Tragédia e História na Grécia Antiga - História - imagem e narrativas
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<strong>Tragédia</strong> e <strong>História</strong> <strong>na</strong> <strong>Grécia</strong> <strong>Antiga</strong><br />
Tragedy and History in Ancient Greece<br />
<strong>História</strong>, <strong>imagem</strong> e <strong>na</strong>rrativas<br />
N o 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historia<strong>imagem</strong>.com.br<br />
Rachel Ximenes Aguiar<br />
Graduanda em <strong>História</strong> UFC<br />
Resumo: no presente artigo, pretendemos uma breve análise de duas escritas que surgem <strong>na</strong> <strong>Grécia</strong> antiga: a<br />
tragédia e a <strong>História</strong>. A partir da linguagem utilizada em ambas, das temáticas semelhantes e da peça trágica de<br />
Ésquilo, os Persas, confrontada com as <strong>na</strong>rrativas históricas de Heródoto e Tucídides, sobre a batalha de<br />
Salami<strong>na</strong>, <strong>na</strong>s Guerras Médicas, e as batalhas da Guerra do Peloponeso, respectivamente; traçaremos o lugar da<br />
tragédia dentro do panorama social, político, econômico e cultural da <strong>Grécia</strong> antiga; focando o seu encontro<br />
constante com a <strong>na</strong>rrativa histórica e buscando, por meio das semelhanças e diferenças, definir como a tragédia<br />
influencia a <strong>História</strong> e até que ponto a tragédia pode ser considerada <strong>História</strong>.<br />
Palavras-chave: <strong>Tragédia</strong>, <strong>História</strong>, Ésquilo, Heródoto, Tucídides.<br />
Abstract: in the present article, we will show a short a<strong>na</strong>lysis of two writings that origi<strong>na</strong>ted in Ancient Greece:<br />
tragedy and History. By using the language utilized in both writings, the themes that look alike and the tragic<br />
play of Aeschylus, the Persians, confronted with the historic <strong>na</strong>rrative of Herodotus and Thucydides, about the<br />
Greco-Persians War and the Peloponnesian War, we will trace the place of tragedy inside the social, political,<br />
economical and cultural context, focusing it’s constant meeting with historical <strong>na</strong>rratives. By the equal and<br />
different points we will try to define up to which point tragedy influences History and until which length we can<br />
assume tragedy as history.<br />
Key-words: Tragedy, History, Aeschylus, Herodotus, Thucydides.<br />
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I – E Dionísio disse: que se faça a tragédia, dias depois o homem criava também a<br />
<strong>História</strong>.<br />
Os registros indicam que a primeira tragédia 1 provavelmente foi ence<strong>na</strong>da entre 536 e<br />
533 antes da era comum, <strong>na</strong> Ate<strong>na</strong>s gover<strong>na</strong>da pelo tirano Pisístrato. O surgimento da tragédia<br />
se vê, então, atrelado à tirania, um governo de base popular contra a aristocracia.<br />
O gênero trágico segue o desenvolvimento da cidade até 404 a.e.c, quando sua<br />
produção cessa quase em pleno auge. Isso quer dizer que a tragédia se desenvolve no quadro<br />
<strong>na</strong>scimento do pensamento clássico, ou seja, em ple<strong>na</strong> mudança política, social, econômica e<br />
religiosa que segue a transição da <strong>Grécia</strong> 2 arcaica para a clássica, mais especificamente em<br />
Ate<strong>na</strong>s: o surgimento da democracia, o inicio do pensamento laico (rompimento com a<br />
explicação mitológica e surgimento da Filosofia), o uso da retórica nos debates políticos, a<br />
institucio<strong>na</strong>lização da cidade e do cidadão, um maior intercambio com as culturas do oriente<br />
ocasio<strong>na</strong>do pelo avanço no comércio marítimo, entre outros. 3<br />
Mas esse seria seu contexto político, ligado ao surgimento da polis clássica no século<br />
V, e considerar ape<strong>na</strong>s essa explicação privaria a tragédia de todo seu caráter religioso,<br />
necessário a sua compreensão. O gênero trágico <strong>na</strong>sce, por excelência, atrelado à religião; os<br />
rituais de ence<strong>na</strong>ção deixam isso bem claro: a tragédia era ence<strong>na</strong>da <strong>na</strong>s festas a Dionísio, em<br />
um lugar específico chamado “teatro de Dionísio” com toda uma ritualística própria da<br />
tragédia e ligada a esse Deus, inclusive a metamorfose proporcio<strong>na</strong>da pelas mascaras 4 ,<br />
Dionísio é o Deus da metamorfose. A tragédia, enquanto um gênero literário específico de<br />
uma época, lugar e sociedade, nunca deixará esses dois caracteres de lado, religião e política<br />
andarão sempre de mãos dadas, da mesma forma que o eram no dia a dia <strong>na</strong> <strong>Grécia</strong> antiga.<br />
1 A tragédia discutida nesse trabalho é a tragédia grega antiga, gênero literário com suas especificidades e<br />
conotações diferentes do que é considerada hoje a tragédia, seguindo a definição de tragédia grega dada por<br />
Jacqueline de Romilly e Albin Lesky: uma composição estrutural da poesia (coro, perso<strong>na</strong>gem, métrica) e outra<br />
social (contexto político, contexto social, especificidade e função cultural). O gênero então, se vê atrelado ao<br />
contexto específico do meio onde foi criado, suscetível aos equilíbrios e desequilíbrios desse período.<br />
2 Lembrando que a tragédia permeia todo o povo grego, mas é produzida em Ate<strong>na</strong>s, para o povo ateniense e em<br />
função de uma política ateniense. Cabe então deixar claro que os períodos políticos e culturais apontados e<br />
discutidos nesse trabalho tomam como base a cidade de Ate<strong>na</strong>s para abranger a <strong>Grécia</strong> antiga, deixando um<br />
espaço para possibilidades de momentos históricos desiguais em outras cidades-estado.<br />
3 A institucio<strong>na</strong>lização do casamento e a maior preocupação com a origem cívica do cidadão são outras<br />
características que marcam a passagem do arcaísmo para o classicismo <strong>na</strong> <strong>Grécia</strong>. Para mais informações ver<br />
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego; Tradução: Ísis Borges B. da Fonseca – 13ª Ed. – Rio<br />
de Janeiro: Difel, 2003. E Mito e sociedade <strong>na</strong> <strong>Grécia</strong> <strong>Antiga</strong>; tradução: Myriam Campello – 4ª Ed – Rio de<br />
Janeiro: José Olímpio, 2010.<br />
4 Metamorfose no sentido de transformação, representação. Na tragédia, comumente se coloca o padrão de<br />
mimética como pelo menos dois: primeiro a mimética do mythos, ou seja, a tragédia representa o mythos<br />
(traduzindo mímesis por representação, não por imitação) e em segundo a mimética do próprio ator, ao<br />
representar um perso<strong>na</strong>gem completamente fora dos seus padrões comportamentais de cidadão grego no período<br />
clássico.<br />
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A tragédia também acompanha o surgimento da <strong>História</strong>, temos Heródoto, em 445<br />
a.e.c, com a obra “As <strong>História</strong>s”, que i<strong>na</strong>ugura todo um modo novo de <strong>na</strong>rrar acontecimentos<br />
que foram presenciados. Ele se diferencia não ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong> escolha do tema, saindo de uma<br />
história de explicações completamente mitológicas e divi<strong>na</strong>s retratadas pelas epopéias, apesar<br />
de Heródoto não se desvincular completamente dessas explicações, para o foco <strong>na</strong>s ações<br />
