,<br />

possivelmente, seríamos também descritos por Flauber como personagens<br />

idiotas no cenário global, ao gastar nosso tempo assistindo as<br />

bobagens plagiadas e importadas de países europeus e americanos.<br />

Há anos atrás, o filme “Eles Matam Cavalos, Não Matam? de Horace<br />

McCoy que serviu de roteiro de “A Noite dos Desesperados” de Sydney<br />

Pollack , mostrou-nos o esforço de uma mulher <strong>para</strong> vencer uma maratona<br />

de dança e ganhar uns trocados durante a depressão dos anos 30<br />

nos USA. Ela dança até a exaustão. Aqui a exposição pública vale 500<br />

mil reais. E os cavalos como ficam? Eles são sacrificados quando não<br />

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têm mais chances de sobrevivência, não são? Penso que já foram!<br />

O “Big Brother” começou mal; a apresentadora, ao conversar com os<br />

candidatos ao prêmio disse:<br />

— Gente, os pares já estão se formando.<br />

Isto foi falado cinco minutos após o início da atração.<br />

— Será que alguém vai dormir juntinho essa noite? insinuou Marisa<br />

imitando a cara de idiota da personagem Magda de “Sai de Baixo”.<br />

Entre os participantes, Kleber mal chegou e foi dizendo:<br />

— Gosto de menina malhada. Por isso, se tiver que traçar alguém,<br />

que seja a Xaiane.<br />

Parece que, com o tempo, ele não se mostrou tão fanático quanto ao<br />

sexo feminino, como afirmou inicialmente <strong>para</strong> o público.<br />

Para piorar, houve uma procissão pelas ruas do Rio e esquema de<br />

exibição, divulgação, promoção e venda montado pela Globo. TV aberta<br />

e fechada, rádios, revistas, jornais e internet, <strong>para</strong> operar em conjunto<br />

e faturar publicidade. A promoção valeu: o programa de estréia<br />

aprisionou uma audiência média de 49% em São Paulo, projetando um<br />

público de 56 milhões de pessoas em todo o Brasil, um terço da população<br />

brasileira. Nada a declarar… Eu devo estar errado.<br />

Os animais/personagens foram mostrados <strong>para</strong> um público que<br />

implora o comando de “Novos Deuses”. Com a ausência transitória do<br />

Deus primeiro, único e puro, vários candidatos tentam apoderar-se da<br />

vaga, infiltrando-se nas religiões e, muitas vezes, dominando-as, usurpando<br />

o lugar e as idéias sagradas. O Deus maior e antigo está sendo<br />

abandonado; as religiões nascidas do Oriente enfraqueceram e mor-<br />

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em dominadas ou destruídas pelas ideologias dos países ocidentais.<br />

O show e o espetáculo contaminam todos; como vírus, atingem<br />

agora as igrejas. A representação teatral intromete-se e imiscui-se em<br />

tudo; artistas, padres, pastores e participantes do “Big Brother”, todos<br />

desejam o sucesso, o prestígio e o lucro financeiro. O Deus antigo, detentor<br />

dos princípios de justiça, foi derrotado; em seu lugar nasceram<br />

deuses diversos ligados à ideologia-religiosa do lucro; os novos deuses<br />

sonham o dinheiro fácil e a fama.<br />

Tudo está sendo transformado em espetáculo: o sequestro, o estupro,<br />

a fuga, o incêndio, a doença do prefeito, a morte do promotor e do<br />

comissário da ONU, os bombardeios no Iraque, a declaração da mãe da<br />

terrorista-bomba. Há uma reiterada busca das celebridades; o limite, as<br />

pegadinhas do Gugu ou do Faustão; a mulher – no Ratinho – que mais<br />

xinga e bate no amante ou o senhor e senador que melhor age como<br />

idiota. Na platéia, gritando histericamente, todos invejam, babando, o<br />

idiota que representa, ou é a própria bobice humana.<br />

“Tá tudo dominado!” Assistimos e vibramos com a exibição do Lixo<br />

Cultural (Faustões, Ratinhos, Gugus, Leões, Xuxas, Gimenez etc.), que<br />

constroem e destroem, com incrível rapidez, todo candidato à celebridade.<br />

São eles que, antes de desaparecerem, como fumaças carregadas<br />

de fuligem, irritaram nossos olhos e nosso cérebro.<br />

A cultura é subjugada e derrotada pelo poder sem freio da diversão;<br />

a vida se torna o desempenho de um papel desejado ou imaginado.<br />

Estamos retrocedendo; em lugar de uma cultura “carnavalesca”, importamos<br />

a “cultura do lixo” na qual tudo é embrutecido, vulgarizado<br />

e banalizado, em que o espalhafatoso e imbecil é mais observado e<br />

aplaudido do que o evento que, talvez, tiv<strong>esse</strong> algum mérito.<br />

O grupo dominante critica as relações na qual ainda restam laços<br />

entre as pessoas envolvidas, ligações que nasceram de tradições e valo-<br />

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es morais comuns aprendidas durante milhares de anos; tudo isso está<br />

sendo jogado fora, abandonado, emporcalhado pelas sobras dos novos<br />

deuses. A meta principal passou a ser o divertimento, a força mais<br />

poderosa, insidiosa e perigosa existente; ela, aos poucos, segue o profundo<br />

e profético pensamento de Nietzsche: “Sempre que um homem<br />

almeja persistente e longamente parecer outro, acaba tendo dificuldade<br />

de ser ele mesmo de novo”. O Brasil está seguindo a profecia.<br />

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Os maiorais<br />

Alguns sujeitos têm mais sorte que outros: são percebidos pela<br />

população como possuidores de características muito “superiores” às<br />

normais, por isso são chamados de “gênios”, “santos”, “heróis”, artistas<br />

excepcionais, craques tipo Pelé ou Ronaldinho ou “grandes bandidos”<br />

como o “Fernandinho” e o “Bandido da Luz Vermelha”. Esses indivíduos<br />

não se transformaram apenas em bons médicos, excelentes atletas ou<br />

artistas, eles se transformaram em mitos; chamo a atenção do leitor,<br />

pois uma coisa é diferente da outra.<br />

Alguns indivíduos abandonaram sua “humanidade”, isto é, as mazelas<br />

e singularidades positivas e negativas próprias dos homens; sofreram<br />

uma metamorfose, deixaram a pele humana e passaram a usar<br />

vestimentas gloriosas dos maiorais; tornaram-se “heróis”, “santos” ou<br />

“malfeitores” extraordinários.<br />

Faço uma pergunta <strong>para</strong> mim mesmo: O que faz com que um determinado<br />

indivíduo, aos poucos, deixe de ser homem e torna-se mito?<br />

O que leva uma pessoa a receber uma categorização de tão alto nível?<br />

Não estou falando de uma habilidade comum como “ter um bom<br />

ouvido”, uma “bela voz” ou uma boa memória. E muito mais: Por que o<br />

processo de cristalização dessas honrarias ou acusações se deu em torno<br />

daquele determinado indivíduo e não de outro qualquer? De modo<br />

concreto: por que Santo Antônio tornou-se santo numa certa época e<br />

não antes ou depois e, além disso, santo casamenteiro; S. Judas Tadeu<br />

metamorfoseou-se em protetor das “causas perdidas”; Fernandinho<br />

Beria-Mar, virou um perigosíssimo bandido?<br />

Frustro o leitor. Não tenho respostas; tenho especulações. Talvez<br />

certos indivíduos são possuidores de determinados aspectos físicos,<br />

intelectuais ou morais que se adaptam melhor a uma história mítica<br />

preexistente, bem conhecida, contada repetidamente. Um certo modo<br />

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de ser, de olhar, andar, bem como as roupas usadas etc. facilitariam<br />

uma melhor assimilação conforme o modelo de “Cinderela”, enquanto<br />

outro se assemelha mais ao estereótipo de “demônio”.<br />

Todos nós, muito cedo, ouvimos, emocionados, histórias míticas ou<br />

lendas, contadas pelos nossos pais, avós, professoras, entre elas: Gata<br />

Borralheira, Chapeuzinho Vermelho, Robin Hood, Gúliver. Por outro<br />

lado, também os jornais, filmes e TVs nos informaram acerca de bandidos<br />

espetaculares e craques fora-de-série. Pode ocorrer que, mais<br />

tarde, ao observamos certas condutas, determinamos e selecionamos<br />

certos aspectos da pessoa e, após enfatizá-las, identificamos os atributos<br />

com as características armazenadas em nossa mente do mito: “Oh!<br />

É a própria Gata Borralheira!”; “Esse é outro Pelé!”; “É outro bandido<br />

da mala”. Com as pistas e as noções memorizadas da lenda aprendida,<br />

associamos alguns fatos percebidos do indivíduo alvo. Os fatos<br />

selecionados e enfatizados, muitas vezes, são características quase ou<br />

nada significativas, seja no aspecto físico, seja na conduta do indivíduo<br />

observado <strong>para</strong> que seja dado o rótulo final de gênio ou de santo. De<br />

posse das idéias da lenda armazenadas em nossa memória, assimilamos<br />

o cidadão focalizado e passamos a classificá-lo disso ou d<strong>aqui</strong>lo.<br />

Não sei se essa explicação tem algo de verdadeiro; mas é um palpite<br />

meu n<strong>esse</strong> momento.<br />

Mas vamos um pouco além dessa idéia; pois já penso ser ela simples<br />

demais; até um pouco boba. Talvez ganhe mais sua atenção com<br />

as novas suposições que acabei de ter. Na maioria das vezes, o rótulo<br />

colocado é percebido pelo “rotulador” como tal, ou seja, como rótulo.<br />

N<strong>esse</strong> caso, o “rotulador” reconhece claramente que o rotulado não é<br />

o personagem do mito. Exemplificando: a pessoa sabe que o símbolo<br />

por ele usado ao chamar determinada mulher de “Gata Borralheira”<br />

não representa a realidade; pois ela é, de fato, a lavadeira Teresa.<br />

Entretanto, algumas vezes ficamos confusos e podemos confundir as<br />

idéias estocadas em nossa mente com respeito ao mito com a pes-<br />

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soa identificada e, posteriormente, rotulada. N<strong>esse</strong> caso, passamos<br />

a acreditar que Teresa é a “Gata Borralheira” e não a lavadeira. Não<br />

se assustem, isso não tão raro assim; é bastante comum; isso torna a<br />

coisa complicada. Passamos a denominar e, logicamente, a enxergar<br />

ou tratar a pessoa rotulada conforme o rótulo usado: gênio, herói,<br />

santo, milagreiro etc. Assim, passamos a acreditar totalmente na nossa<br />

categorização, no rótulo usado, deixando de lado o exame ou as observações<br />

possíveis de serem realizadas.<br />

Vamos imaginar, como exemplo a afirmativa: “Minha mãe foi uma<br />

santa”. Se repetimos isso diversas vezes, contamos <strong>para</strong> os outros e<br />

<strong>para</strong> nós mesmos, aos poucos, <strong>para</strong> nós, ela se torna “santa”. Entretanto,<br />

ela jamais agiu conforme as determinações dos candidatos a santos,<br />

mas passamos a acreditar nas nossas idéias, que eram inicialmente<br />

meras suposições e, numa época, sabíamos que estávamos conjecturando.<br />

Aos poucos, com segurança, sem dúvida, passamos a acreditar<br />

na nossa idéia delirante; que nossa mãe, sem dúvida nenhuma, foi<br />

mesmo uma santa; não a do pau oco. N<strong>esse</strong> caso, falamos que houve<br />

uma transformação do real <strong>para</strong> o ideal. Como afirmou o “gênio” Pascal:<br />

““Aja como se acreditasse; reze, ajoelhe-se e você acreditará, a fé<br />

chegará por si””. Você poderá lembrar de outros rótulos: burro, bonito,<br />

inteligente, esperto, molenga, educado.<br />

Vamos a outro exemplo: por mais que a pessoa demonstre que ela é<br />

gente como a gente, como ocorreu com Maria da Silva que tem diarréia,<br />

menstruações dolorosas, alimenta e defeca, age, muitas vezes,<br />

burramente, como todos nós, passamos a imaginá-la como santa, gênia<br />

ou uma perigosa bandida, isso não importa; ela passa a ser classificada<br />

como muito diferente de nós. Num grau semelhante e muito frequente,<br />

não sei bem se pequeno ou grande, a rotulação inadequada ocorre<br />

quando amamos ou odiamos alguém. Embevecido, arrebatado pelo<br />

desejo e paixões avassaladoras, Amadeu visualiza e categoriza sua<br />

amada não como ela é de fato: com sua perna fina e as coxas grossas,<br />

um ombro mais alto do que outro, a testa cheia de rugas. Ele a enxerga<br />

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sim, conforme os mitos que possui acerca da beleza e elegância e, inconscientemente,<br />

como afirmou Pascal, passa a enquadrá-la: ““um corpo<br />

esbelto, uma testa lisa e sedosa, olhos brilhantes e sedutores e uma<br />

sagacidade de espantar, um amor de mulher””. A “sabedoria” popular<br />

tem um provérbio <strong>para</strong> resumir tudo isso de forma mais simples e mais<br />

exata do que escrevi: “Quem ama o feio, bonito lhe parece”.<br />

Portanto, algumas pessoas se transformam em mito <strong>para</strong> um indivíduo<br />

– como exemplifiquei acima – outros, <strong>para</strong> um grupo, país ou<br />

<strong>para</strong> grande parte da população, como ocorreu com a Irmã Teresa de<br />

Calcutá. Esta, como consta na sua história, viveu parte de sua vida<br />

como uma santa, mas não toda a vida. Sei que é difícil ir contra <strong>esse</strong><br />

estereótipo <strong>para</strong> os seguidores do catolicismo; alguns leitores não gostaram,<br />

franziram a testa reprovando minhas especulações. Mas essa<br />

afirmação encaixa-se no exemplo geral do que estou descrevendo: uma<br />

transformação ou um estereótipo mítico de uma pessoa que viveu, até<br />

uma época de sua vida, como todos nós.<br />

Podemos dizer, de uma outra maneira, que a população absorveu<br />

a pessoa indicada, que ela se encaixou no assimilador mítico preexistente<br />

(mito do herói, do rei justo, do fora-da-lei, do nobre, do santo,<br />

do sábio etc.) como pessoa mítica, isto é, possuidora de características<br />

excepcionais anteriormente já descritas <strong>para</strong> outras figuras mitológicas.<br />

Esse encaixe do indivíduo ao mito do herói, santo ou demônio, apareceu<br />

muito cedo na imaginação dos homens.<br />

Uma vez iniciada a construção do mito, ou seja, a transformação de<br />

um homem normal num mítico-excepcional, esta edificação continua<br />

através de sua vida. A partir do seu reconhecimento como homem<br />

extraordinário, seus novos feitos ou condutas, geralmente semelhantes<br />

às de todos nós, passam a ser vistas de forma deformada pelo novo<br />

estereótipo existente. A conduta do ser mítico é observada e julgada<br />

com os novos óculos usados, o novo prisma deformador da realidade,<br />

de acordo com o rótulo recebido: santo, herói, malfeitor, um amor de<br />

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mulher, super-honesto ou outro qualquer.<br />

Nomeado herói, santo, craque, grande artista, os esforços são feitos<br />

<strong>para</strong> que ex-candidato à figura mitológica, uma vez empossado no<br />

cargo, se estabilize, ou seja, não retorne à sua normalidade anterior, a<br />

de um homem medíocre como são os homens comuns como eu e você<br />

leitor. Dessa forma, os fatos ocorridos anteriormente – antes da pessoa<br />

ter se tornado uma “figura mítica”, a “santa” ou o “herói” – passam<br />

a ser examinados de maneira deformada; procuramos dar aos fatos<br />

comuns uma conotação “santificada”, “heróica”, <strong>para</strong> se adaptar ao<br />

novo status atingido. Ele não é mais um homem qualquer, logo, não<br />

mais pode ser examinado como tal, ele agora é Chico Xavier, um santo,<br />

um homem extraordinário, boníssimo; não poderemos mais enxergar<br />

nele as características humanas que todos possuímos, pois ele é um<br />

ser diferente; só pode ser examinado, observado e avaliado conforme<br />

o molde mítico existente na mente dos observadores; sentimos mal,<br />

asco, se usarmos nosso assimilador mental normal <strong>para</strong> examinar Moisés,<br />

Chico Xavier, Madre Tereza, Freud, nosso pai, mãe e, logicamente,<br />

nossa amada namorada.<br />

Temos a tendência de manter inalterável um determinado modelo<br />

que temos das pessoas com as quais lidamos. Assim, por exemplo, se<br />

gosto de uma pessoa, procuro atos seus que comprovem minha hipótese,<br />

inclusive os fatos que aconteceram antes de conhecê-la, por<br />

outro lado, não percebo, não aceito ou não acredito nos eventos que<br />

negam as crenças existentes em minha mente; se odiar, uso o raciocínio<br />

oposto.<br />

Muitas vezes, após aceitarmos por muito tempo algum indivíduo<br />

como super-homem (herói, bandido etc.) damos uma rasteira no seu<br />

prestígio, destruímos sua santidade ou heroísmo, transformando-o<br />

num homem normal. Isso tem ocorrido entre os grandes estadistas e<br />

mesmo entre os santos, alguns foram destituídos do status que gozavam.<br />

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O candidato a covarde ou herói, demônio ou santo, dando tudo<br />

certo, não surgindo nenhum acidente de percurso, se transforma em<br />

mito e passa a ser admirado como tal. Mas não devemos nos esquecer<br />

do <strong>esse</strong>ncial: fomos nós, os “rotuladores”, que o construímos, <strong>para</strong> isso<br />

usamos mais os símbolos de histórias míticas anteriores, e menos a<br />

realidade observada.<br />

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Amanhecer sem Futuro: Fortunato<br />

e Felicidade vão às Compras<br />

Fortunato e Felicidade, casados e sem filhos, ele gerente de supermercado,<br />

ela, caixa de banco, como seus amigos, jamais per deram uma<br />

liquidação como aquela marcada <strong>para</strong> acontecer no fim de semana.<br />

Os devotos fiéis, adoradores de mercadorias desne cessárias e descartáveis,<br />

encurvados, avidamente procuraram nos encartes dos jornais<br />

se inteirar do local e horário da sensacional liquidação, onde seriam<br />

vendidas as novas e as velhas bugigangas indispensáveis <strong>para</strong> habitarem<br />

nossas casas.<br />

Às nove horas da noite de sábado, o casal saiu de casa e tomou o<br />

ônibus em direção à loja onde ia ser realizada a grande liquidação.<br />

Centenas – ou milhares de pessoas – companheiros de Fortunato e Felicidade,<br />

submissos e obedientes, fazendo parte d<strong>esse</strong> imenso exército<br />

bem treinado de compradores fanáticos e compulsivos, esperavam,<br />

preocupados, ocupar os primeiros lugares da fila, pois assim teriam<br />

maiores chances de alcançar, antes dos outros, os ob jetos disputados.<br />

Depois da longa viagem de ônibus, o casal chegou à porta da loja<br />

ainda fechada, onde se descortinava uma enorme fila. Os sortu dos que<br />

ocupavam os primeiros lugares sorriam satisfeitos perante os invejosos<br />

concorrentes, um tanto desanimados com a diminui ção das oportunidades.<br />

Dois a três minutos de atraso poderia ser fatal, tempo necessá rio<br />

<strong>para</strong> que as mais cobiçadas ofertas, num piscar de olhos, desaparec<strong>esse</strong>m<br />

das prateleiras. A porta seria aberta às 6 horas da manhã de<br />

domingo. A publicidade bela e colorida anunciou, por diversos dias, as<br />

ofertas que seriam vendidas a “preços nunca vistos”.<br />

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Na madrugada escura e fria, uma chuvinha miúda caía sem se importar<br />

com a multidão solitária formada em torno do prédio. Tensos,<br />

silenciosos, cada um por si, todos esperavam a sirene dar a partida: os<br />

compradores imaginavam as fantásticas compras. De mãos dadas, do<br />

lado de dentro da loja, vendedores rezavam pedin do a Deus <strong>para</strong> que<br />

tudo acabasse o mais rápido possível, pois a tempestade dos desesperados<br />

estava perto de desabar a qualquer momento.<br />

A hora ia se aproximando: 5:00 horas, 5:30 horas. Todos, a postos e<br />

em pé, começam a se pre<strong>para</strong>r <strong>para</strong> a ação. Às 5:45 horas, os concorrentes/compradores<br />

começam a tirar suas roupas, em se guida entregam<br />

suas vestimentas e pertences aos funcionários/po liciais da empresa<br />

ou aos parentes e amigos acompanhantes, pois, como foi anunciado,<br />

todos fariam suas compras despidos. Os ami gos, caso tiv<strong>esse</strong>m, tomariam<br />

conta das roupas e, posteriormente, serviriam de guardas <strong>para</strong> as<br />

compras efetuadas.<br />

5:48 horas. Centenas de compradores nus, debaixo da chuva, começam<br />

a esquentar as pernas e as mãos na esperança de conse guirem<br />

agarrar mais objetos no menor tempo possível.<br />

6:00 horas. Finalmente a hora chega: o relógio da matriz, hoje pouco<br />

frequentada, bate demoradamente às 6 horas d<strong>esse</strong> domin go triste.<br />

Toca a sirene estridente, carregada de energia potencial, que liberará,<br />

em seguida, nos corpos ainda frios, uma imensa quan tidade de energia<br />

cinética e calórica.<br />

É dada a partida! Começa a competição desenfreada: homens e<br />

mulheres nus expõem, uns <strong>para</strong> os outros, suas marcas corporais até<br />

então bem escondidas. Hoje tudo será exposto à visitação do grande<br />

público: gorduras caídas, seios e bundas murchas, cicatri zes, tatuagens,<br />

manchas escuras, vermelhas e purulentas, espinhas, verrugas, rachas<br />

e pintos murchos, tristes e desnecessários e sem fun ção no momento,<br />

pêlos escuros, lisos e eriçados, louros, pretos, pin tados, descoloridos e<br />

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ancos, em profusão. Tudo irreconhecível.<br />

Como cavalos e éguas livres dos cabrestos, rinchando, ho mens e<br />

mulheres ofegantes movem-se em dis<strong>para</strong>da em direção ao cocho<br />

onde estão expostos os alimentos cobiçados. Mantendo os olhos fixos<br />

e esbugalhados, as mãos duras e esticadas em dire ção às prateleiras,<br />

cada comprador saboreia, virtualmente, antes de agarrá-la, a mercadoria<br />

sedutora à mostra.<br />

Na arena da imensa loja, aterrorizados e enfurecidos, imagi nando<br />

não conseguir alcançar a ração sonhada, animais aflitos dis putam a carne<br />

ainda possível de ser abocanhada. Trava-se uma luta feroz. Corpos<br />

tensos e agitados correm velozmente de um lado a outro, avançam,<br />

recuam, caem, trombam e esfregam-se uns contra os outros, deixando<br />

um rastro de suas sobras. Um odor fétido e asfixiante se desprende<br />

de suas peles cobertas de suor. De suas bo cas semiabertas escorrem<br />

salivas grossas e espumosas sem tempo de serem engolidas. De suas<br />

bexigas, contraídas pelo desespero, pingam gotas de urina exalando<br />

seu cheiro peculiar. De seus ânus relaxados pela incomensurável apreensão,<br />

escorrem fezes semilí quidas e nojentas.<br />

Entretanto, lá dentro, naquele momento, n<strong>esse</strong> campo de luta pela<br />

sobrevivência, sem asco e sem atração, bumbuns desco nhecidos,<br />

soltos, moles, que não seduzem e nem agridem, encos tam-se e afastam-se<br />

indiferentes, presos aos seus donos na busca pela sonhada e<br />

sedutora tigela amarela, da espreguiçadeira <strong>para</strong> ver a vida rolar, ou da<br />

garrafa térmica colorida agarrada pelo sor tudo mais rápido.<br />

Fortunato uiva ao segurar com suas mãos vigorosas um fer ro em<br />

bom estado. Felicidade berra hilariante diante da posse da panela, que<br />

sobrou na prateleira quase vazia. Prendendo a relíquia junto ao corpo,<br />

ela corre, triunfante, <strong>para</strong> mostrá-la ao marido. Um homem magro, de<br />

peito escavado, avança sobre Felicidade e puxa a panela presa entre os<br />

seios.<br />

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Os dois rolam pelo chão lutando pela posse do troféu. For tunato,<br />

alertado pelos gemidos conhecidos, ao tentar salvar a pa nela de Felicidade,<br />

abandona, por instantes, seu precioso ferro, correndo em auxílio<br />

à mulher. Eufórico e agitado ao reconquistar a panela perdida, ele larga<br />

Felicidade ferida no chão. O ferro de Fortunato, solto de suas mãos,<br />

foi seguro rapidamente por uma mulher sardenta e magra, que foge<br />

correndo com ele escondido entre as coxas gordas e brancas. Fortunato<br />

avança como louco so bre a mulher que abocanhara seu ferro,<br />

derrubando-a e ferindo-a no nariz. Levanta-se abraçando o ferro em<br />

uma das mãos e a panela na outra, segurando-os contra o peito nu.<br />

Tenta, esquecendo que não está vestido, escondê-los das outras feras<br />

predadoras que dese jam apoderar-se do seu alimento. Felicidade consegue,<br />

após alguns segundos, levantar-se. De sua boca ferida escorre<br />

um sangue ralo, misturado à saliva que é cuspida no chão imundo. Ela<br />

olha com pe sar <strong>para</strong> as prateleiras quase vazias. As mercadorias mágicas<br />

estão chegando ao fim.<br />

Empurrados de todos os lados, alguns caem e uivam, não por terem<br />

sido jogados ao chão, mas sim porque a queda atrasou em alguns<br />

segundos a ida ao alvo sonhado. Pisoteados, blasfemando, Felicidade e<br />

Fortunato olham desolados <strong>para</strong> o sonhado conjunto de pratos fundos<br />

avermelhados quando <strong>esse</strong> é pego por um homem alto de ombros<br />

largos, bem em frente dos olhos espantados do ca sal, conjunto <strong>esse</strong> no<br />

qual almoçariam junto à família no domingo de páscoa.<br />

Fortunato soluça, seus olhos, encobertos pelos óculos verme lhos<br />

que pegara num cesto quase vazio, lacrimejam. Um inimigo en furecido<br />

abraça Fortunato por trás, dando-lhe uma “gravata”, numa tentativa de<br />

apoderar-se do seu ferro. Jogado ao chão, e depois pi soteado, Fortunato<br />

vê seus óculos vermelhos se espatifarem, óculos que iriam substituir<br />

sua visão do mundo no próximo verão.<br />

O estoque chega ao fim. Termina a liquidação. Agora só resta entrar<br />

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na fila <strong>para</strong> procurar os guardas que tomaram conta das rou pas, dos<br />

cartões de crédito e de cheques <strong>para</strong> fazer o pagamento.<br />

As filas começam a se formar. Termina a festa com os uivos de alguns<br />

que ainda rolam no chão agarrados a restos de papelões rasgados,<br />

manchados de urina, fezes e sangue, mesas, cadeiras e peças quebradas,<br />

copos, xícaras, tigelas, rádios, fios de cabelos e cabeleiras pisoteadas.<br />

Entretanto, apesar de tudo, a multidão sai da loja esperanço sa, alegre<br />

e animada. Segundo os anúncios estampados com letras enormes<br />

nas paredes, no próximo ano haverá outra liquidação, maior ainda do<br />

que a agora terminada e, na entressafra, a massa atenta detectará e<br />

consumirá rapidamente todo e qualquer novo produto lançado. Alguns,<br />

na fila, comentam eufóricos os novos medicamentos lançados,<br />

imaginando usá-los logo, antes que desa pareçam do mercado ao<br />

mostrar sua ineficácia. Uma vez vestidos, cantarolando, segurando com<br />

firmeza o ferro e a panela, Fortunato e Felicidade, unidos, caminham<br />

felizes sob a chuva miúda, satisfei tos pelo dever cumprido.<br />

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Metamorfose<br />

Final de férias. Começo de aulas. Naquela manhã, ao abrir os olhos,<br />

percebi que meu corpo se transformara. Ao passar as mãos pelo meu<br />

rosto, notei que este, bem como minhas pernas e braços, estavam diferentes.<br />

Até meus órgãos sexuais não eram mais os que estava acostumada<br />

a ver e tocar. Em pânico, sem rumo, a princípio procurei não mais<br />

me examinar; tinha medo de descobrir coisas piores. Entretanto, a<br />

curiosidade foi mais forte e, medrosamente, comecei a olhar e a pegar<br />

nos novos tecidos que cobriam meu or ganismo. Tragicamente, concluí<br />

que meu corpo não era mais o da menina de treze anos que conhecia.<br />

A cabeça pesava. Cambaleando fui até o banheiro, ainda não me<br />

despertara completamente. Apesar do sofrimento que antevia, senti<br />

uma atração pelo espelho. Era preciso examinar-me melhor, mais uma<br />

vez. Quase desmaiando, abri a torneira da pia, apanhei uma porção de<br />

água fria e molhei, demoradamente, meu rosto es pantado. Desejava<br />

ficar livre, o mais depressa possível, d<strong>esse</strong> pesa delo. Diante do lavabo,<br />

ainda sem olhar <strong>para</strong> o espelho, eu pergun tava-me: “Como seria vista<br />

pelos outros?” Sempre de cabeça baixa, olhei fixamente <strong>para</strong> a água<br />

que escorria devagar. Sabia que prote lava, até onde podia, a revelação<br />

final. Mas, o que fazer? Não sabia, minha mente jamais trabalhara com<br />

um problema como <strong>esse</strong>.<br />

Tentava não fixar meus olhos no velho e conhecido espelho. Ele, até<br />

aquela data, sempre fora calmo e honesto. Ali quieto, de pendurado<br />

na parede, ele observava-me de longe, pronto, e talvez até desejando<br />

revelar-me a verdade.<br />

Era ele que todas as manhãs examinava-me minuciosamen te com<br />

seu olhar crítico, justo e severo, às vezes, bondoso. Ja mais evitou dialogar<br />

comigo inventando desculpas, como, por exemplo, dizendo que<br />

estava ocupado com outra pessoa, ou sem tempo <strong>para</strong> mim. Ele sem-<br />

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pre estava à minha disposição, bastava aproximar-me dele.<br />

Era d<strong>esse</strong> espelho amigo que eu recebia os mais diversos pa receres:<br />

“Hoje você dormiu demais, não devia ter ficado até tarde vendo aquele<br />

filme”, “Você está ótima”, “Que cara mais esquisita. Está com raiva?”<br />

O espelho dava-me conselhos, alguns agradáveis, outros alarmantes:<br />

“Está comendo demais, ficará gorda como uma elefanta.” Eu ficava<br />

radiante quando ele, sorrindo, dizia-me: “Você hoje está linda! Este<br />

penteado fica muito bem em você, conquista rá todos os colegas.”<br />

Mas ele dava-me outras mensagens, além das críticas e elogios, dava-<br />

-me apoio. Algumas vezes ele ficava penali zado com meu sofrimento:<br />

“Estou com dó de você, mas nada posso fazer, é preciso acordar, pois já<br />

está na hora de ir <strong>para</strong> a escola.”<br />

Após rodeá-lo por alguns momentos, decidi examinar-me no espelho<br />

pois, apesar do medo, eu confiava nele, ele era honesto. Queria acabar<br />

com a dúvida, receber um diagnóstico final através daquela entrevista,<br />

que acontecia todas as manhãs. Além disso, es tava curiosa <strong>para</strong> ver sua<br />

reação diante do meu corpo. Pensando assim, levantei minha cabeça<br />

e olhei, corajosamente, <strong>para</strong> o espe lho. Mas, logo em seguida, estava<br />

arrependida do que havia feito. Vi, <strong>para</strong> minha tristeza, do outro lado<br />

da parede, o que não queria ver: meu organismo transformado. Eu era<br />

outra pessoa mesmo, não havia mais engano, não estava mais dormindo.<br />

O meu amigo espelho, mais sério do que de costume, apesar de<br />

manter sua pru dência e serenidade, ficou confuso. Deu-me a impressão<br />

de ter fica do desapontado por não ter encontrado e dialogado com<br />

a pessoa esperada. Logo após olhar-me, emudeceu. Também, não era<br />

<strong>para</strong> menos, esperava conversar e emitir um parecer <strong>para</strong> uma pessoa,<br />

não <strong>para</strong> aquela desconhecida. Engasgado, meu avaliador não conseguiu<br />

dar-me nem mesmo o seu habitual bom dia.<br />

Irritada com <strong>esse</strong> comportamento, pisei duro no chão e saí dali zangada.<br />

Antes, fechei a cara e fiz caretas, as mais feias que co nhecia. Ele,<br />

por sua vez, demonstrando ódio, devido aos meus mo dos grosseiros,<br />

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fez o mesmo: franziu o cenho, fez caretas tão feias como as que havia<br />

feito e pisou duro no chão. Ele comportou-se de um modo que jamais<br />

tinha presenciado. Por instantes, abandonan do a costumeira neutralidade,<br />

ele olhou-me com desdém. Dei-lhe as costas, dizendo palavrões.<br />

Será que ele me estranhou?<br />

O que vi no espelho, agindo como um jato de água fria, der ruboume.<br />

Agora não mais podia negar a metamorfose: fui transfor mada,<br />

durante a noite, numa outra pessoa, um ser estranho <strong>para</strong> mim mesma.<br />

Acordei com um corpo e um raciocínio diferente do que possuía.<br />

Bem que eu andava desconfiada de certos fatos, de algumas conversas<br />

que ouvira, de olhares que, infelizmente, ape sar de ter suposto, não<br />

decifrei, de enigmas e códigos escondidos. Como fui idiota!<br />

Desajeitada no meu novo organismo, tentando entender a transformação<br />

e acostumar-me com ela, decidi, após vestir roupas emprestadas<br />

às escondidas, pertencentes ao meu irmão, sair rapi damente de<br />

casa. Não queria que ninguém me visse daquele modo. Todos ainda<br />

dormiam.<br />

Sem rumo, caminhei em direção ao colégio, era lá o meu des tino<br />

todas as manhãs, portanto devia ser também o daquele maldi to dia.<br />

Andei devagar pelas ruas, atrasava minha chegada proposi tadamente,<br />

mas acabei lá. Diante da porta de entrada esperei um pouco, escondida<br />

atrás de uma árvore. Só entrei no velho prédio, quando tocou a sineta.<br />

Do mesmo modo que notava que meu corpo estava trans formado,<br />

percebia que também minha mente estava possuída por uma nova<br />

compreensão, por novos fundamentos lógicos acerca do mundo e de<br />

mim mesma. A nova mente produzia imagens es quisitas, concluía de<br />

modo não usual. Além disso, não planejava e organizava os pensamentos<br />

de forma objetiva e produtiva, mas, ao contrário, as imagens apareciam<br />

desorganizadas, umas eram liga das às outras sem que existissem<br />

elos ou razão <strong>para</strong> isso.<br />

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Elas fundiam-se de um modo incompreensível. Entrei na es cola usando<br />

<strong>esse</strong>s novos óculos, <strong>para</strong> observar, entender e inter pretar as coisas,<br />

as pessoas e os fatos.<br />

A escola não era a mesma. Vi fisionomias coloridas, alvas e cinzentas,<br />

todas tinham as faces congeladas, não havia contrações, nem gestos,<br />

pareciam estátuas. Continuei minha marcha sonâmbula, como nuvens<br />

levadas por ventos calmos. Eu penetrava, com leveza e delicadamente,<br />

nos poros dos colegas enfileirados, um ao lado do outro. O que desejava?<br />

Não sabia. Vi alguns rostos esculpidos em me lancias, eles fitavam-<br />

-me. Estariam debochando da minha imagem?<br />

Memórias de ontem, de como era, invadiam minha mente, com<strong>para</strong>va-me…<br />

não compreendia… tinha saudades. Perdida, solu çava diante<br />

d<strong>esse</strong> mundo confuso. Continuei minha caminhada, no vos grupos.<br />

Num, os participantes olhavam-se, noutro eles emitiam sons que não<br />

compreendia: “Seria uma outra língua?”, perguntava-me sem resposta.<br />

Alguns comentavam experiências passadas, mas sem nada falar, outros<br />

estavam nus, tinham uma face triste, alguns riam, por nada. Chamou-<br />

-me a atenção uma moça alta e gorda, que olhava <strong>para</strong> cima, de boca<br />

aberta, parecia que ia engolir alguma coisa. Ao seu lado, agarrado a ela<br />

pela blusa, um rapaz seguia uma abelha perdida.<br />

Automaticamente, andava sem sair do lugar, estava presa à metamorfose,<br />

não mais conseguia retornar ao passado. Minhas per nas não<br />

me obedeciam, minha mente não mais sabia dar ordens <strong>para</strong> o novo<br />

corpo. Pensava em sumir, acabar com tudo <strong>aqui</strong>lo, com o pesadelo.<br />

De repente, minhas pernas moveram-se sem que eu desejasse e fui<br />

levada em direção à sala de aula. Atrav<strong>esse</strong>i um comprido corredor<br />

iluminado por lâmpadas amarelo-avermelhadas, presas na parte mais<br />

alta do teto. O corredor estreito, rodeado de grades altas, pintadas de<br />

cinza e roxo, não tinha fim. De cada lado, mais e mais alunos, centenas,<br />

milhares deles. Em certos momentos, todos pareciam iguais, em<br />

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outros, transformavam-se. Eles olhavam-me e examinavam-me. A face<br />

de alguns era achatada, muitos não tinham olhos, mas, mesmo assim,<br />

seguiam-me os passos.<br />

Suando frio, com o coração apertado, fui lançada numa sala. Esta,<br />

como tudo ali, também mudava de forma, tamanho e cor, à medida<br />

que eu olhava. Num certo momento, surgiu do escuro uma cadeira<br />

– parecia sorrir <strong>para</strong> mim – era a mesma onde assentei-me durante<br />

o ano passado. Foi nela que gravei meu nome antigo, num cantinho,<br />

bem escondido. Aos poucos, o nome, desenhado com tinta dourada,<br />

foi aparecendo, letra por letra e tornou-se mais visí vel no encosto da<br />

cadeira.<br />

Fiquei sem saber se devia ou não assentar-me nessa cadeira marcada.<br />

Em dúvida, caminhei em direção a um canto escuro, no fundo<br />

da sala, imaginando esconder-me. Esperei tensa o início, não sabia de<br />

quê. Eu refletia: “Que pena hoje ser hoje, como foi bom ontem, quando<br />

me conhecia melhor… tudo era mais fácil, eu sabia o que fazer. Ou<br />

apenas achava que sabia?”<br />

Escondida no canto observava os que entravam. Aos poucos a sala<br />

ficou cheia. Examinava as fisionomias, todas indiferentes diante daquele<br />

ambiente que eu percebia anuviado e deformado. Com<strong>para</strong>va-me<br />

com eles. Eu era uma caloura naquele mundo estra nho. Assentei-me<br />

com medo.<br />

O professor, que entrara, retornou à secretaria, pois esquecera o<br />

diário com os nomes dos alunos. Um alívio temporário. Pr<strong>esse</strong>ntia que<br />

d<strong>aqui</strong> a pouco seria descoberta. Alguns alunos se levantaram após<br />

a saída do professor: abraços, gargalhadas, saudações, brinca deiras,<br />

gritos, conversas na sala apertada. Três deles, sem que sou b<strong>esse</strong> o motivo,<br />

caminharam em minha direção. Novo desespero! E agora? Mas,<br />

ao contrário do que imaginara, eles aproximaram-se e trataram-me<br />

com toda naturalidade e amabilidade possível, como qualquer colega<br />

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masculino. Por que não notaram? Afinal, quem eu era <strong>para</strong> eles, um<br />

homem ou uma mulher? E <strong>para</strong> mim?<br />

A sala de aula estava abafada e quente. Permaneci como se es tiv<strong>esse</strong><br />

amarrada à cadeira. Suava, estremecia diante de cada olhar, de cada<br />

movimento. Tampei parte do meu rosto com as mãos, numa tentativa<br />

tola de esconder minha nova identidade, esforçava-me <strong>para</strong> mostrar<br />

supostos resíduos da menina que abandonara-me. Entretanto, criticava-me,<br />

pois sabia que os sinais identificadores da adolescente de treze<br />

anos não mais existiam. Por sorte, os colegas não com<strong>para</strong>ram meu<br />

organismo atual com o antigo. Eles perce biam somente o presente,<br />

assim olharam-me como se tudo sempre tiv<strong>esse</strong> sido d<strong>esse</strong> modo. No<br />

burburinho formado, aproximaram-se mais colegas, alguns deles velhos<br />

conhecidos. Estremeci! Agora irão perceber meus cabelos curtos,<br />

meu buço que começava a apa recer, minha voz, ora grossa, ora aguda<br />

e irritante, minhas novas roupas e um modo masculino de falar, andar<br />

e comportar-se.<br />

— Que pena! Disse-me um dos colegas, olhando-me, enquan to<br />

procurava um lugar <strong>para</strong> assentar-se perto de mim. E continuou – são<br />

poucos os rapazes… <strong>esse</strong> ano não teremos um bom time de futebol.<br />

Sem saber o que falar e receosa da voz que sairia, fingi concordar:<br />

— Hum, hum.<br />

Eu nunca gostei de futebol, deve ser péssimo levar pontapés e<br />

tombos. Que tolice. Desejava sumir dali, escapar daquela prisão o mais<br />

depressa possível, abandonar este eu que apossou-se de mim, e retornar<br />

ao mundo antigo, com suas regras e padrões que conhe cia bem. O<br />

eu anterior sabia agir, fazer ou não fazer o que devia, o que era certo e<br />

o que era errado. N<strong>esse</strong> organismo, aprisionada pelo ser estranho que<br />

dominava-me, não mais sabia comportar-me. Assim, perguntava-me:<br />

“Devia ou não olhar <strong>para</strong> minhas colegas como antes? Devia namorá-<br />

-las? E diante dos meninos? Nova con fusão: “O que fazer? Como antes?<br />

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Perdi a bússola original, estava perdida.<br />

Fui treinada, e muito, <strong>para</strong> conquistar rapazes. Sabia com mi núcias<br />

todas as técnicas, os diversos truques capazes de transformar um<br />

jovem esperto num bobo. Bastava um certo olhar, um sorriso especial,<br />

o uso de um certo tom de voz… Agora, com tristeza, vejo que <strong>esse</strong>s<br />

ensinamentos não me servem. O que faço com o antigo modo de pensar?<br />

Jogo-o fora? Terei que aprender tudo de novo? A todo instante era<br />

forçada a enfrentar nova situação, <strong>para</strong> a qual não tinha conhecimento<br />

ou treino. Que azar! Porcaria! Oh meu Deus todo poderoso, ajude-me a<br />

encontrar uma saída!<br />

Repentinamente, deparo-me com mais um problema terrível. Notei<br />

que uma menina começou a observar-me, a princípio, discre tamente.<br />

Por sinal ela era dengosa e engraçadinha, de bom tama nho, simpática.<br />

Aos poucos descobri que ela queria conquistar-me. “E agora, o que<br />

fazer?” perguntava-me. Que horror! Namorar uma mulher? Ela foi se<br />

aproximando, mais e mais… fingia nada querer, como distraída. Começou<br />

a conversa num tom de voz suave e meló dico. Confesso que eu<br />

estava envergonhada, pois sentia-me atraída pela sua maneira de falar.<br />

Ela me cativava com seu jeito.<br />

Confusa com a cena, intranquila, descobri que ela fazia uso, <strong>para</strong><br />

encenar e representar a conquista, dos mesmos gestos, da mes ma<br />

técnica que eu empregava em situações semelhantes. Por outro lado,<br />

estava claro como água: ela procurava atrair-me. Perguntou-me, com<br />

voz adocicada, onde morava, onde estudei antes… Era o papo introdutório<br />

<strong>para</strong> poder ir mais longe: marcar um encontro, fazer um elogio e<br />

tudo mais. Diante de suas intenções cristalinas, sufocada, sem saber o<br />

que fazer, comecei a gaguejar, às vezes fingia não entender o que dizia,<br />

tentava ganhar tempo. Ela, insistente, sabia o que queria… Olhava-me<br />

com ternura, como sempre fiz. Foi se aproximando, segura de suas pretensões.<br />

Eu não visualizava ne nhuma saída, seria um escândalo o que<br />

estava prestes a acontecer. Que vergonha!<br />

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Alarmada, desejando interromper de qualquer forma aquele jogo<br />

amoroso que se iniciara, imaginei, como último recurso, des maiar, na<br />

impossibilidade de matar-me, como desejava. A cada ins tante ficava<br />

mais sobressaltada. Suava frio e, <strong>para</strong> não cair, agarrei com firmeza os<br />

braços da cadeira, coloquei meus pés no chão. Na quele momento estava<br />

hipnotizada pelo rosto que habitava aquele corpo, pelo olhar que<br />

fitava-me naquela manhã sem igual.<br />

Num certo momento, quando ela girou o rosto <strong>para</strong> olhar-me mais<br />

de perto, quase encostando o dela no meu, sua face foi ilumi nada por<br />

um facho de luz, uma luminosidade ainda fria do sol da manhã que<br />

entrara pela janela da sala. Fui tomada por uma terrível confusão,<br />

assustada com o que deparei: vi, de maneira muito níti da, o próprio<br />

fantasma ou alma, isso eu não sei.<br />

Acontece que ela, ao atravessar a luz do sol, mostrou com ni tidez<br />

seu rosto e seu próprio corpo que emergiram do escuro: sua pele era<br />

branca e pálida, salpicada por pequenas sardas. As pistas afloraram<br />

com exatidão, era um rosto, um olhar, um modo de agir que conhecia<br />

muito bem, bem até demais… era o corpo e a manei ra de ser que eu<br />

havia perdido naquela manhã.<br />

Apavorada, pedi, mais uma vez, a ajuda divina. Sentia ener gias<br />

desconhecidas e poderosas saindo de um e de outro corpo, trocas<br />

de fluidos, encontros, misturas, construção de um só indi víduo. Essa<br />

garota calma, que caminhava em minha direção, mei ga, serena, quase<br />

angelical, que dispersava-se no ar e penetrava no meu organismo<br />

transfigurado, era, nada mais nada menos, do que eu mesma antes da<br />

metamorfose. Era minha imagem especular do dia anterior, talvez o<br />

que restou de mim, da que conhecia. Ela era meu eu antigo. Apavorada,<br />

gritei, gritei o mais que pude, ali mes mo na sala de aula, em busca<br />

do socorro. Estava completamente transtornada…<br />

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Acredito que mesmo desmaiada, não sei por quanto tempo, fiquei<br />

gritando por ajuda. Quando abri os olhos, ainda gesticula va. Diante de<br />

mim, nervosos, estavam meus pais debruçados sobre meu leito, segurando-me,<br />

espantados. Minha mãe, aproveitando uma breve interrupção<br />

da respiração, quando procurei mais ar <strong>para</strong> dar um novo grito,<br />

berrou nos meus ouvidos:<br />

— Acorda, Sônia! Acorda! O que foi, minha filha? O que está acontecendo?<br />

Eu sonhara… Nunca imaginei que fosse tão difícil virar outra pessoa,<br />

adquirir uma outra identidade, pior ainda, ser uma pessoa de outro<br />

sexo. Como é difícil. Ainda bem que tudo terminou!<br />

Era domingo. Não precisava levantar-me às seis horas da ma nhã.<br />

Além disso, as férias estavam apenas começando. Um lindo céu azul,<br />

de um azul claro e acolhedor, invadia alegremente meu quarto de menina,<br />

iluminando minha mente e desejando-me bom dia e boas férias.<br />

Eu permanecia sendo a mesma. Como fiquei feliz! Corri ao espelho<br />

<strong>para</strong> dar a ele a boa notícia. Ele e eu sorrimos ao mesmo tempo. Estávamos<br />

aliviados.<br />

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Fanfarra <strong>para</strong> um Homem Comum<br />

Na manhã daquele feriado vazio, ao ler as propagandas anun ciando<br />

a fantástica liquidação, os olhos do adorador de produtos brilharam<br />

diante das belas e coloridas imagens. Agindo como mãos protetoras<br />

e estimulantes, ícones potencialmente maravilhosos socor reram o<br />

desvalido consumidor, transportando-o <strong>para</strong> o porto amigo, seguro<br />

e conhecido. Reanimado após desvencilhar-se do tédio das manhãs<br />

sem trabalho, ele assimilou energias novas <strong>para</strong> suportar sua vida sem<br />

importância.<br />

A injeção mágica, aplicada à distância pelo executivo ou dono, introduziu<br />

no organismo plástico e débil significados importantes. Animado,<br />

realizadas as anotações necessárias, o consumidor telefo nou <strong>para</strong> os<br />

mais chegados, relatando as vantagens da liquidação, as ofertas imbatíveis<br />

e as compras planejadas. Tudo devia ser feito o mais rápido possível:<br />

eram apenas 500 calcinhas <strong>para</strong> milhares de compradores.<br />

Nem só disso vive o consumidor aflito e bem treinado pelos Pa vlovs,<br />

Skinners e Watsons dos tempos modernos. Ele carrega consigo outros<br />

inter<strong>esse</strong>s, tão importantes como as compras planejadas com entusiasmo.<br />

Uma vez ou outra, sem tirar sua mente das propagandas, como<br />

aperitivo, ele penetra com avidez e a fundo na vida íntima de alguns<br />

de seus deuses preferidos. Devorando cada detalhe, fungando, tendo<br />

os olhos bem abertos, ele esforça-se <strong>para</strong> encontrar, fora de si, um<br />

modelo inspirador <strong>para</strong> sua desvalida vida. Detecta e memori za, com<br />

um imenso entusiasmo – que não tem <strong>para</strong> si mesmo – cada atributo<br />

insignificante da vida do ídolo que possa lhe servir de guia. Ludibriado,<br />

aplaude o poder e o exibicionismo distante de seus pro prietários, donos<br />

disfarçados de amigos. Ele sonha em participar de uma realidade<br />

distante que jamais encontrará.<br />

Condicionado de modo eficaz pelos adestradores, como cobaia<br />

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mansa, domesticada e resignada, pateticamente come gato por le bre,<br />

imaginando poder se transformar no inacessível modelo jovem, bonito<br />

e elegante, usando a loção <strong>para</strong> a barba anunciada, lavando o rosto<br />

manchado de cimento e ferrugem com o sabonete cheiroso propagado.<br />

Treinado e educado <strong>para</strong> jamais criticar os poderosos, chefes, ídolos<br />

e santos, e também sendo proibido de ter consciência do seu estado<br />

desprezível, <strong>esse</strong> ser humano infeliz, possivelmente foi contido muito<br />

cedo e reprimido por um pai ou uma mãe nervosa e mandona, que<br />

instituiu um modelo de obediência total, sem questionamentos e sem<br />

críticas. Essa potente marca, imprimida precocemente, dominou o<br />

frágil cérebro do nosso amigo <strong>para</strong> o resto da vida.<br />

Hoje seus pais estão muito longe, entretanto, seus rígidos prin cípios<br />

e os sinais indeléveis continuam ordenando com precisão ao filho<br />

obediente o modo de agir frente a outros adultos com poderes supostamente<br />

semelhantes aos possuídos pelos seus antigos proprie tários.<br />

Obedecer, obedecer sem saber o porquê, esta foi a regra fixa da. Submisso,<br />

sai à procura de chefes, políticos, colegas, namoradas, sogras,<br />

ídolos do futebol, amantes ocasionais, companheiros da con dução,<br />

padres e pastores, vizinhos e colegas de trabalho, analistas e cartomantes:<br />

qualquer um serve de inspiração <strong>para</strong> lhe dar conselhos acerca do<br />

que fazer, em qualquer área, em qualquer ocasião. Quando escapa dessas<br />

ligações, sobrando-lhe algum tempinho, <strong>esse</strong> indivíduo diverte-se<br />

no salão de dança, na festinha familiar, no “shopping”, no casamento<br />

do sobrinho, conforme determina a lei do cidadão bem comportado e<br />

ordeiro. “Coitado: ele não sabe o que faz”.<br />

Bem domesticado pelo meio ambiente cultural, semelhante à “casa<br />

dos pais”, controlado e gratificado por todos os lados na apren dizagem<br />

estímulo-resposta e pelos malabaristas dos símbolos – grita rias, mulheres<br />

e homens jovens e bonitos, frases e mais frases – ele permanece<br />

iludido e puro, trabalhando muito e recebendo pouco, em troca de sor-<br />

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isos e de frases enganadoras, com intenções, quase sempre, opostas<br />