huma<strong>na</strong>s e a busca da comprovação factual do acontecido. Esse esquema alcança sua<br />
desvinculação completa com Tucídides: a lógica divi<strong>na</strong> que permeia tanto a tragédia quanto a<br />
<strong>História</strong> de Heródoto perde sua razão de ser.<br />
Não cabe aqui discutir qual historiador foi o iniciador do que se tor<strong>na</strong>ria a <strong>História</strong> que<br />
conhecemos, mas avaliar o surgimento da <strong>História</strong>, vinculada e desvinculada da religião, com<br />
a tragédia. O estudo do gênero trágico nos proporcio<strong>na</strong> a percepção de diversos aspectos que<br />
se encontram presente até hoje no ato de criação do saber histórico, o que nos leva a<br />
questio<strong>na</strong>r até que ponto a <strong>História</strong> clássica realmente inovou, até que limite ela não carrega<br />
características próprias da tragédia, até que ponto a tragédia poderia ser vista como <strong>História</strong>.<br />
Essa proximidade temporal nos induz a a<strong>na</strong>lisar o período de formação dessas duas<br />
modalidades de pensamento (século IV-V) e suas características: a passagem da oralidade<br />
para a escrita, a escrita em prosa, a mudança do pensamento mitológico para o pensamento<br />
racio<strong>na</strong>l, o lugar da tragédia e da <strong>História</strong> no meio dessas transformações, ou seja, os dois<br />
gêneros de escrita pensados entre o racio<strong>na</strong>l e o mitológico.<br />
Um tema em comum retratado nos três tipos de escritas, a tragédia, a <strong>História</strong> de<br />
Heródoto e a <strong>História</strong> de Tucídidies, também nos permite uma comparação mais concreta<br />
entre os gêneros. Os três escritores retratam essa política e forma de autoafirmação que se<br />
revela ser a guerra <strong>na</strong> <strong>Grécia</strong> <strong>Antiga</strong>: os dois primeiros tratam das Guerras Médicas,<br />
confrontos com os persas ao longo do século V, em especial a batalha de Salami<strong>na</strong>, onde os<br />
gregos derrotam os persas; o terceiro retrata a Guerra do Peloponeso, que dividiu a <strong>Grécia</strong><br />
<strong>Antiga</strong> em dois pólos: Esparta e Ate<strong>na</strong>s.<br />
A localização da tragédia e da <strong>História</strong> dentro do surgimento do pensamento lógico e<br />
racio<strong>na</strong>l, se opondo ao mitológico e à análise de uma tragédia que trata de um fato histórico,<br />
em confronto com outros tipos de <strong>na</strong>rrativas sobre o mesmo assunto, nos permitirá uma<br />
compreensão mais profunda dos caminhos da <strong>História</strong>, das maneiras que ela converge com a<br />
tragédia e dos aspectos pelos quais elas se diferenciam. O berço do conhecimento histórico foi<br />
a mesma <strong>Grécia</strong> que originou a tragédia, compreender melhor essa sociedade que se ramifica<br />
em praticamente todo o pensamento ocidental é crucial para compreender a própria <strong>História</strong> e<br />
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sua trajetória ao longo do seu desenvolvimento, é compreender também a sociedade atual e<br />
sua formação. As tragédias nos mostram um caminho possível para esse fim, um caminho que<br />
pode e deve ser tomado.<br />
II – A linguagem da <strong>Tragédia</strong> entre a oralidade e a escrita.<br />
No período que vai do século VIII ao século IV a.e.c ocorre o surgimento da pólis<br />
grega, ou seja, a formação da pólis arcaica e a institucio<strong>na</strong>lização da pólis clássica. Um<br />
detalhe, porém, marca o século VIII, e não por coincidência é o mesmo século em que os<br />
gregos se organizam politicamente e socialmente ao redor das cidades, é o ressurgimento da<br />
escrita entre os povos gregos, que, desde os reis micênicos, havia desaparecido e cujos<br />
resquícios nos chegam hoje em documentos de contabilidade e administração, são as<br />
chamadas linear A e linear B.<br />
É no século VIII então que temos a fixação das epopéias de Homero e da teogonia e<br />
textos de caráter educativo de Hesíodo. 5 Datam daí os textos mais antigos da cultura grega<br />
arcaica, que relatam tempos provavelmente micênicos, dentro do contexto e da realidade da<br />
pólis do século VIII. É importante notar que a escrita se desenvolve em conjunto com o mito,<br />
são nesses textos que se encontram a fundamentação, por assim dizer, da religião do povo<br />
helênico. Não há uma separação ou antítese notável entre a escrita e a mitologia, assim como<br />
ainda não se delineou uma oposição tangível e intransponível entre logos e mythos, entre<br />
escrita e oralidade. Já nos diria Ver<strong>na</strong>nt:<br />
Em grego, mythos desig<strong>na</strong> uma palavra formulada, quer se trate de uma <strong>na</strong>rrativa, de um<br />
diálogo ou da enunciação de um projeto. Mythos é então da ordem do legein, como o indicam<br />
os compostos mythologein, mythologia, e não contrasta inicialmente com os logoi, termo cujos<br />
valores semânticos são vizinhos e que se relacio<strong>na</strong>m às diversas formas do que é dito.<br />
(VERNANT, 1988, p. 172)<br />
A própria noção de mythos, como uma <strong>na</strong>rrativa, não se diferenciava da noção de<br />
logos; a escrita não formava uma oposição à oralidade. Vale então prestar atenção no papel<br />
que o texto escrito assume, aos poucos, dentro do contexto político da pólis, e o quão<br />
essencial acaba sendo essa caracterização para diferenciar os dois patamares de pensamento.<br />
5 As obras homéricas, a Ilíada e a Odisséia, e as obras de Hesíodo, Teogonia e Os trabalhos e os dias, são a base<br />
para estudos mitológicos, explicam a origem dos deuses, os homens e a religião e cultura grega do período que<br />
precede (micênico) e que fixa sua escrita (pólis arcaica).<br />
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No período micênico (século XVI à XII a.e.c), a escrita era uma posse <strong>na</strong> aristocracia,<br />
usada para textos de contabilidade e administração do reino. Esse caráter elitista muda<br />
completamente com o surgimento da pólis, a escrita é de poder público e para o poder<br />
público. Essa função vai ser cada vez mais exacerbada com o caráter de publicidade e<br />
igualdade política que vai <strong>na</strong>scendo e sendo exigido entre os cidadãos. Liga-se diretamente à<br />
virada do período arcaico para o clássico em Ate<strong>na</strong>s: é o <strong>na</strong>scimento do soldado-cidadão (o<br />
hoplita), da areté 6 coletiva, da política do homoi e do isoi (iguais perante as leis, mesmo<br />
direito político de representação). Sendo esses conceitos a base da mudança de pensamento<br />
que gera a pólis dos séculos V-IV <strong>na</strong> <strong>Grécia</strong>, mais especificamente em Ate<strong>na</strong>s.<br />
A escrita é que permite maior parte desse caráter público do qual a cidade passa a ser<br />
símbolo: a divulgação das leis, a divulgação da sabedoria, a divulgação da política em si.<br />
Tor<strong>na</strong>-se bastante compreensível que, aos poucos, a noção de escrita vá se vinculando a noção<br />
de igualdade, de verdade, de durabilidade, de público.<br />
Todas essas atribuições que a escrita ganha ocorre em função e também em<br />
consequência de dois fatores: a escrita em prosa e seu uso pelos sábios e muitas vezes dos<br />
discípulos desses para a fixação do conhecimento; e a associação da linguagem oral com o<br />
mythos e a atribuição de fabuloso, fantástico, inverossímil e fugaz a esses.<br />