às expressadas.<br />

A técnica maldita alastrou-se como gripe asiática: fez o cão sali var<br />

diante da sirene, confundindo-a com o bife de carne de primeira.<br />

A prática perniciosa da venda da burla e ilusão ultrapassou as inocentes<br />

propagandas de calcinhas, cremes dentais e cerveja. A “propaganda<br />

enganosa” invadiu abertamente boa parte da assistência<br />

mé dica e odontológica – tratamentos espetaculares e caros – alastrou-<br />

-se como fogo na palha, alcançando as igrejas com suas pregações<br />

acer ca das salvações milagrosas, representações teatrais, obediência<br />

total e dízimos. Germinou com rapidez, dominando praticamente toda<br />

a propaganda política e o esporte. Vivemos no mundo da trapaça, vale<br />

mais o que simula melhor ser o que não é. Estamos todos presos, cada<br />

vez mais afastados do mundo real, talvez, definitivamente perdidos,<br />

nessa atmosfera fantástica da propaganda, da venda de ilusões e do<br />

virtual. Sem terreno firme <strong>para</strong> pisarmos, estamos sem “lenço e sem<br />

documentos”, atolados no palavrório enganador.<br />

Por falta de ensino e experiência, o azarado não aprendeu a distinguir<br />

os símbolos (sons e letras) do concreto (da linguiça), pois ainda<br />

não se encontram à venda processadores mentais sofisticados, vendidos<br />

em 24 suaves prestações, capazes de traduzir os símbolos em<br />

coisas e eventos concretos, transformar o mapa em território. Coi tado:<br />

satisfeito, continuará engolindo os sons e discursos dos outros, ou melhor,<br />

seus dejetos, em lugar de vomitá-los, convencido de es tar devorando<br />

canjiquinha, costelinha de porco, feijão, batatas fritas, queijo e<br />

couve mineira.<br />

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A Fabricação do Homem<br />

Fora-de-série<br />

Nossa cultura tem poucas fórmulas <strong>para</strong> usar como receitas <strong>para</strong> fabricar<br />

os nossos atuais super-homens: he róis, santos e outros fora-de-<br />

-série. A mente humana, es gotada, interrompeu sua fábrica criativa de<br />

novos padrões capazes de transformar um homem comum num mítico.<br />

Sem outra alternativa, só nos resta aplicarmos o modelo antigo existente<br />

num ou noutro candidato a <strong>esse</strong> posto tão cobiçado. Para que os<br />

candidatos possam se adequar aos modelos e símbolos pré-existentes<br />

dos antigos mitos é pre ciso que eles exibam modos de agir e de pensar<br />

sugerindo figuras míticas conhecidas. Quais seriam as características<br />

necessárias <strong>para</strong> que um indivíduo, até certa época igual a todos os outros<br />

homens, passe a ser percebido, observado e finalmente rotulado<br />

de gênio, herói ou santo?<br />

Sabemos que o fantástico sempre esteve presente na vida do candidato<br />

a mito. O incrível dominou a vida dos santos, do nascimento à<br />

morte, seu azar e ao mesmo tem po sua capacidade imensa de suportar<br />

provações terríveis sem abandonar seus objetivos. Ouvimos inúmeras<br />

histó rias acerca dos cavaleiros que realizaram façanhas sobre-humanas<br />

na política, religião, esporte, proezas jamais rea lizadas por nós, pobres<br />

mortais de segunda classe.<br />

Um outro fator necessário à fabricação do mito tem sido seu nascimento<br />

e sua morte diferentes da dos outros homens.<br />

Histórias incríveis têm sido contadas <strong>para</strong> descrever o nascimento<br />

da figura mítica, enquanto outros relatos asso ciam a morte do mito às<br />

grandes catástrofes.<br />

Uma associação da morte do herói com as desgraças sociais leva a<br />

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população a imaginar uma ligação de causa lidade entre os dois fatos.<br />

Na mente de seus adoradores, a morte do herói passa a ser “causa”<br />

dos sofrimentos do povo, gerando o raciocínio de que, caso ele estiv<strong>esse</strong><br />

vivo, os acontecimentos tomariam um rumo diferente. “A partir da<br />

morte de minha amada não fui mais o mesmo homem”. Os heróis ou<br />

santos não morrem como nós. As histórias nos mostram que a maioria<br />

dos super-homens teve morte trágica. Não fica bem <strong>para</strong> um ser<br />

excepcional ter uma morte devida a um nó nas tripas ou um engasgo<br />

com um naco de carne. A morte desastrosa sempre estimulou a mente<br />

popular, <strong>para</strong> lembrar e venerar mais e mais seu herói predileto por<br />

algum tempo. Os mais velhos recordam alguns de nossos mitos e suas<br />

mortes: João Pessoa, Getú lio Vargas, Juscelino Kubitschek e outros.<br />

O processo de cristalização de personagens míticas não se restringe a<br />

governantes. Como exemplo de mitos não-governantes podemos citar:<br />

Padre Eustáquio e Ayr ton Senna. Mas, além d<strong>esse</strong>s heróis, o molde<br />

mítico pode adaptar-se também a outros tipos, os chamados heróis-<br />

-marginais ou vilões populares: Robin Hood, Escadinha, Mariel Mariscot,<br />

Fernandinho Beira-Mar, Lúcio Flávio, Hus sein, Bush e outros.<br />

A sabedoria também é um fator importante na feitura do mito. Não<br />

se pode conceber um santo ou um herói burro. Um Ulisses da Odisséia,<br />

ou o Guimarães, Einstein, Churchill ou Lenine, foram considerados,<br />

todos, muito inteligentes. Incorporado à sabedoria, o homem-mito necessita<br />

ser sa gaz e esperto, além de possuir a bravura e audácia, como<br />

tem sido descrita pelos admiradores de Hitler e Stalin.<br />

Precisa ainda ter uma força extraordinária, como Hér cules, Atlas, e<br />

também, se possível, poderes imensos que possibilitam ligações com<br />

outros deuses excepcionais, ou mesmo sobrenaturais: Lao-Tsé, Buda,<br />

Confúcio e Maomé, entre outros.<br />

Alguns homens que foram transformados em mitos assimilaram, ao<br />

mesmo tempo, diversos estereótipos míti cos, eles se encaixaram entre<br />

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os “plurimitos” ou “supermi tos”. Esses felizardos, inicialmente, tiveram<br />

um nascimen to fantástico, depois, uma sabedoria superior ao homem<br />

comum, além disso, possuíam a esperteza dos fora-de-série e ligações<br />

poderosas com forças do bem ou do mal. Tinham ainda, <strong>para</strong> esnobar,<br />

uma força física extraordi nária e feitos impossíveis <strong>para</strong> os normais.<br />

Um exemplo d<strong>esse</strong> supermito é o de Ulisses, o da Odisséia de Homero,<br />

retratado há mais de 2.000 anos. Este mito encarna as pe ripécias<br />

sensacionais de um herói capaz de causar inveja a qualquer candidato<br />

a aprendiz de semideus ou de deus.<br />

Lamentavelmente, muitos supermitos e mitos, da mesma forma<br />

que se tornaram homens percebidos como superiores, rapidamente<br />

se transformaram em antimitos. O povo, ora elege um homem a santo<br />

ou guerreiro, ora o destrói, tão rapidamente como o construiu. O mito<br />

anterior torna-se um covarde, demônio ou idiota. A história nos mostra<br />

como a ascensão de diversos ídolos mundiais teve uma duração<br />

efêmera: Hitler, Stalin, Mussolini, Getúlio Vargas e Collor são alguns<br />

exemplos. Muitos – nem todos – anos depois de atingirem o status de<br />

mitos, passaram a ter dores de barriga, câncer, doença de Alzheimer,<br />

adoeceram e morreram, confusos, esqueléticos, fracos e submissos,<br />

como possivelmente acontecerá a todos nós.<br />

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Um Lugar ao Sol<br />

O nascimento, o crescimento e a divulgação de al guns novos termos<br />

que são lançados no mercado da fala diária, muitas vezes se espalham<br />

ao sabor do vento: “Com certeza”, “Virgem Maria”, “Bumbum”, “Aí”,<br />

“Nossa!”, “Na verdade”, “De repente”, “Quer dizer”, “Né”, são apenas<br />

al guns exemplos. Uma grande parte dessas expressões de notam exclamações,<br />

emoções, outras são apenas ruídos inofensivos sem utilidade<br />

informativa.<br />

Do mesmo modo, de tempos em tempos todos nós anotamos em<br />

nossa memória, no computador ou agen das, novos nomes e endereços<br />

de um e outro indivíduo que, temporariamente, foi batizado como “excelente<br />

me cânico”, “grande conquistador”, “canalha”, “ótimo médico”,<br />

“craque”, “língua ferina”, “perigoso bandido”, “próspero fazendeiro”,<br />

“comerciante esperto”, “linda mulher”. Essas classificações, geralmente,<br />

têm uma vida curta.<br />

Não se conhece bem o processo da produção de novas palavras, bem<br />

como a “descoberta” de características ex cepcionais de determinada<br />

pessoa. Portanto, não sabemos como nasce, nem por que isso acontece<br />

e também a ma neira como o sucesso ou desprestígio do indivíduo<br />

se espa lha nas mentes dos seus admiradores ou críticos ferinos.<br />

Num caso ou noutro, o indivíduo se transforma num exemplar que<br />

será elogiado ou criticado, uma amostra ou modelo que facilitará a<br />

com<strong>para</strong>ção de um indivíduo ao outro, seja semelhante, seja frontalmente<br />

oposto.<br />

Cada um de nós defende e briga em defesa de nossos argumentos:<br />

um afirma ser Edgard o melhor e mais ho nesto mecânico já encontrado<br />

e, ao mesmo tempo, critica mos, emocionados, o profissional defendido<br />

pelo amigo.<br />

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110


Nota-se que certos estereótipos (rótulos, denomina ções ou lugares-<br />

-comuns fixos) encaixam-se bem em torno de um determinado indivíduo,<br />

mas não em outro e, mui tas vezes, <strong>esse</strong> encaixe tem o apoio de<br />

grupos maiores, de uma comunidade, ou até de um país ou de quase<br />

toda a população mundial: “Madre Teresa de Calcutá foi uma santa”,<br />

“Bush é um demônio!”. Soa estranho e mesmo in tolerável <strong>para</strong> nossa<br />

mente pensar ou imaginar o oposto: “Madre Teresa é um demônio”,<br />

“Bush é um santo”. Estas últimas afirmações nos provocam um arrepio,<br />

enquanto as primeiras fluem bem, são facilmente assimiladas, sem<br />

causar o malestar anterior.<br />

Conforme o ambiente sociocultural existente e vigo rando numa<br />

época, certos conceitos e modelos ficam mais fáceis de serem atribuídos<br />

a alguém, classificando o indi víduo de um certo modo e não de<br />

outro. Essas suposições, muitas vezes palpites, podem permitir o desenvolvimento,<br />

crescimento e reprodução das atribuições das pessoas<br />

ro tuladas, ou seja, elas ficam encarceradas nos conceitos emitidos a<br />

respeito delas, tudo dependendo do ninho social onde os conceitos<br />

foram plantados ou lançados. Para que ocorra o crescimento de um<br />

conceito, torna-se necessário que haja “fertilizantes’’ adequados, um<br />

terreno propício, <strong>para</strong> o conceito “pegar” e “decolar”.<br />

O lançamento, a instalação, a fixação e propagação de uma ideia<br />

<strong>para</strong> classificar a conduta de determinada pessoa, boa ou má, às vezes<br />

é lenta, outras, rápida.<br />

O rótulo “João é muito inteligente”, uma vez acei to torna-se <strong>para</strong><br />

seus usuários uma verdade insofismável, autoevidente e “acima de<br />

qualquer suspeita”, jamais ima ginada no seu oposto.<br />

A partir da rotulação, os homens e as mulheres clas sificados passam<br />

a ser tratados pelos conhecidos, amigos ou inimigos, conforme o rótulo<br />

recebido. Se o indivíduo é denominado “engraçado”, “palhaço”, “gran-<br />

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de contador de anedotas” e mesmo “filho da mãe”, uma vez acreditando<br />

na rotulação, aprisionado à categorização, ele irá se esforçar como<br />

pode <strong>para</strong> desempenhar, no carnaval ou no velório, o personagem<br />

designado pelo roteiro. Já assisti, muitas vezes, colegas de sala de aula<br />

rotulados de “engraçados” representarem, de tempos em tempos,<br />

conforme os fatos existentes, o papel exigido pela turma, inventando<br />

sempre que possível uma “graça” qualquer, mesmo uma graça sem<br />

graça, pois, do contrário frustrariam a plateia e poderiam perder o conceito<br />

recebido, passando a ser um qualquer, um João Ninguém, como<br />

os colegas não classificados de alguma coisa. Da mesma forma, se a<br />

pessoa recebe a clas sificação e os comentários necessários dos observadores<br />

de que é “bonita”, “elegante’, “inteligente”, “bom de cama”,<br />

“burro”, etc., deverá desempenhar <strong>esse</strong> papel nas ocasi ões esperadas,<br />

não poderá ser “bom de cama” durante a discussão filosófica na qual<br />

deveria representar o papel de “inteligente”.<br />

Uma vez rotulado, forçado a agir como tal devido a pressões externas<br />

e internas, o antigo cidadão, Carlos ou Diva, desaparece. Assim vai<br />

se formando o novo ator, o transformado no rótulo, passando a agir de<br />

acordo com o novo conceito: “Aninha é bonita”, “Dirce é inteligente”,<br />

“Pedro é um crápula”.<br />

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Nosso Povo: Informações resumidas<br />

Uma conversa, ou um texto escrito, será espontâneo se for conduzido,<br />

não por planos hierárquicos cognitivos, mas orientado e composto<br />

pelas emoções submersas que irão formar o conteúdo e os objetivos.<br />

Por isso, certas pessoas são “interessantes”, outras, “chatas”; uma nos<br />

provoca emoções agradáveis, a outra, tédio, nos “enchem” de idéias<br />

conhecidas e repetidas.<br />

Pesquisas confirmam que as palavras com valências afetivas, expressões<br />

faciais, fotos de pessoas, quando apresentadas num curto<br />

espaço de tempo – mesmo subliminares – provocam emoções nos<br />

sujeitos da experiência. Isso torna claro que o processamento afetivo<br />

trabalha imediatamente após a apresentação do estímulo, ou seja,<br />

antes do pensamento ser elaborado.<br />

Ao contrário das emoções básicas, que são inatas, o raciocínio é<br />

aprendido conforme a cultura em que vivemos. Ele é utilizado <strong>para</strong><br />

descrever ou compor os dados dispersos percebidos ou inventados,<br />

originalmente isolados uns dos outros. Como o conhecimento através<br />

da cognição é indireto, ao contrário das emoções que é direto, a cognição<br />

dependerá da “leitura” realizada acerca da relação entre os fatos<br />

– nem sempre adequada – pois se assenta no aprendizado e na linguagem<br />

com as regras aprendidas.<br />

Sempre a pessoa trabalha com duas metas básicas; estas podem ou<br />

não estar em harmonia. Uma parte do eu deseja alcançar os objetivos<br />

relacionados à manutenção de si (egoísta): alimentar, ser um bom pintor<br />

ou escritor, casar, arrumar um emprego. A outra parte refere-se a ligações<br />

com pessoas (pró-sociais); agradar ou desagradar alguém. Tudo<br />

indica que os dois objetivos trabalham juntos; busca-se, ao realizar<br />

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uma atividade, mais ou menos implicitamente, fazer com que outras<br />

pessoas fiquem sabendo e satisfeitas com a obra realizada; assim, as<br />

duas metas se associam.<br />

A nossa visão do mundo depende tanto do modo como o mundo é, e<br />

como nós somos; o conhecimento do mundo depende da nossa capacidade<br />

<strong>para</strong> construir modelos dele: produto da seleção natural e da<br />

cultura. Portanto, nosso conhecimento depende, em grande parte, da<br />

nossa característica biológica e das coisas como elas são.<br />

Nós só podemos perceber, descrever e pensar acerca de qualquer<br />

coisa em termos de sua relação com algo já conhecido; sempre relacionamos<br />

alguma coisa às outras. Quando perguntamos o que algo<br />

significa, nós só podemos responder colocando o indagado num todo<br />

no qual imaginamos existir uma inter-relação no sistema geral. Portanto,<br />

definimos o significado de algo conforme as coisas que podem ser<br />

afirmadas acerca dele.<br />

Nos nossos encontros com a realidade, principalmente nas relações<br />

com pessoas, são despertadas inicialmente as emoções e, logo em<br />

seguida, mas nem sempre, entram em ação as imagens, pensamentos,<br />

raciocínios lógicos, aumentando a fonte de orientação <strong>para</strong> a conduta<br />

imaginada ou a ser executada. As emoções, continuadamente, influenciam<br />

o que estamos conhecendo ou pensando; num nível consciente<br />

ou inconsciente. .<br />

Parece que a procura por certas condutas, entre elas, as opiniões<br />

emitidas durante conversas, a adesão a uma ideologia, a busca e participação<br />

numa religião, o empenho em torcer por um time, tem a ver<br />

com a necessidade de estar agindo conforme as idéias e valores de um<br />

grupo significativo; “comungando” os ideais dos companheiros. D<strong>esse</strong><br />

modo, a pessoa se sente ligada ou religada, se incorporando num<br />

grupo mais amplo do que seu organismo individual.<br />

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Um organismo vivo trabalha fundamentalmente <strong>para</strong> sua manutenção<br />

e reprodução; que nada mais é do que a manutenção da espécie a<br />

que pertence. Para realizar essas duas tarefas – conservação do indivíduo<br />

e da espécie – as células dos seres vivos contêm informações<br />

necessárias <strong>para</strong> executar <strong>esse</strong>s dois objetivos básicos que dirigem a<br />

conduta: a manutenção e a reprodução da vida.<br />

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Início do universo - começo da vida<br />

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O nascimento do Universo<br />

O homem sempre procurou conhecer seu meio e a si próprio, bem<br />

como transmitir <strong>esse</strong> conhecimento aos outros. Nas suas tentativas de<br />

obter essa sabedoria, ele descobriu o homem entre os Messias, mas<br />

também entre os bandidos, entre os fortes e sadios, mas ainda entre<br />

os doentes e fracos. Mas, pensando bem, o homem continua sendo um<br />

procurado e não um encontrado. Ele é, ao mesmo tempo, o anjo e o<br />

demônio; o sábio e o imbecil; o racional e o irracional; o incrédulo e o<br />

fanático; o verdadeiro e o falso; o honesto e o desonesto; o prudente<br />

e o imprudente. Ele é tudo isso; sua conduta continua a nos espantar.<br />

Desde o surgimento do ser humano até hoje, cerca de 70 a 100 bilhões<br />

de homens partici<strong>para</strong>m dessa jornada da qual nós fazemos parte, isto<br />

é, das prováveis 200.000 gerações que se sucederam na Terra.<br />

Podemos nos enxergar como seres desam<strong>para</strong>dos, ligados por uma<br />

cadeia genética a todos os seres vivos e, também, unidos a todo o<br />

Universo físico-químico. Carregamos no corpo e no cérebro vestígios<br />

doloridos da evolução; nossas mãos são ex-nadadeiras modificadas; os<br />

pulmões resíduos de tecidos do animal que vivia no pântano; o fêmur,<br />

endireitado à força; o pé, uma antiga pata que servia <strong>para</strong> trepar em<br />

árvores. Mas tem mais: nosso corpo foi aos poucos invadido por microorganismos<br />

e hoje não podemos mais viver sem eles. Sabe-se que<br />

diversas bactérias, que há muitos e muitos anos, possivelmente, <strong>para</strong>sitaram<br />

ou se hospedaram em nosso corpo primitivo, muito diferente do<br />

atual, agora são imprescindíveis à sobrevivência do nosso organismo.<br />

Em resumo: somos um boneco reconstruído com pedaços costurados<br />

de antigos animais; algumas partes de animais não mais existentes.<br />

Aparecimento do Universo<br />

Sabemos que a vida nem sempre existiu, e mais, sabemos que a<br />

organização do Universo nem sempre existiu. A matéria manifestou-se<br />

de um caos primordial e, sem um nome melhor <strong>para</strong> dar, essa explosão<br />

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foi chamada de “Big-Bang”. Dela, originou-se, pouco a pouco, tudo que<br />

existe no Universo. A expansão continua, com uma velocidade 15%<br />

mais rápida do que a iniciada há 15 bilhões de anos atrás. Os produtos<br />

reconstruídos dessa explosão inicial são bilhões de corpos celestes:<br />

estrelas, planetas, cometas, luas etc. incluindo aí, naturalmente, nossa<br />

galáxia, contendo o planeta Terra.<br />

Na Terra, por motivos aleatórios e ainda não esclarecidos, surgiram<br />

os seres vivos. Estes foram construídos com alguns poucos elementos<br />

do mundo físico, entretanto, estão organizados de maneira bastante<br />

diferente das chamadas substâncias físicas. Tudo indica que os seres<br />

vivos despontaram há cerca de 4 bilhões de anos, sendo os homens<br />

os caçulas dessa sequência evolutiva. Segundo os estudos, após sucessivas<br />

transformações dos seres vivos, apareceram possivelmente<br />

diversas espécies de homens diferentes há cerca de 4 milhões de anos,<br />

segundo pesquisas recentes, há 6 milhões de anos.<br />

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O BIG-BANG<br />

O cosmo nasceu da explosão inicial, ou seja, do “Big-Bang”. A expansão<br />

física criou probabilidade no espaço no qual processos dissipativos<br />

(com dispersão, espalhamento) podiam ocorrer. Isso deu origem tanto<br />

às grandes estruturas como às estrelas, planetas e, também, aos processos<br />

de auto-organização com a emergência e evolução da vida. Esta<br />

atividade ocorre devido às forças da natureza que são, na maioria dos<br />

casos, de atração; deve ser lembrado que as entidades isoladas têm<br />

mais alto potencial de energia do que as ligadas entre si.<br />

Uma forma mais simples <strong>para</strong> entender a formação ou a organização<br />

da natureza, incluindo <strong>aqui</strong> os organismos vivos, é imaginá-la estruturada<br />

como a linguagem escrita. Esta última utiliza como elemento<br />

fundamental <strong>para</strong> sua organização um alfabeto, ou seja, um conjunto<br />

de letras adotadas por convenção. Nós empregamos o alfabeto latino<br />

composto de vinte e seis letras se contarmos com o k, y e w. Para criarmos<br />

uma palavra agrupamos algumas letras numa ordem determinada<br />

e previamente convencionada. Quantas “palavras” – <strong>aqui</strong> expressando<br />

conjuntos possíveis de combinações de letras – diferentes podem ser<br />

compostas com quatro letras? Cerca de quatrocentas mil; com sete,<br />

mais de dez bilhões de arranjos.<br />

O leitor sabe que poucos conjuntos formados pela reunião de letras<br />

ao acaso são palavras de verdade, tendo significado linguístico ou, de<br />

outro modo, constatando nos dicionários. A palavra formada pelas<br />

letras na ordem <strong>aqui</strong> escrita: l; i; g; a, ou seja, “liga”, tem um significado<br />

que leva-nos a imaginar objetos, coisas ou letras juntas ou reunidas.<br />

Entretanto, nenhuma dessas letras isoladas contém, mesmo num nível<br />

ínfimo, referência a qualquer idéia do tipo de união. A idéia de “unir”<br />

ou “ligar” só nasce com as quatro letras juntas na ordem indicada acima.<br />

Se ligarmos as quatro letras de outros modos como agil, gali, iagl,<br />

lgia etc. não iremos compreender nada do significado da palavra for-<br />

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mada pela ordem mostrada em “liga”. Uma vez formadas as palavras,<br />

pelo mesmo processo, ligando certas palavras a outras determinadas,<br />

teremos relações entre as palavras, ou seja, as frases que são formadas<br />

pela combinação de palavras; estas que são associações de letras.<br />

A “água”, seguindo o raciocínio acima, é uma “palavra” composta de<br />

“duas letras” – no sentido de elementos do meio ambiente – denominadas<br />

oxigênio e hidrogênio, na qual cada um dos seus componentes,<br />

H e O, não tem as propriedades do conjunto de dois átomos de hidrogênio<br />

e um de oxigênio de uma maneira apropriada que produz suas<br />

propriedades. Pois bem, o C (carbono) mais H (hidrogênio) formam<br />

diversos compostos; uma combinação determinada de Ca (cálcio), H<br />

(hidrogênio), O (oxigênio), Fe (ferro), Al (alumínio), Mg (magnésio) ,<br />

cerca de aproximadamente cem deles, formam as pedras, formações<br />

rochosas existentes. Estes átomos existem em todas as partes: no sistema<br />

solar, nas estrelas da nossa Via Láctea e, também, nas galáxias mais<br />

estranhas.<br />

Finalmente, e mais tarde, nós também fomos formados pela combinação,<br />

de um certo modo, de alguns elementos que bailavam no<br />

Universo desde sua formação à procura de um ou mais pares. O que<br />

diferencia um agrupamento físico do não-físico são os elementos utilizados<br />

no fabrico de um e de outro e, principalmente, a organização<br />

peculiar existente em cada grupo; os puramente físico-químicos e os<br />

chamados de orgânicos. De outro modo: é o arranjo de um certo modo<br />

dos átomos que fornecerá as características próprias e diferentes de<br />

cada espécie; as vivas e as não-vivas.<br />

Os átomos, que antigamente eram tidos como indivisíveis – daí a<br />

origem da palavra – demonstraram ser compostos de elétrons, prótons<br />

e nêutrons. Essas três partículas desempenham um papel de “letras”<br />

com relação aos átomos. O núcleo dos átomos é constituído de prótons<br />

e nêutrons (conjuntamente denominados núcleons). O número de<br />

prótons determina a natureza física do elemento. Se houver 6 prótons<br />

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é carbono, se 26, ferro, se 92, urânio etc. A quantidade de nêutrons<br />

não afeta a identidade química.<br />

Nas últimas décadas foram descobertas no interior dos núcleons estruturas<br />

ainda menores, estas foram denominadas de quarks. O próton<br />

é constituído de 2 quarks do tipo U (up) e um do tipo D (down). Para<br />

um nêutron, tomam-se 2 d e 1 u. Conhecem-se quatro outras espécies<br />

de quarks: s (strange), c (charmed), t (top) e b (bottom ou beauty). Em<br />

resumo: os núcleons podem ser considerados como nossas palavras; os<br />

quarks como as letras dessas palavras.<br />

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A Explosão inicial: Agrupamento<br />

das Letras<br />

Todos os sistemas estão soldados por forças naturais: a força de gravidade<br />

une os planetas, as estrelas e as galáxias; a força eletromagnética<br />

une os átomos e as moléculas; a força nuclear forte une os núcleos<br />

dos átomos; a força nuclear fraca não é responsável por qualquer<br />

estrutura estável. O princípio da ligação é sempre o mesmo; agrupando<br />

os elementos, a força transforma em energia uma parte de sua massa.<br />

O Universo, no seu início – de quinze bilhões de anos atrás – situa-se<br />

na base da escala. O calor extremo que predominava nessa época mantinha<br />

todas as partículas de matéria em estado de dissociação completa<br />

e permanente, ou, de outro modo, toda e qualquer associação era<br />

imediatamente dissociada. Só havia letras, desorganizadas, desligadas,<br />

soltas, bailando sozinhas; não havia possibilidade de formação de “palavras”;<br />

muito menos de “frases”.<br />

Não havia o menor vestígio de organização, era o caos primordial.<br />

O Universo continua em expansão e esta provocou o resfriamento. A<br />

temperatura e a densidade diminuíram com o passar do tempo. Com o<br />

resfriamento torna-se possível o aparecimento dos episódios associativos:<br />

primeiras formações de “palavras” utilizando algumas “letras” que<br />

trombaram entre si e se fixaram devido às forças naturais existentes.<br />

Assim iniciaram-se as primeiras organizações da matéria, ou seja,<br />

o nascimento dos elementos, das primeiras palavras. Pouco a pouco,<br />

lentamente, foram aparecendo outros elementos naturais que caracterizam<br />

os níveis de complexidade do Universo. No início, tais episódios<br />

ocorreram ao mesmo tempo, em todos os lugares do Universo. Posteriormente,<br />

seu alcance passou a ser mais localizado.<br />

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A partir do momento no qual a temperatura caiu abaixo de um<br />

trilhão de graus – conforme estimativas – houve a possibilidade da<br />

criação dos quarks se unirem, três a três, dando origem aos núcleons.<br />

Quando a temperatura chegou a um bilhão de graus, uma fração dos<br />

núcleos associou-se <strong>para</strong> gerar os primeiros núcleos de hélio; a primeira<br />

“palavra” formada no Universo. Um milhão de anos após, surgiram<br />

novas “palavras”; os primeiros átomos e as primeiras moléculas de<br />

hidrogênio foram formados quando, graças à diminuição do calor, os<br />

elétrons conseguiram se fixar e permanecer em órbita ao redor dos<br />

prótons.<br />

Uma centena de milhões de anos depois, aparecem as primeiras<br />

galáxias, dando origem às estrelas do céu. Em seu centro incandescente,<br />

as estrelas agrupam os núcleos em núcleos pesados (hélio, carbono,<br />

silício, ferro). Com a morte das estrelas e lançados no espaço interestelares,<br />

<strong>esse</strong>s núcleos capturam elétrons e tornam-se átomos. Associando-se<br />

entre si, os átomos formam moléculas e minúsculas estruturas<br />

cristalinas: os grãos de poeira do espaço sideral. Sua aglutinação em<br />

corpos sólidos extensos provoca a formação de asteróides e de planetas;<br />

sobre alguns se depositam oceanos e atmosferas.<br />

O nosso Sol apareceu quando a galáxia já tinha dez bilhões de anos e<br />

as estrelas anteriores lançaram no espaço suas safras de núcleos pesados.<br />

A temperatura no centro do Sol é de dez<strong>esse</strong>is milhões de graus.<br />

Já a temperatura do centro da Terra deve ser de dez mil graus, pois<br />

esta, ao contrário da lua e dos asteróides, não acabou de liberar <strong>para</strong> o<br />

espaço o calor acumulado no momento de sua formação. A superfície<br />

do Sol é, como foi dito, muito mais quente do que a da Terra, sendo,<br />

graças a essa diferença de temperatura, a <strong>esse</strong> desequilíbrio térmico,<br />

que a energia solar é aproveitada na Terra.<br />

É a partir dessa informação solar que a biosfera cria e mantém a<br />

vida. A cada minuto a Terra recebe uma imensa quantidade de energia<br />

luminosa proveniente do Sol. Tal energia chega em forma de uma<br />

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chuva de fótons amarelos que são absorvidos pelo solo. Essa energia,<br />

convertida em calor, é depois remitida <strong>para</strong> o céu sob a forma de luz<br />

infravermelha, sendo, portanto, poucos os fótons que são “predados”<br />

ou capturados pela Terra, pois a maioria deles se perde no espaço.<br />

Interações<br />

Todos os sistemas agem ou exercem interação com o ambiente, com<br />

o resto do Universo: os átomos absorvem e emitem luz; as moléculas<br />

mudam de forma, associam-se e dissociam-se; as bactérias movem-<br />

-se em direção às suas fontes de alimento. No interior dessas camadas<br />

férteis, novas interações moleculares podem associar moléculas leves<br />

ou gigantes em células vivas e em organismos vegetais ou animais.<br />

Acredita-se que a vida celular surgiu na Terra há cerca de quatro bilhões<br />

de anos, já a vida chamada de inteligente há não mais que alguns<br />

milhões de anos.<br />

A retirada de energia do sistema material, inevitavelmente, conduz<br />

à destruição da ordem ou informação que ele mantinha; essa exige<br />

esforço e trabalho, portanto, o uso de matéria. Assim é que a criação,<br />

a construção, mudança ou adaptação de qualquer sistema – vivo ou<br />

não-vivo, natural ou humano, individual ou social – só poderá ocorrer<br />

através da destruição, queda, consumo ou demolição de outro sistema<br />

ordenado. Assim, a energia necessária <strong>para</strong> a emergência e evolução<br />

de vida na Terra – <strong>para</strong> a produção e manutenção da vida – deriva<br />

da transformação ou destruição do Sol, bem como transformação da<br />

rádio-atividade que ocorre no interior da Terra. (unindo e desunindo<br />

quarks, átomos, moléculas etc., formando água, bactérias, vegetais,<br />

animais etc., até chegar ao ser humano).<br />

Da mesma forma, nós, homens, nossos parentes, outros animais e<br />

vegetais, destruímos a organização ou ordem dos alimentos que nós<br />

comemos ou do combustível queimado <strong>para</strong> alimentar nosso organismo<br />

(hidrato de carbono, lípides, proteínas etc.) <strong>para</strong> nos mantermos<br />

quentes, construirmos nosso corpo, em resumo, mantermos a integri-<br />

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dade de nossa organização.<br />

Do ponto de vista da termodinâmica, a Natureza aparece como uma<br />

cadeia sem fim de transformação de energia originada no “Big-Bang”<br />

, ou também, de acordo com outras teorias científicas, sistemas ordenados<br />

emergem <strong>para</strong> a conversão mais eficiente de energia liberada do<br />

que seus predecessores.<br />

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O aparecimento dos Seres Vivos<br />

A Paleontologia, a Antropologia, a Paleantropologia e a Pré-história,<br />

bem como outras ciências do homem, nos ensinam que a vida nasceu<br />

da matéria e que todos os seres vivos que existem ou existiram pertencem<br />

a uma só árvore genealógica e que sua filiação chama-se evolução.<br />

A vida surgiu da não-vida, pelo menos uma vez, em algum momento.<br />

Os registros fósseis mostram que ela deve ter surgido há 4 bilhões de<br />

anos. Mas, a partir d<strong>esse</strong> momento, por mais de 3 bilhões de anos a<br />

Terra foi habitada somente por organismos muitos simples, como os<br />

seres unicelulares que se assemelham a bactérias e algas.<br />

Ocorre uma transformação constante nas formas de vida existentes;<br />

essas foram, aos poucos, tornando-se mais complexas. No início não<br />

havia vegetais nem animais; <strong>esse</strong>s últimos começaram a aparecer há 3<br />

bilhões de anos após o aparecimento de seres unicelulares segundo a<br />

ordem: Árqueo-bactérias e bactérias; aparecimento das Algas Azuis –<br />

possibilitando a produção de oxigênio, transformando a cor cinzenta da<br />

atmosfera <strong>para</strong> a azul atual, houve assim o aparecimento de diversas<br />

espécies que utilizam oxigênio <strong>para</strong> viver até chegar nos mamíferos e,<br />

finalmente, nos homens.<br />

Aos poucos, uma antiga distinção entre a matéria inerte e a matéria<br />

viva foi se desvanecendo. Sabe-se atualmente que tanto os sapos e homens,<br />

como as pedras e as montanhas, são formados por átomos identificáveis<br />

pelos físico-químicos. O que se estuda agora é como, em cada<br />

organismo, vivo ou não, a matéria é composta e organizada de modo a<br />

criar um determinado indivíduo. As moléculas biológicas, ou moléculas<br />

gigantes, como as proteínas, agrupam, de um certo modo, milhões de<br />

átomos (basicamente C, N, O e H), substâncias essas que existem no ar,<br />

no solo, nas estrelas etc. Foi verificado que certos aminoácidos que dão<br />

origem às proteínas podem ser facilmente formados quando a energia<br />

elétrica passa através de uma simples mistura de gases. A absorção ou<br />

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a emissão de radiação faz com que os sistemas mudem de um estado a<br />

outro.<br />

Uma vez formado, basicamente, o organismo trabalha <strong>para</strong> sua<br />

manutenção e reprodução; que nada mais é do que a manutenção da<br />

espécie a que pertence. Para realizar essas duas tarefas – conservação<br />

do indivíduo e da espécie – as células dos seres vivos contêm informações<br />

necessárias <strong>para</strong> <strong>esse</strong>s dois objetivos básicos e que dirigem toda a<br />

conduta: a manutenção e a reprodução da vida. Pois bem, essas instruções<br />

estão escritas através de um alfabeto composto de quatro letras:<br />

A, C, G, T (adenina, citosina, guanina e timina). Cada letra é formada<br />

por uma molécula de quinze átomos denominados nucleotídeos.<br />

O alinhamento dessas quatro letras em uma ordem resulta nas “palavras”,<br />

que são os genes. Terminando o raciocínio: no núcleo de cada<br />

célula viva existem várias dezenas de cromossomos (46 no homem),<br />

onde cada um é formado por milhares de genes, ou seja, bilhões de<br />

nucleotídeos, que, no total, englobam trilhões de quarks e de elétrons.<br />

Existe uma sequência própria em cada indivíduo nessa construção.<br />

As células vivas não passam de elementos químicos organizados de<br />

uma certa combinação, uma maneira única de composição das substâncias.<br />

Por exemplo, entre os mamíferos há cerca de mais de duzentas<br />

espécies de células diferentes que, agrupadas de certo modo, originam<br />

as “palavras” cães, gatos, elefantes etc. Com o acréscimo de algumas<br />

variedades suplementares, não muitas, englobamos todos os seres<br />

vivos da Terra: unicelulares, plantas e animais.<br />

Os seres vivos, <strong>para</strong> sobreviverem, dependem de suas trocas com o<br />

meio ambiente. Através dessas trocas ocorrem transformações, evoluções<br />

e emergências. No começo houve formas de estruturas e comportamentos<br />

mais primitivos; <strong>esse</strong>s modos rudimentares se desenvolveram,<br />

se enriqueceram e se diversificaram. Entretanto, jamais largaram<br />

ou, se quisermos, livraram-se totalmente de sua origem: o ser vivo é<br />

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um ponto de troca; por seus orifícios, moléculas e fótons penetram<br />

sob forma de alimento, de respiração, de calor etc. A vida é um estado<br />

excitado da matéria e sabemos que um átomo excitado transmite sua<br />

energia <strong>para</strong> outro organismo, células ou átomos.<br />

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Organismo Humano: O que são Seres<br />

Vivos?<br />

Os seres vivos são sistemas estruturados de uma certa forma. Tudo<br />

o que ocorre em nós – ou em qualquer outro organismo vivo – acontece<br />

em função do aparecimento, em cada momento, de determinadas<br />

mudanças nas estruturas. O que observamos – do lado de fora – que<br />

está ocorrendo num organismo, como o ser humano, que tem sido<br />

chamado popularmente de conduta, nada mais é do que as mudanças<br />

verificadas nas estruturas internas. Deve ser lembrado e enfatizado que<br />

mesmo quando há uma ação do meio externo sobre o meio interno do<br />

organismo, o ocorrido – o produto final – nunca é determinado pelo<br />

meio. Explicando melhor: uma barata – isto é, um organismo – por<br />

mais treinada que seja, nunca aprenderá a ler ou a falar, pois seu meio<br />

ou estrutura interna não a capacita a realizar tal proeza; o organismo<br />

da barata, sendo diferente dos homens, não tem condições de alcançar<br />

<strong>esse</strong> aprendizado próprio – não superior – dos seres humanos.<br />

O que notamos sob forma de ações através dos nossos órgãos dos<br />

sentidos e cognições, a conduta observável do homem ou da barata em<br />

um contexto determinado é, digamos assim, a representação externa,<br />

visível <strong>para</strong> o observador, o possível de ser percebido, das mudanças<br />

estruturais que estão ocorrendo lá dentro, no organismo vivo. No caso<br />

da auto-observação, o observador é o próprio agente das ações.<br />

Os seres vivos são sistemas estruturais dinâmicos, que se constituem<br />

e se delimitam como redes fechadas de produção de seus componentes<br />

a partir de substâncias que retiram do meio, ingeridas, inspiradas,<br />

absorvidas pela pele etc. De outro modo: os seres vivos são verdadeiras<br />

fábricas em constante funcionamento, encarregadas de produzirem<br />

seus próprios componentes e, <strong>para</strong> isso, utilizam substâncias do meio<br />

ambiente. Essas substâncias participam, transitoriamente, da continua-<br />

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da renovação dos componentes do organismo impedindo a interrupção<br />

da produção. Com a morte, a produção encerra-se; a fábrica se fecha,<br />

os componentes – matérias-primas – que davam corpo àquele determinado<br />

organismo, substâncias como o H, N, C, O, Ca, Fe, K e outros, se<br />

se<strong>para</strong>m daquelas ligações anteriormente existentes e passam a fazer<br />

parte de outras organizações diferentes da antiga, contribuindo <strong>para</strong> a<br />

formação de novas estruturas, isto é, as substâncias passam a ter outro<br />

destino. Portanto, uma vez encerrada a existência de um organismo<br />

vivo, seus componentes, dispersos, sem função naquele ex-corpo, passam<br />

a fazer parte do estoque de substâncias físico-químicas do meio<br />

ambiente, podendo ser, a partir de então, reaproveitadas <strong>para</strong> a constituição<br />

de outros seres vivos, vegetais ou animais, ou <strong>para</strong> outra coisa<br />

qualquer.<br />

A fábrica viva, animal ou vegetal – bactéria, roseira, carrapato,<br />

homem ou elefante – é uma continuada realização de si mesma,<br />

através da produção incessante e renovada de seus componentes. Os<br />

organismos-fábricas têm recebido os nomes de Sistemas Autopoiéticos<br />

(do grego “autopoiesis” = autoprodução ou auto-renovação), Sistemas<br />

Vivos, Sistemas Complexos e outros nomes.<br />

Os sistemas autopoiéticos apresentam como característica mais<br />

importante a sua capacidade de organização. Enquanto o sistema<br />

autopoiético produz a si mesmo, o sistema alopoiético, seu oposto, é<br />

construído pelo homem. Assim, o sistema alopoiético é resultado da<br />

produção de algo diferente do produtor, como o computador, rádio<br />

etc. Resumindo: existe uma espécie de organização – tipo máquina –<br />

que é fabricada pelo homem, designada <strong>para</strong> nos servir e que produz<br />

algo externo a ela mesma; por outro lado, existe uma segunda forma<br />

de organização, a natural, onde se inclui o organismo vivo e, também,<br />

os ecossistemas, como as sociedades, que se autoproduzem. As organizações<br />

naturais como o homem, a roseira, a sociedade, o mosquito,<br />

foram criadas por elas mesmas, através da evolução e de mudanças<br />

continuadas; elas se auto-reproduzem, sendo sua identidade insepará-<br />

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vel de sua história.<br />

O sistema autopoiético, ao contrário do sistema alopoiético, é autônomo,<br />

ou seja, coordena e subordina todas as mudanças que ocorrem<br />

nele visando a manter sua própria organização. A conservação de sua<br />

organização representa a sua constante fundamental, seu processo<br />

básico, isto é, preservar a si próprio, evitar sua morte. Quando a coordenação<br />

<strong>para</strong> sustentar a organização fracassa por algum tempo,<br />

ou seja, quando as disposições e funcionamento das partes passam<br />

a trabalhar anormalmente, fora do padrão habitual, surge o que chamamos<br />

de doença. E mais, quando a desorganização atinge um grau<br />

elevado, ou seja, essa passa a ser muito intensa, “sem remédio”, ocorre<br />

o que chamamos de morte do sistema individual. A morte, num sentido<br />

biológico, nada mais é do que a incapacidade do organismo, diante<br />

de determinadas situações, pressões do meio interno e ou externo que<br />

impedem o organismo de ser o que ele é. A autonomia de um organismo<br />

tem sido definida através de termos como: “autodeterminação” ou<br />

“autodecisão”. Esta é uma propriedade crucial existente em qualquer<br />

sistema auto-organizado.<br />

A meta máxima do organismo vivo é a automanutenção e a auto-<br />

-renovação de si mesmo. Para que exista a conservação da organização,<br />

o organismo assimila informações (alimentos, idéias, desorganizações)<br />

produzidas no meio externo e interno devido às desordens resultantes<br />

dessas trocas ou, de modo mais simples, em virtude do sistema estar<br />

vivo.<br />

Um sistema autopoiético perde sua identidade ao perder sua organização,<br />

a barata perde, ao ser esmagada por um sapato, sua organização<br />

de barata – transforma-se, entre outras coisas, em restos alimentícios<br />

<strong>para</strong> formigas, mosquitos e bactérias. Por outro lado, o sistema alopoiético<br />

também se mantém como uma unidade apenas enquanto sua<br />

organização não variar; uma cadeira só será cadeira enquanto a sua organização<br />

for a de uma cadeira; uma vez quebrada, poderá virar lenha,<br />

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engala e porrete. N<strong>esse</strong> caso, ela perdeu sua identidade de “cadeira”.<br />

A organização de um sistema são as relações entre os seus componentes,<br />

os que lhe dão sua identidade de classe, como as cadeiras, uma<br />

fábrica de pregos, os seres vivos. O modo particular pelo qual realiza-se<br />

a organização de um sistema particular – classe de componentes e as<br />

relações concretas que se dão entre eles – constitui sua estrutura.<br />

Nós não instruímos um sistema, não especificamos o que vai acontecer<br />

nele. De maneira semelhante, se você põe um toca-fitas <strong>para</strong><br />

tocar, você não o instrui, você o aciona, você ativa o que o toca-fitas é<br />

capaz ou foi pre<strong>para</strong>do <strong>para</strong> fazer; suas funções são as determinadas e<br />

possibilitadas pela sua estrutura. Assim, não se pode imaginar certas<br />

pessoas agirem de um certo modo quando sua estrutura o orienta <strong>para</strong><br />

outro. Certas transformações estruturais são acionadas pelas interações<br />

do organismo com o meio ambiente; outras, pela própria dinâmica<br />

interna do sistema: agora, meu organismo está com sede; saio à<br />

procura de água.<br />

Mas dois sistemas totalmente iguais – duas baratas ou dois homens<br />

– terão histórias diferentes de interações pessoais e de mudanças estruturais<br />

que foram iniciadas de forma diferentes quando o organismo<br />

começou sua existência como uma célula; ela terá uma história de vida<br />

singular.<br />

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Nascimento do Bebê: Primeiros<br />

contatos<br />

Morre um ser aquático expulso da vida intra-uterina, nasce uma<br />

criança desvalida, necessitando de extrema ajuda externa. O recém-<br />

-nascido esforça-se <strong>para</strong> sobreviver na atmosfera terrestre desconhecida:<br />

grita, agita-se, chora, contrai-se, esperneia irado, chuta, agarra,<br />

solta, sofre, ainda não tem alegria. Tem fome, busca calor humano,<br />

expele sobras desnecessárias; inicia, fora da proteção intra-uterina,<br />

uma jornada mais estimulante e perigosa.<br />

Estruturas neurais selecionadas pela evolução, juntamente com<br />

órgãos, neuro-transmissores, hormônios, peptídeos, canais, células,<br />

água, muita água, sais, condutores, eletricidade, energia, tudo impele<br />

o recém-nascido <strong>para</strong> explorar o ambiente, informar-se acerca dele,<br />

aproximar-se ou afastar-se de áreas do mundo onde foi arremessado.<br />

É aceita a idéia de que o indivíduo entra no mundo equipado com<br />

um conjunto rudimentar de estruturas genéticas e padrões neurais<br />

inatos, juntamente com programas de processamento de informações<br />

rudimentares que, por sua vez, começam a desenvolver a relação com<br />

o meio ambiente, conforme um curso genético controlado. Este programa<br />

inicial permite ao recém-nascido lidar, de forma adaptada, com<br />

estimulações fornecidas por grande parte das informações as quais ele<br />

está exposto; assim ele consegue sobreviver.<br />

Primeiras condutas: relação mãe/filho<br />

Para agir é preciso que haja um motor interno impulsionando a<br />

pessoa <strong>para</strong> explorar ou investigar o ambiente externo e interno; d<strong>esse</strong><br />

modo, ela conhecerá e avaliará o que lhe proporcionará prazer ou<br />

desprazer. A exploração do ambiente, caso provoque uma ansiedade<br />

ligeira, agrada o organismo, entretanto, diante de grandes perigos, a<br />

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ansiedade se torna desagradável e tende a provocar a fuga.<br />

A criança é ativada internamente por necessidades básicas ou fisiológicas<br />

de seu organismo; fome, sede, contato e segurança, mas,<br />

também, exploração e curiosidade acerca do meio, esperança de que<br />

as ações dêem certo. Para isso, ela movimenta-se em direção às metas<br />

possíveis de produzir alívio às necessidades produtoras de desarmonias<br />

e sofrimentos.<br />

Sabe-se que os recém-nascidos são atraídos, ainda muito cedo, por<br />

novidades do meio ambiente, levando-os a “explorar” o ambiente em<br />

busca de recompensas e, nessa busca, são ativadas suas “esperanças”<br />

de encontrarem algo que lhes dará satisfação, alegria ou felicidade.<br />

Durante suas explorações, elas encontrarão também situações que as<br />

farão sofrer, n<strong>esse</strong> caso, seus organismos, automaticamente, produzem<br />

vocalizações (gritos, choros etc.) sinalizando pedido de socorro.<br />

Os sinais que a criança possui ao nascer são poucos <strong>para</strong> indicar seus<br />

desejos: ela olha, pega, chora, movimenta-se, engole, rejeita, excreta<br />

etc. Meses após nascer, por não possuir ainda a linguagem simbólica<br />

usada pelos adultos, ela não saberá explicar o que sente ou o que deseja<br />

através de palavras. Seu sofrimento é informado ao cuidador através<br />

da linguagem corporal, concreta e no presente, desajeitadamente<br />

e em bloco. A mãe, <strong>para</strong> entendê-la, precisa decodificar as informações<br />

usando seu assimilador mental sem-palavras que pode ser ótimo ou<br />

não.<br />

As crianças começam a mostrar o que elas são, como indivíduos<br />

diferentes, logo após o nascimento. Certos recém-nascidos mostram-se<br />

alertas e cheios de emoções e vigor, entrando facilmente em contato<br />

com outras pessoas; outros, por sua vez, exibem mais calma e ordem,<br />

são fechados, dão menos repostas emocionais aos pais. Alguns bebês<br />

desistem facilmente quando não conseguem produzir a resposta esperada<br />

em suas mães, outros se esforçam, tentam inúmeras vezes antes<br />

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de desistir.<br />

Nessa interação, de um lado temos o recém-nascido com suas características<br />

inatas, geradas por genes particulares e diferentes <strong>para</strong><br />

cada indivíduo; de outro lado, há o externo à criança, a maneira como<br />

o mundo vai tratá-la ou estimulá-la, especificamente, como os seus<br />

criadores – geralmente os pais – irão provocar e ou responder às informações<br />

dela.<br />

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Recém nascido: Ligação inicial com<br />

o Criador<br />

Todas as mães, ou babás, sabem que o cuidado <strong>para</strong> com um recém-<br />

-nascido nunca foi, nem será, fácil, simples ou previsível. Os problemas<br />

surgidos são, em grande parte, estressantes, e mais, na maioria das<br />

vezes, não-familiares, podendo ser decifrados e interpretados de diversos<br />

modos, muitas vezes, contraditórios. Não é simples determinar ou<br />

adivinhar o que o menino está desejando no momento do choro, ou<br />

mesmo, se o que ele necessita poderá ser encontrado. Os sinais fornecidos<br />

pela criança à mãe atenta precisam ser, primeiramente, registrados<br />

na mente materna e depois interpretados, sendo que a seleção<br />

e a avaliação dos dados importantes, que servirão de orientação, são<br />

peculiares a cada um de nós. Isso dificultará a ação do responsável <strong>para</strong><br />

responder às informações rudimentares do bebê.<br />

Uma ação inicial da criança após seu nascimento, bem como de<br />

todos os mamíferos e aves, fundamental <strong>para</strong> que ela escape da morte,<br />

é a de se ligar física e afetivamente a um outro animal da mesma<br />

espécie e mais bem pre<strong>para</strong>do. Esse protetor inicial é, na maioria das<br />

vezes, a mãe do recém-nascido. Essa aproximação – o agarrar-se a um<br />

adulto – é um processo instintivo, de origem biológica, fazendo parte<br />

da conduta não-aprendida de diversos animais. Assistimos a essa cena<br />

no recém-nascido humano, nas relações entre o bezerro e a vaca, o<br />

cãozinho e a cadela e o pintinho e a galinha; mas não presenciamos<br />

essa ligação entre os répteis e suas crias, pois <strong>esse</strong>s não possuem <strong>esse</strong><br />

comportamento instintivo. O sistema de ligação afetiva, presente nos<br />

mamíferos e aves, é um produto da evolução de sistemas motivacionais/emocionais<br />

mais primitivos que não evoluíram nos animais chamados<br />

de “inferiores”.<br />

A aproximação mãe/filho, dito de outra forma, essa força interna<br />

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agregadora, impele o bebê e sua mãe a buscar contato e satisfação<br />

após o nascimento. Não devemos confundir a ligação inicial da mãe (ou<br />

de outro criador disponível) e seu filho, que é biológica, com os “laços”<br />

afetivos que aparecem posteriormente e que foram aprendidos; n<strong>esse</strong><br />

último caso, essas ligações fazem parte da história de vida de cada um.<br />

Se o criador lê e interpreta acertadamente os sinais fornecidos pelo<br />

recém-nascido, ou seja, responde funcionalmente aos pedido, exigências<br />

ou súplicas dele, as ações produzidas pela criança serão reforçadas,<br />

isto é, elas tendem a se repetirem de forma semelhante. Se<br />

a criança chorou por estar com frio e a mãe interpretou o sinal corretamente,<br />

agasalhando-o, formam-se padrões funcionais de informações<br />

e interpretações conhecidos que se repetem em função de sua<br />

eficiência. O oposto aconteceria como no caso da mãe agir de modo<br />

inadequado: em lugar de agasalhar o bebê em resposta ao choro, esta<br />

lhe dá a mamadeira. N<strong>esse</strong> caso haverá uma tendência da criança em<br />

diminuir a emissão das informações (choros, lamentos, expressões de<br />

raiva etc.), pois elas não tiveram êxito, ou seja, não foram recompensadas<br />

corretamente pelo criador, isto é, não foram aliviadas.<br />

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Formação de Modelos: Relação<br />

mãe/filho<br />

Os modelos ou as representações internas na mente do recém-nascido<br />

começam a ser construídas durante os períodos iniciais da vida. Esta<br />

afirmação tornou-se uma idéia chave manifestada nos estudos cognitivos<br />

e neurobiológicos do desenvolvimento. Portanto, a construção dos<br />

modos de “ver o mundo”, entre estes, os modelos positivos ou negativos<br />

com respeito às relações humanas e de si mesmo, começam a<br />

ser estruturados logo após o nascimento, quando o cérebro da criança<br />

começa a interagir com o ambiente, principalmente com o cérebro da<br />

mãe.<br />

As respostas dos pais a essa aproximação, quando eficientes, dão<br />

origem à formação de um esquema ou modelo cognitivo na criança de<br />

esperança e de prazer com respeito a futuras relações com pessoas.<br />

Quando ocorre isso, o modelo inicial, uma vez ampliado, reforça o estado<br />

emocional positivo da criança e atenua o negativo. A interação mãe/<br />

filho ocorre primordialmente nos primeiros dias de vida, em função do<br />

calor do contato, da alimentação, do odor e da estimulação táctil.<br />

As experiências iniciais do bebê, provocadas durante suas relações<br />

com os cuidadores, são assimiladas e tornam-se codificadas na memória,<br />

dando origem à expectativa de possíveis contatos satisfatórios<br />

com outras pessoas; o contrário é verdadeiro com respeito às ligações<br />

deficientes e produtoras de sofrimento. Apesar da não existência plenamente<br />

desenvolvida da memória episódica – memória <strong>para</strong> situações<br />

concretas vividas – funciona, desde o nascimento, a memória de<br />

procedimentos, também chamada de memória implícita, relacionada<br />

ao aprendizado de ações motoras da criança, gestos, sorrisos, agarrar,<br />

andar, ou seja, respostas inconscientes e automáticas provocados pelos<br />

estímulos internos do organismo e do meio ambiente; uma memória<br />

que está ligada a regiões e circuitos cerebrais relacionados às emoções.<br />

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Essa memória inicial, exercendo um papel importante e básico na<br />

criação dos modelos gerais do indivíduo, do meio físico e social, relaciona-se<br />

também ao aprendizado inicial das ações morais, pois regula<br />

as expectativas favoráveis, ou desfavoráveis, o que deve e o que não<br />

deve ser feito no futuro e, também, a orientação <strong>para</strong> formar ou não<br />

vínculos com uma ou outra pessoa. Agindo conforme essas regras,<br />

aprendidas muito cedo, a pessoa, ao identificar-se com elas, irá sentir-<br />

-se seguro, ao contrário, irá sentir-se estranho a si mesmo quando adotar<br />

posturas que vão contra regras conhecidas. A criança, ao enfrentar<br />

novas situações negativas parecidas com a antiga, irá manifestar diversas<br />

emoções e condutas desagradáveis, semelhantes a exibida durante<br />

a situação estressante primeira; sem decifrar o que o levou a sofrer tais<br />

emoções e conduta, ou seja, sem se lembrar que, numa ocasião, teve<br />

uma experiência ruim ou negativa daquele formato. Assim, as experiências<br />

com o criador, positivas e negativas, formadas em decorrência<br />

de boas ou más ligações, serão armazenadas na memória da criança e<br />

utilizadas, posteriormente, na construção de todas as outras ligações.<br />

Através d<strong>esse</strong>s contatos precoces serão esboçados os futuros modelos<br />

ou padrões orientadores <strong>para</strong> a formação de laços afetivos futuros<br />

com outras pessoas encontradas, entre eles, o cônjuge e os companheiros.<br />

Conforme as diretrizes ordenadoras existentes na mente de<br />

cada um, acentuamos ou atenuamos determinados estímulos percebidos<br />

nas pessoas com as quais estamos em contato. Como subproduto<br />

dessa relação construída – a primeira da vida da criança – novos esquemas<br />

serão formados, apoiados no primeiro modelo e, também, nos<br />

sinais emitidos pelas pessoas encontradas. Estes esquemas, nascidos<br />

muito cedo, servirão de bússolas <strong>para</strong> clarear e facilitar o modo como o<br />

indivíduo deverá postar-se, cumprimentar, falar, afinal, agir nas relações<br />

interpessoais futuras.<br />

Daí a extrema importância d<strong>esse</strong> início de vida. Se o modelo inicial<br />

do indivíduo for inadequado à realidade, e frequentemente é, as idéias<br />

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construídas que se originaram dele, consequentemente, serão, como o<br />

padrão, disfuncionais, conforme afirma o ditado: “pau que nasce torto<br />

cresce torto”. Como resultado, não serão saudáveis as futuras ligações<br />

afetivas do indivíduo possuidor do modelo defeituoso. Trabalhando<br />

com uma representação imperfeita acerca das relações humanas, ela<br />

não fornecerá ao seu possuidor o resultado por ele esperado: obtenção<br />

de tranquilidade e prazer; poderá causar, ao contrário, sofrimento e<br />

frustração.<br />

Esse aprendizado, uma vez adquirido, passa a ser usado automática<br />

e inconscientemente, ou seja, o seu possuidor não sabe ou não se<br />

lembra de como ele foi adquirido. Pensando assim, a “amnésia infantil”<br />

é natural <strong>para</strong> o aprendido durante os dois a três primeiros anos<br />

de vida; o contrário do que muitos crédulos afirmam. Portanto, muito<br />

pouca ou nenhuma memória d<strong>esse</strong> período da infância é acessível às<br />

recordações na idade adulta, entretanto, a conduta é determinada, em<br />

grande medida, por <strong>esse</strong> aprendizado não consciente. A não-lembrança<br />

de como a pessoa aprendeu não ocorre devido à repressão de memórias<br />

traumáticas na fase do “Complexo de Édipo” como, erroneamente,<br />

afirmava a teoria psicanalítica, mas sim, devido ao desenvolvimento<br />

demorado da memória declarativa ou episódica, que nessa idade ainda<br />

não está desenvolvida plenamente. A memória declarativa ou episódica<br />

tem a ver com a memória de fatos concretos, singulares: a pessoa<br />

lembra do que ocorreu com detalhes: do cheiro, cores, movimentos<br />

etc., como ocorre com o primeiro sutiã, a primeira vez que dirigiu um<br />

auto, um acidente etc.<br />

Tudo indica que um inicial autoconceito negativo – uma baixa auto-<br />

-estima – funcionará como um mecanismo central gerador de futuras<br />

ligações defeituosas e estressantes. Assim vai sendo construído o ser<br />

humano, preso aos primeiros modelos mentais formados; outros e<br />

outros esquemas, padrões, ou ainda, representações acerca do mundo<br />

externo e interno, vão sendo criados <strong>para</strong> serem usadas numa e outra<br />

conduta.<br />

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A Plantonista<br />

Noite de sexta-feira; 22 de junho. Noite calma, calma demais <strong>para</strong><br />

aquela sexta-feira, com fogueiras e festas. Por sorte, o Hospital Psiquiátrico<br />

São Judas Tadeu estava sossegado. Nos fins de semana, o número<br />

de internações crescia com aumento dos bêbados, drogados, esquizofrênicos<br />

e maníacos agitados.<br />

Distante do hospital tranquilo, Clara, agitada, após ter vestido seu<br />

short ultracurto, saiu com os amigos <strong>para</strong> os pontos de sempre. Em<br />

cada local onde parou, fumou, bebeu e drogou-se como nas outras<br />

vezes. No bar, assentada nas cadeiras cheirando a frituras, ela bebia e<br />

discutia com os amigos dos fins de semana. Como suas palavras saiam<br />

velozmente de sua boca pequena, uma boca que parecia nunca se<br />

abrir, tornava-se difícil compreender o que Clara pronunciava. Entretanto,<br />

o que era falado ou entendido tinha pouca importância, pois<br />

os temas eram sempre os mesmos e conhecidos de todos: o custo de<br />

vida, as paqueras, a praia melhor <strong>para</strong> viajar durante as férias e os lugares<br />

da cidade que tinham uma melhor cerveja.<br />

Clara era jovem, solteira, talvez até bonita, aparentando ter trinta<br />

anos. Ao terminar o curso superior, conseguiu um emprego razoável;<br />

um trabalho que não gostava, a não ser quando recebia o salário que<br />

sempre achava que era pouco. Seus cabelos loiros avermelhados,<br />

grossos e cheios de pequenas tranças, combinavam com suas roupas<br />

coloridas e extravagantes. Não tinha limites; geralmente falava mais<br />

do que devia, fumava muito e, às vezes, bebia tanto que não mais se<br />

lembrava do que havia feito.<br />

A noite estava terminando e o cansaço se instalou entre os amigos<br />

do bar. Clara, jovem e forte, sozinha, continuou suas andanças pelos<br />

botecos. Ora num, ora noutro, os pileques continuavam. Já bem tarde,<br />

quando a manhã se aproximava, ao sair cambaleando de um dos bares,<br />

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ela foi despertada por sons animados dos tambores, chocalhos, tamborins<br />

e pandeiros. Estimulada e atraída, caminhou, automaticamente,<br />

em direção aos sons produzidos por um grupo de rapazes que cantavam,<br />

sambavam e tocavam pelas ruas da cidade adormecida.<br />

Clara, sonolenta, cansada das conversas e pileques, uma vez despertada<br />

diante da magia e força dos sons, aproximou-se do grupo e,<br />

facilmente, se enturmou. Sem inibições, entrou na dança bamboleante<br />

e, imediatamente, foi aceita, com entusiasmo, pelos componentes do<br />

grupo. Sendo a única mulher presente, os rapazes, após formarem um<br />

círculo em torno de Clara, começaram a gritar e a bater palmas, diante<br />

de cada balançar excitante e ritmado do seu bumbum. Cada requebro<br />

de Clara provocava urros que eram ouvidos à distância.<br />

Encantada pelos sons do batuque, encorajada por gritos e palmas,<br />

ela sonhava: dançava, pulava e requebrava; cadenciada conforme os<br />

sons poderosos provocados pelas batidas dos tambores e berros da<br />

platéia excitada. A cada gingado dela, mais brados e mais liberdade de<br />

ação. Tudo dominava a mente receptiva de Clara.<br />

Num rebolado mais ousado e violento, seu “short” apertado rompeu-se<br />

de uma só vez, abrindo-se de cima a baixo no seu traseiro. O<br />

entusiasmo dos presentes aumentou. A platéia foi crescendo; pessoas<br />

que voltavam <strong>para</strong> casa e alguns moradores da vizinhança aproximaram-se<br />

<strong>para</strong> presenciar o espetáculo inusitado. Clara, indiferente ao<br />

acontecido, parece que se tornou, com o incidente, mais e mais animada.<br />

Os uivos, à medida que ficavam mais fortes, gerava, da parte dela,<br />

mais movimentos ritmados, na orgia que ali se instalara.<br />

Não demorou muito <strong>para</strong> que Clara, <strong>para</strong> alegria de muitos e espanto<br />

de poucos, tirasse de uma só vez, a blusa e restos do “short” rasgado,<br />

passando a dançar, em plena praça, apenas de calcinha e sutiãs vermelhos.<br />

A animação aumentava, contagiando todos os assistentes daquela<br />

festa inesperada; não era sempre que surgia ali um acontecimento<br />

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como aquele.<br />

Outros e outros espectadores <strong>para</strong>vam <strong>para</strong> ver o espetáculo: casais<br />

que voltavam cansados <strong>para</strong> casa, homens que se dirigiam ao trabalho,<br />

andarilhos diversos. Moradores insones da vizinhança, diante do<br />

barulho, largavam suas camas ou TVs e se debruçavam nas janelas <strong>para</strong><br />

desfrutarem da cena ousada, interessante, divertida e “ao vivo”. Alguns<br />

poucos, desejosos de dormir, reclamaram do barulho e ameaçaram<br />

chamar a polícia.<br />

Clara, cada vez mais estimulada, dançando e cantando, alcançou o<br />

clímax. Num piscar de olhos, como um furacão, tirou o resto de suas<br />

minúsculas e últimas peças vermelhas. Exclamações de prazer e de<br />

apoio dos assistentes foram ouvidas a centenas de metros; os tambores<br />

rufavam estrondosamente com batidas superanimadas, enérgicas e<br />

rápidas.<br />

Mas, “o que é bom dura pouco”. Para tristeza da platéia alvoroçada,<br />

de repente, a festa acabou. Chegaram os policiais. Clara, sem perceber,<br />

continuava sua dança, mesmo sem os sons dos tambores, até que foi<br />

<strong>para</strong>lisada pelos fortes braços de dois soldados. Através dos gritos de<br />

um deles ela foi intimada a se vestir imediatamente. Os espectadores<br />

pesarosos e frustrados, diante da interrupção brusca do prazer gozado<br />

naquela noite fria de junho, exatamente quando imaginavam cenas<br />

ainda mais ousadas e interessantes, se dispersaram tristonhos.<br />

Clara mostrava-se agitada; embriagada, continuava a ter uma conduta<br />

e conversa estranha, pois, aos berros, exigia dos policiais seus<br />

direitos de cidadã por não ser uma qualquer:<br />

— Tenho uma profissão. Ouviu! Não sou uma merda não! Solte-me!<br />

Colocada no camburão; cada vez mais seguros de que se tratava de<br />

uma doente mental, os policiais decidiram levá-la <strong>para</strong> o hospital de<br />

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loucos. Cinco horas da manhã, o camburão chega à porta do Hospital<br />

São Judas Tadeu que, felizmente, continuava, naquela noite de sexta<br />

feira, sem a ocorrência de nenhum caso complicado; todos os pacientes<br />

estavam calmos sem exigir cuidados especiais, não houve brigas entre<br />

os internos e, até aquele instante, nenhum louco tinha sido levado<br />

às pressas pela polícia ou familiares <strong>para</strong> ser internado.<br />

O militar sonolento chega ao hospital trazendo Clara segura pelas<br />

suas mãos fortes. Ela sai do camburão esperneando e gritando:<br />

— Solte-me, solte-me. Idiota! Desgraçado!<br />

O soldado, calmo quanto à sua força, indiferente aos berros, toca a<br />

campainha. Chega à porta Mateus, com seus cabelos desarrumados e<br />

seu rosto inchado:<br />

— O que foi?<br />

— Vim trazer esta louca, esta bêbada e drogada…<br />

— Entra…, <strong>aqui</strong> está escuro, deixe-me acender a outra lâmpada…<br />

— Esta mulher aí; apontando <strong>para</strong> Clara: — Estava dançando nua na<br />

rua…, continuou a falar o policial, — Quando a agarramos…: disse que<br />

era uma profissional de valor e não uma qualquer. É uma louca! N<strong>esse</strong><br />

instante o soldado deu uma sonora gargalhada.<br />

— Meus Deus! É você Dra. Clara! Exclamou Mateus olhando espantado<br />

<strong>para</strong> ela.<br />

— Estou dizendo <strong>para</strong> <strong>esse</strong> imbecil, há muito tempo, quem sou eu…<br />

ele não acreditou… Falei com ele que hoje era o dia do meu plantão<br />

<strong>aqui</strong> no hospital. Ele não quis me ouvir! Tornou a repetir, irritada.<br />

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— Mas você me telefonou dizendo que não podia tirar o plantão,<br />

pois estava acamada, com TPM, com uma dor terrível devido a enxaqueca.<br />

— Tomei umas aspirinas; melhorei, saí <strong>para</strong> tomar uns ares.<br />

O atendente levou a doutora <strong>para</strong> dentro do hospital, despediu-se<br />

dos policiais, pedindo-lhes desculpas pelo ocorrido. Em seguida medicou<br />

a médica com água doce e com um resto de café bem forte existente<br />

na garrafa térmica. Logo depois, a Dra. Clara vestiu um jaleco e<br />

assumiu o plantão daquele fim de madrugada fria e calma de junho.<br />

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Início do Universo – Começo da<br />

Vida: Informações resumidas<br />

Os sistemas cerebrais dos animais foram construídos aos poucos,<br />

não pela experiência ganha por cada organismo particular durante uma<br />

vida; foram mantidos durante a seleção natural em função do chamado<br />

reforço embrionário, isto é, a expressão de condutas que ajudaram os<br />

indivíduos, de uma mesma espécie, a sobreviverem. Entre as experiências<br />

mantidas pelo reforço embrionário estão os ataques ofensivos, as<br />

fugas, os chamados ou vocalizações expressando sofrimento, a postura<br />

ou sons indicando conquista ou poder, os jogos grosseiros, as atividades<br />

exploratórias em busca de alimento e parceria, o abatimento e<br />

tristeza diante da dor, a alegria ou esperança em alcançar o cobiçado<br />

e outros comportamentos não-aprendidos e não-condicionados. Essas<br />

condutas permaneceram porque elas se mostraram úteis e necessárias<br />

à preservação do indivíduo e da espécie.<br />

As unidades químicas básicas associadas às transmissões no sistema<br />

cérebro/espinhal e relacionadas às emoções – neuro-transmissores –<br />

são muito antigas, nos reportando ao período cambriano iniciado há<br />

570 milhões de anos. É possível que as moléculas transmissoras clássicas<br />

evoluíram há 1 bilhão de anos e permaneceram fazendo parte de<br />

todos os organismos descendentes, passando por diversas mutações<br />

e transformações. As novas formas de neuro-transmissores nascidos<br />

através de mutações genéticas conservaram a propriedade de estimular,<br />

excitando ou inibindo, as células vizinhas onde se encontram os<br />

receptores apropriados.<br />

Pesquisas modernas constatam que certos indivíduos são mais sensíveis<br />

que outros aos estímulos provenientes de uma ou mais fontes.<br />

Assim, alguns são mais propensos a reagir com raiva a fatos insignificantes<br />

do meio; outros estão sempre atentos e supersensíveis aos<br />

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sorvetes e pudins e, outros, ainda, ao bumbum e às curvaturas. Daí, um<br />

estímulo interessante e atraente <strong>para</strong> uma determinada pessoa, pode<br />

não ser um excitante <strong>para</strong> outra; também, estímulo potente <strong>para</strong> um<br />

poderá ser um estímulo fraco <strong>para</strong> outro.<br />

O estado do organismo, uma vez estimulado, fará com que ele responda<br />

a determinados estímulos sensoriais e não a outros, por estar<br />

mais sensibilizado em virtude das alterações nos sensores capazes de<br />

gerarem respostas específicas e apropriadas à nova situação vivida. Se<br />

meu sistema receptor estiver estimulado internamente com respeito à<br />

fome, meu organismo ficará mais atento à possível presença de alimento<br />

no meio exterior (minha geladeira, a pastelaria); o mesmo acontecerá<br />

com respeito à irritação; n<strong>esse</strong> caso, em qualquer lugar e momento,<br />

estarei pronto <strong>para</strong> xingar ou brigar; também, poderei estar superestimulado<br />

com respeito ao sexo, ficando desperto e atento aos estímulos<br />

relacionados a essa área.<br />

As influências, genéticas e ambientais, bem como o uso de certas<br />

drogas, podem produzir grandes variações individuais na produção,<br />

liberação e efetividade de um determinado mecanismo do neurotransmissor.<br />

De certa maneira, a atividade dos sistemas de punição e de recompensa<br />

do organismo pode ser acessível ao portador através das emoções<br />

subjetivamente experimentadas por ele.<br />

Os seres humanos não são máquinas orgânicas que dão respostas<br />

constantes aos estímulos. O animal culto responde aos estímulos conforme<br />

<strong>esse</strong>s são definidos e interpretados.<br />

Durante os últimos meses de sua vida aquática, o feto torna-se<br />

assustado quando a mãe fala. Acontece que a baixa frequência do som<br />

provocado pela voz da mãe é transmitida através do corpo e do líquido<br />

amniótico, que filtra a alta frequência. Esse som que viaja através do<br />

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corpo, e não do ar, vibra contra a boca, mãos e corpo do feto. Esta bem<br />

sentida estimulação tátil – não auditiva – causa uma aceleração do<br />

coração e, em seguida, uma resposta exploradora quando o feto agarra<br />

o que está flutuando, (cordão umbilical e seu próprio dedo) sugando-os<br />

e provando o fluido amniótico.<br />

No estágio de desenvolvimento embrionário, a duração da memória<br />

biológica não excede a poucos minutos, pois durante <strong>esse</strong> estágio do<br />

desenvolvimento a memória existente é de curta duração. Portanto,<br />

caso as emoções da mãe provoquem excitação no feto, assim que a<br />

mãe se acalmar, o feto também ficará tranquilo.<br />

O feto não pode armazenar memórias capazes de serem evocadas<br />

através de palavras, pois, n<strong>esse</strong> período de vida, ainda não se acha<br />

desenvolvida a memória semântica (composição, através de símbolos,<br />

do percebido). Esta inicia seu desenvolvimento a partir dos dois ou três<br />

anos de idade. Nós só lembramos e comentamos, mesmo assim de<br />

forma rudimentar, eventos a partir d<strong>esse</strong> período. A idéia de que existe<br />

uma “memória fetal” capaz de ser recuperada mais tarde através de<br />

palavras não tem suporte empírico, ou seja, é uma crença não sustentada<br />

pelos conhecimentos científicos atuais.<br />

Mary Ainsworth mediu o choro das crianças após o nascimento;<br />

algumas choram 3 minutos por hora, outras, 20 minutos. A curva de<br />

choro cai no segundo trimestre e torna a subir no terceiro. Os meninos<br />

que são mais cuidados e tocados durante as interações dificilmente<br />

aumentam a quantidade de choro no terceiro trimestre, enquanto os<br />

mais isolados choram mais.<br />

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Emoções, sentimentos, memória<br />

e indivíduo<br />

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Emoção: A história de Geraldo<br />

Geraldo, um jovem de vinte anos de idade, descrito pelos amigos<br />

como sendo uma pessoa feliz, sempre gostou de esportes, principalmente<br />

de futebol e corridas. Como bom estudante de Direito, ele espera<br />

chegar bem alto na carreira de advogado. Naquela noite quente e<br />

abafada de novembro, Geraldo e seus amigos assentaram-se nas arquibancadas<br />

do estádio <strong>para</strong> assistir a uma partida de basquete. Enquanto<br />

esperava o início do jogo, Geraldo, segurando numa das mãos um<br />

pacote de pipocas, conversava animadamente com os amigos assentados<br />

ao lado. Vagarosamente, ele ia retirando, com as pontas dos dedos,<br />

algumas pipocas salgadas e ainda quentes que comprara ali mesmo e<br />

as colocava com prazer na boca enquanto ouvia as considerações dos<br />

companheiros acerca do jogo e observava moças sorridentes e belas<br />

que por ali passavam a procura de um lugar e, talvez, de um namorado.<br />

Alice, uma adolescente de cabelos curtos, passou diante do grupo<br />

e provocou o olhar e a cobiça de todos; Geraldo, no momento em<br />

que focalizava seus olhos bem abertos <strong>para</strong> a graciosa morena, sentiu<br />

uma ponta de tênis no seu traseiro. Desviou seu olhar e pensamento<br />

da moça <strong>para</strong> o ocorrido, ficando, por instantes, ligeiramente irritado.<br />

Mas, em seguida, ajeitou-se novamente na arquibancada, perdendo de<br />

vista a graciosa gazela de cabelos curtos. Ele continuou comendo pipocas<br />

e examinando, detidamente, as diversas jovens que por ali transitavam.<br />

Alguns minutos após o primeiro esbarrão, ele levou um segundo<br />

chute, no mesmo lugar. Neste instante, enrijeceu-se, agora bem mais<br />

irritado do que da primeira vez que recebeu o pontapé. Apesar disso,<br />

Geraldo ainda conseguiu manter-se controlado. Parou por instantes<br />

de comer a pipoca, calou-se, arredou como pôde, levando seu corpo<br />

um pouco mais <strong>para</strong> frente, imaginando, nessa posição, ficar livre dos<br />

chutes do vizinho de cima da arquibancada. Mas, mais uma vez, apesar<br />

dos seus esforços, ele não conseguiu evitar um terceiro esbarrão, mais<br />

forte ainda, quando algumas pipocas caíram ao chão.<br />

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Geraldo se enfureceu. Tenso e trêmulo, colocou o pacote de pipocas<br />

no piso, junto aos seus pés. Interrompendo a conversa tranquila, as<br />

brincadeiras e gargalhadas, ele levantou-se bruscamente, girou seu corpo<br />

<strong>para</strong> trás em direção ao desconhecido assentado no lance de cima<br />

da arquibancada, pre<strong>para</strong>ndo-se <strong>para</strong> agredi-lo caso este aceitasse a<br />

briga. Uma vez tendo girado totalmente o pescoço e tronco <strong>para</strong> trás,<br />

ele pôde, só agora, olhar e observar melhor, bem de frente, o mal-<br />

-educado e chato, o perturbador de seu sossego e lazer. Num rápido e<br />

completo exame do chutador, Geraldo teve sua atenção voltada <strong>para</strong><br />

os membros superiores do seu “agressor”. De suas mãos atrofiadas,<br />

desciam pequenos dedos disformes que nasciam logo abaixo dos<br />

ombros. Geraldo, ainda um pouco agitado e raivoso, ficou <strong>para</strong>lisado<br />

com o que viu. Ele, antes de perceber os braços do vizinho incômodo,<br />

estava possesso e decidido a “matar ou morrer” em defesa dos seus direitos,<br />

ou, no mínimo, bater ou apanhar, mas com honra. Agora, diante<br />

do que acabara de ver, sentiu sua raiva intensa e selvagem rapidamente<br />

ser consumida e transformada numa mistura de simpatia, perdão<br />

e até piedade <strong>para</strong> o agressor. Pálido, sorrindo sem graça, girou seu<br />

corpo novamente em direção ao campo de basquete. Ainda tremendo,<br />

abaixou-se pegando novamente o pacote de pipocas e enfiou seus dedos<br />

finos nele, segurando algumas delas com dificuldade e levando-as<br />

até sua boca seca. Ajeitou-se como pôde nas apertadas arquibancadas<br />

do estádio, chegando o traseiro o mais pra frente possível, pois assim<br />

esperava não ser mais chutado.<br />

Aqui termina a história de Geraldo…<br />

Comentários: Geraldo foi descrito como uma pessoa geralmente feliz,<br />

significando sua disposição habitual, possivelmente, uma condição<br />

geneticamente influenciada pelo seu sistema neural, operando mais<br />

ou menos de forma continuada, gerando um modo que caracteriza o<br />

estado emocional da pessoa. N<strong>esse</strong> caso, seu traço de um humor feliz<br />

significa uma pessoa animada; o mecanismo da atividade neural é atri-<br />

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151


uído a atividade neuroquímica. Na noite do jogo, talvez, instigado pela<br />

temperatura – um dia quente – ele sentiu mais a dor diante do impacto<br />

do chute no traseiro e, além disso, o sofrimento emocional foi aumentado<br />

pela interpretação formulada por Geraldo: “Isso é um abuso, uma<br />

falta de respeito”, aumentando ainda mais sua raiva já desencadeada.<br />

Tudo isso gerou o desejo ou a prontidão <strong>para</strong> agir, defender-se, quando<br />

girou o corpo pronto <strong>para</strong> agredir o torcedor distraído.<br />

Todo <strong>esse</strong> processo pode ser descrito como mudanças motoras e<br />

sensoriais, mas, também, por ter abandonado a pipoca que, por ser<br />

alimento, o acalmava, juntamente com o papo com os amigos, que<br />

também tem um efeito tranquilizador. A interrupção brusca das emoções<br />

agradáveis e calmantes , transformadas em emoções desagradáveis<br />

e com possibilidade de produzir resultados incertos, levou Geraldo<br />

a sofrer irritado, deixando por instantes sua animação e prazer com a<br />

vida que existiam antes dos chutes. A raiva, consequentemente, gerou<br />

certas condutas motoras expressivas (levantar-se, enrijecer-se, partir<br />

<strong>para</strong> a briga). O próprio ato de movimentar-se <strong>para</strong> brigar aumentou ou<br />

promoveu mais ainda a raiva inicial, conforme disse William James: “Se<br />

recusarmos a expressar a paixão, esta morre”.<br />

Mas a raiva existente no organismo de Geraldo, ao iniciar seu ataque<br />

ao “inimigo”, transformou-se, prontamente, em outras emoções<br />

após observar os braços e mãos do “agressor”. As novas emoções, bem<br />

diferentes das ocorridas antes do chutes e durante <strong>esse</strong>s, levaram-no<br />

não ao ataque, mas à compaixão, união, um desejo de ajudar, ou, no<br />

mínimo, de compreender o que aconteceu com o “agressor” distraído.<br />

Dessa forma, a avaliação do fato, “Tenho que agredir <strong>esse</strong> chato”, ao se<br />

transformar num novo julgamento: “Coitado: tem os braços defeituosos;<br />

não conseguirá me dar um murro”, fez mudar, também, as diversas<br />

emoções existentes em um ou em outro momento. As interpretações<br />

acerca dos chutes levados no traseiro passaram a ser perdoados, provocando<br />

novas emoções, diferentes das anteriores, entre elas, talvez, a<br />

piedade. Pode ainda ter pensado, se teve conhecimento <strong>para</strong> isso, que<br />

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o problema do vizinho talvez tenha sido o uso de talidomida por sua<br />

mãe durante a gravidez.<br />

Ao perceber e imaginar os problemas do agente de seus aborrecimentos<br />

anteriores, uma vez livre deles, Geraldo pode ter ficado envergonhado,<br />

sentindo-se culpado do que pensou e de sua ação inicial:<br />

querer brigar, bater, numa pessoa menos capacitada fisicamente. Essas<br />

considerações mentais podem ter originado simpatia e tristeza e, possivelmente,<br />

felicidade por não possuir o problema do “agressor”.<br />

Em resumo: Geraldo teve raiva e dor ao ser chutado, essas são emoções<br />

não-cognitivas; mais tarde, apresentou vergonha, piedade e tristeza<br />

e, novamente, felicidade pela com<strong>para</strong>ção; todas essas emoções são<br />

chamadas de cognitivas, ou seja, aprendidas e relacionadas à maneira<br />

de pensar cultural. Durante toda a descrição dos fatos, aconteceram<br />

diversos processos geradores de emoções: a disposição de Geraldo<br />

“feliz” é função de um sistema neural geneticamente influenciado que<br />

opera mais ou menos de forma continuada <strong>para</strong> gerar e manter esta<br />

característica emocional; as transformações no sistema de emoção ao<br />

ser chutado foram devidas às atividades neuroquímicas instigadas pelo<br />

ambiente (temperatura), ao processo emoção/dor que o levou à raiva,<br />

e aumento dessa pelas ações sensório/motoras/expressivas necessárias<br />

ao uso do pensamento: “Vou agredir <strong>esse</strong> chato”.<br />

As ações orientadas pelas emoções são utilizadas como defesa nas<br />

crianças de três semanas. Nessa idade, elas são capazes de sorrir junto<br />

ao seu cuidador quando começam a estabelecer vínculos que irão aumentar<br />

suas chances de sobrevivência; uma atitude que ocorre antes<br />

delas serem capazes de processar as informações com imagens, pensamentos<br />

e fazer uso da memória. Possivelmente, as expressões das<br />

emoções iniciais são inatas e universais, emergindo antes da criança<br />

ser capaz de defini-las.<br />

A literatura acerca da evolução nos sugere que o sistema emocional<br />

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precedeu o cognitivo na evolução. A emoção é um indicador, ou sinal,<br />

importante <strong>para</strong> que haja a adaptação do animal ao meio ambiente.<br />

Ela permite que o animal aja rapidamente – como fez Geraldo – diante<br />

das emoções sentidas ligadas às incertezas. Diante da dor provocada<br />

pelo fogo, por exemplo, retiramos a mão e, ainda, geralmente, ficamos<br />

com raiva; esta motiva ações defensivas e, às vezes, xingamentos.<br />

Por todas as razões acima descritas, o estudo das emoções, cada vez<br />

mais, tem demonstrado uma extraordinária importância. Mas ainda<br />

não está claro se o que é chamado emoção em um nível, relaciona-se<br />

ao que chamamos emoção em outro. Serão as emoções básicas como<br />

a felicidade, tristeza, medo e raiva, relacionadas às emoções mais<br />

primitivas como o impulso sexual, domínio ou poder? Quais seriam as<br />

ligações das emoções básicas com os níveis mais elevados das emoções<br />

como o orgulho, ciúme, vergonha ou remorso? Inter<strong>esse</strong>, tédio e<br />

curiosidade seriam emoções? O que se sabe da relação acerca dos fortes<br />

sentimentos associados aos julgamentos morais como admiração,<br />

veneração, desprezo, meditação, contemplação e ponderação? Quais<br />

são as bases da emocionalidade da simpatia, piedade ou compaixão e,<br />

também, da crueldade e da ferocidade?<br />

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O que é emoção?<br />

Duas correntes antagônicas discutem a expressão ou o controle das<br />

emoções. Uma supõe que as emoções devem ser expressas ou liberadas;<br />

<strong>para</strong> <strong>esse</strong>s, sua repressão (autocontrole) causaria problemas<br />

físicos ou fisiológicos. A outra corrente defende o controle das emoções<br />

através da razão; conforme essa idéia, nós podemos e devemos<br />

dominar nossas emoções e isso seria possível se usarmos nossa mente<br />

ou razão.<br />

Tudo faz crer que as duas correntes estão equivocadas: não existe<br />

raciocínio sem emoção. Nosso pensamento é guiado, na maior parte<br />

das vezes, pelas emoções sentidas e, além disso, é conveniente e<br />

necessário constantemente dominarmos e não expressarmos nossas<br />

emoções. Somos animais domesticados do ponto de vista sociocultural<br />

e, domesticados significa não liberarmos nossas emoções em toda e<br />

qualquer situação.<br />

Mas, o que é emoção? Emoção significa, literalmente, “movimento<br />

<strong>para</strong> fora”. Certos “movimentos <strong>para</strong> fora” são percebidos por outras<br />

pessoas; alguns, só pelo seu dono. O termo sentimento tem sido usado<br />

<strong>para</strong> definir a experiência mental provocada pela emoção, ou seja, a<br />

percepção e consciência da pessoa diante de sua própria emoção. De<br />

um modo concreto: sentimento é ficar irado e saber que está irado.<br />

Como as emoções podem ser, de maneira simplificada, agradáveis<br />

e desagradáveis, elas nos sinalizam se devemos ou não aproximar ou<br />

fugir da meta; podemos concluir que a motivação acha-se estreitamente<br />

ligada à emoção.<br />

Há uma grande diferença entre as pessoas quanto à procura <strong>para</strong> ser<br />

recompensado pela conduta exploratória e a fuga diante da possibilidade<br />

de sofrer. Por exemplo, os extrovertidos e os introvertidos diferem-<br />

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-se tanto na maneira de expressarem as emoções, como no modo de<br />

serem sensibilizados por estímulos idênticos. Essas d<strong>esse</strong>melhanças<br />

podem ser tanto geneticamente determinadas – relacionadas ao temperamento<br />

– quanto aprendidas socialmente.<br />

Emoções ou impulsos inatos<br />

Os milhares de eventos aleatórios que aconteceram no mundo exigiram<br />

das espécies continuadas adaptações <strong>para</strong> conviver com o meio<br />

incerto e constantemente em transformação. Algumas dessas adaptações<br />

e readaptações gerais, repetidas por longos períodos, foram<br />

mantidas em alguns organismos- padrões programados e adaptados<br />

– <strong>para</strong> sobreviverem conforme o meio particular. Entre <strong>esse</strong>s padrões<br />

mantidos e úteis a vários animais, estão os circuitos neurais capazes de<br />

possibilitarem a expressão de determinadas emoções, pré-organizadas,<br />

prontas <strong>para</strong> serem usadas diante de alguns estímulos percebidos no<br />

ambiente externo e, também, no próprio organismo do observador.<br />

Exemplos dessas emoções pré-organizadas são as reações emocionais<br />

como o medo que aparece diante de um animal de grande porte ou<br />

de uma grande envergadura (águias em vôo); certo tipo de movimento<br />

como os dos répteis; determinados sons como os rugidos; certos estados<br />

corporais como a dor sentida durante uma queimadura ou ataque<br />

cardíaco, bem como diversas outras situações.<br />

Os organismos mais simples, cujos cérebros incluem apenas estruturas<br />

arcaicas, como os répteis, não possuindo estruturas cerebrais<br />

evolutivamente modernas, executam, sem dificuldades, sua simplificada<br />

seleção de respostas diante do meio ambiente. No caso dos répteis<br />

não existe um “eu” consciente e complexo capaz de visualizar diversas<br />

decisões possíveis; existe apenas um conjunto rudimentar de circuitos<br />

neurais que comandam a conduta de forma mais ou menos automática,<br />

não-reflexiva e, sobretudo, simples; uma vida com poucas escolhas.<br />

Os impulsos básicos como a fome, a sede, a dor e as emoções bioló-<br />

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gicas como a ativação física e mental, a aproximação ou fuga, a luta e<br />

o acasalamento, todos, constituem conjuntos de eventos envolvendo<br />

incertezas em função da relação do organismo com o meio ambiente.<br />

O sistema motivacional/emocional dos organismos mais simples detecta<br />

ou lê, internamente, as emoções surgidas no seu organismo diante<br />

disso ou d<strong>aqui</strong>lo. A partir d<strong>esse</strong> alerta interno, inicia-se a prontidão ou<br />

a atenção voltada <strong>para</strong> examinar o ocorrido interna ou externamente,<br />

<strong>para</strong> aproximar ou fugir conforme os sinais surgidos ou produzidos pela<br />

modificação do estado corporal. Podemos concluir que a condição necessária<br />

e suficiente <strong>para</strong> a existência das emoções consiste na leitura,<br />

em resposta aos estímulos desafiadores ou provocadores, dentro e fora<br />

do organismo.<br />

A cognição nos seres humanos, com a evolução, tornou-se interligada<br />

ao antigo sistema motivacional/emocional. A função cognitiva<br />

aumentou ainda mais as informações possíveis <strong>para</strong> a sobrevivência do<br />

organismo particular, ou seja, uma resposta mais sofisticada diante dos<br />

acontecimentos eventuais. Resumidamente: os organismos mais evoluídos<br />

e complexos, diante das incertezas, utilizam-se, além dos circuitos<br />

primitivos, simples e automáticos, comuns a outros animais, circuitos<br />

mais complexos, relacionados a neocórtex – setor mais moderno do<br />

cérebro – facilitando a realização de respostas sofisticadas aprendidas<br />

durante a vida de cada um.<br />

Durante a evolução, todos os organismos, <strong>para</strong> sobreviverem, desenvolveram<br />

sistemas perceptuais que podiam informá-los tanto da<br />

existência das provisões do meio terrestre, como de possíveis predadores<br />

e, também, da possibilidade de contato com outros organismos da<br />

mesma espécie com os quais poderiam relacionar-se formando grupos<br />

de apoio ou, ainda, acasalar-se. É d<strong>esse</strong> modo que o organismo fica<br />

informado ou orientado <strong>para</strong> agir em direção a uma ou outra meta, a<br />

atraente ou a perigosa. As várias emoções, algumas opostas (prazer/<br />

desprazer), são geradas pelas informações que emergem durante encontros<br />

entre o organismo e o meio ambiente.<br />

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Sentimentos: Afetos secundários<br />

A reação emocional pode atingir alguns objetivos úteis: esconder-se<br />

rapidamente de um predador, retirar a mão do fogo antes de queimá-<br />

-la, expressar raiva em relação ao competidor, rosnar e latir, “fechar<br />

a cara”, elevar o tom de voz, xingar nomes simbolizando ameaças e<br />

desdém etc.<br />

Mas o processo não termina aí, pois, nos seres humanos, há uma outra<br />

fase: podemos sentir a emoção existente em nosso organismo, isto<br />

é, a sensação percebida associada ao objeto desencadeador. Assim,<br />

temos consciência de que algo está sendo perigoso ou, ao contrário,<br />

agradável, isto é, percebemos o estado emocional corporal provocado<br />

por alguma coisa ou pessoa. Este conhecimento, que de fato é um conhecimento<br />

sobre o conhecimento – chamado de meta-conhecimento<br />

– indica que algo, acerca de algo, foi percebido e sentido.<br />

Através dos sentimentos, o indivíduo pode sentir determinadas emoções<br />

ao enfrentar uma certa situação ou, também, senti-la sem vivenciar<br />

a situação, apenas imaginando-a ao supor situações semelhantes<br />

já vividas. Os sentimentos tornam-se os “qualificadores” da coisa que<br />

é percebida/sentida ou recordada, como nos exemplos: “Gostei de ir<br />

ao Rio de Janeiro”; “Detesto São Paulo”; “Não gostei do filme”; “Fiquei<br />

encantado com a música” etc. Ao pensarmos dessa forma, estamos<br />

“lendo” o estado do nosso corpo diante de cenas experimentadas ou<br />

imaginadas. Isso é o que chamamos de sentimentos.<br />

Os sentimentos são tão cognitivos como qualquer outra percepção.<br />

Se não existisse a possibilidade de sentir os estados dolorosos ou<br />

agradáveis do organismo, não haveria sofrimento ou felicidade entre<br />

os homens. Podemos afirmar que as emoções e os sentimentos são<br />

os sensores <strong>para</strong> o corpo durante seu encontro real ou virtual (imaginário)<br />

com alguma coisa do ambiente, entre a natureza individual e as<br />

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circunstâncias externas – inclusive o próprio eu físico e mental. Assim,<br />

as emoções/sentimentos servem como alertas – indicadores internos<br />

– ajudando-nos a nos informar, ou a outras pessoas, nossos estados<br />

corporais. É uma característica altamente importante <strong>para</strong> nossa sobrevivência<br />

quando bem “lida” e usada.<br />

Uma vez conscientes dos sentimentos – ajudados pela parte mais<br />

nobre do cérebro – podemos interpretar as emoções sentidas e sua<br />

relação com os fatos e, d<strong>esse</strong> modo, organizar e classificar as situações<br />

concretas e os sentimentos relacionados, sob a forma de conceitos,<br />

hierarquias e, ainda, relacionar uns com os outros. Isso nos permite<br />

adquirir e elaborar estratégias mais eficientes <strong>para</strong> raciocinar e tomar<br />

decisões mais sábias; o que não acontece com muita frequência.<br />

A conduta final, produto acabado da seleção de determinada resposta<br />

motora, fruto das composições desejadas e sentidas, situa-se<br />

da quebra de um vaso na cabeça do inimigo, dos berros e nomes feios<br />

expressos com ódio, até o abraço amigo do filho, a composição de um<br />

conto, o telefonema pesaroso, ou, ainda, executar “Carinhoso”, suavemente,<br />

na flauta.<br />

O estado corporal existente num e noutro momento, ruim e negativo,<br />

ou agradável e positivo, dependendo da disposição do organismo,<br />

fornece tanto o que vamos pensar (sua forma), como a maior ou<br />

menor rapidez da nossa mente. Exemplificando: quando o estado do<br />

organismo encontra-se na faixa positiva (espectro agradável de sentimentos,<br />

satisfação, alegria), há uma alteração no pensamento no<br />

sentido de tornar mais rápido e mais rico em idéias. Assim, uma pessoa<br />

mais feliz ou alegre terá um modo de pensar mais rápido e mais produtivo.<br />

Ao contrário, quando a condição corporal é negativa (sentimentos<br />

desagradáveis e pessimistas) ocorre o pensamento lento, repetitivo e<br />

pobre. Assim, a pessoa é mais produtiva se está eufórica e animada e<br />

improdutiva se triste e desanimada.<br />

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159


Nos seres humanos, bem como em muitos animais, manifesta-se a<br />

sensação da emoção diante do objeto que a desencadeou e, ao mesmo<br />

tempo, diante da percepção do objeto causador do estado emocional<br />

corporal. Sabemos que o animal – e nós – experimentará certas emoções<br />

diante da visão do alimento ou de seu tratador antes de começar<br />

a ingerir a comida; também, diante do que lhe deu uma surra por ter<br />

urinado no tapete. Essa consciência proporciona uma estratégia de<br />

proteção ampliada, levando o animal a se pre<strong>para</strong>r melhor <strong>para</strong> evitar<br />

ou aproximar-se da experiência prazerosa ou ruim. Mas há outras<br />

vantagens: ao sentir a própria emoção, torna-se possível generalizar o<br />

conhecimento e acautelar-se diante de situações semelhantes.<br />

Nos seres humanos, apenas as estruturas do sistema límbico (amígdala<br />

e cíngulo) não são capazes de sustentar o complexo processo das<br />

emoções secundárias ou aprendidas, a rede é ampliada pelos córtices<br />

pré-frontais e somatossensoriais. Vamos a um exemplo do aparecimento<br />

da emoção secundária. Gabriel encontrou Inês. Eles, ex-namorados,<br />

não se viam há anos. Na conversa mantida, ele ficou a par de vários<br />

problemas que ela enfrentou durante os últimos meses. Ao ouvir o<br />

relato de Inês, ele experimentou algumas emoções: antes da informação,<br />

o cérebro de Gabriel formou as novas imagens a respeito dela e,<br />

ao mesmo tempo, recuperou antigas lembranças de encontros anteriores,<br />

entre elas, o aspecto físico atual e passado de Inês; ao mesmo<br />

tempo, comparou seu próprio corpo presente e antigo. Ao criar tais<br />

imagens e compará-las, seu coração bateu mais depressa, houve uma<br />

ligeira mudança da coloração da pele, os músculos da face tornaram-se<br />

diferentes, mostrando uma expressão feliz pelo encontro. Além disso,<br />

houve pequenas mudanças no funcionamento visceral e no cérebro, ao<br />

liberar moduladores peptídeos lançados na corrente sanguínea, produziu-se<br />

uma transformação no sistema imunológico; houve, também,<br />

uma mudança no ritmo da atividade dos músculos lisos das artérias<br />

levando a pressão arterial a aumentar.<br />

Em resumo, o encontro de Gabriel e Inês produziu emoções e pen-<br />

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160


samentos nos dois organismos envolvidos, conforme a maneira como<br />

cada um deles pensou acerca do acontecimento, das relações entre<br />

eles passadas, das condições atuais e das predisposições corporais de<br />

cada um Portanto, ocorreu uma sucessão continuada de alterações de<br />

emoções, motivações e cognições e, também, de mudanças fisiológicas,<br />

variando das mais fracas as mais fortes`, conforme o que foi conversado,<br />

bem como as recordações recuperadas, e da maneira de um e<br />

de outro reagir ao encontro. Conclui-se que as disposições pré-frontais<br />

adquiridas – aprendidas – durante a vida pós-nascimento, necessárias<br />

à existência das emoções secundárias, são distintas das disposições<br />

inatas também chamadas de primárias (não-aprendidas), necessárias<br />

às emoções iniciais da pessoa.<br />

As emoções aprendidas, <strong>para</strong> serem expressas, necessitam do bom<br />

funcionamento das emoções inatas ou primárias. Entre os pacientes<br />

portadores de lesões pré-frontais, o processamento emocional, se<br />

deteriorado, se limitará às emoções secundárias. Mas, as estruturas<br />

que detonam as emoções primárias precisam estar intactas, pois, se<br />

isso acontecer, os pacientes continuam a expressar as emoções primárias:<br />

medo ou raiva repentina. Os pacientes que apresentam lesões das<br />

estruturas associadas às emoções primárias apresentam diminuição<br />

tanto das emoções primárias como das secundárias, isto é, não expressam<br />

nenhuma emoção.<br />

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161


Memória, Aprendizagem e<br />

Pensamento<br />

Aprendizagem e memória são conceitos fundamentais <strong>para</strong> a noção<br />

da individualidade. Nossa maneira peculiar de pensar, sentir e agir<br />

depende do que aprendemos e armazenamos em nossa memória durante<br />

nossa vida. Ora, como cada indivíduo vive experiências diferentes<br />

e particulares, tendo também uma idade, profissão, irmãos, colegas,<br />

professores e muitas outras coisas mais desiguais, as pessoas terão,<br />

forçosamente, memórias e histórias <strong>para</strong> contar diversas, bem como<br />

mentes singulares <strong>para</strong> assimilar novos conhecimentos.<br />

Aprendemos pelas experiências e o número delas é literalmente<br />

infinito. A aprendizagem é um processo pelo qual nós adquirimos novos<br />

conhecimentos; memória é o processo pelo qual nós retemos este<br />

conhecimento obtido. Assim, podemos dizer que o aprendizado pode<br />

ser definido como a <strong>aqui</strong>sição de memória; cada um de nós adquire<br />

memórias diferentes.<br />

Nosso cérebro, automática e continuamente, filtra estímulos do<br />

meio interno e externo; não deixa passar a maioria deles por não ter<br />

importância <strong>para</strong> nós naquele instante, deixando entrar apenas os<br />

relevantes. Os estímulos que passam pelo filtro existente na parte mais<br />

primitiva do cérebro atingem, em seguida, as áreas mais modernas,<br />

dando origem à formação da segunda fase da cadeia cognitiva: a organização<br />

dos estímulos que passaram pelo filtro inicial e mais primitivo.<br />

De outro modo, alguns estímulos tiveram acesso livre através do portão<br />

selecionador do sistema talâmico, foram aceitos devido à suposta<br />

importância de seu conhecimento <strong>para</strong> o organismo.<br />

A cognição (pensamento) é definida como o processamento de<br />

novas informações – as que atravessaram a barreira do filtro do tála-<br />

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162


mo – através de antigos conhecimentos básicos já existentes que<br />

foram armazenados através da experiência do indivíduo. Tem sido<br />

verificado que o cérebro economiza esforço através do uso de experiências<br />

anteriores, preservando, de forma condensada, idéias (modelos,<br />

esquemas, padrões) de situações já vivenciadas antes, tudo isso facilita<br />

a compreensão das informações que aparecem. Através d<strong>esse</strong>s resumos<br />

esquemáticos de conhecimentos anteriores, as novas informações<br />

recebidas são organizadas e processadas. O modelo representa, portanto,<br />

padrões de pensamentos adquiridos durante o desenvolvimento<br />

do indivíduo.<br />

Os que adquiriram erros lógicos do pensamento durante o período<br />

de desenvolvimento, trabalharão no futuro com “redes” ou “esquemas”<br />

defeituosos <strong>para</strong> avaliar as informações futuras e, consequentemente,<br />

estarão predispostos a experimentar mais problemas futuros.<br />

Os termos, inferências arbitrárias, abstrações seletivas, supergeneralizações<br />

e minimizações têm sido usados <strong>para</strong> descrever as distorções<br />

existentes ou erros cognitivos básicos, de outro modo, classificar o<br />

“pau nascido torto” e suas consequências <strong>para</strong> o aprendizado futuro<br />

que leva a pessoa a cometer erros sistemáticos ao avaliar novas<br />

informações, pois há um “defeito” no seu assimilador mental. Essas<br />

cognições (raciocínios, pensamentos) são automáticas, involuntárias e<br />

altamente plausíveis <strong>para</strong> o seu possuidor. Os esquemas podem representar<br />

a base da memória de trabalho da pessoa, isto é, a memória<br />

utilizada pelo indivíduo no momento de sua conversa, leitura <strong>para</strong><br />

compreender o escutado, lido ou pensado. Uma vez compreendida a<br />

informação, pode ocorrer a resposta final do processo da pessoa diante<br />

de uma informação: a execução motora da ação.<br />

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163


Duas Memórias: Procedimento e<br />

Declarativa<br />

As memórias podem ser divididas em duas grandes classes quanto à<br />

origem do conhecimento memorizado:<br />

Uma memória, fruto dos acontecimentos que se sucederam na<br />

vida particular do indivíduo; esta é uma memória instável, confusa,<br />

desorganizada, mistura de ruídos falsos e verdadeiros;<br />

Uma outra memória nascida dos genes; esta é inata, estável, abastecida<br />

pelos acontecimentos organizadores de um passado anterior ao<br />

indivíduo, bem protegida contra o “ruído” e a informação circulante.<br />

As duas memórias trabalham juntas: a dos genes possibilita a <strong>aqui</strong>sição<br />

das memórias ocorridas após o nascimento. Deve ser lembrado<br />

que cada espécie apresenta potencialidades diferentes <strong>para</strong> aprender<br />

conforme as facilidades e limitações fornecidas pelos genes do indivíduo.<br />

Por outro lado, dentro da mesma espécie, alguns indivíduos possuem<br />

cérebros que são melhores arrumados, capazes de adaptarem-se<br />

melhor às estimulações do meio ambiente desde a infância; podendo<br />

aprender mais, podem se tornar mais “inteligentes”.<br />

A memória disponível <strong>para</strong> cada pessoa numa certa idade estabelece<br />

a individualidade de cada um. Somos quem somos porque nos lembramos,<br />

não só de quem somos, mas, também, como nós fomos e onde<br />

queremos chegar.<br />

Memórias, procedimento e declarativa<br />

Inicialmente, deve ser lembrado que nenhuma das memórias estudadas<br />

localiza-se num só lugar; todas envolvem circuitos complexos. A<br />

memória tem sido dividida em vários tipos e, frequentemente, autores<br />

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diferentes, dão nomes diversos <strong>para</strong> o mesmo tipo de memória.<br />