O surgimento da prosa marca não somente o surgimento de uma nova forma de<br />
escrever marca o surgimento de uma nova forma de pensar. Agora será por meio da palavra<br />
escrita que se igualam os homens e seus pensamentos, que a expressão do debate pode ocorrer<br />
em forma igual, porque a fala é capaz de enga<strong>na</strong>r, no discurso oral existe um caráter que é<br />
próprio de quem discursa, à semelhança da areté arcaica, uma parcela de destaque pessoal que<br />
destaca a pessoa do conjunto. A atribuição desse caráter à linguagem oral também é<br />
assimilado quando se trata da fala femini<strong>na</strong>. Diversos textos tratando da mulher afirmam que<br />
a ela só é dado o poder da fala para dissimular, seduzir e encantar o homem, para que ele<br />
necessite dela além de uma função reprodutiva. O prazer que a sonoridade da fala proporcio<strong>na</strong><br />
ao grego também contribui nesse caso para aumentar a colocação da oralidade dentro do<br />
quadro no qual ela já foi situado.<br />
De um lado colocaram o prazer inerente à palavra falada: incluindo <strong>na</strong> mensagem oral, esse<br />
prazer <strong>na</strong>sce e morre com o discurso que suscitou; de outro, do lado da escrita, colocaram o útil<br />
6 Areté seria a virtude imanente ao homem, ela passa de uma virtude própria de cada pessoa, para uma virtude<br />
coletiva do meson, não será mais ponto de diferenciar ou destacar uma pessoa dentro do grupo e si de igualar as<br />
pessoas dentro de um mesmo grupo.<br />
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e o visando por um texto que se pode conservar aos olhos e que retém em si um ensi<strong>na</strong>mento<br />
cujo valor é durável.” (VERNANT, 1988, p. 174).<br />
A escrita racio<strong>na</strong>l, feita para o conhecimento, não tem que ser, e não deve ser agradável<br />
ao ouvido, ela deve puramente ser a verdade, é a negação do caráter estilístico das poesias:<br />
Em sua organização inter<strong>na</strong>, o discurso escrito se conforma a uma lógica que implica, a partir<br />
dali, uma forma de debate onde cada um luta com armas iguais, pela discussão, pela<br />
argumentação contraditória. Não se trata mais de vencer o adversário enfeitiçando-o ou<br />
fasci<strong>na</strong>ndo-o com a potência superior do verbo de que se dispõe; trata-se de convencê-lo da<br />
verdade levando-se pouco a pouco o próprio discurso interno, segundo sua própria lógica e de<br />
acordo com seus próprios critérios, a coincidir com a ordem das razões expostas no texto que<br />
lhe é submetido. Desse ponto de vista, tudo que dava à palavra falada o seu poder de impacto,<br />
sua eficácia sobre outrem, se acha dali em diante rebaixado a classe de mythos, do fabuloso, do<br />
maravilhoso, como se o discurso só pudesse ganhar <strong>na</strong> ordem do verdadeiro e do inteligível<br />
perdendo ao mesmo tempo <strong>na</strong> ordem do agradável, do emocio<strong>na</strong>nte e do dramático.<br />
(VERNANT, 1988, p. 175)<br />
É por meio do texto literário escrito que a separação entre a oralidade e passio<strong>na</strong>lidade<br />
do mythos, do fabuloso, da poesia e a racio<strong>na</strong>lidade da escrita, do texto filosófico se efetiva e<br />
concretiza a contradição entre forma e conteúdo dos textos:<br />
Contrapõe-se pela forma através da separação entre a demonstração argumentada e a textura<br />
<strong>na</strong>rrativa da <strong>na</strong>rrativa mítica; contrapõe-se pelo fundo através da distância entre as entidades<br />
abstratas do filósofo e as potências divi<strong>na</strong>s, cujas aventuras dramáticas são contadas pelo mito.<br />
(VERNANT, 1988, p. 174)<br />
Dentro dessa negação do fabuloso encontramos a <strong>História</strong>, opondo-se ao mythos,<br />
colocada então no mesmo campo do logoi 7 , no mesmo campo então do texto escrito. Onde a<br />
tragédia se insere então? Meio termo entre uma linguagem escrita e falada, a tragédia também<br />
pode ser colocada entre o logos e o mythos. O gênero trágico retoma temas religiosos, esse<br />
caráter religioso será sempre presente. O mito é a fonte de onde surgem os temas trágicos, é a<br />
outra dimensão mimética da tragédia, é o objeto modelo para a representação do objeto<br />
produto, da ação representada.<br />
É importante lembrar que a forma de transmissão da mitologia é oral, mas é uma<br />
oralidade diferente, com uma funcio<strong>na</strong>lidade e especificidade diferente daquelas atribuídas à<br />
7 Lembrando que essa separação ainda é muito tênue em Heródoto, mas se dá de forma efetiva em Tucídides.<br />
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tragédia. Aristóteles define uma noção de linguagem poética onde se encaixa ao gênero<br />
trágico; é uma linguagem que tem ritmo, melodia e canto (ARISTÓTELES. Poética - 49b29).<br />
Essa diferença mais notável se concretiza <strong>na</strong> ence<strong>na</strong>ção da tragédia, onde a oralidade utilizada<br />
se dispõe para os fins que são específicos da poesia trágica, dentro desses fins se encontra o<br />
próprio prazer da sonoridade da fala proporcio<strong>na</strong>da pela apresentação. À ence<strong>na</strong>ção da<br />
tragédia se atribui assim parte da especificidade e fi<strong>na</strong>lidade da poesia clássica trágica e se<br />
diferencia nesse aspecto da epopéia, pois se o meio (linguagem poética) e o objeto (mito) de<br />
ambas as escritas se aproximam, no modo elas divergem, pois a tragédia dispõe de um<br />
dispositivo de transmissão que é o ritual teatral. Sem contar que <strong>na</strong> epopéia o herói é<br />
apresentado, enquanto <strong>na</strong> tragédia ele geralmente o faz diretamente, proporcio<strong>na</strong>ndo uma<br />
aproximação maior com o público. 8<br />
Mais um aspecto que difere o gênero trágico de um mito é outro tema que trata: a<br />
cidade. O caráter político que trata da cidade e do cidadão <strong>na</strong>s tragédias é primário ao longo<br />
dos quase 80 anos (472 à 404) que temos, como disse Jacqueline de Romilly, uma safra de<br />
obras primas da tragédia, com Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. O cidadão, seus conflitos, às<br />
vezes internos, porém <strong>na</strong> sua maioria em relação à sua posição de cidadão, sua ética, seu<br />
padrão comportamental dentro da cidade, são os objetivos que a poesia trágica alcança e que<br />
não são alcançados no mythos, pela abordagem ou pelo tema mitológico puro. Sem contar o<br />
caráter atual para a época que a tragédia discute: temos a situação do estrangeiro e da mulher<br />
em Medeia de Eurípedes, os horrores das guerras gregas descritas por Ésquilo, e a ética<br />
discutida por Sófocles.<br />
A katharsis 9 proporcio<strong>na</strong>da pela tragédia é a reafirmação de valores cívicos e políticos<br />
do homem ateniense clássico, antes de tudo cidadão, pertencente a um oikos, uma família,<br />
uma pólis. É o ápice da conscientização da importância da cidade perante todos os outros<br />
aspectos da sua realidade social é o destino da cidade interligada ao destino do povo que a<br />
habita. A pólis sempre vence <strong>na</strong> tragédia, é pela sua salvação que se luta, é ela que se tor<strong>na</strong><br />
impura pela harmartia 10 cometida pelo seu gover<strong>na</strong>nte, em função da hýbris 11 do herói. A<br />
8 MALHADAS, 2003, p. 25.<br />
9 Katharsis seria a epifania de reconhecimento cívico. Momento da peça que provoca uma reflexão/realização<br />
sobre os deveres do homem grego antigo quanto cidadão e soldado.<br />