Dois tipos de memórias têm sido descritos: a memória de procedimento<br />

(também chamada de processo, não-consciente, implícita, de<br />

atividades), e a memória declarativa (recebendo ainda os nomes de<br />

episódica, consciente, de eventos e explícita). Uma terceira memória<br />

descrita, a memória de trabalho, que não será descrita <strong>aqui</strong>, é considerada<br />

como um ramo ou subtipo da memória declarativa.<br />

Os pesquisadores concordam que o uso dos dois sistemas de memórias<br />

é uma regra mais do que uma exceção; as duas se sobrepõem, são<br />

usadas conjuntamente; assim, ambas são recrutadas nas experiências<br />

de aprendizagem. Na verdade, uma repetição constante de uma ação<br />

pode transformar a memória declarativa (explícita) numa de procedimento<br />

ou implícita, como pode ser observado na experiência de<br />

aprender a dirigir um veículo. N<strong>esse</strong> caso, há, inicialmente, um envolvimento<br />

de um processo consciente, depois, automático ou inconsciente<br />

– o motorista perito não fica pensando, ao dirigir, como ele aprendeu e<br />

cada detalhe do aprendizado.<br />

Memória de Procedimento (Processo mental inconsciente)<br />

A memória de procedimento relaciona-se a atividades que são memorizadas<br />

como ações: nadar, escrever, tocar um instrumento, digitar,<br />

andar de bicicleta etc. Esta memória é aprendida lentamente, armazenada<br />

através de atos repetitivos, após diversas tentativas, envolvendo<br />

a associações de estímulos sequenciais. Ela permite o armazenamento<br />

de informações acerca de relações entre acontecimentos, que são expressas,<br />

primariamente, pela melhoria dos processos de atuação – não<br />

pela familiaridade com certas tarefas – sem que o sujeito seja capaz de<br />

descrever exatamente o que e como foi aprendido. Envolve, portanto,<br />

sistema de memória que não tem acesso ao conteúdo do conhecimento<br />

geral do indivíduo. Por isso é chamada de memória de processos<br />

e não-consciente. Esta memória relaciona-se, anatomicamente, a<br />

ativação de sistemas sensoriais e motores comprometidos na tarefa<br />

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165


da aprendizagem; adquirida e retida devido à plasticidade do sistema<br />

nervoso, que varia de indivíduo <strong>para</strong> indivíduo como um bom e mau<br />

jogador de futebol, vôlei, tênis etc.<br />

A memória de procedimento (inconsciente) inclui vários processos e<br />

estes envolvem diversas áreas cerebrais:<br />

O reconhecimento do estímulo encontrado é uma função dos córtices<br />

sensoriais;<br />

A <strong>aqui</strong>sição de várias pistas dos estados afetivos sentidos envolve a<br />

amígdala (uma região do cérebro);<br />

A formação de novos hábitos motores e, talvez, hábitos cognitivos,<br />

exige o neo-estriatum;<br />

A aprendizagem de ações motoras novas ou a coordenação de<br />

novas atividades irá depender do cerebelo. D<strong>esse</strong> modo, diferentes<br />

situações vividas e, consequentemente, certas experiências de aprendizagem,<br />

estimulam o cérebro, fazendo entrar em ação diferentes<br />

subconjuntos de áreas, que agem em combinação com os sistemas de<br />

memória explícita localizados, principalmente, no hipocampo.<br />

Tem sido aceita por alguns teóricos a idéia de que o desenvolvimento<br />

da conduta moral também seria adquirida através de meios<br />

da memória de procedimento e inconsciente. Para seus defensores, a<br />

pessoa geralmente não se lembra de forma consciente de que modo e<br />

em quais circunstâncias ela assimilou as regras morais que governam<br />

suas avaliações e a conduta moral ou ética. Sabe-se que essas foram<br />

adquiridas quase automaticamente, como as regras da gramática que<br />

usamos sem pensar e que governam cada linguagem nativa.<br />

Memória Declarativa (O Processo Mental Consciente)<br />

A memória declarativa tem sido também chamada de memória consciente,<br />

semântica, episódica, de evento, de conhecimento, de lugares<br />

etc. Ela, que envolve associações de estímulos simultâneos, permite o<br />

armazenamento de informações acerca de um acontecimento simples<br />

que ocorre num tempo e lugar particular, podendo ser aprendida e<br />

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166


usada após uma única tentativa. De posse dessa memória, possuímos<br />

um sentido de familiaridade com o fato, pessoa, lugar, daí o nome de<br />

memória episódica, relacionada ao episódio.<br />

Existem dois tipos de memórias declarativas: uma de curta duração<br />

(de 3 a 4 horas), outra de longa duração (acima de 6 horas, podendo<br />

durar dias, meses e anos). A primeira encarrega-se dos processos<br />

declarativos enquanto pode-se formar ou não uma outra memória, a<br />

de longa duração. Esta última, ao contrário da de curta duração, requer<br />

uma cascata bioquímica complexa no hipocampo, que geralmente<br />

leva horas <strong>para</strong> se instalar e poder, posteriormente, ser recuperada ou<br />

resgatada.<br />

A memória declarativa é adquirida através de circuitos que ligam<br />

diversas regiões do córtex, principalmente os circuitos envolvidos com<br />

a memória de trabalho e com o hipocampo. Assim é que lesões de<br />

certa gravidade na região do lobo temporal não impedem o aprendizado<br />

da memória de procedimento, apesar de dificultar ou impedir o da<br />

memória declarativa, (episódica). De outro modo, essa região do lobo<br />

temporal, principalmente o hipocampo, é responsável apenas pelo tipo<br />

de memória declarativa e não a de procedimentos.<br />

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O Eu e a Regulação Interna<br />

O nosso “eu”- Maria, José, Lúcia, Antônio – pode ser entendido como<br />

uma associação composta de diversos “eus” interdependentes que se<br />

comunicam continuamente: o eu auto-eficácia, o eu auto-estima, ou o<br />

eu pai, filho, namorado, aluno etc. Existindo, como existe um grupo de<br />

várias pessoas, o “eu” global – se é que existe isso – trabalha com todas<br />

as partes bem coordenadas de cada um dos “eus” ao mesmo tempo.<br />

Mas nem tudo são flores; com frequência, essa harmonia entre os<br />

vários “eus” é quebrada, isto é, falha. Não é raro observarmos alguns<br />

“eus” menores e semipartidos agirem isoladamente ou, também,<br />

terem ações uns contra os outros, como tem sido descrito, de maneira<br />

dramática, nos Transtornos de Dupla ou Tripla Personalidade.<br />

O eu é a maior estrutura do sistema cognitivo; é ele que circunda e<br />

relaciona todas as informações relevantes derivadas da vida da pessoa.<br />

O indivíduo pode ser examinado, por exemplo, como tendo uma<br />

alta ou baixa auto-estima somente quando seus pensamentos e sentimentos<br />

acerca dele mesmo estejam organizados de uma maneira que<br />

indica uma avaliação relativamente coerente d<strong>esse</strong> aspecto.<br />

Do mesmo modo que um grupo de amigos, ou colegas, não pode ser<br />

reduzido aos componentes individuais, não caracterizando as relações<br />

funcionais entre eles, assim também o eu total não pode ser reduzido a<br />

um e outro eu isolados; neste caso, não poderíamos chamá-los de grupo<br />

ou de eu. Por definição sabemos que o grupo dos atleticanos tem<br />

em comum torcer pelo Atlético. Assim também a mente não pode ser<br />

reduzida a mecanismos se<strong>para</strong>dos, sem levar em conta a influência de<br />

uma parte sobre a outra, tendo tanto as ações como os pensamentos<br />

coordenados.<br />

Assim como ocorre com cada indivíduo que faz parte do grupo dos<br />

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168


atleticanos, no caso de Pedro ou de Maria – uma pessoa particular<br />

– algumas funções cognitivas isoladas e diferentes, produzidas por<br />

estruturas específicas diversas, funcionam em <strong>para</strong>lelo umas com as<br />

outras, interagindo entre elas, visando a produzir estruturas e funções<br />

de ordem mais elevada, com novas propriedades, isto é, diferentes das<br />

existentes em cada uma das funções isoladas. Exemplificando: sabemos<br />

que existem atleticanos altos e baixos, gordos e magros, pobres<br />

e ricos, mas todos são chamados de atleticanos por interagirem, num<br />

certo momento, formando um grupo que torce pelo Atlético. De outro<br />

modo: indivíduos, isolados, reúnem-se, num certo momento, <strong>para</strong><br />

exibir o que têm de comum: torcer e morrer pelo Atlético. Assim, a<br />

influência mútua entre os indivíduos gordos e magros, velhos e novos,<br />

como no caso dos atleticanos, conduz a emergência de fenômenos de<br />

nível social tais como certas formas de comentar, comportar-se, agir<br />

em certos dias, ou seja, certas “normas” de opinião pública, valores e<br />

condutas.<br />

Podemos pensar que, tanto as estruturas mentais do indivíduo particular,<br />

com as dos grupos, estão aprisionadas em modelos de relação ou<br />

ligação, padrões <strong>esse</strong>s que sugerem certas funções complexas – vestir a<br />

camisa preta e branca, gritar “galo”, soltar foguetes, conforme o ocorrido<br />

etc. que resultam das interações entre os componentes do grupo,<br />

uns atuando nos outros, e determinadas idéias gerais que emergem do<br />

grupo atuam sobre todos os componentes. O grupo pode ser caracterizado<br />

como uma coleção de indivíduos interconectados por ligações;<br />

cada um irá influenciar e é influenciado pelos outros com os quais ele<br />

mantém <strong>esse</strong> tipo, apenas <strong>esse</strong>, de relação. Do mesmo modo, o eu<br />

geral de cada um de nós é influenciado pelos diversos “eus” se<strong>para</strong>dos<br />

e influencia os outros.<br />

A mente (espírito, alma, eu ou consciência) revela ou reflete o mundo<br />

circundante particular de cada homem; mas também mostra sua<br />

própria operação interna, ou seja, a maneira particular de organizar os<br />

conteúdos acerca do seu mundo. A natureza reflexiva – o exame de si<br />

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169


mesmo – da mente – fornece a base <strong>para</strong> a apreensão e conhecimento<br />

do eu. A representação do eu que resulta d<strong>esse</strong> espelho, reflexo de milhões<br />

de pensamentos e sentimentos experimentados pelo eu, formam<br />

uma estrutura altamente complexa, difícil de ser entendida.<br />

Para a construção de uma imagem de si mesmo como bom jogador<br />

de futebol, o jovem craque necessita integrar um amplo conjunto de<br />

fatos e avaliações pertinentes já vividas e experimentadas: o sucesso<br />

n<strong>aqui</strong>lo que está sendo avaliado. Isso vale <strong>para</strong> qualquer área. Certos<br />

pensamentos específicos acerca do eu, por exemplo, acerca de suas habilidades<br />

futebolísticas, podem estimular ou ativar outros pensamentos<br />

relacionados armazenados em sua mente (memória autobiográfica), os<br />

quais, uma vez recuperados, expostos à consciência, tornam-se aptos<br />

<strong>para</strong> serem reorganizados em grupos de novas ou de antigas ordens,<br />

que podem ser cada vez mais elevadas; o novo conjunto formado pode<br />

produzir outros conceitos ou auto-avaliações.<br />

Para entender melhor, vou exemplificar: um pensamento acerca de<br />

um encontro social poderá trazer à mente outros encontros sociais já<br />

ocorridos e ligados a este. Durante o encontro, podem emergir, tornando-se<br />

conscientes, avaliações globais acerca de nossa habilidade social<br />

e, também, fornecendo padrões e prescrições com respeito de como<br />

devemos nos comportar no futuro. Não devemos nos esquecer, é claro,<br />

que a mente pode ser um “terreno desordenado <strong>para</strong> fantasias”; este<br />

estilo, cada vez mais, parece estar aumentando por culpa do hemisfério<br />

esquerdo, que é adepto das ficções e não da realidade, como acontece<br />

com o hemisfério direito, que é mais observador.<br />

O eu fornece também a integração <strong>para</strong> as várias estruturas psicológicas.<br />

Os auto-esquemas existentes em cada eu singular irão influenciar<br />

as condutas do indivíduo, bem como organizar os julgamentos acerca<br />

delas. Mas sempre a organização é uma propriedade que emerge –<br />

como no caso dos torcedores – derivada das interações existentes<br />

entre os elementos. N<strong>esse</strong> processo, cada elemento particular adota<br />

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um estado que conduz a um alinhamento com o estado dos outros elementos<br />

importantes. Um bom exemplo é a observação das bolhas de<br />

ar que aparecem quando a água começa a ferver. Até um certo ponto,<br />

elas estão desordenadas, sozinhas, desligadas. Ao começar a fervura,<br />

há um certo movimento em uma direção; a partir daí, quase todas elas<br />

se movimentam de um só modo.<br />

Nós, com frequência, agimos como a bolhas de ar da água fervente.<br />

Do mesmo modo que na panela nem todas as bolhas seguem a maioria,<br />

no eu, também, alguns poucos elementos do eu podem discordar<br />

dos outros, sendo incompatíveis e mesmo inimigos que não suportam<br />

aparecer na mesma consciência ao mesmo tempo; como certas pessoas<br />

que não podem ficar perto uma da outra numa reunião.<br />

É muito difícil ou impossível manter uma amizade e, ao mesmo tempo,<br />

competir com nosso amigo, mesmo sendo nosso cônjuge. Também,<br />

é impossível ser “educado” e, ao mesmo tempo, espontâneo, pois este<br />

último conceito indica não seguir as regras. Alguns “eus” isolados podem<br />

ainda estar em conflito por outras causas; se um eu meu é inimigo<br />

de Pedro, fica difícil <strong>para</strong> um outro eu meu ser amigo de André – uma<br />

terceira pessoa – que é amigo de Pedro, isto é, do meu inimigo. Esse<br />

fato é visto com frequência durante as se<strong>para</strong>ções; fica problemático<br />

e difícil <strong>para</strong> o filho gostar do pai que a mãe fala mal e detesta, isto é,<br />

gostar do inimigo da mãe/amiga.<br />

É comum observar um elemento do sistema do eu – um eu isolado-<br />

interagir somente com um número limitado de elementos da vizinhança.<br />

Assim, não só é impossível como desnecessário cada elemento<br />

interagir com cada outro; nossa competência <strong>para</strong> falar em público não<br />

precisa ser considerada com respeito a nossa efetividade em torcer<br />

pelo atlético ou nossa habilidade <strong>para</strong> descascar abacaxis ou fazer uma<br />

salada de alface.<br />

Mas agir de um certo modo, realizando um dado papel, significa<br />

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comportar-se de maneira tal que esta esteja coerente com o exigido<br />

em outros papéis. Vamos ao exemplo: <strong>para</strong> ser torcedor do Atlético o<br />

meu eu terá que gostar também de futebol, provavelmente de esportes<br />

de maneira geral, assistir jogos nas TVs, ler páginas de esporte nos<br />

jornais etc. Cada uma dessas ações encontra-se interligada e em harmonia<br />

com o meu papel de torcedor do Atlético, que na verdade não<br />

sou, pois sou mais cruzeirense. Portanto, qualquer ação está sujeita à<br />

confirmação – ou não-confirmação – de outras influências.<br />

Se um elemento – conduta ou pensamento – está bem integrado aos<br />

outros elementos, ele receberá mais influência e apoio d<strong>esse</strong>s elementos<br />

e, n<strong>esse</strong>s casos, ocorre mais segurança interna; fica mais fácil<br />

resistir aos desafios que ocorrem pelas informações vindas de fora que<br />

não estão de acordo com a conduta. Aqui retorno a pensar no grupo<br />

dos atleticanos; qualquer ação de um membro do grupo está sujeita<br />

à crítica ou apoio dos outros elementos. Se a ação é bem integrada às<br />

normas do grupo, o torcedor ficará mais seguro e poderá enfrentar<br />

melhor o desafio provocado pelas torcidas inimigas, como a cruzeirense.<br />

Um indivíduo isolado fica mais vulnerável às influências e pressões<br />

externas, enquanto que o mesmo indivíduo fazendo parte de uma<br />

rede social de apoio tende a resistir mais, mesmo no caso de intensas<br />

pressões sociais.<br />

Os estudos com o eu e com os grupos mostram que, comumente,<br />

surgem padrões de comportamentos que só emergem nos grupos,<br />

nunca no indivíduo isolado. Um bom exemplo disso são as quebradeiras,<br />

incêndios em ônibus, roubos grupais, depredações, pichações,<br />

vandalismos, certos tipos de sexo etc. Assim como existem ações de<br />

grupos destruidoras, existem ações benéficas; os grupos podem ser<br />

formados <strong>para</strong> realizarem condutas pró-sociais diante de catástrofes;<br />

nessas ocasiões são comuns o aparecimento de ações cooperativas<br />

entre indivíduos. Tanto num caso como em outro, os indivíduos envolvidos<br />

são afetados pela conduta anti-social ou pró-social que poderá<br />

trazer mudanças transitórias ou duradouras <strong>para</strong> sua vida futura.<br />

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172


Para finalizar essas idéias, deve ser lembrado que cada elemento do<br />

eu pode ser caracterizado com respeito a sua atual avaliação: uns são<br />

positivos, outros negativos; ou com respeito a sua posição: uns são<br />

mais centrais, agindo com maior peso, maior papel e influência, outros,<br />

mais periféricos, com menor potência. Assim, se é central ou importante<br />

<strong>para</strong> Pedro chamar a atenção das pessoas, ele irá procurar agir de<br />

modo a fazer brincadeiras, elogios, brigar, chorar etc., em resumo, tudo<br />

<strong>aqui</strong>lo capaz de provocar atenções.<br />

Um sistema autopoiético (que vive <strong>para</strong> organizar a si mesmo, caso<br />

do homem) deve possuir individualidade (ser único, singular). Essa<br />

identidade resulta de sua diferenciação genética inicial e, mais tarde,<br />

de sua ativa e continuada relação com situações de “não-eus” – o<br />

meio ambiente, incluindo outros indivíduos diferentes. A identidade é<br />

construída e conservada ativamente diante das perturbações encontradas<br />

no meio ambiente. Assim nasce o “eu”, que é, ao mesmo tempo, o<br />

conhecedor e o conhecido.<br />

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173


Confidências à Meia-Noite<br />

São nove e meia da noite: o telefone toca insistentemente. Pau lo,<br />

cinquenta e dois anos, administrador de empresas, olha as horas no<br />

relógio dependurado na parede. Apesar de cansado, após ter lecionado<br />

todo o dia, ele se encontra animado e feliz. Resolve aten der o chamado,<br />

imaginando: “Quem sabe, é ela.”<br />

— Alô, é Paulo? Aqui é Cícero. Tudo bem?<br />

— Cícero! Como vai? Sua voz sai baixa, demonstrando frustração.<br />

— Mais ou menos. Todo dia, <strong>aqui</strong> no banco, meu chefe me aporrinha.<br />

— Nas minhas aulas eu ensinei como lidar com chefes chatos. Você<br />

tem usado o aprendido?<br />

— Claro que sim. Mas com ele não adianta. Tudo que faço, ele acha<br />

ruim.<br />

— Mas não foi despedido, como imaginava. Ainda bem, não acha?<br />

— Certo. Mas vou ser transferido. Até que gostei. E você, como vai?<br />

— Tudo bem. Estou com sorte. Estes dias uma antiga amiga me…<br />

— É? Você se lembra daquela moça que lhe falei? Ela canta no conjunto<br />

em que toco.<br />

— Sim. Lembro-me. Ela agora te largou, canta no coral, não é?<br />

— É… Mas voltou… está impressionada com a técnica. Deu certo!<br />

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— É… esta minha amiga… uma amiga dos tempos da facul…<br />

— Eu, agora, é que não sei se a quero de volta ao conjunto. Vou levando.<br />

Paulo, estou azarado. Preciso tocar, mas estou com dor na mão<br />

direita. Fui ao médico e, <strong>para</strong> ele, eu não devo trabalhar com os dedos.<br />

— Isso passa… é coisa simples. Você se impressiona com tudo. Exagera<br />

qualquer dor ou mal-estar. A minha amiga morava <strong>aqui</strong>, há muitos<br />

anos. Ela, ao contrário de você, sempre…<br />

— Você acha que devo tirar licença médica? Conversei com um<br />

amigo ligado ao diretor. Ele acha que devo cuidar de minha saúde em<br />

primeiro lugar. Preciso emagrecer, estou com quinze quilos a mais.<br />

— Puxa! É… precisa mesmo! Se você não for, pode piorar a situa ção.<br />

E esta, como disse, não anda nada boa. Não é? Essa minha amiga fez<br />

um regime, emagreceu seis quilos. Ela só come verd…<br />

— Preciso emagrecer, sim. Vou começar a fazer ginástica, comer menos<br />

doces: gosto de chocolate. Parei de fumar há três meses.<br />

— É um grande passo. Agora já pode começar a emagrecer. A minha<br />

amiga gosta de alimentos naturais como…<br />

— Se for <strong>para</strong> o interior, irei me sentir isolado. Nunca fiquei longe<br />

da família. Sempre morei com minha mãe, moro com ela atu almente,<br />

após a se<strong>para</strong>ção com Fofó. Ficamos casados dois anos…<br />

— Viver sozinho tem, também, algumas vantagens. Eu tenho pouco<br />

medo da solidão… chego a gostar dela. Quando essa amiga me telefonou,<br />

comecei a pensar…<br />

— Acho que acabo me acostumando em Lavras. Não acha?<br />

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— É evidente. Até logo. Um grande abraço.<br />

Paulo não conseguiu falar nada do que desejava. Seu amigo, por<br />

mais que ele tentasse, não quis escutar seu caso: a amiga, seu retorno,<br />

sua conversa ao telefone. Tudo isso estava lhe atormen tando. Tomou<br />

um café requentado e pegou uma revista <strong>para</strong> ler, mas não conseguiu<br />

prestar atenção em nada. Sua mente estava ocupada com Maria. Pensou<br />

em ligar <strong>para</strong> ela. O telefone tocou novamente.<br />

— Paulo, tudo bem? Aqui é Dario, seu sobrinho. Estou lhe telefonando<br />

<strong>para</strong> comunicar o nascimento do meu filho, Mário.<br />

— Que bom! Você casou-se? Não sabia, hoje em dia há muito d<strong>esse</strong>s<br />

casamentos modernos. Mário é um bonito nome, parece com o<br />

nome…<br />

— Não casei. Estou morando com aquela minha namorada, Clara.<br />

Você a conhece. É aquela que trabalha na Secretaria da Educação.<br />

— Lembro… é uma alta, morena, bonita! Que tal a vida a dois?<br />

— Mais ou menos. Sinto-me muito preso. Ela é ciumenta. Por causa<br />

disso, tive que abandonar as outras. Sempre gostei de várias.<br />

— É sempre assim. Se estamos sozinhos, reclamamos, se encontramos<br />

alguém, não suportamos. Amamos quem não nos ama e<br />

somos amados por quem não amamos. É o nosso destino. Ela pa rece<br />

ser uma boa moça, deve dar certo. Eu, grande parte de minha vida,<br />

fiquei só. A gente, pouco a pouco, vai se acostumando. Esses dias, uma<br />

antiga amiga telefonou-me. Ela é bonita e…<br />

— A vida a dois é até boa. Não me arrependi. Mas filho, ainda mais<br />

recém-nascido, é um saco. Chora a noite inteira. Não durmo mais como<br />

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antes. Fico bocejando no trabalho. Estou precisando de sua ajuda. Vi<br />

em sua casa, no fundo da garagem, uma banheira velha <strong>para</strong> dar banho<br />

em recém-nascido. Você pode emprestá-la pra mim? Além disso,<br />

preciso que você me indique um pediatra. Um que cobre barato, pois o<br />

dinheiro está curto. Você elogia mui to o que cuidou de seus filhos.<br />

— Sim. Tenho, sim. A banheira está estragada, mas ainda pode ser<br />

usada. Esta minha amiga contou uma história interessante e cômica do<br />

seu primeiro filho e do primeiro banho que ela foi dar numa banheira<br />

como…<br />

— Preciso de seus conselhos e experiência <strong>para</strong> cuidar bem do meu<br />

filho. Ele é do saco roxo. Macho como nós. Espero que seja paquerador<br />

como sempre fui. Ah! Ia esquecendo-me, estou preci sando de um<br />

empréstimo. Não é uma grande quantia não. Apenas duzentos reais<br />

<strong>para</strong> pagar algumas despesas extras que tive. D<strong>aqui</strong> a uma semana eu<br />

te pago. Posso contar com você?<br />

— Acho que sim. Vou procurar a banheira. Por falar em despe sa, esta<br />

minha amiga gastou uma nota…<br />

— Posso passar aí amanhã <strong>para</strong> pegar a banheira e o dinheiro?<br />

— Amanhã à noite. Dou aulas durante o dia. Como sabe, moro só<br />

e faço tudo sozinho. Se arrumasse uma companhia, talvez as coisas<br />

ficassem…<br />

— Vou desligar. O pirralho está berrando e minha mulher está me<br />

chamando. Até amanhã.<br />

— Até logo.<br />

Paulo continuava a pensar em sua amiga. Discutia consigo se devia<br />

ou não lhe telefonar. Precisava falar com alguém a respeito dela.<br />

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Tinham sido amigos quando jovens. Maria, após estudar em Belo<br />

Horizonte, foi <strong>para</strong> o Paraná, onde morava sua família. Mais tarde,<br />

casou-se. Separou-se há cinco anos. Paulo a imaginava bo nita, alegre e<br />

espontânea, como era quando se conheceram. Ela sempre gostou de<br />

ler, frequentar teatro e cinema. Talvez ainda esteja capaz de aguentar<br />

e de manter, por horas, uma conversa animada. A corrente de pensamentos<br />

de Paulo novamente foi in terrompida pelo telefone, que volta<br />

a tocar.<br />

— Professor Paulo, <strong>aqui</strong> é sua ex-aluna Fátima. Desculpe-me incomodá-lo<br />

às onze horas da noite. O senhor deve estar cansado… mas acontece<br />

que preciso conversar com alguém como o senhor. Como sabe,<br />

larguei meu marido há quase um ano. A princípio, fiquei feliz por ficar<br />

livre do Haroldo. Entretanto, a cada dia mais, sinto-me terrivelmente<br />

só. É muito ruim <strong>para</strong> uma mulher não ter um homem <strong>para</strong> conversar,<br />

sair, jantar fora ou mesmo transar. Es tou desesperada. Ontem eu o vi.<br />

Ele caminhava junto com uma mulher. Não sei quem é: sei que é mais<br />

feia e mais velha do que eu. Mulher observa muito as outras. Além disso,<br />

é muito magra <strong>para</strong> meu gosto. Se for uma namorada, ele escolheu<br />

mal. Mas diabo! Mesmo assim fiquei com ciúmes. O que devo fazer<br />

<strong>para</strong> ficar livre do fantasma do Haroldo?<br />

— Isto acontece, Fátima. Toda se<strong>para</strong>ção é parecida. A pes soa, ao se<br />

se<strong>para</strong>r, lembra-se das coisas ruins que aconteceram e, portanto, fica<br />

alegre e eufórica. Após um certo tempo, as coi sas mudam. Começa a<br />

lembrar também dos bons momentos que passaram juntos. Aí a pessoa<br />

fica triste. Eu, como você sabe, sou se<strong>para</strong>do há seis anos. Creio que já<br />

me acostumei um pouco com a vida longe da ex-mulher e filhos. Mas,<br />

outro dia, recebi um tele fonema de uma antiga amiga. Ela contou-me…<br />

— É! O senhor compreende mais do que minhas amigas <strong>esse</strong> tipo de<br />

problema. Tem uma experiência pessoal, sabe como é difícil viver só. O<br />

senhor não sente falta de uma companhia feminina de vez em quando?<br />

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— Claro. Todos sentem. Mas é difícil encontrar a pessoa certa <strong>para</strong><br />

cada um. Não é que uma seja melhor do que outra. As pesso as são diferentes<br />

e temos dificuldades em conviver com diferen ças. Eu, pessoalmente,<br />

acho difícil. Essa amiga até que parece ter ideias parecidas com<br />

as minhas. Quando ela telefonou-me, conver samos…<br />

— Concordo. Já tentei algumas paqueras após o término do meu<br />

casamento. Mas os homens que encontrei não me agradaram. Suas<br />

conversas não me tocaram. Começo a conversar com eles e lembro-<br />

-me do Haroldo. Faço imediatamente com<strong>para</strong>ções. Ele é um ho mem<br />

inteligente, culto, com uma grande cabeça, professor também como o<br />

senhor. Um chato, às vezes. Ah! Você o conhece.<br />

— Sim, conheço. Participei com ele de uma mesa redonda. Ele é sagaz.<br />

Parece-se com a minha amiga. Ela é inteligente e culta. Há…<br />

— É? Também encontrei um ex-namorado. Ele foi meu namora do antes<br />

de conhecer Haroldo. Gostava demais dele. Naquela épo ca, gostava<br />

muito do papo dele. Brigamos por nada. Agora foi uma decepção. Não<br />

sei se eu melhorei ou se ele piorou.<br />

— Isto acontece. Antes do Haroldo, você não tinha um crité rio tão<br />

sofisticado <strong>para</strong> avaliar pessoas. Qualquer um servia. Agora fica difícil<br />

encontrar um parecido. Comigo aconteceu diferente. Só hoje é que<br />

vejo que esta minha amiga é uma raridade. Com<strong>para</strong>n do-a com diversas<br />

que tenho encontrado, percebo que ela…<br />

— Haroldo tem muitos defeitos. Eu sei disso. Todos nós temos defeitos.<br />

Eu também não sou perfeita. Mas eu preferiria morar com ele,<br />

a viver como estou. Não consigo dormir quando penso nele. E ele era<br />

bom também <strong>para</strong> outras coisas, não era bom só de con versa, não.<br />

— Entendo bem seu problema. Estou vivendo algo parecido com<br />

esta amiga. Desde que a reencontrei…<br />

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— Professor Paulo, tomei muito seu tempo. Desculpe-me mais uma<br />

vez. Gosto demais do senhor, de suas ideias e conversa. Elas me fazem<br />

tão bem! Depois, quando tiver na fossa outra vez, volto a lhe telefonar.<br />

Boa noite.<br />

— Boa noite. Telefone sempre que precisar. Seus problemas são muito<br />

interessantes, lembram os meus…<br />

— Até a próxima.<br />

Paulo, apesar de tudo, ainda continuava feliz, mas engasgado. Automaticamente,<br />

pega o telefone <strong>para</strong> discar <strong>para</strong> Maria. Talvez ela o escute.<br />

Já é meia-noite. “Já é tarde, já deve estar dormindo. Ela levanta-se<br />

cedo <strong>para</strong> trabalhar”… Paulo desiste.<br />

Ele tentou, o dia inteiro, passar <strong>para</strong> outras pessoas sua vivên cia e<br />

alegria. Ninguém se interessou por seu caso. Ninguém o ou viu. Cada<br />

um queria falar acerca de seus problemas particulares, dando importância<br />

às suas misérias e não às dos outros.<br />

Paulo, impotente diante do seu fracasso em comunicar sua ale gria,<br />

procura uma última alternativa, um ouvinte mais obediente, capaz<br />

de prestar atenção ao seu relato, sem ter outros inter<strong>esse</strong>s. Tenso,<br />

após tomar um rápido banho morno, penteou seus cabelos, já ralos.<br />

Assentou-se comodamente diante do espelho que cobre toda a parede<br />

lateral da sala de visita. Para não ser interrompido, desligou o telefone.<br />

Postado diante do espelho, tendo à mão uma taça de seu vinho preferido,<br />

começou a falar <strong>para</strong> sua própria ima gem refletida no espelho:<br />

— Quando eu ainda era estudante de Administração de Empre sas,<br />

conheci uma moça linda, alegre e inteligente por quem me apaixonei.<br />

Ela era, antes de tudo, capaz de ouvir-me. Apesar de nunca brigarmos,<br />

caminhamos cada um <strong>para</strong> seu lado. Não deixa mos pistas… vinte anos<br />

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depois, como por milagre…<br />

Paulo, às vezes sorrindo, às vezes tendo lágrimas nos olhos, continuou<br />

a contar sua história <strong>para</strong> si mesmo diante do espelho imó vel<br />

e acolhedor. Do outro lado, sua imagem refletida parecia feliz e ouvia<br />

tudo atenta e seriamente. Cada emoção existente no rosto de Paulo<br />

transmitia igual sentimento na sua representação. Esta não demonstrava<br />

deboche, ironia ou enfado. A atitude simpática da ima gem favorecia<br />

um relato tranquilo, sem temores. Sua figura refletida no espelho, ao<br />

contrário dos outros ouvintes, respeitava não só a narração, como as<br />

pausas, O reflexo no espelho não interrompeu, nem uma vez sequer,<br />

seu relato, prestava atenção a cada detalhe.<br />

Aos poucos, foi relaxando. Tranquilo e feliz, Paulo pôde con tar sua<br />

longa história de amor. Uma história vivida por ele, que só interessava<br />

a ele, talvez, quem sabe, também a Maria. Seu relato, carregado de<br />

lembranças alegres, terminou às três horas da madru gada daquela<br />

quinta-feira abafada. Após ter completado sua histó ria, Paulo foi deitar-<br />

-se e, naquela noite, conseguiu dormir aliviado.<br />

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Emoções, Sentimentos e Memória<br />

e Indivíduo: Informações resumidas<br />

Um ser humano pode sentir, pensar, aprender, criar, porque o seu<br />

programa biológico assim o dotou, conjuntamente com a capacidade<br />

<strong>para</strong> sofrer alterações programadas conforme interações com o meio<br />

ambiente.<br />

Os sistemas, estruturais e químicos, que integram as emoções, por<br />

via nervosa ou sanguínea, funcionam continuadamente. Sabemos, às<br />

vezes mais claramente, outras vezes, nem tanto, se estamos excitados,<br />

famintos, felizes, raivosos, em alguma extensão. Com frequência, não<br />

damos ouvidos <strong>para</strong> essas importantes informações fornecedoras de<br />

pistas <strong>para</strong> sabermos “qual caminho devemos tomar”, como perguntou<br />

Alice ao gato.<br />

Dopamina<br />

É provável que a dopamina seja o neurotransmissor mais antigo<br />

existente no organismo de vários animais. Acredita-se que ele apareceu<br />

há, aproximadamente, um bilhão de anos. As idéias atuais colocam<br />

o sistema dopaminérgico assentado durante a expectativa de algo, isto<br />

é, a busca de alguma coisa pretendida, entre elas, o término de uma<br />

tarefa não desejada, contar um caso, assistir um jogo etc.<br />

A dopamina é liberada nas sinapses neuronais quando o animal sai à<br />

procura de alimentos, sexo ou outra coisa pretendida. Mas ela é liberada<br />

ainda quando a mente representa – ainda sem agir – o que se deseja<br />

alcançar, ou seja, quando criamos uma visão interna do que pretendemos.<br />

Assim, ela pre<strong>para</strong> o organismo quando eventos possíveis são<br />

procurados ou imaginados, ou seja, uma conduta virtual ou potencial.<br />

Os sentimentos fazem parte da vida diária das pessoas. Todos os pro-<br />

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cessos da cognição e da motivação, possivelmente, acham-se interligados<br />

e ou comandados pelos estados emocionais experimentados pelos<br />

indivíduos. A produção mais acentuada de noradrenalina e de dopamina<br />

não só elevam o afeto positivo, mas também orienta nossa maneira<br />

de pensar, aumentando e melhorando nossa criatividade ao solucionar<br />

problemas. Além disso, torna mais interessante e agradável o envolvimento<br />

com pessoas e eventos.<br />

O abuso de algumas drogas acha-se relacionado à ativação de neurotransmissores:<br />

a cocaína e a anfetamina reproduzem os efeitos da dopamina<br />

e da noradrenalina, aumentando os níveis de uma e de outra; a<br />

heroína e a morfina aumentam os níveis de endorfina.<br />

As células que liberam dopamina do cérebro respondem mais às<br />

recompensas não previstas, portanto, quando o agrado é esperado, a<br />

dopamina liberada é menor, logo, o afeto positivo – entusiasmo pela<br />

ação – deverá ser maior quando há um ganho inesperado. Um relacionamento<br />

– ou emprego – altamente cobiçado provoca maior prazer<br />

no seu início (maior liberação de dopamina). Entretanto, aos poucos,<br />

ele se torna “sem graça” (menor produção de dopamina), às vezes, até<br />

chato.<br />

Neurohormônios Peptídeos<br />

As emoções são ativadas pela excitação dos circuitos nervosos dos<br />

neurotransmissores e, também, de peptídeos (um segundo sistema de<br />

neuroquímicos). Alguns peptídeos – há centenas deles – merecem uma<br />

atenção particular com respeito às emoções, entre eles, as endorfinas<br />

e a oxitocina.<br />

Os peptídeos são substâncias químicas que apareceram antes do<br />

surgimento dos neurônios; através de mutações, eles sobreviveram<br />

não só no sistema nervoso dos animais mais elevados, mas também,<br />

nos insetos, minhocas, lombrigas e, além disso, em algumas plantas,<br />

leveduras e bactérias.<br />

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Alguns peptídeos: Oxitocina<br />

A oxitocina é produzida no cérebro (núcleos supra-óticos e parvoventral<br />

do hipotálamo), nos ovários e testículos, tendo importante ação na<br />

conduta de afiliação (ligação da cria com o criador ou mãe). Sua produção<br />

propicia, facilitando, a resposta sócio-sexual nos répteis, pássaros<br />

e, também, em todos os mamíferos. Liberada durante o parto, a oxitocina<br />

auxilia a contração uterina e produção do leite materno. Além disso,<br />

ela é liberada durante a estimulação dos órgãos sexuais (mamilos,<br />

clitóris, glande) e também durante o orgasmo masculino e feminino.<br />

A oxitocina tem sido classificada de “selecionador” ou “estabilizador”<br />

das preferências amorosas. Quanto mais o namorado fica apaixonado,<br />

mais aumentam os níveis de oxitocina do seu organismo e, também,<br />

mais será a sua atração e apego ao companheiro provocador do bem-<br />

-estar e calma sentida.<br />

Um beliscão ou chute, ao aumentar os níveis de cortisol, pre<strong>para</strong><br />

o animal ou pessoa <strong>para</strong> atacar ou fugir; uma leve e macia escovada<br />

reduz os efeitos ruins do beliscão – efeito antiestr<strong>esse</strong> – associado ao<br />

aumento de oxitocina. Um sorriso nos tranquiliza devido a maior produção<br />

de oxitocina cerebral.<br />

Endorfina<br />

A endorfina (morfina endógena) teve <strong>esse</strong> termo cunhado em 1970<br />

como uma morfina produzida pelo organismo. Os opiáceos endógenos<br />

– cadeia de 91 aminoácidos – são analgésicos poderosos, mas também<br />

produtores de euforia e de sensação de paz. É liberada pelo organismo<br />

em maior quantidade diante de pessoas que nos são simpáticas e<br />

agradáveis.<br />

No útero materno o feto está submerso num líquido contendo um<br />

alto nível de endorfina, por isso, podemos imaginá-lo tranquilo, sem<br />

dores e, talvez, eufórico. Ao nascer, ocorre uma queda repentina da en-<br />

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dorfina existente, causando um sofrimento <strong>para</strong> a mãe e filho. Os altos<br />

níveis são recuperados pelos contatos e comunicações mãe/filho.<br />

A ligação mãe e filho é uma experiência extremamente agradável,<br />

por isso, o recém-nascido tende a procurar novos contatos pelo resto<br />

da vida, por serem as ligações – nem sempre são – uma fonte de euforia<br />

e paz.<br />

A se<strong>para</strong>ção, ao contrário da ligação, é aversiva e dolorosa; os mamíferos<br />

e aves recém-nascidas, diante dela, emitem sons sinalizando<br />

sofrimento. A região cerebral associada a essa chamada por socorro é<br />

rica em opióides endógenos, talvez, oxitocina. Os “choros” implorando<br />

o cuidado maternal-paternal associam-se a uma menor produção de<br />

opiáceos endógenos nas regiões cerebrais ricas d<strong>esse</strong>s peptídeos (septo<br />

e cíngulo). As vocalizações são reduzidas com aplicação de pequenas<br />

doses de morfina.<br />

Geralmente, uma pessoa procura a outra <strong>para</strong> receber, através dela,<br />

sua cota de endorfinas ou oxitocina, visando a tranquilidade e euforia.<br />

Quando ajudamos alguém, aumentamos nosso estoque dos benditos<br />

neurohormônios e, também, ficamos mais calmos, satisfeitos e alegres.<br />

Numa conquista – ou amizade – somos motivados a agradar o outro,<br />

se possível, ultrapassar o esperado por ele; imaginamos receber dele,<br />

por isso, a estima e o amor. Esse motivo social está entre as razões mais<br />

fortes <strong>para</strong> que o ser humano – ou outros animais – aja em direção ao<br />

outro.<br />

Os apaixonados “doidamente” devem estar nadando nas endorfinas<br />

e na oxitocina; felizes e tranquilos, dando pouca importância a outras<br />

atividades, pois recebem suas “drogas” através do escolhido/amado.<br />

Essa mesma conduta é observada entre os viciados em jogos, trabalhadores<br />

ou ginastas compulsivas etc., ou seja, atividades que aumentam<br />

os neurohormônios que produzem prazer e calma.<br />

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Uma paixão intensa associa-se a uma baixa liberação de serotonina;<br />

esta condição, por sua vez, leva o indivíduo a se tornar impulsivo e<br />

obsessivo (pensar sem <strong>para</strong>r na amada). Entretanto, após os primeiros<br />

encontros, os níveis de serotonina aumentam. Para tristeza dos apaixonados,<br />

o namoro pode mesmo terminar ao diminuir a impulsividade e<br />

obsessão.<br />

Nem tudo é um prazer continuado; há um freio que impede o organismo<br />

de continuar a gozar indefinidamente. Uma comida saborosa<br />

torna-se, depois de algum tempo, indigesta; uma companhia atraente<br />

tende a se tornar chata após alguns encontros. O prazer sentido, seja<br />

devido à degustação do alimento, da relação sexual ou do interessante<br />

bate-papo etc., torna-se, com o tempo, cansativo e aborrecido. Ocorre<br />

que o próprio organismo, após a liberação dos neuro-transmissores<br />

que nos provocaram prazer, libera outras substâncias que diminuem<br />

as ações dos primeiros (antagonistas das substâncias liberadas). D<strong>esse</strong><br />

modo, há uma inibição do prazer inicial e o que era bom torna-se ruim.<br />

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Comportamento<br />

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Tenha Coragem de ter Medo<br />

O medo é universal, atinge todos os homens e os ani mais chamados<br />

de irracionais. Dele ninguém escapa. Trata-se de uma emoção caracterizada<br />

por uma apreensão, com comprometimento físico, mental e<br />

social. O indivíduo que nele se encontra, apresenta falta de ar, palpitações,<br />

tremores, músculos fracos, dificuldade <strong>para</strong> pensar, falar e agir,<br />

pois sua criatividade diminui. A pessoa torna-se “abobada” no momento,<br />

agindo aquém de suas possibilidades nor mais. Alguns ficam <strong>para</strong>lisados<br />

durante a crise de medo.<br />

A palavra medo tem sido usada num sentido muito geral, abrangendo<br />

uma série de quadros que têm origens, significados, evoluções<br />

e tratamentos diferentes. O uso do termo “medo” no sentido geral<br />

produz confusões e discussões, pois muitas vezes os envolvidos nes tas<br />

falam de entidades diferentes.<br />

Tentarei esclarecer algumas dúvidas. Psicológica e mesmo filosoficamente,<br />

o termo “medo” tem sido usado no sentido restrito<br />

como uma emoção negativa ou desagradável, com as características<br />

já descritas, ocorrendo em todos os animais quando estes se sentem<br />

ameaçados por um perigo real ou imaginado. A conduta natural diante<br />

do medo será o animal ou o homem fugir do fator causador deste<br />

e, caso tenha sucesso, haverá o término da emoção desagradável.<br />

Al guns exemplos: percebo algo caminhando nos meus pés descalços,<br />

olho e vejo que se trata de um escorpião. Sinto medo e cuidadosa e<br />

rapidamente livro-me dele. Ao atravessar uma rua, vejo surgir inesperadamente<br />

um carro em dis<strong>para</strong>da, corro e me salvo do acidente ao<br />

alcançar o passeio. Termina o meu medo.<br />

Fobia: – Há um tipo de “medo” que tradicionalmente tem re cebido<br />

por parte dos psiquiatras o nome de “fobia”. Nesta, a reação emocional<br />

é semelhante à descrita <strong>para</strong> o medo, mas o objeto provo cador da<br />

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emoção é praticamente inofensivo ou neutro.<br />

Um indivíduo percebe algo caminhando em seus pés descalços,<br />

vira-se e vendo que se trata de uma barata, corre e grita apavorado.<br />

A barata, por si só, não é um inseto ameaçador. Na fobia, o medo é<br />

subjetivo, isto é, fabricado pela mente de quem o tem a partir de um<br />

estímulo determinado, que é interpretado pelo fóbico como ameaçador.<br />

O fóbico, muitas vezes, utiliza as palavras nojento, asqueroso e<br />

outras, <strong>para</strong> classificar e justificar a emoção sentida. Tanto na fobia<br />

como no medo o indivíduo tenta escapar da ameaça ou do perigo real<br />

ou subjetivo.<br />

Doença do Pânico: – Na psiquiatria existe uma doença que tem<br />

recebido o nome de “Doença do Pânico”. Trata-se de um quadro clínico<br />

“parente” do medo e da fobia, mas com alguma diferença. O fator que<br />

desencadeia a reação emocional de pavor no pânico, com frequência<br />

não exige estímulo externo denominado ameaça dor. A pessoa acometida<br />

da doença do pânico pode acordar à noi te, (sem estar sonhando),<br />

ou estar vendo um programa na TV e, repentinamente, sentir, de forma<br />

intensa e duradoura, as reações descritas acima <strong>para</strong> o medo, com<br />

sensação de que morrerá. Não havendo objeto externo identificável,<br />

ele não poderá fugir. Pode rá, posteriormente, ficar condicionado, isto<br />

é, passar mal diante de situações ou objetos que eram neutros (não<br />

produziam emoções), mas como a crise foi desencadeada num certo<br />

lugar (sala de TV, usando uma camisa azul), a pessoa passa a sentir-se<br />

mal nessas cir cunstâncias. São comuns frases como: “Não posso passar<br />

no centro da cidade, me provoca um malestar”, “Quando escuto essa<br />

música fico triste”, etc. Em todos <strong>esse</strong>s casos, ocorreu o condicionamento<br />

da pessoa. O contrário existe: ficar animado ou alegre diante de<br />

um fato ou lugar.<br />

Ansiedade: – O quarto grupo, com as características do “medo”,<br />

atinge todos os mortais. A ansiedade faz parte de todos os quadros clínicos,<br />

tanto da psiquiatria como da chamada, erroneamente, me dicina<br />

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orgânica. Quase sempre, quando se utiliza o termo popular “nervosismo”,<br />

estamos nos referindo à ansiedade no sentido que des creverei.<br />

O estudo da ansiedade não é propriedade apenas dos médicos, psicólogos<br />

e sociólogos, mas também dos filósofos, poetas, literatos, ou<br />

seja, de toda a humanidade. Ansiedade é um estado emocional, agudo<br />

ou crônico, de apreensão, diante do possível resultado nega tivo de<br />

uma viagem, de um negócio, do namoro, de não dormir esta noite, etc.<br />

Ansiedade, liberdade e cultura de massa – Esta ansiedade que <strong>aqui</strong><br />

discuto se liga, intimamente, ao conceito de “liberdade <strong>para</strong>” no sentido<br />

de Erich Fromm. O indivíduo, através de sua consciência, visualiza<br />

uma possibilidade de ação ou de mudança, na qual ele passa de um<br />

estado já atingido e bem protegido <strong>para</strong> um desconhecido, ainda não<br />

alcançado, incerto ou não-familiar. Ao contrário do medo no qual o<br />

indivíduo foge, neste tipo de ansiedade a pessoa a procura, enfrenta<br />

ou caminha junto dela, <strong>para</strong> alcançar o propósito idealizado, <strong>para</strong> se<br />

sentir tranquilo. É uma emoção exclusiva do homem: envolve consciência,<br />

hipóteses e previsões <strong>para</strong> agir ou não. Trata-se de uma ansiedade<br />

produtiva, isto é, leva a pessoa ao crescimento.<br />

A outra ansiedade, a improdutiva, leva a pessoa à “não-ação”, provocará<br />

uma ansiedade neurótica ou patológica, ligada ao sen timento de<br />

culpa pela não-realização, pelo não-crescimento ou ex pansão de si. Desejo<br />

esclarecer o leitor que, em alguns momentos, a “não-ação” pode<br />

constituir um propósito da pessoa na sua expansão. A criança procura,<br />

a qualquer preço, andar, apesar do risco de cair, <strong>para</strong> desenvolver-se e<br />

suplantar uma fase da sua jornada. Mais tarde, quando entra no pré-<br />

-primário, ao desligar-se de sua família, fica ansio sa, chora, mas cresce<br />

ao se expandir e vivenciar novos modos de ser. O primeiro emprego,<br />

o primeiro namorado, o afastamento da família protetora, todas constituem<br />

crises de readaptações, nas quais a pes soa passa de uma fase<br />

mais pobre de desenvolvimento, <strong>para</strong> uma mais complexa. Esta irá<br />

exigir-lhe maior habilidade e competência. Quanto mais o indivíduo for<br />

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capaz de suportar essas ansiedades, mais ele se desenvolverá.<br />

Muitas pessoas ainda pensam acerca das emoções como especulavam<br />

os grandes filósofos anteriores ao século XVII. Spinoza acreditava<br />

que a ansiedade podia ser abolida por meio do raciocínio lógico – a<br />

supremacia da razão – ou da matemática.<br />

Para ele e outros, a ansiedade e o medo eram emoções negati vas e<br />

vergonhosas. Esta falsa crença tem provocado consequências graves: a<br />

eliminação da ansiedade produtiva <strong>para</strong>lisa o crescimento individual.<br />

Ao escapar da ansiedade produtiva a pessoa sofrerá, inevi tavelmente,<br />

a ação da ansiedade neurótica devido ao não-crescimento do indivíduo.<br />

Os governos totalitários, a mídia em geral, as religiões e outros hipnotizadores,<br />

frequentemente procuram narcotizar e <strong>para</strong>lisar os indivíduos.<br />

Para isso esforçam-se <strong>para</strong> transformá-los em “grupos de felizes”,<br />

incentivando-os a realizarem, unidos, ações tolas e infantis. Esses<br />

grupos tendem a aniquilar os sistemas individuais, em proveito de um<br />

sistema grupal criado por dirigentes fora do grupo.<br />

As pessoas têm duas alternativas com respeito às suas vidas: crescerem,<br />

suportando uma carga de ansiedade ao se projetarem <strong>para</strong> o<br />

ainda desconhecido, isto é, <strong>para</strong> um futuro incerto do vir-a-ser, ou permanecerem<br />

estáveis, sem se arriscarem ou sem propósitos pró prios.<br />

Nesta segunda opção, livram-se da ansiedade criadora ou sadia, mas<br />

passam a apresentar sentimentos de culpa e tédio.<br />

Têm sido criadas crenças e religiões diversas, ídolos, heróis, mitos<br />

naturais e artificiais, <strong>para</strong> apaziguar e narcotizar esta multidão de<br />

necessitados de uma orientação externa, já que não desenvolveram<br />

uma interna. A ação da cultura fabricada tem fornecido paz e calma ao<br />

indivíduo contra o sentimento de nulidade, mas, ao mesmo tempo, impede<br />

o aparecimento da ansiedade produtiva, ou seja, do impulso que<br />

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força o indivíduo ao crescimento. Ao decretar sua morte como sistema<br />

individual, dando-lhe uma orientação externa, nossa cultura produz no<br />

alegre indivíduo uma emoção inocente, pueril, por fazer parte de um<br />

sistema maior, que nunca é questionado, aceito com fé, por pertencer<br />

a este ou àquele grupo: “Sou membro do fã-clube de Emilinha”, “Sou<br />

médico”, “Sou torcedor do Atlético”, “Sou sócio do PIC”, “Lavo-me com<br />

o sabonete Y, o que me faz ser igual aos artistas de Hollywood”, “Moro<br />

na zona sul da cidade, janto nos melhores res taurantes e viajo pela…”.<br />

Os mitos são seguidos cândida e fielmente por grande parte da<br />

classe média. Esta, uma vez hipnotizada, acompanha as mais estranhas<br />

sugestões e prescrições dos seus donos. Aquele que ousa escapar do<br />

cabresto é marginalizado do grupo ideológico, ou mesmo internado<br />

como louco nos hospícios.<br />

O seguimento hipnótico das ideologias míticas, consumidas por quase<br />

todos atrás dos modismos, das últimas novidades, da úl tima casa<br />

noturna aberta, buscando a relação sexual mais moderna e com a mais<br />

recente <strong>aqui</strong>sição da boate, confere-lhe o direito de seguir sua trajetória<br />

no mundo, sem culpa e ansiedade, sem reclamar e questionar. A<br />

massa que se submete ao novo modelo do penteado seguirá, talvez um<br />

pouco mais animada, o novo político salvador de vidas perdidas.<br />

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Como era Verde meu Vale<br />

Muitos jovens, outros nem tão jovens, anseiam ter a vida contada na<br />

Bíblia. Esses moços ambicionam no futuro, nada mais, nada menos, do<br />

que o retorno ao mundo “bom, ordenado e belo”, imaginado e sonhado<br />

descrito pelo mito do <strong>para</strong>íso.<br />

A rebelião dos jovens, que combate o estabelecido, explode ocasionalmente,<br />

conforme o tempo, o vento e tempestades passageiras, nas<br />

entressafras das suas “re voluções”. Não ocorre um questionamento<br />

constante dos costumes por parte da juventude. O mal <strong>para</strong> a juventude<br />

sonhadora, pura e ingênua, é a sociedade e a vida atual. A infelicidade,<br />

<strong>para</strong> eles, está ligada à ordem social vigente formulada pelos seus<br />

pais.<br />

Os mais idosos já desistiram, há muito, dessa luta inglória: transformar<br />

a atual sociedade imoral e corrupta numa decente e ordeira. A juventude<br />

sonha e luta, mas não de maneira eficaz, <strong>para</strong> salvar o homem<br />

“do mal do século”, transformar a história humana num conto de fa das<br />

com um final feliz.<br />

Esses loucos utópicos – deve ser lembrado que todos nós já vivemos<br />

nossa loucura numa certa idade – expres sam de vários modos, conforme<br />

a época e a cultura, sua atração pelo <strong>para</strong>íso: o uso de roupas<br />

grosseiras, des botadas e rasgadas de fábrica. Nudez diante dos outros,<br />

principalmente de uma câmera de TV ou de uma máquina fotográfica.<br />

Exibição de coxas ou de seios entre as mu lheres, <strong>para</strong> mostrar o proibido<br />

pelas regras dos ordeiros e conformados. Badernas, gritos, urros e<br />

destruição du rante jogos, formaturas, shows, missas, sermões e posse<br />

de presidente da república. Colônias de nudistas <strong>para</strong> ho menagear e<br />

defender o “naturalismo”, numa praia orna mentada pela cultura de<br />

massa. Ato sexual nos teatros, filmes e praças, <strong>para</strong> combater o moralismo<br />

tolo e ineficaz dos gagás.<br />

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Todas essas exibições teatrais, histéricas e mistura das a rituais religiosos<br />

ou pagãos, provocam, em seus exe cutores, uma excitação delirante:<br />

orgasmos demorados e aplausos da grande massa entusiasmada<br />

enquanto espera o retorno à Terra prometida. Os outros seres, surdos<br />

aos berros dos jovens, observam, afastados e incrédulos, o extraordinário<br />

entusiasmo enxertado à simplicidade hila riante. Para os jovens,<br />

lá, muito longe, no alto, bem aci ma de nossas cabeças de homens e da<br />

montanha, no céu azulado e estrelado, anjos decentemente enfeitados<br />

da nudez divina e primitiva, de mãos dadas, cantam e bailam alegremente,<br />

girando em volta do compenetrado, honrado e sempre vigilante<br />

Deus.<br />

Entusiasmados com essa fantasia maravilhosa, em alguns lares d<strong>esse</strong><br />

mundo afora, pais não muito jovens, inoculados por essa pregação,<br />

passaram a cultivar o ba nho coletivo. Também em algumas praias,<br />

como ocorre no <strong>para</strong>íso, desfilam homens, mulheres e crianças despidas.<br />

Rapazes e moças desoladas exibem, diante da natureza viva, a<br />

natureza morta: seios e pênis tristonhos e abando nados, órgãos esperando<br />

por algum milagre dos que por ali passeiam.<br />

Semelhante ao mito da nudez e do <strong>para</strong>íso, de tem pos em tempos<br />

nasce o mito dos protestos estudantis cô micos. Estes, organizados<br />

pelos exploradores, vestidos de cordeiros explorados, combatem com<br />

seus discursos in flamados o poder que eles, sem notar, exibem: roupas<br />

de marca, palavras bem escolhidas e reveladoras de erudi ção, corte<br />

de cabelo moderno e apurado, relógios, brincos e outras joias de alto<br />

custo. Seu poder, exposto através das informações sem-palavras, mostra<br />

claramente existir uma classe estudantil bem diferente da outra, da<br />

desclas sificada logo ao nascer. Frequentemente, através de grita rias em<br />

público, de algumas pedradas medrosas e cuida dosas, eles atacam o<br />

pobre policial que pertence à classe que, hipocritamente, os líderes, do<br />

lado de cima do limite, afirmam defender. Esta é a luta deles: alcançar,<br />

através de ações dificílimas, perigosíssimas, carregadas de emoções<br />

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intensas, um mundo melhor ainda <strong>para</strong> eles, ou seja, o <strong>para</strong>íso <strong>para</strong> um<br />

grupo especial e já escolhido.<br />

Durante essas lutas coletivas, desordenadas e cômi cas, transformadas<br />

em exibição teatral na praça pública, jovens fantasiados, tendo as<br />

caras pintadas com esmero, com roupas típicas plantadas em desejos<br />

inconfessáveis de cada um, gritam, por instantes, com muita raiva,<br />

en quanto esperam a hora de ir jantar e beber no restaurante chique.<br />

Ninguém sabe com clareza o que se pretende, a favor de quê e contra<br />

quê se luta.<br />

Todos sabem que há um protesto contra alguma coi sa. Rebelam-se,<br />

talvez, contra eles mesmos, pelas prer rogativas que uns poucos têm<br />

sobre a maioria, pelo poder que detêm, pela arrogância de um lado e a<br />

humildade do outro. Reclama-se contra o atual em todas as áreas.<br />

Tudo está errado! Exige-se um futuro melhor. Entre tanto, o que é<br />

este futuro melhor? Nenhum deles sabe, nem nós, os mais velhos.<br />

Tudo é vago, distante demais, impossível de ser até mesmo imaginado,<br />

representado e muito menos verbalizado, o que eles mais fazem. Ninguém<br />

consegue definir o que se quer, nem mesmo os lí deres dos movimentos.<br />

Quase sempre a maioria deles fez – ou faz – parte e defendeu,<br />

com o mesmo vigor, o “outro lado”, o lado do “estabelecido”, o agora<br />

“combatido” com veemência.<br />

Este mundo imaginário e buscado, principalmente pe los jovens<br />

sonhadores e rebeldes, é nebuloso. Se não se conhece o fim desejado,<br />

logicamente não será possível sa ber o meio <strong>para</strong> alcançá-lo. Nota-<br />

-se que eles desejam um retorno ao mundo antigo, calmo e ordeiro,<br />

sem lutas, com nudez e frutinhas naturais <strong>para</strong> serem saboreadas ao<br />

som singelo de órgãos celestiais. Entretanto, os jovens são, ao mesmo<br />

tempo, apaixonados pelo mundo natural e atraídos pelo moderno, pelo<br />

desperdício do dinheiro na compra dos aparelhos de som e imagem<br />

ultrassofisticados, pelo uso das últimas novidades em bebidas e drogas<br />

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colocadas no mercado, tudo isso não tão natural assim.<br />

Muitos discursos, artigos e livros dirigidos aos jovens buscam despertar<br />

crenças antigas, plantadas firmemente pelos pais quando eles<br />

eram crianças. Nós todos as temos. Essas histórias falam acerca de um<br />

mundo imaginário or deiro, cheio de homens bons e honestos, igualdade<br />

e liber dade <strong>para</strong> todos. Infelizmente, isso era uma mentira que<br />

nossos pais ouviram de seus pais e, de boca em boca, a história, teimosamente,<br />

continua a se alastrar. Este mundo imaginado nunca existiu e<br />

nem existirá.<br />

A juventude que procura alcançar essa utopia ainda acredita nela,<br />

mas, à medida que se torna adulto, o sonho vai se acabando. Os jovens<br />

receiam transformar-se em adultos, perceberem que o aprendido não<br />

é o experimen tado. Crescer, <strong>para</strong> a juventude, significa tornar-se igual<br />

aos pais, assumir seu lugar nessa bagunça total, na farsa e corrupção<br />

d<strong>esse</strong> estranho mundo habitado por anjos e demônios, metade céu,<br />

metade inferno.<br />

Talvez o sonho máximo d<strong>esse</strong> grupo fosse viajar <strong>para</strong> o <strong>para</strong>íso. Caso<br />

o combustível não d<strong>esse</strong>, pelo menos até Marte, no novo ônibus espacial<br />

a ser construído após o úl timo acidente, ou, talvez, na nave dos<br />

ETs. Para fazer essa viagem fantástica, “numa boa”, “de repente”, “com<br />

certe za”, “né”, e junto com toda a patota, todos vestiriam um uniforme<br />

superchique e moderninho. Bem, quando lá che gassem, prontamente<br />

eles iriam se despir. Após cada um “ficar” rapidamente com os outros,<br />

eles comeriam, abra çados, as frutinhas celestiais distribuídas por São<br />

Pedro, dançando e cantando, diante do som “louco” produzido por<br />

uma banda supermoderna e, evidentemente, tendo todos seus componentes<br />

drogados com cogumelos do céu.<br />

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O Modelo da Lata de Lixo<br />

Todos vocês conhecem a “lata de lixo” mas prova velmente não<br />

conhecem o “Modelo da Lata de Lixo”, um termo criado por alguns<br />

cientistas desocupados. Eles falam que em qualquer sociedade sempre<br />

se encontram pessoas que discutem e brigam por certas ideias, as<br />

mesmas de sempre, anos após anos.<br />

Conforme os criadores do Modelo da Lata de Lixo, ao se iniciar uma<br />

discussão em mesas redondas, programas de TVs e rádios, sempre<br />

aparecem, em todos eles, certos problemas que são os mesmos, várias<br />

vezes repetidos, os quais dominam a atenção de todos no debate. Eis<br />

alguns exemplos d<strong>esse</strong>s assuntos que “enchem” os programas, bem<br />

como a fala dos debatedores: “Precisamos estudar melhor os discos<br />

voadores”, “Com o imposto único o País irá retomar o crescimento”,<br />

“Devemos combater as drogas a qualquer preço”, “Nosso problema é<br />

a infância desassis tida”, “O problema do Brasil é a fome”, “Precisamos<br />

acabar com a impunidade do país”, “O mal é o aumento do desemprego”,<br />

“Devemos aumentar o lazer”, etc. O leitor lembrará de muitos<br />

outros problemas importantes <strong>para</strong> serem dis cutidos com ardor.<br />

Como é difícil pensar e trabalhar com muitas ideias ao mesmo tempo.<br />

Sendo muitas delas contraditórias, ao ado tar o modelo da “Lata<br />

de Lixo”, as discussões, bem como os problemas, se tornam simples<br />

e fáceis de serem resol vidos. Através d<strong>esse</strong> modelo, todos os grandes<br />

problemas são facilmente equacionados na mente de seu defensor e,<br />

mais ainda, sua vida. Mesmo quando o argumento não se encaixa no<br />

discutido, os debatedores, seguros e tranquilos, lutam tenazmente pela<br />

importância das brilhantes ideias.<br />

Este modelo é construído da seguinte maneira: ao nascer, a criança<br />

começa a adquirir um sentido do “bom” e do “mau”, do “certo” e do<br />

“errado”, inicialmente através da observação da conduta dos compa-<br />

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nheiros mais velhos, quando ainda não aprendeu a linguagem e, muito<br />

menos, o raciocínio lógico. Um pouco mais tarde, são aprendidos os<br />

valores e condutas, principalmente com o grupo de amigos e com os<br />

“ensinamentos” da mídia. Durante a puberdade e a adolescência, o<br />

aprendizado de valores será através da imitação dos companheiros de<br />

grupo. Para alguns, <strong>esse</strong> é o período mais importante e crítico <strong>para</strong> a<br />

<strong>aqui</strong>sição de julgamentos do “certo” e “errado”. Depois, seus juízos de<br />

valor vão se fixando cada vez mais através das reações cordiais ou hostis<br />

com pessoas importantes <strong>para</strong> o com portamento do agente.<br />

Alguns dos valores defendidos com ardor, uma vez as similados e<br />

armazenados, passam a fazer parte dos objeti vos que devem ser seguidos<br />

e dos julgamentos realizados pelo indivíduo. São eles que fornecem<br />

o sentido <strong>para</strong> a vida de cada um. Muitos dos “tem de ser”, “devo<br />

agir” e “tinha”, que proferimos constantemente <strong>para</strong> nós mesmos e<br />

<strong>para</strong> os outros, nem são normas de conduta definitiva, nem são universais,<br />

isto é, <strong>para</strong> todas as culturas. Os valores são apenas objetivos<br />

individuais, temporários, seguidos por uns, rejeitados e amaldiçoados<br />

por outros, variando con forme as diferentes culturas e subculturas,<br />

podendo tam bém ser adotados como meios <strong>para</strong> outros fins. Por isso,<br />

os valores podem, e devem ser, de fato, questionados.<br />

Como temos diversos “professores”, cada um deles com uma opinião<br />

própria, aprendemos valores-fins e meios antagônicos. Assim, de um<br />

lado, como objetivo, aprende mos que devemos respeitar a professora,<br />

por outro lado, avaliamos que é agradável conversar na sala de aula<br />

sobre a nova namorada com o amigo. Aprendemos que devemos ser<br />

honestos, mas também que precisamos passar de ano e, como não<br />

estudamos, temos que colar. Ao escolhermos uma conduta contendo,<br />

ao mesmo tempo, valores defen didos opostos, podemos, às vezes,<br />

ficar confusos. Assim, agrada-nos fumar, mas desejamos ter boa saúde,<br />

não que remos ser obesos, mas a carne gordurosa está uma delí cia.<br />

Queremos viajar, mas precisamos trabalhar mais ainda – o que não nos<br />

agrada – <strong>para</strong> ter um dinheiro sobrando, desejamos a vida com uma<br />

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companheira compreensível e carinhosa, mas detestamos as limitações<br />

impostas pela vida a dois ou a três.<br />

Alguns valores podem tomar conta de nossos objeti vos ou meios a<br />

vida inteira, como nos exemplos: aos de zoito anos Pedro decide ser<br />

engenheiro e torna-se enge nheiro até a morte, José decide casar-se<br />

aos 28 anos com Marta, a mulher dos seus sonhos. Poderá ficar <strong>para</strong> o<br />

resto da vida preso a ela e aos filhos nascidos.<br />

Diante de tantas alternativas, pergunta-se:<br />

“Que caminho devo tomar?” Muitos só enxergam e têm inter<strong>esse</strong> e<br />

certeza da existência de um só objetivo e caminho <strong>para</strong> se chegar a ele,<br />

sendo essa preocupação solitária que passa a coordenar, dirigir e a fornecer<br />

signifi cados <strong>para</strong> a vida. Os que fazem parte d<strong>esse</strong> grupo podem<br />

passar a vida fazendo campanhas contra o aborto. Outros se preocupam<br />

com o controle do armamento nuclear.<br />

Alguns lutam a favor do estudo da homeopatia nas Faculdades de<br />

Medicina. Outros lutam em prol da vida das cobras. Para <strong>esse</strong>s, o voto<br />

deve ser dado nas eleições <strong>para</strong> o candidato que defender <strong>esse</strong> ou<br />

aquele problema parti cular: basta um deles, desde que se encaixe no<br />

“Modelo da Lata de Lixo”. Adotando essa posição, o mundo fica fácil de<br />

ser entendido, explicado e manuseado.<br />

Felizmente, <strong>para</strong> a felicidade de todos, algumas vezes um problema<br />

pode ser resolvido sem atrapalhar o outro. É possível tapar os buracos<br />

da Rua da Esperança fazendo, ao mesmo tempo, um mata-burro na<br />

Rua dos Sofredores e, também, prender os ladrões de galinha do Lambari.<br />

Coro ando tantas obras, criam-se mais impostos e, como consequência,<br />

aumenta-se os salários dos nobres e digníssimos deputados.<br />

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AIDS: Você tem medo da Doença<br />

ou do Doente?<br />

Há dias, durante cerca de três horas, fiz uma viagem de ônibus <strong>para</strong><br />

o interior de Minas. O ônibus, cheio de passageiros assentados, carregava<br />

também alguns em pé. De tempos em tempos, o veículo <strong>para</strong>va<br />

na estrada <strong>para</strong> pegar ou descer viajantes. Nessas ocasiões, por vezes<br />

va gava um novo assento no ônibus. Era comum ver o passa geiro em pé<br />

continuar nessa posição alguns minutos, antes de decidir se assentar<br />

no lugar disponível.<br />

É curioso observar que a maioria das pessoas prefere não se assentar<br />

numa cadeira ainda “quente”. Segundo a crença, essa pode transmitir<br />

doenças. Pesquisas mostra ram mais do que isso: a maioria das pessoas<br />

tem aversão a usar camisas, blusas, meias, sapatos, escova de den tes,<br />

pentes, sabonetes que pertenceram a um estranho e, principalmente,<br />

utilizar-se de uma privada estranha ao seu bem conhecido e amado<br />

bumbum.<br />

Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos, com a participação<br />

de 260 estudantes americanos, mostrou uma aversão estranha e não<br />

esperada. As perguntas e as res postas foram muito semelhantes às<br />

abaixo:<br />

— Você seria capaz de usar um blusão que pertenceu a um aidético?<br />

— Acho que não.<br />

— E se <strong>esse</strong> aidético for um homossexual?<br />

— Pior ainda, de modo nenhum!<br />

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— E se o blusão tiv<strong>esse</strong> sido usado por um homem que perdeu uma<br />

perna num acidente de carro?<br />

— É… acho que não o usaria.<br />

— Vestiria um blusão que pertenceu a um assassino?<br />

— Não… nem pensar.<br />

Outras perguntas foram feitas como “Como você se sentiria usando<br />

um blusão novo?” Em seguida, perguntou-se acerca do uso do blusão<br />

usado por um homem sadio, por um tuberculoso e um aidético-<br />

-hemofílico. As mesmas perguntas foram feitas ao grupo de estudantes<br />

america nos com respeito a dormir na cama e dirigir um carro usa do<br />

por <strong>esse</strong> grupo de indivíduos.<br />

Os resultados encontrados são interessantes: houve um elevado<br />

índice de medo de “contágio”, mesmo quando o blusão, cama e carro<br />

haviam pertencido a um homem saudável, em 33% dos entrevistados.<br />

Uma surpresa: na pesquisa, 50% dos entrevistados não usariam um objeto<br />

pertencente a um indivíduo que perdera uma perna num acidente.<br />

Seria medo do azar?<br />

Outros estudos relatam que tem sido difícil vender ou alugar casa<br />

onde anteriormente morou um aidético. Também tem sido verificado<br />

que os pais relutavam em matricular o filho numa escola frequentada<br />

por um aluno com AIDS. Uma pesquisa mostrou que 32% dos entrevistados<br />

acreditam que a AIDS pode ser transmitida pelo banho de<br />

banheira e 35% que pode ser adquirida ao doar sangue.<br />

A aversão pessoal é um sintoma de inúmeros trans tornos mentais,<br />

na qual se inclui a personalidade “evitan te” (pessoa facilmente ferida<br />

pelas críticas, que foge de atividades sociais, evita falar ou comer em<br />

público, etc.). A aversão ao contágio é uma resposta comum em pesso-<br />

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as consideradas “normais” e poucos são os defensores dos direitos dos<br />

aidéticos que seriam capazes de vestir uma roupa que foi usada por<br />

<strong>esse</strong> grupo e, muito menos, por um aidético homossexual. Por quê?<br />

Sabe-se que o medo do contato com pessoas, doentes ou não, implica<br />

mais do que o simples medo de contrair uma doença. Uma explicação<br />

frequente das causas das doenças é a cultural-religiosa. Para essa<br />

interpretação, apanha-se uma doença em virtude de transgressões<br />

morais ou peca dos. Por trás dessa crença há uma suposição da existência<br />

de um “mundo justo”, sugerindo um castigo e desvaloriza ção moral<br />

da vítima dos azares físicos ou moléstias. Para <strong>esse</strong>s, o atingido pelo<br />

infortúnio deve “merecer” o ocorrido como punição por algo errado<br />

que ele deve ter feito.<br />

O descrito acima intuitivamente nos soa esquisito. Mas, sem estranharmos,<br />

observamos uma conduta oposta: a todo o momento assistimos<br />

fãs de artistas, esportistas, políticos, religiosos e outros famosos<br />

sonhando em possuir e vestir a camisa e cueca que pertenceu a Ronaldinho<br />

e outros, de tomar um banho com o sabonete usado pelo<br />

cãozinho de Xuxa, ou usar sua calcinha e sutiã, de dormir na cama que<br />

pertenceu, ou, se possível, com o “próprio” deus idolatrado, de viajar<br />

no carro de alguém famoso, em resumo: tudo que poderá produzir<br />

associações suposta mente “positivas”.<br />

Acredito que é a emoção intuitiva, positiva ou negati va que sentimos<br />

<strong>para</strong> um ou outro indivíduo, que promove os pensamentos favoráveis e<br />

desfavoráveis que surgem <strong>para</strong> justificar o sentido pelo nosso organismo.<br />

De outro modo, não são os pensamentos “lógicos” que dão origem<br />

aos julgamentos feitos – vestir ou não o blusão – mas sim as emoções<br />

presas em julgamentos cristalizados que são detonadas automática e<br />

inconscien temente contra ou a favor de determinadas categorias de<br />

pessoas diante da presença do fato exibido.<br />

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Vocês sabem que existe uma ilusão de autoengrande cimento pessoal<br />

devido a ligações não significativas, sub jetivas tolas, como ficar feliz<br />

por morar no mesmo prédio ou bairro onde reside uma pessoa famosa,<br />

usar a mesma marca de auto, o mesmo corte de cabelo, chinelos,<br />

óculos etc., semelhantes ao do nosso ídolo. Alguns ficam felizes até em<br />

virtude de associações tênues, como ter nascido no mesmo dia e mês<br />

em que nasceu seu deusinho passagei ro. Esse é o ser humano, chamado,<br />

por alguns, de animal superior e racional.<br />

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O Preço de uma Escolha: Adeus às<br />

Ilusões<br />

Todos nós sonhamos com a possibilidade, por sinal impossível, de<br />

transformar alguns fatos já vividos em ou tros. De outro modo, imaginamos<br />

desviver o vivido. Essa mágica não se realiza. Cada um lembra,<br />

amargamente, que podia ter estudado mais <strong>para</strong> aquele exame, não<br />

de via ter tratado tão mal aquela namorada encantadora, há muito<br />

devia ter mandado <strong>para</strong> o inferno o “amigo da onça” explorador, ter<br />

tido mais cuidado ao dirigir, evitan do o acidente provocador das dores<br />

do joelho. Pensamos: “Se tiv<strong>esse</strong> agido de outro modo, estaria, possivelmente,<br />

vivendo mais feliz do que estou”. Talvez sim, talvez não.<br />

Quantos e quantos aborrecimentos podiam ter sido evi tados. Em resumo:<br />

muitas decisões tomadas ontem com muita fé, hoje, em hipótese<br />

alguma seriam realizadas.<br />

O povo fala: “ninguém é perfeito”, portanto, todos nós, sem exceção,<br />

demos nossos tropeços durante nossa passagem pela vida terrena.<br />

Segundo as estatísticas n<strong>esse</strong> assunto, quase todas ou todas as pessoas<br />

sentem-se ter rivelmente arrependidas de terem abandonado os estudos<br />

muito cedo, queixam-se de que ninguém nada fez <strong>para</strong> dissuadi-los<br />

disso. Outros lamentam um casamento preco ce, que estragou todos os<br />

outros planos.<br />

Há, ainda, os que se arrependeram de ter mantido uma amizade por<br />

muitos anos, quando o melhor teria sido mandar “<strong>para</strong> o inferno” o<br />

“amigo/inimigo” de longa data, e outros ainda, por fim, amaldiçoam a<br />

hora fatídica do trá gico encontro que resultou numa gravidez e no nascimento<br />

de um filho nascido num momento terrível, jogando por terra<br />

as belas fantasias da juventude.<br />

A psicologia costuma chamar <strong>esse</strong> arrependimento de “pensamento<br />

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204


contrafactual”, isto é, nosso desejo de mudar os fatos que lamentavelmente<br />

aconteceram no passado e não podem ser modificados.<br />

Como o mundo caminha independentemente do que desejamos, um<br />

pequeno, simples e tolo fato não-pensado, não-desejado e nem necessário<br />

pode ocorrer. Tragicamen te, <strong>esse</strong> fato que não precisava existir<br />

pode mudar <strong>para</strong> sempre nossas vidas. Um “escorregão numa casca de<br />

ba nana” pode dar origem a um novo e árduo caminho, sem que nada<br />

mais possa ser feito, destruindo <strong>para</strong> sempre a trajetória delineada,<br />

carregada de emoções positivas que habitavam o organismo num tempo<br />

longínquo que passou. Quanta saudade!<br />

Pensando nos meus escorregões, nas minhas “burra das” malucas<br />

pela vida afora, lembrei-me do encontro oca sional que tive com o<br />

Sócrates. Esse meu amigo de infância tinha uma vida traçada <strong>para</strong> ser<br />

boa. Era disposto, alegre, bonito e rico. Mas “estou lamentando antes<br />

da hora”. Sócra tes conheceu a filha do aposentado da esquina, em<br />

virtu de de pequenas coincidências, a princípio sem importância. Pouco<br />

a pouco, <strong>esse</strong> conhecimento, que não precisava ter ocorrido o levou a<br />

um caminho, é…bem! Vou lhes contar:<br />

Eu caminhava a mando do cardiologista – fazia mi nhas caminhadas<br />

<strong>para</strong> melhorar a pressão e observar a multidão – quando encontrei<br />

Sócrates. Achei-o envelheci do. Sempre achamos o outro mais acabado<br />

do que nós.<br />

Penso que essa avaliação ocorre porque vemos todos os dias nosso<br />

rosto e corpo no espelho e não vemos o do nosso amigo sumido.<br />

Fomos colegas no colégio do bairro e do futebol da várzea. Nem eu,<br />

nem ele, fomos craques, nem de futebol, nem dos estudos. Estudávamos<br />

<strong>para</strong> passar de ano e jogá vamos <strong>para</strong> nos divertir. Entretanto, não<br />

éramos os piores da sala nem do time. Um dia, um dia como qualquer<br />

outro, sem nada de especial, nem chovia, nem ventava, o azul do céu<br />

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205


de abril começava a escurecer, o Sol se punha, tran quilo. Sócrates ainda<br />

era jovem, muito jovem, como era o narrador dessa tragicomédia.<br />

Estava esquecendo: ele era um dos poucos do grupo que a família<br />

tinha algum dinheiro. Falava-se, entre nós, que seu pai era grande fazendeiro<br />

no norte de Minas. Nas nossas conversas não se comentava a<br />

vida e os segredos familiares de e <strong>para</strong> ninguém. Essa regra – não havia<br />

proi bições explícitas – era acatada e respeitada por todos, não podia<br />

ser burlada.<br />

Voltando ao Sócrates: ele, quando ainda era um gina siano – <strong>para</strong><br />

quem não sabe, “ginasiano” era quem cursava os quatro últimos anos<br />

do atual primeiro grau – foi fisgado pela filha do aposentado. Lucélia,<br />

uma bela morena, ou mulata, isso não importa, era de “fechar o<br />

comércio”. Até aquela data, ela era inacessível aos jovens imberbes e<br />

de sajeitados, mas nem por isso deixava de ser desejada por todos os<br />

jovens que transitavam em torno de sua casa.<br />

Dentro do nosso maniqueísta e acanhado campo per ceptual de<br />

julgamento da conduta feminina, existiam, ra dicalmente opostos, dois<br />

tipos de mulheres: de um lado, as santas ou virgens-santas que serviam<br />

<strong>para</strong> se casar, de outro, as desinibidas e livres demais que podiam ter<br />

algu mas outras serventias.<br />

Até então, não havia meio-termo. Mas apareceu Lu célia. Nenhum<br />

de nós pensava em aproximar-se dela <strong>para</strong> namorá-la, não porque a<br />

rejeitássemos, mas sim devido à nossa incapacidade física e financeira,<br />

ou pior do que isso, em virtude de nossa inabilidade, da falta de coragem,<br />

pois não conhecíamos as estratégias e as táticas necessárias <strong>para</strong><br />

mantermos uma conversa e um relacionamento ade quado com uma<br />

mulher daquele “pedigree”, capaz de fa zer todos os homens virarem<br />

seus rostos em sua direção, quando passava pela rua. A presença de<br />

Lucélia derrubou nossa regra simples <strong>para</strong> julgar as mulheres em dois<br />

gru pos opostos. Ela era um dos únicos e raros artigos que conhecía-<br />

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206


mos fora-de-série, pois não era, segundo nossa classificação, nem <strong>para</strong><br />

casar, nem <strong>para</strong> um programa com pessoas como as do nosso grupo.<br />

Amedrontados, muito antes de darmos o primeiro passo em sua direção,<br />

já ante víamos o fracasso caso ousássemos conquistá-la. O nosso<br />

treino era pouquíssimo, a nossa única e, por sinal, péssi ma experiência,<br />

era muito pequena: “mulheres de rua”, mulheres de “terceira classe”,<br />

segundo nossa classificação sócio-religiosa da época, isto é, prostitutas,<br />

semiprostitu tas ou candidatas a tal.<br />

Enxergávamos Lucélia através d<strong>esse</strong>s óculos embaça dos e de lentes<br />

não-flexíveis, de maneira confusa: éramos superatraídos por ela e também<br />

tínhamos pavor de nos apro ximarmos. Assim, ao mesmo tempo,<br />

sonhávamos em estar juntos e afastados dela. Tentar ou não tentar.<br />

Mas pior que tudo: Lucélia era inacessível <strong>para</strong> nossas posses. Tínhamos<br />

o delírio em nossas mentes, mas a realidade era outra.<br />

Num fim de tarde, ficamos surpresos ou espantados, não sei bem,<br />

quando vimos Sócrates de mãos dadas com Lucélia, passando na nossa<br />

frente sorridente e orgulhoso da conquista. Não dava <strong>para</strong> entender. O<br />

seu comporta mento gerou em todos nós uma imensa inveja misturada<br />

com raiva. Pensei inicialmente que devia ser um encontro casual, sem<br />

consequências, milagrosamente dentro do pa drão existente no grupo.<br />

Mas fiquei intrigado, imaginando como foi que ele conseguira ganhar a<br />

tão distante Lucélia, uma conquista que ninguém do grupo tinha conseguido,<br />

nem imaginado.<br />

Mas as pequenas diferenças foram, pouco a pouco, provocando<br />

as grandes diferenças na vida do Sócrates. Muito lentamente ele ia<br />

se transformando, à medida que sua paixão por Lucélia aumentava.<br />

Primeiramente Sócrates abandonou os encontros com os companheiros,<br />

mais tarde largou o futebol, depois, os estudos. A cada dia mais,<br />

sua vida girava exclusivamente em torno dela. Lucélia também ficou<br />

diferente do que era. Deixou de ser a jovem livre e alegre de outros<br />

tempos, a que saía com os “bacanas” de terno e gravata, os que a bus-<br />

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cavam em seus carros, de fato carros simples. Tornou-se uma donzela<br />

séria, reca tada. Ao abandonar os “grã-finos”, somente saía com Sócrates.<br />

Nós, de boca aberta, olhávamos e suspirávamos, seduzidos e<br />

raivosos, ao ver o casal passar.<br />

Após um curto período de dedicação exclusiva e de muita paixão,<br />

Sócrates deu mais um ligeiro escorregão, provavelmente não-desejado<br />

e não-programado. Um pe queno fato, sem os cuidados necessários,<br />

transformou, de vez, a vida do Sócrates e produziu uma diferença ainda<br />

maior. O fosso entre o antigo e o atual aumentou.<br />

O inevitável ocorreu: Lucélia foi deflorada, nome dado na época<br />

a certas minúcias do sexo. Em outras palavras, Sócrates “fez mal” a<br />

Lucélia. Naquele tempo, diferente dos tempos modernos, o costume<br />

obrigava o suposto autor a ca sar-se com sua “vítima”. À “boca pequena”<br />

falava-se que ele havia caído no conto da gravidez indesejada, ou<br />

melhor, os componentes do grupo tinham dúvida quanto ao autor real<br />

da gravidez. Talvez tivéssemos inventado isso de inveja.<br />

A partir de mais <strong>esse</strong> pequeno fato, a boa vida de Sócrates foi decepada<br />

<strong>para</strong> sempre. Ele, que nunca havia trabalhado, passou a fazê-lo.<br />

Ele, que sempre tinha algum dinheirinho sobrando no bolso <strong>para</strong> comprar<br />

um doce ou ir ao cinema, teve que economizar. Os fatos negativos,<br />

como bolas de neve, se acumularam. Sem alternativas, diante de sérias<br />

dificuldades financeiras, Sócrates mudou-se da pensão razoável onde<br />

morava, <strong>para</strong> o fundo do bar raco existente na casa do sogro. Era lá<br />

onde funcionava um pequeno depósito de lenha. Era apenas um quartinho<br />

apertado <strong>para</strong> dormir. O banheiro situava-se fora do quar to e não<br />

havia cozinha, nem sala.<br />

Sócrates passava parte do dia cuidando da esposa, que estava grávida,<br />

pois logo no início da gravidez Lucélia foi despedida do emprego de<br />

vendedora das Lojas Ca nadenses. Dia sim, dia não, enquanto sua sogra<br />

cuidava dela, Sócrates vendia <strong>para</strong> vizinhos e pessoas amigas do ces<br />

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fabricados por ele durante o dia e, à noite, trabalhava de porteiro da<br />

Associação Comercial.<br />

Tentou voltar aos estudos, mas faltou dinheiro <strong>para</strong> as mensalidades<br />

e também tempo <strong>para</strong> frequentar a esco la e, por isso, abandonou o<br />

colégio <strong>para</strong> sempre.<br />

Foi deixando de lado, progressivamente, outras me tas anteriormente<br />

planejadas como fazendo parte de seu futuro, frutos de sonhos de<br />

criança e dos incentivos do pai: ser advogado na área criminal, ser famoso,<br />

rico, par ticipar de júris com criminosos conhecidos, aparecer nas<br />

notícias dos jornais, ter diversas mulheres apaixonadas por ele.<br />

O mundo imaginado e esperado foi sendo tomado por um mundo<br />

frio, monótono e sem sabor.<br />

Sócrates foi sendo esmagado pelas pressões dos fa tos vindos de<br />

todos os lados: despesas com o leite, rou pas, médicos e remédios.<br />

Outros filhos foram nascendo, crescendo, dando mais e mais trabalho.<br />

Ora era um que tinha dor de barriga, ora outro tinha tosse, um terceiro<br />

dor de ouvidos. Uma boa parte do tempo eles choravam, de dia ou<br />

de noite, de fome ou de desconforto, algumas poucas vezes sorriam,<br />

pedindo colo ou companhia.<br />

Nessa guerra inglória de partos continuados, abor tos espontâneos,<br />

gritarias infernais dos diabinhos, Lucélia foi se desfigurando. Inferiorizada,<br />

começava a não mais chamar a atenção dos homens nas poucas<br />

vezes que saía de casa. Sócrates, cabisbaixo, examinava-a. Recordando,<br />

com<strong>para</strong>va a Lucélia atual, gorda e encurvada, a que esta va viva à sua<br />

frente dando sopinha ao filho, com a jovem bela e alegre do retrato,<br />

colocado em cima da prateleira do guardalouça, a do dia do casamento.<br />

Deprimida, des confiada, irritada, gastava o que não podia com os<br />

filhos agitados e magros, com o alcoolismo do pai e a hiperten são da<br />

mãe.<br />

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209


Sócrates transformou-se num escravo das exigências do cotidiano,<br />

dedicado integralmente às soluções <strong>para</strong> os entraves constantes da<br />

vida familiar.<br />

Não mais lhe sobrava tempo, nem mesmo capacida de, <strong>para</strong> pensar<br />

acerca de si mesmo, do que fazer em seu próprio benefício. O mundo<br />

imaginado durante sua juven tude ficava cada vez mais distante,<br />

com menor importância <strong>para</strong> ele. Uma vez ou outra, ocasionalmente,<br />

estimulado por uma notícia no jornal ou o encontro com um ex-companheiro,<br />

ele lembrava-se de algumas cenas do passado, longínquas,<br />

antigas e envelhecidas como sua cabeça atual. Lá, muito longe, o jovem<br />

alegre parecia tão feliz. Agora transformou-se noutro, um trabalhador<br />

em tempo integral <strong>para</strong> manter-se naquela miserável prisão iniciada na<br />

noite fatídica. Os sonhos viraram fumaça, dispersaram-se: Só crates foi<br />

levado <strong>para</strong> um outro mundo. O caminho, antes claro e perto, distanciou-se,<br />

estreitou-se, ficou embaçado.<br />

Naquela tarde sombria, abandonei minha caminhada <strong>para</strong> escutar o<br />

desabafo de Sócrates. Morando sozinho, eu tinha enorme dificuldade<br />

<strong>para</strong> entender uma pessoa pre sa a uma família. Ao ouvi-lo com paciência,<br />

simpatia e até piedade, relatar, com uma voz embargada, seu<br />

drama melancólico, eu me lembrava dos tempos que não voltam mais,<br />

dos meus tropeços parecidos com o dele, dessa vida da qual sempre<br />

tive medo. Escutava suas amarguras, sua nova história de vida, uma<br />

vida <strong>para</strong> mim inútil e sem rumo. Imaginei que talvez, bem escondida<br />

– ele não me confessou isso – sua vontade era de nunca ter feito tudo<br />

<strong>aqui</strong>lo.<br />

Entretanto, como bom observador, pude notar, ao me despedir, uma<br />

certa satisfação e alegria no seu semblante. Imaginei que, apesar de<br />

tudo, das dificuldades com que vi via, ele estava desejando chegar em<br />

casa, pois lá ele tinha proteção e segurança.<br />

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210


D<strong>aqui</strong> a pouco ele teria ao seu lado seus filhos e sua mulher <strong>para</strong><br />

recebê-lo e com eles passaria a noite.<br />

Nós nos despedimos friamente. Eu estava sem graça. Voltei <strong>para</strong> casa<br />

pensativo. Sabia que estava livre de tudo <strong>aqui</strong>lo que ouvira. Entretanto,<br />

estava confuso: retornava <strong>para</strong> meu lar, um lugar onde não havia<br />

ninguém <strong>para</strong> me aborrecer, onde gozava de completa liberdade,<br />

entretan to na minha casa não havia ninguém, ninguém, ninguém mesmo.<br />

Somente eu <strong>para</strong> me receber, conversar e apoiar.<br />

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Adivinhos: Esses Desadaptados<br />

Os videntes, bem como os que trabalham com búzios, cartas, tarô,<br />

horóscopos, mapa astral e outros semelhan tes, ao tentarem predizer<br />

o futuro do país, do artista ou do político, de fato só poderão observar<br />

os “mapas” mentais que habitam suas próprias mentes. Esses leitores<br />

miste riosos “leem” apenas seus próprios pensamentos e não os dos<br />

outros. Não há outra possibilidade. Alguns, sem malí cia, outros, nem<br />

tanto, descrevem <strong>para</strong> o consulente ávido por profecias a “realidade”<br />

interna contida em sua mente, como se fossem eventos que irão acontecer.<br />

Ninguém pode refletir ou descrever o que não se en contra armazenado<br />

em sua própria mente, sua “memória autobiográfica”. Apesar<br />

d<strong>esse</strong> fato simples, eu só falo o que aprendi, só consigo discutir ou resolver<br />

questões que tenho em mente e que conheço. Estranhamente,<br />

os diver sos videntes atribuem suas visões a acontecimentos ex ternos,<br />

até o momento da revelação desconhecidos <strong>para</strong> o vidente e o cliente.<br />

O grande <strong>para</strong>doxo dos videntes e outros semelhantes é que eles<br />

jamais conseguiram prever seus próprios desti nos, sair de sua ignorância<br />

a respeito de sua incapacidade <strong>para</strong> fazer o que dizem: eles ignoram<br />

a própria ignorância.<br />

Há uma verdade lógica impossível de ser negada: nada do que existe<br />

fora de nossa mente pode ser obser vado, percebido, examinado ou<br />

discutido em si. Tudo que conhecemos encontra-se intermediado pela<br />

nossa mente.<br />

Não existe objetividade nem nas ciências chamadas “exatas”. Tudo o<br />

que é olhado, escutado, cheirado, etc., sempre o será por uma cabeça<br />

que já possui algum co nhecimento ao nascer (inato) e, após o nascimento,<br />

cada um tem seu aprendizado singular. O conhecimento antigo<br />

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forçosamente servirá de suporte ao novo que vai sendo edificado. Não<br />

pode ser de outro modo.<br />

Cada um de nós tem uma história que é humana: vi veu e experimentou<br />

certas situações, leu ou escutou algo, interessa-lhe observar determinados<br />

aspectos do mundo, somente <strong>esse</strong>s, num certo momento.<br />

Qualquer observa dor de fatos apresenta sempre limitações: características<br />

como a idade, sexo, maior ou menor conhecimento, a ado ção<br />

de certa filosofia de vida, o viver um instante particu lar, etc. Tudo isso,<br />

e muito mais, irá fatalmente modificar a percepção e interpretação do<br />

fato ou as relações que estão sendo examinadas.<br />

Sempre, sem exceção, todos nós, ao examinarmos um evento, lançamos<br />

nele nossos desejos, noções gerais ou falta de conhecimento<br />

acerca do fato, de modo que o observado mistura-se às nossas crenças.<br />

Nós nunca atin gimos os fatos. Sempre damos nossas versões acerca<br />

dele ou, de outro modo, trabalhamos, examinamos e interpre tamos<br />

apenas as representações criadas ou construídas acerca dos eventos,<br />

um simulacro ou amostra do evento, uma história reconstruída, modificada<br />

e contada acerca do fato <strong>para</strong> e por alguém. Que pena!<br />

Muitas vezes recebemos informações de segunda, terceira ou quarta<br />

mão. Construímos as nossas versões dos fatos e estas sempre devem<br />

corresponder às nossas crenças subjacentes, aos nossos desejos, ao<br />

grupo social onde somos aceitos e do qual fazemos parte.<br />

As versões são frequentemente carregadas de mitos, hipóteses e<br />

deduções antigas, aprendidas cedo e, além dis so, muito longe da realidade.<br />

Assim é que todos nós cons truímos nossos mitos particulares.<br />

Na maioria dos nossos raciocínios não examinamos os métodos que<br />

usamos <strong>para</strong> chegar às conclusões obtidas e, muito menos, não examinamos<br />

as contradições possíveis de existir no nosso pró prio raciocínio.<br />

Parece-me que os videntes fazem parte do grupo dos seres huma-<br />

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nos. Talvez não! Não sei bem. Eles, caso es tejam certos, ao observarem<br />

e raciocinarem, como nós, selecionam certos fatos, acentuam alguns<br />

aspectos, eli minam e generalizam outros <strong>para</strong> construírem suas ideias<br />

conforme seus planos e intenções. Além disso, como todos nós, ao examinarem<br />

um acontecimento não valorizam e não selecionam aspectos<br />

do fato que não interessam às hipóteses que formulam e que poderiam<br />

contradizer as ex pressas no momento. O resto… vocês decidem.<br />

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Comportamento: Informações resumidas<br />