10 Hamartia é a impureza, a marca da impureza de um ato impuro. Essa marca persiste em toda uma origem, a<br />
família e a cidade, como centros do oikos grego, da origem, são as que perpetuam a hamartia. A purificação da<br />
hamartia geralmente ocorre por um desígnio divino, precede a busca de um oráculo e a efetuação de um rito.<br />
Tanto a consequência da hamartia, quanto o rito para sua purificação perpassam o nível de quem o efetivou, ou<br />
seja, a sua posição dentro da cidade, e o ato cometido, quanto mais a cidade depende dessa pessoa e quanto mais<br />
hediondo for o ato, pior será a hamartia e mais complexo será o rito de purificação.<br />
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cidade é o único “perso<strong>na</strong>gem” que coloca o herói ou heroí<strong>na</strong> de lado dentro do enredo da<br />
poesia trágica.<br />
O herói <strong>na</strong> tragédia, assim como o caráter oral em ambas as linguagens, a mítica e a<br />
trágica, representa o elo de aproximação e distanciamento da mitologia. Aproximação porque,<br />
em sua origem, ele é um herói mitológico, um herói épico, citado muitas vezes <strong>na</strong>s obras de<br />
Homero, porém dentro do poema trágico ele se reverte em um padrão comportamental mais<br />
semelhante do homem grego do século V a.e.c, às vezes, um padrão comportamental do qual<br />
se deve fugir. Os seus dilemas são próprios do tempo no qual a tragédia se insere: suas ações<br />
para o bem estar da pólis e do povo que a constitui, o seu dever de protetor.<br />
Parece, então, que, <strong>na</strong> tragédia, a cidade e o povo se encontram quase como um só, e<br />
essa representatividade pode ser encontrada <strong>na</strong> presença do coro, que geralmente é<br />
representada por idosos ou mulheres, ou seja, um patamar social que se tor<strong>na</strong> dependente da<br />
ação do herói, pois se encontra impotente para agir. A figura do herói trágico, como a tragédia<br />
em si, é antes de tudo uma ode a democracia, mesmo sendo um rei, pede ajuda do povo e com<br />
ele se preocupa, se preocupa pela e com a cidade, pois como seu rei, seus destinos estão<br />
entrelaçados.<br />
Édipo, quando fura os olhos e se cega, o faz para purificar a cidade de atos que ele<br />
cometeu, mesmo sem ter noção de que os cometia. Creonte, rei de Tebas após a morte dos<br />
filhos de Édipo, se recusa prestar ritos funerários a um dos sobrinhos pelo bem da cidade, e<br />
novamente pelo bem da cidade resolve enterrá-lo fora das dependências de Tebas. A cidade e<br />
sua política acabam se embutindo dentro da peça, os esforços são feitos em prol da<br />
purificação da cidade. Esse é o ponto de crucial que separa o herói trágico do herói épico,<br />
mitológico. Na Ilíada, quando os soldados se juntam para defender tróia, não é pela cidade<br />
que o fazem e sim por fidelidade a Heitor, quando Agamenon reúne o exército para ir resgatar<br />
Hele<strong>na</strong>, ele o consegue graças à fidelidade de outros reis a ele, são relações arcaicas, que não<br />
estão presentes <strong>na</strong>s tragédias. Se aparece alguma aliança entre cidades é sempre com o apoio<br />
da população, muitas vezes para a própria população.<br />
Isso porque o autor trágico, quando escreve a sua poesia fala diretamente ao público<br />
presente, no momento histórico em que a peça é ence<strong>na</strong>da. É a ele que o autor pretende atingir<br />
e emocio<strong>na</strong>r, provocar a katharsis. É a esse cidadão clássico que a emoção de sacrifício pela<br />
pátria, sofrimento em função de uma hamartia cometida, purificação, consequencias e<br />
11 Hýbris é a desmedida do herói, é uma característica que permite alcançar o divino e o animalesco.<br />
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motivações de uma guerra ou de uma paz deve atingir e provocar sua máxima afirmação e<br />
concretização.<br />
O caráter de publicidade faz com que a tragédia adquira outro de seus caracteres<br />
políticos: o cidadão ao qual ela se apresenta é participante da política da cidade, que liga a<br />
tragédia ao logos, à retórica, ao debate, ao agir político, pensado e racio<strong>na</strong>lizado pelo soldadocidadão,<br />
pelo homem político, não mais impreg<strong>na</strong>do de uma passio<strong>na</strong>lidade própria do mito e<br />
da religião. São <strong>na</strong> caracterização do herói trágico e <strong>na</strong> função política da tragédia que o<br />
gênero trágico se liga ao campo do logos 12 , a cidade, ou antes, a o modo como ela é retratada,<br />
faz esse elo:<br />
A tragédia, especificamente, surge no fim do século VI, quando a linguagem do mythos deixa<br />
de apreender a realidade política da cidade. O universo do drama trágico se coloca entre os dois<br />
mundos – o do mythos e do logos – e essa dupla inscrição, o faz operar o mythos – concebido<br />
desde aí como pertencente a um tempo decorrido - a partir da orde<strong>na</strong>ção dada pelo logos -<br />
entendido aqui como palavra políticoargumentativa – de acordo com os novos valores<br />
desenvolvidos pela pólis. (MACHADO, 2002, p. 52)<br />
A própria linguagem da tragédia mudou ao longo dos 80 anos que temos de registro<br />
histórico. Houve a mudança da estrutura de apresentação, como diminuição da participação<br />
do coro e o aumento do número de perso<strong>na</strong>gens, diferentes enfoques dentro do mesmo pano<br />
de fundo mítico. Há concentração da peça cada vez mais em torno da ação dos perso<strong>na</strong>gens,<br />
por isso o aumento de número e de complexidade desses e há, além da diminuição das partes<br />
do coro, distanciamento entre o destino desse e das ações do herói. As mudanças que ocorrem<br />
<strong>na</strong> tragédia são as mudanças que ocorrem no pensamento grego, <strong>na</strong> política e <strong>na</strong> pólis daquele<br />
tempo, não é a toa que um autor pode mudar o desenrolar de uma tragédia e modificá-la para<br />
passar o sentimento e os questio<strong>na</strong>mentos presentes <strong>na</strong> cidade e <strong>na</strong>s vidas dos atenienses da<br />
época. Poderíamos dizer então que a tragédia se mostra como a plasmação do mito a uma<br />
nova realidade política e sócio-cultural da <strong>Grécia</strong> antiga, de Ate<strong>na</strong>s, mais especificamente.<br />
As Eumênides de Ésquilo, por exemplo, apresenta a importância do Aerópago no<br />
momento em que este tribu<strong>na</strong>l acabava de perder seus poderes, segundo as reformas políticas<br />
12 Não se deve levar ao extremo de se afirmar que a política se desvinculou da religião como fez a filosofia. Os<br />
ritos dentro do sistema político são a demonstração mais solida de como a religião permeava a vida <strong>na</strong> <strong>Grécia</strong><br />
antiga, o que não se contrapõe completamente o uso da racio<strong>na</strong>lidade dentro da política. E até os próprios<br />
filósofos recaiam em uma linguagem mitológica para algumas explicações.<br />
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que tinham ocorrido. Em Antígo<strong>na</strong>, percebe-se diversos diálogos que, se não estão permeados<br />
por uma retórica latente são pura retórica.<br />
A tragédia é uma realidade da pólis, é uma realidade política da cidade.<br />
III – <strong>Tragédia</strong> e <strong>História</strong> explicam Guerras: Guerras Médicas e Guerra do<br />
Peloponeso sob três <strong>na</strong>rrativas diferentes.<br />