Historicamente, a ênfase <strong>para</strong> censurar e domesticar o homem foi<br />

colocada no elemento destruidor deste. Mas é possível que muita raiva<br />

e agressividade do homem derivaram das frustrações impostas pelos<br />

processos educacionais.<br />

Em todas as sociedades, as pessoas avaliam e comentam as ações de<br />

outras, elogiando-as ou criticando-as. Certas condutas são tidas como<br />

obrigatórias; as pessoas são forçadas a alcançá-las. Os que fracassam<br />

em possuir tais virtudes são criticados e rejeitados.<br />

A realidade social e nossa atividade na sociedade são guiadas por<br />

uma ilusão. Não percebemos uma realidade, apenas vivenciamos um<br />

modelo ou estruturação ilusória dela, criada pelo grupo dominante.<br />

Entre as ilusões encontra-se a idéia de liberdade que se insere numa<br />

forma particular de ideologia. Somos escravos de uma “liberdade”<br />

inventada pelo modo de pensar ditado pela ideologia predominante.<br />

Em 1530, Erasmo de Rotterdam escreveu ““Da Civilidade em Crianças””,<br />

que teve 130 edições com traduções e imitações. O livro trata<br />

do comportamento das pessoas em sociedade. É dedicado ao menino<br />

nobre e escrito <strong>para</strong> a educação das crianças. O livro descreve, entre<br />

outras coisas, como as pessoas olham e o significado de cada olhar: “O<br />

olhar esbugalhado é sinal de estupidez; o fixo, de inércia; o cortante,<br />

dos que têm propensão à ira; vivo e eloquentes, dos impudicos”. Escreve<br />

também acerca da postura, vestuário, expressões faciais etc. : “Não<br />

deve haver meleca nas narinas”; “O camponês deve limpar o nariz no<br />

boné, o fabricante de salsichas, no braço”.<br />

Antes dos livros de Erasmo, cada um mostrava com naturalidade sua<br />

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nudez. As pessoas andavam e dormiam nuas; apenas alguns religiosos<br />

não o faziam. Nos casamentos, a noiva se despia diante das damas de<br />

companhia; a sexualidade era aberta.<br />

A agressividade, como o sexo, era natural e aceita. Muitos homens<br />

viviam <strong>para</strong> a violência; era natural matar e queimar em praça pública<br />

homens, gatos e prisioneiros. A agressão era incentivada, bem como as<br />

lutas, brigas e torturas; os afetos eram, também, totalmente liberados.<br />

Num desenho de uma estalagem da época de Erasmo, nota-se a presença<br />

de 80 a 90 indivíduos. Entre eles encontram-se pessoas comuns<br />

reunidas com outras mais bem vestidas, possivelmente ricos e nobres<br />

e, também, mulheres e crianças. Muitos suam e enxugam-se; um deles<br />

limpa a bota em cima da mesa, outros têm relação sexual.<br />

Pessoas desconhecidas dormiam na mesma cama; a etiqueta e “boa<br />

educação” aconselhava “o inferior” a deitar-se primeiro, ficar espichado<br />

<strong>para</strong> não se encostar no “importante”, e levantar-se primeiro sem<br />

esbarrar no companheiro.<br />

As necessidades fisiológicas eram “aliviadas” em qualquer lugar: ruas<br />

e praças, diante de todos. Erasmo aconselhou ao educado, ao ver o outro<br />

defecando na rua, olhar <strong>para</strong> outro lado, como se estiv<strong>esse</strong> vendo<br />

alguma coisa interessante, pois assim não o incomodaria. As pessoas<br />

tomavam banhos nos banheiros públicos; <strong>para</strong> isso, saíam nuas de<br />

casa.<br />

Erasmo não foi o primeiro a descrever os costumes corretos que<br />

deviam ser seguidos. Documentos escritos após o séc. Xlll (colocar em<br />

romano), antes dele, descrevem normas tidas como adequadas, ou<br />

seja, formas de “cortesia”. O modo usado na corte é que deu origem à<br />

maneira “correta” de se comportar na sociedade civilizada: “Um homem<br />

requintado não deve fazer barulho de sucção com a colher quando<br />

estiver em boa companhia“; “Não deve escarrar em cima da mesa<br />

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diante dos outros enquanto almoça; apenas no chão e, após escarrar,<br />

deve passar o pé em cima <strong>para</strong> espalhar o escarro”; “A mão usada <strong>para</strong><br />

escarrar deve ser a que não esteja ocupada em partir a carne <strong>para</strong> os<br />

visitantes”.<br />

Quanto ao modo de falar, Erasmo prescreve: “Os educados não<br />

devem falar “como bem sabe”; “um bocado de vezes”; “acamado”;<br />

“defunto”. Devem falar: “perdão”; “desculpe”; “por favor”; “meu falecido<br />

pai”; “é necessário que façamos isso”. O critério <strong>para</strong> considerar<br />

essas condutas como “boas maneiras” decorre delas serem as usadas<br />

pelos membros da elite; o contrário era incorreto por ser a própria dos<br />

“inferiores sociais”. Outras regras: “As palavras antiquadas são impróprias<br />

<strong>para</strong> a fala séria. Palavras muito novas podem levar a afetação; as<br />

de baixo calão devem ser evitadas, pois os “baixos” as usam”.<br />

Uma vez disseminadas as “boas maneiras”, as pessoas passaram a<br />

se sentir envergonhadas ao agirem conforme o “modo errado”. Assim<br />

a maneira ensinada e “correta” foi sendo exigida <strong>para</strong> todos os “bem-<br />

-educados”.<br />

Aos poucos, as pessoas começaram não só a agirem conforme as<br />

regras, mas, também, exigindo a conduta “certa” dos outros: “Isso não<br />

fica bem”; “Faça isso e não <strong>aqui</strong>lo”.<br />

O garfo, surgido no fim da idade média, era usado somente <strong>para</strong> retirar<br />

os alimentos da travessa, não era usado <strong>para</strong> levar a comida à boca.<br />

A igreja revelou-se, como ocorreu tantas vezes, um dos mais importantes<br />

órgãos da difusão de estilos de conduta a serem seguidos pelos<br />

“mais baixos”. Para padre La Salle, o modo correto de agir veio de Deus<br />

e, por isso, devia ser seguido.<br />

O livro, trazendo centenas de exemplos de “boas maneiras”, nos<br />

mostra uma etiqueta um pouco diferente da dos nossos dias. Mas<br />

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essas instruções ditadas por Erasmo, numa certa época, foram todas<br />

consideradas certas e, portanto, exigidas.<br />

Eu e você rimos das regras de etiqueta descritas acima. Erasmo descreveu<br />

as maneiras usadas na corte como as corretas; eram os nobres<br />

que sabiam e ditavam o modo de agir diante de convidados, nas festas<br />

etc. Atualmente, como antes, livros têm sido publicados sobre etiqueta,<br />

diferentes dos de Erasmo. Mas o livro de Erasmo era também,<br />

naquela época, diferente dos anteriores. Será que os leitores de 2.500<br />

irão rir de nossas regras acerca do comportamento do “homem bem-<br />

-educado”?<br />

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Sociedade e cultura<br />

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Os Donos do Poder<br />

Coitado do cidadão: aprisionado em si mesmo, sozinho, isolado do<br />

exterior por uma pele fina e frágil, cercado por todos os lados pelos<br />

donos do poder espalhados na natureza física, química, biológica e dos<br />

homens.<br />

Nos meus delírios de perseguição visualizo um complô, arquitetado<br />

por homens tiranos, juntos aos seres vivos em geral e, também, pelas<br />

almas penadas – tudo muito bem coordenado – visando a controlar<br />

minha liberdade, bem como a sua. Não estou exagerando, darei exemplos,<br />

todos eles escolhidos ao acaso; os não lembrados ficarão por<br />

conta dos leitores.<br />

Não acreditam? Pois vejamos: ora é uma mosca que vem pousar no<br />

meu nariz; ora um cão que me observa, mostrando seus belos e pontiagudos<br />

dentes, prontos <strong>para</strong> atacar-me. Mas não fica só nisso, depois<br />

é o convite de formatura que exige minha presença, o telefone que<br />

toca e me obriga a correr; o interfone oferecendo gás; a conta a pagar,<br />

o presente de Natal e de aniversário, o forno que não mais esquenta e,<br />

também, isso e <strong>aqui</strong>lo. Mas tem também a chuva, a enchente, o imposto<br />

de renda, o terremoto lá longe, o trombadinha bem perto. Na rua, o<br />

carro dis<strong>para</strong>do pronto <strong>para</strong> matar-me, obriga-me a correr desajeitado<br />

e envergonhado pela falta de forma, o trânsito que não flui, a rua esburacada<br />

e sem saída, meu time perdendo, o assaltante roubando meu<br />

sossego, às vezes, meu sonho de tranquilidade, o frio que me obriga a<br />

vestir o agasalho feio e fedendo a mofo, o calor que me faz suar e dormir<br />

mal, o café frio, fraco, fedorento e com formiga no fundo.<br />

Onde buscar, nessa Babel de desgraças, forças capazes de suportar e<br />

orientar minha vida. Deus! Oh Deus! Onde está minha sonhada liberdade,<br />

a escolha individual, meu livre-arbítrio? Milhares de outras forças,<br />

além das minhas, me impelem a agir de um modo e de outro, não<br />

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como gostaria. Estou aprisionado; a tudo isso e muito mais; a câimbra,<br />

o espirro, a tosse, o pedinte e o flanelinha, o som do vizinho, a gritaria<br />

dos meninos do colégio, a fumaça que me impede de enxergar os objetivos<br />

imaginados e sonhados.<br />

Ao envelhecer, aos poucos ou rapidamente, não sei mais, vou perdendo<br />

a ilusão plantada cedo em minha cabeça mole da existência da<br />

liberdade, uma idéia inoculada pela igreja e pela escola, logo que nasci.<br />

Cansado de ser preso à família, ao partido político, à religião, ao time<br />

de futebol, à profissão e a tudo mais, percebo que o aprendido, acerca<br />

da liberdade, era tudo mentira, nascida de uma ideologia democrática<br />

falsa, incoerente: ela me enganou durante anos.<br />

Onde encontrar a liberdade proclamada e esperada, que me fazia<br />

sentir feliz? “Foi um sonho que findou”, como diz a letra do poeta. Vejo<br />

agora que a liberdade é uma balela, um conceito belo, como algumas<br />

pessoas, mas sem conteúdo. Imagino, sem melhor idéia, que a inexistente<br />

liberdade foi construída pelo poder cultural <strong>para</strong> amenizar nossa<br />

infelicidade; foi fabricada, como várias outras ilusões, <strong>para</strong> nos am<strong>para</strong>r<br />

e nos proteger n<strong>esse</strong> mundo confuso.<br />

Os poderes que esmagam meu fraco organismo vão desde a mosca<br />

que pousa, sem dar a mínima, de tempos em tempos, no meu velho<br />

e cansado nariz, até os decretos-leis de FHC, de Lula e de outros, que<br />

sei que virão. Mas, além disso, fui, há muito, dominado pelos dogmas<br />

religiosos, pelas ideologias marxistas, machistas e democráticas; mais<br />

tarde, aprisionei-me nas teorias científicas em voga; pulando de uma a<br />

outra sem <strong>para</strong>r. Corri como um burro atrás do milho inalcançável, em<br />

busca do “alimento” <strong>para</strong> minhas dúvidas. Desesperado, sem melhor<br />

orientação interna, esmagado por pressões e decepções, d<strong>aqui</strong> e dali,<br />

agarrei-me, como náufrago desesperado, à “sabedoria” dos provérbios:<br />

“macaco que mexe muito está querendo chumbo”.<br />

As terríveis forças malignas do poder trabalham <strong>para</strong> o mesmo fim e,<br />

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em bloco, tentam me derrotar; todas elas têm um aspecto em comum:<br />

mudar meu comportamento, dirigir minha conduta <strong>para</strong> um rumo<br />

alheio à minha vontade. Meu saudoso livre-arbítrio, sem dizer adeus,<br />

desapareceu da minha vida há muitos anos; as forças do não-eu, em<br />

conjunto, lutam contra minha consciência, me impedem de alcançar<br />

minhas metas, se é que elas são minhas. Agora, já não tenho nenhuma<br />

certeza.<br />

Aceito a definição de poder como a “capacidade <strong>para</strong> produzir<br />

determinada ocorrência”, ou, “a influência exercida por uma pessoa<br />

ou grupo sobre a conduta alheia, através de algum meio”. Portanto,<br />

<strong>para</strong> ser exercido o poder necessita-se de uma força atuante – a que<br />

desencadeia a ação (a mosca e o governo) – e, também, de um poder<br />

geralmente passivo ou bastante submisso – adequado <strong>para</strong> sofrer a<br />

ação (eu, eu, eu). Uma mosca não modificará a conduta de um boneco<br />

ao pousar em seu nariz; o imposto de renda, com todos os urros do<br />

leão, não conseguirá fazer com que o morto preencha sua declaração<br />

de renda.<br />

Algumas vezes, muito raramente, o poder de um indivíduo ou grupo,<br />

sobre o comportamento do cidadão está em concordância, ou se identifica,<br />

com os objetivos ou necessidades deste, produzindo uma satisfação<br />

dos dois poderes envolvidos, o ativo e o passivo. Por exemplo, se<br />

você é convidado <strong>para</strong> ir almoçar na casa de um amigo – o que modificará<br />

o seu comportamento habitual – há a possibilidade estatística de<br />

você, naquele dia, desejar aquele encontro e até gostar das iguarias e<br />

do vinho servido; caso tenha sorte. Isso acontecendo, os dois participantes<br />

do poder – a força atuante e a passiva- podem atingir objetivos<br />

comuns: isso raramente acontece.<br />

Além disso, o poder tem possibilidade de ser exercido visando a<br />

auxiliar uma pessoa; com um fim eticamente louvável. Convenço<br />

minha filha que é bom <strong>para</strong> ela frequentar a escola, comer determinado<br />

alimento, ter certos hábitos higiênicos etc. A aceitação de formas<br />

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ásicas de conduta por parte dela poderá facilitar sua vida, aumentar<br />

seu “poder pessoal” <strong>para</strong> tolerar e, talvez, driblar o poder institucional.<br />

Mas, mesmo <strong>esse</strong>s valores amplos e gerais, podem ser questionados;<br />

posso estar equivocado e isso minha filha verificará com o tempo e<br />

experiência <strong>para</strong> encontrar seu caminho.<br />

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Nossas Origens Culturais: Chinesa e<br />

Grega<br />

Todos concordam que existe uma considerável diferença entre as<br />

diversas culturas, afetando não somente as crenças acerca de aspectos<br />

específicos do mundo, como também de seus sistemas de pensar,<br />

linguagem, origens, valores etc. De modo resumido, as culturas diferem<br />

quanto às maneiras pelas quais os habitantes conhecem o mundo.<br />

Grécia Antiga – Individualismo<br />

Duas são as formas existentes de colocação do poder: mudando<br />

a nós mesmos, ou mudando o meio <strong>para</strong> que este esteja conforme<br />

nossos desejos. Uma das mais notáveis características da Grécia antiga<br />

(Jônicos e Atenienses em particular) era a colocação do poder no<br />

indivíduo. Conforme essa crença, as pessoas desenvolvem um sentido<br />

de “agente das ações”. A definição de felicidade <strong>para</strong> os gregos era “o<br />

exercício dos poderes vitais através das linhas de excelência na vida…”<br />

Como eles acreditavam na influência dos deuses, havia, de um lado a<br />

intervenção divina, de outro, a ação humana independente. As duas<br />

eram vistas como trabalhando juntas.<br />

Para os gregos, sua vida diária estava imbuída com um sentido de<br />

escolha própria, sem restrição social, semelhante a nossa idéia (errada)<br />

atual de liberdade. O Estado Ateniense representava a união de indivíduos<br />

livres <strong>para</strong> desenvolver seus próprios poderes e viver sua própria<br />

maneira de ser, obedientes somente às leis criadas por eles mesmos,<br />

leis essas que eles podiam criticar e mudar conforme seus desejos.<br />

As pessoas sendo livres podiam discutir seus objetivos e criticar o dos<br />

outros: mesmo as pessoas comuns participavam dos debates da praça/<br />

mercado e assembléias políticas.<br />

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224


Um outro aspecto da civilização grega foi seu sentido de curiosidade<br />

acerca do mundo e a pressuposição que ele poderia ser compreendido<br />

através da descoberta de regras que reg<strong>esse</strong>m os eventos. Os gregos<br />

especulavam acerca da natureza dos objetos e dos eventos que os<br />

circundavam e criaram modelos explicativos a seu respeito. As construções<br />

d<strong>esse</strong>s modelos foram feitas categorizando ou classificando<br />

os objetos e os acontecimentos, criando regras acerca deles visando à<br />

descrição sistemática da realidade, a predição e a explicação dos fatos<br />

e eventos. Esta postura possibilitou invenções nos campos da física, astronomia,<br />

geometria, lógica formal, filosofia racional, história natural,<br />

história, etnografia e outras áreas.<br />

Antiga Civilização Chinesa – Harmonia<br />

A antiga civilização chinesa contrastava com a civilização grega. Sua<br />

ênfase, ao contrário do “agente pessoal”, foi colocada na “obrigação<br />

social, reciprocidade ou agente coletivo”. Os chineses sentiram que o<br />

individualismo era parte do ajuntamento da coletividade ou família,<br />

assim, a conduta do indivíduo deveria ser guiada pelas expectativas do<br />

grupo, não dele isolado, do qual fazia parte. O sistema moral chinês<br />

fundamental, o Confucionismo, foi <strong>esse</strong>ncialmente elaboração das<br />

obrigações que deviam existir entre o imperador e o sujeito, pais e<br />

filhos, amigo e amigo, marido e mulher, irmão e irmão mais jovem. A<br />

sociedade chinesa levou o indivíduo a se sentir fazendo, ou sendo, parte<br />

integrante de uma grande e complexa totalidade, de um organismo<br />

social onde os papéis prescritos acerca de relações eram os guias <strong>para</strong><br />

a conduta ética. Os direitos dos indivíduos foram construídos de forma<br />

que a pessoa “dividisse” ou compartilhasse dos direitos com a comunidade<br />

como um todo. O respeito pelo sistema hierárquico tinha prioridade<br />

sobre a maioria das outras ações, principalmente as individuais.<br />

Essa ênfase na agência coletiva resultou na valorização chinesa da<br />

harmonia grupal. Esta ocorre quando os ocupantes de um grupo social<br />

realizam suas funções sem transgredirem os limites de deveres ou<br />

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225


expectativas que acompanham essas funções. Dentro do grupo social,<br />

qualquer forma de confrontação, como o debate, foi desencorajada<br />

entre os chineses, ao contrário dos gregos.<br />

A civilização chinesa foi, na antiguidade, tecnicamente mais avançada<br />

que a grega, por exemplo: sistema de irrigação, tinta, porcelana,<br />

roda do carrinho de mão, broca <strong>para</strong> furar, barcos, compartimentos<br />

<strong>para</strong> água, leme <strong>para</strong> barco, técnicas de imunização, técnicas astronômicas<br />

de observação, sismógrafos etc. Muitos d<strong>esse</strong>s ganhos tecnológicos<br />

foram postos em funcionamento quando a Grécia não tinha<br />

nenhum. Mas, na China, <strong>esse</strong> progresso tecnológico não surgiu devido<br />

à investigação ou teoria científica, mas sim por meios artesanais, ações<br />

grupais isoladas diante de tentativas <strong>para</strong> solucionar problemas práticos<br />

comuns encontrados durante atividades do dia-a-dia, sem a construção<br />

de modelos formais do mundo.<br />

Assim, as crenças – ou princípios – fundamentais dessas duas civilizações<br />

refletem suas existências sociais: a holística versus a analítica. O<br />

pensamento holístico está envolvido numa orientação do contexto ou<br />

campo como um todo; inclui atenção às relações entre um objeto focalizado<br />

e seu campo, bem como uma preferência <strong>para</strong> explicar e predizer<br />

acontecimentos baseados em tais relações. A abordagem holística<br />

prende-se no conhecimento/experiência baseado mais do que no da<br />

lógica abstrata. É um conhecimento dialético, enfatizando as mudanças<br />

e reconhecendo contradições e necessidade de perspectivas múltiplas,<br />

buscando um “caminho intermediário” entre proposições opostas.<br />

O pensamento analítico, ao contrário, está envolvido com o isolamento<br />

do objeto de seu contexto, uma tendência a focalizar atributos<br />

do objeto <strong>para</strong> colocá-lo numa categoria; na preferência do uso de<br />

regras acerca da categoria <strong>para</strong> explicar e predizer a conduta do objeto.<br />

A inferência ou suposição faz parte dessa estrutura de descontextualização<br />

do conteúdo, utilizando-se da lógica formal e, ao mesmo tempo,<br />

fugindo da contradição. Assim, o pensamento holístico é associativo<br />

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226


e sua computação reflete semelhança e contiguidade; o pensamento<br />

analítico seleciona sistemas de símbolos representacionais, e sua computação<br />

reflete regras de estrutura.<br />

Uma diferença intelectual fundamental entre essas civilizações é a<br />

de que a chinesa vê o mundo como uma coleção de encaixes (justaposições)<br />

de substâncias ou matérias. Isto contrasta com as idéias Platônicas<br />

descrevendo os objetos como individuais e com certas particularidades,<br />

as quais permitem propriedades, que são universais, como a<br />

“dureza” ou a “brancura”. Os gregos estavam inclinados a ver o mundo<br />

como uma coleção de objetos se<strong>para</strong>dos, os quais são categorizados<br />

com referência a algum subconjunto de propriedades universais que<br />

caracterizam cada um d<strong>esse</strong>s objetos.<br />

Para os chineses, as partes (objetos) só existem dentro do todo,<br />

sendo inseparáveis. Para os gregos, o foco é o objeto central e seus<br />

atributos. Aristóteles explicou que a pedra cai por ter ela a propriedade<br />

de “peso” enquanto uma folha tinha a propriedade de “leveza”. Os<br />

chineses, ao contrário, reconheciam que todos os eventos se devem às<br />

operações de campos de força, pois eles já conheciam o magnetismo<br />

e a ressonância acústica. A idéia de cirurgia vem do Ocidente; tirar o<br />

órgão estragado <strong>para</strong> consertar o mal; entre os chineses essa idéia era<br />

um contra-senso, pois, <strong>para</strong> eles, a saúde depende no equilíbrio e fluxo<br />

de forças naturais através do corpo.<br />

Em lugar da lógica, os chineses desenvolveram a dialética, a qual<br />

envolve reconciliação, transcendência ou mesmo aceitar contradições<br />

aparentes. Para a tradição intelectual chinesa não há necessidade da<br />

incompatibilidade entre a crença de “A” e “não-A”, ambas têm mérito.<br />

Na verdade, o espírito de Tao, ou princípio yin-yang, “A” pode atualmente<br />

implicar “não-A”, ou seja, o estado oposto de problemas pode<br />

existir simultaneamente com o estado de transtorno (querela, luta).<br />

Isso indica encontrar o meio entre os extremos, aceitando que as duas<br />

partes da disputa podem ter direito a sua porção, ou que as duas pro-<br />

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227


posições opostas podem conter alguma verdade não notada.<br />

Os chineses procuram, intuitivamente, (perceptuais-emocionais, pré-<br />

-atentivos), conhecimentos instantâneos através da percepção direta.<br />

Isto resulta em focalizar um momento particular e casos concretos no<br />

pensamento chinês. Os gregos favorecem a epistemologia da lógica e<br />

dos princípios abstratos, vendo a experiência concreta e direta como<br />

sendo não confiável e incompleta. Junto com as descobertas dos gregos<br />

da lógica formal, foi o desenvolvimento das ciências. O crescimento<br />

das ciências, mais tarde, foi proibido, por muitos anos, após o séc. VI;<br />

nessa ocasião a tradição empírica da ciência grega foi grandemente<br />

enfraquecida. O combate à ciência empírica ocorreu em virtude da<br />

convicção, por parte dos filósofos, que era possível compreender as<br />

coisas através da razão apenas, sem recurso dos sentidos.<br />

Nós, latino-americanos, herdamos os dois modos de pensar, ora tendemos<br />

<strong>para</strong> um lado, ora <strong>para</strong> o outro.<br />

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228


Um desfecho inesperado<br />

O paciente do leito 33, aprisionado na cadeira de rodas, foi arrastado<br />

por um auxiliar sonolento da enfermaria até o anfiteatro ainda vazio;<br />

esperava o início da reunião clínica.<br />

A discussão do caso do paciente do leito 33, marcada <strong>para</strong> às 10 h da<br />

manhã, fazia parte das reuniões das sextas-feiras realizadas no anfiteatro<br />

do Hospital das Clínicas da Universidade. Ela despertou pouco<br />

inter<strong>esse</strong> entre os estudantes por ser uma história médica banal, semelhante<br />

a muitas outras ali discutidas. Por isso, os responsáveis pelo<br />

“caso” tiveram dificuldades em persuadir e arrebanhar alunos e professores<br />

<strong>para</strong> a reunião.<br />

Naquele templo sagrado, seria discutido a doença e o tratamento do<br />

paciente do leito 33; entretanto, com frequência, era ali também que<br />

o professor Protásio, inimigo mortal do professor Tertuliano, aproveitava<br />

a oportunidade <strong>para</strong> agredir seu colega e adversário, enquanto<br />

externava seus raciocínios clínicos. Durante as discussões acaloradas,<br />

verdadeiras torcidas organizadas formavam-se a favor de um ou de<br />

outro professor. A apresentação do “caso do leito 33? era mais uma<br />

oportunidade <strong>para</strong> que o professor Protásio mostrasse, além de seus<br />

conhecimentos de urologia e da extraordinária retórica, a incompetência<br />

e burrice do adversário.<br />

Para alegria dos responsáveis pelo caso, a sala foi ficando cheia de<br />

alunos. Nas primeiras cadeiras do anfiteatro divisava-se senhores de<br />

fisionomia séria, cabelos grisalhos, ligeiramente obesos, tendo o rosto<br />

não só bem barbeado como também marcado pelas rugas. Alguns pareciam<br />

cansados, outros conversavam animados esperando o início da<br />

sessão. Na parte alta do anfiteatro, jovens robustos, de roupas soltas,<br />

riam e brincavam, andando, de um lado ao outro, pelo salão.<br />

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O paciente do leito 33, imobilizado na cadeira de rodas, vestia o<br />

uniforme azul desbotado do hospital, uma roupa larga <strong>para</strong> seu corpo<br />

macerado. Seus olhos fundos e fixos, embutidos na sua cabeça inclinada<br />

<strong>para</strong> baixo, pareciam examinar a claridade produzida pelo reflexo da<br />

luz que incidia no piso. O rosto ossudo e magro era coberto por uma<br />

pele morena-esverdeada; os cabelos pretos, amassados onde ele se<br />

deitara, mostravam alguns poucos fios brancos; suas mãos, penduradas<br />

nos braços esqueléticos, exibiam veias finas onde corria um sangue<br />

descorado e morno.<br />

Instalado na parte mais baixa da sala, de frente <strong>para</strong> a platéia, o paciente<br />

do leito 33 podia ser observado por todos. Além do mais, como<br />

sua cadeira não era fixa com as outras, o seu corpo podia ser levado<br />

<strong>para</strong> um lado ou outro da sala, isso facilitava a aproximação e o exame<br />

dos mais curiosos.<br />

Submetido às pressões daquele mundo estranho, ainda não bem<br />

esclarecido, o paciente do leito 33 tentava compreender a peça que<br />

ali seria representada e da qual ele participaria. Não era difícil notar o<br />

contraste entre ele e os outros, não só quanto às roupas usadas, como<br />

também no que diz respeito ao aspecto físico; os mais velhos usavam<br />

jalecos de mangas compridas, gravatas, sapatos pretos, conversavam<br />

como se trocassem segredos; os mais jovens calçavam tênis, vestiam<br />

camisas coloridas e aventais de mangas curtas, discutiam animadamente<br />

acerca de futebol e de paqueras e, de repente, davam estrondosas<br />

gargalhadas. Algumas moças abraçavam e beijavam os companheiros;<br />

um rapaz, de gestos delicados, usava brincos e tinha os olhos pintados.<br />

Finalmente, a sessão foi aberta. Os professores iniciaram a leitura e<br />

os comentários acerca do caso. O interrogatório começou em seguida;<br />

perguntas e mais perguntas foram feitas. O paciente, quase sem pensar,<br />

ia respondendo aos inquiridores as perguntas que eram as mesmas<br />

feitas, antes, na enfermaria.<br />

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A partir daquele momento seu “caso” estava sendo alvo de especulações<br />

de famosos mestres da medicina; um caso interessante <strong>para</strong><br />

alguns, chato <strong>para</strong> outros, um passatempo <strong>para</strong> uns e até mesmo uma<br />

obrigação <strong>para</strong> muitos. Iniciadas as discussões, o protagonista da representação<br />

usou e abusou das contrações faciais adequadas <strong>para</strong> cada<br />

frase pronunciada: gesticulou, sorriu, elevou e abaixou o tom de voz,<br />

isto é, exibiu uma técnica artística elegante, apurada e bem estudada<br />

<strong>para</strong> representar: era preciso impressionar os assistentes.<br />

Como um condenado na sala do júri diante dos juízes, o paciente do<br />

leito 33 acompanhava visualmente as discussões que começavam. Ele<br />

submetia-se, angustiado, àquela pantomima ruidosa, esquisita, que estava<br />

sendo encenada. Por não entender a maioria das palavras pronunciadas,<br />

ele esforçava-se <strong>para</strong> compreender, pelo menos, as expressões<br />

faciais, os movimentos dos membros, o tom e a altura das vozes, afinal,<br />

a mímica corporal dos faladores. Mas, por mais que tentasse, continuava<br />

não assimilando o significado daqueles sinais diferentes dos conhecidos<br />

por ele. D<strong>esse</strong> modo, as mensagens transmitidas, agindo como<br />

corpos estranhos, não eram traduzidas <strong>para</strong> sua mente diferente.<br />

Algumas vezes ele tentou compreender o significado dos sorrisos<br />

que, ocasionalmente, recebia de algumas jovens; olhares que levaram<br />

o paciente do leito 33 a recordar os flertes afetuosos que recebera de<br />

Teresa quando começou a namorá-la. Mas, naquela sala, as moças,<br />

prontamente, davam-lhe as costas e não mais o observavam. Teresa,<br />

ao contrário, o fitava com seus olhos pequenos, pretos e redondos, por<br />

um longo tempo, com doçura, depois eles se beijavam.<br />

Derrotado, ele procurou interpretar a cena que se descortinava<br />

naquele teatro do absurdo, através de lembranças antigas, recuperadas<br />

com dificuldade de sua mente. Assim, ele tentou visualizar representações<br />

de espetáculos vistos quando ainda era criança; despertados e<br />

parecidos com o que assistia no momento. Lenta e penosamente, de<br />

sua memória distante e enfastiada, afloraram fatos esparsos: o circo na<br />

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praça com os números de marionetes, os palhaços de roupas largas e<br />

vozes fanhosas, os macacos usando óculos e de saiotes, brigas e tapas<br />

de mentira no picadeiro e as canções melosas, monótonas e repetitivas<br />

que saíam dos discos antiquados e rachados da vitrola.<br />

Alguns observadores mais experientes ali presentes sabiam que<br />

as pistas fornecidas pela história do paciente – sinais e sintomas – às<br />

vezes eram deixadas de lado, já que o desejo de massacrar o rival podia<br />

ser o fator mais poderoso; entretanto, a maioria dos presentes, não<br />

percebendo motivos velados, emocionava-se com a oratória brilhante<br />

e a dedicação demonstrada <strong>para</strong> com o paciente.<br />

As acaloradas discussões cresciam como as tempestades de verão:<br />

inicialmente, pingos leves e esparsos, depois, tempestades barulhentas.<br />

Assim, os ilustres professores, esquecendo por momentos o paciente,<br />

lançavam farpas alimentadas por uma ironia elegante. Como<br />

as discussões complicadas geralmente motivavam mais a platéia,<br />

os professores, comumente, transformavam problemas simples em<br />

quebra-cabeças complexos; através d<strong>esse</strong>s era mais fácil escancarar a<br />

ignorância do adversário.<br />

As hipóteses e deduções do Dr. Protásio foram magistralmente elaboradas;<br />

ele argumentava sorridente, saboreava cada frase proferida<br />

e, principalmente, sabia onde desejava e precisava chegar. Aos poucos,<br />

ele foi descortinando seu diagnóstico, seguindo uma linha de raciocínio<br />

sinuosa e complicada, como gostava. O ponto final da oratória terminou<br />

abruptamente, após citações de artigos estrangeiros recentes. Foi<br />

uma conclusão bela, triunfal e emocionante, demonstrando grande<br />

erudição. Coube a este professor a decisão final: o paciente deveria<br />

submeter-se a uma cirurgia radical. Ninguém ousou ir contra sua argumentação.<br />

Anotações apressadas foram feitas no prontuário.<br />

O paciente do leito 33, encurvado, continuava sem entender a verborréia.<br />

Apesar de atordoado, percebia que sua vida estava nas mãos<br />

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daqueles doutores agitados e falantes. Enquanto assim refletia, seu<br />

pensamento foi cortado pelo tom de voz áspero do professor, ao decretar<br />

uma sentença inapelável:<br />

— Os testículos e o pênis devem ser amputados na próxima semana.<br />

A reunião precisava terminar; a hora do almoço aproximava-se;<br />

todos tinham fome e, além disso, os médicos, d<strong>aqui</strong> a pouco, deveriam<br />

estar em seus consultórios. Por tudo isso, o grupo apressou as conclusões<br />

finais; alguns presentes ainda fizeram pequenos comentários:<br />

— Para mim, disse um: — seria melhor tirar apenas o terço distal do<br />

pênis; assim o restante poderia ser usado.<br />

— Não! retrucou outro: — Deverá ser todo extirpado, <strong>para</strong> evitar um<br />

retorno do câncer.<br />

— Também, um terceiro afirmou: — Com 42 anos, <strong>para</strong> que um pênis?<br />

Já tem filhos… e o que ganha não dá pra nada.<br />

D<strong>esse</strong> modo, os médicos decretaram o fim da fria e monótona vida<br />

sexual do paciente do leito 33. A sessão estava terminada. O enfermeiro<br />

entrou no salão e empurrou a cadeira de rodas cheia de grilos<br />

em direção à enfermaria fria. Lá, o paciente passaria o fim de semana.<br />

Naquele sepulcro, de paredes nuas e brancas, cada um, confrontando<br />

sua solidão, meditava acerca do sofrimento. Estendido no leito 33,<br />

ele rezava <strong>para</strong> que ele, ou seu vizinho tiv<strong>esse</strong>, pelo menos, uma boa<br />

morte.<br />

Acabada a reunião, o almoço alegre e farto, os planos <strong>para</strong> a noite, a<br />

cerveja gelada, o esporte do fim de semana, a transa com a namorada,<br />

o passeio ao sítio e o esquecimento da vida atribulada.<br />

Segunda-feira; os alunos sorridentes, queimados de sol, regressaram<br />

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à enfermaria; era dia de visita aos leitos. Alguns debruçavam curiosos<br />

sobre os órgãos genitais do paciente do leito 33 <strong>para</strong> observá-los, como<br />

se examinassem uma escória, que seria desprezada ainda naquela<br />

semana. Ninguém percebeu lágrimas salgadas que jorravam de seus<br />

olhos quase fechados e que deslizavam pelo seu rosto envergonhado,<br />

manchando o uniforme azul.<br />

A cirurgia foi perfeita, um sucesso! Foram retirados, como determinado,<br />

os testículos e todo o pênis, conforme a decisão dos professores.<br />

— Mas e agora? Perguntava apreensivo o paciente <strong>para</strong> si mesmo<br />

e continuava refletindo: — Como conviver com minha mulher, ou as<br />

outras, e mesmo meus amigos? Meus planos estão enterrados <strong>para</strong><br />

sempre… sinto vergonha de mim mesmo, fiquei aleijado neste lugar, o<br />

mais importante do homem. E agora, o que fazer com este corpo?<br />

A partir da cirurgia, o paciente do leito 33 somente imaginava o que<br />

não mais poderia realizar: suas aventuras, seu maior e talvez único<br />

prazer; estava tudo acabado… a vida não tinha mais valor, toda ela fora<br />

construída em torno do orgulho de ser homem. Era melhor morrer do<br />

que viver assim.<br />

Nos dias que se seguiram, o paciente do leito 33 voltou a sorrir <strong>para</strong><br />

os médicos e estudantes que vinham vê-lo <strong>para</strong> contar-lhe o sucesso da<br />

cirurgia. Já confortado, ele agradecia a ajuda dos bondosos amigos da<br />

medicina.<br />

Numa tarde cinzenta de verão, aproximou-se do leito a simpática<br />

enfermeira Lúcia, acompanhada da bonachona assistente social Clara,<br />

cada uma com seus sorrisos costumeiros; estavam ali <strong>para</strong> prepará-lo<br />

<strong>para</strong> deixar o hospital. A cicatriz já se formara no lugar onde antes habitava<br />

um pênis. A enfermeira, carinhosamente, lhe ensinou qual seria a<br />

melhor maneira de fazer xixi após a cirurgia.<br />

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234


— Não será difícil, ela lhe explicou: — É só assentar no vaso ou agachar<br />

no chão, como fazem as mulheres. Entendeu? Não precisa preocupar-se,<br />

é uma pequena mudança; logo irá se acostumar.<br />

As explicações se sucederam. Havia, segundo ela, diversos outros<br />

modos agradáveis de gozar uma boa vida sexual e, com sabedoria de<br />

quem conhece, demonstrando até certa excitação ao fazer uso de gestos<br />

desenhados com suas mãos brancas e delicadas, a caridosa enfermeira<br />

lhe ensinou novas técnicas de fazer sexo.<br />

Finalmente, a alta hospitalar; 12 de dezembro, um calor asfixiante,<br />

uma viagem na poltrona dura e estreita no velho ônibus, a saudade de<br />

sua casinha em Chaves das Botas. Mas sua mente não abandonava o<br />

terrível pensamento: “Estou sem saída, sou um castrado”.<br />

Antônio dos Santos Filho chegou exausto na rodoviária da cidade;<br />

Teresa o esperava; melancólica por costume. Recebeu-o com um<br />

abraço envergonhado e desconfiado. Os filhos, vendo o pai desfigurado<br />

pela magreza e palidez, choraram amedrontados e se esconderam, uns<br />

agarrados aos outros, na saia da mãe. Neste instante, Antônio chorou.<br />

A noite em Chaves das Botas estava quente. Antônio pouco comeu<br />

da sopa de macarrão que Teresa fez com carinho e foi cedo <strong>para</strong> o<br />

quarto. Deitado, evitou encostar-se em Teresa, que o esperava pronta<br />

<strong>para</strong> ser usada. Ele permaneceu mudo ao lado da mulher. O sono não<br />

veio por mais que tentasse. O plano imaginado nos momentos de solidão<br />

renasceu. Impelido pela obsessão que o dominava, ele levantou-<br />

-se, procurando não acordar Teresa. Mas, ao sair do catre, esbarrou na<br />

perna de sua mulher, que gritou espantada:<br />

— O que foi Antônio ?<br />

— Nada mulher; vou ao quintal…mijar…<br />

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235


Antônio caminhou cambaleando <strong>para</strong> o terreiro escuro, quente e<br />

abafado como ele. As idéias, antes confusas, foram, aos poucos, ficando<br />

mais claras. A coragem aumentava. Sentia internamente uma<br />

pressão <strong>para</strong> agir. O plano elaborado no silêncio do hospital estava<br />

prestes a ser executado. Suava frio, apesar de tudo, tinha medo. Automaticamente,<br />

agachou-se <strong>para</strong> urinar como fazem as mulheres. Lembrou<br />

novamente a sessão clínica; os ensinamentos da enfermeira e da<br />

assistente social, dos que lutaram tanto <strong>para</strong> mantê-lo vivo a qualquer<br />

preço.<br />

Agora estava livre <strong>para</strong> agir; desprezava todos e tudo; nada mais lhe<br />

importava. Era preciso concretizar o que imaginara, acabar com tudo<br />

<strong>aqui</strong>lo, de uma vez por todas. Trêmulo, lembrou dos médicos que lutaram<br />

tanto <strong>para</strong> mantê-lo vivo; vacilou por instantes; sentia culpa por<br />

decepcioná-los e desprezar o que eles tanto valorizam. Antes de partir<br />

em direção à macabra e terrível ação, Antônio apalpou, pela última<br />

vez, a cicatriz formada no seu corpo desfigurado. N<strong>esse</strong> exato momento,<br />

não teve mais dúvidas.<br />

Sua mulher, sem dormir, preocupada com a demora, levantou-se<br />

e, após acender uma vela, dirigiu-se ao quintal iluminando apenas o<br />

estreito trilho por onde caminhava. Teresa, amedrontada, gritou por<br />

Antônio, a princípio, timidamente. Nada, nenhuma resposta. Ouviu-se<br />

somente, no sossego da noite, o piado de uma coruja distante. Novo<br />

chamado, agora mais estridente; o silêncio parecia ser, a cada instante,<br />

mais intenso. Agora ela escutava somente os sons apressados do seu<br />

coração aflito e sua própria respiração ofegante. Mal segurando a vela<br />

que estava quase se extinguindo, trôpega, ela observava cada vestígio<br />

de vida e de esperança encontrada. De repente, no escuro, percebeu<br />

que algo balançava na penumbra. Paralisada, ergueu um pouco mais<br />

sua cabeça aproximando a chama mais perto do vulto <strong>para</strong> ver melhor,<br />

quase encostando a chama nele. N<strong>esse</strong> instante, Teresa soltou um urro,<br />

antes de cair desmaiada, diante do que acabara de ver: no galho da<br />

mangueira, havia um corpo suspenso. Não havia mais Antônio.<br />

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Dependurado num cipó fino, um pouco acima do chão, ele parecia<br />

mais magro ainda. O laço, ao entrar na carne existente em volta do<br />

seu pescoço, produziu um profundo e feio canal roxo. Sua fisionomia<br />

parecia mais serena do que antes, seu rosto, mais belo. De seu corpo<br />

morno, pingos de suor, imitando gotas de orvalho, desciam preguiçosamente<br />

pela sua face e caíam no solo, fertilizando a terra empobrecida.<br />

Naquela silenciosa noite de dezembro, um aroma novo e diferente foi<br />

criado: a fusão do odor emanado da terra, o suor do corpo de Antônio<br />

e o perfume adocicado das mangas maduras.<br />

Antônio parecia sorrir; zombou da vida, com a ajuda do frágil cipó.<br />

Sem a sabedoria dos professores da medicina, derrotou, com simplicidade,<br />

as sábias teorias dos doutores ilustres. Desafiou os que afirmaram<br />

saber o que era melhor <strong>para</strong> ele; preferiu morrer a viver curado<br />

<strong>para</strong> sempre, alcançando a liberdade através de sua morte.<br />

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237


Loucos X Sem-tetos<br />

Resta-nos esperar um pouco <strong>para</strong> assistirmos à trans formação de<br />

uma multidão de “loucos” em um exército de sem-teto (sem-casa, ou,<br />

mais vulgarmente, pedidores de esmolas). Muitos dos loucos “soltos”<br />

– ou seriam aban donados? – pelos seus “defensores”, depois de<br />

um certo tempo irão morrer de inanição, outros serão queimados,<br />

atropelados ou assassinados pelos seus próprios compa nheiros ou<br />

inimigos, nas ruas ou nos barracões inabitáveis e também em “abrigos<br />

<strong>para</strong> velhos e loucos”. Os que es caparem d<strong>esse</strong> morticínio morrerão de<br />

cirrose, hepatite, tuberculose e pneumonia assentada na desnutrição,<br />

alco olismo e outras drogas.<br />

Compreenda melhor a verdadeira história da “Liber tação dos Loucos”.<br />

Em 1900, o número dos pacientes men tais internados nos hospitais<br />

psiquiátricos americanos era de 150.000. Este número cresceu <strong>para</strong><br />

445.000, em 1940. Em 1955, dobrou <strong>para</strong> 819.000 (citado por John Q.<br />

La Font, 1994). Os gastos ocorridos com esta população preocupa ram<br />

o governo americano. Era preciso armar, rapidamente, uma estratégia<br />

capaz de diminuir essas despesas e, ao mesmo tempo, agradar à opinião<br />

pública.<br />

Nos anos s<strong>esse</strong>nta o quebracabeça foi m<strong>aqui</strong>avelica mente solucionado.<br />

A estratégia foi inteligentemente mon tada. Sempre todos<br />

criticaram a assistência médica dada ao paciente mental nos hospitais<br />

psiquiátricos. Na época da criação da brilhante ideia <strong>para</strong> economizar<br />

gastos pú blicos, grandes nomes da psiquiatria mundial como Laing,<br />

Szasz, Gofman faziam, com toda razão, pesadas críticas ao internamento<br />

desnecessário e à péssima assistência psi quiátrica hospitalar.<br />

Mas como tirar os pacientes do hospital sem ferir a opinião pública?<br />

A ideia <strong>para</strong> <strong>esse</strong> dilema foi magistral e simples. Criou-se uma lei<br />

proibindo o internamento invo luntário. A partir daí, todas as interna-<br />

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ções tornaram-se mais difíceis de serem concretizadas. Além disso, os<br />

pa cientes internados podiam escolher, a partir da promulga ção da lei,<br />

em continuar ou não hospitalizados.<br />

O povo apoiou com entusiasmo a lei. O povo jamais conhece a fundo<br />

as intenções reais e implícitas dos gover nantes, pois os discursos explicitados,<br />

em sua maioria ou totalidade, têm sido usados <strong>para</strong> esconder<br />

o que não pode ser mostrado. O movimento que tirou o louco do<br />

hospital e o despejou na rua como lixo, recebeu o eufêmico nome de<br />

“movimento em defesa da liberdade dos indivíduos estig matizados e<br />

desprotegidos socialmente”.<br />

O resultado da reforma foi rápido e eficiente como desejavam os<br />

governantes preocupados com as despe sas, jamais com a qualidade de<br />

vida do paciente psiqui átrico. O número de internados nos USA caiu<br />

<strong>para</strong> menos de 200.000. Suas famílias, quando existiam, não tinham<br />

capacidade nem competência <strong>para</strong> tê-los em casa. Os pa cientes, uma<br />

vez “libertados” e sem apoio familiar, foram transferidos dos péssimos<br />

hospitais psiquiátricos <strong>para</strong> as ruas selvagens das grandes cidades ou<br />

abrigos miseráveis e sem assistência médico-psiquiátrica.<br />

Os dados mostram que nos USA houve um cresci mento assustador<br />

dos sem-tetos após a vigência dessa lei. Estes aumentaram <strong>para</strong><br />

500.000 a 600.000 indivíduos.<br />

Outras estatísticas falam de 3.000.000 deles. D<strong>esse</strong>s, segundo as<br />

estatísticas, 90% são doentes mentais graves: esquizofrênicos, alcoólatras,<br />

deprimidos, dependentes de drogas, epilépticos, demenciados<br />

(caduquice) e débeis mentais.<br />

Por outro lado, a população ficou à mercê de possí veis ataques de alguns<br />

d<strong>esse</strong>s ex-pacientes. Há tempos, o New York Times publicou uma<br />

reportagem relatando cri mes no metrô de Nova Iorque. As vítimas,<br />

usuários do metrô, foram atiradas debaixo dos trens. Dos dez assas-<br />

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sinatos relatados, nove foram praticados por esquizofrêni cos delirantes<br />

e que nunca tinham visto suas vítimas. Um outro estudo feito na Suécia<br />

mostrou que 20% das mu lheres sem-teto morreram durante os três<br />

anos da pes quisa, sendo que algumas delas foram assassinadas pelos<br />

próprios companheiros. Essa taxa de mortalidade é doze vezes maior<br />

do que as ocorridas com uma amostra de mu lheres de mesma idade.<br />

Em resumo: os “loucos”, nos Estados Unidos, se trans formaram em<br />

sem-teto. A ideologia capitalista, desde sua origem, não tolera cidadãos<br />

que não produzam trabalho. Os primeiros “hospitais” eram depósitos<br />

de “vagabundos”, destinados a afastá-los dos “sãos” trabalhadores.<br />

O gover no capitalista esvaziou os hospitais, lançando os pacientes<br />

na rua e sem dono, abandonando-os à sua própria sorte.<br />

Surpreendentemente, vemos ativistas dos partidos chamados de<br />

“progressistas” como os principais defen sores dessa covarde trapaça.<br />

Aproveita-se da insensatez provisória ou perene dos doentes mentais,<br />

prometendo-lhes a liberdade inexistente. Foram, de fato, jogados no<br />

inferno das ruas, sem comida e sem lugar <strong>para</strong> dormir. De forma ilógica<br />

falam do direito do cidadão, inclusive do direito à assistência médica,<br />

mas, com a alta hospitalar é-lhes negado <strong>esse</strong> direito.<br />

Todos sabem – os políticos interessados em economizar fingem não<br />

saber – que este tipo de indivíduo não consegue distinguir e escolher<br />

o que é o melhor <strong>para</strong> ele próprio, uma conduta que faz parte de sua<br />

própria doença. O Estado, apoiado por diversos políticos e pelo povo<br />

ingênuo, atuando como o bandido ou marginal, passa o “conto do<br />

vigário” no incauto e desprotegido paciente, lucrando com a ingenuidade<br />

de sua vítima e, estranhamente, recebe as honras e os aplausos da<br />

galera por estar “libertando os loucos”.<br />

A história ocorrida nos USA, que está sendo reformu lada, foi copiada<br />

em Minas. Lá nos Estados Unidos consta tou-se que a “caridade” <strong>para</strong><br />

com o paciente, de fato, foi sua desgraça. A lei foi modificada <strong>para</strong> a<br />

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adoção de uma “Jurisprudência Terapêutica”. Segundo esta, o alvo<br />

passa a ser o melhor <strong>para</strong> a saúde do paciente, isto é, o interna mento<br />

ou tratamento pode e deve ser involuntário, desde que beneficie o<br />

paciente.<br />

Vamos matar muitos “loucos” <strong>para</strong> acordarmos e aprendermos<br />

a lição. É possível, desde que pensemos, an tecipar acontecimentos<br />

ilógicos antes de sua ocorrência. Posso, ao perceber que a escada está<br />

quebrada, trocá-la antes de minha queda. De qualquer modo, com o<br />

dinhei ro economizado devido à “liberdade” dos “loucos inúteis”, com<br />

a diminuição dos gastos com a saúde d<strong>esse</strong>s pacientes sem voz e sem<br />

prestígio social, torna-se possível aumentar os salários dos nobres<br />

vereadores, deputados, senadores e outros protegidos. E os políticos<br />

continuarão a ser os gran des defensores dos desassistidos.<br />

Talvez o governo e os políticos tenham razão: o me lhor – ou menos<br />

ruim – <strong>para</strong> os “loucos” abandonados é ter uma morte rápida.<br />