É <strong>na</strong> <strong>Grécia</strong> antiga que a <strong>História</strong> dá seus primeiros passos. Entrelaçada no seu<br />
surgimento com uma gama de gêneros de escrita e em uma época de mudança de pensamento<br />
<strong>na</strong> <strong>Grécia</strong>, uma coisa que permeia a cultura grega da época desde os tempos de Homero<br />
permanece crucial para que entendamos porque essa ciência se desenvolve em solo heleno: a<br />
importância e a medida de valor que eram atribuídas ao homem. Se no mito de prometeu<br />
temos a colocação huma<strong>na</strong> dentro da ordem cosmológica e <strong>na</strong>tural do universo mitológico<br />
grego, <strong>na</strong>s tragédias vemos essa ordem ser reafirmada, enfrentada e quase negada. A <strong>História</strong><br />
só poderia ter <strong>na</strong>scido em uma sociedade onde o homem se desse um valor tal que pudesse<br />
questio<strong>na</strong>r toda uma ordem vigente e instituir <strong>na</strong>s suas ações a importância de decisão. A<br />
<strong>História</strong> então se vê em seu inicio dentro do turbilhão de pensamento secularizado que toma<br />
conta da <strong>Grécia</strong> daquela época aos poucos, e do qual a tragédia parece contar a história.<br />
A confirmação dos fatos ocorridos por meio da citação e busca das fontes também<br />
ocupam a escrita da <strong>História</strong> até hoje, funcio<strong>na</strong>ndo como uma comprovação para a<br />
veracidade, retira do texto o caráter anedótico, acrescentando um caráter veraz; presente<br />
também nos textos filosóficos que surgiam <strong>na</strong> <strong>Grécia</strong> <strong>na</strong>quele mesmo período. Esse mérito<br />
pertence a Heródoto, que inovou esse aspecto da busca de fontes, inclusive fontes orais, desse<br />
modo, a história vai se desvinculando do mito, mesmo que ainda muito ligada à epopéia, esse<br />
é um dos aspectos que é desig<strong>na</strong>do ao autor. Ao <strong>na</strong>rrar as Guerras Médicas, a preocupação de<br />
trazer os outros, ou seja, os bárbaros, a to<strong>na</strong> também é um aspecto da <strong>na</strong>rrativa que se atribui a<br />
Heródoto, o próprio autor afirma logo no início de suas <strong>História</strong>s:<br />
Os resultados das investigações de Heródoto de Halicar<strong>na</strong>ssos são apresentados aqui, para eu a<br />
memória dos acontecimentos não se apague entre os homens com o passar do tempo, e para<br />
que feitos maravilhosos e admiráveis dos helenos e dos bárbaros não deixem de ser lembrados,<br />
inclusive suas razões pelas quais eles se guerrearam. (HERÓDOTO, <strong>História</strong>s I, 1)<br />
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A iniciativa de <strong>na</strong>rrar feitos maravilhosos dos homens grego, não é uma novidade,<br />
temos Homero como o iniciados da <strong>na</strong>rrativa que <strong>na</strong>rra uma grande guerra. Frínico tem o<br />
mérito de colocar temas históricos <strong>na</strong>s tragédias e o próprio Ésquilo antecede Heródoto<br />
quando trata do mesmo tema em Os Persas. A <strong>História</strong> bebe então de inovações e<br />
transformações que a precedem, em especial da própria tragédia, sua contemporânea. Se<br />
Ésquilo trata dos persas e da batalha de Salami<strong>na</strong> em sua tragédia, porque não tratar desse<br />
tema em “As <strong>História</strong>s”?<br />
A proximidade temporal das obras demonstra esse vínculo da <strong>História</strong> com a tragédia:<br />
èsquilo escreve sua obra em 472 a.e.c, Heródoto, em 445 a.e.c, escreve a sua e Tucidides<br />
desenvolve sua obra <strong>História</strong> da Guerra do Peloponeso entre 404 e 399 a.e.c, <strong>na</strong>rrando<br />
batalhas que ele presenciou durante a guerra (431 à 411 a.e.c). Ora, não foi nesse mesmo<br />
período que as obras de Sófocles e Eurípedes estavam sendo ence<strong>na</strong>das em Ate<strong>na</strong>s? É<br />
impossível pensar que uma arte política e popular que foi a tragédia não fosse conhecida pelos<br />
historiadores. É improvável que o gênero trágico não tenha influenciado em certo nível a<br />
história quando a escrita histórica <strong>na</strong>sce dentro do panorama de desenvolvimento da tragédia,<br />
como uma releitura do mito, como uma realidade política da pólis, como uma expressão da<br />
cultura helênica da época.<br />
Heródoto, segundo Jacqueline de Romilly, expõe as estratégias gregas para vencer a<br />
batalha, as explica, e coloca os detalhes em uma sequência mais ou menos inteligíveis:<br />
Heródoto conhece a tática e a estratégia. Com ele chagamos ao mundo moderno das cidades e<br />
da democracia, onde s exércitos servem como instrumentos à inteligência dos estrategos. Ele se<br />
interessa pela ciência que os gregos adquiriram em matéria de combate. Chega a insistir, várias<br />
vezes, a superioridade que essa ciência lhes confere em relação aos bárbaros. (ROMMILY,<br />
1998, p.75)<br />
Porém, Heródoto faz uma <strong>na</strong>rrativa com espaço para a anedota, própria de uma<br />
epopéia, <strong>na</strong>rrando feitos que trazem perso<strong>na</strong>gens quase como heróis épicos, com um destaque,<br />
a <strong>na</strong>rrativa de combates singulares, o caráter mais específico de uma perso<strong>na</strong>lidade destacada,<br />
sem um caráter universal do homem e algumas explicações maravilhosas:<br />
A Cítia era outrora um país deserto. O primeiro homem que ali <strong>na</strong>sceu chamava-se Targitaus,<br />
que os Cítias pretendem ser filhos de Júpiter e de uma filha de Boristénis, o que não me parece<br />
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crível. Targitaus, dizem eles, teve três filhos: Lpoxais, Aproxais e Colaxais, o mais jovem. No<br />
seu rei<strong>na</strong>do, caiu do céu, <strong>na</strong> Cítia, uma charrua, uma canga, uma machado e um pires de ouro.<br />
O primogênito de Targitaus foi o primeiro a vê-los e, deles se aproximou com desejo de<br />
apanhá-los; mas o ouro se inflamou. Tendo Lipoxais se retirado veio o segundo irmão, e o ouro<br />
tornou a inflamar-se. Compareceu fi<strong>na</strong>lmete o irmão mais novo e levou-os para casa. Diante<br />
desse fato, os dois irmãos mais velhos resig<strong>na</strong>ram-se a seus direitos ao trono em favor de<br />
Colaxais. (HERÓDOTO IV, 5)<br />
Porque então, tendo conhecimento da tática e capacidade para relatá-la e organizá-la de<br />
maneira lógica, não o faz completamente? Porque sua explicação é sumária quando se trata<br />
das estratégias? Para Romilly isso ocorre porque o modelo o qual Heródoto se baseia é o<br />
modelo da epopéia, a tática, o estratagema não são a verdadeira substância do relato. O autor,<br />
porém ao se utilizar dessa base literária para a sua <strong>na</strong>rrativa a modifica: introduz noções dos<br />
combates em massa, indicações já precisas de estratégia e idéias de uma inteligência que<br />
comanda os fatos, quebra então com os desígnios puramente divinos do agir humano, o<br />
homem pode agora se apoiar também <strong>na</strong> inteligência<br />
A iniciativa de tratar do “outro” <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa aparece como uma inovação atribuída a<br />
Heródoto, porém Os Persas de Ésquilo coloca a questão do outro em pauta <strong>na</strong> sua poesia<br />
aproximadamente 30 anos antes do autor de “As <strong>História</strong>s”. É importante destacar que ambos<br />
os autores presenciaram a vitoria grega sobre a esquadra persa e o efeito dessa vitória para o<br />
povo grego, da afirmação da superioridade dos deuses, das crenças e do estilo de vida grego.<br />
Lesky nos lembra, em seu livro “A tragédia grega”, que aquilo que se colocava em jogo, no<br />
caso de uma submissão ao Império Persa, não era uma tirania cruel ou a destruição<br />
econômica, pois não era comum que isso ocorresse nos domínios persas. O que se colocava<br />
em jogo era a liberdade, “... daquela liberdade que foi a única coisa que assegurou a vida<br />
espiritual dos gregos <strong>na</strong> década seguinte.” (LESKY, 2010, p. 96). Era a identidade do povo<br />
grego que se colocava em cheque nessa guerra, o que era bom, belo e justo, ou seja, o que<br />
caracterizava o povo grego e lhes dava uma identidade. Parece propício lembrar a Guerra de<br />
Tróia, cujo significado pode ter sido semelhante. Isso explica a escolha de dois autores diante<br />
do mesmo objeto e nos permite ver uma influência do trágico <strong>na</strong> <strong>História</strong> de Heródoto. Ele<br />
mesmo deve ter assistido a tragédia de Ésquilo, se emocio<strong>na</strong>do com a história que também<br />
viveu. As duas escritas se debruçam sobre o mesmo tema, assumindo, porém compromissos<br />
sociais diferentes, e isso diferencia mais que tudo os relatos de Heródoto dos cantos de<br />
Ésquilo.<br />
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Os Persas tem seu cenário como o palácio dos reis persas em Susa, onde a rainha, mãe<br />
de Xerxes, espera por notícias da guerra junto aos anciões da cidade, lamentando o destino do<br />
Império persa depender da batalha que o rei engendrou contra os gregos, que levou toda a<br />
juventude da Pérsia e aliados do Império. Toda a trama se desenrola dentro desse espaço, <strong>na</strong><br />
aflição que se mostra justificada com a chegada do mensageiro com notícias da derrota e se<br />
revela confirmada sob os maiores temores do coro: uma punição dos deuses, que a aparição<br />
de Dário, pai de Xerxes, com a revelação da hamartia do filho, concretiza e tor<strong>na</strong> certa. O<br />
imperador persa, como todo Herói trágico, alcança um pouco o divino e o animalesco: ao criar<br />
uma ponte entre a Ásia e a Europa, Xerxes desafia Posídion, deus dos mares, ele toca o<br />
divino, a consequência, porém é o cumprimento do destino: a queda do Império persa, a morte<br />
de toda a juventude que deveria proteger os tesouros da cidade, morre o futuro da cidade<br />
persa. As palavras de Dário são taxativas quando citam o cumprimento do destino divino:<br />
D. Phéu! Veio veloz o ato dos oráculos, a meu filho<br />
Zeus incumbiu cumprir ditas divi<strong>na</strong>s; eu, porém,<br />
cria que os Deuses as cobrariam em longo tempo,<br />
mas pó quando por si se apressa, Deus ainda ajuda.<br />
Agora a fonte de males aparece a todos os nossos.<br />
Quem esperou prender o fluxo do sacro Heslponto,<br />
como escravo em cadeias, fluente Bósforo de Deus,<br />
e transmutou em passagem, e com peias compactas,<br />
compôs e conseguiu vasta via para vasto exército.<br />
Mortal supôs não com prudência que superaria<br />
Posídion e todos os Deuses? (ÉSQUILO, Os Persas, V 739 – 750)<br />
E quanto aos castigos que virão em virtude do mesmo destino:<br />
D: [...] Por seu mal feito, sofrem não menores<br />
males, e sofrerão; não se tocou ainda<br />
o fundo dos males, mas ainda evolui<br />
tão grande será a libação de sangue<br />
no chão da Palatéia, sob a dórica lança. (ÉSQUILO, Os Persas, V 814 – 818)<br />
Os bárbaros, ou seja, o outro, sempre aparecem com um olhar etnocêntrico, chamando<br />
a Deuses do panteão grego, como se eles fossem os deuses adorados e a autodenomi<strong>na</strong>ção dos<br />
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persas é a mesma denomi<strong>na</strong>ção que os gregos os atribuem: bárbaros. Isso ocorre até de uma<br />
maneira lógica, já que a peça é para exaltar o povo grego, não os persas, mesmo sendo esse<br />
povo os perso<strong>na</strong>gens apresentados <strong>na</strong> tragédia. Inclusive, o uso da palavra pólis para se referir<br />
a pérsia evoca uma adequação da pérsia a parâmetros gregos, ou talvez fosse a única forma<br />
que o autor identificasse um sentimento patriótico que levasse a uma guerra.<br />
Vale lembrar que a poesia foi escrita pouco tempo depois do fim da batalha de<br />
Salami<strong>na</strong>, as consequências da guerra estavam muito vivas nos cidadãos. 13<br />
Em “Os persas” a espera angustiante da Rainha e do coro por notícias da guerra contra<br />
os gregos centra todos no resultado do embate, porque ele importa para a trama da poesia,<br />
dessa importância surge o relato da estratégia de combate; se diferenciando de outra tragédia<br />
porque o combate não é <strong>na</strong>rrado de forma singular, existe uma unicidade que serve ao<br />
propósito da tragédia. Isso perpassa o ideal político da tragédia esquilia<strong>na</strong>, onde o solo, o<br />
território, a cidade aparece confundida coma população. Algumas referências feitas à Ate<strong>na</strong>s<br />
demonstram tal caráter.<br />
Dentro da construção da tragédia os interesses de relato do acontecimento se encontram<br />
sempre com a sua funcio<strong>na</strong>lidade e escpecificidade social e a sua estrutura física: seu enredo,<br />
métrica, composição em 3 peças, sua unicidade afetiva e moral; que aparece <strong>na</strong>s obras de<br />
Ésquilo e serve ao propósito de exaltar o soldado-cidadão, sua importância e seu papel<br />
democrático. Não esqueçamos o contexto político do soldado hoplita: as Guerras Médicas e<br />
os verdadeiros heróis da guerra: a democracia ateniense, o cidadão e os deuses. Essa noção se<br />
encontra escondida <strong>na</strong>s perguntas que a Rainha faz ao coro sobre a cidade de Ate<strong>na</strong>s, nelas<br />
ficam explicitas que a pólis grega não se renderia facilmente, que seus soldados acabaram<br />
com os vastos exércitos de Dário:<br />
R: [...] Quero saber isto,<br />
ò amigos, onde Ate<strong>na</strong>s se diz situada nessa terra?<br />
C: Longe, nos poentes dos declínios do senhor Sol.<br />
13 Outras tragédias também nos revelam a influência do outro, sua colocação social e seu tratamento dentro da<br />
sociedade grega, é o caso de Medéia de Eurípedes. Nessa tragédia a heroí<strong>na</strong> é estrangeira, mulher e está<br />
perdendo a posição de esposa legítima, pois seu marido resolveu casar-se com a filha do rei. Esse relata a<br />
situação da mulher <strong>na</strong> <strong>Grécia</strong> d século V, mas também nos mostra o tratamento dispensado a um estrangeiro,<br />
como o homem grego do século V o trata, a sua posição social dentro da polis. O contexto de ence<strong>na</strong>ção da peça<br />
também deve ser levado em conta: cerca de 50 anos antes Ate<strong>na</strong>s tinha sido invadida e destruída pelos bárbaros.<br />
Outra tragédia que rata da influência do estrangeiro é “As Bacantes”. Nela, Eurípedes discute a aceitação e<br />
incorporação de uma cultura fora dos padrões gregos, mas que foi assimilada, de uma forma ou de outra. A não<br />
aceitação de Penteu dos rituais dionisíacos faz com que Dionísio induza a mãe de Penteu a matá-lo, durante um<br />
momento de inconsciência que toma conta dela no rito dionisíaco.<br />
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R: Mas assim deseja meu filho dar caça a esse país?<br />
C: Toda a <strong>Grécia</strong> se tor<strong>na</strong>ria submissa ao Rei.<br />
R: Tal multidão de homem ela tem no exército?<br />
C: Exército tal que fez muitos males aos medos.<br />