Torna-se difícil fazer uma escolha entre viver num péssimo hospital<br />

psiquiátrico ou morrer bêbado, drogado, doente e agredido numa rua<br />

escura e sem saída.<br />

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O Conhecimento e as Diversas<br />

Línguas<br />

Alimentadas pelo modo de pensar dominante exis tente em cada<br />

época, constantemente nascem novas pa lavras. Uma manifestação<br />

verbal importante socialmente produzida num local populoso poderá<br />

influenciar outras regiões e grupos.<br />

Assistimos constantemente ao aparecimento de mo dos diferentes<br />

de nomear fatos e situações, apropriados a cada geração, grupo ou<br />

sociedade. Essas maneiras de classificar são simbolizadas ou expressas<br />

em linguagens diferentes, variando conforme a idade, o sexo, o grupo<br />

social e cultural, a profissão, o lugar, a época e outras va riáveis.<br />

Pode-se afirmar que cada indivíduo tem seu vocabu lário próprio,<br />

usa mais certas palavras e não outras, enfa tiza mais certos aspectos da<br />

realidade e pouco, ou nada, outros. Notamos que há uma grande diferença<br />

entre a fala do presidente e a do ministro, do clérigo, advogado,<br />

mé dico, futebolista, sem-teto, idoso, jovem, trombadinha, prostituta,<br />

bandido e político.<br />

Por outro lado, cada um de nós altera seu modo de falar conforme<br />

atua diante de uma ou outra situação, na hora da briga ou do amor,<br />

perante os filhos, pais, médicos, clientes, amigos, inimigos, torcedores,<br />

amante. Em cada uma dessas ocasiões, fazemos uso de linguagens<br />

diferen tes, pulamos de uma <strong>para</strong> outra, automaticamente, sem esforço<br />

e inconscientemente. Algumas vezes não entende mos a linguagem de<br />

um grupo ou de outro.<br />

As linguagens referidas acima (do presidente, bandido, futebolista<br />

e outras) coexistem, se expressam e se mistu ram. Todos os modos de<br />

nomear coisas e eventos sobrevive ram em grupos diversos e se<strong>para</strong>dos<br />

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e germinaram, durante certos períodos, na vida sociocultural de um<br />

grupo deter minado. As palavras que ainda vivem, as que resistiram ao<br />

tempo ainda dominam a mente de seus possuidores em ra zão de sua<br />

utilidade, do contrário teriam desaparecido.<br />

Os vários discursos, indo do professor universitário ao analfabeto, do<br />

servente ao presidente, nasceram e germi naram da existência simultânea<br />

de modos antagônicos de viver quanto às ideologias, aspectos<br />

socioeconômicos, reli giões diversas, várias profissões, sexo, idade. Em<br />

resumo: de diferentes grupos com objetivos e condutas variadas. Convivem<br />

ao mesmo tempo, de forma harmoniosa e con flituosa, modos de<br />

falar antigos e modernos, onde alguns terão vida longa, outros, curta.<br />

Algumas palavras são mais potentes, tomam o lugar de outras mais<br />

frágeis, que, às vezes, desaparecem <strong>para</strong> sempre. Outras renascem<br />

com força total após anos de hibernação. Durante as lutas de palavras<br />

contra palavras, despontam acasalamentos que geram novas palavras<br />

ou novas formas de manifestações de ideias sociais, misturas de uma<br />

e de outra, ou de di versas delas. Das crias são conservadas, em maior<br />

quan tidade, os “genes” das dominantes e poderosas e podem desaparecer<br />

os genes mais fracos.<br />

As palavras, como os seres vivos, nascem, crescem e morrem. Algumas<br />

resistem mais, como insetos, estando mais bem adaptadas ao<br />

meio, habitam a mente, em todas as épo cas, de todos os grupos socioculturais.<br />

Não são extermina das, por mais que haja grupos contrários à<br />

sua proliferação.<br />

Cada linguagem, nascida de um grupo sociocultural específico, ingrediente<br />

do bolo total existente, se distingue das outras. Cada língua,<br />

fiel à suas convicções e princípios orientadores, enfatiza um ou outro<br />

aspecto: uma prioriza a função, a outra, o tema, outra, ainda, a religião<br />

ou o social. Algumas poucas são dramáticas.<br />

Apesar da existência de diversas linguagens, quase todas convivem<br />

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entre si, apesar de que uma ou outra pode ser obstáculo ao crescimento<br />

ou manutenção da outra. Por exemplo: o Brasil tem sido invadido<br />

pela linguagem e, li gado a ela, pelos costumes próprios dos nativos da<br />

língua inglesa. Também percebe-se a invasão de conceitos e ter mos da<br />

linguagem de uma área no território de outras: “Precisamos fazer um<br />

diagnóstico melhor da nossa econo mia”, “Só fazendo uma cirurgia radical<br />

iremos acabar com a violência”, “Para curar <strong>esse</strong> câncer, há necessidade<br />

de processos invasivos, pois assim iremos exterminar a do ença”.<br />

Os exemplos, relacionados ao uso de termos de de terminada linguagem<br />

de um grupo (médicos, na economia e na violência, da guerra, na<br />

medicina etc.) são inúmeros, viajando na boca de todos nós de forma<br />

automática. Usa mos sem <strong>para</strong>r uma linguagem híbrida, tudo naturalmente<br />

sem esforço. Aos poucos, alguns termos podem ir mudan do de<br />

habitat, passando, por exemplo, da linguagem mé dica <strong>para</strong> a popular:<br />

“O país está esquizofrênico”.<br />

Um aspecto importante <strong>para</strong> a sobrevivência longa de uma palavra<br />

é a de que o discurso onde ela habita, precisa, <strong>para</strong> viver ou sobreviver,<br />

apoiar-se fora dele, isto é, uma linguagem não pode ser gerada e<br />

desenvolvida do nada.<br />

Ela precisa alimentar-se de objetos observáveis, os que atingem<br />

nossos sentidos, muito próximos ou muito afastados. A linguagem não<br />

resiste à falta de objeto, sem este ela forçosamente desaparece.<br />

Quando assistimos às conversas dos intelectuais – que fogem dessa<br />

orientação – não percebemos no seu “bate-papo” nada além de uma<br />

teia vazia: palavras e mais palavras sem referenciais, nuas, impossíveis<br />

de serem compreendidas. Trata-se de um tipo de linguagem da qual<br />

nada sabemos, pois ela não nos informa nem sua posição social, nem<br />

as intenções, nem a época, nem o destino, nem nada. Os intelectuais,<br />

estando acima das “coisas re ais”, discursam sobre o nada. Estudar o<br />

discurso em si mesmo, ignorando sua orientação externa, é tão absurdo<br />

como estudar o sofrimento mental sem examinar como <strong>esse</strong><br />

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foi desenvolvido, bem como o contexto que facilitou ou dificultou o<br />

aparecimento dele.<br />

A língua não trabalha com palavras neutras ou sem emoções, como<br />

os psicanalistas acreditavam. Não existe uma palavra válida e eficiente<br />

que não pertence a ninguém, a nenhuma época e nenhuma idade, etc.<br />

Um termo só so breviverá e funcionará caso seja contaminado pelas<br />

inten ções, prazeres, sofrimentos e objetivos implícitos – rara mente<br />

explícitos – de uma pessoa ou grupo sociocultural.<br />

Um lavrador iletrado, residindo pra lá dos confins da Cidade de Nossa<br />

Senhora do Socorro, ingenuamente mer gulhado em uma existência<br />

imaginada como imutável e inabalável, vive, apesar de tudo, num meio<br />

contendo vá rios sistemas linguísticos interagindo e em constante mudança.<br />

Ele deve cantar suas modinhas caipiras numa forma poética e emocional,<br />

reza a Deus numa linguagem apro priada à sua religião, fala de<br />

um modo coloquial e espon tâneo com seus familiares e amigos íntimos,<br />

ou seja, numa terceira língua. Quando colher e vender seu feijão<br />

e milho usará a linguagem comercial, quando casar, diante das autoridades<br />

da cidade, ele usará uma outra língua: a oficial, do cartório.<br />

Para cada ato d<strong>esse</strong>s, pressupõe-se linguagens e ter mos diferentes,<br />

porém estas línguas não estão ordenadas hierarquicamente na consciência<br />

do lavrador. Ele usa ora uma, ora outra. A cada instante, automaticamente,<br />

troca de língua. Cada linguagem usada nasceu e cresceu<br />

em ni nhos diferentes. O lavrador, possivelmente nunca procurou,<br />

nem mesmo imaginou, examinar uma linguagem usada – bem como<br />

o mundo descrito ou interpretado por ela – com a lente da outra. Por<br />

exemplo, examinar a linguagem usada no cotidiano e familiar com os<br />

“olhos” da linguagem da ora ção ou da canção. Ele não deve imaginar<br />

que se fiz<strong>esse</strong> isso – examinasse um dos mundos vividos com as “lentes”<br />

da outra linguagem – o “mundo” olhado não seria o conhecido,<br />

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seria outro, talvez muito diferente do lido com a linguagem inicial. Ele<br />

enxergaria novos mundos.<br />

A linguagem e o mundo da oração, a linguagem e o mundo da canção,<br />

do trabalho e comércio, dos costumes, a linguagem específica e o<br />

mundo da administração rural, a moderna e o mundo do trabalhador<br />

braçal que chega em casa <strong>para</strong> descansar. Todas essas linguagens descrevem<br />

mundos determinados, usam certas palavras apropriadas <strong>para</strong><br />

aque le mundinho, os descortinados por cada uma delas.<br />

Cedo ou tarde, cada um d<strong>esse</strong>s mundos, dependendo do poder ou<br />

vigor da linguagem, poderá perder seu esta do de equilíbrio sereno e<br />

amorfo. Muitos mundos, antes estáveis, que foram imaginados firmes<br />

e eternos, quando examinados sob o prisma complacente e tolerante<br />

da lín gua-mãe, de sua própria linguagem tendenciosa e toleran te, desabaram,<br />

olhados sob outros óculos, mais neutros e impiedosos.<br />

Cada grupo de palavras nos leva a formar imagens de um contexto,<br />

no qual elas nasceram e viveram. Portanto, todas as palavras são<br />

povoadas por intenções e emoções, nelas são inevitáveis as harmonias<br />

e as desarmonias de gênero, de orientações, de idade, de indivíduos<br />

diferentes.<br />

A palavra pronunciada, ou escrita, numa conversa ou discussão é, ao<br />

mesmo tempo, uma palavra emitida por uma determinada pessoa, e<br />

também ideias, conceitos ou lógicas emprestadas de outros. Não foram<br />

criadas por seu possuidor, já existiam quando ele nasceu. Ela se torna<br />

“própria” quando o falante a povoa com sua intenção, com seu acento<br />

particular – caso o tenha – quando ele a domina através do seu discurso,<br />

tornando-a familiar ao dar sua orientação semântica e expressiva<br />

particular.<br />

Alguns falam sem pôr um acento ou linguagem “pró pria”, como se<br />

estiv<strong>esse</strong>m distantes do falado. A fala ecoa de modo estranho, pois as<br />

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linguagens usadas não foram assimiladas, ficam “entre aspas”, foram<br />

decoradas.<br />

A visão do mundo de uma geração, se formulada em palavras, torna-<br />

-se necessariamente uma prisão <strong>para</strong> a gera ção seguinte ou as seguintes.<br />

Cada geração deve exigir sua própria linguagem, nascida de uma<br />

época e numa cultura.<br />

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Sociedade e cultura: Informações<br />

resumidas<br />

É arriscado examinar um povo a partir das experiências de outro<br />

povo ou cultura; examinar as mulheres com os “olhos” dos homens; os<br />

clientes com os olhos dos médicos; os negros com os valores dos brancos<br />

etc. Usar um tipo de linguagem <strong>para</strong> examinar uma outra pode não<br />

ser o ideal, entretanto, algumas vezes, produz uma melhor compreensão<br />

de uma ou de outra parte.<br />

Quem sou eu? Posso conceber-me como um sistema físico de bilhões<br />

de átomos; um sistema biológico de trinta bilhões de células; um<br />

sistema orgânico com de centenas de órgãos; um elemento no sistema<br />

familiar, urbano, profissional, social, nacional ou étnico. Ao fazermos<br />

uma escolha quanto à avaliação, há algo de pessoal e, além disso, selecionando<br />

uma delas, deixamos de lado as outras possíveis e válidas.<br />

Compreender uma pessoa – ou uma cultura – é apreender o significado<br />

das experiências e das ações do outro, de outro modo, reconhecer<br />

como as experiências e ações da pessoa se referem a outras experiências<br />

e ações possíveis vividas por ela. Quando isso ocorre adquirimos<br />

ou tomamos posse do significado das experiências e comportamentos<br />

que queremos compreender. Qualquer ação tornar-se-á compreensível<br />

quando ela é relacionada a outras ações e experiências da mesma<br />

pessoa e, n<strong>esse</strong> caso, a parte passa a ganhar sentido sob o “olhar” do<br />

conjunto total.<br />

Cada sociedade enfrenta mais ou menos os mesmos problemas:<br />

abrigo, comida, doenças, criação dos filhos, morte, amor, cooperação.<br />

Cada uma dá suas respostas singulares. Por isso, o mundo real, construído<br />

inconscientemente pelos padrões linguísticos de cada grupo<br />

ou sociedade, impede a percepção de outros mundos reais, pois cada<br />

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língua tende a pontuar e categorizar a realidade de maneira própria e,<br />

d<strong>esse</strong> modo, não percebe e classifica outros.<br />

Podemos colocar um recém-nascido em qualquer cultura; ele se<br />

comportará razoavelmente nela apesar de possíveis limitações genéticas:<br />

um índio numa cultura negra, um esquimó numa cultura equatoriana<br />

etc. Os seres humanos não foram geneticamente programados<br />

<strong>para</strong> serem membros desta ou daquela ordem social. Mas o que é possível<br />

geneticamente não é permitido nas culturas ou sociedades, pois<br />

em nenhuma delas é tolerado uma diversidade exagerada de modos de<br />

vida.<br />

A ordem social, <strong>para</strong> o pensamento antigo, teve seu fundamento na<br />

vontade divina; o discurso político repetiu e reproduziu a desigualdade<br />

dessa ordem tida como divina. Um exemplo marcante encontra-se nos<br />

famosos versos do hino inglês: “o rico em seu castelo – o pobre em seu<br />

portão – Deus os fez poderosos ou humildes – e ordenou sua condição”.<br />

Levy Strauss pediu aos habitantes de uma aldeia que desenhassem<br />

a disposição espacial das cabanas conforme a crença de grupos antagônicos.<br />

O grupo dos “conservadores” desenhou as cabanas dispostas<br />

simetricamente em torno de um círculo, tendo no centro um templo<br />

maior. Já o grupo dos “revolucionários” desenhou a aldeia como dois<br />

aglomerados distintos se<strong>para</strong>dos por uma fronteira invisível. Conclui-<br />

-se que a percepção do espaço social (divisão concreta) dependerá de<br />

constantes ocultas na mente do grupo de observadores e não da disposição<br />

objetiva das construções<br />

Para Althusser os homens, de fato, expressam, não a relação entre<br />

eles e suas condições de existência, mas o modo como eles vivenciam<br />

a relação e suas condições de existência: isso pressupõe tanto uma<br />

relação real quanto uma “imaginária” vivida. Na ideologia, a relação<br />

real é inevitavelmente investida da imaginária. É impossível isolar uma<br />

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249


ealidade cuja coerência não seja mantida por mecanismos ideológicos,<br />

se a retirarmos, ela se desintegrará.<br />

Para ter sentido queimar bruxas é necessário ter, como parte do<br />

ambiente intelectual/cultural, as afirmações de que há demônios e que<br />

algumas pessoas podem se aliar a eles <strong>para</strong> fazer mal aos sem poder.<br />

Do mesmo modo, <strong>para</strong> “ter sentido”, <strong>para</strong> alguns homens, agredir<br />

mulheres, é preciso que haja um ambiente cultural onde <strong>esse</strong>s homens<br />

aprenderam essa “verdade”; o mesmo pode ser pensado <strong>para</strong> a crença<br />

de que podemos e devemos bater nos filhos. Para que fossem aceitas<br />

as antigas idéias de que as mulheres não podiam votar, era necessário<br />

que houv<strong>esse</strong> uma crença plantada culturalmente acerca da incapacidade<br />

e submissão das mulheres aos homens.<br />

As falsas crenças da inferioridade da mulher, da existência de espíritos,<br />

bruxos e feiticeiras, de que a Terra era o centro do universo, jamais<br />

foram estabelecidas em fatos possíveis de serem observáveis, ou logicamente<br />

inferidas. Mas essas idéias que dominaram a mente humana<br />

durante séculos foram defendidas com vigor pelos grandes sábios da<br />

época. Todas elas foram construídas em cima de princípios visando a<br />

justificar e proteger necessidades de um ou outro grupo detentor do<br />

poder.<br />

Uma vez semeada, nascida e desenvolvida, uma crença básica-tronco<br />

tende a dar nascimento a galhos e brotos, permitindo a formação de<br />

outras suposições não observáveis dela derivada. Assim, a idéia original<br />

inexata passa a ser uma condição <strong>para</strong> a formação de novas idéias,<br />

logicamente, falsas. Logo, <strong>para</strong> entender uma determinada crença ou<br />

opinião torna-se necessário conhecer sua base cognitiva não revelada,<br />

implícita e inconsciente, inclusive <strong>para</strong> seu possuidor.<br />

Não tem sentido falar de atitudes diante da educação ou do capitalismo,<br />

a não ser que saibamos o que essas categorias significam <strong>para</strong> o<br />

indivíduo que as discute. Não poderá existir uma mudança de atitude<br />

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250


sem que haja, também, uma transformação correspondente no conhecimento<br />

básico: o que fornece o suporte à crença que se quer mudar<br />

da atitude.<br />

Aristóteles, ao defender a escravidão, baseou-se, “razoavelmente”,<br />

nas idéias da época acerca de supostas diferenças individuais que eram<br />

falsas. A oposição feita a Galileu foi, principalmente, devido a uma<br />

ordem social que tinha pontos de vista rígidos e errados acerca da criação<br />

do mundo, da natureza das coisas; <strong>esse</strong>s impediam imaginar uma<br />

outra realidade. A falsa crença da inferioridade dos negros apoiou-se<br />

na manutenção do poder político e exploração de mão-de-obra.<br />

Estudos mostram que condições ambientais semelhantes dão nascimento<br />

a formas parecidas de compreensão do meio ambiente físico e<br />

humano. Estas situações definem, de maneiras mais ou menos específicas<br />

<strong>para</strong> os indivíduos, as propriedades de coisas, pessoas, grupos e<br />

ações.<br />

Os governos empregam inúmeros recursos <strong>para</strong> fornecer uma aparência<br />

de uma linha política razoável. A censura e certas formas de<br />

propaganda são esforços <strong>para</strong> moldar, ou imprimir, a compreensão e<br />

opinião da população conforme o desejado pelos governantes.<br />

Uma atitude contém em si uma ordenação mais ou menos coerente<br />

de diferentes dados. Observações e raciocínios diversos utilizados pela<br />

pessoa devem estar arrumados e unificados <strong>para</strong> facilitar os argumentos<br />

apresentados. O que a pessoa diz em certo ponto precisa estar ligado,<br />

de maneira inteligível, com o que se afirmara antes ou dirá depois,<br />

assim como as partes de uma história precisam estar interligadas.<br />

Uma determinada atitude encontrará resistência caso vá contra sistemas<br />

que imperam: socioculturais e religiosos. Há uma tendência <strong>para</strong><br />

buscar a estabilidade. Por outro lado, uma transformação numa parte<br />

muito poderosa do sistema pode iniciar um processo até então inexis-<br />

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251


tente e, consequentemente, alterar o sistema amplo como um todo.<br />

Podemos afirmar que: 1) uma atitude é uma organização de experiências<br />

e dados referentes a um objeto; uma estrutura de ordem hierárquica,<br />

cujas partes funcionam de acordo com sua posição no todo;<br />

2) uma determinada atitude é uma estrutura semi-aberta que funciona<br />

como parte de um contexto mais amplo. Ela tem o caráter de um<br />

compromisso com a orientação da cultura, sendo parte dependente do<br />

sistema mais vasto.<br />

Para muitos, as atitudes deformam as observações, a percepção e o<br />

pensamento. Elas funcionam como fontes de enganos, nos tornam sugestionáveis<br />

<strong>para</strong> certas experiências. As crenças, por trás das atitudes,<br />

são mais do que uma expressão do conhecimento. As necessidades e<br />

os inter<strong>esse</strong>s são pontos decisivos na elaboração da crença, e tornam-<br />

-se responsáveis pelas semelhanças e diferenças entre os grupos.<br />

As atitudes têm objetos, ou seja, formam imagens mentais; seus conteúdos<br />

nascem d<strong>esse</strong>s objetos, tão direta e inexoravelmente quanto<br />

uma emoção específica surge de determinada visão de uma situação.<br />

As oposições ou opiniões diferentes entre os indivíduos resultam das<br />

diferenças do conteúdo cognitivo, ou do nível de conhecimento, de<br />

um e outro indivíduo. Se um tem apenas um conhecimento parcial dos<br />

fatos ele estará enfrentando uma situação diferente do que tem uma<br />

visão mais abrangente.<br />

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252


Informação, Comunicação e<br />

Linguagem<br />

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253


Duas Mulheres Num dia Qualquer<br />

— Maria, o gás acabou?<br />

— Está no fim, D. Marta.<br />

— Telefone <strong>para</strong> saber o preço do botijão.<br />

— O grande custa R$ 147,00 e o pequeno R$ 35,00.<br />

— O quê? Que absurdo, Maria! O grande tem um pouco mais de três<br />

vezes o gás dos pequenos. N<strong>esse</strong> caso, vale a pena comprar três dos<br />

pequenos, fica mais barato.<br />

— Mas, D. Marta, os pequenos acabam mais depressa. Um pe queno<br />

não dura nada!<br />

— Ora, Maria, se reunirmos três dos pequenos, eles vão durar mais<br />

ou menos o mesmo tempo de um grande.<br />

— Não, D. Marta. O grande dura três meses <strong>aqui</strong> em casa, o pe queno<br />

não dura nem quinze dias.<br />

— Não tem jeito, Maria. Se o grande é um pouco mais de três vezes<br />

maior, ele deve durar o mesmo tanto de três e meio botijões pequenos.<br />

É a lógica.<br />

— Eu não entendo de lógica, não. Mas sei, pois sou a cozinheira, que<br />

o botijão pequeno dura muito pouco. A senhora não se lembra que,<br />

antes de colocarmos os grandes, tinha todo dia de trocar o bo tijão?<br />

A senhora é cabeleireira, sabe fazer penteados, mas não sabe quanto<br />

tempo dura um botijão de gás. Todas as minhas colegas falam a mesma<br />

coisa, nenhuma gosta de botijão pequeno. A gente começa a cozinhar<br />

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254


e o gás acaba.<br />

— Maria, escute: um pacote de arroz de cinco quilos não dura a mesma<br />

coisa que cinco pacotes de um quilo?<br />

— Não sei, não! Gás é diferente, arroz não pega fogo, nem sobe no<br />

ar, ele serve pra gente comer. Quem come gás ou planta gás? O botijão<br />

de gás grande tem mais gás e é muito mais pesado. Um entre gador de<br />

gás carrega um pequeno com facilidade, mas o grande, nem pensar, é<br />

carregado no carrinho.<br />

Quando o homem veio colocar o botijão grande, ele estava tão pesado<br />

que amassou o dedo dele, saiu muito sangue.<br />

Ele ficou com ódio, o outro ainda riu dele. Se fosse um pequeno, ele<br />

levantava com um dedo. Lá perto de casa tem um homem que carrega<br />

o botijão de gás nos dentes, amarrado no arame.<br />

— Está falando de outras coisas, raciocinando errado.<br />

— A senhora não compreende, porque nunca mexeu na cozi nha. Se<br />

eu colocar na mesa um bolo grande, ele não vai durar mais do que se<br />

colocar muitos pequenos?<br />

— Depende de quantos pequenos. Se for um número de bolos com o<br />

mesmo peso do bolo grande, os pequenos vão durar o mesmo tempo<br />

que o bolo grande.<br />

— Nunca! Quando faço um bolo pequeno, ele acaba logo. O bolo<br />

grande fica vários dias sem acabar, mais do que o de vários boli nhos.<br />

Acaba sendo jogado fora, de tanto durar.<br />

— É porque, ficando velho, as pessoas não o comem.<br />

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255


— Agora a senhora viu que eu tenho razão! O bolo dura mais porque,<br />

quando é grande, dura mais, igual ao gás. Se a senhora cami nhar três<br />

léguas, o tempo gasto vai ser o mesmo do que a soma dos tempos<br />

de caminhar uma légua três vezes. Uma légua lá na roça a gen te<br />

caminha em 1 hora, mas três léguas, nem Tonico, meu primo, que<br />

caminha o dia inteiro atrás de vaca no pasto, não consegue caminhar<br />

em três horas, ele vai gastar muito mais e lá todo mundo fala<br />

que não tem ninguém que caminha mais depressa do que Tonico. A<br />

senhora, se fosse caminhar três léguas, era capaz de demorar umas 6<br />

horas, ou nem conseguir chegar no final da caminhada. Se a senhora<br />

colocar três lâmpadas de 50 watts, elas vão clarear a sala igual a uma<br />

de 150 watts? É uma graça. Por que a senhora colocou na sala uma<br />

lâmpada forte, em vez de três pequenas?<br />

— Mas, Maria, caminhar e luz são diferentes.<br />

— Eu sei que é diferente, mas, ao mesmo tempo, é igual. No primeiro<br />

caso é o gás, no outro, o bolo, no outro, ainda, a légua e a luz.<br />

Pois bem, o gás a gente não vê, mas pega fogo e serve <strong>para</strong> cozinhar,<br />

o bolo a gente faz usando o gás e come, e a légua a gente não vê<br />

tam bém, como o gás, mas passa por ela, a atravessa, sabe que ela<br />

existe sem nunca tê-la visto, e a luz, bem, luz eu não sei o que é, mas<br />

se ela não existisse a gente não ia enxergar nada. Mas todas essas<br />

coisas são iguais também, pois <strong>para</strong> comer o bolo, <strong>para</strong> gastar o gás,<br />

<strong>para</strong> ir de um lugar ao outro e <strong>para</strong> a luz clarear, principalmente a da<br />

lamparina lá da roça – as da cidade são diferentes – gasta-se um certo<br />

tempo. Co meçamos num momento e terminamos num outro momento,<br />

diferen te do início. E aí é que está, a gente sempre gasta mais<br />

tempo com as coisas maiores, mais compridas que as mais curtas.<br />

— Isso eu sei, Maria, eu estou falando de proporções. Se uma coisa é<br />

proporcional à outra, elas gastam o mesmo tempo.<br />

— A senhora é mesmo cabeça dura. O caso do bolo, da caminha da,<br />

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256


da luz não deu <strong>para</strong> perceber?<br />

— Mas n<strong>esse</strong> caso entram outros fatores que modificam o tempo<br />

final. Você está raciocinando errado, usando metáforas <strong>para</strong> concluir<br />

e isso sempre é perigoso, falando de uma coisa e explicando essa<br />

com os termos de uma outra. Para explicar um acontecimento, é<br />

necessá rio explicá-lo com palavras que têm seu significado apenas na<br />

situação examinada. Assim, se você tentar explicar uma coisa através<br />

de uma palavra retirada de uma outra explicação dá tudo errado e<br />

o resultado é essa confusão que você está fazendo. Você não pode<br />

explicar o tem po de duração do gás através do tempo gasto na caminhada.<br />

Assim, no caso da caminhada, entram outros fatores que<br />

modificam o tempo final. É difícil <strong>para</strong> você entender.<br />

— A senhora é muito engraçada. As patroas todas que conheci são<br />

assim. Parecem-se com o pastor lá da igreja onde frequento. Quando<br />

lhe perguntei por que eu não podia abraçar meu namorado antes<br />

do casamento, e podia depois, ele começou a falar de valores, normas,<br />

pecado, uma porção de coisas, que não entendi nada. Acho que<br />

ele também não entende o que explica. As patroas fazem o mesmo,<br />

quando perdem uma discussão começam a falar palavras difíceis,<br />

pois com elas escondem o que não sabem. Deixe pra lá. Compre o<br />

botijão pequeno e depois a senhora vai falar: “Maria, você está gastando<br />

gás demais!” Sempre é a gente que fica com a culpa, a corda<br />

arrebenta <strong>para</strong> o lado mais fraco. Nunca muda!<br />

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TV e Pesquisas de Opiniões: Você<br />

Decide<br />

Todos sabem que a compreensão de afirmações sim ples exige basicamente<br />

uma proposição com um sujeito e um predicado. O sujeito<br />

refere-se a um exemplar específi co ou a um ou mais membros de uma<br />

categoria (José, no primeiro caso, um médico ou os médicos, os livros,<br />

etc., no segundo). O predicado pode se referir a uma ação espe cífica<br />

(atendeu um paciente, apresentou um programa de auditório), ou a<br />

uma relação entre o sujeito e um atributo dele (é gordo, tem o cabelo<br />

preto).<br />

A frase “um ator apresentou um programa” exige mais dificuldade<br />

e também maior tempo <strong>para</strong> ser assimilada e compreendida do que<br />

“Sílvio Santos apresentou um pro grama”. N<strong>esse</strong> último caso, há uma<br />

ativação de imagens, noções ou modelos já formados e conhecidos na<br />

mente do ouvinte, portanto mais fáceis de serem ativados. Ficará mais<br />

difícil ainda assimilar a afirmativa: “um gato apre sentou um programa”.<br />

Tente, meu caro leitor, imaginar o que essa proposição quer informar.<br />

É melhor lembrar de “Ratinho”. Por isso mesmo é difícil e chato conversar<br />

com intelectuais, pois sua fala dificilmente ativa algum fato já<br />

experimentado ou visto por nós. O mundo deles não é o meu, talvez<br />

não seja também o seu. Tudo indica que as afirmações repetidas são<br />

mais fáceis de serem julgadas e, além disso, acreditamos mais nelas,<br />

pela repetição, do que as ouvidas ou lidas pela primeira vez.<br />

A compreensão de uma informação utiliza-se do lido, ouvido ou<br />

experimentado. O estoque de informações exis tentes em cada mente<br />

servirá de base <strong>para</strong> se fazer novos julgamentos, a probabilidade de um<br />

acontecimento ocor rer, emitir qualquer opinião sobre o assunto X ou Y.<br />

Assim, interpretamos a frase “João é mau”, ou “Maria é simpática”, em<br />

função de modelos ou ideias que possuímos, aprendi das anteriormen-<br />

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258


te.<br />

Serão elas que servirão de “processadores” <strong>para</strong> a in formação recebida.<br />

Por isso mesmo, fica difícil, ou impos sível, assimilarmos uma frase<br />

ou imagem: “Hitler e Stalin amavam as crianças e os pássaros”. Não<br />

temos processa dores mentais <strong>para</strong> isso.<br />

Acontecimentos familiares e não-familiares.<br />

A descrição dos eventos que ouvimos, na sua maio ria, se constitui<br />

de situações familiares e, por isso mesmo, fáceis de serem entendidas,<br />

também fáceis de serem es quecidas, como a que servirá de exemplo:<br />

“Na noite de sexta-feira, fui ao restaurante Luar do Inferno. Lá, pedi um<br />

bife com batatas e um copo de vinho. Terminei, veio a con ta, paguei e<br />

saí”. Todos os fatos são comuns, talvez o nome do restaurante possa<br />

ser novo. Poderiam ter ocorrido fatos mais excitantes: “encontrei um<br />

conhecido…, discutimos…, ele ficou nervoso, pegou o garfo, avançou,<br />

etc.” Nessa úl tima descrição, possivelmente, o ouvinte ficará um pouco<br />

mais curioso com a cena mostrada, podendo retê-la um pouco mais.<br />

Além disso, ao ouvir a narrativa, talvez se lembre de fatos e emoções<br />

semelhantes já vividas.<br />

Uma premissa fundamental <strong>para</strong> a informação é que ela deve fornecer<br />

<strong>para</strong> o receptor algum conhecimento que ele ainda não possuía.<br />

Deve, ainda, convencê-lo de ser verdadeira. Nada mais chato do que<br />

ouvir uma “informa ção” conhecida:<br />

— “Os atleticanos odeiam os cruzeirenses”, ou seja, ouvir uma não-<br />

-informação.<br />

Outro aspecto importante: as pessoas são mais facil mente influenciadas<br />

por informações que permitem a elas, sem dificuldade, construírem<br />

uma ideia, imagem ou mo delo concreto do acontecimento que<br />

está sendo descrito. As ideias ou padrões mais utilizados pelas pessoas<br />

consis tem em representações mentais de situações, envolvendo pesso-<br />

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as e acontecimentos particulares e ou concretos. Os modelos mais utilizados<br />

podem ser formados de diversas maneiras: devido a experiências<br />

diretas, por ouvirmos re latos de outras pessoas, lendo jornais, revistas,<br />

etc. e, por último, assistindo TVs.<br />

Segundo as estatísticas, um americano médio vê 4 horas de TV por<br />

dia. Como foi dito, adquirimos modelos do mundo de diversos modos,<br />

um deles é quando assistirmos TVs. Portanto, muitas de nossas ideias a<br />

respeito da moda, da conduta sexual, da educação de crianças, acerca<br />

da ci ência, etc., são formadas através dessa “leitura” fácil e pre guiçosa<br />

que é a TV. Lamentavelmente, os modelos obser vados, aprendidos, incorporados<br />

e utilizados pelo indivíduo nas televisões, frequentemente<br />

baseiam-se em comporta mentos de pessoas fictícias ou raras, vivendo<br />

acontecimen tos pouco prováveis e em situações não-comuns. Por tudo<br />

isso, podemos supor que o modo de enxergar e lidar com o mundo,<br />

do americano médio, ao incorporar suas ideias básicas com os ensinamentos<br />

da TV, assenta-se em fun damentos falsos ou não-usuais. D<strong>esse</strong><br />

modo, ele irá com preender ou assimilar os fatos concretos e reais do<br />

mundo através de estacas podres e fincadas no lamaçal.<br />

Como compreendemos os fatos, e nos expressamos conforme os<br />

modelos de condutas existentes e armazena dos em nossa mente, e<br />

como muitos de nossos modelos situacionais são formados através de<br />

programas de auditó rio do Gugu, Leão, Faustão e muitos outros, bem<br />

como das novelas de TV, podemos compreender como anda a mente<br />

do telespectador fanático e como funciona o que tem sido vulgarmente<br />

chamada de “formadora de opiniões”.<br />

Como se sabe, quase a totalidade dos programas de TV tem como<br />

meta o seguinte: um patrocinador, uma au diência, muita movimentação<br />

e provocação de emoções. Para que se cumpra <strong>esse</strong> objetivo,<br />

enfatizam-se inúmeras “ficções” sensacionalistas e teatrais. O ouvinte<br />

distraído, tendo sua mente pre<strong>para</strong>da <strong>para</strong> assimilar o que está sen do<br />

exibido, com o programa incorpora, lentamente, es sas ideias. Elas pe-<br />

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260


netram sorrateiramente: os costumes, o modo de se expressar, o jeito<br />

teatral, os cabelos, as rou pas, os namoros, a forma de beijar e tudo<br />

mais visto na magnífica TV.<br />

Mais tarde, as mesmas TVs, apostando na plasticida de da mente já<br />

semiformada, imprimem na mente plástica do telespectador julgamentos<br />

e valores <strong>para</strong> eventos e fa tos, parâmetros <strong>para</strong> julgá-los, executa<br />

suas “pesquisas” de opiniões. Nestas, o telespectador inconsciente,<br />

quase dormindo, é perguntado <strong>para</strong> “estimar as taxas de crimes no<br />

Brasil”, “quem é mais inteligente, se o homem ou a mulher”, “quem fez<br />

o gol mais bonito”, “quem deverá ser escalado”, etc.<br />

Ora, o respondedor, como um cão bem ensinado, não mais rosnando,<br />

soltando gotas de saliva, irá responder uti lizando-se das “informações”<br />

ou “conhecimento” ditado e inoculado anteriormente pelos<br />

senhores do poder e dos pro gramas preferidos: jogos, novelas, pegadinhas,<br />

etc., isto é, os mesmos que fazem a “pesquisa de opinião” do<br />

povo.<br />

O leitor deve lembrar que a mente do telespectador ao assistir a TV<br />

já está, na sua maioria, pronta <strong>para</strong> assimilar e adotar as infiltrações<br />

dos programas. Mais tarde, feliz, o telespectador e seu repórter preferido<br />

comemoram o re sultado das pesquisas de “opiniões”. O que o<br />

telespectador responde – nos Ibopes da vida – a perguntas tais como:<br />

“você decide”, “se você é a favor disque…”, “em quem você votaria se a<br />

eleição fosse hoje”, “sua opinião sobre o novo presidente”, nada mais é<br />

do que a opinião mais ouvida, mais pronunciada pelos atores, locutores<br />

mais simpáticos e bonitos, pelas TVs, jornais e rádios mais ouvidos,<br />

vistos, lidos e queridos e, também, dos companheiros do teles pectador<br />

que seguem o mesmo tipo de vida.<br />

Vou lhes contar um caso. Há alguns anos, antes da eleição do F.<br />

Collor, numa tarde, eu estava no barbeiro. Num certo momento do<br />

papo, perguntei a ele – um ilustre senhor de cabelos brancos – em<br />

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quem iria votar. Ele ficou sério, compenetrado. Demorou um pouco e,<br />

de repente, dando uma de pensador profundo, respondeu-me num<br />

tom de voz baixo, ao pé do ouvido, quase inaudível: “Doutor, estão<br />

dizendo aí, TVs e rádios, que Collor vai ganhar. Vou votar nele”. Ele<br />

mostrou o discutido acima: o voto no pos sível ganhador, segundo os<br />

orientados pelos rumores…<br />

As TVs, lançando certo tipo de notícia e não outras, ou seja, informando<br />

algumas áreas e não informando outras – o modo de falar em<br />

público, de alourar os cabelos das morenas e mulatas, mais recentemente<br />

das mais “idosas”, de se vestir e agir, etc. – levam as pessoas<br />

que a veem, a imaginar que o costume, o lazer, a compra a crédito e os<br />

costumes de modo geral mostrados são os certos <strong>para</strong> to das as pessoas,<br />

em todos os lugares. Nada mais absurdo!<br />

Lamentavelmente, muitos só têm a TV como fonte de informação e<br />

amigos que assistem a mesma TV. N<strong>esse</strong> caso as informações só são<br />

transmitidas por essas fontes: TV, amigos e familiares que assistem os<br />

mesmos progra mas. Existindo apenas um único professor, a maneira de<br />

pensar, avaliar e concluir d<strong>esse</strong> infeliz telespectador, dian te das perguntas<br />

feitas nas pesquisas das TVs, fatalmente será a ensinada nessas<br />

“escolas” conforme as receitas e modas passageiras transmitidas. O<br />

telespectador, anima do, não percebe que vomita o alimento deteriorado<br />

doa do pela TV <strong>para</strong> seu organismo submisso e complacente, bem<br />

pre<strong>para</strong>do <strong>para</strong> engolir todo e qualquer lixo. Solitá rio, cansado e corrompido,<br />

mais tarde, deslizando na sua poltrona desbotada e rasgada,<br />

exalta-se satisfeito por ter “opinado” o que todos opinaram. Sorri por<br />

ter contribuído <strong>para</strong> a “pesquisa”, principalmente, porque sua avaliação<br />

foi a “certa”, ou seja, estava de acordo com a maioria dos seus<br />

iguais, como disse solenemente meu barbeiro.<br />

Algumas vezes assisti a um programa de TV que fin ge ser sério: “O<br />

Globo Repórter”. Estava curioso acerca de certo assunto anunciado.<br />

Pude perceber, na área que conheço um pouco, que inúmeras “infor-<br />

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mações” forne cidas estavam erradas, outras enfatizavam aspectos de<br />

pouca ou nenhuma importância em detrimento de outras e, muitas vezes,<br />

anunciava-se uma “grande e moderna descoberta da ciência” que<br />

eu tinha lido há vinte anos atrás. Para meu azar, muitos clientes amigos<br />

e interes sados no meu conhecimento, telefonavam-me ou escre viamme,<br />

antes ou depois do programa, <strong>para</strong> comunicar-me os “novos dados<br />

científicos” que foram transmitidos em “primeira mão”.<br />

Já recebi de clientes recortes de jornais e de revistas leigas, descrevendo<br />

artigos mal entendidos pelo repórter articulista. Logicamente, se<br />

ele não entendeu o assunto que lera, jamais poderia escrevê-lo adequadamente.<br />

Os artigos recebidos continham informações confusas e<br />

er radas acerca de novos tratamentos <strong>para</strong> a esquizofrenia, depressão,<br />

ansiedade, doença de pânico, etc… O médi co ou o leigo, que imagina<br />

aprender através dessa fonte de informação, estará redondamente<br />

enganado e perdido n<strong>esse</strong> atoleiro.<br />

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Discurso: O Toque Sutil dos Sons<br />

Os políticos – bem como outros manipuladores de opiniões – nas<br />

campanhas eleitorais sempre abusaram de discursos carregados de<br />

termos com forte carga emocio nal, introduzidos em frases grandiosas,<br />

expressos de uma maneira direta, simples e, sobretudo, superficial.<br />

Para que um vocábulo no discurso tenha o poder de operar milagres é<br />

preciso que seja uma palavra de natureza especial, dife rente das pronunciadas<br />

todos os dias. Ela precisa ser uma palavra que não somente<br />

designa a coisa, mas que seja sentida como sendo a própria coisa<br />

expressa.<br />

Esta palavra mágica deve atingir as fantasias do elei tor distraído,<br />

propor soluções fáceis, rápidas e simples – in tuitivas – ainda que<br />

equivocadas, <strong>para</strong> resolver problemas humanos difíceis, custosos ou<br />

impossíveis. As fantasias, utopias ou crendices populares são estimuladas<br />

pelo dis curso do político, transformadas em projetos possíveis de<br />

serem executados.<br />

Mas, por outro lado, o discurso político, semelhante às ideias descritas<br />

pelos diversos mitos, exorta a manu tenção do existente. Os políticos,<br />

junto a companheiros pertencentes às mesmas castas, lutam por<br />

conservar a mente do povo às escuras. O discurso político, defendendo<br />

as ideias convergentes, tem como lema: “Nunca examine se seu modo<br />

de pensar é, ou não, correto”.<br />

O povo é aplaudido caso saiba de cor o hino nacional, trabalhe muito<br />

sem reclamar, não faça greves, guarde di nheiro na poupança, participe<br />

ativamente de partidos polí ticos, principalmente votando e apoiando<br />

seus candidatos, contribua <strong>para</strong> todas as campanhas de ajuda aos<br />

necessi tados, seja um bom soldado na guerra ou na paz, trate com<br />

respeito os poderosos, frequente assiduamente a igreja, mantenha<br />

amizades sólidas com certas pessoas, cuide de sua saúde e da famí-<br />

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lia conforme mandam os padrões, não desperdice (nem água e nem<br />

energia elétrica), respeite as autoridades e a lei, procure certo tipo de<br />

conforto e de lazer no lugar e momento adequado <strong>para</strong> ele. Tudo como<br />

ensinam os antigos mitos e o catecismo paroquial.<br />

Assim, como estamos presos aos nossos genes que nos impedem<br />

de ser outro animal diferente do que somos, e de escapar das características<br />

específicas que herdamos, também, desde nosso nascimento,<br />

fomos aprisionados nas normas de conduta, de relacionar e de pensar<br />

ditadas pela cultura, ou seja, construídas antes de nascermos pelos que<br />

nos antecederam. Amarrados pelo resto de nossa vida a essas duas<br />

vertentes, colaboramos inocentemente <strong>para</strong> a conservação do modelo<br />

encontrado e impresso em nos sa mente, imaginando-o como certo e<br />

melhor. Na maioria dos casos, sem consciência disto, não exercitamos<br />

nossa criatividade <strong>para</strong> escaparmos ou, pelo menos, tentarmos escapar,<br />

ou ainda avaliar este padrão.<br />

Pois bem, o discurso político desperta, <strong>para</strong> conservar, muitas metas<br />

controvertidas dos nossos antepassados. Es timula a mente sonolenta<br />

dos eleitores com palavras be las, sonoras e vagas, o reservatório onde<br />

dormem crenças, sonhos, medos e esperanças armazenadas durante<br />

anos, na maioria das vezes ilusórias. O político apresenta-se ao eleitor<br />

como um intermediário capaz de conduzi-lo, com mestria, <strong>para</strong> a travessia<br />

fantástica, partindo de sua vida atual e conhecida, mas também<br />

chata, difícil e injusta, <strong>para</strong> chegar à vida <strong>para</strong>disíaca, tranquila, feliz e,<br />

sobretu do, muito, muito longínqua.<br />

As eleições terminam e tudo fica como sempre este ve. A quimera<br />

afundou-se na realidade indiferente, fria e sem alma. Alguns poucos<br />

dominam muitos, <strong>para</strong> o bem-estar dos de sempre, conforme rezam os<br />

diversos mitos do poder, cumprindo assim a profecia.<br />

Os discursos não <strong>para</strong>m após as eleições, eles conti nuam, mesmo<br />

nas entressafras, mas nestas servem <strong>para</strong> justificar as contradições<br />

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265


existentes nos mitos citados du rante os discursos proferidos nos palanques<br />

eleitorais.<br />

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266


O Que se Esconde Por Trás dos<br />

Slogans<br />

“Fome zero”, “Eu te amo”, “O principal no relaciona mento familiar é<br />

o amor e a compreensão”, “Tudo pelo so cial”. Frequentemente, pensamos,<br />

falamos e escrevemos dessa maneira. Muitos são capazes de discutir<br />

acalorada mente sobre as ideias contidas nessas frases, defendendo-as<br />

ou atacando-as. Mas, afinal, o que elas afirmam?<br />

Creio que ninguém saberá com precisão o que signi ficam. Para cada<br />

um de nós, as palavras “amor”, “ódio”, “compreensão”, “social” e outras,<br />

terão significados dife rentes. Além disso, uma situação altamente<br />

complexa, como a qualidade de vida familiar, não poderia ser atribuí da<br />

apenas a dois fatores, onde as palavras mágicas “amor” e “compreensão”<br />

tornam-se explicações causais pelo bem-estar ou não da família.<br />

É raro questionarmos o nosso in terlocutor, ou nós mesmos, acerca do<br />

sentido, dimensão e significado das palavras que estão sendo utilizadas.<br />

O psicólogo Kurt Lewin escreveu, entre outros, o arti go “O modo<br />

de pensar Aristotélico versus o modo de pen sar Galileico”. N<strong>esse</strong>, ele<br />

critica a linguagem da Psicologia e da Psiquiatria quanto à descrição de<br />

um fato, uma ma neira que, infelizmente, continua. Para <strong>esse</strong> autor, o<br />

modo Aristotélico de se expressar, próprio da linguagem comum, descreve<br />

uma pessoa como “rica” ou “pobre”, “bonita” ou “feia”, “gorda”<br />

ou “magra” e assim por diante. Já a maneira Galileica, ao descrever os<br />

mesmos fatos, é mais precisa.<br />

Assim, em lugar de afirmar que o dia esteve quente, cita a temperatura<br />

alcançada de 32ºC, que João pesa 100 quilos <strong>para</strong> indicar porque<br />

está dizendo que ele é gordo.<br />

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267


A linguagem da Psicologia e da Psiquiatria é muito semelhante à popular,<br />

até mesmo nos artigos chamados “científicos” destas especialidades.<br />

Não é raro encontrar mos, entre os psicólogos, afirmações como<br />

as seguintes: “Maria é uma moça carente”, “Marta é perversa”, “Álvaro<br />

está deprimido”, “Alfredo é esquizofrênico, mas seu irmão Carlos é normal”.<br />

O leitor certamente se lembrará de cen tenas de outros exemplos<br />

semelhantes.<br />

Discussões acaloradas, que terminam, às vezes, em brigas, ocorrem<br />

em assembleias, programas de TVs, sala de aula, etc., devido ao uso<br />

dessa linguagem. Nessas, em virtude da indefinição dos conceitos<br />

causadores da discus são, nunca se chega, nem se poderia chegar, a um<br />

acordo. Se os conceitos utilizados nas disputas fossem mais bem definidos,<br />

as discussões provavelmente não ocorreriam. Fica difícil discutir,<br />

por exemplo, “violência”, pois <strong>esse</strong> ter mo tem conotações e denotações<br />

muito diferentes <strong>para</strong> diferentes modos de pensar.<br />

Com frequência, utilizamos a linguagem de dois mo dos diferentes:<br />

<strong>para</strong> representar nossa experiência pes soal ou <strong>para</strong> comunicar nosso<br />

modelo ou representação acerca do assunto. Assim, discutem-se fatos<br />

diferentes, causados por fatores diferentes, utilizando um único vocábulo.<br />

Que experiência e que representação do mundo cada um dos<br />

que enunciam a palavra “violência” estaria querendo expressar? O<br />

“mapa” utilizado foi um só <strong>para</strong> designar “territórios” diversos.<br />

Usam-se, a todo o momento, palavras que têm o mes mo som ou grafia,<br />

mas com significados, conotações e de notações as mais diversas.<br />

O que pretende dizer alguém que usa as frases: “Tudo pelo social”,<br />

“Defenderemos a nossa soberania”, “Fome zero” (seria no Palácio da<br />

Alvorada ou na residência do presiden te?). Todas são frases usadas<br />

<strong>para</strong> se obter um efeito emo cional, mágico ou hipnotizador, sem importância<br />