R: E além disso, tem bastante riqueza em casa?<br />
C: Tem uma fonte de prata, tesouro do solo.<br />
R: O estica-arco dardo brilha as mãos deles?<br />
C: Não. Hastes eretas e escudadas armaduras.<br />
R: Que pastor preside e domi<strong>na</strong> o exército?<br />
C: Não se dizem servos nem submissos a ninguém.<br />
R: Como resistiriam a ataque de varões inimigos?<br />
C: De modo a destruir vasto e belo exército de Dário. (ÉSQUILO, Os Persas, V 230 – 244)<br />
As respostas às perguntas propositalmente colocadas pelo autor são uma ode ao modo<br />
de vida ateniense, a seu estilo de luta, à sua forma de governo. “Os persas” é antes de<br />
qualquer coisa uma ode à vitória grega e à derrota persa, uma ode aos soldados atenienses e à<br />
Ate<strong>na</strong>s, desse intuito provém sua unicidade. Claro que os deuses assumem um papel de<br />
destaque como em toda tragédia de Ésquilo, pois para esse autor os deuses gregos protegem o<br />
território, a guerra contra os persas foi lutada também pelos deuses, mas por trás dos deuses o<br />
ideal de modo de vida e identidade grega ainda se mostra e salta aos olhos do leitor. Outro<br />
detalhe é a imprudência do gover<strong>na</strong>nte persa, que desafia os deuses ao tentar uma prosa que<br />
seu pai anteriormente não havia conseguido. As conseqüências desastrosas de uma guerra<br />
também se revelam nessa tragédia e como tema recorrente <strong>na</strong>s peças que nos chegaram de<br />
Ésquilo.<br />
Tucídides dá continuidade ao relato iniciado por Heródoto, o revolucio<strong>na</strong>, retira todo o<br />
espaço para as anedotas e explicações fantásticas: aqui sim o relato da batalha 14 toma o<br />
primeiro lugar. Sua <strong>na</strong>rrativa de combate segue uma ordem de exposição, explicação e<br />
análise: primeiro vem o embate intelectual, as estratégias são <strong>na</strong>rradas, <strong>na</strong> forma de um<br />
debate, argumento contra argumento, ate que um vence. O relato da batalha então começa,<br />
temos a disposição da <strong>na</strong>tureza, seguindo ou não as expectativas dos estrategos, e então a<br />
descrição do embate físico que vem para comprovar ou não a vitória no primeiro estágio, o de<br />
planejamento da batalha. Segue então uma análise dos motivos da vitória ou da derrota,<br />
possível em função de todo o trabalho feito anteriormente de exposição e explicação.<br />
Tucídides segue rigorosamente esse método criado por ele, salvo algumas exceções, <strong>na</strong><br />
verdade é a primeira vez que a <strong>na</strong>rrativa segue um método <strong>na</strong> <strong>História</strong> e para a <strong>História</strong>. O<br />
14 As batalhas <strong>na</strong>rradas por Tucídides são as da Guerra do Peloponeso, <strong>na</strong> qual Ate<strong>na</strong>s e Esparta, com seus<br />
respectivos aliados, guerreiam por uma hegemonia <strong>na</strong> região da <strong>Grécia</strong> antiga.<br />
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discurso indireto 15 também aparece como uma inovação no relato histórico e permite que toda<br />
a construção da <strong>na</strong>rrativa de Tucídides siga a sua intenção: análise das vitórias e das perdas,<br />
seus motivos, para que sirvam de exemplo. Nesse ponto, seguido e radicalizando as inovações<br />
de Heródoto, Tucídides se aproxima da tragédia: oferece um padrão de comportamento a ser<br />
seguido ou a ser evitado, o que garante a universalidade dessa escrita. Isso acontece quando o<br />
autor a<strong>na</strong>lisa o resultado da batalha, colocando motivos da derrota: <strong>na</strong> batalha de Patras, por<br />
exemplo, foi a experiência ateniense no manejo dos barcos em contraste a pouca experiência<br />
dos espartanos e a desordem dos segundos diante da estratégia de combate dos primeiros,<br />
sendo inclusive essa desordem esperada pelos atenienses. Tiramos uma moral, um padrão<br />
comportamental digno de uma tragédia grega, colocado, porém em uma <strong>na</strong>rrativa<br />
completamente diferente: a experiência vence o número. 16<br />
O entendimento completo da análise no relato se dá por causa do que a precede<br />
(descrição das condições <strong>na</strong>turais, do número de soldados, das estratégias de cada lado,<br />
seguida de um debate feito pelo historiador entre os argumentos estratégicos dos lados<br />
opostos que culmi<strong>na</strong>m no resultado da bartalha) e o resultado dessa análise acontece quase<br />
como a realização proporcio<strong>na</strong>da pela katharsis <strong>na</strong> tragédia, ou seja, há uma concate<strong>na</strong>ção dos<br />
fatos e uma espécie de desfecho que confirma ou não as pretensões do autor, do leiotr ou do<br />
ouvinte. Na tragédia, toda a poesia com seu enredo, suas falas e seu ritmo são intencio<strong>na</strong>is<br />
para provocar a realização do papel do homem dentro da pólis, a reafirmação da cidadania e<br />
da política da cidade. Mostrando o comportamento do herói trágico, a consequência dos seus<br />
atos a sua posição dentro da cidade, a tragédia reafirma o valor da democracia, o valor da<br />
política no momento em que a peça é ence<strong>na</strong>da, é uma realização e reafirmação do homem<br />
quanto homem grego, ser político, com direitos políticos iguais e vivendo em uma<br />
democracia, proporcio<strong>na</strong>da pela cidade.<br />
No fim da <strong>na</strong>rrativa de Tucídides retira-se um paradigma moral, à semelhança de uma<br />
revelação, que ocorre de maneira semelhante à katharsis trágica. Toda a <strong>na</strong>rrativa converge<br />
para o momento da análise, para o agir que leva à vitória ou para o agir que leva à derrota.<br />
Embora possa não ser tão profunda e significativa socialmente, permite, em um sentido<br />
pessoal, uma autoaprimoração e uma realização também proporcio<strong>na</strong>da pela tragédia.<br />
15 A <strong>na</strong>rrativa de Heródoto ocorre <strong>na</strong> primeira pessoa, com um discurso direto. Essa forma de escrita se<br />
assemelha aos bardos do período arcaico, ao próprio Homero. O caráter direto dá ao texto um poder de<br />
convencimento, aproximando-se da linguagem oral, da retórica.<br />
16 Os espartanos estavam contando com o seu maior número ara vencer a experiência ateniense.<br />
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IV – <strong>Tragédia</strong> e <strong>História</strong>.<br />
Em decorrência da colocação da tragédia entre a explicação do myhtos e a explicação<br />
do logos, proporcio<strong>na</strong>da pela Historia, e com as semelhanças de temas e abordagens de<br />
ambos, algumas considerações merecem ser feitas.<br />
A tragédia não é <strong>História</strong>, o seu valor, porém quanto documento histórico e quanto<br />
contexto de criação desse conhecimento são inegáveis.<br />
Mais do que permitir estudar o homem grego, a tragédia proporcio<strong>na</strong> uma<br />
contextualização política e social, não só da <strong>Grécia</strong> clássica, mas da passagem do período<br />
arcaico ao clássico. Isso ocorre por causa da posição que a tragédia dispunha no panorama<br />
social e político da cidade: é ligada ao crescente relevo que o culto de Dionísio, incentivado<br />
pela a ascensão dos tiranos, aristocratas que iam contra o governo aristocrático e gover<strong>na</strong>vam<br />
com o apoio do povo, com ápice nos séculos VII e pelo século IV. Lesky chama a atenção<br />
para essa colocação política do surgimento da tragédia. “Justamente por isso é de<br />
compreender que venha a avultar agora poderosamente o deus que não é ele próprio um<br />
aristocrata olímpico, que pertence a todos os homens e principalmente aos camponeses.”<br />
(LESKY, 2010, p. 75) É a aproximação do gover<strong>na</strong>nte tirano com a figura do deus do vinho, e<br />
mais ainda com a parcela da população que se identifica com esse deus.<br />
Em segundo lugar, afirmar que a tragédia e a <strong>História</strong> <strong>na</strong>scem no mesmo contexto é<br />
negar alguns anos de desenvolvimento e mudança do gênero trágico, comprovados pela<br />
origem religiosa e posterior aplicação política, por exemplo, ou seja, de 536 ou 533 à 445,<br />
data provável da primeira tragédia ence<strong>na</strong>da e ano em que i<strong>na</strong>ugura a obra de Heródoto,<br />
respectivamente. Mais sensato seria dizer que a o surgimento da <strong>História</strong> ocorre dentro do<br />
contexto da tragédia, dentro de uma sociedade que já estava em vias de mudança, a tragédia<br />
demonstra uma abertura social para uma nova maneira de se pensar o homem por ele mesmo,<br />
que a <strong>História</strong> se apropria.<br />
Vemos a mudança gradual do enfoque nos golpes divinos, chorado pelo coro para o<br />
enfoque <strong>na</strong> ação huma<strong>na</strong> no desenrolar da trama dos perso<strong>na</strong>gens, <strong>na</strong> luta contra um destino, e<br />
mesmo esse destino tendo desig<strong>na</strong>ções diferentes: em Ésquilo é um destino divino que o<br />
homem acaba cumprindo, às vezes até por vontade própria, como é o caso de Etéocles em<br />
Sete Contra Tebas; em Sófocles vemos a luta entre uma desig<strong>na</strong>ção divi<strong>na</strong> e uma vontade<br />
huma<strong>na</strong>, já em Eurípedes o destino é muitas vezes comparado ao acaso e os motivos humanos<br />
pelos seus atos assumem um grau de responsabilidade huma<strong>na</strong> maior.<br />
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É nesse ponto que o herói trágico se sobressai, é com o enfoque <strong>na</strong> ação em cima do<br />
palco que a psicologia e a primazia sentimental se destacam, proporcio<strong>na</strong>ndo uma assimilação<br />
e negação do herói: os atos dele são compreensíveis, pois afi<strong>na</strong>l ele é humano, sujeito às<br />
mesmas leis que os outros, porém o cidadão grego jamais será um herói trágico, jamais<br />
possuirá hýbrys desse herói, e a construção da tragédia faz com que cidadão não queira ser um<br />
herói trágico, há então a negação de todo um passado arcaico: os governos aristocráticos, os<br />
combates singulares, a areté pessoal.<br />
A tragédia também mantém o mito vivo, permitindo uma nova estruturação das<br />
histórias míticas de forma que caiba dentro do contexto da cidade que vai surgindo diante de<br />
conflitos. Sem o contexto mitológico não há a formação do contexto racio<strong>na</strong>l a partir da<br />
negação do mito. A tragédia permite a reformulação do mito.<br />
Em última instância o gênero trágico proporcio<strong>na</strong> uma base <strong>na</strong> qual a história encontra<br />
um amplo campo para se locomover e ser criada. 17 Pelo menos duas dessas bases podem ser<br />
atribuídas ao surgimento da <strong>História</strong>: tensão entre passado e presente e tensão entre destino e<br />
deliberação. O rompimento com o destino jamais será possível <strong>na</strong> tragédia, porém a <strong>História</strong><br />
leva essa tensão ao extremo e chega a renegar toda essa crença no destino, acreditando <strong>na</strong><br />
potencialidade huma<strong>na</strong>. A tensão entre passado e presente é uma base existente em qualquer<br />
texto histórico, uma tensão que demorou até a história moder<strong>na</strong> para ser percebida: a<br />
impossibilidade e total reclusão do autor no ato de escrever <strong>História</strong>, o historiador é o ponto<br />
de tensão entre o passado e o presente assim como o papel do herói o é <strong>na</strong> poesia trágica. 18<br />
<strong>Tragédia</strong> não é <strong>História</strong>, mas o estudo da tragédia o é. É antes de tudo entender as<br />
possibilidades que levaram a <strong>História</strong> a existir, e encontrar origens de características até hoje<br />
persistentes no trabalho contínuo que é o escrever histórico.<br />
Fontes bibliográficas:<br />
Fontes primárias:<br />
ESQUILO. Os persas. In: Os persas, Electra e Hécuba. 5ª Ed. Jorge Zahar, 2004.<br />
17 Rachel Gazola define como nove as bases da tragédia: a tensão entre passado e presente; linguagem jurídica<br />
indicativa da relação entre Direito e <strong>Tragédia</strong>; tensão entre pessoa e cidadão; máscaras e heróis si<strong>na</strong>lizadores de<br />
uma ence<strong>na</strong>ção com distanciamento do arcaico; cadeia de crimes de sangue; conflito entre masculino e feminino;<br />
ligação entre hamarta e hýbris (erro-excesso); tensão entre destino e deliberação; debate entre deuses antigos e<br />
deuses novos.<br />
18 Tendo em vista o contexto de ence<strong>na</strong>ção da peça quando essa assume seu papel social e político <strong>na</strong> polis,<br />
porque é óbvio que o autor da peça constitui o ponto de tensão por traz dos heróis.<br />
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<strong>História</strong>, <strong>imagem</strong> e <strong>na</strong>rrativas<br />
N o 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historia<strong>imagem</strong>.com.br<br />
SÓFOCLES. Antigo<strong>na</strong>. In: A trilogia teba<strong>na</strong>: Édipo Rei, Édipo em colo<strong>na</strong> e Antígo<strong>na</strong>. 9ª Ed.<br />
Jorge Zahar.<br />
Demais obras:<br />
GAZOLA, Rachel. Para não ler ingenuamente uma tragédia grega – 1ª Ed – São Paulo:<br />
Edições Loyola, 2001.<br />
LESKY, Albin. A tragédia Grega; tradução: J. Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e<br />
Alberto Guzik – 4ª Ed – São Paulo: Perspectiva, 2010.<br />
MACHADO, Ro<strong>na</strong>ldo Silva. Entre Clio e Melpomene: A Batalha de Salami<strong>na</strong> em Heródoto e<br />
Ésquilo. In: Revista de Humanidades, Publicação do departamento de <strong>História</strong> e Geografia da<br />
Universidade Federal do Rio Grande do Norte: V.03. N.05, abril/maio de 2002.<br />
MALHADAS, Daisi. <strong>Tragédia</strong> Grega: o mito em ce<strong>na</strong> – 1ª Ed. – São Paulo: Ateliê Editorial.<br />
2003.<br />
MEDEIROS, Tito Barros Leal de Pontes. Que realidade nos cerca? Possíveis relações entre<br />
<strong>História</strong>, Filosofia e imagi<strong>na</strong>ção. Comunicação apresentada no XX Sema<strong>na</strong> de Estudos<br />
Clássicos. Universidade Federal do Ceara: Fortaleza, 2006.<br />
ROMILLY, Jacqueline de. A tragédia grega – 1ª Ed. – Brasil: Edições 70. 2008.<br />
____________________. Os relatos de batalhas: análise e <strong>na</strong>rração. In: <strong>História</strong> e razão em<br />
Tucídides. Brasília: Editora UNB, 1998.<br />
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego; Tradução: Ísis Borges B. da<br />
Fonseca – 13ª Ed. – Rio de Janeiro: Difel, 2003.<br />
___________________. Mito e sociedade <strong>na</strong> <strong>Grécia</strong> <strong>Antiga</strong>; tradução: Myriam Campello – 4ª<br />
Ed – Rio de Janeiro: José Olímpio, 2010.<br />
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<strong>História</strong>, <strong>imagem</strong> e <strong>na</strong>rrativas<br />
N o 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historia<strong>imagem</strong>.com.br<br />
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