<strong>para</strong> o real. Cada cidadão que as ouve, receberá e entenderá<br />

uma comu nicação diferente conforme a emoção que lhe foi inoculada.<br />

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268


Atrás de uma palavra ou frase nem sempre está um objeto concreto.<br />

Palavras não são coisas, são representa ções e ligações entre coisas.<br />

Não resolveremos os nossos problemas de comunicação empregando<br />

palavras mágicas, procurando sinônimos das mesmas, gritando-as diante<br />

dos altofalantes. Muita gritaria, às vezes, acalma e deixa de lado as<br />

ações possíveis <strong>para</strong> dar soluções <strong>para</strong> os proble mas existentes. Antes<br />

de acreditar ou não em uma palavra ou seguir a ideia que ela parece<br />

traduzir, precisamos pri meiramente descobrir seu significado, pois o<br />

símbolo nem sempre traduz a coisa simbolizada.<br />

Quando um hipnotizador diz a alguém: “agora você se sentirá melhor,<br />

mais disposto e terá mais forças <strong>para</strong> enfrentar seus problemas”,<br />

cada hipnotizado entenderá a comunicação de acordo com suas experiências<br />

particulares ou memória autobiográfica. As frases citadas no<br />

início e ao longo d<strong>esse</strong> texto despertarão em cada leitor certas fantasias<br />

e sentimentos próprios. A maioria das frases do nosso dia-a-dia,<br />

por serem altamente genéricas, atingem todos e acerca de quase tudo<br />

e, ao mesmo tempo, de quase nada. Por exemplo, uma frase muito<br />

repetida: “Devemos fazer tudo pelo social”.<br />

Os termos empregados são vagos, abrangentes ao extremo, ou seja,<br />

estamos diante de uma linguagem su perficial. O que é “tudo” e “social”<br />

<strong>para</strong> cada um dos leito res ou ouvintes?<br />

Alguns, usando agora uma linguagem menos super ficial, poderão<br />

pensar que a ideia fala acerca de possíveis aumentos de salários, de<br />

menor inflação ou mais saúde. Para outros, a mesma frase poderá suscitar<br />

ideias opostas: menores salários, maiores taxas de inflação e mais<br />

doen tes. Os desejos e aspirações de cada um ditarão o tipo de ideia<br />

que poderá surgir pelo uso do termo vago. Este modo de comunicar<br />

pode ser chamado de “mágico” no sentido de que, não comunicando<br />

nada, fornece suposições <strong>para</strong> cada cabeça.<br />

Como hipnotizador, os emissores da mensagem con seguem di-<br />

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269


zer tudo e não dizer nada ao mesmo tempo, sem que haja meios de<br />

desmenti-la, pois o enunciado não pos sibilita a comprovação. Os políticos,<br />

pregadores fanáticos, psicólogos que escrevem sobre autoajuda,<br />

curandeiros de modo geral, são useiros e vezeiros em pronunciamentos<br />

d<strong>esse</strong> tipo. Ao recebermos uma comunicação, expressa em linguagem<br />

superficial e “Aristotélica”, ficamos sem refe rências, como ocorreu com<br />

o homem que corria atrás de outro, conforme a historinha “Sócrates”<br />

de N. O. Scarpi.<br />

Um homem, gritando, corre atrás de outro que foge:<br />

— Assassino! Assassino!.<br />

Pergunta Sócrates ao homem que grita.<br />

— Um assassino! Que vem a ser um assassino?<br />

— Pergunta idiota! Um assassino é um sujeito que mata.<br />

— Então, um açougueiro?<br />

— Cretino! Quero dizer um homem que mata outro homem.<br />

— Seria, portanto, um soldado?<br />

— Não, um homem que mata outro homem em tem pos de paz.<br />

— Compreendo, um carrasco.<br />

— Eu quero dizer um homem que mata outro homem em casa dele.<br />

— Ah! Entendi! Um médico?<br />

Confuso, o perseguidor desistiu da perseguição.<br />

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270


Informação, Comunicação, Linguagem:<br />

Informação resumidas<br />

A descoberta das motivações, discursos e condutas inconscientes<br />

dos seres humanos originaram os primeiros golpes desferidos na idéia<br />

existente do homem como criador de suas ações e raciocínios.<br />

Não se pode mais aceitar a concepção totalmente determinista de<br />

que a autonomia, imaginada por nós na programação de nossas ações,<br />

seria mera ilusão; como se tudo fosse a realização de um programa<br />

antecipadamente fixado. O programa existente não contém todas as<br />

respostas previstas anteriormente. Mas, por outro lado, não podemos<br />

considerar a consciência e a vontade como manifestações extremas e<br />

livres fazendo parte de um princípio vital misterioso, de forças extrafísicas,<br />

atuando na matéria.<br />

A auto-organização inconsciente existente em cada organismo<br />

humano deve ser considerada como o fenômeno primordial no mecanismo<br />

do querer (vontade, desejo), do planejamento ou da intenção<br />

direcionada ao futuro. É a associação semi-automática de nossa consciência<br />

e vontade que dá origem à consciência voluntária; esta é, suposta<br />

e erradamente, imaginada como fonte de nossa determinação; este<br />

mecanismo propiciou a ilusão do livre-arbítrio.<br />

Nós sabemos que, na realidade, as coisas que acontecem raramente<br />

são as que queremos. Temos, muitas vezes, a impressão de que não<br />

fomos nós os executores da ação, muito embora saibamos que nós é<br />

que as fizemos: “Foi sem querer”; “Perdão; não queria fazer isso”.<br />

Acontece o seguinte: o nosso querer faz uso de uma parte de nós<br />

mesmos – um atributo chamado de consciência voluntária – ao passo<br />

que a totalidade de nosso organismo nos leva – arrasta, empurra,<br />

conduz – a fazer outra coisa. A totalidade do organismo não é dirigida<br />

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271


por nós; é comandada por outras forças independentes do nosso poder<br />

ou querer. Essas forças são orientadas por princípios ou <strong>para</strong>digmas<br />

inconscientes, trabalhando em conjunto com os fatores biológicos; as<br />

duas ações, em parte, nos comandam.<br />

A totalidade, ou organismo como um todo, como uma força que nos<br />

leva a agir orientada <strong>para</strong> o futuro, de fato, não pode ser conhecida<br />

ou conscientizada através de nenhuma técnica. Um motivo <strong>para</strong> o seu<br />

não-conhecimento, ou a sua não-conscientização, deriva do fato de<br />

que ela não é fixa, ao contrário, vai sendo constituída e estruturada à<br />

medida que nós agimos. Isso torna impossível o conhecimento da estruturação,<br />

pois ela está, continuamente, sendo formada e modificada.<br />

A estruturação dessas forças é determinada de um lado pelos milhares<br />

de acontecimentos, fora do nosso organismo, que nos atingem num<br />

determinado momento sem nosso conhecimento, de outro, pelos<br />

eventos automáticos que ocorrem dentro do organismo.<br />

Podemos afirmar que o “querer real”, aquele que se manifesta e se<br />

mostra eficaz, o que de virtual torna-se real ao se realizar, é construído<br />

ou nasce de programas impossíveis de serem revelados à nossa<br />

consciência. Nós só temos acesso ao produto, ao resultado final, que<br />

é a conduta visível e observável. O homem produz ações através dele;<br />

o querer amplo – não o específico – é realizado através de todas as<br />

células, neuro-transmissores, hormônios, glóbulos sanguíneos etc. e,<br />

também, a partir dos modelos teóricos, <strong>para</strong>digmas, princípios, pensamentos<br />

automáticos etc. durantes as continuadas interações do indivíduo<br />

com os fenômenos aleatórios do meio ambiente. Quase iguais<br />

à abelha, amarrados e obedientes n<strong>esse</strong>s poderosos processos ordenadores<br />

automáticos, somos ejetados <strong>para</strong> o que chamamos de nosso<br />

caminho futuro, de nossa liberdade de ação e de decisão.<br />

Nosso futuro é fabricado através da memória armazenada que,<br />

durante nosso confronto com o meio ambiente, torna presente o passado;<br />

expõe o estocado recuperado num dado momento; este sempre<br />

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272


será uma parte da totalidade de um organismo particular possuidor de<br />

uma auto-organização singular. Fica claro que a memória, surgida num<br />

momento, em parte, somente em parte, através de nosso querer, é um<br />

dos elementos e foi construída, inicialmente, por um organismo que<br />

segue seus próprios princípios de organização biológica e de aprendizado,<br />

não acatando, nem se importando, com nossos desejos, comandos<br />

e valores aprendidos culturalmente. Não adianta querer estar bem<br />

disposto, se o organismo não trabalha <strong>para</strong> isso. O organismo agindo<br />

aleatoriamente criou a nossa memória, que depende de nosso querer<br />

específico <strong>para</strong> se apresentar. Não podem conviver num mesmo sistema<br />

sem interagir o organismo/memória e o nosso querer consciente;<br />

essas interações fabricam novos fenômenos: uma mistura de ações<br />

conscientes movidas por vontade próprias mas, também, ações dominadas<br />

e orientadas pelos processos inconscientes, automáticos e<br />

biológicos.<br />

O resultado é um trabalho conjunto: uma consciência voluntária<br />

de um lado e, de outro, fenômenos desvelados, automáticos e inconscientes.<br />

Assim, a consciência voluntária e a vontade que emerge na<br />

consciência sob a forma do querer, desejos e impulsos devem ser compreendidos<br />

como resultados simétricos de interações entre a consciência-<br />

memória do passado – e o querer inconsciente auto-organizador<br />

do futuro.<br />

A consciência voluntária deve ser examinada como sendo resultado<br />

de uns poucos elementos do organismo antes memorizados, que<br />

intervêm, secundariamente, nos processos de resposta organizadora às<br />

estimulações do meio ambiente, como programas parciais, subprogramas,<br />

sem tanta importância. A consciência voluntária, também, nasceu<br />

do processo maior que é inconsciente.<br />

A vida do inconsciente não pode ser reduzida a um fenômeno secundário,<br />

resultante do recalcamento ou censura de desejos e ilusões<br />

por meios conscientes. O querer inconsciente é o conjunto de meca-<br />

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nismos pelos quais nosso organismo inteiro – total e compacto – reage<br />

aos estímulos aleatórios, às novidades e aos estímulos eventuais<br />

esperados e conhecidos. O querer inconsciente não precisa, na maioria<br />

das vezes, <strong>para</strong> se realizar, aparecer ou desvelar-se – tornar-se consciente<br />

e sujeito a exame – e se transformar em desejo. Se tivéssemos<br />

uma visualização muito grande dele, como memória dos processos<br />

auto-organizadores, isso poderia impedir seu aparecimento e bloqueá-<br />

-lo. Para a sobrevivência do sistema, às vezes, é melhor que ele continue<br />

inconsciente. Quando falamos ou escrevemos, se começarmos a<br />

examinar, usando nossa memória consciente, exageradamente, como<br />

estamos usando nosso conhecimento ao expormos nossas idéias, elas,<br />

geralmente, terão dificuldade <strong>para</strong> aparecerem.<br />

O desejo tem como mãe o organismo natural e inconsciente total,<br />

como pai a memória explicitada consciente e carregada de regras que<br />

podem ser examinadas. Por tudo isso, nosso querer não é da ordem do<br />

querer inconsciente “puro”, mas a emergência do querer inconsciente<br />

na consciência consciente.<br />

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Lembranças, recordações,<br />

saudades<br />

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Mergulho no Passado: Uma<br />

História Verdadeira<br />

Advertência à Guisa de Introdução<br />

Essa história me foi contada, portanto, tentarei descrevê-la da maneira<br />

como a ouvi. Por isso, todos os relatos que serão descritos abaixo<br />

são de exclusiva responsabilidade do jovem narrador.<br />

Este cursou a Faculdade de Medicina há muitos anos, como inúmeros<br />

outros médicos, se é que os colegas mais velhos ainda se lembram.<br />

As cenas selecionadas e narradas por ele, as interpretações e<br />

críticas feitas às pessoas e aos costumes da época, bem como seu ponto<br />

de vista, de que algumas vezes discordo, são percepções formadas<br />

por sua mente carregada de energia, mas ingênua que, ao começar o<br />

curso médico, ao chocar-se com o complicado mundo dos adultos, aos<br />

poucos foi perdendo as belas ilusões adquiridas na infância. Ele, como<br />

seus colegas, por acaso decidiu ser médico, por acaso nasceu e passou<br />

no vestibular num certo ano. A fatalidade existente na vida de cada um<br />

dos jovens levou-os a entrarem juntos na faculdade, permitiu a formação<br />

de um grupo coeso, anteriormente desagregado.<br />

Eu, como narrador do narrador, esforcei-me o quanto pude <strong>para</strong><br />

descrever fielmente o que me foi contado, quase que diariamente, ao<br />

pé do ouvido, por <strong>esse</strong> jovem estudante. Preservei intactas também<br />

suas explicações acerca dos fatos ocorridos durante seu curso médi co.<br />

Entretanto, observei, e vocês verão que tenho razão, que ele pró prio,<br />

algumas vezes, duvidou das interpretações simbólicas que deu aos<br />

eventos. Acho natural essa sua dúvida. Nem sempre fomos amigos e<br />

concordamos em tudo. Já brigamos muitas e muitas vezes, em certas<br />

ocasiões mal nos cumprimentávamos.<br />

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Examinando sua mente inquieta dia após dia, pois sempre es tivemos<br />

ligados, pude notar que ele jamais ficou preso a uma ideia por muito<br />

tempo, pois estava sempre saltando de um lado a outro, à procura de<br />

um pouso acolhedor.<br />

Chamava-me a atenção sua incerteza ao tomar partido a favor ou<br />

contra um ou outro modo de pensar, pois, geralmente, ao comba ter ou<br />

defender uma ideia, ele próprio descobria prontamente razões contrárias<br />

às defendidas ou atacadas. Isso, segundo percebi, custou-lhe por<br />

vezes o isolamento social e, ao mesmo tempo, estranhamente, uma<br />

fusão e entendimento com todos os que pensavam diferente dele.<br />

Assim é que, por sorte ou azar, não sei bem, foi levado a não fazer<br />

par te de nenhuma agremiação política, científica, cultural ou religiosa<br />

e, ao mesmo tempo, internamente, aceitava e pertencia a todos <strong>esse</strong>s<br />

grupos heterogêneos. Desejo ainda comunicar-lhes que seu modo de<br />

selecionar os fatos do seu mundinho acadêmico foi fragmentário e<br />

parcial – por isso peço-lhes desculpas em nome dele – como deve ter<br />

acontecido com todos jovens, pois cada um selecionava <strong>aqui</strong>lo que<br />

supunha ser “interessante e inesquecível”.<br />

Possuía muita coragem e fé em si mesmo e, ao mesmo tempo, como<br />

é comum nos valentes, pouca capacidade e competência <strong>para</strong> diferenciar<br />

o mutável do imutável. Por isso mesmo trombou decepcio nado em<br />

vários muros intransponíveis. Suas características de jovem aventureiro<br />

e impetuoso, por sinal muito humanas, até me atraíam. Confesso com<br />

certo orgulho que devo a ele grande parte do que sou. Ele foi meu<br />

instrutor e crítico. Dele nasceram, bem ou mal erigidas, todas as ideias<br />

básicas ou princípios em que construí e organizei meu raciocínio atual.<br />

Vivo, até hoje, encarcerado intimamente ao núcleo d<strong>esse</strong> jovem inquieto,<br />

meu preceptor diário e carregarei até o túmu lo suas marcas e emoções<br />

impressas em minha mente. Entretanto, sei que algumas dessas<br />

nódoas indeléveis são muito primitivas e conscien temente preferiria<br />

viver sem elas, mas elas não me abandonam. Não podia ser de outro<br />

modo. Às vezes lamento, outras vezes louvo, sua vida desassossegada,<br />

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leve e curiosamente ligada a mundos tão variados. Muitas vezes imagino<br />

que poderia ser tudo tão mais simples… Será?<br />

Lastimo sua completa incapacidade <strong>para</strong> se conduzir através de um<br />

caminho sempre na mesma direção. Isso ele nunca conseguiu e talvez<br />

jamais o desejasse.<br />

Ele dirigiu sua vida em ziguezagues, ora <strong>para</strong> um lado, ora <strong>para</strong><br />

outro. Rodopiou e capotou várias vezes, fez curvas e mais curvas,<br />

algumas imensas, em certas ocasiões, andou em círculos, sempre obstinadamente,<br />

em busca do sonhado caminho orientador. Apesar dessa<br />

procura teimosa, ele jamais encontrou uma saída nobre <strong>para</strong> escapar<br />

e descansar d<strong>esse</strong> labirinto onde se aprisionou. Acredito que vocês,<br />

os simpáticos e ligados a ele como eu, o compreenderão. Talvez seus<br />

amigos e colegas tiv<strong>esse</strong>m lutas semelhantes e bat<strong>esse</strong>m nos mesmos<br />

obstáculos intransponíveis. Os inimigos, nem tanto. É possível que<br />

alguns felizardos – ou seriam azarados? – tenham encontrado prontamente<br />

o caminho acolhedor e definitivo. Ele jamais desejou isso. Como<br />

seu aluno e admirador, n<strong>esse</strong> instante seu portavoz, quero de público<br />

agradecer a todos vocês, que conviveram e ajudaram a formar a mente<br />

do meu tutor, exatamente no período mais crítico de sua vida. Ele e<br />

vocês, estudantes d<strong>esse</strong> tempo longínquo, assistiram, partici<strong>para</strong>m e<br />

viveram cenas e problemas semelhantes, sofreram e entristeceram-se,<br />

regozijaram-se e consolaram-se juntos. O jovem narrador estruturou-se<br />

ou, quem sabe, desestruturou-se, a partir dessa união grupal singular,<br />

d<strong>esse</strong> contato estreito, formado através da soma das esquisitices<br />

existentes em cada um. Foi nessa boa, ainda que imatura mãe, que<br />

ele e muitos de vocês, como crianças amedrontadas, se apoiaram e se<br />

sentiram protegidos ao buscar o carinho e a compreensão. Este gru po<br />

confortou e aliviou as “dores do mundo” que pesavam sobre sua cabeça<br />

frágil de iniciante a adulto. Este jovem ligado profundamente a <strong>esse</strong><br />

grupo foi, e sempre será, o produto de cada um de vocês. Seus colegas<br />

amigos, cada um a seu modo, imprimiram uma marca indes trutível.<br />

Nenhum jamais escapará dessa cunhagem misteriosa.<br />

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Talvez vocês, como ele, segundo especulei, tenham sofrido os mesmos<br />

azares do preço das transformações. Percebi que, à medida que<br />

ele foi alcançando degraus e conhecimentos mais elevados, mais<br />

amedrontado ficou. A ignorância inicial, bem como a não consciência<br />

desta, lhe dava segurança, falsa, eu sei, mas confortável, muitas vezes<br />

procurada.<br />

Ele nunca me confessou abertamente seu desejo de <strong>para</strong>r de crescer,<br />

<strong>para</strong>r com tudo, regressar de vez ao tempo da incompetência quase<br />

total, apesar dele saber que o caminho escolhido não tinha re torno.<br />

Entretanto inferia, nos seus rodeios, que é sua marca, dúvidas e mais<br />

dúvidas, algumas vezes um desejo velado de voltar ao tempo da inocência<br />

e da irresponsabilidade.<br />

Parece-me que <strong>para</strong> cada pulo dado <strong>para</strong> o crescimento, <strong>para</strong> cada<br />

estágio alcançado, mais ele se sentia aprisionado. Passou a ser controlado<br />

pelas normas da classe, pelos clientes, pela família, pelos<br />

deveres e compromissos diversos e, terrivelmente, pior ainda, pela<br />

sua consciência aumentada acerca de tudo isso. Pouco a pouco, ele foi<br />

abandonando quase tudo que amava. Os antigos e inocentes hábi tos e<br />

prazeres, altamente atraentes numa época, foram trocados, com pesar,<br />

por obrigações pesadas comandadas por pressões externas. Ele passava<br />

a não mais mandar na sua vida. Confessou-me, abafado, que muitas<br />

vezes sentiu saudades da vida anterior, passando a ter inveja, nos dias<br />

de maior desespero, da vida do pássaro cantando na lavoura ou da<br />

abelha pousando nas flores. “É terrível!”, confessou-me: “Gosta ria de<br />

poder, ainda que por instantes, responder diretamente ao meio, sem<br />

ser incomodado pelos pensamentos”.<br />

Todos vocês, como ele, entraram na faculdade em busca de uma<br />

sabedoria que não possuíam. Cedo, ainda na escola, ele verificou que<br />

lá não havia este conhecimento. Continuou sua procura em campo<br />

aberto, junto ao cliente e à vida cá de fora. Mas, depois de muita luta,<br />

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chegou à conclusão que este ancoradouro tão esperado e sonhado não<br />

existia, apesar dele ser procurado por todos. Ora, como seria bom se<br />

existisse algo em que pudéssemos, continuamente, nos apoiar e ter<br />

certeza! Decepcionado, percebeu que não havia nada que re sistisse à<br />

ação da história. As verdades encontradas serão, no futuro, mentiras,<br />

cada uma desmentida pela outra que dura algum tempo. Tudo que<br />

numa época foi imaginado ser um porto seguro, numa outra ocasião<br />

poderá ser um abismo perigoso. O jovem narrador agarrou-se a uma<br />

ideia, a outra, a várias delas, acreditando estar protegido, caso se<br />

apoiasse em várias ao mesmo tempo.<br />

Mas sempre, mais tarde, percebeu que se prendia a mitos, a ilu sões,<br />

a estacas podres e ocas e novamente se sentia desprotegido, afundava-<br />

-se. As verdades aprendidas na escola eram mentiras, menti ras que<br />

todos acreditavam numa época, todas anunciadas com muita fé. Agora,<br />

<strong>esse</strong> inconformado, condicionado pelo treinamento, conti nua teimosamente<br />

sua caminhada, como um rato que vai ao mesmo bebedouro diversas<br />

vezes à procura da água que lá não existe, atrás de uma verdade<br />

que possa servir de apoio às outras. Para viver, ele finge desconhecer<br />

essa “verdade” lógica.<br />

Mas ele, como vocês, tem que prosseguir sua caminhada em direção<br />

ao fim, e assim, penosamente, aprendeu que a verdade é vi vida, ela<br />

pertence a cada um, num certo momento. Jamais poderá ser ensinada<br />

nas escolas ou nos templos.<br />

Naquele tempo, na velha escola de paredes altas e brancas e de<br />

porões escuros, os pequenos e inseguros alunos ouviam respeitosamente<br />

seus deuses do momento, afirmando suas verdades durante as<br />

aulas magistrais. Os professores eram vistos por cada um dos alunos<br />

espantados, como super-homens inatingíveis e invejáveis, possuidores<br />

de conhecimentos eternos. Hoje, tristemente, ao nos lembrarmos<br />

de suas aulas, temos pena deles, de suas prisões e de seus obstinados<br />

esforços <strong>para</strong> defenderem as ideias médicas da época, agora em desu-<br />

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so, perdidas no tempo, ridículas. Temos que prosseguir vivendo nessa<br />

incerteza. Reconheço que ele aprendeu, lá, hábitos e costumes que<br />

não mais servem <strong>para</strong> hoje, mas não deixo, às vezes, de ter inveja da<br />

vida que ele me contou, daquele mundo sedutor cada dia mais distante,<br />

que guardava seus encantos, prazeres, belezas e aromas simples.<br />

Aprisionado até à alma ao estudante daquela época, vivemos, eu e ele<br />

ao mesmo tempo, dois estilos de vida, às vezes em conflito.<br />

Toda e qualquer queixa contra suas ideias, bem como contra o ponto<br />

de vista adotado, deve ser encaminhada a ele próprio. Farei tudo <strong>para</strong><br />

que receba as críticas que porventura vierem. O narrador atual, naquela<br />

época ainda um embrião, será um mero instrumento de suas recordações.<br />

Como suas histórias sempre me fascinaram e por isso gravei cuidadosamente<br />

boa parte de seus relatos, não foi difícil <strong>para</strong> mim reproduzi-las.<br />

Devido ao pequeno espaço, fui obrigado, embora contraria do,<br />

a cortar boa parte do anotado, que guardo carinhosamente <strong>para</strong> outras<br />

ocasiões. Selecionei somente uma pequena amostra. Peço-lhes desculpas<br />

por isso.<br />

O Relato<br />

Manhã de novembro. Um táxi levou-me até à Estação Rodoviá ria,<br />

em Belo Horizonte. Assentei-me na poltrona, espichei meus ve lhos pés<br />

magros, ainda fortes, no suporte, deitei-me e fechei os olhos. Dentro<br />

do ônibus frio instalou-se o silêncio próprio de um grupo cansado pelo<br />

passar do tempo. A algazarra inicial durou pouco e se transformou<br />

apenas no barulho monótono do motor. Preso ao som acolhedor e<br />

tranquilizante, despertei com a melodia “Carinhoso” que estava sendo<br />

tocada no altofalante. Fechei os olhos <strong>para</strong> o presente, pouco a pouco<br />

fui hipnotizado pelo som e silêncio.<br />

Estava entrando naquele mundo que começara há muitos anos.<br />

Senti que era essa a razão da minha ida: um mergulho gostoso ao pas-<br />

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sado distante, ao curso médico feito. Sabia que, agora, isso me dava<br />

segurança e pesar, que essa volta estava supervisionada pelas nossas<br />

experimentadas mentes, pelos novos conhecimentos adquiridos. Já<br />

não éramos mais os jovens inocentes que fizeram e passaram no vestibular<br />

<strong>para</strong> Medicina. Aos poucos, entrei em transe e penetrei naquele<br />

tempo.<br />

Estávamos nas vésperas do vestibular, mais precisamente numa noite<br />

escura, feia e fria de fevereiro. Eu acabara de completar 19 anos. A<br />

chuva que caíra por todo o dia havia dado uma trégua <strong>para</strong> que pudéssemos<br />

sair de casa. Nesta noite realizávamos um compromis so começado<br />

há anos. Ali estávamos, jovens ambiciosos, lutando por uma vaga<br />

na Faculdade de Medicina. Tentávamos dar o passo mais audacioso na<br />

nossa vida de estudante. Todos aqueles caminhantes inquietos e tensos<br />

se punham em torno do portão principal, ainda fechado, do prédio.<br />

Dali a pouco as portas seriam abertas <strong>para</strong> a realização do vesti bular.<br />

Todos tinham um só objetivo: conseguir uma vaga na escola.<br />

Nos meses que antecederam as provas, todos nós estudamos compulsivamente,<br />

durante os dias úmidos, tristes e chatos daquele ano. O<br />

céu, durante três meses, talvez temeroso e nervoso como nós acerca<br />

do risco da empreitada, solidário derramou continuadamente filetes de<br />

lágrimas frias e brilhantes nos telhados esverdeados e sujos das casas.<br />

A chuva miúda provocara nos livros e cadernos um insu portável cheiro<br />

de mofo que impregnara tudo. Apenas foram preser vados nossos neurônios<br />

que precisavam, através de grande esforço, ser mantidos limpos<br />

e secos <strong>para</strong> realizarem seu papel. Eram eles que deviam armazenar<br />

ordenadamente milhares e milhares de fatos e te orias, a maioria delas<br />

inúteis e que, durante o vestibular, fariam sua última viagem, pois logo<br />

depois seriam jogadas no lixo eliminadas <strong>para</strong> sempre.<br />

Havia medo estampado nos olhos dos postulantes a um lugar. Predominavam<br />

as dúvidas. Junto ao temor imperava também uma alegria<br />

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ou alívio, pois, se tivéssemos sorte, poderíamos expulsar as detestáveis<br />

matérias que invadiram e dominaram nossas mentes. Es távamos na<br />

reta final, não havia mais tempo <strong>para</strong> aprender nada. Dis farçadamente,<br />

olhava espantado e amedrontado <strong>para</strong> os meus rivais do momento:<br />

— Aquele ali tem uma grande cabeça, sinal de inteligência… uma<br />

vaga será dele. E aquela mulher morena de cabelos pretos cache ados?<br />

Bonita. Estranho… desejando entrar na Faculdade de Medicina? Será<br />

que passa?<br />

Examinava um a um os “inimigos da noite” e construía julgamen tos<br />

acerca deles.<br />

Alguns brincavam desajeitadamente <strong>para</strong> espantar o medo, ou tros<br />

fumavam, mas todos tentavam camuflar a apreensão. Eram pou cas as<br />

vagas <strong>para</strong> muitos candidatos. Diziam, sem muita certeza, que certos<br />

lugares já estavam reservados <strong>para</strong> alguns poucos escolhidos e apadrinhados<br />

de sempre.<br />

Abriram-se as portas e, vagarosa e preguiçosamente, os candida tos<br />

foram procurando seus lugares nas salas.<br />

Pareciam tentar, no seu passo lento, adiar o inicio da decisão. Assentei-me<br />

no lugar indicado. Tirei a velha caneta Parker 51 do bol so do<br />

surrado e largo paletó cinza, que servia <strong>para</strong> disfarçar minha magreza<br />

de 50 quilos, meus ossos fortes e estufados, cobertos por uma pele<br />

sem rugas e sedosa de atleta amador desnutrido. Tremi ao assinar a<br />

lista que passava de mão em mão. A sala era comandada por um velho<br />

professor da Faculdade, fungando sem <strong>para</strong>r através de suas largas e<br />

proeminentes narinas. Isso punha-me irritado.<br />

— Quem seria ele? Na certa um professor famoso. Será que al gum<br />

dia eu, um “pé rapado” qualquer, desajeitado, poderia estar no lugar<br />

por ele ocupado e dando provas <strong>para</strong> futuros alunos? Oh! que bom<br />

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seria!<br />

Três dias de provas escritas: Biologia, Física e Química. No dia da<br />

prova de Física, uma violenta tempestade caiu sobre a cidade. As luzes<br />

se apagaram e ficamos às escuras por mais de uma hora, coman dados<br />

pelo velho, e agora, <strong>para</strong> minha decepção, fraco professor. Essa era a<br />

prova que eu mais estava pre<strong>para</strong>do. Entretanto, com as trevas, a conversa<br />

e a cola foram gerais. Esperei que a prova fosse anulada. Não foi.<br />

Começaram aí, ainda muito cedo, minhas transformações na maneira<br />

de ver o mundo dos adultos da elite. O mundo construído e sonhado<br />

anteriormente começava a quebrar-se, e continuaria, através do confronto<br />

com a nova realidade, a despedaçar-se.<br />

Depois, começaram as provas orais. Na de Botânica, fui exa minado<br />

por um velhinho simpático. Via todos os professores velhos como sábios<br />

e obesos, ao contrário dos candidatos magros, jovens e com cara<br />

de débeis mentais. Eu nada sabia acerca dessa prova, pois não havia<br />

essa matéria no curso científico. Lembro-me bem de sua voz cavernosa<br />

e fraca ao chamar-me. Tive pavor naquele momento. Olha va atraído<br />

<strong>para</strong> a porta de saída do grande anfiteatro onde se realizava a prova,<br />

imaginando poder passar correndo por ela o mais depressa possível.<br />

Entretanto, como um réu diante do juiz, automaticamente caminhei<br />

em direção à grande mesa, cheia de plantas e folhas soltas, atrás da<br />

qual parecia se esconder o professor, na certa esperando um deslize<br />

meu, pronto <strong>para</strong> me condenar.<br />

Olhou-me fixamente nos olhos, passou suas mãos manchadas de<br />

pintas negras sobre o bigode e disse-me, num tom que jamais decifrei:<br />

— O senhor tem um nome e sobrenome importantes…<br />

Não descobria por que ele falara. Qual a importância? Por ter coragem<br />

de tentar medicina? Por ser um nada? Mas não havia tempo <strong>para</strong><br />

pensar. O inquérito estava apenas começando. Ele devia estar queren-<br />

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do distrair-me e pegar-me. Mais tarde, vim a saber que na facul dade<br />

havia professores, que nunca foram meus parentes, nem amigos, que<br />

tinham sobrenomes iguais aos meus. De fato, eu era um “João Ninguém”,<br />

fazia parte do grupo de pobres, dos filhos de viúvas, como disse<br />

muito bem um da turma. Sem nome e sem poder <strong>para</strong> ajudar-me,<br />

esperava a sorte e a simpatia do velho professor. Não tive outra alternativa<br />

a não ser, engasgado e trêmulo, balbuciar:<br />

— É… certo… espero honrar meu nome.<br />

— Qual seria <strong>esse</strong> nome? – perguntei-me, confuso. Não sabia.<br />

O professor, lentamente, separou uma planta que estava den tro de<br />

um pequeno vaso e perguntou-me, com um tom de voz até aí amistoso:<br />

— Classifique essa Salvina.<br />

Acredito, até hoje, que o nome que ouvi foi <strong>esse</strong> mesmo. Nunca quis<br />

saber ao certo nada acerca d<strong>esse</strong> maldito vegetal, se é que ele ainda<br />

existe. Tonto, assustado, olhei <strong>para</strong> a planta… percebia que ja mais encontraria<br />

uma saída. Olhei novamente <strong>para</strong> o vaso, fingia estar pensando<br />

quando, na realidade, nada pensava. Sem saída, fixei meus olhos no<br />

vaso uma vez mais e, sem outra coisa <strong>para</strong> fazer, respondi com uma voz<br />

em falsete, lá do fundo, fazendo tudo <strong>para</strong> que ela não fosse ouvida:<br />

— É… é… é uma planta… aquática! – falei o final, fingindo firmeza.<br />

— O quê? Sua expressão e voz agora já não eram as de antes. Respondi<br />

rápido:<br />

— Não! Foi brincadeira, o senhor a colocou dentro d’água. Eu…<br />

A partir daí fui me arrastando no exame, já não era mais senhor dos<br />

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meus atos. Passei a fazer tudo automaticamente, entreguei meu destino<br />

a qualquer Deus que porventura existisse, estiv<strong>esse</strong> disponí vel e<br />

tiv<strong>esse</strong> coragem <strong>para</strong> ajudar-me naquela hora maldita.<br />

Como a Física era o meu forte, entrei resoluto e confiante <strong>para</strong> a prova<br />

oral. Lá estava, como sempre, um velho careca, encurvado e magro,<br />

cara fechada, que mais tarde fiquei sabendo que era professor, não de<br />

física, mas de dermatologia. Coisas do passado. O exame, ou melhor, o<br />

inquérito, começou. Não concordávamos. Ele não tinha es tudado nos<br />

livros de Física adotados no curso científico. Só mais tarde descobri que<br />

seus conhecimentos de “física” foram obtidos através da leitura do almanaque<br />

da Saúde da Mulher que, lamentavelmente, naquele ano, por<br />

falta absoluta de tempo, não pude ler. Ele, emperti gado, com grande<br />

orgulho e sabedoria, me fez duas perguntas:<br />

— Como você sabe que uma água está fervendo na panela? O que é<br />

balança doida?<br />

As respostas não eram as óbvias e descritas nos livros de Física, eram<br />

da “física” existente na mente dele, as do almanaque. Eu devia, como<br />

adivinho, descobrir o que ele desejava e, infelizmente, não adi vinhei.<br />

Dancei nesta.<br />

Acordei ao ouvir a voz calma de uma colega, que se sentara ao meu<br />

lado no ônibus. Ela, durante o vestibular, havia despertado a atenção<br />

do meu tutor logo após o término das provas, quando ca minhava ao<br />

lado do Parque Municipal, esguia e vagarosamente, em direção à sua<br />

casa. A colega do ônibus, ao contar-me um caso atual, obrigou-me a retornar<br />

ao presente, à turma dos idosos, largando por minutos a turma<br />

antiga, a dos jovens, muito mais atraente e animada. Eu não imaginei<br />

que ela se tornaria minha colega, tinha cara de crian ça. Interessado em<br />

retornar ao ano do vestibular, ansioso pela volta, procurei, após ouvi-<br />

-la, cortar delicadamente o assunto. Eu desejava conversar com a colega<br />

antiga. Vim ao encontro <strong>para</strong> isso, <strong>para</strong> es conder a realidade atual e<br />

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encontrar a daquele tempo, quando ainda existiam vários caminhos a<br />

seguir.<br />

Agora, os acontecimentos, uma vez cristalizados pelos anos, não<br />

mais permitiam escolher novas opções, os espaços já tinham sido ocupados.<br />

Percebia claramente que nos encontros procuramos esconder,<br />

de todos os modos possíveis, a penosa realidade experimentada, os<br />

planos e sonhos imaginados na juventude, que se transformaram em<br />

decepções, em nada, vencidos que foram pelos fatos crus e dolorosos.<br />

Inspirado pelo ônibus, precisava voltar, o mais rápido possível, às narrações<br />

do jovem que vivera num tempo em que ele podia imaginar e<br />

planejar o que desejasse. Hoje, ele se acha preso à história construída<br />

por ele próprio, composta por fatos que preferiria não ter usado na<br />

edificação. Mas sentia saudade daquela época em que tinha poucos<br />

fatos <strong>para</strong> prendê-lo, hoje ele os tem de sobra. Antes, sua vida era um<br />

confronto vazio com o mundo real, com poucas e ingênuas teorias<br />

acerca dele. Hoje, aos poucos, querendo ou não, transformou-se numa<br />

outra pessoa, através das lambadas recebidas na face, produzidas pelos<br />

acontecimentos indesejáveis. Fingi dormir. A colega falava mais baixo e<br />

bondosamente calou-se, sem entender minha sonolência fingida.<br />

O vestibular terminou: agora, impacientes, esperávamos o resul tado.<br />

Nada mais havia <strong>para</strong> ser feito. Passei ou não? Essa era a pergunta<br />

que ocupava as mentes ansiosas e sofridas. Foi um longo período de<br />

expectativas, que me colocaram mais tenso ainda. Evitei as conversas<br />

de sempre, pois não queria ouvir a boataria. Um dia a notícia temida e<br />

esperada: saiu a lista dos aprovados! Vagarosamente, <strong>para</strong> adiar o impacto,<br />

fui vê-la. Entrei timidamente no porão escuro e mal iluminado,<br />

local onde, naquele tempo, funcionava a secretaria da Faculdade de<br />

Medicina. Acima da entrada do porão, dos dois lados, saíam duas escadas<br />

laterais, que conduziam ao saguão, entrada principal da acanhada<br />

escola. O pequeno cômodo estava repleto dos companheiros de<br />

infortúnio que se aglomeravam em torno da única lista colocada. Uns<br />

liam em voz alta, própria dos desinibidos, os nomes dos aprovados e,<br />

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por que não, com certo orgulho comentavam e conjeturavam acerca<br />

dos que não haviam passado.<br />

Alguns saíam do tumultuado porão, pulando e urrando alegre mente,<br />

outros, ao contrário, cabisbaixos e com lágrimas nos olhos, caminhavam<br />

lentamente <strong>para</strong> o espaço vazio e acolhedor do pequeno jardim<br />

existente em frente da escola.<br />

Chegou a minha vez. Sem o desejar, fui empurrado pelos de trás, até<br />

ter a lista sob meus olhos amedrontados. Agora teria que encarar e<br />

clarear, querendo ou não, minhas dúvidas. Passei ou não? Ainda tentei<br />

evitar fixar meus olhos na lista ameaçadora e perigosa. Não tinha mais<br />

jeito. Fui lendo com o coração oprimido, a respiração ofegante, suando<br />

e quase desmaiando de terror. Passei por vários no mes, o meu nada.<br />

Continuava minha procura, não encontrava nada. Minhas esperanças<br />

estavam desaparecendo… um nome, mais outro, <strong>esse</strong> é conhecido,<br />

<strong>esse</strong> não, puxa, até fulano passou, só eu não? Ab surdo! Por fim, lá<br />

embaixo na lista, quase no fim, entre os últimos, o visualizei. Eu! Passei!<br />

Urra! Segurei rápido e envergonhado minha ex pressão emocional<br />

repentina, que aliviava minha angústia mas, como bom itabirano e mineiro,<br />

saí do porão orgulhoso e de cabeça baixa, andando lenta e pausadamente,<br />

disfarçando meu encantamento com a mudança de status.<br />

Estava sem ar, mas aliviado. Não precisava ter vergonha de encarar a<br />

família, que me esperava em casa, e acreditou e investiu n<strong>esse</strong> jovem<br />

atirado e confuso. Mas havia ainda um pesadelo. “E agora José? A festa<br />

acabou…”, onde conseguir o dinheiro <strong>para</strong> o curso e os caros livros?<br />

Tonto como se tiv<strong>esse</strong> levado uma violenta e pesada paulada na<br />

cabeça, – como levei durante um tumultuado jogo de futebol, – caminhei<br />

sem rumo e sem saber o que fazer, triste e alegre ao mesmo tempo.<br />

Também, com umas notas daquelas! Que vergonha! Andei cambaleando,<br />

bêbado, lembrei-me do dia que bebi mais do que devia, ao<br />

ser campeão de futebol juvenil no meu bairro. Peguei uma condução,<br />

qualquer uma servia, pois não sabia onde queria ir. Fui <strong>para</strong>r na Ave-<br />

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nida Getúlio Vargas. Desci, caminhei mais e, automaticamente, voltei<br />

à Faculdade de Medicina. Vi-me, desolado, passando novamente por<br />

baixo das velhas escadas. Entrei outra vez no porão. Queria confirmar<br />

minha colocação.<br />

Olhei, agora mais calmo, <strong>para</strong> o quadro com a lista. Havia poucos<br />

candidatos à volta. Estava confirmado, de fato havia passado. Era<br />

verdade, mas não como esperava. Saí do porão decidido e, de repen te,<br />

retornei ao que sempre havia sido, animado e corajoso. Já não era o<br />

medroso estudante do científico. Agora sabia claramente onde queria<br />

chegar. Subi rápido e confiante as escadas, pois sendo agora um primeiranista<br />

de Medicina, e não mais um candidato a este curso, tinha<br />

outros direitos: reclamar minhas notas. Liberto, convencido e encorajado<br />

por essas ideias com o novo posto alcançado, fui até o diretor da<br />

Faculdade de Medicina, tentando uma audiência com ele. O velho e<br />

cansado diretor recebeu-me pronta e gentilmente. Fui di reto ao assunto:<br />

— Examinei a lista dos aprovados. Imagino que há um erro nas notas.<br />

Merecia uma outra, coisa melhor.<br />

Ele olhou-me com ternura, passou suas suaves mãos sobre meus<br />

ombros, e imediatamente deu ordens à secretária <strong>para</strong> subir minhas<br />

notas <strong>para</strong> examiná-las. De posse delas, olhou-as uma vez, mais outra<br />

vez, fixou seus olhos complacentes nos meus e disse-me espantado:<br />

— Mas você foi aprovado! Não está feliz?<br />

— Eu sei, mas vim <strong>aqui</strong> <strong>para</strong> reclamar das notas, fiz provas boas…<br />

— Ora meu filho, vá <strong>para</strong> casa, comemore com seus amigos e família<br />

seu sucesso…<br />

Envergonhado com o fracasso da missão, ainda irritado com as<br />

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notas, saí apressado da sala e voltei a caminhar pelas ruas. Só cheguei<br />

a casa à noite. Dei a notícia à família. Penso que tinha a fisionomia tão<br />

sem graça, desapontada e sem alegria que não produzi – ou não percebi<br />

– entusiasmo nos familiares. Talvez eles, confiando em mim mais do<br />

que eu próprio, não esperassem outro resultado a não ser aquele. Este<br />

foi mais um das dezenas de outros aborrecimentos que enfrentaria na<br />

minha vida de estudante do curso de Medicina, que ora estava iniciando.<br />

Entretanto, como todo início, também este teve seus encantos e,<br />

ao mesmo tempo, seus desencantos.<br />

Vejo-me andando pelas ruas de Belo Horizonte durante o tro te, com<br />

toda minha energia, rodeado de colegas fortes e jovens, de peles lisas e<br />

corpos magros e esbeltos. Devido à minha magreza, fui transformado,<br />

após uma boa dose de cachaça, em “Miss Sífilis”. Meu corpo foi enrolado<br />

em gazes, es<strong>para</strong>drapos e tintas diversas. Outros, mais esbeltos,<br />

viraram lindas mulheres. Um colega esnobe fantasiou-se de palhaço, o<br />

que lhe assentou muito bem, um outro vestiu-se de baiana desengonçada,<br />

outro de pirata, etc. Desfilamos orgulhosa mente pela Avenida<br />

Afonso Pena: foi nosso dia de glória e esperança em conseguir namoradas<br />

melhores que as antigas. À noite, no DCE instalado na velha sede<br />

da Av. Afonso Pena, o Magnífico Reitor falou <strong>para</strong> o seleto grupo de<br />

garotos entusiasmados e ingênuos acerca do que é uma Universidade.<br />

Ainda embriagado pela cachaça e pelas fes tas, nada assimilei do que<br />

foi dito. Percebi, pela sua empolgação, que ele deve ter falado bonito.<br />

Estava, sem querer, forçado a virar adulto. Como é difícil!<br />

Ainda ouvia o tom de voz exaltado e belo das frases do Reitor, quando<br />

fui despertado pela estridente e nada melodiosa voz de um co lega,<br />

avisando-nos de nossa chegada à cidade onde iríamos almoçar.<br />

Chegamos. A fome incomodava nossos organismos, mas nestes não<br />

mais habitavam os jovens famintos de antigamente. Não mais conseguimos<br />

sentir o prazer do sabor das laranjas do simpático e gago Tião<br />

Laranjeiro. Naquela época, qualquer “feijão com arroz” era in gerido<br />

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com prazer e voracidade. Hoje temos diante de nós alimentos sofisticados,<br />

entretanto, procuramos em vão os jovens esfomeados de antes<br />

<strong>para</strong> saboreá-los, e não os encontramos.<br />

Na minha mente ainda morava o terrível, mas talvez bondoso <strong>para</strong><br />

muitos, professor de anatomia, fumando, dando sua primeira aula <strong>para</strong><br />

o curso médico, na sala comprida, escura e estreita. Subi à procura de<br />

um lugar, não havia cadeiras, e sim degraus, onde me sentei, espantado<br />

e curioso, com o “encanto do início”.<br />

O carrancudo professor ia dar a primeira aula. Havia uma expec tativa<br />

geral, todos estavam atentos. Diante do professor, estendido na maca<br />

suja e enferrujada, descansava um cadáver frio, triste e magro, cheirando<br />

a formol. Ele fora levado até ali por um servil bedel que, segundo<br />

fiquei sabendo posteriormente, cantava os alunos mais bo nitos,<br />

ajudando-os a escolher as melhores “peças” <strong>para</strong> estudar. Não fiz parte<br />

dos escolhidos. Sem decodificar acuradamente o que via, confundi<br />

o cadáver com um boneco de cera e, d<strong>esse</strong> modo, almocei tranquilo<br />

naquela tarde. Só depois fiquei sabendo que o “boneco” era um ex-<br />

-homem, que teve antes uma vida, um nome, uma mãe, talvez pai,<br />

alegrias e tristezas, como eu…<br />

O barulho próprio do início das refeições atraentes despertou-me<br />

do sonho. Fui chamado pelos colegas, que já começavam a comer o<br />

tiragosto e a tomar vinho. Entretanto, mesmo diante do grupo, após<br />

o efeito do primeiro gole, continuei a enxergar as aulas soníferas do<br />

professor de Histologia e Embriologia, gordo, pequeno, pegajoso e<br />

monótono. Durante essas aulas, dormíamos, principalmente quando as<br />

cortinas eram fechadas <strong>para</strong> mostrar as lâminas. Um a um cada professor<br />

foi aparecendo na minha mente.<br />

O almoço estava sendo servido. Fui obrigado a abandonar o passado<br />

<strong>para</strong> retornar ao presente, pois precisava comer alguma coisa. Na sala<br />

barulhenta, com as mesas abarrotadas de iguarias, os antigos cole-<br />

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gas comiam, contavam piadas e casos médicos. O gru po alegremente<br />

transformava o presente no passado, na juventude perdida no tempo,<br />

voltava aos sonhos que não mais podemos ter. Partimos no ônibus em<br />

direção ao nosso destino. Recostado, ajudado pela leve embriaguez<br />

ocasionada pelo vinho, avidamente regr<strong>esse</strong>i à faculdade…<br />

Lá estava o cadáver estendido sobre a mesa fria, tendo na sua orelha<br />

o número 33. Ele não tinha mais nome nem identidade, só um número.<br />

Agora sua residência era a sala de anatomia.<br />

Seus olhos negros embaçados, distantes, sem expressão, in crustados<br />

no seu rosto esquelético, olhavam-me com ternura e com preensão.<br />

Vendo-o todas as manhãs, recebendo ensinamentos dele, ficamos<br />

amigos, ligados intimamente. Sentíamos sua falta nos fins de semana.<br />

Sabíamos que ele estava sendo explorado, e que em troca pouco lhe<br />

era dado, talvez respeito e agradecimento internos. Iden tificados com<br />

ele, resolvemos batizá-lo carinhosamente com o nome de Gaspar. Assim<br />

começávamos a descobrir, com mais clareza, os desníveis sociais, o<br />

sofrimento de uns em benefício de outros, a gran de ajuda do indigente<br />

<strong>para</strong> nossa aprendizagem. No salão grande, cheio de janelas altas e antigas,<br />

estavam as outras mesas. Lá descansa vam corpos desconhecidos<br />

de ex-homens.<br />

Aos poucos, estava envelhecendo, vinte anos, vinte e um… Sa bia<br />

que o tempo das brincadeiras, da irresponsabilidade estava aca bando,<br />

faltava pouco <strong>para</strong> isso. A tristeza começava a dominar e inun dar nosso<br />

corpo. No olhar de todos via-se o fantasma da formatura, como agora<br />

vemos, receosos, o da velhice. Havia pressa, e ao mesmo tempo<br />

medo, de terminar o curso. A maioria arrumou uma namorada firme<br />

no quarto ou no quinto ano, ficava noivo no sexto e casava no primeiro<br />

ano da profissão. Foi a essas mulheres jovens, animadas, corajosas,<br />

belas e atraentes que a maioria dos colegas se agarrou, como crianças<br />

apavoradas e desam<strong>para</strong>das. Uma vez protegidos, eles tiveram forças<br />

<strong>para</strong> enfrentar o ainda desconhecido e perigoso mun do médico. Estes<br />

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felizardos seguiram em frente com menos temor. Os isolados, sem ninguém<br />

<strong>para</strong> os am<strong>para</strong>r, tiveram que se apoiar nas próprias e trêmulas<br />

pernas.<br />

Com a proximidade da formatura, cada um procurava ganhar conhecimentos<br />

também fora da escola: o Hospital São Vicente de Paula,<br />

velho, com seu teto alto, frio e de grandes enfermarias, a antiga Santa<br />

Casa, com suas paredes descascadas e comidas pelas mulheres grávidas,<br />

anêmicas e desnutridas que lá eram internadas, o Instituto Raul<br />

Soares, com seu laboratório de vanguarda, alguns loucos inter nados e<br />

a maioria fora dele, o Hospital Militar e finalmente as diversas cadeiras<br />

da escola que abrigavam alguns com mais sorte.<br />

Eram poucas as opções. Cada um fazia o que podia <strong>para</strong> aprender.<br />

A formatura aconteceu no dia 8 de dezembro na Secretaria de Saúde.<br />

A tarde estava fria e chuvosa, relembrando o vestibular já quase<br />

esquecido. A emoção, que era enorme, talvez maior do que a do vestibular,<br />

impediu-me de memorizar o que foi discursado. Lá estavam os<br />

ex-estudantes assentados nas desconfortáveis cadeiras colocadas no<br />

palco, agora representando, <strong>para</strong> a plateia de amigos e familiares, o<br />

drama dos médicos recém-formados. Tremi ao ouvir meu nome e receber<br />

os abraços dos homenageados. Cada um no seu canto, cada um<br />

na sua dor e solidão. Terminávamos uma jornada, o que passou, passou.<br />

Agora caminharíamos à procura de um sonho. Até onde iríamos?<br />

Ninguém podia saber. Quais fracassariam? Ninguém sabia, ninguém<br />

falava: todos tinham medo. Mas, como sempre, “todo início tem seu<br />

encanto”. Agora a vida nos pertencia, faríamos dela o que quiséssemos,<br />

não mais seríamos julgados pelos professores. Estava novamente<br />

enganado. Agora enfrentaríamos examinadores mais severos: o clien te<br />

e a nossa terrível consciência. Agora nosso erro poderia ser fatal, sem<br />

retorno, não mais teríamos a salvadora segunda época.<br />

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